Pequenas Incursões Respiratórias
Pequenas Incursões Respiratórias
Pequenas Incursões Respiratórias
SUMÁRIO
Primeira Vez
Perfeita Criação
Condição de Indesejado
Chiaroscuro
Algo Maior
Sob os Ciprestes
Prelúdio ao Sombrio
LEIA TAMBÉM
Primeira Vez
Itajaí, Brasil - 2005
Os olhos permaneciam abertos, mas ela estava morta. Minha melhor amiga, morta em meu
quarto.
Isso poderia me trazer problemas.
Justo quando estava me adaptando. Àquela cidade, àquela escola, quase à ideia de ter uma
melhor amiga pela primeira vez.
Mudanças eram bem-vindas, mas ter me tornado órfã no ano anterior havia sido a maior de
minha vida até aquele momento. Uma mudança repentina que alterou o curso de minha vida e
minhas relações familiares. Mesmo assim, adaptei-me mais rápido ao acidente de minha mãe do
que a ter alguém como Daniele em meu convívio.
Após a morte de minha mãe, eu e meu pai passamos a residir em Itajaí, onde fui
matriculada em uma escola menor. Nela, os alunos eram mais aglutinados, assim como os
professores e a equipe em si, e minha postura, meu comportamento e mesmo as manifestações de
meus pensamentos — atrelados ao fato de que eu estava em uma série avançada para a minha
idade — fizeram com que eu me destacasse muito mais do que na escola anterior, em Joinville.
Algo em mim se sobressaía e esse algo atraiu Daniele de imediato.
Era impossível ignorá-la.
Durante meses, assisti-a aproximar-se de mim das maneiras mais sinuosas possíveis.
Ignorando toda a minha rotina bem estabelecida, ela trocou de lugar em sala de aula para ficar ao
meu lado, sentava comigo nos intervalos e me acompanhava por boa parte do caminho até em
casa. Quando pedi que meu pai passasse a me buscar na escola, justamente para evitar isso, ela
ficava junto a mim o aguardando, e quando ele começou a chegar antes que saíssemos da aula,
ela pediu que a levasse até sua casa e ia comigo no carro.
Eu tinha certeza de que havia me tornado uma espécie de projeto para ela, alguém que ela
ajudaria a ser comum. Alguém a ser aceita.
Meu pai se dava bem com os pais de Daniele. Eles apreciavam nossa aproximação.
Quando Daniele passou a trançar o cabelo como eu, meu pai viu graça naquilo. Segundo o que
dizia, ela estava alimentando uma afeição além de amizade por mim e fazia essas coisas porque
me tinha como algo a ser alcançado. Ele falava com certo orgulho, então eu não fazia questão de
argumentar.
Eu não sentia a mesma afeição por ela. Na verdade, não sentia nada por ela. Era só alguém
que me distraía e que me ajudava a passar o tempo em que eu não estava me dedicando às coisas
que gostava. Ela era inapropriadamente entusiasmada e me estimava mais do que deveria, mas
me mantinha ocupada e por isso eu a aceitava em meus dias.
Naquela noite em particular, Daniele estava muito agitada. Sentada no colchão inflável ao
lado de minha cama, ela batia com o pé no móvel de cabeceira, produzindo um som repetitivo e
irritante, enquanto falava comigo para me manter acordada.
— Não dorme, Mi. Vamos passar a madrugada em claro e ver o nascer do sol pela sua
janela.
Três coisas me irritaram nessa frase. A primeira era que eu repugnava a forma como ela
me chamava de “Mi”. Até conhecê-la, achava que não havia maneira pior de ser chamada do que
de “Mica”, mas estava enganada. Quando a alertei quanto a isso, ela diminuiu meu nome ainda
mais e se recusou a me chamar de qualquer coisa que não fosse por essa única sílaba. Uma nota
musical deslocada e dissonante.
A segunda era que não havia novidade nenhuma em passar a madrugada acordada. Já fazia
parte de minha rotina. E a terceira era que o nascer do sol era um acontecimento que eu gostava
de presenciar ou sozinha ou com meu pai, no conforto de nosso universo particular. Não queria
ter que dividir isso com a Daniele.
Desci da minha cama e ela sorriu quando me sentei ao seu lado.
— Tenho mesmo que dormir — eu disse. — Preciso de minhas quatro horas de sono ou
vou ficar cansada amanhã. Não quero que isso aconteça.
— Você pode dormir à tarde — retrucou, passando por cima de minhas necessidades mais
uma vez.
— Posso, mas não quero.
— Vamos, Mi. Vai ser legal! Quero tirar umas fotos da paisagem com meu celular novo.
— Se é isso que quer, pode fazer sozinha. Não precisa que eu esteja acordada com você.
Seu sorriso se fechou.
— Ah, mas prefiro que esteja comigo. — Ela fez uma pausa e vi seus cílios compridos
bem de perto quando baixou o olhar para as mãos em seu colo.
— Foi pra isso que eu vim dormir aqui — continuou ela, voltando a bater o pé contra o
móvel de cabeceira por nervosismo. — Pra ficar contigo.
Ela estava falando daquele jeito de novo, suave e baixo, como só fazia quando estávamos
sozinhas. Um dos sinalizadores da afeição exagerada que tinha por mim.
Era um processo curioso e me aproximei para ver seu rosto melhor. Instigava-me como
suas bochechas ficavam rosadas e como seu rosto inteiro sorria sem esticar muito os lábios, que
eram finos e úmidos de tanto ela falar.
Eu nunca corava, e ainda não havia sentido a necessidade de falar dessa forma com
alguém, mas queria ver de perto. Queria aprender.
Percebi que me inclinei demais em sua direção quando Daniele deslizou os olhos para a
minha boca. As pupilas se dilataram, focando em mim, e então ela inclinou o pescoço, meneando
a cabeça, em um misto de surpresa, curiosidade e algo mais.
Era esse algo mais que me intrigava.
Meu pai olhou intrigado para o corpo e de novo para mim. Piscou.
— Por que fez isso? — perguntou com calma, em um sussurro sonolento.
— Ela não me deixava dormir.
Não foi pelo beijo, pensei na hora. Se tivesse me beijado em outro momento, talvez isso
não tivesse acontecido. Foi porque eu estava cansada, insone.
Ela se inclinou e encostou a boca na minha. A princípio nada mudou, de tão leve o toque.
Só soube que estava me tocando porque senti o aroma adocicado de sua pele. Mas ela se
aproximou mais e pressionou os lábios nos meus com mais vigor.
Para mim, era um gesto como outro qualquer, mas entendia que as pessoas viam beijos
como algo íntimo e prazeroso, então não a interrompi.
Exceto quando sua mão subiu por minha perna, alcançando minha cintura, então tive um
sobressalto irritado. Isso já era abusivo.
Afastei sua mão, mas outra vez a minha vontade foi ignorada. Daniele soltou uma
risadinha e se inclinou sobre mim, como se eu houvesse lhe dado tal permissão. Desviei o rosto e
ela me puxou pelo pescoço. Quando a boca voltou a bater na minha, senti algo viscoso e frio.
Sua língua.
Ela sorriu no beijo ao sentir minhas mãos deslizarem por sua nuca.
O sorriso virou um ganido quando a agarrei pelo cabelo e o puxei com força. Daniele
exclamou alto, confusa. Afastei-a de mim e ela protestou de dor, tentando alcançar minha mão.
Não soltei. E gostei de exercer poder físico sobre ela. Foi curioso ver a forma como seu
rosto me questionava e como, no desespero ainda tímido, seu corpo e seus reflexos se focavam
apenas em se libertar, em desprender minhas mãos de si. Uma máquina inteira — todo um
sistema vivo e pulsante, de nervos, músculos, células e sinapses — ignorando as milhares de
possibilidades às quais poderia recorrer.
O que aconteceria se eu testasse mais esse poder? Como seria se…
Posso afirmar que Daniele nunca teria vislumbrado meu próximo movimento: Esmurrei
sua cabeça contra a quina do móvel de cabeceira, onde ela batia o pé momentos antes. Rápido e
contundente. Ainda lembro do som seco que isso causou.
A testa se abriu no ato e, no silêncio abafado por puro espanto que se seguiu, uma fileira de
sangue escorreu em direção à sobrancelha.
Com o sono substituído pela adrenalina da novidade, passei mais algum tempo no
banheiro, observando as marcas que se tornavam evidentes pela pele.
Quando acordei de manhã, antes de ter que me fingir de abalada por ter encontrado a
amiga morta no banheiro, corri para lá, para ver como seu corpo estava reagindo à morte recente.
Foquei no rosto, nos olhos mais arregalados do que nunca, nos sons de afogamento que
saíam pela boca e na forma como ela estava começando a se retorcer em agonia.
Mantive a força e não soltei. Fui até o fim, ouvindo minha respiração ofegante e as batidas
do meu coração nos tímpanos, atenta à avalanche de novas informações e sensações. Muita coisa
estava acontecendo e eu gostaria que o momento se prolongasse para poder focar em cada
aspecto separadamente.
Não soltei Daniele mesmo depois que os sons que saíam dela cessaram e os olhos ficaram
estáticos, embaçados. Então relaxei e, assim como os dela, meus braços penderam para os lados,
inertes.
Falhei como projeto para ela. Entendi naquele instante que eu não me tornaria alguém
comum e isso fez grande sentido para mim.
Com a morte da minha melhor amiga, a vida voltaria ao normal. Eu estava contente.
Perfeita Criação
Itajaí, Brasil - 2007
Eu ainda não havia adquirido o hábito de andar pela cidade, naquela época. Mas cheguei
tarde do trabalho certa noite, e assim que girei a chave na fechadura de casa, soube que ele estava
tão ciente de meu atraso quanto eu.
Sentado em sua poltrona, quase ao centro da sala, meu pai me inspecionou de cima a baixo
com o olhar impassível antes de dizer qualquer coisa. Procurava algo em mim. Indícios. Não lhe
agradava que eu estivesse escapando de sua controlada atenção.
Quando falou, sua voz grave — em geral ondulada por charme e manipulação — saiu
linear. Reta como a lâmina que se orgulhava tanto de ter me presenteado e que àquela altura era
quase como uma extensão de meu pulso.
— Você não me informou onde estaria depois do expediente — disse ele, cotovelos
apoiados nos braços da poltrona, mãos sob o queixo altivo.
Ajeitei a alça de couro da mochila em meu ombro. Minhas costelas se contraíram. Odiei o
efeito dele sobre meu corpo.
— Não.
Ele não se levantou quando fiz menção de me retirar da sala, não ergueu a mão, não alterou
o tom de voz. O que ele fez foi esticar uma perna forte e longa. Fazia isso quando tinha a
intenção de tomar conta de um ambiente. Ele se tornava ainda maior.
Eu parei no segundo degrau da escada.
— Tem certeza de que não está excedendo sua estadia? — perguntou ele. — Ela pode se
cansar de você. Ou o marido dela.
— Se isso acontecer, ela vai me dizer e não será um problema.
— Quando acontecer — corrigiu ele, com as mãos no colo de sua calça impecável mesmo
no descanso do lar. — Elas sempre cansam. Você também, se me recordo bem. Tem acontecido
com mais frequência, não tem? Foi assim comigo, na sua idade. Pessoas são cansativas.
Ele estava certo. Eu me interessava pelo ser humano como um conceito. Um arquétipo.
Algo a ser estudado. Às vezes o contato interpessoal poderia ser estimulante, mas
invariavelmente eu desenvolvia um desinteresse pelas pessoas assim que elas paravam de me
oferecer objetos de investigação.
— Mas ela não é — contrapus. Eu não o permitiria presumir que conhecia minhas
relações.
— Ainda não? Aguarde mais um pouco e vai ver o brilho se apagar. Ou melhor, não
aguarde. Não espere pra que as circunstâncias transformem você em alguém que não gostaria de
ser.
— Eu sou exatamente quem eu gostaria de ser.
— Eu sei, porque você é como eu. E eu te conheço melhor do que ninguém. Melhor do que
você mesma. Sei do que é capaz e me orgulho disso, por isso me preocupo. Você tem
sentimentos por ela?
— Gosto de estar com ela. Gosto de ouvir o que ela tem a dizer sobre tudo.
“Ela” era minha superiora no laboratório onde eu estagiava na universidade. Uma mulher
com infinita capacidade de me surpreender. O tempo que passei ao seu lado, observando,
aprendendo, evoluindo, me foi de enorme valia. Era óbvio que eu tinha sentimentos por ela, mas
mais do que isso, eu tinha sentimentos com ela, porque ela me oferecia uma variedade de
informações que de outra maneira eu levaria anos para obter. Nossa relação ia além de meros
sentimentos.
— Sentimentos são perigosos, Micaela. Nos deixam vulneráveis.
— Então não há nenhum por qualquer das mulheres com quem sai?
— Você fala como se eu não honrasse a memória de sua mãe.
A memória da minha mãe, na visão de meu pai, se estendia ao retrato que pintei — e que
ele ressentia por eu nunca ter prestado a mesma homenagem a ele, mas que fazia questão de
manter em seu quarto como uma lembrança de minha ingratidão — e aos bibelôs de animais na
estante. Memorabílias inócuas para as quais ele atribuía mais valor do que o esperado.
Nós dois ouvimos a vibração vinda do bolso externo da minha mochila. Meu pai olhou
com um esgar irritado no canto da sobrancelha quando retirei o celular e li a notificação. Ele
detestava que eu desse atenção ao aparelho em sua presença, julgando que o mundo contido ali
dentro me afastava dele cada vez mais.
Um exagero. Não era com o celular que deveria se preocupar, e sim com minha própria
noção dele como genitor, como provedor, e como alguém para se manter ao meu lado. Essa
noção estava em mudança desde a morte da minha mãe, alcançando um patamar inimaginável
para qualquer um que houvesse testemunhado a forte ligação que tivemos do momento de meu
nascimento até meados de minha adolescência.
— Quantas vezes você foi alertada…
Eu o ignorei, me atendo por completo ao e-mail que havia chegado. Era de minha
superiora e começava com “Minha brilhante Micaela”. Ela gostava de me adjetivar dessa
maneira. Brilhante, portentosa, rutilante. A lista era extensa e não me incomodava, mas a
possessividade do “minha” me causava estranheza.
Tal estranheza vinha acompanhada da lembrança de sua mão em meu braço, sobre a manga
de minha camisa, ou de seus dedos ajeitando minha gola. Atrelada ao jeito quase imperceptível
de como ela erguia a saia ao se sentar ao meu lado.
O texto seguia com o convite para uma camerata estrangeira que se apresentaria no teatro
municipal. Minha superiora fez questão de me atentar ao fato de que, naquela noite, seu marido
empreendedor não estaria em casa e, assim, não insistiria para que eu entrasse no apartamento,
antes do evento, e passasse um tempo socializando com o casal em chaises na sacada, como da
última vez.
Eu soube que meu pai se levantou pelo ruído do couro da poltrona. Desliguei a tela do
celular e o tirei de vista. Ele ficou profundamente insatisfeito e exigiu saber o que eu escondia.
Mas eu não tinha nada a esconder.
— É aquela mulher outra vez, não é?
— Ela me fez um convite para esse fim de semana — respondi, com o queixo erguido,
meus olhos nos dele. — Eu vou.
Meu pai tinha traços evidentes de frieza, uma vez que se atentasse a eles. Apreciava ordem
e metodologia. Fazia questão de apontar caminhos e aparentar altruísmo ao fazê-lo. Era ótimo
em mascarar emoções ao olho público, em elicitar a empatia de qualquer pessoa. Eu o admirava
pela maneira como se portava e como sempre sabia o estímulo correto para as respostas
desejadas.
Mas quando estávamos sozinhos, quando era só eu e ele — eu no precipício delicado entre
uma adolescente e uma mulher adulta, preenchida pela arrogância característica da idade tanto
quanto pela fragilidade que o mundo tentava me impor; e ele, um homem bem sucedido que
habitava a própria pele com força e que tinha o mundo em seu domínio —, não era sua frieza que
me assustava. Era sua sutileza.
Ele foi sutil ao tocar na aliança em sua mão esquerda. A aliança de minha mãe. Ficava
apertada nele, mas era uma estratégia bem calculada. Ao fazer isso, ele expôs a palma da mão, e
nela a cicatriz feita pelo meu canivete sete anos antes. “Você me machuca quando quer”, era o
que aquela linha em sua carne dizia. E também, “você tenta resistir, mas age como eu desejo que
aja”.
Eu sentia sua irritação comigo borbulhando por baixo de sua pele, na expansão de suas
narinas. Nos encaramos em um silêncio turbulento, travando outra de nossas batalhas de
vontades.
Por fim, ele sorriu. Eu gelei por dentro.
— Você vai — ele disse —, mas será a última vez que se encontrarão fora do trabalho. E
depois você vai encerrar o estágio, ao menos com ela. Vai impedir que ela se aproxime de você.
Não esmoreci. Eu não estava disposta a ser submetida aos seus caprichos pelo resto de
minha vida. Ou da vida dele.
— Por que eu faria isso?
— Porque estive pensando, e está na hora de nos mudarmos de novo. Acho que uma região
mais interiorana nos fará bem, pra nossa relação, pros seus… interesses. Você se arrisca demais
aqui. Aquele rapaz no molhe? Ele precisou escorregar nas pedras pra que você agisse, foi isso?
Eu não te ensinei tudo o que sei pra você atuar como uma amadora.
Meu temperamento mudou, eu o senti inflamando minhas veias.
— Até quando vai me seguir? — perguntei. — Já não basta controlar o que faço dentro de
casa, ainda me persegue em meus momentos de lazer?
Seu sorriso se alargou. Gostou de eu ter denominado como lazer as ocasiões onde eu agia
ainda mais como ele.
Mas eu não era como ele. Onde ele desdenhava das pessoas, eu me interessava. Ele as
usava, em especial as mulheres, para seu prazer e descarte. Eu, por outro lado, aprendia com elas,
e mesmo os poucos descartes ocorridos até aquele dia haviam sido eventos utilitários.
— Eu zelo pelo que é meu.
— Não sou sua.
Ele se aproximou. Minha negativa não o perturbou e fui olhada com uma condescendência
que fez meu sangue descer do coração direto para as pernas.
Eu sabia que ele nunca me machucaria. Às mulheres com quem saía, sim. Às que o
rejeitavam, sim. Às que se apropriavam dele, do coração e da mente dele, como minha mãe, sim.
Mas não a mim. Não era medo o que eu sentia por ele.
— É claro que é — disse, segurando minha mão. — Eu te fiz. Você é minha perfeita
criação.
— Você ejaculou dentro da minha mãe, isso não faz de mim sua criação.
Eu retirei minha mão das suas. Ele franziu o cenho para as minhas palavras.
— Você não faz ideia do que eu faço por você, Micaela. O quanto de mim tem em você. O
que você faria sem mim? Quem te entregaria as ferramentas pra desenvolver seu potencial tão
único? O que nós temos é um dom, mas sem os meus ensinamentos, você seria só mais uma
pessoa sem rumo pelo mundo, que nunca entenderia por completo a magnitude da capacidade
humana de criar e destruir, de moldar a realidade a si. Você carrega meu sobrenome, meu
sangue, meus pelos e minha saliva, meu claro e meu escuro, e não seria nada sem mim. Precisa
que eu esteja por perto em todas as ocasiões. Pessoas como essa mulher te desvirtuam, te
distraem, te corrompem. É por isso que vocês não terão mais contato. Ou vou conversar
pessoalmente com o marido dela. Às vezes as pessoas não veem o que está bem na frente do
nariz.
Meus dedos se encresparam com a ameaça. Precisava impedi-lo de exercer tanto controle
assim sobre minha volição. Ele tinha acesso demais à minha vida particular.
Eu quis tocar meu canivete, sentir o frio reconfortante do metal em minha palma, mas não
andava com ele naquela época. Creio que foi ali que decidi que precisava mantê-lo por perto,
como um torniquete psicológico.
— Não precisa fazer isso — eu disse. — Essa será a última vez que a encontrarei. Prometo.
Meu pai abriu os braços — cicatriz à mostra na palma, sorriso reconstituído — e em
seguida me abraçou, emitindo um som orgulhoso para si mesmo.
Foi um gesto tão apertado que eu não sabia onde ele terminava e onde eu começava. Eu me
senti da mesma maneira que me sentia desde criança, com ele exercendo a função de um porto
seguro para mim.
Rejeitei a sensação no mesmo instante.
— Quer que eu deixe de existir? — perguntou em meu cabelo, a mão segurando minha
nuca. — É isso? Quer que eu me mate por você? Diga e eu me mato. Eu te mostro, serei mais do
que um pai. Darei vazão à minha criatura.
— Não.
Nunca tive certeza se ele o faria caso eu houvesse dito sim. Mas eu não aceitaria o
sacrifício. Seria inútil para mim, só serviria para provar sua fraqueza.
Deixei que continuasse o abraço. Quando se deu por satisfeito, ele se afastou o suficiente
para me olhar nos olhos.
— Eu te conheço, filha — disse, ajeitando uma mecha solta de minha trança em frente ao
rosto. Minha superiora havia feito a mesma coisa, antes, ao me pedir que não fosse embora tão
cedo. Ela nunca mais chegou tão perto de mim depois disso.
Preferi não responder meu pai, então lhe desejei boa noite e fui para o quarto.
— Tenho um encontro marcado nesse fim de semana — ele anunciou ao pé da escada,
como se só tivesse se atentado àquilo naquele momento. Eu sabia que não. — Ela também é
professora, mas do tipo simplória. Vai valer a pena. Você se divirta com a sua enquanto eu
estiver com a minha. — Em frente ao meu quarto, ouvi a risada de escárnio que ele só usava
quando estávamos a sós. — Uma última vez anunciada é ainda mais saborosa. Sábado, não se
esqueça.
Não esqueci.
De madrugada, enquanto ele dormia, fui até seu carro na garagem.
Condição de Indesejado
Hannover, Alemanha - 2016
Birkenstock com meias. Isso sim é uma característica alemã. As meias de Adán estão
empoeiradas nas sandálias. Seus pés são grandes, largos. Ele cruza o tornozelo sobre o joelho e
conta, animado com alguém que o ouça, que é espanhol, mas que mora na França há três anos,
desde que a noiva desfez o noivado. Na ocasião, ele se sentiu tão desnorteado com a separação
que saiu da casa onde moravam, largou o emprego e foi viver em um hostel onde conseguiu sua
maior clientela de maconha e LSD da vida.
Quando ele ri, ao término do relato, olha para Micaela. Espera que ela compactue com o
humor, mas ela nem o aquiesce.
— Morei na Espanha antes de vir pra cá — é o que ela diz. — Me mudei às pressas pra
Europa, então Sebastian precisou ficar de quarentena lá até que sua boa saúde fosse atestada para
entrar na Alemanha. Ficamos em um estúdio em Barcelona.
Não havia ocorrido a Adán que Micaela não fosse europeia. Nada nela aponta o contrário.
— ¿De dónde es usted? — Ele faz questão de perguntar em espanhol pelo puro prazer de
compartilhar o idioma com alguém. — Brasileña, eh? — exclama para a resposta. — ¿Y a qué
viniste a Alemania?
Embora entenda o que é dito, ela não segue a conversa na língua ofertada. Usa
predominantemente o alto alemão, mas, pelo que Adán captou até então, também fala um ou dois
dialetos com clareza.
A noiva alemã de Adán, Lane, teria ficado impressionada. Ele a ouviu inúmeras vezes
conversando com amigas sobre como os latinos costumam encontrar maneiras criativas de se
expressar em meio às tantas nuances da língua. Ela achava confuso, para não mencionar irritante.
Micaela explica que veio para a Alemanha a trabalho. Uma oportunidade imperdível, de
acordo com ela.
— Eu também largaria tudo às pressas — diz Adán.
Micaela estala os dedos. Fez isso algumas vezes, já. Adán não quer reparar, nem apontar
coisas em quem está sendo tão generosa com ele, mas essa mulher é... Como dizem aqui?
Seltsam. Estranha. Ela presta atenção no que ele diz e investe na conversa, mas em certos
momentos olha através dele, como se estivesse perdida dentro da própria cabeça. Parece
desconcertada com algo íntimo, algo que Adán não quer saber do que se trata.
Ele não saberia lidar com mais uma mulher emotiva em sua vida. Quando elas começam a
chorar, ele tem vontade de sair correndo. Era sempre assim com Lane. E aí ela ficava chateada
por ele não saber o que fazer. Ela não tinha muita paciência, mas ele espera que isso tenha
mudado, que durante esse afastamento ela tenha vivenciado coisas que a façam entendê-lo
melhor.
Contente com a ideia, Adán se recosta no banco do passageiro, esticando as pernas a sua
frente no carro confortável. Até que foi bom largar o Fusca.
— Às vezes é bom, não é? — diz. — Deixar o passado para trás e ver o que a vida guarda
pra você.
— Você está voltando para o que deixou pra trás — Micaela contrapõe, erguendo os
óculos pelo nariz. — Talvez a segurança do conhecido seja melhor, em certas circunstâncias.
— Hum. — Adán toca no lábio inferior com os dedos de unhas descascadas. — Pode ser.
Mas e se você voltasse e percebesse que o que deixou não era exatamente o que esperava? Que
tudo está mudado?
Porque ele estaria mentindo se dissesse que não tem esse receio. E se ele e Lane
retomassem a relação apenas para descobrir que não se encaixam mais? Que depois dos
desentendimentos e do... bem, do que veio após o término, os dois não conseguissem esquecer o
quanto tentaram se machucar e a coisa toda não começasse do zero, e sim do ponto de dor e
intolerância onde se encontravam quando pararam de se falar de vez?
— Esse seria o motivo exato pra eu voltar — diz Micaela, o surpreendendo. — Gosto de
mudanças. Adoraria presenciar cada uma delas naquilo que tive que deixar, resgatar o que estiver
ao meu alcance e trabalhar para que uma nova união seja tão ou mais gratificante.
Só pode ser um coração partido, pensa Adán. Término ruim de certeza. E Micaela se
arrepende, é claro. Ele sente.
Sente pois o término dele também foi ruim, conturbado, mas não houve arrependimento de
sua parte. Até porque ele saiu em vantagem. Lane ficou com o SUV que ele mesmo tinha
escolhido, e ele perdeu o trabalho na empresa do pai dela, mas agora ele é um homem livre,
prioriza os próprios caminhos, se aventura. A roadtrip com o Fusca original da avó com certeza
foi uma aventura. A geringonça o deixou na mão bem na reta final, mas ele conseguiu uma
carona, não conseguiu? Sabia que conseguiria. Com a mente leve, era possível ultrapassar todos
os obstáculos da vida.
Bem, quase todos.
Mas ele está em uma nova jornada, se permitindo recomeços. Lane o perdoou, ao menos
pelas redes sociais, e agora ele vai lhe surpreender aparecendo em sua porta e lhe propondo
deixar os erros para trás, pelos bons tempos. Ele não consegue parar de agradecer Micaela.
Seltsam, mas gente boa. Difícil de encontrar.
Eles avançam em velocidade máxima pela Autobahn, conversando sem parar. Na verdade,
ele está falando mais do que ela, mas tudo bem. Está animado o suficiente para falar por dois,
por três.
Um desvio rápido para desatar os nós da coluna e antes do anoitecer estará na casa que
costumava morar com a noiva. Ele sente falta da residência em estilo enxaimel, das ruas estreitas
com paralelepípedos retangulares, da comida farta da sogra e dos festivais de música aos fins de
semana, repletos de pessoas com gostos em comum e que só querem se divertir, como ele.
Sente falta da noiva também. E do filho, claro. Depois do acordo judicial, só o vê pela
webcam.
Mal pode esperar para estar em casa.
O carro sai da Autobahn pela direita, entrando em um vilarejo. Cinco quilômetros depois, o
asfalto se torna terra, e a terra se converte em areia que levanta nuvens de poeira atrás do veículo
na estrada cercada por florestas de abetos.
Sebastian se anima ao reconhecer o trajeto e resfolega com a língua roxa para fora. Micaela
o traz com ela todos os fins de semana, quando deixam Hannover nas sextas-feiras à noite,
depois que a carga semanal dela na universidade se cumpre. A carga dela e dele, na verdade, já
que Sebastian por muitas vezes a acompanha pelo campus, indo a laboratórios e reuniões,
fazendo sucesso e criando colegas entre os corpos discente e docente.
Durante as semanas, ela aluga um apartamento em um condomínio pet-friendly no centro
da cidade. Comodidades às quais ela se dá o direito. Os horários de uma pesquisadora titular são
cansativos, por vezes excessivos, e muitas vezes Micaela trabalha também em seus descansos,
então nada mais justo do que se permitir boas acomodações quando fora da universidade.
Sebastian — seu único companheiro — também merece todo o conforto possível.
Hoje, tarde de sábado, ela não veio da universidade, mas saiu com Sebastian porque ele lhe
confere credibilidade. No imaginário popular, pessoas como ela não gostam de animais. Isso
porque o imaginário popular não é capaz de absorver pessoas como ela. Não ainda.
O carro desacelera e entra por uma abertura na vegetação. A estradinha desemboca em
uma propriedade agrícola cercada. Depois de uma lagoa em forma de buraco de fechadura, uma
casa de paredes de pedras e telhado quatro águas de telhas vermelhas se aninha no platô de uma
colina.
Adán se inclina para frente.
— É aqui que você mora? Em uma fazenda?
— Sim.
Uma fazenda desativada por causa dos custos de produção. O dono anterior, um chefe de
família rural, exausto de ver seu lucro ser destinado a combustível e eletricidade, desistiu dos
cultivos, vendeu o gado e os cavalos, e levou a esposa e as filhas para um vilarejo de extração
mineral. Micaela ofereceu à vista o valor pedido pela propriedade — bem abaixo do mercado —
assim que a visitou. Não desperdiçaria uma oportunidade como essa.
— Escolha interessante — segue o homem, abrindo a janela do carro. — Não é má ideia.
Quem sabe um dia eu e Lane encontramos algo assim pra gente. — Ele apoia o braço na janela
aberta e sorri com os dentes perfeitos.
Depois de uma hora ao lado de Adán, o sorriso já perdeu a efetividade. Micaela o viu
demais, e o encanto inicial se desgastou. Teria acontecido de qualquer maneira, ela sabe, mas
enquanto ele falava sobre si mesmo, a primeira impressão que teve dele, favorável e calorosa, se
dissipou em pleno ar.
Adán era mesmo perfeito para a ocasião.
Para ele, Micaela não oferece perigo. Um homem como ele nunca cogitaria temer uma
mulher, e em nenhuma circunstância se sentiria ameaçado por uma. Ela gosta disso, sempre lhe
foi uma vantagem. Se Adán soubesse do que ela é capaz de fazer, estaria correndo de volta à
civilização nesse exato momento.
Talvez ela lhe dê a oportunidade.
Sebastian corre para a vasilha de água, no canto da cozinha, do lado oposto ao fogão à
lenha. Micaela abre as janelas e, de um dos baús sob as venezianas de madeira, retira o pacote de
ração e a serve em outra vasilha. Da sala, ouve os passos das sandálias de Adán, em círculos,
abarcando o ambiente.
— Aconchegante — diz ele.
Micaela guarda a ração e olha para seu visitante pelo portal entre um cômodo e outro. As
roupas dele destoam da decoração da sala, do teto abobadado com vigas expostas, da lareira que
reina na parede de pedra, das arandelas brancas. Nesse quesito, o homem anterior se encaixava
melhor.
Adán repousa as mãos na cintura e olha para os quadros na parede. Todos abstratos, em
off-white e vermelho. A fase de Micaela com essas cores irá perdurar por vários meses, indo e
vindo, se misturando a outros tons. Alabastro e borgonha, gelo e marsala, chegando ao máximo
em crômio e carmim. Ela terá a fase cinza e a fase azul também, em todos os seus subtons, antes
de voltar a usar gamas mais abrangentes, mas off-white e vermelho só serão deixados de lado
quando ela entrar na fase canela. E essa perdurará por anos.
Uma tela inacabada repousa no tripé rente à parede. Grande, retangular, com 1,60m de
altura. Não uma imagem abstrata e sim um retrato. Micaela ainda não conseguiu o concluir por
sentir que algo está faltando. Seja dentro ou fora dela.
— Nunca entendi arte abstrata — comenta Adán.
— Arte se interpreta, não se entende. E o abstracionismo, mais do que as outras formas, é
emocional. Você sente. — Ao menos Micaela sente seu abstrato interno ao executar as obras.
São reproduções de seu estado de espírito, de como sua mente tenta se organizar através de
linhas e formas e cores ao lidar com a ausência de Anna dia após dia.
— Artistas têm as melhores almas. — Adán sorri, sem maiores brilhantismos a acrescentar,
e aponta para um dos sofás entre as poltronas, perguntando se Micaela se importa se ele se
sentar.
— De forma alguma.
— Você tem algo pra beber? Pode ser água. Estou seco.
Ele não a vê sorrir porque Micaela anda até a geladeira. Ela a abre e finge ponderar o que
mantém ali dentro.
— Tenho água, sim — diz —, e também cerveja e Jagermeister. Ou posso passar um café.
— Como uma perfeita brasileira. A fama do café de vocês vai longe.
Adán está no sofá de três lugares, o maior do conjunto, com o piano vertical ao fundo. Ao
se mudar, Micaela se desfez de muitos dos móveis da casa, dos tapetes grandes e estampados,
dos utensílios arcaicos, das luminárias arredondadas que conferiam luz em demasia. O espaço
ficou amplo e minimalista. Mas o piano ela deixou. Não tem utilidade, visto que não possui a
menor aptidão musical, mas é um elemento estético agradável, e às vezes, de madrugada, quando
não está ocupada com o trabalho ou evitando pesadelos, pressionar as teclas aleatoriamente ajuda
sua mente a restabelecer o foco.
— A fama brasileira vem da produção, não da qualidade — diz ela, com as mãos nos
bolsos da calça jeans preta. Os primeiros dias de frio europeu a fizeram trocar o linho por tecidos
mais térmicos. Adaptou-se ao jeans, versátil e resistente. — A torra do café alemão não faria
sucesso no meu país, mas aprendi a apreciar.
— Eu adoraria entender de onde vem sua apreciação — dia Adán —, mas não tomo café.
Posso aceitar um pouco do seu Jagermeister?
Se não quisesse que aceitasse, Micaela não teria oferecido. Ela ficaria satisfeita com
qualquer escolha que ele fizesse, mas a bebida destilada favorece ainda mais seu propósito.
Ela volta à cozinha e do congelador retira a garrafa verde do licor. Lamenta não ter
congelado o copo também, para que Adán obtivesse a melhor experiência, mas vai bastar.
De um dos armários, pega um frasco de remédios. Caem três na palma de sua mão e ela
devolve dois. Adán é alto, quase tanto quanto ela, e apesar dos ombros estreitos parece ser forte
sob a jaqueta de couro, mas seu índice de gordura corporal deve ser o suficiente para apenas um
comprimido.
Com uma espátula de drinks, ela auxilia a dissolvição do remédio na bebida. Sebastian,
com o focinho molhado e lambendo as bochechas, a acompanha até a sala. As unhas batem
ritmadamente no assoalho de madeira.
— Ah... não sei se mereço tanta bondade sua — diz o visitante, de olho no copo nas mãos
de Micaela.
— É claro que merece. Você está a caminho de um grande reencontro. Aproveite. É uma
ótima ocasião.
Ele ergue a bebida antes do primeiro gole.
— “Ein Prosit”!
— “Prosit” — responde ela.
De volta à cozinha, ela guarda a garrafa e o frasco de remédios, e seca a água que
Sebastian deixou pingar ao redor das vasilhas. Adán fala com ele em um tom amigável, que
remete Micaela à alguém que conversava no mesmo tom e que oferecia ao cachorro melhor
companhia durante o sono.
Micaela lava as mãos e se recosta na pia, olhando o céu azul pela larga janela retangular.
Uma tarde bonita de outono. Um grupo de pássaros sobrevoa a fazenda, colina abaixo, e suas
sombras se projetam pelo campo onde antes havia plantações.
Distraída, ela percorre o próprio pescoço com as pontas dos dedos. Lembra-se de outros
dedos ali, lhe causando sobressaltos e arrepios prazerosos. Não sentiu mais nada parecido desde
setembro do ano passado, quando saiu do Brasil. Há treze meses.
Não achou que seria tão pesaroso. Racionalizando, foi o melhor a se fazer, de fato. O certo,
se fosse usar tal classificação. Mas ela não contava com os pensamentos insistentes, com as
sensações que transbordam e se tornam táteis por toda a pele. Não contava com a solidão.
A verdade é que Micaela conhece pessoas diferentes a cada dia, seu trabalho exige muito
de seu tempo, ela está feliz com seu desempenho acadêmico, mas se sente sozinha.
Com um suspiro que escapa sem permissão, ela abre o botão mais alto da camisa e tateia a
garganta descoberta. Por quanto tempo estaria disposta a aguardar pelo reencontro? Meses?
Anos? De quanto tempo Anna precisa para se afastar cognitivamente dos feitos de Micaela a
ponto de sobrar apenas o desejo de estar com ela?
O desejo de Micaela por vezes lhe consome, pulsa por seus impulsos elétricos. Ela sente
falta da pele negra, dos cachos do cabelo, dos olhos de cor tão única, do cheiro e da maciez da
amplitude do corpo de Anna. Não deveria ser assim, mas é.
Então que seja.
Micaela ouve Adán dizer algo lá na sala. Algo baixo, indistinto.
Ela joga a longa trança para trás. Tem pensado cada vez mais em cortá-la. Imagina-se com
um corte curto e prático, e se pergunta se Anna gostaria de vê-la assim. Se dormiria com a mão
embrenhada em seu cabelo. Se a encararia como fazia quando a via com a trança desfeita.
Mas se passarão anos até que ela obtenha essas respostas.
Na sala, Adán está deitado no sofá. Micaela se aproxima em silêncio. Sabe onde pisar para
que as tábuas não emitam som algum. Sabe ser imperceptível dentro da própria casa.
Seu visitante parece dormir. O cabelo comprido lhe cobre parte do rosto. Da mão
estendida, rola o copo com o restinho do Jagermeister.
Micaela junta o copo e se põe a trabalhar.
Anoiteceu rápido, Adán percebe. Era dia quando o Fusca engasgou e morreu de vez,
quando a bateria do celular acabou, logo em seguida.
Onde está o celular? No bolso da calça, claro. Mesmo descarregado o aparelho está com
ele. Não o deixaria em outro lugar.
Ele tenta alcançar o bolso de trás, mas não consegue. Está muito escuro e a escuridão o
segura. Seu braço não se movimenta. A mera tentativa faz o ombro doer. E a cabeça. Uma dor na
nuca que irradia da base do crânio até seus dentes da frente. Gosto alcoólico. Metal na língua.
Não entende como de repente engolir se tornou um ato mecânico.
Adán cospe o gosto ruim e a saliva acumulada. O cuspe escorre pelo queixo, entre os pelos
grossos da barba.
Cheiro pesado no ar, como se a escuridão e seu corpo imóvel exalassem perfume próprio.
Água sanitária. Som nenhum, nem mesmo os pássaros que revoavam pelo céu quando ele
estava...
Onde ele estava? No carro confortável. Não, na estradinha em meio a floresta de abetos.
Não. No sofá. Era claro e tão largo. Macio. Ele olhava para aqueles quadros esquisitos em sua
frente, abstratos e sem sentido. Preto e branco e vermelho. Ouvia os pássaros. Mais branco do
que vermelho, nos quadros. Formas que ele não conseguia distinguir. Talvez se olhasse mais
tempo, entenderia. Pássaros no céu e o gosto de ervas no fundo da garganta. E então nada.
Tenta mover as pernas. Nada. Nada sob seus pés, nem as Birkenstocks. Adán gosta delas,
um presente de sua sobrinha caçula, no último aniversário que ele passou na Espanha. Achou
brega no começo, mas se acostumou, e lembra da menina sempre que usa. Chegou a comprar um
par parecido para o filho.
Os cotovelos se chocam contra algo duro, as costas estão escoradas no frio. Ele está sem a
jaqueta, vestindo apenas a Henley cinzenta e surrada, antiga, de mangas compridas, que comprou
há anos em um mercado de rua na Rue Mouffetard, antes de morar na França. Antes mesmo de
ter terminado a escola.
A cada tentativa de movimento, a cabeça lateja. Pancada? Por que não enxerga? E de onde
vem esse som? É novo, não havia som antes, certeza. Um zunido, baixo e contínuo.
De repente, luz. Luz demais.
Adán aperta os olhos e tenta se esquivar sem saber exatamente do quê. A claridade súbita
lhe deixa zonzo e o cheiro de água sanitária parece mais intenso. O ar está quente, mais quente
do que antes.
— Abra os olhos — diz uma voz que o corta como uma faca afiada. Um talho gelado
acima do umbigo. — Pode me olhar.
Ele olha. Gritaria, se conseguisse, se sua boca lhe obedecesse. E se não estivesse preso
pelos pés e mãos, com apertadas pulseiras de couro, teria se jogado para longe do que viu.
Micaela acima dele, em pé. Ele no chão, imobilizado.
Não há nada diferente nela — roupas pretas, óculos de armação grossa, cabelo preso em
trança —, mas o olhar faz seu sangue se curvar nas veias, enregelado. Ele entende então, em
algum lugar de sua mente cansada, exausta, lenta, que precisa sair imediatamente de perto dela.
Sacode os membros, força os músculos, agita os ombros, o quadril. As correntes em seu
cinto ecoam em concreto. Concreto do chão, concreto das paredes, concreto do teto. Diferente da
casa de madeira onde estava.
É outro espaço, ali. Prateleiras com mantimentos, tubulação de aço que corre o perímetro,
descendo ao chão em vigas de concreto armado. É onde seus punhos estão presos. Os tornozelos
em vergalhões de aço fundido ao solo.
No teto, lâmpadas de LED quase o cegam e causam um halo fantasmagórico ao redor de
Micaela.
O que é esse lugar? Uma oficina? Porão?
— Um bunker — responde Micaela, mesmo que ele não tenha perguntado nada.
Quer perguntar, mas não consegue, dá muito trabalho. Engole com esforço, sente o gosto
de ervas e lembra do licor.
— Um esconderijo dos tempos de guerra — segue ela, o olhando de cima, sem a menor
emoção. Braços longos ao lado do corpo esguio. Nada abaixo de seus ombros se movimenta, mas
por trás das lentes um olhar perigoso, de quem sabe o que faz e nada tem a perder. De quem
segura o futuro de Adán nas mãos e está disposta a aproveitar a oportunidade.
Ela se agacha ao lado dele. Adán tenta se afastar, mas as pulseiras são muito justas e só o
que ele consegue é angular um pouco o corpo.
— Muitas casas na Alemanha abrigam porões transformados em bunkers improvisados.
Mas esse — ela olha ao redor — foi construído para ser um bunker de verdade. Para
sobrevivência.
Quando os olhos dela retornam aos dele, Adán sabe que está encurralado, sem voz, sem
ação. Nada ao seu favor, nenhum controle.
— A sobrevivência, claro, não é uma garantia.
Um som estranho escapa da garganta de Adán, vindo do fundo do seu corpo, da sua alma.
Micaela se levanta e anda até uma das prateleiras na parede mais próxima, dando às costas para
ele, lhe deixando com o cheiro de água sanitária.
Repuxando as pulseiras que não cedem, ele olha ao redor em desespero. Concreto, LED, a
portinhola de metal do quadro de distribuição, armários aéreos. Em um canto, colchonetes, uma
bancada de aço, cadeira. Tudo fora de seu alcance. Ele está isolado ao centro.
As botas pesadas de Micaela pisam próximas às costelas dele. Ela tem algo nas mãos e um
sorriso leve no rosto. Como o que tinha quando parou o carro para lhe oferecer carona.
— Por... que... — começa Adán, mas o resto não sai. A mente completa a frase sozinha,
em vão. A língua não a acompanha. Por que estou aqui? Por que fez isso comigo? Seria o que
ele perguntaria.
— Estou curiosa quanto a algo — diz Micaela, sem se importar com a luta de Adán pela
própria fala. — Não é do meu feitio, esse tipo de curiosidade. Você vai me permitir saciá-la. —
Com a ponta da bota, ela o cutuca. Ele se contorce como um peixe.
Os olhos dela não deixam os de Adán, mesmo quando ela senta em seu quadril, com os
joelhos dobrados, cada um em um lado dele. Ele tenta gritar — por surpresa, por puro horror da
proximidade, por se sentir sitiado —, mas o que sai é um resmungo entrecortado.
Micaela sorri, obviamente se divertindo com as ridículas tentativas de mobilidade dele.
— Você não tem escolha, caso não tenha percebido.
Uma vasilha de metal. É o que ele identifica na mão dela. Mas tem outras coisas. Ela as
deixa no chão, ao lado do rosto de Adán. Ele se afasta em reflexo.
Micaela abre uma navalha. Sua empunhadura no cabo de marfim é firme, experiente. A
lâmina brilha na luz branca.
De olhos arregalados, Adán esperneia e solta ganidos. Tenta chutar o ar, movimentar os
joelhos, deslocar o peso de Micaela de si.
— Eu não aconselharia fazer isso — diz ela, olhando para a navalha como se não estivesse
sentada sobre alguém se debatendo. — Em especial quando a lâmina estiver rente a sua pele.
Mas vá em frente. Não serei eu a protestar.
A voz de Adán sai pela primeira vez. Estrangulada e sem sentido, um balbucio inócuo.
Mas é algo.
— Eu preferiria que não falasse, mas sinta-se à vontade. Pode até gritar, se desejar.
Nenhum som perpassa essa estrutura.
— Você... é... louca...
Micaela franze o cenho, desapontada.
Adán solta um guincho quando ela o agarra pelo maxilar. Tão rápido que sua cabeça bate
contra o concreto do chão e a dor lhe rasga pelos ossos do crânio. Ele tem a impressão de que
isso já aconteceu antes.
— Essa é a sua suposição? — diz ela para o rosto dele. — A minha é de que você vai ser
uma nova pessoa quando eu terminar essa etapa.
O frio da navalha repousa sobre a bochecha de Adán, próximo ao olho direito. Os
músculos tremulam contra sua vontade e ele estremece com a força com que os dedos dela o
prendem. Com a calma contrastante que ela fala.
— Quando sua ex-noiva se apaixonou por você, quando ela prometeu que te faria feliz pra
sempre e acreditou que você a entregaria o mundo, você não tinha barba.
A mente de Adán acelera. Como ela poderia...?
Sua mala no carro dela. A carteira. Talvez o celular não esteja em seu bolso, então.
— Você tem um extenso rastro digital.
A lâmina desce pelo rosto dele. Ele espera o frio do corte, o molhado do sangue, mas nada
ocorre. O que sente é o calor do corpo de Micaela através das roupas.
Nunca se sentiu tão humilhado antes, dominado por uma mulher. Seja lá o que ela
administrou na bebida dele, foi potente o suficiente para interferir nas mínimas funções de seu
corpo.
— Lane apagou das redes sociais as fotos do relacionamento de vocês, e te privou de
muitos acessos à vida dela. Vocês têm conversado, sim, mas creio que não conheça os homens
que convivem com ela. Em especial aquele com o qual ela tem criado seu filho, um analista
financeiro doze anos mais velho, com boa escolaridade e investimentos em ONGs de restauração
ecológica. Ele não tem barba.
As pulseiras de couro sacodem, mas não cedem. Adán esperneia entre ofensas e saliva.
Micaela se endireita e aguarda.
Respirando fundo, com os ombros doloridos, a cabeça latejando e amaldiçoando baixo,
Adán assiste exausto Micaela deixar a navalha sobre seu esterno e alcançar a vasilha ao seu lado.
Com um pincel de pelos de texugo, ela lambuza a barba dele de creme, sem pressa e com mais
atenção do que o momento permitiria.
Levou anos para que a barba tomasse esse volume, para que ele deixasse de parecer só um
drogado sem acesso a um barbeiro. Adán tem orgulho de seus pelos faciais, eles lhe conferem
certa autoridade, delineiam sua masculinidade. Lane, de fato, não gostava dele de barba, mas isso
era um problema dela.
Seria verdade o que Micaela disse? Lane estaria mesmo deixando seu filho com outros
homens?
Os músculos dele protestam a passividade imposta. Ele quer chutar, quer bater, quer
quebrar. Quer correr. Precisa sair dessa, precisa escapar, e não vai ter piedade dessa mulher como
já teve de outras.
Ele segura a indignação quando Micaela termina de lhe aplicar o creme. Mas ela não solta
a navalha. Pelo contrário, ergue o queixo dele e repousa a lâmina afiada contra a garganta,
próximo ao pomo de Adão que se movimenta quando ele engole.
— Você é louca... — ele ofega, porque é o que consegue fazer. — Louca...
— Errado.
Mas não há outra explicação para uma mulher que o droga e o amarra na porra de um
bunker e está prestes a raspar sua barba. Ela é louca sim, maluca de tudo.
E não o deixará sair dali.
Com a respiração quente em seu rosto e os sons da lâmina por seu pescoço, Adán pensa em
Lane, criando o filho com outro homem.
Pensa no filho perdendo-o como uma referência paterna. Pela primeira vez, imagina o que
acontecerá se acabar aqui, nesse lugar macabro, aquecido demais, brilhante demais. Como
saberão o que aconteceu com ele? Em quanto tempo se darão conta de que estava sumido? Ele
deveria ter avisado Lane. A surpresa foi uma péssima ideia. Também não avisou aos pais que
viajaria. O único que sabe da aventura de Fusca é seu colega de quarto, no hostel. Ele faria algo a
respeito?
Lane não saberia de nada, imaginaria que ele apenas desapareceu outra vez e seguiria
vivendo sem ele, com o filho e outro homem.
Uma lágrima arde no canto do olho e escorre pelo lado do rosto. Micaela para a lâmina,
limpa-a do creme e dos pelos na tigela, e olha Adán com interesse, acompanhando o traçado da
lágrima como se não entendesse a razão de ela estar ali. Então olha em seus olhos e ele quer
gritar.
Um espasmo involuntário e a lâmina lhe corta o queixo. Micaela não reage, ajeita os
óculos e segue lhe tirando a barba, em um silêncio angustiante interrompido apenas pelo zunido
do aquecedor e do som áspero dos pelos sendo cortados.
Adán se sente dilacerando por dentro, imóvel, e não consegue impedir que outras lágrimas
lhe escapem.
— Agora, sorria.
Adán não sorri. Seu rosto está limpo. Liso. A pele, como Micaela havia especulado, não
tem imperfeições além da que ele mesmo provocou no queixo, quando se moveu e ela o cortou.
Então agora ela busca pelas covinhas.
Ele só tem que colaborar.
— Não lhe custaria nada — diz ela, ainda sentada sobre o quadril de Adán. Ele é magro ao
ponto de ela sentir suas protuberâncias: a ossatura, a genitália, o cinto com correntes, e o zíper do
jeans em contato com a costura de sua própria calça.
Se ela se esfregasse nele, se causasse fricção, talvez algo sexual lhe aflorasse. Mas é inútil.
Desde que chegou na Europa, ninguém lhe despertou qualquer tipo de interesse. Ela não
costumava sentir estranhamento quanto a isso, antes de Anna.
Depois de Anna, no entanto, sua vida é um estranhamento volumoso e complexo que só
piorou quando teve que deixar o Brasil. De lá para cá, seus movimentos, seus hábitos, as coisas
que ama e conhece, as lembranças e a própria arquitetura de seus pensamentos lhe conferem um
espaço mental que a deixa à mercê das emoções.
E mesmo suas emoções estão fora de ordem.
— Só preciso que ative os músculos quadrilaterais do rosto — segue ela, indicando as
próprias bochechas.
— Você é louca — Adán cospe, forçando as pulseiras de couro. Micaela se aborrece
porque ele já havia dito isso. O que ela não daria por um pouco de originalidade nesses
momentos. — Você precisa de ajuda, precisa ser encarcerada. É louca, psicopata. Uma demente.
— Não — responde ela, lutando contra a própria irritação. — É um fácil equívoco, eu
entendo, mas vou te esclarecer a respeito de mim: Sou estável, venho de família bem
estabelecida e com prestígio social. Sou bem educada e bem empregada. Construí um vasto
currículo de contribuições acadêmicas e mantenho boas relações. Demente? Não. Pode me
acusar de ser inconformista, isso é fato. Por conta disso, sou procurada em outro continente por
crimes violentos. Homicídio qualificado, assassinato em série, ocultação de cadáver, emboscada,
perversidade, envenenamento. Não sinto remorso por nenhuma de minhas ações. Não sou
impulsiva, mas aproveito as oportunidades. Psicopata? Não tecnicamente. Se te interessa de
verdade, saberá que estou muito abaixo do ponto de corte na escala de psicopatia de Hare,
porque pouco do que faço cai em padrões e o que estou fazendo aqui, com você, é um favor.
Você vai lutar pra não morrer e isso vai fazer com que se sinta mais vivo do que nunca. Nunca
experienciará algo tão potente quanto o que vai sentir quando isso acabar.
Adán estremece. Ele é resistente, e se divide entre ceder ao medo e se ultrajar com o que é
feito com ele. Tanto que tenta enfrentar Micaela como se não fosse ela a exercer o poder nessa
situação. Para ela, é interessante, um desafio até, mas um tanto enfadonho.
— Me tira daqui — ele choraminga, contorcendo as pernas sob Micaela. — Não vou
contar pra ninguém… nada disso. Não vou nem… falar de você, prometo. Só me deixa sair…
encontrar minha família.
Esse homem a julga mais ingênua do que ela pensou. Ele acredita realmente que a
convence? Convence outras pessoas? Quantas mulheres se deixaram levar por essa
dissimulação?
— Não me parece que se importe com sua família — diz ela.
Nas onze horas em que Adán passou ali embaixo, desacordado, ela fez questão de conhecê-
lo melhor. Não o que ele apresenta, mas o que sua vida online revela sobre ele.
Então ela recarregou o celular, excluiu o histórico de geolocalização do aparelho, e acessou
as principais contas para ver o panorama cuidadosamente construído. Mas, sendo quem ela é,
Micaela foi além da superfície.
— Difamou sua ex-noiva depois que a abandonou sem justificativa alguma, para se
desenlaçar do compromisso romântico com ela, o que você narrou como “triste, mas necessário”
para um amigo. Tentou prejudicá-la denunciando-a na rede de proteção à criança, acusando-a de
exercer má parentalidade, mas mesmo com a ação judicial que moveu contra ela, onde ela
contra-argumentou te acusando de ameaça e stalking, você não conseguiu comprovar suas
alegações. Você não perdeu a guarda de seu filho, mas não colabora de maneira alguma com a
criação dele. Agora quer se reaproximar. Não dele, mas dela. Eu diria até que do pai dela, dono
da empresa que te empregou por anos. É fácil relacionar essa movimentação ao fato de que você
se encontra falido, sem fundos no banco, e com dívidas de empréstimos que se obrigou a fazer
por ter consumido grande parte das drogas que se vangloria por vender.
— Por que está fazendo isso? O que quer de verdade comigo?
— Você está cumprindo seu papel. Não há muito mais o que se querer.
— Como consegue ser assim, má?
Micaela escarnece.
— “Má”? — Uma palavra tão pueril. Simplória até. Que ousadia. — Não me reduza.
Adán balança a cabeça. Seu cabelo comprido se espalha no concreto.
— Me deixe ir. Pelo bem do meu filho, me deixe ir.
— Está usando uma criança para se defender. E eu sou má?
— Estou lutando pela minha vida!
— Lutar pela vida não lhe garante o direito de viver.
O que ele diz depois disso, Micaela não ouve mais. Ela se levanta, com a vasilha, o pincel
e a navalha em mãos, e lava os utensílios na pia. Limpa a navalha e a afia com cuidado na faixa
de couro, guardando-a em um dos armários. Adán argumenta o tempo todo atrás dela. Os
grunhidos se tornam gritos roucos, ainda tímidos, ainda testando limites.
Ela se vira e o vê se debater. Parece mirrado assim, deitado no chão. Talvez ela devesse tê-
lo deixado com barba mesmo. Se assemelharia menos a um réptil sem escamas.
O que a fez achá-lo agradável quando o viu? Talvez a confiança que ele depositou nela.
Básica estupidez masculina. Felizmente, ele não ocupará seu espaço por muito tempo.
Quando Micaela entrou pela primeira vez no bunker — quando ainda pesquisava os
imóveis à venda —, ela adorou a estrutura. Esteticamente aprazível e propícia. Funcional, com o
ralo para escoamento entre as pernas de Adán, que lhe permite sanear todo o ambiente com
esmero.
Os proprietários anteriores não souberam dizer se o bunker chegou a ser usado para seus
fins, mas quando ela se viu sozinha nele, após a compra, o que ela enxergou foi um salão
marcado pela fuga, pela solidão, pela condição de indesejado, e gostou.
— Por que só não me deixa em paz, sua doente?
Às vezes ela também gostaria de ser deixada em paz. Se conseguisse esvaziar sua mente,
talvez se sentisse melhor. Menos agitada. Mas a última vez que se viu em paz ela tinha Anna em
seus braços e a certeza de ser invencível. Levará outros seis anos para que algo semelhante
ocorra novamente.
Ela anda até Adán. Ele se assusta, mas tenta não transparecer. Patético.
— Por que você deve ter algo que eu não tenho? — pergunta ela, e vê o rosto dele se
contorcendo em confusão.
Olhando-o por inteiro, dos cabelos soltos aos pés amarrados, Micaela sente as emoções
borbulhando nas entranhas. Tenta refreá-las, manter o domínio tão preciso que sempre teve sobre
si. Quase consegue.
Um estalo e Adán grita. O corpo se contrai no aprisionamento. Micaela olha para o próprio
calçado com curiosidade, como se sua perna tivesse se movimentado sem permissão.
Mas não, foi ela mesmo, por vontade própria. Com o calcanhar pesado da bota, ela golpeou
o joelho de Adán. Houve um som contundente por baixo do grito imediato. Poderia contar com a
patela deslocada, no mínimo.
Entre gritos e grunhidos e a fúria lançada em sua direção, Micaela se afasta, apaga as luzes
do bunker e sobe as escadas de volta à casa. Os gritos de Adán ficam presos atrás da porta
fechada.
Adán está pálido e ofegante. Ele fala algo desimportante com a voz rouca de tanto gritar.
Um esforço dramático. Seus olhos parecem afundados no crânio e se movem atormentados por
Micaela. O que ele diz, o que ele faz, mal atravessa a consciência dela. Mais um pouco e ela não
terá que lidar com mais nada disso. Mas antes…
Antes ela vai até ele e se agacha ao seu lado. Alcança a tira que prende um dos pulsos ao
chão e o liberta. Depois vai até o outro e faz o mesmo. Adán olha estupefato, em uma mistura de
alívio e medo, com um questionamento idiota e inútil no rosto.
Micaela livra também uma das pernas, a que tem o joelho atingido. Então ela se levanta e
se afasta e Adán olha entre ela e a perna ainda presa. Ela o assiste, no aguardo da próxima
atitude.
Em um impulso desesperado, Adán se lança à tornozeleira ainda fechada e seus dedos se
embaralham na tentativa de abri-la. Micaela sorri com a previsibilidade do ato.
Ele não percebe que ela está em frente a caixa de energia.
Ela apaga a luz. Com isso, somem todos os sons — mesmo o zunido baixo que mantinha o
bunker aquecido. Quando Micaela ouve algo é a respiração entrecortada de Adán.
Micaela se move, passos calmos e silenciosos. Os movimentos de Adán se agitam. Faz-se a
certeza de que se levantou quando seu pé inerte o obriga a pisar com mais força com a outra
perna e ele não contém o xingamento. As correntes de seu cinto balançam e denunciam sua
posição.
No total escuro, Micaela sobe as escadas. Ela sai do bunker, mas dessa vez deixa a porta
aberta.
A garganta de Adán arde de tanto ter gritado, sozinho, no escuro. Os efeitos da droga
deixaram seu corpo à deriva na realidade crua da situação. Cada músculo, cada junta e tendão se
queixa das inúmeras horas seguidas na mesma posição. O joelho — que a desgraçada deslocou
com o chute — lateja em agonia. Além de tudo isso, ele sente fome, sente sede, exaustão mental
e vontade de ir ao banheiro. Mas todos os seus instintos lhe mandam correr.
Ele não consegue, claro. Anda o mais rápido que pode, com os braços esticados à frente,
tateando o absoluto breu, saltitando com o peso na perna boa. Logo se choca contra algo
metálico e o barulho explode em seus ouvidos. É o balcão embaixo do armário de onde Micaela
retirou a navalha e a vasilha de barbear.
Adán passa a ouvir a própria respiração. Tem a sensação de estar prestes a ser emboscado.
Onde está ela? A doente que fez isso com ele?
Ele esconde o medo atrás da raiva e diz para si mesmo que a mataria caso tivesse a chance.
Se aparecer em sua frente, ela tá fodida. Blanca hija de puta. Ele vai acabar com ela com as
próprias unhas.
Nunca se sentiu tão vivo. Tão selvagem. Uma selvageria bruta, mas deslocada, porque
nesse momento ele precisa de foco. Nem consegue encontrar algo útil para usar a seu favor. As
mãos nervosas derrubam tudo o que tocam. É barulho demais, uma exposição constante. Ele tem
que ficar quieto, encontrar a escada e subir, sair dali, daquela casa, chegar na estrada…
Seu pé com meia encontra o primeiro degrau. Ele sobe com dificuldade, contendo o que
pode do gemido sufocado na garganta, empurrando a dor para um canto da mente. Galga um
degrau de cada vez, escorado na parede, olhando para cima em busca de claridade, de qualquer
coisa que o norteie.
Ao alcançar o degrau mais alto ele sente a mudança de atmosfera. Ar estagnado, mas
menos quente. Tateia ao redor e encontra uma parede de madeira, prateleiras, pilhas de algo
macio como tecido… Closet? Pode ser. Claro que essa maldita teria a entrada de um bunker
escondida em um closet.
Piscando repetidamente, na vã tentativa de obter qualquer orientação sensorial, Adán deixa
o closet para trás. Algo estremece ao seu redor e ele apura os ouvidos para ouvir. Mas são só
insetos, em algum lugar lá fora. Lá onde ele deve chegar.
Mãos espalmadas contra a parede, boca entreaberta, ele segue. Ignora a dor no joelho, o
estômago vazio e os músculos extenuados. Ignora também que as correntes de seu cinto tilitam a
cada passo dado.
O chão range bem ao seu lado e algo esbarra em seu cotovelo. Ele corre como consegue,
desajeitado, aos pulos, sem saber para onde ir. Na massa densa e opressiva que é a escuridão ao
seu redor, ele ouve um “hum” seco, sarcástico.
É ela. A voz cortante mesmo em um som tão curto.
— ¡Vete al diablo! — Ele diz para o nada, porque ela o espreita ali. — Você vai pagar por
isso. Já estão me procurando, me viram entrar no seu carro, vão juntar as peças. Minha família
vem atrás de mim.
— Você fala demais.
Ele se apressa pelo desconhecido, com suor na testa e braços esticados. Quer e não quer
encontrar algo. Já se sente tonto, desorientado. Se ela o soltou, por que não o deixa ir? O que vai
acontecer? ¿Qué cojones es esto?
O ar à sua frente muda de direção e contorna uma forma sólida. Adán tateia com
desesperada cautela e define um sofá. Então ele está na sala, ótimo. Perto da saída. Se ele se
concentrar, vai encontrar a porta. É só vencer esse tilintar irritante que o persegue…
É seu cinto. Claro, como não o percebeu antes? Apoiado em um único pé, Adán desfivela o
cinto e o tira. Não se importa de jogar para longe de si. Que se foda.
O cinto bate na parede e cai no chão. Adán segue andando, com um pouco mais de firmeza
agora, sentindo a liberdade nas pontas dos dedos e em cada batida do coração.
Sua patela ferida esbarra em algo sólido e Adán não contém o grito. Ele cai sobre a mesa
de centro, sua algoz, e segura o joelho. Com o cabelo grudado na testa, ele xinga e arfa.
Micaela ri. Parece vir de todos os lugares da sala ampla, mas é só a mente confusa de Adán
projetando o pânico. Na verdade, Micaela está mais próxima do que ele imagina, mais dona da
situação do que nunca.
O perigo da risada faz Adán voltar a andar. Cada vez que o pé da perna lesionada toca o
chão, ele grunhe, mas segue andando porque agora enxerga uma luz.
Bem, não exatamente uma luz, mas a falta de escuridão, emoldurada logo a frente.
É uma janela. Adán chega à cozinha.
Formas se definem. Armários, prateleiras, fogão à lenha. O que ele pode pegar? O que
machucaria Micaela o suficiente para ele poder escapar?
Antes que algo se apresente, ele ouve um som distinto. Um ruído repetitivo próximo ao
chão. Adán sabe do que se trata e anda em direção a ele. Encontra o cachorro, Sebastian,
comendo em um canto da cozinha, refastelando-se com a ração, em completo alheamento ao
sofrimento de Adán.
O cachorro é o ponto fraco dessa piranha. E vai ser sua chave para a liberdade.
Ele o agarra. Sebastian é pesado e seu corpo se enrijece imediatamente, se debatendo.
Adán ignora o choramingo e prende o cachorro contra o peito, pronto para enfrentar Micaela.
Mas uma pancada em sua nuca o para em meio passo.
Atordoado, Adán cambalea para o lado. Ele se dobra e derruba Sebastian, que corre para
longe. No milissegundo que é necessário para que Adán compreenda o que acabou de acontecer,
a raiva por Micaela se multiplica, se espalha por seus membros como fogo sobre pólvora. Ele
avança para combatê-la, com os braços em riste, em um girar do quadril que surpreende até
mesmo a ele.
Grunhindo como um animal, ele tenta atingir Micaela, punhos golpeando o ar. Até que
uma agitação metálica soa ao lado de sua orelha, tão próximo do rosto que ele instintivamente se
impulsiona para trás.
É em vão. O metal afiado lhe perfura o peito. Corta a camisa Henley, a pele e os
músculos.
A dor aguda lhe atinge em cheio, e lhe paralisa na confusão súbita do golpe inesperado.
Quando ele cai, o ar lhe sobe gorgolejante pela garganta.
— Maldita seas…
Adán reluta contra a dor, contra o espanto, e contra o choque que quer imobilizá-lo de vez.
O canivete lhe é arrancado do corpo. Ele teme um segundo golpe, mas não espera por ele.
Engatinha rente à parede, apoiado nos pulsos e em um joelho, arrastando a outra perna, sentindo
o sangue abundante escorrer pelo peito, pingando pelo chão de madeira.
Ao tentar se erguer, ele escorrega no piso ensanguentado. Mas se recusa a terminar ali,
daquele jeito.
Procurando apoio na parede, a mão encontra o tripé com a tela inacabada. Serve como
apoio. Adán se levanta, mas uma onda de tontura o atinge com força e o derruba.
— Me desculpe — diz ele. — Me desculpe, eu não queria… Vou ser melhor, prometo.
Vou ser um bom pai…
De cara no chão, cheirando o próprio sangue misturado ao suor, e sentindo a vida lhe
escapar a cada batida do coração perfurado, Adán solta um grito esganado quando Micaela o
puxa pelo cabelo, força seu pescoço para trás e envolve a garganta com o cinto de correntes.
— Não tenho interesse em suas melhorias — diz ela, afivelando o cinto. Ela o puxa com
força e continua puxando, cravando o couro na pele do pescoço de Adán.
As mãos ensanguentadas dele lutam por liberdade, agarram as de Micaela, e suas pernas se
debatem. A bota de Micaela força sua coluna dorsal para baixo. Em pouco mais de um minuto, o
corpo estrangulado de Adán cai pela última vez, no escuro, sobre a poça crescente de sangue
morno.
Já está amanhecendo quando Micaela adentra a varanda. Vinda do pasto ao leste da casa da
fazenda, onde outrora ficava o gado, ela bate as botas no degrau para se livrar da terra revirada
agarrada à sola. A pá ela deixa encostada na murada da varanda, e as luvas ela retira e leva
consigo para dentro de casa.
Sebastian segue em seu encalço, animado, com o rabo no ar. Ele toma água enquanto
Micaela leva uma chaleira ao fogão. Quando o café fica pronto, ela se serve e beberica da
caneca. Na sala, pega a jaqueta de couro de Adán.
A bolsa dele, com as roupas de viagem, celular, carteira e documentos já não existe mais.
Nem as Birkenstocks. Foi tudo consumido pelo fogo, e Micaela atira a jaqueta na lareira para que
siga o mesmo destino. Ao final do dia, se livrará dos botões, ilhós e zíperes, os espalhando pela
floresta de abestos.
O cinto, próximo à poça de sangue agora iluminada pela aurora que cresce sobre a fazenda
e entra pelas janelas, também é jogado na lareira.
O uso do cinto não foi necessário, Micaela sabe. Um mero capricho. Pelo o que pôde
avaliar da situação — do seu treino —, a punhalada no coração teria sido suficiente.
Com isso, ela sorri. Alguém finalmente lhe proporcionou o que ela vinha buscando nos
últimos meses. Adán foi ótimo em seu papel, em sua estatura, em sua inutilidade como ser
humano. Muito se assemelhava ao alvo escolhido por Micaela para servir de mensageiro: o
professor universitário que favorece alunas de acordo com seu senso estético.
Anna irá entender a mensagem. Claro que irá. Ela é esperta e capaz de seguir o raciocínio
de Micaela. Uma parte do cérebro de Anna é muito semelhante ao dela, embora Anna ainda não
tenha se dado conta disso. Mas há tempo para tudo. Mais alguns ajustes na execução e o recado
será cristalino.
O cinto chia e se contorce em contato com a chama. Desnecessário, sim, mas ela não
aguentava mais a presença de Adán em sua casa, as reclamações, o sotaque, o atrevimento em
tentar usar Sebastian para atingi-la. Covardia da mais alta classificação. Um homem manhoso e
sem escrúpulos.
Perfeito, de fato.
Acelerada pela noite que teve, pela caçada no escuro e pelo desenvolvimento da técnica,
Micaela — recostada no piano, caneca de café contra os lábios — libera a tensão dos ombros e
observa a poça do sangue de Adán. Ela se livrará daquilo em breve, mas por ora admira a cor e a
textura e, principalmente, a mancha alongada que a mão de Adán causou em sua tela.
Uma ideia lhe cruza a mente: E se ela deixasse a mancha ali? Se ela fosse incorporada à
sua arte? Um elemento cínico em sua intrusão, que acaba por tornar-se parte da execução da
obra. O tom é perfeito, adiciona temas à narrativa. E ninguém nunca saberia sobre sua origem.
Não, ela não vai se desfazer da mancha na tela. A beleza do acaso a encanta e a intriga
tanto quanto a perspectiva do que está por vir.
É o que lhe faz se sentir viva em meio à escuridão.
Chiaroscuro
Joinville, Brasil - 2022
Dália Maria Linhardt, falecida em 2021 — um ano atrás, pega inadvertidamente pelo
tromboembolismo pulmonar. Treze anos antes foi o marido dela, em decorrência de um infarto
agudo do miocárdio. Eu não tinha conhecimento dessas mortes, não pude reagir a elas no tempo
apropriado.
Melhor assim.
Meus avós foram enterrados no mesmo local — o jazigo horizontal da família no cemitério
jardim ao norte de Joinville. Antes deles, já havia o corpo de minha mãe. Não houve cogitação
alguma de trazer o que sobrou de meu pai para cá. A família dela não o queria por perto mesmo
após a morte. Especialmente após a morte.
Com Dália, minha avó, mais um pedaço da história se foi. Pelo lado materno, restam
apenas minhas duas tias-avós. E eu.
Mas eu não pretendo terminar aqui.
Nessa tarde ensolarada de sexta-feira, o cemitério se encontra vazio. Pelo tempo que estive
aqui, encarando a lápide de minha avó, me readaptando à ideia de estar de volta ao Brasil após
sete anos afastada, apenas os funcionários do cemitério me fizeram companhia, me observando
discretamente ao longe.
Até que alguém interrompe minha solidão.
— Micaela, minha pequena.
Por trás das lentes dos óculos escuros vejo Hortênsia, minha tia-avó. Curtos cabelos
brancos-dourados, legging estampada e um colar que imita pérolas. Aos 76 anos de idade, ela é a
mais jovem das irmãs. Vem pisando com cautela e tornozelos inchados pelo declive gramado,
por um instante quase perdendo o equilíbrio entre uma lápide e outra.
— Que escolha peculiar para um local de encontro — diz ela ao parar em minha frente.
Hesito com a proximidade. Daria um passo para trás, mas Hortênsia não me permite o
afastamento. Ela me abraça jogando-se sobre meus ombros e de imediato sou envolvida na
atmosfera floral de sua loção corporal.
— Eu não te vejo há tanto tempo!
Sim, há quase duas décadas, no enterro de minha mãe. Na ocasião, ela consolava minha
avó e passou o dia beijando minha testa a cada vez que me via. Eu não entendia como um gesto
tão invasivo poderia ter a intenção de me oferecer conforto. Hoje entendo um pouco mais, mas
ainda é inefetivo para mim quando se trata de pessoas como ela.
Após o que parece um longo minuto, Hortênsia me solta. Ela me observa de perto, com
olhos úmidos e pálpebras azuladas que se destacam na tez manchada pela idade.
Eu me recordava de seu rosto, mas apenas sob a exatidão daquela época. Há uma profusão
de novas rugas e traços pela pele, em especial ao redor dos lábios e olhos. Marcas de risos. Das
três irmãs, ela sempre foi a que tinha o bom humor mais à mão.
Apertando a boca em desaprovação aos meus óculos escuros, Hortênsia os ergue e me
inspeciona.
— Ah, o nariz reto das mulheres da família. Você não decepcionou — diz, mostrando
dentes grandes em um sorriso largo.
— Manifestar uma característica física definida por meus genes independe de minha
volição, tia. Se alguém se decepciona comigo por conta disso, não é uma questão minha.
Ela ri e me envolve novamente, dessa vez me balançando no abraço.
— Me lembrou tanto a sua mãe agora! — Ao me soltar, segura meu rosto. Tenho a
impressão de que suas mãos frias e enrugadas, seus longos braços finos e roupas coloridas, e as
gotículas de sua saliva invadem cada centímetro do meu espaço pessoal. — Mas você era uma
pitica, quando foi que ficou tão alta?
— Estatisticamente… — começo, mas ela me interrompe.
— Veio do seu pai, não veio? Ele tinha que destoar em alguma coisa. Bem, melhor que
seja só na altura. — Ela pisca um olho para mim, ainda muito próxima. A pálpebra azul não é
apenas maquiada, e sim pigmentada por um processo estético. Infelizmente, a estética é
questionável.
Reajeito meus óculos escuros.
— Por que sua irmã não está aqui?
Malva, minha tia-avó mais velha, não estaria me incomodando tanto. Das três, ela era
quem melhor respeitava meus limites, sobretudo físicos. Embora não tenhamos tido tanto contato
em minha infância, minha simpatia gravita em direção a ela.
— Porque ela não gosta de ser empurrada.
— Alguém gosta?
Hortênsia ri e belisca minha bochecha. Por certo que ainda me vê como a criança que fui.
— É isso que dá se afastar da família, viu? Você não conhece mais ninguém. A tonga da
Malva sofreu um acidente e agora usa cadeira de rodas. Ela detesta que a empurrem, então se
recusou a vir pra um lugar gramado e cheio de morrinhos. Eu nem insisti, porque se eu tivesse
que empurrar a cadeira dela por aqui, meu Túnel do Carpo iria acabar comigo de noite. É quando
piora, sabe?
Aproveito a narrativa desviante sobre sua condição de saúde para estabelecer uma distância
maior entre nós. Hortênsia não percebe e conduz o foco da conversa para si mesma por um
tempo infamemente longo, como só idosos sabem fazer. Idosos e pessoas histriônicas.
— Enfim, minha pequena. Coisa de velha.
Volto meu olhar para a lápide de minha mãe. Hortênsia interpreta meu silêncio como um
momento para solitude e emite sons de desalento ao meu lado.
— Você veio pra ver ela de novo, né?
Não. Eu não voltei ao Brasil para encarar placas de concreto com nomes e datas
entalhadas. Eu vim para encontrar meus avós vivos, para restabelecer um vínculo quebrado por
meu pai. Não queria que essa parte de minha vida seguisse definida pela conduta dele.
Mas o que descobri, ao telefonar para a casa de minha avó, foi que tanto ela quanto seu
marido haviam falecido, e que no imóvel estavam residindo suas duas irmãs.
— As coisas dela ainda estão na casa. Você precisa ver o que vai fazer com tudo, se vai
ficar ou vai doar.
Vou doar, é claro. Ou jogar fora. Não tenho interesse no que não me pertence.
Mas ao invés de dizer isso, o que faço é pegar minha mala do chão. O aeroporto de onde
desembarquei do Uruguai fica a menos de dez minutos do cemitério, mas estar de volta à cidade
onde nasci e cresci — e tão próxima de Anna que o mero pensamento me arrepia — me deixa
ansiosa para ver o que me aguarda.
— Certo. Podemos ir, então?
Ela assente e conduz o caminho.
Meus avós eram grandes guardiões das memórias da minha mãe. Ao morrerem, passaram-
nas para minhas tias-avós. No quarto onde estou hospedada, na casa onde Hortênsia e Malva
agora residem juntas — um imóvel grande e retangular, pintado há décadas no mesmo tom coral,
sem varanda, mas com vasto quintal e ramos de hera que escalam as paredes além das janelas —,
essas memórias estão mantidas em caixas, gavetas e prateleiras. O tédio da madrugada e a
oportunidade me compelem a explorar.
Sentada no tapete estampado de franjas, iluminada pela lâmpada amarela do abajur na
cabeceira da cama onde me recosto, ajeito meus óculos e tiro a tampa de outra caixa de plástico.
A primeira coisa que vejo é uma agenda escolar, com o nome de minha mãe na capa.
Dentro, a caligrafia ainda juvenil anota compromissos, contatos e datas comemorativas, e entre
as páginas, presos por clipes coloridos, há embalagens de balas, recados de colegas, a pétala
prensada de uma rosa e uma receita impressa de biscoitos caseiros. De acordo com os boletins,
colados a cada bimestre, minha mãe era uma aluna aplicada em biologia, mediana nas línguas
estrangeiras e péssima em geografia.
Deixo a agenda ao meu lado, no chão. Reconheço o próximo item de imediato: um bilhete
meu para meu avô. Minha caligrafia blocada, indisfarçavelmente infantil, ladeia desenhos
competentes dos membros da família, qualificando-os por nome, idade e profissão. Eu me
desenhei entre meus pais, e à nossa frente estão os cachorros de minha avó. Meu nome completo
ocupa o canto inferior do papel. Micaela Sophie Linhardt Casagrande. Ainda ouço o grunhido
insatisfeito com o qual meu avô recebeu o uso do sobrenome de meu pai. Era invariável que
expressasse seu desagrado em relação à união de minha mãe com ele.
O desenho, contornado e colorido com canetas hidrocor, vai para cima da agenda ao meu
lado e passo para o item seguinte na caixa: Um álbum quadrado, grande, com capa em couro
azul. Desta vez, “Sophie” foi gravado em baixo relevo dourado.
É um scrapbook, com fotos presas por cantoneiras adesivas e legendas escritas em
caligrafia mais firme. As datas me informam que minha mãe tinha cerca de vinte anos ao montar
o álbum. As imagens são misceladas, mas apresentam um olhar sensível, senão aguçado, tanto
para as pessoas fotografadas quanto sobre a própria fotógrafa.
Em cada página, enfeites, adesivos, bilhetes, trechos de músicas e poemas, e uma
infinidade de outras coisas complementam as fotos. Ocupando duas páginas, foi colada uma
reprodução de Judite Decapitando Holofernes, o quadro de Artemisia Gentileschi. Sorrio, porque
é raro ver essa rendição da passagem bíblica. Caravaggio ilustrou a mesma cena anos antes e em
geral é o favorecido. Somente nas últimas décadas é que se começou a jogar luz à Artemisia —
uma artista tão ou mais talentosa do que Caravaggio, porém obscurecida pela misoginia habitual
que insiste em apagar as grandes mulheres da história.
Olho a imagem com cuidado, os traços realistas à época, o uso do claro e escuro, a
narrativa composta a cada pincelada — pelos trajes, pelas feições, pela trajetória parabólica do
sangue que atinge os lençóis e o peito de Judite, pela lâmina da espada, pela violência física e
psicológica compartilhada com a serva Abra e pela escuridão deliberada.
Reencontrar-me com essa imagem reacende memórias adormecidas. Ela estava estampada
em um livro de cabeceira de minha mãe — um dos poucos compêndios a elencar Artemisia
como um dos grandes nomes do movimento Barroco — que depois passou a habitar meu quarto
antes de ser doado para a biblioteca municipal.
Minha mãe me contou a história bíblica por trás da pintura, certa tarde quando voltávamos
da escola, caminhando pelas calçadas desiguais de nossa rua. Eu, em silêncio com as mãos no
bolso, ouvia sua voz tranquila falar sobre a piedosa viúva Judite seduzindo o general Holofernes,
para em seguida decapitá-lo com a espada entregue por sua empregada, a fim de livrar seu povo
de um grande tirano. Eu a ouvia e sentia que conhecia o mundo através de suas palavras. Diante
de meu pai, fui questionamento e imposição, mas diante de minha mãe, eu era silenciosa atenção.
Minha mãe, de sandálias e cabelos soltos, gesticulava suavemente ao falar sobre mulheres
ativas em suas raivas. Eu me perguntava se um dia chegaria a sentir isso, raiva, e se já havia visto
alguém a manifestar em minha frente, enquanto sentia a colônia de orquídeas que se mesclava ao
rotineiro creme Nívea em um aroma que ainda reside em minha mente como sendo exclusivo da
mulher que me originou.
Viro a página e vejo outras fotos, paisagens, plantas e autorretratos. Alguns estão borrados
ou tremidos, mas as composições sugerem que o efeito foi proposital, desejado. Em seguida,
partes de um corpo masculino. Tendões estendidos de um pescoço, pelos escuros descendo aos
calcanhares, pulsos pálidos, os ossos de um quadril, as linhas profundas da palma de uma mão.
Um quebra-cabeças eternamente não resolvido. Pedaços de alguém em desconjunto. Alguém que
não é meu pai.
Minha mãe tinha muitos conhecidos, mas poucos amigos. Ela gerava simpatia por onde
passava e era raro que não fosse bem quista nos ambientes que frequentava. Há vários retratos
desses amigos, sorridentes em aniversários, importantes em reuniões de comitês estudantis,
compenetrados em leituras em sofás e ao redor de mesas com xícaras. Minha mãe, jovem, com
vestidos longos ou calças de cintura alta e cintos delicados, nunca olha para a câmera. Seu rosto
anguloso, com cabelo loiro claro comprido e o nariz reto que serve como motivo de orgulho para
Hortênsia, aparece de perfil, ou voltado para baixo. Em um dos autorretratos, ela olha acima da
lente e isso é o mais próximo que se deixa encarar.
Exceto em uma foto. Nela, o único foco é seu rosto, enquadrado ao centro. Ela tem o
cabelo amarrado e um olhar desafiador que mescla superficial serenidade a um volume fugaz de
inquietação.
Conheço essa imagem como a palma da minha mão. Uma versão dela, pintada após a
morte de minha mãe, toma conta de metade de uma parede da sala do apartamento onde
atualmente resido, no Uruguai. Mesmo durante minhas várias residências pelo mundo, e sabendo
que estabilidade é uma noção longínqua, desfazer-me dessa pintura está fora de cogitação. Sei
que irei retirá-la da moldura, enrolá-la em um canudo e levá-la comigo por onde eu for.
Foi meu pai quem fez a foto original, durante os meses finais da gestação que me gerou.
Traço os contornos do rosto de minha mãe com a ponta do dedo, e tento imaginar como ela se
sentia, encubando uma vida que passaria a lhe definir como mãe e ao marido dela como pai.
Uma vida que a destruiría como um ser humano individual. Imagino se ela alguma vez ressentiu
o título ou ter que desempenhar tal papel. Se ela teria a menor noção de que a minha vida
significaria o final da dela, o seu fenecimento em uma piscina doméstica em uma noite qualquer
na segurança do lar.
Na página seguinte, há um homem de costas, fotografado sem camisa, da cintura para
cima. Ele é moreno, tem a musculatura dos tríceps bem definida, um pescoço largo e cabelo
desalinhado. Na segunda foto, ele olha por cima do ombro, direto para a lente, com um sorriso
que lhe repuxa o canto dos lábios para cima de um jeito pouco simpático. As sobrancelhas
escuras sombreiam os olhos, o que, em conjunto com o sorriso, lhe confere um ar de enigmática
presunção. As legendas que acompanham outras fotos, nessas foram riscadas, corrompendo o
acesso a qualquer informação sobre as imagens.
Volto algumas páginas, retornando às fotos em grupo. Um rapaz de traços semelhantes,
moreno e com braços fortes, aparece em outros dois retratos, próximo a minha mãe. Em uma, o
cabelo dele está mais organizado, ele segura um livro aberto e a encara com o mesmo sorriso da
foto sem camisa.
A porta do quarto se abre, lançando luz ao dormitório. Um cão pequeno vem até mim —
um Dachshund marrom escuro, com longas orelhas caídas e olhos esbranquiçados pela idade. Ele
caminha com lentidão, mas apresenta alegria em me encontrar. Como todos os cachorros que
minha avó já tutelou, fossem machos ou fêmeas, se chama Ully. Dália não desperdiçava tempo
com nomes.
Fecho o scrapbook e bato em minha perna para que Ully se aproxime. Ele apoia uma pata
curta em mim com certa dificuldade e o recompenso com um afago atrás da orelha, contente com
a companhia em plena madrugada.
Mas Ully se vira ao ouvir um estalo fora do quarto, tão alerta quanto eu. Ele me
acompanha até a porta entreaberta. Meus pés descalços não anunciam meus passos no tapete.
Instintivamente, levo a mão ao bolso esquerdo, mas meu canivete não está comigo. Não
achei que ele seria necessário dentro da casa de minhas familiares, mas vejo que foi uma
concepção pueril.
Outro estalo. Na verdade, uma porta se batendo. Vem da cozinha, ao final do corredor,
acompanhado de um resmungo grave.
Ully parece reconhecer a voz, pois se apressa para fora do quarto. Eu o sigo, com passos
ainda cautelosos.
Na cozinha, a luz está acesa, mas não há ninguém além de mim.
— Verdammt!
A voz sai de trás da bancada, profunda e arrastada. Eu costumava ouvir essa voz lançar
criativas profanidades que, mesmo quando em silêncio cúmplice compartilhado com olhares,
ecoavam pela minha mente ao final da infância.
— Malva?
— Ach!
Minha tia-avó mais velha se ergue em alerta. Na verdade, o que ela faz é se sentar, já que
estava curvada na cadeira de rodas, em frente ao armário antigo de portas laminadas em um
vermelho desbotado.
Seu cabelo, tingido de roxo, se move solto pelos ombros quando ela abrange minha
presença aqui, em seu perímetro pessoal. Olhos octogenários cansados percorrem meu corpo de
cima a baixo. Só ao final ela assente, me aquiescendo com um suspiro discreto.
— Verdammte Mandeln, Micaela.
Antes que eu possa compreender o motivo de ela estar xingando amêndoas, ela se curva
novamente, tentando alcançar um pacote no chão, próximo à roda de sua cadeira.
Junto o pacote e entrego para ela. Suas mãos são azuladas pelas veias evidentes, a pele
enrugada é transparente como um guardanapo molhado.
— Obrigada — diz com um grunhido pouco satisfeito. — Odeio essas merdas, mas fazem
bem pros ossos. Na minha idade, qualquer ajuda conta.
Malva coloca um punhado de amêndoas torradas na boca. Elas passeiam de uma bochecha
para outra e minha tia-avó não tira os olhos de mim enquanto mastiga com o queixo apontando
para frente. Seu rosto expressa uma resignação profunda, de uma mulher que já viu de tudo, que
já viveu bastante — mesmo a contragosto — e que parece me marcar como alguém que passará
pelo mesmo processo torturante de envelhecimento.
Ela engole estalando a língua. Seus lábios são quadrados, com uma tonalidade escura, e ela
os projeta para frente entre uma frase e outra.
— O que eu queria mesmo era um cigarro, mas fui proibida pelos médicos. É isso que
significa envelhecer: cada vez mais ser privada de coisas que você gosta. Eu até poderia arriscar
unzinho só, mas daqui a pouco aquela fuça de bunda vem encher a cara e aí começa a ladainha.
Como se beber cerveja a cada duas horas com a desculpa de que merece porque teve um longo
dia, mesmo sendo aposentada há décadas e não fazendo nada que preste desde então, não fosse
tão prejudicial quanto uns cigarrinhos esporádicos.
— Professoras de fato têm o hábito de se recompensarem pelo mero exercício da profissão
— digo, a respeito de Hortênsia. — Você faria o mesmo se fosse responsável por ajudar mentes
alheias a estabelecerem sinapses mais avançadas em um mundo permeado por ignorância e
doutrinação arbitrária. É cansativo.
— Não me diga que você seguiu o caminho dessa weichei? Ach!
— Não, é claro. Não tivemos contato o suficiente para que a profissão de Hortênsia me
influenciasse. Eu segui meu próprio caminho, o que pareceu natural para mim.
— Natural? Ser professora não condiz em nada com seu perfil.
— E o que seria condizente com meu perfil, pra você?
Malva sorri.
— Eu te vejo exercendo uma forma mais peculiar de poder. Algo refinado, invisível.
Disfarçado.
— Boa madrugada — Hortênsia nos cumprimenta da entrada da cozinha, olhando entre
mim, Malva e a geladeira. Seu curto cabelo branco está armado para cima, a deixando ainda mais
similar a um artista boêmio aposentado. Ela tem uma toalha de banho enrolada no antebraço
esquerdo, presa por elásticos de dinheiro, que deixa apenas os dedos da mão expostos. “Meu
Carpo”, oferece como explicação rápida, ao passar em minha frente.
— Quem diria, vocês duas aqui — diz ao tirar uma latinha de cerveja do congelador e
esfregar a ponta da blusa do pijama na tampa. Há outras latas lá dentro, enfileiradas ao lado de
um saco aberto de gelo. — Quem diria mesmo.
Malva joga outra amêndoa na boca, o cotovelo apoiado no braço da cadeira de rodas.
— Por que “quem diria”, Tencinha? Acha que eu não iria gostar de conversar com a filha
da minha única sobrinha?
É inusitado ouvir Malva chamar a irmã por um apelido diminutivo. Ela deve usá-lo como
um provocativo, porque mantém um olhar insolente ao fazê-lo.
As irmãs moram juntas nessa casa desde que Malva se tornou viúva, há cerca de cinco
anos. Não sei como era quando minha avó ainda estava viva, mas as interações entre as duas
apontam uma relação simbiótica, embora benéfica para ambas.
Com a mão que não está imobilizada, Hortênsia finaliza um longo gole, direto da lata de
cerveja.
— Não é isso — diz —, é só uma cena que não achei que se repetiria depois que a
Sophie…
Malva gira a cadeira em minha direção, e se aproxima do balcão onde estou apoiada.
— É que seu pai era um entojado, Micaela. Ele não deixava a gente chegar perto de você.
— Eu sei — digo. — Foi por isso que nos mudamos. Ele não gostava daqui, só permanecia
por causa da minha mãe.
— E ela não queria sair de perto da família.
— Sim.
— Então de repente ela aparece boiando na piscina e foi a primeira coisa que ele fez:
pegou você e se mandou.
— Sim.
Malva me encara, assistindo meu rosto, provavelmente tentando adivinhar meus
pensamentos sobre as implicações que lançou. Não são ideias novas para mim, é claro, então
ofereço em silêncio as respostas que ela procura. Confirmação, talvez, mas duvido que ela
também não tenha as próprias certezas.
— Certo — diz ela devagar, com o leve arquear de uma sobrancelha.
Hortênsia olha entre nós duas, com a lata de cerveja encostada nos lábios. Ela balança a
cabeça e toma outro gole. Então bate a lata no balcão.
— Tínhamos medo de que você fosse como ele — dispara. — Uma entojada também.
— Hortênsia! — Malva a admoesta.
— É verdade. Você o copiava em tudo, tinha adoração por ele. Sempre lamentamos isso.
— Eu tinha outra visão dele, naquela época.
— Ele era um galanteador — diz Malva, como viés de explicação. — Sempre desconfiei
de galanteadores. Meu marido, por exemplo, era um bronco e eu gostava disso nele. A gente não
se decepciona com um bronco, porque sabe o que se esperar.
Hortênsia ri para si mesma, atraindo nossos olhares, e se dirige para Malva.
— Tem certeza de que você sabia o que esperar do Altair? Não me parecia.
— A idade muda as pessoas, Tencinha. Ultimamente, ele já não era mais o mesmo.
Em um murmúrio audível, Hortênsia rebate:
— Pra mim ele sempre foi exatamente o mesmo.
Malva a ignora. Ajeitando-se na cadeira, ela volta a mim.
— Não escute essa capivara velha. Eu sabia que você não teria o jeito do seu pai. Era a sua
mãe que eu enxergava em você.
Não posso afirmar que isso seja verdade. Eu admirava minha mãe, ela me inspirava, mas
não era meu pai.
Malva segue:
— Talvez você não entenda, porque não a conheceu como nós a conhecíamos.
— Ela era muito ligada na gente, desde pequena — diz Hortênsia, ajeitando os elásticos
que prendem a toalha.
— Eu a levei a um parque de diversões pela primeira vez.
— Eu comprei o primeiro sutiã!
— Mas não serviu, porque você sempre foi sem-noção. A menina ainda era uma tábua e
você comprou um sutiã de bojo que não serviria nem em você, sua Anzugaffe.
— Eu estava olhando pro futuro. A puberdade ia deixar ela — Hortênsia coloca as mãos
em conchas na frente do peito, sugerindo formas voluptuosas — logo, logo.
— Igual a filha do vizinho que roubou seu namorado.
Hortênsia abre a boca, atônita.
— Por que você tem sempre que mencionar isso, Malva?
— Porque eu sou uma Giftzwergin filha da puta, mas também porque você se embebeda
cada dia mais por causa dessa merda desse homem que não te quis. Isso foi há cinquenta anos,
Tencinha. Ele não tá aqui pra sentir pena de você, pra ver como definiu toda a tua vida. Supere.
— Bem, eu não sou a única a ter tido a vida definida por um homem, sou? — Ela aponta
para a cadeira de rodas ao dizer isso, e Malva balbucia algo que não verbaliza por completo.
Eu me sinto alheia à narrativa oculta que se desenvolve à minha frente, irritada por estar
servindo de testemunha para a projeção de conflitos antigos. Ou, quem sabe, é apenas um
momento corriqueiro na relação delas. Indiferente. Quero voltar ao quarto e seguir filtrando as
lembranças de minha mãe, para poder sair dessa casa o mais rápido possível.
Afetada com as palavras de Malva, Hortênsia atinge uma coloração avermelhada na pele,
que destaca ainda mais suas pálpebras azuis. Ela respira com força pelo nariz, se vira, abre o
congelador e tira outra cerveja, batendo a porta. Limpa a lata na roupa e sorve grandes goles de
uma só vez.
— Devagar. Não precisa se matar por causa do que eu disse — diz Malva.
— Até parece. Eu não dou a mínima pro que você diz.
Malva sorri para ela.
— Dá pra notar.
Ela se vira para mim, ainda sorrindo por causa da perturbação da irmã.
— Você não é assim, é, Micaela?
— Não sou propensa a vícios.
— Eu quis dizer que você não é frustrada romanticamente.
— É claro que não — responde Hortênsia. — É uma mulher esperta, como a mãe era. Não
é como a gente, duas velhas idiotas. — Ela vem até meu lado e segura meu rosto, como fez no
cemitério. Seus dedos estão gelados e seu hálito fermentado pela cerveja. — Quantos anos você
tem, pequena? Uns vinte e nove? Trinta?
— Trinta e dois.
— Ah… que número bonito.
Malva revira os olhos.
— Você é cheia de bobagens, Tencinha.
— Não se deixe definir por uma relação — segue Hortênsia, como se não tivesse ouvido a
irmã. — Ninguém vale tanto a pena assim.
Concordo com a cabeça, me desvencilhando das mãos de Hortênsia. Meu olhar encontra o
de Malva, e ela parece enxergar o que penso.
— Algumas pessoas valem a pena, sim — diz ela. — Mas são raras. Se tiver a sorte de
encontrar uma, vai saber.
Sorrindo com leveza, Hortênsia pega novamente a latinha de cerveja.
— Eu acho que ela já sabe — diz, em uma voz cantarolada, aérea.
Não ofereço comentários. Diante das certezas que minhas tias-avós já têm tão bem
esculpidas, não é necessário.
Malva mastiga mais amêndoas e Hortênsia finaliza outra cerveja. Antes de ir ao
congelador, abre um armário aéreo ao lado e tira um baralho em uma caixa surrada.
— Topam um joguinho?
— Cuidado, Micaela — diz Hortênsia à minha direita na mesa da cozinha, com a voz
arrastada. Ela tirou a toalha de banho do braço, mas é com o queixo que indica Malva. — Essa
daí é a maior trapaceira que eu já vi. Trapaceia até quando joga sozinha.
À minha esquerda, Malva mantém um cigarro eletrônico no canto da boca, e analisa sua
mão de cartas com olhos entrecerrados. Ela troca uma carta de lugar e descarta outra na mesa.
— Fica quieta, velha ranhenta. Ao menos, quando jogo sozinha, minha adversária não me
enche o saco. Sua vez, Micaela.
Minha estadia aqui está sendo uma experiência estranha. Durante todos esses anos, senti
que meus avós eram o último elo com meu passado, e que esse elo nunca mais seria
reconstruído. Mas Malva e Hortênsia estão tentando estabelecer novos elos comigo, me deixando
a par do que aconteceu desde meu afastamento enquanto jogamos partida após partida de Pife.
Depois que Altair, o marido de Malva, morreu, Malva se recusou a aceitar a ajuda dos
filhos, dois advogados que moram em diferentes estados. Sua alegação é de que “advogados não
têm alma”, e que ela prefere gastar sua pensão com tintas de cabelo e remédios para a pré-
diabetes, e compartilhar a residência com uma pessoa indigesta — ou “bife de rato” — como a
irmã mais nova, do que com eles.
Já Hortênsia não se casou e nem teve filhos. A rejeição sofrida na juventude a marcou pelo
resto dos anos e ela manteve distância de envolvimentos românticos mais sérios. Apesar da
Síndrome do Túnel do Carpo, que lhe incapacita o pulso há anos, ela se orgulha de nunca ter
apresentado um atestado inútil durante a carreira como educadora do Estado e, principalmente,
de nunca ter desenvolvido a mínima hipótese de Burnout.
— Mas sua avó tinha enxaquecas cada vez mais graves, depois que Sophie morreu e vocês
foram embora. Ela passou o primeiro ano inteiro prostrada na cama — diz Hortênsia.
— Seu pai foi tão filho da puta que de tempos em tempos ele ligava e dizia que vocês
estavam se mudando, cada vez pra um lugar diferente do país.
— Tubarão, União da Vitória, Anápolis, Jacareacanga… Sempre mais longe.
— Nunca estive nessas cidades — digo. — Estávamos em Itajaí.
— Pois é. Tão pertinho.
— Ele não te deixava ligar pra gente?
— Ele não chegou a me proibir.
Hortênsia me olha como se aguardasse uma elaboração. Mas eu disse o que ela precisa
saber. Meu pai nunca me instruiu a não entrar em contato com a família de minha mãe. Ele
apenas declarou que não gostaria que eu o fizesse.
De todo modo, não foi isso que me impediu. Foi o meu desinteresse natural. Essas pessoas
haviam ficado para trás, como tantas outras ficariam ao longo de minha vida, e eu não me
interessava o suficiente para querer forçar em meu presente algo que pertenceu ao passado.
Agora que estou aqui, que desfiz o trabalho de meu pai e que tenho conhecimento do
desfecho da família, posso garantir que não foram minhas tias-avós que me trouxeram de volta.
Foi Anna.
Admito que, após sete anos, há momentos em que questiono se ter permitido que a
distância entre nós se alongasse tanto foi minha melhor escolha. Por isso, tenho retornado aos
poucos. Primeiro para a América Latina, depois para Santa Catarina.
O próximo passo é entrar no raio de alcance de Anna. A mensagem está pronta, só preciso
emiti-la. O momento certo se apresentará e saberei reconhecê-lo.
A perspectiva me causa um incômodo abaixo do umbigo, que faz com que eu me ajeite na
cadeira. As cartas em minha mão não são favoráveis, e não me importo em ganhar a partida,
então mantenho o onze de espadas que comprei e descarto um três qualquer.
Os lábios escuros de Malva se projetam novamente. Ela traga o cigarro eletrônico e dá um
tapinha em minha mão, concentrada no jogo.
— Te entendo, minha filha. Eu também não iria querer mais contato com a gente.
Entre uma expressão contrariada e um arroto etílico contido, Hortênsia manifesta sua
indignação, mas Malva não elabora a ofensa, deixa-a pairando no ar, analisando a carta que
descartei.
— Ach, você é boa nisso — diz. — Sabe exatamente como me trancar.
— E ela nem precisa trapacear, viu?
— Mas você sempre vilanizando essa merda, Tenten. Trapacear é uma arte, foi assim que
conquistei meu espaço — Malva me conta com orgulho. — Eu tinha dois filhos pra criar e um
marido pedreiro que se recusava a trabalhar se o tempo não estivesse ensolarado e sem vento. Ele
podia se dar ao luxo de ignorar as crianças famintas, mas eu não.
— Foi assim que passou a estrategizar jogadas disruptivas?
Hortênsia ri alto.
— Ouviu isso, Malva? “Estrategizar jogadas disruptivas”. Ela era uma baita de uma
larápia, Micaela, isso sim.
— Cala a boca, Blöde Kuh. — Malva se vira para mim. — É uma definição perfeita,
obrigada. E, sim, eu organizava mesas de jogos e apostava o que tivesse em mãos, fossem os
trocados que me restavam ou meu anel de noivado, que ganhei da minha mãe. Sempre recuperei
tudo de volta. Saía da mesa e ia correndo comprar comida pros pequenos. Deu certo, não deu?
— Você tinha muita sorte — diz Hortênsia.
— O que eu tinha era uma parceira perfeita.
As duas se entreolham, uma por trás do cigarro, outra por trás da cerveja, e acabam
sorrindo em cumplicidade.
Então Hortênsia critica Malva por seus métodos não ortodoxos de ganhar a vida, mas era
co-autora da transgressão. Interessante.
Contudo, Hortênsia não parece querer ceder ao afago moral, pois resmunga algo que soa
como “ilegal”.
— Quer falar sobre o que é ilegal? — rebate Malva, impaciente, ao que Hortênsia a
dispensa com a mão.
De um instante a outro, elas foram de recriminantes para afetuosas e de volta a acusatórias.
As variações na dinâmica me deixam confusa, e me pergunto se é assim que famílias devem
funcionar — se, em que pese as diferenças e atritos, o sangue fala mais alto e os laços
preponderam.
Hortênsia descarta um cinco de espadas e Malva imediatamente o espalma na mesa.
— Bati! Hah!
É a minha vez de distribuir as cartas, então eu as embaralho.
— Você é habilidosa com as mãos — diz Hortênsia.
Malva concorda enquanto entrego nove cartas para cada uma de nós. Hortênsia pega uma
de cada vez e só as olha em sua vez de jogar. Malva deixa-as acumular antes de organizá-las nas
mãos e sua atenção se mantém fixa no monte de descarte ao centro da mesa.
— Era uma característica da sua mãe também. Ela gostava de criar.
— Eu sei, estive vendo os pertences dela — digo, organizando meu jogo. — Era a isso que
se referia quando disse que a enxerga em mim?
— É uma das coisas.
— Há um homem no scrapbook dela, um rapaz. Ele aparece com frequência. — Eu o
descrevo e percebo que Hortênsia segura a respiração. Ela joga um olhar ligeiro, por cima das
cartas, para a irmã. — Gostaria de entender a importância dele.
— Não lembro de nenhum rapaz… — começa Hortênsia, mas Malva a interrompe.
— Tudo bem, Tenten. Vamos contar. Sei que ela vai entender.
Malva fecha a mão de cartas e se posiciona melhor na cadeira. Ela parece selecionar as
palavras que irá dizer, enquanto Hortênsia segue tensa em sua frente, com os olhos bem abertos,
o que, com os cabelos brancos arrepiados da madrugada, a confere um visual cômico.
— O nome dele era Ronaldo.
— Rômulo — diz Hortênsia.
Malva estranha a correção.
— Tenho certeza de que era Ronaldo.
— Você não pode ter certeza de nada, Malva. Era Rômulo.
— Ach, Grüner Rotzlöffel! Eu não tô tão esquecida assim!
— Tá sim, tá tão esquecida que até esquece.
— Sophie nunca iria se envolver com alguém chamado Rômulo.
Hortênsia dá de ombros, com uma expressão presunçosa.
— Por isso deu no que deu.
— Não vou chamar ninguém de Rômulo, vai ser Ronaldo e pronto.
— Só conta logo a história, vai.
Malva respira fundo, não sei se irritada com a irmã ou consigo mesma e sua incapacidade
de se ater aos fatos. Imagino como deve ser, ter suas certezas e lembranças escoando para um
espaço desconhecido. Eu não suportaria. Creio que ela não suportará.
— Então, esse rapaz, o Ronaldo... — Malva e eu ouvimos o suspiro conformado de
Hortênsia, mas a narrativa não é interrompida dessa vez. — Ele estudava na mesma sala que a
Sophie, no científico.
— Não se fala mais “científico” — diz Hortênsia, também largando seu jogo. — Agora é
Ensino Médio.
— Foda-se essa bustica de nomenclatura. Dá pra entender, não dá? Eles estudavam juntos,
ali no final da adolescência. Satisfeita? — Malva segue se dirigindo a mim. — Sua mãe não dava
muita bola pra ele, mas ele se sentia o gostosão. Era lutador, algo assim. — Hortênsia murmura
“jogador de handebol” — Um cara grande. As meninas todas tinham… como se diz hoje em dia,
sua capivara crespa? “Crush”. Tinham um crush nele. Mas a Sophie era bem criada, ela não iria
fazer nada por conveniência só porque era o que todas estavam fazendo. Ela era… peculiar.
Como você.
— Mas ela cedeu, depois de um tempo — diz Hortênsia.
— Depois de um longo tempo. — Malva enfatiza o “longo”. — Esse Ronaldo queria ela e
não desistiu até ela dar uma chance pra ele. Passou a fazer parte do grupo dela, fazia os mesmos
programas que ela, dizia que tinha os mesmos interesses, até veio em um aniversário aqui em
casa, lembra, Tenten? Tudo balela. Até hoje não sei se a Sophie aceitou sair com ele por ter sido
fisgada mesmo ou se foi só pra ele a deixar em paz depois.
— Provavelmente as duas coisas — diz Hortênsia. — E nessa ordem. Ele era um chato.
— Mais chato que seu pai, Micaela.
— Controlador, egocêntrico. Um “biscoiteiro”, nem se esforçava em nos agradar.
— Como eu disse — segue Malva —, seu pai era um galanteador, tinha charme, era
simpático. Quando ele estava do nosso lado, tudo parecia bonito, leve. Eu entendo por que sua
mãe se apaixonou por ele. Ele a reverenciava, pelo menos por uns bons anos. Sophie era especial
de verdade pra ele. Mas pro Ronaldo? Pfft. Ela foi só mais uma.
— Pobre Sophie.
— Pobre Ronaldo, isso sim! Ele não fazia ideia de onde se meteu, de que não se deve
mexer com uma Linhardt.
Minhas tias-avós não se contém e riem livremente. Entre elas, enxergo uma vida inteira de
vivências compartilhadas sendo traduzidas em risadas alegres.
Ergo meus óculos, contendo a irritação.
— O que aconteceu quando ela descobriu que era só mais uma?
— Ah… — Malva segura minha mão ao deixar de rir aos poucos, como se solicitasse
paciência de minha parte. — Olha, suas mãos são mornas como as dela. Isso vocês herdaram do
seu avô.
— Eu sei. Continue a história, por favor. — Quero conhecer mais de minha mãe. Quero
saber como ela lidou com esse incômodo, se fez o que eu faria. Se temos mais isso em comum,
de acordo com sua tia.
— Não demorou pra ela perceber que tinha sido só mais uma conquista. Ele ficou na vida
dela o quê, Hortênsia, uns quatro meses?
— Por aí. Até a formatura do Ensino Médio.
— Isso. Eles se formaram e o Ronaldo saiu de cena.
— “Deu um perdido”.
— Elabore, por favor.
Hortênsia espalma a mão livre, com tom apologético.
— É só o que a gente sabe.
— Foi isso o que aconteceu? Ele “saiu de cena”?
— A Sophie era uma boa menina, conversava bastante com a gente, mas era jovem, sabe?
Não era tudo o que compartilhava com os pais ou com as tias — diz Malva.
— Mesmo a gente sendo “descoladas”.
— Ninguém mais fala “descolada” hoje em dia, Tenten.
— E fala o quê?
— “Da hora”. É isso, Micaela?
— Eu não saberia dizer, não estive nesse país nos últimos sete anos.
— Você é “da hora” — testa Hortênsia.
— Mas ela tinha o grupo de amigos dela — segue Malva, para meu alívio.
— O “bonde” — diz Hortênsia, cada vez mais empolgada com a linguagem informal da
atualidade.
— E aí, anos depois, o Ronaldo começou a se engraçar pra outra moça, uma amiga da
Sophie.
— Ela era um “contatinho” dele.
— E foi assim que ele morreu.
— “Foi de arrasta pra cima”.
— Ele morreu?
— “Chocou o total de zero pessoas”.
— Ach! Para com isso, Hortênsia. Nervensäge!
— Como ele morreu?
— Você anda muito “bolada”, Malva.
A falta de foco dessas mulheres agita meus nervos. Venho tentando exercitar a tolerância
com as anfitriãs que me acolhem, mas é por demais complicado manter a paciência em meio a
tantas falas desconexas ao tema da conversa.
— Gostaria de saber mais sobre esse episódio — digo, com controlada calma, largando
meu jogo já esquecido. — Como a morte de Ronaldo se relaciona com o fato de ele ter
“mexido”, como vocês dizem, com uma Linhardt, sobretudo minha mãe?
— Ah, sim. Importante essa parte — diz Hortênsia, bebendo cerveja.
— Desculpa, minha filha. A gente se perde na própria cabeça, sabe como é. — Não sei,
porque minha cabeça é minha bússola, não o que me desnorteia. Mas para que o assunto não se
desvie novamente, nada digo. Malva me observa por um instante, com certa brandura no olhar.
Então ela ajeita a postura e, com displicência, dispara: — Sua mãe matou o Ronaldo.
Hortênsia se engasga, derramando cerveja na blusa de pijama.
— Malva!
— Por que o espanto? Você sabia que chegaríamos a esse ponto da história.
— Não, eu achei que iríamos contar a versão que Sophie contou pra Dália, de que o
Rômulo morreu sufocado, sozinho.
— Bem, é meio verdade. — Malva se dirige a mim. — Ele morreu sufocado, mas não
sozinho. Sua mãe estava lá, junto com ele, na casa dos pais dele.
— Ela assistiu ele morrer. — Não sei se é influência alcoólica, mas Hortênsia deixa
transparecer orgulho ao dizer isso. Deve fugir do que ela mesma esperava de si, porque ela
realinha os ombros e se distrai com as cartas na mesa.
— Ela fez ele morrer — diz Malva.
— A gente não pode ter certeza disso.
— Ach, claro que pode. Sophie era brilhante nessas coisas. Ela entendia de biologia,
anatomia, corpo humano. Era a melhor da classe. Acha mesmo que ela não saberia causar um
sufocamento?
— Que forma de sufocamento? — pergunto.
— Pêssego — diz Malva.
— Em calda — complementa Hortênsia.
— Assim que sua mãe soube que ele estava tentando com a amiga dela o mesmo que
tentou com ela, ela marcou um encontro. Se arrumou tão linda! Disse pra gente que iriam colocar
o papo em dia.
— “Oi, sumido”.
— Mas ela fez questão que fosse na casa dos pais dele, onde ele morava.
— Porque ele era um “nem-nem”.
— No meio da sobremesa, ele se engasgou com o pêssego em calda e aí caixão pro billy.
— “Caixão pro billy” é da nossa época, hein? — Hortênsia solta uma gargalhada
embriagada.
— Foi assim que vocês inferiram que minha mãe o assassinou? Porque ele se engasgou
enquanto comia?
— Porque quando ela me contou, contou contente — diz Malva.
— Livrou a amiga de um “embuste”. E várias outras mulheres, com certeza.
Como Judite, ao assassinar o tirano Holofernes. Ela vestiu suas melhores roupas, arrumou
o cabelo e entrou no território inimigo. Mas Judite se utilizou de uma oração e uma espada,
enquanto minha mãe não usou nada além de seu conhecimento e das próprias mãos.
— É — diz Malva. — Digamos que tenha sido uma prevenção, ou quem sabe uma
retaliação em retrospecto?
— Vingança! — Hortênsia ergue a latinha e ouço o líquido balançar lá dentro. Ela entorna
os últimos goles de uma única vez.
— Curioso que mais mulheres não resolvam tomar decisões assim — reflete Malva, com o
cigarro eletrônico entre os dedos, o olhar em um ponto além de nós. Então ela o dirige a mim e
seus lábios projetados sorriem largamente. — Não acha?
— Curioso mesmo — diz Hortênsia, solene, alheia a conversa silenciosa entre eu e Malva.
— Mas Sophie era uma Linhardt, e as Linhardt não ficam sofrendo por homem. — Não acha?
Malva ri.
— Você fala isso como se não estivesse na merda a vida toda por causa de um mistkerl!
— Ah… mas tô inteira, não tô? E você, que ficou paraplégica por causa do Altair? Foi
tentar fazer justiça com as próprias mãos e se ferrou.
— Aquele porco do avesso que me fez atropelar a árvore. Quem diria que um velho
asqueroso e manco como aquele sairia tão rápido da frente de um carro em alta velocidade? E o
corno passou anos me falando que não tinha mais como trabalhar por causa da lombar. Ach!
Tenho ódio só de lembrar. Era pra ser ele nessa cadeira, não eu.
— Mas aí você teria que cuidar dele, minha irmã — diz Hortênsia. — Já pensou?
Alimentar, limpar, animar, medicar… Coisas que você faz por conta própria, ele faria você fazer
por ele.
— Och nö!
— Pra sua sorte, você tem a Tencinha aqui que resolveu tudo pra você. — Hortênsia dança
com os ombros. — Um passeio agradável pelo mirante do morro da Boa Vista, onde dois idosos
são mais invisíveis do que o comum, e ninguém percebe que um deles não desceu de volta. E
você ainda se tornou beneficiária da pensão dele.
— Finalmente a vantagem de ter filhos advogados.
As duas sorriem satisfeitas, com os rostos em júbilo, em mais uma demonstração dos
círculos concêntricos da sua sororidade.
— Me diga, Micaela — Malva começa, com placidez na fala. Ela parece mais relaxada do
que a vi durante todo o dia em que estive aqui. — Estando nos nossos lugares, o que você faria?
— Teria atitudes semelhantes — e digo isso me referindo tanto ao que minha mãe fez com
o ex-namorado, quanto ao que minhas tias-avós fizeram contra o marido de Malva. — Não seria
um problema para mim.
Malva segura minha mão, com firmeza dessa vez.
— Como um verdadeiro exemplar das mulheres da nossa família.
Ela alcança a mão de Hortênsia também, e essa a minha.
— Esse nariz reto nunca me engana.
— Ach, Tenten! Você e suas bobagens.
As duas riem, e Hortênsia argumenta, mas elas não soltam minhas mãos e formamos um
triângulo sobre a mesa com o baralho, as latinhas, o cigarro e mais lembranças de minha mãe.
Ao final da manhã, termino de organizar os pertences de minha mãe. Algumas caixas serão
destinadas à doação. Outras, irão direto para a coleta de lixo. Hortênsia solicitou que eu
separasse os livros para a biblioteca da escola onde ela se aposentou lecionando.
— Ainda não sei como você tem coragem de se desfazer de tudo — diz ela, ao entrar no
quarto. Sinto o cheiro da cerveja que emana de seu corpo antes mesmo de ela parar ao meu lado,
frente à janela aberta com vista para o quintal. Aos fundos, a casa onde morei com meus pais
encontra-se fechada, com as paredes tomadas por hera. Não sei de sua trajetória desde nossa
mudança até agora. Não me importo em saber.
Hortênsia olha comigo para o que se espalha sobre a cama.
— Coragem maior seria levar essas coisas e aceitar que elas se tornem parte de mim. Não
há nada aqui que eu precise.
Hortênsia pega o scrapbook e o abre apoiado no braço que está de volta à toalha enrolada.
Enquanto lacro as caixas, ela folheia as páginas com as fotos, emitindo sons de apreciação aqui e
ali.
— Ach, Ully! Você quase me derruba — ouvimos.
Olhamos pela janela. Malva está lá fora, com a cadeira de rodas sobre a calçada, brincando
com o cachorro. Ela parece feliz, despreocupada, focada no presente.
Assisto Hortênsia a assistir e penso na relação delas, de proteção mútua e apoio apesar das
contingências. Em que ponto alguém como Hortênsia decide assassinar um homem para oferecer
melhorias à vida de Malva? Em que ponto minha mãe decidiu o mesmo, com o ex-namorado, em
benefício de outras mulheres?
Tirar a vida de alguém, para mim, é fácil. É como escolher o que vestir para o trabalho,
como decidir o que haverá para o jantar. E também, é algo que eu faço por mim mesma, para
minha própria satisfação. Esses últimos sete anos têm me provado isso, que o motivo inicial que
me levava ao assassinato — curiosidade, interesse pela máquina humana — tem lentamente se
transformado em algo mais egoísta do que nunca.
Não só satisfaço minha curiosidade natural ao matar, não só aprendo sobre o
comportamento extremamente íntimo à iminência da própria finitude ao ver alguém morrer por
minhas próprias mãos. Eu me divirto, mais do que tudo.
Se existe realmente uma divisa entre claro e escuro, entre a luz e as sombras, e se é assim
que o pensamento coletivo humano consegue apreender o que é bom ou ruim, então admito que
pertenço à penumbra, e que, dentro de mim, ela me preenche mais do que muitos dos
sentimentos que outras pessoas alegam vivenciar. Sou o que sou e isso não vai mudar.
Talvez a única coisa que tenha me satisfeito tanto quanto percorrer o caminho mais escuro
foi estar com Anna. Presenciá-la em sua forma mais natural. Assisti-la lidar com os próprios
assombros, as próprias sombras. Desvendar seu corpo frio que me recebia e se abria para mim
com tanta facilidade. Eu nunca cruzei fronteiras para matar alguém, mas voltei ao país para vê-la
novamente.
Hortênsia vira a página no scrapbook e chega à pintura de Judite e Holofernes. Ela solta
uma risadinha, e traça a imagem com o dedo. Repousa-o por fim sobre a terceira figura na cena:
a empregada Abra.
É Abra quem entrega a espada para Judite, para que ela mate o tirano após seduzi-lo. Gosto
da escolha da arma, uma lâmina potente, afiada, certeira. Com ela, Judite deixa claro seu papel
na história, sua intenção. Nada sutil, como usar as mãos.
Minha mãe era boa com as mãos, como eu. Tinha peculiar interesse no sistema
respiratório, como eu. Foi uma asfixiadora, como eu. De fato, temos bastante aspectos em
comum.
— Você acha que minha mãe encontrou dificuldade em aceitar que matou alguém?
Hortênsia me olha e ergue um ombro.
— Talvez no início, mas nunca a vi manifestar algo a respeito.
— E ela manifestaria? Pra vocês?
— Éramos um grupo unido, minha pequena, apesar da diferença de gerações. Ou talvez
por causa dela. Conversávamos bastante.
— Malva disse que ela não compartilhava muito.
— Malva não consegue lembrar de se enxugar após o banho — diz Hortênsia, séria. —
Dez vezes ao dia eu tenho que lembrá-la de tomar os remédios, até desistir de vez e forçá-la a
engolir, como uma criancinha. Vinte vezes ela me pergunta se não vou trabalhar hoje. Às vezes
ela se esquece de que está em uma cadeira de rodas e cai ao tentar andar. Tenho que explicar
tudo repetidamente, contar toda a história. Às vezes ela acha que sou nossa mãe.
— Deve ser difícil assistir alguém se perder de si.
— É mesmo, pra nós duas. Ela até já me pediu pra dar um fim a tudo.
— E você vai?
Hortênsia assente.
— Ela anda desgostosa de viver. Acho injusto ter que submeter alguém a isso, fazê-la ficar
contra a própria vontade. A escolha deve ser dela. Quando ela decidir, vou ajudar da melhor
maneira possível.
— E você tem várias ideias, é claro.
Ela sorri. Seus dentes grandes se tornam visíveis, longe de qualquer máscara de
sobriedade. Mas sei que ela não está afetada pelo álcool quando confessa:
— Tenho mesmo.
— Pêssego em calda é algo bem peculiar.
— Você gostou?
— É criativo.
— Poderia ser qualquer outro alimento, claro. O importante é o momento de agir. Precisa-
se saber o exato momento em que a comida desce pela garganta. Aí, qualquer golpe prejudica o
trajeto e aglomera as vias aéreas.
— Bastante sagaz.
— Não é algo que eu ensinava em sala de aula, claro. Não caberia na grade, mas é um
conhecimento útil, não acha? Por isso sempre adorei lecionar Biologia, a matéria favorita da sua
mãe.
Lá fora, Malva roda pela calçada, com Ully atrás. Hortênsia, ao meu lado, segue passando
pelas fotos no scrapbook e chega aos autorretratos.
Caso tivesse vivido mais, teria minha mãe feito algo contra meu pai também? Será que ele
pressentiu a possibilidade e por isso resolveu agir antes?
A única certeza que tenho quanto a isso é a de que minha mãe não aceitaria menos do que
o melhor para ela mesma. E essa é outra das coisas que temos em comum.
É possível que isso acabe por decidir meu destino também, mas por insistir em aceitar
apenas o melhor para mim é que irei para Itajaí ainda hoje. Vou me reencontrar com Anna e lhe
propor seguirmos compartilhando nossa existência.
Só de pensar nisso, o incômodo que havia se instalado abaixo de meu umbigo se transmuta
em algo diferente, algo acelerado, que vibra de maneira agradável, resoluta. Talvez seja o que
chamam de impulsividade? Não sei dizer, mas sinto que não há momento mais apropriado para
meu retorno do que esse.
Hortênsia fecha o scrapbook e o entrega para mim, de olho na irmã lá fora.
Jogo o álbum em uma das caixas destinada ao lixo e a lacro.
Algo Maior
Montevidéu, Uruguai - 2022
— É meu aniversário.
A voz melodiosa soa ávida para me puxar para si. É a terceira semana consecutiva que isso
ocorre ao final de minha aula. Duas vezes por semana, às 17h45 invariavelmente, Fiorela se
aproxima de minha mesa e me interrompe ao laptop.
— Estou fazendo 23 anos — segue ela, como se essa informação fosse mais crucial do que
a anterior.
Paro de digitar e encaro minha obrigação. Cordialidade com o corpo estudantil está no topo
das normas comportamentais da Universidade. A recíproca não se aplica com a mesma
frequência, embora também seja exigida.
— Parabéns — digo. Fecho o laptop e me levanto, guardando meus pertences. Permanecer
aqui não será produtivo, a depender da insistência de minha aluna.
— Ah, obrigada. Mas minha família só chega no voo de amanhã à tarde. Houve um
contratempo com meu irmão, aquele bostinha. Ele tinha que inventar uma doença justo no meu
dia.
— Lamentável.
— No seas mala, profesora. Estou lamentando de verdade — insiste Fiorela, com humor.
— Vai ser a primeira vez que passo meu aniversário sozinha. É tão triste. Adoraria ter
companhia pra fazer algo essa noite.
Ela me olha com esperança. Há certa hesitação em sua fala, mas há também confiança e
uma nuance de desafio. Gosto da combinação.
Gosto mais ainda de como Fiorela ergue o queixo quando ajeito a alça de minha bolsa no
ombro. Vai se esforçar para não ser dispensada como nas outras vezes. Hoje é seu dia especial,
ela quer que algo especial aconteça. E eu faço parte disso.
Tornei-me sua professora nesse semestre. Desde nossa primeira aula, ela me chamou a
atenção. Quieta e observadora, seus olhos sagazes me acompanham em tudo o que faço dentro da
sala. Fora também, já que costuma impor sua presença através de Sebastian, quando o vê
caminhando ao meu lado pelo campus.
É fácil de compreender tal comportamento: meu conhecimento a atrai, a forma como eu o
controlo e o exponho. Sobretudo, como faço questão de não o expor mais do que necessário. O
distanciamento entre nós faz parte da atração.
Algumas pessoas são fascinadas por relações de poder, outras pelo que é proibido.
Posições como a minha, como professora e diretora do programa de microeletrônica mais bem-
conceituado do Uruguai, misturam as duas coisas. Fiorela não resiste e tem se aproximado mais.
Ela aguarda o final da aula, espera até o último colega sair e ultrapassa a barreira invisível entre
minha mesa e o resto do ambiente. Não tem conseguido muito com isso.
Mas hoje é diferente. Hoje é seu aniversário.
E é o meu também. Um bom motivo para celebrar.
A pele alva de seu pescoço contrasta com o cabelo escuro e desce perfeita e suave pelo
colo. A risadinha que solta conduz ainda mais meu olhar por entre seu decote. Não estava tão
visível antes. Ela puxou a blusa para baixo ao vir falar comigo e fez questão de a combinar com a
saia clara que deixa a maior parte de suas pernas à mostra. Armas, cada um com as suas.
— O que você gostaria de fazer?
Fiorela sorri surpresa. Não esperava minha resposta e agora que a obteve, adquire uma
expressão de superioridade, como se tivesse certeza desse momento desde que entrou em sala
hoje.
Mas é um momento frágil, fraco, e ela não sabe que eu sei disso. Franze os lábios, rosados,
úmidos, tão saudáveis quanto parecem ser, e a sobrancelha erguida dita o tom do que ela gostaria
que fosse transmitido como sensualidade. Bom trabalho.
Ela dá de ombros, dissimulando que já não havia planejado essa parte da conversa.
— Sair. Ir a algum lugar. Talvez beber um mate. Espairecer, sabe?
Um convite explícito. As pontas de seu cabelo se dobram para dentro, acariciando o
queixo. Ela percorre os dedos por ele, o levando para trás, expondo a mandíbula afiada. Um calor
agitado se inicia em minhas entranhas.
Setenta e quatro dias. Há setenta e quatro dias que não sentia tal calor. Na última
ocorrência, eu estava no Brasil, dentro do carro de Anna, envolta em emoções que definiram meu
momento atual, minha vida nos dias de hoje. Há setenta e quatro dias eu tomava uma decisão
inédita até então.
Setenta e cinco dias amanhã, me diz o contador que só existe em minha mente. Não era
uma meta e sim um teste. Até onde eu conseguiria ir?
Setenta e quatro dias.
Tiro a chave do carro de dentro da bolsa e subo meus óculos pelo nariz.
— Conheço um bom lugar pra isso.
— ¡Micaela, es muy lindo! Você tinha razão, é um bom lugar pra se celebrar.
Concordo, apesar de não ter sido isso o que eu disse. Mas mais do que ter minhas palavras
torcidas, é a mão de Fiorela segurando meu braço que me incomoda. Encontrá-la fora do
ambiente acadêmico lhe deu a impressão de ter liberdades que não tem.
Tiro o cinto de segurança, mas não saio do carro. O pôr-do-sol em nossa frente,
emoldurado pelas colinas, é de fato esplendoroso. As cores se refletem na lagoa em nossa frente,
ladeada por vegetação. Vir até aqui acalma minha mente, mas hoje minha acompanhante não
contribuirá para esse fim.
— É um pedaço esplêndido de natureza, parece intocado. Como conheceu esse lugar?
— Explorando.
Ela ri, o motivo da graça não me atingindo.
— Foi preciso uma brasileira se embrenhar no meu país pra me mostrar algo assim —
explica.
— Às vezes é exatamente disso que precisamos: alguém de fora que nos mostre o que não
estávamos vendo.
Fiorela troca a vista idílica por mim, e encara meu rosto. No seu, o laranja do pôr-do-sol
tinge a pele suave em tons quentes quase agressivos. Seus olhos me consomem por inteiro e ela
se vira no banco do carro para me acessar melhor.
— Creio que vejo tudo o que há pra ver.
Seguro o suspiro irritado que essa tentativa pífia de sedução me causa. Ela é uma jovem
inteligente, sei que pode fazer melhor. E eu sou paciente, quero ver até onde vai.
Seu cabelo escorre para a frente e, com as pontas dos dedos, sou eu quem agora o leva para
trás. Ela se inclina em minha direção. Sinto seu perfume cítrico e agradável. Combina com ela,
com sua postura e intenções comigo. Traço seu maxilar até o queixo e ela umedece os lábios em
antecipação.
Sorrio da prepotência de sua expectativa e Fiorela segue o gesto com o olhar. Ri em
reflexo e continua sorridente.
— Estou adorando estar aqui contigo, mais à vontade. Posso te chamar de Mica?
— Não — respondo. Só concedi essa permissão uma vez e não pretendo revogá-la. —
“Micaela” faz mais sentido.
Fiorela aceita.
— Micaela... Soa tão bem. Sabe o que significa? — Respondo que sim, claro, mas não faz
diferença para ela. — "Quem é como Deus?". É bonito isso, né? Não há ninguém como Deus e
teu nome é uma lembrança disso, de que temos que ser humildes frente a Ele.
— Humildade é uma ilusão — digo. — Algo que nos forçam a acreditar que nos
engrandece, mas ao contrário, nos doutrina, diminui. Humildade nos condena à inferioridade.
Não deveríamos fingir sermos o que não somos, pois ao irmos contra nossa natureza não
estaríamos indo também contra Deus? E ele não nos criou ao seu molde e semelhança? Sendo
assim, há vários de nós como Deus e há vários de nós agindo como tal, porque Deus não é
humilde.
Ela pisca algumas vezes e ri, então se inclina mais em minha direção, expandindo o decote.
Captura o lábio inferior entre os dentes e o solta devagar.
— Adoro quando você fala coisas assim — murmura, invadindo todo o meu espaço
pessoal. — Seu sotaque é uma delícia.
Ao ver seu pescoço acessível, alcanço meu canivete no compartimento da porta do carro.
Está muito fácil e há opções simultâneas, mal consigo me concentrar em uma.
Olho para fora, para a lagoa. Água parada, tépida, decomposição acelerada. Em vinte e
quatro horas, o corpo de Fiorela terá quase o dobro de seu tamanho. Em uma semana, não terá
mais globos oculares, nem lábios, nem narinas ou orelhas. Servirão de alimentos para a fauna
local. Sua genital também. Bolhas preto-esverdeadas tomarão conta do que restar, a pele vai se
derreter. Se causar isso não é ser como Deus, então desconheço o que seria.
Volto à minha aluna. Os sinais de sua paixão por mim exalam de seus poros. Lábios
entreabertos, pupilas dilatadas, corrente sanguínea acelerada, mente focada em tudo o que faço
ou digo.
Paixão. Um sentimento tão forte, capaz de mover obstáculos, causar guerras, compor
obras, fazer história, criar pessoas e destruir mundos. Ao mesmo tempo, reduz quem o carrega a
um mero marionete de suas próprias vontades. Como minha aluna agora. Vulnerável como
nunca.
— Está abafado aqui dentro — digo. Fiorela mal tem tempo de concordar quando abro a
porta e saio do carro, deixando os faróis acesos. Sei que virá atrás de mim.
As cores quentes do pôr-do-sol estão dando lugar às frias e o ponto em que elas se
encontram enche meus pulmões de inspiração. As possibilidades fazem minhas palmas
formigarem.
— Maravilhoso — exclama Fiorela, levemente sem fôlego, ao se emparelhar a mim e
tomar minha mão na sua. Vejo-as unidas. Nossas cores são parecidas, quase não há nuances.
Uma paleta estranha e intrusa.
— Já trouxe alguém aqui antes?
Nego. Ela me olha como se desconfiasse do que eu disse, um sorriso brincando em seus
lábios.
— Por que trouxe a mim, então?
— Você quis algo especial. Se vestiu pra isso, preparou as falas pra isso, trocou de
perfume, depilou as pernas, hidratou o cabelo, pintou as unhas, escolheu joias, aplicou uma base
diferente e está usando um sutiã mais justo do que o de costume. Seria um desperdício se eu não
colaborasse.
Posicionando-se em minha frente, ela se aproxima ainda mais. Seu hálito me toca quando
ela alisa uma mecha de meu cabelo solto, deslizando-a entre os dedos, descendo sobre meu peito.
— Não sabia que prestava tanta atenção assim em mim — diz, sua boca rente a minha.
— Você nem imagina o quanto.
Pela cintura de sua saia, eu a trago mais para perto. Fiorela gosta e suga o ar pelos dentes.
Quando desço o toque e apalpo as partes nuas de suas coxas, ela envolve meus ombros com os
braços e encosta a boca em meu ouvido:
— Tem algo em você que me faz querer te conhecer melhor.
Sei exatamente ao que ela se refere: À ilusão de que sou alguém que se encaixa em suas
fantasias delirantes.
— Tem algo em você que me faz querer te amarrar e fazer coisas dolorosas.
Fiorela encontra graça no que digo. Sua mente iludida não é capaz de conceber violência
nesse momento. Para ela, o tema do nosso encontro é outro.
Sorrio com a ingenuidade.
— Já foi pra cama com uma aluna antes? — pergunta ela.
Minhas mãos passeiam pela musculatura de suas pernas. São fortes, de alguém acostumado
a se exercitar em academias.
— Já — respondo, concentrada em sua pele.
— Eu sabia — sussurra ela, aquele tom melodioso na voz aumentando, se insinuando para
mim. — Você parece do tipo inatingível, mas gosta de se divertir.
E quem não gosta? É meu aniversário e estou me divertindo bastante.
O corpo de Fiorela colado ao meu aumenta os arrepios em meus braços. Meu ventre se
contrai e meus batimentos cardíacos agitam minha percepção. Posso sentir tudo: a vibração da
fala de Fiorela, sua respiração em meu pescoço, o aroma da vegetação ao nosso redor, o fim do
dia que se aproxima. O céu escurece ao longe, além da lagoa e das colinas, e a lua crescente
desponta.
— Te quiero pila, Micaela.
Acolho a euforia que me abraça mais do que Fiorela. Minhas mãos sobem por suas coxas,
erguendo a saia ao adentrá-la. Com um suspiro prolongado, ela acaricia minha nuca,
embrenhando-se em meu cabelo, raspando as unhas até minha garganta. Ela encosta a boca
abaixo de minha orelha e mordisca o lóbulo. Eu chego na barreira de sua lingerie.
— Vamos nos divertir — diz. — Vai ser meu presente de aniversário.
Setenta e quatro dias, penso. Setenta e cinco amanhã.
Some o contador.
O grito de Fiorela vem de dentro, de algum lugar muito escondido. Sai grave e curto e
carregado de surpresa. Ela se afasta, trôpega, olhando para as pernas, procurando o que lhe causa
uma dor tão dilacerante. Só encontra porque vê a mancha vermelha se alastrando, manchando a
saia, escorrendo de sua virilha e alcançando o joelho.
Ela dá mais um passo para trás, olhando para mim, questionando. Espera que eu solucione
o mistério, que eu a auxilie, que eu diga qualquer coisa. Mas não digo.
O sangue jorra sem que ela veja. Eu sorrio, satisfeita, e ergo a mão. Giro o canivete, a
lâmina voando ao redor de meu polegar, e o fecho.
— Mas por que...? — Ela cai de joelhos, em choque. Sua coxa direita está lavada em
vermelho e o sangue tinge também o solo, o verde e o marrom. Vai atrair animais grandes e
pequenos. Decomposição ligeira, partes faltando, órgãos internos devorados e tomados como
colônias de insetos. Os ovos eclodirão e o restante do corpo ainda servirá como alimento. O calor
vai fazer sua parte. Levará dias, não semanas. Muito melhor.
Agora sentada, assustada e respirando rápido, Fiorela em desespero tenta impedir que o
sangue vaze de sua veia femoral, por onde passa todo o fluxo que pulsa de sua perna. É inútil,
mas bonito de ver. As mãos bem cuidadas não dão conta, o líquido escarlate salta entre os vãos
dos dedos e as toma como suas.
Assisto a certa distância, para não me contaminar. Detesto trabalhar com sangue, mas
como resistir a essa estética? Sangue ao crepúsculo, em meio à paisagem aberta, seu brilho
emoldurado pela natureza. Adoraria reproduzir algo assim em tela.
Fiorela resiste. Ela é forte, se divide entre gritar e olhar horrorizada para o fenômeno que
toma conta de seu corpo — o fenômeno da morte. Pede minha ajuda, tenta se levantar. O choque
a deixa mais resiliente, por enquanto. Mas o tempo vence. O tempo sempre vence.
Ela se afasta da poça, apenas para começar outra onde se deita. Ofega com a bochecha
contra o solo, o cabelo negro roçando-lhe o queixo. Seu rosto também foi manchado pelos gestos
vigorosos e desesperados.
— Meus pais... — diz, baixo agora, menos ofegante, menos histérica, os olhos em mim, a
observando em pé. — Meus pais... Eu só queria…
Segue-se o silêncio. Os olhos estáticos ficam mais claros. A luz do carro ilumina a parte
superior do corpo. Mosquitos o sobrevoam. Um pedaço esplêndido de natureza, de fato, mas não
mais intocado.
Talvez a encontrem logo. Talvez nunca.
A noite cai sobre mim, me envolve como um manto. Senti falta do escuro.
Respiro fundo, acolhendo a penumbra dentro de mim.
Sem dúvida, um dia especial.
UM
DOIS
Minha ex-namorada me ligou hoje. Ela faz isso às vezes, fica ligando por minutos inteiros
e então para.
Se conheço bem Abena, eu diria que o que acontece é que ela volta a se indignar com
minha saída brusca da casa e da vida dela, que ela esquece o quão puta ficou na ocasião e tenta
entrar em contato para entender o que aconteceu — entender o que me levou a terminar tudo
assim e a cortar qualquer maneira de ela tentar me alcançar. Ela quer entender o que sinto agora.
Entender. Não seria bom?
Antes ela fazia mais, ligava mais. Agora tem mais espaço entre as tentativas. Depois de
tantos meses, deve cansar. Eu sei que cansa. Passei tempo demais tentando entender. Gasto cada
vez menos energia com isso. Eu só vou em frente.
Na noite em que terminei com Abena, Mica ficou me esperando no carro. Ela teve medo
— “apreensão” foi a palavra que usou — que eu não voltasse, que eu não seguisse com ela. Eu
mesma cheguei a titubear enquanto subia ao apartamento de Abena e preparava na minha cabeça
o que ia falar para ela.
Como se prepara para algo assim? Não tem como. Foi uma escolha, e não tive preparo
algum para ela. Não tive arrependimento algum, também.
Mas cada vez que subo as escadas para o apartamento que Mica aluga para a gente aqui em
Punta Carretas — um bairro costeiro, nobre e seguro em Montevidéu, a 1300km de Itajaí —, eu
revivo as escadas daquele outro apartamento e me lembro da sensação sufocante no peito de
saber que eu iria chegar em Abena e quebrar parte dela.
Bem, antes ela do que eu.
Subo as escadas, então, e dentro do apartamento deixo as compras sobre o balcão da
cozinha. Sebastian me acompanha, em sua expectativa feliz. Eu falo com ele e o recompenso
com um morango inteiro. Suas bochechas largas estalam no ar, no silêncio do resto da casa.
Fevereiro é o período de férias escolares, então Mica não sai para trabalhar. Mesmo assim,
por vezes ela sai de casa. Sei que caminha, que passeia, que gosta de explorar as ruas, a orla,
observar os quintais, as fachadas comerciais, a avenida Rambla Gandhi, o antigo presídio
transformado em shopping center, as pessoas. Sei que ela desenha o que vê, e através dos
desenhos me fala sobre suas saídas. Mas geralmente, ela não me diz para onde vai ou o que faz.
Também não adianta perguntar, porque ela nada vai me oferecer além da frustração de não saber,
de ter que adivinhar pelos sinais que deixa escapar e os quais acho que nem se dá conta.
Deixo a cozinha, atravesso a sala, entro no corredor que leva aos quartos. São dois: um
nosso — uma suíte gracinha que tem até banheira —, e o outro…
Sebastian passa por mim e entra no outro quarto. Deita na almofada que é sua cama, ao
canto. Ele tem camas em todos os cômodos. Nesse, ela fica ao lado de uma fileira de telas em
branco — tramas de algodão e linho que Mica prepara com resina e prega em molduras que ela
mesma monta do tamanho que quer.
É um quarto pequeno, com uma janela estreita e a vista desinteressante de outras
residências. Nada como o imóvel onde Mica morava na Alemanha: uma casa de fazenda afastada
da cidade. Lá ela tinha um lugar apropriado para montar as telas, para desenhar, pintar e produzir
o trabalho que vem expondo. Aqui é um acúmulo provisório — que o hospital que me contratou
tão prontamente não saiba disso. O contrato para as análises clínicas vai até o final do semestre e
depois disso… quem é que sabe?
Mica me vê encostada na porta, me cumprimenta com a cabeça e volta à tela horizontal em
sua frente. Não sei o que está produzindo, apoiado no rodapé, mas é grande.
Seus gestos são meticulosos, ela passa um tempão trabalhando no mesmo ponto, cotovelo
erguido, ponta do pincel tocando a tela, visão focada, maxilar travado. Quase não pisca por trás
dos óculos. Quando pisca, aproveita para afastar o cabelo do rosto. Ela tem o cortado cada vez
mais curto, e agora mal alcança os ombros. Eu ainda adoro dormir com minha mão embrenhada
nele, ou em suas costelas afiadas, sentindo a respiração mansa que parece acalentar minha alma.
Não sei como ela se mantém concentrada. Se fosse eu sendo assistida assim, fazendo o que
quer que fosse, já estaria incomodada. Mas ela não se incomoda em ter olhos pousando nela, lhe
tocando cada parte. Suas pernas longas e magras ficam ainda mais claras nessa luz. O tempo
ameno permite que usemos shorts e ela veste um vinho de cotelê que provavelmente comprou na
sessão masculina de alguma loja chique. A peça destoa de um jeito engraçado da blusa de
mangas dobradas e estampa da Rainha Má que dei para ela como uma piadinha, na semana
passada. A personagem tem olhos verdes e oferece uma maçã envenenada. Mica entendeu e riu
comigo.
Uma buzina alta corta o silêncio. É só alguma distração no trânsito lá fora, mas faz Mica
trocar o peso do corpo entre os pés e me olhar antes de voltar à tela. Um gesto breve, mas
suficiente para me deixar toda contente por dentro.
Abena dizia que me amava a todo momento. Entre nós, ela foi a primeira e a última a
dizer. Eu conseguia retribuir quando estava inspirada, ou quando me sentia muito grata por algo
que ela fazia, por estar comigo, por se manter ao meu lado. Meus “eu te amo” para Abena eram
agradecimentos e pedidos de “não me deixe” ou “tenha fé em mim, quem sabe um dia eu sinta o
mesmo que você”. Eles eram sinceros de certa forma, e partiam de algum lugar do fundo do meu
coração, mas nem de longe se assemelham ao que sinto quando penso em quanto amo a mulher
nesse quarto aqui comigo agora.
Mica nunca disse que me ama. Ainda não. Quero me convencer de que não precisa, de que
não são palavras que irão validar o que há entre nós. Eu mesma não digo com muita frequência.
Meus “eu te amo” para Mica são maneiras de autoafirmar meu direito de amá-la, de eu não
implodir com o que sinto por ela, principalmente quando estamos fazendo amor e ela está tão
dentro de mim que tudo o que meus pensamentos extasiados conseguem fazer é sussurrar em sua
orelha nua o que ela me causa.
Nesses momentos, ela — que dificilmente deixa uma pergunta sem resposta e que não
entende o sentido de um questionamento retórico — sem gastar palavra alguma, apenas me olha
de um jeito que me diz que é óbvio que eu a ame.
Só de lembrar disso agora, reviro os olhos. Convencida irritante do caramba. Por que ela
não pode ser uma pessoa normal, em perfeito alinhamento com as normas sociais?
Porque aí não seria ela, e até arrisco dizer que eu não a amaria tanto.
Tudo bem que não me diga o mesmo. Isso não é, de forma alguma, a coisa mais grave que
ela faz, e eu a aceito porque nunca poderia amá-la em pedaços, somente inteira.
Vendo que ela está inteira em casa — e não andando pelas calçadas de alguma rua que não
conheço, entre contêineres verdes de lixo e táxis amarelos e brancos —, me viro para retornar à
cozinha e guardar as compras.
— Anna. — Sua voz firme, mesmo baixa, me faz parar no mesmo instante. — Poderia vir
aqui?
Entro no quarto. Ela indica que eu vá até seu lado e, ao fazer isso, me apresenta o quadro
em que estava trabalhando.
Sou eu. Quero dizer, é uma pintura minha, um retrato do peito para cima. Tenho o braço
apoiado na contenção do Farol de Punta Carretas e olho para quem olha a tela. Estou com as
mesmas roupas daquela tarde, à mesma luz, e meu rosto transmite exatamente o que se passava
em minha cabeça: deslumbre, incerteza, espanto e muito amor.
Foto nenhuma teria sido capaz de capturar os inúmeros desdobramentos de uma mesma
pessoa em um momento tão passageiro e que ocorreu há meses, mas a mente dela e seus olhos e
sua memória e suas mãos conseguiram.
— Mica… — Nunca me senti tão vista por alguém. Quero alcançar a tela e traçar os
rastros do pincel, mas o cheiro de tinta fresca me adverte contra a ideia.
Olho para Mica, ao meu lado, serena e só… aqui, presente, esperando ou não algo de mim.
É assim que ela me vê? Como na pintura? Porque há tanto detalhe e tanta atenção
empregados. Ela me fez emanar algo que desperta curiosidade mesmo em mim.
Não conheço essa pessoa retratada, mas também conheço-a muito bem. Eu adoraria ser
essa mulher ali, ao pôr-do-sol ao sul do mundo, longe de tudo que já lhe foi familiar e que a
machucava, com centenas de quilômetros geográficos e psicológicos entre o antes e o agora. O
bizarro é que sei que já lhe sou, e já lhe sou há certo tempo, mesmo tendo passado a vida inteira
tentando a ser.
— É maravilhoso — digo, vendo os traços de minha expressão, o brilho do sol na água
atrás de mim, o céu caloroso e acolhedor, o tricotado habilidoso do meu casaco, o canto de
minha boca que parece real a ponto de eu querer tocá-la só para conferir se está em relevo ou
não.
Mica segura minha mão e a leva aos lábios. Seus dedos estão manchados de tinta, e não me
importo quando laranja e branco são transferidos para minha pele.
— Senti que lhe devia uma representação mais apropriada do que aquele rascunho em
grafite que você insiste em guardar.
E por que não guardaria? Foi a única certeza que tive durante anos de que ela me viu, me
enxergou, de que eu era real e não estava alucinando sobre o tempo que passamos juntas no
sobrado em Itajaí. Aquele desenho é minha lembrança tortuosa de uma época em que fui feliz
mesmo enquanto era assombrada pela pior das circunstâncias.
De dentro do bolso da bermuda cotelê, Mica retira algo e deposita em minha mão. É uma
caixinha quadrada, aveludada, com o símbolo de uma marca provavelmente local.
— O que é isso?
— Vai descobrir ao abrir.
Aninhado em tecido escuro, há um pingente dourado adornado com pedras vermelhas e
azuis. Um coração. Não do tipo simplista que é popular, e sim anatomicamente correto, com
veias, artérias, átrios e ventrículos. Quase rio disso, porque mesmo sendo romântica ela é nerd.
Mica é o tipo de pessoa que te proporciona cuidados ao longo do dia, como te levar café na
cama e priorizar os seus relatos, gestos que mais condizem com respeito do que com grandes
demonstrações de romantismo mesmo. Joias e corações não fazem parte do repertório dela, então
o pingente extrai de mim uma reação honesta de surpresa.
Quando o retiro da caixa, a corrente dourada se desenrola, revelando um colar. Atrás do
pingente, entalhado, consta um monograma. “A.M.M.”. Anna Marcela Mendes. Um nome que
hoje em dia uso com mais posse por tê-lo reconstruído com meus próprios valores.
Com delicadeza, Mica pega o colar de meus dedos e o passa sobre minha cabeça. Seu
cabelo cheira ao xampu herbal que usa. No hálito, próximo ao meu rosto a ponto de sentir descer
pela garganta, café. Por um instante esqueço o que está acontecendo e meu corpo inteiro fica em
alerta com a iminência do contato com o dela. Sinto que estou corando, minhas bochechas e
orelhas quentes, e volto a ser a menina insegura que desconhecia a força do que era capaz de
vivenciar.
Mica ajeita a corrente ao redor de meu pescoço, o alisando até a ponta. O pingente
descansa entre meus seios, coração de metal e joia no nível do coração de músculos e sangue.
— Soldados romanos não podiam se casar — diz ela, olhando do colar para mim.
— Hum?
— Antigamente — complementa, como se explicasse tudo.
— Ah, okay.
— Não era produtivo que sentissem saudades de alguém, que pensassem em um lugar que
não fosse o campo de batalhas. Mas havia um bispo que realizava a celebração às escondidas do
imperador e da própria Igreja Católica.
— Que fofo.
— Ele foi assassinado por isso.
— Ahn.
— Posteriormente, na infame missão de erradicar as festas pagãs, a Igreja Católica, como
lhe é de costume, se apropriou da história do bispo para encobrir um festival lascivo em
celebração à deusa da fertilidade. O nome do bispo era Valentim.
Há algo de conhecido nessa história. Acho que ouvi alguma versão semelhante em algum
curso de inglês da minha adolescência. Começo a sorrir, mas deixo Mica prosseguir.
— Foi instaurada uma data em sua homenagem, para que seus feitos em relação ao amor
fossem sempre rememorados. Grande parte do mundo, exceto o Brasil, comemora o dia dele em
14 de fevereiro.
Meu coração acelera.
— Que é hoje — digo.
— Exato.
— Dia de São Valentim.
— Também referido como…
— Dia dos Namorados — concluo.
Com o cabelo preso atrás das orelhas, tinta embaixo das unhas e na armação dos óculos —
que ela vai limpar assim que perceber —, blusa da Rainha Má e bermuda masculina, Mica
inclina o quadril para o lado e sorri. Sei que é inútil esperar mais coisas dela além de um colar e
uma história, porque nesse colar, nessa história e nesse sorriso — que não é sinistro nem
enervante de maneira alguma — há toda uma confirmação do que procuro saber.
Eu suspiro sem querer, o ar deixando meus pulmões e desinflando minha postura. Fui pega
desprevenida com a declaração silenciosa. Mica não diz que me ama, não nos declara namoradas
ou mesmo um casal, mas ao mesmo tempo faz tudo isso e ainda mais. E quando se aproxima e
me beija, sei que estou segura e que sou mais amada do que nunca.
Anunciando que vai lavar as mãos, Mica sai e me deixa sozinha na companhia de suas
telas e de uma energia boa que quase me faz flutuar.
Seguro o pingente com firmeza. Ele espeta minha pele e esquenta na palma de minha mão,
então me percebo disposta a proteger meus sentimentos de qualquer um que ouse me contaminar.
TRÊS
Sentamos à uma mesa no lado de fora de uma lanchonete do campus. É uma noite úmida
de abril, e o chão asfaltado que leva ao estacionamento brilha molhado pela garoa recente. Na
parede da lanchonete, uma TV grande exibe um filme. Tem bastante ação e desperta meu
interesse até eu ver um homem ensanguentado correr com uma motosserra atrás de um grupo de
adolescentes. Aí eu desvio o olhar.
Bebericamos de nossos copos de isopor em silêncio, vendo pessoas do elenco universitário
passar e a fumaça do líquido quente rodopiar em frente aos nossos rostos.
— Estamos longe de ouvidos alheios e temos café — diz Mica, na cadeira ao meu lado,
depois de um instante. — Qual seria o assunto de urgência?
— Você aceitou participar da exposição.
— Eu sei.
— Uma exposição grande, que vai ter você como foco.
— Estou ciente disso também.
— Quando Paulina fez a oferta, jurei que iria te ouvir argumentar por horas, negando. Ou
mesmo nem isso, que só iria derrubar tudo o que ela dissesse com uma única frase, mas não foi o
que aconteceu.
Ela inclina a cabeça para me olhar de perto, genuinamente curiosa.
— Por que está narrando um momento em que estive presente também?
— Você é mais atenta do que isso, Mica.
— Sei que há uma cobrança no que diz, mas preciso que seja mais específica.
Aproximo meu rosto do seu, com meu copo de café me aquecendo as mãos. Ela pisca com
força e aguarda. Seus olhos estão lindos por trás das lentes, iluminados pelo neon da fachada da
lanchonete moderninha.
— Você vai expor retratos de pessoas mortas — digo, baixo e devagar, com a expressão
neutra, caso haja alguém nos observando. E eu poderia dizer que há, mas talvez seja apenas meu
julgamento sobrecarregado por receio e pelo assunto em que estou entrando. — Você é a autora,
não preciso dizer do quê. Os quadros irão pra outros lugares, longe de seu controle. Outras
pessoas irão ver os retratos e seu nome vai estar pra sempre atrelado a eles. Entende onde quero
chegar?
— Entendo.
— E o que tem a dizer sobre isso?
— Expor é do meu interesse. Me faz produzir mais e não precisar levar comigo o que
produzo.
— Poderia só se desfazer das telas, como faz com tudo.
— Quase tudo.
— Posso queimar pra você. Tenho experiência em incêndios.
Ela sorri.
— Você gosta desse seu feito — diz.
— Você gosta dos seus. Ao menos eu não exibo o que faço. Fiz. Foi só uma vez. —
Balanço a cabeça, retomando o foco de minha indignação. — Quer ser pega?
— É claro que não.
— Por que bancar a John Wayne Gacy?
— Gacy pintava a si mesmo — diz ela, ofendida, engolindo em seco. — E os Sete Anões.
Anna, não busque interpretações profundas pro que é raso. É só uma exposição, são apenas
quadros, retratos pintados de minhas leituras de pessoas em momentos perdidos no tempo,
repletos de inferências minhas e de interrupções causadas pelo próprio processo de pintura e
criação. Eu não me arriscaria assim, não assinaria autoria alguma. Não sou um homem que se
fantasia de palhaço. E você está aqui, agora.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer que eu não te arriscaria.
— Mesmo?
Ela segura minha mão. A dela é morna e firme, me transmite potência e brandura ao
mesmo tempo. Mãos capazes de criar e destruir.
— Não entendo o que te causa tanta dúvida — diz.
O peso de seu olhar me faz baixar o rosto. Vejo o pulso fino e claro, cutículas intactas,
unhas bem cuidadas, limpas. Essas mãos não me tocam com a intensidade com que tocam outras
pessoas, nem com a mesma intenção.
O que as pessoas dos quadros sentem enquanto ela as toca? Será que imaginam que será o
último contato humano em vida? Será que chegam a saber? Eu saberia?
Mais aspectos dela que desconheço e que aumentam o incômodo alojado dentro de mim.
— Eu me preocupo se um dia você vai se cansar disso — digo, gesticulando entre nós
duas. — Você descarta tudo, todo mundo. O que te impede de me descartar também? Se não
hoje, mas amanhã. Pode me garantir que isso não vai acontecer?
— Alguém pode oferecer garantia assim? Você garante que seguirá me amando, apesar de
mim?
— Eu não te amo apesar de você. Amo você inteira.
— Você não me conhece inteira, Anna.
— Porque você não me permite. Você impõe distâncias, diz que quer me preservar, que é
melhor eu não saber de nada. Eu te amaria sabendo de tudo.
— Você concordou que houvesse distâncias.
— Distâncias, sim, mas não abismos.
— Saber de tudo talvez seja demais. — Ela enrola um cacho do meu cabelo e fala com
uma voz suave, me olhando tão de perto que parece querer entrar em minha mente. — Talvez te
afaste, te cause horror. Talvez faça com que me olhe me questionando do que sou capaz, do que
já causei, da exata maneira como me olha agora.
Expiro com força, frustrada, com raiva de como ela me enxerga com tanta facilidade. Com
raiva de mim por ter o coração do lado de fora do corpo, por ser tão transparente, por ter
permitido que uma parte inenarrável de mim tenha sido arrancada e substituída por uma parte
dela, e que eu não tenha certeza se o que me foi arrancado agora a constitui também.
Mica solta minha mão e bebe café. Sinto sua presença pesada ao meu lado, sólida, me
empurrando. As palavras dela ficam em meus ouvidos e ecoam entre as pessoas que passam por
nossa mesa. Ouço-as mesmo no homem da motosserra na TV.
Nunca havíamos discutido. Se é que ela considera isso uma discussão. Sua respiração não
está acelerada como a minha, a postura não está tensa como a minha. Ela só deposita o copo de
café à nossa frente e estala as juntas dos dedos.
— Caso te interesse — começo, com mais ironia do que pretendia —, porque não sei se
você de fato se interessa por algo, mas você também é transparente.
Ela me olha devagar, calma, mas suas pupilas dilatam ao encontrar as minhas.
— É mesmo?
— É. Eu te enxergo perfeitamente. Por fora, não parece, porque você disfarça bem ou
talvez nem precise disfarçar, sei lá, mas por dentro você está agitada, tá se sentindo incontida. Eu
sei o que quer, do que precisa. Você dá sinais, sabia? Eles te denunciam. Seu próprio corpo te
denuncia. — Como evidência, indico a mão próxima a minha, e acrescento: — Seus olhos, sua
garganta, sua intensidade, mesmo seu foco sobre as coisas, tudo se altera. Você não se controla
tanto quanto gostaria.
Sou encarada por um longo segundo, ao ponto de pensar que ela não me ouviu, ou que não
se importa com nada do que eu disse. Então ela vira o tronco para mim, me oferecendo total
disponibilidade, e estica o pulso, deliberadamente, como se não quisesse me assustar com o
movimento. Toca a ponta do meu nariz e seus dedos mornos descem pelo centro de meus lábios,
passam por meu queixo, seguem meu pescoço, minha garganta, chegam em minha clavícula,
adentram meu decote. Só param ao encontrar o pingente que me deu, aninhado em meu sutiã.
Quando o encontra, ela o traz para fora.
— Durante todos os dias — diz ela, olhando o pingente —, por quase todos os momentos,
eu e você nos orbitamos, coexistindo. Não é fácil, admito. Ainda estou me habituando. Você
também deve estar. Eu me acostumei a te ver tão perto, ao seu toque, às suas formas e texturas,
aos seus sons e gostos. Mas ainda te aprendo, e ainda te estranho. É uma estranheza interessante,
no entanto. Eu gosto.
E eu gosto ainda mais de ouvir essas coisas dela. Meu corpo reage com alegria, se
antecipando à menção de texturas e gostos.
— Mas o que isso tem a ver com…?
— Quando estávamos separadas — segue ela, com meu coração de joia na palma da mão
—, desbravei uma nova área de mim. Um tanto mais escura, como na floresta de Nietzsche.
Pouco habitada. Eu me senti desorganizada. Mas não foi isso que me espantou, porque me
conhecer é algo que aprecio. Um de meus interesses. — Ela sorri e me olha telegrafando humor,
indicando que pegou meu sarcasmo anterior e o jogou contra mim. Ligeira. — O que me
espantou foi que sua opinião com constância me pesava, o que você aprovava e o que reprovava.
Eu passei sete anos ouvindo você falar em minha mente.
Isso me arranca uma risada.
— Que merda, hein?
Mica ri também.
— Mesmo quando longe você me perturba.
— Ah, que legal. Obrigada.
— Não de um jeito negativo, mas do viés da literalidade da palavra. Você altera algo em
mim, me causa desequilibrio.
— Ainda soa negativo pra mim.
Ela balança a cabeça.
— O contrário seria eu ser indiferente a você. E eu jamais fui indiferente a você. Não é
algo que você permite. Você atinge meu limiar de sensibilidade e percepção como ninguém mais
é capaz, e não, não estou sendo romântica ao dizer isso.
— Ah, já estava pensando que era o caso.
Mica solta meu colar, mas é como se meu coração de carne permanecesse em sua palma.
Sentindo o peso do pingente no peito, beijo o canto de sua boca só porque posso, só porque
estamos juntas aqui e nessa universidade não sou sua aluna ou colega de trabalho de campus.
— Então é isso? — pergunto. — Você ouviu minha tagarelice por sete anos e agora está
aprendendo a se acostumar comigo? O que isso quer dizer?
— Quer dizer que te ouvi, mas não mudei. Não vou mudar. E nem você. E não espero que
mude. Senti falta das suas palavras em tempo real, das curvas de seus pensamentos e de como
tudo em você perturba tudo em mim. Eu te atraio, você me atrai, temos uma convivência
pacífica. Creio que seja o suficiente. Mas quero que entenda que existem ainda áreas escuras
dentro de mim, e que pretendo explorá-las contigo, porque você, de alguma forma que não
possuo total compreensão, me ajuda a me organizar. Você também tem áreas sombrias e te
ofereço o que estiver a meu alcance para que chegue ao outro lado incólume.
— Meu Deus, Micaela… — digo, ao encostar a cabeça no ombro dela. A exaustão do dia
me pega e me sinto pesada, imóvel. — Tudo isso pra dizer que você não dá a mínima sobre sua
própria segurança e que vai expor aqueles quadros mesmo assim.
Dessa vez, ela concorda, e junta nossas mãos ao lado dos copos vazios de café.
— Viu? Você me aprende também — diz ela, leve. — Mas devo lhe corrigir e dizer que
me preocupo com minha própria segurança, sim, e tenho controle sobre os riscos que me permito
correr.
Solto um suspiro longo, já sem argumentos.
— Só quero que esteja segura — digo.
— Estou.
— Porque me sinto segura contigo.
— Você está.
— Não quero que se machuque ou que seja tirada de mim.
— Faz sentido que não queira.
Mais pessoas passam por nossa mesa. Mica as observa em silêncio enquanto brinco com
nossas mãos unidas, com os dedos dela, as juntas que ela estala de vez em quando.
— Fiquei curiosa quanto aos sinais físicos que emano — diz ela, atraída por meus
movimentos.
Ergo a cabeça para olhá-la de perto, curtindo nossa intimidade em um lugar público.
Abaixo da armação do óculos, na bochecha, vejo duas marcas na pele, cicatrizes causadas por
uma das suas últimas vítimas em Itajaí, há uma eternidade. A mulher da ponte, que ela deixou lá
para ser encontrada porque seu ego estava tão inflado pela impunidade que precisava ser
exposto.
Duvido que seus riscos sejam realmente controlados, e me pergunto se tê-la de volta
comigo foi prudência de sua parte ou pura sorte.
Dedilho a fenda em seu queixo e sinto o cheiro herbal do cabelo que escapa de trás das
orelhas.
— Vou te contar quais são os sinais — digo. — E vou te ajudar a disfarçá-los melhor.
— Obrigada.
Ela me beija e se levanta, levando nossos copos até a lixeira mais próxima. Eu a observo ir,
com seus movimentos sóbrios, e cumprimentar alguém no caminho. A afeição que nutro por ela
volta com força, como uma grande peça se encaixando, nos alinhando novamente.
Mas quando ela retorna e me oferece a chave do carro, eu me pergunto por quanto tempo
serei capaz de aguentar que meu coração resida na palma de sua mão.
Prelúdio ao Sombrio
Montevidéu, Uruguai - 2023
Jonah passa a mão pelos loiros cabelos ralos. Ignora as entradas cada vez maiores na testa.
Ignora também a multidão ao seu redor. Pessoas indo e vindo, bem vestidas, conversando,
sorrindo, beliscando as famosas finger foods de Paulina. Ignora os comentários, o código social
do lugar, as intenções, a soft music no ar, as luzes direcionadas, os aromas dos perfumes e da
madeira pintada dos suportes de telas, os cheiros das telas em si.
De seu lugar no canto da galeria, só o que ele vê é Micaela.
A artista local, alta, cabelo curto, pescoço comprido, que leciona em outra universidade e
foi convidada mais uma vez para expôr na de la República. Jonah não entende o motivo. Não há
arte idiota o suficiente entre os alunos?
Mas Jonah sabe — claro que ele sabe — que Micaela se destaca entre a massa criada nesse
paisito. Com seu porte e ascendência ariana, ela se destacaria em qualquer lugar. Como ele, caso
quisesse.
Nós não queremos.
Não queremos.
Ele não quer. Por isso se mantém pelos cantos. Por isso trabalha como faxineiro. Por isso
usa o mesmo uniforme e tem a mesma rotina e só fala com as mesmas pessoas dia após dia.
Porque assim ele é invisível. E ser invisível é útil.
Ninguém nos vê.
Micaela nunca o viu, pensa Jonah. Ela conversa com quem se aproxima. Atende artistas,
alunos, investidores, compradores, aquela negrinha colada nela, mas nunca Jonah.
Se acha maior do que nós. Mas ela vai aprender. Vai aprender a não nos ignorar.
Anna e Micaela conversam em frente a uma das telas. Anna bebe espumante rosé e ajeita a
gola larga do sobretudo caramelo de Micaela. Jonah não ouve o que elas dizem, mas a julgar
pelo que já conhece delas, Micaela deve estar induzindo a negrinha a acreditar em uma das
visões estapafúrdias que tem das coisas. E a negrinha, claro, vai engolir tudo o que ela diz como
um cão sedento. Porque é isso que ela é: um cachorro pidão, carente e disposto a aceitar o
mínimo de afeto que recebe. Quem é que não vê isso?
E como qualquer cachorro, ela deve ser chutada para sair do caminho. Jonah não vê a hora
de se livrar dela.
Alguém questiona Micaela sobre um dos retratos. Uma coisa desagradável, obscura, que
ocupa uma tela enorme. Um perfil masculino, de um jovem de cabelo comprido e olhar
assustado no rosto distorcido em horror. Parece uma foto, de tão nítido.
Se é para reproduzir uma foto, por que então não se tira uma foto? Gente pequena.
Jonah se aproxima por trás da tela e ouve o comentário da jovem para Micaela:
— Eu olho pra ele e sinto um medinho. Um frio na espinha. Acho que sinto o que ele tá
sentindo, sabe?
— Sei — diz Micaela.
— Gosto desse toque aqui, esse splash de vermelho no pescoço dele. Como se fosse uma
mãozada de sangue. O tom é perfeito. Tem influência de Francis Bacon, talvez?
— Piranesi.
— O artista vedutisti? Mas ele fazia paisagens e interiores.
— É uma questão de perspectiva. Eu pinto o que vejo, e pessoas são como…
— Mica — interrompe Anna, abraçando Micaela pela cintura. — Tem algo que precisa
ver. Vem comigo, vem.
As duas se afastam, deixando a interessada na obra e Jonah fora do alcance, mas Jonah
percebe que a negrinha cochicha vigorosamente, com as sobrancelhas franzidas, tentando velar
aflição. O olhar dela cruza com o do faxineiro e ele se esquiva, voltando para trás da tela.
Nem Jonah nem ninguém dali imagina que o retrato tenha sido alterado de sua primeira
versão, mas um exame em raio-x revelaria que Micaela modificou o rosto original para
transformá-lo em outra pessoa, há seis anos, que o splash de tom perfeito é de fato sangue
humano, e que o modelo de cabelo comprido, um espanhol vendedor de drogas, se encontra
desfeito e decomposto, seus ossos enterrados no antigo pasto da casa da fazenda desativada de
Micaela, em outro continente. Um continente onde, apesar de reverenciar, Jonah nunca irá pisar
os pés.
A mãe de Jonah gostava de arte. Ela juntava páginas de jornais, folhas de revistas e
imagens impressas do computador, e criava colagens em telas. O irmão de Jonah era quem
montava as telas. Serrava a madeira para as molduras, envernizava e tratava o tecido, o esticava
bem e grampeava na moldura. Deixava secar, passava uma demão de cal, para firmar, e
presenteava a mãe para novas colagens.
Jonah, por sua vez, era o responsável por trazer as figuras para a mãe montar. Era ele quem
recortava as páginas dos jornais da mercearia em que trabalhava, quem arrancava as folhas das
revistas das salas de espera dos consultórios psiquiátricos que frequentava, e quem imprimia as
imagens no computador da escola noturna. Mas agora, todo o trabalho é por conta dele.
Então ele vai trazer o melhor material dessa vez. Uma artista que cria arte para pessoas
pequenas comprarem. Grandes colagens serão feitas com Micaela.
Vão sim.
Vão sim.
Vão sim.
Jonah vai levá-la para sua garagem e lá ela vai ser esfolada, cortada, envernizada, esticada
sobre a moldura e grampeada. Essa noite, depois que ela sair da galeria, ele vai chutar o cachorro
carente para tirá-lo do caminho e vai pegar Micaela para si.
Para nós.
Para nós.
Para nós.
Mas não é noite ainda, é apenas o fim da manhã de trabalho, e Jonah chega em casa com
terra nas solas dos sapatos. Ele não entra na cabaña, vai direto à garagem, que é sua oficina.
Entre os materiais de arte para colagens — potes de vidro com restos de animais que ele
recolhe da estrada de terra, peles, ossos, olhos, línguas, patas e bicos conservados em
formaldeído que ele traz do laboratório de anatomia da universidade —, ele vai até o armário de
metal, pega o machado grande e sai para o quintal, para cortar madeira para as molduras. Há
algumas semanas, ele derrubou um dos plátanos para esse mesmo fim.
O sol está alto e ele sua dentro do macacão, molhando o cabelo ralo na testa comprida e
avermelhada. Quando termina o trabalho, leva uma braçada de madeira cortada para a garagem,
deixando o machado fincado no que sobrou do tronco da árvore caída.
Foi mais madeira do que ele precisaria para o momento, e um dos pedaços do tronco lhe
escapa dos braços e cai. Jonah deixa o restante sobre o balcão de ferramentas e se abaixa para
pegar o pedaço que rolou para baixo. Ao alcançar, ouve passos na entrada da garagem, mas antes
que consiga se virar para verificar do que se trata, ele é nocauteado por uma pancada causada por
instrumento contundente — que mais tarde se verificaria se tratar do próprio machado de Jonah.
Estamos vivos.
Estamos vivos.
Estamos vivos.
Jonah abre os olhos devagar, piscando à luz artificial da garagem. Com dificuldade, como
se acordasse de um sono muito profundo, ele percebe a porta fechada. Percebe também que está
no chão empoeirado, que seus pulsos doem e sua língua está ressecada.
Ele foi amarrado pelos pulsos com abraçadeiras de nylon atrás das costas, e um tecido
grosso preenche sua boca até a garganta. Os pés estão sem os calçados, e presos juntos. Mesmo
se tentasse, ele mal afastaria um joelho do outro.
Mas ele não vai chegar a tentar.
Porque através das estreitas fendas entre as pálpebras, ele vê Micaela. Alta, ariana, cabelo
curto, pescoço comprido e o mesmo sobretudo caramelo de abas largas da noite anterior. O olhar
dela passeia pelas ferragens de Jonah, pelas molduras inacabadas, sem telas, caixas de máscaras e
luvas descartáveis e potes de conserva nas prateleiras e balcão.
Micaela não demonstra o menor interesse na estranha coleção, mas ergue os óculos ao se
deparar com o armário de metal.
Ela abre um lado do armário e sorri com o que encontra. Seus olhos brilham com a
possibilidade. Então ela deixa os óculos no balcão, veste um par de luvas descartáveis e pega a
motossera de Jonah.
Movida a gasolina, a ferramenta foi comprada pela potência e por oferecer maior liberdade
em seu uso pela garagem.
Jonah começa a se debater no chão.
Micaela empunha a motosserra com destreza, apoia-a na coxa e dá a partida puxando o
manípulo de arranque. Quando ela solta o freio e o motor da serra ronca no ar, as vozes na
cabeça de Jonah começam a gritar.
Micaela mergulha na banheira e o sangue se espalha pela água quente. Não é muito, então
logo o fluido se torna uma tinta rosada ao seu redor, desprovida de significado.
Ela pensa no sangue de Jonah jorrando do corpo, pensa na motossera e, em uma pequena
incursão respiratória, sua mente se desvia e lembra que Anna gosta de filmes com motosserras.
Anna nega — ou talvez tente mesmo não se interessar —, mas Micaela sabe que, nas
madrugadas, quando acha que ninguém a observa, ela liga a TV e escolhe o canal que só passa
esse tipo de filme.
Ainda submersa, olhos abertos, corpo leve, Micaela volta à garagem de Jonah. Foi por pura
crueldade? Não o assassinato em si, mas o método? Ela não esperava voltar a essa questão. Seria
o pedido de Anna o agente catalisador do método questionavelmente descabido?
Micaela emerge. Esfrega o rosto, as orelhas e sobrancelhas. Não saiu da garagem de Jonah
com muito sangue em si, mas a ideia de ainda ter resquícios dele a faz querer ter certeza de que
está limpa.
— Encosta aqui — diz a voz atrás dela, fora da banheira.
Ela encosta e Anna se põe a lavar seu cabelo. Espalha o xampu herbal de costume,
massageia, enxagua, repete. Anna de fato aprovou o cabelo ainda mais curto e, apesar de ter
estranhado no primeiro dia, seguiu dormindo com a mão embrenhada nele. Apesar de amar o
cabelo comprido que contornava seu rosto quando solto, ela concorda que algo em Micaela faz
mais sentido com esse corte, acima das orelhas, batido na nuca, penteado para o lado. E Micaela
se sente mais autêntica do que nunca.
— Foi um teste? — pergunta Micaela, com Anna ainda lhe massageando a cabeça. Sua voz
está profunda com o prazer que sente. — Não sei se fui aprovada ou não. Você sabia que eu
faria.
Anna ri às costas de Micaela, e se inclina na banheira para responder.
— Não foi exatamente um teste, porque sim, eu sabia que você iria lá. Era a única certeza
que eu tinha. Isso e que aquele faxineiro era bizarro. Algo nele não cheirava bem, e nem tô
falando daquele macacão dele. Como a Paulina permitia um tipo desse na galeria?
— Ele te incomodava. Por isso pediu que eu o matasse.
As mãos no cabelo de Mica param.
— Eu não pedi.
— Mas fez questão de comentar. Repetidas vezes. Me falou sobre o comportamento que te
despertou atenção, não foi? A maneira como ele nos olhou durante semanas? Seguiu ele até em
casa e anotou o endereço para me repassar.
— Ele era estranho, Mica. Exalava escroto vibes. Claro, certeza certeza eu não tinha, nem
você, mas minha intenção foi unir o útil ao agradável.
Ela pede que Micaela mergulhe para o último enxágue.
— Qual seria a parte agradável pra você? — pergunta Micaela ao se sentar novamente.
Anna se ajoelha ao lado da banheira, de frente para ela. Seu cabelo está amarrado para
cima, os cachos cheios apontando em todas as direções, como um buquê com tons negros e
loiros. Está contente, Micaela diria. Irradiando algo muito interno em sua postura, em seu olhar,
mesmo na forma de morder o interior da bochecha, que em outros tempos conotaria nervosismo.
Mas agora ela sorri ao responder.
— Esse momento bem aqui — diz e repousa a mão no joelho de Micaela, por baixo da
água. — Você tranquila. Nós duas juntas. — A mão sobe até a coxa e desliza para a parte interna
da perna. — Um escroto morto.
— Possível escroto — rebate Micaela, mas sem deixar de apreciar a movimentação da mão
em seu corpo. Uma pena que tenha parado.
— Ah, Mica, qual é. Ele era esquisito, até a Paulina disse isso. E as coisas que você viu lá,
na casa dele… — Ela mesma se interrompe, porque Micaela segurou seu pulso e agora a guia
para o meio de suas pernas.
— Você está ciente de que estamos derrubando duas regras.
— Ahn, claro.
— Ele era um conhecido, do ambiente de trabalho. E te contei mais do que o que seria
prudente.
— É… — Anna diz, distraída com o rumo que seus dedos estão tomando.
— Regras que construímos juntas.
Anna suspira e quebra o contato íntimo. É um assunto importante, ela está querendo
abordar essa questão há semanas e precisa não se distrair. Elas podem retomar a intimidade mais
tarde. Daqui a pouco. Logo em seguida.
— E destruímos juntas — diz, deixando a mão no joelho de Micaela. — Eu nos sinto
desconectadas, sabe? Depois de tudo o que passei longe de você e de como foi largar tudo pra vir
pra cá, a última coisa que quero é que a gente se desencaixe. Não faria o menor sentido, né? E
passei muito, muito tempo pensando a respeito, tentando entender porque não quero só ter uma
convivência pacífica contigo e esperar que seja suficiente, como você disse certa vez. Acho que
merecemos mais do que só o suficiente.
Micaela sorri. Então o alerta de Anna sobre o faxineiro inapropriado não foi um teste para
ela, mas sim para a própria Anna. Ela está testando sua área sombria, aquela que Micaela
garantiu que a ajudaria a atravessar.
— Eu não quero saber de tudo nos mínimos detalhes — continua Anna. — Sei que é capaz
de muita coisa, não preciso ficar imaginando a extensão da sua… — “Crueldade” é o que ela iria
dizer, mas sente que o termo não faz juz ao comportamento de Micaela. Por períodos cada vez
mais longos, ela tem dificuldade em enxergá-la como alguém além da mulher quieta,
questionadora e hiperfocada que conhece. Talvez sua mente consiga mesmo dissociar a pessoa
que ama da assassina oportunista que ela é. Quem pode julgá-la? — Da sua capacidade de criar
novas formas de se livrar de incômodos. Mas eu gostaria de saber mais do que se passa na sua
cabeça, sabe? Porque tenho a impressão de que você me conhece muito mais do que eu te
conheço, e acho que precisamos nivelar isso.
— Se você diz. — Micaela estica uma mão molhada e traça a clavícula de Anna, descendo
e encontrando o pingente de coração. Ela sempre soube que Anna não mudaria, que sua
curiosidade iria se apossar de seu receio, e que seus interesses ditos mórbidos se sobreporiam ao
socialmente aceito.
Se Anna fosse do tipo que se conforma com o que lhe é imposto, não seria tão atraente
para Micaela. É por isso que sofre tanto, por não se encaixar no senso comum tedioso, na litania
de regras tão específicas que chegam a parecer um fetiche coletivo.
Anna ergue um dedo, como se lembrasse de algo, e do bolso da calça jeans tira o canivete
borboleta de Micaela. Ela o destrava e o abre com um giro rápido do pulso. O canivete original,
que Micaela ganhou do pai aos onze anos de idade, o que agora é de Anna, tem a lâmina mais
curta. Esse, o substituto, é mais longo e mais pesado, o que aumenta o nível de dificuldade das
manobras.
— Encontrei na porta do carro — diz Anna ao fechá-lo. Ela o deixa na borda da banheira.
— Acho que deve ficar com ele mais por perto. Pra se proteger e porque adoro te ver
manobrando.
— Digo o mesmo. Onde está o seu?
— Guardado. Não preciso dele.
As duas se olham e um entendimento inteiro flui entre elas. Anna não precisa de uma arma,
ela tem Micaela. A ideia se assenta de maneiras diferentes em cada uma.
Micaela pisca.
— Por vezes, não sei ao certo o que esperar de você — diz.
— O que quer de mim?
— Que esteja comigo, ao meu alcance.
As orelhas de Anna esquentam e, por baixo d’água, ela volta a traçar caminhos na pele de
Micaela.
— Eu tô — diz, introspectiva, sentindo que o alcance entre ela e Micaela transcende o
espaço físico.
— Até quando?
— Até não ser mais o suficiente? Quem é que pode dizer?
— Não sei.
Anna sorri, tentando espantar o clima de incerteza que quer se estabelecer.
— Por que está preocupada com isso? Nem parece a pessoa convencida que eu conheço e
que tem certeza de tudo, inclusive da minha vontade de estar com ela.
— Você, por outro lado, ainda tem muito da pessoa que me intrigou desde nosso primeiro
momento. Lembra dela?
Anna revira os olhos.
— Prefiro esquecer. Só me trazia dor de cabeça. Literalmente. — Ela esfrega a testa, em
alusão às enxaquecas constantes que costumava ter.
Mas Micaela se lembra da Anna de antigamente com perfeição:
— Você se extasiava com o processo investigativo das mortes atribuídas ao Esganador de
Itajaí, ficando animada a cada novo corpo encontrado. Se preocupava mais comigo do que com
as vítimas ao ponto de me proteger e me alertar sobre o comportamento que poderia me dedurar.
Aprendeu a se desconectar para poder seguir me amando com o menos de culpa possível.
Ocultou um corpo e depois incendiou uma casa para eliminar meus traços. E eu sei que iria me
esconder, caso eu tivesse ficado, mentindo e enganando quem fosse preciso, mas mesmo comigo
longe fez questão de me ocultar durante anos de todos que conhecia. Você me blindou e torceu
por meu retorno. Diante de tudo isso, o que me preocupa é não saber se há alguma coisa que irá
te afastar de mim.
— Vamos ter que descobrir, eu acho — Anna responde com a voz fraca. De joelhos, com a
mão dentro da água morna da banheira, ela se sente afogar, afundando em si mesma. Ou, fazendo
uso de melhor analogia, entrando em uma área particularmente escura de sua floresta.
Ela nunca havia vislumbrado suas ações passadas pelo o que elas realmente eram, porque
frente ao frenesi do que sentia por Micaela e do que sentiu ao se deparar com sua ausência, era
fácil usar Micaela como um escape para suas ações menos, digamos, socialmente aceitáveis.
Micaela era um bode expiatório conveniente. Anna quis tanto que ela retornasse, imaginou o que
aconteceria caso ocorresse de tantas maneiras diferentes, que quando o retorno de fato ocorreu,
algo parecia desencaixado. Mas não era na relação das duas, como Anna julgou até agora. Era
nela mesma.
Micaela se levanta e abre o ralo da banheira para que a água escoe. Anna também se ergue
e lhe entrega uma toalha.
— Comprei as passagens essa manhã — diz, assistindo Micaela se enxugar. — Enquanto
você estava lá.
Lá com o faxineiro que ambas conheciam. Lá em uma garagem bizarra que a própria Anna
localizou. Lá operando uma motosserra que, sim, faz parte de muitos dos filmes que Anna ainda
gosta.
Enrolada na toalha, Micaela a puxa para perto. Seu cabelo molhado verte firuletes de água
que lhe contornam o maxilar. Com a proximidade, ela se sente em paz e tem certeza de ser
invencível, mas sabe que Anna, por outro lado, se desconcentra com a pele nua que desliza
contra a dela.
— Vou adorar compartilhar a Alemanha com você. Em especial os fins de semana na casa
da fazenda. Sebastian gosta deles tanto quanto eu — diz Micaela. Ela pensa em Judite
Decapitando Holofernes, a versão de Artemisia Gentileschi, onde duas mulheres vigorosas
trabalham em uníssono, com mangas arregaçadas e pulsos firmes que não hesitam ao eliminar o
tirano da história, o indesejado, o dissonante. — Uma vez por lá, poderemos criar novas regras
de convivência.
— Novas regras a serem quebradas, né?
Micaela concorda e sorri com uma mansidão que se transfere para Anna, que sempre que
surge torna difícil encará-la como um monstro. E quem define o que é monstruoso? Micaela é
tão humana quanto Anna, e nenhuma delas está disposta a deixar de ser o que é.
Olhando-a assim, de perto, molhada e relaxada, o que Anna vê é a pessoa que a ajudará a
atravessar seu sombrio, qualquer sombrio que desponte pela frente.
Ao pensar nisso, ela se sente em posse de seu coração outra vez — o verdadeiro, de carne
pulsante — e tendo-o em seu devido lugar, sabe que vai trilhar o caminho que ele abriu para ela.
Mais importante ainda, sabe que o trilhará sempre bem acompanhada.
SOBRE A AUTORA
Além de autora de romances sáficos, Tálita Heusi é leitora quase compulsiva,
colecionadora de histórias e psicóloga. Mora no litoral de Santa Catarina.
Encontre com ela no Instagram.
LEIA TAMBÉM
Ganhar essa aposta vai ser fácil como ouvir a mais tranquila das canções: Virginia só tem
que se aproximar de Kim (alguém que, antes de seu primeiro dia de faculdade, ela nunca havia
visto), trocar uns beijos com ela e provar para seu melhor amigo que o desafio não a assusta. Mas
e se, ao fazer isso, Vi sentir que não é o suficiente? Pior: e se Kim disser que também quer mais
dela?
Nada disso seria um problema, claro. Kim é interessante, uma musicista talentosa e
encantadora por dentro e por fora - o tipo todinho de Vi. Mas Vi esconde algo, um lado B, e a
melodia de Kim está se infiltrando em seu coração de um jeito perigoso.
Kim também tem suas próprias lutas, incluindo a escolha entre seguir uma carreira sólida
ao lado de seu namorado ou aceitar que talvez sua sinfonia interna seja mais divergente do que
aquilo que esperam dela.
Além das duas, há Beverly, uma adolescente em constante fuga, que carrega as cicatrizes
de uma tragédia. Em meio aos lugares por onde passa e as pessoas que conhece, o que ela mais
deseja é ser capaz de orquestrar seu destino.
Entre idas e vindas, razões e emoções, até onde elas estão dispostas a ir pra seguir a própria
música?