Encontre-Me Na Neve (#2 Da Seri - Luana Oliveira
Encontre-Me Na Neve (#2 Da Seri - Luana Oliveira
Encontre-Me Na Neve (#2 Da Seri - Luana Oliveira
Esta obra é uma ficção. Personagens, lugares e acontecimentos são produtos da imaginação do
autor e não possui relação com a realidade. Quaisquer semelhanças com pessoas e acontecimentos
reais é mera coincidência.
NOTAS INICIAIS:
Antes de você iniciar essa leitura, caro leitor, preciso te dar alguns avisos importantes.
Primeiramente, essa história é o segundo livro de uma série denominada The Hurricane Freedom,
onde cada livro contará a história de um integrante do MotoClub. O primeiro livro da série se chama
Encontre-me No Parque e você poderá encontrá-lo aqui na Amazon e no Kindle Unlimited também.
Mas, caso você não tenha lido, não precisa se desesperar, pois são livros independentes e podem ser
lidos fora da ordem. Mas, eventualmente, irá se deparar com possíveis spoilers.
Esse livro é +16 e poderá conter gatilhos referentes à bullying na infância, violência e perdas
familiares. Nada será explícito, muito menos romantizado. Caso seja sensível a esses assuntos,
mesmo que tudo seja abordado da maneira mais leve que possa ser possível, recomendo que preserve
a sua saúde mental em primeiro lugar.
Dito tudo, espero que tenham uma ótima leitura e se divirtam muito com o mundinho anos 90 e
jaqueta de couro.
Redes Sociais:
1. Instagram: @autoraluanaoliveira
2. Twitter: @autoraluanaoliv
3. Wattpad: @autoraluanaoliveira
Eu não sou bom com datas.
Na verdade, sou a porra de um filho da mãe esquecido para um
caralho.
Por mais que eu faça uma força extracorpórea para lembrar a data do
aniversário dos meus melhores amigos, sempre acabo esquecendo. Todos
eles sabem disso, já estão completamente acostumados de eu simplesmente
não falar um parabéns se quer no dia deles. Como se já não bastasse isso,
quase sempre me perco em que dia do mês nós estamos, o que acaba
resultando no esquecimento do dia dos pagamentos das contas de casa ou
algo parecido com essas merdas. É estúpido, eu sei.
É completamente ferrado.
Mas o quão ferrado eu estou agora se disser que lembro perfeitamente
da data que os meus lábios tomaram os dela pela primeira vez? O quão
ferrado eu estou agora se disser que lembro perfeitamente que no dia 19 de
setembro de 1993 a minha boca alcançou o céu ao se chocar com o
vermelho vibrante adornando os lábios voluptuosos dela?
Céus, isso faz meses!
Eu, com toda certeza do mundo, deveria ter esquecido.
Mas a verdade é que não aconteceu. Eu lembro da data e de todas as
pequenas coisas que compuseram aquela noite. Aquela maldita festa.
Ela estava completamente deslumbrante em um vestido justo e
vermelho que, diga-se de passagem, sempre fora a sua marca registrada. O
vermelho combina mais com ela do que qualquer outra cor, talvez por ser
um tom quente, que ressalta a cor dos seus olhos castanhos e ferinos,
visivelmente parecidos com o de um gato. Ou talvez por
contrastar fodidamente bem com a cor de fogo dos seus fios,
transformando-a numa linda obra de arte que traz associações com emoções
intensas e provocativas. Seu sorriso também estava tão radiante quanto, mas
desapareceu feito fumaça assim que a alcancei no lado de fora da festa, em
um jardim bem cuidado e repleto de flores. Nossos olhares faiscaram
naquele momento, e se eu fizer um pequeno esforço, posso sentir agora
mesmo a forma como meu corpo reagiu ao ser contemplado pelo seu olhar
que, de fato, é matador.
A verdade é que Pasha Stratford por completo é matadora.
Ela não brinca em serviço. Seu nariz é empinado e arrebitado, sua
postura é impecável e seus passos são confiantes e certeiros. Ela tem ciência
do poder que exala e do modo como todos param para orbitar ao seu redor,
como se ela fosse o próprio sol andando em terras estadunidenses. E eu
sempre soube disso, eu sempre soube do poder magnético da ruiva. Sempre
soube que mexer com ela seria perigoso, afinal, quem brinca com fogo um
dia se queima. Mas, apesar disso, quis ver as chamas bruxuleantes de perto.
Naquela noite de setembro eu quis descobrir com os meus próprios olhos o
que aconteceria quando o fogo se juntasse à gasolina num embate épico.
E óbvio que o resultado foi um incêndio generalizado.
Pasha e eu brigamos, assim como todas às vezes em que nos
encontramos. Diferente de todas as outras, essa ela estava furiosa mesmo,
completamente furiosa. Seu rosto fervia em raiva e sua boca não parava de
jorrar coisas absurdas sobre mim. Em uma atitude impensada e desesperada
da minha parte, já que eu estava de saco cheio de ouvi-la
gritar, colidi minha boca na sua, pronto para fazê-la se calar. No começo
deu certo, Pasha ficara de forma estática e sem esboçar reação alguma, e
quando eu pensei que fosse se separar ou dar um tapa no meu rosto, a única
reação que recebi por parte dela foram os lábios cheios se entreabrindo para
dar passagem a minha língua desesperada e completamente faminta.
— Perdeu a porra da noção? — esbravejou, assim que nos separamos
para recuperarmos o fôlego. — O que te levou a pensar que pode fazer isso?
O que te levou a pensar que pode simplesmente me beijar?
Lembro que abri a boca para retrucar, mesmo que não soubesse muito
bem o que iria ou deveria sair dela. Lembro que recuei um passo para trás
ao me perguntar que merda tinha feito ao beijar a garota que me desprezava
mais que tudo. E, definitivamente, lembro muito bem que no segundo após
a sua frase, apertou o passo para ficar novamente em minha frente e
entrelaçou seus pulsos finos em meu pescoço, beijando-me como se sua
vida dependesse daquele momento para prosseguir.
Naquela noite, Pasha Stratford, que veio diretamente do Alasca só
para bagunçar a minha vida, derrubou os muros erguidos ao seu redor e me
deixou finalmente alcançá-la. Me deixou finalmente degustar do que é
alcançar o céu.
E isso é tão irônico de se dizer.
Pois ao mesmo tempo que ela me fez estar lá em cima, desfrutando da
sensação libertadora junto a ela, também me fez decair diretamente no
inferno.
E isso só por nunca mais, a partir daquela noite, conseguir encontrar
outros olhos que carreguem o diabo dentro deles como os dela.
O Alasca sempre foi o melhor lugar do mundo para mim. Eu amava
o frio, amava observar os flocos de neve caindo sobre a pontinha do meu
nariz, amava sair para fazer anjinhos na neve, amava patinar nos lagos
congelados perto de casa e, sobretudo, amava ter uma xícara fumegante de
chocolate quente em mãos enquanto me enfiava nas cobertas junto da
minha irmã mais nova para assistirmos a algum desenho que fosse fazê-la
feliz ou até mesmo para somente escutar sua risada contagiante e melodiosa
nos momentos em que decidia apertar suas bochechas gorduchas e
sardentas quando desviava seu foco da televisão.
Até que, em um determinado momento, o Alasca se transformou em
um purgatório para mim no exato momento em que uma força superior
decidiu, de uma forma totalmente injusta, que só ele poderia ter o prazer de
escutar aquela risada novamente. Afinal, Penelope Stratford, minha
irmãzinha, descobriu a Leucemia aos seis anos e falecera aos sete,
deixando-me completamente quebrada, destroçada, sozinha e sem
perspectiva nenhuma de futuro. Eu me vi, de uma forma totalmente crua,
vivendo no fundo daquelas águas gélidas de um lago congelado, onde toda
vez que eu olhava para cima, não conseguia ver uma saída, já que uma
camada expeça de blocos e mais blocos de gelo cobriam a superfície, assim
como cobriam a minha vida, impedindo-me de sair daquela situação
taciturna que o destino fez questão de me enfiar.
E assim que Penelope se fora, mesmo eu sabendo que seria melhor
para lhe poupar tanto sofrimento neste mundo terreno, ainda assim fui
egoísta. Eu a queria perto de mim. Eu queria escutar sua risada, seus
conselhos sábios demais para uma criança pequena, as histórias fantasiosas
que circundavam sua mente brilhante e, claro, queria ela perto de mim para
que pudéssemos conversar e debater sobre borboletas, seu assunto favorito
no mundo todo. Mas como nada disso era possível mais, a única coisa que
consegui fazer para suprir a sua falta foi me tornar uma pessoa
completamente diferente, uma pessoa vazia e sem coração. Eu me tornei
uma completa vadia má e dei um giro de trezentos e sessenta graus na
minha vida, frequentando festas de uma classe social diferente da minha –
uma coisa que nunca poderia ser permitido para uma pessoa com um
sobrenome de peso como o meu —, me envolvendo com caras da pesada e
todas as coisas que uma rebelde sem causa faria. Por causa disso, meus
pais, que são completamente compenetrados com regras e etiquetas sociais,
além de que também estavam tentando processar o luto da maneira deles,
acharam, assim como toda a minha família, que eu estava tentando chamar
atenção de alguma forma e resolveram intervir, me mandando para morar
com o meu tio David Wilson e a sua esposa chamada Rosalinda, em uma
cidade chamada Hellaware, que fica situada no estado da Carolina do Sul.
Como David e Rosalinda são donos do Fast Rocket, uma lanchonete que
fica dentro de um parque de diversões super famoso, meus pais não
pensaram duas vezes em pedir para que eu trabalhasse como garçonete,
alegando que isso faria com que eu conseguisse pôr mais juízo dentro da
minha cabeça.
Faz um ano que estou em Hellaware e, definitivamente, não sei se o
meu trabalho ou qualquer coisa nessa cidade foi capaz de colocar juízo em
mim, mas o que sei é que tive uma evolução considerável aqui,
principalmente por ter me aberto a amizades e pessoas incríveis que, com
toda certeza, foram essenciais para que eu pudesse conseguir cicatrizar pelo
menos um pouco da ferida que há em mim, dando-me amor como ninguém
nunca havia feito antes. Exceto Penelope, claro. Pois apesar de ser rica e
influente na cidade em que morava, nunca considerei que as pessoas que eu
andava fossem minhas amigas, achava que elas só queriam o cargo e o
poder de estar com uma garota como eu. E meus pais? Bom, meus pais
nunca olharam para mim como filha, eles sempre me viram como uma
sucessora, uma garota que, em pouco tempo, irá herdar todo o império
construído por eles. Quando minha irmã ficou doente, todo o pouco afeto e
cuidado que pareciam demonstrar por mim, simplesmente sumiu. Mila e
Joseph passavam o tempo corrido deles cuidando de Penelope e eu, em
hipótese alguma, jamais ousei cogitar que aquilo não deveria acontecer. Se
alguma de nós duas merecia receber amor, esse alguém definitivamente
deveria ser ela, não eu.
Solto uma longa e densa lufada de ar e mexo a cabeça de um lado
para o outro, tentando não começar a chorar por me recordar de Penelope e
do meu passado conturbado. Inflo o ar nas bochechas e flexiono os joelhos,
direcionando meus passos até o meu guarda-roupa, a fim de escolher as
roupas para a festa de hoje, que acontecerá no rancho dos
The Hurricane Freedom, o MotoClub mais famoso da cidade e que, de
alguma forma aleatória, acabei meio que fazendo amizade.
Ok, não foi de uma forma tão aleatória assim, afinal, sou uma das
melhores amigas de Barbie St. Claire, a namorada do líder do bando e,
querendo ou não, estou sempre cercada pelo mesmo círculo de amizade.
Escolho um curto vestido de alcinhas, que tem uma estampa de
xadrez em tons de vermelho e preto, e também um blazer de um vermelho
vivo para repousar sobre os meus ombros, além de escolher um par de salto
alto brilhante e acessórios tão brilhantes quanto. Desfaço o nó do meu
roupão e ele cai sobre meus calcanhares, deixando-me apenas de calcinha.
No segundo seguinte, já estou me enfiando nas peças escolhidas e indo
saltitante sentar na cadeira da minha penteadeira, pronta para fazer uma
maquiagem esplêndida que ressalte e delineie a minha boca carnuda e que
também deixe meus olhos castanhos ainda mais bonitos. Quando isso
acontece, pego um guardanapo em uma das gavetas e tiro o excesso do
batom cor de vinho, batendo palminhas assim que vejo o resultado.
Amo o fato do ruivo do meu cabelo, que agora está ondulado nas
pontas por conta dos bobs de mais cedo, combinar tão bem com todo o
vermelho que me cobre.
Quando estou prestes a me levantar, escuto leves batidinhas na porta
trancada do meu quarto. Em um pulo rápido, já estou abrindo-a e dando de
cara com Barbie St. Claire e Georgina Sinclair, completamente arrumadas e
com sorrisos adornando seus rostos.
— Meu Deus! — é Barbie quem diz, ou melhor, quase grita. Sua boca
está entreaberta e os olhos azuis estão analisando-me dos pés à cabeça.
Aproveito da oportunidade para fazer isso com ela também, observando
minuciosamente o modo como está vestida hoje. Há uma jaqueta jeans
clarinha abraçando seu corpo pequeno, o colarinho da mesma é daqueles
felpudos em um tom de branco gelo. A blusa por dentro dela também é
branca e tem a cara do Elvis Presley estampada, além de que tem uma saia
de pregas de um tom de rosa choque quase não cobrindo suas pernas
torneadas e sapatos de plástico da mesma cor enfeitando seus pés, meias
brancas com babadinhos deixando-a ainda mais fofa do que já costuma ser.
Sorrio e olho para seu rosto, mas nada de maquiagem forte ou exagerada
está visível por ali. Eu chutaria que só passou blush nas bochechas, máscara
de cílios já nos cílios fartos e um gloss brilhoso nos lábios. Seu cabelo, que
é de um loiro dourado e bem volumoso, liso e ondulado nas pontas, está
cascateando sobre seus ombros. Depois que parece realmente terminar de
me analisar assim como eu fiz, eleva os lábios em um sorriso genuíno e
fala: — Você está maravilhosa, Pasha Denise Stratford!
Rolo os olhos quando escuto meu nome completo sair deslizando pela
sua boca. Sei que está provocando, por isso retruco:
— Até que você também não está nada mal, Barbara. — Antigamente
ela não gostava muito que a chamassem pelo nome completo por motivos
pessoais, então é por isso que força uma risada e me dá língua no minuto
seguinte.
Georgina, atrás de Barbie, pigarreia, chamando nossa atenção.
— O quê? — pergunto, arqueando uma sobrancelha para ela.
— Detesto quando as duas fingem que eu não existo — responde, e a
sua expressão emburrada é a melhor, pois até o biquinho de criança e os
braços cruzados estão presentes na encenação. — Eu sempre tenho que ser
notada primeiro, está bem? Meu ego fica muito ofendido e eu não sei lidar
com rejeição.
Tanto eu quanto Barbie rimos na mesma hora com o seu drama, águas
cristalinas formando-se em nossos olhos. Pisco algumas vezes na tentativa
de pará-las, uma última risada escapando dos meus lábios.
— Isso tudo por um elogio, G? — questiono, achando graça. —
Achei que sua autoestima fosse maior que isso, garota. Mas, sinceramente,
eu entendo. Deve ser de outro mundo receber um elogio vindo de mim, e se
é isso que você quer, então é isso que você terá. — Encosto-me no batente
da porta, e ela revira os orbes verdes-escuros. — Você também está linda.
Não tanto quanto eu e Barbie, mas ainda assim linda. — Georgina entra na
brincadeira e junta as mãos ao peito, fingindo estar emocionada com o meu
elogio. Apesar de estar apenas provocando, já que a minha amizade com ela
é basicamente dessa forma, não menti. A garota realmente está linda com
seu vestido verde limão de flanela, que tem um decote generoso para os
seus seios fartos ficarem visíveis, a sua meia calça preta cobrindo suas
coxas grossas e os coturnos brancos finalizando seu estilo único. As
pálpebras de seus olhos estão pinceladas por uma sombra também verde e
os lábios cheios estão envoltos por camadas de batom nude. O cabelo ainda
mais loiro por conta das suas idas frequentes à praia emoldura seu rosto
redondo.
— Vamos embora, ruiva. — Georgina, assim que suspira
cansadamente, me puxa pelo braço. — Vamos embora antes que eu te
coloque no seu devido lugar.
Estou prestes a sair do quarto, mas antes volto para pegar minha bolsa
repousada sobre a cama. Assim que passo pela porta, Barbie se coloca de
um lado e Georgina do outro, ambas enroscam os braços junto ao meu na
mesma hora. Elas riem com algo, e eu, mesmo sem saber direito do que
estão falando, também rio.
Só que diferente delas, eu rio por lembrar do que passamos para
chegarmos até aqui.
Como as meninas trabalham também na lanchonete do meu tio,
acabou não sendo algo fácil, afinal, eu não facilitei para que se
aproximassem. Eu fui a típica patricinha chata e mimada, me tranquei no
meu próprio mundo e não quis que ninguém se aproximasse, muito menos
com o papo de que queriam me ajudar de alguma maneira na fase que foi a
minha mudança. Apesar de tudo pronto para dar errado, o destino fez com
que Barbie e Georgina fossem o meu maior acerto de um ano para cá.
E eu prometi a mim mesma que esse ano eu iria fazer com que ele
valesse por uma vida inteira.
O rancho, mesmo que seja afastado da cidade, está tomado por uma
multidão de gente que, obviamente, não perderia por nada a oportunidade
de pisar os pés por aqui para curtir uma boa festa junto das garotas e dos
garotos mais comentados pela população habitante daqui. Os motoqueiros
são, definitivamente, como uma cultura do local e todos possuem algum
tipo de opinião a respeito de cada um. Alguns idolatram, alguns julgam,
alguns abominam pela forma como se vestem e vivem, mas todos, com toda
certeza, mesmo que não admitam, os veneram como se fossem deuses
caminhando sobre a terra sagrada da Carolina do Sul. Ao mesmo tempo que
é patético, é compreensível. Todos os integrantes, sem exceção, possuem
aquela áurea magnética, hipnotizante e problemática apitando através de
suas motos, suas jaquetas de couro e suas infinitas tatuagens serpenteando
seus corpos fortes e ornamentados com músculos perfeitamente esculpidos.
Eu, definitivamente, não estou em posição de julgar.
Atravessando alguns corpos suados com o cotovelo, após sermos
largadas por Barbie, que foi dançar com Devin Leblanc, seu namorado, eu e
Georgina alcançamos o mini bar improvisado. A loira ao meu lado rola com
o pirulito ao lado das bochechas e fita todas as opções com os olhos
injetados de fascínio, pegando uma long neck logo após desbravar todo o
ambiente. Eu, por outro lado, pego uma taça de champagne e a bebida no
meio do cesto coberto de gelo, derramando o conteúdo alcoólico no vidro.
Quando estou prestes a devolver a garrafa, sinto um corpo parar atrás de
mim, a mão repleta de tatuagens entrelaçando meu pulso para que eu refreie
meus movimentos. O cheiro forte do perfume da pessoa invade tudo ao
nosso redor, e eu fecho os olhos com certa força, sentindo cada centímetro
da pele do meu corpo reagir.
Não precisou mais do que cinco segundos para que eu soubesse de
quem se tratava.
— Começando os trabalhos com champagne, diabinha? Eu jurava que
gostava de coisas mais fortes. — Sua boca está perigosamente próxima da
minha orelha quando decide proferir essa frase juntamente do apelido que
dera para mim em algum momento de nossas desavenças, assim como seu
corpo viril está próximo demais do meu. Apesar de querer muito sair da
posição que me encontro agora, não consigo. Busco minha amiga de
soslaio, mas também não encontro sua figura em lugar nenhum. — Medo
de ficar sozinha, Stratford? — Sua mão finalmente solta meu pulso e eu,
com muito esforço, consigo colocar a bebida no lugar dela. Quando penso
que não, sinto que se afasta. Solto todo o ar que nem sabia estar
acumulando dentro dos meus pulmões.
Giro sobre os calcanhares de modo devagar, fitando John Scott pela
primeira vez na noite. Seus lábios sobem sutilmente quando me
esquadrinha, os olhos azuis claros passeiam por minhas pernas expostas.
Apesar de ficar levemente desconcertada com o modo que me sinto nua
sobre seu olhar, dou um passo para frente. Nunca fui de recuar,
principalmente quando o assunto é garotos.
— Quer uma foto minha para guardar de recordação? — digo e cruzo
os braços assim que troco o peso dos pés. Uma risadinha escapa de sua
garganta no exato momento em que ele passa a mão pelos fios agora fartos
e pintados de um loiro platinado. Tento muito não fazer, mas quando
percebo, estou passando os olhos pelos seus braços expostos pela camiseta
regata de uma banda de rock que usa, analisando as tatuagens que parecem
brilhar sob a luz do luar. Além de seus braços, os rabiscos bem feitos
também cobrem seu peito e caminham num trajeto pelo seu pescoço,
deixando-o numa verdadeira bagunça problemática, infernal e um tanto
quanto sexy. A calça preta rasgada nos joelhos aperta suas pernas esguias e
as botas de combate ficam em evidência à medida que ele as bate no chão.
— Depende. — John tenta disfarçar seu sorriso malicioso mordendo o
lábio inferior rosado, as argolas prateadas em suas orelhas balançam de um
lado para o outro no momento em que sua cabeça faz o movimento. — Só
se eu estiver junto.
E lá está o John que todos conhecem: engraçado, sarcástico e
conquistador nato. Sua postura é confiante e tudo que sai por entre seus
lábios é calculado e muito bem pensado para te atingir de alguma forma.
Até mesmo o seu maldito sorriso e os seus olhos, que são sempre
expressivos e injetados de particularidade, são tipo mares tortuosos prontos
para deixar qualquer uma afogada por eles. Todas as garotas da cidade o
veneram como se o integrante do MotoClub fosse algum tipo de artista, ou
até mesmo algum deus mitológico não mencionado em livros de história.
Seu jeito de garoto mau problemático não deixa que ele passe uma noite se
quer sem uma garota enfeitando sua cama. Mesmo que você não
perceba, ou mesmo que lute muito para nadar contra, uma hora ou outra
acabará se afogando.
Ninguém consegue encarar por muito tempo aquela
imensidão oceânica transbordando em suas írises e não se sentir nem um
pouco instigada em desbravar tudo o que está escondido por debaixo
delas.
E foi exatamente por isso que o detestei logo de primeira. Foi
exatamente por isso que nutri uma antipatia por John Scott nos primeiros
minutos em que pus meus orbes em sua figura. Muitos podem acreditar que
tenha sido por causa da sua baderna assim que chegou no local em que
trabalho, por conta das suas investidas baratas com toda pessoa que seja
portadora de um par de peitos, por todos os comentários afiados e ácidos
que saem bem da ponta da sua língua ou pelo simples fato dele me irritar
demais e eu ser uma mesquinha qualquer pronta para aterrorizar homens
que passem pelo meu caminho. Apesar de todas essas questões se
enquadrarem muito bem, não foi a principal.
Meu crescente ódio por Scott se deve a um único fato; seus olhos.
Não por ele ter sido abençoado com um tom de azul
extremamente claro no centro e um tom de cinza prateado nas bordas, e
sim pelo fato deles serem límpidos ao ponto de eu conseguir enxergar meu
reflexo através deles. Eu conseguia, de algum modo que não sei
explicar, ver a minha farsa e, consequentemente, a dele também.
Ainda que ninguém ao nosso redor conseguisse perceber, eu sentia e
enxergava que havia uma máscara por ali. Eu consegui perceber logo de
cara. Ainda não sei definir de fato qual o problema que o ronda, mas sei que
existe. Foi exatamente por isso que escorreguei para uma realidade mais
fácil que não o suporta.
De mentira já bastava a minha vida.
A questão é que estou tentando mudar esse pensamento. Depois que
nos beijamos após uma de nossas brigas — sim, essa merda aconteceu —,
até cheguei a cogitar deixar nossas desavenças de lado, estava mesmo
pronta para isso. Até cheguei a cogitar que nós dois poderíamos nos divertir
juntos com algo totalmente casual, mas o problema é que ele parece querer
ainda mais se afastar de mim. Mesmo sempre nos mesmos lugares e sempre
com os mesmos amigos, John e eu não conversamos muito, e sempre que
acontece é o básico do básico.
Por saber que sua aproximação agora é completamento atípica,
resolvo provocar ao dizer:
— Isso foi um flerte? — Contorno meu lábio superior com
a língua, os olhos semicerrados em desafio. Posso jurar que acabo de ver
seu pomo de Adão subir e descer em sua garganta.
Apesar de tudo, sua postura não vacila. Muito menos o
sorriso arrogante enfeitando sua boca.
— Isso foi apenas um comentário — pontua, e logo depois começa a
andar até mim lentamente, os glóbulos nunca deixando os meus, como se
estivessem prontos para a caça, prontos para finalmente pegar a
presa. Tento ainda manter uma distância segura entre nós, mas quando
percebo, já estou chocando minha lombar contra o mini bar improvisado, o
champagne em minha taça quase pula para fora por conta disso. Suas
írises permanecem conectadas com as minhas no processo. Estamos tão
próximos agora que sinto sua respiração ondular em meu rosto. Entretanto,
mesmo que pareça querer fazer algo comigo, a única coisa que faz é
alcançar uma garrafa de cerveja atrás de mim. Ele sorri ainda mais assim
que se afasta, parece perceber como sua atitude havia me feito pensar
besteira. — Fico triste em saber que você acha que sou um canalha vinte
quatro horas por dia. Nem tudo que eu faço é com segundas intenções,
diabinha. A maioria das vezes eu estou apenas tentando ser legal com
você.
A ironia juntamente da falsidade goteja por toda a sua frase. John
sabe o quão ridículo soa, pois tenta disfarçar mais um dos seus sorrisos
idiotas ao beber o líquido espumante da garrafa diretamente do gargalo.
Seguro a vontade de revirar os olhos e levo minha bebida aos lábios,
ainda desacreditada com tamanha cara de pau.
— Claro — murmuro baixinho, finalmente rolando os
olhos. — Como eu nunca percebi isso antes?
— Boa pergunta. — John acha graça. O mais irritante disso é saber
que ele está se divertindo ao extremo. — Acho que o problema está em
você, querida.
— Em mim? Por que em mim?
— Porque você quer e deseja que eu seja um canalha. Mas só se for
direcionado a sua pessoa, claro.
Consigo revirar ainda mais os olhos com o seu argumento.
— É engraçado o modo como você ama ser um clichê ambulante. —
Fricciono os meus lábios para não rir dos seus projetados para baixo,
fingindo estar magoado com as minhas escolhas de palavras. — Agora me
diz, está com saudade de fazer a minha vida um inferno, não é? Achei que
estivesse se esforçando para não ficar a sós comigo depois de...
— Da onde tirou isso? — Scott me corta, sulcos formando-se em sua
testa.
Olho para os meus sapatos só para não dar risada novamente. Ele nem
ao menos me deixa mencionar o que aconteceu entre nós. Esse na minha
frente é mesmo o galinha que todos por Hellaware parecem venerar?
Bom, não me parecia.
— Estava tentando ser discreto na hora de fugir de mim? — ironizo.
Enquanto brinco com a borda da minha taça, ergo as minhas sobrancelhas,
divertida. — Bem, não funcionou.
É a sua vez de revirar os olhos, passando as pontas dos dedos entre os
fios platinados.
— Eu não sei por que ainda tento conversar com você — bufa, e eu
vejo que parece desgostoso com algo. Não tenho tempo de retrucar, pois
logo dispensa a mim com um abano de mão e gira nos calcanhares,
direcionando suas botas de combate para algum lugar que não seja ao meu
lado.
Libero toda a risada que havia acumulado.
— E depois diz que não está fugindo — digo para mim mesma,
balançando a cabeça de um lado para o outro, ainda sorrindo.
Também aproveito para sair de onde estou. Entorno o líquido
alcóolico em meus lábios e repouso a taça em cima do tampo da mesa,
arrastando os passos até encontrar minhas amigas. Quando vejo os corpos
de Barbie e Georgina na pista de dança feita no meio da relva verde, apenas
empurro alguns corpos com a ajuda do cotovelo e rapidamente me enfio
entre elas, sendo recepcionada por sorrisos e pela música Don´t Stop
me Now do Queen retumbando a todo vapor nas caixas de som.
— Onde você estava? — Barbie grita para mim em meio à música,
não deixando de balançar o corpo esguio em nenhum momento.
Busco Georgina com o olhar, mas a loira parece alheia com a nossa
conversa. Acho completamente estranho o fato dela ter segurado sua língua
nervosa, já que não perde a oportunidade de espalhar uma fofoca e me
dedurar como sempre costuma fazer.
— Escutando as baboseiras de John Scott — respondo no mesmo tom
e dou de ombros. Não havia motivos para mentir.
St. Claire arregala os olhos, parecendo surpresa por finalmente saber
que estávamos conversando sozinhos.
— Nada demais — emendo, antes que minha amiga possa começar a
fazer teorias da conspiração.
Georgina Sinclair, por outro lado, ao contrário do que eu achava, está
bem ligada na nossa conversa, pois logo se aproxima ainda mais e diz:
— Vocês vão ficar nessa que se odeiam até quando? Ninguém
aguenta mais esse teatro fracassado. A gente quer ver beijo na boca e
pegação, Pashazinha.
— Então reclame com seu amigo. — Afasto meu cabelo para trás e
decido fazer um coque, tentando de alguma forma me livrar do calor. A
loira, que realmente tem uma amizade consolidada com o garoto problema,
me olha atentamente, como se quisesse dizer “sério mesmo?” — Ele
provavelmente não me suporta. E sabe o que é melhor disso tudo? —
pergunto, e todas me encaram agora, balançando a cabeça em negação. —
O melhor disso tudo é que é recíproco.
Tanto Barbie quanto Georgina dão risadas, não convictas das minhas
palavras. Apenas ergo os ombros para cima e balanço-os, desinteressada no
assunto. E quando a voz de Fredy Mercury é substituída pela da Madonna, é
tudo que eu preciso para deixar o assunto John Scott de lado e realmente
começar a me divertir.
Assim que chego no rancho, após Pasha ter me deixado no parque para
que eu finalmente pudesse voltar para minha casa com a minha moto, me
direciono até o meu trailer desbotado e subo as escadinhas que me dão acesso
à porta. Quando adentro o ambiente, encontro Daisy Flinch, uma das garotas
trazidas por Hunter da cidade vizinha, lá no ano passado, deitada
sensualmente em minha cama. Seus fios vermelhos com um tom de laranja
forte nas pontas estão espalhados sobre o meu travesseiro e percebo que está
usando apenas uma peça de lingerie preta e de renda, que abraça seu corpo
fora dos padrões e extremamente delicioso, agora também bronzeado.
Adoro o fato de ela se sentir totalmente segura com a sua aparência,
porque ela é maravilhosa e autentica demais para se prender a padrões
estéticos de merda.
Quando Daisy chegou, me interessei por ela logo de cara. Ela é bonita,
tem piercings espalhados pelo rosto, algumas tatuagens e uma sensualidade
mesclado com uma coisa doce que encanta qualquer cara, então comigo não
foi diferente. Por isso que não demorou muito para que eu a tivesse no meu
alvo. Não lembro quando ficamos pela primeira vez, mas sempre que dá
vontade ela aparece de surpresa no meu trailer dessa forma — ou vice-versa.
— Achei que não fosse chegar nunca, neném. — A voz de Daisy soa
doce e manhosa aos meus ouvidos. Até sorriria, só que o apelido que ela dera
para mim, já que sou mais novo que ela alguns anos, me faz revirar os olhos.
Daisy tem vinte e quatro anos, eu tenho vinte e dois. Não é uma
diferença gritante, mas a garota faz parecer que é.
— Boa noite para você também — resmungo, me aproximando. Sento-
me na beirada da cama e retiro a jaqueta de couro, as botas de combate e a
camiseta. — O que você veio desabafar hoje, D?
Não sei que tipo de fetiche estranho é esse, mas todas as vezes que ela
aparece aqui, interessada em meu corpo, sempre antes de fazermos algo,
Flinch me faz deitar ao seu lado e começa a desabafar sobre coisas que a
estão incomodando. Não me importo, entretanto. Gosto da sua companhia e
da sua amizade, então não vejo problema em conversar e dar conselhos, assim
como não vejo problemas em pedir para ela quando preciso. Somos bons em
simplesmente sermos nós. Sem cobranças, sem sentimentos envolvidos e
nada do tipo.
— Hoje? Embora tenha sido recusada em mais um emprego, não vou
reclamar dessa vez. Estou aqui para escutar sobre você e Pasha. — Quando a
olho sobre os ombros, Daisy está sorrindo e batendo palminhas. Como uma
boa romântica, adorou escutar sobre minha história com a diabinha e não
pensou duas vezes em me aconselhar antes de eu sair de casa.
Balanço a cabeça e me jogo na cama, ao seu lado.
— Por que você simplesmente não tenta fazer o que ama? — lhe
pergunto, referindo-me ao teatro.
Daisy ama Hollywood e tem o sonho de ser atriz. Há vários cursos e
teatros pela cidade, mas em nenhum momento ela tenta fazer nada disso.
Apenas alimenta o sonho dentro de si e não corre atrás.
— Não tente mudar de assunto — me repreende, bufando logo em
seguida.
— Não tente mudar de assunto você — retruco, sem olhar para seu
rosto. Observo o teto do trailer e entrelaço as mãos sobre a barriga.
— A noite de confissão hoje é sua, não minha — Daisy fala,
impaciente, e eu sei que simplesmente não posso fugir. Então respiro fundo e
me viro em sua direção.
Pelo resto da noite, conto sobre todos os detalhes da noite entre mim e
Pasha Stratford. Daisy adora ouvir cada detalhe, então presta bastante atenção
e dá vários palpites algumas vezes, quando arruma uma brecha. Ela encosta o
rosto no meu peito desnudo e fica fazendo desenhos invisíveis por ali,
enquanto despejo tudo.
Não sei que horas acontece, mas ouço a respiração da minha amiga e
vejo que está dormindo. Pela primeira vez, nós não fazemos nada. Daisy
dorme escutando sobre Pasha e eu me sinto extremamente leve por isso.
Pego no sono logo depois.
Hoje é sábado e também meu dia de folga no Fast Rocket, então
passo o dia todo em cima da minha cama, com o livro da Agatha Christie
em mãos, finalmente com tempo para terminá-lo. As últimas páginas me
deixam aflitas, por isso estou com uma mão na boca, quase roendo minhas
unhas compridas, e a outra livre passando as páginas como se a minha vida
dependesse disso. Então é óbvio que não percebo Rosalinda encostada no
batente da porta aberta do meu quarto. Só consigo me dar conta da sua
figura quando finalmente termino o livro e me levanto para guardá-lo junto
com uma parcela pequena que trouxe do Alasca para cá.
— Ah, oi, tia — a cumprimento, pedindo para que entre. — Esteve aí
parada me observando há quanto tempo? E por que não disse nada?
Rosalinda faz um gesto de passar uma mão em frente ao rosto, como
quem diz que não foi nada demais. Suas bochechas ficam ainda mais
rosadas quando ela sorri, sentando-se na beirada da minha cama.
— Não quis atrapalhar a sua leitura, querida. Só vim me certificar se a
senhorita está bem e se deseja ligar para os seus pais.
Sento-me ao seu lado e inflo o ar nas bochechas, exausta fisicamente
e mentalmente. Desde o dia que me mudei por tempo indeterminado — sem
brincadeira — Rosalinda e David se revezam no quesito me procurar no
meu quarto e perguntar se estou bem ou precisando de algo. Amo eles e
amo a preocupação que demonstram, mas amaria ainda mais se eles
simplesmente esquecessem de perguntar se desejo ligar para os meus pais,
pois a resposta sempre será a mesma.
— Estou cansada do trabalho, mas nada que eu nunca tive que lidar
antes. Então estou bem, obrigada por perguntar. — Retribuo o seu sorriso e
encosto a cabeça em seu ombro no exato momento em que inspiro e
suspiro. — Eu adoraria ligar para os meus pais, tia. De verdade. Só que não
posso fazer isso. Não posso ser eu a ligar quando foram eles que decidiram
se livrar de mim.
Como se não bastasse me enviar para uma cidade completamente
diferente, meus pais nem ao menos ligam para saber como eu estou. Eles
nunca ligaram, na verdade. Eles mandam dinheiro para os meus tios e
acham que isso serve de alguma coisa.
Acho que eles nem ao menos se importam se estou viva ou deixo de
estar.
— Entendo, querida. — Rosalinda afaga meus cabelos e deposita um
beijo na região. — Mas não ache nem por um segundo que você está só,
ouviu? Não ache nem por um segundo. Seus pais são atarefados, então é
compreensível. Enquanto eles não podem, eu e David estamos aqui. Sempre
estaremos e não iremos a lugar algum.
Eu gostaria de dizer a ela que é impossível duas pessoas estarem
atarefadas vinte e quatro horas por dia durante um ano. Um ano inteiro. Eu
gostaria de dizer que é impossível que eles se importem comigo ou algo do
tipo, mas não faço isso. Apenas assinto, sorrio e agradeço.
Se não fosse por David Wilson, Rosalinda e minhas amigas, eu
provavelmente estaria sozinha e desamparada.
Minha tia se levanta da cama e passa as mãos pelo cabelo
desgrenhado. Ela solta uma risada fofa ao perceber que estou sorrindo da
sua falta de jeito de se manter arrumada ao estar sempre arrumando as
coisas pela casa. Não digo nada, entretanto. Rosalinda balança a cabeça,
ainda rindo, e gira sobre os calcanhares. Antes de sair pela porta, vira-se
minimante, me encara e solta:
— Vai querer me ajudar no jantar hoje?
Ela adora ter minha companhia na cozinha, seja para picar alguns
legumes, ajudar com os temperos ou se for só para conversar amenidades.
Embora também ame, mesmo não fazendo nada de surpreendente na
cozinha, hoje não vou poder.
— Tenho ensaios toda terça e todo sábado, lembra? — Me refiro ao
casamento de Amber e Hunter, então ela logo bate levemente na testa e diz
que se esqueceu completamente.
Sorrio e a observo me deixar só.
Fito as minhas unhas e me sinto levemente ansiosa para o ensaio de
hoje à noite. Não vejo e nem falo com John Scott desde o dia do fliperama e
da cafeteria, que foi na terça, quatro dias atrás.
Nossa conversa foi bastante esclarecedora para mim, a propósito.
Através dela consegui enxergar algumas coisas que antes pareciam confusas
demais para mim. E é claro que também entendi o motivo de John ter
fugido de mim e do nosso beijo.
John Scott estava com medo de me ferir por não corresponder aos
meus sentimentos, já que costuma levar tudo na diversão.
E quem foi que disse que eu não quero diversão?
Acho que ele também conseguiu entender isso, pois propôs que
começássemos do zero. Estou animada para isso, para ser bem sincera.
Estou precisando de diversão e ele é a melhor que eu poderia encontrar aqui
em Hellaware.
Tudo bem que eu disse que não iria cair no seu charme, mas a quem
eu estava querendo enganar? É claro que eu quero cair. Só que dessa vez,
diferente de antes, quem irá comandar sou eu. Eu vou ditar as regras e eu
vou dizer como será a diversão, onde será e como será.
No momento, estou apenas aquecendo.
Fui buscar Barbie e Georgina em casa, então é óbvio que elas estão
falando sem parar sobre o meu suposto encontro com o John durante todo o
trajeto até o estúdio de dança. Mesmo com a música estrondando nas caixas
de som, a voz doce de Barbie St. Claire junto da voz esganiçada de
Georgina Sinclair consegue sobressair qualquer outro som por aqui.
Por que eu decidi contar isso para elas mesmo?
— Vocês poderiam calar a boca? — peço de um jeito nada amigável,
olhando-as pelo retrovisor. Minhas amigas se calam na mesma hora. —
Obrigada. Meus tímpanos agradecem.
Georgina rola os olhos e Barbie dá risada, achando graça de algo.
— Pasha, você não está entendendo, amiga. Você precisa dividir
comigo todos os detalhes. Você simplesmente não pode virar para mim, que
adora saber uma boa fofoca, dizer que saiu com o John para um fliperama e
depois para uma cafeteria e só. — Ainda pelo retrovisor, vejo que Georgina
passa os fios loiros para trás, como se estivesse nervosa ou ansiosa com
algo. Ela é realmente impossível quando se trata de saber da vida alheia. —
Vocês sabem daquele ditado que diz “a curiosidade matou o gato”, não
sabem? — Fricciono os lábios para não rir e assinto, assim como Barbie. —
Pois então, ele é verídico. Mata mesmo. Eu estou a ponto de morrer agora
mesmo caso Pasha Stratford não me conte o que rolou no encontro com
John Scott.
Explodo em gargalhadas, olhando-a sobre os ombros quando vejo que
o semáforo está piscando em cores vermelhas.
— E se eu quiser que você morra? — brinco, e seus olhos verdes-
escuros quase saltam das órbitas.
Barbie alterna o seu olhar entre mim e Georgina e também faz de tudo
para não rir.
— Não me teste, Pasha Denise. Você não sabe o que eu sou capaz
para descobrir algo — ela alerta, o dedo em riste. Balanço a cabeça ao
retornar minha atenção às ruas.
— Você é tãããããão fofoqueira, G — Barbie é quem diz para a nossa
amiga, e eu faço de tudo para me manter calada e não concordar.
— Ei! Fofoqueira, não! — a loira se defende, parecendo indignada.
— Apenas nasci com uma pré-disposição a ser curiosa demais com o que
acontece na vida dos outros. Não posso fazer nada, culpem os meus pais.
Aceito seu ponto de vista com mais uma risada e faço mais suspense,
me mantendo calada. Depois que ela quase arranca os cabelos de
curiosidade é que eu decido contar tudo o que aconteceu para as minhas
amigas. Embora não tenha acontecido nada demais, ambas ficam animadas
e me dizem que sempre souberam que nós dois acabaríamos juntos no final.
Nem tento argumentar contra, pois sei que não adiantaria de nada.
Quando chegamos ao estúdio, Amber e Hunter estão lá dentro,
ensaiando a valsa. Então ficamos todos do lado de fora, até John e todos os
outros do THF estão aqui. Não demora mais que cinco minutos para que
eles saiam e deixem que a gente entre.
Andrew começa a repassar os passos, enquanto fala sobre confiar no
nosso parceiro e algo sobre química no olhar e coisa e tal. Sei que isso tudo
é para mim e John, pois ele nos olha a todo o momento durante sua fala.
Nós assentimos tudo, como se estivéssemos absorvendo suas palavras
motivadoras.
A música romântica começa logo depois e John Scott logo se põe em
minha frente, uma das suas mãos se enroscam na minha cintura e a outra
fixa-se em segurar a minha mão, girando-me em um dos passos da
coreografia. Sinto-me uma bailarina enquanto giro, mas tudo parece parar
de fazer sentido quando o loiro me puxa em um rompante, colando minhas
costas em seu peito. Seu próximo movimento não faz parte da coreografia,
porém ele coloca todo o meu cabelo para um lado só, de modo que uma
parte do meu pescoço fique à mostra, e afunda o nariz na região sensível,
inspirando meu cheiro para si.
O arrepio me pega desprevenida e estremece cada célula do meu
corpo.
Não tenho tempo de fazer ou falar nada, pois ele logo me gira
novamente e eu fico em sua frente, agora com os pulsos entrelaçados em
seu pescoço e as suas duas mãos firmes em minha cintura. Vamos de um
lado para o outro, conforme a música e a coreografia pede. E não estamos
tão ruins dessa vez. Não estamos perfeitos, mas nem de longe estamos
patéticos.
— Acho que confessar nossa química ajudou em algo — John
sussurra, bem no pé do meu ouvido. Sua voz sai extremamente rouca e
sensual agora. — Estamos voando e dominando toda essa pista, diabinha.
Dou risada.
— Não estamos, não. — Sou sincera, e ele me afasta minimamente só
para ver se estou falando sério. — Estamos quase. Precisamos melhorar
muito ainda. Veja só como estão eles dois. — Aponto com a cabeça para
Barbie e Devin bem do nosso lado, que estão dançando tudo certinho e
completamente conectados, como se fizessem isso há anos. O amor deles é
tão nítido que chega a dar diabetes. — Eles sim estão voando e dominando
toda essa pista.
John bufa e rola os olhos, mas executa um outro passo.
— Essa comparação não vale, Stratford. Barbie e Devin são tipo, sei
lá, Bonnie e Clyde. São inseparáveis e insuperáveis.
O olho, os lábios entreabertos. Pisco algumas vezes.
— O quê? — Scott indaga, depois que Andrew para a música para
ensinar algo a Georgina, que se perdeu no meio do caminho. Ainda estou o
olhando com uma expressão estranha, eu sei.
— Você acabou de comparar nossos amigos com um casal de
criminosos, John.
— Foi o único casal famoso que me veio à mente — O loiro dá de
ombros.
— Bom, você poderia comparar com a Barbie e o Ken mesmo — Nós
dois damos risada no mesmo momento, porque tenho certeza que ele
lembra exatamente do que eu lembro. Na festa de noivado de Amber e
Hunter, que foi uma festa a fantasia, Barbie convenceu seu namorado de se
fantasiar de Ken e completar a fantasia dela, que era da boneca Barbie. Foi
hilário ver a roupa de bad boy do Devin dar lugar a roupa de mauricinho.
— Se Devin pegar você relembrando isso, provavelmente você está
morta. Ele detesta que o lembrem disso. Quando Amber e Hunter revelaram
as fotos do noivado, em poucas fotos que ele aparecia, Devin fez questão de
rasgar seu rosto de todas elas. Só foi salva a foto que estava com a gente, e
isso só porque a Barbie estava junto. — John revira os olhos azuis, e eu dou
risada. — Ele é louco por ela.
— Quem é louco por quem? — Devin Leblanc se aproxima, agarrado
a Barbie. A garota está em sua frente e ele tem os braços entrelaçando a
barriga dela. Um grande sorriso pincela o rosto de ambos quando decidem
nos observar em busca de uma resposta.
— John. Por mim. — Faço pouco caso, e solto uma risadinha. Eu não
poderia alimentar o ego deles, certo? Por isso percebo que todos os três me
olham, boquiabertos.
Um tempo depois, Scott entra na brincadeira e confirma. Eu, no
entanto, solto uma piscadela para eles e me afasto, indo buscar água nessa
nossa pequena folga.
Quando a música retorna cinco minutos depois, volto para a minha
posição e John Scott já me espera com um sorriso torto adornando seus
lábios rosados. Seu cabelo loiro platinado está uma verdadeira bagunça,
alguns fios até caem sobre seus olhos azuis. Ele usa calça moletom, regata
branca e está coberto por uma fina camada de película de suor no peito,
fazendo com que suas tatuagens visíveis brilhem e se tornem ainda mais
sexys para mim.
Adoro o fato de estar indo dançar com o próprio pecado.
— Quero te levar para conhecer um lugar — John menciona, assim
que já estou em sua frente. — E já aviso que terá que ser na minha moto.
Hoje você será a minha presa, diabinha. — Suas mãos voam para a minha
cintura e ele me puxa com tudo, o que faz meu peito se chocar contra o
dele. Meu coração dá um solavanco por causa do susto e dos nossos corpos
colados demais. — E aí, o que me diz? Quer ser vista comigo hoje?
Com sua respiração ondulando em meu rosto e seus dedos fazendo
carinho na pele exposta da minha barriga, simplesmente não consigo fazer
outra coisa a não ser concordar.
Coloco o capacete em minha cabeça e escorrego na garupa da moto de
John Scott, entrelaçando meus braços ao redor de sua cintura. O garoto
parece adorar a aproximação dos nossos corpos, pois vira sobre os ombros e
um sorriso carregado de malícia acaba sendo direcionado a mim. Nem tenho
tempo de xingá-lo ou fazer qualquer coisa parecida com isso, pois logo sua
moto raivosa canta pneu e um rastro de poeira preenche o ar ao nosso redor,
deixando o estúdio de dança e todos os nossos amigos para trás.
Enquanto ele costura com a moto pela pista de Hellaware, fecho os
olhos com todas as minhas forças e me agarro a seu corpo ornamentado por
músculos ainda mais, como se tivesse acabado de encontrar um bote salva-
vidas em meio ao mar que me encontro. Funciona um pouco e meu coração
parece ir diminuindo o ritmo frenético, mas ainda assim não é o suficiente
para me deixar relaxada ou pensar com seriedade sobre onde diabos estou me
enfiando.
Afinal, onde diabos estou me enfiando?
Onde diabos ele está me levando?
Apesar de eu ter usado todos os meus truques para descobrir, assim que
Andrew nos dispensou do ensaio, nada funcionou e John Scott pareceu muito
convicto em não me dizer absolutamente nada, sempre alegando que será
surpresa e que eu vou curtir muito.
Bom, talvez eu curta mesma, o problema é que sou ansiosa, curiosa e
não gosto de ficar no escuro. Gosto sempre de liderar a situação e estar no
controle, então não me sinto nem um pouco à vontade agora. Não me sinto
nem um pouco à vontade ficando à mercê das coisas que se passam na cabeça
de Scott.
Também não me sinto nem um pouco à vontade na hora que percebo as
ruas pelas quais estamos passando. Não conheço essa cidade direito, mas,
considerando as placas que passam por nós, tenho uma noção de que estamos
nos afastando tipo muito. Passamos por lugares escuros, desérticos, cheio de
mato e ele simplesmente... para.
John Scott simplesmente para a moto em um lugar completamente
estranho e cercado por árvores e arbustos.
Tiro o capacete, o entrego, desço da moto e desbravo o local com meus
olhos. Escuto um coro de coruja ao longe e meu corpo todo se retesa.
— Não precisa ficar com medo, Stratford — diz, também descendo da
moto. — Não vou te matar, linda. Eu realmente estava falando sério sobre o
seu corpo naquele dia. A não ser que você precise que eu te mostre em ações
o que se passa na minha cabeça quando penso nele.
Finco o incisivo na carne do meu lábio superior e, céus, detesto as
imagens que pipocam na minha cabeça agora. Detesto estar pensando nas mil
posições que John Scott poderia experimentar com o meu corpo agora
mesmo.
Foco.
Você simplesmente não pode se entregar agora. Ainda mais aqui. Qual
é, tenha respeito pelo seu corpo!
Balanço a cabeça na tentativa de afastar a voz do meu subconsciente e
espalmo as mãos na cintura, olhando-o com a cabeça tombada para o lado.
— O que você quer me mostrar, Scott? — indago ao ignorar
completamente seu comentário. — Eu não tenho todo o tempo do mundo,
lindo — ironizo o adjetivo, com um sorriso divertido no rosto, e ele logo abre
o seu.
Droga de sorriso molha-calcinhas.
Ele não responde e se põe ao meu lado ao passar o braço ao redor do
meu pescoço, forçando-me a andar para frente junto com ele. Não protesto
dessa vez. Ando junto com John e pouco a pouco, bem pouco a pouco
mesmo, todo o verde ao nosso redor parece sumir e nós parecemos subir em
algo. Quando finalmente me dou conta, percebo que estamos em uma espécie
de montanha.
E o céu noturno sobre nós é a coisa mais linda que já presenciei.
O tom de azul escuro do céu está rasgado por corpos celestes brilhantes
que parecem piscar todas de uma vez para nos cumprimentar. As estrelas
estão bem próximas e eu sinto como se ali, bem ali no meio dos astros,
estivesse Penelope, minha irmã mais nova, se divertindo ao estar sendo
contemplada por mim, a maior admiradora que um dia ela já teve em vida.
Meus olhos se enchem de lágrimas e um sorriso trêmulo aparece em
meus lábios, pois, de alguma forma, assim que o pensamento sobre ela me
ocorre, uma estrela cadente acaba de disparar rapidamente pela imensidão
que nos cobre.
Fecho meus glóbulos e faço um pedido.
Que Penelope Stratford seja a estrelinha mais feliz dessa galáxia.
Quando abro meus olhos, percebo a figura de John ao meu lado,
também de olhos fechados. Sorrio ao ver que ele também está fazendo um
pedido.
— Isso aqui é lindo — digo baixinho para John, sem retirar os olhos do
céu. — Obrigada por me trazer aqui.
Ele assente, então me puxa para deitar no chão. Deito-me ao seu lado e
junto as mãos sobre minha barriga, ainda fitando o azul infinito. Não sei por
quanto tempo ficamos em silêncio, absortos demais em nossos pensamentos,
só sei que sou a primeira a quebrá-lo, pois me viro de lado, de modo que
consiga enxergar seu rosto, e solto, quase em um sussurro:
— Por que quis me trazer até aqui?
John fica em silêncio, sem me olhar de volta. Mesmo não me olhando,
a luz das estrelas faz com que eu flagre um erguer sutil dos seus lábios
rosados.
— Porque estamos começando do zero — ele responde, tempos depois.
Suas írises azuis finalmente encontram as minhas e eu quase perco todo o ar
ao estar tão, tão próximo dele. Sua pele branca parece de porcelana, suas
sobrancelhas escuras parecem perfeitamente desenhadas, seu nariz parece ter
feito sob medida por um cirurgião plástico e seus lábios são, sem dúvida, a
coisa mais bem feita e bem elaborada de todo o seu rosto. John Scott poderia
muito facilmente se passar por Eros, o deus do amor e do erotismo da Grécia,
pois tudo seu foi milimetricamente esculpido para fazer com que uma mulher
caia em seus encantos apenas por encará-lo. — E eu quis que você começasse
me conhecendo de verdade. Eu tenho um amor secreto por estrelas e por esse
lugar, então queria que você fosse a primeira a saber. Talvez seja por eu
lembrar dele todas as vezes que encaro o seu sorriso.
Não sei o porquê, mas essa confissão dele faz com que meu coração se
agite.
Gosto de saber que sou a primeira a quem ele conta isso. Gosto de
saber que, muito provavelmente, sou a primeira que ele trouxe aqui. Gosto de
saber também que ele lembre das estrelas quando vê o meu sorriso.
— Na verdade, eu acho que esse papo é só para me engambelar —
brinco e empurro meu ombro contra o seu. — Você está falando de estrelas e
todas essas coisas para que eu duvide que é mesmo um babaca.
— Jamais faria isso. — Seu dedo toca o meu nariz e ele aperta a
pontinha, brincalhão. — O máximo que eu quis foi tentar te impressionar,
gata. Sou o melhor dos babacas, pode admitir. — Ele me olha de forma
convencida e eu caio na risada. — Agora que estamos nessa, me conta algo
seu que ninguém sabe.
Uno as sobrancelhas.
— Vai, me conta. Não vou contar para ninguém. Promessa de escoteiro.
— John ergue a palma da mão e, embora saiba que ele provavelmente nem
entenda dessas coisas, assinto.
Começo a pensar no que contar.
— Eu tenho certeza que a Marilyn Monroe foi assassinada — admito,
mas já estou rindo da expressão que seu rosto faz. — O quê?! É uma
confissão séria, Scott. Eu realmente nunca contei isso para ninguém.
— Confissões da sua vida, Pasha Stratford. Quero saber sobre você.
— Tudo bem — bufo, mas sei que preciso ser sincera. Não posso
esquivar de falar sobre mim. Pelo menos não agora que estamos nos
conhecendo melhor. — Não sei se você sabe, mas a minha irmã morreu aos
sete anos, vítima de câncer. Passei muito tempo ao lado dela, assim como de
outras garotinhas, na ala oncológica do hospital. Toda vez que ela tinha
quimioterapia, eu levava livros infantis e lia para ela e todas as crianças
presentes. — Dou uma pausa, apenas para respirar e tentar despistar as
lágrimas que já começam a brotar nos meus olhos. Quando pareço um pouco
melhor, continuo: — Apesar de elas terem passado por coisas horríveis
naquele hospital, minha irmã e suas amigas sempre me agradeciam pela
leitura e faziam questão de dizer que eu deixava todo o momento um pouco
menos doloroso. Isso me deixava realizada. Me deixava realizada saber que
eu fazia a diferença para elas. Então, desde que fiz isso pela primeira vez na
minha vida, soube que queria trabalhar com crianças no futuro. Não sei se
será em um hospital, em uma escola ou em qualquer outro lugar, mas sei que
será com elas e para elas.
Trago a maior quantidade de ar para os meus pulmões assim que acabo
de terminar de falar, expirando tudo depois pela fresta entre meus lábios. Esse
assunto sempre mexe muito comigo, principalmente por sempre ter
desenvolvido ele e guardado dentro de mim.
É bom externar seus sonhos para outra pessoa de vez em quando.
Parece que quando você se permite dizer em voz alta, o universo faz questão
de ouvir para te surpreender depois.
Assim que olho para John, percebo que seus olhos parecem carregar
um brilho diferente. Sua boca está entreaberta e ele pisca os longos cílios
tantas vezes que sou incapaz de contar.
— Eu sinto muito pela sua irmã, Pasha. Eu realmente não sabia disso
— o loiro sopra. — E sobre as crianças, tenho certeza que elas irão adorar ter
você para se inspirar. Tenho certeza também que o quer que você queira ser,
irá ser perfeita e a melhor de todas.
Eu confirmo, soltando uma risada.
— Obrigada por inflar meu ego, John Scott.
— Sempre que você precisar, Pasha Stratford.
O loiro se levanta e fica sentado em posição de índio, me olhando com
as írises brilhando em desafio.
— Ah, meu Deus, o que você quer aprontar dessa vez? — pergunto, e o
sorriso que envia apenas para mim é completamente atroz.
Minha infância não foi fácil. Eu fui uma criança sozinha e nunca tive
qualquer reação saudável com uma outra pessoa. Então, como eu nunca tive
uma troca, não desenvolvi amor e afeto por ninguém quando criança. A
única coisa que me fazia sentir algo de verdade era olhar as estrelas naquele
lugar infernal em que eu vivia e ficar contando cada uma delas com as
pontinhas dos meus dedos.
E quando eu saia do jardim, depois de passar horas e horas
conversando com as minhas amigas — eu realmente acreditava que as
estrelas me escutavam —, subia as escadas de dois em dois e ia fuçar os
livros que falavam sobre o universo naquela biblioteca deteriorada que
quase ninguém visitava.
Lembro-me até hoje que eu achava surreal o fato de ter tantos
pontinhos brilhantes no céu e o quanto eu gostaria de descobrir mais sobre
eles, pois, de alguma forma, olhando para as estrelas, eu sentia que eu não
estava só no mundo. Não ao menos quando todos aqueles astros vinham me
visitar sem falta toda noite.
Foi exatamente por isso que o pequeno John começou a perder noites
escondido de todos, lá na biblioteca. Ele reunia a maior quantidade de livros
que falavam sobre o Universo e mergulhava em bilhões de galáxias até sua
cabeça começar a querer explodir com tantas informações novas e surreais
demais para um garotinho compreender.
É a única lembrança boa que tenho daquele lugar e da minha infância.
Depois que eu simplesmente fui embora de lá, antes de finalmente
encontrar Devin Leblanc e toda a família que tenho com meus amigos,
encontrei esse lugar, onde as estrelas são ainda mais encantadoras e visíveis.
Passei a me sentir pertencente a algo e então foi por isso que comecei a
visitá-lo com frequência. E eu nunca trouxe ninguém para cá. Nem os meus
amigos, que me conhecem mais do que tudo, fazem se quer a menor noção
que ele existe e o quanto significa para mim. Esse lugar é como se fosso só
meu, uma parte secreta da minha vida. E eu nem sei ao certo o porquê de ter
decidido mostrá-lo a Pasha hoje, só sei que senti que precisava. Senti que
precisava compartilhar com ela uma parte minha que não fosse babaca ou
obscura demais. Se estávamos levando a sério mesmo esse lance de
recomeçar, senti que precisava ser sincero com alguma garota uma vez na
vida, principalmente depois de ter pegado tanto no pé da ruiva durante esses
meses em que dividimos o mesmo círculo de amizade. Precisava mostrar
pelo menos um pouco de quem sou de verdade.
Contudo também, claro, não esquecendo de mencionar, eu realmente
lembro das estrelas quando encaro seu sorriso. Afinal, de acordo com todo o
meu conhecimento acerca do assunto, estrelas são esferas gigantes
compostas de gases que produzem reações nucleares, mas, graças à
gravidade, podem se manter vivas por trilhões de anos.
E quando o sorriso de Pasha Stratford pincela seu rosto, ele consegue
causar reações nucleares exatamente como as estrelas, liberando energia e
acendendo tudo ao seu redor. E graças a esse poder, o sorriso dessa garota
pode ficar tão vivo na cabeça daquele que o contempla quanto os corpos
celestes esplandecendo no espaço.
Ela está sorrindo agora por conta do meu pedido, e olhando-o nesse
momento, tenho ainda mais convicção do que mencionei. O sorriso da ruiva
é mesmo como uma explosão de estrelas.
— Você está mesmo falando sério? — Pasha me pergunta, e eu
confirmo, sorrindo. — Tudo bem então. Quem começa?
Eu propus que a gente brincasse de duas verdades e uma mentira
quando a olhei daquela maneira que denunciava meus pensamentos. Estou
mesmo empenhado em conhecê-la. Eu até poderia usar a desculpa de que
sou atencioso com as garotas por quem me interesso, mas isso não seria algo
cem por cento verídico. Não que eu seja um imbecil e as trate mal, não é
isso. É só que, de vez em quando, quando estamos tão envolvidos no nosso
momento, nem o nome eu faço questão de perguntar para elas.
Então, novamente, não sei responder o motivo de estar mais
interessado em sua vida do que em seu corpo. Só sei que estou. Estou para
um caralho. Pela primeira vez na vida, estou muito mais interessado em
desbravar o que há por trás da sua mente do que o que há por trás de sua
roupa.
Isso deveria me deixar pilhado e preocupado. No entanto, por que não
me sinto dessa forma?
Talvez seja por eu entender que é impossível que eu e Pasha Stratford
tenhamos qualquer coisa além do que uma amizade possivelmente colorida.
Ela já demonstrou tanto isso que é impossível cogitar o contrário.
— Damas primeiro — respondo de modo galanteador pouco tempo
depois, o que acaba lhe fazendo revirar os orbes e soltar uma risada,
daquelas desacreditada.
Depois que ela parece concordar com a minha sugestão, volta a se
deitar para escrutinar o azul do céu, bem ao meu lado. Diferente de antes,
dessa vez seu corpo está extremamente próximo ao meu, de modo que faz o
seu ombro roçar em meu braço.
Sorrio internamente por conta disso.
— Vou começar. Está preparado, John Scott? — A ruiva indaga, e eu
balanço a cabeça afirmativamente. — Duas verdades e uma mentira. Meu
nome completo é Pasha Denise Stratford, sou do signo de áries e também
sou completamente apaixonada por bandas de pop rock.
Faço um bico de lado, a observando por rabo de olho.
— Nem fodendo que você é apaixonada por bandas de pop rock,
diabinha — afirmo, e Pasha vira o rosto em minha direção. — Essa foi
extremamente fácil. Moleza, moleza.
— Como você pode ter tanta certeza? — a ruiva retruca. — Eu
poderia muito bem gostar.
— Mas não gosta.
— Ok, ok. Você está certo. Eu não gosto mesmo. Na verdade, eu
cresci escutando música clássica e frequentando concertos por causa dos
meus pais e seus amigos. Então, eventualmente, me apaixonei por esse
mundo e sou completamente apaixonada pela Billie Holiday.
Meu rosto se contorce em uma careta de desgosto assim que Stratford
termina sua fala.
— Téééédio — cantarolo, a fim de irritá-la. Ao contrário do que eu
imaginei, Pasha apenas solta uma risada contagiante. Sorrio só por escutá-la.
— Minha vez, certo? — Apesar de ser algo retórico, a garota ao lado
murmura uma confirmação e eu assinto, esfregando uma mão na outra,
ansioso para ver sua resposta. — Bom, vamos lá. Eu amo e sou
completamente fanático por futebol americano, já tive uma cobra de
estimação e meu nome completo é John Scott Abernathy.
Pasha olha dentro dos meus olhos e tenta encontrar a resposta bem ali,
no azul das minhas írises. Apenas me mantenho estoico para não denunciar
e nem dar dica de nada.
— A mentira é que você já teve uma cobra de estimação? — indaga, e
vejo que suas sobrancelhas quase se tocam, assim como vejo que começa a
mordiscar o lábio inferior ao se sentir incerta.
Faço que não com a cabeça.
— Errou, diabinha.
— Que absurdo, John Scott! Como você foi capaz de fazer uma coisa
dessa? — Seus olhos estão levemente arregalados e a sua boca, entreaberta.
— Fazer o quê? — questiono, sem entender.
— Deixar que uma cobra fique sob os seus cuidados, oras. Coitadinha
dela.
— Há Há Há. — Forço uma risada, e aproveito a deixa para revirar os
olhos. — Eu sou ótimo em cuidar de cobras, Stratford. Se você quiser, posso
te mostrar o quão bom nisso eu posso ser.
— Me chamando de cobra, Scott? — O tom da sua voz sai gotejando
veneno por todas as sílabas. Olhar para os seus olhos castanhos agora, que
parecem extremamente venenosos e diabólicos, faz com que eu concorde
sem pensar duas vezes. Quando faço isso, ela logo se equilibra sobre os
cotovelos e aproxima o rosto perigosamente próximo do meu. Foco nos seus
lábios cheios exatamente no momento em que ela sopra, baixinho: — Olha
que eu posso ser extremamente rasteira como uma, lindo.
Eu sou incapaz de duvidar disso. Sou incapaz de duvidar que ela seja
perigosa e rasteira. Sou incapaz de fazer isso exatamente agora, pois me
encontro envenenado pelo brilho lascivo dos seus olhos e pela reação
nuclear que seu sorriso desperta em cada célula do meu corpo.
Ergo sutilmente minha cabeça e, se eu fizer mais um pouco de esforço,
consigo acabar com qualquer distância entre nós e colidir com minha boca
na sua uma segunda vez. Estou muito tentado a fazer isso, e ela parece
perceber, pois seus glóbulos deslizam dos meus olhos até os meus lábios,
admirando-os com a mesma luxúria que os crepitam.
Lentamente, Pasha fecha seus olhos e se aproxima, o hálito da sua
boca mesclado com o cheiro do seu gloss labial de cereja me atingindo em
cheio. Fecho os meus também na mesma hora, rezando para que parta dela a
iniciativa de acabar com essa necessidade que sinto de me esbaldar com seu
gosto uma outra vez.
Mas, para a minha tristeza, a única coisa que a garota faz é depositar
um beijo em minha têmpora, soltando uma risadinha assim que menciona:
— Se o seu nome completo não é John Scott Abernathy, então qual é?
Só quando Pasha se afasta que consigo abrir os olhos e expirar todo o
ar acumulado.
— John Stone Scott.
Seu queixo sobe e desce, em uma confirmação quase imperceptível.
— Pois então, John Stone Scott, vamos continuar a brincadeira. —
Stratford leva o indicador até meu peito e sua unha arranha a região,
brincando de sobe e desce com ele. Um arrepio atinge minha espinha
cervical, mas me mantenho impassível. — Agora vai ser uma verdade e uma
mentira e eu vou te dizer elas. A verdade é que a gente só se beija quando,
onde, e se eu quiser, afinal, quem está no comando é a diabinha aqui. —
Seus dedos agora vão subindo e seguram meu queixo com eles em pinça,
puxando-me para olhar em sua direção. Sei que está mencionando isso por
conta do nosso quase momento. O sorriso estampado em seu rosto e modo
como soa deliciosamente mandona me faz adorar essa conversa. — E a
mentira é que você não vai querer e vai tentar com todas as suas forças me
impedir quando esse momento chegar.
Detesto o fato dela estar fodidamente certa em sua verdade e em sua
mentira.
A brincadeira entre mim e Pasha acabou rolando por mais alguns minutos
antes que decidíssemos ir embora, já que estava ficando tarde e o caminho
de volta para casa poderia acabar se tornando algo perigoso.
Então, apesar de ter sido uma coisa rápida, a noite foi muito divertida.
Eu descobri que Pasha Denise Stratford — agora que eu sabia seu nome
completo não iria parar de mencioná-lo — tem vinte um anos, se dedicou a
patinação artística no gelo por toda a sua infância e começo da adolescência,
fez aulas para aprender a tocar violoncelo por dois anos inteiros, que café e
champagne concorrem o primeiro lugar na sua lista de bebidas favoritas e
que, sem esquecer de mencionar, descobri que a garota de fios alaranjados se
considera levemente controladora e que acredita ter um ego nas alturas por
sempre ter sido elogiada devido à beleza fora do normal.
E isso, por incrível que pareça, nós temos em comum.
Apesar de Pasha ter dito lá no início que nós dois não temos nada em
comum, agora eu consigo discordar. Nós somos até que parecidos. Sei que
ela é determinada e obstinada assim como eu, consegui chegar nessa
afirmação quando escutei suas palavras decididas ao falar sobre quando nós
vamos nos beijar de novo. Ela gosta de jogos tanto quanto eu e, com toda
certeza, adora estar no comando em tudo que se propõe a fazer. Ela também
tem uma língua afiada, um humor ácido, não liga para ninguém e... bom, é
igualzinha a mim em diversos aspectos, sim.
Por que estou sorrindo agora?
Balanço a cabeça na tentativa de dissipar o sorriso e os pensamentos,
adentrando no rancho logo após. A luz vertiginosa da lua projeta minha
sombra na relva verde musgo e ela me acompanha até que eu fique em
frente ao meu trailer. Subo as escadinhas, abro a porta e quando entro,
encontro vários pares de olhos me observando.
Devin, Kieran, Kara e Violet estão todos deitados na minha cama.
— Vocês deveriam parar de fazer essas coisas. Nunca ouviram falar
sobre privacidade, não? — murmuro para todos eles. Meus amigos apenas
caem na risada. — Estou falando sério, porra. E se eu estivesse entrando
aqui com alguma garota?
— Simples. — Violet Mohn responde, sentada no chão. Seus fios
castanhos estão presos em um rabo de cavalo e ela tem um cigarro
pendurado em uma das suas orelhas, que agora está repleta de brincos e
piercings. A garota está coberta por roupas pretas e coturnos, que combinam
super bem com suas pálpebras pinceladas por sombras escuras, como de
costume. — Se você tivesse entrado com alguma garota, nós a chamaríamos
para fazer parte da festa junto com a gente.
Contorço o rosto em uma careta irônica para ela, que me devolve um
sorriso cínico e petulante.
Afasto alguns deles da minha cama e me sento. Entrelaço uma mão na
outra e os observo.
Devin está deitado, vestindo sua jaqueta de couro e sua calça jeans
rasgada. Suas mãos estão atrás da sua cabeça e seus olhos verdes me
esquadrinham, divertidos. Já Kieran, que está apenas com uma calça
moletom e o peitoral definido desnudo, está meio sentado e meio deitado
bem ao lado da sua irmã, aninhada em seu corpo. Kara tem os cabelos
longos e cacheados cascateando suas costas, enquanto está vestindo uma
jardineira jeans com a blusa preta da banda Ramones por dentro. Sua pele
oliva parece brilhar sob a luz proeminente do meu trailer. E estão todos, sem
exceção, me encarando agora.
— O que vocês estão aprontando, afinal? — indago, o meu dedo em
riste passeia por cada um deles.
— Queremos saber para onde você e Pasha Stratford foram. — Kara é
quem responde, e seus lábios pintados por várias camadas de batom vinho se
alargam de uma forma muito maliciosa. Ela bate palminhas logo depois. —
Vocês finalmente estão tendo algo, não estão?
— Não se empolgue, mana. — Kieran acalma a irmã ao passar as
mãos pelas costas dela, em um movimento de vai e vem. — Nosso amigo
John Scott não tem algo com ninguém. A não ser com a sua própria figura
no espelho, claro.
Rolo os olhos e mando todo mundo se foder quando as risadas deles
reverberam pelo cômodo.
Como não fiz questão nenhuma de ser discreto ao sair junto da ruiva
assim que o ensaio acabou, é óbvio que todos viram e ficaram confabulando
o que estava acontecendo entre nós, afinal, de acordo com todos eles, algo
provavelmente acabaria rolando entre mim e Pasha, pois novamente,
segundo eles, era impossível que eu, mulherengo do jeito que sou —
palavras dos meus amigos, não minhas — iria ficar implicando com ela a
troco de nada. Então para todos estava bem óbvio que eu e Pasha
aconteceria uma hora ou outra.
A verdade é que já aconteceu, mas eles não fazem a menor ideia disso.
O único que sabe é Devin Leblanc, já que foi o único que percebeu meu
jeito estranho na noite em que aconteceu. Era simplesmente impossível não
contar para ele, parecia estar escrito em minha testa. Mas agora, no entanto,
nem ele e nem os outros sabem que estamos nos conhecendo melhor para
que algo possa acontecer entre nós no futuro.
— Eu já disse o quanto odeio vocês? — menciono, bufando. Passo as
pontas dos dedos pelos fios platinados e jogo-os para trás, decidido a
partilhar com eles também. Eu sei que não há o que esconder, então apenas
dou de ombros e solto: — Nós dois baixamos a guarda, decretamos paz e
estamos tentando nos conhecer melhor. Só isso até agora. Prometo que vou
atualizando vocês conforme o progresso. Mas nem pense que vou
compartilhar detalhes, pois sou um cara de respeito e não saio espalhando o
que acontece entre mim e as minhas garotas.
E é verdade, não faço esse tipo de coisa. Detesto esses caras que
compartilham com todo mundo o que faz entre quatro paredes com as
garotas que saem.
— Cuidado para não se apaixonar, amigo — Violet me alerta, e faz de
tudo para conter o sorriso em seu rosto. — Pasha Stratford não me parece
ser uma mulher que entra na vida de um cara sem fazer estrago. Ela é
simplesmente... uau! Uau demais para qualquer um. Inclusive para você.
Sorrio, porque realmente é verdade. Pasha é areia demais para o meu
caminhãozinho.
Na verdade, areia demais para o de qualquer cara.
— Você tem um ponto, furacão — digo, sinceramente, retomando o
apelido que eu dera a ela muito tempo atrás, já que Violet Mohn é a
personificação de um furacão, completamente destruidora, assim como a
ruivinha. — Mas só se esqueceu do fato que eu não me apaixono, gata.
Mohn solta uma risada e o modo como me olha parece revelar que não
acredita no que acabei de mencionar. Devin, que até então estava calado,
parece partilhar da mesma opinião, pois logo afirma:
— Todo ser humano tem a capacidade de se apaixonar, Johnny — ele
soa irônico. — Você não é diferente disso, amigão. Se quer um conselho,
não se apegue nessa teoria. Quanto mais a gente fala que uma coisa não
acontece, o Universo conspira para que ela aconteça só para rir da nossa
cara. Então não duvide, senhor-eu-não-me-apaixono. A não ser que você
seja um robô e não nos comunicou, é isso? — Mais uma vez, assim como
sempre quando o assunto é me perturbar, todos caem na gargalhada.
Pego o travesseiro atrás de mim e rumo na direção dele, que logo
desvia para o lado, fazendo com que o objeto atinja o assoalho. Solto um
muxoxo por causa disso.
— Cansei desse assunto. — Estalo a língua no céu da boca. — Se
vocês não tiverem outra coisa para falar, podem se retirar agora mesmo. Não
quero a toxidade de vocês infectando a minha casa.
— Calma, cara — pede Kieran ao estrangular uma risada. — Não é só
de zoar da sua cara que a gente vive, não. Viemos aqui te contar uma
novidade fresquinha que, com toda certeza, você irá adorar. — Meu amigo
agora olha para Violet e aponta a cabeça para mim, como se estivesse
pedindo implicitamente para ela que me conte da novidade.
Violet aquiesce e se vira em minha direção.
— Vai rolar uma festa na fraternidade da Hellaware University
amanhã — explica, logo após se engatinhar pelo chão. Ela fica de joelhos no
assoalho e seu corpo se curva sobre a cama, ficando agora mais próxima de
mim. — E todos nós fomos convidados.
Meu corpo já se anima com a menção da tal fraternidade que, com
toda certeza, ficou marcada ano passado pelas suas festas incríveis e por
uma em específico. Bom, para resumir, Barbie St. Claire, que é namorada do
Devin, morava em Nova York antes de se mudar para morar com sua tia
aqui na cidade. Ela era rica e seu pai, dono de empresa. Nesse interim, a
garota namorou um cara chamado Jasper Clement por quatro anos, só que
seu pai e ela acabou descobrindo que ele só estava com ela para dar um
golpe em sua família, já que, devido a aproximação, o pai da Barbie fez o
pai de Jasper seu sócio.
A empresa do pai de Barbie foi a falência, ela terminou com Jasper,
Jasper e sua família fugiram e o pai da loira morreu meses depois, fazendo-a
se mudar de vez para cá. Meses depois de começar um relacionamento com
meu amigo, Jasper e sua família se mudaram para essa cidade e todo mundo
acabou descobrindo que ele tinha fugido naquela época para Gipsy Hill —
sim, a cidade vizinha onde Daisy e seus amigos trazidos por Hunter
moravam. Inclusive, eles também tiveram a vida ligada ao garoto e sua
família de criminosos —. O tal Clement aprontou inúmeras coisas, interferiu
no romance da ex, chantageou Devin e, no fim, acabou sendo denunciado e
preso por tráfico de drogas em uma dessas festas na fraternidade.
Foi Barbie e Violet que executaram um plano para prendê-lo
juntamente da família criminosa.
Apesar de toda essa confusão ter acontecido no ano passado, todos
eles sabem o quanto eu amo as festas dessa fraternidade e o quanto eu amo
as garotas de lá, por isso que provavelmente vieram correndo me contar. O
sorriso em meu rosto cresce copiosamente quando as lembranças de um
John bêbado se divertindo naquela noite pipocam em minha mente.
— Não sei se vocês vão, mas eu estou dentro — digo, e Kara, Kieran,
Violet e Devin prestam atenção em mim. — Estou definitivamente dentro.
Meus amigos sorriem e confirmam que também estão.
Quando adentro a fraternidade da HU, a primeira coisa que sou
atingido são pelas luzes estroboscópicas que rasgam o ambiente e o deixam
ainda mais interessante no exato momento em que reflete nos corpos
sensuais das meninas aglomeradas na pista de dança improvisada. A música
pop reverbera pelas caixas de som estrategicamente espalhadas e faz com
que todos gritem de entusiasmo, as mãos jogadas no ar para que toda
animação retesada dentro deles sejam libertadas para o alto.
Sorrio torto para algumas garotas que me observam e cumprimento
com dois dedos alguns conhecidos de vista.
Meus amigos estão logo atrás de mim, com os olhos varrendo cada
canto da área muito bem movimentada. Sinto a presença deles agora
dividida ao meu lado, e viro sobre os ombros para fitá-los. Violet Mohn,
que tem o estilo completo de garota rebelde sem causa, está usando apenas
um moletom liso e cinza, que chega em um pouco mais da metade das suas
coxas cobertas por meia arrastão e que acaba escondendo o pequeno short
de lycra que usa. Seus cabelos castanhos estão presos em um rabo de cavalo
bem feito no topo da sua cabeça, o que deixa bem visível as grandes argolas
em suas orelhas e a gargantilha de couro preta em seu pescoço. Já Kara,
posicionada ao lado dela, está coberta por calça mom jeans clara adornada
por um cinto preto, uma camiseta social rosa bebê com os dois primeiros
botões abertos, as mangas dobradas até o cotovelo e um nó formado no
meio da sua barriga, que deixa um pouco da sua linda pele preta à mostra.
Seu rosto está longe de maquiagem e as sardas seguem percorrendo suas
bochechas e o ossinho do seu nariz, a boca carnuda coberta por gloss
brilhando tanto quanto o piercing prata posicionado em seu nariz.
A beleza das duas é de deixar qualquer marmanjo de boca aberta.
Quer dizer, melhor reformulando o meu comentário, a beleza dos
meus amigos é de deixar todos de boca aberta. Não posso simplesmente
ignorar e deixar Kieran McAllister de fora dessa, seria mancada. O cara é
mesmo bonito, admito. Não tenho masculinidade frágil e nem essas merdas.
Ele, diferente da sua irmã que tem os olhos verdes cintilantes, tem os seus
da cor de chocolate, um cabelo crespo curto e em uma espécie de degrade,
bíceps tatuados e torneados — o detesto por causa disso — e agora, nesse
exato momento, consegue chamar atenção das gatas só por tê-los totalmente
em evidência por conta da regata branca e cavada que usa.
Se Kieran não fosse calado, reservado e não comesse quieto, eu muito
provavelmente me sentiria ameaçado por ele.
No entanto, como ele costuma agir por de baixo do pano e é
considerado uma pessoa difícil para se envolver com alguém, boa parte das
mulheres miram em mim primeiro, pois sabe que aqui, com certeza, as
coisas são muito mais fáceis.
Quer dizer, depende. Não me depravo tanto assim.
Sorrio e dou alguns tapinhas no peito de aço de Kieran.
— O papai aqui vai aos trabalhos — digo para o meu amigo,
maliciosamente. Ele me olha com cara de desprezo e assente, já acostumado
com minhas falas idiotas e as minhas atitudes em festas. Solto uma risada e
uma piscadela para McAllister.
Estou pronto para movimentar minhas pernas e ir em busca de bebida,
mas sou interrompido de fazer qualquer coisa ao escutar Violet murmurar,
bem atrás de mim:
— Vê se não engravida ninguém, bonitão. — Sua boca pincelada por
batom coral se alarga em um sorriso divertido. — Não queremos nenhum
mini John nos chamando de titios por agora.
Fecho minha mão em punho e logo depois meu dedo do meio
aparece.
— Hasta la vista, baby — é o que eu apenas digo para Violet e todos
os outros, girando sobre os calcanhares para finalmente dar início a
brincadeira.
Arrasto meus passos até a mesa de bebidas mais próxima, sendo
acompanhado agora pela música de U2 ressoando por todos os lados. Pego
um daqueles copos vermelhos típicos de festa e encho de cerveja até o talo.
Depois, em busca de uma presa, encosto-me na parede, levo o copo até os
lábios, entorno o líquido alcoólico e passeio com meus orbes pela
fraternidade. Alguns bons pares de olhos femininos já estão cravados em
mim, o que acaba felicitando tudo. Geralmente, quando fico só, as garotas
costumam chegar em mim bem depressa. Elas se aproximam timidamente,
começam a falar sobre o quanto o lugar é abafado, ou sobre o quanto a
música é contagiante e, quando vou perceber, já estão com lábios prensados
nos meus e com as mãos bobas ziguezagueando de um lado para o outro em
meu corpo.
Para ser sincero, costuma ser bem divertido. Eu gosto de ser xavecado
e de xavecar, gosto da conquista, do sentimento bom do flerte e, sem dúvida
alguma, gosto de desfrutar dos prazeres carnais. Afinal, estamos aqui para
isso, não?
Como eu disse, feito um passe de mágica, logo uma garota brota ao
meu lado. Observo-a por rabo de olho e disfarço o sorriso de vitória
formado em meu rosto, colocando o copo em frente aos meus lábios. Ela
segura seu cabelo preto com uma das mãos, como se estivesse fazendo um
rabo de cavalo, e, com a outra, abana seu pescoço, logo depois soltando
uma densa lufada de ar.
Quando os olhos cinzas da garota encontram os meus, já sei
exatamente o que irá sair por entre seus lábios pintados de rosa.
— Nossa, calor aqui, não? — Bingo. Afasto o copo dos lábios e me
mantenho impassível, como se nunca tivesse ouvido nada parecido.
— Nem me fale. — Balanço a cabeça, potencializando a atuação ao
começar a me abanar também. — E a música? Divertida, huh?
Os olhos da quase-não-tão-mais desconhecida, que são
completamente cinzas, parecem escurecer ainda mais uns bons tons ao
ouvir exatamente o que gostaria de escutar. Ela passa a língua pelo lábio
inferior e morde um sorriso. Estou muito tentado a embarcar nesse flerte,
afinal a garota é gata, mas minha atenção se volta totalmente para a porta,
que é escancarada para que todos possam ter o vislumbre da entrada triunfal
de Pasha Stratford, que está acompanhada de Devin, Barbie e Georgina.
Talvez nossos olhos sejam como malditos imãs, pois eles criam um
campo magnético a nossa volta e são instantaneamente atraídos um para o
outro. O castanho do dela se choca com o azul do meu e o resultado nada
mais é do que uma mistura de sensações alastrantes e desconhecidas
percorrendo toda a droga do meu corpo.
Ainda sustentando o meu olhar, já que não é mulher de desviar ou
fugir de situações como essa, Pasha dá alguns passos para dentro da festa,
então nossos amigos também a acompanham nessa. Não sei quanto tempo
dura nossa pequena batalha, mas a garota ao meu lado me faz entender que
foram apenas segundos, pois toca no meu ombro a fim de chamar minha
atenção.
Pisco algumas vezes.
— Perdão, gata, me distrai. O que disse?
— Tudo bem. — Ela sorri, fingindo inocência. Suas mãos agora
descem pelo meu braço. — Eu perguntei se você não saberia me dizer onde
fica o banheiro. Sou caloura, então ainda estou meio perdida por aqui.
Antes de respondê-la, olho mais uma vez para a ruiva. Agora ela
permanece junto de Georgina, pois Barbie e Devin já foram se enfiar Deus
sabe lá onde. Não demora muito para que a loira cochiche algo em seu
ouvido, sumindo para pista de dança logo depois. No segundo seguinte em
que isso acontece, Stratford volta a olhar para mim e, parecendo finalmente
se dar conta da morena ao meu lado, ergue as sobrancelhas e solta uma
risadinha em descrença. Ela não parece chateada ou algo assim, até porque
não temos nada um com outro — e nem nada demais está acontecendo aqui
—, mas, ainda assim, parece estar debochando ou com muita vontade de
dizer que sou um babaca e que não mudo nunca.
De repente, tudo parece perder a graça. Então bebo o restante da
cerveja, enfio as mãos no bolso e ergo os ombros, finalmente respondendo
para a garota:
— O banheiro fica no andar de cima. É uma porta rosa, você vai
conseguir identificar.
E antes que eu saia do lugar que me encontro, consigo flagrar o exato
momento em que o sorriso dela vacila.
Obviamente não era essa resposta que estava esperando. No entanto, a
única coisa que consigo fazer é sorrir e dizer que nos vemos em breve,
embora saibamos que isso nunca mais vai acontecer.
Minhas botas de combate agora se arrastam pelo assoalho desgastado
e me levam até a cozinha americana da fraternidade, que é para onde Pasha
acabou de ir. Quando entro, me deparo com a ruiva empurrando —
literalmente falando — um casal que estava se agarrando encostado na
geladeira. O casal se separa, atônitos, e então murmuram palavras
desconexas e emburradas para ela antes de saírem da cozinha.
Fricciono os lábios para não rir da cena.
A ruiva agora abre a porta da geladeira e se curva, em busca de algo
por ali. Me aproximo cautelosamente, a porta cobrindo minha figura e
impedindo que ela saiba que estou ali. Quando a fecha, após não encontrar
o que estava procurando, seu corpo dá um sobressalto no exato momento
em que seus orbes me capturam ali, encostado na base de alvenaria da pia.
— Em busca de algo, minha gata? — Uso o tal do pronome para
irritá-la, e parece surtir efeito, pois a ruiva logo franze o rosto em uma
careta. — Posso ajudá-la com alguma coisa?
Pasha balança a cabeça negativamente e se coloca ao meu lado. Não
demora mais que poucos segundos para que eu a veja cruzar os braços e a
escute bufar.
— É inadmissível o fato de que essa gente não tenha água na porcaria
da geladeira — menciona, visivelmente indignada. — Ninguém se importa
com quem sente sede? Ao menos eles sentem sede de algo que não seja
álcool?
Não consigo não conter a risada. A ruiva está muito inconformada e
toda a expressão corporal do seu corpo demonstra isso. Suas bochechas
estão mais vermelhas que o normal, há sulcos formados entre suas
sobrancelhas e seu nariz pontudo se encontra levemente dilatado.
A própria personificação da fúria se encontra parada bem ao meu lado
e eu simplesmente não consigo parar de rir.
Eu definitivamente não tenho nenhum amor pela minha vida.
— Para de rir, idiota. — Pasha empurra meu ombro com a mão, e,
pouco a pouco, olhando para mim, sua carranca se desfaz. Eu posso até
jurar que vejo um erguer sutil dos seus lábios. — Você deveria ir agora
mesmo em busca de água para mim, já que fica achando graça.
Mordo um sorriso.
— Ir em busca de água?! — retruco. — Ah, querida, eu poderia ir
facilmente agora em busca da Lua por você.
Minha cantada barata não parece afetá-la, só contribui para que seus
olhos se revirem e quase saltem para fora das órbitas.
— Regra número um para a nossa boa e pacífica convivência: não
tente flertar comigo depois de eu ter visto você flertar com outras. — O
castanho dos seus olhos me perscruta, e ela leva uma das mãos em meu
rosto, depositando leves batidas na região. — Não gosto e nem sirvo para
ser segunda opção de ninguém, lindo. Se estou em um jogo de sedução com
você, preciso ter a certeza de que sua mente e seu corpo estejam
concentrados apenas aqui. — Pasha retira sua mão do meu rosto e passeia
com ela pelo seu corpo, tocando na curva sinuosa do seu quadril. Depois,
ergue seu rosto em minha direção e sorri, atroz. — Mesmo na diversão,
querido John, gosto que me tenham como prioridade. Pelo menos nesses
momentos, sabe? Passei tanto tempo me contentando com tão pouco que
quando finalmente descobri que sou muito, não deixo mais que qualquer
cara tire proveito da minha grandeza.
Estou sem palavras. Definitivamente sem palavras. Mas que inferno
de mulher é essa e porque suas palavras, assim como suas ações, precisam
me atingir tanto?
Tento procurar o que dizer, mas não consigo formular nada coerente e
me sinto um estúpido por isso. Não posso simplesmente dizer que não
estava flertando com a garota porque, minha nossa, seria muito babaca e
idiota da minha parte. Eu estava quase lá, quase pronto para o abraço, então
não posso simplesmente dizer que não estava flertando com mulher alguma.
Mas, venhamos e convenhamos, eu nem ao menos sabia que ela viria para
essa festa. Eu nem ao menos sabia que meu comentário, embora tenha sido
um flerte de leve, fosse causar essa reação nela, já que não estava tentando
tirar proveito nenhum com ele, só quis fazer graça e provocá-la como
sempre faço.
Além de que, francamente, como que alguém entra em um jogo de
sedução com Pasha Stratford e simplesmente pensa em outra coisa que não
seja ela? Isso, na verdade, seria inadmissível. Quando alguém se depara no
mesmo ambiente que essa garota, é meio que impossível não se sentir
instigado a desbravar seu corpo, sua mente, seu coração e tudo que lhe diz
respeito. Ela é a porcaria do Sol e todos, sem exceção, orbitam ao seu redor,
como se tivessem essa necessidade absurda de sempre se manter por perto.
E comigo não seria diferente. Não é diferente, na verdade.
Eu orbito ao seu redor — mesmo admitindo isso a contragosto — até
quando nem estou próximo.
E quando estou próximo, quero ela. Somente ela. Não penso em
ninguém. Para ser sincero, eu nem ao menos penso. Eu só consigo enxergar
uma vastidão absurda e perigosa de vermelho.
Abro a boca para tentar pôr para fora o que corre pela minha mente
quando se trata dela, mas acaba sendo tarde demais. Pasha parece entender
meu silêncio como uma confirmação de algo, porque solta mais uma das
suas risadinhas irônicas e me deixa sozinho, perplexo, ainda imóvel no
mesmo lugar.
Ah se ela soubesse que o papo da Lua é verdade...
Eu não queria ter vindo para essa festa de fraternidade, afinal, hoje é
domingo, o dia em que eu me enfio nas cobertas até tarde da noite para ficar
assistindo os filmes trashes de terror se desenrolarem na tevê de tubo do
meu quarto enquanto cuido da minha pele com máscara facial. É tipo um
ritual e eu adoro muito fazê-lo, então é claro que fui relutante com o pedido
das minhas amigas e tentei negá-lo até onde pude, mas é claro que elas me
venceram pelo cansaço e fizeram com que eu parasse todos os meus planos
apenas para eu me entupir de álcool com adolescentes e jovens
universitários, alegando o quanto seria divertido.
Estou sentada no meio do sofá encardido e há dois casais se beijando
e fazendo barulhos esquisitos bem ao meu lado.
Inclusive, Georgina e um cara qualquer do time de basquete da
universidade é um desses casais.
Então é claro que tudo está sendo bem divertido.
Não me importo que elas se divirtam e me deixem só de vez em
quando, não me importo mesmo. Apesar de amar a companhia delas, gosto
de ficar sozinha de vez em quando e elas sabem disso. Em certos
momentos, quando fico cercada por tanta gente, me sinto sufocada, porque
nunca estive cercada por tantas pessoas antes. Não estou acostumada e me
deixa claustrofóbica. Então agora, apesar de estar nessa situação de tédio,
me sinto bem. A música alta é reconfortante de alguma forma, assim como
o drinque que tenho em mãos — minha única opção, já que não encontrei
água para matar minha sede.
Não sei quanto tempo fico imersa nessa bolha, mas, algum tempo
depois, Georgina e o cara do basquete se desgrudam e ela parece o
dispensar, pois ele aparenta estar chateado com algo antes de finalmente se
levantar e dar o fora. Minha amiga se aproxima mais de mim, e vejo que um
suspiro de alívio escapa por entre seus lábios.
— Nossa, como um cara pode ser tão lindo e nem ao menos saber
beijar? — ela conta, exasperada. — Achei que fosse perder um dente ou ter
meu lábio arrancado em algum momento.
— E foi tão ruim assim? — questiono. Seu rosto logo se franze em
uma careta e ela balança a cabeça de um lado para o outro, o que acaba me
fazendo rir.
— Foi péssimo. — Georgina soa sincera, como de costume. Ela não é
uma mulher de suavizar situações ou de mentir, ou seja, quando a loira
precisa falar algo, ela vai falar e não está nem aí. É a pessoa mais
verdadeira que já conheci. — Céus, teria sido melhor até se eu tivesse
beijado uma porta.
É impossível não dar risada.
— Coitado do cara, amiga. — Pressiono os lábios para não reverberar
ainda mais a minha risada pelos quatro cantos.
— Coitada de mim, isso, sim. — Georgina Sinclair, a loira mais
perigosa que conheço, flexiona os joelhos e se levanta do sofá. Ela passa as
mãos pelos fios desgrenhados e varre o local em busca de algo,
provavelmente uma nova presa. — Vou tentar tirar o prejuízo, vem comigo
ou vai querer ficar aí?
Faço que não com a cabeça, indicando que ficarei onde estou.
— Certo. — Seus olhos continuam desbravando a fraternidade, e,
quando parece encontrar o que estava procurando, volta seu olhar para mim,
bate palminhas e sorri. — Só não passe a festa toda sentada nesse sofá,
criatura. Tem um monte de cara te olhando, então dê abertura e pare de
afastá-los com essa sua cara de vilã de seriado.
Já me chamaram de muitas coisas nessa vida, mas vilã de seriado é a
primeira vez. Confesso que gostei.
— E você sugere que eu faça o quê?
— O primeiro passo é começar a sorrir. — Georgina ergue os ombros
ossudos para cima. — Será que você sabe fazer isso?
Dou língua para a minha amiga, como se estivéssemos numa briga
infantil, e ela me mostra a sua também. Depois, a vejo mandar um beijo no
ar para mim e girar nos calcanhares, sumindo do meu campo de visão.
Afundo minhas costas no estofado e cruzo os braços, levando o
drinque aos meus lábios logo em seguida. Entorno todo o conteúdo e,
quando não sobra mais nada, repouso o copo sobre a mesa de centro. Tiro
os resquícios do líquido da minha boca, tentando não manchar o batom
vermelho, e me levanto. Quando arrumo a alça da minha bolsa no meu
ombro, antes de arrastar meus saltos até às escadas, flagro Barbie e Devin
dançando na pista de dança. Sorrio com a animação deles e finalmente
empurro com o cotovelo os corpos amontoados perto dos degraus, seguindo
escada acima em busca de um banheiro disponível.
Assim que chego no andar, peço informação a algumas pessoas sobre
onde fica o banheiro e eles logo me respondem que fica à direita. Então
corro para lá, minha bexiga já gritando em protesto, e logo dou de cara com
uma porta rosa. Eu até ficaria receosa de abri-la de imediato, mas o símbolo
feminino desenhado nela me faz ter a certeza que é o banheiro, então não
penso duas vezes em girar a maçaneta gélida e me enfiar no cubículo que,
graças aos céus, está totalmente livre para ser usado.
Cerca de poucos minutos depois, após fazer xixi e lavar as mãos,
procuro o zíper da minha bolsa e o abro, pescando meu batom de lá de
dentro. Cravo os olhos no espelho à minha frente e entreabro os lábios
minimamente, contornando-os com mais generosas camadas de vermelho
sangue, que combina perfeitamente com toda a roupa que estou usando
hoje; um cropped preto com decote em coração, que faz com que meus
seios generosos queiram pular para fora, uma calça também preta e que
aperta minhas coxas e emolduram muito bem a minha bunda, gargantilha
vermelha no pescoço e saltos também da mesma cor.
Logo em seguida, retiro alguns poucos borrados das bordas e estalo
os lábios, que agora estão exatamente do jeito que gosto. Fecho o batom,
jogo de volta na bolça, arrumo os meus fios ruivos, libero um sorrisinho
para o meu reflexo e giro sobre os calcanhares, pronta para sair do banheiro.
Então toco a maçaneta e abro a porta, dando alguns pequenos passos para
fora, escutando a madeira bater sozinha atrás de mim. E, antes que eu possa
esquecer, trago a bolsa para perto de mim e começo a fechar o zíper,
andando pelo corredor sem prestar atenção em nada à minha frente ou até
mesmo ao meu redor.
Quando coloco a bolsa de volta no seu devido lugar e ergo os olhos
para seguir meu caminho novamente, o que ele logo flagra faz com que eu
fique estática ali mesmo, no meio do corredor. Minhas pernas parecem que
criaram raízes no carpete e não me deixam fugir para nenhum lugar, então
eu permaneço encarando a cena com os olhos arregalados e o queixo quase
atingindo o chão.
John Scott está encostado na parede, próximo da escada. Ele está no
meio de duas garotas. Uma ele está beijando na boca, e a outra, totalmente
atenciosa, distribui beijos pelo seu pescoço tatuado. Seus braços estão
envoltos pelas cinturas delas e as mãos, totalmente exploratórias, passeiam
sem pudor pelas partes sinuosas dos corpos das garotas. No segundo
seguinte, pronto para beijar a outra, seus olhos me encontram.
John para por um milésimo de segundo e isso é o bastante para que eu
prenda todo o ar dentro de mim.
O azul das suas írises parece abrigar brasas agora e elas me queimam.
Queimam tanto que sinto um calor absurdo, como se tivesse acabado
de aterrissar no fogo do próprio inferno.
Ele me olha dos pés à cabeça e seus lábios sobem em uma espécie de
sorriso sujo, desafiador e totalmente perigoso. E então, logo após me despir
por inteira, enrosca a mão repleta de desenhos e anéis no cabelo da garota
que iria beijar, agora sendo a vez dele de distribuir beijos, chupões e
mordidas no pescoço da morena.
Embora a esteja dando prazer, seus olhos não deixam os meus nem
por um momento. Ele me olha com tanto afinco que sinto como se estivesse
querendo me mostrar algo que não estou vendo.
Algo que estou deixando passar.
E então, após um estalo na minha cabeça, é que percebo.
John Scott está tentando me mostrar que mesmo estando com várias,
é em mim que ele pensa.
Isso faz com que um raio atinja bem o meio entre as minhas pernas.
Faz com que eu, bem diferente do que eu imaginei, queira pegá-lo agora
mesmo pela gola da sua camiseta e enfiá-lo em um quarto qualquer para
que pague severamente pela forma que escolheu me mostrar isso.
E contrariando todo meu lado racional, é exatamente isso que faço.
Meus saltos ecoam pelo corredor e eles me levam até o loiro, que
ainda permanece me olhando com o sorriso estúpido em seu rosto. Sem
falar nada, quando estou em frente a eles, apenas puxo John Scott pela gola
da sua camiseta e o faço andar junto a mim, nem aí para os xingamentos
que recebo da parte das garotas, muito menos ligando para as perguntas que
disparam da boca dele.
Apenas procuro o quarto vago mais próximo e enfio nós dois lá, nos
trancando. John penteia os fios fartos do seu cabelo para trás, e seus olhos
parecem me perguntar se estou ficando louca, mas nenhuma dessas palavras
saem da sua boca, já que ela está ocupada demais pondo um sorriso
descarado em seu rosto.
— Regra número dois — digo, andando em sua direção. Encurto
tanto a nossa distância que suas costas se chocam contra a parede do quarto.
— Não me provoque — sopro, perigosamente próximo da sua boca, que
logo se entreabre para mim. — Eu não pego leve quando vou dar o troco. E
eu vou te dar o troco, John Scott. Só preciso saber se você está mesmo
pronto para entrar nessa porque, honestamente, se você aceitar, não terá
mais volta.
John pisca uma, duas, três vezes. Seus cílios superiores e inferiores se
chocam tantas vezes que chega a ser engraçado de assistir. Entretanto,
quando aquela imensidão oceânica finalmente me encara, quase perco toda
a minha pose. Preciso fazer muito esforço para não desmoronar ou até
mesmo mandar meu plano ir à merda e o beijar agora mesmo.
— Como eu posso não aceitar que você me dê o troco, diabinha? —
Scott indaga, e seus dedos gélidos tocam o meu queixo com eles em
formato de pinça, fazendo com que eu tombe levemente a cabeça para trás.
— Eu estou querendo que isso aconteça desde sempre.
Umedeço os lábios e sorrio, contente pelas escolhas das suas palavras.
— Então está bem. — Envolvo seu pescoço com os meus punhos,
trazendo-o para perto de mim de forma brusca e nada serena. — Só não
peça para parar quando eu começar, lindo.
— Jamais — ele diz, suas mãos segurando firme cada lado da minha
cintura. — Dê o troco agora, Pasha Stratford. Me puna por ter beijado outra
pessoa. Jogue comigo. Sou todo seu agora para você fazer o que quiser,
diabinha.
Assinto em um manear lento de cabeça e circulo meu lábio superior
com a língua, pensando o que posso começar a fazer para provocá-lo de um
modo tão torturante quanto o que ele fez comigo. E só quando ele avança
para capturar os meus lábios, tentando dominar a situação, é que eu desvio
para o lado e o empurro na cama de casal. John não tem nem tempo de
processar o que havia acontecido, pois eu trato de me sentar em seu colo,
minhas pernas em cada lado da sua cintura.
— Esqueceu que você só me beija quando eu quiser? — Sorrio,
inocentemente. Seu maxilar começa a ficar totalmente marcado pela tensão,
e eu não poderia estar adorando mais. — E eu definitivamente não quero
agora.
— E o que você quer agora?
— Te torturar. — Dou de ombros.
Aproveito da situação para fazer um coque no meu cabelo, a fim de
tentar diminuir o calor infernal que sinto.
— Mas isso você já está fazendo, diabinha — John ronrona ao
depositar as mãos nas minhas coxas, apertando a região. — Não é como se
você precisasse fazer muito esforço para me torturar.
Libero uma risada irônica.
— Achei que você fosse mais forte nesses jogos — cantarolo.
— Não quando o jogo se trata de você — afirma, sem vacilar. Ele
costuma ser bom nessas coisas e eu preciso tomar cuidado. Preciso tomar
muito cuidado para não ser deixada para trás porque, venhamos e
convenhamos, John Scott tem o poder de fazer isso.
Por mais que eu me garanta nessas coisas, John também é um jogador
nato e, com toda certeza, à minha altura. Meus próximos passos terão que
ser milimetricamente calculados e bem pensados para que ele se sinta
exatamente da mesma forma que me senti. Preciso que ele queira mais. Que
me peça mais. Que se sinta realmente torturado e tocado de alguma forma.
Então é aí que a ideia surge em minha cabeça.
Me inclino ainda mais, e seus olhos logo recaem para o meu decote.
Não ligo, entretanto. Isso só faz com que eu me sinta ainda mais confiante,
então aproximo a boca da sua orelha e mordisco uma parte que consigo do
seu lóbulo — já que ele usa argolas nas duas. Quando solto aquela parte do
seu corpo, menciono:
— Você disse que hoje eu poderia fazer o que eu quisesse com você,
certo? — John murmura uma confirmação, e eu sorrio. — Então não estava
blefando? — Ele logo nega, balançando a cabeça. — Se você diz...
Volto para minha posição anterior e dou um sorriso sapeca antes de
adentrar minha mão boba por dentro de sua camiseta. A ponta dos meus
dedos toca cada gominho do seu abdômen, o que resulta xingamentos e
arrepios da sua parte. Aproveito também para arranhar com minhas unhas a
região, subindo pelo seu peitoral bem definido e de outro mundo. Para
completar, salpico beijos pelo seu pescoço exatamente da mesma forma
como ele estava fazendo com outras mais cedo.
Suas mãos se fecham em minha nuca, e eu tenho quase certeza que
está revirando os olhos agora mesmo.
— Elas te proporcionaram essa sensação, John? — pergunto, bem na
pele sensível do seu pescoço, que faço questão de lamber e mordiscar. —
Foram tão boas quanto eu? — Retiro minha mão da sua barriga e a levo
para perto do botão da sua calça, que fico brincando de girar com a ponta
do dedão, apenas para provocá-lo. Não esqueço de rebolar contra a sua
ereção viva sob mim.
A única coisa que escuto como resposta é uma mistura
enlouquecedora de arquejos, murmúrios e palavrões nada inocentes
escapulindo por entre seus belos lábios.
Ele quase suplica por misericórdia, e é exatamente nessa hora que
paro com os beijos e com qualquer outra coisa para me concentrar em
retirar meu cropped, jogando-o para algum canto do assoalho. Meus seios
estão livres de sutiã, então é óbvio que eles logo atraem a atenção do
garoto, que finca o incisivo no lábio inferior ao contemplá-los com a
lascívia passeando por suas írises claras e límpidas.
— Puta merda, garota — ele rosna, e até tenta tocá-los, mas eu dou
tapas em suas mãos antes que consiga chegar perto dos meus seios. — Você
realmente não existe. É a porra da mulher mais sexy e diabólica que eu ou
qualquer cara já viu.
Bom, meu ego agradece pelo elogio.
Engatinho para o lado, saindo do seu colo, e decido pular para fora da
cama. Com o movimento, meus longos cabelos se desfazem do coque e
cascateiam sobre meus ombros, cobrindo parcialmente meu colo. E já fora
da cama, não tão longe, mas não tão perto, retiro os saltos com a ajuda dos
calcanhares e começo a desabotoar minha calça, os olhos sempre
conectados ao de John, assim como ele fez mais cedo no corredor.
Nesse interim, John aproveita para se equilibrar sobre os cotovelos, os
glóbulos passeando por cada centímetro do meu corpo, queimando cada
parte que olha. Sou boa em fingir que não estou afetada, por isso deslizo a
calça pelas minhas pernas, jogando-a para o lado e ficando apenas de
calcinha.
Dou uma voltinha e, quando uma música com uma pegada mais sexy
começa a ressoar pela festa e atingir até mesmo o quarto em que estamos,
aproveito a deixa para passar as mãos pelas minhas coxas e ir subindo em
um caminho que passa pelo meu quadril, cintura, busto e que finalizo ao
jogar meu cabelo para o lado. Sinto que John observa atentamente cada um
dos meus movimentos, pois um arrepio se alastra da ponta do meu dedo
mindinho até a minha cabeça.
Não preciso ser uma gênia para saber que ele pulará para fora da
cama e se colocará atrás de mim, pois é exatamente isso o que ele faz. Suas
mãos seguram com força a minha cintura e me viram para si em um
solavanco, o que faz meu peito ser chocado contra o seu rapidamente.
Expiro lentamente todo o ar, e ele retira alguns fios da frente dos meus
olhos, colocando-os atrás da minha orelha.
Aproveito para pegar a sua outra mão e conduzi-la pelo meu corpo,
começando do meu pescoço, descendo pelo vão entre meus seios e
passeando por alguns cantos da minha barriga. Quando nossas mãos
chegam próximas do elástico da minha calcinha, a solto. Ele não faz mais
nada. Seus olhos seguem fixos nos meus e eu me sinto muito perto de
mergulhar no mar que ele abriga, afinal, a pouca luz proeminente do quarto
os deixam ainda mais lindos, parecendo exatamente a personificação de
quando visitamos à praia no fim da noite. Até consigo sentir a sensação dos
fios soprando meu cabelo, até mesmo ouvir o som das ondas se quebrando
quando o encaro. É uma mistura linda de reconforto, paz e tranquilidade.
O que é totalmente estranho para se perceber no momento que
estamos agora.
Apesar da sensação de familiaridade que estamos agora, me afasto.
Me afasto uns bons passos para trás e deixo que observe meu corpo
parcialmente nu uma última vez.
— Memorize bem essa cena — solto, antes de começar a procurar
minhas roupas pelo assoalho do quarto. Coloco-as junto ao meu peito e
sorrio, direcionando meus passos até a maçaneta da porta, que a indico com
a cabeça, em um gesto implícito para que saía. — Boa festa, lindo. Espero
que consiga se divertir com esse momento passando por sua cabeça.
Ele não diz nada, apenas sorri, atordoado, e fica parado ao meu lado,
perto da porta. Suas írises azuis analisam algo nas minhas, mas não tenho
tempo de pensar a respeito, pois logo abro minimamente a madeira e ele se
retira, deixando-me sozinha.
Solto um longo e fluxo de ar. Toco os meus lábios e eles logo se
formam em um sorriso. Com a outra mão, toco meu coração, que parece
cavalgar com toda intensidade por conta da adrenalina.
Bingo.
Acho que estamos quites esta noite, John Scott.
Fui embora da festa assim que saí daquele quarto. Não estava
conseguindo pensar com clareza, minha cabeça parecia abrigar soldadinhos
de chumbo, meu coração não se mantinha no lugar e todas as luzes, músicas
e garotas ao meu redor só conseguiam piorar e triplicar tudo o que eu estava
sentindo.
Tudo obra do diabo do Alasca, claro.
A imagem do seu corpo e a sensação das suas mãos e dos seus lábios
pareciam ter se impregnado em mim como uma maldita maldição. Nem
mesmo se eu quisesse ou rezasse para todos os santos, conseguiria fazer
com que seus efeitos simplesmente evaporassem das minhas células.
Por isso, sem pensar duas vezes, comuniquei aos meus amigos que
estava dando o fora da fraternidade e pilotei na minha moto até chegar em
casa, onde eu me enfiei em um banho gelado por horas, a fim de tentar tirar
os resíduos da ruiva. Mas, para a minha infelicidade, nada adiantou. O
contato gélido da água só conseguiu fazer com que eu lembrasse
exatamente dos seus olhos sobre mim, quando me mandou embora do
quarto. Eles estavam gélidos e, por incrível que pareça, mesmo que
tivéssemos incendiado tudo naquela cama, eu senti frio naquele momento.
Eu senti frio quando ela decidiu repousá-los sobre mim, pois, querendo ou
não, estava jogando comigo e tentando me punir de alguma forma.
Seus olhos não pareciam nada amigáveis. E o seu troco foi tão
certeiro que, assim como ela desejou — mesmo que ironicamente e
implicitamente —, não consegui me divertir com o momento passando pela
minha cabeça como em um looping infinito.
E eu sabia que não seria fácil participar do seu jogo, eu estava vendo
em seu rosto o quanto estava disposta a me maltratar, mas, mesmo assim,
sentindo o que estava sentindo e querendo-a mais do que tudo, não consegui
recuar. Não consegui ir embora e fiquei. Fiquei para ver onde aquilo daria e
não me arrependo. Não me arrependo de ter sentido seu toque, seus beijos e
de ter contemplado cada parte bem feita do monumento que é seu corpo. Eu
amei cada segundo daquela nossa pequena bolha de jogos, desafios e
punições.
Mas, para falar a verdade, me arrependo de ter ficado com aquelas
garotas. Fiquei com elas por conta da fala de Pasha na cozinha, por ter tido
ela impregnada em meu cérebro e, com toda certeza, fiquei com as garotas
para tentar abafar meus pensamentos que sempre eram levados para a ruiva.
Estava tentado a mostrar a mim mesmo que, quando estivesse com outras,
não conseguiria pensar nela. Eu precisava que isso fosse mesmo real e fiz o
que fiz para que pudesse ter a certeza disso.
O plano foi totalmente falho, obviamente. Tive duas garotas em meu
encalço e só conseguia pensar na diabinha e no modo como ela estaria
reagindo se eu a pegasse da mesma forma como estava pegando as meninas.
E quando eu a vi, parada no corredor, olhando para a cena com os olhos
saltados e a expressão pincelada por choque, raiva e desejo, contrariando
tudo o que estava pensando no momento, quis que percebesse através dos
meus atos que até mesmo quando não estava com ela, pensava nela.
Que até quando estava cercado por mulheres, era nela em quem eu
pensava e quem eu desejava.
Foi uma péssima forma de mostrar isso, afinal, seria muito mais fácil
falar em um diálogo sincero, só que não sou bom com palavras e às vezes é
difícil não ser um babaca, mesmo que eu me esforce muito para não ser um
quando se trata dela.
Pasha não parecia chateada, magoada, enganada e nem nada do tipo
quando decidiu me puxar pela gola da camiseta e me enfiar em um quarto
qualquer. Na real, Pasha parecia ter ficado visivelmente desafiada, pronta
para me fazer sentir o que sentiu quando me flagrou naquela situação. E,
sinceramente, devo dar meus parabéns, pois consegui entender exatamente
o que ela sentiu através do seu jogo, já que senti exatamente a mesma coisa.
Eu me senti desafiado através das faíscas das suas írises, me senti
excitado pela forma como sua mão passeava deliberadamente pelo meu
corpo, e, claro, me senti ainda mais pela forma como retirava cada peça das
suas roupas, olhando-me daquele jeito ardente e hipnotizante que só ela
consegue. Me senti pronto para ela, para querer ela e para fazer qualquer
coisa com ela.
Eu só queria Pasha Stratford naquela festa, naquela cama, naquele
chão ou em qualquer lugar que quisesse. Queria estar com ela, sobre ela,
embaixo dela ou dentro dela.
Então quando a ruiva fez o que fez, me mandando memorizar a cena
do seu corpo seminu e logo depois catando suas roupas e me expulsando,
havia entendido o troco.
Nada de provocações daquele tipo mais.
Suspiro e estiro meus pés na cama, logo após contar para Daisy tudo
o que havia acontecido na festa ontem. Nós dois estamos assistindo o filme
O Estranho Mundo de Jack sozinhos no meu trailer, pois meus amigos
estão todos no Fast Rocket e eu, definitivamente, não quero estar lá hoje. A
garota de cabelos vermelhos, que até então não tinha nada para fazer, topou
me fazer companhia para que eu pudesse desabafar sobre tudo o que estava
inundando minha mente.
Gosto de compartilhar essas coisas com ela. Daisy não me julga, não
me condena e nem fica afirmando toda hora o quão idiota e com pouco tato
eu sou. Ela sempre fica calada para que eu possa contar as coisas, faz
observações pertinentes aqui e ali, não toma partido e é sempre bastante
sincera com o que precisa ser dito. E embora nós dois não tenhamos uma
amizade super forte, já que quando estamos juntos sempre ficamos
ocupados com outras coisas, me sinto à vontade com ela. Não sei o porquê,
mas tem algo em seu jeito e em sua personalidade que reconforta qualquer
um.
— Essa garota é maravilhosa — Daisy se refere à Pasha logo depois
de parecer processar tudo. Ela tem um sorriso divertido pincelando seu
rosto agora, enquanto me fita de rabo de olho. — Preciso urgentemente ter
umas aulas com ela sobre como colocar um homem em seu devido lugar. A
tática que ela usou para te dar o troco foi ótima, John. Tenho certeza que
você se sentiu tão afetado por aquilo quanto ela ficou por ter te visto beijar
duas garotas bem na frente dela.
Reviro os olhos de brincadeira.
— Ela é perversa, Flinch — conto, e sou sincero. Apesar da garota ao
meu lado estar grudada no filme que se desenrola, está atenta a conversa,
pois confirma meu comentário e solta uma risadinha. — Ela desfrutou do
meu corpo gostoso, tirou a porra da roupa bem na minha frente e tocou na
minha mão e a conduziu por algumas partes do seu corpo, como se aquilo
não fosse me levar à loucura, e depois simplesmente foi embora. — Passo
as mãos pelo meu rosto ao ter as cenas pipocando em minha mente,
soltando um grunhido logo depois. — Eu deveria denunciar ela só por ter
me deixado tão duro.
Daisy cai na gargalhada.
— O que será que vai acontecer com vocês agora? — ela me
pergunta, visivelmente curiosa. Apenas dou de ombros, porque nem eu sei
responder essa. — Posso estar equivocada, mas acredito que o que
aconteceu naquele quarto não foi nem metade da metade do que tem pela
frente. — Daisy sacode os ombros para cima, despreocupada. — Sei lá, é o
que eu sinto, sabe? Sua ruiva vai causar muito e eu espero que seu coração
esteja preparado, pois ela sabe brincar.
— Ah, mas isso eu não tenho a menor dúvida — afirmo, convicto. —
Eu me garanto nesse lance todo, mas, por alguma razão, quando se trata
dela, não sei... Não me garanto tanto, não. Eu deveria começar a me
preocupar, não é? Isso tem cara de que não vai terminar bem. Pasha é
perigo demais até para mim.
Daisy pega o controle da tevê e pausa o filme, depois se vira para
mim. Seus lábios estão formados em um bico de lado e ela parece realmente
pensar direitinho sobre sua próxima fala e como ela me atingirá. O jeito
como essa garota sabe lidar com as pessoas é surreal. Talvez por ter passado
por tanta coisa na cidade em que veio, conseguiu aprender a ler muito bem
quem passa pelo seu caminho.
— É algo para se preocupar, sim, Scott — diz, por fim. — Mas
também não é nada de outro mundo. Se o jogo não for mais jogo para
vocês, então simplesmente parem a partida e reflitam cautelosamente os
próximos passos e se vocês estão prontos para eles. Nada que sinceridade e
diálogo não ajudem. — Seus olhos castanhos escuros ficam semicerrados
no exato momento em que levanta o dedo em riste na minha direção. — E
não magoe a garota por medo, está me ouvindo? Como já dizia
Shakespeare: “Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com
frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar.” Então, se eu
posso te dar um conselho, arrisque-se.
Daisy Flinch sempre se empolga nos conselhos. Ela tem essa veia
artística e meio filosófica, então sempre que pode fica enfiando essas frases
motivacionais. É engraçado, mas não deixa de ser sábio e bem motivador.
Quando percebo, estou sorrindo.
— Guardarei suas belas palavras, Flinch. Ou melhor, as palavras de
Shakespeare. Dá até pra fazer uma tatuagem com ela, sabia? Gostei. —
Olho para os meus braços e para o meu peito, mas quase não tem pele
nenhuma sobrando, está tudo tomado por tinta. — Qual lugar você acha que
ficaria legal? Na perna, talvez? — pergunto, incerto. Daisy apenas revira os
olhos e empurra meu ombro com uma das mãos.
— Estou falando sério, neném. — Lá vem ela com esse apelido
estúpido, faz com que uma careta de desgosto se forme em meu rosto. Isso
não a abala, pois continua: — Você gosta de levar tudo na brincadeira, não
é? Quero só ver quando a brincadeira se voltar contra você.
Touché.
Levo a mão até o peito e finjo que fui atingido com suas palavras.
— Tudo bem, tudo bem. — Dou o assunto por encerrado, e ela
finalmente volta a encarar a tevê, liberando o filme de onde parou.
As vozes do desenho animado voltam a reverberar pelo trailer e nós
dois ficamos em silêncio por mais quarenta e poucos minutos, não sei ao
certo. Infelizmente, me desligo do momento e tudo que consigo pensar é em
Pasha Stratford e nossa brincadeira altamente perigosa e nada segura para
ambos.
Estou tão atordoado que nem sei ao menos em que bar que me enfio
dessa vez. Só sei que ele é escuro, as paredes são pintadas de preto e o
assoalho é de uma madeira propositalmente desgastada. O cheiro de tabaco
e uísque barato é predominantemente forte e atinge minhas narinas assim
que me sento em uma das mesas próximas ao balcão de bebidas.
Não é reconfortante, mas parece ser exatamente o tipo de lugar que
preciso estar agora.
Preciso encher a cara com bebidas baratas e tentar esquecer uma tal
cena que não sai da droga da minha cabeça.
Acho que eu não deveria estar aqui, e sim em hospital. Estou entrando
em colapso e parece ser bastante sério.
— Inferno de dor de cabeça — murmuro para mim mesmo,
massageando a têmpora.
Depois que terminei de assistir ao filme com Daisy, precisei sair para
dar uma espairecida. Nunca rodei tanto a cidade quanto hoje. Fui para um
lado, para o outro e nada parecia fazer com que eu me sentisse do jeito que
estou me sentindo. Até pensei em ir para o meu lugar secreto, pois em
momentos como esse, em momentos que estou à beira do nervosismo, lá
costuma ser meu ponto de paz, só que lembrei que agora lá também é um
lugar que me faz lembrar da pessoa que estou fugindo.
Por que eu tive que levá-la lá, afinal?
Não tenho mais tempo de me martirizar por isso, pois logo chamo um
garçom e peço uma garrafa de uísque, que ele logo faz questão de ir buscar.
Cerca de dois minutos depois, estou enfiando o líquido âmbar goela abaixo
enquanto um cigarro se encontra pendido entre meus dedos adornado de
anéis. A fumaça cinzenta dança em espiral e tudo ao meu redor parece
nublado demais para que eu consiga analisar.
A música Smells Like Teen Spirit da banda Nirvana ressoa pelo
cubículo e embala o meu momento solitário, então batuco os dedos na
madeira da mesa e faço o líquido caramelo dançar no copo de vidro,
balançando-o de um lado para o outro. Trago a maior quantidade de
nicotina para os meus pulmões, o que acaba relaxando os músculos tensos
do meu corpo.
Se passam algumas horas, pessoas saem, pessoas entram, e eu
continuo sentado no mesmo lugar. Mesmo que eu tenha bebido a metade da
garrafa, não me sinto bêbado o suficiente.
Merda, detesto ser resistente para bebidas.
Adoraria estar esquecido do meu próprio nome agora.
Bufando, arrasto a cadeira para trás, flexiono os joelhos e me levanto.
Varro o local com os olhos e tento achar indícios de onde fica o banheiro.
Depois de ver uma pequena fila de garotos ir na minha direção contrária,
suponho que seja para ir ao banheiro, então sigo todos eles.
Passo por um corredor estreito e ainda mais escuro do que o normal.
Pisco os olhos para tentar acostumar com o breu e, quando percebo, não
dou de cara com porta de banheiro ou nada parecido. Me dou de cara com a
saída de emergência, onde os caras saíram. Eu provavelmente deveria dar
meia volta e procurar o banheiro, mas algo em mim diz que preciso abrir
essas portas e conferir o que está acontecendo no fundo desse bar. Pode ser
a minha estupidez falando mais alto, mas resolvo escutá-la e é exatamente o
que faço. Toco a gélida porta de metal, a empurro e dou um passo para fora.
Os fundos da rua estão escuros, desérticos e nada parece estar
acontecendo.
Estou pronto para voltar para dentro do bar, mas um grito sôfrego
ecoando pela viela me faz retesar meus próximos movimentos. Fico quieto,
paralisado e tenho medo da minha respiração entrecortada entregar que
estou bem aqui, possivelmente espiando o que definitivamente não deveria
ser da minha conta. O silêncio permanece, nada se escuta novamente e eu
até chego a duvidar se o que escutei foi real ou se foi algum tipo de
brincadeira idiota do meu subconsciente alcoolizado.
Só que não foi. Não foi brincadeira do meu subconsciente, porque
escuto o grito outra vez, só que dessa vez muito mais forte e muito mais
audível. Minhas pernas pensam antes que meu cérebro e me levam até o
beco, onde eu encontro cinco ou seis homens ao redor de um só, que está
imprensado contra a parede e tem a mão de um dos caras envoltas do seu
pescoço, lhe enforcando. Todos os outros idiotas parecem adorar a cena e o
sofrimento alheio, pois dão risada e continuam incentivando a maldade.
Fecho a minha mão em punho e já sinto o ódio borbulhar em minhas
veias. Minha narina dilata e eu tenho certeza de que meu rosto está todo
vermelho por conta da raiva, afinal, detesto cenas como essa. Detesto
demais para simplesmente ficar aqui sem fazer nada. Não sei que merda
está acontecendo, mas já fui aquele garoto e nunca tive ninguém para me
defender como ele tem agora. Embora a minha pessoa provavelmente não
vá fazer diferença alguma, me aproximo, sem nenhum tipo de vontade de
ser cauteloso ou pacífico.
Todos os pares de olhos me encontram, surpresos. Esses caras,
mesmo que sejam grandes e fortes, provavelmente são do colegial, pois
usam aquelas jaquetas do time de futebol americano e estão, sem sombra de
dúvida, atormentando algum garoto que esteja lá embaixo dessas típicas
hierarquias criadas em escolas.
Odeio valentões. Odeio esses caras e tudo que eles representam.
Odeio, odeio e odeio.
Eles me lembram a pior fase da minha vida, o que faz com que a raiva
só aumente.
— Soltem. Ele. Agora! — rosno, entredentes. Estou completamente
furioso, corajoso e tenho certeza que é tudo devido ao uísque. Meu Deus, eu
posso me ferrar tipo muito agora, mas não deixo transparecer a pontada de
medo que se aloja em meu estômago. — Eu mandei soltar!
Os caras do time de futebol se entreolham, olham para mim de novo,
olham para o garoto e decidem rir. Eles riem como se eu fosse a porra de
uma piada ou um palhaço de circo.
Dou mais um passo, dessa vez muito mais sombrio que antes, e o que
estava com a mão ao redor do pescoço do outro logo solta, fazendo com que
o garoto caia no chão e comece a chorar desenfreadamente, completamente
amedrontado, nervoso e visivelmente sem ar, como se estivesse entrando
em uma espécie de ataque de pânico.
De repente, me vejo naquele garoto.
De repente, me sinto voltando para aquele lugar.
Em um momento, sinto todas as minhas dores voltarem, assim como
o do garoto deitado em posição fetal. No outro, sinto meu punho atingir
com todas as forças o nariz do moreno valentão, que cambaleia para trás,
xinga e leva a mão até a região coberta de sangue.
E no outro, tudo se mistura em um borrão de socos, ossos quebrados e
sangue.
Muito sangue.
Às vezes, quando estou com a cabeça a mil, tenho a mania de
escapulir à noite pela janela do meu quarto e correr pelas ruas do meu
bairro. Então é exatamente isso que faço agora. Coloco os fones do meu
walkman, que agora explodem a música Stand By Me do Ben E. King nos
meus ouvidos, posiciono o capuz do meu moletom canguru na cabeça,
afundo as mãos nos bolsos e acelero meu tênis de corrida, deixando
algumas árvores e casas para trás — inclusive a minha.
Enquanto corro, já sentindo os meus pulmões queimarem e a
respiração ficar ofegante, flashes da noite passada rompem em minha mente
e eu acelero ainda mais, como se acelerar os passos fosse capaz de evaporar
os pensamentos e me manter focada no que interessa, que é puxar o ar com
precisão e não esbarrar em nada que possa eventualmente me fazer parar.
E eu simplesmente não paro.
À medida que entro nas próximas ruas, para o meu completo
desespero, mais imagens e borrões da festa se impregnam em mim. A cada
passada, uma imagem diferente. A cada hiperventilação, um arrepio só por
sentir o toque de John Scott pelo meu corpo. A cada gotícula de suor, um
desespero diferente por estar com a imensidão oceânica dos olhos dele
cravados bem na minha frente, como se ele estivesse ali, correndo junto
comigo ou até mesmo me puxando para um caminho em que o encontro.
Não gosto nada dessa sensação de iminência que se alastra pelos
meus ossos agora.
O refrão de Stand By Me ressoa com força e, assim que percebo que
corri mais do que deveria — já que entro em uma rua completamente
desértica e escura —, dou uma desacelerada, com medo. Pouco a pouco,
quase no meio do beco, vou desacelerando os passos e aproveito para
curvar o corpo e colocar as mãos nos joelhos, tentando desesperadamente
respirar.
Meu Deus, eu preciso de água agora. Sinto que posso desfalecer a
qualquer momento, pois meus pulmões simplesmente não param de arder
pela corrida que eu claramente estava despreparada.
Estou pronta para retornar, mas simplesmente não consigo sair do
lugar. Provavelmente pode ser um protesto das minhas pernas ou só a droga
do pânico se expandido em cada célula do meu corpo, mas não consigo nem
ao menos me mover e correr para a minha casa, para o lugar que eu
definitivamente não deveria ter saído. E isso tudo por estar, mesmo que na
quase completa escuridão, enxergando passos cautelosos sendo dados em
minha direção. Eu até posso ver a merda de um par de botas masculinas
contrastando perfeitamente com o chão de tijolos que nos encontramos.
Estou ferrada.
Completamente ferrada.
Vou morrer agora mesmo como uma dessas garotas estúpidas de filme
de terror e nem ao menos consigo me mexer por causa dessa constatação.
Fecho os olhos com certa força e peço, de onde quer que ele esteja,
que Ben E. King me proteja e não deixe que eu seja morta ou torturada essa
noite.
Ou que ele pelo menos me dê uma forcinha para que eu consiga
correr a tempo.
Não sei se alguém ouviu as minhas preces, mas consigo dar uns bons
passos para trás quando a pessoa dá uns para frente. Estou prestes a gritar e
a correr mais rápido que The Flash agora, só que quando o homem sai da
escuridão e a sua figura agora é clareada pela luz vertiginosa da Lua acima
de nós, o reconheço. Seu rosto pode estar inchado, cortado, arroxeado e
coberto de sangue em alguns lugares, mas eu sempre o reconheceria.
John Scott está completamente destruído em minha frente.
Meu peito se comprime no exato momento em que eu retiro o capuz e
os fones do walkman, logo depois me aproximando bem a tempo de vê-lo
cambalear para o lado. Se eu não tivesse o segurado, com certeza que
chocaria seu peso todo no chão. Pego seu braço e o coloco ao redor do meu
pescoço, tentando equilibrá-lo. E embora seja mais alto e pese uma tonelada
de músculos, consigo ajudá-lo de alguma forma. Ele logo crava os olhos em
mim e parece surpreso demais ao saber que estou bem aqui, ao seu lado,
provavelmente no momento que ele mais precisa.
— Diabinha? — Sua voz sai em um sussurro sôfrego. — É você
mesmo ou a porra da minha cabeça está afetada com as pancadas que levei?
— É, sou eu — respondo, fazendo-o andar junto a mim. — Onde
merda você se enfiou pra ficar todo arrebentado assim? O que foi que você
aprontou dessa vez, hein?
De soslaio, enquanto vamos caminhando de pouquinho em pouquinho
para sair desse lugar, vejo que seus lábios se erguem em um sorriso. Ele
franze o rosto em uma careta logo depois, pois parece que até o mínimo ato
de sorrir dói todos os músculos do seu rosto.
— Por que você sempre tem que pensar o pior de mim? — John tenta
não parecer ofendido, mas eu percebo que ficou. Percebo através do seu
tom de voz e dos seus olhos, que se encontram me fitando agora. Há um
brilho de decepção por ali, e eu me sinto horrível pelo pré-julgamento. — E
por que, em nome de Deus, você está nessa merda de rua a essa hora da
noite? Perdeu a noção do perigo, porra?! — ele esbraveja, visivelmente
irritado e preocupado. — Eu vou matar você, Pasha Stratford! Eu vou matar
você por colocar sua segurança em risco, está me ouvindo?
Tento esconder o sorriso que se forma em meu rosto, mas é quase
impossível. Mesmo estando todo ferrado, quebrado e machucado, John
Scott grita e se preocupa por eu estar me aventurando em minhas corridas.
Gosto disso. Gosto de saber que ele se preocupa comigo e com a minha
segurança.
— No estado que você se encontra agora, lindo, nem uma mosca você
mata — afirmo, e o ouço grunhir. Não sei se é causado pela dor que sente
ou por conta das minhas palavras, mas ele solta. No final das contas, talvez
sejam as duas coisas. — Agora fica quietinho aí e coopera comigo. Vou te
levar para minha casa, fazer uns curativos em você e lá, somente lá, vou
querer que você abra essa sua boca para me contar o que aconteceu. Antes
disso, nenhum som — ordeno, John faz o maior esforço para mostrar que
entendeu. — Bom garoto.
Ele fica realmente em silêncio e a gente consegue se afastar cada vez
mais, agora andando em direção a minha casa. O lugar que estamos agora
não é tão longe dela, provavelmente viraremos algumas quadras e já
estaremos lá. Só que apesar de estar tentando bancar a forte e controlar a
situação, ainda sinto uma falta de ar incômoda e todo o meu corpo dói. Meu
coração parece querer saltar pela garganta e eu desconfio que nenhuma
dessas reações seja por conta da minha corrida ou do meu medo a princípio
por John saindo do escuro. Na verdade, para ser bem sincera, acredito que
todos esses sintomas se devam ao fato de ter encontrado esse garoto nessa
situação. Me sinto mal só em pensar em encontrá-lo de outra forma naquele
beco ou, pior, me sinto mal só de pensar em como seria a sua situação se eu
não tivesse o encontrado, se eu simplesmente não tivesse decidido correr
esta noite.
Será que ele conseguiria chegar em casa? Provavelmente não. Andar
em sua moto seria horrível demais para alguém que saiu visivelmente
ferrado de uma briga.
Eu realmente não sei o que lhe aconteceria.
Um grande obrigada aos meus músicos favoritos que me deram um
empurrãozinho lá de cima para que eu o encontrasse.
Mais alguns dificultosos passos e conseguimos adentrar a minha casa.
Apesar de ter escapado pela janela para não acordar meus tios, sempre levo
a chave reserva que tenho junto a mim, provavelmente por medo que coisas
como essas aconteçam. Já dentro dela, me separo de John e peço para que
não mexa em nada e nem faça barulho. Subo as escadas correndo e observo
o andar de cima, só para checar se a área está liberada. O quarto de David e
Rosalinda está trancado, então fico mais aliviada e desço os degraus, agora
me pondo ao lado de John para poder subir com ele em meu encalço.
Quando chegamos em meu quarto, tranco a porta e o ajudo na hora de
se sentar na minha cama, acomodando alguns travesseiros em suas costas.
Ele geme de dor e eu uno as sobrancelhas, fitando seu rosto com aquele ar
de preocupação me envolvendo. John parece perceber, pois murmura que
está bem e agradece por eu o ter lhe ajudado.
— Não precisa agradecer — respondo. Aproveito para tirar os tênis
de corrida e o moletom, ficando apenas de short e top. — Se quiser e se
tiver mais ferimentos, pode tirar a jaqueta e a camisa. — Aponto com o
polegar e o indicador para a porta atrás de mim, onde fica o meu banheiro.
— Vou pegar o kit de primeiros socorros, fica aí.
John assente e eu giro sobre os calcanhares ao ir buscar o kit. Abro a
porta do banheiro, fico na frente dos armários em baixo da pia e pesco a
caixa de lá de dentro. Com ela agarrada ao peito, volto para o quarto e
encontro John Scott arrancando a camiseta branca lisa, o peitoral definido e
cheio de desenhos ficando à mostra em toda sua glória. Preciso fazer o
maior esforço para não percorrer os olhos por cada desenho, então fecho os
olhos, pigarreio e me aproximo, sentando-me em sua frente.
Com a caixa de primeiros socorros repousadas sobre minhas coxas,
retiro o algodão e o álcool de lá de dentro. Pingo algumas gotas do álcool
no algodão, coloco a caixa na cama e me aproximo mais, pedindo
silenciosamente uma autorização para prosseguir. John balança a cabeça e
eu olho para o seu rosto, que está, novamente, sendo clareado pela luz da
Lua que invade as janelas do meu quarto. Vejo com mais nitidez que um
dos seus olhos já se encontra roxo e inchado, que há cortes em seu
supercílio, lábio superior e queixo, que tem sangue seco espalhado por esses
pontos e que, contrariando todas as coisas humanamente impossíveis, se
encontra ainda mais lindo do que o habitual.
Parece uma versão ainda mais rebelde, perigosa e impossível para
mim.
Balanço a cabeça de um lado para o outro ao afastar os pensamentos
impróprios para o momento e, com todo o cuidado do meu ser, aproximo o
algodão do corte em seu supercílio. Um xingamento apressado sai dos seus
lábios e uma careta de dor se forma em seu rosto por conta da ardência que
muito provavelmente está sentindo com a pequena pressão que imponho, a
fim de conseguir tirar a maior quantidade do sangue. Depois, quando ele
parece ter se acostumado e eu pareço ter melhorado aquela área, desço para
seus lábios e depois para o queixo, tudo na maior calma e paciência
possível.
— Prontinho — comento, assim que finalizo todo o processo. Toco a
parte não cortada do seu queixo e ergo seu rosto um pouco para cima,
tentando ver se tinha conseguido passar por todos os pontos afetados. Bom,
tirando o olho roxo, parece que ficará bem, pois não precisará de pontos nos
cortes. Está quase novo em folha. Aproveito para fazer os curativos. —
Mais algum lugar que eu preciso cuidar?
Scott desce os olhos para suas costelas e eu o acompanho, flagrando a
vermelhidão se formar no lugar. Ele parece entender que não tem como
cuidar dessa, pois ergue as írises azuis para mim e faz que não com a
cabeça. Só que eu ergo a minha palma e peço para que ele espere, voltando
a mexer na caixa de socorros. Reviro algumas coisas e procuro a pomada
para dor muscular que eu sei que tem. Dentro de uma caixa de papel
amarela, a encontro.
— É para dor muscular — explico ao colocar o conteúdo da pomada
em minha mão. — Vou passar na região, certo?
Mais uma vez, parecendo estar incapacitado de falar qualquer coisa,
ele assente em um manear de cabeça.
Eu provavelmente acharia muito estranho esse seu silêncio, mas tendo
em vista o que deve ter enfrentado hoje, não o julgo caso não queira falar
pelo resto da noite.
Queria poder ter chegado antes, queria poder ter evitado qualquer
coisa que lhe aconteceu. Queria, sem sombra de dúvidas, ter o protegido.
Inspiro todo o ar que consigo e expiro pela fresta dos meus lábios,
prestando atenção em sua costela. Passo a pomada na região avermelhada e
sinto seu corpo se arrepiar sob a ponta dos meus dedos. Finjo que aquilo
não me comove e continuo passando, espalhando-a um pouco agora pelas
suas costas. E, antes que eu possa fazer qualquer coisa mais, John segura
em meus pulsos, impedindo-me de prosseguir. Ele não fala nada, apenas me
olha, bem no fundo dos meus olhos. Lentamente, vou soltando as minhas
mãos do seu toque e ele não se opõe, pois continua completamente atento
aos meus olhos, como se as minhas írises castanhas fossem o bote salva-
vidas que as suas tanto precisam.
Ele me olha, por incrível que pareça, como se quisesse ter a certeza de
que sou eu mesmo ali. De que o nosso momento é mesmo real e não apenas
um sonho que teve depois da surra.
Ele me olha com cuidado, carinho e proteção. Não tem lascívia, não
tem luxúria, não tem desafio, não tem nada. John Stone Scott me olha como
se quisesse me proteger de tudo e todos.
E eu provavelmente devo o estar olhando da mesma maneira.
— Não sei se o apelido de diabinha faz jus a você mais — solta, e seu
hálito de bebida alcóolica lambe meu rosto. Se fosse outra ocasião, se fosse
outra pessoa em minha frente e não ele, eu provavelmente reclamaria.
Agora, no entanto, não faço nada a não ser engolir em seco. — Você é um
anjo, Pasha. Não, não apenas um anjo, mas o meu anjo. — Suas mãos se
encontram em cada lado da minha bochecha e seus dedos escovam a maçã
do meu rosto, o que acaba me fazendo sorrir involuntariamente. — Porra,
Stratford, você é boa demais para mim. Mesmo eu agindo como um babaca
ontem, você nem ao menos pensou duas vezes em me ajudar e me trazer
para sua casa. Por que você fez isso? Por que fez isso por mim? — John
nega com a cabeça várias vezes, inconformado. — Eu não mereço. Não
mereço que você se envolva comigo. Sou ferrado, cheio de problemas e não
sei tratar você do jeito que você merece ser tratada. Nasci para ficar
sozinho, então por favor, se afaste de mim antes que seja tarde demais.
Antes que eu te corrompa e te puxe para o buraco negro que é a minha vida.
— Seus olhos azuis parecem se encher de água cristalina, mas não tenho
tempo de ver se é mesmo verdade, pois o loiro logo afunda o rosto na
curvatura do meu pescoço, soltando: — Garotas como você não devem
brincar com caras como eu.
Dou uma risadinha irônica e coloco minhas mãos em seu peito, o
afastando minimamente. Seus olhos estão banhados de medo, desespero e
agonia quando me encaram. Eu reconheço a dor ali, pois eu a possuo
também. Somos iguais e eu consigo perceber isso agora através dos seus
orbes, que imploram para que eu me afaste, embora tenha algo ali que não
concorde com isso.
Não sei o que aconteceu hoje, mas não sou ingênua. Sei que o que
aconteceu com ele provavelmente pode ter acionado alguns gatilhos da sua
vida, que acabou resultando nesse desespero da parte dele, nesse desespero
de me afastar, como se não fosse merecedor de coisas boas. Embora não me
considere uma pessoa boa, ele provavelmente acha que sou. Provavelmente
acha que não podemos entrar no que estávamos tentando entrar por achar
que deve me preservar dele. Que deve me manter afastada, pois isso, sem
sombra de dúvida, será algo benéfico para mim.
— Deixe-me te explicar uma coisa, John Scott. — Afasto tudo da
cama e me coloco de joelhos, agora ficando um pouco mais alta. Coloco
minhas mãos em seu rosto e forço que ele olhe para os meus olhos, apenas
para eles. — Você não sabe nada sobre a minha vida e sobre quem sou.
Perdi a minha irmã de sete anos, que era a melhor coisa da minha vida, vivi
um inferno no Alasca, fiz coisas das quais não me orgulho, me envolvi com
pessoas erradas, briguei com os meus pais, tem um ano e alguns meses que
nem sequer escuto as vozes deles e não sou a garota perfeita ou perto disso
que acha que sou. Sou quebrada, um pouco mimada, ainda tenho traços de
ignorância e nunca, em hipótese alguma, busquei por um príncipe
encantado no cavalo branco. — Me aproximo ainda mais, e vejo seu pomo
de Adão subir e descer, assim como vejo seus olhos se concentrarem em
minha boca. — Não quero que me dê ordens e nem que tome decisões por
nós dois. E, meu Deus, por favor, da onde tirou que sou um anjo? Sou
mesmo uma diabinha e posso infernizar ainda mais a sua vida se você ficar
quieto e não me beijar agora mesmo.
Ele parece assustado com as minhas palavras incisivas, mas não me
contraria e nem diz mais nada. Parece refletir sobre os prós e os contras de
seguir a minha ordem e de embarcar definitivamente nessa comigo, porém,
para a minha grata surpresa, parece mandar tudo à merda no segundo
seguinte, pois sua mão grande e firme se concentra em minha nuca e, em
um solavanco totalmente delicioso, choca a sua boca quente contra a minha,
que logo se entreabre e deixa que a sua língua explore cada canto dela.
Logo em seguida, sua outra mão livre crava em minha bunda e força
meu corpo para baixo, obrigando-me a sentar em seu colo. Não protesto,
entretanto. Monto-me nele e passo as unhas pelas suas costas desnudas, lhe
arrancado um gemido baixinho durante o nosso beijo.
Sua língua brinca e se enrosca com a minha, tirando proveito dela e
de todo o meu gosto.
Meu coração palpita e sinto-me tonta — talvez pelo gosto de uísque e
nicotina da sua boca —, mas não sou capaz de me afastar e nem nada disso,
principalmente quando seus dentes cravam em meu lábio inferior e os
mordem de forma provocativa.
Nosso primeiro beijo, que aconteceu em uma festa no ano passado,
havia sido bom. Sério, foi mesmo. Mas, venhamos e convenhamos, não se
compara com esse aqui. Nós estamos a sós, a meia luz e tudo ao nosso redor
parece congelar só para que consigamos tirar o maior proveito disso.
Nossas bocas se separam alguns minutos depois, em uma tentativa
desesperada de retomar o fôlego, mas eu continuo próxima. Continuo tão
próxima que consigo sentir seu coração dançando desenfreadamente junto
do meu.
— O que estamos fazendo, Pasha? — Scott indaga, quase
sussurrando. Ele leva alguns dedos para perto do meu rosto e afasta alguns
fios rebeldes do local, colocando-os atrás da minha orelha.
— Não sei — respondo, sinceramente. — Quer descobrir comigo?
O sorriso de John parece clarear todo o cômodo ao nosso redor. Ele
nem ao menos pensa dessa vez, apenas diz:
— Quero, sim. Mas só se você deixar eu colocar o pronome
possessivo na frente da palavra anjo.
— De jeito nenhum. — Dou risada ao negar, e me aproximo da sua
orelha, apenas para soprar: — Só deixo o pronome possessivo se for na
frente da palavra diabinha.
Meio a contragosto, o loiro assente.
— Faremos o que você quiser então, minha diabinha.
E então, simples assim, John Scott volta a me beijar.
Não sou um anjo e nem me pareço com um.
Acho que o apelido de diabinha nunca combinou tanto comigo.
Principalmente agora.
John distribui beijos pelo meu pescoço e aperta a minha bunda, o que
me faz arfar e revirar os olhos. Sua língua quente e macia circunda a minha
pele e seus lábios molhados descem em um trajeto certeiro até meu colo,
onde ele salpica beijos e mordidas. Sem deixar que o loiro faça mais
alguma coisa para me levar à loucura, coloco minhas mãos em cada lado do
seu rosto e trago sua boca à minha, pressionando seus lábios aos meus com
toda a urgência e necessidade que habita o meu ser.
Acho que faço pressão demais no seu ferimento não cicatrizado, pois
o escuto grunhir de dor.
— Meu Deus, desculpa! — peço, assim que separo nossas bocas.
Meus olhos logo se cravam no seu lábio superior e consigo perceber o filete
de sangue começar a escorrer. — Está sangrando novamente, John. É
melhor que a gente pare por aqui. — Aponto com o queixo o seu ferimento,
e ele acaba dando de ombros ao passar o dorso da mão tatuada na região,
sumindo com o vermelho escarlate.
— Nada vai fazer com que a gente pare por aqui, minha diabinha. —
Seu tom de voz soa tão malicioso quanto o sorriso torto que se forma em
seu rosto. — Seus beijos anestesiam a minha dor, então eu acho que você
precisa voltar para cá urgentemente — diz, manhoso. As pupilas logo se
expandem em suas írises com a forma enérgica que seus olhos me
esquadrinham, pidões. — Já estou começando a sentir uma puta dor,
mocinha.
Balanço a cabeça com a sua cara de pau e deposito um selinho
demorado em seus lábios, sorrindo feito uma idiota no processo.
— Você deveria descansar, lindo — aconselho, e estou sendo sincera.
Seu corpo está todo ferrado e ele precisa deitar e dormir um pouco. Caso
faça mais esforço, muito provavelmente vai acordar ainda pior, e eu não
quero isso. Tento me levantar do seu colo, mas a sua mão firme em minha
cintura me impede. Faço uma cara de brava na mesma hora. — Estou
falando sério, John Scott. Embora seja tentador, não vou contribuir para que
acorde ainda pior daqui algumas horas. Então apenas para o seu bem,
sossegue esse facho e tente dormir um pouco. Você pode usar e abusar do
meu corpo magnífico depois, mas agora, no entanto, só poderá fazer isso
nos seus sonhos.
John projeta o lábio inferior para baixo e choraminga.
— Você é extremamente cruel, Pasha Stratford — comenta, uma falsa
mágoa sendo evidenciada em sua fala. — Como espera que eu durma após
ter feito isso comigo? — Ele pressiona meu corpo um pouco mais para
baixo e eu o sinto, completamente grande, vivo e duro sob mim. Pressiono
os lábios e balanço a cabeça de um lado para o outro.
Me desvencilho da pressão dos seus braços ao redor de mim e em um
ímpeto, me levanto, antes que possa voltar atrás.
— Você pode tomar um banho gelado ou eu posso colocar um filme
para você ficar entretido. — Chacoalho os ombros para cima, fingindo
pouco caso. — Eu te mostro minhas VHS, você me diz qual mais detesta e
eu coloco, talvez funcione com isso aí. — Aponto com o indicador para o
meio das suas pernas e sorrio, cínica.
John bufa, revira os olhos e joga seu corpo no colchão da minha
cama.
— Coloque Cantando Na Chuva — ele diz, sem me olhar. Seus olhos
estão vidrados no teto e suas mãos estão entrelaçadas sobre sua barriga nua.
— Eu detesto esse filme, e bom, deve funcionar.
Meu queixo vai ao chão e a minha boca se entreabre em um O
perfeito.
— Como assim, dentre todos os filmes do mundo, você me fala logo
esse? — indago, logo após espalmar as mãos na cintura, meio indignada por
ele ter dito logo o meu filme favorito.
Sua risada contagiante logo se faz presente no cômodo e eu uno as
sobrancelhas, sem entender.
— Você tem uma péssima memória, diabinha. Simplesmente
esqueceu que me disse sobre esse ser seu filme favorito lá na brincadeira de
duas verdades e uma mentira? Falei isso só para te irritar, gata... Nunca nem
assisti esse filme.
Oh.
É verdade, eu tinha mesmo dito isso. O que me surpreende é ele ter
lembrado.
Bato palminhas e sorrio, agora animada para lhe mostrar o melhor
filme da vida. Giro sobre os calcanhares, vou em busca do VHS e quando o
encontro, ligo a televisão e o coloco sem pensar duas vezes no meu
videocassete. Saltitante, pego o controle remoto e escorrego ao lado de
John, que logo se põe para o lado e me dá espaço. E como Hellaware tem
uma temperatura maluca — faz muito calor pelo dia e muito frio à noite —,
pego a coberta e cubro nossos corpos. John não protesta e nem fala nada,
entretanto. Ele vai se aconchegando mais em mim e aproveita, de uma
forma que ele acha ser disfarçada, para me puxar com a intenção de que a
minha cabeça descanse em seu peito. Sorrio e detesto a forma como meu
corpo parece ter sido preparado para se moldar perfeitamente ao seu, mas
não reclamo e nem penso muito sobre. Apenas cravo os olhos na tevê para
ver as cenas se desenrolarem e sussurro:
— Se você dormir antes que o filme acabe ou expor qualquer opinião
grosseira acerca dele, juro que termino de te quebrar na porrada.
Ele une as sobrancelhas e um sorriso divertido e zombeteiro pincela
suas feições.
— Mulheres violentas sempre foram o meu forte, sabia? — Seus
dedos tocam o meu nariz e ele aperta a pontinha, o que me faz dar um tapa
em sua mão e afastá-la para longe. Mas, não parecendo ter sido o bastante,
esmaga as minhas bochechas até que meus lábios estejam fazendo peixinho,
depositando um beijo desengonçado neles dessa forma.
Quando se separa minimamente de mim, volta a olhar para a
televisão, como se aquele ato fosse comum demais entre nós dois. Como se,
por incrível que pareça, aquele tipo de comportamento carinhoso um com o
outro fosse muito normal e recorrente. Chega a ser engraçado a forma como
agimos, pois nunca sabemos de que modo vão terminar as coisas quando
estamos juntos. Nós não sabemos se vamos bater boca, entrar em jogos de
provocações ou se vamos nos tratar como agora; com beijos, carinhos e atos
fofos. É meio estranho nossa relação, mas também não teria como ser muito
normal, afinal, somos Pasha Stratford e John Scott, nada de normal
acontece entre nossos mundos.
E chega a ser engraçado chegar a essa conclusão, mas, diferente de
tudo o que eu achava, há sim um mundo em que Pasha e John existam
juntos. E é exatamente nesse que estamos nos fiando agora; um mundo
imperfeito, falho, com erros, com provocações, com jogos, com desejos,
com descobertas, com acertos e com entrega.
Estamos finalmente nos enfiando em um mundo real.
Pois aqui, longe de toda farsa e tentativas falhas de perfeição,
conseguimos finalmente ser quem somos: dois seres humanos a fim de errar
e acertar. Juntos.
Cantando Na Chuva embala o nosso momento enquanto ficamos
aninhados um no outro, rindo de certas partes e reclamando de outras —
John, no caso —, e em um determinado momento, quando o filme já está
próximo de acabar e uma chuva começa a cair lá fora e açoitar minha
janela, seus olhos azuis límpidos como as águas do Caribe me encaram, eu
consigo ver através deles o pedido implícito que dança por ali.
— Nem pensar — já vou negando antes mesmo que ele fale qualquer
coisa, tentando tirar qualquer ideia maluca implantada em sua mente. —
Nós não vamos fazer isso. Ficou maluco?!
Seus lábios se erguem ferozmente.
— Se você ama esse filme, provavelmente sonhou inúmeras vezes
com esse momento — John diz, agora se levantando da cama. Ele coloca
sua camiseta branca e me olha, esperançoso. — Uma pessoa me disse que
nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência,
poderíamos ganhar, só por simples medo de arriscar. Então na dúvida,
querida diabinha, arrisque-se comigo. Saia já dessa cama, cante e dance
comigo na chuva.
Eu o olho e dou risada, cruzando os braços em seguida.
— Você só pode ter ficado maluco — constato, achando graça da sua
súbita vontade de reproduzir a clássica cena de Gene Kelly comigo.
Confesso que como uma grande fã do filme, idealizei mil vezes essa cena
na minha cabeça, mas nunca tive coragem o suficiente para realizá-la. Estou
muito tentada, porém não posso fazer isso com ele. É um grande esforço e a
chuva definitivamente pode agravar ainda mais a sua situação. — Não vou
deixar que você se coloque em risco novamente. Por acaso está tentando
morrer?
John quebra a nossa distância e se debruça na cama, as mãos apoiadas
em cada lado do meu corpo, no colchão. Seu rosto fica muito próximo do
meu, o que faz meu coração dar uma pirueta de nervoso com a aproximação
repentina.
— Na verdade, ruiva, estou tentando viver — menciona,
simplesmente. — O momento que eu passei hoje me fez lembrar do meu
passado que, como eu já havia dito a você, é horrível. Eu me enfiei em uma
bolha de vingança, justiça ou chame como quiser, mas foi o que eu fiz para
proteger um garoto de apanhar de uns caras, o que acabou me tornando o
cara que apanha. E eu já fui esse cara tantas vezes, Pasha. — John solta
uma longa e densa lufada de ar, claramente aborrecido. Não sei sobre o seu
passado e nem me acho no direito de perguntar agora, mas consigo ver o
quanto mexe com ele, o quanto mexe com ele ter que esconder de todos que
é um garoto quebrado, diferente do que todos pensam pela máscara que
costuma usar o tempo todo. — Se você não tivesse jogado aquelas coisas
sobre mim e me feito enxergar algo além da minha amargura por mim
mesmo, eu provavelmente deixaria que a vida me batesse mais uma vez e te
afastaria. Te manteria longe de mim e de tudo o que sou. Só que eu não vou
permitir isso, pelo menos estou corajoso demais para afirmar isso agora. —
O loiro passeia as mãos pelo meu rosto e beija a ponta do meu nariz, as
minhas bochechas, os meus lábios, dá uma risadinha junto a mim e
continua: — Então viva comigo, Pasha. Não sei como serão os próximos
dias e como as coisas vão acontecer entre nós, mas hoje, pelo menos hoje,
viva comigo e esqueça tudo. Vamos cantar na chuva, dançar na chuva e nos
beijar na chuva. Vamos lavar nossas almas com a água e pedir que ela leve
nossos medos juntos, diabinha. Você aceita? — ronrona ao resvalar os
lábios nos meus. — Diz que aceita, Stratford. E pelo amor de Deus, não se
preocupe com o meu corpo, não menti quando disse que a sua figura
anestesia a minha dor.
Depois de receber uma declaração dessas, algum ser humano é capaz
de fazer qualquer coisa a não ser concordar? Porque, honestamente, não me
vejo nessa posição. Eu concordo, dou um pulo para fora da cama, pego em
sua mão e o arrasto até a porta, que eu logo a destranco e a fecho sendo a
mais discreta possível. Uma vez do lado de fora, John Scott e eu descemos
as escadas de dois em dois, logo depois arrastando os passos até a porta da
sala, que graças a Deus abre e fecha sem ranger, nos livrando de acordar
meus tios e nos deixando finalmente do lado de fora.
As gotas gordas da água da chuva nos molham e nos acompanham à
medida que vamos nos afastando da casa. Estamos encharcados agora,
nossas roupas estão maculadas e percebo que, glória a Deus, a camiseta
branca de John se encontra transparente e completamente grudada em seu
corpo, o que acaba deixando totalmente visível para mim o abdômen bem
definido e de outro mundo que carrega.
Mordo o interior da minha bochecha e meio receosa, me aproximo ao
me pôr em sua frente. Baixinho, ainda com vergonha, começo a cantar um
trecho de Singin´in The Rain. A água se sobressai aos meus sons e embaça
minha visão, mas não deixo que isso me atrapalhe. Canto um pouco mais
alto e Scott parece aprovar, pois afirma com a cabeça, sorri de orelha a
orelha e repousa as mãos em cada lado da minha cintura.
— I’m singing in the rain, Just singin’ in the rain what a glorious
feeling — cantarolo, e abro os braços, sentindo cada gota de água correr
pelo meu corpo. Tombo um pouco a cabeça para trás, coloco a mão sobre
meus olhos e encaro o céu e continuo: — I’m happy again, I’m laughing at
clouds so dark up above.
“Estou cantando na chuva
Apenas cantando na chuva
Que sensação gloriosa
Estou feliz outra vez
Estou sorrindo para as nuvens tão escuras lá em cima.”
John movimenta minha cintura e me incentiva a dançar, só que logo
depois me gira e faz com que fique com as minhas costas grudadas em seu
peito. Meu coração palpita nesse exato segundo, o ar parece ter se tornado
rarefeito e minha visão se torna ainda mais nublada, mas talvez isso seja
efeito da minha felicidade. E em uma tentativa de imitar a cena do filme,
me separo de John e começo a sapatear, mesmo que eu não saiba muito bem
o que estou fazendo.
Escuto a risada de John se misturar ao som da chuva.
Acho que vou me lembrar desse momento sempre.
— The sun’s in my heart and i’m ready for love — menciono essa
parte da música apenas para mim, soando bem baixinho. Levo uma mão ao
coração e fecho em punho, ainda sapateando pela rua já completamente
molhada.
“O sol está em meu coração
E eu estou pronto para o amor.”
Ergo meus orbes para John e simplesmente paro de dançar, cantar ou
fazer qualquer coisa. Eu olho para ele em meio à chuva e sinto como se
estivesse encarando uma obra de arte ou algo muito similar. Seus fios
platinados estão molhados e completamente jogados para trás, o que acaba
deixando todo seu rosto à mostra. Seus olhos azuis clareiam toda a
escuridão que nos cobre e, se não fosse pelo seu sorriso, que mostra duas
fileiras de dentes brancos e impecáveis, eu diria que eles são as únicas
fontes de luz presente. Solto um suspiro pela forma eloquente que me
encara e caminho a passos largos e decididos, apenas parando quando já
estou o puxando pela gola da camiseta que usa, chocando sua boca na
minha em uma explosão estarrecedora de química e desejo primitivo. Ele
arfa contra mim e passa sua língua pelos meus lábios, logo avançando para
quase dentro da minha garganta quando permito.
— Precisamos voltar — falo, em meio ao beijo. — O que eu quero
fazer com você agora não pode ser feito aqui.
Scott parece entender perfeitamente o que se passa em minha cabeça,
pois um sorriso carregado de maldade atravessa seu rosto coberto por gotas
gordas de água e ele deposita um beijo estalado em minha boca antes de me
puxar de volta para a minha casa.
Assim que adentramos a residência, após fazermos todo o ritual do
silêncio, subimos as escadas agarrados um no outro, desesperados por mais
contato físico. E já entrando no meu quarto e fechando a porta atrás de si,
respingos de água cobrindo toda parte, John me levanta pela cintura e eu
aproveito para enlaçar as pernas em seu quadril, os braços agora em volta
do seu pescoço enquanto sua boca devora a minha.
No segundo seguinte, minhas costas atingem o colchão e os lábios do
garoto se afastam dos meus apenas para aprumar levemente a postura e
arrancar, de forma totalmente desesperada, a camiseta pela sua cabeça.
Algo que não tem como ser revertido está prestes a acontecer agora, e
eu tenho total certeza que não quero e nem vou parar.
Os caras me bateram até cansar.
Em um determinado momento, com a ira borbulhando minhas veias,
consegui desferir uns socos e outros, até mesmo deixei alguns no chão. O
problema é que eles eram muitos e eu não daria conta, muito menos o pobre
garoto assustado se levantaria para me ajudar, estava sofrendo demais
naquele beco moribundo. Então, quando dei por mim, estava no chão sendo
recepcionados por chutes de uns e socos de outros.
Achei que fosse morrer. Novamente.
Apesar de ter demorado anos para acontecer, aquela era uma cena
meio que familiar para mim. E sem pensar muito, apenas me deixei ser
levado para as memórias de um John pequeno, franzino, assustado e que
vivia cercado por valentões daquela mesma espécie.
E se não fosse pela sirene de uma viatura ecoando próximo do local,
provavelmente que os garotos terminariam o serviço sabe Deus lá como.
Tive sorte de eles saírem correndo, de eu conseguir me levantar, levantar o
garoto e incentivá-lo a ir embora ou buscar ajuda. Também tive sorte de
encontrar Pasha no meio do caminho. Embora tenha ficado com raiva da
ruiva estar andando por aquelas bandas tarde da noite, acho que acabei
compreendendo que era coisa do destino ou algo do tipo — e olha que eu
nem sou de acreditar nessas baboseiras. Mas tinha mesmo outra explicação?
O engraçado é que eu nunca imaginei que o que aconteceu hoje com a
ruiva pudesse mesmo acontecer algum dia. Eu estava chafurdado na merda
com tudo o que tinha acontecido e estava me sentindo um lixo da maior
espécie. Me senti inútil, fraco e completamente tomado por uma melancolia
fodida. Mesmo com a diabinha ao meu lado, mesmo com ela tendo me
ajudado pra cacete e feito um pouquinho da minha noite melhor, ainda
assim estava sentindo o peso do mundo nas costas e sabia que precisava
afastá-la antes que fosse tarde demais para ela. Antes que ela pudesse
perceber o quão vazio eu e a minha vida somos.
O problema — ou não — é que Pasha Stratford sempre tem que dar a
cartada final para qualquer situação. Ela não gosta que ninguém decida as
coisas sem que ela dê sua opinião e nem que tomem decisões visando o seu
bem estar, pois segundo a alasquiana, só ela sabe o que é bom e suficiente
para a sua vida. E é claro que ela fez questão de me mostrar isso na nossa
conversa, expondo para mim o quanto a sua vida foi e é complicada,
impedindo-me de colocá-la em um pedestal.
Não sei se foi a sua maldita sinceridade ou o modo como o meu
desejo por ela falava muito mais alto naquela hora, mas não me vi em outro
lugar se não nos seus lábios.
Seu beijo, que parecia acender um vulcão dentro e fora do meu corpo,
me fez perceber que eu não poderia e nem queria estar em nenhum outro
lugar. Me fez perceber que, mesmo que eu quisesse muito, não conseguiria
ficar longe. Eu a queria e, pelo menos naquele momento, após saber que a
garota de fios alaranjados também partilhava de dores semelhantes, me vi
na obrigação de jogar todos os meus medos e inseguranças para escanteio.
Naquela hora, eu estava disposto a não deixar mais que o garotinho
amedrontado do meu passado conseguisse atrapalhar de alguma forma o
meu presente. Então a incentivei a viver junto comigo esta noite, realizei o
seu sonho de dançar na chuva e me encontro totalmente realizado por estar
finalmente assim com ela, na cama e deixando que tudo o que estávamos
guardando se liberte e nos consuma.
Os lábios macios de Pasha deslizam pelo meu pescoço molhado e ela
morde a região. Literalmente falando, claro. Os dentes da ruiva cravam na
minha pele e, minha nossa, por algum motivo que desconheço, isso acaba
me enlouquecendo ainda mais nesse momento. Tento não rolar os olhos
quando a escuto soltar uma risadinha perversa e vitoriosa, agora arranhando
as longas unhas pintadas de vermelho vivo em meu torso.
Bom, acabei de descobrir que ela gosta das coisas um pouquinho
mais... selvagens.
Eu até poderia sorrir ao chegar nessa constatação, mas estou ocupado
demais tomando sua boca na minha mais uma vez, a devorando. Sua língua
se encontra tão abrupta quanto a minha e as duas se enlaçam em um embate
frenético e enérgico, ainda mais sintonizadas e cheias de desejo agora. À
medida que nossos gostos se misturam, aproveito para dedilhar seu corpo
curvilíneo com as pontas dos meus dedos, passeando um pouco abaixo dos
seus seios cobertos pelo top que usa até o cós do seu short ensopado de
água, onde fico enroscando-os ali, nas laterais. Faço menção de arrancar a
peça, o que logo ganho seus quadris levemente erguidos numa resposta para
prosseguir com o que quer que eu queira fazer com ela. Mas agora, pelo
menos agora, não faço nada. Apenas me separo dos seus lábios e salpico
beijos por sua têmpora.
— John? — Escuto-a murmurar, quase inaudível. Quando fito seu
rosto, vejo que a boca está formada em uma linha tênue e os olhos
revirando-se nas órbitas.
— Pois não, diabinha? — Volto a brincar com seu short, apenas para
aumentar ainda mais a tensão e, claro, com toda certeza, para não perder o
costume de provocá-la. — Diga. Diga para mim o que quer, Stratford. Estou
inteiramente à sua disposição essa noite, meu bem.
— Não me provoque — sibila, e sua mão agora se enrosca nos fios da
minha nuca. — Eu quero você. Eu quero nós dois. Eu quero agora.
— Será uma honra realizar o seu desejo, gata — digo, depositando
mais um beijo, só que agora na pontinha do seu nariz arrebitado.
E sem mais delongas, antes que ela pudesse revirar os olhos mais uma
vez — fico preocupado com o tanto que faz isso —, decido arrancar seu
short, sem cerimônia e sem nenhuma vontade de ser gentil. Ela arfa e solta
um gemido baixo, visivelmente despreparada e pega de surpresa. Me separo
minimamente só para poder contemplar agora de perto o corpo dessa
mulher usando calcinha na porra de uma cama comigo.
Se isso for algum tipo de sonho de um garoto virgem, céus, por mim
tudo bem, aceito a realidade de que me pareço com um quando se trata dela
e não quero acordar.
O meu amigo lá embaixo se agita e lateja como o inferno quando
meus orbes passeiam por ela, lutando fortemente contra o tecido da cueca e,
consequentemente, da calça também. Solto um longo fluxo de ar e
desabotoo o botão da calça que uso, logo me livrando de uma vez dessa
peça tão incômoda.
O quarto provavelmente deve estar todo encharcado da chuva e isso
vai dar um trabalhão mais tarde, mas quem é que se importa mesmo?
Os olhos de Pasha me analisam descaradamente e sem nenhum pudor,
os cantos dos lábios cheios vibrando-se para alargar um sorriso nada
inocente em seu rosto que, nenhum pouco me surpreendendo, está livre de
rubor e de qualquer coisa que revele está com vergonha, tímida ou qualquer
uma dessas coisas porque, obviamente, a ruiva não está.
Pasha Stratford parece não ter vergonha de absolutamente nada, o que
a torna ainda mais fascinante. Ela não esconde o que sente e muito menos o
que quer. Se ela está a fim de jogar, vai deixar bem claro isso, pois é isso
que garotas diabólicas como elas fazem; marcam território, cravam as
garras no oponente e usam de todo o seu charme e poder de conquista para
chegar no que almejam.
E ela com certeza consegue sempre chegar no que almeja.
Ela chegou agora mesmo.
Pasha Denise Stratford me desejou e, como um passe de mágica,
conseguiu me colocar em suas mãos.
Meus lábios se curvam em um sorriso e eu volto a beijá-la,
simplesmente incapacitado de ficar longe demais da sua boca que,
inegavelmente, foi moldada para se encaixar perfeitamente sobre a minha.
Meu coração dá um sobressalto quando suas mãos logo depois decidem
descer pela minha barriga e parar bem na minha cueca, tocando e
envolvendo a minha ereção com a sua mão pequena e totalmente
habilidosa, instigando-me a gozar bem ali, na porcaria do tecido fino da
boxer. Me separo apenas para fechar os olhos e xingar uns trezentos
palavrões.
Ela segue me tocando, e quando, ainda com dificuldade, abro os
olhos, me dou de cara com os castanhos das suas írises brilhando em
lascívia e a sua língua circundando o seu lábio superior, como sempre tem
costume de fazer. A forma como tudo parece torturante e excitante demais
faz com que eu perca a cabeça.
Inferno de garota diabólica!
Cubro sua mão com a minha e a afasto, agora prendendo-a no topo da
sua cabeça, emaranhando meus dedos junto aos seus. Pasha parece soltar
uma espécie de murmúrio com um rosnado, mas não tenho tempo de pensar
muito sobre isso, pois levo meus lábios na orelha dela e sopro:
— Acho que não estamos com tempo para preliminares, huh? — A
diabinha logo confirma, seu queixo sobe e desce incontáveis vezes. Através
da sua respiração descompassada, percebo que quer que eu esteja dentro
dela o mais rápido possível. — Ótimo. — Sorrio sacana ao dizer, sendo a
minha vez de umedecer os lábios. — Mesmo que eu já saiba a resposta,
ainda sim quero escutá-la dizer... Então me responda, Stratford, quer que eu
te trate agora como a minha diabinha ou como o meu anjo?
Apesar de revirar os glóbulos quase que automaticamente ao escutar a
minha pergunta, a ruiva crava a unha no meu braço e parece reunir toda a
coragem do mundo para responder:
— Diabinha. Trate-me como a sua diabinha e mostre-me se é mesmo
digno de desbravar o inferno do meu corpo.
Solto uma risadinha irônica, e meu pau se contorce ainda mais de
tesão por ela. Libero um suspiro e solto nossas mãos, agora prensando
nossos lábios apenas porque não consigo me manter muito tempo longe.
Aproveito da aproximação para arrancar o top que usa, ela logo se separa da
minha boca e levanta os braços, ajudando-me a arrancar a peça, que eu logo
a descarto em algum canto qualquer do quarto mal iluminado.
Minha boca saliva ao contemplar mais uma vez seus seios fartos e
empinados, a auréola rosada contrastando de uma forma fodida com o tom
branco como gelo da sua pele. Meu cérebro entra em curto circuito por
alguns segundos, porque cacete, essa mulher é fora do normal de tão
gostosa e deliciosa, mas balanço a cabeça sutilmente e aproximo meus
lábios do seu pescoço, onde eu vou descendo com a língua, sugando a
maior quantidade do gosto do seu corpo. Quando deslizo pelo vão entre
seus seios, aperto o bico esquerdo com os dedos em formato de pinça, o que
rapidamente a faz dar um sussurro-grito e enterrar os dedos pelos fios do
meu cabelo, puxando-os com certa força.
Sorrio descaradamente com as reações que consigo provocar em seu
corpo e levo minha boca e toda minha atenção para o seu outro seio, onde
eu brinco, me lambuzo e mordo toda a região sensível e já afetada. Estou
prestes a mudar a direção, porém a garota refreia meus movimentos ao
puxar ainda mais os meus fios e, consequentemente, minha cabeça. Quando
ergo meus olhos e encontro os seus, enxergo toda a chama incendiar suas
írises. Pode parecer brincadeira ou surreal demais, mas eu a encontro, ela
está mesmo lá. Parece a base da chama de uma vela, pois há muito calor ali
e chega a formar ondas de luz com muita energia, chamas azuladas
mesclando-se com a cor castanha de seus olhos felinos.
Seus glóbulos queimam cada centímetro de pele do meu corpo e eu
sinto-me ainda mais quente.
— Enterre-se em mim agora, Scott. — Sua voz sai em uma súplica, e
eu logo obedeço ao puxar sua calcinha para baixo, a despindo
completamente. Meus olhos varrem cada curva do seu corpo quando ela já
está sem a peça de roupa, completamente admirados. E ela parece adorar a
forma contemplativa com que descubro seu corpo e observo o trajeto que as
gotas gordas de água descem pela sua pele, pois sorri de forma exibicionista
enquanto morde a unha do seu polegar.
Alguns segundos depois, quando finamente percebo, Pasha se coloca
de joelhos na cama e direciona suas mãos para cada lado do meu quadril
para puxar a cueca para baixo em um safanão. Retiro-a completamente com
a ajuda dos calcanhares e, quando dou por mim, já estou procurando a
minha carteira em busca da camisinha que sempre guardo por lá. Assim que
a encontro, retiro a embalagem laminada com os dentes e envolvo meu pau,
que parece completamente pronto e agitado para entrar em cena.
Tombo a cabeça um pouco para o lado e esquadrinho o rosto da
diabinha, lhe lançando o meu melhor sorriso carregado de lascívia e luxúria.
Sem mais delongas, completamente louco por ela, empurro levemente seu
corpo contra o colchão macio e com ela já deitada, cravo os dedos nas suas
coxas torneadas e as separo, colocando-me no meio dela. Aperto com certa
força os seus seios, e a ruiva se contorce toda sob minhas mãos.
— Eu sonhei com isso tantas vezes — soo sincero, meus olhos ainda
fixos na forma sinuosa do seu corpo. Umedeço a região do meu lábio
inferior e flagro o exato momento em que meio ao torpor, os seus
conseguem se erguer em um meio sorriso. — É sério, garota, eu sonhei
mesmo.
— Você sonhou com nós dois transando? — pergunta, a voz baixa e
entrecortada. — Achei que gastasse seu tempo me odiando e xingando até a
minha quinta geração.
Dou uma risada nasalar do seu comentário e mudo o foco da minha
atenção, descendo uma mão do seu seio até o fim da sua barriga, onde eu
aproveito para torturá-la mais um pouco, afastando seus grandes lábios e
esfregando o dedão em seu clitóris inchado. Pasha geme, me xinga e os
glóbulos se reviram, só que dessa vez apenas de prazer.
— O sexo no sonho era bom exatamente por isso, diabinha —
confidencio, sentindo sua umidade escorrer entre meus dedos. Puta merda,
que mulher. Que mulher! — A raiva que eu sentia por você deixava tudo
ainda mais delicioso.
Agora todos os seus dentes aparecem e o sorriso que me direciona é
completamente predatório.
— Então me odeie na realidade também. — Seus calcanhares
prendem meu corpo e ela me traz mais para si, nossas intimidades se
friccionam no mesmo instante. — Me odeie da forma mais primitiva que
um homem pode odiar uma mulher, John Scott. Eu quero que desconte em
mim todas as vezes que fui uma vadia com você.
Estou muito tentado a fazer o que ela pede, muito mesmo. A ruiva
está claramente pedindo para que eu a foda de forma impiedosa, e eu não
teria nenhum problema em fazer isso se fosse em outras circunstâncias.
Mas, sinceramente, não consigo agora. Não depois de hoje e de tudo que
passamos juntos nessas horas.
Eu não quero apenas fodê-la. Quero tomá-la em meus braços, senti-la
de todas as formas, desfrutar da sintonia dos nossos corpos e alcançar o
paraíso junto a ela. Quero poder fazer isso hoje, amanhã quando acordamos,
depois de amanhã e depois, depois e depois. Não quero só esse momento.
Quero uma coletânea deles.
— Não posso fazer nada disso, gata — explico, e Pasha me olha com
as sobrancelhas arqueadas. — Não posso fazer nenhuma dessas coisas com
você, pois a única coisa que quero agora é adorar o seu corpo e tudo que há
nele da forma mais linda e intensa que um homem consegue fazer por uma
mulher. Você permite que eu faça isso, ruiva?
Demora que Pasha me responda. Suas sobrancelhas se franzem e os
olhos parecem levemente arregalados, como se tivesse sido pega de
surpresa com alguma coisa. Apesar desse meio tempo pensativa, não
demora muito para que as linhas de expressões se suavizem em seu rosto e
ela confirme minha fala puxando-me para um beijo sereno e calmo dessa
vez.
E então, como se nossos corpos estivessem destinados a se
conectarem desde o início, eu entro dentro dela. Os músculos de Pasha
Stratford me apertam e me envolvem e eu solto um grunhido em sua boca,
totalmente entorpecido ao estar finalmente onde sempre quis estar. Demoro
uns bons segundos até conseguir me movimentar, mas ao passo que faço
isso, permaneço estimulando-a no seu ponto sensível, arrancando-lhe
arquejos e gemidos baixinhos. E então estoco uma, duas, três, quatro vezes.
O ritmo que estamos seguindo agora parece completamente coreografado,
pois seu quadril consegue me acompanhar perfeitamente bem.
Meu coração parece brincar de dar piruetas em minha caixa torácica,
agitado como nunca esteve antes em momentos como esse. Minha
respiração acelera e a da garota também, que tem o peito subindo e
descendo como se estivéssemos correndo uma baita maratona. Céus, ela
consegue ficar ainda mais linda nessa posição, completamente entregue a
mim e ao nosso momento. Seus fios laranjas estão espalhados pelo
travesseiro branco, seus seios balançam, a boca voluptuosa está
avermelhada e entreaberta, seus olhos se apertam de vez em quando e as
suas sobrancelhas franzem-se de tanto desejo e tesão acumulado.
Definitivamente a personificação do pecado.
Enxergo o exato momento em que Pasha crava os incisivos no seu
lábio inferior com toda força, numa tentativa que eu suponho ser para calar
todos os gritos aprisionados em sua garganta, prontos para serem libertos e
acordar toda a casa, querendo mostrar para todos o que estamos aprontando
entre quatro paredes. Seu corpo se contorce sob o meu e ela crava as longas
unhas em minhas costas, apertando bem a carne. Entro e saio dela tantas
vezes que chego à conclusão que poderia fazer isso pelo resto da minha
vida, de tão bom e certo que parece ser.
Puta merda. Essa foi, sem sombra de dúvidas, a pior e a melhor noite
da minha vida.
O mais engraçado é que ela realmente parece inibir qualquer tipo de
dor em meu corpo, pois apesar da briga de mais cedo, não sinto nada agora.
Posso acordar completamente ferrado amanhã, mas agora, pelo menos nesse
exato segundo, sinto que posso carregar toneladas que nada me abalaria;
efeito de Pasha Denise Stratford.
Com mais um impulso forte e fundo, minha visão enturvece,
pontinhos pretos pipocam em minha mente e todo o meu corpo treme, o
melhor orgasmo da minha vida me atingindo em cheio. Curvo meu tronco e
capturo sua boca convidativa, minha língua logo lhe invadindo e o beijo
sendo retribuído da melhor forma possível. Seu corpo treme em espasmos,
ela solta um rosnado quando se separa de mim e seus músculos se relaxam,
inebriada e totalmente relaxada quando atinge seu ápice.
Fecho os olhos, descarto a camisinha, retiro o acúmulo de suor
misturado com o restante da água em minha testa e saio de cima dela,
jogando-me ao seu lado, no colchão. Minha respiração segue ofegante, e ela
aproveita para cobrir nossos corpos nus com o lençol, aproximando-se cada
vez mais. Percebo que, mesmo não sabendo muito fazer, quer uma
aproximação mais forte entre nós, então apenas a puxo para mim, sem
muita cerimônia. Sua cabeça se repousa em meu peito e eu aproveito para
afagar seus fios, inspirando o cheiro de xampu mesclado com chuva para
dentro das minhas narinas.
Nós não falamos nada, apenas ficamos escutando o som das nossas
respirações se misturarem com o som da chuva fraca e fina que agora atinge
lá fora. Através da janela, vejo quando um raio corta o céu escuro e clareia
o cômodo, focalizando-se por alguns segundos no rosto da garota em meu
peito, que agora tem os olhos fechados e a respiração começando a se
desacelerar.
Sorrio ao vê-la pegar no sono pela primeira vez.
Não sei quanto tempo passo a admirando, mas provavelmente não
dura muito, pois a exaustão me toma e me impede de prosseguir. Fecho os
olhos e, quando penso que não, estou entregando-me ao cansaço, dormindo
tranquilamente mesmo após toda a turbulência do dia.
E tenho certeza que isso só se deu por conta da garota dormindo ao
meu lado.
Agora, por falar em uma certa ruiva, não consegui pregar os olhos por
conta dela. Passei a noite toda em claro, rolando de uma ponta da cama para a
outra, relembrando nossos momentos em um looping. Além de ter estado com
uma certa falta de ar ao ficar relembrando seu cheiro, seu gosto e a sensação do
seu corpo se contorcendo em cima e embaixo de mim, me senti ainda mais
claustrofóbico com o fato de não ter conseguido simplesmente deixar para lá a
conversa importante que tivemos.
Pasha Stratford é o tipo de pessoa que precisa fazer o que sonha. Ela não é
nenhum tipo de bicho enjaulado em um zoológico para simplesmente ser
privada de fazer o que ama, de fazer o que nasceu para fazer. Ela é aquela brisa
que sopra em um fim de tarde; serena, pacífica e boa. Mas também pode ser
aquela ventania forte e impetuosa, capaz de destruir tudo por onde passa. E você
pode até não saber como ela chegará, pode até não saber em qual estágio ela vai
passar por sua vida, mas sabe que ela simplesmente vai, porque é de sua
natureza se fazer presente de forma marcante.
E Pasha, assim como o vento, não tem como ser mantida presa. É algo
impossível.
Por causa disso, de uma forma que eu não entendo — mesmo que eu tente
muito compreender toda a avalanche de emoções e sentimentos dentro de mim
—, após alguns dias desde a nossa conversa, estou parado em frente à
Biblioteca Pública de Hellaware, que fica nos arredores do centro da cidade. A
fachada ornamentada por tijolos laranjas propositalmente desbotados parece me
encarar na mesma intensidade em que eu a encaro de volta. Deslizo a bola de
saliva por entre a minha garganta e, ainda um pouco cauteloso com a minha
ideia, que pode ser uma tremenda maluquice, decido dar alguns passos em
direção a entrada. Suspirando e expirando uma porção de vezes, finalmente
decido subir os poucos degraus e passar pelas grandes e ornamentadas portas da
entrada.
É a primeira vez que piso os pés aqui. E não por nunca ter me interessado
por livros ou algo do tipo, afinal sempre fui apaixonado por livros que falam
sobre o universo — mas também apenas por esses, porque consumir romances
ou coisas do gênero nunca foi o meu forte —, e sim porque nunca soube até
então que ele havia voltado a funcionar. Lembro de ouvir falar sobre a
biblioteca da cidade quando ainda era criança, mas sempre cresci sabendo que o
lugar havia sido fechado e abandonado por conta do descaso dos antigos
prefeitos. Agora, no entanto, com esse atual, descobri que a reabertura dela foi
um dos primeiros projetos que ele se empenhou esse ano. Parece que a reforma
durou alguns meses e a nova atração passou a funcionar regulamente não tem
nem duas semanas.
E é claro que tem dedo de Daisy Flinch nisso, pois quando foi para o meu
trailer, provavelmente já ciente que eu precisava desabafar com algo, não pensei
duas vezes em pedir a sua ajuda com as coisas que estavam fazendo os meus
neurônios — que já são poucos — fritarem dentro da minha cabeça. Não lhe
contei o dilema de Pasha e nem as coisas pessoais que compartilhou comigo
naquela noite, porque, como eu já disse, foram coisas pessoais, coisas
compartilhadas apenas comigo, então não havia necessidade nenhuma de eu
quebrar o que estávamos construindo contando seus problemas e suas
dificuldades para a minha amiga, mesmo que eu saiba que ela é de confiança.
Apenas contornei o ponto disso tudo para Flinch, fui breve, sucinto e pedi
a ajuda da garota de cabelos vermelhos para tentar ajudar também a minha
garota, que ama livros incondicionalmente e que eu gostaria muito de fazer algo
para surpreendê-la em relação a isso, já que, sei lá, queria suprir pelo menos um
pouquinho dessa vontade absurda que ela sente de trabalhar ou estudar com
aquilo que ama.
Acho que dona Emma, essa fofa senhora, deve ter algum tipo de tara por
olhos claros.
— Ótimo — digo ao dar um passo em sua direção. — Olhe para eles o
quanto quiser.
E ela olha.
A primeira parte do meu plano havia dado certo. Na verdade, havia dado
muito certo. Tudo havia saído melhor do que o planejado e eu me encontrava
fodidamente feliz, realizado e com uma imensa vontade de gritar para Pasha
Stratford e para todo o mundo o que eu havia conseguido fazer por ela. O que
eu havia conseguido para que, pelo menos um pouco, a minha diabinha
conseguisse desfrutar de algo parecido com o seu maior sonho.
Não sei que necessidade é essa que surgiu dentro de mim, não sei que
sensação estarrecedora é essa no meu peito, muito menos sei o que causa
tamanha arritmia em meu coração quando se trata desse assunto e de tudo que
envolve a felicidade de Stratford, mas a única coisa que eu sabia desde o início
é que eu não iria parar. Eu não iria ficar de braços cruzados. Eu simplesmente
não conseguiria. Não conseguiria me sentir impotente, fraco demais ou até
mesmo estúpido por pelo menos não tentar mudar a realidade. Por pelo menos
não tentar fazer algo para acalentar o seu presente antes de ela embarcar em seu
futuro.
E, embora eu não tenha como fazer algo contra ele, que aparentemente já
se encontra traçado, pelo menos ainda tenho uma parcela de chance de fazer o
agora acontecer.
Dou três batidas na madeira com o punho fechado e dou apenas um passo
para trás, aguardando.
Acho que andar na garupa de John Scott virou algo habitual para
mim, pois estou fazendo isso com tanta frequência ultimamente que me
sinto completamente segura aqui, com as minhas mãos entrelaçadas em sua
cintura e os cabelos esvoaçantes pelas rajadas de vento que insistem em nos
acompanhar durante o trajeto até a tal surpresa que o garoto decidiu fazer
para mim.
Admito que a ansiedade na boca do meu estômago continua aqui, até
ouso dizer que parece estar ainda mais forte do que antes, pois acho que
passei a simplesmente amar tudo o que John tem para me mostrar ou falar.
Seja vendo as estrelas, seja dançando na chuva, seja apenas no rancho, seja
conversando, não importa, ele parece ter esse dom de me impressionar e de
me ganhar com qualquer coisa que se propõe a fazer.
Tenho certeza que está prestes a me ganhar um pouquinho mais
agora.
Sua Harley-Davidson para em uma rua desconhecida por mim e ele
logo pula para fora dela, ajudando-me a descer assim que dá a volta para
ficar ao meu lado, pegando em minha mão daquela forma galanteadora que
ele tenta muito ser, mas que acaba sendo extremamente engraçada para
mim.
— Você não combina com essas coisas, lindo — refiro-me às suas
tentativas frustradas de ser um cavalheiro, e ele apenas rola os olhos ao me
empurrar para andar com ele pela rua. John engancha seu braço em meu
cotovelo e sorri sem descolar os lábios quando eu viro um pouco o rosto de
lado para o perscrutar. O modo como esse ato dele parece algo tão natural e
corriqueiro entre nós faz com que meu coração se sinta aquecido dentro do
meu peito. — Então, posso saber para onde está me levando desta vez?
Flagro o exato momento em que suas sobrancelhas formam um arco
perfeito e a sua boca se entreabre, como se estivesse chocado ou descrente
com algo.
— Não era você que estava me ofendendo há cerca de, sei lá, dez
segundos atrás? Agora quer saber da surpresa, huh?
O fito com os olhos semicerrados e com um leve bico adornando os
lábios.
Totalmente infantil e patético, mas não consigo não entrar na onda
dele.
— Vai, fala logo! — Puxo a barra da sua jaqueta de couro, enquanto
seguimos caminhando pela rua que, sinceramente, não faço ideia de onde
terminará. — Estou ficando ansiosa, John Scott, não gosto disso.
— Você já está ansiosa, meu amor. — Então ele para de andar. John
simplesmente para de andar e desengancha o braço do meu, parando bem
em minhas costas. — Agora feche os olhos.
O quê?!
Viro sobre os ombros, e ele dá risada, provavelmente percebendo a
minha cara contorcida em uma interrogação.
— Feche os olhos, diabinha — repete. — Coopera comigo, vai.
Com esse tom de voz pidão, é impossível não o obedecer. Então eu
faço questão de rolar os olhos e bufar da forma mais dramática possível,
para que pense que estou relutante quanto a isso, agora voltando a olhar
para a frente. Demoro dois ou três segundos para finalmente fechar os
olhos. Quando isso acontece, John comemora atrás de mim e suas mãos se
direcionam até meu rosto, tampando ainda mais minha visão para que eu
não enxergue absolutamente nada.
— Pode andar agora, eu digo quando for para parar — ele menciona,
e eu assinto. Arrasto meus pés para frente e Scott segue em meu encalço
apenas para conduzir-me.
Não sei quanto tempo ficamos nessa, só sei que acabamos adentrando
em uma outra rua que parece ser um pouco mais movimentada que a que
estávamos, pois consigo escutar agora vozes, risadas e até mesmo o som de
bicicletas ressoando ao meu redor. Apesar da curiosidade corroendo meu
âmago sobre tudo, não paro até que ele diga que pode.
Mais alguns passos para frente e John sai das minhas costas,
arrumando minha postura para que eu fique de costas — ou de frente —
para alguma coisa. Faço força nos meus olhos já fechados e, quando sua
voz me dá o sinal que eu preciso dizendo que eu posso me virar, abro meus
orbes pouco a pouco, prestes a me dar de cara com a tal surpresa.
Então eu simplesmente me viro para o que quer que seja ao passo em
que escuto meu coração zumbir em meus ouvidos.
Pisco algumas vezes e a primeira coisa que encontro é o nome
“Biblioteca Pública de Hellaware” enfeitando o local revestidos por tijolos
laranjas. Encaro cada parte de fora do lugar e sinto as palmas das minhas
mãos suarem, mesmo que eu não entenda muito bem o que está
acontecendo agora.
Assim que tiro os olhos do local e encaro John, com meus glóbulos
transbordando confusão, o garoto me encara de volta com os seus injetados
de expectativa.
— O que significa isso? — Minha voz, por algum motivo que
desconheço, sai por um fio quando decido indagar no exato momento em
que aponto para a biblioteca.
É provavelmente tarde da noite, estamos sendo iluminados pela lua e
pela luz fraca do poste do fim da rua, mas, mesmo assim, consigo enxergar
com muita clareza o momento em que seus olhos sorriem tanto quanto a sua
boca.
— Isso, Pasha Denise Stratford, é seu mais novo trabalho em
Hellaware. Você acaba de ser contratada para trabalhar na ala infantil da
biblioteca da cidade.
No primeiro momento, a minha única reação é unir as sobrancelhas e
sentir um belo de um V se formar entre elas, só que no segunde seguinte,
quando rebobino sua frase uma segunda vez, a única coisa que consigo
fazer é dar risada, porque isso aqui só pode ser algum tipo de piada ou algo
muito parecido com isso.
Scott dá um passo em minha direção.
— Que tipo de brincadeira é essa? — Espalmo as mãos na cintura,
um medo repentino se apossando do meu corpo.
Não quero que ele brinque com algo tão sério para mim.
Não sei se suportaria.
— Não consegui dormir nem fazer nada depois que você foi embora,
Pasha. Simplesmente não consegui seguir com a minha vida depois de saber
que, pelo menos de alguma forma, você estava sendo privada do que tanto
ama. Do que nasceu para fazer. — Suas mãos agora alcançam as minhas e
ele as aperta. Não consigo apertar de volta, tão pouco fazer ou falar
qualquer coisa, pois me sinto petrificada. Completamente em estado de
choque na droga dessa rua. — Eu disse que não era capaz de mudar a
realidade, lembra? Mas eu quis tanto mudá-la, quis tanto transformá-la para
você que dei meus pulos e vim aqui, completamente sem vergonha,
implorar para que contratassem uma garota maravilhosa, apaixonada por
crianças, pelo universo literário e que, ainda por cima, possui o sorriso mais
lindo no rosto quando discorre sobre ele. Talvez possa parecer maluquice,
talvez até seja, mas eu consegui, ruiva. Eu realmente mudei a realidade e
vou conseguir fazer com que se sinta cada vez mais próximo do seu sonho,
porque você acreditando ou não, achando possível ou não, eu sei e sinto que
você está mais próximo dele do que imagina.
Lágrimas nevoam minhas írises e eu mordo o interior da bochecha,
ainda mais em choque.
Eu provavelmente devo estar sonhando, é a única explicação.
Isso só pode se tratar de um sonho.
Mas o modo como John olha dentro dos meus olhos e parece enxergar
até mesmo a minha alma me faz não ter tanta certeza assim.
— Mas como? — é a única pergunta que consigo externar. — Como
isso foi possível?
— Conversei com uma senhora chamada Emma, responsável pela ala
infantil, e ela foi super gentil na hora de me atender e escutar, além de ter
ficado apaixonada por mim e por meus olhos. — Ele dá risada e balança a
cabeça de um lado para o outro. — Enfim, isso não vem ao caso. O que
interessa é que, por incrível que pareça, uma garota que trabalhava na ala
havia pedido demissão recentemente e a senhora estava em busca de uma
funcionária, então por ter ficado emocionada por ver o meu empenho em
transparecer o seu amor pelos livros, além do meu claro desespero para
conseguir isso, não pensou duas vezes em aceitar te contratar. Mas ainda
haverá testes, claro. Ela vai ver se você é tão boa quanto eu falei e se
realmente leva jeito com as crianças. E é claro que você leva e é claro que o
trabalho vai ser mesmo seu.
Uau.
Não consigo acreditar que John fez isso tudo por mim sem querer e
sem pedir nada em troca. Não consigo acreditar que ele se empenhou tanto
para me ver realizada de alguma forma, para me ver realmente satisfeita
com o meu trabalho e com as coisas que eu realmente dedico minhas horas.
Não consigo acreditar que ele levou meus sonhos e os meus desejos a sério,
tão pouco que correu atrás de cada um deles. Não consigo, de forma
alguma, acreditar que acabei de encontrar alguém no mundo capaz de fazer
algo nessa dimensão.
Estou tão acostumada com as pessoas tratando-os como um nada que
isso aqui é, sem sombra de dúvida, um dos atos mais grandiosos que já
fizeram por mim.
Uma súbita coragem me invade e eu aperto ainda mais seus dedos
contra os meus, encurtando de vez qualquer distância que estivesse nos
separando.
— Engraçado você sempre falar de mim, mas já olhou para dentro de
si e fez uma reflexão? Você é um cara incrível, Scott. — Seu pomo de Adão
sobe e desce com a minha frase e com a firmeza com a qual as palavras
saem. — Você é o cara que dança com uma garota na chuva só porque o
filme favorito dela tem uma cena assim, é o cara que se mete em confusão
para tentar salvar um desconhecido em apuros, é o cara que realiza meus
desejos quando ninguém nunca ao menos tentou, nem mesmo eu, e é o cara
que sempre está disposto a fazer as pessoas ao seu redor sorrirem,
independentemente de estar bem consigo mesmo ou não. — Livre de
qualquer receio, abraço seu corpo e descanso a cabeça em seu peito. Em
seguida, seus braços me envolvem e seu queixo repousa no topo da minha
cabeça. — Obrigada por me fazer enxergar que por baixo da camada de bad
boy clichê há um ser humano incrível aí dentro.
Scott não me responde nada, e eu nem me importo, afinal, consigo
escutar as engrenagens da sua cabeça daqui ao trabalhar tão copiosamente
dentro do seu cérebro quanto seu coração dentro do seu peito, que troveja
incessantemente e extremamente próximo do meu ouvido.
O meu não se encontra muito diferente, entretanto.
Ficamos nessa posição por longos minutos, nossos corpos juntos e
conectados como nunca antes. O silêncio nos engloba como uma redoma e
acaba sendo extremamente reconfortante, provavelmente efeito dos
sentimentos conflitantes que guerreiam dentro de nós.
De repente, um pensamento me invade e faz com que eu sinta uma
pontada quase sufocante no peito.
Me afasto minimamente apenas para tombar a cabeça para trás, a fim
de esquadrinhar seu rosto.
— Meu tio não permitirá — sopro baixinho, quase com medo que ele
escute. — Não permitirá que eu abandone tudo para me aventurar aqui,
nessa biblioteca.
Como se eu tivesse falado a maior estupidez do século, John solta
uma risadinha e me puxa de volta para o nosso abraço.
— Ele não só vai como já permitiu — o loiro garante. — Acha
mesmo que eu esqueceria dessa parte? Eu sou o tipo de cara que faz o
serviço completo, gata. — Nesse ínterim, suas mãos sobem e descem em
um carinho sutil e singelo pelas minhas costas. Me aninho ainda mais a ele
por conta disso. — E eu também não sou o único cara que quer te ver feliz,
Stratford. Seu tio está muito empenhado nessa função, também.
Apesar de saber que David Wilson me ama e é capaz de fazer
qualquer coisa pela minha felicidade, ainda assim sei que ele é casca grossa
em determinados assuntos, principalmente quando se trata de trabalhos.
Tenho certeza que não foi uma tarefa fácil para John Scott convencê-lo de
que trabalhar na biblioteca era o meu sonho e o ideal para mim.
Saber que ele se empenhou tanto e não esqueceu de nenhum detalhe
faz com que os sentimentos se tumultuem ainda mais dentro de mim.
Droga. Acho que se ainda existia uma parte de mim armada, ela
acaba de estar inteiramente, completamente e irrevogavelmente sem
munição agora.
A fumaça cinzenta do cigarro que eu fumo se expande pelo rancho em
espirais até que simplesmente desaparece sobre minha cabeça. Olho ao meu
redor e finalmente me dou conta de como o outono deixou tudo ainda mais
bonito por aqui. O rancho está cercado por cores quentes, as árvores estão
uma mescla de vermelhas, laranjas e amarelas, e o cair das folhas parece
tornar a paisagem ainda mais reconfortante. É uma pena que ele já está indo
embora para dar lugar ao inverno daqui a alguns dias.
Apesar de não nevar na cidade e nem fazer um frio exorbitante, gosto
do clima que toma Hellaware no final do ano; é refrescante, acolhedor e cai
chuvas dignas de assistir filme em casa na companhia de um bom chocolate
quente.
Fico tanto tempo encarando a paisagem e imerso em meus próprios
pensamentos que não percebo a presença dos meus amigos até eles se
sentarem perto de mim em um círculo bem formado na relva. Devin se senta
ao meu lado, Kieran do outro e Kara e Violet ficam em minha frente. Todos
os pares de olhos se voltam para mim na mesma hora, como se fosse algo
coreografado.
— O que foi? — questiono, rápido. — Por que estão me olhando com
essa cara? Sei que sou gostoso e a vista se torna maravilhosa, mas com tanta
gente assim eu fico com vergonha.
Devin contorce o rosto em uma careta com a minha fala, Kieran
balança a cabeça de um lado para o outro e Kara e Violet se entreolham de
forma cúmplice e levam a mão às bocas para evitar de dar risada bem na
minha frente.
— Seu ego consegue ser maior que isso tudo aqui, sabia? — Violet
Mohn, a garota que sempre adora pegar no meu pé, diz ao apontar todo o
perímetro do rancho com o dedo girando. — Nós só queríamos conversar
com você, Johnny, não pode mais? Você anda muito sumido depois que
ficou de coleira. Ficamos com saudades, poxa.
— Pois é! — é a vez de Devin Leblanc afirmar a fala da nossa amiga.
Seus olhos verdes me escrutinam, suas sobrancelhas sobem de forma sutil e
um meio sorriso aparece em seus lábios ao passo em que entrelaça as mãos
embaixo do queixo. — Você se tornou um cãozinho adestrado muito
sumido, sabia? Acho que vamos ter que conversar seriamente com a sua
dona pra ver se ela aceita a nossa sugestão de guarda compartilhada.
Fricciono os lábios para não rir porque, porra, eles são muito bons
nisso.
Abro a boca para retrucar com alguma piadinha tão idiota quanto, mas
é claro que Kieran McAllister me impede ao sair na frente para falar:
— Vamos pegar leve com o cara, pessoal. — Seu sorriso é
completamente cínico e divertido. O filho da mãe deve estar adorando esse
momento. — Imagina se ele tivesse sozinho nessa? A sorte é que Leblanc
entende muito bem do assunto também.
Devin dá um murmúrio de surpresa e joga todo seu peso em cima de
Kieran, que quase tomba para o lado e cai. As risadas, inclusive as minhas,
preenchem o espaço e o nosso momento por longos segundos.
Acho que mereço todas as provocações, no final das contas.
Ontem, mais uma vez, acabei chegando muito tarde e perdendo o
jantar que havíamos combinado de fazer na semana passada. Todos eles
ficaram furiosos comigo e exigiram saber onde eu havia me enfiado, então
não vi outra alternativa a não ser contar a verdade, a não ser contar que
passei horas na companhia da minha ruiva diabólica, conversando sobre
tudo que fiz para conseguir o trabalho para ela na biblioteca e, claro, todas
as artimanhas que tive que usar para driblar e convencer o tio dela, o Sr.
Wilson, que Pasha tinha um sonho e que ele precisava ser atendido o mais
rápido possível.
Acho que o homem rechonchudo ficou se perguntando o porquê de eu
estar tão empenhado em ajudar sua sobrinha e o que diabos eu queria com
aquilo, mas, sinceramente, não externou nada se realmente pensou. Ele
apenas me sentou no sofá da sua casa, ouviu cada coisa que eu tinha para
falar, cada coisa que eu sabia sobre o amor da ruiva por livros, por crianças
e, claro, sobre a vontade gigantesca de trabalhar com alguma coisa dessas
que ela possuía dentro de si. E então, assim que eu coloquei para fora tudo o
que eu havia ensaiado e o implorei para me ajudar — é sério, eu implorei
mesmo —, o dono do Fast Rocket apenas assentiu, retrucou algumas vezes
e, no fim, disse que conseguia enxergar todo o amor que a sobrinha tinha,
pois a pegava várias vezes lendo pela casa, até mesmo lembrava muito
nitidamente dela recitando poemas famosos quando era pequena.
Dizendo que não queria aprisionar a sobrinha em algo que não era
para ela, David Wilson me garantiu com todas as letras que apoiava
totalmente a minha ideia. Como se isso já não fosse o bastante para me
deixar numa alegria tremenda, o homem me agradeceu por ter aberto seus
olhos e por eu ter me saído um amigo e tanto.
Ah, se ele soubesse...
No fim, apesar de ter ficado nervoso para um cacete, apesar de ter me
arriscado, apesar de ter sido e estar sendo zoado pelos amigos, sinto que
tudo valeu a pena só de lembrar o sorriso da alasquiana quando contei a
novidade, só de lembrar seu rostinho emocionado, seus lindos olhos cor de
avelã marejados, seu corpo agarrado no meu em um abraço repleto de
significados, palavras não ditas e muito, muito agradecimento. Sinto-me
realizado por saber que ela está realizada e sinto-me feliz por saber que a fiz
feliz. Sinto como se, pela primeira vez, tivesse acertado em algo grandioso e
feito a coisa certa como nunca antes.
Pasha Stratford vem causando muitas sensações e sentimentos em
mim ultimamente, uma coisa completamente louca, intensa, fora do normal
e avassaladora. Depois que eu a deixei adentrar a minha vida, venho
experimentando coisas das quais nunca cogitei antes; a garota é como se
fosse a única para mim agora, como se a sua presença, a sua beleza e a sua
figura imponente tivesse ofuscado a de todas as outras, como se tivesse feito
um feitiço para adentrar em minha corrente sanguínea e se manter presente
em cada centímetro do meu corpo, transportando sua vivacidade e a sua
ferocidade por todas as veias até que estas bombeiem o meu coração de
forma pulsante e arrebatadora.
Ela me fez querer estar por perto sempre, me fez um completo viciado
em seus cabelos cor de fogo, em seus olhos expressivos, em seu corpo cheio
de curvas sinuosas que virou meu lugar favorito, em seus lábios voluptuosos
prensados contra os meus e, sem sombra de dúvida, me fez ficar
completamente alucinado pelo gosto doce deles, deixando-me cada vez mais
inebriado, esfomeado e embebedado por todas as particularidades que a
envolvem tanto externamente quanto internamente, que consegue ser um
trilhão de vezes melhor quando alguém consegue desbravar cada uma das
suas camadas.
Céus, essa mulher me deixa mesmo louco.
E o pior de tudo é que não sei denominar isso que sinto.
“Ou talvez você tenha medo”, alguma voz grita dentro da minha
cabeça.
Os dedos estralados de Kara na frente do meu rosto me faz piscar um
par de vezes até conseguir voltar à órbita, encontrando seu rosto meigo e o
seu sorriso doce e cheio de dentes brancos direcionados apenas a mim.
— Escutou o que eu disse? — a cacheada pergunta, e eu balanço a
cabeça negativamente e peço para que repita. — Eu estava dizendo para eles
que não tem nada de errado em se apaixonar ou em amar alguém. O amor e
a paixão são sentimentos muito bonitos e que deveriam ser mais buscados,
ao invés de serem afastados. As pessoas têm medo de amar, de se entregar,
de se permitir viver como se esse sentimento fosse uma doença, uma coisa
errada, quando, na verdade, é bem o contrário. Esses dois, quando estão
juntos, libertam almas, alimentam sonhos e transformam vidas. Não tem
nada de vergonhoso em sentir. Para mim, sinceramente falando, é algo muito
nobre e que eu desejo muito viver um dia.
Kara suspira feito uma romântica ao finalizar, e suas palavras, assim
como toda a conversa e todos os pensamentos que tive mais cedo, me
atingem com força, como se fosse uma forte pancada bem na minha cara. E
sem me preocupar em parecer um maluco mal educado, flexiono meus
joelhos e me levanto em um rompante, marchando para o meu trailer sem
falar nada e sem nem ao menos virar para trás, ignorando completamente as
vozes dos meus melhores amigos me chamando.
Subo os degraus do trailer, abro a porta, fecho-a com uma certa força e
solto um rosnado baixo, direcionando-me até o sofá. Já sentado, bagunço os
fios do meu cabelo para trás e solto todo o ar preso dentro dos meus
pulmões.
A voz de Kara falando sobre amor e paixão rondam a minha mente e
faz com que eu feche os olhos com certa força, balançando a cabeça de um
lado para o outro ao tentar negar o que uma parte de mim tenta me mostrar.
Nesse meio tempo, escuto o ranger da porta sendo aberta, mas não me
movo. Não consigo me mover ou fazer nada que não seja reprimir o que eu
acho que sinto pela ruiva.
Meu senhor, estou morrendo de medo, essa é a verdade.
— John? — Escuto a voz rouca de Devin me chamar, porém continuo
sem me mover. Estou ocupado demais olhando para um ponto fixo no
assoalho. — O que aconteceu com você, cara? Você estava rindo das nossas
provocações, estava bem... O que foi que mudou? — Meu amigo senta-se ao
meu lado e toca em meu ombro. — Eu sou seu irmão, porra, pode falar
sobre o que quiser comigo.
Finalmente crio coragem para encará-lo. Suas írises, totalmente
banhadas de compreensão, encontram as minhas e, de certa forma, me
acalmam pelo menos um pouco.
Devin é realmente o meu melhor amigo, o meu irmão, e não vejo
problema nenhum em dividir minhas angústias e inseguranças com ele,
afinal, sempre dividimos tudo um com o outro. Não importa o assunto, não
importa o grau de importância e relevância, não importa absolutamente
nada, estaremos sempre contando um para o outro.
Se há alguém nesse mundo que me entende e me ajuda como
ninguém, esse alguém é esse cara sentado ao meu lado.
— Acho que a minha ficha caiu — sopro. Uma pontada estranha
atinge o meio do meu peito. — Acho que tudo faz sentido agora.
— Seja mais específico, Scott.
Balanço a cabeça de um lado para o outro e fico em silêncio, quase
como se estivesse decretando que não iria rebater ou responder a sua frase.
Ele parece perceber, pois sulcos formam-se entre as suas sobrancelhas e
glabelas, incentivando-me a falar o que parece estar entalado em minha
garganta. Até tento fugir, mas, quando dou por mim, estou perguntando:
— Como uma pessoa sabe que está se apaixonando?
Devin sorri.
Não um sorriso de provocação, e sim um daqueles sorrisos de
percepções, um daqueles que a gente só dá quando finalmente conseguimos
compreender muito bem um determinado assunto que estava custando a
quebrar nossa cabeça.
Engulo em seco na mesma hora, a bola de saliva descendo feito uma
massa de concreto por entre a minha garganta.
— Seria clichê demais se eu falasse que a pessoa simplesmente só
sente? — Leblanc dá uma risadinha ao passo em que remexe a cabeça,
provavelmente lembrando de quando se deu conta de que estava apaixonado
por sua namorada. — Clichê ou não, essa é a verdade, John. A gente só
sente o coração bater mais forte que o normal, a respiração falhar, a mão
suar, o mundo mudar. A gente só sente uma vontade incontrolável de querer
conquistar a mesma pessoa todos os dias, de estar com ela todos os dias, de
ser o único responsável a transformar todos os seus sonhos em realidade, de
ser o único a fazê-la feliz. A gente simplesmente sente. A gente
simplesmente sabe.
“A gente simplesmente sabe.”
— Mas eu não sei se eu sei, Devin. — Enterro o rosto entre as minhas
mãos e reprimo um grito de frustração. — Você sabe muito bem que eu não
sou capaz disso. Sabe muito bem que sou ferrado, que sou fodido e que
tenho medo. Que tenho medo de não saber retribuir, que tenho medo de não
saber lidar, que tenho medo de não me sentir digno e de não me sentir
merecedor de amor. Eu nem ao menos sei se sou capaz de amar alguém que
não seja vocês, a minha família.
Meu melhor amigo segura os meus braços e coloca-os ao lado do meu
corpo, agora forçando-me a encará-lo no exato momento em que se
aproxima ainda mais.
— Para de deixar seu passado interferir em seu futuro, John Scott. —
Sua voz sai forte, alta e imponente, quase como se estivesse disposto a fazer
com que as palavras fiquem fixadas em minha cabeça e não saiam por nada.
— Você passou anos da sua vida fugindo disso, passou anos se esquivando,
e agora chegou a hora de parar de se contentar com tão pouco. Chegou a
hora de se arriscar, cara. Chegou a hora de finalmente reconhecer o ser
humano incrível e cheio de luz que há dentro de você. Chegou a hora de
simplesmente sentir. Se permita sentir, se permita viver, se permita ser
libertado daquele garotinho pequeno, que vivia com pessoas que não sabiam
reconhecer seu devido valor. Mais uma vez, meu amigo, se quer um
conselho, deixe seu passado no passado e viva. Viva como nunca antes.
Enquanto ele fala, meu coração infla-se de esperança.
Mas eu não consigo deixar de me perguntar como eu posso fazer isso
se, na verdade, meu passado sempre dá um jeito de voltar para me
assombrar.
ESSE CAPÍTULO PODE CONTER GATILHOS REFERENTES À BULLYING E VIOLÊNCIA
12 ANOS ATRÁS
Não sei ao certo, mas acho que já tomei três ou quatro taças de
champagne depois que eu e John decidimos sair da pista para bebermos
alguma coisa. Tudo entre nós acontece muito rápido, então não me lembro
com exatidão quantas vezes já entornei o líquido transparente e espumante
em minha garganta, tão pouco me lembro em que momento ele me
convenceu a entrar em uma dessas cabines de tatuagem que Amber alugou,
só sei que conseguiu e que agora estou o observando folhear uma espécie de
caderno que o tatuador lhe entregou, onde provavelmente deve ficar os
desenhos de sua autoria.
John parece pensativo e seus orbes acompanham atentamente cada
detalhe nas folhas, enquanto o cara alto, tatuado e de barba escura e espessa
conta alguma coisa interessante sobre as artes do caderno. Não consigo
focar muito no que estão falando, estou mais interessada em assistir cada
uma das expressões interessantes que Scott expressa em seu rosto, uma
mistura engraçada de pânico e horror quando o homem não o olha.
Coloco a minha boca na borda da taça para evitar que uma risada
ressoe pelo lugar.
Cerca de pouquíssimos minutos depois, John se despede do tatuador,
para em minha frente e torce o nariz em uma careta ao passo em que
remexe a cabeça de um lado para o outro.
— O que aconteceu? — Uno as sobrancelhas, achando tudo divertido
demais.
Ele olha sobre os ombros, volta a me encarar, passa o braço ao redor
do meu pescoço e caminha para fora da cabine comigo em seu encalço. É só
quando estamos fora do lugar que menciona:
— O cara era meio mórbido. — Assovia. — Acredita que ele só tinha
desenhos de caveira, morte e coisa do tipo? — Faço a minha melhor
expressão de surpresa, embora não esteja totalmente. — Além de ser
sinistro demais, eu também não teria como fazer uma sem tirar a calça e
talvez até a cueca, já que tudo aqui em cima se encontra cheio de desenhos.
Meio inapropriado para o momento, não acha?
Seguimos caminhando pelo rancho sem destino algum.
— Você já é inapropriado por natureza, querido — menciono,
achando graça.
Seu sorriso atroz toma conta de todo seu rosto agora.
— Ouvi dizer por aí que é a qualidade minha que você mais gosta.
Abro a boca para lhe chamar de convencido, mas nós dois paramos
com qualquer conversa quando Barbie, Devin e Georgina aparecem afoitos
em nossa frente. Eu e John, como de costume, nos entreolhamos com as
sobrancelhas unidas.
— Estávamos procurando por vocês — Georgina diz, e vejo que seu
peito sobe e desce, como se todos eles tivessem acabado de correr a festa
inteira em busca da gente. — Vamos tirar fotos na cabine! — Soa
totalmente animada e saltitante ao apontar para atrás de si.
E tão rápida quanto chegou, Georgina Sinclair desaparece atrás da tal
cabine de fotos.
Eu, John, Barbie e Devin gargalhamos ao assisti-la correndo no meio
da relva.
Sem falarmos mais nada, e ainda sorrindo, seguimos os passos da
maluquinha para congelarmos esse momento em fotos. Já passando pelas
pequenas cortinas vermelhas da cabine, nós cinco ficamos imprensados
quando estamos dentro do local apertado para que todos possam ficar
enquadrados pela câmera. John, que está atrás de mim e ao lado do melhor
amigo, imita a pose dele e da namorada ao pôr os braços ao redor da minha
cintura e repousar o queixo na curvatura do meu ombro. Não reclamo,
entretanto. Deixo que me abrace, inspire o cheiro de creme de cereja na
minha pele e faça com que as borboletas se alojem no meu mais profundo
âmago só pela posição que estamos.
O sorriso que adorna meus lábios pincelados por batom coral é
extremante largo e sincero quando olho para a câmera.
— Meus amores e casais da minha vida... — Georgina fala assim que
a máquina começa a fazer a contagem regressiva. — Digam X para a
mamãe aqui!
Todos nós rimos da escolha de palavras dela.
— X! — é o que dissemos em uníssono, totalmente sorridentes,
quando a contagem termina e a câmera se volta totalmente para nós.
No começo, todos nós fazemos poses bonitas e bem comportadas,
mas quando vai chegando no fim, fazemos infinitas caretas com direito a
línguas e dedos do meio. Scott, em uma das últimas, vê que Devin e Barbie
estão se beijando e faz isso comigo também. No final de tudo, quando
saímos da cabine e as fotos saem por aquele lugarzinho de costume, rimos
ainda mais do resultado quando percebemos que Georgina foi capturada
fingindo segurar uma vela enquanto eu beijava John e Barbie beijava
Devin.
As fotos estão nas minhas mãos, então John fica atrás de mim
observando cada uma delas. E quando eu viro lentamente sobre os ombros
para prescrutar seu rosto nesse interim, seus glóbulos logo capturam os
meus. Seu sorriso enfraquece e vacila em seus lábios, seus longos e
espessos cílios se chocam tantas vezes um no outro quando me observa que
acabo fazendo o mesmo por estar totalmente hipnotizada e presa nesse
momento.
Pisco e entreabro os lábios.
Nossos amigos, que estão ao nosso lado conversando e rindo de algo
aleatório, parecem não perceber essa redoma estranha que nos enfiamos de
repente. Parece haver palavras não ditas em seu olhar e não consigo decifrar
muito bem o brilho diferente que perpassa por suas írises nesse momento.
— Eu... eu — John tenta deixar que algo saia, mas sua boca
friccionada não deixa que nenhum som escape. — Eu preciso conversar
algo com você, mas antes eu preciso fazer uma coisa. Você se importa em
esperar alguns minutos?
Meio a contragosto, já que sinto a curiosidade borbulhar dentro de
mim, assinto. John aquiesce, diz que volta já para os nossos amigos e
arrasta os sapatos sociais para algum ponto lá na frente. Tentando não surtar
com os meus questionamentos internos sobre o que ele tem de tão
importante para me falar, aceito o convite de Barbie, que acaba de perguntar
se quero me juntar a eles na pista de dança.
Me ponho ao lado da minha melhor amiga e ela se desgruda do
namorado apenas para enlaçar os braços em minha cintura e encostar sua
cabeça em meu braço enquanto caminhamos. Sorrio para ela sem descolar
os lábios e devolvo seu aperto genuíno.
— Ver você livre, feliz e desprendida dos seus medos me deixa muito
feliz, sabia? — Barbie sussurra só para que eu escute, e eu assinto sem nem
pensar duas vezes. Como passamos por muitos problemas parecidos e
trilhamos um caminho tortuoso até consolidarmos essa amizade que temos,
é impossível não saber que ela se sente feliz e orgulhosa por mim. Eu me
sinto exatamente assim por ela, me sinto exatamente assim por saber que
ela está finalmente vivendo a vida que sempre quis. — Apesar de você ser
uma traidora e ter me abandonado lá no Fast Rocket, ainda te amo.
Gargalho, porque assim que minhas amigas ficaram sabendo da
minha mudança súbita de emprego, me chamaram de tudo quanto é nome.
Falaram que eu era traidora tantas vezes que quase comecei a achar que era
verdade. Apesar das brincadeiras, me apoiaram mais do que tudo. Até
fizeram uma visita para mim lá na biblioteca e ficaram me assistindo
enquanto eu lia Os Três Porquinhos no meio da roda de crianças.
Parecendo ler o que se passa em minha mente, Barbie continua:
— Você está amando trabalhar lá, não está? — Confirmo mais uma
vez. Trabalhar com crianças sempre foi tudo o que mais quis na minha vida.
Estou amando ler para elas, amando escutá-las me chamando de tia Pasha,
amando cada momento que venho passando durante essas poucas semanas.
Entrar naquele lugar é como revigorar as energias um milhão de vezes. —
Dá para perceber pela forma como seus olhinhos brilham.
Tenho certeza que meus olhos brilharam dessa mesma forma quando
fui fazer a entrevista de emprego, pois foi uma das primeiras coisas que
mencionaram para mim quando me deram a notícia que a vaga seria minha.
Sorrio só de lembrar.
— Agora tenho ainda mais certeza que quero isso para minha vida —
confidencio a ela. — Tudo graças a John Scott. Quem diria, huh?
— Eu diria — Barbie menciona assim que chegamos na pista de
dança e as luzes nos atingem tanto quanto a música. — Eu sempre disse —
a garota de cabelos dourados grita por cima da voz de Ramones.
Balanço a cabeça de um lado para o outro e reviro os olhos,
brincalhona, e aproveito para puxar Devin Leblanc para mais perto de nós,
que estava um pouco separado como se estivesse querendo nos dar espaço.
Ele cantarola a música, pega a mão da namorada e encosta as costas dela
em seu peito, indo de um lado para o outro conforme permanecem juntos.
Passamos tantos minutos dançando que perco a noção do tempo.
Sinto a minha respiração ficar pesada, meu coração pulsar na batida da
música envolvente e a minha cabeça rodopiar pelo álcool que consumi mais
cedo. Cerca de vinte ou trinta minutos depois, já com os meus pés doendo,
sinto a falta de John e lembro de suas palavras antes de simplesmente sumir.
Sentindo algo estranho revirar no meu estômago — que dessa vez não é por
conta do champagne —, dou as costas para os meus amigos e peço licença
para as pessoas conforme vou tentando sair da pista. Afasto algumas com o
cotovelo e, assim que já estou livre dos corpos amontoados e suados, tento
procurar John pela festa, mas não o encontro em canto nenhum.
Sigo desbravando o rancho e a preocupação de algo ter acontecido
com ele faz com que mãos invisíveis apertem a minha garganta, o meu peito
também sendo esmagado pelo meu coração frenético e ansioso por uma
resposta. Arrasto meus pés livres de salto pela relva, sentindo as plantas
pinicarem os solados desprotegidos. Apesar disso, não paro.
Estou passando pelos trailers prateados quando algo me faz parar.
Pela janela do trailer da minha frente, vejo John passar de um lado para o
outro, como se estivesse ansioso com algo. Cautelosamente, me aproximo
pouco a pouco a fim de tentar ajudá-lo com o que quer que seja. Paro ao
lado da porta quando, de repente, vejo mais uma figura dentro da moradia
em rodas.
Uma garota, para ser mais exata.
Mesmo sabendo que é errado, não saio do lugar. Na verdade, até me
aproximo mais para tentar enxergar um pouco mais. Só então quando vejo
os fios vermelhos com pontas alaranjadas e o piercing brilhando em seu
supercílio é que a reconheço. Daisy Flinch. Daisy, uma das garotas trazidas
por Hunter da cidade vizinha e a única que havia permanecido por aqui.
Sinto meu coração quase parar pelo sentimento intenso que o inunda feito
tsunami quando observo os dois juntos, sozinhos nesse lugar. A pontada que
sinto ao pensar nisso me faz retesar.
Sinais vermelhos pipocam em minha vista e sirenes ecoam em minha
cabeça, impulsionando-me a sair desse lugar o quanto antes, mas contrario
todos eles e continuo aqui, extremamente perto deles.
— Eu não sei como te falar isso. — Ouço John dizer para Daisy, o
que faz meu coração bater ainda mais rápido com a adrenalina de estar
prestes a escutar algo que não deveria. Finco o incisivo na carne do meu
lábio inferior enquanto o escuto. — Mas eu preciso te dizer de uma vez.
Preciso tirar isso que está entalado na minha garganta e que me faz perder o
ar. — Ele dá um passo e para em frente à Daisy, olhando-a de um jeito tão
apaixonante, daquele jeito que costuma só fazer comigo que faz um bolo se
alojar em minha garganta. — Então, não sei como irá reagir ou o que fará
com essa informação, mas me encontro terrivelmente apaixonado por você.
Estou apaixonado por todas as coisas que envolvem você, só por serem
suas. Estou completamente em suas mãos desde o momento em que te vi
pela primeira vez. Acho que eu sempre soube que terminaria assim, mas
não me importo. Estou completamente e inteiramente pronto para ser seu...
A partir desse momento, não absorvo mais nada.
Não consigo se quer prestar mais atenção no que ele fala, sua voz sai
completamente distante agora. Olho para minhas mãos e percebo que se
encontram trêmulas. Uma gota gorda de lágrima cai sobre elas. Pisco e mais
outras caem.
Só então percebo que estou chorando.
Meu coração se comprime tanto quanto meus pulmões, que me
impossibilitam de respirar trivialmente enquanto suas palavras permanecem
ecoando em minha mente feito um loop insanamente doloroso. Ainda
tentando desesperadamente trazer o ar de volta, saio desse lugar e marcho
em direção à saída sem me importar com as unhas que cravam e machucam
a palma da minha mão, tão pouco com as lágrimas que nublam os meus
olhos e insistem em embaçar todo o caminho que percorro.
A única coisa que consigo pensar, enquanto corro para longe como se
a minha vida dependesse desse momento, é que o que ele tinha para me
contar era isso. Ele iria se declarar para ela e viria me contar, provavelmente
rir da minha cara por ter sido tão estúpida e idiota de não ter percebido que
estava dormindo e me entregando para um homem que estava
completamente apaixonado por outra. John Scott provavelmente me
humilharia na frente de todos e cuspiria o quanto eu não passei de um jogo
sádico para ele, o quanto eu não passei de mais uma garota fácil, ingênua e
que se deixa levar por meias verdades, cantadas baratas e ilusões bem
atuadas e dignas de Oscar. Diria para todos o quanto eu sou insignificante,
cheias de defeitos, venenosa e que não sirvo para nenhum tipo de cara.
O choro irrompe em minha garganta e já não me importo de estar
soluçando.
Me doei de corpo e alma, embarquei nessa sabendo que era perigoso,
que iria contra todos os meus princípios e contra tudo o que eu vinha
lutando, e mesmo assim quebrei a cara. Porque enquanto eu estava
sentindo, enquanto tudo da minha parte era verdadeiro, ele estava apenas
rindo nas minhas costas e me... usando.
Enquanto me apaixonei perdidamente por John Scott, que foi o único
que conseguiu desarmar toda a munição que eu carregava para me proteger,
ele só estava esperando o momento certo para pegá-las em suas próprias
mãos e usá-las contra mim. John tem a porra da arma mirada no meu
coração agora e o tiro vem certeiro, corroendo todo o meu organismo por
dentro, maculando minha alma com o vermelho. Sinto o gosto do sangue,
da derrota e do coração partido bem na ponta da minha língua. E todos eles
são horríveis. Todos eles fazem que eu sorva para dentro de mim o gosto de
ter experimentado brincar com fogo, como ele mesmo disse hoje mais cedo,
e tudo dentro de mim queima por isso.
Rio escárnio com a constatação enquanto todo o meu corpo treme; de
pavor, de dor, de ódio. Ódio dele. Ódio de mim. Porque, no fundo, eu
sempre soube que esse momento aconteceria. Eu sempre soube que John e
eu acabaríamos assim. Que acabaríamos em ruínas, destroços e fogo
generalizado, capaz de provocar ferimentos impossíveis de serem curados
com facilidade. Mas, mais uma vez, fui burra ao acreditar que poderíamos
dar certo, que poderíamos ir contra qualquer estatística que mostrasse para
nós o quanto perigoso tudo estava sendo. Fui burra ao acreditar que, dentre
as opções caso isso acontecesse, não seria eu a afetada por nosso jogo agora
corrompido. Fui impulsiva, sonhadora, infantil, me deixei ser levada pela
necessidade que, no fundo, sentia de finalmente me sentir pertencente a
algo ou alguém.
Seco as lágrimas com as costas das mãos quando estou na saída e
avisto meu carro. Corro até ele e o abro em um ímpeto, escorregando para o
banco do motorista. Procuro pela chave dele na minha bolsa, pesco-a entro
os dedos e o ligo com as mãos tremendo. Antes de dar partida e ir para casa,
bato incontáveis vezes no volante e deixo um urro de dor escapar pela
minha garganta já dolorida de tanto segurá-lo. A água cristalina reaparece
em meus glóbulos, só que dessa vez não sei se elas caem copiosamente por
mim, por John ou por Daisy, que terá o que eu tanto almejei enquanto
estávamos juntos: a paixão dele. Sinceramente, acho que é por uma junção
de tudo.
No automático, sem de fato prestar atenção na estrada escura e
desértica, dirijo para casa. Momentos de nós dois pipocam em minha mente
durante o trajeto e me pergunto quando me tornei tão iludida, pois tudo
parecia sempre tão sincero e verdadeiro quando se tratava de nós dois. Tudo
parecia tão real e recíproco. Não consigo não me questionar com o que ele
pode ter ganhado fazendo tudo isso. O que ele pode ter ganhado brincando
comigo, com o meu coração e, ainda por cima, com as minhas feridas
internas não cicatrizadas e que se tornaram ainda mais expostas agora.
A única explicação plausível que encontro é que John Scott sempre
quis ser o único que conseguiu me colocar lá em cima só para me arrancar
com as suas próprias mãos depois. Me assistir ruir em meio às cinzas do
que achei que construímos juntos talvez sempre tivesse sido seu maior
objetivo.
Bom, devo dar meus parabéns, pois ele chegou muito bem nele.
Quando percebo, alguns longos minutos depois, já estou adentrando a
rua que vivo com meus tios. Assim que passo por algumas casas da
vizinhança, enxergo, mesmo que de longe, as luzes vermelhas da sirene de
uma ambulância. Achei que não fosse possível, devido ao estado que me
encontro, sentir mais um arrepio percorrer pela base da minha espinha, mas
é exatamente isso que sinto ao me aproximar mais com o carro e ver que
uma movimentação atípica acontece bem em frente da minha casa. Uma
movimentação derivada de pessoas e paramédicos, que correm com uma
maca, totalmente apressados, até estarem de volta a ambulância.
Ainda no automático, estaciono o carro, escorrego para fora e me
aproximo de tudo sentindo a veia latejando em meu pescoço.
Meus olhos fincam em meu tio, que sai da casa chorando ainda mais
ao me enxergar em meios às outras pessoas.
Sr. Wilson se aproxima e me perco completamente quando o escuto
balbuciar:
— Rosalinda... — Seu choro sôfrego me faz prender o ar dentro dos
pulmões e apertar ainda mais as unhas na carne da palma. — Ela... ela... ela
está morta.
Pisco. Pisco uma, duas três vezes.
Como se fosse uma mera telespectadora, assisto quando meu tio
envolve seus braços em meu corpo e me embala em um abraço
desengonçado e repleto de carga emocional. Pouco a pouco, me deixo ser
tomada pelo vazio que se aloja em meu peito e, simples assim, sucumbo.
Sucumbo na dor pela segunda vez na noite.
Perder alguém que se ama muito, mesmo que de forma repentina ou
que você já sentia que estava prestes a acontecer em algum momento
devido à vários fatores que não nos cabem mudar, deveria ser algo proibido
pelo universo, afinal, ninguém está preparado para dar adeus a quem ajuda
a tornar seu mundo um pouco mais colorido e tolerável no fim do dia.
Ninguém está preparado para entender que, enquanto estivermos nesse
mundo, não veremos mais essa pessoa sobre hipótese alguma. Ninguém
está preparado para deixar para trás um sorriso, um conforto, um ombro
amigo e um amor. Ninguém está preparado para lidar com a dor da perda, a
dor da saudade e a dor de saber que a vida é um trem que anda sob trilhos
infinitos, cujo a duração de algumas pessoas dentro dele será mais curta que
a de outras que, eventualmente, ainda não cumpriram seu propósito no
vagão.
E eu, definitivamente, não estava preparada para dar adeus à
Rosalinda de uma forma tão súbita e precípite. Não estava preparada para
entender que uma pessoa que passou a estar comigo o tempo todo,
simplesmente não estará mais. Não estava preparada nem pronta para
entender que o seu propósito no vagão havia se cumprido, tornando-a
pronta para ir embora do trem e nos deixar sem a sua companhia, sem a sua
preocupação e zelo diário, sem o seu toque de amor e a sua alegria que
preenchia e tomava conta de todos os lugares da casa. Da nossa casa.
Minha tia sofreu um ataque fulminante no banheiro na noite de
ontem, enquanto seu esposo terminava de fazer o jantar na cozinha. Ele
escutou o barulho, gritou o seu nome, ela não respondeu e bom, a ajuda
chegou tempo depois e tudo se transformou em um borrão na minha mente
e, provavelmente, na do meu tio também, que teve que tomar a frente para
organizar as coisas que precisavam ser organizadas.
O funeral dela está ocorrendo aqui em casa e tudo faz com que minha
cabeça rodopie feito um peão e o gosto da bile invada minha boca. Sempre
odiei funerais; o de Penelope fora um tormento e um pesadelo que me
assombra até hoje. Os salgadinhos, as pessoas, as conversas fúteis sobre
amenidades, bebidas... Qual sentido possui essas merdas? Eu poderia
facilmente gritar e enxotar todas essas pessoas hipócritas daqui agora
mesmo. Mas seria idiota da minha parte. Isso aqui, embora eu não entenda,
é importante para o meu tio e eu o respeito bastante ao ponto de aceitar
qualquer coisa que ele decida fazer para manter viva de alguma forma a
memória de sua esposa.
Solto um muxoxo e meu cenho se franze em uma careta quando vejo
a pilha de salgadinhos posta na mesa à minha frente.
Não coloquei nada na boca desde ontem na festa e nem preguei os
olhos em nenhum momento quando cheguei. Minha visão pisca com
pontinhos brancos e tenho certeza que é um grande aviso do meu corpo
sobre o meu esgotamento físico e mental capaz de entrar em colapso a
qualquer momento. No entanto, não tenho força e nem desejo de me
alimentar. Mesmo que não tenha comido nada há horas, sinto como se
minha barriga estivesse forrada por toda comida provinda de um banquete
enorme. A região toda do meu estômago dói e protesta, mas nada que possa
me afetar ou até mesmo se sobrepor a dor dilacerante que sinto no meu
peito por estar diante do caixão da minha tia a poucos passos de mim e por
ainda estar sentindo o peso da decepção amorosa extremamente recente.
Rio descrente comigo mesma.
Como é que pode tamanhas notícias ruins em um dia só? Achei que
depois da morte da minha irmã, que ainda não é uma ferida cicatrizada,
nada mais pudesse me abalar ou me fazer perder as rédeas da minha vida.
Achei que nenhum tipo de dor me atingiria mais, pois acreditei que tudo
que passei com Penelope na sua luta pela vida fosse ser a única, já que
havia sido grandiosa e dolorosa demais. Mas é claro que eu estava
totalmente enganada. Mais uma vez.
A dor poderia até demorar, poderia até deixar eu desfrutar um
pouquinho do que é estar livre dela, mas ela sempre voltaria. Ela sempre
acharia um caminho de volta para a minha vida, pronta para se impregnar
em mim como uma espécie de doença ou uma sina maldita.
Pisco um par de vezes para tentar despistar as lágrimas. Estou me
sentindo farta de tanto chorar. Estou farta de me sentir em verdadeiros cacos
de vidro. Por isso, meio que a contragosto, decido aprumar a postura,
limpar as palmas das mãos suadas na barra da saia lápis preta que uso e sair
dessa casa, escutando meus saltos tilintarem contra o assoalho bem polido
conforme marcho até a porta. No momento em que estou do lado de fora, a
brisa da tarde escura e nebulosa lambe meu rosto e faz com que eu abrace
meu próprio corpo. O inverno em Hellaware está cada vez mais próximo e
isso faz com que pancadas de chuvas apareçam justamente hoje, deixando o
tempo mais frio e mais fechado. Apesar de não estar chovendo agora, sei
que começará a qualquer momento só pelo fato das nuvens estarem densas,
largas e mais próximas umas das outras. Acredito que até os deuses que
abrigam o céu sentem que a morte da minha tia não só foi uma grande perda
somente para mim e para o meu tipo, e sim para o mundo também. O
mundo acabou de perder um ser humano cheio de luz e que fazia a
diferença na vida de outras.
Um trovão impiedoso ribomba pelo ar e me faz estremecer.
Tiro os olhos do céu e eles logo se concentram na figura loira que
caminha em minha direção.
Minha garganta aperta e preciso apontar a ponte do nariz para não
chorar feito um bebê novamente.
Georgina Sinclair, com seus lábios cheios friccionados, para a poucos
passos de mim e abre seus braços, claramente me chamando para um
abraço. Não hesito e corro até a minha amiga. Seus braços finos me
envolvem e suas mãos afagam meus cabelos, sussurrando no meu ouvido
que ela está aqui e que tudo ficará bem. Deito minha cabeça na curvatura do
seu pescoço, inspiro seu aroma doce e enjoativo que tanto amo e me
permito ser vulnerável mais uma vez.
— A Barbie já ficou sabendo — Georgina conta, as mãos descendo e
subindo em um carinho singelo em minhas costas. — Ela vai te ligar
depois. Mas disse que sente muito por tudo o que aconteceu, que te ama
demais e que você nunca estará sozinha. Faço das palavras dela as minhas,
está me ouvindo? — Em meio às lágrimas e soluços, assinto. — A gente vai
passar por essa tempestade juntas e de mãos dadas, eu prometo.
Me agarro ainda mais em Georgina e faço das palavras dela a minha
âncora.
Assim que a festa de casamento estava pelo seu fim, Barbie, Devin,
Amber e Hunter pegaram um voo pela madrugada com destino à Nova
York, cidade natal da família St. Claire, onde decidiram que seria o lugar
perfeito para se passar a lua de mel dos noivos — que fizeram questão de
levar os garotos consigo. E hoje, dois dias depois do velório de Rosalinda,
Barbie me ligou da cidade que nunca dorme e ficou conversando comigo
por horas sobre como eu estava me sentindo, como meu tio estava, se eu e
ele estávamos nos alimentando, bebendo água direito e essas coisas super
protetoras que é de seu feitio. Minha amiga disse que apesar de não ter
conseguido comprar um voo para ela e Devin ontem ou hoje, já que é quase
final de ano e as coisas estão uma loucura com o pessoal viajando,
conseguiu um para a próxima semana. Eu quis matá-la por ter feito isso e,
consequentemente, estragado o momento dos dois com preocupações
excessivas comigo. Mas não adiantou de muita coisa, a baixinha disse que
estava feito, que eu não tinha que opinar nada e que logo, logo ela estaria
aqui para ficar ao meu lado o tempo todo para me irritar ainda mais.
Não consegui não conter o primeiro sorriso sincero nas últimas vinte
e quatro horas enquanto conversávamos.
Mas apesar de termos conversado sobre tudo, não mencionei sobre
John e o que eu presenciei na festa. Acho que tive medo de que ela deixasse
escapar para o namorado e ele contasse para John, que é o seu melhor
amigo. Sei que Barbie não contaria caso eu pedisse, mas quis evitar ainda
mais drama em minha vida. Ultimamente tudo anda saindo do meu controle
para dar errado, então quanto custa evitar?
Levanto da minha cama para abrir a porta quando escuto batidinhas
serem desferidas sobre ela. Assim que giro a maçaneta gélida, encontro os
olhos profundos e arroxeados de David encarando os meus. Engulo em seco
pela sua aparência acabada e dou espaço para que entre.
— Então... — O escuto dizer depois de limpar a garganta e se sentar
na ponta da minha cama. Faço o mesmo caminho percorrido por ele e me
sento em sua frente. Puxo as mangas do suéter que uso e o encaro,
incentivando-o a continuar assim que levanto uma das minhas sobrancelhas.
— Estive pensando uma coisa esses dias, Pasha.
— Sobre o quê?
— Sobre o meu futuro. — David pressiona os lábios e olha para
alguma coisa aleatória em suas mãos. Tenho certeza que está tentando evitar
chorar em minha frente, assim como vem fazendo esses dias, somente para
que não me mostre nada mais e nada menos que força. E olha que ele é
muito. — Eu não consigo mais ficar nessa casa, sobrinha. Simplesmente
não consigo. Tudo aqui tem o cheiro da sua tia, o toque dela, a luz dela e
isso está me matando aos poucos, como se eu pudesse enlouquecer a
qualquer momento. Você sabe o que é escutar o grito da sua mulher antes de
desfalecer zumbindo em seu ouvido todas as noites? Eu não estou sabendo
lidar com nada disso! — Meu tio para de falar, e as lágrimas começam a
despencar do seu rosto, maculando o lençol branco da minha cama. Apesar
dos meus olhos arderem com o seu sofrimento, não demonstro e decido
pegar suas mãos e entrelaçá-las nas minhas. — Eu sinto muito, Pasha. Eu
sinto tanto. Não queria ter que te dizer isso, não agora que estava se
sentindo pertencente a esse lugar e a essa cidade, mas eu preciso te dizer.
Preciso te dizer de uma vez por todas.
Mordo o interior da bochecha, nervosa, e assinto para o que quer que
ele tenha a me dizer agora.
— Nós vamos ter que voltar para o Alasca.
Se fosse em outro momento, a revelação que sai por entre os lábios do
meu tio me deixaria baqueada. Não é como eu me sinto agora, entretanto.
Eu não sinto nada além de compreensão.
Para ser sincera, eu o entendo. Entendo de verdade. Deve ser doloroso
ficar na mesma casa que construiu a vida ao lado de alguém, onde tudo,
eventualmente, irá te fazer recordar de cada momento. Se ele quer voltar
para a sua cidade natal, mesmo que isso signifique que terei que ir junto
para ficar nas garras dos meus pais novamente, eu aceito. Eu aceito
qualquer coisa desde que seja para que ele se sinta um pouco melhor para
poder reerguer e recomeçar a sua vida.
— Tudo bem — respondo, sinceramente. — O senhor tem certeza
que é isso que quer? E o Fast Rocket? Achei que ele fosse o seu maior
orgulho. — Dou um pequeno sorriso, e David me acompanha nessa.
— Meu maior orgulho era ela. — Meu tio solta minhas mãos apenas
para secar o canto dos seus olhos ao passo em que funga. — E eu não vejo
mais sentido em continuar sem Rosalinda. Não há nada que me prenda mais
nessa cidade. Além de que já trabalhei demais, minha sobrinha, agora está
na hora do seu velho se aposentar e voltar para às origens.
Com a ponta do suéter, seco uma única lágrima desavisada que rola
pela minha bochecha.
— Então é isso — concluo por nós dois. — Vamos voltar para o
Alasca.
Meu tio confirma com um acenar positivo de cabeça.
Penso em Barbie e Georgina e meu peito pesa com o fato de deixá-
las, mas todas nós sempre soubemos que a minha estadia aqui não era para
sempre. Além de que, apesar da saudade que sentirão, eu sei que me
entenderão super e serão as primeiras a me apoiar. E, claro, farei questão de
levá-las para lá sempre que possível, então não é como se fossemos cortar
laços e acabar com qualquer contato. Distância não é nada quando a nossa
conexão e amizade — que passou por altos e baixos — é extremamente
forte.
Respiro pausadamente e solto todo o ar pela minha boca.
Dói dizer isso, mas não há mais nada nessa cidade que me faça querer
ficar. Até o trabalho na biblioteca faz com que eu queira fugir para longe só
para não ter que lembrar de como fui parar lá. Só para não ter que me
lembrar dele.
Assim como o meu tio, não há mais nada que me prenda aqui.
Pasha está desaparecida há exatos dois dias e meio.
Não a vejo desde a festa de casamento de Amber e Hunter no rancho.
Não a vejo desde que falei que precisava conversar algo sério com ela. Não
sei o que deu na ruiva para simplesmente evaporar de um dia para o outro.
E eu não ficaria tão aflito assim em um outro momento, afinal, só são dois
dias, mas o que me faz ter a certeza de que algo está errado é que todas as
vezes que ligo para o número residencial da casa dos seus tios, chama,
chama e ninguém atende. Até pensei em passar na sua casa ou na
Biblioteca, só que não quero bancar nem parecer o cara chato, grudento e
possessivo que precisa saber de todos os passos da garota que sai. Então
preferi esperar pacientemente — mais ou menos — enquanto ela toma o
tempo que precisa para sabe se lá o quê.
Mas a verdade é que, mesmo que eu tente muito, não consigo ignorar
essa pontada estranha que se aloja em meu peito. Não consigo ignorar o
fato de que ela saiu extremamente cedo da festa e ninguém soube me dizer
o porquê. Sinceramente, fico com medo de que tenha sido por minha causa.
Fico com medo dela ter percebido a minha aproximação, o brilho que
resplandecia em meus olhos azuis enquanto estávamos juntos e a minha
falta de jeito para contar que tinha algo para falar como possíveis sinais de
que eu finalmente revelaria meus sentimentos naquela noite. Embora isso
realmente fosse acontecer, talvez ela não tenha gostado nada de chegar a
essa constatação. Talvez ela tenha fugido para não olhar na minha cara e
dizer com todas as letras que não estava nem um pouco perto de retribuir o
que eu sentia.
São muitas possibilidades.
Foi por isso que pedi cinco minutos a Pasha. Mesmo sentindo que era
o momento certo, afinal todo o cenário era romântico e propício a
declarações, ainda estava nervoso, com medo e criando mil paranoias na
porra da minha cabeça. Então decidido a esfriá-la, fui para perto dos
trailers, fumei alguns maços de cigarro e tentei gravar em minha mente
todas as palavras que usaria quando estivesse frente a frente com a minha
diabinha. Mas Daisy Flinch estragou todo o meu momento quando me
chamou para um dos trailers para fazer uma daquelas suas confissões
malucas. Eu não queria demorar mais do que cinco minutos e estava pronto
para deixar para depois o que quer que ela tivesse para me contar, mas não
consegui não a seguir quando vi toda animação presente em seu sorriso
enquanto me esperava.
Quando subi as escadas e adentrei o trailer, Daisy me contou que
finalmente havia feito as malas e conseguido uma carona destinada a Los
Angeles, onde tentaria a sorte para estudar e, futuramente, conseguir
trabalhar com o cinema como tanto gostaria. Fiquei feliz por ela e a
incentivei ainda mais a seguir seus sonhos. Como estávamos naquele
momento de confissões e conselhos, pedi um sobre como deveria me
comportar na hora de falar para Pasha Stratford que estava completamente
apaixonado por ela.
— Finge que eu sou a sua ruiva — foi o que Daisy disse para me
ajudar a me soltar mais. — Diga para mim tudo o que você deseja dizer
para ela. No fim, direi se está bom e digno de um bom filme de romance.
Lembro que rolei os olhos pelo seu lado romântico e achei a ideia
péssima no começo, mas estava tão desesperado em fazer o certo que acabei
aceitando logo depois. Dei um passo em sua direção, realmente entrando na
encenação de que a pessoa em minha frente era a garota mais diabólica do
mundo, e soltei tudo o que estava pulsando de forma vívida e extremamente
verídica em meu coração. No fim, quando havia me declarado como
gostaria de fazer logo que saísse dali, minha amiga me abraçou, sorriu,
disse que estava incrível, que estava orgulhosa de mim e que Pasha
Stratford era a mulher mais sortuda desse mundo por ter um homem como
eu completamente rendido e em suas mãos.
Achei de um exagero sem tamanho da sua parte, mas não protestei.
Gostei de ouvir suas palavras e de como elas pareceram massagear um
pouco do meu ego.
E com o coração injetado de adrenalina e esperança, saí em busca da
minha garota. Infelizmente, não a encontrei aquela noite.
“Nem naquela, nem em nenhuma outra”, uma vozinha insuportável
grita em minha cabeça.
Olho para os ponteiros do relógio posto acima da televisão de tubo do
meu quarto e bufo. Acho que o pior de tudo, além da angústia de estar no
escuro, é saber que o universo está disposto a conspirar contra mim esses
dias, porque Barbie e Devin estão em Nova York junto de Amber e Hunter
e, obviamente, estão aproveitando a viagem e não fazem se quer ideia se
algo realmente aconteceu com ela, impossibilitando-os de me ajudarem a
descobrir a verdade por trás dos meus questionamentos. Como se isso já
não fosse o bastante, me sinto com medo de procurar Georgina só por conta
do seu jeito extremamente sincero de ser. A loira não é daquelas que floreia
uma situação, que tenta suavizar quando a resposta precisa ser dura demais,
ou que não se envolve e nem se mete em coisas das quais ela não é
chamada. Muito pelo contrário, na verdade. Georgina se mete, dá sua
opinião nua e crua quando tem que dar e não passa a mão na cabeça de
ninguém. A garota de olhos verdes-escuros é super famosa por derrubar um
balde repleto de gelo em quem precisa acordar para vida. Então, levando
em consideração seu jeito de ser, tenho medo que o balde de gelo recaia
sobre a minha cabeça caso resolva não ter nenhum tipo de piedade com o
meu coração e diga de uma vez por todas que a alasquiana não irá querer de
jeito nenhum dá o passo que eu estou querendo dar na nossa relação.
É por isso que ainda querendo preservar meu lado iludido e sonhador,
permaneço em casa e longe da língua grande e afiada de Sinclair.
Balanço a cabeça de um lado para o outro e tento enfiar todos esses
pensamentos para o fundo da minha mente. Não quero mais pensar nisso.
Não quero parecer um maluco neurótico criando teorias da conspiração que,
eventualmente, não adiantarão de nada e só me deixarão ainda mais
nervoso. Relaxo meu corpo um pouco mais na cama e decido deixar esse
assunto para lá pelo menos por agora, já que a única coisa que me resta a
fazer é torcer para que tudo não passe de achismos e que os motivos que a
levaram a sair da festa mais cedo, assim como ficar um pouco mais reclusa
esses dias, não tenha nenhum tipo de ligação com nós dois.
Uma fresta de ar escapa por entre meus lábios no exato momento em
que eu coloco os pés para fora da cama e flexiono os joelhos, levantando-
me para ir em busca de alguns filmes alugados na vídeo locadora do centro
da cidade. Pego todos em minha mãe e faço um bico de lado quando
começo a pensar sobre qual escolher. Caçador de Assassinos, Clube dos
Cinco e O Alvo são alguns exemplos de filmes que fico em dúvida. Mas por
saber que esse é um dos filmes favoritos de Violet e que ela sempre fica
recitando as frases desse filme quando arruma uma brecha, o que desperta
totalmente a minha curiosidade para saber se é mesmo tão bom quanto ela
diz, opto por colocar Clube dos Cinco no vídeo cassete e me jogar de volta
na cama.
Passa apenas dez ou quinze minutos de filme quando escuto a porta
metálica do meu trailer ranger, indicando a entrada de alguém. Não demora
mais que um para que Violet, parecendo ter adivinhado totalmente o que
estava se passando por aqui, corra até onde estou e dê gritinhos eufóricos
quando percebe o que se desenrola em minha frente.
— Seu safado traidor! — Mohn branda assim que volta a me fitar, os
grandes olhos castanhos semicerrados e intimidadores. — Como ousa
assistir meus bebês sem mim?
Abro a boca para me defender do seu olhar predador e acusatório,
mas é claro que a furacão nem me dá essa oportunidade. Ela joga seu corpo
no meu colchão e se aninha ao meu lado, puxando as cobertas para cobrir
suas pernas desnudas. Prendo a risada ao cruzar os braços e arquear a
sobrancelha em sua direção, tentando ao máximo deixar visível em minhas
feições o quanto achei sua atitude completamente folgada.
— Alguém aqui te chamou? Porque, sinceramente, lembro-me muito
bem de não ter gritado por sua presença em momento algum. — Tento
parecer sério, mas a forma petulante como seus ombros sobem e descem em
um lindo “por mim” me faz remexer a cabeça e rir, desacreditado. — Não
faz isso aí para mim não, mocinha.
Violet pisca de modo inocente os longos cílios cobertos por generosas
camadas de rímel.
— Não estou fazendo nada, mocinho — se defende falsamente ao
pegar o controle da minha mão. — Agora vê se cala a boca. Quero escutar a
voz deles, não a sua que é totalmente insuportável. — Dito isso, ela aperta
no botão do controle que aumenta e deixa com que as vozes se tornem
ainda mais altas.
O conto da minha boca se contorce ao passo em que dou uma risada.
— Você é péssi...
— Shhhh.
Então eu fecho a boca, meio a contragosto, e cravo os olhos durante
longos minutos no popular, na patricinha, na esquisita, no nerd e no rebelde.
Inclusive, chega certa parte do filme em que sussurro para a garota ao meu
lado:
— Alguém já te falou que você parece muito com a esquisita?
Ela rola os olhos de forma teatral.
— Vê se cresce — é o que Violet murmura para mim antes de chocar
seu ombro contra o meu e aumentar um pouco mais a televisão.
Não reclamo, entretanto. As vozes dos personagens mescladas com a
de Violet Mohn, que não para de repetir as falas que sabe de cor, sobressai
as vozes dos meus pensamentos e impossibilita que eu pense em qualquer
outra coisa que não seja no agora.
Todos nós acreditávamos que Devin só voltaria de Nova York daqui
há duas ou três semanas, mas meu melhor amigo está de volta após uma
semana fora. Ele tem a jaqueta preta do MotoClub pendurada em seu ombro
enquanto empurra a pequena mala com a outra, seguindo o caminho para o
trailer que mora. Seus cabelos castanhos estão uma verdadeira bagunça,
alguns fios caem sobre seus olhos verdes e as suas roupas escuras parecem
tão amarrotadas quanto tudo que envolve a sua figura visivelmente cansada.
Franzo o cenho ao achar tudo muito esquisito.
Dou uma última tragada no cigarro pendido entre os meus dedos e
jogo a bituca fora, soltando toda a fumaça espessa pela boca conforme sigo
até meu melhor amigo, que bate a porta do seu trailer antes que eu consiga
alcançá-lo. Subo as pequenas escadas, dou três batidas na porta com o
punho fechado e escuto sua voz concedendo permissão para que eu entre. A
porta metálica range deliberadamente assim que eu a abro. Fecho-a com um
leve empurrão e sigo até Devin, que está puxando a gola da sua camiseta
por trás da sua cabeça. Seus glóbulos me encontram assim que ele joga a
peça em cima da sua cama.
— Ah, oi! — Devin sorri e suas covinhas aparecem para me
cumprimentar. — Sentiu minha falta, garotão?
Acho engraçado quando ele me chama assim, então sorrio de volta.
— Você nem deu tempo para isso — digo ao me sentar em sua cama,
fincando os cotovelos nas coxas para poder segurar meu rosto entre as
mãos. Vejo que ele balança a cabeça negativamente e arrasta os passos até
sua mala. — O que aconteceu que você voltou antes do previsto? Todo
mundo estava achando que vocês iriam arrumar uma desculpa para não
voltar nunca mais para Hellaware.
Devin para de abrir sua mala e me fita por sobre o ombro. Um V se
forma entre as suas sobrancelhas no exato momento em que sinto sua
análise minuciosa sobre mim.
— Desde quando você se tornou tão insensível? — é o que ele solta
quando decide se voltar totalmente para mim e cruzar os braços em frente
ao peito desnudo e tatuado, os olhos afiados ainda sobre a minha figura.
Suas botas pesadas batem contra o assoalho de madeira, como se ele
estivesse ansioso para ouvir uma resposta.
Sem entender nada, desfaço minha postura relaxada e aprumo os
ombros ao questionar:
— Insensível? De que merda você está falando?
Meu melhor amigo não me responde de imediato, apenas segue
prescrutando meu rosto como se tentasse desvendar alguma coisa que está
deixando passar. As írises verdes bem claras se concentram bem nas minhas
e engulo em seco, afinal, mesmo sendo a pessoa mais amorosa que existe,
Devin Leblanc consegue ser bastante intimidador quando quer.
— O que foi que você fez ao longo dessa semana?
Uma interrogação paira bem acima da minha cabeça com seus
questionamentos sem pé e nem cabeça. Ele não está sendo nem um pouco
claro e só me deixa ainda mais sem entender nada quando decide abrir a
boca.
— Nessa semana? Nada! Fiquei em casa assistindo e me
empanturrando de salgadinho de queijo e pimenta. Por quê?
Assim que me escuta, Devin coça a barba por fazer, fecha os olhos e
solta um muxoxo.
Ah, céus, ele gostaria que eu respondesse o quê? Que eu passei a
semana toda na fossa, me sentindo péssimo por Pasha Stratford ter
simplesmente sumido por dias e ignorado todas as minhas ligações? Ou ele
gostaria que eu dissesse que passei a semana toda me sentindo um otário
medroso de marca maior que estava com medo de sair de casa e ir atrás dela
por ainda não se sentir pronto o suficiente para saber se o motivo do
desaparecimento da ruiva tinha sido ocasionado pelo medo dela de quebrar
meu coração e acabar com todas as minhas expectativas me dando um belo
fora?
Escovo os fios platinados — que já estão precisando de um retoque,
inclusive, já que o castanho do meu cabelo já está despontando na raiz —
para trás e Leblanc dá alguns passos em minha direção.
— Você não faz ideia do que está acontecendo, não é? — Sua voz sai
baixa, sinto o toque de receio, medo e certa melancolia nela.
Meu coração, que provavelmente já percebeu a atmosfera mudando
no quarto, palpita incessantemente contra as minhas costelas.
Devin também bagunça os fios do seu cabelo, puxa-os para trás e
quebra ainda mais a nossa distância, sentando-se ao meu lado. Meu corpo
todo se volta para ele no exato minuto em que o seu também se volta para
mim.
— Depois da festa, Pasha passou mal e decidiu ir mais cedo para
casa, por isso que a gente não a viu mais por lá... — ele começa, e eu sinto
as palmas das minhas mãos suarem. Uma única gota de apreensão pinga e
desce por um caminho copioso pela base da minha espinha. — Quando ela
chegou em casa, se deparou com uma movimentação atípica na sua rua e
percebeu alguns paramédicos aglomerados na porta de casa e... e ela viu
que eles estavam com o corpo da Rosalinda na maca. — Devin para de
falar, respira fundo e sopra em um fio de voz: — A tia da Pasha morreu,
John. Rosalinda sofreu um ataque fulminante naquela noite.
Meu maxilar fica trincado e as minhas mãos se retesam ao lado do
meu corpo, fechadas em punho. Sinto uma ardência no peito, um revirar no
estômago e um ruído gutural escapando de dentro de mim. Penso na minha
ruiva, no sofrimento que deve estar passando ao se deparar com mais uma
morte de um ente querido e enlouqueço, completamente preocupado e me
odiando em níveis inimagináveis por ter ficado esses dias longe, sem
confortá-la e, ainda por cima, por ter ficado com receio de me aproximar
esses dias por medo de coisas pequenas e bobas quando o seu mundo, mais
uma vez, estava ruindo bem abaixo dos seus pés e eu não estava lá para
segurá-la. Não estava lá para mostrar que, independentemente de qualquer
coisa, não soltaria sua mão em momento algum e que permaneceria ao seu
lado para ajudar a colar os pedacinhos do seu coração sem pressa, apenas eu
e ela. Juntos.
Pisco para que pontinhos pretos sumam da minha visão e me levanto
da cama em um rompante, pronto para descer do trailer, buscar as chaves da
minha moto e ir atrás dela sem nem hesitar. Mas é claro que Devin
interrompe meus passos ao colocar sua mão ao redor do meu cotovelo e me
puxar para que eu fique em sua frente. Um arrepio percorre até mesmo as
minhas entranhas quando finco meu olhar em seu rosto que, sinceramente,
conhecendo-o como eu conheço, me diz de maneira implícita que o
problema não acabara ali.
— Diga o que tem que dizer de uma vez — arrumo forças para
externar, mas meu amigo nada responde. Ele segue me encarando com os
olhos injetados de pesar, seu pomo de Adão subindo e descendo conforme
meu olhar se torna mordaz. — Diga logo, porra! — Puxo meu braço do seu
aperto em um safanão e empurro seu ombro para trás com uma das mãos. A
veia em minha testa salta e lateja com a raiva que me consome agora. — O
que aconteceu com a Pasha, Devin? Onde ela está? — Vejo que uma fina
película de suor cobre sua testa assim que ele se aproxima.
— Ela... — Devin aperta as pestanas com o indicador e o polegar.
Prendo a respiração com medo do que pode vim a seguir. — Ela está
voltando para o Alasca hoje, John.
Recuo um passo para trás e balanço a cabeça, sem querer acreditar no
que meu cérebro acabou de processar. Respiro com dificuldade e um nó se
forma em minha garganta e lágrimas inundam meus olhos, mas não permito
que elas caiam.
— O quê?
— Achei que todos vocês já estivessem sabendo — emenda. — Me
perdoa por não ter contado antes. Eu deveria ter percebido que você, caso
soubesse, não estaria aqui me esperando, e sim estaria ao lado dela. Me
perdoa mesmo.
Ignoro completamente seu pedido de desculpas. E não por estar com
raiva dele por não ter mencionado nada antes, e sim porque quero evitar
qualquer drama desnecessário. Eu só preciso saber se ela já foi embora ou
se ainda tenho chances de, sei lá, impedi-la. Ou pelo menos de chegar a
tempo para me despedir. Eu só não posso ficar aqui sem fazer nada.
— Que horas é o voo dela, Devin?
— Eu não sei... — Meu amigo passa a mão pelo cabelo e olha o
relógio em seu pulso. — Acho que daqui há vinte minutos. Barbie e
Georgina estão lá com...
Não fico no quarto para terminar de escutá-lo. Dou as costas para o
meu amigo, saio do seu trailer, corro em direção ao meu, pego a chave da
moto repousada na mesa e disparo até ela. Quando já estou montado na
minha Harley-Davidson, coloco o capacete, abaixo a viseira e dou partida,
cantando pneu e deixando um rastro de poeira para trás.
Acelero como se a minha vida dependesse disso. Acelero e não me
importo nem um pouco de estar passando da velocidade permitida. Se eu
não for rápido o suficiente, não chegarei em tempo, afinal, o rancho fica um
pouco afastado da cidade, o que torna o caminho até o único aeroporto de
Hellaware extremamente longo.
Enquanto sigo o meu caminho de forma abrupta, não consigo não
sentir algo em meu coração se quebrar. Apesar de imaginar o que pode ter a
levado de volta para sua cidade natal, não entendo o porquê de ter feito isso
de modo sorrateiro, como se estivesse fugindo de alguma coisa. Não
entendo o porquê de ter me deixado de fora desse momento quando ela se
tornara a pessoa mais importante do mundo para mim e, eventualmente, sua
partida seria como uma condenação de morte. Não entendo o porquê de ter
me deixado de fora, de não ter pensado em mim para desabafar, para
compartilhar suas dores, seus medos, sua vontade de deixar a cidade... Eu
realmente não compreendo tamanha falta de consideração da parte dela.
Acima de tudo, acima de todas as coisas, somos amigos, não somos?
Amigos deveriam compartilhar coisas um com o outro.
Será que sou tão insignificante assim que ela nem ao menos pensou
em mim? Que nem ao menos pensou em nós?
Porque, em nome de Deus, ninguém ao menos me contou que ela
estava indo embora?
Dói para caralho saber que ela vai embora para longe e nem ao menos
me ligou para dizer adeus.
Quando já estou próximo do lugar, após alguns torturantes minutos,
engulo o choro e todos os sentimentos confusos e tumultuados dentro de
mim, estaciono a moto perto do aeroporto, guardo o capacete e me
direciono até a entrada, ainda sentindo o coração galopar fortemente em
meu peito enquanto rezo para que tenha chegado a tempo. O vento gelado
que abraça a cidade me cumprimenta e faz a pontinha do meu nariz ficar
gélida. Coço a região, sentindo que a minha alergia pode atacar a qualquer
momento, e atravesso as enormes portas de vidro do lugar. Meus olhos se
fixam nas pessoas indo e vindo, meus ouvidos se atentam às vozes
anunciando os voos e minha apreensão se triplica por não saber onde diabos
procurar por Pasha Stratford.
Corro — literalmente — pelo aeroporto e pergunto para algumas
pessoas se elas viram uma mulher de altura mediana, com longos cabelos
ruivos e olhos castanhos, mas tudo soa tão vago perante a tantas mulheres
que nos cercam que ninguém sabe dizer com exatidão se viram ou não
justamente a pessoa que procuro. Suspiro, frustrado, e arrasto meus passos
até o enorme telão de LED que dá todas as informações necessárias dos
voos do dia.
Com as mãos espalmadas na cintura, cravo os olhos nos nomes da
cidade e procuro Avell District entre elas. O ar parece rarefeito quando leio
que o embarque está acontecendo exatamente... agora. Os ponteiros do
enorme relógio do meu lado direito acabam de confirmar isso.
Apesar de estar sentindo minhas esperanças se esvaindo pouco a
pouco, não desisto e ponho minhas pernas para correr, procurando as
escadas rolantes que me levarão para o andar de cima, onde eu torço que a
ruiva permaneça. E quando coloco meus pés no piso bem polido, com o
coração zumbindo um som particular em meus ouvidos, dou alguns bons
passos para a frente, olho tudo a minha volta e meus olhos se concentram
em um ponto bem conhecido por mim; Barbie e Georgina. Meu corpo se
petrifica no lugar e minhas pernas parecem criar raízes no chão, pois as
duas amigas estão andando de braços dados, meio chorosas, e sem nenhum
sinal da ruiva que compõe o trio. Elas descem para ir embora na escada
rolante do outro lado e nem ao menos parecem perceber que há alguém que
elas conhecem muito bem destruído a só alguns passos de distância delas.
Elas somem do meu campo de visão, escuto o barulho dos aviões e
minhas pernas cedem, porque sei que não cheguei a tempo. Sei que cheguei
tarde demais e ela se foi.
Caio de joelhos no chão e minha vista se torna embaçada por conta
das lágrimas acumuladas e presas em meus olhos.
A dor da rejeição e abandono se infiltra em todo o meu sistema mais
uma maldita vez.
Volto para casa horas depois com o coração totalmente dilacerado,
com o corpo parecendo que um trem havia passado por cima e com os olhos
completamente inchados e vermelhos derivados de um choro compulsivo e
de uma bebedeira fodida em algum bar minúsculo e moribundo de beira de
estrada. Apesar de saber que meu estado está deplorável e digno de pena,
não me importo nem um pouco. Tenho certeza que ele deve estar com uma
aparência infinitamente melhor do que o órgão que faz moradia no meio do
meu peito, que parece estar sendo constantemente nocauteado por socos e
chutes de tanto que grita, sangra e dói feito um péssimo e um humilhante
aspirante a lutador barato que é.
Solto um grunhido irritado quando cambaleio sobre a relva verde
musgo e quase caio em frente às escadas que dão acesso ao meu trailer.
Xingo incontáveis palavrões quando me equilibro e subo as escadas de
qualquer jeito, abrindo a porta, passando por ela e a fechando com um forte
empurrão que a minha embriaguez permite. Já dentro de casa, tiro os
sapatos com a ajuda dos calcanhares, arranco a camisa pela gola e a jogo
para longe, os sentimentos confusos e tumultuados voltando com força.
Pode parecer maluco, mas já estou morrendo de saudade da minha
diabinha. Estou morrendo de saudade do seu sorriso sagaz, dos seus olhos
hipnotizantes, das suas implicâncias e do seu humor ácido extremamente
parecido com o meu. Estou com saudade de ouvir sua voz, de sentir seu
perfume, de saborear seus beijos e de poder dedilhar cada parte sinuosa do
seu corpo com as minhas próprias mãos, sentindo-a se arrepiar e se
desmanchar sob meu toque. Estou morrendo de saudade de tudo. Mas,
sinceramente, estou com raiva também. Estou com raiva dela ter sido
egoísta, de ter me abandonado, de ter desistido de nós, de não ter atendido
uma ligação para poder me contar o que tinha acontecido, de ter partido
sem nem se importar de se despedir, como se estivesse foragida ou qualquer
merda do tipo. Estou puto com toda a situação. Até comigo mesmo estou
enfurecido.
Eu poderia também ter feito alguma coisa para impedir, mas não fiz.
Me enfiei na minha bolha de garotinho medroso que foge dos problemas
mais uma vez e não percebi que haviam coisas extremamente sérias
acontecendo. Não fui em sua casa, não fui em seu trabalho e nem procurei
suas amigas. Preferi ficar em uma zona segura e confortável, esperando que
ela tomasse uma atitude, do que ter que dar minha cara a tapa e procurar
com afinco o que realmente estava se passando.
Céus, quando é que eu vou crescer e agir feito um homem adulto?
Quando é que eu vou poder finalmente ter um final feliz? Estou
cansado de parecer a droga de um personagem dessas histórias
melodramáticas o tempo inteiro, que quando tudo parece estar finalmente
entrando nos eixos, algo acontece para desestruturar de vez quaisquer
pensamentos e sentimentos de uma vida digna. Estou cansado de ficar
degustando incontáveis vezes a perda, a dor, a rejeição e de saber que, não
importa quanto tempo passe, não importa o que eu faça, não importa quem
eu conheça, não importa os conselhos que ouça, ao final do dia algo
acontecerá para me fazer ter a certeza de que nasci para ser e seguir o
caminho do garoto solitário que perdeu a mãe em um acidente de carro, do
garoto que não faz nem ideia de quem é o seu pai e do garoto que quase não
viveu nada da sua infância por ter passado ela em um orfanato e por lá
dentro ter recebido mais porradas do que convites para participar de
brincadeiras. Estou cansado, farto e totalmente exausto de nadar, nadar,
nadar e sempre morrer na praia.
Tendo a conversa com Devin, acreditei que tudo fosse ser diferente.
Acreditei na confiança que ele me transmitiu ao dizer que o passado
permaneceria no passado, que as vozes negativas em minha cabeça eram só
uma tentativa de me arrastar de volta para o fundo do poço, que o medo só
estava se apossando do meu corpo porque eu estava permitindo ser fraco e
que tudo ficaria bem.
Bom, acontece que tudo não ficou bem.
Sinceramente falando, tudo ficou foi pior.
Tudo ficou pior porque me permiti acreditar no amor, me permiti
acreditar que era digno dele, que era digno dela. Tudo ficou pior porque
acreditei, porque fui levado pela emoção e não pela razão, porque entreguei
meu coração de bandeja a quem foi a primeira a esmagá-lo, porque sonhei
com um mundo encantado quando, na verdade, o mundo real só estava
esperando o tic tac do relógio se voltar contra mim para que a queda dele
sobre a minha cabeça fosse inegavelmente fatal e irreversível bem do jeito
que eu mereço.
Uma risada sarcástica misturada com choro preso irrompe da minha
garganta quando decido abrir os armários da pequena cozinha improvisada
e buscar pela minha garrafa de uísque.
A imagem do dia em que tive Pasha Stratford em meu colo, bem aqui
nesse trailer, dizendo que não iria a lugar algum após termos falado sobre
ela voltar para o Alasca pipoca em minha mente e eu aperto ainda mais a
garrafa contra meus dedos, fechando a porta do armário com toda a força do
meu ser. Vejo todo o local balançar com o baque e a sensação de ter sido
enganado borbulha em meu estômago, o gosto da bile pairando sobre a
minha língua. Munido pela raiva que se alastra pela minha corrente
sanguínea por conta das malditas lembranças, abro a garrafa e entorno uma
generosa quantidade do conteúdo alcóolico cor âmbar em minha boca.
Apesar de quase não estar aguentando ficar em pé de tão chapado que me
encontro, quero me afundar ainda mais nisso até esquecer a porcaria do meu
nome.
Seco os resquícios do líquido na boca com o dorso da mão, abraço a
garrafa contra meu peito desnudo e sigo cambaleando de volta para a cama.
Quando já estou próximo, me sento de qualquer jeito e brindo meu coração
partido com mais uma golada de uísque.
Automaticamente, penso em uma vastidão vermelha e me iludo
achando que a ardência que abriga o meu peito nesse momento é
exclusivamente derivada da ingestão de álcool, e não da ingestão da falta de
uma certa ruiva.
— Por que você foi embora, Pasha Denise Stratford? — finjo estar
conversando com ela ao sentir as lágrimas pinicarem meus glóbulos quando
percebo que ninguém irá me responder. Estou sozinho. No sentido mais cru
da palavra. — Por que você foi embora e decidiu levar meu coração na sua
mala sem nem ao menos avisar e sem nem ao menos se importar?
Nenhuma resposta.
Sou envolvido por um silêncio ensurdecedor e que parece me matar
um pouquinho mais a cada segundo.
Me levanto, jogo a garrafa para longe e solto um grito sôfrego. Os
cacos do vidro se despedaçam e se espalham rente ao líquido caramelo bem
no assoalho de madeira, transformando-se numa bagunça tão caótica quanto
a minha mente e a minha alma.
Quando dou por mim, sinto minhas nádegas se chocando contra o
chão, minhas pernas ficando próximas do meu peito, meus braços
envolvendo-as e o meu queixo trêmulo repousando-se sobre os joelhos,
enquanto lágrimas gordas rolam por minhas bochechas e maculam meus
jeans surrados.
Olho uma última vez para os cacos da garrafa a poucos centímetros
de distância e tenho certeza que me encontro ainda mais em pedaços do que
ela.
No dia seguinte, acordei com uma chuva torrencial batendo contra a
minha janela, uma enxaqueca ferrada esmagando meu cérebro e um gosto
terrível e amargo na boca. Ainda com aquela sensação angustiante de que
havia sido atropelado por um trator de obra, fui forçado a me levantar da
cama — não me lembro em que momento da noite fui parar nela —, tomar
aspirina e um bom banho, limpar e recolher os destroços do que um dia
tinha sido uma garrafa de uísque, voltar para as cobertas logo depois e fugir
de qualquer tipo de contato e socialização humana.
Meus amigos até tentaram me fazer companhia e, acredito eu, fazer
com que o peso de ser abandonado pela garota que estou profundamente
apaixonado diminuísse pelo menos um pouco, mas é claro que eu não
respondi as batidas incessantes na porta metálica, aos gritos de Violet e
Kara e nem as insistências para tomar café da manhã de Kieran e Devin.
Fingi que estava dormindo e passei o dia inteirinho dessa forma: fingindo
estar no décimo sono ou realmente caindo nele.
E eu até tentei seguir a mesma lógica no outro dia, porém não havia
mais como ficar trancafiado em um trailer onde as porcarias que eu estava
me alimentando já tinham mais do que acabado. Por isso, ainda muito
relutante e rezando para que ninguém tocasse no assunto, vesti meu casaco
moletom, coloquei uma bermuda e saí para desfrutar do piquenique que eles
estavam fazendo no meio da grama quando o clima frio não se desabou em
chuva. No fundo, eu sabia que aquilo tudo era proposital e que eles queriam
me atrair pela barriga, mas não me importei naquele momento. Cheguei de
forma sorrateira, ignorando todos os olhares cautelosos sendo direcionados
em minha direção, me sentei na relva e desfrutei do banquete posto sobre a
típica toalha xadrez.
Por sorte, ninguém comentou nada.
Meus amigos respeitaram meu momento, comeram tão silenciosos
quanto eu e deixaram que eu voltasse para o meu trailer tão calado quanto
cheguei.
Depois de quase uma semana seguindo o mesmo estilo, vi que era
hora de mascarar mais uma vez meu sofrimento e a minha dor com o meu
costumeiro sorriso, minha língua afiada e o meu bom humor. Pelo menos
para eles, claro. Eu ainda não me sentia disposto a sair de casa e nem com
vontade de encontrar outras pessoas. Então comecei a conversar
tranquilamente com eles, a brincar e a seguir nossa rotina costumeira. Como
incríveis amigos que são, provavelmente sabendo que só comentarei do
ocorrido quando me sentir preparado, eles comentavam de outros assuntos e
nunca, em hipótese alguma, falavam de qualquer coisa que pudesse me
fazer lembrar do que estava me fazendo sofrer. Mesmo que eu não
conseguisse esquecer dela em nenhum momento, Devin, Kieran, Kara e
Violet faziam com que tudo se tornasse mais leve nos momentos em que
estávamos juntos.
Mas, quando não estávamos, a dor fazia questão de voltar com força
para me mostrar que ela sempre será a minha companheira mais fiel.
Quase perto da hora do almoço, escuto três batidas sendo desferidas
em minha porta e corro para atender algum dos meus amigos. Assim que
abro e escuto o metal ranger, meus olhos logo capturam Kara parada nas
pequenas escadas do meu trailer. Seus cabelos longos e cacheados têm uma
touca preta enfeitando o topo dos seus fios e eles cascateiam sobre seus
ombros. A garota de pele negra cor oliva veste um moletom azul marinho
do Hard Rock Cafe que tem as palavras “save the planet” em cima da logo.
O moletom chega até a metade das suas coxas e ela usa meias pretas e tênis
da vans. O sorriso que me direciona é carregado de uma doçura sem
tamanho.
— Preciso de um favor seu — ela quase choraminga, e eu sorrio ao
achá-la tão fofa. — Minha moto está sem gasolina e eu preciso pegar uma
coisa. Devin e Violet foram fazer compras para cá e Kieran insiste em dizer
que meus gostos são uma idiotice, então só me sobrou você, Johnny. — A
forma como ela fala o meu apelido soa tão manhosa que é impossível não
concordar com qualquer coisa que peça. — Por favor, por favorzinho me
ajuda! — Ela junta as mãos em formato de oração e me olha com seus olhos
pidões.
Me afasto da porta e cruzo os braços em frente ao peito.
— O que você está querendo aprontar, pequena McAllister?
Seus lábios cheios e pintados com grossas camadas de batom vinho se
alargam em um sorriso tímido.
— Hoje é dia de promoção no Fast Rocket e eu estou com muita
vontade de experimentar os donuts de lá. — Fricciono os lábios para não rir.
— É sério! Eu não pediria a você se não fosse importante.
Semicerro os olhos em desconfiança.
— Por acaso isso é desejo de grávida?
Suas bochechas ganham um tom escarlate na mesma hora.
— Eu não faço essas coisas há tempos, John Scott. — O modo como
Kara McAllister não consegue encarar o fundo dos meus olhos e falar que
tem tempo que não faz sexo ou não transa é realmente encantador. — Você
vai ou não? — Ela espalma as mãos na cintura e bate o pé de maneira
impaciente na escada.
Eu detesto o fato de ter que sair de casa, principalmente para ir ao
Fast Rocket e saber que lembranças de Pasha Stratford irão inundar minha
cabeça feito uma avalanche, mas não consigo dizer não a essa criaturinha
linda, que me olha de uma forma tão intensa e esperançosa que não consigo
ser egoísta ao ponto de negá-la donuts.
— Seu irmão é um otário por não fazer seus gostos — digo,
brincalhão, e a cacheada não pensa duas vezes em concordar e dar risada da
minha fala. — Vamos comprar seus doces então, bebezinha linda.
Kara dá pulinhos de alegria e me abraça. Ela é tão pequena que sua
cabeça encosta em minha barriga. Não penso duas vezes em retribuir seu
abraço e sorrir com seus gritinhos eufóricos e suas frases dizendo que me
ama e que eu sou o melhor de todos.
Quando volto para o chalé com as malas, John sai para me ajudar e
me olha com as sobrancelhas erguidas, provavelmente querendo uma
explicação de como foi enfrentar o meu pai. Pelo modo como me olha,
tenho certeza que pensa que eles me enxotaram de casa ou algo do tipo, mas
mal sabe ele que foi bem o contrário disso. Mal sabe ele que foi decisão
minha e que estou livre para poder voltar para casa. Para o nosso lar.
Quando eu conto tudo para ele, fazendo questão de deixar bem claro
tudo o que falei para Joseph Stratford, meu namorado arregala os olhos e
entreabre os lábios, completamente surpreso, mas ainda assim dizendo que
eu sou a mulher mais foda que ele já conheceu, falando com a boca cheia o
quanto está orgulhoso de mim.
Eu também estou muito orgulhosa de mim, amor.
— Então quer dizer que nós vamos voltar? — John indaga logo após
eu explicar e repetir tudo umas vinte vezes. Ele está tão feliz e animado que
não vejo problema algum em repetir mais cem vezes se for preciso. —
Vamos ficar juntos em Hellaware para sempre?
— Sim — confirmo, toda boba. — Juntinhos para sempre. Não
haverá mais nada entre nós. Nada.
Ele agarra a minha cintura e me puxa contra o seu corpo em um
solavanco perfeito. Espalmo o seu peito e suspiro, apaixonada. No exato
momento em que ele se aproxima para selar nossos lábios, algo parece
estalar em sua mente e ele recua o rosto para trás, um V formando-se em
sua testa.
— Eu preciso buscar a minha moto, meu neném ficou na rua da sua
casa. Minha nossa, o que acontecerá com ela quando formos embora? —
Dou risada por achar muito engraçado o modo como ele parece
completamente preocupada com a sua Harley-Davidson. Eu quase sinto
ciúmes. — Porque se formos de avião, ela não poderá ir com a gente,
obviamente. Eu não posso simplesmente deixá-la para trás, diabinha.
— Relaxa, relaxa. — Resvalo meus lábios nos seus apenas para
acalmá-lo. — Eu dou um jeito de conseguir alguém que a leve de volta para
você. Confia em mim? — pergunto, manhosa, e ele confirma sem nem
pensar duas vezes, louco para que eu pare de brincar e o beije logo de uma
vez. — Então, John Stone Scott, você está pronto para voltar para
Hellaware e viver uma vida inteira comigo? Seu momento de desistir é
agora.
Suas mãos se tornam ainda mais firmes em minha cintura e ele prende
meu lábio inferior entre seus dentes, soltando-o devagar ao sorrir.
— Eu nunca estive tão pronto, Pasha Denise Stratford.
Uma grande vantagem de ser de família rica é que você, aos quinze anos,
costuma ganhar de presente um cartão de crédito black, ou seja, totalmente
sem limite e que possa gastar até dizer chega. Ao contrário do que muitos
pensam, eu não usufruí muito dele como gostaria. Eu não queria dar o gostinho
aos meus pais para que eles tirassem conclusões precipitadas e me achassem
ainda mais fútil e vazia do que achavam. Mas, contrariando tudo o que eu
acreditava, comecei a usá-lo sem pena enquanto eu e John estávamos no
Alasca, com medo de que ele fosse cancelado a qualquer momento. Então
comprei nossas passagens de volta para Hellaware e ainda fiz questão que
fosse de primeira classe. Comprei também algumas lembrancinhas para as
minhas amigas, mais algumas roupas para mim e outras para o meu namorado.
Obviamente, ele tentou me fazer desistir da ideia e não queria que eu
comprasse nada para ele, mas como eu disse que estava gastando apenas o
dinheiro do meu pai e que ele não valia o que tinha, acabou aceitando e se
divertindo junto comigo.
Foi difícil encontrar passagens com destino para a Carolina do Sul por
estarmos no final do ano, mas conseguimos encontrar umas por valores
exorbitantes e conseguimos chegar em Hellaware alguns dias antes do natal.
Foi literalmente uma festa quando chegamos, quando todos souberam que eu
estava de volta para valer e que estava namorando John Scott, o integrante do
The Hurricane Freedom que eu jurei odiar. Tanto eu quanto John fomos
recebidos por abraços, por choros e gritos eufóricos de Barbie e Georgina, por
felicitações sinceras pelo nosso namoro e por algumas piadas dizendo que
sempre souberam que eu e ele terminaríamos assim, juntos e completamente
apaixonados.
Foi uma sensação indescritível de saudade, de felicidade, de amor, de
acolhimento e de pertencimento.
E assim que eu cheguei na casa de David Wilson, o encontrei lá me
esperando de portas e braços abertos. Meu tio estava com suas passagens
prontas para embarcar para o Alasca no dia seguinte e me disse, como se eu
não fizesse a mínima noção, que o meu pai havia ligado para ele
provavelmente no mesmo dia da nossa discussão lhe dando uma ótima oferta e
comprando a casa para mim, com os móveis e tudo dentro. Fingi surpresa e ele
ficou extremamente feliz por ver que meus pais estavam finalmente acatando e
respeitando minhas decisões. Quis rir no momento, mas acabei achando
melhor deixar para lá. Também fiquei sabendo por ele que está animado para
aproveitar sua aposentadoria no frio e que se sente realmente fazendo a coisa
certa ao ir embora para se recuperar da sua perda recente. Enquanto
conversamos e colocávamos os papos em dia, me surpreendi totalmente
quando soltou que os mais novos donos do Fast Rocket são Amber St. Claire e
Hunter Leblanc, que se sensibilizaram com o meu tio e não pensaram duas
vezes em salvar a lanchonete e mantê-la viva e funcionando como uma das
melhores coisas que existem nesse lugar.
No outro dia, quando o levei para o aeroporto e me despedi, agradecendo
por tudo que ele havia feito por mim, decidi fazer compras no mercado e
abastecer a geladeira de casa com comida o suficiente para o Natal, que eu
estava disposta a fazer uma ceia enorme para mim, minhas amigas, John e o
pessoal do MotoClub, tipo para comemorar a nova fase que estava prestes a se
iniciar. Assim que paguei as compras, fui para casa e organizei tudo por lá,
logo depois corri para o centro da cidade e comprei uma árvore de Natal,
enfeites, gorros e uma infinidades de outras decorações natalinas para enfeitar
o lugar.
Agora, no entanto, quase quatro horas da tarde da véspera do dia de
Natal, estamos eu, Barbie e Georgina montando a árvore, depois de termos
espalhados as outras decorações pela casa. O pisca-pisca está ligada e as
minhas amigas, com ajuda de uma escada, repousam e ajustam uma estrela
dourada no topo da árvore. Estou aqui embaixo dando algumas direções para
elas para que não fique torto e acabe estragando toda a produção de horas. Mas
elas são boas demais em tudo que se propõem a fazer e é claro que não
precisam de nenhuma direção minha, pois acertam logo de primeira. Elas me
olham com expectativa e eu repuxo meus lábios pincelados por um gloss de
cereja para cima.
— Perfeito! — digo ao bater apenas uma palma no ar, e as minhas
melhores amigas saltitam e descem da cadeira que estavam penduradas. —
Vocês são mesmo incríveis, sabia?
No exato momento em que digo isso, Georgina Sinclair olha para Barbie
com as suas sobrancelhas arqueadas, como se não tivesse acreditando no que
estava ouvindo. Depois que elas se entreolham e ficam claramente zombando
da minha cara, voltam a me fitar com seus glóbulos injetados de diversão.
— O que foi? — Espalmo as mãos na cintura e faço um bico de lado. —
Por que estão com essa cara?
Georgina também crava as mãos em sua cintura e deixa Barbie para trás
apenas para ficar em minha frente. Ela toca em minha testa com as costas da
mão, depois desce para o meu pescoço, e eu a encaro com o rosto contorcido
em uma careta pela sua repentina estranheza de me analisar como se estivesse
achando que estou doente.
— Com febre você não está — a loira menciona o óbvio. — Achei que
estivesse doente por estar nos elogiando por livre e espontânea vontade. Mas
acabo de perceber que é porque você está apaixonada. Costumam dizer que
pessoas apaixonadas se tornam mais fofas. Acho que você está fofa, Pasha
Stratford.
Olho para a Barbie com uma expressão muito parecida com “garota,
olha o que essa maluca está falando!”, mas ela não me defende e sei que gira
nos calcanhares só para não se comprometer nessa e dizer que o seu raciocínio
é o mesmo que o da garota sincera à minha frente.
— Sabe o que eu acho? — rebato, repousando uma mão em seu ombro e
olhando dentro dos seus olhos. — Eu acho que se você mencionar algo
parecido com isso novamente eu arranco a sua cabeça fora. E te expulso da
minha casa.
Tento mesmo parecer intimidadora, mas acho que perdi a prática. Quer
dizer, pelo menos com ela eu devo ter perdido, porque a minha amiga maluca
começa a sorrir e me puxa para um abraço, envolvendo seus braços finos ao
redor do meu corpo. Apesar de ter sido pega desprevenida, não recuo. Fecho
os olhos e permito sentir seu cheiro doce, seu toque e o seu aperto. Quando eu
penso que vai se afastar, já que não temos muito o costume de fazer isso,
Sinclair me abraça ainda mais forte.
— Senti falta disso. Embora eu ame a Barbie com todo o meu coração,
ela é doce demais e não briga comigo nem costuma me colocar no lugar com
frequência. Gosto que você seja a única a fazer isso — ela sopra contra minha
orelha. — Gosto demais que você tenha voltado para a gente. Mas agora já
chega. — Ela se separa do abraço de forma brusca e dá um passo para trás,
tentando esconder que estava emocionada. É impressionante como ela é
igualzinha a mim em certas coisas. — Quem está ficando fofa agora sou eu... E
olha que eu nem estou apaixonada.
Solto uma risada e fico ao seu lado apenas para enganchar meu braço no
seu pescoço, a arrastando até a cozinha.
— Vamos preparar a ceia logo antes que você se derrame em lágrimas,
fofa. — Ando com ela em meu encalço e, mesmo que eu não vire para encará-
la, sei que está me olhando com seus lábios voluptuosos entreabertos. — Está
tudo bem, G. Eu não vou contar a ninguém que você tem um coração e é capaz
de chorar — sussurro, como se fosse nosso pequeno segredo. — Inclusive,
obrigada. Obrigada por ter uma maldita boca e ser totalmente fofoqueira. Se
você não fosse desse jeitinho que é, talvez eu estivesse sofrendo lá no Alasca
sem vocês e sem o John.
Viro sobre os ombros para flagrar bem a tempo o sorriso esticado e
presunçoso que ela me direciona.
— Não há de quê — fala, brincalhona. Nós adentramos a cozinha e nos
separamos minimamente logo depois que ela completa: — Eu sei que eu sou
um ótimo cupido. Um cupido com a boca grande, mas ainda assim um ótimo
cupido.
Afirmo sem pensar duas vezes e seguimos Barbie, que está pronta para
nos ajudar a cozinhar. Eu e ela somos horríveis nisso, mas Georgina é ótima e
sabe fazer de um tudo, então estamos animadas em acompanhá-la nessa para
que possamos passar o maior tempo possível juntas e grudadas.
Uma música da banda New Kids On The Block embala o nosso momento
e acompanha nossas fofocas, nossas risadas e o nosso empenho para que saia
tudo perfeito hoje à noite.