As Três Palavras Divinas - Tolstói
As Três Palavras Divinas - Tolstói
As Três Palavras Divinas - Tolstói
Tolstói (1828-1910)
I
UM sapateiro morava com a mulher e filhos num quarto alugado de um camponês. Não
possuía casa nem terra s mal ganhava para o sustento da família, com o seu ofício de
sapateiro. O pão era caro e o trabalho mal pago; comia tudo quanto ganhava. Tinha, para si
e sua família, somente uma única peliça, e esta já estava muito rota. Há dois anos que ele se
esforçava por comprar algumas peles de carneiro, para fazer nova peliça. Pelo outono
possuía já algumas economias; no cofre da mulher estavam guardados três rublos em papel.
Uns camponeses da vila deviam-lhe cinco rublos e vinte "kopeks". Certa manhã, o
sapateiro resolveu ir ao vilarejo comprar a peliça. Vestiu a jaqueta de ganga acolchoada,
que pertencia à mulher, pôs em cima um cafetã de pano e, colocando os três rublos no
bolso, pegou o bastão e, depois do almoço partiu.
"Cobrarei os cinco rublos dos camponeses. Com eles e os três rublos que possuo, terei o
suficiente para adquirir as peles e fazer a peliça" - pensava ele.
Chegando à vila, dirigiu-se à casa de um camponês. Ele não estava. A mulher, porém,
prometeu-lhe mandar o dinheiro na próxima semana, nada lhe dando no momento. Em casa
de outro, juraram nada dever e somente lhe deram vinte "kopeks" por um remendo. O
sapateiro pensou em comprar as peles a crédito, mas o vendedor recusou, dizendo-lhe:
- Traze-me o dinheiro e então escolherás a mercadoria que quiseres; nós sabemos o quanto
é difícil nos pagarem.
O sapateiro não fez negócio algum, além dos vinte "kopeks" do remendo, somente recebeu
um velho par de botas para consertar.
Aborrecido, foi a uma taverna, bebeu os vinte "kopeks" e pôs-se a caminho, sem as peles de
carneiro. Pela manhã sentira frio na estrada, mas na volta, como tinha bebido, sentia-se
mais quente, embora sem peliça. Andou alegremente, batendo com o bastão no chão
gelado. Fazendo piruetas, ele dizia a si mesmo:
- "Estou quente mesmo sem peliça; bebi um trago; a aguardente corre nas minhas veias.
Para que preciso eu de peliça? Vou-me embora e esqueço a miséria. Assim sou eu! Que me
importa isso? Posso viver muito bem sem peliça; passarei sem ela a vida inteira. Minha
mulher, porém, é que não ficará contente! Para dizer a verdade, tem razão para isso.
Trabalha-se para eles e eles nos afugentam... Espera um pouco; tu não me dás dinheiro...
tirarei meu chapéu... Juro-te que o farei... Isto são maneiras, pagar-me vinte "kopeks"!...
Que se pode fazer com vinte "kopeks"? Bebê-los na taverna, eis o que se pode fazer!..."
- "A miséria! A miséria!... E a minha então?! Tu tens casa, gado, e tudo o mais, e eu tenho
somente a mim. Comes o pão que vem do teu próprio campo, e eu preciso comprá-lo;
somente para o pão preciso ganhar três rublos por semana. Quando chegar em casa já
comeram o pão e ainda devo gastar um rublo e meio. Paga-me, pois, o que me deves!"
E assim chega o sapateiro perto da capela, na curva da estrada. Por detrás dela percebe uma
coisa branca. Já era crepúsculo; ele enxergava mal.
- "Que será aquilo? Aqui não havia nenhuma pedra branca. Será uma vaca? Não! não
parece vaca. Do lado da cabeça parece um homem. Mas por que será ele branco? E por que
estará aqui?"
Vivo ou morto? Está sentado, completamente nu, encostado na parede da capela. Não se
mexe. O sapateiro, com medo, pensa:
Ele passa, contorna a igrejinha, perdendo o homem de vista. Depois de alguns minutos,
vira-se e vê que o homem se desencostou da parede, está-se mexendo, parece olhá-lo
fixamente. Mais amedrontado ainda, o sapateiro pensa:
"Devo voltar ou fugir? Se for para junto dele, pode me acontecer alguma coisa
desagradável. Que homem será esse? Sua presença aqui me parece suspeita. Pode pular na
minha garganta e talvez eu não escape. Supondo-se que ele não me estrangule, farei bem
em levá-lo comigo? Que farei de um homem nu? Não posso despir-me, para vesti-lo,
dando-lhe minha única roupa. Que Deus me ajude a sair disto!"
Já passara a capela, mas sua consciência começa a atormentá-lo. Pára no meio do caminho:
"Que fazes, Simão, que fazes?" diz ele. "Um homem morre sem socorro e tu te amedrontas
e foges? És acaso algum ricaço para temeres ser despojado dos teus tesouros? Ah! Simão,
isto não está direito!" Simão volta e se aproxima do homem.
II
Simão se aproxima, olha e vê um homem moço e robusto, cujo corpo não tem indícios de
violência nem de pancadas, mas está transido de frio e visivelmente amedrontado. Sentado
de encontro à parede, não olhava para Simão. Tinha o ar esgotado e não podia levantar as
pálpebras.
Simão chegou mais perto, curvou-se para o homem que subitamente se reanimou, virando a
cabeça e abrindo os olhos, fixando-o. Desde que Simão viu esse olhar, começou a amar o
homem. Deixando cair as botas, desabotoou o cinto, jogando sobre elas, tirando, então, o
cafetã.
Simão segurou o homem pelos braços, pondo-o de pé; viu seu corpo esguio, delicado,
limpo; braços e pernas perfeitos; fisionomia doce. Pôs-lhe o cafetã sobre os seus ombros,
mas o homem não podia vestir as mangas. Simão vestiu-as, fechou o cafetã, apertando o
cinturão. Quis tirar o seu gorro rasgado para cobri-lo, mas sentindo frio na cabeça, refletiu:
- Bem, irmão! Vejamos, mexe-te um pouco e vê se te aqueces. Nada mais temos a fazer
aqui. Podes andar?
O homem continuava de pé, sem falar, olhando para Simão com doçura.
- Então, não falas? Não podemos passar o inverno aqui. É preciso voltar para casa. Toma o
meu bastão; apoia-te nele, se não tiveres força e adiante!
- Donde és?
Simão se admira. Este homem não tem cara dum gracejador de mau gosto; sua voz é doce
mas não conta nada de si. Simão acha tudo isso muito estranho, mas lhe diz:
Simão se aproxima do seu quintal; o companheiro ainda a seu lado. O vento começa a
soprar e atravessa-lhe a camisa. Vai desaparecendo o efeito do álcool e ele se sente
transido; funga, aperta a jaqueta no corpo e pensa:
"Eis-me uma tribulação! Saio para comprar uma peliça e volto sem o cafetã e ainda
trazendo um homem nu. Matriona não ficará muito alegre."
Pensando nela Simão se entristece. Mas vendo o homem, lembra-se do olhar que ele lhe
dirigiu atrás da capela, e seu coração transborda de alegria.
III
A mulher de Simão terminou cedo o serviço. Rachou lenha, trouxe a água, cuidou dos
filhos e, depois de ter ceado, pôs-se a sonhar. Pensa no pão: "Será preciso prepará-lo hoje
ou amanhã? Ainda há uma "micha" (1) na arca. Simão jantou na vila", pensa ela. "Se ele
não cear, esta noite, sobrará bastante pão para amanhã." Olha o pão, revirando-o nas mãos:
"Não cozinharei hoje: só tenho farinha para uma vez. Prolongaremos isto até sexta-feira..."
Matriona guarda o pão, sentando-se perto da mesa, para remendar a camisa do marido.
Cose e pensa no seu homem, que foi comprar peles de carneiro para fazer uma peliça.
"Queira Deus que o vendedor não o tenha enganado; ele é tão ingênuo, o meu marido!
Jamais enganaria alguém e uma criança poderia enganá-lo... Oito rublos já é uma boa
quantia; pode-se comprar uma boa peliça. Simples, é verdade, mas ainda assim uma boa
peliça. O último inverno foi tão rigoroso! Sem a peliça era impossível ir ao rio ou a
qualquer outro lugar. Ele saiu com todos os agasalhos no corpo e eu não tenho o que
vestir... Como ele demora! Já devia estar de volta... Será que parou na taverna?"
Mal Matriona pensa isto, os degraus da escada estalam e alguém entra. Ela deixa o trabalho
e vai para o vestíbulo. Vê dois homens: Simão e, com ele, outro homem, sem chapéu e de
botas de feltro. Pelo seu hálito, percebe logo que Simão bebeu.
Vendo-o sem cafetã, com as mãos vazias, silencioso e embaraçado, sente faltar-lhe a
respiração. "Bebeu todo o dinheiro, foi à taverna com este rapazelho e agora o traz para cá."
Matriona deixou-os penetrar na "izba", seguindo-os em silêncio. Viu o estranho: moço,
magro, vestido com o cafetã do marido. Uma vez dentro de casa Simão permaneceu
imóvel, olhos baixos. Matriona pensou: "É mesmo um patife. Está com medo."
Matriona resmunga entredentes. Pára perto do fogão, ficando imóvel, a olhar ora para um,
ora para outro, balançando a cabeça. Simão, vendo sua mulher zangada - que poderia ele
fazer? - toma um ar indiferente e segurando a mão do estranho diz:
- Cozinhei, mas não para você. Bebeste até perder o senso. Partiste para comprar uma
peliça e voltas sem o cafetã, trazendo ainda um vagabundo. Não tenho comida para bêbedos
como vocês...
- Basta, Matriona! Não tenhas trabalho em dizer asneiras. Farias melhor perguntando
primeiro quem é este homem.
A raiva de Matriona aumenta. Sem a peliça, o único cafetã nas costas de um vagabundo nu
que, por cúmulo, ele trouxe para casa. Toma o dinheiro e vai guardá-lo, dizendo:
- Eu? Escutar as tolices de um imbecil bêbedo? Ah! Como tinha razão em não querer casar-
me contigo, beberrão. Minha mãe deu-me um enxoval, e tu o bebeste; vais comprar uma
peliça e também a bebes!
Simão tenta inutilmente explicar que gastou somente vinte "kopeks" na taverna; quer dizer
à mulher como encontrou aquele homem, mas Matriona não o deixa explicar-se e, falando
ininterruptamente lança-lhe em rosto coisas que se passaram há dez anos. Ela fala, fala e,
tomando Simão pelo braço:
Simão quer tirar a jaqueta, mas Matriona puxa e as costuras se rasgam. Finalmente
Matriona tem a sua jaqueta. Colocando-a na cabeça, dirige-se para a porta. Queria ir
embora, porém, de repente pára, cheia de raiva. Quer descarregar sua cólera sobre alguém
e, ao mesmo tempo, quer saber quem é esse homem.
IV
De pé, na soleira da porta, Matriona diz:
- Se fosse um homem honesto, não estaria nu. Olha, ele não tem nem camisa. Se tu tivesses
feito alguma coisa de bom, ter-me-ias dito donde trouxeste este elegante...
- Mas eu te conto, mulher. Passava perto da capela, quando vi este rapaz, completamente
nu, quase gelado. Não estamos mais no verão... Foi Deus quem me guiou até ele, se não
teria morrido esta noite. Que fazer? Há coisas que acontecem. Levantei-o, vesti-o, e trouxe-
o comigo. Acalma o teu coração; isto é um pecado. Nós morreremos um dia.
Matriona queria replicar, mas, olhando para o estrangeiro, calou-se. Ele estava imóvel,
sentado no banco, as mãos cruzadas sobre os joelhos, a cabeça caída sobre o peito;
arquejava como se algo o sufocasse. Matriona calou-se e Simão disse:
A essas palavras ela fixou de novo o estrangeiro, e seu coração se apiedou. Saindo da
soleira da porta, dirigiu-se para o fogão, com o fito de preparar a ceia. Pôs a escudela sobre
a mesa, derramou o "kwass" (2) , trouxe o último pão, uma faca e colheres.
- Aproxima-te, rapaz.
- Donde vens?
- Quem te despojou?
- Deus me puniu.
- Sim, estava nu e me enregelava. Simão me viu, teve pena de mim, vestiu-me com o seu
cafetã e me disse para segui-lo. Tu tiveste compaixão da minha miséria e me deste de
comer e de beber. Deus vos salve!
Matriona levantou-se, tirou da janela uma velha camisa de Simão que ela remendara,
dando-a ao estrangeiro, juntamente como um velho par de calções.
- Toma - disse ela - vejo que não tens nem camisa. Veste e deita-te onde quiseres; no banco
ou perto da lareira.
O rapaz tirou o cafetã, pôs a camisa e os calções, estendendo-se sobre o banco. Matriona
apagou o lampião e, apanhando o cafetã, foi-se acomodar perto da lareira com o marido.
Deitou-se, cobrindo-se com uma ponta do agasalho. Mas não podia dormir; o rapaz a
preocupava. Lembrou-se de que se tinha comido o resto do pão, que faltaria para o dia
seguinte, e de que dera ao hóspede a camisa e os calções de Simão. Ficou apreensiva, mas
ao se recordar do sorriso do estranho, alegrou-se de novo.
Durante muito tempo permaneceu acordada. Simão também não conseguiu dormir.
- Simão!
- Que é?
- Comemos todo o pão e hoje eu não cozinhei; que farei amanhã? Devo pedir emprestado a
Marta?
- Esse homem tem boa fisionomia. Por que será que nada diz sobre a sua pessoa?
- Simão!...
- Que é?
- Se nós damos aos outros, por que será que ninguém não nos dá nada?
E adormeceu.
V
Simão acordou cedo. As crianças ainda dormiam e sua mulher saíra para pedir pão à
vizinha. O estrangeiro da véspera, com a camisa velha e os calções, estava sentado no
banco, com os olhos absortos. Seu rosto estava mais sereno.
- Bem, amigo - diz-lhe Simão. - O estômago pede pão e o corpo roupa. Precisamos agir
para r os alimentarmos. Sabes trabalhar?
- Eu nada sei.
- Como te chamas?
- Miguel.
- Bem, Miguel, nada queres dizer de ti; isso é lá contigo. Mas precisas comer. Faze o que
digo e te alimentarei.
Miguel olha, toma o fio, prepara-o e logo Simão lhe ensina a encerar o fio e torcê-lo.
Miguel aprende rapidamente. Em seguida o patrão lhe ensina a coser e Miguel também
aprende com facilidade. A partir do terceiro dia todo o trabalho que lhe ensinavam, Miguel
compreendia. Trabalhava tão bem que se poderia crer que ele fizera botas toda a vida. Não
perdia um minuto e pouco se alimentava. Terminado o trabalho, permanecia no seu canto,
com os olhos absortos, sem nada dizer. Jamais saía, nunca gracejava ou ria. Somente viram-
no sorrir uma vez; quando, na primeira noite, Matriona lhe deu de comer.
VI
Dia a dia, semana a semana, um ano se passou. Miguel continuava a morar e trabalhar com
Simão. O sapateiro ficou célebre; ninguém fazia botas tão bem cuidadas, tão sólidas quanto
Miguel, aprendiz de Simão. Vinha gente de todos os lugares das vizinhanças para
encomendar botas em casa de Simão e este começou a viver mais folgadamente.
Num dia de inverno, Simão e Miguel trabalhavam juntos, quando ouviram o barulho de
uma carruagem com três cavalos e guizos. Espiaram pela janela. A carruagem parou diante
da "izba" e um senhor saltou dela, dirigindo-se à casa de Simão. Matriona abriu-lhe a porta.
O senhor, abaixando-se, entrou na "izba" e depois se endireitou. Sua cabeça quase tocava o
teto e ele sozinho, enchia um canto da sala. Simão levantou-se, cumprimentando-o,
admirado. Jamais vira homem semelhante. Simão era gorducho. Miguel magro e Matriona
parecia uma velha acha de lenha seca. Este homem dava a impressão de vir de um outro
mundo. Com o rosto grande e avermelhado, seu pescoço taurino parecia feito de bronze.
O outro obedeceu.
- Sim, senhoria.
- Certamente! Compreendes bem para quem vais trabalhar e que mercadoria vais usar?
Faze-me botas que possam durar um ano, que eu possa usar um ano sem que elas percam a
forma nem se rompam. Se tu o podes fazer, toma o couro e corta-o. Se não podes, recusa-o.
Eu te previno: se as botas se rasgarem antes de um ano, ponho-te na cadeia. Se me durarem
esse tempo, terás dez rublos.
Simão, amedrontado, hesita e não sabe o que responder. Olha para Miguel, bate-lhe com o
cotovelo e cochicha:
Simão toma o alvitre de Miguel, aceita e se compromete a fazer as botas que não perderiam
a forma nem se rasgariam durante um ano.
Simão tomou um papel de dez "verchok", dobrou-o em tiras e ajoelhando-se, depois de ter
limpado as mãos no avental para não sujar as meias do senhor, começou a tirar as medidas.
Tomou as dimensões da sola, do tornozelo e pôs-se a medir a barriga da perna. Mas o papel
não dava a volta; a perna era grossa como uma viga.
Simão junta outro papel. O homem, sentado, mexe os dedos do pé dentro da meia e olha as
pessoas que o rodeiam.
Simão olha para Miguel e percebe que este não está olhando para o senhor, e sim para cima
e por trás dele, como se estivesse vendo alguém. Continua a olhar e, subitamente, sorri,
com serenidade.
- Por que ris, idiota? Cuide antes que as botas estejam prontas a tempo.
Miguel responde:
- Está bem.
O senhor calçou-se novamente, vestiu a peliça, dirigindo-se para a saída, mas, esquecendo-
se de abaixar, bateu com a cabeça contra a trave da porta. Pôs-se a praguejar, esfregando a
testa. Depois subiu para a carruagem e partiu.
- Eis um homem forte como um rochedo, arrebenta a trave da porta e ainda zomba.
Matriona acrescentou:
- Com a vida que ele leva, como não ser um belo homem? Fundido em bronze, assim como
ele é, a morte tão cedo não o surpreenderá.
VII
Simão, dirigiu-se a Miguel:
- Aceitamos esta encomenda; espero que ela não nos cause aborrecimento. O couro é caro e
o senhor violento. A não ser que nos enganemos! Tu tens olhos melhores, mão mais firme.
Toma as medidas e corta o couro para mim. Eu farei as costuras.
Matriona aproximou-se, viu o trabalho de Miguel e ficou espantada com o que ele estava
fazendo. Habituada ao ofício, percebe que Miguel não está cortando botas, e sim sandálias.
Quis falar, mas pensou: "Com certeza não entendi que espécie de calçado é preciso para
aquele senhor. Miguel sabe melhor do que eu o que está fazendo. Não me vou intrometer."
Uma vez talhado o calçado, Miguel toma os pedaços e começa a cosê-los, não dos dois
lados, mas de um só, como para sandálias. Matriona de novo se espanta, mas não quer
intrometer-se e Miguel continua a costura. Chega a hora da refeição. Simão deixa seu
trabalho e percebe que Miguel fez do couro sandálias em lugar de botas.
"Como?! Miguel, que durante um ano inteiro jamais se enganou!... Que desgraça acaba de
fazer! A mercadoria está perdida; que direi ao senhor? Onde encontrar outro couro igual?"
E diz a Miguel:
- Que fizeste, amigo? Tu me perdeste. O senhor encomendou botas, e tu, que fizeste?
Nesse mesmo instante, alguém bate, com força. Espia-se pela janela e vê-se alguém amarrar
o cavalo na aldrava da porta. Abre-se; entra o criado do senhor.
- As botas? O quê?
- Como?!
- Nem chegou à sua casa vivo; morreu no carro. Quando chegamos, abri a portinhola e o vi
caído no assento, já duro. Só com muito trabalho conseguimos tirá-lo de lá. A senhora
mandou-me aqui, dizendo: "Vá dizer ao sapateiro que faça sandálias para um defunto em
lugar de botas que teu senhor encomendou. Pede-lhe que se apresse; espera que estejam
prontas e traz-mas. Eis por que estou aqui."
VIII
Um ano, dois anos se passam e agora, já faz seis anos que Miguel mora com Simão. E
sempre a mesma coisa; nunca sai, raramente fala. Durante todo esse tempo, somente sorriu
duas vezes; a primeira, quando Matriona lhe deu de comer, e a segunda, durante a visita do
senhor.
Simão vive sempre encantado com o seu aprendiz, não lhe pergunta mais donde veio e só
teme que ele se vá embora.
Um dia, todos estavam reunidos em casa. Matriona punha a panela no fogo, as crianças
trepadas no banco olhavam pela janela. Perto de uma janela, Simão trabalhava com a
sovela; perto da outra, Miguel concluía um salto.
Uma das crianças veio apoiar-se no seu ombro e, espiando pela janela, disse:
- Veja, tio Miguel, uma senhora com duas meninas. Parece que vêm para este lado. Uma
das meninas é manca.
A essas palavras, Miguel abandona o trabalho, vira-se e olha para fora. Simão se admira.
Miguel jamais olhou para fora, e ei-lo agora, colado à vidraça, examinando alguma coisa.
Simão, por sua vez, também espia. Vê, realmente, uma mulher bem trajada, conduzindo
duas meninas vestidas de peliça e chapeuzinhos de lã, que se dirigem para sua casa. As
crianças são tão parecidas, que seria impossível distingui-las. Uma delas, porém, claudicava
da perna esquerda.
A senhora pára na porta, levanta o trinco e entra na "izba", levando, à sua frente, as duas
meninas.
- Ah! É fácil. Nunca fizemos sapatinhos tão pequenos, mas tentaremos. A senhora os quer
debruados ou reforçados com pano? Miguel, meu aprendiz, é muito hábil.
Simão vira-se e percebe que Miguel fixa os olhos atônitos nas crianças. Simão surpreende-
se. Evidentemente as meninas são bonitas, com os seus olhos negros e as suas faces
rechonchudas. As peliças e os chapéus que trazem são graciosos. Mas não pode
compreender por que Miguel as examina com tanto interesse, como se já as conhecesse.
Simão, cada vez mais surpreso, fala com a senhora, faz o preço e toma as medidas.
- Tome duas medidas para esta; farás um sapato para o pé doente e três para o outro. Os pés
de ambas são iguais: elas são gêmeas.
Matriona entra na conversa e, curiosa de saber quem é aquela senhora e aquelas crianças,
diz:
Nem mãe, nem mesmo parente, minha boa mulher. Elas são minhas filhas adotivas.
- Como não as mimar? Amamentei a ambas. Tive um filho, que Deus me tirou. Não o
acariciava tanto quanto a elas.
IX
A senhora, tornando-se loquaz, começou a contar:
Há seis anos que são órfãs. O pai morreu numa quarta-feira e a mãe numa sexta. Órfãs de
pai antes de nascerem, a mãe não sobreviveu ao seu nascimento. Neste tempo eu morava na
vila, com meu marido. Éramos vizinhos, parede-e-meia. Num dia em que trabalhava
sozinho no bosque, o pai foi esmagado por uma árvore. Ficou tão mal, que, chegando em
casa, faleceu. Três dias depois sua mulher deu à luz estas duas meninas. Pobre e sozinha
ninguém a assistiu, nem parteira, nem mesmo uma simples empregada. Deu à luz sozinha e
sozinha morreu.
Pela manhã fui vê-la; entro e a encontro - a desgraçada - já fria. No momento da morte,
caíra sobre a filhinha e a aleijara. Reuniram-se os conhecidos; levaram a morta,
amortalharam-na, puseram-na num caixão e a enterraram. Todos os vizinhos eram boas
pessoas. As menininhas ficaram sós. Que fazer delas? Nessa época eu era a única mulher na
vila que estava amamentando. Aleitava o meu primogênito há oito semanas. Enquanto se
esperava uma decisão, levei-as comigo.
Já havia dado o seio a uma, mas ainda não o dera à outra, à aleijada. Não pensava que ela
pudesse viver.
Depois me arrependi; ela choramingava de fazer pena. Por que deve sofrer este anjinho? Fi-
la mamar e aleitei as três crianças; o meu e as duas orfãzinhas. Era jovem, forte,
alimentava-me bem e tive muito leite. Deus me ajudava. Enquanto as duas crianças
mamavam, a terceira esperava. Quando uma das duas estava satisfeita, pegava na terceira.
Deus me deu a graça de criá-las. O meu morreu dois anos depois e Deus não me concedeu
mais filhos. Com o tempo melhoramos de vida e agora vivemos no moinho, em casa de um
negociante. Temos bons ordenados, a vida é fácil, mas não tenho filhos. Que faria eu,
sozinha, se não tivesse estas meninas? Como não amá-las, não mimá-las? Elas são a alegria
da minha vida.
X
A senhora partiu com as crianças, Miguel levantou-se do banco, deixando o trabalho sobre
a mesa, o avental e, saudando os patrões, disse-lhes:
Os patrões vêem que uma luz se dimana de Miguel. Simão levanta-se e, saudando-o, diz:
- Vejo, Miguel, que não és um homem como os outros, por isso não posso pedir para
ficares, nem interrogar-te. Diz-me somente, por que estavas tão sombrio e temeroso quando
te encontrei e trouxe para minha casa? Por que te tranqüilizaste quando minha mulher te
deu de comer? Sorriste e ficaste mais confiante. Depois, quando veio aquele senhor
encomendar as botas, sorriste de novo e ficaste mais sereno; e hoje, quando esta moça
trouxe as meninas, sorriste uma terceira vez e cintilaste de luz. Diz-me, Miguel, por que
esta luz se irradia de ti e por que sorriste três vezes?
Miguel respondeu:
- Deus me punira por uma desobediência. Eu era um anjo, no céu, e desobedeci. Era um
anjo do céu e o Senhor me mandou à terra para procurar uma alma, a alma de uma mulher.
Desci à terra e vi uma mulher deitada, doente, que acabara de dar à luz duas meninas. As
crianças choramingavam perto da mãe, fraca demais para amamentá-las. Quando ela me
viu, compreendeu que Deus chamava a sua alma. Chorou e suplicou:
"Anjo de Deus, meu marido foi morto há três dias pela queda de uma árvore; não tenho
irmã, tia, nem mãe. Minhas orfãzinhas têm somente a mim! Não leves a minha pobre alma!
Deixe-me cuidar de meus filhos até que possam andar; as crianças não podem viver sem pai
nem mãe. "
Ouvi a mulher, pus uma criança no seu seio e a outra nos seus braços. Subi ao céu, fui à
presença de Deus e lhe disse:
"Não pude trazer a alma da parturiente. O pai foi morto por uma árvore; ela teve duas
gêmeas e me suplicou que não lhe levasse a alma, que a deixasse."
O Senhor me respondeu:
- "Volta e traze-me a alma dessa mãe. Um dia conhecerás três palavras divinas e
aprenderás o que há nos homens, o que não é dado aos homens e o que faz viver os
homens. Quando tiveres aprendido isto, voltarás ao céu ".
Voltei à terra e levei a alma da pobre mãe. As crianças deixaram o seio materno, e o
cadáver caiu, esmagando o pé de uma das meninas.
Enquanto me elevava no céu da vila, para levar a alma a Deus, um turbilhão me arrastou,
minhas asas tornaram-se pesadas e caíram; a alma subiu sozinha para o Senhor, e eu fiquei
caído na terra, à beira da estrada.
XI
Simão e Matriona compreenderam então a quem tinham eles vestido e alimentado; quem
vivera sob o seu teto. Choraram de temor e alegria. O anjo ainda lhes disse:
- Estava só no caminho; só e nu. Até então não conhecera ainda as misérias humanas; nem
o frio nem a fome. Tornei-me um homem. Senti frio e tive fome e não soube o que fazer. Vi
uma capela consagrada ao Senhor; quis refugiar-me nela, mas a porta estava fechada a
cadeado e não se podia entrar. Sentei-me então na soleira da porta, para me abrigar do
vento. Chegou a noite; sentia fome e frio; sofria. Subitamente ouvi passos na estrada.
Aproximava-se um homem, trazendo umas botas e falando sozinho. Pela primeira vez, vi a
face mortal de um homem, depois de ter eu mesmo me transformado em homem. Tive
medo dessa face e me virei. Ouvi o homem perguntar a si mesmo:
"Como alimentar minha mulher e meus filhos? Como me proteger contra o frio no
inverno?"
Eu pensei:
- "Morro de fome e frio e eis que passa um homem pensando somente em vestir a si e aos
seus com peliças e em providenciar pelo pão. Ele não me saberia, portanto, alimentar."
O homem me viu, fechou o sobrecenho, ficou ainda mais terrível e passou... Estava
desesperado. De súbito, eu o vi voltar. Olhei-o e não o reconheci; a morte que estava
estampada na sua face desaparecera. Ele se tornara vivo e vi a imagem de Deus no sou
rosto. Aproximou-se de mim, vestiu-me, tomou-me pela mão e levou-me para sua casa.
Chegados à sua morada, uma mulher veio ao nosso encontro, e falou. Ela era ainda mais
terrível do que o homem e o hálito da morte saía de sua boca; o sopro mortal de suas
palavras cortou-me a respiração. Senti-me desfalecer. Ela queria mandar-me embora, no
frio, e eu sabia que ela mesma morreria, se me escorraçasse.
Mas o seu marido lhe falou de Deus. Logo ela se transformou. Enquanto nos servia a
comida e me olhava, eu também a fixava: a morta se tornara viva e reconheci a Deus no seu
rosto. Lembrei-me então, da primeira palavra de Deus: Tu conhecerás o que há nos
homens. Assim aprendi o que há nos homens: amor . Na minha alegria de ter a revelação de
uma das palavras divinas, sorri pela primeira vez. Tudo, porém, não me foi revelado a um
tempo; ainda não sabia o que não é dado ao homem, e o que faz viver os homens.
Vivi um ano convosco. Veio o homem encomendar as botas, botas que deviam durar um
ano, sem se deformar nem rasgar. Olhei-o e vi perto dele um dos meus companheiros - o
anjo da morte. Ninguém o viu além de mim. Conhecia-o e sabia que antes do pôr do sol a
alma do ricaço seria levada. Então pensei: o homem prevê com antecipação por um ano e
não sabe que deve morrer antes desta noite. Lembrei-me da segunda palavra de Deus:
Conhecerás o que não é dado aos homens. Já sabia o que há nos homens, e acabara de
aprender o que não é dado aos homens. Não é dado aos homens conhecer as necessidades
do seu corpo. Pela segunda vez sorri. Sentia-me feliz por ter visto o anjo, meu
companheiro, e por Deus ter-me revelado a segunda palavra. Ignorava, contudo, o que faz
viver os homens. Assim vivi esperando a revelação da última palavra divina. No sexto ano,
a moça trouxe as gêmeas; reconheci-as e, compreendendo tudo, pensei:
"A mãe implorava pelos filhos; imaginei então que, sem pai nem mãe, as crianças
perecessem e eis que uma mulher estranha as recolheu e as alimentou!"
Quando vi a moça chorar de emoção ao falar dessas pequenas estranhas de quem ela se
compadecia, vi nela a imagem de Deus e compreendi o que faz viver os homens. Percebi
que Deus me revelara a terceira palavra e me perdoara e, pela terceira vez sorri.
XII
A roupa desapareceu do corpo do anjo e ele se iluminou duma luz tão resplandecente, que
os olhos humanos não a poderiam suportar. Sua voz, que parecia vir, não dele, mas do céu,
elevou-se e disse:
- E compreendi que o homem não vive de suas necessidades, mas pelo amor. Não foi
permitido à mãe saber o que faria viver a seus filhos; não foi permitido ao ricaço saber o
que lhe era preciso; não é dado a homem algum saber se à tarde lhe serão necessárias botas
de vivos ou sandálias de mortos. Transformado em homem, vivi, não porque soubesse
satisfazer minhas necessidades humanas, mas porque houve um caminhante e sua mulher,
cheios de amor, que tiveram pena de mim e me amaram. As órfãs viveram, não porque se
preocupassem com elas, mas porque uma mulher estranha tinha amor no seu coração, se
compadeceu de sua sorte e as amou. Todos os que vivem, não vivem por bastarem a si
próprios, mas pelo amor que há no homem. Sabia, outrora, que Deus dera vida aos homens
e quis que eles vivessem. Agora compreendo outra coisa. Compreendo que Deus não quer
que os homens vivam isoladamente. Por isso não revela a ninguém o que lhe é necessário.
Quer que cada um viva para os outros. Por esta razão revela a cada um o que é útil não
somente a ele, mas também aos outros. Vejo agora que os homens que pensam viver
unicamente das suas próprias inquietações, vivem, em verdade, somente do amor. O que
vive do amor, vive em Deus, e Deus vive nele, porque Deus é o amor.
Sua voz fez tremer a "izba"; o teto se abriu. Uma coluna de fogo subiu da terra para o céu.
Simão, a mulher e os filhos se prosternaram no chão. O anjo abriu suas grandes asas e subiu
aos céus.
Quando Simão voltou a si, a "izba" já havia retomado o seu aspecto habitual e ele estava
sozinho com os seus.
- Fim -
Fonte: As obras-primas do conto universal. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1942.
Notas