O Tempo Do Sonho Poesia Cosmica e Metamo
O Tempo Do Sonho Poesia Cosmica e Metamo
O Tempo Do Sonho Poesia Cosmica e Metamo
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Os índios Koyukon do noroeste do Alasca também creem que outrora, no que designam
como o “Tempo Distante” (Kk’adonts’idnee), os humanos, os demais animais e as plantas
tiveram uma linguagem comum e que esse foi igualmente o tempo no qual todos os seres
vivos “partilharam uma sociedade e passaram por transmutações oníricas de animais ou
1 Traduzido por Edward Field, in Jerome e Diane ROTHENBERG (editores), Symposium of the Whole, Berkeley,
University of California Press, 1983, p. 3, citado em David ABRAM, The Spell of the Sensuous. Perception and
Language in a More-Than-Human World, New York, Vintage Books, 1997, p. 87.
10 Paulo Borges | El Azufre Rojo XI (2023), 07-22. | ISSN: 2341-1368
plantas para humanos e por vezes de volta” 2. O mesmo acontece na cultura dos Yanomami,
do Brasil e da Venezuela, em que o “tempo do sonho” é o “primeiro tempo” em que os
ancestrais, chamados yarori, “não paravam de se transformar”, passando de humanos a
animais e dando origem aos espíritos xamânicos, os xapiri 3. Como nota Viveiros de Castro,
“se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado
originário de indiferenciação entre os humanos e os animais” 4. Questionado sobre “o que
é um mito”, Claude Lévi-Strauss responde: “Se você perguntasse a um índio americano, é
muito provável que ele respondesse: é uma história do tempo em que os homens e os animais
ainda não se distinguiam” 5. Daqui decorre, como adiante explicitaremos, a centralidade da
“metamorfose interespecífica” nas cosmologias ameríndias 6 . O que não é aliás estranho às
mitologias tradicionais das várias culturas planetárias, pois os mitos são, fundamentalmente,
histórias de metamorfoses, como se consagra em Ovídio: “Formei o desígnio de contar as
metamorfoses dos seres em formas novas” 7. A metamorfose é a própria essência da vida:
“Todos os viventes são, de um certo modo, um mesmo corpo, uma mesma vida e um
mesmo eu que continua a passar de forma em forma, de sujeito em sujeito, de existência em
existência” 8 .
É um tempo com características semelhantes às das culturas ameríndias que uma das culturas
mais antigas da humanidade, a dos aborígenes australianos, designa também como Jukurrpa
ou Alcheringa, “Tempo do Sonho”. Trata-se de um tempo intemporal, “oculto por detrás ou
mesmo dentro da presença manifesta e evidente da terra, uma temporalidade mágica” onde
surgiram as primeiras orientações e relações entre os “poderes do mundo circundante” e se
enraizaram as figuras e formas que agora percepcionamos. É um tempo simultaneamente
anterior ao mundo estar “inteiramente desperto” e presente no mais íntimo da experiência
actual, pois “ainda existe mesmo por baixo da superfície da consciência de vigília”. É a
2 Cf. Richard NELSON, The Island Within, São Francisco, North Point Press, 1989, p.110, citado em David
ABRAM, The Spell of the Sensuous. Perception and Language in a More-Than-Human World, p. 146.
3 Cf. Davi KOPENAWA / Bruce ALBERT, A Queda do Céu. Palavras de um xamã yanomami, tradução de Beatriz
Perrone-Moisés, prefácio de Eduardo Viveiros de Castro, São Paulo, Companhia das Letras, 2015, pp. 65, 81,
101 e nota 1, p. 614. Cf. também Aristóteles Barcelos NETO, A Arte dos Sonhos. Uma iconografia ameríndia, prefácio
de Elsje Maria Lagrou, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia / Assírio & Alvim, 2002.
4 Cf. Eduardo Viveiros de CASTRO, A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia, São Paulo,
UBU Editora, 2017, p. 307.
5 Claude LÉVI-STRAUSS e Didier ERIBON, De près et de loin, Paris, Odile Jacob, 1988, p. 193.
6 Cf. Eduardo Viveiros de CASTRO, A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia, pp. 305 e 338-341.
7 OVÍDIO, Les Métamorphoses, I, tradução, introdução e notas de Joseph Chamonard, Paris, Garnier Frères,
1966, p. 41.
8 Emanuele COCCIA, Métamorphoses, Paris, Éditions Payot & Rivages, 2020, p. 29 (tradução nossa).
O tempo do sonho: poesia cósmica e metamorfose nas culturas indígenas 11
aurora do mundo, quando “a própria terra ainda estava num estado maleável, semi-
desperto”, e os “Antepassados totémicos primeiro emergiram da sua sonolência debaixo do
chão” e começaram a percorrer o território cantando e executando as acções fundadoras e
modeladoras das culturas humanas e das formas e características do mundo e da paisagem,
após o que se metamorfosearam nos aspectos físicos da própria terra e nas várias espécies
animais e vegetais que agora percepcionamos. Desenharam assim “trilhas sinuosas” que são
também “faixas Sonhadoras”, fenómenos tão visíveis e tácteis quanto audíveis, pois à medida
que erraram pela terra cantaram os nomes das coisas e dos lugares. Cada trilho ancestral
é assim a “partitura musical” de um vasto canto épico e poético cujos versos narram o vir
a ser dos lugares do mundo em correlação com as aventuras dos Antepassados. As canções
tradicionais, que celebram estes eventos originais, compõem deste modo um mapa auditivo
e é cantando as estâncias apropriadas a cada local que os aborígenes se orientam nos seus
caminhos pela terra 9.
Num arquétipo mítico presente noutras culturas humanas, algumas cosmogonias aborígenes
procedem de uma cópula primordial entre a Mãe-de-Todos, Waramururungundju, e o Pai-
de-Todos, Baiame. É desta hierogamia que procedem todas as correntes de vida e daí a
crença aborígene de se poder experienciar o processo criativo cósmico mediante a dança
e a sexualidade extáticas 11. Nalgumas tribos aborígenes esta conjunção primordial entre as
polaridades masculina e feminina da Vida é figurada pela grande Serpente Arco-Íris que
é andrógina e se concebe ou como contendo toda a criação no seu útero ou como estando
no interior da terra 12. É a Serpente, simultaneamente transcendente e imanente à criação
como “figura simbólica do sagrado corpo da terra e da preformativa ordem espiritual do
9 Cf. David ABRAM, The Spell of the Sensuous. Perception and Language in a More-Than-Human World, pp. 164-166.
10 Cf. Fred MYERS, Pintupi Country, Pintupi Self, Washington/Londres, Smithsonian Institution Press, 1986,
p. 48, citado em Robert LAWLOR, Voices of the First Day. Awakening in the aboriginal dreamtime, Vermont, Inner
Traditions International, 1991, pp. 264-266.
11 Cf. Robert LAWLOR, Voices of the First Day. Awakening in the aboriginal dreamtime, p. 47.
12 Cf. Ibid., pp.115-116. Cf. também p. 38.
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universo”, que ciclicamente extingue e recria a vida sobre a terra. Presente em todos os fluxos
e campos de energia magnética, num espectro de várias cores, frequências e poderes, a sua
força pode ser despertada e excitada pelas acções, canções e ritos humanos, para regenerar e
aumentar a fertilidade e vitalidade da terra e de todas as formas de vida, humanas, animais
e vegetais 13.
O Tempo do Sonho não é um evento passado, concluído de uma vez por todas, mas
um “processo em curso” pelo qual o mundo emerge continuamente da indeterminação
na determinação, do invisível no visível, do silêncio no canto, na dança e na fala. A sua
designação mostra que na experiência aborígene a vida onírica participa directamente na
constituição arquetípica e original da realidade, inseparável do fundo da nossa experiência
consciente e de vigília. O Tempo do Sonho é a dimensão inaparente do presente e do
contínuo vir à presença dos seres e das coisas, constituindo “uma espécie de profundidade,
ambígua e metamórfica” 16 . “Os “antepassados” não estão no passado”, nem são apenas os
antepassados dos humanos, sendo os contínuos “geradores de toda a vida” 17. Como diz um
poema inspirado na mitologia aborígene:
O sonho é “a vida imaginativa da própria terra” que deve ser continuamente renovada,
o que é feito não só em caminhadas e canções solitárias, mas também e especialmente
mediante rituais comunitários realizados em lugares específicos da cartografia sonora do
Sonho, onde as aventuras primordiais dos Antepassados são não apenas cantadas, mas
igualmente encenadas. Estes são muitas vezes animais, cujos comportamentos míticos são
imitados. Estas representações, cerimónias e cantos rituais realizam-se para manter esses
locais vivos, o que implica não só cuidar física e exteriormente deles, mas sobretudo cuidar
do “espírito” neles “alojado”. Sem os ritos, os lugares físicos permanecem, mas perdem
a sua vida espiritual. A terra então morre, bem como todos os que partilham com ela
“características físicas e conexões espirituais”. Por isso, para sustentar o bem-estar da terra e
da comunidade humana, há que realizar os ritos “para manter vivos os poderes sonhadores”
presentes nesses lugares 19. Os ritos são fundamentalmente uma liturgia teatral e sonoplástica,
pois “uma terra que não é cantada é uma terra morta” 20. Os cantos e as danças rituais fazem
germinar o jiwa ou guruwari, o “poder das sementes” deixadas pelas acções dos Antepassados
na terra, que ecoam nas vibrações e ritmos invisíveis que configuram por dentro os relevos
da paisagem e dão forma à aparição do mundo e dos seres vivos. Cada lugar natural possui
assim uma potência própria que o singulariza e vincula à memória da sua origem. É
isso que os aborígenes chamam o Sonhar desse lugar, que constitui a sua sacralidade. Os
cantos, a música instrumental e os ritos não só sintonizam melódica e dramaturgicamente
a consciência dos seus executantes com esse onirismo interior da terra 21, pois, primeiro que
18 Cf. MARSHALL-STONEKING, “Passage”, in Singing the Snake, p.30, citado em David ABRAM, The Spell
of the Sensuous. Perception and Language in a More-Than-Human World, pp. 169-170.
19 Cf. Helen PAYNE, “Rites for Sites or Sites for Rites? The Dynamics of Women’s Cultural Life in the
Musgraves”, in Peggy BROCK (ed.). Women, Rites, and Sites: Aboriginal Women’s Cultural Knowledge,
North Sydney, Allen & Unwin Limited, 1989, p.56, citado em David ABRAM, The Spell of the Sensuous. Perception
and Language in a More-Than-Human World, p. 171.
20 Cf. Bruce CHATWIN, The Songlines, p.52, citado em David ABRAM, The Spell of the Sensuous. Perception and
Language in a More-Than-Human World, p. 171.
21 Cf. Robert LAWLOR, Voices of the First Day. Awakening in the aboriginal dreamtime, p. 1.
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tudo, os agentes e suas artes são as “enformações” das “Formas subjacentes” dos “Eventos
Permanentes” e arquetípicos inseminados em cada lugar. “As terras estão vivas” e os seus
“lugares são participantes activos em tudo o que acontece sobre eles ou neles”, o que se
estende às “canções, cerimónias, pinturas, pedras sagradas ou mesas e outras formas” nas
quais as “Formas” dos Antepassados se transformaram e transformam continuamente 22.
Guruwari, traduzido literalmente como “desenho de totem”, pode ser interpretado como a
“semente invisível ou energia criadora de vida” que os Antepassados, sendo eles mesmos
ilimitados “corpos vibratórios, semelhantes a campos de energia”, irradiam de si mesmos
e estabilizam mediante a sua nomeação específica, fazendo do nome a “potência da forma
ou criatura”, tal como sons, palavras e canções surgem da “vibração do sopro”, pois
o Tempo do Sonho é aquele em que o mundo é cantado para a existência. Na mitologia
aborígene os Antepassados sonham as suas objectivações criadoras ao dormirem sobre a
terra, visualizando primeiro tudo o que exteriorizam como projecção dessa visão interna.
Por contraste com o indo-europeu, que concebe o tempo em termos de uma sucessão linear
de passado, presente e futuro, nenhuma das centenas de línguas aborígenes australianas tem
uma palavra para o tempo assim pensado, pois concebem-no antes como uma “passagem de
um estado subjectivo para uma expressão objectiva”, ou seja, do sonho para a realidade 23.
É por isso que cada ser, entidade e fenómeno do mundo, cada “distinguível energia, forma
ou substância possui tanto uma expressão objectiva como uma subjectiva” ou, no dizer
aborígene: “Cada uma tem o seu próprio Sonhar” 24. As terras e suas distintas configurações
são assim subjectividades, dotadas de potência e agência, como sementes vivas da presente
e futura emergência de vida. O “Sonhar” de cada lugar é tão operativo, agindo sobre quem
nele está, como morfogenético, gerando quem o habita: “Estar num lugar é ser afectado e
mesmo efectuado pelo seu Sonhar” 25.
Do mesmo modo que não concebem o tempo como distância, os aborígenes também não
concebem assim o espaço. O espaço é consciência, que se divide em dois modos: as entidades
perceptíveis no espaço são como os conteúdos parciais da mente consciente, enquanto o
espaço indivisível entre elas corresponde à dimensão inconsciente da mente ou, melhor,
à dimensão não fragmentada e contínua da consciência, que é um continuum criador, um
“continuum de sonhar”. Este continuum está sempre presente e impregna, tal como o espaço,
22 Cf. Graham HARVEY, Animism. Respecting the Living World, pp. 71-72.
23 Cf. Nancy D. MUNN, “The Transformation of Subjects into Objects in Walbiri and Pitjandtjartjara
Myths”, in M. CHARLESWORTH, H. MORPHY, D. BELL e K. MADDOCK (ed.), Religion in Aboriginal
Australia: An Anthology, St. Lucia, Queensland, University of Queensland Press, 1984, pp. 61 e 62, citado em
Robert LAWLOR, Voices of the First Day. Awakening in the aboriginal dreamtime, pp. 36-37.
24 Cf. Robert LAWLOR, Voices of the First Day. Awakening in the aboriginal dreamtime, p.38.
25 Graham HARVEY, Animism. Respecting the Living World, p. 69.
O tempo do sonho: poesia cósmica e metamorfose nas culturas indígenas 15
todos os níveis da existência, sendo nele que se processam todos os fenómenos do mundo,
na sua constante alternância entre aparecer e desaparecer, vigília e sono, vida e morte. A
actualidade visível de uma forma coexiste sempre com o seu potencial invisível, tal como a
percepção consciente dos objectos com o fluxo da consciência não-objectual, dita por isso
“inconsciente” 26 .
Sempre que o mundo é experienciado a partir deste fundo comum, a lógica de identidades
e diferenças demarcadas no espaço pelos aparentes limites visíveis das formas subverte-se
numa lógica onírica onde os seres são osmóticos e fluem no ser uns dos outros, vivendo na
sua forma e na sua consciência. Tudo num sonho é feito da matéria da consciência e sujeitos
e objectos interpenetram-se, entrando e habitando uns nos outros 29. Uma expressão relativa
disto é a declaração de uma mulher aborígene numa entrevista televisiva: “Com a sua visão
vê-me sentada numa rocha, mas eu estou sentada no corpo do meu antepassado. A terra, o
26 Cf. Robert LAWLOR, Voices of the First Day. Awakening in the aboriginal dreamtime, p. 41.
27 Cf. Ibid., p. 15.
28 Cf. Ibid., p. 17.
29 Cf. Ibid., p. 42.
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seu corpo, e o meu corpo são idênticos” 30. Note-se que noutras culturas indígenas, como a dos
Ojíbuas da América do Norte, a capacidade da metamorfose, de se transformar ou aparecer
em diferentes formas, com uma fisicalidade fluida, assinala personagens particularmente
potentes, não só humanas: aves míticas podem aparecer como aves comuns, nuvens ou seres
humanos. As entidades ambíguas conhecidas como “tricksters”, “trapaceiros”, mudam
também constantemente de forma 31. O mesmo acontece com os xamãs 32.
Roger Caillois teorizou o Tempo do Sonho das culturas indígenas como um tempo primordial,
um Urzeit, que opera a transição do caos para o cosmos e no qual tudo é possível, pois as
formas e limites dos seres e das coisas ainda não se definiram e fixaram, não estando as suas
relações sujeitas a regras e leis estáveis de causalidade. Assim sendo, o natural e comum é a
metamorfose e aquilo que só surge como miraculoso e extraordinário após a ordem aparente
do mundo se haver instalado. Como escreve:
“Os objectos deslocavam-se por si mesmos, as canoas voavam pelos ares, os homens
transformavam-se em animais e inversamente. Eles mudavam de pele em vez de
envelhecer e de morrer. Todo o universo era plástico e fluido e inesgotável” 33.
Era assim “possível um homem transformar-se em animal, planta ou pedra” 34. Todavia,
segundo Caillois, quando os antepassados ou as instâncias criadoras definem as diferentes
regiões do mundo e tipos de entes e instituem as distintas tribos, instituições, costumes e
leis, todas as coisas e seres ficam contidos em determinados limites, doravante considerados
naturais, o que resulta na perda dos anteriores “poderes mágicos” pelos quais realizavam
instantaneamente todos os desejos e se convertiam de imediato no que lhes agradava ser.
A constituição dos seres na ordem cósmica implica o sacrifício da “existência simultânea
de todas as possibilidades” e da ausência de regras. Os seres ficam confinados nas suas
individualidades, espécies e géneros, dá-se uma geral solidificação e imobilização ontológica
e surgem os interditos, a fim de se manter a legalidade instituída. O cosmos destaca-se do caos,
ou do caósmico devir original, e traz consigo a morte, “como o fruto o verme”, consequência da
definição da vida nos viventes. A confusão das origens dá lugar à história natural e humana
e às formas consideradas normais de causalidade, a ebulição criadora e metamórfica cede à
vigilância que visa manter a boa ordem do criado e o ócio, a prodigalidade e a abundância
30 “Blackout”, ABC Documentary Series (Aboriginal Production Unit, 1990), citado em Robert LAWLOR,
Voices of the First Day. Awakening in the aboriginal dreamtime, p.42
31 Cf. Graham HARVEY, Animism. Respecting the Living World, p.47.
32 Cf. Eduardo Viveiros de CASTRO, A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia, p.305.
33 Cf. Roger CAILLOIS, O Homem e o Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1988, pp.101-102.
34 Cf. Ibid., p. 104.
O tempo do sonho: poesia cósmica e metamorfose nas culturas indígenas 17
são substituídos pelo trabalho, a poupança e a escassez. É importante contudo notar que
o caos e o tempo mítico primordiais, com a sua pletora de possibilidades, permanecem
presentes como a origem do cosmos e do tempo natural e histórico. Uma origem neles oculta
como a sua mais funda virtualidade que tende constantemente a manifestar-se, violando
as causalidades supostas normais na irrupção de tudo o que surge como inexplicável e
desconcertante 35.
Estas práticas mostram uma experiência do mundo considerado real como uma determinação
actual de formas, coisas, seres e vidas segundo as categorias lógicas da sua classificação
humana que se dá apenas numa superfície aparente, mascarando um fundo sem fundo de
indeterminação virtual - onde se encontra em osmose o que nas formas do mundo convencional aparece
distinto e separado, possibilitando a metamorfose dessas formas - que se pode sempre manifestar e a que
se pode sempre reaceder, seja para o explorar, desfrutando das suas infinitas potencialidades,
seja para dele colher a energia criadora que permita renovar a ordem aparente do real. É
isso que faz, como nota Philippe Descola, que um traço de muitas das ontologias animistas,
ou “anímicas”, seja a “capacidade de metamorfose” de seres que têm formas físicas distintas,
mas interioridades semelhantes ou idênticas, permitindo que um humano se incorpore num
animal ou numa planta, que um animal assuma a forma de outro animal e que uma planta
ou animal dispam “a sua veste para colocar a nu a sua alma objectivada num corpo de
humano” 38 . Embora esta plasticidade tenha limites, ela depende da possibilidade que cada
interioridade anímica tem de mudar a perspectiva que a sua forma física inicialmente lhe
confere, vendo os outros como eles se veem e aparecendo-lhes assim com uma forma idêntica
à sua, nisso que Viveiros de Castro designa como o “perspectivismo”, comum aos povos
ameríndios 39.
38 Cf. Philippe DESCOLA, Par-delà nature et culture, Paris, Gallimard, 2005, p. 240.
39 Cf. Ibid., pp.241-247; Eduardo Viveiros de CASTRO, Métaphysiques Cannibales, Paris, PUF, 2009, pp. 13-29;
Id., “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”, Mana, nº 2 (2), 1996, pp. 115-144; Id., The
Relative Native. Essays on Indigenous Conceptual Worlds, posfácio de Roy Wagner, Chicago, Hau Books, 2015, pp.
195-228 e 249-272.
40 Eduardo Viveiros de CASTRO, Métaphysiques Cannibales, pp. 19-20.
41 Cf. Id., A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia, pp. 303-304.
42 Cf. Id., Métaphysiques Cannibales, pp. 21-24.
O tempo do sonho: poesia cósmica e metamorfose nas culturas indígenas 19
Esta concepção associa-se à ideia de que “a forma manifesta de cada espécie é um envoltório
(uma “roupa”) a esconder uma forma interna humana”, que em condições normais é apenas
visível “aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs”. A
distinção surge assim entre “uma essência antropomorfa de tipo espiritual, comum aos seres
animados, e uma aparência corporal variável, característica de cada espécie”, mas que não
é um “atributo fixo”, sendo antes “uma roupa trocável e descartável”. É esta concepção que
funda a “metamorfose” acima referida como “processo omnipresente” no “mundo altamente
transformacional” das culturas amazónicas, onde espíritos, mortos e xamãs assumem formas
animais, animais convertem-se noutros animais e humanos devêm animais 43. A mudança
espiritual que sustenta a “metamorfose interespecífica” é sobretudo uma mudança de corpo,
pois este é mais da ordem do feito do que do facto, mais performado do que dado, como o atesta
o corpo ritual onde a máscara muda a identidade do seu portador. O corpo não está jamais
definido, mas é um “corpo selvagem” em que se podem a qualquer momento agenciar e
activar “os poderes de um corpo outro”. A “permutabilidade objetiva dos corpos” supõe
a “equivalência objetiva dos espíritos” 44. É isso que permite compreender o xamanismo
como a capacidade de “atravessar as barreiras corporais entre as espécies”, adoptando as
perspectivas de outros “agentes prosopomórficos” a fim de exercer a função cosmopolítica
e diplomática de bem gerir o diálogo e as relações inter e trans-espécies 45. O xamã é um
mediador e um político cósmico, tanto mais eficaz quanto mais transcende o ponto de vista
que “a sua fisicalidade original lhe impõe” para “coincidir com a perspectiva” com que as
múltiplas personas se veem a si mesmas e aos demais viventes 46 . Transitando sem cessar entre
diferentes perspectivas, corpos e mundos, é por excelência o agente metamórfico.
Como vimos no início, é universal nos mitos ameríndios a noção de uma hibridez original
entre os seres, que manifestam atributos humanos e não humanos, num “estado do ser onde
os corpos e os nomes, as almas e as ações, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados
em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo”. Na verdade, é como se aí se conciliasse o
perspectivismo e a sua anulação, pois cada espécie aparece a si e aos outros seres como humana
ao mesmo tempo que já manifesta a sua distinção como “animal, planta ou espírito”, o que
confere o estatuto de xamãs a todas essas personagens míticas, como se afirma em algumas
culturas amazónicas. Nesta visão, contrariamente à “mitologia evolucionista moderna”,
acontece por vezes, como nos mitos dos Campa, que a humanidade “é a matéria do plenum
primordial, ou a forma originária de virtualmente tudo”, a substância primeva a partir da
43 Cf. Id., A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia, pp. 304-305.
44 Cf. Ibid., pp. 336-342.
45 Cf. Id., Métaphysiques Cannibales, p. 25.
46 Cf. Philippe DESCOLA, Par-delà nature et culture, p. 245.
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Para concluir, notemos que, ao assumir o caosmos como a ebulição sempre actual do sonho
criador, no qual sonhadores e sonhos podem sempre sonhar-se e recriar-se de múltiplas formas,
numa poesia cosmogónica entranhada no íntimo do céu, da terra, dos lugares, dos seres e das
coisas, as culturas indígenas mostram a via da metamorfose como alternativa ao princípio de
identidade prevalecente na tradição filosófica ocidental. A deriva do pensamento ocidental
dominante para a busca de uma segurança antropocêntrica, ontognosiológica e política,
pelo sacrifício da natureza metamórfica do mundo a um pressuposto princípio de identidade
metafísico-ontológica, pode reconhecer-se em momentos capitais do pensamento platónico.
Destacamos o Teeteto, onde Platão, após identificar sabedoria (sophia) com conhecimento
(épistémè) 51, rejeita a tradição mitopoética grega por fazer “de todas as coisas uma progenitura
do escoamento e do movimento” 52 e por não haver assim nada que exista em si e por si ao
qual convenha o nome “ser”, pois tudo seriam então fluxos e processos e nada se poderia
“estabilizar pela linguagem” 53 , ou seja, definir e constituir como objecto de conhecimento.
Destacamos ainda a República, onde a mesma estabilização ontognosiológica do mundo
47 Cf. Eduardo Viveiros de CASTRO, A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia, pp. 307-309.
Cf. Gerald WEISS, “Campa cosmology”, Ethnology, 9 (2), pp. 157-172 e 169-170.
48 Cf. Philippe DESCOLA, La Nature domestique: symbolisme et praxis dans l’écologie des Achuar, Paris, Maison des
Sciences de l’Homme, 1986, p.120, citado em Eduardo Viveiros de CASTRO, A Inconstância da Alma Selvagem e
outros ensaios de antropologia, p. 309.
49 Cf. Eduardo Viveiros de CASTRO, A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia, p. 309.
50 Cf. Ibid., pp. 322-327.
51 Cf. PLATÃO, Teeteto, 145 e.
52 Cf. Ibid., 152 e.
53 Cf. Ibid., 157 a-c.
O tempo do sonho: poesia cósmica e metamorfose nas culturas indígenas 21
busca a sua garantia numa concepção da “Divindade” na qual, ainda em contraste com a
tradição mitopoética, esta não seja uma “feiticeira”, capaz de se manifestar aos humanos ora
sob uma forma, ora sob outra, criando “ilusões” nas suas mentes, mas antes “um ser sem
diversidade”, o menos capaz de sair da sua forma própria 54 e assumir “formas múltiplas”
55
. Inconfundível com as narrativas acerca das metamorfoses de Proteu e Thétis, o divino
não pode “consentir em alterar-se a si mesmo”, estando livre de aparições “ilusionistas” e
mentirosas 56 . Note-se que esta ansiosa tentativa de exorcizar a ambiguidade do mundo e do
seu princípio metafísico persiste como a sombra das luzes do racionalismo ocidental, com
múltiplas ressurgências, desde as cartesianas hipóteses do “Deus enganador” e do “génio
maligno” até à necessidade das teodiceias, que, desde Leibniz ao presente, visam justificar
Deus perante a questão do mal ou da natureza ambígua da vida e do mundo.
Na raiz desta excomunhão da metamorfose pode estar o “principal e mais poderoso pilar” da
razão ocidental, que François Jullien, a partir do distanciamento heterotópico do pensamento
chinês, identifica como o logos, no seu simultâneo significado de “palavra – discurso – definição
– argumentação – juízo (susceptível de verdadeiro ou de falso) – ordem e […] «lógica»” 57.
A fundação deste “pilar” estaria no assumir-se como evidência inquestionada “que «falar»
seja «dizer» e que dizer, tornando-se transitivo, seja «dizer alguma coisa», legein ti”. Segundo
Jullien, é essa a herança grega e o parti pris que destina todo o pensamento ocidental à
convicção de que falar seja, necessária e logicamente, dizer alguma coisa, sem o qual a palavra
nada diz e se anula na ausência de objecto 58 . Este parti pris, inconscientemente veiculado pela
língua grega, pela filosofia e pelo modo ocidental de pensar que a língua determina, instaura
o regime de discurso ontologocêntrico em que a palavra fica sujeita a ter de responder a um
“o quê?”, a ter de se referir a um “objecto” circunscrito, id-entificado e determinado, ainda
que como não-objecto indeterminado e indeterminável, como na tradição apofática 59. A
questão é que outros recursos da palavra nisto se sacrificam, desdenham ou ignoram 60 ,
como essa outra vocação refugiada no domínio recalcado a que o Ocidente chama poesia e
que nele opera como um antilogos, dividindo-o esquizofrenicamente 61, pois na experiência
poética, como na onírica – ou na experiência de vigília em outros regimes de consciência,
como vimos acontecer nas culturas indígenas e xamânicas - , um ser ou coisa pode devir
outros ou mesmo ser outros simultaneamente. É o caso do “sapo” que o poeta brasileiro
Manoel de Barros vê/sente como “pedaço de chão que pula” 62 e, mais radicalmente ainda,
dessa “infância de língua” onde o mesmo poeta vê “palavras [...] livres de gramáticas” que
“podiam ficar em qualquer posição” 63.
No fundo subliminal da era logocêntrica, reside porventura, como nos ensinam as culturas
indígenas, o Tempo do Sonho, onde divinos, proteiformes e trans-específicos espíritos-corpos
selvagens, em constante osmose, simbiose e mutação, agenciam, nos ritmos do Céu e da
Terra, na dança, no canto e no drama rituais, a sempiterna poesia caósmica. Eterna origem do
mundo, é nessas entranhas do mundo aparente, veladas pelo verniz da cultura dominante, que
advém a constante e imprevisível mutação do divino e do mundo que foi rejeitado por Platão
na fundação da polis humana ideal. No colapso da civilização antropopolítica, chamado
Antropoceno, no colapso do antropocentrismo e suas projecções teocêntricas, o Tempo do
Sonho é a fonte de um novo começo. Um novo começo cosmopoiético e cosmopolítico, onde
a intermediação entre as múltiplas potências em metamorfose só pode ser assegurada por
quem, livre de identidade, livremente transite pelos seus domínios fluidos. Pressente-se a hora
de novos xamãs, não tribais, mas planetários, proteicos e caósmicos.
62 Cf. Manoel de BARROS, “Entrada”, in Poesia Completa, prefácio de Carlos Nejar, Alfragide, Editorial
caminho, 2011, p. 15.
63 Id., “Poemas Rupestres”, in Ibid., p. 433.