Revista Brasileira85
Revista Brasileira85
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Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis pelas
exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Vinhetas coligidas do acervo da Biblioteca Acadêmica Lúcio de Mendonça.
M a rc o L u cches i Ocupante da
Cadeira 15
na Academia
Brasileira de
Letras.
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Marco Lucchesi
6
Iconografia
Daniel Kfouri
Prêmios
2.º lugar, Picture of the Year Latin America – 2011
3.º lugar, World Press Photo – 2010
Exposições individuais
2015: “Heróis” DOC Galeria, São Paulo
2015: “Heróis” Museu de Sant’Ana, 5.º Festival de Fotografia de
Tiradentes, MG
2013: “Não Para” Sesc Ceilândia, Brasília
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Daniel Kfouri
Exposições coletivas
2015 #Malditos Fios, 6.ª Mostra SP de Fotografia, Galeria Mezanino, SP
2015 Coletiva Quadrilha, 6.ª Mostra SP de Fotografia, DOC Galeria, SP
2015 Coletiva Série F, Museu de Fotografia de Curitiba
2014 Coletiva Série F, Galeria Nikon, SP
2014 Mostra Futebol BR, Vila Madalena, SP
2013 “Oltre i colori del Samba: riflessi del Brasile contemporaneo”, Milão
2013 FotoProtesto SP, Cemitério do Araçá, SP
2013 Ganhadores POY Latin America, México
2012 3.ª Mostra SP de Fotografia, Vila Madalena, SP
2010 World Press Photo Exhibition, por volta de 80 países
2007 Mírame, una ventana a la fotografia brasileña, Fototeca de Cuba,
Havana
2006 Mostra Prêmio Porto Seguro, Espaço Porto Seguro de Fotografia, SP
2004 450 anos SP Imagem em Construção, Senac, SP
2002 Mostra de Portfólios Casa da Fotografia Fuji, SP
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E n t r e v i s ta
Vie sauvage
Remo Bo d ei Filósofo
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Remo Bodei
impressionado com a sua aula e lembro que ele me presenteou com um dos
seus livros: Spuren (Vestígios). Eu o revi nos anos seguintes tanto em Tübingen
como na Itália, no Congresso Internacional da Sociedade hegeliana (Hegel
Vereinigung).
A tradução de Subjekt-Objekt. Erläuterung zu Hegel (Sujeito-Objeto. Comentário
a Hegel, 1975), a organização e a introdução de volumes como Karl Marx
(1972), Filosofia da Renascença (Bolonha, 1981) e O princípio esperança (1995)
acompanharam o meu estudo sobre a sua obra, que foi concretizado precisa-
mente em Multiversum. Tempo e história em Ernst Bloch, de 1983.
De Bloch impressionaram-me de imediato tanto o conceito de esperança,
ligado à mais ampla problemática do desejo, quanto a análise dos paradoxos
temporais, em particular o da “não-contemporaneidade” (Ungleichzeitigkeit).
O “princípio esperança” contém uma lógica do desejo que não atravessa
apenas o plano racional, mas também o do sonhar de olhos abertos. Uma vez
que a esperança não está necessariamente ligada a cenários grandiosos, Bloch
não desvaloriza os desejos da sociedade de massa (ter dentes brancos, corpo
esbelto e atlético, roupas bonitas). Não mostra em relação a eles nem a suspeita
de inautenticidade denunciada por Heidegger, nem o “esnobismo” de Adorno.
O desejo representa a crosta, a “casca provisória”, que guarda dentro de si as po-
tencialidades reais ou realizáveis dos indivíduos: “Os desejos nada fazem, mas
pintam e conservam com particular fidelidade aquilo que deveria ser feito. A jo-
vem que gostaria de se sentir brilhante e cortejada, o homem que sonha futuras
realizações, suportam a pobreza ou a cotidianidade como uma casca provisória.”
Cuidado ao reprimir os desejos, porque esses, uma vez removidos, apodrecem
seja em nosso inconsciente, seja em nossa consciência. Cuidado ao desprezá-
-los, porque, mesmo através dos desejos aparentemente mais fúteis, esconde-se a
possibilidade de encontrar a si próprio: “Batom, maquiagem, enfeites de outros
ajudam por assim dizer o sonho de si próprios de sair da caverna.” Esses desejos,
a seu nível, não são apenas legítimos, mas capazes de extrair de nós as melhores
potencialidades. A quem mostra ambições tão reduzidas não pode atribuir-se
culpas subjetivas. A sua atitude diz respeito ao fato de que todos nós (a política,
a sociedade, a história) não fomos capazes de oferecer-lhes algo melhor.
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Vie sauvage
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Remo Bodei
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Vie sauvage
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Remo Bodei
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Hermenêutica crítica
da globalização
G i a nni Vatti mo Filósofo, professor
da Universidade
de Turim, membro
do parlamento
europeu. publicou,
dentre outros,
15
Gianni Vattimo
Eu resumiria este sentido dizendo que as mesmas razões pelas quais Hei-
degger tomou o partido dos nazistas poderiam (e deveriam) tê-lo levado a
escolher o comunismo. Somente pelas contingências históricas nas quais a
escolha amadureceu – o antissemitismo do qual a tradição cultural e filosófica
alemã não só estava repleta (sobre isso ampla documentação em D. Di Cesare)
e as ameaçadoras aberrações do stalinismo soviético – Heidegger escolheu
estar com Hitler.
Logo esta decisão, porém – antes de tudo, a de empenhar-se politicamente;
e também a de apoiar os nazistas –, autoriza hoje a falar de um heideggerismo
de esquerda, e de um “comunismo hermenêutico”
Em primeiro lugar, é preciso lembrar as razões pelas quais hoje falamos
de hermenêutica como crítica da globalização. À primeira vista, o discurso
parece poder se restringir à reivindicação da pluralidade essencial das culturas
contra os efeitos “neutralizantes” do pensamento único, da homologação de
tudo no grande teatro da fantasmagoria mundial das mercadorias.
Porque este teatro não pode ser saudado como a realização da “humanida-
de” finalmente unificada pela disponibilidade indefinida de bens materiais e
pela profissão de uma única fé, pelo uso de uma mesma língua como antes de
Babel – o inglês anglo-americano ao qual se opõe apenas, dado interessante, a
difusão do espanhol dos migrantes de todas as raças?
Materia signata quantitate é a primeira resposta que nos acode. O principium
individuationis da escolástica medieval aparece ao nosso espírito aqui sem ne-
nhuma necessidade racional e rigor teórico: assinala-nos simplesmente que a
materialidade faz falir o sonho da globalização; pois, em primeiro lugar, não
há bens para todos, e nem toda sorte de bens satisfaz a fome do mundo. A
materialidade individualiza, seja porque mostra imediatamente a escassez, seja
porque desperta as diferenças de indivíduos e grupos, também culturais: se
teu filho pede-te pão, tu não podes dar-lhe uma pedra qualquer – reveja-se
o Evangelho. Estaríamos aqui descobrindo as razões do “novo” realismo?
O qual, como é sabido, repreende à hermenêutica justamente seu excesso de
otimismo pós-modernista. Mas o faz do ponto de vista de um princípio de
realidade que se quer “neutral”, como, segundo os realistas, seriam as ciências
16
Her menêutica crítica da globalização
17
Gianni Vattimo
18
Her menêutica crítica da globalização
19
Gianni Vattimo
dentro do qual, ele fala. Não se pode fazer hermenêutica sem tomar partido
(Cita aqui Rorty: quando fazemos ciência normal etc.). O que diferencia a
hermenêutica do “descritivismo” da metafísica positivista senão, justamente,
o fato de implicar o filósofo, tornando-lhe impossível a posição do observa-
dor neutral? E obviamente não se trata aqui somente da posição do filósofo,
um especialista que, segundo certa doutrina, deveria ver sua colocação mu-
dada. Aqui estamos perante uma reviravolta ontológica, podemos dizer. A
verdade não é o espelhamento, a posição do sujeito não é a da tela na qual as
realidades se desenham, e o ser não é o “dado”, mas o evento (que enquanto
Ereignis, apropriante expropriante, tem muito mais do que a natureza dinâmica
do que acontece, é acontecer de ser...).
Mas, portanto, por isso, comunismo? A polêmica, midiática, dos neorrea
listas, revelou de fato a hermenêutica como uma posição também política;
os hermeneutas são seus “adversários”, não simples estudiosos de uma outra
escola colocada no ideal museu imaginário das doutrinas filosóficas. De resto,
realisticamente, os neorrealistas não nos “descrevem”; eles nos atacam. E nós,
pela nossa parte, dada a inconsistência de seus argumentos, só podemos nos
perguntar a quem ou para o que eles servem. A hipótese que nos parece mais
verossímil é que seu trabalho, não exigido por algum perigo que ameaça o
pensamento, não imposto pela possibilidade que a sentença de Nietzche pro-
duzisse desastres na mentalidade comum, caos nos transportes aéreos e nas
previsões meteorológicas (até isto nos foi objetado!), seja apenas um modo
para fazer com que a filosofia participe do geral “retorno à ordem” exigido
justamente pela lógica da globalização. Indícios convincentes de tudo isso
se veem na crônica do nascimento e difusão, essencialmente mediático, do
neorrealismo.
Evocar uma vocação “comunista” da hermenêutica significa apenas se dar
conta deste estado de coisas. Num certo sentido, é ainda o “inimigo” quem
nos define. Como quando percebemos que os realistas nos atacam porque
a hermenêutica “perturba”. Não é que qualquer oposição ao domínio da
metafísica, isto é, da globalização técnico-científica do mundo, seja de per
si comunista. Mas chamá-la assim quer dizer resumir num só termo todas
20
Her menêutica crítica da globalização
21
Megarampa, 2009, São Paulo.
Valéry ou como passar
do pensamento à ação
Ciprian VĂl can Concluiu estudos
de Filosofia na
Universidade
de Timişoara,
Romênia.
Professor na
23
Ciprian V Ă lcan
24
Valéry ou como passar do pensamento à ação
25
Ciprian V Ă lcan
10 Ibidem, p. 628.
11 Paul Valéry, Introduction à la Méthode de Léonard de Vinci in Œuvres, I, p. 1.208.
26
Valéry ou como passar do pensamento à ação
Será muito diferente daquela prática qui consistia (e ainda consiste) em consultar os “espíritos”?
Esperar diante de uma mesa, um jogo de cartas, um ídolo, ou uma pítia aormecida e gemente, ou então
diante o chamado “si mesmo”...”.
15 Ibidem, p. 870: “A inteligência... é ter sorte no jogo de associações e lembranças à-propos.
Um homem de espírito, (lato estricto senso), é um homem que tem boas séries. Gagne souvent. Não se sabe
por quê. Ele não sabe por quê”.
16 _____, Mélange in Œuvres, I, p. 313.
27
Ciprian V Ă lcan
28
Valéry ou como passar do pensamento à ação
pessoas que demonstram assim o seu espírito mimético em relação aos que lhes
incutiram tal ideia,19 que “o que não se parece com nada não existe”,20 afirma
que a diferença entre plagiário e criador não pode ser averiguada partindo das
suas fontes, que podem, muitas vezes, ser idênticas, mas sim pela análise dos
resultados aos quais chegam, pelo exame da forma como deixam a sua mar-
ca nos materiais emprestados, devolvendo-os tais quais, ou, pelo contrário,
incorporando-os de forma orgânica na sua própria visão, tornando-os, assim,
irreconhecíveis: “Plagiário é aquele que não digeriu direito a substância dos
outros: deixa os pedaços reconhecíveis.”
A originalidade, questão de estômago.
Não há escritores originais, pois aqueles que mereceriam ser assim chamados
são desconhecidos; e até não conhecíveis.
Mas há aqueles que parecem sê-lo.”21
Atingir a perfeição é uma operação laboriosa, um episódio privilegiado da
epopeia quase infinita da simulação, que implica manter-se à equidistância da
espontaneidade pura, do arbitrário insignificante, sobre o qual devem refletir
as faculdades construtivas da mente, que se dedica a um disfarce feliz do im-
pulso inicial, tanto quanto em relação à produção totalmente proposital, sem
encanto, ainda impregnada das dificuldades do trabalho, produção que está
fadada a um profundo remanejamento para, supostamente, afastar todos os
sinais visíveis do esforço, eliminar os indícios visíveis do cálculo, do projeto,
do consciente, fazendo-o parecer natural.22 O sucesso de tal empreendimento
depende em grande parte de um tratamento acertado aplicado às palavras, do
seu exame rigoroso, da sua pesagem atenta, do seu uso de acordo com as exi-
gências de uma lucidez sem concessões aos hábitos do sentido comum ou, en-
tão, a toda forma de inércia mental, pois muitos deles, banalizados e esvazia-
dos de qualquer conteúdo, são prejudiciais: “Nós os aprendemos; repetimos,
19 Ver Paul Valéry, p. 631: “Existem pessoas, conheci algumas, que querem preservar a sua “originalidade”.
Assim, estão imitando. Obedecem àqueles que lhes fizeram acreditar no valor da “originalidade”.
20 _____, Mauvaises pensées et autres in Œuvres, II, p. 878.
21 Paul Valéry, p. 677.
22 Voir Paul Valéry, Tel quel in Œuvres, II, p. 591.
29
Ciprian V Ă lcan
23 Paul Valéry,
L’idée fixe in Œuvres, II, p. 238.
24 _____. Tel quel in Œuvres, II, p. 632.
25 _____, p. 633-634.
26 _____, Mauvaises pensées et autres in Œuvres, II, pp. 805.
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Centenário do Nascimento do
Ac a d ê m i c o A n t ô n i o H o ua i s s
Relembrando
Antônio Houaiss
Edua rd o Po rtel la Ocupante da
Cadeira 27
na Academia
Brasileira de
Letras.
31
Eduardo Portella
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Relem brando Antônio Houaiss
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Megarampa, 2009, São Paulo.
Centenário do Nascimento do
Ac a d ê m i c o A n t ô n i o H o ua i s s
Um homem múltiplo
Ar na l d o Ni s k i er Ocupante da
Cadeira 18
na Academia
Brasileira de
Letras.
“Como colaborar para que a comunidade lusofônica no mundo
seja uma realidade de partes reciprocamente interessadas
nesse bem comum que lhes é a língua comum?”
Antônio Houaiss
35
Ar naldo Niskier
36
Um homem múltiplo
Por tudo isto é que, para mim, vossa obra de investigação e pesquisa, na Literatura e
na Filologia, junta-se harmoniosamente, pela Crítica, em uma espécie de síntese, que se vai
definindo melhor, à medida que os diversos trabalhos se sucedem. Objetiva e livremente, a
vossa obra, abrangendo sempre temas estranhos à vossa pessoa, vai revelando, no entanto, a
vossa personalidade. Vossa obra representa, toda ela, uma ascensão contínua da inteligência
para o saber, da experiência para o conhecimento. Vossa personalidade corresponde aos fatores
evolutivos de vossa formação.
37
Ar naldo Niskier
38
Um homem múltiplo
39
Ar naldo Niskier
Dizem que a carga horária dedicada ao trabalho passava de seis horas por
dia. Eis um exemplo da árdua tarefa de Antônio Houaiss, que mergulhou
completamente para entregar no prazo a tradução das mais de 260 mil
palavras da obra.
Segundo Augusto de Campos, a excelência do trabalho feito por Antônio
Houaiss residiu na sua radicalização, partindo para uma tradução “antinor-
mativa”:
ȄȄ A perseguição política
A carreira diplomática surgiu para alavancar uma carreira que já se prenun-
ciava vitoriosa. Mas nem tudo foram flores para o grande defensor da Língua
Portuguesa. Após dar expediente no Itamarati, foi nomeado para Washington,
em 1946, considerada por ele “a porta de ouro para a carreira”. Já nesta
época, sua opção política começava a incomodar alguns elementos, e a indica-
ção acabou sendo abortada. A opção foi seguir para Genebra, onde ficou até
1948. A partir daí, vieram República Dominicana e Grécia, em cuja capital,
Atenas, Houaiss teve o prazer de ficar até o início de 1953.
O círculo virtuoso foi quebrado com a acusação de existência de uma célula
comunista no Itamaraty, e houve um processo contra o filólogo, que foi coloca-
do em disponibilidade sem remuneração. Nessa época, o diplomata João Cabral
de Melo Neto também foi afetado pelo processo. Coube ao Supremo Tribunal
Federal acabar com a injustiça, e o Itamaraty teve que rever as punições.
Com a eleição de Jânio Quadros, foi nomeado para a delegação perma-
nente do Brasil nas Nações Unidas, onde integrou uma Comissão que tratava
do tema descolonização. Teoricamente, o Brasil era anticolonialista, mas na
40
Um homem múltiplo
prática contemporizava com uma série de coisas que contradiziam esse po-
sicionamento. Teve neste período como chefe de delegação Afonso Arinos.
Logo após essa experiência positiva, teve os direitos políticos suspensos por
dez anos, em 13 de junho de 1964, com a eclosão do movimento militar. Ele
conta com detalhes o imbróglio envolvendo esta fase triste de sua biografia no
livro A defesa. Foram ações lamentáveis que nos ajudam a entender “uma das
muitas feições assumidas no país pelo Poder durante a ausência do Império
da Lei”, como ele observou na introdução da obra.
41
Ar naldo Niskier
42
Um homem múltiplo
ajudavam aqueles cujas notas estavam baixas e até investiam na criação de cur-
sos suplementares e atividades extracurriculares. A novidade foi implantada por
Anísio Teixeira e Francisco Venancio Filho, com base no que era desenvolvido
em modelos norte-americanos do self-government (autogoverno) estudantil.
Por dois anos os alunos conviveram com os experimentos que realçavam a
autonomia estudantil, com a aprovação da diretora da escola, Maria Junqueira
Schmidt, uma seguidora da filosofia da Escola Nova, de John Dewey (e de
Anísio Teixeira). Só que, em 1935, ela foi transferida para outra
instituição, e as coisas mudaram totalmente. O novo diretor não
concordava com o que estava implantado, e Antônio Houaiss, que
liderava os estudantes, foi expulso da escola. A escola em peso ficou
solidária com o seu representante, e uma passeata foi organizada,
pedindo a readmissão do líder. Entrou em ação o educador Anísio
Teixeira, que, após uma reunião com o estudante, decidiu pela sua
readmissão, e também pela transferência da nova diretora. Esses bons tempos
assim foram relembrados por Antônio Houaiss:
Aproveitei extremamente a Escola do Comércio, da qual Anísio Teixeira,
Pascoal Leme e Maria Junqueira Schmidt faziam um laboratório, no bom
sentido. Uma experiência pioneira de autonomia escolar: podíamos modifi-
car o currículo, administrávamos a disciplina, fazíamos todas as reivindica-
ções e éramos os próprios censores das irregularidades. O sistema funcionou
bem. A sensatez era tanta que, por sensatez, chegávamos a fazer restrições à
nossa liberdade.
43
Ar naldo Niskier
44
Um homem múltiplo
“Esse meu socialismo deriva de uma convicção que tenho desde os onze
anos. Não acredito numa solução para o mundo que não seja nessa direção
e essa afirmação eu me reservo o direito de tê-la até morrer, ou ser morto
por causa dela.”
Sergio Paulo Rouanet, que teve uma convivência estreita com Antônio
Houaiss, inclusive no exterior, certa vez fez esta observação, abordando o seu
lado político:
Referências
HOUAISS, Antônio. Cerveja e seus mistérios, A. Rio de Janeiro, Editora Salamandra,
1986.
_____. A defesa. Rio de Janeiro, Avenir Editora, 1979.
_____. Seis poetas e um problema. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura
(Serviço de Documentação), 1960.
_____. Drummond: mais seis poetas e um problema. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
JOYCE, James. Ulysses (tradução de Antônio Houaiss). Rio de Janeiro, Editora Civi-
lização Brasileira, 1965.
MONTELLO, Josué. Diário do entardecer. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991.
NISKIER, Arnaldo. Apocalipse pedagógico e outras crônicas. Rio de Janeiro, Academia Bra-
sileira de Letras, 2007.
PIÑON, Nélida (org.). Cem anos de cultura brasileira – Ciclo de conferências do I Centenário
da ABL. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2002.
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Megarampa, 2009, São Paulo.
Centenário do Nascimento do
Ac a d ê m i c o A n t ô n i o H o ua i s s
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Evanildo Cavalcante Bechara
quatro horas para dissertação. No fim das quatro horas, faltando pouco para
terminar a prova, Houaiss chegava, depois de uma longa discussão de várias
páginas, em que dissertara sobre a origem de diversos alfabetos. Diante disto,
um dos componentes da banca examinadora quis anular sua prova, argumen-
tando que Houaiss não entrara no assunto proposto. Mas um dos colegas de
banca, não sei se Sousa da Silveira ou Ernesto Faria, ponderou que ele não
fugira do assunto, porque se um candidato passa quatro horas falando pro-
fundamente da história da invenção do alfabeto, imagine se ele tivesse mais
quatro horas para falar do alfabeto latino. Prevaleceu, no caso, a razão.
Por aí estamos vendo o grau de competência e erudição do Antônio Houaiss
ainda jovem, honrando o que aprendera, ao lado de grandes professores, dois
mentores da sua formação intelectual, Antenor Nascentes e José Oiticica.
E dessa competência e dessa convivência com estes dois mestres, mais tarde
vamos encontrar Houaiss brilhando em outros setores. Antenor Nascentes
e Oiticica foram os primeiros a trabalhar, em livro didático, o problema da
ortografia e da pronúncia, o ensino da fonética em seus reflexos na ortoepia,
chamando a atenção para os problemas naturais da fala. Isso levou o professor
de língua portuguesa a se comunicar com a direção da escola, ao detectar
certas dislalias, certos defeitos de fala que podem ser corrigidos hoje pelas
ciências que se desenvolveram neste sentido.
O segundo momento da carreira erudita de Antônio Houaiss está na sua
contribuição ao Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, realizado
em 1956, na Bahia. O Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada tinha
acontecido em 1936, em São Paulo, sob o estímulo e o entusiasmo do grande
escritor paulista Mário de Andrade. Este primeiro Congresso Brasileiro de
Língua Falada no Teatro se deve em grande parte ao prestígio, entusiasmo e
competência de Celso Cunha, outro ilustre acadêmico desta Casa. Para este
Congresso, Antônio Houaiss apresentou longo trabalho intitulado “Tentativa
de descrição do sistema vocálico do português culto na área dita carioca”, de
102 páginas, trabalho altamente elogiado por um dos grandes estudiosos de
fonética histórica portuguesa, o professor francês I. S Révah no seu parecer.
Infelizmente este trabalho morre nas páginas deste Congresso, porque têm
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Três momentos com Antônio Houaiss
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Evanildo Cavalcante Bechara
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Centenário do Nascimento do
Ac a d ê m i c o A n t ô n i o H o ua i s s
Antônio Houaiss
Cí cero Sa nd ro ni Ocupante
da Cadeira 6
na Academia
Brasileira de
Letras.
51
Cícero Sandroni
Órfãos de um pai que nos orientou, ensinou, e nos deu, durante toda a vida,
exemplo de caráter, retidão, amor ao trabalho e firmeza nas convicções po-
líticas as quais jamais abandonou e pelas quais sofreu graves e mesquinhas
perseguições políticas.
Não fomos apenas nós, seus amigos, que o perdemos. País carente de inte-
ligência, deserto de homens e ideias na opinião de Osvaldo Aranha, o Brasil
não se deu conta do imenso vazio que a ausência de Antônio Houaiss abriu
no nosso panorama cultural, um dos raros brasileiros do nosso tempo, cuja
presença e ação repercutiram em todo o território nacional e além-fronteiras,
especialmente na defesa da lusofonia.
Austregésilo de Athayde costumava dizer que quando a Academia precisava
de um trabalho bem-feito, realizado a tempo e a hora, entregava-o a Houaiss.
Ele jamais recusou – e o fazia graciosamente – qualquer tarefa para a insti-
tuição que o recebeu, pelos seus inegáveis méritos e também para reparar a
violência que sofreu em 1964, quando ele e tantos outros grandes brasileiros
perderam seus direitos civis e políticos.
Sua permanente disponibilidade para o trabalho resultava da combinação
da grande capacidade intelectual, a cultura enciclopédica colocada ao serviço
do seu semelhante, e a visão política voltada para o social, sempre disposto a
distribuir o generoso leite da bondade humana. Do ponto de vista genético,
poder-se-ia dizer – e eu lhe disse, um dia, para seu espanto – que ele era uma
espécie de ser mutante, lembrando às vezes os ETs avançadíssimos, criados
pela imaginação dos escritores de ficção-científica.
Na sua cabeça, no formato de um triângulo equilátero colocado de cabeça
para baixo, o vértice partia do queixo pontudo e os lados se alargavam até for-
mar a enorme caixa craniana, onde os neurônios do cérebro se interligavam em
milhões de conexões e sinapses, a ampla testa, com os occipitais projetando-se
para frente. No próximo milênio, se a transformação física da humanidade se
der em direção à inteligência, e não à barbárie, a espécie humana provavelmen-
te terá a cabeça parecida com a de Houaiss.
Desde a juventude, todo o saber, a cultura humanística mesclada com ge-
nerosidade e afeto, conjunto de qualidades sempre ampliadas a cada momento
52
Antônio Houaiss
de sua vida, ele compartilhava com os próximos, e nunca, por saber mais, quis
impor ideias políticas aos discípulos. Quando estudava para o concurso de
ingresso ao Itamaraty, concordou em preparar, ao mesmo tempo, um grupo
de colegas participantes do mesmo exame. Passou, e assim também os com-
panheiros de estudos.
Jamais abdicou de suas ideias de homem de esquerda. E por ser fiel a elas
pagou caro seu tributo à intolerância, ao ver sua carreira golpeada duas vezes:
a primeira no vergonhoso episódio de caça às bruxas de 1951, quando ele e
outros jovens diplomatas – entre os quais João Cabral de Melo Neto – foram
demitidos do Itamaraty sob acusação de organizarem na Casa de Rio Branco
uma célula do PCB. Amargaram alguns anos fora da carreira, mas a Justiça por
fim terminou por reintegrá-los aos quadros da diplomacia
brasileira.
Em 1964, foi aposentado, e seus direitos políticos fo-
ram cassados por dez anos. De novo, a caça às bruxas, que
infestou o Brasil durante tanto tempo, teria contribuído
para a decisão de cassá-lo e aposentá-lo, pressão diplomá-
tica do governo de Portugal, à época chefiado pelo ditador
Salazar, por ter sido ele o diplomata encarregado de ler na Assembleia da
ONU a nota brasileira contra a política colonialista de Portugal na África e
na Ásia. Naquela ocasião, embora concordasse em gênero, número e grau com
a posição brasileira, Houaiss era apenas um funcionário público incumbido
de informar a posição de Brasília, adotada no governo Jânio Quadros pelo
chanceler Afonso Arinos, e reiterada, a seguir, no governo de João Goulart,
pelos ministros San Thiago Dantas, Evandro Lins e Silva e Araújo Castro.
Teria irritado as cortes de Lisboa salazarista o fato de Houaiss, sempre isento
e altamente profissional no cumprimento das instruções recebidas, antes de
ler a nota com o voto brasileiro contra a colonialismo português na África,
ter afirmado, sponte sua, que o fazia com grande honra e grande prazer. Nos
idos de 1964, tempos do terror obscurantista, os salazaristas deram o troco:
pediram aos militares a cabeça do arrogante diplomata que ousava ler com
honra e prazer a nota anticolonialista.
53
Cícero Sandroni
54
Antônio Houaiss
sua face, como se fosse um astro do cinema, ela comentou, sorrindo: “Agora
só falta ser capa da revista Amiga!”
Na entrevista, Houaiss afirmava:
“... e uma grande alegria para nós, católicos, ver subir no horizonte uma
nova estrela que é hoje apenas uma esperança e poderá ser, em pouco, um
astro autêntico de primeira grandeza (...) Essa esperança nos acode ao ler a
entrevista que Antônio Houaiss, nosso maior humanista vivo, concedeu à
Revista de Domingo do JB (...)
E mais adiante:
55
Cícero Sandroni
Ao declarar que pretendia seguir sozinho nas angústias de sua crise reli-
giosa, Houaiss talvez tenha inibido a ação dos que poderiam ajudá-lo numa
travessia em águas profundas. É verdade que vinha com a advertência: que o
deixassem sozinho no entrevisto caminho à conversão. Mas soava também
quase como um cri du cœur, um pedido angustiado a alguém, na hierarquia ou
no laicato, para um diálogo fraterno, uma discussão sobre suas dúvidas reli-
giosas. Não tenho informações sobre se foi atendido; mas sei que prosseguiu
em suas leituras de teólogos contemporâneos e nos últimos dias, como se
sabe, afirmou ser um pós-agnóstico e um pré-cristão.
Há muito ainda que falar sobre Houaiss, um mundo que o espaço deste
momento não pode abranger. Sua cadeira, na Academia, foi considerada por
seu antecessor, Álvaro Lins, como a Cadeira Nacionalista. Fundada por Sílvio
Romero, tinha como patrono Hipólito José da Costa, Roquette-Pinto, Álvaro
Lins que, evidentemente, não viu sua sucessão, mas teria ficado muito satis-
feito com a eleição de Antônio Houaiss. Comentando o assunto com o Dr.
Barbosa Lima Sobrinho, disse-me ele:
– Bem, agora, como estou aqui, agora são duas!
Vale a pena lembrar também que neste último decênio de sua vida, Houaiss,
apesar de enfraquecido fisicamente, prosseguiu no trabalho intelectual diuturno
e na prática política consoante com suas ideias. Jamais foi um socialista utópico,
denominação, como se sabe, usada para designar os pensadores socialistas que
antecederam a Marx. Seu ideal socialista estava voltado para a prática e a realidade.
Com a disseminação da cultura, com o combate à ignorância, com o testemunho
permanente em defesa da democracia, assinando manifestos, articulando movi-
mentos de resistência ou em conferências públicas combateu o bom combate da
luta contra a exploração e pela instauração de um regime baseado na justiça social.
Membro do Partido Socialista Brasileiro, disputou a vice-prefeitura da ci-
dade e a bandeira do PSB também cobria o seu esquife na Academia. Serviu
ao país como ministro da Cultura no governo Itamar Franco, quando sua
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Antônio Houaiss
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Cícero Sandroni
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Centenário do Nascimento do
Ac a d ê m i c o A n t ô n i o H o ua i s s
Um tributo afetivo
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Ana Maria Machado
missão do Brasil junto à ONU, fui fazer um curso em Nova York, onde passei
uma temporada um pouco longa e convivemos muito, muito de perto. Ele me
aconselhava sobre o que eu devia ver e explorar na cidade, contextualizando
os detalhes, iluminando os significados da experiência que eu estava vivendo.
Desde então, por várias vezes foi meu guia, meu mentor, guru e confidente,
mestre e amigo.
Sentia-me tão à vontade com ele que ousava questioná-lo ou discordar sem
qualquer cerimônia, com irreverência juvenil. Graças a isso, foi Houaiss quem,
pela primeira vez, me abriu os olhos para o que podia ser a Academia Brasileira
de Letras. Quando ele se candidatou a uma vaga na ABL, fui pedir explicações,
tomar satisfação dele, porque considerava uma opção imperdoável de conser-
vadorismo. Como podia me decepcionar daquela maneira? Pacientemente, ele
me falou da sua determinação em fazer o dicionário com que tanto sonhava,
havia tanto tempo. E eu sabia, porque ele já tinha conversado sobre isso comigo.
Era um dicionário que custaria muito dinheiro para ser feito, principalmente
porque Antônio Houaiss fazia questão de ter uma equipe de excelência, e para
ter uma equipe de excelência, queria que ela fosse bem paga. Além disso, seria
muito mais fácil e rápido se pudesse usar um equipamento novo que estava sur-
gindo, de que ele tinha ouvido falar e que no Brasil só havia na PUC. Tratava-se
de – um luxo, na época. Mas era muito caro, não era tarefa para um indivíduo
isolado, e ele fazia questão de se manter distante do circuito oficial, sem depen-
der do governo para nada. Antônio Houaiss via a Academia como uma grande
instituição autônoma, capaz e competente, onde ele poderia ao mesmo tempo
ter total independência e prestígio para a obtenção de recursos destinados a
um projeto de tamanha monta para a língua portuguesa e a cultura brasileira.
Compreendi então seu ponto de vista e, com a presunção que os jovens às vezes
exibem, “relevei” sua vontade de entrar para a Academia e a sua candidatura, em
nome desse ideal de autonomia que pela primeira vez se mostrava para mim. A
partir daí, passei a olhar a Academia de outro ângulo, procurando ver as suas
potencialidades, muito além da imagem estereotipada que eu tinha.
Nessa época, início dos anos 1970, enquanto eu estava no exílio, Houaiss
se dedicava à coordenação da versão brasileira da Enciclopédia Larousse, que abriu
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Um tributo afetivo
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Ana Maria Machado
o português e lhe dei uma cópia. Quando voltei ao Brasil, ele levou o texto
para a editora Imago, escreveu um brilhante posfácio e foi assim que publiquei
O recado do nome, meu primeiro livro. Devo isso a ele também.
Em meu regresso, trabalhei com Antônio Houaiss para a enciclopédia.
Teria dezenas de histórias boas a contar desse tempo, mas não é o caso. E
também histórias de um tempo em que ele se retirou um pouco, alugou uma
casinha numa vila de pescadores no Espírito Santo, bem ao lado de meus pais,
que moravam lá. Depois, mais tarde, vim a ser quase vizinha sua no bairro
da Lagoa – e então acrescentei uma proximidade filial, de frequentação quase
cotidiana de sua casa onde, numa espécie de ginástica mental, entre conversas
fascinantes e enriquecedoras, eu ajudava Ruth e ele a montar intermináveis e
sucessivos quebra-cabeças de centenas de peças, que levavam semanas ocupan-
do metade de sua enorme mesa de jantar.
Cidadão sempre atuante, houve um momento em que ele era, ao mesmo
tempo, síndico do prédio em que morava, presidente do Sindicato dos Es-
critores, um dos diretores do CEBRADE, o Centro Brasil Democrático, e
membro do Conselho da ABI – isso antes de ser presidente desta Casa, onde
infelizmente não chegamos a conviver. Aliás, quando ele presidiu o Sindicato
dos Escritores, fiz parte da sua chapa, ao lado de Rubem Fonseca e Darcy
Ribeiro, o que me deu a chance única e maravilhosa de conviver com essa
santíssima trindade da nossa cultura.
Acho que não passa um dia em que eu não lembre Antônio Houaiss, ou
alguma coisa que tenha aprendido com ele, sempre com saudade. E me alegro
em festejá-lo hoje na Academia que ele tanto valorizou.
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R i o d e Ja n e i r o , 4 5 0 a n o s
Os tempos do Rio
ȄȄ Tempo 1
Rio, presente da natureza
Habent sua fata libelli, “Os livros têm seu destino”, disse Terenciano
Mauro há 18 séculos. Poderíamos, talvez, dizer a mesma coisa de
algumas cidades: habent sua fata urbes. O futuro do Rio de Janeiro
começou a ser definido no que chamo de tempo 1 da cidade, na
era cenozoica, período terciário, época do paleoceno, há cerca de
70 milhões de anos. Nessa época, a parte da Terra onde hoje se
localiza o Brasil começou a se afastar do continente africano. Da fa-
lha resultante, segundo os geólogos, surgiram os três maciços, com
destaque para o da Tijuca, o mais antigo deles. Deste maciço fazem
partes os morros e ilhas (há três mil anos, o Pão de Açúcar era uma
ilha), como a Pedra da Gávea, o Dona Marta, o Pão de Açúcar, a
Vista Chinesa, os Picos do Corcovado, e do Sumaré, o Alto das
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José Murilo de Carvalho
ȄȄ Tempo 2
O Rio português
O tempo 2 tem data precisa, aquela que define a celebração dos 450 anos.
Trata-se do ano de 1565. Antes dele, há uns quatro mil anos, andaram por
aqui os sambaquieiros, que poucos traços deixaram. Por volta do ano 1.000,
chegaram à Guanabara os Tupis que, no início do século XVI se dividiam em
duas nações rivais, os Tupinambás, de que eram parte os Tamoios, e os tupini-
quins. Da disputa entre os dois grupos, aproveitaram-se franceses e portugue-
ses que aqui aportaram no grande movimento da expansão europeia. Vindos
de São Vicente, os portugueses aliaram-se aos Tupiniquins. No esforço de
criar sua França Antártica, Villegagnon aliou-se aos Tupinambás, em relação
aos quais, segundo o insuspeito Mem de Sá, “era liberal ao extremo e fazia-
-lhes muita justiça”.
A disputa indígena viu-se envolvida em outra muito maior que dividia os
povos europeus no início de sua expansão colonialista. Levaram a melhor
portugueses e Tupiniquins, resultando da luta a destruição da cidade de Hen-
riville, situada à altura do morro da Glória na praia do Flamengo, e a criação,
por Estácio de Sá, da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, há 450 anos.
Os Tamoios foram dizimados pela peste e pela guerra. Os poucos restantes
foram escravizados. Tudo com a bênção de Anchieta, que em seu Auto de São
Lourenço, referindo-se a chefes Tamoios esbravejou: “Guaixará seja queimado,/
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Os tempos do Rio
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José Murilo de Carvalho
O chefe Tamoio, Cunhambebe, pai, de Angra dos Reis, “um grande rei selvagem”,
segundo André Thevet.
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José Murilo de Carvalho
ȄȄ Tempo 3
O Rio “mineiro”
O tempo 3 também possui data precisa, 1763. Após a fundação, a cidade
sobreviveu mediocremente por cerca de 200 anos. Bonita de ver, era ruim de
viver. O morro onde se dependurava era cercado, de um lado, pelo mar, dos
outros lados, por lagoas, pântanos e florestas conquistados aos poucos por
drenagens, aterros e derrubadas, em zigue-zague entre os morros de São Ben-
to, da Conceição e de Santo Antônio. Derrotados os Tupinambás, afastada a
ameaça francesa em 1567, a Cidade de São Sebastião apenas sobrevivia. As
coisas só começaram a mudar com outro impacto externo. Na última década
do século XVII, graças à audácia dos bandeirantes paulistas, foi descoberto
o ouro e começou sua mineração em grande escala no território que logo se
chamou de Minas Gerais, então parte da capitania de São Paulo. A descoberta
atraiu multidões para as Minas, provenientes de São Paulo, Bahia e Portugal.
Em 30 anos, as Minas já contavam com 250 mil habitantes. Ligadas de início
ao Rio pelo Caminho Velho de Angra dos Reis, que se percorria em três me-
ses, elas intensificaram sua relação com a cidade após a abertura do Caminho
Novo em 1707, que reduziu o tempo de viagem a um mês. Surgiu o Cais dos
Mineiros, de onde se viajava até o Porto de Estrela no fundo da baía para daí
subir a serra de Petrópolis e enveredar para as Minas, seguindo o percurso que
se faz hoje por estrada de rodagem.
A cidade ganhou vida nova como entreposto comercial. Recebia ouro e
diamantes das Minas, encaminhava-os a Portugal de onde trazia todo tipo de
mercadoria que reenviava para as Minas. O impacto da descoberta do ouro
afetou toda a colônia, cujo centro econômico começou a se deslocar para o
Sul, onde o porto do Rio passou a concentrar o grande comércio. A Casa da
Moeda, localizada na capital, Salvador, foi deslocada para a cidade. Em 1763,
deu-se o fato decisivo para a história da cidade: a transferência da sede do
vice-reinado. A partir dessa data, e por 197 anos, quase dois séculos, o Rio
de Janeiro foi, sucessivamente, capital do vice-reinado, do Reino Unido, do
Império e da República.
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ȄȄ Tempo 4 (1808-1889)
O Rio joanino, imperial e do café
O tempo 4 começou com a sorte grande tirada pelo Rio de Janeiro na
loteria da história. Tem também data precisa, 1808, chegada da corte portu-
guesa. Se o ouro das Minas demarcou o tempo 3, o quarto deveu-se à briga
de dois baixinhos de temperamentos antitéticos: Napoleão, o conquistador, e
D. João, o conciliador. Juntando os dois, e com perdão do mau gosto, deveu-
-se a um presente de Napolejoão. O primeiro mandou invadir Portugal, o
segundo fugiu para o Brasil. Foi uma grande sorte para a cidade porque, em
primeiro lugar, D. João poderia ter ficado em Portugal, alterando totalmente a
história da colônia e, portanto, do Rio de Janeiro. Em segundo lugar, porque
o príncipe poderia muito bem ter ficado em Salvador, a antiga capital, sua
primeira parada, atendendo ao apelo dos baianos. A opção talvez nem lhe
desagradasse, pois ficaria longe de Carlota Joaquina...
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ȄȄ Tempo 5 (1889-1960)
O Rio Capital Federal
O tempo V começou com a Proclamação da República. Por dez anos, a
cidade viveu em constante turbulência causada por golpes, revoltas, greves.
Serenados os ânimos, o novo regime decidiu dar um banho de loja na capital
do país. Empossado em 1903, o paulista Rodrigues Alves, auxiliado pelo
engenheiro carioca Pereira Passos e pelo médico, também paulista, Osvaldo
Cruz, rasgaram o velho ventre da cidade e o reconstruíram em padrões mo-
dernos e higiênicos. Só a construção da Avenida Central, hoje Rio Branco,
exigiu a derrubada de mais de duas mil casas. As reformas estão aí até hoje e
não é necessário descrevê-las. Basta citar a Avenida Central, a Avenida Beira-
-mar, os jardins, os túneis, os prédios neoclássicos do Teatro Municipal, da
Biblioteca Nacional, do Museu de Belas-Artes. À beleza natural somava-se a
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O Rio em Paris.
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ȄȄ Tempo 6 (1960-2015)
O Rio capital estadual
A transferência significou perdas enormes para uma cidade acostumada
às benesses vinculadas ao status de capital do país, representadas pela máqui-
na do Estado com seus milhares de funcionários e pelas obras públicas de
melhoria e embelezamento. Deslocou-se o centro político, reduziu-se a atra-
ção cultural, embaçou-se o espelho do país, estreitou-se o cosmopolitismo. A
criação, logo após a transferência, do estado da Guanabara, quando a cidade
era capital de si mesma, gerou a expectativa de ser possível preservar parte da
herança perdida. As grandes obras do governo de Lacerda, coincidentes com
a celebração do 4.º Centenário, com destaque para o Parque do Flamengo, fo-
ram o brilho da supernova, antes do golpe final dado pela fusão da Guanabara
com o estado do Rio de Janeiro, forçada por Geisel em 1974. A cidade ficou
entregue a sua própria criatividade para se reinventar, tendo o ônus adicional
de capitanear o estado.
Sobre as consequências da “descapitalização”, sobre o aprendizado de ca-
minhar com as próprias pernas, sobre a busca de novos rumos, falarão os
próximos conferencistas.
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Megarampa, 2009, São Paulo.
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podermos cear.” Como Ipanema não tinha luz elétrica, João do Rio voltou ao
bairro um ano depois num dia de sol e ficou tão impressionado que escreveu
em O Paiz a crônica “A praia maravilhosa”, quando a cidade ainda não tinha
recebido o mesmo epíteto. Com esse texto, ele estava revelando para o carioca
o bairro que é símbolo do Rio hedonista.
O artigo não economizou elogios ao bairro e à Companhia Construtora
responsável pelo loteamento da área. Foram tantos que as más línguas espa-
lharam que o autor recebera dois terrenos em troca do merchandising. Também
disseram que o propalado “flerte” com a amiga baila-
rina, que ele conhecera em Lisboa, não passava de uma
jogada para disfarçar seu homossexualismo. Com sua
figura “volumosa, beiçuda, muito morena, lisa de pelo”,
como o descreveu Gilberto Amado, João do Rio não
convencia seus rivais de que poderia conquistar uma das
mais deslumbrantes mulheres de sua época, que em sua
autobiografia escreveu: “Quando passeávamos juntos, éramos seguidos pela
rapaziada que gritava: ‘Viva Isadora! Viva João do Rio’.”
Os desafetos não queriam acreditar que ele fosse capaz da proeza, da
mesma maneira que costumavam duvidar de seus feitos jornalísticos, como
a série de reportagens publicadas na Gazeta de Notícias, em 1900, e que depois
foram reunidas no livro intitulado Religiões do Rio. Diante da enorme repercus-
são, não faltou quem atribuísse à “fantasia” do autor o que era comprovada
verdade.
João do Rio foi original na vida e na morte – morreu como viveu, na rua,
num táxi, a caminho de sua casa em Ipanema. Ao seu enterro, compareceram
100 mil pessoas, “celebrando a alma do escritor que soube tocar o coração
dos leitores”.
ȅȅ
Vim morar no Rio na década de 50, “os anos dourados”, na mesma épo-
ca em que aqui chegou a grande poeta americana Elizabeth Bishop. Foram
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Zuenir Ventura
experiências opostas: eu amei e ela odiou, pelo menos no início. “Tudo tão
sujo, tão desorganizado!” espantou-se, “Como é que eles conseguem viver
aqui?” “É tudo desleixado, corrompido. O Rio me deprime.” Com seu olhar
estrangeiro, ela fez observações hilárias sobre a nossa terra. Descobriu, por
exemplo, que a gente adora se queixar do fígado: “É o único órgão em fun-
cionamento no Brasil.” “A elite brasileira deve ter muito pouca gente, porque
todo mundo se conhece. Todos os governantes são parentes de todos os in-
telectuais.” Sobre desfile de escolas de samba: “É a confusão mais organizada
que eu já vi.” Sua conclusão inicial foi: “O Rio é um cenário para uma cidade
maravilhosa, mas não é uma cidade maravilhosa.” A frase me irritou ao ouvi-
-la pela primeiras vez, talvez porque, em última instância, essa é para nós uma
questão aflitiva e recorrente. Somos mesmo a Cidade Maravilhosa ou uma
“inútil paisagem”? Quando deixaremos de ser o cenário mais que perfeito de
uma realidade imperfeita?
Mas tendo descido aqui para uma escala, Elizabeth acabou permanecendo
15 anos seguidos, até 1966 (depois, mais sete anos indo e vindo). Por Lota,
ela se apaixonou logo. Pelo Brasil, levou algum tempo, foi seduzida aos pou-
cos, resistindo criticamente. São duas histórias de amor enternecedoras. No
final ela confessa que esse país e essa cidade que ela tanto odiou no começo
ajudaram-na a sobreviver.
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Zuenir Ventura
Levantavam-se às cinco para estarem às sete nos subúrbios, muitas vezes le-
vando livros, cadernos, lápis e merenda comprados com seu próprio dinheiro.
“Existia, claro, o pau de arara, o pobre, o personagem do morro”, resumia
Francis, “mas em quantidades muitos menores e não invasivas. As ruas da
Zona Sul eram nossas, da classe média e acima.”
Além de dominar as ruas, a classe média lançou também a moda de subir
o morro para se divertir. Na Mangueira, podia encontrar, sem saber direito
quem era, um mulato compositor. Era Cartola, de quem o maestro Leopold
Stokovsky já havia gravado o samba “Quem me vê sorrindo”.
Havia, porém, quem já se preocupasse com a violência na cidade. O jurista
Nélson Hungria já se declarava alarmado com a ”ascensão do termômetro da
criminalidade violenta”. As estatísticas revelavam um aumento de 40% entre os
anos de 1946 e 49. Se no ano passado matou-se um homem a cada 29 horas, no
ano em curso tem ocorrido um homicídio a cada 24 horas”, dizia o jurista. O que
mais o chocava eram “os pormenores de perversidade”. Diante do que chamava
de maré montante, ele pedia a pena de morte, apesar de ter sido sempre contra.
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Os Rios do Rio
de querer “ser livre para ser criminoso, o louco”. Aquela execução desper-
tou no cronista sombrias reflexões: “Fico eu agora pensando em inumeráveis
adolescentes que amadurecem no mesmo cenário ignominioso que produziu
Mineirinho e me pergunto: onde anda agora o espírito de rebeldia?”
Mineirinho morreu em 1963 executado pelo Esquadrão da Morte com
treze tiros de metralhadora: “Atira logo, estão matando um homem”, disse,
quando se viu encurralado debaixo de um ônibus, sem defesa.
Já Cara de Cavalo era um bandido chinfrim. Ladrão, não gostava de roubar.
Diariamente pegava um táxi, sentava-se atrás acompanhado de uma das aman-
tes, em geral Lair Dias da Silva, e percorria os pontos de jogo do bicho de Vila
Isabel e arredores. Não saía do carro. Parava, Lair descia e recolhia o pagamento
compulsório do dia. Ele ficava esperando. Levava a vida que um bandido pre-
guiçoso pedira a Deus. Assim ele viveu entre 1958 e 1964, quando morreu
como “o inimigo público número um da cidade”. Primitivo, foi um mito bem
ao gosto dos anos dourados. Assustava mais pela fama do que pelos feitos.
Um de seus grande amigos, o artista plástico Helio Oiticica, não se con-
formava com essa representação. “O que me deixava perplexo era o contraste
entre o que eu conhecia dele como amigo e a imagem feita pela sociedade.”
Um ano depois de sua morte, Oiticica imortalizou-o numa obra famosa:
“Homenagem a Cara de Cavalo”. É um bólide, ou seja, uma caixa envolta por
uma tela e cujas paredes internas estão cobertas com quatro reproduções das
fotos oficiais do bandido assassinado: estirado no chão, perfurado de balas,
com os braços estendidos em forma de cruz. No fundo da caixa, num saco
com pigmentos vermelhos, aparece escrito como numa lápide: “Aqui está e
aqui ficará. Contemplai o seu silêncio heroico.”
Em 1968, Oiticica fez outra homenagem a Cara de Cavalo: a bandeira-
-poema “Seja marginal, seja herói”. Se o bólide foi parar no valioso acervo do
colecionador Gilberto Chateaubriand, a bandeira virou emblema do Tropica-
lismo e estandarte da facção mais radical da geração de 68.
Assim, Cara de Cavalo acabou contribuindo mais para o acervo da arte
contemporânea do que para a história da criminalidade carioca.
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Zuenir Ventura
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Em toda a segunda metade do século XX, o Rio foi agitado por movi-
mentos políticos. Aliás, o Brasil todo, mas o Rio acabou protagonizando
os principais eventos do período. Depois dos “Anos dourados”, vieram os
“Anos rebeldes”, do golpe militar de 1964 e do golpe dentro do golpe de
1968. Foi aqui, no dia 13 de março, no comício da Central, que João Gou-
lart anunciou medidas como a reforma agrária, vistas como comunistas na
época e assim reforçando o pretexto para o golpe. Foi aqui também que no
dia 25 de março se deu a rebelião dos marinheiros. Mais tarde, em 1968,
o Rio foi o cenário para a lendária “Passeata dos 100 mil” e para a assina-
tura do famigerado AI-5, que fez baixar sobre o país as trevas. Em seguida,
vieram os anos 70, os “Anos de chumbo”, da repressão, da censura e da
tortura do governo Médici, o mais brutal de toda a ditadura. Foi quando
também bandidos comuns convivendo na Ilha Grande com presos políticos
aprenderam a se organizar e a pôr em prática depois, nos assaltos a bancos,
os ensinamentos de guerrilha. Assim, teria-se formado a principal facção do
crime organizado, o Comando Vermelho.
Os anos 80 e os 90 acumularam os efeitos dos baques sofridos pelo Rio
– primeiro pela transferência da capital para Brasília. Sem as generosas verbas
federais que a tornavam um centro de prestação de serviços e de intensa vida
política e cultural, a Belacap foi se esvaindo. O outro golpe foi com a fusão.
Sem aumentar seu orçamento, a cidade teve que compartilhar os escassos
recursos com o empobrecido Estado fluminense. Para agravar a situação da
chamada “década pedida”, o Rio tornou-se refém do crime organizado co-
mandado pelo tráfico de drogas.
O economista Roberto Campos descreveu na época o círculo vicioso: “O
desemprego provoca a marginalidade; a marginalidade gera a violência; a vio-
lência afasta investidores e agrava o desemprego; e o desemprego fomenta a
marginalidade. Os investidores nacionais vivem sob a ameaça do sequestro ou
têm de pagar tributo a traficantes e pseudossindicalistas para diminuição de
roubos [...]. Na paisagem medieval, os morros eram ocupados por templos,
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Os Rios do Rio
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Faltou dizer nessa análise que a crise econômica e social foi agravada por
uma política de segregação praticada durante toda a história do Rio. A cidade
modernizou-se, “civilizou-se”, como se viu, expulsando para os morros e pe-
riferias seus cidadãos de segunda classe. E isso foi um desastre não apenas mo-
ral e humanitário, mas também do ponto de vista da eficácia. O seu principal
produto, o apartheid social, tem o mesmo futuro que o apartheid racial em outros
lugares. A fantasia da “solução final” – a remoção e o extermínio – revelou-se
igualmente desastrosa, por iníqua e impraticável. No fim do século XIX havia
apenas uma favela no Rio; hoje há mais de 700.
Fracassou, enfim, o sonho de expulsão dos “bárbaros”, no sentido em que
os romanos davam aos que moravam fora das fronteiras e não falavam a mes-
ma língua. Eles estão chegando ou já chegaram com suas “vanguardas” arma-
das, audazes e cruéis. Ao empurrarem as “classes perigosas” para os espaços
de baixo valor imobiliário, as classes dirigentes não perceberam que as estavam
colocando numa situação privilegiada em caso de confronto – como nem os
bárbaros do século V tiveram para derrubar o Império Romano. Os nossos
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Zuenir Ventura
bárbaros estão dentro das muralhas e suas tropas detêm as mais modernas
armas e a melhor posição de tiro.
Enquanto dos morros só se ouviam os sons do samba, parecia não haver
problema. O problema foi quando os sons passaram a ser de tiros. Não
se trata de uma guerra civil como às vezes se pensa, mas de uma guerra
pós-moderna, econômica, que depende das artes bélicas, mas também das
leis do mercado; é um tipo de comércio. Por isso, não há solução mágica
à vista. Sabe-se que é preciso destruir as “vanguardas” – os que praticam
barbaridades, os traficantes de drogas – numa operação de força implacável.
Exterminá-los, porém, talvez seja mais fácil do que desmontar o circuito
econômico que os sustenta e cujas pontas – a produção e o consumo – não
estão nas favelas.
Como se fosse uma espécie de síndrome finissecular, a virada do século
XX para o XXI repetiu de certa maneira a passagem anterior, do XIX para
o XX, atualizando-a. Nos derradeiros anos do século passado, o tráfico de
drogas mudou de escala, passou a apelar para ações terroristas, cometendo
atentados a bombas e incendiando ônibus, ampliou seus limites, estendeu seus
domínios, rompeu com antigos lanços de solidariedade que mantinha com
as comunidades, perdeu o respeito às instituições, declarou guerra à polícia e
passou a manipular a população das favelas nas batalhas do asfalto. “Tá tudo
dominado”, como eles diziam. Por outro lado, a chamada “banda podre” da
polícia se associava aos bandidos para extorqui-los.
Isso ficou bem visível em 1993, quando as chacinas de oito meninos de
rua na Candelária e de 21 moradores de Vigário Geral, as duas executadas
por policiais, se transformaram em marcos da violência. De um dia para o
outro, famosos símbolos do Rio como garotas de biquíni fio-dental deram
lugar a dois anticartões-postais que correram o mundo: meninos com o rosto
coberto por cobertores para não serem reconhecidos e 21 caixões estirados na
rua da favela com os corpos das vítimas da chacina. O Rio chegara ao fundo
do poço.
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Os Rios do Rio
Como que seguindo uma trajetória pendular a que uma fase ruim se segue
uma melhor, o Rio do século XXI começou com planos de se revitalizar para
as festas, de que tanto gosta. Queria se embelezar para as comemorações dos
450 anos e para a realização das Olimpíadas. Além da ampliação do metrô e
da criação de novos veículos de transporte público, ele resolveu, cem anos de-
pois das obras portuárias de 1900, estender-se na mesma direção, fazendo do
ambicioso projeto “Porto Maravilha” quase uma outra cidade de cinco mi-
lhões de metros quadrados. Era uma resposta à nossa “marcha para o Oeste”,
a que fez da Barra da Tijuca, com sua sociedade emergente, a nossa Miami,
pela mimetização da arquitetura e do estilo de vida.
Para restaurar a autoestima do carioca, porém, a maior contribuição talvez
tenha sido a inauguração das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, que
são um dos mais importantes programas de Segurança Pública realizados no
Brasil nas últimas décadas. Implantado pelo Secretário de Segurança Pública,
José Mariano Beltrame, no fim de 2008, e elaborado segundo os princípios
da polícia de proximidade, tem como estratégia a parceria entre os governos
municipal, estadual e federal, e diferentes setores da sociedade. O objetivo é a
retomada permanente de comunidades dominadas pelo tráfico e sua pacificação,
que tem ainda um papel fundamental no desenvolvimento social e econômico
das áreas ocupadas, potencializando a entrada de serviços públicos, infraestru-
tura, ações sociais. Como diz seu criador, Mariano Beltrame, a UPP “não é só
um projeto de segurança, é uma política de Estado, de valorização da vida e
de geração de esperança para o povo carioca e fluminense.”
A primeira comunidade a receber uma UPP foi a Santa Marta, e os resul-
tados, quase sete anos depois, foram resumidos pelo presidente da Associação
dos Moradores, José Mário, assim: “A principal conquista da pacificação é o
acesso à educação e à cultura. Na comunidade, há uma Indústria do Conhe-
cimento, uma biblioteca com cerca de 2 mil livros e nove computadores com
acesso gratuito à internet.” A eficácia da pacificação se reflete em outro impor-
tante índice: desde o início do processo, não há homicídios naquele morro.
As conquistas iniciais das UPPs provocaram uma euforia generalizada,
como se de repente elas fossem realizar o milagre da pacificação da cidade
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Zuenir Ventura
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Ensaio
Literatura italiana – na
universidade e a partir
da universidade
A l fred o Bo s i Ocupante da
Cadeira 12
na Academia
Brasileira de
Letras.
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Alfredo Bosi
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Literatura italiana – na universidade e a partir da universidade
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Alfredo Bosi
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Literatura italiana – na universidade e a partir da universidade
ȄȄ Parêntese florentino
Nos últimos meses de meu curso de Especialização em Literatura Italiana,
vi-me diante de uma encruzilhada profissional. De um lado, tendo sido
aprovado em concurso de professor de Português na rede estadual, foi-me
oferecido um lugar no Colégio Estadual de Tambaú. Seria o começo de uma
carreira na escola pública. De outro lado, o Governo italiano, através de uma
gestão do Ministero degli Affari Esteri, me proporcionava uma bolsa de es-
tudos na Itália, podendo eu escolher a cidade onde ficar. Declarei-me, então,
inclinado para Florença, onde poderia conhecer de perto o Renascimento
entrevisto só em livros.
O currículo da Faculdade de Letras do studio florentino abria-se para a His-
tória e a Filosofia. Não havia pós-graduação, mas o que se chamava de “corsi
singoli”, opções independentes oferecidas com grande variedade. A escolha
era difícil pela qualidade extraordinária dos docentes. Inscrevi-me nos cursos
de Filosofia do Humanismo em Florença ministrados por Eugenio Garin; em
Filologia e Linguística, assisti às aulas de Giacomo Devoto sobre o vocabu-
lário religioso indo-europeu, uma fonte inexaurível de erudição e bom gosto.
Em língua italiana, era Bruno Migliorini que exercia a sua cátedra. Em Litera-
tura Italiana, Walter Binni ensinava Leopardi. Em Filosofia Contemporânea,
Cesare Luporini, que já publicara estudos inovadores sobre Leonardo da Vinci
e o notável “Leopardi progressivo”. Um currículo aberto, que descortinava
horizontes desconheidos por um aluno de Letras.
Essa estação florentina não poderia deixar de abalar minhas convicções
teóricas. Começo dos anos 60: o idealismo em crise substituído pelo exis-
tencialismo sartriano, mas, sobretudo na Itália, pela descoberta dos cadernos
de cárcere de Gramsci lidos e estudados com fervor cultural e político. Ora,
Gramsci é o grande opositor do idealismo entranhado na estética crociana.
A sua obra é um diálogo polêmico com as interpretações crocianas de toda
a tradição literária italiana. Uma polêmica em que o adversário é respeitado,
admirado, mas contraditado pelo que teria de liberalismo burguês, logo avesso
ao marxismo militante do polemista.
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Alfredo Bosi
102
Literatura italiana – na universidade e a partir da universidade
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Alfredo Bosi
104
Literatura italiana – na universidade e a partir da universidade
105
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio
Sterne e a tradição
irônica da Literatura
Mari a Luci a Gui m a r ã es d e Fa r i a Professora Adjunta
de Literatura
Brasileira da
UFRJ e Doutora
em Ciência da
Literatura pela
E
UFRJ, defendeu
xiste uma tradição irônica da Literatura. Com o Quixote, de tese sobre
Cervantes, tem início uma linhagem romanesca que adota Guimarães Rosa
um duplo movimento de escrita: de um lado, a construção de uma na Academia
Brasileira de Letras
trama de efabulação; de outro, a desconstrução das artimanhas em outubro de
narrativas, o desnudamento do princípio de composição, o diá- 2005. Foi uma das
logo crítico da Literatura com a própria Literatura. Desmonta- organizadoras do
livro Veredas no sertão
-se a motivação realista. A obra não apenas desmascara o seu ser rosiano (7Letras,
fictícia, mas escancara as entranhas do seu fazer-se, desvelando-se 2007) e do volume
diante do leitor, que é chamado a participar de seu processo de Secchin, uma vida em
Letras (EDUFRJ,
elaboração, de sua produção de sentido. Por uma via, ilude-se o 2013), em
leitor com todo o aparato de estratagemas romanescos; por outra, homenagem aos 60
rompe-se o contrato ficcional e o leitor experimenta o desmanche anos do acadêmico
Antonio Carlos
da ilusão dramática. Ao movimento crítico deflagrado pelo nar- Secchin.
rador, deve corresponder uma postura inquisitiva assumida pelo
leitor. O contraponto ao narrador autoconsciente é o leitor auto-
consciente.
107
Maria Lucia Guimarães de Faria
______ Como pôde a senhora, leitora, ter sido tão desatenta ao ler o
último capítulo? Nele eu vos disse Que a minha mãe não era uma papista. ___
Papista! O senhor não me disse tal coisa. Senhora, peço-vos licença para
repetir outra vez que eu vos disse, tão claramente quanto as palavras, por
inferência direta, podem dizê-lo. ___ Então, senhor, eu devo ter pulado
a página. ___ Não, senhora, ___ não perdestes sequer uma palavra. ___
Então devo ter pegado no sono, senhor. ___ Meu orgulho, senhora, não
vos permite semelhante refúgio. ____ Então declaro que nada sei sobre o
assunto. ___ Essa, Leitora, é exatamente a falta de que vos acuso; e, como
castigo por isto, eu firmemente insisto em que volteis atrás, isto é, tão logo
alcanceis o próximo ponto final, e leiais o capítulo todo de novo. (I, 20)
108
Ster ne e a tradição irônica da Literatura
Há ainda mais. O leitor tem tanto direito quanto o autor de pintar perso-
nagens. Em VI, 38, Tristram deixa ao leitor uma página em branco para que
pinte a viúva Wadman segundo sua fantasia. Em outras passagens, o leitor
aproveita o vazio para xingar a praga de sua preferência (VII, 37); ou supre a
palavra ou frase não-ditas (II, 6; III, 17); ou formula uma hipótese (V, 10).
O leitor transforma-se num verdadeiro personagem da história. Os brancos
funcionam como armadilhas que enredam o leitor nas malhas da narrativa.
No livro VI, o contato entre Tristram e o leitor já é tão íntimo, que ele o
convida a penetrar na privacidade do quarto de seus pais. Atente-se para o
tom de cumplicidade:
109
Maria Lucia Guimarães de Faria
dois caminhos – um sujo e um limpo. Para que o leitor não tome a vereda
suja, ele anuncia que vai definir o termo “nariz” – mas, antes, implora e supli-
ca aos leitores, do sexo masculino e feminino, de qualquer idade, compleição e
condição, pelo amor de Deus e de suas próprias almas, que se guardem contra
as sugestões do diabo. Depois de tanta preparação, a prometida definição:
– Pela palavra Nariz, por todo este longo capítulo de narizes, e em qualquer
outra parte da minha obra onde a palavra Nariz ocorrer –, declaro que, pela dita
palavra, quero dar a entender nariz, nada mais, ou menos.
110
Ster ne e a tradição irônica da Literatura
111
Maria Lucia Guimarães de Faria
NAQUILO mesmo. Mas como teriam chegado a este ponto? Que teria a
viúva dito na longa fala que abre o capítulo 20? De repente, uma observação
de Tristram me atravessa a mente:
(...) sou de humor tão refinado e singular que, se julgasse fôsseis capaz
de formar convosco mesmo o menor juízo ou provável conjectura do que
está para vir na próxima página – eu a arrancaria do meu livro (I, 25).
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Ster ne e a tradição irônica da Literatura
_____ Admirável gramático! _____ Mas ao suspender ele a voz ___ sus-
pendeu-se igualmente o sentido? Será que nenhuma expressão de sua pos-
tura ou do seu semblante preencheu o vazio? __ O olho estava silencioso?
Olhastes bem de perto? ____ Olhei só para o cronômetro, milorde. ___
Excelente observador!
113
Maria Lucia Guimarães de Faria
“Não me confinarei nem às suas regras, nem às de qualquer homem que te-
nha existido” (I, 4), reclamando total autonomia na condução de sua obra.
Não fora outro o motivo alegado para a omissão dos capítulos 18 e 19 do
livro IX: ele precisava contar o capítulo 25 antes do 18 e do 19! E espera
que isso sirva de lição ao mundo para deixar os autores contarem suas es-
tórias à sua maneira...
Dogmas são frios como o inverno, como a fome, como a linearidade, como
a austeridade mascarada, como a Morte. Como fugir aos dogmas? Eis o de-
safio de Tristram. E eis a sua solução: escrevendo uma obra que representa
a ruptura com todos os gêneros narrativos, a recusa de qualquer sistema de
decodificação, o esfacelamento e a decomposição perpétuos da unidade –
uma obra que reivindica a todo instante a sua liberdade criadora. E como evi-
tar a frialdade? Narrativivendo, misturando narração e narrado, atualizando
a enunciação e conferindo-lhe a vivacidade de gestos: ele tira o chapéu para
escrever mais solenemente! (III, 39).
Todos os males da hipocrisia, da impostura, da aridez de espírito, se repre-
sentam para Tristram na continuidade da linha reta. Urge adotar a circularida-
de, a diagonalidade, a obliquidade. Aliás, o pobre Tristram fora vítima desde
cedo de uma “inexplicável obliquidade” (I, 3). Compreendem-se os gráficos
de VI, 40: os rococós e arabescos desenham o sinuoso movimento narrati-
vo dos cinco primeiros livros, consonantes com a impetuosidade da vida. É
altamente irônica, portanto, a terceira citação, o propósito de “corrigir-se”
doravante e narrar linearmente... É oportuno lembrar que o vocábulo inglês
ruler significa simultaneamente “régua” e “legislador”.
E como aliviar a gravidade e escapar à Morte? Este é o desígnio mais filo-
sófico do livro. Já a primeira dedicatória o enuncia:
Jamais uma pobre Criatura dedicante pôs menos esperanças em sua De-
dicatória do que eu nesta; pois ela é escrita num obscuro rincão do reino
e numa erma casa com teto de colmo onde vivo num constante esforço de
repelir os achaques de uma saúde precária, e outros males da vida, pela ale-
gria; estando firmemente persuadido de que sempre que um homem sorri,
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Ster ne e a tradição irônica da Literatura
_____ mas muito mais ainda, quando ele ri, acrescenta-se alguma coisa a
este Fragmento de Vida.
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Maria Lucia Guimarães de Faria
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Ster ne e a tradição irônica da Literatura
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Maria Lucia Guimarães de Faria
tão acima do estilo e da maneira de tudo o mais que eu tenho sido capaz de
pintar neste livro, que ela não poderia ter permanecido nele, sem depreciar
todas as outras cenas; e sem destruir, ao mesmo tempo, aquele equilíbrio
e aquela estabilidade (quer bons ou ruins), entre capítulo e capítulo, de
que resultam as justas proporções e a harmonia do conjunto da obra. De
minha parte, sou um principiante na matéria, da qual conheço muito pou-
co___ mas, em minha opinião, escrever um livro é para todo mundo como
cantarolar uma canção_____ desde que se esteja afinado consigo próprio,
senhora, não importa quão alto ou quão baixo você o faça.
O capítulo foi retirado porque estava “fora do tom”, desafinava! Uma obra
harmoniosa é, portanto, aquela que não desafina, que entoa em todas as ins-
tâncias uma mesma concepção embasadora, executando em qualquer nível o
tom norteador de um princípio gerador fundamental. E a harmonia não se faz
apenas com sons, mas também com silêncios – tempos “cheios” e tempos “va-
zios”, capítulos e não-capítulos, palavras, frases, ideias, de um lado, brancos,
lacunas, travessões, do outro. Estamos diante de uma tensão de contrários –
full e fasting, “saciedade” e “jejum”.
118
Ster ne e a tradição irônica da Literatura
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Maria Lucia Guimarães de Faria
narrativo, The Life and Opinions of Tristram Shandy é ainda atualíssimo nesta es-
crita de si, que dá à luz um ser no horizonte da linguagem, num misto de
entusiasmo criador e autoconsciência crítica.
Referências
CERVANTES, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha (tradução Sergio
Molina). 2 vols. São Paulo: Editora 34, 2003 e 2007.
FIELDING, Henry. Tom Jones (tradução Octavio Mendes Cajado). Rio de Janeiro:
Globo, 1987.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosó-
fica (t. de Flávio Paulo Meurer). Petrópolis: Vozes, 1998.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de
Janeiro: Garnier, 1992.
STERNE, Laurence. The life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman. London and New
York: J. M. Dent & Sons Ltd. / E. P. Dutton & Co Inc., 1961.
_____ A Vida e as Opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (tradução José Paulo Paes). Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
120
Ensaio
O ABC de
Marcel Proust
Lúci a Bettenc o u rt Carioca, com
doutorado em
Letras. Dedica-se
à escrita de contos,
romances e ensaios.
E
Seu mais recente
mbora tenha ficado conhecido por Em busca do tempo perdido, romance, O regresso,
Marcel Proust escreveu outras obras. Em vida, publicou Os foi publicado em
2015, pela Editora
prazeres e os dias, além de traduções de Ruskin e diversas crônicas, Rocco.
pastiches e poemas em jornais. Postumamente apareceram Contra
Sainte-Beuve e Jean Santeuil. Sua obra-prima, Em busca do tempo perdido,
romance em sete volumes, é difícil de ser resumida, pois é um painel
de época. Mas é também apenas a história de quem deseja escrever
e ainda não descobriu seu tema. O assunto é a própria vida, e a
memória que recupera o tempo perdido em viver. Pretende explicar
como transformamos esse tempo que foge naquilo que permanece
nosso, unindo os múltiplos eus que acumulamos durante a vida.
A obra lembra um jardim cultivado sem que se denuncie a mão
do criador. Nele, as diferentes espécies vegetais disputam nosso
olhar, enquanto nos fazem esquecer o jardineiro, cuja arte é desapa-
recer, fazendo-nos crer que tudo se deve aos caprichos da natureza.
Marcel Proust, autor, se esconde num romance em primeira pessoa
121
Lúcia Bettencourt
ȄȄ A, de Amor
O Amor é apresentado como um sentimento negativo, uma tortura recí-
proca, quer se trate de amor maternal/filial; amor entre amigos; amor héte-
ro ou homossexual. Todos aparecem sob uma luz de descrença que nos faz
chegar à conclusão de que o amor, em Proust, é uma impossibilidade. Amar
é desejar e, para isso, é preciso que haja falta. Quando se conquista o outro,
obtém-se o fastio, a sensação de derrota, já presente na relação mãe/filho.
Uma relação que é apresentada mediada pela leitura e problematizada pela
existência simultânea, de duas figuras maternas poderosas: a mãe e a avó.
A mãe abre os olhos do filho para o fato de que, no amor, a felicidade
parece não existir, pois toda vitória implica uma derrota. Fazer a vontade
ao filho e aceitar a determinação do marido é a derrota materna. A mãe não
deseja ceder e, ao capitular, reprime seu desejo. Qual seria o lugar do desejo
materno? Essa é a lacuna que será preciso preencher, percebe o menino, para
que a mulher não seja apenas um símbolo, mas coloque-se a seu lado como
um signo em sua inteireza. O episódio se encerra com um ato aparentemente
122
O ABC de Marcel Proust
inocente, a mãe que lê para o filho dormir. Acontece que o romance escolhido
pela mãe – dentre os livros selecionados pela avó –, é François Le Champi, de
George Sand, no qual há uma sugestão de amor incestuoso. A mãe, ao ler, vai
“editando” a história e o menino percebe que a verdade se esconde nas lacu-
nas. O que é omitido, aquilo que se cala, portanto, adquire uma importância
fundamental e passa a ser o verdadeiro objeto do seu desejo. Essa primeira ex-
periência, cheia de angústia e derrota, vai caracterizar as relações sentimentais
experimentadas pelo narrador ao chegar à juventude.
A amizade, o amor entre amigos, também não aparece sob luz favorável.
Interpreta-se o sentimento como um sacrifício da parte real e incomunicá-
vel de um ser a um outro alguém que não consegue encontrar alegria em
si mesmo. Pior ainda, Proust adota a opinião de Schopenhauer
e situa a amizade entre o aborrecimento e o tédio. No entanto,
a relação entre o narrador e Saint-Loup é bela e cheia de cenas
inesquecíveis de devoção e delicadeza. A impressão final, no en-
tanto, é negativa, como se este sentimento também fosse enga-
nador e incapaz da verdadeira aproximação entre dois seres, uma
vez que a incomunicabilidade entre as pessoas, para Proust, só é
rompida pela Arte.
O amor entre um homem e uma mulher também é examinado. O
único trecho em terceira pessoa desta obra, a pequena novela dentro
do romance, Um amor de Swann, destaca-se no tempo e até mesmo no
espaço. Swann, esse cisne em que o patinho feio judeu se transformou é
o protagonista de um caso de amor cujo desenlace é extraordinário, já
que a mulher não era o seu tipo. Ora, se ela não era o “seu tipo” como está tradu-
zido por Mário Quintana, qual seria este tipo, ou gênero? Há várias possibilidades,
mas a resposta é omitida, uma lacuna que pode ser preenchida pela interpretação,
mas que, na obra, permanece em aberto.
Nas relações amorosas do narrador, a um momento de indefinição e de múl-
tiplas possibilidades segue-se a escolha por Albertina. Seu amor, difuso e vazio,
abrangente, exige uma definição de pessoa, mas Albertina não é unicamente
Albertina. É o próprio enigma que não se deixa revelar, um ser em fuga, como
123
Lúcia Bettencourt
ȄȄ B, de Beijo
O desejo de encontro com o Outro é uma constante no enredo e já está
presente desde o episódio do beijo materno. A criança que aguarda a mãe,
todas as noites, e que precisa de seu beijo para conseguir dormir, mas que se
angustia ao pensar que este será breve e insatisfatório, permanecerá vivo nas
angústias do jovem que reencontra, na namorada, o alívio do beijo seguido
pela ansiedade da dúvida. O paralelismo entre o beijo materno e os trocados
124
O ABC de Marcel Proust
125
Lúcia Bettencourt
Então, sentindo que ela estava em pleno sono e que eu não iria chocar-
-me em escolhos de consciência recobertos agora pela preamar do sono
profundo, deliberadamente galgava sem fazer ruído o leito, deitava-me
ao seu lado, tomava-lhe a cintura com um dos braços, pousava os meus
lábios no seu rosto, no seu coração, depois em todas as partes de seu
corpo a minha mão livre, que era então [...] levantada também pela res-
piração de Albertina [...] estava embarcado no [seu] sono. Às vezes me
propiciava ele um prazer menos puro. Não havia para isso necessidade de
nenhum movimento, bastava deixar minha perna encostada à dela, como
um remo largado ao qual se imprime de vez em quando uma ligeira os-
cilação semelhante ao bater intermitente de asa nas aves que dormem no
ar. (BTPv5, p. 55,56)
“Não bastava que eu me parecesse exageradamente com meu pai [...], eis
que também falava agora[...] ora como a criança que eu fora [...], ora como
minha avó me falava. (BTPv5, p. 61)
Assim, num outro quarto, não mais aquele de Combray, nem o dos amores da
juventude, mas o quarto da escrita, ressoam os angustiados soluços infantis que
“jamais cessaram; e somente porque a vida vai agora mais e mais emudecendo
em redor de mim é que os escuto de novo, como os sinos de convento, tão
bem velados durante o dia pelos ruídos da cidade, que parece que pararam,
mas que se põem a tanger no silêncio da noite”(BTPv1, p. 62).
ȄȄ C de Catleia
O romance está cheio de flores emblemáticas. As mulheres se metamorfo-
seiam em flores, surgem entre elas, fazem delas os temas de suas pinturas, e
126
O ABC de Marcel Proust
127
Lúcia Bettencourt
“o barão, que logo arregalara seus olhos entrecerrados, olhava com extra-
ordinária atenção o antigo alfaiate, à porta de sua loja, enquanto o último,
cravado subitamente no local [...] enraizado como uma planta, contem-
plava com expressão maravilhada a corpulência do barão a caminho da
velhice.” (BTPv4, p. 5)
128
O ABC de Marcel Proust
o traseiro, adotava atitudes com a coqueteria que poderia ter a orquídea para
com o besouro providencialmente aparecido” (BTPv4, p. 6).
Note-se que o termo “orquídea” é retomado, e, sintomaticamente, o
narrador se inclui na cena, ao usar a desinência de primeira pessoa do plural,
constatando na frase seguinte que “não se chega espontaneamente a essa
perfeição senão quando encontramos um compatriota em terra estranha.”
(BTPv4, p. 6)
A contemplação botânica se adoça num olhar estético. A cena, diz-nos o
narrador, “estava cheia de uma singularidade, ou, se quiserem, de uma natu-
ralidade cuja beleza aumentava de momento a momento” (BTPv4, p. 6). O
que ali se expõe, como nunca antes em literatura, é o amor entre iguais, de
maneira digna, elevada, que escapa do ridículo e do escândalo por ser “tão
comovente o espetáculo de todo amor” (BTPv. 4, p. 6), mas também de
maneira crua e explícita. Ao sair do campo da visão e passar a ser acompa-
nhado apenas pela audição, a delicadeza desaparece. Os sons inarticulados
parecem ameaçadores: “Verdade é que esses sons eram tão violentos que,
se não tivessem sido repetidos sempre uma oitava mais alto por um gemido
paralelo, podia eu ter pensado que uma pessoa degolava a outra perto de
mim”. (BTPv.4, p. 9)
As páginas seguintes, nesta primeira parte de Sodoma e Gomorra, são um ensaio
que reúne sob o mesmo signo de “maldição”, os “invertidos” aos “israelitas”.
A perseguição os transforma numa “raça maldita” e os obriga a viver escondi-
dos, camuflando-se, mas sempre fiéis à sua natureza, que aflorará sempre que
houver oportunidade.
Barthes, em sua famosa Aula, revela:
“Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida
outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem
talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de dei-
xar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe
à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos”
(AULA, p. 45).
129
Lúcia Bettencourt
Livros citados
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2015. 15.ª ed. (AULA)
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Porto Alegre: Globo, 1960. 7 vol. (BTP)
130
Ensaio
Josué: Um sucessor
de Athayde
Muri lo M elo Fi l ho Ocupante da
Cadeira 20
na Academia
Brasileira de
Letras.
131
Murilo Melo Filho
132
Josué: Um sucessor de Athayde
133
Murilo Melo Filho
134
Josué: Um sucessor de Athayde
135
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio
D
Ciências Humanas
esde a preparação da obra Carnaval, de 1919, Manuel Ban- da USP. Seu primeiro
deira experimenta de modo cada vez mais frequente o verso pós-doutorado foi
realizado na área de
livre, a métrica irregular, aceitando uma convocação da prosa, que Literatura Comparada,
passa a estimular sua poesia. sobre a Arte, a Poesia e
a Prosa do movimento
Igualmente, a depuração da herança simbolista, a superação da
do Orpheu. Foi
formação parnasiana e certo desgaste da exploração até certo modo professor visitante na
abusiva, embora justificada, do seu problema de saúde – a tubercu- Yale University, onde
realizou o segundo
lose –, tudo isso colaborou para que o Pierrot bandeirista cedesse pós-doutorado,
lugar ao homem ocupado em depositar sobre o mundo circundante sobre o pensamento
um olhar crítico, não mais com seu sofrimento pessoal. O cotidia- teórico de T. S. Eliot
e Fernando Pessoa.
no, a vida social, com suas mazelas e anacronismo passam, nesse es- Seu romance Migração
tágio da produção e da vida do poeta, a ocupar paulatinamente sua dos cisnes, ambientado
na Europa, representou
atenção. Seu verbo revigora-se no uso de antíteses; explora a ironia o Brasil nas quatro
e um humor nem sempre compreendido. últimas edições da
Sua verve daí para adiante se nutrirá de recortes, fragmentos Feira do Livro de
Frankfurt.
do real, incorporando soluções que fazem de Bandeira o primeiro
137
Ricardo Daunt
1 Vide também: Hamburger, Käte – A lógica da criação literária. Trad. bras. São Paulo, Perspectiva, 1975,
p. 221 e ss.
138
Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira
139
Ricardo Daunt
140
Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira
que fixou como campo da poesia o campo da vida; e sua matéria tudo o que
é vivencial e observável. Foi o Modernismo que disse que a lógica é uma mer-
cadoria de troca, que é preciso transigir.
No início do século XX, as artes plásticas se apoderam do substrato de tudo
o que se encontra ao redor. A colagem, o texto publicitário, rótulos de vária or-
dem, os estados pré-conscientes. A poesia fez o mesmo: Laforgue, Apollinaire,
Blaise Cendrars e outros atravessaram o pontilhão divisor das Artes.
As possibilidades de composição plástica e literária foram alargadas no
curso de uma mútua contaminação. O mundo concreto e material e a ima-
ginação criativa dão-se as mãos. Os vetores da vida complexa contemporâ-
nea oferecem novos parâmetros e referências para a consecução do processo
de criação literária e depositam nas mãos do artista a verdade precária de
seu tempo. Lógica, quem quer a lógica? O belo, o que é senão exatamente
o feio?
O equilíbrio, não será ele uma doença do desequilíbrio, que é, talvez seja,
a regra?
E William James, por seu turno, oferecerá ao artista, no nascimento do
século XX, o arcabouço de uma filosofia que ao mesmo tempo é psicologia,
posto que fundada na investigação da experiência humana direta, uma fonte
de alimentação espiritual, e um elemento que favorecerá a separação da Arte
de seus entraves morais: o pragmatismo e o empirismo radical. O que é a
verdade? Apenas algo de que me sirvo por conveniência. Se me é conveniente
e adequado, é verdade.
Isso me basta.
Vamos ao poema.
“As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam [neolo-
gismo do francês bouleverser, inventado por Bandeira, por blague], me hipnoti-
zam” – diz o sujeito de enunciação do poema, primeiro verso.
Essa transferência em boomerang para o “interior” do poema, diretamente,
posto que se situa fora dele, é uma espécie de moderna arqueologia poética, que
precede a colagem sobre o corpo do poema. O nome pode chocar, mas o
sentido não é exatamente novo.
141
Ricardo Daunt
A partir do poema “Les vin des chiffonniers”, estampado na obra Les fleurs
du mal, ou, ao menos, por essa época, Baudelaire definia o poeta como um
trapeiro, coletor de trapos, um coletor das sobras da vida pós-industrial. O
arqueólogo a que me refiro é um parente mais atual do trapeiro. Com a di-
ferença de que o processo em boomerang, a que acabo de mencionar, devolve o
problema para o leitor. É ele que deve, por derradeiro, resgatar do vento a peça
curva de madeira que avança perigosamente na direção de sua cabeça.
O que faz o arqueólogo quando em suas escavações descobre um osso (de
um mamute? de um dinossauro?)? Ele procura resgatar as demais partes e monta
a estrutura provável do animal, de acordo com pressupostos previamente traça-
dos, fruto de sua memória, de seus estudos, de pesquisas anteriores.
O poeta arqueólogo escava na esfera do real e dele destaca fragmentos,
entrechos, memória, partes, segmentos de algo infinitamente maior – e os
recontextualiza no âmbito de um projeto de arte em fabricação. Entretanto,
por ser moderno, essa coleta não é depositada nas mãos do leitor, seu destino,
sem que carregue consigo o reflexo do próprio caos de onde foi extraída. Assim, os dís-
pares e desordenados conteúdos do real aderem-se aos prévios conteúdos do
objeto de arte em congeminação, modificando-o. Um novo e inédito produto,
digamos assim, também real, inaugura-se para o nosso olhar e nossa reflexão;
um produto que almeja intrinsecamente – o que faz parte de sua essência –, um
espaço no cotidiano como coisa recém-fabricada, como coisa concreta.
Não posso me afastar muito do poema, dessa coisa concreta que acabo de
mencionar.
Vejamos o segundo e o terceiro versos.
142
Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira
O efeito acústico gera o sinete musical, que oferece uma pauta de leitura
previamente demarcada e sinalizada, e que pode ser obedecida pelo receptor
ou não. A música infla, preenche os espaços vazios do sentido, devora e ali-
menta a base poética para que esta se abra.
No Modernismo os processos de contaminação de sentido por contigui-
dade são intensificados e as oposições e semelhanças comparecem lado a lado,
gerando um efeito cumulativo.
O imediato e o longínquo; o particular e o impessoal infiltram-se.
No poema, a atração/sex-appeal que as modelos de publicidade estão convo-
cadas a estimular, a provocar, é destinada a cada um e a todos indistintamente.
Também assim o poema. Sob o efeito da infusão da comunicação de massa, sob
os auspícios do mantra, torna coletivo, impessoal, o que poderia ser revelação,
descortínio pessoal. Oh! as três mulheres [...] às 4 horas da tarde!”
Eis uma informação que a despeito de ser uma verdade pessoal – haja vista
que a pessoa civil Manuel Bandeira entranhou no poema e em sua biografia a
circunstância (o engodo) de que se encontrava às 4 horas da tarde em frente
a um cartaz de publicidade, menos que uma incômoda notícia pessoal a que a
indiscrição permitiu mencionar –, é um registro de um sentimento coletivo, mesmo
que, ainda assim, pessoal.
No Modernismo a despersonalização poética, a
impessoalidade autoral, se preferirem, não é pressu-
posto que confere prestígio e universalidade ao regis-
tro poético. A neutralidade parnasiana ficou no sécu-
lo XIX e serviu como um antídoto ao ultrarroman-
tismo. (Serviu também, é verdade, para refinar a pena
dos poietes sucessores, o que não é despiciendo.) Mas
quando os programas de arte do século XX sacudi-
ram nossa sensibilidade e desalojaram nosso intelecto de seu precário conforto,
a questão da impessoalidade artística não tinha um encaminhamento simples.
Eliot falava que um autor, para se tornar um clássico, teria que saber manejar
com intensidade os materiais a sua disposição, fossem eles de cunho pessoal ou
não. Um exemplo hoje já clássico é a poética de James Joyce.
143
Ricardo Daunt
144
Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira
145
Ricardo Daunt
Carne, verbo, espírito. Não podemos nos esquecer de que esses versos, 10.º
e 11.º são sempre interrogações, quimeras ansiadas, dúvidas, jamais certezas.
Eis renascida a velha retórica que de modo ofegante, anelante, interroga acerca
dos atributos de seu objeto de desejo, ainda inabordável... Eis outra armadilha
do sujeito lírico fingido de Bandeira.
Sendo, como podem talvez ser, três modos afetivos e três talentos, também
o sujeito de enunciação fingido se multiplicou para lograr uma combinação
dos três desígnios indicados no 9.º verso: viver, sofrer, morrer – marcos ine-
vitáveis de quem vive, não é assim? (Talvez a felicidade esteja inserida na ação
de viver.)
“São as três Marias?” indaga o eu do poema no 12.º verso, indagação essa
que se repete na verso isolado da estrofe seguinte, o 13.º
O que são as três Marias? São elas Mintaka, Alnilan e Alnitaka, três estre-
las absolutamente alinhadas no centro da constelação de Órion, que, por seu
turno, é o caçador na mitologia grega.
Pronto, transferidas as mulheres para o plano celeste, ao menos como hi-
pótese de devaneio, o sujeito lírico fingido consegue combinar e aliar o plano
da ideia, da elevação, ao plano material, da estrela plantada no cosmos: con-
creta, mas convenientemente inacessível. Não estou me esquecendo de que
podemos ainda nos socorrer da ‘estrela’, de uso corrente na imprensa e no
cinema, sinônimo de modelo ou figura humana, homem ou mulher, de suces-
so que todos gostaríamos de copiar, e de quem gostaríamos de nos aproximar
para conviver.
Mas indaguemos sobre o caçador. Quem é ele? Quem é o caçador?
O caçador é aquele que no plano celeste se saiu vitorioso, aprisionando den-
tro de si as três mulheres, as três estrelas. No plano terreno, o caçador só pode
ser um.
Ou podem ser todos, a coletividade de homens e mulheres hipnotizados
pela publicidade.
Caçador e caça confundidos na floresta de signos.
Examinemos a penúltima e mais longa estrofe do poema.
É também a mais irregular em termos métricos.
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Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira
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Ricardo Daunt
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Para entender um pouco mais de Manuel Bandeira
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Ricardo Daunt
150
Ensaio
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Mary del Priore
152
Per Johns: um ficcionista de todas as estações
do eu. Espaço onde ele se acha no face a face, doloroso e complexo, no qual
se pergunta: quem sou?; onde vou? Silêncio que lhe convida a experiências
meditativas ou contemplativas que o conduzem para a terra prometida onde
o corpo deve se calar para não conspurcar a alma. Johns não teria saudades
daquele momento do Gênesis em que Deus ainda não havia criado o homem
e a mulher?
Em sua torre-biblioteca construída voltada para a floresta, ele preza o si-
lêncio. Ele o escuta e lhe dá um sentido para que se pareça com uma forma de
linguagem ou de visão. De novo, em Dionísio crucificado, e inspirado no esqueci-
do filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, Johns diz:
153
Mary del Priore
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Per Johns: um ficcionista de todas as estações
Se o que buscasse estivesse onde estou, onde procuraria o que não sou?
Se o mundo estivesse pronto, irremediavelmente bem-feito, que es-
tímulo haveria para inventar, modificar, melhorar? E o que é pior (ou
melhor para tartarugas e morcegos): o que seria de meu engenho?
Que Deus me perdoe, mas a vida perderia a graça, deixando-me
uma única alternativa:
Desistir de viver.
Um grande escritor deve suscitar um sentimento de incompletude.
Ele deve nos incitar a perguntar: o que esse livro significa para mim?
Johns é deles. Em seus livros, ele nos oferece o aprisionamento na infinidade
dos sentidos. Aprisionamento que é também libertação. Vamos escutá-lo:
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Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio
A noção de Nordeste
157
Evaldo Cabral de Mello
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A noção de Nordeste
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Evaldo Cabral de Mello
pelo IBGE nos anos 40 e 50. Graças a ela, é que o brasileiro passou a
ver o país como um conjunto de regiões (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul,
Centro-Oeste) e não mais como a agregação amorfa de um Norte e de um
Sul ou como somatório de jurisdições administrativas, capitanias, provín-
cias e depois Estados.
Ainda está, aliás, por se investigar quando o vocábulo Nordeste começou
a ser empregado, mas não cabe dúvida de que ele é de uso relativamente
recente, insinuando-se nos primeiros decênios do século XX. Em 1924,
Agamemnon Magalhães utilizou o conceito na tese com que obteve a ca-
deira de geografia do Ginásio Pernambucano e cujo tema era O nordeste
brasileiro: habitat e gens. No ano seguinte, Gilberto Freyre organizaria o
Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco, e, em
seguida, o Congresso Regionalista do Recife. Nos anos 30, seria a vez do
“romance do Nordeste”. Aliás, tanto no Livro do Nordeste quanto na tese de
mestrado que em 1922 apresentara à Universidade de Columbia, Gilberto
Freyre explorou pioneiramente várias facetas da história da vida privada,
que aprofundaria posteriormente em Casa-grande & senzala e Sobrados e mu-
cambos. É irônico, aliás, que a história da vida privada só tenha sido desco-
berta pela historiografia brasileira aí pelos anos 80 graças à coleção diri-
gida por Philippe Artes e Georges Duby e não nas obras de Freyre ou na
Vida e morte do bandeirante, de Alcântara Machado, que é de 1928 ou 1929.
A ideia de Nordeste estava no ar, mas levou tempo a ingressar na lingua-
gem quotidiana. E o que é mais, ela cobria realidades distintas. Quando,
em 1937, Freyre publicou, sob o título de Nordeste, o ensaio em que analisa
a influência da monocultura canavieira sobre a vida e a paisagem regionais,
aplicando pela primeira vez no Brasil o conceito de ecologia, que a escola
sociológica de Chicago acabava de pôr em circulação, tratava-se apenas
de uma parcela do que hoje denominamos Nordeste, pois correspondia
tão somente ao Recôncavo Baiano e à mata pernambucana, alagoana e
paraibana. Ele mesmo observava estar a palavra Nordeste “desfigurada pela
expressão obras do Nordeste”, que quer dizer “obras contra as secas”,
lembrando que o Nordeste do árido e do semiárido é que constituía, na
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A noção de Nordeste
161
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio
Um soneto de
Jorge de Lima
S érg i o F. Martag ã o G estei r a Doutor em Letras,
Professor Associado
de Literatura Brasileira
na UFRJ, lecionou
também, por vários
anos, em universidades
163
Sérgio F. Martagão Gesteira
164
Um soneto de Jorge de Lima
Como se vê, o poema aproxima as figuras ligadas à água, mas água impreg-
nada pelos sinais da mortalidade: não só Celidônia, mas os “peixes lívidos
sem dentes”. A independência do poema, a sua tirania abarcam, pois, o reino
dos vivos – por exemplo, “banhistas” – e o dos mortos – os “veleiros mortos”
do quarto verso –, integrando esses “irmãos” na súbita apóstrofe que estanca
o prolífico enumerar de tantos seres: “Parai, sombras e gentes!”.
Em virtude dessa incisiva convocação, os mortos, a despeito da referência
à lividez, não valem tanto aqui como apenas os destituídos de vida, já porque
agora tocados por intensa vitalidade imaginária pela qual, sombras junto às
gentes, são instados igualmente a pararem. No nível fônico, convém perceber
que, se alguma rispidez se podia ouvir em “tirânico”, ecoando ainda na vi-
gorosa nasalidade do oxítono “irmãos”, bem como na aliteração das plosivas
de banhistas e brisas, desde logo o i na sílaba tônica desses últimos termos,
somado às sibilantes no interior e no fim deles mesmos e dos outros vocábulos
que se lhe seguem poucos versos depois – coisas imprecisas, Lúcias, Isas etc.
–, tudo converge para o assinalamento dos traços que aproveitam a marca da
pluralidade dos entes para manifestar o fluxo incessante em que água e algas e
ar (“brisas”) se conjugam na pintura dessa paisagem dúctil.
O apelo, assim, da voz lírica para que tudo ou todos parem mobiliza o con-
junto desse real móvel e, por certo traço indistinto, movediço para a afirmação
categórica do quarto verso do segundo quarteto: “Que este poema é poema sem
165
Sérgio F. Martagão Gesteira
balizas”. Até mesmo aqui, ainda no nível fônico, o b de balizas se fragiliza como
obstáculo, pois o cerca a ductilidade de um “sem” a precedê-lo e das sibilantes
que o arrematam: “sem balizas”... Assim, o parar de todos é o momentâneo solo
que os sustém na atenção voltada para a primazia conferida à mobilidade.
Tal mobilidade não é, apenas, a fascinada pelo puro mover/morrer das
coisas e das gentes, no olhar encantado de um eu-lírico a espiar o fluxo in-
cessante da vida, marcada pela intermitência do que a ela aflora. É mais que
isso: dizer o mover do quanto há é abrir-se o poema para um terreno em que
os seres, apesar de seus nomes tão privativos, de suas configurações cativas
– dotadas até de uma origem histórica discernível: Celidônia – ampliam-se
e como se sinonimizam – “Celidônias” – porquanto expandem seus signifi-
cados para um vínculo comum – “Ó irmãos” – que os integra na experiência
múltipla do real dialógico, sintaticamente inclusivo, de territorialidades que
se entremeiam, sem que a face ou o nome de cada um desses irmãos se perca
num caos devorador de todos, não lhes concedendo a distinção que a cada um
considera, respeita e identifica.
Leiamos agora o primeiro terceto:
166
Um soneto de Jorge de Lima
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Sérgio F. Martagão Gesteira
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Um soneto de Jorge de Lima
Referência bibliográfica
LIMA, Jorge de. Livro dos sonetos, Lisboa: Livros de Portugal, 1949.
169
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio
Domício da Gama –
Escritor e Diplomata
Alberto Vena nc i o Fi l ho Ocupante da
Cadeira 25
na Academia
Brasileira de
Letras.
171
Alberto Venancio Filho
172
Domício da Gama – Escritor e Diplomata
No passeio, indica uma residência: “Foi ali que conheci o Barão. Sabe
que ele no primeiro momento fugiu de mim? Evitou conhecer-me.” E des-
creve a chegada à Paris no verão de 1889, trazendo carta de Ferreira de
Araújo para Eduardo Prado: “Bati à porta do apartamento, fui introduzido
e encontrei Prado estirado numa espreguiçadeira. Ao seu lado numa mesa,
dois copos, e vi uma pessoa se esquivando à chegada. Mas, logo em segui-
da, Prado gritou para a sala ao lado: ‘– Juca, não tenha medo, é um rapaz
amigo do Araújo que chegara do Rio’. O Barão apareceu meio contrafeito:
‘– Pensei que fosse algum cacete...”’. Domício sentiu, porém que o tinha
observado atentamente.
Domício esclarece que se aproximou do Barão mais tarde, num passeio
pelo Champs Élysées. “Prado avistou-me, e logo me chamou para me juntar a
eles, dizendo ao Barão: – É o rapaz amigo do Araújo.” Domício se incorporou
aos dois, jantaram juntos os três e logo ficaram amigos.
Desse encontro surgiria uma relação de trabalho e amizade que perduraria
por toda a vida, justificando a afirmação do biógrafo: “Rio Branco o faria o
seu auxiliar mais próximo; o seu discípulo mais amado.”
Ao tomar conhecimento da eleição para a Academia, Rio Branco escreve a
Domício: “Quer dizer que fico sendo um dos imortais? Sic itur ad astra. Espero
para almoçar”.
E quando Rio Branco lhe encomenda a compra de livros raros, Domício co-
menta que se Rio Branco a fizesse pessoalmente faria loucuras, pois esclareceu:
“A bibliografia é a mais dispendiosa das manias.”
173
Alberto Venancio Filho
O grau de intimidade era tão grande, que quando de uma vinda de Domí-
cio ao Brasil, a Baronesa o indagou: Et comment va faire Juca, qui ne peut pás vivre
sans vous.
Essa relação representaria uma mudança em sua vida.
Ligado ao Barão, colaborou nas questões de limites com as Missões e com
a Guiana Inglesa, e veio a exercer no Itamaraty as funções do Gabinete de Rio
Branco. Nessa gestão é ministro no Peru e Argentina em momentos delicados
da diplomacia brasileira. Com a morte de Joaquim Nabuco, Rio Branco o de-
signa ministro em Washington, onde granjeia grande prestígio entre as auto-
ridades governamentais, aproximando-se do Presidente Wilson e em atitudes
corajosas, defende a valorização do café.
A produção literária de Domício da Gama é reduzida e se concentrou em
duas fases: a primeira no Rio de Janeiro, nos anos de 1886 a 1888, com a pu-
blicação de Contos à meia-tinta e a segunda, de textos de Paris de 1890 a 1895,
com a publicação de Histórias curtas em 1901.
É curiosa a escolha do título Contos à meia-tinta: Uma tarde, Domício na
Garnier com Machado, Pompeia, Mário de Alencar e outros, lia uma coleção
de contos e comunicou tratar-se do seu livro de estreia. Faltava, apenas, o
título.
174
Domício da Gama – Escritor e Diplomata
175
Alberto Venancio Filho
“Estou aqui em Berna três meses sem outra literatura que não seja a
diplomática, isto é, roteiros, memórias, trechos, despachos, etc.”
176
Domício da Gama – Escritor e Diplomata
“Ainda não me ocupei com literatura; desde que vim tenho vivido entre os
cuidados da profissão que acidentalmente exerço, e que por enquanto pouco
folga me deixam. Será então o tempo de escrever para a Gazeta e a Revista.”
“Tenho tanta coisa em baixo da pena, a que falta espaço, tempo e forma
para sair.”
“Eu pouco tenho feito. Cuido agora de reunir contos em volume na falta
de obra mais séria.”
177
Alberto Venancio Filho
178
Domício da Gama – Escritor e Diplomata
179
Megarampa, 2009, São Paulo.
Ensaio
Entre os papéis de
um leitor de poesia
Fl á vi a A mpa ro Professora Adjunta
de Literatura
Brasileira da UFF
e do Colégio Pedro
II. Doutorou-se na
UFRJ, com a tese
181
Flávia Amparo
182
Entre os papéis de um leitor de poesia
183
Flávia Amparo
1O primeiro livro de Drummond, Os 25 poemas da triste alegria, foi encontrado por Antonio Carlos
Secchin numa biblioteca particular. O livro inédito veio a público, numa edição fac-similar, pela Cosac
Naify, em 2012.
184
Entre os papéis de um leitor de poesia
185
Flávia Amparo
do menos, João Cabral de Melo Neto: de Quaderna a A escola das facas”, que seria
o embrião do premiado livro João Cabral: a poesia do menos, de 1985.
Em 1999, ano da morte de João Cabral, o livro recebeu uma segunda edi-
ção, revista e ampliada, pela editora Topbooks. Nesta, Secchin procurava abar-
car a obra de João Cabral de Pedra do sono a Escola das facas, acrescentando mais
dois ensaios à publicação: “Morte e vida cabralina” e “João Cabral: marcas”,
além de inserir uma entrevista concedida pelo poeta, em 1980.
As 333 páginas, da edição de 1999, se ampliaram para 478 nessa primo-
rosa edição da Cosac Naify, que é sinônimo de bom gosto e zelo editorial.
Antonio Carlos Secchin revisita João Cabral de ponta a ponta, dos Primeiros
poemas (1937), obra prematura do escritor, a Sevilha andando (1994), derradeira
publicação cabralina. Ainda acrescenta mais três ensaios à segunda parte, além
dos outros dois que constavam no livro anterior, complementando o diálogo
com o poeta. Dentre os novos ensaios temos: “Do fonema o livro”, que ana-
lisa o universo cabralino para diferenciá-lo do drummondiano, tornando a
discutir a obra dos dois poetas fundamentais; “A literatura brasileira & algum
Portugal”, em que rastreia as referências e influências de autores da literatura
brasileira na obra cabralina e a presença de alguns poetas portugueses nessa
conversa poética; e “As Espanhas de João Cabral”, cujo título já propõe um
resgate da influência da Espanha e da poesia ibérica na poesia do autor, como
também se dispõe a esclarecer a existência plural desse lócus:
Todos esses territórios são atravessados pelo poeta, e com tal intensida-
de que o país se torna plural: várias Espanhas convivem na Espanha ideal
do escritor. Proponho-me falar de algumas delas e ressaltar a gradativa e
sempre crescente importância que a experiência espanhola assumiu na vida
e na obra de João Cabral. (SECCHIN, 2014a, p. 443).
186
Entre os papéis de um leitor de poesia
Não sei se o crítico há de lançar outros fios de galo para continuar a tecer,
amanhã, esse vasto diálogo poético com João Cabral. Esperemos que sim, que
nesses papéis de poesia, que o vento e o tempo não levam, a pedra cabralina
continue a traçar o seu risco pleno e absoluto.
ȄȄ Ponto Final
No espaço da minha mesa de trabalho, que alcança agora o diâmetro do
mundo cabralino e drumondiano (“Mundo mundo vasto mundo”), conti-
nuo debruçada sobre esses livros, sem poder e querer esgotá-los aos olhos de
outros leitores. A tarefa é imensa e sinto-me pequena diante da poesia que
inunda vidas inteiras, inclusive a minha nesse momento.
187
Flávia Amparo
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify,
2011.
SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: uma fala só lâmina. São Paulo: Cosac Naify,
2014(a).
_____. Papéis de poesia: Drummond & mais. Goiânia: Ed. Martelo, 2014(b).
188
Conto
Relatório a
uma academia
I eda M ag r i Professora de
Teoria Literária
no Instituto
de Letras da
Universidade
Nada me agrada mais do que transmitir uma do Estado do
Rio de Janeiro
imagem inteiramente falsa de mim mesmo
– UERJ. Autora
àqueles que guardo no coração dos livros de
ficção Olhos de
Jakob Von Gunter, Robert Walser bicho (Rocco,
2013) e Tinha
uma coisa aqui
(7Letras, 2007).
189
Ieda Mag ri
resposta ao lugar que ocupo na vida desses amigos?” E “o que você pensa
da minha presença aqui?” “Mostra que eu não me importo? Que eu sou
boa e indiferente? Que sou tola?” E: “Ele percebe minha fraca frieza?” Ao
comboio de perguntas ainda acrescento pra mim mesma enquanto vejo os
outros à mesa um “por que vim sem ser convidada e como me sinto estando
aqui?” 1. bem, por ser vista por amigos que não sei quanto me querem aqui,
por, de alguma forma, estar entre, por, de alguma forma, impor minha pre-
sença. 2. mal, detesto a conversa cheia de saber, excessivos, ególatras. Acho:
eles têm razão, eu não pertenço mesmo a esse lugar. Minhas tardes deveriam
ser de piqueniques.
Sabem aquela dúvida que sempre ataca os namorados, “será que ela
gosta mesmo de mim?” que aparece em forma de afirmação depois de
algo inesperado e agradável que ela faz “ela gosta mesmo de mim.” En-
tão ele me abraça e eu pergunto: “será que ele quer me ferir?” e mesmo
quando me dou conta de que não faço parte dos convidados, “ele quer me
ferir”, a frase não sai nunca como afirmação. E quando eu respondo que
gostaria de estar entre os convidados, não sei se sou eu ou o meu ressen-
timento que responde. Parece que sim, que eu seria capaz de estar entre
os distintos convidados, que poderia comer com garfo e faca, que não
faria barulho ao tomar a sopa e que talvez até poderia dizer umas três ou
quatro frases engraçadas ou inteligentes. E se pergunto, ou se respondo,
de novo, “sim, gostaria de estar entre os convidados ilustres da festa”, me
surpreendo porque a afirmação só se dá pelos carecas que vieram de longe
e que indicam que absolutamente todos os amigos foram convidados e
então vejo o tamanho de minha importância. “Amigos, não há amigos.”
Ou será “Inimigos, não há inimigos”?
Mas não deixa de ser curiosa a possível resposta a um porquê eu não
fui convidada, se absolutamente todos os amigos foram convidados e se
eu, ao lado, perto, disponível sempre, não. 1. Vou te ferir porque B. não
me chamou ano passado (isto dito aos gritos e com beicinho, como fazia
meu irmão aos cinco anos e eu própria um pouco antes). 2. Não creio
190
Relatório a uma academia
que possa dizer algo interessante na minha festa. 3. O seu lugar na minha
vida é outro. O do tudo pode quando não se trata de grandes festas em
que é preciso dizer algo muito brilhante. E eu o ouço: “sim, eu gosto da
sua sala”; “sim, eu gosto de abraçar o seu corpo”; “sim, eu gosto do jeito
que você não se importa nunca”. Bom, talvez hoje eu queira dizer que me
importo, sim. “Me importo e às vezes sofro. Mas não muito agora que
entendi sua perversão e seu gosto de me excluir, mas somente de algumas
coisas muito específicas, aquelas que são realmente grandiosas”. Concluo
que seria uma vingançazinha interessante, não mais de crianças de cinco
anos, agora de colegiais, aparecer aqui e ouvir o que me interessa, falar
com meus amigos, mostrar esse excesso que é meu corpo e minha voz e
meus beijinhos e meus abraços com os convidados. Seria um pouco mais
saborosa se eu ouvisse o que todos têm a dizer à mesa, se discutisse, se
me alegrasse e aos outros e, um pouco antes da sobremesa, na sua hora de
falar aquelas frases realmente magníficas que você ficou preparando nas
tardes de sábado e de domingo, eu saísse. Justo quando, logo quando você
se preparasse, eu sairia.
Me pareceu bom isso. Talvez melhor que a sobremesa. Me parece que
me recusar a ouvi-lo pode perturbá-lo mais, pelo menos um pouco mais
do que recusar-lhe o meu corpo para o abraço, a minha sala, o meu sorri-
so. E mesmo a minha ausência na festa toda. Me agrada a ideia de sorrir e
abraçar e beijar e ouvir e comer e fingir que tudo bem. Me agrada fazer o
teatro todo e me colocar entre a ingenuidade – a fraqueza – daquela que
nem sabe o que se está passando e a bondade toda daquela que não se im-
porta e então deixar irromper a pequena vingança disfarçada, “desculpe,
preciso sair” e assim, brandamente, sem que ninguém possa provar, gra-
var, ouvir, dizer com certeza “você não me interessa mais” ou seria mais
delicado “suas festas não me interessam nunca”. Estou em dúvida. Que
tal “não suporto ouvi-lo”? E, sim, eu sei, ele precisa ser ouvido, mais que
ser amado por todos. Olho ao lado e parece mesmo que minha presença
incomoda mais que a ausência. Eu quero ser isso pra ele, descubro: sempre
191
Ieda Mag ri
192
Caligramas
Pedro Vasquez
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Pedro Vasque z
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Pedro Vasque z
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Pedro Vasque z
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Pedro Vasque z
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Pedro Vasque z
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Pedro Vasque z
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Pedro Vasque z
200
Poe s i a
Poemas inéditos
C a rlo s Neja r
201
Carlos Nejar
202
Poemas inéditos
203
Carlos Nejar
O cântico de um velho
Emagreço de sol e cresço de manhãs.
204
Poemas inéditos
Não consegui
Não consegui olhar para dentro da pedra.
Diante de Deus.
205
Carlos Nejar
206
Poemas inéditos
207
Carlos Nejar
Nalgum lugar
A morte caiu do tronco
cheio de marulho.
Caiu a morte
com as ameixas
o sereno
e o raio de sol
a transpassou.
Caímos a morte e eu
transpassados de Deus
208
Poemas inéditos
209
Futevôlei, 2013,
Rio de Janeiro.
Poemas inéditos
A l exei Bu eno
211
Alexei Bueno
27-7-2014
212
Poemas inéditos
Shopping chão
Velho LP comprado dos mendigos,
1976,
Lacrado, novo, nem uma só vez
Posto entre humanas mãos e os seus perigos.
29-7-2015
213
Alexei Bueno
Devaneio
Sempre algo nos resta
De belo no entulho,
Salvado do esbulho
Entre o que não presta.
Um retrato, a lente
Da lupa perdida,
A taça partida,
O encastoado dente.
4-8-2015
214
Poemas inéditos
Bilhete
A Herberto Helder
7-8-2015
215
Megarampa, 2009, São Paulo.
Poe s i a
Alei lto n Fo ns ec a
Ciclo
Enterramos os amigos,
um a um, distraídos.
Um dia, os amigos
que ainda restam
vêm em silêncio
e nos enterram.
218
Poemas das visitações
Imortalidade
Só o corpo é imortal,
em sua trama eterna
de átomos e moléculas.
219
Aleilton Fonseca
Botafogo
Para Antonio Carlos Secchin
e fechar os caminhos
dos mares.
e achar os caminhos
dos bares.
220
Poemas das visitações
Um canto a Maria
Porque te chamas Maria,
por este nome eu te chamo,
me iluminas noite e dia,
com a luz de teu encanto.
221
Aleilton Fonseca
Às margens do Rio
Confabulo pelas ruas do Rio
um encontro com a minha sina.
Meus olhos flâneurs sorriem
de amor com os passantes,
perdoo o rugir dos carros,
saúdo os edifícios gastos,
as nuvens sobre as favelas.
No Largo do Machado,
Alencar está ocupado,
mas observa meus passos.
Na Av. Presidente Wilson,
Bandeira me mostra um poema
que se espalha pelas ruas
com o seu brilho de bronze.
Em Copacabana,
Drummond me reconhece
com seu olhar de mineiro.
No alto do Corcovado,
o Cristo me estende os braços
e me oferece as cores do mar,
uma vida no céu das colinas.
222
Poemas das visitações
223
Aleilton Fonseca
224
Poemas das visitações
225
Ceará 2 × 2 Corinthians, 2008, Fortaleza.
Poe s i a
Poemas
M o nte z M ag no
227
Monte z Magno
A pena do poeta
Corre em busca da essência,
sofre querendo entender
a vida.
Como se faz o poema?
Com sentimento e razão
e uma certa confluência
de inesperados insigths
que a mão traduz
e a pena não.
17-07-2006
228
Poemas
04-11-2007
229
Monte z Magno
O melhor é voar
Aqui está a sua sombra
como aqui está a sua dor.
No caminho da ausência
o melhor é voar
atravessando o espaço
se afastando do vazio.
Sempre um bater de asas
sem movimento, a quietude
um casulo de energia
que nunca se fecha nem abre,
presa a sua luz
no interior da furna.
04-11-2007
230
Poemas
O mais profundo
A Per Johns
Ser simples
hasta la medula.
No se desgastar
com coisas inúteis.
Buscar o osso
no fundo da alma.
07-07-2006
231
Monte z Magno
Solitude
Tenho um Buda em mim
coberto de pó e solitude.
Exala mantras na sala
cospe átomos à noite,
provoca risos quando fala.
O sorriso preso nos dentes
a palavra guardada para depois,
depois que um múrmuro alento
pousa no ar silente do passado.
08-08-2009
232
Poe s i a
O movimento
das palavras
Jo s é Hu g u eni n
233
José Huguenin
Calor
Um lado quente,
Fervente,
Ardente expectativa.
Faz mover, rápido,
As partes constituintes,
Provoca choques,
Pressiona,
Arde,
Tenciona,
Insiste,
Justifica o amor,
E o calor
Propaga em ritmo veloz
rumo
a outra
fonte,
perde
ímpeto
no caminho,
insiste,
vai mais
lento.
Porque o outro lado está frio,
Água de rio, difícil esquentar,
Difícil movimentar,
Driblar a viscosidade.
Não pressiona,
Não intenciona,
Resiste, lento,
Evita tormentos,
Sente calafrios,
É frio,
Mas não vence
A natureza.
Com o
Passar
Do tempo
Não há lado, não há diferença, ímpeto, resistência, não há transtorno, tudo é morno.
234
O movimento das palavras
Contrastes
O silêncio transforma a sinfonia,
Retoca-lhe os tons,
Acentua a nostalgia,
Purifica-lhe os sons.
Contrastes,
Antíteses,
Completezas.
235
José Huguenin
Densidade
Palavras dispersas, rarefeitas,
esquecimento.
O resto é superficialidade.
236
O movimento das palavras
Sonhos.
Se apóia nos
Para estar segura,
A base de nossa escada,
Certos de jamais esquecer que
Carentes, cientes de nossa realidade,
No decorrer sereno da contínua escalada,
E os passos, os degraus, quem constrói somos nós,
O norte, a sorte, o rumo da vida, quem dá somos nós.
É natural, no começo, o tropeço, o olhar perdido no tempo.
Antes de iniciar o projeto, de construir o teto, de começar a subir.
Começo a ver que para viver, fazer acontecer, para sentir, é preciso sonhar
237
José Huguenin
Gravidade
Faz cair a
maçã.
Faz o mundo
girar em torno do Sol,
mudar a estação.
238
O movimento das palavras
Meu quintal
O sol,
Em dia sublime,
Ilumina meu quintal.
Um mundo,
Onde no tempo de eu menino
Explorava
Cada recanto da imaginação.
239
José Huguenin
Profecia
E virá o tempo
Em que toda a vida
Se resumirá a um momento.
Em que toda partida
Despertará ressentimento.
Em que toda ferida
Se originará de um sofrimento
E não se fechará mais.
E virá o dia
Em que todo ímpeto
Será detido pela apatia.
Em que todo projeto
Sofrerá de anemia.
Em que todo teto
Se intimidará com a tirania
E todos se resignarão.
240
O movimento das palavras
Um dedo de prosa
Um dedo de prosa
Neste verso de folha
Mostra o reverso da vida
De alguém que insiste em sonhar.
O verso,
A rosa,
O espinho,
O reverso,
Tudo,
Neste dedo de prosa.
241
Megarampa, 2009, São Paulo.
P o e s i a Tr a d u z i d a
Safo
243
Tradução de Helena de Lucas
35
Ἄστερες μὲν ἀμφὶ κάλαν σελάνναν
ἂψ ἀπυκρύπτοισι φάεννον εἶδος,
ὄπποτα πλήθοισα μάλιστα λάμπῃ
γᾶν...
ἀργυρία
51
οὐκ οἶδ› ὄττι θέω· δίχα μοι τὰ νοήμματα
244
Safo
35
Os astros em torno de tão formosa Lua
voltam a esconder seus vultos luminosos
quando cheia desponta sobre toda a terra
51
não sei o que fazer: duas ideias me dividem
245
Tradução de Helena de Lucas
52
ψαύην δ› οὐ δοκίμωμ› ὀράνω †δυσπαχέα†
53
βροδοπάχεες ἄγναι Χάριτες δεῦτε Δίος κόραι
94
Δέδυκε μὲν ἀ σελάννα
καὶ Πληίαδες· μέσαι δὲ
νύκτες, παρὰ δ᾽ ἔρχετ᾽ ὤρα·
ἔγω δὲ μόνα κατεύδω.
246
Safo
52
já não presumo de tocar o céu
53
ó venerandas, braquiróseas, Cárites, vinde, filhas de Zeus
94
A Lua declinou
e as Plêiades fugiram.
Avança a madrugada:
Eu me deito sozinha.
247
Tradução de Helena de Lucas
134
ζὰ ... ἐλεξάμαν ὄναρ Κυπρογενηα
136
ἦρος ἄγγελος ἱμεροφωνος ἀηδών
248
Safo
134
falei em sonho com Afrodite
136
mensageiro da primavera, doce voz do rouxinol
249
Pólo Aquático na
Chapada dos Veadeiros, 2010,
Alto Paraíso de Goiás.
P o e s i a Tr a d u z i d a
Álcman
251
Tradução de Helena de Lucas
127
128
136
252
Álcman
127
Eu me inclino aos teus joelhos
128
Sou tomado pelo mal, árido demônio
136
Trazia um colar de ouro,
de pétalas trançado e crisântemos leves
253
Tradução de Helena de Lucas
137
140
146
254
Álcman
137
Quantas jovens entre nós
Em louvores àquele que toca
a cítara
140
Conheço o canto de todos os
Pássaros
146
Com o aulos tocou uma frígia melodia,
O Cervesion
255
Tradução de Helena de Lucas
162
175
256
Álcman
162
Rifeus, montes floridos de bosques
coração da noite negra
175
Pode-se legar a memória do presente
257
Ver-o-Peso,
2011, Belém.
P o e s i a Tr a d u z i d a
Estesícoro
259
Tradução de Helena de Lucas
178
200
211
260
Estesícoro
178
Flogeu e Arpago, céleres filhos de Podarge
200
dele me apiedei, que aos reis
a água aduzia, a filha de Zeus
211
na primavera
quando passam as andorinhas
261
Tradução de Helena de Lucas
232
240
243
244
262
Estesícoro
232
... tanto
o canto, os jogos, a dança dos coros ama Apolo,
mas Hades granjeia morte e tristeza
240
Vem, afinal Calíope melífona
243
lançavam dardos ferozes
244
sem proveito e sem razão prantear os mortos
263
Nova Friburgo após fortes
chuvas, 2011, Rio de Janeiro.
Memória Futura
A invenção da
Ilha da Madeira
Ody lo C o sta , Fi l ho Quarto ocupante
da Cadeira 15
na Academia
Brasileira de
Letras.
265
Odylo Costa, Filho
266
A invenção da Ilha da Madeira
267
Odylo Costa, Filho
pensamento naquele recanto onde não riscava a garra do tigre nem assustava o
assobio da serpente. Mas esperou que Pedro falasse.
– Senhor, deixa que os homens cheguem à minha ilha. O que resta do
Paraíso terreal ali resta.
O Senhor nem chegou a um sorriso mal entreaberto:
– Mas que homem merece em vida o Paraíso?...
E Pedro, vendo-o agradado, escondeu os ressentimentos no coração, e
disse:
– Nosso Senhor, Tu és Deus, e a Ti bastam os Tronos, as Dominações e
as Potestades. Eu, porém, Tu me conheceste homem, e penso nos barcos de
pesca...
Irou-se um instante o Senhor:
– E acaso, quando me conheceste, não foi como homem, e até não chegaste
a negar que como homem, já não como Deus, me conhecias?
Mas logo, olhando nos olhos desmanchados de Pedro, aliviou-lhe a aflição:
– Pedro, Pedro, que não tens cabeça. Não há leões nem ursos, mas também
não há o que eles comam. Não há lobos, a não ser os do mar, pobres focas que
mal bastam para saciar num dia a fome de Londres.
Mas Pedro não era homem de carnes terrestres:
– Senhor, Tu és sempre Deus, embora tivesses sido homem. Esqueces que
fui pescador? Moram ali muitos peixes, não longe passam cachalotes, atuns
convivem com o negro peixe-espada, de rasgantes dentes; e há imensas madei-
ras para barcos...
Sorriu o Senhor àquela teimosia, e dispôs-se a levar adiante a conversa.
– Sabes, Pedro, quanto o homem é medroso e deslembrado do dia de ama-
nhã. A primeira coisa que há de fazer é incendiar a floresta...
Mas Pedro:
– Não o fará por mal, Senhor, mas para plantar com os calos da mão e o
suor do rosto. E sete anos que dure o fogo, não foram sete e mais sete os que
Jacob esperou? E onde antes havia madeira para casas altas e navios poderosos,
haverá lavouras e searas...
268
A invenção da Ilha da Madeira
Quis o Senhor, que tem nas mãos o passado, o presente e o futuro, ver até
onde ia o amor de Pedro pelos homens.
– Pedro, Pedro, dura cabeça de Pedro, esqueces quanto é tua ilha feita de
abismos e pedras? Sua planície fica no alto, e é um paul; suas águas se despe-
nham arrancando toda a vida por onde passam; e seus vales são fundos como
a cratera dos vulcões mortos... Abismos e pedras!
– Pois o homem saberá plantar uvas que deem um vinho tão generoso
que viajará pelo mundo e de torna-viagem, em dois séculos e avante, estará
cada vez mais vivo, tão perfumado que rainhas pingarão algumas gotas nas
mãos antes de as darem a beijar, tão preferido pelos poderosos que prínci-
pes nele se afogarão... Um vinho para pobres e para reis, capaz de despertar
o apetite dos fracos e de confortar o coração dos fortes... E bem sabes,
Senhor, que no clima da minha ilha o homem poderá plantar frutas de toda
a Terra, e entre elas algumas de polpa tão macia e branca que serviriam a
teus Santos de melhor alimento que o pão levado pelo corvo ao eremita no
deserto – tão tenra é a sua carne que não há pecado em prová-la e nutrir-se
com ela é permanecer em jejum... Onde antes se alteavam as copas da mata
primeva, das canas correrá mel; e os senhores cristãos serão tão ricos que em
açúcar modelarão santos do tamanho de homens para mandar a Teu vigário
na Terra dos homens. E se o açúcar transportarão em caixas de madeira,
mais simples e belas do que mesas de amassar pão, as frutas carregarão em
cestos de vime, de formas imprevistas, leves e, entretanto, sólidas; e na terra
verde haverá manchas de ouro do vime, mas, sobretudo, cor desdobrada
em cor e flor, formas estranhas e, entretanto, perfeitas, e cores como nunca
sonhou a própria visão dos teus profetas e videntes, nem o próprio João em
Patmos quando imaginou, no fim dos tempos, o Jardim das Delícias, flores
de nunca acabar como em dias de nunca mais...
De novo voltou o Senhor a Sorrir, tentando Pedro na sua Esperança:
– Mas que terra, e que frutos, e que flores, Pedro, se, queimada a floresta,
apenas restará a vertigem e a rocha, a cratera e a águia?
Teimou Pedro mais uma vez:
269
Odylo Costa, Filho
– O homem que para lá deixares ir, Senhor, será tão sóbrio que com
um pedaço de broa e um gole de água se sustente. E – com Vosso perdão
e consentimento, Senhor – criará ele próprio o chão em que plante, como
no dia em que a Luz se fez. Pois nas costas carregará a pedra, com a pedra
fará o muro; nas costas carregará a terra, com a terra encherá o côncavo;
e onde antes era granito, haverá o xadrez dos poios, a terra desdobrada em
degraus e tabuleiros, arrimados em muros de pedra sobre pedra; e para
que o poio receba água, o homem, domando-a, lhe abrirá caminho atra-
vés das levadas: pois se a água desce, o homem sobe; e onde não puder
chegar abrindo veredas e trilhas, mal firmando um pé atrás de outro na
montanha, irá por mar até à falésia e nela mesma refará também o gesto
supremo de criar, e ainda ali, nas reentrâncias do despenhadeiro abrupto,
criará chão para plantar...
Refloriu o sorriso do Senhor:
– Dura cabeça de Pedro, onde poderá o homem, depois de escalar a mon-
tanha e vencer a água, de juntar o barro de que um dia foi feito e nele afundar
raízes, entre vinhas e vilas, pôr a pastar os rebanhos, de que dependerá para a
lã e para o leite, a carne e o couro, o adubo para a terra recém-nada e o chifre
para as buzinas do mar?
– Senhor, ele criará vaquinhas mansas, em casas cobertas de palha, encos-
tadas nas ladeiras; e haverá quem lamente seu destino, pois delas somente
sairão no dia de festa da própria matança, mas haverá quem compreenda
quanta afeição cada casal guarda ao quieto bicho que assim se junta à famí-
lia, e é como se da família fizesse parte, por mãos humanas servido de água
e de ervas, casa e sombra, sol e abrigo. E vistas as coisas por esse lado, já
não é seu destino o pior do mundo, não de prisão perpétua, mas quase de
fraternidade...
– Dura é a vida que pretendes para o homem nesse paraíso, Pedro. Ele terá
de plantar e suar, de comer um pedaço de broa e beber um gole de água, e de
subir a montanha com as costas carregadas de pedra, e de terra, e de erva, e
de estrume; e não lhe ameigará a pena, como ao Senhor Deus na criação do
270
A invenção da Ilha da Madeira
271
Odylo Costa, Filho
Ora se deu que nesse momento um cheiro suave anunciava que perto vinha
Nossa Senhora da Conceição, que ouvira o fim da conversa, vira a mangação
de seu Filho, o amuo de Pedro; e entre santos e santos de sua corte logo se
destacavam São Gonçalo de Amarante e Santo Antônio de Lisboa, esses dois
mui casamenteiros e conhecidos em confissão de mulher. E mudamente am-
bos fitaram a Senhora, como se, a ter alguém de falar, fosse ela, posto aquela
palavra de “portugueses” a atraíra; e já não se tratava mais dos homens, e
sim das mulheres, das que a invocavam em oratórios ou em frente do mar, e
até ao mesmo tempo a chamavam de “minha” e de “nossa”, “Minha Nossa
Senhora”.
E foi a Senhora que disse, com autoridade severa, porém doce:
– Pois irão, sim, as portuguesas. E não haverá companheiras mais fortes e
firmes, labutadoras e fiéis. Ajudarão a carregar o vinho em odres de pele de
cabra; e a matar o porco; e a destripar o peixe; e a fazer os cestos; e acorda-
rão noite alta para guiar, quando lhes couber a vez, a água das levadas pelas
sementes do poio; e com as mesmas mãos calejadas, ao sol frio da montanha,
tecerão rendas mais leves que o próprio luar; e no linho macio ou na grosseira
estopa, saberão bordar desenhos nítidos como asas; e inventarão ao mesmo
tempo, com graça de menina e desejo de moça, uma roda de bonecos que can-
ta em música, narrando em som e forma a sombra e as cores das saias e calças
que sobem juntas a montanha e juntas partilham a água e o susto, o suor e a
morte, o riso e o ninho. E quando estiverem cansadas, exaustas até cair nas
maciezas pesadas da antemanhã, depois de dançar sem parar toda a noite, em
redor do “brinquinho”, nas pesadas botas de borracha, ainda terão um riso, e
saberão tirar do encontro dos peitos uma rosa para ofertar ao companheiro...
Curvou Jesus a cabeça, e disse:
– Faça-se. E darei o que não pediste, Pedro, que na madeira dos barcos
descansavas a cabeça, e tudo o que viste de mais belo foi o lago e o mar alto,
antes da harmonia das esferas. Juntarei à vertigem do abismo a alegria da pai-
sagem e o balouço da rede, e agarrada no sonho dos olhos a alma descansará
das fadigas do corpo.
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A invenção da Ilha da Madeira
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Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.
Sede da Academia Brasileira de Letras,
Av. Presidente Wilson, 203
Castelo – Rio de Janeiro – RJ
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III
(1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis.
Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição
realizou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.