Os Tesouros de Monifa: Conto Infantil

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Conto Infantil

OS TESOUROS
DE MONIFA

Arquivo Pessoal
Sônia Rosa
Natural do Rio de Janeiro,
Minha avó Abgail sempre me falou da armário da minha professora da Rede Pública
Municipal, contadora de
bisavó dela que veio da África num navio mãe. Lá dentro
histórias, orientadora
negreiro quando era bem mocinha. Todos estão os diários educacional e escritora. Autora
os parentes e amigos que vieram com ela da minha tataravó dos livros O Menino Nito
ficaram pelo caminho...Ficou sozinha no africana escritos (1995), Aparício (1997),
Amores de Artistas (1998), obra
mundo, numa terra distante e na condição com letra muito altamente recomendável pela
de escrava.. Teve uma existência muito so- antiga e com mui- Fundação Nacional do Livro
frida. Mas nunca perdeu as esperanças de to esforço. Quan- Infantil e Juvenil, entre outros.
dias melhores para ela e para sua gente. A ta alegria, depois
bisa da minha avó Abgail se chamava Mo- de tantos anos, conhecer os seus sonhos,
nifa, que lá na terra dela significa “eu te- suas simpatias, suas rezas, algumas partes
nho sorte”. Ela acumulou um tesouro ao das músicas preferidas, as esperanças, os
longo da sua vida! Um tesouro muito espe- sustos, e ainda, as notícias da época em que
cial que veio passando de geração para ge- viveu ... Ela era muito esperta! Soube jun-
ração. Este tesouro mora agora na minha tar e recolher pedaços de seu tempo para
casa e fica dentro de uma grande caixa de que a gente de hoje pudesse espiar um pou-
madeira envelhecida na parte de cima do quinho do ontem... O encontro do
passado com o presente tem
embalado este tesouro
valioso da minha fa-
mília. Eu mesma, co-
nheço as rezas e al-
guns versinhos. Escu-
to as histórias de sua ter-
ra desde menininha e ado-
ro ouvi-las até hoje! Elas
me acalmam e me trans-
portam para o além mar e
para o além tempo...
Acordei aquele dia com o
coração em festa! Era o
meu aniversário! Minha
mãe e Vó Abgail me cha-

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maram num canto e me comunicaram


com voz solene que, sendo a filha mais
velha, havia sido escolhida para ficar
com “o tesouro”. Ele agora me per-
tencia e deveria ser levado para
minha casa quando virasse gen-
te grande. Deveria cuidar dele

Kiko Nascimento
com muito carinho e passá-lo
adiante. Foi a melhor no-
tícia que recebi na minha
vida! Que grande pre-
sente! A notícia veio
acompanhada de
uma novidade: iria co-
nhecer todo o tesou-
ro! Quando vi a enorme
caixa na cama de minha mãe,
fiquei impressionada! Nunca
havia visto uma coisa, assim, tão an-
tiga. Com cuidado toquei na caixa e come-
cei a fazer carinho nela... Ao mesmo tem-
po, comecei a pensar que há muito, muito
Para meus filhos e os filhos dos meus filhos!!!
tempo, as mãos da minha tataravó africa-
na pegaram naquela caixa e os seus dedos
As raízes de vocês estão na minha Áfri-
cansados de trabalhar sem hora, escreve- ca. Por isso, devem amar este lugar com
ram aqueles tesouros... De repente, foi me toda força do amor que mora no fundo do
dando um aperto no coração... Joguei meus coração de vocês. É lá que encontrarão a
braços por cima da caixa e a enlacei como mim e toda nossa gente.
num abraço. Era como se naquele momen- Desejo que sejam livres de corpo e
to eu abraçasse a minha tataravozinha e alma, e que, em suas vidas, sejam tratados
toda a sua gente.... Comecei a chorar... Ou por todos com dignidade e respeito.
melhor, a soluçar! Minha mãe e Vó Abgail Não se esqueçam da nossa história.
choraram junto comigo.. Não se esqueçam do nosso sofrimento. Mas,
Entre lágrimas, minha mãe me entre- principalmente, não se esqueçam da nossa
gou um envelope amarelado com uma car- luta. O corpo pode estar preso, amarrado,
maltratado, mas as idéias e os pensamentos
ta dentro e disse: _ Leia isto! É o primeiro
nunca se escravizam. É isso que faz a dife-
escrito a ser lido antes de tudo!
rença! Nesses tempos duros em que a triste-
As duas saíram do quarto, dizendo que za, às vezes, não nos permite nem levantar
iam beber água! E, então, fiquei sozinha! da cama, a imaginação é o atalho para aqui-
Foi muita emoção! Eu me sentia nova de- etar nossos corações... Nessas horas fecho
mais para aquilo tudo! Mas ao mesmo tem- meus olhos bem fechados e visito minhas sau-
po grande o suficiente para receber aquela dades... Encontro minhas pessoas queridas
responsabilidade toda! que ficaram pelo caminho e chego aos luga-
Abri o envelope. Respirei profunda- res da minha infância... Sinto o cheiro do
mente e comecei a ler:

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vento e a temperatura do chão acariciando


meus pés.. Estar sempre em contato com
minhas raízes me fortalece e, é também, uma
maneira de não me perder da minha história,
isto é, não me perder de mim mesma... To-
mara que todos vocês saibam ler e escrever.
Mesmo eu, com todo o sacrifício, aprendi.
Foram os meus senhores que me ensinaram
a usar esta língua estranha. Quando cheguei
aqui já sabia ler e escrever a língua da minha teado. Enquanto elas trabalhavam na minha
terra mas precisei usar a deles.... Escrever é cabeleira eu fiquei pensando, com cara de
uma maneira de se anunciar ao mundo e de boba, o tamanho daquele tesouro e a honra
se sentir mais gente. É também, uma forma de ser guardiã dele. E aí me deu uma vonta-
de não enlouquecer, de suportar...Por isto, de louca de crescer logo, virar gente grande
esses escritos para mim valem mais do que e carregar o “meu tesouro” para minha casa
ouro. Eles valem toda uma vida. Valem a mi- nova.... Enquanto elas caprichavam no meu
nha vida! Cuidem deles. Não deixem morrer cabelo iam também cantarolando umas can-
junto com o tempo... Conte e recontem as tigas muito antigas que pareciam ter saído
histórias que guardei aqui. Muitas delas ouvi da caixa da tataravó Monifa... E aquele me-
pequenininha lá na minha terra. São minhas, xer gostoso na minha cabeça foi ficando pa-
são suas, são nossas. Todos nós somos res- recido com um cafuné... E aí eu fechei os
ponsáveis pelas nossas histórias e pela conti- olhos bem fechados e fiz uma descoberta:
nuação das nossas tradições. descobri que aquele tesouro não era só da
Desejo que minhas esperanças reno- minha família, era de todo o nosso povo,
vem a de vocês e que os meus sonhos multi- porque minha tataravó africana é um pou-
pliquem junto aos seus...Desejo também que quinho avó de todos os brasileiros. Abri os
o amanhecer de cada dia seja uma possibili- olhos como se despertasse de um sonho e
dade de um dia melhor para todas as pessoas decidi que não queria crescer rápido não! É
que vivem neste mundo! bom ser criança, principalmente, quando
Torço pela Paz e Respeito entre os ho- entre um e outro cafuné, a gente se sente
mens de todas as cores. amada por toda uma geração!!!
Que os deuses os abençoem sempre!!!! Ah! Isso é muito bom! Ah! Isso é bom
Monifa demais!!!

Quando acabei de ler a carta meu cora-


ção estava disparado!!!
Comecei a mexer com medo e cuidado
nos guardados da caixa. Li e reli alguns diári-
os... Tinha até versinhos pequeninos... Mi-
nha tataravó, ainda por cima, era uma poe-
ta... Como gostaria de tê-la conhecido. Eu ia
dar muitos beijos na sua bochecha e me ani-
nhar em seu colo que tenho certeza deveria
ser bem quentinho....
Não sei quanto tempo demorei ali sozi-
nha, quer dizer, sozinha não, eu e “aquelas
lembranças”... De repente, vi minha mãe e
minha Vó Abgail na minha frente, pentes
nas mãos, preparadas para trançar meu ca-
belo! Por causa do meu aniversário elas iam
enfeitar minhas tranças com elásticos colori-
dos. Larguei a caixa e sentei para fazer o pen-

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