Revista IBBCRIM - Justiça Penal Negociada

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EDITORIAL

A complexidade em
torno da simplif icação
do processo
A ideia de inserção de fórmulas negociais no processo penal sempre gerou controvérsia. A cada nova proposta de lei
buscando a abreviação do processo ou a obtenção de provas por meios consensuais, renovam-se as críticas relativas à
suposta sobreposição de critérios de efetividade em relação aos critérios de justiça.
As últimas décadas foram pródigas em trazer categorias negociais ao processo penal brasileiro. Desde a entrada em vigor
da Lei 9.099/95, a legislação pátria viu-se constantemente modificada para abranger institutos como a transação penal,
suspensão condicional do processo, colaborações premiadas e acordos de não-persecução penal.
Diante da dificuldade do Estado de investigar, processar e julgar os milhares de casos que deságuam diariamente nas varas
criminais, os institutos de consenso foram vistos como uma solução acessível. Como uma válvula de escape para a rápida
resolução de muitos feitos. Não se observa nada a indicar que essa tendência irá mudar.
No entanto, a questão permanece válida. É possível falar em uma justiça penal verdadeiramente negocial em nosso país?
Apesar da introdução de instrumentos que dependem de um “acordo” entre as partes, são raríssimas ainda as ocasiões nas
quais há uma negociação efetiva. O que se vê, na imensa maioria dos casos, é a assinatura de documentos semiprontos,
que mais parecem contratos de adesão.
O modelo consensual de justiça penal nasceu no sistema norte-americano, no qual as partes detêm uma autonomia de fato
para gerir as provas e determinar os rumos do processo. Lá, portanto, os institutos consensuais estão alinhados com a base
principiológica-processual existente naquele sistema. Eles funcionam dentro de uma dinâmica específica – e, não é demais
lembrar, com uma série de críticas.
A pretensão de que essas categorias negociais produzam aqui, num sistema processual bastante diferente, os mesmos
efeitos de lá exige muito mais do que a simples inserção de dispositivos legais no nosso ordenamento jurídico. Sempre
envolve adaptação tanto do instituto consensual como do próprio sistema. Caso contrário, haverá conceitos e institutos que
não se comunicam entre si – o que é prejudicial para a efetividade e para a justiça.
Nessa nova dinâmica consensual, também os atores do processo devem se adaptar. Ao juiz cabe compreender, por exemplo,
sua nova posição, mais simbólica e menos protagonista, dentro da instrução. É essencialmente uma função de garantidor da
lei. Isso significa que o magistrado deverá deixar às partes a liberdade de escolherem o rumo do processo. De outra forma,
não será uma justiça negocial.
Por sua vez, os representantes do Ministério Público devem ser conscientes de que o modelo de justiça negocial acarreta ainda mais
responsabilidade para o dominus litis. Por exemplo, eventuais erros de estratégia processual produzirão mais consequências.
Além disso, a própria existência de institutos consensuais deve levar a um maior cuidado na apresentação dos feitos, em
plena aderência à prova colhida. Ao contrário do que às vezes se pensa, categorias consensuais exigem maior qualidade
do trabalho acusatório. É falso – e absolutamente injusto – o argumento de que, como caberá ao acusado aceitar ou não as
condições, poderia haver um menor cuidado nessa fase inicial.
Por óbvio, não é possível fechar os olhos ao fato de que nossa realidade social concreta impõe ainda maiores cautelas para
a justiça negocial. Não basta dizer que o réu tem liberdade para aceitar ou não. A imensa maioria da população não tem
acesso a uma orientação jurídica efetiva sobre os acordos. Além de que, muitas vezes, inexistem condições mínimas que
assegurem um exercício autônomo dessa faculdade.
A advocacia também tem de aprender a lidar com a sistemática negocial. Acostumados a um processo de embate,
contencioso, advogados precisarão desenvolver habilidades novas, capazes de prover uma defesa eficiente aos seus
clientes. A postura de mera crítica aos institutos negociais, sem a devida compreensão, pode gerar perigoso déficit na
representação dos imputados.
Há muito a aprender, estudar e aprimorar. É preciso olhar para cada instituto de forma madura. Tome-se, por exemplo,
a colaboração premiada. Introduzido em nosso sistema para casos específicos, o instituto foi fortemente banalizado nos
crimes econômicos. De alguma forma, observam-se efeitos inversos aos objetivos da lei. Em vez de multiplicar os casos
elucidados por meio de poucos acordos, houve uma multiplicação de acordos de colaboração (e diminuição de pena). Nos
casos em que a delação poderia ser mais útil para promover justiça, a colaboração raramente aparece.
Recentemente implantado em nosso ordenamento, o acordo de não persecução penal é também exemplo de nossa
dificuldade em lidar com categorias consensuais. Por exemplo, a confissão do imputado como condição para assinatura
do acordo. Além de sua questionável constitucionalidade, essa exigência não tem o menor sentido em uma justiça
verdadeiramente negocial.
A justiça negocial exige reflexão. Não é mero preciosismo técnico. A vida de muitas pessoas é afetada pela utilização dos
instrumentos de justiça negocial. Não cabe tratamento simplista – com fórmulas prontas ou negacionista – fingindo não ver
a existência desses instrumentos. É mais que hora do aprofundamento teórico, da crítica madura, do diálogo aberto sobre a
justiça negocial criminal. Eis a razão para o presente dossiê.

BOLETIM IBCCRIM - ANO 29 - N.º 344 - JULHO DE 2021 - ISSN 1676-3661


Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
BOLETIM

4. A crise existencial da justiça negocial e o que (não) aprendemos com o JECRIM


Aury Lopes Junior

7. Justiça criminal negocial e direito de defesa: Os acordos no processo penal e seus limites necessários
Vinicius Gomes de Vasconcellos

10. Plea bargaining in Japan


Hiroshi Kawatsu

12. Os acordos penais como efeito da retórica do catastrofismo: uma análise a partir do plea bargaining
estadunidense
Michelle Gironda Cabrera e Bárbara Feijó Ribeiro

15. Plea bargaining: o perigoso caminho em direção ao alargamento das práticas de negociação penal
André Peixoto de Souza e Kauana Vieira da Rosa Kalache

18. Breves notas sobre o cabimento do acordo de não persecução penal após o recebimento da denúncia
Gabriel Marson Junqueira

20. O Ministério Público e a justiça negocial no Brasil: entre a obrigatoriedade e a discricionariedade


Ivan Candido da Silva de Franco

23. Acordo de não persecução penal como instrumento de promoção de programas de compliance?
Anna Carolina Canestraro e Túlio Felippe Xavier Januário

26 . Sobre a discricionariedade do Ministério Público no ANPP e o seu controle jurisdicional: uma


proposta pela legalidade
Guilherme Brenner Lucchesi e Marlus H. Arns de Oliveira

29 . DIÁLOGOS
O risco de overcharging na prática negocial do processo penal brasileiro
Pedro Luís de Almeida Camargo

CADERNO DE JURISPRUDÊNCIA
Tema: ANPP: Aplicabilidade na fase processual e retroatividade a fatos anteriores à Lei 13.964/2019

32 . Supremo Tribunal Federal

32 . Superior Tribunal de Justiça

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A CRISE EXISTENCIAL DA JUSTIÇA
NEGOCIAL E O QUE (NÃO)
APRENDEMOS COM O JECRIM
THE EXISTENTIAL CRISIS OF NEGOTIATION JUSTICE AND
WHAT (NOT) WE HAVE LEARNED FROM THE JECRIM

Aury Lopes Junior


Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid.
Professor Titular no Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS. Advogado Criminalista.
Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/4629371641091359
ORCID: 0000-0002-7489-3353
aurylopes@terra.com.br

Resumo: O artigo analisa a tendência de expansão dos espaços de Abstract: The article analyzes the tendency for the expansion of
negociação no processo penal brasileiro, desde uma análise crítica dos negotiation spaces in the Brazilian criminal process, from a critical analysis
argumentos justificacionistas e da equivocada tendência de importação do of the justificationist arguments and the mistaken tendency to import the
problemático instituto do plea bargaining norte americano. Aborda a ausência problematic north american plea bargaining institute. It addresses the absence
de igualdade processual para desconstruir o mito da voluntariedade da of procedural equality in order to deconstruct the myth of voluntariness in
negociação. A crise do processo penal e o entulhamento da justiça criminal negotiation. The criminal process crisis and the clogging of criminal justice
precisam ser enfrentadas de outras formas, não sendo a expansão da must be dealt with in other ways, and the expansion of negotiation is not the
negociação o remédio adequado. appropriate remedy.
Palavras-chave: Justiça negocial – Plea bargaining – Transação penal – Keywords: Negotiation justice - Plea bargaining - Criminal transaction - Non-
Acordo de não persecução penal – Espaço de consenso criminal prosecution agreement - Space of consensus

O entulhamento da justiça criminal e a incapacidade do sistema de dar Estados Unidos, acordos assim superam 90% dos meios de resolução
conta da imensa demanda não é novidade e tampouco exclusividade de casos penais, chegando a 97% nos casos federais [Walsh3] e até
do sistema jurídico-penal brasileiro, mas sem dúvida esses fatores são 99% em Detroit [Langbein4]. Significa dizer que mais de 90 de cada
decisivos para o fortalecimento do discurso expansionista dos espaços 100 casos criminais são resolvidos com a aplicação de uma pena sem
de consenso. Essa desarmonia temporal (ou da percepção do tempo) nenhum processo, sem contraditório e sem produção de provas.
facilita, imensamente, a aceitação de atalhos e soluções imediatas,
Convenhamos, não existe (e nem teria como existir) sistema judicial no
pois conduz à ilusão de uma justiça instantânea, desconsiderando que mundo que condene 9 de cada 10 acusados, pelo simples fato de que o
a ruptura temporal é crucial para que se respeite o tempo do direito e o número de acusações abusivas e erradas supera longe a casa dos 10%,
tempo do processo.1 Iniciamos em 1995, com a Lei 9099 e os institutos sem mencionar a importância do contraditório5 e do direito de defesa
da transação penal e suspensão condicional do processo, mas pouco enquanto mecanismos de desconstrução da versão unilateralmente
aprendemos com o fracasso das expectativas incialmente criadas. construída; as inúmeras e eternas discussões sobre os limites semânticos
Os juizados especiais criminais não só defraudaram a expectativa dos tipos penais; a possibilidade de provar a existência de causas de
de desafogo da justiça criminal, como se mostraram perversos na exclusão da ilicitude; etc. Ademais, existe um argumento bastante óbvio
ampliação do Direito Penal bagatelar. Não apreendemos com esse e irrefutável: partindo da presunção de inocência6 (fruto da evolução
erro e seguimos acelerando, em verdadeira narcose dromológica, civilizatória), o nível de exigência de qualidade probatória necessário
rumo ao suicídio do plea bargaining,2 felizmente ainda não consagrado, para condenação é sempre significativamente maior do que aquele
mas não faltam esforços para tanto. necessário para mera acusação. Logo, sempre haverá um número maior
Negociar é possível e talvez até salutar, mas é preciso saber a dose de acusações improcedentes do que procedentes, sendo sintoma de
certa do remédio para não se transformar em veneno. Primeiro ponto distorção um sistema que gere cifras de condenações superiores a 90%,
é compreender que nosso sistema jurídico (civil law) impõe limites como ocorre nos modelos negociais sem limite de pena.
que não permitem a importação de uma negociação tão ampla e Mas o principal argumento justificacionista da justiça negocial, o
ilimitada como o plea bargaining norte americano (common law), que ‘entulhamento’, precisa ser visto desde outra perspectiva: banalizamos
era o sonho do ex-juiz-ex-ministro Sergio Moro. Uma negociação dessa o Direito Penal como resposta a problemas sociais complexos,
magnitude representa o fim do processo penal brasileiro, na medida em priorizando soluções paliativas e sem enfrentar as causas reais. Sem
que legitima em larguíssima escala a “aplicação de pena privativa de dúvida o enfrentamento da crise do bem jurídico contribuiria para a
liberdade sem processo” (o que é absolutamente inconstitucional). Nos redução significativa desse argumento eficientista, ainda mais se aliado

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ao filtro processual de maior exigência de responsabilidade acusatória encaixa melhor com as práticas persuasórias permitidas pelo segredo
e principalmente, efetividade do controle de admissibilidade da e nas relações desiguais do sistema inquisitivo. É transformar o
acusação por parte dos juízes. Na dimensão processual, existe ainda processo penal em uma “negociata”, no seu sentido mais depreciativo.
um imenso e perverso (ab)uso do poder de acusar, com a conivência
Schünemann (2013) critica o suposto princípio de consenso,
do poder judicial que não barra, como deveria, uma enxurrada de
frequentemente invocado para legitimar o modelo negocial, taxando
acusações natimortas, inúteis ou despidas de suficiente justa causa.
de “eufemismo”, por trás do qual se ocultaria uma sujeição do acusado
E, quando se trata de acusação para negociação, além dos evidentes
à medida de pena pretendida pelo acusador, enquanto resultado
abusos (overcharging), existe uma ausência de filtragem processual, na
mínimo, de quem é colocado em posição de submissão através de
medida em que os juízes simplesmente desconsideram essa análise, forte pressão por parte da Justiça criminal sobre o acusado. É uma
basta ver o que ocorre nos juizados especiais criminais. ficção, desde o ponto de vista prático, conclui. Não existe consenso ou
Explica Walsh7 que esse desequilíbrio no tratamento é tão sério que voluntariedade, porque não existe igualdade de partes/armas. Existe
nos EUA, no Texas e na Carolina do Norte, juntamente com alguns uma submissão do réu a partir de uma visão de redução de danos (para
outros estados, é obrigatório que as partes compartilhem evidências evitar o “risco” do processo). Existe semelhança com um “contrato de
(provas) antes do acordo. Um procedimento muito importante que não adesão”, onde não há liberdade plena e real igualdade para negociar,
está sendo ventilado no Brasil (e que já deveria ter entrado junto com apenas de aceitar o que lhe é imposto.
o acordo de não persecução penal) como requisito para a realização Como destaca Walsh, o direito constitucional a um julgamento público
do acordo, proibindo que o acusado seja impedido de ter acesso8 à é excluído com o plea bargaining, tratando-se, para a maioria, de um
integralidade dos elementos colhidos e tenha que decidir sobre fazer mito, conforme também compreendeu o Juiz Federal americano John
ou não o acordo a partir de uma análise parcial da viabilidade ou não Kane. Essa deterioração sistemática que o acordo penal produz é
da acusação. Esse dever de compartilhamento é uma exigência de identificada por um coro de juristas dos EUA, que “querem ajustes
boa-fé e transparência que não só deve pautar o agir do Estado, mas para regulamentação e controle das negociações; outros pedem
também como uma forma de evitar “blefe” e acordos abusivos. Se a uma revisão mais ambiciosa do modo como os procedimentos são
“estratégia” e a “malícia” podem ser utilizadas nos negócios privados, conduzidos, agilizando o processo para torná-lo acessível a um maior
não o devem quando se trata de um agente público. número de pessoas”.12 Nesse sentido, Langbein13 é categórico: “o
Cada avanço do espaço de negociação acarreta um achatamento da plea bargaining é, portanto, um procedimento de julgamento para
garantia da jurisdição – Princípio Supremo do Processo Penal (Werner condenar e declarar culpadas pessoas acusadas de crimes graves”,
Goldschmidt) – e de todo o devido processo, além de sepultar sem legitimação constitucional, por causa da “garantia oposta,
qualquer esperança de se ter um processo como procedimento em uma garantia de julgamento”. Além disso, prossegue Langbein,14 a
negociação é coercitiva e as práticas de tortura e plea bargaining não
contraditório (Fazzalari). Fulminada a legitimação formal do processo,
têm diferença de gênero, apenas de grau.
melhor sorte não assiste ao seu caráter epistêmico, pois o sistema
negocial prescinde de qualquer compromisso ético com a “verdade”9 Portanto, a negociação não pode ser justificada ou legitimada a
(crítica também feita por Schünemann10) e com o valor “justiça”. partir da categoria “autonomia de vontade”. Trata-se de uma base
excessivamente porosa e frágil, como apontou com pioneirismo
A cultura inquisitória aplaude o ressurgimento da confissão como a
Geraldo Prado15 ao falar da transação penal:
‘rainha das provas’, demostrando o primeiro erro do recém implantado
acordo de não persecução penal. Para piorar, a negociação – na sua os desníveis socioeconômicos ainda vivos na sociedade brasileira
essência – é obstáculo à instrução, ou seja, na perspectiva utilitarista- interditam a pretensão de garantir ao sujeito, principalmente ao
eficientista na qual se insere, a negociação deve ser prévia à instrução sujeito investigado/imputado, condições de exercer plenamente
suas potencialidades e, pois, posicionar-se conscientemente
criminal exatamente para se evitar a parte mais cara e morosa do
diante da proposta de transação, compreendendo seu largo
processo penal. A aceleração por ela exigida faz com que nenhuma alcance como instrumento de política criminal.
prova seja produzida em contraditório judicial, ressuscitando assim
mais um ícone da cultura inquisitória: supervalorização da confissão
e dos atos de investigação, aqueles realizados no inquérito policial, Grave erro é a importação “a la carte” de institutos de sistemas de
sem contraditório, com limitação da defesa, da publicidade, ausência matriz absolutamente distinta, como o modelo common law norte-
da garantia da jurisdição, etc. Isso tudo demonstra, ainda, a falácia americano, desconsiderando sua incompatibilidade com o modelo
do argumento de que a negociação é característica do sistema civil law brasileiro, com os princípios que regem a acusação de
acusatório.11 Todo o oposto: ela se encaixa perfeitamente na estrutura iniciativa pública, os limites institucionais do Ministério Público, a
inquisitória brasileira, por exemplo, alinhando-se a esses elementos indisponibilidade do objeto do processo penal brasileiro, enfim, com
tipicamente inquisitórios referidos. nosso desenho jurídico, processual e institucional. Figueiredo Dias16 é
claro em rechaçar a importação do plea bargaining porque incompatível
A pena passa a não ser mais uma consequência do delito, mas sim
com o modelo português (e também com o brasileiro, acrescentamos),
do acordo. Portanto, além de representar o fim do processo penal e
na medida em que não coincide com nossa concepção de Estado de
gerar um previsível superencarceramento, o abuso da esfera negocial
Direito, que tampouco é conciliável com o rule of law anglo-saxônico.
desconecta o fundamento legitimante da pena, pois ela passa a não
Logo, é preciso respeitar certos limites metodológicos que infelizmente
guardar mais nenhuma relação com os argumentos que justificam sua estão sendo esquecidos nesse debate. Para tratar de direto comparado
existência e tampouco cumprir com suas funções estabelecidas. A pena é preciso saber direito e saber comparar.
torna-se fruto apenas da negociação entre as partes, sem qualquer
ancoragem nos argumentos que historicamente a justificaram. Dessarte toda a crítica, resumidamente feita acima, a ampliação dos
espaços negociais é uma realidade. Não vislumbramos perspectivas
A justiça negocial viola desde logo esse primeiro pressuposto mínimas de uma inversão de sinais. Então por que seguir criticando e
fundamental, pois o poder de penar não passa mais pelo controle lutando para dar visibilidade ao ‘dark side’ da negociação? Para evitar
jurisdicional e tampouco se submete aos limites da legalidade, sua ampliação e frear as tentativas de inserção do plea bargaining em
senão que está nas mãos do Ministério Público e vinculado à reformas futuras. Pensamos que já houve um alargamento (mais do
sua discricionariedade. É a mais completa desvirtuação do juízo que) suficiente com a inserção do acordo de não persecução penal
contraditório, essencial para a própria existência de processo, e se no art. 28-A, que representa, quando analisado junto com a transação

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penal e a suspensão condicional da pena, o estabelecimento de um de adoção a la carte (e a fórceps) do plea, o fez sem qualquer “estudo
espaço negocial bastante relevante e suficiente, abrangendo com de impacto carcerário” da expansão do espaço negocial. Como o nosso
certeza mais de 70% dos tipos penais.17 sistema carcerário sucateado e medieval iria lidar com isso? Qualquer
estudo epidérmico de custos, comprovaria: seria o caos, ou melhor,
Na estrutura jurídica e constitucional brasileira, entendemos que não se
agravaria o caos já existente. Ora, não se deve legislar primeiro para ver
pode conceber a imposição de uma pena privativa de liberdade sem
prévio processo. Nesse ponto, pensamos que o legislador andou bem o que vai ocorrer depois. É lamentável como no Brasil não se faz uma
ao demarcar os limites do acordo de não persecução penal, ainda que análise prévia do impacto das reformas penais e processuais penais,
tenha errado em outros, como por exemplo, a problemática exigência e tampouco se acompanha criticamente suas implementações, para
de haver ‘confessado formal e circunstancialmente’ ou não determinar corrigir distorções. Do contrário, teríamos corrigido os erros funcionais
os efeitos endoprocedimentais do acordo. dos juizados e partido para uma ampliação da própria transação penal,
sem necessidade de criar um novo e problemático instituto (acordo de
Apenas por argumentar, se ampliarmos o espaço negocial já existente, não persecução penal).
para permitir aplicação de pena privativa de liberdade, houve um estudo
prévio sobre o impacto que isso iria representar? Sem dúvida, a primeira Por derradeiro, entendemos que o espaço de consenso deve ficar limitado
impressão é de que o plea bargaining representa imensa economia e a penas iguais ou inferiores a quatro anos, sem possibilidade de aplicação
agilidade, e o pensamento econômico aplaude. Mas mesmo os adeptos de pena privativa de liberdade sem prévio processo. Parafraseando
do viés economista precisam reconhecer que existe um sobrecusto Carnelutti18, a conclusão sobre os acordos é a mesma a que o mestre
gigantesco, que anula a economia feita ou mesmo gera um prejuízo italiano chegou ao tratar da prisão cautelar: a negociação sobre a pena é
ainda maior: o custo do superencarceramento. Quando o ex-juiz-ex- como um remédio muito forte: se bem utilizado, pode salvar o paciente (o
ministro Sergio Moro apresentou o ‘seu’ pacote anticrime e a proposta processo penal), mas, se houver abuso dela, vai matar o processo penal!

Notas

1 OST, 2001, passim. 10 SCHÜNEMANN, 2013, p. 248-249.


2 Utilizaremos aqui apenas a expressão plea bargaining (ou plea agreement) por ser mais 11 Para um estudo mais verticalizado de sistemas processuais, remetemos o leitor para nossa
representativa e abrangente. Mas, como explica Masi (2016), existem diferentes tipos de obra “Fundamentos do Processo Penal”, (2021). Também é imprescindível a leitura de Ja-
barganha: “a) na charge bargaining, o acusado se declara culpado de um crime menos cinto Nelson de Miranda Coutinho, cuja produção neste terreno é bastante profícua, mas
grave que a acusação original; b) na count bargaining, o acusado assume apenas uma especialmente: COUTINHO, 2018, p. 25-62.
parte dentre várias acusações; c) na sentence bargaining, a promotoria se compromete a
pedir em juízo determinado benefício na sentença (o que pode ser negado pelo juiz); d)
12 WALSH, 2017.
e na fact bargaining o acusado se declara culpado, mas as partes acordam sobre certos 13 LANGBEIN, p. 137.
fatos que afetarão a forma como o acusado será punido.” 14 Na síntese do autor: “nós coagimos o acusado contra quem encontramos uma causa pro-
3 WALSH, 2017. vável a confessar a sua culpa. Para ter certeza, nossos meios são muito mais elegantes;
4 LANGBEIN, 2017, p. 138. não usamos rodas, parafusos de polegar, botas espanholas para esmagar as suas
pernas. Mas como os europeus de séculos atrás, que empregavam essas máquinas, nós
5 Para além da concepção tradicional e acertada de FAZZALARI, pensamos que o contra-
fazemos o acusado pagar caro pelo seu direito à garantia constitucional do direito a
ditório deve ser considerado ainda como direito a ‘igualdade cognitiva’, isto é, mecanismo
um julgamento. Nós o tratamos com uma sanção substancialmente aumentada se ele se
processual através do qual se reforça a necessidade da máxima originalidade cognitiva do
beneficia de seu direito e é posteriormente condenado. Este diferencial da sentença é o
juiz e, principalmente, para criar as condições de possibilidade de reversão (ou até impedi-
que torna o plea bargaining coercitivo. Há, claro, uma diferença entre ter os seus membros
mento de construção) das imagens construídas a partir da versão unilateral do caso penal
esmagados ou sofrer alguns anos a mais de prisão se você se recusar a confessar, mas a
que lhe é trazida pela acusação/investigação. Contraditório como instrumento de correção
diferença é de grau, não de espécie. O plea bargaining, assim como a tortura, é coerciti-
da dissonância cognitiva e seus perversos efeitos. Sobre o tema remetemos o leitor para
vo.” (Grifamos) (LANGBEIN, 2017, p. 141).
nossa obra Fundamentos do Processo Penal (2021).
15 PRADO, 2003, p. 224.
6 Neste tema é crucial a leitura de Maurício Zanoide de Moraes (Presunção de inocência no pro-
cesso penal brasileiro, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010) e a tríplice compreensão da presunção 16 DIAS, 2001.
de inocência, enquanto norma de tratamento, norma probatória e norma de julgamento. 17 Dados preliminares de uma pesquisa que estamos realizando, que já demonstrou que
7 No artigo citado. apenas a suspensão condicional do processo e a transação penal, quando confrontadas
8 Interessante neste tema o texto de João Paulo Boaventura (2019) disponível no site https:// com os tipos previstos no Código penal, alcançam, respectivamente, 66,57% e 39,53% de
www.conjur.com.br/2019-out-29/opiniao-omissao-provas-acordos-colaboracao-premiada. espaço negocial. O acordo de não persecução penal amplia significativamente o espectro
negocial, considerando a exigência de crimes, sem violência ou grave ameaça, com pena
9 Sem entrar aqui na complexa discussão sobre ‘que verdade é essa’, qual adjetivo vai ser mínima inferior a 4 anos.
agregado ao substantivo para salvá-la, ou ainda, e essa é a questão que nos parece nev-
rálgica: qual o seu ‘lugar’ no processo penal. 18 CARNELUTTI, 1950, p. 75.

Referências

BOAVENTURA, João Paulo. A omissão de provas e os acordos de colaboração pre- LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2021.
miada. Conjur, 29 out. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-out-29/ MASI, Carlo Velho. A plea bargaining no sistema penal norte-americano. Canal Ciências
opiniao-omissao-provas-acordos-colaboracao-premiada. Acesso em: 25/05/2021. Criminais, 20 nov. 2016. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/a-plea-
CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el proceso penal, v. II. Buenos Aires: Bosch -bargaining-no-sistema-processual-penal-norte-americano. Acesso em: 25/05/2021
y Cia. Editores, 1950. MORAES, Maurício Zenoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro, Rio
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: SIL- de Janeiro, Lumen Juris, 2010.
VEIRA, Marco Aurélio Nunes da; PAULA, Leonardo Costa de (org.) Observações sobre OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Piaget, 2001.
os sistemas processuais penais (escritos do Prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho;
1). Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018. p. 25-62. PRADO, Geraldo. Elementos para uma análise crítica da transação penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003, p. 224.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Acordos sobre a sentença em processo penal - o “fim” do
estado de direito ou um novo “principio”? Porto: Conselho Distrital do Porto, 2001. SCHÜNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano.
In: GRECO, Luís. (org.) Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di direito processuale. 8ª edição. Ed. Cedam, Padova, 1996. direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 240 a 261.
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1986 effects include inordinately powerful prosecutors and infrequent access to jury trials.
LANGBEIN, John H. Tortura e plea bargaining. In: GLOCKNER, Ricardo Jacobsen (org.). The Atlantic, 2 maio 2017. Disponível em: https://www.theatlantic.com/politics/archi-
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Autor convidado

BOLETIM IBCCRIM - ANO 29 - N.º 344 - JULHO DE 2021 - ISSN 1676-3661


JUSTIÇA CRIMINAL NEGOCIAL E DIREITO
DE DEFESA: OS ACORDOS NO PROCESSO
PENAL E SEUS LIMITES NECESSÁRIOS
NEGOTIATED CRIMINAL JUSTICE AND RIGHT OF DEFENSE:
AGREEMENTS IN CRIMINAL PROCEDURE AND ITS NECESSARY LIMITS

Vinicius Gomes de Vasconcellos


Doutor pela USP. Mestre pela PUCRS. Professor pela UEG e IDP. Editor-chefe da RBDPP. Assessor de Ministro no STF.
Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/9628659956663949
ORCID: 0000-0003-2020-5516
vinicius.vasconcellos@ueg.br

Resumo: Neste artigo, almeja-se assentar a importância da proteção de Abstract: In this article, the aim is to establish the importance of protecting
direitos e garantias nos procedimentos negociais hoje existentes ou em debate rights and guarantees in criminal agreements procedures that currently exist
para previsão futura, especialmente em relação ao direito de defesa. Para or are under debate for future creation, especially in relation to the right of
tanto, serão analisados casos julgados pela Supremo Corte dos Estados Unidos defense. For this purpose, relevant cases judged by the Supreme Court of the
que alteraram posições relevantes na temática, de modo a, considerando as United States will be analyzed in order to, considering the differences between
relevantes diferenças entre os sistemas, poder ressaltar a necessidade de limites the US and the Brazilian systems, emphasize the need for limits and controls
e controles aos acordos penais. A partir de tal premissa, serão expostos pontos on criminal agreements. From this premise, problematic points that need more
problemáticos que carecem de maior atenção e desenvolvimento doutrinário academic and jurisprudential attention in Brazil will be exposed, indicating
e jurisprudencial no Brasil, indicando-se possíveis sugestões de reformas. possible suggestions for reforms.
Palavras-chave: Justiça criminal negocial - Acordos penais - Direito de defesa Keywords: Negotiated criminal justice - Plea bargaining - Right of defense -
- Controle judicial. Judicial control.

“A realidade é que a justiça criminal hoje caracteriza, em regra, um recebeu proposta de acordo feita pelo MP para confessar e obter
sistema de barganhas, não um sistema de julgamentos”.1 Em tradução uma pena reduzida (51-81 meses). Em contato com o juízo, o acusado
livre, essa constatação foi feita pelo Justice Anthony Kennedy em admitiu a sua culpa e demonstrou interesse no acordo. Contudo,
precedente assentado pela Suprema Corte dos Estados Unidos no seu advogado afirmou que a acusação não teria como comprovar
sentido de ampliar a importância da defesa técnica durante a fase o dolo, visto que os tiros teriam sido abaixo da cintura da vítima. No
pré-processual, que envolve, em muitos casos, as negociações julgamento, o réu foi condenado a pena superior àquela oferecida
de acordos. Por óbvio, a situação brasileira ainda está longe dos anteriormente (185-360 meses) e, então, passou a alegar que a
percentuais altíssimos de condenações obtidas por acordos que
assistência técnica deficiente causou prejuízo manifesto ao instruí-
ocorrem no modelo estadunidense; contudo, a tendência de expansão
lo a não aceitar o acordo. Por maioria de um voto, decidiu-se que a
dos espaços de consenso no nosso processo penal é marcante, como
deficiência na defesa acarretou manifesto prejuízo ao imputado, visto
já destacamos neste Boletim.2 Sem as cautelas devidas, a barganha
triunfará entre nós e, embora não sustente uma inconstitucionalidade que demonstrada uma “razoável possibilidade de que o resultado do
incontornável no sistema negocial, há muito ressalto os seus riscos e acordo teria sido diferente com uma assistência técnica competente”
problemas inerentes.3 e, assim, determinou-se que o acordo deveria ser novamente
oferecido e, se aceito, submetido ao controle judicial.
Diante disso, neste artigo, almeja-se assentar a importância da
proteção de direitos e garantias nos procedimentos negociais hoje A divergência afirmou que não haveria direito ao acordo e, portanto, a
existentes ou em debate para previsão futura, especialmente em submissão ao julgamento tradicional não poderia ser vista como prejuízo.
relação ao direito de defesa. Para tanto, serão analisados casos Tal posição, semelhante ao majoritariamente aceito no Brasil, deve ser
julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS) que analisada com cautela em um cenário de generalização dos mecanismos
alteraram posições relevantes na temática de modo a, considerando as negociais, onde a persecução penal precisa, ainda assim, pautar-se pela
relevantes diferenças entre os sistemas, poder ressaltar a necessidade legalidade, previsibilidade e isonomia de tratamento. Simplesmente
de limites e controles aos acordos penais. A partir de tal premissa, afirmar que o réu não pode questionar ilegalidades na fase negocial,
serão expostos pontos problemáticos que carecem de maior atenção porque submetido ao juízo tradicional, é ignorar que o sistema precisa se
e desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial no Brasil. estruturar de modo a tendencialmente dar respostas isonômicas a casos
Primeiramente, no caso Lafler v. Cooper (2012), a SCOTUS analisou semelhantes, e não depender de uma discricionariedade incontrolável do
caso em que o réu, acusado de tentativa de homicídio doloso, representante do MP no caso concreto.

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Já em Missouri v. Frye (2012),4 a SCOTUS julgou fato em que o órgão rapidamente) quanto legítimas, ao considerar os riscos inerentes a
acusatório havia oferecido duas propostas de acordo com redução de qualquer processo penal.10
pena ao advogado do imputado (uma delas com pena de 90 dias). Portanto, a efetividade da assistência técnica deve ser assegurada em
Contudo, sem ser informado de tais ofertas, o réu confessou os delitos todos os casos e eventuais deficiências devem ser controláveis pelos
narrados e foi condenado a uma pena de três anos, superior àquelas tribunais para correção de ilegalidades no procedimento negocial.
potencialmente aplicáveis se as negociações tivessem sido bem- Além disso, como já sugerido neste Boletim, seria importante regular
sucedidas. Diante disso, o réu impugnou a condenação sob a tese diretrizes deontológicas para atuação de advogados e advogadas na
de que a deficiência da defesa técnica prejudicou a sua situação, ao justiça criminal negocial.11
passo que, se informado das propostas, a pena imposta seria inferior.
2. Direito à informação e acesso aos autos investigativos
Partindo-se da premissa de que o direito à defesa técnica efetiva deve
como pressuposto da voluntariedade do imputado no
ser garantido em todas as fases “críticas” da persecução penal (como
acordo penal.
a de negociações), considerou-se que houve violação e que, em regra,
as ofertas de acordos devem ser comunicadas ao imputado.5 Para que a decisão do réu em aceitar um acordo e renunciar a
direitos fundamentais seja efetivamente voluntária, impõe-se que ela
A partir de tais casos, pode-se afirmar que o direito de escolher ocorra devidamente informada. É necessário que o imputado tenha
não aceitar o acordo e se submeter ao processo penal tradicional conhecimento e compreensão de sua situação em relação à acusação,
não suprime a necessidade de que o mecanismo negocial adote ao acordo e aos seus direitos, às opções e estratégias processuais
procedimento legítimo e compatível com a proteção efetiva dos possíveis, e às renúncias que realiza ao pactuar com a persecução
direitos fundamentais, como o direito de defesa.6 Ou seja, ainda que o penal. Conforme a Orientação Conjunta 1/2018 do MPF:
réu tenha sido submetido ao processo penal ou pudesse fazê-lo, vícios
o membro do MPF oficiante deve empregar todos os esforços a
e ilegalidades nos acordos ou nas etapas de sua formação podem
fim de bem esclarecer ao interessado e ao seu defensor, desde o
contaminar a legitimidade da condenação proferida.
início do procedimento, suas tratativas e antes de qualquer ato de
Portanto, embora não concorde com construções de um “novo devido colaboração, em que consiste o instituto da colaboração premiada,
processo consensual”,7 por entender que isso finda por suprimir o respectivo procedimento previsto em lei e nesta Orientação
completamente direitos e garantias desenvolvidas ao longo de séculos, Normativa, os benefícios possíveis em abstrato, a necessidade de
sigilo e outras informações pertinentes, em ordem a viabilizar o
penso que é fundamental avançar no estudo sobre os parâmetros
consentimento livre e informado.12
e limites aos acordos no processo penal, de modo a estruturar um
procedimento negocial que respeite tais direitos e garantias, ainda
que modulados às características e lógicas distintas da justiça criminal
Consequentemente, para aceitar o acordo com voluntariedade, deve-
negocial. Tendo em vista tais considerações, elenco alguns pontos
se ter conhecimento sobre a sua situação diante da persecução penal.
problemáticos que precisam ser adequadamente regulados em um
Não se pode admitir que a acusação se utilize de meios abusivos ou
sistema negocial que se pretenda legítimo.
blefes para influenciar o réu a confessar por acreditar indevidamente
1. Assistência técnica efetiva durante todas as etapas da que existem provas em um determinado sentido. Trata-se de uma
persecução penal, inclusive negociações. decisão estratégica que envolve uma ponderação de chances e
riscos, de modo que “a ausência de conhecimento real dos elementos
A legislação brasileira é precisa ao impor o acompanhamento por de convicção colhidos durante as investigações pode incutir no
advogado ou advogada em todos os momentos. Conforme o § 1º colaborador o temor de ser alvo de acusações que, em verdade, não se
do art. 3º-C da Lei 12.850/13, “nenhuma tratativa sobre colaboração sustentariam por absoluta falta de justa causa à ação penal” e dificulta-
premiada deve ser realizada sem a presença de advogado constituído se a “constituição de um prognóstico sobre a viabilidade da própria
ou defensor público”. Além disso, o § 2º do mesmo dispositivo, defesa em caso de recusa à colaboração”.13
ambos inseridos pela Lei 13.964/19, afirma que “em caso de eventual
conflito de interesses, ou de colaborador hipossuficiente, o celebrante Conforme Mariana Lauand, “deverão, imputado colaborador e
deverá solicitar a presença de outro advogado ou a participação de seu advogado, outrossim, ter ciência do inteiro teor dos autos
defensor público”. Trata-se de mecanismo que busca evitar situação antes de decidirem realizar a colaboração processual”.14 Ainda que,
diferentemente do sistema estadunidense, a investigação brasileira
de indefesa do réu, em hipótese de “insuficiência da defesa técnica
paute-se pelo princípio da oficialidade e da formalização nos autos,
nas instruções relacionadas a possível impulso negocial”, como
devem ser adotados mecanismos adequados para assegurar o acesso
“desprezo ou má condução nas orientações ao cliente no tema do
devido e evitar a supressão de elementos pertinentes.15
acordo de colaboração”.8 Por autorizar uma intromissão aguda no
direito do imputado em escolher defesa técnica de sua confiança, tal 3. Critérios e controles para a decisão do órgão acusatório
instrumento deve ser interpretado com cautela e submetido ao devido em relação a propor/aceitar um acordo penal.
controle judicial motivado.
Embora tenha prevalecido nos Tribunais a posição de que os acordos
Por óbvio, a assistência da defesa técnica em todos os momentos penais não configuram direito subjetivo do imputado que possa ser
é fundamental e vai bem a legislação em consolidar tal imposição. concedido de ofício pelo juízo, pensa-se que é inadmissível a visão
Contudo, não se pode sustentar a ideia de que o simples fato de ter que exclui qualquer possibilidade de controle ao afirmar que se trata
sido o réu aconselhado por advogado/a impeça o reconhecimento de de mera discricionariedade da acusação.16 Sem dúvidas, um dos
qualquer ilegalidade no acordo e nas negociações, ou vício na vontade maiores problemas descritos no sistema estadunidense é a ocorrência
do réu. Nesse cenário, a própria relação entre advogado e cliente pode de abusos por parte de acusações infladas, recusas injustificadas e
ser impactada, pois diversas são as influências possíveis em meio tratamentos desiguais entre imputados em situações semelhantes.17
à justiça criminal negocial. Segundo Albert Alschuler, “o sistema É necessário estabelecer normativas internas mais detalhadas
negocial é um método inerentemente irracional de administração para a atuação de representantes do Ministério Público, de modo a
da justiça e necessariamente destrutivo às relações entre cliente e assentar critérios e parâmetros sobre admissibilidade dos acordos e,
advogado”.9 Isso ocorre porque em muitos casos o próprio advogado, especialmente, benefícios e penas a serem negociadas. Não se pode
que deveria informar adequadamente o réu, acaba por tender a facilitar admitir a estruturação de um sistema em que a busca por isonomia e
e incentivar a realização do acordo e o consenso do imputado, tanto igualdade na aplicação da lei penal para casos semelhantes não seja
por razões ilegítimas (como obtenção de benefícios ou honorários um objetivo primordial.

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Nesse sentido, vale citar o exemplo italiano. No patteggiamento, (...) à renúncia ao recurso no âmbito dos acordos processuais
mecanismo de barganha, há uma tentativa de limitação à não parece estar subjacente qualquer interesse legítimo; e, pelo
discricionariedade do acusador pela imposição ao promotor da contrário, à sua pretendida eficácia poderiam ligar-se perigos
obrigação de justificar a sua recusa, que, se ilegítima, acarretará duradouros para a subsistência de um processo penal adequado
consequências: “na Itália os motivos da recusa são verificados pelo ao Estado de Direito.19
juiz, que, se entendê-la injustificada, assegurará a redução solicitada
pelo acusado, mesmo após o transcorrer de todo o procedimento
ordinário, consagrando assim o acordo como direito subjetivo do réu”.18 O direito ao recurso sobre a condenação é assegurado no processo
penal pelo art. 8.2.h da CADH, devendo ser resguardado em tal
4. Direito ao recurso e sistemas de controle judicial aos situação.20 Eventual impugnação ao acordo pode, a depender da
mecanismos negociais. análise do caso concreto, ensejar a sua rescisão, se houver cláusula
nesse sentido, mas não pode ser admitida renúncia genérica e prévia
Como exposto, pensa-se que os mecanismos negociais devem, ao próprio gravame.
primordialmente, ser submetidos a controles internos no âmbito
do órgão acusatório. Decisões sobre aceitar ou não o acordo e os Além disso, no juízo homologatório, é fundamental que ocorra um
benefícios possíveis são muito relevantes na persecução penal e, controle sobre a base fática para a aceitação do acordo.21 A confissão
assim, precisam ser tomadas e revisadas colegiadamente. Contudo, não pode ser fundamento exclusivo da condenação, ao passo
isso de modo algum afasta a importância do controle judicial para que elementos de corroboração precisam justificar a superação
assegurar a proteção aos direitos fundamentais e evitar abusos, cujo da presunção de inocência para autorizar a imposição de uma
risco é potencializado em um cenário negocial. sanção criminal (ainda que denominada diversamente). Mesmo em
mecanismos negociais dirigidos a fatos considerados menos graves,
Renúncias prévias e genéricas ao direito ao recurso não devem como a transação penal, não se pode admitir a homologação sem
ser admitidas, visto que inviabilizam o acesso à justiça. Segundo qualquer lastro probatório a indicar a ocorrência de fato criminoso e
Figueiredo Dias: punível, por exemplo.

Notas
1 SCOTUS, p. 11, 2012. 12 Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/orientacoes/orientacao-
conjunta-no-1-2018.pdf>. Acesso em: 22 mai. 2021. p. 4.
2 FALAVIGNO; VASCONCELLOS, 2018.
13 PEZZOTTI, 2020. p. 260.
3 Ver: VASCONCELLOS, 2018.
14 LAUAND, 2008, p. 114.
4 SCOTUS, 2012.
15 Sobre isso: MIRZA MADURO, 2020.
5 Sobre isso: ROBERTS, 2013.
16 VASCONCELLOS, 2020. p. 94-101.
6 Ressaltando a importância dos precedentes, mas afirmando que ainda carecem de
atenção diversos problemas graves no sistema negocial estadunidense, como abusos
17 MCCANNON, 2015.
acusatórios e falta de acesso a provas e investigações: ALKON, 2014. 18 VASCONCELLOS, 2015. p. 446.
7 MENDONÇA, 2017. p. 126. 19 DIAS, 2011. p. 97. Em sentido contrário, posicionando-se favoravelmente à renúncia ao
direito de recorrer: FONSECA, 2017. p. 132.
8 PEREIRA, 2020. p. 233.
20 Sobre isso: ROMERO, 2017. p. 272. Em relação ao direito ao recurso no processo penal,
9 ALSCHULER, 1975, p. 1.180 (tradução livre). ver: VASCONCELLOS, 2020.
10 VASCONCELLOS, 2018. p. 403-419. 21 O controle judicial sobre o acordo e seus limites são temas complexos, de modo que se
11 VASCONCELLOS, 2018. remete a: VASCONCELLOS, 2021; DE-LORENZI, 2021.

Referências
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ALKON, Cynthia. An Overlooked Key to Reversing Mass Incarceration: Reforming the Law 2674, 2013.
to Reduce Prosecutorial Power in Plea Bargaining. University of Maryland Law Journal of
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Anticrime. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 174, p. 199-254, dez. 2020. MIRZA (Org.). Crise no processo penal contemporâneo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.

Autor convidado

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PLEA BARGAINING IN JAPAN
PLEA BARGAINING NO JAPÃO

Hiroshi Kawatsu
Attorney at Law. Director, Research Office for Criminal Affairs, Japan Federation of Bar Associations
ORCID: 0000-0003-1556-6106
kawatsu@kasumigaseki.gr.jp

Abstract: In Japan, the plea bargaining system was introduced with Resumo: No Japão, o sistema do plea bargaining foi introduzido com a
the amendment of the Code of Criminal Procedure in 2016. However, under alteração do Código de Processo Penal em 2016. No entanto, sob a estrutura
this structure of Japanese criminal justice, even before the introduction of the da justiça criminal japonesa, mesmo antes da inovação legislativa, a prática do
plea bargaining system, informal plea bargaining has been practiced, but they plea bargaining já existia informalmente, muito embora ela tenha sido declarada
were declared illegal by the new legislation. Further legal reforms are needed ilegal pela nova legislação. São necessárias mais reformas jurídicas para
to ensure the fairness and transparency of the proceedings, and it is also garantir a justiça e a transparência dos procedimentos, e também é importante
important for the courts to play an independent role from the prosecution. que os tribunais desempenhem um papel independente do Ministério Público.
Keywords: Japanese Law - Criminal Justice - Plea Bargaining - Criminal Palavras-chave: Direito japonês - Justiça Criminal - Plea Bargaining -
Procedure. Processo Penal.

1. Plea bargaining system introduced in 2016 2. Background of the introduction of the plea bargaining system
In Japan, the Code of Criminal Procedure was amended in 2016 to The background of the introduction of such a plea bargaining system
introduce several new systems, including a plea bargaining system, which is somewhat complicated and unique. This system was not introduced
took effect in 2019. The plea bargaining system, titled “Agreement on simply because there was a need to strengthen the methods of criminal
Cooperation with Collection of Evidence and Prosecution,” allows public investigation. Even before the introduction of this system, informal plea
prosecutors to make an agreement with a suspect (a person who has bargaining existed in Japan. However, the practice of such informal
not yet been indicted) or an accused (a person who has been indicted). plea bargaining was unfair and unclear, reflecting the feature of the
Under this system, in exchange for the suspect/accused’s cooperation criminal justice system.
with the public prosecutor on another person’s criminal case for a specific
crime, the public prosecutor grants the suspect/accused benefits such A distinguishing feature of criminal investigations in Japan is that police
as non-prosecution. However, another type of plea bargaining, in which officers and public prosecutors interrogate suspects for long periods of time
the public prosecutor reduces the sentence in exchange for the suspect/ and on many occasions. The Japanese Constitution guarantees the right
accused pleading guilty to his/her crime, was not introduced. to remain silent and the right to counsel. However, in practice, both police
Crimes for which the plea bargaining system can be used include officers and public prosecutors interrogate suspects without allowing
criminal offenses such as fraud and embezzlement, and violations of defense counsel to be present. Even when suspects exercise their right to
the Act on Punishment of Organized Crime, the Anti-Monopoly Act, remain silent, police officers and public prosecutors continue to interrogate
the Financial Instruments and Exchange Act, the Stimulants Control and demand statements from suspects. Moreover, the public prosecutor
Act and Firearms Control Act. The suspect/accused’s cooperation can arrest and detain the suspect. In principle, an arrest warrant issued by
may include making a statement during an interrogation by a public a judge is required to make an arrest, but in 2019, the number of cases
prosecutor or a police officer, testifying as a witness, and submitting in which judges rejected requests for arrest warrants was only 0.1% of
evidence to a public prosecutor or a police officer. In return, the public the total number of requests. Once arrested, suspects are in custody for
prosecutor may grant the suspect/accused the benefits of not be up to 72 hours. In addition, the public prosecutor may detain the suspect
indicted, a withdrawn indictment, indictment of a lesser offense, or for 10 days. The judge’s permission is required to detain a suspect, but in
request for a pre-agreed sentence at trial. 2019, the percentage of cases where the judge did not give permission for
A plea bargain is negotiated between the public prosecutor, the suspect/ detention was 5.2% (this percentage was below 1% until 2009). In addition,
accused and the defense counsel. The public prosecutor may conduct the public prosecutor may, with the judge’s permission, extend the period
the negotiations solely with the defense counsel and is prohibited from of detention for up to another 10 days. In 2019, the percentage of cases in
negotiating with the suspect/accused in the absence of counsel. The which the judge did not grant an extension was only 0.4 percent. The public
police officer is not a direct party in the negotiations, but the public prosecutor has the discretion whether to indict or not and can decide not
prosecutor is required to confer with the police officer in advance. Judges to indict a suspect who has pleaded guilty to a crime. On the other hand,
are not involved in these negotiations or agreements. in 2019, only 0.2 percent of the cases indicted by the public prosecutor
When an agreement has been reached, the public prosecutor, the were ruled not guilty by the court. Once the public prosecutor has indicted
suspect/accused, and the defense counsel shall produce a document a suspect, the suspect automatically remains in detention as an accused.
stating the contents of the agreement. When the public prosecutor calls a The court can rescind the detention of the accused, but the percentage of
suspect/accused who has entered into the plea agreement as a witness accused whose detention was rescinded by the court was only 0.4 percent
in another person’s criminal trial, the public prosecutor is required to in 2019. The accused has the right to bail, but judges, in accordance with the
request the examination of this document as well. This way, the judge and opinion of the public prosecutor, tend not to grant bail when the accused
the defense counsel of the other person will know that the witness is a pleads not guilty, judging that there is a high probability that the accused
person who has entered into a plea agreement with the public prosecutor. may conceal or destroy evidence. In 2019, around 90% of accused who

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pleaded not guilty were not released on bail even after one month from deliberations, amid criticisms from lawmakers, the Director of the Criminal
the date of indictment, and the first trial was held without bail. Due to these Affairs Bureau of the Ministry of Justice expressed the opinion that once
tendencies of judges, pre-trial arrest and detention functions as means to plea bargaining is institutionalized, informal plea bargaining will become
coerce confessions and statements admitting the public prosecutor’s story illegal and evidence obtained through it may be denied admissibility.
and discouraging pleas of not guilty. This practice of detention and bail is 3. Practice and issues of plea bargaining
known as “hostage justice” and has recently become an internationally
known feature of the Japanese criminal justice. The plea bargaining system became effective in 2019. In the two years
since then, there have been only three known cases in which a public
Informal plea bargaining has been conducted within the unique structure
prosecutor and a suspect/accused entered into plea agreement. The
of the Japanese criminal justice system as described above. Public
fact that a plea bargain has been made will not be revealed unless the
prosecutors have demanded that suspects sign confession statements
prosecutor requests the examination of the evidence obtained through
in exchange for the avoidance of prolonged detention in interrogation
the plea agreement. Therefore, it is possible that there are other cases
rooms without the presence of defense counsel. Public prosecutors
besides these three that are not yet known to the public.
have also demanded that suspects sign statements admitting the stories
that would convict others in exchange for avoiding arrest or bail in It is also not clear whether there is any informal plea bargaining going
interrogation rooms without the presence of defense counsel. When the on that has been confirmed to be illegal by the institutionalization.
written statement produced by the public prosecutor is evidence of guilt, Unlike the plea bargaining system, whose procedures are stipulated
courts have almost always admitted the written statement and convicted in the Code of Criminal Procedure, informal plea bargaining often
the accused, even if the same person testifies against the contents of the proceeds through unclear procedures and agreements are made in
written statement at trial. Thus, there is a structure in Japanese criminal ambiguous forms. Therefore, it is essential to examine, ex post facto,
justice that allows public prosecutors to make informal plea bargains with the conversations in the interrogation room to see whether there was
suspects based on their overwhelmingly dominant bargaining position. any suggestion of benefit or inducement of statements by the public
Moreover, the fact that such informal plea bargaining took place was prosecutor. For this purpose, recording of interrogations is effective,
rarely made public. Therefore, for a long time, there was no great need for but the percentage of cases for which videotaping is mandatory
under the 2016 amended Code of Criminal Procedure is less than
Japanese public prosecutors to institutionalize plea bargaining.
3% of all criminal trials. Although public prosecutors may voluntarily
However, one high-profile acquittal case made reform of the criminal justice record interrogations in other cases as well, they rarely record
system inevitable. The accused in that case, Atsuko Muraki, a senior official interrogations of suspects who have not been arrested. However,
in the Ministry of Health, Labor and Welfare, was arrested and indicted informal plea bargaining has often taken place with suspects who
in 2009 for allegedly instructing her subordinates to produce false official have not been arrested. In Muraki case, it was revealed that several
document at the request of an organization with fraudulent purposes. In suspects who had not been arrested signed statements admitting
this case, in addition to Muraki, two other people related to the organization the public prosecutor’s story for fear of being arrested themselves. In
and one of her subordinates were arrested and indicted. All three signing order to prevent illegal informal plea bargaining, the entire process,
statements admitting to the false story that Muraki was involved in the including the interrogation of suspects who have not been arrested,
production of the false official document were released on bail shortly after should be recorded.
the indictment. In contrast, Muraki, who had consistently maintained her Expanding the scope of recording interrogations is also necessary for the
innocence, was detained for 164 days before being released on bail. In this proper operation of the plea bargaining system. A suspect/accused who
case, several MHLW employees were interrogated by the public prosecutor intends to cooperate in an investigation by entering into a plea agreement
without being arrested, and about half of them signed statements admitting has the motive of gaining benefit for himself/herself and may make
the public prosecutor’s story. At the trial, however, it became clear that there untrue statements to shift the blame to others. Therefore, in order not to
was an inconsistency between the date and time when Muraki allegedly convict an innocent accused based on a false statement, it is essential to
instructed her subordinates at the request of the organization and the date carefully judge the credibility of statements made by witnesses who have
and time when the document was objectively created. Furthermore, the entered into plea agreements. And to make this possible, it is necessary
subordinate testified at the trial that he was forced to sign the statement to examine, by means of objective recording, what kind of statement was
prepared by the public prosecutor even though he had denied Muraki’s initially made and how it was changed by the plea bargaining.
involvement during the interrogation, and that he agreed to sign the The 2016 amendment to the Code of Criminal Procedure is scheduled
statement in exchange for bail because he could not bear the pain of to be reviewed in 2022, three years after it took effect, to examine
detention. In this way, Muraki was acquitted in 2010. However, the case its status of enforcement. Japan Federation of Bar Associations, an
did not end there. It was revealed that the lead public prosecutor in the organization that all practicing lawyers in Japan are members of, has
investigation had falsified the data on a floppy disk, which was evidence proposed that the recording system of interrogation should cover the
in the case. Furthermore, it was revealed that several public prosecutors entire process of all cases.
knew about this and concealed the fact. As a result, a total of three public
prosecutors were arrested, indicted, and convicted. Plea bargaining and similar systems have been introduced in many
countries. In Japan, as in other countries, plea bargaining may be
The 2016 reform of the Code of Criminal Procedure was triggered by these useful in investigating organized crime. The most important issue is
prosecutorial scandals. The slogan of the reform was to move away from to establish a mechanism to ensure fairness and transparency of the
over-reliance on interrogations and written statements. The most important proceedings and to avoid wrongful convictions. As such a mechanism,
reform was the introduction of the system of videotaping interrogations. the scope of recording interrogations should be expanded and the
The plea bargaining system was to be introduced as one of the means right of defense counsel to be present during interrogations should
of evidence collection other than interrogation. However, there were be established. Legislation is necessary for this purpose, but it is
many criticisms of introducing a new weapon for public prosecutors in a also important for the courts to play an independent role from the
reform that was triggered by the prosecutorial scandals. During the Diet prosecution, as expected by the Constitution.

References
Japan Federation of Bar Associations “Grand Design of Criminal Justice Reform for Preventing Japan Federation of Bar Associations “Opinion Calling for Eliminating Hostage Justice”
Miscarriages of Justice (Enzai) 2020 Edition” https://www.nichibenren.or.jp/library/pdf/document/opinion/2020/opinion_201117_2_
https://www.nichibenren.or.jp/library/pdf/document/opinion/2020/opinion_201117_en.pdf en.pdf

Autor convidado

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OS ACORDOS PENAIS COMO EFEITO
DA RETÓRICA DO CATASTROFISMO:
UMA ANÁLISE A PARTIR DO PLEA
BARGAINING ESTADUNIDENSE
THE CRIMINAL AGREEMENTS AS AN EFFECT OF CATASTROPHISM RHETORIC:
AN ANALYSIS BASED ON US PLEA BARGAINING

Michelle Gironda Cabrera Bárbara Feijó Ribeiro


Doutora em Direito Socioeconômico e Desenvolvimento pela Pós-Graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo CEI
PUCPR, com pesquisa financiada pela CAPES. Professora de e Introcrim. Graduada em Direito pelo Centro Universitário
Direito Penal e Processual Penal no Centro Universitário Curitiba Curitiba. Estagiária de Pós-Graduação do Núcleo de
e na Faculdade de Pinhais. Professora do curso de Introdução ao Política Criminal e Execução Penal (NUPEP) da Defensoria
Processo Penal do Introcrim. Coordenadora do Grupo de Estudo Pública do Paraná. Advogada Criminalista.
Antipatriarcalismo do Observatório da Mentalidade Inquisitória. Associada ao IBCCRIM.
Advogada criminalista. Link Lattes: Lattes.cnpq.br/2351881602377784
Link Lattes: Lattes.cnpq.br/5337409618653312 ORCID: 0000-0001-6517-7104
ORCID: 0000-0001-7301-6650 barbarafribeiro@hotmail.com
michellegironda@hotmail.com

Resumo: As relações entre processo penal e justiça negocial tornaram- Abstract: The relationship between criminal proceedings and negotiated
se bastante estreitas nas últimas décadas. Tal aproximação pode ser explicada justice has grown closer in recent decades. This approach can be explained when
pela penetração no Direito e, especialmente, no campo processual penal, de investigating the penetration in law and, especially, in the criminal procedural
institutos que se relacionam com a ideia de “eficientismo”, o que pode levar, field, of institutes that are related to the idea of “efficiency”. Efficiency can lead, if
se não se realizarem as devidas reflexões críticas, a uma maximização das the necessary critical reflections are not carried out, to the maximization of the
esferas mais perversas conexas à instrumentalidade do processo. O texto most perverse spheres connected to the instrumentality of the process. The text
realiza uma análise crítica a respeito da atual tendência de abertura a um seeks to carry out a critical analysis of the growing trend of proceedings to a
ambiente de negociação penal, crítica especialmente relevante quando se negotiating environment, a criticism that is especially relevant when discussing
problematiza o atual “estado de coisas” do processo penal brasileiro, ainda the current “state of affairs” of the Brazilian criminal process, still far from being
adequate to an accusatory/adversarial model. Such theoretical effort is justified,
longe de se adequar a um modelo acusatório. Tal esforço teórico justifica-se
in particular, due to the attempt to introduce, with Law 13.964/2019 the institute of
em razão, especialmente, da tentativa de se introduzir, com a Lei 13.964/2019,
plea bargaining, having not, however, been approved in Brazil.
o instituto do plea bargaining, não tendo sido, contudo, aprovado.
Keywords: Plea bargaining - Criminal agreement - Negotiated Justice - “Anti-
Palavras-chave: Plea bargaining - Acordo penal - Justiça Negocial - “Lei Anticrime”. crime Law”.

1. Introdução sistema brasileiro, ainda profundamente desigual e de viés inquisitorial,


pode levar a um completo “desastre, retirando ainda mais o pouco
É latente a demanda por uma expansão dos espaços de negociação de democracia processual que restou depois da ‘americanização à
no processo penal brasileiro. Nesse contexto, foi apresentada a brasileira’ promovida nos últimos anos” (COUTINHO, 2019).
proposta de implementação do plea bargaining a partir da inserção do
art. 395-A ao CPP pelo Anteprojeto do chamado “Pacote Anticrime”
2. A Autonomia da acusação no contexto norte-americano
(PL 882/20191 e 1.864/20192) e do art. 283, que ainda se estuda no
PL 8.045/20103. Apesar de o plea bargaining não ter sido aprovado, O Direito estadunidense possui matriz de common law e cultura jurídica
entendeu-se por necessária a discussão central abordada por este processual penal adversarial, apresentando um modelo de justiça
texto, considerando que a implementação de acordos de barganha é criminal, contudo, que não está livre de críticas. No sistema adversarial,
uma tendência no Direito Processual Penal brasileiro. Um dos exemplos a iniciativa probatória encontra-se a cargo das partes, cabendo ao
disso está no PL 8.045/2010, que busca implementar um novo CPP juiz o papel de assegurar a observância das regras processuais, com
no país. Sustenta-se como hipótese de trabalho, que os reflexos por uma postura radicalmente limitada em relação à atuação de ofício. O
uma demanda para ampliação dos espaços de negociação no campo acordo de barganha nos Estados Unidos teria começado de maneira
processual penal, sem as necessárias reflexões críticas a respeito do sólida no início do século XIX e sua história pode ser dividida em duas

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partes: a primeira, contemplando os primeiros três quartos do século Grande parte da literatura penal estadunidense critica o modelo
XIX, quando, no estado de Massachusetts, os acusadores tinham negocial do plea bargaining, sendo a principal dessas críticas a de que
o poder de negociar as acusações sem a participação do juiz. Tais os acordos levam à condenação de inúmeros réus inocentes e que
acordos eram firmados, sobretudo, nos casos de homicídio e nos as partes não conseguem realizar um acordo de maneira equânime
que envolviam a liquor law e permitiam a negociação da modalidade diante da visível disparidade de armas entre as partes, gerando,
conhecida como charge bargaining. Posteriormente, deve-se atentar assim, uma coação ao imputado, passível de comparação com as
ao último quarto do século XIX, ocasião em que se ressalta como práticas medievais de tortura, conforme aponta Langbein (1978, p. 12,
forma mais comum do plea bargaining, o sentence bargaining (FISHER, tradução livre): “certamente, nossos meios são muito mais polidos;
2000). O reconhecimento do plea bargaining deu-se inicialmente, em não utilizamos rodas, parafusos de polegar, botas espanholas para
1970, pela Suprema Corte estadunidense no caso Brady v. United esmagar suas pernas”. Porém, não restam muitas dúvidas de que a
States, que decidiu que “apresentar uma confissão de culpa para utilização do plea bargaining torna “extremamente custoso para
evitar os riscos de uma condenação mais grave não torna esse acordo um acusado reivindicar seu direito à salvaguarda constitucional do
constitucionalmente inválido como um produto de coação” (UNITED julgamento” e que “esse diferencial da sentença, é o que torna o plea
STATES SUPREME COURT, 1970). Em suma, a decisão concluiu que, bargaining coercitivo” (LANGBEIN, 1978, p. 12, tradução livre). O autor,
apesar da motivação da parte ao confessar fosse a de evitar uma utilizando a analogia do instituto em análise com a tortura medieval,
condenação à pena de morte, a decisão do acusado em aceitar o sem que tal comparativo produzisse algum anacronismo, ressalta que
acordo teria sido voluntária e estratégica. A Suprema Corte considerou o plea bargaining, como a tortura, é coercitivo:
que não havia evidência que apontasse que a confissão do acusado como os europeus medievais, os americanos agora estão
não fosse verdadeira e a aceitou. operando um sistema processual que envolve condenação sem
A figura do acordo de barganha teria surgido em razão do elevado adjudicação. A máxima dos Glosadores medievais, agora descreve
apropriadamente o direito americano: confessio est regina
número de crimes e da sobrecarga do Poder Judiciário estadunidense, probationum, a confissão é a rainha da prova (LANGBEIN, 1978, p.
sendo essa uma resposta supostamente mais célere e mais econômica 13-14, tradução livre).
para a resolução de conflito penal. Atualmente, o plea bargaining é
utilizado como forma de solucionar aproximadamente 95% (DEVERS,
2001) dos casos estaduais e federais naquele país.1 O plea bargaining
possui diversos formatos, por permitir várias formas de acordo entre Caso se recorra à Constituição Americana em busca de fundamento
as partes, sendo os mais comuns o charge bargaining e o sentence para o plea bargaining, a procura será em vão: “ao invés disso,
bargaining: no primeiro, as partes negociam a acusação feita ao réu, encontrará – em um lugar não menos consagrado do que a Declaração
podendo ser reduzida para a imputação de um crime menos grave de Direitos (Bill of Rights) – uma garantia oposta, a garantia ao
ou, havendo vários crimes, o prosecutor poderá abrir mão de o acusar julgamento” (LANGBEIN, 1978, p. 9, tradução livre). Ao contrário do que
dos demais crimes. Já o sentence bargaining é uma negociação da ocorre no plea bargaining, a Sexta Emenda estabelece que “em todos
sentença, na qual a acusação concordaria com a recomendação ao os processos criminais, o acusado terá o direito de ...julgamento... por
magistrado que reduzisse a pena do réu, caso esse confessasse o um júri imparcial” (LANGBEIN, 1978, p. 9, tradução livre). Em que pese o
crime que lhe foi imputado. texto de Langbein seja do ano de 1978, sua análise segue sendo atual,
Com relação à formação estrutural do Ministério Público nos na medida em que grande parte da doutrina crítica norte-americana
Estados Unidos, em nível federal, o país possui o Procurador-Geral considera que o instituto do plea bargaining permanece com as
da República (The United States Attorney General), que é indicado mesmas falhas apontadas pelo autor em sua época, mantendo-se
pelo Presidente da República e aprovado pelo Senado, tendo como como um instituto utilizado como meio de coagir os acusados.
função principal a de chefe do Departamento de Justiça e do United
States Attorney, que formam um total de 94 acusadores, também É necessário, porém, reconhecer que o processo penal estadunidense
escolhidos pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado. A apresenta diversas garantias para o imputado, considerando que as
nível estadual, o State Attorney General que, na maioria dos estados, é regras processuais daquele país permitem que as partes firmem o
eleito por voto facultativo pelo período de quatro anos, representando acordo em qualquer fase da persecutio até o momento da sentença
assim o povo e agindo em nome dele, o que justificaria um poder penal, admitindo, assim, que, dependendo das provas produzidas nos
maior aos membros da acusação. Esse Procurador-Geral do Estado autos, a acusação apresente nova proposta de acordo com maiores
teria a dupla função de defender os interesses do estado e promover benefícios ao réu. Essa garantia é necessária, tendo em conta que, se
o interesse público (SIMON, 1990, p. 13-28). Nota-se, portanto, que o
a negociação fosse permitida somente em momento anterior ao início
sistema processual penal estadunidense dá à figura do prosecutor uma
maior autonomia, permitindo inclusive que o State Attorney General da instrução probatória do processo, esta ocorreria de forma precária
defina as diretrizes e tarefas que serão cumpridas no âmbito do seu e prejudicaria a defesa que, surpreendida com a acusação feita ao réu
estado. Nesse sentido, as ideias do próprio State Attorney e daqueles e com um prazo menor do que o que a acusação teve para realizar
cidadãos refletirão na política criminal, a partir dos crimes que serão as investigações, não teria como produzir ou analisar possíveis provas
priorizados pelos procuradores, quais delitos a procuradoria deixará de que inocentassem o réu.
denunciar e quais desses crimes permitirão a oferta do plea bargaining
ao acusado. Assim, é possível analisar que essa autonomia dada aos Para além de tudo isso, é necessário reconhecer no plea bargaining
promotores acaba lhes concentrando o poder de decidir quais casos estadunidense a obrigação do Ministério Público de apresentar à
serão julgados pelo Judiciário, quais serão passíveis de acordos penais defesa todas as provas produzidas que possam ser favoráveis ao
e permite até que “construam” sentenças nos acordos de sentence acusado (full disclosure), podendo, inclusive, a ocultação de provas
bargaining (FIONDA, 1995, p.1 apud KERCHE, 2018, p. 573). gerar a nulidade do julgamento.2 Essa garantia foi reconhecida
Roberts (2020) analisou os fatores que tornam o plea bargaining tão no caso Brady vs. Maryland, momento em que a Suprema Corte
atraente aos imputados, a ponto de abrirem mão de diversos direitos decidiu que a retenção pelo Governo de evidências relevantes para
constitucionais para aceitar a proposta. A autora observou que, o curso do processo viola o direito constitucional do acusado ao
mesmo quando o imputado é inocente, os riscos que o processo penal devido processo legal.
estadunidense apresenta a ele são grandes, tornando, assim, ainda
Outra análise relevante da literatura estadunidense traz a expressão
mais propício aceitar um acordo que oferece uma sentença penal
relativamente certa e que pode potencialmente diminuir os prejuízos “Mc Justice” que, em suma, considera que os acordos de barganha
da perda de um julgamento. Vale ressaltar que os riscos do processo seriam uma forma rápida de justiça penal. Bohm (2006, p.129) faz
penal estadunidense conseguem ser ainda mais graves, pois o risco uma analogia entre o instituto do plea bargaining e a experiência de
de ser condenado pode levar a uma pena de prisão perpétua ou até a ir a um restaurante da rede mundial de fast food McDonald’s, dando
uma pena de morte, a depender do estado. o seguinte exemplo: quando se pede um Big Mac (o lanche mais

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tradicional), o pedido demorará alguns instantes para ser feito, porque figura edificada do ídolo é desempenhada pelo juiz e por vezes pelo
esse hambúrguer é feito de maneira uniforme. Porém, quando o cliente promotor, que seriam capazes de “vencer o ‘mal” (BAQUEIRO, 2019, p.
solicita a preparação de algo diferente do padrão – como retirar um dos 423), sendo esse “mal” representado pelo réu e sua defesa.
ingredientes – o atendente solicita que se aguarde ao lado do balcão,
O plea bargaining, assim, traria “a doce ilusão da ‘verdade’ alcançada”,
porque seu pedido demorará mais alguns minutos para ficar pronto.
visto que a confissão do sujeito busca o conforto de que o culpado foi
Assim, Bohm verifica que esse “pedido especial” acaba atrasando a
punido (BAQUEIRO, 2019, p. 423). Nos acordos de barganha, a figura
linha de produção e diminuindo a eficiência do fast food, entendendo
do herói é representada pelo Ministério Público, “o homem dotado de
que a mesma coisa acontece com o sistema de justiça criminal quando
superpoderes, capaz de grandes feitos, vindo de uma raça superior, pois
o réu pede algo “diferente do normal”, como um julgamento. Por ser
extrai dos inimigos a ‘verdade’ que ele tanto buscava ocultar” (BAQUEIRO,
uma forma de justiça mais célere, e com promessas de causar menos
2019, p. 423). Gloeckner (2018), ao analisar o autoritarismo no processo
riscos ao imputado, ele acaba optando pela barganha e essa, na visão
penal brasileiro e elencar diversos estudos sobre o tema, aponta as
do autor, seria a justificativa para o acordo ser o método de resolução
classificações de Ricardo Silva (2004, apud GLOECKNER, 2018, p. 102-
de aproximadamente 95% dos casos penais no país. Bohm também
103), entre elas a de que a narrativa autoritária brasileira parte da ideia
analisa que a “McDonaldização” do sistema de justiça diminui os custos
do “catastrofismo”, sendo esse o pensamento de “uma crise permanente
governamentais com o processo e torna o sistema extremamente
que assolaria a sociedade brasileira” e que “a urgência de respostas e
uniforme, sem surpresas.
soluções não permitiria grandes reflexões”, o que autoriza medidas
O plea bargaining, apesar das críticas, segue sendo perpetrado urgentes. Com relação a tais medidas, Gloeckner (2018, p. 102-103)
no Direito estadunidense há muitos anos. Ainda, a criação da aponta que “a emergência se constitui como uma estrutura que sempre
barganha se justificaria pela superlotação do sistema Judiciário, pela está presente nos discursos penais, seja como legitimador externo de
necessidade de um método de resolução de conflito mais célere e por políticas criminais, seja como encaminhador de demandas que almejam
se mostrar mais econômico. Porém, ao longo de anos de existência, reconhecer a ineficiência do sistema de justiça criminal”. Assim, a ideia
não parece que a barganha pôde resolver nos Estados Unidos todos da urgência seria “legitimatória de novas demandas autoritárias” ou, no
esses problemas. Além disso, verifica-se que o sistema de justiça limite, “internamente deslegitimante (pela insuficiência) do sistema penal
estadunidense mantém a maior população carcerária do mundo – o em garantir a segurança de bens, pessoas ou da própria estabilidade
que claramente acarreta uma despesa econômica extremamente política” e que “a ideia de catástrofe convoca o aparecimento da
significante. Considerando que a barganha é a forma de resolução emergência” (GLOECKNER, 2018, p. 102-103).
da maioria dos conflitos penais no país, pode-se concluir que esse
instituto é um dos principais responsáveis pelo encarceramento em
massa e que a celeridade proposta pelo plea bargaining acarreta um 4. Considerações Finais
sistema processual penal artificial, evitando a fase de julgamentos e
Se o discurso que sustenta a justiça negocial é justamente o de
tornando o processo uma “linha de produção padrão” (BOHM, 2006,
vivermos em um estado de crise institucional do sistema de justiça
p. 129), contribuindo para a manutenção de estruturas de significação
penal, a solução colocada como medida urgente (dentre outras, o plea
primordiais de categorias processuais penais autoritárias, pois avessas
bargaining), merece atenção – e reflexão crítica. Em razão dessa suposta
às garantias constitucionais do réu.
urgência, sustentam-se discursos superficiais para implementação da
barganha, que não levam em consideração dificuldades estruturais
do modelo processual penal brasileiro e, especialmente, sua
3. Os Mitos Que Envolvem Os Acordos Penais
discrepância em relação ao modelo acusatório – que serviria de
O instituto da barganha é repleto de mitos, sendo esta uma base para implementação do instituto. O texto buscou demonstrar
característica extremamente marcante do sistema inquisitório, que que a justificativa de um estado de urgência para implementação de
sempre se utilizou de mitos, ídolos e culto ao herói como signos de um instituto negocial como esse, sem as devidas reflexões críticas,
representação de uma suposta segurança, especialmente através da mostra-se uma clara medida eficientista, compreendida, em última
construção de verdades absolutas e dogmas – portanto, afirmações análise, como medida de cunho autoritário, uma vez que exacerba as
irrefutáveis (BAQUEIRO, 2019, p. 420). Dentro do sistema penal, a desigualdades entre as partes.

Notas
1 Sobre a elevada quantidade de casos resolvidos a partir do plea bargaining, ver United 2 Sobre a nulidade do julgamento pela retenção de provas, ver Ozório de Melo (2012).
States Courts (2019).

Referências
BAQUEIRO, Fernanda Ravazzano Lopes. Verdades, dúvida e (in)certezas: a necessidade LANGBEIN, John H.,Torture and Plea Bargaining, The University of Chicago Law Review, vol.
da edificação dos mitos no autoritarismo e as ilusões oriundas do plea bargain. In: NUNES 46, n. 1, 1978. Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/543/. Acesso
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Inquisitória e Processo Penal No Brasil: escritos em homenagem ao Prof. Dr. Jacinto Nelson OZÓRIO DE MELO, João. Promotoria esconde provas e condenação é revertida. Conjur,
de Miranda Coutinho, v. 5. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019. 11 jan. 2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-jan-11/eua-condenacao-
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um desastre anunciado. Boletim IBCCRIM – Especial Pacote Anticrime, n. 317, abr. 2019. 2021.
DEVERS, Lindsey. Research Summary: plea and charge bargaining. Bureau of Justice SIMON, John Anthony. Considerações sobre o Ministério Público Norte-Americano. Revista
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KERCHE, Fábio. Independência, Poder Judiciário e Ministério Público. Cad. CRH, Salvador, v. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/397/742/. Acesso em: 08
31, n. 84, p. 567-580, dez. 2018. jun. 2021.

Recebido em: 15/01/2021 - Aprovado em: 04/06/2021 - Versão final: 14/06/2021

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PLEA BARGAINING: O PERIGOSO
CAMINHO EM DIREÇÃO AO
ALARGAMENTO DAS PRÁTICAS DE
NEGOCIAÇÃO PENAL
PLEA BARGAINING: THE DANGEROUS PATH LEADING TO THE
ENLARGEMENT OF PENAL NEGOTIATION PRACTICES

André Peixoto de Souza Kauana Vieira da Rosa Kalache


Doutor e Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Doutor em Mestre em direito penal pela UCLA.
Filosofia, História e Educação pela UNICAMP. Professor pesquisador Mestre em Teoria e História da Jurisdição pela UNINTER.
do PPGD-UNINTER. Professor de Economia Política e Psicologia Especialista em Criminologia e Políticas Criminais pelo ICPC.
Jurídica nas Faculdades de Direito da UFPR, UNINTER e UTP. Professora na Fesp e advogada criminalista.
Professor de Filosofia e História do Direito na EMAP e no ICPC. Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/6006479698824490
Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/6730905740474677 ORCID: 0000-0001-5206-6739
ORCID: 0000-0002-6679-7417 kalache2015@lawnet.ucla.edu
andrepeixotodesouza@gmail.com

Resumo: O presente texto pretende analisar criticamente o instituto do Abstract: The text has the objective of critically analyzing the plea-
plea bargaining, mais especificamente os problemas envolvendo critérios e bargaining’s practices, more specifically the issues regarding the lack of
procedimentos para o estabelecimento da negociação penal no sistema de criteria and regulations when offering a deal, as well as the social impact of the
justiça criminal, bem como o impacto social das negociações nas quais estão negotiations in a democratic society. The North American justice system will be
inseridas. Terá como referência o sistema de justiça norte-americano, que serviu used as reference, since it has served as an inspiration to the Brazilian Project.
de inspiração para o projeto nacional no que tange ao referido instituto. A análise The research is justified once criminal negotiation seems to be an unstoppable
se justifica, uma vez que o alargamento da esfera negocial penal no Brasil parece tendency in the Brazilian system.
ser uma tendência imparável. A pesquisa se deu mediante o emprego do método Keywords: Criminal Negotiation - Plea Bargaining - Willingness- Fairness-
de abordagem dedutiva e do método de procedimento sistêmico, auxiliado pela Anticrime Law
análise comparativa entre os sistemas de justiça norte-americano e brasileiro.
Palavras-chave: Negociação penal - Plea bargaining - Voluntariedade-
Legalidade- Lei Anticrime

A negociação penal, em nosso sistema de justiça criminal, não é através da lei 13.964/19, alargando as possibilidades de acordo penal.
recente, tendo sido inserida no ordenamento jurídico pátrio através Assim sendo, antes de formalizada a acusação, havendo a confissão
da lei dos juizados especiais com o instituto da transação penal e por parte do investigado acerca do crime discutido, poderá ser o
da suspensão condicional do processo. O reforço da prática ocorreu acordo proposto pelo Ministério Público. A proposta deverá ser
com a popularização da colaboração (delação) premiada e do acordo homologada por juiz competente, o qual analisará a adequação,
de leniência, em 2013. Soma-se a esses modelos de negociação a proporcionalidade e a voluntariedade do acusado na sua celebração.
possibilidade inovadora do acordo de não persecução penal, como Cumprido o acordo, há a extinção de punibilidade. O instituto é muito
forma de alargamento das possibilidades de transação penal (Art. semelhante ao plea bargaining, porém, com aplicabilidade reduzida.
28-A, CPP, inserido pela Lei 13.964/19). As críticas acerca desta nova possibilidade de negociação são várias.
O racional por trás de tais medidas é sempre o mesmo: a busca Entre elas destacam-se a inobservância ao princípio da presunção
pela celeridade e eficiência do sistema de justiça criminal – como de inocência ao exigir a confissão do investigado para celebração
resume a frase de abertura da apresentação do instituto do acordo do acordo, a unilateralidade de suas condições, determinadas e
de não persecução penal elaborada pelo Ministério Público Federal propostas pelo Ministério Público, e a impossibilidade de propositura
- Acordos de não persecução penal. “Investigações mais céleres, de acordo em crimes que envolvem habitualidade, questionando-
eficientes e desburocratizadas.” (2020). Para apoiadores das se a eficácia da negociação em casos envolvendo organizações
medidas, cria-se espaço de consenso no que se refere à justiça criminosas.
criminal, para além do âmbito do JECRIM. Aury Lopes Jr. é enfático ao afirmar que entende a necessidade de
O acordo de não persecução penal foi incluído às práticas negociais, implementação de mecanismos que otimizem o defasado sistema

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de justiça brasileiro – inclusive compreendendo a negociação penal manutenção da boa relação com a promotoria e juízes e, por fim,
como “tendência imparável para a qual devemos estar preparados” o excesso de trabalho a que estes profissionais estão submetidos.
(LOPES JR., 2020, p. 871). Todavia, não nega a necessidade de (FISHER, 2000, p. 1063).
observância de princípios garantidores de direitos individuais O excesso e abuso de poder da acusação nas negociações também
e limites à atuação da acusação nesse processo, pois “a lógica são criticados, já que grandes poderes negociais alinhados ao
negocial banalizada transforma o processo penal num mercado objetivo punitivista da política criminal do Estado caracterizam táticas
persa (...). Constitui, também, verdadeira expressão do movimento prejudiciais à ampla defesa e à presunção de inocência, entre elas
da lei e ordem (...) fomentando a panpenalização e o simbolismo a “superqualificação” dos crimes impostos aos acusados, a prática
repressor.” (2020, p. 870). do overcharging [múltiplas acusações], violações à Brady Rule1 e a
Finaliza a sua crítica com um convite à reflexão acerca do modelo utilização de prisão cautelar durante o processo de negociação como
de justiça negocial a ser adotado em nosso sistema. “Qual o espaço forma de intimidação do acusado (GROSS, 2008, p. 940). Há também
negocial que estamos dispostos a implantar no Brasil, diante da nossa o alto grau de questionabilidade das provas utilizadas pela acusação
realidade processual e, principalmente, o nosso sistema carcerário e (MEDWED, 2010, p. 1539), bem como a implementação de métodos
qual será o impacto? Caminharemos em direção ao modelo norte- coercitivos para obtenção de confissão (BISHARAT, 2014, p. 791;
americano de plea bargaining?” (Ibid, p. 872). PETEGORSKY, 2013).
Após fazer a reflexão proposta, cuja síntese é a de necessidade de Aponta-se também a perda de padrões processuais para reincidentes
afastamento do modelo norte-americano de negociação penal, há como um grande problema, uma vez que estes acusados se
que se constatar que os sistemas processuais em ambos os países encontram em posição muito inferior durante a fase negocial do
são completamente diferentes e o nosso sistema, pseudo-acusatório, que aqueles sem passagem pelo sistema de justiça criminal. Alguns
bem como nossas regras processuais, são incompatíveis com a princípios norteadores do processo penal não são oponíveis ao
negociação penal nos moldes do plea bargaining. acusado reincidente em audiências de “probation revocation”
Porém, para além da incompatibilidade sistêmica, o instituto negocial [revogação de liberdade condicional] (BISHARAT, 2014, p. 786).
norte-americano é também extremamente maléfico para a sociedade Isso ocorre porque existe uma certa previsibilidade de reincidência
democrática de direito, pautada em princípios constitucionais de do agente pela sua origem, o crime cometido, o bairro que mora,
garantias a direitos individuais (BOBBIO, 1992; FERRAJOLI, 2000), suas conexões pessoais, entre outros. Assim, havendo de fato a
uma vez que infringe questões envolvendo a voluntariedade e reincidência do agente, com a iminência de audiência de revogação
legalidade dos acordos penais. Assim sendo, seus efeitos para a de liberdade provisória, em que há a mitigação de princípios e
referida sociedade são devastadores, com a constatação de práticas garantias processuais – a exemplo da admissão de “hearsay” - a
de justiça criminal seletivas, superencarceramento e maior incidência acusação consegue acordos muitas vezes nos mesmos moldes do
de erros judiciais. Este último é o enfoque dado à análise do modelo que o resultado de uma condenação por júri na infração primária do
norte-americano de negociação que passa a ser realizada. acusado (BISHARAT, 2014, p. 786).
A desinformação quanto aos efeitos colaterais de uma confissão
Críticas acerca do plea bargaining norte-americano de culpa também figura entre práticas criticadas, uma vez que a
legislação obriga advogados a informarem seus clientes apenas
Para George Fisher não há verdadeiramente um marco histórico sobre as consequências diretas da confissão (tais como o valor
social acerca da popularização e propagação do instituto em território para pagamento de multa e o tempo de aprisionamento resultante
norte-americano, havendo sim uma atuação fundamental das da condenação), estando excluída a obrigação de se discutir com
partes interessadas para a implementação da negociação (leia-se o cliente as consequências colaterais (CHIN; HOLMES JR., 2002, p.
promotores, defensores públicos, juízes e governantes – abarcados 699). As consequências colaterais de uma confissão que resultem
aqui legisladores), e sua pulverização pelo sistema de Direito norte- em condenação podem representar um fardo muito maior do que a
americano (FISHER, 2000, p. 01). penalidade originalmente imposta pelo fato praticado.
Além disso, o gigantesco movimento migratório em prática no país, A ausência de um juiz efetivamente garantista para homologação de
com a chegada anual de milhares de novos habitantes naquele guilty plea figura, por fim, entre as duras críticas feitas ao sistema
território, juntamente com o movimento industrial, contribuíram para ante as diversas denúncias de violações de direitos e garantias
que o número de casos criminais se elevasse de forma significativa, constitucionais, baseadas em má conduta de juízes quando da
exercendo grande influência para a adoção de meios mais eficazes e homologação de acordos (BERNIK; LARKIN, 2014).
menos custosos ao erário público para obtenção da “justiça”.
Os estreitos laços com os membros do Ministério Público, a ideologia
Isso sem mencionar as políticas criminais travestidas de guerra ao do “tough on crime” [guerra ao crime] e o interesse na celeridade
crime, mas com objetivos seletivos e higienistas, que resultaram na e economia processual fazem com que grande parte dos juízes
supercriminalização de condutas e na maior população carcerária criminais norte-americanos, além de coniventes com abusos e
mundial (WAQUANT, 2011). ilegalidades praticados em sede de negociação, também se utilizem
Não obstante a isso, os Estados Unidos enfrentam duras críticas de coerção para homologação de guilty pleas (KLEIN, 2004, p. 1351).
quanto ao modelo corrente do plea bargaining, sendo acusado, Muito criticada e controversa, a prática de plea bargaining é uma
inclusive, de fazer uso de tais práticas para selecionar e perseguir realidade a qual o sistema de justiça criminal norte-americano
minorias indesejadas. Acusa-se o sistema de violação do princípio parece não ter como reverter, sob pena de um colapso, opinião
balizador do processo penal, qual seja, o direito constitucional ao compartilhada por defensores e opositores ao sistema. “[Plea
devido processo legal [due process of law], com a consequente bargaining] is not some adjunct to the criminal justice system; it is the
ocorrência do encarceramento em massa. criminal justice system”2 (SCOTT; STUNTZ, 1992).
A ausência de defesa técnica eficiente é apontada naquele sistema
ante à necessidade dos defensores públicos em manter seus agentes Para onde caminhamos?
financeiros patrocinando seus escritórios e atividades, a busca na
A questão proposta por Aury Lopes Jr. permanece: que caminho

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seguir ou para onde caminhamos? Não precisamos ir muito longe resolução do conflito penal, em situações sob o holofote da mídia
para constatar a utilização da negociação penal enquanto ferramenta em que os acusados possuem bons e caros defensores – como era
de coação do acusado em nosso sistema, conforme práticas a situação dos acusados na operação Lava-Jato - faz refletir sobre
denunciadas no âmbito da delação premiada envolvendo casos o tratamento dado aos casos e acusados de crimes em que não há
da “Operação Lava-Jato”. Pode ser citada a utilização de prisões atenção da mídia e cujas pessoas investigadas muitas vezes sequer
cautelares como forma de coação para que se obtenha a colaboração têm advogado constituído.
do preso, ocasião em que “respeitados juristas identificam a utilização
Ademais, vivemos um sistema processual pseudo-acusatório – de
das prisões preventivas como instrumento de pressão para delação.”
fase investigativa inquisitorial, cabe lembrar –, onde juiz é parte,
(FABRETTI, 2018, p. 294).
inclusive imparcial em alguns casos. Comportará o Estado de direito
Isso porque na colaboração premiada, diferente do que ocorre nas pátrio o afrouxamento de garantias constitucionais – como os da
formas de negociação concernentes ao juizado especial, as quais
ampla defesa e da jurisdicionalidade – advindos da ampliação da
preveem apenas a possibilidade de pena restritiva de direito ou multa,
negociação penal nos moldes estadunidenses?
é permitida negociação de pena de encarceramento, a qualquer
momento, até mesmo na fase de execução. Por outro lado, cabe refletir se já estaríamos replicando em parte o
racional por trás da expansão da esfera negocial no sistema norte-
Como exemplo podemos citar os casos envolvendo pareceres
americano. Se já seríamos um mercado persa de negociação da
da Procuradoria Geral da República da 4a Região, os quais
recomendavam a constrição da liberdade dos acusados ante pena no âmbito negocial, mesmo que de alcance reduzido. Se a
“possibilidade real de o infrator colaborar com a apuração da tendência é a expanção do comércio, possibilitando a negociação
infração penal” (CANÁRIO, 2014). sem a limitação da pena hoje existente, em qualquer fase processual.
Nos moldes atuais, com a vigência dos institutos da transação penal,
Pauta-se a aplicação da coação em um dos requisitos da prisão
do acordo de não persecução penal, da suspensão condicional
preventiva, qual seja a conveniência da instrução criminal,
do processo e da delação premiada, “se fizermos um estudo dos
conforme defendido por procurador federal para a manutenção de
constrições à liberdade: tipos penais previstos no sistema brasileiro, e o impacto desses
A conveniência da instrução criminal mostra-se presente não só na
instrumentos negociais, não seria surpresa alguma se o índice
cauteladeimpedirqueinvestigadosdestruamprovas,oqueébastante superasse a casa dos 70% de tipos penais passíveis de negociação,
provável no caso do paciente, mas também na possibilidade de acordo”, isso caso não se respeite o limite de pena imposto
de a segregação influenciá-lo na vontade de colaborar
atualmente. (LOPES JR., 2021, p. 220).
na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado
bastante fértil nos últimos tempos (CANÁRIO, 2014). Grifo nosso. E por fim, se fizermos parte ou todo o acima, há necessidade de profunda
análise sobre como o faremos sem investimentos no já superlotado e
O próprio procurador afirma o sucesso da prisão provisória enquanto indigno sistema carcerário nacional, considerando que a ampliação da
meio de obtenção de colaboração do acusado. O escancaramento esfera de negociação penal acarreta também na ampliação do número
da detenção do investigado como técnica de colaboração para de encarcerados, com tendência ao superencarceramento.

Notas
1 Regra que determina o compartilhamento de provas absolutórias entre as partes. Vide 2 “[A negociação penal] não é acessória ao sistema de justiça criminal; é o sistema de justiça
Brady v. Maryland, 373 U.S. 83 (1963). criminal.” Tradução livre da autora.

Referências
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1086, 2000. Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent. publicacoes/apresentacoes/apresentacao-sobre-acordos-de-nao-persecucao-penal-
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Recebido em: 18/03/2021 - Aprovado em: 23/05/2021 - Versão final: 07/06/2021

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BREVES NOTAS SOBRE O
CABIMENTO DO ACORDO DE NÃO
PERSECUÇÃO PENAL APÓS O
RECEBIMENTO DA DENÚNCIA
BRIEF NOTES ABOUT THE CORRECTNESS OF THE CRIMINAL
NON-PROSECUTION AGREEMENT AFTER THE INDICTMENT

Gabriel Marson Junqueira


Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.
Promotor de Justiça no Estado de São Paulo.
Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/7072990083275548
ORCID: 0000-0001-6626-6758
g_junqueira@yahoo.com

Resumo: O presente trabalho procura contribuir para a identificação Abstract: The present work seeks to contribute to the identification of
do correto momento a partir do qual realmente não se pode mais cogitar o the correct moment from which it is really no longer possible to consider a
acordo de não persecução penal. Após verificação (i) da nota característica non-criminal prosecution agreement. After checking (i) the characteristic note
dos institutos da justiça penal consensual, em geral, (ii) dos principais objetivos of the consensual criminal justice institutes, in general, (ii) the main political-
político-criminais da justiça penal consensual e (iii) da solução adotada por criminal objectives of the consensual criminal justice and (iii) the solution to the
alguns ordenamentos jurídicos pertencentes ao sistema de civil law para o proposed problem, adopted by some legal systems belonging to the civil law
problema proposto, conclui-se que o acordo de não persecução penal deve system, it is concluded that the criminal non-prosecution agreement must be
ser admitido mesmo após o recebimento da denúncia, desde que ainda não admitted even after the receipt of the indictment, as long as the production of
iniciada a produção da prova oral. the oral evidence has not yet started.
Palavras-chave: Acordo de não persecução penal – Justiça penal consensual – Keywords: Plea bargaining - Criminal agreement - Negotiated Justice - “Anti-
Momento para realização do acordo – Tópicos político-criminais da justiça penal crime Law”.
consensual.

A Lei 13.964/19, também conhecida como Lei Anticrime, introduziu procuraremos indicar qual é, a nosso ver, o momento a partir
no CPP o art. 28-A. Por meio desse dispositivo, conferiu disciplina do qual realmente não se pode mais pensar em acordo de não
legal ao instituto do acordo de não persecução penal, antes previsto persecução penal. Para tanto, primeiramente, situaremos o
na Resolução 181/17, do CNMP, de constitucionalidade duvidosa. instituto em causa no âmbito da justiça penal consensual. Em
seguida, identificada, inclusive, a nota característica dos institutos
O art. 28-A, sobretudo o “caput” e os § 8º e § 10º, deixam claro
de justiça penal consensual, procuraremos apontar seus objetivos
que, em princípio, o instituto foi pensado para ser aplicado ao
e os principais tópicos político-criminais que lhes subjazem.
final da fase investigatória, como alternativa ao oferecimento de
Finalmente, averiguaremos, ainda que superficialmente, qual foi
denúncia. Nessa linha, já se o definiu como instrumento pelo
a solução adotada para o problema aqui analisado em outros
qual o investigado pode, ao final da primeira fase da persecução
ordenamentos jurídicos. Percorrido tal caminho, tentaremos,
penal, “reconhecer a responsabilidade pelo fato, abrindo mão
enfim, responder à questão que nos move.
de seu direito a um processo e ao consequente julgamento
judicial de mérito para receber, desde logo, uma pena” (DOTTI; O acordo de não persecução penal representa mais um espaço
SCANDELARI, 2019, p. 05). cedido ao consenso no processo penal brasileiro, ao lado da
composição civil de danos, da transação penal, da suspensão
Não por outro motivo, recentemente, o STJ decidiu que, apesar da
condicional do processo e da colaboração premiada. Integra,
natureza híbrida do novo dispositivo e, pois, da possibilidade de
desse modo, a “justiça penal consensual”, expressão que abrange
aplicação retroativa – leia-se: a casos ocorridos antes da vigência
formas diversas de conclusão do caso penal, com amputação
da Lei 13.964/19 –, não se pode mais cogitar acordo de não
de atos processuais, diante da vontade das partes em assim
persecução penal após o recebimento da denúncia.1
procederem, mas sob controle jurisdicional (GUINALZ, 219, p.
Neste breve artigo, a traço bem grosso, pretendemos verificar 124-125). Como se pode notar, a nosso ver, a essência da justiça
se acertou o STJ ao decidir dessa forma. Em outras palavras, penal consensual, ao menos nos sistemas de civil law, está na

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subversão do rito tradicional, com a supressão voluntária de fases resposta deve ser positiva, desde que não iniciada efetivamente
processuais, principalmente daquelas ligadas à colheita de provas, a audiência de instrução e julgamento – destinada sobretudo à
antecipando-se a solução do caso penal.2 colheita da prova oral e do interrogatório do acusado, ou apenas
A ampliação dos espaços de consenso mundo afora parece do interrogatório do acusado. Primeiro, porque, após o início da
dar razão a Schünemann, para quem a real “força motriz instrução, já não se pode mais cogitar a subversão procedimental,
do desenvolvimento global do processo penal” está no sendo essa a tônica dos institutos de justiça penal consensual.
desaparecimento da audiência de instrução e julgamento enquanto Segundo, porque, iniciada a instrução, a solução consensual já não
principal centro decisório (SCHÜNEMANN, 2103, p. 255).3 Para o representará mais ganhos significativos em termos de celeridade.
autor alemão, a tendência por ele identificada de E, terceiro, porque, iniciada efetivamente
abolição da audiência de instrução e julgamento a “cerimônia degradante” da audiência de
enquanto centro decisório do processo penal APÓS O INÍCIO DA instrução e julgamento, tem-se por prejudicado
deve-se principalmente à sobrecarga do sistema INSTRUÇÃO, JÁ o objetivo de evitar a estigmatização do acusado.
de justiça criminal, decorrente, por um lado, Inversamente, até esse marco temporal (início da
NÃO SE PODE
do enorme crescimento da criminalidade nos instrução), ainda é possível cogitar a subversão
últimos anos e, por outro, do surgimento dos
MAIS COGITAR procedimental, a aceleração processual e a não
chamados “processos-monstros” – “duradouros A SUBVERSÃO estigmatização do réu.
e complexos processos envolvendo direito penal PROCEDIMENTAL, Cremos que foi basicamente por isso que a
econômico” (SCHÜNEMANN, 2013, p. 256). SENDO ESSA Ley de Enjuiciamento Criminal, na Espanha,
Desse modo, parece necessário admitir que o A TÔNICA DOS e o Codice de Procedura Penale, na Itália,
“principal atrativo” do modelo do consenso seja INSTITUTOS DE estabeleceram como marco a partir do qual
mesmo aliviar a carga de trabalho do sistema não mais se admite a solução consensual
JUSTIÇA PENAL
de justiça criminal, viabilizando a construção de (conformidad e patteggiamento) o início da
respostas penais aos crimes com considerável CONSENSUAL. audiência de instrução e julgamento.4 A
economia de tempo – fala-se, aqui, de celeridade – propósito, o projeto brasileiro de novo CPP não
e de recursos (LEITE, 2013, p. 47). Mas existem outros tópicos político- deixou de enfrentar o tema. E o equacionou da mesma maneira, ou
criminais subjacentes ao crescimento dos espaços de consenso, a seja, estabelecendo que “até o início da instrução e da audiência
saber: a intervenção mínima, a preferência pela solução consensual a que se refere o art. 276, (...) o Ministério Público e o acusado, por
pelo simples fato de ser consensual, e a não estigmatização do agente seu defensor, poderão requerer aplicação imediata de pena (...)”.5
(CAEIRO, 2000, p. 40).
Pelo exposto, parece-nos que se equivocou o STJ ao estabelecer
Com efeito, para Cláudia Maria Cruz Santos, apesar de a justiça que não cabe acordo de não persecução penal após o recebimento
consensual ser geralmente associada à celeridade, a solução da denúncia. Por um lado, afigura-se claro que o instituto foi
consensual pode ser preferível justamente por sê-la, isto é, por pensado, inicialmente, como alternativa ao oferecimento de
não constituir algo imposto (SANTOS, 2020, p. 214-216). Ademais, denúncia, desde que preenchidos os requisitos legais. Logo, em
com a solução consensual, poupa-se o imputado da “cerimônia regra, deve ser aplicado ao final da fase investigatória. Por outro,
degradante” da audiência de instrução e julgamento, amplificadora não se extrai do art. 28-A qualquer vedação ao seu oferecimento
das sequelas de estigmatização. Ou seja, os espaços de consenso após o recebimento da inicial acusatória, desde que – pelas razões
não deixam de constituir também um legado do “interacionismo
expostas acima – ainda não iniciada a instrução oral do feito. A
simbólico” (labelling approach) (MENDES, 2018, p. 78).
nosso ver, o posicionamento do STJ revela incompreensão da
Tendo tudo isso em mente, pode o acordo de não persecução verdadeira natureza do acordo de não persecução penal, além de
penal ser celebrado no curso do processo? Em nosso sentir, a desconhecimento dos seus propósitos político-criminais.

Notas

1 HC 628.647. troca de um tratamento mais brando pelo promotor de Justiça. Em sentido


2 Talvez seja possível dizer que, aqui, seguimos a doutrina especializada próximo, ver Wishingrad (1974, p. 499).
majoritária. A propósito, ver, por exemplo, Guinalz (2019, p. 124-125), No mesmo sentido, isto é, identificando a mesma tendência no processo
3

Leite (2013, p. 23) e Santos (2020, p. 214-216). Diferentemente, no plea penal de diversos países, tem-se Deu (2012, p. 128).
bargaining norte-americano, a tônica talvez deva ser colocada na – ampla Nesse sentido, ver arts. 784.3 e 787.1, da LECrim, e art. 446.1, do CPP italiano.
4

– negociação da declaração de culpa do investigado (plea of guilty) em 5 Art. 283 do PL 8.045/2010.

Referências
CAEIRO, Pedro, Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da justiça LEITE, Rosimeire Ventura, Justiça consensual e efetividade do processo penal. Del Rey:
absoluta e o fetiche da gestão eficiente do sistema. Revista do Ministério Público de Belo Horizonte, 2013.
Lisboa, Lisboa, v. 21, n. 84, p. 31-47, out./dez. 2000. MENDES, Paulo de Sousa, Lições de direito processual penal. Editora Almedina:
DEU, Teresa Armenta, Sistemas procesales penales: La justicia penal en Europa y Coimbra, 2018.
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DOTTI, René Ariel; SCANDELARI, Gustavo Britta, Acordos de não persecução e de continuidades. Editora Almedina: Coimbra, 2020.
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27, n. 317, p. 5-7, abr. 2019. direito. Marcial Pons: São Paulo, 2013.
GUINALZ, Ricardo Donizete, Consenso no processo penal brasileiro. Liber Ars: São WISHINGRAD, Jay, The Plea Bargain in Historical Perspective, Buffalo Law Review, v. 23,
Paulo, 2019. n. 2, p. 499-527, jan. 1974.

Recebido em: 22/04/2021 - Aprovado em: 01/06/2021 - Versão final: 11/06/2021

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O MINISTÉRIO PÚBLICO E A
JUSTIÇA NEGOCIAL NO BRASIL:
ENTRE A OBRIGATORIEDADE E A
DISCRICIONARIEDADE
THE PUBLIC PROSECUTOR’S OFFICE AND CONSENSUAL JUSTICE IN BRAZIL:
BETWEEN MANDATORY AND DISCRETIONARY CRIMINAL PROSECUTION

Ivan Candido da Silva de Franco


Doutorando em Processo Penal na Faculdade de Direito da USP. Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV-SP.
Sócio do Mudrovitsch Advogados.
Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/3061165291732985
ORCID: 0000-0002-4645-9402
ivan.csfranco@gmail.com

Resumo: A consolidação da Justiça Negocial trouxe novos desafios para Abstract: The strengthening of Consensual Justice in Brazil brought new
serem pensados em nosso sistema processual, notadamente quanto ao papel challenges to the Criminal Justice System, notably in the role of its players.
dos sujeitos processuais. O artigo busca entender as funções pertinentes ao This article aims to understand the functions of the Public Prosecutor’s Office,
Ministério Público, em particular no que toca à obrigação de propor a ação penal particularly the obligation to mandatorily file a criminal claim, in a context of
de iniciativa pública no cenário de expansão dos mecanismos consensuais. expansion of consensual mechanisms. Even when this obligation is widely
Mesmo num cenário em que a obrigatoriedade pura é questionada, não vemos challenged, there is no normative background supporting the discretion of the
espaço normativo para se sustentar a existência de uma discricionariedade do Public Prosecutor’s Office. We stand for the necessity of a strict interpretation of
órgão acusatório. Defendemos a necessidade de uma interpretação estrita do the Public Prosecutor’s Office role, which must respect the equality in criminal
papel do Ministério Público, em respeito à igualdade na persecução penal. prosecution.
Palavras-chave: Ministério Público - Justiça Negocial – Obrigatoriedade - Keywords: Public Prosecutor’s Office - Consensual Justice – Mandatory - Discretion.
Discricionariedade.

Introdução: mecanismos negociais e o fim do modelo sanção do sujeito imputado mesmo sem estabelecimento de culpa
estritamente conflitivo no Brasil pelo Estado, tendência que se ampliou nos anos seguintes.

O sistema processual penal brasileiro é alvo de discussões acerca As formas consensuais trazidas por diferentes diplomas legislativos
trouxeram impactos cada vez mais significativos em nosso
de sua natureza, se acusatória ou inquisitiva (PRADO, 2005). Na
ordenamento jurídico, modificando determinadas atribuições de
impossibilidade de uma afirmação categórica acerca disso, há quem
seus atores. Nesta oportunidade, dedicamo-nos à compreensão
avalie o grau de acusatoriedade do ordenamento jurídico (ZILLI,
do papel dos sujeitos processuais em meio a esse contexto.
2021), até como forma de verificar o atendimento a critérios de Importa entender como princípios e regras criados no contexto
respeito a valores democráticos. Independentemente de dissensos de um modelo estritamente conflitivo se harmonizam com os
nas qualificações feitas sobre o caso brasileiro, os princípios e regras novos desafios (teóricos e práticos) surgidos com a realidade do
que estruturam a persecução penal guardam um traço em comum: consenso. À vista disso, faremos uma análise focada sobre o papel
relacionam-se a uma noção conflitiva do processo. do Ministério Público (MP), em especial na avaliação do princípio
da obrigatoriedade,² entendido como a necessidade de exercer
Se há pouco tempo os conflitos penais eram solucionados
o direito de ação (oferecimento da denúncia), verificada a justa
exclusivamente após uma acusação formal contra um sujeito, que
causa (BADARÓ, 2015, p. 182). O afastamento da obrigatoriedade
poderia ter a sua culpa reconhecida pelo Estado depois de uma pura pelas soluções negociais implicou o reconhecimento da
instrução processual, nos últimos anos foi aberto um novo flanco em discricionariedade para atuação funcional do órgão acusatório?
nosso sistema processual: os institutos da Justiça Negocial.¹ Com a
“revolução negociada” (ZILLI, 2017) inaugurada pela Lei 9.099/95, Nem ao céu, nem à terra: inaplicabilidade da obrigatoriedade
pura ou da discricionariedade ao órgão acusatório
mudou-se totalmente a feição do processo, pois saídas consensuais
foram aqui incorporadas. A solução de um processo penal passou a Conceitos e práticas de mecanismos consensuais se solidificaram
também ser alcançada por meio de acerto entre as partes, havendo no Brasil nos últimos anos. Introduzidos com delimitação rígida

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pela Lei 9.099/95 (transação penal e suspensão condicional do somado à (antes única) via conflitiva. Mais do que isso, as hipóteses
processo), eles passaram a admitir hipóteses mais alargadas quanto alternativas ao conflito (transação penal, suspensão condicional do
ao momento de realização e aos crimes abarcados, como na Lei processo e acordo de não persecução penal) devem ser enfrentadas
12.850/13 (acordos de colaboração premiada) e na Lei 13.964/19 antes da mobilização do aparato estatal para o prosseguimento da
(acordos de não persecução penal), afastando a ideia de que a instrução processual regular.
solução pelo processo penal conflitivo é adotada de forma exclusiva.
Ante a ampliação das hipóteses de atuação funcional do MP, notamos
Agora, após verificada a justa causa para a persecução penal e antes visões que sustentam a existência de uma verdadeira discricionariedade
de se iniciar a instrução processual, os institutos consensuais podem de seu membro frente à persecução penal ou, ao menos, de diferentes
ser mobilizados, dando solução precoce e imediata ao conflito penal. colorações dessa mais ampla liberdade (ABRAÃO; LOURINHO, 2020).
O MP, órgão acusatório e titular da ação penal de iniciativa pública Trata-se de visão que amplia o poder de decisão dos membros da
por atribuição constitucional (CF, art. 129, I), tem visto ser ampliado o instituição, sustentando que, a despeito de as leis de regência imporem
espectro de possibilidades de atuação funcional quando em contato critérios (em regra) estritos para as diferentes etapas da persecução
com elementos suficientes para prosseguir com a persecução penal, penal, cabe ao órgão acusatório a escolha, livre de amarras, acerca
vislumbrando os caminhos negocial ou conflitivo. Num cenário em do caminho a ser adotado. Ocorre que, na verdade, as hipóteses
que mais mecanismos são conferidos aos agentes de Estado para consensuais são uma etapa necessária e prévia na persecução penal
uma busca por maior eficiência e celeridade na resolução de fatos hoje existente, não havendo, em lei, um espaço de disposição da ação
potencialmente delitivos, importa avaliar se isso foi acompanhado por penal pelo MP. Em nome da unidade e coerência sistêmicas, tal leitura
uma maior liberdade de escolha3 conferida por lei ou, ao contrário, se ampliativa da liberdade de escolha deve ser revista.
foi mantida uma mais estrita vinculação a hipóteses delimitadas.
Os institutos que operam a partir do consenso são bastante
Certo de que as formas de agir na persecução penal foram aumentadas delimitados e formatados, vez que são definidos momentos e critérios
com a introdução dos novos institutos, o ponto nevrálgico está em para seu oferecimento, bem como existe a possibilidade de controle
apurar se a lei também conferiu uma margem significativa de escolha, judicial caso isso não seja feito pelo órgão acusatório. Pela dicção
isto é, a efetiva possibilidade de o membro do órgão acusatório da Lei 9.099/95, não há espaço para juízos de estrita conveniência
optar de forma livre entre as saídas negocial ou do MP, uma vez que, configuradas as condições
conflitiva após verificada a justa causa. Parece- UM CONCEITO estabelecidas em lei (art. 76, §2º), deve ser
nos que a melhor forma de encontrar a resposta oferecido o acordo de transação penal. Da mesma
GESTADO
a essa questão é por meio do método indutivo: forma, a suspensão condicional do processo
avaliar, pela interpretação das leis em vigor, se as NUMA LÓGICA estabelece condições específicas nas quais o
mudanças normativas refletiram na ampliação de ESTRITAMENTE benefício há de ser oferecido pelo titular da ação
escolhas ao membro do MP. CONFLITIVA NÃO penal (art. 89, caput). A locução “poderá propor”
MAIS EXPLICAVA há muito foi superada como uma justificativa de
Tal incursão se relaciona com os princípios e
verdadeira opção do órgão acusatório, sendo
regras regentes da ação penal de iniciativa pública. UM SISTEMA
exemplar o fato de os Tribunais Superiores já
É interessante observar que à nossa doutrina PROCESSUAL COM terem se debruçado sobre a matéria, com edição
jurídica não escapou o enfraquecimento da
AS DIFERENTES de súmula acerca da temática (Súmula 696/STF),
obrigatoriedade da ação penal. Embora não tenha
4

havido alteração dos dispositivos normativos COLORAÇÕES restando poucas dúvidas sobre a sua aplicação.
mobilizados para sustentá-la (arts. 18, 24 e 395 do TRAZIDAS PELA No mais recente instituto consensual, criado pela
CPP), o seu alcance tem sido colocado em questão LÓGICA NEGOCIAL. Lei 13.964/19, a sistemática parece ser bastante
com frequência. Antes reconhecida de forma semelhante. O acordo de não persecução penal
generalizada, a obrigatoriedade foi acumulando críticas de ordens há de ser proposto sempre que verificadas as condições dispostas
pragmática e teórica. Sob o primeiro prisma,5 já se entendeu que a em lei (e desde que não cabíveis as saídas previstas na Lei 9.099/95,
obrigatoriedade não se verificava na prática porque diversos crimes como se lê do art. 28-A, caput e § 2º do CPP). É garantido o momento
já não eram perseguidos. Sob o outro (GRINOVER, 1996), a existência negocial antes de intentado o processo conflitivo, oportunidade em
de alternativas à persecução penal conflitiva eliminou o cabimento da que uma sanção é aplicada sem estabelecimento de culpa pelo
obrigatoriedade em sua acepção mais pura e deu lugar a formulações Estado. Da mesma forma, a discussão sobre a maior ou menor
teóricas alternativas, sendo a discricionariedade regrada a mais vinculação do órgão acusatório à sua discricionariedade ou aos
difundida. Um conceito gestado numa lógica estritamente conflitiva termos da lei se coloca.
não mais explicava um sistema processual com as diferentes
Resta claro, portanto, um padrão adotado pelo legislador pátrio: a
colorações trazidas pela lógica negocial.
disposição de saídas negociais que operam de maneira mandatória
Em nossa visão, esse conceito puro de obrigatoriedade não mais se e devem ser mobilizadas antes da instrução processual própria
sustenta. Mesmo sem alteração legislativa dos dispositivos que o do processo conflitivo. O momento consensual, por sua natureza
amparam, as novas leis modificaram o seu sentido, sendo contrafactual e da forma como incorporado em nosso ordenamento jurídico
afirmar que, verificados elementos suficientes de autoria e materialidade, (GRINOVER, 1996, p. 357), como regra, precede (de forma
o MP deverá oferecer a denúncia criminal. A existência da justa causa obrigatória) o momento conflitivo. As balizas legais são colocadas
deve continuar sendo a baliza para avaliar se alguma sanção por meio e devem ser obedecidas, havendo algum espaço para justificação
da persecução penal deve ser buscada pelo órgão acusatório, ainda (caso a caso) da não adoção do instituto consensual, como no caso
que não o faça (necessariamente) pelo processo penal conflitivo. E é deste não ser “necessário e suficiente para reprovação e prevenção
justamente aqui que se encontra a principal mudança que sustentamos: do crime” (hipótese do art. 28-A, CPP). Tais requisitos que abrem
verificados os pressupostos processuais, o MP segue obrigado a alguma margem para subjetividade, todavia, devem ser enfrentados
seguir na persecução penal, ainda que diferentes hipóteses tenham se pelo membro do MP, com justificativa formal e escrita sobre eventual

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não adoção dos institutos, estando sujeitas a controle. Não há que Conclusão: unificação da compreensão entre os mundos
se falar, portanto, em um agir por mera conveniência do membro do negocial e conflitivo
órgão acusatório, que é o exato sentido que se extrai da (equivocada)
A hoje consolidada realidade negocial trouxe significativas mudanças
noção de discricionariedade.
ao nosso sistema processual penal. Todos os sujeitos processuais
Embora destoe dos demais institutos, o caso da colaboração tiveram alguma forma de modificação em suas funções. As novidades
premiada da Lei de Organizações Criminosas é particular sob foram realizadas por meio de leis formais, com as etapas consensuais
diversos aspectos. Em primeiro lugar, é ao mesmo tempo um negócio sendo postas (em regra) como prévias à solução conflitiva. Nossas
jurídico-processual e um meio de obtenção de prova (BADARÓ, leis não abrem espaço para interpretações extensivas que confiram
2018). Ademais disso, as peculiaridades de sua utilização a colocam um poder decisório nunca mencionado em qualquer dispositivo
muito mais como uma estratégia de defesa do sujeito imputado do normativo. Em face disso, a suposta existência de um poder de
que como um instituto a ser necessariamente observado pelo MP. De atuação eivado na liberalidade e na escolha de atuação por motivos
toda forma, a colaboração premiada foi largamente utilizada e, ante de conveniência do MP se afasta da interpretação da lei posta. Não
os desafios e críticas gerados de sua prática e de sua mobilização há, nem nunca houve, autorização para a utilização de critérios de
alargada (CAVALI, 2018), o legislador procedeu a modificações mera conveniência acusatória para o fim de estabelecimento de
em sua feição por meio da referida Lei 13.964/19. Tais alterações política criminal, que deve depender dos critérios legais.
enrijeceram, em grande medida o seu uso, restringindo a hipótese
A conciliação teórica e prática dos mundos das soluções conflitiva
de não oferecimento de denúncia a casos específicos em que sejam
e negocial exige (re)ordenações conceituais, mas isso não significa
informadas infrações que não eram de seu conhecimento (§4º e §4º-
aceitar mudança tão profunda e desprovida de amparo normativo.
A do art. 4º), além de ter sido ampliado o controle judicial (incisos II
O fato de a obrigatoriedade pura não mais se sustentar não implica
a IV do § 7º do art. 4º).
a afirmação de seu reverso, que seria a discricionariedade da
Mesmo no instituto tido como mais discricionário, o legislador realizou ação penal de iniciativa pública. A existência de mais mecanismos
mudanças no sentido de restringir o seu uso. Essa é uma sinalização de consenso não significa que o plea bargaining e a sua inerente
importante, mas o central é verificar que as características imanentes ampla margem de negociação e disposição em matéria criminal
ao instituto (meio de obtenção de prova e restrito a crimes específicos) tenha chegado ao Brasil. É momento de refletirmos com cuidado
o colocam como uma exceção à lógica negocial incorporada em sobre essa nova realidade, com proposições teóricas sólidas que
nosso país e, ainda assim, não confere plena liberdade ao órgão não abandonem os pontos positivos da estrutura de nosso sistema
acusatório. A ampla liberdade acerca da acusação, mediante o uso de processual, que busca preservar a igualdade na aplicação da lei, e
critérios de conveniência acusatória que permitam definir a política não a sujeição a critérios estritos de conveniência e justiça de cada
criminal, não foi delegada por lei ao MP. membro do MP.

Notas
1 Para os fins deste artigo, utilizamos as expressões “negocial” e “consensual” como independência funcional e interpretação jurídica livre sobre os mesmos fatos. Para tais
sinônimas, em oposição a uma lógica de conflito. Vinicius Gomes Vasconcellos se utiliza discussões e delimitações conceituais, ver Mazzilli (2013).
do termo barganha (VASCONCELLOS, 2015, p. 68). As críticas feitas pelo autor a tais 4 É reconhecida de forma bastante difundida essa mitigação – por todos, ver Oliveira (2019,
mecanismos na seara penal, embora relevantes, fogem ao escopo do presente texto. p. 1016). Nas “exceções” à obrigatoriedade são utilizadas diversas expressões, sendo
2 Embora haja discussão, manteremos a expressão princípio (JARDIM, 2007, p. 101- as mais recorrentes obrigatoriedade mitigada ou discricionariedade regrada – como
107). Ainda, são diversas as regras decorrentes da obrigatoriedade, notadamente a exemplos, Lima (2017, p. 1459), Távora e Alencar (2017, p. 80).
explicitamente prevista indisponibilidade da ação penal (CPP, art. 42), daí sua relevância 5 Na Justificação ao Projeto de Lei 1480/1989, que resultou na Lei 9.099/1995, foram
(JARDIM, 2007, p. 118). Outras regras são mencionadas, como oficialidade, autoritariedade aventados argumentos nesse sentido. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/
e oficiosidade (OLIVEIRA, 2019, p. 180-181). fed/lei/1995/lei-9099-26-setembro-1995-348608-exposicaodemotivos-149770-pl.html.
3 Por escapar ao escopo do presente artigo, não entramos na discussão sobre Acesso em: 22 abr. 21.

Referências
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De Não Persecução Penal e a Discricionariedade Do Ministério Público. In: WALMSLEY,
André; CIRENO, Lígia; BARBOZA, Márcia Noll (coords.). Inovações da Lei nº 13.964, de 24 MAZZILLI, Hugo Nigro. Princípios institucionais do Ministério Público brasileiro. Revista do
de dezembro de 2019. Brasília: MPF, 2020, p. 330-347. Disponível em http://www.mpf.mp.br/ Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 731, p. 9-33, jan./abr. 2013.
pgr/documentos/copy_of_2CCR_Coletanea_Artigos_FINAL.pdf. Acesso em: 15/4/2021. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Meio de Prova, meio de obtenção de prova ou um novo PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais
modelo de justiça penal? In: ASSIS MOURA, Maria Thereza de; CRUZ BOTTINI, Pierpaolo penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
(coords.). Colaboração Premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 127-149.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 12. ed.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. Salvador: JusPodivm, 2017.
CAVALI, Marcelo Costenaro. Duas faces da colaboração premiada: visões “conservadora” VASCONCELLOS, Vinicius Gomes. Barganha e justiça criminal negocial: análise das
e “arrojada” do instituto na Lei n. 12.850/2013. In: ASSIS MOURA, Maria Thereza de; CRUZ tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo:
BOTTINI, Pierpaolo (coords.). Colaboração Premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, IBCCRIM, 2015.
2018. p. 255-274.
ZILLI, Marcos. Rumo à estação acusatória do processo penal: leituras a partir da Lei
GRINOVER, Ada Pellegrini. O impacto da Lei n. 9.099/95 no sistema penal brasileiro. In: 13.964/19. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, v. 22, n. 57, p.
BUSTAMANTE, Ricardo; SODRÉ, Paulo Cesar (coords.). Ensaios Jurídicos: o direito em 221-239, jan./mar. 2021.
revista. Niterói: Instituto Brasileiro de Atualização Jurídica, 1996.
ZILLI, Marcos. No acordo de colaboração entre gregos e troianos o cavalo é o prêmio.
JARDIM, Afrânio da Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 25, n. 300, p. 3-6, nov. 2017.

Recebido em: 27/04/2021 - Aprovado em: 26/05/2021 - Versão final: 11/06/2021

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ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO
PENAL COMO INSTRUMENTO
DE PROMOÇÃO DE PROGRAMAS
DE COMPLIANCE?
NON-PROSECUTION AGREEMENT AS A TOOL FOR
THE PROMOTION OF COMPLIANCE PROGRAMS?

Anna Carolina Canestraro Túlio Felippe Xavier Januário


Doutoranda em Direito Processual Penal pela USP. Mestre Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra,
em Direito pela Universidade de Coimbra, com período de com período de investigação financiado pelo programa
investigação financiado pelo programa “ERASMUS+” na Georg- “ERASMUS+” na Georg-August-Universität Göttingen. Bolsista
August-Universität Göttingen. Advogada. da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).
Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/1604392529884511 Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/1894712298793127
ORCID: 0000-0002-3534-4589 ORCID: 0000-0003-0400-1273
carolina.canestraro@gmail.com tuliofxj@gmail.com

Resumo: Pretende-se, com o presente trabalho, levantar o questionamento sobre Abstract: The aim of the present essay is to raise the question of whether
se o acordo de não persecução penal, recentemente incluído no Art. 28-A do CPP pela “Lei the non-prosecution agreement, recently included in Article 28-A of the Brazilian
Anticrime”,seria uma possível nova “porta de entrada” para os programas de compliance Criminal Procedure Code by the “Anticrime Law” (Law 13.964/19), would be a
no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto e a partir de uma metodologia dedutiva, possible new “Gateway” to compliance programs in the Brazilian legal system. To
analisaremos inicialmente quais são os instrumentos dotados pelo poder público para do so and based on a deductive methodology, we will initially analyze what are the
a promoção destes programas, seguindo-se de um estudo sobre o próprio instituto do instruments endowed by the State for the promotion of these programs, followed by
ANPP, seus requisitos e condições. Ao fim do trabalho, buscaremos demonstrar que, a study on the institute of the non-prosecution agreement itself, its requirements
em algumas hipóteses, os programas de compliance poderiam ser propostos como and conditions. At the end of the paper, we will demonstrate that, in some cases,
uma das “condições inominadas” previstas pelo Art. 28-A, V, viabilidade esta, porém, compliance programs could be proposed as one of the “innominate conditions”
que não viria desacompanhada de alguns desafios ainda a serem enfrentados pelos provided by the Art. 28-A, V, but this feasibility would not come without some
operadores do direito, sobre os quais teceremos alguns comentários. challenges yet to be faced by jurists, about which we will make some comments.
Palavras-chave: Direito Penal Negocial – Compliance - Acordo de Não Persecução Penal. Keywords: Negotiated Criminal Law – Compliance - Non-Prosecution Agreement.

Os programas de compliance ocupam atualmente um indiscutível ocupantes de cargos hierarquicamente mais baixos na estrutura
papel de destaque não apenas no cotidiano de grandes sociedades empresarial. Uma vez ausente o Estado, não podemos nos esquecer
empresárias, mas também nas recentes discussões doutrinárias também de eventuais incentivos particulares, tais como aqueles
jurídico-criminais. E um dos aspectos bastante debatidos nesta observados no âmbito do mercado de valores (como requisito
seara diz respeito às formas de incentivo à adoção destes programas, para abertura de capital em determinada bolsa), nas cadeias de
isto é, uma vez se tratando de instrumentos cuja implementação fornecimento (como requisito para a celebração de contratos) ou
representa um elevado custo financeiro para a empresa, há que se também por entidades setoriais, tais como associações.
entender quais seriam as vantagens esperadas desta decisão.
No extremo oposto, uma obrigação geral seria observada na
Ao analisar os patamares de influência do poder público sobre hipotética situação de exigibilidade de programas de compliance
os entes privados na promoção de programas de compliance, para todas as pessoas jurídicas, o que, apesar de se mostrar como
Marc Engelhart (2018, 21 e ss.; 2014, p. 69 e ss.) identifica seis a forma indiscutivelmente mais severa de incentivo, ainda não
níveis progressivos, que vão desde a I) autorregulação pura até existe na generalidade dos ordenamentos jurídicos. Este “nível
uma VI) obrigação geral de implementação dos programas. No VI” é observado tão somente de maneira setorial, com obrigações
primeiro caso, não haveria um incentivo estatal propriamente voltadas para setores extremamente sensíveis, tais como aqueles
dito, sendo que eventual adoção de programas de compliance com alto risco de lavagem de dinheiro (ENGELHART, 2018, p. 29-30)1
por parte das pessoas jurídicas seria motivada por ideais éticos e ou para empresas que pretendam contratar com a administração
reputacionais ou até mesmo, em sentido contrário, na tentativa de pública direta ou indireta, quando assim determinado por lei
delegar responsabilidades (inclusive criminais) da alta direção para (CANESTRARO; JANUÁRIO, 2020, p. 225 e ss.).

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Contudo, para além destas possibilidades mais radicais, o autor da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil aos crimes
destaca hipóteses nas quais, sem impor um verdadeiro dever de ambientais limita um pouco a relevância deste questionamento. Mas
compliance, o Estado encontra formas não apenas de incentivar a certamente não a esvazia. De uma breve análise da Lei 9.605/98,
adoção destes programas, como ainda de tentar influenciar em seus observamos que todos os crimes nela previstos se encontram no limiar
elementos intrínsecos, tais como escopo e mecanismos dos quais de pena mínima cominada cujo ANPP é admitido, sendo que boa
são dotados. Dentre eles, podemos destacar os II) incentivos estatais parte deles, por ter pena máxima cominada acima dos 02 (dois) anos,
informais, III) a recompensa do compliance, IV) o sancionamento por não admite transação penal. Ademais, é evidente que, para além do
falhas ou falta de compliance e a V) exclusão da responsabilidade preenchimento dos demais requisitos exigidos pelo tipo, a ser analisado
corporativa quando medidas eficientes de compliance forem caso a caso, os crimes ambientais dificilmente serão cometidos com
tomadas (ENGELHART, 2018, p. 24-29).2 violência ou grave ameaça à pessoa.
A despeito da relevância dos demais níveis de incentivo, cumpre- Desta feita, há nos delitos contra o meio ambiente um inegável
nos destacar para os fins do presente trabalho, o supramencionado campo de aplicação dos acordos de não persecução penal, podendo
“nível 3”, referente aos mecanismos de recompensa dos programas eles serem propostos quando preenchidos os requisitos legais,
de compliance. De grande relevo em ordenamentos jurídicos nos inclusive quando for a Acusada uma pessoa jurídica, haja vista não
quais há a possibilidade de responsabilização penal das pessoas haver qualquer restrição legal quanto a estes entes.8
jurídicas, este nível abrange hipóteses nas quais não apenas há
Esta viabilidade, porém, certamente não significa que o instituto
uma consideração da maior ou menor efetividade das medidas de
poderá ser aplicado inadvertidamente e tampouco que inexistam
compliance para fins de dosimetria da pena, mas também quando
pontos sobre os quais há que se refletir com bastante cautela.
a adoção prévia destes programas possa fundamentar até mesmo
Primeiramente, deve se questionar se, em se tratando o Réu de um
o arquivamento do feito contra a pessoa jurídica em questão,
grande agente econômico – tal como boa parte das pessoas jurídicas
ou a celebração de acordos com a abreviação do procedimento
–, e a depender da gravidade dos danos causados pelo ilícito, o
sancionatório (ENGELHART, 2018, p. 26-27).3
oferecimento do acordo seria necessário e suficiente para a reprovação
Destaca-se também, ainda no plano das “soluções de diversão” e prevenção do crime, tal como exigido pelo Art. 28-A do CPP. Ainda
quando aplicadas aos entes coletivos, uma recente evolução no que a literalidade do artigo diga pouco – ou quase nada – sobre o que
sentido de considerar a implementação de medidas de prevenção deve se entender por este requisito, parcela da doutrina o interpreta
e controle não apenas como requisitos prévios a serem levados como uma espécie de concretização da orientação político-criminal
em conta na celebração do negócio, mas também como medidas do instituto,9 o qual somente poderá ser invocado caso se entenda
posteriores e reativas a um eventual ilícito criminal, a serem que ele “contribuirá para a realização da função preventiva do direito
consideradas como condição para o cumprimento do acordo penal”. Para tanto, examinar-se-ia se na infração penal haveria um
(SOUSA, 2019, p. 15-16).4 injusto mais grave – grau de violação do bem jurídico, circunstâncias
da ação e consequências do fato – ou maior culpabilidade do agente
Para o bem ou para o mal, é fato que o ordenamento jurídico brasileiro,
– reprovabilidade pessoal do autor –, que impediriam o oferecimento
através da denominada “Lei Anticrime” – Lei 13.964/19 –, acrescentou
do ANPP (CABRAL, 2020, p. 367-373).
expressamente o Art. 28-A no CPP, prevendo o chamado “acordo
de não persecução penal”, instrumento de inegável cariz de justiça Ora, em vista do grande poderio econômico ostentado por algumas
negocial, que já era disciplinado pela Res. 181/2017 do CNMP e que pessoas jurídicas e também da extensão dos danos causados pela
sofrera algumas alterações pela Res. 183/2018. Segundo o caput do conduta, pode ser que, no caso concreto, se verifiquem hipóteses
dispositivo, não sendo caso de arquivamento e havendo confissão nas quais as condições a serem impostas no acordo poderiam ser
formal e circunstanciada por parte do investigado por infração penal consideradas insuficientes para suscitar os efeitos preventivos e de
cometida sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior reprovação dele esperados, alcançando a ideia de que, considerando
a 4 (quatro) anos, poder-lhe-á ser oferecido o acordo pelo MP, o custo-benefício, a prática delituosa teria “compensado” para a
desde que ele se mostre necessário e suficiente para a reprovação e empresa.10 E é justamente por esta razão que se questiona: poderiam
prevenção do crime. Para além destes requisitos objetivos positivos, os programas de compliance se tornar uma condição imposta no
exige-se, dentre alguns outros requisitos negativos, que não seja âmbito do ANPP para que se alcance a reprovação e prevenção de
caso de transação penal, nos termos do §2º.5 eventuais novos delitos?
No que toca aos objetivos do presente trabalho, cumpre-nos Não podemos nos esquecer de que a implementação de um
destacar as condições a serem cumpridas pelo Acusado para que programa de compliance representa altos custos financeiros para
seja considerado cumprido o acordo e seja extinta a punibilidade a pessoa jurídica que decida fazê-lo, sendo certo que não serão
do agente. Nesse sentido, nos incisos I a V do Art. 28-A, são todas as sociedades empresárias que terão efetivas condições
previstas quatro condições obrigatórias6-7 e uma “cláusula aberta (ou até mesmo interesse) de implantá-lo ou ao menos de fazê-lo
de negociação”, referente ao cumprimento, por prazo determinado, a níveis razoáveis de eficiência. Ora, uma vez não havendo uma
de outra condição a ser imposta pelo MP, desde que proporcional ampla liberdade na estipulação da condição inominada prevista
e compatível com a infração penal do caso (MARTINELLI; SILVA, pelo Art. 28-A do CPP, a exigência de implementação ou reforma
2020, p. 69). de um programa de compliance já existente, voltado à prevenção
de crimes ambientais, tais como ocorrido no caso, poderia ser
A questão a ser colocada é: poderá o Ministério Público determinar a
considerada uma condição proporcional para com os crimes e
uma pessoa jurídica, como condição inominada, a implementação de
penas previstas pela Lei 9.605/98? Ou esta medida acabaria por
um programa de compliance (ou a revisão do já existente, se for o caso)?
beneficiar tão somente as grandes corporações que tenham efetivas
Inicialmente, cumpre-nos destacar que, ao contrário de alguns outros condições de implantá-la, deixando desatendidas pequenas pessoas
ordenamentos jurídicos, tais como o norte-americano, a limitação jurídicas? E ainda que não seja este o caso, seria financeiramente

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interessante para a pessoa jurídica celebrar o ANPP com tal condição de reparação de danos (com a necessária atenção às vítimas de graves
bastante dispendiosa, em desfavor da continuidade do processo, com delitos ambientais, muitas vezes obliteradas nesta seara) e prevenção
possibilidade de absolvição – ou em caso de condenação, com penas da reincidência do que a mera imposição das sanções penais previstas
que nem sempre serão de grande monta? pela Lei 9.605/98.
Parece-nos sim haver viabilidade fática e jurídica na utilização dos É evidente que, para tanto, diversas questões devem ser previamente
acordos de não persecução penal como uma forma de “incentivo enfrentadas, sendo que algumas delas já foram apontadas neste
estatal” aos programas de compliance, a ser exercido, neste caso, pelo texto. Contudo, o cenário nos parece ao menos propício para que
Ministério Público. Esta já é, inclusive, uma tendência observada em discussões doutrinárias neste sentido sejam inauguradas, viabilizando-
diversos ordenamentos que preveem instrumentos jurídicos análogos.11 se que haja fundamentos teóricos e empíricos que auxiliem na melhor
Ademais, a promoção de um programa de compliance, desde que delimitação dos contornos da relação entre compliance e acordos de
desenvolvido com seriedade, baseado em evidências científicas e que não persecução penal no Brasil, impedindo-se que, na sequência das
atenda não apenas a funções mercadológicas, mas que vise também tendências internacionais e tal como ocorrera com diversos outros
uma efetiva mudança comportamental no cerne empresarial,12 tem, ao institutos “importados” pelo nosso ordenamento jurídico, eles comecem
nosso ver, um maior potencial para alcançar as almejadas finalidades a ser aplicados na prática, sem maiores e prévias reflexões científicas.

Notas
1 O autor cita como exemplo a legislação portuguesa de “branqueamento de capitais”, interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente,
que através da Lei 83/2017 impôs rigorosos deveres de compliance para entes como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente
atuantes em determinados setores (ENGELHART, 2018, p. 30). Para maiores detalhes lesados pelo delito;...” (BRASIL, 2019).
sobre estes deveres em Portugal, conferir em: Rodrigues (2019, p. 128 e ss.). 7 Neste sentido: “Pela redação legal, deve-se considerar como obrigatórias, aplicadas
2 Para uma análise pormenorizada destes níveis de influência, conferir também em: “cumulativamente”, as quatro primeiras condições, salvo a impossibilidade de
Canestraro e Januário (2020, p. 218-225). adimplemento como, por exemplo, a falta de recursos do investigado para reparar o
3 Conforme aponta Susana Aires de Sousa (2019, p. 10-11), muito embora a colaboração dano ou para pagar a prestação pecuniária, ou a inexistência de instrumentos, produto
da empresa possa assumir, em termos jurídico-criminais, diversas facetas, observa- ou proveito do crime. “Alternativamente”, poderá ser também estabelecida a quinta
se uma tendência recente à sua consideração para fins de celebração de acordos condição, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada”
prévios à própria denúncia penal da sociedade empresária, em um negócio com (MOREIRA, 2020, p. 213).
traços marcantes do princípio da oportunidade. 8 Em sentido próximo: Rocha, 2021, p. 61.
4 Conforme destaca Maria João Antunes (2018, p. 121), do ponto de vista de seus negócios, 9 Para uma análise detalhada da orientação político-criminal do processo penal e de
há um inegável interesse por parte do ente coletivo no seu não envolvimento em um seus institutos, conferir com detalhes em: Fernandes (2001, passim).
processo penal, o qual poderá ensejar em grandes prejuízos. 10 É claro que, por esta lógica, haveria espaço para questionarmo-nos também se as
5 O §2º prevê um amplo rol de requisitos negativos que impediriam a celebração do penas previstas pela Lei 9.605/98 teriam a aptidão para alcançar estes fins, discussão
acordo, os quais não serão explorados em pormenor por não afetarem diretamente ao essa que, a despeito de sua relevância, extrapolaria os objetivos deste trabalho.
objeto central do presente trabalho. Para maiores detalhes, conferir em: Bem (2020,
passim).
11 Para além do já mencionado sistema norte-americano, vide, por exemplo, a LOI 2016-
1691 Sapin-II na França e a Lei Argentina 27.401.
6 “Art. 28-A [...] I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade
de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério 12 Conforme bem destaca Eduardo Saad-Diniz (2019, p. 165), “cada um dos elementos
Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestar serviço à só tem sentido para a tecnologia de compliance se decorrentes de avaliação científica
comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima sobre sua real necessidade e adequação às preferências da organização empresarial,
cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da se a confrontação com as evidências científicas na área informa que se trata de
execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código investimento que exercerá real influência no comportamento ético”. Sobre o chamado
Penal); IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do evidence-based compliance e criticamente à sua ausência no atual contexto de
Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de enforced self-regulation norte americano: Laufer (2018, p. 401 e ss.).

Referências

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https://doi.org/10.30709/archis-2018-3. abr. 2021.

Recebido em: 30/04/2021 - Aprovado em: 04/06/2021 - Versão final: 15/06/2021

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SOBRE A DISCRICIONARIEDADE DO
MINISTÉRIO PÚBLICO NO ANPP E O
SEU CONTROLE JURISDICIONAL: UMA
PROPOSTA PELA LEGALIDADE
ON THE PUBLIC PROSECUTOR’S DISCRETION IN PROPOSING
NPA’S AND ITS JUDICIAL REVIEW: A PROPOSAL FOR LEGALITY

Guilherme Brenner Lucchesi Marlus H. Arns de Oliveira


Doutor em Direito pela UFPR. Professor da Faculdade de Direito Doutor em Direito pela PUC/PR.
da UFPR. Presidente do IBDPE. Coordenador regional adjunto do Vice-presidente do IBDPE. Membro do IBCCRIM. Advogado.
IBCCRIM no Paraná. Advogado. Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/5739028993126392
Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/1512135510310992 ORCID: 0000-0003-0317-8093
ORCID: 0000-0001-9505-421X marlus.arns@arnsdeoliveira.adv.br
guilherme@lucchesi.adv.br

Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar críticas ao modelo Abstract: This article aims to present a critique on the negotial model
negocial estabelecido pelo acordo de não persecução penal, da forma como instated by the non-prosecution agreement, as established by Law No. 13964/2019.
instituído pela Lei 13.964/2019. Critica-se, primeiramente, a exigência de confissão First, the requirement of a confession to strike a deal is criticized, due to the risk
para a celebração de acordo, sob risco de transformar-se em contrato de adesão em of converting the agreement in an adhesion contract. Likewise, the requirement
vez de propriamente uma negociação. Do mesmo modo, a exigência de determinadas of certain conditions and the manner in which the accusation is conveyed has
condições e a maneira como a imputação é veiculada tem o potencial de conferir the potential to confer excessive discretionary power on the prosecution, which
poder discricionário excessivo ao órgão da acusação, que tende a se comportar tends to behave more as an authority and less as a party to the agreement.
mais como autoridade e menos como parte no acordo. Tratando-se a propositura Considering the proposition of a non-prosecution agreement as a duty of the
de acordo de atuação vinculada do Ministério Público nos casos em que estiverem Public Prosecutor’s Office in cases where the authorizing legal requirements
presentes os requisitos legais autorizadores, defende-se a possibilidade de atuação are present, the possibility of judicial action is defended to ensure an effective
jurisdicional para assegurar uma efetiva negociação entre acusação e defesa. negotiation between the prosecution and the defense.
Palavras-chave: Acordo de Não Persecução Penal – Discricionariedade - Keywords: Non-Prosecution Agreement – Discretion - Legality.
Legalidade.

A denominada justiça penal negocial ganhou novos ares com a É comum se fazer um certo paralelo entre o ANPP e a suspensão
promulgação da Lei 13.964/2019, que deu contornos singulares ao condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/95). Apesar de ambos
instituto da colaboração premiada e apresentou o acordo de não serem concebidos como modelos alternativos ao processo penal
persecução penal, entre outras importantes alterações. “tradicional”, o ANPP não pode ser identificado como uma espécie
de “suspensão condicional do processo qualificada”, na medida em
É preciso lembrar que a possibilidade de acordo não é recente na que comporta um componente negocial adicional. Deste modo,
legislação brasileira. A Lei 9.099/95 já previa a transação penal para ao mesmo tempo que integra o rol de medidas despenalizadoras,
as infrações de menor potencial ofensivo e a suspensão condicional difundidas no processo penal brasileiro a partir da Lei 9.099/1995,
do processo para crimes com pena mínima não superior a um ano. também constitui um mecanismo de justiça penal negocial, por sua
O acordo de não persecução penal (ANPP) é verdadeira ampliação das inequívoca natureza de acordo.
oportunidades de o investigado evitar a instauração de um processo Não se reconhece uma natureza essencialmente negocial no sursis
criminal, expandindo largamente as possibilidades anteriormente processual, pois a lei estabelece como pressuposto o cumprimento
existentes de realização de acordo. Trata-se de um instrumento que de condições obrigatórias pelo acusado, durante um período de prova
possibilita ao Ministério Público deixar de oferecer denúncia, mesmo pré-estabelecido. Não há propriamente um acordo e sim termo de
presentes os requisitos para tanto, nos casos em que as partes adesão a que adere acusado, tendo, no máximo, condições de suplicar
cheguem a um ajuste quanto à não continuidade da persecução penal, pela redução da exigência de alguma das condições obrigatórias. Por
devendo o investigado cumprir condições mais brandas do que as parte do Ministério Público, além de não existir discricionariedade
penas supostamente cominadas em eventual sentença condenatória, quanto ao oferecimento da proposta de suspensão condicional
definidas a partir de rol não taxativo previsto em lei. do processo,1 existe uma margem de negociação bastante restrita,

26 SCP - termo de adesão


BOLETIM IBCCRIM - ANO 29 - N.º 344 - JULHO DE 2021 - ISSN 1676-3661 ANPP - negociação
colocando-se o agente ministerial como autoridade — e não como réu. Devem, portanto, resultar de efetivo consenso. A proposta da
parte — concedendo um benefício ao acusado. acusação não pode ser simplesmente oferecida ao investigado
como quem diz: “é pegar ou largar”.
Além disso, a maior abertura conferida legalmente ao ANPP, somada
ao fato de contemplar crimes de maior gravidade (com pena mínima Por seu turno, ainda que não seja possível falar propriamente em um
inferior a quatro anos) em comparação aos contemplados pelo direito público subjetivo do imputado a uma proposta de ANPP, não
sursis processual (com pena mínima de até um ano), permite às há como se reconhecer uma discricionariedade ampla ao Ministério
partes acordarem condições que superem aquelas estipuladas na Público na propositura do acordo. Embora muitos afirmem que
suspensão condicional do processo. o ANPP representa uma mitigação da obrigatoriedade da ação
A única vedação expressa que se impõe ao ANPP é a impossibilidade penal,2 o instituto não funda um sistema de livre oportunidade e
de sua celebração nos casos que admitem transação penal (art. 76, conveniência. O membro ministerial, por ser agente estatal, atua de
Lei 9.099). O ANPP está inserido em outro contexto, muito diverso forma vinculada às disposições legais, sendo regido pela garantia de
daquele em que foram instituídos os acordos dos Juizados Especiais legalidade (art. 37, CF).3
Criminais, duas décadas atrás. O ANPP caminha rumo às práticas Assim, do mesmo modo que, estando presentes os pressupostos e
negociais no processo penal, em direção oposta ao estabelecimento condições para o exercício da ação penal, o MP não pode promover
de condições obrigatórias, exigidas na Lei 9.099. o arquivamento, também não pode deixar de propor acordo de não
persecução penal quando presentes todos os requisitos para a sua
Estando presentes os requisitos para a celebração de ANPP e
propositura.4 Não há qualquer discricionariedade ampla na atuação
estando o investigado disposto a confessar a prática da infração
do Ministério Público, tratando-se a oferta de proposta de ANPP de
penal — o que nem sempre será o caso —, é perfeitamente possível
um poder-dever, proporcional e compatível com a infração imputada.
que as partes ajustem os termos em que o acordo será celebrado.
Isso vale até mesmo para os casos em que couber suspensão Não se desconhece a ampla margem de negociação concedida
condicional do processo (pena inferior a um ano). pela Lei ao Ministério Público ao admitir
O acusado só fica restrito aos estreitos limites da expressamente a estipulação de obrigações
suspensão condicional nas hipóteses em que não previstas no art. 28-A, como já observado.
não houver avanço nas negociações do acordo. NÃO HÁ QUALQUER Contudo, o ANPP é justamente uma negociação
entre as partes, devendo as condições serem
Como se vê, em que pese os institutos DISCRICIONARIEDADE
apresentarem aspectos similares, ambos são ajustadas e não impostas.
AMPLA NA ATUAÇÃO
essencialmente distintos. Por isso, é também Na prática, porém, tem sido comum — em boa
inadequado invocar para o ANPP toda a DO MINISTÉRIO parte dos acordos — que as condições sejam
jurisprudência firmada em relação à suspensão PÚBLICO, TRATANDO- unilateralmente impostas pelo Ministério Público,
condicional do processo. sem o mínimo interesse de negociação, restando
SE A OFERTA DE
Conforme previsão expressa do art. 28-A do ao investigado a alternativa de aderir ao acordo
PROPOSTA DE ANPP ou enfrentar o processo.
CPP, em não sendo caso de arquivamento da
investigação, se houver confissão circunstanciada DE UM PODER-DEVER,
Necessário se faz ressaltar que, por vezes, a
quanto à prática da infração penal sem violência PROPORCIONAL E proposta apresentada não difere significativamente
ou grave ameaça e com pena mínima inferior a
COMPATÍVEL COM A da provável pena ao final do processo. Tal fato
quatro anos, o Ministério Público poderá propor desencoraja sobremaneira a evolução da justiça
acordo de não persecução penal. O mesmo INFRAÇÃO IMPUTADA.
negocial na esfera penal, pois o acordo precisa
artigo ressalta que o acordo será proposto, desde verdadeiramente ser negociado pelas partes e
que necessário e suficiente para reprovação e resultar vantajoso em relação à possível pena.
prevenção do delito.
Outro aspecto interessante é o não cabimento de ANPP nos casos
Nesse ponto, reside a primeira crítica ao acordo de não persecução
em que o investigado for reincidente ou se houver elementos
penal, visto não ser lógico — sob a ótica da ampla defesa, do
contraditório e da presunção de inocência — que o investigado probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou
confesse crime como condição para o ANPP. A razão é simples: profissional.
se não for realizado o acordo ou se o pacto não for cumprido por A princípio, essa disposição poderá limitar consideravelmente as
qualquer uma das partes, a confissão trará danos irreparáveis ao
hipóteses de oferecimento do acordo, vez que em muitas denúncias
investigado, sendo tal fato, inclusive, objeto da ADI 6304.
o Ministério Público descreve condutas praticadas de forma habitual
O segundo ponto que merece discussão refere-se às condições e reiterada pela imputação do delito de organização criminosa,
estabelecidas para a celebração do ANPP. Há previsão no inciso V com descrição genérica e sem individualização das condutas de
possibilitando que o investigado cumpra “condição indicada pelo
cada um dos acusados. Portanto, a prática de inclusão do delito
Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a
de organização criminosa, com menção à habitualidade de suas
infração imputada”. Apesar de haver outras quatro possíveis condições
previstas no art. 28-A, o caput do artigo dispõe que o investigado deve práticas delitivas, tem o potencial de subtrair dos investigados a
cumprir as condições estipuladas “cumulativa ou alternativamente”. possibilidade de acordo.
Desse modo, sendo possível o cumprimento isolado de uma ou mais Estipuladas as condições do acordo, a lei estabelece a necessidade
condições genéricas estipuladas pelo Ministério Público, não há como
de homologação judicial do ANPP. Cabe ao magistrado não apenas
se defender que o rol seja numerus clausus.
verificar a voluntariedade do acordo, como também as condições
O texto da norma é expresso ao enunciar que as condições a serem ajustadas na proposta e sua adequação. Estas não podem ser
estabelecidas no acordo devem ser ajustadas pelas partes, ou seja, insuficientes, tampouco abusivas. Isso não significa que a jurisdição
devem ser objeto de uma negociação horizontal entre partes — pode imiscuir-se nos termos do acordo, porquanto cuida-se de um
no mínimo, menos verticalizada do que uma relação autoridade-
negócio jurídico processual firmado entre as partes. Contudo, à vista

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da necessidade de homologação judicial, o magistrado deve analisar cumprimento não depende de provocação por parte do interessado.
os termos tratados, a fim de examinar se houve o cumprimento do Nos termos do inciso I do art. 35 da LOMAN, é dever dos magistrados
requisito da legalidade. “cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão,
E se o juízo controla a legalidade na fase de celebração do ANPP, as disposições legais e os atos de ofício”.
também deve controlar a legalidade na fase anterior, de formação da Não há qualquer violação do princípio dispositivo — preceito reitor
proposta. Assim, tratando-se a proposta do ANPP de poder-dever do de um sistema processual acusatório — na atuação de ofício pelo
Ministério Público, desde que preenchidos os requisitos legais para magistrado a fim de assegurar o cumprimento da lei no processo.
tanto, o motivo para eventual não oferecimento de acordo deve ser No caso do ANPP, este dever se traduz no exame quanto ao
apresentado ao imputado e ao juízo. Nessa hipótese, o §14 do art. cumprimento por parte do Ministério Público do poder-dever que
28-A faculta ao imputado a possibilidade de remessa dos autos à lhe é atribuído de iniciar as tratativas do acordo, quando presentes
instância revisional do Ministério Público, na forma do art. 28 do CPP. os requisitos legais.
Em relação ao procedimento de revisão ante a recusa por parte Em termos procedimentais, uma vez verificado o cabimento de ANPP
do Ministério Público em propor o ANPP, há e não oferecida proposta pelo Ministério Público,
um problema de sucessão de leis no tempo. O caberá ao juízo intimar a acusação para que
dispositivo que instituiu o ANPP dispõe que “no
proponha o acordo ou decline os motivos pelos
caso de recusa, por parte do Ministério Público,
quais entende incabível a sua oferta. Outrossim,
em propor o acordo de não persecução penal, o
em homenagem à garantia do contraditório,
investigado poderá requerer a remessa dos autos O CONTROLE
deve-se buscar ouvir também o imputado. Caso o
a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código”. JUDICIAL DE
Ministério Público, intimado, deixe de apresentar
No regime originário do CPP, ao aplicar o art. 28, LEGALIDADE justificativa ou a apresente de modo deficiente,
os autos eram remetidos pelo juízo ao Procurador-
NÃO RETIRA A ao juízo incumbe submeter a matéria à revisão
Geral ou, no caso de crime de competência da
Justiça Federal, às Câmaras de Coordenação e NATUREZA da instância competente do órgão ministerial,
NEGOCIAL DO conforme dispuser a respectiva lei orgânica.
Revisão. O novo art. 28 do CPP, com redação dada
pela Lei 13.964/2019, afasta a intervenção judicial INSTITUTO OU O Frise-se que o papel do magistrado se restringe
nesse ponto, de modo que a submissão à instância PROTAGONISMO DE exclusivamente a um controle da legalidade da
de revisão ministerial fica condicionada ao pedido atuação ministerial. Tratando-se o ANPP de um
do interessado. Ocorre que, por ter sido suspensa
QUALQUER UMA
negócio jurídico processual entre partes, sob
a eficácia do art. 28 por decisão em Medida DAS PARTES NA hipótese alguma o magistrado poderá — ele
Cautelar na ADI 6.298 pelo STF, resta a dúvida se NEGOCIAÇÃO. mesmo — estipular condições e/ou benefícios ao
a remissão contida no § 14 do art. 28-A remete ao imputado, ou mesmo adequar alguma cláusula
texto com eficácia suspensa ou à redação anterior ajustada entre as partes.
(atualmente vigente) do art. 28 do CPP.
O controle judicial de legalidade não retira a
A questão apresenta efeitos práticos significativos, natureza negocial do instituto ou o protagonismo
posto que a antiga e nova redação do art. 28 estabelecem dois de qualquer uma das partes na negociação. Ao contrário, reforça a
modelos muito distintos de atuação: uma, voluntária, promovida concepção de que na justiça penal negocial a atuação do Ministério
pela parte interessada na revisão da atuação do agente ministerial; Público não se dá como autoridade — que simplesmente outorga
outra, de ofício, realizada pelo juízo no controle da legalidade dos um benefício ao imputado quando cabível —, mas como uma parte
atos realizados pelo membro do Ministério Público.
ao lado da defesa. Assim, espera-se promover uma participação
A despeito do novo sistema instituído no art. 28 pela Lei 13.964/2019 maior do imputado na negociação das condições a serem ajustadas
(com a eficácia suspensa), entende-se que o controle de legalidade e, ao mesmo tempo, imprimir certa racionalidade na celebração dos
da atuação ministerial permanece sendo um dever do juízo, cujo acordos de não persecução penal.

Notas

1 O entendimento jurisprudencial predominante é de que constitui poder-dever do processuais — tenha tido conhecimento e tenha logrado recolher, na instrução, indícios
Ministério Público oferecer proposta de suspensão condicional do processo quando suficientes. Não há, pois, lugar para qualquer juízo de «oportunidade» sobre a promoção
preenchidos os requisitos legais pelo acusado. e prossecução do processo penal, antes esta se apresenta como um dever para o MP
[...] A actividade do MP desenvolve-se, em suma, sob o signo da estrita vinculação à lei
2 Veja-se, por exemplo, a Exposição de Motivos 14/2019-MJSP, que deu origem ao “Pacote (daí o falar-se em princípio da legalidade) e não segundo considerações de oportunidade
Anticrime”, resultando na Lei 13.984/2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/ de qualquer ordem, v.g. política (raison d’État) ou financeira (custas).” (1974, p. 126-127).
proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088. Acesso em: 11 mar. 2021. 4 A possibilidade de oferta de acordos de não persecução penal pelo Ministério Público
3 Segundo Jorge de Figueiredo Dias: “O MP está obrigado a proceder e dar acusação e/ou pelo querelante em crimes de ação penal de iniciativa privada não será analisada
por todas as infracções de cujos pressupostos — factuais e jurídicos, substantivos e nesta oportunidade, sendo objeto de reflexão futura dos autores.
Referências
BRASIL. Ministério da Justiça e da Segurança Pública. EM n.º 00014/2019 MJSP, de mostrarintegra?codteor=1712088>. Acesso em 11 mar. 2021.
31 jan. 2019. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_ FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 1974.

Recebido em: 30/04/2021 - Aprovado em: 28/05/2021 - Versão final: 14/06/2021

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BOLETIM IBCCRIM - ANO 29 - N.º 344 - JULHO DE 2021 - ISSN 1676-3661


DIÁLOGOS
O RISCO DE OVERCHARGING
NA PRÁTICA NEGOCIAL DO
PROCESSO PENAL BRASILEIRO
THE OVERCHARGING RISK IN THE BRAZILIAN
CRIMINAL PROCEDURE’S BARGAINING PRACTICE

Pedro Luís de Almeida Camargo


Especialista em Obtenção, Interpretação e Valoração da Prova pela Universidade de Salamanca. Bacharel em Direito pela USP. Advogado.
Link Lattes: http://Lattes.cnpq.br/8451429372152340
ORCID: 0000-0003-1330-0929
pedro.la.camargo@gmail.com

Resumo: O presente trabalho visa a avaliar se existe um risco relevante Abstract: This article aims to articulate an analysis of the risk of extensive
de ocorrência do overcharging nas práticas negociais do Direito Penal brasileiro, overcharging practice in the Brazilian Criminal Law’s bargaining mechanisms,
tomando como base a definição desse conceito no Direito norte-americano e as working with the concept as defined in American Law and understanding the
condições que favorecem sua existência nos Estados Unidos. Ao final, verifica-se em factors which favor its existence. At the end, we check if those factors are
que medida essas condições se reproduzem no Direito brasileiro, especificamente present in Brazilian Law, with a special focus on the “penal transaction” and
em relação aos institutos da transação penal e do acordo de não persecução penal. “non-prosecution agreement” regulated by Brazilian Law.
Palavras-chave: Plea bargaining – Overcharging - Transação penal - Acordo Keywords: Plea bargaining – Overcharging - Penal transaction - Non-
de não persecução penal - Direito norte-americano. prosecution agreement - American Law.

1. Introdução 2. O overcharging no Direito norte-americano


A introdução paulatina de soluções negociadas no processo penal Como se sabe, a negociação é o meio mais comum de aplicação
brasileiro é uma realidade inegável. de pena no sistema norte-americano, especialmente pelo instituto
Essa expansão de medidas negociais, que começou timidamente do plea bargaining.3 O plea bargaining consiste essencialmente na
com a Lei 9.099/1995, especialmente a transação penal, tem ganhado negociação entre acusador e acusado sobre a imputação ou sobre a
contornos mais expressivos nos últimos anos, como se vê na introdução pena, implicando na confissão e renúncia do imputado às garantias
legislativa de um novo “mecanismo de condenação por evitação de processuais e ao direito a um julgamento em troca de um pedido,
julgamento”,1 consistente no acordo de não persecução penal, previsto por parte do acusador, que lhe seja aplicada uma pena menor, uma
no art. 28-A do Código de Processo Penal. imputação mais branda ou a não persecução de parte dos fatos
(LAFAVE; ISRAEL, 1992, p. 898).
A vasta experiência histórica dos Estados Unidos da América com
soluções negociadas pode ser útil para entender quais os riscos que As razões para a proeminência desse mecanismo de imposição de
essa expansão traz, especialmente em se tratando do plea bargaining. punição são complexas e multifatoriais.4 No entanto, independente
Dentre as graves disfuncionalidades no sistema norte-americano, dos motivos históricos de sua adoção, há mecanismos jurídicos que o
destaca-se o chamado overcharging, prática consistente na imputação sustentam, como o conceito de voluntariedade nele empregado,5 e o
excessiva e sem base contra um imputado para colocá-lo em uma conceito de acusador que se tem no sistema.6
posição negocial desfavorável.
É nesse contexto que ocorre o fenômeno do overcharging. Em síntese,
Uma verdadeira análise de direito comparado demandaria um estudo
ele pode ser definido como a prática consistente em multiplicar as
aprofundado da realidade institucional de ambos os países, o que
acusações contra um imputado (horizontal overcharging) ou imputar
é incabível aqui. O método empregado é, portanto, mais simples:
apenas se analisa o fenômeno no Direito norte-americano, segundo prática de crime mais grave a ele (vertical overcharging), com o objetivo
compreendido pela literatura local, e verifica-se em que medida de induzir o imputado à negociação de um guilty plea – a aceitação
algumas de suas condições de desenvolvimento se reproduzem no da aplicação de pena imediata, com a renúncia ao julgamento por júri
ordenamento brasileiro. Com essa metodologia, o objetivo final é no curso do processo – em troca de o acusador dispensar parte das
verificar se há risco perceptível de ocorrência do overcharging no acusações ou reduzi-las a crimes menos graves (ALSCHULER, 1968,
sistema brasileiro, especificamente na transação penal e no acordo p. 85-86). O uso dessas espécies de acusação excessiva é estratégico:
de não persecução penal.2 o acusador muitas vezes não dispõe de prova suficiente para acusar

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pelas acusações “a mais” ou ao menos não tem interesse em Já quanto ao segundo fator, também há um menor risco. Isso
assegurar a condenação por elas, mas as usa como moedas de troca porque a vinculação do acusador à lei e o menor espaço de atuação
(ALSCHULER, 1968, p. 85-86). Embora o fenômeno chame atenção discricionária do acusador são marcas da tradição jurídica europeia
desde os anos 1960, a literatura recente mostra que os mecanismos continental e brasileira, o que faz com que qualquer instituto negocial
de overcharging vertical e horizontal permanecem essencialmente os deva ser compreendido como “espaço de oportunidade” regrados
mesmos (CRESPO, 2018, p. 1312).7 pela legalidade (VASCONCELLOS, 2015, p. 50-51), o que condiz com
a visão institucional do acusador como um oficial público, e não como
Nesse sentido, a discricionariedade da qual os acusadores gozam na
um agente que possui interesses próprios políticos ou de carreira
formulação da acusação é um importante sustentáculo do sistema
(PIZZI, 1993, p. 1331-1332).
(LANGER, 2006, p. 248), quase não havendo controle judicial ou por
parte do júri.8 Com efeito, o papel do juiz nessa análise tende a ser Ainda que os fatores listados possam constituir barreiras jurídicas
passivo, inclusive impondo sua abstenção em relação à análise de ao overcharging, apenas um controle judicial sobre a acusação pode
possível uso de acusações iniciais excessivas para a obtenção de efetivá-las. Esse controle precisa ser analisado sob dois aspectos: sobre
vantagens negociais (LAFAVE; ISRAEL, 1992, p. 908). as acusações em geral e especificamente nos procedimentos negociais.

Ademais, há um poder imenso na mão do acusador na definição Explica-se o primeiro aspecto: apenas uma prática efetiva de controle
de crimes e penas,9 podendo o sistema ser caracterizado como de admissibilidade de acusação nos procedimentos pode garantir
de adjudicação unilateral pelo acusador (LANGER, 2006, p. 248- ao imputado que acusações excessivas infundadas não gerarão
249). Isso ocorre em grande parte porque os juízes não possuem processos ou condenações por crimes mais graves ou por mais crimes
que os efetivamente cabíveis para um fato tido como criminoso.13
um papel ativo no controle da base fática da imputação, checando
apenas a voluntariedade da aceitação e seu conhecimento a respeito Analisando o procedimento de análise de admissibilidade de
das garantias das quais está abrindo mão (BROWN, 2014, p. 77). As acusação no Código de Processo Penal, observa-se que há a
razões para esse papel geral de inatividade são complexas, derivando previsão expressa de controle judicial sobre a denúncia nos termos
tanto do desenho adversarial do sistema (ZILLI, 2019, p. 164) quanto do art. 395, que lista hipóteses de sua rejeição. Como a acusação
de considerações sobre o risco de perda de imparcialidade do juiz excessiva se caracteriza por uma qualificação jurídica excessiva em
e de eficiência do sistema no caso de seu envolvimento ativo nas relação aos fatos ou por uma imputação mais gravosa destituída
negociações (TURNER, 2006, p. 501-502). de base probatória, haveria, respectivamente, inépcia da denúncia e
falta de justa causa para a ação penal nessas hipóteses.14 O mesmo
Há, ainda, um fator de ordem penal material que favorece a prática do ocorreria na audiência de instrução e julgamento no procedimento
overcharging: a proliferação de crimes, que muitas vezes não possuem sumaríssimo, conforme o art. 81 da Lei 9.099/95.
distinções adequadas entre si e se sobrepõem (LANGER, 2006, p.
287). Ainda, o standard usado pelas cortes norte-americanas para No entanto, a prática judicial possui alguns indicativos de que isso
excluir o enquadramento de um mesmo fato em múltiplos crimes é não é realizado com a assiduidade devida. O primeiro se refere ao
extremamente estreito, não providenciando conceitos estritos para a brocardo de que “o acusado se defende dos fatos e não da qualificação
resolução do conflito de normas criminalizantes.10 jurídica”,15 com a justificativa de que a mudança da qualificação jurídica
na sentença sanaria qualquer problema daí advindo.16 Outro indicativo
Isso gera um cenário de negociação coercitiva, já que ao imputado são é a ausência de um recurso contra o recebimento da denúncia,
dadas duas opções: aceitar um processo contra si por uma acusação cujo controle se dá apenas por meio do Habeas Corpus, que possui
excessiva com o risco de uma pena mais alta que a devida; ou renunciar limitações procedimentais e uma jurisprudência consolidada em
seus direitos processuais para aceitar a aplicação imediata de uma relação à excepcionalidade da análise de justa causa.17
pena menor, seja por um crime menos grave ou por menos crimes.
Nesse cenário, ainda que isso não gere uma condenação, há a ameaça
Ambas as situações estão aquém do mínimo esperado pelo imputado de um processo derivado de acusação excessiva, que pode produzir
em relação a seus direitos: um julgamento com todas as suas garantias efeitos infamantes, medidas coativas e o próprio impedimento da
pela infração que seja adequada à base fática e jurídica da acusação aplicação dos mecanismos negociais, entre outros.18
contra ele formulada.11 Dessa forma, ambas as opções são coercitivas Por fim, é necessário compreender o papel do juiz nos procedimentos
e não fazem jus aos direitos fundamentais do acusado. negociais em si para verificar se há alguma possibilidade de controle
sobre essas hipóteses.

3. Indicadores do risco de overcharging no direito brasileiro Nesse sentido, verifica-se que o procedimento da transação penal
prevê a submissão da proposta à apreciação do juiz, nos termos do
Para compreender se esses mesmos fatores de risco se reproduzem art. 76, §4º, da Lei 9.099/1995. Esse dispositivo indica requisitos que
no Direito brasileiro, é necessário analisar três pontos: se a aparentam demonstrar que o controle por parte do juiz é meramente
legislação penal material oferece riscos de sobreposição excessiva formal (BADARÓ, 2018, p. 652-653). Assim, não se descarta a
de infrações; se o acusador no sistema processual penal brasileiro possibilidade de um uso informal da ameaça de acusação excessiva
possui ampla discricionariedade; e se há controle judicial sobre a com a finalidade de possibilitar a celebração da transação diante da
acusação e em que termos. ausência de controle judicial.
Em relação ao primeiro ponto, observa-se que há um risco menor Já o procedimento do acordo de não persecução penal prevê um papel
no Direito brasileiro que no norte-americano. Com efeito, ainda que mais robusto para o juiz, declarando que deve haver a verificação da
se presencie no Brasil uma grande proliferação das criminalizações, voluntariedade, nos termos do art. 28-A, § 4º, do Código de Processo
há, na tradição penal derivada do Direito Penal europeu continental, Penal. No entanto, para que essa previsão legal se converta em um
técnicas de manejo do conflito aparente de normas.12 Essas técnicas instrumento efetivo de prevenção de cenários coativos, é necessária
se desenvolvem principalmente em razão da concepção substancial uma visão ampla da voluntariedade, que leve em conta também as
da vedação ao bis in idem, que proíbe o múltiplo sancionamento pela circunstâncias que levaram o imputado a aceitar a proposta, e não
prática dos mesmos fatos (SABOYA, 2018, p. 78). apenas a verificação de ausência de coação direta, por exemplo.19

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Por fim, destaca-se que, como ambos os procedimentos negociais tratados americano, foram listadas três circunstâncias que favorecem a prática
não podem ensejar a imposição de prisão, o controle de voluntariedade nos Estados Unidos, verificando-se que elas não se reproduzem com a
seria especialmente importante para verificar se a ameaça de privação de mesma robustez no Direito brasileiro.
liberdade não foi usada pela acusação para coagir o imputado a aceitar Dessa forma, pôde se concluir que o risco de uma prática extensiva de
uma penalidade que não enseje a privação da liberdade. overcharging pelos acusadores brasileiros é reduzido se comparado ao
4. Conclusões cenário norte-americano, ao menos para os dois institutos analisados.
No entanto, a debilidade do controle judicial pode aumentar
O presente trabalho buscou identificar o potencial risco de overcharging exponencialmente esse risco, de maneira que uma reelaboração
no Direito brasileiro, especificamente na transação penal e no acordo rigorosa do controle de admissibilidade da acusação na prática servirá
de não persecução penal. A partir da análise do Direito norte- para evitar o overcharging.

Notas
1 Definidos como meios de se chegar a uma condenação criminal sem julgamento por 10 O chamado Blockburger test, derivado do caso: Blockburger v. United States, 284 U.S.
Máximo Langer (LANGER, 2019, p. 2). Os institutos analisados efetivamente aplicam 299 (1932).
penas restritivas de direitos, se enquadrando na definição dada pelo autor. 11 Esse conceito de coerção é dado por Máximo Langer, utilizando-se do conceito
2 A colaboração premiada não será analisada como objeto do presente trabalho, tendo em de filosofia moral de baseline como sendo o mínimo ao qual o imputado teria direito
vista que foge à definição de “mecanismo de condenação por evitação de julgamento” e (LANGER, 2006, p. 225).
se distancia da noção de plea bargaining. 12 Como os princípios da especialidade, da subsidiariedade e da consunção (BITENCOURT,
3 98% das condenações criminais nos Estados Unidos foram alcançadas por plea 2012, p. 247-252).
bargaining e mecanismos similares no ano de 2014, por exemplo (LANGER, 2019, p. 28). 13 Desde que o imputado esteja devidamente assessorado por uma defesa técnica efetiva,
4 Considerações sobre fatores históricos que influenciaram a adoção extensiva do plea que possa informá-lo devidamente das consequências de uma acusação excessiva.
bargaining podem ser encontradas em: ALSCHULER, 1979. 14 Respectivamente, pela incongruência entre a descrição dos fatos e a qualificação jurídica
5 Os precedentes da Suprema Corte norte-americana definem a voluntariedade nesses do crime, e pela falta de elementos probatórios mínimos para a ação penal (BADARÓ,
casos como a consciência das consequências e a ausência de força, ameaças, erros ou 2018, p. 176).
promessas que vão além daquelas incluídas no acordo. Brady v. United States, 397 U.S. 15 Apenas a título de exemplo: Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Inq 4093, Rel. Min.
742 (1970). Roberto Barroso. DJe 18 maio 2016. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
6 Conforme apontado por William T. Pizzi, a ampla discricionariedade do acusador norte- paginador.jsp?docTP=TP&docID=10975135, Acesso em: 14 abril 2021.
americano é fruto de uma evolução histórica e de raízes políticas profundas (PIZZI, 1993). 16 Conforme explica Gustavo Badaró, da equivocada premissa de que o réu se defende
7 Apesar de descrever os mecanismos tradicionalmente denominados de overcharging apenas dos fatos, admite-se que o juiz altere a qualificação jurídica na sentença sem que
horizontal e vertical, inclusive citando essa nomenclatura, Andrew Manuel Crespo prefere sequer seja dada oportunidade às partes (BADARÓ, 2019, p. 146).
os termos piling on para o acúmulo de acusações por diferentes crimes e overreaching 17 Apenas a título de exemplo: Supremo Tribunal Federal (2. Turma). HC 150.580 AgR, Rel. Min.
para o ato de inflar as acusações no aspecto fático ou jurídico. Esses mecanismos, Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 14 dezembro 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.
juntamente com a habilidade de “retornar” à acusação mais adequada ao caso como br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748868589. Acesso em: 14 abril 2021
resultado das negociações (“sliding down”), asseguram o incentivo para o guilty plea nos 18 Há julgados que reconhecem a possibilidade de correção da qualificação jurídica dos
casos de acusação excessiva (CRESPO, 2018, p. 1313-1314). fatos nas hipóteses de erro flagrante, alteração de competência absoluta e concessão de
8 Máximo Langer destaca que o controle de grand juries e de audiências preliminares benefícios processuais ao acusado. Cf.: Tribunal Regional Federal da 3ª Região (11. Turma).
sobre a admissibilidade da acusação são frágeis, ao menos na maioria das jurisdições HC 0004307-79.2017.4.03.0000, Rel. Des. Nino Toldo, DJe 27 agosto 2018. Disponível em:
(LANGER, 2006, p. 248). http://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/6698196. Acesso
9 Importante mencionar que o grau de discricionariedade pode variar conforme a regulação em: 14 abril 2021.
estadual de cada um dos aspectos do overcharging nos Estados Unidos, conforme expõe 19 Dentro da incipiente doutrina sobre a regulamentação legal do acordo de não persecução
Andrew Manuel Crespo detalhadamente, inclusive com dados sobre o funcionamento penal, Guilherme de Souza Nucci já adota uma visão de voluntariedade identificada com
em cada Estado (CRESPO, 2018). Mesmo assim, os pilares aparentam ser comuns em a “atitude livre de qualquer coação”, mostrando uma possível adesão a um conceito
todas as jurisdições americanas. restrito de voluntariedade (NUCCI, 2020, p. 63).

Referências

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Recebido em: 16/04/2021 - Aprovado em: 29/05/2021 - Versão final: 11/06/2021

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CADERNO DE JURISPRUDÊNCIA | JULHO DE 2021
BOLETIM IBCCRIM N.º 344

TEMA :
ANPP: APLICABILIDADE NA FASE PROCESSUAL E
RETROATIVIDADE A FATOS ANTERIORES À LEI 13.964/2019
Supremo Tribunal Federal

Nosso comentário: como ilustram os precedentes selecionados,


Direito penal e processual penal. Agravo regimental em habeas a Primeira Turma do STF, a partir do julgamento do HC 191.464-
corpus. Acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP). AgR/SC, firmou entendimento pela retroatividade do ANPP
Retroatividade até o recebimento da denúncia. a fatos ocorridos antes da Lei n.º 13.964/2019, desde que não
recebida a denúncia. Esse entendimento tem sido reafirmado
1. A Lei nº 13.964/2019, no ponto em que institui o acordo de não
em decisões monocráticas dos membros da Primeira Turma (p.
persecução penal (ANPP), é considerada lei penal de natureza
ex.: RHC 198.557/SC, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 29.3.2021; HC
híbrida, admitindo conformação entre a retroatividade penal benéfica
190.855/PE, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 01.3.2021; HC 195.327/
e o tempus regit actum. 2. O ANPP se esgota na etapa pré-
PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 25.02.2021; HC 197.369/
processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa,
SP, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 12.02.2021) e de alguns membros
sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase
da Segunda Turma (p. ex.: RE 1.244.660-AgR/RS, Rel. Min.
de oferecimento e de recebimento da denúncia. 3. O recebimento
Nunes Marques, DJe 10.02.2021; ARE 1.319.706, Rel. Min. Carmen
da denúncia encerra a etapa pré-processual, devendo ser
Lúcia, DJe 04.05.2021; HC 186.289, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJe
considerados válidos os atos praticados em conformidade com
01.06.2020). Vale notar que, nos autos do HC 185.913/DF, o
a lei então vigente. Dessa forma, a retroatividade penal benéfica
Min. Gilmar Mendes afetou ao Plenário as questões-problemas
incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos anteriores
seguintes: “a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em
à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.
curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza
4. Na hipótese concreta, ao tempo da entrada em vigor da Lei nº
da norma inserida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação
13.964/2019, havia sentença penal condenatória e sua confirmação
retroativa em benefício do imputado? b) É potencialmente
em sede recursal, o que inviabiliza restaurar fase da persecução
cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais
penal já encerrada para admitir-se o ANPP. 5. Agravo regimental a
que se nega provimento com a fixação da seguinte tese: “o acordo de o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a
não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da investigação ou o processo?”.
Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia”.
(HC 191464 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma,
julgado em 11/11/2020, DJe-280 DIVULG 25-11-2020 PUBLIC 26-11- Superior Tribunal de Justiça
2020) (destaques nossos - Cadastro IBCCRIM 6280).

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FRAUDE À


AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA LICITAÇÃO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. ACORDO DE NÃO
A ORDEM TRIBUTÁRIA. WRIT SUCEDÂNEO DE RECURSO PERSECUÇÃO PENAL. PACOTE ANTICRIME. ART. 28-A DO
OU REVISÃO CRIMINAL. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NORMA PENAL DE NATURA
PENAL. RETROATIVIDADE, NO PONTO, DA LEI 13.964/2019. MISTA. RETROATIVIDADE A FAVOR DO RÉU. NECESSIDADE
INVIABILIDADE. JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE NO DE INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DECISÃO
SENTIDO DE QUE A RETROATIVIDADE SOMENTE ATINGE RECONSIDERADA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.
CASOS ANTERIORES À ENTRADA EM VIGOR DE REFERIDA LEI 1. É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento
QUANDO AINDA NÃO RECEBIDA A DENÚNCIA. integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da
1. Inadmissível o emprego do habeas corpus como sucedâneo de punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma
recurso ou revisão criminal. Precedentes. 2. A jurisprudência da de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir
Primeira Turma deste STF fixou a tese de que ’o acordo de não em seu benefício em processos não transitados em julgado
persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da (art. 5º, XL, da CF). 2. Agravo regimental provido, determinando a
Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia’. (HC baixa dos autos ao juízo de origem para que suspenda a ação
191.464-AgR/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, penal e intime o Ministério Público acerca de eventual interesse na
DJe 25.11.2020). 3. No caso, a denúncia foi recebida em 25.9.2012 propositura de acordo de não persecução penal, nos termos do art.
(evento 2, fl 108), momento muito anterior à entrada em vigor da 28-A do CPP (introduzido pelo Pacote Anticrime - Lei n. 13.964/2019).
Lei 13.964/2019. Inclusive, quando da entrada em vigor da Lei (AgRg no HC 575.395/RN, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA
13.964/2019, já havia sentença condenatória (evento 6, fls. 19/48) TURMA, julgado em 08.09.2020, DJe 14.09.2020) (destques nossos -
confirmada pelo Tribunal Regional (evento 8, fls 13/15). Assim, nos Cadastro IBCCRIM 6282).
termos da jurisprudência desta Corte, inadmissível a pretensão
veiculada nesta sede processual. 4. Agravo regimental conhecido
e não provido.
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS.
(HC 190855 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. INAPLICABILIDADE.
em 03/05/2021, DJe-090 DIVULG 11-05-2021 PUBLIC 12-05-2021) SENTENÇA CONDENATÓRIA PROFERIDA. PENA MÍNIMA SUPERIOR
(destaques nossos - Cadastro IBCCRIM 6281). A QUATRO ANOS. REQUISITO SUBJETIVO NÃO ATENDIDO. PRECEITO

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SECUNDÁRIO QUE COMINA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE
CUMULADA COM MULTA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE Público Federal, a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão se
LIBERDADE POR UMA PENA RESTRITIVA DE DIREITOS E MULTA. posicionou no sentido de que o ANPP pode ser proposto
INVIABILIDADE. INTELIGÊNCIA DA SÚMULA 171/STJ. AGRAVO
na fase processual: “É cabível o oferecimento de acordo de
REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes
1. O Acordo de Não Persecução Penal consiste em um do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos
negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público e o legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja
investigado, juntamente com seu defensor, como alternativa oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e
à propositura de ação penal. Trata-se de norma processual, circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos
com reflexos penais, uma vez que pode ensejar a extinção da do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que
punibilidade. Contudo, não é possível que se aplique com ampla estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019,
retroatividade norma predominante processual, que segue conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar
o princípio do tempus regit actum, sob pena de se subverter se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura
não apenas o instituto, que é pré-processual e direcionado ao medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos
investigado, mas também a segurança jurídica. 2. Para serem do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para
consideradas as causas de aumento e diminuição, para aplicação processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº
do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), essas devem estar 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa,
descritas na denúncia, que, no presente caso, inocorreu, não sendo quando haverá preclusão” (Enunciado n.º 98, disponível em:
possível considerar, no cálculo da pena mínima cominada ao crime http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/enunciados.
imputado ao acusado, a causa de diminuição reconhecida apenas
quando do julgamento da sentença. (...) 4. Agravo regimental não
provido.
(AgRg no HC 656.864/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DIREITO SUBJETIVO DO IMPUTADO AO ANPP
DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 04/05/2021, DJe
07/05/2021) (destaques nossos - Cadastro IBCCRIM 6283).
Supremo Tribunal Federal

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE


AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. ACORDO DE NÃO
DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM
PERSECUÇÃO PENAL. INEXISTÊNCIA DE DIREITO SUBJETIVO
RECURSO ESPECIAL. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL.
DO ACUSADO. CONDENAÇÃO CONFIRMADA POR TRIBUNAL
SUBSISTÊNCIA DO DELITO DE ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO.
RETROATIVIDADE ATÉ O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. DE SEGUNDO GRAU. INVIABILIDADE.
NÃO OCORRÊNCIA. EMBARGOS ACOLHIDOS, SEM EFEITOS 1. As condições descritas em lei são requisitos necessários para
MODIFICATIVOS. o oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP),
1. No julgamento do HC 628.647/SC em 9/3/2021, a Sexta Turma importante instrumento de política criminal dentro da nova
do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, alinhando-se realidade do sistema acusatório brasileiro. Entretanto, não
ao entendimento da Quinta Turma, firmou compreensão de que, obriga o Ministério Público, nem tampouco garante ao acusado
considerada a natureza híbrida da norma e diante do princípio verdadeiro direito subjetivo em realizá-lo. Simplesmente,
tempus regit actum em conformação com a retroatividade permite ao Parquet a opção, devidamente fundamentada,
penal benéfica, o acordo de não persecução penal incide aos entre denunciar ou realizar o acordo, a partir da estratégia de
fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei 13.964/2019 política criminal adotada pela Instituição. 2. O art. 28-A do Código
desde que ainda não tenha ocorrido o recebimento da denúncia. de Processo Penal, alterado pela Lei 13.964/19, foi muito claro
2. Recebida a denúncia em 26/4/2010, não se aplica o acordo nesse aspecto, estabelecendo que o Ministério Público “poderá
de não persecução penal, nos termos do art. 28-A do Código de propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e
Processo Penal, introduzido pela Lei 13.964/2019, sendo irrelevante suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as
a subsistência apenas da condenação por associação por tráfico, seguintes condições”. 3. A finalidade do ANPP é evitar que se inicie
cuja pena poderia ensejar a proposta pelo Ministério Público. 3. o processo, não havendo lógica em se discutir a composição depois
Embargos de declaração acolhidos, sem efeitos modificativos. da condenação, como pretende a defesa (cf. HC 191.464-AgR/SC,
Primeira Turma, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de 26/11/2020).
(EDcl nos EDcl no AgRg no AREsp 1319986/PA, Rel. Min. OLINDO 4. Agravo Regimental a que nega provimento.
MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª
REGIÃO), SEXTA TURMA, julgado em 18.05.2021, DJe 24.05.2021) (HC 195327 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira
(destaques nossos - Cadastro IBCCRIM 6284). Turma, julgado em 08/04/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-
069 DIVULG 12-04-2021 PUBLIC 13-04-2021) (destaques nossos -
Cadastro IBCCRIM 6285).
Nosso comentário: como ilustram os precedentes
selecionados, a 6ª Turma do STJ, inicialmente, havia
manifestado o entendimento de que o ANPP, por ser norma de Nosso comentário: quanto à existência de um direito subjetivo
natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deveria retroagir do imputado à celebração do ANPP, foram identificados
em seu benefício em processos não transitados em julgado apenas outros dois acórdãos (HC 199892 AgR, Rel. Min.
(AgRg no HC 575.395/RN). Todavia, a partir do julgamento Alexandre de Moraes, DJe 25.05.2021; HC 191124 AgR, Rel. Min.
do HC 628.647/SC, ocorrido em 9/3/2021, a Sexta Turma se Alexandre de Moraes, DJe 12.04.2021) sobre o tema em nossa
alinhou ao entendimento da Quinta Turma, que, em diversos pesquisa, além do precedente selecionado acima. Todos
precedentes, tem se alinhado à jurisprudência inaugurada pelo foram julgados pela Primeira Turma do tribunal, firmando
STF com o julgamento do HC 191.464-AgR/SC. Ainda quanto entendimento pela inexistência de um direito subjetivo ao
ao tema, merece ser registrado que, no âmbito do Ministério ANPP. Em diversas decisões monocráticas, os membros da

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HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO.
Primeira Turma reafirmam o entendimento corporificado INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS.
nesses três precedentes julgados pelo Colegiado. Não foram ALEGADA NULIDADE EM RAZÃO DA AUSÊNCIA DE OFERTA DE
localizados acórdãos da Segunda Turma sobre o tema, apenas ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENA E RECUSA DE ENVIO
uma decisão monocrática da Min. Carmen Lúcia (HC 186289, À PGJ. RECUSA DEVIDAMENTE JUSTIFICADA PELO PARQUET.
DJe 01.06.2020), no sentido de inexistir direito subjetivo do ANUÊNCIA DO MAGISTRADO. PROPOSTA DE REVISÃO REQUERIDA
acusado ao ANPP, mas dever-poder do Ministério Público, A DESTEMPO PELA DEFESA. DOSIMETRIA DA PENA. MODIFICAÇÃO
titular da ação penal, ao qual cabe, com exclusividade, DO REGIME PRISIONAL PARA O ABERTO. IMPOSSIBILIDADE.
analisar a possibilidade de aplicação do instituto, desde que QUANTIDADE E VARIEDADE DOS ENTORPECENTES APREENDIDOS.
fundamentadamente. PRECEDENTES. WRIT NÃO CONHECIDO.
(...) 3. Inexiste nulidade na recusa do oferecimento de proposta
de acordo de não persecução penal quando o representante
do Ministério Público, de forma fundamentada, constata
Superior Tribunal de Justiça a ausência dos requisitos subjetivos legais necessários à
elaboração do acordo, de modo que este não atenderia aos
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. critérios de necessidade e suficiência em face do caso concreto.
ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE 4. Conforme o acórdão ora impugnado, o requerimento de revisão
DE OFERECIMENTO MEDIANTE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. do não oferecimento de proposta do ANPP, para fins de análise
GRAVIDADE CONCRETA DA CONDUTA. CONDENAÇÃO do órgão superior do Ministério Público local, ocorreu a destempo
SUPERIOR A QUATRO ANOS DE RECLUSÃO. POSSIBILIDADE DE pela defesa, deixando que a instrução criminal fluísse regularmente.
OFERECIMENTO A SER AFERIDA, EXCLUSIVAMENTE, PELO 5. Esta Corte Superior possui jurisprudência no sentido de que a
MINISTÉRIO PÚBLICO, COMO TITULAR DA AÇÃO PENAL. quantidade e a qualidade da droga apreendida podem ser utilizadas
AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. como fundamento para a determinação da fração de redução da
pena com base no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006, a fixação
I - In casu, o acórdão recorrido invocou fundamentos para manter do regime mais gravoso e a vedação à substituição da sanção
a inaplicabilidade do art. 28-A do CPP, na redação dada pela Lei privativa de liberdade por restritiva de direitos. 6. No caso, embora
nº 11.964/2019, que não comportam qualquer censura por parte estabelecida a pena definitiva em 2 anos e 6 meses de reclusão,
deste Sodalício, seja pela pena efetivamente aplicada na sentença a quantidade e a diversidade de entorpecentes apreendidos (62
condenatória, superior a 4 (quatro) anos, seja em face da gravidade porções de cocaína, contendo 55,63g; 04 pedras de crack, contendo
concreta da conduta, dada a grande quantidade de droga apreendida, 0,41g; e 63 porções de “maconha”, contendo 132,64g) , utilizadas na
tratando-se de mais de 3 (três) quilos de cocaína pura com destino escolha do patamar de diminuição do benefício do art. 33, §4º, da
internacional, o que poderia inclusive obstar a aplicação da minorante Lei n. 11.343/2006, justificam a imposição de regime prisional mais
prevista no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas, servindo para lastrear a gravoso, o semiaberto, em razão da quantidade, variedade e natureza
fixação da causa de redução em seu patamar mínimo legal, como feito dos entorpecentes apreendidos. 7. Habeas corpus não conhecido.
pela sentença condenatória. II - Afere-se da leitura do art. 28-A do
(HC 612.449/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA,
CPP, que é cabível o acórdão de não persecução penal quando QUINTA TURMA, julgado em 22/09/2020, DJe 28/09/2020)
o acusado confessa formal e circunstancialmente a prática (destaques nossos - Cadastro IBCCRIM 6287).
de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena
mínima inferior a 4 (quatro) anos, consideradas eventuais causas
de aumento e diminuição de pena, na forma do § 1º do mesmo Nosso comentário: como ilustram os dois precedentes da
artigo, a critério do Ministério Público, desde que necessário e Quinta Turma selecionados, a jurisprudência do STJ tem se
suficiente para reprovação do crime, devendo ser levada a gravidade alinhado ao entendimento firmado pelo STF sobre a matéria, não
da conduta, como no presente caso, em que a agravante foi presa reconhecendo a existência de um direito subjetivo do imputado à
com mais de 3kg de cocaína pura com destinação internacional, o celebração do ANPP. Embora não tenhamos localizado acórdãos
que levou ao Parquet a, de forma legítima, recusar a proposta haja da Sexta Turma, há decisões monocráticas (p. ex.: HC 651789,
vista a pretensão de condenação a pena superior a 4 anos como, Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 31.05.2021; HC 664016, Min.
de fato, ocorreu no édito condenatório, que condenou a agravante à Laurita Vaz, DJe 18.05.2021) de membros do referido colegiado no
pena de 4 (quatro) anos, 10 (dez) meses e 10 (dez) dias de reclusão, mesmo sentido dos julgados da Quinta Turma.
em face da incidência da minorante do tráfico privilegiado em seu
patamar mínimo legal que, ao contrário do alegado pela defesa,
deve ser considerado na possibilidade de aferição dos requisitos Compilação e curadoria científica de:
para a proposta pretendida pela combativa defesa. III - Outrossim,
como bem asseverado no parecer ministerial, “O acordo de Anderson Bezerra Lopes e Gessika Christiny Drakoulakis.
persecução penal não constitui direito subjetivo do investigado,
podendo ser proposto pelo MPF conforme as peculiaridades do
caso concreto e quando considerado necessário e suficiente
para a reprovação e a prevenção da infração penal”, não
podendo prevalecer neste caso a interpretação dada a outras
benesses legais que, satisfeitas as exigências legais, constitui
direito subjetivo do réu, tanto que a redação do art. 28-A do CPP
preceitua que o Ministério Público poderá e não deverá propor
ou não o referido acordo, na medida em que é o titular absoluto
da ação penal pública, ex vi do art. 129, inc. I, da Carta Magna.
Agravo regimental desprovido.
(AgRg no RHC 130.587/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA
TURMA, julgado em 17/11/2020, DJe 23/11/2020) (destaques nossos
- Cadastro IBCCRIM 6286).

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DIRETORIA EXECUTIVA
Presidenta: Marina Pinhão Coelho Araújo
1.º Vice-Presidente: Alberto Zacharias Toron
2.º Vice-Presidente: Fábio Tofic Simantob
1.º Secretário: Bruno Salles Pereira Ribeiro
2.º Secretário: Felipe Cardoso Moreira de Oliveira
3.ª Secretária: Ester Rufino
1.º Tesoureiro: Rafael Serra Oliveira
2.º Tesoureiro: Renato Stanziola Vieira
Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais:
Maria Carolina de Melo Amorim
Leonardo Palazzi
Vinícius Assumpção

CONSELHO CONSULTIVO
Ela Wiecko Volkmer de Castilho
Helena Regina Lobo da Costa
Márcio Gaspar Barandier
Thiago Bottino do Amaral
Carla Silene Cardoso Lisboa Bernardo Gomes

OUVIDORA
Cleunice Valentim Bastos Pitombo

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CONSELHO EDITORIAL: Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, Aury Lopes Jr., Juarez Cirino dos Santos, Sérgio
Salomão Shecaira, Luis Fernando Niño, Vera Malaguti Batista e Vera Regina Pereira de Andrade.
EDITOR-CHEFE: Daniel Zaclis.
EDITORES/AS ASSISTENTES: Anderson Bezerra Lopes, Antonio Carlos Tovo, Adriana Pazini de Barros Lima,
Daniel de Resende Salgado, Flavia Chaves Nascimento Brandão Penna, Gessika Christiny Drakoulakis, Nicolau da
Rocha Cavalcanti e Thiago Baldani Gomes de Filippo.
EDITORES EXECUTIVOS: Helen Christo e Willians Meneses.
EXPEDIENTE EDITORIAL: IBCCRIM.

CORPO DE PARECERISTAS DESTE VOLUME:


Ana Cristina Gomes (Universidade de Salamanca/Espanha), Bárbara Brum Nery (PUC – Belo Horizonte/MG), Beatriz
Corrêa Camargo (UFU – Uberlândia/MG), Fernanda Regina Vilares (IDP – Brasília/DF), Fernando Nogueira Martins Júnior
(UFMG – Belo Horizonte/MG), Guilherme Francisco Ceolin (PUC – Porto Alegre/RS), Jádia Larissa Timm dos Santos
(PUC – Porto Alegre/RS), Jônica Marques Coura Aragão (UMSA/Argentina), José Henrique Kaster Franco (Universidade
de Salamanca/Espanha), Luís Felipe Perdigão de Castro (UNB - Brasília/DF), Marcelo Rodrigues da Silva Torricelli
(PUC – Campinas/SP), Marianna de Queiroz Gomes (UFC – Fortaleza/CE), Pablo Domingues Ferreira de Castro (IDP –
Brasília/DF), Renan Cauê Miranda Pugliesi (UENP – Jacarezinho/PR) e Taysa Matos do Amparo (UFBA – Salvador/BA).

CORPO DE AUTORES(AS) DESTE VOLUME:


André Peixoto de Souza (UFPR – Curitiba/PR), Anna Carolina Canestraro (USP – São Paulo/SP), Aury Lopes Junior
(PUC - Porto Alegre/RS), Bárbara Feijó Ribeiro (Introcrim/CEI – Curitiba/PR), Gabriel Marson Junqueira (Universidade de
Salamanca/Espanha), Guilherme Brenner Lucchesi (UFPR – Curitiba/PR), Hiroshi Kawatsu (JFBA/Japan), Ivan Candido
da Silva de Franco (USP – São Paulo/SP), Kauana Vieira da Rosa Kalache (Universidade da Califórnia em Los Angeles/
EUA), Marlus H. Arns de Oliveira (PUC – Curitiba/PR), Michelle Gironda Cabrera (PUC – Curitiba/PR), Pedro Luís de
Almeida Camargo (Universidade de Salamanca/Espanha), Túlio Felippe Xavier Januário (Universidade de Coimbra/
Portugal), e Vinicius Gomes de Vasconcellos (UEG - Anápolis/GO).

PRODUÇÃO GRÁFICA E CAPA: Able Digital | Tel.: (11) 97426-3650 | E-mail: contato@abledigital.com.br
REVISÃO: Rogério Pelizzari de Andrade | E-mail: rpelizzari@alumni.usp.br
IMPRESSÃO: Eskenazi Indústria Gráfica | Tel: (11) 98424-0654

BASES DE DADOS INDEXADAS:

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