A Soma de Todos Os Beijos - Julia Quinn
A Soma de Todos Os Beijos - Julia Quinn
A Soma de Todos Os Beijos - Julia Quinn
Londres
Tarde na noite
Primavera de 1821
Fensmore,
perto de Chatteris
Cambridgeshire
Outono de 1824
O primeiro encontro
(tal como ela se lembra)
O primeiro encontro
(tal como ele se lembra)
Na tarde seguinte
Na manhã seguinte
– Quantas?
Hugh levantou os olhos, quando Daniel se sentou no banquinho
ao lado, ao balcão do bar da estalagem.
– Quantas bebidas? – insistiu Daniel.
Hugh bebeu um longo gole de cerveja, e depois outro, pois era o
que demorava para esvaziar a caneca, e respondeu:
– Não o suficiente.
– Estás bêbedo?
– Infelizmente, não! – respondeu Hugh, fazendo sinal ao
estalajadeiro para lhe trazer outra.
– Para o senhor também, milorde? – perguntou este último a
Daniel, que abanou a cabeça.
– Chá, por favor. Ainda é cedo.
Hugh não conseguiu reprimir um sorriso trocista.
– Estão todos na sala de jantar – informou-o Daniel.
As duzentas pessoas?, quase perguntou Hugh, antes de se
lembrar que os viajantes estavam divididos por várias estalagens
para o almoço. Devia, sem dúvida, dar-se por feliz. Apenas um
quinto da caravana testemunhara a sua humilhação.
– Queres juntar-te a nós? – perguntou Daniel.
Hugh olhou-o sem responder.
– Imaginei que não.
O estalajadeiro pousou outra caneca de cerveja à frente de Hugh.
– O chá está quase pronto, senhor.
Hugh levou a caneca aos lábios e esvaziou cerca de um terço do
conteúdo num só gole. A cerveja não tinha álcool suficiente, porém.
Ele estava a demorar muito tempo a conseguir nublar o cérebro e
não pensar em nada.
– Ela tem alguma fratura? – perguntou.
Não pretendia fazer perguntas, mas tinha de saber pelo menos
isso.
– Não, é só uma entorse feia – respondeu Daniel. – O tornozelo
está inchado e a provocar-lhe muitas dores.
Hugh assentiu, pois sabia bem o que isso era.
– Vai poder prosseguir a viagem?
– Acho que sim, mas terá de seguir noutra carruagem, pois vai
precisar de manter o pé elevado.
Hugh engoliu outro longo gole de cerveja.
– Não vi o que aconteceu – disse Daniel.
Hugh gelou. Lentamente, virou-se para o amigo.
– O que estás a perguntar-me, exatamente?
– Só o que aconteceu – respondeu Daniel, aquela reação
excessiva deixando-o visivelmente incrédulo.
– Ela caiu da carruagem. E eu não consegui segurá-la.
Daniel fitou-o alguns segundos e exclamou:
– Pelo amor de Deus, não estás a culpar-te por isso, espero!
Hugh não respondeu.
– Como é que havias de a ter segurado?
Hugh agarrou com força o rebordo do balcão.
– Que raio – murmurou Daniel –, a tua perna não tem sempre
culpa. Eu provavelmente também teria falhado.
– Não, não terias – rosnou Hugh.
– As irmãs estavam a discutir – disse Daniel, após uma breve
pausa. – Aparentemente, uma delas foi empurrada contra a Sarah e
foi por isso que ela se desequilibrou.
Francamente, para Hugh, o motivo de Sarah ter caído não tinha
importância. Bebeu outro gole de cerveja, enquanto Daniel
concluía:
– Na verdade, é como se tivesse sido projetada da carruagem.
Hugh desviou a atenção da bebida tempo suficiente para rosnar:
– Aonde queres chegar, afinal?
– Ela deve ter caído com um impulso considerável.
Sem dúvida, Daniel falava com uma paciência louvável, mas Hugh
não estava com disposição para apreciar a paciência. Só queria
beber, sentir pena de si mesmo e arrancar os olhos de quem fosse
estúpido o suficiente para se aproximar dele. Terminou a cerveja,
pousou a caneca com força e fez sinal para o estalajadeiro lhe
trazer outra. Foi imediatamente servido.
– Tens a certeza de que queres beber isso? – perguntou Daniel.
– Absoluta.
– Acho que me lembro de me teres dito, um dia, que nunca bebes
antes de escurecer – comentou Daniel, com uma calma
insuportável.
Como se ele não se lembrasse! Será que Daniel achava que ele
teria ficado ali sentado, a engolir má cerveja atrás de má cerveja, se
houvesse outra maneira de aliviar a dor? Desta vez, não era apenas
a perna. Que inferno, como poderia ele ser um homem, quando a
maldita perna não era capaz de o suportar?
Hugh sentiu o coração acelerar de fúria e a respiração tornar-se
entrecortada. Havia dezenas de respostas naquele momento que
poderia ter dado a Daniel, mas apenas uma expressava o que
realmente sentia.
– Vai-te lixar!
Seguiu-se um longo silêncio e, então, Daniel desceu do
banquinho.
– Não estás em condições de passar o dia na mesma carruagem
que as minhas primas.
– Por que diabo julgas que estou a beber? – rosnou Hugh, com
um esgar da boca.
– Vou fazer de conta que não ouvi isso – respondeu Daniel com
calma – e sugiro que faças o mesmo quando voltares a ficar sóbrio.
– Caminhou para a porta e acrescentou: – Partimos daqui a uma
hora. Vou mandar alguém informar-te em que carruagem podes ir.
– Deixa-me aqui, e fica tudo resolvido.
E porque não? Ele não precisava de ir já para Whipple Hill. Podia
perfeitamente ficar a marinar na estalagem o resto da semana.
– Gostavas disso, não era? – retorquiu Daniel, com um sorriso
sem humor.
Hugh encolheu os ombros, mas o gesto que pretendia ser
insolente só conseguiu desequilibrá-lo, e ele quase caiu do banco.
– Uma hora – repetiu Daniel, antes de sair.
Hugh ficou a contemplar a sua cerveja. Sabia que, daí a uma hora,
estaria em frente à estalagem, pronto para enfrentar a segunda
parte da viagem. Se qualquer outra pessoa, qualquer uma, lhe
tivesse ordenado que estivesse pronto daí uma hora, ele teria virado
costas e saído da estalagem sem olhar para trás.
Mas nunca o faria a Daniel Smythe-Smith. E suspeitava que ele
sabia disso.
Whipple Hill,
perto de Thatcham,
Berkshire,
seis dias depois
A viagem até Whipple Hill fora terrivelmente dolorosa, mas, agora
que chegara, Sarah concluiu que talvez tivesse sido uma sorte
passar os primeiros três dias na carruagem da família Pleinsworth
com um tornozelo inchado. Claro que a viagem tinha sido cheia de
solavancos da estrada, mas, pelo menos, uma razão lógica
obrigara-a a não se mexer. Além disso, estavam todos condenados
a passar horas a fio sentados.
Esse já não era o caso.
Determinado a que a semana que antecedia o seu casamento
fosse lendária, Daniel organizara todos os entretenimentos
possíveis e imagináveis. Haveria excursões, charadas, festas
dançantes, uma caçada e, pelo menos, uma dúzia de outros
passatempos surpreendentes que seriam revelados a seu tempo.
Sarah não excluía a hipótese de o primo oferecer aulas de
malabarismo no relvado. Sabia que ele era capaz de o fazer, pois
aprendera aos doze anos, quando uma feira itinerante passara pela
aldeia.
Sarah passou o seu primeiro dia em Whipple Hill trancada no
quarto que partilhava com Harriet, com o pé apoiado em almofadas.
As outras irmãs vieram visitá-la, como fizeram Iris e Daisy, mas
Honoria ainda estava em Fensmore, onde desfrutava de alguns dias
de intimidade com o seu novo marido. Embora lhe agradasse que as
irmãs e primas a visitassem, Sarah não ficava entusiasmada com os
relatos arrebatados dos eventos fabulosos que aconteciam fora do
quarto.
O segundo dia foi quase igual, exceto pelo facto de Harriet ter tido
pena dela e prometido ler-lhe os cinco atos da peça que escrevera,
Henrique VIII e o Unicórnio do Mal, recentemente reintitulada A
Pastorinha, o Unicórnio e Henrique VIII. Sarah não entendia porquê,
já que não havia menção a nenhuma pastora na peça. Era certo que
adormecera durante alguns minutos, mas era impossível que lhe
tivesse escapado a intervenção de uma personagem fulcral o
suficiente para aparecer no título.
O terceiro dia foi o pior. Daisy trouxe o violino.
E Daisy não conhecia nenhuma peça curta...
Por essa razão, quando acordou no seu quarto dia em Whipple
Hill, Sarah jurou a si mesma descer a grande escadaria e juntar-se
ao resto da humanidade, nem que morresse na tentativa.
Deve ter feito o juramento com demasiada convicção, pois a
criada empalideceu e fez o sinal da cruz.
Uma vez no andar térreo, Sarah descobriu que metade das
senhoras tinha ido para a aldeia e a outra metade estava prestes a
juntar-se a elas.
Quanto aos homens, planeavam ir caçar.
Fora muito humilhante chegar ao pequeno-almoço nos braços de
um lacaio (Sarah não tinha pensado como pretendia descer a
imponente escadaria), portanto, assim que todos os convidados se
foram, ela levantou-se e deu um passo com toda a cautela.
Conseguia apoiar algum peso no tornozelo, se tivesse cuidado.
Mas logo se encostou a uma parede.
Talvez fosse para a biblioteca. Podia escolher um livro, sentar-se e
ler. Afinal, a leitura não exigia o uso dos pés e a biblioteca não
ficava muito longe.
Arriscou outro passo.
A biblioteca não ficava propriamente do lado oposto da casa.
Gemeu. Quem estava ela a tentar enganar? Àquele ritmo, levaria
metade do dia para chegar à biblioteca.
O que ela precisava era de uma bengala.
Parou e pensou em Lord Hugh. Há quase uma semana que não o
via. Não surpreendia, decerto; afinal, eram apenas duas pessoas
entre as duzentas que tinham feito a viagem de Fensmore para
Whipple Hill. Escusado seria dizer que ele não a visitaria enquanto
ela estivesse a convalescer no quarto.
No entanto, pensara nele, mesmo assim. Deitada na cama, com o
pé apoiado em almofadas, muitas vezes se perguntara quanto
tempo ele tivera de ficar assim, imobilizado, como ela. E, quando se
levantara a meio da noite e tivera de se arrastar até ao bacio,
começara a perguntar-se... Então, amaldiçoara a injustiça de ser
mulher. Um homem não teria necessidade de rastejar até ao bacio,
certo? Provavelmente, poderia usá-lo na cama.
Não que imaginasse Lord Hugh na cama.
Nem tão-pouco a usar bacio.
Mas, ainda assim, questionava-se como é que ele o fizera. Como
é que ainda fazia? Como é que enfrentava cada tarefa diária sem
querer arrancar os cabelos e gritar de frustração? Sarah detestava
ficar tão dependente de todos. Ainda naquela manhã, tivera de pedir
a uma criada para ir chamar a sua mãe, que decidiu que um lacaio
seria a pessoa certa para a transportar à sala do pequeno-almoço.
Sarah queria apenas caminhar pelo próprio pé sem ter de informar
ninguém sobre as suas intenções. E, se tivesse de passar por
aquela dor latejante sempre que pousasse o pé no chão, pois bem,
que assim fosse! Valia a pena, só para sair do quarto.
Os seus pensamentos voltaram para Lord Hugh. Sabia que a
perna o incomodava quando ele a esforçava demasiado, mas será
que sentia dores a cada passo que dava? Porque nunca lho
perguntara? Tinham caminhado lado a lado, por curtas distâncias, é
claro, mas ela devia ter-se apercebido se ele sentia dores. Ou, pelo
menos, devia ter perguntado.
Depois de mancar um pouco mais pelo corredor, foi forçada a
desistir e sentou-se numa cadeira. Alguém acabaria por passar.
Uma criada... um lacaio... Toda a casa estava muito atarefada.
Para passar o tempo, pôs-se a tamborilar uma música na coxa. A
mãe teria um colapso nervoso, se a visse naqueles propósitos. Uma
donzela devia ficar quieta; uma donzela devia ter uma voz suave,
uma risada cristalina e um monte de qualidades que lhe eram
absolutamente antinaturais. Realmente, era notável que amasse
tanto a mãe. Por todas as razões, elas deviam querer matar-se uma
à outra.
Minutos mais tarde, Sarah ouviu alguém aproximar-se, mas
hesitou em chamar. Precisava de ajuda, claro, mas...
– Lady Sarah?
Era ele. Não sabia porque ficara tão espantada. Ou feliz. Mas
estava. A última conversa deles fora horrível, mas, quando viu Lord
Hugh Prentice atravessar o corredor para se juntar a ela, sentiu-se
invadida por uma incrível felicidade.
Uma vez perto dela, ele olhou para ambos os lados do corredor e
perguntou:
– Que faz aqui?
– Estou a descansar, confesso – disse ela, antes de levantar
ligeiramente o pé magoado. – As minhas capacidades não
corresponderam às minhas ambições.
– Não devia estar de pé.
– Acabei de passar três dias praticamente amarrada à cama.
Era imaginação sua ou, de repente, ele pareceu embaraçado?
Sarah continuou a falar.
– E os três dias antes desses fechada numa carruagem...
– Como todos nós.
– Talvez, mas todos tiveram a oportunidade de sair e andar um
pouco – replicou ela, com ar rabugento.
– Ou mancar – corrigiu ele, em tom seco.
Ela observou-o, mas, se havia alguma emoção por trás daqueles
olhos, não foi capaz de a interpretar.
– Devo-lhe um pedido de desculpa – disse ele, rigidamente.
– Desculpa? Porquê? – perguntou, incrédula.
– Por não conseguido segurá-la.
Fitou-o novamente, perplexa pela possibilidade de ele se culpar
pelo que, obviamente, fora um acidente.
– Não seja ridículo – assegurou ela. – A minha queda era
inevitável. A Elizabeth estava a pisar a bainha da capa da Frances,
ela a puxar, e quando a Elizabeth levantou o pé... – Sarah sacudiu a
mão. – Em suma, não sei como, mas a Harriet acabou a cair por
cima de mim. Se tivesse sido apenas a Frances, talvez eu tivesse
recuperado o equilíbrio.
Ele não disse nada, e ela foi novamente incapaz de interpretar a
sua expressão.
– Eu estava no degrau, entende? – insistiu ela. – Foi aí que torci o
tornozelo. Não quando caí ao chão. – Não via como esse facto
pudesse fazer diferença, mas sempre tivera dificuldade em segurar
as palavras quando estava nervosa. – Eu também lhe devo um
pedido de desculpa – acrescentou, após uma hesitação.
Quando ele lhe deu um olhar interrogativo, ela engoliu em seco e
explicou:
– Fui muito indelicada consigo na carruagem.
Ele começou uma frase, provavelmente, «não diga disparates»,
mas ela interrompeu-o.
– A minha reação foi excessiva. Foi muito... embaraçoso... a peça
de Harriet. E quero que saiba que me teria comportado da mesma
maneira com qualquer outro homem. Por isso, peço-lhe que não se
sinta ofendido. Pelo menos, não o tome por pessoal.
Santo Deus, só estava a dizer disparates! Nunca fora boa a pedir
desculpa. Na maioria das vezes, recusava-se simplesmente a fazê-
lo.
– Vai com os outros cavalheiros à caça? – perguntou.
A boca contorceu-se num esgar e ele confessou com um encolher
de sobrancelhas irónico:
– Não posso.
– Oh! Peço desculpa! – resmungou Sarah, achando-se uma
completa idiota. – Foi uma falta de sensibilidade terrível da minha
parte.
– Não há necessidade de evitar o assunto, Lady Sarah. Sou coxo,
é um facto. E não é certamente culpa sua.
Ela anuiu.
– Mesmo assim, peço desculpa.
Por uma fração de segundo, ele pareceu hesitar sobre o que fazer.
Então, respondeu em voz baixa:
– Desculpas aceites.
– Não gosto dessa palavra, no entanto – disse ela.
Ele ergueu o sobrolho com ar interrogativo.
– Coxo – esclareceu ela, torcendo o nariz. – Lembra-me um
cavalo.
– Tem uma alternativa a propor?
– Não. Mas não me compete resolver os problemas do mundo.
Apenas expô-los.
Ele olhou-a fixamente.
– Estou a brincar!
Ele, finalmente, sorriu.
– Bem – disse ela –, suponho que seja brincadeira apenas em
parte. Não tenho outro termo para sugerir e provavelmente não
consigo resolver os problemas do mundo, embora, para ser
honesta, ninguém me tenha dado oportunidade de tentar.
Fitou-o de olhos semicerrados, como se o desafiasse a fazer um
comentário.
Para sua surpresa, ele soltou uma risada.
– Diga-me, Lady Sarah, o que planeou fazer esta manhã? Duvido
que pretenda ficar sentada no corredor o dia todo.
– Ia ler para a biblioteca – admitiu ela. – É um disparate, eu sei,
pois é o que tenho feito no meu quarto nos últimos dias, mas quero
muito estar noutro sítio que não o meu quarto. Acho que era capaz
de ler num guarda-vestidos, só pela mudança de paisagem.
– Seria uma mudança de paisagem interessante – admitiu ele.
– Escura – concordou ela.
– E lanosa.
Sarah apertou os lábios, numa tentativa vã de conter uma risada.
– Lanosa? – repetiu.
– Era o que encontraria no meu guarda-fatos.
– Estou a imaginar um rebanho de ovelhas. – Fez uma pausa,
depois uma careta e acrescentou: – E o que faria a Harriet com uma
cena dessas numa das suas peças.
Ele levantou a mão para a impedir de continuar e sugeriu:
– Vamos mudar de assunto.
Sarah inclinou a cabeça para o lado e deu-se conta de que sorria
sedutoramente. Parou logo. O que não a impediu de se sentir
inexplicavelmente coquete.
Então, sorriu outra vez, porque adorava sorrir, porque gostava de
se sentir coquete e, acima de tudo, porque Lord Hugh sabia que ela
não estava realmente a namoriscar com ele. Não estava. Era
apenas um sentimento passageiro por ter ficado trancada no quarto
durante tanto tempo sem ver ninguém além das irmãs e primas.
– Então, estava a caminho da biblioteca – disse ele.
– Sim.
– E saiu de...
– Da sala de pequeno-almoço.
– Não chegou muito longe.
– Não – admitiu ela –, não cheguei.
– Ocorreu-lhe que talvez não deva pôr peso nesse pé? –
perguntou ele, cauteloso.
– Para dizer a verdade, sim.
Ele arqueou uma sobrancelha.
– Orgulho?
– Demasiado para o meu próprio bem – confirmou ela, com um
aceno de cabeça contrito.
– O que fazemos agora?
Sarah olhou para o tornozelo traiçoeiro.
– Talvez seja melhor eu ir pedir a alguém que me leve até lá.
Houve um longo silêncio. Quando ela, finalmente, olhou para
cima, ele estava meio virado e ela só lhe viu o perfil. Ele pigarreou e
perguntou:
– Quer experimentar a minha bengala?
Sarah permaneceu em silêncio um momento.
– Mas... não precisa dela?
– Não para distâncias curtas. Ajuda – acrescentou, sem dar tempo
a Sarah para apontar que nunca o vira sem bengala –, mas não é
absolutamente necessária.
Estava prestes a aceitar. Chegou a estender a mão para a
bengala, mas então mudou de ideias. Lord Hugh era o tipo de
homem para fazer algo estúpido por puro cavalheirismo.
– Pode andar sem a bengala – disse ela, fitando-o diretamente
nos olhos –, mas isso significa que a dor na perna será mais forte
depois?
Ele demorou muito a responder.
– Provavelmente.
– Obrigada por não mentir.
– Quase o fiz – admitiu ele.
Sarah permitiu-se um leve sorriso.
– Eu sei.
– Agora tem de aceitar – disse ele, agarrando a bengala pelo meio
para que o punho ficasse virado para Sarah agarrar. – A minha
honestidade merece ser recompensada.
Sarah sabia que devia recusar a oferta. Talvez ele quisesse ajudá-
la agora, mas pagaria o preço mais tarde. Sem qualquer
necessidade.
Contudo, algo lhe dizia que a sua recusa lhe infligiria mais dor do
que a que sentiria na perna mais tarde. Ele precisava de a ajudar,
percebeu.
Precisava mais de a ajudar do que ela mesma precisava de
ajuda.
Por alguns instantes, Sarah não conseguiu reagir.
– Lady Sarah?
Ergueu o olhar. Ele observava-a com uma expressão curiosa, e os
olhos... Como era possível que aqueles olhos ficassem mais bonitos
de cada vez que o via? Ele não sorria. Para dizer a verdade, não
sorria com muita frequência. No entanto, ela viu-lhe nos olhos um
brilho caloroso e feliz.
Um brilho que não existia naquele primeiro dia em Fensmore.
Sentiu-se profundamente abalada, ao perceber que nunca queria
que desaparecesse.
– Obrigada – disse, mas, em vez de pegar na bengala, estendeu a
mão para ele. – Ajuda-me a levantar?
Nenhum dos dois usava luvas e a sensação de calor da pele dele
fê-la estremecer. Ele fechou a mão firmemente na dela, puxou
levemente e ela viu-se de pé. Ou num pé, mais exatamente, num
equilíbrio precário.
– Obrigada – repetiu, preocupada por a voz ter saído tão
ofegante.
Sem dizer uma palavra, ele estendeu-lhe a bengala, que Sarah
aceitou. Havia algo quase íntimo no ato de segurar aquele objeto
que se tornara quase uma extensão do corpo dele.
– É um pouco alta para si – disse ele.
– Eu arranjo-me – declarou Sarah, testando um passo.
– Não, não, precisa de se apoiar mais nela. Assim – explicou ele,
colocando-se atrás dela e pousando a mão na que segurava a
bengala.
Sarah parou de respirar. Ele estava tão perto que lhe sentia o
hálito quente fazer-lhe cócegas na orelha.
– Sarah? – sussurrou ele.
Ela assentiu, precisando de um momento para recuperar o uso da
voz.
– Eu... acho que entendi agora.
Ele afastou-se e, por um momento, ela não sentiu senão a falta da
sua presença. Era surpreendente e desconcertante e...
Frio.
– Sarah?
A custo, ela saiu do estranho devaneio.
– Desculpe – murmurou. – Estava distraída.
Ele sorriu. Talvez fosse um sorriso amigável, mas ligeiramente
trocista.
– O que foi? – perguntou, pois nunca o vira sorrir daquela
maneira.
– Estava apenas a pensar onde ficaria o tal guarda-vestidos.
Sarah levou um momento a entender a piada – decerto teria
entendido instantaneamente, se não estivesse tão perturbada – e
devolveu o sorriso. De repente, disse:
– Chamou-me Sarah.
Ele fez uma ligeira pausa e respondeu:
– Sim. Peço desculpa. Foi sem querer.
– Não importa – apressou-se ela a dizer. – Acho que gosto.
– Acha?
– Tenho a certeza – afirmou. – Somos amigos agora, acho.
– Acha?
Desta vez, o sorriso era verdadeiramente trocista.
Ela atirou-lhe um olhar sarcástico.
– Não foi capaz de resistir, pois não?
– Não – murmurou ele –, creio que não.
– Foi tão horrível que quase foi bom – comentou ela.
– E isso foi tão insultuoso, que quase me sinto elogiado.
Sarah apertou os lábios para não sorrir. Era uma batalha de
sagacidade e, de alguma forma, sabia que, se risse, perdia. Ao
mesmo tempo, porém, perder não parecia uma perspetiva assim tão
terrível. Pelo contrário.
– Vamos – disse ele, com severidade fingida. – Vamos ver se
consegue chegar à biblioteca.
Ela conseguiu. Não foi fácil nem indolor, pois na verdade ainda
não deveria andar a pé, mas conseguiu.
– Está a ir muito bem – disse ele, quando já se aproximavam do
destino.
– Obrigada – agradeceu Sarah, sentindo um prazer ridículo com o
elogio. – É maravilhosa, esta independência. Era horrível depender
de alguém para me deslocar. É assim que se sente? – perguntou,
por cima do ombro.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso irónico.
– Não exatamente.
– A sério? Porque... – Sarah quase se engasgou. – Não importa.
Que idiota era! Obviamente que não era o mesmo para ele. Ela
estava a usar uma bengala temporariamente. Enquanto ele nunca
mais poderia passar sem aquilo.
A partir desse momento, deixou de se questionar porque é que ele
sorria tão raramente. Em vez disso, sentiu-se maravilhada pelo facto
de ele ser capaz de sorrir.
Capítulo 13
arah sabia que não devia ter saído a meio da noite. Não tinha
S permissão para sair à rua em Londres sem um acompanhante e
sabia perfeitamente que uma escapada noturna no Berkshire
também era proibida.
Mas estava tão inquieta, tão... insatisfeita. Era como se a própria
pele a incomodasse e, quando saíra da cama e pousara os pés no
tapete, o quarto parecera-lhe pequeno de mais. A casa inteira
parecia-lhe pequena de mais. Precisava de se mexer, de sentir o ar
frio da noite na pele.
Nunca se sentira assim e, com toda a sinceridade, não encontrava
explicação para isso.
Mas agora sabia.
Precisava dele. De Hugh.
Simplesmente, não o sabia.
Em algum momento entre a viagem de carruagem, o bolo de
casamento e a valsa disparatada no relvado, Sarah Pleinsworth
tinha-se apaixonado pelo homem que nunca deveria ter cobiçado.
E quando ele a beijara...
Ela quisera mais.
– És tão linda – murmurou ele e, pela primeira vez na vida, Sarah
realmente acreditou que sim.
Acariciou-lhe a face e respondeu:
– Tu também.
Hugh olhou para ela com um meio sorriso totalmente incrédulo.
– És, sim – insistiu ela. Tentou fazer uma expressão severa, mas
foi incapaz de não sorrir. – Tens de acreditar na minha palavra.
Hugh continuou calado. Fitava-a como se ela fosse algo raro e
precioso e, sob aquele olhar, ela sentia-se preciosa. Naquele
instante, tudo o que desejava era que ele sentisse o mesmo.
Porque ela sabia que, infelizmente, não era esse o caso.
Hugh dissera coisas... nada mais do que insinuações ou
comentários estranhos aqui e ali, certamente convencido de que
ninguém se lembraria. Mas Sarah escutava-o. E lembrava-se. Sabia
que Hugh Prentice não era feliz. Pior, que ele pensava que não o
merecia ser.
Não era o tipo de homem que procurasse a multidão. Ele não
queria ser um líder, mas Sarah também sabia que Hugh não era um
seguidor. Tinha um carácter ferozmente independente, não temia a
solidão.
Mas ele estivera mais do que sozinho nos últimos anos. Sozinho
com aquele sentimento esmagador de culpa. Sarah não sabia como
conseguira ele convencer o pai a permitir que Daniel regressasse a
Inglaterra em segurança e não ousava imaginar as dificuldades que
tivera de enfrentar para viajar a Itália e trazer Daniel de volta.
Porém, fizera tudo isso. Hugh Prentice fizera tudo o que era
humanamente possível para reparar os seus erros e, no entanto,
ainda não estava em paz consigo mesmo.
Era um homem bom, que defendia meninas e unicórnios e
dançava a valsa com uma bengala. Não merecia que um erro
isolado definisse para sempre a sua vida.
Sarah Pleinsworth nunca fizera nada pela metade e sabia que, se
amasse aquele homem, dedicaria a sua vida a fazê-lo entender um
simples facto.
Ele também era precioso e merecia cada momento de felicidade
que viesse a ter.
Sarah acariciou-lhe os lábios com as pontas dos dedos. Eram
macios e maravilhosos, e sentia-se honrada apenas por sentir a
respiração na sua pele.
– Às vezes, ao pequeno-almoço, não consigo tirar os olhos da tua
boca – confessou ela.
Ele estremeceu. Ela adorava ser capaz de o fazer estremecer.
– E os teus olhos... – continuou, encorajada pela reação dele. –
Sabias que muitas mulheres matariam para ter olhos dessa cor?
Ele abanou a cabeça e parecia tão desorientado, que ela não
conseguiu conter um sorriso de pura alegria.
– Acho que és lindo e acho que... – sussurrou, antes de se
interromper. O coração falhou uma batida e ela mordeu o lábio antes
de continuar: – ...não, espero que a minha opinião seja a única que
importa.
Ele curvou-se e roçou os lábios nos dela. Deu-lhe um beijo no
nariz, depois na testa e fitou-a demoradamente nos olhos antes de a
beijar na boca novamente, desta vez sem restrições.
Sarah deixou escapar um gemido, o som rouco ficando preso na
boca dele. O beijo de Hugh era faminto e voraz, e, pela primeira vez
na vida, ela entendeu o que era paixão.
Não, aquilo ia além da paixão.
Era uma necessidade vital.
Hugh precisava dela. Sarah sentia-o em cada movimento dele;
ouvia-o no exalar rouco da sua respiração. E cada carícia daquelas
mãos, cada toque da língua alimentava a mesma necessidade nela.
Não sabia que era possível desejar um ser humano com tal
intensidade.
Sarah deslizou as mãos por baixo da camisa dele e correu os
dedos sobre a pele. Os seus músculos contraíram-se ao toque e ele
respirou fundo, o ar roçando a face dela como um beijo.
– Não tens ideia... não tens ideia do que provocas em mim – disse
ele, em voz rouca.
Ela viu a chama da paixão nos seus olhos e sentiu-se mais forte e
mais mulher do que nunca.
– Diz-me – sussurrou, antes de arquear o pescoço e chegar aos
lábios dele para um beijo suave e fugaz.
Por um momento, achou que ele diria as palavras. Mas ele
abanou a cabeça e disse:
– Seria a minha morte.
Tomou-lhe a boca novamente e ela deixou de querer saber o que
provocava nele, desde que continuasse o que estava a fazer.
– Sarah – disse, afastando os lábios apenas o breve instante
necessário para sussurrar o nome dela.
– Hugh – devolveu ela o sussurro, ciente do sorriso na própria
voz.
Ele afastou-se ligeiramente.
– Estás a sorrir.
– Não consigo evitar – admitiu ela.
Ele acariciou-lhe a face, contemplando-a com tanta emoção que
ela quase se esqueceu de respirar. Seria amor o que lia naqueles
olhos? Parecia que sim, mesmo que ele não tivesse dito as
palavras.
– Temos de parar – disse ele, antes de lhe compor
carinhosamente a camisa de noite.
Sabia que ele tinha razão, mas ainda assim murmurou:
– Quem me dera que pudéssemos ficar.
Hugh soltou uma espécie de risada sufocada e quase dolorosa.
– Não imaginas o quanto eu gostaria também.
– Ainda faltam muitas horas para o amanhecer – disse ela,
suavemente.
– Não vou desonrar-te – respondeu ele, antes de levar a mão dela
aos lábios. – Não assim.
Uma bolha de alegria rebentou dentro dela.
– Isso significa que pretendes desonrar-me de outra maneira?
Com um sorriso sedutor, ele levantou-se e ajudou-a a fazer o
mesmo.
– Gostaria muito de o fazer. Mas não lhe chamaria desonra. A
desonra é o que acontece a uma reputação, não o que acontece
entre um homem e uma mulher. Pelo menos – acrescentou numa
voz sensual –, não para o que está a acontecer entre nós.
Sarah estremeceu de prazer. Nunca sentira o próprio corpo tão
vivo. Nunca sentira a alma tão viva. Não sabia como conseguiria
chegar ao quarto. Os seus pés queriam correr, os seus braços
queriam abraçar o homem que caminhava a seu lado, ela queria rir,
e o seu coração...
O seu coração...
Parecia embriagado. Embriagado de amor.
Hugh acompanhou-a à porta do quarto. A casa inteira dormia.
Desde que não fizessem barulho, não tinham nada a temer.
– Até amanhã – sussurrou Hugh, levando a mão dela aos lábios.
Sarah assentiu em silêncio. Não havia palavras para expressar
tudo o que lhe ia no coração.
Estava apaixonada. Lady Sarah Pleinsworth estava apaixonada.
E era maravilhoso.
Na manhã seguinte
– Estás esquisita.
Sarah pestanejou para afastar o sono e olhou para Harriet, que,
empoleirada na beira da cama de dossel, a observava com bastante
desconfiança.
– Como assim? – resmungou Sarah. – Não tenho nada de
esquisito.
– Estás a sorrir.
Apanhada de surpresa, Sarah só conseguiu responder:
– Essa agora, não posso sorrir?
– Não logo ao acordar.
Sarah concluiu que não havia uma resposta adequada, portanto,
decidiu prosseguir a sua rotina matinal. No entanto, Harriet, com a
curiosidade despertada, seguiu-a ao lavatório, de olhos
semicerrados, a cabeça inclinada para o lado e a emitir pequenos
«hums» a intervalos irregulares.
– Passa-se alguma coisa? – perguntou Sarah.
– Passa-se? – questionou Harriet.
Santo Deus, e a dramática era ela.
– Estou a tentar lavar a cara – disse Sarah.
– Por quem sois, não quero impedir-te.
Sarah mergulhou as mãos na água do lavatório, mas, antes de
conseguir fazer qualquer coisa com ela, Harriet enfiou a cabeça
entre as mãos e o nariz de Sarah.
– Harriet, que se passa contigo?
– Isso pergunto eu! – retorquiu a irmã.
Sarah deixou a água escorrer por entre os dedos.
– Não faço a mais pequena ideia do que estás a falar.
– Tu estás a sorrir – acusou Harriet.
– Que tipo de pessoa julgas que sou, se não tenho o direito a
acordar de bom humor?
– Tens o direito! Só acho que és inerentemente incapaz.
De facto, toda a família sabia que Sarah não acordava bem-
disposta.
– E agora estás a corar – acrescentou Harriet.
Sarah resistiu à vontade de lhe atirar água à cara, preferindo
utilizá-la em si própria. Depois de secar o rosto com uma toalhinha
branca, respondeu:
– Pode ser pelo esforço de ter de te aturar logo pela manhã.
– Não, não acho que seja isso – revidou Harriet, impermeável ao
sarcasmo.
Sarah passou por ela. Se o seu rosto não corara antes, corara
certamente agora.
– Passa-se alguma coisa contigo – insistiu Harriet, correndo atrás
dela.
Sarah parou, mas não se virou.
– Pretendes seguir-me ao bacio?
Houve um silêncio muito satisfatório, seguido de:
– Hum... não.
Com a cabeça erguida, Sarah foi ao pequeno quarto de banho e
fechou a porta.
Aliás, trancou-a, pois não excluía a hipótese de que, depois de
contar até dez, Harriet concluísse ter-lhe dado tempo de sobra para
tratar do que tinha a tratar e entrasse de rompante.
Assim que ficou barricada contra invasões, Sarah virou-se e
encostou-se à porta, soltando um longo suspiro.
Oh, meu Deus!
Oh, meu Deus!
Estaria assim tão diferente depois da noite anterior, que a irmã
conseguia ver-lho no rosto? E, se estava assim tão diferente depois
de alguns beijos roubados, o que aconteceria quando...
Bem, talvez fosse mais razoável dizer «se».
Porém, o seu coração dizia-lhe que seria «quando». Ia passar o
resto da vida com Lord Hugh Prentice. Estava simplesmente fora de
questão permitir que fosse de outra maneira.
Quando Sarah desceu para o pequeno-almoço, ainda com Harriet
nos calcanhares a questionar cada sorriso, era óbvio que o tempo
mudara. O sol, que havia brilhado toda a semana, recuara para trás
de ameaçadoras nuvens de um cinzento de chumbo, e rajadas de
vento anunciavam uma tempestade iminente.
O passeio dos homens – uma ida a cavalo ao rio Kennet – foi
cancelado, e Whipple Hill zumbia com a energia por gastar de
dezenas de aristocratas ociosos. Tendo-se acostumado a ter grande
parte da casa só para si durante o dia, Sarah descobriu, com
surpresa, que se ressentia pelo que considerava quase uma
intromissão à sua privacidade.
Para complicar as coisas, Harriet aparentemente decidira que a
sua missão do dia era seguir todos os atos e gestos de Sarah e
interrogá-la. Whipple Hill era uma casa grande, mas não o suficiente
quando se tinha uma irmã curiosa e determinada, e, mais importante
ainda, que conhecia todos os cantos.
Hugh estivera presente ao pequeno-almoço, como sempre, mas
fora impossível a Sarah falar com ele sem que Harriet se metesse
na conversa. E quando Sarah foi para a pequena sala de estar para
ler, tal como dissera como quem não quer a coisa durante o
pequeno-almoço, encontrou Harriet sentada à secretária, com as
folhas do seu trabalho atual à frente.
– Sarah, que surpresa ver-te aqui! – disse, alegremente.
– Uma surpresa, de facto – respondeu Sarah num tom
deliberadamente neutro.
A sua irmã nunca fora muito boa na arte do subterfúgio.
– Vais ler? – inquiriu Harriet.
Sarah olhou para o romance que tinha na mão.
– Disseste que ias ler – lembrou-lhe Harriet. – Ao pequeno-
almoço.
Sarah virou os olhos para a porta, considerando as alternativas de
que dispunha naquela manhã.
– A Frances anda à procura de alguém que brinque com ela ao
Bom Unicórnio – informou Harriet.
Estava decidido. Sarah sentou-se no sofá e abriu o Miss
Butterworth. Folheou o livro, à procura da página onde tinha parado
e depois franziu a testa.
– É um jogo? – perguntou. – O Bom Unicórnio?
– Ela diz que é uma versão do Bom Barqueiro – explicou Harriet.
– Como é que se substituem barqueiros por unicórnios?
Harriet encolheu os ombros.
– Também não são precisos verdadeiros barqueiros para jogar.
– Ainda assim, estraga o ritmo – disse Sarah. Abanou a cabeça,
tentando lembrar-se da cantilena de infância que acompanhava o
jogo. – Bom unicórnio, bom unicórnio...
Olhou para Harriet em busca de inspiração.
– Juntam-se as duas palavras, para fazer Bonicórnio?
– Não me parece.
– Gentilcórnio?
– Está melhor – concordou Sarah, com a cabeça inclinada para o
lado.
– Foficórnio?
E... já chegava de parvoíce. Sarah voltou a atenção para o livro e
declarou:
– Vamos parar por aí, Harriet.
Sarah olhou para o livro, mas viu-se a cantarolar a rima infantil
enquanto lia.
Bom barqueiro, bom barqueiro, deixai-me passar...
Entretanto, Harriet, curvada sobre a secretária, resmungava
baixinho:
– Docicórnio, gracicórnio...
Tenho filhos pequeninos para acabar de criar...
– Oh, é isso, já sei! Hughnicórnio!
Sarah congelou. Impossível fingir que não ouvira. Com deliberada
lentidão, marcou a página com o dedo indicador e olhou para cima.
– O que disseste?
– Hughnicórnio – repetiu Harriet, como se não fosse nada de
estranho. – Em homenagem a Lord Hugh, claro – acrescentou, com
olhar matreiro. – Ele parece ser um tema frequente de conversa.
– Não da minha – respondeu Sarah de imediato.
Lord Hugh Prentice podia ocupar todos os seus pensamentos,
mas não se lembrava de o ter trazido à conversa com a irmã uma só
vez.
– O que eu queria dizer – insistiu Harriet – é que ele é um sujeito
frequente das tuas conversas.
– Não é a mesma coisa?
– Ele é um participante frequente das tuas conversas – corrigiu
Harriet de imediato.
– Gosto de falar com ele – disse Sarah, sabendo que era inútil
negar.
– Exatamente – continuou a irmã, estreitando os olhos inquisitivos.
– O que me leva a perguntar se será também ele a fonte do teu bom
humor atípico.
Sarah soltou um bufo impaciente.
– Estou a ficar ofendida, Harriet. Desde quando não sou
considerada uma pessoa de bom humor?
– Desde a primeira manhã da tua existência.
– É muito injusto – reclamou Sarah, pois estava certa de que
também era inútil negá-lo.
De forma geral, nunca era aconselhável negar qualquer coisa que
fosse indiscutivelmente verdade. Especialmente na presença de
Harriet.
– Eu acho que tens um fraquinho por Lord Hugh – declarou
Harriet.
E porque estava a ler Miss Butterworth e o Barão Louco, em que
os barões (loucos ou não) apareciam à porta no exato momento em
que alguém dizia o nome deles, Sarah levantou a cabeça.
Ninguém.
– Alguma vez haveria de ser a primeira – murmurou ela.
– Disseste alguma coisa? – perguntou a irmã, lançando-lhe uma
olhadela rápida.
– Estava simplesmente a admirar o facto de Lord Hugh não
aparecer à porta no momento em que disseste o nome dele.
– Não tens assim tanta sorte – ironizou Harriet.
Sarah revirou os olhos ao comentário.
– A propósito, creio que acabei de dizer que tens um fraquinho por
Lord Hugh.
Sarah olhou para a porta. Porque, na verdade, não poderia ter
tanta sorte duas vezes.
Ainda nada de Hugh.
Bem, aquilo era novo e inesperado.
Ela tamborilou os dedos por um momento no livro e disse em voz
baixa:
– Oh, quem me dera encontrar um cavalheiro que veja para além
das minhas irritantes três irmãs e... porque não?... do meu dedo do
pé vestigial!
Olhou para a porta.
E ali estava ele.
Sarah sorriu. No entanto, considerando bem as coisas, era melhor
parar com a história do dedo do pé vestigial. Seria uma pena se
acabasse a dar à luz um bebé com seis dedos.
– Interrompo? – perguntou Hugh.
– Claro que não! – respondeu Harriet, entusiasticamente. – A
Sarah está a ler e eu estou a escrever.
– Então interrompo.
– De modo nenhum! – protestou Harriet.
Procurou a ajuda de Sarah, que não viu motivo para intervir.
– Não preciso de silêncio para escrever – explicou Harriet.
Hugh arqueou uma sobrancelha interrogativa.
– Não pediu às suas irmãs para ficarem caladas na carruagem?
– Oh, isso foi diferente! – Antes que alguém pudesse perguntar
porquê, ela convidou: – Quer juntar-se a nós?
Depois de assentir educadamente, Hugh entrou na sala. Sarah
observou-o a contornar uma poltrona. Reparou pelo andar que ele
se apoiava mais do que o habitual na bengala. Franziu o sobrolho,
antes de se lembrar que ele tinha atravessado a casa num ritmo
acelerado na noite passada. Sem a bengala.
Sarah esperou que ele se sentasse na outra ponta do sofá e
sussurrou:
– A perna está a incomodá-lo?
– Um pouco.
Hugh pousou a bengala no chão e esfregou o músculo com um
gesto distraído. Sarah pensou se ele saberia que o fazia.
De repente, Harriet levantou-se e anunciou:
– Acabei de me lembrar de uma coisa!
– De quê? – perguntou Sarah.
– É... hã... uma coisa sobre... a Frances!
– O que tem a Frances?
– Oh, nada de especial, na verdade, apenas...
Harriet reuniu os papéis espalhados com gestos urgentes e depois
pegou no maço inteiro, dobrando algumas folhas ao fazê-lo.
– Cuidado – avisou Hugh.
Harriet fitou-o sem entender.
– Está a amassá-las – explicou ele, apontando para as páginas.
– Sim! Mais uma razão para eu sair. – Deu um passo para o lado
em direção à porta e depois outro. – Bem, vou indo...
Sarah e Hugh viraram-se para a ver sair, mas, apesar de todos os
seus protestos, ela parecia pairar perto da porta.
– Não tinhas de encontrar a Frances? – insistiu Sarah.
– Sim. – Harriet pôs-se em bicos de pés, voltou a pousá-los no
chão e disse: – Bem... adeus.
Finalmente saiu.
Sarah e Hugh olharam-se por alguns segundos antes de soltar
uma risada.
– O que foi aqu... – começou ele.
– Desculpem! – interrompeu Harriet, reentrando a correr na sala
de estar. – Esqueci-me de uma coisa.
Correu para a secretária, fez o gesto de pegar num objeto e,
embora Sarah tivesse a impressão de que a irmã não pegara em
nada, também não tinha um campo de visão desimpedido para ter a
certeza, e saiu apressada, fechando a porta atrás de si.
Sarah ficou boquiaberta.
– O que foi? – perguntou Hugh.
– Menina matreira! Fingiu esquecer-se de qualquer coisa só para
poder fechar a porta.
– E isso incomoda-te? – quis saber Hugh, arqueando uma
sobrancelha.
– Não, claro que não. Só nunca pensei que ela pudesse ser tão
ardilosa. – Depois de pensar no que acabara de dizer, Sarah
corrigiu: – O que estou a dizer? É claro que ela é ardilosa.
– O que eu acho interessante é a tua irmã estar tão determinada a
deixar-nos sozinhos – comentou Hugh, acrescentando com certa
malícia: – Com a porta fechada.
– Ela acusou-me de ter um fraquinho por ti.
– Ah, sim? O que respondeste?
– Creio que evitei fazê-lo.
– Muito bem, Lady Sarah, mas eu não desanimo tão facilmente.
Sarah moveu-se um pouco no sofá para se aproximar dele.
– Ai não?
– Não! – respondeu ele, pegando na mão dela. – Se eu te
perguntasse se tens um fraquinho por mim, posso assegurar-te que
não escapavas tão facilmente.
– Se me perguntares se tenho um fraquinho por ti – contrapôs
Sarah, permitindo que ele a puxasse –, talvez eu não queira
escapar.
– Talvez? – repetiu ele, em voz baixa e rouca.
– Bem, talvez eu precise que alguém me convença um pouco...
– Só um pouco?
– Um pouco pode ser o que preciso – disse ela, soltando um
suspiro ofegante quando os corpos de ambos se tocaram, antes de
responder –, mas a verdade é que quero muito.
Ele roçou os lábios ao de leve nos dela e comentou:
– Vejo que tenho algum trabalho a fazer.
– Sorte a minha, porque não me pareces homem de recear algum
trabalho árduo.
Ele abriu um sorriso predador.
– Posso garantir-lhe, Lady Sarah, que vou trabalhar arduamente
para garantir o seu prazer.
Sarah achou aquilo bastante promissor.
Capítulo 16
– O que faz aqui? – exigiu saber Hugh, assim que entrou numa
das salas de jantar privadas da estalagem White Hart.
– Nem me cumprimentas? – perguntou o pai, sem se incomodar
em levantar-se. – Não perguntas sequer: «Pai, o que o traz ao
Berkshire neste belo dia?»
– Está a chover.
– E a natureza renova-se – disse Lord Ramsgate, jovial.
Hugh olhou-o com frieza. Detestava quando o pai assumia aquele
tom de falsa cordialidade.
– Senta-te – ordenou o marquês, apontando para uma cadeira do
outro lado da mesa.
Hugh teria preferido permanecer de pé, só por uma questão de
contradição, mas a perna estava a doer-lhe e o desejo de irritar o
pai não era forte o suficiente para sacrificar o conforto, portanto,
sentou-se.
– Vinho? – perguntou o pai.
– Não.
– Também não é grande coisa – disse o pai, o que não o impediu
de esvaziar o copo. – Devia mesmo trazer o meu próprio vinho
quando viajo.
Hugh manteve um silêncio glacial, esperando que o pai fosse
direto ao assunto.
– O queijo é comestível – continuou o marquês, pegando numa
fatia de pão da tábua de queijos na mesa. – Pão? É difícil estragar
um pedaço de...
– Que diabo se passa? – explodiu Hugh, incapaz de se controlar.
Obviamente, o pai só estava à espera daquela reação. O rosto
abriu-se com um sorriso de satisfação e ele recostou-se na cadeira.
– Não consegues adivinhar?
– Não me atrevo a tentar.
– Estou aqui para te felicitar.
– O quê? – perguntou Hugh, observando-o com evidente
desconfiança.
– Não sejas tímido – retorquiu o pai, agitando o dedo indicador. –
Ouvi um rumor de que estás prestes a ficar noivo.
– Quem disse?
Hugh beijara Sarah pela primeira vez na noite anterior. Como
diabo sabia o pai que ele pretendia pedi-la em casamento?
Lord Ramsgate agitou a mão.
– Eu tenho espiões em toda a parte.
Hugh não duvidava nem por um instante, mesmo assim... os seus
olhos estreitaram-se.
– Estava a espiar quem? O Winstead ou eu?
– Que importância tem isso? – reagiu o pai, com um encolher de
ombros.
– Enorme.
– Ambos, suponho. Contigo, é fácil matar dois coelhos de uma
cajadada.
– É melhor não usar essas metáforas na minha presença –
aconselhou Hugh, erguendo uma sobrancelha.
– Sempre a interpretar tudo literalmente – comentou Lord
Ramsgate, com um estalar da língua reprovador. – Nunca foste
capaz de entender uma piada.
Hugh ficou boquiaberto. O pai acusava-o de falta de humor? Era
espantoso.
– Eu não pedi ninguém em casamento – esclareceu Hugh,
destacando cada sílaba. – E não pretendo fazê-lo num futuro
próximo. Portanto, pode fazer as malas e voltar ao inferno de onde
saiu.
O pai limitou-se a rir ao insulto, o que exasperou Hugh. Lord
Ramsgate nunca ignorava os insultos, preferindo apurá-los
lentamente, até os devolver ao remetente ainda mais ofensivos.
E então, sim, ria.
– Terminámos? – perguntou Hugh, friamente.
– Porquê a pressa?
– Porque o odeio – respondeu Hugh, com um sorriso doentio.
O marquês soltou mais uma risada.
– Ó Hugh, quando é que aprendes?
Não respondeu.
– Não importa que me odeies. Nunca terá importância. Eu sou o
teu pai. – Inclinou-se sobre a mesa com um sorriso oleoso. – Não
podes livrar-te de mim.
– É verdade – admitiu Hugh e, com um olhar direto, acrescentou:
– Mas o pai pode livrar-se de mim.
Um pequeno músculo contraiu-se na face de Lord Ramsgate.
– Suponho que te refiras àquele maldito documento que me
obrigaste a assinar.
– Ninguém o forçou – retorquiu Hugh, com um encolher de ombros
insolente.
– Acreditas mesmo nisso?
– Coloquei-lhe a pena na mão? – contrapôs Hugh. – O contrato
era uma mera formalidade. Sabe disso tão bem como eu.
– Não sei tal...
– Eu disse-lhe o que aconteceria se atacasse Lord Winstead –
interrompeu Hugh, com uma calma mortífera – e permanece válido,
quer esteja escrito ou não.
Era a verdade. Depois de redigir o contrato, Hugh apresentara-o
ao pai e ao advogado, para lhes provar que estava a falar a sério.
Quisera que o pai assinasse o nome – o nome completo, com o
título nobiliárquico que tanto significava para ele –, reconhecendo
tudo o que perderia se não desistisse de se vingar de Daniel.
– Eu respeitei a minha parte do acordo – resmungou o marquês.
– Desde que Lord Winstead se mantenha vivo, sim.
– Eu...
– Devo dizer – interrompeu Hugh com um prazer malicioso – que
não exijo muito de si. A maioria das pessoas não teria dificuldade
em viver a sua vida sem matar outro ser humano.
– Ele fez de ti um aleijado!
– Não – disse Hugh, baixinho, lembrando-se daquela noite mágica
no relvado de Whipple Hill.
Ele tinha dançado uma valsa. Pela primeira vez desde que a bala
de Daniel lhe despedaçara a coxa, Hugh segurara uma mulher nos
braços e dançara.
Sarah não aceitara que ele se considerasse um aleijado. Teria
sido esse o momento em que se apaixonara por ela? Ou teria sido
apenas um momento entre uma centena de outros?
– Prefiro pensar que sou coxo – sussurrou Hugh, não conseguindo
conter um sorriso.
– Qual é a maldita diferença?
– Se eu for um aleijado, isso define-me...
Hugh olhou para cima. O rosto do pai estava vermelho e venoso,
como um homem que bebeu de mais ou pronto a explodir de raiva.
– Não importa – disse Hugh. – Não entende.
Ele mesmo não entendera. Precisara que Lady Sarah Pleinsworth
lhe explicasse a diferença.
Sarah. Deixara de a ver como Lady Sarah Pleinsworth ou Lady
Sarah. Apenas Sarah. Ela pertencera-lhe e depois perdera-a. E
ainda não entendia bem porquê.
– Não te subestimes, meu filho – disse Lord Ramsgate.
– Acabou de me chamar aleijado e agora acusa-me de me
subestimar? – questionou Hugh.
– Não me refiro às tuas capacidades atléticas – respondeu o pai –,
embora seja verdade que uma mulher gosta de ter um marido que
possa andar a cavalo, empunhar uma espada e caçar.
– Sim, porque o pai se destaca em todas essas categorias –
troçou Hugh, baixando o olhar para a barriga do pai.
– E destaquei-me em tempos – respondeu o pai, não parecendo
ofender-se com o insulto. – E pude escolher a melhor da ninhada,
quando decidi casar-me.
A melhor da ninhada. Era assim que o pai via as mulheres?
É claro que sim.
– Duas filhas de duques, três filhas de marqueses e uma filha de
um conde. Eu podia ter tido qualquer uma delas.
– Que sorte teve a mãe – comentou Hugh.
– De facto – disse Lord Ramsgate, completamente imune ao
sarcasmo. – O pai dela podia ser duque de Farringdon, mas ela
tinha mais cinco irmãs e o dote não era significativo.
– Mas maior do que o da filha do outro duque, presumo – ironizou
Hugh.
– Não. Porém, a família Farringdon é descendente dos barões de
Veuveclos, o primeiro dos quais, como sabes...
Oh, sim, ele sabia. Como sabia!
– ...lutou ao lado de Guilherme, o Conquistador.
Hugh fora obrigado a memorizar toda a árvore genealógica aos
seis anos de idade. Felizmente, tinha jeito para aquele tipo de coisa.
O que não era o caso de Freddie, que tivera as mãos inchadas
durante semanas, devido às frequentes vergastadas.
– O outro ducado não podia reivindicar tal antiguidade – concluiu o
marquês, em tom de desdém.
Hugh limitou-se a abanar a cabeça e a comentar:
– Consegue realmente levar o snobismo a novos níveis.
O pai ignorou a observação.
– Como eu estava a dizer, acho que te subestimas. Podes ser
aleijado, mas ainda tens alguns atrativos.
Hugh quase se engasgou.
– Atrativos?
– Um eufemismo para o teu sobrenome.
– Claro.
Que mais poderia ser?
– Podes não ser o herdeiro do título, mas, embora me repugne
dizê-lo, quem se der ao trabalho de investigar, descobrirá que,
mesmo que nunca venhas a ser marquês de Ramsgate, o teu filho
será.
– O Freddie é mais discreto do que pensa – sentiu-se Hugh
obrigado a ressalvar.
Lord Ramsgate bufou com desprezo.
– Se eu consegui descobrir que andavas a suspirar pela jovem
Pleinsworth, achas que o pai dela não vai descobrir a verdade sobre
o Freddie?
Considerando que Lord Pleinsworth estava enfiado em Devon com
cinquenta e três cães de caça, Hugh duvidava seriamente, mas
entendia o que o pai quisera dizer.
– Eu não iria tão longe a ponto de dizer que podes ter a mulher
que quiseres – continuou Lord Ramsgate –, mas não há razão para
não conseguires agarrar a jovem Pleinsworth. Especialmente depois
de passarem a semana toda a fazer olhinhos um ao outro à mesa
do pequeno-almoço.
Hugh mordeu o interior da bochecha para não responder.
– Noto que não me contradizes.
– Os seus espiões são excelentes, como sempre – respondeu
Hugh.
O pai recostou-se na cadeira, uniu as pontas dos dedos e disse,
com um toque de admiração:
– Lady Sarah Pleinsworth. Tenho de te dar os parabéns.
– Prefiro que não o faça.
– Oh, céus! Agora somos tímidos?
Hugh agarrou-se ao rebordo da mesa. O que aconteceria
realmente se saltasse por cima dela e apertasse o pescoço do pai?
Ninguém choraria a sua morte, tinha a certeza disso.
– Eu já a conheci, sabias? – continuou o pai. – Nada de especial,
claro, apenas uma breve apresentação num baile, há alguns anos.
Mas o pai dela é conde. Os nossos caminhos cruzam-se, de tempos
a tempos.
– Não fale sobre ela – alertou Hugh, ameaçador.
– Ela é bonita, de uma forma pouco convencional. Os cabelos
encaracolados, uma boca grande mas adorável... – Lord Ramsgate
olhou para o filho e agitou as sobrancelhas. – Um homem pode
habituar-se a ter aquele rosto na almofada do lado.
Hugh sentiu o sangue ferver-lhe nas veias e rosnou:
– Cale-se imediatamente!
– Vejo que não queres discutir os teus assuntos pessoais – cedeu
o pai, ostensivamente.
– Estou a tentar lembrar-me de quando é que isso o impediu.
– Ah, mas se decidires casar, a escolha da noiva também me diz
respeito.
Hugh levantou-se de um pulo.
– Seu canalha...
– Oh, não te enerves! – interrompeu o pai, rindo. – Não estou a
falar disso, embora, agora que penso no assunto, poderia ter sido
uma maneira de contornar o problema do Freddie.
Oh, céus, Hugh estava enojado. Não duvidava por um momento
que o pai pudesse obrigar Freddie a casar-se e depois violasse a
mulher dele.
Tudo em nome da dinastia.
Não, ele não teria sucesso. Freddie, embora calmo e discreto,
nunca cederia a um casamento nessas condições. E mesmo que de
alguma forma...
Bem, Hugh poderia sempre intervir. Para isso, só precisaria de se
casar e dar razões ao pai para acreditar que Ramsgate depressa
teria um herdeiro.
Algo que, finalmente, teria todo o prazer em fazer.
Só que a mulher com quem ele queria casar não o queria...
Por causa do pai.
A ironia da situação estava a matá-lo.
– Lady Sarah tem um dote respeitável – continuou o marquês,
como se não tivesse notado o brilho assassino nos olhos do filho. –
Por favor, senta-te. É difícil ter uma conversa séria contigo inclinado
dessa maneira.
Hugh respirou fundo. Sem perceber, apoiara-se na perna boa.
Sentou-se devagar.
– Como eu estava a dizer – prosseguiu o pai –, pedi ao meu
advogado para se debruçar sobre o assunto e é mais ou menos a
mesma situação que eu tive com a tua mãe. Os dotes das jovens
Pleinsworth não são de grande monta, mas são suficientes, se
considerarmos a linhagem e as relações de Lady Sarah.
– Ela não é um cavalo.
– Ah, não? – provocou o pai, com um sorriso.
– Vou matá-lo – rosnou Hugh.
– Não, não vais. – O pai estendeu a mão para pegar noutra fatia
de pão. – E devias comer alguma coisa. Não dou conta de tudo...
– Vai parar com isso da comida? – rugiu Hugh.
– Estás realmente de muito mau humor hoje.
Com um esforço considerável, Hugh conseguiu responder em voz
normal:
– As conversas consigo geralmente têm esse efeito em mim.
– Bem, reconheço que me pus mesmo a jeito para essa.
Mais uma vez, Hugh ficou boquiaberto. O pai a admitir que ele o
suplantara? Nunca fazia tal coisa, nem mesmo quando se tratava de
uma simples troca de palavras.
– A acreditar no que dizes – continuou Lord Ramsgate –, só posso
deduzir que, de facto, não pediste a mão de Lady Sarah em
casamento.
Hugh não respondeu.
– Os meus espiões, como parecemos gostar de lhes chamar,
dizem-me que ela estaria aberta a tal proposta.
Hugh continuou em silêncio.
– A questão é – Lord Ramsgate inclinou-se para a frente,
apoiando os cotovelos na mesa –: o que posso fazer para te
ajudar?
– Não se meta na minha vida.
– Ah, infelizmente, isso é impossível.
Hugh deixou escapar um suspiro cansado. Detestava mostrar
fraqueza à frente do pai, mas estava simplesmente exausto.
– Porque não me deixa em paz?
– Tens mesmo de perguntar? – revidou o pai, embora fosse óbvio
que a pergunta de Hugh era retórica.
Hugh levou uma mão à testa e pressionou as têmporas.
– O Freddie ainda pode casar-se – disse, mais por hábito do que
outra coisa.
– Oh, para com isso! – protestou o pai. – Ele não saberia o que
fazer com uma mulher, nem que lhe pegasse na...
– Cale-se! – gritou Hugh, levantando-se tão abruptamente que
quase derrubou a mesa. – Cale essa maldita boca!
O pai parecia quase desconcertado por tal agressividade.
– É a verdade, Hugh. A verdade mais que comprovada, diga-se.
Sabes quantas prostitutas eu...
– Sim! – rosnou Hugh. – Sei exatamente quantas prostitutas
trancou no quarto dele. É o meu maldito cérebro. Não consigo evitar
contar, lembra-se?
O pai explodiu numa gargalhada. Hugh olhou para ele,
imaginando que diabo era tão engraçado.
– Eu também contei – respondeu Lord Ramsgate, sem fôlego de
tanto rir.
– Eu sei que sim – disse Hugh, neutro.
O quarto dele ficava ao lado do de Freddie e ouvira tudo. Quando
trazia prostitutas para Freddie, Lord Ramsgate ficava a assistir.
– Não serviu de nada – continuou Lord Ramsgate. – Pensei que
ajudaria. Que lhe daria um pouco de ritmo, percebes?
– Oh, pelo amor de Deus! – quase gemeu Hugh. – Cale-se de
uma vez por todas.
Era como se ainda conseguisse ouvir. Na maioria das vezes, era
apenas a voz do pai, mas às vezes uma das mulheres entrava no
jogo e juntava a sua voz à dele.
Lord Ramsgate ainda se ria quando se levantou da cadeira.
– Uma – disse ele, acompanhando a contagem com um gesto
obsceno. – Duas...
Hugh encolheu-se, pois uma lembrança acabara de lhe vir à
memória.
– Três...
O duelo. A contagem. Ele tentara não se lembrar. Esforçara-se
tanto por apagar da memória a voz do pai, que se encolhera.
E, nesse momento, apertara o gatilho.
Nunca tivera intenção de disparar sobre Daniel. Apontara para o
lado. Mas então alguém começara a contagem e, de repente,
voltara a ser um rapazinho, aconchegado na cama enquanto ouvia
Freddie a implorar ao pai que o deixasse em paz.
Freddie, que lhe ensinara a nunca interferir.
A contagem não tinha que ver apenas com as prostitutas. Lord
Ramsgate gostava muito da sua bengala de ébano polida e não
hesitava em usá-la, quando os filhos o desagradavam.
Freddie sempre o desagradara. E Lord Ramsgate adorava contar
as vergastadas.
Hugh encarou o pai.
– Odeio-o.
– Eu sei – respondeu o pai, sustendo o olhar.
– Vou-me embora.
– Não, isso está fora de questão – respondeu o pai, abanando a
cabeça.
Hugh endureceu.
– Perd...
– Eu preferia não ter de fazer isto – interrompeu o pai, quase em
tom contrito.
Quase.
E, então, deu um forte pontapé na perna ferida de Hugh.
Com um grito de dor, Hugh caiu ao chão, sentindo o corpo enrolar-
se instintivamente como se tentasse conter a dor.
– Mas que raio... – gemeu. – Porque fez uma coisa destas?
Lord Ramsgate ajoelhou-se ao lado dele.
– Para te impedir de sair.
– Vou matá-lo – rosnou Hugh, ofegante de dor. – Vou...
– Não, não vais – disse o pai, encostando um pano húmido com
um cheiro adocicado ao nariz de Hugh.
Capítulo 19
arah mal teve tempo de olhar para cima, antes de a porta ser
S escancarada, fazendo voar lascas de madeira da fechadura.
– Daniel! – exclamou, sem saber porque parecia tão espantada.
– Mas que raio...
Porém, o grito de Daniel foi interrompido, porque o marquês de
Ramsgate apareceu a correr e atirou-se às costas de Daniel.
– Saia de cima de mim, maldito...
Sarah tentou entrar na escaramuça, mas Hugh segurou-a
bruscamente pela mão que ela acabara de libertar. Ela livrou-se dele
e correu para o primo, sendo derrubada pelo ombro de Lord
Ramsgate no momento em que Daniel o virou, ao tentar libertar-se.
– Sarah! – gritou Hugh, puxando com tanta força as amarras que a
cama começou a deslizar no chão.
Ela levantou-se a custo, mas Hugh, desesperado, conseguiu
esticar o braço e segurar-lhe a barra da saia molhada.
– Larga-me! – rosnou ela, caindo para trás na cama.
Ainda agarrado à saia, Hugh conseguiu passar o braço em volta
do corpo dela.
– Por nada neste mundo!
Entretanto, Daniel, que não conseguira livrar-se de Lord
Ramsgate, agora empurrava-o violentamente contra a parede.
– Maldito lunático! – rosnou. – Largue-me!
Sarah agarrou, por sua vez, a saia e puxou violentamente na
direção oposta.
– Ele vai matar o teu pai.
Hugh manteve um olhar frio de desdém.
– Deixa-o.
– Oh, isso agradar-te-ia, não é? O Daniel seria enforcado!
– Não sendo nós as únicas testemunhas – atirou Hugh.
Com um grito abafado, Sarah puxou outra vez a saia, mas Hugh
segurava-a com uma força surpreendente. Enquanto tentava
desenvencilhar-se do aperto dele, percebeu que o rosto de Daniel
assumira um tom arroxeado aterrorizante.
– Ele está a estrangulá-lo! – gritou.
Hugh também deve ter levantado os olhos, pois largou a saia tão
abruptamente, que Sarah saiu disparada pelo quarto, mal
conseguindo manter o equilíbrio.
– Largue-o! – gritou ela, agarrando Lord Ramsgate pela camisa.
Procurou algo, qualquer coisa com que pudesse dar-lhe uma
pancada na cabeça. Havia uma cadeira, mas seria muito pesada
para levantar, portanto, depois de sussurrar uma pequena oração,
cerrou o punho e bateu com toda a sua força.
– Ai! – exclamou ela, de dor, sacudindo a mão.
Ninguém a tinha avisado de que dar um soco na cara a um
homem doía muito.
– Santo Deus, Sarah!
Era Daniel, ofegante, a mão tapando um olho.
Tinha acertado no homem errado.
– Oh, peço imensa desculpa! – lamentou ela.
Mas, pelo menos, conseguira desequilibrar a torre humana. Lord
Ramsgate fora forçado a soltar o pescoço de Daniel quando os dois
caíram ao chão.
– Vou matar-te – ameaçou Lord Ramsgate, rastejando em direção
a Daniel, que não estava em condições de se defender.
– Pare com isso – ordenou Sarah, pisando brutalmente a mão de
Lord Ramsgate. – Se o matar, mata o Hugh também.
Lord Ramsgate olhou-a fixamente com uma expressão que ela
não decifrou ser de perplexidade ou fúria.
– Menti – veio a voz de Hugh. – Contei-lhe sobre o nosso acordo.
– Pensou nisso? – ralhou Sarah, que começava a ficar farta do
comportamento daqueles homens. – Pensou ou não pensou?
Lord Ramsgate levantou a mão que ela não estava a esmagar
com o pé, em súplica. Lentamente, Sarah levantou o pé sem tirar os
olhos dele, até ele se arrastar para longe de Daniel.
– Estás bem? – perguntou a Daniel, rapidamente.
A pele debaixo do olho já começava a ficar roxa. Ele não ia bonito
para o casamento.
Daniel grunhiu em resposta.
– Ainda bem – disse ela, concluindo que o grunhido era resposta
suficiente. E então lembrou-se: – Onde estão o Marcus e a
Honoria?
– Algures atrás de mim, numa carruagem – resmungou Daniel. –
Eu vim a cavalo.
Claro, pensou Sarah. Devia ter adivinhado que Daniel saltaria para
um cavalo assim que percebesse que ela tinha partido sem eles.
– Acho que me partiu a mão – queixou-se Lord Ramsgate.
– Não está partida – respondeu Sarah, exasperada. – Eu teria
ouvido os ossos a estalar.
Da cama, Hugh soltou uma risada estrangulada e ela olhou-o com
má cara. Não era engraçado. Nada daquilo era engraçado e, se ele
não percebia, não era o homem que ela imaginava. O humor negro
tinha os seus limites.
Pragmática, Sarah virou-se para o primo e perguntou:
– Tens uma faca?
Daniel arregalou muito os olhos.
– Para cortar as cordas.
– Ah!
Daniel baixou-se e tirou uma adaga da bota. Sarah pegou nela,
um pouco surpreendida, pois não esperava que o seu pedido fosse
satisfeito.
– Adquiri o hábito de ter sempre uma arma comigo em Itália –
explicou Daniel, neutro.
Sarah assentiu. Claro que compreendia. Nessa altura, ele era
perseguido por assassinos a mando de Lord Ramsgate.
– Não se mexa – ordenou ela ao marquês.
Contornou a cama para agarrar a corda que prendia o pulso
esquerdo de Hugh. Já cortara quase metade da corda quando viu
Lord Ramsgate começar a levantar-se.
– Não, não, não! – exclamou, apontando a adaga na direção do
marquês. – Fique no chão.
O marquês obedeceu.
– Estás a assustar-me – sussurrou Hugh, mas soou a elogio.
– Tu podias ter morrido – sussurrou ela.
– Não – respondeu ele, muito sério. – Lembra-te de que sou o
único em quem ele jamais tocaria.
Sarah abriu os lábios, mas o que estava prestes a dizer foi
afastado por um pensamento repentino.
– Sarah? – chamou Hugh com ar preocupado.
Ele não era o único, percebeu ela. Ele não era o único.
A corda cedeu finalmente e Hugh baixou o braço. Com um
grunhido, começou a massajar o ombro dorido.
– Podes tratar dos tornozelos – disse ela, entregando-lhe a adaga.
Então, marchou para junto de Lord Ramsgate e ordenou: – Levante-
se.
– Acabou de me mandar sentar – ironizou ele.
– Não é o melhor momento para discutir comigo – replicou ela,
com um rosnado ameaçador.
– Sarah – murmurou Hugh.
– Fica quieto – disse ela, sem se virar. Assim que Lord Ramsgate
se levantou, Sarah empurrou-o contra a parede. – Quero que me
ouça com muita atenção, Lord Ramsgate, porque só vou dizer isto
uma vez. Vou casar-me com o seu filho e, em troca, o senhor vai
jurar que deixa o meu primo em paz.
Ele abriu a boca, mas Sarah não terminara.
– Além disso, não tentará contactar-me a mim ou a qualquer
membro da minha família, e isso inclui Lord Hugh e os filhos que
possamos ter.
– Escute aqui...
– Quer que me case com ele, certo? – interrompeu Sarah,
agudizando a voz.
O rosto de Lord Ramsgate ficou vermelho de fúria.
– Quem pensa que...
– Hugh? – disse ela, esticando a mão para trás. – A faca?
Hugh devia ter libertado os pés, porque, quando falou, a voz
estava mais próxima. Espreitando por cima do ombro, viu-o de pé a
poucos passos de distância.
– Não sei se isso é boa ideia, Sarah – disse ele.
Provavelmente tinha razão. Ela não sabia que loucura havia
tomado conta de si, mas estava tão zangada que quase se sentia
capaz de estrangular o marquês com as próprias mãos.
– Quer um herdeiro? – perguntou ao marquês. – Muito bem. Dou-
lhe um herdeiro, mesmo que eu morra.
Hugh pigarreou, sem dúvida para a lembrar de que aquele dia
calamitoso havia começado com o anúncio da morte dele.
– Nem uma palavra tua – disse, furiosa, apontando um dedo
irritado a Hugh.
Ele estava de pé a poucos passos de distância, a bengala na
mão.
– Estou farta dos três. – E olhou para o marquês, Hugh e Daniel,
sentado no chão, com a mão no olho. – E da vossa incompetência.
Esta situação arrasta-se há três anos e a única maneira que
encontraram de manter a paz foi o Hugh ameaçar matar-se. – Virou-
se para encarar Hugh e os seus olhos estreitaram-se
perigosamente. – O que não vais fazer.
Hugh olhou para ela por um momento, antes de perceber que
devia dizer alguma coisa.
– Não, não o farei.
– Lady Sarah – começou Lord Ramsgate –, deve saber...
– Cale-se! – refilou ela. – Disseram-me, Lord Ramsgate, que quer
acima de tudo um herdeiro. Ou, devo dizer, um herdeiro além dos
dois que já tem.
O marquês confirmou com um aceno de cabeça.
– E deseja tanto esse herdeiro, que Lord Hugh conseguiu garantir
a segurança do meu primo colocando a sua própria vida em risco.
– Um acordo monstruoso – disse Lord Ramsgate.
– Tenho de concordar consigo nesse ponto. Mas creio que se
esqueceu de um pormenor crucial. Se, de facto, a única coisa que
lhe importa é a procriação, a vida de Lord Hugh é inútil sem a
minha.
– Oh, também vai ameaçar cometer suicídio?
– Nada disso – retorquiu Sarah. – Mas raciocine comigo, Lord
Ramsgate. A única maneira de conseguir esse precioso neto é o
seu filho e eu permanecermos felizes e saudáveis. E aviso-o desde
já: se, por algum motivo, me deixar infeliz, proibirei ao Hugh o
acesso à minha cama.
Seguiu-se um silêncio muito satisfatório.
– Ele será seu senhor e mestre – retorquiu o marquês. – Não pode
proibir-lhe nada.
Hugh pigarreou e murmurou:
– Não me passaria pela cabeça ir contra a vontade da minha
mulher.
– És mesmo um imprestável...
– Está a fazer-me infeliz, Lord Ramsgate – avisou Sarah.
O marquês engoliu uma exclamação furiosa e Sarah soube que
vencera a batalha.
– Se acontecer alguma coisa ao meu primo – continuou ela –, juro
que vou persegui-lo e estraçalhá-lo com as minhas próprias mãos.
– Se fosse a si, acreditava nela – murmurou Daniel, ainda
palpando cuidadosamente o olho.
Sarah cruzou os braços.
– Estamos entendidos?
– No que me diz respeito, sim – assegurou-lhe Daniel.
Sarah ignorou-o e aproximou-se de Lord Ramsgate.
– Vai concordar, certamente, que esta é a solução mais
satisfatória para todos os envolvidos. Consegue o que quer, um
possível herdeiro para Ramsgate, e eu consigo o que quero, paz
para a minha família. Quanto ao Hugh... – Sarah interrompeu-se
abruptamente para engolir o nó que se lhe formava na garganta. –
Bem, o Hugh não terá de se matar.
Lord Ramsgate ficou muito quieto e em silêncio durante um longo
momento.
– Se concordar em casar com o meu filho – disse por fim –, e não
lhe proibir a sua cama, e espere que acredite em mim se eu disser
que vou ter espiões em vossa casa e que vou saber se não cumprir
a sua parte do acordo, deixarei o seu primo em paz.
– Para sempre – insistiu Sarah.
O aceno de Lord Ramsgate foi breve e amargo.
– E não vai tentar contactar os meus filhos.
– Isso, não posso aceitar.
– Muito bem – aquiesceu Sarah, que não esperava prevalecer
sobre este ponto –, permitirei que os veja. Mas apenas na presença
do pai ou na minha, na hora e no lugar que escolhermos.
– Tem a minha palavra – aceitou Lord Ramsgate, a voz tremendo
de raiva.
Sarah virou-se para Hugh, em busca de confirmação.
– Quanto a isso, podes confiar nele – assegurou. – Pode ser cruel,
mas mantém as suas promessas.
– Nunca o vi mentir – confirmou Daniel.
Quando Sarah olhou para ele, estupefacta, o primo explicou:
– Ele disse que ia tentar matar-me e fê-lo. Tentou, pelo menos.
Sarah ficou sem palavras.
– E esse é o teu aval?
Daniel encolheu os ombros.
– Depois, disse que não tentaria matar-me e, até onde sei,
também cumpriu essa promessa.
– Com quanta força lhe bateste? – interveio Hugh.
Sarah olhou para a mão. Os seus dedos estavam a ficar roxos.
Santo Deus, Daniel ia casar-se daí a dois dias! Anne nunca a
perdoaria.
– Valeu a pena – disse Daniel, com um gesto vago para o próprio
rosto. A cabeça pendeu para o lado e ele ergueu uma sobrancelha a
Hugh e acrescentou: – Ela conseguiu onde tu e eu falhámos.
– E tudo o que teve de fazer foi sacrificar-se – disse Lord
Ramsgate, com um sorriso untuoso.
– Vou matá-lo – rosnou Hugh.
Sarah teve de interceder, colocando-se à frente dele e segurando-
o com força.
– Volte para Londres – ordenou ao marquês. – Voltaremos a ver-
nos no batismo do nosso primeiro filho, e não antes.
Lord Ramsgate apenas riu.
– Está claro?
– Como a água, minha querida. – Lord Ramsgate caminhou para a
porta, parou e virou-se. – Se tivesse nascido antes – disse, com um
olhar intenso –, eu próprio teria casado consigo.
– Maldito desgraçado! – exclamou Hugh, que, afastando Sarah, se
atirou ao pai.
Ouviu-se um rangido sinistro, quando Hugh lhe deu um soco no
rosto.
– Não é digno de pronunciar o nome dela – rosnou Hugh, olhando
com ar ameaçador para o pai deitado no chão, com o nariz a
sangrar e provavelmente partido.
– E pensar que és o melhor dos dois – resmungou Lord Ramsgate
com uma careta de repulsa. – Céus, pergunto-me o que fiz para
merecer tais filhos.
– Eu também – revidou Hugh.
– Hugh – disse Sarah, colocando a mão no braço dele. – Afasta-
te. Não vale a pena.
Mas Hugh não estava em si. Embora não tendo afastado a mão
dela, não parecia ouvi-la. Sem tirar os olhos do pai por um
momento, inclinou-se para pegar na bengala que caíra ao chão na
rixa.
– Se lhe tocar, mato-o – disse, numa voz assustadoramente
contida. – Se lhe dirigir uma palavra inapropriada, mato-o. Se
respirar na direção errada, eu...
– Matas-me, já percebi – terminou o pai, com desdém, antes de
apontar para a perna lesionada de Hugh. – Continua a acreditar que
és capaz disso, idiota alei...
À velocidade de um raio, Hugh empunhou a bengala como uma
espada. Sarah não pôde deixar de admirar a beleza daquele gesto.
Seria assim que ele era... antes?
– Quer repetir? – ameaçou, encostando a ponta da bengala à
garganta do pai.
Sarah prendeu a respiração.
– Faça-me o favor – continuou Hugh, num tom ainda mais
perturbador por ser tão calmo –, diga mais uma palavra. – Baixou
ligeiramente a ponta da bengala ao longo da traqueia de Lord
Ramsgate aliviando um pouco a pressão e murmurou: – Nada?
Preocupada, Sarah humedeceu os lábios. Não conseguia
perceber se Hugh era um exemplo de autocontrolo ou se estava
apenas por um fio. Viu-se fascinada pelo movimento do peito dele,
que subia e descia ao ritmo dos batimentos cardíacos. Naquele
momento, Hugh Prentice era não apenas um homem, mas uma
força da natureza.
– Deixa-o ir – disse Daniel, exausto, levantando-se finalmente. –
Ele não vale um bilhete para a forca.
Sarah continuava de olhos postos na ponta da bengala encostada
à garganta de Lord Ramsgate. Parecia ter afundado ainda mais.
Não, ele não ia...
E de repente, com a rapidez de um raio, a bengala saiu disparada,
deixando a mão de Hugh por breves instantes, antes de ele a
apanhar novamente e se afastar. Mancava, mas havia algo de
impressionante no seu andar irregular, algo quase gracioso.
Bastava olhar e ver como era belo em movimento.
Sarah sentiu-se capaz de respirar novamente. Não se lembrava
da última vez que o fizera. Observou em silêncio Lord Ramsgate
levantar-se e sair do quarto. Continuou a olhar para a porta quando
ele desapareceu, meio à espera de que retornasse.
– Sarah?
A voz de Hugh chegou-lhe como uma espécie de névoa, mas não
conseguia tirar os olhos da porta. Estava a tremer... tremiam-lhe as
mãos e talvez até o corpo todo.
– Sarah, estás bem?
Não, ela não estava bem.
– Deixa-me ajudar-te.
Sentiu o braço de Hugh nos ombros e, de repente, o tremor
intensificou-se e as pernas... O que estava a acontecer-lhe às
pernas? Houve um barulho terrível e doloroso, e, quando tentou
inspirar, percebeu que o ruído vinha dela. De repente, viu-se nos
braços de Hugh, que a levou para a cama.
– Está tudo bem – assegurou ele. – Tudo vai ficar bem.
Mas Sarah não se enganava. E não se sentia bem.
Capítulo 21
Whipple Hill
Mais tarde naquela noite
Pleinsworth House
Londres
Na primavera seguinte