Dissertação - Roberta Tiburcio Barbosa
Dissertação - Roberta Tiburcio Barbosa
Dissertação - Roberta Tiburcio Barbosa
CAMPINA GRANDE - PB
2019
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CAMPINA GRANDE - PB
2019
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
The contemporary literature has been the stage for discussions and problematizations of
the categories that characterize the literary and constitute the motto of the productions
that, together, constitute the literary instance. Characters and, mainly, authors from
marginalized spaces socioculturally plead, with their productions, the visibility to their
"places of speech" (RIBEIRO, 2017) and their intellectual potentialities. Like this, the
present work discusses the literary production of Conceição Evaristo, Brazilian writer,
due to the rise of the "Ex-cêntricos" (HUTCHEON, 1991) to the field of literature and
the recognition of the subjective and artistic capacities of these Operated in his writing.
The "escrevivência", term coined by the author, constitutes/directs the reflections about
the uninterrupted dialogue between life and art. They are, therefore, the processes of
alterity fought in the "Literature of Crowds" (JUSTINO, 2014), that configure the
exchanges present in the "post-autonomic literature" critical activity guidelines
developed here. In this sense, we aim to understand how the writing Semiotiza the many
peripheral/poor who play moments of insubalternity and sority in the Brazilian
literature, for this, we will especially pay attention to the black woman, guide mother of
all "Ralés" (SOUZA, 2009), since it is the evaristiana figure that plays a crucial role in
the abolition of all the foundations/bases of the systems of oppression, brokered by the
devices of the patriarchal/capitalist control. Thus, by means of bibliographic research,
supported by the theoreticians cited and in other scholars of the problems in focus, we
will analyze three Evaristian productions. In the first chapter, we will discuss the soap-
opera "Sabela" (2016), studying how the collectivities/communities operate processes of
insurrection and perpetuation/expansion of their subjectivities and potentialities. In the
second chapter, we will discuss the novel Ponciá Vicêncio (2003), investigating the
mechanisms of resistance and the escape routes found to circumvent the dominant yoke.
The collection of tale Insubmissive Tears of Women (2011) will be the object of
reflection in the third chapter, in which we seek to understand how singular life
trajectories are elements that foster collective demands for becomings with more equity-
laughter and fewer hierarchies-Crying.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................10
CAPITULO I – MEMÓRIAS EM TRÂNSITOS: “SABELA” E A ALTERIDADE
INSCRITA NA MULTIDÃO.......................................................................................15
1.1 A comunidade e as subversões dos pobres na literatura: trabalho imaterial e
escrevivência...................................................................................................................20
1.2 Escrevivência: Conceição Evaristo como autora e a(r)tivista.............................27
1.3 Tudo que é pétreo se desintegra no mar: Sabela e o perseverar dos
pobres...............................................................................................................................39
INTRODUÇÃO
Nossos poemas conjuram e gritam
Conceição Evaristo1
1
Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de janeiro: Malê, 2017.
11
“Qual era a cor dos olhos de minha mãe?”2 Essa é a pergunta fundante de um
dos contos evaristianos, questionamento/inquietação que perpassa toda a obra da autora.
No resgate memorialístico que a narradora personagem, do conto citado, faz de sua
infância, sobrevêm não só as doces e tristes lembranças, mas também o signo da
resistência e da potência da mulher negra. Ao discorrer sobre seu passado, a narradora
ressignifica os trânsitos cotidianos e atribui à sua memória um caráter ancestral de
impulsos potencializadores do devir dessas mulheres.
Mais do que “ficção memorialística”, a obra de Conceição Evaristo constitui-se
uma espécie de “relato de experiências coletivas”, que reflete sobre o viver e,
especialmente, a respeito do conviver, dos agenciamentos travados em sociedade, via
literatura. Um processo que pressupõe o escrever como uma prática de trabalho
imaterial dos muitos marginalizados do Brasil. Nesse ínterim, a mulher negra toma
posse da palavra/voz literária e se faz agente de ação efetiva nos mais variados estágios
sociais “pensando em resistências e reexistências” (RIBEIRO, 2017, p. 16).
Nesse sentido, Conceição Evaristo executa uma atividade dialética em suas
narrativas, ao sobrepor momentos de sua própria experiência e casos de
pessoas/personagens que compõem a sua produção literária. Tais fatores são reunidos e
ressignificados por meio de uma escrita engajada e de um entendimento da literatura
como espaço de mobilização e reconhecimento das potências dos marginalizados. Desta
feita, a partir da leitura de três das seis produções evaristianas problematizaremos as
conjunturas sócio-culturais e políticas que condicionam a subjetividade ex-cêntrica na
contemporaneidade. Cada capítulo do presente estudo discorrerá a respeito de uma
produção evaristiana, sendo elas: a novela “Sabela”, publicada em 2016; o romance
Ponciá Vicêncio, que teve sua primeira edição publicada em 2003; e o volume de contos
Isubmissas Lágrimas de Mulheres, de 2011. Essas três narrativas dizem respeito a
diferentes momentos da carreira de Conceição Evaristo enquanto escritora e,
consequentemente, distintos estágios de desenvolvimento da sua escrevivência.
Ponciá Vicêncio foi a primeira obra individual de Conceição Evaristo a ser
publicada, a partir dela a autora chegou ao conhecimento do público leitor. Insubmissas
Lágrimas de Mulheres veio a público no transcorrer de sua carreira, assim como
“Sabela”, que faz parte de sua produção mais recente, intitulada História de Leves
enganos e parecenças, esta última difundida atualmente, na fase de maior prestígio da
2
EVARISTO, Conceição. “Olhos d‟água”. In: Olhos d’água. 1.ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2016, p. 15-19.
13
autora, em que ela cresce como uma expoente da literatura brasileira negra. Haja vista
que a história e os movimentos travados em seu transcurso não se processam em uma
linearidade homogênea e sim de maneira simultânea, em que os episódios se
interconectam/sobrepõem, também não buscamos compreender a linha de construção da
literatura evaristiana e sim os sentidos engendrados por esta, por meio das reflexões
suscitadas nas narrativas a partir de suas respectivas personagens. Desse modo, a
escolha do corpus foi realizada considerando-se a relevância de cada produção dentro
da criação artística de Conceição Evaristo, uma vez que compreendem gêneros literários
diversos, pensando as interconexões que as personagens e os enredos estabelecem entre
si, resultando na tessitura de uma escrita genuína, e nos novos paradigmas que são
fomentados/fortalecidos a partir desse fazer artístico.
A novela “Sabela” (2016), da qual se ocupará o primeiro capítulo do presente
estudo, é um dos muitos escritos que trazem a inscrição da luta/demanda dos soterrados
pelo domínio patriarcal/capitalista, daqueles que emergem dos escombros, provenientes
das desigualdades, cada vez mais fortes e convictos de sua vitória/subversão social.
Revolução pós-diluviana que representa o início de um novo ciclo e a reescrita ou o
recontar da história pela voz/lembrança/singularidade do “qualquer” (AGABEN, 2013)
das “comunidades negativas” (BLANCHOT, 2013), apresentando a vida do “ser-em-
comum” (NANCY, 2016). “Sabela” traz a história de uma grande enchente que assola
toda uma cidade, que possuía dentro de si seus guetos/comunidades. Após a morte de
muitos pelas águas, os que sobrevivem experimentam uma espécie de renascimento e se
unem com mais vontade de contar e cantar suas reminiscências, a exemplo do menino
Rouxinol, que após ter sua voz por muito tempo silenciada, deixa que ecoe pelos ares,
outrora intempestivos e ainda hostis, seu (en)canto, que traduz o viço e o dinamismo
dos que não se deixam calar/frear.
O que se manifesta na escrita evaristiana é uma investida que objetiva “Por em
comum o que é comum, colocar para circular o que já é patrimônio de todos, fazer
proliferar o que está em todos e por toda parte, seja isto a linguagem, a vida, a
inventividade” (PELBART, 2011, p. 29) dos muitos marginalizados do Brasil. Nesse
sentido, a reestruturação dos locais sociais pré-estipulados é desenvolvida por meio de
uma enchente, possível metáfora de uma revolução engendrada pelos subalternizados,
que desmorona os pilares do centro dominante e varre todos os territórios.
As trajetórias das personagens do romance Ponciá Vicêncio (2003) são objeto de
discussão no segundo capítulo, elas atestam a capacidade criativa e os subterfúgios que
14
CAPITULO I
1. MEMÓRIAS EM TRÂNSITOS: “SABELA” E A ALTERIDADE INSCRITA
NA MULTIDÃO
Tendo em vista que em grupos ou comunidades culturais, cada sujeito possui sua
singularidade e personalidade, existem também especificidades de uma prática cultural
para outra. Nesse sentido, ao longo do seu curso os estudos culturais vêm progredindo e
abordando variados temas, que englobam as relações de gênero, raça/etnia, classe
social, etc, em múltiplos objetos, com vistas a quebrar tabus e preconceitos e promover
a ascensão do democrático, do intercultural, da alteridade, ou seja, do diverso livre de
quaisquer hierarquias. Destarte, a análise da cultura se inicia com o encontro de
determinadas questões, que serão localizadas “não na arte, produção, comércio, política,
criação de filhos, tratados como atividades isoladas, mas através do „estudo da
organização geral em um caso particular‟” (HALL, 2013, p.149).
Na Literatura, como nas demais artes e produtos culturais/sociais, pululam
interações/diálogos entre contexto histórico, sujeitos, espaços, culturas, etc. Josefina
Ludmer (2010, p.2) denomina escritos com tais características de pós-autônomos,
afirmando que são textos que não seguem uma linearidade, uma homogeneidade/padrão,
borram/confundem a linha divisória, clara na literatura autônoma, entre real e ficção “e
ficam dentro-fora nas duas fronteiras”.
Stuart Hall (2013, p.131), ao refletir sobre o pós-colonial, chega a afirmar que
todas as culturas/artes com esse prefixo “pós” possuem características em comum “em
analogia ao que Gramsci denominou “movimento de desconstrução-reconstrução” ou ao
que Derrida, num sentido mais desconstrutivo, denomina “dupla inscrição””. O que o
“pós” traz não é um movimento linear de transição, mas a reconfiguração de um campo,
que pode se dar, inclusive, paralelamente à existência daquele que, teoricamente, seria
seu antecessor. É o que acontece com a literatura pós-autônoma, que ocorre ao mesmo
tempo em que ainda se concebe, escreve e se fala sobre a autonomia literária. Dessa
forma, não são termos excludentes, mas transversais, são faces distintas de um agora.
Essa escrita, que se quer/faz sob o signo da liberdade criativa, é menos um
alargamento dos parâmetros que regulamentam o seu suporte (o livro) e mais uma
ressignificação da própria linguagem literária e sua respectiva instituição. Lucía
Tennina (2017, p. 237) chega, inclusive, a criticar a exclusão da reflexão acerca da pós-
autonomia literária que a teoria aplica às produções de autores que não pertencem ao
ciclo/cerco já instituído ou que não seguem os critérios elencados como signos de
literariedade:
17
O nada e o não,
ausência alguma,
borda em mim o empecilho.
Há tempos treino
O equilíbrio sobre
esse alquebrado corpo,
e, se inteira fui,
cada pedaço que guardo de mim
tem na memória o anelar
de outros pedaços.
E da história que me resta
estilhaçados sons esculpem
partes de uma música inteira.
Traço então a nossa roda gira-gira
em que os de ontem, os de hoje,
e os de amanhã se reconhecem
nos pedaços uns dos outros.
Inteiros.
Conceição Evaristo3
Uma vez que “a relação do homem com o homem cessa de ser a relação do
Mesmo com o Mesmo, mas introduz o Outro como irredutível e, em sua igualdade,
sempre em dissimetria a respeito daquele que a considera” (BLANCHOT, 2013, p. 13-
14), uma noção de comunidade simétrica é totalmente inconciliável com a realidade
existente. É por essa razão que Blanchot (2013, p. 14) discorre sobre a percepção de
uma ausência de comunidade, nos estudos de Georges Bataille:
Kusch e Manuel Zapata Oliveira, parece ser uma reflexão pertinente, posto que ela “não
é uma questão de sangue, mas uma questão de sentir a fratura entre ser e estar”
(MIGNOLO, 2008, p. 303). Haveria, pois, maneiras diferentes de cada sujeito agir, de
acordo com sua subjetividade, ante a adequação que lhe é pertinente para o ingresso na
comunidade, e o método particular de se manter no modus operandi desse grupo.
Se, antes, o comum era um espaço abstrato de idealizações e repressões, hoje ele
é, principalmente, o espaço de produção, tanto o trabalho de ordem material, quanto o
de cunho imaterial integram o comum emergente. Considerando-se o trabalho imaterial
como “o conjunto das atividades intelectuais, comunicativas, afetivas, expressas pelos
sujeitos e pelos movimentos sociais.” (NEGRI, 2003, p. 92).
De posse da bandeira da “identidade em política”, ao invés de “identidade
política”, conforme enfatiza Mignolo (2008), considerando-se que a primeira é um
movimento daqueles que tiveram seu agenciamento político negado pelos que
gerenciavam a segunda, os marginalizados anunciam que é preciso uma desobediência
política (civil) e epistêmica frente aos mandos dos centros proeminentes. As identidades
políticas eram raciais e patriarcais, guiadas por pressupostos europeus que
inferiorizavam aqueles que não se adequavam ao modelo do Mesmo. São os Outros que
protagonizam, assim, o movimento descolonial:
Para efetuar esse percurso teórico de uma maneira que nos mantenha
tão perto quanto possível de nosso objeto, O outro e sua presença,
26
4
No texto de Preciado: “Eles dizem crise. Nós dizemos revolução.” Disponível em:
http://next.liberation.fr/culture/2013/03/20/nous-disons-revolution_890087. Acesso em: 27/02/2019.
27
Nesse sentido, o pobre como configuração dos excluídos permanece vivo e forte,
independentemente das adversidades enfrentadas por seus integrantes, de acordo com as
singularidades de cada um. Assim, é o pobre “a figura de um sujeito transversal,
onipresente, diferente e móvel; um atestado do irreprimível caráter aleatório da
existência.” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 174).
O pobre personifica uma possibilidade revolucionária na sociedade, como um
profeta que vem apontar e tornar real a concretização de novas formas de
vida/convivência na humanidade. O pobre, ainda que subalternizado, é pulsante em
força ativa, é vivaz, é ação, é produção (transversal), é (re)criação. Ele não é um mero
fabricante de bens materiais e colaborador do acúmulo de capital, ele (re)inventa a
cultura, a política, a arte, assim, representa mais que força de trabalho: ele é devir-
mundo, é possibilidade de melhoria, de equidade na diversidade, de mudança.
A subjetividade feminina negra é uma dentre os muitos pobres que constituem a
multidão. Uma vez que na multidão os elementos se encontram em simbiose e não em
sobreposições/hierarquizações, cada sujeito ou grupo mantém e ao mesmo tempo
intensifica, nas trocas com os seus semelhantes e dessemelhantes, os vieses
ideológicos/políticos que assenhoreiam. É a mulher negra quem dirige os movimentos
traçados na produção evaristiana. Uma ação que se compreende como coletiva e que
almeja o empoderamento das personagens que se encontram à margem nos locus
políticos, culturais e estéticos/artísticos.
6
Escritoras negras brasileiras contemporâneas, que problematizam em suas narrativas questões relativas a
gênero e etnia. Obras de poesia de Mirian Alves: Momentos de busca (1983); Estrelas nos dedos (1985),
etc. Obras de poesia e prosa de Cristiane Sobral: Não vou mais lavar os pratos (2010); Espelhos,
miradouros, dialéticas da percepção (2011); O tapete voador (2016); Terra Negra (2017), etc. Obras de
poesia e prosa de Geni Guimarães: Terceiro filho (1979); Da flor o afeto (1981); Balé das emoções
(1993); Leite de peito (1988/2001); A cor da ternura (1989); etc.
29
sua própria experiência o que conta, a partir do modelo defendido por Walter Benjamin
(1987). Contudo, não se trata apenas de transmitir por meio da escrita uma experiência,
mas, principalmente, uma vivência, é aquilo que Conceição Evaristo e sua comunidade
sentem/sentiram. São as ações que esses muitos realizaram de maneira efetiva, em
conjunto com os conhecimentos que adquiriram das suas ancestrais, que estão contadas
e cantadas na escrevivência evaristiana.
Se, para Benjamin (1987), o tédio do campo é ambiente ideal para a narrativa de
experiências, sendo a cidade seu oposto, Conceição Evaristo relativiza este pressuposto,
ao fazer com que as narrativas provenientes do espaço bucólico se
reconfigurem/trascodifiquem e se façam presentes no ambiente urbano, mais que isso,
ela desenvolve em seus textos o repassar ativo de suas vivências.
Considerando-se, ainda, como afirma Benjamin (1987), que o desejo da relação
entre o ouvinte e o narrador é conservar o narrado, na escrevivência esta relação se dá
com uma dupla intenção: tanto a preservação e perpetuação da memória, quanto sua
ressignificação a cada novo contexto, o que torna o projeto evaristiano um elemento
impulsionador de ações potencializadoras de subjetividade e enfrentamentos ao
esquecimento/subalternização impostos pelo grupo dominante cultural e,
principalmente, literariamente. A escrita se transforma, aqui, em um ato de
questionamento/desconstrução dos valores e posições, oriundos de partilhas desiguais
dos objetos/postos sociais. Desta forma, “a escrita destrói todo fundamento legítimo da
circulação da palavra, da relação entre os efeitos da palavra e as posições dos corpos no
espaço comum” (RANCIÈRE, 2005, p. 17).
Nesse sentido, a literatura vai se desvencilhando do um (“eu”), da escrita
introspectiva e autossuficiente, e se aproximando dos outros, dos muitos, e de suas
outridades. Hoje, é a literatura um dos campos privilegiados de
visibilização/problematização dos devires e das causas/demandas dos pobres. Conceição
Evaristo, Marcelino Freire, Ferréz, etc, escritores de todas as periferias usam/comem o
espaço literário do centro e o ressignificam, trazendo os sentidos e o pleito dos
excluídos de dentro do espaço marginalizado para dentro do campo literário.
Agora, além de crítica literária/cultural sobre os pobres é preciso observar que há
a crítica literária dos pobres, que existe uma literatura que não só fala do excluído, como
também é escrita por ele. E sendo um dos outros, no momento em que assume a
narrativa, ele passa a falar sobre os outros que com ele integram essa alteridade. Dentro
30
desse contexto, surge a questão do “lugar de fala”, como lembra Dalgastagnè (2012, p.
18):
7
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em belo Horizonte (MG) em 29 de novembro de 1946. É
mestre em literatura brasileira (PUC-Rio) e doutora em literatura comparada (UFF). Possui seis obras
individuais publicadas: Ponciá Vicêncio (2003), com tradução para a língua inglesa; Becos da Memória
(2006), com tradução francesa; Poemas da recordação e outros movimentos (2008); Insubmissas
lágrimas de mulheres (2011); Olhos d’água (2014), vencedora do prêmio Jabuti (2015); e Histórias de
leves enganos e parecenças (2016).
33
escrita evaristiana. Ensejo/luta por um devir em que os olhos serão d‟água mais pela
alegria do que pela dor.
O projeto expresso/cunhado pela escrivivência visa um devir-nós ou um devir-
matriarcal no âmbito social e, principalmente, artístico, no qual as produções dos ex-
cêntricos sejam valorizadas/criticadas por seu valor estético e não apenas como
discursos políticos, pois eles ultrapassam as fronteiras biopolíticas e problematizam a
própria categoria literária. Tal objetivo demonstra a radicalidade dessa produção, uma
vez que “não existe verdadeira radicalidade sem um desejo imperativo de recomeço ou
sem um gesto de depuração que assuma o valor de um programa” (BOURRIAUD,
2011, p. 45). A escrevivência tem como propulsor o feminismo negro, uma vez que
legado aos grupos pobres. Aos poucos, ou socos, as Cadeiras das Academias de Letras
vão se deteriorando, caem as pernas/regras, os encostos/acomodações, e o silêncio
solene é rompido pelo grito de empoderamento daqueles até então amordaçados.
Nesse sentido, a literatura dos ex-cêntricos é realizada de maneira suplementar,
em analogia à discussão de Bhabha (1998), levando em consideração que vem depois do
modelo “original”/canônico para compensar uma subtração, a sua exclusão como
literatura. Em lugar de uma comunidade literária baseada no “muitos-como-um”, “o um
é agora não apenas a tendência de totalizar o social em um tempo homogêneo e vazio,
mas também a repetição daquele sinal de subtração na origem, o menos-que-um que
intervém como uma temporalidade metonímica, iterativa” (BHABHA, 1998, p. 219).
Os pobres produzem uma literatura que expressa o seu ponto de vista na vida
comum. Essa vivência comum é mais que manifestação linguística, “ou seja, é a
potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, de afetação
recíproca, de produção de laço, de capacidade de invenção de novos desejos e novas
crenças, de novas associações e novas formas de cooperação” (PELBART, 2011, p.29-
30). Dessa forma, os movimentos políticos/culturais formam um círculo de
correspondências e produções de sentidos imprescindíveis para a maior visibilidade dos
ensejos/capacidades dos numerosos proscritos.
Na atividade de Conceição Evaristo há uma clara e declarada, na produção
literária e no discurso social da autora, intenção de tecer uma “escrevivência”, termo
usado por ela para reunir os movimentos de escrita e valorização dos percursos dos
pobres pelos espectros do comum, com vias a contar as/das próprias vivências e a
assumir uma postura crítica dentro da literatura, ao mesmo passo em que se
ressignificam os caminhos já traçados e solidificados pela literatura canônica. É um
movimento que mostra os marginalizados com inventividade, com ação crítica sobre si
e sua produção, e, ainda, acerca das demais escrituras, o que resulta em textos que
excedem o representar e abarcam o fazer e o ler os pobres na literatura contemporânea.
São escritos que visam desestruturar os estereótipos e configurar uma comunidade de
escrita dos pobres, considerando-se a afirmação da autora:
1.3 Tudo que é pétreo se desintegra no mar: Sabela e o perseverar dos pobres
8
Em referência a sua obra Olhos d’água (2016).
9
Personagens de Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011)
10
SODRÉ, Muniz. Água de rio. In: A lei do santo. Rio de Janeiro: Malê, 2016, p. 20.
40
exemplos de textos subversivos que circulam na atualidade, seja por meios de prestígio,
como as grandes editoras e os eventos e feiras literárias de renome11, seja nos “becos da
memória”12 das favelas dos muitos subúrbios do Brasil.
A novela “Sabela” (2016) é o texto que finaliza a sua obra mais recente,
intitulada Histórias de leves enganos e parecenças. A narrativa traz a história de uma
cidade que foi devastada por uma grande enchente, da qual restaram poucos
sobreviventes. É a menina Sabela quem, inicialmente, narra os fatos que precedem e
sucedem o fenômeno, focalizando a figura de sua mãe, outra Sabela, mulher que possui
uma relação intensa com a natureza. A natureza é parte de Sabela, e vice-versa, o corpo
dela prenuncia os estados da natureza. Por essa razão, Sabela filha conta que
Mãe Sabela é sempre referida com M maiúsculo, o que grafa aquilo que já está
impresso nos fatos narrados: Sabela é Mãe dos pobres. Ela é quem lhes previne e
protege dos perigos das intempéries, tão recorrentes a quem batalha no mau tempo
social/cultural/político. A sabedoria dela alcança a todos, embora alguns com mais
influência tentem restringi-la apenas a si próprios, a exemplo do que faz um dos
prefeitos da cidade que “queria que Mamãe adivinhasse o enredo da vida dele, mas só a
dele e de mais ninguém” (EVARISTO, 2017a, p. 60).
A novela apresenta personagens em suas múltiplas demandas comuns, sob o
crivo do místico. O sobrenatural, aliado às materialidades culturais, se manifesta no
dilúvio e nos enredos de cada personagem, que possuem sua linhagem/comunidade e se
juntam para reunir as reminiscências do ocorrido e preservar/perpetuar, por meio da
escrita, as recordações vividas na enchente. É assim que, no princípio, um espaço
apocalíptico dá o tom da história narrada:
11
Considerando-se, entre outras, a participação de Conceição Evaristo na feira do livro de Frankfurt, em
2013 e no Salão do livro de Paris, em 2014, nos quais foi uma das escritoras integrantes da comitiva
brasileira, eventos nos quais o Brasil era o país homenageado.
12
Alusão a Becos da memória (2006)
41
Existe, portanto, toda uma linhagem de Sabelas que não provêm de um território
delimitado/conhecido, possivelmente algum local africano devido aos nomes sugeridos.
A Mãe e a Avó Sabela, e todas as ancestrais, personificam um matriarcado
desterritorializado, cíclico e mutável, que se reinventa a cada geração. São, desta forma,
a materialização da impossibilidade de existência de uma comunidade patriarcal/una e
autossuficiente, salientando-se que não pertenciam a um grupo delimitado, e sim
formavam uma corrente de partilha/solidariedade das suas, que são guiadas segundo os
preceitos das antecessoras, mantendo ativas e tendo reconhecidas suas singularidades, e,
portanto, sua heterogeneidade.
De cada uma dessas comunidades, bem como de outra que aparece em seguida
na narrativa, a dos palavís, restará pelo menos um sobrevivente após o dilúvio. Todos
juntos irão rememorar o passado, em um presente mais conectado, para ensaiar um
futuro com uma coletividade mais engajada/interligada nos campos sociais, político,
culturais e econômicos. Essa conjuntura se formará conduzida pelo olhar místico, mas
também, político/revolucionário das mulheres Sabela, que podiam “ver tudo, até a
essência do invisível” (EVARISTO, 2017a, p. 67). Sabela é uma figura de cunho
mítico, que pelas suas características se liga tanto ao imaginário cristão católico, quanto
à religião afro-brasileira:
De uma pequena sacola de pano, ela tirava galhos bentos, serventia
santa para aquela hora. Todos os anos, Sabela acompanhava o ritual
católico do Domingo de Ramos e sabia que as ramagens sagradas,
balançadas de dentro para fora da casa, ou queimadas em algum
cantinho, eram capazes de aplacar a coléra da chuva.[...] E então o
nosso clamor terminava em canto e dança. Entoávamos cantigas para
Iansã, pois é ela quem comanda os ventos, os raios, as tempestades e
poderia, caso quisesse, aplacar o furor das águas que ameaçava a
cidade. (EVARISTO, 2017a, p. 62).
A enxurrada e Sabela Mãe estão ligadas de maneira tão intensa que a matriarca
“se sentiu responsável pelo que havia acontecido” (EVARISTO, 2017a, p. 60). Antes da
chuva o corpo dela umedeceu, o seu barraco foi o primeiro a se encher de água, um
43
líquido só dela, mas “Eram tantas águas, que só aquela torrente caseira, caso Sabela
quisesse abrir as portas de nossa íntima comporta doméstica, inundaria o mundo.”
(EVARISTO, 2017a, p. 61). Caso Sabela abra as suas comportas íntimas, se desejar que
seus movimentos atinjam não só sua gente, mas também o mundo, isso é possível. Tal
conjectura é reveladora da força revolucionária que o matriarcado, personificado em
Sabela, possui para se espalhar e instalar-se no globo, subvertendo os sistemas de
domínio/controle social. Há um entendimento e ação de Sabela sobre a natureza/mundo,
mas a personagem não tem domínio sobre esses fenômenos, eles ocorrem
freneticamente/desenfreadamente, ela muitas vezes os teme. É assim que a potência
feminina é tão latente que chega a ser imensurável/incontrolável.
A influência que a figura de Sabela exerce sobre a cidade, desde o seu
nascimento, revela que é ela o elo entre as pessoas do local, ou seja, ela personifica as
relações de imbricamento/intersecção em que aqueles sujeitos, mesmo vivendo cada um
em seu gueto e resistentes a admitir os contágios, e até contrários a estes, estavam
imersos. Nesse caso há uma comunidade imanente, considerando-se o compartilhar
extrassensorial e os afetos, entre as pessoas da cidade, a partir dos pontos de articulação
entre as vivências sociais/culturais delas, sendo Sabela a energia que umedece esse
rizoma.
Todas as personagens da trama, em algum momento de suas vidas, sofrem uma
interferência de Sabela em suas existências, o que, muitas vezes, altera suas trajetórias.
Ao longo do texto somos apresentados às narrativas de alguns dos moradores da
periferia da cidade: Madrepia, que tinha uma cobra por sua companheira; o menino
Rouxinol, que nasceu com um defeito congênito na boca; O Velho Amorescente, ancião
dos palavís; Irisverde, afilhada de Sabela; Antuntal, o do sorriso encantado;
Manascente, mãe de septúplas “mudas”; e Buono, o coroinha da igreja. A novela traz o
depoimento de cada uma dessas personagens, assim, a cada história os fios vão se
unindo e os contágios propiciados pela água da correnteza vão se intensificando. É
Sabela filha quem os ouve e procura reunir essas recordações em um texto escrito, para
não deixar que aquele acontecimento seja esquecido, tendo em vista a transformação
que gerou nas pessoas e na cidade.
Giorgio Agamben (2013, p. 10) nos diz que o “ser tal qual” se refere ao ser em
sua singularidade qualquer. Não é alguém que quebra as barreiras de uma identidade
específica para logo depois se associar a outra que é diferente, mas de igual modo
fechada e limitante. É, sim, um sujeito que se desprende das amarras
44
valeu de sua força bruta para impor sua selvageria civilizada por todo o globo, ele é o
signo do reinado patriarcal.
As singularidades das personagens se apresentam dispersas na existência, não
unidas em uma essência, como define Agamben (2013). Cada uma narra as visões
particulares com as quais vivenciaram uma circunstância comum, de tal maneira que a
enchente que assola a cidade é interpretada por cada uma de formas distintas. Para
Antuntal foi prazeroso, pois antes ele era rejeitado por todos e no dia da chuva seu
sorriso atraiu muitos para si:
A importância do falar, de não calar a voz, e cantar-contar cada dia mais alto e
forte é motor de Rouxinol e de todos os pobres. Mesmo que alguns se calem ou sejam
silenciados, o “corpo-represa” (EVARISTO, 2017a, p. 87) explodirá em fúria
d´água/revolução. A memória e sua expressão/perpetuação é elemento primordial para
Rouxinol e os seus. O menino carrega o nome e a garra de um passarinho com quase
50
300 entonações em seu canto, que possui dupla função - a noite para sedução, durante o
dia para marcar e preservar seu espaço- . O garoto defende sua memória, seu direito de
fala/escrita. Seus olhos meninos testificam o ocorrido nas águas:
13
Esta personagem aparece na novela, por várias vezes, com a grafia de seu nome diferente. Em alguns
momentos encontramos “Madrepia” em outros “Madre Pia”.
51
buracos, só então fiquei livre da lembrança dos corpos dos dois sobre
mim. E foi só no dia da chuva que confiança tive para me aproximar
de alguém. Debaixo das chuvas, eu me sentia limpa e igual a todos.
Com a incontida alegria, abracei, enrosquei, arrastei muitos.[...] E
carreguei muitos entre as pernas, sobre o meu corpo, e houve ainda
muitos que puxei pela boca. Salvei muitos enquanto eu me salvava.
(EVARISTO, 2017a, p. 93-94).
CAPITULO II
16
Em referência à obra Pode o subalterno falar? (1985), de Gayatri Spivak.
58
17
17
“COMO as palavras que falo são as palavras que COMO”, poema circular de Renato Gonda. In:
GONDA, Renato. Simbiose poética na intersmiose(sic) verbo-visual. Projeto de pesquisa para pós
doutorado. São Paulo: USP, 2014, p. 7.
66
18
Em diálogo com duas obras de Machado de Assis, sendo elas: “A teoria do medalhão” e Memórias
Póstumas de Brás Cubas, ambas de 1881.
67
fabricante de bens materiais, mas, também como produtor destes e de outros objetos
imateriais/intelectuais. Uma vez que:
Ponciá sente com veemência a pressão das imposições feitas pela partícula
governante, de tal maneira que procura as poucas rotas de fuga que não lhe são vedadas.
A espécie de paralisia/desencanto que acomete Ponciá, em decorrência dos percalços
que enfrenta em sua jornada, é um meio, naquele momento o único, de não ser
totalmente guiada/manipulada pelos patrões. Ela se resguarda em seu vazio “como se
estivesse abraçando alguém” (EVARISTO, 2017b, p. 28). Se não há esperanças para o
agora, ela abraça o devir. O vazio é o espaço no qual os pobres deveriam estar, mas não
se encontram. É o desejo do ex-cêntrico por reconhecimento e efetivo exercício de todas
as suas possibilidades. Nesse ínterim, a mãe de Ponciá:
Sabia que a sua vida não era ainda um fruto amadurecido. Seus dias
não estavam prontos, não era tempo de colher. E, então, se tivesse de
padecer, que experimentasse as dores. Se tivesse de ser só, que
sozinha fosse. Se tivesse de se abraçar com os seus próprios braços,
ela própria criaria o seu próprio anelo, e se autoabraçaria, até que
reencontrasse os filhos e os braços deles abraçassem os dela.
(EVARISTO, 2017b, p. 66).
Desde a alta idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode
circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja
considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem
importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo
autenticar um ato ou um contrato, [..] pode ocorrer também, em
contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras,
19
EVARISTO, CONCEIÇÃO. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017,
p. 13.
20
O primeiro registro escrito do uso da palavra banzo foi feito no trabalho “Memória a respeito dos
escravos e tráfico da escravatura entre a Costa d‟África e o Brazil” apresentado pelo advogado Luís
Antônio de Oliveira Mendes à Real Academia das Ciências de Lisboa em 1793.
71
morrer, viver já não pode”21, e passa o resto de seus dias alimentando-se de sobras, com
os cães.
O banzo, que acomete Vô Vicêncio e passa de herança à Ponciá, só pode ser
vencido pela solidariedade/luta coletiva. Nesse caso, o éthos presente na narrativa
ponciana dialoga com o poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto. Se
“um galo sozinho não tece uma manhã”, um sujeito isolado não é capaz de provocar
mudanças significativas na estrutura hierárquica do sistema de opressão. Mas, se muitos
galos/sujeitos se unem, quando um lançar um grito/escrito ele deverá encontrar “outros
galos/ que com muitos outros galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo,/
para que a manhã, desde uma teia tênue,/ se vá tecendo, entre todos os galos”22. É a rede
de coletividade que rompe as barreiras dos corpos-quartos-solitários-banzo e projeta um
novo amanhã/devir de (en)cantos.
Os resmungos indecifráveis que serão proferidos por Vô Vicêncio nos últimos
anos de vida, juntamente com o silêncio no qual Ponciá mergulhará em sua
trajetória/fuga, são elementos que excedem a linguagem, eles partem de uma ordem
outra ao signo puramente linguístico. Maurizio Lazzarato (2014) discorre acerca desses
signos extralinguísticos/semióticos que conduzem à produções de sentidos e
interpretações que não são suficientemente apreensíveis pelo método linguístico. A
teoria do ato performativo é um fator decisivo para a quebra da dicotomia saussuriana
da separação entre língua [langue] e fala [parole], uma vez que:
21
Em paráfrase ao poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade.
22
. MELO NETO, J. C. de - A educação pela pedra. In: Poesias Completas. Rio de Janeiro, Ed. Sabiá,
1968.
73
formação discursiva. Além disso, o não proferido, o silêncio, adquire valor determinante
na performatividade.
O ato performativo é questionado e reconfigurado por Judith Butler, e passa a
ser compreendido como uma “promessa política de emancipação”, uma vez que seu
poder de persuasão/dominação utilizado pelos grupos opressores é redimensionado pelo
subalterno, visando sua libertação. Para problematizar a reflexão de Butler, Lazzarato
(2014) se fundamenta na concepção foucaultiana (1982/1983) de parresía. “A parresía
constitui uma ruptura com os significados dominantes, um “evento que irrompe”, que
provoca uma “fratura”, criando novas possibilidades, e um “campo de perigos”.”
(LAZZARATO, 2014, p. 150).
A parresía rompe com o modus operandi do status quo, “O performativo, por
outro lado, é sempre mais ou menos estritamente institucionalizado, de tal forma que
suas “condições” bem como seus “efeitos” são “conhecidos de antemão”.”
(LAZZARATO, 2014, p. 150). O performativo busca subverter um discurso de
dominação com os mesmos instrumentos consolidados/operacionalizados pelos
opressores. Ainda que os sentidos sejam reconfigurados e uma desordem/anarquia se
estabeleça, tal efeito, por ser decorrente do rearranjo dos mesmos sistemas simbólicos
de representação, não estará longe da lógica previsível do centro. Na parresía, por optar
por novos modos de agenciamento, que não os próprios ao dominante, os ex-cêntricos
abrem margem para a obtenção de resultados incalculáveis e, portanto,
indomáveis/irrefreáveis.
É no espaço vazio, naquele que ainda não foi preenchido pelos ditames da elite,
onde as regras e modelos de territorialidade ainda não foram instaladas pelos
organismos cognitivos de colonização, que os marginalizados buscam operacionalizar
novas estratégias de constituição/compreensão subjetiva, para obter resultados ainda não
catalogados.
A multidão preenche os vazios de sonhos/devires/ações, comprovando, por meio
de seus enfrentamentos, que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas
ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar” (FOUCAULT, 2009, p. 10). Assim como o homem de Ponciá, que
em alguns momentos de revolta se irritava, mas mantinha o silêncio e engolia “a raiva
em seco junto com o silêncio” (EVARISTO, 2017b, p. 22), os pobres também fazem
reservas de iras/potências, que, nos momentos certos, irrompem em atos brutais/ativos
de confronto/reordenação dos papéis na sociedade e na literatura. Embora, o homem de
74
COISA DE PERTENÇA
O homem não chega a matar, mas agride Ponciá quase que diariamente. Em
resposta ela só lhe devolve o silêncio. É o silêncio, o fato de Ponciá não falar que está
sendo afetada pelas pancadas do marido, o que o faz perceber que ela nunca seguirá a
sua lógica. Após muito bater sem obter o esperado, uma ação ativa da esposa ou mesmo
uma demonstração de dor, o homem desiste de agredir Ponciá, para ele “A mulher devia
estar com algum encosto”. (EVARISTO, 2017b, p. 83). Ele encontra uma resposta
mística para a conduta da esposa, pois não enxerga modos de ação racionais que não
condigam com as ideologias patriarcais.
No momento em que o homem limpava o sangue que escorria no rosto de
Ponciá, na última surra que lhe deu, ele percebeu que ela não respondia como o
esperado, mas pôde ler em seus olhos as dores que a afligiam e que, de certa forma,
também, revelavam-se em vazio dentro dele, desde então “se não alcançava a vida outra
da mulher aceitava o que não entendia.” (EVARISTO, 2017b, p. 93).
O controle da produção discursiva é elemento essencial na manutenção do
monopólio/domínio social/político/linguístico/literário. Essa é uma característica das
“sociedades do discurso”, “cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para
fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas,
sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (FOUCAULT, 2009,
p. 39). O homem de Ponciá, especialmente pela abrangência de sua nomenclatura – o
homem/o gênero masculino em geral -, simboliza os movimentos de formação
discursiva que buscam o controle do discurso feminino no plano social e ficcional, mas
que não conseguem lograr sucesso, pois nem mesmo são capazes de compreender a
constituição/configuração das potencialidades femininas.
76
As fugas de Ponciá, que são uma forma das diversas minorias encontrarem um
meio de escape de situações de opressão que estejam vivenciando, é perigosa para o
domínio patriarcal, porque ela é indício de resistência e princípio de luta, apontando,
entre outras coisas, para o ingresso da mulher no plano ficcional e, por extensão,
literário/artístico. Nesse sentido, a atitude agressiva do homem para com as “ausências”
da mulher, que, para ele deveria estar (circunscrever-se) integralmente no espaço
doméstico, é análoga ao temor da burguesia capitalista ou da atual classe média, ao
crescimento intelectual das minorias no apogeu do movimento comunista:
“Sabe, num é por nada, mas achava que tu era uma criança.” Os
olhos iam acompanhando-o, estreitando, enquanto Ritinha ia tirando
as peças, um corpo desconhecido, embora já o tivesse visto e sentido
diversas vezes, mas só que agora parecia diferente, real, tentação
sedutora na brejeirice dos anos, viu-a nua, tesão, a ânsia de
23
Olhos d‟água. In: Olhos d’água. 1.ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2016, p. 19
79
24
A paixão e o vento. In: AMARO, Vagner (org). Olhos de azeviche: dez escritoras negras que estão
renovando a literatura brasileira. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 115-117.
80
Capítulo III
25
EVARISTO, Conceição. Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos. In: Olhos d’água. 1.ed. Rio de
Janeiro: Pallas, 2016, p. 71-76.
89
arrote com vontade, pra que isso não se repita nunca mais
26
(LEITE, 2002, p.13).
26
In: LEITE, Ivana Arruda. Falo de mulher. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
92
O campo literário atual anuncia uma nova fase, o fim de uma hegemonia
literária, em que o texto bastava a si mesmo, se autossignificando e produzindo sentidos
por si só. Mais do que em épocas anteriores, a literatura está intensamente envolvida
com as outras áreas do saber, de modo que não há como separar ou identificar o que é
unicamente do campo literário ou o que é de ordem diversa, assim como “termina a
diferenciação entre realidade (histórica) e ficção.” (LUDMER, 2010, p.3). Não só a
especificidade literária é abalada, como também a própria categoria do específico, do
conceito em si, é desestruturada, com a eclosão de novas maneiras de ação na arte e na
sociedade, que confundem/apagam as fronteiras que delimitam os objetos artísticos e
culturais.
Na era da “pós-verdade”, termo cunhado por pensadores contemporâneos ao
discorrer sobre o fenômeno das fake news (notícias falsas) que pululam na atualidade, o
debate sobre a verdade e suas antagonistas paralelas/simultâneas desperta reflexões
filosóficas a respeito do critério de verdade e, consequentemente, dos sujeitos e de suas
(con)vivências sociais/éticas/políticas. Um debate tão vivaz quanto os de Sócrates,
Platão e Aristóteles sobre o conceito de verdade. Nesse sentido, também entram em
jogo/discussão a própria definição de literatura e, consequentemente, dos critérios de
literariedade.
O fato de, no século XXI, existirem reflexões que procuram compreender a
organização dos mecanismos sociais, é sintoma da (re)leitura que se opera atualmente
nas/das construções artísticas e culturais. Ao comentar sobre a ideia de política em
Bataille, Achille Mbembe ressalta: “A política só pode ser traçada como uma
transgressão em espiral, como aquela diferença que desorienta a própria ideia do limite.
Mais especificamente, a política é a diferença colocada em jogo pela violação de um
tabu” (2016, p. 127). É o tabu da especificidade que está sendo esfacelado
paulatinamente pela arte na ágora do agora.
Os movimentos sociais ocupam um lugar de destaque no estágio de reordenação
dos artefatos sociais e estéticos. Se os mecanismos de controle social buscam manter os
sujeitos submissos ao poderio do sistema hierárquico opressor, fazendo com que eles
fiquem dentro de seu círculo ideológico, movimentos insurgentes - como o feminista -
93
Gosto de ouvir, mas não sei se sou hábil conselheira. Ouço muito. Da
voz outra, faço a minha, as histórias também. E no quase gozo da
escuta, seco os olhos. Não os meus, mas de quem conta. [...] Portanto
essas histórias não são totalmente minhas, mas quase que me
pertencem na medida em que, às vezes, se (con)fundem com as
minhas. Invento? Sim invento, sem o menor pudor. Então as histórias
não são inventadas? Mesmo as reais, quando são contadas.
(EVARISTO, 2016a, p.7)
27
Insubmissas Lágrimas de Mulheres. 2.ed.Rio de janeiro: Malê, 2016, p. 7.
99
Maria do Rosário era uma menina pertencente a uma grande e pobre família que
morava num pequeno vilarejo, chamado Flor de Mim. Em seu relato o estado e a região
a que pertencem não são definidos, mas sabe-se que aos cinco anos de idade ela é
sequestrada por um casal do sul do Brasil, pessoas tão diferentes da comunidade de
Maria do Rosário que ela e os outros acharam que eles eram estrangeiros. A acolhida
fraterna que as famílias Dos Santos e Dos Reis, que constituíam a população da pequena
cidade, conferem ao casal de “turistas” é utilizada por estes para a concretização dos
seus planos criminosos:
A memória dos tempos de infância é a única coisa que faz com que Maria do
Rosário se sinta próxima dos seus, e a partir do momento em que essas lembranças vão
ficando mais apagadas ela sente medo de perder uma parte importante da sua
constituição subjetiva: os afetos/interações que estabeleceu com seus familiares e que
foram os responsáveis primeiros pelo desenvolvimento de sua personalidade.
102
Conceição dos Santos”. O padre, menos fiel à fé mariana, foi quem achou exagerado o
sentido fervoroso de meu nome e não permitiu” (EVARISTO, 2016a, p. 43). As
mulheres da família, adeptas do catolicismo, escolhem um nome que exalta a figura
feminina de maior destaque no Cristianismo. O padre, procurando manter o predomínio
do elemento patriarcalista, é contrário e veda o intento delas. Mas o nome é apenas
encurtado e Maria do Rosário continua enaltecendo a importância da mulher na
formação e no progresso da humanidade.
Os sobrenomes, Dos Santos e Dos Reis, que nomeavam os dois clãs que
povoavam Flor de Mim, também se relacionam com a religiosidade e a cultura afro-
brasileira. Os santos católicos e os orixás, que se (con)fundem, e os Reis africanos, que
se relacionam à população africana e à mitologia dos orixás, estão presentes ativamente
na formação e no percurso das personagens que compõem a narrativa, por meio de seus
nomes-(identific)ações.
A religiosidade e a negritude se unem, através dos sentidos suscitados pelas
diversas denominações, para construir a imagem/figura da mulher evaristiana. O
cachorro que Maria do Rosário ganha dos raptores é batizado de Jesuszinho, o que
intensifica mais ainda o valor do Cristianismo no percurso da personagem. O Rosário,
também, faz menção à religiosidade cristã, e, mais que isso, remete à igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos, fundada no século XVIII na Bahia.
Assim como a Igreja do Rosário foi um importante instrumento de fé e
mobilização/resistência dos negros brasileiros no período escravagista, a obra de
Conceição Evaristo, na qual se incluem os contos que compõem Insubmissas Lágrimas
de Mulheres, reúne a memória coletiva das muitas mulheres afro-brasileiras. A cada
personagem, a figura da mulher negra, que rompe e vence as barreiras que lhe são
impostas pelo elemento patriarcal, emerge como um importante instrumento de
semiotização subjetiva de suas singularidades e das muitas marginalidades/pobres que a
integram.
O processo, que se verifica na escrita de Conceição Evaristo, de conectar as
memórias de variadas mulheres, dando visibilidade, ao mesmo tempo, à singularidade
de cada uma e às ligações/relações/diálogos que as suas narrativas possibilitam, é
análogo ao que Versiani (2005) chama de autoetnografia. Ao passo que a narradora não
se apresenta, nem expõe detalhes de sua personalidade, ela se mescla com as
personagens que apresenta e com as quais dialoga, ao pôr em evidência possíveis
semelhanças entre a história dela e os relatos das entrevistadas. Destarte, as impressões
104
e sensações que as mulheres entrevistadas lhe causam dizem mais a respeito dela
mesma (da narradora) do que sobre as personagens.
O décimo conto traz o relato de Lia Gabriel, que logo de início faz com que a
narradora relembre todas aquelas com quem conversou ao longo de seu percurso,
personagens que “a partir de seus corpos mulheres, concebem a sua própria ressureição
e persistem vivendo” (EVARISTO, 2016a, p. 95). Não só os fatos vividos perturbam
Lia, como também, o desejo de narrar essas memórias. Lia tem três filhos, duas meninas
gêmeas e um menino, este, de nome Máximo Gabriel, sofre de esquizofrenia, uma
“ameaça que pairava não só sobre Máximo, mas sobre todos nós, toda a família”
(EVARISTO, 2016a, p. 96). A loucura é o espectro que circunda a vida de Lia e dos
seus.
Durante as crises, Máximo é agressivo apenas para consigo mesmo, o que faz
com que sua mãe e irmãs assistam a cena temendo pela integridade física dele e
vertendo “Insubmissas lágrimas” (EVARISTO, 2016a, p. 97). Nos seus surtos, o garoto
diz ver um monstro que o persegue e que após sessões de terapia descobre-se que esse
monstro é uma personificação do pai, que abandonara a família há muitos anos, após
agredir violentamente Lia na presença dos filhos:
Madá e Lená, remetem a uma das mais famosas das figuras bíblicas, a prostituta Maria
Madalena; e Máximo carrega por sobrenome a alcunha do anjo que anuncia a nova era
cristã. Tais fatores revelam as vidas de muitos sujeitos, principalmente os mais
desprivilegiados, ainda é atravessada constantemente pelos resquícios do domínio
patriarcal, que teve a Igreja como uma de seus maiores sustentáculos.
O processo esquizofrênico que acomete o jovem Máximo Gabriel teve seu
afloramento no instante do esfolamento de sua mãe. O pai que age com uma violência
abrupta é metamorfoseado em monstro e se transforma no pesadelo que atormenta o
sono e a vigília do filho. Se a constituição subjetiva desse personagem é resultado dos
traumas que marcaram sua infância, essas marcas não se apresentam como simples
lembranças dolorosas, mas como um espectro que impossibilita a vivência social e o
efetivo exercício mental do garoto. Há, desta feita, uma correlação entre tais fatos,
apresentados na narrativa evaristiana, e a reflexão estabelecida por Suely Rolnik (2000,
p. 455) entre a esquizoanálise, cunhada pelos filósofos Deleuze e Guatarri, e a
antropofagia, observada pelo prisma brasileiro, em que “o “antropo” deglutido e
transmutado nessa operação não corresponderia ao homem concreto, mas ao humano
propriamente dito – as figuras vigentes da subjetividade, com seus contornos, suas
estruturas, sua psicologia”.
Por meio desses agenciamentos maquínicos, os corpos sem órgãos,
subjetividades anti-identitárias, deixam entrever a multiplicidade de processos que
envolvem suas histórias/trajetórias. O pai de Máximo, ao se transmutar em monstro,
corresponde menos à figura do marido/pai violento que ao jugo opressor que o domínio
patriarcal exerce sobre todas e todos aqueles que estiveram durante muito tempo
debaixo do seu chicote/ideologia falocênctrica. Os resquícios de tal poderio são tão
vívidos que Natalina Soledad, do segundo conto, só decide definitivamente mudar seu
nome quando os pais morrem. É, ainda, por essa razão que outro personagem menino,
filho de Aramides Florença, celebra a quebra de tal tabu, ou seja, a ausência/não
interferência do pai nas vidas dele e da mãe.
É o regime patriarcal o responsável pela subalternização do trabalho feminino,
que tem seu maior expoente na precariedade legada à atividade doméstica profissional.
O trabalho doméstico, que Maria do Rosário executa nas casas das famílias de seus
sequestradores, em regime de semiescravidão, é um claro exemplo da inferiorização do
serviço doméstico e da associação/coação das mulheres negras a ele:
106
experiências que integram a obra fazem parte do universo ficcional. No nono conto o
aspecto ficcional da narrativa é evidenciado pela narradora, no momento em que é
questionada pela personagem Líbia Moirã: “Eu invento Líbia, eu invento! Fale-me algo
de você, me dê um mote, que eu invento uma história, como sendo a sua...”
(EVARISTO, 2016a, p. 87).
Aramides Florença é a mulher em sua autonomia. Natalina Soledad é aquela que
se autonomeia e, assim, toma as rédeas-voz do discurso de si, revertendo o plano de
subalternidade que lhe fora imposto. Maria do Rosário é aquela que no resgate de sua
memória e no reencontro com seu passado, descobre quanto poder possui em si mesma
e, dessa forma, caminha na certeza de um devir-mulher/melhor. Essas, e outras
mulheres, constituem os signos em redor dos quais emerge a figura feminina negra.
A obra toca os domínios da autoetnografia e da autoficção, ao sobrepor as
lembranças, e até as características culturais, das personagens e da narradora. As
experiências de vida de cada personagem agregam sentidos às trajetórias outras, e,
principalmente, ao percurso feminino afrodescendente. Os contos, analisados no
presente estudo, demonstram o quanto de rebeldia/força e capacidade subversiva
compõem a subjetividade negra.
Nesse sentido, a narradora não só deixa o leitor desconfiado dos critérios que
estabelecem a fronteira entre a ficção e a realidade no seu discurso, ao discorrer sobre
histórias comuns cotidianamente, mas, também, expõe a coletividade que faz com que
as memórias particulares apresentem pontos que se inter-relacionam, resultando em uma
narrativa que, por meio de experiências específicas, configura a vivência da mulher
negra contemporânea. Personalidade feminina para a qual é importante tanto a memória
ancestral, no seio matriarcal que ultrapassa a dor/cicatrizes adquiridas sob o jugo do
uno/signo opressor – expressa na narrativa de Aramides Florença-, quanto a posse do
discurso e dos elementos que falam de si – observada na busca de Natalina pela própria
nomeação-, e, principalmente, o compartilhar dessas memórias, que corrobora o
estabelecimento de redes/afetos necessários à subversão/quebra do silenciamento
imposto pela cultura hegemônica – a que alude o conto de Maria do Rosário.
Nesse sentido, Justino (2014, p. 168) apresenta dois postulados sobre literatura e
cultura, na atualidade:
28
Em alusão ao poema Vozes-mulheres, de Conceição Evaristo.
111
nomenclatura utilizada para falar com outras mulheres negras, “my sister”, o traço de
sororidade que atravessa as relações femininas antes mesmo de seus próprios percursos
particulares de vida serem traçados. Mary esclarece sua urgência: “My sister, quem tem
os olhos fundos, começa a chorar cedo e madruga antes do sol para secar sozinha as
lágrimas. Por isso, minha urgência em deixar o meu relato. [...] Nada me garante que a
espera pode me conduzir ao que eu quero”. (EVARISTO, 2016a, p. 70).
A urgência de Mary é indício da determinação feminina-negra de não mais
esperar o momento propício para pleitear os seus direitos perante as tessituras
sociais/artísticas. A numerologia do 7 expande os sentidos da narrativa. Sétima filha de
uma família de lavradores pobres e personagem do conto número 7, Mary Benedita
semiotiza o elemento água, este presente em toda produção evaristiana, que aponta para
as atividades intelectuais e a busca pela transformação/(r)evolução de todos os bios.
A pressa do falar/agir da personagem se assemelha a uma enchente que modifica
o transcurso lento de um rio, por meio de uma onda de insurreição que vare todos os
territórios e quebra as barreiras hierárquicas do sistema de opressão. Tal investida se
executa por meio da arquitetura subjetiva, corporal e imaterial, das muitas mulheres
afro-brasileiras. Pintora de sucesso, Mary expressa o respeito e o orgulho de suas
ancestralidades africanas, bem como, o desejo por devires prósperos:
Pinto e tinjo com o meu próprio corpo. Um prazer táctil imenso. Uso
os dedos e o corpo, abdico do pincel. Tinjo em sangue. Navalho-me.
Valho-me como matéria prima. Tinta do meu rosto, das minhas mãos
e do meu íntimo sangue, o menstrual. Colho de mim. Bordo com o
meu sangue-útero a tela. (EVARISTO, 2016a, p. 79-80).
primordialmente matriarcal, fazendo com que arte e corpo assumam uma nova
configuração. O corpo é mecanismo de criação artística, expressando menos uma
estratégia estética do que uma subjetividade em ebulição. Trata-se, pois, do nascer de
uma produção em que se fusionam real e ficcional, resultando em um exercício crítico
da intelectualidade, atentando para as suas relações com a materialidade sociopolítica.
Os relatos das mulheres de Insubmissas Lágrimas, em conjunto com outras
personagens evaristianas, são resíduos textuais de uma memória coletiva repleta de
resistências e enfrentamentos efetuados pelos ex-cêntricos, que são, na produção
evaristiana, semiotizados pelas mulheres negras e suas ascendências e descendências.
“Memória que permitiu um conhecimento de um sistema simbólico, que possibilitou
uma reorganização do território negro da diáspora, através de uma mística negra, vivida
em um tempo que escapa a uma medição cronológica, por se tratar de um tempo mítico”
(EVARISTO, 2008, p. 4).
Se o sistema de opressão procura delinear lugares específicos para os sujeitos em
sociedade e delimitar a cronologia de suas ações, que são milimetricamente decididas e
vigiadas, a revolução feminina-negra surge de maneira análoga ao temporal/enxurrada
que desestabiliza e desorienta as ferramentas de dominação. Tempo, espaço, sujeitos e
produtos materiais e imateriais são ressignificados por movimentos inapreensíveis e
instáveis que formam o rizoma no qual se alocam os discursos/ações dos ex-cêntricos,
com vistas à conquista de suas demandas sociais/culturais.
Sabela, Ponciá, Mary Benedita, Natalina, e as demais personagens evaristianas
metaforizam as muitas Marias que silenciam, anunciam e, principalmente, angariam,
por meio dos mais variados movimentos de enfrentamento e subversão, o
empoderamento e a conquista/reconhecimento de direitos para os muitos
pobres/marginalizados do “Todo-o-Mundo”:
O tempo passava e eu não deixava de vigiar minha mãe. Ela era o meu
tempo. Sol, se estava alegre; lágrimas, tempo de chuvas. Dúvidas,
sofrimentos que dificilmente ela verbalizava, eu adivinhava pela
nebulosidade de seu rosto. Mas anterior a qualquer névoa, a qualquer
chuva havia sempre o sorriso, a graça, o canto da brincadeira com as
meninas-filhas ou como as meninas-filhas. Foi daquele tempo meu
amalgamado ao dela que me nasceu a sensação de que cada mulher
comporta em si a calma e o desespero. (EVARISTO, 2017c, p. 21).
suas sendas, nos mais variados estágios de atuação no comum. É por meio da escrita
que Conceição Evaristo ativa e perpetua as relações de sororidade feminina-negra. A
escrevivência se configura, pois, como um projeto de cunho estético-folosófico, que
alarga as categorias do literário, unindo ficção e realidade, com o propósito de fomentar
uma revolução na literatura e, por conseguinte, nos regimes socioculturais.
Não se trata apenas de secar as lágrimas, ao partilhar as experiências/vivências
dos ex-cêntricos através da arte, é, principalmente, potencializar alegrias-esperanças e
possibilitar que as trajetórias desses grupos desprivilegiados possam traçar não apenas
rotas de fuga, como, também, agir explicitamente pela conquista de suas demandas. A
desestabilização das instâncias que regem o fazer artístico, especificamente na literatura,
operada por meio da quebra dos moldes/formas das escrituras, muitas das quais
rompendo, inclusive, com a modalidade escrita e rumando para o âmbito da oralidade,
bem como, a descaracterização dos gêneros literários e seus diálogos com outras mídias
são indícios da própria inespecificidade das sociedades.
As vivências que se apresentam na escrita contemporânea são compostas pelos
entrecruzamentos das várias comunidades que integram a multidão literária/social.
Nesse ínterim, fazer e ler literatura envolvem posicionamentos/lugares de fala que
considerem os processos de alteridade que se inscrevem no comum. A aniquilação dos
monstros, que constituem/povoam e perturbam o percurso daqueles que têm suas
subjetividades negadas, está sendo buscada por meio de um enfrentamento discursivo.
A possibilidade de manifestar verbalmente e, mais que isso, literariamente as suas
memórias, bem como, as suas criatividades é não só uma forma de afirmação intelectual
executada pelas mulheres negras, e os demais ex-cêntricos, é uma das mais
imprescindíveis ações de empoderamento. Tal como anunciou a personagem Isaltina
Campo Belo, no sexto conto de Insubmissas Lágrimas, as narrativas das mulheres
evaristianas, e de suas parentalidades consanguíneas e socioafetivas, alimentam
“também a nossa dignidade” (EVARISTO, 2016a, p. 57). Considerando-se que sob o
jugo do silenciamento as estratégias de resistência assumiam caráter menos intangível
que físico, travando-se por meio de embates, hoje é o discurso que orienta os debates
entre os integrantes das variadas escalas hierárquicas, fazendo com que vivências e
saberes singulares sejam otimizadas em agentes da/na coletividade em prol de um devir-
equidade.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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