Múltiplos Territórios Da Análise de Discurso
Múltiplos Territórios Da Análise de Discurso
Múltiplos Territórios Da Análise de Discurso
no discurso do MST
Freda Indursky (UFRGS)
Resumo
No presente trabalho, retorno às designações ocu-
pação/invasão para examinar um registro muito
peculiar da designação invasão, ocorrido em uma
entrevista com Diolinda Alves de Souza, líder do
MST, em 06/12/1995, para a Revista da Folha. In-
teressou-me, nesta entrevista, examinar o processo
de subjetivação/identificação de Diolinda: em um
determinado momento da referida entrevista, ao
responder sobre sua primeira ocupação, refere-a
como invasão. Assim procedendo, a entrevistada
não mobiliza o que o sujeito pode/deve dizer a
partir de seu lugar discursivo. Esta designação
não corresponde ao modo de subjetivar-se For-
mação Discursiva Sem Terra, tão bem desenhado
ao longo da entrevista, até aquele momento. Esse
deslizamento de ocupação para invasão permite
identificar um processo metafórico específico.
Processo metafórico é “um processo não-subjetivo
no qual o sujeito se constitui” (Pêcheux, 1988,
p. 130). E ainda: processo de metáfora consiste
em um “processo sócio-histórico que serve como
fundamento da ´apresentação´ de objetos para os
sujeitos” (idem, p. 132). Entendo que este processo
metafórico específico aqui analisado permite vis-
lumbrar o momento em que o sujeito do discurso
político é lançado em suas memórias de onde
emerge como um sujeito desejante.
Palavras-chave: lugar discursivo; posição-
-sujeito; formação discursiva; processo metafórico;
produção do desejo; agenciamento sócio-político
pulsional; sujeito desejante.
Apresentando a questão
Este trabalho inscreve-se em uma pesquisa que tem como
objeto de investigação o discurso do/sobre o Movimento dos Trabal-
hadores Rurais Sem Terra (MST) na mídia. Em várias ocasiões,
trabalhei com as designações ocupação e invasão (INDURSKY, 1999;
2005; 2006, por exemplo). Retomo a elas, nesse artigo, para trabal-
har com as possibilidades e limites do sujeito frente aos sentidos
que lhe são permitidos e aqueles que efetivamente produz.
A Teoria da Análise do Discurso (AD) ensina que tudo não
pode ser dito e que os sentidos podem ser muitos, mas não são
nem infinitos, nem qualquer um. Tais restrições sinalizam os
limites do dizível e as interdições com que o sujeito do discurso
se depara em suas práticas discursivas, as quais são indicativas,
entre outras questões, da incompletude da linguagem bem como
da divisão e dispersão do sujeito. E é com estes limites que o sujeito
joga em suas práticas discursivas. Essas são as questões que serão
mobilizadas no presente trabalho.
Para tanto, vou me ocupar do discurso de uma das lideran-
ças do MST no Pontal do Paranapanema, São Paulo. Trata-se de
Diolinda Alves de Souza, mulher de José Rainha, ambos líderes
do MST, no Pontal de Paranapanema, na década de 90 do século
passado. Vou analisar sequências discursivas (SD) extraídas de
duas diferentes entrevistas feitas pela Folha de São Paulo (FSP)
com Diolinda. A primeira, em 01.11.95, por ocasião de sua prisão,
durante uma manifestação de rua, e a segunda, após sua liberação,
em 06.12.1995. Essas SD estão organizadas em dois recortes. O
primeiro (SD 1,2,3,4) indica as coerções a que o discurso de Diolin-
da está submetido e o segundo (SD5) deixa à mostra a ruptura de
tais coerções. Ambos constituirão objeto de análise nesse trabalho.
O sujeito desejante:
deslizando da Psicanálise para a Análise do Discurso
Para pensar o funcionamento desse sujeito, mobilizo ini-
cialmente a reflexão de Guattari (1986). Para este autor, a produção
da fala, das imagens, do desejo não tem origem no indivíduo. “Essa
produção é adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais,
[...] a mutações de universos de valor e de universos históricos”
(GUATTARI & ROLNIK, 1986, p. 32). E, mais adiante, acrescenta
que tais “agenciamentos coletivos de subjetividade, em algumas
circunstâncias [...], podem se individuar” (Ibidem, p. 33).
Entendo que é exatamente uma dessas formas de individua-
ção que estamos observando pelo viés do processo metafórico em
análise: aqui se individua, mesmo que por um instante, o sujeito
desejante que se deixa perceber através dele.
Tomo essa concepção de sujeito desejante, pois as formulações
de Guattari apresentam pressupostos possíveis de serem aproxi-
mados aos da AD. Em primeiro lugar, não se trata de considerar
o sujeito em sua individualidade, mas de tomá-lo em seu agencia-
mento coletivo e social. Em segundo lugar, porque Guattari trata
das pulsões5 como sintoma em nível do social e do político e não
como sintoma individual. Para esse autor, a produção do desejo é
resultante de pulsões de natureza político-social: “Trata-se, diz Guat-
tari, de movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade
capitalística (sic), através de outras maneiras de ser, outras sensibilidades,
outra percepção, etc.” (Ibidem, nota 5, p. 45).
O autor chama a atenção para a importância política da
produção do desejo e seus possíveis desdobramentos, entre os
5
A noção de pulsão foi
formulada por Freud, quais se situariam os movimentos sociais. E é exatamente o que
1915, em Instinto e suas estamos constatando no caso em análise. Diolinda, ao tomar in-
Vicissitudes. Ela é re-
sultante de uma pres- vasão por ocupação, é movida, por um lado, pela rememoração de
são que se situa entre
o mental e o somático e
um momento muito forte que a marcou e que ainda é capaz de
está na origem dos estí- emocioná-la, e, por outro, essa rememoração é resultante de uma
mulos que se originam
no corpo e alcançam a pulsão político-social responsável pela emergência do sujeito desejante,
mente. Segundo Freud, sujeito este que luta pela justiça no campo, afrontando grandes
a pulsão não se dá a co-
nhecer por si mesma, proprietários de terra.
mas é reconhecida pelas
ideias (vostellung) e pelo
Tais formulações de Guattari têm início em seus escritos
afeto (affekt), sendo o em coautoria com Deleuze (1972). Os autores postulam uma
afeto a expressão qua-
litativa da quantidade nova concepção de inconsciente, mobilizando a noção de econo-
de energia pulsional, mia em seu sentido pulsional e político. Afastam-se do inconsciente
cujas manifestações são
percebidas como sen- individual e vão ao encontro de um inconsciente em que jogam
timentos, e as ideias se
produzem como traços
o funcionamento de fatores históricos, políticos, culturais e econômicos,
de memória. daí surgindo um sujeito desejante capaz de pôr em questão a ordem
Interrompendo a reflexão
Mais acima, vimos que a pergunta feita à Diolinda pela en-
trevistadora funcionou como um estopim para a ocorrência dessa
falha, produzindo um efeito devastador, jogando-a para fora dos
limites de seu lugar discursivo de líder e do sentido que, desse
lugar, lhe é imposto. E, assim, sob o efeito da emoção, do afeto,
para retomar o termo empregado por Freud6, que a rememoração
suscitou, o dizer desse sujeito transbordou dos limites que sua
posição-sujeito e seu lugar discursivo lhe impõem, mostrando-se
um sujeito fragmentado e dividido entre duas designações que
identificam posições diversas.
Oscilando entre a posição do bom sujeito que diz o que o
líder pode e deve dizer de seu lugar discursivo, e a posição do su-
jeito que, capturado pela rememoração, vai ao encontro do “im-
possível de dizer, impossível de não dizer de uma determinada
maneira” (PÊCHEUX, [1981] 2004, p. 52), o sujeito vai entretecendo
em seu discurso a contradição. A presença de tais designações,
contraditórias entre si, são o sintoma de que certos limites vão se
esgarçando na ordem política da língua e, por entre os desvãos que
vão surgindo, o sujeito desejante emerge, enunciando sob o efeito
da emoção vivida no passado, rememorada no presente, mas tam-
bém sob efeito do que acabara de viver: ter sido presa para, dessa
forma, ser pressionada a dizer onde se encontrava seu marido
procurado pela polícia. Mas não apenas isso: ao ser encarcerada,
foi separada de seu pequeno filho, que ficou, dessa forma, privado
do amparo do pai e da mãe. São esses sentimentos e memórias que
fizeram aflorar o processo metafórico aqui analisado, que fizeram o
sujeito estampar a marca de seu desejo em seu dizer.
Como vimos, o sujeito, sob o efeito e força da emoção, ao
responder à pergunta que lhe foi dirigida, sucumbe à própria
incompletude e simboliza o interdito. E, ao fazê-lo, o sujeito dese-
jante mostra-se tal como é: incompleto, heterogêneo e dividido em
relação a si mesmo e ao lugar discursivo que ocupa e no qual se
constitui enquanto sujeito Sem Terra. Incompleto porque os dizeres
e sentidos que sua posição-sujeito lhe autoriza são insuficientes
para dizer a emoção sentida, mescla de alegria e de dor, mescla
de rememoração e atualização da luta pela terra, provocando o
transbordamento dos sentidos Heterogêneo porque apropria-se do
dizer do outro, que irrompe transversamente em seu discurso,
instaurando em seu interior a diferença e a contradição. E dividido
porque movimenta-se entre ocupação e invasão, entre o que lhe é
Abstract
In the present text, I resume the terms occupation/
invasion in order to investigate a very peculiar
sense for invasion that appeared in an interview
with Diolinda Alves de Souza, MST leader, in
December 6, 1995, for the Variety leaflet of Folha
de São Paulo. In this interview, I was interested
in examining the process of subjectification/
identification in Deolinda´s phrasing: in a certain
moment, while referring to her first occupation,
she uses the term invasion. In doing so, the in-
terview does not address what the subject can/
must say from its discursive locus. This term does
not correspond to the mode of subjectification in
her Discursive Formation, so well defined in the
interview until that point. This sliding of occu-
pation to invasion, allows us to identify a specific
metaphorical process. A metaphorical process is
“a non-subjective process in which the subject
is constituted” (Pêcheux, 1988:130). And more:
metaphorical process consists of a “socio-historical
process that serves as the foundation for the ‘pre-
sentation’ of objects to subjects” (idem, p.132). I
understand that this specific metaphorical process
allows us to discern the moment in which the
political subject is thrown back into its memories
from which he emerges as a desiring subject.
Keywords: discursive locus; subject position;
discursive formation; metaphorical process; pro-
duction of desire; pulsional socio-political agency;
desiring subject.