A Imprevisibilidade Da Ação

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Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia

Faculdade Católica de Pouso Alegre

IMPREVISIBILIDADE E IRREVERSIBILIDADE DA AÇÃO

UNPREDICTABILITY AND IRREVERSIBILITY OF ACTION

José João Neves Barbosa Vicente 1


José Reinaldo Felipe Martins Filho 2

RESUMO:
O conceito de ação desenvolvida por Arendt em sua obra A condição humana, é um dos conceitos centrais do
seu pensamento político. A proposta deste texto é discutir esse conceito a partir das suas características
fundamentais, a saber, a imprevisibilidade e a irreversibilidade.
Palavras – chave: Ação; Pluralidade; Política.

ABSTRACT:
The concept of action developed by Arendt in his work The human condition is one of the central concepts of his
political thought. The purpose of this paper is to discuss this concept from its fundamental characteristics,
namely the unpredictability and irreversibility.
Keywords: Action; Plurality; Policy.

Se com Platão houve a estruturação de uma filosofia que pensa a ética a partir da ideia
reguladora de Bem, rumo a qual tanto a reflexão filosófica quanto a vida política tendem a
convergir, graças a Aristóteles a contingência do mundo fora posta como assunto para a ética.
No entanto, se a ética aristotélica representou um avanço em relação ao platonismo, não
tivemos o mesmo cenário ao longo de todo o medievo. O mundo, composto pelas vivências
cotidianas, esteve excluído dos ditames da ética, ao passo que a figura de um Deus Criador,
em relação ao qual definimos nosso estatuto de subjetividade com ens creatum, passou a
ocupar o posto que antes era conferido à ideia do Sumo Bem. Embora este modelo tenha se
sustentado sobretudo no seio do cristianismo, notamos aqui certo distanciamento das fontes
primitivas da experiência cristã, a partir das quais de algum modo Paulo já havia exposto a
fragilidade do controle que temos sobre nossa conduta, ou seja, a imprevisibilidade de nossos
atos: “pois o que faço, muitas vezes, não é o bem que desejo, mas o mal que não quero” (Rm
7,19).

1
Doutorando em Filosofia Pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB).
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professor do Instituto de Filosofia e Teologia
de Goiás (IFITEG)

Volume VII – Número 17 – Ano 2015 – ISSN 1984-9052 135 | P á g i n a


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É nesse sentido que a leitura arendtiana da ação, retornando nalguma medida às fontes
do cristianismo primevo, proporciona-nos uma interessante consideração acerca do caráter
trágico que permeia a atividade humana no mundo. Isso justifica a opção deste trabalho que,
apesar de preliminar, almeja percorrer os principais aspectos da ação apresentados pela autora
de A condição humana, a fim de melhor compreender como se articulam temas como a
contingência, a imprevisibilidade e a irreversibilidade da ação.

1. Ação e pluralidade
As palavras com as quais Arendt inaugura seu discurso sobre a cão possuem um
sentido iluminador:
A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto
de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de
compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e
prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser
humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os
homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com
simples sinais e sons, poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas
(ARENDT, 2007, p. 188).

A pluralidade humana, entendida como a diferença equivalente entre todos os


homens, define o caráter contingente da ação, ou mesmo, a fragilidade dos negócios
humanos, como veremos adiante. Em suma, para Arendt (2007, p. 189), “ser diferente não
equivale a ser outro”, à revelia da alteridade, apresentada como uma das “quatro
características básicas e universais que transcendem todas as qualidades particulares”. É nesse
sentido que encontramos no pensamento heideggeriano uma importante fonte para as
considerações estabelecidas por Arendt em A condição humana. Ambos os autores, Arendt e
Heidegger, retomam o sentido do conceito de ação a partir do pensamento grego, como
archein, ou melhor, como o modo de vida, o modo de se executar determinado ofício ou
atividade – em termos heideggerianos, como o modus de ser do ente que nós mesmos sempre
somos.
Ao que tudo indica, apesar de também tomar como ponto de partida muitas das
análises desenvolvidas pelo filósofo da Cabana, Lévinas acabou percorrendo um caminho
bastante diferente daquele empreendido por sua colega. Sem que nos delonguemos
sobremaneira neste aspecto, vale a pena recordar o fato de que a concepção levinasiana de
ética está fundada no princípio da alteridade, entendido como a constante condição de ser
outrem. Para Lévinas, a alteridade do outro se constitui como o único modo de preservarmos

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a autenticidade de um discurso ético, não totalitário e não totalizante, e isso porque não
reduzido à esfera do próprio:

A relação com Outrem não anula a separação. Não surge no âmbito de uma
totalidade e não a instaura nela Eu e o Outro. [...] A relação entre Mim e o Outro
começa na desigualdade de termos, transcendentes um em relação ao outro, onde a
alteridade não determina o outro formalmente como a alteridade de B em relação a A
que resulta simplesmente da identidade de B, distinta da identidade de A. A
alteridade do Outro, aqui, não resulta da sua identidade, mas constitui-a: O outro é
outrem. (LÉVINAS, 2000, p. 229).

Ao que parece, aqui se pretende um efeito notoriamente inverso à sugestão de uma


ética de apelo universalista, aos moldes do imperativo categórico kantiano: “age de tal
maneira que o princípio de tua ação se transforme numa máxima universal.” A consideração
da alteridade ou, de volta aos termos de Arendt, da diferença ou da pluralidade estabelecida
entre os homens, resgata o peso da contingência, em grande medida determinante nas relações
humanas. A despeito de Kant, não se trata de tornar um conceito particular uma máxima
universal. Como pudemos verificar em outro lugar, estamos diante de dois extremos opostos,
a saber: a pseudo ética dos universais, refletida nos ideais dominantes e avassaladores dos
modelos totalitários cujos exemplos permeiam a história da contemporaneidade, e a
legitimidade de uma ética pensada a partir da ação e, por isso, da fugacidadee da contingência
da vida humana.
Não podemos ignorar as consequências de um pensamento ético construído a partir
das redutoras patentes do ego, do sujeito, do indivíduo, do cálculo ilimitado e da técnica, que,
ao longo dos séculos, custaram um preço por demais oneroso para a humanidade como um
todo. Com boas vindas acolhemos a ousada reforma do imperativo moral kantiano
empreendida por Hans Jonas, mesmo que esta também não resolva definitivamente o
problema de uma ética dos universais consumada a partir dos particulares: “age de maneira tal
que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana
autêntica” (JONAS, 2006, p. 18). Tratar os efeitos da ação como condição de permanência de
uma vida humana autêntica requer balancear valores e contingências e, por isso, considerar a
instabilidade das relações que constituem a vida do homem sobre a Terra.
Ainda em outro aspecto ressaltamos a confluência entre os pensamentos de e
Heidegger: “só o homem, porém, é capaz de exprimir essa diferença e distinguir-se; só ele é
capaz de comunicar a si próprio e não apenas comunicar alguma coisa” (ARENDT, 2007, p.
189). Aqui Arendt parece recorrer à herança de um dos conceitos nucleares para Ser e Tempo,

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qual seja: a noção de homem (dasein) como ente privilegiado. Para Heidegger, somente o
homem é Dasein, mesmo que de modo inautêntico, pois somente este ente possui o privilégio
de colocar a questão sobre o sentido do ser. É, simultaneamente, quem impõe o
questionamento e o primeiro questionado. O homem não apenas compreende sua existência.
Mais que isso: pode expressá-la pela linguagem. Ao falar de si, fala de seu próprio ser,
comunica-o. Quanto a isso, podemos conferir o seguinte fragmento, extraído da introdução de
Ser e Tempo: “esse ente que somos cada vez nós mesmos e que tem, entre outras
possibilidades-de-ser, a possibilidade de ser do perguntar, nós o apreendemos
terminologicamente como Dasein” (HEIDEGGER, 2012, pp. 46-47). A possibilidade de ser
do perguntar é, paradoxalmente, a mesma possibilidade de ser do comunicar-se. Dasein
comunica o ser na medida em que o expressa pela fala, pelo lógos do discurso que tem como
finalidade deixar ver o ser por aquilo que se revela no phainómenon. Para Heidegger, na
mesma esteira do pensamento aristotélico, lógos é apophansis, é revelação.
Dentre as várias passagens nas quais discorre a respeito da função determinante da
linguagem na caracterização do homem, Heidegger é especialmente claro em Carta sobre o
humanismo, 3 texto que enfatiza a centralidade da linguagem como “morada do ser”: “o
homem, porém, não é apenas um ser vivo, pois, ao lado de outras faculdades, também possui
a linguagem. Ao contrário, a linguagem é a casa do ser; nela morando, o homem ek-siste
enquanto pertence à verdade do ser, protegendo-a” (HEIDEGGER, 2005, p. 38 – grifos
nossos). Dotado de linguagem, o homem se encarrega da vigilância do ser, ou, para dizer
como Heidegger, torna-se o “pastor do ser” (cf. HEIDEGGER, 2005, p. 34). Deste modo,
“antes de falar, o homem deve novamente escutar o apelo do ser, sob o risco de, dócil a este
apelo, pouco ou raramente ter ainda algo a dizer” (HEIDEGGER, 2005, p. 16). Deixar-ser,
nas infinitas possibilidades da existência, é o mesmo que deixar-se-dizer. E o que se diz na
abertura (Erschlossenheit) da linguagem, no pastoreio do ser, como fiel sentinela da morada
do ser? Diz-se o ser do ente, no ente e pelo ente. Diz-se a diferença entre os homens, para
retomarmos o discurso arendtiano, e “essa distinção singular vem à tona no discurso e na

3
Vários outros fragmentos de Carta sobre o humanismo atestam a centralidade ocupada pela questão da
linguagem nessa obra, note-se, por exemplo: “o esvaziamento da linguagem que grassa, em toda parte e
rapidamente, não corrói apenas a responsabilidade estética e moral em qualquer uso da palavra. Ele provém de
uma ameaça à essência do homem” (HEIDEGGER, 2005, p. 15); “a linguagem recusa-nos ainda a sua essência:
isto é, que ela é a casa da verdade do ser” (HEIDEGGER, 2005, p. 15-16); “a linguagem é o advento iluminador-
velador do próprio ser” (HEIDEGGER, 2005, p. 28).

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ação” (ARENDT, 2007, p. 189). Novamente vale enfatizar: “a vida sem discurso e sem ação
[...] está literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não
é vivida entre os homens” (ARENDT, 2007, p. 189). Aqui encontramos o ponto fulcral da
definição arendtiana de ação, para a qual “agir, no sentido mais geral do termo, significa
tomar iniciativa, iniciar (como o indica a palavra grega archein, ‘começar’ ‘ser o primeiro’ e,
em alguns casos, ‘governar’), imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado
original do termo latino agere)” (ARENDT, 2007, p. 190 – grifos nossos).

2. Ação e novidade
Trata-se de uma novidade. O conceito arendtiano de ação, recuperando a noção grega
de archein, como origem, como início, põe em jogo o aspecto contingente da ação. O novo é
o imprevisível, o incalculável. Noutras palavras, está confiado ao arbítrio do fortuito, da
tragicidade dos acontecimentos. Acerca dessa relação, Arendt é bastante clara e, por isso,
podemos dar-lhe a palavra:

É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser previsto a
partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Este cunho de surpreendente
imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda origem. [...] O novo sempre
acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade
que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre surge
sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se
pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente
improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de
sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. (ARENDT,
2007, p. 190-191 – grifos nossos).

Esta imprevisibilidade do novo aponta para a fragilidade dos negócios humanos. Para
além disso, “o fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o
inesperado” (op. Cit.). Ao contrário das demais formas da victa activa, a determinação da
imprevisibilidade humana não está confiada unicamente ao meio ambiente e circundante, às
catástrofes imprevisíveis da natureza. Nesse caso, o trágico se concentra sobre a ação.
Noutros termos, está enfatizada a capacidade de escolha que, nada obstante, sempre deverá
levar em consideração a dimensão fortuita da vida: aquilo que foge de qualquer possibilidade
de controle. “Não se trata apenas da mera impossibilidade de se prever todas as consequências
lógicas de determinado ato, pois se assim fosse um computador eletrônico poderia prever o
futuro; a imprevisibilidade decorre diretamente da história que, como resultado da ação, se
inicia e se estabelece assim que passa o instante fugaz do ato” (ARENDT, 2007, p. 204).

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3. Imprevisibilidade e irreversibilidade
Daí a importância de se considerar os meios da ação, como Arendt recorda em outro
momento: “visto que o fim da ação humana, distintamente dos produtos finais da fabricação,
nunca pode ser previsto de maneira confiável, os meios utilizados para alcançar os objetivos
políticos são muito frequentemente de maior relevância para o mundo futuro do que os
objetos pretendidos” (ARENDT, 1994, p. 14). Apesar de estarmos conscientes de que por este
fragmento Arendt se refere à violência como uma das expressões da ação, o que nos interessa
aqui é o fato de que “os resultados das ações dos homens estão para além do controle dos
atores” (ARENDT, 1994, p. 14). Trata-se do “irônico lembrete da imprevisibilidade
onipotente” que perpassa toda a esfera da ação.
Outro fato digno de nota e que a essa altura podemos introduzir refere-se ao aspecto
comunitário da ação. Toda a ação está, por sua vez, inserida dentro de um contexto mais
amplo, capaz de provocar reações em cadeia cuja previsibilidade também está fora do alcance
dos sujeitos. Portanto, o que entendemos por ação refere-se a uma atividade livre que se dá
estritamente na esfera pública, na publicidade da palavra, realizada por iguais entre iguais. É
sempre ação em conjunto, mediada pela palavra e pelo discurso. Conforme assevera
Adeodato (1989, p. 11), “toda ação é criação de um fluxo de relações (políticas), não há como
prever a ação; agir é iniciar continuamente relações.” A ação faz com que a história esteja
repleta de eventos e interrupções de processos. Isso representa a iniciativa humana. Cada ação
afirma a singularidade do agente, mas, ao mesmo tempo, reafirma as condições humanas,
sobretudo a natividade e a pluralidade. “Todo ato interrompe o automatismo dos processos
históricos que deixados à sua própria sorte tendem a reproduzir o automatismo da natureza”
(CORREIA, 2006, p. 231). Com a natalidade a ação partilha a novidade radical de ser o
início, deflagrando uma nova série de eventos imprevisíveis. A pluralidade, contida em cada
nascimento, é certamente a pré-condição da vida política, sua conditio sine qua non. Ao
mesmo tempo, reafirmada em cada ato, forja-se como a própria condição de ser da política,
sua conditio per quam (cf. CORREIA, 2006, p. 231). Isso significa que “a ação tanto
depende da pluralidade quanto a afirma, pois, ao agir, o indivíduo confirma sua singularidade
e aparece a outros indivíduos únicos” (CORREIA, 2006, p. 336).
O sentido trágico que evoca do conceito arendtiano de imprevisibilidade da ação
aponta para uma espécie de redenção que só pode ser admitida a partir das capacidades da
ação mesma. Assim, aquele que age é sempre principiante junto a outros principiantes, os

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quais, em suas diferentes iniciativas, terminam por constituir o que Arendt nomeia como “teia
de relações humanas”. Entretanto, como podemos entender a fragilidade que perpassa os
negócios humanos? Diz Arendt:

Pelo fato de que se movimenta sempre entre e em relação a outros seres atuantes, o
autor nunca é simples “agente”, mas também, e ao mesmo tempo, paciente. [...]
Estas consequências são ilimitadas porque a ação, embora possa provir do nada, por
assim dizer, atua sobre um meio no qual toda reação se converte em reação em
cadeia, e todo processo é causa de novos processos. Como a ação atua sobre seres
que também são capazes de agir, a reação, além de ser uma resposta, é sempre uma
nova ação com poder próprio de atingir e afetar os outros. Assim, a ação e a reação
jamais se restringem, entre os homens, a um circulo fechado, e jamais podemos,
com segurança, limitá-la a dois parceiros (ARENDT, 2007, p. 203).

Por este fragmento, vemos introduzido outro conceito basilar para compreendermos a
tragicidade da ação, conforme o pensamento de Hannah Arendt, qual seja: a irreversibilidade.
É no mínimo curioso concebermos o fato de que não possuímos absoluto controle sobre os
efeitos de nossas ações. Ou melhor, admitirmos que não possuímos controle algum sobre os
efeitos dos atos que efetivamos, e isso porque “a ação sempre estabelece relações, e tem
portanto a tendência inerente de violar todos os limites e transpor todas as fronteiras”
(ARENDT, 2007, p. 203). Isso significa que após a deflagração de um ato, não há como
conter as consequências que dele se originam. Não há como medir os seus alcances e se,
acaso, trarão resultados que possam ser considerados benéficos ou maléficos. Não podemos
prever os seus efeitos, imediatos ou a longo prazo. Desse modo, vemos novamente enfatizado
o caráter contingente da ação, o que neste trabalho temos denominado por tragicidade. Ação
aqui é pura exterioridade. Um movimento incontido para afora e para além. Movimento este
cuja origem parte do indivíduo, do sujeito agente, e se intensifica rumo à comunidade dos
sujeitos, exemplificando a fusão entre ação e padecimento: “agir e padecer são como as faces
opostas da mesma moeda, e a história iniciada por uma ação compõe-se de seus feitos e dos
sofrimentos deles decorrentes” (ARENDT, 2007, p. 203).

4. Irreversibilidade, imprevisibilidade e perdão


Perguntamo-nos, portanto: tendo em vista as duas grandes características da ação,
irreversibilidade e imprevisibilidade, o que nos motiva a agir? Porque ainda insistirmos no
exercício de atos em relação aos quais também padecemos? Existiria algum recurso capaz de
neutralizar ou, ao menos, amenizar os efeitos tanto da irreversibilidade, quanto da
imprevisibilidade da ação? A resposta para este questionamento é positiva e descrita por

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Arendt na seção 33 de A condição humana: “A única solução possível para o problema da


irreversibilidade – a impossibilidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem
se pudesse saber o que se fazia – é a faculdade de perdoar” (ARENDT, 2007, p. 248). Do
mesmo modo, “a solução para o problema da imprevisibilidade, da caótica incerteza do
futuro, está contida na faculdade de prometer e cumprir a promessa” (ARENDT, 2007, pp.
248-249). Perdão e promessa são as duas faculdades humanas capazes de combater os limites
impostos pelas condições irreversível e imprevisível da ação.
Aqui certamente encontramos uma forte influência da formação judaica sobre a
maneira pela qual Arendt concebe a política. Os livros que compõem a lei dos judeus – Torá,
também conhecida como Pentateuco – não apenas descrevem a caminhada de fé de um povo,
mas também traçam o perfil político e organizacional de uma sociedade que acabava de se
constituir. Manter fidelidade à promessa divina exigia constante reconciliação. Promessa e
perdão, desse modo, firmavam-se como os dois eixos simbólicos capazes de expressar o
entrelaçamento entre o divino e o humano, em seu pacto de instituição do povo da aliança.
Estes mesmos elementos serviriam de inspiração para Arendt em sua arguição:

Se não fossemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, nossa
capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais
nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas de suas consequências, à
semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para
desfazer o feitiço. Se não nos obrigássemos a cumprir nossas promessas, jamais
seríamos capazes de conservar nossa identidade; seríamos condenados a errar,
desamparados e desnorteados, nas trevas do coração de cada homem, enredados em
suas contradições e equívocos – trevas que só a luz derramada na esfera pública pela
presença dos outros, que confirmam a identidade entre o que promete e o que
cumpre, poderia dissipar (ARENDT, 2007, p. 249).

Ambas estas faculdades dependem da convivência social, ou melhor, da pluralidade:


“na solidão e no isolamento, o perdão e a promessa não chegam a ter realidade: são, no
máximo, um papel que a pessoa encena para si mesma” (ARENDT, 2007, p. 249). Para
Arendt, o alvo desta irrupção rumo à comunidade deve ser, desde o início, todos os sistemas
morais de inspiração platônica, nos quais a maior referência se concentra no indivíduo
isolado, a quem caberia o autocontrole e a justa medida em suas atitudes e escolhas. “Por
outro lado, o código moral inferido das faculdades de perdoar e de prometer baseia-se em
experiências que ninguém jamais pode ter consigo mesmo e que, ao contrário, se baseiam
inteiramente na presença dos outros” (ARENDT, 2007, p. 249). Isso recorda o que já
havíamos mencionado de início, acerca da pluralidade como condição básica para a ação e o
discurso ou, muito além disso, para a vida política de um modo geral. O curioso aqui é que,

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voltando-se para estes mesmos elementos, perdão e promessa, Arendt recorre a outro exemplo
que não aquele da história de Israel, a saber, o de Jesus de Nazaré: “o descobridor do papel do
perdão na esfera dos negócios humanos” (ARENDT, 2007, p. 250).
Se de um lado, muitos dos ensinamentos desse homem-profeta não se limitam aos
ditames de um discurso estritamente religioso – como bem atestam os diferentes episódios
nos quais estava em jogo o embate político entre a nova concepção de liberdade e de justiça
por ele instauradas e a antiga estrutura legalista do judaísmo – por outro, devemos admitir
que, ao longo da história, o peso da religião falou mais alto, restringindo o modelo de Jesus ao
circulo daqueles que aderiam à fé cristã. Para Arendt, talvez o “único e rudimentar vestígio da
percepção de que o perdão é o correlativo necessário aos danos inevitáveis causados pela ação
é encontrado no princípio romano de poupar os vencidos (parcere subjectis) – sábio princípio
que os gregos desconheciam totalmente – ou no direito de comutar a pena de morte,
provavelmente também de origem romana, que é a prerrogativa de quaser todos os chefes de
estado ocidentais” (ARENDT, 2007, p. 251). Para Jesus de Nazaré, o poder de perdoar não
era algo vindo de Deus, como também não exigia uma intervenção divina por meio dos
homens, mas, ao contrário, esforço e iniciativa propriamente humanos. Somente pode perdoar
quem é passível de receber perdão e, portanto, o perdão é um ato que remedia tanto os efeitos
exteriores, quanto interiores da ação: “somente através dessa mútua e constante desobrigação
do que fazem, os homens podem ser livres; somente com a constante disposição de mudar de
ideia e recomeçar, pode-se-lhes confiar tão grande poder quanto o de consistir em algo novo”
(ARENDT, 2007, p. 252).
O perdão é ação, ao contrário da vingança, que pode ser prevista e manipulada.
Perdoar se refere a uma atividade voluntária e imprevisível: “em outras palavras, o perdão é a
única reação que não re-age apenas, mas age de novo e inesperadamente, sem ser
condicionada pelo ato que a provocou e de cujas consequências liberta tanto o que perdoa
quanto o que é perdoado” (ARENDT, 2007, pp. 252-253). Porque comungam como
alternativas possíveis para a mesma ação, segundo Arendt punição e perdão não se opõem um
ao outro. Nos termos da autora, só se pode perdoar aquilo que se pode punir, e vice-versa (cf.
ARENDT, 2007, p. 253).
Isso reforça o que dissemos acima. Exige-se aqui uma relação de equidade. Perdoar a
quem não se pode punir excetua a liberdade de escolha. Não se pode punir o desproporcional,
o desmedido, o além, o divino. Como toda ação, perdoar requer a capacidade de escolher.

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Dispor o “perdoável” na mesma esteira em que o “punível” significa convocar a questão da


igualdade política, legitimamente forjada pelas sociedades democráticas. O que não se pode
punir está além dos limites da ação individual. O divino não é punível nem perdoável, porque
se descobre fora da relação entre humanos. Há, contudo, instituições e forças políticas
elevadas acima das proporções do indivíduo. Os regimes totalitários estão carregados de
exemplos do que significa a anteposição de ideologias sectárias no comando das ações.
Nesses casos não há qualquer possibilidade de reação por parte dos sujeitos, individualmente.
Contudo, quando não se pode haver punição ou perdão, diz Arendt, recordando a passagem
evangélica, “melhor seria se lhe tivessem precipitado ao mar, com uma pedra de moinho atada
ao pescoço” (cf. Mt, 18ss).
Por decorrência, se a capacidade de perdoar sempre fora rejeitada do âmbito do
discurso político, por conta de seu forte apelo religioso, a promessa, pelo contrário, se
afigurou como um recurso muito utilizado ao longo da história: “seja como for, a grande
variedade de teorias do contrato confirma, desde os tempos de Roma, que o poder de
prometer sempre ocupou, ao longo dos séculos, lugar central no pensamento político”
(ARENDT, 2007, p. 255). É preciso, porém, realçar que a imprevisibilidade da ação não é
totalmente eliminada pela promessa. Não se trata de um caminho de mão única, mas, ao
oposto, a bifurcação de um conceito fundamental para a teoria jurídica, desde as comunidades
arcaicas: toda promessa requer cumprimento! Promessa e cumprimento constituem a
faculdade possível para o confronto com a imprevisibilidade da ação. É necessário que a
promessa seja cumprida para que haja efetiva proporção entre a imprevisibilidade e o poder
de prometer. Mas isso em nenhum momento significa abolir o caráter imprevisível da ação.
Toda ação, como archéin, supõe uma novidade que, por definição, não poderá ser mensurada
ou prevista em plenitude. Em suma, eis o ônus da liberdade de agir: “o fato de que o homem
não pode contar consigo mesmo nem ter fé absoluta em si próprio (e as duas coisas são uma
só) é o preço que os seres humanos pagam pela liberdade” (ARENDT, 2007, p. 256). O
constante embate entre os poderes adjacentes a ação e, por consequência, os limites
decorrentes da mesma, sinalizam a faticidade e a contingencia que determinam o terreno da
política e da ética. A manutenção da soberania traz consigo os limites da incapacidade de se
prever o futuro. Agir é sempre uma aposta rumo ao desconhecido.
Mas o que ocorre quando a palavra empenhada não encontra efetivação/cumprimento?
Nesse caso, voltamos à relação entre imprevisibilidade e irreversibilidade. O não

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cumprimento da promessa, restaurando a imprevisibilidade, implica, de igual modo, a


irreversibilidade e, por isso, o apelo pelo perdão ou pela punição. Isso parece vir de encontro
com o que Nietzsche sugere na II dissertação de Genealogia da Moral, quando, a fim de
introduzir o tema da má consciência, desenvolve uma arqueologia da culpa a partir da noção
de dívida atribuída às sociedades primitivas. A ideia de castigo/punição, segundo este autor,
está atrelada ao não cumprimento da palavra empenhada: “durante o mais largo período da
história humana, não se castigou porque se responsabilizava o delinquente por seu ato, ou
seja, não pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigado – e sim como ainda
hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que se desafoga
em quem o causou” (NIETZSCHE, 2009, II, § 4). Mesmo o não cumprimento de uma
promessa significará a efetuação de um novo ato de vontade que, consequentemente,
desencadeará todo um processo de irreversibilidade e imprevisibilidade. Tais propriedades são
o que caracterizam a ação em todas as suas esferas.

Considerações finais
Ao longo de nosso estudo, procuramos demonstrar a constante implicação entre os
aspectos de irreversibilidade e imprevisibilidade da ação, tal como são descritos por Arendt
em A condição humana, bem como o seu papel determinante sobre o modo de concebermos o
discurso ético contemporâneo, para o qual a tragicidade dos atos humanos é um tema de
constante importância. O apelo contra uma ética de pretensões universais – restrita ao âmbito
de um sistema fechado sobre si mesmo, limitado às suas conexões internas e, por isso,
desvencilhado da práxis, da singularidade e, sobretudo, da diferença permanente entre as
situações, os ambientes e os indivíduos (da pluralidade, para dizer com Arendt) – parece ter
ganhado força em nossa época, especialmente a partir de Nietzsche. Como dissemos acima, a
crítica arendtiana aos sistemas morais platônico e kantiano quer indicar uma maior
proximidade com a herança aristotélica de uma ética que considera o elemento trágico na
ação. A teia de “relações humanas” deve sempre supor a dimensão fortuita que perpassa a
convivência social. Nesse sentido, a sabedoria judaica novamente consegue dar o tom do que
pretendemos dizer. É interessante notar as palavras do salmo 143, e o modo como elas
resgatam tanto o caráter finito da existência humana, quanto sua relação com a
irreversibilidade e a imprevisibilidade da ação: “como o sopro de vento é o homem, os seus

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Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
Faculdade Católica de Pouso Alegre

dias são sombra que passa. [...] sua boca só tem falsidade, sua mão jura falso e engana” (Sl
143/144).
Dar falso testemunho de verdade, mentir ou enganar, são atitudes que se opõem à
promessa. Ao contrario, corroboram a teoria de uma ação irreversível e, simultaneamente, não
passível de previsão. Conforme salientamos desde o nosso título, encontramos no pensamento
de Hannah Arendt a possibilidade de relacionar o âmbito da ação e o caráter fortuito que a
compõe. Trata-se de uma ambivalência, no sentido literal que este termo evoca, que pode ser
descrita da seguinte maneira: I) nenhuma abordagem das relações humanas, da convivência
social, quer mantenha o foco sobre o indivíduo ou sobre o grupo no qual este está integrado,
jamais poderá prescindir da dimensão trágica que constitui a ação mesma (ação irreversível e
imprevisível); II) por conseguinte, tratar a ação e, por isso, a dimensão ética e política das
relações humanas, requer não somente considerá-la em seu aspecto trágico ou contingente,
mas, para além disso, admiti-la (a ação mesma) como fonte desencadeadora de tragicidade.
Agir é mover-se ao trágico. Ação é tragédia.

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