Revista Brasileira85

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revista Brasileira

Fase VIII Outubro-Novembro-Dezembro 2015 Ano IV N .o 85

Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.


Machado de Assis
Ac a d e m i a B r a s i l e i r a R e v i s ta B r a s i l e i r a
de Letras 2015
Diretor ia D i reto r
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Merval Pereira
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Alberto da Costa e Silva, Alberto Marco Lucchesi
Venancio Filho, Alfredo Bosi,
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Candido Mendes de Almeida, Carlos Revi sã o
Heitor Cony, Carlos Nejar, Celso Lafer, Vania Maria da Cunha Martins Santos
Cícero Sandroni, Cleonice Serôa da Motta José Bernardino Cotta
Berardinelli, Domicio Proença Filho,
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de Moraes Filho, Fernando Henrique E d i to ra ç ã o e l et rô ni c a
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Sergio Paulo Rouanet, Tarcísio Padilha,
site: http://www.academia.org.br
Zuenir Ventura.
As colaborações são solicitadas.

Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis pelas
exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Vinhetas coligidas do acervo da Biblioteca Acadêmica Lúcio de Mendonça.

Esta Revista está disponível, em formato digital, no site www.academia.org.br/revistabrasileira.


Sumário
Editorial
Marco Lucchesi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Iconografia
Daniel Kfouri . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Entrevista
Remo Bodei Vie sauvage. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Gianni Vattimo Hermenêutica crítica da globalização. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Ciprian VĂlcan Valéry ou como passar do pensamento à ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
Centenário do Nascimento do Acadêmico Antônio Houaiss
Eduardo Portella Relembrando Antônio Houaiss. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Arnaldo Niskier Um homem múltiplo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Evanildo Cavalcante Bechara Três momentos com Antônio Houaiss . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Cícero Sandroni Antônio Houaiss . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
Ana Maria Machado Um tributo afetivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
Rio de Janeiro, 450 anos
José Murilo de Carvalho Os tempos do Rio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
Zuenir Ventura Os Rios do Rio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
Ensaio
Alfredo Bosi Literatura italiana – na universidade e a partir da universidade . . . . . . . . . . . . . . . 97
Maria Lucia Guimarães de Faria Sterne e a tradição irônica da Literatura. . . . . . . . . . . . . . . . 107
Lúcia Bettencourt O ABC de Marcel Proust. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
Murilo Melo Filho Josué: Um sucessor de Athayde. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
Ricardo Daunt Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Mary del Priore Per Johns: um ficcionista de todas as estações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
Evaldo Cabral de Mello A noção de Nordeste. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Sérgio F. Martagão Gesteira Um soneto de Jorge de Lima. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
Alberto Venancio Filho Domício da Gama – Escritor e Diplomata . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171
Flávia Amparo Entre os papéis de um leitor de poesia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
Conto
Ieda Magri Relatório a uma academia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Caligramas
Pedro Vasquez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Poesia
Carlos Nejar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
Alexei Bueno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
Aleilton Fonseca. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
Montez Magno. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
José Huguenin. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
Poesia Traduzida
Safo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
Álcman. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251
Estesícoro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
Memória Futura
Odylo Costa, Filho A invenção da Ilha da Madeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
Editorial

M a rc o L u cches i Ocupante da
Cadeira 15
na Academia
Brasileira de
Letras.

A entrevista de Remo Bodei e o ensaio de Gianni Vattimo,


dois dentre os maiores filósofos da cena contemporânea,
abrem as páginas da última Revista de 2015 e sinalizam uma peque-
na mudança de rumos, que se tornará mais clara para o ano, com a
proposta de um dossiê mais denso, centrado no debate das ideias,
dentro e fora do Brasil.
A Revista Brasileira e as publicações da Casa têm como horizonte a
memória de seus pares e da cultura do país, dentro de cujo tecido a
Academia, desde a sua fundação, encontra-se profundamente imbri-
cada. Trata-se da memória orgânica e vibrátil, como luz das coisas
atuais e intuição dos futuros possíveis.
Memória aberta, portanto, flutuante, em construção, no dese-
nho e redesenho das inesgotáveis leituras do Brasil. Casa da memó-
ria que não perde os desafios e as digitais do presente.

5
Marco Lucchesi

As edições da Revista Brasileira espelham, ao longo de sua história, em suas


diversas lentes geracionais, um núcleo de percepção, um divisor comum, que é
a preservação do patrimônio imaterial e o debate das linhas de força de nossa
cultura. Eis o que pretendemos nas próximas edições.

6
Iconografia

Daniel Kfouri

E ste número é enriquecido com as obras de Daniel Kfouri.

Daniel Kfouri (fev. 75) começou a fotografar em 2001 após


trabalhar 6 anos como designer gráfico para revistas e sites. Como
fotógrafo, trabalhou para revistas da Editora Abril, Folha de S. Paulo, The
New York Times, agências de notícias internacionais e Nike Global.

Prêmios
2.º lugar, Picture of the Year Latin America – 2011
3.º lugar, World Press Photo – 2010

Exposições individuais
2015: “Heróis” DOC Galeria, São Paulo
2015: “Heróis” Museu de Sant’Ana, 5.º Festival de Fotografia de
Tiradentes, MG
2013: “Não Para” Sesc Ceilândia, Brasília

7
Daniel Kfouri

Exposições coletivas
2015 #Malditos Fios, 6.ª Mostra SP de Fotografia, Galeria Mezanino, SP
2015 Coletiva Quadrilha, 6.ª Mostra SP de Fotografia, DOC Galeria, SP
2015 Coletiva Série F, Museu de Fotografia de Curitiba
2014 Coletiva Série F, Galeria Nikon, SP
2014 Mostra Futebol BR, Vila Madalena, SP
2013 “Oltre i colori del Samba: riflessi del Brasile contemporaneo”, Milão
2013 FotoProtesto SP, Cemitério do Araçá, SP
2013 Ganhadores POY Latin America, México
2012 3.ª Mostra SP de Fotografia, Vila Madalena, SP
2010 World Press Photo Exhibition, por volta de 80 países
2007 Mírame, una ventana a la fotografia brasileña, Fototeca de Cuba,
Havana
2006 Mostra Prêmio Porto Seguro, Espaço Porto Seguro de Fotografia, SP
2004 450 anos SP Imagem em Construção, Senac, SP
2002 Mostra de Portfólios Casa da Fotografia Fuji, SP

8
E n t r e v i s ta

Vie sauvage

Remo Bo d ei Filósofo

Revista Brasileira – Professor Remo, seu estudo dedicado a


Ernst Bloch é de alta espessura. Gostaria de ouvi-lo sobre essa ve-
neranda amizade com o filósofo da esperança, da qual resultaram
alguns livros, como o Multiversum, acerca da história e do tempo
na filosofia de Bloch.
Remo Bodei – O meu interesse pela filosofia de Ernst Bloch tem
origens distantes, que remontam ainda ao período em que eu estuda-
va na Escola Normal Superior e na Universidade de Pisa. Com uma
bolsa de estudos alemã, fui para a Universidade de Tübingen, em
1960, e lá eu tive a oportunidade de ouvir uma aula de Ernst Bloch,
que então vivia em Leipzig, na República Democrática Alemã, e a
quem tinha sido excepcionalmente concedida a possibilidade de se
transferir para a República Federal Alemã (onde permanecerá após
a construção do Muro de Berlim, no verão de 1961). Fiquei muito

Tradução de Andreia Guerini e Karine Simoni.

9
Remo Bodei

impressionado com a sua aula e lembro que ele me presenteou com um dos
seus livros: Spuren (Vestígios). Eu o revi nos anos seguintes tanto em Tübingen
como na Itália, no Congresso Internacional da Sociedade hegeliana (Hegel
Vereinigung).
A tradução de Subjekt-Objekt. Erläuterung zu Hegel (Sujeito-Objeto. Comentário
a Hegel, 1975), a organização e a introdução de volumes como Karl Marx
(1972), Filosofia da Renascença (Bolonha, 1981) e O princípio esperança (1995)
acompanharam o meu estudo sobre a sua obra, que foi concretizado precisa-
mente em Multiversum. Tempo e história em Ernst Bloch, de 1983.
De Bloch impressionaram-me de imediato tanto o conceito de esperança,
ligado à mais ampla problemática do desejo, quanto a análise dos paradoxos
temporais, em particular o da “não-contemporaneidade” (Ungleichzeitigkeit).
O “princípio esperança” contém uma lógica do desejo que não atravessa
apenas o plano racional, mas também o do sonhar de olhos abertos. Uma vez
que a esperança não está necessariamente ligada a cenários grandiosos, Bloch
não desvaloriza os desejos da sociedade de massa (ter dentes brancos, corpo
esbelto e atlético, roupas bonitas). Não mostra em relação a eles nem a suspeita
de inautenticidade denunciada por Heidegger, nem o “esnobismo” de Adorno.
O desejo representa a crosta, a “casca provisória”, que guarda dentro de si as po-
tencialidades reais ou realizáveis dos indivíduos: “Os desejos nada fazem, mas
pintam e conservam com particular fidelidade aquilo que deveria ser feito. A jo-
vem que gostaria de se sentir brilhante e cortejada, o homem que sonha futuras
realizações, suportam a pobreza ou a cotidianidade como uma casca provisória.”
Cuidado ao reprimir os desejos, porque esses, uma vez removidos, apodrecem
seja em nosso inconsciente, seja em nossa consciência. Cuidado ao desprezá-
-los, porque, mesmo através dos desejos aparentemente mais fúteis, esconde-se a
possibilidade de encontrar a si próprio: “Batom, maquiagem, enfeites de outros
ajudam por assim dizer o sonho de si próprios de sair da caverna.” Esses desejos,
a seu nível, não são apenas legítimos, mas capazes de extrair de nós as melhores
potencialidades. A quem mostra ambições tão reduzidas não pode atribuir-se
culpas subjetivas. A sua atitude diz respeito ao fato de que todos nós (a política,
a sociedade, a história) não fomos capazes de oferecer-lhes algo melhor.

10
Vie sauvage

Para Bloch, no entanto, o desejo utópico se projeta mui-


to além do sonhar com olhos abertos, estendendo-se dos
projetos de sociedade perfeita à impensável vitória sobre
a morte. A esperança é, por um lado, como o ar: inodora,
insípida, invisível e impalpável. Sem ela, no entanto, não
poderíamos respirar. Semelhante à “cândida pomba” kan-
tiana que crê voar melhor desde que não encontre a resistência do ar, consente
à nossa razão avançar justo porque sustentada pela sua corrente ascendente.
Por outro lado, essa é também proteiforme e pode assumir papéis perver-
sos, como acontece no nacional-socialismo, em que a necessidade de pátria,
de identidade e de segurança se entrelaçam com as mais arcaicas e bárbaras
concepções. O tempo histórico não é de fato concebido por Bloch como o
tempo cronológico, como a única linha, divisível em partes iguais, mas como
contraponto de diferentes épocas, multiversum de desníveis (entre indivíduos,
classes, nações), que torna a história complexa, elástica, deformável, tal qual
o espaço riemanniano, sob a ação dos acontecimentos. Neste universo denso
de reviravoltas e de aberturas para o novo, a materia em si não é quantidade
pura ou extensão inerte, mas “existente em possibilidade”, movimento para a
frente, com o qual o homem é chamado a colaborar, de modo que o comuni-
smo – enquanto, marxianamente, “naturalização do homem” e “humanização
da natureza” – parece para Bloch a maior síntese entre natureza e sociedade, a
“utopia concreta” que orienta a história. O nacional-socialismo, ao contrário,
sobre o qual Bloch se detém nos primeiros anos do exílio em alguns pene-
trantes ensaios de Herança do nosso tempo, é fruto também dos desequilíbrios
temporais, da não-contemporaneidade no tempo histórico das classes sociais
na Alemanha. Nesta, de fato, ao lado das duas classes fundamentais que vivem
no nível mais alto do presente histórico, há grandes extratos de camponeses e
pequenos burgueses atrasados, excluídos por um presente do qual não conse-
guem entender racionalmente a dinâmica e a direção. Na falta de uma com-
preensão racional, longe do motor do desenvolvimento econômico, frustrados
em suas expectativas e desorientados até o desespero pela agitação do primei-
ro pós-guerra e pela inflação selvagem, eles vivem a sua relação com a política

11
Remo Bodei

sob a forma de mito, sonhando revanche, restaurações autoritárias, drásticas


limitações do poder da classe operária, superioridade da nação alemã e da raça
ariana. O nazismo, enquanto “jacobinismo do mito”, consegue transformá-
-los em massa de manobra e incluí-los organicamente em um largo fronte de
interesses, que compreende a grande indústria, o exército, a burocracia sob
o controle do partido e do seu chefe. Traços ainda feudais, que refletem o
tempo histórico ou as imagens de restauração de classes atrasadas (o mito),
fundem-se em tal modo com a eficiência tecnocrata e a racionalidade formal
dos aparatos industriais, militares e burocráticos.

RB – Oportuna observação a do jacobinismo do mito, e das vozes temíveis


e perigosas da tecnocracia. O embate da cronologia com outros níveis, para
além de Braudel. Penso em seu ensaio sobre Hölderlin, no modo pelo qual
põe em movimeno a Holzwege, de Heidegger, e aquela perspectiva tanto
apreciada por Bloch, quando o poeta diz em Patmos: Wo aber Gefahr ist, wäschst
das Rettende auch...
RB – Mais do que através de Holzwege, o tema do afundar naquilo que é perigoso,
creio que chegue a Hölderlin a partir das discussões realizadas sobre a figura e a
filosofia do poeta-filósofo do V século a.C., Empédocles, sobre o qual Höl-
derlin escreveu a homônima tragédia, em três versões (1796-1799). Através
da figura de Empédocles, a tentativa de Hölderlin é a de arriscar o naufrágio
experimentando as fronteiras últimas da consciência que perde a si mesma
no “aórgico”, no ilimitado, no incompreensível, no inconsciente. Ele quer
trazer a consciência até os extremos, arrancá-la do seu centro sem ter qualquer
garantia prévia sobre a possibilidade de recuperá-la. Uma vez entendido que
quebrou o antigo acordo com o tudo (hen kai pan), é preciso lançar-se metafo-
ricamente em um “fogo mais alto”.
Como ficará claro mais tarde nas poesias “O Reno e Rousseau”, é preciso
provisoriamente abandonar – como fez Rousseau – a civilização, entendida
como algo de muito formado, de “orgânico” e abrir-se ao “aórgico” da muda
natureza, dando-lhe voz. O primeiro impulso nessa direção deriva inicial-
mente a Hölderlin do “entusiasmo”. A partir de 1797, Hölderlin percebe a

12
Vie sauvage

necessidade de dar “um passo adiante”, porque a consciência deve perigosa-


mente precipitar e descentralizar-se de tal modo que “o objetivo ressoe nela
tanto mais genuína e profundamente quanto mais a alma está aberta a ela”
(como está na já citada carta a seu irmão Karl, de 1 de janeiro de 1799).
Para alcançar esse objetivo, Empédocles começa um combate: “O seu es-
pírito devia então assumir forma aórgica [isto é, decomposta, anárquica] no
sentido mais elevado, arrancar-se de si mesmo e do seu ponto central, penetrar
o seu objeto de um modo tão excessivo a ponto de se perder nesse como em
um abismo; enquanto, por sua vez, toda a vida útil do objeto devia agarrar
o ânimo abandonado e se tornado mais infinitamente receptivo devido à ili-
mitada atividade do espírito.” Nesta descentralização, a consciência assume
o aspecto de um presídio desprotegido, mas, ao mesmo tempo, torna-se, de
fato, “infinitamente receptiva”. Encontra-se aqui um paradoxo, enquanto nos
tornamos tanto mais passivos quanto mais somos ativos e tanto mais ativos
quanto mais somos passivos. O precipitar-se em um abismo se constitui em
uma ameaça, mas desse abismo se pode regredir somente se reconhecemos a
natureza como vida independente de nós, mas, ao mesmo tempo, também o
nosso pertencimento à natureza. A solução, mesmo política, que a própria
natureza pode nos sugerir, é aquela de uma comunidade humana na qual cada
indivíduo é um mundo, unido porém aos outros em “liga livre”, segundo o
modelo presente na poesia “Os carvalhos”.

RB – O grande poema “Os carvalhos”.... essa liga livre, em momentos sem


liga, como os atuais. E aquele primeiro passo do entusiasmo, tão central
para o poeta de Lauffen. Nesse ponto, parece-me oportuno revisitar, pro-
fessor Remo, sua perspectiva de investigação freudiana, que trouxe con-
tribuições reais acerca dos “nervos da alma” e das chamadas “lógicas do
delírio”. Aparentemente o senhor compartilha o nietzschiano sonho de
Sócrates, de buscar a música, ao duvidar do poder fascinante, embora res-
tritivo, de Apolo sem Dionísio...
RB – Sim, em alguns aspectos é assim, no sentido que eu quis reavaliar as
lógicas anômalas e uma espécie de crítica da “razão impura”, continuando a

13
Remo Bodei

desenvolver, mesmo no caso dos “nervos da alma” (expressão que Aristóteles


usa contra aqueles que gostariam de cortá-los, recusando paixões como a justa
ira ou indignação) e do delírio, um programa de investigação que começou
com o estudo das paixões e daqueles fenômenos – como as ideologias políti-
cas – nos quais a racionalidade não parece gozar do direito de cidadania. Tal
projeto é subjetivamente justificado pela convicção de que a tendência talvez
mais ilustre da filosofia moderna, o chamado “racionalismo”, entrado no
senso comum, querendo imitar os sucessos das ciências matemáticas e físicas,
tenha perseguido um modelo de rigor impossível no mundo humano. Não
podendo trazê-lo novamente ao seu interior, abandonou grandes e decisivas
áreas da existência individual e social às espinheiras da ignorância. Assim,
deixou ao poder político e religioso à história, às tradições, ao hábito e ao
destino a função de estabelecer-lhe o regime. Parafraseando Lévi-Strauss (que
fala de pensée sauvage, entendendo o pensamento selvagem, espontâneo, não cul-
tivado, como o amor-perfeito do pensamento ou viola tricolor), eu definiria vie
sauvage toda aquela área da experiência humana – que inclui paixões, fantasias,
crenças ou delírios – entregues ao poder do “irracional”.
Em relação à música, fiz alguns anos de conservatório, estudando flauta
transversa. Para mim, a música foi importante também como ideal filosófico,
porque milagrosamente liga o máximo de rigor lógico-matemático com o
máximo de pathos.

14
Hermenêutica crítica
da globalização
G i a nni Vatti mo Filósofo, professor
da Universidade
de Turim, membro
do parlamento
europeu. publicou,
dentre outros,

A recente onda de “novo realismo” filosófico, que continua


nos parecendo vazia no nível teorético e basicamente ins-
pirada em meras razões de marketing midiático, teve pelo menos um
Il pensiero debole,
As aventuras da
diferença e Além
do sujeito.

mérito: o de marcar uma diferença, entre o desígnio conservador


e de restauração filosófica explícito nos “novos” (?) realistas, e o
empenho dos hermeneutas em ler os signos dos tempos em senti-
do progressista, de emancipação. De forma não demasiado parado-
xal, são justamente os adversários, com seu culto pelo What there is
(cf. o título de Quine), por “aquilo que há”, os que impulsionam a
hermenêutica a se reconhecer mais claramente como a filosofia que
projeta, ligada à práxis que era e há de ser desde suas origens heidegge-
rianas. Por último, também o debate suscitado pela publicação dos
Cadernos negros tem o mesmo sentido, ou pelo menos aponta para a
mesma direção.

Texto traduzido por Aniello Angelo Avella.

15
Gianni Vattimo

Eu resumiria este sentido dizendo que as mesmas razões pelas quais Hei-
degger tomou o partido dos nazistas poderiam (e deveriam) tê-lo levado a
escolher o comunismo. Somente pelas contingências históricas nas quais a
escolha amadureceu – o antissemitismo do qual a tradição cultural e filosófica
alemã não só estava repleta (sobre isso ampla documentação em D. Di Cesare)
e as ameaçadoras aberrações do stalinismo soviético – Heidegger escolheu
estar com Hitler.
Logo esta decisão, porém – antes de tudo, a de empenhar-se politicamente;
e também a de apoiar os nazistas –, autoriza hoje a falar de um heideggerismo
de esquerda, e de um “comunismo hermenêutico”
Em primeiro lugar, é preciso lembrar as razões pelas quais hoje falamos
de hermenêutica como crítica da globalização. À primeira vista, o discurso
parece poder se restringir à reivindicação da pluralidade essencial das culturas
contra os efeitos “neutralizantes” do pensamento único, da homologação de
tudo no grande teatro da fantasmagoria mundial das mercadorias.
Porque este teatro não pode ser saudado como a realização da “humanida-
de” finalmente unificada pela disponibilidade indefinida de bens materiais e
pela profissão de uma única fé, pelo uso de uma mesma língua como antes de
Babel – o inglês anglo-americano ao qual se opõe apenas, dado interessante, a
difusão do espanhol dos migrantes de todas as raças?
Materia signata quantitate é a primeira resposta que nos acode. O principium
individuationis da escolástica medieval aparece ao nosso espírito aqui sem ne-
nhuma necessidade racional e rigor teórico: assinala-nos simplesmente que a
materialidade faz falir o sonho da globalização; pois, em primeiro lugar, não
há bens para todos, e nem toda sorte de bens satisfaz a fome do mundo. A
materialidade individualiza, seja porque mostra imediatamente a escassez, seja
porque desperta as diferenças de indivíduos e grupos, também culturais: se
teu filho pede-te pão, tu não podes dar-lhe uma pedra qualquer – reveja-se
o Evangelho. Estaríamos aqui descobrindo as razões do “novo” realismo?
O qual, como é sabido, repreende à hermenêutica justamente seu excesso de
otimismo pós-modernista. Mas o faz do ponto de vista de um princípio de
realidade que se quer “neutral”, como, segundo os realistas, seriam as ciências

16
Her menêutica crítica da globalização

da natureza. Nenhum hermeneuta esquece que, quando se diz “chove” – e,


portanto, põe-se nas mãos de Tarski e de sua definição do verdadeiro – a
linguagem comum acrescenta geralmente “governo ladrão”. A filosofia não
tem a ver com fatos, mas com interpretações: a realidade da qual fala é a Wir­
klichkeit, o que produz Wirkungen, a saber, efeitos em sujeitos, nunca eventos
abstratos medidos geometricamente. Os contraefeitos da globalização, o que
está acontecendo justamente por sua causa, são os que suscitam a crítica da
hermenêutica. Ela não desperta ao observar uma ou outra impossibilidade
teórica de sustentar a ideia de globalização, uma ou outra sua contradição
interna. Acontece aqui o que aconteceu com a decisão heideggeriana de repro-
por a pergunta sobre o ser in Sein und Zeit: a redução do ser ao objeto, a iden-
tificação com o ente, não se oferecia a uma crítica teórica, como se tratasse de
um erro a ser corrigido. Exigia a reproposição da pergunta, porque dava lugar
a consequências intoleráveis para a própria existên-
cia do Dasein. Esta é a conexão de Sein und Zeit com
as vanguardas intelectuais do início de Novecentos e
com a consciência que as inspira, a recusa da sociedade da organização total
que se anuncia com força à época. Nosso hoje, apesar de muito diferente do
de então, sugere bem mais que simples analogias com aquela época. Tornou-se
infinitamente mais claro o que Adorno e Horkheimer chamaram, poucas dé-
cadas depois de Sein und Zeit, “dialética do Iluminismo”, isto é, o reviramento
da racionalização social para opressão generalizada. A globalização, da qual
somos ao mesmo tempo vítimas e protagonistas, hoje representa apenas uma
fase mais avançada, e talvez logo por isso menos reconhecível por ser mais
consolidada e “óbvia”, daquele reviramento. Até naquela parte de mundo
onde a globalização parece ainda não ter produzido efeitos desastrosos como
os por ora visíveis nas periferias, que com Zabala aprendemos a apelidar de
descargas humanas com as quais nossas sociedades têm fronteira, a situação
existencial intolerável, e nisso material, da globalização, se faz sentir. Quem
tem, ainda, um trabalho no Ocidente atual sofre uma constante redução de
seus direitos, uma intensificação inédita da disciplina e do controle social. A
devastação das Lebenswelten de nações e comunidades, e, portanto, de suas

17
Gianni Vattimo

culturas, em prol da homologação imposta pela unificação das produções e


dos mercados, é o que de imediato choca do ponto de vista hermenêutico;
como o desaparecimento progressivo (e estatisticamente impressionante) de
línguas e dialetos, um desaparecimento esmagador de igual número de “cultu-
ras”, modos de sobrevivência sensata da existência humana no mundo. Estou
pensando aqui na verdadeira predação que os mundos ainda “primitivos”
sofrem por parte das grandes empresas farmacêuticas mundiais, que se apro-
priam de plantas e outros recursos naturais para patenteá-los e “valorizá-los”
no mercado capitalístico. Frente a fenômenos deste tipo, é difícil não ceder à
tentação de resistir, cedendo a alguma forma de obscurantismo naturalísti-
co, anticientífico, anti-industrial, anticultural. A imagem de um Heidegger,
ligado às tradições de sua Floresta Negra e fatalmente refém do mito do Blut
und Boden, ergue-se contra nós com toda sua força dissuasiva. Contudo, o
problema que ele viu com lucidez e que não soube resolver com sua adesão
ao nazismo reaparece hoje mais ou menos nos mesmos termos. É o que ele
chamou de questão da superação da metafísica, isto é, da construção de uma
sociedade na qual o progresso material não implicasse a destruição da vida
e da liberdade humana. Quem, como eu mesmo, fala de comunismo her-
menêutico, tem em conta a frase de Lenin, que definia o comunismo como
eletrificação mais soviet. E reconhece seu valor programático, mas, afinal,
pouco mais do que um slogan.
Obviamente, o próprio termo de comunismo hermenêutico aparece qua-
se igualmente vago, quanto o é a definição de Lenin. Ao tentar especificá-
-lo pelo menos um pouco, ele indica uma posição teórica com intenção de
derrubar as pretensões cientificistas do comunismo soviético e, em geral,
daquele marxismo que teve por certo criticar as ideologias do ponto de
vista de um realismo metafísico para nós insustentável, e ao qual temos a
tentação de atribuir, também, a responsabilidade dos aspetos totalitários
do comunismo real, mesmo que de forma remota. É metafísica, fundamen-
talmente autoritarismo, tudo aquilo que pretende legitimar-se com uma
descrição de como “as coisas estão realmente”. A tais pretensões de legiti-
mação, própria das ciências experimentais, a hermenêutica sempre responde

18
Her menêutica crítica da globalização

com a pergunta: “Quem o diz?”, convocando, portanto, a responsabilidade


do intérprete.
Mas falar de comunismo hermenêutico não significa apenas nomear uma
posição teórica a ser contraposta a outros modos de declinar o comunismo.
Justamente também porque é hermenêutico, este comunismo requer a referên-
cia teórico-prática aos sujeitos que dele falam e tencionam praticá-lo. (Mais
uma analogia com a condição de Heidegger na Alemanha da sua época.)
Enquanto parece compreensível que a associação à hermenêutica pos-
sa qualificar (mais) positivamente o comunismo – qualquer que seja o seu
significado, a partir da definição de Lenin – é preciso se perguntar o que
a hermenêutica tem a ver com o comunismo, se e por que exige este link.
A hermenêutica tem uma vocação ao comunismo? Ou, mais em geral: a es-
colha de filosofar dentro de um horizonte hermenêutico, a escolha de ser
hermenêuticos, e não, digamos, positivistas ou (neo?) realistas, resulta numa
simpatia política qualquer pelo comunismo? E, no entanto, é correto pensar
que uma posição filosófica tenha uma “aplicação” e fundamente uma opção
política? Dir-se-á logo, aqui, que esta ilusão foi causa do erro fatal de Hei­
degger nazista: ele iria não apenas escolher erradamente o partido para se
filiar; sobretudo, iria como que sujar sua própria teoria, fazendo dela uma
posição “de partido”, uma escolha partidária em contradição com a “neutra-
lidade” de uma verdade universal, como deveria ser uma doutrina filosófica.
Como se vê, estamos num terreno “escorregadio”, como sempre o é aquele no
qual nos encontramos quando abandonamos a confortável posição da teoria
(recorda Gadamer sobre o theoròs, enviado pela cidade para participar do cor-
tejo: o seu era, contudo, um mandato “político”), misturando-a com a práxis.
Mas justamente pelo fato de estarmos falando “enquanto hermeneutas”, não
podemos escolher a posição “confortável” do espectador neutral. A tão con-
trovertida frase de Nietzsche “não há fatos, apenas interpretações”, tem uma
cláusula final, muitas vezes esquecida: “esta também é uma interpretação”. A
verdade da hermenêutica não é o valor de uma teoria preferível às outras por
argumento; é, antes de tudo, um modo de praticar a filosofia de forma não
“objetiva”, por estar o próprio intérprete implicado no processo do qual, e

19
Gianni Vattimo

dentro do qual, ele fala. Não se pode fazer hermenêutica sem tomar partido
(Cita aqui Rorty: quando fazemos ciência normal etc.). O que diferencia a
hermenêutica do “descritivismo” da metafísica positivista senão, justamente,
o fato de implicar o filósofo, tornando-lhe impossível a posição do observa-
dor neutral? E obviamente não se trata aqui somente da posição do filósofo,
um especialista que, segundo certa doutrina, deveria ver sua colocação mu-
dada. Aqui estamos perante uma reviravolta ontológica, podemos dizer. A
verdade não é o espelhamento, a posição do sujeito não é a da tela na qual as
realidades se desenham, e o ser não é o “dado”, mas o evento (que enquanto
Ereignis, apropriante expropriante, tem muito mais do que a natureza dinâmica
do que acontece, é acontecer de ser...).
Mas, portanto, por isso, comunismo? A polêmica, midiática, dos neorrea­
listas, revelou de fato a hermenêutica como uma posição também política;
os hermeneutas são seus “adversários”, não simples estudiosos de uma outra
escola colocada no ideal museu imaginário das doutrinas filosóficas. De resto,
realisticamente, os neorrealistas não nos “descrevem”; eles nos atacam. E nós,
pela nossa parte, dada a inconsistência de seus argumentos, só podemos nos
perguntar a quem ou para o que eles servem. A hipótese que nos parece mais
verossímil é que seu trabalho, não exigido por algum perigo que ameaça o
pensamento, não imposto pela possibilidade que a sentença de Nietzche pro-
duzisse desastres na mentalidade comum, caos nos transportes aéreos e nas
previsões meteorológicas (até isto nos foi objetado!), seja apenas um modo
para fazer com que a filosofia participe do geral “retorno à ordem” exigido
justamente pela lógica da globalização. Indícios convincentes de tudo isso
se veem na crônica do nascimento e difusão, essencialmente mediático, do
neorrealismo.
Evocar uma vocação “comunista” da hermenêutica significa apenas se dar
conta deste estado de coisas. Num certo sentido, é ainda o “inimigo” quem
nos define. Como quando percebemos que os realistas nos atacam porque
a hermenêutica “perturba”. Não é que qualquer oposição ao domínio da
metafísica, isto é, da globalização técnico-científica do mundo, seja de per
si comunista. Mas chamá-la assim quer dizer resumir num só termo todas

20
Her menêutica crítica da globalização

as razões daquela oposição: a globalização é pura eletrifi-


cação, retomando os termos de Lenin, sem nenhum soviet,
sem nenhum envolvimento dos sujeitos interessados, sem
participação dos cidadãos nas decisões. Sem responsabili-
dade dos intérpretes. Deveríamos, portanto, projetar uma
sociedade comunista parecida com a soviética ou a chinesa,
com os planos quinquenais e a KGB etc.? A hermenêutica não tem nada a ver,
obviamente, com tudo isso. Se ela recorda o termo e a noção de comunismo
é porque este termo e esta noção foram determinantes no sonho de transfor-
mação das classes exploradas de grande parte do mundo. O “escândalo” de
retomar agora estes termos provém, de fato, do ideal comunista, também de-
vido à pressão exercida pelo mundo capitalista ter-se deixado poluir pela men-
talidade cientificista dominante na metafísica. Metafísica – como objetivismo
cientificista que reduz o ente e o próprio Dasein a objeto calculável, a Bestand,
recurso aproveitável – é essencialmente capitalismo, pelo menos em nossa fase
histórica. As razões que levaram Heidegger a tomar o partido dos nazistas,
depuradas dos preconceitos e dos hábitos mentais pelos quais, culpadamente,
se deixou levar naquela situação, são todas vivas ainda hoje: nada tinha a ver
e nada tem a ver, hoje, algum “povo metafísico” que seria responsável pela
traição. Já então, o que Heidegger achava combater era a lógica globalizante
do capitalismo, que se havia imposto não só a Hitler, mas também ao co-
munismo soviético, sufocando os impulsos revolucionários originários sob a
necessidade histórica de “copiar” em etapas forçadas a estrutura e os modos
de produção do taylorismo americano. Stalin foi, em suma, corrompido pelo
exemplo do capitalismo ocidental, e por isso ainda hoje falar em comunismo
é um escândalo. Mas a práxis? O que fazer? A questão dos intelectuais em
termos gramscianos? Creio que não devemos sentir vergonha de praticar uma
filosofia militante, assumindo responsavelmente nosso passado como Gewesen
e não apenas como dado arqueológico.

21
Megarampa, 2009, São Paulo.
Valéry ou como passar
do pensamento à ação
Ciprian VĂl can Concluiu estudos
de Filosofia na
Universidade
de Timişoara,
Romênia.
Professor na

N a sua tentativa de descrever o mecanismo da criação, Valéry


parte da constatação que implica uma atitude diametral-
mente oposta ao comportamento natural, uma orientação antinatu-
Faculdade de
Direito da
Universidade
Tibiscus de
Timişoara.
ral, mas semelhante atitude “implica o esforço, a consciência do es-
forço, a intenção, e, portanto, o artifício”.1 Para atingir a excelência
da visão genial, o criador deve afastar-se da banalidade da vivência
nua, da sua insignificância patente, do verdadeiro falso da vida co-
tidiana, lançando-se num trabalho que lhe permite ir eliminando a
parasitação do anódino, chegando à essência da imagem, ao desta-
camento da forma. A consecução do resultado, isto é, a coagulação
da obra, só ocorre depois de o autor conseguir dominar o impulso
inicial que o leva à criação, colocando-a sob o controle da razão que,
supostamente, deve corrigi-la, moderá-la e construir a partir dela,

Texto traduzido por Annie Cambe.


1 Paul Valéry, Variété in Œuvres, I, pp. 570-571.

23
Ciprian V Ă lcan

removendo-a, assim, do seu estado bruto e introduzindo-a na maquinaria da


linguagem, submetendo-a às exigências draconianas da expressão.2
Do ponto de vista de Valéry, é indubitável que “a verdade no estado bruto é
mais falsa que o falso”,3 que a verdade fatual, obtida pela simples aglutinação
de impressões efêmeras, pela combinação fortuita de dados filtrados de forma
arbitrária pelos sentidos, pela restituição mecânica de episódios justapostos,
impõe uma imagem parcial, empobrecida e privada de qualquer necessidade,
cuja aceitação significaria a capitulação diante do acaso desprovido de sentido.
A verdade não se obtém por um registro passivo dos fatos, um registro gasto
de gestos e fórmulas, mas justamente pela transformação da avalancha brutal
dos acontecimentos, pela revelação do seu núcleo significativo, pela imposi-
ção triunfal da forma. A verdade não é simplesmente dada, é uma construção
laboriosa, não é algo imediatamente apreensível, mas, sim, o resultado de um
longo trabalho da mente, de modo que é alcançada graças à simulação, graças
a esta intervenção da intenção que está por trás de toda criação não fortuita.
Para poder existir, a verdade precisa do falso, mas não é para se impor em seu
detrimento, para se destacar em relação ao seu contrário, mas para integrá-lo
na sua composição, para ir além da banalidade informe da verdade fatual: “A
verdade que favorecemos transforma-se assim, insensivelmente, sob a pluma,
na verdade que é feita para parecer verdadeira. Verdade e vontade de verdade
formam juntas uma mistura instável em que fermenta uma contradição e de
onde sempre sai uma produção falsificada”.4 O exemplo mais significativo,
de acordo com Valéry, é o dos autores de confissões ou de diários, querendo
impressionar os seus leitores pela sua promessa de se apresentarem impiedo-
samente sob a luz mais conforme à verdade da sua vida, pela criação de uma
expectativa da revelação, do desvendamento dos detalhes chocantes ou excep-
cionais. Mas, já que uma pessoa real não dispõe de reserva muito significativa
de fatos ou gestos notáveis, pois suas vivências são, na maioria dos casos, anó-
dinas, ela tem de enfrentar a tensão que suscitaram e inventa um personagem
2 VerPaul Valéry, Introduction à la méthode de Léonard de Vinci in Œuvres, I, p. 1.205.
3 Ibidem,
p. 1.203.
4 Paul Valéry, Variété in Œuvres, I, p. 570.

24
Valéry ou como passar do pensamento à ação

conforme às expectativas do público, afastando-se necessariamente da plati-


tude da verdade: “Bem sabemos que uma pessoa real não tem muito a nos
ensinar sobre o que ela é. Escrevem-se, então, as confissões de algum outro
mais notável, mais puro, mais perto, mais vivo, mais sensível, e até mais si que
o permitido, porque o si tem graus. Quem se confessa mente, e foge à verdade
verdadeira, a qual é nula, ou informe, e, em geral, indistinta”.5
Valéry acredita que o maior perigo que o artista tem de enfrentar é o perigo
de ceder à pressão dos sentimentos, apostar na transcrição fiel daquilo que
está sentindo, sucumbindo, assim, fatalmente a uma solução de facilidade,
caindo na armadilha da banalidade. Para poder propor uma obra importante,
deve afastar-se de tudo o que não é mediado, usar os seus talentos no intuito
de disfarçar tudo o que é natural, ultrapassando as exigências inexplicáveis das
emoções e apostando na intercessão da razão. A arte é simulação, artifício,
triunfo da inteligência sobre a insignificância do cotidiano, vitória do excên-
trico sobre a realidade insípida da vivência comum, e por isso não se encontra
nas emoções nuas, que são “tão fracas quanto os homens desnudos”6. Já que a
nossa alma é o pior pensador7, já que “a alma não tem espírito”8, o criador é
obrigado a afastar-se das suas crianças informes, das suas proles anostes, quer
eliminando-as para evitar as eventuais turbulências, quer contradizendo-as e
transformando-as de acordo com os usos do intelecto.
Privilegiando, na descrição do processo da criação, o modelo da constru-
ção, do trabalho paciente e lúcido, Valéry faz questão de invalidar a tese se-
gundo a qual, para produzir uma obra importante, seriam necessárias mui-
tas experiências espetaculares que produzem, por sua vez, fortes impressões:
“Não acho que as mentes potentes tenham necessidade da intensidade das
impressões. Ao contrário; é nefasta para eles, sendo aqueles que do nada fa-
zem algo”.9 Incapaz de acreditar na força do delírio, nas virtudes benéfi-

5 Paul Valéry,p. 571.


6 _____, Tel quel in Œuvres, II, p. 546.
7 _____, Mélange, in Œuvres, I, p. 377.
8 _____, Mélange, in Œuvres, I, p. 377.
9 _____, Tel quel in Œuvres, II, p. 497.

25
Ciprian V Ă lcan

cas do absurdo ou a incoerência, também é adversário ferrenho da noção de


inspiração, contra a qual desfere ataques devastadores, fazendo uso de todo
o virtuosismo da sua mente cáustica. A sua argumentação segue, grosso modo,
duas direções. Conforme à primeira, a aceitação da ideia comum sobre a ins-
piração, segundo a qual a obra na sua totalidade poderia ser ditada ao autor
pelos caprichos de uma divindade, levaria à conclusão que é perfeitamente
possível que o “inspirado” escreva numa língua que não conhece e sem levar
em conta o contexto cultural do momento, os gostos literários da época e as
obras dos seus antecessores. Mas, já que nunca acontece, Valéry observa com
ironia que a inspiração revela-se uma força “tão desligada, articulada, sagaz,
informada e calculista, que não haveria por que não chamá-la de inteligência e
conhecimento”.10 A segunda direção de argumentação concentra-se na cons-
tatação que, entre os inúmeros impulsos da inspiração, pouquíssimos podem
ser considerados importantes, sendo a maioria simples lixo mental que pode
ser ignorado de pronto, rebotalhos chegados por acaso à orla da consciência,
desprovidos de qualquer importância e finalidade. No entanto, mesmo os que
se revelam férteis só se tornam valiosos depois da transformação, só depois
da atividade laboriosa da inteligência: “O espírito sopra-nos sem vergonha
um milhão de tolices para cada boa ideia que nos solta; e até essa chance só
terá algum valor pelo tratamento que a adapta ao nosso fim. É assim que os
minérios, inapreciáveis nos seus nichos e filões, ganham importância ao sol, e
pelos trabalhos na superfície.”11
Para Valéry, a distinção mais importante entre um indivíduo comum e um
criador pode ser observada na sua atividade mental. Enquanto que o primei-
ro não é capaz e nem se preocupa em controlar a desordem natural do seu
próprio pensamento, deixando-o livre para a mais total vadiagem intelectual,
que lhe permite dedicar-se aleatoriamente às divagações ou obsessões mais
estranhas, operando com nacos de ideias sempre em estado inicial, nunca
continuados ou sistematizados, justapostos de forma aleatória e desprovidos

10 Ibidem, p. 628.
11 Paul Valéry, Introduction à la Méthode de Léonard de Vinci in Œuvres, I, p. 1.208.

26
Valéry ou como passar do pensamento à ação

de coordenação, incapazes de ordenar-se numa visão glo-


bal coerente, o segundo viola de forma programática os
ritmos naturais da mente, impondo-lhe à força muitas
regras e exigências que limitam drasticamente a sua li-
berdade, obrigando-a a pender para a ordem, desenvol-
vendo a sua capacidade considerada extremamente rara
“de coordenar, harmonizar, orquestrar muitas partes”12.
O resultado dessa difícil operação disciplinar é a obtenção, por um esforço
sistemático, vigiado graças a uma intensa concentração, de uma configuração
mental favorável a uma construção inteligível, a uma junção das ideias em
função das suas afinidades de ordem interna, de modo que estas ideias se
organizem e se imponham à consciência, que fiquem perceptíveis enquanto
formações psíquicas que adquiriram independência em relação aos acidentes
espirituais “perdidos nas estatísticas da vida local do cérebro”.13 Embora este-
ja perfeitamente consciente do caráter imprevisível do nascimento das ideias,
embora reconhecendo que pensar se assemelha quase sempre a uma tentativa
de consulta dos espíritos14 e que a inteligência pode ser comparada com um
jogo da fortuna,15 Valéry insiste na preponderância do trabalho consciente,
disciplinado, lúcido, na configuração de uma obra. Sem negar que haja dias
“com ideias”, dias em que as ideias “nascem de repente de qualquer oportuni-
dade, ou seja, do NADA”,16 insiste na tônica da receptividade da mente diante
destas, nas operações complexas após as quais se vai construindo toda uma en-
grenagem que retoma o germe do impulso recebido, lhe garante as condições

12 Paul Valéry, L’idée fixe in Œuvres, II, p. 261.


13 _____, Introduction à la méthode de Léonard de Vinci in Œuvres, I, p. 1.208.
14 _____, Mauvaises pensées et autres in Œuvres, II, p.2 795: “Estou pensando...

Será muito diferente daquela prática qui consistia (e ainda consiste) em consultar os “espíritos”?
Esperar diante de uma mesa, um jogo de cartas, um ídolo, ou uma pítia aormecida e gemente, ou então
diante o chamado “si mesmo”...”.
15 Ibidem, p. 870: “A inteligência... é ter sorte no jogo de associações e lembranças à-propos.

Um homem de espírito, (lato estricto senso), é um homem que tem boas séries. Gagne souvent. Não se sabe
por quê. Ele não sabe por quê”.
16 _____, Mélange in Œuvres, I, p. 313.

27
Ciprian V Ă lcan

de desenvolvimento, criando o meio propício à verdadeira eclosão do pen-


samento, à realização das conexões que permitem a sua valorização. Mas,
diferentemente dos partidários da inspiração, dos que celebram o momento
em que nasce a ideia, Valéry privilegia o fim do processo o aparecimento do
pensamento nítido, preciso, inscrito numa constelação produtiva, capaz de ge-
rar outras ideias e alimentar uma visão sistemática. Para ele, a rigor, qualquer
percepção pode ser útil, qualquer impulso externo pode ser valorizado, sendo
o essencial a ativação da maquinaria da mente, a apreensão dessa excitação
fortuita e a sua transformação em algo útil graças à capacidade de transforma-
ção do intelecto, graças à sua imensa capacidade de planificação e de cálculo,
graças à sua dimensão de engenheiro.17
Por isso, é perfeitamente legítimo utilizar a obra de outros escritores
como base para o desenvolvimento da sua própria visão, a utilização da
inspiração que um pensamento estranho pode oferecer, pois a matéria bruta
obtida no fim dessa frequentação passou pelo filtro da mente, para ali-
mentar o surgimento do próprio pensamento, facilitar a sua manifestação.
Assim como as sensações, as percepções e os fiapos de ideias sobre as quais
se exerce a ação da mente, as influências de outros criadores servem apenas
de ponto de partida, de fator desencadeador do desenrolar do trabalho da
inteligência, poupando uma série de energias que poderão, assim, ser utili-
zadas na etapa final da construção. De acordo com Valéry, há uma série de
livros que “são, para mim, alimentos cuja substância há de se transformar
na minha. A minha própria natureza encontrará neles formas de falar ou
pensar; ou então recursos definidos e respostas prontas: precisarmos tomar
emprestados os resultados das experiências dos outros e crescer com o que
viram e nós não vimos.”18
Valéry considera a metáfora da digestão a mais apropriada para descrever a
forma como um autor recebe a influência de outras mentes. Convencido que a
exigência da originalidade é um simples preconceito, um modismo, obsessão de

17 Ver Paul Valéry, Introduction à la méthode de Léonard de Vinci Œuvres, I, p. 1.205.


18 _____, Tel quel in Œuvres, II, p. 483.

28
Valéry ou como passar do pensamento à ação

pessoas que demonstram assim o seu espírito mimético em relação aos que lhes
incutiram tal ideia,19 que “o que não se parece com nada não existe”,20 afirma
que a diferença entre plagiário e criador não pode ser averiguada partindo das
suas fontes, que podem, muitas vezes, ser idênticas, mas sim pela análise dos
resultados aos quais chegam, pelo exame da forma como deixam a sua mar-
ca nos materiais emprestados, devolvendo-os tais quais, ou, pelo contrário,
incorporando-os de forma orgânica na sua própria visão, tornando-os, assim,
irreconhecíveis: “Plagiário é aquele que não digeriu direito a substância dos
outros: deixa os pedaços reconhecíveis.”
A originalidade, questão de estômago.
Não há escritores originais, pois aqueles que mereceriam ser assim chamados
são desconhecidos; e até não conhecíveis.
Mas há aqueles que parecem sê-lo.”21
Atingir a perfeição é uma operação laboriosa, um episódio privilegiado da
epopeia quase infinita da simulação, que implica manter-se à equidistância da
espontaneidade pura, do arbitrário insignificante, sobre o qual devem refletir
as faculdades construtivas da mente, que se dedica a um disfarce feliz do im-
pulso inicial, tanto quanto em relação à produção totalmente proposital, sem
encanto, ainda impregnada das dificuldades do trabalho, produção que está
fadada a um profundo remanejamento para, supostamente, afastar todos os
sinais visíveis do esforço, eliminar os indícios visíveis do cálculo, do projeto,
do consciente, fazendo-o parecer natural.22 O sucesso de tal empreendimento
depende em grande parte de um tratamento acertado aplicado às palavras, do
seu exame rigoroso, da sua pesagem atenta, do seu uso de acordo com as exi-
gências de uma lucidez sem concessões aos hábitos do sentido comum ou, en-
tão, a toda forma de inércia mental, pois muitos deles, banalizados e esvazia-
dos de qualquer conteúdo, são prejudiciais: “Nós os aprendemos; repetimos,

19 Ver Paul Valéry, p. 631: “Existem pessoas, conheci algumas, que querem preservar a sua “originalidade”.

Assim, estão imitando. Obedecem àqueles que lhes fizeram acreditar no valor da “originalidade”.
20 _____, Mauvaises pensées et autres in Œuvres, II, p. 878.
21 Paul Valéry, p. 677.
22 Voir Paul Valéry, Tel quel in Œuvres, II, p. 591.

29
Ciprian V Ă lcan

acreditamos que têm um sentido... utilizável; mas são criações estatísticas;


e, consequentemente, elementos que não podem entrar sem controle numa
construção ou operação exata da mente, sem torná-la vã ou ilusória.”23
Assim como no caso da cristalização da personalidade dos indivíduos, que
ocorre ao cabo de um longo processo de simulação, dissimulação e integra-
ção dos traços validados pelos mecanismos de registro da sociedade, no caso
da criação, é preciso certa constância na maneira de proceder do criador, de
forma a chegar à construção de uma obra, ao que Valéry considera “um em-
preendimento contra a mobilidade, a inconstância do espírito, do vigor e do
humor”.24 Ora, para tal tentativa ser bem-sucedida, o artista deve saber imitar
a si mesmo, garantir a continuidade do seu estilo, utilizar como modelo as
suas produções mais notáveis, esforçando-se para prolongar o seu brilho e
assegurar a sua integração numa visão sistemática, eliminando qualquer dú-
vida ligada ao seu possível nascimento acidental, ao seu surgimento fortuito,
impondo a impressão de um caminhar consciente e controlado com virtuo-
sismo até o final,25 contribuindo assim decisivamente para o triunfo absoluto
do seu desejo de parecer em detrimento do ser. Observando a existência de
uma tendência cada vez mais forte para obter através da obra não necessa-
riamente certo efeito estético, mas principalmente o reconhecimento do seu
autor, Valéry observa com malícia: “Se uma lei estatal obrigasse ao anonimato
e nada pudesse ser publicado com nome de autor, a literatura seria totalmente
diferente – supondo que sobreviveria.”26

23 Paul Valéry,
L’idée fixe in Œuvres, II, p. 238.
24 _____. Tel quel in Œuvres, II, p. 632.
25 _____, p. 633-634.
26 _____, Mauvaises pensées et autres in Œuvres, II, pp. 805.

30
Centenário do Nascimento do
Ac a d ê m i c o A n t ô n i o H o ua i s s

Relembrando
Antônio Houaiss
Edua rd o Po rtel la Ocupante da
Cadeira 27
na Academia
Brasileira de
Letras.

Q uando o Secretário-Geral Domicio Proença Filho pediu-


-me para dizer algumas palavras aqui, eu vacilei, achei
que estava muito em cima da hora e que Houaiss merece sempre
alguma coisa de muito séria e muito elaborada. Mas, enfim, razões
subjetivas, as razões do afeto me fizeram enfrentar o improviso e
dizer algumas coisas sobre Antônio, um amigo muito fraterno.
Meu livro de estreia, editado pela José Olympio em 1958, está
dedicado a Antônio Houaiss, Cláudio Cabral de Melo e Elísio
Condé, e no meu mais recente livro, Dimensões IV, existe um texto,
pequeno – ele merecia muito mais – sobre Antônio Houaiss, crí-
tico literário.
E é essa figura humana extraordinária e exemplar, planta-
da eticamente, que estamos homenageando. Mais do que como

Sessão especial comemorativa do centenário de Antônio Houaiss, proferida na ABL, em


27 de agosto de 2015.

31
Eduardo Portella

gramático, Antônio é conhecido como filólogo. Ele não era exatamente um


gramático. E faço uma distinção entre filólogo e gramático. Existem gran-
des gramáticos sim, mas os gramáticos brasileiros, de uma maneira geral,
são aqueles que sabem colocar o pronome no nome, mas não sabem colocar
o nome no pronome. Por isso a Filologia emerge como uma alternativa
confiável de compreensão do fenômeno literário, de longa tradição no Oci-
dente. Ela tem origem germânica, Vossler, de onde vem toda uma geração,
de Spitzer, Auerbach, Kaiser, e curiosamente essa geração recebe influência
direta de Benedetto Croce. Há um idealismo de Croce infiltrado no corpo
da romanística alemã, que repercutiu também em Madri e teve representan-
tes muito altos. Já havia Menéndez Pidal, mas houve, sobretudo, o grande
chefe de escola que foi Dámaso Alonso. Eles estão todos conectados e estão
todos eles filólogos.
A Filologia, segundo o professor Ernst Robert Curtius, ex-reitor da Uni-
versidade de Bonn, está para as ciências do espírito assim como a Matemática
está para as ciências físicas. Logo, a Filologia é um apoio substancial para
a compreensão precisa, pluriunívoca, totalizante do fenômeno literário. No
auge do movimento filológico uma deriva estilística chega ao Brasil, e se dá
um grande debate da nova crítica, comandado por Afrânio Coutinho. Esta
estilística chegou para focar a compreensão do fenômeno literário na razão
interna do poema. É o que diz Dámaso Alonso, “a razão interna do poema”.
Alguns reagiram, por imaginar que a estilística fosse uma projeção subjetiva.
Havia uma confusão entre estilo e estilização. A estilização é a caricatura do
estilo, e o estilo é o traço identitário do fazer poético. Agora mesmo, lendo o
livro do Gullar que está em vias de sair, A cultura posta em questão, eu me reen-
contrei com esses conceitos todos. Às vezes nos esquecemos de que já houve
no Brasil um debate muito rico em torno dessas questões.
Antônio Houaiss é essa figura humana excepcional, esse ser ético, e é tam-
bém um filólogo. É também o crítico literário, e também o cidadão ativo,
participante e não partidarista. Por isso nós temos o dever de homenageá-lo
enquanto escritor, enquanto crítico literário, e enquanto referência cidadã. Ele
soube ser um cidadão brasileiro. Como crítico, além de toda sua obra, que é

32
Relem brando Antônio Houaiss

imensa – num período ele colaborou semanalmente no Diário


Carioca – eu destacaria o livro Seis poetas e um problema. De com-
preensão estilística, onde ele antecipou certas perspectivas de
compreensão, por exemplo, da poesia de João Cabral de Melo
Neto, é um livro referencial do espólio da crítica brasileira na
contemporaneidade.
Por isso estamos aqui, todos, rendendo esse tributo à memória de um inte-
lectual brasileiro que soube ser intelectual, e soube ser brasileiro.
Muito obrigado.

33
Megarampa, 2009, São Paulo.
Centenário do Nascimento do
Ac a d ê m i c o A n t ô n i o H o ua i s s

Um homem múltiplo

Ar na l d o Ni s k i er Ocupante da
Cadeira 18
na Academia
Brasileira de
Letras.
“Como colaborar para que a comunidade lusofônica no mundo
seja uma realidade de partes reciprocamente interessadas
nesse bem comum que lhes é a língua comum?”
Antônio Houaiss

É muito difícil definir o homem Antônio Houaiss, a partir


de tudo o que fez e representou para a cultura brasileira.
Filólogo, linguista, crítico, lexicógrafo, tradutor, perito-contador,
gastrônomo, ensaísta, polígrafo, professor, biólogo, diplomata, en-
ciclopedista, acadêmico, e muito mais. Multifacetado, ele sempre
esteve pronto para assumir as atividades que a vida colocou à sua
frente, e com a devida competência. Como bem definiu a acadêmica
Nélida Piñon, Houaiss é um homem múltiplo, polissêmico, uma mentalidade,
uma cultura, uma visão de mundo polissêmica.

Sessão especial comemorativa do centenário de Antônio Houaiss, proferida na ABL, em


27 de agosto de 2015.

35
Ar naldo Niskier

Tudo começou em 15 de outubro de 1915, quando nasceu no Rio de Ja-


neiro. Foi o quinto dos sete filhos de Habib Assad Houaiss e Malvina Farjalla
Houaiss, imigrantes libaneses maronitas. A ascendência árabe em nenhum
momento fez com que estreitasse laços culturais apenas com a história dessa
origem. Ao contrário, ganhou o mundo, nas diversas funções desempenhadas
na área diplomática, apreendendo ensinamentos e levando seus conhecimen-
tos, sempre em busca de um mundo melhor para todos.
Em 1933, formou-se perito-contador pela Escola de Comércio Amaro
Cavalcanti, onde teve como mestres Joaquim Matoso da Câmara Jr., então o
maior linguista do país, e Ernesto de Faria. Logo depois, fez o curso secun-
dário de Madureza. Na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do
Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro) fez o curso de Letras,
onde estudou com o filho de Antenor Nascentes, Olavo Aníbal Nascentes.
O seu trabalho crítico sobre a produção do Padre Anchieta, ainda nos
tempos de estudante de Letras Clássicas, na então Faculdade Nacional de
Filosofia, até hoje merece comentários dos estudiosos de sua obra. Esta po-
deria ser considerada a pedra fundamental da construção de um dos maiores
intelectuais que o Brasil já teve.
Antônio Houaiss casou-se em 1942 com Ruth Marques de Salles e não
teve filhos. A esposa faleceu em 4 de julho de 1988, e quase 11 anos depois,
o acadêmico deixou o nosso convívio, no dia 7 de março de 1999, devido a
problemas respiratórios. Uma perda até hoje sentida.

ȄȄ A posse na Academia Brasileira de Letras


A presença de Antônio Houaiss na Academia Brasileira representou um bene-
fício muito grande para a nossa cultura. De forma singela, ele chegou a comentar,
em certa oportunidade, sobre a sua atuação na Casa de Machado de Assis:

Um acadêmico é um mortal um pouco à margem das punições sociais. Eu pensei: se eu


me fizer acadêmico, poderei continuar a ser o Macunaíma que sou, mas talvez um pouco
protegido.

36
Um homem múltiplo

Após ser eleito o quinto ocupante da Cadeira 17, da Academia Brasilei-


ra de Letras, em 1.º de abril de 1971, para suceder a Álvaro Lins, Antônio
Houaiss tomou posse no dia 27 de agosto do mesmo ano. Em seu discurso,
fez referências amáveis a seus antecessores (Sílvio Romero, Osório Duque-
-Estrada, Roquette-Pinto e Álvaro Lins) e também ao patrono Hipólito José
da Costa. Foi recebido pelo Acadêmico Afonso Arinos de Melo Franco, que
assinalou a importância da chegada do novo membro da ABL:

Por tudo isto é que, para mim, vossa obra de investigação e pesquisa, na Literatura e
na Filologia, junta-se harmoniosamente, pela Crítica, em uma espécie de síntese, que se vai
definindo melhor, à medida que os diversos trabalhos se sucedem. Objetiva e livremente, a
vossa obra, abrangendo sempre temas estranhos à vossa pessoa, vai revelando, no entanto, a
vossa personalidade. Vossa obra representa, toda ela, uma ascensão contínua da inteligência
para o saber, da experiência para o conhecimento. Vossa personalidade corresponde aos fatores
evolutivos de vossa formação.

Sobre ele, disse Josué Montello e há o registro no livro Diário do Entardecer


(1967/1977):

Ora, o meu admirado Antônio Houaiss, candidato único à sucessão


de Álvaro Lins na Academia, acaba de fazer chegar às minhas mãos o seu
curriculum. Bem organizado. Bem impresso. Bem Antônio Houaiss. Preferi
não ler. Como o recebi, guardei-o. No meu caso, não precisava converter
em seu favor, quem já estava convertido. Houaiss é figura representativa da
cultura brasileira. O que há de melhor. Álvaro Lins, neste momento, não
poderia ter melhor sucessor.

ȄȄ Cuidando da Língua Portuguesa


O trabalho memorável de Antônio Houaiss como enciclopedista teve
como resultado a publicação da Enciclopédia Mirador Internacional e a Enciclopédia
Delta Larousse, graças ao apoio de Abraão Koogan, seu grande amigo e com
quem trabalhou por mais de três décadas. Vale lembrar que também trabalhou

37
Ar naldo Niskier

na elaboração da Enciclopédia Barsa, em 1964, em colaboração com Catherine B.


Avery. Outros lançamentos neste segmento foram o Pequeno Dicionário Enciclopé-
dico Koogan-Larousse e o Dicionário básico escolar.
A edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Academia
Brasileira de Letras, teve efetiva participação de Antônio Houaiss. Outro tra-
balho hercúleo desenvolvido por ele foi a organização do Acordo Ortográfico
de Unificação da Língua Portuguesa. A finalidade essencial é a simplificação
da escrita do nosso idioma, com um claro objetivo estratégico: postular a ofi-
cialização do Português como língua de trabalho da Organização das Nações
Unidas (ONU), o que eleva o nosso status internacional.
O filólogo também se destacou na área de estudos linguísticos, quando
promoveu o lançamento de diversas obras, das quais podemos destacar al-
gumas: Tentativa de descrição do sistema vocálico do português culto na área dita carioca,
dialetologia e ortofonia; Sugestões para uma política da língua; Elementos de bibliologia; A crise
de nossa língua de cultura; O português no Brasil; O que é língua? e A nova ortografia da
Língua Portuguesa. Sua grande obra, certamente, foi o Dicionário Houaiss, talvez o
mais completo da Língua Portuguesa, que ele deixou praticamente concluído.

ȄȄ A atuação na área cultural


Uma lembrança saudável que trago da boa convivência que tive com Antô-
nio Houaiss vem de suas participações em meu programa na TV Manchete,
o Debate em Manchete. Em abril de 1990, por exemplo, ao lado de Rodrigo Faria
Lima e do saudoso Walmor Chagas, ele já mostrava sua preocupação com os
caminhos que a nossa cultura estava trilhando, e que, na sua opinião, estava
sendo comprometida. Até hoje guardo a sua afirmação contundente:

A cultura é tudo o que a humanidade faz dentro de um contexto: é


transmissão, é produção e também é performância, tudo ao mesmo tempo.
A nossa cultura está sendo impotente para a modernidade.

Quis o destino que, anos depois, ele viesse a assumir o Ministério da


Cultura (MinC), no governo Itamar Franco, após o impeachment de Fernando

38
Um homem múltiplo

Collor. O MinC havia sido extinto, em abril de


1990, dando lugar à então Secretaria de Cultura.
E pior: numa canetada, Collor acabou com di-
versos órgãos representativos da cultura nacional,
reunindo-os no Instituto Brasileiro da Arte e Cul-
tura – IBAC.
Com a ascensão de Itamar Franco, veio a re-
criação do Ministério da Cultura, pela Lei n.º 8.490, de 19 de novembro de
1992, e as coisas voltaram ao seu devido lugar, com a participação efetiva de
Antônio Houaiss. Muitos consideram que a sua atuação na Pasta, não como
político do Partido Socialista Brasileiro (PSB), mas como intelectual, pode
não ter sido tão brilhante, exatamente pela criação de possíveis conflitos na
hora de tomada de posições. Mas, de 2 de outubro de 1992 a 1.º de setembro
de 1993, ele buscou reverter o quadro de indigência que o setor sofria, princi-
palmente nas atividades ligadas ao patrimônio histórico e artístico.
No fim, acabou saindo do governo, desiludido com a irrisória cota de
0,03% do Orçamento-Geral da União para a cultura. Mas deixou seu nome
marcado no Ministério que também teve outros nomes ilustres como José
Aparecido de Oliveira (o pioneiro), Sergio Paulo Rouanet (a quem sucedeu),
Aluísio Pimenta e Celso Furtado.

ȄȄ A tradução de Ulisses, de James Joyce


Uma das facetas mais lembradas de Houaiss é a tradução de Ulisses, de
James Joyce. Ele transpôs para o nosso idioma a magia verbal do grande autor
irlandês, quarenta e dois anos após a publicação do original. Todas as parti-
cularidades léxicas do estilo joyceano poderiam assustar, e até inibir, aqueles
que pensassem em verter a obra para a língua portuguesa. Mas este não foi o
caso de Antônio Houaiss, que cumpriu a tarefa em tempo hábil (menos de
um ano), tornando o livro uma referência para estudiosos, incorporando sin-
gularidades e detalhes específicos do idioma inglês, investindo na justaposição
de palavras e, ao mesmo tempo, formulando neologismos em português.

39
Ar naldo Niskier

Dizem que a carga horária dedicada ao trabalho passava de seis horas por
dia. Eis um exemplo da árdua tarefa de Antônio Houaiss, que mergulhou
completamente para entregar no prazo a tradução das mais de 260 mil
palavras da obra.
Segundo Augusto de Campos, a excelência do trabalho feito por Antônio
Houaiss residiu na sua radicalização, partindo para uma tradução “antinor-
mativa”:

Entre verter simplesmente ‘as ideias’ do texto, aclimatando-as ao ‘gê-


nio’ (ou fantasma) ‘da língua portuguesa’ e subverter o idioma para cor-
responder às invenções do original inglês, Houaiss optou por esta última
alternativa. E o fez, por vezes, com mais arrojo que os seus predecessores
(a clássica e bem cuidada versão francesa, revista pelo próprio Joyce é, sob
esse aspecto, bastante tímida).

ȄȄ A perseguição política
A carreira diplomática surgiu para alavancar uma carreira que já se prenun-
ciava vitoriosa. Mas nem tudo foram flores para o grande defensor da Língua
Portuguesa. Após dar expediente no Itamarati, foi nomeado para Washington,
em 1946, considerada por ele “a porta de ouro para a carreira”. Já nesta
época, sua opção política começava a incomodar alguns elementos, e a indica-
ção acabou sendo abortada. A opção foi seguir para Genebra, onde ficou até
1948. A partir daí, vieram República Dominicana e Grécia, em cuja capital,
Atenas, Houaiss teve o prazer de ficar até o início de 1953.
O círculo virtuoso foi quebrado com a acusação de existência de uma célula
comunista no Itamaraty, e houve um processo contra o filólogo, que foi coloca-
do em disponibilidade sem remuneração. Nessa época, o diplomata João Cabral
de Melo Neto também foi afetado pelo processo. Coube ao Supremo Tribunal
Federal acabar com a injustiça, e o Itamaraty teve que rever as punições.
Com a eleição de Jânio Quadros, foi nomeado para a delegação perma-
nente do Brasil nas Nações Unidas, onde integrou uma Comissão que tratava
do tema descolonização. Teoricamente, o Brasil era anticolonialista, mas na

40
Um homem múltiplo

prática contemporizava com uma série de coisas que contradiziam esse po-
sicionamento. Teve neste período como chefe de delegação Afonso Arinos.
Logo após essa experiência positiva, teve os direitos políticos suspensos por
dez anos, em 13 de junho de 1964, com a eclosão do movimento militar. Ele
conta com detalhes o imbróglio envolvendo esta fase triste de sua biografia no
livro A defesa. Foram ações lamentáveis que nos ajudam a entender “uma das
muitas feições assumidas no país pelo Poder durante a ausência do Império
da Lei”, como ele observou na introdução da obra.

ȄȄ A ligação saudável com a cerveja


Antônio Houaiss era um apreciador da cerveja, e, para eternizar essa re-
lação, nos legou o livro A cerveja e seus mistérios, contando a história da bebida
desde os seus primórdios até chegar aos tempos modernos. Ele nos mostrou
as referências feitas por Platão (a.C.) a um certo ‘licor de cereal’, e por Arquí-
lico (a.C.) ao que se dava o nome de “bryton de cevada”. Nos ensinou também
sobre a “cervisia” ou “cerevisia”, que os estudiosos encontraram em comen-
tários de Plínio, o Velho (d.C.), além de diversos testemunhos de experiências
longínquas relacionadas à bebida, como na Babilônia, há mais de 6 mil anos,
e também nos países africanos, hindus e persas.
Mas em relação à fabricação da bebida, ele fez questão de deixar bem claro:

No sentido estrito – até por disposições legais inequívocas – só é cerveja


a bebida elaborada com malte, água, lúpulo e levedo. Mas isso é algo novo
na história da cerveja.

Um fato interessante, também relacionado à cerveja, e que merece regis-


tro, é sobre a gestão de Antônio Houaiss à frente da Academia Brasileira de
Letras, durante o ano de 1996, na qual tive o prazer de exercer o cargo de
primeiro-secretário. A Revista Brasileira, editada pela ABL, sempre trazia em sua
quarta capa, naquele tempo, o anúncio de uma instituição financeira. Mas por
ocasião da presidência do grande filólogo, quem patrocinava a página nobre
da revista era uma cervejaria, considerada a “paixão nacional”. Até nesse mo-
mento ele se mostrou coerente com as suas convicções.

41
Ar naldo Niskier

ȄȄ O defensor da boa culinária


A gastronomia era outra paixão de Antônio Houaiss. Estudava com ca-
rinho as diversas variedades da comida brasileira, considerada por ele como
um dos itens culturais. A partir dessa relação com a boa culinária, escreveu os
livros Magia da cozinha e Receitas rápidas 81 receitas de (até) 18 minutos, resultado de
suas experiências como cozinheiro. Ficaram famosas as reuniões que promo-
via, onde se degustavam pratos atraentes e saborosos, com destaque para uma
das suas especialidades: a moqueca capixaba.
A sua ligação com a culinária data dos tempos de criança, quando cola-
borava com a sua mãe na preparação dos banquetes de fim semana, com a
família toda reunida em torno de sabores, ingredientes e receitas tradicionais
e gostosas. Essa atividade caseira foi responsável pela grande experiência que
ele passou a deter no ramo. Por esta razão, ele se gabava de ter a capacidade de
fazer diversos pratos ao mesmo tempo, para atender dezenas de pessoas, sem
nenhuma ajuda, e com um diferencial de fazer inveja a uma dona de casa ou
aos chefs de grandes restaurantes: deixava a cozinha limpíssima.
Com a sua atividade diplomática, passou a conhecer as diferentes cozi-
nhas do mundo, com seus pratos bem elaborados. Mas a culinária brasileira
sempre foi destacada por ele. E a recíproca também continua verdadeira em
relação a ele: até hoje existem no cardápio do Restaurante Rio Minho, na Rua
do Ouvidor, no Centro do Rio, as opções “cavaquinha à Antônio Houaiss”
ou “peixada à Antônio Houaiss, com açafrão e alho”. Uma homenagem ao
freguês assíduo que, inclusive, costumava preparar na cozinha do restaurante
algumas de suas especialidades para os amigos que o acompanhavam.

ȄȄ Um modelo pioneiro de autonomia estudantil


Foi na Escola Comercial Amaro Cavalcânti, no Largo do Machado, na Zona
Sul do Rio, que Antônio Houaiss viveu uma experiência produtiva e pioneira.
Ela existe até hoje, agora com o nome de Escola Estadual Amaro Cavalcânti.
Naquela época, foram criados conselhos estudantis, que detinham grandes po-
deres junto à administração. Além de supervisionar o desempenho dos alunos,

42
Um homem múltiplo

ajudavam aqueles cujas notas estavam baixas e até investiam na criação de cur-
sos suplementares e atividades extracurriculares. A novidade foi implantada por
Anísio Teixeira e Francisco Venancio Filho, com base no que era desenvolvido
em modelos norte-americanos do self-government (autogoverno) estudantil.
Por dois anos os alunos conviveram com os experimentos que realçavam a
autonomia estudantil, com a aprovação da diretora da escola, Maria Junqueira
Schmidt, uma seguidora da filosofia da Escola Nova, de John Dewey (e de
Anísio Teixeira). Só que, em 1935, ela foi transferida para outra
instituição, e as coisas mudaram totalmente. O novo diretor não
concordava com o que estava implantado, e Antônio Houaiss, que
liderava os estudantes, foi expulso da escola. A escola em peso ficou
solidária com o seu representante, e uma passeata foi organizada,
pedindo a readmissão do líder. Entrou em ação o educador Anísio
Teixeira, que, após uma reunião com o estudante, decidiu pela sua
readmissão, e também pela transferência da nova diretora. Esses bons tempos
assim foram relembrados por Antônio Houaiss:
Aproveitei extremamente a Escola do Comércio, da qual Anísio Teixeira,
Pascoal Leme e Maria Junqueira Schmidt faziam um laboratório, no bom
sentido. Uma experiência pioneira de autonomia escolar: podíamos modifi-
car o currículo, administrávamos a disciplina, fazíamos todas as reivindica-
ções e éramos os próprios censores das irregularidades. O sistema funcionou
bem. A sensatez era tanta que, por sensatez, chegávamos a fazer restrições à
nossa liberdade.

ȄȄ Dissecando a poesia brasileira


Apesar de ter-se destacado principalmente nos campos da Filologia e da Le-
xicografia, Antônio Houaiss surpreendeu quando se debruçou sobre a poesia bra-
sileira. Seu livro Seis poetas e um problema, que depois foi desdobrado em Drummond:
mais seis poetas e um problema, buscou analisar poetas marcantes da nossa literatura.
Sobre Carlos Drummond de Andrade, o autor realça a sua importância pa­
ra o surgimento do Modernismo, desempenhando o poeta mineiro “a função

43
Ar naldo Niskier

de cristalizador do movimento, pois nele é que a poesia brasileira contempo-


rânea atingiria a plenitude moderna, de que derivariam (no melhor sentido)
os melhores poetas subsequentes”.
Falando sobre a poesia de Gonçalves Dias, Antônio Houaiss destaca aspec-
tos arcaicos e inovadores, eruditos e populares, o que dificultava uma análise
mais simples e imediata.
A poesia de Manoel de Barros foi destacada na obra de Antônio Houaiss
por sua enorme racionalidade. Aliás, sempre que podia, o ex-presidente da
Academia Brasileira de Letras fazia questão de destacar a sua admiração e seu
amor pela obra do poeta mato-grossense.
A obra de João Cabral de Melo Neto mereceu uma atenção especial de
Houaiss, que analisou a fase inicial do autor de Morte e vida severina, e depois foi
mostrando a evolução do poeta pernambucano. Da mesma forma, Joaquim
Cardoso, engenheiro que realizou diversas parcerias com o arquiteto Oscar
Niemeyer, inclusive na construção de Brasília, também se destacava como poe­
ta, e teve sua obra revista em um dos capítulos do livro de Antônio Houaiss.
Autor do poema heroico-cômico O desertor das letras, o poeta Manuel Inácio da
Silva Alvarenga, que forma a chamada Plêiade Mineira (juntamente com Santa
Rita Durão, Cláudio da Costa, Basílio da Gama). Assim como a poesia concre-
ta, que Antônio Houaiss fez algumas objeções quando surgiu, nos anos 1950.

ȄȄ Socialismo: primeira e única opção política


Nos debates e na convivência com os amigos, Antônio Houaiss sempre de-
fendeu com unhas e dentes os seus ideais políticos, que passavam pela defesa
da implantação do socialismo. Entrevistado em 1990 pelo programa Roda
Viva (TV Cultura), quando todos discutiam o futuro político do mundo a
partir da “queda do muro de Berlim”, procurou mostrar que a essência do so-
cialismo não visava à solução específica para alguns países, mas sim a extensão
dos benefícios de uma vida social harmônica para todos. Por isso, continuava
a ser socialista, porque o programa da ideologia, na verdade, jamais havia sido
realizado e continuava a ser a condição para a sobrevivência da humanidade.

44
Um homem múltiplo

As palavras a seguir definem muito bem o seu fascínio pela causa:

“Esse meu socialismo deriva de uma convicção que tenho desde os onze
anos. Não acredito numa solução para o mundo que não seja nessa direção
e essa afirmação eu me reservo o direito de tê-la até morrer, ou ser morto
por causa dela.”

Sergio Paulo Rouanet, que teve uma convivência estreita com Antônio
Houaiss, inclusive no exterior, certa vez fez esta observação, abordando o seu
lado político:

Houaiss foi meu verdadeiro mentor intelectual. Minha cultura política


era vacilante. Meu socialismo tinha mais a ver com Sartre que com Marx.
Quando eu disse que achava os Manuscritos econômico-filosóficos, do jovem
Marx mais importantes que O capital, ele foi acometido pela ira dos justos
e chamou-me de revisionista.

Esse o grande intelectual brasileiro, que a ABL teve a honra de acolher e


hoje exaltar.

Referências
HOUAISS, Antônio. Cerveja e seus mistérios, A. Rio de Janeiro, Editora Salamandra,
1986.
_____. A defesa. Rio de Janeiro, Avenir Editora, 1979.
_____. Seis poetas e um problema. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura
(Serviço de Documentação), 1960.
_____. Drummond: mais seis poetas e um problema. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
JOYCE, James. Ulysses (tradução de Antônio Houaiss). Rio de Janeiro, Editora Civi-
lização Brasileira, 1965.
MONTELLO, Josué. Diário do entardecer. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991.
NISKIER, Arnaldo. Apocalipse pedagógico e outras crônicas. Rio de Janeiro, Academia Bra-
sileira de Letras, 2007.
PIÑON, Nélida (org.). Cem anos de cultura brasileira – Ciclo de conferências do I Centenário
da ABL. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2002.

45
Megarampa, 2009, São Paulo.
Centenário do Nascimento do
Ac a d ê m i c o A n t ô n i o H o ua i s s

Três momentos com


Antônio Houaiss
Evani ldo Cavalc a nte Becha r a Ocupante da
Cadeira 33
na Academia
Brasileira de
Letras.

F alar de Houaiss é falar de um amigo dileto. No meu caso,


um amigo dileto à distância, o que significa que ele não fa-
zia dessa distância um impedimento de me proporcionar grandes
oportunidades de trabalho, já que a nossa diferença de idade era
realmente acentuada.
Mas gostaria nesta tarde, no convívio desta sala em que sempre
esteve presente Antônio Houaiss, falar de três momentos da sua
carreira erudita. O primeiro momento foi nos albores das Faculda-
des de Letras criadas aqui no Brasil, primeiro em São Paulo, depois
no Rio de Janeiro, quando Antônio Houaiss, ao lado de Othon
Moacir Garcia e do filho de Antenor Nascentes, Olavo Nascentes,
se candidataram ao curso de latim. O ponto sorteado da prova es-
crita foi o alfabeto latino, e a banca examinadora deu aos candidatos

Sessão especial comemorativa do centenário de Antônio Houaiss, proferida na ABL, em


27 de agosto de 2015.

47
Evanildo Cavalcante Bechara

quatro horas para dissertação. No fim das quatro horas, faltando pouco para
terminar a prova, Houaiss chegava, depois de uma longa discussão de várias
páginas, em que dissertara sobre a origem de diversos alfabetos. Diante disto,
um dos componentes da banca examinadora quis anular sua prova, argumen-
tando que Houaiss não entrara no assunto proposto. Mas um dos colegas de
banca, não sei se Sousa da Silveira ou Ernesto Faria, ponderou que ele não
fugira do assunto, porque se um candidato passa quatro horas falando pro-
fundamente da história da invenção do alfabeto, imagine se ele tivesse mais
quatro horas para falar do alfabeto latino. Prevaleceu, no caso, a razão.
Por aí estamos vendo o grau de competência e erudição do Antônio Houaiss
ainda jovem, honrando o que aprendera, ao lado de grandes professores, dois
mentores da sua formação intelectual, Antenor Nascentes e José Oiticica.
E dessa competência e dessa convivência com estes dois mestres, mais tarde
vamos encontrar Houaiss brilhando em outros setores. Antenor Nascentes
e Oiticica foram os primeiros a trabalhar, em livro didático, o problema da
ortografia e da pronúncia, o ensino da fonética em seus reflexos na ortoepia,
chamando a atenção para os problemas naturais da fala. Isso levou o professor
de língua portuguesa a se comunicar com a direção da escola, ao detectar
certas dislalias, certos defeitos de fala que podem ser corrigidos hoje pelas
ciências que se desenvolveram neste sentido.
O segundo momento da carreira erudita de Antônio Houaiss está na sua
contribuição ao Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, realizado
em 1956, na Bahia. O Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada tinha
acontecido em 1936, em São Paulo, sob o estímulo e o entusiasmo do grande
escritor paulista Mário de Andrade. Este primeiro Congresso Brasileiro de
Língua Falada no Teatro se deve em grande parte ao prestígio, entusiasmo e
competência de Celso Cunha, outro ilustre acadêmico desta Casa. Para este
Congresso, Antônio Houaiss apresentou longo trabalho intitulado “Tentativa
de descrição do sistema vocálico do português culto na área dita carioca”, de
102 páginas, trabalho altamente elogiado por um dos grandes estudiosos de
fonética histórica portuguesa, o professor francês I. S Révah no seu parecer.
Infelizmente este trabalho morre nas páginas deste Congresso, porque têm

48
Três momentos com Antônio Houaiss

sido pouco os trabalhos de gramática portuguesa que levam em conta a co-


laboração e as pertinentes referências e soluções que Houaiss ofereceu neste
trabalho, como dizia D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, ao dificílimo e
finíssimo sistema vocálico da língua portuguesa.
Aí está a segunda presença erudita de Houaiss que também se manifesta
no seu Dicionário. Ele o começou no âmbito da Academia Brasileira de Letras,
que não tinha, até então, os recursos, nem um grupo de especialistas, como
tem hoje, para examinar e levar avante esse trabalho. O Dicionário Houaiss, assim
como o Dicionário Aurélio, também começado entre os muros desta Academia,
por problemas econômicos, foram publicados fora da Instituição.
Estas duas obras corrigem um primeiro engano em matéria de estudos
linguísticos dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, porque par-
tiam do pressuposto, pelo menos na opinião de Joaquim Nabuco, exposto no
discurso inicial, segundo o qual só cabia aos brasileiros o levantamento dos
brasileirismos. Em grande parte, a língua do Brasil é remanescente da língua
portuguesa que chegou trazida no século XVI. Sabemos, graças aos trabalhos
da geografia linguística em que os italianos foram realmente mestres extraor-
dinários, que as línguas transplantadas se caracterizam pela sua arcaicidade em
relação aos usos da metrópole. E o português do Brasil é, incontestavelmente,
a continuação pura do português trazido pelos nossos descobridores e colo-
nizadores, naturalmente mesclado com outras classes naturais, outros povos,
principalmente africanos, e os indígenas existentes no país. Naquela época,
tratar deste assunto era entrar em um terreno muito alagadiço porque, como
também hoje ocorre, ainda não fora estabelecida uma visão rigorosa daquilo
que podemos realmente atribuir o selo de brasileirismo a fatos linguísticos
correntes no Brasil.
A Academia Brasileira de Letras levou a sério a lição trazida pela Lexico-
grafia e sem muito alarde passou a preocupar-se, de fato, linguística e filolo-
gicamente com o português do Brasil, e não apenas com os brasileirismos. O
Dicionário do Aurélio saiu eminentemente literário, exemplificando as acepções
dos seus itens lexicais com textos extraídos da nossa literatura. Entra nas
minúcias das franjas semânticas em que o vocábulo aparece nos textos de

49
Evanildo Cavalcante Bechara

autores brasileiros e portugueses. Mas o Houaiss não. Houaiss fez um dicio-


nário histórico, isto é, um dicionário que procurou acompanhar o vocábulo
desde a sua primeira datação. E essas datações são sempre precárias, tendo
em vista não o problema de filologia e linguística, mas o da deficiência com
que os primeiros textos portugueses foram editados, tanto no Brasil como
em Portugal. Os dois dicionários se completam e seus dois grandes mestres
levam a Academia Brasileira de Letras, indiretamente, a seguir no rumo certo,
já mais ou menos traçado por Mário de Alencar, e seguido por Laudelino
Freire, que promoveu um dicionário, ainda hoje digno de atenção, publicado
na década de 1940. Temos que corrigir essa primeira intenção, revelada no
discurso inaugural de Joaquim Nabuco, de que só cabe aos brasileiros o levan-
tamento dos brasileirismos e que os brasileiros precisam estudar a língua, nas
lições dos gramáticos, dos filólogos e dos linguistas portugueses. Cândido de
Figueiredo, no prefácio do seu Dicionário, desfaz essa declaração de Joaquim
Nabuco, afirmando abertamente que os portugueses aprenderam gramática
com os textos elaborados pelos brasileiros. Após 1887, apareceram as grandes
gramáticas de revolução linguística, baseadas em uma metodologia histórico-
-comparativa, obras ainda hoje lidas com interesse e atenção como as de João
Ribeiro, Pacheco da Silva Júnior, Lameira de Andrade e de Maximino Maciel.
O Setor de Lexicologia e Lexicografia da Academia Brasileira de Letras,
também presidido pelo querido confrade Eduardo Portella, colocará a Língua
Portuguesa ao lado das grandes línguas internacionais. Porque as grandes
línguas internacionais têm um dicionário do seu grande escritor: os ingle-
ses ostentam dicionários de Shakespeare; os alemães de Goethe; a Espanha,
o dicionário de Cervantes e, dentro de algum tempo, a ABL apresentará o
levantamento de um dicionário, feito dentro dos princípios mais modernos
da Lexicografia, que é o Dicionário de Machado de Assis. Este dicionário honra
a tradição iniciada na Academia pelos dicionários de Laudelino Freire e de
Aurélio Buarque de Holanda, e, principalmente, pelo dicionário de Antônio
Houaiss. Homenageando Antônio Houaiss, estamos homenageando também
todo este filão de contributo.

50
Centenário do Nascimento do
Ac a d ê m i c o A n t ô n i o H o ua i s s

Antônio Houaiss

Cí cero Sa nd ro ni Ocupante
da Cadeira 6
na Academia
Brasileira de
Letras.

O jornalista e escritor Otto Lara Resende publicou um exce-


lente livro de contos com o título O lado humano, e estas pa-
lavras passaram a integrar o léxico da imprensa quando o jornalista
abordava os aspectos da vida pessoal do entrevistado ou descrevia
sua personalidade pelo lado humano. Os confrades que me antecede-
ram abordaram não só a amizade que os ligava a Houaiss, mas co-
locaram em evidência sua exemplar atividade de professor, linguista,
diplomata, tradutor, lexicógrafo, lexicólogo, enciclopedista, um dos
maiores filólogos brasileiros especialista em ecdótica e um extraor-
dinário ser humano que encantou todos os que o conheceram. Volto
ao lado humano, tema deste texto e começo pelo fim.
Embora esperada, devido à debilidade de sua saúde quando se in-
ternou no Hospital Silvestre, a morte de Antônio Houaiss deixou-
-nos a todos, familiares, amigos e discípulos, órfãos desconsolados.

Sessão especial comemorativa do centenário de Antônio Houaiss, proferida na ABL, em


27 de agosto de 2015.

51
Cícero Sandroni

Órfãos de um pai que nos orientou, ensinou, e nos deu, durante toda a vida,
exemplo de caráter, retidão, amor ao trabalho e firmeza nas convicções po-
líticas as quais jamais abandonou e pelas quais sofreu graves e mesquinhas
perseguições políticas.
Não fomos apenas nós, seus amigos, que o perdemos. País carente de inte-
ligência, deserto de homens e ideias na opinião de Osvaldo Aranha, o Brasil
não se deu conta do imenso vazio que a ausência de Antônio Houaiss abriu
no nosso panorama cultural, um dos raros brasileiros do nosso tempo, cuja
presença e ação repercutiram em todo o território nacional e além-fronteiras,
especialmente na defesa da lusofonia.
Austregésilo de Athayde costumava dizer que quando a Academia precisava
de um trabalho bem-feito, realizado a tempo e a hora, entregava-o a Houaiss.
Ele jamais recusou – e o fazia graciosamente – qualquer tarefa para a insti-
tuição que o recebeu, pelos seus inegáveis méritos e também para reparar a
violência que sofreu em 1964, quando ele e tantos outros grandes brasileiros
perderam seus direitos civis e políticos.
Sua permanente disponibilidade para o trabalho resultava da combinação
da grande capacidade intelectual, a cultura enciclopédica colocada ao serviço
do seu semelhante, e a visão política voltada para o social, sempre disposto a
distribuir o generoso leite da bondade humana. Do ponto de vista genético,
poder-se-ia dizer – e eu lhe disse, um dia, para seu espanto – que ele era uma
espécie de ser mutante, lembrando às vezes os ETs avançadíssimos, criados
pela imaginação dos escritores de ficção-científica.
Na sua cabeça, no formato de um triângulo equilátero colocado de cabeça
para baixo, o vértice partia do queixo pontudo e os lados se alargavam até for-
mar a enorme caixa craniana, onde os neurônios do cérebro se interligavam em
milhões de conexões e sinapses, a ampla testa, com os occipitais projetando-se
para frente. No próximo milênio, se a transformação física da humanidade se
der em direção à inteligência, e não à barbárie, a espécie humana provavelmen-
te terá a cabeça parecida com a de Houaiss.
Desde a juventude, todo o saber, a cultura humanística mesclada com ge-
nerosidade e afeto, conjunto de qualidades sempre ampliadas a cada momento

52
Antônio Houaiss

de sua vida, ele compartilhava com os próximos, e nunca, por saber mais, quis
impor ideias políticas aos discípulos. Quando estudava para o concurso de
ingresso ao Itamaraty, concordou em preparar, ao mesmo tempo, um grupo
de colegas participantes do mesmo exame. Passou, e assim também os com-
panheiros de estudos.
Jamais abdicou de suas ideias de homem de esquerda. E por ser fiel a elas
pagou caro seu tributo à intolerância, ao ver sua carreira golpeada duas vezes:
a primeira no vergonhoso episódio de caça às bruxas de 1951, quando ele e
outros jovens diplomatas – entre os quais João Cabral de Melo Neto – foram
demitidos do Itamaraty sob acusação de organizarem na Casa de Rio Branco
uma célula do PCB. Amargaram alguns anos fora da carreira, mas a Justiça por
fim terminou por reintegrá-los aos quadros da diplomacia
brasileira.
Em 1964, foi aposentado, e seus direitos políticos fo-
ram cassados por dez anos. De novo, a caça às bruxas, que
infestou o Brasil durante tanto tempo, teria contribuído
para a decisão de cassá-lo e aposentá-lo, pressão diplomá-
tica do governo de Portugal, à época chefiado pelo ditador
Salazar, por ter sido ele o diplomata encarregado de ler na Assembleia da
ONU a nota brasileira contra a política colonialista de Portugal na África e
na Ásia. Naquela ocasião, embora concordasse em gênero, número e grau com
a posição brasileira, Houaiss era apenas um funcionário público incumbido
de informar a posição de Brasília, adotada no governo Jânio Quadros pelo
chanceler Afonso Arinos, e reiterada, a seguir, no governo de João Goulart,
pelos ministros San Thiago Dantas, Evandro Lins e Silva e Araújo Castro.
Teria irritado as cortes de Lisboa salazarista o fato de Houaiss, sempre isento
e altamente profissional no cumprimento das instruções recebidas, antes de
ler a nota com o voto brasileiro contra a colonialismo português na África,
ter afirmado, sponte sua, que o fazia com grande honra e grande prazer. Nos
idos de 1964, tempos do terror obscurantista, os salazaristas deram o troco:
pediram aos militares a cabeça do arrogante diplomata que ousava ler com
honra e prazer a nota anticolonialista.

53
Cícero Sandroni

A perda do emprego e dos direitos políticos não o abateu. Convocado por


Ênio Silveira, entregou-se ao trabalho de traduzir o Ulisses, de James Joyce, ta-
refa terminada em menos de um ano. Em seguida, prosseguiu no seu trabalho
de filólogo o de enciclopedista, preparando vários dicionários bilíngues, e as
monumentais enciclopédias Delta-Larrousse e Mirador, hoje fontes de consulta
obrigatória para leitores e pesquisadores.
Muito se escreveu e ainda se escreverá sobre a obra e a vida de Houaiss e
sua influência no cenário brasileiro no último meio século. Mas o excelente
artigo de Tarcísio Padilha publicado no Jornal do Commercio, por ocasião de sua
morte, com referência à sua posição de pós-agnóstico e pré-cristão levou-me
a reler entrevista por ele concedida à Revista de Domingo, do Jornal do Brasil,
em setembro de 1977. O título da entrevista, “Houaiss a um passo da trans-
cendência”, indicava o assunto tratado nas perguntas e respostas: sua crise
espiritual.
Naquela peça jornalística, Houaiss revelou que, na adolescência, pensara
em ingressar na vida sacerdotal, certo de estar ungido pela vocação religiosa.
No entanto, outros interesses intelectuais e o despertar do desejo sexual o
desviaram do caminho, e o ponto final foi dado pelo pai. Abordado por sa-
cerdote maronita que sugeriu a possibilidade de levar o jovem Antônio para
o serviço de Deus, o velho Houaiss deu um murro na mesa: “Meu filho não
entrará para um seminário antes de conhecer mulher!”
O jovem Houaiss deu por encerrada sua crise espiritual e mergulhou no
século. Leitor ávido, devorava os livros e desde cedo seu lema era in angello cum
libello. Se não estava lendo, estudando ou ensinando, ou estava na praia, exerci-
tando o seu corpo pequeno, mas forte e ágil, ou então namorando. E entre as
namoradas, encontrou a inesquecível Ruth, que elegeu para sua companheira.
A dúvida sobre o encontro dos dois ainda persiste: Antônio escolheu Rute
ou foi por ela escolhido? O certo é que formaram um casal extremamente
entrosado, numa aliança à qual não faltava, por parte dela, uma ponta de
ironia crítica e ácida, quando na sua opinião, ele involuntariamente exibia sua
enorme cultura. Uma crítica cum grano salis, como diria o próprio Houaiss. Por
exemplo: diante da capa da já citada Revista de Domingo toda tomada pela

54
Antônio Houaiss

sua face, como se fosse um astro do cinema, ela comentou, sorrindo: “Agora
só falta ser capa da revista Amiga!”
Na entrevista, Houaiss afirmava:

“A Igreja para a qual eu mais tendo é a católica, a das minhas origens


religiosas.
(...) é dessa igreja que estou vendo saírem mártires vanguardistas da me-
lhor qualidade, propondo-se mesmo ao sacrifício pessoal, se necessário for,
para a renovação do mundo.”

Alceu Amoroso Lima comentou a entrevista em artigo publicado no Jornal


do Brasil de 16/12/77. Depois de lastimar a ausência de outros pensadores
cristãos que influenciassem a opinião pública, através de artigos nos jornais,
conferências e presença na vida cultural e pública do país, ele se rejubila:

“... e uma grande alegria para nós, católicos, ver subir no horizonte uma
nova estrela que é hoje apenas uma esperança e poderá ser, em pouco, um
astro autêntico de primeira grandeza (...) Essa esperança nos acode ao ler a
entrevista que Antônio Houaiss, nosso maior humanista vivo, concedeu à
Revista de Domingo do JB (...)

E mais adiante:

“Basta ler o título dessa memorável entrevista: ‘Houaiss a um passo da


transcendência” para apreciarmos, no seu devido valor, a importância des-
sa declaração pública que não transpunha os umbrais de uma intimidade,
que é o valor máximo de nossas atitudes em face dos valores supremos da
existência; mas reveladora de que esse vaivém da Inteligência em face da Fé
nada tem de comum com a Verdade em si. E muito menos com o destino
dessa mensagem única e suprema que, da sinagoga passou à Igreja e conti-
nua a trabalhar no silêncio de todas as consciências que cherchent en gemissant,
como dizia Pascal, dentro ou fora de seu recinto. E que não faz diferença
alguma entre cultos e incultos, entre sábios e simples, já que é praticamente

55
Cícero Sandroni

o terreno comum em que uns e outros aparentemente tão distantes entre si


podem encontrar-se em comunidade fraterna.”

Ao declarar que pretendia seguir sozinho nas angústias de sua crise reli-
giosa, Houaiss talvez tenha inibido a ação dos que poderiam ajudá-lo numa
travessia em águas profundas. É verdade que vinha com a advertência: que o
deixassem sozinho no entrevisto caminho à conversão. Mas soava também
quase como um cri du cœur, um pedido angustiado a alguém, na hierarquia ou
no laicato, para um diálogo fraterno, uma discussão sobre suas dúvidas reli-
giosas. Não tenho informações sobre se foi atendido; mas sei que prosseguiu
em suas leituras de teólogos contemporâneos e nos últimos dias, como se
sabe, afirmou ser um pós-agnóstico e um pré-cristão.
Há muito ainda que falar sobre Houaiss, um mundo que o espaço deste
momento não pode abranger. Sua cadeira, na Academia, foi considerada por
seu antecessor, Álvaro Lins, como a Cadeira Nacionalista. Fundada por Sílvio
Romero, tinha como patrono Hipólito José da Costa, Roquette-Pinto, Álvaro
Lins que, evidentemente, não viu sua sucessão, mas teria ficado muito satis-
feito com a eleição de Antônio Houaiss. Comentando o assunto com o Dr.
Barbosa Lima Sobrinho, disse-me ele:
– Bem, agora, como estou aqui, agora são duas!
Vale a pena lembrar também que neste último decênio de sua vida, Houaiss,
apesar de enfraquecido fisicamente, prosseguiu no trabalho intelectual diuturno
e na prática política consoante com suas ideias. Jamais foi um socialista utópico,
denominação, como se sabe, usada para designar os pensadores socialistas que
antecederam a Marx. Seu ideal socialista estava voltado para a prática e a realidade.
Com a disseminação da cultura, com o combate à ignorância, com o testemunho
permanente em defesa da democracia, assinando manifestos, articulando movi-
mentos de resistência ou em conferências públicas combateu o bom combate da
luta contra a exploração e pela instauração de um regime baseado na justiça social.
Membro do Partido Socialista Brasileiro, disputou a vice-prefeitura da ci-
dade e a bandeira do PSB também cobria o seu esquife na Academia. Serviu
ao país como ministro da Cultura no governo Itamar Franco, quando sua

56
Antônio Houaiss

administração reconstruiu os escombros deixados pelo governo Collor na área


cultural. E logo a seguir presidente da Academia Brasileira de Letras, que teve
de abandonar no seu último terço, por problemas de saúde.
Nós, jornalistas, compartilhamos a honra de tê-lo como nosso companhei-
ro no Conselho Administrativo da ABI, sob a Presidência de Mário Martins.
Barbosa Lima Sobrinho escolheu-o para integrar a chapa não só por ter sido
vigoroso editorialista do Correio da Manhã, na época em que o jornal era a única
voz a condenar o golpe de 1964, e manter assídua colaboração com jornais e
revistas do país, mas também, a exemplo do que fez a ABL, para reparar uma
clamarosa injustiça.
Trabalhador infatigável, necessitava de poucas horas de sono para o repou-
so, mas tinha um princípio do qual não abria mão: jamais aceitar emprego que
não lhe desse duas horas para o almoço. Durante muito tempo seu restaurante
preferido foi o Rio Minho – casa secular, também preferida do Barão do Rio
Branco –, onde reunia os amigos semanalmente e durante os quais sua cultura
enciclopédica discreteava para lições de gastronomia. Nos últimos tempos,
transferiu-se, com os amigos, para o Albamar. Jamais foi um glutão; comer,
ato indispensável à preservação da vida, para ele transformava-se num rito,
quase uma celebração e, sem dúvida, uma das delícias da vida.
Gostava de reunir amigos para almoços e jantares em sua casa, na Lagoa,
que, com frequência, ele mesmo preparava. E invariavelmente, antes da refei-
ção, explicava aos convivas os pratos – geralmente da cozinha sírio-libanesa
– que seriam servidos. Presente a um desses ágapes, Jaguar comentou: “É o
primeiro almoço com prefácio a que compareço.”
Todo o saber que acumulou no amplo crânio e continuava a acumular a cada
momento de sua vida, até a internação hospitalar definitiva, não servia apenas à
fruição pessoal. Desde a juventude ele o compartilhava com os próximos, sem
jamais cobrar pelas aulas, ou, por saber mais, querer impor suas ideias políticas.
Mas jamais abdicou de suas ideias de homem de esquerda. E por ser fiel a elas
pagou caro seu tributo à intolerância anticomunista, ao ver sua carreira golpea­
da duas vezes: a primeira no vergonhoso episódio de caça às bruxas de 1951,
quando ele e outros jovens diplomatas – entre os quais João Cabral de Melo

57
Cícero Sandroni

Neto – foram demitidos do Itamaraty sob acusação de organizarem na Casa de


Rio Branco uma célula do PCB. Amargaram alguns anos fora da carreira, mas a
Justiça por fim terminou por reintegrá-los aos quadros da diplomacia brasileira.
Ao fim da vida, dedicou-se à sua obra magna, o hoje famoso Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa. Não teve forças para concluir a obra, tarefa reali-
zada pela equipe coordenada por seu sobrinho, Mauro Villar. E para concluir
devo dizer que, embora amigos, Millôr Fernandes, humanista/humorista,
satírico, desenhista iconoclasta, e bom bebedor de uísque, jamais poupou
Houaiss por sua atuação (excelente na minha opinião), no Ministério da Cul-
tura e até ensaiou críticas ao dicionário, ainda não publicado. Após a morte
de Houaiss, e ao reconhecer o seu valor, disse a Luiz Gravatá, seu amigo de
todas as horas, e este me contou: “Millôr se arrependeu e confessou que o
dicionário de Houaiss era uma obra-prima da lexicografria brasileira.”

58
Centenário do Nascimento do
Ac a d ê m i c o A n t ô n i o H o ua i s s

Um tributo afetivo

Ana M a r i a M acha d o Ocupante


da Cadeira 1
na Academia
Brasileira de
Letras.

N esta sessão que celebra o centenário de Antônio Houaiss,


seus dotes intelectuais e morais, assim como sua coerência
política, já foram destacados pelos que me precederam. Então, asso-
cio-me à louvação feita, trazendo uma palavra simples, meramente
de afeto por alguém que me marcou muito.
Antônio Houaiss foi muito amigo de meu pai, e por isso come-
cei a conviver com ele e Ruth quando ainda era adolescente. Era
fascinada pela brilhante inteligência e pela finura do casal, princi-
palmente por ela, um modelo de mulher que se apresentava como
um ideal para a menina que eu era. Sem levar em consideração a
diferença de idade, Antônio sempre conversava muito comigo, me
ouvia com atenção e consideração, e com isso me estimulava, como
poucas pessoas fizeram. Quando ele ainda era diplomata e servia na

Sessão especial comemorativa do centenário de Antônio Houaiss, proferida na ABL, em


27 de agosto de 2015.

59
Ana Maria Machado

missão do Brasil junto à ONU, fui fazer um curso em Nova York, onde passei
uma temporada um pouco longa e convivemos muito, muito de perto. Ele me
aconselhava sobre o que eu devia ver e explorar na cidade, contextualizando
os detalhes, iluminando os significados da experiência que eu estava vivendo.
Desde então, por várias vezes foi meu guia, meu mentor, guru e confidente,
mestre e amigo.
Sentia-me tão à vontade com ele que ousava questioná-lo ou discordar sem
qualquer cerimônia, com irreverência juvenil. Graças a isso, foi Houaiss quem,
pela primeira vez, me abriu os olhos para o que podia ser a Academia Brasileira
de Letras. Quando ele se candidatou a uma vaga na ABL, fui pedir explicações,
tomar satisfação dele, porque considerava uma opção imperdoável de conser-
vadorismo. Como podia me decepcionar daquela maneira? Pacientemente, ele
me falou da sua determinação em fazer o dicionário com que tanto sonhava,
havia tanto tempo. E eu sabia, porque ele já tinha conversado sobre isso comigo.
Era um dicionário que custaria muito dinheiro para ser feito, principalmente
porque Antônio Houaiss fazia questão de ter uma equipe de excelência, e para
ter uma equipe de excelência, queria que ela fosse bem paga. Além disso, seria
muito mais fácil e rápido se pudesse usar um equipamento novo que estava sur-
gindo, de que ele tinha ouvido falar e que no Brasil só havia na PUC. Tratava-se
de – um luxo, na época. Mas era muito caro, não era tarefa para um indivíduo
isolado, e ele fazia questão de se manter distante do circuito oficial, sem depen-
der do governo para nada. Antônio Houaiss via a Academia como uma grande
instituição autônoma, capaz e competente, onde ele poderia ao mesmo tempo
ter total independência e prestígio para a obtenção de recursos destinados a
um projeto de tamanha monta para a língua portuguesa e a cultura brasileira.
Compreendi então seu ponto de vista e, com a presunção que os jovens às vezes
exibem, “relevei” sua vontade de entrar para a Academia e a sua candidatura, em
nome desse ideal de autonomia que pela primeira vez se mostrava para mim. A
partir daí, passei a olhar a Academia de outro ângulo, procurando ver as suas
potencialidades, muito além da imagem estereotipada que eu tinha.
Nessa época, início dos anos 1970, enquanto eu estava no exílio, Houaiss
se dedicava à coordenação da versão brasileira da Enciclopédia Larousse, que abriu

60
Um tributo afetivo

possibilidades de trabalho para tantos intelectuais desempregados, perseguidos


e na lista negra. No início desse processo, havia muito a negociar com os sócios
franceses, o que fazia Houaiss ir a Paris com regularidade. Mesmo que fosse
apenas por poucos dias, ele sempre reservava um tempo para um encontro cari-
nhoso com os dois jovens casais que adotara – meu marido e eu, e José Almino
Alencar e Cristina, filha do Acadêmico Francisco de Assis Barbosa. Para nós,
cada vinda dele a Paris era uma festa. Quando ele chegava, telefonávamo-nos e
íamos correndo encontrá-lo. Vivía­mos como estudantes exilados, com muito
pouco dinheiro, numa pindaíba de fazer dó, e Antônio escolhia a dedo algum
bistrozinho simples, que não nos intimidasse pelo ambiente de luxo, mas servis-
se comidinhas deliciosas. E ele então selecionava algum
excelente vinho que ia bem com a comida, nos ensinando
esse requinte, além do prazer da sua companhia que era o
motivo da festa. Visivelmente, ele caprichava. Tinha pra-
zer em nos guiar por caminhos gastronômicos e enólogos
preciosos, enquanto nos punha a par das últimas notícias
do Brasil, nem sempre tão saborosas, sobretudo das que
só podiam ser murmuradas entre amigos, das que não
saíam nos jornais censurados, nem tinham vez na cautelosa correspondência
familiar, sempre sujeita a ser interceptada e lida por olhares invasores.
A par dessa acolhida paterna, eu tinha sempre uma sessão de trabalho
com Antônio Houaiss. Logo que soube que ele passaria a vir à França com
regularidade, pedi-lhe que funcionasse como orientador não oficial da tese
que eu preparava sobre Guimarães Rosa. É claro que eu já tinha a luminosa
orientação de Roland Barthes, mas também precisava ser guiada por um men-
tor brasileiro exigente, conhecedor de nossa cultura e nossa língua. E ninguém
melhor que Antônio Houaiss, que aceitou com carinho e entusiasmo. Levava
a cópia do que eu já escrevera, anotava suas observações, bancava o advogado
do diabo, questionava sem qualquer paternalismo cada aporte meu, trazia
livros e artigos que pudessem me interessar, recém-publicados ou que eu não
conhecia. Depois, quando finalmente entreguei o trabalho e fui aprovada na
França, ele não sossegou, me cobrando sempre, enquanto não o traduzi para

61
Ana Maria Machado

o português e lhe dei uma cópia. Quando voltei ao Brasil, ele levou o texto
para a editora Imago, escreveu um brilhante posfácio e foi assim que publiquei
O recado do nome, meu primeiro livro. Devo isso a ele também.
Em meu regresso, trabalhei com Antônio Houaiss para a enciclopédia.
Teria dezenas de histórias boas a contar desse tempo, mas não é o caso. E
também histórias de um tempo em que ele se retirou um pouco, alugou uma
casinha numa vila de pescadores no Espírito Santo, bem ao lado de meus pais,
que moravam lá. Depois, mais tarde, vim a ser quase vizinha sua no bairro
da Lagoa – e então acrescentei uma proximidade filial, de frequentação quase
cotidiana de sua casa onde, numa espécie de ginástica mental, entre conversas
fascinantes e enriquecedoras, eu ajudava Ruth e ele a montar intermináveis e
sucessivos quebra-cabeças de centenas de peças, que levavam semanas ocupan-
do metade de sua enorme mesa de jantar.
Cidadão sempre atuante, houve um momento em que ele era, ao mesmo
tempo, síndico do prédio em que morava, presidente do Sindicato dos Es-
critores, um dos diretores do CEBRADE, o Centro Brasil Democrático, e
membro do Conselho da ABI – isso antes de ser presidente desta Casa, onde
infelizmente não chegamos a conviver. Aliás, quando ele presidiu o Sindicato
dos Escritores, fiz parte da sua chapa, ao lado de Rubem Fonseca e Darcy
Ribeiro, o que me deu a chance única e maravilhosa de conviver com essa
santíssima trindade da nossa cultura.
Acho que não passa um dia em que eu não lembre Antônio Houaiss, ou
alguma coisa que tenha aprendido com ele, sempre com saudade. E me alegro
em festejá-lo hoje na Academia que ele tanto valorizou.

62
R i o d e Ja n e i r o , 4 5 0 a n o s

Os tempos do Rio

José Muri lo d e C a rva l ho Ocupante


da Cadeira 5
na Academia
Brasileira de
Letras.

ȄȄ Tempo 1
Rio, presente da natureza
Habent sua fata libelli, “Os livros têm seu destino”, disse Terenciano
Mauro há 18 séculos. Poderíamos, talvez, dizer a mesma coisa de
algumas cidades: habent sua fata urbes. O futuro do Rio de Janeiro
começou a ser definido no que chamo de tempo 1 da cidade, na
era cenozoica, período terciário, época do paleoceno, há cerca de
70 milhões de anos. Nessa época, a parte da Terra onde hoje se
localiza o Brasil começou a se afastar do continente africano. Da fa-
lha resultante, segundo os geólogos, surgiram os três maciços, com
destaque para o da Tijuca, o mais antigo deles. Deste maciço fazem
partes os morros e ilhas (há três mil anos, o Pão de Açúcar era uma
ilha), como a Pedra da Gávea, o Dona Marta, o Pão de Açúcar, a
Vista Chinesa, os Picos do Corcovado, e do Sumaré, o Alto das

Conferência proferida na ABL, em 5 de maio de 2015.

63
José Murilo de Carvalho

Paineiras, o morro da Mangueira etc. Da falha geológica, e empurradas por


forças tectônicas, surgiram as montanhas que desenham o arcabouço físico da
região e que fazem do Rio de Janeiro uma cidade única no mundo em termos
de beleza natural. Suas montanhas cobertas de florestas, espremidas à beira-
-mar, combinando o azul das águas ao verde das matas e ao negro das rochas,
causaram espanto a todos os que as viram pela primeira vez. Em termos de
esplendor natural, nenhuma outra grande cidade a ela se compara. É bonita
por natureza.

ȄȄ Tempo 2
O Rio português
O tempo 2 tem data precisa, aquela que define a celebração dos 450 anos.
Trata-se do ano de 1565. Antes dele, há uns quatro mil anos, andaram por
aqui os sambaquieiros, que poucos traços deixaram. Por volta do ano 1.000,
chegaram à Guanabara os Tupis que, no início do século XVI se dividiam em
duas nações rivais, os Tupinambás, de que eram parte os Tamoios, e os tupini-
quins. Da disputa entre os dois grupos, aproveitaram-se franceses e portugue-
ses que aqui aportaram no grande movimento da expansão europeia. Vindos
de São Vicente, os portugueses aliaram-se aos Tupiniquins. No esforço de
criar sua França Antártica, Villegagnon aliou-se aos Tupinambás, em relação
aos quais, segundo o insuspeito Mem de Sá, “era liberal ao extremo e fazia-
-lhes muita justiça”.
A disputa indígena viu-se envolvida em outra muito maior que dividia os
povos europeus no início de sua expansão colonialista. Levaram a melhor
portugueses e Tupiniquins, resultando da luta a destruição da cidade de Hen-
riville, situada à altura do morro da Glória na praia do Flamengo, e a criação,
por Estácio de Sá, da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, há 450 anos.
Os Tamoios foram dizimados pela peste e pela guerra. Os poucos restantes
foram escravizados. Tudo com a bênção de Anchieta, que em seu Auto de São
Lourenço, referindo-se a chefes Tamoios esbravejou: “Guaixará seja queimado,/

64
Os tempos do Rio

Bonita por natureza.

Entre o mar, morros e lagoas.

65
José Murilo de Carvalho

Aimberé vá para o exílio,/Saravaia condenado!”. A imagem dos Tamoios foi


recuperada pelo romantismo brasileiro como símbolo da nacionalidade. Tes-
temunha disso são o poema épico intitulado “A Confederação dos Tamoios”,
de Domingos José Gonçalves de Magalhães, escrito em 1856, e o quadro de
Rodolfo Amoedo “O último Tamoio”. A violência esteve na origem da cida-
de, indiferente à beleza do palco natural em que se deu. Assim entrou o Rio
de Janeiro para a história.
A aparência do Rio logo após a fundação nos é fornecida pelo mapa de
Luís Teixeira, feito na década de 1570. É a primeira representação gráfica
da cidade, que não passava então de um pequeno ponto, perdido entre rios,
ilhas, pântanos e montanhas, dependurada no que depois se chamou morro
do Castelo.

O chefe Tamoio, Cunhambebe, pai, de Angra dos Reis, “um grande rei selvagem”,
segundo André Thevet.

66
Os tempos do Rio

O último Tamoio, quadro de Rodolfo Amoedo, 1883.

Primeiro mapa da cidade, Luís Teixeira, 1573-78.

67
José Murilo de Carvalho

ȄȄ Tempo 3
O Rio “mineiro”
O tempo 3 também possui data precisa, 1763. Após a fundação, a cidade
sobreviveu mediocremente por cerca de 200 anos. Bonita de ver, era ruim de
viver. O morro onde se dependurava era cercado, de um lado, pelo mar, dos
outros lados, por lagoas, pântanos e florestas conquistados aos poucos por
drenagens, aterros e derrubadas, em zigue-zague entre os morros de São Ben-
to, da Conceição e de Santo Antônio. Derrotados os Tupinambás, afastada a
amea­ça francesa em 1567, a Cidade de São Sebastião apenas sobrevivia. As
coisas só começaram a mudar com outro impacto externo. Na última década
do século XVII, graças à audácia dos bandeirantes paulistas, foi descoberto
o ouro e começou sua mineração em grande escala no território que logo se
chamou de Minas Gerais, então parte da capitania de São Paulo. A descoberta
atraiu multidões para as Minas, provenientes de São Paulo, Bahia e Portugal.
Em 30 anos, as Minas já contavam com 250 mil habitantes. Ligadas de início
ao Rio pelo Caminho Velho de Angra dos Reis, que se percorria em três me-
ses, elas intensificaram sua relação com a cidade após a abertura do Caminho
Novo em 1707, que reduziu o tempo de viagem a um mês. Surgiu o Cais dos
Mineiros, de onde se viajava até o Porto de Estrela no fundo da baía para daí
subir a serra de Petrópolis e enveredar para as Minas, seguindo o percurso que
se faz hoje por estrada de rodagem.
A cidade ganhou vida nova como entreposto comercial. Recebia ouro e
diamantes das Minas, encaminhava-os a Portugal de onde trazia todo tipo de
mercadoria que reenviava para as Minas. O impacto da descoberta do ouro
afetou toda a colônia, cujo centro econômico começou a se deslocar para o
Sul, onde o porto do Rio passou a concentrar o grande comércio. A Casa da
Moeda, localizada na capital, Salvador, foi deslocada para a cidade. Em 1763,
deu-se o fato decisivo para a história da cidade: a transferência da sede do
vice-reinado. A partir dessa data, e por 197 anos, quase dois séculos, o Rio
de Janeiro foi, sucessivamente, capital do vice-reinado, do Reino Unido, do
Império e da República.

68
Os tempos do Rio

Caminho Velho e Caminho Novo, atual Estrada Real.

O Cais dos Mineiros, perto de onde é hoje o 1.º Distrito Naval.

69
José Murilo de Carvalho

O período “mineiro” do Rio durou cerca de 110 anos, 45 dos quais


como capital do vice-reinado. Nele continuou a expansão do espaço urbano e
foram construídas obras que se tornaram parte do patrimônio arquitetôni-
co da cidade. A maioria delas se deveu à atuação de Gomes Freire de Andra-
de, que foi governador da capitania durante 30 anos, de 1733 a 1763. Duas
se destacam. A primeira é o Aqueduto da Carioca, concluído por Gomes
Freire em 1750, ligando o morro do Desterro ao de Santo Antônio. A obra
resolveu o sério problema de abastecimento de água potável, ao encanar o
Rio da Carioca e levar suas águas até o atual Largo da Carioca, onde um
chafariz de 16 bicas de bronze matava a sede da cidade. O outro foi a Casa
dos Governadores, concluída em 1743, depois transformada em palácio
dos vice-reis e mais tarde em Paço Imperial. À sua frente, Mestre Valentim
construiu o chafariz que usava a água trazida pelo aqueduto da Carioca para
abastecer os navios.

Carta topográfica da cidade, encomendada por Gomes Freire, 1750.

70
Os tempos do Rio

Aqueduto da Carioca. Quadro de Leandro Joaquim, c. 1790.

Aqueduto, foto de Marc Ferrez, 1896.

71
José Murilo de Carvalho

Debret, c. 1830. Largo do Paço e chafariz do Mestre Valentim.

ȄȄ Tempo 4 (1808-1889)
O Rio joanino, imperial e do café
O tempo 4 começou com a sorte grande tirada pelo Rio de Janeiro na
loteria da história. Tem também data precisa, 1808, chegada da corte portu-
guesa. Se o ouro das Minas demarcou o tempo 3, o quarto deveu-se à briga
de dois baixinhos de temperamentos antitéticos: Napoleão, o conquistador, e
D. João, o conciliador. Juntando os dois, e com perdão do mau gosto, deveu-
-se a um presente de Napolejoão. O primeiro mandou invadir Portugal, o
segundo fugiu para o Brasil. Foi uma grande sorte para a cidade porque, em
primeiro lugar, D. João poderia ter ficado em Portugal, alterando totalmente a
história da colônia e, portanto, do Rio de Janeiro. Em segundo lugar, porque
o príncipe poderia muito bem ter ficado em Salvador, a antiga capital, sua
primeira parada, atendendo ao apelo dos baianos. A opção talvez nem lhe
desagradasse, pois ficaria longe de Carlota Joaquina...

72
Os tempos do Rio

Como é sabido, a presença da corte alterou substancialmente a cara físi-


ca, demográfica, econômica, cultural e humana da cidade. Acompanhada da
franquia dos portos, ela abriu o Rio para o mundo, atraindo gente e merca-
dorias de todas as partes. A cidade expandiu-se para a Glória, Catete, Bota-
fogo, São Cristóvão, Santa Teresa, Santo Cristo, Gamboa. Os costumes e a
moda alteraram-se. A expressão usada um século depois, “O Rio civiliza-
-se”, poderia também já ter sido aplicada ao período joanino. Às vésperas
da Independência, a cidade já era a maior da colônia, que se tornara Reino
Unido em 1815 (há 200 anos, portanto), e contava com 113 mil habitantes,
numa mistura caótica de nobres, negociantes, funcionários públicos, vende-
dores ambulantes, artesãos, escravos domésticos e escravos de ganho, de que
Debret e Rugendas nos deixaram preciosa documentação.
O fato de ser sede do Reino Unido, com a presença, inicialmente do
príncipe regente, logo depois de D. João VI, tornaram a cidade forte candi-
data a ser o centro político do novo país surgido da crise desencadada pela

Debret, Cena de Carnaval, 1823.

73
José Murilo de Carvalho

Rugendas, Rua Direita, 1835.

Debret, Uma tarde na Praça do Palácio, 1826.

74
Os tempos do Rio

revolta do Porto de 1820. Mesmo que tivesse havido fragmentação da antiga


colônia em vários países, a cidade do Rio não deixaria de ser a capital da par-
te correspondente ao que hoje se chama Sudeste. Foi nela, com o apoio das
províncias de Minas e de São Paulo, que se tramou a pressão sobre D. Pedro
para que permanecesse no país. Uma pressão a que não faltou o envolvimento
entusiástico do povo fluminense, que se colocou ao lado de D. Pedro e se
dispôs a enfrentar, de armas na mão, as tropas portuguesas do general Avilez.
A coroação de D. Pedro no Rio foi poderoso incentivo a que outras provín-
cias optassem pela independência e pela adesão ao novo país, com a conhecida
exceção de Pernambuco. Com isto, a cidade tornou-se o centro político do
novo Império, beneficiando-se das imensas vantagens de natureza política,
econômica e cultural que isso acarretava.
Ao mesmo tempo em que se firmava a unidade política do país e se acalma-
vam as disputas em torno de sua organização, outro fenômeno ajudou a con-
solidar a posição da cidade-capital. Desde a metade da década de 1830, o café
passou a ser o principal produto de exportação do Brasil, superando o açúcar

Debret, coroação de D. Pedro I.

75
José Murilo de Carvalho

e o algodão. A partir dos arredores da cidade, e com a ajuda da mão de obra


escrava, sua cultura difundiu-se rapidamente pelo vale do Paraíba em direção
a São Paulo. Como a exportação se fazia quase toda pelo porto da cidade, já
pelo final da década de 1830, a alfândega do Rio representava sozinha 60%
das receitas do comércio externo do país, que, por sua vez, correspondia a
80% das receitas nacionais.
Os barões do café espalharam pela cidade seus palacetes que fazem hoje
parte da paisagem urbana, como o do Catete e do Itamaraty. A capital conti-
nuou a se expandir e modernizar com a ajuda dos novos meios de transporte,
os bondes e os trens. A população chegou a 274 mil em 1870, mais do dobro
da de 1820, e a 522 mil em 1890. O Rio tornou-se também o centro cul-
tural do país, à medida em que para ele acorriam intelectuais das províncias.
As principais iniciativas para a valorização da cidade e de seu entorno físico
foram a criação do Jardim Botânico por D. João VI e o reflorestamento e
preservação da floresta da Tijuca, promovidos por D. Pedro II. Pela primeira
vez, buscava-se combinar natureza e cultura, transformando-se a natureza em
paisagem.

ȄȄ Tempo 5 (1889-1960)
O Rio Capital Federal
O tempo V começou com a Proclamação da República. Por dez anos, a
cidade viveu em constante turbulência causada por golpes, revoltas, greves.
Serenados os ânimos, o novo regime decidiu dar um banho de loja na capital
do país. Empossado em 1903, o paulista Rodrigues Alves, auxiliado pelo
engenheiro carioca Pereira Passos e pelo médico, também paulista, Osvaldo
Cruz, rasgaram o velho ventre da cidade e o reconstruíram em padrões mo-
dernos e higiênicos. Só a construção da Avenida Central, hoje Rio Branco,
exigiu a derrubada de mais de duas mil casas. As reformas estão aí até hoje e
não é necessário descrevê-las. Basta citar a Avenida Central, a Avenida Beira-
-mar, os jardins, os túneis, os prédios neoclássicos do Teatro Municipal, da
Biblioteca Nacional, do Museu de Belas-Artes. À beleza natural somava-se a

76
Os tempos do Rio

Pereira Passos, quadro de Eliseu Visconti, c. 1910.

A imprensa registra o Bota abaixo de Pereira Passos.

77
José Murilo de Carvalho

Avenida Beira-Mar – Enseada de Botafogo.

beleza construída pela iniciativa humana. A combinação valeu à cidade o pri-


meiro adjetivo identificador, dado, adequadamente, por uma poetisa francesa,
o de cidade maravilhosa. De fato, a inspiração de Pereira Passos fora a Paris
reformada por Hausmann. Em plena belle époque, a capital tornou-se o palco
em que a República se apresentou ao mundo na exposição de 1908, centená-
rio da abertura dos portos. Desta época, também é o protesto de Machado de
Assis contra a exagerada admiração da beleza natural da cidade. Um visitante
a quem mostrara a cidade, comentou do alto do Morro do Castelo, olhando
para o mar: “Mas que natureza que vocês têm!” Machado reclamou: “Eu não
fiz, nem mandei fazer o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei
prontos.” (A Semana, 20/08/93).
A obra da dupla Pereira Passos/Osvaldo Cruz não se realizou sem custos
para boa parte da população que se viu deslocada de suas residências, forçada a

78
Os tempos do Rio

adotar novos hábitos urbanos e a se submeter a exigências sanitárias e médicas.


O resultado foi a Revolta da Vacina de 1904 que, por uma semana, paralisou o
centro da cidade. A revolta não impediu que para outra parte da população
o Rio vivesse os anos da belle époque. A fratura social tornou-se visível.
Decorridas duas décadas da Revolta, o Centenário da Independência deu
azo a mais uma reforma do centro, agora levada a efeito por Carlos Sampaio.
Ele pôs abaixo o Morro do Castelo, o berço da cidade, para criar espaço onde
montar a exposição internacional de 1922, que, por sua vez, legou à ABL
sua sede atual. Ainda na Primeira República, outro fenômeno veio adicionar
contribuição à imagem da cidade. Refiro-me à cultura musical popular, bro-
tada no Centro e na Zona Norte, expressa no choro, no tango brasileiro, no
samba, no maxixe, no carnaval, sob a batuta de Sinhô, Pixinguinha, Donga,
João Pernambuco, e muitos outros. No ano do centenário, os Oito Batutas
apresentaram-se em Paris. Ao mesmo tempo, surgiam os primeiros desafios

Críticas da imprensa à campanha da vacinação.

79
José Murilo de Carvalho

O Rio em Paris.

à secular hegemonia da capital. São Paulo, que já lhe tomara a supremacia


econômica com o deslocamento do café para o oeste do estado, realizou a
Semana de Arte Moderna, ameaçando agora sua supremacia cultural.
A música popular carioca expandiu-se na década de 1930 e, na de 1950,
encontrou-se com bossa nova oriunda da nova classe média da Zona Sul, criada
a partir da construção do Túnel Velho, aberto em 1892, e das reformas de Pe-
reira Passos. A mudança deu origem a nova imagem da cidade, em que a classe
média da Zonal Sul e a praia passaram a ter papel predominante. Era o Rio
da Garota de Ipanema, imagem que correu mundo na canção de Tom Jobim e
Vinicius de Morais. Juntavam-se a beleza natural das praias e das montanhas à
beleza dos corpos femininos expostos em porções cada vez mais generosas. O
boom cultural dos anos JK, na música, na arte, no cinema, na literatura, boa parte
do qual se deu ainda no Rio, graças ao talento local e nacional, foi o canto de
cisne da antiga capital, antes da transferência feita pelo mesmo JK em 1960.

80
Os tempos do Rio

Leila Diniz: praia, corpo, transgressão. O Rio Zona Sul.

ȄȄ Tempo 6 (1960-2015)
O Rio capital estadual
A transferência significou perdas enormes para uma cidade acostumada
às benesses vinculadas ao status de capital do país, representadas pela máqui-
na do Estado com seus milhares de funcionários e pelas obras públicas de
melhoria e embelezamento. Deslocou-se o centro político, reduziu-se a atra-
ção cultural, embaçou-se o espelho do país, estreitou-se o cosmopolitismo. A
criação, logo após a transferência, do estado da Guanabara, quando a cidade
era capital de si mesma, gerou a expectativa de ser possível preservar parte da
herança perdida. As grandes obras do governo de Lacerda, coincidentes com
a celebração do 4.º Centenário, com destaque para o Parque do Flamengo, fo-
ram o brilho da supernova, antes do golpe final dado pela fusão da Guanabara
com o estado do Rio de Janeiro, forçada por Geisel em 1974. A cidade ficou
entregue a sua própria criatividade para se reinventar, tendo o ônus adicional
de capitanear o estado.
Sobre as consequências da “descapitalização”, sobre o aprendizado de ca-
minhar com as próprias pernas, sobre a busca de novos rumos, falarão os
próximos conferencistas.

81
Megarampa, 2009, São Paulo.
R i o d e Ja n e i r o , 4 5 0 a n o s

Os Rios do Rio

Z u eni r Ventu r a Ocupante da


Cadeira 32
na Academia
Brasileira de
Letras.

V ários são os Rios – não só do ponto de vista histórico,


como geográfico, social, econômico e cultural. Há um Rio
do Império e outro da República, um Rio Zona Norte e um Zona
Sul. Um pobre e um rico, um do samba e outro do funk, um de
Villa-Lobos e outro de Noel Rosa, um de Olavo Bilac e outro de
Lima Barreto, há o de Machado de Assis e o de João do Rio. São
lugares às vezes contrastantes, às vezes convergentes. Há um Rio
que um dia sonhou em ser Paris e que mais de um século depois
queria ser Miami.
Vários são os Rios. Há o dos cariocas que adoram falar mal da
cidade, mas não admitem que os de fora façam o mesmo. Há os que
herdaram dos Tamoios o asseio corporal, adoram tomar banho todo
dia, mas transformam as ruas e as praias em lixeiras. Há os violentos
e os cordiais, o que assalta e o que devolve o dinheiro esquecido no
táxi. Há os que não permitem que você saia à noite e há os que, aos

Conferência proferida na ABL, em 6 de maio de 2015.

83
Zuenir Ventura

milhões, se aglomeram no revéillon de Copacabana sem incidentes. Há o Rio


de Tom Jobim, que dizia que viver aqui era uma merda, mas muito bom, e
em Nova York era muito bom, mas uma merda. Há os cariocas que, segundo
Adriana Calcanhoto, não gostam de sinal fechado nem de dias nublados, mas
são espertos, alegres, bacanas e sacanas. Há, enfim, o Rio ciclotímico, bipolar,
que quando não é o melhor do mundo, é o pior. Qualquer arranhão na auto-­
estima produz choque, transtorno narcisista de personalidade.
Apesar de todas as mazelas, o Rio de Janeiro continua sendo nossa musa
– de cronistas, poetas, forasteiros, pintores e trovadores, que não cansam de
exaltar seus encantos mis. Desde pequena, a cidade se acostumou com esse
culto e talvez por isso seja tão vaidosa, tão narcisista. Era ainda uma crian-
ça quando um de seus admiradores, o todo-poderoso primeiro Governador-
-Geral, Tomé de Souza, escreveu: “Tudo é graça o que dela se pode dizer.” Até
os religiosos dirigiram a ela olhares profanos. “É a mais airosa e amena baía
que há em todo o Brasil”, suspirou o padre Anchieta, inteiramente catequiza-
do pela beleza do lugar. Pouco depois, seu colega da Companhia de Jesus, o
padre Fernão Cardim, sentiu quase o mesmo: “É coisa fermosíssima e a mais
aprazível que há em todo o Brasil.”
A Cidade Maravilhosa é o que é, mas também o que parece ser em prosa
e verso, através do olhar da sedução e da linguagem da paixão. Não importa
que seu nome seja masculino; a ela se atribuem virtudes e vícios femininos,
chamando-a de sexy e atraente. Fala-se de sua fauna e flora, de suas serras e
enseadas, como se fala de um objeto de desejo. A exemplo das curvas das
mulheres cariocas, os acidentes físicos do Rio também estão carregados de
sugestões eróticas. Há matas virgens, contornos sensuais, cavidades sinuosas.
A baía não é apenas uma entrada geográfica, mas uma evocação metafórica
de ventre e útero, convidando os que chegam à penetração e ao gozo daquelas
sendas, reentrâncias e depressões profundas.
Por fervor de seus amantes e por merecimento próprio, ela sempre foi
admirada. Solar, sensual e espetacular, sempre exibiu com raro despudor suas
formas e cores. Fez graça para Debret, fez pose para Rugendas e se desman-
chou diante das lentes de Augusto Stahl, Augusto Malta ou Marc Ferrez.

84
Os Rios do Rio

Tentou a todos que carregavam um cavalete ou um tripé, uma máquina ou


uma câmera. Poucos espaços físicos exerceram tanto fascínio e excitaram tão
ardentemente o olhar dos artistas.
Vinicius de Moraes dizia que ser carioca é um estado de espírito. É mais,
porque não se trata apenas de alma, mas de corpo e alma. Ama-se esta cidade
com todos os sentidos, a começar pelos olhos. O primeiro alumbramento é
evidentemente visual, mas depois também sonoro e tátil. A relação com o
mar, com a areia e com o Sol é um rito sensorial, hedonista, de certa maneira
erótico. Segundo ainda Tom Jobim, que deu som a tudo isso, herdamos dos
Tamoios o gosto pela água, pelo mato, pela música e pela dança. Onde mais
ele poderia ter nascido? Onde poderiam ter surgido a tanga e o fio-dental?
É significativo que uma cidade que gosta de misturar o sagrado e o profano
tenha como protetor o Cristo de braços abertos, e, como padroeiro, São Se-
bastião crivado de flechas, um santo zen resistindo triunfalmente ao suplício.
Os dois compõem um discurso visual que expressa dois estados comuns ao
carioca: a generosa hospitalidade oferecida por um e a serenidade demonstra-
da pelo outro diante da adversidade.
Não dá para falar de todos os Rios, evidentemente, só uns que eu sei de
ler e ouvir dizer de longe, e outros que conheci de viver e amar.

ȅȅ

Dos Rios que só conheci a distância, o mais fascinante é o da Belle Époque,


dos primeiros anos do século XX, pela atualidade de certos aspectos e por ter
sido revelado principalmente pelo cronista João do Rio ou, como poderia ser
mais propriamente chamado, João dos Rios, já que transitava com a mesma
naturalidade entre os salões do grand monde e as baiucas e tavernas do bas-fond.
Frequentava as reuniões privés do jet set, mas também as festas populares e os
antros dos vícios.
Se a cidade era o pano de fundo ou a tela das crônicas de Machado de
Assis, em João do Rio ela, ou melhor, a rua, assume o papel principal, é a
protagonista. “Eu amo a rua”, ele confessou. Não por acaso, seu livro mais

85
Zuenir Ventura

importante se chama “A alma encantadora das ruas”, uma obra interessan-


tíssima, resultado das observações de um olhar encantado com os novos per-
sonagens e as novas relações sociais de um universo urbano às voltas com as
mudanças. Os tipos que povoam as ruas dessa “bela época” se misturam. São
intelectuais, escritores, artistas, boêmios, mas também biscateiros, ambulan-
tes, cocheiros, pintores de tabuletas e de paisagem de botequins, vendedores
de livros e orações. Já anunciam o fenômeno que seria conhecido mais tarde
como cidade partida – um apparteid social convivendo com uma criativa mistu-
ra cultural, em que ontem como hoje a cultura procura unir o que a economia
separa.
Alguém escreveu que “a essência da identidade carioca já estava presente
nas linhas críticas e bem-humoradas desse João”, que foi o primeiro em mui-
tas coisas, inclusive em usar o fardão ao tomar posse na Academia Brasileira
de Letras, aos 29 anos de idade. A ele se deve a introdução do hábito das
entrevistas, além das crônicas presenciais. O crítico Brito Broca conta que ele
“subia o morro de Santo Antônio pela madrugada com um bando de serestei-
ros e ia aos presídios entrevistar os sentenciados”. Por suas atitudes provocati-
vas, sua vaidosa excentricidade e suas audácias comportamentais, João do Rio
sempre atraiu a inveja e a homofobia. Seus desafetos alegavam que ele subia
os morros não por interesse jornalístico ou antropológico, mas por causa de
sua opção sexual. Não importa o que ele fazia fora do trabalho, o importante
é que descia sempre com uma novidade jornalística: a descoberta de um per-
sonagem inédito ou de uma linguagem nova e de um costume desconhecido
da cidade do lado de baixo.
Outro exemplo de seu gosto pela novidade onde estivesse foi a descoberta
de Ipanema, feita por ele, ou melhor, por sua amiga, a bailarina americana Isa-
dora Duncan, a “musa do século”, quando aqui esteve em 1916. Numa roda,
Isadora exaltava a beleza de uma praia desconhecida, e alguém perguntou: “O
Leme?” “Não”. “Copacabana?” também não. Era outra. Resolveu então coman-
dar uma expedição noturna até lá, guiada pelo motorista que a servia.
“Já era mais de meia-noite na noite de inverno e luar”, conta o próprio
cronista. “Como é belo! Como é belo! dizia Isadora em êxtase. Que pena não

86
Os Rios do Rio

podermos cear.” Como Ipanema não tinha luz elétrica, João do Rio voltou ao
bairro um ano depois num dia de sol e ficou tão impressionado que escreveu
em O Paiz a crônica “A praia maravilhosa”, quando a cidade ainda não tinha
recebido o mesmo epíteto. Com esse texto, ele estava revelando para o carioca
o bairro que é símbolo do Rio hedonista.
O artigo não economizou elogios ao bairro e à Companhia Construtora
responsável pelo loteamento da área. Foram tantos que as más línguas espa-
lharam que o autor recebera dois terrenos em troca do merchandising. Também
disseram que o propalado “flerte” com a amiga baila-
rina, que ele conhecera em Lisboa, não passava de uma
jogada para disfarçar seu homossexualismo. Com sua
figura “volumosa, beiçuda, muito morena, lisa de pelo”,
como o descreveu Gilberto Amado, João do Rio não
convencia seus rivais de que poderia conquistar uma das
mais deslumbrantes mulheres de sua época, que em sua
autobiografia escreveu: “Quando passeávamos juntos, éramos seguidos pela
rapaziada que gritava: ‘Viva Isadora! Viva João do Rio’.”
Os desafetos não queriam acreditar que ele fosse capaz da proeza, da
mesma maneira que costumavam duvidar de seus feitos jornalísticos, como
a série de reportagens publicadas na Gazeta de Notícias, em 1900, e que depois
foram reunidas no livro intitulado Religiões do Rio. Diante da enorme repercus-
são, não faltou quem atribuísse à “fantasia” do autor o que era comprovada
verdade.
João do Rio foi original na vida e na morte – morreu como viveu, na rua,
num táxi, a caminho de sua casa em Ipanema. Ao seu enterro, compareceram
100 mil pessoas, “celebrando a alma do escritor que soube tocar o coração
dos leitores”.

ȅȅ

Vim morar no Rio na década de 50, “os anos dourados”, na mesma épo-
ca em que aqui chegou a grande poeta americana Elizabeth Bishop. Foram

87
Zuenir Ventura

experiências opostas: eu amei e ela odiou, pelo menos no início. “Tudo tão
sujo, tão desorganizado!” espantou-se, “Como é que eles conseguem viver
aqui?” “É tudo desleixado, corrompido. O Rio me deprime.” Com seu olhar
estrangeiro, ela fez observações hilárias sobre a nossa terra. Descobriu, por
exemplo, que a gente adora se queixar do fígado: “É o único órgão em fun-
cionamento no Brasil.” “A elite brasileira deve ter muito pouca gente, porque
todo mundo se conhece. Todos os governantes são parentes de todos os in-
telectuais.” Sobre desfile de escolas de samba: “É a confusão mais organizada
que eu já vi.” Sua conclusão inicial foi: “O Rio é um cenário para uma cidade
maravilhosa, mas não é uma cidade maravilhosa.” A frase me irritou ao ouvi-
-la pela primeiras vez, talvez porque, em última instância, essa é para nós uma
questão aflitiva e recorrente. Somos mesmo a Cidade Maravilhosa ou uma
“inútil paisagem”? Quando deixaremos de ser o cenário mais que perfeito de
uma realidade imperfeita?
Mas tendo descido aqui para uma escala, Elizabeth acabou permanecendo
15 anos seguidos, até 1966 (depois, mais sete anos indo e vindo). Por Lota,
ela se apaixonou logo. Pelo Brasil, levou algum tempo, foi seduzida aos pou-
cos, resistindo criticamente. São duas histórias de amor enternecedoras. No
final ela confessa que esse país e essa cidade que ela tanto odiou no começo
ajudaram-na a sobreviver.

ȅȅ

Na verdade, a cidade dos anos 50 já acumulava tensões e conflitos que iriam


explodir nas décadas seguintes. Uma visão romântica e nostálgica costuma apre-
sentar esses tempos como uma reconstrução ideal e não como um retrato real.
Mas os “anos dourados” já escondiam o seu contrário. Já existiam “duas ci-
dades”, ou uma cidade partida, mas a convivência amena, a obediência civil, a
falta de antagonismos de classe e a despreocupação com os problemas sociais
não deixavam perceber que havia um ovo de serpente chocando naquele paraíso.
Alguns personagens famosos, como os bandidos Cara de Cavalo e Mi-
neirinho, confirmam o amadorismo da época; outros já antecipam um

88
Os Rios do Rio

profissiona­lismo moderno ao forjarem certas matrizes de comportamento


atual. Está neste caso o general Amauri Kruel, o criador do Esquadrão da
Morte na polícia. Violência e corrupção não foram invenções suas nem dos
Anos Dourados, da mesma forma que a música brasileira não foi invenção das
batidas da Bossa Nova. Mas os duplos compassos de corrupção e violência
ficarão devendo tanto a esse general do exército quanto a música ao seu con-
temporâneo João Gilberto.
Essa tendência a idealizar o passado como a idade de ouro acompanhou
a onda de desencanto da virada do século XX para o XXI. E muita gente
acredita que o melhor Rio foi o dos Anos Dourados. O conjunto de recor-
dações da época descreve um território edênico por onde se podia caminhar
a qualquer hora do dia ou da noite. João Gilberto e Roberto Menescal, dois
jovens compositores, andavam quase todas as noites da Urca a Copacabana
conversando e tocando ao violão os primeiros acordes da Bossa Nova. “Fora
um ou outro mendigo bêbado conhecido, nada tirava a nossa paz.” Outro
compositor, Ronaldo Bôscoli, ia namorar na praia a musa do movimento,
Nara Leão, sem sobressalto. Paulo Francis escreveu sobre esse tempo em seu
livro de memórias O afeto que se encerra: “Qualquer senhora respeitável nada
tinha a temer dos despossuídos, que raramente ousariam assustá-la.”
Uma parte da, digamos, “cidade oculta” já tinha ocupado os morros, mas
as favelas de então, mais do que ameaça ou problema, eram vistas de longe
como acidentes pitorescos, “Quem mora lá no morro já vive pertinho do
céu”, cantava Herivelto Martins em 1942. “Nunca vi por ali uma pessoa
pouco afável ou uma pessoa triste”, escreveu Stefan Zweig, depois de visitar
várias favelas. Ele dedicou 35 páginas de Brasil, país do futuro, ao Rio e nem
uma vez usou palavras como medo, susto, ameaça ou risco. “Encontramos em
todas as pessoas, no engraxate e nos aristocratas, a mesma polidez que aqui
une harmoniosamente todas as classes sociais.”
Muito dessa visão de quem, fugindo do holocausto, só tinha olhos para
o paraíso, ainda permanecia nos anos 50. Moças de “famílias ricas” da Zona
Sul se orgulhavam de serem professoras nos subúrbios. “Elas acordam cedo
e trabalham duro em nossas escolas primárias”, dizia a revista Manchete.

89
Zuenir Ventura

Levantavam-se às cinco para estarem às sete nos subúrbios, muitas vezes le-
vando livros, cadernos, lápis e merenda comprados com seu próprio dinheiro.
“Existia, claro, o pau de arara, o pobre, o personagem do morro”, resumia
Francis, “mas em quantidades muitos menores e não invasivas. As ruas da
Zona Sul eram nossas, da classe média e acima.”
Além de dominar as ruas, a classe média lançou também a moda de subir
o morro para se divertir. Na Mangueira, podia encontrar, sem saber direito
quem era, um mulato compositor. Era Cartola, de quem o maestro Leopold
Stokovsky já havia gravado o samba “Quem me vê sorrindo”.
Havia, porém, quem já se preocupasse com a violência na cidade. O jurista
Nélson Hungria já se declarava alarmado com a ”ascensão do termômetro da
criminalidade violenta”. As estatísticas revelavam um aumento de 40% entre os
anos de 1946 e 49. Se no ano passado matou-se um homem a cada 29 horas, no
ano em curso tem ocorrido um homicídio a cada 24 horas”, dizia o jurista. O que
mais o chocava eram “os pormenores de perversidade”. Diante do que chamava
de maré montante, ele pedia a pena de morte, apesar de ter sido sempre contra.

ȅȅ

Entre os anos 50 e 60, houve um fenômeno curioso: o fascínio que fa-


mosos bandidos como Mineirinho e Cara de Cavalo exerceram em artistas e
intelectuais. A morte do primeiro sensibilizou Clarice Lispector e José Carlos
Oliveira. Clarice escreveu na sofisticada revista Senhor uma sentida crônica.
“Suponho que é em mim que devo procurar por que está doendo a morte
de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que
mataram Mineirinho do que seus crimes.” E descreve o que sentiu a cada tiro.
“O décimo terceiro tiro me assassina, porque eu sou o outro. Porque eu quero
ser o outro.”
Carlinhos Oliveira fez-lhe também um comovido necrológio, consideran-
do-o a personificação da rebeldia. “Assaltava bem, matava com perícia, amo-
tinava presídios e se punha em fuga com extrema facilidade.” O cronista não
escondia sua simpatia por um bandido que arriscava a vida por um ideal – o

90
Os Rios do Rio

de querer “ser livre para ser criminoso, o louco”. Aquela execução desper-
tou no cronista sombrias reflexões: “Fico eu agora pensando em inumeráveis
adolescentes que amadurecem no mesmo cenário ignominioso que produziu
Mineirinho e me pergunto: onde anda agora o espírito de rebeldia?”
Mineirinho morreu em 1963 executado pelo Esquadrão da Morte com
treze tiros de metralhadora: “Atira logo, estão matando um homem”, disse,
quando se viu encurralado debaixo de um ônibus, sem defesa.
Já Cara de Cavalo era um bandido chinfrim. Ladrão, não gostava de roubar.
Diariamente pegava um táxi, sentava-se atrás acompanhado de uma das aman-
tes, em geral Lair Dias da Silva, e percorria os pontos de jogo do bicho de Vila
Isabel e arredores. Não saía do carro. Parava, Lair descia e recolhia o pagamento
compulsório do dia. Ele ficava esperando. Levava a vida que um bandido pre-
guiçoso pedira a Deus. Assim ele viveu entre 1958 e 1964, quando morreu
como “o inimigo público número um da cidade”. Primitivo, foi um mito bem
ao gosto dos anos dourados. Assustava mais pela fama do que pelos feitos.
Um de seus grande amigos, o artista plástico Helio Oiticica, não se con-
formava com essa representação. “O que me deixava perplexo era o contraste
entre o que eu conhecia dele como amigo e a imagem feita pela sociedade.”
Um ano depois de sua morte, Oiticica imortalizou-o numa obra famosa:
“Homenagem a Cara de Cavalo”. É um bólide, ou seja, uma caixa envolta por
uma tela e cujas paredes internas estão cobertas com quatro reproduções das
fotos oficiais do bandido assassinado: estirado no chão, perfurado de balas,
com os braços estendidos em forma de cruz. No fundo da caixa, num saco
com pigmentos vermelhos, aparece escrito como numa lápide: “Aqui está e
aqui ficará. Contemplai o seu silêncio heroico.”
Em 1968, Oiticica fez outra homenagem a Cara de Cavalo: a bandeira-
-poema “Seja marginal, seja herói”. Se o bólide foi parar no valioso acervo do
colecionador Gilberto Chateaubriand, a bandeira virou emblema do Tropica-
lismo e estandarte da facção mais radical da geração de 68.
Assim, Cara de Cavalo acabou contribuindo mais para o acervo da arte
contemporânea do que para a história da criminalidade carioca.

91
Zuenir Ventura

ȅȅ

Em toda a segunda metade do século XX, o Rio foi agitado por movi-
mentos políticos. Aliás, o Brasil todo, mas o Rio acabou protagonizando
os principais eventos do período. Depois dos “Anos dourados”, vieram os
“Anos rebeldes”, do golpe militar de 1964 e do golpe dentro do golpe de
1968. Foi aqui, no dia 13 de março, no comício da Central, que João Gou-
lart anunciou medidas como a reforma agrária, vistas como comunistas na
época e assim reforçando o pretexto para o golpe. Foi aqui também que no
dia 25 de março se deu a rebelião dos marinheiros. Mais tarde, em 1968,
o Rio foi o cenário para a lendária “Passeata dos 100 mil” e para a assina-
tura do famigerado AI-5, que fez baixar sobre o país as trevas. Em seguida,
vieram os anos 70, os “Anos de chumbo”, da repressão, da censura e da
tortura do governo Médici, o mais brutal de toda a ditadura. Foi quando
também bandidos comuns convivendo na Ilha Grande com presos políticos
aprenderam a se organizar e a pôr em prática depois, nos assaltos a bancos,
os ensinamentos de guerrilha. Assim, teria-se formado a principal facção do
crime organizado, o Comando Vermelho.
Os anos 80 e os 90 acumularam os efeitos dos baques sofridos pelo Rio
– primeiro pela transferência da capital para Brasília. Sem as generosas verbas
federais que a tornavam um centro de prestação de serviços e de intensa vida
política e cultural, a Belacap foi se esvaindo. O outro golpe foi com a fusão.
Sem aumentar seu orçamento, a cidade teve que compartilhar os escassos
recursos com o empobrecido Estado fluminense. Para agravar a situação da
chamada “década pedida”, o Rio tornou-se refém do crime organizado co-
mandado pelo tráfico de drogas.
O economista Roberto Campos descreveu na época o círculo vicioso: “O
desemprego provoca a marginalidade; a marginalidade gera a violência; a vio-
lência afasta investidores e agrava o desemprego; e o desemprego fomenta a
marginalidade. Os investidores nacionais vivem sob a ameaça do sequestro ou
têm de pagar tributo a traficantes e pseudossindicalistas para diminuição de
roubos [...]. Na paisagem medieval, os morros eram ocupados por templos,

92
Os Rios do Rio

mosteiros e castelos. Os morros do Rio se tornaram forta-


lezas do crime, onde pequenos comerciantes têm de pagar
pedágio para continuarem no negócio, e uma população
pobre e honesta tem de se submeter às ordenanças dos cri-
minosos que controlam o direito de ir e vir.”
Para mostrar o esvaziamento da cidade, ele citava “a
fuga dos investidores e dos turistas. Em 1984, o Rio recebeu 623 mil turistas;
cinco anos depois, apenas 471 mil, numa época de crescimento explosivo
do turismo mundial. Perdera sua condição de capital política para Brasília,
perdeu a gala de capital financeira para São Paulo, a de cartão-postal turístico
para o Nordeste e a de grande porto comercial para Vitória, onde os custos
portuários são mais baixos. A Belacap é uma órfã a ser resgatada, e não uma
pérola a ser invejada.”

ȅȅ

Faltou dizer nessa análise que a crise econômica e social foi agravada por
uma política de segregação praticada durante toda a história do Rio. A cidade
modernizou-se, “civilizou-se”, como se viu, expulsando para os morros e pe-
riferias seus cidadãos de segunda classe. E isso foi um desastre não apenas mo-
ral e humanitário, mas também do ponto de vista da eficácia. O seu principal
produto, o apartheid social, tem o mesmo futuro que o apartheid racial em outros
lugares. A fantasia da “solução final” – a remoção e o extermínio – revelou-se
igualmente desastrosa, por iníqua e impraticável. No fim do século XIX havia
apenas uma favela no Rio; hoje há mais de 700.
Fracassou, enfim, o sonho de expulsão dos “bárbaros”, no sentido em que
os romanos davam aos que moravam fora das fronteiras e não falavam a mes-
ma língua. Eles estão chegando ou já chegaram com suas “vanguardas” arma-
das, audazes e cruéis. Ao empurrarem as “classes perigosas” para os espaços
de baixo valor imobiliário, as classes dirigentes não perceberam que as estavam
colocando numa situação privilegiada em caso de confronto – como nem os
bárbaros do século V tiveram para derrubar o Império Romano. Os nossos

93
Zuenir Ventura

bárbaros estão dentro das muralhas e suas tropas detêm as mais modernas
armas e a melhor posição de tiro.
Enquanto dos morros só se ouviam os sons do samba, parecia não haver
problema. O problema foi quando os sons passaram a ser de tiros. Não
se trata de uma guerra civil como às vezes se pensa, mas de uma guerra
pós-moderna, econômica, que depende das artes bélicas, mas também das
leis do mercado; é um tipo de comércio. Por isso, não há solução mágica
à vista. Sabe-se que é preciso destruir as “vanguardas” – os que praticam
barbaridades, os traficantes de drogas – numa operação de força implacável.
Exterminá-los, porém, talvez seja mais fácil do que desmontar o circuito
econômico que os sustenta e cujas pontas – a produção e o consumo – não
estão nas favelas.
Como se fosse uma espécie de síndrome finissecular, a virada do século
XX para o XXI repetiu de certa maneira a passagem anterior, do XIX para
o XX, atualizando-a. Nos derradeiros anos do século passado, o tráfico de
drogas mudou de escala, passou a apelar para ações terroristas, cometendo
atentados a bombas e incendiando ônibus, ampliou seus limites, estendeu seus
domínios, rompeu com antigos lanços de solidariedade que mantinha com
as comunidades, perdeu o respeito às instituições, declarou guerra à polícia e
passou a manipular a população das favelas nas batalhas do asfalto. “Tá tudo
dominado”, como eles diziam. Por outro lado, a chamada “banda podre” da
polícia se associava aos bandidos para extorqui-los.
Isso ficou bem visível em 1993, quando as chacinas de oito meninos de
rua na Candelária e de 21 moradores de Vigário Geral, as duas executadas
por policiais, se transformaram em marcos da violência. De um dia para o
outro, famosos símbolos do Rio como garotas de biquíni fio-dental deram
lugar a dois anticartões-postais que correram o mundo: meninos com o rosto
coberto por cobertores para não serem reconhecidos e 21 caixões estirados na
rua da favela com os corpos das vítimas da chacina. O Rio chegara ao fundo
do poço.

ȅȅ

94
Os Rios do Rio

Como que seguindo uma trajetória pendular a que uma fase ruim se segue
uma melhor, o Rio do século XXI começou com planos de se revitalizar para
as festas, de que tanto gosta. Queria se embelezar para as comemorações dos
450 anos e para a realização das Olimpíadas. Além da ampliação do metrô e
da criação de novos veículos de transporte público, ele resolveu, cem anos de-
pois das obras portuárias de 1900, estender-se na mesma direção, fazendo do
ambicioso projeto “Porto Maravilha” quase uma outra cidade de cinco mi-
lhões de metros quadrados. Era uma resposta à nossa “marcha para o Oeste”,
a que fez da Barra da Tijuca, com sua sociedade emergente, a nossa Miami,
pela mimetização da arquitetura e do estilo de vida.
Para restaurar a autoestima do carioca, porém, a maior contribuição talvez
tenha sido a inauguração das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, que
são um dos mais importantes programas de Segurança Pública realizados no
Brasil nas últimas décadas. Implantado pelo Secretário de Segurança Pública,
José Mariano Beltrame, no fim de 2008, e elaborado segundo os princípios
da polícia de proximidade, tem como estratégia a parceria entre os governos
municipal, estadual e federal, e diferentes setores da sociedade. O objetivo é a
retomada permanente de comunidades dominadas pelo tráfico e sua pacificação,
que tem ainda um papel fundamental no desenvolvimento social e econômico
das áreas ocupadas, potencializando a entrada de serviços públicos, infraestru-
tura, ações sociais. Como diz seu criador, Mariano Beltrame, a UPP “não é só
um projeto de segurança, é uma política de Estado, de valorização da vida e
de geração de esperança para o povo carioca e fluminense.”
A primeira comunidade a receber uma UPP foi a Santa Marta, e os resul-
tados, quase sete anos depois, foram resumidos pelo presidente da Associação
dos Moradores, José Mário, assim: “A principal conquista da pacificação é o
acesso à educação e à cultura. Na comunidade, há uma Indústria do Conhe-
cimento, uma biblioteca com cerca de 2 mil livros e nove computadores com
acesso gratuito à internet.” A eficácia da pacificação se reflete em outro impor-
tante índice: desde o início do processo, não há homicídios naquele morro.
As conquistas iniciais das UPPs provocaram uma euforia generalizada,
como se de repente elas fossem realizar o milagre da pacificação da cidade

95
Zuenir Ventura

partida. Com o tempo, no entanto, foram aparecendo as fragilidades e os


problemas, como desvios de conduta das tropas, violência policial, morte de
homens em serviço e de moradores inocentes, culminando com ataques às
sedes das Unidades.
Ao realizar agora o balanço dos sete primeiros anos, o Secretário Beltrame
diz que faria pouca coisa diferente, mas que a consolidação do programa
está sendo dificultada pelos que perderam terreno, ou seja, os traficantes. Ele
acredita que a droga não vai acabar, nem o crime. Mas acha que o que pode
terminar é o “império”, que exercia o poder executivo, legislativo e judiciário
dentro desses lugares.
Os dados, de fato, indicam que houve redução dos índices de criminalidade
nas áreas ocupadas pelas UPPs. Ainda ontem o Instituto de Segurança revelou
uma queda de 85% nos homicídios decorrentes de ação policial, acompa-
nhando uma tendência geral de redução da chamada “letalidade violenta”.
O problema é que a reação dos bandidos, como a do fim de semana pas-
sada em Santa Teresa, deixando seis mortos, dá a impressão de que estamos
perdendo a guerra pela paz. Como na medida da temperatura, a sensação
térmica é sempre maior do que o que os termômetros registram: assim eu sin-
to, assim é. Essa violência subjetiva, feita de sensações, acaba sendo também
muito desgastante. O cidadão que sai de casa achando que vai ser assaltado,
ainda que não seja, sofre o estresse da expectativa e do medo.
O desafio do projeto de pacificação é fazer com que deixemos de ser o Rio
da Violência, mas o da realidade e o da percepção.
Se nessa exposição dei tanta importância à violência, é porque ela talvez
seja a causa do maior mal-estar do nosso processo civilizatório urbano.

96
Ensaio

Literatura italiana – na
universidade e a partir
da universidade
A l fred o Bo s i Ocupante da
Cadeira 12
na Academia
Brasileira de
Letras.

C omeçarei pelo começo. Como era o ensino de Literatura Ita-


liana nos meados dos anos 50 quando entrei para o Curso
de Letras Neolatinas nesta Faculdade. O mínimo que posso dizer
é que era absolutamente diferente do que recomenda a Pedagogia
atual nesta e em qualquer faculdade deste mundo. O Professor
Italo Bettarello, ignorando solenemente o desconhecimento da lín-
gua italiana em seus alunos de primeiro ano, começava o seu curso
com as seguintes palavras do filósofo Benedetto Croce:

Se si prende a considerare qualsiasi poesia per determinare cosa la faccia


giudicar tale, si discernono alla prima, costanti e necessari, due elementi: un
complesso d’immagini e um sentimento che lo anima.

É o parágrafo de abertura da Aesthetica in nuce, ensaio que foi pe-


dido a Croce para constar como o verbete Aesthetics da Enciclopédia
Britânica.

Sessão na Faculdade de Filosofia em 2 de outubro de 2015.

97
Alfredo Bosi

“Se nos dispomos a considerar qualquer poesia para determinar o que


a faça julgar como tal, discernimos de início, constantes e necessários, dois
elementos: um complexo de imagens e um sentimento que o anima.”

A definição era ampla e aparentemente simples, incluindo duas dimensões


fundamentais, a primeira voltada para uma forma de conhecimento auroral,
conhecimento por meio de imagem, e a outra, radicada na dinâmica da sub-
jetividade, a dimensão da afetividade. Tudo muito simples e muito claro, e
por isso mesmo, fecundo, se lembramos o número considerável de leituras
de poesia que se fizeram na Itália ao longo da primeira metade do século 20,
inspiradas na doutrina da intuição, via imagens, identificada com a expressão
dos sentimentos, doutrina que derivava daquela primeira definição.
No entanto, com o tempo, os alunos de italiano que viriam a fazer aná-
lise e interpretação de textos acabaram percebendo que, se, de um lado, essa
definição lapidar incluía dimensões fundamentais, de outro, ela excluía ou
subestimava algumas outras, não menos relevantes, e o fazia de modo inibidor.
Ensinava o que era poesia e, ao mesmo tempo, indigitava o que seria não-
-poesia, elementos acessórios, senão secundários, na hora da interpretação. A
assepsia era drástica.
Poesia não era jorro imediato das paixões inconscientes (que deveriam ser
contempladas e figuradas, e não imediatamente projetadas), o que condenava
de antemão todo Surrealismo e parte do Expressionismo. As interpretações
biográficas, de fundo psicológico ou psicanalítico, eram vistas com suspeita...
A persona artística distinguia-se da personalidade empírica. Conhecer a vida
de um autor terá interesse histórico, serve de pasto a curiosidades indiscretas,
mas não deve guiar o intérprete da obra.
Poesia não era representação das instâncias políticas contemporâneas do
poeta, o que afastava com uma penada toda crítica puramente ideológica, de
centro, direita ou esquerda, tida por reducionista. É a doutrina que norteia
o ensaio de Croce sobre poesia e não-poesia na Divina Comédia, La poesia di
Dante, que distingue a estrutura teológica e política da obra, separando-a dos
momentos líricos, nos quais Dante dá voz às suas grandes figuras. Poesia

98
Literatura italiana – na universidade e a partir da universidade

verdadeira se encontraria nos cantos justamente célebres de Fran-


cesca da Rimini, de Cavalcanti, de Ugolino, de Ulisses... O que
não fosse poesia como liricidade Croce chamava, curiosamente
para nós outros, de “estrutura”...
Poesia, enfim, tampouco seria exercício de transplante de formas literárias
canônicas da tradição, perspectiva que rejeitava como formalistas e maneiris-
tas as análises retóricas, herdadas das teorias literárias do Classicismo, com
sua crença na vigência dos gêneros literários e dos seus procedimentos estilís-
ticos respectivos. (“A Croce non piacevano i generi”, alusão jocosa ao fato de
suas filhas permanecerem solteiras...)
O que chama a atenção nesta memória do curso de Literatura Italiana é o
peso considerável da reflexão estética que nos era oferecida desde as primeiras
aulas. Lembro que não havia então uma disciplina chamada Teoria Literária,
lacuna então suprida pelas tradições críticas nacionais: se em italiano se dava
relevo a Croce, em espanhol predominava a estilística que tinha como centro as
análises de Dámaso Alonso sobre textos barrocos, em inglês era o new criticism
que prevalecia, e em francês a “analyse du texte” didática, que, em geral, dividia o
texto em três movimentos. O Estruturalismo ainda não dera o ar de sua graça...
E, quando veio, no final dos anos 60, deixou na sombra as outras teorias.
Mas felizmente nem tudo era doutrina crociana. Italo Bettarello também
fora assistente de ninguém menos que o poeta Giuseppe Ungaretti, um dos
poetas maiores da Itália (e não só da Itália) no século 20. Ungaretti ensinara
nesta Faculdade entre os anos de 37 e 42, fazendo amigos e admiradores
como Oswald de Andrade, Mário de Andrade e críticos do porte de Antô-
nio Cândido. Ora, o que fazia Ungaretti nas salas de aula, e o que Bettarello
herdara do seu magistério? A leitura em classe e em voz alta de grandes textos
poéticos, explorados não só como complexos de imagens e sentimentos que
os animavam (de resto, também presentes nas suas interpretações), mas va-
lorizados como formas métricas, rítmicas, melódicas e, lato sensu, estilísticas.
De algum modo, e em velada oposição a certos postulados crocianos,
Ungaretti reconhecia os traços fortes e recorrentes que as tradições literárias,
inclusive os gêneros, tinham legado a gerações e gerações de poetas através de

99
Alfredo Bosi

séculos de releituras, sob a forma de variantes, refacções ou, mais amplamente,


inspirações. Não é esta a ocasião de reconstituir, analiticamente, o quanto
de culto a Petrarca o leitor e mestre Ungaretti introjetava no seu discurso
quando falava da “constância de um canto na poesia italiana”, modulado pelo
verso decassílabo. Era uma sutil melodia que viria de Petrarca a Leopardi, e
que ele próprio tomaria como inspiração na sua poesia, primeiro silabada,
em L’Allegria, e mais tarde espraiada em versos só espacialmente distantes do
metro. Na poética de Ungaretti esse reconhecimento de uma certa tradição
literária não é puramente formal. Tem raízes na sua profunda convicção do
poder da memória, cultural e subjetiva, que o levou, falando de Vico, a excla-
mar: “Tutto, tutto, tutto è memoria.”
Para conhecer a riqueza do pensamento poético de Ungaretti, temos dois
livros imprescindíveis: Invenzione della poesia moderna (Napoli, 1984), com orga-
nização e prefácio de Paola Montefoschi, e, prata de casa, Giuseppe Ungaretti.
Razões de uma poesia, organizado por Lúcia Wataghin (São Paulo, Edusp, 1994).
Quando penso no que se estudava nos cursos de Literatura Italiana, é sem-
pre o exame interno de textos poéticos que me vem à memória. Assim, por
exemplo, a leitura do Cantico delle Creature de São Francisco – agora tão opor-
tunamente redivivo na encíclica de Papa Francisco, Laudato si’ – era feita com
escrúpulo filológico. Ficávamos surpresos com a ambiguidade do louvor, em
que a preposição “per” parecia ora sinônimo de “da”, como agente da voz
passiva: “Louvado seja, meu Senhor, pelo Sol, pela Lua, pelas estrelas, pelos
ventos, pela água, pelo fogo, pela nossa mãe Terra...”, ora sinônimo de “a
causa di”, “per causa di”.
A primeira escolha inseria o Cântico na tradição bíblica dos Salmos (par-
ticularmente o de número 148) pela qual a grandeza do Senhor é louvada
pelos céus e terra, pela lua,pelo vento, pela água, pelo fogo, ou seja, a natureza
louva a transcendência: “Louvai ao Senhor céus e terras.”
Mas a novidade estaria na segunda opção: que o Senhor fosse louvado
porque – pelo fato de que – criou o céu e a terra, o sol e a lua, a água e o fogo;
leitura esta que louva o transcendente por causa da beleza imanente na natureza,
posição que dá a São Francisco a palma de precursor do Renascimento.

100
Literatura italiana – na universidade e a partir da universidade

ȄȄ Parêntese florentino
Nos últimos meses de meu curso de Especialização em Literatura Italiana,
vi-me diante de uma encruzilhada profissional. De um lado, tendo sido
aprovado em concurso de professor de Português na rede estadual, foi-me
oferecido um lugar no Colégio Estadual de Tambaú. Seria o começo de uma
carreira na escola pública. De outro lado, o Governo italiano, através de uma
gestão do Ministero degli Affari Esteri, me proporcionava uma bolsa de es-
tudos na Itália, podendo eu escolher a cidade onde ficar. Declarei-me, então,
inclinado para Florença, onde poderia conhecer de perto o Renascimento
entrevisto só em livros.
O currículo da Faculdade de Letras do studio florentino abria-se para a His-
tória e a Filosofia. Não havia pós-graduação, mas o que se chamava de “corsi
singoli”, opções independentes oferecidas com grande variedade. A escolha
era difícil pela qualidade extraordinária dos docentes. Inscrevi-me nos cursos
de Filosofia do Humanismo em Florença ministrados por Eugenio Garin; em
Filologia e Linguística, assisti às aulas de Giacomo Devoto sobre o vocabu-
lário religioso indo-europeu, uma fonte inexaurível de erudição e bom gosto.
Em língua italiana, era Bruno Migliorini que exercia a sua cátedra. Em Litera-
tura Italiana, Walter Binni ensinava Leopardi. Em Filosofia Contemporânea,
Cesare Luporini, que já publicara estudos inovadores sobre Leonardo da Vinci
e o notável “Leopardi progressivo”. Um currículo aberto, que descortinava
horizontes desconheidos por um aluno de Letras.
Essa estação florentina não poderia deixar de abalar minhas convicções
teóricas. Começo dos anos 60: o idealismo em crise substituído pelo exis-
tencialismo sartriano, mas, sobretudo na Itália, pela descoberta dos cadernos
de cárcere de Gramsci lidos e estudados com fervor cultural e político. Ora,
Gramsci é o grande opositor do idealismo entranhado na estética crociana.
A sua obra é um diálogo polêmico com as interpretações crocianas de toda
a tradição literária italiana. Uma polêmica em que o adversário é respeitado,
admirado, mas contraditado pelo que teria de liberalismo burguês, logo avesso
ao marxismo militante do polemista.

101
Alfredo Bosi

Em direção semelhante, Luporini e Binni me ensinavam um Leopardi que


não se esgotava nos grandes idílios, mas aparecia como crítico acerbo das vá-
rias ideologias suas contemporâneas, que iam do liberalismo ao jacobinismo
carbonário, sem falar do persistente reacionarismo de uma nobreza (como a
de sua família de condes) que resistia a toda e qualquer forma de democra-
cia. Desse Leopardi não só pessimista, mas “resistente ao fado”, derivaria o
último capítulo de minha tese de livre-docência sobre Mito e Poesia em Leo-
pardi. Mais que uma tese, uma esperança no caráter resistente de toda grande
poesia, que procurei formular no livro O ser e o tempo da poesia, ao retomar a
análise de um dos últimos poemas de Leopardi, “La Ginestra”.)
Fechando o parêntese florentino, com imensa saudade, eis-me de novo em
São Paulo agora como professor de Literatura Italiana, desafio para um jovem
que estava encetando a sua carreira de italianista.
O que eu poderia ensinar retomava a dupla vocação do Curso de Literatu-
ra italiana, dividido entre a ênfase na teoria estética e a outra tônica herdada
de Ungaretti e Bettarello: a análise de textos poéticos.
Mas o contexto brasileiro já era outro: a virada para uma crítica literária
que incorporasse as tensões sociais e políticas não acontecia apenas na uni-
versidade italiana. Acontecia ainda mais vivamente entre nós naqueles anos
iniciais da década de 60. Como cidadão e professor, eu não poderia ficar
alheio às esperanças, difíceis esperanças, que alimentavam o projeto progres-
sista e nacionalista nascido no seio da militância reformista, de esquerda e
centro-esquerda, do governo Goulart. A luta pelas reformas (agrária, urbana,
econômica e política) passava pela universidade e particularmente por esta
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. As teorias dialéticas ou, lato sensu,
sociológicas começavam a estimular uma leitura contextual do texto narrativo,
poético, ou dramático.
No Depto. de Ciências Sociais, o magistério de Florestan Fernandes, de-
fensor da escola pública e das formas democráticas de governo, como socia-
lista que era, formava-se uma geração de explicadores do Brasil que fez escola.
Lembro esse fato, pois nos faz compreender por que só as Letras, na USP,
viriam a resistir à onda de estruturalismo que, por toda parte, no Brasil e no

102
Literatura italiana – na universidade e a partir da universidade

exterior, tendia a excluir da interpretação literária os condicionamentos his-


tóricos da obra de arte. Felizmente, com a vinda do Prof. Antônio Cândido
para reger a disciplina de Teoria Literária, só então criada, deu-se um impulso
à leitura social do texto, sem descartar as mediações subjetivas e formais que
integram igualmente toda composição literária.
De minha parte, essa guinada para a consideração das tensões sociais ou,
mais exatamente, psicossociais, presentes na gênese e na estrutura semântica
da obra, me levou à aventura de escolher a narrativa de Pirandello como tema
de tese de doutorado defendida no ano crucial de 1964. A narrativa, como
o teatro de Pirandello, afasta-nos de todo formalismo abstrato e lança-nos
em pleno coração do embate verdadeiramente dramático do indivíduo com
a sociedade que o formou e nele se introjetou. Uma espécie de
anarquismo rebelde, vibrante e quase sempre impotente, afinal
derrotado ou sublimado, remete a obra pirandelliana à realidade
concreta do descompasso entre o desejo e a lei, ou, para usar de
uma fórmula consagrada, entre vida e forma, entre o sujeito e a
forma social. Para mim, que já naquela altura era leitor constante
de Machado de Assis, ficava claro que a solução pirandelliana de
fuga pela loucura e pela morte fingida do sujeito, ou tardiamente
na imersão na natureza, era o oposto da solução machadiana que, no conto
O Espelho, dá a vitória final do conflito à máscara social. A máscara, para
Machado, seria um mal necessário. A máscara, para Pirandello, deve ser de-
nunciada senão arrancada a todo custo...
Tanto o contexto brasileiro pós-64, ferido no coração pelo golpe militar,
como minhas novas opções críticas consolidadas em torno da tese sobre a
narrativa pirandelliana influíram no teor dos cursos dados ao longo dos anos
60. Era importante manter nas aulas a poesia de Leopardi e de Ungaretti, mas
urgia também ler a poesia de guerra de Salvatore Quasimodo, falar do Realis-
mo no romance, remontando à inspiração de Verga e de Svevo, e analisando as
conquistas ficcionais de Moravia, Corrado Alvaro, Vittorini, Pratolini, Buz­
zati e do Experimentalismo sui generis de Gadda e Calvino. Nessa altura, ciente
de que o âmbito do curso de italiano era estreito em termos de divulgação da

103
Alfredo Bosi

Literatura Italiana, aceitei o honroso convite de Décio de Almeida Prado, de


saudosa memória, para me responsabilizar pela seção de Letras Italianas do
Suplemento Literário do Estado de São Paulo.
Mas talvez o que mais me empenhou como professor foi a volta à leitura
da Divina Comédia. A ocasião se deu em 1965, durante as comemorações do
Sétimo Centenário do nascimento de Dante. Os eventos não se limitaram a
conferências na USP e no Instituto Ítalo-Brasileiro (onde o scholar Edoardo
Bizzarri fazia a sua Lectura Dantis todas as quartas-feiras). A Comédia passou a
ser matéria de cursos de graduação. E, se nossos cursos de italiano precisavam
de receber uma lufada de Realismo, quem melhor do que o poeta do além e o
juiz aspérrimo dos vivos e mortos para trazer-nos às realidades deste mundo?
Dante conseguia no final do poema sacro elevar-nos da Terra ao Céu, embo-
ra sempre com os olhos postos na sua ingrata Florença. Mas quem nos trazia a
este mundo fazendo nossos pés sentirem a dureza do chão era outro florentino,
não poeta, mas prosador dos mais vigorosos e incisivos da língua italiana em
qualquer tempo: Maquiavel. Também ao autor do Príncipe recorremos em nossas
lições para compreender o difícil equilíbrio entre virtù e fortuna que determinam
os limites da nossa ação. De passagem, lembro que, neste 2015, o Príncipe faz
exatos 500 anos, e a sua amarga sabedoria ainda nos traz um fio de esperança.
Pois, “para que o nosso livre-arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade
que a fortuna seja o árbitro de metade de nossas ações, mas que ainda nos deixe
governar a outra metade, ou quase”, diz no admirável capítulo 25. A prosa de
ouro puro de Maquiavel nos dava ânimo para resistir em circunstâncias em que
o azar, ou seja, o infortúnio, parecia ter predominado inteiramente. A virtù era
ainda possível, ainda que ocupasse menos da metade da cena política.
O fim do decênio de 60 coincidiu com a reforma universitária que facul-
tava aos professores a escolha do departamento onde preferissem lecionar. Já
fortemente envolvido em estudos de Literatura Brasileira e tendo acabado de
escrever a História Concisa da Literatura Brasileira, amadurecera em mim a convic-
ção de que meu projeto intelectual poderia ser mais útil no campo das nossas
Letras e de nossa cultura, se passasse a trabalhar na disciplina de Literatura
Brasileira. O quanto meus anos de experiência italiana me ajudaram a pensar

104
Literatura italiana – na universidade e a partir da universidade

a literatura tanto em termos estéticos como em termos sociais, é dívida que


reconheço e declaro aqui de público.
Não termino sem lembrar um episódio recente de volta a Florença, graças
a um convênio entre a Academia Brasileira de Letras e a vetusta Accademia
della Crusca, uma das primeiras, senão a primeira academia da Europa. A
Crusca, que é sobretudo uma instituição que se dedica ao estudo e à defesa
da língua italiana, promoveu um seminário sobre o ensino do italiano no es-
trangeiro. A mim, coube falar da situação brasileira. Não tendo condições de
falar do presente, falei do passado e das circunstâncias em que tudo começou
para mim: a bolsa de estudos que me fez viver precisamente naquela cidade.
Lembrei que, indo para a faculdade, eu passava, ao largo do Arno, diante de
um edifício antigo onde havia uma placa: Accademia della Crusca. Eu não
sabia o que era, nem o que lá se fazia. Agora, tantos anos passados, lá estava
eu narrando minha vida de estudante na Via San Niccolò, ao pé do Piazzale
Michelangelo, morando no sótão de um prédio seiscentista que fora abrigo
dos cavalariços dos Condes Serristori. Em frente daquela velha casa escura e
pétrea, havia o Circolo Operario em que comunistas e velhos partigiani fala-
vam de política. Um deles era o pai do romancista Vasco Pratolini. Naque-
le momento, nas dependências do faustoso Palazzo Ricciardi, senti que era
preciso um professor brasileiro para lembrar aos florentinos que houve uma
Florença animada de círculos operários onde os velhos ensinavam aos jovens
que a literatura estava ali, no meio deles. E repetia dentro de mim a palavra de
Ungaretti: Tutto, tutto, tutto è memoria!

105
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio

Sterne e a tradição
irônica da Literatura
Mari a Luci a Gui m a r ã es d e Fa r i a Professora Adjunta
de Literatura
Brasileira da
UFRJ e Doutora
em Ciência da
Literatura pela

E
UFRJ, defendeu
xiste uma tradição irônica da Literatura. Com o Quixote, de tese sobre
Cervantes, tem início uma linhagem romanesca que adota Guimarães Rosa
um duplo movimento de escrita: de um lado, a construção de uma na Academia
Brasileira de Letras
trama de efabulação; de outro, a desconstrução das artimanhas em outubro de
narrativas, o desnudamento do princípio de composição, o diá- 2005. Foi uma das
logo crítico da Literatura com a própria Literatura. Desmonta- organizadoras do
livro Veredas no sertão
-se a motivação realista. A obra não apenas desmascara o seu ser rosiano (7Letras,
fictícia, mas escancara as entranhas do seu fazer-se, desvelando-se 2007) e do volume
diante do leitor, que é chamado a participar de seu processo de Secchin, uma vida em
Letras (EDUFRJ,
elaboração, de sua produção de sentido. Por uma via, ilude-se o 2013), em
leitor com todo o aparato de estratagemas romanescos; por outra, homenagem aos 60
rompe-se o contrato ficcional e o leitor experimenta o desmanche anos do acadêmico
Antonio Carlos
da ilusão dramática. Ao movimento crítico deflagrado pelo nar- Secchin.
rador, deve corresponder uma postura inquisitiva assumida pelo
leitor. O contraponto ao narrador autoconsciente é o leitor auto-
consciente.

107
Maria Lucia Guimarães de Faria

Remonta a Aristófanes e suas famosas parábases a inserção da metalingua-


gem crítica na trama das ações. Friedrich Schlegel eleva a parábase a um supremo
princípio de construção artística. Inaugura-se uma estirpe de romancistas que in-
corporam o movimento parabático permanente como a mais alta forma da voca-
ção crítica da Literatura. Ao entusiasmo criador, alia-se a força de um incessante
questionar. De múltiplas formas se realiza a disposição metaficcional de uma obra.
Fielding, no século XVIII inglês, funda a sua “nova província do escrever”, cujo
eixo de sustentação são os prefácios parabáticos com que introduz cada novo livro
do Tom Jones. Machado de Assis engendra a figura do defunto autor que, nascendo
na morte, imprime à sua narrativa uma perspectiva dual que lhe garante a constan-
te vigilância crítica e irônica sobre o ato de narrar. Nosso objeto de estudo é um
dos maiores mestres da desconstrução irônica, Laurence Sterne (1713-1768), e
sua obra-prima, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy.
“A arte de escrever, quando devidamente exercida”, explica Tristram Shan-
dy, “não é senão um nome diferente para a conversação” (II, 11). Obediente
a este princípio, ele estrutura a narrativa dialogicamente, o que estabelece um
tipo de contato revolucionário entre ele e o leitor. Trata-se de um vínculo que
se vai estreitando aos poucos. Se o narrador trabalha arduamente na tessitura
da trama, o leitor, tampouco, tem um minuto de sossego. São perguntas a
responder, enigmas a decifrar, obscuridades a esclarecer, trechos a reler:

______ Como pôde a senhora, leitora, ter sido tão desatenta ao ler o
último capítulo? Nele eu vos disse Que a minha mãe não era uma papista. ___
Papista! O senhor não me disse tal coisa. Senhora, peço-vos licença para
repetir outra vez que eu vos disse, tão claramente quanto as palavras, por
inferência direta, podem dizê-lo. ___ Então, senhor, eu devo ter pulado
a página. ___ Não, senhora, ___ não perdestes sequer uma palavra. ___
Então devo ter pegado no sono, senhor. ___ Meu orgulho, senhora, não
vos permite semelhante refúgio. ____ Então declaro que nada sei sobre o
assunto. ___ Essa, Leitora, é exatamente a falta de que vos acuso; e, como
castigo por isto, eu firmemente insisto em que volteis atrás, isto é, tão logo
alcanceis o próximo ponto final, e leiais o capítulo todo de novo. (I, 20)

108
Ster ne e a tradição irônica da Literatura

As tarefas do leitor vão mais longe. Ao ver-se em embaraços, Tristram soli-


cita os conselhos do leitor. Em III, 23, ele hesita em contar uma história fora
de hora:

– Que é que vossas reverências desejam que eu faça neste caso?


– Contai-a, Mr. Shandy, sem dúvida.
– Serás um tolo se o fizeres, Tristram.

Há ainda mais. O leitor tem tanto direito quanto o autor de pintar perso-
nagens. Em VI, 38, Tristram deixa ao leitor uma página em branco para que
pinte a viúva Wadman segundo sua fantasia. Em outras passagens, o leitor
aproveita o vazio para xingar a praga de sua preferência (VII, 37); ou supre a
palavra ou frase não-ditas (II, 6; III, 17); ou formula uma hipótese (V, 10).
O leitor transforma-se num verdadeiro personagem da história. Os brancos
funcionam como armadilhas que enredam o leitor nas malhas da narrativa.
No livro VI, o contato entre Tristram e o leitor já é tão íntimo, que ele o
convida a penetrar na privacidade do quarto de seus pais. Atente-se para o
tom de cumplicidade:

Eu explicarei a natureza destes leitos de justiça no meu próximo capí-


tulo; e no capítulo subsequente, senhora, avançareis comigo para detrás da
cortina, apenas para ouvir de que maneira meu pai e minha mãe debateram
entre eles esta questão dos calções.

Ao conceder ao leitor tamanha liberdade, Tristram permite-lhe invadir a


narrativa e vasculhar os seus segredos. Há “limites”, porém. Por vezes, Tris-
tram precisa podar-lhe os excessos (III, 33). Ele o faz, entretanto, num tom
tão dúbio, que mais aguça a sua malícia. No livro III, a propósito de uma
frase dita por sua bisavó a seu bisavô – “Porque (...) o senhor tem pouco ou
nenhum nariz” –, Tristram propõe-se a explicar exatamente o que quer dizer
com “nariz” para evitar interpretações equívocas, pois o seu é um livro de es-
trita moralidade. Na referida palavra, há dois sentidos, e, consequentemente,

109
Maria Lucia Guimarães de Faria

dois caminhos – um sujo e um limpo. Para que o leitor não tome a vereda
suja, ele anuncia que vai definir o termo “nariz” – mas, antes, implora e supli-
ca aos leitores, do sexo masculino e feminino, de qualquer idade, compleição e
condição, pelo amor de Deus e de suas próprias almas, que se guardem contra
as sugestões do diabo. Depois de tanta preparação, a prometida definição:

– Pela palavra Nariz, por todo este longo capítulo de narizes, e em qualquer
outra parte da minha obra onde a palavra Nariz ocorrer –, declaro que, pela dita
palavra, quero dar a entender nariz, nada mais, ou menos.

Ao “definir” o vocábulo, ele se limita a repeti-lo, deixando latentes suas


ambiguidades. Nem poderia ser de outra forma, já que “definir é desconfiar”
(III, 31).
Trata-se, portanto, de cultivar as duplicidades. Daqui resulta não apenas
o humor, mas o próprio princípio que entretece a obra – o da divergência e
reverberação de sentido, mediante a ocultação e desocultação, responsáveis
pela ambiguidade. O romance não obedece à lógica da sucessividade ou da
causalidade, mas desarticula-se continuamente.
Tristram Shandy é o primeiro a reconhecer o “estranho estado de coisas”
entre ele e o leitor à altura do livro IV. Estando ele um ano mais velho, e
tendo escrito três volumes e meio, ele ainda não conseguira sequer completar
o seu primeiro ano de vida! Logo, ele não avança como um escritor comum,
mas deveria viver 365 vezes mais rapidamente do que escrever. Segue-se que,
quanto mais ele escrever, mais terá a escrever. Daí a pergunta: “Seriam todos
os dias da minha vida tão movimentados quanto este?”
Mas este, qual? O do seu nascimento, cheio de peripécias, atropelos e rup-
turas? Ou o da escritura, não menos acidentada, regida por um movimento
progri-regri-digressivo? Digressões, aliás, confessa Tristram, são a alma da
leitura: “Retirai-as deste livro, por exemplo, ___ podeis levar o livro junto
com elas; ___ um eterno e gélido inverno reinaria em cada página” (I, 22).
Percebe-se que o importante não é o que narrar, mas narrar, levando às últi-
mas consequências a autorreflexão crítica. Texto e metatexto desenvolvem-se

110
Ster ne e a tradição irônica da Literatura

lado a lado. A obra é a sua própria gênese, e Tristram, um biógrafo único, já


que, ao narrar um narrado que se vai constituindo, ele dissolve a narrativa
de sua vida pregressa, perde-se em associações presentes de ideias momentâ-
neas, destrói a história, entrelaça enunciado e enunciação, e faz do tempo da
narrativa o seu próprio tempo. Tristram não narra a sua vida, mas vive a sua
narrativa.
As lacunas, as dúvidas, os enigmas são essenciais à obra.
Ao final do capítulo 17 do livro IX, Tristram nos convida
a entrar na casa da viúva Wadman, onde já está o tio Toby.
Ao virarmos a página, eis deparamos... a nossa expectativa
frustrada. Os capítulos 18 e 19 estão... ausentes! Vamos ao
capítulo 20. Um travessão abre o primeiro parágrafo, outro
o fecha, e entre eles.... asteriscos! Após este surpreendente primeiro parágrafo
– reticente depois de dois capítulos omissos!! – uma frase tremendamente am-
bígua do tio Toby: “Vereis o lugar exato, Madame.” Mrs. Wadman enrubesce,
olha na direção da porta, empalidece, cora de leve outra vez, recupera a cor
natural, enrubesce mais violentamente, sequência que Tristram traduz assim:

S-----r! Não posso olhar para AQUILO –


Que diria o mundo se eu olhasse para AQUILO –
Eu cairia dura se olhasse para AQUILO –
Bem que eu gostaria de poder olhar para AQUILO –
Não pode haver pecado em olhar para AQUILO.
Eu vou olhar para AQUILO.

Após esta tradução – à qual se seguem mais reticências – a narrativa dar-


deja-nos a próxima frase do tio Toby: “– Colocareis o vosso dedo sobre o
lugar”, ao que a viúva retorque, para si mesma: “Não tocarei NAQUILO,
contudo.”
Imediatamente, nossos olhos voltam às páginas em branco. Que se teria
passado até a estranha frase do tio Toby? E... aquilo é.... AQUILO mesmo?
O tio Toby não faria tal proposta indecorosa à viúva... Mas esta pensava era

111
Maria Lucia Guimarães de Faria

NAQUILO mesmo. Mas como teriam chegado a este ponto? Que teria a
viúva dito na longa fala que abre o capítulo 20? De repente, uma observação
de Tristram me atravessa a mente:

(...) sou de humor tão refinado e singular que, se julgasse fôsseis capaz
de formar convosco mesmo o menor juízo ou provável conjectura do que
está para vir na próxima página – eu a arrancaria do meu livro (I, 25).

Esta sequência desvela muito da estratégia narrativa de Tristram Shandy.


Do choque das omissões e revelações sucessivas emerge o que não é repre-
sentável, e o não-dito diz-se. Estas são as regras do jogo – as regras inéditas
deste jogo único que é a obra – e, a menos de as apreendermos e aceitarmos,
ficaremos excluídos da festa, ao invés de compartilharmos do riso.
É sempre mordaz o tom com que Tristram se insurge contra regras e o
tratamento que dispensa ao dogmatismo reacionário da crítica. Em V, I, ele
se revolta:

Faremos para sempre novos livros, como os farmacêuticos fazem novas


misturas, apenas derramando o conteúdo de um recipiente dentro de outro?
Ficaremos para sempre torcendo e destorcendo a mesma corda? sempre
no mesmo caminho – para sempre no mesmo passo?

Em III, 12, ele parodia um crítico “por ofício”, comentando o solilóquio


do ator Garrick:

– E como foi que Garrick recitou o solilóquio na noite passada? ___


Oh, infringindo todas as regras, milorde, ___ agramaticalmente ao ex-
tremo! Entre o substantivo e o adjetivo, que devem concordar entre si em
número, caso e gênero, ele fazia uma pausa, __ detendo-se como se se tratasse
de questão a decidir; __e entre o caso nominativo, que vossa senhoria sabe
deve governar o verbo, ele suspendeu a voz, no epílogo, uma dúzia de vezes,
durante três segundos e três quintos, milorde, marcados pelo cronômetro.

112
Ster ne e a tradição irônica da Literatura

_____ Admirável gramático! _____ Mas ao suspender ele a voz ___ sus-
pendeu-se igualmente o sentido? Será que nenhuma expressão de sua pos-
tura ou do seu semblante preencheu o vazio? __ O olho estava silencioso?
Olhastes bem de perto? ____ Olhei só para o cronômetro, milorde. ___
Excelente observador!

Consciente do caráter inovador da sua obra, ele antecipa a crítica desinte-


ligente:
E quanto a este novo livro em torno do qual estão fazendo tanto alvo-
roço? ___ Oh, totalmente fora de prumo, milorde ___ uma coisa muito
irregular! nenhum dos ângulos, nos quatro cantos, é um ângulo reto. Eu
trazia minha régua e compassos, &c., milorde, no meu bolso. ____ Exce-
lente crítico!

Três passagens evidenciam o desprezo de Tristram pelos preceitos:

Grande Apolo! se estás num humor propício a concessões, __ dá-me


apenas___ não te peço mais, um só toque de humor nativo, com uma única
centelha de teu próprio fogo __ e manda Mercúrio, com réguas e compassos,
(...), com os meus cumprimentos para __ não importa (III, 12).

Um homem deve seguir regras, ou devem as regras segui-lo? (IV, 10)

Se me emendo neste ritmo, não é impossível _______ com a bondosa


permissão dos demônios de sua graça de Benevento ______que eu possa
chegar daqui para a frente à excelência de prosseguir assim
_____________________________________________________
que é a linha mais reta que pude traçar com o auxílio de uma régua de
mestre de caligrafia, (...), sem me desviar para a direita nem para a esquerda
(VI, 40).

Ao mandar Mercúrio com suas réguas e compassos para o diabo, Tris-


tram reafirma o que dissera de início após “desculpar-se” com Horácio:

113
Maria Lucia Guimarães de Faria

“Não me confinarei nem às suas regras, nem às de qualquer homem que te-
nha existido” (I, 4), reclamando total autonomia na condução de sua obra.
Não fora outro o motivo alegado para a omissão dos capítulos 18 e 19 do
livro IX: ele precisava contar o capítulo 25 antes do 18 e do 19! E espera
que isso sirva de lição ao mundo para deixar os autores contarem suas es-
tórias à sua maneira...
Dogmas são frios como o inverno, como a fome, como a linearidade, como
a austeridade mascarada, como a Morte. Como fugir aos dogmas? Eis o de-
safio de Tristram. E eis a sua solução: escrevendo uma obra que representa
a ruptura com todos os gêneros narrativos, a recusa de qualquer sistema de
decodificação, o esfacelamento e a decomposição perpétuos da unidade –
uma obra que reivindica a todo instante a sua liberdade criadora. E como evi-
tar a frialdade? Narrativivendo, misturando narração e narrado, atualizando
a enunciação e conferindo-lhe a vivacidade de gestos: ele tira o chapéu para
escrever mais solenemente! (III, 39).
Todos os males da hipocrisia, da impostura, da aridez de espírito, se repre-
sentam para Tristram na continuidade da linha reta. Urge adotar a circularida-
de, a diagonalidade, a obliquidade. Aliás, o pobre Tristram fora vítima desde
cedo de uma “inexplicável obliquidade” (I, 3). Compreendem-se os gráficos
de VI, 40: os rococós e arabescos desenham o sinuoso movimento narrati-
vo dos cinco primeiros livros, consonantes com a impetuosidade da vida. É
altamente irônica, portanto, a terceira citação, o propósito de “corrigir-se”
doravante e narrar linearmente... É oportuno lembrar que o vocábulo inglês
ruler significa simultaneamente “régua” e “legislador”.
E como aliviar a gravidade e escapar à Morte? Este é o desígnio mais filo-
sófico do livro. Já a primeira dedicatória o enuncia:

Jamais uma pobre Criatura dedicante pôs menos esperanças em sua De-
dicatória do que eu nesta; pois ela é escrita num obscuro rincão do reino
e numa erma casa com teto de colmo onde vivo num constante esforço de
repelir os achaques de uma saúde precária, e outros males da vida, pela ale-
gria; estando firmemente persuadido de que sempre que um homem sorri,

114
Ster ne e a tradição irônica da Literatura

_____ mas muito mais ainda, quando ele ri, acrescenta-se alguma coisa a
este Fragmento de Vida.

Dentro da terapêutica do humor, Yorick é a alma do livro. Quixotescamen-


te esquálido, ele nasce de um cruzamento intertextual, que remete a Cervantes
e ao bobo da corte do Hamlet, de Shakespeare. Quando ele morreu – alas! – a
página branca tingiu-se de um retângulo preto... Foi Yorick, afinal, quem sin-
tetizou o livro numa última frase perspicaz e cômica:

D___s! disse minha mãe, sobre que é toda esta história?


Um GALO e um TOURO, respondeu Yorick. ______ E uma das me-
lhores no seu gênero.

Uma “história-de-galo-e-touro” (a cock-and-bull story) é um conto da caro-


chinha. A resposta de Yorick, que encerra o livro, além de aludir galhofeira-
mente a esta expressão, insere-se no subtexto sexual que permeia o romance, já
que cock é um termo chulo para pênis e o touro é o representante máximo da
potência sexual. O galo é o tio Toby; o touro, de controversa potência, é Mr.
Walter Shandy, pai de Tristram.
Mr. Shandy era homem de hábitos graves. Uma vez por mês, após ter dado
corda ao relógio carrilhão, ele se encontrava com a esposa. Na fatídica noite
em que Tristram foi concebido, ele se esquecera do relógio. Mrs. Shandy,
lembrando-se da desastrosa omissão no meio do ato, interrompeu-o – e foi
uma dispersão de espíritos vivificantes:

Desditoso Tristram: filho da ira! filho da decrepitude! interrupção! desa-


certo! desgosto! Existe um único infortúnio ou desastre no livro dos males
embrióticos, que poderia desarticular a tua estrutura, ou emaranhar teus
filamentos, que não tenha caído sobre tua cabeça, ou mesmo antes de vires
ao mundo _____ que calamidades na tua passagem! _____ que fatalida-
des desde então! _____ gerado no declínio da vida de teu pai, quando os
poderes de sua imaginação e de seu corpo já se debilitavam... (IV, 19).

115
Maria Lucia Guimarães de Faria

Pobre Mr. Shandy! Um idealizador de teorias tão férteis... Primeiro, a do


tamanho dos narizes. O que foi feito do nariz de Tristram? Achatado, par-
tido... E a fulgurante teoria dos nomes de batismo? De todos os nomes, ne-
nhum despertava mais aversão em Mr. Shandy do que “Tristram”, “melancó-
lico dissílabo”... (I, 19). Tristram era para ter-se chamado TRISMEGISTUS
– três vezes forte. Ao invés disso, a Fortuna enredou tudo de tal maneira que
do grandioso nome só restou a primeira sílaba: TRIS – ao qual o padre, não
conhecendo outro nome com o começo, remendou o abominado TRAM!...
E como se não bastasse, desastrou-se também a mais excêntrica e formidável
de todas as suas teorias: a da preservação da delicada tessitura do cerebelo.
Como evitar que o cérebro dilacerasse a frágil trama do cerebelo? Bastava que
o bebê fosse extraído pelos pés!
Poderia uma criatura que, como HOMEM, foi vítima de toda sorte de
compressões e esmagamentos, ser, como AUTOR, menos tortuosa e labirínti-
ca? Poderia um nome tão nefando quanto impronunciável ter tido consequên-
cias menos ruinosas? Poderia o parto de sua obra ser menos emaranhado que
o fora o de sua pessoa? Poderia o parto de sua pessoa na sua enovelada obra
ser menos fragmentariamente narrado? E, ao narrar, poderia ele expressar-se
de outra forma, senão mediante aqueles longos e sincopados períodos, de
sintaxe retorcida e retalhada? Poderia ele evitar as profusas enumerações que
confundem e dispersam a sua narrativa, como os golpes e as adversidades fla-
gelaram a sua vida? Poderia o emaranhamento que entretece o seu enunciado
não perpassar a sua enunciação? Poderia, em suma, para uma narrativa que se
forma, se deforma e se transforma – que é tecida, enredada e tramada diante
de nossos olhos – haver termos etimológica e literariamente mais propícios
do que TEXTO, ENREDO E TRAMA? Ao desconstruir ironicamente a
forma romanesca, desnudando-a ao leitor, Tristram a torna perceptível, dan-
do-lhe, por assim dizer, evidência ontológica.
Tal é a delicadeza do tecido narrativo que ele se rompe a todo instante:
palavras a que faltam letras; frases a que faltam palavras; períodos destituí-
dos de orações; ideias carentes de conclusões; inícios desprovidos de térmi-
nos; livros a que foram arrancados capítulos; diálogos iniciados num livro

116
Ster ne e a tradição irônica da Literatura

e retomados apenas no livro seguinte; capítulos cortados no meio de uma


conversa; sequên­cias rompidas etc.
Podem-se evocar nesta conjuntura as três Parcas infernais: Cloto, responsável
por tecer os fios da vida, Laquesis, encarregada de trançar o destino, Átropos,
sempre pronta a rompê-los. Este substrato mítico esclarece o “es­curo véu” que
sombreia a obra. O que “jaz misteriosamente escondido” sob ele é a Morte. Em
todas as instâncias, tanto do enunciado quanto da enunciação, a MORTE está
presente, acossando a vida de Tristram e a de sua narrativa. Fica-nos impressa na
mente aquela página da Morte – o retângulo preto sobre fundo branco – que
surge logo no início da obra. Tristram por vezes interrompe a escritura devido à
sua saúde precária. Para afastar a Morte, ele invoca o “Gentil Espírito do mais
doce humor”, que inspirou Cervantes. Avulta muito
nitidamente a “pedagogia do bom humor” que anima
a narrativa.
Filho direto do Humor é o Wit, que Tristram en-
carece em seu “Prefácio do Autor”, o qual só é apre-
sentado ao leitor no capítulo 20 do livro III. Trata-se de um longo ensaio em
que Tristram se propõe a explicar como é que os homens de menos espírito
são reputados os de mais discernimento – o que é falso e infame – pois enge-
nho (wit) e juízo (judgment), porque se contrabalançam numa espécie de sábio
contraponto, são ajustados para responder um pelo outro. Wit e judgment são
precisamente os condimentos centrais com que Tristram tempera sua obra.
Uma das manifestações do wit shandiano é o valer-se de toda sorte de ex-
pedientes para engendrar significado. O “emblema” que ele idealiza para a sua
obra é um mosaico no qual elementos contrários – o branco e o preto, o claro
e o escuro, círculos pequenos e círculos grandes, imobilidade e movimento, le-
veza e peso, poder-se-ia dizer, Vida e Morte – se justapõem e se entrechocam,
produzindo um sentido que transcende cada elemento individual. Daquele
emblema desprendem-se ideias.
A esta estratégia visual soma-se um outro recurso. Em I, 13, Tristram se
refere à obra como “este trabalho rapsódico”. A rapsódia é uma composição
musical irregular, composta pela justaposição de melodias populares. A noção

117
Maria Lucia Guimarães de Faria

de RAPSÓDIA ratifica a de MOSAICO e acrescenta-lhe um aspecto novo:


o elemento musical. É de lembrar que Yorick avaliava musicalmente os seus
sermões – moderato, tenute, grave, a l’octava alta, con strepito (VI, 11) – e, ao ver-se
embaraçado, assobiava o seu Lillabullero, espécie de tema do personagem, seu
argumentum fistulatorum. De um lado, o emblema pictórico, de outro, a metá-
fora musical da obra. Nesta perspectiva, os reiterados cortes, as sucessivas
rupturas, as interrupções do enunciado e da enunciação assumem uma nova
significação: eles engendram um ritmo sincopado, que confere à obra uma
musicalidade especial.
Rege a narrativa uma harmonia musical. Por que é que o capítulo 24 do
livro IV foi eliminado? Porque, explica Tristram no 25, “o livro é mais perfei-
to e completo carecendo do capítulo do que o tendo”. O capítulo continha a
descrição de uma cavalgada, mas esta revelou-se

tão acima do estilo e da maneira de tudo o mais que eu tenho sido capaz de
pintar neste livro, que ela não poderia ter permanecido nele, sem depreciar
todas as outras cenas; e sem destruir, ao mesmo tempo, aquele equilíbrio
e aquela estabilidade (quer bons ou ruins), entre capítulo e capítulo, de
que resultam as justas proporções e a harmonia do conjunto da obra. De
minha parte, sou um principiante na matéria, da qual conheço muito pou-
co___ mas, em minha opinião, escrever um livro é para todo mundo como
cantarolar uma canção_____ desde que se esteja afinado consigo próprio,
senhora, não importa quão alto ou quão baixo você o faça.

O capítulo foi retirado porque estava “fora do tom”, desafinava! Uma obra
harmoniosa é, portanto, aquela que não desafina, que entoa em todas as ins-
tâncias uma mesma concepção embasadora, executando em qualquer nível o
tom norteador de um princípio gerador fundamental. E a harmonia não se faz
apenas com sons, mas também com silêncios – tempos “cheios” e tempos “va-
zios”, capítulos e não-capítulos, palavras, frases, ideias, de um lado, brancos,
lacunas, travessões, do outro. Estamos diante de uma tensão de contrários –
full e fasting, “saciedade” e “jejum”.

118
Ster ne e a tradição irônica da Literatura

Este é o assunto do interessante capítulo 17, do livro VI. Os antigos Godos


da Alemanha debatiam os seus assuntos em dois estados opostos – embriaga-
dos e sóbrios –, o que dava às suas decisões o perfeito equilíbrio entre vigor e
circunspecção. Mr. Shandy, que só bebia água, “shandianizou” o costume. Para
resolver os problemas familiares, que exigiam tanto de energia quanto de auste-
ridade, ele procedia a dois “leitos de justiça”: depois de um longo período sem
sexo, e imediatamente após a satisfação sexual. Tristram, por sua vez, aproveita
a lição de seu pai e, “tristramizando-a”, adota dois procedimentos opostos e
complementares para sua escritura: ou ele escrevia metade “repleto”, e a outra
metade “em jejum”, ou escrevia “repleto” e corrigia “em jejum”, ou vice-versa.
“Escrever repleto” é entregar-se à plenitude inventiva e à audácia artística,
deixando-se tomar pela liberdade criadora. “Em jejum”, porém, Tristram de-
monstra uma boa parcela “daquela subjugante virtude da discrição”. Eis aí o
equilíbrio entre “loucura” e “sabedoria”, entre wit e judgment, entre entusiasmo
poético e reflexão crítica. Esta é a perfeita expressão da HARMONIA DOS
CONTRÁRIOS, de que resulta “um tipo descontraído de livro – cortês, dis-
paratado, bem-humorado – shandiano. A harmonia da obra resulta, portanto,
de uma tensão de contrários.
Tensão de contrários, a Morte acossando a Vida, suspendendo-a por ins-
tantes, rompendo o fio da Narrativa, que se dispersa para despistá-la, o Hu-
mor dando alento a ambas, Vida e Narrativa, o romance se multiplicando,
diferindo de si a todo instante, transcendendo-se, harmonizando-se em dis-
sonância.... Pode-se propor como par antagônico fundamental, não propria-
mente Vida e Morte, mas Morte e Ressurreição, que dão ensejo a um morrer
e nascer contínuos, como sequência essencial, estruturadora do livro. Nesta
perspectiva, a narrativa de 1.ª pessoa assume uma fundura existencial notável,
porque já não se trata de relatar a autobiografia de um eu de outrora, mas de
empreender a bioautografia de um eu de agora que se engendra às expensas
do narrar, um narrar que suplanta em importância o evento narrado, pois
se legitima como supremo ato de afirmação vital. Moderno no inusitado
manejo da forma narrativa, moderníssimo e premonitório no aproveitamento
funcional de toda espécie de recursos gráficos que se incorporam ao gestual

119
Maria Lucia Guimarães de Faria

narrativo, The Life and Opinions of Tristram Shandy é ainda atualíssimo nesta es-
crita de si, que dá à luz um ser no horizonte da linguagem, num misto de
entusiasmo criador e autoconsciência crítica.

Referências
CERVANTES, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha (tradução Sergio
Molina). 2 vols. São Paulo: Editora 34, 2003 e 2007.
FIELDING, Henry. Tom Jones (tradução Octavio Mendes Cajado). Rio de Janeiro:
Globo, 1987.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosó-
fica (t. de Flávio Paulo Meurer). Petrópolis: Vozes, 1998.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de
Janeiro: Garnier, 1992.
STERNE, Laurence. The life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman. London and New
York: J. M. Dent & Sons Ltd. / E. P. Dutton & Co Inc., 1961.
_____ A Vida e as Opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (tradução José Paulo Paes). Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

120
Ensaio

O ABC de
Marcel Proust
Lúci a Bettenc o u rt Carioca, com
doutorado em
Letras. Dedica-se
à escrita de contos,
romances e ensaios.

E
Seu mais recente
mbora tenha ficado conhecido por Em busca do tempo perdido, romance, O regresso,
Marcel Proust escreveu outras obras. Em vida, publicou Os foi publicado em
2015, pela Editora
prazeres e os dias, além de traduções de Ruskin e diversas crônicas, Rocco.
pastiches e poemas em jornais. Postumamente apareceram Contra
Sainte-Beuve e Jean Santeuil. Sua obra-prima, Em busca do tempo perdido,
romance em sete volumes, é difícil de ser resumida, pois é um painel
de época. Mas é também apenas a história de quem deseja escrever
e ainda não descobriu seu tema. O assunto é a própria vida, e a
memória que recupera o tempo perdido em viver. Pretende explicar
como transformamos esse tempo que foge naquilo que permanece
nosso, unindo os múltiplos eus que acumulamos durante a vida.
A obra lembra um jardim cultivado sem que se denuncie a mão
do criador. Nele, as diferentes espécies vegetais disputam nosso
olhar, enquanto nos fazem esquecer o jardineiro, cuja arte é desapa-
recer, fazendo-nos crer que tudo se deve aos caprichos da natureza.
Marcel Proust, autor, se esconde num romance em primeira pessoa

121
Lúcia Bettencourt

cujo “eu” se desdobra e multiplica escondendo o criador, que acreditava que o


texto literário deve ser apreciado em si mesmo, contrariando o pensamento do
principal crítico da época, Saint-Beuve. Este sustentava que a biografia do au-
tor é o que dá valor à obra. Defendendo o oposto, Proust escreveu, em 1908,
o ensaio Contra Sainte-Beuve, que evoluiu e originou o romance cuja publicação
se iniciou em 1913, mas que só se completou em 1927 –, os 3 tomos finais
só vieram a público após sua morte, em 1922.
Terminando a introdução, lembro que o romance suscitou discussões
quanto a ser memorialista. Hoje o termo “autoficção” define o livro que, ao
falar da época em que o autor viveu e aproximar o narrador de um homem da
sociedade desejoso de se tornar escritor, caminha paralelamente ao conceito
de memória. Esta, em Proust, adquire nova nuance – a “memória involuntá-
ria”, aquela que nos faz reviver, através de sensações físicas, o “eu passado”
superpondo-o ao “eu presente”, estimulando a elaboração da escrita.

ȄȄ A, de Amor
O Amor é apresentado como um sentimento negativo, uma tortura recí-
proca, quer se trate de amor maternal/filial; amor entre amigos; amor héte-
ro ou homossexual. Todos aparecem sob uma luz de descrença que nos faz
chegar à conclusão de que o amor, em Proust, é uma impossibilidade. Amar
é desejar e, para isso, é preciso que haja falta. Quando se conquista o outro,
obtém-se o fastio, a sensação de derrota, já presente na relação mãe/filho.
Uma relação que é apresentada mediada pela leitura e problematizada pela
existência simultânea, de duas figuras maternas poderosas: a mãe e a avó.
A mãe abre os olhos do filho para o fato de que, no amor, a felicidade
parece não existir, pois toda vitória implica uma derrota. Fazer a vontade
ao filho e aceitar a determinação do marido é a derrota materna. A mãe não
deseja ceder e, ao capitular, reprime seu desejo. Qual seria o lugar do desejo
materno? Essa é a lacuna que será preciso preencher, percebe o menino, para
que a mulher não seja apenas um símbolo, mas coloque-se a seu lado como
um signo em sua inteireza. O episódio se encerra com um ato aparentemente

122
O ABC de Marcel Proust

inocente, a mãe que lê para o filho dormir. Acontece que o romance escolhido
pela mãe – dentre os livros selecionados pela avó –, é François Le Champi, de
George Sand, no qual há uma sugestão de amor incestuoso. A mãe, ao ler, vai
“editando” a história e o menino percebe que a verdade se esconde nas lacu-
nas. O que é omitido, aquilo que se cala, portanto, adquire uma importância
fundamental e passa a ser o verdadeiro objeto do seu desejo. Essa primeira ex-
periência, cheia de angústia e derrota, vai caracterizar as relações sentimentais
experimentadas pelo narrador ao chegar à juventude.
A amizade, o amor entre amigos, também não aparece sob luz favorável.
Interpreta-se o sentimento como um sacrifício da parte real e incomunicá-
vel de um ser a um outro alguém que não consegue encontrar alegria em
si mesmo. Pior ainda, Proust adota a opinião de Schopenhauer
e situa a amizade entre o aborrecimento e o tédio. No entanto,
a relação entre o narrador e Saint-Loup é bela e cheia de cenas
inesquecíveis de devoção e delicadeza. A impressão final, no en-
tanto, é negativa, como se este sentimento também fosse enga-
nador e incapaz da verdadeira aproximação entre dois seres, uma
vez que a incomunicabilidade entre as pessoas, para Proust, só é
rompida pela Arte.
O amor entre um homem e uma mulher também é examinado. O
único trecho em terceira pessoa desta obra, a pequena novela dentro
do romance, Um amor de Swann, destaca-se no tempo e até mesmo no
espaço. Swann, esse cisne em que o patinho feio judeu se transformou é
o protagonista de um caso de amor cujo desenlace é extraordinário, já
que a mulher não era o seu tipo. Ora, se ela não era o “seu tipo” como está tradu-
zido por Mário Quintana, qual seria este tipo, ou gênero? Há várias possibilidades,
mas a resposta é omitida, uma lacuna que pode ser preen­chida pela interpretação,
mas que, na obra, permanece em aberto.
Nas relações amorosas do narrador, a um momento de indefinição e de múl-
tiplas possibilidades segue-se a escolha por Albertina. Seu amor, difuso e vazio,
abrangente, exige uma definição de pessoa, mas Albertina não é unicamente
Albertina. É o próprio enigma que não se deixa revelar, um ser em fuga, como

123
Lúcia Bettencourt

aparece definida. Ao ser levado, por um comentário, a suspeitar da homosse-


xualidade de sua amiga, o narrador se obstina em esclarecer-lhe a verdadeira
natureza, mas esta lhe escapa e permanece indecifrável. Ao contrário de Charlus,
o principal protagonista dos amores de Sodoma, e que, à sua própria revelia vai,
com a idade, mostrando atitudes femininas, confirmando sua verdadeira natu-
reza. Charlus introduz o estudo do homossexualismo masculino nas páginas em
que a observação botânica revela uma “inversão” carregada de pathos e da cons­
ciência de sua “maldição” (palavras do autor). Numa única metáfora, fala-se
não apenas de sodomia, mas de religião – e de preconceito.
A inversão de Charlus também está ligada a outro comportamento des-
viante: a prática sadomasoquista. Num episódio protagonizado pelo barão,
a violência de um mundo em guerra desabrocha num sexo também em guer-
ra, agressivo. O grão-senhor que se deixa açoitar é aquele que foi açoitado,
metaforicamente, por uma nova sociedade que afasta, sem piedade, os que se
julgavam bem estabelecidos.
Ao abordar o tema dos amores homossexuais, Proust se revela pioneiro,
mas peca, segundo Gide, por não se assumir como tal. O narrador e seu alterego
Swann são os únicos que permanecem, do início ao fim do romance, como
héteros. Praticamente todos os outros personagens masculinos e femininos,
cedo ou tarde, revelam que Sodoma e Gomorra, embora perseguidas, nunca
foram completamente destruídas. Renasceram entre as cinzas brilhantes da
cidade-luz, aparecendo nos diversos ambientes romanescos tal como uma flor,
profundamente enraizada, sobrevivendo em todos os lugares.

ȄȄ B, de Beijo
O desejo de encontro com o Outro é uma constante no enredo e já está
presente desde o episódio do beijo materno. A criança que aguarda a mãe,
todas as noites, e que precisa de seu beijo para conseguir dormir, mas que se
angustia ao pensar que este será breve e insatisfatório, permanecerá vivo nas
angústias do jovem que reencontra, na namorada, o alívio do beijo seguido
pela ansiedade da dúvida. O paralelismo entre o beijo materno e os trocados

124
O ABC de Marcel Proust

entre o narrador e Albertina possui variações, mas o essencial é sempre o mes-


mo: a espera, a ânsia, a necessidade do beijo como de um viático para dissipar
a angústia e afastar a solidão. Necessidade seguida pela inevitável decepção e
recomeço de todo o processo.
Em Combray, o beijo materno traz à criança emotiva e ansiosa um breve
momento de calma, mas é também motivo de dor, pois antecipa a separação.
Este primeiro beijo é descrito com a lente “aberta”, incluindo a família, o
visitante, a empregada. Um beijo quase universal. Depois, a lente se fecha até
chegar ao episódio em close-up do beijo em Albertina.
Com a face da mulher cada vez mais próxima, a tensão e a sensualidade
crescentes terminam, no entanto, num anticlímax: o rosto próximo demais
impedindo a visão, o nariz esmagado contra a pele, impedindo a respiração, e
a triste constatação de que não temos um órgão especial para beijar. O beijo
representa perda, ao invés de conquista. Nas lides amorosas com Albertina,
os momentos “breves, mas inevitáveis, em que se detesta a quem se ama” vão-
se multiplicando; de forma que a relação amorosa se torna uma espécie de
perseguição e fuga. Quanto mais um se obstina em esclarecer, mais o outro
se empenha em manter sua impenetrabilidade. A narrativa transforma, gra-
dativamente, a Albertina boa, dona de um poder de alívio comparável ao do
beijo materno, numa mulher capaz de lhe recusar o beijo. Por isso, o narrador
recorre a um estratagema: aproveitando-se de que o adormecimento da amada
era quase instantâneo, e que seu sono era pesado, o rapaz passa a preferi-la
dormindo.
Adormecida, a jovem readquire toda a inocência que as suspeitas do na-
morado haviam maculado. Diz-nos ele: “Estendida a fio comprido em minha
cama, numa atitude de uma naturalidade que não se teria podido inventar,
dava-me a impressão de uma longa haste em flor que houvessem colocado ali,
e o era efetivamente [...] como se dormindo ela se tivesse convertido numa
planta” (BTPv5, p. 53).
As cenas se tornam mais explicitamente sensuais à medida que o sono da
mulher é mais profundo, e que a fantasia do narrador a aproxima da represen-
tação da baía de Balbec:

125
Lúcia Bettencourt

Então, sentindo que ela estava em pleno sono e que eu não iria chocar-
-me em escolhos de consciência recobertos agora pela preamar do sono
profundo, deliberadamente galgava sem fazer ruído o leito, deitava-me
ao seu lado, tomava-lhe a cintura com um dos braços, pousava os meus
lábios no seu rosto, no seu coração, depois em todas as partes de seu
corpo a minha mão livre, que era então [...] levantada também pela res-
piração de Albertina [...] estava embarcado no [seu] sono. Às vezes me
propiciava ele um prazer menos puro. Não havia para isso necessidade de
nenhum movimento, bastava deixar minha perna encostada à dela, como
um remo largado ao qual se imprime de vez em quando uma ligeira os-
cilação semelhante ao bater intermitente de asa nas aves que dormem no
ar. (BTPv5, p. 55,56)

“No meio das expressões carnais”, o narrador se identifica, inesperada-


mente, com o pai, quase sempre ausente da trama, e deixa aflorar a criança,
falando ora como a avó, ora como a mãe:

“Não bastava que eu me parecesse exageradamente com meu pai [...], eis
que também falava agora[...] ora como a criança que eu fora [...], ora como
minha avó me falava. (BTPv5, p. 61)

Assim, num outro quarto, não mais aquele de Combray, nem o dos amores da
juventude, mas o quarto da escrita, ressoam os angustiados soluços infantis que
“jamais cessaram; e somente porque a vida vai agora mais e mais emudecendo
em redor de mim é que os escuto de novo, como os sinos de convento, tão
bem velados durante o dia pelos ruídos da cidade, que parece que pararam,
mas que se põem a tanger no silêncio da noite”(BTPv1, p. 62).

ȄȄ C de Catleia
O romance está cheio de flores emblemáticas. As mulheres se metamorfo-
seiam em flores, surgem entre elas, fazem delas os temas de suas pinturas, e

126
O ABC de Marcel Proust

as referências a sexo vêm acompanhadas de alguma floração especial. Para um


escritor asmático, sofrendo crises por causa dos perfumes fortes e do pólen,
esta é uma fascinação proibida, perigosa, mesmo. Mas, no romance-jardim, as
flores escritas podem vicejar sem causar sufocações.
No início, temos as modestas aubépines, símbolos de uma época de ino-
cência. Nos jardins de Tansonville, uma das veredas de Combray, floresciam
ao lado de plantas sensualmente perfumadas, realçando sua existência física.
Gilberta, a namoradinha da infância, aparece entre as nuvens do “arbusto ca-
tólico e delicioso” e os “jasmins, amores-perfeitos e verbenas, dentre os quais
abriam uns goivos a sua bolsa fresca, de um róseo odorante e fanado de velho
couro de Córdoba” (BTPv1, p. 183).
As flores se encontram intimamente ligadas às experiências da sensua­
lidade. Nas recordações infantis, a “pequena peça que cheirava a íris,
também perfumada por uma groselheira silvestre que crescera fora entre
as pedras da muralha e passava um ramo florido pela janela entreaberta”
(BTPv1, p. 31), era o cenário que embelezava o clímax solitário, ainda
poético e velado.
Na relação entre Odette e Swann, as flores tornam-se mais explícitas. A
preferência de Odette por crisântemos – flores exóticas assimiladas ao Japão
– situa o gosto da época e sugere, pelo número de pétalas, a multiplicidade da
mulher. À medida que a relação progride, desaparecem os crisântemos e surge
o formato irregular e perturbadoramente evocativo da catleia.
Continuando com uma flor exótica, desta vez de origem “brasileira” – e
o Brasil, diga-se de passagem, ronda o texto proustiano e aflora, aqui e ali,
em episódios menores, mas, mesmo assim, exemplares –, delicada, breve e
cara, como o desejo, a flor passa a iluminar a relação dos amantes. Swann,
envolvido pela teia que sua própria imaginação teceu em torno da mulher
que não o atraiu de início, comporta-se de maneira tímida em sua aborda-
gem amorosa. O refinado homem do mundo parece preso a um sortilégio,
fruto da associação que ele estabelece entre Odette e quadros de Botticelli e
à magia da música, ou melhor, da pequena frase que elege como hino de seu
amor. Seus dedos trêmulos, ao ajeitar a catleia no decote de Odette, roçam

127
Lúcia Bettencourt

os seios da mulher. O narrador, ao optar pelo termo “catleia”, camufla seu


nome mais popular, “Orquídea”, do grego orchis (testículo). Os gregos
nomearam a planta a partir dos dois tubérculos que apresenta, mas a flor
tem o aspecto do órgão sexual feminino e é, assim como os crisântemos,
bissexuada. O desejo liga-se às flores de tal forma que “fazer catleia” vira
sinônimo de fazer sexo. Só que esse sexo é problematizado pela simultanei-
dade de masculino e feminino, e o que parece uma coisa muitas vezes está
em lugar de outra, geralmente mais significativa.
Os dedos trêmulos que se aproximam da catleia e esbarram em “outra
coisa”, remetem, se metamorfoseados em inseto, àquele que é esperado,
com alguma impaciência, pelo jovem narrador desejoso de surpreender
o momento da fecundação de uma orquídea rara, pertencente aos Guer-
mantes e colocada no pátio de casa “com essa insistência que se mostra a
gente casadoira” (BTPv4, p. 3), na esperança de atrair um besouro que a
fertilize. Ao invés do inseto penetrando a flor, o que se surpreende é outro
ritual de acasalamento, não menos interessante e muito mais revelador.
Com trejeitos e vaivéns, o Barão de Charlus revoluteia ao redor de Jupien
e as relações homossexuais masculinas que se seguem são acompanhadas
pelos olhos e ouvidos curiosos do vizinho. Travamos, assim, conhecimen-
to com o povo de Sodoma: “O que eu vi!” (BTPv.4, p. 5), exclama o jovem
voyeur. E descreve:

“o barão, que logo arregalara seus olhos entrecerrados, olhava com extra-
ordinária atenção o antigo alfaiate, à porta de sua loja, enquanto o último,
cravado subitamente no local [...] enraizado como uma planta, contem-
plava com expressão maravilhada a corpulência do barão a caminho da
velhice.” (BTPv4, p. 5)

A cena mostra um ritual de acasalamento. Em simetria perfeita, os dois ho-


mens mudam de atitude e se exibem, revelando seus melhores atributos físicos
um ao outro. Com a cabeça erguida, Jupien “dava a seu talhe um porte favo-
rável, apoiava com grotesca impertinência o punho no quadril, fazia ressaltar

128
O ABC de Marcel Proust

o traseiro, adotava atitudes com a coqueteria que poderia ter a orquídea para
com o besouro providencialmente aparecido” (BTPv4, p. 6).
Note-se que o termo “orquídea” é retomado, e, sintomaticamente, o
narrador se inclui na cena, ao usar a desinência de primeira pessoa do plural,
constatando na frase seguinte que “não se chega espontaneamente a essa
perfeição senão quando encontramos um compatriota em terra estranha.”
(BTPv4, p. 6)
A contemplação botânica se adoça num olhar estético. A cena, diz-nos o
narrador, “estava cheia de uma singularidade, ou, se quiserem, de uma natu-
ralidade cuja beleza aumentava de momento a momento” (BTPv4, p. 6). O
que ali se expõe, como nunca antes em literatura, é o amor entre iguais, de
maneira digna, elevada, que escapa do ridículo e do escândalo por ser “tão
comovente o espetáculo de todo amor” (BTPv. 4, p. 6), mas também de
maneira crua e explícita. Ao sair do campo da visão e passar a ser acompa-
nhado apenas pela audição, a delicadeza desaparece. Os sons inarticulados
parecem ameaçadores: “Verdade é que esses sons eram tão violentos que,
se não tivessem sido repetidos sempre uma oitava mais alto por um gemido
paralelo, podia eu ter pensado que uma pessoa degolava a outra perto de
mim”. (BTPv.4, p. 9)
As páginas seguintes, nesta primeira parte de Sodoma e Gomorra, são um ensaio
que reúne sob o mesmo signo de “maldição”, os “invertidos” aos “israelitas”.
A perseguição os transforma numa “raça maldita” e os obriga a viver escondi-
dos, camuflando-se, mas sempre fiéis à sua natureza, que aflorará sempre que
houver oportunidade.
Barthes, em sua famosa Aula, revela:

“Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida
outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem
talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de dei-
xar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe
à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos”
(AULA, p. 45).

129
Lúcia Bettencourt

Essa última fase, sapientia consiste em “nenhum poder, um pouco de saber,


um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível” (AULA, p. 45). É o
que espero ter proporcionado oferecendo estas letras como aperitivos que
possam despertar o desejo de leitura ou de releitura de Proust.

Livros citados
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2015. 15.ª ed. (AULA)
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Porto Alegre: Globo, 1960. 7 vol. (BTP)

130
Ensaio

Josué: Um sucessor
de Athayde
Muri lo M elo Fi l ho Ocupante da
Cadeira 20
na Academia
Brasileira de
Letras.

V olvo os meus olhos e a minha memória para o ano de 1936,


quando um jovem maranhense chegava ao Rio num navio e
desembarcava no Cais do Porto.
Como na toada famosa do sanfoneiro Luiz Gonzaga, ele vinha
num ita do Norte, dando adeus a Belém do Pará, graças a uma
passagem que a soprano Bidu Sayão conseguira para ele junto ao
Prefeito paraense Antônio Lemos.
Naquela manhã, o Rio estava envolvido numa tênue neblina, que
escondia o Edifício de A Noite, na Praça Mauá.
O moço de São Luís, em companhia do seu amigo Nélio Reis,
ali desembarcava com 100 mil-réis no bolso, carregando numa mala
pequena uma fatiota branca e outra azul. Na mala maior, os seus
livros. Em ambas, muitos projetos e muitos sonhos.
Assim chegava ao Rio Josué Montello, julgando-se aparelhado
para enfrentar o desafio de uma aventura.

131
Murilo Melo Filho

Ele era apenas mais um personagem no extenso fabulário daquela geração


de jovens nortistas e nordestinos nômades que emigravam de suas terras secas
lá do Norte e do Nordeste, para virem batalhar, como eu próprio vim, por
um lugar ao sol nesta selva das grandes cidades.
Foi conduzido para a pensão de uma portuguesa, Dona Clarinda, em Bo-
tafogo, com a garantia de que se estava hospedando num quarto silencioso.
Quando abriu a janela, que dava para os fundos, facilmente entendeu aque-
la promessa de silêncio: é que, lá embaixo, se estendia o Cemitério de São João
Baptista.
Mudou-se depois para a Rua Clóvis Beviláqua, na Tijuca, onde, no mesmo
quarteirão, foi vizinho de Luís Edmundo, com seu pijama e seu pincenê.
No bonde da Light, fazia o trajeto diário entre o seu apartamento tiju-
cano e a Biblioteca Nacional, onde então já trabalhava com Rodolfo Garcia
(este mesmo da nossa Biblioteca) e convivia com Tobias Monteiro e Alberto
Rangel.
Já casado com Yvonne – sua grande companheira –, Josué frequentava a
Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, onde se misturava com Gracilia-
no Ramos, José Lins do Rêgo, Peregrino Júnior, Múcio Leão, Lúcia Miguel
Pereira e Otávio Tarquínio.
No bonde ronceiro, sentava-se na ponta do banco, para não ser incomo-
dado nem incomodar os outros passageiros, e aí lia Gide, Balzac, Stendhal e
Victor Hugo.
Era um leitor tão calado e tão recluso quanto o Dom Casmurro, de Ma-
chado.
Certo dia, através de Guimarães Rosa, chefe do seu Gabinete no Itamaraty,
o Chanceler João Neves da Fontoura fez um convite oficial a Josué Montello
para ser Professor de Estudos Brasileiros na Universidade peruana de São
Marcos. E explicou-lhe:
– Sei bem por que o estou convidando. E o Presidente Vargas também sabe.
No dia 11 de junho de 1953, Josué cruzou a Cordilheira dos Andes e che-
gou a Lima, iniciando a sua missão. De lá voltou em dezembro e para lá retor-
nou em fevereiro de 54, recebendo no dia 3 de julho seguinte uma carta na qual

132
Josué: Um sucessor de Athayde

Viriato Corrêa lhe comunicava a morte de Cláudio de Souza e o informava de


todas as consultas que já havia feito para a sua candidatura a esta Academia.
Josué enviou sua carta de inscrição, com data de 3 de julho, voltou de Lima
e começou as visitas protocolares, conseguindo conquistar, um a um, impor-
tantes apoios: Afonso Pena Júnior, Alceu Amoroso Lima, Aluísio de Castro,
Manuel Bandeira, Múcio Leão, Luiz Edmundo, José Carlos de Macedo Soa­
res, Guilherme de Almeida, Pedro Calmon, Antônio Austregésilo, Gustavo
Barroso, Afonso Taunay e Elmano Cardim.
Havia mais 12 candidatos, entre os quais Celso Kelly, o principal deles, além
de Osório Dutra, Oliveira e Silva, Paschoal Carlos Magno, Arnaldo Santiago e
do Professor Berardinelli, que se retirou da disputa para não o atrapalhar.
Durante essa campanha, para distraí-lo, seu conterrâneo, Viriato Corrêa,
contou-lhe uma anedota sobre Ataulfo de Paiva. Estavam na última semana
da campanha eleitoral e, apesar de a anedota ser muito boa, Josué não riu. E
Viriato insistiu:
– Não achaste este fato muito engraçado?
– Achei, muito.
– Se achaste engraçado, por que não riste?
– Porque, para mim, anedota sobre acadêmico só me
fará rir depois da próxima quinta-feira. Antes, preciso
eleger-me.
No dia 4 de novembro de 1954 e com 19 votos,
Josué elegeu-se para esta ABL, como um dos seus mais jovens acadêmicos, aos
36 anos de idade.
Ocupou a Cadeira n.º 29, que tem como Patrono Martins Pena, como
Fundador seu conterrâneo Artur Azevedo e como Antecessores Vicente de
Carvalho e Cláudio de Souza.
Sua eleição serviu como pretexto de espanto e de surpresa para muitos
outros candidatos, com muito mais idade, que, certamente, se julgaram no
direito de aqui chegarem antes dele.
Para atenuar ciúmes e rivalidades, Josué se elegeu a crédito, para pagar os
juros com obras futuras.

133
Murilo Melo Filho

Foi saudado por Viriato Corrêa, que disse o seguinte:


– Aqui estais chegando, meu prezado conterrâneo, pelos vossos próprios
méritos e sem nada dever a ninguém. Nosso comum Maranhão hoje está mui-
to feliz com a vitória deste seu filho, muito amado e muito querido.
Aqui no Rio de Janeiro, Josué já estava enturmado com Álvaro Moreyra no
grupo de “Dom Casmurro” e já fora Inspetor do Ensino Industrial, Técnico
de Educação e Professor do DASP – ambos por concurso público, severíssi-
mo – Professor de Literatura Brasileira e Professor de Estudos Brasileiros na
Universidade Mayor, peruana, de San Marcos, onde recebeu o Título de Ca-
tedrático Honorário, e seria sucessivamente Diretor da Biblioteca Nacional e
do Serviço Nacional do Teatro, colaborador do Jornal do Brasil e da Manchete,
subchefe do Gabinete Civil do Presidente Juscelino Kubitschek, seu grande
amigo, Catedrático de Estudos Brasileiros nas Universidades de Lisboa e de
Madri, Presidente do Conselho Federal de Cultura, Conselheiro Cultural da
Embaixada do Brasil na França, Embaixador do Brasil na UNESCO e, fi-
nalmente, Presidente desta Academia Brasileira de Letras, no biênio 94/95,
sucedendo a Austregésilo de Athayde e realizando uma administração sim-
plesmente inesquecível.
Do seu cargo de Diretor da Biblioteca Nacional, viu-se demitido pelo Pre-
sidente Getúlio Vargas, em 1952, como suposto autor dos veementes discur-
sos pronunciados pelo Senador Vitorino Freire, que haviam levado o então
senador gaúcho a dar as costas ao Senado e voltar para o seu refúgio em São
Borja.
Nesse mesmo tempo, Josué realizava uma das mais brilhantes e completas
carreiras literárias neste país, que começou com o romance Janelas fechadas, em
1941, prosseguiu com o Ciclo maranhense, de O cais da sagração, Os tambores de
São Luís, Noite sobre Alcântara, e Largo do desterro, continuou com A luz da estrela
morta, Labirinto de espelhos, A décima noite, escrito em Portugal, Os degraus do pa-
raíso, A coroa de areia, O silêncio da confissão, Aleluia, Pedra viva, Uma varanda sobre o
silêncio, Prosa da meia-noite, Antes que os pássaros acordem, A última convidada, Um beiral
para os bentevis, O camarote vazio, até O baile da despedida, A viagem sem regresso, Uma
sombra na parede e Enquanto o tempo não passa, para não falarmos nos seus ensaios

134
Josué: Um sucessor de Athayde

sobre o Hamlet, sobre António Nobre, Cervantes, Artur Azevedo, Machado


de Assis, Stendhal, Aluízio Azevedo, Tobias Barreto, Pedro I, os Anedotários
da Academia, os “Diários” da Manhã, da Tarde, do Entardecer, da Noite e
da Noite Iluminada, com traduções para o inglês, o francês, o castelhano e o
sueco, e versões para o cinema, num total de 151 títulos publicados, afora os
discursos, as conferências, mesas-redondas, palestras, prefácios e artigos para
jornais e revistas, que o transformaram no maior produtor da nossa literatura,
numa produção superior mesmo à do seu conterrâneo Coelho Neto e que irá
até quando Deus bem quiser.
Diz-se dele que escrevia mais rápido do que a nossa capacidade de lê-lo.
Não era à-toa, nem por acaso que Josué se definia como um escritor pela
graça de Deus, não seduzido por nenhum outro título ou recompensa.
Se tivesse de reviver a sua vida, queria vivê-la com esta mesma vocação, com
os mesmos erros e as mesmas paixões.
Certa vez, declarou-me ele numa entrevista à Manchete:
– Já estou descendo a outra encosta da vida e nada mais aspiro do que a
este meu canto, a esta folha de papel, a esta caneta, a estes livros e à luz desta
mesma lâmpada, enquanto ouço perto de mim os passos de Yvonne, a compa-
nheira perfeita, outra dádiva que Deus me deu.
–Também quereria os mesmos amigos. Todos. Sem nenhum exagero.
E eu completaria agora, dizendo que, na peça de Goethe, Mefistófeles
aconselha ao Dr. Fausto:
– Meu bom amigo. Confia em ti próprio e saberás viver.
É o que Josué Montello, ao longo de 86 anos bem vividos, soube viver. E
de bem com o seu Deus, com Yvonne, sua mulher admirável; com Lenka e Lí-
lia, suas filhas muito amadas; também com seus netos muito queridos: Mauro,
Ricardo, Roberta, Renata e Daniela.

135
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio

Para entender um pouco


mais de Manuel Bandeira
Ri c a rd o Dau nt Doutor em Letras
com especialização em
Literatura Portuguesa
pela Faculdade de
Filosofia, Letras e

D
Ciências Humanas
esde a preparação da obra Carnaval, de 1919, Manuel Ban- da USP. Seu primeiro
deira experimenta de modo cada vez mais frequente o verso pós-doutorado foi
realizado na área de
livre, a métrica irregular, aceitando uma convocação da prosa, que Literatura Comparada,
passa a estimular sua poesia. sobre a Arte, a Poesia e
a Prosa do movimento
Igualmente, a depuração da herança simbolista, a superação da
do Orpheu. Foi
formação parnasiana e certo desgaste da exploração até certo modo professor visitante na
abusiva, embora justificada, do seu problema de saúde – a tubercu- Yale University, onde
realizou o segundo
lose –, tudo isso colaborou para que o Pierrot bandeirista cedesse pós-doutorado,
lugar ao homem ocupado em depositar sobre o mundo circundante sobre o pensamento
um olhar crítico, não mais com seu sofrimento pessoal. O cotidia- teórico de T. S. Eliot
e Fernando Pessoa.
no, a vida social, com suas mazelas e anacronismo passam, nesse es- Seu romance Migração
tágio da produção e da vida do poeta, a ocupar paulatinamente sua dos cisnes, ambientado
na Europa, representou
atenção. Seu verbo revigora-se no uso de antíteses; explora a ironia o Brasil nas quatro
e um humor nem sempre compreendido. últimas edições da
Sua verve daí para adiante se nutrirá de recortes, fragmentos Feira do Livro de
Frankfurt.
do real, incorporando soluções que fazem de Bandeira o primeiro

137
Ricardo Daunt

modernista brasileiro, sem jamais ter marcado presença na Semana de Arte


Moderna de 22 (por decisão exclusivamente sua), embora regresse mais
adiante ao soneto, e pratique a rima, oferecendo a seus leitores um apurado
ouvido poético.
Tenciono neste ensaio examinar o poema “Balada das três mulheres do
sabonete Araxá”.
Tal exame justifica-se em primeiro lugar porque esse trabalho apresenta
uma tectônica moderna, carregada de certo desdém mascarado (talvez de ci-
nismo) e de uma maliciosa e desnorteante energia, congeminada quando o
poeta já contava 45 anos de idade. É fruto, supõe-se, de uma maturidade inte-
lectual e vivencial de Manuel Bandeira. Mas é ainda assim um registro poético
jovem e destemperadamente astuto.
Tem-se, por vezes, a impressão de que o poeta diverte-se com a ambiguida-
de que cria. Nela embarcamos nós.
Em segundo lugar, porque as análises que tenho visto deste poema – e eu
estou longe de ter lido todas – não me satisfizeram.
Comecemos pelo título do poema que iremos examinar.
A primeira palavra que atrai nossa atenção é “Balada”.
Na obra Die logik der Dichtung,1 de Käte Hamburger, a autora define balada
como um poema de personagens ficcionais. Define-se amiúde, ainda, “bala-
da” – e de modo insuficiente, como uma forma poética em que um evento
apresentado é compreendido como um encontro vital.
A escolha do termo “Balada”, por Manuel Bandeira, deve-se, presumo – e
por ora só posso presumir –, a uma combinação desses dois entendimentos.
Um encontro vital, embora imaginoso, tem lugar em uma provável Teresó-
polis primaveril. E o discurso indireto livre comparece (“Se me perguntassem”
[...] “eu responderia”) no 16.º e 17.º versos.
Nossa leitura do poema localizou, sem dificuldade, sintagmas repetidos, e
uma evidente opção do autor pela repetição, como modo de reforçar o que

1 Vide também: Hamburger, Käte – A lógica da criação literária. Trad. bras. São Paulo, Perspectiva, 1975,
p. 221 e ss.

138
Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira

139
Ricardo Daunt

pretende expressar. Essa repetição condiciona a modulação dos versos, convi-


dando a uma retomada de tom, o que também é uma decisão que decorre da
escolha do título, em que comparece o sintagma “balada”. Ou, ao contrário,
deriva da escolha preliminar do título do poema.
Há ainda outra hipótese: o poeta empregou o termo balada talvez porque
estivesse consciente de que a enunciação não correspondesse a um estado
vivencial, mas fictício, fingido – sendo certo, ainda, que o sujeito de enunciação
do poema é um personagem de si mesmo; se quiserem, uma caricatura de um
sujeito lírico, e menos uma expressão direta de uma vivência, como seria o
caso, se estivéssemos defronte a um eu-origo sempre presente (um eu aqui e agora
em estado de vivência).
Deixemos o restante do título do poema para mais tarde. Para o fim.
A crônica brasileira acerca de Bandeira mostra-nos como é fácil falar de
poesia, quando, na verdade, falamos de assuntos que não têm a ver com ela.
Pois bem, a crônica bandeirista nos conta a seguinte falácia: o poeta teria-se
enamorado de um cartaz de publicidade de um sabonete em que compare-
ciam três atraentes modelos. Elas, as modelos, em suma, o teriam encantado
e teriam sido o motivo que deram origem ao poema. Esse fato teria ocorrido,
como aliás o poema informa mais adiante, às quatro horas da tarde, em Tere-
sópolis, cidade serrana do Rio de Janeiro, em algum dia de uma primavera de
1931. Eis uma verdade ou um engodo?
Vamos examinar isso no curso da análise.
Uma das características da modernidade é o desmantelamento da fronteira
entre o culto e o popular; outra é a absorção da prosa pela poesia – e vice-versa.
O burlesco, o sensual, o instantâneo, o insignificante, a matéria da crônica,
a comunicação jornalística e de massa penetram o espaço da poesia. Esta úl-
tima característica não é apanágio do Modernismo. O grotesco foi discutido
por Victor Hugo no famigerado “Prefácio ao Cromwell”. O poeta francês no
século XIX já apregoava e defendia que tudo é poetizável, que não há, a rigor,
palavras poéticas e palavras não-poéticas.
Entretanto, foi o Modernismo, e a partir dele, que tais demarcações foram
abolidas, que a parede divisória cedeu e ruiu até os alicerces; foi o Modernismo

140
Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira

que fixou como campo da poesia o campo da vida; e sua matéria tudo o que
é vivencial e observável. Foi o Modernismo que disse que a lógica é uma mer-
cadoria de troca, que é preciso transigir.
No início do século XX, as artes plásticas se apoderam do substrato de tudo
o que se encontra ao redor. A colagem, o texto publicitário, rótulos de vária or-
dem, os estados pré-conscientes. A poesia fez o mesmo: Laforgue, Apollinaire,
Blaise Cendrars e outros atravessaram o pontilhão divisor das Artes.
As possibilidades de composição plástica e literária foram alargadas no
curso de uma mútua contaminação. O mundo concreto e material e a ima-
ginação criativa dão-se as mãos. Os vetores da vida complexa contemporâ-
nea oferecem novos parâmetros e referências para a consecução do processo
de criação literária e depositam nas mãos do artista a verdade precária de
seu tempo. Lógica, quem quer a lógica? O belo, o que é senão exatamente
o feio?
O equilíbrio, não será ele uma doença do desequilíbrio, que é, talvez seja,
a regra?
E William James, por seu turno, oferecerá ao artista, no nascimento do
século XX, o arcabouço de uma filosofia que ao mesmo tempo é psicologia,
posto que fundada na investigação da experiência humana direta, uma fonte
de alimentação espiritual, e um elemento que favorecerá a separação da Arte
de seus entraves morais: o pragmatismo e o empirismo radical. O que é a
verdade? Apenas algo de que me sirvo por conveniência. Se me é conveniente
e adequado, é verdade.
Isso me basta.
Vamos ao poema.
“As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam [neolo-
gismo do francês bouleverser, inventado por Bandeira, por blague], me hipnoti-
zam” – diz o sujeito de enunciação do poema, primeiro verso.
Essa transferência em boomerang para o “interior” do poema, diretamente,
posto que se situa fora dele, é uma espécie de moderna arqueologia poética, que
precede a colagem sobre o corpo do poema. O nome pode chocar, mas o
sentido não é exatamente novo.

141
Ricardo Daunt

A partir do poema “Les vin des chiffonniers”, estampado na obra Les fleurs
du mal, ou, ao menos, por essa época, Baudelaire definia o poeta como um
trapeiro, coletor de trapos, um coletor das sobras da vida pós-industrial. O
arqueólogo a que me refiro é um parente mais atual do trapeiro. Com a di-
ferença de que o processo em boomerang, a que acabo de mencionar, devolve o
problema para o leitor. É ele que deve, por derradeiro, resgatar do vento a peça
curva de madeira que avança perigosamente na direção de sua cabeça.
O que faz o arqueólogo quando em suas escavações descobre um osso (de
um mamute? de um dinossauro?)? Ele procura resgatar as demais partes e monta
a estrutura provável do animal, de acordo com pressupostos previamente traça-
dos, fruto de sua memória, de seus estudos, de pesquisas anteriores.
O poeta arqueólogo escava na esfera do real e dele destaca fragmentos,
entrechos, memória, partes, segmentos de algo infinitamente maior – e os
recontextualiza no âmbito de um projeto de arte em fabricação. Entretanto,
por ser moderno, essa coleta não é depositada nas mãos do leitor, seu destino,
sem que carregue consigo o reflexo do próprio caos de onde foi extraída. Assim, os dís-
pares e desordenados conteúdos do real aderem-se aos prévios conteúdos do
objeto de arte em congeminação, modificando-o. Um novo e inédito produto,
digamos assim, também real, inaugura-se para o nosso olhar e nossa reflexão;
um produto que almeja intrinsecamente – o que faz parte de sua essência –, um
espaço no cotidiano como coisa recém-fabricada, como coisa concreta.
Não posso me afastar muito do poema, dessa coisa concreta que acabo de
mencionar.
Vejamos o segundo e o terceiro versos.

2.º “Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!


3.º O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!”
A repetição no primeiro, segundo e terceiros versos do sintagma “as três
mulheres do sabonete Araxá” tem a força e a função no poema de um mantra,
que estimula o processo arqueológico, condicionando o processo de recepção
e empurrando o fragmento na direção do processo que culminará com sua
incorporação poética.

142
Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira

O efeito acústico gera o sinete musical, que oferece uma pauta de leitura
previamente demarcada e sinalizada, e que pode ser obedecida pelo receptor
ou não. A música infla, preenche os espaços vazios do sentido, devora e ali-
menta a base poética para que esta se abra.
No Modernismo os processos de contaminação de sentido por contigui-
dade são intensificados e as oposições e semelhanças comparecem lado a lado,
gerando um efeito cumulativo.
O imediato e o longínquo; o particular e o impessoal infiltram-se.
No poema, a atração/sex-appeal que as modelos de publicidade estão convo-
cadas a estimular, a provocar, é destinada a cada um e a todos indistintamente.
Também assim o poema. Sob o efeito da infusão da comunicação de massa, sob
os auspícios do mantra, torna coletivo, impessoal, o que poderia ser revelação,
descortínio pessoal. Oh! as três mulheres [...] às 4 horas da tarde!”
Eis uma informação que a despeito de ser uma verdade pessoal – haja vista
que a pessoa civil Manuel Bandeira entranhou no poema e em sua biografia a
circunstância (o engodo) de que se encontrava às 4 horas da tarde em frente
a um cartaz de publicidade, menos que uma incômoda notícia pessoal a que a
indiscrição permitiu mencionar –, é um registro de um sentimento coletivo, mesmo
que, ainda assim, pessoal.
No Modernismo a despersonalização poética, a
impessoalidade autoral, se preferirem, não é pressu-
posto que confere prestígio e universalidade ao regis-
tro poético. A neutralidade parnasiana ficou no sécu-
lo XIX e serviu como um antídoto ao ultrarroman-
tismo. (Serviu também, é verdade, para refinar a pena
dos poietes sucessores, o que não é despiciendo.) Mas
quando os programas de arte do século XX sacudi-
ram nossa sensibilidade e desalojaram nosso intelecto de seu precário conforto,
a questão da impessoalidade artística não tinha um encaminhamento simples.
Eliot falava que um autor, para se tornar um clássico, teria que saber manejar
com intensidade os materiais a sua disposição, fossem eles de cunho pessoal ou
não. Um exemplo hoje já clássico é a poética de James Joyce.

143
Ricardo Daunt

Como eu dizia, a impessoalidade autoral no Modernismo não é um pro-


grama de conduta a que cada poeta deve aderir. Se é certo que a universalidade
é atingida quando a substância poética diz respeito a mais pessoas, como quer
o heterônimo pessoano Álvaro de Campos, já em Jules Laforgue, precursor
da modernidade, deparávamos um sujeito de enunciação lírico que cumpria
a função de mero condutor de vozes anônimas e indiscerníveis da realidade
pressentida. Examine-se, por exemplo Les complaintes de Paris.
Assim, não há e não pode haver juízo de valor quando descortinamos em
um poema elementos extraídos da história de seu autor (a tuberculose de Ban-
deira é um exemplo oportuníssimo), desde que esses elementos sejam injeta-
dos no poema no intuito de um alargamento ou intensificação da experiência
receptiva; em suma, desde que o pessoal seja também universal.
Ao poema, novamente.
Alguém alegará, lendo o mencionado verso: não é um simples desabafo,
um apelo tão pessoal, tão particular: “o meu reino pelas três mulheres do
sabonete Araxá!”? Não será esse verso exclamativo uma expressão inalienável,
indissociável do sujeito de enunciação, de tal modo que só serve a ele, só faz
sentido para sua substância psíquica intransferível?
Ademais, que graça há nisso? Que coisa mais comum!
“O meu reino”, diz o terceiro verso. Reino? Força de expressão, clichê prosaico,
se quiserem, clichê importado, subtraído do Ricardo III, de William Shakespeare.
Diz o bardo inglês: “meu reino por um cavalo”.
A frase é uma encenação de palco... Não um recurso de alma destroçada. A
repetição dela, tornada clichê, é um expediente irônico. A modernidade evita
o arroubo, a menos que seja descabido.
Hoje, ou talvez desde Cervantes, “o meu reino pelas três mulheres do
sabonete Araxá”, essa expressão provoque apenas um sorriso e um erguer de
sobrancelhas por parte do leitor.
Pode-se e deve-se tomar esse verso como uma enunciação dramatizada.
Mas é também uma cutucada na sociedade de consumo.
(Se o leitor crítico quer acomodar-se sobre os falsos louros de uma leitura
literal de um poema, é de se discutir a magnitude do benefício que isso trará

144
Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira

ao conhecimento e estudo da poesia, bem como, o que é ainda pior, ao seu


desenvolvimento pessoal.)

4.º Que outros, não eu, a pedra cortem


5.º Para brutais vos adorarem,
6.º Ó brancaranas azedas,
7.º Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata
8.º Ou celestes africanas:
9.º Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!
10.º São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?
11.º São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
12.º São as três Marias?

As mulheres brancaranas, mulatas, africanas são reles exemplares de


carne e osso. “Que outros, não eu, a pedra cortem / Para brutais vos ado-
rarem”, diz o ‘poeta’ (estou falando entre aspas) dirigindo-se às mulheres
do cotidiano, que ainda que merecedoras de serem homenageadas (“a pe-
dra cortem”: aqui a pedra é potencialmente uma estátua de adoração, caso
os homens brutais a trabalhem), não são para ele. Seu intento, seu alvo,
seu interesse (fingido) é o de estabelecer alguma espécie de vínculo com
as mulheres do cartaz publicitário. O nono verso, nesse sentido, é o eixo
do poema, que divide também a realidade entre aquela experimentada por
todos, versos 4.º a 8.º, e a suprarrealidade, acessível apenas ao sujeito de
enunciação fingido.
Vamos ler o 9.º verso mais uma vez: “que eu vivo, padeço e morro só pelas
três mulheres do sabonete Araxá!” (É desnecessário dizer que ‘só’ neste caso é
um advérbio, como ‘somente’, ‘apenas’, não é substantivo ou adjetivo.)
Pois bem, no plano da ideia, da especulação interrogativa, só elas e cada
uma delas, em suma, só a tríade feminina consegue (talvez) conjugar funções
afetivas como a amizade, a fraternidade e o amor, associadas a outro talentos
na esfera do prazer material e físico (prostituição), no plano do ‘verbo’ (de-
clamação) e da espiritualização (elevação, ascensão, voo).

145
Ricardo Daunt

Carne, verbo, espírito. Não podemos nos esquecer de que esses versos, 10.º
e 11.º são sempre interrogações, quimeras ansiadas, dúvidas, jamais certezas.
Eis renascida a velha retórica que de modo ofegante, anelante, interroga acerca
dos atributos de seu objeto de desejo, ainda inabordável... Eis outra armadilha
do sujeito lírico fingido de Bandeira.
Sendo, como podem talvez ser, três modos afetivos e três talentos, também
o sujeito de enunciação fingido se multiplicou para lograr uma combinação
dos três desígnios indicados no 9.º verso: viver, sofrer, morrer – marcos ine-
vitáveis de quem vive, não é assim? (Talvez a felicidade esteja inserida na ação
de viver.)
“São as três Marias?” indaga o eu do poema no 12.º verso, indagação essa
que se repete na verso isolado da estrofe seguinte, o 13.º
O que são as três Marias? São elas Mintaka, Alnilan e Alnitaka, três estre-
las absolutamente alinhadas no centro da constelação de Órion, que, por seu
turno, é o caçador na mitologia grega.
Pronto, transferidas as mulheres para o plano celeste, ao menos como hi-
pótese de devaneio, o sujeito lírico fingido consegue combinar e aliar o plano
da ideia, da elevação, ao plano material, da estrela plantada no cosmos: con-
creta, mas convenientemente inacessível. Não estou me esquecendo de que
podemos ainda nos socorrer da ‘estrela’, de uso corrente na imprensa e no
cinema, sinônimo de modelo ou figura humana, homem ou mulher, de suces-
so que todos gostaríamos de copiar, e de quem gostaríamos de nos aproximar
para conviver.
Mas indaguemos sobre o caçador. Quem é ele? Quem é o caçador?
O caçador é aquele que no plano celeste se saiu vitorioso, aprisionando den-
tro de si as três mulheres, as três estrelas. No plano terreno, o caçador só pode
ser um.
Ou podem ser todos, a coletividade de homens e mulheres hipnotizados
pela publicidade.
Caçador e caça confundidos na floresta de signos.
Examinemos a penúltima e mais longa estrofe do poema.
É também a mais irregular em termos métricos.

146
Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira

14.º A nua é doirada borboleta.


15.º Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida,
[dava pra beber e nunca mais telefonava.

16ª. Mas se a terceira morresse... Oh, então nunca mais


[a minha vida outrora
[teria sido um festim!

17ª. Se me perguntassem: Queres ser estrela? queres ser rei?


[queres uma ilha no Pacífico?
[um bangalô em Copacabana?

18ª. Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só


[quero as três mulheres do
[sabonete Araxá:

Último verso, última estrofe:

19ª. O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

O mundo material, derivado de um ajuste do olhar, se reinstala.


Atabalhoa­damente as figuras estelares descem ao plano da acessibilidade,
ao plano terreno, e se conformam em suas existências humanas, particu-
lares, individuais.
Na esteira dessa readaptação, por assim dizer, o comezinho, o clichê, a ex-
pressão rasa do cotidiano, a elucubração prosaica, descarnada de poesia, tudo
isso reaparece. É um baixar de olhos do alto para o chão; é o reconhecimento
de que a vida tem sua rotina e os terráqueos seus limites, impostos pela reali-
dade, pela situação material de cada um.
Entretanto, o nonsense, a fantasia fabricada sem andaimes, no rés do chão,
marcam sua presença. É por conseguinte um olhar mal articulado entre a fan-
tasia, o nonsense e o real que constamos agora, tudo de supetão, embaralhado,
com nexo duvidoso, se quiserem, acanalhado.

147
Ricardo Daunt

Uma das mulheres, a mais despida, presumo, agrega um apelo natural.


Novamente o voo, a ilusão. Mas um voo acanhado e trepidante, também ao
nível da mata, de borboleta.
Ficamos sempre ao rés do chão nos dois versos que se seguem.
Se a segunda casasse, adviria uma reação muito humana por parte do su-
jeito do poema, mas nada imaginativa. Além de ficar revoltado, ele “dava pra
beber e nunca mais telefonava”. A combinação do pretérito imperfeito do
subjuntivo (“se a segunda casasse”) com o pretérito imperfeito do indicativo
(“dava”, “telefonava”) é uma construção coloquial, duvidosa, mas proposi-
tada. O poeta optou por essa formulação para fazer com que o discurso se
acomodasse às novas circunstâncias.
Seguimos adiante.
A hipótese de uma eventual morte da terceira modelo libera certa impro-
priedade, agora lógica. Os sintagmas “Nunca mais”; “teria sido”, “outrora”
atritam-se em busca de um sentido e, sobretudo, de um ordenamento tempo-
ral que os acomode confortavelmente. Mas é inútil. “Nunca mais” implica o
ensejo de um evento que não se almeja que se repita em um futuro próximo
ou distante. “Teria sido” é verbo composto no tempo pretérito mais-que-
-perfeito (que indica ação ou estado passado com relação ao que já ocorreu).
E “outrora” é um advérbio que significa, sabemos, ‘em outro tempo’, ou ‘an-
tigamente’, também passado.
Com a consumação dessa hipótese, o sujeito de enunciação fingido perde
inclusive o passado que não teve...
Oxímoro bandeirista.
O 17.º verso elenca uma série tresloucada de alternativas de vida. Ser rei, ter
uma ilha, ter um bangalô na praia de Copacabana. E, claro, também, ser estrela.
É uma disparatada lista, de dimensões também disparatadas. Jogo, nonsense,
que oscila entre um bangalô numa praia do Rio e a transformação em estrela.
Entre o projeto possível, embora difícil, e o quimérico. Tudo decorrente de
uma fantástica ação de um tetrarca mágico (que tudo tem para dar e tudo
pode transformar).

148
Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira

Novamente o plano material, que precariamente se instalara a partir do


15.º verso, estremece pelo concurso da imaginação sem peias.
Reaparece nessa parte do poema a ambição daquele que é amigo do rei de
Pasárgada?
Agora, entretanto, o sujeito lírico fingido, sempre afeito a várias alucina-
ções e a oscilações, dirige sua atenção para o que volta a ser primordial, “as
três mulheres do sabonete Araxá”. É isso definitivamente o que o sujeito
fingido parece querer, como é igualmente nessa mesma direção que o in-
consciente coletivo estremece e age favoravelmente à presença das mulheres
do cartaz.
O verso isolado, que dá fecho ao poema, repete como em uma ladainha
o terceiro verso do poema, decalcado em Shakespeare. E vejam que o poeta
inglês planejava apenas dispor de um cavalo, e oferecia todo o seu reino em
troca.
O bardo brasileiro oferece o que não tem: o reino. E almeja o que não
existe. Almeja apoderar-se com todo o seu ser (afetivamente, fraternalmen-
te, carnalmente, como vimos há pouco) das três figuras publicitárias cujo
apagado destino é o de convencer-nos a nos banhar com a lama de Araxá).
Entretanto, o que conta é a imaginação provedora do poeta; o engenho que
transforma algo tão apoético potencialmente, em poesia; que resiste ao tempo
– e a proposta de Bandeira é inusitada até para a sua época –, e que transforma
o caos da realidade em um aviso de advertência.
Esse aviso passa a nossa frente, cruza nosso caminho, buscando frustrar
nosso espírito e ocupar nossas mentes, congestionadas de outros avisos e es-
tímulos inúteis.
Esse último verso é a outra ponta da linha circular do mantra, que en-
cerra o poema e o reinaugura: o começo é idêntico ao fim. É a repetição, o
retorno; o eterno mantra tomando conta de todos nós em um processo de
hipnose.
A propósito do título, “Araxá” é uma expressão do vernáculo tupi-gua-
rani e quer dizer ‘lugar alto de onde se avista o Sol’; Sol que é, portanto,

149
Ricardo Daunt

a derradeira estrela do poema. Perto de cada e de todo signo poético, mas


longe, no firmamento, na constelação de Órion em que as três modelos, digo,
três Marias, moram eternamente até a morte.
O sintagma estrela é um núcleo que se ramifica não apenas por todo o poe­
ma examinado, mas por todo o conjunto de poemas da antologia Estrela da
manhã e para além dela; é a partir desse substantivo mágico que se articulam
morte e vida, cotidiano e surpresa, distância e proximidade, otimismo e pes-
simismo, futuro e passado; em que ver e cegar, elevar os olhos e mergulhar na
escuridão do espírito embaralham-se num embate aliciador.

150
Ensaio

Per Johns: um ficcionista


de todas as estações
Ma ry d el P r i o re Historiadora,
formada pela USP
e pela EHESS de
Paris, é autora de
42 livros sobre
História do

E xistem casos excepcionais em que paisagem e homem se im-


bricam. Esse é um deles. O homem, no caso, é o poeta, ficcio-
nista, tradutor e ensaísta, Per Johns. A paisagem, a da serra tereso-
Brasil e vencedora
de mais de 20
prêmios nacionais
e internacionais.
Leciona no curso
politana. Cercado de velhas árvores, da silhueta das montanhas, do de pós-graduação
cheiro da terra molhada, de luares que palpitam como borboletas da Universidade
brancas, de cães quase humanos, dos pássaros cuja linguagem ele Salgado de
Oliveira e é sócia
fala, o escritor vive, entre angústia e prazer, o que chama de obses- de inúmeras
são: a mim me parece, que escrever é antes de tudo uma estranha obsessão, obsessão instituições entre
de ver, mas trata-se, no caso, de ver por dentro e não por fora. as quais IHGB,
PEN Clube do
Homem de duas culturas, a brasileira e a dinamarquesa, bilíngue, Brasil, CNC, entre
formado em Direito, Per Johns é autor de seis romances, de um livro outras.
de ensaios, de diversas publicações no exterior, em dinamarquês, ita-
liano e norueguês, além de ter escrito diversos prefácios e posfácios.
Tradutor celebrado dos contos de Hans Christian Andersen, e de
obras de Karen Blixen, Ingmar Bergman e Henrik Stangeroup, teve
seus romances As aves de Cassandra e Sonâmbulos, amotinados, predadores,

151
Mary del Priore

publicados na Dinamarca. Membro do PEN Club do Brasil, em 2006 rece-


beu o prêmio de Ensaio, Crítica e História Literária da Academia Brasileira de
Letras por seu livro Dionísio crucificado, além de colaborar como crítico literário,
na Europa e no Brasil, em vários jornais, entre os quais O Estado de São Paulo e
O Globo.
Sua trilogia constituída de As aves de Cassandra, Cemitérios marinhos às vezes são
festivos e Navegante de opereta, aplaudida pela crítica, é um jogo de espelhos com
sua autobiografia e uma meditação sobre a identidade, que convida o leitor a
apreciar a evolução dos temas de predileção do escritor.
E onde, a paisagem imbricada no homem? Em toda a sua obra. Há muito,
o escritor vive entre a natureza e o mundo. Ali, ele dobra e redobra sua alma.
Graças à mediação de sua escritura, ele celebra a vida, as paixões, os encon-
tros, mas, também, os mistérios místicos e metafísicos que só tomam corpo
no mundo natural. E a partir dele, Johns descreve um tempo desestabilizado
pelo encontro com a modernidade e suas vicisitudes. Desse cenário nascem
personagens que tentam libertar-se de seu destino e encontrar certas verdades
neles mesmos. Indivíduos que conhecem a solidão e o desespero junto aos ho-
mens, mas seguem buscando a ternura e a delicadeza longe deles. Em Dionísio
crucificado, um desses protagonistas, um cientista sueco, diz:

Será que é tão inconcebivelmente difícil de aceitar um estilo de vida


consideravelmente mais simples, em estreito contato com o solo e a flores-
ta, as semeaduras e as colheitas, sob o sol e sob a chuva, em um programa
industrial bastante reduzido?

Espécie de Henri David Thoreau tropical, sentindo-se exilado em sua


própria pátria, Johns faz seu protagonista se desvencilhar de hábitos e bens
supérfluos e viver, com um mínimo necessário, numa palhoça à beira-mar.
Não o lago Walden, mas, sim, a vida nos bosques. Longe da autoemulação
dos grandes centros, da Babel em que o excesso de falas, conversas, gritos e
ruídos querem fazer-nos acreditar que, de fato, conseguimos nos comunicar,
Johns busca na natureza o silêncio deste espaço infinito do dentro. Espaço

152
Per Johns: um ficcionista de todas as estações

do eu. Espaço onde ele se acha no face a face, doloroso e complexo, no qual
se pergunta: quem sou?; onde vou? Silêncio que lhe convida a experiências
meditativas ou contemplativas que o conduzem para a terra prometida onde
o corpo deve se calar para não conspurcar a alma. Johns não teria saudades
daquele momento do Gênesis em que Deus ainda não havia criado o homem
e a mulher?
Em sua torre-biblioteca construída voltada para a floresta, ele preza o si-
lêncio. Ele o escuta e lhe dá um sentido para que se pareça com uma forma de
linguagem ou de visão. De novo, em Dionísio crucificado, e inspirado no esqueci-
do filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, Johns diz:

Nesse mundo midiático de mensagens que se superpõem, se aglutinam


e se anulam (...) triturando-nos na sopa geral que nos alimenta e consome.

Ele ouve o silêncio e o dá a ver o mundo. Viver é saber ver. E enxergar o


dentro e o fora, mas, não sem dor. No fundo, Johns sabe que contar e escre-
ver, ou melhor, a sua “obsessão”, mais do que servir como remédio às dores,
conserva as chagas vivas. E para completar, em conferência no PEN Club do
Brasil, expõe:

Melhor ainda, todavia, é não fazer nada, absolutamente nada, apenas


ver a vida que passa com um olhar atento, embora não seja tão fácil como
aparenta ser. É um talento com o qual se nasce. Não se aprende na escola.
Tem gente que não sabe ver, ou, por outra, olha, mas não vê. Em todo
caso, não é automático, sobretudo se o ato de ver se fizer acompanhar
adicionalmente do que se pode chamar de empatia, ou seja, da capaci-
dade de se pôr na pele do que é visto, sentindo junto, em uníssono, não
separadamente.

Tal vidência e sua consequente empatia nasce da possibilidade de, frente


ao mundo, manter desejo e angústia como brasa adormecida. Brasa que se
assopra, quando preciso, para voltar ainda mais forte.

153
Mary del Priore

Novamente, de sua torre-biblioteca, mergulhado na concentração e na lei-


tura, o escritor vê as margens. Não somente as que separam os dois Reinos, o
animal e o vegetal, mas aquela que separa as identidades. O homem do Nor-
te, daquele do Sul. As cores dos territórios gelados da Dinamarca, à palheta
quente dos trópicos. A severidade nórdica e a malemolência brasileira. Duas
culturas, duas raízes. A conversa poderosa e direta com a palavra distante ou
as próximas, o jogo de luzes recebidas e enviadas, tudo isso explode em Hotéis
à beira da noite, romance mais recente publicado em 2010.
Nas palavras bem-ditas de seu editor, trata-se de “Uma lenta e tortuosa
peregrinação aos confins da ancestralidade de si mesmo. Uma viagem rumo
à medula extrema do ser, com escalas que se fazem não necessariamente em
nenhum porto, mas em antigos e sombrios hotéis situados à beira da noite
do esquecimento. Sempre em direção ao norte de suas origens, o narrador
ambíguo dessa estranha travessia – um que transita à superfície do cotidiano,
outro que emerge das profundezas – desfaz-se do nome, da nacionalidade,
dos bens, dos impostos e contratos e, como o dinheiro que traz consigo não
tem pátria, mas apenas “o dom da leveza, da viagem, do nada que compra
tudo”. Ao longo das páginas deste romance insólito e perturbador, Per Johns
é quase como Sísifo em busca de uma identidade que lhe escapa e se esfarinha
nas escarpas de sua ascensão e queda. Numa época e numa sociedade que só
privilegiam o acúmulo de quinquilharias e inutilidades tecnológicas, a per-
sonagem nuclear de Hotéis à beira da noite se despe de tudo o que não seja ela
mesma. E bem caberia a este romance único em nossa literatura aquele lema
de Leonardo da Vinci: ostinato rigore. Rigor na escrita, na trama ficcional, nos
diálogos e solilóquios, na concepção dualística e antagônica da personagem
que nos conduz pelos labirintos da narrativa, na prosa exemplar que se move,
fugidia, entre o poético e o filosófico.
Em suas poesias, reunidas ao final do volume, verdadeiras canções ento-
adas num deserto, o leitor encontra um palimpsesto literário e humano que
comove pela melancolia. Num excerto de A resposta de Deus, por exemplo, ele
há de ouvir:
Se me sentisse irmão de meus iguais e desiguais, onde acharia meu inimigo?

154
Per Johns: um ficcionista de todas as estações

Se o que buscasse estivesse onde estou, onde procuraria o que não sou?
Se o mundo estivesse pronto, irremediavelmente bem-feito, que es-
tímulo haveria para inventar, modificar, melhorar? E o que é pior (ou
melhor para tartarugas e morcegos): o que seria de meu engenho?
Que Deus me perdoe, mas a vida perderia a graça, deixando-me
uma única alternativa:
Desistir de viver.
Um grande escritor deve suscitar um sentimento de incompletude.
Ele deve nos incitar a perguntar: o que esse livro significa para mim?
Johns é deles. Em seus livros, ele nos oferece o aprisionamento na infinidade
dos sentidos. Aprisionamento que é também libertação. Vamos escutá-lo:

Contumaz criatura. Por todos os meios tentei salvá-la de suas próprias


artimanhas. Dei-lhe um olhar luminoso e a faculdade de perceber-se e per-
ceber o mundo. Ao mesmo tempo em que vive, paira sobre a vida. Excedi-
-me talvez ao conceder-lhe também o arbítrio de escolher entre ser espelho
de meu Opus perfeito ou motor de um mundo pior.
Aparentemente, foi demais. Desnorteada, a criatura preferiu encerrar-
-se ensimesmada na construção de uma obra exclusivamente humana,
de onde expulsou o resto da criação. E em que consiste essa obra? Em
inventar labirintos escuros e imitar-me, mas suas criações não passam de
caricaturas.

Contra a insensibilidade e as inquietações contemporâneas, Johns, que gos-


ta das “iluminações orientais”, nos faz pensar nos poetas da dinastia Tang que
ensinam, sem cessar, que na vida pública todos os esforços são essencialmente
absurdos. É preciso, ao contrário, passar o maior tempo possível no mundo
natural. Certa melancolia indignada, o humor leve, o amor indestrutível da
vida, uma inspiração e meditação que abole as fronteiras entre os Reinos, a
sabedoria sobre os segredos da alma, os assombramentos metafísicos marcam
os caminhos deste criador de voz única e inimitável, capaz de desenhar, em
nossas Letras, novas paisagens.

155
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio

A noção de Nordeste

Evaldo Cabr a l d e M el lo Ocupante da


Cadeira 34
na Academia
Brasileira de
Letras.

P or insólito que possa parecer, em vista das dimensões conti-


nentais do país e da uiversidade de condições do meio físico
e social, a percepção do Brasil como um conjunto de regiões só se
verificou tardiamente, datando do século XX. No decorrer de Qui-
nhentos e nos começos de Seiscentos, a distinção que se fazia entre
os núcleos coloniais disseminados ao longo do litoral referia-se às
“capitanias de cima”, do Ceará à Bahia, e às “capitanias de baixo”,
do Espírito Santo a São Paulo. A classificação não incluía, portanto,
o Maranhão-Pará, que, uma vez incorporado ao domínio português,
foi administrado separadamente do governo-geral da Bahia, como
uma dependência à parte, o Estado do Maranhão, cuja autonomia
chegaria até o século XVIII. Por sua vez, no Estado do Brasil, a
Coroa experimentou em duas ocasiões distintas (1572-1578 e
1608-1612) estabelecer governos separados para o Norte e para o
Sul. Até a descoberta do ouro das Gerais, a disparidade entre as “ca-
pitanias de cima” e as “capitanias de baixo” foi, aliás, notável, pois,

157
Evaldo Cabral de Mello

como escrevia a El-Rei o governador-geral D. Diogo de Menezes (1608), “no


Brasil, não há mais que este lugar de Pernambuco e o da Bahia, e deles pende
todo o governo e máquina que há; e mais neste que na Bahia por ter curso e
largueza e moradores que vivem fora em suas fazendas e negócios”.
Àquela altura, eram as “capitanias de cima”, não as “de baixo”, que
geravam o excedente fiscal, apto a, descontadas as despesas de gestão, tor-
nar a América portuguesa produtiva para a Coroa, exceção da Bahia, cuja
receita era insuficiente para cobrir os gastos com o aparato burocrático
do governo central ali instalado. Quando descrevem o Brasil, os cronis-
tas do século XVI e XVII fazem-no invariavelmente segundo o critério
admi­nistrativo das capitanias, método que ainda utilizará, em começos
do século XIX, o padre Aires do Casal na sua Corografia Brasílica. Mas era
a divisão entre “capitanias de cima” e “capitanias de baixo” que Barléus
tinha em vista, quando, na sua história do governo nassoviano, acentuava
que, à raiz da ocupação holandesa, uma nova divisão se impusera, a de
“Brasil espanhol” e a de “Brasil holandês”, aduzindo que “a primeira
dessas divisões é natural; a segunda é feita pela força e valor dos homens.
Aquela é a do Criador; esta, a da partilha entre os príncipes. Uma, perpé-
tua e imutável; a outra, passageira e variável, segundo a fortuna da guer-
ra”. Com efeito, “a fortuna da guerra” aboliu o Brasil holandês e refez a
unidade da América portuguesa. E a divisão entre Norte e Sul permane-
ceu dominante. Quando, no período regencial, afirmaram-se aspi­rações
separatistas cuja inspiração republicana a corte do Rio desejava neutra-
lizar, a fórmula de que se cogitou consistiu simplesmente em atribuir à
infanta dona Januária, irmã mais velha de d. Pedro II, a Coroa de uma
monarquia do Norte.
Até o fim do Império, a geografia do Brasil continuou a ser bem sim-
ples: havia as províncias do Norte e havia as províncias do Sul. Não se
falava em Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Semelhante miopia para
o fato regional não podia, contudo, sobreviver nem à moderna ciência
geográfica europeia nem, sobretudo, à crescente diferenciação econômi-
ca entre o sul cafeeiro e o velho norte açucareiro e algodoeiro, a que

158
A noção de Nordeste

viera somar-se o novo norte da borracha, nem pôr fim ao federalismo da


República Velha, a despeito de este haver-se mostrado particularmente
tímido ao quebrar o tabu lançado pelo Império sobre a existência de
diferenças regionais. A este respeito, os derradeiros decênios do regime
monárquico foram cruciais. Se, ao tempo da guerra civil norte-americana
– cujas repercussões no Brasil D. Pedro II, aliás, temeu –, o conselheiro
Nabuco de Araújo acreditava ser “os interesses do Norte e do Sul [...]
perfeitamente homogêneos”, decorridos quinze anos – o período histó-
rico de uma geração –, um republicano da Paraíba, Maciel Pinheiro, cha-
mava a atenção para a crescente diversificação sociológica entre ambas as
regiões, assinalando que “a vida no Norte do Brasil tem cunho diverso
da do Sul”, devido a “tradições, hábitos, índole, meios de subsistência”
distintos.
Nos últimos anos do Império, já havia quem falasse na “pátria pau-
lista” e na “Amazônia”, designações que ainda causavam espécie no Par-
lamento, onde se olhavam com severidade as distinções reputadas peri-
gosas para a unidade nacional. Por outro lado, Joaquim Nabuco temia
que a presença da imigração europeia no sul terminasse por criar “dois
Brasis”.
Curiosamente, essa descoberta das realidades regionais só foi margi-
nalmente promovida pela ciência geográfica, e assim mesmo mediante a
tradução da obra de dois geógrafos estrangeiros, Wappaeus e Sellin, que
haviam sido os primeiros a aplicar os métodos científicos da geografia
moderna ao estudo do território brasileiro, obra divulgada graças a um
historiador de sólida formação geográfica, Capistrano de Abreu. É cer-
to que eles não haviam proposto uma geografia física; dando-lhe uma
ênfase que a antiga corografia não lhe havia podido dispensar, haviam
aplicado conceitos fundamentais, como hidrografia, vegetação e relevo,
que constituíam os passos indispensáveis à constituição da futura geo-
grafia regional. No fim do Império, a descoberta do fato regional foi,
sobretudo, estimulada pela prosa de ficção, a qual, com José de Alencar
e posteriormente com Franklin Távora e outros, havia dado ao romance

159
Evaldo Cabral de Mello

pelo IBGE nos anos 40 e 50. Graças a ela, é que o brasileiro passou a
ver o país como um conjunto de regiões (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul,
Centro-Oeste) e não mais como a agregação amorfa de um Norte e de um
Sul ou como somatório de jurisdições administrativas, capitanias, provín-
cias e depois Estados.
Ainda está, aliás, por se investigar quando o vocábulo Nordeste começou
a ser empregado, mas não cabe dúvida de que ele é de uso relativamente
recente, insinuando-se nos primeiros decênios do século XX. Em 1924,
Agamemnon Magalhães utilizou o conceito na tese com que obteve a ca-
deira de geografia do Ginásio Pernambucano e cujo tema era O nordeste
brasileiro: habitat e gens. No ano seguinte, Gilberto Freyre organizaria o
Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco, e, em
seguida, o Congresso Regionalista do Recife. Nos anos 30, seria a vez do
“romance do Nordeste”. Aliás, tanto no Livro do Nordeste quanto na tese de
mestrado que em 1922 apresentara à Universidade de Columbia, Gilberto
Freyre explorou pioneiramente várias facetas da história da vida privada,
que aprofundaria posteriormente em Casa-grande & senzala e Sobrados e mu-
cambos. É irônico, aliás, que a história da vida privada só tenha sido desco-
berta pela historiografia brasileira aí pelos anos 80 graças à coleção diri-
gida por Philippe Artes e Georges Duby e não nas obras de Freyre ou na
Vida e morte do bandeirante, de Alcântara Machado, que é de 1928 ou 1929.
A ideia de Nordeste estava no ar, mas levou tempo a ingressar na lingua-
gem quotidiana. E o que é mais, ela cobria realidades distintas. Quando,
em 1937, Freyre publicou, sob o título de Nordeste, o ensaio em que analisa
a influência da monocultura canavieira sobre a vida e a paisagem regionais,
aplicando pela primeira vez no Brasil o conceito de ecologia, que a escola
sociológica de Chicago acabava de pôr em circulação, tratava-se apenas
de uma parcela do que hoje denominamos Nordeste, pois correspondia
tão somente ao Recôncavo Baiano e à mata pernambucana, alagoana e
paraibana. Ele mesmo observava estar a palavra Nordeste “desfigurada pela
expressão obras do Nordeste”, que quer dizer “obras contra as secas”,
lembrando que o Nordeste do árido e do semiárido é que constituía, na

160
A noção de Nordeste

realidade, “o outro Nordeste” (título que Djacir Menezes utilizará numa


de suas obras), de vez que cronologicamente o primeiro fora o Nordeste
do litoral e da cana-de-açúcar. Tendência que só se fez acentuar desde a
criação da Sudene.
De lá para cá, a noção de Nordeste tendeu a pulverizar-se, a começar
pela ideia de um Nordeste oriental que englobaria toda a região com-
preendida entre os estados de Alagoas e do Rio Grande do Norte. No
âmbito deste Nordeste oriental, passou-se a discriminar, ao menos em
Pernambuco e na Paraíba, as três sub-regiões da mata, do agreste e do
sertão. E no bojo da mata, começou-se a definir, desde os trabalhos de
Vasconcelos Sobrinho, uma mata norte ou seca e uma mata sul ou úmi-
da, separadas grosso modo pelo meridiano do Recife, distinção baseada no
critério pluviométrico.

161
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio

Um soneto de
Jorge de Lima
S érg i o F. Martag ã o G estei r a Doutor em Letras,
Professor Associado
de Literatura Brasileira
na UFRJ, lecionou
também, por vários
anos, em universidades

L ê-se no Livro dos sonetos de Jorge de Lima, publicado em 1949:

Vereis que o poema cresce independente


europeias. Vencedor
do VII Concurso
Nacional de Contos
do Paraná, ganhou,
em 2000, o Prêmio
E tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas, Mário de Andrade da
Algas e peixes lívidos sem dentes, Fundação Biblioteca
Nacional pela obra
Veleiros mortos, coisas imprecisas, A carne da ruína:
sobre a representação do
Coisas neutras de aspecto suficiente excesso em Augusto dos
Anjos. Organizou e
A evocar afogados, Lúcias, Isas, estabeleceu o texto
Celidônias... Parai sombras e gentes! de Dante Milano: obra
Que este poema é poema sem balizas. reunida, agora em
2.ª edição, publicado
pela ABL. Atualmente,
Mas que venham de vós perplexidades é Visiting Scholar na
Entre as noites e os dias, entre as vagas Universidade da
Califórnia em Los
E as pedras, entre o sonho e a verdade, entre... Angeles.

163
Sérgio F. Martagão Gesteira

Qualquer poema é talvez essas metades:


Essas indecisões das coisas vagas
Que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.

Abre as palavras do poema a alusão ao crescimento. Embora o crescer sig-


nifique também avolumar-se, intensificar-se (como em “o nosso medo cres-
ceu”), o verbo, aqui, parece menos exprimir o aumento de algo do que a
brotação incessante de quanto a poesia, pela palavra do eu-lírico, irá acolher.
Esse crescer não se repertoria pelas marcas que o possam, de algum modo,
quantificar, medir; que o localizem no âmbito da extensão, cercando-a de
zelosas demarcações. Por ser, como está no primeiro verso, “independente”, o
poema não só prescinde de quem o faça crescer, mas se impõe a toda prescri-
ção – daí ser referido, também, como “tirânico”.
Como se dá o exercício dessa tirania? A que parece impor-se sem restrições
o poema? Para esclarecê-lo, a enunciação expande seus interlocutores poten-
ciais: não, apenas, o receptor da palavra poética, o leitor levado em conta
no “Vereis” inicial, mas tantos outros convocados à escuta, não importando,
agora, se designadamente humanos – como “banhistas”, “Isas”, “afogados”
– ou, mais genericamente, “coisas”, palavra que aparece no fecho do primeiro
quarteto e reabre o segundo.
Entretanto, nesse acolhimento do que é trazido ao poema se abrigariam,
de preferência, o mero acaso ou o aleatório, o essencialmente disjuntivo, no
esquecimento do que talvez pudesse vincular os seres? Estaríamos em face,
apenas, da captura do caos, na configuração dispersiva dos entes? O poema
não parece optar por esse caminho, pois logo se abre a este “Ó irmãos”, que
se fraterniza, pouco em seguida, com o mais que provém da água – as algas e
os peixes, os veleiros, os afogados. E, também, as “coisas neutras”, que, apesar
de se esquivarem às demarcações, são tão evocadoras, por sua vez, de “Lúcias,
Isas, Celidônias”, nomes, assim pluralizados, que provêm do dinamismo a
integrar os seres nessa ampla paisagem marinha. Trata-se, por outro lado, da
expansão da memória biográfica, se levarmos em conta que Celidônia é referi-
da como figura da infância de Jorge de Lima, sua babá, morta por afogamento

164
Um soneto de Jorge de Lima

no rio Mundaú, como também se lê a certa altura de “Ancila negra” dos


Poemas negros:

Há muita coisa a recalcar e esquecer:


o dia em que te afogaste,
sem me avisar que ias morrer,
negra fugida na morte,
contadeira de histórias do teu reino,
anjo degradado para sempre,
Celidônia, Celidônia, Celidônia!

Como se vê, o poema aproxima as figuras ligadas à água, mas água impreg-
nada pelos sinais da mortalidade: não só Celidônia, mas os “peixes lívidos
sem dentes”. A independência do poema, a sua tirania abarcam, pois, o reino
dos vivos – por exemplo, “banhistas” – e o dos mortos – os “veleiros mortos”
do quarto verso –, integrando esses “irmãos” na súbita apóstrofe que estanca
o prolífico enumerar de tantos seres: “Parai, sombras e gentes!”.
Em virtude dessa incisiva convocação, os mortos, a despeito da referência
à lividez, não valem tanto aqui como apenas os destituídos de vida, já porque
agora tocados por intensa vitalidade imaginária pela qual, sombras junto às
gentes, são instados igualmente a pararem. No nível fônico, convém perceber
que, se alguma rispidez se podia ouvir em “tirânico”, ecoando ainda na vi-
gorosa nasalidade do oxítono “irmãos”, bem como na aliteração das plosivas
de banhistas e brisas, desde logo o i na sílaba tônica desses últimos termos,
somado às sibilantes no interior e no fim deles mesmos e dos outros vocábulos
que se lhe seguem poucos versos depois – coisas imprecisas, Lúcias, Isas etc.
–, tudo converge para o assinalamento dos traços que aproveitam a marca da
pluralidade dos entes para manifestar o fluxo incessante em que água e algas e
ar (“brisas”) se conjugam na pintura dessa paisagem dúctil.
O apelo, assim, da voz lírica para que tudo ou todos parem mobiliza o con-
junto desse real móvel e, por certo traço indistinto, movediço para a afirmação
categórica do quarto verso do segundo quarteto: “Que este poema é poema sem

165
Sérgio F. Martagão Gesteira

balizas”. Até mesmo aqui, ainda no nível fônico, o b de balizas se fragiliza como
obstáculo, pois o cerca a ductilidade de um “sem” a precedê-lo e das sibilantes
que o arrematam: “sem balizas”... Assim, o parar de todos é o momentâneo solo
que os sustém na atenção voltada para a primazia conferida à mobilidade.
Tal mobilidade não é, apenas, a fascinada pelo puro mover/morrer das
coisas e das gentes, no olhar encantado de um eu-lírico a espiar o fluxo in-
cessante da vida, marcada pela intermitência do que a ela aflora. É mais que
isso: dizer o mover do quanto há é abrir-se o poema para um terreno em que
os seres, apesar de seus nomes tão privativos, de suas configurações cativas
– dotadas até de uma origem histórica discernível: Celidônia – ampliam-se
e como se sinonimizam – “Celidônias” – porquanto expandem seus signifi-
cados para um vínculo comum – “Ó irmãos” – que os integra na experiência
múltipla do real dialógico, sintaticamente inclusivo, de territorialidades que
se entremeiam, sem que a face ou o nome de cada um desses irmãos se perca
num caos devorador de todos, não lhes concedendo a distinção que a cada um
considera, respeita e identifica.
Leiamos agora o primeiro terceto:

Mas que venham de vós perplexidades


Entre as noites e os dias, entre as vagas
E as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...

O vós do primeiro verso inclui, potencialmente, desde o sujeito do “Ve-


reis”, que iniciara o poema, até as “coisas e gentes” a que é endereçado o
“Parai” da segunda estrofe. Pela lição do próprio poema, não convém res-
tringir o âmbito nem os atores generosamente englobados no espectro deste
vós. Antes, atentemos no valor da palavra, também plural, perplexidades.
Diz-nos do efeito de des-norteio a que um real, prévia e exaustivamente ca-
tegorizado, é submetido face à turbulência que parece resultar de um poema
a sugerir múltiplos trânsitos, insuspeitados, no mundo cindido pela pola-
rização e pelo atrito dos contrários. Perplexidade a aludir à riqueza jacente
entre os opostos, potencialidade criativa dos nexos e atalhos que a poesia

166
Um soneto de Jorge de Lima

está capacitada a propiciar ante a solidão e o solilóquio dos extremos. Todas


as nuanças, todas as angulações não se fazem mais polêmicas nem insulam
os seres na clausura solipsista, porque o poema lhes oferece e renova a expe-
riência da transitividade.
Com efeito, o assinalamento do que emerge sob essas polarizações, quer na
dimensão temporal – “as noites e os dias” –, quer na espacial – ainda esses
mesmos dias e essas mesmas noites, pela luminosidade que conferem ao ce-
nário, ou “as vagas e as pedras”, vale dizer, o líquido e o concreto, ou, ainda
nelas, a face móvel e a face fixa –, todas as oposições que a língua acentua
como recorrência incessante dos contrários tornam-se valorizadas porque en-
sejam, não tanto como portos de partida e de chegada diligentemente apon-
tados pela exatidão do itinerário que os vocábulos devem, com competência,
indicar, mas pela consideração não prescritiva de haver entre eles sobretudo o
caminho, a experiência intervalar, o que há “entre o sonho e a verdade”, como
se lê no derradeiro verso deste primeiro terceto.
Radica, portanto, precisamente no entre das oposições em que as perplexida-
des parecem nascer a perspectiva em que discursa o eu-lírico, como a assinalar
a vitalidade e virtualidade incessantes do “nel mezzo del camin”. Não há, a rigor,
o banimento das oposições que a língua, com talento designativo, houve por
bem conceber e é o instrumental da mais cotidiana comunicação dos homens,
sustentando, por sua vez, o conceito que discerne e, ao confrontar, ordena as
facetas contrapostas do que há. Mas o entre enfatiza as refrações por certo insti-
gantes capazes de brotar do que se petrificou em palavras e em esquemas exau-
ridos pelo uso, debilitando a escuta do que o mundo propicia à ativa nomeação
criadora – é, pois, dessas fraturas em que este se catalogou e se manteve enges-
sado que o poema encontra a matéria para a sua vocação de discernir o menos
discernível e atentar para o ainda por dizer-se. Por isso a recorrência aqui da
preposição “entre” nos dois versos finais do primeiro terceto: já na figura da
aposiopese, que abre o primeiro e fecha o segundo desse par de versos, e tam-
bém se distribui em permeio aos dois: quatro ocorrências, em ênfase expressiva.
O derradeiro terceto explicita, de modo cristalino, o de que se trata: as me-
tades, os segmentos, o que pertence a um conjunto e nele e por ele tem lugar

167
Sérgio F. Martagão Gesteira

por dar ensejo a fecunda articulação: em suma, nenhum horizonte atomístico,


senão pars pro toto, a lembrar o Gregório de Matos de “A parte sem o todo não é
parte”, na contrapartida de “O todo sem a parte não é todo” do mesmo soneto
da sua sacra dialética (“Ao braço do mesmo Menino Jesus quando apareceu”).
É igualmente fundamental perceber o tom com que a enunciação considera
seu próprio discernimento: quando, muito concessivamente, estende o juízo a
qualquer poema no primeiro verso, matiza-o com o acolhimento do relativo, do
possível, do potencial, sem os ares, portanto, da afirmação categórica: “talvez”,
emprega-o o poeta, nesse dizer-pelas-metades, pois considera os fragmentos que
se insinuam a cada instante em que o real quer aceder à linguagem.
Consideremos agora os versos com que o poema se fecha. Aqui duas de-
signações fazem par e localizam, a seu modo, a matéria poética: as “indeci-
sões” e “as coisas vagas”. Curiosa fragilização do poema tão autonômico,
tão tirânico, como se referia o eu-lírico na abertura do soneto: “Vereis que
o poema cresce independente/E tirânico.”... Se o verbo poético se pauta por
essa condição “sem balizas” referida na segunda estrofe, como, agora, tem de
lidar com, ou antes, ser “essas indecisões das coisas vagas”, experiência do
informe, deslizamento do sentido, lá onde se requer a hegemonia capaz de
recortes, de de-cisões? Onde há o vago, o etéreo, aí o poema tirânico terá
de tornar-se? Como lida o poema com o que percebe como esquivança? Deve
o poema, pelo soneto de Jorge de Lima, exercer sobre a vagueza o império da
determinação? Abrandar a vagueza, ou mesmo desconsiderá-la, destituí-la do
que não se dobra a paradigmas?
Ao contrário, parece dizer-nos a voz lírica ser a tirania própria do poema a
que o leva a não cingir-se a qualquer prévio critério que já houvesse demarcado
a paisagem. A força que provém desse dizer é a que não se submete a itinerário
predelineado, por isso se aproxima do dizível considerando a báscula do sen-
tido, a natureza refratada, senão refratária, da presença centrífuga do mundo,
para que o aspectual, o fragmentário, a face fugidia possa irromper e revelar o
rosto por detrás do rosto. Nisso reside a tirania do poema, na palavra do so-
neto: na sua extrema autonomia – do grego auto-nómos, lei própria –, expressar
o que invente de quanto se apresenta, e estabelecer aí nexos, pontes, derivas e

168
Um soneto de Jorge de Lima

o avizinhar-se de coisas indecisas e vagas, sem a priori de automatismos, sem os


doces esquematismos a refrearem a vocação de transpor própria do lirismo.
Essa condição da palavra poética, que Jorge de Lima levou ao nível exube-
rante de Invenção de Orfeu, tem, neste soneto, um pouco de sua teorização talvez
(acolhamos aqui o talvez, para matizarmos toda loucura das certezas). O último
verso circularmente retorna ao primeiro, que aludia ao crescimento do poema.
Não se trata, parece dizer-nos o poeta, apenas de uma “bela imagem” que inau-
gurara o soneto. A ênfase, no fecho, dá-se à lembrança do solo propriamente
existencial onde se enraíza esse crescer. Não é, pois, o elogio do vago, para alento
de nefelibatas retardatários. Nem do Belo em si, ou de idealidades outras: as
referências a elementos vitais como nutrir e sangue desdobram a imagem inau-
gural do crescimento do poema, agora referindo, para arrematá-lo, a figura do
ventre, logo, do gestar da poesia. E, uma vez que o soneto parece aludir ao que
separa as coisas como condição de que haja o espaço propício para que elas cir-
culem e teçam assim itinerários surpreendentes (“Mas que venham de voz per-
plexidades”), atentemos como o poema sintetiza quanto diz neste último termo
que o conclui. Obedecendo a uma das estruturas rímicas habituais do soneto, a
última palavra do segundo terceto – ventre – ecoa a última do primeiro – entre.
O ventre é, pois, o pressuposto pelo crescimento, origem do nascer e, literal-
mente ab ovo, lugar de transmutação, intervalo a ligar nada a tudo e por ilação (ou
lição) do poema, a ligar tudo a tudo, nada a nada etc. etc. (sic, infinitizando-se
pela lógica outra da poesia). Circulação contínua, pulsátil e viva (“sangue”) da
matéria nascente, fonte de espanto e fascínio ou, na expressiva síntese-em-eco
da palavra final que encerra o soneto: v-entre.

Referência bibliográfica
LIMA, Jorge de. Livro dos sonetos, Lisboa: Livros de Portugal, 1949.

169
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio

Domício da Gama –
Escritor e Diplomata
Alberto Vena nc i o Fi l ho Ocupante da
Cadeira 25
na Academia
Brasileira de
Letras.

D omício da Gama nasceu em Maricá, na então província do


Rio de Janeiro, a 23 de outubro de 1862, e faleceu no Rio
de Janeiro em 5 de novembro de 1925, há noventa anos. O nome ci-
vil era Domício Antonio Forneiro, mas adotou o sobrenome Gama
em homenagem ao padrinho que lhe dera assistência.
O pai, Domingos Afonso Forneiro, português nascido em Via-
na do Castelo, emigrou para o Brasil e aqui criou sete filhos bra-
sileiros. O velho Forneiro enviou os filhos para estudar em bons
colégios na Corte, quis ter os filhos formados e determinou-lhes
a profissão.
Assim, Domício seria engenheiro. Entrou na Escola Politécnica,
mas reprovado ao final do terceiro ano, o pai suspendeu a mesada
e ele teve de se manter com recursos próprios, fazendo o rodapé da
Gazeta de Notícias de Ferreira de Araujo.

Efeméride do dia 29 de outubro de 2015.

171
Alberto Venancio Filho

Aos dezoito anos foi escolhido presidente perpétuo do Grêmio Literário


Jardim de Academus, composto de vinte sócios, todos praticamente da mes-
ma idade e que prenunciava uma atividade literária.
Em 1897, vivendo no exterior, Domício foi eleito para a Academia Brasi-
leira de Letras para a cadeira número 33, aos trinta e um anos, no grupo de
dez escritores eleitos para compor o número de quarenta.
De Paris, escreveria a José Veríssimo em 24 de fevereiro de 1897: “O que
vem a ser a Academia Brasileira de Letras, para que fui eleito, tomando lu-
gar de outros mais merecedores (Quintino, Ferreira de Araujo, João Ribeiro,
Assis Brasil, Rio Branco, Capistrano de Abreu) pelos seus trabalhos e posição
social? Vejo que tenho aí amigos que se lembram de mim, mas se esqueceram
de explicar o que vai fazer a sociedade para cuja composição me fizeram a
honra de escolher.”
Domício da Gama e Oliveira Lima foram os únicos fundadores que toma-
ram posse.
A posse realizou-se no dia 1.º de julho de 1900 e, ao contrário da praxe
posterior, com discursos extremamente curtos. Domício fez o elogio de Raul
Pompeia com entusiasmo, destacando o convívio entre os dois, quando Pom-
peia escrevia O Ateneu em três meses e, ao mesmo tempo, “revia as provas de
uma edição de Canções sem metro. O estudo da vida e da obra de Raul Pompeia
é examinado com profundidade. Prossegue dizendo: “Raul Pompeia era um
apaixonado. Porque era sincero, puro, dava-se todo ao seu afeto, de cada vez
objetivado em vão. Domício considera que “o elogio de Raul Pompeia não
está feito, que este discurso não era senão uma nota desconcertada e rápida e
demasiado incompleta sobre uma parte apenas de sua obra dispersa e vária e
mal conhecida.”
Ao recebê-lo, Lúcio de Mendonça foi conciso e dedicou grande parte do
discurso ao patrono Raul Pompeia. De Domício afirmava que “o novo com-
panheiro tem o melhor de sua bagagem literária, já avultada, prodigamente
dispersa na imprensa periódica; publicou apenas um livro Contos à meia-tinta,
que são primores de observações psicológicas, mas sobeja-lhe matéria para
meia dúzia de volumes de igual ou maior tomo”.

172
Domício da Gama – Escritor e Diplomata

De volta ao Brasil, em 1924, Domício convida o jovem diplomata Heitor


Lyra para um passeio e relembra os velhos tempos em que ali morara e convi-
vera intimamente com Rio Branco, Eduardo Prado e Eça de Queiroz. Numa
esquina da Rua de Rivoli, recorda:

“Ali morava Eduardo Prado. Um belo apartamento. Passava nele todo


o ano. Rio Branco fazia-lhe geralmente companhia. Era raro o dia em que
não vinha vê-lo. Dois amigos inseparáveis.”

No passeio, indica uma residência: “Foi ali que conheci o Barão. Sabe
que ele no primeiro momento fugiu de mim? Evitou conhecer-me.” E des-
creve a chegada à Paris no verão de 1889, trazendo carta de Ferreira de
Araújo para Eduardo Prado: “Bati à porta do apartamento, fui introduzido
e encontrei Prado estirado numa espreguiçadeira. Ao seu lado numa mesa,
dois copos, e vi uma pessoa se esquivando à chegada. Mas, logo em segui-
da, Prado gritou para a sala ao lado: ‘– Juca, não tenha medo, é um rapaz
amigo do Araújo que chegara do Rio’. O Barão apareceu meio contrafeito:
‘– Pensei que fosse algum cacete...”’. Domício sentiu, porém que o tinha
observado atentamente.
Domício esclarece que se aproximou do Barão mais tarde, num passeio
pelo Champs Élysées. “Prado avistou-me, e logo me chamou para me juntar a
eles, dizendo ao Barão: – É o rapaz amigo do Araújo.” Domício se incorporou
aos dois, jantaram juntos os três e logo ficaram amigos.
Desse encontro surgiria uma relação de trabalho e amizade que perduraria
por toda a vida, justificando a afirmação do biógrafo: “Rio Branco o faria o
seu auxiliar mais próximo; o seu discípulo mais amado.”
Ao tomar conhecimento da eleição para a Academia, Rio Branco escreve a
Domício: “Quer dizer que fico sendo um dos imortais? Sic itur ad astra. Espero
para almoçar”.
E quando Rio Branco lhe encomenda a compra de livros raros, Domício co-
menta que se Rio Branco a fizesse pessoalmente faria loucuras, pois esclareceu:
“A bibliografia é a mais dispendiosa das manias.”

173
Alberto Venancio Filho

O grau de intimidade era tão grande, que quando de uma vinda de Domí-
cio ao Brasil, a Baronesa o indagou: Et comment va faire Juca, qui ne peut pás vivre
sans vous.
Essa relação representaria uma mudança em sua vida.
Ligado ao Barão, colaborou nas questões de limites com as Missões e com
a Guiana Inglesa, e veio a exercer no Itamaraty as funções do Gabinete de Rio
Branco. Nessa gestão é ministro no Peru e Argentina em momentos delicados
da diplomacia brasileira. Com a morte de Joaquim Nabuco, Rio Branco o de-
signa ministro em Washington, onde granjeia grande prestígio entre as auto-
ridades governamentais, aproximando-se do Presidente Wilson e em atitudes
corajosas, defende a valorização do café.
A produção literária de Domício da Gama é reduzida e se concentrou em
duas fases: a primeira no Rio de Janeiro, nos anos de 1886 a 1888, com a pu-
blicação de Contos à meia-tinta e a segunda, de textos de Paris de 1890 a 1895,
com a publicação de Histórias curtas em 1901.
É curiosa a escolha do título Contos à meia-tinta: Uma tarde, Domício na
Garnier com Machado, Pompeia, Mário de Alencar e outros, lia uma coleção
de contos e comunicou tratar-se do seu livro de estreia. Faltava, apenas, o
título.

“– Homem – fez Pompeia, concentrado – eu, no seu lugar, já o teria


encontrado. Dar-lhe-ia o título de ‘Contos’ à ‘meia-tinta’.
– É verdade! – fez Domício, ingênuo.”

Os contos revelam o estilo leve e ameno e a nota do entretom, revelan-


do certamente episódios destacados de impressões diversas. Entre outros,
“Cônsul” em que há muito de autobiográfico, é expansão momentânea da
realização de um sonho que rapidamente esboroou. Na “Canção do Rei
de Thule” há certamente as reminiscências de cena da meninice. “João
Cinchila” revela também quase uma autobiografia. “Maria Sem Tempo”
é o drama pungente de uma mãe em busca do filho morto na Guerra do
Paraguai.

174
Domício da Gama – Escritor e Diplomata

Ausente do país por longo tempo, a lembrança da terra


natal esteve sempre presente na obra de Domício, que guar-
dava uma imagem viva de suas plagas.
Histórias curtas, de 1901, está precedido de uma apresen-
tação “Notas para o meu melhor leitor”, indicava a premo-
nição de que sua obra literária não estava concluída, e que era necessário
apresentar uma explicação ao público.
Declara:

“Não podendo escrever grandes composições numerosas de persona-


gens e de movimentos, contentei-me com a página de álbum, mais fácil e
acessível com a cena ou mesmo o simples gesto do indicativo do sentimen-
to que anima e dá vida à criatura de ficção.”

A crítica foi favorável a seus escritos.


Silvio Romero na História da Literatura Brasileira comenta que “ao lado do
naturalismo de Zola, que se pode chamar a sistematização do mal, há um
naturalismo mais vasto, mais correto, mais humano e mais científico. Este
conta apenas com dois representantes – Raul Pompeia e Domício da Gama.
São muitos moços, ainda não deram toda a medida de sua capacidade, mas,
ou eu muito me engano, o país tem neles dois escritores de altura, acima do
comum”.
Lúcia Miguel Pereira no livro Prosa de ficção (1870-1921) escreve que: “Do-
mício da Gama, autor de alguns contos estimáveis, posto que talvez intelectua­
lizados demais na concepção, e por demais rebuscados na forma.”
Ao sucedê-lo na Academia Brasileira de Letras, Fernando de Magalhães
traçou-lhe a atuação fecunda: “Dele é boa parte da colaboração europeia da
Gazeta de Notícias, e os assuntos parisienses vinham ao leitor carioca já naquele
estilo reverente e cauteloso, dizendo menos e sugerindo mais, piedoso na mal-
dade, sereno na surpresa e singelo só na emoção.”
Assim Afrânio Coutinho descreve a obra de Domício da Gama: “Domício
não era de temperamento inclinado à controvérsia, nem às lutas de proscênio.

175
Alberto Venancio Filho

Tampouco o seduziriam as tintas fortes e as pinceladas grossas com que o


naturalismo se impunha. Sua armadura artística e sensibilidade requeriam
outros processos de realização, mais de acordo com a sua natureza retraída e
tímida.”
Disse ainda que “a produção epistolar abundante e variada merece público
pelo tom vivo de suas linhas imprevistas, comentando com graça e até filoso-
fando com profundidade”.
O atual ocupante da cadeira 33, o nosso confrade Evanildo Bechara, disse
que “acertando o passo com as tendências nacionalistas da época. Domício
da Gama acredita na capacidade criadora da nossa literatura”.
Aspecto da personalidade de Domício da Gama foi o dom da amizade,
como definiu Otávio Tarquínio de Souza:

“Domício da Gama era oposto do sujeito derramado, tão de ojeriza de


Machado de Assis, e pode ser bem julgado pelos amigos que conseguiu
fazer. De fato o círculo de suas amizades abrange as personalidades mais
destacadas de seu tempo”.

De Eça de Queiroz, tornou-se um dos mais amigos íntimos, relacionando-


-se também com os membros da família.
A sua correspondência com Rio Branco, Machado de Assis, Joaquim Na-
buco e tantos outros, revela o caráter afetuoso e sincero, talvez suprindo a
ausência de família e a vida no exterior.
A nostalgia pela literatura foi ofuscada pela atividade diplomática com a
frustração de não ter completado uma carreira literária, como retratada na
extensa correspondência pessoal.
Em setembro de 1890, mal chegado à Europa, escreve a José Veríssimo:

“Estou aqui em Berna três meses sem outra literatura que não seja a
diplomática, isto é, roteiros, memórias, trechos, despachos, etc.”

Em carta a José Veríssimo de Paris, em 26 de abril de 1890:

176
Domício da Gama – Escritor e Diplomata

“Ainda não me ocupei com literatura; desde que vim tenho vivido entre os
cuidados da profissão que acidentalmente exerço, e que por enquanto pouco
folga me deixam. Será então o tempo de escrever para a Gazeta e a Revista.”

E para Machado de Assis em 1892:

“Tenho tanta coisa em baixo da pena, a que falta espaço, tempo e forma
para sair.”

Em 1897 a Oliveira Lima:

“Eu pouco tenho feito. Cuido agora de reunir contos em volume na falta
de obra mais séria.”

Em carta a José Veríssimo em 25 de janeiro de 1901, diz Domício da


Gama: “Mas não pense que eu abandonei as letras. Saído da literatura geográ-
fica e diplomática das missões especiais, eu volto à estética.”
E anos depois, também a Veríssimo, falando de Paris: “Ainda não me ocu-
pei com a literatura; desde que vim aqui tenho vivido entre os cuidados da
profissão que acidentalmente exerço e que por enquanto pouca folga me dei-
xam”. Espero, entretanto, entrar em breve em uma fase de trabalho regular e
ordenado, sem apuros enervantes de correios urgentes a expedir.
E comentando com Figueiredo Pimentel nesse mesmo ano:

“A carreira diplomática, que para alguns é ocasião de desenvolvimento


literário; para mim tem sido de abafamento até certo ponto, pois que ape-
nas deixo as missões especiais, que são empreitadas trabalhosas, para entrar
numa legação em que há diariamente de quatro a seis horas de expediente.”

A José Veríssimo em 1901:

“Mas não pense que eu abandonei as letras. Livre da literatura geográfi-


ca e diplomática das missões especiais, eu volto à estética.”

177
Alberto Venancio Filho

De volta ao Brasil em 20 de novembro de 1918, ao deixar a embaixada


em Washington, eleito Rui Barbosa mais uma vez Presidente da Academia,
é designado para Secretário-Geral Domício da Gama. Devido aos encargos
profissionais de Rui, Domício exerce de fato a Presidência. Com a demissão
de Rui Barbosa, é eleito Presidente.
A sua presidência foi de oito meses, pois na sessão de 18 de setembro de
1919, Domício passa a presidência ao Secretário-Geral Carlos Laet, “visto
pretender retirar-se para o estrangeiro dentro de breves dias” e profere pala-
vras de agradecimento.
O Acadêmico Carlos Laet agradeceu em nome da Casa a dedicação revela-
da no cargo, a mágoa pela partida e declara: “Em qualquer ponto, porém, em
que ele se vá fixar, representará sempre com brilho a Academia Brasileira, que
se desvanece de o ter tido como diretor dos seus trabalhos.”
Afrânio Peixoto relembrou então os presidentes anteriores da Casa: “Ma-
chado de Assis, cuja timidez nunca permitira que fosse íntima a troca de afe-
tos entre eles e seus confrades, Rui Barbosa ocupado por várias atividades não
pôde ser o presidente que nós queríamos. Domício da Gama que, ainda nas
ocasiões mais apertadas dos labores e apreensões de seu ofício, sempre achou
alguns momentos para os conviver conosco.”
Com a eleição em 1918, pela segunda vez para a Presidência da República,
Rodrigues Alves escolheu Domício da Gama ministro das Relações Exterio-
res. Com o falecimento de Rodrigues, foi mantido na interinidade de Delfim
Moreira, mas o Presidente Epitácio Pessoa o substituiu e foi nomeado Em-
baixador junto à Corte de St. James.
Nos primeiros anos tinha situação privilegiada junto ao Presidente Ar-
thur Bernardes e o ministro Félix Pacheco e com eles se correspondia. Mas o
insucesso na obtenção do apoio da Grã-Bretanha para um lugar permanente
do Brasil no Conselho da Liga das Nações provocou a disponibilidade. Em
despedida no encontro em Paris, Domício comentou com Heitor Lyra:

“Seja feliz. Não sei se voltaremos a ver-nos. Mesmo se voltarei à Europa.


E no Brasil sem nenhuma outra ocupação não sei o que vai ser de mim.”

178
Domício da Gama – Escritor e Diplomata

E ao comentário de Heitor Lyra sobre o convívio na Academia, respondeu:


– Na Academia, ninguém mais ali me conhece.
Este comentário revela uma veia pessimista, pois há apenas cinco anos pre-
sidira a Academia e a composição da Casa não se alterara muito.
O final no Brasil foi melancólico. O Presidente da República e o ministro
do Estado não o receberam. As pessoas se afastaram dele, e muitos o evitavam.
Resolveu espaçar as visitas ao Itamaraty, sentava numa cadeira na sala dos
auxiliares do Gabinete, esperando que alguém o chamasse. Uma tarde, como
de costume, chegando ao Itamaraty, subiu à sala dos auxiliares e não mais en-
controu a cadeira, que foi retirada. E afastou-se para nunca mais voltar, para
morrer logo depois.
Na sessão da Academia em 12 de novembro de 1922, o Presidente Afonso
Celso comunica seu falecimento e declara “que sente profundo e sincero pesar
precedido de amizade que o ligava, há perto de quarenta anos, ao pranteado
extinto. Estou certo de que tal é também o sentimento da Academia, onde
ele gozava de ampla e afetuosa consideração pessoal e literária; compartido
pelos intelectuais brasileiros e pelos vários países da América e da Europa
nos quais exerceu alta função diplomática. Nos Estados Unidos, ocupou o
posto confiado anteriormente a Joaquim Nabuco; no Governo Federal, geriu
a pasta de Rio Branco; na Academia, substituiu na Presidência a Rui Barbosa,
e a consciência pública não estranhou, antes aplaudiu esses fatos reputando-o
digno de tão eminentes predecessores”.
Este o perfil de Domício da Gama.

179
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio

Entre os papéis de
um leitor de poesia
Fl á vi a A mpa ro Professora Adjunta
de Literatura
Brasileira da UFF
e do Colégio Pedro
II. Doutorou-se na
UFRJ, com a tese

D ebruço-me sobre os livros de crítica de Antonio Carlos Sec-


chin em minha mesa de trabalho: Papéis de poesia (Ed. Mar-
telo, 2014) e João Cabral: uma fala só lâmina (Cosac Naify, 2014).
Sob o véu dos versos:
o lugar da poesia na
obra de Machado de
Assis. Organizou as
Melhores Crônicas de
Encontro nesses papéis um atilado leitor de poesia. Mais ainda,
Josué Montello, pela
admiro o olhar assíduo de Secchin que, mais do que visitar nossos Global, e o livro
poetas, nos revela as luzes intestinas da poesia, nos concede o que Itinerário da Palavra:
o Colégio Pedro II nas
ela traz por dentro, ou o que por dentro guarda, em seus recintos
letras brasileiras, pela
mais recônditos, em suas tácitas áreas, nos oferecendo, enfim, a cha- Editora Raquel.
ve desse estrito reino das palavras. Publicou as obras
Mario de Alencar e
Destacam-se dois autores nesses estudos secchinianos: Drummond
Luis Murat, da Série
e Cabral. Ambos, com a originalidade do verso, fundam um monumen- Essencial, ambas pela
to literário e se tornam pedras angulares na construção da poesia brasi- Academia Brasileira
de Letras.
leira, desde a publicação de seus primeiros livros, Alguma poesia (1930)
e Pedra do sono (1942), até a contemporaneidade. O legado desses dois
grandes poetas não se extinguiu com a morte, uma vez que continuou
ecoando entre as muitas vozes das gerações que os sucederam.

181
Flávia Amparo

Entre a pedra drummondiana e a cabralina, há mais coisas que retinas fati-


gadas e ouvidos prontos a captar suas vozes inenfáticas e impessoais. Muitos
leitores foram capturados nel mezzo del cammin e se dispuseram a aprender as
lições de pedra, sob a densa carnadura do verbo. Um dos mais assíduos fre-
quentadores dessa pétrea poesia, sem dúvida, é Antonio Carlos Secchin.
Ao ler Drummond, o crítico revisita a paixão da infância e da juventude,
amor antigo que está longe de arrefecer e que se redescobre, nas palavras do pró-
prio crítico sobre a obra do poeta, “no embate entre linhas de força pretéritas
e modernas” (SECCHIN, 2014b, p. 32). Ao estudar Cabral, detidamente, ao
longo de muitos anos, que resultou em tese de doutorado e dois livros de refe-
rência no estudo da obra do escritor, dentre os quais João Cabral: uma fala só lâmina,
Secchin revela-se, até hoje, como a maior autoridade no estudo da obra cabrali-
na e como arguto conhecedor de toda a produção do poeta, de ponta a ponta.

ȄȄ Papéis de poesia: Drummond & mais


O primor desse exemplar de crítica literária se afirma pelo seu conteúdo e
se reafirma pela singularidade do objeto-livro: desde a beleza da capa à textura
do papel. Para os leitores mais aficionados, o manuseio e a leitura da obra
proporcionarão momentos agradáveis aos olhos, ao tato e ao paladar poético.
Além dos estudos drummondianos que abrem o livro, Secchin privilegia
autores clássicos do Romantismo, como Castro Alves; revisita simbolistas es-
quecidos, como Pereira da Silva, e alguns celebrados por apenas um poema,
como Alphonsus de Guimarães, que no livro tem seu belíssimo e desconheci-
do poema “A cabeça de corvo” analisado por Secchin. O crítico também dis-
cute questões importantes sobre os modernistas de 22; nos apresenta Solombra,
de Cecília Meireles; captura o lirismo de Os sertões, de Euclides da Cunha; e,
finalmente, nos brinda com a boa safra da poesia contemporânea, ao analisar
a obra de Paulo Henriques Brito ou a de autores consagrados como o grande
poeta Ferreira Gullar.
Sem dúvida, os cinco estudos drummondianos da abertura merecem ser
detalhados, uma vez que formam um belo conjunto sinfônico dentro do livro:

182
Entre os papéis de um leitor de poesia

“A rosa, o povo”, “Drummond: alguma polimetria”, “Quatro vezes Drum-


mond”, “O quase livro do pré-poeta” e “Duelo de violas (sobre Viola de bolso).
Esses estudos revelam aspectos pontuais da poesia drummondiana, que me-
recem um novo olhar. Como exemplo, no segundo artigo do volume, a partir
do estudo da métrica e do verso livre na poesia brasileira, o crítico observa a
polimetria drummondiana – aspecto tão pouco estudado no poeta –, e pro-
põe uma “desejável história do verso no Brasil” (SECCHIN, 2014b, p. 39).
Retomar o estudo de poesia não apenas pelo conteúdo ou pelo contexto, mas
pelos aspectos formais, intrínsecos aos estudos sobre o verso, é uma proposta
que rompe com um padrão vigente na atualidade, que costuma menosprezar
a vertente estrutural do poema.
Em “A rosa, o povo” e “Duelo de violas”, o autor apresenta-nos um dos
mais aclamado livros drummondianos (A rosa do povo) e o menos compreendi-
do (Viola de bolso). Oscilando entre o mais e o menos, Secchin traduz o diálogo
(ou a falta de) entre rosa e povo, além de elucidar os aspectos menos com-
preendidos da “viola portátil” do poeta mineiro. Captura o íntimo propósito
de A rosa do povo (1945): “a História da guerra pública [2.ª Guerra Mundial]
irá conviver com a história das batalhas íntimas; estas, menos ruidosas, nem
por isso provocam menor dano à consciência cindida entre a imantação do
futuro e o peso atávico da herança mineira.” (SECCHIN, 2014b, p. 25-26);
enquanto nos deixa iluminar por palavras ao nos apresentar certas joias líricas
da Viola drummondiana:

Podemos, então, deliciar-nos com “Caso pluvioso”, poema que o pró-


prio autor pinçou para integrar sua Antologia, de 1962. Podemos transpor-
tar-nos ao clima fantasmagórico de “Luar em qualquer cidade”. Podemos
comover-nos com a forte descrição dos recalques e silêncios da vida miúda
em “Os romances impossíveis”. (SECCHIN, 2014b, p. 70)

Analisar e ampliar as possibilidades do leitor é um sábio percurso para a


apreciação do melhor da poesia drummondiana, mesmo quando não esta-
mos diante de seus melhores livros. Nesse percurso, vale a pena redescobrir

183
Flávia Amparo

a primeira obra, jamais publicada em vida, de um pré-Drummond (ainda


penumbrista). O escritor concebeu Os 25 poemas da triste alegria em 1924, antes
de iniciar sua primorosa carreira como poeta na década de 30.
O bibliófilo Secchin descobre essa obra perdida de Drummond e, além de
garimpá-la1, nos oferece um histórico do livro, que passou pelas mãos de Rodri-
go de Melo Franco e Mário de Andrade até ser esquecido numa estante perdida
no limbo do tempo. Recuperados, esses primeiros poemas nos mostram um
outro Drummond, ainda sem as influências modernistas que marcaram o come-
ço de sua carreira. Guiados pelas palavras de Secchin, tomamos conhecimento
das outras veredas do poeta: “Se no meio do caminho do poeta tinha uma pe-
dra, descobrimos, graças a essa publicação, que no início do seu percurso havia
vários descaminhos penumbristas, de que Drummond se desvencilhou para,
pouco depois, começar a encontrar a si próprio.” (SECCHIN, 2014b, p. 63)
Em “Quatro vezes Drummond”, entramos em contato com as forças lí-
ricas não só do poeta mineiro como também do crítico. A parte inicial do
artigo, “Meu encontro com Drummond”, recompõe a primeira vez que Sec-
chin fitou a pedra drummondiana e foi por ela capturado. A admiração de
jovem leitor traduz-se em uma voz crítica capaz de compor um “Quarteto”,
dialogando com o poema “Quadrilha”, e de revelar a face lírica da crítica sec-
chiniana, que casa os seus dois maiores ícones poéticos, Carlos (Drummond)
e João (Cabral), que entraram juntos nessa história, embora tenham seguido
percursos literários tão distintos:

Carlos afastou-se de João: ex-aluno que nunca escreveu um soneto e que


detestava temas abstratos, acabou criando outra escola, na qual só fran-
queou a entrada de bem poucas lições do antigo mestre. João decidiu espe-
cializar-se na casa de máquinas do poema. Carlos optou pelas engrenagens
da máquina do mundo. As minas de João eram do mais duro minério; a
Minas de Carlos, do mais puro mistério. (SECCHIN, 2014b, p. 42)

1O primeiro livro de Drummond, Os 25 poemas da triste alegria, foi encontrado por Antonio Carlos
Secchin numa biblioteca particular. O livro inédito veio a público, numa edição fac-similar, pela Cosac
Naify, em 2012.

184
Entre os papéis de um leitor de poesia

Entre bem-humorados jogos de palavras, os dois poetas continuam sendo


o minério/mistério preferido do crítico. Se a alma de um era 80% de ferro, as
palavras do outro eram de puro diamante, capazes de seduzir os leitores pelo
impacto da originalidade. Mas se, por vezes, não há porosidade ou comuni-
cabilidade nesses poetas minerais, existem ouvidos apurados e argutos, como
os de Secchin, capazes de descobrir a chave da leitura para trazê-la até nós.

ȄȄ Uma fala só lâmina: João Cabral de ponta a ponta


João Cabral foi um poeta privilegiado. Além do seu perfeito lavor poético,
da qualidade/quantidade de sua produção e da consagração que encontrou
ainda em vida, conseguiu descobrir o seu leitor ideal: aquele que todo autor
procura quando projeta a sua obra, e que muitos o buscam a vida inteira sem
ter a fortuna de achá-lo.
Em entrevista a Ricardo Vieira Lima, em 1991, o poeta pernambucano faz
a seguinte declaração: “Entre todos os professores, pesquisadores e críticos
que já se debruçaram sobre minha obra, destaco Antonio Carlos Secchin. Foi
quem melhor analisou os desdobramentos daquilo que pude realizar como
poeta”. A frase do escritor, que não era afeito a elogios, concede destaque ao
trabalho do crítico e o consagra. Se o poeta havia encontrado o leitor ideal,
Secchin também alcançou o sonho de todo pesquisador apaixonado por seu
objeto de estudo: ser elogiado por ele e dele receber
aval e reconhecimento. Como o jovem Machado de As-
sis, que recebeu, do então aclamado José de Alencar,
o título de “maior crítico brasileiro”, esse tipo de re-
conhecimento ilumina um leitor/crítico e lhe concede
credibilidade.
João Cabral: uma fala só lâmina é a obra de uma vida. Possivelmente, seja a edi-
ção definitiva de um trabalho de pesquisa iniciado na década de 70 e aprimo-
rado ao longo de 40 anos. A pesquisa, que se inicia em 1974, com o começo
da escrita da dissertação “João Cabral de Melo Neto: a apropriação do real”
(finalizada em 1979), alcança um grau ainda mais relevante na tese “A poesia

185
Flávia Amparo

do menos, João Cabral de Melo Neto: de Quaderna a A escola das facas”, que seria
o embrião do premiado livro João Cabral: a poesia do menos, de 1985.
Em 1999, ano da morte de João Cabral, o livro recebeu uma segunda edi-
ção, revista e ampliada, pela editora Topbooks. Nesta, Secchin procurava abar-
car a obra de João Cabral de Pedra do sono a Escola das facas, acrescentando mais
dois ensaios à publicação: “Morte e vida cabralina” e “João Cabral: marcas”,
além de inserir uma entrevista concedida pelo poeta, em 1980.
As 333 páginas, da edição de 1999, se ampliaram para 478 nessa primo-
rosa edição da Cosac Naify, que é sinônimo de bom gosto e zelo editorial.
Antonio Carlos Secchin revisita João Cabral de ponta a ponta, dos Primeiros
poemas (1937), obra prematura do escritor, a Sevilha andando (1994), derradeira
publicação cabralina. Ainda acrescenta mais três ensaios à segunda parte, além
dos outros dois que constavam no livro anterior, complementando o diálogo
com o poeta. Dentre os novos ensaios temos: “Do fonema o livro”, que ana-
lisa o universo cabralino para diferenciá-lo do drummondiano, tornando a
discutir a obra dos dois poetas fundamentais; “A literatura brasileira & algum
Portugal”, em que rastreia as referências e influências de autores da literatura
brasileira na obra cabralina e a presença de alguns poetas portugueses nessa
conversa poética; e “As Espanhas de João Cabral”, cujo título já propõe um
resgate da influência da Espanha e da poesia ibérica na poesia do autor, como
também se dispõe a esclarecer a existência plural desse lócus:

Todos esses territórios são atravessados pelo poeta, e com tal intensida-
de que o país se torna plural: várias Espanhas convivem na Espanha ideal
do escritor. Proponho-me falar de algumas delas e ressaltar a gradativa e
sempre crescente importância que a experiência espanhola assumiu na vida
e na obra de João Cabral. (SECCHIN, 2014a, p. 443).

Diante do crítico, a obra de João Cabral se descortina, sejam aos olhos


dos leitores leigos ou dos especializados, dos apreciadores de longa data ou
dos iniciantes nos caminhos da poesia do autor. Um importante papel da
obra secchiniana, além suas grandes contribuições críticas na análise da poesia

186
Entre os papéis de um leitor de poesia

cabralina, é a intenção de atar as duas pontas da obra do autor, pontas que


não apenas remetem ao gume agudo e à fala cortante da “faca só lâmina”, mas
à dicção poética do primeiro ao último livro. O título da publicação dialoga
com o subtítulo da Parte I – “João Cabral de ponta a ponta” –, e com os
capítulos de abertura e de fechamento do livro, “O poeta aponta” e “Ponta
final”, buscando arrematar os muitos fios desse tecido cabralino.
Entre os dois poetas da pedra, Drummond e Cabral, Secchin opta por
traçar as principais diferenças entre os fundamentos de cada autor:

(...) porque a pedra cabralina, contrariamente à de Drummond (que estava


no meio do caminho), o acompanhou o tempo todo. Na edição das Poesias
completas de 1968, há um fato revelador: o primeiro livro de João Cabral, de
1942, se chamava Pedra do sono, e o (até então) derradeiro, de 1966, se inti-
tulava Educação pela pedra. Pedra lançada no começo e no final do caminho: a
primeira, do sono, era oriunda de um Cabral contrário a si mesmo no futuro,
numa obra noturna e de forte impregnação surrealista. Já o livro derradeiro
acolhia uma pedra desperta, ativa e pedagógica, que propunha ao ser humano
padrões de conduta: frequentá-la para aprender-lhe a resistência, a capacida-
de de não se dissolver, de perdurar. (SECCHIN, 2014a, p. 419).

Não sei se o crítico há de lançar outros fios de galo para continuar a tecer,
amanhã, esse vasto diálogo poético com João Cabral. Esperemos que sim, que
nesses papéis de poesia, que o vento e o tempo não levam, a pedra cabralina
continue a traçar o seu risco pleno e absoluto.

ȄȄ Ponto Final
No espaço da minha mesa de trabalho, que alcança agora o diâmetro do
mundo cabralino e drumondiano (“Mundo mundo vasto mundo”), conti-
nuo debruçada sobre esses livros, sem poder e querer esgotá-los aos olhos de
outros leitores. A tarefa é imensa e sinto-me pequena diante da poesia que
inunda vidas inteiras, inclusive a minha nesse momento.

187
Flávia Amparo

Dedicar-se à escrita da poesia ou à análise detida de suas fontes é tarefa


que exige tempo e constância, não sendo trabalho para uma ou duas horas de
leitura fortuita ou descuidada, ou ainda apressada, como costumam ser as lei-
turas de nosso tempo, da era da velocidade inebriante. Felizmente, há poetas
e críticos de todos os instantes, cujo objetivo se pauta na sólida construção
de escritas/leituras/análises de toda uma obra, revisitada contínua vezes ao
longo da vida.
Lembro-me das palavras de Drummond em Confissões de Minas: “Do biblió­
filo ao bibliógrafo a distância é variável. Alguns nunca a transpõem. Outros
vencem-na de um salto.”(ANDRADE, 2011, p. 93). Antonio Carlos Secchin
certamente é desses últimos, que se preocupam não só em recompor os livros
perdidos e trazê-los a público, mas também em iluminar os autores esque-
cidos e os essenciais do cânone literário, dividindo com outros leitores, sem
parcimônia, a poesia nossa de cada dia.

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify,
2011.
SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: uma fala só lâmina. São Paulo: Cosac Naify,
2014(a).
_____. Papéis de poesia: Drummond & mais. Goiânia: Ed. Martelo, 2014(b).

188
Conto

Relatório a
uma academia
I eda M ag r i Professora de
Teoria Literária
no Instituto
de Letras da
Universidade
Nada me agrada mais do que transmitir uma do Estado do
Rio de Janeiro
imagem inteiramente falsa de mim mesmo
– UERJ. Autora
àqueles que guardo no coração dos livros de
ficção Olhos de
Jakob Von Gunter, Robert Walser bicho (Rocco,
2013) e Tinha
uma coisa aqui
(7Letras, 2007).

F unciona assim: ele me abraça muito e me olha bem, com ca-


rinho. Isso ontem. Isso hoje. Me apresenta para as pessoas,
diz meu nome, pergunta se lembram de mim. Eu me apresento,
agradeço, me mostro feliz de estar aqui, entre amigos, e me per-
gunto o que minha presença significa. Em seu abraço, que respon-
do não sem uma ponta de frieza, eu digo silenciosamente: “o que
significa minha presença aqui?” e “Isso de não me convidar é um
golpe contra o não convite de B. em dezembro passado?” “É uma

189
Ieda Mag ri

resposta ao lugar que ocupo na vida desses amigos?” E “o que você pensa
da minha presença aqui?” “Mostra que eu não me importo? Que eu sou
boa e indiferente? Que sou tola?” E: “Ele percebe minha fraca frieza?” Ao
comboio de perguntas ainda acrescento pra mim mesma enquanto vejo os
outros à mesa um “por que vim sem ser convidada e como me sinto estando
aqui?” 1. bem, por ser vista por amigos que não sei quanto me querem aqui,
por, de alguma forma, estar entre, por, de alguma forma, impor minha pre-
sença. 2. mal, detesto a conversa cheia de saber, excessivos, ególatras. Acho:
eles têm razão, eu não pertenço mesmo a esse lugar. Minhas tardes deveriam
ser de piqueniques.
Sabem aquela dúvida que sempre ataca os namorados, “será que ela
gosta mesmo de mim?” que aparece em forma de afirmação depois de
algo inesperado e agradável que ela faz “ela gosta mesmo de mim.” En-
tão ele me abraça e eu pergunto: “será que ele quer me ferir?” e mesmo
quando me dou conta de que não faço parte dos convidados, “ele quer me
ferir”, a frase não sai nunca como afirmação. E quando eu respondo que
gostaria de estar entre os convidados, não sei se sou eu ou o meu ressen-
timento que responde. Parece que sim, que eu seria capaz de estar entre
os distintos convidados, que poderia comer com garfo e faca, que não
faria barulho ao tomar a sopa e que talvez até poderia dizer umas três ou
quatro frases engraçadas ou inteligentes. E se pergunto, ou se respondo,
de novo, “sim, gostaria de estar entre os convidados ilustres da festa”, me
sur­preendo porque a afirmação só se dá pelos carecas que vieram de longe
e que indicam que absolutamente todos os amigos foram convidados e
então vejo o tamanho de minha importância. “Amigos, não há amigos.”
Ou será “Inimigos, não há inimigos”?
Mas não deixa de ser curiosa a possível resposta a um porquê eu não
fui convidada, se absolutamente todos os amigos foram convidados e se
eu, ao lado, perto, disponível sempre, não. 1. Vou te ferir porque B. não
me chamou ano passado (isto dito aos gritos e com beicinho, como fazia
meu irmão aos cinco anos e eu própria um pouco antes). 2. Não creio

190
Relatório a uma academia

que possa dizer algo interessante na minha festa. 3. O seu lugar na minha
vida é outro. O do tudo pode quando não se trata de grandes festas em
que é preciso dizer algo muito brilhante. E eu o ouço: “sim, eu gosto da
sua sala”; “sim, eu gosto de abraçar o seu corpo”; “sim, eu gosto do jeito
que você não se importa nunca”. Bom, talvez hoje eu queira dizer que me
importo, sim. “Me importo e às vezes sofro. Mas não muito agora que
entendi sua perversão e seu gosto de me excluir, mas somente de algumas
coisas muito específicas, aquelas que são realmente grandiosas”. Concluo
que seria uma vingançazinha interessante, não mais de crianças de cinco
anos, agora de colegiais, aparecer aqui e ouvir o que me interessa, falar
com meus amigos, mostrar esse excesso que é meu corpo e minha voz e
meus beijinhos e meus abraços com os convidados. Seria um pouco mais
saborosa se eu ouvisse o que todos têm a dizer à mesa, se discutisse, se
me alegrasse e aos outros e, um pouco antes da sobremesa, na sua hora de
falar aquelas frases realmente magníficas que você ficou preparando nas
tardes de sábado e de domingo, eu saísse. Justo quando, logo quando você
se preparasse, eu sairia.
Me pareceu bom isso. Talvez melhor que a sobremesa. Me parece que
me recusar a ouvi-lo pode perturbá-lo mais, pelo menos um pouco mais
do que recusar-lhe o meu corpo para o abraço, a minha sala, o meu sorri-
so. E mesmo a minha ausência na festa toda. Me agrada a ideia de sorrir e
abraçar e beijar e ouvir e comer e fingir que tudo bem. Me agrada fazer o
teatro todo e me colocar entre a ingenuidade – a fraqueza – daquela que
nem sabe o que se está passando e a bondade toda daquela que não se im-
porta e então deixar irromper a pequena vingança disfarçada, “desculpe,
preciso sair” e assim, brandamente, sem que ninguém possa provar, gra-
var, ouvir, dizer com certeza “você não me interessa mais” ou seria mais
delicado “suas festas não me interessam nunca”. Estou em dúvida. Que
tal “não suporto ouvi-lo”? E, sim, eu sei, ele precisa ser ouvido, mais que
ser amado por todos. Olho ao lado e parece mesmo que minha presença
incomoda mais que a ausência. Eu quero ser isso pra ele, descubro: sempre

191
Ieda Mag ri

uma presença incômoda. (E se no final, depois de todas as falas, inclusive


a dele, eu voltasse e fizesse aquele barulhinho das ceias chiques, um talher
na borda da taça, e tomasse a palavra e tomasse a decisão irreprimível de
ler este texto a todos os convidados? Aí sim a loucura se tornaria enfim
presente.)

192
Caligramas

Pedro Vasquez

P edro Vasque z. Escritor, tradutor, fotógrafo e curador,


é autor de 25 livros, entre os quais figuram: Dom Pedro II e
a Fotografia no Brasil; Fotógrafos Alemães no Brasil do Século XIX; O Brasil
na Fotografia Oitocentista – consideradas obras de referência. Formado
em Cinema pela Université de la Sorbonne, é mestre em Ciência da
Arte pela Universidade Federal Fluminense, e trabalha como editor
de conteúdo na Editora Rocco. Como administrador cultural, foi
responsável pela criação do Instituto Nacional da Fotografia da Fu-
narte, assim como do Departamento de Fotografia, Vídeo & Novas
Tecnologias do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; tendo
sido também diretor do Solar do Jambeiro. É membro titular do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto Histórico
e Geográfico de Niterói.

193
Pedro Vasque z

A coisa em si e sua representação no Recife, PE.

194
Pedro Vasque z

Índio no Museu Mitre em Buenos Aires, Argentina.

195
Pedro Vasque z

Suassuna no Shopping em Recife, PE.

196
Pedro Vasque z

Sala de Troféus do Instituto Ricardo Brennand no Recife, PE.

197
Pedro Vasque z

Um vulto notável na Faculdade de Direito da UFF em Niterói, RJ.

198
Pedro Vasque z

Um vulto obscuro na Primeiro de Março, Rio de Janeiro, RJ.

199
Pedro Vasque z

Uma saída no Museu Xul Solar em Buenos Aires, Argentina.

200
Poe s i a

Poemas inéditos

C a rlo s Neja r

C arlos Nejar pertence à Academia Brasileira de Letras, Cadei-


ra 4, desde 9 de maio de 1989. É poeta, ficcionista e autor
de A História da Literatura Brasileira, em 4.ª edição.Acaba de publicar
todos os seus poemas esgotados, em 14 volumes de livros de bol-
so, na coleção”Chapéu das Estações” (Ed. Unisul/Escrituras). É
procurador de justiça aposentado e se radicou na sua “morada do
vento”, em Vitória, Espírito Santo.

201
Carlos Nejar

Fernando Nogueira Pessoa


Todos os heterônimos foram
formas de me esconder da morte.
E, agora, que a vi, resvalou
de mim, passando adiante.
Resvalou, a carcaça
não é minha, o rosto
se engoliu e a Inominada
se apressou talvez
por conveniência, medo.
E o que estava ali
foi uma enchente
que não parou no rio.
Embora o informe seja
o de me terem enterrado
no Cemitério dos Prazeres,
em Lisboa, dando-me
o triunfo de viver meio-
século após, ao transladarem
minhas ditas sementes
ao claustro do Mosteiro
dos Jerônimos, com túmulo
demasiado curto. E qual
teria o tamanho de conter-me?
Mas não. Fui achado em Paris,
no metrô, reconhecido por
chapéu e óculos, bigode,
estando em toda a parte.
Minha família é errante,

202
Poemas inéditos

com a consciência de andar


sem mais ser visto. E ali,
junto ao Mosteiro dos enganos,
ao porem: jaz, não jazo,
nem jazer pretendo onde
ou quando. Nem sob a pedra,
não. A pedra não, caixa de pedra
com estrela sobre a caixa. Não.
Respiro ali onde ninguém chega.

203
Carlos Nejar

O cântico de um velho
Emagreço de sol e cresço de manhãs.

Passarinhando luas, ovos sobre o galho,

atrás da noite corro, a caçar hortelãs

e após bem devagar, me recubro de orvalho.

Eu, com meu passo d’água e o vento, pés de lã

e o rio, pernas de limo, sou tão antigo e avaro:

a estamenha de chuvas para os ombros agarro

e penduro no céu. Nem uso minhas cãs,

nem elas me usam. E se todo amadureço,

a semente me acolhe, tão jovem no poente,

jovem, menino arfante, inflado de afluentes

e papoulas. Jamais deixei que esta distância

me desfaça no ventre. Mesmo custando o preço,

de, humano, não morrer, por não sair da infância.

204
Poemas inéditos

Não consegui
Não consegui olhar para dentro da pedra.

Era a pedra que estava me olhando. Era a

pedra de dentro da pedra me fitando. E tremi,

igual a uma formiga que a pedra fascina.

Uma formiga que entra na fresta

da pedra. E se perde com a luz.

Diante de Deus.

205
Carlos Nejar

Balada dos enforcados


Duros homens, duros olhos,
duros conselhos de guerra.
Duros e ambos prisioneiros,
com testa feita de terra.
Duros consortes da noite:
quem os pariu, de que fonte?

Duros homens, duras feras,


de que entranha se fizeram?
Talvez de loba parteira,
talvez de troncos com heras,
talvez de confusas pedras.
Homens duros, duras trevas.

Duros semblantes. O ferro


mostra-se bem mais terno.
Mas como medir o tempo
de assim viver no desterro?
Quando todos somos ventos
e também duros viemos.

Homens de turvos escombros,


que rumo tomar, se a cova
levam ao peito e nos ombros?
Duros semblantes na corda
balançam em duros ramos
de pupilas, corvos, povo.

206
Poemas inéditos

Uma piedade se atreve,


e outra lhes faz aceno.
Não, nenhum na forca geme.
Se o nó os retêm, não tremem:
duros semblantes extremos
percebem que a morte é breve.

E comem as duras ervas,


duros ossos de sementes.
Mastigam a tenra lua,
com funchos e verdes leiras.
Duros semblantes: quem fura
a eternidade com os dentes?

Duras tumbas, almas duras,


forradas nalgum penedo,
todos seguem para o ventre
sob a mãe terrestre e escura.
Mas os expulsa, por terem
comido a morte com fúria.

207
Carlos Nejar

Nalgum lugar
A morte caiu do tronco

caiu daquele tronco rugoso

cheio de marulho.

Caiu a morte

com as ameixas

o sereno

e o raio de sol

a transpassou.

Caímos a morte e eu

transpassados de Deus

nalgum lugar da amada terra.

208
Poemas inéditos

A idade das uvas


       Para Elza.

Este amor que nos leva de água em água,

como do fogo o fogo, a brevidade,

queima na mesma infância que nos arde,

depondo o lento tempo sob as asas.

Estarmos juntos, ter nas almas, casa,

com o aroma da chuva, com as idades

das uvas, com as idades da palavra:

é amor que vem da lava, vem da tarde,

vem das coisas ignaras, vem das fontes

que o amanhecer do abraço nos atrasa.

E de água em água, corre um rio no alforje,

vindo de onde começa o horizonte.

De água em água te amando, brasa em brasa,

é mais eterno o que já somos hoje.

209
Futevôlei, 2013,
Rio de Janeiro.
Poemas inéditos

A l exei Bu eno

A lexei Bueno é poeta, crítico e tradutor carioca, nascido em


1963.

211
Alexei Bueno

A Ariano Suassuna, meu amigo


Do seu Reino de cabras e de cactos
Achou enfim a Porta indecifrada.
No umbral depôs o bacamarte e a espada,
Seus brasões de ferrar deixou intactos.

Com a Prisão de Aqui Estar rompeu os pactos.


Sob a Estrela de Couro desenhada
Na noite do Sertão, saiu da estrada
Trilhada entre os espinhos mais compactos.

Quixote e Pança, Quaderna e o Encoberto


Abriram-lhe os batentes. No deserto
Deixou as alpercatas, e a fragrância

Das flores da Caatinga, e, extasiado,


Com as vidas que inventou sempre ao seu lado,
Foi reencontrar o Rei da sua infância.

27-7-2014

212
Poemas inéditos

Shopping chão
Velho LP comprado dos mendigos,
1976,
Lacrado, novo, nem uma só vez
Posto entre humanas mãos e os seus perigos.

Quando o prensaram dedos mais antigos


Eu tinha treze anos. Bem mais fez
O tempo em minhas mãos sem fixidez
Que em seus sulcos, fragílimos abrigos.

Paz da matéria inerte, desespero


Da que vive. Opus 34, Brahms.
Nem vive nem é inerte. Entre os ditames

De morte ou vida, ele é, e dele é a glória.


Que em algo como tal, só isso espero,
Dure o que em nós for digno de memória.

29-7-2015

213
Alexei Bueno

Devaneio
Sempre algo nos resta
De belo no entulho,
Salvado do esbulho
Entre o que não presta.

Um retrato, a lente
Da lupa perdida,
A taça partida,
O encastoado dente.

Sem nós não são nada,


Reféns de vivermos
Fitam como enfermos
Nossa alma aprazada.

Quem sabe, defuntos


Da fratura imensa,
O que o ser não pensa
Nos reponha juntos.

4-8-2015

214
Poemas inéditos

Bilhete
         A Herberto Helder

Herberto, meu amigo, que deserto


No Expresso, nas Galegas. Tu, que vias
Um dia como nunca houve nos dias
Mesmo ao lado – e hoje é longe o que era perto –,

Como dói não te achar no Desconcerto


Do Mundo, onde, sozinho, recolhias
Nas ruas mais sem alma epifanias
Que a santos não couberam, e isso é certo.

Como dói nas esquinas da cidade


Ver um pouco a cada hora a Eternidade,
Deusa falsa e cruel, erguer cortinas

Que aos nossos olhos vedam tantos vultos


Amados e a queimar, sem ara ou cultos,
Vazando as nossas míseras retinas.

7-8-2015

215
Megarampa, 2009, São Paulo.
Poe s i a

Poemas das visitações

Alei lto n Fo ns ec a

A leilton Fonseca (1959), escritor baiano, produz ficção, poe­sia


e ensaios, com cerca de 20 livros publicados, sendo os mais
recentes: As formas do barro & outros poemas (2006), Um rio nos olhos/Une
rivière dans les yeux (edição bilíngue, 2012) e Um rio en los ojos (USA/
Paraguai); em romance: Nhô Guimarães (2006) e O pêndulo de Eucli-
des (2009); em conto: O desterro dos mortos (2001), O canto de Alvorada
(2003), Les marques du feu (2008, França), As marcas da cidade (2012), La
femme de rêve (Canadá, 2012), Memorial dos corpos sutis (2012); em ensaio:
Guimarães Rosa, écrivain brésilien centenaire (Bélgica, 2008) e O arlequim da
Pauliceia (2012). Recebeu o Prêmio Nacional de Contos Herberto
Sales (ALB, 2001), a Medalha Euclides da Cunha (ABL, 2009) e
o título de Professor de Honra de Humanidades pela Universidad
del Norte, de Assunção, Paraguai. Doutor em Letras (USP), leciona
Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Feira de Santana, na
Bahia. Em 2014, recebeu a Comenda Luis Vaz de Camões do Núcleo
de Letras e Artes de Lisboa e a Comenda do Mérito Cultural do Go-
verno do Estado da Bahia. Pertence ao Pen Clube do Brasil, a UBE/
SP, à ALITA e à Academia de Letras da Bahia.
217
Aleilton Fonseca

Ciclo
Enterramos os amigos,
um a um, distraídos.

Um dia, os amigos
que ainda restam

vêm em silêncio
e nos enterram.

E vão cuidar da vida


que ainda lhes resta.

218
Poemas das visitações

Imortalidade
Só o corpo é imortal,
em sua trama eterna
de átomos e moléculas.

O que morre avessa


é a alma, aura grega,
que se gasta desde acessa,

no ofício dos viveres,


a consumir-se inteira,
entre dores e prazeres.

219
Aleilton Fonseca

Botafogo
       Para Antonio Carlos Secchin

Hoje é dia de incendiar


as caravelas,
preto e branco nas janelas,
gana e asco nos olhares,

e fechar os caminhos
dos mares.

Hoje é dia de incendiar


os corações,
fazer das pernas canhões,
entre gritos e esgares,

e achar os caminhos
dos bares.

220
Poemas das visitações

Um canto a Maria
Porque te chamas Maria,
por este nome eu te chamo,
me iluminas noite e dia,
com a luz de teu encanto.

Porque te escrevo Maria


canto-te um verso sem fim,
tua vida é a melodia
que a vida canta pra mim.

Porque te escreves Maria


teu nome eu quero louvar,
em ti se escreve a poesia
viva nas ondas do mar.

Porque te amo Maria,


os pássaros vêm a mim,
tenho o dom que mais queria,
minha vida em teu jardim.

221
Aleilton Fonseca

Às margens do Rio
Confabulo pelas ruas do Rio
um encontro com a minha sina.
Meus olhos flâneurs sorriem
de amor com os passantes,
perdoo o rugir dos carros,
saúdo os edifícios gastos,
as nuvens sobre as favelas.

No Largo do Machado,
Alencar está ocupado,
mas observa meus passos.
Na Av. Presidente Wilson,
Bandeira me mostra um poema
que se espalha pelas ruas
com o seu brilho de bronze.

Em Copacabana,
Drummond me reconhece
com seu olhar de mineiro.
No alto do Corcovado,
o Cristo me estende os braços
e me oferece as cores do mar,
uma vida no céu das colinas.

Vago absorto pelas esquinas,


calado, com o destino escrito,
entre as ondas e as calçadas.
E tudo em volta me pergunta
à alma em surto e desvario:
quando vens ao teu encontro
viver teu amor e ódio ao Rio?

222
Poemas das visitações

Visita a Brigitte Bardot


Eu fui a Búzios e conheci Brigitte
sentada na mala, à prova do tempo
que cava marcas em tudo que existe,
tornando o passado a flor do momento.

A noite avançava, perto das onze,


e Brigitte me recebia na praça
o rosto belo, talhado no bronze,
abraços e beijos cheios de graça.

Doce aos passantes, amando-os calada,


posa pra fotos de recordação,
e sob o olhar da lua, iluminada

recebe abraços dos que vêm agora


tocar seu corpo de antiga paixão,
enquanto ela só do mar se enamora.

223
Aleilton Fonseca

Visita à poeta Sapho


Visito a jovem poeta de mármore,
que conheci, menino, em Ilhéus,
em sua moldura de flor e de árvore,
senhora da praça e vigia dos céus.

Eu a visito e abraço, em corpo e alma,


fotos e lembranças e livros e postais:
poeta e musa, que acolhe e acalma
e que vive no templo dos imortais.

Serena, ela me conta em silêncio:


o segredo da poesia é estar ciente
de que o mistério da vida é imenso
e o poeta sonha o que vê e o que sente.

224
Poemas das visitações

Visita ao poeta Drummond


         Para Marco Lucchesi

Itabira era uma foto no desejo


que sempre tive de visitá-la,
eis em volta a cidade que vejo
da casa do poeta, à janela da sala.

Visito o amigo em fotos e poemas,


converso com ele em pensamento,
declamo seus versos à voz pequena
e os entrego aos cuidados do vento.

Recolho os cantos na alma da casa,


percorro os cantos da casa do poeta,
e a cada passo um suspiro que exala
do peito – e da vida uma descoberta.

Saio às ruas, admiro a casa de longe,


sigo as trilhas da manhã de domingo,
ouço por perto um silêncio de monge
e as rimas de um encanto que sinto.

Na praça, Drummond está nas alturas,


e eu, de mãos dadas, tão pequenino,
em sua casa posei em idade madura,
e o poeta na foto ainda é um menino!

225
Ceará 2 × 2 Corinthians, 2008, Fortaleza.
Poe s i a

Poemas

M o nte z M ag no

M ontez Magno nasceu em PE, em 27-7-34. Estudou mé-


trica e versificação com o poeta Balthazar de Oliveira, seu
pai. Tem 12 livros de poesia, dos quais 11 foram editados, desta-
cando Dentro da caixa, cinza; Narkosis; Câmara escura e Enquanto respiro,
estando ainda inédito Crisálida. É tradutor e contista. Participou de
algumas antologias poéticas e publicou artigos sobre Arte em jor-
nais do Recife e no Jornal do Brasil. Viveu durante mais de um ano em
Madri, Milão, Veneza e Grécia. Desde 1954, dedica-se também às
artes visuais, tendo realizado várias mostras individuais no Recife,
S. Paulo, Rio de Janeiro, Madri, Barcelona, Porto, Zurique. Parti-
cipou por quatro vezes da Bienal de S. Paulo, tendo sido premiado
em 1967 com o Prêmio de Aquisição do Itamaraty. Participou,
ainda, como artista convidado da Bienal de Valparaíso, da Bienal
de Havana, da Bienal de Poesia Visual e Experimental do México
e da Bienal de Desenho e Fotografia de Bilbao. Atualmente vive e
trabalha na cidade do Recife.

227
Monte z Magno

A pena do poeta
Corre em busca da essência,
sofre querendo entender
a vida.
Como se faz o poema?
Com sentimento e razão
e uma certa confluência
de inesperados insigths
que a mão traduz
e a pena não.

17-07-2006

228
Poemas

Lavando os campos de relva


Ainda criança
fiz ingênua promessa:
sempre ouvir os pássaros
entoando seus hinos;
defender a natureza
respingando a sua dor
nas árvores abatidas
e águas rompendo margens
por entre rochas sem cor
lavando os campos de relva.

04-11-2007

229
Monte z Magno

O melhor é voar
Aqui está a sua sombra
como aqui está a sua dor.
No caminho da ausência
o melhor é voar
atravessando o espaço
se afastando do vazio.
Sempre um bater de asas
sem movimento, a quietude
um casulo de energia
que nunca se fecha nem abre,
presa a sua luz
no interior da furna.

04-11-2007

230
Poemas

O mais profundo
       A Per Johns

Ser simples
hasta la medula.
No se desgastar
com coisas inúteis.
Buscar o osso
no fundo da alma.

07-07-2006

231
Monte z Magno

Solitude
Tenho um Buda em mim
coberto de pó e solitude.
Exala mantras na sala
cospe átomos à noite,
provoca risos quando fala.
O sorriso preso nos dentes
a palavra guardada para depois,
depois que um múrmuro alento
pousa no ar silente do passado.

08-08-2009

232
Poe s i a

O movimento
das palavras
Jo s é Hu g u eni n

J osé Huguenin é natural de Santa Rita da Floresta, Cantagalo –


RJ. É Doutor em Física pela Universidade Federal Fluminense,
com estágio de doutorado no Laboratoire Kastler Brossel, Paris,
França. É professor do quadro permanente, um dos fundadores e
primeiro Diretor do Instituto de Ciências Exatas da Universida-
de da Federal Fluminense em Volta Redonda, RJ, onde mora. No
campo da literatura, é um leitor ardoroso. Escreve poesias desde
a adolescência tendo recebido vários prêmios literários (poesias e
contos). Seu primeiro livro publicado foi Vintém (2013), de poesias.
Em 2014 publicou o livro De manga a jiló provei na terra onde me batizei
(2014), uma seleção de crônicas interioranas. O ensaio Estranhezas
e mitos da Mecânica Quântica (Vieira & Lent, 2014) é sua primeira
obra de divulgação científica. Seu último livro publicado, A parede &
outros contos (2015), reúne contos escritos nos últimos três anos, com
vários textos premiados. É membro da Academia Volta-redondense
de Letras.

233
José Huguenin

Calor
Um lado quente,
Fervente,
Ardente expectativa.
Faz mover, rápido,
As partes constituintes,
Provoca choques,
Pressiona,
Arde,
Tenciona,
Insiste,
Justifica o amor,
E o calor
Propaga em ritmo veloz
rumo
a outra
fonte,
perde
ímpeto
no caminho,
insiste,
vai mais
lento.
Porque o outro lado está frio,
Água de rio, difícil esquentar,
Difícil movimentar,
Driblar a viscosidade.
Não pressiona,
Não intenciona,
Resiste, lento,
Evita tormentos,
Sente calafrios,
É frio,
Mas não vence
A natureza.
Com o
Passar
Do tempo
Não há lado, não há diferença, ímpeto, resistência, não há transtorno, tudo é morno.

234
O movimento das palavras

Contrastes
O silêncio transforma a sinfonia,
Retoca-lhe os tons,
Acentua a nostalgia,
Purifica-lhe os sons.

O lago parado espelha o céu,


Captura o tempo,
Transforma-se em véu,
Eterniza a beleza do momento.

A sombra emoldura a luz,


As nuances da pintura nos deixa ver,
À ternura nos conduz,
Acentua as cores, o ouro faz resplandecer.

Contrastes,
Antíteses,
Completezas.

235
José Huguenin

Densidade
Palavras dispersas, rarefeitas,

sofrem      de frequente

esquecimento.

Não porque são    esparsas,   raras,  


       mas por
parecerem sem conexão.
Mas se o discurso agrega, propõe união,
as palavras se juntam, ganham corpo,
aglutinam-se, apóiam-se e já não são
palavras, mas frases indissociáveis,
inseparáveisprontasparaformar
opensamentodenso,odiscursodedensidade.
Masmanterodiscursodensoécustoso,
     tira o fôlego, faz pensar
que a severidade, por vezes, atrapalha,
nos deixa tensos, de tão junto, o discurso
não respira,       confunde,
melhor respirar.
     Melhor entender, esquecer,
do que sofrer, perder a sanidade.

Palavras dispersas podem, também, ter densidade,

sem perder a leveza e a beleza das palavras.

O resto é superficialidade.

236
O movimento das palavras

Sonhos.
Se apóia nos
Para estar segura,
A base de nossa escada,
Certos de jamais esquecer que
Carentes, cientes de nossa realidade,
No decorrer sereno da contínua escalada,
E os passos, os degraus, quem constrói somos nós,
O norte, a sorte, o rumo da vida, quem dá somos nós.
É natural, no começo, o tropeço, o olhar perdido no tempo.
Antes de iniciar o projeto, de construir o teto, de começar a subir.
Começo a ver que para viver, fazer acontecer, para sentir, é preciso sonhar

Escada para subir

237
José Huguenin

Gravidade
Faz cair a

maçã.

Faz o mundo
girar em           torno do Sol,
mudar a estação.

Mantém-nos seguros, sem fio, pendurados


no
nada.

Faz, com a massa, o peso.


Sustenta arcos,
arquétipos da humanidade.
Faz o mundo pesar em nossas
costas.

Mas nascemos com ela, envoltos na atmosfera.


Habituamo-nos à pressão, ao peso
do ar sobre nossas
cabeças.

Difícil, mesmo, é suportar o peso das palavras.

238
O movimento das palavras

Meu quintal
O sol,
Em dia sublime,
Ilumina meu quintal.
Um mundo,
Onde no tempo de eu menino
Explorava
Cada recanto da imaginação.

239
José Huguenin

Profecia
E virá o tempo
Em que toda a vida
Se resumirá a um momento.
Em que toda partida
Despertará ressentimento.
Em que toda ferida
Se originará de um sofrimento
E não se fechará mais.

E virá o dia
Em que todo ímpeto
Será detido pela apatia.
Em que todo projeto
Sofrerá de anemia.
Em que todo teto
Se intimidará com a tirania
E todos se resignarão.

Mas virá, sempre, a hora


Em que o medo e a desolação
Sairão de nossas vidas porta afora,
Em que toda emoção,
Verás, da pele aflora,
Em que toda escuridão
Se dissipará com a serena aurora
E todos voltarão a sorrir.

240
O movimento das palavras

Um dedo de prosa
Um dedo de prosa
Neste verso de folha
Mostra o reverso da vida
De alguém que insiste em sonhar.

Uma rosa diz muito.


Mais que um dedo de prosa,
Mais do que a própria rosa
Pode dizer.
Ela, que perfuma,
Ilumina
E insiste em espetar.

Neste verso de folha


Desenha-se o espinho da vida
Que a um estranho
Abrimos como um livro velho
Em um dedo de prosa.

O verso,
A rosa,
O espinho,
O reverso,
Tudo,
Neste dedo de prosa.

241
Megarampa, 2009, São Paulo.
P o e s i a Tr a d u z i d a

Safo

Tradução de Hel ena d e L u c a s Poeta e


tradutora.

S afo, circa 630 a.C.-570 a.C., nasceu na ilha de Lesbos e aí pas-


sou boa parte de sua vida. Uma das figuras mais fascinantes
de toda a poesia, seus versos se impõem pelo rigor de sua expressão
e beleza, cujos fragmentos foram tantas vezes revisitados pela poesia
lírica do Ocidente.

243
Tradução de Helena de Lucas

35
Ἄστερες μὲν ἀμφὶ κάλαν σελάνναν
ἂψ ἀπυκρύπτοισι φάεννον εἶδος,
ὄπποτα πλήθοισα μάλιστα λάμπῃ
γᾶν...

ἀργυρία

51
οὐκ οἶδ› ὄττι θέω· δίχα μοι τὰ νοήμματα

244
Safo

35
Os astros em torno de tão formosa Lua
voltam a esconder seus vultos luminosos
quando cheia desponta sobre toda a terra

... cor de prata ...

51
não sei o que fazer: duas ideias me dividem

245
Tradução de Helena de Lucas

52
ψαύην δ› οὐ δοκίμωμ› ὀράνω †δυσπαχέα†

53
βροδοπάχεες ἄγναι Χάριτες δεῦτε Δίος κόραι

94
Δέδυκε μὲν ἀ σελάννα
καὶ Πληίαδες· μέσαι δὲ
νύκτες, παρὰ δ᾽ ἔρχετ᾽ ὤρα·
ἔγω δὲ μόνα κατεύδω.

246
Safo

52
já não presumo de tocar o céu

53
ó venerandas, braquiróseas, Cárites, vinde, filhas de Zeus

94
A Lua declinou
e as Plêiades fugiram.
Avança a madrugada:
Eu me deito sozinha.

247
Tradução de Helena de Lucas

134
ζὰ ... ἐλεξάμαν ὄναρ Κυπρογενηα

136
ἦρος ἄγγελος ἱμεροφωνος ἀηδών

137 primeiro verso


θέλω τί τ› εἴπην, ἀλλά με κωλύει
αἴδως...

248
Safo

134
falei em sonho com Afrodite

136
mensageiro da primavera, doce voz do rouxinol

137 primeiro verso


queria dizer, mas o pudor me impede

249
Pólo Aquático na
Chapada dos Veadeiros, 2010,
Alto Paraíso de Goiás.
P o e s i a Tr a d u z i d a

Álcman

Tradução de Hel ena d e L u c a s Poeta e


tradutora.

Á lcman viveu na segunda metade do século VII a.C. e segun-


do uma dúbia tradição teria nascido em Esparta. Conside-
rado um dos nomes mais significativos da poesia mélica e da lírica
amorosa.

251
Tradução de Helena de Lucas

127

128

136

252
Álcman

127
Eu me inclino aos teus joelhos

128
Sou tomado pelo mal, árido demônio

136
Trazia um colar de ouro,
de pétalas trançado e crisântemos leves

253
Tradução de Helena de Lucas

137

140

146

254
Álcman

137
Quantas jovens entre nós
Em louvores àquele que toca
a cítara

140
Conheço o canto de todos os
Pássaros

146
Com o aulos tocou uma frígia melodia,
O Cervesion

255
Tradução de Helena de Lucas

162

175

256
Álcman

162
Rifeus, montes floridos de bosques
coração da noite negra

175
Pode-se legar a memória do presente

257
Ver-o-Peso,
2011, Belém.
P o e s i a Tr a d u z i d a

Estesícoro

Tradução de Hel ena d e L u c a s Poeta e


tradutora.

E stesícoro, circa 640 a.C.-556, nasce em Himera ou Metauro.


Trata-se de um pseudônimo que significa “aquele que rege o
coro”, considerado pelos antigos como um Homero da lírica coral,
era um representante dos citaredos da Magna Grécia.

259
Tradução de Helena de Lucas

178

200

211

260
Estesícoro

178
Flogeu e Arpago, céleres filhos de Podarge

200
dele me apiedei, que aos reis
a água aduzia, a filha de Zeus

211
na primavera
quando passam as andorinhas

261
Tradução de Helena de Lucas

232

240

243

244

262
Estesícoro

232
... tanto
o canto, os jogos, a dança dos coros ama Apolo,
mas Hades granjeia morte e tristeza

240
Vem, afinal Calíope melífona

243
lançavam dardos ferozes

244
sem proveito e sem razão prantear os mortos

263
Nova Friburgo após fortes
chuvas, 2011, Rio de Janeiro.
Memória Futura

A invenção da
Ilha da Madeira
Ody lo C o sta , Fi l ho Quarto ocupante
da Cadeira 15
na Academia
Brasileira de
Letras.

A s coisas verdadeiramente não andavam bem, do lado da


porta do Céu. E isso preocupava o Senhor, não por Ele
mesmo nem ao menos por ela, mas por Pedro. Cada vez mais se
afeiçoara a ele, ao mesmo tempo velho, menino e pedra, e doía-lhe
ver nele, em vez das presenças grandes, as pequenas falhas do ser
humano. Do ponto de vista da Eternidade, sempre importava, no
fundo, que Pedro se mostrasse severo demais com este ou aque-
le penitente provado pela dor terrestre, exigindo-lhe alguns anos
de purgatório sob pretexto de que não suportara com paciência
bastante as fraquezas do próximo – quando a alma já estava leve,
leve, de tanto sofrer. Outras vezes, bem que era preciso mandar
alguém purgar um pouco por não ter sido mais insistentemente
quotidiano na fé, ou na castidade, ou na esperança, mas Pedro
lembrava que nem a todos é dado amanhecer usando, como roupa
* Odylo Costa, filho, Ficção Completa (A Faca e o Rio e outras histórias). Academia Brasileira de
Letras, 2014.

265
Odylo Costa, Filho

lavada em alecrim e guardada em alfazema, no mesmo grau e com a mesma


regra meticulosa, essas virtudes supremas; e Ele próprio até renegara Deus.
Por isso, quando a caridade fora ardente, embora pouco operante, lá vinha
algum desastrado boêmio ou mau poeta misturar-se com os santos; e se
por acaso algum deles mais exigente, Domingos ou Inácio, levantava ques-
tão, Pedro invocava sem constrangimento seu feio pecado, pretendia que a
poucos se deu mais de meia hora de crença absoluta na vida inteira, e pedia
mesmo o testemunho de João: “Amai-vos uns aos outros” fora toda a lição
do Senhor. Embora tudo terminasse bem, fazendo-se segundo a Misericór-
dia que não segundo a Justiça, o Senhor sempre receava vir a cruzar um dia
lá dentro, entre Tomás de Aquino e Jerônimo, na confusão dos tempos, com
algum pintor cabeludo e barbudo do século XX, morto de enfarte nas salas
de Paris, depois de defender em telas e tintas o mesmo princípio abstrato
das artes islâmicas... Mas bem no fundo não o ocupavam mais que a sombra
terrestre de um segundo as contradições que ora faziam Pedro hostil a quem
chegava, como o coração de um colegial, a fechar-se em rocha e ironia a
um mau mestre, dos que negam distinções sob pretexto de letra, ora o des-
manchavam em sangue e afeto como os adolescentes que cobram das boas
mestras a mesma carícia inocente pousada na cabeça dos alunos menores...
Pois as imagens que acudiam ao Senhor eram sempre desse teor: no fundo,
pedra da Igreja e bispo de Roma, Pedro, por mais que se adentrasse no tem-
po ou fora do tempo, ficara sempre menino. Magoava-se de vê-lo ainda mais
oscilante e distraído, e até chegava a recear que algum jornalista desgarrado,
acertando, por acaso, com a porta e com Pedro, pudesse ir dizer lá embaixo
que ele já por vezes tirava de novo do bolso o sudário que, antes de cruci-
ficado de cabeça para baixo, homem entre os homens, usava para, nas horas
livres, chorar as três vezes em que O negara. E se Pedro voltava a chorar, e
os homens o sabiam, que novos medos não se espalhariam entre eles, que
haviam temido o milênio e viriam a tremer diante da bomba?
Então, como se o fizesse por acaso, uma vez que Pedro lhe passava ao al-
cance da voz, chamou-o e disse:

266
A invenção da Ilha da Madeira

– Tu, que tens?


Porque só ele, no lugar de que falo, tratava Pedro por tu; e Pedro, dura ca-
beça, ora o chamava de Senhor, ora de Tu, ora de Vós, e nas variações verbais
revelava as agonias do coração.
– Eu, Senhor, nada.
– Alguma coisa tens, Pedro, que ainda ontem me contava Domingos que
acusavas duramente a Inquisição, como se ela não estivesse a nos dar tantos
novos mártires e santos, e se bastassem umas fogueiras a mais ou a menos para
acabar com a raça dos homens... Alguma coisa tens.
E logo Pedro, que não sabia resistir de cara amarrada ou sonsa diante do
Senhor, abriu-se:
– Senhor, é a minha Ilha...
Parou um minuto o Senhor. Ilhas e mares estavam todos confiados a
Pedro, que fora pescador e andara a pé sobre as águas. Não conseguia, entre-
tanto, de logo lembrar-se – mesmo ele que penetra no coração dos simples e
no pensamento dos sábios – a que ilha especificamente se referia Pedro. No
fundo, tudo eram ilhas, ilhas as ilhas, ilhas as nações, ilhas os continentes, e
ilha, entre outras ilhas, ilhéu modesto, a própria Terra, perdida entre tantos
mundos...
– A tua Ilha...
Mas de repente se lembrou. Havia uma ilha, pequena ilha do Mar Ocea-
no, que Pedro chamava sua – porque oferecia a singular circunstância de não
existir nela animal daninho, mesmo cobra, embora sem veneno, ou simples
escorpião, nem nela se acharia outro gênero de bichos de terra senão umas
lagartixas, inocentes, pequenas, tamanho de um dedo, e sem peçonha. E
assim Pedro, homem, o Homem, na sua utopia, desejava que fossem todas
as ilhas.
– Mas que há com tua ilha, Pedro?
Ora, Nosso Senhor, que tudo sabe, passado, presente e futuro a um só tem-
po, por vezes esquece, mas logo, logo se lembra. Acudiu-lhe uma antiga ideia
que vinha a Pedro, todas as ocasiões (e eram frequentes) em que demorava o

267
Odylo Costa, Filho

pensamento naquele recanto onde não riscava a garra do tigre nem assustava o
assobio da serpente. Mas esperou que Pedro falasse.
– Senhor, deixa que os homens cheguem à minha ilha. O que resta do
Paraíso terreal ali resta.
O Senhor nem chegou a um sorriso mal entreaberto:
– Mas que homem merece em vida o Paraíso?...
E Pedro, vendo-o agradado, escondeu os ressentimentos no coração, e
disse:
– Nosso Senhor, Tu és Deus, e a Ti bastam os Tronos, as Dominações e
as Potestades. Eu, porém, Tu me conheceste homem, e penso nos barcos de
pesca...
Irou-se um instante o Senhor:
– E acaso, quando me conheceste, não foi como homem, e até não chegaste
a negar que como homem, já não como Deus, me conhecias?
Mas logo, olhando nos olhos desmanchados de Pedro, aliviou-lhe a aflição:
– Pedro, Pedro, que não tens cabeça. Não há leões nem ursos, mas também
não há o que eles comam. Não há lobos, a não ser os do mar, pobres focas que
mal bastam para saciar num dia a fome de Londres.
Mas Pedro não era homem de carnes terrestres:
– Senhor, Tu és sempre Deus, embora tivesses sido homem. Esqueces que
fui pescador? Moram ali muitos peixes, não longe passam cachalotes, atuns
convivem com o negro peixe-espada, de rasgantes dentes; e há imensas madei-
ras para barcos...
Sorriu o Senhor àquela teimosia, e dispôs-se a levar adiante a conversa.
– Sabes, Pedro, quanto o homem é medroso e deslembrado do dia de ama-
nhã. A primeira coisa que há de fazer é incendiar a floresta...
Mas Pedro:
– Não o fará por mal, Senhor, mas para plantar com os calos da mão e o
suor do rosto. E sete anos que dure o fogo, não foram sete e mais sete os que
Jacob esperou? E onde antes havia madeira para casas altas e navios poderosos,
haverá lavouras e searas...

268
A invenção da Ilha da Madeira

Quis o Senhor, que tem nas mãos o passado, o presente e o futuro, ver até
onde ia o amor de Pedro pelos homens.
– Pedro, Pedro, dura cabeça de Pedro, esqueces quanto é tua ilha feita de
abismos e pedras? Sua planície fica no alto, e é um paul; suas águas se despe-
nham arrancando toda a vida por onde passam; e seus vales são fundos como
a cratera dos vulcões mortos... Abismos e pedras!
– Pois o homem saberá plantar uvas que deem um vinho tão generoso
que viajará pelo mundo e de torna-viagem, em dois séculos e avante, estará
cada vez mais vivo, tão perfumado que rainhas pingarão algumas gotas nas
mãos antes de as darem a beijar, tão preferido pelos poderosos que prínci-
pes nele se afogarão... Um vinho para pobres e para reis, capaz de despertar
o apetite dos fracos e de confortar o coração dos fortes... E bem sabes,
Senhor, que no clima da minha ilha o homem poderá plantar frutas de toda
a Terra, e entre elas algumas de polpa tão macia e branca que serviriam a
teus Santos de melhor alimento que o pão levado pelo corvo ao eremita no
deserto – tão tenra é a sua carne que não há pecado em prová-la e nutrir-se
com ela é permanecer em jejum... Onde antes se alteavam as copas da mata
primeva, das canas correrá mel; e os senhores cristãos serão tão ricos que em
açúcar modelarão santos do tamanho de homens para mandar a Teu vigário
na Terra dos homens. E se o açúcar transportarão em caixas de madeira,
mais simples e belas do que mesas de amassar pão, as frutas carregarão em
cestos de vime, de formas imprevistas, leves e, entretanto, sólidas; e na terra
verde haverá manchas de ouro do vime, mas, sobretudo, cor desdobrada
em cor e flor, formas estranhas e, entretanto, perfeitas, e cores como nunca
sonhou a própria visão dos teus profetas e videntes, nem o próprio João em
Patmos quando imaginou, no fim dos tempos, o Jardim das Delícias, flores
de nunca acabar como em dias de nunca mais...
De novo voltou o Senhor a Sorrir, tentando Pedro na sua Esperança:
– Mas que terra, e que frutos, e que flores, Pedro, se, queimada a floresta,
apenas restará a vertigem e a rocha, a cratera e a águia?
Teimou Pedro mais uma vez:

269
Odylo Costa, Filho

– O homem que para lá deixares ir, Senhor, será tão sóbrio que com
um pedaço de broa e um gole de água se sustente. E – com Vosso perdão
e consentimento, Senhor – criará ele próprio o chão em que plante, como
no dia em que a Luz se fez. Pois nas costas carregará a pedra, com a pedra
fará o muro; nas costas carregará a terra, com a terra encherá o côncavo;
e onde antes era granito, haverá o xadrez dos poios, a terra desdobrada em
degraus e tabuleiros, arrimados em muros de pedra sobre pedra; e para
que o poio receba água, o homem, domando-a, lhe abrirá caminho atra-
vés das levadas: pois se a água desce, o homem sobe; e onde não puder
chegar abrindo veredas e trilhas, mal firmando um pé atrás de outro na
montanha, irá por mar até à falésia e nela mesma refará também o gesto
supremo de criar, e ainda ali, nas reentrâncias do despenhadeiro abrupto,
criará chão para plantar...
Refloriu o sorriso do Senhor:
– Dura cabeça de Pedro, onde poderá o homem, depois de escalar a mon-
tanha e vencer a água, de juntar o barro de que um dia foi feito e nele afundar
raízes, entre vinhas e vilas, pôr a pastar os rebanhos, de que dependerá para a
lã e para o leite, a carne e o couro, o adubo para a terra recém-nada e o chifre
para as buzinas do mar?
– Senhor, ele criará vaquinhas mansas, em casas cobertas de palha, encos-
tadas nas ladeiras; e haverá quem lamente seu destino, pois delas somente
sairão no dia de festa da própria matança, mas haverá quem compreenda
quanta afeição cada casal guarda ao quieto bicho que assim se junta à famí-
lia, e é como se da família fizesse parte, por mãos humanas servido de água
e de ervas, casa e sombra, sol e abrigo. E vistas as coisas por esse lado, já
não é seu destino o pior do mundo, não de prisão perpétua, mas quase de
fraternidade...
– Dura é a vida que pretendes para o homem nesse paraíso, Pedro. Ele terá
de plantar e suar, de comer um pedaço de broa e beber um gole de água, e de
subir a montanha com as costas carregadas de pedra, e de terra, e de erva, e
de estrume; e não lhe ameigará a pena, como ao Senhor Deus na criação do

270
A invenção da Ilha da Madeira

Universo, o descanso do sétimo dia. Onde encontrarás um ser assim forte,


assim teimoso, assim sóbrio, assim alegre?
Esperava Nosso Senhor deixar Pedro em grande aperto com a dificulda-
de de escolha, porque é sabido serem iguais as preferências do Santo pelos
italianos, pois em Roma foi bispo, embora ali o tenham crucificado; pelos
espanhóis, pois muito se arrependem dos seus pecados; e pelos portugueses,
pois são povo de pescadores, e disso de pescadores entende ele.
Mas sem hesitar tornou Pedro, que há séculos esperava aquele segundo:
– Os portugueses, Senhor! Os portugueses lavram o mar em barcos, e a
ele sempre voltam, embora sempre morram no mar; e, para ter onde plan-
tar, chegam a desmanchar a pedra dos vales não mais que com a força dos
braços...
Doía-se o Senhor de ceder à miséria humana aquela ilha onde não havia
peçonha, última e única lembrança do Paraíso terrestre. Bem o sabia inevitável,
pois, embora na sua mão esteja o destino dos exércitos que disputam o dom do
mundo e a vida do pastor que talha uma colher na madeira enquanto pascem as
ovelhas, não lhe é fácil resistir à intercessão dos santos, e ele confunde o passado;
o presente e o futuro na mesma onisciência e na mesma misericórdia. Quis, po-
rém, demorar ainda um pouco o diálogo com aquele teimoso Pedro, aflito por
ver a Terra cada vez mais povoada de seres de pecado e arrependimento, mais
feitos à semelhança de Pedro, o Homem, do que mesmo de Deus.
E para embaraçá-lo perguntou:
– Esquecíamos um ponto especial, Pedro. E mulheres, Pedro? Onde as
encontrarias, mesmo entre portugueses, capazes de enfrentar o mar, a rocha
e o abismo?
Então Pedro, amuando-se, e recordando seu fracasso terrestre nesses deli-
cados assuntos, desanimou:
– Ah! Senhor, Senhor, dizei logo que não, e a ilha se quedará mesmo sem
homens, a Vos santificar o nome no silêncio da montanha despovoada ou no
canto dos canários nativos. Dizei logo que não, pois melhor que ninguém
sabeis, Senhor, que eu disso de mulheres não entendo nada...

271
Odylo Costa, Filho

Ora se deu que nesse momento um cheiro suave anunciava que perto vinha
Nossa Senhora da Conceição, que ouvira o fim da conversa, vira a mangação
de seu Filho, o amuo de Pedro; e entre santos e santos de sua corte logo se
destacavam São Gonçalo de Amarante e Santo Antônio de Lisboa, esses dois
mui casamenteiros e conhecidos em confissão de mulher. E mudamente am-
bos fitaram a Senhora, como se, a ter alguém de falar, fosse ela, posto aquela
palavra de “portugueses” a atraíra; e já não se tratava mais dos homens, e
sim das mulheres, das que a invocavam em oratórios ou em frente do mar, e
até ao mesmo tempo a chamavam de “minha” e de “nossa”, “Minha Nossa
Senhora”.
E foi a Senhora que disse, com autoridade severa, porém doce:
– Pois irão, sim, as portuguesas. E não haverá companheiras mais fortes e
firmes, labutadoras e fiéis. Ajudarão a carregar o vinho em odres de pele de
cabra; e a matar o porco; e a destripar o peixe; e a fazer os cestos; e acorda-
rão noite alta para guiar, quando lhes couber a vez, a água das levadas pelas
sementes do poio; e com as mesmas mãos calejadas, ao sol frio da montanha,
tecerão rendas mais leves que o próprio luar; e no linho macio ou na grosseira
estopa, saberão bordar desenhos nítidos como asas; e inventarão ao mesmo
tempo, com graça de menina e desejo de moça, uma roda de bonecos que can-
ta em música, narrando em som e forma a sombra e as cores das saias e calças
que sobem juntas a montanha e juntas partilham a água e o susto, o suor e a
morte, o riso e o ninho. E quando estiverem cansadas, exaustas até cair nas
maciezas pesadas da antemanhã, depois de dançar sem parar toda a noite, em
redor do “brinquinho”, nas pesadas botas de borracha, ainda terão um riso, e
saberão tirar do encontro dos peitos uma rosa para ofertar ao companheiro...
Curvou Jesus a cabeça, e disse:
– Faça-se. E darei o que não pediste, Pedro, que na madeira dos barcos
descansavas a cabeça, e tudo o que viste de mais belo foi o lago e o mar alto,
antes da harmonia das esferas. Juntarei à vertigem do abismo a alegria da pai-
sagem e o balouço da rede, e agarrada no sonho dos olhos a alma descansará
das fadigas do corpo.

272
A invenção da Ilha da Madeira

E foi assim, e não como narram e debatem, entre manuscritos e conjec-


turas, os historiadores de ontem e de hoje, foi assim que numa certa manhã
de outrora Deus entreabriu os dedos da Sua grande mão fecunda, apartou a
bruma e permitiu aos barcos portugueses inventarem a Ilha da Madeira.

FIM DE A INVENÇÃO DA ILHA DA MADEIRA

273
Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.
Sede da Academia Brasileira de Letras,
Av. Presidente Wilson, 203
Castelo – Rio de Janeiro – RJ
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III
(1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis.
Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição
realizou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

Cadei ra Patro no s Fu nda d o re s M e m b ro s Ef et ivo s


01 Adelino Fontoura Luís Murat Ana Maria Machado
02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha
03 Artur de Oliveira Filinto de Almeida Carlos Heitor Cony
04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar
05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho
06 Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Cícero Sandroni
07 Castro Alves Valentim Magalhães Nelson Pereira dos Santos
08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Cleonice Serôa da Motta Berardinelli
09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva
10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira
11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Helio Jaguaribe
12 França Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi
13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Sergio Paulo Rouanet
14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer
15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Marco Lucchesi
16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles
17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco
18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier
19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Antonio Carlos Secchin
20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Murilo Melo Filho
21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho
22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque Ivo Pitanguy
23 José de Alencar Machado de Assis Antônio Torres
24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Sábato Magaldi
25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho
26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça
27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Eduardo Portella
28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Domicio Proença Filho
29 Martins Pena Artur Azevedo Geraldo Holanda Cavalcanti
30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon
31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira
32 Araújo Porto-Alegre Carlos de Laet Zuenir Ventura
33 Raul Pompeia Domício da Gama Evanildo Bechara
34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva Evaldo Cabral de Mello
35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida
36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso
37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Ferreira Gullar
38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney
39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel
40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Evaristo de Moraes Filho
C o m po sto e m M o n oty pe C en taur 12 /16 pt ; ci tações, 10 . 5 /16 pt

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