Crônicas - Luís Fernando Veríssimo
Crônicas - Luís Fernando Veríssimo
Crônicas - Luís Fernando Veríssimo
3 Por que a barata se preocupou com tantas coisas (referências, educação, classe)?
4 Você pensa que o ser humano raciocina tanto quanto fala no texto? Comente.
7 O que teria levado Valdirene a pensar no dinheiro antes de morrer? Levante hipóteses.
8 As pessoas são apegadas aos seus bens materiais? Justifique sua resposta.
9 O que teria levado a barata a morrer “feliz”? Levante suposições e comente-as.
3 Por que o homem não vive só de pão? De que mais ele precisa para viver?
5 As pombas que estão voando podem ser vendidas? O vendedor sabe fazer marketing?
Argumente.
Cuia
Luís Fernando Veríssimo
Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé ― segundo ele, “mais prestimosa que
mãe de noiva” ―, tem sempre uma chaleira com água quente pronta para o mate. O analista
gosta de oferecer chimarrão a seus pacientes e, como ele diz, “charlar passando a cuia, que
loucura não tem micróbio”. Um dia entrou um paciente novo no consultório.
― Buenas, tchê ― saudou o analista. ― Se abanque no más.
O moço deitou no divã coberto com um pelego e o analista foi logo lhe alcançando a
cuia com erva nova. O moço observou:
― Cuia mais linda.
― Cosa mui especial. Me deu meu primeiro paciente. O coronel Macedônio, lá pras
banda de Lavras.
― A troco de quê? ― quis saber o moço, chupando a bomba.
― Pues tava variando, pensando que era metade homem e metade cavalo. Curei o
animal.
― Oigalê.
― Ele até que não se importava, pues poupava montaria. A família é que encrencou
com a bosta dentro de casa.
― A la putcha.
O moço deu outra chupada, depois examinou a cuia com mais cuidado.
― Curtida barbaridade. ― Também. Mais usada que pronome oblíquo em conversa
de professor.
― Oigatê.
E a todas estas o moço não devolvia a cuia. O analista perguntou:
― Mas o que é que lhe traz aqui, índio velho?
― É esta mania que eu tenho, doutor.
― Pos desembuche.
― Gosto de roubar as coisas.
― Sim.
Era cleptomania. O paciente continuou a falar, mas o analista não ouvia mais.
Estava de olho na sua cuia.
― Passa ― disse o analista.
― Não passa, doutor. Tenho esta mania desde piá.
― Passa a cuia.
― O senhor pode me curar, doutor?
― Primeiro devolve a cuia.
O moço devolveu. Daí para diante, só o analista tomou chimarrão. E cada vez que o
paciente estendia o braço para receber a cuia de volta, ganhava um tapa na mão.
2 O pronome oblíquo realmente é usado pelos professores? Cite alguma situação de fala.
3 Caracterize o analista.
4 Qual o contraste entre o personagem e a profissão do protagonista da crônica?
5 No 22º parágrafo a palavra é entendida com sentido duplo. Explique os dois sentidos
pressupostos de acordo com cada personagem.
O homem trocado
Luís Fernando Veríssimo
O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de recuperação. Há
uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.
– Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.
– Eu estava com medo desta operação…
– Por quê? Não havia risco nenhum.
– Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos... E conta que
os enganos começaram com seu nascimento.
Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de
orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos.
Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua verdadeira mãe, pois
o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera explicar o nascimento de um bebê
chinês.
– E o meu nome? Outro engano.
– Seu nome não é Lírio?
– Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e... Os enganos se sucediam.
Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso,
mas não conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não
apareceu na lista.
– Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado
tive que pagar mais de R$ 3 mil.
– O senhor não faz chamadas interurbanas?
– Eu não tenho telefone!
Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram felizes.
– Por quê?
– Ela me enganava.
Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que não
fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico dizer: - O senhor está
desenganado. Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma
simples apendicite.
– Se você diz que a operação foi bem…
A enfermeira parou de sorrir.
– Apendicite? - perguntou, hesitante.
– É. A operação era para tirar o apêndice.
– Não era para trocar de sexo?
2 Você já passou por algum tipo de engano ou conhece alguém que tenha passado?
Comente.
10 O que pode ter acontecido com o personagem depois da descoberta? Seja criativo,
lembrando que a vida dele é uma constante.
5 Se bastasse um clique para termos as respostas corretas, por que há fake news?
Explique.
6 É correto não questionarmos as respostas que nos são oferecidas? Por quê?
8 Você alguma vez fez uma pesquisa e se perguntou sobre a resposta encontrada?
Comente.
9 Que motivos teria a professora de chamar o Supercomputador e dizer que ele ficaria no
Japão? Levante hipóteses comentando-as.
A foto
Luís Fernando Veríssimo
Foi numa festa de família, dessas de fim de ano. Já que o bisavô estava morre não
morre, decidiram tirar uma fotografia de toda a família reunida, talvez pela última vez.
A bisa e o bisa sentados, filhos, filhas, noras, genros e netos em volta, bisnetos na
frente, esparramados pelo chão. Castelo, o dono da câmara, comandou a pose, depois tirou o
olho do visor e ofereceu a câmara a quem ia tirar a fotografia. Mas quem ia tirar a fotografia?
– Tira você mesmo, ué. – Ah, é? E eu não saio na foto?
O Castelo era o genro mais velho. O primeiro genro. O que sustentava os velhos.
Tinha que estar na fotografia. – Tiro eu - disse o marido da Bitinha. – Você fica aqui -
comandou a Bitinha. Havia uma certa resistência ao marido da Bitinha na família. A Bitinha,
orgulhosa, insistia para que o marido reagisse. "Não deixa eles te humilharem, Mário Cesar",
dizia sempre. O Mário Cesar ficou firme onde estava, do lado da mulher.
A própria Bitinha fez a sugestão maldosa: – Acho que quem deve tirar é o Dudu... O
Dudu era o filho mais novo de Andradina, uma das noras, casada com o Luiz Olavo. Havia a
suspeita, nunca claramente anunciada, de que não fosse filho do Luiz Olavo. O Dudu se
prontificou a tirar a fotografia, mas a Andradina segurou o filho. – Só faltava essa, o Dudu
não sair.
E agora? – Pô, Castelo. Você disse que essa câmara só faltava falar. E não tem nem
timer! O Castelo impávido. Tinham ciúmes dele. Porque ele tinha um Santana do ano.
Porque comprara a câmara num duty free da Europa. Aliás, o apelido dele entre os outros era
"Dutifri", mas ele não sabia.
– Revezamento - sugeriu alguém. – Cada genro bate uma foto em que ele não
aparece, e... A ideia foi sepultada em protestos. Tinha que ser toda a família reunida em volta
da bisa. Foi quando o próprio bisa se ergueu, caminhou decididamente até o Castelo e
arrancou a câmara da sua mão. – Dá aqui. – Mas seu Domício... – Vai pra lá e fica quieto. –
Papai, o senhor tem que sair na foto. Senão não tem sentido! – Eu fico implícito - disse o
velho, já com o olho no visor. E antes que houvesse mais protestos, acionou a câmara, tirou a
foto e foi dormir.
5 Quem resolveu a situação? Por que você acha que ele tomou tal atitude?
Aviãozinho
Luís Fernando Veríssimo
A estratégia do falso aviãozinho que todas as mães do mundo ― literalmente: todas ―
usam para convencer o bebê a comer sua papinha e é tão antiga quanto o próprio avião, não
tem nenhuma lógica. Para começar, é pouco provável que um bebê na idade de comer
papinha sequer saiba o que é um avião. A mãe fazer o ruído do motor enquanto aproxima o
pseudoaviãozinho da sua boca não ajuda em nada, o bebê também não sabe como é barulho
de avião. Para ele aquilo é apenas outro barulho de mãe.
Em segundo lugar, não há qualquer razão para um bebê aceitar papinha de um avião
que não aceitaria de uma colher. No seu universo, avião e colher é a mesma coisa. Navio e
colher é a mesma coisa. Se o bebê, por um fenômeno de precocidade, se desse conta do
surrealismo da cena ― "Abre a boquinha que lá vai o aviãozinho"?! ― isso seria mais causa
para espanto do que para abrir a boca. Quem quer comer papinha com um avião se
aproximando da sua boca, fazendo barulho?
Pensando bem, nossa infância era cheia de surrealismo inconsciente, de ameaças e
sentenças que só não nos paralisavam de medo ou perplexidade porque não pensávamos
muito a respeito. Não me lembro de ficar muito impressionado com a informação de que eu
só não perdia a cabeça porque ela estava presa no corpo, por exemplo. Hoje, sim, penso
naquela terrível possível consequência da minha distração ― ir embora e deixar a cabeça em
algum lugar! Ou, já que o cérebro estava na cabeça, pelo menos a maior parte, me dar conta
que meu corpo tinha me esquecido. Sem poder gritar, sem poder sequer assoviar, já que os
pulmões tinham ido junto. Uma cabeça abandonada no mundo, incapaz de sequer se
alimentar.
A não ser, claro, que um aviãozinho surgisse, misteriosamente, do passado, carregado
de papinha, para me salvar. Pulseira dourada Mais lembranças inúteis. Tinha eu meus 7
anos... Se você quiser parar por aqui, tudo bem. Não, não, nenhum constrangimento. Vá ler o
resto do jornal, aqui você só estaria perdendo tempo. O que é isso? Eu entendo. Numa boa.
Eu mesmo só fico porque preciso botar o ponto final. Mas tinha eu meus 7 anos e morávamos
em Los Angeles. Meu pai lecionava na Ucla, eu e minha irmã frequentávamos uma escola
perto de casa. E me apaixonei por uma menina da escola. Uma daquelas paixões dos 7 anos,
terrível e, no meu caso, secreta e silenciosa. Os donos da casa que alugávamos tinham
deixado uma bijuteria mal escondida atrás de uns livros, numa prateleira da sala. Uma
pulseira dourada dentro de uma caixa. Um dia, tomei a decisão. Meu amor justificava tudo,
até o crime. Peguei a pulseira e a levei, escondida, para a escola. Na saída, entreguei a caixa
para a menina ― e saí correndo.
Em casa nunca deram falta da pulseira. A menina nunca disse nada sobre o presente.
Eu, obviamente, nunca mencionei o fato para ninguém, muito menos para a menina ― com
quem, aliás, nunca troquei nem um tímido "hello". A história termina aqui. Eu avisei que
você ia perder tempo. Mas às vezes penso naquela pulseira e imagino coisas. Chegar, um dia,
nos Estados Unidos e alguém da imigração americana consultar um computador e dizer "Há
a questão de uma certa pulseira dourada na Califórnia, Mr. Verissimo..." Estar assistindo à
entrevista de alguma atriz famosa na TV e ela contar que um dia, quando tinha 7 anos, um
garoto estranho lhe entregara uma pulseira e saíra correndo, e mostrar a pulseira dourada,
que lhe dera sorte, que era responsável pelo seu sucesso, e que ela nunca pudera agradecer...
Pelo menos minha vida de crimes acabou ali.
Post-scriptum tipo nada a ver com nada. Muitos anos depois visitei o bairro em que
morávamos em Los Angeles e fui procurar a escola, palco do meu gesto tresloucado. Tinha
sido destruída por um terremoto.
Mudança ― As seis colunas semanais que publico no Estadão vão ser reduzidas para
duas: esta, aos domingos, e uma que sairá às quintas-feiras. A mudança é a meu pedido, por
nenhuma outra razão além da mais antiga que existe, a vontade de trabalhar menos. Esta
seção continuará igual. Não adianta protestar, continuará.
3 É comum sentirmos medo quando crianças? Eles ficam no passado ou crescem com a
gente? Argumente.
6 Você acha que as pessoas reclamam das crônicas escritas nos jornais? Esclareça.
7 Se você precisasse escrever uma crônica para o jornal, sobre o que seria? Qual o motivo
de sua escolha?
8 Por que muitas vezes lemos uma crônica que parece ter acontecido conosco? Levante
hipóteses.
Engraçada
Luís Fernando Veríssimo
Minha mulher e eu temos o segredo para fazer um casamento durar: Duas vezes por
semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um
bom companheirismo.
Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em
SP.
Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.
Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento, “em algum
lugar que eu não tenha ido há muito tempo!” ela disse. Então, sugeri a cozinha.
Nós sempre andamos de mãos dadas…Se eu soltar, ela vai às compras!
Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão, tudo elétrico.
Então, ela disse: “nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar”. Daí,
comprei pra ela uma cadeira elétrica.
Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente,
100% dos divórcios começam com o casamento.
Eu me casei com a “senhora certa”. Só não sabia que o primeiro nome dela era
“sempre”.
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha.
Ela perguntou: “O que tem na TV?”
E eu disse: “Poeira”.
1 O que torna a crônica engraçada? Comente
7 Muitos casais acabam se separando por motivos banais. O que deve ser feito para que
isso mude?
Brincadeira
Luís Fernando Veríssimo
Começou como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse:
– Eu sei de tudo.
Depois de um silêncio, o outro disse:
– Como é que você soube?
– Não interessa. Sei de tudo.
– Me faz um favor. Não espalha.
– Vou pensar.
– Por amor de Deus.
– Está bem. Mas olhe lá, hein?
Descobriu que tinha poder sobre as pessoas.
– Sei de tudo.
– Co- como?
– Sei de tudo.
– Tudo o quê?
– Você sabe.
– Mas é impossível. Como é que você descobriu?
A reação das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:
– Alguém mais sabe?
Outras se tornavam agressivas:
– Está bem, você sabe. E daí?
– Daí nada. Só queria que você soubesse que eu sei.
– Se você contar para alguém, eu…
– Depende de você.
– De mim, como?
– Se você andar na linha, eu não conto.
– Certo.
Uma vez, parecia ter encontrado um inocente.
– Eu sei de tudo.
– Tudo o quê?
– Você sabe.
– Não sei. O que é que você sabe?
– Não se faz de inocente.
– Mas eu realmente não sei.
– Vem com essa.
– Você não sabe de nada.
– Ah, quer dizer que existe alguma coisa pra saber, mas eu é que não sei o que é?
– Não existe nada.
– Olha que eu vou espalhar…
– Pode espalhar que é mentira.
– Como é que você sabe o que eu vou espalhar?
– Qualquer coisa que você espalhar será mentira.
– Está bem. Vou espalhar.
Mas dali a pouco veio um telefonema.
– Escute. Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre nada daquilo.
– Aquilo o quê?
– Você sabe.
Passou a ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximava dele e
sussurrava:
– Você contou para alguém?
– Ainda não.
– Puxa. Obrigado.
Com o tempo, ganhou uma reputação. Era de confiança. Um dia, foi procurado por
um amigo com uma oferta de emprego. O salário era enorme.
– Por que eu? – quis saber.
– A posição é de muita responsabilidade – disse o amigo. – Recomendei você.
– Por quê?
– Pela sua descrição.
Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas nunca abria a boca
para falar de ninguém. Além de bem-informado, um gentleman. Até que recebeu um
telefonema. Uma voz misteriosa que disse:
– Sei de tudo.
– Co- como?
– Sei de tudo.
– Tudo o quê?
– Você sabe.
Resolveu desaparecer. Mudou-se de cidade. Os amigos estranharam o seu
desaparecimento repentino. Investigara. O que ele estaria tramando? Finalmente foi
descoberto numa praia remota. Os vizinhos contam que a voz que uma noite vieram muitos
carros e cercaram a casa. Várias pessoas entraram na casa. Ouviram-se gritos. Os vizinhos
contam que mais se ouvia era a dele, gritando:
– Era brincadeira! Era brincadeira!
Foi descoberto de manhã, assassinado. O crime nunca foi desvendado. Mas as
pessoas que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.
Sabia demais.
2 Por que a pessoa que ligava descobriu ter poder sobre as pessoas?
10 Quando temos amigos, costumamos contar segredos. Às vezes, discutimos com eles. É
correto eles saírem contando por aí? Por quê?
2 Como uma pessoa pode garantir que sua casa é segura? Argumente.
8 Comente o 7º parágrafo.