Pura Picaretagem - Daniel Bezerra

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Ficha Técnica
Copyright © 2013, Daniel Bezerra e Carlos Orsi
Diretor editorial: Pascoal Soto
Editora executiva: Tainã Bispo
Editora assistente: Ana Carolina Gasonato
Produção editorial: Fernanda Ohosaku, Renata Alves e Maitê Zickuhr
Preparação de textos: Taís Gasparetti
Revisão de textos: Eliane Usui
Revisão técnica: Elton J. F. de Carvalho (capítulos 2, 3 e 5)
Ilustrações: Leandro Melite Moraes
Capa: Maria João Carvalho | www.ideiascompeso.pt

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP-Brasil)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Bezerra, Daniel
Pura picaretagem : como livros de esoterismo e autoajuda
distorcem a ciência para te enganar. Saiba como não cair em
armadilhas! / Daniel Bezerra, Carlos Orsi. – São Paulo: LeYa, 2013.
ISBN 9788580448276
1. Física Quântica 2. Ciência 3. Literatura brasileira – crítica
I. Título II. Orsi, Carlos
13-0378 CDD 530.12
Índices para catálogo sistemático:
1. Ciência - filosofia

2013
Todos os direitos desta edição reservados a
TEXTO EDITORES LTDA.
[Uma editora do grupo Leya]
Rua Desembargador Paulo Passaláqua, 86
01248-010 — Pacaembu — São Paulo — SP — Brasil
www.leya.com.br
Este livro foi escrito tendo em mente o leitor curioso,
porém leigo.
A divulgação científica no Brasil, em especial a
produzida por autores brasileiros, ainda engatinha.
Espero que a leitura seja proveitosa.

Mas deixo uma dedicatória especial a todos os que


perderam noites de sono estudando para provas de
Mecânica Quântica e que, no meio de todos os
cálculos, pararam para se perguntar o que diabos
tudo aquilo significava – e em como comunicar esse
significado para outras pessoas.

– Daniel Bezerra

Ao meu pai, Ararê Jorge Martinho, que de tanto citar


Fritjof Capra, lá nos anos 80, acabou fazendo um
adolescente “de Humanas” se interessar em descobrir
o quê, afinal, era esse negócio de Física Quântica...

– Carlos Orsi
INTRODUÇÃO
O livro que você tem em suas mãos é real. É sólido. É
feito de átomos reais. Os elétrons dos átomos de seus
dedos repelem os elétrons dos átomos da folha de
papel, provocando a sensação de solidez. Não importa o
quanto você se concentre, não há meio de tornar o livro
menos sólido – a menos, claro, que você decida queimá-
lo, rasgá-lo ou dissolvê-lo em ácido. Mas temos a
esperança de que a experiência de lê-lo não seja
traumática a ponto de provocar reações assim.
Esperamos.
O primeiro parágrafo desta introdução apenas
reafirma um fato óbvio da vida – de todas as vidas –, o
de que objetos materiais têm uma realidade objetiva
que independe do estado mental e da disposição de
quem os contempla ou deixa de contemplá-los. Como
Albert Einstein disse certa vez, a Lua continua lá em
cima, mesmo que ninguém olhe para ela.
É um sintoma curioso do estágio atual da civilização
que essa obviedade precise ser reafirmada – mais ainda
que haja gente disposta a escrever um livro inteiro para
reafirmá-la.
Mas o fato é que o óbvio tem estado sob ataque, seja
por parte de gurus de autoajuda que insistem que
querer é necessário e suficiente para fazer acontecer,
seja por físicos e filósofos (e pseudofísicos e
pseudofilósofos) que parecem convencidos de que a
Teoria Quântica, uma das maiores conquistas da ciência
do século passado, implica que a realidade é uma
espécie de ilusão coletiva que pode ser pilotada pela
força da mente.
O que deixa em aberto a questão: e se eu usar a força
da minha mente para fazer com que a realidade seja
algo independente da mente? A mente pode criar uma
pedra pesada demais para a mente levantar?
O discurso da realidade como ilusão manipulável atrai
porque engendra um sentimento de poder e controle.
Seres humanos gostam de ter o controle das coisas.
Estar ao sabor do acaso é desconfortável. É desajeitado.
Faz suar frio. Quem não gostaria que uma atitude
mental positiva realmente fosse tudo o que bastasse
para que o próprio acaso passasse a trabalhar a nosso
favor?
Mas os fatos, assim como a Lua, estão aí, mesmo
quando nos recusamos a olhar para eles.
O físico Amit Goswami disse a seguinte sentença, que
ficou famosa: “O mundo material ao nosso redor não é
nada além de movimentos possíveis da consciência.
Escolho, momento a momento, minha experiência.
Heisenberg disse que átomos não são coisas, apenas
tendências”.
Menos famosa do que a fala de Goswami é a resposta
do historiador e articulista da Scientific American dos
Estados Unidos, Michael Shermer, que desafiou
Goswami a saltar de um prédio de vinte andares e,
conscientemente, escolher a experiência de passar
incólume através do chão.
A resposta de Goswami ao desafio é desconhecida por
nós, mas não nos parece que tenha decidido aceitá-lo.
O desafio que nos impomos talvez não seja menos
audacioso do que o de Shermer, mas pelo menos não é
de todo impossível: garantir que nenhum leitor passe
incólume, não através das páginas materiais que
compõem este livro (isso está garantido pelas leis da
Física), mas pelos fatos e ideias que ele contém. E que,
ao terminar, esteja melhor equipado para distinguir
entre teoria científica legítima e pura besteira.
A viagem começa na próxima página.
CAPÍTULO 1

UMA BREVE HISTÓRIA DA FÍSICA


Em questões de ciência, a autoridade de mil homens não vale o
raciocínio humilde de um só.
Galileu Galilei

Você já deve ter ouvido alguém comentar que a Física


Quântica é um mistério insondável, um enigma que nem
mesmo os mais geniais cientistas conseguiram decifrar.
É um mundo estranho, onde espreitam gatos mortos-
vivos, onde equações intimidantes e um jargão técnico
inacessível produzem efeitos imprevisíveis.
É provável também que você já tenha visto ou lido um
dos livros de autoajuda que usam títulos vistosos como
cura quântica, ativismo quântico ou algo assim. Esses
livros prometem o alívio de muitos males modernos por
meio do poder do pensamento positivo. A Física
Quântica, dizem os autores dessas obras, garante que a
mente humana tem o poder de moldar a realidade
física.
Enigma indecifrável ou chave mágica para saúde,
sucesso e felicidade. Qual dessas duas posturas
corresponde à visão da comunidade científica sobre o
mundo quântico?
Nenhuma.
Ao longo deste livro esperamos mostrar, primeiro, que
a Física Quântica é, sim, diferente e, ao menos no início,
mais complicada do que a Física clássica, mas que não
há nada de esotérico ou incompreensível nela. Boa
parte da sensação de estranheza que o mundo quântico
causa vem de apenas dois fatos.
O primeiro é que sua base matemática é estatística e
não, como no caso da Física clássica, determinística.
Isso significa que, diferentemente da Física que você
estudou na escola – cujas equações permitem prever
com exatidão, por exemplo, o instante em que uma bola
jogada para o alto vai parar de subir e começar a cair –,
em geral, na Física Quântica, as equações fornecem
apenas probabilidades: digamos, se a bola fosse um
objeto quântico, poderia haver 90% de chance de ela
começar a cair agora e 10% de que continue subindo
por mais três segundos.
O segundo fato é que o domínio quântico está restrito
a objetos muito pequenos, com os quais a maioria de
nós não está familiarizada no dia a dia. Não obstante, os
efeitos quânticos são, até certo ponto, previsíveis e de
simples manipulação: eles são manipulados pela
tecnologia toda vez que você acende uma lâmpada ou
liga a televisão.
Em segundo lugar, pretendemos desmistificar o uso
que certos autores e alguns trapaceiros fazem da
palavra “quântico”. Assim como, em séculos anteriores,
a cultura popular (e alguns espertalhões) haviam se
apropriado de conceitos científicos como fluido,
magnetismo, éter e atômico, hoje em dia o termo
quântico vem sendo cada vez mais banalizado. É usado
para ludibriar os incautos e dar a impressão de que o
Universo, de alguma forma, se importa com a forma
como pensamos ou como encaramos a vida. É uma bela
hipótese, mas simplesmente não é verdadeira.
Esperamos que, ao fim desta leitura, você consiga
diferenciar claramente a coisa real do embuste – e, o
que é mais importante, entenda por que, como e onde o
embuste está errado.
Finalmente, buscaremos mostrar que há, sim, ainda
muito a descobrir sobre as implicações filosóficas da
Física Quântica. Como em toda empreitada científica,
ainda há detalhes abertos à discussão, mas nenhum
deles sequer sugere que as interpretações místicas dos
picaretas quânticos possam estar corretas.
A Física Quântica de verdade, aquela que se estuda
nas universidades pelo mundo afora, é resultado do
trabalho intelectual árduo de muita gente. É complexa e
profunda, mas perfeitamente compreensível, uma vez
que tenhamos nos habituado a deixar de lado certas
ideias preconcebidas sobre como o mundo deveria se
comportar.
Mas o que é a Física Quântica, afinal? O que ela tem
de tão misterioso ou diferente que causa tamanho
frisson? Decerto que um ensino científico básico
poderia ao menos nos equipar para começar a entender
do que ela trata, não? Bem, antes de discutir o que quer
que seja de Física Quântica, precisamos saber do que
fala a própria Física. Neste capítulo, trataremos do que
é a Física, como ela surgiu e quais os seus métodos.
Para começar, vamos nos lembrar de como é que a
maioria de nós encontrou a Física: no Ensino Médio.

De volta à escola

Se tudo o que você conhece é a boa, velha (e algo


aborrecida) Física básica do Ensino Médio, sem dúvida
a Física Quântica vai parecer-lhe estranha. É apenas
natural: em nossa vida cotidiana estamos acostumados
a lidar com objetos que podemos ver e tocar, coisas
como carros, termômetros, óculos, bombas de água.
Todos esses objetos, e os fenômenos que estão por
trás deles, podem ser descritos, e seu comportamento
previsto, por conjuntos simples de relações
matemáticas: o motor do carro, por exemplo, percorre
certo número de quilômetros com certa quantidade de
combustível.
Uma vez estabelecida a relação matemática, é
possível criar uma equação que permita prever o futuro:
no caso, que o carro vai precisar ser reabastecido
depois de viajar tantos quilômetros.
As leis da Física que você estudou na escola
funcionam da mesma forma que a relação entre
quilometragem e consumo de seu automóvel. Mesmo
que você tenha experimentado certa dor de cabeça para
pegar o jeito das famosas Leis de Newton, deve se
lembrar de que nunca precisou de nada muito mais
sofisticado do que Matemática básica e algum esforço
de abstração para entender o que o professor explicava;
e mesmo aquilo que não era tão simples assim podia ser
rapidamente deduzido, aplicando um pouco de
raciocínio lógico.
Por descomplicada que seja, entretanto, para a
maioria dos alunos – e poderíamos apostar que esse foi
o seu caso – a Física de escola se resumiu a tarefas
mecânicas e repetitivas: decore essa fórmula, aplique
aquele teorema, deduza tal equação. Nada muito
excitante, não é? Da mesma forma, os exemplos e
exercícios estudados tinham muito pouco a ver com o
mundo real encontrado pelos alunos1 em seu cotidiano.
Tome a queda livre como exemplo: na escola,
aprendemos que, no vácuo, todos os corpos caem
sofrendo a mesma aceleração, e que é somente por
causa da resistência do ar que objetos diferentes caem
com acelerações diferentes (e, por isso, chegam ao solo
com diferentes velocidades). Entretanto, em nosso dia a
dia, nunca experimentamos o vácuo. Isso faz com que
todos aqueles probleminhas dos livros que
invariavelmente terminam com “despreze a resistência
do ar” sejam pura ficção científica. Um paraquedista
certamente não pode desprezar a resistência do ar, pois
é isso que impede que ele se esborrache no chão.
A mesma coisa vale em maior ou menor grau para
todas as demais situações que encontramos na escola: o
fenômeno de verdade sempre vai ser um pouco – ou
muito – mais complicado do que vemos nos exercícios
didáticos.
Essa complicação extra é a razão pela qual um
entendimento mais preciso das coisas ao nosso redor
custou a ser desenvolvido – confiamos mais naquilo que
está imediatamente diante dos nossos olhos, em nossa
compreensão intuitiva do mundo, por assim dizer, e, a
menos que as circunstâncias exijam, não procuramos
por sutilezas subjacentes. E por que não agiríamos
assim, afinal? Essa forma primitiva de intuição é uma
ferramenta poderosa que a evolução nos deu. Graças a
ela, nossa espécie foi capaz de observar padrões na
natureza, comparar os padrões com experiências
individuais ou do grupo e, daí, extrapolar regras gerais.
Nem sempre a intuição vai fornecer toda a verdade,
mas serve como uma primeira aproximação boa o
bastante para, na maior parte das vezes, manter a tribo
viva e alimentada até o dia seguinte.
É justamente quando desejamos ou precisamos de
uma descrição do mundo melhor do que a intuição é
capaz de fornecer que entra em cena a característica
fundamental da Física tal como a entendemos hoje: a
experimentação.
A experimentação consiste em realizar uma série de
procedimentos num ambiente controlado – o
laboratório. Por exemplo, se quisermos estudar o
movimento de um pêndulo, primeiro temos de construí-
lo, tomando cuidado para não permitir que correntes de
ar ou uma mesa bamba interfiram em sua oscilação.
Quando essa parte estiver resolvida, precisamos
encontrar uma metodologia adequada – como é melhor
medir o tempo de oscilação: cronometrando cada ida e
vinda ou tomando a média de vários períodos? Em
seguida, formulamos hipóteses sobre o movimento – o
peso do pêndulo faz o movimento variar? E o
comprimento da corda? Como é essa variação, se
existir? Que regra geral podemos tirar para descrever a
oscilação? E se eu puxar o peso cada vez mais para o
alto antes de soltá-lo, o que acontece?
Repare que não fizemos ainda nenhuma inferência
sobre as causas do movimento pendular; tratamos
apenas de tentar descrevê-lo. Isso porque, conforme
discutiremos mais à frente, a ciência moderna evita
pensar em termos de causa, razão, motivo, preferindo
se concentrar em como as coisas acontecem. Na
verdade, saber formular perguntas é tão ou mais
importante do que respondê-las, num primeiro
momento. Só depois, com a contínua acumulação de
conhecimento, é que nos arriscamos a dizer alguma
coisa sobre as causas de determinado fenômeno. Para
continuar no exemplo do pêndulo, depois de muitos
experimentos e observações, talvez pudéssemos dizer:
“A-há! Agora que descobrimos a Lei da Gravitação
Universal, afirmamos que o pêndulo oscila porque a
Terra atrai a sua massa!” e ainda poderíamos
apresentar a equação que permite prever o movimento
do pêndulo com base em suas características e na força
da gravidade, além de demonstrar como conseguimos
chegar à expressão. Entretanto, você pode perceber
que responder o “porquê” do pêndulo apenas deslocou
o elemento desconhecido para outro lugar. Agora temos
que nos preocupar em descobrir o “porquê” da
Gravitação Universal – algo sem uma resposta
satisfatória mesmo hoje em dia.
Infelizmente, não é bem isso que se vê na maioria das
escolas do Brasil e, até onde se sabe, de boa parte do
mundo. Primeiro, a menos que o professor seja
cuidadoso ao apresentar a matéria, tudo parece uma
grande receita de bolo; os alunos inserem os números
nas fórmulas e elas cospem o resultado correto. Não há
a menor inspiração nas discussões em sala de aula.
Raramente há tempo para refletir sobre o significado
físico do material exposto em sala. O fato científico é
apresentado em uma forma pronta e acabada, como se
fosse óbvio que as coisas são daquele jeito e não fizesse
sentido perguntar como é que os cientistas chegaram às
conclusões. E enquanto tudo isso ocorre, a pressão por
boas notas nas provas continua alta, como sempre.
Para piorar, costuma ser ensinada apenas a parte
teórica da Física. Os livros didáticos adoram citar que a
Física é uma ciência experimental e enchem várias
páginas detalhando as técnicas laboratoriais de gênios
como Michael Faraday ou Robert Andrews Millikan.
Mas descrever um experimento, por mais que se tenha
riqueza de detalhes, é totalmente diferente de sentar e
fazer o experimento. Por uma série de razões que não
nos cabe citar aqui, a maioria de nossas escolas
simplesmente não está equipada com laboratórios
capazes de demonstrar até o mais simples princípio,
que poderia ser ilustrado com uma mera colisão de
bolas de bilhar. E nas poucas que, de fato, têm essa
condição, os alunos são expostos a uma metodologia tão
árida quanto a das aulas de teoria. De que adianta
investir alto em equipamentos de laboratório, se a
rotina de ensino não passa de preencher tabelas e
anotar números que, para a maioria dos estudantes, não
significam nada?
Não é surpresa nenhuma que muita gente ache que a
Física é um saco e trate de esquecê-la tão logo não
precise mais dela para o vestibular.
Como a coisa toda começou

Sinceramente, esperamos que seu primeiro contato


com a Física tenha sido menos aborrecido do que o
quadro pintado no item anterior. Claro que há colégios
muito bons, professores ótimos e livros inspiradores por
aí; mas a triste verdade é que a maioria das pessoas sai
da escola com um panorama muito incompleto das
ciências empíricas, e até mesmo de sua linguagem – o
que elas estão tentando nos dizer. É impossível discutir
a Física Quântica – mesmo em termos de filosofia de
boteco – sem que se tenha uma ideia mais ou menos
completa desse panorama. Assim, vamos ver como a
Física chegou até onde está agora.
Em sua raiz, a palavra “física” vem do grego φύσις,
que quer dizer “natureza”, ou “aquilo que brota”. O
primeiro registro que se conhece da palavra vem da
Odisséia de Homero, quando o deus Hermes dá ao herói
Ulisses uma planta com virtudes mágicas para que ele
se defenda dos encantos da bruxa Circe. Esse
significado de coisa natural se consolidou de vez depois
que o filósofo grego Aristóteles escreveu suas famosas
Lições sobre a Natureza. Ali, Aristóteles tentou decifrar
a origem do movimento – como e por que as coisas se
mexem para lá e para cá em vez de apenas ficarem
paradas, o que pareceria ser uma atitude bem mais
natural – estabelecendo suas causas e princípios.
O mais curioso (ao menos para nós) a respeito dessa
obra monumental é que não consta que Aristóteles
tenha realizado qualquer experimento para testar a
validade de suas ideias. Por exemplo, ele dizia que o
movimento natural de uma pedra era cair, pois é mais
pesada do que o ar que a cerca. Da mesma forma, a
água se move para baixo, mas como é mais leve que a
terra, ficava acima desta. E ele está essencialmente
correto, mas não pelas razões que sustenta.
De fato, uma leitura mais criteriosa das Lições revela
sacadas muito interessantes sobre conceitos físicos que,
mais tarde, viriam a ser explicados de outra forma e
com maior precisão. A intuição de Aristóteles sobre os
fenômenos naturais e, de fato, o seu método de tentar
compreender o mundo por meio do pensamento puro
moldaram a Filosofia Ocidental por quase dois mil anos
depois de sua morte.2
A força do paradigma aristotélico pode ser vista no
Modelo Ptolomaico do Universo, por exemplo. Em seu
Almagesto (Grande Tratado), Cláudio Ptolomeu
descreve a Terra como se mantendo imóvel no centro de
um sistema de esferas de cristal sucessivamente
maiores, nas quais estão engastados os planetas e
estrelas. A diferença do Modelo Ptolomaico para os
demais sistemas geocêntricos da época (no século II) é
que o astrônomo propôs que certos planetas, como
Marte, estavam presos a esferas que, por sua vez,
ligavam-se a outras esferas, que ele chamou de
epiciclos. Ajustando cuidadosamente a velocidade de
rotação das esferas e dos epiciclos de acordo com o que
se observava nos céus, Ptolomeu foi capaz de prever os
movimentos dos astros com assombrosa precisão.
Mas espere um minuto, dirá você, acabei de ler ali em
cima que Aristóteles não fazia experimentos. Como é
que Ptolomeu pode ter chegado a resultados empíricos
seguindo o paradigma aristotélico? Bem, ocorre que,
para Ptolomeu, a Cosmologia de Aristóteles – a
descrição do mundo dada pelo velho mestre – era
tomada como sendo verdade axiomática. Não cabia a
Ptolomeu (ou assim ele pensava) testar se a hipótese
das esferas celestes de cristal era verdadeira ou não; o
que ele queria era descrever o movimento dos astros. E
isso ele conseguiu muito bem, com os instrumentos de
que dispunha na época – mesmo estando
completamente errado em seus postulados iniciais.
Vamos parar por um momento aqui e absorver a
enormidade do que acabamos de descobrir: é possível
fazer uma hipótese completamente errada sobre
determinado fenômeno natural e, ainda assim, montar
um modelo que descreva adequadamente como o
fenômeno ocorre.
Ora, mas se é assim, o que garante que o que quer
que se diga a respeito da natureza está correto? Isso
mesmo: nada! De fato, o máximo que podemos fazer se
resume a duas coisas. Primeiro, descrever com razoável
precisão o que acontece, que foi o que Ptolomeu fez.
Segundo, refinar constantemente nossas observações,
para que o modelo e suas hipóteses subjacentes estejam
constantemente sendo testados. Essa é a parte mais
difícil, como veremos adiante.
O Almagesto de Ptolomeu prosseguiu como a grande
fonte de conhecimento sobre Astronomia por mais de
doze séculos. Sua autoridade parecia tão incontestável
que foi adotada pela Igreja medieval como dogma, com
as consequências que se pode imaginar para quem o
contradissesse. Isso porque o pensamento da Igreja
achava interessante que a Terra ocupasse lugar de
destaque no Universo; assim como o Homem ocupava
lugar de destaque na Criação Divina. Desloque uma
dessas posições de destaque e todo o arcabouço
teológico cristão desabaria (ou assim eles pensavam). A
despeito disso, sinais de fragilidade do sistema
começavam a se acumular, e nem mesmo a ameaça da
danação parecia deter certas mentes inquietas na
Europa. Em meados do século XVI, o monge polonês
Nicolau Copérnico publicou o seu De Revolutionibus
Orbium Coelestium (Sobre as Revoluções das Esferas
Celestes), no qual argumentava que observações ao
longo de vários anos sugeriam que o movimento dos
astros poderia ser satisfatoriamente descrito de forma
bem mais simples do que pelos cálculos de Ptolomeu,
bastando para isso que se colocasse o Sol, e não a
Terra, no centro do Universo.
Foi o suficiente para causar um tremendo furor na
sociedade. Martinho Lutero teria dito: “Este tolo quer
subverter a ciência da Astronomia; mas a Sagrada
Escritura afirma que Josué comandou que o Sol ficasse
parado, e não a Terra!” (Kuhn, 1957, p.191).
E logo o livro de Copérnico encontraria seu lugar no
Index de obras proibidas pela Igreja. Mas a caixa de
Pandora científica já tinha sido aberta.
Coube a Johannes Kepler fazer a próxima grande
contribuição. Reunindo um enorme volume de dados
astronômicos compilados no observatório de Tycho
Brahe, Kepler deduziu três leis empíricas do movimento
dos planetas ao redor do Sol. Uma delas ainda
preconizava que as órbitas não eram círculos (tidos
como figuras perfeitas pelo pensamento aristotélico e,
portanto, apropriadas para os movimentos celestes),
mas formas alongadas, chamadas elipses. Esse
imbróglio filosófico pôs os defensores do Modelo
Geocêntrico em maus lençóis – como justificar
matematicamente a enorme precisão obtida pelo
Modelo Heliocêntrico? Como defender a existência de
esferas rígidas de cristal, se as órbitas planetárias são
elípticas?
E enquanto cortes e arcebispos discutiam ainda o
significado das Leis de Kepler, o último prego no caixão
do geocentrismo estava para ser batido.

Galileu e o Método Científico


Um certo Galileu Galilei, de Pisa, Itália, procurava
uma maneira de aumentar a sua renda construindo
lunetas terrestres para uso náutico e para fazer
observações do céu. Era janeiro de 1610, e ele já era
um catedrático em Pádua, ensinando Geometria e
Astronomia. Apontando uma de suas lunetas para
Júpiter, Galileu descobriu quatro estrelas “totalmente
invisíveis a princípio, por sua pequenez”, as quais
ocasionalmente desapareciam e reapareciam, no que só
podia ser um movimento cíclico que as levava para trás
do planeta. Ora, isso só podia significar que as
pequenas estrelas eram, na verdade, pequenos
“planetas” (ou satélites, como chamamos hoje) que
orbitavam ao redor de Júpiter – o que era totalmente
incompatível com a Cosmologia de Aristóteles. Se, até
então, podiam-se discutir os méritos filosóficos ou a
facilidade das contas na comparação entre os Modelos
Copernicano e Ptolomaico, não havia como rebater a
brutal realidade dos satélites de Júpiter: outros corpos
giravam ao redor de algo que não era a Terra. De 1610
em diante, Galileu faria ainda diversas outras
observações que reforçariam a crítica ao geocentrismo:
a face cheia de crateras e, portanto, “imperfeita” da
Lua, as fases de Vênus, a rotação do Sol, e várias
outras.
O grande mérito de Galileu talvez tenha sido o de não
se prender exclusivamente a tentar explicar os porquês
do que observava, e sim, arregaçar as mangas e
descrever o que via em termos matemáticos, além de
realizar inúmeras experiências empíricas.
De fato, o trabalho astronômico foi apenas uma das
várias atividades científicas que o formidável italiano
desenvolveu. É dele o primeiro trabalho que buscou
descrever matematicamente a queda dos corpos, sem se
ocupar da suposta motivação das pedras em buscar o
solo, contrariando o que Aristóteles declarara quase
dois mil anos antes. Ele e seu aluno Evangelista
Torricelli tabularam os movimentos de diversos corpos e
começaram o estudo das leis do movimento, além de
fazerem descobertas importantes sobre a temperatura
dos corpos.
Sem a menor sombra de dúvida, podemos dizer que
Galileu foi o pai do que hoje em dia se chama de Método
Científico, que vem a ser a observação e medição
criteriosa de um fenômeno, a elaboração de hipóteses
para explicá-lo e o teste dessas hipóteses. Mas mesmo
esses sucessos estrondosos não pouparam Galileu de
dissabores com a Igreja.3 Galileu foi processado por
conta das ideias contidas em seu livro Discussão sobre
os Dois Grandes Sistemas do Mundo, em que recontava
suas descobertas e argumentava em favor do
heliocentrismo. Alguns anos antes, ele já havia entrado
em atrito com um padre jesuíta por causa do tom jocoso
usado para rebater os argumentos do padre sobre a
natureza dos cometas (ironicamente, o argumento de
Galileu estava errado). O cientista foi condenado a se
retratar de sua obra e a permanecer em prisão
domiciliar pelo resto da vida. Morreria quase cego por
causa das observações que fez do Sol pela luneta, mas
não sem deixar um legado fabuloso.

O triunfo teórico de Newton

No mesmo ano em que morreu Galileu, nasceu Isaac


Newton. Newton foi provavelmente o cientista mais
visionário que já existiu. A grandeza do seu trabalho só
pode ser rivalizada por Charles Darwin em termos de
profundidade e impacto. Na própria Física, apenas
Albert Einstein se compara, e talvez nem mesmo ele
tenha construído um arcabouço intelectual tão vasto.
Newton cresceu e estudou num ambiente
majoritariamente livre das crises religiosas que tanto
perturbaram seus predecessores. Tomado de interesse
pelas obras de Kepler e Galileu, buscou ir além da mera
descrição empírica dos movimentos celestes. Chegou a
criar um ramo inteiro da Matemática – o Cálculo
Diferencial, paternidade que divide com o matemático e
filósofo alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz – para
ajudar em seu trabalho. No final das contas, conseguiu
um feito formidável: propôs três leis que
adequadamente descreviam o movimento de qualquer
corpo comum na Terra; e o fez sem se preocupar
(muito) em definir coisas abstratas como tempo, espaço,
massa, velocidade, quantidade de movimento e força.
Sua definição de força, aliás, como sendo algo que
poderia atuar à distância, era uma coisa que o
incomodava, mas postulou-a mesmo assim.
O grande sucesso de Newton, se formos comparar sua
obra teórica às especulações filosóficas da Antiguidade,
foi que sua teoria permitiu não só descrever os fatos até
então conhecidos, mas também fazer previsões que
viriam a ser confirmadas por novos fatos. Suas leis de
movimento, unidas ao princípio da Gravitação Universal
(“matéria atrai matéria na razão direta das massas e na
razão inversa do quadrado das distâncias”), permitiram-
lhe reproduzir, de modo independente, as três leis
orbitais empíricas de Kepler.
Considere por um instante o que isso significa: um
homem preso à Terra, munido apenas de Geometria e
Cálculo Diferencial, conseguiu deduzir
matematicamente o que Kepler encontrou depois de
tabelar décadas de observações do céu. Mesmo assim,
Newton famosamente declararia depois que “se é
verdade que enxerguei mais longe, foi apenas porque
estava apoiado nos ombros de gigantes”.
Newton fez ainda inúmeras outras contribuições nos
mais variados campos, tais como Matemática, Óptica e
Mecânica Ondulatória. Suas leis de movimento
obtiveram um sucesso estrondoso em prever tanto
órbitas planetárias quanto o comportamento de fluidos
e os princípios da Acústica; e, de fato, foram usadas
para descrever todo e qualquer movimento. A Física
teórica, iniciada na Mecânica graças ao trabalho de
Newton, se expandiu e deu origem a diversos outros
ramos, sempre usando o mesmo ferramental
matemático e teórico criado por ele. Experimento após
experimento, cada resultado sempre parecia concordar
totalmente com as previsões feitas usando os métodos
teóricos de Newton.
A Mecânica Newtoniana reinava absoluta e, até finais
do século XIX, nada indicava que precisasse de grandes
correções. Parecia não haver limites para seu poder de
previsão, e houve mesmo quem acreditasse que, 300
anos depois de sua criação, ela seria capaz de “fechar”
a Física e explicar todo o Universo num conjunto
conciso de leis. Mas, em breve, tudo isso mudaria.
1 Por outro lado, um de nós (Daniel) lembra-se de penar como professor,
logo na primeira turma em certo colégio particular. Perdeu vários minutos
tentando explicar o conceito de movimento relativo dando exemplos de
trens e ônibus até finalmente perceber que aqueles alunos nunca tinham
andado de ônibus ou de trem e, portanto, não faziam ideia do que estava
falando!

2 Não que se esteja desprezando o trabalho de Aristóteles. O filósofo da


ciência Alexandre Koyré costumava dizer que Aristóteles tinha embasado
suas teorias de maneira muito mais de acordo com o senso comum do que
Galileu. Parece que Aristóteles estava muito mais interessado em
estabelecer o significado dos fenômenos naturais do que propriamente em
descrevê-los – o que é justamente o ponto fundamental da questão.

3 Verdade seja dita, parece que os maiores problemas de Galileu com a


Igreja não eram nem tanto suas posturas científicas, mas sua verve irônica
e a maior influência de seus inimigos na corte papal quando da morte do
Papa Gregório XV e da ascensão de Urbano VIII.
CAPÍTULO 2

A LUZ, DA ONDA AO QUANTUM


As leis e os fatos mais importantes da Ciência Física já foram
descobertos, e encontram-se tão firmemente estabelecidos que a
possibilidade de virem a ser suplantados em virtude de novas
descobertas é excessivamente remota (...). As descobertas do futuro
deverão ser buscadas na sexta casa decimal.
Albert Michelson (1903, p.23-24)

Em 1666, ano de um grande incêndio que destruiu


boa parte da cidade de Londres, Isaac Newton abriu um
furo no postigo de sua janela, de forma que, com o
quarto todo fechado e às escuras, um estreito raio de
luz do Sol fosse capaz de entrar. Usando um prisma, ele
conseguiu decompor a luz nas cores do arco-íris – do
vermelho ao violeta, passando por azul, laranja, verde,
amarelo – e, usando outro prisma, foi capaz de
recombinar essa sequência de faixas coloridas, o
chamado espectro visível da luz, em um raio branco de
iluminação solar.
Esse resultado reverso indicava que as cores já
estavam presentes no raio original. Não eram, como se
poderia supor na época, “pintadas” pelo prisma. Além
disso, Newton demonstrou que, uma vez separadas, as
cores não podiam mais ser modificadas: o vermelho, o
violeta e o azul anil não se prestavam a novas
decomposições.
A existência de outras “cores”, invisíveis para o olho
humano, foi determinada mais de um século mais tarde,
em 1800, quando William Herschel – o descobridor do
planeta Urano – aplicou um termômetro às faixas de cor
estudadas por Newton, determinando que cada uma
delas produzia uma leitura diferente no mercúrio do
instrumento: a temperatura subia à medida que o
termômetro era levado do violeta para o azul, do azul
para o verde e o amarelo e, depois, para o vermelho.
Para a surpresa de Herschel, a temperatura continuou a
subir quando o termômetro foi posicionado um pouco
além do vermelho, numa altura onde, a olho nu, não
parecia haver nenhuma outra faixa do espectro. Ele
havia descoberto um tipo de radiação invisível, a
infravermelha.
Um ano mais tarde, em 1801, o cientista prussiano
Johann Ritter determinou que um composto de prata,
semelhante aos que depois seriam usados nos filmes de
fotografia em preto e branco, escurecia – um fotógrafo
poderia dizer que era velado – muito mais rapidamente
quando posicionado a uma altura do espectro além do
violeta. Essa observação de Ritter marcou a descoberta
da radiação ultravioleta.
Mais ou menos no mesmo período em que essa
relação entre cor e temperatura era estabelecida,
outros cientistas, trabalhando num ramo da Física
denominado Termodinâmica – na origem, uma
empreitada extremamente prática, dedicada a descobrir
as melhores formas de construir e operar máquinas
movidas a carvão e a vapor –, encontravam uma relação
entre temperatura e energia. A correlação entre cor e
energia, que levaria à Teoria Quântica, estava, portanto,
pronta para ser detectada.

Onda ou partícula?

Quando os estudos acerca da natureza e das


propriedades da luz começaram a ser consolidados, lá
para o fim do século XVII, na Europa, quase ninguém
duvidava de que sua velocidade de propagação seria
finita, embora muito alta – mas havia um profundo
debate sobre se a luz era composta por pequenas
partículas ou se se propagaria como uma onda.
As pessoas olhavam para o Sol ou para a chama de
uma vela e se perguntavam se essas fontes de
iluminação estavam disparando pequenos projéteis que
iam se chocar com seus olhos e com tudo mais ao redor
ou se na verdade não faziam nada além de perturbar
um meio, como uma pedra lançada num lago perturba a
água ou a vibração das cordas de um piano perturba o
ar.
Um dos principais defensores da teoria ondulatória –
que via a luz como um tipo de perturbação – era
Christiaan Huygens, astrônomo e matemático holandês.
Ele sustentava que a luz era uma espécie de onda de
choque esférica, como uma bolha que se expandia a
partir da fonte luminosa. Cada ponto dessa bolha atuava
como uma fonte de novas bolhas, que se propagavam
apenas em frente. A soma de todas as ondas de choque
resultava nos raios luminosos que chegam aos nossos
olhos.
Trata-se, é claro, de uma hipótese ad hoc,4 que
Huygens propusera para tentar explicar os resultados
obtidos em laboratório. Embora ele tenha conseguido
usar seu modelo ondulatório para deduzir as regras
práticas da reflexão da luz, não havia, em sua teoria,
nenhuma justificativa para as ideias em que tinha se
baseado. De fato, a teoria de Huygens sofreu críticas
severas na Inglaterra. Ninguém menos do que Newton
achava que a luz era um fluxo de partículas, voando
sempre em linha reta.
O imenso prestígio de Newton nos meios acadêmicos
dava um peso enorme à teoria corpuscular
(“corpúsculo”, ou “pequeno corpo”, é o mesmo que
partícula), num exemplo clássico da falácia do apelo à
autoridade, que é o erro de se considerar uma coisa
verdadeira não por causa das provas a favor dela, mas,
sim, pela fama ou autoridade de quem faz a afirmação.
As críticas de Newton à concepção de Huygens eram
duras, mas não infundadas. Seu modelo corpuscular
tinha a virtude de ser mais simples e também de estar
de acordo com o que se conhecia sobre a luz na época.
Em particular, o Modelo Newtoniano explicava muito
bem a reflexão da luz em espelhos e outras superfícies
polidas – tanto a luz batendo em espelhos quanto bolas
de bilhar chocando-se com as laterais de uma mesa de
sinuca parecem se comportar da mesma forma.
Newton também achava que as partículas de luz
moviam-se mais rápido em meios mais densos (como a
água) e mais lentamente em meios mais rarefeitos
(como o ar). Essa ideia fundamentava-se no seu
entendimento de que mesmo os “átomos” de luz tinham
que ter massa e, portanto, seriam atraídos com um
“puxão” gravitacional mais forte quando passassem
perto de corpos mais densos.5 Era por isso, dizia
Newton, que a luz se dobra e muda de direção quando
sai do ar e entra na água,6 ou vice-versa.
Prestígio de Newton à parte, o fato era que nem todas
as propriedades da luz poderiam ser adequadamente
explicadas pela teoria corpuscular. Por exemplo, uma
das objeções à teoria ondulatória era que, se a luz fosse
uma onda, deveria ser capaz de contornar obstáculos,
como as marolas num lago de águas calmas passam ao
redor de um barco.
Ocorre que a luz de fato aparenta contornar pequenos
obstáculos, um fenômeno que já havia sido observado
na época de Newton e chamado por seu descobridor, o
padre Francesco Grimaldi, de difração. Ele observara
que a luz saída de um pequeno furo se “abria”,
propagando-se num cone e, além disso, produzia franjas
iluminadas na sombra de pequenos objetos postos no
caminho do cone. Newton não tinha uma explicação
satisfatória para a difração além da já citada ação
gravitacional de corpos densos e, depois de realizar
alguns quantos experimentos, deixou a questão em
aberto.
O debate sobre a natureza da luz prosseguiu por cerca
de um século depois de Huygens e Newton, sempre com
vantagem para o pai da Gravitação Universal. Mas, no
século XIX, um experimento abalaria o edifício da teoria
corpuscular da luz.
Na primeira década do século XIX, o inglês Thomas
Young, um profundo conhecedor do trabalho de Newton
sobre os fenômenos ópticos, percebeu que algumas das
propriedades da luz poderiam ser melhor explicadas se
considerarmos que ela é formada por ondas que se
superpõem, ora reforçando, ora enfraquecendo umas às
outras.
Para demonstrar esse princípio, ele propôs o seguinte
experimento: num quarto escuro, pegue uma fonte de
luz e coloque um anteparo à sua frente, de modo que
toda a luz seja bloqueada. Agora, faça um furinho no
anteparo de modo a deixar passar um cone de luz. E, a
certa distância do anteparo com o furinho, coloque um
segundo anteparo, agora com duas fendas pequenas, de
modo que a luz possa passar por elas. Por fim, coloque
um terceiro e último anteparo (esse sem furo nenhum)
para receber a luz que passa pelo par de fendas.
Há dois resultados possíveis para essa experiência,
pensou Young. Ou a luz é realmente composta de
partículas e, nesse caso, o terceiro anteparo vai
apresentar uma “mancha” luminosa forte onde os dois
cones de luz se encontram e duas áreas de
luminosidade menos intensa nas bordas; ou a luz é
composta de ondas e, nesse caso, o terceiro anteparo
vai formar um padrão misturado de luz e sombra,
parecido com o que Grimaldi observara no passado.
Young já sabia que quando duas ou mais ondas se
encontram elas podem se reforçar ou se enfraquecer. Se
as cristas de duas ondas se sobrepõem, a crista
resultante é a soma de ambas. Se uma crista coincide
exatamente com um vale, a onda resultante fica menor
e pode até se anular. De maneira geral, a soma de duas
ou mais ondas gera um padrão de interferência, cujo
formato vai depender das condições específicas.7
Nas Figuras 1 a 4, vamos mostrar a representação
matemática de duas ondas e o que acontece quando
elas se superpõem.

Figura 1 – Representação matemática de uma onda bem-


comportada. Ondas numa praia são diferentes da onda desta figura
porque são muito malcomportadas – efeitos como correntes
marinhas, vento, turbulência, atrito e presença de outras ondas
modificam o comportamento e o formato delas. Marolas num lago
calmo se aproximam mais dessa representação. O eixo vertical
representa a amplitude (ou “intensidade”) da onda. Podemos
entender isso como a altura da crista de uma onda no mar, por
exemplo. O eixo horizontal representa a distância entre duas cristas
sucessivas de uma ondulação.
Figura 2 – Uma onda “deslocada” em relação à primeira. Repare
que as cristas da primeira onda estão mais ou menos na mesma
posição dos vales desta segunda onda. Diz-se que a segunda onda
tem uma diferença de fase em relação à primeira.

Figura 3 – A soma das duas ondas anteriores, num exemplo de


interferência destrutiva.
Figura 4 – A soma de duas ondas iguais à da Figura 1, num
exemplo de interferência construtiva. Repare que a amplitude (a
altura das cristas ou a profundidade dos vales) é o dobro da
anterior, embora o formato da onda resultante seja o mesmo.

© Petrov Victor/Creative Commons

Figura 5 – Exemplo de um padrão de interferência num


experimento feito com um laser. A imagem tem uma definição muito
melhor do que aquela obtida por Young. Observe os aros de luz e as
zonas escuras: correspondem, respectivamente, a áreas de
interferência construtiva e destrutiva. Fonte:
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Laser_Interference.JPG#globalusag
e

Quando Young realizou seu experimento, hoje


conhecido como experimento da fenda dupla, encontrou
os padrões de interferência que esperaria caso a luz
fosse mesmo composta por ondas. Os resultados eram
incontestáveis: não havia como conciliar o resultado
experimental de Young com a teoria corpuscular de
Newton. Ao longo do século XIX, outras experiências
foram montadas com a intenção de demonstrar a
natureza ondulatória da luz. Todas obtiveram grande
sucesso.
E como se todas essas demonstrações empíricas não
bastassem, o escocês James Clerk Maxwell publicou um
artigo de quatro partes, entre 1861 e 1862,
demonstrando que a luz era uma onda e construindo, no
contexto dessa demonstração, um modelo para explicar
a relação, até então profundamente misteriosa, entre
eletricidade e magnetismo.
Maxwell obteve ainda um sucesso teórico triunfal ao
apresentar quatro concisas equações que mostravam
como a luz se propagava – além de deduzir o valor exato
da velocidade da luz em qualquer meio, desde que
conhecidas as propriedades eletromagnéticas dele.
Numa grande unificação, comparável à obtida por
Newton ao explicar, por meio da gravidade, tanto a
queda das maçãs no solo quanto o movimento da Lua ao
redor da Terra e o dos planetas ao redor do Sol,
Maxwell conseguiu unir, numa só teoria, fenômenos tão
díspares quanto ímãs, a luz – entendida como uma onda
– e os relâmpagos. O sucesso estupendo da teoria de
Maxwell pareceu ser o ponto final no longo debate
sobre a verdadeira natureza da luz. Mas era mesmo?

Surge o quantum

“Quantum” é uma palavra do latim que significa


“quão”, “quanto”, “tanto quanto” ou “quantidade”. Ela
entra no mundo da Física em 1900, quando o alemão
Max Planck propõe que a luz emitida por um corpo
aquecido – como um pedaço de metal deixado sobre
brasas, por exemplo – poderia ser mais bem
compreendida se os cientistas a tratassem não como um
fluxo contínuo de ondas, mas como algo composto de
minúsculos pacotes de energia, sendo que cada pacote
seria um quantum.
Ao sugerir que as tais ondas da bem-sucedida teoria
de Maxwell e dos experimentos de Young talvez não
bastassem para dar conta do fenômeno da luz, Planck
(que já foi definido como “o revolucionário relutante”)
não estava tentando transformar radicalmente nossa
compreensão do Universo, e muito menos abalar os
pilares da ciência, mas apenas buscando resolver um
problema bem prático: em 1900, havia uma dura
disputa comercial pelo mercado de lâmpadas
incandescentes.

É a economia, estúpido

A criação da lâmpada incandescente costuma ser


atribuída a Thomas Alva Edison, mas o principal mérito
do inventor americano esteve mais na criação de um
modelo comercialmente viável do que, de fato, na ideia
da iluminação elétrica. A primeira patente de uma
lâmpada elétrica foi concedida não a Edison, mas ao
britânico Joseph Swan. A casa de Swan, na Inglaterra,
foi a primeira residência do mundo a ser iluminada com
lâmpadas elétricas.
Swan também eletrificou por completo a iluminação
do Teatro Savoy, em Londres, num experimento
descrito, na época, tanto no jornal The Times quanto na
revista científica Nature. O sistema estreou numa
apresentação da opereta Patience, da famosa dupla
vitoriana de compositores Gilbert & Sullivan. O uso da
eletricidade em substituição às velas e à luz de gás foi
classificado pelo Times como um “sucesso total”.
Escreveu o jornal, em sua edição de 29 de dezembro de
1881:

A luz manteve-se perfeitamente estável durante toda a apresentação,


e o efeito pictórico foi superior ao do gás, as cores dos vestidos – um
importante elemento da ópera “estética” – parecendo tão verdadeiras e
distintas quanto em pleno dia. As lâmpadas incandescentes Swan foram
usadas, o auxílio da luz de gás sendo totalmente desnecessário.8

A década de 1880 assistiu a uma intensa competição


entre industriais dos Estados Unidos, da Inglaterra e da
Alemanha pela criação de um padrão para as lâmpadas
elétricas. A iluminação representava o mais recente
desenvolvimento numa série de tecnologias envolvendo
eletricidade, como o motor elétrico e o telégrafo, e
havia a sensação de que o país que conseguisse impor
seus produtos como o padrão da indústria conquistaria
enormes vantagens econômicas.
Lâmpadas incandescentes – como as do Teatro Savoy
em 1881 e as da sua casa hoje em dia – devem seu
poder de gerar luz à capacidade de um pedaço de metal
(o filamento no interior do bulbo) de brilhar quando
aquecido. A definição de um padrão para a luz elétrica
dependia, portanto, de uma compreensão completa – ou
o mais completa quanto possível – deste fenômeno: a
produção da luz por meio do aquecimento. A proposta
do quantum de Planck nasceu nesse contexto.

O corpo negro

A relação entre a cor de um raio de luz e sua


capacidade de afetar a temperatura registrada num
termômetro, que como vimos tinha sido estabelecida já
décadas antes do trabalho de Maxwell, foi estudada em
detalhes, ainda em meados do século XIX, pelo físico
alemão Gustav Kirchhoff. Ele reduziu todo o problema a
um modelo abstrato, que chamou de “corpo negro”.
Podemos imaginar o corpo negro como uma esfera oca,
com um pequeno furo conectando sua superfície
externa à cavidade em seu interior. Esse corpo tem
ainda a propriedade de não refletir nenhuma luz: não
importa o tipo de lâmpada e holofote que se aponte em
sua direção, ele sempre parecerá – e daí o nome –
negro.
Agora, imagine que a cavidade interior desse corpo
seja aquecida, mais e mais: logo as paredes da cavidade
começarão a brilhar, como um pedaço de metal que
esquenta, passando do vermelho escuro ao amarelo e ao
branco-azulado à medida que a temperatura se eleva.
Essa evolução da cor pode ser acompanhada graças ao
furo aberto na superfície.
Kirchhoff demonstrou, matematicamente, que essa
radiação do corpo negro não dependia do material de
que o objeto era feito, de seu tamanho ou formato, mas
apenas de sua temperatura. Ele propôs que deveria ser
possível criar uma equação ligando a temperatura do
corpo negro à energia emitida, mas não foi capaz de
deduzi-la – os meios para realizar os experimentos
necessários não existiam em sua época. Quando uma
equação finalmente foi proposta, décadas depois, ela
desencadeou uma crise que levou Planck ao seu “ato de
desespero”.
O leitor familiarizado com as guerras comerciais de
hoje pelo mercado de tablets e smartphones talvez
consiga ter uma ideia da guerra pelo mercado de
lâmpadas elétricas da década de 1880.
Em 1887, a Alemanha fundou o Instituto Imperial de
Física e Tecnologia, num campus estabelecido em terras
doadas por ninguém menos que o magnata da indústria
elétrica Werner Von Siemens (a Siemens, por falar
nisso, havia tomado parte na eletrificação do Savoy de
Londres, em 1881). Na década de 1890, o instituto
desenvolveu um agressivo programa para criar a
melhor lâmpada elétrica possível, que por sua vez
motivou um intenso estudo do problema do corpo negro.
Um forte candidato à posição da equação sonhada por
Kirchhoff surgiu, finalmente, no fim do século. Em 1893,
o jovem físico Wilhelm Wien, do Instituto Imperial,
mostrara como o pico da radiação emitida por um corpo
negro deslocava-se em direção ao azul e ao ultravioleta
à medida que a temperatura subia.
Isso significa que, embora o corpo aquecido sempre
emita luz de várias cores simultaneamente, a cor
predominante muda à medida que a temperatura sobe.
E essa mudança acontece sempre na direção da
extremidade azul do espectro.
Três anos depois de demonstrar esse deslocamento,
Wilhelm Wien propôs uma fórmula matemática para dar
conta do fenômeno, relacionando a cor predominante à
temperatura.
A Lei de Wien, como foi chamada, permitia explicar
por que uma barra de ferro aquecida mudava de cor – o
fenômeno observado correspondia ao deslocamento do
pico de emissão. Nos anos seguintes, no entanto, ficou
claro que a lei era falha; suas previsões não
correspondiam exatamente aos resultados dos
experimentos.
Embora a lei funcionasse bem para uma parte do
espectro, ela falhava em prever (e explicar) o aumento
observado na emissão de infravermelho com o
crescimento da temperatura. De acordo com a Lei, a
intensidade de infravermelho deveria ser bem menor do
que a observada quando os cientistas faziam seus
experimentos nos laboratórios.
Como, em ciência, nenhuma teoria é mais forte do que
os resultados experimentais que a apoiam, foi como se o
chão tivesse desaparecido debaixo dos pés da proposta
de Wien. E os físicos voltaram a correr atrás de uma
solução melhor. Max Planck, que havia ajudado a
estabelecer uma justificativa teórica para a Lei de Wien
– houve até mesmo propostas, modestamente repelidas,
para chamá-la de Lei de Wien-Planck –, lançou-se ao
desafio.
Planck primeiro apresentou, em outubro de 1900, uma
simples emenda empírica à Lei de Wien. Era uma
equação cujos resultados correspondiam aos fatos, mas
que a comunidade científica em geral (e o próprio
Planck, em particular) viu como nada mais que um
remendo provisório.

Catástrofe a caminho

Meses antes de Planck, na Alemanha, apresentar sua


“regra prática” para o espectro do corpo negro, um
físico inglês, John William Strutt, também conhecido
como Lord Rayleigh,9 havia tentado calcular esse
mesmo espectro, só que com base em princípios
fundamentais da Física clássica, derivados diretamente
das leis do movimento de Isaac Newton e de avanços,
ainda no espírito newtoniano, obtidos no estudo do
comportamento de partículas minúsculas, como os
átomos e as moléculas que compõem os gases.
Um desses avanços era um resultado conhecido como
“teorema da equipartição”, segundo o qual a energia de
um gás deve ser dividida igualmente entre as moléculas
que o integram e, em seguida, entre os diferentes
rumos que essas moléculas podem tomar no espaço.
A ideia era mais ou menos assim: se você tem 10
moléculas que podem vibrar em 3 dimensões – para
cima e para baixo; para frente e para trás; para a direita
e para a esquerda – num sistema com 60 unidades de
energia, então cada molécula deve receber 6 unidades,
sendo 2 unidades para cada dimensão (60 “moedas de
energia” divididas por 10 moléculas, e depois pelas 3
dimensões disponíveis para cada molécula).
Lord Rayleigh usou o teorema para dividir a energia
do interior do corpo negro entre as diferentes
frequências da radiação presente na cavidade.
O resultado obtido por Rayleigh, que posteriormente
foi ampliado por James Jeans e ficou conhecido como
Lei de Rayleigh-Jeans, previa que a energia no interior
da cavidade do corpo escuro deveria crescer de modo
ilimitado, atingindo valores infinitos na faixa
ultravioleta do espectro.
Trocando em miúdos: uma aplicação perfeitamente
lógica de um resultado válido da Física clássica levava à
conclusão de que deveria ser possível obter uma
quantidade infinita de energia simplesmente aquecendo
um pedaço de metal – por exemplo, deixando-se um
espeto de ferro sobre uma churrasqueira acesa. Não é
preciso pensar muito para concluir que essa previsão
representava um erro ainda mais desastroso do que os
peculiares desvios apontados pela Lei de Wien.
Com efeito, anos mais tarde a previsão de Rayleigh-
Jeans seria apelidada de “catástrofe ultravioleta”.
Curiosamente, a principal motivação de Planck não
parece ter sido, como às vezes se supõe, encontrar uma
solução para o clamoroso impasse entre fato e teoria
trazido pela “catástrofe”.
Isso porque ele não acreditava que fosse correto
aplicar o teorema da equipartição ao problema da
radiação do corpo negro e, portanto, não concordava
com a validade teórica do trabalho de Rayleigh.10 Planck
trabalhava não para resolver o dilema filosófico criado
pelo nobre inglês, mas para satisfazer sua curiosidade
pessoal e, claro, para solucionar questões práticas
pertinentes à indústria alemã.

Energia em pacotes

Manipular uma equação para que ela se ajuste aos


experimentos pode ser útil para o engenheiro, mas para
o teórico tem o sabor amargo de disparar flechas ao
acaso e, depois, pintar alvos cuidadosamente
centralizados nos pontos atingidos. Entre outubro e
dezembro de 1900, Max Planck buscou uma
interpretação que lhe permitisse justificar sua fórmula
com algo melhor do que um dar de ombros e a alegação
de que “é assim porque assim funciona”.
O que obteve foi a noção de que a energia não é
emitida pelas paredes do corpo negro de modo
contínuo, mas, sim, em pequenos pacotes – que chamou
de quanta, o plural do latim quantum.
Nessa visão, quando um átomo da parede da cavidade
do corpo negro passa a emitir luz, o que ele gera, na
verdade, é uma rajada de pequenas partículas, sendo
que cada uma delas encapsula um quantum de energia
proporcional à frequência dessa luz. Cabe esclarecer
que “frequência” é o número de oscilações, por
segundo, da onda luminosa.11
O que nossos olhos veem como cor é, na verdade, a
frequência da luz: quanto maior esse valor, mais
azulada a iluminação.
O raciocínio, agora, é bem direto: as diferentes cores
do espectro na verdade são diferentes frequências, e
diferentes frequências transportam diferentes
quantidades de energias. Logo, diferentes cores têm
diferentes energias.
Isso significa que as cores têm diferentes quanta: você
pode pensar no quantum de luz infravermelha como
uma bala de revólver e no de luz ultravioleta como um
míssil.12 Cada cor do espectro tem seu quantum próprio,
indivisível, e você nunca verá uma bala e meia ou dois
terços de míssil voando por aí. Mas, levando a analogia
um pouco mais adiante, você pode ver mísseis e balas
voando juntos. Isso é o que acontece quando nossos
olhos captam cores como o rosa ou o roxo: essas são
misturas de diferentes frequências “puras” do espectro.
Planck e seus colegas inicialmente trataram a ideia do
quantum como uma ficção matemática que, algum dia,
seria superada por uma compreensão melhor do
mecanismo do corpo negro. Afinal, para eles estava
mais do que claro que a luz era uma onda e não uma
rajada de partículas: a própria noção de frequência
aparecia na definição do quantum. Mas, cinco anos mais
tarde, um jovem chamado Albert Einstein provaria que
o conceito de fóton – como a partícula de luz veio a ser
chamada – era útil demais para ser tratado como algo
meramente ficcional.
O ano maravilhoso

Em 1905, Albert Einstein publicaria uma série de


artigos científicos que, embora não viessem a se tornar
um sucesso imediato, acabariam sendo a base de sua
reputação como um dos maiores gênios do século XX,
possivelmente o maior físico teórico desde Isaac
Newton.
Os mais famosos desses artigos trazem a elegante
dedução do fato de que nenhum objeto é capaz de se
mover mais depressa do que a velocidade da luz – a
Teoria da Relatividade Restrita – e a derivação da
equação E = mc². São ambas descobertas
fundamentais, mas elas não nos dizem respeito aqui.
O que o próprio Einstein considerava o trabalho mais
original13 de seu “ano maravilhoso” – a descoberta pela
qual viria a receber o Prêmio Nobel mais de uma
década depois, em 1922 – dizia respeito ao fenômeno do
efeito fotoelétrico.
Detectado pela primeira vez no fim do século XIX,
esse efeito descreve como uma placa de metal, uma vez
iluminada, passa a produzir corrente elétrica. A
explicação comumente oferecida para o fenômeno, na
época, era a de que as ondas de luz, ao atingirem a
superfície metálica, davam aos elétrons do metal
energia suficiente para que se pusessem em movimento,
gerando assim a corrente.
Experimentos realizados em 1902, no entanto,
revelaram que havia algo de errado com essa
interpretação. O que o físico húngaro Philipp Lenard14
descobriu foi que a intensidade da luz projetada sobre a
placa não afetava a energia dos elétrons emitidos, e
sim, seu número; já a frequência afetava a energia, mas
não o número.
Vamos dar uma olhada melhor nisso: Lenard
determinou que substituir uma lâmpada de, digamos, 50
W por uma de 100 W, da mesma cor, para estimular a
corrente não faz os elétrons correrem mais depressa,
mas aumenta a quantidade de elétrons correndo.
Já mudar a cor – isto é, a frequência – da luz,
mantendo a mesma faixa de potência, não vai afetar o
número de elétrons em trânsito, mas altera a energia de
cada um.
Essa situação era um tanto quanto difícil de explicar
pela teoria ondulatória da luz. Afinal, uma luz mais
intensa significa que há mais energia sendo transmitida
para a placa. Por que essa energia não se reflete no
comportamento individual de cada um dos elétrons?
Num golpe de gênio, Einstein percebeu que a solução
estava no quantum. Aumentar a intensidade da
iluminação significa arremessar mais partículas de luz
sobre o metal. Mas, para uma luz monocromática, cada
partícula tem a mesma energia das outras,
correspondente ao quantum da frequência em questão.
Assim, a luz mais forte não transmite mais energia aos
elétrons individuais, mas eleva o número de elétrons
atingidos pelos projéteis quânticos.
Já a mudança de frequência, mantendo-se a
intensidade, tem o efeito oposto: o número de partículas
continua constante, mas a energia de cada partícula se
altera, o que permite explicar a mudança na energia
transmitida aos elétrons em escala individual. Ou, nas
palavras do próprio Albert Einstein, em seu texto de
1905:

De acordo com a pressuposição considerada aqui, quando um raio de


luz, começando de um ponto, se propaga, a energia não é continuamente
distribuída sobre um volume cada vez maior, mas consiste de um
número finito de quanta de energia, localizados no espaço, que se
movem sem se dividir e que só podem ser absorvidos ou emitidos por
inteiro.15

Nos anos seguintes, experimentos confirmaram a


interpretação de Einstein para o efeito fotoelétrico. Em
1916, o americano Robert A. Millikan, um famoso físico
experimental, publicou resultados demonstrando que,
de fato, havia uma ligação direta entre a energia do
elétron emitido e a frequência da luz incidente.
Esses resultados, no entanto, desfaziam a certeza
legada pelos trabalhos de Young e Maxwell, mas sem
deixar claro o que pôr em seu lugar: ao mesmo tempo
que a bem-sucedida teoria eletromagnética do século
XIX continuava em pé – e o conceito de ondas de luz
dotadas de uma frequência específica mantinha-se
fundamental –, uma interpretação corpuscular parecia
ser indispensável para dar conta do efeito fotoelétrico e
até do funcionamento de uma simples lâmpada de rua.
Afinal, qual a solução?
4 “Ad hoc” é uma expressão latina que significa “para isto”. Em ciência,
hipóteses ad hoc são explicações criadas especialmente para se encaixar
num conjunto de observações, muitas vezes sem uma base teórica e sem
ligação com outros fatos conhecidos. Podem ser úteis como pontos de
partida para a reflexão, mas os cientistas tendem a desconfiar um bocado
delas.

5 O que também é uma hipótese ad hoc, verdade seja dita. E errada. Na


realidade, a luz se propaga mais lentamente em qualquer meio material (ar,
água, vidro etc.) do que no vácuo. Isso tem a ver com o fato de a luz não
conseguir andar muito longe num meio denso sem esbarrar em alguma
coisa que atrapalhe seu caminho.

6 O conhecido fenômeno da refração, que pode ser facilmente observado


colocando um lápis dentro de um copo de vidro cheio de água ou notando
que nossa altura dentro de uma piscina não parece a mesma quando
olhamos para nossas pernas dentro da água.

7 Por que não observamos padrões de interferência a qualquer hora em


nossa sala de estar? Por duas razões. Primeiro, porque o comprimento da
onda de luz visível é muito pequeno. A distância típica entre duas cristas
consecutivas de uma onda de luz vermelha, por exemplo, é da ordem de
650 nanômetros. Isso é 650 bilionésimos de um metro, então o padrão de
interferência é difícil de enxergar. Segundo (e muito mais importante), a luz
precisa ser coerente para formar padrões de interferência que durem
tempo o bastante para que sejam observados. E duas fontes de luz, A e B,
são coerentes se a distância entre as cristas das ondas emitidas por A e por
B mantiver-se a mesma ao longo do tempo. A luz natural (e das nossas
lâmpadas) é emitida, refletida e polarizada de tantas maneiras antes de
chegar aos nossos olhos que qualquer padrão de interferência que se forme
na parede terá uma duração curta demais para que o enxerguemos.

8 Excerto preservado em The Gilbert & Sullivan Archive.


http://math.boisestate.edu/GaS/carte/savoy/electric.html, acessado em
29/03/2013 (tradução nossa).

9 A forma como a luz do Sol se dispersa pela atmosfera da Terra, e que faz
o céu ser azul, é chamada de “Dispersão de Rayleigh” em homenagem a
ele.

10 A despeito do ceticismo de Planck, a catástrofe ultravioleta viria a ser


reconhecida como um problema grave para a Física clássica: um ponto de
ruptura no mundo newtoniano que tornava necessária a adoção do
quantum.

11 No caso da luz visível, essa frequência fica na casa de algumas centenas


de trilhões de oscilações por segundo, com o vermelho escuro realizando
cerca de 400 trilhões e o violeta, por volta de 790. A unidade de frequência
é o Hertz (símbolo Hz), e portanto se diz que a luz visível fica numa faixa de
frequência que vai de 400 THz a 790 THz, onde o “T” é a abreviação de
“Tera”, o prefixo grego para “trilhão”, ou 1 seguido de 12 zeros.

12 É por ser altamente energética que a luz ultravioleta é capaz de causar


queimaduras e até câncer de pele, enquanto a luz visível, que transporta
menos energia, é inofensiva.

13 As equações usadas por Einstein para expressar a Relatividade já


haviam sido deduzidas, em 1895, pelo holandês Hendrik Lorentz, e ainda
hoje são conhecidas pelos cientistas como “transformações de Lorentz”. O
gênio de Einstein, nesse caso, foi dar às transformações um contexto e um
significado revolucionários. Quanto a E = mc², essa mesma equação já
havia sido apresentada em 1900 pelo matemático francês Henri Poincaré.
Alguns historiadores consideram que Lorentz e Poincaré “escaparam” de
descobrir a Relatividade antes de Einstein por puro azar ou falta de
imaginação – ou uma mistura de ambos.

14 É triste – e irônico – que Lenard, um físico importante que chegou a


receber um Nobel, e cujo trabalho experimental inspirou Einstein, depois
viesse a aderir ao nazismo e se tornasse um defensor da “Física ariana”,
que supostamente se opunha à “Física judaica” de Einstein e outros.

15 Artigo “On a Heuristic Point of View Concerning the Production and


Transformation of Light”, em Einstein’s Miraculous Year: Five Papers that
Changed the Face of Physics. Princeton: Princeton University Press, 2005,
p. 178. (Tradução nossa).
CAPÍTULO 3

CERTEZAS NUM MUNDO INCERTO


Possibly Gilman ought not to have studied so hard.
Non-Euclidean calculus and quantum physics are enough to stretch
any brain (…)16
H. P. Lovecraft, Dreams in the Witch House

Em uma carta a seu rival Robert Hooke, Newton certa


vez declarou que “se é verdade que enxerguei mais
longe, foi porque me apoiei nos ombros de gigantes”,
referindo-se aos trabalhos anteriores de outros
cientistas.17 Embora o sempre ácido Newton talvez
estivesse se referindo indiretamente à baixa estatura de
Hooke, o ponto é: em ciência, é fundamental que haja,
se não cooperação direta, um contínuo levar adiante de
trabalhos anteriores por outras mãos e mentes. Novas
ideias são constantemente adicionadas e comparadas às
noções anteriores, de forma que o edifício da ciência
está sempre crescendo, ainda que de forma gradual.
Ou, ao menos, assim se idealiza.
O caso da Física moderna, que viemos desenhando
nos últimos capítulos, ilustra bem o que acontece
quando há uma ruptura radical nesse processo
acumulativo. A luz, considerada como partícula por
Newton e seus defensores durante muito tempo, teve
seu caráter ondulatório dramaticamente demonstrado
por Young e Maxwell; apenas para Einstein, de maneira
igualmente dramática, estabelecer que a luz também
pode se comportar como partícula. Mas, então, quem
diabos está certo? Como é possível que a luz possa ser
ora um fluxo de partículas, ora uma propagação
ondulatória? E se é verdade que a luz é as duas coisas,
quem (ou o quê) determina em que condições qual
comportamento vai se manifestar?
Essa pergunta começou a ser respondida no contexto
de outro problema que aparentemente não tinha nada a
ver com ela: a razão pela qual os átomos dos quais
somos feitos não desabam sobre si mesmos.

A estabilidade dos átomos


e as ondas de matéria

Que todo corpo material ao nosso redor é feito de


átomos não é uma ideia nova – na verdade, a ideia de
que somos feitos de pequenos pedaços microscópicos
de matéria tem pelo menos 2.500 anos.18 Porém, foi
apenas no começo do século XX que a estrutura atômica
começou a ser desvendada. Em 1911, Ernest Rutherford
bombardeou uma folha fina de ouro com partículas alfa
(uma espécie de radiação que, já naquela época, sabia-
se ser formada por partículas de carga elétrica positiva)
e observou a magnitude do desvio que as partículas
sofriam ao atravessar a folha, medida pelo ângulo de
deflexão.
Até então, pensava-se que o átomo era semelhante a
um pudim de ameixas – a “massa” do pudim seria um
amálgama de cargas positivas, e as “ameixas”, cargas
negativas distribuídas em pontos específicos da
superfície. O que Rutherford observou, no entanto, era
que as partículas alfa às vezes passavam através da
folha de ouro sem se desviar muito, e às vezes
demonstravam uma deflexão muito grande. Quase como
se fossem bolas de bilhar colidindo com um arranjo
compacto de outras bolas de bilhar e, por conta disso,
mudando radicalmente de direção, como num ricochete.
Como se sabe, cargas elétricas de igual sinal se
repelem. Assim, Rutherford e sua equipe foram capazes
de deduzir que as cargas positivas de um átomo se
encontravam confinadas numa região central muito
pequena – cem mil vezes menor do que o próprio raio
atômico, como sabemos hoje – rodeada por uma nuvem
de elétrons carregados negativamente. Esse novo
modelo explicava que as partículas alfa que se
aproximavam desse centro diminuto eram as que
sofriam maior deflexão, enquanto as demais passavam
mais ou menos incólumes.
O átomo de Rutherford era, portanto, semelhante a
um minúsculo sistema solar, com os elétrons girando em
torno do núcleo positivo a altíssimas velocidades. Além
de dar conta do padrão de deflexão das partículas alfa,
o modelo explicava com sucesso muitas das
propriedades observadas empiricamente na época, mas
tinha uma falha fatal: de acordo com as leis conhecidas
da Eletrodinâmica, qualquer sistema assim
necessariamente teria de emitir radiação
eletromagnética (luz), o que acarretaria em perda de
energia e um subsequente colapso: girando em suas
órbitas, os elétrons deveriam emitir partículas de luz
que levariam embora a energia necessária para que se
mantivessem afastados do núcleo. Como cargas
positivas e negativas atraem-se, a tendência natural do
elétron seria mergulhar em direção ao centro do átomo.
Em outras palavras, o átomo de Rutherford deveria
ser instável, caindo sobre si mesmo em frações de
segundo. Ora, mas se tudo ao nosso redor (incluindo
nós mesmos) é feito de átomos, e se não vemos as
coisas implodindo até desaparecer, o que está errado?
Felizmente para nós (e para físicos que dependem da
coerência de suas teorias com o mundo real para
arranjar emprego), o modelo atômico de Rutherford
precisava apenas de alguns ajustes, feitos por um jovem
físico dinamarquês de nome Niels Bohr a partir de
1913. Bohr imaginou que, tal como o espectro do corpo
negro era quantizado, como vimos no capítulo anterior,
assim também deveriam ser as emissões de um átomo.
Ou seja, os elétrons de um átomo só poderiam emitir luz
em frequências bastante específicas, que variam de
átomo para átomo e não causam colapso.
Ele sugeriu dois postulados para explicar a
estabilidade dos átomos:

1. Os elétrons de um átomo só podem se manter em


certas órbitas estacionárias, com valores de energia
bem definidos. Não é possível para um elétron ocupar
o espaço intermediário entre duas órbitas atômicas
consecutivas.
2. A energia do fóton de luz emitido ou absorvido por
um átomo, quando um de seus elétrons muda de
órbita, é um múltiplo inteiro da constante de Planck.19

Por mais que a ideia inicial de Bohr tivesse sido capaz


de, numa só tacada, resolver o quebra-cabeça da
estabilidade e prever as frequências da luz emitida por
átomos de hidrogênio, permanecia a questão de que
seus postulados não tinham muito a ver com a Física tal
como se fazia até então. Uma série de objeções sérias
foi surgindo, por exemplo: quando um átomo excitado
vai emitir um fóton? Exatamente de que forma o elétron
sabe que não pode ocupar espaços intermediários entre
as órbitas? Como o fóton emitido sabe para qual outra
órbita o elétron está saltando, para então ajustar sua
frequência de acordo?
A Física, até aquele momento, era fortemente
influenciada pelo determinismo. Graças ao sucesso
tremendo da Mecânica Newtoniana e a seu incrível
poder de previsão, pensava-se que, se tivéssemos
acesso a todas as condições iniciais de um sistema – ou
seja, se conhecêssemos a velocidade e a posição inicial
de todas as partículas de um sistema e todas as forças e
potenciais atuantes nele –, seríamos capazes de prever,
com exatidão, todas as futuras posições de todas as
partículas. Essencialmente, seríamos capazes de prever
o futuro com exatidão, ao menos em princípio.
O átomo de Bohr, por outro lado, apresentava um
comportamento fortemente indeterminístico, ou seja,
não havia nada no modelo que nos desse uma ideia de
quando um fóton seria emitido, o que era um incômodo
filosófico bem grande.
Mesmo com todo o sucesso obtido, o modelo de Bohr
era limitado. Funcionava bem só para o átomo de
hidrogênio, o mais simples de todos, que possui apenas
um próton e um elétron. Qualquer sistema mais
complicado apresentava dificuldades crescentes para
ser descrito, o que levou o modelo a sofrer vários
ajustes nos anos que se seguiram.
Paralelamente ao trabalho de Bohr e de seus colegas,
outro cientista, de nome Louis-Victor de Broglie, 20
estava às voltas com sua tese de doutorado e ponderava
o problema da luz, como tantos antes dele. Para de
Broglie, não parecia estranho que a luz se comportasse
algumas vezes como partícula e algumas vezes como
onda, como sugeriam os resultados de Einstein a
respeito do efeito fotoelétrico. O que lhe parecia de fato
estranho era a aparente assimetria implícita na
sugestão de que o quantum de luz – o fóton – deveria
ser tratado como onda e partícula, enquanto os
componentes da matéria eram vistos exclusivamente
como corpusculares.
Assim, ele fez uma sugestão ousada: toda a matéria
deveria ser entendida como tendo uma natureza dual,
assim como a luz; e revelaria esse ou aquele caráter
dependendo do tipo de experimento realizado. A onda
“guiaria” sua partícula associada, fazendo com que o
corpúsculo oscilasse em um tipo de movimento
periódico, algo como “uma rolha de cortiça sendo
carregada por ondas no mar”.21
Essa ideia sobre as ondas de matéria ocorreu a De
Broglie, como vimos, por razões de simetria. Estava
claro para o cientista francês que, da mesma forma que
se pode descrever a propagação da luz por meio de
raios retilíneos quando se trata de fenômenos
macroscópicos (o chamado limite da Óptica Geométrica,
que dá conta, por exemplo, dos cálculos de reflexão em
espelhos e de refração em lentes que os jovens
aprendem a fazer no Ensino Médio), ou por meio de
ondulações, quando se trata de fenômenos
microscópicos (o chamado limite da Óptica Física, ou
Ondulatória), também o mesmo poderia ser feito com
relação a qualquer outra entidade microscópica, como
um elétron.
Uma característica básica das ondas é a distância
entre duas cristas ou dois vales sucessivos, chamada de
comprimento de onda. Quanto maior o comprimento de
onda, tanto menor será a energia transportada pela
ondulação, e vice-versa: quanto menor o comprimento
de onda, maior a energia. E uma característica básica
de uma partícula de matéria em movimento é o seu
momento linear, grandeza que mede o ímpeto de seu
deslocamento – quanto mais momento um corpo tiver,
maior será a dificuldade de alterar sua trajetória,
desviando-o do caminho original; razão pela qual
também é chamado de quantidade de movimento. O
momento linear foi definido por Newton como sendo o
produto da massa de um corpo por sua velocidade.
A proposta da dualidade onda-partícula, então, é a
seguinte: o caráter ondulatório e o corpuscular de cada
ente subatômico estão atrelados à constante de Planck –
aquela mesma que já aparecia na descrição do átomo de
Bohr e, antes, nas equações do efeito fotoelétrico e do
corpo negro. Se multiplicarmos o momento linear de
cada partícula pelo comprimento de onda associado,
vamos obter exatamente a constante de Planck – que é
muito, muito pequena.22
Dito de outra forma, quanto maiores a massa e a
velocidade de um corpo, tanto menor o comprimento de
onda associado a esse corpo.
Como vimos no capítulo anterior, o caráter ondulatório
de um objeto pode ser verificado fazendo experimentos
de interferência e difração com anteparos de tamanho
aproximadamente igual ao comprimento de onda
considerado. Ou seja, só somos obrigados a levar em
conta o caráter ondulatório de um objeto se as
dimensões do aparato experimental forem comparáveis
ao comprimento de onda de De Broglie; de outra forma,
podemos tratá-lo como partícula, sem problema algum.
É exatamente por esse motivo que não enxergamos a
dualidade onda-partícula no cotidiano. Um corpo
macroscópico, como este livro, você, um carro, uma
montanha, ou uma pulga tem um comprimento de onda
de De Broglie tão pequeno que não pode ser
observado.23
Para de Broglie, o átomo de Bohr não representava
surpresa alguma. É possível entender as órbitas
eletrônicas de Bohr como ondas estacionárias –
análogas às vibrações que produzem música numa
corda de violão. Cada estado excitado do átomo de
hidrogênio tem que corresponder a um número inteiro
de comprimentos de onda que caiba na circunferência
da órbita.
As ondas de matéria de De Broglie ajudavam a
visualizar um novo panorama para a Física, mas elas
sozinhas ainda não eram suficientes para que a velha
Mecânica Quântica (como chamamos hoje) desse conta
de explicar as emissões espectrais de átomos mais
complicados que o hidrogênio. Para isso, um novo passo
teve de ser dado.

Schrödinger e a função de onda

Até aquele momento, a velha Mecânica Quântica tinha


dado conta do átomo de hidrogênio e dos metais
alcalinos, que ocupam a mesma coluna que o hidrogênio
na tabela periódica, além de lidar bem com algumas
questões em outros campos da Física. Um tratamento
completo do panorama subatômico continuava a eludir
os cientistas, até mesmo aqueles do grupo de Bohr, que
contava com pesos-pesados da área, como Arnold
Sommerfeld e Werner Heisenberg (sobre quem
falaremos mais daqui a pouco), e recebia colaborações
de Wolfgang Pauli e outros.
Munidos de métodos matemáticos mais precisos
imaginados por Heisenberg, eles tinham conseguido
avanços significativos na tentativa de descrever
sistemas quânticos mais complexos. Porém, logo a
comunidade científica seria atordoada por uma série de
artigos do austríaco Erwin Schrödinger.24
O raciocínio de Schrödinger foi o seguinte: se De
Broglie tinha teorizado que qualquer partícula
subatômica tem um caráter ondulatório, fazia sentido
tentar escrever uma equação cuja solução seria a
função de onda que descrevesse o sistema quântico
considerado. Essa equação governaria a evolução do
sistema e deveria nos dizer, por exemplo, quais as
chances de um elétron saltar de órbita – lembre-se de
que a impossibilidade de se prever qualquer coisa a
respeito do salto era um dos principais problemas com a
velha Teoria Quântica. Evidentemente, a equação
buscada por Schrödinger teria de atender às relações
matemáticas entre comprimento de onda e momento
linear que De Broglie tinha encontrado, já que sua base
teórica era o trabalho do francês.
Além disso, a equação deveria satisfazer à velha e
conhecida conservação da energia para que pudesse
descrever sistemas físicos reais. Por fim, e tão
importante quanto, a equação deveria ter como
soluções funções de onda lineares, ou seja, a soma de
duas (ou mais) soluções da equação deveria ser também
uma solução. Esta última condição garante que efeitos
de interferência (como vimos no capítulo passado)
sejam observados. De fato, qualquer Teoria Quântica
precisa prever fenômenos de interferência, ou não
estará sendo consistente com a realidade.
Após se trancar por vários dias numa cabana nas
montanhas (aparentemente para se recuperar de uma
doença; o mais provável é que tenha levado também sua
amante), Schrödinger apareceu com um artigo
bombástico em janeiro de 1926, no qual propunha a
famosa equação que leva seu nome, e já com soluções
para os níveis de energia do átomo de hidrogênio. Ao
longo daquele ano, outros artigos se seguiram,25 nos
quais Schrödinger praticamente definiu o caminho que
a Mecânica Quântica tomaria até os dias de hoje.
Mas o que é a tal função de onda?
Essa não é uma pergunta simples de responder.
Anteriormente, dissemos que a função de onda é uma
solução da equação de Schrödinger. Matematicamente,
é um objeto que guarda todas as informações sobre o
sistema quântico considerado. Ela não representa uma
entidade quântica particular – um elétron, uma
partícula alfa, um átomo etc. – e sim, o estado dessa
entidade.
Nos meses que se seguiram às publicações de
Schrödinger, De Broglie, Bohr e os demais cientistas
debateram exatamente qual o significado físico da
função de onda. O problema é que ela era representada
por um número complexo – é uma necessidade da
equação de Schrödinger que a função de onda seja
complexa, tendo uma parte com números reais – que
são os números como 10, 1/3, –6 ou até mesmo π, que
usamos para representar quantidades e medidas que
encontramos no dia a dia, como pesos, comprimentos,
saldos bancários, velocidades – e uma parte com
números imaginários, que são múltiplos do número i,
símbolo que representa a raiz quadrada de –1.26 Só que
apenas conseguimos interpretar fisicamente grandezas
reais, e temos grande dificuldade para dizer o que
representa “de verdade” uma grandeza imaginária.
De Broglie insistia que por trás da função de onda
deveria existir um objeto físico real – uma onda
existente, tal como uma radiação luminosa ou uma
vibração sonora, responsável por guiar a trajetória de
uma partícula igualmente existente. O próprio
Schrödinger não sabia exatamente o que dizer. Para ele,
a função de onda era pouco mais do que um artifício
necessário para fazer as contas darem certo. A função
de onda de um elétron, por exemplo, representaria uma
distribuição de carga sobre um determinado volume
onde se espera observá-lo. Nessa interpretação, a
função de onda seria um campo com existência tão real
quanto um campo elétrico ou um campo gravitacional.
Caberia ao grupo de Bohr, entretanto, bater o martelo
sobre como a função de onda seria enxergada.

De incertezas e probabilidades

Uma partícula na Física clássica tem uma trajetória


muito bem definida. A qualquer momento podemos
dizer onde ela está e a que velocidade está se movendo.
Já com uma onda isso não é mais verdadeiro. Considere
uma onda no mar: você é capaz de dizer com exatidão
onde ela está localizada? Pode estipular com toda
certeza com que velocidade ela se desloca? Vá em
frente, feche o livro por um instante, pense um pouco e
depois volte.
Pensou? Muito bem. Se tiver visualizado direitinho
uma onda quebrando na areia, vai perceber que ela não
pode ter uma localização definida porque está
“espalhada” por uma faixa bem larga de espaço. Da
mesma forma, partes da onda quebrarão sobre a areia
com velocidades diferentes. Podemos até tentar calcular
uma velocidade média para essa onda (que na verdade
é o resultado da interferência de várias ondas simples,
mais efeitos de turbulência, atrito etc.), mas
dificilmente seremos capazes de atribuir uma
velocidade única e definida para a onda toda. E repare
que em momento nenhum falamos de um objeto
microscópico, e sim, de algo que podemos ver e sentir a
qualquer hora em qualquer praia.
De fato, todas as ondas são assim. Se considerarmos
uma onda plana bem-comportada, cuja velocidade é
perfeitamente determinada pela matemática, vamos
perceber que sua posição é totalmente indeterminada –
a onda está tão espalhada que não podemos dizer que
ela “está” aqui ou ali.
Com objetos quânticos isso não é diferente.
Lembre-se de que, pelo princípio da dualidade onda-
partícula, podemos tratar uma partícula subatômica
como partícula mesmo – ou seja, com posição e
velocidade bem definidas – se nosso aparato
experimental não for sensível o suficiente para detectar
o comprimento de onda de De Broglie correspondente.
Porém, se os instrumentos forem precisos o bastante
para que o comprimento de onda associado faça
diferença, obrigatoriamente vamos observar o caráter
ondulatório da entidade quântica; o que inclui essa
incerteza fundamental.
Assim, podemos dizer que quanto mais tivermos
certeza da posição de um elétron, por exemplo, tanto
menos saberemos sobre a velocidade dele, e vice-versa.
Foi Werner Heisenberg, um dos colegas de Niels Bohr,
quem percebeu que isso era válido para todos os
sistemas quânticos – e não apenas para posição e
velocidade, mas para uma série de pares de
“observáveis”, como ele chamou.
As grandezas dentro desses pares – momento angular
em diferentes direções, energia de um estado excitado e
tempo de transição para outro estado, as já citadas
posição e velocidade, entre outras – não podem ser
ambas conhecidas com precisão arbitrariamente alta ao
mesmo tempo. Se tivermos uma boa ideia de uma delas,
nosso conhecimento da outra será, necessariamente,
limitado. E isso não tem nada a ver com a precisão de
nossos instrumentos, ou com a habilidade dos cientistas
que estão fazendo medidas. É um limite imposto pela
própria natureza, contra o qual não parece haver
contorno possível.
Essa ideia é conhecida como o Princípio da Incerteza
de Heisenberg.
Paralelamente ao desenvolvimento do Princípio da
Incerteza, o físico germânico Max Born estava se
ocupando do problema do indeterminismo na Mecânica
Quântica. Não sabemos, por exemplo, exatamente em
qual posição encontraremos um elétron orbitando o
núcleo de um átomo. Sabemos que ele tem que estar lá.
Assim, se olharmos em todo o espaço, a probabilidade
de encontrarmos o elétron em algum lugar é de 100%.
Mas se limitarmos a busca a uma região mais restrita –
digamos, apenas nas órbitas correspondentes ao
terceiro e quarto estados excitados –, as chances de
encontrar o elétron diminuem bastante. Em outras
palavras, não é possível prever onde encontraremos
uma partícula. No máximo, podemos calcular qual a
probabilidade de ela estar em certa região. E isso se
aplica não apenas à posição, mas a qualquer um dos
observáveis da Mecânica Quântica – velocidade,
momento angular, energia, entre outros; sempre
podemos esperar que tais grandezas apresentem um
certo espectro de valores possíveis, mas não saberemos
qual valor vai aparecer até irmos ao laboratório e
realizarmos a tal medida.
Em seu trabalho, Born demonstrou como calcular
essas probabilidades. Implícito no raciocínio estava o
seguinte: se prepararmos um número suficientemente
grande de sistemas quânticos idênticos e medirmos um
mesmo observável em cada um deles, vamos verificar
que o número de resultados iguais é proporcional à
probabilidade de obter aquele resultado. A cada
possível valor do observável é atribuído um coeficiente
que é proporcional à probabilidade de ele ser
encontrado numa medição.
Em português claro, isso significa que, se num
experimento há uma chance de 70% de observar um
fóton com uma certa polarização, podemos esperar que
cerca de 70 de cada cem fótons observados tenham a
tal polarização. Nunca será uma proporção exata, pois
estamos tratando de probabilidades aqui, não de
certezas. Mas quanto maior o tamanho da amostra,
tanto mais próximo do valor exato.
Isso de calcular probabilidades é muito bonito, mas
Born não parou por aí. Para ele e para o grupo de Niels
Bohr, tornava-se cada vez mais claro que o mundo
quântico jogava com regras um pouco diferentes das
que esperaríamos se nos baseássemos apenas pela
Física clássica. Born então arriscou uma interpretação
para a função de onda – sozinha, ela não tinha
significado físico (lembre-se de que ela é um número
complexo, contendo o fator i, uma grandeza difícil de
interpretar em termos físicos). Mas se multiplicarmos a
função de onda por seu complexo conjugado, uma
operação equivalente a elevar um número real ao
quadrado, fazemos desaparecer o i e obtemos um
número real que representa uma densidade de
probabilidade. Ou seja, para Born, a função de onda não
exprime uma coisa real, um campo físico de verdade –
apenas um conjunto de probabilidades. A função em si
nem sequer tem significado, antes de ser elevada ao
quadrado.
Bohr e Heisenberg trataram de sintetizar todos esses
trabalhos no que se convencionou chamar de “a
Interpretação de Copenhague para a Mecânica
Quântica”.27 Para eles, o panorama quântico
apresentava características muito diferentes do que é
compreensível intuitivamente. Vamos resumir o que eles
disseram:

1. O princípio da complementaridade: a matéria


exibe um caráter dual entre onda e partícula. Qual
caráter se apresenta depende das características do
experimento. Não se pode invocar apenas o caráter
corpuscular ou o ondulatório para descrever os
fenômenos quânticos.
2. A função de onda de um sistema quântico guarda
todas as informações acessíveis sobre o estado do
sistema.
3. A função de onda sozinha não tem significado
físico. Multiplicada por seu complexo conjugado,
representa a probabilidade de encontrar o sistema
quântico neste ou naquele estado.
4. É impossível conhecer simultaneamente e com
precisão absoluta todas as características do sistema.
Nosso conhecimento é limitado pelo Princípio da
Incerteza.
5. É impossível prever que valor um observável vai
assumir antes de realizarmos uma medida.
6. O princípio da correspondência: para objetos
suficientemente grandes ou sistemas com um número
de partículas satisfatoriamente elevado, as previsões
da Mecânica Quântica devem ser equivalentes às da
Mecânica clássica.

Veja só quanta diferença se comparado ao panorama


determinístico da Física clássica! No universo de
Newton, partículas ou planetas têm suas trajetórias
cuidadosamente definidas, sem espaço para dúvidas. As
incertezas que existem são resultados da imprecisão de
nossos instrumentos ou da falta de perícia do
experimentador. No universo quântico, não. As
imprecisões e incertezas são parte intrínseca da
natureza, e precisão instrumental alguma poderá
eliminá-las. Além disso, Bohr sugeriu que sequer fazia
sentido dizer que “o elétron estava realmente na
posição x”. Antes de realizar uma medida, o elétron
simplesmente não está em lugar nenhum que se possa
definir.
Outra característica desconcertante é que, por causa
das condições de linearidade impostas por Schrödinger
no desenvolvimento de sua equação, é possível que uma
função de onda seja dada pela soma de duas ou mais
funções de onda superpostas. No mundo real, isso
significa que é possível montar experimentos em que
um sistema quântico se encontre num estado
superposto indefinido. Voltando ao exemplo dos fótons
polarizados acima, podemos dizer que um dado fóton
está num estado de polarização superposto, com 70%
de chance de estar polarizado de uma forma e 30% de
chance de estar em outra polarização. Mas até que ele
seja medido, não há sentido em afirmar que o estado de
polarização do fóton seja um ou outro.
Bohr versus Einstein

Como você pode imaginar, isso incomodou muita


gente de pedigree científico impecável. Einstein, por
exemplo, apesar de ter sido um dos fundadores da
Mecânica Quântica, se perguntava se o Princípio da
Incerteza era mesmo um limite fundamental ou se
haveria alguma maneira de contorná-lo e chegar a uma
descrição completa do mundo quântico. Para Einstein, a
coisa toda era um contrassenso: como assim, o elétron
não tem uma posição definida? Ele podia aceitar que o
conhecimento sobre a posição do elétron fosse muito
difícil, senão impossível, de obter. Mas o mundo só faria
sentido (ao menos para ele) se o elétron realmente
estivesse na posição x.
É sempre perigoso usar analogias para descrever
fenômenos científicos, mas vamos arriscar uma mesmo
assim, para tentar deixar a bronca de Einstein um
pouco mais clara.
Imagine que você tem um baralho comum de 54
cartas (13 de cada naipe, mais dois coringas). Você
embaralha bem e saca quatro cartas, deixando-as com a
face para cima: um coringa, o rei de copas, o dois de
copas, o sete de ouros e o dez de paus. Você tenciona
sacar mais uma carta do topo do baralho. Qual será
essa carta?
Bem, podemos calcular qual será a probabilidade de a
carta pertencer ao naipe de espadas (que é 13/50, ou 13
chances em 50), por exemplo, ou qual a chance de ser
uma figura (11 em 50), ou o outro coringa (apenas uma
chance em 50). Podemos assinalar probabilidades para
qualquer dessas coisas. Entretanto – e esse é o cerne da
crítica de Einstein –, não importam quais sejam as
chances, já que o valor da carta está bem definido a
priori. Nós é que não sabemos qual é esse valor até
virar a carta.
O panorama descrito por Bohr é diferente. Para ele, o
mundo quântico não é um jogo de cartas marcadas (com
o perdão do trocadilho), mas uma loteria. Imagine que
você faz uma aposta simples na mega-sena, marcando
seis dezenas na esperança de ficar milionário. Você não
sabe se suas dezenas serão sorteadas (as chances são
algo como 50 milhões para 1 – boa sorte!) e precisa
esperar até que o globo da sorte pare de girar para que
as bolinhas numeradas caiam. Antes de as bolinhas
caírem é totalmente impossível prever quais números
serão sorteados, porque eles simplesmente não existem
ainda.
Voltando ao baralho, é como se a carta seguinte
escolhesse seu naipe, número ou figura no instante em
que é virada, em vez de já ter essas características
predefinidas desde o dia em que saiu da fábrica.
Para complicar ainda mais a situação, nunca esteve
muito claro qual o mecanismo pelo qual os sistemas
quânticos decidem assumir um ou outro estado. A
Interpretação de Copenhague sustenta que o sistema
permanece indefinido até que uma medida seja feita.
Nesse momento, algo misterioso chamado “colapso da
função de onda” ocorre, e um dos valores possíveis do
observável medido se manifesta e assim permanece.
Einstein e Bohr travariam uma série de debates sobre
o significado e implicações da Mecânica Quântica nos
anos seguintes. Einstein proporia situações e
experimentos para tentar mostrar que as consequências
lógicas da Interpretação de Copenhague geravam
absurdos, apenas para algum tempo depois ver Bohr
conseguir encontrar uma resposta demonstrando que
havia alguma falha conceitual no raciocínio do pai da
Relatividade. A comunidade científica assistiu,
deliciada, a esse duelo de titãs intelectuais, que apesar
das fortes diferenças filosóficas permaneceram cordiais
até o fim de suas vidas. A última anotação deixada por
Bohr no quadro negro de seu escritório, na noite
anterior à sua morte em 1962, foi uma análise de uma
das tentativas feitas por Einstein, ainda nos anos 1930,
de desbancar a Interpretação de Copenhague.28

De matemática, gatos mortos-vivos e o


problema da medida

Muitos outros viriam a questionar a interpretação


estabelecida por Bohr. As alternativas que tiveram mais
sucesso até agora, como a Interpretação de De Broglie-
Bohm, reproduzem as previsões estatísticas da
Interpretação de Copenhague e evocam mecanismos
diversos para explicar, ou até eliminar, a necessidade do
incômodo colapso da função de onda.29 Entretanto, a
Interpretação de Copenhague venceu as ideias
concorrentes (ainda que não necessariamente tenha
convencido todo mundo) e se estabeleceu como a
posição ortodoxa. É o modelo mais simples, realmente,
apesar de suas consequências esquisitas. Tudo o que se
pede é que deixemos de lado nossos “preconceitos
macroscópicos” e tentemos entender o que a
Matemática está tentando nos dizer – e a Matemática
da Mecânica Quântica não é seriamente questionada
por ninguém.
Mas, como dizem por aí, o diabo mora nos detalhes.
A Matemática estava definida com bastante rigor,
graças em grande parte aos esforços de John von
Neumann, matemático húngaro-americano que
estabeleceu um tratamento altamente abstrato de todas
as ideias que estivemos discutindo neste capítulo em
sua colossal obra, Fundamentos Matemáticos da
Mecânica Quântica, de 1932. Nesse livro, von Neumann
deduz quase tudo que falamos aqui com base em
argumentos de álgebra linear. Essa formulação rigorosa
emprestou bastante robustez à Interpretação de
Copenhague, mas o próprio von Neumann pensava de
forma diferente. Para ele, como para Einstein, De
Broglie e David Bohm, a interpretação ortodoxa não
contava a história inteira. Von Neumann estava
particularmente interessado no problema da medida.
Sabemos, pelo Princípio da Correspondência, que no
limite entre o mundo macroscópico e o microscópico as
previsões da Física Quântica e da clássica devem
coincidir. Mas onde exatamente está esse limite? Por
qual processo a medida influencia o comportamento
(para não falar do resultado) de um sistema quântico?
Von Neumann imaginou que, uma vez que tudo no
mundo é composto, em última instância, de sistemas
quânticos, a fronteira entre micro e macro é ilusória. Ou
seja, se um experimentador está observando um
sistema quântico descrito por certa função de onda, o
próprio ato de medir alguma coisa é resultado da
interação da função de onda do observador com aquela
do sistema observado. Dessa interação é que viria o
colapso da primeira função de onda.
Extrapolando esse argumento, podemos imaginar uma
única função de onda para todo o Universo que
contemplasse todos os sistemas e todos os
observadores. Von Neumann imaginou que “alguma
coisa de fora” talvez tivesse que intervir para que cada
parte dessa função de onda universal colapsasse e
acabou por concluir que isso deveria ser a consciência
de cada experimentador.
O rigoroso formalismo matemático de von Neumann
foi apreciado e usado por todos os físicos desde a
publicação de seu livro, mas quase ninguém na
comunidade da Física realmente levou a sério a ideia
sobre a consciência do observador causar o colapso.
Além do mais, não está claro o que seja “consciência”,
muito menos que ela deveria ser capaz de causar
colapsos de função de onda por aí. O problema da
medida ainda não está completamente fechado, mas
tudo leva a crer que o que quer que aconteça para
causar o colapso, não requer nenhuma espécie de
presença inteligente prestando atenção o tempo todo.
O célebre experimento mental do Gato de Schrödinger
ilustra bem isso: imagine que pegamos um gato bem
vivo e o fechamos dentro de uma caixa com um aparato
diabólico instalado. O aparato contém um frasco lacrado
cheio de cianureto, um martelo acoplado a um contador
Geiger (um aparelho que detecta radiação) e uma
amostra radioativa. Se um dos átomos da amostra
decair (emitindo uma partícula de radiação no
processo), o contador Geiger vai registrar o decaimento
e o martelo cairá sobre o frasco, quebrando-o e
matando o gato. Enquanto nenhum átomo decair, o gato
permanecerá vivo.
Ora, pelas regras da Mecânica Quântica, não é
possível determinar quando a amostra vai emitir
radiação – apenas que há uma chance que isso aconteça
num determinado intervalo de tempo. Assim, um
observador do lado de fora da caixa teria que
considerar que o gato está numa superposição de
estados – exatamente como num padrão de
interferência que vimos no capítulo passado – de “gato
vivo” e “gato morto”. A única forma de determinar se o
gato está vivo ou morto é abrindo a caixa, forçando a
função de onda superposta do gato a colapsar em um
dos dois estados, vivo ou morto.
Schrödinger, que não punha muito crédito na
Interpretação de Copenhague, imaginou esse
experimento mental como forma de expor um aparente
paradoxo no modelo: o gato conta como observador
consciente ou há necessidade de postular um
observador externo que cause o colapso da função de
onda, além do experimentador?
De fato, é possível imaginar uma extensão desse
experimento mental, que foi o que o físico Eugene
Wigner fez, aparentemente inspirado pela sugestão de
von Neumann sobre o papel da consciência. Nessa
variante, Wigner prepara a caixa com o gato, mas
chama um amigo para que faça a observação, enquanto
ele mesmo sai da sala. Em seguida, Wigner e o amigo se
encontram e o físico pergunta o que aconteceu ao gato.
Pergunta-se: antes de Wigner interrogar seu amigo, o
sistema estaria numa superposição de estados de “gato
morto/amigo triste” e “gato vivo/amigo alegre”? Se não,
quando exatamente o sistema colapsou em um desses
estados?
Mas Bohr não via paradoxo algum no experimento
original proposto por Schrödinger. Desconfiamos que
ele também não se abalaria com o amigo de Wigner.
Para Bohr, estava claro o bastante que o colapso da
função de onda aconteceria no momento em que uma
partícula radioativa fosse registrada no contador
Geiger, sem postular, desnecessariamente, a
interferência de consciências humanas, animais ou
sobrenaturais.

Uma pausa para reflexão

Desde o princípio deste livro estivemos contando uma


história de como o pensamento científico surgiu na
Antiguidade, como floresceu e se desenvolveu na
Renascença, como se solidificou até o século XIX e
como teve seus pilares abalados por uma série de ideias
revolucionárias nas primeiras décadas do século XX.
Era uma história longa, mas que precisava ser contada
para que chegássemos aqui – para que você tivesse um
panorama mais ou menos completo do que significou,
para a Física, ter de engolir ideias tão radicais quanto a
função de onda. Esperamos que você tenha percebido o
quanto foi difícil ter de abandonar noções tão úteis
quanto posição e velocidade, onda e partícula e aceitar
que nem podemos dizer que certas coisas existem “de
verdade” antes de as medirmos. Que uma única
entidade quântica pode estar em estados superpostos e
indefinidos, até que uma medida seja efetuada e que,
por meio de processos ainda não inteiramente
compreendidos, a função de onda colapse em um de
muitos estados possíveis.
Estivemos contando a história da função de onda,
enfim; e gastamos todo esse tempo para que você
pudesse entender em linhas gerais o que a Mecânica
Quântica tem a dizer sobre o mundo e, esperamos, o
que ela não diz. Agora você está pronto para entender
um pouco mais sobre as picaretagens quânticas que
começaram a aparecer anos depois da consolidação de
tudo o que discutimos neste capítulo.
16 “Gilman não deveria ter estudado tanto. Cálculo não euclidiano e Física
Quântica são o bastante para confundir qualquer cérebro (...)”. Fonte: At
the Mountains of Madness and Other Novels, Sauk City, Wisconsin: Arkham
House, 1985, p. 263. (tradução nossa)

17 Turnbull, H.W. (ed.). The Correspondence of Isaac Newton, v.1, 1959, p.


416.

18 Demócrito de Abdera, juntamente com seu mestre Leucipo, pensava que


a matéria era composta por grãozinhos microscópicos, indestrutíveis e
indivisíveis – daí a palavra grega ατομος, que significa justamente
“indivisível”. Hoje sabemos que não é bem assim. A ideia antiga de átomo
tem muito mais a ver com o nosso conceito moderno de molécula, no
sentido de menor quantidade de matéria que ainda preserva as
propriedades químicas de uma determinada substância.
19 A constante de Planck (nomeada em homenagem a Max Planck) surgiu
em 1900 como uma constante de proporcionalidade entre a energia de um
pacote discreto de luz e seu comprimento de onda, aparecendo nas
equações do corpo negro e do efeito fotoelétrico. “Discreto”, aqui, não tem
a ver com discrição – significa o oposto de “contínuo”. Matéria e radiação
vêm aos pedacinhos, que, já vimos, são chamados de quanta.

20 Um aristocrata francês, estudante de humanas tornado físico, cuja


história mereceria um capítulo à parte, o que, infelizmente, não faremos
aqui.

21 Louis de Broglie, A Natureza Ondulatória do Elétron, palestra de


aceitação do Prêmio Nobel, dezembro de 1929.

22 Para os curiosos: em unidades do Sistema Internacional de Medidas, a


constante é da ordem de grandeza de 10-34. Isso representa um número do
tipo 0,000... com 33 zeros depois da vírgula.

23 Um exemplo clássico que se vê nos livros didáticos de Física Quântica e


estrutura da matéria é pedir ao aluno que calcule o comprimento de onda
de De Broglie de uma bola de futebol chutada por um jogador. Assumindo
valores típicos para a massa e a velocidade de uma bola, esse comprimento
de onda é da ordem de 10-34 metros, o que é muito, muito menor do que o
mais sensível equipamento do mundo é capaz de perceber.

24 A vida de Schrödinger é ainda mais colorida do que a de De Broglie, e


poderíamos gastar muitas páginas só falando de suas extravagantes
aventuras amorosas, mas infelizmente o espaço é curto.

25 E. Schrödinger, Annalen der Physik 79, 361, 189, 734; 80, 437; 81, 109
(1926); Die Naturwissenchaften 14, 664 (1926). Esses artigos são muito
difíceis de encontrar fora de bibliotecas especializadas (além de estarem
escritos em alemão), mas o leitor destemido pode tentar encarar um
resumo em inglês em The Physical Review vol. 28, n.6 (1926), “An
Undulatory Theory of the Mechanics of Atoms and Molecules”.

26 Quando foi introduzido na matemática, o número i era visto como um


artifício para ajudar na solução de certas equações – onde, cedo ou tarde,
ele acabava sendo elevado ao quadrado, quando se transformava no “bem-
comportado” –1. Mais tarde, no entanto, i se mostrou essencial em várias
outras aplicações nas quais era bem mais difícil se livrar dele.

27 Assim chamada pelo fato de Bohr ser dinamarquês e porque ele e


Heisenberg trabalharam no desenvolvimento do formalismo quântico na
Universidade de Copenhague nos anos 1920. A própria expressão
apareceria pela primeira vez no prefácio de um livro escrito por Heisenberg
em 1930, Os Princípios Físicos da Teoria Quântica.
28 Uma foto do quadro, com o esquema rabiscado por Bohr, aparece no
livro Quantum, de Manjit Kumar.

29 A Interpretação do Ensemble é uma das favoritas de jovens físicos que


se retorcem ao ter que estudar as implicações fenomenológicas da
Mecânica Quântica: ela assume a Regra de Born até as últimas
consequências e diz que a função de onda não descreve uma só partícula,
mas uma vastidão delas – o ensemble – e que cada uma das partículas
individuais assume valores dos observáveis num número compatível com os
coeficientes de Born. Assim, quando medimos alguma coisa, estamos
aferindo as propriedades de uma das partículas do ensemble, não de todas,
nem obrigando o Universo a escolher aleatoriamente alguma coisa.
CAPÍTULO 4

A (IN)CONSCIÊNCIA QUÂNTICA
Eu vos garanto: se alguém disser a esta montanha:
“Levanta-te e lança-te ao mar”, e não duvidar no seu coração, mas
acreditar que isso vai acontecer, assim acontecerá.
Evangelho Segundo S. Marcos, 11:23

O fato de elaborar uma teoria sobre alguma coisa


não muda a coisa teorizada.
B.F. Skinner

A ideia de que os desejos, as crenças, as expectativas


e as intenções da mente humana de algum modo criam
ou moldam a realidade que nos cerca é antiga: a
promessa de Jesus de que a fé move montanhas, na
epígrafe (um dos “cheques em branco” dos Evangelhos,
na definição do teólogo Robert M. Price), pode ter
parecido ousada na época e da forma em que foi feita,
mas dificilmente teria sido inédita ou original, mesmo
então.
A suspeita de que a força de vontade humana é um
componente fundamental da realidade tem a seu favor o
fato de que é, dentro de certos limites, justificada. Uma
pessoa pessimista, por exemplo, pode deixar de
enxergar boas oportunidades que apareçam em seu
caminho, contribuindo, assim, para manter as coisas
num estado pior do que o que seria estritamente
necessário.
Nesse caso, pode-se argumentar que as crenças e as
expectativas (pessimistas) “moldam” a realidade (no
sentido de que impedem que a situação melhore).
Num exemplo do efeito oposto, se nós, Carlos e
Daniel, não tivéssemos tido confiança em nosso projeto,
este livro não estaria em suas mãos agora.
A expressão-chave, em tudo o que foi exposto, é:
dentro de certos limites. Suponha, digamos, que todos
os vestibulandos na disputa por uma vaga no curso de
Medicina da Universidade de São Paulo meditem,
visualizem a si mesmos na lista de aprovados, relaxem
e, no geral, mantenham uma atitude saudavelmente
positiva: nada disso muda o fato de que há mais de 60
candidatos para cada vaga. Portanto, mais de 98%
desses saudáveis mentalizadores acabarão frustrados, a
despeito de toda a “energia positiva” investida.
Algumas pessoas, no entanto, têm uma grande
dificuldade em evitar a generalização. Elas partem da
percepção de que bons pensamentos podem ser úteis ou
necessários para a conquista das metas que todos
temos na vida e chegam, por vias tortas e de modo
totalmente injustificado, à conclusão de que os tais
pensamentos seriam suficientes.
É um equívoco superficialmente sedutor, já que seu
primeiro efeito tende a ser uma grande sensação de
poder: a pessoa que o assume se vê, por assim dizer, no
cockpit da própria vida.
Mas o outro lado da moeda é pura neurose: uma
profunda sensação de culpa por tudo que acontece de
errado – afinal, não são os pensamentos de cada um que
atraem as coisas, boas ou ruins, para nossas vidas?
O equívoco também é, quando se reflete sobre o
assunto, bem pouco plausível: como assim,
pensamentos atraem coisas? Que os pensamentos
afetam nossa relação com as coisas que estão aí, dadas
no mundo, é razoável, mas como eles poderiam atraí-las
(ou repeli-las, por falar nisso...)?
Aí entra a picaretagem quântica. Mas, antes de
voltarmos à Física, um pouco de Filosofia.
Escolhendo seu partido

É improvável que exista um adulto no mundo que não


tenha, em algum momento de sua vida, dedicado pelo
menos um minuto para ponderar a relação entre corpo
e espírito, mente e matéria. Até o mais pragmático dos
animais humanos tem a fagulha do filósofo em si
(“pragmatismo”, afinal, é uma postura filosófica).
No debate mente-matéria, parecem existir três
grandes posições, que funcionam mais ou menos como
“esquerda”, “centro” e “direita” na política: rótulos
grosseiros e genéricos, cheios de nuances entre si e
com uma boa dose de discordância interna, mas ainda
assim úteis para uma categorização rápida e rasteira.
Essas posições são:

– Monismo materialista: a natureza fundamental da


realidade é feita das coisas que os físicos medem em
seus laboratórios, matéria e energia. Mente, nessa
visão, é algo como cor ou temperatura, uma
propriedade que a matéria assume, dadas certas
condições. Ou, como Charles Darwin anotou em seus
diários: “Por que o pensamento ser uma secreção do
cérebro seria algo mais espantoso que a gravidade ser
uma propriedade da matéria?”30.
– Dualismo: a realidade comporta duas naturezas
fundamentais, uma material e uma mental (ou
espiritual). Nessa visão, mente e matéria são coisas
diferentes, que interagem, por exemplo, na formação
da personalidade e da consciência dos seres humanos.
A maioria das religiões do ocidente não só é dualista
como ainda propõe que a substância mental é imortal
e indestrutível. O dualismo enfrenta alguns graves
problemas filosóficos – como a substância mental pode
interagir com a matéria? –, mas já teve defensores de
peso dentro do mundo científico, como o filósofo Karl
Popper e o neurocientista e ganhador do Nobel de
Medicina John Eccles.
– Monismo idealista: aqui, a natureza fundamental
da realidade é o pensamento, a ideia, a mente; o
Universo material é feito de ilusões, fachadas,
enganos e aparências. Essa é uma postura que
algumas pessoas derivam de certas religiões
asiáticas,31 como determinadas formas de budismo e
hinduísmo, com sua ênfase no caráter fugaz de nossas
percepções e na necessidade de transcendência dos
desejos e das necessidades materiais.32

Se você é como a maioria dos brasileiros, sua visão


particular do problema provavelmente se encaixa em
uma das subdivisões da postura dualista (existem tantos
sabores de dualismo quanto há doutrinas políticas de
esquerda no mundo, ou talvez até mais).
Um problema potencial surge, porém, quando se nota
que a ciência, tal como se desenvolveu nos 400 anos
desde Galileu, tem se mostrado perfeitamente
compatível com o que chamamos de monismo
materialista: as explicações científicas do mundo
funcionam muitíssimo bem se tudo o que existir for
somente, apenas e nada além do que matéria em
movimento.
Isso não significa que o materialismo filosófico (que
não deve ser confundido com o chamado “materialismo”
moral, a triste ideia de que só o que importa no mundo
é farrear e ganhar dinheiro) seja verdade. Mas, sem
dúvida, ele tem se mostrado suficiente em todos os
campos de investigação científica, da origem do
Universo ao funcionamento do cérebro humano.
Essa é uma situação que gera certo desconforto.
Embora seja perfeitamente possível aceitar que a
ciência lida apenas com o lado material do Universo e
deixar as questões místicas para a esfera íntima ou
religiosa, muitas pessoas se ressentem do que veem
como uma falta fundamental de sinais mais claros de
transcendência e espiritualidade nos fatos do mundo.
Para algumas dessas pessoas, as lacunas no
conhecimento humano explícitas na Teoria Quântica –
seu caráter aleatório, além da indefinição fundamental
inscrita no Princípio da Incerteza – representam um
refúgio. Isso já era notado na década de 1920.
Escrevendo para uma revista popular americana em
1929, o físico Percy Williams Bridgman (que viria a
ganhar um Nobel na década de 1940) previa que, assim
que as descobertas mais recentes da Física caíssem nas
mãos do homem comum, o mundo quântico passaria a
ser tratado como “a substância da alma; os espíritos dos
mortos habitarão ali”33.

Quem observa o observador?

A variedade específica de misticismo que liga a Teoria


Quântica à ideia de que a força de vontade é capaz de
tudo – de que, nas palavras de Amit Goswami, que já
citamos na introdução, escolhemos, a cada momento, o
mundo em que vivemos – tem uma ligação muito íntima
com o papel peculiar do observador no mundo quântico.
Como vimos no capítulo anterior, até que uma
observação – ou medição – seja feita, diversas
propriedades das entidades do mundo atômico e
subatômico permanecem indefinidas.34 É sobre esse
pequeno alicerce de verdade que se constroem os
edifícios da cura quântica, do ativismo quântico, do
vendedor quântico e do kama sutra quântico (este
último, nós inventamos agora).
Há uma aparência de plausibilidade no argumento
geral: se (quase) tudo o que existe inicialmente são
ondas de probabilidade, e se é a observação que
provoca o colapso dessa onda, é o meu olhar, ao
selecionar qual das possibilidades codificadas nela vai
se tornar real, que faz com que as coisas sejam do jeito
que são. Escolhendo o olhar, escolho as coisas. Certo?
Errado. E por dois motivos: um deles é que o colapso
da função de onda é sempre aleatório. Mesmo se o olhar
de um observador consciente – olhos ligados por nervos
ópticos a um cérebro humano – fosse necessário para
causar o colapso, o controle do observador sobre o
resultado final não seria maior (na verdade, dadas as
circunstâncias específicas do mundo quântico, seria
substancialmente menor) do que o controle que a
pessoa que joga uma moeda para o alto tem sobre qual
face cairá voltada para cima, cara ou coroa. E só o que
o arremessador pode escolher, se a moeda for honesta,
é o momento do lance, jamais o resultado.
O outro motivo – e talvez o mais importante – é que a
“observação” a que os físicos se referem quando falam
de fenômenos quânticos não requer uma mente
consciente. No sentido quântico, a observação não
requer observador.
Imagine um fóton – uma partícula de luz – a se
propagar pelo vácuo do espaço entre as estrelas. Esse
fóton não tem posição precisamente definida antes que
seja observado. Mas “observação”, nesse sentido,
significa qualquer tipo de interação entre o fóton e
outro objeto, na qual ambos sofram algum tipo de
alteração irreversível.35
Falando de outro modo: a colisão da partícula de luz
com um grão de poeira cósmica representa uma
“observação” tão válida quanto a colisão dessa mesma
partícula com a retina de um olho humano, muito
embora, no sentido usual da palavra, apenas o ser
humano seja, de fato, um “observador”. A confusão aí é
semântica, e não mística.
Algumas pessoas tentam fazer um cavalo de batalha
do seguinte fato: até que um observador consciente –
um astrônomo humano aqui na Terra ou mesmo um
alienígena em Alfa Centauri, tanto faz – ponha o olho na
lente do telescópio e veja o grão de poeira espacial
brilhar ao refletir o fóton, a posição da partícula
continuará efetivamente indefinida, porque ninguém
saberá dela. Logo, a observação consciente continua a
ser essencial para definir onde o fóton está.
O que a linha de argumento do parágrafo anterior faz,
no entanto, é apenas enunciar uma obviedade: que só
sabemos daquilo que ficamos sabendo. Da mesma forma
que uma árvore que cai na floresta produz som mesmo
se não houver ninguém por perto para ouvir, ou do
mesmo modo que as montanhas de Marte estavam lá
antes que tivéssemos telescópios capazes de enxergá-
las, um fóton refletido por um grão de poeira faz o grão
brilhar, mesmo quando ninguém está olhando.
Esse dado fundamental – de que qualquer interação
irreversível entre objetos inanimados já conta como
uma “observação quântica” – também ajuda a entender
de onde, afinal, vem o mundo sólido e real ao nosso
redor, e como a realidade pôde existir antes de
chegarmos aqui para, nas palavras dos gurus da
picaretagem quântica, “criá-la”: as partículas estão
sempre “observando-se” mutuamente umas às outras, e
já vinham fazendo isso nos dez bilhões de anos que
antecederam a origem da vida na Terra.
O verdadeiro problema, para muitos cientistas, é
entender como essas interações causam o colapso da
função de onda.36 Há várias hipóteses interessantes a
respeito,37 mas a resposta curta é: por enquanto,
ninguém sabe. Reconhecer que a ignorância existe, no
entanto, não é o mesmo que abrir a porta para qualquer
ideia estrambótica. Ou: não é porque você não consegue
ver o que está debaixo da cama que a ideia de que
duendes, vampiros e lobisomens se escondem ali se
torna respeitável.

That 70’s Show

A mitologia hindu é, virtualmente, uma projeção em larga escala, no


reino psicológico, das descobertas microscópicas da ciência. Divindades
hindus como Shiva e Vishnu dançam continuamente a criação e
destruição de universos, enquanto que a imagem budista da roda da vida
simboliza o processo interminável de nascimento, morte e renascimento
que é parte do mundo das formas, que é o vazio, que são as formas.

A citação anterior38 vem do livro The Dancing Wu Li


Masters, do jornalista americano Gary Zukav. Publicada
originalmente nos Estados Unidos em 1979, a obra
resume e concentra o espírito da década em que foi
escrita, a época dos hippies, do flower power, do
encantamento das celebridades ocidentais, seguindo a
trilha aberta por Bruce Lee e pelos Beatles, com as
artes marciais da China e os gurus da Índia.
Zukav utilizou o adjetivo “psicodélico” – uma das
marcas registradas do período – cinco vezes no livro,
sendo uma para se referir à Teoria da Relatividade e
outras quatro para tratar da Mecânica Quântica. Ele
especulava que os currículos de Física do século XXI
passariam a incluir aulas de meditação e que fenômenos
considerados “ocultistas” poderiam se tornar objeto de
estudo sério entre os físicos (nada disso até agora
aconteceu, mas o leitor mais otimista pode se consolar
com a ideia de que o século ainda tem mais de 80 anos
pela frente...).
Uma combinação de termos gregos, “psicodélico”
significa, literalmente, “aquilo que manifesta a alma”,
ou “aquilo que põe a alma em evidência”. Da forma
como é mais comumente usada, a palavra se aplica aos
efeitos de drogas alucinógenas como o LSD, ou a obras
de arte que buscam emular as alucinações causadas por
esse tipo de droga.
Publicado no Brasil já no fim dos anos 1980 como A
Dança dos Mestres Wu Li (edição que, pelo que
conseguimos apurar, ainda pode ser encontrada em
sebos), o livro de Zukav representa um marco
importante na história do misticismo quântico, não por
ter sido o primeiro a popularizar o assunto – essa
duvidosa honra cabe a O Tao da Física, de Fritjof Capra,
lançado nos Estados Unidos em 1975 –, mas porque é
um retrato muito fiel do espírito do tempo em que a
associação entre o quantum e o místico ganhou impulso
na imaginação popular; porque suas ideias serviram de
fonte para muito do que veio depois; e porque, dados os
devidos descontos à bagagem interpretativa do autor,
trata-se de um bom livro sobre Física Quântica e
Relatividade, o que é muito mais do que se pode dizer a
respeito de seus sucessores.
Quando se propõe a descrever e explicar teorias e
experimentos, Zukav é ótimo. É quando se põe a
interpretá-los, sempre na chave da Filosofia oriental,
que erra. Ou, melhor dizendo, que vai longe demais.
O parágrafo citado no início desta seção, por exemplo,
traz um pensamento que se segue à descrição
minuciosa de uma série de mecanismos pelos quais
partículas subatômicas são destruídas em colisões e
como a energia gerada nessa destruição dá origem a
novas partículas.39 E, também, como a energia presente
no vácuo pode, às vezes, dar origem a pares de
partículas.
Então, partículas se chocam, são destruídas e daí
surgem novas partículas, levando à metáfora:
“divindades hindus como Shiva e Vishnu dançam
continuamente a criação e destruição de universos”.
Além disso, o Princípio da Incerteza permite que
partículas surjam espontaneamente do vácuo, desde
que não durem por muito tempo40 – assim como posição
e momento, tempo e energia são quantidades
relacionadas pelo princípio –, o que torna possível o
paralelo feito por Zukav com “a imagem budista da roda
da vida [que] simboliza o processo interminável de
nascimento, morte e renascimento que é parte do
mundo das formas, que é o vazio, que são as formas”41.
Literariamente é um recurso interessante, mas é
preciso manter em mente seus limites.
Primeiro, é muito mais provável que os antigos
mestres orientais tenham formulado essas ideias com
base na observação do ciclo dos seres vivos – que
nascem, lutam, reproduzem-se e morrem – ou mesmo na
história humana – com sua sucessão aparentemente
interminável de reinos, povos e impérios que surgem,
conquistam, enchem-se de glória apenas para
desaparecerem mais tarde – do que de algum insight
profundo sobre a natureza última do vácuo quântico.
Segundo, nem toda correspondência possível, no
campo da linguagem, aponta para algo relevante no
mundo dos fótons e dos átomos. Senão, teríamos de
supor que, ao escrever Romeu e Julieta – no qual dois
jovens de famílias inimigas e de sexos opostos se
sentem irresistivelmente atraídos um para o outro, o
que causa a destruição de ambos –, William
Shakespeare estava dizendo algo significativo sobre o
elétron e o pósitron, partículas de cargas elétricas
opostas que são inexoravelmente atraídas uma para a
outra e que se aniquilam mutuamente no momento da
colisão.
De modo semelhante, é preciso resistir à tentação de
fazer o contrário, extrair “lições” do mundo quântico
para a condução de nossa vida cotidiana, macroscópica.
Zukav faz muito alarde em torno do fato de que a
dualidade onda-partícula “mostra” que nem todos os
dilemas que encontramos na vida reduzem-se,
realmente, a apenas duas alternativas.
Mas, embora seja verdade que muitos aparentes
dilemas – caso ou compro uma bicicleta? Luto ou saio
correndo? Peço demissão ou abaixo a cabeça? Cerveja
ou vinho? – aceitem soluções que transcendam as
alternativas iniciais (talvez possamos pedir uma
caipirinha ou um refrigerante), esse simples fato da
vida não tem nada a ver com a dualidade onda-
partícula. Assim como o fato de que as coisas
conquistadas com pouco esforço são geralmente pouco
valorizadas não se liga à constatação da Mecânica
Quântica de que as partículas que surgem do vácuo (do
“nada”) têm duração extremamente curta.
Metáforas são boas para iluminar a vida, mas se
levadas além de seus limites, acabam provocando
confusão: não é porque a sua namorada é linda como
uma flor que você deve adubá-la. Ou, nas palavras
atribuídas ao escritor britânico G.K. Chesterton por Neil
Gaiman na epígrafe de seu romance Coraline, “contos
de fadas são verdadeiros não porque nos dizem que
dragões existem, mas porque nos dizem que dragões
podem ser derrotados”42.

O campo dos sonhos

Na introdução de uma recente reedição de seu livro,


Zukav afirma que a obra contém “a semente do
pensamento de que a consciência está no coração de
tudo o que podemos experimentar, de tudo o que
podemos conceber, e de tudo o que somos. Também
aponta para a possibilidade de que intenções criam a
realidade que experimentamos”43.
No entanto, o que em Zukav era apenas “semente” e
“possibilidade” foi transformado em afirmação
categórica por seus sucessores na trilha do misticismo
quântico.
O físico Amit Goswami, em O Universo
Autoconsciente, deixa bem claro, logo nas primeiras
páginas, que seu objetivo é demonstrar que o monismo
idealista é uma conclusão lógica da Mecânica Quântica;
e em A Cura Quântica, o médico endocrinologista
Deepak Chopra não é menos ousado, ao garantir que
intenções e ideias são os fatores primários no
surgimento das doenças, enquanto agentes patogênicos,
como vírus e bactérias, são meramente secundários.
Tudo isso, mais uma vez, graças à Mecânica Quântica.
Discutir os méritos filosóficos do monismo idealista,
ou a validade médica das teorias que buscam ligar
doenças a estados de espírito, seria assunto para mais
um ou dois livros, possivelmente bem diferentes deste
que você tem em mãos. O que nos interessa aqui não é
examinar o conteúdo exato das propostas desses
autores, mas o fato de que ambos tentam validar essas
propostas com apelos ao mundo quântico. Esses apelos
fazem sentido?
Resposta curta: não. Como vimos nas páginas
anteriores, um “observador consciente” não é
necessário para explicar a transição entre os mundos
quântico e clássico; e, mesmo que fosse, esse
observador não teria como “escolher” o resultado final
da observação, que é sempre aleatório.44
Para a resposta longa, continue a ler.
Goswami, um físico de formação, segue mais ou
menos na linha de Zukav, descrevendo fatos e
experimentos de modo essencialmente correto, mas
forçando a mão na parte interpretativa. Ele considera a
ideia de um Universo materialista aterrorizante e vê no
quantum uma rota de fuga. Por exemplo, escreve:

A influência negativa do materialismo realista na qualidade da vida


humana moderna tem sido aterradora. O materialismo realista
apresenta um Universo sem significado espiritual: mecânico, vazio,
solitário [...] Na filosofia idealista, consciência é fundamental; portanto,
nossas experiências são reconhecidas e validadas como cheias de
significado.45

A opinião anterior, retirada de O Universo


Autoconsciente, é um verdadeiro vespeiro filosófico.
Alguém poderia citar, entre os efeitos “aterradores” do
“materialismo realista na qualidade de vida humana”, a
descoberta dos antibióticos, a invenção das vacinas, do
automóvel, da internet, além da redução drástica da
mortalidade infantil no último século.
Outra pessoa talvez considere extremamente
arrogante a pretensão de que, para ter significado, as
experiências humanas têm de ser validadas pelo nível
mais fundamental do Universo. O amor entre duas
pessoas, por exemplo, precisa mesmo ter algum
significado, além do que se passa no coração do casal
de amantes, para ter valor?
Mas, concorde-se ou não com a avaliação do autor, o
que fica claro é que ele tem um desejo, o de que o
idealismo seja verdadeiro, e uma espécie de programa
filosófico, o de demonstrar que o idealismo é
verdadeiro. O quantum é apenas a ferramenta mais à
mão.
Na tentativa de produzir uma prova que satisfaça seu
desejo, Goswami se apropria do chamado “problema da
medição” da Mecânica Quântica. Trata-se de um
problema que já encontramos neste capítulo e no
anterior: como as ondas de probabilidade que codificam
as partículas subatômicas geram o Universo
macroscópico determinista que vemos ao nosso redor?
Para Goswami, a explicação de que as interações das
partículas entre si e com o ambiente gera o colapso da
função de onda é insatisfatória. Ele então oferece uma
alternativa espantosa, de certa forma calcada na ideia
de von Neumann sobre o papel do observador
consciente: a de que existe um “campo de consciência”
que observa a função de onda do Universo, fazendo-a
entrar em colapso. Todas as mentes humanas
participam desse campo, o que faz com que a existência
seja uma espécie de grande democracia espiritual: cada
um de nós vota, com sua consciência, para definir a face
da realidade.
Chopra argumenta mais ou menos na mesma direção:
para ele, existe uma “inteligência” que permeia, por
exemplo, o sistema imunológico humano, e essa
inteligência pode ser influenciada, por meios quânticos,
pela consciência do paciente.
De novo, como no caso dos paralelos entre Mecânica
Quântica e Filosofia oriental, é preciso separar o que
tem funcionalidade metafórica do que tem
plausibilidade física.
Podemos, talvez, dizer que alguns aspectos da
realidade são mesmo criados por uma espécie de
consenso mental humano – coisas como o papel da
mulher na sociedade ou a percepção da moralidade de
se possuir escravos, por exemplo, mudam com o tempo
e com a evolução dos povos –, mas generalizar isso para
o mundo físico é bem mais problemático. E invocar a
Física Quântica para justificar essa generalização é
muito mais problemático ainda.46
O catálogo das dificuldades envolvidas é imenso, por
isso vamos citar apenas três: duas conceituais e uma de
ordem puramente prática.
Começando pelo aspecto conceitual, há o problema,
nada fácil, de dar significado físico à expressão “campo
de consciência”. Em Física, um “campo” é algo que
associa um valor a cada ponto de um determinado
volume de espaço, por exemplo, a sala em que você está
agora tem um “campo de temperatura”, já que, a cada
ponto do interior dela, é possível associar um número
correspondente à temperatura das moléculas que estão
ali. Da mesma forma, o “campo gravitacional da Terra”
associa, a cada ponto do espaço, um valor que permite
calcular a força com que um objeto deixado lá vai ser
atraído para o centro do nosso planeta.
Qual, portanto, a grandeza que um suposto “campo da
consciência” associa aos pontos do espaço? Haveria um
valor de QI intrínseco a cada minúscula fração do
Universo? A coisa simplesmente não tem sentido. Além
disso, se aceitarmos que o “campo de consciência”
causa o colapso de uma suposta “função de onda do
Universo”,47 quem, ou o quê, provoca o colapso da
função de onda da consciência?
Uma escapatória possível seria postular que o tal
“campo de consciência” não é um campo físico, como o
gravitacional ou o eletromagnético, mas algo que
transcende a mera realidade material. A partir do
instante em que se invoca a transcendência, no entanto,
não tem mais sentido usar princípios da Física para
defender a ideia: transforma-se em uma questão de fé,
filosofia ou religião. Talvez realmente exista um “campo
transcendente de consciência” fora do Universo, mas,
se esse for o caso, não é apelando à Mecânica Quântica
– ou a qualquer outra teoria física – que se haverá de
provar a proposta.
A segunda dificuldade conceitual está na definição de
consciência. Afinal, o que é isso? Cientistas e filósofos
debruçam-se há tempos sobre a questão. No geral, a
palavra é aplicada à capacidade que alguns sistemas
têm de reconhecer a si mesmos como entidades
autônomas, de refletir sobre o ambiente que os cerca e
sobre os próprios estados internos – de, por exemplo,
pensar “estou com fome”, em oposição a apenas sentir
fome, de apreciar o aroma da comida, em vez de apenas
deixar-se atrair por ele.
Por tudo o que sabemos, com base na melhor
informação científica disponível, essa capacidade
combinada de identificação, percepção e reflexão é algo
que evoluiu ao longo das eras, começando com o
impulso rudimentar que impele as formas de vida mais
simples a buscar abrigo e alimento, até chegar à
capacidade humana de contemplar o céu estrelado e
fazer poesia.
E seja o que for essa consciência, ela sempre aparece
de forma localizada: nos indivíduos da espécie humana,
talvez em outros mamíferos, em alguns pássaros e, de
acordo com algumas pesquisas científicas recentes,
polvos. Quem sabe, no futuro, em androides,
computadores que venhamos a construir ou em
alienígenas que venhamos a encontrar. Ela parece
também depender, crucialmente, de um órgão
específico, o cérebro. Algo bem diferente dos campos da
Física, que permeiam todo o espaço e não requerem um
suporte de carne e sangue.
A diferença entre o localizado e o disperso nos traz à
dificuldade prática que mencionamos: não vemos
indícios desse campo em parte alguma. Podemos
detectar um campo gravitacional vendo um peso cair,
ou um campo eletromagnético acompanhando o
movimento da agulha de uma bússola, mas não há um
experimento capaz de revelar a presença do “campo de
consciência”.
Alguém poderia imaginar que fenômenos paranormais
– como transmissão de pensamento, premonições e
sonhos proféticos – serviriam como indicadores da
presença desse campo, da mesma forma que a trajetória
da Lua no céu indica a presença do campo gravitacional
da Terra. E, de fato, muitos defensores do misticismo
quântico se apegam a indícios e narrativas de
ocorrências paranormais em busca de apoio empírico
para suas ideias.
O problema, aí, é que nenhum desses fenômenos
jamais foi validado cientificamente: desde que o
americano Joseph Banks Rhine escolheu a palavra
“parapsicologia” para descrever seu campo de estudos,
na década de 1930, nenhum suposto evento paranormal
sobreviveu ao escrutínio científico.48
De fato, as únicas descobertas científicas sólidas já
feitas, com base nos estudos sobre paranormalidade,
dizem respeito à psicologia do erro e do embuste, e
revelam como é fácil enganar as pessoas. Como somos
facilmente distraídos, enrolados e engabelados pelos
outros ou por nós mesmos.49
De novo, nada impede que uma pessoa assuma uma
perspectiva mística e aceite, como paranormais,
eventos que, numa visão científica, não passam de
coincidências ou mal-entendidos. Só que, ao abandonar
a perspectiva científica, tem-se de abandonar, também,
qualquer reivindicação legítima de aplicação da
Mecânica Quântica ao problema.
A hipótese de que o “campo de consciência” é o
ingrediente fundamental do Universo abre a
possibilidade – eis o principal fator de marketing do
misticismo quântico – de que a realidade seja maleável,
no sentido de que pode ser forjada na fornalha da força
de vontade: se um número grande o suficiente de
pessoas acreditar, digamos, na paz mundial, ou que
sorvete de morango cura o câncer, o campo universal
poderia ser redefinido para acomodar esses novos
conceitos.
O problema, que deve parecer evidente, é que isso
simplesmente não acontece. A realidade não é
democrática: dos primórdios da humanidade até o
período clássico da civilização grega, o consenso parece
ter sido o de que a Terra era plana, mas não há nenhum
indício de que nosso planeta tenha sido achatado como
uma panqueca durante todo esse tempo.
Outros exemplos abundam: antes de Galileu realizar
suas primeiras observações da Lua, o consenso, no
mundo ocidental, dizia que nosso satélite natural tinha
de ser uma esfera perfeita e sem manchas. Se houvesse
mesmo um “campo de consciência” construindo a
realidade, o grande cientista italiano jamais teria
observado as montanhas, os vales e as crateras lunares.
É possível até mesmo argumentar que a Física
clássica representava uma realidade consensual tão
forte que a Mecânica Quântica jamais deveria ter tido a
oportunidade de aparecer.

Mas será que funciona?

Como algumas pessoas gostam de dizer, no entanto,


às vezes uma ideia não precisa ser verdadeira para
funcionar: Dumbo, o elefante voador do desenho
animado da Disney, pensava que só era capaz de se
lançar aos ares porque segurava uma pena mágica na
tromba, quando o verdadeiro impulso vinha de suas
orelhas enormes. Mesmo inexistentes, os poderes
mágicos da pena davam-lhe a segurança de que
precisava para cruzar os céus.
Será que o misticismo quântico não poderia operar do
mesmo modo? Sem afetar a estrutura íntima da
realidade, mas atuando como fator de motivação,
empenho e, consequentemente, sucesso?
Lembrando o exemplo que demos no início do
capítulo: não há mentalização que faça multiplicarem-se
as vagas nos cursos superiores mais concorridos.
Além disso, há alguma evidência experimental de que
técnicas de “visualização” – em que a pessoa se esforça
para ver a si mesma já na posição almejada – são, na
verdade, contraproducentes. De acordo com o psicólogo
britânico Richard Wiseman, pessoas que se valem de
estratégias assim acabam sendo levadas a subestimar o
esforço realmente necessário para conquistar o objetivo
e, por isso, se frustram com mais facilidade.

Misticismos outros

Nem só do Princípio da Incerteza e da dualidade onda-


partícula vivem as picaretagens quânticas, no entanto.
Outro fenômeno, o chamado emaranhamento quântico,
às vezes também costuma ser invocado.
No emaranhamento, partículas separadas por grandes
distâncias – a expressão “em lados opostos do Universo”
é muito usada por certos autores – parecem capazes de
se comunicar instantaneamente, com uma alteração no
estado de uma operando uma transformação automática
na outra.
Ninguém menos do que Einstein referiu-se a essa
possibilidade como uma “ação fantasmagórica a
distância”, e você não terá dificuldade em encontrar
quem tente aplicar o princípio a fenômenos tão diversos
quanto a astrologia e a transmissão de pensamento.
O emaranhamento é um fenômeno real, comprovado
experimentalmente, e uma interpretação adequada do
que, exatamente, acontece ali ainda não existe. Mas,
como de costume, suas implicações são bem diversas
das sugeridas pela literatura mais popular. Os detalhes
estão no próximo capítulo.
30 “Early Writings of Charles Darwin”, vol. 2, transcritos e anotados por
Paul H. Barrett, trabalho disponível online em http://darwin-
online.org.uk/content/frameset?
pageseq=1&itemID=F1582&viewtype=text, acessado em 30/3/2013.
(Tradução nossa)

31 Existem também monismos idealistas cristãos. Uma versão


especialmente curiosa é a que foi proposta no século XVIII pelo bispo inglês
George Berkeley. Segundo o bispo Berkeley, todo o Universo só existe como
pensamento, na mente de Deus.

32 Muitos misticismos e doutrinas da Nova Era abraçam essa visão, o que


não deixa de ser irônico, já que o principal objetivo dessas doutrinas parece
ser, exatamente, oferecer um atalho para a satisfação dos desejos e das
necessidades que deveriam ser transcendidos!

33 Em Reflexions of a Physicist, Philosophical Library, New York, 1950,


ensaio “The New Vision of Science”, publicado originalmente na edição de
março de 1929 da Harper’s Magazine. Disponível em formato e-book em
http://archive.org/details/reflectionsofaph031333mbp. Acessado em
30/03/2013.

34 “Diversas”, mas não “todas”: a carga elétrica de um elétron, por


exemplo, é sempre a mesma e está perfeitamente definida.

35 O leitor mais rigoroso poderá torcer o nariz para o uso da palavra


“irreversível”. Afinal, praticamente todo efeito físico pode ser desfeito: se
amasso o carro, por exemplo, basta levá-lo ao funileiro. Mas repare que
consertar o carro amassado requer o dispêndio de tempo, dinheiro e
energia: o carro não se endireita sozinho. Uma definição mais refinada de
“irreversível”, no contexto em que estamos usando a palavra, seria: uma
situação que tem uma probabilidade extremamente baixa – para todos os
efeitos práticos, igual a zero – de se desfazer de modo espontâneo, num
intervalo razoável de tempo.

36 Escrevemos “muitos”, e não “todos”, porque há fisicos, como o


americano Victor J. Stenger (autor do livro The Unconscious Quantum ou O
Quantum Inconsciente), que consideram que a chamada dualidade onda-
partícula reflete apenas uma limitação da linguagem humana: nessa visão,
os objetos quânticos seriam “coisas” de uma natureza especial, uma
natureza que não temos palavras para descrever, e por isso nos vemos
obrigados a recorrer a termos grosseiros e inadequados, como “onda” e
“partícula”. Assim, muito da estranheza do mundo quântico se reduz à
questão de termos um vocabulário limitado por nossa experiência cotidiana
no mundo macroscópico. Kenneth Ford, ex-diretor do Instituto de Física dos
Estados Unidos, já escreveu que ondas são “desnecessárias, porém
convenientes” para tratar da Mecânica Quântica (Ford, 2011, p.205).

37 Uma delas é a dos Muitos Mundos, segundo a qual todas as


possibilidades codificadas na função de onda se realizam, cada uma em um
Universo diferente.

38 Todas as citações da obra de Gary Zukav vêm da edição e-book the The
Dancing Wu Li Masters, publicada nos EUA por Harper-Collins em 2009.
(Tradução nossa).

39 Isso é, fundamentalmente, o que ocorre nos experimentos realizados em


colisores como o LHC: partículas se chocam em alta velocidade e os físicos,
então, estudam as partículas resultantes.

40 Ok, então não é exatamente assim que acontece: dizer que é possível
“pegar emprestado do Nada” um bocadinho de energia para em seguida
“devolvê-lo ao Nada” é uma licença poética. O fato é que o que chamamos
de vácuo na verdade fervilha de energia; e flutuações quânticas aleatórias
podem produzir pares de partículas ditas “virtuais”, num processo cuja
duração é prevista pelo Princípio da Incerteza. Mas esse é um fenômeno
melhor descrito pela Teoria Quântica de Campos, que foge do escopo deste
livro.

41 Ver nota 38.

42 Gaiman aparentemente estava parafraseando um trecho da crônica “The


Red Angel”, coletada no volume Tremendous Trifles, de 1909. O original
diz: “Contos de fadas não dão à criança a primeira ideia de um bicho-papão.
O que os contos de fadas dão à criança é a primeira clara ideia de que o
bicho papão pode ser derrotado”. (Tradução nossa).

43 Ver nota 38.

44 Um cientista pode escolher qual faceta de um objeto quântico vai se


manifestar no experimento – se onda ou partícula –, mas o único papel que
a consciência do experimentador tem aí é na definição da montagem do
equipamento. Não há nenhum tipo de “controle mental direto” sobre a
partícula em si.

45 Todas as citações de “O Universo Autoconsciente” vêm da edição e-book


The Self Aware Universe, Jeremy P. Tatcher/Putnam, New York, baseada na
edição trade paperback de 1995. (Tradução nossa).

46 Já a “inteligência” invocada por Chopra poderia ser vista como uma


metáfora para as mudanças acumuladas ao longo da evolução biológica,
mas ele não está se referindo ao processo darwiniano de seleção natural e,
sim, a um “campo inteligente” semelhante ao de Goswami.

47 Esse, aliás, é um conceito que talvez nem tenha significado físico: o


cientista brasileiro Mario Novello, em seu livro O que é Cosmologia?,
lembra que, para integrar todo o Universo numa só função de onda, seria
preciso criar um tratamento quântico satisfatório da gravidade, o que ainda
não foi feito.

48 Críticos às vezes acusam a “ortodoxia” científica de não aceitar


fenômenos revolucionários. O que não deixa de ser engraçado, já que essa
mesma ortodoxia aceitou coisas bem estranhas, como a Relatividade e o
quantum, assim que as provas adequadas foram produzidas.

49 Mais detalhes podem ser encontrados em livros como Paranormality


(Paranormalidade), do psicólogo britânico Richard Wiseman, e The Elusive
Quarry (A Presa Elusiva), do americano Ray Hyman.
CAPÍTULO 5

MUNDO ESTRANHO
Acho que posso dizer com segurança que ninguém entende Mecânica
Quântica.50
Richard P. Feynman

Cala a boca e calcula!


David Mermin51

Um dos aspectos mais estranhos da Mecânica


Quântica – provavelmente o mais estranho – é o fato de
que somos perfeitamente capazes de calcular o
resultado de experimentos, prevendo a ocorrência de
eventos que realmente se confirmam, mas até hoje não
sabemos ao certo como interpretar filosoficamente a
coisa toda. Por exemplo, é muito simples prever o
resultado de uma experiência de difração, na qual um
feixe de elétrons passa por dois furos e forma um
padrão de interferência num anteparo. Mas é muito
difícil dizer o que acontece exatamente com cada
elétron à medida que a figura de interferência vai se
desenhando. A maioria dos físicos simplesmente
desistiu de tentar interpretar a Mecânica Quântica,
contentando-se, em vez disso, em descrever os
resultados obtidos. Outros ainda acreditam que a
Mecânica Quântica oferece um panorama incompleto, e
se dedicam a encontrar um esquema que consiga
descrever corretamente o que acontece no mundo
microscópico, ao mesmo tempo que preveja, de maneira
consistente, tudo o que já encontramos todos os dias no
laboratório. Esses cientistas acreditam que, tal como
Ptolomeu e seus epiciclos planetários, que vimos no
Capítulo 1, estamos presos a um paradigma que nos dá
as respostas certas, mas que fornece uma visão de
mundo totalmente errada.
Infelizmente, não parece haver saída desse labirinto
filosófico, embora muita gente boa tenha tentado.52 Não
há uma correspondência clara entre propriedades e
grandezas macroscópicas e os fenômenos quânticos.
Até mesmo nosso vocabulário soa inadequado na
tentativa de descrevê-los.
No centro dessa inadequação está o Princípio da
Incerteza. O fato de não podermos medir duas
grandezas conjugadas, como posição e momento linear,
com grau absoluto de precisão é, em última análise,
responsável pelas esquisitices quânticas que vimos no
Capítulo 3. Com efeito, uma leitura ainda mais ortodoxa
da Interpretação de Copenhague sustenta que não tem
sentido perguntar onde um elétron está antes de
realizar uma medida: antes de fazer um experimento (e
provocar o colapso da função de onda do sistema), o
elétron não tem uma posição definida. O mesmo pode
ser dito sobre o momento linear, spin, ou qualquer outra
propriedade mensurável da partícula. O máximo que
podemos fazer em relação a todas essas coisas é
calcular as chances de cada propriedade observável
assumir um determinado valor.
Vamos, agora, examinar um pouco mais de perto como
as propriedades e consequências contraintuitivas da
Mecânica Quântica confundiram a cabeça de tanta
gente, levando certas pessoas a acreditar que a ciência
havia encontrado a confirmação definitiva de suas
religiões ou filosofias favoritas – e, por conta disso,
como alguns espertalhões se aproveitaram para semear
desinformação e ganhar uns trocados.

A experiência da fenda dupla


Na palestra n. 6 sobre o caráter das leis físicas que o
ganhador do Nobel de Física Richard Feynman deu na
Universidade de Cornell em 1964, de onde tiramos a
primeira epígrafe deste capítulo,53 o cientista revisita
muitas das propriedades estranhas da Mecânica
Quântica por intermédio de um experimento muito
elegante, que passamos a descrever.
Imagine que temos um canhão de elétrons54 (parecido
com o que existe nas antigas TVs de tubo) apontado
para um anteparo. Nesse anteparo nós colocamos
algum detector que registre o impacto dos elétrons,
talvez um fundo fosforescente que emita um pontinho
brilhante, de maneira que saibamos onde cada partícula
bateu. E, entre o canhão de elétrons e o anteparo,
colocamos uma tela opaca com duas pequenas fendas,
cujo tamanho seja comparável ao comprimento de onda
dos elétrons (algo simples de calcular). A expectativa,
depois de todo o trabalho de Einstein e de De Broglie, é
de que os elétrons do feixe se comportem como ondas
ao atingir a tela e difratem ao passar pelas fendas.
Como a experiência de Young demonstrou, ondas
difratando geram padrões de interferência no anteparo
– em essência, regiões de claro e escuro que
correspondem, respectivamente, a interferências
construtivas e destrutivas quando as ondas se
superpõem.
Nós então ligamos o canhão de elétrons e esperamos
para ver o que acontece. Se dispusermos de uma
câmera que possa filmar em alta velocidade, ou se
regularmos para baixo a taxa de emissão do feixe no
canhão, veremos o anteparo registrar a impacto
individual de cada elétron que chega até ele. Humm!
Muito curioso! Queríamos verificar o caráter
ondulatório do elétron, mas tudo o que acontece é a
marcação de pontinhos brilhantes no anteparo,
exatamente o que esperaríamos de partículas que
tivessem quicado aleatoriamente nas bordas
microscópicas das fendas e se espalhado. De fato,
podemos dividir o anteparo em regiões de tamanho
arbitrário e contar quantos elétrons atingem uma dada
região a cada minuto, digamos. Isso vai ser importante
mais para frente, então tome nota.
Mas espere. Esse não é o final da história. Se
deixarmos os pontinhos se acumularem, um padrão vai
surgir. Zonas com mais pontinhos e outras mais
rarefeitas. Algumas zonas praticamente escuras,
indicando que quase nenhum elétron acerta aquele
trecho do anteparo. Ora, mas são franjas de difração!
Exatamente o que esperávamos observar no começo!
Com efeito, acabamos de comprovar o caráter dual da
matéria: os elétrons são espalhados como ondas, mas o
anteparo registra cada impacto individual, como se eles
fossem partículas.
Vamos, agora, propor uma variação no experimento.
Dispostos a testar os limites do poder de previsão da
Mecânica Quântica, podemos tapar uma das fendas de
cada vez e registrar o padrão formado no anteparo
quando apenas uma ou outra estiver aberta. Afinal, se é
possível reduzir a taxa de emissão de forma que um
elétron de cada vez atinja o anteparo, é razoável supor
que cada partícula passe por apenas uma das fendas e
seja desviada pelas bordas da passagem utilizada.
Assim, somando as figuras formadas em cada caso, deve
ser possível recuperar o padrão de interferência. Ao
menos é isso o que aconteceria no caso clássico, se
estivéssemos disparando bolinhas de papel contra um
anteparo adesivo. Não é isso que a Mecânica Quântica
prevê, mas vamos realizar o experimento assim mesmo.
Nas Figuras 6 a 8, vemos os resultados dos
experimentos realizados em laboratório. Elas
representam um canhão disparando elétrons contra um
anteparo e uma tela sensível, com o registro do impacto
das partículas acumulando-se ao longo do tempo

Figura 6 – Com apenas uma fenda aberta no anteparo, vemos as


marcas de impacto acumularem-se atrás da passagem.

Figura 7 – Abrindo-se uma segunda fenda, enquanto a primeira é


fechada, o mesmo padrão se repete, atrás da nova passagem.
Figura 8 – Com as duas fendas abertas, vemos a formação de um
padrão de interferência que é diferente da simples soma das duas
condições anteriores.

Para surpresa dos opositores da Interpretação de


Copenhague, obtivemos dois padrões de impacto no
anteparo – que podemos chamar de P1, obtido com uma
das fendas, que podemos chamar de “1”, aberta, e a
outra, “2”, fechada, e P2, obtido com a fenda “1”
fechada e a “2” aberta – que correspondem a
distribuições de probabilidade de impacto de elétrons:
determinadas regiões do anteparo acumulam mais
impactos do que outras. Se os elétrons fossem
entidades clássicas, não haveria mistério nenhum: a
soma das distribuições P1 + P2 seria igual à distribuição
P12 (lê-se “pê-um-dois”), obtida com ambas as fendas
abertas, porque cada elétron teria de passar por apenas
uma das duas fendas. Só que essa soma não é igual ao
padrão de interferência que vimos antes. Por quê?
Lembra-se de quando dissemos (no Capítulo 3) que as
funções de onda são números complexos e que só
podemos interpretar fisicamente o módulo delas? Pois
bem, as distribuições de probabilidade individuais P1 e
P2 são exatamente o complexo conjugado das funções
de onda individuais de cada situação. Elas representam
a amplitude – o “tamanho” de cada onda, expresso como
um número real, em vez de um número complexo.
Vamos usar a letra grega ψ (lê-se “psi”) para
representar funções de onda.55 Ou seja:

– Função de onda que descreve a distribuição dos


elétrons no anteparo quando somente a fenda 1 está
aberta: ψ1.
– Função de onda que descreve a distribuição dos
elétrons no anteparo quando somente a fenda 2 está
aberta: ψ2.
– Distribuição de probabilidade do impacto dos
elétrons no anteparo quando somente a fenda 1 está
aberta: P1=|ψ1|2.
– Distribuição de probabilidade do impacto dos
elétrons no anteparo quando somente a fenda 2 está
aberta: P2=|ψ2|2.
(As barrinhas verticais cercando a letra grega são o
símbolo de “módulo”, e significam que estamos
tomando o valor absoluto do que está dentro delas.
Assim, o módulo do número 3 é mesmo 3, mas o
módulo do número –5 é 5).

No nosso caso presente, o que ocorre é que a


distribuição de probabilidade dos elétrons no anteparo,
quando as duas fendas estão abertas, P12, é igual ao
quadrado da soma delas. Assim:

P12=|ψ1 + ψ2|2

Em geral, a soma de dois números ao quadrado é


muito diferente do quadrado da soma dos mesmos dois
números (nem precisa lembrar muita coisa do Ensino
Médio para verificar esse fato, basta fazer |–5 + 3|2 e |–
5|2 + |3|2 para ver a diferença).56 Por que temos de obter
o quadrado da soma em vez de somar os quadrados de
cada função de onda? Bem, padrões de interferência na
óptica acontecem quando cristas e vales de duas ou
mais ondas se superpõem – e essa interferência,
construtiva ou destrutiva, vai depender da fase de cada
onda. É a fase que nos diz se uma onda apresenta uma
crista, um vale ou algo intermediário num determinado
ponto. Só que a informação sobre a fase de uma só onda
se perde quando tomamos o módulo de sua
representação matemática e o elevamos ao quadrado.
Ou seja, se queremos descrever matematicamente um
fenômeno de interferência, não podemos jogar fora a
contribuição das fases das diferentes ondas – sem essa
informação, não há interferência possível. É preciso
deixar que as fases de cada função de onda, ψ1 e ψ2,
sejam somadas para só então tomarmos o quadrado do
módulo resultante. Quando procedemos assim,
verificamos que P12 depende não só da soma P1 + P2,
mas também da contribuição de um “termo de mistura”,
que leva em conta a diferença de fase entre as ondas
provenientes de cada fenda.
Ok, então! Agora sabemos qual é o mecanismo
matemático que prevê a formação de um padrão de
interferência e entendemos, mais ou menos, por que
temos de deixar as duas fendas abertas para obtê-lo.
Mas não deixa de ser estranho – muito estranho, de fato
– que a interferência só apareça quando os elétrons têm
de “escolher”, de alguma forma, por qual fenda passar.
Afinal, se essa “escolha” fosse um fenômeno estatístico
aleatório, poderíamos esperar que cada evento de
passagem por uma fenda acontecesse de forma isolada
e independente de todos os outros.
Dando um contraexemplo do mundo clássico: imagine
que você é apresentado ao resultado de uma sequência
de dez arremessos de moeda. É fundamentalmente
impossível distinguir, apenas com base na série de caras
e coroas, se ela foi produzida por dez lançamentos de
uma só moeda ou por cinco lances de duas moedas
diferentes. Já no caso dos elétrons, a opção por uma ou
duas fendas – “moedas”, na nossa analogia – gera
resultados notavelmente diversos.
Ocorre que há um detalhe sutil oculto no experimento
com os elétrons. Dissemos que é possível reduzir a taxa
de emissão no feixe, para melhor acompanhar a
formação da figura de interferência. E se arranjarmos o
canhão de forma que ele emita apenas um elétron de
cada vez? Seria intuitivo achar que alguma outra figura
surgiria no anteparo; talvez recuperando o padrão P1 +
P2. Lembre-se: padrões de interferência aparecem
quando duas ou mais ondas, fora de fase, se superpõem.
Se apenas um elétron está sendo emitido, ele teria de
passar por uma das duas fendas e, portanto, não teria
com o que se superpor. O caráter de difração seria
perdido.
Só que não é isso o que a Mecânica Quântica prevê, e
não é o que realmente acontece. Mesmo emitindo um
único elétron de cada vez, se esperarmos tempo
bastante, o anteparo vai registrar a mesma figura de
difração de antes. Isso significa que o elétron está
interferindo nele mesmo; analogamente, podemos dizer
que o elétron está passando pelas duas fendas ao
mesmo tempo.57 Qual é, então, a trajetória do elétron?
Como é possível que ele passe pelas duas fendas? Será
que é sequer válido fazer perguntas desse tipo? Pela
matemática da Mecânica Quântica, realmente não há
debate: as funções de onda ψ1 e ψ2 precisam interagir
entre si para que o padrão de interferência apareça, o
que só ocorre com as duas fendas abertas. O preço a
pagar por essa interpretação crua das equações é
engolir que o elétron pode interferir consigo mesmo.58
Essa foi a grande bronca do time contrário à
Interpretação de Copenhague. Ora, o elétron é uma
partícula fundamental, não poderia se dividir. Pior
ainda, podemos ver o impacto de cada elétron no
anteparo, então mesmo que imaginemos que o elétron
se parta entre dois pedaços menores, como diabos
haveria ele de se recombinar antes de bater no
anteparo? Algumas tentativas foram feitas para
reconciliar o resultado experimental com uma
explicação filosoficamente confortável, mas nenhuma foi
muito longe. No entanto, nem tudo estava perdido: e se
pudermos modificar o experimento mais uma vez? E se
fosse possível colocar detectores por baixo de cada
fenda que registrassem a passagem dos elétrons? Assim
seria possível determinar por onde cada elétron passou
e, sabendo onde no anteparo ele bateu, reconstruir sua
trajetória. Assim, ficaria demonstrado que uma
interpretação puramente estatística está incompleta; e
que há algo mais por descobrir.59
É aí que entra em ação o Princípio da Incerteza.
Quero dizer, ele já estava entrando em ação antes. Os
elétrons no feixe estão com o seu momento linear
vertical bem-definido (afinal, estão todos andando
bonitinhos em linha reta, supostamente com poucos
desvios para cima ou para baixo). Só que, a partir do
momento em que um elétron encontra as fendas, a
incerteza quanto à sua posição se reduz. Podemos não
saber por qual das duas ele passou, mas as chances
estão distribuídas entre ambas. E esse pequeno ganho
de certeza quanto à posição gera uma ampla incerteza
na distribuição de velocidades. Por isso, os elétrons são
espalhados e, por isso, atingem o anteparo com uma
boa abertura angular (veja, na Figura 9, como um
ganho de informação sobre qual fenda o elétron
atravessa afeta a dispersão). Podemos calcular essa
dispersão de momento e estimar a posição dos máximos
e mínimos de interferência. Muito bem, muito bom,
muito bonito – e se colocamos os tais detectores por
trás das fendas? Se isso acontecer, vamos registrar a
passagem de cada elétron por uma ou outra fenda,
nunca por duas fendas ao mesmo tempo. A-há! Fim do
mistério, certo? As duas fendas estão abertas e agora
sabemos por onde cada elétron passou! Infelizmente
(para os adversários de Copenhague), a figura que se
forma no anteparo não é mais o nosso belo padrão de
interferência. Ela se assemelha muito mais à
distribuição somada P1 + P2 que obtivemos quando
fechamos uma fenda de cada vez. O que está
acontecendo? Ora, o localizador de elétrons também
funciona como uma “medida”, embora certamente não
tenha nada a ver com a consciência do operador.60 Ao
sinalizar por onde cada elétron passa, ele está
localizando, com bastante precisão, a posição da
partícula e, consequentemente, tornando cada vez mais
difusa a dispersão de seu momento linear. Seria
tentador entender que a luz do detector funciona como
uma bola de bilhar batendo em outra e alterando sua
trajetória, mas é mais fundamental do que isso: o
detector força a função de onda do elétron, que antes
estava calmamente sobreposta entre as duas fendas, a
escolher por qual fenda vai passar – e essa medição
causa um colapso. O elétron realmente passa por
apenas uma fenda e tudo se dá como se a outra
estivesse fechada. O padrão de interferência é perdido.

Figura 9 – Com a presença de detectores que determinam por


qual fenda cada elétron teria passado, o padrão de interferência
(como visto na Figura 8) é destruído.
É possível diminuir a precisão do detector (talvez
usando fótons menos energéticos), de maneira que nem
todos os elétrons sejam encontrados. O que acontece é
que aí temos a formação de uma figura difusa, que não
é nem a interferência original, nem a superposição P1 +
P2 de uma fenda fechada de cada vez. Se diminuirmos a
intensidade do detector o suficiente, acabaremos por
recuperar a figura de interferência, o que demonstra
que o Princípio da Complementaridade (que definimos
no Capítulo 3) é inescapável.61 Qualquer alteração que
fizermos para detectar a “trajetória real” do elétron, ou
de qualquer outra entidade quântica usada no
experimento, necessariamente destrói o caráter de
difração.
O experimento da fenda dupla é um dos mais
elegantes que existem para verificar muitas das sutis e
estranhas propriedades da Mecânica Quântica. Não é à
toa que numa pesquisa informal com os leitores da
revista Physics World, em 2002, ele foi votado o “mais
belo da Física”.

O paradoxo EPR e o Teorema de Bell

Um dos ditados favoritos entre os físicos diz que “o


mapa não é o território”. Trocando em miúdos, isso
significa que ter uma teoria matemática que consiga
descrever bem certa classe de fenômenos não significa,
necessariamente, compreendê-los. Embora seja um
ditado mais usado pelos cosmólogos, cujas teorias sobre
o princípio do Universo são tão ricas e variadas quanto
são as dificuldades em testá-las experimentalmente, cai
como uma luva para qualquer um que pense um pouco
sobre Mecânica Quântica. E foi com esse espírito que os
críticos da Interpretação de Copenhague seguiram
questionando as estranhas implicações filosóficas da
teoria. Era uma coisa dizer que entidades microscópicas
seguem alguma regra estatística para se organizarem –
o estudo das propriedades dos gases só avançou tanto,
no século XIX, graças a um tratamento estatístico. Mas
tratar partículas subatômicas como abstrações
matemáticas? Não, era pedir demais. O mundo ao nosso
redor é real. As substâncias têm propriedades definidas.
Também fótons, elétrons, prótons teriam que ter alguma
engrenagem oculta que explicasse seu comportamento
estranho, mas que preservasse o determinismo da
Física clássica.
Podemos resumir o desconforto dos críticos da
seguinte forma: a função de onda ψ de um estado
quântico não prevê o resultado de uma medida – no
máximo, dá uma descrição estatística dos resultados de
uma possível medição. Antes de realizar o experimento,
portanto, não tem sentido perguntar onde a entidade
quântica “realmente estava”, de acordo com a
Interpretação de Copenhague. É como se o próprio ato
de medir uma grandeza criasse a realidade física. Para
um realista, como os críticos da interpretação ortodoxa
passaram a ser conhecidos, isso é um absurdo total.
Eles diriam que a Mecânica Quântica é forçosamente
incompleta, pois não é capaz de descrever todas as
propriedades e características de um sistema. E assim o
debate prosseguiu, por muito tempo.
Num de seus muitos embates com Niels Bohr, Albert
Einstein publicou (junto com mais dois colegas, Boris
Podolsky e Nathan Rosen) um artigo bombasticamente
intitulado “Pode a descrição quantum-mecânica da
realidade ser considerada completa?”,62 no qual
buscava um argumento matador contra a interpretação
ortodoxa. O raciocínio de Einstein, Podolsky e Rosen (ou
EPR, para abreviar) era mais ou menos assim: é
possível criar partículas aos pares, as quais, pelas
várias leis de conservação, precisam ter certas
características correlacionadas – momento linear, por
exemplo. Assim, se um par de partículas for criado, seu
estado quântico vai estar emaranhado (como dizemos
hoje). Deixe as partículas se afastarem a uma distância
arbitrariamente grande. Meça o momento linear de uma
das partículas e a outra vai necessariamente ter o seu
próprio momento definido, sem que precisemos medi-lo.
Para o trio EPR, isso não representa problema algum –
como realistas, eles acreditavam que cada uma das
partículas emaranhadas tinha momento linear bem
definido; e que a medida de uma não afetaria em nada
as características da outra. Porém, se a interpretação
ortodoxa fosse mesmo válida, eles sustentavam que
haveria uma “ação fantasmagórica a distância”, alguma
espécie de campo esquisito, que “informaria” a outra
partícula do par emaranhado qual valor de momento
linear ela deveria escolher exibir. E, uma vez que as
distâncias podem ser arbitrariamente grandes, isso
violaria o princípio relativístico que diz que nenhuma
informação pode viajar mais rápido que a luz. Ou a
interpretação ortodoxa está incompleta ou a Física
Quântica é não local.63 Xeque-mate!
Niels Bohr ofereceu alguns contrapontos ao
argumento EPR, sustentando que havia certas
dificuldades experimentais com a proposta do artigo, ao
mesmo tempo que parecia concordar com Einstein que
uma violação da localidade seria “irracional”. De fato,
num artigo publicado cinco meses depois,64 Bohr
reafirmou que a estrutura do Princípio da Incerteza
impede a observação simultânea de observáveis
conjugados, como posição e momento linear, mesmo em
pares de partículas emaranhadas – mas não chega a
refutar matematicamente o elegante argumento EPR. E
assim a coisa ficou por algum tempo.
O Paradoxo EPR, como o argumento acabou ficando
conhecido, deu margem a uma série de teorias
alternativas à Mecânica Quântica, todas explorando a
possibilidade da existência de “variáveis ocultas”, que
pudessem preservar os resultados da teoria ortodoxa e
o princípio da localidade. Mas eis que, em 1964, o
irlandês John Stewart Bell matou a charada.
Bell propôs que se tomassem medidas de observáveis
complementares em direções diferentes. É sabido, por
exemplo, que certas partículas exibem um momento
angular65 intrínseco, chamado de spin. Elétrons exibem
spins orientados para cima ou para baixo, dependendo
da direção do campo magnético utilizado para realizar a
medida. Um par emaranhado elétron-pósitron, portanto,
vai ter spins anticorrelacionados – se o elétron
apresentar spin para cima, o pósitron vai apresentar
spin para baixo, e vice-versa. No jargão técnico,
chamamos esse estado quântico de singleto de spin. O
detalhe aqui é que os campos usados para a medição
estão sempre apontando para a mesma direção. Bell
sugeriu que os campos detectores tivessem orientações
diferentes para cada membro do par emaranhado, por
motivos que ficarão claros em breve.
De acordo com o Princípio da Incerteza, medidas de
spin em eixos perpendiculares entre si são
incompatíveis, assim como velocidade e momento linear,
ou seja: se observamos a componente vertical do spin
de um elétron e encontramos spin para cima, segue que
uma segunda e imediata medida da componente vertical
do mesmo elétron necessariamente vai dar para cima.
Mas suponha que na segunda vez se queira medir a
componente horizontal do spin do elétron. Nesse caso,
há chances iguais de medirmos spin para baixo ou para
cima. O resumo da ópera66 é que medir o spin em certa
orientação não tem nada a ver, em princípio, com a
medida em uma orientação perpendicular. No caso de
pares emaranhados, o raciocínio é o mesmo: medidas de
spin em direções perpendiculares não necessariamente
vão mostrar correlação.
Muito bem, então, se a orientação dos detectores for a
mesma, seguramente vamos recuperar a previsão do
artigo EPR. Para cada spin para baixo detectado,
corresponderá um spin para cima no outro membro do
par emaranhado, e vice-versa. Se definirmos que “para
cima” tem valor +1 e “para baixo” tem valor –1, o
produto desses spins será sempre –1, pois estarão
perfeitamente anticorrelacionados.
Se a orientação dos detectores for antiparalela (por
exemplo, um campo aponta para cima e outro, para
baixo), os spins do par emaranhado estarão sempre
perfeitamente correlacionados, pois toda vez que um
detector encontrar um elétron com spin para cima ou
para baixo o outro detector encontrará o pósitron com
spin na direção contrária – mas o próprio detector
também estará na direção contrária. O produto dos
spins será sempre +1.
Se a orientação dos detectores for perpendicular, pode
ou não haver correlação. Cada partícula tem 50% de
chance de apresentar spin para cima ou para baixo. Há,
portanto, quatro casos possíveis: o elétron pode ter spin
para cima e o pósitron, para cima; o elétron pode ter
spin para cima e o pósitron, para baixo; o elétron pode
ter spin para baixo e o pósitron, para cima, ou ambos
podem ter spin para baixo. O produto dos spins em cada
caso é, respectivamente, +1; –1; –1; +1. Portanto, a
média dos produtos será zero.67
Bell então se perguntou o que aconteceria se
medíssemos o spin de um par emaranhando sorteando
orientações arbitrárias para cada membro do par
(imagine que quando cada detector é acionado, gera um
campo orientado em 0°, 120° ou 240° a partir da
vertical, por exemplo). Se calhar dos dois detectores
sortearem a mesma orientação, sabemos que o par
emaranhado vai estar com spins (anti)correlacionados.
Mas se as orientações forem diferentes, então pelo
Princípio da Incerteza a correlação entre os spins,
depois de várias e várias medições aleatórias, deverá
ser um número entre –1 (para perfeita anticorrelação) e
+1 (para perfeita correlação), podendo inclusive ser
zero. E que número é esse? A matemática da Mecânica
Quântica garante que o produto dos spins do par
emaranhado elétron-pósitron vai, na média, dar um
certo número real que depende do cosseno do ângulo
formado entre os detectores,68 o que de fato se verifica
em laboratório.
A sacada vem agora: se os realistas tiverem razão,
cada par emaranhado – na realidade, todas as partículas
do Universo, emaranhadas ou não – nasce com
propriedades bem definidas de momento linear, spin
etc. O nosso desconhecimento dos valores exatos dessas
propriedades não interfere no comportamento delas.
Pois bem, Bell assumiu que a hipótese dos realistas
estava correta. Ele disse que existe alguma função
realista local69 l (a letra grega “lambda”) que guarda
todas as informações pertinentes ao estado quântico de
uma partícula. Se isso é verdade, então é possível
definir uma função de l para o elétron e outra para o
pósitron, de modo que o resultado da medição do spin
de cada um esteja determinado antes que façamos a
experiência. E sabendo que o resultado dessa medição
em uma orientação arbitrária só pode ser –1 ou +1, é
também possível calcular o valor esperado da média da
correlação entre os spins. Assim, fazendo apenas essas
poucas suposições sobre l, Bell chegou a um resultado
totalmente diferente daquele previsto pela Mecânica
Quântica ortodoxa.
O resultado obtido por Bell é simplesmente
devastador. Ele assumiu que existem algumas variáveis
ocultas que preservam a Localidade, para depois provar
que esse raciocínio conduz a um resultado absurdo.
Então, se o artigo EPR estiver certo, a Mecânica
Quântica ortodoxa não está simplesmente incompleta,
ela está errada. E se a Mecânica Quântica ortodoxa não
está errada, como sabemos que não está, então
nenhuma teoria com variáveis ocultas locais vai impedir
que partículas emaranhadas tenham propriedades
correlacionadas não locais.

Consequências do Teorema de Bell

A dúvida imediata que surge é: seria possível violar o


limite da velocidade da luz para mandar mensagens
instantâneas? Surpreendentemente, não. Se por um
lado o emaranhamento quântico parece violar a Teoria
da Relatividade, por outro, ele a respeita de maneira
sutil. Ainda que a correlação de um par emaranhado
seja, para todos os efeitos, instantânea, não temos como
prever qual será o resultado de uma medida. Assim, de
nada adiantaria deixar um membro do par emaranhado
aqui na Terra e outro em Marte, digamos: a pessoa que
estiver em Marte não vai saber do resultado da medição
aqui na Terra, a menos que seja informado por canais
usuais. E nem um, nem o outro teriam como modular a
detecção de propriedades emaranhadas, para passar
alguma espécie de mensagem instantânea. Todas as
comunicações precisam seguir por vias normais.
Dessa forma, o principal aspecto da Teoria da
Relatividade é preservado – todos os sinais trocados
entre observadores precisam observar o princípio da
causalidade, ou seja, não importa onde estejam ou a que
velocidade se desloquem, todos os observadores
precisam concordar que causas precedem efeitos.
Mesmo a “fantasmagórica ação a distância” de pares
emaranhados não viola a causalidade.
E quanto às consequências filosóficas desse resultado?
Bem, é possível tentar construir teorias de variáveis
ocultas não locais, uma vez que o Realismo ainda não
foi totalmente refutado. De qualquer modo, o Teorema
de Bell e sua subsequente verificação experimental
sepultaram quase que de vez os sonhos realistas,
relegando-os à periferia da Física. Como comentou o
físico David Griffiths em seu livro didático Introduction
to Quantum Mechanics:

é uma irônica virada do destino que o paradoxo EPR, que assumiu a


Localidade para provar o Realismo, conduziu, em última instância, ao
repúdio da Localidade e deixou o assunto do Realismo indefinido. Um
resultado de que Einstein teria gostado menos.70

Filosofia, ciência e mistificação

O resumo de um determinado simpósio sobre a psique


e a matéria que ocorreu na PUC de São Paulo em 2003
dizia assim, em certo trecho:

Se a Física Newtoniana pressupunha um objeto a ser estudado fora da


psique, a Física Quântica questionou essa “objetividade” e afirmou que
toda observação depende da posição do observador, trazendo a
subjetividade, da qual a Psicologia tentou tanto se livrar, de volta para a
Física.71

Tendo em vista o que John von Neumann declarou


sobre o papel da consciência no processo de medida, e
as intermináveis discussões sobre a interpretação
correta da Mecânica Quântica, como exatamente
podemos criticar os acadêmicos de Ciências Humanas
por falar sobre o que não entendem? A pessoa que
escreveu o trecho acima talvez possa ser “culpada” de
não seguir com atenção os desenvolvimentos da Física
de 1920 até agora, mas não se pode responsabilizá-la
por entender de forma errada uma mensagem que os
próprios físicos têm dificuldades de entender, quanto
mais propagar.72
Feynman certa vez teria declarado jocosamente que a
“filosofia da ciência é tão útil para os cientistas quanto
ornitologia é para os pássaros”, uma piada que nunca
teve grande sucesso entre os filósofos, mas de que os
físicos não cansam de achar graça. A piada atribuída a
Feynman talvez tenha aparecido como uma reação a
todo o tempo e esforço gastos para tentar extrair algum
sentido “real”, cósmico ou humano das complexas
equações que descrevem sistemas quânticos.
Essencialmente, esse é o espírito por trás da segunda
epígrafe que abriu este capítulo. “Cala a boca e
calcula!” é menos uma interjeição exasperada e mais
uma gentil admoestação dos físicos mais velhos aos
jovens que perdem tempo precioso tentando entender
por que, trocando em miúdos, o fato de uma moeda
lançada para o alto dar cara implica que o outro lado
saiu coroa.73
Em sua maior parte, a confusão e a aura de mistério
que envolvem a Mecânica Quântica vêm do fato de que
os próprios físicos levaram décadas – mais de um século
e contando – para engolir que, se existe mesmo alguma
descrição realista subjacente ao mundo quântico, ela
está talvez para sempre fora de nosso alcance. O
Universo, em sua constituição mais fundamental, não
parece ser determinístico. Mas é claro, existe uma
distância considerável entre o Universo não ser
determinístico e ser aberto a interpretações “místicas”.
Essa é a diferença-chave entre a ciência séria e as
picaretagens quânticas que vemos por aí. A ciência
reconhece que existem mistérios e faz o possível para
elucidá-los. Às vezes o caminho é tortuoso, como
esperamos ter deixado claro até agora; e às vezes os
próprios cientistas propõem explicações que, em
retrospecto, são ingênuas, quando não totalmente
erradas. Já o misticismo quântico precisa do mistério.
Ele precisa que certas coisas permaneçam indefinidas
ou difíceis de interpretar quando comparadas à nossa
experiência cotidiana. A picaretagem começa com uma
lacuna no conhecimento científico e lá se estabelece,
contente em afirmar as mesmas bobagens sentimentais
e platitudes de sempre para enganar os incautos e
ganhar um dinheirinho. E nenhuma picaretagem
quântica é tão perversa quanto aquela praticada em
nome da saúde.
Queremos crer que a maioria das pessoas tem bom
senso o bastante para procurar um médico de verdade
para resolver problemas de saúde de verdade.
Recentemente têm aparecido (talvez pela facilidade de
encontrar notícias pela internet, mas nunca se sabe)
vários casos de gente que deixou de procurar ajuda
médica real, preferindo soluções “alternativas” que
deixaram consequências funestas. Mas que mal há,
alguém pode perguntar, em comprar um colchão
magnético quântico para dormir melhor? Certamente
ninguém (esperamos) seria tolo a ponto de tratar uma
doença séria com um colchão magnético.
Bem, temos dois contrapontos a essa noção. O
primeiro é que colchões verdadeiramente terapêuticos
não precisam de magnetismo para funcionar – até
porque eles precisam ser montados para problemas
específicos de coluna. A presença de ímãs não vai
alterar em nada as propriedades terapêuticas do
colchão. O segundo é que, se tanto faz o colchão ser
magnético ou não, por que dar dinheiro para alguém
que claramente não sabe do que está falando – ou pior,
que está conscientemente mentindo para o público?
No período em que escrevia este capítulo, um dos
autores deste livro resolveu ir à praia com a família
num domingo de sol. Havia salva-vidas na areia e placas
de perigo, pois o mar estava bastante agitado e as
ondas batiam forte. Mas ele, confiante em suas décadas
de experiência com o mar do Rio de Janeiro, resolveu
nadar mesmo assim e passou bastante tempo se
divertindo tranquilamente. Até que, perto da hora de ir
embora, resolveu entrar mais uma vez no mar para tirar
a areia do corpo. Foi quando a maior onda do dia
resolveu quebrar em cima dele com muita força. Tanta,
que ele foi arremessado contra a areia e caiu de mau
jeito, torcendo o joelho e o pulso de maneira muito
dolorida.
Passado o susto inicial (que rendeu e ainda rende não
poucas pilhérias por parte da família e dos amigos),
tratou de procurar um médico. O diagnóstico inicial,
feito no ambulatório, foi um estiramento do ligamento
colateral medial, uma das amarras da articulação do
joelho que impede que a perna abra demais, num
movimento conhecido como stress valgo, e acabe
danificando algo mais importante. Para confirmar esse
diagnóstico e avaliar a gravidade da lesão, o médico
solicitou um exame de ressonância magnética.
Eis a ideia por trás do exame: o corpo humano é
composto basicamente de água, que em sua molécula
apresenta dois átomos de hidrogênio. Os núcleos desses
átomos possuem um momento magnético próprio, como
se fossem pequenos ímãs. A máquina de ressonância
emite um poderoso campo magnético constante (muito
mais forte do que o de qualquer colchão místico
apregoado por aí) que faz com que os pequenos ímãs
naturais dos prótons do núcleo dos átomos de
hidrogênio dentro das moléculas de água de nosso
corpo fiquem perfilados, como soldados em formação.
Em seguida, outro campo eletromagnético, dessa vez
variável, é acionado. A frequência do segundo campo
tem o mesmo valor da frequência de ressonância do
próton, o que faz com que ele absorva fótons dessa
segunda radiofrequência, para em seguida emitir fótons
ele mesmo. Essa emissão é captada por sensores no
aparelho, que a convertem em imagens nítidas do
interior de nosso corpo. E, de posse dessas imagens, o
médico é capaz de traçar diagnósticos mais precisos e
prescrever tratamentos mais adequados. E como é
possível construir uma máquina de ressonância
magnética? É possível porque os fenômenos que
governam seu funcionamento são firmemente calcados
nos princípios quânticos que delineamos ao longo deste
livro. Não porque a água do corpo foi “harmonizada”.
Não porque “frequências positivas” auxiliaram a
recuperação. A máquina não cura, apenas processa
imagens – mas é um enorme avanço que auxilia o
tratamento de lesões nos tecidos moles do corpo, que
não aparecem em raios X (outra ferramenta médica
tornada possível graças aos avanços da Mecânica
Quântica de verdade).
O joelho ainda doía quase um mês depois do acidente,
mas estava em recuperação. E se o tratamento prescrito
funcionou, em boa parte foi pelo diagnóstico preciso do
médico, graças ao estudo e esforço pessoal dele e aos
resultados consistentes da Mecânica Quântica de
verdade.
Já admitimos que não sabemos como interpretar a
Mecânica Quântica além da simples e crua noção
estatística. Reconhecemos que, em grande parte, a
Física desistiu de tentar ir além, contente em aceitar
que o ferramental matemático dá uma noção compatível
com o que vemos na realidade, em nossos
experimentos, por mais que tenhamos dificuldade em
entender e pôr em palavras o que de fato está
acontecendo. Podemos até mesmo desculpar, em parte,
os acadêmicos de outras áreas do conhecimento por não
terem acompanhado as discussões profundas de 1900
até agora.
Mas não há justificativa possível para quem usa um
linguajar obscuro, numa semelhança mínima com o
jargão técnico, a fim de confundir e enganar. Até agora,
expusemos as diferenças de discurso e de objetivo entre
a Mecânica Quântica de verdade e o misticismo pop.
Chegou, portanto, a hora de destrinchar melhor
algumas das táticas que os picaretas quânticos usam
para apregoar seus embustes.
50 The Character of Physical Law, Modern Library, NY, 1994, p. 123.
(Tradução nossa).

51 Geralmente atribuída a Richard Feynman, a ponto de o próprio Mermin


duvidar que realmente criara a citação!

52 Enquanto escrevíamos este livro, três pesquisadores britânicos (Mathew


F. Pusey, Jonathan Barret e Terry Rudolph) publicaram um artigo, em 2011,
mostrando um teorema que diz que a função de onda não pode ter uma
interpretação puramente estatística. Se essa descoberta vai abalar o mundo
da Física, ou se vai para o depósito das nobres tentativas de derrubar a
Interpretação de Copenhague, ainda está para se ver. Disponível em:
http://arxiv.org/abs/1111.3328.

53 Em 1964, Feynman deu uma série de sete palestras especiais na


Universidade de Cornell sobre o caráter das leis físicas. Um livro foi
publicado no ano seguinte e as palestras foram filmadas pela BBC e mais
tarde transformadas em livro. A citação vem da palestra n.6, “Probabilidade
e Incerteza”. Em 2012 foi publicada uma edição brasileira do livro (Sobre
as leis da física, editora Contraponto). O conteúdo completo das palestras
em vídeo está disponível na internet graças ao bilionário Bill Gates, no que
ele chamou de Projeto Tuva.

54 Antes de 1961, experimentos desse tipo só tinham sido feitos com


fótons. Claus Jönsson foi o primeiro a reproduzir o resultado com elétrons
(Jönsson, C. Zeitschrifftfür Physik, 161, p. 454-474. 1961. Há uma versão
em inglês facilmente encontrada na internet com o título Electron
Diffraction at Multiple Slits). Desde então o experimento foi realizado com
outras entidades quânticas – átomos, moléculas e até mesmo com objetos
que podemos ver ao microscópio. Disponível em
http://202.41.85.161/~mvr/ch412/joens.pdf. Acessado em 29/03/2013.

55 Tanto P quanto ψ (nesse caso) são genericamente funções da posição e


do tempo, mas não é preciso entrar nesse nível de detalhe para os nossos
propósitos.

56 Para quem continua em dúvida: |–5 + 3|2 = 4 e |–5|2 + |3|2 = 34. Bem
diferente, portanto.

57 Vale lembrar que isso não é uma das famosas “experiências de


pensamento” que os físicos tanto gostam (embora tenha começado como
uma). Tal fenômeno foi confirmado em 1973 pelos italianos O. Donati, Gian
Franco Missiroli e Giulio Pozzi (“An Experiment on Electron Interference”,
American Journal of Physics, 41, p. 639-644). Infelizmente, esse artigo não
está disponível gratuitamente.

58 Outra maneira de encarar esse fenômeno é considerar que um sistema


quântico simplesmente não tem propriedades bem-definidas antes de uma
medida.

59 Mais uma vez, essa modificação começou como uma “experiência de


pensamento” e foi confirmada numa experiência de verdade mais tarde.

60 De fato, podemos deixar o aparato funcionando sozinho, ir ao cinema e


voltar para descobrir que as marcas no anteparo correspondem à previsão
teórica. Nenhuma intervenção consciente (para definições úteis de
“consciência”) necessária.

61 Inescapável, mas mesmo assim podemos contornar certas limitações.


Em 1978, o físico John Archibald Wheeler (orientador de pesos-pesados
como Kip Thorne, Bill Unruh e Richard Feynman) propôs um esquema
batizado de “apagador quântico”, em tradução livre, no qual podemos
detectar por qual fenda um fóton passou, porém “apagar” essa informação
antes que o fóton atinja o anteparo.

62 A. Einstein; B. Podolsky; N. Rosen. Physical Review, n. 47, 1935, p.777.


É um artigo famoso, disponível legal e gratuitamente em
http://www.drchinese.com/David/EPR.pdf. Acessado em 30/03/2013.

63 Localidade é outro princípio considerado importante numa lei física. Diz-


se que fenômenos são locais se um corpo só puder interagir com outro
corpo com que esteja em contato, por meio de um campo, por exemplo.
Newton teve muitas dores de cabeça quando criou o conceito de força para
propor como a gravidade do Sol poderia afetar a Terra de tão longe, e por
fim se saiu com o seu famoso hypotheses non fingo – “não teço hipóteses” –
no “Escólio Geral” de seu livro Principia Mathematica. Já Einstein, para
quem a ideia de campos não era novidade alguma, propôs a Localidade
como consequência do limite de velocidade finita de propagação de
informação: um corpo só pode interagir com outro se essa interação viajar,
no máximo, à velocidade da luz.

64 Bohr, N. “Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality be


Considered Complete?”. Physical Review, n. 48, 1935, p. 696. O artigo de
Bohr tem o mesmo título do de Einstein, “Podolsky e Rosen”.

65 Na Física clássica, o momento angular é uma grandeza ligada à rotação


dos objetos – é a conservação do momento angular, por exemplo, que
mantém em pé um pião rodando. O termo “spin” reflete essa herança, já
que significa “giro”, em inglês.

66 Rigorosamente falando, a medida do spin em uma direção colapsa a


função de onda do spin para um autoestado naquela direção, e isso significa
um estado 50%-50% nas outras duas direções. A medida em uma direção
obriga o estado de spin nas outras direções a ser 50%-50%.

67 Para quem não se lembra: a média de um conjunto de valores é a soma


desses valores, dividida pelo número de elementos do conjunto. Assim,
teríamos:

[(+1)+(–1)+(–1)+(+1)]:4.

Como o total no numerador é zero, a conta toda dá zero.

68 Para quem não tem medo de matemática: P(a,b) = –a.b, onde a e b são
os vetores unitários que definem a orientação dos detectores e P(a,b) é a
média do produto dos spins para aqueles detectores. O produto escalar
entre dois vetores, como se sabe, é um número real que depende do
cosseno do ângulo entre eles.

69 “Local”, no caso, significa: que respeita o limite de propagação da


velocidade da luz, isto é, que não transmite informação mais rapidamente
do que o permitido pela Teoria da Relatividade.

70 Op. cit., ed. Prentice Hall, Nova Jersey, 1994, p.380.

71 “I Simpósio entre Psiquê e Matéria – Novas Conexões”, abertura, pela


Profa. Dra. Denise Gimenez Ramos, Núcleo de Estudos Junguianos da PUC-
SP, 2003. Disponível em:
http://www.pucsp.br/jung/portugues/simposios_eventos/I_simposios.html.
Acessado em 30/03/2013.

72 Não é nossa intenção revisitar a “guerra das ciências”, que animou


muitos debates acadêmicos nos anos 1990 e que colocou em cantos opostos
as Exatas e as Humanas. Preferimos apenas lamentar que os campos
tenham se afastado tanto um do outro e que, suspeitamos, tenham se
tornado mutuamente ininteligíveis. Mas ao menos as Exatas têm a natureza
que lhes serve de fiel da balança quando suas especulações ficam estranhas
demais...

73 Em última análise é isso que o emaranhamento quântico significa, se é


que podemos usar essa palavra. Se duas partículas estão emaranhadas, a
medida de uma forçosamente implica a determinação do estado
complementar da outra, tal como uma moeda atirada para o alto que dá
cara necessariamente implica que, do outro lado, está a coroa.
CAPÍTULO 6

GUIA DE DEFESA PESSOAL CONTRA


OS PICARETAS QUÂNTICOS
Em nossa publicidade, afirmamos que as pulseiras Power Balance
melhoram a força, o equilíbrio e a flexibilidade.
Admitimos que não existe evidência científica digna de
crédito que apoie nossas alegações, e portanto estivemos
envolvidos em conduta enganosa.74

Se você tem um smartphone, talvez já tenha


encontrado um aplicativo em oferta chamado
QuantumH (o “H”, parece, é de “harmony”, ou
“harmonia”, mas também é um trocadilho entre “aitch”,
o nome da letra agá na língua inglesa, e “age”, ou
“Era”). Ele promete usar o poder da Mecânica Quântica
para pôr sua vida em harmonia com o Universo, das
seguintes maneiras:

– Ajuste de frequências: o aplicativo gera uma


sequência de flashes coloridos na tela do telefone que
produz uma interferência construtiva entre as ondas
do seu organismo e as ondas positivas do campo de
consciência cósmico, ao mesmo tempo que interfere
de forma destrutiva com as ondas negativas.
– Intuição amplificada: a famosa “ação
fantasmagórica a distância” descrita por Einstein
permite que partículas quânticas troquem
informações entre si instantaneamente, mesmo se
separadas por anos-luz de distância. O poder
harmonizador do QuantumH sintoniza sua mente com
esse fluxo quântico de dados e permite que você capte
fatos, impressões e ideias que estão “no ar” com
maior facilidade.
– Poder da atração: quando as ondas da sua mente
entram em harmonia com as ondas daquilo que você
deseja (lembre-se, de acordo com a Física Quântica,
todos os objetos e objetivos são, na verdade, feitos de
ondas), fica muito mais fácil atrair para a sua vida
aquilo que você busca.
– Banco de probabilidades: as ondas da Mecânica
Quântica codificam probabilidades – suas chances de
conseguir o emprego dos seus sonhos ou de fazer
aquela viagem inesquecível, por exemplo. O que pouca
gente sabe é que, de acordo com a Interpretação dos
Muitos Mundos, nenhuma probabilidade desaparece
de fato: todas as oportunidades codificadas na onda
quântica continuam a existir. Com o QuantumH, esses
“caminhos não percorridos” continuam sempre a
existir como potenciais ao seu alcance.

Esperamos que quem quer que tenha ficado conosco


até aqui esteja fundamentalmente escandalizado com os
parágrafos acima e se pergunte se uma página de um
livro de um mago indiano não entrou nesta
encadernação por engano. Para a tranquilidade de
corações e mentes, deixamos claro que o QuantumH
não existe. Inventamos o aplicativo para dar ao leitor
uma ideia dos apelos errôneos – quando não
fraudulentos – feitos por aí a respeito dos efeitos
“milagrosos” que poderiam, supostamente, ser obtidos
por meio da Mecânica Quântica.
O quantum nos deu maravilhas como os transistores,
que são a alma dos chips que fazem funcionar
computadores e celulares; também permitiu a criação
do raio laser que lê CDs e DVDs. Pesquisadores têm a
esperança de usar as propriedades do mundo quântico
para criar computadores capazes de ir muito além das
máquinas atuais. Mas cada um desses avanços foi
resultado dos esforços de cientistas e engenheiros
trabalhando com os pés firmemente fincados dentro do
“paradigma científico materialista” que o misticismo
quântico tanto desdenha.
Neste capítulo, procuraremos explicitar alguns
indicadores que permitem suspeitar – quando não,
concluir – que o nome e o jargão do quantum estão
sendo invocados de modo ilegítimo, como uma cortina
de fumaça para encobrir alegações que nada têm a ver
com fatos reconhecidos pela ciência.
Ao preparar este guia, tivemos o cuidado de tentar
separar o que são afirmações pseudocientíficas
gritantes do que não passa de mero uso metafórico dos
termos usuais da ciência.
Metáforas, é claro, podem ser boas ou ruins,
pertinentes ou nem tanto. Às vezes, a apropriação
indébita da linguagem científica gera resultados
interessantes, como nos versos “O estudo da paixão
pura – permanentemente limitado / Equação agora está
na moda? Amor = dois idiotas ao quadrado”, do poema
humorístico “A Teoria Quântica do Amor”, de Tom
Cordle.75 Outras vezes, o resultado é mais duvidoso,
como numa definição de “empresa quântica” que
encontramos na internet: “A empresa quântica é curva,
natural, global, imprevisível, flexível, integrada”.76 (Se
alguém tiver uma definição inteligível de “empresa
curva”, para além de uma empresa instalada num
prédio projetado pelo Oscar Niemeyer, escreva para
nós.)
Abaixo, nossa lista de sinais de alerta de que o nome
da Mecânica Quântica está sendo usado de um modo
menos que legítimo. Se quiser depois fazer o exercício
de reler o início do capítulo, você reconhecerá todos
eles na “peça publicitária” que criamos:

A Mecânica Quântica diz que seu corpo e sua mente


são feitos de ondas; o produto “quântico” X é útil
porque harmoniza essas ondas.

Sem nem entrar no mérito de o que “harmonizar”


poderia querer dizer nesse contexto, é importante notar
que embora, sim, as partículas que compõem o corpo
humano possam ser descritas como ondas, essa
possibilidade é, para todos os efeitos práticos,
meramente acadêmica. Qualquer objeto material pode
ser tratado como um conjunto de ondas, e as interações
entre as ondas dos objetos e as ondas de seu corpo têm
a forma das interações normais a que você está
acostumado: as ondas que compõem este livro estão
interagindo com as ondas do seu corpo quando você o
segura. Em outro exemplo, o resultado da interação das
ondas de seu pé com as de uma bola de futebol é o que
chamamos de chute.
Em linhas gerais, a ideia de que o destino humano
pode (ou precisa) ser harmonizado com o Universo faz
parte de um conjunto de ideias religiosas e filosóficas
que preconiza a existência de um fluxo privilegiado para
os eventos no mundo – que pode ser chamado, entre
outras coisas, de destino ou, para os fãs da
nomenclatura oriental, tao – e que identificar e seguir
esse fluxo, sem lhe oferecer resistência, é o caminho
para a felicidade. Isso tudo pode ser ou não verdade,
mas o fato é que nem o destino nem o tao aparecem nas
equações da Mecânica Quântica.

A Mecânica Quântica diz que tudo o que existe são


probabilidades, o que significa que nada é impossível.

“Tudo o que existe são probabilidades” é uma


interpretação possível da descrição quântica do
Universo, mas de modo algum é a única interpretação
levada a sério pelos cientistas. Além disso, é preciso ter
em mente que as diferentes probabilidades dos
fenômenos quânticos interferem entre si, tornando
alguns resultados virtualmente inevitáveis, ao passo que
outros passam a ser efetivamente impossíveis.
Exemplo: os físicos britânicos Brian Cox e Jeff
Forshaw fizeram cálculos,77 usando as regras
matemáticas da Mecânica Quântica, e concluíram que
para observar um grão de areia se desmaterializar
espontaneamente e reaparecer a apenas quatro
centímetros de sua localização original seria preciso
aguardar um tempo superior a dez vezes a idade atual
do Universo. Portanto, uma pessoa não está realmente
errada quando diz que um grão de areia – ou um
diamante, ou uma Ferrari, ou um pinguim – sumir de
repente e ressurgir espontaneamente em outro lugar é
um evento impossível.
Ademais, é preciso lembrar que, quando uma
interação (ou “observação”) ocorre, todas as
probabilidades codificadas na função de onda
desaparecem, restando apenas o resultado certo e
concreto do experimento. Mesmo na Interpretação dos
Muitos Mundos, o que supostamente ocorre é uma
segregação radical dos diferentes resultados: cada um
deles se concretiza num Universo diferente, e não há
como ocorrer interferências entre esses Universos.

Pensamentos são feitos de ondas, e os objetos no


mundo são feitos de ondas, portanto os pensamentos
podem atrair/repelir/controlar objetos.

Esse raciocínio é tão válido quanto dizer que tsunamis


são feitos de ondas, e telefones celulares emitem ondas,
logo celulares atraem/repelem/controlam tsunamis.
Para além do erro lógico, no entanto, há algumas falhas
na caracterização do pensamento como “onda”.
Pensamentos são resultados do funcionamento de
células no cérebro, e parte desse funcionamento
envolve o movimento de cargas elétricas. Esse
movimento gera ondas eletromagnéticas que podem ser
captadas por um eletroencefalograma, mas não é
correto dizer que as ondas “são” os pensamentos,
quando na verdade parecem ser apenas um subproduto.
E mesmo se as ondas realmente fossem pensamentos,
sabemos que a energia transmitida por elas cai com o
quadrado da distância – o que significa dizer que,
quando dobramos a distância que nos separa do interior
do crânio pensante, a energia recebida se reduz a um
quarto. Se gerasse energia suficiente para que suas
ondas pudessem afetar objetos materiais distantes, o
cérebro provavelmente brilharia como uma lâmpada
acesa. Esse mito é muito parecido, ainda que não
idêntico, ao próximo, extremamente popular na
literatura de autoajuda:

A Mecânica Quântica valida o “princípio da atração”,


pelo qual o que você pensa é atraído para você, seja
bom ou mau.

Já tratamos um pouco da questão do “poder do


pensamento positivo” em outras partes deste livro, mas
não custa repetir: o quantum não tem nada a ver com
isso. Das várias interpretações da Mecânica Quântica
que disputam, a sério, a atenção dos cientistas, não há
nenhuma que diga que as intenções humanas permitem
controlar a realidade.
Mesmo na hipótese de que a observação consciente
tenha algo a ver com o colapso da função de onda (uma
hipótese que não faz parte de nenhuma teoria
científica), esse colapso é sempre aleatório: os desejos
humanos não têm nenhum peso no resultado final da
movimentação quântica.
É verdade que um pesquisador pode preparar o
experimento de modo a obter um resultado
preconcebido, mas isso é o mesmo que dizer que um
cozinheiro pode preparar a receita para obter um prato
desejado. Não há nada de mágico ou misterioso nisso.

Ao permitir comunicação acima da velocidade da luz,


a Mecânica Quântica torna plausíveis fenômenos como
premonição e telepatia.

A questão do emaranhamento quântico, um fenômeno


que pode ser descrito como uma ação instantânea de
uma partícula sobre outra, mesmo quando a separação
entre elas é enorme, vem sendo muito explorada por
propositores de certos fenômenos ditos paranormais,
mas essa exploração ignora um dado fundamental: em
nenhum dos experimentos que confirmaram a realidade
do emaranhamento houve a transmissão de informação
inteligível acima da velocidade da luz.
Basicamente, se duas partículas estão emaranhadas,
então é verdade que uma mudança numa delas parece
afetar a outra no mesmo instante; mas, para saber que
a partícula receptora foi afetada, o cientista precisa
realizar uma observação, o que destrói o
emaranhamento. Assim, antes de checar o estado da
partícula receptora, o pesquisador deve ter certeza de
que a partícula emissora foi manipulada, sob pena de
“melar” o experimento. Como ele faz para checar isso?
Perguntando ao cientista responsável pela emissão. E
essa troca de pergunta e resposta tem de acontecer por
canais normais, dentro dos limites usuais do mundo
físico, incluindo o imposto pela velocidade da luz.

A Mecânica Quântica requer que mudemos de modo


radical nossa forma de encarar a medicina/a política/a
administração de empresas/a economia/a ética/a
literatura/o meio ambiente/o sexo/etc.
Muitas pessoas acreditam que a visão instrumental
que nossa civilização tem do mundo e dos processos
que acontecem nele precisa mudar, se quisermos
garantir a sobrevivência de nossa espécie e a
preservação de valores que nos são caros. Essas
pessoas talvez estejam certas, e é possível enumerar
vários motivos plausíveis para revermos o modo como
nos relacionamos com outras pessoas e com o mundo
natural... Mas a Mecânica Quântica não é um desses
motivos.
Algo que é preciso ter em mente, quando se fala sobre
uma teoria científica, é o fato de que toda teoria, para
ser bem-sucedida – e o quantum é a teoria mais bem-
sucedida de todos os tempos –, precisa ser compatível
com a experiência humana. Toda a experiência humana.
Uma teoria que funcionasse perfeitamente bem quando
aplicada a elétrons e fótons, mas que, por exemplo,
previsse que o ferro é um gás à temperatura ambiente,
seria um fracasso retumbante.
Isso significa que o mundo clássico-newtoniano em
que nos movemos entre a cama e o trabalho, e de volta,
não se contrapõe ao mundo quântico – mas é, de fato,
uma consequência dele. Quando alguém diz que não
existe matéria sólida, mas apenas configurações de
elétrons no espaço vazio, essa pessoa está perdendo um
insight fundamental: o de que certas configurações de
elétrons no espaço vazio são exatamente o que nós,
assim como nossos ancestrais faziam antes de nós,
chamamos de “matéria sólida”. O chão não se
desmancha porque, de repente, nos damos conta das
enormes distâncias que existem entre os núcleos dos
átomos.
Se hoje sabemos que é um fenômeno quântico,
chamado Princípio da Exclusão de Pauli, que nos
impede de passar através das paredes, sabemos algo
que nossos antepassados não sabiam. Mas as paredes
não ficaram menos impenetráveis por causa disso.
É claro que a descoberta da realidade quântica trouxe
transformações para o mundo – mas essas
transformações têm mais a ver com as tecnologias
desenvolvidas com base no quantum do que qualquer
outra coisa.

Futuro quântico

Questões filosóficas importantes certamente foram


levantadas e continuam em debate, mas suas
implicações dizem muito mais respeito à forma como os
cientistas encaram seu trabalho e os resultados de seus
experimentos do que com qualquer transformação
radical do mundo em que vivemos.
As mudanças radicais derivadas da Mecânica
Quântica vieram, e continuam vindo, não da cabeça dos
filósofos e dos intérpretes místicos da teoria, mas, sim,
dos engenheiros e cientistas que a puseram em prática.
Por exemplo, uma revolução tecnológica que parece
estar cada vez mais próxima é a da Computação
Quântica. Pesquisadores que trabalham nessa área
buscam construir um computador que funcione
manipulando bits quânticos, os chamados “qubits”.
Computadores clássicos, como o que usamos para
escrever este livro, operam por meio de bits, unidades
binárias de informação que podem assumir dois
estados, 0 ou 1. Tudo o que um computador faz se
resume, no fundo, a criar longas cadeias de zeros e uns,
e a transformar uns em zeros e zeros em uns. Essas
cadeias e transformações depois são interpretadas
como sons, imagens ou o resultado de operações
matemáticas.
Numa foto digital, digamos, uma determinada
configuração de zeros e uns pode representar a ordem
“pinte este ponto de azul”, transmitida ao monitor do
seu tablet ou laptop.
O inconveniente de operar com bits clássicos surge
quando computadores precisam testar várias soluções
para um mesmo problema antes de chegar à resposta
correta – por exemplo, para tentar encontrar o melhor
caminho entre dois pontos em um mapa. Nesse caso,
várias cadeias de bits, cada uma correspondendo a uma
solução possível. No caso dos qubits, porém, isso não é
necessário: uma só cadeia de qubits poderia codificar
várias soluções diferentes ao mesmo tempo. Como?
Mantendo os bits numa sobreposição de estados, como
as que discutimos nos Capítulos 3 e 5. Da mesma forma
que um só elétron pode passar por duas fendas ao
mesmo tempo, um qubit pode ser zero e um,
simultaneamente.
Sustentar a sobreposição durante o processamento
dos dados é uma operação delicada, mas operações
simples envolvendo pequenos números de qubits já
foram realizadas em laboratório. É assim, com trabalho
e pesquisa, e não por meio de cursos de autoajuda e do
poder do pensamento positivo, que a estranheza do
mundo quântico se converte em benefícios para a
humanidade.
74 Nota publicada no site australiano das pulseiras Power Balance, por
determinação dos órgãos de defesa do consumidor daquele país. A decisão
da Comissão Australiana de Defesa do Consumidor contra as pulseiras foi
tomada em dezembro de 2010, e está disponível online aqui:
http://transition.accc.gov.au/content/index.phtml/itemId/964065. Acessado
em 30/03/2013. Desde então, o distribuidor australiano das pulseiras
fechou seu negócio e o site saiu do ar, mas um print-screen da página com o
desmentido pode ser encontrado aqui:
http://gizmodo.com/5723577/powerbalance-admits-their-wristbands-are-a-
scam. Acessado em 30/03/2013.
75 Pode ser lido na íntegra em:
http://open.salon.com/blog/tom_cordle/2009/03/08/the_quantum_theory_of_l
ove. Acessado em dez./2011.

76 Obtida em: http://www.nbz.com.br/arquivos/empresaquantica.pdf.


Acessado em dez./2011.

77 Quantum Universe: Everything that Can Happen Does Happen. Penguin


Books, edição ebook de 2011, sem numeração de página.
UMA DISCRETA
CONCLUSÃO
No que tange a átomos, a linguagem só pode ser
usada como poesia.
Niels Bohr78

Por Daniel Bezerra

Lidar com as estranhas consequências da Mecânica


Quântica é uma tarefa complicada, para dizer o mínimo.
Analogias falham. A linguagem cotidiana é inadequada.
Sem uma compreensão ao menos razoável de conceitos
de Matemática – incluindo coisas assustadoras como
espaços de Hilbert, funções de Bessel, polinômios de
Legendre etc. –, o panorama quântico parece ainda
mais impenetrável que o normal.
Mesmo com todas essas dificuldades conceituais,
acredito que cumprimos bem o propósito deste livro,
que era mostrar a você que Mecânica Quântica pode
não ser uma coisa simples de entender, mas que seus
resultados estão à nossa volta. A Mecânica Quântica
pode ser estranha, realmente, mas o fato é que
funciona. Podemos não ser capazes de prever o
resultado exato de uma medição; podemos nem sequer
saber descrever fisicamente o que significa fazer uma
medição, mas somos capazes de prever qual o espectro
de resultados possíveis para cada fenômeno dado, e
mesmo essa informação aparentemente incompleta já
nos possibilita produzir uma vasta gama de aplicações
úteis para a vida cotidiana e macroscópica. Do estudo e
do esforço de gerações de físicos, matemáticos e
engenheiros nos últimos 112 anos, o mundo veio a
conhecer uma série de maravilhas que antes mal
podiam ser sonhadas.
No Capítulo 5 falamos brevemente dos exames de
ressonância magnética e como é possível usar efeitos
quânticos para obter imagens precisas dos tecidos
moles do corpo humano, auxiliando no diagnóstico dos
médicos. Outras técnicas de imagem, como a
tomografia computadorizada, também se utilizam de
efeitos quânticos. Microscópios de tunelamento
eletrônico e diodos túneis só são possíveis graças ao
efeito túnel – elétrons são capazes de “furar” barreiras
de potencial muito altas, e aparecer em regiões que,
pela teoria clássica, seriam proibidas a eles. Qualquer
ímã, aliás, só funciona porque o magnetismo é um
fenômeno essencialmente quântico. O raio laser, que
apareceu quase como uma curiosidade e hoje é usado,
literalmente, para centenas de finalidades diferentes, é
consequência direta da Mecânica Quântica. Eu poderia
seguir listando inúmeros exemplos, mas acho que você
já tem uma boa ideia.
Niels Bohr certa vez declarou que o papel da Física
não era o de dizer como a natureza é; e sim o que
podemos dizer sobre a natureza. Eu não iria tão longe
quanto o velho mestre, mas a tese central do livro
certamente se aproxima dessa interpretação: a Física
admite que não sabe interpretar em termos cotidianos o
“significado” da Mecânica Quântica, se é que ela tem
um. Até hoje há debates animados na comunidade
científica sobre como deveríamos enxergar o mundo
microscópico. Mesmo cientistas de renome como Albert
Einstein e John von Neumann cometeram erros ao
tentar pressupor que o mundo quântico deveria se
comportar dessa ou daquela maneira.
E em meio a tudo isso, temos os “picaretas quânticos”:
gente que acha que, por “incompreensível” e
“insondável”, cabe qualquer interpretação mística na
Mecânica Quântica. Tentar comparar o enorme sucesso
empírico da Teoria Quântica com as analogias místicas
que andam em voga é, para ser gentil, um grande
equívoco. Do relativamente inofensivo Gary Zukav ao
misticismo confuso de Amit Goswami, passando por
vendedores de platitudes açucaradas como Deepak
Chopra, a verdade é que o Universo não liga a mínima
para o que achamos que ele deveria ser. Para o bem ou
para o mal, o que acontece em nossas vidas depende em
grande parte do acaso, mas também em grande parte
de nosso esforço pessoal.
Este livro nasceu de uma conversa informal que tive
com Carlos Orsi pelo Twitter em 2010. Na época, ele
era o blogueiro de ciências do jornal O Estado de São
Paulo, e eu costumava comentar várias de suas
matérias. Certa vez mostrei a ele o link de uma notícia
informando que o japonês Masaru Emoto – notório por
sua “teoria” sobre os estados emocionais da água –
vinha ao Brasil para dar uma série de palestras.
Lamentamos, zombamos, rimos; e eu lhe disse que
deveríamos escrever um livro sobre tais picaretagens.
Para minha surpresa, ele respondeu com um
“deveríamos mesmo!” e assim o projeto surgiu. Da
concepção inicial até aqui foram longos meses de
incerteza, seguidos de expectativa e do nosso árduo
trabalho. O resultado está posto. Espero que tenha sido
tão proveitoso para você quanto foi para nós. Se
tivermos feito nosso trabalho direito, você terá
percebido que Mecânica Quântica e misticismo quântico
são ainda mais incompatíveis do que momento linear e
posição.
E que, no fim das contas, ainda vale aquela máxima:
ajuda-te, que o Céu te ajudará.
Por Carlos Orsi

A Mecânica Quântica, muito provavelmente, está no


seu bolso. E não se trata de figura de linguagem: são as
equações criadas pelos físicos na tentativa de
domesticar – “domar” talvez seja uma palavra melhor –
fenômenos tão contraintuitivos quanto o Princípio da
Incerteza e a dualidade onda-partícula que permitiram
que equipamentos como o celular, capaz de armazenar
gigabytes de músicas e e-mails, fossem projetados e
construídos.
É da interação entre o spin dos elétrons e a orientação
de campos magnéticos – do que vimos um pouco em
nossa discussão do Teorema de Bell, no Capítulo 5 – que
emerge a chamada “magnetorresistência gigante”,
fenômeno que permitiu a criação das minúsculas
memórias eletrônicas que carregamos por toda parte
com nossas playlists particulares. Cientistas brasileiros,
aliás, tiveram uma participação importante na
descoberta desse fenômeno, muito embora o Prêmio
Nobel correspondente não tenha vindo para o país.
E muito antes dos smartphones, tinha sido o efeito
fotoelétrico desvendado por Einstein, nos primórdios da
revolução quântica, que permitira o surgimento da
televisão.
O fato de sermos capazes de usar tão bem a Mecânica
Quântica sem, de fato, entendê-la não deveria
surpreender ninguém: a humanidade usou o fogo com
grande eficiência durante milênios, antes que alguém
tivesse uma ideia clara do que uma combustão
realmente é. E, num provável indício de que a natureza
humana é um osso duro de roer, durante boa parte
desses milênios as pessoas não só acreditaram em, mas
também buscaram manter relações amistosas com
deuses do fogo, espíritos do fogo, demônios do fogo.
Hoje, de modo análogo, temos espíritos, deuses e
demônios quânticos, ainda que a maioria das pessoas se
imagine sofisticada demais para usar termos tão crus.
Mas a reverência, os sacrifícios e as orações ainda estão
por aí, mesmo que em nova roupagem.
No fundo, o misticismo quântico denota uma
arrogância que é bem típica do mundo contemporâneo.
Ou das últimas cinco décadas, pelo menos.
Como já notaram alguns historiadores da Filosofia, na
Grécia Antiga, o argumento dos céticos – uma escola
filosófica que afirmava que é impossível obter qualquer
tipo de conhecimento seguro – era usado como
advertência para que as pessoas não se fiassem demais
em seus conceitos e preconcepções.
Hoje em dia, ao menos desde o início da chamada
onda New Age, o mesmo argumento é usado como
desculpa para se agarrar firmemente a qualquer tipo de
conceito ou preconcepção: é impossível saber se estou
certo vira é impossível saber que estou errado, uma
espécie de salvo-conduto intelectual para que se abrace
qualquer ideia, e uma interdição contra qualquer tipo
de crítica racional.
Da mesma forma, o estado atual da Mecânica
Quântica, ao sugerir que a realidade pode sofrer de
uma indeterminação fundamental, não parece inspirar
sentimentos de espanto ou humildade, mas o oposto: a
tentação de se pôr o ego humano no papel de Grande
Determinador. Para escritores de autoajuda, é um meio
fácil de adular o leitor e, ao mesmo tempo, de culpá-lo
quando os clichês de sempre não funcionam.
A consciência humana é o centro de nossas vidas e
preocupações cotidianas, mas não há motivo algum
para pô-la, também, no centro do cosmo. Fazer isso é
negar o que talvez seja a principal contribuição da
ciência para a compreensão filosófica do lugar do
homem no Universo: um animal feito de poeira de
estrelas, irmão das árvores, dos sapos e das bactérias,
habitando a periferia de uma galáxia igual a bilhões de
outras, tentando, como uma criança que cata conchas
na praia e pondera o mar, entender a imensidão.
78 Giles, S. (ed). “Theorizing Modernism: Essays in Critical Theory”. Nova
York: Routledge, 1993, p. 28. (Tradução nossa)
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
“I Simpósio entre Psiquê e Matéria – Novas
Conexões”. Abertura, pela Profa. Dra. Denise Gimenez
Ramos, Núcleo de Estudos Junguianos da PUC-SP, 2003.
Disponível em:
http://www.pucsp.br/jung/portugues/simposios_eventos/
I_simposios.html. Acessado em 30/03/2013.
Bohr, N. “Can Quantum-Mechanical Description of
Physical Reality be Considered Complete?”. Physical
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