Ebook A Genialidade de Villa Lobos

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 130

a genialidade de

Villa-Lobos
© 2022, by Autores

Ficha catalográfica
Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM
Museu Villa-Lobos – MVL
Biblioteca José Vieira Brandão – BJVB
Serviço de Processos Técnicos

S168g Salles, Paulo de Tarso


A Genialidade de Villa-Lobos / Paulo de Tarso Salles, Loque
Arcanjo Jr. ; Curadora Ana Brites – Rio de Janeiro, RJ : Aloha
Consultoria & Eventos, 2022.
128 p. : il. color.

Essa publicação é resultado do projeto “A Genialidade de Villa-


Lobos – 100 Anos da Semana de Arte Moderna”.
ISBN: 978-65-998456-0-4

1. Heitor Villa-Lobos - Gênio. 2. Villa-Lobos - Vida - Obra. 3.


Semana de Arte Moderna. 4. Modernismo. 5. Música Brasileira. I.
Arcanjo Jr, Loque. II. Brites, Ana. III. Título.

CDD 780

Ficha elaborada por Danielle de Lima Silva Soares


Bibliotecária Documentalista CRB-7/7280

Direitos reservados a

Av.Ruy Frazão Soares, 121/ 202


22793-074 | Barra da Tijuca | Rio de Janeiro | Brasil
t. (21) 99252-1878 | alohaeventos.com.br
2022
Printed in Brazil
a genialidade de
Villa-Lobos
autores curadoria
Paulo de Tarso Salles Ana Brites
Loque Arcanjo Jr.
curadoria e roteiro
Ana Brites

autores
Paulo de Tarso Salles
Loque Arcanjo Jr.

capa, projeto gráfico e diagramação


Pedro Tajiki Salles / Práxis Editorial

infografia
Júlia Fagundes / a Ilustra

mídias sociais
Bruno Ribeiro

assessoria de comunicação
Hulda Rode

assessoria jurídica
VMAA Advogados Associados

assessoria contábil
Rio Barra Serviços Contábeis

imagens
Acervo Museu Villa-Lobos

direitos de imagem
Academia Brasileira de Música presidente do Instituto Brasileiro de Museus
Pedro Mastrobuono
produção
Aloha Consultoria & Eventos diretor do Museu Villa-Lobos
Luiz Octávio Mendes de Oliveira Castro
patrocinadores
BAP Administração de Bens divisão técnica
Luso Brasileira Bianca Freitas
Afonso Kuernez Arquitetura Danielle Soares
BM RIO Juliana Amado
Barlovento Brasil Energias Renováveis Pedro Belchior

divisão administrativa
José Ricardo Alberto
Vanea Rabelo

estagiários
Eduardo Seabra de Lima
Lucas Martins da Fonseca Santos

apoio
Alex dos Santos
Aline da Silva
André Ferreira dos Santos
Cláudio Rogaciano
Pamella Pereira
Ronaldo Querino
6 Apresentação 45 De volta ao Rio, 1924

15 Introdução 47 Retorno a Paris, 1927

Os primeiros anos: de Tuhú a


17 Villa 48 Os Choros

O retorno (definitivo) ao
Villa-Lobos, o violão e os
54 Brasil, 1930
20 chorões
56 Villa-Lobos e o carnaval
As viagens do jovem Heitor
23 pelo coração do Brasil 59 Villa-Lobos e as crianças

O primeiro casamento e o 63 As Bachianas Brasileiras


24 piano O cancioneiro brasileiro nas
69 canções de Villa
Do “Cavaquinho de Ouro” ao
27 Municipal Mindinha e o Museu Villa-
71 Lobos
30 Preparativos para a ida a Paris
A Academia Brasileira de
Villa-Lobos na Semana de Arte
31 Moderna 72 Música

O embaixador da cultura
A música de Villa-Lobos na
37 Semana de Arte Moderna 75 brasileira

Cartas inéditas de Villa-


Villa-Lobos e os modernistas
41 em torno da Semana de 22 76 Lobos

Para pensar Villa-Lobos, a


43 Villa-Lobos em Paris, 1923 120 Semana e o Brasil...
Apresentação
Este livro – A Genialidade de Villa-Lobos – O livro é, para todo o público, historiadores,
representa, para o Museu Villa-Lobos, mais museólogos, educadores musicais e outros
um grande pilar para a sua função social de profissionais vinculados ao legado de Villa-
divulgar, de forma clara, precisa e objetiva, -Lobos, um grande presente e mais uma es-
a história e o legado do grande compositor, pecial peça de reforço ao labor desses pro-
sua trajetória de amor e dedicação à música fissionais, mesmo por conta da forma como
em seus vários contornos e caminhos, como são conduzidos os detalhes das descrições
a “clássica brasileira” de todos os tempos, evolutivas da vida e obra do nosso patrono
alcançando espaços temporais inesperados, e da leveza dessas descrições, com visual
como a chegada ao século atual contando colorido por imagens históricas marcantes.
com espontâneo e pleno interesse público.
Ressaltamos o nosso interesse em sem-
Contribuir com a presente obra e o tão pre estreitar as relações e o diálogo com
magnífico resultado de seus autores – Paulo todo o público que nos cerca – sejam pes-
de Tarso Salles e Loque Arcanjo Jr. –, por soas físicas ou instituições públicas e pri-
meio do apoio técnico necessário e a dispo- vadas - e esta obra vem contribuir espe-
nibilização de dados históricos e peças do cialmente para isso, para fortalecer mais
acervo do nosso Museu, representa, princi- ainda essas relações de parceria em prol
palmente, um grande orgulho de nossa par- do carinho pela música e do legado de
te, mais ainda quando observamos a forma, um dos seus grandes criadores no Brasil.
nela inserida, do detalhamento histórico
não só da obra de Villa-Lobos, mas tam- Boa leitura!
bém da trajetória de sua vida, de suas ações
e de suas felizes parcerias e andanças pelo Veja um vídeo com
imagens gravadas
Brasil e pelo mundo, sempre buscando al- em 8mm do compo-
cançar a nota melhor de suas partituras e a sitor, na década de
50 no Rio e em Nova
maior divulgação dos “clássicos” brasileiros. Iorque. Filme em
exibição no Museu
Villa-Lobos!

8
O projeto “A Genialidade de Villa-Lobos – 100 Anos da Semana
Curadora de Arte Moderna” foi idealizado para homenagear um dos maio-
Ana Brites res músicos das Américas, que teve um papel fundamental para
o estabelecimento da cultura brasileira no cenário mundial.

Apresentar ao grande público a vida e obra de Villa, gênio, sen-


sível, à frente de seu tempo, que trouxe o folclore e a cultura ge-
nuinamente brasileira para dentro de suas obras que encantam
até hoje, por seu pujante caráter inovador.

Na trilha do movimento modernista, que culminou na icôni-


ca Semana de Arte Moderna de 1922, um jovem, audacioso e
ousado, teve a coragem de inovar no ambiente da música dita
erudita, criando composições que dialogavam com as vanguar-
das europeias, mas que traziam elementos marcantes afrobrasi-
leiros, indígenas, caipiras e de tantas outras expressões de nossa
rica cultura popular.

A jornada de Villa foi fundamental para abrir portas para as ge-


rações futuras. Criou um portal de intercâmbio internacional,
colocando a música brasileira em destaque vitalício.

Villa revolucionou seu tempo e provou que é possível inovar de


forma simples, no entanto genial.

O projeto contempla rodas de conversas sobre a vida e a obra de


Villa, oficinas de composição musical para crianças e criou esta
publicação especial comemorativa em homenagem ao Centená-
rio da Semana de Arte Moderna.

Este livro tem o viés interativo e multimídia e faz um percurso


desde a gênese do modernismo até os tempos atuais, buscando
apresentar as influências e o legado do Modernismo para a Cul-
tura Brasileira e suas múltiplas expressões.

É um convite para todos conhecerem a vida e obra de Villa, um


indiscutível gênio.

9
Para a criação dessa incrível obra, buscamos a parceria com o
Museu Villa-Lobos, com a Academia Brasileira de Música e com
dois dos mais renomados pesquisadores e especialistas em Villa,
Paulo de Tarso Salles e Loque Arcanjo Jr.

Embarcamos em uma viagem encantadora que trouxe muitos


encontros e muitas revelações – inclusive das inéditas cartas
trocadas por Villa-Lobos com participantes da Semana e pesso-
as que marcaram sua trajetória.

Estamos muito felizes com o resultado do projeto, que dispõe


de versão online e gratuita, o que possibilita o acesso vitalício a
este manancial de conhecimento didático para iniciantes e ini-
ciados.

O projeto e o livro foram idealizados para contribuírem com a


democratização do acesso à obra e vida de Tuhu – como Villa era
chamado carinhosamente por sua família.

Agradecemos o apoio dos patrocinadores BAP Administração


de Bens, Luso Brasileira, Afonso Kuernez Arquitetura, Barlo-
vento Brasil Energia Renováveis e BM RIO que foram funda-
mentais para prestarmos essa importante homenagem.

Bem vindos a bordo do trem de Villa... Ouçam uma de suas mais


famosas obras e se sintam a bordo do trenzinho do caipira que
nos levará por toda nossa jornada com garantia de muita emo-
ção em cada parada.

O “Trenzinho do Caipira” é o
IV movimento da peça Bachia-
nas Brasileiras nº 2. A obra se
caracteriza por imitar o movi-
mento de uma locomotiva com
os instrumentos da orquestra.
Escute a gravação da Orques-
tra Sinfônica Brasileira, em
2015

10
Paulo de Tarso Salles nasceu em São Paulo e é musicólogo,
Os Autores com pós-doutorado pela University California Riverside, dou-
torado em Composição pela Universidade Estadual de Campi-
nas e mestrado em Artes pela Universidade Estadual Paulista.
Graduou-se como bacharel em Música pela Universidade São
Judas Tadeu, com especialidade em violão, sob orientação de
Henrique Pinto e Giacomo Bartoloni. Leciona desde 2008 no
Departamento de Música da Universidade de São Paulo (USP),
onde é Professor Associado na área de Teoria e Análise Musical.
Tornou-se um especialista na obra de Heitor Villa-Lobos, pro-
movendo uma série de iniciativas metodológicas e acadêmicas
para a reavaliação, revisão e divulgação da obra do compositor
brasileiro. É autor dos livros Aberturas e impasses: a música no
pós-modernismo e seus reflexos no Brasil (1970-1980) (Ed. Unesp,
2005); Villa-Lobos, processos composicionais (Ed. Unicamp, 2009);
Os Quartetos de Cordas de Villa-Lobos: forma e função (Edusp,
2018); e organizou, com Norton Dudeque, o livro Villa-Lobos,
um compêndio: novos desafios interpretativos (Ed. UFPR, 2017). Tra-
duziu o livro Heitor Villa-Lobos: vida e obra (1887-1959) de Eero
Tarasti (Ed. Contracorrente, 2021).

Loque Arcanjo Júnior é historiador, nascido em Belo horizonte


no ano de 1976. Graduou-se em História em 2000 e, entre os
anos de 2005 e 2013, seguiu carreira acadêmica no Programa
de Pós-Graduação em História Social da Cultura (mestrado e
doutorado) da UFMG, sempre com as pesquisas voltadas para a
obra de Villa-Lobos e as relações com as identidades musicais
brasileiras. É professor do Departamento de Teoria Musical da
Escola de Música e do Programa de Pós-Graduação em Artes
da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Pesquisa-
dor vinculado ao Grupo de Pesquisa PAMVILLA - Perspectivas
Analíticas para a Música de Villa-Lobos da ECA/USP e ao Gru-
po de Pesquisa Corpuslab da Escola de Música da UEMG. É au-
tor dos livros Heitor Villa-Lobos: os sons de uma nação imaginada
(Editora Letramento, 2016) e O ritmo da mistura e o compasso da
História: o modernismo musical nas Bachianas Brasileiras de Heitor
Villa-Lobos (Editora E-papers, 2008)

11
Os patrocinadores

Segundo o que diz o dicionário, “maestro” de um objetivo comum? Em uma analogia


é aquele ou aquela que tem a função de ad- simples, mas franca, gerir um ambiente con-
ministrar, dirigir ou organizar uma orques- dominial com eficiência é saber identificar
tra, coro ou banda. E nessa missão, o carioca diferentes talentos, zelar pelo encadeamen-
Heitor Villa-Lobos talvez tenha sido o mais to ritmado das partes, cuidar para fugir de
incrível maestro de todos os tempos. descompassos e ao mesmo tempo saber o
momento certo para improvisar, inovar. E
Compositor, maestro, violoncelista, pianista nunca, de forma alguma, perder o tom.
e violonista brasileiro, por muitos – mereci-
damente – descrito como “a figura criativa Dos 100 anos da Semana de 22, em São Pau-
mais significativa do século XX na música lo, a BAP Administração de Bens, uma em-
clássica brasileira”, tornou-se o compositor presa “carioca da gema”, tal como o maestro
sul-americano mais conhecido pelo menos Heitor, nasceu do sonho de César Thomé
nos últimos cem anos. Júnior há exatas cinco dessas décadas.

Hoje, em 2022, seu nome ecoa com ainda “Eu tinha o sonho de ter uma empresa que
mais potência por toda a sua contribuição poderia ser mais e fazer mais. Mais por sua
para a cultura brasileira. Um gênio que mis- cidade, por seus clientes, colaboradores e
turou toda a erudição dos clássicos com o fornecedores. Uma empresa que pudesse
nosso tropicalismo, e que resultou em uma crescer de forma sustentável, fazendo a dife-
música genuinamente brasileira, única. Foi rença na vida das pessoas”, entoa Thomé, ao
assim que se tornou um ícone da Semana se referir aos seus ideais mais originários. Na
da Arte Moderna, de 1922, ao lado de Di Ca- verdade, para ele, a sua razão de “ser BAP”.
valcanti, Mario de Andrade, Anita Malfatti e
muitos outros. A virada de página de tudo o De lá pra cá, nossas vidas passaram por im-
que encontramos nas artes dali pra frente, portantes transformações. As cidades cada
uma nova forma de fazer e interpretar nos- vez mais verticalizadas, crescimento demo-
sas expressões culturais. gráfico representativo, novos comporta-
mentos sociais e familiares, estilo de vida
Mas porque - ora bolas! - todo esse prelúdio etc. Não dava para ficar parado esperando
a respeito de Villa-Lobos e sua maestria na o tempo passar, não é mesmo? De fato, não
condução de um grupo de pessoas em prol dava. E não deu.

12
Em 50 anos, a empresa viu seus pro-
cessos iniciais se reestruturarem e
darem lugar a uma condução cada
Como apoiadores da arte em geral,
vez mais profissional e conectada aos
nós da Afonso Kuenerz Arquitetura
novos tempos. Era preciso seriedade,
nos sentimos muito felizes em parti-
tecnicidade, mas também uma certa
cipar do patrocínio do livro do Cen-
dose de ousadia, criatividade e hu-
tenário da Semana da Arte Moderna,
manização na veia. Não cabia mais o
evento da maior relevância no cená-
básico, era preciso ir além.
rio artístico brasileiro.

Mas ir para onde exatamente? Em


Villa Lobos, que representou o Rio
qual direção? A empresa também
de Janeiro naquela Semana, é sinô-
compreendeu com o passar do tem-
nimo de inspiração, sensibilidade,
po que, antes de agir, era preciso ou-
emoção. São atributos que buscamos
vir. E a partir daí, entender. Honesta-
vivenciar e desenvolver ao elaborar
mente e profundamente. Primeiro, a
projetos, sejam de arquitetura legal,
necessidade do cliente colocando-se
de execução, de paisagismo ou con-
em seu lugar, depois, o processo – o
cepções espaciais.
jeito de fazer.

Assim como o músico, o arquiteto


Hoje, cerca de 130 profissionais enca-
anseia por criar o sublime, o inusi-
ram o desafio de ir além, diariamente.
tado, o elo com a transcendência. E
A labuta é árdua, já que a atividade
a métrica está para a música assim
está longe de ser estática, é repleta
como a geometria está para a arqui-
de burocracia enraizada e ao mes-
tetura. Em ambos os casos, a técnica
mo tempo precisa atender um ritmo
a serviço da arte.
frenético de novas determinações le-
gais e administrativas. Mas esmorecer
Expressar a beleza, comunicar en-
nunca esteve na pauta do dia, e nem
cantamento e emoção, eis o grande
mesmo na partitura.
anseio do artista!

O sonho de César, maestro dos imó-


veis, agora é de todos.

13
Ao longo de 69 anos de atividades inin- tístico-cultural que abriu novos horizontes à
terruptas, a Luso Brasileira Serviços Ltda cultura nacional.
manteve viva a importância de um trabalho
voltado também à preservação da consciên- Assim, a Luso Brasileira se associa à inicia-
cia social ao gerar milhares de empregos. tiva que visa às homenagens a Villa Lobos,
Nos últimos anos, valendo-se dos incentivos mediante uma programação que contem-
fiscais, estendeu recursos à causa cultural, plará concertos, rodas de conversas e o lan-
patrocinando peças teatrais e shows em pal- çamento de um livro que aborda a vida e a
co notáveis, como o da Casa de Arte e Cul- obra do compositor.
tura Julieta de Serpa.
Na qualidade de uma empresa preocupada
Neste ano de 2022, que marca o centenário também em preservar e ampliar o acesso
da Semana de Arte Moderna, é louvável re- do público aos eventos de cunho cultural, a
lembrar a obra notável do compositor Hei- Luso Brasileira sente-se honrada em parti-
tor Villa Lobos, que representou o Rio de cipar de um projeto que permitirá conhecer
Janeiro naquele evento, um movimento ar- mais e melhor a obra de Villa Lobos.

Inaugurada em junho de 2020, a BM RIO hoje referência no segmento, seja pelo alto
é uma representante exclusiva das marcas índice de satisfação dos consumidores, seja
BMW, MINI e BMW Motorrad. Localizada pelas premiações em concursos da BMW.
no bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio de
Janeiro, a concessionária se propõe a ofere-
cer uma assessoria em venda e pós-venda à Mais recentemente, em março de 2022,
altura do seu público consumidor. Seus pi- a concessionária expandiu para Teresó-
lares são o alto padrão de atendimento aos polis, região serrana do Rio de Janeiro.
clientes e a robustez financeira.

A equipe se dedica a assegurar uma experi- Além dos atributos estruturais e de atendi-
ência marcante, por meio de uma assistên- mento, outro diferencial da marca é o inves-
cia personalizada ao longo de todo o ciclo timento em eventos que apoiam a cultura.
de relacionamento, em linha com o espírito A BM RIO está em Botafogo, na Rua Mena
da montadora alemã, que tem como essên- Barreto, 161, Zona Sul do Rio de Janeiro, e
cia oferecer o puro prazer de dirigir e pilo- na Região Serrana, na Avenida Alberto Tor-
tar. Por sua gestão arrojada, mesmo jovem, a res, 1165, em Teresópolis.
BM RIO já acumula grandes resultados, e é
Somos uma engenharia especializada em A presença ativa da Barlovento em vários
energias renováveis. Podemos prestar assis- países, permite assegurar aos clientes um
tência técnica no desenvolvimento de pro- enfoque mais próximo, compreendendo as
jetos eólicos e solares em qualquer lugar do circunstâncias próprias dos lugares onde
mundo. serão desenvolvidos os projetos, para dar
soluções adequadas tendo em conta fatores
Desde 1998, a Barlovento contribui de for- locais que podem influir no bom desenvol-
ma ativa ao desenvolvimento de um mun- vimento dos mesmos.
do mais sustentável com seu conhecimento
técnico das energias de origem limpo. Nossos laboratórios de ensaios de energias
renováveis estão acreditados para diversas
Assessoramos em mais de 40 GW eólicos atividades em energia eólica, energia solar
e 5 GW fotovoltaicos construídos; gerimos e campanhas de medição, de acordo com as
mais de 2400 estações de medição em todo normas ISO, IEC e normas nacionais e in-
o mundo; realizamos o ensaio de mais de ternacionais.
300 modelos de aerogerador; e desenhamos
mais de 250 parques eólicos. As principais áreas de atividade da Barlo-
vento são a avaliação de recurso eólica e
As diretrizes da Barlovento em sua atuação solar, a integração em rede, e outros servi-
são independência, proximidade ao cliente ços relacionados com o meio ambiente e a
e qualidade técnica. I+D+i (Pesquisa, Desenvolvimento e Inova-
ção).
A equipe da Barlovento, é multidisciplinar,
formado por engenheiros, matemáticos, físi- Estamos inseridos no ecossistema de ESG e
cos e economistas, entre outros. Todos reali- somos incentivadores de projetos sócio-cul-
zam seu trabalho ao mais alto nível de pro- turais que contribuem com a melhoria do
fissionalismo realizando cada projeto único meio ambiente a educação, sustentabilidade
e comprometendo-se de maneira pessoal. e cultura das pessoas de todas as idades.
“O povo é, no fundo,
a origem de todas
as coisas belas e
nobres, inclusive da
boa música!”

16
Introdução
Este livro apresenta aos leitores e rios e Heitor Villa-Lobos, vida e obra
leitoras aspectos relevantes sobre a (1887-1959) de Eero Tarasti, entre ou-
vida e música de Heitor Villa-Lobos tros. Outros pontos aqui levantados
(1887-1959), compositor nascido no vêm de nossas pesquisas em jornais
Rio de Janeiro e considerado como o de época, apontando alguns detalhes
principal representante da chamada e esclarecendo certos pontos contro-
“música clássica” brasileira em todos versos; esse material está disponibili-
os tempos. zado em grande parte na Hemerote-
ca Digital da Biblioteca Nacional do
Os fatos aqui narrados são de conhe- Rio de Janeiro.
cimento público, alguns deles compi-
lados a partir de estudos biográficos De quebra, traz cartas inéditas que
sobre o compositor, especialmente o Villa-Lobos trocou com familiares,
livro Heitor Villa-Lobos de Vasco Ma- amigos, colegas, mecenas, construin-
riz; Heitor Villa-Lobos: o caminho sinu- do um painel mais detalhado e ínti-
oso da predestinação, de Paulo Gué- mo de sua trajetória.

Hemeroteca Digital

A Hemeroteca Digital Brasileira é um portal de perió-


dicos que permite a consulta pela internet de diversas
publicações disponíveis na Biblioteca Nacional.

17
Este texto irá traçar um perfil biográfico do com-
positor, repassando sua trajetória e mostrando em
especial alguns aspectos relevantes neste momen-
to em que se celebra o centenário da Semana de
Arte Moderna em São Paulo e o bicentenário da
Independência. Dentre dessa narrativa, é mostra-
do como Villa-Lobos desponta a partir de sua con-
vivência com os músicos humildes das rodas de
choro cariocas – seus professores de harmonia e
contraponto – para tornar-se a grande referência
da chamada música clássica no Brasil, reconhecido
internacionalmente.

Villa-Lobos foi o único compositor brasileiro a


participar da Semana de Arte Moderna realizada
em São Paulo em 1922, o que desperta algumas
questões importantes sobre o significado da parti-
cipação desse músico naquele evento:

O que vem a ser “música moderna” no contexto brasileiro


dos anos 1920? Que particularidades haveria na música
feita por Villa-Lobos que são consideradas como indícios
de “modernidade”? O que Villa-Lobos trouxe como con-
tribuição para a identidade nacional da chamada “músi-
ca brasileira”? E atualmente, o que seria “moderno” em
música? Qual o legado da Semana de Arte Moderna para
a sociedade brasileira?

Para responder, ao menos em parte, essas e outras


questões tão significativas, este livro irá apresentar
o contexto em que Villa-Lobos nasceu e fez seus
estudos de música, sua participação na Semana de
Arte Moderna e sua progressiva consagração como
um autêntico embaixador da cultura brasileira no
mundo.

18
Os primeiros anos
de Tuhú a Villa

Heitor Villa-Lobos nasceu em 5 de março de 1887,


no Rio de Janeiro. Ganhou o apelido de Tuhú – a
origem desse apelido ora é atribuída a sua mania
de imitar o som produzido pelo apito de um trem,
ora ao desejo materno não realizado de batizá-lo
como Túlio. Tuhú foi o segundo filho do casal No-
êmia e Raul Villa-Lobos, e teve sete irmãos: Ber-
tha, Carmen, Othon (primeiro), Ester, Clóvis, Gil-
da e Othon (segundo). Desses irmãos, o primeiro
Othon, Ester, Clóvis e Gilda morreram prematu-
ramente, antes dos sete anos de idade; o segundo
Othon morreu aos 26 anos, foi estudante de me-
dicina e futebolista, jogando pelo América F. C. O
pai, Raul, morreu em 1899 aos 37 anos, em decor-
rência da varíola. A mãe, Noêmia, morreu em 1946,
quando o filho Heitor já desfrutava de fama inter-
nacional de grande nome da música.

Embora Raul tenha sido músico amador, nenhum


dos irmãos de Heitor manifestou interesses maio-
res pela música; no entanto, seu avô materno foi
Antônio José dos Santos Monteiro (1830-1890),
notável compositor de modinhas e lundus; além
do talento musical do avô e do pai, Tuhú teve a tia
Zizinha, pianista; conta-se que Heitor gostava de
ouvi-la tocar obras de Bach.

19
Acima, Raul Villa-Lobos, Villa-Lobos com sua família, em 1942: em pé: Villa-Lobos
abaixo, Noêmia, pai e mãe e Paulo Hemídio; sentados da esquerda para a direita (a
do compositor. legenda na foto indica o ponto de vista oposto): Bertha,
Ahygara, dona Noêmia e Carmen.

20
A família, até o falecimento de Raul Segundo contava Heitor, o
Villa-Lobos, tinha status social de
pai o obrigava a reconhe-
classe média; Raul era bibliotecário
cer de ouvido o nome das
na Biblioteca Nacional e foi autor
de livros importantes sobre história,
notas musicais, fosse num
geografia, a maioria deles dedicados instrumento convencional
a temas brasileiros – provavelmente ou um ruído casual; esse
uma influência que se mostrou du- treinamento sem dúvida
radoura no filho Heitor. Durante a contribuiu para desenvol-
infância, Raul foi criado no Asilo dos ver sua audição interna –
Meninos Desvalidos, instituição fun-
habilidade testemunhada
dada em 1875 e voltada primordial-
mente à assistência, acolhimento e
por relatos de pessoas que
profissionalização de crianças desam- presenciaram sua incrível
paradas, dos 6 aos 12 anos – em espe- capacidade de compor em
cial os filhos gerados na vigência da qualquer ambiente, escre-
Lei do Ventre Livre. Raul formou-se vendo suas partituras sem
nessa instituição, onde teve colegas se incomodar com os sons
notáveis como os compositores Fran-
que o cercavam, fosse du-
cisco Braga (1868-1945) e Anacleto de
rante uma conversa, uma
Medeiros (1866-1907).
festa, um ensaio musical
Raul Villa-Lobos ascendeu social- etc.
mente, organizando saraus musicais
em sua residência e frequentando sa- Raul às vezes assinava seus traba-
lões onde se podia encontrar intelec- lhos sob o pseudônimo “Epaminon-
tuais como Silvio Romero ou Barbo- das Villalba”, que Heitor recuperou
sa Rodrigues. Foi Raul quem iniciou anos mais tarde, como “Epaminondas
Tuhú musicalmente, ensinando-o a Villalba Filho”. Um texto de Raul ser-
tocar violoncelo, com uma viola de or- viu como argumento para o poema
questra adaptada com um espigão e sinfônico Amazonas, uma das obras
convertida em um cello em miniatura, mais importantes do compositor.
adequado ao tamanho do menino.

21
Villa-Lobos, o
violão e os chorões
Quando Raul morreu, Tuhú tinha repressão policial, repri-
apenas 12 anos. Os confortos da vida
mindo as rodas de samba,
burguesa em torno da família Villa-
-Lobos foram gradualmente min-
os terreiros e pontos de
guando – Noêmia passou a trabalhar encontro dos mais pobres,
fora de casa, lavando toalhas e guar- sobretudo da população
danapos para a Confeitaria Colombo; negra.
a rígida disciplina imposta pelo pai
não pode ser mantida pela mãe, que Entre 1902 e 1906, o prefeito Pereira
viu frustrado o desejo de ver o filho Passos implementou um projeto de
estudando medicina. modernização do centro do Rio de
Janeiro, demolindo os cortiços,
Heitor passou a se interessar pela abrindo avenidas largas,
vida noturna, aprendeu a tocar violão expulsando a população
e ingressou nas rodas dos chorões, pobre para os morros. O
participando das serestas que anima- modelo civilizatório apre-
vam as noites cariocas de então. Essa ciado então era importa-
mudança de hábitos denota a trans- do de Paris, sua arquitetu-
formação do status social da família; ra, figurinos, música, teatro,
os chorões, o violão, eram pratica- gastronomia, práticas
mente símbolos de um estrato mais
humilde da sociedade.

Esse ambiente era malvis-


to pela alta sociedade ca-
rioca, e em consequência
disso havia considerável

22
culturais consideradas como índices – onde teve aulas de harmonia com
de bom gosto e requinte pelas clas- Frederico Nascimento, Agnelo Fran-
ses mais abastadas, em detrimento da ça e conheceu o grande compositor
cultura popular. Até mesmo pardais Alberto Nepomuceno, mas mudan-
foram trazidos da Europa para dar ças no estatuto e na direção dessa
uma atmosfera mais “parisiense”... instituição encerraram os cursos no-
turnos, impedindo que Villa-Lobos
A biblioteca com livros raros, deixa- pudesse prosseguir seus estudos for-
da como herança por Raul, foi aos mais, os quais duraram poucos me-
poucos sendo negociada por Heitor. ses.
A finalidade era ganhar a simpatia e
aulas práticas de improvisação com O aprendizado com os
os chorões – que podiam ser mais fa- chorões foi um dos aspec-
cilmente obtidas pagando uma roda-
tos mais importantes em
da de bebidas durante as serestas. Ele
passou a frequentar assiduamente as
sua formação musical. Seu
rodas de choro promovidas no “Ao desenvolvimento como
Cavaquinho de Ouro”, loja de instru- violonista foi notável, to-
mentos musicais situada à rua da Al- cando com músicos como
fândega, no centro do Rio, tradicio- Pixinguinha, Donga, Sinhô,
nal ponto de encontro dos chorões. Quincas Laranjeira, Sátiro
Aos 16 anos, provavelmente para não Bilhar, João Pernambuco
discutir com a mãe que reprovava sua
e diversos nomes de des-
vida boêmia, passou a morar com sua
tia Fifina, prima de Noêmia.
taque na cena do choro
carioca do início do século
Em 1904, Villa-Lobos se matricu- 20.
lou no Instituto Nacional de Música

23
O violão, todavia, carregava o estigma de instrumento de vaga-
bundos, capadócios... Villa-Lobos foi um dos principais respon-
sáveis pela valorização desse instrumento, produzindo uma obra
não muito extensa, mas extremamente significativa: Choros nº 1
(1920), 12 Estudos (1929), 5 Prelúdios (1940), Suíte Popular Brasilei-
ra (1912-1940), e o Concerto para violão e pequena orquestra (1951).

Esse impressionante legado musical é grava-


Escute a gravação da
obra completa para vio- do e estudado por violonistas de todo o mun-
lão solo de Villa-Lobos
com o violonista Fabio do, sendo considerado repertório essencial na
Zanon. formação desse instrumento, hoje bastante
valorizado.

O encontro com o famoso violonista espanhol Andrés Segóvia


em Paris nos anos 1920 fez com que Villa-Lobos retornasse ao
violão após um longo tempo dedicado apenas ao cello e à com-
posição para outros instrumentos. Em 1940 ele até chegou a
gravar um disco, tocando ao violão Choros nº 1 e o Prelúdio nº 1.

João Pernambuco (sentado com violão apoiado na perna)


com um grupo de Chorões não identificados

24
As viagens do
jovem Heitor pelo
coração do Brasil
1. O compositor falou
O desejo de conhecer o Brasil, que aprendeu a admirar e imagi- sobre a relação entre os
nar nos livros deixados por seu pai, fez com que Heitor vendesse chorões e a polícia em
uma entrevista: “Sabe o
mais alguns daqueles valiosos volumes para empreender, com que aconteceu uma vez?
19 anos, uma viagem por vários estados como Espírito Santo, Estávamos tocando nas
proximidades da casa de
Bahia, Pernambuco etc. Em 1908 morou em Paranaguá, cidade um juiz. Veio a polícia
litorânea no estado do Paraná – há quem diga que esse “exílio” e pediu para que nós
a seguíssemos. Mas na
paranaense foi motivado por problemas com a polícia, em suas esquina, o policial convi-
noitadas com os chorões!1 O paradeiro dele durante os anos dou-nos a ir tocar em ou-
tro bairro que ele pagaria
de 1908 a 1912 nem sempre é conhecido ou confirmado, mas tudo. Villa-Lobos sorri e
contam-se histórias incríveis sobre aventuras nas cidades por acrescenta: esses policiais
(que nós chamávamos de
onde passou. Em 1912 atuou como violoncelista na companhia secretas) foram nossos
de operetas de Luís Moreira (outro ex-aluno do Asilo dos Meni- perus por muito tempo.
Aliás, a polícia sempre
nos Desvalidos), tio-avô de Chico Buarque; nesse ano Villa-Lo- nos prendia como capo-
bos viveu em Manaus entre abril e setembro. No ano seguinte, a eiras!” (“Graças a Deus já
foi muito vaiado”, Revista
expedição Roosevelt-Rondon fez incendiar o imaginário sobre a Manchete de 7.8.1954, pp.
Amazônia na população da capital federal. 47-48).

25
O primeiro
casamento e
o piano

Villa-Lobos e Lucília em 1934 ou 35

26
Escute a gravação de Rude-
poema com o pianista Lucas
Thomazinho, em concerto
na Fundação Maria Luisa
e Oscar Americano, São
Paulo, 2021

Em 12 de novembro de 1913 Villa-Lobos É nítido que o rumo da carreira de Villa-


casou-se com a pianista Lucília Guimarães -Lobos se define melhor após o casamento.
(1886-1966). Formada pelo Instituto Nacio- Ele abandonou a vida boêmia, as viagens
nal de Música, ela contribuiu decisivamente errantes e se concentrou em estudos de or-
para o aprimoramento técnico do composi- questração e formas musicais clássicas. Era
tor com relação ao manejo de formas musi- necessário dominar essas técnicas para em-
cais oriundas da tradição europeia: sonatas, preender carreira como compositor erudito;
sinfonias, óperas etc. Lucília também o aju- só assim conseguiria que as orquestras e re-
dou a tocar melhor o piano, bem como a es- gentes o levassem a sério. Passou a estudar o
crever com mais eficiência para esse instru- Cours de Composition Musicale de Vincent
mento; além disso foi a principal intérprete d’Indy e a se interessar pela música moder-
e divulgadora da obra pianística dele até os na francesa de compositores como d’Indy,
anos 1930. Camille Saint Saëns, Cesar Franck, Claude
Debussy etc.
Com a ajuda de Lucília, Villa-Lo-
bos aperfeiçoou sua técnica Lucília e Heitor não tiveram filhos; separa-
ram-se em 1936, quando Villa-Lobos já esta-
pianística e criou obras que se
va emocionalmente envolvido com Arminda
firmaram entre as mais impor- Neves d’Almeida – a Mindinha – que viria a
tantes para o repertório do pia- ser sua segunda esposa. Lucília jamais acei-
no no século XX, como a suíte A tou a separação, a qual Villa-Lobos consu-
Prole do Bebê nº 2 (1921) e Ru- mou de maneira bastante rude, por carta.
depoema (1926).

27
Fachada da casa da Rua Dídimo
10, onde Villa-Lobos e Lucília vi-
veram entre 1919 e 1936. O lugar
não resistiu às transformações
urbanas do centro do Rio e hoje
está completamente alterado.
28
Do “Cavaquinho de
Ouro” ao Municipal
Villa-Lobos tratou de esconder sua formação como chorão para
conquistar espaço como compositor erudito, “sério” – já que a
música popular era então menosprezada. O violão foi deixado
de lado por algum tempo, preterido pelo violoncelo, instrumen-
to bem-visto nas salas de concerto. Em janeiro e fevereiro de
1915, ele como violoncelista, Lucília ao piano e o flautista Age-
nor Bens se apresentaram em trio na cidade de Nova Friburgo,
no que é considerado o primeiro concerto dedicado somente a
suas obras. Isso serviu como preparação para um concerto na
capital carioca – Distrito Federal àquela época – no salão do
Jornal do Commercio.

No ano de 1917 ele conheceu, na casa de Leão Velloso – um


importante núcleo de músicos dedicados à música moderna, es-
pecialmente voltada para a nova música apresentada em Paris
Escute a gravação de
– o compositor francês Darius Milhaud, então com 25 anos de Naufrágio de Kleonikos,
idade. O interesse de Milhaud pelos maxixes de Ernesto Naza- Orquestra Sinfônica do
Theatro Municipal do
reth e Marcelo Tupinambá deve ter causado certa confusão em Rio de Janeiro regência
Villa-Lobos, que então se empenhava justamente em dominar de Sílvio Barbato
as técnicas francesas... Sintomaticamente, várias obras signifi-
cativas datadas de 1917 – como Uirapuru, Amazonas, Sinfonia nº
2, Quarteto de Cordas nº 4 etc. – só foram estreadas anos depois,
sugerindo que Villa-Lobos passou por um período de revisão
de seus projetos musicais. Após sua temporada no Rio, Milhaud
compôs obras como a suíte Saudades do Brasil, usando a es-
trutura rítmica do maxixe e do choro de acordo com a técnica
harmônica politonal, que ele desenvolveu e sistematizou.

29
Em 1918 Villa-Lobos conseguiu realizar um concerto com or-
questra no Teatro Municipal do Rio. No programa constavam
os poemas sinfônicos Naufrágio de Kleônicos, Tédio de Alvorada e
Myremis, além da Elegia; e o quarto ato da ópera Izaht. Apesar
de não atrair um grande público, o concerto chamou a atenção
da crítica que considerou o estilo do compositor como um “mo-
dernismo” à maneira de d’Indy, com “dissonâncias que beiram a
Escute a gravação de “O cacofonia”. Se essas obras flertavam com uma estética francesa,
Polichinelo” da suíte A nota-se que eram incômodas pelas novidades que assombravam
prole do bebê nº 1, com
Arthur Rubinstein, pia- o público mais conservador. O estilo moderno era às vezes cha-
no, The BP Super Show, mado pejorativamente de “futurismo”.
produzido pelo canal
GTV-9, de Melbourne,
em 1964. Ainda em 1918 Villa-Lobos conheceu o célebre pianista polonês,
naturalizado estadunidense, Arthur Rubinstein. Durante uma
turnê pela América do Sul, Rubinstein ouviu falar a respeito
de um jovem compositor brasileiro e quis conhecê-lo. Villa-Lo-
bos nessa época tocava em pequenas orquestras nos cinemas
e restaurantes do Rio; ficou embaraçado ao ser abordado por
um músico famoso como Rubinstein e foi ríspido no primeiro
contato. Depois, Villa-Lobos levou um grupo de colegas músi-
cos para mostrar suas obras para Rubinstein, no próprio quarto
do hotel onde ele estava hospedado, dando início a uma grande
amizade.

Rubinstein foi decisivo para divulgar a obra de


Escute a gravação da
Sinfonia nº 3 – “A Guer-
Villa-Lobos pelo mundo, dando credibilidade
ra”, com a Orquesta ao compositor perante o ambiente musical ca-
Sinfônica de São Paulo
dirigida por Isaac Karab- rioca.
tchevsky

O “Polichinelo” da suíte A Prole do Bebê nº 1 (1918) passou a fazer


parte do repertório de Rubinstein, aonde quer que fosse.

As portas começaram a se abrir para Villa-Lobos. Foi convidado


para substituir Alberto Nepomuceno na composição de um po-
ema sinfônico celebrando o final da Primeira Guerra, num con-
certo em homenagem ao Presidente da República recém-elei-

30
to, Epitácio Pessoa, em 1919. Sobre
poemas de Escragnolle Dória, foram
encomendadas sinfonias aos com-
positores Francisco Braga (“A Paz”),
João Octaviano Gonçalves (“A Vitó-
ria”) e Villa-Lobos (“A Guerra”). Villa
teve pouco tempo para compor, após
a desistência de Nepomuceno, cerca
de um mês, mas sua obra foi a quem
causou maior impacto na plateia.

No ano seguinte, ele foi convidado


para compor obras em homenagem
ao casal real belga, convidado por
Epitácio Pessoa para viagem diplomá-
tica ao Brasil. Villa-Lobos quis então
compor ele mesmo as três sinfonias
sobre os poemas de Dória. Todavia,
não conseguiu que “A Paz” fosse in-
tegrada ao programa, para que outros
compositores tivessem espaço. Con-
ta-se que o rei Alberto abandonou o
teatro após a execução de “A Guer-
ra”, causando debandada da plateia.
Desse modo, nem mesmo “A Vitória”
pode ser apresentada. Esse revés, no
entanto, estabeleceu o compositor
Arthur Rubinstein em 1920, com
como um modernista – críticas con-
dedicatória a Villa-Lobos.
servadoras disseram que os ruídos e
sons de floresta teriam incomodado o
monarca belga. O nome de Villa-Lo-
bos se consolidava como um compo-
sitor moderno no cenário brasileiro.

31
Preparativos para a

ida a Paris

Atacado pela crítica, Villa-Lobos tinha alguns aliados que o de-


fendiam através da imprensa. Era certo que ele precisava buscar
sua validação fora do país, para que seu estilo original fosse re-
conhecido e valorizado. Seu potencial exigia um ambiente mais
propício para que ele pudesse desenvolver sua técnica sem as
limitações impostas pelo gosto conservador.

O apoio governamental para que o compositor fosse se apre-


sentar na Europa chegou a ser votado no Congresso em 1922,
mas apenas metade da verba foi liberada. Rubinstein e ou-
tros amigos de Villa-Lobos conseguiram reunir um grupo de
mecenas que complementou os recursos necessários para a
viagem. Antes disso, entretanto, surgiu o convite feito por
Graça Aranha para que Villa-Lobos tomasse parte de uma
Semana de Arte Moderna a ser realizada em São Paulo.

32
Villa-Lobos na

Semana de Arte
Moderna

O concerto realizado por Villa-Lobos em 21 de ou-


tubro de 1921 (foto) atraiu para o Rio de Janeiro
a atenção de dois poetas modernistas paulistas,
Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que não
eram aparentados apesar do sobrenome em co-
mum. A dedicatória do concerto a Laurinda San-
tos Lobo, socialite influente na capital federal, de-
nota o esforço de Villa-Lobos para obter o apoio
necessário, muito provavelmente com a interme-
diação providencial de Rubinstein.

Mário e Oswald com certeza gostaram do que ouvi-


ram; a Semana começou a ser arquitetada durante
a exposição do pintor Emiliano Di Cavalcanti em
novembro. Algum tempo depois, Graça Aranha –
nome já consagrado no meio artístico da época,
emprestando seu prestígio para ajudar a alavancar
a iniciativa dos modernistas – foi ao Rio para con-
vidar Villa-Lobos a participar como o representan-
te musical do nascente movimento.
Jornal A Noite, 17/10/1921. Anúncio de
concerto promovido por Villa-Lobos.

33
Assim, mesmo exercendo atividades mais hu-
mildes para sua subsistência, tocando em ci-
nemas e restaurantes, Villa-Lobos integrou o
movimento como o representante da moderni-
dade musical, junto com os artistas e intelectu-
ais das classes média e alta que idealizaram o
modernismo brasileiro.

Nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 aconteceu no Tea-


tro Municipal de São Paulo a famosa Semana de Arte Moderna,
considerada como um autêntico marco do movimento moder-
nista nas artes brasileiras. Do ponto de vista estético, o movi-
mento representou uma importante atualização técnica e con-
ceitual do fazer artístico em seus diversos meios de expressão:
arquitetura, pintura, escultura, música, poesia, romance, teatro
etc., mas também serviu como um grito de independência em
relação aos modelos importados da Europa, os quais impediam
os artistas brasileiros de expressar de maneira original as
peculiaridades de nossa cultura.

Teatro Municipal de São Paulo, palco da


Semana de Arte Moderna em 1922. 34
O grupo modernista era constituído pelos poetas Mário de An-
drade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de
Almeida, Agenor Barbosa e Plínio Salgado; pelos pintores Anita
Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rêgo Monteiro e John Graz;
pelo escultor Victor Brecheret; pelos arquitetos Antônio Garcia
Moya e Georg Pryzrembel; a música de Villa-Lobos 2. Entretanto, 2. Normalmente se dá
os catálogos e relatos sobre os participantes são inconclusivos e destaque ao compositor
como autor das obras
há outros nomes que são às vezes suprimidos ou mencionados. apresentadas, cabendo
um papel secundário aos
músicos intérpretes, que
Talvez a principal razão para que a Semana de Arte Moderna não serão mencionados mais
tenha acontecido no Rio de Janeiro, sede do governo federal à adiante.

época, seja justamente o fato de a cidade abrigar as principais


instituições acadêmicas, como a Escola Nacional de Belas Artes
(1816) ou a Academia Brasileira de Letras (1897). São Paulo, em
contrapartida, não tinha escolas ou galerias de arte, nem crítica
especializada para tratar das questões estéticas; vivenciava um
grande crescimento do setor industrial, recebendo imigrantes
europeus com experiência no manejo das máquinas. A elite bur-
guesa paulista começava a ansiar por um ambiente revitalizado
e menos provinciano, espelhando seu esplendor econômico. As-
sim, a cidade começava a se embelezar para as comemorações
do centenário da Independência, impulsionando a construção
de grandes residências urbanas para os fazendeiros produtores
de café, parques, monumentos e outros aparatos que colocas-
sem em evidência a efervescência daqueles tempos.

Naturalmente, os modelos arquitetônicos e imagéticos dessas


obras favoreciam a importação da arte acadêmica europeia; no
entanto, o final da Primeira Guerra Mundial, em no-
vembro de 1918, provocou certa exacerbação de ideias
nacionalistas que passaram a fomentar um debate so-
bre a necessidade de uma expressão artística com
identidade e originalidade nacionais.

A geração mais jovem dos endinheira-


dos também observou que na Europa
havia uma reformulação da sensibili-

35
dade artística, um cenário político e econômico diferen-
te e a eclosão de movimentos como a Revolução Russa,
além da sucessão vertiginosa de movimentos artísticos
como o futurismo, impressionismo, expressionismo,
cubismo. O estabelecimento de meios mecânicos de fi-
xação de som e imagem, como a fotografia, o gramofone,
o cinema, tornou obsoleta a concepção da arte como
mera imitação da natureza, permitindo que os artistas
passassem a explorar aspectos inusita-
dos da psicologia humana – os quais
estavam em discussão com a cres-
cente divulgação das pesquisas de
Jung e Freud.

Esta elite letrada estava também inte-


ressada na atualização das artes e na
projeção de um Brasil moderno em re-
O Abapuru, de Tarsila do Amaral lação à Europa. Os modernistas da Semana re-
ceberam o patrocínio de atores importantes que vieram do seio
desta elite, como Olivia Guedes Penteado e Paulo Prado.

Dentre outros fatores, a Semana de Arte Mo-


derna de 1922 é considerada um marco na arte
brasileira por se tratar de uma busca pela atu-
alização da produção nacional em relação ao
cenário contemporâneo europeu. Em um sen-
tido mais amplo, e contextualizado, representa,
também, as reflexões sobre o lugar das artes
e da cultura brasileiras no contexto da recém
proclamada República, do pós-Primeira Guer-
ra Mundial (1914-1918) e da celebração crítica
do centenário da Independência.

O estudo dos antecedentes da Semana de Arte Moderna é parte


significativa do processo de compreensão das questões políti-
cas e sociais que se traduziriam como reflexão estética suscitada

36
pelas apresentações artísticas. As experiências modernistas an-
tes de 1922 são importantes para compreendermos este evento
como ponto culminante de um processo que se iniciara na dé-
cada anterior, como as exposições dos pintores Lasar Segall e
Anita Malfatti, que trouxeram novas informações ao ambiente
conservador que predominava nas artes plásticas no Brasil.

A exposição de Anita Malfatti em 1917 e a crítica de Monteiro


Lobato intitulada “Paranoia ou Mistificação?” publicada no jor-
nal O Estado de São Paulo na qual o escritor atacava de forma
agressiva a jovem artista está marcado como um dos episódios
marcantes que antecederam o modernismo fomentado durante
a Semana. A crítica serviu como elemento aglutinador do que
viria posteriormente, pois Oswald Andrade e Mário de Andrade
saíram em defesa de Anita, o mesmo acontecendo no caso de
Di Cavalcanti e Guilherme de Melo.

Os desdobramentos da Semana de Arte Moderna podem ser


identificados na produção modernista posterior, em especial
no Manifesto Pau-Brasil (1924) e no Manifesto Antropófago (1928),
escritos por Oswald Andrade, e nas obras de Mário de Andrade,
tais como o Ensaio sobre a Música Brasileira e Macunaíma, ambos
de 1928. O mesmo pode-se dizer em rela-
ção às artes plásticas representadas, por
exemplo, pelas obras de Tarsila Amaral, tais
como A Negra e O Abaporu.

A Negra, de Tarsila do Amaral

37
“O folclore sou eu!”

Villa-Lobos regendo concen-


tração orfeônica no Estádio
38 do Vasco da Gama
A música de Villa-Lobos na

Semana de Arte
Moderna

Ao passar pelo saguão de entrada do Teatro Municipal, a plateia


recebia o impacto dos quadros de Anita Malfatti e dos demais
artistas. As palestras de Graça Aranha, Mário de Andrade e Me-
notti del Picchia foram provocadoras, contrapondo a estética
modernista à acomodação academicista; colocando em xeque
a perenidade dos modelos estéticos consagrados, como a ópera
em estilo italiano de Carlos Gomes, a pintura paisagista à ma-
neira francesa, ou a poesia parnasiana de Olavo Bilac.

A música teve participação decisiva na Sema-


na de Arte Moderna, não apenas pelo conteú-
do artístico apresentado, mas também sendo
responsável por atrair público para o evento,
tendo como chamariz principal a participação
da consagrada pianista Guiomar Novaes, além
do respeitado Ernani Braga. Mas a reação da
plateia nem sempre foi amistosa. A entrada de
Villa-Lobos no palco, calçando chinelos – por
causa de uma crise inflamatória – foi interpre-
tada como uma atitude irreverente e desres-
peitosa por parte da plateia, que pontuou os
concertos com vaias e ataques aos músicos.

39
A participação de Guiomar Novaes estabeleceu uma espécie de
O Sesc lançou um “ponte” entre o repertório tradicional, como intérprete notável
conjunto de quatro CD’s
que reúne pela primeira
da obra de Chopin, compositor amplamente reverenciado pelo
vez as obras que foram público, habituado ao romantismo musical. Embora a música
apresentadas nos três
dias da Semana de Arte
do gênio polonês não estivesse programada para os concertos, a
Moderna de 1922. Você plateia poderia naturalmente esperar um eventual bis com um
pode escutar no site do
Sesc Digital.
de seus Noturnos ou Polonaises. A pianista, no entanto, não fez
essa concessão (ou pelo menos isso não foi registrado nos rela-
tos da semana, nas “seis vezes” que retornou ao palco); ao invés
disso, ela tocou peças de um compositor mais recente, o francês
Claude Debussy (1862-1918), cuja obra é considerada “um pon-
to de partida preciso” para a música moderna.

A música de Debussy era associada por parte da crítica à pin-


tura impressionista, sendo muitas vezes rotulada como “músi-
ca impressionista”, adjetivo usado no início do século XX para
caracterizar as obras musicais mais recentes, às vezes pejorati-
vamente, como também o termo “futurista”, colocando (indevi-
damente) no mesmo caldo estilos diversos como a pintura im-
pressionista de Monet, o fauvismo, os pintores expressionistas
alemães, músicos como D’Indy, Franck, o futurismo de Marinetti
etc. Na vertigem revolucionária parisiense dos anos 1920, a mú-
sica de Debussy já era considerada “antiquada”, principalmente
após o impacto causado pela estreia de A sagração da primave-
ra de Igor Stravinsky em 1913. Entre os jovens compositores
franceses de então, surgiu o movimento do “Grupo dos Seis”,
reunindo Darius Milhaud, Germaine Tailleferre, Georges Auric,
Francis Poulenc, Louis Durey e Arthur Honegger, os quais ti-
nham como referencial estético a música de Eric Satie, além da
poesia e ideias de Jean Cocteau.

Uma das peças de Satie, “Edriophtalma” (da série Embriões


Dissecados), tocada por Ernani Braga durante a palestra inau-
gural de Graça Aranha, parodiava a famosa “marcha fúnebre”
de Chopin, o que desagradou a Guiomar Novaes, que publicou
3. Guiomar Novaes, Cor-
reio Paulistano, 15.2.1922. uma nota onde se manifesta “sinceramente contristada com a
exibição de peças satíricas, alusivas à música de Chopin”.3 Mes-

40
mo assim, a pianista honrou o compromisso assumido em participar do se-
gundo dia do festival.

Villa-Lobos não compôs especialmente para a Semana


de Arte Moderna, praticamente repetindo o programa do
concerto de outubro de 1921.

Além dos já citados pianistas Ernani Braga e Guiomar Novaes, convidados


especiais dos organizadores do evento, Villa-Lobos trouxe do Rio de Janei-
ro alguns de seus principais intérpretes: os cantores Frederico Nascimento
Filho e Maria Emma, a pianista Lucília Guimarães Villa-Lobos (sua esposa
à época), o quarteto de cordas integrado por Paulina D’Ambrosio e George
Marinuzzi (violinos), Orlando Frederico (viola) e Alfredo Gomes (cello), além
de Alfredo Corazza (contrabaixo), Pedro Vieira (flauta), Antão Soares (clarine-
te e saxofone) e Fructuoso Vianna (piano), que complementaram o octeto que
tocou as Danças Características Africanas.

O formato das apresentações na Semana de Arte Moderna era mais adequa-


do às formações de música de câmara ou solos. No concerto do dia 13 foram
apresentados a Sonata nº 2 para cello e piano (1916), o Trio nº 2 para piano, vio-
lino e cello (1916), três peças para piano (Valsa mística, Rodante e A fiandeira) e
as Danças Características Africanas em versão para octeto (dois violinos, viola,
cello, contrabaixo, flauta, clarinete e piano).

O segundo dia do festival (15.2.1922) teve a apresentação de Guiomar No-


vaes, que tocou de Villa-Lobos “O Ginete do Pierrozinho” (de Carnaval das
Crianças), além de obras de compositores franceses: Au jardin du Vieux Sérail
de Émile-Robert Blanchet; “La Soirée dans Grenade” (da série Estampes) e
o Prelúdio “Minstrels”, de Debussy; sem falar no extra, Arlequin de Henri
Stierlin-Vallon. Depois, Frederico Nascimento Filho e Lucília Guimarães
apresentaram três canções villalobianas: “Festim pagão” e “Solidão” (da série
Historietas) sobre poemas de Ronald de Carvalho; Cascavel, sobre poema de
Costa Rego Jr. O concerto foi encerrado com o Quarteto de Cordas nº 3 (1916)
– conhecido como o quarteto “das pipocas” devido ao uso extensivo do pi-
zzicato no segundo movimento, tocado pelo conjunto liderado por Paulina
D’Ambrosio.

41
O último dia de atividades da Semana de Arte Moderna
(17.2.1922) teve as seguintes obras de Villa-Lobos: Trio nº 3 (1918)
para piano, violino e cello; três canções da série de Historietas
(1920), sobre poemas de Ronald de Carvalho no idioma fran-
cês, com Maria Emma e Lucília Guimarães; a Sonata nº 2 (1914)
para violino e piano (Paulina D’Ambrosio e Fructuoso Vianna);
três solos para piano com Ernani Braga: Camponesa cantadeira,
Num berço encantado e Bailado infernal. O encerramento foi com
o Quarteto Simbólico (expressões da vida mundana), para flauta,
saxofone, celesta e harpa (ou piano)4, com coro feminino oculto,
4. No concerto, Fructuoso
Vianna tocou a parte da posicionado nas coxias ao lado do palco.
harpa ao piano.

Apesar do consenso entre os críticos, que des-


tacam a influência do francês Claude Debussy
sobre as composições apresentadas por Villa-
-Lobos na Semana de Arte Moderna, mesmo
assim é possível observar nesse repertório a
inserção sutil de alguns elementos caracterís-
ticos da música brasileira.

Destaca-se o Quarteto Simbólico, obra sutil, com características


francesas na superfície sonora (especialmente pela combinação
dos timbres), mas adotando uma estrutura formal livre, rapsódi-
ca, onde os temas vão se encadeando sem um esquema prede-
terminado – ocasionalmente com elementos claramente inspi-
rados em ritmos e melodias brasileiras. Villa-Lobos retoma esse
procedimento formal em uma de suas obras mais importantes,
composta em 1923 e estreada em Paris: o Noneto.

Outra obra notável apresentada na Semana de 22 é a versão


para octeto das Danças Características Africanas, com muitos ele-
mentos que remetem ao maxixe, cuja riqueza de colorido faz
lembrar as orquestras que animavam as antessalas dos cinemas
– nas quais Villa-Lobos tantas vezes atuou como violoncelista.

42
Villa-Lobos e
os modernistas
em torno da
Semana de 22

43
44
Villa-Lobos em

Paris, 1923
Após a repercussão da Semana, Villa-Lobos Um aspecto curioso dessa viagem é que, di-
preparou-se para ir a Paris, imbuído da ta- ferentemente de outros compositores que
refa de realizar mais de 20 concertos com o antecederam – como por exemplo Carlos
obras de compositores brasileiros em gran- Gomes, Alberto Nepomuceno e Francisco
des cidades europeias. Um projeto apresen- Braga, que também fizeram viagens subven-
tado no Congresso em julho de 1922 gerou cionadas pelo governo brasileiro – Villa-Lo-
discussões com relação ao montante em di- bos jamais pretendeu fazer cursos de aper-
nheiro, reduzido de 108 para 40 contos de feiçoamento; em uma entrevista dada ao
réis, dos quais Villa-Lobos recebeu apenas chegar a Paris (em julho de 1923) ele afirma:
20... Não fosse o apoio de amigos que organi- “não vim para aprender, vim mostrar o que
zaram concertos para arrecadar mais verba, fiz”. Considerando que seus estudos formais
bem como a contribuição de patrocinadores no Instituto Nacional de Música não foram
como Arnaldo e Carlos Guinle, Paulo Prado, além de poucos meses de aulas, podemos
Antônio Prado, Geraldo Rocha, Laurinda admirar seu empenho como autodidata e a
Santos Lobo, Graça Aranha e Olívia Guedes importância de sua formação nas rodas de
Penteado, a viagem não teria acontecido. A choro, contribuindo para o colorido original
realização dos concertos requer verba para de seu estilo e a construção de uma técnica
pagamento de ensaios aos músicos, cópias peculiar.
de partituras, aluguel de teatros etc., sem fa-
lar nas despesas cotidianas em uma cidade Ele logo se inseriu no ambiente artístico da
com custo de vida tão alto. cidade, acompanhado de outros modernis-

45
tas brasileiros, como o casal Tarsila brasileiras, sem soar como
do Amaral e Oswald de Andrade. A
um mero imitador de Stra-
esposa Lucília não foi, provavelmente
por questões financeiras. Villa-Lobos
vinsky.
conheceu artistas como Andrés Se-
As apresentações musicais de Villa-
govia, Tomás Terán, Blaise Cendrars,
-Lobos começaram em outubro de
Jean Cocteau entre outros, frequen-
1923, com recital da cantora brasilei-
tando a efervescente vida cultural da
ra Vera Janacopoulos, intérprete em
cidade, entre exposições, concertos e
contato frequente com compositores
reuniões sociais.
como Stravinsky, Debussy, Prokofiev
e Manuel de Falla. Em março de 1924
Se a assimilação da modernidade
regeu obras de Henrique Oswald e
proposta por Debussy foi decisiva
Nepomuceno, além de suas Danças
para que Villa-Lobos encontrasse sua
Características Africanas e Dança Fre-
própria identidade musical, quan-
nética, em Lisboa. Em abril e maio de
do ele chegou em Paris a música de
1924 ele consegue apresentar em Pa-
Debussy já era considerada “ultra-
ris duas obras até então inéditas, das
passada” diante da ousadia do com-
mais importantes em sua produção:
positor russo Igor Stravinsky (1882-
o Trio para oboé, clarinete e fagote
1971) com os balés O Pássaro de Fogo
(1921) e o Noneto (1923), despertando
(1910), Petrushka (1911) e A Sagração
as primeiras críticas mais detalhadas
da Primavera (1913). Stravinsky havia
nos periódicos franceses. Fala-se, é
causado grande escândalo (auxiliado
claro, na influência de Stravinsky
pela coreografia de Nijinsky), fazendo
nessas obras – que o compositor re-
uso do folclore eslavo, de um arsenal
futou com veemência. Mas em entre-
inusitado de instrumentos de percus-
vista a Manuel Bandeira admitiu que
são e do naipe de metais.
a escuta de A Sagração da Primavera
teria sido “a maior emoção musical
Essa estética, considera- de sua vida”5.
da “primitivista”, já havia
se estabelecido como uma
marca da música moderna; 5. Villa-Lobos certamente deve ter ido
ao concerto de 25.10.1923, onde A
o grande desafio de Villa- Sagração da Primavera foi regida por
Sergei Koussevitzky.
-Lobos foi assimilar essas
novidades técnicas usando
suas referências musicais

46
De volta ao

Rio, 1924
Com o esgotamento dos recursos financeiros (alguns mecenas
pararam de atender a seus insistentes pedidos), Villa-Lobos teve Escute a gravação do
Choros nº 7, com mem-
de interromper sua permanência em Paris e voltar ao Rio, em
bros do Kinetic Ensem-
setembro de 1924. Apresentou concertos em São Paulo – com ble e WindSync Wind
Quintet.
ajuda de Mário de Andrade – e em maio de 1925 esteve em mis-
são oficial em concerto realizado em Buenos Aires.

O impacto da atmosfera cultural parisiense,


aberta às novidades e exotismos, o libertou das
amarras que o impediam de concretizar seu
projetos com elementos de música popular.

Ele começa a arquitetar uma monumental série de obras que


chama de Choros, apresentados pelo compositor como “uma
nova forma de composição musical”. O Choros nº 2 (dedicado a
Mário de Andrade, para flauta e clarinete) e Choros nº 3 (dedicado
a Tarsila e Oswald, para coro e instrumentos de sopro) foram
estreados em São Paulo, em 1925. O Choros nº 7 (para septeto
instrumental) e Choros nº 10 (para coro e orquestra) foram estre-
ados no Rio, respectivamente em 1925 e 1926.

47
Fachada da editora Max Eschig, que publi-
cou as partituras de Villa-Lobos na França.

48
Retorno a

Paris, 1927

No final de 1926 Villa-Lobos estava de volta a Paris, dessa vez


com a esposa Lucília. A intervenção de Rubinstein foi mais uma
vez decisiva, convencendo Carlos Guinle a bancar financeira-
mente e até ceder um apartamento na Place Saint Michel, 11,
para moradia do casal Villa-Lobos. Em outubro e dezembro de
1927 Villa-Lobos conseguiu organizar concertos com os Choros
(nº 2, 3, 4, 7, 8 e 10), além de outras obras significativas como
Rudepoema, Serestas, o já conhecido Noneto e a Prole do Bebê nº
2. Em maio de 1929 estreou o poema sinfônico Amazonas, re-
criação esplêndida de outra obra anterior, Myremis. Essa obra
Escute gravação do
Nonetto, com a Cia. Ba- dividiu o palco com Amériques, do compositor Edgard Varèse,
chiana Brasileira e coro, referência da vanguarda europeia que frequentava a casa de
com regência de Ricardo
Rocha, na Sala Cecília Villa-Lobos.
Meireles, Rio de Janeiro,
em 2006.
A reação da plateia parisiense ia da perplexida-
de à incompreensão, mas parte importante da
crítica saudou entusiasticamente aquele com-
positor tão especial, que trazia o calor dos tró-
picos e das selvas em sua música. Sua fama e
prestígio internacional estavam consolidados.

49
Os Choros

Dentre as composições de Villa-Lobos, os


Choros traduzem de modo mais completo a
densidade da formação musical e cultural de
Villa-Lobos.

A série é formada por um conjunto de 12 peças com as mais di-


ferentes orquestrações, que vão desde o Choros nº 1 para violão
solo até o Choros nº 12 para grande orquestra, num arco que vai
6. No entanto, alguns dos de 1920 a 1929.6 Nos Choros encontramos materiais musicais
Choros (nº 5, 6, 9, 11 e
que traduzem as paisagens sonoras da floresta e das diversas
12), só foram estreados
nos anos 1930 ou 1940, regiões do Brasil, a sonoridade dos chorões cariocas, o universo
sugerindo que sua criação
musical das bandas de música do carnaval carioca, mas também
seja posterior à indicada
oficialmente pelo compo- a música de Stravinsky e de outros compositores modernos eu-
sitor.
ropeus do início do século XX. Estes últimos “deglutidos” pela
poética antropofágica dos Choros que contribuíram de forma
significativa para a escrita musical moderna, explorando gran-
Escute a gravação
des massas sonoras.
do Choros nº 1, com o
próprio Villa-Lobos ao
violão.
O Choros nº 1 (1920) para violão solo é o marco inicial de toda a
série dos choros, um ponto de partida singelo para a explosão
de originalidade que o compositor manifestou ao longo de toda
a década. Nessa peça, dedicada a Ernesto Nazareth, Villa-Lobos
reproduz literalmente o estilo sincopado dos músicos populares
com quem tanto conviveu no Rio de Janeiro do início do século.

50
O Choros nº 2, escrito em Paris no ano de 1924, para flauta e cla-
rineta, é dedicado a Mário de Andrade. Nesse duo observamos Escute a gravação do
claramente os diálogos entre a musicalidade própria às van- Choros nº 2, com Marcelo
Bomfim, flauta e Cris-
guardas europeias com a música urbana carioca, nostálgica e tiano Alves, clarinete, na
tipicamente popular. Os instrumentos se revezam, como numa Sala Cecília Meireles,
Rio de Janeiro, em 2006.
trama musical moderna e brasileira.

O Choros nº 3 de 1925 é também conhecido como “pica-pau”.


A obra foi orquestrada para clarinete, saxofone, três trompas,
trombones e coro masculino. A seção inicial explora polifoni-
camente a melodia “Nozani-Ná”, recolhida por Roquette Pinto
junto aos índios Paresi na região dos Estados de Mato Grosso
e Goiás. Villa-Lobos utiliza efeitos onomatopaicos que fazem
referência ao “primitivismo” e aos cantos indígenas que serão
retomados mais tarde nos Choros nº 10.

Com o Choros nº 4, para três trompas e um trombone (1926), Escute a gravação do


Villa-Lobos nos remete à sonoridade própria dos chorões do Choros nº 3, com regência
de John Neschling, Coro
início do século, em especial as bandas de corporações musi- Sinfônico do Estado de
cais como os bombeiros e marinha, com as quais o compositor São Paulo, Orquestra
Sinfônica do Estado de
manteve forte contato em sua juventude no Rio de Janeiro. A São Paulo
seção inicial é dissonante e ousada, mas em sua parte final são
exploradas algumas fórmulas rítmicas e melódicas dos maxixes
e tangos brasileiros.

O Choros nº 5 (1925) é uma das principais obras para piano do


compositor. A escrita musical traduz muito bem o estilo dos se-
resteiros, reproduzindo a complexidade rítmica de sua música.
As alusões a diversas expressões musicais populares do Brasil
fazem com que o subtítulo “Alma Brasileira” sintetize perfeita-
mente a estética do compositor. Podemos ouvir ritmos tradicio-
nais que vão do samba ao batuque passando pelo maracatu e
pela marcha carnavalesca. Dedicado a Arnaldo Guinle, o Choros
nº 5 foi estreado pela pianista Guiomar Novaes na Town Hall de
Nova Iorque em 7.12.1935.

51
O Choros nº 6 é datado de 1926, mas os estudiosos apontam que
Escute a gravação do
Choros nº 6, com a Or-
devido a suas características orquestrais e estilísticas este pode
questra da UFRJ sob ter sido concluído somente em 1942, ano de sua estreia. Forma-
regência de Roberto
Duarte.
do por grandes painéis sonoros divididos em partes, como uma
grande rapsódia, esta obra é uma das mais aclamadas obras do
compositor. Isto se deve ao fato de que o Choros nº 6 apresenta
materiais musicais e instrumentos do norte do país que reme-
tem à musicalidade das comunidades ameríndias, tornando-se
assim uma referência exemplar. A presença do tambu-tambi, e
o uso de outros instrumentos de percussão tais como ronca-
dor, puíta e cuíca, além da sonoridade dos pássaros e das matas
brasileiras, e das serestas do interior do Brasil fazem desta obra
uma pérola do repertório villalobiano.

O Choros nº 7 composto em 1927 demonstra as habilidades de


Villa-Lobos enquanto compositor de música de câmara. Es-
crito para flauta, oboé, clarinete, saxofone alto, fagote, violino
e violoncelo mistura perspectivas musicais ameríndias e urba-
nas próprias do Rio de Janeiro, tais como as polcas amaxixadas
com as quais Villa-Lobos conviveu e que aparecem nas Danças
Características Africanas e no Choros nº 1. A canção “Nozani-Ná”
do povo indígena paresi reaparece em alguns pontos dessa
obra.
Escute a gravação do
Choros nº 8 com a Or-
questra Sinfônica da O Choros nº 8 (1926) fascina pela sua complexidade fruto das
Paraíba, sob regência de
Eleazar de Carvalho misturas promovidas por Villa-Lobos por meio de uma orques-
tração monumental. Na introdução dessa obra ouvimos, de
forma reiterada, o ritmo desenhado pelo caracaxá, ao qual se
sobrepõe uma melodia que remete ao choro, dado que liga a
obra ao fio condutor fundamental da série: a música popular. O
compositor chegou a afirmar que esse era o “choro da dança”,
absorvendo a energia dos blocos carnavalescos do Rio de Janei-
ro. Um experimento interessante, que o compositor explorou
apenas incidentalmente na obra, é a inserção de folhas de papel
sobre as cordas do piano, ao citar um trecho do tango “Turuna”
de Ernesto Nazareth.

52
O Choros nº 9 (1929), escrito para orquestra, foi dedicado a Min-
dinha – provavelmente a dedicatória foi acrescentada nos anos
1930, a estreia só ocorreu em 1942 (foto). Nessa obra encon-
tramos uma rica combinação de instrumentos de percussão,
inseridos na orquestração: reco-reco, tamborim de samba, tar-
taruga, bateria, tambor surdo, camisão e bombo. Melodias am-
plas e sincopadas podem ser ouvidas por toda a obra, que se
aproxima da atmosfera idílica e triunfante das Bachianas e da
Escute a gravação do
Sinfonia nº 2. Choros nº 10, com a
Orquestra Estadual
de São Paulo e Coro,
O Choros nº 10 (1926) é uma das obras mais aclamadas de Villa- com regência de John
-Lobos. Além da utilização de instrumentos tradicionais, tais Neschling, na Sala São
Paulo em 2008.
como caxambu, ganzá, pio, reco-reco e puíta, o compositor tam-
bém constrói diversas paisagens sonoras das florestas e pás-
saros da fauna e flora brasileiras em uma orquestração muito
variada, com um grande coro misto. Um de seus temas mais
recorrentes é a melodia da canção indígena “Mokocê Cê Maká”,
recolhida por Roquette Pinto. A segunda seção dessa peça traz
ainda uma adaptação do instrumental “Iara” de Anacleto de Me-
deiros, transformado em canção por Catulo da Paixão Cearense
sob o título “Rasga o Coração”. A obra culmina em um clímax
poderoso, com o coro impulsionado pela percussão que evoca
os blocos carnavalescos de rua, numa síntese de várias facetas
da musicalidade brasileira, uma das passagens mais impactantes
escrita por Villa-Lobos.

O Choros nº 11 (1928) é o mais longo da série, e foi escrito como


uma espécie de concerto para piano e orquestra, dedicado ao
amigo Arthur Rubinstein; sua estreia ocorreu em 1942. A obra
exige virtuosismo por parte do solista em especial no que se re-
fere a sua cadência. Diferentemente do que ocorre no Choros nº
8 no qual os dois pianos são “instrumentos de orquestra”, neste
o piano dialoga como solista ao longo de toda peça. Com relação
a perspectiva cultural, nesta obra Villa-Lobos insere os elemen-
tos sonoros da natureza brasileira utilizando grandes painéis so-
noros que a orquestração grandiosa proporciona.

53
De acordo com o biógrafo Vasco Mariz, no Choros nº 12 (1929),
percebe-se uma ampliação da técnica de composição com osti-
natos apresentada por Villa-Lobos no Choros nº 9, intercalando
passagens vigorosas, a cargo dos metais, com melodias líricas e
saudosistas, com caráter de modinha. Composto para grande
orquestra, esse choro orquestral é dedicado ao musicólogo An-
drade Muricy e foi estreado em 1945.

A série dos Choros foi ainda ampliada pelo compositor, que es-
creveu uma Introdução aos Choros (1929) para violão e orquestra,
o Choros Bis (1928/29) para violino e violoncelo e o Quinteto em
forma de choros (1928) para sopros (flauta, oboé, clarinete, trompa
[ou corne inglês] e fagote).

Isso faz supor que Villa-Lobos concebia a série


de Choros como um grande painel, que even-
tualmente poderia fazer sentido apresentado
na íntegra.

54
Villa-Lobos tocando
um atabaque.

55
O retorno (definitivo) ao

Brasil, 1930
Em junho de 1930 Villa-Lobos este- dado para debater sua proposta de
ve no Recife, onde foi organizado um ensino musical com o interventor
concerto com obras suas. Passou ain- João Alberto, nomeado por Vargas.
da pelo Rio e foi para São Paulo, onde
apresentou um plano de sistematiza- A conversa com João Alberto moti-
ção do ensino de música nas escolas vou Villa a ficar no Brasil. O início das
brasileiras a Júlio Prestes, candidato atividades foi marcado por uma turnê
cotado à presidência segundo a rota- artística pelo estado de São Paulo em
tividade costumeira da política “café 1931, com mais de 50 concertos em
com leite” (alternando políticos de diferentes municípios. Em fevereiro
São Paulo e Minas Gerais no poder). de 1932 Villa-Lobos ainda pensava
Com a vitória da Revolução, com Ge- em retornar a Paris – afinal ele não
túlio Vargas no comando, Villa-Lobos tinha emprego fixo com que garantir
pensou em retornar a Paris e já fazia sua subsistência e previa a dificulda-
seus preparativos quando foi convi- de de aceitação de sua música, vol-

Villa-Lobos e Arminda, entre


alunas do Orfeão. 56
tando à estaca zero em seu próprio comemorativas em estádios de fute-
país – quando foi convidado pelo Se- bol, com cerca de 40 mil estudantes
cretário da Educação, Anísio Teixeira, cantando em coro, muitas vezes com
para coordenar a SEMA (Superin- participação de solistas famosos da
tendência de Educação Musical e Ar- música popular, como Francisco Al-
tística), que em 1942 foi transformada ves e Silvio Caldas. Em outras áreas,
no Conservatório Nacional de Canto intelectuais como Carlos Drummond
Orfeônico. de Andrade, Cecília Meirelles, Oscar
Niemeyer e Cândido Portinari tam-
Sob a ditadura de Vargas, Villa-Lobos bém foram cooptados, mesmo mani-
empreendeu um projeto grandioso festando simpatia aberta pelo Partido
de educação musical, formando cen- Comunista.
tenas de professores para lecionar
em escolas por quase todo o país. Mesmo assim, o Canto Orfeônico se
O aspecto negativo dessa simbiose tornou uma iniciativa importante no
com o poder foi o empréstimo desse campo da educação musical, sendo
aparato musical para realizar apre- estabelecido como disciplina obri-
sentações que exaltavam a figura do gatória nas escolas secundárias pelo
ditador durante as apresentações dos Ministério da Educação em 1946 –
grupos musicais coordenados por em 1960 passou a ser optativa, provo-
Villa-Lobos. Grandes concentrações cando o desmantelamento da estru-
orfeônicas eram reunidas nas datas tura construída em duas décadas.

57
Villa-Lobos e o

Carnaval
Ao longo de sua trajetória artística, a aproximação entre Villa-
-Lobos e as diversas manifestações culturais brasileiras foi uma
das marcas importantes das suas criações musicais. No contexto
do Estado Novo, mais precisamente no ano de 1940, o composi-
tor coordenou a organização de um bloco carnavalesco batizado
“O Sodade do Cordão” que remonta uma antiga tradição cultu-
ral carioca: os cordões de carnaval. Estes eram grupos de mas-
carados, velhos, palhaços, diabos, velhos, rei, rainha, sargento,
baianas, índios, morcegos, mortes. Conduzidos por um mestre
que comandava o desfile com um apito, o conjunto era tradi-
cionalmente formado por instrumentos de percussão, tais como
adufes, cuícas e reco-recos. Como informa a notícia no jornal
aqui citado, no carnaval de 1940, “Villa-Lobos resolveu (...) re-
Escute o programa “Na memorar os folguedos de outrora. Organizou um grupo com a
Trilha da História”, da feição da época o qual denominou Sodade do Cordão.”
EBC, apresentado pela
jornalista Isabela Azeve-
do entrevistando o pes- Ainda em 1940, Villa-Lobos colaborou com uma iniciativa do
quisador Pedro Belchior,
do Museu Villa-Lobos, maestro inglês Leopold Stokowski, que produziu o álbum Nati-
sobre a gravação de Nati- ve Brazilian Music, gravado a bordo de um navio atracado no Rio
ve Brazilian Music
de Janeiro.

Coube a Villa-Lobos arregimentar cantores e


músicos considerados significativos para essa
amostragem da música popular brasileira, tais
como Donga, Pixinguinha, Cartola, Zé Espin-
guela, a dupla Jararaca e Ratinho, entre outros.
Notícias sobre o bloco
carnavalesco Sodade
do Cordão

Villa-Lobos assistindo à evolução do bloco


carnavalesco Sôdade do Cordão

59
“Tenho uma grande
fé nas crianças. Acho
que delas tudo se pode
esperar. Por isso é tão
essencial educá-las”

60
Villa-Lobos e

as crianças
Villa-Lobos não teve filhos. Mesmo assim, sempre manifestou
grande carinho em relação às crianças, desde obras no início de Escute a gravação da
Suíte Infantil nº 1 com
carreira, como a Suíte Infantil nº 1 (1912) e nº 2 (1913), dedicadas a pianista Sônia Maria
“às pequeninas alunas de minha mulher”, denotando a colabo- Strutt, sobrinha de Villa-
-Lobos!
ração entre o compositor e Lucília, reconhecida professora de
piano; alguns anos depois, compôs a célebre A Prole do Bebê nº
1 (1918) e a notável Carnaval das Crianças (1919/1920), obras que
lançam um olhar terno e divertido para o universo infantil.

Em 2019, com curadoria da musicóloga Maria Alice Volpe, pro-


fessora da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, o Museu Villa-Lobos organizou a exposição Carnaval
das Crianças Brasileiras, que utilizou como temática a obra ho-
mônima de Villa-Lobos. A exposição contou com figurinos ela-
borados por Di Cavalcanti, que segundo o site do Museu Villa-
-Lobos, são “desenhos que hoje fazem parte do acervo do Museu Escute a gravação da
Prole do Bebê nº 1 com o
Nacional de Belas Artes (MNBA), um dos parceiros do MVL na pianista Arthur Moreira
realização da exposição. Diferentes aspectos do carnaval carioca Lima, na Grand Hall of
the Moscow Conserva-
estão representados na mostra, bem ao estilo de Villa-Lobos o tory.
universo tradicionalmente classificado como erudito encontra-
-se ao lado de elementos da cultura popular.”

Além do piano, o coro foi o meio preferido pelo


compositor para harmonizar e arranjar melo-
dias inspiradas em brincadeiras de roda, con-
tribuindo para registrar páginas importantes

61
do folclore musical brasileiro e suas apropria-
Escute a gravação de
Carnaval das Crianças, ções de influências europeias, africanas e indí-
com as pianistas Lúcia
Barrenechea, Maria genas.
Teresa Madeira, Erika
Ribeiro, em concerto na
Sala Cecília Meireles, Uma de suas obras mais celebradas nesse estilo são as Cirandas
Rio de Janeiro, em 2018. (1926) para piano, as quais Mário de Andrade afirmava ter tido
um papel importante em sua elaboração (ver nas “Cartas Inédi-
tas”, abaixo) – provocando Villa-Lobos ao mencionar um certo
compositor chileno que havia escrito obras muito boas explo-
rando canções infantis. Villa-Lobos reagiu à provocação criando
uma de suas obras-primas para o piano!

Obviamente, durante os anos dedicados ao projeto nacional de


Educação Musical, a produção de obras nesse gênero – inclusive
com caráter didático-pedagógico – cresceu exponencialmente
no catálogo de obras de Villa-Lobos. Escreveu dezenas, talvez
Escute a gravação das
centenas de harmonizações para coro infantil, além da monu-
Cirandas com a pianista
Sonia Rubinsky. mental coleção chamada de Guia Prático, distribuída em 11 ál-
buns para piano (compostos entre 1932 e 1949) e na “coletânea
de 138 canções populares infantis que tem como finalidade a
educação artística, musical e infantil”, para coro a 1, 2 ou 3 vo-
zes, com e sem acompanhamento instrumental.

Além do coro e do piano, ocasionalmente Villa-Lobos compôs


obras sobre o universo infantil, como O Papagaio do Moleque

Villa-Lobos (ao centro), Tomás


Terán e sua esposa Maria Teresa,
com uma pipa em Paris, 1927.
62
Escute a gravação do
Guia Prático (álbuns
I-XI) pelo pianista Mar-
celo Bratke

Manuscrito da Sinfonia nº 6.

(1932) para orquestra, onde ele dá vazão à representação musi-


cal de um de seus principais hobbies, soltar pipas.
Escute a gravação do
Guia Prático com o Coro
Ainda dentro de sua proposta de Educação Musical, Villa-Lo- de Crianças da OSB em
concerto na Igreja Angli-
bos elaborou um método para criação de melodias, inspirado no cana, Rio de Janeiro,
contorno das montanhas brasileiras; a partir de uma fotografia, 2012

ele copiava o contorno com um papel de seda, transferindo a


imagem para uma folha milimetrada. No papel milimetrado, a
coluna do eixo vertical apresentava as notas musicais, do gra-
ve para o agudo, percorrendo toda a escala; o eixo horizontal
atribuía uma valor rítmico para cada quadrícula da folha. Esse
exercício, porém, não ficou limitado à sua aplicação pedagógica,
voltada a estimular a criatividade dos alunos; Villa-Lobos em-
pregou esse método para gerar melodias em algumas de suas
obras. A pedido de um jornalista, usou o contorno dos edifícios
de Nova Iorque, para compor New York Skyline Melody (1939); Escute a gravação de
depois, com o contorno de montanhas brasileiras (Pão de Açú- New York Skyline Melo-
dy, com a pianista Sonia
car, Serra da Piedade e outras) escreveu a Sinfonia nº 6 (1944). O Rubinsky.
método criado por Villa-Lobos foi batizado apropriadamente de
“melodia das montanhas”.

63
“O petróleo e a
eletricidade são úteis
para movimentar as
máquinas; a música
movimenta as almas”

64
As Bachianas
Brasileiras

Apesar de envolvido com a implantação do Canto Orfeônico


vinculado às políticas educacionais do Estado Novo, institucio-
nalizadas pelo Ministério da Educação e Saúde de Gustavo Ca-
panema, entre os anos 1930 e 1945 Villa-Lobos concebe a série
das nove Bachianas Brasileiras, que se tornou sua composição
mais conhecida do grande público.

No ano de 1930, o compositor escreveu a Bachianas Brasileiras n°


1 e esboçou a música que formaria as Bachianas n° 2 e n° 4. Em
1938, compôs a Bachianas Brasileiras n° 3 e a primeira parte da
Bachianas n° 5, a “Ária” (Cantilena), bem como a Bachianas Bra-
sileiras n° 6. Somente em 1945, Villa-Lobos compõe a “Dança”
(Martelo) que ele acrescentaria à Bachianas n° 5. As Bachianas n°
7, 8 e 9 foram escritas nos anos de 1942, 1944 e 1945, respecti-
vamente.

As obras, segundo o próprio Villa-Lobos foram


inspiradas no ambiente musical do composi-
tor J. S. Bach (1685-1750) considerado por ele
como uma “fonte folclórica universal interme-
diária de todos os povos”.

65
Para alguns estudiosos a obra representa um recuo estético por
parte de Villa-Lobos, pois ele teria aderido ao neoclassicismo,
movimento comum a muitos compositores europeus do perío-
do – inclusive o próprio Stravinsky, que adotou essa tendência
na década de 1920. Porém, este “retorno a Bach” por parte de
Villa-Lobos ocorre de modo muito particular, pois ao longo da
série de composições em homenagem a Bach percebe-se a pre-
sença de ambientes sonoros da música brasileira.

O próprio Villa-Lobos afirmou a semelhança


Bach entre a perspectiva contrapontística do choro
com a harmonia presente na obra do composi-
Johann Sebastian Bach
foi um músico e compo- tor germânico.
sitor nascido no Sacro
Império Romano-Ger-
mânico, atual Alemanha, O choro não é o único elemento brasileiro referenciado nas
no final do século XVII. Bachianas (nem mesmo nos Choros). Sob influência do movi-
Ele é considerado o
maior nome da música mento antropofágico proposto pelo Manifesto Antropofágico
barroca, e foi uma grande de Oswald Andrade e pelo Ensaio Sobre a Música Brasileira
referência para diversos
outros compositores, de Mário de Andrade, ambos escritos em 1928, Villa-Lobos, na
como Mozart, Beethoven mesma perspectiva do Manifesto, busca as raízes antropofági-
e Villa-Lobos.
cas da cultura brasileira para “deglutir” como um antropófago
faminto a polifonia bachiana. Nota-se também a presença do
Ensaio de Mário de Andrade para o qual todo compositor brasi-
leiro deveria “apropriar-se espertalhonamente da cultura euro-
peia”. É assim que procede Villa-Lobos em suas Bachianas. As
nomenclaturas referentes ás sessões das peças expressam esta
perspectiva, pois nos títulos de quase todos os movimentos ob-
servamos esta simbiose entre a música europeia e a brasileira:
ária-modinha, fuga-conversa, ária-cantiga dentre outros.

A Bachianas Brasileiras n° 1 (1930), dedicada ao violoncelista


Pablo Casals foi escrita para orquestra de violoncelos, instru-
mento por meio do qual Villa-Lobos iniciou seus estudos quan-
do jovem. A obra é formada por três movimentos: “Introdução/
Embolada”, “Prelúdio/Modinha” e “Fuga/Conversa”. Nessa obra
observamos a perspectiva bachiana representada pela polifonia

66
acompanhada de uma sonoridade barroca trazida pelo violonce-
lo. Mas, podemos destacar também as referências a brasilidade
musical representada, por exemplo, pela modinha que apare-
ce como um canto languido e pastoso. Com relação a “Fuga/
Conversa”, o próprio Villa-Lobos afirmou que fora elaborada à Escute a gravação da
Bachianas nº 2, com Or-
moda de Sátiro Bilhar, seresteiro carioca, amigo de Villa-Lobos. chestre Philharmonique
de Radio France, regên-
cia de Gustavo Dudamel,
A Bachianas Brasileiras n° 2 (1930) para orquestra de câmara é Olivier Messiaen Hall,
formada por quatro movimentos, “Prelúdio/Canto do Sertão”, Paris, 2005
“Ária/O canto da Nossa Terra”, “Dança/Lembrança do Sertão”,
“Toccata/O Trenzinho do Caipira”. Esta última se tornou um
ícone da música brasileira, pois sugere uma viagem ao interior
do Brasil reproduzindo de forma magistral a sonoridade de um
trem de ferro cortando as montanhas de Minas e de outros in-
teriores do Brasil. Como essência de brasilidade, esta melodia
se tornou uma das mais conhecidas do repertório musical bra-
sileiro. Nela, Villa-Lobos associa, também, a sonoridade do trem
com os “ruídos” característicos do mecanismo de execução dos
instrumentos de tecla barroco explorados no gênero Toccata.
Em 1978 o compositor e cantor Edu Lobo gravou “O Trenzinho
do Caipira” em formato de canção, com letra do poeta Ferreira
Escute a gravação gra-
Gullar no álbum Camaleão.
vação do “Miudinho” da
Bachianas nº 4, com o
pianista Nelson Freire.
A Bachianas Brasileiras n° 3 (1930) para piano e orquestra é com-
posta em quatro movimentos, “Prelúdio/Ponteio”, “Fantasia/De-
vaneio”, “Ária/Modinha” e “Toccata/Picapau”. Na sessão “Fan-
tasia/Devaneio” nota-se a citação de “A Casinha Pequenina”,
canção de autor desconhecido bastante popularizada no Brasil.

A Bachianas Brasileiras n° 4 tem duas versões, uma para piano


solo e outra para orquestra de cordas; a obra é dividida em qua-
tro movimentos: “Prelúdio/Introdução”, “Coral/Canto do Ser-
tão”, “Ária/Cantiga” e “Dança/Miudinho”. Destaca-se, no “Pre-
lúdio/Introdução”, a utilização do motivo presente na Oferenda
Musical de Bach em diálogo com referências a “baixaria” dos vio-
lões nas rodas de choro e as citações de música popular brasi-
leira, tal como o “Miudinho”, uma dança associada ao samba de

67
roda originário do Recôncavo baiano; Villa-Lobos cita a canção
Escute a gravação de
“Vamos Maruca”, com folclórica “Vamos Maruca”, sucesso na voz de Francisco Alves.
Francisco Alves.
A Bachianas Brasileiras n° 5 (1938) foi originalmente escrita para
soprano e orquestra de violoncelos (também empregada na Ba-
chianas nº 1), mas também tem versões do autor para canto e
piano ou para canto com acompanhamento de violão. A obra
é composta por dois movimentos: “Ária/Cantilena” (com letra
de Ruth Valadares Correa) e “Dança/Martelo” (com letra do po-
eta Manuel Bandeira). A “Ária/Cantilena” apresenta uma das
mais conhecidas melodias da música brasileira. Sua introdução
faz referência ao ponteado das violas caipiras, as baixarias dos
Escute a gravação da violões do choro e ao estilo bachiano. A obra foi gravada pe-
Bachianas nº 5, com Or-
questra Filarmônica de las maiores cantoras líricas, como Kiri Te Kanawa e Victoria de
Berlim. Los Angeles, além de cantoras populares como Elizeth Cardo-
so, Joan Baez e Monica Salmaso, ou em versões instrumentais
como a do Modern Jazz Quartet, do guitarrista Steve Howe e do
sambista Jorge Aragão.

No segundo movimento da Bachianas nº 5, a “Dança” (Martelo),


a letra escrita por Manuel Bandeira é um autêntico catálogo de
pássaros das florestas brasileiras, com espaço até para a imitação
onomatopaica do canto do sabiá da mata, quando a melodia da
soprano entoa o “liá, liá, liá”!
Escute a gravação das
Bachianas nº 6, com Toni-
nho Carrasqueira (flauta) A Bachianas Brasileiras n° 6 (1938) é um duo para flauta e Fago-
e Fábio Cury (fagote), no
III Simpósio Villa-Lo- te composta em dois movimentos Ária e Fantasia. Nos primei-
bos, São Paulo, ECA/ ros compassos da Ária [Bachianas Brasileiras n.5] e da Bachianas
USP, em 2017.
Brasileiras n. 6, Villa-Lobos aproxima-se da sonoridade presen-
te em dois trechos bastante característicos da Toccata e Fuga n.
2 para órgão de Bach. Desta peça, a sonoridade produzida por
uma escala descendente sob intervalos de terças, composta sob
semicolcheias, é utilizada pelo compositor brasileiro na intro-
dução da Bachianas Brasileiras n.6. Por outro lado, a temática e
a melodia principal expressa as características das serestas do
interior do Brasil e do choro carioca.

68
A Bachianas Brasileiras n° 7 (1942) dedicada a Gustavo Capane-
Escute a gravação de O
ma foi escrita para orquestra e é formada por quatro movimen- cravo bem-temperado de
tos, “Prelúdio/Ponteio”, “Giga/Quadrilha Caipira”, “Toccata/De- Bach, com o pianista
Sviatoslav Richter
safio”, “Fuga/Conversa”. Dentre os elementos que traduzem a
originalidade desta peça, podemos observar a presença da Qua-
drilha que estabelece um elo entre a música europeia e as tradi-
ções musicais do interior do Brasil. A “Quadrilha” é uma dança
francesa que fora apropriada pela cultura popular e reelaborada
no Brasil por meio dos festejos populares.

A Bachianas Brasileiras n° 8 também escrita para orquestra é


dividida em quatro movimentos: “Prelúdio”, “Ária/Modinha”,
“Toccata/Catira Batida” e “Fuga”. Da perspectiva da brasilida-
de musical, destaca-se nesta obra a presença da “Catira Batida”, Escute a gravação da
uma espécie de quadrilha sertaneja dançada ao ar livre. Na “Ca- Bachianas nº 9, com
Moscow State Academic
tira”, os instrumentos utilizados são: as violas de brejo, violões, Chamber Choir sob
flautas de bambu, chocalhos de cabaças, frutas selvagens gran- regência de Vladimir
Minin, em concerto na
des, caracaxás e varinhas de madeira batidas umas nas outras, Tchaikovsky Concert
destacando as principais nuances rítmicas da dança. Hall, Moscow, 2015

A Bachianas Brasileiras n° 9 para orquestra de cordas ou coro é


formada por um movimento intitulado “Prelúdio e Fuga”, como
fez Bach em seu monumental Cravo Bem-Temperado. A nona
Bachiana faz também uma homenagem à obra vocal do compo-
sitor germânico. De gênio para gênio!

69
“Sou filho da
Natureza. Sempre
senti necessidade
de enfrentá-la, de
aprofundar-me nela, de
sondá-la.”

70
O cancioneiro
brasileiro
nas canções de Villa

As canções escritas por Villa-Lobos são um aspecto muito espe-


cial de sua produção musical. Vemos, no início da carreira, algu-
mas canções com texto em francês como algumas de suas Histo-
rietas (1920) feitas a partir de poemas de Ronald de Carvalho e
Albert Samain, que foram apresentadas na Semana de Arte Mo-
derna; nelas podemos observar a influência da canção francesa,
notadamente de Saint Saëns e Debussy. Antes disso, na coleção
Miniaturas (1912-1917), Villa-Lobos trabalhou exclusivamente
com o idioma português, realizando pérolas como “Japonesas”,
sobre texto de seu cunhado Luiz Guimarães. Essa tendência es-
Escute a gravação das
tética atinge seu apogeu com a modernista Poème de l’enfant Serestas, com Fernando
Portari, tenor e Paula da
et sa mère [Poema da criança e sua mamã], cuja letra o próprio
Matta, piano, 54º Festi-
compositor assinou, sob o pseudônimo “Epaminondas Villalba val Villa-Lobos, Espaço
Cultural BNDES, Rio de
Filho” – essa canção de câmara de 1923 tem acompanhamento
Janeiro, 2016.
original orquestrado com flauta, clarinete e violoncelo.

O que vem em seguida é uma mudança de rumos, aproximando


a canção camerística de elementos da canção popular brasileira,
como na excepcional série das Serestas (1926), que contêm melo-
dias emblemáticas como “Modinha”, texto de Manuel Bandeira
(sob o pseudônimo “Manduca Piá”). Essas canções se tornaram
modelos composicionais para as gerações seguintes – “Abril”
(poema de Ribeiro Couto) é citada em “Chovendo na roseira” de
Tom Jobim, por exemplo.
Escute a gravação do
“Lundu da Marquesa
de Santos”, com Marilia
Nos anos 1930 veio outra joia, o álbum de partituras Modinhas e
Vargas, canto e André Canções nº 1, que inclui o maravilhoso “Lundu da Marquesa de
Mehmari, piano e arranjo.
Santos”, sobre texto do dramaturgo Viriato Correia. São dezenas
de canções incríveis, coroadas com o “canto do cisne” que veio
em uma das últimas obras de Villa-Lobos, nas quatro canções
de Floresta do Amazonas (1958), onde elementos que antecipam
a bossa nova podem ser encontrados, justamente no mesmo ano
que Tom Jobim e Vinícius de Morais produziram o álbum Can-
ção do amor demais da cantora Elizeth Cardoso.

As canções villalobianas estão consolidadas


no repertório de cantores e cantoras líricas e
populares; sua influência é observável tanto
em canções de compositores clássicos como
Claudio Santoro e Guerra Peixe, como em can-
cionistas populares como o já citado Jobim,
Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Chico Buar-
que, Gilberto Gil, Dolores Duran etc.

Fachada do Museu Villa-Lobos, Rio de Janeiro.

72
Mindinha e o

Museu Villa-Lobos
Villa-Lobos e Arminda Neves d’Al- A dedicação de Arminda foi impor-
meida se conheceram em 1932; ele tantíssima após a morte de Villa-Lo-
com 45 anos, ela com 20. Em 1936 bos, pelo empenho com que lutou
Villa-Lobos rompeu o casamento pela criação do Museu Villa-Lobos e
com Lucília para assumir o relacio- o estabelecimento de sua sede defini-
namento com a jovem Arminda. tiva, em um casarão na rua Sorocaba
no bairro de Botafogo, zona sul do Rio
Arminda – cujo apelido era “Mindi- de Janeiro (foto). Mindinha dirigiu o
nha”, foi a companheira de Villa-Lo- Museu Villa-Lobos entre 1961-1985,
bos em sua vida madura, atuando coordenando todo o acervo de parti-
como secretária, copista, traduto- turas, manuscritos, cartas, entrevistas
ra e enfermeira. Sua simbiose com e reportagens sobre o compositor.
Villa-Lobos foi tão grande que sua
caligrafia musical ficou praticamen-
te idêntica à do maestro, nos mui-
tos manuscritos que ajudou a passar
a limpo. A ela Villa-Lobos dedicou
grande parte de suas obras compos-
tas entre 1936 e 1958.

73
A Academia
Brasileira de
Música
Em 1945, incentivado pelo amigo e compositor Lorenzo Fer-
nandez, Villa-Lobos liderou o processo de criação da Academia
Brasileira de Música, inspirado pela Academia de França (fun-
dada em 1635), da qual Villa-Lobos era integrante, e pela Aca-
demia Brasileira de Letras, fundada no Rio de Janeiro em 1896
por Machado de Assis.

Villa-Lobos presidiu a ABM até sua morte, em 1959. Os direitos


da obra de Villa-Lobos são hoje exclusivos da Academia, cuja
sede atualmente se situa no bairro do Flamengo, zona sul do
Rio de Janeiro.

Villa-Lobos na sessão inau-


gural da Academia Brasilei-
ra de Música.

74
O embaixador da
cultura brasileira
A atividade artística e pedagógica exercida durante a era Var-
gas contribuiu decisivamente para que Villa-Lobos assumisse
a condição de representante oficial da cultura brasileira.

Em momentos mais delicados da política


externa varguista, com a adesão aos Alia-
dos em 1942, a participação de artistas
como Carmen Miranda e Villa foi decisiva
para a aproximação com os Estados Uni-
dos e sua política de boa-vizinhança. Em
1944, Villa-Lobos regeu suas obras em
Los Angeles e em Nova Iorque, inauguran-
do um relacionamento importante com a
América do Norte.

Ao ser diagnosticado de um câncer em 1948, Villa-Lobos


passou a intensificar sua carreira internacional, seja pelo
Villa-Lobos em Nova Iorque.
desejo de produzir cada vez mais, ou pela necessidade de
arcar com as crescentes despesas referentes às cirurgias e trata-
mentos a que teve de se submeter. Atendeu a várias encomendas
feitas por grandes virtuoses, como o harpista Nicanor Zabaleta
ou seu velho conhecido Segóvia.
Nas décadas de 1930 e 40, Villa-Lobos próximos da nascente bossa-nova,
intensificou a composição para gê- movimento que eclodiu quase à mes-
neros tradicionais da música clássica ma época com João Gilberto, Tom Jo-
europeia como o quarteto de cordas e bim e Elizeth Cardoso.
a sinfonia, deixando grandes coleções
nesses formatos. Seus 17 quartetos A morte do compositor, em 17 de
formam uma das maiores produções novembro de 1959, causou grande
nesse campo no século XX, assim comoção no Rio de Janeiro, levando
como suas 12 sinfonias (das quais a uma multidão ao seu velório, realiza-
Quinta se encontra perdida, extravia- do no saguão do Teatro Municipal.
da durante sua visita a Paris nos anos
1920). O legado musical de Villa-Lobos é
assombroso. Ele escreveu quase mil
Nos anos 1950 ele ainda se manteve obras, para diversas formações vocais
extremamente ativo como regente e instrumentais, peças de caráter sa-
e compositor; uma de suas últimas cro (missas, Aves Marias, oratórios),
obras foi a monumental Floresta do música para cinema e teatro. O Museu
Amazonas (1958), para soprano so- Villa-Lobos publica periodicamente
lista, coro masculino e orquestra. As atualizações do seu catálogo de obras
quatro canções que formam o nú- (a mais recente é a 4ª edição, de 2021),
cleo dessa obra têm elementos muito com informações sobre instrumen-
tação, data de composição e estreia,
intérpretes etc. As principais obras
foram publicadas pela editora fran-
cesa Max Eschig; todavia, há muitos
erros nessas edições. Há também um
grande número de obras que sequer
foram editadas, circulando em versão
manuscrita. O estudo dos manuscri-
tos é uma atividade que vem sendo
feita para progressivamente oferecer
edições mais confiáveis dessas parti-
turas. A Academia Brasileira de Músi-
ca tem tomado a iniciativa, inclusive
“repatriando” os direitos autorais des-
sas obras.

Revista O Cruzeiro, 5 de
dezembro de 1959.

76
Arminda e Heitor Villa-Lobos
embarcando para mais uma
viagem musical.

77
Cartas inéditas de
Villa-Lobos

“Considero minhas
obras como cartas
que escrevi à
posteridade, sem
esperar resposta.”
Arnaldo Guinle
o mecenas das artes

A repercussão da Semana de Arte Moderna de 1922 foi decisi-


va para a difusão da obra de Villa-Lobos. Já conhecido no Rio
de Janeiro desde sua primeira apresentação como compositor
na capital em 1915, ele pôde realizar outros concertos em São
Paulo se tornando referência de modernidade musical na capi-
tal paulista. Como dito anteriormente, os desdobramentos da
Semana se traduziriam em manifestos artísticos, pesquisas e pu-
blicações que se voltariam para a busca da brasilidade musical
do país. Este processo se daria por meio da intensificação dos
diálogos entre os envolvidos nos festivais de 1922, mesmo con-
siderando os diferentes caminhos trilhados por estes persona-
gens. Sobre os contatos entre Villa-Lobos e outros modernistas,
destaca-se, nos anos seguintes, a relação entre o compositor e a
obra musicológica de Mário de Andrade, a literatura de Oswald
Andrade e Graça Aranha e também com os mecenas Carlos e
Arnaldo Guinle.

Os irmãos Carlos e Arnaldo Guinle foram personagens funda-


mentais para a internacionalização da obra de Villa-Lobos. Na-
queles anos de 1920, Paris era o centro de irradiação da cultura
mundial. A cidade-luz era o destino “natural” para o aperfeiço-
amento e para a difusão da obra de artistas que desejavam se
colocar no cenário internacional. Como já vimos acima, pianista
Arthur Rubinstein teve papel importante na ida de Villa-Lobos
à Europa. Com a aprovação no Congresso Nacional do projeto
de subvenção para a viagem do compositor para uma estadia de
um ano e a realização de alguns concertos em 1923. Ao retornar

81
à capital francesa em 1927, Villa-Lobos se hospedou no aparta-
mento dos Guinle, no terceiro andar do número 11 da Praça de
Saint-Michael no Quartier Latin.

Meu caro Villa-Lobos,

Recebi com grande prazer a tua carta de 1º de abril que me causou grande
contentamento, não só por saber que vais gozando de uma forte saúde,
mas também por ter tido conhecimento dos grandes sucessos que tens
feito com os teus concertos em Lisboa e Paris e faço votos para esses su-
cessos continuem nos concertos que me disse ter em Bruxelas, Londres
e Espanha.

Muito me penaliza saber que andas curto de arame sobretudo quando se


avizinha o termo de tua estadia por aí. Entretanto, de, devo dizer-te que se
aqui renovares os arranjos que foram feitos para tua ida a Europa, estarei
pronto a contribuir com a minha insignificante quota para que possas ain-
da uma vez mostrar que a Europa tem que se curvar ante o Brasil.

Tenciono acompanhar a minha família a Paris, onde chegarei em meados


de Julho, de forma que nesta época mais ou menos, se quiseres me dar o
prazer de uma visita, poderia me procurar no Hotel Majestade.

Em 25 de janeiro de 1925, Villa-Lobos concedeu entrevista a


Alcântara Machado, na qual revelava o convite feito a ele por
Arnaldo Guinle para trabalhar na organização e sistematização
do folclore brasileiro por meio de pesquisas do material musical
da cultura popular, formadora da nacionalidade brasileira. An-
tes do contato com Villa-Lobos, os irmãos Guinle financiaram
viagens de outros músicos brasileiros, dentre eles, Donga, Pixin-
guinha e João Pernambuco para coleta de material musical nas
regiões norte e nordeste do país. Material que seria organizado
e publicado posteriormente.

No dia 12 de janeiro de 1925 Arnaldo Guinle, ao responder a


carta de Villa-Lobos do dia 9 de janeiro, demonstrou entusias-
mo com a parceria entre eles para levar a cabo o trabalho relati-

82
83
vo ao folclore que àquela altura ainda estava sob a responsabili-
dade do compositor:

Meu caro Villa-Lobos,

Acabo de receber a tua carta de 9 do corrente, bem como a entrevista que


deste no jornal de São Paulo sobre o nosso trabalho de folclorismo. Achei-a
muito interessante e penso que será uma obra de grande repercussão se
for ela seriamente empreendida, como estou convicto o será, desde que te
comprometeste neste sentido.

Desejando-te muitas felicidades para o ano novo e sucesso nos concertos


que aí deverás dar, aqui fica o amigo de sempre

Segundo alguns pesquisadores, a viagem de Villa-Lobos a Pa-


ris foi decisiva para desencadear uma expressão de identidade
nacional em sua música. Para o autor, o choque cultural fruto
do contato com o universo intelectual e artístico parisiense foi
central para uma mudança de rumo. De compositor afrancesa-
do, tentando reproduzir e adaptar o modelo debussiano, Villa-
-Lobos passou a compor enfatizando sua origem brasileira. No
contexto modernista de Paris, a expectativa com relação a músi-
cos não-europeus era que estes trouxessem elementos “extra-o-
cidentais”, revitalizando a linguagem musical europeia.

Nota-se na carta enviada em 25 de abril de 1924 que ao afirmar


“estarei pronto para contribuir com minha insignificante cota
para que possas ainda mostrar uma vez mostrar que a Europa
tem que se curvar anto o Brasil”, Arnaldo Guinle apostava na
brasilidade musical de Villa-Lobos construída ao longo de sua
trajetória no Brasil. O mecenas parabeniza o maestro pelo su-
cesso dos concertos realizados por ele em Paris

Em 1924 Villa-Lobos havia dedicou o Choros n°7 a Arnaldo


Guinle e, em 1926, Villa-Lobos dedicaria o Choros n° 4 a Carlos
Guinle.

84
85
86
Mário de Andrade
o Macunaíma da música brasileira

De acordo com Edilene Matos, em 1927, Villa-Lobos, voltado ex-


clusivamente para suas composições, teria repassado a incum-
bência de Arnaldo Guinle a Mário de Andrade (1893-1945), pela
confiança na capacidade do musicólogo para desenvolver o pro-
jeto. A pesquisa teria sido encomendada pelos Guinle antes de
1922 e, segundo a pesquisadora, foi por meio de carta enviada
de Paris em 23 de agosto de 1923, que o compositor trataria do
tema com Mário de Andrade expressando admiração pelo amigo
escritor.

Em 25 de setembro de 1923, Mário de Andrade escreveu uma


bela carta em resposta a missiva supracitada e fez referência a
algumas das personagens centrais da Semana de Arte Moderna
de 1922:

Villa querido:

Tua carta, que prazer. Tua carta triunfal. Vejo que estás com o verdadeiro
espírito em que eu te desejara. Coragem e entusiasmo, a que nenhuma
(pieguice?) e restrição desses franceses abaterá. Bravo.

Estou louco por ver e ouvir “A menina e a canção”. Sou feliz em saber que
de alguma coisa te serviram esses meus versos. Que bela coisa deves ter
feito!

87
Os teus manuscritos já estão há bastante tempo em mãos de dona Lucília.
Foi o que me disse o Leônidas Autuori, muito antes de eu receber tua car-
ta. Como sabes, estive bastantes dias fora de S. Paulo. Descansei a respei-
to de teus manuscritos pois o Leônidas me afirmara que iam breve para
o Rio. Chegado a S. Paulo na 2ª quinzena de julho caí doente. Garganta.
Proibição absoluta de falar. Assim fiquei até quase meados de agosto. Só
depois disso soube pelo Luís Aranha que o Autuori ainda não mandara as
músicas. Procurei-o. Prometeu-me que elas seguiriam breve. Depois certi-
ficou-me que estavam já nas mãos de tua mulher. Só então descansei.

Em todo caso vou escrever a dona Lucília para saber se a Sonata Fantás-
tica já partiu para Paris. Contar-lhe-ei teu desejo e pressa. Os amigos aqui
estão molengos. Pouca reunião. A amizade anda desconjuntada. Cada um
trabalha e vive para seu lado. Certo desânimo em alguns. Eu, trabalho
sempre, com entusiasmo e afinco. Sinto-me feliz e espero. Mas espero só
por assim. Espero por ti, por Brecheret, por Anita, toda esta troupe divina,
Ronald, Luís, etc. etc., o melhor circo de cavalinhos que já houve no Brasil.

Escreva-me de quando em quando. Não te esqueças de contar vitórias.


Desejo-as de coração, lindas e totais.

Abraços Abraços Abraços Abraços

Para Mário de Andrade, em seu Ensaio sobre a Música Brasi-


leira, escrito em 1928, a pesquisa era uma condição para a rea-
lização efetiva de uma composição realmente nacional. Dentro
desta pesquisa, o elemento europeu não deveria ser deixado de
lado, mas incorporado, transformado e misturado aos elementos
da brasilidade musical, pois “a ‘música artística’, na acepção de
Mário de Andrade, é o resultado do refinamento dos sons popu-
lares por meio de uma elaboração erudita. Por mais que Mário
de Andrade valorize a música popular, o objetivo do compositor
nacional, segundo ele, deveria ser uma elaboração musical cal-
cada na experiência erudita. Isso porque a música popular seria
na sua ótica descompromissada, faltando a ela elaborações de
caráter construtivo.

88
89
Em seu artigo “Evolução Social da Música Brasileira”, Má-
rio de Andrade (1991 [1939], p.11) situa a obra de Villa-Lobos
como o ponto culminante do desenvolvimento da nacionalida-
de musical brasileira. Para o autor, a música brasileira teve um
desenvolvimento lógico: “Primeiro Deus, em seguida o amor
e finalmente a nacionalidade”. Em outras palavras: a colônia,
o império e a república davam inteligibilidade à história da
música no Brasil e a independência musical tinha no naciona-
lismo sua expressão.

Para compreender o nacionalismo de Villa-Lobos é significativo


notar a mudança de concepção do nacionalismo do século XIX
para o modernista, a partir dos anos 30, explícita na proposta
estética e social de Mário de Andrade, presente no Ensaio So-
bre a Música Brasileira. Ele foi o mais importante musicólogo
a influenciar os músicos modernistas no Brasil no seu tempo e
na busca por esta nova música que intitulou de música interes-
sada. O papel social do músico torna-se diferente do papel do
academicista, presente no século XIX. A missão nacionalista de
Mário de Andrade, que definiria esta música interessada, já se
encontra esboçada no Ensaio. Por um lado, esta obra tornara-se
uma espécie de cartilha seguida por muitos músicos, tais como
Villa-Lobos. Por outro lado, as produções musicais de Villa-Lo-
bos tornaram-se referencias para a escrita do próprio Ensaio
escrito por Mário de Andrade.

Desde o início dos anos 1920, o papel de Villa-Lobos ia além


daquele de compositor. Suas experiências relativas a música po-
pular do Brasil e a coleta de materiais referenciada pelo músico
em suas narrativas autobiográficas podem ter ecoado na obra
musicológica de Mário de Andrade. Na carta do dia 3 de agosto
de 1925, notamos que a capacidade criativa de Villa-Lobos para
incorporar em suas obras elementos populares fizeram com que
Mário de Andrade o incentivasse a compor peças para piano nas
quais o músico utilizasse o popular como material musical de
suas obras pianísticas.

90
É significativo destacar que em 1924, Villa-Lobos havia dedi-
cado o Choros n° 2 para flauta e clarineta ao amigo Mário de
Andrade. Nesta obra, nota-se a presença da musicalidade dos
Chorões com os quais o compositor convivera nos primeiros
anos do século XX, articulada a sonoridade modernista das van-
guardas europeias. Na carta aqui presente, Mário de Andrade
agradece a Villa-Lobos pela dedicatória e provavelmente pelo
envio da transcrição do Choros n° 2 para piano feita pelo próprio
compositor.

No contexto de escrita da carta, Villa-Lobos realizaria sua pri-


meira viagem à Argentina. O compositor viajara para Buenos
Aires, sob o patrocínio do embaixador brasileiro naquele país,
Pedro de Toledo, e a convite de instituições locais. Na oportuni-
dade realizou três concertos – na embaixada do Brasil, no Salón
La Argentina e no Teatro Odeón – com obras camerísticas de
sua autoria, com destaque para Noneto e Choros nº 2. Mário de
Andrade solicita na carta os jornais publicados na capital argen-
tina que tratavam da presença de Villa-Lobos no país vizinho.

Villa querido,

Deus lhe pague o magistral presente do “chôro”. Está excelente a transcri-


ção embora naturalmente não iguale o original. A prova de camaradagem
que você me dá com esta oferta é das que francamente me orgulham. Dei-
xem lá... a gente apanha porrada, descompostura e tudo porém de repente
um artista, um homem que a gente admira e ama nos dá um abraço assim
como você me deu dedicando-me o chôro. Tudo quanto foi amargor e con-
trariedade desaparece. Fica a alegria da vida e a certeza de que ainda tem
gente amiga da gente neste mundo. Ora que vão pro diabo as bestas e viva
nosso Carnaval! Não acha mesmo?

Ontem pensei muito em você. Recebi uma coleção de peças de um músico


moderno chileno, um tal Ollende, conhece? Pois um sujeito muito inte-
ressante. Peças inspiradas na música popular, de fatura curiosíssima e
harmonização extraordinariamente fina sem exageração. Um bom gosto
excepcional. Não me parece sujeito genial não, porém sensibilidade certa

91
sempre despertada e acompanhada por uma técnica seguríssima e rica.
Porém, não foi por nada disso que me lembrei de você quando lia as peças
dele: foi porque as tais peças são de um gênero que há muito eu estava
pra te pedir alguma coisa. Eu sei a facilidade maravilhosa do espírito de
você Villa e acho que não tomaria muito o seu tempo escrever uma série
por exemplo de vinte Peças Populares brasileiras pra piano. Não pense
não que estou fazendo encomenda nem achando que você está fazendo
caminho errado. Artista verdadeiro nunca fez caminho errado e você sabe
o meu, o nosso entusiasmo aqui pelas últimas coisas que você tem feito.
Então o Trio... você não imagina a saudade que tenho dos dias que ele
passou na minha casa. Um tempinho que eu arranjava, pronto: corria pro
piano examinar mais um pedaço dele. Que coisa linda! Tenho uma loucura
pelo Trio, palavra. Se eu lembro essas peças é porque a literatura pianís-
tica brasileira está carecendo delas. E só um artista como você poderia
dá-las de maneira a serem representativas da nossa raça e sem deforma-
ções italianizantes ou debussiniantes. Atualmente no Brasil só vejo você
pra escrever estas músicas. Tente Villa. Será certamente mais uma obra
maravilhosa. Estou carecendo delas pro meu curso. Você já sabe que quem
introduziu e sustentou você no Conservatório daqui fui eu. Tenho essa
felicidade. Pois me mande estas peças que serão adotadas como as outras
todas. Disse vinte, pois não carece fazer coisas compridas. Um tema popu-
lar, de moda, de dansa, de lundu harmonizado da maneira tão característi-
ca de você. Seria uma delícia! E com a facilidade que você tem, não tomaria
muito tempo. Pense nisso e faça as peças como entender. Você sabe o que
fará e não estou aqui pra dar conselhos. Estou pedindo porque careço
disso pros meus cursos e o Brasil carecendo pra sua literatura musical. E
é uma coisa que só Villa-Lobos pode fazer agora no Brasil.

Terça passada, falamos muito de você em casa de dona Olívia. Nãos seria
possível você me arranjar alguns dos jornais de Buenos Aires falando de
você? Tenho sede de ler isso e dona Olívia emprestou os dela pro Guinle
e não teve devolução. Nãos e esqueça e mande. Como vai os ensaios para
o concerto do dia dez? Com os meus melhores desejos de sucesso e um
enorme mariopedal abraço amigo.

92
93
94
Oswald de Andrade,
Villa-Lobos e o redescobrimento do Brasil

Em 1937, Villa-Lobos havia escrito O Descobrimento do Brasil


como trilha sonora para o filme homônimo de Humberto Mau-
ro. Peça orquestral formada por quatro suítes. Tanto o composi-
tor quanto o cineasta deixaram testemunhos afirmando estarem
influenciados pela carta de Pero Vaz de Caminha ao criarem as
referidas obras. É muito significativo notar que, como salienta
Martinelli (2009), o motivo que perpassa a suíte de Villa-Lobos
diz respeito ao edenismo tratado anos mais tarde por Sérgio Bu-
arque de Holanda em seu livro Visão do Paraiso: os motivos edê-
nicos no descobrimento e colonização do Brasil, obra historiográfica
publicada no ano de morte de Villa-Lobos, que destaca o motivo
edênico enquanto elemento cultural presente no imaginário da
colonização portuguesa do Brasil.

O motivo edênico pensado por Holanda em seu clássico da his-


toriografia brasileira é apresentado na referida obra de Villa-Lo-
bos. A “visão do paraíso” presente na narrativa da carta de Pero
Vaz de Caminha é reelaborada pela trilha de Villa-Lobos ao des-
crever musicalmente a saga heroica dos portugueses na Améri-
ca. A nação de traços conservadores forjada pelo Estado Novo
(1930-1945) deveria promover o equilíbrio harmonioso entre in-
dígenas e portugueses, harmonia esta traduzidos na película de
Humberto Mauro e na obra de Villa-Lobos.

Cinco anos mais tarde, em carta enviada a Villa-Lobos, Oswald


Andrade (1890-1954) falou de sua intenção de parceria com o
compositor para a elaboração do balé intitulado A Princesa Ra-

95
dar. Na carta escrita por Oswald, provavelmente no ano de 1942,
o escritor deixou clara a perspectiva política e cultural do proje-
to. Sobre o balé, Andrade afirmou que este seria “música nossa,
antropofágica no primeiro quadro. Música ultra-moderna, in-
terplanetária no fim”. “Se você concordar, todas as combinações
serão possíveis” dizia ela ao amigo compositor. De modo inver-
so daquele apresentado pelo Descobrimento do Brasil, a lingua-
gem de A Princesa Radar, paródica e alegórica, consistiria numa
metáfora da história do Brasil partindo da antropofagia para a
“modernidade capitalista do mundo”. Porém, a parceria aparen-
temente não se concretizou.

Meu querido Villa-Lobos,

Confirmo o telefonema de ontem. Aí vai o argumento de A Princesa Rodar,


que dei ao De Basil mas sem nenhum compromisso. Apenas ara exame
com você. Dependerá de nós darmos a ele ou a outro ballet. Tarsila estará
de acordo. Gostou e topa. Como verá é um contraste dos trópicos com a
era atômica. Música nossa, antropofágica no prmeiro quadro. Música ul-
tra-moderna, Interplanetária no fim. Se você concordar, todas as combina-
ções serão possíveis. Telefone para 7-7367, nas refeições ou pela manhã
ate nove horas ou escreva para Rua mosenhor Passalaqua 142, São Paulo.
Se não fizer, diga com aquela linda franqueza e abrace sempre o seu.

Oswald de Andrade foi escritor e dramaturgo brasileiro com


representatividade na construção da literatura modernista no
Brasil. Porém, sua obra estabelece uma “virada cultural” ao pro-
por profunda reflexão sobre o processo de colonização e a ne-
cessidade de criação de uma linguagem local na busca das raízes
da brasilidade. O Movimento Antropofágico consiste em um dos
movimentos que mais influenciou as artes brasileiras no sécu-
lo XX. Nota-se os desdobramentos da antropofagia na estética
mais atual tal como ocorrera com o Movimento Tropicalista dos
anos 1960/70.

As relações entre Villa-Lobos e Oswald Andrade podem ser

96
97
pensadas, portanto, por meio perspectiva modernista relativa a
antropofagia. As narrativas do viajante alemão Hans Staden re-
latando ter sido prisioneiro e ameaçado de ser morto e “comido”
pelos tupinambás carregada de sua moral religiosa e sua visão
etnocêntrica, é reinventada no Manifesto Antropofágico (1928) de
Oswald Andrade. Neste, o modernista propõe a inversão des-
ta perspectiva e reinventa a antropofagia enquanto metáfora
da cultura brasileira. “Só a antropofagia nos une. Socialmente.
Economicamente. Filosoficamente” afirma Oswald em seu fa-
moso manifesto. “Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a
revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na
direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua
pobre declaração dos direitos do homem.”

É desse modo que Oswald de Andrade, Mário


de Andrade e Heitor Villa-Lobos, ressignifica-
ram a antropofagia numa perspectiva poética,
literária e musical. “Devorariam o Outro - es-
trangeiro, europeu - para assimilar o melhor
das suas características ancestrais que, junto
com suas próprias referências, permitiriam a
produção de algo novo, diferenciado, transcul-
turado”.

Em uma fantasiosa entrevista concedida por Villa-Lobos em


1927 à poetisa e escritora francesa Lucie Delarue-Mardrus
(1874-1945), Villa-Lobos narrou que, em sua viagem à Amazônia,
fora “despido, amarrado ao pé de uma árvore” e que “teve, antes
de ser comido, as honras de três dias de cerimônias fúnebres”.
Escapara e conseguira ser “entregue aos brancos antes do fim
dos três dias”, voltando “desta terrível aventura munido de uma
bagagem de ritmos e modulações com que, desde então, passa-
ram a fazer parte de suas composições.” Deste modo, “o relato
de Hans Staden que, canibalizado pela Sra. Delarue Mardrus,
foi (...) antropofagizado por Villa-Lobos (...) cada um de manei-
ra mais inventiva, a história requentada da preparação para o

98
sacrifício antropofágico vivido pelo alemão Staden, no século
XVI.”

Apesar da influência do movimento antropofágico na obra de


Villa-Lobos, cabe destacar que em 1923, cinco anos antes da
escrita do já referido Manifesto, Villa-Lobos havia dedicado o
Choros n° 3 a Oswald Andrade. Esta obra pode ser considerada
como uma das precursoras da antropofagia musical de Villa-Lo-
bos devido a seus procedimentos composicionais que incorpora
elementos indígenas e a música europeia (ver sessão Os Choros).

99
100
Graça Aranha
diplomata, intelectual e modernista

Graça Aranha (1868-1931), escritor e diplomata, foi personagem


decisivo para a trajetória de Villa-Lobos. Foi por meio dele e de
Ronald Carvalho que o compositor tomou conhecimento da Se-
mana de Arte de São Paulo em 1922. Naquela ocasião, procuram
Villa-Lobos em sua casa para convidá-lo a participar do evento.
É possível afirmar que na carta aqui apresentada, Aranha traz à
memória o primeiro encontro entre os três modernistas no Rio
de Janeiro pouco antes do evento em São Paulo.

Aranha e Carvalho articularam o financiamen-


to junto a Paulo Prado para que Villa-Lobos
pudesse contratar os intérpretes para as apre-
sentações na cidade de São Paulo. Graça Ara-
nha e Villa-Lobos tornaram-se amigos e con-
tinuaram um fecundo diálogo artístico como
demonstra a carta aqui apresentada.

Graça Aranha foi um dos fundadores da Academia Brasileira


de Letras em 1897. Seu romance regionalista Canaã, escrito em
1902, é uma densa reflexão sobre a formação étnica-social do
Brasil – juntamente com Os Sertões de Euclides da Cunha. Sua
condição de diplomata o permitiu conhecer diversos países: In-
glaterra, Itália, Suíça, Noruega, Dinamarca, França e Holanda.
Deste modo, pode observar a cultura brasileira sob o filtro des-
tas experiências. Além disso, acompanhou a agitação artística
e intelectual da Belle Époque em especial as tensões políticas

101
e culturais advindas do contexto da Primeira Grande Guerra
(1914-1918). Não foi por acaso que a Semana de Arte Moderna
foi inaugurada pela palestra de Graça Aranha: “A emoção estéti-
ca da Arte Moderna”.

Em 1921 Graça Aranha chegou ao Brasil trazendo diversas in-


fluências que iriam pautar os diálogos dos modernistas brasilei-
ros com as vanguardas europeias. “Nenhum preconceito é mais
perturbador à concepção da arte do que o da Beleza”, afirmava
Graça Aranha em seu texto inaugural lido durante a abertura da
Semana de Arte Moderna.

Querido Villa-Lobos,

O nosso jantar no Pão de Açúcar é hoje. Peço-lhe o favor de estar de cinco


e meia para seis horas na estação da Praia Vermelha onde encontrará os
amigos.

102
103
104
Carlos Drummond
de Andrade
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), escritor mineiro
nascido em Itabira é um dos mais significativos poetas da se-
gunda fase do modernismo. Em 1924, Drummond toma contato
com os modernistas de São Paulo quando da viagem destes a
Minas. A trajetória de Drummond se cruza com a de Villa-Lobos
de modo mais direto a partir dos anos 1930 e 1940 no contexto
do nacionalismo da “Era Vargas”.

Em 1933, Drummond se aproxima de Gustavo Capanema quan-


do este fora nomeado interventor em Minas Gerais. Mas é em
1934 que passa a ocupar o cargo de chefe de gabinete do mi-
nistro Gustavo Capanema no Rio de Janeiro, então capital fede-
ral. É neste mesmo contexto, mais precisamente em 1932, que
Villa-Lobos assumiu o cargo de diretor da Superintendência
de Educação Musical e Artística (SEMA), órgão subordinado ao
Ministério da Educação e Saúde dirigido por Capanema.

É neste momento que o compositor começa


oficialmente a desenvolver sua proposta políti-
co-pedagógica por meio das famosas concen-
trações orfeônicas e projetos cívico-educacio-
nais.

Em carta escrita por Gustavo Capanema endereçada a Villa-Lo-


bos, pode-se notar o prestígio do compositor e suas relações
com a pasta dirigida pelo ministro. Nesta, Villa-Lobos é solici-

105
tado a integrar a comissão “incumbida de estudar a fixação” do
Hino Nacional, à Bandeira, à República e à Independência.

Sr. Professor,

Tomando em consideração o assunto ventilado em vosso ofício no 526, de


30 de novembro de 1936, tenho o prazer de convidar-vos para integrar
a comissão por mim incumbida de estudar a fixação da edição oficial do
Hino Nacional, do Hino à Bandeira, Hino à República e Hino à Independên-
cia. Neste ensejo, apresento-vos os meus protestos de apreço e conside-
ração. Ao Sr. Professor Heitor Villa-Lobos, Superintendente de Educação
Musical do Departamento de Educação do Distrito Federal.

Em 1942 foi criado o Conservatório Nacional de Canto Orfe-


ônico, órgão dirigido por Villa-Lobos e, também, subordinado
ao Ministério da Educação e Saúde, chefiado por Capanema.
Mesmo com o fim do Estado Novo (1937-1945), Villa-Lobos con-
tinuou à frente do Conservatório. A carta escrita por Carlos
Drummond em 1947 demonstra a continuidade das relações
entre o poeta e o músico, bem como a importância dada por
Drummond aos trabalhos de Villa-Lobos na instituição. Nesta
carta, o poeta se desculpa pela ausência quando da execução da
obra para canto e orquestra intitulada Poema de Itabira, com o
subtítulo Viagem na Família, composta por Villa-Lobos em 1943
para os versos do poeta mineiro.

Meu caro Villa-Lobos,

Uma indisposição súbita, na tarde de ontem, obrigou-me a voltar cedo


para casa, privando-me, assim, de ouvir no Conservatório a dádiva mu-
sical que você tanto honrou e valorizou os meus versos, Senti vivamente
não estar presente à execução, pois estou certo de que você realizou mais
uma criação a altura de seu gênio artístico, isto é: uma obra prima. Quan-
do poderei ouvir essa “Viagem na Família” já que agora é mais uma obra
de Villa-Lobos do que deste pequeno poeta?

Fico desejando uma oportunidade. Até lá, o melhor abraço, com a profunda
admiração do seu, muito grato.

106
107
Villa-Lobos tocando cuíca, cercado de
instrumentos musicais.

108
Vasco Mariz
o biógrafo pioneiro

Vasco Mariz (1921-2017), historiador, musicólogo e diplomata de-


sempenhou um papel muito importante para a difusão da obra
e da trajetória de Villa-Lobos. Mariz estudou no Conservatório
Brasileiro de Música e, em 1943 graduou-se em Direito. Em 1947
realizou estudos diplomáticos e, ainda neste ano foi indicado ao
cargo de vice-cônsul em Portugal. A partir daí desenvolveu di-
versas atividades diplomáticas em vários países, tais como Itália e
Estados Unidos. Foi sócio emérito do Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Música.

Autor de diversas obras musicológicas, Mariz é


reconhecido por ter escrito a primeira biogra-
fia sobre Villa-Lobos, intitulada Heitor Villa-Lo-
bos: Compositor Brasileiro, atualmente na 13ª
edição.

Quando escreveu a biografia, entre 1946 e 1947, Vasco Mariz era


representante do Brasil na Iugoslávia. O diplomata correspon-
dia-se regularmente com Villa-Lobos, seu amigo pessoal. De
acordo com o próprio Vasco Mariz, suas entrevistas com o bio-
grafado causaram-lhe profunda impressão. Escreveu a biografia
quando jovem e, de acordo com suas próprias ponderações, esta
juventude influenciou o texto.

A obra recebeu uma nova edição norte-americana em 1959, ano


em que faleceu o compositor. A terceira edição apareceu em Pa-

109
ris em 1967, e, em 1970, foi impressa nos Estados Unidos. Estas
foram três de um total de onze edições da obra pioneira que
mais influenciou os estudos biográficos sobre o compositor até
o presente momento. A biografia possui diversas edições, tanto
na Europa quanto nos países da América Latina. Vasco Mariz
afirmou recentemente que seria necessário, ao reescrever seu
livro trinta anos após a primeira edição, reavaliar o que fora es-
crito em 1947, “a fim de não ser dominado pela personalidade
gigantesca do compositor”.

Na carta aqui apresentada, Villa-Lobos fala sobre o seu musi-


cal Magdalena, apresentado na Broadway em 1948. Para Viana
(2007), a ideia da história para o musical Magdalena nasceu em
1944, em um famoso restaurante em Nova York, quando Homer
Curran, Edwin Lester (produtores), Robert Wright e George
Forrest (letristas e adaptadores musicais) celebravam o enorme
sucesso do seu primeiro musical para a Broadway: Song of No-
rway, com música do compositor erudito Edvard Grieg. Curran
era o decano dos homens do teatro da costa oeste norte-a-
mericana, proprietário do Curran Theater em São Francisco,
organizador da Ópera Ligeira naquela cidade e associado de
Edwin Lester, diretor geral da Los Angeles e da San Francisco
Civic Light Opera Association, e um profissional extremamen-
te competente e considerado como “a gentleman of impecable
taste”. Wright e Forrest estavam nos seus 30 anos e já haviam
trabalhado em cerca de 50 filmes para a MGM (incluindo a
maioria dos filmes musicais para Jeanette MacDonald e Nelson
Eddy).

No contexto de escrita da carta a Mariz, Villa-Lo-


bos estava no auge da sua carreira, realizando
concertos em diversas partes do mundo como
pode-se constatar na carta aqui apresentada.

Reconhecido e admirado como compositor e maestro, ele regia


suas obras junto às maiores orquestras do mundo, além de ser

110
também conhecido pelo seu trabalho como educador musical
no Brasil.

Seus Choros e suas Bachianas Brasileiras já eram aclamados


pelo público de concertos e do meio musical norte-americano,
assim como várias outras obras de sua autoria.

Villa-Lobos chegou aos palcos da Broadway


no ápice da era de ouro do teatro musical ame-
ricano, período chamado de “belle époque do
teatro musical”.

Aparentemente, aquele período parecia o mais favorável possí-


vel para que Villa-Lobos apresentasse a sua Magdalena na Broa-
dway. Foi no ano de 1948 que a dupla Lerner e Loewe conseguiu
finalmente criar o musical. Sobre a sua música, o único ponto,
alvo de críticas, foi que ela não era facilmente assimilada em
uma primeira audição pelo público, como geralmente acontecia
nos sucessos da Broadway. Se por um lado, a personalidade, o
nível de conhecimento e de exigência musical de Villa-Lobos
não lhe permitiam compor algo somente para agradar ao públi-
co, ou para fazer sucesso, por outro lado, ele também se propôs
a contribuir para o gênero, acreditando na capacidade de aceita-
ção pelo público de teatro norte-americano e, assim, acreditan-
do em sua capacidade criativa.

Rio, 6 de novembro de 1948

Consul Vasco Mariz,

Prezado Mariz:

É com muito prazer que Mindinha e eu enviamos nos papeis os nossos


parabéns pela chegada da filhinha e fazemos os sinceros votos de muitas
felicidades para o trio.

111
Na realidade, de acordo com quase toda a crítica americana, o liberto
de Madalena prejudicou a obra e, talvez por este motivo ela deverá
ficar menos tempo no cartaz, segundo muitos declaram.

De acordo com o contrato não se poderá fazer novo libreto mas tra-
duzi-lo e para isso, Raymundo Magalhaes Junior já pediu autorização
à Cia... o que aliás julgo bem entregue, não só porque conhece bem o
inglês, mas porque viveu muito tempo na América.

Não sei, porém, quando será realizado esse trabalho, porque franca-
mente não julgo que se poderá fazer tão grande montagem aqui entre
nós, especialmente em uma época de compressão de despesas como
atravessamos.

Recebi os dois livros. Agradeço-lhe a remessa e felicito-o pela realiza-


ção do trabalho, apenas lastimando que emitiu muitas opiniões sem
perfeito conhecimento do assunto e que, pessoalmente, exporei a você.

O “Big-Ben” publicado no livro não meu original, mas uma cópia de


Mindinha. Na verdade, há tão grande afinidade entre nós dois que até
mesmo a grafia musical vem cada se igualando a minha.

Sobre a realização de concertos no Porto, não verei inconveniente des-


de que possa realizar algum em Lisboa.

Após minha atuação nos Estado Unidos e México, nos meses de janeiro
e fevereiro, partirei para Paris, Londres e Roma e por isto é perfeita-
mente viável que eu possa dar um pulinho até aí.

112
113
114
Câmara Cascudo,
Villa-Lobos e o “folclore brasileiro”

Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), Maestro Villa-Lobos,


folclorista, pesquisador e jornalista
brasileiro, foi um dos mais atuantes Natal, 21/5/1949
pesquisadores das manifestações
culturais brasileiras. Câmara Cas- Boas vindas e muitas saudações do bate-
cudo nasceu em Natal, Rio Grande -papo em Lisboa. Estou aqui lembrando a
do Norte, no dia 30 de dezembro de promessa do retrato. Imagine que luta para
1898 e produziu uma vasta obra so- termos o nosso Anuário da Sociedade Bra-
bre a cultura popular brasileira. Em sileira de Folclore e para ele venho pedir-
1941, Luís da Câmara Cascudo criou -lhe algumas linhas, copyright by...
a Sociedade Brasileira de Folclore e
em 1954 publicou o Dicionário do Não haverá melhor alegria para esse gru-
Folclore Brasileiro (atualmente na po provinciano que a sua solidariedade em
12ª edição). Na carta aqui apresenta- nossa publicação.
da, Câmara Cascudo demonstra sua
admiração pela obra de Villa-Lobos Peço lembrar-me à senhora com todos os
ao convidá-lo para contribuir com o votos de felicidade.
Anuário da instituição dirigida por
ele. Para tanto, o folclorista solicita, Para não tomar tempo, dou breque à ver-
também, uma fotografia de Villa-Lo- biage.
bos para compor a publicação.
Seu velho admirador e amigo

Luís da Camara Cascudo

115
116
Othon
o carinho fraternal

Pouco se sabe sobre as relações familiares de Villa-Lobos. Como


escrito anteriormente, Villa-Lobos teve sete irmãos: Bertha, Car-
men, Othon (primeiro), Ester, Clóvis, Gilda e Othon (segundo).
Desses irmãos, o primeiro Othon, Ester, Clóvis e Gilda morre-
ram de modo prematuro; o segundo Othon morreu aos 26 anos,
foi estudante de medicina e jogador de futebol. Nesta afetuosa
carta, escrita em 22 de julho de 1918, Othon, usando o apelido
de infância, “Tuhú”, para se referir ao irmão mais velho Heitor,
Othon pede a atenção do compositor à enfermidade que o aco-
metera. Em setembro, dois meses após essa carta, Villa-Lobos
realizou a estreia de O Naufrágio de Kleônicos e do Tédio da Alvo-
rada no Rio de Janeiro.

Rio, 22/7/1918

Caro irmão Tuhú

Saudações

Espero este encontrar-te já com saúde, em companhia de tua família. Es-


crevo-te este, a fim de combinarmos a hora e o lugar, onde devemos estar
para irmos ao médico. Eu estou pronto para o primeiro dia de sol partir.
Tenho passado um pouco mal devido o ingrato tempo. Olhe! Meu irmão. A
saúde é uma das primeiras necessidades e preciosa (…) lembre-se do seu
irmão que sofre a oito meses. Bom, responda-me. Aceite lembranças de
todos para todos e um abraço de teu irmão.

Othon

117
Artigo escrito por Alejo Carpentier e publi-
cado na Revista Gaceta Musical (1928).

118
Alejo Carpentier
instrumentos indígenas e afro-brasileiros

Alejo Carpentier, nascido em Havana em 1904, era filho de pai


francês e de mãe de origem russa. Formado em arquitetura, es-
critor, fazia parte de grupos literários e produzia críticas sobre
literatura, teatro, artes plásticas e música.

Em 1928, aos vinte e quatro anos de idade, seu


manifesto contra o ditador cubano Gerardo
Machado levou-o à prisão. Ali escreveu o seu
primeiro romance – Éuê-Yambê-o. Em liberda-
de condicional, fugiu de Cuba usando o pas-
saporte do poeta Robert Desnaud. Carpentier
só retornaria a Cuba após a Revolução lidera-
da por Fidel Castro, quando passou a trabalhar
junto à rádio e à universidade, ocupando car-
gos importantes no regime socialista. Poste-
riormente, atuou como ministro-conselheiro
para assuntos culturais da embaixada cubana
em Paris.

Mesmo que não tenhamos conhecimento de cartas trocadas


entre estes personagens, os escritos de Carpentier expressam
a proximidade, as trocas e diálogos entre eles. No ano de 1928,
as trajetórias de Carpentier e Villa-Lobos se cruzaram. Dezes-
sete anos mais velho, Villa-Lobos contava com quarenta anos
de idade e já era personagem reconhecido em Paris desde sua
passagem bem-sucedida pela cidade havia cinco anos. Sua ima-

119
gem e obra já circulavam nos jornais e nos círculos artísticos quando Alejo
Carpentier, difusor do afrocubanismo musical na Europa, passou a viver na
França, numa estadia entre os de 1927 e 1939. Durante esse período, dentre
outras atividades, colaborou com a Revista Gaceta Musical. Publicado em lín-
gua espanhola, o periódico circulou em Paris entre os anos de 1928 e 1929.
A Gaceta foi editada pelo compositor mexicano Manuel Ponce e direcionava
sua produção para as reflexões sobre a música produzida na América Latina.

Sobre a modernidade musical de Villa-Lobos antes da Semana de Arte Mo-


derna de São Paulo e de suas viagens a Paris, é sintomático que Alejo Car-
pentier, em 1928, na Revista Gaceta Musical de Paris, tenha observado que
algumas de suas obras, muito anteriores a 1920, que segundo o musicólogo
eram quase premonitórias.

A crítica de Carpentier fazia parte do exercício antropofágico de reinvenção


de uma latinidade musical no contexto cosmopolita e imperialista que toma-
va conta das metrópoles latino-americanas da Belle Époque.

E, Villa-Lobos, deste modo, seria “um dos poucos artis-


tas nossos que se orgulha de sua sensibilidade america-
na e não trata de desnaturalizá-la”.

O artigo de Carpentier intitulado “Um Grande Compositor Latino-america-


no: Heitor Villa-lobos”, escrito na Revista Gaceta Musical de Paris entre os me-
ses de agosto e julho de 1928 (data do primeiro encontro com Villa-Lobos),
pode ser interpretado como resposta à entrevista a escritora francesa Lucie
Delarue-Mardrus citada anteriormente.

Em 1929, no ano seguinte ao primeiro encontro com Villa-Lobos, em artigo


escrito na Revista Social de Havana, Alejo Carpentier afirmaria, reforçando
seus argumentos, que o compositor brasileiro representava “a primeira gran-
de força musical da América Latina que se [fez] sentir na Europa”. Os textos
de Carpentier sobre Villa-Lobos demonstram como não se deve valorizar ex-
cessivamente o papel do “choque externo” delimitado pelo olhar do “outro”
como referência balizadora para as composições de Villa-Lobos. Nota-se, as-
sim, a necessidade de se levar em conta as experiências do compositor com

120
o local enquanto clivagem da construção de sua brasilidade em meio a nego-
ciações históricas no contexto latino-americano.

Desse modo, ao se referir a Villa-Lobos, Carpentier afir-


mava que “nosso compositor conhece as angústias e di-
lemas que não preocuparam nunca o compositor euro-
peu. O desejo de encontrar o universal nas entranhas do
local”.

Em seu romance, Os Passos Perdidos, no qual apresenta diversos traços auto-


biográficos, Carpentier narra a trajetória de um musicólogo. Trata-se da per-
sonagem central – um hispano-americano, de ascendência europeia pelo lado
paterno que sai da cidade para buscar em meio à floresta venezuelana ins-
trumentos musicais antigos que integrariam o acervo de uma universidade. A
empreitada consistia em uma viagem à região amazônica para buscar “entre
outros idiófonos singulares, um enxerto de tambor e bastão de ritmo que
Schaeffner e Curt Sachs ignoravam, a famosa jarra com duas embocaduras de
cana usadas por certos índios em suas cerimônias funerárias”.

Podemos estabelecer uma analogia entre a personagem literária de Carpen-


tier e Villa-Lobos. Além das conhecidas viagens pelo interior do pais, por
meio das quais o compositor manteve contato com as mais diversas manifes-
tações populares brasileiras, são diversos os exemplos de musicalidades afro-
-brasileiras e indígenas presentes na obra de Villa-Lobos. Camisão, caracaxá,
caxambu, cuíca, ganzá, matraca, pandeiro pio, prato de louça, puíta, reco-reco,
tambor surdo, tambor tartaruga, tamborim, tambu-tambi, dentre outros ins-
trumentos da tradição ameríndia ou afro-brasileira estão presentes nas obras
de Villa-Lobos. Este é o caso do Choros nº 6. Neste, o batuque maranhense
Tambor de Crioula, forma de expressão de matriz afro-brasileira que envolve
dança circular, canto e percussão de tambores, apresenta-se como referência,
e expressa também o papel da formação Villa-Lobos antes dos anos 1920 e a
importância de sua presença na região norte do país.

121
122
Para pensar

Villa-Lobos,
a Semana
e o Brasil...
Em sua obra Mozart: a sociologia de um gênio, o sociólogo Norbert
Elias trata das tensões entre a trajetória do compositor austríaco
e seu contexto social. Para Elias, a capacidade criativa de Mozart
contrastava com seu contexto caracterizado pelo controle social
próprio a sociedade de corte europeia do século XVIII. Para a
sociedade cortesã, a música era vista como atividade para entre-
tenimento, e o músico como artesão que deveria cumprir suas
funções como determinado por cada corte. Ao tentar ganhar a
vida como músico autônomo e consciente de seu talento pesso-
al, Mozart não obteve sucesso, pois tal atividade só seria possível
na geração posterior, por exemplo aquela da qual fez parte Bee-
thoven.

A noção de “gênio” se consolidaria na geração


posterior em sua versão romântica, a partir do
século XIX.

A dependência de Mozart em relação a aristocracia, bem como


sua tentativa de desvencilhar-se dos padrões da época ditou o
destino do compositor e de sua obra particularmente original.

123
Ao avaliar a trajetória de Villa-Lobos em relação ao contexto his-
tórico brasileiro da primeira metade do século XX, bem como
a construção de suas redes de sociabilidades naquele cenário
artístico, nota-se que sua música se apresenta como um grande
painel sonoro tradutor dos dilemas do compositor e da socieda-
de brasileira em relação às transformações ocorridas no contex-
to. Sua música traduz diversos dilemas, ainda atuais, relaciona-
dos ao lugar do Brasil no cenário da modernidade europeia. As
representações, simbologias, alegorias, metáforas da brasilidade
presentes em suas criações oferecem de modo propositivo uma
releitura original do nacionalismo inventado pelos europeus.

Por um lado, Villa-Lobos tornou-se antítese do


arquétipo outsider, dominando a estruturação
formal da linguagem musical europeia e trans-
formando-se em um músico “francês” no Rio
de janeiro cosmopolita do início do século XX,
soube se inserir social e culturalmente. Por ou-
tro lado, soube utilizar como antídoto àquele
eurocentrismo suas experiências pregressas,
tais como o contato com musicalidades afro-
-brasileiras e ameríndias, com a música popu-
lar urbana carioca, inventando e imaginando
uma musicalidade inovadora e propositiva que
o colocara como símbolo de brasilidade mo-
derna.

Nos anos seguintes a 1922, a Semana de Arte Moderna tornou-se


exemplo do mito fundador da nacionalidade. É possível afirmar
a memória referente ao evento construída nos anos seguintes
demonstram a vitalidade do evento e de suas diversas formas
de apropriação simbólica que caminharam na busca por outras
modernidades e brasilidades. Nos anos seguintes aos manifes-
tos modernistas, as obras musicológicas, sociológicas e historio-
gráficas passaram a propor debates originais sobre mudanças e

124
permanências em relação ao nosso passado colonial, escravis-
ta e conservador. Este caldeirão de ideias construídas nos anos
1920 reverberariam nas ciências sociais posicionamentos diver-
sos produzidas na década seguinte expressados em obras como
Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil de
Sérgio Buarque de Holanda.

Tal como estes intérpretes do Brasil, entre os anos 1922 e 1930,


com sua escuta atenta, dialogando com as transformações polí-
ticas e sociais no Brasil, Villa-Lobos soube construir sua versão
desta complexidade construindo um grande painel sonoro e di-
versificado do Brasil a ser interpretado pelas gerações seguintes.
Sua música incorporou estruturas simbólicas e sonoras indíge-
nas e afro-brasileiras, materializadas no uso de instrumentos,
temáticas e representações da brasilidade musical. Ele ainda an-
tecipa diversas questões ainda relevantes, como a conservação
ambiental, a questão indígena, a vida das comunidades rurais,
a autonomia do Brasil-nação e suas respectivas construções e
representações culturais.

Um dos desafios nesta celebração do centenário da Semana de


22 (assim como do bicentenário de nossa Independência) é a
atualização do espírito modernista. Esse movimento cultural
teve como essência a busca por uma “civilização brasileira” que
se expressa por meio da cultura popular, periférica. Canções, re-
ceitas, ritos, danças, hinos, instrumentos, gestos, vocábulos, en-
fim, os mais diversos meios de expressão que traduzem a iden-
tidade da jovem nação brasileira foram construídos como uma
tradição inventada, costurados com maior ou menor rigor por
intelectuais de classe média em seu projeto de um país inde-
pendente e original.

Nos dias atuais, as possibilidades oferecidas pelas mídias digi-


tais vêm progressivamente transformando os artistas e cidadãos
anônimos em atores significativos dessas representações cultu-
rais que particularizam as identidades nos guetos, becos, vilas,
ruelas, bairros, cidades – o que tradicionalmente era chamado

125
de “folclore”. Uma cultura multifacetada que, como observa Ja-
meson, “desmantelou muitas das barreiras ao consumo cultural
que pareciam implícitas no modernismo”. Alicerçada no tripé
democracia-mídia-mercado, a produção cultural dos dias atuais
desafia a utopia modernista em seus aspectos higienistas e ho-
mogeneizadores, dando um novo sentido à noção de produção
cultural e dos valores associados a esses produtos.

Nascido em um lar burguês, Villa-Lobos tor-


nou-se um gênio, um autêntico símbolo da cul-
tura nacional, após vivenciar uma mudança de
status social, aliando-se aos músicos humildes
que praticavam o choro, o samba, o maxixe, a
música das ruas. Esse foi o aspecto mais pro-
eminente de sua formação musical, que aliada
aos meios técnicos que ele assimilou da músi-
ca clássica europeia resultaram em uma sínte-
se bastante original e que nos faz pensar numa
possível “civilização brasileira” decorrente
desse processo antropofágico de devorar as
informações e devolvê-las segundo um estilo
peculiar.

Através de sua música, Villa-Lobos ainda soube articular várias


questões cruciais para o país, tais como: a necessidade de pre-
servação das florestas e proteção aos povos indígenas; a edu-
cação musical como elemento formador desde a infância e de
ensino obrigatório nas escolas; a celebração do caráter nacional
através das festividades, dos ritos e danças populares. As traje-
tórias percorridas por ele: de Tuhú a Heitor, do “Cavaquinho de
Ouro” ao Municipal, de Lucília a Arminda, de Epitácio Pessoa
a Vargas, de Paris a Nova Iorque, do caipira a Bach, formam um
contraponto curioso e surpreendente, que às vezes se confunde
com a história do Brasil e seu desenvolvimento como nação.

126
Todavia, Villa-Lobos ainda enxergava seu campo de atuação
como um forma de legitimação da cultura popular, supostamente
“enriquecida” pela técnica orquestral – essa era uma concepção
ainda arraigada em seu tempo – mas ainda assim sua proposta
artística representa uma primeira quebra importante de para-
digma, empoderando a arte popular. A voz das periferias é hoje
menos dependente da genialidade de homens como Villa-Lo-
bos, ecoando espontaneamente por meio de artistas mulheres
e homens, nas diversas identidades de gênero, etnias e culturas
que consistem esse caldo indefinido que chamamos de “povo”.
A arte como forma de inclusão é, no limite, a nova revolução que
está por ser feita, não mais pela ação das elites, mas por esses
diversos atores, seja nas salas de concerto, nos teatros populares,
nos bailes funk, nas universidades, nas casas de cultura ou nas
festas e ritos que celebram o Brasil e seu povo. A celebração do
bicentenário da independência mostra que essa condição “in-
dependente” é um processo em constante evolução. Villa-Lobos
parece ter compreendido a necessidade dessa transformação do
Brasil, colônia convertida em nação, cujo processo de verdadeira
modernização passa pela valorização da cultura e bem-estar de
seu povo.

127
Referências bibliográficas

AMORIM, Humberto. Heitor Villa-Lobos e o violão. Rio de Janeiro: Academia


Brasileira de Música, 2009.
ANDRADE, Mario de. O ensaio sobre a música brasileira [1928]. 3 ed. São
Paulo: Livraria Martins Editora, 1972. 4ª ed., Belo Horizonte, Ita-
tiaia, 2006.
_____. O ensaio sobre música brasileira. Organização, estabelecimento de tex-
to e notas de Flávia C. Toni. São Paulo: Edusp, 2020.
ARCANJO Jr., Loque. Os sons de uma nação imaginada: as identidades musi-
cais de Heitor Villa-Lobos. Tese de doutorado em História. Uni-
versidade Federal de Minas Gerais, 2013.
BÉHAGUE, Gerard. Heitor Villa-Lobos: the search for Brazil’s musical soul.
Austin: University of Texas – Institute of Latin American Stu-
dies, 1994.
BERNSTEIN, Guilherme. Sobre poética e forma em Villa-Lobos: primitivismo e
estrutura nos Choros orquestrais. Curitiba: Prismas, 2015.
CARPENTIER, Alejo. Villa-Lobos por Alejo Carpentier. Tradução de Emir Sa-
der e J. Jota de Moraes. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado,
1991.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 12 ed. São
Paulo: Global, 2012.
CONTIER, Arnaldo D. Música e Ideologia no Brasil. 2 ed. São Paulo: Novas
Metas, 1985.
CORREA DO LAGO, Manoel A. O Círculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud no
Brasil: Modernismo Musical no Rio de Janeiro Antes da Semana. Rio
de Janeiro, Reler, 2010.
ESTRELLA, Arnaldo. Os Quartetos de Cordas de Heitor Villa-Lobos. Rio de
Janeiro, mec/Museu Villa-Lobos, 1970.
GUÉRIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestina-
ção. 2 ed. Curitiba: editora do autor, 2009.
GUIMARÃES, Luiz, et al. Villa-Lobos visto da plateia e na intimidade (1912-
1935). Rio de Janeiro: Gráfica Editora Arte Moderna, 1972.
KATER, Carlos. “Villa-Lobos de Rubinstein”. In: Latin American Music Re-
view, v. 8, n. 2, p. 246-253, 1987.
_____. “Villa-Lobos e a melodia das montanhas”. In: Latin American Music
Review, v. 5, n. 1, p. 102-105, 1984.
KIEFER, Bruno. Villa-Lobos e o modernismo. Porto Alegre: Movimento, 1986.
MARIZ, Vasco. Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro. 11 ed. Belo Horizon-
te: Itatiaia, 1989.
MARUN, Nahim. Revisão crítica das canções para a voz e piano de Heitor Villa-
-Lobos publicadas pela Editora Max Eschig. São Paulo: Ed. Unesp,
2010.
NEVES, José Maria. Villa-Lobos, o choro e os choros. São Paulo: Ricordi, 1977.
NÓBREGA, Adhemar. Os choros de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: Museu Villa-
-Lobos, 1975.
OLIVEIRA, Willy Corrêa de. Com Villa-Lobos. São Paulo: Edusp, 2009.
PAZ, Ermelinda. Villa-Lobos e a música popular: uma visão sem preconceito.
São Paulo: Tipografia Musical, 2019.
SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: Processos Composicionais. Campinas,
Editora da Unicamp, 2009.
_____. Os quartetos de cordas de Villa-Lobos: forma e função. São Paulo: Edusp,
2018.
SALLES, Paulo de Tarso & Dudeque, Norton (orgs.). Villa-Lobos, um Com-
pêndio: Novos Desafios Interpretativos. Curitiba, Editora da UFPR,
2017.
TARASTI, Eero. Heitor Villa-Lobos: vida e obra (1887-1959). Tradução de Pau-
lo de Tarso Salles, Rodrigo Felicissimo e Claudia Sarmiento.
São Paulo: Contracorrente, 2021.
TONI, Flávia. Mário de Andrade e Villa-Lobos. São Paulo, Centro Cultural
São Paulo, 1986.
VILLA-LOBOS, SUA OBRA. Museu Villa-Lobos, 4 ed. Rio de Janeiro: Mu-
seu Villa-Lobos, 2021.
WISNIK, José M. O Coro dos Contrários: A Música em Torno da Semana de 22.
São Paulo, Duas Cidades, 1983 [1978].

Você também pode gostar