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DA CIVILÍSTICA NO DESBRAVAMENTO DE
ESPAÇOS DE LIBERDADES
Dogmatics and effectiveness: the role of legal
scholarship in the clearence of spaces of freedoms
Resumo: A civilística brasileira, no bojo da dogmática crítica que ganhou força com o advento da Cons-
tituição Federal de 1988, alcançou patamar de relativo consenso em relação à incidência da principio-
logia axiológica constitucional no Direito Privado. Este é sintoma típico do perfazimento da travessia
entre o modelo (moderno) de Estado de Direito e o modelo (contemporâneo) de Estado Constitucional,
a qual traz consigo um imperativo de releitura profunda das relações entre legislação e jurisdição. Este
desdobramento, conquanto captado por alguns setores da comunidade jurídica especializada e de
suma importância para o avanço na concretização (para além da enunciação) dos valores da pessoa,
carece de tomada de consciência a respeito de sua grandeza e de enfrentamento incisivo, à vista do
objetivo de promover, em concreto, a dignidade humana, mediante abertura e preservação de espaços
de liberdades. Estes, no contexto das viragens que marcam a referida travessia, imprescindem, pela
renovação do sentido atribuído à segurança jurídica em função do rearranjo das relações entre legis-
lação e jurisdição, da oposição de exigências argumentativas substanciais aos operadores do Direito
em geral e a seus aplicadores em particular. Este trabalho, a partir do delineamento dos desafios
colocados pela ruptura com o Estado de Direito e o achego ao Estado Constitucional em relação à
concretização de uma autêntica dignidade às pessoas, indica caminhos possíveis para sua superação,
mediante atuação progressiva da civilística contemporânea, no sentido de outorgar efetividade àquilo
que se enuncia no plano da dogmática.
Palavras-chave: Dogmática. Efetividade. Civilística. Direito Civil e Constituição. Segurança jurídica
substancial.
Abstract: Brazilian legal scholarship, in the midst of the critical dogmatism that gained momentum
with the promulgation of the Federal Constitution in 1988, reached some level of consensus regarding
the third-party effect of constitutional principles and fundamental rights. This is a typical symptom of
the ongoing transition from (modern) Rechtstaat to (contemporary) Verfassungsstaat, which entails
a deep need of rethinking the relations between legislation and jurisdiction. This deployment, whilst
accounted for by some sectors of current legal scholarship and of the utmost importance, still lacks
awareness of its great complexity and some incisive coping in the sight of promoting a true realization
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of human dignity (beyond simple enunciation), by opening and preserving spaces of freedoms. These,
in the context of the twists and turns that mark the aforementioned transition, especially in regard
to the contemporary meaning attached to legal certainty, in the light of recent rearrangements of the
relationship between legislation and jurisdiction, call for the opposition, by legal scholars, of substantial
demands in terms of argumentation to jurists in general and judges in particular. This article departs
from an outline of challenges posed by the downfall of modern Rechtstaat and the rise of contemporary
Verfassungsstaat in relation to the achievement of an authentic human dignity, by means of progressive
work of legal scholars towards granting effectiveness to what is already stated and well established in
the field of Dogmatics.
Keywords: Dogmatics. Effectiveness. Legal Scholarship. Constitutionalization of Private Law.
Substantial Legal Certainty.
Sumário: 1 Introdução – 2 O problema em contexto: ângulos e parâmetros da ascendência do Estado
Constitucional. A renovação da dogmática e sua necessária efetividade – 3 Direito Civil, Constituição e
os desafios da civilística brasileira contemporânea – 4 Efetividade: o papel da literatura na abertura e
preservação de espaços de liberdades – 5 Conclusão
1 Introdução
O compromisso da civilística brasileira com os valores constitucionais, mes-
mo consideradas posições alinhadas às concepções clássicas do Direito Civil e as
variadas vertentes críticas às perspectivas do chamado Direito Civil-Constitucional,
é indubitável. Múltiplos são os trabalhos voltados a, segundo variados pontos de
partida e visões de mundo, defender novos ou velhos valores fundamentais na
seara civil, à vista de seu Leitmotiv: a dignidade humana. Não obstante este
compromisso assumido e levado a efeito pela dogmática no plano enunciativo,
sua efetivação, no complexo contexto da contemporaneidade, carece ainda de
atuação incisiva por parte dos autores especializados, sobretudo no que diz res-
peito à abertura e à preservação de espaços de liberdades, nos quais se permita,
às pessoas, realizar, por si mesmas, a dignidade que lhes é reconhecida (não
concedida) pela ordem constitucional e pelos destinatários das normativas oficiais
de um modo geral.
Este trabalho propõe a indicação, no contexto da travessia realizada pelo
Direito Brasileiro entre os modelos de Estado de Direito e de Estado Constitucional,
do principal desafio à concretização de espaços de liberdades indispensáveis à
concretização da autêntica dignidade da pessoa humana, para, posteriormente,
indicar caminhos possíveis para sua superação, mediante atuação progressiva
da civilística contemporânea, de modo a tornar reais e efetivas as enunciações
levadas a efeito no plano dogmático.
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DOGMÁTICA E EFETIVIDADE: O PAPEL DA CIVILÍSTICA NO DESBRAVAMENTO DE ESPAÇOS DE LIBERDADES
1
“Modelo constitucional”, conquanto não corresponda, exatamente, a uma expressão valorativa, comporta
pontual esclarecimento: “Por ‘modelo constitucional’, queremos dizer o conjunto de crenças médias, dos
intérpretes, da classe política e dos cidadãos, a determinar a vida concreta da Constituição, dando-lhe
significado” (FIORAVANTI, Maurizio. La trasformazione del modello costituzionale. Studi Storici, Roma:
Carocci, ano 42, n. 4, p. 814, out./dez 2001). Tradução livre. No original: “Per ‘modello costituzionale’
intendiamo quel l’insieme di convinzioni medie, degli interpreti, della classe politica, degli stessi cittadini,
che determinano la vita concreta della Costituzione, attribuendole un significato prevalente”.
2
COSTA, P. Democracia política e estado constitucional. In: COSTA, Pietro (Org.). Soberania, representação,
democracia: ensaios sobre a história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010, p. 235.
3
Tradução livre: “Algum limite substancial, com efeito, é necessário para a sobrevivência de qualquer
democracia. Sem limites relativos aos conteúdos das decisões legítimas, uma democracia não pode
(ou, ao menos, pode não) sobreviver. Em teoria, sempre é possível que, com métodos democráticos,
suprima-se, por maioria, os próprios métodos democráticos: não apenas os direitos de liberdade e os
direitos sociais, mas também os direitos políticos, o pluralismo político, a divisão de poderes, a repre-
sentação. Em outras palavras: todo o sistema de regras que constitui a democracia política” (FERRAJOLI,
L. Democracia constitucional y derechos fundamentales. La rigidez de la constitución y sus garantías. In:
FERRAJOLI, Luigi et al (Orgs.). La teoría del derecho en el paradigma constitucional. 2. ed. Madrid: Fun-
dación Coloquio Jurídico Europeo, 2009, p. 79). No original: “Sin limites relativos a los contenidos de las
decisiones legítimas, una democracia no puede (o al menos puede no) sobrevivir. En teoría, siempre es
posible que con métodos democráticos se supriman, por mayoría, los propios métodos democráticos: no
sólo los derechos de libertad y los derechos sociales, sino también los derechos políticos, el pluralismo
político, la división de los poderes, la representación, en otras palabras, todo el sistema de reglas que
constituye la democracia política”.
4
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional y derechos fundamentales. La rigidez de la constitución y sus
garantías, cit., p. 75.
5
HÄBERLE, Peter. Die europäische Verfassungsstaatlichkeit. Kritische Vierteljahresschrift für Gesetzgebung
und Rechtswissenschaft. Baden-Baden: Nomos, n. 3, v. 78, p. 298-312, 1995. Tradução livre. No original:
“Demokratie ist die organisatorische Konsequenz der Menschenwürde, nicht mehr, aber auch nicht
weniger”.
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por simetria, articulado numa “democracia que se realiza com a promoção dos
direitos fundamentais e invioláveis da pessoa”.6
Este novo modelo de organização política, no bojo do Estado Moderno eu-
ropeu, que faz rebrotar a supremacia constitucional como garantia de limite, de
inviolabilidade de uma esfera de decisões fundamentais. Isto no sentido de, após
a guerra, “implementar uma virada radical, para assegurar a todos que agora
existiria uma lei fundamental capaz de impedir que se reafirmassem, no futuro,
as condições para um retorno ao recente passado ditatorial”.7 O Direito brasilei-
ro também se insere nesta travessia, ainda que, por contingências históricas,
o afloramento do Estado Constitucional, ao menos na dimensão formal, tenha
operado apenas com a redemocratização e a promulgação da Constituição Federal
de 1988.
Assim, ainda nos esquadros do Estado Moderno, vislumbram-se quatro di-
ferenças bastante substantivas entre o ascendente Estado Constitucional e o
descendente Estado Nacional de Direito,8 as quais, longe de aniquilar dúvidas,
inauguram um novo patamar de problemas para estudiosos e operadores do
Direito em geral.
O primeiro contraste diz com o vértice do ordenamento, colonizado por enun-
ciados de baixa densidade normativa e elevada carga axiológica, os quais, ca-
rentes de hipótese de incidência, escapam à mecânica subsuntiva das regras9
e dependem, por isso mesmo, da atuação progressiva do legislador ou do juiz.10
6
COSTA, Pietro. Democracia política e estado constitucional, cit., p. 235.
7
FIORAVANTI, Maurizio. Público e Privado: Os Princípios Fundamentais da Constituição Democrática. RFDUFPR,
Curitiba, n. 58, p. 11, 2013.
8
“Com estas fórmulas, indicam-se tipos ideais que somente ostentam clareza conceitual na medida em que
descontadas aproximações, contradições e incompatibilidades por si não contempladas” (ZAGREBELSKY,
Gustavo. El Derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 2011, p. 21). Tradução livre. No original:
“Con estas fórmulas se indican tipos ideales que sólo son claros conceptualmente, porque en el desarrollo
real de los hechos deben darse por descontado aproximaciones, contradicciones, contaminaciones y
desajustes temporales que tales expresiones no registran. Éstas, no obstante, son útiles para recoger a
grandes rasgos los caracteres principales de la sucesión de las etapas históricas del Estado moderno”.
9
O significante subsunção, por ser facilmente associável a uma superada abordagem formalista do
fenômeno jurídico, tem seus sentido e extensão não raro bastante esgarçados. Seu emprego, aqui, não
se dá em caráter avaliativo (para mal ou bem), mas apenas como indicativo da aplicação de determinada
expressão que ordena, proíbe ou permite certa conduta a um determinado evento concreto, situado no
tempo e no espaço, e protagonizado por indivíduos (BULYGIN, Eugenio. Los jueces ¿crean Derecho?
Isonomía, Ciudad de México, n. 18, p. 11-13, abr. 2003).
10
A propósito, sem embargo de estar-se a dizer o óbvio: “Os padrões constitucionais de validade substancial
são identificáveis com a proteção de direitos fundamentais, como o princípio da igualdade, a imanente
dignidade da pessoa humana, variados direitos civis e políticos, bem como os ‘direitos de bem-estar’,
como os direitos à saúde, à educação, à assistência social e assim sucessivamente” (PINO, G. The place
of legal positivism in contemporary constitutional states. Law and Philosophy. Heidelberg: Springer, n. 5,
v. 18, p. 530, set. 1999). Tradução livre. No original: “The constitutional standards of substantive validity
are mainly identifiable with the protection of fundamental rights, such as the principle of equality, the
immanent dignity of the human being, various civil and political rights, as well as ‘welfare rights’, such as
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the right to health, to education, to social assistance and so on”. No mesmo sentido, cf. MORAES, Maria
Celina Bodin de. A utilidade dos princípios na aplicação do direito. Disponível: www.civilística.com, ano 2,
n. 1, p. 2, 2013. Acesso em: 17 maio 2016.
11
ÁVILA, Humberto. Princípios e regras e a segurança jurídica. RDE, Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, p. 197, jan./
mar. 2006.
12
Isto porque – conquanto a transcrição diga mais com a noção de derrotabilidade normativa à luz da teoria
do direito contemporânea – “uma vez incorporados os princípios às constituições com mais elevado
grau de normatividade, eles passam a exercer um ‘efeito de irradiação’ sobre o ordenamento jurídico
e, dessa maneira, atuam como as razões mais relevantes para a justificação das decisões que julgam
contrariamente a aplicação de determinada norma jurídica em situações nas quais ela deveria se aplicar
ordinariamente” (BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Conflictos normativos y decisiones contra legem: una
explicación de la derrotabilidad normativa a partir de la distinción entre reglas y principios. Doxa: Cadernos
de Filosofía del Derecho, v. 33, p. 88, 2010). Tradução livre. No original: “Una vez incorporados los
principios a las constituciones con el más elevado grado de normatividad, ellos pasan a ejercer un «efecto
de irradiación» sobre el ordenamiento jurídico y de esa manera actúan como las razones más relevantes
para la justificación de las decisiones que juegan en contra de la aplicación de una determinada norma
jurídica en situaciones en las que debería ser aplicada ordinariamente”.
13
É que o emprego de princípios e outros enunciados de baixa densidade normativa à resolução de casos
concretos “deve obedecer a critérios específicos que visam a diminuir a arbitrariedade mediante a
introdução de estruturas argumentativas intersubjetivamente controláveis” (ÁVILA, Humberto. Princípios e
regras e a segurança jurídica, cit., p. 197).
14
ORRÙ, Giovanni. Richterrecht: il problema della libertà e autorità giudiziale nella dottrina tedesca
contemporanea. Milano: Giuffrè, 1983, p. 13.
15
BULYGIN, Eugenio. Los jueces ¿crean Derecho?, cit., p. 25.
16
V. ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho dúctil: ley, derechos, justicia, cit., p. 39.
17
A propósito: “Com efeito, a novidade que o constitucionalismo introduz na estrutura das democracias é
que também o supremo poder legislativo se encontra juridicamente regulado e limitado, não apenas no
que respeita às formas, que garantem a afirmação da vontade da maioria, mas também à substância de
seu exercício, vinculado ao respeito de normas constitucionais específicas, como o princípio da igualdade
e os direitos fundamentais” (FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional y derechos fundamentales. La
rigidez de la constitución y sus garantías, cit., p. 78). Tradução livre. No original: “En efecto, la novedad
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Assim: “Em Estados Constitucionais, portanto, a legislação mesma está sub lege,
o que tolhe a aceitabilidade do dogma do legislador onipotente”.18
Nesta esteira, o princípio da igualdade preserva sua primazia, mas tem elas-
tecidos seus limites, bem como substituído seu centro de gravitação: no lugar do
indivíduo da tradição oitocentista, entra a pessoa concretamente situada.19 Vale
dizer: sob os auspícios da promoção dos direitos da pessoa e de sua colocação
em patamar de dignidade social, afirmam-se a intangibilidade das liberdades pes-
soais e os direitos de feição social. Esta aparente duplicidade se reconduz a uma
única matriz, afinada no diapasão de uma nova concepção do sujeito de direito
e do princípio da igualdade,20 o qual determina que “não somente ‘todos’ os
direitos devem ser garantidos; estes devem ser também garantidos a todos”,21 a
transparecer que se tenta superar a contradição entre uma igualdade formal e as
concretas discriminações.
Enfim, a normatividade dos textos constitucionais, sobretudo os de maior
carga valorativa, no Estado Constitucional, ganha sentido não apenas em relação
ao direito interno, mas igualmente no plano supranacional, o qual também é tim-
brado pelo papel ativo e protagonista da jurisdição,22 amplamente revelado pelos
crescentes diálogo e integração entre a Corte Interamericana de Direitos Humanos
e as Cortes Supremas de Estados Sul-Americanos,23 a representar uma signifi-
cativa diluição das fronteiras nacionais, no sentido de consolidação progressiva
de valores fundamentais comuns, que orbitam em torno da pessoa concreta e
historicamente situada (e não de uma figura abstrata e intangível, como o sujeito
de direito da tradição iluminista, a soberania ou o interesse público).
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24
BRAITHWAITE, John. Rules and principles: a theory of legal certainty. AJLP, Sidney: Australian Society of
Legal Philosophy, n. 27, p. 49 e ss, 2002.
25
A propósito: “Hoje, ainda com maior ênfase, a ética da confiança no direito positivado a equilibrar-se
com a estabilidade de entendimentos jurisdicionais, os quais, por si só, se imutáveis indefinidamente ou
mutáveis imotivada ou constantemente também geram insegurança. Tal temperamento passa pelo rigor
da fundamentação racional das decisões e alcança o sentido da segurança não apenas como garantia de
legítimas expectativas, mas também como incidência material da legalidade constitucional” (FACHIN, Luiz
Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 17).
26
“Ao invés de restringir as possibilidades de aplicação com a criação de uma regulação cada vez mais
precisa e específica, a proliferação de regras permite que qualquer atitude encontre um texto normativo
para servir-lhe de justificação. Desta maneira, fica impossível controlar efetivamente o comportamento de
seus destinatários. Como numa gincana de colégio, é possível partir de um determinado comportamento
ou fato para tentar encontrar uma regra que o justifique, ou seja, que permita concluir por sua licitude à
luz do direito. Por este motivo, somos levados a imaginar que talvez seja necessário pensar em maneiras
diferentes de desenhar as instituições para obter segurança jurídica” (RODRIGUES, José Rodrigo. Por
um novo conceito de segurança jurídica: racionalidade judicial e estratégias legislativas. Analisi e Diritto.
Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 136).
27
BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra
sobre a Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 61.
28
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. La seguridad jurídica: una garantía del derecho y la justicia. Boletín de la
Facultad de Derecho de la UNED, Madrid: Uned, n. 15, p. 32-33, 2000.
29
Os direitos desempenham novo papel – não mais se colocam como expressão da vontade do Estado, mas
como fundamento e condição de legitimidade do ordenamento. “Não estamos diante de uma reedição do
jusnaturalismo, porque os direitos de que falamos são direitos enunciados por um preciso texto jurídico-
positivo, como a constituição. (...) Enquanto fundamentos do ordenamento, aqueles direitos parecem
imutáveis, não modificáveis por golpes de maioria subtraídos ao campo do decidível” (COSTA, Pietro. A
democracia após os ‘totalitarismos’ – a democracia constitucional na segunda metade do século XX, cit.,
p. 283-284).
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30
No sentido de infiltração, nas leis fundamentais, de diretrizes antes particulares à moral ou à ética e não,
propriamente, ao Direito.
31
V. BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra
sobre a Constituição?, cit., p. 56; e BUSTAMANTE, T. R. Teoria do precedente judicial: a justificação e a
aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 94.
32
COVER, Robert. The Supreme Court, 1982 Term. Foreword: Nomos and Narrative. New Haven: Yale Faculty
Scholarship Series, Paper 2705, p. 10-15.
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33
AMARAL NETO, Francisco. A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica: perspectivas
estrutural e funcional. RIL, Brasília: Senado Federal, ano 26, n. 102, p. 207-230, abr./jun. 1999.
34
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. As quatro fundações do Direito Civil: ensaio preliminar. RFDUFPR, Curitiba:
UFPR, v. 45, p. 102, 2006.
35
“Do Direito Civil aos direitos civis fundamentais, a estrutura cede passo à função. O estatuto jurídico do
patrimônio redimensiona-se, sem perder a essência, embora ontologicamente se reinsira como outra terra
na Constituição” (FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim, cit., p. 95). Ainda:
“A função corresponde aos interesses de um certo instituto pretende tutelar, e é, na verdade, o seu ele-
mento de maior importância, já que determina, em última análise, os traços fundamentais da estrutura”
(SCHREIBER, Anderson. Função social da propriedade na prática jurisprudencial brasileira. In: SCHREIBER,
Anderson (Org.). Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 245-246).
36
“O reconhecimento da possibilidade de os direitos fundamentais operarem sua eficácia nas relações
interprivadas é, talvez, o cerne da denominada constitucionalização do Direito Civil. A Constituição deixa
de ser reputada simplesmente a uma carta política, para assumir uma feição de elemento integrador
de todo o ordenamento jurídico (...). Perde sentido o binário interioridade-exterioridade dos direitos
fundamentais, que adquirem, também, feição prestacional. (...) Os três pilares de base do Direito Privado
– propriedade, família e contrato – recebem nova leitura, que altera suas configurações, redirecionando-
os de uma perspectiva fulcrada no patrimônio e na abstração para outra racionalidade que se baseia no
valor da dignidade da pessoa. De fato, modelos e conceitos não são o verdadeiro objeto do direito, mas,
apenas, seu instrumento” (FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Direitos fundamentais,
dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).
Constituição, direitos fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 99).
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na atribuição de sentido aos significantes que integram o governo jurídico das re-
lações interprivadas, à vista não só das normativas constitucionais e infraconstitu-
cionais, mas também da força confessadamente jurígena dos fatos (constituição
– rectius: constitucionalização – prospectiva).37 Daí se afirmar que:
37
A respeito da tríplice constituição do Direito Civil, ver: FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transfor-
mações e fim, cit., p. 2015.
38
KONDER, Carlos Nelson. Distinções hermenêuticas da constitucionalização do Direito Civil: o intérprete na
doutrina de Pietro Perlingieri. RFDUFPR, Curitiba: UFPR, v. 60, n. 1, p. 199, jan./abr. 2015.
39
TEPEDINO, Gustavo. O Supremo Tribunal Federal e a Virada de Copérnico. Disponível em: <https://www.
ibdcivil.org.br/image/data/revista/volume4/01---rbdcivil-volume-4---editorial.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2015,
v. 4, p. 6, abr./jun. 2015.
40
MONTEIRO, António Pinto. Interpretação e o protagonismo da doutrina. RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10,
p. 292, set./dez. 2015.
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41
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil Brasileiro. 3. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2012, p. 207.
42
PERERA, Antonio Enrique. El Derecho civil: señas, imágenes y paradojas. Madrid: Tecnos, 1988, p. 86.
Tradução livre. No original: “entrega al Derecho emotivamente creado por los jueces, sin controle de
legalidad y justificado em menores argumentos de conveniente equidade, cuando no de propaganda”.
43
É a expressão empregada por Konder: “De fato, o cenário aterrador com que nos confronta a jurisprudên-
cia contemporânea é de decisões que, às vezes até mesmo sob o pretexto da abertura do sistema pela
constitucionalização e da aplicação dos princípios, mais parecem realizar o que vem sendo chamado de
banalização ou mesmo ‘carnavalização’ do Direito” (KONDER, Carlos Nelson. Distinções hermenêuticas
da constitucionalização do Direito Civil: o intérprete na doutrina de Pietro Perlingieri, cit., p. 205).
44
À luz do exposto nas linhas precedentes, “Essa leitura se reflete na solução de casos concretos pelo
Judiciário em vez de uma problematização tópica que busque, na ordem principiológica constitucional, a
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melhor solução, à luz dos direitos fundamentais, não raro se busca a solução mecanicista de subsunção do
fato à solução preestabelecida pelo modelo de relação jurídica codificada” (FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI
RUZYK, Carlos Eduardo. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma
análise crítica, cit., p. 99). No mesmo sentido: “quando o juiz decide o caso concreto e contribui, nessa
medida, para a realização do direito, como agente activo da construtividade jurídica, ele está a dar vida
e a concretizar toda a ciência jurídica que está a montante, onde a doutrina ocupa um lugar privilegiado”
(MONTEIRO, António Pinto. Interpretação e o protagonismo da doutrina, cit., p. 293). Especificamente
acerca do conteúdo da segurança jurídica e de sua realização no modelo de Estado Constitucional, cf. ÁVILA,
Humberto. Segurança jurídica: entre mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 122 e ss.; e MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação,
da jurisprudência ao precedente. São Paulo: RT, 2013.
45
“O que se deve é examinar as possibilidades concretas de que o Direito Civil atenda a uma racionalidade
emancipatória da pessoa humana que não se esgote no texto positivado, mas que permita, na porosidade
de um sistema aberto, proteger o sujeito de necessidades em suas relações concretas, independentemente
da existência de modelos jurídicos. O modelo é instrumento, e não um fim em si mesmo. Por isso, ele não
deve esgotar as possibilidades do jurídico, sob pena de o direito se afastar cada vez mais das demandas
impostas pela realidade dos fatos” (FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Direitos
fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica, cit., p. 102).
46
MOTA PINTO, C. A. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra, 2012, p. 58.
47
FERNÁNDEZ SESSAREGO, Carlos. Protección a la persona humana. In: ADORNO, L. et al (Org.). Daño y
protección a la persona humana. Buenos Aires: La Rocca, 1993, p. 55.
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48
É o que se defende, entre outros estudos, em: PRIETO ÁLVAREZ, Tomás. La intervención del Estado en
la libertad individual: liberalismo, paternalismo, bien común. Disponível em: <http://civilistica.com/wp-
content/uploads/2015/08/%C3%81lvarez-civilistica.com-a.4.n.1.2015.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2016;
e PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s): repensando
a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2011.
49
SCHMIDT, Jan-Peter. Zehn Jahre. Art. 422 Código Civil – Licht und Schatten bei der Anwendung des
Grundsatzes von Treu und Glauben in der brasilianischen Gerichtspraxis. DBJV Mitteilungen, Osnabrück:
DBJV, n. 2, p. 34-47, 2014.
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Friedman deriva sua concepção de liberdade da visão do “mercado enquanto um mecanismo e um espaço
que não deve sofrer coações do estado” (SILVA, Rodrigo Almeida. A liberdade nas perspectivas teóricas
de Milton Friedman e Amartya Sen. Ciências sociais em perspectiva. Cascavel: Unioeste, 10-19, p. 155-
168, 2011). Assim, confere-lhe “um sentido individualista, de modo que propõe uma individualização dos
papéis e das posições dos agentes dentro da estrutura do sistema. Os agentes precisam ter liberdade
econômica e política para estabelecerem suas próprias escolhas, sem interferência de outros agentes ou
instituições” (SILVA, Rodrigo Almeida. A liberdade nas perspectivas teóricas de Milton Friedman e Amartya
Sen, cit., p. 157).
51
Em Hayek, a liberdade individual ou pessoal corresponde ao estado no qual uma pessoa não se sujeita
à coerção pela vontade arbitrária de outros (cf. HAYEK, Friedrich August von. Constitution of liberty: the
definitive edition. Chicago: University of Chicago Press, 2011, p. 58).
52
A rigor, a acepção de liberdade diz com o desejo e a possibilidade de o indivíduo ser senhor de si
mesmo (BERLIN, I. Two concepts of liberty. In: BERLIN, Isiah (Org.). Four essays on Liberty. Oxford: Oxford
University Press, 1971, p. 131).
53
Em Sen, a noção de liberdade se associa diretamente à de capacidade, de modo que “enxerga a liberdade
não somente enquanto a abertura estrutural do conjunto de leis e da economia para que cada indivíduo
possa estabelecer suas escolhas, econômicas ou não. O autor funda uma visão de possibilidades reais
de escolha, no sentido dos condicionantes e limites que permitem estabelecer tais preferências. As
capacidades devem ser garantidas através de políticas públicas, para oferecer elementos que possibilitem
os indivíduos a ampliarem seu conjunto de possibilidades reais. No entanto, as políticas públicas também
são resultados do aumento da capacidade dos indivíduos (via crescimento do conhecimento), então essa
é uma relação de mão dupla” (SILVA, Rodrigo Almeida. A liberdade nas perspectivas teóricas de Milton
Friedman e Amartya Sen, cit., p. 162; SEN, Amartya. Development as freedom. Nova Iorque: Alfred A.
Knopf, 2000).
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DOGMÁTICA E EFETIVIDADE: O PAPEL DA CIVILÍSTICA NO DESBRAVAMENTO DE ESPAÇOS DE LIBERDADES
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A acepção comunitarista de liberdade, defendida por Sandel, traduz-se não na autodeterminação individual,
mas na participação do cidadão no autogoverno (self-government) – cf. SANDEL, Michael. Democracy’s
discontent: America in search of a public philosophy. Cambridge: Belknap Press of Harvard University
Press, 1996, p. 4-5).
55
Trata-se, no dizer de Francisco Amaral Neto, de “concepção axiológica da pessoa como centro e destinatário
da ordem jurídica privada, sem o que a pessoa humana, embora formalmente revestida de titularidade
jurídica, nada mais seria do que mero instrumento a serviço da sociedade” (AMARAL NETO, Francisco. A
autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica: perspectivas estrutural e funcional. RIL,
Brasília: Senado Federal, ano 26, n. 102, p. 214, abr./jun. 1999), a qual ganhou forte impulso com a
inauguração formal, pela Constituição de 1988, do modelo de Estado Constitucional em solo brasileiro: “A
Constituição da República, de 1988, como uma espécie de terceira dimensão do direito posto, na sua diretriz
de incorporar o Direito Público e o Direito Privado, absorveu a ideia do personalismo ético com grande força.
Sobre seu art. 1º, que contém os princípios fundamentais da República, embora sejam cinco os seus incisos,
tem sido frequente a afirmação de que a dignidade da pessoa humana (é o inciso III) constitui a determinação
por excelência de todo o texto constitucional” (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Crítica ao personalismo ético
da Constituição da República e do Código Civil em favor de uma ética biocêntrica. RFDUSP, São Paulo: USP,
v. 103, p. 116, jan./dez. 2008) – ressalvada a posição crítica do autor deste excerto, no sentido de que
“talvez já estejamos em tempo (...) de ousar iniciar um movimento de revisão do tema, personalismo ético”
(AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e do Código Civil
em favor de uma ética biocêntrica, cit., p. 116), para valorizar uma ética biocêntrica.
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Pianovski crava: houve vilipêndio a uma liberdade positiva, “uma ‘liberdade vivida’,
tomada como autodeterminação, como decisão da própria pessoa sobre os rumos
do seu agir e do trajeto de sua história pessoal”.56 Esta autêntica contribuição
doutrinária, além de desnudar a carência de fundamentação do acórdão exami-
nado quanto ao interesse jurídico que, em concreto, buscou-se tutelar, fornece,
à comunidade jurídica, elementos permissivos do reconhecimento e da concreti-
zação do projeto de vida (significado como forma de concreção de uma liberdade
positiva) na qualidade de interesse jurídico credor de tutela jurídica diferenciada.
Outra ilustração diz com o já referido peculiar tratamento dispensado pelo
Superior Tribunal de Justiça à cláusula geral de boa-fé objetiva (art. 422, CC), o
qual é objeto de crítica bastante ácida de Schmidt. Este aprecia o acórdão pelo
qual o STJ julgou o REsp 1.141.732/SP, no qual se discutia a possibilidade de
constrição judicial de bem de família dado em garantia por fiador de escritura
pública de confissão de dívida com garantia hipotecária, decorrente de contrato de
trespasse. O cerne da disputa dizia com a medida da exceção à impenhorabilidade
consagrada pelo art. 3º, V, Lei nº 8.009/1991, que fala na “execução de hipoteca
sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”.
O fiador buscava escapar da literalidade do dispositivo, ao argumento de que ele
se limitaria a crédito que favorece a família, não abrangendo, portanto, as situa-
ções em que o proprietário presta garantia a terceiros. Sob relatoria da Min. Nancy
Andrighi, a Terceira Turma desempenhou brilhante exercício de interpretação do
dispositivo suscitado pelo recorrente,57 de modo a alcançar a conclusão de que:
56
PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. “O caso das ‘pílulas de farinha’ como exemplo da construção
jurisprudencial de um ‘direito de danos’ e da violação da liberdade positiva como ‘dano à pessoa” –
Comentários ao acórdão no REsp 1.096.325/SP (rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 28.10.2009). In: FRAZÃO,
Ana; TEPEDINO, Gustavo (Orgs.). O Superior Tribunal de Justiça e a Reconstrução do Direito Privado. São
Paulo: RT, 2009, p. 300.
57
Ao cabo de extensa fundamentação, arrematou a relatora: “o art. 3º, V, da Lei nº 8.009/91 traduz hipótese
clara de ato tendente ao afastamento da impenhorabilidade: ao manifestarem a vontade de oferecer o
bem de família em garantia hipotecária, os beneficiários evidenciam (...) sua intenção de liberar o bem da
prerrogativa legal, desde que, em sintonia com o entendimento do STJ, a dívida tenha sido constituída em
favor da entidade familiar”.
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SCHMIDT, Jan-Peter. Zehn Jahre. Art. 422 Código Civil – Licht und Schatten bei der Anwendung des Grundsatzes
von Treu und Glauben in der brasilianischen Gerichtspraxis, cit., p. 42. Tradução livre. No original: “Es bleibt
zu hoffen, dass die brasilianischen Gerichte sich dieser Ein-sicht im Laufe der Zeit bewusst werden und
ähnlich wie früher die deutschen dazu übergehen, das Prinzip der boa-fé nur noch dann anzuführen, wenn
es das Ergebnis auch wirklich trägt, im Übrigen aber auf seine Verwendung als überflüssiges und potentiell
irreführendes Schmuckwerk zu verzichten. Dies wird ihnen auch wertvolle Arbeitszeit bei der Bewältigung
ihres unvorstellbaren Fallvolumens sparen”.
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5 Conclusão
A civilística brasileira logrou êxito em deitar os alicerces indispensáveis ao
erigir de um edifício normativo e dogmático a partir das linhas-mestras do Estado
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MARTINS-COSTA, Judith. Autoridade e utilidade da doutrina. In: MARTINS-COSTA, Judith. (Org.). Modelos
de Direito Privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 32.
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Recebido em 18.05.2016
1º parecer em 03.10.2016
2º parecer em 06.10.2016
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