27-Texto Do Artigo-83-94-10-20170711

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DOGMÁTICA E EFETIVIDADE: O PAPEL

DA CIVILÍSTICA NO DESBRAVAMENTO DE
ESPAÇOS DE LIBERDADES
Dogmatics and effectiveness: the role of legal
scholarship in the clearence of spaces of freedoms

André Luiz Arnt Ramos


Mestre em Direito das Relações Sociais junto ao programa de pós-graduação em
Direito da Universidade Federal do Paraná. Membro do Grupo de Pesquisa Virada de
Copérnico, associado ao IBDFAM e ao Instituto dos Advogados do Paraná, Visiting
researcher junto ao Max Planck Institut für ausländisches und internationales
Privatrecht (2016). Advogado.

Resumo: A civilística brasileira, no bojo da dogmática crítica que ganhou força com o advento da Cons-
tituição Federal de 1988, alcançou patamar de relativo consenso em relação à incidência da principio-
logia axiológica constitucional no Direito Privado. Este é sintoma típico do perfazimento da travessia
entre o modelo (moderno) de Estado de Direito e o modelo (contemporâneo) de Estado Constitucional,
a qual traz consigo um imperativo de releitura profunda das relações entre legislação e jurisdição. Este
desdobramento, conquanto captado por alguns setores da comunidade jurídica especializada e de
suma importância para o avanço na concretização (para além da enunciação) dos valores da pessoa,
carece de tomada de consciência a respeito de sua grandeza e de enfrentamento incisivo, à vista do
objetivo de promover, em concreto, a dignidade humana, mediante abertura e preservação de espaços
de liberdades. Estes, no contexto das viragens que marcam a referida travessia, imprescindem, pela
renovação do sentido atribuído à segurança jurídica em função do rearranjo das relações entre legis-
lação e jurisdição, da oposição de exigências argumentativas substanciais aos operadores do Direito
em geral e a seus aplicadores em particular. Este trabalho, a partir do delineamento dos desafios
colocados pela ruptura com o Estado de Direito e o achego ao Estado Constitucional em relação à
concretização de uma autêntica dignidade às pessoas, indica caminhos possíveis para sua superação,
mediante atuação progressiva da civilística contemporânea, no sentido de outorgar efetividade àquilo
que se enuncia no plano da dogmática.
Palavras-chave: Dogmática. Efetividade. Civilística. Direito Civil e Constituição. Segurança jurídica
substancial.
Abstract: Brazilian legal scholarship, in the midst of the critical dogmatism that gained momentum
with the promulgation of the Federal Constitution in 1988, reached some level of consensus regarding
the third-party effect of constitutional principles and fundamental rights. This is a typical symptom of
the ongoing transition from (modern) Rechtstaat to (contemporary) Verfassungsstaat, which entails
a deep need of rethinking the relations between legislation and jurisdiction. This deployment, whilst
accounted for by some sectors of current legal scholarship and of the utmost importance, still lacks
awareness of its great complexity and some incisive coping in the sight of promoting a true realization

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of human dignity (beyond simple enunciation), by opening and preserving spaces of freedoms. These,
in the context of the twists and turns that mark the aforementioned transition, especially in regard
to the contemporary meaning attached to legal certainty, in the light of recent rearrangements of the
relationship between legislation and jurisdiction, call for the opposition, by legal scholars, of substantial
demands in terms of argumentation to jurists in general and judges in particular. This article departs
from an outline of challenges posed by the downfall of modern Rechtstaat and the rise of contemporary
Verfassungsstaat in relation to the achievement of an authentic human dignity, by means of progressive
work of legal scholars towards granting effectiveness to what is already stated and well established in
the field of Dogmatics.
Keywords: Dogmatics. Effectiveness. Legal Scholarship. Constitutionalization of Private Law.
Substantial Legal Certainty.
Sumário: 1 Introdução – 2 O problema em contexto: ângulos e parâmetros da ascendência do Estado
Constitucional. A renovação da dogmática e sua necessária efetividade – 3 Direito Civil, Constituição e
os desafios da civilística brasileira contemporânea – 4 Efetividade: o papel da literatura na abertura e
preservação de espaços de liberdades – 5 Conclusão

1 Introdução
O compromisso da civilística brasileira com os valores constitucionais, mes-
mo consideradas posições alinhadas às concepções clássicas do Direito Civil e as
variadas vertentes críticas às perspectivas do chamado Direito Civil-Constitucional,
é indubitável. Múltiplos são os trabalhos voltados a, segundo variados pontos de
partida e visões de mundo, defender novos ou velhos valores fundamentais na
seara civil, à vista de seu Leitmotiv: a dignidade humana. Não obstante este
compromisso assumido e levado a efeito pela dogmática no plano enunciativo,
sua efetivação, no complexo contexto da contemporaneidade, carece ainda de
atuação incisiva por parte dos autores especializados, sobretudo no que diz res-
peito à abertura e à preservação de espaços de liberdades, nos quais se permita,
às pessoas, realizar, por si mesmas, a dignidade que lhes é reconhecida (não
concedida) pela ordem constitucional e pelos destinatários das normativas oficiais
de um modo geral.
Este trabalho propõe a indicação, no contexto da travessia realizada pelo
Direito Brasileiro entre os modelos de Estado de Direito e de Estado Constitucional,
do principal desafio à concretização de espaços de liberdades indispensáveis à
concretização da autêntica dignidade da pessoa humana, para, posteriormente,
indicar caminhos possíveis para sua superação, mediante atuação progressiva
da civilística contemporânea, de modo a tornar reais e efetivas as enunciações
levadas a efeito no plano dogmático.

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2 O problema em contexto: ângulos e parâmetros da


ascendência do Estado Constitucional. A renovação da
dogmática e sua necessária efetividade
A fragilidade humana frente ao Estado e seus mecanismos institucionais
foi posta a desnudo pelas turbulentas experiências que marcaram o século XX.
A ascensão e queda dos totalitarismos abalaram as calibragens entre poder e
direito, entre voluntas e ratio, próprias do modelo1 moderno de Estado de Direito.
Desafiaram, então, a formulação de uma nova resposta, conquanto provisória,
para esta tensão que atravessa toda a cultura político-jurídica ocidental. 2 Esta,
no clima histórico do segundo pós-guerra, emergiu como um novo constituciona-
lismo, pautado por valores substantivos3 informadores de uma recompreensão da
própria noção de democracia, agora impassível – em contraste com suas acep-
ções procedimentais –4 de redução ao princípio majoritário. Exsurgia, então, um
renovado desenho constitucional, fundado na convicção de que “a democracia é
a consequência organizacional da dignidade humana, não mais, nem menos”5 e,

1
“Modelo constitucional”, conquanto não corresponda, exatamente, a uma expressão valorativa, comporta
pontual esclarecimento: “Por ‘modelo constitucional’, queremos dizer o conjunto de crenças médias, dos
intérpretes, da classe política e dos cidadãos, a determinar a vida concreta da Constituição, dando-lhe
significado” (FIORAVANTI, Maurizio. La trasformazione del modello costituzionale. Studi Storici, Roma:
Carocci, ano 42, n. 4, p. 814, out./dez 2001). Tradução livre. No original: “Per ‘modello costituzionale’
intendiamo quel l’insieme di convinzioni medie, degli interpreti, della classe politica, degli stessi cittadini,
che determinano la vita concreta della Costituzione, attribuendole un significato prevalente”.
2
COSTA, P. Democracia política e estado constitucional. In: COSTA, Pietro (Org.). Soberania, representação,
democracia: ensaios sobre a história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010, p. 235.
3
Tradução livre: “Algum limite substancial, com efeito, é necessário para a sobrevivência de qualquer
democracia. Sem limites relativos aos conteúdos das decisões legítimas, uma democracia não pode
(ou, ao menos, pode não) sobreviver. Em teoria, sempre é possível que, com métodos democráticos,
suprima-se, por maioria, os próprios métodos democráticos: não apenas os direitos de liberdade e os
direitos sociais, mas também os direitos políticos, o pluralismo político, a divisão de poderes, a repre-
sentação. Em outras palavras: todo o sistema de regras que constitui a democracia política” (FERRAJOLI,
L. Democracia constitucional y derechos fundamentales. La rigidez de la constitución y sus garantías. In:
FERRAJOLI, Luigi et al (Orgs.). La teoría del derecho en el paradigma constitucional. 2. ed. Madrid: Fun-
dación Coloquio Jurídico Europeo, 2009, p. 79). No original: “Sin limites relativos a los contenidos de las
decisiones legítimas, una democracia no puede (o al menos puede no) sobrevivir. En teoría, siempre es
posible que con métodos democráticos se supriman, por mayoría, los propios métodos democráticos: no
sólo los derechos de libertad y los derechos sociales, sino también los derechos políticos, el pluralismo
político, la división de los poderes, la representación, en otras palabras, todo el sistema de reglas que
constituye la democracia política”.
4
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional y derechos fundamentales. La rigidez de la constitución y sus
garantías, cit., p. 75.
5
HÄBERLE, Peter. Die europäische Verfassungsstaatlichkeit. Kritische Vierteljahresschrift für Gesetzgebung
und Rechtswissenschaft. Baden-Baden: Nomos, n. 3, v. 78, p. 298-312, 1995. Tradução livre. No original:
“Demokratie ist die organisatorische Konsequenz der Menschenwürde, nicht mehr, aber auch nicht
weniger”.

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por simetria, articulado numa “democracia que se realiza com a promoção dos
direitos fundamentais e invioláveis da pessoa”.6
Este novo modelo de organização política, no bojo do Estado Moderno eu-
ropeu, que faz rebrotar a supremacia constitucional como garantia de limite, de
inviolabilidade de uma esfera de decisões fundamentais. Isto no sentido de, após
a guerra, “implementar uma virada radical, para assegurar a todos que agora
existiria uma lei fundamental capaz de impedir que se reafirmassem, no futuro,
as condições para um retorno ao recente passado ditatorial”.7 O Direito brasilei-
ro também se insere nesta travessia, ainda que, por contingências históricas,
o afloramento do Estado Constitucional, ao menos na dimensão formal, tenha
operado apenas com a redemocratização e a promulgação da Constituição Federal
de 1988.
Assim, ainda nos esquadros do Estado Moderno, vislumbram-se quatro di-
ferenças bastante substantivas entre o ascendente Estado Constitucional e o
descendente Estado Nacional de Direito,8 as quais, longe de aniquilar dúvidas,
inauguram um novo patamar de problemas para estudiosos e operadores do
Direito em geral.
O primeiro contraste diz com o vértice do ordenamento, colonizado por enun-
ciados de baixa densidade normativa e elevada carga axiológica, os quais, ca-
rentes de hipótese de incidência, escapam à mecânica subsuntiva das regras9
e dependem, por isso mesmo, da atuação progressiva do legislador ou do juiz.10

6
COSTA, Pietro. Democracia política e estado constitucional, cit., p. 235.
7
FIORAVANTI, Maurizio. Público e Privado: Os Princípios Fundamentais da Constituição Democrática. RFDUFPR,
Curitiba, n. 58, p. 11, 2013.
8
“Com estas fórmulas, indicam-se tipos ideais que somente ostentam clareza conceitual na medida em que
descontadas aproximações, contradições e incompatibilidades por si não contempladas” (ZAGREBELSKY,
Gustavo. El Derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 2011, p. 21). Tradução livre. No original:
“Con estas fórmulas se indican tipos ideales que sólo son claros conceptualmente, porque en el desarrollo
real de los hechos deben darse por descontado aproximaciones, contradicciones, contaminaciones y
desajustes temporales que tales expresiones no registran. Éstas, no obstante, son útiles para recoger a
grandes rasgos los caracteres principales de la sucesión de las etapas históricas del Estado moderno”.
9
O significante subsunção, por ser facilmente associável a uma superada abordagem formalista do
fenômeno jurídico, tem seus sentido e extensão não raro bastante esgarçados. Seu emprego, aqui, não
se dá em caráter avaliativo (para mal ou bem), mas apenas como indicativo da aplicação de determinada
expressão que ordena, proíbe ou permite certa conduta a um determinado evento concreto, situado no
tempo e no espaço, e protagonizado por indivíduos (BULYGIN, Eugenio. Los jueces ¿crean Derecho?
Isonomía, Ciudad de México, n. 18, p. 11-13, abr. 2003).
10
A propósito, sem embargo de estar-se a dizer o óbvio: “Os padrões constitucionais de validade substancial
são identificáveis com a proteção de direitos fundamentais, como o princípio da igualdade, a imanente
dignidade da pessoa humana, variados direitos civis e políticos, bem como os ‘direitos de bem-estar’,
como os direitos à saúde, à educação, à assistência social e assim sucessivamente” (PINO, G. The place
of legal positivism in contemporary constitutional states. Law and Philosophy. Heidelberg: Springer, n. 5,
v. 18, p. 530, set. 1999). Tradução livre. No original: “The constitutional standards of substantive validity
are mainly identifiable with the protection of fundamental rights, such as the principle of equality, the
immanent dignity of the human being, various civil and political rights, as well as ‘welfare rights’, such as

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Os princípios, cláusulas gerais e enunciados veiculadores de conceitos jurídicos


indeterminados, então, afiguram-se como âncoras da justiça individual, posto que
“visam a deixar aberta a solução para um conflito de interesses a ser objeto de
decisão pelo aplicador, mediante a consideração das razões privilegiadas pelos
princípios que entrarem concretamente em conflito”.11 12
A consagração da supremacia constitucional e o emprego de enunciados
abertos pelos redatores das leis fundamentais determinam alteração profunda
nas relações entre legislação e jurisdição,13 sem que se possa falar, como an-
tes, no modelo de Estado de Direito, em patologias decorrentes de infringências
à separação de poderes. Franqueia-se espaço, pois, à formulação de juízo de
realidade quanto ao efetivo caráter criativo do exercício da interpretação e da
judicatura,14 e de juízo de valor, quanto à salubridade e a normalidade da criação
judicial do direito, dentro de determinados limites.15 Mais que isso: a lei, expres-
são máxima da juridicidade no Estado de Direito, torna-se submissa à normativi-
dade constitucional,16 pelo que o princípio da legalidade – e seus desdobramentos
sobretudo na seara da segurança jurídica – sofre grandes e profundos abalos.17

the right to health, to education, to social assistance and so on”. No mesmo sentido, cf. MORAES, Maria
Celina Bodin de. A utilidade dos princípios na aplicação do direito. Disponível: www.civilística.com, ano 2,
n. 1, p. 2, 2013. Acesso em: 17 maio 2016.
11
ÁVILA, Humberto. Princípios e regras e a segurança jurídica. RDE, Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, p. 197, jan./
mar. 2006.
12
Isto porque – conquanto a transcrição diga mais com a noção de derrotabilidade normativa à luz da teoria
do direito contemporânea – “uma vez incorporados os princípios às constituições com mais elevado
grau de normatividade, eles passam a exercer um ‘efeito de irradiação’ sobre o ordenamento jurídico
e, dessa maneira, atuam como as razões mais relevantes para a justificação das decisões que julgam
contrariamente a aplicação de determinada norma jurídica em situações nas quais ela deveria se aplicar
ordinariamente” (BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Conflictos normativos y decisiones contra legem: una
explicación de la derrotabilidad normativa a partir de la distinción entre reglas y principios. Doxa: Cadernos
de Filosofía del Derecho, v. 33, p. 88, 2010). Tradução livre. No original: “Una vez incorporados los
principios a las constituciones con el más elevado grado de normatividad, ellos pasan a ejercer un «efecto
de irradiación» sobre el ordenamiento jurídico y de esa manera actúan como las razones más relevantes
para la justificación de las decisiones que juegan en contra de la aplicación de una determinada norma
jurídica en situaciones en las que debería ser aplicada ordinariamente”.
13
É que o emprego de princípios e outros enunciados de baixa densidade normativa à resolução de casos
concretos “deve obedecer a critérios específicos que visam a diminuir a arbitrariedade mediante a
introdução de estruturas argumentativas intersubjetivamente controláveis” (ÁVILA, Humberto. Princípios e
regras e a segurança jurídica, cit., p. 197).
14
ORRÙ, Giovanni. Richterrecht: il problema della libertà e autorità giudiziale nella dottrina tedesca
contemporanea. Milano: Giuffrè, 1983, p. 13.
15
BULYGIN, Eugenio. Los jueces ¿crean Derecho?, cit., p. 25.
16
V. ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho dúctil: ley, derechos, justicia, cit., p. 39.
17
A propósito: “Com efeito, a novidade que o constitucionalismo introduz na estrutura das democracias é
que também o supremo poder legislativo se encontra juridicamente regulado e limitado, não apenas no
que respeita às formas, que garantem a afirmação da vontade da maioria, mas também à substância de
seu exercício, vinculado ao respeito de normas constitucionais específicas, como o princípio da igualdade
e os direitos fundamentais” (FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional y derechos fundamentales. La
rigidez de la constitución y sus garantías, cit., p. 78). Tradução livre. No original: “En efecto, la novedad

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Assim: “Em Estados Constitucionais, portanto, a legislação mesma está sub lege,
o que tolhe a aceitabilidade do dogma do legislador onipotente”.18
Nesta esteira, o princípio da igualdade preserva sua primazia, mas tem elas-
tecidos seus limites, bem como substituído seu centro de gravitação: no lugar do
indivíduo da tradição oitocentista, entra a pessoa concretamente situada.19 Vale
dizer: sob os auspícios da promoção dos direitos da pessoa e de sua colocação
em patamar de dignidade social, afirmam-se a intangibilidade das liberdades pes-
soais e os direitos de feição social. Esta aparente duplicidade se reconduz a uma
única matriz, afinada no diapasão de uma nova concepção do sujeito de direito
e do princípio da igualdade,20 o qual determina que “não somente ‘todos’ os
direitos devem ser garantidos; estes devem ser também garantidos a todos”,21 a
transparecer que se tenta superar a contradição entre uma igualdade formal e as
concretas discriminações.
Enfim, a normatividade dos textos constitucionais, sobretudo os de maior
carga valorativa, no Estado Constitucional, ganha sentido não apenas em relação
ao direito interno, mas igualmente no plano supranacional, o qual também é tim-
brado pelo papel ativo e protagonista da jurisdição,22 amplamente revelado pelos
crescentes diálogo e integração entre a Corte Interamericana de Direitos Humanos
e as Cortes Supremas de Estados Sul-Americanos,23 a representar uma signifi-
cativa diluição das fronteiras nacionais, no sentido de consolidação progressiva
de valores fundamentais comuns, que orbitam em torno da pessoa concreta e
historicamente situada (e não de uma figura abstrata e intangível, como o sujeito
de direito da tradição iluminista, a soberania ou o interesse público).

que el constitucionalismo introduce en la estructura de las democracias es que también el supremo


poder legislativo se encuentra jurídicamente regulado y limitado, no sólo en lo que respecta a las formas,
que garantizan la afirmación de la voluntad de la mayoría, sino también a la sustancia de su ejercicio,
vinculado al respeto de normas constitucionales específicas, como el principio de igualdad y los derechos
fundamentales”.
18
PINO, Giorgio. The place of legal positivism in contemporary constitutional states, cit., p. 529. Tradução
livre. No original: “In a constitutional state, then, legislation itself is sub lege, which no longer renders
acceptable the ‘dogma’ of the omnipotent legislator”.
19
FIORAVANTI, Maurizio. Público e Privado: Os Princípios Fundamentais da Constituição Democrática, cit.,
p. 12-13.
20
FIORAVANTI, Maurizio. Público e Privado: Os Princípios Fundamentais da Constituição Democrática, cit., p. 12.
21
COSTA, Pietro. A democracia após os ‘totalitarismos’ – a democracia constitucional na segunda metade
do século XX. In: COSTA, Pietro. Poucos, muitos, todos: lições de história da democracia. Curitiba: Editora
da UFPR, 2012, p. 282.
22
COSTA, Pietro. A democracia após os ‘totalitarismos’ – a democracia constitucional na segunda metade
do século XX, cit., p. 281 e ss.
23
SILVA, Virgílio Afonso da. Integração e diálogo constitucional na América do Sul. In: BOGDANDY, Armin et
al (Orgs.). Direitos humanos, democracia e integração jurídica na América do Sul. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010, p. 515-530.

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A convergência destas quatro viragens no contexto da transição do modelo


de Estado de Direito ao de Estado Constitucional, sobretudo na forte tônica nos
intangíveis valores da pessoa e na fiança em enunciados de baixa densidade nor-
mativa, a demandar, para alcançar concretude, precisão de sentido na resolução
de casos concretos,24 põe em evidência o problema fundamental que se coloca à
teoria e à prática do direito na contemporaneidade: o de encontrar um ponto de
equilíbrio entre legislação e jurisdição.25 Isto porque, se, de um lado, o exagero de
disposições regulamentares trai a segurança formal que com elas se pretende,
em função do fenômeno conhecido como gincana de regras, 26 de outro, “os princí-
pios têm um rosto de Jânus: se, por um lado, visam a reduzir a discricionariedade
judicial nos casos difíceis; por outro, podem servir de base para uma atuação
judicial sujeita a parâmetros jurídicos muito tênues”.27 Este e os demais desafios
colocados pelo advento do referido modelo arrostam o jurista e clamam pela enun-
ciação de soluções aceitáveis, que não traiam ideais de justiça e de segurança.28
Destarte, sem que a legislação perca sua essencialidade ao processo de-
mocrático, a jurisdição alcança o mesmo patamar, especialmente na condição de
esfera deliberativa contramajoritária e protetiva dos valores substantivos decidi-
dos pelo povo da Constituição,29 de modo que o princípio democrático se realiza

24
BRAITHWAITE, John. Rules and principles: a theory of legal certainty. AJLP, Sidney: Australian Society of
Legal Philosophy, n. 27, p. 49 e ss, 2002.
25
A propósito: “Hoje, ainda com maior ênfase, a ética da confiança no direito positivado a equilibrar-se
com a estabilidade de entendimentos jurisdicionais, os quais, por si só, se imutáveis indefinidamente ou
mutáveis imotivada ou constantemente também geram insegurança. Tal temperamento passa pelo rigor
da fundamentação racional das decisões e alcança o sentido da segurança não apenas como garantia de
legítimas expectativas, mas também como incidência material da legalidade constitucional” (FACHIN, Luiz
Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 17).
26
“Ao invés de restringir as possibilidades de aplicação com a criação de uma regulação cada vez mais
precisa e específica, a proliferação de regras permite que qualquer atitude encontre um texto normativo
para servir-lhe de justificação. Desta maneira, fica impossível controlar efetivamente o comportamento de
seus destinatários. Como numa gincana de colégio, é possível partir de um determinado comportamento
ou fato para tentar encontrar uma regra que o justifique, ou seja, que permita concluir por sua licitude à
luz do direito. Por este motivo, somos levados a imaginar que talvez seja necessário pensar em maneiras
diferentes de desenhar as instituições para obter segurança jurídica” (RODRIGUES, José Rodrigo. Por
um novo conceito de segurança jurídica: racionalidade judicial e estratégias legislativas. Analisi e Diritto.
Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 136).
27
BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra
sobre a Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 61.
28
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. La seguridad jurídica: una garantía del derecho y la justicia. Boletín de la
Facultad de Derecho de la UNED, Madrid: Uned, n. 15, p. 32-33, 2000.
29
Os direitos desempenham novo papel – não mais se colocam como expressão da vontade do Estado, mas
como fundamento e condição de legitimidade do ordenamento. “Não estamos diante de uma reedição do
jusnaturalismo, porque os direitos de que falamos são direitos enunciados por um preciso texto jurídico-
positivo, como a constituição. (...) Enquanto fundamentos do ordenamento, aqueles direitos parecem
imutáveis, não modificáveis por golpes de maioria subtraídos ao campo do decidível” (COSTA, Pietro. A
democracia após os ‘totalitarismos’ – a democracia constitucional na segunda metade do século XX, cit.,
p. 283-284).

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também no ato de fundamentação da sentença pelo magistrado, pois, como dito,


o princípio majoritário não mais se esgota na representação política; antes, diz res-
peito à preservação da intangibilidade dos referidos valores substantivos. É que,
ainda no calor dos incêndios autocráticos dos novecentos, constatou-se que os
direitos fundamentais poderiam ser colocados em risco pela própria ‘democracia’,
pelo que, no bojo da assim chamada moralização dos textos constitucionais,30
confiou-se a tutela dos direitos fundamentais a instituições contramajoritárias.31
Todas estas transformações colocam em evidência o problema do sentido
atribuído à segurança jurídica e, especialmente, da maneira com que ela se realiza
na teoria e na prática do Direito contemporâneo. Por simetria, lança luzes sobre
os desafios inerentes à promoção da razão de ser da própria ideia de segurança
no direito: a liberdade da pessoa humana, cuja efetividade imprescinde, como se
verá, da atuação proativa e intransigente da literatura jurídica.

3 Direito Civil, Constituição e os desafios da civilística


brasileira contemporânea
A consolidação de modelo de organização política erigido segundo a forma
do Estado Constitucional impacta, diretamente, na narrativa que circunda e dá
sustentação ao ordenamento jurídico. Valoriza, ao menos no plano enunciativo,
a construção de novas concepções de bem, ancoradas em consensos pretensa-
mente estabelecidos em torno de determinadas ideias, bem como da difusão de
compromissos em relação à perpetuação delas. É dizer: para além de recalibrar
um aspecto imperial ou autoritativo, que remete à força subjacente às normativas
estatais de um modo geral, renova o componente paidético do fenômeno jurídico
em âmbito oficial, a não só qualificar a pessoa e sua dignidade como também
permitir que ela se situe no universo normativo.32 O estabelecer deste diapasão,
determinante da afinação, em seu tom, dos discursos inerentes à teoria e à prá-
tica do direito, opera-se pela via do enfeixamento das quatro viragens delimita-
das, na travessia marginada pelos modelos de Estado de Direito e de Estado
Constitucional.

30
No sentido de infiltração, nas leis fundamentais, de diretrizes antes particulares à moral ou à ética e não,
propriamente, ao Direito.
31
V. BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra
sobre a Constituição?, cit., p. 56; e BUSTAMANTE, T. R. Teoria do precedente judicial: a justificação e a
aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 94.
32
COVER, Robert. The Supreme Court, 1982 Term. Foreword: Nomos and Narrative. New Haven: Yale Faculty
Scholarship Series, Paper 2705, p. 10-15.

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Mas a consecução do compromisso constitucional de promoção e tutela das


potencialidades da pessoa não prescinde da atuação progressiva da comunidade
jurídica especializada, sobretudo na seara do Direito Privado, dada sua tradicional
vocação à tutela e promoção dos valores da pessoa.33 Isto nos limites das mudan-
ças holísticas havidas no próprio Direito Civil, que toma ciência de seu pertenci-
mento (e de sua subserviência) a um ordenamento constitucional, para chamar a
si uma perspectiva funcional própria, referenciada pela principiologia axiológica de
índole constitucional, a conformar-lhe, efetivamente e na acepção contemporânea,
em “espaço privilegiado para a proteção da pessoa”,34 no qual se valoriza menos
a estrutura que função.35
Assim, no novo colorido do Estado Constitucional (em oposição à mesmice
do Estado legislativo), o despertar dos civilistas para o fato de que a centralidade
do Direito Civil migrou para a Constituição produz a tomada de consciência para a
releitura de seus institutos fundamentais à luz dos valores constitucionais, sobre-
tudo o da dignidade da pessoa concretamente situada – esta é, afinal, a grande
tônica das democracias constitucionais da segunda metade do século XX, confor-
me esmiuçado na seção anterior. Via de consequência, a ênfase na autonomia
do sujeito em abstrato, própria do legado do sistema oitocentista, cede espaço à
promoção dos interesses da pessoa humana.36 Vale dizer: para além do advento
de um renovado Direito Constitucional Positivo (a integrar a constituição formal
do Direito Civil), ganham força a principiologia axiológica de índole constitucional
(conformadora da constituição substancial) e a atividade hermenêutica centrada

33
AMARAL NETO, Francisco. A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica: perspectivas
estrutural e funcional. RIL, Brasília: Senado Federal, ano 26, n. 102, p. 207-230, abr./jun. 1999.
34
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. As quatro fundações do Direito Civil: ensaio preliminar. RFDUFPR, Curitiba:
UFPR, v. 45, p. 102, 2006.
35
“Do Direito Civil aos direitos civis fundamentais, a estrutura cede passo à função. O estatuto jurídico do
patrimônio redimensiona-se, sem perder a essência, embora ontologicamente se reinsira como outra terra
na Constituição” (FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim, cit., p. 95). Ainda:
“A função corresponde aos interesses de um certo instituto pretende tutelar, e é, na verdade, o seu ele-
mento de maior importância, já que determina, em última análise, os traços fundamentais da estrutura”
(SCHREIBER, Anderson. Função social da propriedade na prática jurisprudencial brasileira. In: SCHREIBER,
Anderson (Org.). Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 245-246).
36
“O reconhecimento da possibilidade de os direitos fundamentais operarem sua eficácia nas relações
interprivadas é, talvez, o cerne da denominada constitucionalização do Direito Civil. A Constituição deixa
de ser reputada simplesmente a uma carta política, para assumir uma feição de elemento integrador
de todo o ordenamento jurídico (...). Perde sentido o binário interioridade-exterioridade dos direitos
fundamentais, que adquirem, também, feição prestacional. (...) Os três pilares de base do Direito Privado
– propriedade, família e contrato – recebem nova leitura, que altera suas configurações, redirecionando-
os de uma perspectiva fulcrada no patrimônio e na abstração para outra racionalidade que se baseia no
valor da dignidade da pessoa. De fato, modelos e conceitos não são o verdadeiro objeto do direito, mas,
apenas, seu instrumento” (FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Direitos fundamentais,
dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).
Constituição, direitos fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 99).

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ANDRÉ LUIZ ARNT RAMOS

na atribuição de sentido aos significantes que integram o governo jurídico das re-
lações interprivadas, à vista não só das normativas constitucionais e infraconstitu-
cionais, mas também da força confessadamente jurígena dos fatos (constituição
– rectius: constitucionalização – prospectiva).37 Daí se afirmar que:

Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que o direito é, sim, um


sistema e, portanto, demanda para seu funcionamento coerência e
harmonia entre seus diversos elementos, mas o sistema do direito
não é fechado, ou axiomático, pautado pela lógica formal e pela neu-
tralidade dos enunciados, como se pretendera sob uma perspectiva
hermética e autorreferenciada, de matriz positivista. Trata-se de um
sistema aberto, em constante estado de complementação e evolução
em razão da provisoriedade do conhecimento científico e, principal-
mente, dos próprios valores fundamentais da ordem jurídica (...). Por
conta disso, o sistema permite – rectius, exige – a sua constante
renovação por meio da introdução de elementos extraídos da reali-
dade social.38

Destarte, o estabelecimento de inputs e outputs entre Codificação, Cons-


tituição e fatos põe-se como de índole dialógica, a qual abarca e encoraja a re-
novação dos significantes empregados no discurso jurídico (e.g.: relação jurídica,
família, responsabilidade civil, empresa, propriedade e posse), à luz da axiologia
constitucional e da ampliação de espaços de liberdades (civis e econômicas) que
desobstruem o desenvolvimento das potencialidades individuais de todos e de cada
um.39 Isto sem que se eliminem os sentidos inseridos no Código, os quais, então,
submetem-se a um verdadeiro rejuvenescimento interno.40 Daí se franqueia espaço
ao erigir de um novo sentido do Direito Civil, pela via do esforço da civilística:

Tratar da configuração clássica do sujeito e das transformações


conceituais pelas quais o sujeito passou constitui uma tentativa de
localizar, nestes dois últimos séculos, o indivíduo abstratamente con-
siderado, elevado ao patamar da juridicidade no que se designou

37
A respeito da tríplice constituição do Direito Civil, ver: FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transfor-
mações e fim, cit., p. 2015.
38
KONDER, Carlos Nelson. Distinções hermenêuticas da constitucionalização do Direito Civil: o intérprete na
doutrina de Pietro Perlingieri. RFDUFPR, Curitiba: UFPR, v. 60, n. 1, p. 199, jan./abr. 2015.
39
TEPEDINO, Gustavo. O Supremo Tribunal Federal e a Virada de Copérnico. Disponível em: <https://www.
ibdcivil.org.br/image/data/revista/volume4/01---rbdcivil-volume-4---editorial.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2015,
v. 4, p. 6, abr./jun. 2015.
40
MONTEIRO, António Pinto. Interpretação e o protagonismo da doutrina. RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10,
p. 292, set./dez. 2015.

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DOGMÁTICA E EFETIVIDADE: O PAPEL DA CIVILÍSTICA NO DESBRAVAMENTO DE ESPAÇOS DE LIBERDADES

como sujeito. Ao final do século XX, portanto, séculos depois da vi-


gência do estatuto moderno fundamental da apropriação dos bens,
da titularidade e do sujeito – o Código Civil napoleônico –, esboça-se
uma tentativa de superação do sujeito abstrato, com a construção do
sujeito concreto, agregando-se àquela noção de cidadania. Eis aí o
porvir do Direito Civil.41

Neste passo, não se está a conceder uma nova vulgarização, consistente em


“entrega ao Direito emotivamente criado pelos juízes, sem controle de legalidade
e justificado em menores argumentos de conveniente equidade, quando não de
propaganda”42 – também alcunhada de carnavalização do Direito.43 Ao contrário (e
é aqui que o desafio a que se referiu na seção precedente se coloca): a incidência
principiológica não se circunscreve aos princípios conformadores de um paraíso
hermenêutico do Direito Privado, mas uma ordem de ideias em que se arrostam
diferentes sentidos próprios do governo jurídico das relações interprivadas, cuja
calibragem é consectária da intensificação do diálogo (com renovados pontos de
partida) entre a literatura especializada e os aplicadores do Direito. Trata-se, pois,
do ingresso da civilística numa nova estação epistemológica.
Assim, bem ao contrário da temida vulgarização, confinadora das escruti-
nadas viragens no plano enunciativo, no domínio da dogmática acrítica: no cam-
po (em desbravamento) do Estado Constitucional, reveem-se as relações entre
Jurisdição e Legislação, de modo a romper a primeira das amarras da boca da lei
(e, portanto, também da segurança jurídica em sentido formal, de predetermina-
ção de hipóteses normativas, extraível a partir de interpretação literal) e permitir
aproximação às contemporâneas teorias da interpretação e da decisão judicial, as
quais se desdobram, com amparo na atuação prospectiva e criativa da literatura
especializada, na promoção de segurança jurídica em sentido substancial (con-
sistente na controlabilidade das razões de decidir invocadas para resolução de
casos concretos, observados os limites da atuação de cada Corte e da unidade
do sistema)44 e nos conseguintes desbravamento e preservação de espaços de

41
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil Brasileiro. 3. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2012, p. 207.
42
PERERA, Antonio Enrique. El Derecho civil: señas, imágenes y paradojas. Madrid: Tecnos, 1988, p. 86.
Tradução livre. No original: “entrega al Derecho emotivamente creado por los jueces, sin controle de
legalidad y justificado em menores argumentos de conveniente equidade, cuando no de propaganda”.
43
É a expressão empregada por Konder: “De fato, o cenário aterrador com que nos confronta a jurisprudên-
cia contemporânea é de decisões que, às vezes até mesmo sob o pretexto da abertura do sistema pela
constitucionalização e da aplicação dos princípios, mais parecem realizar o que vem sendo chamado de
banalização ou mesmo ‘carnavalização’ do Direito” (KONDER, Carlos Nelson. Distinções hermenêuticas
da constitucionalização do Direito Civil: o intérprete na doutrina de Pietro Perlingieri, cit., p. 205).
44
À luz do exposto nas linhas precedentes, “Essa leitura se reflete na solução de casos concretos pelo
Judiciário em vez de uma problematização tópica que busque, na ordem principiológica constitucional, a

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ANDRÉ LUIZ ARNT RAMOS

liberdades. É, pois, o aperfeiçoamento contínuo e dinâmico da trifronte constitu-


cionalização que permite avançar na leitura das potencialidades do Direito Civil
diante do horizonte aberto pela aproximação ao modelo de Estado Constitucional,
inclusive no pertinente ao sentido haurido de suas transformações. Vale dizer: o
desafio que se coloca, atualmente, é muito mais metodológico que de conteúdo.45
Assim, parece seguro afirmar que o Direito Civil, como continente da “discipli-
na positiva da actividade de convivência da pessoa humana com outras pessoas”,
corresponde à normatividade que “tutela os interesses dos homens em relação
com outros homens nos vários planos da vida onde essa cooperação entre pes-
soas se processa, formulando as normas a que ela se deva sujeitar”.46 Adquire,
destarte, o sentido de promotor da autonomia da pessoa no desenvolvimento de
sua personalidade na vida-em-relação com outras pessoas, a qual está sujeita à
incidência direta da normativa constitucional, sobretudo em sua dimensão axio-
lógica, no prisma da coexistencialidade, à luz das normativas hauridas de fatos
sociais e das Constituições Democráticas. E é neste prisma que se insere a reno-
vada atribuição civilística, de promover a abertura e a conservação de espaços de
liberdades, com vistas a viabilizar que, conscientemente ou não, a pessoa tenha
condições de, por si mesma, inserir-se no mundo normativo conforme a maneira
de viver que, autonomamente, eleja, segundo suas próprias concepções de bem;47
isto é: de laborar em benefícios de condições que permitam, às pessoas, decidir
acerca dos rumos de suas próprias vidas, de serem elas mesmas, segundo elas
mesmas, e não outras.

melhor solução, à luz dos direitos fundamentais, não raro se busca a solução mecanicista de subsunção do
fato à solução preestabelecida pelo modelo de relação jurídica codificada” (FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI
RUZYK, Carlos Eduardo. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma
análise crítica, cit., p. 99). No mesmo sentido: “quando o juiz decide o caso concreto e contribui, nessa
medida, para a realização do direito, como agente activo da construtividade jurídica, ele está a dar vida
e a concretizar toda a ciência jurídica que está a montante, onde a doutrina ocupa um lugar privilegiado”
(MONTEIRO, António Pinto. Interpretação e o protagonismo da doutrina, cit., p. 293). Especificamente
acerca do conteúdo da segurança jurídica e de sua realização no modelo de Estado Constitucional, cf. ÁVILA,
Humberto. Segurança jurídica: entre mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 122 e ss.; e MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação,
da jurisprudência ao precedente. São Paulo: RT, 2013.
45
“O que se deve é examinar as possibilidades concretas de que o Direito Civil atenda a uma racionalidade
emancipatória da pessoa humana que não se esgote no texto positivado, mas que permita, na porosidade
de um sistema aberto, proteger o sujeito de necessidades em suas relações concretas, independentemente
da existência de modelos jurídicos. O modelo é instrumento, e não um fim em si mesmo. Por isso, ele não
deve esgotar as possibilidades do jurídico, sob pena de o direito se afastar cada vez mais das demandas
impostas pela realidade dos fatos” (FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Direitos
fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica, cit., p. 102).
46
MOTA PINTO, C. A. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra, 2012, p. 58.
47
FERNÁNDEZ SESSAREGO, Carlos. Protección a la persona humana. In: ADORNO, L. et al (Org.). Daño y
protección a la persona humana. Buenos Aires: La Rocca, 1993, p. 55.

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DOGMÁTICA E EFETIVIDADE: O PAPEL DA CIVILÍSTICA NO DESBRAVAMENTO DE ESPAÇOS DE LIBERDADES

4 Efetividade: o papel da literatura na abertura e


preservação de espaços de liberdades
A imantação de textos normativos por forte carga valorativa é, certamente,
um grande avanço no sentido da humanização do Direito no plano enunciativo. A
assunção difundida de compromissos em torno destes valores, malgrado a im-
precisão dos textos que os veiculam, representa, igualmente, valiosa conquista
tributária da atuação conjunta de estudiosos, legisladores e operadores do Direito
de um modo geral, a estimular a mediação entre a normação em abstrato e a
realização do Direito em concreto. Esta efetiva concretização, contudo e especial-
mente no que diz com a promoção de espaços de liberdades permissivos da con-
substanciação de uma dignidade autêntica, que parta da pessoa e não lhe seja
imposta pela bondade dos bons, carece não tanto de ação estatal (legiferante,
judicativa ou executiva), mas da formação, pela atuação progressiva e vanguar-
dista da civilística, de clusters de liberdades – qualquer que seja a concepção de
liberdade defendida, contanto que fundamentadamente.48
A carência desta atuação – que não se resume à afirmação pura e simples de
determinadas esferas intangíveis, mas exige, também, a defesa de mecanismos
de controle à atuação do Estado e de poderes privados, no prisma da seguran-
ça jurídica substancial – é eloquentemente ilustrada pelo trato dispensado pelos
Tribunais brasileiros a cláusulas gerais de primeira grandeza na vigente codifica-
ção civil. Assim, e.g.: buscas nas bases de dados do Superior Tribunal de Justiça
mediante emprego da chave “boa-fé objetiva” conduzem ao encontro de milhares
de resultados, nos quais, geralmente, esta cláusula geral foi empregada como
mero recurso retórico (rethorische Floskel), como espécie de varinha de condão
(Zauberstab) para a resolução de problemas complexos ou como atalho ao empre-
go de dispositivos com maior densidade normativa, que exigiria maior delonga na
busca por soluções e o atingimento de resultado talvez não tão simpático aos ape-
tites por justiça.49 Este modo de proceder imuniza a atuação da Corte a qualquer
possibilidade de controle externo, pois as razões de decidir por si empregadas se
perdem na mística invocação de enunciado com baixa densidade normativa (de
um dogma), sem a descarga da argumentação que lhe seria, pela natureza do

48
É o que se defende, entre outros estudos, em: PRIETO ÁLVAREZ, Tomás. La intervención del Estado en
la libertad individual: liberalismo, paternalismo, bien común. Disponível em: <http://civilistica.com/wp-
content/uploads/2015/08/%C3%81lvarez-civilistica.com-a.4.n.1.2015.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2016;
e PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s): repensando
a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2011.
49
SCHMIDT, Jan-Peter. Zehn Jahre. Art. 422 Código Civil – Licht und Schatten bei der Anwendung des
Grundsatzes von Treu und Glauben in der brasilianischen Gerichtspraxis. DBJV Mitteilungen, Osnabrück:
DBJV, n. 2, p. 34-47, 2014.

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ANDRÉ LUIZ ARNT RAMOS

dispositivo referido, indispensável. Quer dizer: a pretexto de conferir efetividade


à normativa da boa-fé objetiva, acaba-se por lhe confinar em enunciação dogmá-
tica. Isto à míngua de resposta à altura dos autores especializados, no sentido
de exigir, sob os auspícios de uma acepção substancial de segurança jurídica,
indispensável à realização da liberdade no Estado Constitucional, a adequação da
atividade jurisdicional a exigências de verdadeiramente adequada fundamentação.
A civilística, portanto e apesar de reforçar a enunciação dos valores que infor-
mam o Direito Civil Brasileiro Contemporâneo e de enfatizar sua força normativa,
tem se furtado a desempenhar seu papel, de não só arrostar a descontrolada
hipertrofia da ação estatal (ancorada, em última análise, na violência) mediante
desbravamento, na província do Direito oficial, de clareiras onde possam aflorar
liberdades, como também assegurar que estas se preservem, mediante formula-
ção de modelos dogmáticos que veiculem instrumentos e exigências de controle
ao exercício do poder estatal, sobretudo no âmbito da atividade jurisdicional.
A(s) liberdade(s) de que se está a falar não guarda(m) correspondência com
uma acepção preestabelecida e artificialmente consensual, mas com aquela que,
mediante emprego de adequado esforço argumentativo, é advogada por cada au-
tor especializado, segundo os pontos de partida por si assumidos. Assim, por
exemplo, pode-se trabalhar com a acepção de liberdade negativa, cara ao libera-
lismo clássico, de Friedman50 e Hayek,51 de liberdade positiva, destrinchada por
Berlin,52 e de liberdade substancial, própria do liberalismo igualitário de Sem,53 ou

50
Friedman deriva sua concepção de liberdade da visão do “mercado enquanto um mecanismo e um espaço
que não deve sofrer coações do estado” (SILVA, Rodrigo Almeida. A liberdade nas perspectivas teóricas
de Milton Friedman e Amartya Sen. Ciências sociais em perspectiva. Cascavel: Unioeste, 10-19, p. 155-
168, 2011). Assim, confere-lhe “um sentido individualista, de modo que propõe uma individualização dos
papéis e das posições dos agentes dentro da estrutura do sistema. Os agentes precisam ter liberdade
econômica e política para estabelecerem suas próprias escolhas, sem interferência de outros agentes ou
instituições” (SILVA, Rodrigo Almeida. A liberdade nas perspectivas teóricas de Milton Friedman e Amartya
Sen, cit., p. 157).
51
Em Hayek, a liberdade individual ou pessoal corresponde ao estado no qual uma pessoa não se sujeita
à coerção pela vontade arbitrária de outros (cf. HAYEK, Friedrich August von. Constitution of liberty: the
definitive edition. Chicago: University of Chicago Press, 2011, p. 58).
52
A rigor, a acepção de liberdade diz com o desejo e a possibilidade de o indivíduo ser senhor de si
mesmo (BERLIN, I. Two concepts of liberty. In: BERLIN, Isiah (Org.). Four essays on Liberty. Oxford: Oxford
University Press, 1971, p. 131).
53
Em Sen, a noção de liberdade se associa diretamente à de capacidade, de modo que “enxerga a liberdade
não somente enquanto a abertura estrutural do conjunto de leis e da economia para que cada indivíduo
possa estabelecer suas escolhas, econômicas ou não. O autor funda uma visão de possibilidades reais
de escolha, no sentido dos condicionantes e limites que permitem estabelecer tais preferências. As
capacidades devem ser garantidas através de políticas públicas, para oferecer elementos que possibilitem
os indivíduos a ampliarem seu conjunto de possibilidades reais. No entanto, as políticas públicas também
são resultados do aumento da capacidade dos indivíduos (via crescimento do conhecimento), então essa
é uma relação de mão dupla” (SILVA, Rodrigo Almeida. A liberdade nas perspectivas teóricas de Milton
Friedman e Amartya Sen, cit., p. 162; SEN, Amartya. Development as freedom. Nova Iorque: Alfred A.
Knopf, 2000).

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DOGMÁTICA E EFETIVIDADE: O PAPEL DA CIVILÍSTICA NO DESBRAVAMENTO DE ESPAÇOS DE LIBERDADES

de acepções comunitaristas, como as sustentadas por Sandel,54 sem conceder à


capitulação dócil da liberdade individual diante de um coletivismo sem face, caro
aos totalitarismos identitários e expresso nos supertrunfos do interesse público e
das razões de Estado. Só assim é que se verá o florescer e o frutificar de um vero
e próprio personalismo ético,55 de há muito defendido pela literatura civilista, mas
perdido em meio aos contrastes hauridos, de um lado, da defesa intransigente de
liberdades civis e do simultâneo combate às liberdades econômicas, e, de outro,
da priorização destas em detrimento daquelas.
A transposição do silêncio ainda imperante na comunidade jurídica quanto à
concreta instrumentalização dos institutos fundamentais de Direito Civil para a rea-
lização de liberdades (ou de espaços menos hostis a estas), conquanto de modo
pulverizado e com alguma timidez, já parece ser um movimento em curso. Disto
é exemplo o estudo que Pianovski propõe do acórdão pelo qual a Terceira Turma
do Superior Tribunal de Justiça, sob relatoria da Min. Nancy Andrighi, pôs termo
ao Recurso Especial nº 1.096.325/SP. Tratava-se de um dos célebres casos das
pílulas de farinha – i.e.: de gestações indesejadas causadas pela ministração de
anticoncepcionais sem princípio ativo (comprimidos para teste de maquinário),
indevidamente postos no mercado pelo fabricante. O STJ, nesta ocasião, vislum-
brou, por vias não muito iluminadas, a ocorrência de dano ao projeto de vida da
gestante, que teve sua liberdade positiva (a liberdade de realizar e seguir um
planejamento familiar, segundo a vontade da mulher ou do casal) ceifada por fato
atribuível ao laboratório produtor do fármaco. Neste particular e após detida análi-
se do acórdão e descrição do atual estado da arte da responsabilidade por danos,

54
A acepção comunitarista de liberdade, defendida por Sandel, traduz-se não na autodeterminação individual,
mas na participação do cidadão no autogoverno (self-government) – cf. SANDEL, Michael. Democracy’s
discontent: America in search of a public philosophy. Cambridge: Belknap Press of Harvard University
Press, 1996, p. 4-5).
55
Trata-se, no dizer de Francisco Amaral Neto, de “concepção axiológica da pessoa como centro e destinatário
da ordem jurídica privada, sem o que a pessoa humana, embora formalmente revestida de titularidade
jurídica, nada mais seria do que mero instrumento a serviço da sociedade” (AMARAL NETO, Francisco. A
autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica: perspectivas estrutural e funcional. RIL,
Brasília: Senado Federal, ano 26, n. 102, p. 214, abr./jun. 1999), a qual ganhou forte impulso com a
inauguração formal, pela Constituição de 1988, do modelo de Estado Constitucional em solo brasileiro: “A
Constituição da República, de 1988, como uma espécie de terceira dimensão do direito posto, na sua diretriz
de incorporar o Direito Público e o Direito Privado, absorveu a ideia do personalismo ético com grande força.
Sobre seu art. 1º, que contém os princípios fundamentais da República, embora sejam cinco os seus incisos,
tem sido frequente a afirmação de que a dignidade da pessoa humana (é o inciso III) constitui a determinação
por excelência de todo o texto constitucional” (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Crítica ao personalismo ético
da Constituição da República e do Código Civil em favor de uma ética biocêntrica. RFDUSP, São Paulo: USP,
v. 103, p. 116, jan./dez. 2008) – ressalvada a posição crítica do autor deste excerto, no sentido de que
“talvez já estejamos em tempo (...) de ousar iniciar um movimento de revisão do tema, personalismo ético”
(AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e do Código Civil
em favor de uma ética biocêntrica, cit., p. 116), para valorizar uma ética biocêntrica.

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ANDRÉ LUIZ ARNT RAMOS

Pianovski crava: houve vilipêndio a uma liberdade positiva, “uma ‘liberdade vivida’,
tomada como autodeterminação, como decisão da própria pessoa sobre os rumos
do seu agir e do trajeto de sua história pessoal”.56 Esta autêntica contribuição
doutrinária, além de desnudar a carência de fundamentação do acórdão exami-
nado quanto ao interesse jurídico que, em concreto, buscou-se tutelar, fornece,
à comunidade jurídica, elementos permissivos do reconhecimento e da concreti-
zação do projeto de vida (significado como forma de concreção de uma liberdade
positiva) na qualidade de interesse jurídico credor de tutela jurídica diferenciada.
Outra ilustração diz com o já referido peculiar tratamento dispensado pelo
Superior Tribunal de Justiça à cláusula geral de boa-fé objetiva (art. 422, CC), o
qual é objeto de crítica bastante ácida de Schmidt. Este aprecia o acórdão pelo
qual o STJ julgou o REsp 1.141.732/SP, no qual se discutia a possibilidade de
constrição judicial de bem de família dado em garantia por fiador de escritura
pública de confissão de dívida com garantia hipotecária, decorrente de contrato de
trespasse. O cerne da disputa dizia com a medida da exceção à impenhorabilidade
consagrada pelo art. 3º, V, Lei nº 8.009/1991, que fala na “execução de hipoteca
sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”.
O fiador buscava escapar da literalidade do dispositivo, ao argumento de que ele
se limitaria a crédito que favorece a família, não abrangendo, portanto, as situa-
ções em que o proprietário presta garantia a terceiros. Sob relatoria da Min. Nancy
Andrighi, a Terceira Turma desempenhou brilhante exercício de interpretação do
dispositivo suscitado pelo recorrente,57 de modo a alcançar a conclusão de que:

o imóvel em questão foi espontaneamente oferecido em garantia


hipotecária pelos recorrentes, que estavam cientes dos riscos ine-
rentes a esse ato, sobretudo que implicaria renúncia à sua impe-
nhorabilidade, tendo o praticado assim mesmo, em benefício da
entidade familiar, de sorte que inexiste ofensa ao art. 3º, V, da Lei
nº 8.009/90 e, por via de consequência, justificativa para anular a
constrição imposta ao bem.

56
PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. “O caso das ‘pílulas de farinha’ como exemplo da construção
jurisprudencial de um ‘direito de danos’ e da violação da liberdade positiva como ‘dano à pessoa” –
Comentários ao acórdão no REsp 1.096.325/SP (rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 28.10.2009). In: FRAZÃO,
Ana; TEPEDINO, Gustavo (Orgs.). O Superior Tribunal de Justiça e a Reconstrução do Direito Privado. São
Paulo: RT, 2009, p. 300.
57
Ao cabo de extensa fundamentação, arrematou a relatora: “o art. 3º, V, da Lei nº 8.009/91 traduz hipótese
clara de ato tendente ao afastamento da impenhorabilidade: ao manifestarem a vontade de oferecer o
bem de família em garantia hipotecária, os beneficiários evidenciam (...) sua intenção de liberar o bem da
prerrogativa legal, desde que, em sintonia com o entendimento do STJ, a dívida tenha sido constituída em
favor da entidade familiar”.

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DOGMÁTICA E EFETIVIDADE: O PAPEL DA CIVILÍSTICA NO DESBRAVAMENTO DE ESPAÇOS DE LIBERDADES

Não obstante a certeira resolução da controvérsia pelo alcance desta as-


serção, arrematada a partir da interpretação de perceptivo legal com suficiente
especialidade e densidade normativa, o STJ acresceu considerações acerca da
boa-fé objetiva (que sequer integrava o espectro da discussão). Esta derivação é
qualificada por Schmidt como emprego desta relevante cláusula geral na condição
de mero recurso retórico, que, além de minar, progressivamente, sua relevância,
por torná-la recorrente em raciocínios tautológicos (tautologische Begründungen),
representa um atraso para a administração da justiça. Assim, após demonstrar
que a invocação à boa-fé objetiva é totalmente inócua nos esquadros daquele
julgado, Schmidt finaliza:

Espera-se que, com o decurso do tempo, os Tribunais brasileiros,


tal qual fizeram os alemães, tomem consciência de que só se deve
recorrer ao princípio da boa-fé quando ele realmente puder condu-
zir, decisivamente, a algum resultado, bem como de que é preciso
abster-se de seu uso como recurso supérfluo ou como mero adorno
decorativo. Isso vai poupá-los valioso tempo de trabalho na lida com
volumes inimagináveis de casos a julgar.58

Esta contundente crítica, para além de aproveitar à otimização do trabalho do


Superior Tribunal de Justiça, é de grande valia para o controle da atuação da Corte
no que diz respeito ao resguardo de liberdades. É que, muito embora a outorga de
especial proteção ao bem de família mire à preservação de certas liberdades em
face de poderes privados, sua perversão por determinadas práticas pode torná-la
instrumentos de aniquilação de outras liberdades. Isto é: o proveito irresponsável
(responsabilidade é o contraponto axiológico necessário de liberdade) da tutela
legal do bem de família frustra a finalidade da constituição de garantia em bene-
fício do filho do fiador, adquirente, no caso julgado pelo STJ, de estabelecimento
comercial. Sem embargo da valia do caminho percorrido para alcançar esta con-
clusão (e do acerto em sua eleição), a Corte descuidou da grandiosidade de seu
papel ao invocar, a esmo, a boa-fé objetiva. Ao assim agir, mais que prejudicar
seu próprio funcionamento, deu margem à ampliação das recorrentes restrições
a liberdades realizadas mediante simples enunciação da boa-fé objetiva ou outros

58
SCHMIDT, Jan-Peter. Zehn Jahre. Art. 422 Código Civil – Licht und Schatten bei der Anwendung des Grundsatzes
von Treu und Glauben in der brasilianischen Gerichtspraxis, cit., p. 42. Tradução livre. No original: “Es bleibt
zu hoffen, dass die brasilianischen Gerichte sich dieser Ein-sicht im Laufe der Zeit bewusst werden und
ähnlich wie früher die deutschen dazu übergehen, das Prinzip der boa-fé nur noch dann anzuführen, wenn
es das Ergebnis auch wirklich trägt, im Übrigen aber auf seine Verwendung als überflüssiges und potentiell
irreführendes Schmuckwerk zu verzichten. Dies wird ihnen auch wertvolle Arbeitszeit bei der Bewältigung
ihres unvorstellbaren Fallvolumens sparen”.

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ANDRÉ LUIZ ARNT RAMOS

enunciados com baixa densidade normativa, sem as mediações necessárias a


seu balizamento. O desnudar deste problema recorrente a partir de análise pon-
derada do acórdão em referência pelo autor alemão, portanto, chama atenção da
comunidade jurídica a seu respeito e permite que se avance na exigência de um
plus em qualidade de fundamentação na prestação da tutela jurisdicional sempre
que entrarem (ou puderem entrar) em jogo enunciados com baixa densidade nor-
mativa.
Destarte (os exemplos mencionados confirmam), o atuar da civilística “como
instância de orientação e reflexão produzida pelo conjunto dos juristas aos quais
é reconhecida (...) autoridade na formulação de modelos dogmáticos (...) para
explicar, confirmar, sistematizar, propor, e corrigir os modelos prescritivos (...)
em vigor”,59 à luz da dignidade da pessoa e das liberdades que lhe são indis-
pensáveis, constitui etapa necessária ao espancamento de temores acerca da
vulgarização do Direito Civil e da realização de seu sentido de promotor e curador
de liberdades, no diapasão constitucional. Este esforço, para que rompa as fron-
teiras da dogmática e ingresse na seara da efetividade, imprescinde, qualquer
que seja o objeto de teorização, de uma postura séria e altiva em relação ao
controle do exercício dos poderes públicos e, no bojo das dominantes estratégias
de eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas, também dos
poderes privados. Especificamente no espectro da atuação estatal, renovada pela
consolidação do modelo de Estado Constitucional, o principal dos muitos desafios
postos diante da comunidade jurídica especializada é o de, a um só tempo, reco-
nhecer criatividade no exercício da jurisdição e submetê-lo à crítica e a exigências
fundamentadas e substanciais de controle. Deste modo, para além da defesa de
esferas específicas de autonomia – relativa a atos de disposição do próprio corpo,
diretivas antecipadas de vontade, eleição de regimes de bens e demais escolhas
pessoais e patrimoniais no âmbito do tráfego jurídico, por exemplo –, a literatura
tem a atribuição de submeter a judicatura ao crivo de exigências argumentativas
bastantes à calibragem (com ampliações e restrições) destas posições e interes-
ses jurídicos.

5 Conclusão
A civilística brasileira logrou êxito em deitar os alicerces indispensáveis ao
erigir de um edifício normativo e dogmático a partir das linhas-mestras do Estado

59
MARTINS-COSTA, Judith. Autoridade e utilidade da doutrina. In: MARTINS-COSTA, Judith. (Org.). Modelos
de Direito Privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 32.

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DOGMÁTICA E EFETIVIDADE: O PAPEL DA CIVILÍSTICA NO DESBRAVAMENTO DE ESPAÇOS DE LIBERDADES

Constitucional. A obra, conquanto de aparente consistência no plano enunciativo,


carece de acabamentos na dimensão da efetividade, sobretudo no que diz com
a defesa e a promoção de espaços de liberdades às pessoas, cuja dignidade se
reconhece acima de qualquer dúvida. Este avanço, de imensurável relevância,
imprescinde da oposição, por parte da comunidade jurídica especializada, de exi-
gências argumentativas qualitativamente superiores aos operadores do Direito
em geral e a seus aplicadores em particular. Assim é que se poderá concretizar a
acepção substancial de segurança jurídica cara à releitura das relações entre legis-
lação e jurisdição promovida pela travessia marginada pelos modelos de Estado
de Direito e de Estado Constitucional, de modo a viabilizar o atingimento de um
novo patamar de problemas (e de oportunidades) para o Direito Civil contemporâ-
neo, ciente de sua instrumentalidade à realização do compromisso constitucional
com a outorga de concretude à dignidade da pessoa, segundo as concepções de
bem que lhe são particulares. O desafio, de efetivação dos enunciados difundidos
pela dogmática no rico contexto axiológico do Estado Constitucional, está posto.
Não o ignoremos.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

RAMOS, André Luiz Arnt. Dogmática e efetividade: o papel da civilística no desbra-


vamento de espaços de liberdades. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil,
Belo Horizonte, vol. 11, p. 17-35, jan./mar. 2017.

Recebido em 18.05.2016
1º parecer em 03.10.2016
2º parecer em 06.10.2016

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