Art.9.A Lei e o Crime de Tráfico de Drogas

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A LEI E O CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS

RENATO FLÁVIO MARCÃO


Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Mestre em Direito Penal
Especialista em Direito Constitucional.
Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal
Coordenador Cultural da Escola Superior
do Ministério Público do Estado de São Paulo –
Núcleo de São José do Rio Preto-SP.
Sócio-fundador da AREJ – Academia
Riopretense de Estudos Jurídicos e Coordenador
do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia.
Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP)
Autor do livro: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001)

SUMÁRIO: 1. O Direito penal, a Lei e sua razão de ser; 2. Legislação penal brasileira e o
crime de tráfico de drogas; 2.1. A discussão sobre a constitucionalidade do regime
integral fechado; 2.2. A Lei 9.455/97 (Lei de Tortura); 2.3. A Lei 9.714/98 (Lei de
Penas Alternativas); 2.4. O Projeto de Lei no 1.873, de 1991 (no 105/96 no Senado
Federal), que deu origem a Lei 10.409/02, 2.4.1. Sobre a pena, 2.4.2. Abolitio criminis,
2.4.3. O verbo “traficar” como modalidade típica; 2.5. O Projeto de Lei n.º 6.108/02 e o
substitutivo 115/02; 2.6. A proposta do Ministério Público de São Paulo; 3. Ligeiras
reflexões; 4. Conclusão.

1. O Direito penal, a Lei e sua razão de ser

O Direito Penal, doutrinou ANTOLISEI, é uma parte do ordenamento jurídico do


Estado; se caracteriza pela natureza das conseqüências que se seguem à violação de suas
prescrições: a pena, e daí sua denominação.1 Dizia o Mestre: “Es el conjunto de
preceptos cuya inobservancia tiene la consecuencia jurídica de infligir una pena al autor
del ilícito”.2
Na conceituação de MAURACH e ZIPF “el derecho penal es aquel conjunto de
normas jurídicas que une ciertas y determinadas consecuencias jurídicas, en su mayoría
reservadas a esta rama del derecho, a una conducta humana determinada, cual es el
delito”.3

1
ANTOLISEI, Francesco. Manual de derecho penal. Bogotá – Colômbia: Temis, 1988, p. 1.
2
Ob., cit., p. 1.
3
MAURACH, Reinhart, ZIPF, Heinz. Derecho penal, Parte general, trad. da 7ª edição alemã por Jorge
Bofill Genzsch y Enrique Aimone Gibson, Buenos Aires: Astrea, vol. 1, 1994, p. 4.
O Direito penal se concebe como resposta à criminalidade e ao delito, na
afirmação segura de HASSEMER e MUÑOZ CONDE.4
Conforme LUIS JIMÉNES DE ASÚA, “la única fuente productora del Derecho
penal es la ley. Tomada ésta en su sentido formal y más solemne, es la manifestación de
la voluntad colectiva expresada mediante los órganos constitucionales, en la que se
definen los delitos y se estabelecen las sanciones”.5
FEUERBACH dizia que “ley penal (lex poenalis) en sentido amplio, abarca toda
ley que se refiere al crimen y a su punición. En sentido estricto es la categórica
declaración de la necesidad de un mal significativo en el caso de una determinada lesión
jurídica”.6
WESSELS ensinou que “segundo a experiência da história da humanidade, a
justificação para a existência do Direito Penal resulta já de sua indiscutível
necessidade para uma proveitosa vida coletiva”.7 E arrematou: “A tarefa do Direito
Penal consiste em proteger os valores elementares da vida comunitária no âmbito da
ordem social e garantir a manutenção da paz jurídica. Como ordenação protetiva e
pacificadora serve o Direito Penal à proteção dos bens jurídicos e à manutenção da paz
jurídica”.8
Inclusive em razão do modelo democrático representativo que adotamos, é
incontroverso entre nós que a Lei deve exprimir a vontade geral, e evidentemente tal
conclusão não se modifica em se tratando de Direito Penal.
Não nos parece, todavia, que a legislação recente tem pautado pela vontade
geral, que partindo do conhecimento empírico reclama, não é de agora, punições mais
severas ao crime de tráfico de entorpecentes.
Passadas quase três décadas, a realidade de hoje não é a mesma que se
constatava quando do advento da Lei 6.368/76.
Nos dias atuais, em que cerca de 70% (setenta por cento) da criminalidade está
ligada direta ou indiretamente com o tráfico de drogas (também em decorrência do
consumo, da dependência etc), a punição do comércio maléfico necessariamente deve
ser agravada, e de forma exemplar.
Não é essa, entretanto, a tendência que constatamos, conforme passaremos a
apontar em uma rápida análise a algumas leis e projetos ligados ao tema, ainda que
reflexamente, elaboradas e propostas no passado recente.

2. Legislação penal brasileira e o crime de tráfico de drogas


4
HASSEMER, Winfried, e MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdución a alCcriminologia y al Derecho
penal. Valencia: Tirant lo blanch, 1989, 37.
5
Principios de Derecho Penal – La ley y el delito. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p. 92.
6
FEUERBACH, Anselm V. Tratado de derecho penal, Buenos Aires: Hammurabi. Trad. de Eugenio R.
Zaffaroni e Irma Hagemeier, 1989, p. 93.
7
WESSELS, Johannes. Direito Penal – Parte geral, tradução do original alemão e notas por Juarez
Tavares, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1976, p. 2-3.
8
WESSELS, Johannes. Idem.
2.1. A discussão sobre a constitucionalidade do regime integral fechado

Vigente o artigo 12 da Lei 6.368/76, o crime de tráfico ilícito de entorpecentes é


punido com reclusão, de 03 (três) a 15 (quinze) anos, e multa.
Trata-se, a teor do disposto no art. 2º, caput, da Lei 8.072/90, de crime
assemelhado a hediondo, e, por conseqüência, a pena privativa de liberdade resultante
de condenação deverá ser cumprida integralmente em regime fechado, conforme
decorre do § 1º do mesmo artigo, o que não afasta a possibilidade de livramento
condicional após o cumprimento de 2/3 (dois terços) da pena, desde que satisfeitos os
demais requisitos, excetuada a hipótese de reincidência específica, a teor do disposto no
inc. V do art. 83 do Código Penal.
É vedada, portanto, a progressão de regime prisional.
Não obstante, existem alguns julgados em que se reconheceu a
inconstitucionalidade da norma que veda a progressão.
Nesse sentido já se decidiu que: “O regime integral fechado colide com o
princípio constitucional da individualização da pena, referido no art. 5º, XLVI, da Carta
Magna” (TJSP, ApCrim. nº 167.338-3/2, 3ª CCrim, j. em 20.03.95, m.v.).9
Também já se deferiu progressão de regime em se tratando de crime hediondo
ou assemelhado “tendo em vista os princípios da humanidade e da individualização da
pena” (TJSP, ApCrim. n.º 151.568-3/0, 3ª Câm., j. em 4.12.95, RT 728/520).10
Saiu vencedora a tese contrária, e “o Supremo Tribunal Federal continua
entendendo pela constitucionalidade do cumprimento integral da pena em regime
fechado, no caso dos crimes hediondos” (STF, HC nº 77.023-5/SP, 2ª Turma, j. em
12.05.98, m.v. DJU de 14.08.98, p. 6). Assim, os condenados pela prática de crime
hediondo ou assemelhados deverão cumprir integralmente a pena em regime fechado
(STJ, RHC n.º 5.345-RN (reg. n.º 96/11497-8), DJU de 27.05.96, p. 17.881).11

2.2. A Lei 9.455/97 (Lei de Tortura)

Superada a questão da (in)constitucionalidade do regime integral fechado,


embora alguns nela ainda insistam, vozes e mais vozes se levantaram no cenário
jurídico e legislativo defendendo a necessidade de progressão de regime em se tratando
de crimes hediondos e assemelhados, pretendendo, pois, a modificação da Lei 8.072/90
para tal abrandamento.
Embora os partidários da tese precitada não tenham alcançado sucesso direto
com a doutrina invocada, nova brecha surgiu no cenário jurídico com a edição da Lei
9.455/97, a denominada “Lei de Tortura”, e com ela decisões foram proferidas no
sentido de que: “A Constituição da República (art. 5º, XLIII) fixou regime comum,
considerando-se inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, a prática de tortura, o
9
MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal Anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 274.
10
No mesmo sentido: JTJ 156/317; RTJ 147/598; RT 737/551.
11
MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal Anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 274-275.
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes
hediondos. A Lei nº 8.072/90 conferiu-lhes a disciplina jurídica, dispondo: 'A pena por
crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado' (art. 2º, §
1º). A Lei nº 9.455/97 quanto ao crime de tortura registra no art. 7º, § 1º: 'O condenado
por crime previsto nesta lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena
em regime fechado.' A Lei nº 9.455/97, quanto a execução, é mais favorável do que a
Lei nº 8.072/90. Afetou, portanto, no particular, a disciplina unitária determinada pela
Carta Política. Aplica-se incondicionalmente. Assim, modificada, no particular, a Lei
dos Crimes Hediondos. Permitida, portanto, quanto a esses delitos a progressão de
regimes” (STJ, REsp. nº 140.617-GO, 6ª Turma., j. em 12.09.97, v.u.).12
Novamente, saiu vencedora a tese não liberalizante, no sentido de que “a pena de
reclusão, em se tratando de crime listado na Lei dos Crimes Hediondos, deve ser
executada em regime fechado. A Lei n.º 9.455/97 não se estende aos demais delitos
previstos na Lei n.º 8.072/90” (STJ, REsp. n.º 195.440-SP, 5ª Turma, DJU n.º 106, de
07.06.99, p. 123).13
Evidente que o legislador deveria estar atento, de forma a não possibilitar,
sequer, tal discussão, e para tanto deveria ter pautado com a esperada e sempre
necessária técnica legislativa, atuado com juridicidade, o que não ocorreu.

2.3. A Lei 9.714/98 (Lei de Penas Alternativas)

Quando se imaginava aquietada a questão e ultrapassadas as investidas


benevolentes com o crime de tráfico de entorpecentes e drogas afins, surge a Lei
9.714/98, a denominada “Lei de Penas Alternativas”, que ampliou a possibilidade de
aplicação de penas restritivas de direitos em substituição às privativas de liberdade não
superiores a 04 (quatro) anos, atendidos os demais requisitos estabelecidos.
Sendo o crime de tráfico punido com 03 (três) anos de reclusão em seu grau
mínimo, foi o que bastou para se instalar nova confusão.
Surgiram diversos acórdãos no sentido de que “a simples alegação de ser o crime
hediondo não obsta a substituição da pena. Se o legislador não fez qualquer restrição
nesse sentido, não cabe ao intérprete fazê-la. Preenchidos os requisitos legais objetivos e
subjetivos, previstos no art. 44 do CP, com as alterações da Lei n.º 9.714/98, nenhum
impedimento existe para que a pena privativa de liberdade, no caso de crime de tráfico,

12
MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal Anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 278.
13
No mesmo sentido: STF, HC nº 76.371, j. em 25.03.98; STF, HC nº 76.543-SP, in DJU de 17.04.98,
Seção I, p. 6; STF, HC nº 77.023-5/SP, 2ª Turma, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 12.05.98, m.v. DJU de
14.08.98, p. 6; STF, HC n.º 77.562-3-MS, 2ª Turma, rel., Min. Maurício Corrêa, j. em 09.02.99, DJU de
09.04.99, RT 766/535; STJ, RHC n.º 7.603-PI, 5ª Turma, rel. Min. Félix Fischer, DJU de 13.10.98;
TJSP, RvCr n.º 246.023-3/0, 1º Grupo de Câmaras, rel. Des. Egydio de Carvalho, j. em 08.03.99, v.u., RT
764/545. Cf. MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal Anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p.
279.
seja substituída por restritiva de direitos” (TJMG, Ap. n.º 148.427-8, 1ª CCrim., j. em
29.6.99, v.u.).14
Outra vez prevaleceu a tese mais rígida e adequada, no sentido de que “a lei
9.714/98, que permite a substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de
direito, visa, de forma explícita, a atingir os denominados crimes de menor repercussão,
portanto, a toda evidência, afigura-se total contra-senso fazê-la incidir em tráfico de
entorpecentes, crime reconhecido como hediondo e cuja pena deve ser cumprida
integralmente no regime fechado” (TJSP, Ap. n.º 258.553-3/1, 1ª CCrim.
Extraordinária, j. em 03.12.98, v.u.).15
Adotou-se majoritariamente o entendimento no sentido de que “a nova redação
do art. 44, notadamente no inciso III, demonstra que este dispositivo não pode ser
aplicado a casos de tráfico ilícito de entorpecentes. Preceitua ele que somente haverá a
possibilidade de concessão da substituição caso a culpabilidade, os antecedentes, a
conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as
circunstâncias indicarem ser essa substituição suficiente. Ao dispor desta forma, fica
patente que o legislador impôs ao Juiz a análise da suficiência da substituição da pena. É
impostergável que seja apta para satisfazer a necessidade de repressão estatal” (TJSP,
Ap. n.º 264.454-3/9, 1ª Câm., j. em 18.1.99).
Não resta dúvida de que, mais uma vez o legislador faltou com o cuidado
esperado e acabou por beneficiar traficantes.

2.4. O Projeto de Lei no 1.873, de 1991 (no 105/96 no Senado Federal), que
deu origem a Lei 10.409/02

2.4.1. Sobre a pena

Após 11 (onze) anos de “estudos” e propondo mudanças hipoteticamente


reclamadas pela sociedade, em 28 de fevereiro de 2002 entrou em vigor a Lei
10.409/0216, sendo que o Projeto n.º 1.873/91, que a ela deu origem, trazia no artigo 14
a regulamentação do crime de tráfico.
Embora a proposta apresentasse algumas mudanças de redação, a pena sugerida
para o crime de tráfico em sua forma fundamental continuou a mesma: reclusão, de 3
(três) a 15 (quinze) anos, e multa.

14
MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal Anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 245.
15
MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal Anotada, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 244.
16
Damásio E. de Jesus, em seu artigo intitulado: Nova Lei Antitóxicos (Lei 10.409/02) – Mais confusão
Legislativa, disponível em: <www.damasio.com.br/novo/html/ frame_artigos.htm>, expôs entender que a
Lei entrou em vigor em 27 de fevereiro de 2002. Do mesmo entendimento comunga Renato de Oliveira
Furtado, conforme escreveu em seu artigo: Nova Lei de Tóxicos – anotações ao art. 38 e parágrafos,
disponível em: http://www.ibccrim.org.br, 22.02.2002. Jorge Vicente Silva comunga do mesmo
pensamento nosso, conforme anotou em sua obra: Tóxicos, 2ª ed., Curitiba: Juruá, 2002, p. 13.
O artigo 14 do citado Projeto acabou vetado pelo Exmo. Presidente da
República, como de resto todo o Capítulo III em que se encontrava, que tratava “dos
crimes”.
Não fosse o veto, no tema em testilha, é evidente que a Lei não representaria um
reflexo da consciência jurídica coletiva.

2.4.2. Abolitio criminis

É certo que graves e inaceitáveis problemas decorreriam da sanção integral ao


Projeto que deu origem a Lei 10.409/02, contudo, nada mais grave do que a inafastável
extinção da punibilidade em relação a todos os processos criminais envolvendo as
figuras típicas relacionadas com produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem
dependência física ou psíquica.
Com efeito, nos precisos termos do art. 3º do Projeto, considerar-se-iam
produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica,
aquelas especificadas em Lei e tratados internacionais firmados pelo Brasil.
Dizia o mencionado dispositivo que acabou vetado 17: “Para os fins desta Lei, são
considerados ilícitos os produtos, as substâncias ou as drogas que causem dependência
física ou psíquica, especificados em lei e tratados internacionais firmados pelo Brasil,
relacionados periodicamente pelo órgão competente do Ministério da Saúde, ouvido o
Ministério da Justiça”.
Ora, não havendo Lei especificadora ao tempo da sanção, como realmente não
existia (e ainda não existe)18, seria inevitável o reconhecimento da extinção da
punibilidade por verificar-se o fenômeno denominado abolitio criminis.
Se sancionado o Projeto integralmente, além de mantida a pena para o crime de
tráfico, todos os processos em andamento seriam fulminados, e enquanto não vigente
Lei especificadora do rol de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem
dependência física ou psíquica, não haveria qualquer possibilidade de prisão, inquérito
ou processo; qualquer imputação de conduta típica prevista na Legislação Antitóxicos
(tráfico, porte etc), cumprindo observar que a lei penal incriminadora não tem efeito
retroativo, provendo sempre para o futuro, como ensinou BENTO DE FARIA19.

17
Razões do veto Presidencial: “Em face da permanência em vigor da Lei n o 6.368/76, assim como de
avanços legislativos ocorridos durante o período em que tramitava o projeto, o art. 3 o corresponderia a um
retrocesso em relação aos esforços empregados no aperfeiçoamento da regulamentação da matéria. É
contrário, portanto, ao interesse público que a definição de substâncias entorpecentes, psicotrópicas, que
determinem dependência física ou psíquica, e afins, sofra restrições pela interpretação da lei. A expressão
´para os fins desta Lei´ é, portanto, potencialmente lesiva à modernização e à complexidade da legislação
penal brasileira”.

18
A definição encontra-se em “Portaria”, e não em “Lei”.
2.4.3. O verbo “traficar” como modalidade típica

A redação do art. 14 do Projeto que deu origem a Lei 10.409/02 buscou ampliar
os verbos de imputação penal contidos no vigente art. 12 da Lei 6.368/76.
Foram acrescentados os verbos “financiar” e “traficar ilicitamente”.
Grave problema decorreria, não fosse vetado o tipo em questão.
Com efeito, uma vez vigente a figura típica “traficar ilicitamente”, o apego à
literalidade da Lei levaria, por certo, inúmeros juristas à defesa da tese plausível no
sentido de que só se admitiria o cumprimento de pena no regime integralmente fechado,
como decorrência do disposto no art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, quando a condenação
adviesse exclusivamente do reconhecimento de tal modalidade; da prática e incidência
de tal verbo (traficar), excluindo do regime integral fechado todas as demais
condenações impostas pela prática dos demais verbos contidos no dispositivo em
comento, já que o caput do art. 2º da Lei 8.072/90 restringe suas vedações e graves
conseqüências decorrentes de seus incisos e parágrafos às modalidades criminosas que
elenca, quais sejam: crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins e o terrorismo.
É certo que as conseqüências seriam extremamente danosas, inclusive em razão
do efeito pretérito de tal dispositivo, se sancionado, já que vigente o princípio da
retroatividade da lei penal mais benéfica, segundo o qual, ocorrendo alteração da lei in
melius, ela sempre retroagirá, e a lei impõe ao juiz, quando são diversas as leis do tempo
em que foi cometido o delito e o do julgamento, aplicar a que contém disposições mais
favoráveis ao acusado.20
As razões do veto foram as seguintes: “Quanto ao artigo 14 do projeto, o
primeiro do capítulo em comento, o tipo em questão já é contemplado pelo art. 12 da
Lei no 6.368/76, com a mesma cominação de pena. No projeto, todavia, dois verbos
somaram-se aos verbos do tipo vigente: ‘financiar’ e ‘traficar ilicitamente’. Conquanto
representassem, em tese, avanços legislativos, contêm o risco inadmissível, ainda que
remoto, de provocar profunda instabilidade no ordenamento jurídico. Veicula-se tese no
meio jurídico pela qual a redação proposta pelo projeto no art. 14 promoveria uma
‘evasão de traficantes das prisões’. Explique-se. O verbo ‘traficar’ acrescentado pelo
projeto, e que não aparece na lei vigente, poderia concentrar sobre si, em caráter
exclusivo, a aplicação da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990 (Crimes Hediondos), que
impõe o cumprimento integral em regime fechado da pena para o crime de tráfico ilícito
de entorpecentes e drogas afins. Em decorrência disso, apenados condenados por
decisão judicial que contenha referência expressa a verbos como ‘produzir’, ‘ter em
depósito’, por exemplo, não estariam submetidos à norma especial sobre o regime.

19
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado, 2ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1958, vol. II, p.
72.
20
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado, 2ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1958, vol. II, p.
74.
Hediondo seria, por essa interpretação, apenas o verbo novo, o ‘traficar’. Assim, por
causa do princípio da irretroatividade da lei penal mais grave, todos indivíduos
condenados e processados pelo tipo do art.12 da Lei n o 6.368/76, poderiam estar,
automaticamente, descobertos pela Lei no 8.072/90”.
Arrematou o veto Presidencial: “Conquanto seja tese de duvidosa plausibilidade,
divulgada ‘ad terrorem’, não é do interesse público que se corra risco algum a respeito
do tema”.
Notadamente em matéria tão preocupante, é de todo lamentável a “falta de
cuidado” com que se houve o Poder Legislativo, que atua orientado juridicamente, não
sendo demais salientar que o processo legislativo pressupõe, inclusive, a passagem do
Projeto pelas diversas Comissões, dentre as quais a de Constituição e Justiça, além dos
presumíveis debates acalorados em torno das propostas contidas nos dispositivos etc., e
a tramitação do Projeto transcorreu por mais de uma década.

2.5. O Projeto de Lei n.º 6.108/02 e o substitutivo 115/02

Logo que a Lei 10.409/02 entrou em vigor o Governo enviou ao Congresso


Nacional o Projeto de Lei 6.108/02, visando a alteração daquela, tamanha a confusão
que a mesma desencadeou, e sem surpresas a redação do art. 14-A passou a cuidar do
crime de tráfico, mantendo a pena originalmente proposta, e que é a mesma desde a
edição da Lei 6.368/76.
Como se vê, está claro que ainda não se atentou aos reclamos sociais e à
necessidade de majoração da reprimenda em se tratando de crime de tráfico ilícito de
entorpecentes. Ao contrário, caminha-se, em parte, na direção oposta.
É incompreensível tal situação, notadamente quando se tem em vista que a
primeira reação do Poder Legislativo brasileiro ante a reiteração de determinados crimes
e do alarma social por eles provocado sempre foi a de apressar-se, e algumas vezes de
forma afoita, em elevar a punição, como ocorreu, por exemplo, com a criação de nova
qualificadora no art. 155 do Código Penal21, com a edição de seu § 5º, e com a redação
do artigo 180 do Código Penal, decorrentes da Lei 9.426, de 24 de dezembro de 1996 22,
visando punir de forma mais severa o furto e a receptação envolvendo veículos
automotores, conforme regulados.

Importa observar, todavia, que no Senado Federal foi aprovado um substitutivo


(PL 115/02) ao Projeto de Lei n.º 6.108/02, criando novas figuras típicas e elevando as
penas do crime de tráfico de entorpecentes para o mínimo de 08 (oito) anos de reclusão.

2.6. A proposta do Ministério Público de São Paulo

21
Subtração de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
22
Publicada no DOU de 26 de dezembro de 1996 e retificada no DOU de 15 de janeiro de 1997.
Estudos elaborados pelo Ministério Público Paulista culminaram com a
elaboração de uma proposta de reformas da Lei de Entorpecentes (Lei n.º 10.409/02),
estabelecendo para o crime de tráfico a pena de reclusão, de 04 (quatro) a 15 (quinze)
anos, e multa de 60 (sessenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.
A justificativa apresentada é a seguinte: “adequar a gravidade do delito à pena
mínima de outro tipo penal (roubo), também de grande incidência nas grandes cidades,
buscando eqüidade do sistema punitivo, bem como tendendo ao acompanhamento
jurídico atual no sentido de atenuar a situação penal do usuário, mas com o conseqüente
agravamento da situação do traficante”23.

3. Ligeiras reflexões

Como se vê, têm sido constantes as investidas e mudanças legislativas


benevolentes com o crime de tráfico de entorpecentes, a permitir, juridicamente,
interpretações contrárias aos interesses de toda a sociedade ordeira, quando o necessário
seria enrijecer o tratamento penal dispensado ao comércio espúrio de substâncias
entorpecentes e drogas afins.
Para agravar a punição em relação ao debatido crime nenhuma mudança
legislativa se fez ao longo de todos estes anos.
De outro vértice, o que se discute; o que se tenta, e o que se tem possibilitado
com as práticas legislativas acima apontadas são interpretações que só beneficiam
traficantes.
Pende agora de tramitação o Projeto de Lei n.º 115/02, aprovado no Senado,
conforme acima anotado, acenando para a majoração da reprimenda do crime de tráfico
em patamar que achamos adequado (pena mínima de oito anos de reclusão).

4. Conclusão

Conforme a lição de BECCARIA 24: “O interesse geral não se funda apenas em que
sejam praticados poucos crimes, porém ainda que os crimes mais prejudiciais à
sociedade sejam os menos comuns. Os meios de que se utiliza a legislação para obstar
os crimes devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao

23
Caderno informativo do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais, setembro
de 2002, p. 4.
24
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães, São Paulo: Humus,
1983, p. 61.
bem público e pode tornar-se mais freqüente. Deve, portanto, haver proporção entre os
crimes e os castigos”.
No direito penal brasileiro, além da desproporção punitiva existente entre o mal
social produzido direta e indiretamente pelo tráfico de entorpecentes e drogas afins, não
se cogitou no passado recente, em termos legislativos, do necessário aumento
quantitativo das penas. Não se acenou, com firmeza, para o recrudescimento penal.
Não bastasse, as válvulas geradoras de discussões que soam benéficas aos
traficantes foram constantes.
Do conjunto, resulta evidente a necessidade de se rever tais práticas legislativas,
para que, em homenagem à democracia representativa e ao verdadeiro espírito e
fundamento da Lei seja possível, um dia, impor penas mais severas aos traficantes.
Resta aguardar.

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