Evangelho Perdido A Historia o - Marcelo de Lima Lessa
Evangelho Perdido A Historia o - Marcelo de Lima Lessa
Evangelho Perdido A Historia o - Marcelo de Lima Lessa
EVANGELHO
PERDIDO
A HISTÓRIA OCULTA DE JESUS
L638e
Livro eletrônico.
CDD 869.93
Todos os direitos reservados, proibida a reprodução total ou parcial desta obra, sem a expressa autorização
por escrito da editora ou do autor, sejam quais forem os meios empregados, com exceção de resenhas
literárias, que podem reproduzir algumas partes do livro, desde que citada a fonte. Os infratores serão
punidos na forma da lei.
“Se as pessoas que amamos são tiradas de nós, o jeito de mantê-las vivas é
continuar amando-as; os prédios queimam, as pessoas morrem, mas o amor
verdadeiro é para sempre”
“The Crow” (trecho do filme homônimo)
Sumário
Sumário
Vez mais; réu confesso
Prelúdio
A Conceição Virginal
Um guerreiro sem armas
A queda das Presenças
Uma voz no deserto
Pedras em peixes
Mirian Magdalena
A adúltera de Edom
A Grota dos Leprosos
A caminho de Jerusalém
Sejam diferentes
Conspiração no Sinédrio
Jardim de Getsêmani
Condenado Sem Culpa
Marte caiu
O trono de Magdalena
Até o final dos tempos
Vez mais, réu confesso
Eu sempre achei que o amor verdadeiro é imortal. Ele transpõe a matéria
e, por si só, suplanta a própria razão. Nada, conosco, acontece por acaso e, desde
que Abel partiu da Terra pelas traidoras mãos do irmão Caim, muitos passaram
a, nela, ir e vir, até que as suas almas finalmente encontrassem a derradeira
evolução que as tornasse aptas para a vida definitiva no Éden Espiritual[1].
O primeiro homem — Adão — e a primeira mulher — Lilith — estavam
fadados a se amar para sempre, mas diante das tragédias que marcaram as suas
vidas, a raça humana acabou dividida entre a adoração a Deus e a afronta às
rígidas leis Dele; o bem e o mal, por assim dizer.
Não há — não entre nós — homem santo ou isento de pecado. Aliás, cá
estamos apenas para dosarmos a força da nossa fé, pois disso dependerá o
término — aqui — ou a continuidade — acolá — das lidas que nos foram
reservadas.
Embora muitos pranteiem a morte física, entendo que ela nada mais é do
que o fim de um ciclo, onde a vida — que, por graça, nos é perene — seguirá
contínua, seja na felicidade do paraíso, seja nos frios calabouços da Câmara de
Guf, a “Tesouraria das Almas”, onde muitos espíritos permanecem presos e
suspensos à espera de uma possível chance de redenção.
Adão e Lilith, assim como muitos de nós, foram separados pelo ciúme e
pelo orgulho, características que, com o passar dos séculos, quase chacinaram a
humanidade: “Querida, sempre estiveste em minha mente; eu desejaria jamais
tê-la deixado ir...”, pranteava o primeiro homem ao se lembrar de tê-la visto
fugir do seu leito.
Mas o Eterno foi sapiente ao transformar o primeiro jardim em passagem
e, assim, dar-nos uma nova oportunidade; pois, ao contrário dos anjos, nós
viveremos para sempre, seja na graça ou fora dela.
Pois para que os homens pudessem continuar a sua saga, Deus despachou
para a Terra o Seu leão como cordeiro, a fim de que, diante de um ato de
sacrifício, o ser humano finalmente entendesse que Ele — embora muitos
tenham tentado fazer ver o contrário — é amor. E essa, em verdade, foi a
mensagem deixada por Jesus de Nazaré: o amor do Pai.
Ao final da vida terrena, os nossos únicos legados serão os atos pelos
quais seremos sabatinados, disso não há como fugirmos. Assim, a ausência de
uma religião ou crença pode até ser compreensível, mas a falta de fé numa
energia maior que nos regula é algo que, a meu ver, não se coaduna com a
equação cósmica da nossa própria existência.
Comprometer-se com a evangelização; ajudar o homem a se aproximar de
Deus; e dar às pessoas um melhor conhecimento sobre a mensagem de fé; são
essas as três tônicas que permeiam este livro, onde as perguntas deixadas em
“Gênesis Proibido – A Tragédia de Adão e Lilith”, finalmente encontram as suas
respostas.
“Evangelho Perdido – A História Oculta de Jesus” é uma adaptação
ficcional baseada em fatos históricos. Em razão disso, personagens e pontos
geográficos foram propositalmente redesenhados, a fim de dar, ao enredo, uma
visão inovadora, ainda que fiel aos acontecimentos descritos nos inúmeros
Evangelhos, sejam eles oficiais ou não.
Vez mais eu peço perdão por bulir com temas tão sagrados — o intuito
não é ruim, acreditem — e também pelas minhas faltas, as quais, bem sei e
assumo, não são poucas.
Enfim, espero que, desta vez, eu finalmente me forme na Universidade da
Vida e que, cada vez mais, eu aprenda e evolua com os erros e acertos que nela
cometi.
Em 1980, um desenho feito pelo menino Marcelo de Lima Lessa, inconscientemente retratando, aos oito
anos de idade, o grande protagonista deste livro: Jesus de Nazaré.
Prelúdio
PERVERTIDA E DISTORCIDA, mesmo após o dilúvio universal que deveria ter
limpado o mundo, a humanidade continuava a brindar o Céu com espetáculos de
maldade cada vez mais impactantes.
Um Deus que deveria ser uno passou a ser invulgarmente multiplicado nos
mais diversos altares, tornando a fé e a crença partidas.
Há muito derrotado pelo ousado querubim Caliel[2], Lúcifer não havia
mais retornado à Terra, entretanto, ele jamais deixou de influenciar os passos
daqueles que por ela caminhavam, afinal, as pérfidas energias vindas do Inferno
e as odiosas doenças aqui plantadas por Baalberith[3] repercutiam facilmente
sobre a fraqueza dos homens. Some-se a isso a influência negativa dos vários
espíritos obsessores fugidos da Câmara de Guf[4] que atormentavam aqueles cuja
aura era pífia e descrente.
Mas duas grandes promessas haviam sido feitas por Deus no passado.
Uma, ao primogênito Adão, alusiva à vinda de um salvador; e outra, a Noé —
descendente daquele — de que o mundo nunca mais seria enxurrado. Foi
pensando nelas que o Elevado depositou uma alma ungida ao Arcanjo Miguel e
o mandou em missão para um mundo que precisava de imediata redenção, sob
pena de se consumir na própria perfídia.
Esse guerreiro nato, cujas mãos ainda tinham manchas de sangue humano
e angélico, mudaria o seu foco de ação, deixando de lado uma furiosa espada
flamejante para dar nova exegese à Lei ditada no Sinai[5], a qual, durante séculos,
foi distorcida em atos de desmedida violência por alguns extremistas que,
dizendo-se sacerdotes, estavam, em grande maioria, divorciados do real dever de
fidelidade ao Criador.
Ao deixar a planície etérea, o marechal da milícia celeste sabia que o seu
encargo seria por tempo certo, mas os detalhes dele só lhe seriam revelados com
o suplantar dos anos — num total de trinta — pelos misteriosos meandros
advindos do Pai de todos.
Ainda assim, alguns velhos conhecidos de outrora, cujos espíritos
condenados estiveram na lúgubre Tesouraria das Almas, estavam prestes a ter
uma nova chance pelas mãos do filho feito homem do Senhor, o qual, a partir de
certa idade, passaria a usar os poderes Dele não apenas para curar o corpo das
pessoas, mas também seu espírito.
E os caminhos a percorrer não seriam fáceis; nada fáceis. Deus daria boas
armas ao filho, mas também o poria a dura prova, pois da fé dele dependeria o
destino de muitos, ou melhor, de todos os homens e mulheres nascidos e ainda
por nascer.
Capítulo 1
A Conceição Virginal
JÁ ERA NOITE quando José, entorpecido pelo excesso de vinho, cambaleava
junto ao sopé de uma das colinas que cercava a aldeia de Nazaré[6]. Pela sua
cabeça doída e confusa passeavam inúmeras cenas recentes, principalmente as
de quando a menina Maria, cuja idade não era tão distante da de Sara, uma das
filhas do seu primeiro casamento, lhe fora prometida como esposa pelo
Sacerdote Zacarias.
Mas após ter visto a estranha proeminência junto à barriga daquela que lhe
havia sido destinada — uma gravidez extemporânea! — sua primeira reação foi
a de emprestar cumprimento à rígida lei mosaica[7] e deixar com que as pedras
justiçassem a sua maculada honra pré-nupcial. Entretanto, os judiados olhos
daquele velho carpinteiro já haviam tido o desprazer de presenciar execuções
similares e, tendo ele um bom coração, sentiu enorme desconforto em imaginar
aquela jovem indefesa ser massacrada pelos seus concidadãos, afinal, a
possibilidade de ela ter sido violentada por algum soldado romano não era nula,
principalmente diante do notório assédio que ela sofria por parte do decurião[8]
local, o atrevido Iulius Panthera.
Somava-se a isso o fato de argumento da tal gestação estar sendo
creditada ao toque do Elevado se mostrar pouco verossímil, tamanho o grau de
insensatez daquele aparente delírio vindo de alguém que, havia pouco tempo,
nada mais era do que uma simples criança, a alternativa menos hostil que lhe
restou foi a de não denunciar a noiva e partir sozinho, pois, mesmo sendo viúvo,
os seus seis filhos receberiam a tutela de um irmão que, com ele, mantinha
sociedade num negócio de construção braçal. Quanto à pequena Maria, que
Deus, em Sua misericórdia, se apiedasse dela.
Pois, prestes a ser vencido pelos rigores da bebida, José encontrou refúgio
sob a fronde de um carvalho, desabando, logo em seguida, debaixo dele; e já
estando na iminência de perder os sentidos, percebeu que algo incomum surgiu
de trás dos arbustos ali fincados, algo que expandia uma luz extraordinária,
estranha à negritude que por lá pairava apenas maculada pelo incômodo estrilo
dos grilos. Ao friccionar as pálpebras para tentar identificar o que via, notou
quando uma emanação fantasmagórica surgiu repentinamente diante de si,
trazendo, como numa grande tocha, extrema claridade àquela escuridão.
Em pé e na sua frente, estava o que, à primeira vista, pareceu ser uma
jovem mulher, cujos cabelos curtos e ruivos contrastavam com a toga azul e a
couraça dourada que lhe cobriam partes do corpo. Percebendo que, das costas do
estranho — ou seria estranha? —, ergueram-se enormes asas que obstruíram o
revérbero lunar, José se manteve vergado e receou pela própria vida, afinal, a
entidade também carregava uma espada coruscante na cintura.
— Nada tema, filho de Davi[9]... — adiantou-se a aparição, levantando a
mão direita.
— Quem sois vós? — inquiriu José, acuado e com a voz ainda viscosa.
— Eu sou aquele vindo a mando e ordem do Altíssimo, O que inicia e
finda todas as coisas; seja aqui ou além daqui.
— Então viestes me punir-me pelos meus pensamentos impuros? —
receou, em alusão à ideia de fuga que tinha em mente.
— Não te subestimes José. Eu vim apenas ajudar-te a melhor
compreender os rumos operados pelo Senhor — respondeu o ser com a fala
levemente metalizada pelo frio da noite. — Embora virgem, a tua futura consorte
foi tocada pela força do Criador, e a criança que ela já traz no ventre virá ao
mundo para fiar a dívida que os teus possuem para com Ele. E o filho que dela
nascerá será o prometido ungido que reinará sobre os nascidos e os ainda por
nascer.
— Estais a vos referir àquele esperado pelo meu povo, o “Messias[10]”? —
balbuciou, incrédulo.
— Sim — anuiu. — Por isso, retoma a tua lucidez e zela por ambos, pois
essa é a missão que o Grandíssimo tem para ti até que os teus dias se findem na
Terra.
Ainda de joelhos e comovido, José fechou forçosamente os olhos e fez
menção de chorar, mas, do anjo ali presente, ouviu uma última instrução:
— E lembra: por ser ele o filho do Altíssimo, deverá receber o nome de
Jesus, que significa “a eternidade de Deus” — alertou o mensageiro, esboçando
partir.
— “Jesus” — repetiu. — Mas espere, senhor! — apelou. — E vós, quem
sois?
— Eu me chamo Gabriel. E sou apenas um servo; assim como tu —
concluiu o celeste antes de bater as asas e se pulverizar no breu.
Ainda atordoado com o que havia acabado de presenciar, José abandonou
o bornal quase seco e tomou o caminho da morada de Maria a fim de, com a
mente agora esclarecida, aclamá-la como esposa perante todos. E o “mensageiro
do pacto” aludido no passado, por Deus, a Adão, ao que tudo indicava, estava
prestes a aportar na Terra.
***
Rompendo a greta de luz[11] ainda posta no alto do palácio divino, o
príncipe-primeiro dos anjos regressou da Terra a fim de prestar contas ao Senhor.
Os querubins da Guarda Negra[12] o assediaram com o costumeiro festejo e, após
mimoseá-los um a um, o encarregado-mor dos serviços postais ganhou a
antecâmara dos aposentos de Deus. Lá chegando, cruzou com o Arcanjo
Metatron que, deveras apressado, deixava os santos cômodos. Ao ver a exaltação
do recém-chegado, o escriba real se adiantou de forma extrovertida.
— Cansado, Gabriel?
— A fadiga é algo que não se adéqua a um mensageiro de Deus —
respondeu, sorrindo e sem perder o passo.
— É muito bom saber disso, pois Ele acabou de me ditar um documento e,
adianto-te, tu deverás ser o portador ao destinatário dele.
— Outra missão? — estranhou.
Metatron apenas assentiu com a cabeça e, escorado pelos ajudantes de
ordens do Elevado, licenciou Gabriel para ir ter com o Pai, que, estando de
costas para um cômodo oval posto atrás de Si, foi, de pronto, reverenciado pelo
filho.
— Cá estou; de volta e aos Vossos serviços.
— Cumpriste com o teu encargo? — indagou o Regulador.
— Sim, Meu Senhor. Tanto o sacerdote Zacarias como a menina de
Nazaré foram notificados dentro dos dois intervalos que estipulastes. E até
mesmo o bom homem José, confuso, conforme o originalmente previsto,
também foi apaziguado e a rigor instruído.
— Tudo então corre bem. Pois agora eu tenho mais dois serviços para ti;
um burocrático, e outro de guarda — disse Deus voltando-Se ao filho.
Sério, o Altíssimo caminhou vagarosamente na direção do anjo, entregou-
lhe um alvará selado com uma magna de ouro, o qual, de fato, não aparentava se
tratar de uma simples missiva.
— Toma. Leva esta ordem de soltura para o tesoureiro-mor da Câmara de
Guf; e a entrega em mãos — determinou.
Surpreso por se tratar de uma missão típica de Justiça — e não de correio
que era a sua especialidade — Gabriel ponderou, intrigado.
— Referi-Vos ao gestor da “Tesouraria das Almas”, Senhor?
— O próprio — anuiu. — E para nela ingressar, deverás apresentar este
passe aos arcanjos que a guardam — esclareceu, entregando um cetro trabalhado
em ouro, único passaporte que emprestava acesso àquela secreta fortificação
espiritual.
— E o que eu haverei de fazer com o beneficiado da ordem, Senhor?
— Segue as instruções do tesoureiro-mor e leva a alma que te será
confiada à província terrena constante do alvará. Nela chegando, dirige-te ao
palácio de um nobre chamado Judah de Migdal e toca o ventre da esposa dele, a
qual já está à espera desse espírito.
— Será feito. E quando a ação de guarda? — insistiu, curioso.
— Após entregar a dita alma, permanece na Terra e vigia o casal que já
acautela o teu irmão feito homem[13]. E providencia, usando o grau de força que
se fizer necessário, para que nada de ruim aconteça com eles, principalmente
com a criança. Me fiz claro?
— Claro como a luz!
— Vai, então. Desejo êxito em tuas tarefas — concluiu o Infinito ao
reacomodar-Se, circunspeto, no sólio imponente.
Gabriel prestou-Lhe respeito e deixou a galeria munido de um passaporte
de trânsito e uma ordem de libertação dirigida a uma alma decerto importante,
que pelo visto estaria prestes a reencarnar no mundo físico. Embora estranhando
as incumbências, o anjo-mor haveria de cumprir o deliberado, pois com Miguel
fora do Céu e prestes a nascer na Terra com o corpo de um humano, ele tinha
passado a ser o braço direito do Senhor.
E lá foi o grão-estafeta novamente, veloz e preciso, a fim de preparar o
terreno para o tão aguardado nascimento do Cristo.
***
***
Seguindo a rota secreta posta no passe que havia auferido do Pai, Gabriel
deixou o Céu e caiu num túnel contínuo de fogo que o lançou numa dimensão
opaca e sombria, o Guf, totalmente inversa às paisagens — mesmo as mais
austeras — a que ele estava acostumado em seu primeiro lar.
O espaço navegado não tinha quaisquer nuvens, e a escuridão
predominante era apenas quebrada por alguns estranhos relampejos que
rareavam no alto.
Após alguns instantes voando, aparentemente sem rumo, o anjo
visualizou, ainda do alto, uma estrutura gigantesca cerrada por muralhas bem
maiores que as do palácio do Regulador, sendo que a energia que pulsava no
local era extremamente negativa, o que lhe causou certo desconforto no ar.
Mirando algo que se assemelhava a um enorme portão, Gabriel logo
encontrou pouso no solo frio, sendo, de imediato, interpelado por dois
abrutalhados arcanjos que davam vigília naquele tétrico prédio. Ao reconhecer a
fisionomia do importante recém-chegado, um deles o recepcionou surpreso.
— Príncipe Gabriel, o que faz no presídio de Guf?
— Eu venho a serviço, meus irmãos. Viajo com este passaporte de Deus e
por deliberação Dele trago um alvará de soltura — esclareceu, envergando o
documento.
Ao observar a permissão real, os falangistas descruzaram as lanças e
abriram imediato caminho para o mensageiro maior, reverenciando-o conforme o
protocolo hierárquico:
— Desculpe a cautela príncipe, mas desde a criação deste complexo
penitenciário nós nunca recebemos visitas, que não apenas as dos nossos já
conhecidos oficiais de diligências celestes — justificou um deles.
— Não vos apoquenteis, amigos, afinal, assim como vós, eu também
estou cumprindo o meu dever. Mas ao ensejo, como faço para encontrar-me com
o tesoureiro-mor?
— Ele permanece na grande capela que antecede as galerias dos
ergástulos, uma de nossas sentinelas irá levá-lo até ele — explicou o lanceiro
apontando para um outro que estava no sóbrio corredor do corpo da guarda.
— Agradeço a acolhida e vos peço licença — asseverou o emissário, já se
adiantando no interior da fortificação.
Os dois guerreiros ficaram ressabiados com aquela extraordinária
chegada, mas como soldados obedientes, apenas retornaram aos seus postos e
nada disseram.
Num ritmo acelerado, Gabriel e o seu condutor transpuseram uma soturna
via erguida sobre enormes blocos de rocha negra, onde o absoluto silêncio só se
fazia quebrar pela coreografia da marcha de ambos contra o solo. A Tesouraria
das Almas era um lugar melancólico, uma zona purgatória onde o ar era gélido,
pesado e quase asfixiante, e que servia de cárcere para os espíritos atormentados
que, carentes de fé na vida terrena, haviam se apartado da retidão e necessitavam
se livrar daquilo que os impedia de evoluir ao Éden Espiritual[19].
Inquieto com aquele ingrato ambiente e ainda diante de um elevado
número de arcanjos pouco amigáveis que lá davam vigília, o embaixador de
Deus ponderou:
— Percebo que a segurança aqui é um tanto ostensiva, cabo-da-guarda;
excessiva, se me permite observar.
— Houve várias fugas no passado, senhor — respondeu-lhe o graduado.
— Espíritos revoltados e vingativos que não acataram a interrupção dos pecados
de suas vidas materiais. E desde então, o tesoureiro-mor despachou inúmeros
esquadrões de lanceiros atrás deles na Terra, por isso a segurança foi reforçada.
— “Espíritos revoltados...” — replicou. — Os tais “obsessores”, não é
mesmo? Eu já ouvi terríveis comentários sobre eles.
— Correto — confirmou. — Esses espíritos são bem difíceis de serem
recapturados, pois suas energias se escondem facilmente nas iniquidades do
mundo material. Eles atormentam e influenciam os comportamentos daqueles
que lá estão, principalmente no campo da libido humana. Bem, felizes talvez
sejamos nós, por termos apenas uma existência — observou o armígero sob a
concordância do príncipe dos anjos.
Ao chegarem na grande capela da Tesouraria, um espaço descomunal
cercado por milhares de estantes que iam do chão ao teto, eles se depararam com
Razyel, arcanjo que, em meio a uma inflexível bancada abarrotada de
cartapácios e velas acesas, cumpria, havia muito, o posto de tesoureiro das almas
ali presas.
Ao observar, diante de si, o irmão celestial que havia tempos não via, o
oficial estranhou a sua chegada, principalmente quando dele recebeu uma ordem
de soltura vinda de alguém que não um dos costumeiros meirinhos que lá as
apresentavam por lotes; e ao romper delicadamente o selo divino pré-posto
naquele documento, Razyel leu para si o teor, mostrando-se surpreso com o seu
conteúdo.
— Algo errado? — inquiriu o mensageiro.
— Creio que não, Príncipe Gabriel. É que se trata de uma alma muito
antiga, para cá trazida antes mesmo do dilúvio. Soa mais estranho, é que ela
nunca teve direito a progressão — explicou. — Enfim, eu irei confirmar a
localização dela nos livros, mas creio que deva estar suspensa nos níveis mais
baixos.
Após um acurado exame em diversas anotações que remetiam a séculos
terrestres, Razyel e Gabriel deixaram aquelas dependências e passaram a descer
por infindáveis lances de escada, até que finalmente aportaram num corredor
estreito e escuro da seção leste, apenas iluminado pela presença do vigia daquela
ala, o Arcanjo Marcyal.
— Príncipe; tesoureiro-mor? — assustou-se o guarda.
— Salve, soldado! — disse o oficial em voz baixa e sem pompas. — O
nosso visitante é portador de um alvará individual especialmente emitido para
uma alma que, em meus registros, consta estar numa das últimas solitárias deste
flanco — esclareceu Razyel sob o eco que se fazia no ambiente.
— Deixe-me examiná-lo, senhor — respondeu o miliciano ao folhear o rol
nominal de presos. — Sim, o nome confere com o da ordem que Vossa
Excelência tem em mãos; por favor, acompanhem-me para o consentâneo
cumprimento.
Os três celestes se dirigiram até a última cela que, pelo alfabeto angélico,
descrevia o número dois e a qual, com certa dificuldade, foi sendo, aos poucos
aberta pelo guardião. A luminosidade natural vinda do corpo deles fez com que o
interior do ambiente fosse paulatinamente clareado, revelando-lhes, em meio a
colunas fúnebres, a opaca silhueta de uma mulher deitada de costas que, pelo
visto, lá jazia havia muitos séculos. Ao mirá-la de costas, o guarda do cárcere se
posicionou e procedeu à obrigatória liturgia de libertação, lendo ipsis litteris o
que constava do documento que tinha em mãos:
Ao término da leitura, a segregada, que ainda se fazia cobrir por uma fina
camada de gelo, abriu os olhos num único ímpeto. E depois de anos presa
naquele gélido calabouço, ela finalmente obteve autorização para deixar a
clausura e enfrentar um mundo totalmente diferente daquele em que havia vivido
e, sobre o cadáver do ex-marido Adão, feito a passagem devorada pelo fogo que
os consumiu juntos.
A primeira mulher posta na Terra, doravante num outro corpo e numa
outra vida, estava prestes a ter uma chance de redenção.
***
Durante o dia, o sol castigava José e a esposa; e à noite, o calor vindo das
fogueiras lhes trazia conforto. De alguns mercadores que encontravam nas
trilhas, o homem comprava um ou outro mantimento de fácil conservação e
rápido consumo, a fim de que a jornada, a qual transpunha grandes regiões
desérticas, lhes fosse menos penosa.
Embora já íntimos da solidão da estrada, foi no oitavo dia de viagem que
algo atípico lhes aconteceu. No cair da noite, e em meio a um caminho fechado e
traiçoeiro, o casal sagrado acabou emboscado por três homens de aparência rude
e agressiva, verdadeiros salteadores da senda, que haviam se acostumado a
atacar os viajantes incautos que porventura viessem a encontrar. A investida dos
mesmos ocorreu no exato momento em que José, após acender uma pequena
fogueira, buscava um pouso adequado para poder acomodar Maria e prender o
animal que lhe servia de montaria.
— Ora, quem vem lá? — tripudiou o mais encorpado dos ladrões.
O carpinteiro e a mulher ficaram acuados, já que o trejeito daqueles
malfeitores era um prenúncio do que eles aparentemente tencionavam.
— Nós viajamos em paz; eu e minha esposa, que está prestes a dar à luz...
— apelou José na tentativa de sensibilizá-los.
— Esposa? Pois eu pensei que fosse tua neta! — divertiu-se um deles, em
razão da crassa diferença de idade entre ambos. — E por acaso trazes algum
dinheiro contigo, velho? — indagou o mesmo, cuja enorme cicatriz que lhe
cortava a face impunha temor.
— Eu só tenho algumas moedas, ficai com elas e deixai que sigamos o
nosso caminho — respondeu, remexendo a bolsa e ofertando-lhes o pouco valor
material que carregava.
— E porventura nos julga dignos dessa ninharia? — berrou o líder deles
ao desferir um violento golpe no rosto de José, o qual, atordoado, caiu ao chão e
perdeu os sentidos ao chocar a cabeça contra uma pedra.
— Mas veja o que nós temos aqui, uma delicada jovenzinha! — riu o mais
forte ao tomar a virgem e colocá-la em pé diante de si.
Fragilizada ante o próprio estado físico e atemorizada com o que ocorria,
Maria segurou a barriga com uma das mãos e ergueu instintivamente a outra, na
pretensa tentativa de repudiar aquele homem imenso, cujas intenções para
consigo pareciam ser as mais pérfidas possíveis.
Seu esposo, ferido e inerte, nada podia fazer para protegê-la; e clamar por
socorro naquela despovoada imensidão seria inútil, até porque, o pânico lhe
havia tolhido, sumariamente, a voz.
Limitando-se a recuar, ela se viu encurralada por uma enorme parede
rochosa que a impediu de continuar se afastando e, diante de si, enxergava
apenas aquele arremedo de monstro humano, malcheiroso pela bebida e
envergando vestes imundas. Vencida pelo medo e pelo desespero, a jovem
começou a se agachar, oportunidade em que os outros dois se aproximaram do
maioral para coadjuvar um crime cujo grau de aberração sequer poderia ser
definido.
Pois estando numa posição mais baixa em relação àquele malfazejo, Maria
entrou numa espécie de transe, passando então a focar os seus pensamentos em
algo que pudesse lhe trazer um pouco de acalento para tentar enfrentar a
desgraça que estava por vir. Mas num repente que teve da própria realidade, ela
foi surpreendida por um vertiginoso facho de fogo que inesperadamente se
ergueu do chão por trás do perverso homenzarrão e, numa só passada, o partiu ao
meio. Assustada com a violência da cena, Maria esboçou perder os sentidos, não
sem antes ver aquela mesma língua fulgurante — entre uma nuvem de areia que
se levantou — calar os urros terrificantes dos outros dois facínoras.
A imaculada não se conteve e desfaleceu, sendo que o silêncio, após
aquele ímpar momento de tensão, foi, aos poucos, retornando. Estacionado bem
diante dela, ali se revelou o grande mensageiro de Deus, com a sua afiada espada
de fogo erguida e bem segura numa das mãos.
Igualmente desacordado, José foi gentilmente posto pelo tal anjo no
lombo do seu animal. Erguida nos braços pela mesma entidade, Maria ficou
segura. Tomando as rédeas do jumento que havia se recusado fugir, aquela
sentinela celeste que lhes dava guarida os levou daquele lugar ermo, deixando
para trás três cadáveres lacerados e à mercê dos mais baixos calabouços do Guf.
O Príncipe Gabriel, que pouco antes havia retornado de Magdala após
fazer a entrega do espírito recém-liberto de Lilith, seguia à risca as orientações
do Senhor, vigiando o casal à distância desde que haviam partido de Nazaré. No
caminho, o mensageiro olhava, vez ou outra, para a barriga daquela jovem e,
com um singelo sorriso no rosto, lembrava-se do bom irmão Miguel, cuja
essência, agora, estava num ser forjado da mesma matéria que séculos antes ele
próprio havia auferido nos quatro cantos da Terra para que o Criador moldasse o
primeiro homem.
Na manhã seguinte os dois despertaram ao lado de um bornal que
continha água fresca e de pequenos cestos com uvas passas e castanhas, como se
nada lhes tivesse acontecido. Mas, afinal, teria aquilo sido um pesadelo? Talvez
não, pois os trejeitos da aparição foram descritos por Maria ao esposo, fazendo
com que este, nela identificasse o mesmo ser misterioso que, meses antes, o
havia visitado para dar paz ao seu atormentado coração; e ela, o que havia
anunciado a vinda do seu filho.
— Aqueles homens horríveis, José. Fomos salvos... — disse a menina,
ainda aparentemente emocionada.
— É mais um sinal de Deus, mulher; o terceiro ao que me parece —
ponderou. — Bem, sigamos, então, adiante, afinal, já estamos próximos de
Belém.
Embora aquele dia de viagem, o último, houvesse sido tranquilo, assim
que a tarde caiu no sul da Judeia, Maria sentiu a criança se encaixar na sua
região pélvica, o que, mal sabia ela, era um prenúncio do nascimento. Inúmeras
contrações passaram a tomar conta do seu corpo, e o desconforto causado por
elas fez com que José, um tanto nervoso, se pusesse a buscar um lugar adequado
para tentar abrigá-la; afinal, a noite se avizinhava e, para piorar, uma garoa
ardida havia começado a cair sobre eles. Ainda que o centro da cidade já
estivesse próximo, e José, por ser um nativo, pudesse facilmente encontrar
abrigo, o tempo urgia, pois a parição parecia ser iminente.
Pois ainda na estrada e em meio à chuva que começou a piorar, de longe
avistou alguém que saiu do que lhe pareceu ser uma espécie de gruta fincada
entre as pedras, uma mulher idosa de trejeitos simples e simpáticos.
— Venham cá, meus filhos! — bradou a estranha ao acenar para eles. —
Protejam-se e aqueçam-se um pouco.
Mesmo à distância, José não percebeu qualquer hostilidade nela e, no afã
de acalentar a esposa, aceitou o convite e a levou para aquela caverna, onde a
anciã os recepcionou:
— Sede bem-vindos — disse ela. — E nada temais, pois, no passado, este
lugar serviu de estábulo para os pastores em trânsito de Betânia[21] até Belém,
mas já faz um bom tempo que ele está abandonado — esclareceu a senhora já no
interior do abrigo, cuja iluminação interna, embora presente, não teve a origem
de pronto identificada.
— A minha esposa está prestes a dar à luz, nós precisamos de ajuda —
asseverou José, aflito.
— Pois então vinde para mais perto, deita-a sobre esse monte de feno —
ofertou a velha calmamente.
— A senhora pode auxiliar de alguma forma? — indagou José, ao
cuidadosamente acomodar Maria.
— Bem, faz muito tempo que eu não assisto alguém num parto. Muito
tempo... — respondeu, passando as mãos nos cabelos já descobertos e soltos da
virgem. — Mas saibas que a melhor ajuda é aquela vinda de ti mesma, menina.
Pois assim, quando sentires as contrações aumentarem, apenas faças força para
fora. Está bem? — orientou-a. — A jovem assentiu com um suave movimento
de cabeça e esboçou um sorriso, dando mostras de que havia compreendido. —
Ótimo! Agora, relaxa e deixa que tudo aconteça naturalmente — disse a
desconhecida sob o ansioso olhar de José.
Pois contrariando a severa lei da dor que havia sido posta em Eva, Maria
se mostrava imune ao sofrimento da parição; afinal, ali, nascia o rebento de
Deus, e com o auxílio daquela estranha, pariu uma criança saudável, a qual
ganhou o mundo, não chorando, mas sorrindo.
— Meu filho... — sussurrou a mãe, feliz ao vê-lo. — Jesus!
— Abençoada és tu, menina, o Senhor livrou-te da dor do parto. E saúdo a
ti e ao teu marido, pois recebestes um menino forte, muito forte — afirmou a
parteira, num tom envolvente e igualmente misterioso.
O casal ficou tão entretido com o exitoso nascimento, que não percebeu
quando a idosa amarrou o cordão umbilical que unia a mãe à criança com dois
finos fios de ouro e, com um belo punhal cravejado de esmeraldas que tirou da
cintura, o seccionou sem quaisquer dificuldades.
A chuva que ainda caía parou de maneira inesperada, dando azo a uma
grande estrela que se fincou acima da caverna. A dita senhora então se levantou
e, vagarosamente, deixou a gruta, sem que José ou Maria se apercebessem. Já
estando na entrada dela, olhou para o alto e desfez o seu disfarce, de pronto se
revelando como sendo um anjo, um príncipe-primeiro da ordem das virtudes. Foi
então que Rafael, que centenas de anos antes havia auxiliado Eva a trazer os
gêmeos Caim e Luluvah ao mundo, recepcionou alguns pastores que lá
chegaram atraídos pelo fulgor do astro que havia repousado sobre aquela gruta.
— Entrai e contemplai o “rei dos reis” que aqui nasceu!
Feito isso, o celeste cobriu a cabeça com um capuz esverdeado e
desapareceu no ar, deixando atônitos os espectadores que lá estavam.
Os pastores entraram na gruta e se depararam com uma menina
acalentando um recém-nascido que se recusava a chorar. No afã de proteger a
família, José ficou arisco ao vê-los, mas ao ouvir deles que um anjo de Deus os
havia licenciado para saudar o novo monarca que tinha acabado de chegar ao
mundo, ele desarmou o coração e permitiu que todos se aproximassem e o
adorassem. Nem mesmo quando a noite findou, o brilho daquela magnífica
estrela de Belém se consumiu. Era dia vinte e cinco do mês de dezembro, três
mil setecentos e sessenta anos haviam se passado desde que Deus havia deixado
o Céu para criar a Terra.
***
***
***
***
***
***
***
***
Enfim, passaram-se dez anos desde que a família sagrada havia fugido de
Jerusalém após um aviso do anjo Gabriel. E nas bandas do Egito, o cenário atual
retratava um grupo de crianças gazeteiras penduradas na fronde de um grande
choupo-preto, onde uma delas, equilibrando-se no galho mais alto, flexionava
um arco rudimentar que abrigava uma flecha cuja ponta metalizada refletia em
razão da luz solar.
O arqueiro, um pré-adolescente de tez bem morena e sobrancelhas
grossas, mostrava particular intimidade com o artefato e, soltando
confiantemente a seta nele posta, viu quando ela cortou em cheio uma das
frondes pinadas do alvo; uma grande tamareira que já exagerava nos frutos.
Tão logo um dos folíolos se espatifou no chão seco, os meninos e meninas
correram, ariscos, para resgatá-lo, afinal aquelas tâmaras agridoces estavam lhes
apetecendo os olhos e, agora ali dispostas, seriam devoradas sem qualquer modo
ou cerimônia.
Vendo os amigos satisfeitos, o tal “arqueiro” pôs a arma nas costas e
desceu, com destreza, da árvore, não demorando muito a ser agraciado com um
galho cheio de frutos suculentos, apenas capturados graças à sua ímpar
habilidade com aquele instrumento impulsor manufaturado, dificilmente
manejado por alguém que não um adulto.
Mas enquanto os jovens rumavam para o vilarejo, eles se desconcertaram
ao perceber que o velho pai de um deles, enfezado e à procura do filho
conhecidamente travesso, os surpreendeu com os rostos ainda melados por tais
frutas. Embora todos se pusessem a correr assustados, um dos garotos,
exatamente o autor da dita façanha, ficou imóvel ao mirar o genitor diante de si.
E ao ouvir o seu nome ser firmemente bradado, “Jesus!”, abaixou a cabeça e
quedou-se silente.
— Tu não deverias estar na escola comunal[36]? E quantas vezes eu já te
disse que não te quero bulindo com armas? — bradou José, ao tomar-lhe o arco
das mãos e parti-lo ao meio numa das pernas.
— Mas, pai, dessa vez, a minha intenção era justa; eu só queria saciar a
fome dos meus amigos...
— A fome ou a gulodice? — indagou num tom espirituoso. — Pois tu
devias usar as habilidades que tens para aperfeiçoar-te na leitura e ajudar-me no
ofício, e não para exibir-te com peças que podem ferir ou até matar alguém —
ponderou, preocupado.
— Tens razão, peço-te desculpas.
— Desculpas, desculpas... — repetiu José ao tomá-lo pelo braço. — Não
sei se já percebeste, mas essa tem sido a tua expressão predileta nos últimos
tempos, não é, Jesus?
O rapazote assentiu calado e fechou o rosto.
Embora fosse um tanto peralta, como, aliás, eram todos os meninos
daquela idade, José acabou desarmando o coração, e não conseguiu continuar
com a severidade daquela reprimenda.
— Bem, vamos para casa, a tua mãe já estava a perguntar por ti. E sorte
não ter sido ela a te encontrar, pois bem sabes que Maria é muito mais severa do
que eu — disse o carpinteiro, sorrindo.
Jesus era deveras apegado aos pais e, junto a José, auferia uma proteção
ímpar. Não porque este — embora já tendo ultrapassado a casa dos sessenta anos
de idade — ainda fosse um homem fisicamente forte, mas porque o amor e a
dedicação que o mesmo e a mulher tinham para consigo suplantavam qualquer
outro sentimento.
Ao chegarem no portão do humilde casebre onde viviam, Jesus viu Maria,
agora uma mulher de vinte e três anos, preparando a ceia.
— Mãe! — bradou, festivo, ao entrar correndo no quintal.
— Jesus! Onde tu estavas? Eu e teu pai já estávamos preocupados —
disse ela, sempre atenta às traquinagens do filho.
O rapaz diminuiu o passo e, de soslaio, encarou José.
— Ele já estava a caminho de casa, eu não tive trabalho em encontrá-lo —
esclareceu, piscando ao rebento.
— Tu estás com o rosto todo lambuzado menino; vai te lavar — ordenou
Maria, já o tomando pelos ombros. Jesus obedeceu e se debruçou num tanque de
madeira, e a sua mãe, no afã de auxiliá-lo, o cercou pelas costas. — Ao menos
deste graças pelas tâmaras que comeste? — disse ela, ao facilmente perceber a
efetiva origem daquelas manchas.
Envergonhado pela falta — “eu fui descoberto!” —, Jesus fechou os olhos
e declamou:
— “Bendito és tu, ó Deus, pelos frutos que criaste”.
— Agora sim! Aliás, antes tarde do que nunca, não é, meu filho? —
ponderou, ao mandá-lo se sentar à mesa.
Percebendo que o sol já estava à pique, o menino fez menção de avançar
sobre a ceia, afinal, ele tinha outros “planos” para aquela tarde. Mas, ao fazer
isso, acabou novamente repreendido, desta vez pelo pai:
— Não estás se esquecendo de nada, Jesus?
Estagnando a mão sobre um pedaço de pão, o arteiro guri respondeu:
— Mas, meu pai, eu acabei de lavar as mãos. Por que devo lavá-las
novamente?
— Porque é um costume do nosso povo que deves seguir.
Aparentemente contrariado, Jesus verteu água por três vezes sobre cada
uma das mãos e, após enxugá-las, abaixou a cabeça e repetiu:
— “Venturoso é o Senhor, os mandamentos sagrados Dele vindos, e o pão
que vem do trigo da terra” — rezou de forma automática e sem ainda aceitar a
severidade de todas aquelas liturgias.
José e Maria olharam, orgulhosos, para o filho e se puseram a cear,
satisfeitos, não apenas pela boa saúde dele, mas pela sua inteligência e pelo
acatamento — ainda que de certa forma forçado — das coisas sagradas.
Mas Jesus ainda era um garoto e, como um, engoliu a refeição a fim de
honrar um compromisso que tinha para logo mais. Assim, “inocentemente”
ofertando-se para ir até a cidade entregar as roupas que a mãe havia lavado, ele,
vez mais, desobedeceu a José e levou consigo um gládio de madeira que, algum
tempo antes, havia cunhado à revelia do pai. Embora disposto a cumprir com a
tarefa assumida, Jesus apenas omitiu o fato de que também iria encontrar um
amigo um tanto inusitado, o que talvez não agradasse os seus pais.
Sempre ativo e muito comunicativo, aliás, até por demais, Jesus interagia
facilmente com qualquer pessoa, até mesmo com as consideradas inimigas dos
judeus e, correndo pelas ruas da urbe egípcia, não demorou muito para que ele
visualizasse uma guarnição de soldados romanos próxima a um poço d’água. E
em meio a ela, um miliciano jovem e bem feito de rosto, mas com uma
perceptível deficiência no olho esquerdo, a qual, mesmo assim, não lhe
prejudicava a lida, principalmente num lugar distante de Roma.
Jesus o fitou de longe e escondeu a trouxa de roupas atrás de alguns vasos
de barro. O soldado o replicou com rigor e, deixando a companhia, premiu o seu
pilo, a famigerada lança padrão da Legião Romana, e foi na direção do menino
que, ao perceber a manobra, correu para dentro de um beco na tentativa de se
esconder. O miliciano ganhou facilmente aquele espaço e, procurando pelo
fugitivo, foi surpreendido com um forte golpe dado na sua panturrilha, que o fez
vergar o corpo.
— Ora, seu judeuzinho danado, venha até aqui e eu te darei uma lição! —
bradou aquele soldado com a face ruborizada.
— Se és tão bom com essa arma; roga a Marte[37] e vem pegar-me! —
provocou o garoto ao, vez mais, investir contra ele com aquele gládio de
madeira.
Com o cabo da sua lança, a qual era de verdade, o armígero passou a
obstar os rápidos golpes efetuados contra si pelo menino. De fato, Jesus
demonstrava uma habilidade ímpar com a “espada” e, quando a usava, mesmo
que brincando, parecia incorporar o grande guerreiro celestial que ele, em
verdade, era. O instinto de combate lhe surgia com frequência, mormente
quando cunhava arcos, flechas, floretes ou fingia ser o comandante de um
exército imaginário com as demais crianças que o seguiam. José o repreendia
sempre, mas o menino, do mesmo jeito que apresentava incrível facilidade em
decorar as leis mosaicas, parecia ter verdadeira fascinação pelas guerras
fantasiosas que vivenciava com os amigos.
Pois aquele jovem soldado romano, chamado Quiricus Longinus, havia
conhecido Jesus na praça da cidade e, tendo crescido numa família na qual, até
certa idade, havia cuidado dos irmãos menores, “adotou” o pequeno como
amigo. E foi pensando na família que havia ficado em Jerusalém, que o
legionário perdeu momentaneamente a atenção e acabou tendo o equilíbrio das
pernas comprometido por astuta manobra do garoto, caindo no chão sob os
brados de êxito dele: “Marte caiu; marte caiu!”. O soldado então se “rendeu” ao
vencedor e sorriu ao ver a satisfação no rosto do menino, de quem parecia muito
gostar.
— Meu jovem amigo, a cada dia que passa, a tua habilidade bélica só
aumenta! — disse, suplantado. — E cá estou a temer pelo meu futuro; pois, caso
lideres um exército com a mesma força que a tua, serás capaz de derrubar César!
— riu.
Jesus processou aquele comentário visivelmente zombeteiro e, por um
instante, ficou desconcertado, como se estivesse prevendo que, num futuro
próximo, ele, de fato, lideraria o povo num levante moral contra o império
romano, o qual mudaria o rumo da história do mundo.
— Achas mesmo que, ao invés de carpinteiro, eu seria um bom soldado?
— Já o és, jovem Jesus! Agora, a ajuda-me a levantar. Afinal, não condiz
com um legionário romano ficar à mercê de um pirralho assim como tu! —
Percebendo que o garoto ficou ressabiado, ele continuou. — Algo te incomoda?
— Sabe, amigo Longinus, um dia eu haverei de ser um grande soldado!
— disse quebrando o silêncio. — Só não sei ao certo quais armas usar... —
completou, fazendo pouco daquele arremedo de espada que tinha em mãos.
— Pois saibas que um bom soldado é, antes de tudo, um bom seguidor de
ordens. Portanto, elege o teu comandante e faz o que ele disser, somente assim
serás um bom soldado! E enquanto esse dia não chega, cumpra com as tuas
tarefas, pois o teu pai pode não gostar dessa beligerância toda que carregas
dentro de ti.
— Meu Pai... — respondeu, olhando para o alto. — Um dia Ele terá muito
orgulho de mim, pois foi para cumprir com a lida Dele que eu nasci.
— O que disseste, menino?
— Nada... — desconversou, voltando a si. — E tens mesmo razão, é
melhor eu correr, pois se José desconfiar que saí de casa com esta espada que fiz,
certamente terei problemas.
— Bem, até breve, então. E não te esqueças do que eu disse! — pontuou
Longinus ao se despedir.
E lá se foi Jesus; tomou a trouxa de roupas que havia deixado nas
proximidades e, para a sua sorte, conseguiu entregá-las ainda intactas.
A caminho de casa, ele novamente envergou a sua “arma” de brinquedo e
se pôs a manuseá-la em instinto, golpeando o ar num pontuado balé bélico,
similar àqueles originalmente aprendidos pelos arcanjos-cadetes em Vigilum, no
alto do Céu: “Marcha, afundo; estocada... Marcha, afundo, estocada!”, repetia,
sem sequer entender o sentido daquelas palavras.
Mas do mesmo jeito que ele tinha as suas tarefas, José também tinha as
dele, e foi ainda na estrada, que o velho, de longe, viu o filho “bailando” e
munido daquele objeto que o havia proibido de bulir. De manobra em manobra,
Jesus se viu diante do pai e, não tendo mais como obstar a justa severidade dele,
acabou voltando para casa com as nádegas um tanto quentes, pois bastaram duas
ou três lambadas com aquela “espada” para que ele se convencesse de que as
armas que deveria usar dali por diante deveriam ser outras.
A partir daquele dia, Jesus decidiu tentar controlar o seu temperamento
ousado e, pensando na conversa que teve com o romano Longinus, imaginou
como seria se tornar um guerreiro; um guerreiro sem armas.
***
***
Maria estranhou o fato de que, após chegar em casa, Jesus pôs-se quieto
na oficina do pai. Mas ao vê-lo apalpar o próprio assento, logo desconfiou que
ele havia aprontado outra das suas. Ela, por vezes, lidava com um estranho
conflito sobre o filho, pois como poderia o Messias, o legítimo herdeiro do trono
de Davi, ser tão traquinas? Mas tencionando novamente orientá-lo, resolveu ter
com ele.
— Jesus?
— Sim, mãe — respondeu, surpreso, e tentando ocultar o incômodo.
Ela se achegou e disse:
— Eu estava aqui a observar-te... E só agora me dei conta de que, com a
idade que tens hoje, eu já estava prestes a receber-te de Deus — disse ao,
carinhosamente, abraçá-lo.
— E o que isso significa? — indagou, curioso.
— Que tu já és um rapaz crescido, tem quase onze anos de idade; por isso,
precisas ser mais obediente e mais dado às coisas de Deus.
— Eu sei. Perdoa-me se dou tantos dissabores a ti e a José.
— Não foi isso que eu quis dizer — ponderou. — És inteligente e muito
habilidoso, no entanto, necessitas ser menos menino e mais homem.
Jesus abaixou a cabeça, pois se sentia culpado.
— Sabe, mãe... — respondeu, cabisbaixo. — Um dia eu serei um soldado
muito poderoso, o maior que já existiu, e eu vou dar a minha vida para que as
pessoas não precisem mais lutar entre si.
— Esse teu espírito beligerante às vezes me assusta, filho — ponderou,
agora preocupada. — Eu ainda não sei de onde vem tanta disposição para bulir
com espadas e sonhar com guerras e exércitos, mas deves entender, de uma vez
por todas, que a arma mais poderosa que um homem pode ter é o conhecimento
da palavra de Deus, que, se bem empregado, pode suplantar qualquer obstáculo.
Nesse mesmo instante, José ingressou na oficina e surpreendeu a esposa e
Jesus conversando.
— Hum... — murmurou satisfeito. — Eu espero que estejas ouvindo os
conselhos de tua mãe — disse, ao lavar as mãos numa tina.
— Sim, está — respondeu Maria. — E ele agora haverá de focar os seus
talentos de outra forma. Não é, filho?
O garoto concordou e sorriu ao pai, o qual, sem demora, o acolheu num
abraço e arrematou:
— Tu tens um futuro próspero, Jesus. Por isso, concentra-te em Deus e
luta, sim, a tua guerra, mas com armas de fé que libertem o nosso povo do jugo
daqueles que ofendem ao Senhor e ousam se arvorar Nele! — apelou com
seriedade.
Com o cenário já apaziguado, os três foram cear como de costume e, por
volta das nove horas da noite, recolheram-se para o repouso. Entretanto, assim
que a madrugada chegou, José ouviu um barulho incomum vindo dos fundos da
casa. Atraído pela luz que lá emergia, ele se levantou sem chamar a atenção de
Maria e do filho e, ao ganhar a porta dos fundos, foi surpreendido por um velho
conhecido de outrora.
— Há quanto tempo, meu amigo! — disse o anjo Gabriel, ao devolver, à
mesa da oficina, uma ferramenta manufaturada que examinava.
— Tu! – respondeu José, surpreso e em voz baixa. — Bem, se vieste até
aqui, creio que teremos novas — ponderou, arisco.
— De fato. Dez anos já se passaram desde que eu vos alertei sobre os
perigos que o menino então corria, e dez anos foram necessários para que o
banho de sangue que manchou a Judeia se esvaísse. — Passivo, o carpinteiro
ouvia a tudo atento. — É chegada a hora de ficares novamente junto dos teus
outros filhos e, mais ainda, voltar com a tua nova família para Nazaré. E
acalenta-te, pois Deus estará convosco na viagem de volta.
Ao perceber que o mensageiro esboçava ir embora, José o interpelou:
— Espere, senhor! E quanto ao meu filho? Diga-me se, acaso, eu ou a mãe
erramos de alguma forma. Refiro-me a essa inclinação dele por lutas e batalhas.
Pois, afinal, Jesus não haveria de ser um mensageiro da paz?
Mesmo já estando de costas, Gabriel estacionou o passo e sorriu com o
canto da boca e, voltando a metade do rosto a José, esclareceu:
— Jesus vem de uma boa forja — disse, referindo-se subliminarmente a
Miguel. — E tranquiliza-te; no momento certo, ele mudará a estratégia.
— Felicito-me ao saber! Mas, senhor... — insistiu —, permita-me fazer
uma última pergunta. Eu ainda o verei novamente?
Ainda meio oculto, o anjo-mor lhe respondeu:
— Sim. Mas neste plano, apenas por mais uma vez.
Abrindo as grandes asas, o príncipe saltou do chão e ganhou o firmamento
numa velocidade similar à da luz.
Vencida aquela etapa preliminar, o menino Jesus finalmente começaria a
se transformar num homem de verdade.
***
***
Cerca de mil e trezentos anos antes do dia em que Jesus completou doze
anos de idade, Deus, através do profeta Moisés, libertou o povo hebreu do
cativeiro no Egito, terra cuja base populacional advinha do clã de Cam, o filho
expulso de Noé. Desde então, os descendentes daquele tronco passaram a
comemorar tal evento numa festa chamada Páscoa, solenidade religiosa que
culminava com uma peregrinação em massa para o Templo de Jerusalém, o qual
era fincado sobre o Monte Moriá[43], bem a leste da cidade santa.
Fiel e agora possuindo melhores condições financeiras, José arregimentou
a família e partiu de Nazaré com outros peregrinos, a fim de acamparem nas
redondezas da urbe e se prepararem para o ritual de sacrifícios que, segundo a
lei, deveriam todos oferecer ao Senhor.
De toda as viagens feitas por Jesus, aquela foi a menos extenuante, haja
vista a companhia das demais crianças da caravana, que se divertiam durante o
trajeto e pouco sentiam os rigores da peregrinação. Durante o longo caminho, ele
se lembrou da infância no Egito e de quando tomava a liderança dos demais
amigos, sendo que, nessa nova oportunidade, parecia repetir aquela mesmíssima
postura.
Após chegarem e edificarem as suas tendas, os aldeões de Nazaré
rumavam para Jerusalém no intuito de trocar os seus dinheiros pelo shekel
hebraico, única moeda aceita no Templo e que se prestava a comprar um animal
para o sacrifício sagrado. Aliás, os sacerdotes do Sinédrio[44] se fartavam durante
essa época do ano, graças ao lucro elevado que tinham em razão da chegada em
massa dos fiéis, mostrando que a fé em Deus, ao menos para eles, tinha um
preço bem alto.
Jesus, por sua vez, ficou impressionado com as altas muralhas da cidade e
a grande presença de soldados romanos, o que o fez se lembrar do legionário
Longinus, a quem parecia instintivamente procurar em meio àquela agitada
multidão.
Por um instante, o menino perdeu a visão em meio aos bois, ovelhas e
carneiros que lá estavam, afinal, o sacrifício os aguardava pelas mãos dos
sacerdotes, os quais, alegando a descendência de Aarão[45], usavam vestes
brancas e se responsabilizavam pelos ritos diários do Templo.
Mas Jesus não via aquela estranha liturgia com tanta simpatia. Não com
relação à simbologia dela, mas sim, com referência ao abate conciso dos
animais, pelos quais ele nutria especial afeição. E após observar, contrariado, um
dos sacerdotes degolar um ovino não muito gordo que coube à sua família, ele
acompanhou, à distância, a queima das entranhas dele nos grandes chifres de
bronze do altar, afinal, a tradição assim o exigia. O cheiro da carnificina era
insuportável, e sequer o incenso e a mirra com canela esbraseados eram capazes
de minimizá-lo.
Tão logo o tal rito se findou, o restante do corpo do animal — desprezado
pelos sacerdotes diante da pouca monta — foi levado de volta ao acampamento
dos aldeões de Nazaré para, juntamente aos outros trazidos pelas demais
famílias, ser assado e consumido numa comemoração, pois o início da jornada
de retorno à cidade só haveria de ocorrer na manhã seguinte. Quanto à pele dos
bichos, mormente a dos cordeiros, ficavam em poder dos sacrificantes, que
teriam um bom lucro na revenda. Como visto, desde então já se usava o santo
nome de Deus para o patrocínio de privilégios pessoais sujos, algo que, no
futuro, o próprio Jesus revelaria crassa ojeriza.
Tendo em vista a grandeza do comboio, os segmentos dele — jovens e
adultos — eram divididos, e as famílias não viajavam unidas, afinal, os mais
moços aproveitavam o evento para adquirir maior responsabilidade. E sendo
Jesus um pré-adolescente, os seus pais não tiveram como se opor ao costume.
Mas no fim daquela mesma madrugada, após o banquete festivo, o
menino de Nazaré despertou antes de o sol nascer e, sem dar parte a ninguém,
retornou à cidade e ficou nos portões do Templo aguardando o momento certo
para poder entrar, pois parecia ter sido, para lá, levado por um magnetismo
involuntário, o qual nem ele sabia ao certo explicar.
E o calor do dia então adveio, e os peregrinos finalmente partiram. Mas tal
não foi a surpresa de José e Maria ao, na primeira parada da caravana, já
próximo ao cair da noite, procurarem o filho junto à ala dos menores e não o
encontrarem.
Embora conhecidamente peralta, Jesus nunca lhes havia saído,
efetivamente, das vistas, pois mesmo que desse as suas costumeiras escapadelas
com os amigos, ele jamais se apartava daquela forma. Seus pais ficaram deveras
angustiados e, em desespero, regressaram a Jerusalém a fim de tentar encontrá-lo
incólume, ainda que pela estrada. Finda a parte de um dia de viagem pautado
pela tristeza no coração, eles chegaram na cidade e, após procurá-lo, sem
sucesso, nos poucos acampamentos que ainda a rodeavam, o casal ingressou na
urbe para continuar a lida.
A virgem estava desconsolada; recusava-se até mesmo a beber água,
afinal, que fim teria tido aquele que havia sido profetizado como Messias?
Pois não tão longe dali, várias plateias haviam sido formadas diante dos
escribas e dos mestres da Lei, os quais, ao longo do dia, se faziam circundar por
dezenas de jovens ávidos em aprendê-la. Numa delas, um dos doutores fazia
alusão a Samuel, o profeta que havia ungido os reis Saul[46] e Davi e, conforme
as escrituras sagradas, citava um trecho de Natan[47].
— “E disse o grande juiz, que o Senhor Deus levantaria um descendente
de Davi que estabeleceria o reino dos céus na Terra...”.
Os doutos se puseram a discutir a máxima entre si, ponderando que o
referido líder israelita talvez estivesse aludindo ao filho de Davi e Betsabá[48], o
notável Rei Salomão. Mas de forma inusitada, um dos jovens que ali estava deu
um passo à frente e, mostrando reverência aos sábios, ousou tomar-lhes a
palavra.
— Rabino, se me permite, eu creio que o profeta Natan não fazia
referência ao terceiro rei de Israel.
Os demais, tantos os jovens quanto os adultos, mostraram-se surpresos
com aquela intervenção.
— E a quem então achas que o proclamador fazia alusão? — indagou um
dos mestres ali presentes.
— Certamente ao rei ungido que Deus fez referência ao seu primeiro
filho... — respondeu, de pronto, o menino.
— “Primeiro filho?” — replicou o idoso.
— Sim. Pois disse o Senhor, ao primogênito Adão, que orasse até que o
redentor surgisse de sua casa e o salvasse. E mais... que, da descendência dele,
seriam benditas todas as famílias da Terra.
— Falas do Messias que trará a salvação ao povo de Israel, menino?
— Eu falo daquele que nos exporá a um reino sem fronteiras; a um reino
de amor que haverá de permear o coração de todos. Pois o verdadeiro eleito
haverá de ser o anjo do pacto, o filho do fogo sagrado que trará a derradeira
salvação aos filhos do homem — pontuou, efusivo.
— E quando ele haverá de chegar? — perguntou um deles.
— Rabi, ao que sinto, ele já está entre nós...
— Pois então crês que o ungido já é nascido e nos libertará do látego
romano? — insistiu o curioso letrado.
— Os romanos são conquistadores, mas também são homens. E não
apenas os homens de Deus serão libertos, mas também os que se apartaram Dele
e precisam retornar ao Seu reino.
— E como achas que se entra nesse reino? — questionou um espectador.
— Entra-se nele ouvindo o interior da própria alma, reparando faltas
simples e seguindo o lado certo; valorizando e respeitando o espírito,
equilibrando as falhas e preservando o santuário da vida. Entrar no reino de Deus
é considerar o silêncio e ouvir antes de falar, pois aquele que grita não consegue
ouvir o que o seu “eu” tem a lhe dizer.
Boquiabertos, os escribas ficaram impressionados com a sabedoria
daquele meninote e encerraram a leitura, oportunidade em que, guiada pelo amor
que lhe trasbordava o coração, Maria foi atraída para as colunas do Templo e, ao
lado do esposo, viu quando os demais se achegavam daquele garoto — sim,
Jesus, o seu rebento fugido — cuja aura, ao menos para ela, resplandecia naquele
ambiente.
— Jesus; filho! — gritou emocionada, ao correr na direção dele e abraçá-
lo com os olhos encharcados. — Nós estávamos desesperados atrás de ti!
Pois o menino, que naqueles dias já possuía um pouco menos do tamanho
da mãe, olhou-a e respondeu:
— Mãe, desculpa por ter atormentado o teu coração; mas se fiz o que fiz,
agi apenas no dever que carrego em obedecer ao meu Pai.
— Pois eu não me lembro de ter-te mandado retornar ao Templo, Jesus!
— pontuou José. — E mais, sem avisar-nos! — concluiu, visivelmente nervoso.
— Perdão, senhor, mas eu estava fazendo alusão àquele que, antes de ti, é
o Pai do primeiro homem e também o Pai de todos nós.
Sabedores dos desígnios primários dele, José e Maria assentiram e não
mais o repreenderam, afinal, ao que tudo indicava, Jesus estava despertando a
consciência para a missão que, dentro em breve, ele haveria de iniciar no mundo.
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Tão logo chegou fugida a Séforis, Mirian foi acolhida por Esther, irmã do
servo Zeevi, o qual, anos após, faleceria em razão da tuberculose que carregava.
Segundo notícias chegadas tempos depois de Magdala, Martha não demorou a
descobrir que tinha lepra, doença que desenvolvia havia muito tempo sem que
soubesse, e, em razão da extremada vergonha que passou a ter de si, acabou
fechando-se para todos e ceifou a própria vida: saltou para a morte física da
mesma torre em que havia aprisionado a irmã. Faltou-lhe, por assim dizer,
coragem espiritual para sobreviver às duradouras consequências resultantes das
diversas más ações que havia praticado.
Mas enfim, o que seria feito dela? Qual o destino de uma perversa
suicida?
No lugar dos costumeiros ajudadores do novo Éden que recepcionavam os
que deixavam a Terra, o espírito de Martha foi arremessado numa estrada
sombria, cujo único fim culminava na tétrica Tesouraria das Almas. Embora ela,
em vida, tivesse esperado que a sua dor fosse ceifada com a morte, ocorreu
exatamente o contrário.
Embora fisicamente extinta, ela se arrastava com extrema dificuldade por
aquele caminho, afinal, ainda experimentava as dores causadas pelos seus ossos
fraturados. Essa marcha angustiante — para nós, talvez rápida, levando-se em
conta a discrepância de tempo e espaço das nossas dimensões —, aos suicidas,
poderia significar centenas de anos terrestres, talvez um caminho quase sem fim.
Pois demorou muito para que o espírito inquieto de Martha, acompanhado
de outras tantas almas aflitas e igualmente destroçadas, chegasse ao penoso
destino que lhe cabia e, ao finalmente aportar na capela do Guf, ela foi triada e
posta diante do austero tesoureiro Razyel, o qual leu seus direitos.
— Mulher, tu estás carregada de ódio e sentimentos negativos. E deverias
saber que, salvo em defesa própria, apenas Deus pode tirar uma vida. Pois agora,
antes de aplicar a penalidade que te cabe, eu te indago para que conste dos
registros: queres ajuda?
Embora aparentemente estranha, essa pergunta fazia parte do rito de
admissão na Tesouraria, pois todos os que para lá iam envergavam rancores e
mágoas, estando avessos a qualquer oferta de auxílio. Em caso positivo, algo
raríssimo de se ocorrer, o Guf possuía uma ação pastoral formada por espíritos
que lá davam expediente para resgatar aqueles que eventualmente os
chamassem. Mas transtornada ante ao infausto fim que lhe havia cabido, ela
retorceu ainda mais a face e, visivelmente deformada pelas graves lesões que
teve em vida, potencializou ainda mais o sofrimento que envergava.
— Não; eu não quero.
— Foi o que pensei — pontuou Razyel sem encará-la. — Pois, por ter
burlado a norma alusiva à preciosidade do sopro divino da vida; tu, que na Terra
tiveste o nome de Martha de Migdal, serás sentenciada a cumprir uma pena de
prisão celular por um mil novecentos e noventa e seis anos ordinários, ao final
dos quais serás, vez mais, reconduzida a esta bancada para uma audiência de
revisão — afirmou lançando algumas notas num livro de controle carcerário. —
Guardas, levai-a à cela dois, nível inferior leste, a mesma que pertenceu àquela
que essa segregada tanto odiou.
Pois, enfim, coube a ela o mesmo espaço que, por séculos, havia sido
ocupado pela psique de sua irmã Mirian, a encarnação da alma de Lilith. Mas
Martha não haveria de dormir; sequer seria congelada. Sua consciência suicida
haveria de lhe perseguir, e suas dores continuariam até que o arrependimento a
visitasse; se visitasse. Essa era a pena para os suicidas. Embora pensassem que a
vida se extinguiria com a morte, ela continuaria real e ainda bem mais dolorosa.
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Assim como Gabriel, ao ali aportar pela primeira vez, o Arcanjo Metatron
deixou um extenso túnel de fogo e foi cuspido na dimensão secreta do Guf, onde
a dor moral pairava no ar parecia contagiante; aliás, tal não poderia ser diferente,
dada a péssima energia que os desencarnados lá produziam.
Após as necessárias apresentações ao severo corpo da guarda, ele
atravessou rapidamente o portal que levava à capela da Tesouraria, onde, sem
demora, foi ter com o seu irmão de armas, Razyel, desde sempre o guardião
daquele tenebroso lugar.
— Layla-Li? — retrucou o tesoureiro-mor, ao ser inicialmente perquirido
pelo visitante.
— Sim, major. Eu verifiquei, ainda em Vigilum, que após a tragédia em
Nod, a alma dela veio para cá, dadas certas fornicações a que ela praticou na
Terra.
— Layla-Li... Sim! Eu me lembro do nome. Ela foi a companheira de um
dos anjos vigilantes castrados; Azeyzel se não me trai a lembrança.
— A própria — assentiu. — Mas agora, eu preciso saber. Ela reencarnou
ou ainda cumpre pena sob a vossa autoridade?
Razyel levou o escrivão-chefe aos grandes arquivos da Tesouraria, onde,
com ele, passou a buscar informações sobre a tal mulher, outrora esposa do
fugido líder dos vigilantes. Foi um dos seus ajudantes que localizou o prontuário,
o qual foi, de pronto, entregue a ele.
— Cá está. Entretanto, pelo que consta dos autos, ela não está mais aqui
— esclareceu Razyel. — O espírito dela reencarnou há cerca de dezoito anos
terrestres.
— E para onde foi? — inquiriu ansioso.
— Deixa-me ver... Na última atualização, surde que ela foi solta em razão
de uma petição de clemência feita por Harual — concluiu surpreso.
— Harual? Eu não me recordo de nenhum procurador com esse nome.
— Ele não é um de nós, Metatron. Harual é um espírito humano, bisneto
de Adão, e um dos primeiros a atingir o ápice de evolução no Éden Espiritual.
Embora muito elevado, ele, ou melhor, “ela”, pois se trata da alma que
originalmente pertenceu a uma mulher, aceitou um ministério um tanto ingrato,
que é o de compor, como obreira, a nossa pastoral de auxílio.
— Pastoral de auxílio? E o que é isso? — perguntou curioso com o teor
daquela desconhecida expressão.
— É um grupo importante formado por alguns espíritos que atingiram o
nível máximo de desenvolvimento mental, e agora se dedicam a ajudar os que
aqui rogam por socorro.
— E a alma dela pleiteou esse auxílio?
— Do prontuário, consta que Layla-Li já reencarnou seis vezes, e para cá
voltou na mesma conta, sempre por imputações graves, a última delas, por ter
assassinado dois filhos ainda impúberes. Pois lhe foi esclarecido que a sétima
chance seria a sua última e, em razão disso, ela pediu ajuda a Harual, a qual
passou a prepará-la para essa nova existência, que se daria numa província
chamada Judeia.
— Judeia... — repetiu. — Então é para lá que devo ir. Mas antes, eu
gostaria de conversar com essa tal humana Harual.
— Certamente. Um dos guardas o levará até a ação pastoral, estou certo
que ela o receberá.
Metatron agradeceu o irmão e seguiu um carcereiro que o encaminhou a
uma das mais altas torres do Guf, onde permaneciam os obreiros espirituais. Ao
aportar na entrada, o nobre oficial de escrivania observou de longe a forma
similar de uma humana de avançada idade. Ela usava uma toga marrom bem
simples, tinha os cabelos escuros e curtos e, de estatura, nada que ultrapassasse
um metro e meio de altura.
— Harual? — chamou.
O espírito se voltou para o interlocutor e, sereno e sorrindo, estendeu-lhe
as mãos.
— Venha, arcanjo; achegue-se e traga a vossa paz.
Metatron se aproximou ressabiado, entretanto, em razão da necessidade,
logo deu início ao diálogo.
— Desculpa a invasão e a oportunidade, mas eu estou à procura de
informações sobre uma alma que ajudaste no passado, o seu primeiro nome de
batismo foi Layla-Li.
— A concubina da combalida Potência? — replicou Harual de pronto. —
Uma alma deveras perturbada a qual muito auxiliei.
— É muito importante que eu a encontre, pois a mesma Potência a que
fizeste alusão escapou da prisão no Céu e certamente fugiu para a Terra atrás
dela.
— Layla-Li... — pronunciou calmamente. — A ela, foi dada outra
oportunidade. A última. E a chave dela remanesceria numa escolha: ou a paixão
imoral pela carne ou caridade pela palavra de Deus. E se ela vencesse essa etapa
e não mais pecasse, migraria para a ala curativa do Éden, a fim de renascer por
uma última vez e cumprir uma importante missão com as almas dos dois filhos
que ela matou em sua penúltima vida.
— Uma assassina de crianças? Quanta desgraça! — lamentou o arcanjo.
— Mas te referiste a “uma escolha”? — insistiu.
— Sim. Pois, pelo que sei, esse anjo exilado que procuras tentará ser um
obstáculo à evolução dela. Layla-Li está presa a um carma muito antigo e,
somente ao extirpá-lo, conseguirá se libertar desses ciclos seguidos de
reencarnação.
— Desculpa, mas falaste em carma? — perguntou, estranhando o termo.
— O carma é um conjunto de atitudes que enverga um fluxo de intenções,
as quais podem ser boas ou más. Se boas, bons frutos nascerão; se más, os frutos
podres se alastrarão.
— Então devo apressar-me antes que Azeyzel a encontre.
— Mesmo que não consigas interceptá-la, já existe alguém na Terra que
tentará se encarregar de resgatá-la. As vidas passadas de Layla-Li carregam
pecados gravíssimos, e apenas a voluntariedade de uma remissão poderá salvá-
la. Livre-arbítrio, meu caro arcanjo, lembra-te que os homens e as mulheres o
possuem desde que perderam o primeiro paraíso em razão de um pedaço de figo
— arrematou sorrindo.
— Bem, eu espero que ela faça a escolha certa — pontuou.
— Embora deveras distorcida, ela me pediu essa chance, o que é bem
difícil de acontecer por aqui. A cura efetiva deve ser conquistada pela alma, pois
a fé suplanta não apenas os efeitos, mas também as causas. Antes que te vás,
deixa-me entregar-te o atual código genético dela — disse ela, ao tocar-lhe as
mãos. — Pois, para o faro aguçado de um bom arcanjo, ele certamente será útil.
— Agradeço muito a tua preciosa ajuda, foi um grande prazer conhecer-te
— disse, após auferir aquelas informações.
— No que eu puder ser útil, sabes onde me encontrar — respondeu,
ofertando-lhe novamente as mãos.
Metatron se despediu e partiu da Tesouraria, pois a responsabilidade pela
fuga de Azeyzel parecia incomodá-lo. E bem mais do que isso, parecia
assombrá-lo.
Capítulo 5
Pedras em peixes
EMBORA ROMA estivesse apenas preocupada em evitar tumultos e recolher
impostos nos territórios dominados, não era segredo que alguns focos de
insurgência na Judeia incomodavam Tibério[71], o qual havia assumido a regência
em razão do passamento de seu padrasto, César Augusto. Era a chamada época
dos profetas e, crentes na vinda do Messias para salvá-los, o povo judeu se
tornou, de certa forma, atrevido, chegando ao ponto de menoscabar
publicamente dos dísticos reais que, como ordens de submissão, haviam sido
forçosamente fincados no grande Templo em Jerusalém.
Tencionando impor controle na região — ou melhor, minimizar problemas
—, o finado imperador, por influência do chefe da Guarda Pretoriana, Lúcio
Sejano, havia, quatro anos antes, nomeado o esposo de uma de suas filhas como
procônsul[72] da província romana na Judeia[73], subordinando-o apenas ao
governador da Síria, Lucius Vitélio.
Entretanto, a incerteza causada por um partido subversivo cujos membros
eram conhecidos por “zelotes”, judeus que incitavam a rebelião armada contra a
opressão de Roma, acabou, de certa maneira, unindo o tetrarca[74] da Galileia ao
prefeito[75] outrora indicado pelo imperador Tibério, o sul-italiano Pôncio Pilatos.
Este, um samnita[76] da ordem equestre e detentor do título de tribuno[77] ainda
jovem, não mostrava aparente satisfação em administrar aquela parte tumultuada
do mundo, pois acreditava que os seus talentos poderiam ser melhor
aproveitados em outras plagas, já que as suas aspirações políticas não poderiam
ser, a contento, executadas em terras notoriamente hostis. Registre-se que a
chegada do novo prefeito romano em Jerusalém não havia sido pacífica, tendo os
zelotes causado grandes baixas nas coortes de infantaria[78] que acompanhavam a
caravana do tribuno, dando mostras que o trabalho de administração naquelas
terras, outrora geridas por Valerius Gratus[79], não seria fácil. De antemão, ele
percebeu que os seus sacrifícios ao deus Marte — feitos em Roma antes da
viagem — pareciam ter sido em vão.
Pois visando manter uma boa política com Herodes Antipas, o prefeito
romano e a esposa dele, a belíssima Cláudia Prócula, neta do finado Augusto,
deixaram temporariamente a cidade portuária da Cesareia[80] e o receberam,
acompanhado da mulher Herodíade[81] e da enteada Salomé, numa grande ceia no
palácio que havia pertencido ao finado Rei Herodes I, mais precisamente, na
fortaleza Antônia[82], o qual, havia muito servia de residência oficial para os
prefeitos romanos em Jerusalém, mormente quando vinham aplicar a justiça. E
naquela mesma oportunidade, o sacerdote do Templo judeu nomeado por Gratus
oito anos antes, o saduceu Josefo ben Caifás, também se fazia presente.
— Honra-me sobremaneira essa suntuosa recepção, prefeito! — anunciou
Herodes, no afã de tentar bajular o romano.
— Pois tens a minha recíproca, Antipas — respondeu-lhe Pilatos com
aparente gentileza. — A distância nunca nos foi proveitosa, principalmente
quando os zelotes estão aumentando em número e conspirando como nunca
contra Roma.
— Zelotes... — interferiu Herodíade de forma impertinente. — Fossem
apenas eles os chacais que nos rodeiam...
— Perdoes a minha esposa, prefeito, mas ela anda um tanto aborrecida
com a má língua de alguns difamadores do deserto.
— Difamadores? — insurgiu-se ela, elevando a voz. — Pois saibas que a
língua de João Batista já deveria ter sido arrancada de sua garganta há muito
tempo! — asseverou enfezada.
Cláudia Prócula, usando uma brilhosa estola romana que a embelezava
ainda mais, assustou-se com aquele tom; afinal, ela tinha a personalidade calma,
era gentil e educada, incapaz de interferir — ao menos publicamente — num
colóquio em que não fosse convidada a participar.
— Pareces ter uma enorme prevenção contra esse tal João Batista, senhora
— observou Pilatos com sarcasmo, afinal, ele sabia da notória má-fama moral
dela. — Eu confesso que ouvi alguns relatos sobre ele, mas até então, o tinha
apenas como um selvagem que prega entre os escorpiões.
— Ele ofende a mim e à minha filha, acusando-nos de práticas vis e
hediondas — bradou cercada pela perturbadora Salomé, rebenta do seu primeiro
matrimônio. — Mas o meu esposo, que de tudo aufere absoluta ciência, nada faz
para calá-lo de uma vez por todas.
— O problema é que João Batista não viu com muita simpatia o
intempestivo divórcio de meu irmão Filipe e Herodíade e, em razão de um meio
parentesco dela comigo[83], vive a acusar-nos de incesto — esclareceu em tom de
zombaria. — Mas ele é um pobre mendigo adorado por muitos. Atormentá-lo
seria pouco sábio, afinal, nós não queremos problemas em razão de assuntos
religiosos.
— No que fazes muito bem — assentiu Pilatos.
— E perto de Barrabás[84] — continuou o tetrarca —, o líder dos zelotes,
ele não representa perigo algum — concluiu, mirando a esposa de forma rude e
com o intuito de tentar fazê-la se calar.
— Barrabás... — interessou-se o romano. — Há tempos que nós estamos
atrás desse tal rebelde, desde que aqui cheguei pelo que me lembro. Por vezes,
recuso-me a crer que ele, de fato, exista, e que nada mais é do que uma lenda
criada pelos insatisfeitos para dar aparente força moral aos movimentos
revolucionários.
— Ele existe, é um velho ladrão e assassino — completou Antipas. —
Embora ultimamente corram certos rumores de que a liderança dele vem sendo
ameaçada por uma espécie de lugar-tenente, um homem chamado Judas, também
alcunhado de “Iscariote”.
— Iscariote? — indagou o tribuno curioso com aquela palavra.
— Sim. É uma corruptela da expressão “sicário” ou o “homem da faca”,
um segmento mais agressivo dos zelotes que se encarrega de degolar os seus
inimigos — esclareceu Herodes, ao espirituosamente correr um dos polegares
sobre o próprio pescoço.
— Esses homens precisam ser presos, eles são muito perigosos —
pontuou o romano, aparentemente preocupado.
— Além de perigosos, são astutos — interferiu Caifás que, até então, se
mantinha silente. — E os que são presos pela Polícia do Templo[85] acabam
revelando muito pouco. Some-se a eles a malta de ladrões que infesta a cidade,
dentre os quais, um chamado Dimas, o qual tem predileção por saquear os
judeus de maior posse para desafiar-nos. O Sinédrio pôs um prêmio pela sua
captura, mas ele enverga a simpatia da ralé e, em razão disso, continua fora das
nossas mãos.
— Dimas... O tal que rouba e deixa rosas? — retrucou o prefeito, ao
revelar saber dos métodos do bandoleiro.
— O próprio. Pois eu temo que a sua postura sacrílega ainda o leve à cruz
— sugestionou o sacerdote.
— Ladrões... — pontuou Pilatos, com aparente desdém. — Mas, e sobre
esse tal João Batista, o que a autoridade judaica nos diz? — indagou o romano,
voltando o rumo da conversa.
— João é deveras agressivo em suas falas, por isso tem a veneração de
muitos descontentes. Ele e os seus não acatam passivamente as nomeações
sacerdotais feitas por Roma, inclusive a minha, se me permite dizer.
— Quanto a isso, saibas que eu mantenho empenhada a minha palavra
inicial, e no que depender de mim, continuarás à frente da função, desde que
mantenha o teu Templo-Estado em consonância com os auspícios de César —
asseverou o prefeito em razão da conhecida ganância de Caifás.
Aliás, é digno de menção, que o encargo de sumo-sacerdote era
extremamente lucrativo naqueles dias, sendo que o atual ocupante dele
descendia de uma nobre família judia, cuja moral, ao menos diante dos
princípios retos de Deus, não era nada imaculada. E para o prefeito romano, essa
vivência colaborativa era necessária, afinal, ele precisava do apoio dos líderes
religiosos judeus para manter a paz e arrecadar impostos.
Vencida a ceia, e já recolhidos nos suntuosos cômodos que cabiam ao
gestor romano, Cláudia Prócula queixou-se ao marido.
— Não gosto dessa gente, Pôncio. Eles são muito estranhos, de certa
forma, promíscuos por assim dizer.
— Promíscuos? — repetiu sem dar muita atenção.
— Sim. Não percebeste como Herodes encara a enteada? Parece que ele
está a devorá-la com os olhos.
— Refere-te à tal menina, Salomé? — perguntou, ao retirar parte da túnica
que o ornava.
— Menina... — pontuou, fazendo aparente pouco caso. — Pois aquela
“menina” parece ter a morte nos olhos, arrepio-me só de lembrar dela.
— Cláudia, querida, eu os classificaria como um mal necessário. E no
momento atribulado em que vivemos, precisamos deles, assim como eles de nós.
— Eu não sei. Tenho um mau pressentimento quanto a eles, e também
quanto a este lugar — desabafou, aparentemente incomodada.
— A tua única preocupação, agora, deve ser com o nosso herdeiro —
disse Pilatos, referindo-se à gravidez da esposa. — E deixa, que da gestão
política deste fim de mundo, cuido eu — finalizou abraçando-a.
Cláudia Prócula aceitou aquele afago, mas não desfez a feição temerosa.
Ela ainda não sabia, mas os seus medos, em boa verdade, não eram tão
infundados. Aliás, das pérfidas ações daqueles que ela agora dizia temer,
eclodiria, num futuro não tão distante, o destino de todos eles.
***
Ainda era manhã quando João Batista viu Jesus surgir na linha do
horizonte, egresso dos rigores do deserto da Judeia. Ao lado do rude pregador,
estavam dois dos seus mais queridos discípulos, André e o jovem João.
Quando Jesus se aproximou deles, o primo pôs-se de joelhos e,
respeitosamente, lhe beijou os pés ainda sujos de areia. O aprendiz André, que
estava a consertar uma tarrafa, estranhou a atitude do mestre, mas, por respeito,
não a censurou. Ao erguer o rosto, o pastor disse aos dois.
— Nada mais tenho a ensinar-vos. Eis aqui o filho de Deus, aquele que
pregará para o mundo! Portanto, segui-vos; ele agora é o vosso rabi.
— João, muito me honra ter sido tu o portador das ordens do Eterno —
disse o ungido.
— Não me agradeças, apenas cumpras a vontade Dele e redima, não
apenas o nosso povo, mas o mundo todo.
Ambos se abraçaram e verteram lágrimas sinceras, e finalmente, Jesus se
colocou a caminho da sua aguardada incumbência.
André e João se puseram a segui-lo, sendo que o segundo, aparentemente
ressabiado, olhava o novo mestre com certo receio, afinal, ele parecia estar bem
abatido, resultado dos quarenta dias que havia passado no deserto.
— Estás a pensar se sou eu mesmo aquele por quem esperáveis? — disse
Jesus a João, que naquele instante, imaginava exatamente o que lhe fora
perguntado.
— Como sabes disso, rabi? Por acaso consegues ler pensamentos?
— Não. Digamos que eu leia a linguagem corporal das pessoas —
gracejou. — E é isso que a tua está a me dizer — afirmou sorrindo.
— Então vieste, finalmente, nos libertar? — completou André, apressando
o passo para ficar ao lado dele.
— Percebo que és um pescador, André — ponderou o rabi, em alusão à
tarrafa que ele trazia nos ombros. — Pois da mesma forma que enches a tua rede
de peixes e separas os bons dos ruins, eu vim para tarefa similar, a de apartar os
maus dos justos através de uma ode de amor pela palavra. E quem a aceitar, tal
qual da forma como dizes, será, por assim dizer, liberto.
— Falas em redes cheias, mestre. Mas ultimamente, os peixes têm rareado
nestas regiões, que o diga o meu irmão mais velho, cujo humor, em razão disso,
não tem sido nada bom — queixou-se André.
— E qual é o nome do teu irmão? — perguntou Jesus.
— Ele se chama Simão; nós somos filhos de Jonas.
— Então vamos visitá-lo; quem sabe eu consiga tirar-lhe o aziúme com
algo que tenho para ofertar a ele.
André se surpreendeu com o agradável desprendimento do novo professor,
o qual diferia, em muito, de João Batista, principalmente pela maneira serena e
gentil de se expressar. Entretanto, achou por bem adverti-lo.
— Desculpa-me, rabi, mas eu creio que, na atual conjuntura, somente uma
rede abarrotada de peixes seria capaz de aplacar o extremado mau-humor de
Simão.
Jesus achou graça naquela observação e afirmou:
— Vamos até ele então! Creio que o teu irmão terá uma surpresa.
Ao chegarem próximo ao grande braço d’água onde os barcos vindos do
mar da Galileia aportavam, os três não demoraram muito a encontrar o tão falado
pescador, cujos gritos de contrariedade, como já era de se esperar, o destacavam
dentre os demais.
— Uma noite inteira de trabalho e nada. Nem uma mísera tilápia para
podermos salgar — reclamava. — E depois, ainda virão aqueles malditos
publicanos[86] exigirem taxas pela nossa inútil labuta — queixava-se, ao saltar do
barco e atingir o raso. — Ao observar o irmão caçula acompanhado de João,
Simão deu continuidade àquela tormentosa ladainha. — E tu? Ao invés de me
ajudares com as redes, perdes o teu tempo com aquele desatinado que se
alimenta de insetos — vociferou, fazendo pouco do Batista.
Mas mesmo acreditando que aquela visita talvez fosse inútil, André se
adiantou apenas em respeito ao recém-auferido professor.
— Simão, ouve-me! Este é Jesus, filho de José; o nosso novo rabi. E ele
insiste que tem algo a te oferecer.
— Oferecer a mim? — Riu alto. — No momento, só me interessa encher
as tarrafas para poder alimentar os nossos e saciar a sanha do fisco romano.
André olhou para Jesus como se visse cumprida a assertiva sobre a rudeza
do irmão.
Pois o escolhido deu um passo à frente e entrou na água, a fim de se
aproximar daquele pescador que, embora aparentemente incivil, não era de todo
ruim no quesito sociabilidade, mormente a auferida aos brados, mais típica dos
romanos do que dos judeus.
— Simão, por acaso tu sabes como Deus criou esses peixes que tanto
desejas? — perguntou Jesus, ao imergir uma das mãos na água e retirar um
punhado de pequenas pedras. — Antes deles, Ele criou as estrelas e, ao fazê-las
cair no mar, deu vida às primeiras criaturas marinhas — esclareceu com alegria.
— Pois, leva-me contigo e joga as redes mais uma vez. Quem sabe, tu tenhas
melhor sorte — sugestionou.
— E, por acaso, também és pescador? — bradou Simão.
— De certa forma, sim... — respondeu-lhe o abnegado rabi. — Mas eu
não vim até aqui para pescar peixes.
— E o que então esperas pescar? Feras? — indagou com impertinência.
— Não, Simão... Homens — concluiu, ao forçar o corpo e subir no barco.
— E então? Tu não vens? — provocou Jesus.
Simão olhou para o irmão e para João e, vendo latente confiança nos
rostos de ambos, balbuciou algumas lamúrias desconexas e resolveu arriscar.
— Tu és muito estranho, forasteiro. Mas eu confesso que fiquei curioso
para ver onde queres chegar com estas tuas charadas.
O barco zarpou e logo ganhou uma profundidade média, sendo que Jesus,
sentado na popa e com o semblante tranquilo, apenas fitava Simão, o qual
parecia se enervar ainda mais com aquela calma toda. Ao atingirem um ponto
considerado ideal, Simão fez menção de lançar sua rede ao mar, mas Jesus o
obstou.
— Espera!
O mestre levantou a mão direta, onde ainda jaziam aquelas mesmas
pedrinhas douradas colecionadas na beira do lago e, na sequência, lançou-as na
água.
— Pronto! Agora, arremessa a vossa rede — disse, seguro, voltando à
popa e nela encontrando assento.
Simão espremeu os olhos em razão do sol que se fazia rigoroso e, com
força, jogou o tecido de malha que impactou, aberto, naquele brilhoso espelho
d’água. E, após alguns instantes, Jesus o encarou, como se o licenciasse a trazer
de volta a armadilha. Pois tamanha foi a surpresa de Simão ao repuxá-la e, no
seu pequeno convés, ver um amontoado de peixes impactar. Incrédulo, a
sensatez simplesmente lhe fugiu naquele momento.
— Pedras... Tu transformaste pedras em peixes — gaguejou.
— As pedras ajudam a construir, a edificar — assentiu. — Acompanha-
me, Simão. Vem comigo, e sê como uma pedra.
Ao vislumbrarem o barco retornar, André e João ficaram maravilhados
com a visão dos peixes e com o assombrado semblante de Simão. O primeiro,
então, voltou-se para o irmão e falou:
— Eu te disse, ele é quem nós esperávamos.
— O teu irmão está agora entre nós, André — esclareceu Jesus. — E para
nós, Simão agora será Pedro, uma das nossas mais valiosas pedras.
***
***
***
***
Havia cerca de trinta anos terrenos que o Anjo Gabriel se deslocava com
frequência entre o Céu e a Terra, principalmente nos primeiros anos da vida de
Jesus, onde o seu florete de fogo fez a diferença na segurança da sagrada família.
Após ter levado água ao ungido no deserto, ele finalmente voltou ao seu lar,
sendo que, chamado que foi por Deus, Dele recebeu novas.
— Como anjo de correio que és, doravante focarei os teus préstimos
apenas para comunicar-me com o vosso irmão, cuja missão há pouco se iniciou.
Daqui por diante, estás licenciado de ir à Terra com a constância que tens feito,
afinal, Metatron saiu à caça de Azeyzel e por lá estará.
— E sozinho ele dará conta do encargo, Senhor?
— No momento, ele está só, mas em breve outros três voluntários se
juntarão a ele de forma paulatina. E todos ficarão por perto zelando pelo avatar
de Miguel, até que a expiação se consume.
— Como queiras. Mas..., Senhor — insistiu —, e o que será feito de
Lúcifer e Baalberith? Pondero, pois ambos ainda estão livres, embora tenham, a
princípio, falhado em verter Miguel.
— Deles, eu me encarregarei depois. Entretanto, existem outros que ainda
deverão tentar resistir. E quando o teu irmão terminar a missão que lhe foi dada,
estejas certo que já tenho destinos traçados para ambos.
— Como queira, Senhor.
— Agora vai. Congratulo-te pelos teus sucessos, e logo te farei saber
quem são os que descerão à Terra para acompanhar o teu irmão.
O príncipe dos anjos deixou o palácio intrigado, afinal, o jogo parecia
estar mudando. Que Miguel voltaria ao Céu em breve, era fato. Mas como e em
que circunstâncias, Gabriel apenas descobriria quando fosse visitá-lo pela última
vez, num longínquo e solitário jardim chamado Getsêmani[93].
***
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(Gênesis Proibido)
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(Gênesis Proibido)
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Assistindo a tudo, Joana abraçou a amiga ainda inerte e, emocionada,
continuou:
— Senhor, por favor, olha também para o meu pobre filho e dá a ele um
pouco de esperança, nem que seja a última.
— E onde está o teu filho? — indagou-lhe o mestre.
— Ele não pode andar. Está próximo daqui, preso a uma rede que fizemos
para trazê-lo até ti.
Jesus segurou Joana pelos ombros e anunciou:
— A tua fé é muito grande, mulher. E em razão dela, enfrentaste teus
medos em nome do amor que tens pelo teu filho. Pois saibas que eu não irei até
ele; ele é que, já redimido, virá até nós! — disse ao apontar para o lado.
De um modo que a todos ali surpreendeu, aquele menino cuja idade não
passava dos dez anos, surgiu ereto diante deles; ainda levemente atrofiado, mas
se soltando aos poucos e andando em passos curtos. Movimentando os lábios de
forma pausada, todos lá ouviram quando Yigal conseguiu, com certa dificuldade,
balbuciar a palavra “mãe”.
Joana se atracou emocionada ao filho, afinal, desde que havia nascido, ele
jamais havia feito um movimento ou pronunciado uma única palavra. Mirian, ao
seu turno, logo começou a voltar a si, sentindo-se limpa como nunca. E a
epilepsia, moléstia que a tinha perseguido desde os tenros anos, finalmente a
havia abandonado.
Jesus se levantou e sorriu a ambas, deixando-as sem reação. Joana teve
um repente e se reaproximou do rabi. E após beijar-lhe as mãos, disse chorando:
— Quanta bondade, meu senhor... E justo para comigo.
— Mas por que estás a dizer isso? — indagou, tocando-lhe gentilmente o
rosto. — O que tens de diferente dos outros?
— Eu... — titubeou —, eu sou uma prostituta, senhor — disse, vertendo a
cabeça envergonhada.
— Não — discordou Jesus. — Não és uma prostituta.
— Mas como não, senhor? Não consegues ver? — indagou Joana
alertando-o para a sua pintura, tatuagem e vestes características.
— Tu “eras” uma prostituta — concluiu, ao despedir-se delas.
Ainda caída, Mirian observou Yigal dando os seus primeiros passos.
Assustada e estranhando tudo o que havia acontecido, ela sequer conseguia se
expressar.
— Mirian, Mirian! Ele curou a ti também! — vociferava Joana, agora
tomada de felicidade. — Eu te disse, ele é o salvador; é o filho de Deus.
A fugitiva de Magdala ainda tentava se recompor naquele chão batido e,
por um instante, de longe, os olhos azulados dela cruzaram com os castanhos de
Jesus, afinal, eles já haviam se visto antes, mas em outra vida. Pois aquele medo
e aquela inquietude que a perseguiam desde a infância finalmente tinham
desaparecido. E a partir daquele dia, tanto ela como Joana haveriam de ter uma
nova vida, uma vida de amor ao Cristo.
***
***
Logo após aquele inusitado encontro com Joana e Mirian, Jesus continuou
em Cafarnaum anunciando as boas novas de fé e amor, arregimentando
seguidores por onde passava. Embora os saduceus e os fariseus já estivessem no
encalço dele, nada parecia obstar aquelas palavras de chegar a quem delas
necessitava.
Ao findar mais um ministério na praia da Galileia, Jesus e os discípulos
estavam à beira-mar quando, de repente, vislumbraram um conglomerado de
pessoas no local onde ficava a coletoria de impostos — a taxa marítima e a taxa
de fronteira —, os quais eram recolhidos em nome do tetrarca da Judeia. A
guarda que dava apoio aos publicanos costumava hostilizar os mais humildes,
fato este que sempre incomodou Pedro, o qual nutria verdadeira ojeriza pelos
judeus que, assim como o ali presente Levi, ministravam aos romanos em
desfavor do próprio povo subjugado.
De longe, Jesus observava Levi, e na fisionomia dele, percebeu, de
antemão, que algo o tornava diferente dos demais coletores. Ele orava e
frequentava a sinagoga, mas, em contrapartida, era odiado por servir a Roma,
afinal, não abria mão da vida de posses que a função lhe proporcionava. O
nazareno então se achegou e o encarou calado. Percebendo a manobra, Levi, de
forma seca, se adiantou.
— Tens algo a declarar? — indagou em genérica alusão aos impostos que
recolhia.
— Sim — respondeu-lhe o recém-chegado. — Eu tenho a declarar o
irrestrito amor que Deus tem por ti.
— O que disseste? — retrucou surpreso.
— O amor de Deus; Levi, filho de Alfeu.
— Mas como tu sabes o meu nome e o de minha família? — perguntou o
cobrador, ao se erguer da bancada.
— Percebe-se facilmente que não és feliz. E embora vivas com conforto,
mesmo assim tens a tristeza estampada no rosto.
Levi estranhou tudo aquilo, mas, por instinto, tentou se justificar:
— Pois saibas que eu também sou crente ao Senhor, mas por ser letrado,
acabei arregimentado como publicano. Mas não penses que sinto orgulho do que
faço.
— Então sejas sincero consigo mesmo. Crês em Deus ou não? — insistiu
o rabi.
— Sim, por certo que creio. Entretanto, sinto vergonha de olhar para Ele e
pedir perdão, pois eu sei e admito, sou um pecador aos olhos do Senhor.
— E por admitires isso, já serás exaltado. Mas deves saber que ninguém
pode servir a dois senhores — advertiu o mestre.
— Como assim “a dois senhores”?
— Ou serves a Deus — ponderou apontando para o alto —, ou ao
dinheiro. — Apontou para as moedas. — Não há meio termo.
Levi olhou para as pessoas que o encaravam e ficou intrigado.
— A decisão é apenas tua. Se quiseres seguir quem em verdade te ama,
abandona essa banca e torna-te um de nós. E se aceitares o meu convite, daqui
por diante serás chamado Mateus.
— Mateus... — replicou Levi com os olhos já marejando. — Essa
expressão significa...
— Significa “dádiva de Deus”! — completou Jesus, estendendo-lhe, com
confiança, a mão direita.
— Eu não creio no que estou vendo — sussurrou Pedro ao irmão André.
— Ele está a verter um maldito publicano! — concluiu incrédulo.
— E então, Levi; vens ou não? — insistiu o rabi.
— Não! — respondeu seguro. — Não me chames assim. Doravante serei
Mateus, assim como dizes. E vinde! — disse, agora voltando-se para os demais
discípulos. — Estão todos convidados para cear comigo na casa de meu irmão,
pois, a partir de hoje, eu vos seguirei até o fim dos meus dias.
E tal assim ocorreu, Levi, o odiado publicano de Cafarnaum, tornou-se,
num repente, o discípulo Mateus.
Como o combinado, assim que o sol caiu, Jesus e os seguidores mais
próximos foram até a casa do irmão de Mateus, um fariseu chamado Jairo, onde
haveriam de se reunir para celebrar a mais nova conversão. O velho Jairo já
havia ouvido falar dos feitos de Jesus e, por não ser radical, embora fosse um
tanto conservador, desejou conhecê-lo melhor e ouvir as suas palavras, afinal, o
seu próprio irmão agora haveria de ser um dos peregrinos dele.
Pois estando a ceia em pleno curso, percebeu-se uma invulgar
movimentação na entrada daquela morada, sendo que, ao tentar verificar o que
ocorria, os presentes foram surpreendidos pela ação de duas mulheres que
praticamente invadiram o recinto à procura de Jesus. Os olhos exageradamente
azuis de uma delas logo cruzaram com os do mestre, o qual, de pronto, nela
reconheceu a jovem que havia curado naquela mesma manhã, a tal que, segundo
as más línguas da praça, estaria possuída pelos “sete demônios”.
— Mas o que essas duas pecadoras fazem em minha casa? — vociferou
Jairo, ao ostensivamente desprezá-las.
Percebendo hostilidade no dono da casa, Jesus o desencorajou a continuar
com aquelas palavras rudes e, assim, permitiu que elas se achegassem, o que
ambas fizeram aparentemente assustadas.
Pois uma delas, Mirian, trazia consigo um pequeno vaso de alabastro
tomado por um raro unguento oriundo de Magdala — essência de nardo[95] —, o
qual, pelo elevado valor, estava, havia muito, guardado. Ela então se pôs aos pés
de Jesus, oportunidade em que começou a chorar impulsivamente. O assassínio
do parvo marido de sua irmã, embora em legítima defesa, pesava-lhe sobre os
ombros e, sentindo que essa culpa também poderia ser minimizada pelo rabino,
ela passou a enxurrar os pés dele com o produto sincero do seu pranto.
Joana, que estava perto e a assistindo, logo se achegou dele e desamarrou
os seus longos cachos negros e, humildemente, os ofertou ao salvador.
— Além da minha eterna gratidão, eu não tenho muito para dar-te, a não
ser os meus cabelos para secar os vossos pés — disse ela, ao enxugá-los com
latente respeito e sob as rigorosas vistas de todos os que ali estavam.
Feito isso, Mirian tomou o óleo de nardo que portava consigo e passou a
ungir os pés de Jesus, como se os estivesse consagrando. Mas, ainda contrariado
com tudo aquilo, Jairo não conseguiu se manter silente e vociferou:
— Mestre! Então crês ser certo socializar-se com mulheres dessa estirpe?
Uma prostituta e uma feiticeira?
Jesus sorriu e o encarou, ilustrando então o que pensava:
— Jairo, tu me recebeste em tua morada e sequer um jarro com água para
molhar os pés me deste. Já esta mulher está a ungir-me com um bálsamo raro, o
qual poderia ter sido vendido ou escambiado por algo de grande monta. Por
assim dizer, ela não tem a cobiça ou a soberba dos muitos ditos “santos”.
O fariseu se calou e, doravante encorajada pelo bom pregador, Mirian,
ainda chorosa, quebrou o silêncio:
— Muito obrigada por amar-me da forma que sou, mesmo carregada de
pecados desta e de outras vidas — disse ao derramar nos pés dele aquele
dispendioso óleo aromático.
— Como te chamas, mulher? — perquiriu o mestre.
— Eu me chamo Mirian, senhor.
— E de onde vens?
— Eu nasci em Magdala.
— Magdala — repetiu espirituoso. — Mirian de “Magdala” —
acrescentou. — Mirian “Magdalena” — finalizou, sorrindo pra ela.
— E tu? — perguntou dirigindo-se à outra.
— Eu sou Joana, outrora alcunhada “Joana de Cusa”, nativa de Tiberíades.
E pelo que fizeste pelo meu filho, serei hoje e sempre vossa fiel seguidora.
Mas ao ver o inconformismo em Jairo, Jesus disse, não apenas para ele,
mas para todos os que calados os observavam.
— Estas duas mulheres foram chamadas de “pecadoras”. Pois eu vos digo
que, se um pastor perder duas das suas cem ovelhas e abandonar a maioria para
reaver as perdidas e com elas voltar sãs e seguras, ele deverá regozijar-se,
“vejam, eu achei as minhas ovelhinhas perdidas”. Pois o mesmo ocorreu aqui.
Haverá maior júbilo no Céu por duas mulheres que se arrependem, do que por
outras noventa e oito que não necessitam de qualquer reparo.
Jairo ouviu silente e, admoestado pelo teor daquela verdade, verteu a
cabeça.
E diante de todos ali, Jesus havia auferido mais duas seguidoras, Mirian,
agora chamada de Mirian “Magdalena”; e a ex-prostituta Joana; as quais,
juntamente a outras que ainda estavam por chegar, o acompanhariam até o final
dos seus dias na Terra.
***
No palácio de Herodes Antipas, uma reunião estava a definir o
compromisso do casamento de Salomé. A fim de garantir boas participações nos
lucros de uma das mais rendosas rotas comerciais da região, Herodes havia
consentido nas intenções de um rico mercador de Pereia[96] chamado Chilo
Lazzar-Sah, o qual, embora bem mais velho que Salomé, tencionava desposá-la
da forma que fosse. A única imposição do tetrarca além do dote, que era
vultuoso, era que ambos deveriam fixar morada em Tiberíades, sede do governo
de Antipas e ainda, no próprio castelo de Herodes, que em segredo, não desejava
tirar a enteada das vistas, pois por ela nutria notório desejo.
Indiferente a tudo o que lá se passava, Salomé não deu a mínima
importância para o casamento arranjado que lhe havia sido imposto, afinal, não
seria aquela cerimônia que poria fim as suas escapadelas com os capitães da
guarda ou com quem quer que lhe apetecesse os olhos. Ela era indiferente a
qualquer coisa que não patrocinasse a sua luxúria e, sabedora da atração que o
padrasto tinha por ela, na hora certa faria uso de algum subterfúgio sexual para
tentar atender aos caprichos da mãe, cuja obstinação em acabar com João Batista
era notória. E para tanto, a moça atingiria as consequências que fossem
necessárias, mesmo que elas transpusessem qualquer barreira moral ou familiar.
Naqueles dias longínquos, o selo do compromisso de noivado já era
considerado o casamento propriamente dito, mormente com a compensação do
dote, e o povo humilde da Judeia, que desprezava o rei, a esposa dele e a própria
Salomé, recebeu a nova com latente escárnio, pois tinham Herodíade e a filha
em baixíssima conta, em razão da conhecida promiscuidade a que ambas eram
dadas.
João Batista se pôs a discursar com maior veemência em desfavor da
esposa de Antipas, a qual, na verdade, era meio-sobrinha deste. E para se casar
com ela, Herodes foi obrigado a divorciar-se de Fasélia, filha do rei nabateu
Aretas IV[97], o que gerou instabilidade política e desagradou os judeus,
potencializando ainda mais os focos locais de sublevação.
Ao saber da nova, Cláudia Prócula confidenciou ao esposo que sentia
pena do comerciante da Pereia, pois comparava a perfídia de Salomé, cuja
libertinagem era conhecida graças à língua comprida dos que com ela se
deitavam, à de uma víbora. Pilatos não deu muita atenção à esposa, afinal, não
lhe interessavam os negócios pessoais de Herodes, desde que os mesmos não
conflitassem com os de Roma.
Pois na noite em que a corte comemorava o noivado de Salomé, João
Batista rumou ao paço de Tiberíades juntamente a centenas de seguidores para os
quais prometia um inflamado discurso contra o rei deles. Atraídos pela gritaria
vinda das ruas, Herodes e Herodíade ganharam o alpendre para ver a origem de
tudo aquilo, oportunidade em que, ao se depararem com os urros do Batista,
ficaram sem reação.
— O pecado vive nessa casa maldita! — gritava João. — Renunciai às
vossas práticas, ou sereis ceifados pela fúria de Deus.
— Desaparece daqui, homem infame e desprezível! — contra-atacou
Herodíade, visivelmente nervosa.
— Mulher, com que autoridade me repreendes? Logo tu, que violaste o
sexto mandamento ditado a Moisés. E tu, cujos inúmeros leitos me fogem as
contas, não tem moral para admoestar quem quer que seja, afinal tu te colocaste
acima da Lei, e por isso zomba do povo de Israel. — Pois ao notar que Salomé
havia surgido, arisca, ao lado da mãe, João foi ainda mais duro. — E tu, menina.
Não dês guarida às perversidades de vossa mãe, e arrepende-te das tuas práticas
enquanto é tempo. E se não quiseres ter o mesmo fim que o dela, procura o
cordeiro de Deus para tirar-te do abismo em que estás.
— Herodes! — irritou-se Herodíade sem alardear. — Se não fizeres nada
com o Batista, esses cães que o acompanham derrubarão a porta do palácio e nos
apedrejarão até a morte.
— Atentai, povo de Israel! — insistia o pastor do deserto. — Pois os
governantes que zombam e desrespeitam a Lei de Deus só podem nos trazer uma
coisa: a desgraça.
Premido pelas circunstâncias e diminuído pelos olhares venenosos dos
seus convidados, Herodes finalmente cedeu aos apelos da mulher e deu ordens
para que o capitão da guarda detivesse João Batista.
— Podes prender o meu corpo, mas jamais prenderás o meu espírito! —
vociferou o pregador em resposta ao ato.
Entretanto, ao perceber que a turba esboçava reagir violentamente ao édito
do rei, João tratou de impedi-los e os mandou em busca daquele que, depois
dele, haveria de guiá-los.
— Não lamenteis por mim. Lamentai pelos que já estão condenados e
insistem em não comutar a própria pena. Procurai Jesus de Nazaré, e ele vos
trará a vida eterna — ponderou, desprezando o guarda mercenário que o
continha pelo braço.
O pastor do deserto foi, então, arrastado pelas ruas e, já estando no interior
do palácio, jogado numa espécie de gaiola funda, gradeada por cima e com
acesso apenas pelas galerias mais baixas da fortaleza de Antipas, logo na
primeira noite de privação dele, Salomé dirigiu-se para as masmorras a fim de
provocá-lo, afinal, a ousadia dela parecia não ter quaisquer limites. E estando ele
acorrentado junto à parede, a princesa fez com que um dos guardas lhe
franqueasse acesso à cela, o que ocorreu sem qualquer resistência. João Batista
tinha a idade de Jesus, trinta anos, mas era mais alto e encorpado e tinha a pele
bem mais curtida pelo sol. Ele envergava uma beleza considerada selvagem, a
qual, em boa verdade, acabou atraindo a jovem para aquele ergástulo.
Vendo-o privado dos movimentos por estar acorrentado, ela adentrou no
cárcere bem devagar, quase que desfilando do alto dos seus quase um metro e
sessenta e oito de altura. Sua tez nevada, mesmo no breu, conseguia contrastar
com os seus olhos esverdeados, e os cabelos excessivamente escuros lhe
escorriam pelos ombros, os quais se faziam cobrir por adornos dourados que os
trançavam na quase totalidade. Ela não era apenas bela; era bela e fatal.
Seminua, Salomé passou a tentar o inquebrantável Batista.
— Não te agradas o meu corpo, homem bravio? — balbuciou, gemendo e
roçando-se nele. — Por acaso não há fogo em ti que te motive a abnegar a tua
crença e possuir uma mulher de verdade? — insistiu, friccionando as pontas
tesas dos seus seios junto às judiadas costas dele. — Pois saibas que esse teu
cheiro bruto e essa linguagem truculenta me excitam — finalizou, premindo uma
das pernas entre as dele.
Percebendo que o preso se mantinha imóvel e não tirava a visão de um
ponto fixo na parede, ela não se fez de rogada e deitou-se sobre um amontoado
de palha que jazia à frente dele, revelando o seu sexo e o latente desejo de ser
possuída ali, em meio a rudeza de um insalubre calabouço.
Negando-se ser vencido pelo impulso, o Batista descongelou a expressão e
a fitou com seriedade.
— Menina... — murmurou. — Esses teus belos olhos ocultam pecados
horrendos, desta e das outras existências que tiveste. E eles também revelam que
esta é a última chance que terás para se redimir. Ouve pois o meu conselho, sai
deste lugar e vai à procura daquele que poderá acolher-te, pois somente ele
poderá evitar com que a tua alma fique presa na escuridão para sempre.
Salomé ouviu e retorceu a face. Fechou as pernas rapidamente e levantou-
se com o ódio escancarado no rosto.
— Homem algum teve o desplante de me recusar! — disse ela, rangendo
os dentes. — Tampouco um assim como tu, que mais parece um mendigo... E
saibas que me inspiras e também me enoja, e essa rejeição terá um preço,
Batista. Um preço muito alto.
João ouviu, fechou os olhos e disse:
— Deus, olha pelos caminhos dessa pobre criança. Faz com que ela saia
das trevas e encontre um caminho que a liberte de si mesma.
Salomé, avessa àquelas palavras que parecia não entender, se aproximou
do profeta e cuspiu ferozmente na sua face.
— Seu tolo, simplório, sujo — disse com a voz baixa, mas envolvida em
cólera. — Ainda terás notícias minhas, eu prometo — asseverou no mesmo tom
e já deixando a cela.
Embora João não soubesse, a sua árdua jornada na Terra, graças à
maledicência da peçonhenta Salomé, estava bem próxima do fim.
***
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Com o passar dos meses, Susana passou a interagir com as demais pessoas
que seguiam Jesus e, sempre vigiada por Metatron, havia ocultado na memória a
sua vida mundana como Salomé. Mas, sem perceber, ela, às vezes, via-se
dançando timidamente com as crianças do grupo, cuja flauta doce daquele oculto
arcanjo vez ou outra a embalava.
De Tiberíades, Herodíade mandou emissários para todos os lugares da
Judeia, mas, em vão, nada auferia sobre o paradeiro da filha, fato este que
Herodes Antipas via de forma positiva, afinal, enquanto ela estivesse sumida o
seu segredo libertino estaria oculto.
Naqueles dias, alguns apóstolos haviam deixado o ajuntamento para
ensinar a palavra de Deus nas cidades vizinhas, ao passo que, após algumas
semanas, haveriam de se encontrar na encosta do Monte Tabor para seguirem
viagem a Betânia e ao centro de Jerusalém, onde a doutrina de fé haveria de
finalmente ser pregada com maior afinco. Sabedor que o seu destino jazia na
última cidade, Jesus a evitou desde o início do seu ministério, as poucas
pregações foram apenas nas suas redondezas, afinal, ele precisava preparar
aqueles que, depois dele, seriam os portadores do Evangelho de Deus.
Seriam dias difíceis para os apóstolos, eles estariam privados da efetiva
presença do mestre, mas, por ele licenciados, não tardariam a encontrar aqueles a
quem tanto buscavam e, nas vilas e aldeias, experimentariam aceitação e
resistência, fé e desdém, acolhida e indiferença.
No entanto, de forma geral, o trabalho para o qual haviam sido talhados
haveria de ter o esperado êxito, pois ao começarem a curar os cegos e os
doentes, a doutrina por eles professada passou a ser multiplicada conforme o
plano inicial de Jesus.
Mateus e Judas Iscariote seguiram para Giscala[111]. Pedro seguiu com
João para o sul e, embora anteriormente admoestado por Jesus, ainda assim ficou
incomodado com o fato de Magdalena e Joana não terem partido no mesmo
tempo que os demais, afinal o mestre havia anunciado que tinha uma missão
especial para elas.
Não obstante fosse bom e reto, Pedro relutava em aceitar o fato de que
ambas eram suas iguais, “apóstolas” conforme o rabi as chamava. João o
advertiu sob o argumento de que se Jesus as fizera merecedoras do encargo não
lhes seria lícito discutir os desígnios dele, uma vez que, perante Deus, todos
eram iguais, fossem homens ou mulheres. Esse conflito de gêneros, embora
aparentemente inofensivo, haveria de futuramente interferir nos destinos da
igreja, já que, entre o grupo, Pedro tinha outros partidários da necessidade de
proeminência masculina no processo de evangelização.
Pois agora em Nazaré, Jesus, sua mãe e alguns discípulos lá ficariam até
que chegasse o momento de, aos pés do Tabor, o grupo se reunir e seguir para
Jerusalém, de acordo com o planejado.
Magdalena e Joana haviam sido as únicas que ainda não haviam partido e,
após auferirem do mestre o inusitado destino que haveriam de tomar, se puseram
a arrematar algumas iguarias, como mudas de salsaparrilha e extratos de
damasco, afinal, com parte dos haveres vindos dos pesqueiros de Magdala,
Mirian havia tomado a frente das necessidades financeiras da ordem, cuja bolsa
se prestava à conveniência dela — da igreja — e dos humildes. Some-se a isso
que, para a missão, ela contratou a um bom peso, dois carregadores de Tiro[112]
para transportarem uma carga que deveria ser vigiada nos arredores do lugar
onde iriam, pois, de tempos em tempos, ela seria utilizada no trabalho que urgia.
Susana, a essa altura já iniciada na evangelização, observava a tudo
curiosa e, mesmo sem saber aonde as duas estavam indo, pediu para acompanhá-
las. Jesus ficou satisfeito com os bons passos que ela estava dando e, ao assentir,
fitou Metatron e o licenciou para seguir com as três.
— Sinto que a nossa parceria está prestes a terminar, irmão... — disse
Beelzebu para o arcanjo ao vê-lo arrumar a sua bolsa para escoltá-las.
— E por que dizes isso?
— Intuição... — retrucou. — E mesmo que estejas armado, eu temo pela
tua sorte sem Caliel por perto — ponderou, enaltecendo as virtudes bélicas do
camareiro de Deus.
— Caliel é quem deveria ter nascido um arcanjo; e eu um querubim — riu
timidamente ao admitir a sua repulsa pelas armas. — Mas eu fiz uma promessa a
Deus e tenho que cumpri-la. E só voltarei ao Céu com Azeyzel sob ferros.
— Mas e os teus livros?
— A história dos homens está sendo escrita por si só. E seja qual for o
meu destino, as minhas anotações estarão preservadas, da forma que for.
— Bem, desejo sorte na tua missão.
— E eu na tua — finalizou, ao se despedir sem pompas.
Pois lá se foram os quatro — Magdalena, Joana, Susana e Metatron —
rumo a um vale sombrio e esquecido que ficava nos limites de Jerusalém. Era
nele que habitavam os considerados impuros, os quais eram proibidos de
frequentar as cidades abertas sob pena de sumaria execução[113].
A várzea dos proscritos, também conhecida por Grota dos Leprosos,
ficava numa depressão onde apenas poucos estrangeiros iam ter. Assim, salvo
um ou outro altruísta que para lá levava alguns restos de comida, ninguém tinha
coragem de ali entrar, haja vista a temida possibilidade de contágio, deformidade
e morte.
A vida dos leprosos era extremamente difícil[114] e, fora o medo pela
doença, o mau cheiro que advinha da maioria deles mantinha os curiosos longe
dali. Eles tinham os corpos, as mentes e os espíritos definhados, daí a dificuldade
de aproximação, sendo que os poucos que se arriscavam a esmolar nas cidadelas
eram repelidos com punhados de terra que lhes eram brutalmente arremessados,
afinal, segundo o povo, eles já estariam mortos e, como mortos, deveriam voltar
à poeira de onde vieram.
Após alguns dias de exaustiva viagem, os peregrinos aportaram nos
limites do vale e, embora advertidos para dele se afastar, nada os obstou a seguir
adiante. Susana e Metatron foram instados a ir até as proximidades de Betânia a
fim de aguardar a comitiva de Jesus, que passaria pela grota a fim de buscar
Magdalena e Joana, mas, em contrapartida, a jovem fez questão de descer a
colina e acompanhá-las, no que se fez seguir pelo arcanjo que a guardava.
Para acessar o vale, fazia-se necessário transpor uma pequena estrada de
pedras afiadas e, ao perceberem a aproximação daqueles estranhos, os primeiros
doentes se puseram temerosos e ariscos. Eram homens, mulheres e crianças sem
qualquer amparo social ou médico, os quais, acostumados apenas com a repulsa
e a rejeição, custaram a acreditar nas boas intenções dos forasteiros.
Magdalena insistiu e se colocou num ponto visível, anunciando que eles
haviam vindo em nome do filho do Deus único de Israel, a fim de trazer caridade
e cura para aqueles que tivessem fé. Diante disso, um daqueles doentes, exausto
e desesperado com a abertura das suas feridas, aproximou-se e deixou com que
ela viesse até ele. O homem estava visivelmente deformado e o seu rosto
envergava crostas que pareciam lhe tirar a própria condição humana. Pois Mirian
então, num gesto de bondade e entrega, abriu os braços e abraçou aquele pobre,
causando comoção nos que lá estavam e, com certa dificuldade, ele disse a ela:
— – Eu sei que não sou digno, mas se foi Deus que vos mandou, eu aceito
o que viestes nos trazer.
Joana, Susana e Metatron desceram um pouco mais e foram de encontro a
Mirian e ao velho, cujo odor do corpo se assemelhava ao da podridão. Após
tocar-lhe o rosto coberto por trapos imundos, Magdalena o levou com cuidado
para o braço de um pequeno riacho que cortava o vale e, com recato, ela e Joana
retiraram vagarosamente as vestes fétidas que o cobriam. Feito isso passaram a
banhá-lo com água misturada a salsaparrilha, tida como ideal para as moléstias
da pele, e após o untaram com óleo de damasco, indicado para hidratação.
Percebendo o alívio visitar aquele homem cujas lágrimas de gratidão lhe
brotavam nos olhos, os demais então começaram a se achegar aos poucos, a fim
de aceitar a filantropia daquelas duas mulheres.
Fazia muito calor naqueles dias e, ao ver o estado deplorável dos
arremedos de roupa que os doentes usavam, Susana se adiantou por si só e,
desprovida de qualquer temor, as pegou uma a uma e as imergiu na água, a fim
de tentar deixá-las mais dignas de serem vestidas por um ser humano. Sabedora
do que lá iam encontrar, Joana havia levado consigo uma mistura de óleo de
oliva com barrela[115] e, tencionando usá-la como sabão, entregou um fragmento
do composto a Susana, que, sem demora, encarregou-se de ajudá-las.
Se voltássemos alguns meses no tempo, jamais imaginaríamos que uma
mulher pervertida como Salomé pudesse sequer sonhar em estar num lugar
terrível como aquele. Mas agora, mostrando que estava espiritualmente disposta
a se aproximar de Deus, ela amarrou as mangas da sua veste simplória e, a
exemplo de Magdalena e Joana, passou a fazer o mesmo com os demais doentes,
os quais, deixando o medo de lado, começaram a enfileirar-se para auferir
aqueles preciosos cuidados.
Pois ao mandar as três para a Grota dos Leprosos, Jesus sabia que aquela
missão só poderia ser executada por pessoas cuja essência fosse naturalmente
sensível, como o eram — e são — as mulheres. A rudeza típica dos homens
talvez fosse uma barreira para aqueles doentes, os quais, na figura feminina e na
aparente fragilidade das recém-chegadas, talvez não vissem perigo contra si e,
assim, deporiam os seus temores. E nesse particular, não faltava razão ao mestre
Jesus, pois as mulheres, no mundo, só não haveriam de conquistar aquilo que
verdadeiramente não quisessem.
E ocorreu que uma das leprosas que lá estava, aparentando por baixo das
suas severas feridas estar na casa dos quarenta anos de idade, impressionada com
a beleza física de Susana — e a qual, no passado, também havia tido —, fez uma
indagação com a voz ainda rouca pela pouca prática da fala.
— És tão linda, menina. Por acaso não temes ficar assim como eu? —
perguntou ao aludir às escaras que lhe destroçavam o corpo.
— Não — respondeu ela sorrindo. — Já faz algum tempo que eu não sei o
que é ter medo, pois aquele que tem Deus ao teu lado não conhece o medo.
— Belas palavras.
— Sim, elas me foram ditas por alguém especial — respondeu ainda
limpando aquela mulher. — Alguém que me ensinou a amar por amar.
— De onde tu vens? — interessou-se a leprosa, a quem parecia não
conversar com alguém há anos.
— Eu não sei de onde venho, mas hoje certamente sei para onde vou —
concluiu sempre simpática e sem perder a mão ao besuntá-la com o óleo de
damasco.
Bastou uma semana ali para que a vida de parte dos habitantes do vale
mudasse drasticamente. É claro que nem todos as aceitaram e, ainda escondidos
em seus espaços, sequer foram recepcioná-las. Entretanto, nem isso as impediu
de agir, pois percorrendo aquelas grutas escuras, elas iam de doente a doente
com o objetivo de levar uma palavra de esperança até mesmo para os que se
recusavam a ouvi-las. Não foi nada fácil, mas, de um modo geral, elas atingiram
o objetivo inicial, que era o de evangelizar o maior número de enfermos
possível.
Os dias foram passando e, profetizando apenas o amor, elas conseguiram
mudar o modo de vida daquelas pessoas, outrora atingidas pela falta de fé e pela
individualidade. O nome de Jesus passou a ser corrente e, sabendo que alguém
se importava com eles, a luta pela vida voltou a fazer sentido. A partir de então,
aqueles doentes passaram a acreditar que a verdadeira existência estava bem
longe dali, num plano cósmico onde o sofrimento não existia, e, para chegar lá,
bastava-lhes a verdadeira crença no filho de Deus, que lá estava representado
pelas ações e palavras daquelas mulheres. Aliás, por abdicarem da vida mundana
e se casarem com a doutrina de Jesus, poder-se-ia dizer, feitas as devidas
ressalvas de tempo e espaço que, Magdalena, Joana e a jovem Susana foram as
primeiras freiras da história cristã, cujo trinômio “doação, entrega e caridade”,
ali as coroou como tais.
***
Três semanas após terem partido, a grata parte dos apóstolos, seguidos por
centenas de fiéis, começou a regressar ao Tabor a fim de reencontrar o mestre e
seguir viagem. Efusivos, eles haviam tido êxito na missão que lhes havia sido
dada, afinal, nos lugares em que estiveram, a palavra de Deus foi divulgada e
potencializada.
O rabi os recebeu com o costumeiro carinho e, satisfeito com o proceder
dos emissários, sentiu que as pedras da sua igreja estavam sendo sedimentadas.
— Mestre, a empreitada foi positiva — disse Pedro, entusiasmado. —
Conquanto alguns incrédulos de costume, a maioria nos ouviu e ofertou apreço
pela palavra.
— Sim! — completou Judas Iscariote com um humor que não lhe era
típico. — Houve até quem me chamasse de rabi.
Mas verificando a ausência de Magdalena e Joana — “afinal, para onde as
duas haviam ido?” —, o pescador assuntou sem omitir a curiosidade.
— E as nossas irmãs, senhor? Onde estão?
— Nós iremos encontrá-las em breve, pois elas estão a meio caminho do
nosso primeiro destino.
Pedro anuiu curioso, visto que, embora com a mesma missão, a de
evangelizar, Magdalena e Joana foram as únicas que partiram para um destino
ainda desconhecido dos demais.
Todos então se uniram e tomaram a estrada para o sul, a fim de
reencontrá-las e rumarem para Betânia e Jerusalém. No caminho, Jesus percebeu
que Beelzebu, a quem os peregrinos chamavam de Betseba, havia se afeiçoado
de Yigal, o filho curado de Joana. Caliel — conforme já visto, lá conhecido por
Chaya, nome hebraico feminino em razão da aparência feminizada dele —
seguia no colo da virgem Maria e, encantado com a figura maternal dela, fazia
birra quando alguém fazia menção de pegá-lo. A imaculada cresceu entre
crianças, cuidando dos primos e primas, e por elas tinha um afeto ímpar. Pois
observando Beelzebu caminhar de mãos dadas com o agora purificado menino,
Jesus se achegou.
— E então, Betseba, conta-me: como tem sido caminhar conosco? —
indagou dando mostras de que no fundo sabia quem era ele.
O querubim o fitou desconfiado e, rendendo-se ao avatar de Miguel,
acabou se entregando.
— Eu me pareço tão óbvio assim, rabi?
Jesus achou graça na réplica e continuou:
— Eu sei que estão aqui para me ajudar. Tu, a pequenina e aquele que se
disse chamar Matatias. — Nome pelo qual o Arcanjo Metatron havia se
apresentado ao grupo.
Beelzebu, ou melhor, Betseba, abaixou a cabeça e sorriu, arrematando
logo na sequência.
— Eu acho que agora estou mais à vontade para responder à tua pergunta.
Pois saibas que eu já caminhei por lugares inimagináveis — pontuou, referindo-
se ao seu degredo no Inferno. — E após muito viver, hoje entendo por que Deus
te mandou para cá.
— Então crês que eu sou da parte de Deus?
— Tu és, bem sei, um dos filhos Dele. E no final, nós somos todos irmãos;
eu, tu, Chaya e Matatias.
— Eu compreendo o teu ponto de vista. Mas pareces ter gostado muito do
menino, pois não? — perguntou o rabi, referindo-se a Yigal.
— Foi-me dito que ele sofreu demais. E vê-lo agora redimido me fez
lembrar de mim mesmo, ou melhor, de mim “mesma”... — corrigiu-se, em razão
do sexo que personificava. — E nisso, incluo até a pequena Chaya, que
encontrou em tua mãe uma figura que ela até então desconhecia.
— Mas estou bem certo que “ela” teve um Pai que lhe fez às vezes —
ponderou Jesus, ao instintivamente fazer alusão a Deus, a quem Caliel tinha cega
devoção. — Pois muito me satisfez essa prosa contigo — asseverou. — E se sois
quem dizeis ser; sabeis que o meu tempo na Terra urge.
— Sim, nós sabemos. Portanto, cumpre com a tua missão e retorna em
breve ao convívio dos teus — disse Beelzebu, já se emocionando e apertando o
passo para, vez mais, tomar as mãos de Yigal.
Jesus absorveu aquela frase em silêncio e se juntou aos demais, ao passo
que Beelzebu, talvez agora menos tenso depois daquele desabafo, também
retomou o caminho da estrada. Mas antes de chegarem aos destinos
programados, eles ainda fariam uma inusitada parada num vale onde aquele
disfarçado querubim haveria de ter lembranças muito ruins.
***
***
***
A casa de Lázaro era a mais vistosa de Betânia. Ele vinha de uma rica
família de agricultores e era amigo de Jesus desde a mocidade, sendo que ambos
haviam se conhecido cerca de quinze anos antes, quando o então jovem artesão
foi ter com o finado pai naquelas bandas, a fim de trabalhar na ampliação dos
jardins da casa do genitor de Lázaro.
Ele tinha duas irmãs, Marta e Mariah, esta última, desde havia muito,
encantada pelos predicados de Jesus, a quem, além de fisicamente atraente,
achava um exemplo de sabedoria. Aliás, a última vez que ambos se haviam se
visto não tinha sido muito auspiciosa, pois Mariah, talvez com intenções
próprias de uma mulher — casar-se — experimentou certa decepção ao ouvir, do
amigo do irmão, que a lida dele na Terra haveria de ser outra, que não a de um
homem ordinário.
Pois a fama de Jesus já havia repercutido naquelas bandas e, ao perceber
que ele não estava de todo errado em suas previsões, Mariah aceitou aquela
verdade e, sem deixar o orgulho feri-la, continuou a amá-lo do seu jeito.
Ao ver o velho amigo despontar por entre a colina das figueiras, Lázaro
deixou os seus afazeres e, efusivo, foi recepcioná-lo.
— – Há quanto tempo! — disse ao abraçar o rabi. — Espero que não
estejas apenas de passagem.
— Infelizmente, estou. E penitencio-me de não te ter visitado da última
vez que estive nas proximidades de Jerusalém há alguns anos, espero que me
entendas.
— Jesus, Jesus! A paz das tuas palavras já ecoou por aqui. E os
mercadores com quem falo sempre nos trazem boas novas, inclusive, das curas
que tens feito.
— Eu sou apenas um instrumento; quem cura é a fé de cada um —
esclareceu sem esconder a felicidade por lá estar.
Ao ver Jesus, Mariah arrumou os longos cabelos e tomou o rumo dele.
Mas nesse ínterim, ela observou quando Magdalena se achegou do mestre e,
carinhosamente, tomou-lhe a túnica que vestia a fim de limpá-la da poeira da
estrada e salpicá-la com um perfume que sempre trazia consigo.
Pois ao perceber o seu amado tomar as mãos de Magdalena e beijá-las
com visível afeto, Mariah recuou ao constatar que a mesma estava com a cabeça
coberta, o que poderia significar, pelos costumes de então, que ela e Jesus eram
casados. Disfarçando o próprio incômodo, ela se retraiu e chorou escondida,
afinal, como mulher, sentiu o toque da rejeição tocar-lhe o coração.
Lázaro mandou que fosse preparada uma grande ceia para os recém-
chegados, os quais, pela aparência, haviam experimentado os rigores de uma
longa viagem. Pois ao abraçar Marta, Jesus perguntou por sua irmã Mariah, tal
não sendo a resposta de que ela estava ali e, havia pouco, se mostrado ávida por
vê-lo.
Mas enquanto todos se acomodavam, Mariah se pôs sorrateiramente no
encalço de Magdalena, a qual, não tão longe dali, higienizava a túnica do mestre.
Percebendo a aproximação da jovem, a apóstola disse:
— Deus esteja convosco.
Fitando-a com crassa desconfiança, Mariah logo respondeu:
— E Ele está. Mas me diz, és tu a escolhida de Jesus?
— Perdão? — respondeu Magdalena, achando certa graça naquela
observação.
— Escolhida; a esposa dele — insistiu um pouco mais invasiva.
— Esposa? E por que dizes isso? — respondeu ainda sorrindo.
— Pelo modo com que se dirigiu a ele; e ele a ti. Além de que estás com a
cabeça coberta.
— Bem, vendo por esse lado; sim, eu sou esposa dele. — Mariah ficou
chocada com a resposta, irritada melhor dizendo. Mas Magdalena continuou. —
Aliás, além de mim, veja outra ali com o menino. O nome dela é Joana, e
também é casada com ele.
— Estás a me dizer que Jesus tem várias esposas? — insistiu incrédula.
— Digamos... que sim — anuiu calmamente. A irmã caçula de Lázaro
aparentou sentir-se mal e, buscando escora em algo, sentou-se num banco que
precedia o varal onde Magdalena havia estendido a túnica de Jesus a fim de batê-
la. — Tu estás bem? — indagou aparentemente preocupada.
— Eu só preciso de um pouco de ar, apenas isso — retrucou a moça.
Magdalena era uma mulher vivida e, embora pura, sabia ler os
sentimentos das pessoas. E, em Mariah, enxergou claramente o amor físico,
aquele que Jesus jamais poderia retribuir.
— Ele me rejeitou e agora tem duas; quiçá três mulheres! — ponderou
sozinha e sem compostura.
— Acalma-te, talvez eu não me tenha feito entender — asseverou
Magdalena. — Tanto eu como as outras assim chamadas “esposas” temos apenas
um compromisso espiritual, nada mais do que isso.
— Espiritual?
— Sim. Nós abdicamos das nossas vidas e vivemos para servir o
evangelho que ele prega, ajudando quem precisa e quem necessita.
— Então nunca se deitou com ele?
Magdalena riu envergonhada.
— Não! Nem com ele e nem com ninguém, pois a vida para mim não se
resume ao chamado amor físico. Jesus nos ensinou que o amor verdadeiro é uma
entrega ao próximo, sem vaidades e desejos outros que não os de meramente
servir. Por isso as mulheres que o seguem o amam como a um marido e o servem
como uma esposa, com humildade e principalmente respeito.
Mariah ficou muito envergonhada por ter dito aquelas palavras rudes e
pediu desculpas pela sua falta de visão e de sensibilidade. Magdalena então
ungiu o manto já limpo de Jesus com o perfume e o entregou a irmã de Lázaro,
para que ela própria o vestisse no rabi.
Entretido com as falas de Lázaro, Jesus demorou a perceber que, na porta
do cômodo onde estavam, Mariah surgiu trazendo a sua túnica, a mesma que,
havia pouco, ele havia entregue aos cuidados de Magdalena. Satisfeito em revê-
la depois de tanto tempo, ele se levantou e a recebeu com um abraço sincero, no
que ela então o vestiu e tomou o lugar que lhe cabia.
— Fico muito feliz em rever-te, Mariah!
— E eu, em continuar aprendendo contigo — respondeu ela.
Marta então trouxe algumas especiarias e se colocou a lavar os pés de
Jesus e dos apóstolos que os acompanhavam, ao passo que Mariah fez o mesmo
com Magdalena e Joana, as quais estavam com a mãe do mestre e alguns outros
peregrinos fora da casa.
— Mas me diz, que bons ventos te trazem até aqui? — perguntou Lázaro.
— Eu vim dar continuidade ao meu ministério; a Judeia precisa ser
pacificada.
— E pensas que conseguirás pacificá-la com tantos romanos por lá?
— Lázaro, uma semente não floresce do dia para a noite. Por ora, nós
viemos plantar, e não colher.
— Pois, no que eu puder ajudar, conta com a minha família.
— Eu sei disso, amigo, por isso eu vim ver-te.
— E fizeste bem — respondeu Lázaro que, ao esticar o braço para pegar
uma taça, sentiu um desconforto na região estomacal.
— Estás bem, meu amigo?
— Coisas da idade e do trabalho, mas nada que me impedirá de ainda
viver muito.
— Se é o que crês, que assim seja.
— E será! — brindou.
Pois a noite caiu, e todos se reuniram para ouvir Jesus, cujos planos
doravante incluiriam imiscuir-se em terrenos perigosos, como Jerusalém.
Percebendo que os que o seguiam eram convictos, Lázaro o advertiu sobre o
medo que as pessoas poderiam ter de apoiá-lo publicamente, afinal o peso do aço
romano fazia a diferença naquelas terras.
Mas Jesus, sempre sábio, ponderou:
— Quem acende uma candeia não tenciona cobri-la com um vaso, mas
sim pô-la num suporte para que todos vejam a luz que ela emana. E é essa
função dela, iluminar onde existe escuridão, pois não seria plausível escondê-la.
Quando alguém recebe e aceita a palavra de amor, acende-se uma luz na vida
dessa pessoa e, se Deus é a luz do mundo, quem o seguir não andará nas trevas.
Os presentes ficaram tocados com aquela nova, a qual transmitia
segurança e fé. Entretanto, mesmo os que andavam com Jesus, ainda teriam
medo do brilho dessa luz e, temendo pela vida material, haveriam de tentar
escondê-la.
Pois o dia logo nasceu, e a caravana seguiu o caminho que lhe cabia,
demorando cerca de dois dias para chegar aos arredores de Jerusalém. A
princípio Jesus começou a pregar nas cidades vizinhas, coisa que ele já havia
feito no início do seu ministério, e, aos poucos, pessoas de todos os lugares
vinham para assisti-lo. Entretanto, da mesma forma que os seus feitos chegaram
aos necessitados, eles também repercutiram no Templo e na fortaleza Antônia. E
o cerco contra ele, outrora tímido, começou a ficar cada vez mais perigoso.
***
***
Quando iniciou o seu ministério cerca de três anos antes, Jesus chegou a
estar nas adjacências de Jerusalém e, mesmo sem entrar na cidade, arregimentou
seguidores e entusiastas; dentre eles, alguns de notório prestígio, como
Nicodemus, um fariseu de grande projeção no Sinédrio.
Após ter com o rabi e ouvir palavras sutis sobre a transmigração da alma,
algo em que os judeus acreditavam, o magistrado confidenciou-se com um
amigo de longa data, o também sinedrista José de Arimateia, um rico mercador
que se interessou pelos princípios defendidos por Jesus. Sabedor de que ele
havia voltado à região, Nicodemus ficou feliz e preocupado ao mesmo tempo,
afinal, isso poderia significar problemas.
Os ataques constantes contra a legitimidade dos sacerdotes talvez
passassem desapercebidos se Jesus se mantivesse avesso à majestade de
Jerusalém. Embora fosse um dever dos membros do Sinédrio controlar e vigiar
os profetas, aquele artesão de Nazaré estava aparecendo demais — incomodando
seria a palavra certa — afinal, ao invés de ficar adstrito aos campos, ele havia
resolvido investir nas grandes cidades, onde as autoridades judaicas não teriam
como fechar os olhos.
Assim, diante dos milagres e da doutrina contraposta à hipocrisia dos
saduceus, os interesses de Jesus acabariam colidindo com os dos conservadores
do Templo e, silenciá-lo, passou a ser uma opção cada vez mais discutida entre
alguns juízes do Sinédrio. Some-se a isso que Roma não desejava ebulições,
entretanto, a mensagem de Jesus começou a ser vista com perigo, afinal um
reino estranho ao romano estaria próximo. O exemplo vindo de Moisés no Egito
havia causado certa prevenção ao Império e, para preservá-lo, certos limites não
poderiam ser ultrapassados.
Embora a distância propositalmente mantida de Jerusalém tenha
preservado o apostolado até então, a partir do momento em que aquelas terras
conquistadas fossem bulidas, tudo mudaria, afinal, até mesmo Herodes Antipas
já havia sido prevenido sobre o tal Messias de Nazaré.
Enfim, no curso do tempo os dias pararam nos parcos meses que
antecediam a tradicional festa da Páscoa em Jerusalém. E seriam naqueles dias
que o pré-ordenado plano de Deus finalmente teria a sua conclusão.
***
***
“Pai nosso...”
Aceitai o Senhor Deus como Aquele que acalenta e assiste, nas boas
e nas más horas;
“Que estais no Céu...”
Abdicai do apego a esta mera passagem e reconhecei a grandeza do
plano etéreo que nos deu a verdadeira existência;
“Santificado seja o Vosso nome...”
Adorai o Pai Celestial e O valorizai pela vida eterna que nos é
perene;
“Venha a nós o Vosso reino...”
Acatai o desígnio do amor, pois dele é feito o trono de Deus;
“Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra ou mesmo no Céu...”
Abdicai da cobiça e dividi o que conquistastes com os que nada têm,
pois esse é o desejo do Pai;
“O pão nosso de cada dia nos dai hoje...”
Alimentai não apenas os vossos corpos, mas também os vossos
espíritos;
“Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos
têm ofendido...”
Sede justos com aqueles que vos devem, pois todos devem a Deus;
“Não nos deixeis cair em tentação...”
Resisti às seduções ilícitas dos maus espíritos obsessores;
“Mas livrai-nos de todo a mal...”
Sede fortes, sede diferentes;
“Amém!”
***
Susana e Metatron ainda estavam na grota dos leprosos e, com muito
esforço, aquela tentava insistentemente quebrar a barreira dos resistentes.
O vale dos leprosos, ninguém sabia, era um imã para os espíritos errantes
que haviam fugido do Guf, os quais, nos doentes que lá jaziam, encontravam
morada para toda a sorte de tristezas que carregavam. A negatividade que por lá
pairava servia de alimento para aqueles espíritos imundos que, não querendo
evoluir, não permitiam que os outros o fizessem.
Por ter passado seis períodos de tempo presa nas celas da Tesouraria das
Almas, Susana não sentiu o rigor daquele ambiente, o qual, para ela, lhe servia
de desafio. Metatron continuava arisco e atento, afinal, o astuto Azeyzel poderia
surgir a qualquer instante a fim de tentar atrapalhar os planos de redenção da
jovem e, nesse passo, um conflito entre ambos já era esperado.
Pois aquela jovem, outrora símbolo de libidinagem e de perfídia —
naquela e em outras vidas —, seguia firme no propósito assumido perante Jesus,
isto é, o de preparar os doentes que ali haviam ficado para serem curados quando
este regressasse de Jerusalém. Entretanto, Susana ainda não sabia que o seu
mestre jamais sairia vivo daquele lugar e, nesse passo, continuava firme em sua
missão. E de tentativa em tentativa, ela vergava um ou outro que ainda relutava
em aceitar a palavra de fé de Jesus, a qual, sozinha, ela passou a proclamar. Pois
ali, finalmente aprendeu o quão difícil é ajudar alguém que reluta em ser
ajudado. A batalha interna dela era árdua, pois muitos dos espíritos inquietos que
ali jaziam não tiveram dificuldade em reconhecê-la de suas outras vidas, ou
melhor, das suas outras mortes. A alma original de Layla-Li era escrava do
desejo carnal e, durante as seis passagens que teve pela Terra, experimentou toda
a sorte de iniquidades, as quais, cada vez mais, a amarraram num poço de
escuridão sem fim. E diante disso, não era incomum a ela, enquanto repousava,
ser visitada por espíritos obsessores que, visando roubar-lhe a energia,
personificavam tentações bem atraentes, afinal a abstinência sexual ainda a
perseguia. Ainda assim, Metatron tentava protegê-la, afinal, como arcanjo, ele
conseguia enxergar aqueles espíritos sorrateiros e, embora não tivesse como
mandá-los de volta ao presídio de Guf, os afugentava com a sua espada de fogo,
a qual aqueles seres temiam em razão da luz que dela surdia.
Pois a saga de Susana ainda não havia terminado. Mas a de Metatron já
estava prestes a ter um fim.
***
***
Por estar abandonando os antigos vícios, Susana se afastava cada vez mais
das auras passadas, o que tornava mais difícil a sua localização. Azeyzel estava
obcecado em tê-la de volta e, ao experimentar uma leve sintonia angélica ao
norte — Metatron e os anjos carregadores disfarçados —, ele tomou o rumo
daquelas bandas a fim de dar continuidade ao seu plano e, por não ter mais asas,
o fez a pé e diante dos rigores da estrada. Pois ao lá chegar e estranhar a rudeza
do local, ele se pôs à espreita até localizar um foco que denunciasse a presença
dela, o que não tardou a ocorrer.
De longe, ele observou o acampamento levantado pelos anjos disfarçados
e, para sua surpresa, percebeu que, ao nascer do dia, Metatron surgiu ao lado de
uma jovem que, com o rosto escondido por um véu, havia ido buscar algumas
provisões. Ainda silente e sem despertar suspeitas, ele se fez em luz e pôs-se a
segui-los, até que os dois ingressaram no coração da Grota, onde desapareceram
numa das várias cavernas lá existentes.
A impetuosidade o impulsionou a adentrar naqueles domínios, mas a
prudência o obstou. Layla-Li era a força motora que o havia trazido à Terra, e tê-
la de volta era a sua obsessão. Mas expor-se de forma desavisada talvez fosse
algo pouco inteligente. Diante disso, ele decidiu tirar Metatron do jogo e, nesse
passo, arrebatá-la, mesmo que a força.
***
***
***
***
***
Judas ainda estava impressionado com o que tinha visto o mestre fazer
com Barrabás. “E que espadachim ele era!”. Contudo, sua mente ainda estava
aflita sobre a real finalidade dos planos de Jesus. Que uma revolução viria, isso
era bem óbvio, mas as condições dela é que intrigavam o velho zelote.
Jesus passou a terça-feira pregando nas imediações do Templo e, vigiado
pelos sinedristas, parecia ignorá-los. Fazendo parte das plateias, Judas parecia
perdido e disperso, afinal, martelava-lhe a mente uma questão: “Que ‘espada’
seria aquela que o seu mestre haveria de levantar?”.
Pois foi no final da tarde daquele dia que Judas, escorado numa das
pilastras da santa fortificação dos hebreus, foi interpelado por um estranho que, a
certa distância, também assistia à palestra de Jesus.
— Ele é um ótimo orador, pois não?
Ao se virar para o interlocutor, Judas percebeu que ele estava
acompanhado de outro e, pelas vestes sujas que usavam, pareciam ter vindo do
deserto. Entretanto, a sua nova missão de vida não mais permitia julgar alguém
pelas aparências e, percebendo que eles tinham feridas nas mãos, tirou uma
moeda de prata da bolsa e a ofertou ao dito sujeito, cuja voz rouca e grave
parecia clamar por uma esmola.
— Agradeço-te pelo gesto — respondeu o estranho ao aceitar o dinheiro.
— Eu e meu pobre irmão não temos qualquer fortuna em vida, mas fico grato em
saber que os homens ainda amparam uns aos outros. — Judas não deu muita
importância para a fala daquele sujeito e, esboçando deixar o local em que
estava, teve o braço segurado. — Mas, por favor, espera... — disse o forasteiro a
fim de obstá-lo. Pois ao voltar o rosto para o pretenso mendigo, talvez
tencionando admoestá-lo pela liberdade, Judas cruzou olhares com ele e ficou
magnetizado. E diminuindo a velocidade dos seus movimentos, acatou o
solicitado e, aos poucos, foi voltando para onde estava. — Eu te tomarei apenas
alguns minutos, nada mais do que isso — asseverou o andarilho que, por trás
daquela capa escura, escondia o combalido serafim caído que ainda espreitava o
nazareno.
— O que queres de mim?
— Eu somente havia dito que ele é um bom orador. Concordas comigo?
— Sim... — respondeu um tanto confuso. — Ele é.
— Mas pelo que senti ao te tocar, as tuas energias não se contentam
apenas com meras palavras, não é mesmo?
— Talvez... — disse ainda cismado.
— Senti também que és um nacionalista fervoroso, cuja fé é enorme. E a
tua sede por liberdade, também. Mas tu bem sabes que não serão ações pífias
como essas que destronarão os romanos.
— E o que queres dizer com isso?
— Estou a dizer que tu és o único que pode forçar Jesus a estabelecer o
reino de Deus na Terra.
— Forçá-lo?
— Sim! Embora fale apenas de paz, ele certamente mudará de ideia caso
sinta o peso do aço romano no próprio pescoço. E poderoso que é, erguerá o
braço e destruirá todos eles! — asseverou convicto. — Entretanto,
voluntariamente, sabes muito bem que ele jamais fará isso.
— Talvez tenhas razão — retrucou com certa decepção.
— Pois então. O teu mestre e o povo cativo precisam de ti. E o momento
atual é propício, pois, se Jesus liderar um contra-ataque, os milhares de romeiros
que estão em Jerusalém tomarão o partido dele, e a Judeia voltará para as mãos
dos seus legítimos donos. E para isso, a tua lida será decisiva — desafiou,
esboçando ir embora.
O tal estranho, acompanhado de outro, deu as costas a Judas e o deixou
ali, confuso com tudo o que havia ouvido. Pois, cansado da pouca ação e
contrariado com o desfecho do colóquio de Jesus com Barrabás, ele acatou
aquela ideia e passou a regá-la na mente.
Mas de outra banda, atento a tudo o que lá ocorria, um homem misterioso
seguia à distância os passos de Jesus desde que ele havia chegado a Jerusalém.
Vindo originalmente do sul do continente africano, aquele enigmático viajante,
cuja pele manchada de rubro destoava das demais pessoas, apoiava o peso do
próprio corpo sobre um antigo cajado ainda sujo com o sangue do primeiro
inocente que a Terra havia chorado. Pois ali também estava, atento ao
cumprimento de profecias que remontavam a séculos, o segundo homem
nascido, aquele que, na figura de Jesus, talvez encontrasse o perdão que desde
antes do dilúvio universal ele incansavelmente buscava.
***
***
***
***
***
***
***
** *
*
No conforto da casa de Lázaro, a virgem Maria também despertou aflita.
Uma dor incomum no peito a fez se levantar com a respiração um tanto
ofegante. Percebendo o ocorrido, Marta, que dormia ao seu lado, ergueu-se e
perguntou o que havia se passado.
— Eu não sei ao certo. De repente, uma estranha agonia tomou conta de
mim, algo que me foge ao entendimento... — respondeu-lhe a imaculada.
— Talvez seja apenas indisposição. Vem, deixa-me preparar algo para
acalmar-te — ofereceu-se.
— Não, não é necessário... — Maria começou a se sentir ainda mais
angustiada e, de inopino, revelou à amiga do filho. — Marta... Eu preciso voltar
a Jerusalém.
— A Jerusalém? Mas acabaste de vir de lá!
— Sim. E para lá devo voltar — disse ela arrumando o véu sobre a
cabeça.
— Maria, me escuta, já é tarde, não seria melhor esperarmos amanhecer?
— O meu coração está apertado, eu preciso amparar o meu filho, pois algo
de ruim está prestes a acontecer com ele.
Verificando que não a faria desistir do intento, Marta acordou o irmão
Lázaro e lhe participou o ocorrido. E diante da infinita gratidão auferida por
Jesus, ele jamais permitiria que a mãe dele seguisse viagem sozinha, não numa
estrada vazia e naquela hora da madrugada. Diante disso, ele arregimentou
alguns empregados e montarias e, junto a Marta e Mariah, rumou para
Jerusalém, afinal, aquele era o desejo de uma mãe, da mãe de Jesus.
***
Já era tarde quando Jesus e os apóstolos voltaram ao Monte das Oliveiras
após cearem. Chegando ao jardim de Getsêmani, onde o rabi costumava rezar,
alguns perceberam que o mestre estava um tanto agitado, afinal, durante o
trajeto, ele não tinha esboçado uma única palavra.
— Para onde teria ido Judas? — indagou André. — Eu estou muito
apreensivo com relação a isso, afinal, ele é um inconsequente.
— E hoje à tarde ele estava mais arisco do que de costume — interveio
João. — Ele parece obstinado com a ideia de que o mestre deveria usar os seus
poderes para esbulhar o trono da Judeia e expulsar os romanos e os idumeus
daqui.
— Judas jamais conseguiu entender as intenções de Jesus — completou
Simão. — E eu estou bem à vontade para falar isso, pois já fui um zelote e fiz
coisas que hoje condeno.
— Ele confunde guerra com a revolução moral. Eu tentei mudar o
pensamento dele, mas confesso que já há algum tempo me cansei — interveio
Joana. — Hoje mesmo eu fugi das suas lamúrias, pois precisava estar bem
energizada para preparar a nossa ceia.
— Vós estais falando de Judas, mas é Jesus que parece estar assustado —
asseverou Pedro. — Eu acho melhor vigiá-lo.
— Não, Pedro — interferiu Magdalena. — Ele só precisa ficar um pouco
sozinho, deixa-o rezar em paz.
— Bem, se é a sucessora do trono que está a falar, quem sou eu para
contestá-la — resmungou, ao se afastar do grupo para preparar um arremedo de
cabana com alguns ramos.
Tentando aparar o mal-estar ante a provocativa declaração de Pedro,
Magdalena o ignorou e foi ter próxima à fogueira, a fim de não se indispor com
ele, o qual não fazia a mínima questão de esconder o seu incômodo diante da
liderança dela.
— Acho que nós estamos todos tensos — continuou Joana. — Essas
revelações do mestre nos deixaram temerosos com relação à segurança da causa.
Pois estando a lua a pique no Getsêmani, e o ar gelado começando a
inundar o vale, Jesus continuava aparentemente incomodado e, num ímpeto,
sentou-se no chão e abaixou a cabeça, apoiando-a sobre as duas mãos. O
silêncio, maculado apenas pela ruidosa serenata de grilos que não rareavam
naquela região, parecia não abafar as palavras ininteligíveis que ele murmurava
em tom baixo, talvez em razão do desconforto que o havia visitado.
Jesus estava trêmulo, fazia frio, mas ele suava, afinal, sabia que estava
prestes a ser sacrificado e, mesmo que fosse um arcanjo, a sua parcela humana
parecia falar mais alto.
Enquanto refletia sobre os meandros do seu destino, o rabi ouviu uma voz
rouca e estranha a dos seus apóstolos dilacerar a escuridão:
— Jesus, Jesus... — sussurrou o estranho vulto. — Ou será que devo
chamar-te de... Miguel? — concluiu, de forma ardilosa, revelando-se.
Ao encarar o inoportuno interlocutor, Jesus viu diante de si, o vestal
inimigo dos homens, Lúcifer.
O caído, que à distância se fazia assistir por Baalberith, caminhou na
direção do filho encarnado de Deus e, parando diante dele, continuou:
— Custo a crer que te entregaste a esse papel risível... — tripudiou. —
Um alto guerreiro celeste à mercê dessa ralé feita de barro. — Riu. — É, eu
confesso que esperava mais de ti.
— És o tal homem da caverna no deserto? — indagou Jesus, ao se lembrar
de tê-lo enfrentado no término dos quarenta dias de tentação.
— “Homem”? — retorquiu. — Por favor, irmão, não me ofendas com
esse adjetivo ridículo — revidou o degredado fazendo pouco da raça humana.
— Sejas quem fores, deixa-me em paz e afasta-te — pediu Jesus com o
semblante preocupado.
— “Em paz?” — disse o antigo serafim, já fazendo surgir em sua mão
direita, uma vigorosa espada flamejante. — Bem, se queres paz, talvez eu possa
dar-te, ceifando isso a que, agora, chamas de “vida”.
Ao erguer o gládio para fatalmente golpear Jesus, outra voz deveras
familiar ali surgiu e quebrou a hegemonia daqueles dois agentes do mal:
— Eu não contaria com isso Lúcifer...
Pois entendendo que ali havia surgido um outro anjo que encostou um
similar florete em chamas junto à sua pulsante jugular, o grande caído ficou
estagnado.
Percebendo a investida contra o irmão, Baalberith fez menção de se
aproximar para auxiliá-lo, mas no mesmo instante teve o colo contido por uma
idêntica lâmina de fogo, a qual, recém-expelida da escuridão, tocou-lhe o
pescoço de modo a igualmente rendê-lo.
— Se eu fosse tu, “procurador”, também não moveria um músculo! —
afirmou Beelzebu ali surgindo na mesma toada.
— Ora, ora, mas que prazer inusitado... — disse Lúcifer, ao reconhecer
Beelzebu por entre o brilho da luz refletida na lua. — E eu percebo que estás
bem melhor do que da última vez que nos vimos — concluiu, em alusão à épica
fuga dele do Inferno pelas mãos de Caliel, quando o príncipe dos querubins não
passava de um conglomerado de sarcomas apodrecidos.
— Pois eu não nutro prazer algum em rever-te, irmão — retrucou
agressivamente, ao cingir ainda mais a sua espada coruscante na garganta de
Baalberith.
Lúcifer tentou se desvencilhar da lâmina de Gabriel e recuou, entretanto
acabou tropicando num pequeno obstáculo que estava atrás dele e, ao se virar
para identificar o que o impedia de continuar a fuga, outra surpresa inesperada:
Caliel. Pois ao vê-lo ali parado o encarando com ar colérico, ele se lembrou de
quando quase foi por ele decapitado, e por duas vezes. E sem nada dizer, se
afastou pela tangente e sumiu na escuridão. Empurrado, sem gentileza, por
Beelzebu; Baalberith foi impelido a fazer o mesmo.
Jesus mostrou-se aparentemente confuso com aquela rusga, mormente
quando viu Gabriel diante de si, de quem não tinha lembrança. Mas ao observar
Beelzebu e Caliel — os quais intimamente sabia serem anjos de Deus —, ele se
sentiu mais seguro. Embainhando então a sua espada, o príncipe dos
mensageiros se aproximou e disse:
— Eu vim para dizer que o Pai aguarda o teu retorno, pois o pacto que
tinhas com Ele está prestes a ser selado. Doravante, até que desencarnes, terás
que suportar o peso de uma dor extrema, uma que apenas tu, por todos os
homens do mundo, terias condições de suportar. Portanto, sê forte! —
completou, ao entregar-lhe um fragmento de maná[139] dourado para que ele se
alimentasse.
Ao colocar o doce perolado na boca, Jesus se lembrou de imediato do
grande legionário que foi, ou melhor, ainda era, e de que, aquele corpo, que era
apenas carne, na verdade servia meramente de carapaça para outro bem mais
poderoso, o qual tinha fogo divino na mescla. Isso, de pronto, lhe devolveu as
forças físicas e místicas que precisava para suplantar os sofrimentos que, pelas
mãos dos mesmos homens a quem havia ajudado a criar, ele estava prestes a
enfrentar.
Pois ao sorrir aos irmãos celestes — “Muito obrigado!” — e vê-los
desaparecer no breu, Jesus ouviu alguns ruídos estranhos e procurou a origem
deles. Intrigado, mas agora encorajado e seguro, ele se levantou e voltou ao
ajuntamento onde os seus apóstolos estavam, quando então observou uma
comitiva se aproximar com vistosas tochas nas mãos.
Assustados, os seguidores do rabi permaneceram na defensiva, afinal, à
frente daqueles homens rudes, agora identificados como membros da Polícia do
Templo, estava um confiante Judas Iscariote.
Jesus os viu e caminhou voluntariamente na direção deles e, ao ver o
sicário na liderança do grupo, bradou sorrindo:
— Salve, irmão! O reino de Deus está chegando!
Ao ouvir tal assertiva, Judas acreditou que havia feito o certo, pois se o
reino do Altíssimo estava chegando, o seu rabi se uniria aos sinedristas e
esmagaria quem se pusesse na frente deles.
— Mestre! — respondeu efusivo. — Cumpre com o teu destino e mostra a
que vieste! — disse, ao se aproximar e dar-lhe um beijo na face direita.
Feito isso, Jesus respondeu a ele:
— Pois saibas que, ao contrário do que crês, é chegada a hora das trevas...
Percebendo que a face do seu rabi se fechou de repente, Judas Iscariote
recuou e ficou atemorizado com aquela inesperada reação.
— És tu Jesus, o galileu de Nazaré? — perguntou agressivamente o chefe
Malco ao adiantar-se no terreno.
— Sim, eu o sou... — respondeu sem aparentar medo.
Ele então deu um sinal aos policiais, que derrubaram Judas e investiram
contra Jesus, fato este que causou um princípio de distúrbio no sítio. Ao ver um
dos agentes de Caifás tentar segurar Jesus para prendê-lo, Magdalena tentou
obstá-lo e, ao agarrá-lo, fez com que ele vergasse para trás.
— Prendei essa mulher; prendei todos eles! — bradou Malco com a
espada já em riste.
— Não! — interveio firmemente Jesus. — É a mim que procurais, deixai
em paz os que aqui estão.
Magdalena estava transtornada e, nesse passo, continuava atracada com
aquele homem que havia tentado amarrar o seu mestre, sendo que ela apenas
desistiu em razão de um apelo dele, o qual a fez voltar a si e livrar-se daquela
rusga, da qual certamente sairia gravemente ferida.
Ao perceber que havia sido enganado pelo pérfido Caifás, Judas Iscariote
sacou a sua adaga e tentou investir contra um dos guardas, mas, em razão do
insucesso do golpe, que apenas resvalou a orelha de um deles, foi brutalmente
agredido e jogado novamente ao chão.
Ao ver Judas suplantado, Malco sentiu que era o momento certo para
seguir as ordens emitidas pelo sumo-sacerdote e, de forma infame, sacou a bolsa
que tinha auferido no Templo, e a arremessou na direção de Judas:
— Toma, zelote... Aí está o que pediste pela vida deste homem.
Ao virem Judas ser atingido pelas moedas que pulularam daquela capanga
de couro por cima dele, o clima se desconcertou, afinal, tudo indicava que o
mestre havia sido, por ele, vendido.
— Judas! — berrou Joana. — Maldito sejas, traíste o nosso mestre por
dinheiro — concluiu em lágrimas.
— Não, é mentira; é uma armadilha contra mim! — disse ao tentar
levantar sem conseguir.
Ao ver o desalento tomar Judas, Jesus lamentou:
— Escolheste o caminho das cobras e caíste no covil delas. Pois eu espero
que tenhas forças para suplantar tudo isso.
Ao perceberem os guardas do Templo aumentarem o grau de
agressividade com o grupo a fim de deter a todos, os apóstolos temeram pela
própria vida e, num ato instintivo, tentaram se salvar.
Embora muito assustadas, Mirian Magdalena e Joana conseguiram se
ocultar no breu, mas foram as únicas a continuar ali espreitando, afinal, elas
haveriam de seguir o mestre para onde quer que ele fosse. Percebendo que a
maioria havia fugido acuada, Malco deu ordens para que Jesus fosse finalmente
acorrentado e conduzido para a casa de Anás.
— E o restante deles? — disse um dos guardas ainda ofegante.
— Espalhai-vos e tentai encontrá-los. E se houver qualquer resistência,
fazei o que for necessário.
Enquanto Jesus era conduzido, alguns agentes do Sinédrio se imiscuíram
na mata do jardim e, sem muita dificuldade, dois deles logo cercaram Magdalena
e Joana, as quais tentavam se manter ocultas, a fim de acompanhá-los à
distância.
— Não resistais! — disse um deles, manejando um pesado pedaço de
corrente para prendê-las. — Posso fazer com que isso fique bem pior!
— O que irão fazer conosco? — perguntou Joana visivelmente aflita.
Pois percebendo que, na altura da testa, ela envergava a tatuagem de um
losango invertido cercado por quatro pontos, marca típica das prostitutas, um
deles tentou tirar proveito da situação e do ambiente ermo para ousar com ela:
— Bem, quem sabe eu possa levar-te para o meu leito — respondeu
irônico e sob os risos do companheiro de armas.
Notando a beleza de Magdalena, o outro guarda tentou fazer um gracejo
mais ousado, mas ela reagiu lhe dando uma bofetada. Deveras irritado, ele
revidou com um tapa mais forte, que a fez cair no chão. Dando mostras de que
agora estava com as más intenções potencializadas, ele tirou o cinturão e
caminhou na direção dela, a qual, ainda tonta em razão do golpe, pouco poderia
fazer para se defender. Embora Joana tivesse tentado gritar, o armígero que a
continha lhe tampou a boca.
Com ordens expressas para escoltar o avatar de Miguel até o término da
paixão, Beelzebu e Caliel já haviam deixado o cume do Getsêmani rumo à casa
de Anás e, diante disso, não puderam ajudar as velhas companheiras de
comitiva. Bem, eles não, mas outros anjos que por lá ainda rondavam, sim.
Enquanto buscava forças para reagir, Magdalena percebeu que os risos do
seu agressor cessaram, ou melhor dizendo, foram abruptamente interrompidos.
Ela então notou que ele ainda estava em pé e com um facho de fogo atravessado
no peito, o qual, ao ser repentinamente puxado para trás, fez com que o tal
guarda caísse morto.
Após isso, o outro oficial que rendia Joana a soltou e tentou fugir, mas as
asas velozes de Gabriel, assistido à distância por um misterioso arcanjo que com
ele viera do Céu, falaram mais alto e o calaram da mesmíssima forma. O ataque
do celeste foi tão preciso, que o coração do miliciano judeu ficou preso na ponta
do seu gládio, sendo então, em parcos instantes, consumido pelo mesmo fogo
que surdia dele.
Assombradas com o que viram, Mirian Magdalena e Joana se abraçaram
e, por um instante, temeram aquela inusitada figura, a qual, mesmo no escuro,
personificava uma jovem mulher armada e contornada por uma estranha aura de
luz que a destacava no breu. E olhando-as sem alterar o sério semblante, a
entidade desprezou aqueles dois cadáveres e se limitou a dizer:
— Eu abomino estupradores.
Feito isso, Gabriel se desfez no ar da noite e as deixou livres para
cumprirem o restante da lida que lhes cabia por destino.
Ainda espantada, Joana não conseguia sequer esboçar uma palavra e,
tentando ao menos gesticular, foi, de pronto, interrompida por Mirian:
— Nem ouses entender! Venha, vamos até a casa de José de Arimateia,
talvez ele ou o juiz Nicodemus possam ajudar o mestre.
Joana anuiu e, sem ainda conseguir dizer uma palavra, saiu no encalço da
irmã, e ali deixaram os dois corpos, que por terem sido atingidos por armas
santas, logo se consumiram e voltaram ao pó.
Quanto ao humilhado Judas, ele, de fato, acabou exposto à pantomina que
Caifás havia feito referência no Templo. E sozinho ali ficou, desarmado e
desacreditado. Pois percebendo que tudo em que acreditava não se havia
concretizado, ele chorou e também se desprezou. Jesus não reagiu aos guardas
do Sinédrio e, pelo visto, não reagiria contra os romanos. O sonho do aguerrido
zelote havia desabado, e continuar escravo dos romanos não era o que ele tinha
em mente. Judas então previu que o seu fim estava próximo. Mas ele estava
errado.
Capítulo 13
Condenado sem culpa
ANÁS, o qual havia sido sumo-sacerdote antes de Caifás, ainda exercia
notória influência no Sinédrio. Homem de rigores excessivos e moral discutível,
a casa dele foi escolhida para receber Jesus de maneira sorrateira, a fim de que
os sinedristas que o apoiavam não ficassem sabendo da prisão e, dessa forma,
não viessem atrapalhar os planos dos juízes mais radicais.
Ele e o genro Josefo Caifás, cuja base política era do partido saduceu,
tinham o controle sobre a maioria dos judeus de Jerusalém, e convencer os que
dependiam deles não seria difícil. Assim, caso eles conseguissem uma boa causa
contra Jesus, Caifás, encarregado de lidar com os romanos, trataria de apresentá-
lo na prefeitura, afinal os conquistadores lhes haviam castrado do poderio de
decretar penas capitais. Tal serviu, desde então, de cabresto, para alijar a força
imoderada dos titulares do Templo.
Jesus foi conduzido com os rigores de um preso comum e, após ganhar as
ruas da cidade com os punhos e os tornozelos contidos, finalmente chegou à
suntuosa casa do velho Anás. Tão logo transpôs a estreita porta da entrada, ele
subiu com dificuldade alguns degraus que o levaram a um salão cercado por uma
argamassa de mármore, a qual se assemelhava a um gabinete de audiências.
Pedro também havia fugido do Getsêmani e, ao tentar descobrir o
paradeiro de Jesus, soube que ele havia sido levado para a casa do sogro do
sumo-sacerdote. Sem prejuízo do perigo, ele se aproximou daquela morada e se
imiscuiu num ajuntamento que jazia em volta de um convidativo braseiro.
Uma das servas do decano, acordada para servir aos convocados que
chegavam, observou o pescador entre os presentes e, por já tê-lo visto na
companhia de Jesus, o acusou perante todos:
— Tu não és um dos seguidores do galileu que foi trazido preso?
— Não, estás enganada! — retrucou firmemente. — Eu estou de
passagem na cidade para a Páscoa, e por não ter encontrado pouso, cá estou
apenas para me aquecer — disse, em alusão ao frio de dez graus que já fazia
naquele início de madrugada.
— És galileu também, e estavas na companhia desse agitador quando ele
entrou na cidade — imputou um outro que lá surgiu ao reconhecer o sotaque do
norte de Pedro.
— Estais confusos! Eu vim a Jerusalém apenas para os rituais, pois sou
judeu e temente a autoridade do Templo — retrucou novamente.
Pois no interior do salão estava o ancião Anás. Ele vestia um turbante
grosso e envergava uma imensa barba branca, fazendo-se cercar por outros
sinedristas que, em sua imensa maioria, faziam parte do comprado partido
saduceu, o qual mais lucros e benefícios auferia do Templo. Some-se a isso que
Anás tinha uma antiga prevenção pelos galileus, afinal, havia sido no pontificado
dele que Judas da Galileia tinha conduzido uma grande revolta. E estando
cercado pelos seus, o ancião deu início a inquirição:
— Irmãos, se o assunto não fosse tão sério, eu não vos teria chamado a
essa hora da madrugada — disse com a voz mediana. — Malco, vai buscar o
preso!
Jesus era judeu, mas esse detalhe, naquele momento, nada importava. As
suas ações estavam pondo em xeque a autoridade do Sinédrio e arranhando os
lucros que os saduceus tinham nas cerimônias, mormente as que envolvessem
sacrifícios. A figura do nazareno havia vindo para quebrar a barreira que eles
haviam posto entre Deus e o povo, afinal, segundo professavam, somente eles
poderiam guiá-los ao Eterno. E, ao ver que os fiéis estavam começando a adorar
o Senhor sem regras e pedágios, isso os irritou em demasia.
Nesse ínterim, os guardas se dirigiram às masmorras a fim de conduzir o
preso para um julgamento cujo desfecho já havia sido engendrado. Pois assim
que ficasse em frente de seus verdadeiros inimigos, o futuro de Jesus, ali
forçosamente tratado como um criminoso qualquer, seria enfim selado.
***
Ainda impressionada com o que tinha acabado de ver, Joana, aos poucos
se convenceu de que algo sobrenatural havia ocorrido no jardim de Getsêmani.
Magdalena, cuja espiritualidade era mais aguçada, sabia que o mundo material
em que ambas estavam era apenas parte de um plano maior, onde anjos, almas
perdidas e calabouços sombrios se contrapunham à limitada ciência da razão.
Diante disso, evitou maiores delongas sobre a aparição de Gabriel, afinal, o
tempo urgia. E caminhando apressadamente pelas ruas de Jerusalém, elas
aportaram na casa do nobre José de Arimateia. Desesperadas, bateram
fortemente na porta e foram atendidas por um criado que, outrora simpático a
Jesus, ousou acordar o seu mestre a fim de que as duas pudessem apresentar os
seus pleitos.
— Preso? — surpreendeu-se o juiz. — Mas como?
— Policiais do Templo, eles chegaram no meio da escuridão e o
prenderam como um malfeitor qualquer.
— Caifás foi deveras astuto em fazer isso durante a noite. Mas eu tentarei
intervir em favor de Jesus, mandarei um empregado até a morada do mestre
Nicodemus para que juntos façamos voz diante desse absurdo.
José de Arimateia vestiu um turbante rajado e, acompanhado das duas
apóstolas, rumou para a casa de Anás, onde uma aglomeração já havia se
formado. Em razão da sua autoridade, os policiais que ali estavam não puderam
lhe obstar a entrada e, tão logo o nobre judeu ingressou no salão e se mostrou
aos demais, Anás e o seu genro ficaram incomodados.
— Mas o que se passa aqui? Eu soube que um dos nossos irmãos foi preso
e nós sequer fomos avisados? — insurgiu-se.
— O caso era urgente, Mestre José — interveio Caifás. — Não tivemos
tempo...
— Não tivestes tempo? — provocou. — Pois eu vejo aqui muitos que
pensam como vós, os quais, inclusive, residem bem mais longe do que eu, que,
com um simples grito, poderia ter sido notificado — desafiou diante do fato de
ser praticamente vizinho de Anás.
Nesse ínterim, Nicodemus ganhou o espaço e causou notório desconforto
aos sinedristas presentes, a maioria comprada por Caifás e presa aos favores de
Anás.
— O que houve, irmão José? — indagou ávido.
— Eles prenderam Jesus — respondeu com a voz baixa. — E pelo jeito,
tudo indica que irão julgá-lo à revelia da Lei.
Aproveitando o tumulto, Caifás ergueu os braços e tomou a palavra no afã
de tentar sufocar os poucos sinedristas que eram partidários dos ideais de Jesus:
— Já chega, apresentai-o a nós! — bradou de forma dramática aos
guardas do Templo que o haviam detido.
Ao verem Jesus ser conduzido amarrado e de maneira rude, os seus
defensores temeram pelo pior. Posto diante de Anás, o galileu se mostrava
sereno, bem mais do que quando estava no Getsêmani, onde a sua agonia só foi
amenizada em razão das palavras de força vindas de Gabriel e do maná sagrado
que ingeriu.
— Jesus, filho de José. Este Conselho não tem a intenção de tratar-te
como um bandido comum, mas deves entender a nossa cautela, afinal, sobre ti
recaem acusações graves, dentre as quais, as de bruxaria, blasfêmia, sedição e
tantas que eu sequer sei por onde começar. Portanto, antes de mais nada, dou-te a
grata oportunidade de explicar a natureza dos teus ensinamentos — disse Anás
de forma aparentemente gentil. — O rabi, entretanto, nada respondeu. E ao
contrário, manteve-se como estava, sério e com a cabeça erguida. — Estás
mesmo certo de que não tens nada a dizer? — insistiu Anás.
— Eu sempre falei abertamente... — respondeu Jesus. — Ensinei nas
sinagogas, no Templo e até nas ruas, e tudo o que eu fiz nunca foi em segredo. E
se assim agi, por que me fazes essa pergunta?
Irritado com a aparente impertinência daquela resposta, um dos policiais
que o conduzia avançou na direção de Jesus e o agrediu com um bastão, ferindo
a sua face direita e a base do nariz, cujo sangue começou a brotar.
— É dessa forma que respondes ao grande decano? — gritou o agente ao
vê-lo administrar a força do golpe auferido. Ao perceber que, sem prejuízo da
violência, ele não deu mostras de temor, mas fulminou-o com um olhar
indiferente e ainda ofertou-lhe o outro lado da face, o referido miliciano,
desmoralizado, se afastou instintivamente.
— Mantende a calma, senhores! — apelou Caifás, com um sorriso falso
no rosto. — Voltando ao nosso caso, tu alegas ser um “mestre”! Mas em qual
escola rabínica te formaste? — tripudiou.
— Tudo o que eu sei aprendi aqui e acolá, no Egito e na Judeia, com
pessoas letradas e até mesmo com as sem cultura alguma. E, com Deus, eu
aprendi que a Lei, distorcida em nome de interesses estranhos aos Dele, deve ter
nova hermenêutica; a hermenêutica do amor.
— És um impostor! E um impostor um tanto arrogante! — bradou o
sacerdote. — Como ousas decretar novas Leis no lugar das de Moisés?
— Irmãos, nada do que ele professou ofende a nossa fé — interveio
Nicodemus de forma apelativa. — Ele apenas pede para que sejamos pessoas
melhores, com mais esperança e mais alento — justificou, sob a concordância de
José de Arimateia.
— Jesus! — bradou Anás se erguendo. — De tudo o que possas ter feito,
me causa maior temor a máxima de que terias te autoproclamado filho de Deus!
— Andou na direção do preso, apontou-lhe o dedo e indagou com vigor nas
palavras. — Homem, eu agora te conjuro em nome do Altíssimo. Dize-nos sem
rodeios e de uma vez por todas, és tu o Cristo, o Messias, o filho do Deus vivo?
— Sim, eu sou um príncipe, o mensageiro do novo pacto — respondeu
Jesus com vigor. — E embora vós estejais cegos para determinadas verdades,
sabei que eu me sentei e ainda voltarei a me sentar do lado direito de Deus, de
quem, por sangue e fogo, sou filho legítimo.
Aparentando passar mal, Anás levou uma das mãos ao coração e buscou
escora em Caifás que, num repente de fúria, se voltou ao preso e rasgando as
próprias vestes, vociferou:
— Blasfêmia! Sedição! Que necessidade temos de ouvir mais
testemunhas[140]? Eis que todos presenciaram os horrores entoados por este
homem. Não há dúvidas, ele é um réu de morte! — finalizou Caifás, cuspindo-
lhe no rosto.
— Irmãos, isso tudo é errado! Uma decisão dessas, na calada da noite, só
trará vergonha para o nosso conselho! — apelou José de Arimateia sob os gritos
de repulsa da maioria dos sinedristas.
— Basta de tolices, Mestre José! — interferiu Anás de maneira brutal. —
O que está em jogo agora não são apenas as nossas tradições, mas a própria
existência do povo judeu, ameaçada pelos delírios desse insano! E pelo que
ouvimos aqui, apenas o prefeito romano poderá dar um fim a isso.
— Então irás entregar um irmão nosso a Pilatos? — insurgiu-se
Nicodemus.
— Já está decidido! — gritou Anás. — Leva-o daqui, iremos todos até a
fortaleza Antônia.
Ao ser agressivamente puxado pelos guardas, Jesus encarou aquele vil
sacerdote e, com a boca já sangrando, disse a ele:
— Deus disse: “não matarás”! E ainda assim apedrejais mulheres e
festejais a morte daqueles que vos contestam. Pobres de vós... — disse ao ser
arrastado para um tímido cômodo à parte, onde ficaria à espera de remoção.
— Este julgamento é uma fraude! — contestou o Mestre José em meio à
balbúrdia causada pelo veredicto. — Uma fraude! — repetia contrariado e no afã
de tentar obstar aquele absurdo.
Após a sessão, José de Arimateia e Nicodemus ganharam a rua e foram
instados por Magdalena e Joana, as quais, aflitas, ali esperavam por novas sobre
o rabi.
— Eu temo ser portador de más notícias... — disse José.
— Más notícias? Mas o que houve? E o que fizeram com Jesus?
— Jesus foi acusado de blasfêmia e sedição. E, à total margem da Lei, foi
pré-julgado sem qualquer direito a defesa.
— Sedição? — assustou-se Magdalena.
— Sim... — assentiu o judeu.
— E o que queres dizer isso, senhor? — indagou Joana.
— Que a pena a ser dada a ele pode ser a de morte.
— Morte? — desesperou-se Joana.
— Mas não esmoreçamos, isso escapa da limitada esfera de poder dos
sacerdotes, por piores que sejam as intenções deles. Somente o procurador
romano Pôncio Pilatos poderá confirmar a sentença.
Magdalena caiu de joelhos, e Joana parecia ter entrado em choque.
— Eu tenho certa entrada na casa de Pilatos e, em razão disso, tentarei
apelar. Mas já adianto que a situação é deveras delicada — concluiu. — E antes
que eu me esqueça, tendes cuidado, afinal, os apóstolos deles também são
procurados.
— O que nós faremos, Mirian? — indagou Joana.
— Nós faremos aquilo que prometemos. Ficaremos ao lado de Jesus,
aconteça o que acontecer.
— Cuidado. E se precisardes vos esconder, contai com a minha guarida.
Nesse ínterim, Jesus surgiu no pátio, conduzido pelos guardas e
hostilizado pelos efusivos sinedristas. E ao vê-lo com o rosto bem machucado,
elas começaram a chorar de forma compulsiva, mormente quando um dos vigias,
ao saber que a “condenação” versava sobre blasfêmia, segurou o prisioneiro
pelos cabelos e, com a mão direita, arrancou-lhe um considerável tufo de barba,
haja vista ser essa uma das humilhantes penas corporais reservadas aos
esconjurados por aquele delito.
Sem prejuízo disso, Jesus orava em voz baixa e não reagia: “felizes os que
não andam segundo os ímpios; não estão no caminho dos pecadores e nem se
assentam na roda dos escarnecedores”, sussurrava, no que era tripudiado pelos
que o cercavam.
Já eram cinco e meia da manhã quando Anás e os seus sequazes deixaram
o salão a fim de ganhar a fortaleza romana e, logo atrás deles, os agentes do
Sinédrio seguiram empurrando o nazareno, cuja fibra impressionava, e de certa
forma irritava, os seus detratores.
Pois ao atravessarem o portão da morada do antigo pontífice, um dos
soldados que esteve no Getsêmani se deparou com Pedro, o qual, sob a falsa
escusa de livrar-se do frio, ainda lá estava. E, encarando detidamente o pescador,
o guarda disse a ele de forma ameaçadora:
— Tu não estavas no jardim com este blasfemador?
Acuado e vendo Jesus ferido e a fitá-lo, Pedro recuou e não respondeu.
— Responde! — insistiu o miliciano. — Estavas ou não com este
homem?
— Não. Eu juro que não conheço esse mendigo! Só quero aquecer-me,
por isso estou aqui...
O mestre, mesmo com o rosto levemente inchado, olhou friamente para
Pedro e seguiu o seu caminho, impelido que foi de maneira rude e agressiva.
Pois assim que eles se afastaram, Magdalena surgiu repentinamente diante do
infiel e o encarou de forma a admoestá-lo pela sua covardia:
— Tu e Judas o traíram. Ele, por ódio; e tu, por medo da morte. Tenta
viver com isso, “senhor pescador”.
Tão logo ela findou aquela frase, ocorreu o que Jesus havia antevisto. Um
galo, seguidamente, cantou por três vezes.
Ao ouvir o brado da ave, Pedro segurou os próprios cabelos e, tomado por
um arrependimento extremo, gritou e saiu em desabalada carreira, chorando
amargamente pela fraqueza de espírito e pelo temor de perder a sua vida
material.
Magdalena e Joana, firmes no propósito assumido, seguiram a comitiva
que já subia para a casa romana, oportunidade em que os primeiros raios de sol
anunciavam a chegada do dia. Já eram, então, seis horas da manhã.
Desperto pelos fortes golpes dados na austera porta dos seus aposentos,
Pilatos acordou deveras assustado. Havia passado a noite praticamente em claro,
afinal, sua esposa estava agitada e pouco tinha descansado. Quando finalmente
ambos pareciam ter pegado no sono, um dos seus ajudantes de ordem, de forma
abrupta, o fez saltar da cama:
— Eu espero que seja algo importante, Anaxander... — disse ele.
— Senhor... — balbuciou. — O comandante da guarda deseja falar-te —
disse ele apontando o nervoso centurião.
— O que houve, Marcellus?
— Excelência... — adiantou-se. — Creio que temos problemas...
Pilatos se vestiu rapidamente e, sob o ainda assustado olhar da esposa,
seguiu o oficial e dele auferiu as novas:
— Está, no palácio, uma comissão de sinedristas lideradas pelo próprio
sumo-sacerdote...
— E o que querem eles a essa hora da manhã? — indagou ajeitando a
toga.
— Clamam por uma audiência extraordinária nas escadarias do pretório,
já que, segundo a Lei deles, não podem entrar num prédio romano durante a tal
Páscoa, sob pena de se tornarem impuros.
— Esses judeus e os seus costumes estúpidos — retrucou. — Mais
alguma coisa que devo saber?
— Eles estão conduzindo um prisioneiro. E pelo que me foi dito, trata-se
daquele tal agitador, Jesus de Nazaré.
— Jesus de Nazaré? — retrucou parando momentaneamente. — O tal que
entrou na cidade ovacionado pelos próprios judeus?
— Sim senhor. Mas parece que o jogo virou...
— Eu já desconfiava, Caifás queixou-se dele recentemente, e eu não dei a
devida atenção. Vem comigo, não podemos ter quaisquer problemas durante o
festival judaico.
Ao ganhar as pilastras do pretório, Pôncio Pilatos se deparou com um
ajuntamento de juízes judeus, cuja consentânea guarda trazia preso um homem
visivelmente ferido na face, mas de aparência serena e segura.
— Excelência, nós necessitamos dos vossos valiosos préstimos para
resolver um incidente de vultuosa gravidade — disse Caifás.
— Tão grave assim? — retrucou Pilatos, ao ver, de longe, as lesões que
Jesus tinha na região da face.
— Se não o fosse, não teríamos vindo a vós tão cedo.
— E por que a mim? Por que não o julgam conforme as vossas leis?
— Se nós fossemos uma nação livre, o faríamos com certeza. Mas por
sermos um povo conquistado, não nos é lícito condenar alguém à morte.
Diante daquela ponderação, Pilatos logo percebeu que Jesus não era tido
como um criminoso comum.
— Morte? — questionou receoso. — E o que fez ele para merecer tal
suplício?
— Esse homem praticou vários crimes graves — esclareceu o sumo-
sacerdote. — Violou o sábado, professou doutrinas ofensivas...
— Mas isso não é problema de Roma — interrompeu-o de forma abrupta.
— Senhor, isso não é tudo. Nós também fomos informados que ele é o
líder de uma seita perigosa, bem mais hostil que a dos próprios zelotes.
— Continua...
— Ele professa ser o Messias, o rei prometido aos judeus cativos. E tem
dado a entender que nós não devemos recolher tributos ao Império Romano, o
qual ele não reconhece como soberano.
Ao ouvir as expressões “rei” e “Império Romano”, Pilatos encarou
Marcellus e ordenou:
— Trazei-o aqui.
Licenciados com um singelo movimento de cabeça do oficial, dois
legionários que os acompanhavam tomaram Jesus das mãos dos carrancudos
policiais do Templo e o levaram para o interior do pretório, onde a justiça de
Roma era aplicada. Pilatos lá se pôs enfadonho, e estando de costas para o
prisioneiro, verteu um pouco de água numa taça. Ao dar um gole, aproximou-se
de Jesus e, de maneira cortês, ofereceu-lhe o restante. Sem perder o bom-humor,
ele levantou os braços contidos pelas pesadas correntes, dando a entender que
daquele modo não conseguiria segurar o copo. Pilatos então mandou que o
soltassem daquelas algemas, e ele então aceitou o gesto, o qual aparentava ser de
boa vontade. Após saciar a sua sede, o nazareno devolveu a taça e ficou à espera
de uma iniciativa do prefeito.
— Tu falas grego? — indagou envergando o idioma de emprego geral.
— Sim, um pouco... — respondeu Jesus na mesma língua.
— Bem, ouviste o que os teus estão a te acusar, então dize-me, és o
prometido rei dos judeus?
— Perguntas por ti mesmo ou apenas por que eles te disseram isso?
Pilatos o fitou surpreso com a resposta e, tencionando não se desconcertar
e aborrecer-se insistiu:
— És corajoso, nazareno, coisa rara de se ver entre os teus, afinal nem
[141]
Josué e tampouco Salomão irão se levantar dos seus túmulos para salvar-te.
Mas lembra-te que não fui eu quem te prendeu, e sim a tua própria gente.
— O que posso dizer é que o meu reino não é nesse plano. Pois, se fosse,
a minha armada não teria deixado que me detivessem.
— Eu entendo... Mas ainda assim, sou impelido a insistir. És rei; o
profetizado “Messias”?
— Digamos que eu seja um príncipe — respondeu, em alusão ao seu título
celeste junto à casta dos arcanjos. — E foi em razão disso que eu vim, para dar
testemunho da verdade.
— “A conformidade de um fato...” — ponderou Pilatos, ao analisar
friamente o significado daquela expressão. — Mas, e para ti, o que é a verdade?
— Certamente não é aquela que foi usada como pretexto para que me
trouxessem sob ferros até a vossa presença.
Cláudia Prócula ouvia, aflita, aquele colóquio numa antessala e, deixando-
se, por um momento, revelar ao esposo, este a fitou preocupado e, vez mais,
encarou Jesus, cujo inchaço do rosto parecia aumentar a cada instante. Pilatos
teve um repente e, dando por encerrado aquele interrogatório, gesticulou aos
soldados, que se puseram a reconduzir o nazareno à entrada do pretório, onde os
sinedristas aguardavam ansiosos.
— Não vi culpa alguma nele. Ele não é um bandido, é apenas um filósofo
— revelou o prefeito.
Incomodados com aquela conclusão, e ainda assim, evitando se aproximar
dos arcos da casa de ordens romana, os senadores judeus ainda tentaram
ponderar, mas Pilatos tentou lhes dar o troco pela ousadia:
— É de Nazaré que vem esse homem, pois não?
— Sim, excelência. Mas...
— Pois então ele deve ser julgado pelo tetrarca da Galileia, que por ser
judaizado, está na cidade para os vossos festejos — assentou.
E após restituir Jesus aos guardas do Templo, o prefeito romano deu as
costas a Caifás e retornou à fortaleza na certeza de que havia se livrado daquele
incômodo fardo, principalmente diante da presença física do detido, que
indiretamente pareceu assombrá-lo.
Mesmo inconformados, os sinedristas se puseram a caminho da edificação
onde Antipas ficava quando vinha a Jerusalém, afinal, a lide estava apenas
começando.
Quando o filho do finado rei da Judeia soube que Jesus estava no salão
central do palacete, ele ficou efusivo e, ao mesmo tempo, preocupado, afinal, ele
era um profeta de renome e, desde que tinha mandado matar João Batista, as
possibilidades de ele levantar a mão contra o nazareno — por medo e remorso
— eram mínimas.
— Jesus, quanta honra receber-te! Peço desculpas pela pouca pompa das
minhas vestes, afinal, confesso que fui retirado do meu leito apenas para poder te
ver.
Jesus encarou Antipas e se manteve silente, afinal, ele captou que o
regente da tetrarquia estava literalmente apavorado.
— Eu soube que és primo do finado João Batista... — lamentou de forma
teatral. — Um homem excelente, um profeta incrível... — continuou no afã de
tentar impressioná-lo. — Mas enfim, a que devo o prazer da tua inusitada visita?
— Ele é um criminoso, majestade — interferiu Caifás. — E por ser galileu
de nascença, o prefeito o encaminhou ao vosso alvedrio para julgá-lo.
— Um criminoso? Mas do que ele é acusado?
— Ele diz ser o “Messias”.
Ao ouvir tal expressão, Herodes Antipas alterou a fisionomia e recuou.
— “Messias”? — retrucou incomodado. — Pois eu me lembro que,
quando moço, o meu pai ficou atemorizado com a vinda dele. E em razão disso,
baixou um decreto que pôs fim a centenas de pequenas vidas inocentes. Enfim,
Herodes I e suas sandices, não é à toa que teve o fim que teve — concluiu, ao
sentar-se numa cadeira que lhe servia de trono. Percebendo que não havia
impressionado Jesus, ele se ergueu e foi vagarosamente em sua direção. — Mas
deixa-me dar-te uma oportunidade para que desmontes essa acusação que pesa
contra ti. Dá-nos uma pequena demonstração dos teus poderes. Faz um pequeno
milagre.
Jesus então quebrou o silêncio e disse a ele:
— O destino do teu pai foi justo, os pecados dele foram abomináveis. Mas
não me tentes, pois se não cedi ao caído, não o farei a alguém como tu...
Herodes ficou surpreso com o tom daquela resposta, e ao perceber que um
dos guardas do Templo iria agredir Jesus novamente, ele o obstou com um
movimento de braço. E ao encará-lo detidamente, ficou aterrorizado com as
verdades que viu através daqueles olhos — mormente o colóquio com Salomé
— e, recuando novamente, passou a temê-lo, assim como havia temido João
Batista. Desejando privar-se da responsabilidade sobre o destino de Jesus e não
cometer os mesmos erros do pai, o tetrarca baixou o tom e disse aos senadores
judeus:
— Levai-o de volta, pois pelas leis romanas, ele deve ser julgado no lugar
onde cometeu os crimes que ora lhe imputam — decidiu aparentemente acuado.
Os sinedristas entraram em polvorosa, afinal, todos pareciam ter medo de
Jesus, a exceção deles. E visivelmente nervosos, eles retomaram o caminho do
pretório, decididos a usar todo e qualquer subterfúgio para convencer o
procurador romano da culpa do nazareno.
***
***
***
Feito isso, um dos romanos apontou para um canto do pátio, onde três
patíbulos[150] com duas grossas argolas de ferro em cada extremidade estavam
postos no chão à espera de serem carregados. Os ladrões foram empurrados sem
muita gentileza e os ergueram pelos aros, ao passo que Jesus, mesmo
envergando contusões horrendas e sentido dores terríveis ao respirar, dirigiu-se
voluntariamente à única trave que lá sobrou e, com extrema dificuldade, mas
sem emitir um lamento, a colocou sobre o ombro direito e passou a arrastá-la
vagarosamente até o grande portão de saída.
Embora estando num precoce pré-estado de choque, o nazareno não
esmoreceu e seguiu firme, fato este que impressionou não apenas Cartaphilus,
que conduzia a fila com um chicote de couro convencional, mas também ao
restante da soldadesca, que acostumada àqueles rituais, custava a crer que o tal
homem ainda tinha forças para andar, quiçá com um peso daquele sobre as
costas.
Diante da inquietude que se instalou, Marcellus achou por bem tomar a
frente do esquadrão de crucificação, que àquela altura, já conduzia os três presos
para a morte. Embora flagelados, Dimas e Gestas não haviam recebido sequer
um terço do castigo auferido por Jesus mas, ainda assim, demonstravam mais
dificuldade em carregar aquele grosso pedaço de oliveira do que o judiado rabi.
Quando a multidão vislumbrou os condenados na via, houve um princípio
de tumulto, afinal, fora do pretório, muitos seguidores de Jesus finalmente
tiveram acesso a ele e, vendo-o completamente desfigurado, passaram a entoar
palavras de ordem em desfavor dos romanos, os quais tiveram que ser
extremamente rigorosos na contensão dos rebelados.
Logo na saída do Fórum, Barrabás, recém-liberto, chamou por Jesus e
visivelmente alterado, gritou:
— Por que não pegaste a espada e lutaste pelo que acreditas? Não passas
de mais um covarde, mereces mesmo morrer na cruz — tripudiou ao ser
empurrado por um guarda romano mais severo.
Jesus o encarou e seguiu adiante, esforçando-se para carregar o patíbulo e
não demonstrar fraqueza. Embora a cadência dos presos estivesse lenta diante da
multidão que se acotovelava, os soldados ficaram moralmente constrangidos em
açoitá-los, mormente a Jesus, tendo em vista o esforço descomunal que ele,
mesmo já estando quase morto, naturalmente apresentava.
No interior da fortaleza, Cláudia Prócula ganhou o salão e encarou o
marido com lágrimas nos olhos. Ao vê-lo extremamente preocupado e
visivelmente emocionado, ela se aproximou e o abraçou, quase que num tom
maternal.
— Se eu não o condenasse, Caifás incitaria uma revolta. Pois te confesso
que tive medo de que, se isso acontecesse, o sangue vertido fosse o nosso.
— Agora, infelizmente, já está feito. E eu espero que os meus piores
temores não se tornem realidade.
Dito isso, ela saiu na companhia de Verônica e de dois soldados
pertencentes à sua escolta e, como a maioria, ganhou as ruas cheias de Jerusalém
para acompanhar os últimos momentos de Jesus.
Entre ofensas, risos e choros, o nazareno se superava a cada passo, sendo
que, em razão da fadiga que começava a pesar, acabou tropeçando e caindo
sobre os joelhos, os quais, já anteriormente feridos, acabaram esfolados em razão
dos pedregulhos que inundavam o chão. Um dos membros do esquadrão
percebeu e, em instinto, ergueu um dos braços para açoitá-lo. Ao dar alguns
passos a fim de atingir as costas de Jesus, Caliel, que a tudo assistia passivo e
furioso no colo de Beelzebu, movimentou-se em disparada e, camuflado em luz,
colocou-se entre as pernas do romano e as travou de modo a fazê-lo cair.
Percebendo uma silhueta estranha se mover naquele cenário, o outro soldado se
conteve em tentar fazer o mesmo e, temendo o desconhecido, acabou erguendo
Jesus pelo braço a fim de fazê-lo retomar a cadência.
Ao retornar para onde estava, Caliel foi severamente admoestado por
Beelzebu, mas o pequeno era um tanto desobediente e não estava nem um pouco
satisfeito em ver o estado penoso do avatar de Miguel. Diante disso, o seu
instinto de proteção falou mais alto e acabou amedrontando o tal romano, que já
anteriormente impressionado com a resistência de Jesus, ficou ainda mais
convencido de que algo deveras estranho estava acontecendo por ali.
O caminho dos condenados pelas ruas da cidade parecia infinito, pois
embora as crucificações fossem normais naqueles dias, o status de um dos presos
era considerado especial, o que contribuiu para que as vias, normalmente cheias
em razão da Páscoa, ficassem infestadas de crentes e curiosos.
Até então tímido, o sol subiu e começou a arder na pele dos réprobos,
mormente na de Jesus, que em razão da contínua perda de sangue e suor, já dava
sinais de uma premente hipovolemia[151]. O rigor dos golpes dados no seu peito
lhe dificultavam a respiração e, a cada cadência de ar inspirada, uma dor terrível
o acometia. As escaras causadas pela força do flagelo pareciam ter criado
grandes coágulos enegrecidos sobre a pele do Messias, os quais deram a ele uma
aparência que já beirava a deformação. Pois assim, deslocando-se com
dificuldade em razão do peso do patíbulo, que parecia dobrar a cada passo, ele
tropeçou pela segunda vez, desta feita, deixando a trave lhe prensar severamente
o ombro, que à primeira vista, parecia ter sido quebrado.
Nesse instante, Cláudia Prócula fez a sua escolta abrir caminho a fim de
poder se aproximar de Jesus, cuja face jazia naquele terreno pedregoso e
ligeiramente aquecido. Percebendo a presença da primeira dama romana, o
centurião Marcellus manobrou as rédeas do seu cavalo e retornou rapidamente
para o cenário da queda, a fim de tentar garantir que nenhum dos executores
cometesse uma sandice que os fizessem perder a vida.
Cláudia então levantou a cabeça de Jesus e se lembrou de quando o viu
pela primeira vez nas proximidades do Cedron, pelas mãos dele, havia
conseguido a cura para as suas dores. Nesse instante, a aia Verônica surgiu por
trás dela e tirou o véu branco que vestia, levando-o incontinente ao rosto do
nazareno a fim de limpá-lo do sangue e da terra. Ele aceitou o ato sem recalcitrar
e, ao retomar o dito adereço para si, Verônica percebeu, boquiaberta, que os
traços de Jesus haviam ficado impressos nele[152].
Os soldados do esquadrão logo se adiantaram e levantaram o condenado,
o qual agarrou a argola de ferro com as duas mãos e continuou a arrastá-la, agora
com mais dificuldade. Cláudia e Verônica ficaram prostradas em respeito àquele
homem que só queria a paz entre os povos, mas que, naquele momento, estava
na iminência de ter a mais miserável das mortes.
Mesmo caminhando com crassa fraqueza, Jesus insistia em seguir sem
verter a cabeça, cuja coroa de espinhos vez ou outra resvalava no patíbulo e
potencializava a dor e os ferimentos naquela região, onde as terminações
nervosas já estavam entrando em colapso.
Dimas e Gestas vinham logo atrás e, embora tivessem sido bem menos
judiados, pareciam sentir bem mais o peso das traves.
Em dado momento da via crucis, alguns sinedristas, dentre os quais o
próprio Caifás, estavam dispostos de modo a poder encarar os condenados do
alto dos seus pomposos animais de carga, sendo que, ao ver Dimas passar
próximo de si, o sumo-sacerdote apontou-lhe o cajado e lançou-lhe uma
maldição por ter desvirginado a sua agora desviada filha:
— Tu queimarás nas profundezas, violentador maldito!
Quanto a Jesus, os juízes o encaravam com um misto de desprezo e
satisfação, afinal, eles estavam crentes que o nome dele estaria em breve
enterrado. Mal sabiam o quanto estavam errados.
Já estando, a fila, próxima à saída da cidade, alguns extremistas
investiram novamente contra Jesus e, burlando o cerco dos guardas, o
empurraram e o fizeram cair pela terceira vez. Os soldados tentaram intervir e
entraram em vias de fato com eles, o que fez com que Marcellus retrocedesse
novamente e tentasse interceder antes que aquilo evoluísse para algo que
pudesse efetivamente comprometer a execução que já se avizinhava.
Em meio à turba, Judas surgiu por entre os desordeiros e, abrindo caminho
caiu de joelhos perante o seu mestre e apelou em lágrimas:
— Reage, Mestre! Não nos faças acreditar que tudo foi em vão.
Nesse mesmo instante, um dos soldados encaixou o pé direito no peito de
Judas e o empurrou para trás, tirando-o forçosamente da frente de Jesus. E a este,
ordenou com extremo vigor:
— Vamos, Judeu! Levanta-te; caminha!
Irritado com a passividade do rabi, o apóstolo, agora tresloucado, bradou:
— Então caminha, Jesus! “Levanta-te e caminha!” — continuou,
arremedando a expressão dita pelo soldado.
Com esforço, ele voltou o rosto para o traidor e disse:
— Judas, és tu quem haverás de caminhar. E caminharás, errando e sem
destino, até o final dos dias.
Após certo rigor da guarda, a balbúrdia foi enfim controlada. Entretanto,
Jesus parecia estar sendo vencido pelas lesões, as quais haviam lhe tomado o
corpo e tolhido as forças.
Irritado com as constantes paradas, Cartaphilus se aproximou de Jesus e
ergueu o braço a fim de chicoteá-lo e obrigá-lo a levantar. Mas quando o látego
do vil romano se preparava para atingir a judiada face do nazareno, a mão do
soldado foi firmemente segura por um homem que lá surgiu, o qual,
hipnotizando-o com um olhar gélido, fez com que ele recuasse assustado.
Embora o estranho usasse um capuz que lhe vedava a grata parte do rosto
levemente deformado, Cartaphilus notou que os braços dele apresentavam uma
pigmentação estranha, como se estivessem manchados de rubro. Sem
dificuldade, aquele forasteiro que beirava um metro e noventa de altura, segurou
a grossa argola do patíbulo com a mão direta e o pôs num dos ombros, tirando-o
completamente do chão. E com a esquerda, ele levantou Jesus de maneira gentil,
afinal ele estava prestes a desfalecer. Percebendo que se tratava de um homem
avesso à compleição média dos judeus, o romano sacou o seu gládio e foi ríspido
com ele:
— De onde vens, estrangeiro?
— De longe; de um continente chamado África — murmurou por baixo
daquela velha túnica surrada.
— África... — repetiu intimamente assustado. — Pois bem, “africano”, a
tua sorte é que estamos em meio a um perigoso cenário, pois, caso contrário,
essa tua audácia te teria custado caro. Pega então essa trave e leva-a até o alto da
colina, afinal, esse infeliz já aparenta estar nas últimas — disse jocosamente em
referência a Jesus.
— Venha, senhor, o vosso martírio já está chegando ao fim — disse o tal
homem ao nazareno, cuja plena consciência já estava a lhe trair.
Pressionados pelos executores, os condenados atravessaram o grande
portão da cidade e finalmente visualizaram o temível platô da Gólgota, onde as
execuções eram consumadas em atacado. Entre si, os soldados pareciam
surpresos com a força daquele estranho, tendo um deles, de origem grega, o
comparado ao herói Hércules.
Já passava das oito horas da manhã quando a fila ganhou a subida da
última estação daquele martírio. E ainda carregando a trave com uma mão e
amparando Jesus com a outra, aquele estrangeiro chegou no cume do monte e
então largou bruscamente o patíbulo, que ao se chocar no chão levantou a areia e
espantou alguns insetos.
A Gólgota era um lugar com energia muito ruim, similar à da Tesouraria
das Almas. No alto dela, estendiam-se várias vigas de madeira medindo três
metros e meio cada, as quais eram previamente fincadas no solo. Nelas, de
tempos em tempos, eram fixados os patíbulos onde os condenados acabariam
pregados e mortos.
O ambiente cheirava demasiadamente mal, principalmente na área das
estacas-mestras, pois era comum aos prisioneiros urinarem e defecarem em
razão da dor, sendo que os seus excrementos ficavam aos pés das cruzes
acumulando moscas, larvas e outros seres repugnantes. Fora isso, a assombrosa
alcunha dada àquele sítio aludia às centenas de crânios e ossos que por lá se
espalhavam; restos dos condenados que, se não fossem devorados pelas aves de
rapina, eram entregues aos chacais que rondavam as imediações em busca de
comida. Mas dependendo do status dos condenados, eles acabavam
sumariamente desprezados no imundo vale de Geena[153].
Já estando próximo de sofrer um choque traumático, Jesus foi jogado ao
chão pelos soldados a fim de aguardar o início da sua crucificação. Mas ainda
estando ali, o forasteiro que o havia ajudado a carregar o patíbulo se aproximou
e, aparentando estar bem emocionado, rogou com recato:
— Senhor, me perdoa, eu pequei... — revelou já chorando. — Eu matei e
violentei o sangue do meu sangue, o filho e a filha de minha mãe.
Tentando encarar o penitente, Jesus respondeu com a voz já falhando:
— Hoje, ajudaste a carregar os pecados do mundo, e por isso, Deus tirará
a marca que te fez. E Ele te diz: vai em paz e passa adiante o teu cajado.
Diante da corpulência daquele forasteiro, os soldados o admoestaram à
distância para que ele saísse de lá, no que o tal, passivamente, acatou. Pois ao
descer a trilha da Gólgota, olhando vez ou outra para o agora abatido nazareno,
aquele estranho errante cruzou inadvertidamente com Magdalena, a qual,
abatida, lá chegava com a escora de Joana e Betseba. Ao vê-la diante de si, o
forasteiro ficou de joelhos, tomou-lhe as mãos e revelou:
— Depois de séculos, eu auferi o meu tão esperado perdão. E estejas
certa, minha mãe, também auferirás o teu.
Embora confusa com aquela intervenção — seria um louco? —, Mirian
Magdalena percebeu algo de muito familiar naqueles olhos verdes que se
revelaram rapidamente por entre o capuz e, por um instante, lhe veio à
lembrança a inusitada cena de uma serpente com Eva no Éden. Após
experimentar uma ligeira vertigem, ela voltou a si, mas não se deu conta de que
o seu “eu” atual abrigava a alma de Lilith e diante dela, estava o próprio filho
espúrio, Caim[154], vagabundo na Terra desde que, vários séculos antes, havia
matado o pequeno Abel e violentado a irmã, a doce Luluvah. Pois ao esperar por
milênios para poder saldar a sua dívida carregando a pesada cruz do filho de
Deus, Caim teve os seus crimes finalmente perdoados e o sangue que lhe
manchava a pele diluído. E tão logo ele achasse aquele que estava predestinado a
receber o seu cajado — uma espécie de símbolo de culpa —, a morte e a paz
iriam visitá-lo.
Aos pés das vigas, o esquadrão de crucificação já se preparava para selar o
destino dos três condenados e, sem muita gentileza, posicionaram-nos com os
braços próximos aos patíbulos e lhe arrancaram as vestes. Nu, apenas com a
coroa de espinhos e o titulum preso ao pescoço, Jesus foi jogado e amarrado à
trave que seria içada de modo a fazê-lo ficar exposto. As mulheres que o
seguiam foram impedidas de se aproximar das grandes pilastras, afinal, o clima
ainda era hostil e a área das cruzes costumava ser defesa aos familiares e
curiosos.
Já estando preso ao patíbulo, um dos guardas segurou as pernas de Jesus e
o outro sacou um prego cujo comprimento beirava os dez centímetros e, ao
posicioná-lo na mão direita do nazareno e finalmente golpeá-lo, a peça metálica
inacreditavelmente envergou e expeliu faíscas, como se tivesse se chocado numa
barra de aço.
Olhando para Caliel, Beelzebu percebeu que o querubim havia interferido
por mais uma vez e lançado um feixe que entortara o prego. Advertido sobre a
necessidade daquele processo para a expiação, o capitão da Guarda Negra
fechou os olhos e encaixou a cabeça sob os cabelos do seu príncipe, pois sequer
ele, acostumado a violência concisa, estava suportando ver aquela sequência de
sevícias junto ao mais poderoso arcanjo do Céu, que ali, nada mais era do que
um homem à beira da morte.
Percebendo que o soldado recuou assustado e recalcitrava em repetir o
golpe, Cartaphilus ficou furioso e lhe arrebatou a marreta. E espetando outro
prego no pulso de Jesus, agora selado por uma pequena ripa de madeira para
facilitar-lhe a fixação, ele deu a primeira martelada, a qual fez a tarraxa lhe
passar o punho. Jesus não reagiu ativamente, contido que estava por outro
romano, mas a dor lancinante que ele experimentou em razão do maciço ataque
ao nervo que dava sustentação ao seu antebraço, fez com que ele premisse
agressivamente os olhos e travasse os movimentos da boca. O líder do esquadrão
deu então mais dois golpes, que fizeram com que o prego atravessasse o punho
de Jesus e a trave, repercutindo, finalmente, na outra extremidade do patíbulo.
Transpondo Jesus, Cartaphilus dirigiu-se para o outro lado e repetiu a
tortuosa operação, pregando com agressividade o punho esquerdo dele naquela
mesma trave. Experiente em infligir sofrimentos, ele parecia se divertir. Em
seguida, fez com que os soldados transpassassem pesadas cordas sobre as
argolas de ferro e as arremessassem por cima dos suportes colocados sobre a
base do tronco ali fincado. Feito isso, puseram-se atrás do pilar e começaram a
puxar a trave em que Jesus já estava pregado, a fim de erguê-lo e fixá-lo na
coluna-mestra. O processo era deveras agressivo, afinal, o executado era
levantado de maneira violenta, arrastando o corpo pelo chão imundo e pelos
excrementos dos que lá haviam padecido.
Feito o pré-encaixe, eles soltaram a peça que, de imediato, encontrou a
escora necessária para deixar Jesus exposto e com os braços abertos. O som do
choque era seco e, ao mesmo tempo, forte, pois não raro ele tinha como eco um
grito do executado, ante a severa dor da manobra.
Mas enquanto se esperava que aquele rude tormento finalmente teria uma
pausa, Cartaphilus tomou um pedaço menor de corda e amarrou os tornozelos de
Jesus, um de cada lado da haste, e, tomando outros dois pregos maiores, os
cravou com firmeza nos ossos metatarsais dele, deixando-o, então, totalmente à
mercê daquela cruz. O sol, àquela altura, parecia falar. Eram, então, nove horas
da manhã de sexta-feira.
***
***
Finda a fixação dos dois ladrões nas suas respectivas cruzes, o esquadrão
passou a reorganizar o material usado para a execução, sendo que os demais se
puseram em vigília para que ninguém se aproximasse das traves.
Jesus respirava com dificuldade e, entretidos com os despojos dos
condenados, os soldados se puseram a disputá-los nos dados, o que geralmente
ocorria em situações como aquela, no qual o que restava dos presos era dividido
entre os executores.
A certa distância, o sacerdote Caifás e os demais sinedristas olhavam para
as cruzes com satisfação, afinal, ao que lhes parecia, a doutrina de Jesus estaria
prestes a morrer com ele.
— Filho de Deus... — disse em tom de deboche. — Se o fosse, certamente
desceria dessa cruz — tripudiou o pontífice.
Nesse instante, Gestas começou a rir imoderadamente, de modo a afrontar
os romanos e vilipendiar os demais que lá estavam para morrer. Imundo pelas
fezes que já escorriam por entre as suas pernas — ele não suportou o rigor
daqueles pregos —, o bandido praguejava de modo a tentar enganar a si próprio,
afinal, as suas forças já estavam esvaindo.
— Eu sou um ladrão! E tu nazareno? Morres por ser rei? — provocou
entre risos e tossidos.
Jesus havia vertido a cabeça e parecia imóvel. Mas do outro lado, Dimas
tentou amenizar aquela provocação:
— Não vês que ele é inocente? Ao menos na hora da morte, mostra temor
pelo Deus de Israel.
— Deus? — respondeu agressivo. — Eu pouco me importo com Ele, já
que Ele pouco se importa comigo.
Nesse instante, um dos membros do esquadrão se aproximou da cruz e,
deveras irritado, chicoteou o rosto de Gestas, a fim de que ele fosse impelido a
se calar. Diante disso, bastou Beelzebu fixar o olhar no ladrão por um instante,
para que as centenas de moscas que lá estavam passassem a atormentá-lo, fato
que assustou os guardas e os expectadores, os quais já admitiam que algo de
sobrenatural estava lá acontecendo.
— Senhor... — balbuciou Dimas a Jesus. — Não dês importância a ele,
perdoa-o, é apenas uma alma atormentada.
Jesus, que até então se mantinha silente, ergueu a cabeça vagarosamente e
fitou o seu interlocutor, o qual indiretamente reconhecia os seus erros e achava
justa a punição que recebia.
— O teu coração não é obscuro. E a tua alma, garanto, não irá para o
mesmo lugar que a dele.
O bom ladrão esboçou um sorriso e, em meio àquele sofrimento, tais
palavras lhe trouxeram um pouco de acalento para aguardar a morte, a qual ainda
parecia estar bem distante.
Já se passavam das dez horas da manhã, quando, no sopé daquela ingrata
colina, a mãe de Jesus e os peregrinos de Betânia, já sabedores da tragédia ao
entrarem na cidade, começaram a subir ao Calvário para contemplar os últimos
momentos do mestre de Nazaré.
Percebendo, ainda ao longe, que o filho estava pregado numa cruz, Maria
quis correr até ele, desconsiderando os rigores daquele caminho. Contida por
Marta e a irmã, ela então fixou os olhos naquele rude estandarte romano e
continuou a caminhada.
Abrindo caminho entre os curiosos, ela e os seus logo encontraram
Magdalena, Joana, Betseba e Chaya. Ao ver Maria, Mirian desabou a chorar,
afinal, Jesus estava desfigurado e à mercê da morte. Tentando amparar a apóstola
do filho, a imaculada tocou-lhe a face e a acariciou. Joana interveio e abraçou a
dama de Magdala a fim de que Maria pudesse finalmente se aproximar do
rebento.
Ao se achegar vagarosamente da área de contenção romana, a mãe do
Cristo foi interpelada pelo sempre selvagem Cartaphilus:
— Onde pensas que vai, mulher?
Pois antes que Maria pudesse esboçar qualquer resposta, os presentes
tiveram a atenção chamada para um enorme cavalo branco que lá chegou com
grande velocidade e, empinando próximo ao perímetro, causou desconforto
àquele bronco soldado:
— Abri essa maldita linha, essa mulher é mãe do nazareno! — bradou
Longinus, dominando o animal e envergando a autoridade moral que ainda
titulava.
Percebendo a chegada do ex-comandante, Marcellus se aproximou da
contenção e mandou Cartaphilus sair do caminho, afinal, ele sabia da rusga entre
os dois e não ia querer maiores problemas.
Longinus desceu da sua montaria e a entregou a um soldado que, sem
demora o recepcionou e obedeceu. E tomando Maria gentilmente pelo braço, a
levou até o pé da cruz do meio, onde Jesus havia sido erguido. Ao perceber o
estado lastimável em que o rabi se encontrava, o romano temeu pela reação da
virgem, a qual, demonstrando ser forte, mantinha o passo firme.
Quando Maria chegou no pé da cruz, Jesus estava com a cabeça fletida e,
em razão disso, percebeu quando a mãe parou logo abaixo de si. Ainda com o
sangue escorrendo em razão dos profundos ferimentos causados pela coroa de
espinhos, uma gota acabou caindo no rosto de Maria, a qual, ao senti-la, fechou
os olhos. Em tal instante, ela pareceu ter saído daquele lugar de dor e retornado
ao Egito, quando Jesus, ainda com quatro anos de idade, lhe fazia companhia na
beira do rio onde ela lavava roupas. Travesso, ele certa feita, havia ido até a
ribeirinha e enchido as mãos com um pouco de água, fechando-as logo em
seguida. E ao se aproximar da mãe, riu e as premiu, fazendo com que a água
respingasse no rosto dela. Correndo atrás do filho e tomando-o nos braços, Maria
ficou sem jeito de admoestá-lo, afinal ela sabia que aquilo nada mais era do que
uma provocação ingênua, um jeito infantil de lhe chamar a atenção. Num
repente, aquele doce devaneio lhe foi subtraído, afinal, o fruto do seu amor por
Deus estava ali, diante dela, exposto como um animal abatido.
Ela não disse uma só palavra e, sem limpar o sangue que lhe havia caído
no rosto, assim ficou. Quando as lágrimas finalmente começaram a brotar dos
olhos dela, Jesus, cuja face estava desfigurada, disse com dificuldade:
— Mãe... Minha mãe querida... Rejubila-te, afinal, esta não é a verdadeira
vida... — balbuciou.
Pois lembrando-se da conversa que havia tido com o filho quando do
passamento de José, ela conseguiu, de certa forma, aplacar a dor da perda, mas
em contrapartida, sentia em si a dor de cada uma das chagas que haviam sido
impingidas nele.
Percebendo o estado lastimável de Jesus se comparado aos outros dois
executados, Longinus encarou os soldados do Décimo Terceiro com rigor,
mormente Cartaphilus, a quem sabia ser de índole ruim.
— Filho, o que fizeram contigo? De onde saiu tanta maldade? —
lamentou Maria diante das feridas dele.
— Eles são cegos, não sabem o que fazem...
Notando que Maria dava sinais de desfalecimento, Longinus tentou
convencê-la a recuar um pouco, mas ela insistiu em ficar ali. O experiente oficial
sabia que a morte na cruz era lenta, poderia durar dias, então ele desistiu do seu
intento e ficou com ela, a fim de que nenhum soldado viesse buli-la.
O povo da cidade ia e vinha, afinal a notícia da crucificação do Messias
havia inundado as ruas de Jerusalém, atraindo fiéis, curiosos e descrentes.
Quando chegou o meio do dia, Caifás e os demais sinedristas já haviam deixado
a Gólgota e retornado ao Templo, já que a festa da Páscoa os aguardava. E com
Jesus calado e morto nada poderia lhes atrapalhar dali por diante.
Escondidos entre a multidão, Judas Iscariote e Simão Pedro assistiam a
tudo perplexos, afinal, o Messias que haveria de reinar para sempre, não passava
agora de um cadáver ainda vivo. Crente de que Jesus se ergueria ao menor sinal
de ameaça à sua vida, Judas finalmente entendeu que os ensinamentos do seu
rabi nada tinham a ver com os ideais de conquista dele:
— Nós falhamos, Pedro... — disse ele ao pescador. — Tudo não passava
de mera ilusão, afinal, ele não é o esperado Messias.
— Sim, nós falhamos. Mas o plano de Deus é bem maior do que nós
podemos entender. O rabi é o cordeiro de Deus, e não o leão.
— Jesus não poderia morrer dessa forma. Se ele fosse verdadeiramente o
filho de Deus, não morreria assim. E eu que acreditei que ele traria uma espada
que salvaria o nosso povo. Pois de fato, ele a trouxe, mas para o próprio pescoço
— disse virando-lhe as costas.
— Aonde tu vais?
— Eu vou embora; encontrar o meu destino... — respondeu cabisbaixo.
Pedro estava confuso, afinal os demais haviam fugido. Assim, além dele,
Judas, Magdalena e Joana; a igreja parecia partida naquele momento.
Pois no instante em que Judas tomou o rumo contrário ao da Gólgota, o
tempo, até então ensolarado, começou a fechar de forma quase que imediata. A
brisa seca que pairava sobre a colina logo deu lugar a um vento mais rigoroso, o
qual obrigou os espectadores a cobrirem suas cabeças diante do excesso de areia
que se levantou. Salvo isso, um assustador espetáculo de raios brilhantes passou
a inundar o firmamento, dando mostras de que uma, até então inesperada,
tempestade estava prestes a cair.
Nesse ínterim, Jesus se queixou de sede, ao passo que um dos soldados,
após ser censurado por Longinus, espetou uma esponja na ponta do seu pilo e a
molhou com um pouco de vinho azedo[155], elevando-o à altura do rosto do
executado. Este, ao sentir o gosto amargo daquela mistura largamente consumida
pelos soldados rasos mesmo em serviço, a repudiou com o rosto.
A Terra então interceptou a parte sombria da lua, e, para a surpresa de
todos, começou paulatinamente a avançar na direção do sol, lançando uma
imensa capa escura sobre o globo e atingindo Jerusalém, cuja iluminação passou
a ser unicamente aquela vinda dos raios que se recusavam a abandonar as
alturas. Ao perceberem que o Sol desaparecia e dava espaço a uma assustadora
negritude, muitos dos presentes abandonaram a Gólgota intimidados por aquele
perigoso espetáculo.
Preocupado com a reação dos soldados romanos, afinal, ninguém jamais
havia presenciado algo parecido antes, Marcellus achegou-se de Longinus, e dele
obteve o conselho para que fossem acesas algumas tochas e preservada a guarda,
afinal, eles precisavam zelar pelos condenados até que finalmente morressem,
pois segundo a Lei não lhes era lícito deixá-los vivos na cruz e à mercê de um
eventual resgate.
Na fortaleza Antônia, Pilatos percebeu aquela atípica inconstância tomar
conta do alicerce e, por uma das janelas gradeadas, viu o Sol ser rapidamente
coberto — era um eclipse —, o que lhe pôs em crasso desconforto, mormente
diante da possibilidade dele ter mandado executar, como de fato o fez, o
verdadeiro Messias.
No edifício dos judeus onde a festa da Páscoa transcorria, o sumo-
sacerdote teve o mesmo pressentimento e, amedrontado, recolheu-se ao espaço
onde ficava o sagrado véu escarlate que os separava da presença do Senhor. E
pondo-se de joelhos diante dele — afinal o chão começou a tremer! —, ele viu
quando uma espada coruscante lá surgiu cortou o véu ao meio, de cima para
baixo[156]. Feito isso, as paredes começaram a ruir, destruindo parte da edificação
interna ali existente. Caifás, que acabou arremessado ao chão no meio do
processo, fechou os olhos e temeu.
O vento continuava muito forte e, com o passar do tempo, a Gólgota ficou
praticamente vazia, restando apenas os soldados e os fiéis de Jesus, que se
recusavam a deixá-lo. Num repente, Jesus levantou timidamente a cabeça e, em
meio ao rigor do vendaval, sussurrou:
— Pai... Leva-me! Leva-me de volta.
Ao perceber que o nazareno ainda falava, um dos soldados avançou e
tentou calá-lo com um golpe de chicote e, assim que verteu o braço para trás a
fim de golpeá-lo, um raio veio do alto e o fulminou de maneira instantânea.
Tão logo o soldado caiu morto, o solo passou a convulsionar, e um
temporal começou a cair de forma violenta, não apenas na Gólgota, mas em toda
a Judeia, fazendo a fração militar que lá estava dispersar quase que por inteiro.
Cobrindo-se e unindo os corpos diante da tormenta, os seguidores de Jesus
avançaram na linha aberta pelos soldados e se uniram a Maria e Longinus, que
segurando a mãe do mestre com firmeza, tentava a todo custo protegê-la daquela
agressiva tempestade.
A chuva e o vento aumentaram consideravelmente, e como não podia
abandonar o posto sem se certificar da morte dos condenados, Cartaphilus tomou
uma marreta que lá estava e quebrou os joelhos dos dois ladrões, os quais, ante a
menor severidade do flagelo, ainda estavam vivos. Tal manobra visava tirar-lhes
a sustentação e causar-lhes a morte por asfixia. Ao ver que ele se aproximava de
Jesus para tentar fazer o mesmo, Longinus enfureceu-se e entrou em vias de fato
com ele:
— Sai daqui, tu não comandas mais nada! — bradou ao outrora superior.
— Eu ainda comando a minha vida, ao contrário de ti que é uma vergonha
para o exército romano — retrucou o oficial, ao acertar um soco na boca do
soldado.
Pois enquanto os dois brigavam, um dos guardas que lá ficou, um soldado
raso de nome Cassius, vendo-se impossibilitado de fazer uso da marreta que
havia caído numa poça já tomada pela lama, ergueu o seu pilo e o introduziu
firmemente por entre as costelas de Jesus, a fim de tentar lhe ceifar a vida e fugir
com os demais.
Ao ver tal cena, Longinus empurrou Cartaphilus e tentou impedir a
continuidade daquela ação indo no sentido da cruz onde o nazareno estava. Ao
se levantar do chão encharcado pela chuva que castigava o platô, o carniceiro
romano sacou um punhal e lançou-se na direção de Longinus, a fim de matá-lo.
E quando a faca estava prestes a ganhar as costas do ex-centurião, uma nova
dezena de raios caiu do Céu e destroçou o corpo de Cartaphilus, o qual, em razão
da severidade da carga elétrica, foi lançado para longe da colina.
Erguendo-se arisco e correndo na direção de Cassius, que
inexplicavelmente não conseguia retirar a lança do corpo de Jesus, Longinus a
segurou e a forçou para trás. Mas a força motora adversa mostrava-se tal que
nem mesmo dois fortes militares romanos conseguiram retraí-la. Pois num
instante, onde o olho ainda bom do centurião cruzou rapidamente com os
moribundos de Jesus, o ex-comandante romano, em meio à forte tormenta, ouviu
dele:
— Meu amigo, Longinus... “Marte caiu...”.
Ao ouvir essa expressão, a mente do legionário foi inundada por gravuras
de um passado não tão distante, quando ele, ainda jovem, conheceu no Egito um
garoto que lhe havia prometido ser um grande soldado.
— Jesus? O menino judeu? — respondeu ao reconhecer aquela frase, a
qual lhe havia sido dita vinte anos antes pelo pequeno galileu ao vencê-lo numa
partida.
Nesse mesmo instante, a força que prendia a lança no corpo de Jesus
cessou e a arma se desprendeu, fazendo com que, daquela ferida que ficou
aberta, jorrasse uma mistura de água e sangue que atingiu em cheio o olho cego
de Longinus! Pois jogando a lança ao chão e esfregando a vista para conter a
ardência que nela começou a sentir, ele ficou pasmo ao perceber que a sua visão
lhe havia sido recuperada. E somente então, depois de tudo, ele soube que,
naquela cruz romana, estava morrendo aquele pequeno garoto que queria mudar
o mundo, o seu amigo querido de outrora, o qual, antes de partir, lhe devolveu a
visão havia muito perdida.
— Ele... Ele era o filho de Deus... — pronunciou o agora atônito soldado
Cassius, sob o rigor da chuva e a concordância tácita do centurião.
Eram então, três horas da tarde, e Jesus, enfim, estava morto.
Capítulo 15
O trono de Magdalena
DEVERAS ASSUSTADO com a negritude que de repente caiu em Jerusalém,
Judas Iscariote se afastou da cidade disposto a dar cabo da própria vida, afinal,
para ele, a escravidão haveria de ser o destino do povo judeu.
Ainda lamentando a sua falta de visão, ele ganhou o vale de Aceldama[157]
quando percebeu que a chuva havia recuado. Ainda assim, desiludido com o
desfecho de tudo, jogou uma corda sobre o galho de uma oliveira e a amarrou no
pescoço, a fim de tentar encontrar a tal liberdade que ele acreditava fazer jus. E
após escalar aquele tronco, lançou o peso do próprio corpo em direção ao chão,
com o crasso escopo de pôr fim a sua infeliz existência. Pois assim que a corda
se firmou, o corpo dele quicou por uma vez e, na segunda, o galho se rompeu e,
ainda vivo, caiu no solo, incrédulo, afinal a morte que lhe parecia ser certa não
foi visitá-lo.
Ainda tentando encontrar uma explicação lógica para tudo aquilo, ele viu
surgir, por entre a pesada poeira que se levantou, um homem enorme de beleza
gritante. O estranho trazia junto de si um cajado de aparência bem antiga,
manchado de sangue na extremidade, e, ao parar diante de Judas, arremessou
aquela vara no solo como se o estivesse entregando a ele. Feito isso, revelou sem
hesitar:
— Eu sou Caim, filho do pecado de Eva e de Lilith. E desde o início dos
tempos, eu vago pela Terra esperando pelo perdão que hoje finalmente auferi. —
Trêmulo ante aquela assustadora presença e da compleição do interlocutor, Judas
tentou recuar, mas parecia não conseguir se mover. — Aceita, não tens mais para
onde fugir. Pega esse bastão e segue como a única testemunha viva do martírio
de Jesus.
— Testemunha? — respondeu atônito.
— És, agora, aquele que vagaras até o dia em que o príncipe celeste
retorne à Terra para julgar-te.
Assombrado, Judas logrou se levantar para tentar fugir com aquele pedaço
de corda ainda preso ao pescoço, mas, ao fazer isso, outra surpresa: diante dele,
surgiu um arcanjo, o quarto voluntário, aquele que desceu à Terra com Gabriel
para auxiliar na lida final de Jesus. E com um dos polegares em chamas, ele se
achegou de Judas e cunhou forçosamente uma cruz na testa dele, o qual gritou
em razão da excessiva dor da queima.
O celeste então apontou para o bastão e fez com que Judas o pegasse. Ele
foi condenado, não apenas por trair Jesus, mas por ter traído a si próprio. O
velho sicário havia tido uma oportunidade única — a de se redimir e aceitar a
palavra —, mas preferiu acreditar na espada. E diante disso, ele agora teria uma
eternidade para refletir sobre os seus atos e, assim como Caim, talvez um dia ser
perdoado. Judas Iscariote, tal qual era conhecido, morreu naquela tarde. E no
lugar dele, nasceu o lendário “judeu errante”[158], o segundo imortal amaldiçoado
pela insensatez dos seus atos.
Ao ver Judas correr assustado e sem rumo, o celeste que lá surgiu
estendeu sua mão a Caim e disse a ele:
— Agora, vem comigo.
— E quem és tu? — indagou estranhando aquela inusitada presença.
— Eu sou Surya, arcanjo e mensageiro do novo Éden — respondeu aquele
ser de face feminizada, cujos cabelos repicados eram alourados e raspados numa
das laterais.
— Um emissário de Deus? Então eu terei a paz que procuro?
— A tua anistia foi concedida, Caim. Agora dorme; dorme e desperta para
uma nova vida.
Tão logo Surya tocou na face já limpa de Caim, ele começou a se desfazer
no vento, pois ele era pó, e pó voltou a ser. O filho do pecado, um fratricida e
violentador, havia cumprido uma pena de milhares de anos vivo, aprendendo dia
a dia, a conhecer os conceitos do perdão e do arrependimento. Os seus crimes
foram então perdoados, não apenas por clemência divina, mas por justiça. Caim
foi socializado e, ao carregar a pesada cruz de Jesus, mostrou que admitiu a sua
parcela de culpa pelos pecados da própria humanidade, cuja grata parcela
descendia dele próprio.
Mas era certo que ele ainda precisaria de um longo tempo na ala curativa
do seu novo lar, com o propósito de poder encontrar a devida sintonia para abrir
os olhos e finalmente reviver. E para tanto, a sua mãe Eva ali estaria, pronta para
receber o filho e conduzi-lo para um aprendizado novo, um onde a sua alma
finalmente encontrasse a derradeira felicidade.
E no leito posto ao lado do de Caim, jazia outra alma recém-ingressa no
Éden Espiritual, ferida e acuada, mas que havia pedido perdão e sido atendida no
momento da sua passagem. Era Dimas, o bom ladrão. E a promessa de Jesus a
ele, mesmo destroçado naquela cruz, fora então cumprida.
***
***
***
***
Naquele mesmo sábado à noite, Caifás e os seus ainda tentavam entender
o que havia ocorrido na sexta-feira. Os pedreiros do Templo começaram a
trabalhar tão logo o sol nasceu, afinal, os estragos haviam sido bem grandes.
O véu do santuário servia de limite entre o ambiente mais sagrado da
edificação e o átrio dos sacerdotes e, nele, somente se entrava uma vez por ano,
remanescendo tal múnus a Caifás. E agora, o véu estava rasgado.
Desde a expulsão do Jardim do Éden, o homem havia se apartado do
Eterno. Agora, com a morte de Jesus, essa barreira simbólica havia sido
finalmente extirpada pela espada que lá esteve. Era certo que os sinedristas não
sabiam disso, mas no momento em que Jesus de Nazaré sofria na cruz, o arcanjo
Surya empurrava e destruía os pilares do Templo. E com a sua amolada espada
de fogo, partiu o manto do salão de cima para baixo e reestabeleceu o elo direto
entre Deus e os homens, desmerecendo a autoridade dos corrompidos sacerdotes
que por lá passaram. Doravante, o Senhor não mais estaria ali, mas sim, pela
crença, em todos os lugares onde os filhos dos homens viessem procurá-Lo.
Embora assustados, os senadores judeus que haviam condenado Jesus
apenas temiam a perda dos seus privilégios e, diante disso, faziam pouco dos
profetas. Entretanto, Jesus demonstrou não ser simples vidente, mas, conforme o
próprio Caifás passou a crer, um poderoso mago que havia atentado contra os
ganhos do Templo e o clima terrestre.
Após a morte do intitulado Messias, brotaram rumores de que ele haveria
de ressuscitar e contra-atacar os seus oponentes. E o retorno à vida de Lázaro,
boato que trouxe excessiva fama ao nazareno em Jerusalém, talvez tivesse
servido de prévia para um espetáculo que os seguidores dele estivessem
tramando para causar distúrbios ainda maiores.
Diante disso, Caifás achou por bem procurar Pilatos nas escadarias do
pretório e, sem prejuízo da hora, pedir-lhe uma guarda romana para zelar pelo
túmulo de Jesus, a fim de que ninguém tentasse algum truque para impressionar
os incautos.
— Caifás, tu não achas que já tivemos tumultos por demais? — ponderou.
— O homem está morto e com ele, a sua doutrina.
— Nós também pensávamos assim, Excelência. Mas há pouco soubemos
de teorias conspiratórias que tencionam tornar a morte dele um espetáculo...
— O que queres dizer com isso?
— Que o homem era um mágico excepcional, isso ficou inconteste —
respondeu em alusão ao eclipse e aos fenômenos sobrenaturais vistos na data da
execução.
— Mágico e blasfemador! — interveio outro pérfido juiz no afã de fazer
voz ao seu superior.
— Pois às vezes me pergunto se ele era de fato um homem... — retrucou
Pilatos ao retomar ao seu assento.
— Perdão, Excelência? — indagou Caifás.
— Eu apenas pensei alto, sumo-sacerdote. Mas, afinal, o que ainda quereis
de mim, e a essa hora da noite?
— Apenas uma pequena guarnição para vigiar a tumba desse galileu e
evitar ocorrências de embustes que possam, de qualquer forma, causar ebulições
na cidade e arranhar ainda mais o nosso prestígio.
Pilatos estava inquieto desde que havia condenado Jesus mesmo tendo se
convencido da inocência dele. No palácio, sua esposa passou a evitá-lo e, mesmo
após a morte do nazareno, os sinedristas insistiam em não o enterrar de vez. O
prefeito romano, por assim dizer, estava intimidado por um espectro que ele
ajudou a criar e, tentando afastá-lo de si, decidiu anuir quanto ao pleito:
— Marcellus, põe uma guarnição em turnos no túmulo de Jesus de Nazaré
— ordenou ao centurião-chefe que ali o assistia. — Sela-a e me reporta
imediatamente qualquer adversidade.
Ainda assim, os sinedristas tentaram arrancar uma última informação de
Pilatos:
— Excelência, sem prejuízo dos agradecimentos a que vós devemos, nós
estamos um tanto curiosos. A quem pertence o túmulo cedido ao finado?
Farto daquelas investidas, Pilatos tentou dar um basta naquilo tudo:
— Esse assunto não vos diz respeito! Já tendes a guarnição que pedistes,
agora retirai-vos daqui, afinal, é a águia imperial que ainda paira por Jerusalém,
e não a estrela de Davi! — bradou referindo-se a insígnia judaica.
Acuados em razão do nervosismo do tribuno, eles o reverenciaram e
deixaram a fortaleza sob o fulgor da lua, afinal, o pedido deles havia sido
atendido. Entretanto, o curso da história haveria de ser outro e, com vigilância ou
não, Jesus se ergueria para dar base à nova religião que inundaria o mundo, a
qual, alguns séculos depois, acabaria oficializada na própria mãe Roma.
***
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Pois voltando ao curso da história dos homens na Terra, a roda dos dias e
das noites se estagnou no buliçoso ano cristão de 1.548.
No norte da península itálica, mais precisamente na comuna de Trento,
seis velhos livros haviam sido encontrados em poder de um ente muito estranho,
o qual se acreditava ser um enviado do próprio demônio. Quando a Guarda Suíça
do apostolado católico romano conseguiu pôr as mãos nele e naqueles
cartapácios, o Papa Paollo III ficou mais tranquilo, afinal, tanto ele quanto os
seus — substitutos diretos dos apóstolos naqueles dias — estavam obcecados em
encontrar o portador dos lendários livros que continham a história secreta dos
celestes e dos homens, e os quais se dizia terem sido escritos por um arcanjo de
Deus que havia andado pela Terra.
Em verdade, assim como alguns sinedristas do passado, aqueles
eclesiásticos haviam chamado para si a tarefa de decidir o que deveria ou não ser
divulgado e lido pelos fiéis da igreja e, ávidos em manipulá-los, ficaram
satisfeitos em saber que as pistas auferidas pelos seus cavaleiros haviam
culminado na captura do legendário portador dos tais documentos.
Assim, temas considerados hereges e um tanto perigosos — Lilith; a
Tesouraria das Almas; a origem da magia negra; a efetiva detentora do trono do
cristianismo e, principalmente, a verdadeira identidade de Jesus de Nazaré —,
agora estariam a salvo do conhecimento geral, fazendo com que a história dos
evangelhos oficiais ficasse menos mística e, por assim dizer, mais crível.
Azeyzel, que viveu mais de mil e quinhentos anos na posse dos seis livros
de Metatron até ser capturado pelos homens da Igreja, havia traduzido as páginas
deles para a Ordem das Filhas da Noite, sociedade secreta que ele, ainda
obcecado por Layla-Li, havia criado para manter viva a história dela e,
consequentemente, a história verdadeira.
Quando o fugitivo foi pego e, ao fim, decapitado pelos oficiais da Guarda
Suíça, os livros acabaram queimados na presença do papa, mas, dos fragmentos
dos contos oriundos das damas sobreviventes daquela irmandade oculta, homens
e mulheres como nós puderam ter acesso a temas tão proibidos, os quais, até
hoje, são tratados como lendas fantásticas.
Azeyzel, conquanto os seus vários crimes e pecados, acabou, por assim
dizer, proporcionando com que a história real não ficasse oculta no tempo e, de
certa forma, cumpriu uma lida que talvez lhe tivesse sido predestinada.
Mas, enfim, o relógio do tempo — na Terra e no Éden Espiritual — não
parava. E assim sendo, jamais parou.
***
∷ ∷ ∷
Junta então o teu espírito ao meu; e diz que ficarás comigo até o final dos
tempos.
∷ ∷ ∷
[1]
. Dimensão onde se reúnem os espíritos inclinados à evolução indolor e à derradeira felicidade.
[2] . Querubim-chefe da Guarda Civil da Câmara (“Guarda Negra”), responsável por zelar pelos
cômodos de Deus.
[3] . Serafim caído, marechal do Inferno.
[4] . “Tesouraria das Almas”; prisão dos espíritos condenados.
[5]
. Península montanhosa localizada no sul do Egito, onde Deus entregou as tábuas que continham os
Dez Mandamentos ao profeta Moisés.
[6]
. Cidadela de Israel localizada na baixa Galileia.
[7]
. Conforme a Lei de Moisés, o adultério (mesmo que a mulher estivesse apenas prometida ao futuro
marido) era um comportamento punido com a morte por apedrejamento (Deuteronômio, 22:22-24).
[8]
. Oficial de cavalaria do exército romano que comandava um esquadrão de trinta homens.
[9] . José descendia do tronco real do Rei Davi, o pastorzinho que matou Golias e se tornou o maior rei
de Israel.
[10]
. Messias significa “ungido” (consagrado, purificado, libertador); é um título cuja origem remete
ao ato de se derramar óleo sobre alguém que será encarregado de uma relevante missão de origem
divina. Refere-se, genericamente, à antiga profecia de que um descendente de Davi haveria de
reconstruir o reino de Israel e trazer paz para o mundo.
[11]
Portal que ligava o Céu à Terra
[12] . Expressão utilizada em razão da cor das túnicas dos querubins que faziam parte da Guarda Civil
da Câmara (veste negra com detalhes dourados).
[13] . Miguel, o arcanjo.
[14] . Grande região ao norte de Israel.
[15] . Primeiro Imperador de Roma (27 a.C. a 14 d.C.).
[16] . Região ao sul da Judeia.
[17] . Parte montanhosa ao sul da Palestina.
[18] . Centro administrativo da Galileia; a aldeia de Nazaré ficava cerca de sete quilômetros de
distância.
[19] . Dimensão de paz criada por Deus para receber os espíritos retos, contraposta à Câmara de Guf
nascimento de Jesus.
[27] . A Porta dos Jardins dava acesso à estrada que levava a Belém.
[28]
. Os vingadores eram anjos arregimentados por Deus para missões de guerra e extermínio na
Terra.
[29] . Rio mais extenso do mundo, com mais de sete mil quilômetros.
[30]
. País a nordeste da África; fazia fronteira com a Judeia.
[31] . Moeda de prata de maior circulação no Império Romano.
[32] . Celas de fogo para onde eram despachados os espíritos potencialmente perversos.
[33] . Os “vigilantes” (grupo de quarenta anjos liderados por Azeyzel e seu irmão Semyaza) haviam
ido à Terra para testar os homens, lá caíram em prazer pecaminoso com as mulheres, antes do
dilúvio universal e, por ordem de Deus, foram presos, repatriados e emasculados no átrio do
Quartel-General dos arcanjos, onde a maioria ainda se encontra cumprindo pena na prisão de
Vigilum.
[34] . Humana morta no dilúvio universal, irmã de Lamec (trineto de Caim), descendente da linhagem
de Lilith e ex-companheira de Azeyzel na Terra.
[35] . Planta, remédio natural para queimaduras.
[36] . Tímidos conglomerados comunitários no Egito Romano onde os meninos judeus, pelas mãos
de algum letrado egresso da Judeia, aprendiam a leitura rudimentar das linguagens mais
comuns, como o grego, o hebraico e o aramaico.
[37] . Deus romano da guerra.
[38] . Delegados de Deus (detentores de atividade judicante em menor escala); oficiais de
persecução, membros da ordem dos arcanjos encarregados das inquisições, julgamentos, cortes
marciais, execução de penas corporais e ordens de prisão em desfavor dos anjos infratores.
[39] . Anjo da ordem das potências, irmão gêmeo de Azeyzel; ex-vigilante, preso e emasculado por
ordem de Deus.
[40] . Ex-príncipe-substituto da ordem dos querubins; ex-companheiro de Lilith no exílio dela na lua;
preso e emasculado por ordem de Deus.
[41] . Cidade Galileia.
[42] . Rio que nasce na encosta do monte Hermón e segue até o mar da Galileia, desaguando no Mar
Morto.
[43] . Fincado em Jerusalém.
[44] . Corpo religioso supremo e mais alto tribunal judiciário da nação judaica.
[45] . Primeiro sumo–sacerdote dos Hebreus.
[46] . Primeiro rei de Israel.
[47] . Profeta bíblico.
[48] . Uma das esposas do rei Davi.
[49] . Cidade israelita.
[50] . Uma das dez ordens angelicais originais; casta extinta no primeiro conflito sideral, por tentar
dominar o Céu através da magia negra; foi titulada pelo anjo da presença Piryel.
diamante transparente que abriga uma constelação diminuta em seu interior; instrumento de
comunicação e transmissão de energia entre o príncipe dos querubins e a respectiva casta.
[57] . Mulher, descendente da linhagem de Lilith; segunda esposa de Noé.
[58]
. Cidade que ficava na margem norte do mar da Galileia, próxima a Betsaida.
[59] . Filho de Lilith com o caído querubim Samael.
[60] . Ser mestiço e de elevada estatura; meio homem, meio anjo.
[61] . Querubim, lugar-tenente da ordem dos querubins; lutou no segundo conflito sideral ao lado dos
arcanjos contra Lúcifer; exilado e emasculado em razão de ter se deitado com uma humana, Lilith;
atualmente encontra-se preso no Quartel-General em Vigilum, no Céu.
[62] . Monte Hermón.
[63] . Lago de água salgada que cobre as ruínas de Sodoma e Gomorra.
[64] . Grupo de judeus da classe empresarial devotos à Lei de Moisés; minoria no Sinédrio.
[65] . Profeta bíblico que viveu em Israel durante o reinado de Acab.
[66] . Aristocratas, alto escalão judaico; maioria no Sinédrio; titulares da função de sumo-sacerdote do
Templo.
[67] . Baal Foi um dos principais deuses supremos dos fenícios e dos cartagineses; era adorado em
Canaã.
[68] . Cidade fundada por Caim após o fratricídio do irmão Abel.
[69] . Golias, o último nefilim. Prisioneiro de Lúcifer no Inferno, foi libertado após o dilúvio e acabou
[78]
. As coortes de infantaria e o esquadrão de cavalaria dispostos a Pilatos eram formados por
aproximadamente três mil homens, ficando uma parcela deles baseada na Fortaleza Antônia.
[79] . Político romano; foi prefeito da Judeia durante o governo de Tibério.
[80] . Nova capital administrativa da Judeia.
[81] . Princesa edomita, foi mulher de Herodes Filipe, irmão de Antipas. Somente aceitou casar-se
sob a condição de ser a única esposa, embora a lei judaica permitisse várias uniões.
[82] . Forte construído por Herodes I na parte oriental da muralha de Jerusalém. Recebeu o nome
em razão de uma homenagem do então rei da Judeia ao triúnviro romano Marco Antônio.
[83] . Herodes Antipas era meio-tio de Herodíade, neta de Herodes I.
[84]
. Líder dos zelotes; assassino e ladrão.
[85] . Corpo armado que policiava o Templo de Jerusalém e protegia o Sinédrio.
[86] . Cobradores de impostos.
[87]
. Povoado situado a nordeste da Galileia.
[88]
. Cidade de Cam, filho de Noé.
[89] . O que significa “vencedor”.
[90] . Líder da revolta judaica contra o censo Romano no ano 6 d.C.
[91] . Cidade portuária da Judeia.
[92] . Oficial romano encarregado de comandar uma centúria.
[93] . Jardim situado no sopé do monte das Oliveiras.
[94] . Anjo caído.
[95] . Planta usada para essências e fins medicinais.
[96] . Cidade a leste do Mar Morto.
[97] . Vice-rei da Arábia.
[98] . Líder de Israel e sucessor do profeta Moisés; implacável em suas conquistas e batalhas.
[99] . Herodes Antipas era idumeu (edomita) e descendia de Esaú, irmão gêmeo de Jacó, o qual
havia sido o gestor daquele povo que originalmente ocupou a região do Mar Morto. Quando da
conquista da Idumeia, à época do rei João Hircano, os idumeus foram obrigados a se
converterem ao judaísmo, ou seja, mesmo a princípio gentios, eram instados a seguir os
rigorosos costumes religiosos judaicos. Para manter as aparências, o Sinédrio fez vistas
grossas para o polêmico casamento de Herodes Antipas com Herodíade — o que era uma
infração às regras mosaicas —, mas certamente não se manteria inerte ante o fato de um
padrasto, através de suposta violência, ter se deitado com própria enteada.
[100]
Espécie de mordomo de Herodes Antipas; Ex-amante de Joana e pai de Yigal.
[101]
Morte por apedrejamento.
[102]
Cidade localizada ao sudeste do mar da Galileia
[103]
Cidade localizada entre a Judeia e a Galileia
[104]
Colina na Galileia
[105]
Agricultor de posses, irmão de Marta e Mariah de Betsaida. Jesus os conheceu quando,
juntamente ao finado José, prestou serviços de construção naquelas bandas, cerca de dez anos
antes. Desde então, tinham tenra amizade.
[106]
Simão foi o último apóstolo a integrar a comitiva de Jesus. Ele havia sido companheiro de Judas
na seita dos zelotes e, por discordar dos métodos de gestão de Barrabás, decidiu procurar Judas e
acabou, por este, sendo apresentado a Jesus. Foi chamado, então, de Simão, o ‘zelote’
[107]
Príncipe–primeiro — caído — da ordem dos Tronos; Marquês do Inferno.
[108]
Taberneiro em Nod; filho de Medjei e pai de Lamec; tataraneto de Caim.
[109]
Unidades responsáveis pela execução das penas de crucificação (que ocorriam as escancaras), da
flagelação à cruz.
[110]
Soldado de primeira classe.
[111]
Cidade ao norte da Galileia.
[112]
Cidade Fenícia no Líbano.
[113]
Tanto a lei judaica como a romana estabeleciam que o leproso deveria ser proscrito das aldeias.
[114]
Ao serem expulsos das comunidades, os leprosos eram condenados à solidão, a fim de refletirem
sobre os seus atos para se reaproximarem de Deus, pois se acreditava que tal doença era um
castigo.
[115]
Cinza de madeira.
[116]
Lugar de culto particular reservado às mulheres.
[117]
Filho de Lamec; “general” do primeiro exército formado na Terra; gestor de Nod; sobrinho de
Layla-Li.
[118]
Naqueles dias, o nome Jesus era comum aos judeus do sexo masculino.
[119]
Harual já havia advertido que Layla-Li ainda renasceria por uma última vez com os dois filhos por
ela assassinados em outra vida, uma anterior à de Salomé/Susana, antes de ser definitivamente
redimida.
[120]
Joia auferida por Beelzebu ao nascer. Estruturada basicamente em ouro branco, ela enverga um
diamante transparente que abriga uma constelação diminuta em seu interior; instrumento de
comunicação e transmissão de energia entre o príncipe dos querubins e a respectiva casta.
[121]
Cidade palestina localizada na beira do Rio Jordão.
[122]
Isso era um prenúncio do nascimento do cristianismo, onde a figura de Jesus estaria sempre viva.
[123]
Província do Império Romano.
[124]
Planta medicinal usada como sedativo ou digestivo.
[125]
Antiga cidade portuária da Palestina.
[126]
Vale que se estende pela parte oriental de Jerusalém.
[127]
Portão ao sul da cidade baixa.
[128]
Bairro de Jerusalém.
[129]
Salva-nos.
[130]
Divindade maligna das mitologias filisteias e cananeias; personificação do “diabo”.
[131]
Os homens temiam o chamado “diabo” e os seus “demônios”, entretanto esses eram — são —
inofensivos, se comparados com os espíritos obsessores, estes sim, responsáveis pelos males que nos
influenciam.
[132]
Pátio do Templo permitido aos gentios (pagãos).
[133]
Moeda de prata usada pelos romanos durante a República e o Império.
[134]
Manuscrito dos cinco livros de Moisés.
[135]
À exceção dos casos de invasão ao templo e adultério, estes, sim, permitidos.
[136]
Sumo-sacerdote antes de Caifás.
[137]
Fonte de água vinda do Cedron.
[138]
Conquanto o ato de sacrifício de animais recaísse, à época, apenas aos sacerdotes, Jesus dava
mostras de que tencionava dar nova interpretação às leis, afinal, ao ver dele, não era ilícito a um
membro da família degolar o seu próprio animal, aliás, tal ato teria uma simbologia até maior do
que o abate feito no Templo, cujos meandros — da compra dos animais ao aproveitamento dos
despojos dele — compunham parte dos lucros do Sinédrio. Esse ato, então, serviu de afronta
àqueles que, servindo apenas ao dinheiro, tentavam monopolizar tal ato litúrgico.
[139]
Alimento adocicado em forma de pequenas pérolas, responsável pela manutenção da beleza e da
jovialidade dos anjos.
[140]
Referência às duas testemunhas necessárias para o rito do processo.
[141]
Antigo líder de Israel, sucessor do profeta Moisés.
[142]
Ordem dos Arcanjos.
[143]
Samael foi o segundo esposo de Lilith, assim que esta abandonou o leito de Adão e caiu em
desgraça perante Deus.
[144]
Um grande incidente ocorreu quando da chegada de Pilatos na cidade de Jerusalém. Ousado, ele
determinou que vários estandartes romanos fossem fincados no Templo, o que gerou uma grande
crise, a qual só foi debelada graças à intervenção de Tibério, que recebeu queixas diretamente dos
senadores judeus. Tal episódio deixou Pilatos em desvantagem política e, desde então, ele
procurava não se imiscuir nos negócios do Templo.
[145]
Peça horizontal da cruz, a qual era encaixada na haste que permanecia fixa nos locais de
execução.
[146]
Platô geográfico fincado nos arredores de Jerusalém, cuja forma lembrava a de um crânio. Local
onde as crucificações eram executadas.
[147]
Chicote romano.
[148]
Soldado que contava, em voz alta, o número de chibatadas, para que os executores não perdessem
a conta.
[149]
Hebraico, grego e latim.
[150]
Cuja extensão era de dois metros e o peso cerca de trinta quilos.
[151]
Diminuição do volume de sangue de um indivíduo.
[152]
Tal ato deu origem à lenda do “Véu de Verônica”, uma das relíquias católicas mais adoradas de
todos os tempos.
[153]
Vale localizado fora das muralhas de Jerusalém, usado como local de descarte dos cadáveres
considerados indignos e de depósito de dejetos.
[154]
Caim e Luluvah eram filhos de Lilith (enquanto serpente) e Eva, a qual foi por ela inseminada no
jardim do Éden, sob a árvore da ciência. Caim fora marcado e condenado por Deus e vagar pelo
mundo até encontrar a derradeira redenção, afinal ele assassinara o irmão Abel e estuprara a irmã
Luluvah, donde, desde odioso colóquio, adveio toda a descendência paralela à de Seth e Aclia, seus
outros irmãos. Layla-Li (agora, Susana), descendia desse clã distorcido e, desde então, também
buscava a purificação da sua alma.
[155]
Vinho amargo misturado com água; bebida-padrão da soldadesca romana.
[156]
Esse foi um ato premeditado de Deus – de cima para baixo –, dando a entender que os homens
agora estavam licenciados para O acessarem diretamente sem o intermédio dos sacerdotes, os quais
alegavam ser os únicos autorizados a ingressar no recinto onde a presença do Eterno estaria. A
paixão de Jesus rompeu essa carapaça, a fim de, vez mais, aproximar o homem de Deus.
[157]
Vale fincado nas proximidades de Jerusalém.
[158]
Uma das mais míticas lendas da tradição oral cristã, foi o judeu que zombou de Jesus quando da
sua crucificação. Diante disso, foi condenado a vagar pela Terra, vivo, até o fim dos dias.
[159]
Um sudário trazido por José de Arimateia, o qual, anos mais tarde, viria a se tornar uma das mais
adoradas relíquias da igreja.
[160]
Artefato religioso que, futuramente, viria a ser conhecido por “lança do destino”.
[161]
Depois chamado de Paulo de Tarso, convertido após ter uma visão de Jesus em uma estrada a
caminho de Damasco. Foi um dos mais influentes escritores do cristianismo e, nos primeiros anos,
se dedicou a perseguir os fiéis de Jesus.
[162]
Filho de Druso e Lívila.
[163]
Um dos maiores e mais respeitados generais que já esteve à frente das Legiões Romanas.
[164]
Caio Júlio César Augusto Germânico. O apelido Calígula veio das Legiões Militares comandadas
pelo seu pai, cujos soldados achavam graça em ver o pequeno Caio travestir-se de legionário e
usando cáligas nos pés (sandálias militares).
[165]
Ilha de Capri, onde ficava a fortaleza de César.
[166]
Celeste da ordem dos arcanjos; lanceiro.
[167]
Indumentária padrão do conselho de arcanjos.
[168]
Província do império romano povoada pelos gauleses.
[169]
O circo romano foi concluído por Nero, próximo à via Cornélia e as colinas do Vaticano.
Coincidentemente, foi nesse mesmo local que Pedro foi crucificado, sessenta e quatro anos após o
nascimento de Jesus.
[170]
A devoção ao rosto de Jesus foi instituída oficialmente pelo Papa Leão XIII, em 1885. A partir de
então, Verônica — já vista como santa na igreja católica — passou a ser adorada na terça-feira que
antecede a quarta-feira de cinzas, dia de comemoração da Sagrada Face.
[171]
Na igreja ortodoxa, Cláudia Prócula ganharia o status de santa, tendo o dia 27 de outubro como o
de sua comemoração.
[172]
Vila portuguesa pertencente ao Distrito de Beja, sub-região do Baixo Alentejo.
[173]
Cidade portuguesa, subdivisão do conselho de Ourém.