Art.9.A Lei e o Crime de Tráfico de Drogas
Art.9.A Lei e o Crime de Tráfico de Drogas
Art.9.A Lei e o Crime de Tráfico de Drogas
SUMÁRIO: 1. O Direito penal, a Lei e sua razão de ser; 2. Legislação penal brasileira e o
crime de tráfico de drogas; 2.1. A discussão sobre a constitucionalidade do regime
integral fechado; 2.2. A Lei 9.455/97 (Lei de Tortura); 2.3. A Lei 9.714/98 (Lei de
Penas Alternativas); 2.4. O Projeto de Lei no 1.873, de 1991 (no 105/96 no Senado
Federal), que deu origem a Lei 10.409/02, 2.4.1. Sobre a pena, 2.4.2. Abolitio criminis,
2.4.3. O verbo “traficar” como modalidade típica; 2.5. O Projeto de Lei n.º 6.108/02 e o
substitutivo 115/02; 2.6. A proposta do Ministério Público de São Paulo; 3. Ligeiras
reflexões; 4. Conclusão.
1
ANTOLISEI, Francesco. Manual de derecho penal. Bogotá – Colômbia: Temis, 1988, p. 1.
2
Ob., cit., p. 1.
3
MAURACH, Reinhart, ZIPF, Heinz. Derecho penal, Parte general, trad. da 7ª edição alemã por Jorge
Bofill Genzsch y Enrique Aimone Gibson, Buenos Aires: Astrea, vol. 1, 1994, p. 4.
O Direito penal se concebe como resposta à criminalidade e ao delito, na
afirmação segura de HASSEMER e MUÑOZ CONDE.4
Conforme LUIS JIMÉNES DE ASÚA, “la única fuente productora del Derecho
penal es la ley. Tomada ésta en su sentido formal y más solemne, es la manifestación de
la voluntad colectiva expresada mediante los órganos constitucionales, en la que se
definen los delitos y se estabelecen las sanciones”.5
FEUERBACH dizia que “ley penal (lex poenalis) en sentido amplio, abarca toda
ley que se refiere al crimen y a su punición. En sentido estricto es la categórica
declaración de la necesidad de un mal significativo en el caso de una determinada lesión
jurídica”.6
WESSELS ensinou que “segundo a experiência da história da humanidade, a
justificação para a existência do Direito Penal resulta já de sua indiscutível
necessidade para uma proveitosa vida coletiva”.7 E arrematou: “A tarefa do Direito
Penal consiste em proteger os valores elementares da vida comunitária no âmbito da
ordem social e garantir a manutenção da paz jurídica. Como ordenação protetiva e
pacificadora serve o Direito Penal à proteção dos bens jurídicos e à manutenção da paz
jurídica”.8
Inclusive em razão do modelo democrático representativo que adotamos, é
incontroverso entre nós que a Lei deve exprimir a vontade geral, e evidentemente tal
conclusão não se modifica em se tratando de Direito Penal.
Não nos parece, todavia, que a legislação recente tem pautado pela vontade
geral, que partindo do conhecimento empírico reclama, não é de agora, punições mais
severas ao crime de tráfico de entorpecentes.
Passadas quase três décadas, a realidade de hoje não é a mesma que se
constatava quando do advento da Lei 6.368/76.
Nos dias atuais, em que cerca de 70% (setenta por cento) da criminalidade está
ligada direta ou indiretamente com o tráfico de drogas (também em decorrência do
consumo, da dependência etc), a punição do comércio maléfico necessariamente deve
ser agravada, e de forma exemplar.
Não é essa, entretanto, a tendência que constatamos, conforme passaremos a
apontar em uma rápida análise a algumas leis e projetos ligados ao tema, ainda que
reflexamente, elaboradas e propostas no passado recente.
12
MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal Anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 278.
13
No mesmo sentido: STF, HC nº 76.371, j. em 25.03.98; STF, HC nº 76.543-SP, in DJU de 17.04.98,
Seção I, p. 6; STF, HC nº 77.023-5/SP, 2ª Turma, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 12.05.98, m.v. DJU de
14.08.98, p. 6; STF, HC n.º 77.562-3-MS, 2ª Turma, rel., Min. Maurício Corrêa, j. em 09.02.99, DJU de
09.04.99, RT 766/535; STJ, RHC n.º 7.603-PI, 5ª Turma, rel. Min. Félix Fischer, DJU de 13.10.98;
TJSP, RvCr n.º 246.023-3/0, 1º Grupo de Câmaras, rel. Des. Egydio de Carvalho, j. em 08.03.99, v.u., RT
764/545. Cf. MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal Anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p.
279.
seja substituída por restritiva de direitos” (TJMG, Ap. n.º 148.427-8, 1ª CCrim., j. em
29.6.99, v.u.).14
Outra vez prevaleceu a tese mais rígida e adequada, no sentido de que “a lei
9.714/98, que permite a substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de
direito, visa, de forma explícita, a atingir os denominados crimes de menor repercussão,
portanto, a toda evidência, afigura-se total contra-senso fazê-la incidir em tráfico de
entorpecentes, crime reconhecido como hediondo e cuja pena deve ser cumprida
integralmente no regime fechado” (TJSP, Ap. n.º 258.553-3/1, 1ª CCrim.
Extraordinária, j. em 03.12.98, v.u.).15
Adotou-se majoritariamente o entendimento no sentido de que “a nova redação
do art. 44, notadamente no inciso III, demonstra que este dispositivo não pode ser
aplicado a casos de tráfico ilícito de entorpecentes. Preceitua ele que somente haverá a
possibilidade de concessão da substituição caso a culpabilidade, os antecedentes, a
conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as
circunstâncias indicarem ser essa substituição suficiente. Ao dispor desta forma, fica
patente que o legislador impôs ao Juiz a análise da suficiência da substituição da pena. É
impostergável que seja apta para satisfazer a necessidade de repressão estatal” (TJSP,
Ap. n.º 264.454-3/9, 1ª Câm., j. em 18.1.99).
Não resta dúvida de que, mais uma vez o legislador faltou com o cuidado
esperado e acabou por beneficiar traficantes.
2.4. O Projeto de Lei no 1.873, de 1991 (no 105/96 no Senado Federal), que
deu origem a Lei 10.409/02
14
MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal Anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 245.
15
MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal Anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 244.
16
Damásio E. de Jesus, em seu artigo intitulado: Nova Lei Antitóxicos (Lei 10.409/02) – Mais confusão
Legislativa, disponível em: <www.damasio.com.br/novo/html/ frame_artigos.htm>, expôs entender que a
Lei entrou em vigor em 27 de fevereiro de 2002. Do mesmo entendimento comunga Renato de Oliveira
Furtado, conforme escreveu em seu artigo: Nova Lei de Tóxicos – anotações ao art. 38 e parágrafos,
disponível em: http://www.ibccrim.org.br, 22.02.2002. Jorge Vicente Silva comunga do mesmo
pensamento nosso, conforme anotou em sua obra: Tóxicos, 2ª ed., Curitiba: Juruá, 2002, p. 13.
O artigo 14 do citado Projeto acabou vetado pelo Exmo. Presidente da
República, como de resto todo o Capítulo III em que se encontrava, que tratava “dos
crimes”.
Não fosse o veto, no tema em testilha, é evidente que a Lei não representaria um
reflexo da consciência jurídica coletiva.
17
Razões do veto Presidencial: “Em face da permanência em vigor da Lei n o 6.368/76, assim como de
avanços legislativos ocorridos durante o período em que tramitava o projeto, o art. 3 o corresponderia a um
retrocesso em relação aos esforços empregados no aperfeiçoamento da regulamentação da matéria. É
contrário, portanto, ao interesse público que a definição de substâncias entorpecentes, psicotrópicas, que
determinem dependência física ou psíquica, e afins, sofra restrições pela interpretação da lei. A expressão
´para os fins desta Lei´ é, portanto, potencialmente lesiva à modernização e à complexidade da legislação
penal brasileira”.
18
A definição encontra-se em “Portaria”, e não em “Lei”.
2.4.3. O verbo “traficar” como modalidade típica
A redação do art. 14 do Projeto que deu origem a Lei 10.409/02 buscou ampliar
os verbos de imputação penal contidos no vigente art. 12 da Lei 6.368/76.
Foram acrescentados os verbos “financiar” e “traficar ilicitamente”.
Grave problema decorreria, não fosse vetado o tipo em questão.
Com efeito, uma vez vigente a figura típica “traficar ilicitamente”, o apego à
literalidade da Lei levaria, por certo, inúmeros juristas à defesa da tese plausível no
sentido de que só se admitiria o cumprimento de pena no regime integralmente fechado,
como decorrência do disposto no art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, quando a condenação
adviesse exclusivamente do reconhecimento de tal modalidade; da prática e incidência
de tal verbo (traficar), excluindo do regime integral fechado todas as demais
condenações impostas pela prática dos demais verbos contidos no dispositivo em
comento, já que o caput do art. 2º da Lei 8.072/90 restringe suas vedações e graves
conseqüências decorrentes de seus incisos e parágrafos às modalidades criminosas que
elenca, quais sejam: crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins e o terrorismo.
É certo que as conseqüências seriam extremamente danosas, inclusive em razão
do efeito pretérito de tal dispositivo, se sancionado, já que vigente o princípio da
retroatividade da lei penal mais benéfica, segundo o qual, ocorrendo alteração da lei in
melius, ela sempre retroagirá, e a lei impõe ao juiz, quando são diversas as leis do tempo
em que foi cometido o delito e o do julgamento, aplicar a que contém disposições mais
favoráveis ao acusado.20
As razões do veto foram as seguintes: “Quanto ao artigo 14 do projeto, o
primeiro do capítulo em comento, o tipo em questão já é contemplado pelo art. 12 da
Lei no 6.368/76, com a mesma cominação de pena. No projeto, todavia, dois verbos
somaram-se aos verbos do tipo vigente: ‘financiar’ e ‘traficar ilicitamente’. Conquanto
representassem, em tese, avanços legislativos, contêm o risco inadmissível, ainda que
remoto, de provocar profunda instabilidade no ordenamento jurídico. Veicula-se tese no
meio jurídico pela qual a redação proposta pelo projeto no art. 14 promoveria uma
‘evasão de traficantes das prisões’. Explique-se. O verbo ‘traficar’ acrescentado pelo
projeto, e que não aparece na lei vigente, poderia concentrar sobre si, em caráter
exclusivo, a aplicação da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990 (Crimes Hediondos), que
impõe o cumprimento integral em regime fechado da pena para o crime de tráfico ilícito
de entorpecentes e drogas afins. Em decorrência disso, apenados condenados por
decisão judicial que contenha referência expressa a verbos como ‘produzir’, ‘ter em
depósito’, por exemplo, não estariam submetidos à norma especial sobre o regime.
19
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado, 2ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1958, vol. II, p.
72.
20
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado, 2ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1958, vol. II, p.
74.
Hediondo seria, por essa interpretação, apenas o verbo novo, o ‘traficar’. Assim, por
causa do princípio da irretroatividade da lei penal mais grave, todos indivíduos
condenados e processados pelo tipo do art.12 da Lei n o 6.368/76, poderiam estar,
automaticamente, descobertos pela Lei no 8.072/90”.
Arrematou o veto Presidencial: “Conquanto seja tese de duvidosa plausibilidade,
divulgada ‘ad terrorem’, não é do interesse público que se corra risco algum a respeito
do tema”.
Notadamente em matéria tão preocupante, é de todo lamentável a “falta de
cuidado” com que se houve o Poder Legislativo, que atua orientado juridicamente, não
sendo demais salientar que o processo legislativo pressupõe, inclusive, a passagem do
Projeto pelas diversas Comissões, dentre as quais a de Constituição e Justiça, além dos
presumíveis debates acalorados em torno das propostas contidas nos dispositivos etc., e
a tramitação do Projeto transcorreu por mais de uma década.
21
Subtração de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
22
Publicada no DOU de 26 de dezembro de 1996 e retificada no DOU de 15 de janeiro de 1997.
Estudos elaborados pelo Ministério Público Paulista culminaram com a
elaboração de uma proposta de reformas da Lei de Entorpecentes (Lei n.º 10.409/02),
estabelecendo para o crime de tráfico a pena de reclusão, de 04 (quatro) a 15 (quinze)
anos, e multa de 60 (sessenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.
A justificativa apresentada é a seguinte: “adequar a gravidade do delito à pena
mínima de outro tipo penal (roubo), também de grande incidência nas grandes cidades,
buscando eqüidade do sistema punitivo, bem como tendendo ao acompanhamento
jurídico atual no sentido de atenuar a situação penal do usuário, mas com o conseqüente
agravamento da situação do traficante”23.
3. Ligeiras reflexões
4. Conclusão
Conforme a lição de BECCARIA 24: “O interesse geral não se funda apenas em que
sejam praticados poucos crimes, porém ainda que os crimes mais prejudiciais à
sociedade sejam os menos comuns. Os meios de que se utiliza a legislação para obstar
os crimes devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao
23
Caderno informativo do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais, setembro
de 2002, p. 4.
24
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães, São Paulo: Humus,
1983, p. 61.
bem público e pode tornar-se mais freqüente. Deve, portanto, haver proporção entre os
crimes e os castigos”.
No direito penal brasileiro, além da desproporção punitiva existente entre o mal
social produzido direta e indiretamente pelo tráfico de entorpecentes e drogas afins, não
se cogitou no passado recente, em termos legislativos, do necessário aumento
quantitativo das penas. Não se acenou, com firmeza, para o recrudescimento penal.
Não bastasse, as válvulas geradoras de discussões que soam benéficas aos
traficantes foram constantes.
Do conjunto, resulta evidente a necessidade de se rever tais práticas legislativas,
para que, em homenagem à democracia representativa e ao verdadeiro espírito e
fundamento da Lei seja possível, um dia, impor penas mais severas aos traficantes.
Resta aguardar.