Exegese

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INTRODUÇÃO ............................................................... 4
I - O QUE É A BÍBLIA? ................................................... 6
3. A Tradição Oral e a Tradição Escrita ........................ 8
4. Os Intérpretes - Profetas e Sábios .......................... 11
5. A Nova Tradição da Era Cristã ................................ 12
6. Entendendo Algumas Dificuldades Concretas ........ 14
7. A Fonte Comum ...................................................... 16
8. As Cartas ................................................................. 17
9. O Cânon Sagrado .................................................... 19
II - HERMENÊUTICA - INTERPRETAÇÃO DA BIBLIA 19
III - HISTÓRIA DAS FORMAS - GÊNEROS
LITERÁRIOS ................................................................ 26
3. Narrativo-Histórico ................................................... 33
IV - PRINCIPAIS ETAPAS DA HISTÓRIA DE ISRAEL 37
1. Curiosidades a Respeito da Bíblia .......................... 38
V - UM EXAME DA EXEGESE .................................... 52
VI - A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA – ONTEM E HOJE65
VII - EXEGESE – APLICAÇÃO – HERMENÊUTICA . 110
VIII - O CARÁTER ESTRANHO DO TEXTO.............. 130
BIBLIOGRAFIA .......................................................... 157

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INTRODUÇÃO

Exegese: do Grego: ek +, = ek + egéomai, penso,


interpreto, arranco para fora do texto. É a prática da
hermenêutica sagrada que busca a real interpretação dos
textos que formam o Antigo e o Novo Testamento. Vale-
se, pois, do conhecimento das línguas originais(hebraico,
aramaico e grego), da confrontação dos diversos textos
bíblicos e das técnicas aplicadas na linguística e na
filosofia.

A Bíblia é ao mesmo tempo humana e divina, exige de


nossa parte a tarefa de interpretá-la.
Amante que sou da matéria quero aqui
apresentar alguns princípios básico, julgo
eu, devam ser considerados especificamente na
prática da Exegese Bíblica. Todo cristão "leigo" que
definimos aqui como (pessoa do povo, pregador sem
ordenação formal.

O que torna o pregador leigo não é propriamente a


ausência de formação teológica, mas a não ordenação

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ministerial. Deixando de lado tais formalidades, foram
justamente os trabalhadores leigos os mais usados nos
avivamentos. Haja vista o que aconteceu noPaís
de Gales, Estes arrogam para si
o direito de interpretar o texto bíblico com propriedade,
sem, contudo, ter o conhecimento das técnicas que se
aplicam ao que executa tal tarefa, a de interpretador do
texto sagrado.

Todo pregador do evangelho deve, por obrigação,


dominar as técnicas básicas da exegese, sob pena de
trair o real sentido do texto sagrado a ser explanado e
de ser um disseminador de heresias, portanto se você
ainda não domina a arte de interpretar e compreender os
textos deve então começar agora, pelo básico.

Antes de começarmos a falar da exegese propriamente


dita, você já deve ter um conhecimento básico da Bíblia,
tendo em vista que iremos tratar de sua interpretação,
caso você já conheça bem a Bíblia, para começarmos.

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I - O QUE É A BÍBLIA?

1. Definição do Concilio Vaticano II

“A Bíblia é uma coleção de pequenos livros. Quem


primeiro aplicou este vocábulo às Sagradas Escrituras
foi João Crisóstomo, que exerceu o patriarcado de
Constantinopla no século IV.

A Bíblia, pois, é a revelação de Deus à humanidade.


Não é um mero repositório das palavras de Deus. A Bíblia
é a Palavra de Deus! (“tendo sido escritos sob a
inspiração do Espírito Santo, têm Deus como autor, e
como tais foram entregues à Igreja”.

TESTAMENTO (Novo ou Antigo): é a tradução da palavra


hebraica "berite" que significa a aliança de Deuscom o
povo por Moisés. Na tradução dos 70 a palavra berite foi
traduzida por diateke, que em grego quer dizer aliança,
contrato, testamento, acordo
OBS: A "tradução dos 70" é uma das versões mais
antigas da Bíblia. Segundo a tradição, este trabalho teria
sido realizado por 70 sábios da Antigüidade.
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2. Origem e Formação da Bíblia

a) Indícios e Evidências Históricas

O período histórico da formação da Bíblia situa-se entre


1100 a. C. ou 1200 a. C. a 100 d. C. Provavelmente, a
mais antiga parte escrita da Bíblia é o Cântico de Débora,
que se encontra no livro dos Juízes(Jz. 5).

Quando os hebreus chegaram a Canaã, já havia naterra


um certo desenvolvimento literário, como por exemplo, o
alfabeto fenício (do qual se derivou o hebraico), que já
existia no século XIV a. C. Os judeus chegaram lá por
volta do século XIII a.C. Outrodocumento desta época
é o calendário de Gezér, que data mais ou menos do ano
1000 a.C. É uma indicação de datas para uso dos
agricultores. É o documento mais antigo encontrado na
Palestina. Outro documento também muito antigo é o
sarcófago do Rei Airam, que 0contém uma inscrição e foi
encontrado nos séculos XIVou XV a. C., em Biblos. Há
ainda umas tabuletas encontradas em Ugarit (em 1929),
onde estão escritos

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uns poemas semelhantes aos salmos, datando dos
séculos XIV ou XV a. C.

Além destes, há outros documentos provando que já


havia uma escrita na Palestina, antes dos hebreus
chegarem lá. A inscrição do túmulo de Siloé (700 a. C.),
explicando como foi feito; os "óstracon", de Samaria,
onde há uma espécie de carta diplomática, são
documentos que provam a continuidade de uma
atividade literária. Em Juizes 8,14, o autor descreve um
acontecimento ocorrido mais ou menos em 1100 a.C. E
em que língua foi escrito este fato pela primeira vez, na
época em que aconteceu? Provavelmente no alfabeto
fenício (pré-hebraico).

3. A Tradição Oral e a Tradição Escrita

A parte mais antiga da Bíblia remonta justamente deste


tempo (1100 a.C.), quando a escrita ainda não estava
bem definida, e é oral. Desde este tempo já se fora
criando uma tradição, que existia oralmente e era

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transmitida aos novos pelos mais velhos nas reuniões
que havia nos santuários.

Por este tempo, só eram relatados os acontecimentos


do deserto, do Sinai, da aliança de Deus com o povo. Mas
os jovens queriam saber o que havia acontecido antes
disto.

Então foram sendo compostas as histórias dos


Patriarcas. Mas, e antes deles, antes de Abraão?
Passaram à história da criação do mundo. Por isso, se
afirmar que a parte mais antiga da Bíblia é o Cântico de
Débora, no livro dos Juízes. A partir daí, fez-se um
retrospecto didático-histórico.

Como dissemos, estas histórias iam sendo passadas


oralmente de pai a filho, nos santuários. Acontece que
nem todos iam para os mesmos santuários, o que
motivou a existência de pequenas diferenças na
catequese do norte e na do sul. A tradição do sul foi
chamada de JAVISTA (J), pois Deus era tratado sempre
por Javé; a do norte se chamou ELOISTA (E), porque
Deus era tratado como Eloi.

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A tradição oral existiu até os tempos de Davi, quando foi
escrita a tradição javista; meio século depois, foi escrita
também a eloísta. Por volta de 721 a.C., na época, da
divisão dos reinos, quando Samaria foi destruída pelos
assírios, muitos sacerdotes do norte fugiram para o sul e
levaram consigo a sua tradição.

A partir de então, as duas foram compiladasnumsó


escrito. Falamos das duas tradições: uma do Norte
e outra do sul. Mas não existiam apenas estas duas, que
são as principais. Há ainda a DEUTERONOMICA (D),
encontrada casualmente em 622 a. C. por pedreiros, que
trabalhavam num templo. Corresponde ao livro
Deuteronômio da Bíblia atual. Após esta, surgiu a
SACERDOTAL (P), nova compilação das catequeses
antigas de Israel, datada do século VI a.C. Ao fim, estas
quatro tradições foram combinadas entre si ecompiladas
em 5 volumes, dando origem ao Pentateuco da Bíblia
atual.

Na tradição Javista, Deus é antropomórfico. Na


Sacerdotal, Deus é poderoso, está acima do tempo, o
que significa um progresso no conceito de Deus que o
povo tinha. A redação do Pentateuco se deu pelo ano

10
398 a.C. e compreendia a primeira parte da Bíblia
judaica.
A partir de Josué, a tradição continuou oral, para ser
escrita somente por volta de 550 a.C. E foram escritas do
modo como o povo contava. Por isso não se podedar
a mesma importância histórica aos fatos descritos nestes
livros em relação a outros posteriores, pois alguns fatos
narrados foram baseados na tradição popular, enquanto
que outros foram baseados em documentos de arquivos
(anais do Reino). Este é um grande desafio para os
estudiosos e também uma fonte de divergências.

4. Os Intérpretes - Profetas e Sábios

Durante muito tempo, os profetas foram os orientadores


do povo de Deus. Os livros proféticos resumem os seus
ensinamentos, e na sua maioria foram escritos só mais
tarde, por seus seguidores. Somente por volta do ano 200
a.C. é que foram redigidos os livros proféticos. Os livros
Sapienciais foram o resultado de um estilo literário que
esteve em moda durante muito tempo, na época

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posterior ao exílio. São umas reflexões humanistico-
religiosas.
Passados os profetas, surgiram os sábios que
raciocinavam sobre as coisas da natureza, tirando delas
ensinamentos para a vida. Foram acrescentados aos
livros sagrados nos últimos séculos a.C., sendo os mais
recentes livros do Antigo Testamento.

5. A Nova Tradição da Era Cristã

O Novo Testamento não foi escrito com a finalidade de


ser acrescentado à Bíblia. No tempo de Cristo e dos
Apóstolos, o livro sagrado era apenas o Antigo
Testamento. O próprio Jesus Cristo se baseava nele em
suas pregações. E Ele mandou apenas pregar, e não
escrever. Foi quando uma nova tradição oral foi se
formando. E após a morte de Cristo, os apóstolos saíram
pregando. Mas veio a necessidade de congregaroutras
pessoas para o anúncio, em vista do grandenúmero de
comunidades existentes. Então, começaram a escrever.
Mais tarde, com a aceitação também de cidadãos
estrangeiros nas comunidades, a mensagem

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precisou ser traduzida e adaptada. Além disso, o próprio
povo necessitava de uma escrita (doutrina escrita) para
se conservar una, após a morte dos Apóstolos. Esta
redação, no início, era apenas de alguns escritos
esparsos, que só depois de algum tempo foram juntos em
livros. Exemplo disso está em Marcos 2, uma série de
disputas de

JC com os Judeus, onde se vê claramente que foi


recolhida de escritos separados.
Também em João se lê:
“Muitas outras coisas Jesus fizeram que não foram
escritas..." (Jo. 21,24) Isto significa que só foram escritas
aquelas mensagens que teriam utilidade, conforme as
necessidades momentâneas.

O evangelho de Marcos, o primeiro a ser escrito, data dos


anos 60 ou 70 d.C.; os de Lucas e Mateus, são de 70 ou
80, o que significa que somente após uns 40 anos da
morte de JC sua palavra começou a ser escrita. 0
Evangelho de João só foi escrito em torno do ano 100
d.C. Antigamente, se acreditava ser Mateus o autor do
primeiro Evangelho.

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Mas a crítica histórica mostra que o de Marcos foi
anterior. Aliás, a respeito deste evangelho de Mateus,
não se sabe ao certo quem é o seu autor. Foi atribuído a
Mateus, apenas por uma tradição e também por uma
praxe da época de se atribuir um escrito a alguém mais
conhecido e famoso, para que a obra tivesse mais
autoridade.

6. Entendendo Algumas Dificuldades


Concretas

Durante o tempo anterior á escrita dos Evangelhos, havia


apenas a pregação dos Apóstolos, recordando os fatos
da vida de Cristo, todavia eram fatos esparsos, sem
nenhuma preocupação com sequência ou unidade. Por
isso os Evangelhos, que foram esta pregação escrita, se
contradizem em algumas datas, o que mostra a pouca
importância dada à cronologia. Os fatos eram recordados
e aplicados, conforme as necessidades.

Assim, até entre os Evangelhos sinóticos, que seguiram


a mesma fonte, há diversificações. Por exemplo, no

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Sermão da Montanha, em Lucas fala "bem aventurados
os pobres"; e em Mateus, "bem aventurados os pobres
de espírito".
A diferença consiste no seguinte: Lucas deu um sentido
social, mais importante para as comunidades gregas,
para as quais escrevia. Mas o de Mateus destinava-se às

comunidades judias e queria combater uma doutrina dos


judeus que tinham uma idéia falsa de pobreza. Para eles,
o próprio fato de a pessoa ser pobre, já lhe garantia a
salvação, enquanto outra pessoa, pelo simples fato de
ser rica, já estava condenada. Por causa disso ele
escreveu "pobres de espírito".

Outro ponto de discordância é o caso da cura de um


cego. Mateus diz "um cego, na saída de Jericó"; e Lucas
"dois cegos, na entrada de Jericó". 0 fato da 'entrada' e
'saída' pode ser explicado pela existência de duas
cidades chamadas Jericó. 0 fato de serem um ou mais
cegos explica- se pelo seguinte: era comum naquele
tempo os cegos formarem grupos em torno de um cego-
líder; e o nome deste geralmente era o do grupo. No
entanto, estes detalhes pouco importam ao evangelho.

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O seu interesse é a apresentação da mensagem
(evangélion = boa nova).

7. A Fonte Comum

Os Evangelistas sinóticos se basearam no Evangelho de


Marcos e noutra fonte, convencionada por fonte "Q",
simbolizando os inúmeros escritos esparsos de que já
tratamos. Espalharam cópias destes por outras partes
do mundo. Lucas, Mateus, cada um em lugares
diferentes, se inspiraram nos escritos disponíveis e
inclusive no evangelho de Marcos, que na época jáhavia
sido escrito.

O fato do primeiro Evangelho ser atribuído anteriormente


a Mateus se deve a uma afirmação de Eusébio de que
Mateus escrevera a "logia" do Senhor em aramaico. Mas
a crítica histórica provou que o Evangelho que
conhecemos não traz apenas a "logia" do Senhor e não
foi escrito em aramaico, e sim em grego. Portanto a
noticia de Eusébio se refere a outro escrito, e não a este
evangelho. Nada impede, porém,

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que tenha sido escrito por discípulos de Mateus e
atribuído ao Mestre. Aliás, a respeito de "Evangelho", o
primeiro a usar esta palavra para indicar as

memórias dos Apóstolos foi S. Justino, em 130 d.C.

8. As Cartas

As cartas de Paulo foram enviadas para serem lidas em


público.

Em I Ts. 5, 27 há uma alusão a isto. Havia também o


intercâmbio das cartas, como se lê em Cl. 4,16; "mostrem
esta carta para Laodicéia e tragam a de lá para vocês".

Aos poucos as cartas foram colecionadas, e no fim do I


século já se tem notícia delas, quando em II Pd. 3,15 se
lê: "...nosso irmão Paulo vos escreveu conforme o dom
que lhe foi dado... " As cartas de Paulo foram os primeiros
escritos do Novo Testamento. Não se sabe

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quando os Evangelhos e elas foram acoplados, mas já no
fim do I século estavam reunidos num só livro.

As Epistolas Católicas (universais) são chamadas assim


por se destinarem à Igreja em geral, e não a tal ou qual
comunidade, como fizera Paulo. Elas também se
originaram da necessidade pastoral, e já no começo do
II século estavam incorporadas aos outros escritos do
NT. Os Atos dos Apóstolos podem ser considerados a
continuação do terceiro Evangelho, pois também foi
escrito por Lucas. E o Apocalipse de São João, livro
profético, foi acrescentado por último.

Nos escritos do Novo Testamento, frequentemente se


encontram citações do Antigo Testamento. É que muitas
vezes os Apóstolos queriam tirar dúvidas sobre certas
passagens, que tinham falsa interpretação. Nas
assembleias, eram lidos escritos do Antigo Testamento
e do Novo Testamento, para explicá-los. Exemplo disto
temos em I Ts. 4,15; I Co. 7,10.25.40; At. 15, 28; I Tm.
5,18; Lc. 10,7.

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9. O Cânon Sagrado

No século III, a Igreja se reuniu em Concilio em Hipona,


e uma das tarefas era organizar o "cânon", ou a lista de
livros sagrados considerados autênticos. Neste Concilio,
os livros foram estudados e se investigou quais os que
sempre foram

lidos nos cultos e sempre foram considerados legítimos.


E se estabeleceu a ordem ainda hoje conservada. O
motivo pelo qual alguns livros foram postos em dúvida era
a grande quantidade de livros apócrifos, que fazia com
que se duvidasse dos verdadeiros. Havia muitos livros
que os judeus não aceitavam. Então os Ss. Padres
ponderaram os prós e contras e definiram a lista que foi
aprovada.

II - HERMENÊUTICA - INTERPRETAÇÃO
DA BIBLIA

1. Conceito

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A palavra 'hermenêutica' vem do verbo 'hermenêuein'
(interpretar). E esta interpretação foi entendida
diversamente através dos tempos. Por isso, temos três
tipos de exegese: l. rabínica; 2. protestante; 3. católica.

2. Exegese Rabínica

Os judeus interpretavam a escritura ao pé da letra, por


causa da noção de inspiração que tinham. Se uma
palavra não tinha sentido perceptível imediatamente, eles
usavam artifícios intelectuais, para lhes dar um sentido,
porque todas as palavras da Bíblia tinham que ter uma
explicação.
O exemplo do paralítico é antológico: ele passara 38 anos
doente. Por que 38? Ora, 40 é um número perfeito,usado
várias vezes na vida de Cristo (antes daressurreição,
no jejum) ou também no AT (deserto, Sinai). Dois é outro
número perfeito, porque os mandamentos (vontade) de
Deus se resumem em "2": amar Deus e ao próximo.
Portanto, tirando um número perfeito de outro, isto é,
tirando 2 de 40 deve dar um número imperfeito (38) que
é número de doença...
Alegoria pura: neste sentido se entende a condenação de
certas teorias que apareceram e eram contrárias à

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Bíblia (caso de Galileu). Assim era a exegese antiga. No
século XVIII, o racionalismo fez o extremo oposto desta
doutrina: negaram tudo que tinha algum aspecto de
sobrenatural e mistério, e procuravam explicações
naturais para os fatos incompreensíveis, assim por
exemplo, dizendo que Cristo hipnotizava os ouvintes e os
iludia dizendo que era milagre. JC não ressuscitou, mas
ele apenas havia desmaiado na cruz, e quando tornou a
si saiu do sepulcro... Talvez não o fizessem pormaldade.
Era por princípio filosófico.

A Igreja primitiva herdou muito do rabiníssimo, no início,


mas depois se libertou. Começaram por ver na Bíblia
vários sentidos: literal, pleno e acomodatício. Literal:
sentido inerente ás palavras, expressão pura e simples
da ideia do autor; Pleno: fundado no literal, mas que tem
um aprofundamento talvez nem previsto pelo autor. Deus
pode ter colocado em certas palavras um significado mais
profundo que o autor não percebeu, mas que depois se
descobre. Deus, como autor, fez assim. A palavra do
profeta se refere a uma situação histórica; a palavra de
Deus se refere ao futuro. Acomodatício: é a
acomodação a um sentido à parte

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que combina com as palavras. É a Bíblia aplicada à
realidade apenas pela coincidência dos textos.
Por exemplo, em Mateus se lê "do Egito chamei meu
filho"... para que se cumprisse a Escritura. Mas o sentido,
ou seja, a aplicação original deste trecho não sereferia à
volta da Sagrada Família, mas sim à saída do Povo do
Egito. Esta acomodação foi explorada demasiadamente
pelos pregadores, que até abusaram disto. Outro
exemplo de acomodação é a aplicação a Maria dos textos
do livro da Sabedoria. Estes são mais literatura que
Escritura. Todavia, crendo-se na inspiração, aceita-se
que as palavras do autor podemter uma significação
mais profunda que a original.

3. Exegese Protestante

Surgiu do protesto de alguns cristãos contra a autoridade


da Igreja como intérprete fiel da Bíblia. Lutero instituiu o
princípio da "scritura sola" (traduzindo, a escritura
sozinha), sem tradição, sem autoridade, sem outra prova
que não a própria Bíblia. A partir daquele instante, os
Protestantes se dedicaram a um estudomais acentuado
e profundo da Bíblia, antecipando-se mesmo aos
católicos. Mas o princípio posto por Lutero

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contribuiu para um desastre hermenêutico, pois ele
mesmo disse que cada um interpretasse a Bíblia como
entendesse, isto é, como o Espírito Santo o iluminasse.

Isto fez surgir várias correntes de interpretação, que


podem se resumir em duas: a conservadora e a
racionalista.
A conservadora parte daquele princípio da inspiração =
ditado, em que se consideram até os pontos massorético
como inspirados. Não se deve aplicar qualquer método
cientifico para entender o que estáescrito. É só ler e, do
modo que Deus quiser, se compreende. A racionalista foi
influenciada pelo iluminismo e começou a negar os
milagres.

Daí passou à negação de certos fatos, como os


referentes a Abraão. Afirmam que as narrações
descritas, como provam o vocabulário, os costumes, são
coisas de uma época posterior, atribuído àquela por
ignorância.

Esta, teoria teve muito sucesso e começaram a surgir


várias 'vidas' de Jesus em que ele era apresentadocomo
um pregador popular, frustrado, fracassado...

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Outros ainda interpretavam o Cristianismo dentro da
lógica hegeliana: São Paulo, entusiasmado, teria feito
uma doutrina, que atribuiu a JC (tese); depois São João,
com seu Evangelho constituiu a antítese; finalmente São
Marcos fez a síntese. Hoje, porém, se sabe que Marcos
é o mais antigo. Estes intérpretes se contradizem entre
si, o que provocou uma certa desconfiança. Por fim, a
própria arqueologia, em auxílio do Cristianismo, veio
provar com a descoberta de vários documentos históricos
que a Bíblia tinha razão: aqueles costumes, aquele
vocabulário era realmente daquela época, inclusive o uso
dos nomes Abraão, Isaac também eram comuns no
tempo. Isto e outras coisas serviram para desmentir tais
ideias iluministas.

4. Exegese Católica

Inicialmente, apegou-se muito aos métodos tradicionais:


usava mais a tradição e menos a Bíblia. Mesmo noséculo
XIX, a tendência era ainda conservar a apologética, a
defesa da fé. Foi o Padre Lagrange quem iniciou o
movimento de restauração da exegese católica.Começou
a

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comentar o AT com base na crítica histórica. Mas foi
alvo tantos protestos que não teve coragem de
continuar. Em seguida, comentou o NT, e
ainda hojeé autoridade no assunto. A Igreja
Católica custou muito a perceber o seu atraso no estudo
bíblico, e até bempouco tempo ainda afirmava ser
Moisés o autor do Pentateuco, quando os
protestantes hão mais de um século já descobriram que
não.

Primeiro passo da nova exegese da Igreja Católica foi


dado por Pio XII, em 1943, com a encíclica DIVINO
AFFLANTE SPIRITU, na qual aprovou a teoria dos vários
gêneros literários da Bíblia. Depois, em 1964,Paulo VI
aprovou um estudo de uma comissão bíblica a respeito
da história das formas (formgeschichte).

E hoje em dia, tanto os exegetas católicos como os


protestantes são a favor desta, e qualquer livro sério
sobre o assunto traz este aspecto. Protestantes citam
católicos e vice versa, sem nenhuma restrição.

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III - HISTÓRIA DAS FORMAS - GÊNEROS
LITERÁRIOS

História Das Formas ("FORMGESCHICHTE")

É o padrão da exegese moderna. Em geral todo método


exegético moderno aborda os seguintes tópicos:

a) Critica Textual - se os manuscritos originais


desapareceram ou nunca foram encontrados, como se
sabe se o texto atual corresponde ao original? Até que
ponto é fiel? Em 1008, foi encontrado um manuscrito
básico para a edição da melhor bíblia hebraica que se
tem hoje. Está no museu de Leningrado. Mas, questiona-
se: por quanto tempo o livro foi sendo recopilado, e foi
adquirindo erros de escrita? Muitas vezes, vários
manuscritos (cópias) de um mesmo livro trazem palavras
diferentes. E por que tanta fé neste manuscrito?

O manuscrito mais antigo (até pouco tempo) do Antigo


Testamento era composto de fragmentos de um papiro
do I ou II século a.C. Os beduínos acharam às margens

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do Mar Morto vários manuscritos datando do II século
a.C. e há alguns, como o livro de Isaías, cujo texto é
quase completamente igual ao que temos. A Bíblia
original (copiada) data do século II d.C.

Os rabinos tinham muito cuidado em transmitir a doutrina,


e procuravam unificar os textos. Os textos velhos eram
colocados em lugares onde ninguém podia mais usá-los,
chamados gezidas. Numa destas gezidas foi encontrado
um documento do ano 800, aproximadamente, do qual
aquele de 1008 é cópia.

A diferença entre ambos é pouquíssima. Ora, se a nossa


Bíblia é a tradução daquele manuscrito, considerado
autentico, aquela Bíblia é a melhor.

b) 'Sitz in Leben'- Há livros que antes de serem escritos,


foram passados oralmente por várias gerações. Cada
manuscrito que serviu para a composição de um texto
tem uma história diferente. Por isso eles dividem as
perícopas e estudam as tradições e fontes delas.

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E como o manuscrito chegou a esta fonte? Deste estudo
se deduz a 'sitz in leben' (situação na vida) deste
manuscrito no gênero literário. A 'sitz in leben' que este
gênero literário tem na comunidade; a 'sitz in leben'desta
comunidade na história.

c) História da Redação - Por que há certas palavras a


mais ou a menos nos Evangelhos? Isto varia com a 'sitz
in leben' do manuscrito. Quem determina, isto é, a crítica
literária. Tudo isto dentro do estudo da históriadas
formas.

2. Principais Generos Literários da Bíblia


Dividem-se assim os diversos gêneros literários
encontrados na Bíblia:
a) Narrativo: histórico e didático
b) Legislativo
c) Sapiencial
d) Profético
e) Cânticos
f) narrativo-didático: mito, saga, legenda,
conto, fábula, alegoria,
parábola

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g) Mito - conto que se passa com deuses, ou cujos
personagens são os deuses. Têm tonalidade solene e
são originários de círculos politeístas. A mitologia
babilônica, por exemplo, muito influenciou no povo de
Israel, que sempre foi monoteísta. Isto se vê nos Salmos
103.6-9; 17.8-16; 88.11 e nos proféticos: Jo. 26.l2. Nos
livros históricos, a influência é mais velada. Mas a árvore
da vida do Gênesis já existe num poema deGilgames (de
origem Babilônica): um herói perguntou a um seu
antepassado que era deus, onde ficava a árvoreda vida.
Ele a encontrou no fundo do mar, e levou um ramo para
plantar. Tendo sede, foi beber num poço e uma serpente
levou o seu ramo. A história do dilúviotem uma similar
na cultura babilônica. É o caso de uma deusa que era
amada ao mesmo tempo por um deus e por um homem.
Então para matar o homem, o deus mandou o dilúvio.

O importante a se notar nisso tudo é que, ao ser transcrita


para o livro sagrado, o autor purifica a lenda, tirando as
características politeístas e servindo-se da cultura
popular para levar uma mensagem. A árvore da vida, na
bíblia, significa que o homem foi criado para

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não morrer. Na sabedoria babilônica, explicam que o
mundo nasceu de uma briga dos deuses.

O deus vencido foi partido ao meio. De uma metade fez


o deus vencedor o céu; de outra fez a terra. Depois pediu
a um deus artista que fizesse o homem com o sangue
apodrecido do deus vencido. Por isso, o homem e o
mundo são maus do princípio.

O autor sagrado aproveita-se destes elementos, mas


purificando-os e adaptando-os. A tradicional briga dos
anjos com Lúcifer existe num mito fenício sob a forma
de uma briga de deuses. A linguagem mítica da bíblia, o
antropomorfismo de Deus... tudo isto tem origem desta
inspiração na literatura exterior a Israel.

h) Saga - contos que se ligam a lugares, pessoas,


costumes, modos de vida dos quais se quer explicar a
origem, o valor, o caráter sagrado de qualquer fenômeno
que chama a atenção. A saga se chama etiológica
quando procura a causa de um fenômeno. Porexemplo,
para explicar a existência de uma vegetação pobre e
espinhosa na região sul ocidental do Mar Morto,surgiu a
lenda de Sodoma e Gomorra, a chuva de

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enxofre... A origem de várias estátuas de pedra,
formadas pela erosão é explicada pela história da mulher
de Ló, que foi transformada em estátua. A narrativa de
Caim e Abel é outra, para explicar a origem de uma tribo
cujos integrantes tinham um sinal na testa. Explicavam
que Deus colocara um sinal em Caim para que ninguém
o matasse, e daí este sinal ficou para a descendência. O
próprio nome de Caim é inventado, porque a tribo
tinha o nome de cainitas e eles deduziram que seu
fundador devia chamar-se Caim.

A saga se chama etimológica quando é para explicar um


nome. Existe na Palestina uma Ramat Leqi (montanha da
queixada). Para explicar a origem deste nome eles
inventaram a estória de Sansão, um homem muito forte,
que lutara contra muitos inimigos usando uma queixada,
e os vencera. Depois ele jogou a queixada naquele
monte, que ficou c conhecido como monte da queixada.
0 caso das filhas de Ló (Gênesis 19) é uma história
difamatória contra os amonitas e moabitas, tradicionais
inimigos de Israel. (Amon e Moab significam 'do pai').
Outras sagas da Bíblia: a de Noé embriagado; a briga
de Labão com Jacó (Gênesis 31). A saga se chama
heróica quando tem por finalidade engrandecer a vida

31
dos heróis do passado. O valor da saga está na riqueza
popular (folclórica) que ela traz. Nem sempre há lição em
cada uma. Mas a fartura de detalhes que ela traz mostra
a mentalidade do povo. Seu valor é maior para acritica
literária.

i) Legenda - distingue-se da saga porque se refere a


pessoas ou objetos sagrados e querem demonstrar a
santidade destes por meio de um fato maravilhoso.
Legendas na Bíblia há em Nm.16.1; 17.15; histórias a
respeito de Moisés; Daniel l. 2, 3, 4: sonhos de Daniel; Os
milagres de Elias contra os sacerdotes de Baal; Gênesis
28.10: Jacó sonha com os anjos (pedra de Betel). É
comum nas legendas referir-se à lei ou objeto de culto.

A imolação de Isaac, que não deu certo, é para reprimir


um costume dos cananeus de imolar crianças, costume
proibido pela lei de Moisés. A serpente de bronze (Nm.
21) se refere a uma serpente de bronze mandada fazer
pelo rei Manasses, que foi destruída por Javé. A
circuncisão (Gn.17) é explicada assim: Deus apareceu a
Abraão para fazer aliança com ele e o pacto era a

32
circuncisão de todos os meninos no oitavo dia. Js. 5.9 e
Ex.12 e 13 falam da origem da Páscoa.

j) Parábolas, fábulas, alegorias - parábola é uma


história comparativa, de sentido global (II Sm. 12.1-4);
fábula é a narrativa que faz os seres inanimados ou os
animais falarem (Jz. 9.7); alegoria é uma história
comparativa em que cada elemento tem um significado
particular (Is.5.1-7). Há ainda o

apólogo, quando se trata da animação de objetos.

3. Narrativo-Histórico

Popular, onde ninguém sabe o fim da lenda e o começo


da história. É uma história primitiva, baseada em histórias
que corriam na boca do povo, um misto de elementos
verídicos e legendários acrescentados. Oslivros Josué e
Juízes (550 a.C.) estão nesta categoria.
Epopéia (nacional-religiosa) são histórias retiradas da
catequese do povo. Se bem que tenham elementos
acrescentados, todavia a mensagem pode ser

33
considerada autêntica. O exemplo mais típico deste
gênero é a narração epopéica da passagem do mar
vermelho (14). A fuga de Israel do Egito está ligada a
um fato acontecido no tempo de Ramsés II.
Ele foi um faraó que empreendeu grandes conquistas,
principalmente à procura de escravos para trabalhar.
Entre os povos submetidos havia um grupo de judeus.
Mais tarde, fraquejou a vigilância, e muitos fugiram,
inclusive muitos judeus. Então eles empreenderam afuga
pelo deserto e se aproveitaram de uma região ondehavia
um braço de mar que secava durante a marébaixa para
sair do território egípcio.

Esta narrativa na Bíblia é contada com todos aqueles


retoques conhecidos. Mas se analisarmos bem, veremos
que na própria Bíblia, há duas citações domesmo fato, e
cada uma conta diferente. São as duas tradições: a
javista, mais antiga e mais verdadeira, afirma que o vento
soprou durante toda a noite e fez o mar recuar; a
sacerdotal, mais recente, modificou a narração para a
divisão das águas em duas muralhas por onde todos
passaram em seco. Há uma certa contradição nestas
duas. Mas o que se deve concluir daí é que os soldados
os perseguiram na fuga e eles

34
passaram na maré baixa. Quando os soldados
chegaram, a maré já subira e não dava passagem.
Enquanto isso, eles se adiantaram

ainda mais. Ao transcrever isto na Bíblia, o autor sagrado


quer mostrar o fato da presença de Deus em ajuda de
seu povo, através dos elementos da natureza.

a) Historiográfico
É o trabalho dos escribas encarregados de escrever as
crônicas dos anais dos reis. A partir destas crônicas
vários livros foram escritos. I Reis 11.41 cita os anais de
Salomão; em 14.19 afirma que o restante está nos livros
das crônicas dos Reis de Israel. São documentos de
maior credibilidade, porque são mais históricos. Somente
a partir do livro dos Reis, é que são usados documentos
escritos na época. Antes era apenas história popular.

b) Legislativo
É representado na Bíblia principalmente no Pentateuco.
Tem muito em comum com os outros povos vizinhos e
herdou muito deles. Há passagens na Bíblia que são
repetições do código de Hamurábi. Os povos orientais

35
são muito ricos neste tipo de literatura. Quanto aos tipos
de leis, há três: 1. leis causídicas: pormenorizadas
conforme as situações; 2. leis apodíticas: universais; 3.
leis rituais.

c) Sapiencial
Originou-se também dos povos vizinhos, principalmente
a partir do Exílio. São de origem profana e não religiosa,
pois as suas fontes também não eram religiosas. O povo
oriental é pensador por natureza e a sabedoria é uma
virtude muito difundida e apreciada. A sabedoria bíblica
não difere muito da sabedoria oriental em geral.

d) Profético
Também tem origem fora de Israel. Os povos da época
tinham seus profetas. Eles moravam nos palácios dos
reis e eram os que dialogavam com os deuses. É preciso
notar que naquela época profeta não era sinônimo de
adivinho, como

às vezes se identifica. Eles manifestavam ao povo a


vontade de Deus com sermões, com sinais, exortações
e oráculos.

36
e) Salmos
Também tem influência externa (fora de Israel). Não são
todos de Davi. Apareceram conforme as necessidades.
Foram compostos sem sequência ou cronologia. São
cantos de louvor, de súplica.

IV - PRINCIPAIS ETAPAS DA HISTÓRIA DE


ISRAEL

O primeiro marco importante na história política de Israel


foi o exílio. Sua finalidade política era para evitar a
rebelião. Em geral, quando era conquistado um povo
muito numeroso, os conquistadores achavam perigoso
deixá-los em suas terras de origem, porque isso lhes
facilitava um trabalho oculto de rebelião para expulsar
os invasores. Então, longe de suas terras e sem uma
liderança, eles não podiam se movimentar. Os judeus
foram assim exilados para a Babilônia. O exílio teve
início no ano 587 e foi concluído com o edito de Ciro que,
em 538 conquistou a Babilônia e libertou os judeus.Dizem
os historiadores que a rivalidade entre judeus e
samaritanos começou na volta do exílio. O povo no

37
exílio ficou muito tempo em contado com vários povos
estrangeiros e adquiriu com isto um sincretismo religioso
que levaram para a Pátria. Ao retornarem à pátria, logo
eles empreenderam a reconstrução de Jerusalém (casas,
templo...), mas não se livraram completamente das
influências politeístas, causando assim várias
brigas internas. O Sinédrio era a cúpula religiosa da
nação, composta de 70 membros sob a presidência do
Sumo Sacerdote, que tinha autoridade suprema. Os
fariseus e saduceus eram partidos políticos, mas com
inspiração religiosa. Os primeiros eram da oposição e os
outros, da situação. No ano 63 a.C, a Palestina

foi conquistada pelos Romanos, iniciando outra era de


dominação estrangeira, que perdurou até o tempo de
Cristo.

1. Curiosidades a Respeito da Bíblia

O Rei de Espanha, temendo que o príncipe de Granada,


como herdeiro legítimo do trono, tentasse lhe tomar a
coroa, resolveu prendê-lo num calabouço em Madri.

38
Passados vinte anos, o príncipe faleceu. Examinada a
prisão, foi encontrada na parede uma escrita, feita coma
ponta de um prego, onde se lia: "A palavra Senhor é
encontrada na Bíblia 1.853 vezes; Jeová, 6.855; o
segundo verso do Salmo 117, marca a metade da Bíblia;
o verso maior dela é Ester 8.9; o menor é João 11.35; no
Salmo 107, há quatro versos iguais: 8, 15, 21
e 31.

Todos os versos do Salmo 136 terminam da mesma


maneira; na Bíblia não se encontrada nenhuma palavra
ou nome que tenha mais de seis sílabas; o capítulo 37 de
Isaías e o 19 de II Reis são iguais; Jeremias 52 v.31a 34
é igual ao de 11 Rs. 25.27-30, a palavra menina só
aparece uma vez em Joel 3.3.

No Antigo e Novo Testamentos, há 3.586.483 letras,


773.693 palavras, 31.373 versos, 1.179 capítulos e 66
livros. Estes estão divididos assim: 39 livros no Velho e
27 no Novo. Todos esses livros foram escritos por cerca
de 40 autores em 16 séculos de história. Foram usados
três idiomas: hebraico, aramaico e grego.

2. O Que é e do Que Trata a Exegese Bíblica

39
Aqui se encontram dez princípios que devem ser
seguidos na interpretação bíblica.
Denomina-se princípio da unidade “escriturística”. Sob a
inspiração divina a Bíblia ensina apenas uma teologia.
Não pode haver diferença doutrinária entre um livro e
outro da Bíblia.

Aprender a ler cuidadosamente o texto e fazer perguntas


certas ao mesmo. Há duas perguntas básicas que
devemos fazer a cada passagem: Asque
dizem respeito ao contexto e as que, dizem respeitoao
conteúdo.

3. Durante a Reforma Protestante

Com a mentalidade de retorno à bíblia, a reforma frisava


a comparação da Bíblia com a Bíblia, ou seja, a
interpretação de um dado texto bíblico mediante ao apelo
a outros textos bíblicos.
Com tudo a teologia ocidental continuou sendo a principal
norma na interpretação das ideias protestantes,visto que
as igrejas luterana e reformada são filhas da

40
tradição ocidental que se concretizou na igreja Católica
Romana.

4. Moderna Crítica Bíblica

Este assunto tem lançado tanto luzes quanto sombras


sobre o conhecimento bíblico e teológico.
Apesar de ser uma atividade legítima e necessária afim
de pôr os estudos bíblicos a parar das evidências
linguísticas, literárias, históricas e científicas, infelizmente
as pessoas que são conhecidas como críticas bíblicas,
geralmente tem se mostrado dotadas de uma
mentalidade cética, além de lhes faltar a experiência com
a fé cristã.

5. Além da Exegese

É inútil esperar um delineamento da verdade inteira por


mais exata e complexa que possa ser.
Ha coisas que Deus simplesmente não nos revelou - Dt.
29.29, nem por isso devemos diminuir a importância da
pesquisa bíblica séria, mediante corretos métodos
exegéticos.

41
Deixe a Bíblia interpretar a própria Bíblia. Este princípio
vem da Reforma Protestante.
O sentido mais claro e mais fácil de uma passagem
explica outra com sentido mais difícil e mais obscuro.
Este princípio é uma ilaçãodo
anterior. Jamais esquecer a
Regra Áurea da Interpretação, chamada
por Orígenes de Analogia da Fé. O texto deve ser
interpretado através do conjunto das
Escrituras e nunca
através de textos isolados.
Sempre ter em vista o contexto. Ler o que está antes e o
que vem depois para concluir aquilo que o autor tinha
em mente.
Primeiro procura-se o sentido literal, a menos que as
evidências demonstrem que este é figurado.
Ler o texto em todas as traduções possíveis - antigas e
modernas.
Muitas vezes uma destas traduções nos traz luz sobre o
que o autor queria dizer. Apenas um sentido deve
ser procurado em cada texto.
O trabalho de interpretação é científico, por isso deve
ser feito com isenção de ânimo e desprendido de

42
qualquer preconceito. (o que poderíamos chamar de
"achismos").
Fazer algumas perguntas relacionadas com a passagem
para chegar a conclusões circunstanciais. Por exemplo:
a) - Quem escreveu?
b) - Qual o tempo e o lugar em que escreveu?
c) - Por que escreveu?
d) - A quem se dirigia o escritor?
e) - O que o autor queria dizer?
Feita a exegese, se o resultado obtido contrariar os
princípios fundamentais da Bíblia, ele deve ser colocado
de lado e o trabalho exegético recomeçado novamente.

6. As Ferramentas Necessárias ao Exegeta

Usar a Bíblia que contiver o texto mais fidedigno na língua


original.
(Os que não podem ler a Bíblia no original devem usar
uma tradução fiel, tanto quanto possível). Escolhido o
texto é necessário saber exatamente o que ele diz. Para
isso são necessárias suas espécies de ferramentas:
a) Dicionários

43
Para o Velho Testamento o melhor em inglês é: Um
Conciso Léxico Hebraico e Aramaico do Velho
Testamento de William Holaday.
Para o Novo Testamento o melhor é: Léxico Grego-Inglês
do Velho Testamento de Walter Bauer(Universidade de
Chicago), traduzido e adaptado para o inglês por Arndt
Gingricd.
Em português não há nem um dicionário para o grego
bíblico. Para o grego clássico o melhor que temos é:
Dicionário Grego-Português e Português-Grego de Isidro
Pereira, Edição do Porto, Portugal.

b) Gramáticas

A melhor do hebraico é a de Gesenius.


Para o Novo Testamento as melhores gramáticas são
as de Blass,. Moulton e Robertson.
Depois de determinado o que o texto registra, é preciso
ir além e investigar mais precisamente a significação
teológica de certas palavras. A melhor fonte para este
estudo no grego é o Dicionário Teológico do Novo
Testamento, editado por Kittel e Friedrich.
São dez alentados volumes para o inglês.
Para o Velho testamento não existe trabalho idêntico.

44
Em português continuamos numa pobreza mais do que
franciscana neste aspecto. O próximo passo é
uma pesquisa conscienciosa do contexto
para que não haja afirmações que se oponham ao que o
autor queria dizer ou distorções daquilo que ele disse.

Após estapesquisa é necessário considerar


cuidadosamente a teologia, o estilo, o propósito e o
objetivo do autor. Para este mister as obras mais
necessárias são: concordância, introduções e livros
teológicos.

Em português temos a Concordância Bíblica, publicação


da Sociedade Bíblica do Brasil, 1975.

Muito úteis para o exegeta são os estudos teológicos que


tratam com o livro específico do qual estamos fazendo a
exegese.

O próximo passo em exegese é a familiarização com o


conhecimento geográfico, histórico, os hábitos e práticas
podem iluminar nossa compreensão sobre o texto. Para
tal propósito são necessários Atlas, livros arqueológicos,
histórias e dicionários bíblicos.

45
Dicionários da Bíblia são muito úteis para rápidas
informações sobre um assunto, identificação de nomes
de pessoas, lugares ou coisas. O melhor dicionário da
Bíblia é: The Interpreter´s Dictionary of the Bible, quatro
volumes.

7. Como Fazer Exegese

Na atualidade a mídia, especialmente a TV e o rádio, tem


sido usado como instrumentos para espalhar a palavra
de Deus, mas ao mesmo tempo tem provocado na mente
de muitos cristãos a "lerdeza do pensar".
Hoje existe o "evangelho solúvel", "evangelho do
shopping center", "dos iluminados", etc. Mas pouco se
estuda a fonte do evangelho do Nosso Senhor Jesus
Cristo, isto é muito mais do que umaleitura diária e muitas
vezes feita às pressas para cumprir um ritual.

8. Cinco Regras Concisas

Interpretar lexicamente. É conhecer a etimologia das


palavras, o desenvolvimento histórico de seu significado
e o seu uso no documento sob consideração. Esta

46
informação pode ser conseguida com a ajuda de bons
dicionários. No uso dos dicionários, deve notar-se
cuidadosamente o significar-se da palavra sob
consideração nos diferentes períodos da língua grega e
nos diferentes autores do período.

Interpretar sintaticamente: o interprete deve conhecer os


princípios gramaticais da língua na qual o documento
está escrito, para primeiro, ser interpretado como foi
escrito. A função das gramáticas não é determinar as
leis da língua, mas expô-las. O que significa, que primeiro
a linguagem se desenvolveu como um meio de expressar
os pensamentos da humanidade e depois os gramáticos
escreveram para expor as leis e princípiosda língua
com sua função de exprimir ideias.
Para quem deseja aprofundar-se é preciso estudar a
sintaxe da gramática grega, dando principal relevo aos
casos gregos e ao sistema verbal a fim de poder entender
a estruturação da língua grega. Isto vale parao hebraico
do Antigo Testamento.
Interpretar contextualmente. Deve ser mantido emmente
a inclinação do pensamento de todo o documento. Então
pode notar-se a "cor do pensamento", que cerca a
passagem que está sendo

47
estudada. A divisão em versículos e capítulos facilita a
procura e a leitura, mas não deve ser utilizada como
guia para delimitação do pensamento do autor. Muito mal
tem sido feita esta forma de divisão a uma honesta
interpretação da Bíblia, pois dá a impressão de quecada
versículo é uma entidade de pensamento separados dos
versículos anteriores e posteriores.
Interpretar historicamente: o interprete deve descobrir as
circunstâncias para um determinado escrito vir à
existência. É necessário conhecer as maneiras,
costumes, e psicologia do povo no meio do qual o escrito
é produzido. A psicologia de uma pessoa incluí suas
ideias de cronologia, seus métodos de registrar a história,
seus usos de figura de linguagem e os tipos de literatura
que usa para expressar seus pensamentos.
Interpretar de acordo com a analogia da Escritura. A
Bíblia é sua própria intérprete. Diz o princípio
hermenêutico. A bíblia deve ser usada como recurso para
entender ela mesma. Uma interpretação bizarra que
entra em choque com o ensino total da Bíblia está
praticamente certa de estar no erro. Um conhecimento
acurado do ponto de vista bíblico é a melhor ajuda.

48
9. O Procedimento Exegético

O procedimento errado. Ler o que muitos comentários


dizem como sendo o significado da passagem e então
aceitar a interpretação que mais agradece. Este
procedimento é errado pelas seguintes razões.
Encoraja o intérprete a procurar interpretação que
favorece a sua preconcepção.

Forma o hábito de simplesmente tentar lembrar-se das


interpretações oferecidas. Isto para o iniciante,
frequentemente resulta em confusão e ressentimento
mental a respeito de toda a tarefa da exegese. Isto não
é exegese, é outra forma de decorar e é muito
desinteressante. O péssimo resultado e mais sério do
"procedimento errado" na exegese é que próprio
interprete não pensa por si mesmo.
10. Procedimento Correto
O interprete deve perguntar primeiro o que o autor diz e
depois o que significa a declaração
Consultar os dicionários para encontrar o significado das
palavras desconhecidas ou que não são familiares. É
preciso tomar muito cuidado para não escolher o
significado que convêm ao interprete apenas.

49
Depois de usar bons dicionários, umaou mais
gramáticas devem ser consultadas para
entender a construção gramatical. No verbo, a voz, o
modo e o tempo devem ser observado por causa da
contribuição à ideia total.

O mesmo cuidado deve ser tomado com as outras


classes gramaticais.

Tendo as análises léxicas, morfológica e sintática sido


feitas, é preciso partir para análises de contexto e história
a fim de que se tenha uma boa compreensão do texto e
de seu significado primeiro e, 2.5. Com os passos
anteriores bem dados, o interprete tem condições de
extrair a teologia do

texto, bem como sua aplicação às necessidades


pessoais dele, em primeiro lugar, e às dos ouvintes.
Que o texto tem com a minha vida? Com os grandes
desafios atuais?

11. O Uso de Instrumentos

50
O interprete deve manter em mente o clima teológico
em que foram produzidos, porque isso afeta de maneira
direta a interpretação das Escrituras. Um comentarista
pode ser capaz, em certa media, de evitar "bias"
(tendências) e permitir que o documento fale por si
mesmo, mas sua ênfase nos vários pensamentos na
passagem será afetada pela corrente de pensamento de
seus dias. Os comentários principalmente os
devocionais, tem a marca da desatualização.

12. Prefira os Comentários Críticos e Exegéticos


Uso de dicionário e gramáticas: e importante manter em
mente a data da publicação. Todas as traduções de
uma palavra devem ser avaliadas e não apenas tirar só
o significado que interessa a nossa interpretação.
Explore o recurso dos próprios sinônimos. Por exemplo
a palavra pobre é tradução de duas palavras gregas. A
primeira significa carente do supérfluo, que vive
modestamente, com o necessário e a segunda, significa
mendigo, desprovido de qualquer sustento. Na
interpretação de Mateus 5.3 isto faz muita diferença!

51
V - UM EXAME DA EXEGESE

1. Intenção e Intencionalidade

Ao se praticar a exegese, trabalhamos com alguns


procedimentos implícitos, velados. Nem sempre, ao
interpretar, estamos conscientes dos mesmos. Um dos
procedimentos implícitos é a vontade de saber, vontade
que pode ser entendida, às vezes, como ideologia. Esse
é o tema deste ensaio.
Como acontece em outros saberes e práticas do homem
não procuramos pela origem e fundamentos de umaação.
Outras vezes, não nos interessa saber a origem, natureza
de algo e se esse algo pode ser melhorado. Uma pessoa
pode usar um aparelho durante muitosanos e nunca se
perguntou como se faziam as coisas antes desse
aparelho, como as pessoas se viravam. Ao hermenêutica
um texto, nem sempre nos damos conta de regras
implícitas, e, às vezes, nem mesmo das explícitas. Todo
mundo que interpreta usa regras, conscientes ou não.

52
O teórico, aquele que busca o fundamento das coisas,
que questiona, nem sempre é visto como sendo útil para
a sociedade, mas ele tem utilidade. Um aperfeiçoamento,
novo invento ou rejeição de algo vem pelo perguntar e aí
se evidencia a utilidade do teórico.Às vezes, a única
utilidade de um teórico é explicitar ou explicar e
sistematizar uma prática, um saber que fazemos apenas
por intuição.
Intencionalidade
A exegese como todo saber tem práticas implícitas e
intuitivas. Neste texto quero abordar uma prática
escondida que está por trás do procedimento
interpretativo. Esta prática escondida talvez fosse melhor
dita como prática não consciente, e que consiste no
desconsiderar o momento originário do chamado
"contexto original".

Interpretar é trabalhar com o conceito de


intencionalidade, na busca de um “para quê". Isso quer
dizer que aquilo que foi escrito tem um objetivo, um
sentido, uma lição. Essa intencionalidade, no entanto, só
é vista enquanto escrito pelo autor do livro, mas não no
acontecimento. Não duvido que a motivação de todo
autor, ao escrever um texto, é dizer algo. Se ele cria ou

53
narra, prescreve ou descreve, pouco importa, elesempre
leva em consideração uma utilidade que terá o seu
escrito para alguém.
O alvo de toda interpretação é saber o lá e então em
primeiro lugar. Isso é uma regra implícita e explícita em
nossa hermenêutica atual. É a regra básica de todo
procedimento hermenêutico. Saber como funcionou o
texto para os leitores em suas necessidades em primeiro
lugar, para depois descobrir como pode funcionar no
contexto temporal do ouvinte hoje, é a tarefa que se
coloca como primordial. Mas há, nessa tarefa, alguns
elementos a serem considerados.
3. O Lugar do Intérprete
Essa busca do lá e então, é, na verdade, um segundo
momento A hermenêutica desiste de ser uma ortopraxia
para percorrer um itinerário errante. A errância é o fazer
da hermenêutica. Sendo assim, ela já não trabalha com
e para a ortodoxia, sua função é a semioclastia. Ele (o
intérprete) deve reconhecer que o erro será praticamente
inevitável. Ele só poderá ser checado, diminuído, nunca
eliminado.
Essa busca do lá e então, é, na verdade, um segundo
momento interpretativo. Há algo que precede, no tempo
e no texto, o escrito do texto. Portanto, o descobrimento

54
desse "lá" em primeiro lugar, é, em outras palavras, um
cortar de caminho. Existe uma distância temporal entre
o escrito e o acontecido; primeiro vem o acontecido,
depois o escrito. Quando se interpreta, não se busca o
acontecido, mas o escrito. Mas não teria importância
hermenêutica prestar atenção ao acontecido? Acredito
que sim. Falar uma coisa dessas é tão óbvio que parece
ridículo, mas essa fraqueza é apenas aparente. Os
hermeneutas, não precavidos disso,

tendem a interpretar o texto, como se o acontecido fosse


concomitante ao texto, e que o fato foi produzido pelo
autor, que o escritor lida com o fato em primeira mão, mas
não é nada disso. O autor é um intérprete a posteriori de
um fato. Isso que estou escrevendo nada tem de novo, já
se fez isso antes da primeira metade desse século na
busca do contexto acontecido.
Se eu trabalho o texto tentando descobrir o "lá", é certo
que a comunidade leitora já influenciou no procedimento
originador do texto. Isto é, o autor, ao trabalhar com seu
texto, modelou- o segundo seus leitores e suas
necessidades, pois que todo texto "serve" a algum
propósito: confortar. consolar, admoestar. ensinar,
edificar ou corrigir algo nos leitores. Essa é uma das

55
chaves para se descobrir porque, mesmo nos
evangelhos sinóticos, um mesmo acontecido na vida de
Jesus pode ter contextos, lugares, lições e personagens
diferentes em cada autor.
Mas, se minha leitura começa com o "lá", meu começo
não é originário, isto é, não começo onde deveria
começar, pois aí, estou desconsiderando o acontecido.
Todo acontecimento originador de um texto tem uma
anterioridade e originalidade ao próprio texto. O queestou
dizendo é que o fato é anterior ao texto, e não temrelação
direta com este. Tem algo antes do "lá", dotexto, que é
anterior a ele e à comunidade leitora.
Agora, todo texto precisa ser lido em três contextos
distintos: o meu, o da igreja leitora e o contexto deJesus.
Eu preciso levar em consideração isso também. Quem
nos ajuda a ver a interpretação desse modo são os
estudiosos intérpretes das parábolas. Eles,
principalmente Dodd, Jeremias e Weissmann, chamam
a atenção que as parábolas tiveram, inicialmente, um
objetivo na fala de Jesus, e, entre a fala de Jesus e a
leitura da comunidade, o autor deu uma nova
interpretação ao fato. Algumas parábolas foram ditas em
um determinado contexto e os autores colocaram as

56
parábolas em outro contexto, de acordo com a
comunidade leitora.

Uma vez que o intérprete está consciente disso, achará


que os autores dos evangelhos fizeram exatamente isso.
Vendo as parábolas ou qualquer outro texto no ensino de
Jesus, percebemos que os acontecimentos estão
dispostos em locais diferentes e se dirigem a um público
diferente. Uma hora o ensino se dirige aos inimigos, os
fariseus, outra, porém, aos discípulos. Então, é a situação
existencial da comunidade quem determina qual sentido
o fenômeno em Jesus deve tomar.

Todo texto, portanto, passa a ser uma pregação escrita


baseada em uma pregação oral. Isto quer dizer o
seguinte: todo texto é pregado pelos escritores do Novo
Testamento para os leitores originais a partir de uma
pregação de Jesus. O acontecimento, na vida de Jesus,
no entanto, nem sempre tem um "para quê"; esse "para
quê", só acontece na vida dos escritores. Em outras
palavras, isso pode ser explicado da seguinte forma: nem
sempre um acontecido foi "provocado" por Jesus para
que uma lição ou princípio fosse ensinado.

57
O que era mais comum na vida de Jesus era que as
coisas aconteciam, independentemente de sua vontade,
e, a partir desse acontecido alheio à sua vontade,
aplicava um princípio ou ensino espiritual. Considere, só
a título de exemplo, a cura do paralítico em Cafarnaum
que foi baixado do teto pelos amigos (Mc. 2). Até aquele
momento, Jesus estava ensinando - e o texto fala isso -
qualquer coisa que nada tinha a ver com o que sesegue.
O novo evento lhe rouba a importância do “assunto
ensino” que ele está ministrando até àquela hora.

Os amigos chegam, causam aquele transtorno e Jesus


dá a palavra, primeiro ao paralítico, depois aos fariseus
ali presentes. Nada foi provocado intencionalmente por
Jesus, por isso a completa destituição deintencionalidade
no evento. Não sabemos o que Jesus estava ensinando
nem antes e nem o que ensinou depois desse evento.
Se alguma intencionalidade existe, existirá nos ensinos
que eu chamaria de avulsos. São os ensinos em forma
de discursos de Jesus que acontecem em alguns
momentos do

58
seu ministério, por exemplo, no caso do sermão inicial
do seu ministério em Mateus, ou o sermão aos
discípulos acerca da parusia, no final de sua vida com
os mesmos. Nesses momentos Jesus simplesmente
começa a falar algo para seus discípulos não tendocomo
alavanca um acontecimento originador, é um ensino que
não tem uma origem a não ser no desejo do próprio
mestre.

Se o acontecimento não tem um "para quê", se ele


simplesmente existe, se dá, a intencionalidade. é dada a
posteriori. A intencionalidade já é uma hermenêutica no
tempo presente acerca do acontecido. Todo fenômeno é
causado, mas sua causação nem sempre depende dos
circunstantes ou de Jesus. Assim, o fenômeno está mais
próximo do seu passado, ou seja, da situação original,
que do seu futuro, isto é, a interpretação que o autor do
livro deu ou dará, a partir do fenômeno para a
comunidade leitora.

Quando o autor usa um fato para relacionar com o


presente da comunidade, aí, sim, é dado a esse fato uma
intencionalidade. Mas entre o escrito e o fenômeno não
há causação, nem sequência, nem sequência entre

59
a necessidade da comunidade leitora e o fato na vida de
Jesus. O escrito, portanto, é uma reinterpretação do
fenômeno e essa interpretação é arbitrária - da própria
vontade do autor - e condicionada, pois que um mesmo
fato, que originalmente é único e “desintencional” é
interpretado de várias formas por autores diferentes.
Toda interpretação já é uma mudança e um
“ultrapassamento” da situação originadora. A falta de
intenção do fato, por exemplo, quando Jesus, ao dormir
no barquinho enquanto atravessavam o lago, houve a
tempestade, ao ser interpretado, o autor coloca uma
intencionalidade. Essa intencionalidade é o significado
que é dado ao fenômeno, é a leitura de algo que
originalmente não tinha significado.
É nesse sentido que o escrito é uma pregação escrita de
uma pregação oral, mas que essa pregação também foi,
em algum tempo, dramatizada pelo momento.
Quando interpreto o

escrito, e não o fenômeno ou a situação original, o que


estou fazendo é buscando uma intenção da
intencionalidade do autor e não da intenção de Jesus. É
até engraçado isso o que acontece com os intérpretes
de todos os tempos. É Jesus o centro da vida do

60
intérprete e das comunidades ouvintes do intérprete,mas
ao se fazer a interpretação de um texto, não seestá
preocupado com o contexto de Jesus inicialmente, mas
com o do autor e dos leitores originais. O contexto de
Jesus é anterior ao "lá", é originário. Esse "lá" diz respeito
aos leitores originais e não ao de Jesus. Jesus sendo o
personagem mais importante fica em posição secundária
quando se começa pelo "lá" dos leitores, e não pelo de
Jesus. Isso passa bem despercebido dos leitores de hoje
e dos intérpretes. É uma prova de como as regras que
nos impomos e que acatamos, nem sempre nos
agradariam se pensássemos o que está por trás das
mesmas.
4. Hermenêutica Como “Metainterpretação”

Quando interpreto, estou fazendo uma interpretação de


uma interpretação. Minha exegese, tendo como base a
comunidade leitora e não a comunidade ouvinte, está
baseada na interpretação que o autor deu, e não aquilo
que Jesus falou. Jesus já não fala, senão pelo autor.
Quando prego, estou pregando uma repregarão, pois que
todo escrito é uma pregação do autor para alguma
comunidade.

61
Quando interpreto ou prego, é a intencionalidade do
escritor e não a intenção de Jesus. Meu trabalho está
baseado na intencionalidade do autor, e não nofenômeno
em si.

Mas isso não deve nos levar ao suicídio ou negação do


nosso método de interpretação. Os autores, não
precisamos pensar que foram mal intencionados, não
estão querendo trair um fenômeno na vida de Jesus, eles
queriam era apenas estender o acontecido em Jesus
para a vida de seus leitores. Portanto, podemos crer que
da parte deles, houve critério e seriedade na
interpretação dos fenômenos. Eles mesmos falaram
desse critério. Judas, Lucas e Paulo falaram isso.

Além disso, a 'presença do Espírito com eles, os orientou


a fazer o que fizeram.

A interpretação das parábolas leva em consideração os


dois contextos, o de Jesus e o das comunidades
leitoras/autores, para ver como falam nos dois
momentos. Sabendo como foi falada nos doismomentos,
pode-se trabalhar com um terceiro contexto, o do
intérprete. Mas isso não pode ficar restrito ao

62
exercício exegético das parábolas, qualquer texto,sendo
uma narração, precisa levar em conta o contexto de
Jesus, depois, o contexto dos leitores originais. Assim, se
volta ao início do caminho.
Semelhantemente, da mesma forma que o autor nem
sempre respeita a intenção e o contexto de Jesus e dos
discípulos na escrita do texto, da mesma forma há como
que uma independentização do texto em relação aoautor
depois que este se fixa como texto literário. Vejamos
outros autores falando sobre essa textualidade e
independentização.

Assim que o texto foi escrito e saiu das mãos do autor,


torna- se autônomo, inicia um caminho próprio. Salvo
raras exceções, o autor não é mais capaz de defender o
seu texto de incompreensões e equívocos... Expressões
escritas tornam-se entidades autônomas, se bem que os
textos podem vir acompanhados de auxíliosextratextuais
para a compreensão, por exemplo declarações do
portador.
Da mesma maneira como o autor trabalhou de forma
independente ao acontecido ao escrever seu texto, esse
mesmo texto, como se tivesse vida própria, trilha seu
próprio caminho. Naturalmente, isso deixa um caminho

63
aberto para que todo intérprete possa “dizer” qualquer
coisa de qualquer texto.
Egger mesmo enfatiza que o texto não encerra um só
sentido: “... os textos bíblicos não têm um significado fixo
e acabado, mas escondem uma plenitude de
potencialidades” (210). Dessa forma, o autor já não
“pretende” algo com seu texto, a pretensão existe no
intérprete, da mesma forma como o acontecimento
originário não pretendia algo, simplesmente

acontecia. O autor, se pretendeu algo, pretendeu para


os leitores originais “... não se afirma que o sentidoliteral
é o que o autor humano inspirado pretende; é antes o que
esse autor expressa”.

Sobre a auto existência do texto e sua independência.


Os textos têm uma duração que independe da situação,
segundo Weimar, os textos pertencem a duas situações
separadas no tempo e têm duração independente da
situação, são sempre presentes, são atemporais e
acabados, um texto é presença coisificada de um
passado, os textos são som e fala transformados em
linhas escritas.

64
VI - A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA –
ONTEM E HOJE

Quando você está dirigindo um carro, precisa ficar atento


a toda a sinalização rodoviária. Algumas placas servem
para advertir: “Saliência ou Lombada” ou “Pista Irregular”.
Outras mostram a direção: “Siga em Frenteou Vire à
Esquerda”, Proibido Virar à Direita” ou ainda “Mão Única”.
Já outras placas são meramente informativas, a saber,
“80 km – Velocidade Máxima Permitida” ou “Proibido
Estacionar”.

De forma semelhante, o entendimento de como pessoas


e grupos interpretavam a Bíblia antigamente pode
funcionar para nós como uma espécie de sinalização,
advertindo, conduzindo e informando.

Como placa de advertência, o estudo da história da


interpretação bíblica pode ajudar-nos a enxergar os erros
que os outros cometeram no passado e suas
consequências, alertando-nos assim para evitarmos que

65
se repitam. Nas palavras de Mickelsen: “A história mostra
que a utilização de princípios errados prejudicou o
trabalho exegético de grandes homens, alguns dos quais
foram santos extraordinários. Este fato deve servir de
alerta para nós contra a interpretação descuidada. Temos
ainda menos desculpas pelo fato de podermos aprender
com as lições do passado”.

Como placa que indica a direção, o conhecimento de algo


da evolução da interpretação bíblica ao longo dos séculos
pode ajudar-nos a perceber a importância das
interpretações corretas e o que implicam. Como placa
informativa, a história da hermenêutica ajuda-nos a
entender como certas questões de interpretação
surgiram e o modo como foram abordadas no passado.
Ela nos informa como chegamos ao nível de
compreensão da Bíblia.

Como veremos mais adiante neste capítulo, no decorrer


dos séculos os estudantes das Escrituras adotaram
várias

perspectivas:literal, alegórica, tradicional,


racionalista e subjetiva.

66
1. Esdras e os Escribas

Quando os judeus retornaram do exílio na Babilônia, tudo


indica que falavam aramaico, e não hebraico.
Consequentemente, quando Esdras, o escriba (Ne. 8.1,
4, 13; 12.36), leu a lei (Ne. 8.3), os levitas tiveram de
traduzir do hebraico para o aramaico. Talvez seja este o
sentido de “claramente”. O termo hebraico pāras significa
“tornar claro” ou “interpretar”, e provavelmenteo sentido
aqui é “traduzir”. Além disso, os levitas “expunham o
significado” enquanto circulavam entre o povo, ou seja,
explicavam, interpretavam a lei “de maneira que
entendessem o que se lia”.
Desde Esdras até Cristo, os escribas não só ensinavam
as Escrituras, mas também as copiavam. Eles tinham
grande reverência pelos textos do Antigo Testamento,
mas essa veneração logo caiu no exagero. Por exemplo,
o Rabino Akiba (50? -132 d.C), líder de uma escola para
rabinos em Jaffa, na Palestina, “afirmava que toda
repetição, figura, paralelismo, sinonímia, palavra, letra,
partícula, pleonasmo e, ainda como cada fibra da asa de
uma mosca ou da perna de uma formiga tem sua
importância curiosa”. Akiba ensinava que

67
“assim como o martelo que trabalha ao fogo provoca
muitas fagulhas, cada versículo das Escrituras possui
muitas explicações”. Ele asseverava que cada
monossílabo do texto bíblico tinha vários significados.
Havendo um “e” ou um “tambem” a mais, ou ainda uma
flexão,sempre devem merecer interpretação especial.Se
2 Reis 2.14 diz que Eliseu “Também […] bateu nas
águas” [PIB], é sinal que Eliseu fez mais milagres no
Jordão do que Elias. Quando Davi afirma “o teu servo
matou também o leão, também o urso”, o significado
(pela regra de inclusão sobre inclusão) é que ele tinha
matado pelo menos três animais.

Quando se lê que Deus visitou Sara, isso quer dizer que


[…] ele [também] visitou outras mulheres estéreis.

2. Hillel e Shammai

O Rabino Hillel (70 a.C.?–10 d.C?) foi um líder


proeminente entre os judeus da Palestina. Nascido na
Babilônia fundou uma escola em Jerusalém que levou
seu nome. Ele era conhecido por sua humildade e seu
amor. Hillel dividiu em seis tópicos as diversas regras

68
que se desenvolveram entre os judeus acerca dos 613
mandamentos da lei mosaica.
Shammai, da mesma época que Hillel, diferia dele tanto
no que se refere à personalidade quanto à hermenêutica.
Indivíduo de temperamento violento, interpretava a lei
com rigor. Os ensinamentos desses dois rabinos quase
sempre se contrapunham. Após a queda de Jerusalém
em 70 d.C., a escola de Hillel ganhou fama, ao passo que
a de Shammai foi perdendoimportância e influência.

3. A Alegorização Judaica

Alegorizar é procurar um sentido oculto ou obscuro que


se acha por trás do significado mais evidente do texto,
mas lhe está distante e na verdade dissociado. Em outras
palavras, o sentido literal é uma espécie de código que
precisa ser decifrado para revelar o sentido mais
importante e oculto. Segundo este método, o literal é
superficial, e o alegórico é que apresenta o verdadeiro
significado.
A alegorização judaica sofreu influencias daalegorização
grega. Os filósofos gregos, ao mesmo tempo em que
admiravam os antigos escritos grego

69
Homero (século IX a.C.) e de Hesíodo (século VIII a.C.),
ficavam constrangidos com o comportamento imoral e
com os antropomorfismos dos

deuses imaginários da mitologia grega constantes


naquela literatura. Por exemplo, Fedra apaixonou-se por
seu enteado Hipólito. Zeus teve de derrotar Tífon, de
três cabeças. E Ares, o deus grego da guerra, tinha
prazer nas matanças. Como os filósofos gregos podiam
louvar essa literatura e ao mesmo tempo aceitar seus
elementos “fantasiosos, grotescos, disparatados ou
imorais?”

A solução que os filósofos adotaram para contornar o


problema foi alegorizar as histórias, procurando sentidos
ocultos sob o texto literal. Teógenes de Régio, que viveu
por volta de 520 ªC., pode ter sido o primeiro filosofo
grego a alegorizar Homero. Outra teoria sobre o
primeiro filosofo a alegorizar Homero é Ferecides de
Siros, do século VII a.C.

O método da alegorização permitiu que os filósofos


gregos que surgiram mais tarde, tais como os estóicos,
Quêremon e Cleanto, impulsionavam suas idéias ao

70
mesmo tempo em que se proclamavam fiéis aos escritos
antigos. Eles podiam divulgar seus próprios
ensinamentos sob o pretexto de alegorizar a mitologia
de Homero e de Hesíodo. Assim sendo, os escritores
gregos valiam-se de alegorias com fins explicativos, para
que os poetas gregos não fossem ridicularizados.
Os judeus de Alexandria, no Egito, foram influenciados
pela filosofia grega. Mas também tinham um problema a
resolver: como podiam aceitar o Antigo Testamento e
também a filosofia grega, especialmente a de Platão? A
solução foi a mesma encontrada pelos filósofos gregos:
alegorizar o Antigo Testamento. Os judeus alexandrinos
preocupavam-se com os antropomorfismos e as
imoralidades do Antigo Testamento, da mesma forma
que os filósofos gregos ficavam constrangidos com esses
elementos em Homero e em Hesíodo. Como havia
muitos gregos em Alexandria, os judeus foram logo
influenciados e prontamente adotaram a alegorização do
Antigo Testamento. Assim, poderiamconviver tanto com
este quanto com a filosofia grega. Eles também viam a
questão como uma forma de justificativa, uma maneira de
defender o Antigo Testamento perante os gregos.

71
A versão dos Septuaginta – tradução grega do Antigo
Testamento feita em Alexandria cerca de 200 anos antes
de Cristo – procurou remover deliberadamente os
antropomorfismos de Deus. Por exemplo, ela traduz “O
Senhor é o homem de guerra”, de Êxodo 15.3, em
hebraico, por “o Senhor esmaga as guerras”. “A forma
do Senhor”, em Números 12.8, é traduzida do hebraico
por “a glória do Senhor”. A Septuaginta traduz Êxodo
32.14, “Então se arrependeu o Senhor do mal…” por
“então o Senhor se compadeceu”.

Existem dois nomes de relevo na alegorização judaica de


Alexandria: Aristóbulo e Filo. Aristóbulo, que viveu pr
volta de 160 a.C., acreditava que a filosofia grega estava
baseada no Antigo Testamento e que aqueles
ensinamentos só podiam ser desvendados mediante
alegorizarão.

A Epístola de Aristéias, escrita por um judeu alexandrino


aproximadamente no ano 100 a.C., ilustra a alegorizarão
judaica. Ela afirma que as leis dietéticas realmente
ensinavam várias formas de discriminação de certos
animais simboliza a mediação sobre a vida e a existência.

72
Filo (c. 20 a.C.-c. 54 d.C.) é o alegorista judeu-
alexandrino mais famoso. Ele também sofreu influência
da filosofia grega, mas, como era um judeu devoto,
procurou defender o Antigo Testamento contra os gregos
e, muito mais ainda, contra seus companheiros judeus.
Seu desejo de evitar contradições e blasfêmias levou-o a
alegorizar o Antigo Testamento, em vez de seguir sempre
um método literal de interpretação. Filo disse que a
alegorizarão é necessária para evitar as declarações
aparentemente impróprias de Deus ou as afirmações
aparentemente contraditórias do Antigo Testamento.
Disse também que a alegorizarão faz-se necessária
quando a própria passagem indica que se trata de uma
alegoria.

Filo ensinava que Sara e Hagar representam a virtude e


a cultura, e Jacó e Esaú, a prudência e a insensatez;
que o episódio em que Jacó se deitou e apoiou a cabeça
numa pedra simboliza a autodisciplina da alma e o
candelabro e sete hásteas que havia no tabernáculo e no
templo represente planetas.

Filo, porém, não descartou totalmente o significado literal


das Escrituras. E ainda disse que este

73
correspondia ao nível mais imaturo de entendimento,
correspondente ao corpo, ao passo que o significado
alegórico era para o maduro, correspondente à alma.
Alguns judeus tornaram-se ascéticos e formaram
comunidades fechadas, como a dos assênios deQumran,
perto do Mar Morto. Eles copiavam as Escrituras e
escreviam comentários sobre alguns livros do Antigo
Testamento. Eles também sofreram influência da
alegorização. No comentário redigido em Qumransobre
Habacuque 2.17, lê-se: “Líbano aqui representa o
Conselho Comunitário, e ‘animais ferozes’, os judeus
simples de espírito que cumprem a lei”.

4. Os Pais da Igreja Primitiva

Pouco se sabe sobre a hermenêutica dos primeiros pais


da igreja, daqueles que vieram no século I d.C. Mas sabe-
se que em seus escritos proliferavam as citações do
Antigo Testamento e que este deixava prever a Cristo.

Clemente de Roma viveu por volta de 30 a 95 d.C. Ele


fazia muitas citações detalhadas do Antigo Testamento.

74
Citava também o Novo Testamento com freqüência,
visando a reforçar suas próprias exortações.

Inácio de Antioquia da Síria, (c. 35-107) escreveu sete


cartas endereçadas a Roma, nas quais fazia constantes
alusões ao Antigo Testamento e salientava a figura de
Jesus Cristo. Policarpo de Esmirna (70-155) também fez
diversas citações do Antigo e do Novo Testamento em
sua Epístola aos Filipenses.

A Epístola de Barnabé cita o Antigo Testamento 119


vezes. Também utiliza alegorias constantes. Exemplo
clássico é a menção que Barnabé faz dos 318 servos de
Abraão (Gn. 14.14). Ele afirmou que existem três letras
gregas que representam o número 318 e que cada uma
tem um significado. A letra grega t equivale a 300 e
representa a cruz; as letras i e equivalem a 10 e 8
respectivamente, e são as primeiras duas letras de
lēsous (Jesus, em grego). Portanto, os 318 servos
representam Jesus na cruz Barnabé escreveu: “Deus
sabe que nunca ensinei a ninguém nada mais verdadeiro,
e acredito que sois dignos disso”. Esta prática de atribuir
significado aos números é conhecida como gematria.

75
As outras interpretações de barnabé são um pouco
forçadas. Por exemplo, ele disse que aquela frase de
Salmos 1.3, “Ele é como árvore plantada junto a corrente
de águas”, fala do batismo e da cruz. O fato de a
folhagem não murchar indica que o justo haverá de trazer
provisões e esperança para muitas pessoas.

A partir do exemplo desses pais da igreja primitiva, fica


evidenciado que, apesar do fato de terem tido um bom
começo, logo foram influenciados pela alegorizarão.
Mesmo assim, entendiam que o Antigo Testamento
continha muitos tipos que falavam de Jesus Cristo.

Justino Mártir (c. 100-164) fazia muitas citações das


Escrituras em suas obras, quase sempre com o objetivo
de mostrar que o Antigo Testamento prenunciava Cristo.
Justino afirmava que Lia representava os judeus,Raquel
simboliza a igreja e Jacó é Cristo, que serve a ambos. A
atitude de Arão e Hur de sustentar as mãosde Moisés
simboliza a cruz. Justino afirmava que o Antigo
Testamento era pertinente, aos cristãos, mas essa
pertinência, dizia ele, era percebida por meio da
alegorizarão.

76
Em seu Diálogo com Trífon, ele contestou Marcião,
escritor da época da igreja primitiva que não aceita o
Antigo Testamento e acreditava que este não tinha a
menor

aplicabilidade para os cristãos modernos. Marcião


sustentava que nem a alegorizarão conseguia tornar-lhe
aplicável.
Ireneu morou em Esmirna (hoje parte da Turquia) e em
Lião (hoje na França). Ele viveu de 130 a 202
aproximadamente. Contrapondo-se aos gnósticos e às
suas interpretações fantasiosas, Ireneu ressaltou, emsua
obra Contra Heresias, que a Bíblia deve ser entendida de
acordo com seu sentido óbvio, verdadeiro. Fazendo
frente a outros hereges, como os valentinianos e os
seguidores de Marcião, que rejeitavam o Antigo
Testamento, Ireneu frisou que este é aceitável para os
cristãos porque está repleto de tipos. Em certos casos,
entretanto, a tipologia por ele desenvolvida chegava às
raias da alegoria. Ele afirmou, por exemplo, que os três
espias (e não dois!) que Raabe escondeurepresentavam
Deus Pai, Deus Folho e Deus Espírito Santo. Nos cinco
volumes de sua obra A Refutação da Falsa Gnose, ele
acusa seus adversários de cometerem

77
dois erros. Primeiro, eles deixaram de lado a ordem e o
contexto das passagens bíblicas, tomando passagens e
palavras isoladas e interpretando-as tendo em mente
suas próprias teorias. Segundo, acusou os valentinianos
de interpretarem passagens claras, evidentes, pelo
prisma da obscuridade. Ireneu assinalou que uma
afirmação ambígua nas Escrituras não deve ser
explicada a partir de outra afirmação ambígua.

Em seu entender, o único método correto de


interpretação é o da fé, preservada nas igrejas mediante
a sucessão apostólica. Ele costumava apelar para a
tradição, dizendo que a exposição autêntica das
Escrituras precisava ser aprendida com os anciãos, que
podiam considerar-se participantes da sucessão
apostólica.

Tertuliano de Cartago (c. 160-200) afirmou que as


Escrituras são propriedade da igreja. A solução para a
heresia é “a regra de fé”, ou seja, os ensinamentos
ortodoxos sustentados pela igreja. Tertuliano acreditava
que as passagens bíblicas tinham de ser vistas de acordo
com o sentido original, interpretadas segundo o contexto
em que

78
foram enunciadas ou escritas. Contudo, à semelhança do
que ocorreu com Ireneu, sua tipologia beirou a
alegorização. O quadro de Gênesis 1.2, do Espírito
pairando sobre as águas, simboliza o batismo, e Cristo
estava ensinando por meio de símbolos quando disse a
Pedro que embainhasse a espada.

Tertuliano reprova os gnósticos por sua alegorização, no


entanto recorria a esse estilo sempre que lhe convinha.
Os 12 apóstolos são simbolizados pelas 12 fontes de
águas de Elim, pelas 12 pedras preciosas que o
sacerdote levava no peitoral e pelas 12 pedras tiradas do
rio Jordão.

Podemos fazer três observações sobre esses três


apologistas: Justino, Ireneu e Tertuliano: O estilo
alegórico assumiu um caráter apologético, da mesma
forma que sucedera no caso dos filósofos gregos e dos
judeus alexandrinos. Tais homens achavam que os
problemas do Antigo Testamento eram prontamente
resolvidos pela alegorização. A tipologia logo pendeu
para a alegorização. A autoridade da igreja foi usada para
combater as heresias. Sem saber, esses

79
apologistas acabaram abrindo caminho para que a
tradição da igreja ganhasse maior autoridade, e essa
perspectiva predominou durante séculos na IdadeMédia.

5. Os Pais Alexandrinos e Antioquinos

Duas escolas de pensamento surgiram cerca de 200


anos depois de Cristo. Eram escolas de concepções
hermenêuticas que tiveram forte impacto sobre a igreja
nos séculos posteriores.

6. Os Pais Alexandrinos

Panteno, falecido por volta de 190, é o mais antigomestre


da Escola Catequética de Alexandria, no Egito, de que se
tem noticia. Ele foi professor de Clemente (não confundi-
lo com Clemente de Roma, mencionado anteriormente).

Não é de admirar que Clemente (155-216), morador de


Alexandria, tivesse sido influenciado pelo alegorista
judeu Filo. Clemente ensinava que todas as Escrituras
utilizam uma linguagem simbólica misteriosa. Um dos

80
motivos disso é que servia para despertar a curiosidade
dos leitores, e outro erra que as Escrituras não deviam
ser entendidas por todos.
Clemente afirmou que qualquer passagem da Bíblia pode
ter cinco significados: a) histórico (as histórias bíblicas);
b) doutrinário, com ensinamentos morais e teológicos;
c) profético, que inclui tipos e profecias; d) filosófico
(alegorias com personagens históricas, como Sara, que
simbolizava a verdadeira sabedoria, e Hagar, que
representava a filosofia e pagã); e) místico (verdades
morais e espirituais).
Em sua excessiva alegorização, Clemente ensinava que
as proibições mosaicas de comer porco, falcão, águia e
corvo (Lv. 11.7, 13-19) representavam respectivamente
a ânsia impura pela comida, a injustiça, o roubo e a
cobiça. No episódio em que 5 000 pessoas foram
alimentadas (Lc. 9.10- 17), os dois peixes simbolizam a
filosofia grega (As Miscelâneas, 6.11).
Orígenes (c. 185-254) era homem muito culto e de
grande magnetismo. Abordar das Escrituras, elaborou
os Hexapla – obra em que o texto hebraico e mais cinco
versões gregas do Antigo Testamento ficavam dispostos
em seis colunas paralelas. Esse trabalho imensurável

81
consumiu cerca de 28 anos. Ele escreveu uma série de
comentários e homilias sobre grande parte da Bíblia, e
também redigiu vários trabalhos apologéticos, entre eles
Contra Celso e De Principiis. Neste último, ressaltouque,
como a Bíblia está de enigmas, parábolas,afirmações de
sentido obscuro e problemas morais, o sentido só pode
ser encontrado num nível mais profundo. Esses
problemas incluem a existência de dias em Gênesis 1
antes de o Sol e a Lua terem sido criados,o fato de Deus
caminhar pelo jardim do Éden, outros antropomorfismos
como a face de Deus e problemas morais como a incesto
de Ló, a poligamia de Jacó e a sedução de

Judá por Tamar, entre outros. Valendo-se de suas


alegorias, Orígenes rebateu prontamente estas e outras
questões que os inimigos do Evangelho usavam para
atacar o cristianismo. Alias, ele afirmou que as próprias
Escritas exigem que o intérprete empregue o método
alegórico (De Principiis, 4.2.49; 4.3.1). Ele via um sentido
triplo nos textos bíblicos: literal, moral e
espiritual/alegórico. Tal concepção estava
fundamentada na tradução da Septuaginta de Provérbios
22.20, 21: “Registra-as três vezes […] para

82
que possas responder com palavras de verdade”. Esse
sentido triplo também é sugerido em 1 Tessalonicenses
5.23 pelo corpo (literal), pela alma (mortal) e pelo espírito
(alegórico). Na realidade ele costumava enfatizar só dois
sentidos: o literal e o espiritual (a “letra” e o “espírito”).
Todos os textos bíblicos tem significado espiritual,
afirmava, mas nem todos possuem significadoliteral.

Mediante a alegorizarão, Orígenes ensinava que arca


de Noé simbolizava a igreja e que Noé simbolizava
Cristo. O episódio em que Rebeca tirou água do poço
para os servos de Abraão significa que devemos recorrer
diariamente às Escrituras para ter um encontro com
Cristo. Na entrada triunfal de Jesus, a jumenta
representava o Antigo Testamento, o jumentinho o Novo
Testamento e os dois apóstolos os aspectos moral e
místico das Escrituras.
Orígenes desconsiderou a tal ponto o sentido literal e
normal das Escrituras, que seu estilo alegórico passou a
ser caracterizado por um exagero incomum. Como disse
certo autor, era “fantasia desmedida”.

83
7. Os Pais Antioquinos

Percebendo o crescente abandono do sentido literal das


Escrituras por parte dos pais alexandrinos, vários lideres
da

igreja em Antioquia da Síria sublinharam a interpretação


histórica, literal. Eles incentivaram o estudo das línguas
bíblicas originais (hebraico e grego) e redigiram
comentários sobre as Escrituras. O elo entre o Antigo e
Novo Testamento era a tipologia e as profecias em vez
da alegorização. Para eles, a interpretação literal incluía
a linguagem figurada.

Doroteu, com seus ensinamentos, ajudou a abrir caminho


para a instituição da escola em Antioquia da Síria.
Luciano (c.240-312) foi o fundador da escola antioquina.

Diodoro, também da escola antioquina, elaborou a obra


Que Diferença Há entre Teoria e Alegoria?. Ele
empregou a palavra teoria em referência ao sentido
autêntico do texto que, conforme disse, contem tanto

84
metáforas quanto afirmações explícitas. Foi ele o mestre
de dois outros pais antioquinos famosos: Teodoro da
Mopsuéstia e João Crisóstomo. Conta-se que Teodoro da
Mopsuéstia foi o maior intérprete da Escola de Antioquia.
No último de seus cinco livros, Da Alegoria e História
Contra Orígenes, ele pergunta: “Se Adão não era de fato
Adão, como a morte foi introduzida na raça humana?”.
Apesar de Teodoro contestar a canonicidade de vários
livros da Bíblia, é conhecido como o príncipe da exegese
primitiva. Gilbert escreveu: “O comentário de Teodoro
[de Mapsuéstia] sobre as epístolas menoresde Paulo é o
primeiro e praticamente o último trabalho exegético
elaborado na igreja primitiva a ter qualquer semelhança
com os comentários modernos”.

João Crisóstomo (c. 354-407) era arcebispo de


Constantinopla. Suas mais de 600 homilias – que
consistem em discursos expositivos de aplicação prática
– levaram certo autor a afirmar: “Crisóstomo é
indubitavelmente o maior comentarista dentre os
primeiros pais da igreja”. Suas obras contêm cerca de 7
000 citações do Antigo Testamento e em torno de 11
000 do Novo.

85
Teodoreto (386-458) escreveu comentários sobre a
maioria dos livros do Antigo Testamento e sobre as
epístolas

de Paulo. Seus comentários, segundo Terry, “encontram-


se entre os melhores exemplares da exegese primitiva”.

8. Os Pais da Igreja Dos Séculos V e VI

Sete nomes destacam-se entre os pais da igreja dos


séculos V e VI, em bora Jerônimo e Agostinho sejam os
mais conhecidos.

Jerônimo (c. 347-419) começou adotando a alegorizarão


de Orígenes. Sua primeira obra exegética, Comentário
sobre Obadias, foi alegórica. Posteriormente, porém,
assumiu um estilo mais literal, depois de ter sido
influenciado pela escola antioquina e pelos mestres
judeus. O último comentário que escreveu foi sobre
Jeremias e seguia a linha literal. Mas ele acreditava que
um sentido mais profundo das Escrituras poderia ser
desvendado a partir do sentido literal. Ou, quando este

86
não era nada edificante, ele o descartava. Foi por isso
que alegorizou a história de Judá e Tamar (Gn. 38).
Depois de muito viajar, fixou-se em Belém, em 386 d.C.
Em clausura, escreveu comentários sobre a maioria dos
livros da Bíblia e traduziu-a para o latim. Essa tradução
– a Vulgata
– foi sem sombra de dúvida sua maior obra.
Como já foi dito, Tertuliano ajudou a abrir o caminho para
a autoridade e para a tradição da igreja. Vicente, que
faleceu antes de 450, adotou esse destaque e conferiu-
lhe uma clareza ainda maior. Em seu Commonitorium
(4343 d.C.), ele diz que as Escrituras conheceram sua
exposição definitiva na igreja primitiva. “A linha de
interpretação dos profetas e apóstolos precisa seguir a
norma dos sentidos eclesiásticos e católico”. A referida
“norma” incluía as decisões dosconselhos eclesiásticos e
as interpretações dos pais. Sua autoridade hermenêutica
era: “O que sempre foi crido por todos, em toda a parte”.
Assim sendo, os três testes para verificar o sentido de
uma passagem baseavam-se na universalidade, na
idade do texto e no bom senso.

87
Agostinho (354-430) foi um teólogo proeminente que
exerceu grande influência na igreja durante séculos. No
início era maniqueísta. O movimento maniqueísta, que
começou no século III d.C., desmerecia o cristianismo
ressaltando os antropomorfismos absurdos do Antigo
Testamento. Essa perspectiva dificultava seu
entendimento do Antigo Testamento. A tensão foi
resolvida, no entanto, quando ele ouviu Ambrósio na
catedral de Milão, na Itália. Ambrósio tinha o hábito de
citar 2 Coríntios 3.6: “…a letra mata, mas o Espírito
vivifica”. Foi assim que Agostinho adotou o estilo
alegórico como forma de solucionar os problemas do
Antigo Testamento.

Em sua obra De Doutrina Christiana, escrita em 397, ele


salienta a forma de descobrir se uma passagem tem
sentido alegórico (e a maneira de se resolverem
problemas de exegese) é consultar “a regra da fé”, ou
seja, o ensinamento da igreja e da própria Escritura.
Contudo, nessa mesma obra Agostinho desenvolveu o
princípio da “alegoria da fé”, segundo o qual nenhuma
das Escrituras. No terceiro volume de De Doctrina
Christiana, ele apresenta sete regras de interpretação,

88
mediante as quais procura criar um fundamento racional
para a alegorização. São elas:
“O Senhor e seu corpo”. As referências a Cristo quase
sempre também se aplicam a seu corpo, a igreja.
“A divisão em dois feita pelo Senhor ou mistura que
existe na igreja”. A igreja pode conter tanto hipócritas
quanto cristãos genuínos, representados pelos peixes
bons e maus apanhados na rede (Mt. 13.47,48).
“Promessas e a lei”. Algumas passagens estão
relacionadas com a graça e outras com a lei; algumas
ao Espírito, outras à letra; algumas às obras, outras à fé.
“Espécie e gênero”. Certas passagens dizem respeito às
partes (espécie), enquanto outras referem-se ao todo
(gênero). Os cristãos israelitas, por exemplo, são uma
espécie uma espécie (uma parte) dentro de um gênero,
a igreja, que é o Israel espiritual.

“Tempos”. Discrepâncias aparentes podem ser


resolvidas inserindo uma afirmação em outra. Por
exemplo, a versão de um dos evangelhos de que a
Transfiguração ocorreu seis dias após o episódio em
Cesárea de Felipe insere-se dentro da versão de outro
evangelho, que registra oito dias. E o significado dos

89
números quase nunca é o matemático exato, mas sim o
de ordem de grandeza.
“Recapitulação”. Algumas passagens difíceis podem ser
explicadas quando vistas como referindo-se a um relato
anterior. O segundo relato sobre a Criação, e Gênesis 2,
é entendido como uma recapitulação do primeiro relato,
em Gênesis 1, não como uma contradição a ele.
“O diabo e seu corpo”. Algumas passagens que falam
do diabo, como Isaías 14, estão mais relacionadas a
seu corpo, isto é, a seus seguidores.

Segundo o sistema de interpretação bíblica de Agostinho,


o grande teste para saber se uma passagem tem sentido
alegórico é o do amor. Se a interpretação literal indica
dissensão, o texto deve ser alegorizado. Elesalientou que
a função do expositor é desvendar o sentido das
Escrituras, e não lhes atribuir sentido. Mas ele incorreu
justamente no erro que contestava, poisafirmou que “o
texto bíblico possui mais de um sentido,o que justifica o
método alegórico”. O sistema de alegorização de
Agostinho ensinava que os quatro rios de Gênesis 2.10-
14 eram quatro virtudes fundamentaise que, no episódio
da Queda, as folhas de figueira representavam a
hipocrisia e o cobrir a carne, a

90
mortalidade (3.7, 21). A embriaguez de Noé (Gn. 9.20-
23) simbolizava o sofrimento e a morte de Cristo. Os
dentes da sulamita, em Cantares 4.2, simbolizavam a
igreja “arrancando os homens da heresia”.
João Cassiano (c. 360-435) era um monge da Cítia (a
atual Romênia). Ele pregava que a Bíblia tinha um
sentido quádruplo: histórico, alegórico, tropológico e
anagógico. Com “tropológico”, ele se referia ao sentido
moral. O termo grego tropē, que significa “desvio”, indica
que uma palavra adquire sentido moral. Com“anagógico”,
referia-se a um significado

oculto, celestial, do grego anagein, que se traduz por


“fazer subir”.
Cassino compôs a cantiga de quatro versos que se
tornou famosa ao longo de toda a Idade Média:
Segundo esse método, Jerusalém pode ter quatro
significados: historicamente, a cidade dos Judeus;
alegoricamente, a igreja de Cristo; tropologicamente (ou
moralmente), a alma humana anagogicamente, a cidade
celestial.

Euquério de Lião, que morreu por volta de 450, tentou


provar em seu livro As regras da Interpretação Alegórica

91
a presença de linguagem simbólica nas Escrituras. Ele
defendia seu modo de ver argumentando que, da mesma
forma que não se jogam pérolas aos porcos, as verdades
bíblicas são verdades às pessoas não- espirituais.
Portanto, os antropomorfismos auxiliam os leigos, mas
existem outros indivíduos que consegue enxergar além,
percebendo os significados mais profundos das
Escrituras. Mas além, percebendo os significados mais
profundos das Escrituras. Mas Euquério também
percebia nas Escrituras uma“discussão histórica”, isto é,
um sentido literal.

Adriano de Antioquia elaborou um manual de


interpretação chamado Introdução às Sagradas
Escrituras, por volta de 425
d.C. Nesse trabalho, ele afirma que os antropomorfismos
não devem ser interpretados ao pe da letra. Tratou
também de expressões metafóricas e estilos de retórica.
Ressaltou que o literalismo é umprocesso primário e que
os intérpretes da Bíblia precisam transcender o
entendimento literal para atingirem os significados mais
profundos.
Junílio redigiu um manual de interpretação intitulado As
regras da Lei Divina, em 550 aproximadamente. Ele

92
afirmou que a fé e a razão não são pólos opostos. À
semelhança de Adriano, declarou que a interpretação da
Bíblia deve partir da análise gramatical, mas não pode
limitar-se a ela.
Ele via quatro espécies de tipos nas Escrituras, as quais
podem ser ilustradas com os seguintes exemplos: a

ressurreição de Cristo é um alegre tipo de nossa alegre


ascensão futura; triste queda de Satanás é tipo da nossa
triste queda; a triste queda de Adão é tipo (por contraste)
da alegre justiça de nosso Salvador e a alegria do
batismo é tipo da tristeza d morte do Senhor.
A partir do exemplo desses pais da igreja do séculos V e
VI, fica evidente que Jerônimo, Vicente e Agostinho
abriram caminho para as duas tendências que haveriam
de durar mais de mil anos; a alegorização e a autoridade
da igreja. Cassiano, Euquério, Adriano e Junílio
apoiaram-se no método alegórico de Agostinho,
fortalecendo assim tal método de interpretação bíblica
para que pudesse durante os séculos seguintes da Idade
Média.

9. A Idade Média

93
“A Idade Média foi um deserto vasto tocante à
interpretação bíblica”. “Não houve concepções novas e
criativas acerca das Escrituras”. A tradição da igreja
ocupava lugar de relevo, juntamente com a alegorização
das Escrituras.

Na Idade Média, era comum o emprego de


encadeamentos – cadeias de interpretações formadas a
partir dos comentários dos pais da igreja. A maior parte
dos encadeamentos medievais estava baseada nos pais
latinos Ambrósio, Hilário, Agostinho e Jerônimo.

Normalmente, o início da Idade Média é associado a


Gregório, o Grande (540-604). Que foi o primeiro papa da
igreja Católica Romana. Ele fundamentava suas
interpretações da Bíblia nos pais da igreja. Não é de
surpreender que tenha defendido a alegorização nos
seguintes termos: “Que são palavras da verdade se não
fizermos delas alimento para a alma? […] A alegoria
equipa a alma que está longe de Deus, alçando-a até ele”
(Exposição Sobre Cantares). Velamos alguns exemplos
de sua alegorização: no livro de Jó, os três amigos são
os hereges, os sete filhos de Jó são os 12

94
apóstolos, as 7000 ovelhas são pensamentos inocentes,
os 3 000 camelos são as

concepções vãs, as 500 juntas de bois são virtudes e os


500 jumentos são tendências lascivas.

Beda, o Venerável (673-734) teólogo anglo-saxão,


escreveu comentários que, em grande parte, eram
compilações dos trabalhos de Ambrósio, Basílio e
Agostinho; além disso, tinham forte caráter alegórico.
Segundo o entender de Beda, na parábola do filho
pródigo, o filho representava a filosofia mundana, o pai
simbolizava Cristo e a casa do pai era a igreja.
Alcuíno (735-804), de Iorque, na Inglaterra, também
adotou o sistema alegórico. No comentário que elaborou
sobre João, ele seguiu os passos de Beda e reuniu os
comentários de Agostinho e Ambrósio, entre outros.
Rabano Mauro foi aluno de Alcuíno e redigiu comentários
sobre todos os livros da Bíblia. Valendo-se da
alegorização, escreveu que as quatro rodas da visão de
Ezequiel representavam a lei, os profetas, os evangelhos
e os apóstolos. O significado histórico da Bíblia é leite, o
alegórico é pão, o anagógico é alimento saboroso e
tropológico é vinho que alegra.

95
Rashi (1040-1105) foi um literalista judeu da Idade Média
que exerceu grande influência sobre as interpretações
judaica e cristã, dada a ênfase que colocava na gramática
e na sintaxe do hebraico. Ele elaborou comentários sobre
o Antigo Testamento inteiro,à exceção de Jó e Crônicas.
Afirmou que “o sentido literal precisa ser conservado, a
despeito de como passa afetar o sentido tradicional”. A
denominação “Rashi” foi tirada das primeiras letras de
seu nome: Rabino Shilomo [Salomão] bar [filho de]
Isaque.
Três autores da Abadia de São Vitor, em Paris,
adquiriram o mesmo interesse de Rashi pelo aspecto
histórico e literal das Escrituras foi uma luz brilhante na
Idade Média. André discordava de Jerônimo, que
afirmava que a primeira parte de Jeremias 1.5 falava de
Jeremias, mas a última parte do versículo falava dePaulo.
André disse: “Que tem isso que ver co Paulo?”. Ricardo,
por sua vez,

preocupou-se mais com o aspecto místico da Bíblia do


que os outros dois.
Bernardo de Claraval (1090-1153) foi um monge
proeminente que elaborou inúmeros trabalhos, dentre os

96
quais figuram 86 sermões apenas sobre os doisprimeiros
capítulos de Cantares! Sua forma de interpretar a Bíblia
caracterizava-se por uma alegorização e um misticismo
exagerados. Um exemplo disso é que as virgens de
Cantares

1.3 eram anjos, e as duas espadas em Lucas 22.38


representavam os aspectos espiritual (o clero) e material
(imperador).

Joaquim de Flora (1132-1202), monge beneditino,


escreveu que a época desde a Criação até Cristo foi a
era de Deus Pai, que a segunda era (de Cristo até o ano
1260) foi a de Deus Filho, representada pelo Novo
Testamento, e que a era futura (a começar em 1260)
seria a do Espírito Santo. Joaquim também escreveu uma
harmonia dos evangelhos e elaborou comentários sobre
diversos profetas.

Stephen Langton (c. 1155-1228), arcebispo da Cantúria,


sustentava que a interpretação espiritual é superior à
literal. Assim sendo, no livro de Rute, o campo simboliza
a Bíblia, Rute representa os estudantes e os ceifeiros

97
são os mestres. Foi langton quem dividiu a Vulgata em
capítulos.
Tomás de Aquino (1225-1274) foi o teólogo mais famoso
da Igreja Católica Romana da Idade Média. Ele
acreditava que o sentido literal das Escrituras era
fundamental, ma que os outros sentidos apoiavam-se
sobre este. Como a Bíblia tem um Autor divino (bem
como autores humanos), ela tem um lado espiritual. “O
sentido literal é o que o autor pretende transmitir, mas,
como o Autor é Deus, podemos esperar encontrar na
Bíblia um manancial de significados. […] O Autor das
Sagras Escrituras é Deus, que tem o poder deexpressar
o que quer dizer não apenas por meio de palavras (como
também o homem pode fazer), mas também por meio de
elementos. […] Esse significado, que confere sentido aos
próprios elementos representados pelas palavras, é
chamado

de sentido espiritual, que por sua vez se apóia no literal


e o pressupõe” (Summa Theologica, I. 1.10). Aquino
também considerava os sentidos histórico, alegórico,
tropológico e anagógico.

98
Nicolau de Lira (1279-1340) foi figura de relevo na Idade
Média por ter sido o elo entre as trevas daquela era a
luz da Reforma. Em seus comentários sobre o Antigo
Testamento, ele rejeitou a Vulgata e retornou para o
hebraico, mas não conhecia grego. Lutero sofreu forte
influência de Nicolau.
Apesar de Nicolau aceitar o sentido quádruplo das
Escrituras, tão comum na Idade Média, pouca
importância lhe dava, enfatizando o aspecto literal. Neste
sentido, foi intensamente influenciado por Rashi.
João Wycliffe (c. 1330-1384) foi um extraordinário
reformador e teólogo, que acentuava fortemente a
legitimidade das Escrituras como fonte de doutrinas e de
vida cristã. Portanto, contestava a posição tradicional da
Igreja Católica. Ele propôs várias regras de interpretação
bíblica: a) consiga um texto confiável; b) entenda a lógica
da Escrituras;
c) compare os trechos da Bíblia entre si; d) mantenha
uma atitude humilde, de busca, para que o Espírito Santo
possa ensiná-lo. Sublinhando a interpretaçao gramatical
e histórica das Escrituras, Wycliffe escreveu que “tudo o
que é necessário na Bíblia está contido em seus devidos
sentidos literal e histórico”. Ele foi o

99
primeiro tradutor inglês da Bíblia. É chamado de “a
estrela-d’alva da Reforma”.

10. A Reforma

Durante a Reforma, a Bíblia passou a ser a única fonte


legítima a nortear a fé e a prática. Os reformadores
basearam-se no método literal da escola antioquina e dos
vitorinos. A Reforma foi uma época de distúrbios sociais
e eclesiásticos, mas, como destacou Ramm, foi
essencialmente uma reforma hermenêutica, umareforma
da maneira de ver a Bíblia.

A renascença, que iniciou no século XIV na Itália einvadiu


o século XVII, constituiu no reavivamento do interesse
pela literatura clássica, até mesmo pelo hebraico e pelo
grego. Johannes Ruchiln escreveu diversos livros sobre
a gramática hebraica, entre eles Interpretaçao Gramatical
dos Sete Salmo Penitenciais. Desidério Erasmo,
humanista proeminente da Renascença, revisou o
público, em 1516, a primeiraedição do Novo Testamento
grego. Foi também ele que escreveu e publicou
Anotações sobre o Novo Testamento, além de
paráfrases de todo o Novo

100
Testamento, com exceção de Apocalipse. “Essas
publicações inauguraram uma nova era de aprendizado
bíblico e muito contribuíram para suplantar o
escolasticismo das eras anteriores com melhores
métodos de estudo teológico”.
Martinho Lutero (1438-1546) escreveu: “Quando monge,
eu era perito em alegorias. Eu alegorizava tudo, depois
de fazer preleções sobre a Epístola aos Romanos, passei
a conhecer a Cristo. Foi assim que percebi que ele não é
nenhuma alegoria e aprendi a saber o que Cristo
realmente é”.
Lutero denunciou energicamente o método alegórico de
interpretaçao das Escrituras. “Alegorias são
especulações vãs, são como que a escória das Escrituras
Sagradas”.Até a imundícia vale mais que as alegorias de
Orígenes”. “Alegorizar é manipular o texto bíblico”.
“Alegorização pode degenerar em mera fraude”. “As
alegorias são coisas estranhas, absurdas, fantasiosas e
obsoletas que não valem um centavo”.
Lutero rejeitou o sentido quádruplo das Escrituras, que
predominam na Idade Média, e ressaltou o sentido literal
(sensus literalis) da Bíblia . Ele disse que as escrituras
“devem ser mantidas em seu significado mais simples
possível e entendidas de acordo com seu sentido

101
gramatical e literal, a menos que o contexto claramente
o impeça”. A importância que dava ao aspecto literal
levou-o a elevar os idiomas originais das Escrituras.“Sem
os idiomas, não

preservaremos o evangelho por muito tempo. Eles são a


bainha onde a espada do Espírito fica guardada”. Mas o
estudante da Bíblia declarou Lutero, precisa ser mais do
que um filólogo. Precisa ser iluminado pelo Espírito
Santo. Além disso, a abordagem gramatical e histórica
não é um fim em si mesma; seu objetivo é conduzir-nos
a Cristo.
À semelhança de Agostinho, Lutero afirma, em sua obra
Analogia Scripturae [Analogia da Fé] que as passagens
obscuras devem ser entendidas com base nas de sentido
nítido. “O texto bíblico interpretar a si próprio”, costumava
dizer. “Esse é o verdadeiro método de interpretação, que
compara passagem bíblica com passagem bíblica da
forma certa, adequada”.
Na opinião de Lutero, qualquer cristão devoto pode
entender a Biblia. “Não existe na terra livro mais
translúcido que as Sagradas Escrituras” (Exposição do
salmo 37). Com tal ênfase, ele estava contrapondo-se à

102
dependência que as pessoas comuns tinham da Igreja
Católica Romana.
Embora Lutero fosse inimigo ferrenho da alegorização
das Escrituras, vez por outra ele também empregava
esse estilo. Ele afirmou, por exemplo, que a arca de Noé
era uma alegoria da igreja.
Para ele, a interpretação bíblica deve estar centrada em
Cristo. Em vez de alegorizar o Antigo Testamento, com
freqüência Lutero via nele a figura de Cristo, muitasvezes
além do que legitimamente permite uma interpretação
correta.
O fato de Lutero ter rejeitado a alegorização das
Escrituras causou uma revolução. O estilo alegórico
estivera arraigado na igreja havia séculos. Embora
tivesse sido fruto da tentativa de solucionar a questão dos
antropomorfismos e supostas imoralidades da Bíblia,
esse estilo continha inúmeros problemas. A alegorização
passa a ser arbitrária. É um processo que carece de
objetividade e que não refreia a imaginação. Ela encobre
o verdadeiro sentido dos textos bíblicos.
Sua mensagem não se impõe, pois alguém pode

dizer que certa passagem ensina determinada verdade


em termos alegóricos, ao passo que outra pessoa é

103
capaz de enxergar um significado completamente
diferente. É uma forma de despojar as Escrituras de
qualquer autoridade. “A Bíblia analisa pelo prisma
alegórico torna-se massa de modelar nas mãos do
exegeta”. A alegorização também pode provocar orgulho
quando alguns procuram enxergar nasEscrituras o que
pensam ser um sentido espiritual, místico, mais
“profundo” do que aquele visto pelos outros.
Mas o apóstolo Paulo não fez uso da alegorização? Ele
escreveu, em Gálatas 4.24-26; “Estas cousas alegóricas:
porque estas mulheres são duas alianças: uma, na
verdade, se refere ao monte Sinai, que gera para
escravidão; esta é Hagar é o monte Sinai na Arábia, e
corresponde à Jerusalém atual que está em escravidão
com seus filhos. Mas a Jerusalém lá de cimaé livre, a qual
é nossa mãe…”. Existe, porém, uma diferença entre a
interpretação de alegorias assim chamados na Biblia, e
a alegorização da maior partedas Escrituras. Quando
Paulo utiliza alegorias em Gálatas 4, ele deixa claro o que
está fazendo, como acontece com os outros autores
bíblicos que empregam esse estilo. O apóstolo escreveu
literalmente: “Estas cousas são alegóricas…”. Ele
empregou o verbo

104
allēgorēo, que significa “dar a entender um sentido
diferente do que é expresso pelas palavras”. É um
complemento, não um substituto do sentido claro,
gramatical das palavras. A tabela abaixo assinala as
diferenças entre o método alegórico de interpretação, que
predominou durante séculos na igreja, e a forma como
Paulo utiliza uma alegoria.
O apóstolo utilizou a alegorizarão como forma de
ilustração ou analogia, para destacar que certos fatos
relativos a Hagar estão associados aos não-cristãos e
que certos fatos relativos a Sara estão associados aos
cristãos.
Philip Melanchthon (1497-1560), companheiro de
Lutero, era profundo conhecedor do hebraico e do grego.
Esse conhecimento, aliado a “seu caráter judicioso e à
prudência de seu método de trabalho, possibilitou que
ocupasse uma

posição de relevo na exegese bíblica”. Apesar de às


vezes recair na alegorização, no cômputo geral ele
também seguia o método gramatical e histórico.
João Calvino (1509-1564) é chamado de “um dos
maiores intérpretes da Bíblia”. Como Lutero, Calvino
rejeitava as interpretações alegóricas. Declarou que

105
eram “jogos fúteis” e que Orígenes e muitos outros eram
culpados de “desfigura as Escrituras em todos os
sentidos possíveis, destituindo-as do sentido original”.
Calvino ressaltava a natureza cristológica dos textos
bíblicos, o método gramático e histórico, a exegese em
vez de eisegese (deixar o texto falar por si mesmo, e
não ler o que ele não diz), o ministério esclarecedor do
Espírito Santo e um tratamento equilibrado da tipologia.
Da mesma forma que Lutero, Calvino frisava que “o
texto bíblico interpreta a si mesmo”.

Assim sendo, deu extrema importância à exegese


gramatical é a necessidade de examinar o contexto de
cada passagem. Embora seja mais famoso por suas
teologias (delineada nos dois volumes da obra Institutas
da Religião Cristã), ele fez comentários sobre todos os
livros da Bíblia, com exceção de 14 do Antigo Testamento
e três do Novo. São eles: Juizes, Rute, 1 e2 Samuel, 1
e 2 Reis, 1 e 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Éster,
Provérbios, Eclesiastes, Cantares, 2 e 3 João e
Apocalipse.

No prefácio de seu comentário sobre Romanos, Calvino


escreveu que “a primeira preocupação do intérprete é

106
deixar o autor dizer o que realmente diz, em vez de
atribui-lhe o que achamos que ele deveria dizer”. Calvino
conhecia profundamente as Escrituras, o que fica
evidente no fato de que suas Institutas continham 1 755
citações do Antigo Testamento e 3 098 do Novo.
Ulrich Zuínglio (1484-1531) foi o cabeça da Reforma em
Zurique, enquanto Calvino o foi em Genebra. Tendo
cortado os laços com o catolicismo romano, pregava
sermões expositivos, muitos dos quais sobre os
evangelhos. Ele repudiava a autoridade da igreja e
escreveu que “todos

aqueles que afirmam que o evangelho de nada vale sem


a aprovação da igreja estão incorretos num erro e
desacreditando Deus” (Sessenta e Sete Teses).
Zuínglio salientava a importância de interpretar
passagens bíblicas tendo em mente seus contextos.
Remover um texto de seu contexto “é como separa uma
flor da raiz”. Ao abordar o papel do ministério
esclarecedor do Espírito Santo, ele declarou que “a
certeza vem pelo poder e pela nitidez da atuação criadora
de Deus e do Espírito Santo”.

107
William Tyndale (c. 1494-1536) é famoso por sua
tradução do Novo Testamento para o inglês, em 1525.
ele também traduziu o Pentateuco e o livro de Jonas.
Tyndale era outro que defendia o sentido literal da Bíblia.
“As Escrituras têm apenas um sentido, que é o literal”.

O movimento anabatista começou em 1525 em Zurique,


na Suíça, com os seguidores de Zuínglo. Estes achavam
que ele não cortara de vez os laços com o catolicismo no
tocante às questões do controle da igreja por parte do
Estado e do batismo de crianças. Os três “pais
fundadores” do movimento anabatista foram Conrad
Grebel, Felix Mantz e Georg Blaurock. Dentre outros
líderes famosos figuram: Balthasar Hubmaier, Michael
Sattler, Pilgram Marpeck e Menno Simons. Os menonitas
de hoje recebem esse nome graças a MennoSimons.

Os anabatistas acreditavam que, se uma pessoa tivesse


sido batizada quando bebê pela igreja reformada
(zungliana) e depois de adulta aceitasse Cristo, deveria
ser batizada. Foi por isso que seus inimigos nos
apelidaram de “anabatistas”, que significa

108
“rebatizadores”. Os primeiros líderes na Suíça
autodenominavam-se “irmãos suíços”. Eles também
ressaltavam a importância de cada um interpretar as
Escrituras com o auxílio do Espírito Santo, a primazia do
Novo Testamento sobre o Antigo, a separação entre a
igreja e o Estado e a disciplina e a disposição fiéis de
sofrer pelo nome de Cristo. Preocupavam-se
intensamente com a necessidade de uma igreja
neotestamentária pura, uma

lealdade à Bíblia e uma via de humildade, pureza,


disciplina e obediência a Cristo.
Em resposta à Reforma protestante, a Igreja Católica
Romana convocou o Concílio de Trento, que se reuniu
várias vezes de 1545 a 1563. As reformas empreendidas
na Igreja Católica ficaram conhecidas como Contra-
Reforma. Esse Concílio declarou que a Bíblia não é a
autoridade suprema, mas que a verdade se encontra “em
livros escritos e em tradições não- escritas”. Essas
tradições incluem os pais da igreja da antiguidade e os
líderes da igreja de hoje.
O Concílio afirmou anda que uma interpretação precisa
só se torna possível por meio da Igreja Católica Romana
– a fornecedora e guardiã da Bíblia – e não mediante

109
indivíduos. Nele se registraram as seguintes palavras:
“Ninguém, apoiando-se na própria capacidade, poderá,
‘nas questões de fé e de palavras concernentes à
edificação da doutrina cristã, distorcendo as Escrituras
Sagradas para seu próprio sentido, presumir que a
interpretará em conformidade com o que a Santa Madre
Igreja […] sustentou e sustenta; nem mesmo em
contrariedade ao que os pais estabeleceram
unanimente’”.

VII - EXEGESE – APLICAÇÃO –


HERMENÊUTICA

1. Definição Dos Conceitos

Hermenêutica é a tentativa de descrever os dois modos


de acesso ao texto cada uma para si e em sua relação
mútua e de classificá-los na perspectiva da teoria da
ciência. Esta ação envolve também a pergunta pelo êxito
ou fracasso da aplicação: visa-se também

110
investigar todos os fatores que são importantes para a
aplicação.
Apesar de seu caráter teórico, a hermenêutica (na
presente proposta) não procede de modo dedutivo, mas,
na medida do possível, de modo indutivo e
fenomenológico. Hermenêutica não é a execução da
própria aplicação, mas sua descrição científica
(demonstração da coerência e das fundamentações).
A hermenêutica atribuiu à exegese e à aplicação seus
respectivos lugares.

2. Separação Entre Exegese e Aplicação

Uma ocorrência nem tão rara: os teólogos fazem exegese


e “crítica material” num ato só e, procedendo assim,
entendem-se como teólogos tanto críticos quanto
engajados criticamente. Pode-se demonstrar isso
tomando como exemplo a mais recente história da
interpretação de 1 Co. 14.33b-36; contra toda evidência
da crítica textual “prova-se” que o trecho é um acréscimo
posterior, não paulino (o mesmo tenta-se em relação a
Rm. 13.1-7), porque não se pode ou quer julgar Paulo
capaz de afirmações tão desfavoráveis, ou antes ainda:
porque, ao que tudo indica, para os

111
teólogos, por via de regra, não existe possibilidade lógica
para julgar um autor canônico como Paulo capaz de
querer algo diferente do que eles mesmos querem e, não
obstante, ao mesmo tempo preservá-lo como autoridade
bíblica. Pois se seguimos esta

lógica, de fato teríamos de levantar a pergunta: em que


se haverá de confiar, se Paulo aqui talvez esteja se
expressando numa direção diferente Gl. 3.27s.? – Em
suma, não existe só uma apologética dosmanifestamente
conservadores, mas também um dos manifestantes
progressistas, que ousa o que é filologicamente muito
improvável para desagravar o autor canônico e, dessa
maneira, poder tanto mais desembaraçadamente tomar
conta dele com o resto dos textos que procedem dele
mesmo.

Uma atitude apologética deste tipo é mui mais “perigosa”


porque a progressividade costuma revestir-sedo manto
da racionalidade e porque operações exegéticas (ou
seja, declarar algo acréscimo ou inclusão, este último um
procedimento predileto especialmente de Rudolf
Bultmann) em si já parecemser mais razoáveis e críticas
do que a aceitação pura e

112
simples do texto. Além disso, em favor desse tipo de
exegese interesseira costuma-se apelar
despudoradamente para o “círculo do compreender”,
repetido como uma confissão, o qual não só permitia
como até mesmo exigiria tal engajamento. – Entrementes
esse tipo de mistura de exegese e interesse moral é
praticado muitas vezes também em relação a afirmações
do Novo Testamento sobre Israel, na intenção de
desagravar autores neotestamentários de afirmações
antijudaicas.

A associação apologética entre exegese e aplicaçãoque


expusemos deve-se ao respectivo desejo de, justamente
como exegeta histórico-crítico, querer ser também
teólogo (que aplica). Preservando o método histórico-
crítico, há o desejo de apresentar-se como teólogo. Com
isso, porém, não só se pretende muita coisa de uma só
vez (o exegeta é, ao mesmo tempo, o mestre abalizado
por excelência da igreja que simplesmente tem de saber
e fazer tudo), como tambémhá, em minha opinião, uma
compreensão errada da singularidade da teologia como
função da igreja.

113
Aqui, ao contrário, a aplicação e a exegese são
separadas, porque senão uma exegese honesta nãoseria

mais possível e resultariam consequências marcantes


para a ideologização e o desgaste dos textos. Essa
separação é fundamentada por uma divisão entre a
compreensão histórica e a compreensão aplicativa.
Todavia, seja enfatizado desde logo que essa separação
entre exegese e aplicação é diferente daseparação entre
método e verdade de Hans Georg Gadamer. Pois, em
meu modo de ver, há tanto uma compreensão histórica
(baseada na análise de textos e situações) quanto uma
compreensão aplicativa (igualmente baseada na análise
de textos e situações). Através da separação entre
exegese e aplicação, é possível eliminar, em minha
opinião, as aporias no conceito de compreensão de Ulrich
Luz e Hans Weder.
A respeito de Ulrich Luz (1982): conforme Luz, só se
entendem os textos bíblicos “quando se está disposto a
seguir Jesus no caminho para a cruz” (1982, p. 500). Pois
o sentido dos textos não poderia ser isolado da vida. O
motivo desse procedimento pode ser identificado na p.
501: trata-se da “causa”. Sem uma interpretação

114
do assunto voltada para o presente e sem a
concretização da “causa” dos textos por meio de
sofrimento e aça, a exegese em nada contribuiu para a
compreensão dos textos por meio de sofrimento e ação,
a exegese em nada contribuiu para a compreensão dos
textos bíblicos (p. 501). – Nesse ponto, Luz se orienta
expressamente por passagens neotestamentárias, como
a menção da razão em Rm 12.1s., para mostrar que esse
conceito de compreensão é bíblico. – Abstraindo do fato
de que nada pode nos obrigar a transformar passagens
bíblicas em que aparece o termo “nous” em medida para
a atual classificação da exegese histórico- crítica pela
teoria da ciência (mesmo que o Novo Testamento tenha
tal conceito de compreensão, ele nãoé normativo para
nós só por causa disso), o ponto propriamente
problemático é a afirmação singela e que se trataria da
mesma “causa”. Posso entender muitobem por que Karl
Barth, prefácio à 2a edição de seu comentário de
Romanos, exige que se fale a respeito da

causa (p. X-XI, com a famosa exigência da fusão do


enigma do documento com o enigma da causa). Porém
a afirmação de que minha “causa” também é a do texto
pressupõe uma perspectiva totalmente meta-histórica do

115
observador que, postado além da história ou a partir de
sua consumação, como cuja identidade de modo algum
é evidente para o espectador. Certo, Karl Barth voltou- se
contra o mero espectador – mas de fato é necessário
querer ver atrás dos bastidores caso não se queira ser
apenas espectador? O sentido da coparticipação não
estaria em assumir e explorar justamente seu ponto do
drama? – Certamente todos os contemporâneos
teológicos experimentaram a esterilidade da exegese
histórico-crítica superficial para os problemas teológicos
da atualidade. No entanto, exigir, por causa disso, um
conceito de compreensão que se subtrai em dois terços,
a qualquer disputabilitas [“possibilidade de discussão”]
(a consumação de minha compreensão por meio de
minha ação e meu sofrimento não é possível de
discussão) não passa de uma fuga na direção errada.
A respeito de Hans Weder: de acordo com a abordagem
de Weder, a hermenêutica neotestamentária não pode
ser deduzida de uma doutrina cognitiva geral, pois aí a
compreensão é empreendida “sob a impressão causada
pelo modo como o Novo Testamento realiza a
compreensão”, todavia, o resultado deveria ser
compreensível de modo geral (entretanto, a rigorsomente
com objetivos missionários; se não fosse o

116
“hóspede interessado” – assim se expresso Weder,
pensando em algo assim como um simpatizante do
cristianismo –, ele não seria necessário). Assim, a
exigência de Weder poderia ser reproduzida por meio
da máxima “razoável, mas decidido”. A razão não é
desprezada por Weder; ela serve para traduzir a
impressão causada (como no antigo fides quaerens
intellectum [“a fé em busca de compreensão”]). Assim, os
métodos seculares estão a serviço da santidade da
palavra divina a ser proclamada. Com isso, para Weder,
o problema da hermenêutica se reduz à

tradução, à própria questão da verdade está respondida


de uma vez por todas. E é indiscutível que os ouvintes
devem se submeter de modo obediente ao evangelho
que lhes é apresentado – qualquer que seja sua forma –
e principalmente à sua reivindicação. A hermenêutica
está a serviço da exigência da fé (“a palavra de Deus de
fato só pode ser concebida como mandamento”).
Assim, em Weder não ocorre uma separação entre
exegese e aplicação, porque – esclarecida a priori a
pergunta pela verdade – a exegese é apenas um porta-
voz para comunicar a impressão causada. A conclusão
tirada desse princípio torna-se evidente mais adiante: a

117
razão que não se deixa ensinar pela palavra de Deus é
pecadora. Aqui reside a conseqüência para a exegese.
Diversas coisas chamam a atenção nessa concepção, e
seja permitido acr
escentar de imediato a respectiva contraproposta:
Weder fala exclusivamente da razão. Somente ela tem
de fato algo a ver com a questão da interpretação. Isso
não só tem conseqüências marcantes a nível
antropológico, mas implica também a via de mão única
do “doutrinamento”. – Se aqui, em contrapartida, é
acentuada com muita clareza a função de
emocionalidade, dos sinais e símbolos, então isso não é
somente indicativo ao protótipo do pastor que está
continuamente doutrinado. Pois os dois aspectos estão
interligados: o constante doutrinamento como exigência
e a autoridade pastoral que exige a aceitação do que é
ensinado. Com a percepção do papel da
emocionalidade crescem também a modéstia do pastor
culto e a relevância do leigo inculto. Além disso, não
entendo a religião cristã apenas como exigência, mas
também como oferta de um lar espiritual. A proposta de
Weder, por sua vez, se caracteriza pelas grandezas
“razão” (como grandeza hermenêutica) e “exigência”
(em relação à razão secular, que deve se submeter).

118
O doutrinamento e a limitação da razão por meio da
revelação, exigidos por Weder, na prática não passam de

clericalismo. Pois ou a razão é válida por inteiro ou não


é válida de modo algum. Qualquer teólogo que lhe gritar,
em nome de Deus, “pare!” torna-se suspeito de ideologia.
O mais tardar desde Sócrates a razão reflexiva não tem
mais necessidade de permitir que de fora lhe sejam
ditados seus limites. Que ela possa falharé humano; o
remédio para isso (na medida em que a falha realmente
resida na razão!) é que nos envolvamos mais com ela
própria e suas condições de funcionamento. O
cristianismo só pode conclamar para isso. Essa é a
função da fé cristã nesse ponto.
E quem de fora tentar colocar limites à razão (como se
disse: “Daqui em diante não há mais discussão, agora
só vale ainda a fé”) não deve se admirar se for
mergulhado no escárnio da crítica à religião. Em minha
opinião, é irresponsável condenar como pecado a
pretensão da razão de querer conhecer seus limites por
conta própria.

119
Weder compreende a aplicação apenas como tradução
da verdade inquestionável, que (pela fé) se conhececom
certeza. – O problema é que daí a exegese é apenas
ensejo para falar de coisas conhecidas, faltando assim
qualquer inovação, a qual deveria estar garantida pelo
princípio da Escritura também para a ortodoxia.
Na presente proposta, ao contrário, visa-se claramente,
em primeiro lugar, achar essa verdade por meio do
esforço hermenêutica (ou seja: o que cristianismo pode
significar hoje). Nesse processo, o intérprete nãoassume
a função daquele que dá uma forma agradávele racional
ao que já há muito se sabia com certeza, mas presta,
antes, um serviço de parteira, tentando descobrir do que
e como ele e outros vivem e podem viver – na história do
cristianismo em lugar deles e diante da Escrituras. Sua
tarefa é pôr a descoberto relações vitais e construir
pontes onde se oferecem, nas duas margens(Escritura –
situação), pontos adequados para lançar cabeças-de-
ponte.
A seguir trataremos, num primeiro momento, do papel
da exegese. Pois acusação tradicional de que ela seria
inútil,

120
porque não contribuiria em nada para a causa, também
se baseia num sem-número de falsas expectativas e
pretensões.

3. Limitação do Papel da Exegese

Na igreja, a aplicação desde sempre já aconteceu sem


exegese histórico-crítica e independentemente dela, e
isso vai continuar em grande parte sendo assim também
no futuro. Especialmente em face numerosas aplicações
bem-sucedidas devem-se afirmar o seguinte: aí a
exegese não tem por que se intrometer nem deve,
apenas em função de sua autoafirmação, jogar seu maior
conhecimento histórico contra uma aplicação “sem
exegese”. Portanto, é muito evidente que a exegese tem
apenas uma função restrita. A vida daigreja a partir da
Escritura, por via de regra, se dá de modo mais direto,
ingênuo, irrefletido e, de certa maneira, talvez também
mais obediente.

4. Nenhuma Compromissividade Por Meio da


Exegese

121
A exegese não pode fazer afirmações compromissivas
para grupos cristãos, pois suas reconstruções históricas
não podem ser, por si mesmas, compromissivas hoje.
Isso também significa: o exegeta na qualidade de
exegeta ainda não é líder da igreja.

5. Nenhuma Substituição da Aplicação Pela Exegese

Portanto, a exegese não pode nem deve substituir a


aplicação viva, os grandes movimentos na história da
igreja em geral se originaram da leitura da Escritura,
mas não da exegese histórico-crítica. Dificilmente ela
deve ter levado alguém à “conversão”. Entretanto,
imputar-lhe isso como “falha” é não atinar com a questão,
já que ela quer ser medida por suas intenções. Seu
serviço é substancialmente mais simples. Se se
reconhece isso, não se esperará demais dela nem se a
responsabilizará por tanta coisa estéril.

Somente quando se reconhecer que a exegese de modo


nenhum pode substituir o serviço vital da aplicação, será
evitada também a confusão, tantas vezes constatável,
entre prédica e exegese.

122
6. Nenhuma Dominação da Escritura Pela Exegese

Por isso, a exegese não quer nem pode aplicar-se ao


“senhorio sobre a Escritura” (como alega uma freqüente
acusação), pois ela não pode dizer o que “é válido” hoje.
Com toda a certeza ela também não é o único caminho
possível para a resposta à pergunta pelo que o texto
bíblico queria dizer como texto da Antiguidade. Pois
simplesmente não se pode excluir a possibilidade de
que alguém que apreende um texto por intuição ou o
segue obedientemente em sua prática também
compreende seu sentido histórico melhor do que o
exegeta. Muitas vezes uma percepção desse tipo pode
posteriormente também se tornar plausível por meio de
argumentos exegéticos, mesmo que não tenha sido
descoberta exegeticamente.

7. A ExegeseNão Critica a Compreensão


Bíblica da Realidade

Segundo a compreensão de Hans Weder, faz parte da


incumbência do método histórico-crítico medir tudo pelo
critério da razão e, desse modo, criticar a compreensão

123
de realidade das fontes. Entretanto, dessa maneira
Weder evidentemente confunde posições hermenêutico-
teológicas, como a discussão sobre o mito por parte de
David Friedrich Strauss e seu desenvolvimento na
desmitologização por Rudolf Bultmann, com a tarefa
costumeira do método histórico-crítico: criticar essa visão
bíblica de mundo, mas

primeiro descrevê-la plausível. A crítica material [=


referente ao conteúdo] não é sua missão genuína.
Igualmente errôneo é afirmar que entre os pressupostos
da exegese histórico-crítica esteja “que o presente, o
que é experimentado atualmente e o que é pensado
atualmente” receba, “por princípio, primazia de validade
em relação ao passado”. Mesmo que decerto tenha
existido tal exegese, essas formas decadentes nada
dizem a respeito do próprio método geral.
Por isso, também não faz sentido dizer que o método
histórico-crítico não contaria com Deus (seria um“método
ateísta”), faria os textos calar ou até os anularia, e depois
deduzir justamente disso que só a compreensão de fé
seria adequado ao Novo Testamento. Com isso se
estabelece uma alternativa falsa: a exegese descreve e
reconstrói afirmações sobre

124
Deus. De maneira nenhuma é sua tarefa tomar decisões
a favor ou contra tais afirmações. Isto é assunto da fé.
Weder imputa à exegese histórco-crítica que ela estaria
procedendo da mesma maneira que ele (só que
negativamente), ou seja, identificando completamente a
ciência e a decisão da fé. Dessa maneira, ele vê a
exegese apenas no espelho de seu próprio conceito
completamente homogêneo de “compreensão”. No
entanto, isso evidentemente é uma distorção das
intenções tradicionais da exegese histórico-crítica.

8. ExegeseSignifica Argumentos e Possibilidadede


Controle

A exegese é uma atividade complicada e de


procedimento muito indireto para detectar o significado
histórico de um texto. A única vantagem da exegese
histórico- crítica em relação à – talvez igualmente
acertada do ponto de vista histórico – apreensão prática
ou intuitiva do texto é a obrigatoriedade de demonstrar as
afirmações, a necessidade de operar comargumentos e
provas.

125
Portanto, a exegese tem a função de, no caso de uma
disputa pelo significado histórico de um texto, discutir
esse significado com os meios da razão. Isso não
significa que aqui a razão seja por principio jogada contra
a autoridade espiritual. A razão tem aqui uma função
totalmente servidora: ela é o caminho para tentar, em
caso de dúvida e quando se quiser, umaaproximação ao
significado histórico de um texto e para evitar uma disputa
que, de outra maneira, seria e foi travada com os meios
irracionais.

9. Exegese é Interesse na Concretização

A exegese ensina a compreender que aquilo que, muitas


vezes se apresenta como superstição da Antiguidade
baseia- se, na verdade, numa compreensãodiferente das
categorias básicas de tempo, identidade, pessoa e
faticidade. E assim se torna possível reconstruir não só
em detalhes, mas também de modo abrangente o que os
cristãos do século I pensaram bem concretamente ao
fazerem certas afirmações.
Dessa concretização simplesmente depende tudo. E
exatamente neste ponto se trata de um interesse

126
apenas antiquário. Pois ao interesse na concreticidade no
século I
d.C. corresponde, no sentido estrito do termo, ointeresse
na concretização agora. Isso significa: se o exegeta
insiste em querer saber exatamente como certas
afirmações foram “concebidas”, então ele gostaria de
saber: como as pessoas chegaram a pensarjustamente
assim? Que tipo de experiências (humanas e, portanto,
ao menos em princípio e em parte passiveis de
reconstrução) estão na base das afirmações? Que
consequências resultam de determinadas afirmações,em
cada caso, para a vida cotidiana? Que influência histórica
o texto obteve?
Somente quando o exegeta conseguir dar informações
assim concretas sobre as aplicações e as possíveis e
reais consequências de um texto, então de fato também
as concretizações cotidianas atuais entrarão no horizonte
do

enfoque. Pois somente assim se impedirá que o texto


seja compreendido como “verdade” genérica e doutrina
de validade universal. Úteis para a reconstrução da
concretização histórica no século I são principalmente
(em minha opinião primordialmente) os

127
questionamentos da história da religião e (também) da
história da sociedade, assim como da fenomenologia
histórica da religião.

11. A Exegese Adverte de Falsas Alternativas Fatais

A exegese não entende sentenças teológicas do passado


como sentenças intocáveis, mas investiga as perguntas
para as quais o texto é a resposta. Assim pode tornar-se
evidente que a sistematização no lugar errado no
decorrer da historia da recepção levou a alternativas
fatais (porque insolúveis). Estas são em especial as
seguintes:
A alternativa entre obra e graça (com a opção pela
última);
A alternativa entre culpa pessoal e situação (com a opção
pela última);
A alternativa entre o Deus que ama e o Deus que pune
(cm a opção pela primeira);
A alternativa entre predestinação por parte de Deus e
liberdade pessoal (os reformadores optaram muitas
vezes pela primeira);

128
A alternativa ente o Deus que está aí para todos e ama
a todos e o Deus que teria eleito alguns em especial
(Israel/igreja).
Justamente essas alternativas deram muitíssimo o que
fazer à sistemática e ainda hoje mexem com qualquer
estudante de teologia. É possível apresentar citações
bíblicas em favor de cada uma das respectivas
alternativas, e a tentativa de conciliação por meio de vias
intermediárias muitas vezes fracassou. Mas nãopoderia
ser que os métodos da sistematização posterior,em sua
totalidade e já na qualidade de métodos, não são
adequados aos textos bíblicos? Não poderia ser aquilo
que as pessoas da

Antiguidade no âmbito do judaísmo percebiam, de modo


processual e sequencial só se exclui mutuamente sob a
perspectiva da simultaneidade que foi introduzida de
modo artificial por meio da sistematização posterior?
Um problema especial em relação às alternativas
mencionadas reside, ao que parece, na teologia da
onipotência, a qual, pôr as vez, representa o perigo de
absorver um modo de pensar realmente histórico na
teologia.

129
VIII - O CARÁTER ESTRANHO DO TEXTO

1. Lugar no Marco de Uma Hermenêutica


do Novo Testamento

O propósito do presente esboço se volta contra um duplo


nivelamento, um ético e outro religioso. Diante do
nivelamento da radicalidade cristã humanismo genérico e
na autossuficiência da igreja oficial acentua-se a função
crítica da radicalidade bíblica e de seus portadores, ou
seja, o elemento profético na igreja e na sociedade
(função da “minoria crítica”). E diante do nivelamento da
tradição religiosa cristã pela perda do perfil religioso das
comunidades cristãs num ecumenismo genérico,
insistimos na particularidade incoptabilidade pelo menos
das tradições espirituais bíblicas, mas não somente
destas. Quem quiser evitar onivelamento ético e religioso
necessariamente é remetido ao fenômeno da
estranheza. O estranho significa aqui simultaneamente o
chocante e o não- diretamente- aproveitável, o que é
difícil de manejar e a

130
recusa de lançar na bocarra de uma cultura mundial
genérica e identidade formada. Assim, a estranheza
neste sentido é uma categoria judaica, pois já havíamos
observado em relação ao Novo Testamento que o recuso
à tradição judaica é o melhor baluarte contra nivelamento
por parte da cultura helenísticauniformizante.

2. Um Exemplo Como Ponto de Partida

Ev Tomé 98: “Jesus disse: o reino do Pai é como uma


pessoa que queria matar alguém poderoso. Em casa,
tirou a espada e a enfiou na parede para ver se sua mão
seria (suficientemente) forte. Depois matou o poderoso”.-
Neste texto tem-se em mente nada menos que o reino de
Deus. O material simbólico procede do ambiente do
terrorismo da

Antiguidade. Pois o homem poderoso que é assassinado


é um homem da corte, decerto um membrodo governo.
Trata- se do assassinato de uma figura importante na
política. O autor do delito promove previamente uma
espécie de exercício de tiro. Ele experimenta o golpe
decisivo primeiro na parede da

131
casa. O ponto essencial é: a precisão que se consegue
reunir por meio de energia criminosa, o necessário teste
de eficiência – exatamente isso também vale em face
do reino de Deus. Jesus diz: isso é um assunto
importante, que precisa ser previamente bem refletido. O
importante e fascinante não se planeja de passagem.
Jesus não quer assustar, mas chamar a atenção para a
magnitude da responsabilidade. Trata-se, então, de uma
propaganda camuflada, porquanto não é a oferta com
desconto que consegue cativar, mas somente a
exigência radical.
O texto do Evangelho de Tomé produz efeito por seu
caráter estranho e isso em diversos sentidos:
O texto por via de regra é desconhecido.
Trata-se de aspectos da imagem de Jesus que
dificilmente são conhecidos. (Os mais parecidos são a
parábola da construção da torre e a do administrador
fraudulento, a primeira por causa da necessidade de
testar-se, a segunda por causa da comparação com a
energia criminosa). O mesmo efeito produz também o
tema das “parábolas escandalosas” ou dos “traços
injustos na imagem de Deus”.
Possuir energia e atividade criminosas é umaexperiência
de cada um de nós – mas ela parece ser

132
totalmente contrária à experiência religiosa. O efeito
especial do texto do Evangelho de Tomé consiste em que
justamente o mais âmbito da vida fornece a metáfora.

3. O Caráter Estranho é a Condição do Efeito

“Efeito” é a transformação (pretendida ou real)


alcançada pelo texto nos receptores. No marco
da perspectiva

escatológica do cristianismo e em face da injustiça


existente no mundo, uma transformação ainda é
necessária e esperada. A tese é que o efeito
transformador de um texto não é possível sem um
mínimo de estranheza no processo de recepção. Por
isso, a experiência do caráter estranho do texto é
pressuposto da invoção.
Supõe-se que a recepção costumeiro e a rotina batida
de associações ao ouvir-se um texto (com a
conseqüência de que os textos descem “redondinhos” e
nada mais têm a dizer) sejam uma causa importante de
sua ineficácia.
Experiência religiosa e caráter estranho.

133
A experiência do novo e estranho com tal faz parte da
religião judaico cristã, e da seguinte maneira: a
experiência do novo e da estranheza sempre é
apreendida, também por aquele que a faz, em sentido
religioso. Há diversas razoes para isso.
a) Uma razão a partir da fenomenologia da religião: o
estranho e novo que é experimentado pode, como tal,
apontar para o mistério que a atitude religiosa busca. Ele
reflete algo do caráter fascinante do mistério. Assim,
também a estranheza de um texto pode tornar-se uma
referência direta e seu pano de fundo religioso. Mateus
5.27-30 é tão repulsivamente estranho e impossível de
ser “digerido” em nível ético ou emocional que esse
caráter estranho necessariamente é levado a buscaruma
resposta em categorias como gratidão, propriedade de
Deus e santidade.
b) Uma razão a partir da psicologia da religião: as
pessoas existem no tempo. A religião se fundamenta na
experiência. Por causa da temporalidade hánecessidade
constante de nova experiência que removee revalide a
antiga. Diante de Deus subiste a “suspeita” de que
nenhuma experiência seja suficiente e que mais
experiências sejam necessárias – complementares até
ao ponto de se contraporem.

134
c) Duas razões de ordem teológica:
Devido ao fato de o Deus judaico-cristão reivindicar o
todo da existência humana e da historia, também as
novas

experiências estão subordinadas à sua reivindicação de


senhorio.
E a necessidade do novo no âmbito da religião não é só
o contrapeso a seu tradicionalismo natural e não explica
simplesmente a partir da debilidade humana, mas é um
elemento da própria experiência de Deus único e singular
de Israel e o fenômeno “história da salvação” estão
ligados, porque o “diferente” e “novo” não deve mais ser
buscado junto a outros deuses, mas somente ainda na
continuação da história com esse Deus único. Ou dito
ainda de outra maneira: o contínuo desenrolar da história
com esse Deus, justamente por causa da diferença
histórica sempre cambiante, necessita do novo, diferente
e até agora estranho no âmbito da articulação religiosa.
Em especial com o auxílio de Rm. 9.6-33 também pode
ser esclarecido exegeticamente que o fato de ser
surpreendido e o até agora totalmente inesperado são
experimentados como típicos do agir do Deus de Israel.
Certamente o estranho como o santo, o

135
excluído e a festa pertence ao âmbito de muitas religiões.
Entretanto, esse estranho, que é concebido antes como
algo estático- rítmico, no âmbito da religião de Israel
torna-se o novo na experiência histórica, o novo na
vontade e no planejamento de Deus, de modo que as
pessoas precisam continuamente repensar e estar
atentas não só em face da realidade cada vez maior, mas
também em face da realidade cada vezdiferente de Deus.
A relevância da experiência do estranho e novo também
tem um reflexo negativo na mania de inovação religiosa.
Está é o desvio de um princípio originalmente correto.
Mania de inovação religiosa, correr atrás de modismos
sempre novos e tudo o que na Idade Média se chamava
de “curiositas” (cobiçar o novo e o especial) não devem
ser considerados originalmente negativos, mas são
primeiramente sintomas de um cristianismo vivo, lutando
por expressão e que não está simplesmente satisfeito
consigo mesmo. Porém a ânsia pelo novo torna-se
sintoma de desorientação quando a Escritura

não é mais capaz de contribuir para a articulação desse


novo. Pois a função da Escritura para e em face da

136
experiência religiosa nova deve ser concebida da
seguinte maneira.
Somente a Escritura que foi de novo descoberta em sua
estranheza pode também transmitir por si mesma a
necessária experiência nova.
Para uma nova experiência religiosa atual a Escritura,
como experiência já articulada (no caso de ela ser vista
dessa forma), proporciona um auxílio de articulação: a
articulação da experiência nova é exitosa quando sua
forma puder fazer frente à antiga. A uma forma somente
pode contrapor-se outra forma. Nesse sentido, o texto
bíblico provoca a tomada de forma da nova experiência.
E esse processo é necessário por causa da vitalidade
da religião bíblica.
Portanto, o problema de como se dá a relação entre a
necessária experiência religiosa nova e o que de toda
revelação foi fixado no cânone será resolvido aqui de
maneira que a experiência presente se exponha à antiga,
novamente tornada estranha, concretizada no texto
bíblico. Porém ali onde “a Escritura” literalmente nada
mais tem a dizer, as experiências marcantes de um novo
tempo terão que se articular de outra maneira.
– Esta articulação muitas vezes se deu, nos dois últimos
séculos, com o auxílio de religiões estranhas

137
(especialmente da Antiguidade e depois das orientais),
porque estas momentaneamente pareciam oferecer o
elemento do novo e estranho necessário para a religião
viva.

4. O Estranho só Fará Efeito Como o Outro Afim

Algo totalmente estranho não pode ser compreendido


nem captado.
O efeito só é possível sob a condição da aceitaçãoparcial
da experiência existente. Refiro-me, com isso, pelo
menos a uma experiência não-religiosa que poderia,
então, tornar-se o âmbito que fornece a metáfora para a
religiosa.

Em minha opinião, o processo da formação de metáforas


é fundamental para a compreensão de textos religiosos.
A estranheza é uma experiência religiosa ambivalente: o
tornar-se estranho de textos bíblicos – como tudo o que
se faz na recepção – não deve, tomado em si, ser
simplesmente glorificado, mas é um fenômeno
ambivalente. Afinal, está aí em debate, como já indiquei,
a perda do “lar religioso” (o que em si, todavia, também

138
é um assunto ambivalente). Ambos os aspectos vão
acompanhar nossas reflexões também no que segue.
Pelo visto, o efeito pode ser maior onde se exprime
aquilo que está bem próximo do costumeiro (também no
sentido da oposição) e, ao mesmo tempo, precisamente
aquilo que faltava e se necessitava com urgência (há uma
expectativa pelo inesperado). Do ponto de vista
semântico, também o oposto faz parte do “campo
vocabular”, por isso, “próximo” é entendido aqui de
maneira a abranger também “o oposto afim”, o “outro
afim”. Não é qualquer estranho, mas apenas um desse
tipo consegue produzir efeito.
Todavia também o estar familiarizado com textos
(justamente por não dizerem mais nada de novo) tem sua
função religiosa, assim como não só a inovação, mas
também a repetição regular faz parte da religião, porque
através do texto “estagnado” pode-se ver a situação que
cada vez é diferente. Nesse caso a “preocupação” não
reside mais na compreensão do texto, mas o texto
sempre já apropriado forma, justamente no contraste com
a situação cada vez nova, um fermento invariável que
cada vez novos textos. No entanto, também os
problemas desse tipo de aplicação são evidentes.
Exemplos são a série de textos

139
dominicais da ordem perícopes da Igreja Católica, que
antes do concilio era sempre igual, e alguns fenômenos
no campo da oração (a oração de Jesus na igreja oriental
e a oração do rosário no Ocidente). Nesse caso,
abstraindo do conhecido fenômeno do tédio espiritual,
podia tornar-se problemática especialmente a perda da
potência crítica do discurso bíblico,

já que, com a repetição rítmica, a afirmação e o consolo


necessariamente ficavam em primeiro plano. – Também
a época da exegese alegórica geralmente usava o texto
apenas para a afirmação do dogma eclesial (a Escritura
como documento de legitimação ou como ilustração).

5. Recuperação do Caráter Estranho do Texto

A função do cânone judaico e do cristão é uma


inequívoca limitação de experiências religiosas “novas”,
sendo que está claro desde o início que isso não significa
a exclusão das mesmas. Porquanto desde o princípio há
produção de novos textos fora do cânone. Todavia, o
novo só deve ser obtido em face da Escritura. A rejeição
da “nova revelação” leva, num primeiro momento, à
situação aparentemente

140
contraditória de que a experiência nova, que ocorre por
causa da vitalidade da religião, só pode ser obtida em
face do texto mais antigo e familiar. Quase obviamente
é de esperar que, devido a rotinas na recepção o antigo
texto (bíblico) se torne tão batido e inexpressivo que fique
obsoleto.

6. A Função da Exegese

A exegese histórico-crítica a normatividade crítica da


Escritura está estreitamente ligadas uma à outra.
Portanto, pode se tornar necessário obter novos aspectos
também do próprio texto bíblico. E enquanto, nesse
processo, a exegese histórico-crítica, num primeiro
momento, acumula quaisquer aspectos estranhos e
novos de um texto, a aplicação então está mais
interessada em escolher dentre eles o que mais auxilia
na articulação da presente experiência religiosa. A partir
disso, um importante tarefa do exegeta é mostrar o novo
no antigo, e sua atividade pode contribuir no sentido de
tornar a existência do cânone significativa numa situação
dada. Pois para que o cânone seja preservado com
parceiro de diálogo é necessário apontar para o fato de
que ele não foi

141
desde sempre entendido e acolhido adequadamente.
Nesse caso, ele não é o óbvio, mas em sua estranheza
o provocador. O distanciamento temporal e cosmovisivo
do cânone torna-se sinal de sua função crítica como
revelação. Formulando de outra maneira: o caráter
escandaloso da singularidade bíblica torna-se o veiculo
pelo qual se transmite o caráter escandaloso da
experiência da revelação. Assim, a descrição exegética
da estranheza do texto amplia seu potencial de eficácia
precisamente diante da impressão de que ele “nadamais
tem a dizer”. Se o texto se tornasse familiar demaise sem
aresta, ele ficaria mudo. E um parceiro de diálogomuda
não pode mais desempenhar seu papel, podendo até
mesmo levar à retirada. Isso acontece pelo fato deas
experiências religiosas ficarem sem lar diante de um texto
bíblico mudo.
Neste ponto reside, sem dúvida, o fracasso “histórico”
do método histórico-crítico na pesquisa do Novo
Testamento: enquanto que a rigor poderia e deveria ter
visado descobrir, junto com o caráter estranho do texto
em vista de sua utilização pela igreja, também sua
riqueza, de modo geral permaneceu-se restrito àerudição
filológica e à sutileza correspondente. Devido a

142
isso a exegese não somente tornou-se repulsiva, mas
colocou-se em sua condição atópica, ao lado dos
fenômenos não menos afugentadores da ortodoxia e
prática eclesiais. Ou dito de outra maneira: como
prisioneira da filologia, a exegese não só se tornou
inofensiva no que diz respeito à sua função crítica, mas
também utilizável em muitos aspectos e por isso mesmo
útil para a manutenção do sistema. Até o surgimento da
interpretação existencialista as experiências religiosas
não tinham lar em face da exegese. Tanto na dogmática
quanto na espiritualidade e exegese a Escritura
permanecia igualmente muda. A retirada da “filosofia” do
âmbito da igreja pela mão dos teólogos (Tübinger Stift)
no século XIX e o alheamento parcial da poesia e da
intelectualidade de modo geral em relação à igreja no
século XX também estão relacionados

com o fenômeno do cânone que morreu nas mãos dos


exegetas.
Isso significa: se uma nova visão de mundo e uma nova
experiência da realidade, novas perguntas novas formas
de “espiritualidade” não mais forem abrangidas,
respondidas e acolhidas pela interpretação da Escritura
no pensamento da Igreja, se as perguntas e novas

143
experiências se tornarem mais vivas e, na mesma
medida, a margem de manobra determinada pela própria
igreja se tornar mais estreito, então os que assim
perguntarem e experimentarem de maneira nova não
encontraram mais lar espiritual na igreja e se retirarão.
À interpretação existencialista cabe o mérito
inquestionável de ter acabado com a esterilidade da
exegese tradicional pelo fato de ter vinculado na prática
as experiências humanas básicas com a exegese
histórica. Esse mérito permanece mesmo quando se
reconhece que a antropologia em que ela se baseou foi
aproveitada de modo muito unilateral e que o resultado
foi uma nova forma de esterilidade. No fim das contas a
vinculação da exegese com a filosofia de Heidegger foi
uma nova tentativa impressionante de impedir a retirada
da experiência e da inteligência vivas da igreja.
Portanto, se o que importa é que o cânone seja o lar
religioso dos cristãos não só no sentido da confirmação,
mas também no sentido do parceiro de diálogo
“competente”, “suficiente” e à altura das novas
experiências, então é necessário visualizar
constantemente sua riqueza e seu caráter estranho. Isso
não significa que o próprio cânone precise ou

144
possa ser a fonte de qualquer experiência (experiências
são, antes, dadas). Significa, no entanto, que as
experiências devem se deixar iluminar, criticar e articular
“diante dele”, em face dele. (O “devem” é pensado
literalmente, já que – ou: na medida em que – o cânone
tem função normativa).

Se não ocorre somente


confirmação, mas também
enriquecimento através do cânone, então o lar
espiritual não precisa ser procurado
como compreensão espreitando o
estranho em outras religiões, mas pode consistir no
estranho própria tradição oferece em abundancia.
Todavia – e aqui reside a motivação para o
“trabalho” –, esse estranho não é acessível à
primeira vista, mas trata-se em geral de âmbitos
ocultos, respectivamente não dominantes da própria
tradição. Neste ponto, pode-se reconhecer
novamente uma correspondência estrutural
ao acima mencionado princípio da “minoria
crítica”. Em ambos visa-se fazer
com que se manifeste
aquilo que, no próprio âmbito, é

145
oprimido e sonegado, seja o sofrimento injusto,
seja a diversidade ou a estranheza oprimidas e não
efetivadas.

Em ambos os casos se trata da função hermenêutica de


uma experiência que se poderia traduzir com a seguinte
frase: “Olha! Aí está algo que não tínhamos percebido,
ma que pode e deve nos interessar”. Procedendo-se da
maneira apontada, o cânone poderia adquirir uma nova
atualidade. Ele não seria mais somente uma instância
legitimadora (mina de textos bíblicos para provar o
caráter cristão do novo), mas seria conduzido para fora
dessa situação, que se parece com uma rua de mão
única, e recuperaria sua autonomia com interlocutor
crítico. De acordo com esta concepção, o conflito
tradicional de que, apesar da existência do cânone, o
nova precisa ser diferente
do antigo já existente, é suavizado pelo fato de que:

A nova experiência é aceita e percebida em sua


autonomia e não simplesmente remontada ao cânone;
A causa da obsolescência e a perda da linguagem do
antigo na recepção costumeira são reconhecidas;

146
A essa recepção costumeira é interrompida por meio da
reexploração histórica e especialmente histórico-religiosa
do texto bíblico, de modo que este é libertado da
cooptação por parte daquela. - A comparação histórico-
religiosa é a mais eficaz para recuperar o caráter
estranho do texto porque a

relação triangular: ao lado do texto bíblico é colocado seu


elemento de comparação da Antiguidade; o monólogo é,
no mínimo, dificultado (caso não se use a comparação
histórico- religiosa somente para distanciar, de modo
apologético, o elemento cristão de todos os demais);
Da estranheza histórico-religiosa do texto bíblico é
escolhido o “outro afim” que, na situação da aplicação,
melhor pode “promover a Cristo”.

7. Transmissão Prática da Estranheza na Aplicação

A citação em contextos (também costumeiramente)


estranhos (também em termos de hábito) renova a
experiência daquilo que foi citado.

147
Importante é a escolha de metáforas ousadas e até
atrevidas, em especial de uma rede nova ou análoga de
metáforas.
Com base na função religiosa e gnosiológica básica do
caráter estranho, a inteligibilidade não pode ser o critério
último para a produção e aplicação de textos. Embora em
toda parte se trate de experiências humanas que, por
isso, poderiam em princípio ser investigadas
aproximativamente, o possível resultado de tal
aproximação não pode ser simplesmente antecipado de
modo grosseiro. Ao contrário, o respeito pela
particularidade inconfundível de quem produziu o texto
torna necessário, dependendo do caso, para aquele que
faz a aplicação aplicar o texto também de modo apenas
parcial (desconsiderando que a própria situação exige
isso).
Portanto, se estranheza de um texto pode também
simplesmente “ficar aí assim como está”, então isso
representa a renúncia por princípio à exigência de que
um texto se nos torne imediato e contemporâneo. Com
isso renuncia-se a uma parte importante de hermenêutica
filosófica iluminista. O texto pode, antes, ser preservado
também em seu distanciamento e não

148
precisa ser “conectado” diretamente em todos os
pontos. Desse modo,

leva-se a sério principalmente a dimensão da história


(com a autonomia de todas as partes).
Uma consequência disso é também a “tolerância
hermenêutica”. Isso significa: renúncia à ubiquidade de
uma única verdade. Aqui é importante que essarenúncia
não se dê por obrigação, mas que tenha, pelo contrário,
um significado positivo e apareça como a atitude
adequada. Justamente no âmbito da fé, onde a firmeza e
a apropriação de “minha” verdade é decisivas, não é
possível superestimar a importância de a Escritura ser
percebida também como a posição diferente. Somente
desse modo o crente pode ser criticado também em sua
firmeza e não fica sozinho. E ofato de a “alteritas” fazer
parte da fé é uma das fontes de eclesiologia. Pois igreja
não é simplesmente identidade, mas a convivência de
pessoas diferentes.
Agora, qualquer pessoa informada sobre a situação do
cristianismo nos países industrializados do Ocidente era
objetar que aqui já existiria um pluralismo e que o
problema seria, antes, o da necessária unidade de ação.
A esse respeito é preciso dizer o seguinte:

149
Aceitação tácita do pluralismo é algo diferente do
reconhecimento teológico da necessidade de tolerância
hermenêutica.
Justamente a hermenêutica do Novo Testamento
deveria estar consciente de que a base sociológica da
igreja se alterou desde a virada constantinuana (no
Ocidente por ora de modo irreversível). Ainda costuma-
se transferir implicitamente a estrutura de uma “seita
missionária” para a interpretação.
Só com a percepção do pluralismo e da situação alterada
ainda não se encontra a resposta à perguntaem que
consiste a unidade nessa diversidade. Os limites dessa
pluralidade da igreja oficial certamente devem se orientar
por aquilo que constitui, em cadacaso, a credibilidade do
cristianismo. A mim parece ser especialmente necessário
para a unidade na diversidade que sejam formulados
pontos

éticos comuns que sejam compromissivos, não muito


abertos e, com isso, também questionáveis.
Portanto, a preservação da alteridade e unidade
necessária estão, em cada caso, em tensão mútua e
dizem respeito cada qual a campos diferentes.

150
8. A Discussão Filosófica

A história de hermenêutica mais recente pode ser


deduzida do posicionamento diante do problema do
caráter estranho. O início é assinalado, com propriedade,
pela posição de Schleiermacher, cujo ponto de partida é
que a não-compreensão do outro é a regra, de modo que
o critério da verdade adotado em cada caso se torna
inseparável “da autocompreensão dos indivíduos que por
meio dele entram num acordo”. Portanto, para obter a
“verdade” resta somente o caminho da comunicação
hermenêutica, porquanto arazão não está disponível de
modo genérico e atemporal, mas somente na
concreticidade histórica. Este enfoque será adotado
parcialmente por nós a seguir. – Não muito distante
dessa posição está o enfoque hermenêutico de Wilhelm
von Humboldt de que
o alvo do esforço hermenêutico seria “a consciência
rigorosamente simultânea do discurso próprio e do
estranho”.
Na discussão hermenêutica deste século mostra-se
(como já anteriormente em Wilhelm Dilthey) em
Heidegger e Gadamer o empenho de superar a
estranheza entre sujeito e objeto por meio de uma

151
grandeza antecedente. Gadamer quer superar o
estranhamento “vinculando o mundo que se tornou
disponível cientificamente ‘às ordens fundamentais de
nosso ser, não-arbitrárias, a serem não mais feitas, mas
honradas por nós’. A superação do estranhamento é,
em termos de intenção, o ponto de vista hermenêutico
universal de Gadamer”. Isso se torna possível no marco
do “nós que nós todos somos”. No marco dessa
concordância a compreensão de outros é possível
porque se trata de

pessoas. O aspecto problemático no pensamento de


Gadamer é, como se sabe, questão da possibilidade do
realmente novo e outro. Para Gadamer, este não é objeto
do compreender, mas somente do fazer-se compreender.
O compreender, ao contrário, somenteacolhe o familiar,
que pode ser abrigado no “consenso”. Este consenso
surgiu por meio da participação no objetoda tradição. Por
isso se pode dizer: “O alvo de Gadamer é superar a
distância, para ele funesta, do objeto do compreender por
meio de uma participação no objeto datradição que esteja
fundamentada na história de sua influência”.

152
Dessa maneira, Gadamer pretende excluir qualquer
objetivismo semelhante ao das ciências naturais e
“devolver ao sujeito cognoscente sua participação no
acontecimento da tradição, a qual lhe foi alheada.
Entretanto, neste ponto (…) entra em cena a questão de
como ainda seria possível, nessa concepção de
participação, articular uma crítica ao objeto e ao
‘acontecimento da inserção’ no mesmo”. – Em outro
momento será demonstrado que, tanto em Gadamer
quanto em Heideigger, a superação da divisão sujeito é
paga com a perda da dimensão do sujeito. Sujeito e
estranheza, como categorias hermenêuticas, estão em
estreita ligação um com o outro.
A discussão após-Gadamer tende a conceder ao
estranho um espaço maior e construtivo.Particularmente
Paul Ricoeur – diferentemente de Gadamer – não
considera a estranheza e a distância como uma
desgraça, mas como a dinâmica básica do compreender.
Porquanto este se realiza dialeticamente entre
estranheza e confirmação. Dessa maneira são
produzidas continuamente novas interpretações do
texto, pois cada nova leitura liberta o texto do
distanciamento para uma nova proximidade.

153
Assim, no enfoque de Paul Ricoeur, o caráter estranho
do texto não tem uma função somente negativa. Nomarco
da dialética da autocomunicação (por meio do mundo dos
sinais), que no pensamento do Ricoeur vem à tona em
toda

parte, a distância é, antes, o espaço crítico em que se


realiza a interpretação. Cada nova recepção significa o
estabelecimento de uma nova proximidade e de novos
vínculos com o mundo do leitor. O progresso em relação
a Hans Georg Gadamer consiste em que se preserva “a
identidade dos textos também contra a identidade
cambiante do intérprete”, de modo que os textos também
podem ser um potencial crítico diante de concepções
dominantes da realidade. Jeam rond acentua, com razão,
que em Ricoeur se manifesta a preocupação crítica de
Jürgen Habermas em relação a Gadamer. Posso
concordar com Ricoeur que o texto é “desafio” à nossa
compreensão da realidade. Como não-confirmação, a
estranheza é questionamento. Entretanto, conforme
Ricoeur, a alteridade do interlocutor é então dissolvida
no compreender, de modo que nesse ponto não pode
haver um real deixar ser e subsistir do outro.

154
9. Fundamento do Próprio Modelo

Textos estranhos são, em seu contexto, como parábolas:


O resultado da tensão entre contexto e o texto “estranho”
é cada vez um novo texto, em certo sentido a
compreensão que o leitor cria a partir da tensão entre o
texto inserido e o contexto. O procedimento da
interpretação de parábolas orientada pelo contexto aqui
adotado como modelo, não é o único que foi discutido na
pesquisa. Mas nas duas principais linhas de pesquisa,
que concorrem neste ponto, a interpretação de parábolas
e a compreensão de revelação se tocam e correspondem
em cada caso: segundo a concepção da exegese que se
orienta pela teologia existencialistas ou pela teologia
dialética, as parábolas são formas autônomas da
linguagem, e isso corresponde à concepção de revelação
como um eventoimediato, sem contexto nem analogia.
Aqui, em contrapartida, o contexto e as experiências pré-
religiosas são importantes tanto para as parábolas (o
âmbito que fornece a metáfora) quanto para a revelação
concebida de

155
modo análogo a isso. Com isso, quanto à questão da
relevância hermenêutica da estranheza, confrontam-se
o modelo “evento de linguagem” e o modelo “orientação
pelo contexto”.
Trata-se, antes, decididamente de tentativas de romper
o círculo de compreensão e, assim, de uma questão de
etos. E: alterações na pré-compreensão não devem ser
simplesmente aceitas, mas teriam de ser antecipadas
pelo teólogo.

156
BIBLIOGRAFIA

· ExegeseBíblica - Professor Pedro


Apolinário do Instituto Adventista de Ensino,
1977;

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• JESUS, Erivaldo de – Super interessante 500
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• JESUS, Erivaldo de – Super interessante 500
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• CAMPOS, Heber – Eu Sou Doutrina da Revelação
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