CALVINO, Institutas Da Religião Cristã, II - XV

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 11

4 LIVRO II

As Institutas, de João Calvino ©1985


Editora Cultura Cristã. Todos os direitos são reservados.

1ª edição – 1985
2ª edição – 2006
3.000 exemplares

Tradução
Waldyr Carvalho Luz

Revisão
Valter Graciano Martins
Wendell Lessa Vilela Xavier

Formatação
Edições Parakletos

Fechamento
Wendell Lessa Vilela Xavier

Capa
Magno Paganelli

Conselho Editorial
Cláudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, André Luís Ramos, Francisco Baptista de Mello,
Mauro Fernando Meister, Otávio Henrique de Souza, Ricardo Agreste,
Sebastião Bueno Olinto, Valdeci da Silva Santos.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Calvino, João (1509-1564)
C168i
v.2 As Institutas / João Calvino; [tradução Waldir Carvalho Luz].
– 2.ed. – São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
288p. ; 16x23 cm.
Tradução de Institutio Religionis Christianae
ISBN 85-7622-082-2
1. Teologia Reformada. 2. Teologia Cristã. I. Calvino, C. II. Título.
CDD 21ed. – 230.42

EDITORA CULTURA CRISTÃ


Rua Miguel Teles Júnior, 394 – CEP 01540-040 – São Paulo – SP
Caixa Postal 15.136 – CEP 01599-970 – São Paulo – SP
Fone (11) 3207-7099 – Fax (11) 3209-1255
Ligue grátis: 0800-0141963 – www.cep.org.br – cep@cep.org.br
Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas
Editor: Cláudio Antônio Batista Marra
248 LIVRO II

C A P Í T U L O XV

PARA QUE SAIBAMOS A QUE PROPÓSITO CRISTO


FOI ENVIADO PELO PAI, COM TRÊS COISAS SE DEVEM NELE TER
EM CONSIDERAÇÃO ACIMA DE TUDO:
O OFÍCIO PROFÉTICO, A REALEZA E O SACERDÓCIO

1. O OFÍCIO PROFÉTICO DE CRISTO


Corretamente, pondera Agostinho que, embora os herejes preguem o nome de Cristo,
negam, entretanto, ser-lhes ele um fundamento comum com os piedosos; pelo con-
trário, ele permanece bem próprio da Igreja, porquanto, se diligentemente forem
consideradas as coisas que dizem respeito a Cristo, este se acha entre eles somente
em nome, não de fato. Assim, hoje os papistas, embora na boca lhes ressoe a expres-
são: “Cristo, o Filho de Deus, o Redentor do mundo”, não obstante, uma vez que,
contentes com o fútil pretexto do nome, o desnudam de seu poder e dignidade; a
afirmação de Paulo se lhes aplica realmente: “Eles não retêm a cabeça” [Cl 2.19].
Portanto, para que a fé ache em Cristo sólida matéria de salvação, e assim nele
descanse, deve-se estabelecer este princípio, a saber: que o ofício que lhe foi outor-
gado pelo Pai consta de três partes. Ora, ele foi dado não apenas como Profeta, mas
também como Rei, e ainda como Sacerdote, se bem que de pouco proveito fosse
conhecer estes nomes, se não lhes fosse acrescentado o conhecimento do propósito
e da aplicação. Porque também os papistas os têm na boca, porém friamente e com
bem pouco proveito, pois nem mesmo entendem, nem sabem, o que contém em si
cada um deles.254
Já dissemos anteriormente que, embora enviando os profetas uns após os outros,
numa série contínua, Deus não nunca desproveu o povo de ensino proveitoso e que
fosse suficiente para a salvação; entretanto, desta convicção foram sempre imbuí-
das as mentes dos piedosos, ou seja: que finalmente se deveria esperar a plena luz
do entendimento com a vinda do Messias. E, na verdade, a expectação deste fato
havia chegado até mesmo aos samaritanos, aos quais, entretanto, a verdadeira reli-
gião nunca se fizera conhecida, o que se evidencia desta palavra da mulher: “Quan-
do o Messias vier, ele nos ensinará todas as coisas” [Jo 4.25]. Aliás, os judeus nem
mesmo às cegas haviam presumido isso na mente; pelo contrário, assim criam por-

254. Primeira edição: “Friamente, porém, nem com grande fruto, referem-se, ademais, [estas funções]
igualmente no Papismo, onde se desconhece quê em si contenha cada título [desses].”
CAPÍTULO XV 249

que haviam sido ensinados por oráculos explícitos. Destacada entre outras é a de-
claração de Isaías: “Eis que o pus por testemunha aos povos, eu o dei por guia e
mestre aos povos” [Is 55.4]; na verdade, no mesmo teor, já em outro lugar [Is 9.6] o
havia chamado o “mensageiro ou intérprete do grande conselho”.
Por esta razão, enaltecendo a perfeição da doutrina do evangelho, onde disse
“haver Deus outrora falado pelos profetas, de diversas maneiras e sob muitas figu-
ras” [Hb 1.1], o Apóstolo adiciona: “nestes últimos tempos ele nos falou por inter-
médio do Filho amado” [Hb 1.2]. Contudo, visto que foi tarefa comum aos profetas
manter a Igreja em expectação, e ao mesmo tempo sustê-la até a vinda do Mediador,
por isso lemos que os fiéis se queixavam, em sua dispersão, de estar privados desse
benefício costumeiro: “Não vemos nossos sinais; não há profeta entre nós; não há
quem conheça mais a fundo” [Sl 74.9]. Mas, de fato, quando Cristo já não estava
longe, foi apontado a Daniel o tempo “para selar a visão e a profecia” [Dn 9.24],
não somente para que a autoridade da profecia se evidenciasse segura do que ali
se trata, mas também para que os fiéis ficassem de ânimo tranqüilo, sem profetas
por um tempo, uma vez que estaria iminente a plenitude e conclusão de todas as
revelações.

2. CRISTO, PROFETA, E CULMINÂNCIA DAS PROFECIAS


Com efeito é preciso notar que o título Cristo diz respeito a estes três ofícios,
pois sabemos que, sob a lei, foram ungidos com o óleo sagrado os profetas, os
sacerdotes e os reis, respectivamente. Do que também foi imposto ao Mediador
prometido o ilustre nome de “Messias”. Mas, embora eu reconheça haver Cristo
sido chamado Messias com especial consideração e em razão do reino, entretanto,
como também mostrei em outro lugar, a unção profética e a unção sacerdotal con-
servam sua importância, e não devem ser desprezadas.
Da primeira dessas unções se faz menção expressa em Isaías [61.1,2], nestas
palavras: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim; por isso ungiu-me o Senhor,
para que pregue aos mansos, traga remédio aos contritos de coração, proclame li-
bertação aos cativos, publique o ano do beneplácito”, etc. Vemo-lo sendo ungido
pelo Espírito para que fosse arauto e testemunha da graça do Pai. Nem foi isso de
maneira comum, visto que ele se distingue dos demais mestres, cujo ofício era se-
melhante. E aqui, por outro lado, deve notar-se que ele recebeu a unção não só para
si, para que desempenhasse as funções de ensinar, mas para todo o seu corpo, de
sorte que na contínua pregação do evangelho se patenteie o poder do Espírito.
Entretanto, isto permanece estabelecido: com esta perfeição da doutrina, que
Cristo trouxe, pôs-se um fim a todas as profecias, de tal sorte que violam sua auto-
ridade quantos, não contentes com o evangelho, o remendam de algo estranho. Ora,
além da dignidade de todos, o adornou de singular privilégio aquela voz que clamou
250 LIVRO II

do céu: “Este é o meu Filho amado, ouvi-o” [Mt 17.5]. Ademais, esta unção se
difundiu da própria Cabeça aos membros, como fora predito por Joel [2.28]: “Vos-
sos filhos profetizarão e vossas filhas verão visões”, etc. No entanto, o que diz
Paulo, que ele nos foi dado por sabedoria [1Co 1.30], e em outro lugar que nele
estiveram escondidos todos os tesouros do conhecimento e do saber [Cl 2.3], tem
sentido um pouco diferente, isto é, fora dele nada há proveitoso de se conhecer, e
todos quantos pela fé percebem o que ele é têm abraçado toda a imensidade das
bênçãos celestiais. Razão por que escreve, em outro lugar: “Nada considerei valioso
conhecer, exceto Jesus Cristo, e este crucificado” [1Co 2.2]. O que é muitíssimo
verdadeiro, porquanto não é lícito ir além da simplicidade do evangelho. E a isto
conduz a dignidade profética em Cristo: que saibamos estarem incluídos todos os
elementos da perfeita sabedoria na suma de doutrina que ele ensinou.

3. O OFÍCIO REAL DE CRISTO: UM REINO ESPIRITUAL E ETERNO


Passo agora a tratar do reino, acerca do qual faríamos considerações vãs,255 a
não ser que os leitores sejam antes advertidos de que sua natureza é espiritual, por-
quanto daí poderão compreender sua utilidade e o proveito que lhes toque,256 e toda
sua força e eternidade. Com efeito, a eternidade que em Daniel [2.44] o Anjo atribui
à pessoa de Cristo, com razão, em Lucas [1.33], o mesmo Anjo a acomoda à salva-
ção do povo.
Mas esta eternidade é também dúplice, ou deve ser estabelecida sob dois pontos
de vista, pois uma diz respeito a todo o corpo da Igreja, a outra é própria de cada um
de seus membros. À primeira deve atribuir-se o que se diz no Salmo [89.35-37]:
“Uma vez a Davi jurei por minha santidade, não mentirei; sua semente permanecerá
para sempre; seu trono será como o sol à minha vista, como a lua será firmado para
sempre, e fiel testemunha será no céu.” Pois não há dúvida de que aí Deus está
prometendo que, pela mão de seu Filho, haverá de ser o eterno mentor e protetor da
Igreja. Ora, não em outra parte, senão que em Cristo, se achará a verdade desta
profecia, pois, imediatamente após a morte de Salomão, a dignidade do reino foi,
em sua maior porção, posta por terra, e com a desonra da família davídica foi trans-
ferida a um homem estranho. Mais tarde foi ela pouco a pouco diminuída, até que,
por fim, decaísse de todo em uma triste e vergonhosa ruína. O mesmo sentido tem
essa exclamação de Isaías: “Sua geração, quem a narrará!” [Is 53.8]. Pois está a
proclamar que Cristo assim haverá de sobreviver à morte que o liga com seus
membros.
Portanto, quantas vezes ouvimos ser Cristo armado de eterno poder, lembremo-
nos de que com esta proteção se sustém a perpetuidade da Igreja, de sorte que per-

255. Primeira edição: “Venho ao Reino, acerca do qual em vão se fazem considerações...”
256. Primeira edição: “porquanto daí se colige a quê valha e quê nos confira...”
CAPÍTULO XV 251

maneça, no entanto, incólume por entre agitações turbulentas de que é constante-


mente assediada; por entre graves e formidáveis perturbações, que inúmeras cala-
midades lhe ameaçam. Assim, onde Davi se ri da audácia dos inimigos, que tentam
excluir o jugo de Deus e de seu Cristo, e diz que “em vão tumultuam reis e povos,
porquanto aquele que habita nos céus é suficientemente forte para aparar-lhes as
investidas” [Sl 2.24], tornando os piedosos mais seguros da perpétua conservação
da Igreja, os anima a esperar confiantes sempre que ocorre ser ela oprimida.257 As-
sim, em outro lugar, quando fala na pessoa de Deus: “Assenta-te à minha destra, até
que eu ponha teus inimigos por escabelo de teus pés” [Sl 110.1], está afirmando
que, por mais que muitos e poderosos inimigos conspirem para destruir a Igreja,
entretanto não lhes assistem forças em virtude das quais prevaleçam contra esse
imutável decreto de Deus, pelo qual constituiu a seu Filho Rei eterno. Donde se
segue que não pode acontecer que, com todo o aparato do mundo, o Diabo venha a
destruir a Igreja que está fundamentada no eterno trono de Cristo.
Ora, no que respeita à aplicação especial a cada um de nós, essa mesma eterni-
dade nos deve elevar à esperança da bem-aventurada imortalidade. Pois tudo quan-
to é terreno, e do mundo, percebemos ser temporal, até mesmo efêmero. Portanto,
para que nossa esperança seja elevada aos céus, Cristo declara que seu reino não é
do mundo [Jo 18.36]. Enfim, quando alguém dentre nós ouve que o reino de Cristo
é espiritual, animado por esta afirmação, transporte-se à esperança de uma vida
melhor; e já que agora se acha protegido pela mão de Cristo, espere a plena frutifi-
cação desta graça no mundo vindouro.

4. O SENTIDO DA REALEZA DE CRISTO EM RELAÇÃO A NÓS


Quanto à afirmação de que não podemos de outra maneira compreender por nós
mesmos a força e a utilidade do reino de Cristo, o qual bem sabemos ser espiritual,
facilmente se prova disto:258 embora durante todo o curso da vida tenhamos de mili-
tar sob a cruz, esta condição nos é dura e mísera. Portanto, que nos aproveitaria
sermos congregados sob o governo do Rei celeste, a não ser que seu fruto se
patenteasse além do estado da vida terrena? E, por isso, deve-se saber que tudo
quanto de felicidade em Cristo nos foi prometido não consiste em proveitos exteri-
ores, de sorte que levemos uma vida alegre e tranqüila, floresçamos em riquezas,
estejamos livres de todo malefício e retrocedamos das delícias pelas quais a carne
costuma suspirar. Pelo contrário, consiste no que é próprio da vida celeste.
Mas, assim como no mundo o estado próspero e almejável de um povo se con-
tém, em parte, na abundância de todos os bens e na paz doméstica, em parte em

257. Primeira edição: “a bem esperar [os] anima quantas vezes haja acontecido ser ela oprimida.”
258. Primeira edição: “Que dissemos não poder-se de outra maneira de nós perceber a força e a prestância
do Reino de Cristo que enquanto [o] reconhecemos ser espiritual, até assaz daqui transparece.”
252 LIVRO II

defesas poderosas, em virtude das quais esteja seguro contra a violência externa,
assim também Cristo farta aos seus de todos os recursos necessários para a eterna
salvação das almas, e os mune de força pela qual se postem inexpugnáveis contra
todas e quaisquer investidas dos inimigos espirituais. Do que concluímos que ele
reina mais para nós do que para si próprio, e isto interna e externamente, de sorte
que, refeitos, aliás, até onde Deus sabe ser-nos conveniente, dos dons do Espírito,
de que somos por natureza desprovidos, sintamos destas primícias estarmos, real-
mente, unidos a Deus para a perfeita bem-aventurança. Ademais, como respaldados
do poder do mesmo Espírito, não duvidemos de que haveremos de ser sempre vito-
riosos contra o Diabo, o mundo e toda e qualquer espécie de malefício. A isto con-
templa a resposta de Cristo aos fariseus: porque o reino de Deus está dentro de nós,
ele não vem mediante sinais externos [Lc 17.20,21]. Pois é provável que, pelo fato
de que ele se confessava ser aquele Rei sob quem se deveria esperar a suprema
bênção de Deus, os fariseus, em zombaria, solicitaram que ele exibisse suas creden-
ciais. Ele, porém, para que não se enganem estultamente com pompas aqueles que
são, de outra sorte, mais do que convém, inclinados para a terra, ordena que pene-
trem em suas próprias consciências, porque “o reino de Deus é justiça, paz e alegria
no Espírito Santo” [Rm 14.17]. Com estas palavras, somos sucintamente ensinados
o que o reino de Cristo nos confere.
Ora, visto não ser este um reino terreno ou carnal, que esteja sujeito à corrup-
ção, mas espiritual, nos eleva até a vida eterna, para que passemos pacientemente
por esta vida, sob tribulações, carência de sustento, frio, desprezo, injúrias e outras
inquietações, contentes só com isto: que nosso Rei nunca nos haverá de deixar à
míngua, contudo não nos virá em socorro, em nossas necessidades, até que, haven-
do desempenhado nossa militância, sejamos convocados ao triunfo, porquanto a
natureza de seu reinado é tal que compartilha conosco tudo quanto recebeu do Pai.
Ora, visto que ele nos arma e nos equipa com seu poder, nos adorna com sua beleza
e magnificência, nos cumula com suas riquezas, tudo isso nos serve grandemente
para nos gloriarmos e sentirmos tanta confiança,259 que pelejemos intrepidamente
com o Diabo, o pecado e a morte. Enfim, como revestidos de sua justiça, superemos
valentemente a todos os opróbrios do mundo; e assim como ele nos farta liberal-
mente de seus dons, assim também, de nossa parte, produzamos frutos para sua
glória.

5. NATUREZA E EXTENSÃO DO OFÍCIO REAL DE CRISTO


Portanto, sua unção régia não nos é proposta como sendo feita de óleo ou de
ungüentos aromáticos; pelo contrário, ele é chamado “o Cristo de Deus” [Lc 9.20]

259. Primeira edição: “disto se nos provê ubérrima razão de gloriar[-nos] e até se subministra confian-
ça...”
CAPÍTULO XV 253

porque sobre ele “repousou o Espírito de sabedoria, entendimento, conselho, força


e temor de Deus [Is 11.2]. Este é “o óleo de alegria” com que o Salmo [45.7] procla-
ma ter sido ele “ungido acima de seus companheiros”, porquanto, a não ser que nele
houvesse tal excelência, seríamos todos pobres e famintos. Pois, como foi dito, tam-
pouco se fez ele rico particularmente para si próprio, mas para que derramasse de
sua abundância sobre os famintos e os sedentos. Ora, assim como se diz que “o Pai
não deu ao Filho o Espírito por medida” [Jo 3.34], assim ele expressa a razão: “para
que dele todos nós recebêssemos de sua plenitude, e graça sobre graça” [Jo 1.16].
Desta fonte emana a munificência que Paulo rememora, em virtude da qual “a graça
é variadamente distribuída aos fiéis, conforme a medida da liberalidade de Cristo”
[Ef 4.7]. Com estas considerações confirma-se, amplamente, o que tenho dito: que
o reino de Cristo se situa no Espírito, não em gozos ou pompas terrenas; e daí, para
que sejamos seus participantes, temos que renunciar ao mundo.
O símbolo visível desta sacra unção foi manifestado no batismo de Cristo, quan-
do sobre ele repousou o Espírito na forma de uma pomba [Lc 3.22; Jo 1.32]. Com
efeito, que o Espírito e seus dons são designados pelo termo unção [1Jo 2.20,27],
não deve parecer ser algo novo, nem absurdo, porquanto não somos alentados de
outra parte. Especialmente, porém, no que tange à vida celestial, nenhuma gota de
vigor há em nós a não ser a que o Espírito Santo nos instila, o qual escolheu em
Cristo sua sede, para que daí nos jorrassem abundantemente as riquezas celestes,
das quais somos demasiadamente carentes. Entretanto, visto que os fiéis se saem
não só invictos pelo poder de seu Rei, mas também suas riquezas espirituais neles
exuberam, não é sem razão que se dizem cristãos.
Além disso, a esta eternidade de que temos falado nada altera a afirmação de
Paulo: “Então entregará ele o reino ao Deus e Pai” [1Co 15.24]. Igualmente: “O
próprio Filho se lhe sujeitará, para que Deus seja tudo em todas as coisas” [1Co
15.28], daí outra coisa não quer ele dizer senão que naquela glória perfeita tal admi-
nistração do reino não haverá de ser qual é agora. Ora, o Pai deu todo o poder ao
Filho, para que, por sua mão, nos governe, nutra, sustente; sob seu cuidado, nos
proteja e nos auxilie. E assim, por todo tempo em que peregrinarmos distanciados
de Deus, no meio se interpõe Cristo para que, a pouco e pouco, nos conduza plena-
mente à sólida união com Deus.
Assentar-se à destra do Pai equivale, na verdade, dizer que ele é o legado do Pai,
em quem reside todo o poder do governo,260 visto que Deus quer reger e proteger a
Igreja, por assim dizer, mediatamente, em sua pessoa. Como, aliás, Paulo interpre-
ta, no primeiro capítulo da Epístola aos Efésios: Cristo foi posto à destra do Pai
para que seja o Cabeça da Igreja, que é seu corpo [Ef 1.20-23]. À mesma conclusão

260. Primeira edição: “E, que se assenta à dextra do Pai, equivale, na verdade, a que se diga o legado do
Pai em Quem esteja o poder todo do governo...”
254 LIVRO II

se chega o que ensina em outro lugar [Fp 2.9-11], a saber: lhe foi dado um nome que
está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho e toda
língua o confesse para a glória de Deus Pai. Ora, com estas palavras ele está reco-
mendando também a ordem imperante no reino de Cristo, necessária à nossa pre-
sente insuficiência. Por isso Paulo conclui corretamente que Deus haverá, então, de
ser pessoalmente o Cabeça único da Igreja, porque as funções de Cristo na defesa da
Igreja já estarão cumpridas.
Pela mesma razão, a cada passo, a Escritura o chama Senhor, porque com esta
prerrogativa o Pai o colocou sobre nós, para que exerça seu governo por meio dele.
Porque, ainda que se celebrem muitos senhorios no mundo, “para nós há um só
Deus, o Pai, de quem procedem todas as coisas, e nós nele; e um só Senhor, Cristo,
mediante quem são todas as coisas, e nós por meio dele”, diz Paulo [1Co 8.6]. Do
que se conclui, devidamente, que ele é o próprio Deus que afirmou, pela boca de
Isaías [33.22], ser o Rei e Legislador da Igreja. Porque, ainda que Cristo declare em
muitos lugares que toda a autoridade e o poder que possui é benefício e mercê do
Pai, com isso outra coisa não quer dizer senão que reina com majestade e virtude
divinas; pois adotou precisamente a pessoa do Mediador para que, descendo do seio
do Pai e de sua glória incompreensível, se aproxime de nós.261 Pelo que, mais justo
é que todos nós, com um só sentimento, nos disponhamos para obedecer, e com a
máxima prontidão conformemos nossa obediência à sua vontade. Pois assim como
conjuga os ofícios de Rei e Pastor em relação aos piedosos, os quais, de vontade
própria, se lhe sujeitem com mansidão, assim também, por outro lado, ouvimos que
ele porta “um cetro de ferro, com o qual quebre e despedace a todos os teimosos,
como se fossem vasos de oleiro” [Sl 2.9]. Ouvimos também que “ele haverá de ser
juiz dos povos, de sorte que cubra a terra de cadáveres e lance por terra tudo quanto
se eleve acima dele” [Sl 110.6]. Hoje se vêem certos exemplos deste fato, mas a
plena evidência se deparará no Juízo Final, que, aliás, se pode, com propriedade,
considerar o ato derradeiro de seu reino.

6. O OFÍCIO SACERDOTAL DE CRISTO: EXPIAÇÃO, RECONCILIAÇÃO, INTER-


CESSÃO

Impõe-se agora, em relação ao sacerdócio de Cristo, assim considerar, sucinta-


mente, qual seu fim e aplicação, ou seja, ser ele um Mediador limpo de toda man-
cha, o qual, por sua santidade, concilia Deus conosco. Mas, visto que justa maldição
nos barra o acesso e, em função de seu ofício de Juiz, Deus nos é contrário, para que
o sacerdote nos alcance seu favor a fim de aplacar-se a ira do próprio Deus, faz-se
261. Primeira edição: “Ora, se bem que, por toda parte, chama [Ele] benevolência e mercê do Pai a tudo
quanto tem de poder, entretanto, não outra [cousa] significa senão que reina divinamente, porquanto, por
isso, Se revestiu da pessoa do Mediador, para que, descendo do seio do Pai e da glória incompreensível, a nós
Se [nos] aproximasse.”
CAPÍTULO XV 255

necessário que intervenha uma expiação. Portanto, para que Cristo desempenhasse
este ofício, ele teve que se apresentar com um sacrifício. Ora, também sob a lei, não
era lícito ao sacerdote adentrar o santuário sem sangue [Hb 9.7], para que os fiéis
soubessem que, embora o sacerdote houvesse se interposto como intercessor, entre-
tanto Deus não podia ser propiciado, a não ser que os pecados fossem expiados.
Acerca desta matéria, o Apóstolo discute extensamente na Epístola aos Hebreus,
desde o sétimo capítulo até quase o fim do décimo.
Contudo, a síntese de sua argumentação se reduz a isto: só a Cristo compete a
dignidade do sacerdócio, porque, pelo sacrifício de sua morte, apagou nossa culpa e
fez satisfação por nossos pecados. De quão grande importância, porém, seja esta
matéria, somos avisados daquele solene juramento de Deus que foi proferido sem
arrependimento: “Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque”
[Sl 110.4; Hb 5.6]. Pois, desta forma, Deus quis confirmar, não dubiamente, esse
princípio em que sabia revolver-se a principal peça de nossa salvação. Ora, como
foi dito, nem a nós próprios ou a nossas preces se alcança acesso à presença de
Deus, a não ser que, perdoados nossos pecados, o Sacerdote nos santifique e nos
alcance a graça que nos elimina a imundície de nossas transgressões e depravações.
Vemos assim que, para que a eficácia e proveito de seu sacerdócio chegue até nós,
tem-se de começar pela morte de Cristo.
Segue-se daqui que ele é o eterno Intercessor, por cujo auxílio conseguimos
favor. Donde, por outro lado, nasce não somente confiança de orar, mas também
tranqüilidade nas consciências piedosas, enquanto, em segurança, se reclinam na
paterna indulgência de Deus, e, com toda certeza, estão persuadidas de que lhe
agrada tudo quanto é consagrado por meio do Mediador. Embora, na verdade, sob a
lei Deus ordenara que se lhe oferecessem sacrifícios de animais, diversa e nova foi
a disposição em Cristo, de tal modo que, o mesmo que era o sacerdote, fosse tam-
bém a vítima, porquanto nem se podia achar outra satisfação idônea pelos pecados,
nem alguém digno de tão elevada honra que o Unigênito pudesse oferecer a Deus.
Agora Cristo exerce a função de Sacerdote, não só para que, mercê da eterna lei
de reconciliação, o Pai nos torne favorável e propício, mas ainda para que nos admi-
ta à participação de tão grande honra [Ap 1.6]. Ora, que em nós mesmos somos
depravados, todavia sacerdotes nele, oferecemos a Deus a nós mesmos e a tudo que
é nosso e entramos livremente no santuário celeste, para que sejam agradáveis e de
bom odor à vista de Deus os sacrifícios de preces e de louvor que procedem de nós.
E até este ponto se estende essa afirmação de Cristo: “Por causa deles a mim mesmo
me santifico” [Jo 17.19], porquanto, banhados de sua santidade, até onde consigo
nos consagrou ao Pai, nós que, de outro modo, cheiramos mal diante dele, lhe agra-
damos como se fôssemos puros e limpos, aliás, até mesmo santos. A isto se refere a
unção do santuário de que se faz menção em Daniel [9.24]. Pois é preciso notar a
antítese entre esta unção e aquela, unção penumbrosa que estivera então em uso,
256 LIVRO II

como se estivesse o Anjo a dizer que, dissipadas as sombras, manifesto haveria de


ser o sacerdócio na pessoa de Cristo. Quão mais detestável, portanto, é a invenção
daqueles que, não contentes com o sacerdócio de Cristo, ousaram interpor-se a sa-
crificá-lo, o que se tenta diariamente no papismo, onde a missa é considerada uma
imolação de Cristo.

Você também pode gostar