Luis Correia de Mendonça
Luis Correia de Mendonça
Luis Correia de Mendonça
«Não se pode admitir a publicização daquilo que é privado – o litígio das partes. Tal convola-
ção implicaria uma expropriação de direitos subjectivos que é, como é fácil de ver, inadmissí-
vel. A interferência do Estado, enquanto poder judicial, nos assuntos privados deve restringir-
-se àquilo que os seus titulares lhe pedem. O dispositivo deve continuar a ser o princípio
essencial do processo civil»
Mariana França Gouveia ,
Regime Processual Experimental
Segundo as investigações, esse vírus apareceu pela primeira vez na casa do impe-
rador da Áustria e rei da Hungria, Francisco José (1810-1916), transmitido pelo Dr.
Franz Klein (1854-1926).
O vírus provocava sintomas curiosos entre as suas vítimas. Estas começavam por
afirmar que o processo servia não para tutelar os direitos subjectivos e interesses legíti-
mos dos particulares, mas para restaurar a norma material e o direito objectivo; acres-
centavam, consequentemente, que o processo não servia as partes, mas pelo contrário
eram estas que o serviam; os juízes sentiam-se ungidos por uma força estranha que os
impelia não tanto a dirimir os concretos conflitos entre os seus concidadãos, mas a que-
rer fazer justiça entre os homens.
No caso das viroses mais persistentes e insidiosas surgiam mesmo frequentes epi-
sódios de esquizofrenia. Em algumas manifestações da patologia, aqueles dos infecta-
dos que com veemência defendiam o mercado e as liberdades de iniciativa e de circula-
ção como melhores instrumentos de regulação da vida económica, quando entravam em
litígio, eram os primeiros a depositar no altar da jurisdição a sua liberdade, para que o
Estado, através dos seus órgãos jurisdicionais, a administrasse e defendesse.
Por outro lado, em matéria de direito penal, em que estão em causa interesses
públicos, defendiam com vigor o acusatório. Mas já no cível, estando em causa direitos
disponíveis dos particulares, defendiam assertivamente o inquisitório e o reforço dos
poderes do juiz. Mais ainda: tão depressa promoviam a inquisitoriedade e o direito
jurisprudencial, como preconizavam a desjudiciliazação e a «privatização» da justiça.
ral Santos, «Contra o processo autoritário», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, 1959: 212 ss..
7
Refiro-me, claro está, ao Codice di Procedura Civile de 1940.
8
Refiro-me ao novo Code de Procédure Civile de 1975. O Código abre com um capítulo consagrado aos
«principes directeurs du procès» (artigos 1.º a 24.º) que rompe com a concepção liberal própria da tradi-
ção francesa. São atribuídos importantes poderes de direcção ao juiz, tais como: o poder de providenciar
pelo bom andamento do processo (artigo 3.º); o poder de tomar em consideração todos os factos relevan-
tes que resultem da discussão da causa, ainda que não alegados pelas partes (artigo 7.º, al. 2); o poder de
ordenar a produção de todos os meios de prova legalmente admissíveis (artigo 10.º); o poder de requisitar
elementos probatórios a qualquer das partes e documentos em poder de terceiros (artigo 11.º). A ênfase
conferida às prerrogativas do juiz pelo novo código parece ter já entrado nos hábitos dos juristas franceses
(Loïc Cadet, «Civil Justice Reform: Acess, Cost, and Delay. The French Perspective», Civil Justice in
Crisis (ed. by A.A.S.Zuckerman), Oxford University Press, 1999: 316). Porém, para Raymond Martin,
por exemplo, o novo código representa uma deriva para o totalitarismo judiciário com marginalização das
partes e seus mandatários (A nouveau siècle, nouveau procès civil, Edilex Club, 2000).
9
Refiro-me ao Civil Procedure Rules 1998. Sobre este código, de entre uma bibliografia inabarcável,
Carla Crifò, «La riforma del processo civile in Inghilterra», Riv. trim. dir. proc. civ., 2000: 511 ss., e Luca
Passanante.«La riforma del processo civile inglese: princìpi generali e fase introduttiva», Riv. trim. dir.
proc. civ., 2000: 1327 ss.. As novas regras de processo conferem ao juiz inusitados poderes de gestão
processual. Não interessa agora discutir se o processo inglês, depois da reforma de Lord Woolf, represen-
ta ainda uma das possíveis variantes do modelo adversarial ou se se afastou já irremediavelmente desse
modelo, questão abordada por Passanante no artigo citado. Note-se, porém, que o case management não
implica que o juiz tenha poderes de instrução oficiosos.
3
Porque acredito que o futuro pertence ao garantismo, estou convicto que vai ser
esta a história que daqui a alguns anos será contada, com ou sem metáforas, sobre a
evolução do processo civil.
10
Franco Cipriani, Il Processo Civile nello Stato Democratico, Esi, Napoli, 2006:11.
11
Luís Cabral de Moncada, «O processo perante a Filosofia do direito», Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra, 1946: 55 ss..
4
A parte que age em juízo deixa de ser vista como portadora de um interesse pró-
prio, a fazer valer em tribunal, para passar a ser olhada como um agente de satisfação do
interesse colectivo. Quer isto dizer que, de particular, a parte se converte num civicus; a
acção é um direito público subjectivo e o exercício da acção o exercício privado de uma
função pública.
Erige-se a norma material como o próprio objecto do juízo, quando dantes era
um mero critério desse mesmo juízo, o qual tinha por objecto a existência do direito
subjectivo da parte. Por outras palavras: ao passo que dantes se entendia que através do
exercício do direito de acção se tendia para a afirmação ou declaração do direito subjec-
tivo, que se postulava garantido por uma norma material, agora passa a entender-se que
o exercício da acção tende à declaração do direito como norma, ainda que referida ao
caso ocorrente12.
Em contraste com o processo social surgiu recentemente uma outra corrente que
se pode designar garantista e que pretende, não reatar a tradição liberal de novecentos –
ninguém, que eu saiba, preconiza o regresso a um processo escrito, mediato e não con-
12
Salvatore Satta/Carmine Punzi, Diritto Processuale Civile, 12.ª ed., Cedam, Padova,, 1996: 209.
13
Francesco Carnelutti, «Lineamenti della riforma del processo civile di cognizione», Studi di diritto
processuale, Cedam, Padova, 1939: 362.
5
Se a função jurisdicional encontra a sua razão de ser na tutela dos direitos e inte-
resses legítimos dos cidadãos, e se a função do juiz no caso concreto consiste em ser o
garante último desses direitos e interesses, não é aceitável que essa tutela se faça sem
recurso ao processo, o qual, na perspectiva do juiz, é garantia de acerto e, na das partes,
motivo de segurança e de previsibilidade. O processo é, deste modo, por um lado, o
instrumento único para o exercício do poder jurisdicional, e, por outro, o instrumento
único de exercício do direito de acção.
Se, no século XX, o processo civil foi regulado, em muitos países, a partir da con-
sideração da primazia dos interesses públicos sobre os privados, o século XXI deve ser
o século do processo civil como garantia das situações subjectivas dos particulares.
A condição do juiz como terceiro (terzietá), isto é, como sujeito «à parte», estra-
nho aos factos e ao objecto do processo, é incompatível com a possibilidade de assumir
funções que são próprias das partes (iniciar o processo, determinar ou alterar o seu
objecto, tomar em consideração factos não alegados, decidir a produção de prova dos
factos alegados, etc.).
A imparcialidade, que é algo diverso da condição de terceiro ainda que dela com-
plementar, pressupõe que as decisões do juiz sejam determinadas apenas pelo correcto
exercício da sua função de tutela dos direitos e interesses das partes, e não por qualquer
outra inaceitável razão (preconceitos pessoais, força, dinheiro, estatuto social das partes,
etc.).
O Estado democrático deve garantir que todas as pessoas possam iniciar e desen-
volver um processo em condições de igualdade. Para esse efeito, adoptará as medidas
6
Para esta corrente, a disciplina do processo deve partir da consideração de que ela
é para os particulares a garantia da prossecução do que estimam ser o seu direito ou
interesse legítimo e deve desenvolver-se com sujeição estrita a essa lei reguladora.
14
Esta visão consta da Moção de Valência, aprovada na Primeira Jornada Internacional sobre Processo
Civil e Garantia, que teve lugar no dia 27 de Janeiro de 2006, Revista do CEJ, n.º 4: 239 ss.; a versão
7
castelhana desta moção encontra-se in: Revista Jurídica de la Comunidad Valenciana, n.º 18,2006:7 ss.e
a versão italiana in: Il giusto processo civile, 1/2006: 213.
15
João de Castro Mendes, Limites objectivos do caso julgado em processo civil, Ática, Lisboa, 1968: 117;
cfr. também pág. 151.
16
Manuel Rodrigues, Política, Direito e Justiça, Empresa jurídica editora, Lisboa, 1934: 56.
17
Op. cit.: 87.
18
Op. cit.: 38 e 43 ss..
19
Op. cit.: 87.
20
Op. cit.: 41.
21
Op. cit.: 49.
22
Op. cit.: 50.
8
Desde que pague os seu impostos (e cumpra, quando exista, o serviço militar
obrigatório), o Estado democrático reconhece ao cidadão o direito de se desinteressar
completamente da vida pública e de ser o guardião mais adequado dos seus próprios
interesses.
O Estado omnipotente não lhe repugna, mas parece-lhe mais desejável a instala-
ção de mecanismos de conformação e controle da vida social tendentes a invadir o espa-
ço da vida privada, com consequente eliminação da linha que a separa da esfera pública.
Como consequência deste pensamento sobre o Estado, surge uma nova concep-
ção do processo, na base da qual é colocado, na linha de Klein, «o valor social do lití-
gio».
Ideia já expressa nas Lições de Direito Processual Civil, elaboradas no ano lec-
tivo de 1940/1941: «O Código pretende que se realize uma justiça real e não uma justiça
formal. Uma justiça em harmonia com os factos verdadeiros e o direito aplicável e não
uma justiça que apenas respeite a aparência. Por isso integra-se na corrente autoritária,
ao contrário do anterior que era todo inspirado pelo individualismo»27.
23
Ibidem.
24
Manuel Rodrigues Júnior, Problemas Sociais (Questões Políticas), Ática, Lisboa, 1943: 261 ss..
25
Op. cit.: 270 ss..
26
Op. cit.: 90.
27
João de Matos, J. Santana Godinho, Lições de Direito Processual Civil, segundo as prelecções do
Exmo Senhor Prof. Doutor Manuel Rodrigues feitas ao 3.º ano jurídico no ano lectivo de 1940-1941,
Lisboa: 33; o itálico é meu.
9
Se transpostas para o domínio do processo, tais ideias sobre a educação dos por-
tugueses conduziriam a reforçar o princípio da responsabilidade pessoal das partes e
confeririam maior espaço à liberdade e autonomia aos particulares, o que, como se sabe,
sem surpresa, não aconteceu.
28
Luís Correia de Mendonça, Direito Processual Civil, As origens em José Alberto dos Reis, Quid Juris,
Lisboa, 2002; «80 anos de autoritarismo: uma leitura política do processo civil português», Proceso Civil
e Ideología, Tirant lo Blanch, Valencia, 2006: 381 ss., e «Ottant’anni di autoritarismo nel processo civile
portoghese», Il giusto processo civile, 2/2006:25 ss..
29
A primeira edição desta obra data de Maio de 1897. Foi recentemente reeditada, em 1998, na editora
francesa Anthropos. Há tradução portuguesa, de João do Minho, publicada em 1917. Edmond Demolins
teve uma influência enorme nos que viriam a ser os hierarcas do Estado Novo, a começar no próprio
Salazar. Deste cfr. «Bacharéis e homens úteis» e «Conferência na reabertura do C.A.D.C.», Inéditos e
Dispersos, I, Bertrand, Venda Nova, 1997: 124 ss. e 186 ss..
30
A.F.A.D, Le juge:une figure d`autorité, L`Harmattan, Paris, 1996.
31
Gérard Mendel, Une histoire de l´autorité, Permanences et variations, La Découverte, Paris, 2002: 7.
32
Christophe Mincke, «Les magistrats et l`autorité», Droit et societé, 42/43: 361.
10
Pode, talvez, compreender-se esta matemática, sabendo muito bem que a justiça
não é propriamente um bem escasso, chamando a atenção para que quando os poderes
processuais das partes deixam de derivar da lei, para passarem a depender do poder dis-
cricionário do juiz, acabam por não ser mais poderes; quando se põe a cargo do juiz a
hetero-gestão ou a co-gestão dos interesses feitos valer no processo pelos particulares,
não é apenas de um novo tipo de regulação que se trata; trata-se de substituir a auto-
regulação por uma espécie de processo «intervencionado» pelo Estado, sem motivo
razoável para isso (porque indemonstrada a redução de funcionalidade do anterior regi-
me).
Esta pergunta não mereceria, em princípio, resposta. Contudo, para alguns espí-
ritos, a resposta não parece óbvia33. É preciso então acrescentar que ninguém com bom
senso sustenta que qualquer lei que surja, dimanada de um regime autoritário, tem ine-
xoravelmente a marca ideológica do regime. Mesmo sob o pior totalitarismo a água
continua a ser composta de hidrogénio e de oxigénio, os corpos pesados a cair quando
se largam e a água do mar a ser salgada. Mas, por outro lado, como dizia Hegel, «só a
pedra que cai é inocente»; o homem não é essa pedra. O mais complexo e estimulante
consiste, por conseguinte, não em pôr em evidência os vínculos existentes entre uma lei
estruturante e o regime que teve condições para a aprovar e aplicar, mas em explicar as
razões que impediram que determinado regime autoritário (como a Espanha de Franco,
por exemplo) não tivesse podido moldar o ordenamento processual em conformidade
com as suas ideias. E essas razões são, bem entendido, de uma extrema diversidade
(políticas, técnicas, culturais, económicas, etc.).
Não se esqueça, por outro lado, que a generalidade dos regimes autoritários,
inimigos da divisão dos poderes, sempre atentaram contra a independência do poder
judicial, através dos mais variados mecanismos.
33
João Carlos Barbosa Moreira. «O neoprivatismo no processo civil», Cadernos de Direito Privado, 10:
3 ss., e, em tradução castelhana, in: Proceso Cívil e Ideologia, Tirant lo Blanch, 2006: 199 ss..
34
Peter Böhm, «Processo civile e ideologia...», op. cit.: 627 ss..
11
O Estado Novo pôs, neste particular, em prática, um método muito simples. Para
as «classes perigosas» criam-se regimes especiais; na «lana-caprina» arregimentam-se,
na medida do possível, os tribunais.
Por outro lado, pôs-se, desde cedo, cobro a qualquer veleidade de auto-governo
(ou co-gestão) por parte da magistratura. De acordo com o artigo 14.º do Estatuto Judi-
ciário, aprovado pelo Decreto n.º 13.808, de 22 de Junho de 1927, «a independência da
magistratura judicial consiste no direito de, por intermédio do Conselho Superior Judi-
ciário, escolher os seus membros para os diversos cargos judiciais, e no de exercer
livremente as respectivas funções, sem sujeição a outros ditames que não sejam os que
as leis impõem e a consciência inspira».
35
Anatole Kovler, «D’où le juge russe puise-t-il son autorité?», Le juge:une figure d’autorité, op. cit.:
616.
36
Arlindo Martins, «Plenário do tribunal criminal», Boletim do Ministério da Justiça, 11: 31 ss..
12
Nas palavras de José Alberto dos Reis, «pretendeu-se que o órgão jurisdicional
tivesse não só a direcção formal, senão também a direcção real e efectiva do litígio; e
não se hesitou em pôr na mão do magistrado os poderes indispensáveis para esse desi-
deratum»38.
Visto que a justiça deve ser pronta, isto é, desenvolver-se regularmente dentro
dos termos e prazos legais, sem incidentes que entorpeçam o processo nem dilações
que o paralisem41, «não pode tolerar-se que as partes frustrem, com o seu procedimento,
os desígnios do legislador, sobrecarregando o processo com actos inúteis, levantando
obstáculos ao seu andamento regular, ou provocando, pela sua inércia, a paralisação da
causa»42. Por isso se atribuíram ao juiz poderes de impulsão e de disciplina.
37
Antunes Varela, Discurso pronunciado quando da inauguração do tribunal de Portalegre, em 28 de
Maio de 1955, Boletim do Ministério da Justiça, 1955: 8-11.
38
José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol.3.º, Coimbra Editora, Coimbra,
1946: 9.
39
Num primeiro momento refiro-me à numeração constante da versão original do Código de Processo
Civil de 1939.
40
Op. cit.: 7.
41
Op. cit.: 13.
42
Ibidem.
13
Esta ideia de evitar o que se entendia ser, numa óptica publicística, o dispêndio
inútil de actividade judicial, justificava o dever de o juiz jugular a acção à nascença
(artigo 481.º), como se o exercício do direito de acção fosse uma súplica dirigida por
um súbdito ao juiz, a fim de ser emitida uma decisão de mérito, e não, como deve ser,
uma manifestação da autonomia e liberdade individuais, como se o destinatário directo
e imediato da petição fosse o tribunal e só mediatamente o réu, contra o qual a acção é
na realidade proposta (tendo em vista a constituição do contraditório)44.
Mas justificava ainda outros poderes, tais como o de recusar a junção de docu-
mentos impertinentes ou desnecessários e ordenar o desentranhamento daqueles que
estivessem nessas condições (artigo 556.º), o de indeferir o pedido de exame ou vistoria
(artigo 585.º), o de recusar a expedição de cartas (artigo 266.º), etc.
Para reprimir as «demasias» das partes, pretendeu-se tornar efectiva e real a res-
ponsabilidade emergente da má fé no litígio (artigo 465.º), que no domínio do Código
anterior tinha sido quase letra morta.
43
José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, explicado, Coimbra Editora, Coimbra, 1939: 163.
44
Girolamo Monteleone, Diritto Processuale Civile, Terza edizione, Cedam, Padova, 2002: 362. Tam-
bém criticando este poder que inspirou o legislador brasileiro e, depois, alguns outros países latino-
americanos, Eugenia Ariano Deho, «Sobre el poder del juez de «sofocar desde su nacimiento las preten-
siones fatalmente condenadas al fracaso»», Problemas del Proceso Civil, Jurista editores, Lima, 2003: 69
ss..
45
Sobre esta orientação e a sua contrária, nas suas vertentes teórica, ideológica e prática, Michele Taruffo,
La prova dei fatti giuridici, Giuffrè, Milano, 1992:1 a 66.
46
Op. cit.: 36.
47
Juan Montero Aroca prefere, com razão, falar em dados, em vez de factos, porquanto, ainda que os
factos sejam o principal objecto da prova, não faltam ocasiões em que a actividade probatória pode refe-
rir-se ao Direito e também às máximas da experiência, La prueba en el proceso civil, 4.ª ed., Thomson,
Civitas, Navarra, 2005: 64. Por outro lado, França Gouveia refere que «os factos em processo civil, não
são ( …) naturais. São seleccionados, qualificados, instrumentalizados para o processo. Daí que pretender
identificar a causa de pedir com o conjunto de factos naturais seja, a meu ver, não só errado, como impos-
sível na prática. O critério natural não existe. É uma falsidade», A causa de pedir na acção declarativa,
Almedina, Coimbra, 2004: 71.
14
pode ser interpretada como a tentativa de colocar o juiz, ergo o Estado, já não do ponto
de vista do homem finito, mas do ponto de vista de Deus -«From Whom No Secrets are
Hid»48, que sucede com a verdade judiciária o mesmo que com todas as outras – enga-
namo-nos mais ou menos49, que já Carnelutti, em 1915, advertia que «verdade só pode
ser uma, de tal modo que ou a verdade formal ou jurídica coincide com a verdade mate-
rial, e não é mais do que verdade, ou diverge dela, e não é senão uma não verdade»50,
que o postulado da procura da verdade material choca com o princípio que proíbe o uso
da ciência privada do juiz51, que a justiça do caso concreto só poderá ser considerada
como fim do processo se aceitarmos que esta justiça é aquela que as partes aceitarem52,
que o processo serve para a declaração dos direitos e interesses legítimos dos particula-
res e para isso o juiz precisa naturalmente de verificar a existência dos factos ocorridos,
de que, segundo a lei, resultam aqueles direitos e interesses, através da respectiva prova
em juízo e não através de um pretenso acertamento da realidade em absoluto53, são ape-
nas algumas das muitas objecções que suscita a referida opção ideológica do legislador.
De tal opção deriva a faculdade de o tribunal se socorrer dos factos notórios, não
excluindo a notoriedade judicial (artigo 518.º), e mesmo de factos instrumentais não
alegados pelas partes54.
Esta fórmula foi inspirada em Carnelutti, o qual, no seu projecto de 26, tinha já
colocado o sacrifício dos interesse das partes e mesmo de qualquer pessoa estranha à
causa num quadro de relações que têm a sua expressão típica na figura da requisição
civil ou na da prestação do serviço militar56.
48
Geoffry Hazard,« «From Whom No Secrets are Hid», Segretezza e ricerca della verità nel processo
civile», Riv. trim.dir. proc. civ., 1999: 465 ss..
49
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, Ulisseia, Lisboa, 257.
50
Francesco Carnelutti, La Prova Civile, Giuffrè, Milano, 1992: 29.
51
Se aquele postulado tivesse um mínimo de consistência seria incompreensível a referida proibição
porquanto não existiria melhor fonte de prova do que a própria pessoa do juiz, Girolamo Monteleone,
Diritto Processuale..., op. cit.: 265.
52
Paula Costa e Silva, Acto e Processo, Coimbra editora, Coimbra, 2003: 106 ss..
53
José Joaquim Sanct’Anna, «Theoria do processo judicial», Revista Jurídica, T. 2.º, Imprensa da Uni-
versidade, Coimbra, 1859: 33.
54
Pessoa Vaz, Atendibilidade de factos não alegados; poderes instrutórios do juiz moderno; jurisprudên-
cia crítica, Coimbra editora, Coimbra, 1978.
55
José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, anotado, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 1950:
319.
56
Francesco Carnelutti, «Lineamenti della riforma...», Studi..., op. cit.: 370.
15
Não surpreende que o Código de Processo Civil italiano de 1940 tenha adoptado
este princípio. Segundo o artigo 117.º o juiz pode ordenar, em qualquer estado ou grau
do processo, a comparência pessoal das partes para, em contraditório, as interrogar
livremente sobre os factos da causa. Por outro lado, nos termos do artigo 118.º, o juiz
pode ordenar que as partes e terceiros consintam sobre a sua própria pessoa, ou sobre as
coisas na sua posse, as inspecções que sejam indispensáveis para o conhecimento dos
factos da causa.
Alberto dos Reis achava muito natural este sacrifício do interesse particular aos
fins superiores do exercício de uma função pública. Mais ainda: regozijava-se por
nenhum Código, nem mesmo o italiano, ter estabelecido tal dever de cooperação em
termos tão expressos e categóricos como o fez o português58.
57
Relazione al re sul c.p.c., § 29.
58
José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, anotado, Vol. III, op. cit.: 319.
59
César Abranches, «O dever de colaboração dos terceiros para com a justiça», ROA, ano 1 (n.º 3): 396.
16
Todavia, o poder das ideias mantém-se: como a maior parte dos cidadãos aceita
de boa vontade que os seus impostos sirvam para pagar a burocratas e políticos para
lhes dizerem como devem gerir a sua própria vida (em matéria de saúde, de educação,
de segurança social, etc.) não é de estranhar que, na área da justiça civil, se preserve o
cesarismo judiciário e o paternalismo, mais ou menos moralista, e que o princípio da
auto-responsabilidade das partes não seja assumido por inteiro.
Mas não se ficou por aqui: reforçou (ainda mais) o inquisitório e a discriciona-
riedade dos poderes do juiz.
O Código mantém, depois da reforma, como não podia deixar de ser perante o
quadro constitucional existente, a doutrina do nemo judex sine actore (artigos 3.º, n.º 1 e
265.º, 1ª parte). Porém, no que respeita ao impulso sucessivo, dando cabal acolhimento
às críticas do socialista Menger ao processo liberal – de ser como um relógio velho e
meio escangalhado ao qual era preciso dar constantemente corda para andar mais algum
tempo e voltar de novo a parar – ampliou os poderes de impulsão do processo pelo juiz,
apenas limitado quando existir um «ónus de impulso especialmente imposto por lei às
partes».
«Significa isto que, no silêncio da lei de processo, o impulso que conduz à nor-
mal e regular tramitação da causa está implícito na propositura da acção ou na dedução
oportuna da defesa, não carecendo de ser sucessivamente reiterado através da apresenta-
ção de requerimentos em que a parte se limita a solicitar o cumprimento de actos ou
formalidades que integram estritamente a normal e típica marcha de uma acção daquela
natureza»61.
O significado mais relevante desta alteração não reside, porém, aqui; reside na
plena assunção, ainda que não explicitada, de que o motor natural do processo não são
60
Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997: 28.
61
Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra,
2004: 257.
17
as partes, as quais, como lembra Franco Cipriani62, quando julgam ter razão e meios de
a provar, têm pressa, muito mais pressa do que qualquer juiz do mundo, mas é, ao invés,
o juiz.
Como refere Giampero Balena, «quando o legislador pretende que todas as cau-
sas avancem à mesma velocidade, o efeito inevitável é que daí resulte um pouco de atra-
so para todas, e sejam particularmente penalizadas justamente aquelas que são mais
simples ou que alguma das partes tenha maior pressa em ver decididas»63.
Com o artigo 279.º, n.º 4, que consagra, como se sabe, uma nova modalidade de
suspensão da instância – por vontade das partes, ao lado da suspensão legal e judicial –
o legislador deu um passo no bom sentido. Mas o passo foi tão tímido que o limite tem-
poral de seis meses acaba por anular o efeito prático da medida.
Lembro, por exemplo, que, para espanto, entre outros, de Tarzia64, se estabelece
a tutela criminal das providências cautelares decretadas (artigo 391.º) – para prestigiar a
justiça...em matéria de cognição sumária, mas já não na plena – se permite que o juiz
convole a providência requerida para aquela que considere adequada à prevenção do
dano receado (artigo 392.º, n.º 3), com preterição do princípio do artigo 661.º, e se res-
62
Franco Cipriani, Batallas por la justicia civil, Cultural Cuzco, Lima, 2003:104
63
Giampero Balena, Elementi di diritto processuale civile, Vol. II, Cacucci Editore, Bari, 2006:11.
64
Guiseppe Tarzia, «Providências cautelares atípicas (uma análise comparativa)», Revista da Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa, 1999, n.ºs. 1 e 2: 250.
18
A colaboração, ela própria, pode ser mais ou menos intensa. Será mais intensa,
por exemplo, na operação conjunta de selecção da matéria de facto na audiência preli-
19
minar, menos intensa nos casos do artigo 519.º, a propósito dos quais se pode discutir se
estamos ainda no domínio da cooperação ou já perante uma realidade que dela se afasta.
Foi com entusiasmo que a doutrina nacional acolheu o novo princípio, o qual, na
versão dominante, terá transformado o processo numa «comunidade de trabalho».
Também neste caso vamos encontrar Franz Klein e a ZPO austríaca de 1895 na
origem dessa concepção.
65
Mariana França Gouveia, Regime processual experimental, Almedina, Coimbra, 2006: 103.
66
Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra,
2004: 266 ss..
67
Miguel Teixeira de Sousa, Estudos..., op. cit.: 65 ss., e Introdução ao processo civil, 2.ª ed., Lex, Lis-
boa, 2000: 56 ss.; cfr. também José Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, Coimbra editora,
Coimbra, 1996: 149 ss..
68
Rainer Sprung, «Le basi del diritto processuale civile austriaco», Rivista di diritto processuale, 1979.
20
A partir destas bases, Klein construiu um modelo de processo que, mais do que
nos postulados da oralidade, concentração, imediação, publicidade e liberdade de jul-
gamento, assenta no dever de o juiz dirigir o processo e realizar as diligências necessá-
rias ao apuramento da verdade71. Klein defendia que as partes deviam colaborar diligen-
temente com o juiz na descoberta da verdade, mas se, por alguma razão, o «grupo de
trabalho» não funcionasse, o juiz converter-se-ia num solitário investigador dos factos.
Em verdade, a justiça existe porque, como diz Paulo Freire, «nós somos seres da
briga». Somo-lo «para complementar, vivenciar ou para pôr em prática a vocação onto-
lógica de ser mais»74.
Simmel demonstrou que «se qualquer acção recíproca entre os homens é uma
socialização, então o conflito, que é uma das formas mais activas de socialização e que
é logicamente impossível de reduzir a um único elemento, deve absolutamente ser con-
69
Op. cit.: 27.
70
Op. cit.: 38.
71
W. H. Rechberger, G. E. Kodek,, «L’ ordinanza della procedura civile austriaca del 1895», Ordinanza
della procedura civile di Francesco Guiseppe, 1895, Giuffrè, Milano, 2004:XXVII ss..
72
Franco Cipriano, Batallas por la justicia civil – Ensayos, Cultural Cuzco, Lima, Perú: 65.
73
Ibidem.
74
Público, 4 de Maio de 1997.
21
siderado como uma socialização»75; que um grupo que fosse simplesmente centrípeto e
harmonioso, uma pura e simples «reunião» não só não teria existência empírica, como
estaria privado de verdadeiro processo de vida76; que qualquer sociedade é o resultado
da interacção de forças atractivas e de forças repulsivas, ambas inteiramente positivas77.
Paul Ricouer, por sua vez, refere que o «processo é apenas a forma codificada de
um fenómeno mais lato a saber, o conflito»78.
Só assim se compreende que a Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho , que criou os jul-
gados de paz e introduziu a mediação como peça fundamental da actuação desses julga-
dos, tenha confiado, no artigo 35.º, n.º 1, ao mediador a função de auxiliar as partes a
encontrar por si próprias uma solução negociada e amigável – um adjectivo que soa um
75
Georg Simmel, Sociologie, Études sur les formes de la socialisation, Puf, Paris, 1999: 265. Sem esque-
cer o clássico livro de Ihering, A luta pelo direito, para quem somente a luta alcança e aperfeiçoa os
objectivos do homem.
76
G. Simmel, op. cit.: 266.
77
Op. cit.: 267.
78
Paul Ricoeur, O justo ou a essência da justiça, Instituto Piaget, Lisboa, 1997:166.
79
Franco Cipriani, Batallas…, op. cit: 69/70. Constituem efeitos desta concepção, entre outros, o regime
de citações e notificações oficiosas, as consequências cominatórias rígidas ligadas à revelia do réu, a
quase impossibilidade das partes influenciarem o desenvolvimento do processo, a proibição dos nova na
apelação, etc.
80
Adolfo Alvarado Velloso, Garantismo procesal contra actuación judicial de oficio, Tirant lo blanch,
Valencia, 2005: 98, nota 50.
22
tanto estranho para o conflito que as opõe81. Como referia, não sem ironia, Isabel Maga-
lhães Collaço, na citada conferência, «decididamente gostamos muito da amizade em
matéria de ADR (alternative dispute resolution)». Acrescentaria só: « decididamente
gostamos muito da amizade, seja qual for o processo».
É claro «que a lei pode conter instrumentos que visem minimizar este conflito,
desde logo impondo um contacto directo e um diálogo contemporâneo entre sujeitos
que, por regra, se encontram apartados e fechados nas respectivas posições. Mas a lei
não pode anular este conflito»83.
Paula Costa e Silva considera, com razão, que o tipo ideal de parte pressuposto
pelo paradigma de comunidade processual escolhido pelo legislador da reforma de
95/96 é utópico.
Esse tipo ideal de parte pressupõe «um homem que, com a maior isenção, possa
apresentar a sua versão dos acontecimentos ao tribunal pedindo apenas aquilo que a lei
lhe permite e ajudando, tanto o tribunal, como a parte contrária, na recolha de tudo
quanto permita chegar ao resultado final justo. A parte que não visa persuadir, mas
informar o tribunal, a parte que não age estrategicamente em função do resultado que
melhor serve os seus interesses, mas que coopera sistematicamente com o tribunal e a
parte contrária»84.
Ora, este tipo de parte nada tem a ver com a realidade. A parte processual, «tal
como tipicamente é, é alguém que vive o conflito de modo emocional e não de modo
racional»85.
81
Isabel Magalhães Collaço, A resolução extrajudicial dos litígios e os seus possíveis desenvolvimentos,
conferência de encerramento do seminário internacional sobre formas de resolução extrajudicial de con-
flitos –- Grotius Civil, proferida no CEJ, em 13 de Abril de 2002.
82
Paul Ricouer, O justo..., op. cit.: 166.
83
Paula Costa e Silva, Acto e processo, op. cit.:110 ss..
84
Op. cit.: 112.
85
Ibidem.
86
Salvatore Satta, Soliloqui e coloqui di un giurista, Cedam, Padova, 1968: XVIII.
87
Franco Cipriani, Il codice di procedura civile tra gerarchi e processualisti, Esi, Napoli, 1992: 22.
23
Acresce que a sentença é uma decisão soma-zero89. Julgar é dar a cada um o que
é seu (suum cuique tribuere), separar as partes, cortar em direito e a direito interesses
antagónicos.
Nem tal propósito passou alguma vez pela mente do nosso legislador.
Carlos Lopes do Rego refere que «o que, na realidade das coisas, o princípio da
cooperação – bem como outros que lhe são conexos, como o da direcção do processo e
o incremento da inquisitoriedade judicial – vem, de algum modo, restringir é a passivi-
dade do juiz, afastando-se claramente da velha ideia liberal do processo como uma
«luta» entre as partes, meramente arbitrada pelo julgador »90.
Antunes Varela, o qual não era propriamente um liberal, não deixou de criticar o
encargo «sobre-humano» que passou a recair sobre o juiz de 1.ª instância de fazer de
professor de direito e de mestre-escola de ambas as partes e seus patronos, a raiar os
limites «do bom senso, da pura prudência e até da essência da função judicial»91 e de
apontar para o risco que se corria de se intrometer um julgador salvífico no reduto do
mérito da causa92
Mariana França Gouveia, no seu trabalho mais recente, demarca-se dos para-
digmas liberal e autoritário de processo e propõe, em alternativa, um novo arquétipo,
misto dos dois e conciliador dos seus antagonismos – o arquétipo do juiz colaborante93.
88
Othmar Jauernig, Direito Processual Civil, Almedina, Coimbra, 2002: 149, autor que afirma perempto-
riamente inexistir qualquer motivo para substituir o princípio da instrução por iniciativa das partes pelo
chamado princípio da cooperação.
89
Boaventura Sousa Santos et alii distinguem as decisões mini-max das decisões soma-zero. «As primei-
ras procuram maximizar o compromisso entre as pretensões opostas de modo a que a distância entre
quem ganha e quem perde seja mínima e, se possível, nula. As decisões soma-zero ou decisões de adjudi-
cação são aquelas que maximizam a distinção e a distância entre a pretensão acolhida e a pretensão rejei-
tada e, portanto, entre quem ganha e quem perde», Os tribunais nas sociedades contemporâneas: o caso
português, Afrontamento, Porto, 1996: 48.
90
Op. cit.: 266.
91
Antunes Varela, «A reforma do processo civil português», Revista de Legislação e de Jurisprudência,
ano 130.º: 195/196.
92
Op. cit.:198.
93
Mariana França Gouveia, Regime processual…op. cit.: 13.
24
Para esta autora, «um juiz colaborante é, em primeiro lugar, alguém que, em
simultâneo, está num patamar de igualdade com as partes (democracia em vez de autori-
tarismo) e, segundo, alguém que se preocupa com o litígio privado em discussão (solu-
ção adequada em vez de desinteresse ou alheamento)»94.
Quanto aos limites dos poderes do juiz a autora não é menos clara: «o juiz cola-
borante não pode intervir na delimitação do caso concreto, como aliás é regra no nosso
processo civil desde sempre (artigos 264.º e 664.º CPC), mas pode e deve utilizar ins-
trumentos que permitam tal adequação entre realidade intra processual e extra proces-
sual. Isto justifica alguns poderes, como os de convidar a aperfeiçoar requerimentos
probatórios, mas deve ser feito com a maior das cautelas, porque estamos no limite da
intervenção pública em assuntos privados»95.
94
Ibidem.
95
Ibidem.
96
François Ost, «Juge-pacificateur, juge-arbitre, juge-entraîneur. Trois modèles de justice», Fonction de
Juger et Pouvoir Judiciaire, Facultés universitaires Saint – Louis, Bruxelles, 1983: 1- 70.
97
Antoine Garapon, Le Gardien des Promesses, Editions Odile Jacob, 1996: 274.
25
98
José Alberto dos Reis, Breve estudo sobre a reforma do processo civil e comercial, Coimbra editora,
Coimbra, 1927: 105.
99
Elisabetta Silvestre,«Appunti sulla giustizia civile nella Federazione Russa», Riv. trim. dir. proc. civ.,
2002:1305.
100
Niceto Alcala-Zamora y Castillo, prologo a Jose Rodriguez U., Autoridad del juez y principio disposi-
tivo, Universidad de Carabobo, Valencia, 1968: XXV.
101
Pessoa Vaz, Direito processual civil , Almedina, Coimbra, 1998: 299.
102
Luís Correia de Mendonça, José Mouraz Lopes, «Contributo para uma análise estrutural da sentença
civil e penal: a legitimação pela decisão», Revista do CEJ, 1:191 ss..
26
te anos, sob a influência pesada de Alberto dos Reis, prevaleceu entre nós, e substituí-la
por uma cultura verdadeiramente democrática de motivação convincente e equilibrada
das sentenças judiciais103.
Por outro lado, parece-me perfeitamente aceitável que se tenha uma perspectiva
isonómica e horizontal do processo, desde que nele não haja confusão de papéis, embo-
ra as metáforas arquitectónicas explicativas não sejam, longe disso, decisivas.
Também me parece interessante enfatizar a ideia de diálogo entre todos os sujei-
tos processuais, desde que tal não signifique perseverar no mito da oralidade.
Mas, neste plano, importa claramente não confundir diálogo com cooperação.
Pode muito bem dialogar-se no processo sem cooperar numa obra comum.
Para evitar equívocos e pôr de lado, de vez, o irrealismo da «comunidade de tra-
balho», talvez seja preferível, em lugar de insistirmos na ideia cooperativa, começarmos
a falar em princípio do diálogo – entre jurisdições, entre as partes e entre estas e o juiz
– como é proposto, em obra recente, por Helène Ruiz e Jean-Marc Sorel104.
A minha discordância com França Gouveia só é significativa no que respeita ao
papel e aos poderes do juiz. Este juiz é um homem ou uma mulher com emoções, pre-
conceitos e com determinada visão do mundo. O problema consiste então em saber se é
possível e há condições para transpor para a realidade do processo aquele homem ou
aquela mulher de carne e osso exigindo-lhes que cumpram escrupulosamente os seus
deveres de imparcialidade e terzietà, e, em simultâneo, que se preocupem com o litígio
privado, mais do que o estritamente necessário para a declaração dos direitos subjecti-
vos, de acordo com a norma material e os factos provados em juízo.
103
Fréderic Berenger, La motivation des arrêts de la Cour de Cassation, Presses Universitaires D’ Aix-
Marseille, 2003.
104
Partindo da evolução das sociedades modernas e das expectativas dos cidadãos no início deste século,
estes autores destacam três ideias basilares, a lealdade, nomeadamente na recolha das provas, o diálogo,
entre as partes e entre estas e o juiz, e a celeridade, erigindo-as em princípios directores comuns a todos
os processos, Serge Guinchard et alii, Droit processuel, droit commun et droit comparé du procès, 3.ª
ed., Dalloz, 2005: 957
105
Franco Cipriani, Batallas..., op. cit.: 154.
27
Um novo código de processo civil foi aprovado pela Ley n.º 1/2000, de 7 de
Janeiro. Neste código – assente nos princípios do dispositivo, da oralidade e da concen-
tração – são praticamente inexistentes os poderes de direcção material do juiz e amplas
as garantias conferidas às partes108.
106
Luigi Ferrajoli, «L’Etica della giurisdizione penale», in: (a cura di Giovanna Visintini e Sergio Marot-
ta), Etica e deontologia Giudiziaria, Vivarium, Napoli, 2003: 40.
107
Semanário Sol, de 23 de Setembro de 2006.
108
Até hoje, o Tribunal Constitucional de Espanha nem uma só vez questionou a constitucionalidade das
normas do referido código Estranho, por isso, que se possa afirmar com tão poucas dúvidas que este
modelo de processo é «dificilmente conciliável» com um Constituição que institui o Estado social de
direito, Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol 1, 2.ª ed., Almedina,
Coimbra, 2004: 266.
109
O artigo 429.1, II, dispõe, para o final da audiência prévia no processo ordinário, que «cuando el tribu-
nal considere que las pruebas propuestas por las partes pudieran resultar insuficientes para el esclareci-
miento de los hechos controvertidos lo pondrá de manifiesto a las partes indicando el hecho o hechos que,
a su juicio, podrían verse afectados por la insuficiencia probatoria. Al efectuar esta manifestación, el
tribunal, ciñendose a los elementos probatorios cuya existencia resulte de los autos, podrá señalar también
la prueba o pruebas cuya prática considere conveniente. En el caso a que se refiere el párrafo anterior, las
partes podrán completar sus proposiciones de prueba a la vista de lo manifestado por el tribunal».
Por sua vez, o artigo 435.2 preceitua: «Excepcionalmente, el tribunal podrá acordar, de oficio o a instan-
cia de parte, que se practiquen de nuevo pruebas sobre hechos relevantes, oportunamente alegados, si los
actos de prueba anteriores no hubieran resultado conducentes a causa de circunstancias ya desaparecidas e
independientes de la voluntad y diligencia de las partes, siempre que existan motivos fundados para creer
que las nuevas actuaciones permitirán adquirir certeza sobre aquellos hechos. En este caso, en el auto en
que se acuerde la práctica de las diligencias habrán de expresarse detalladamente aquellas circunstancias
y motivos».
110
Juan Montero Aroca, Los principios políticos de la nueva Ley de Enjuiciamiento Civil, Tirant lo
Blanch, Valencia, 2001: 123, e La prueba…, op. cit.: 493.
28
– impor ao juiz o dever de mandar intervir na causa qualquer pessoa, sem quaisquer
limitações ou condições, e suprir de ofício os pressupostos processuais, à semelhança do
já acontece no Código de Processo do Trabalho (artigos 27.º, alínea a) e 127.º, n.º 1);
– conferir ao juiz poderes para investigar livremente quaisquer factos, mesmo não ale-
gados, essenciais à procedência das pretensões formuladas e das excepções deduzidas;
– incumbir o juiz do dever de explicar às partes quais são os seus direitos processuais e
como se devem comportar no desenvolvimento da acção;
– atribuir ao juiz o poder de, independentemente da vontade das partes e da satisfação
dos ónus legais, fixar discricionariamente quais os factos assentes e quais os controver-
tidos e carecidos de prova; ainda que os factos tenham sido admitidos por acordo, per-
mitir que o juiz possa incluí-los no thema probandum;
– atribuir valor probatório ao conhecimento privado do juiz;
– admitir a condenação extra vel ultra petita partium, o que, como se sabe, é já hoje
permitido na jurisdição laboral (artigo 74.º c.p.t.);
– atribuir ao Ministério Público a faculdade de propor acções civis, independentemente
da vontade das partes e de intervir como parte principal em qualquer causa em que se
discuta matéria de relevo para os interesses do Estado.
Acredito que a grande maioria dos juristas portugueses não queira continuar
por um caminho que só pode conduzir ao abismo.
111
Este tipo encontra-se, entre outros, no Código de Processo Civil russo de 1923, Piero Calamandrei, «Il
processo civile in Russia», op. cit.: 287 ss.. A comparação com o Código de Processo Civil da República
Socialista Federativa Soviética da Rússia, de 1964, proporcionaria idêntico resultado.
29