Não Temais, Não Vos Preocupeis

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NÃO TEMAIS...

NÃO VOS
PREOCUPEIS

Índice

1. Não temais... Não vos preocupeis...


Confiar em Deus
Viver da fé
A providência divina
Uma expectativa esperançosa
Quando nos custa entender a divina
providencia
2. O fundamento de nossa confiança: a
filiação divina
Somos filhos de Deus. Por quê?
A perda da filiação divina
A vivência da filiação divina: como
crianças diante do pai
3. As atitudes de um filho de Deus
Aceitar filialmente a vontade de Deus
Tudo é para o bem
Docilidade
Entrega amorosa nas mãos de Deus
O exercício diário da entrega à
vontade do Pai
A oração confiante
4. O filho pródigo
O filho afastado do pai
A espera amorosa do pai
O arrependimento confessado
5. Uma conseqüência da filiação
divina: a ciência de aproveitar os
próprios erros
6. Os frutos da filiação divina
Otimismo
Paz
A alegria de caminhar para o Pai
7. Paternidade de Deus e paternidade
do homem
A segurança de Deus que os pais
devem transmitir aos filhos
Somos todos irmãos e filhos do
mesmo Pai, formamos uma só família
O perdão do Pai eterno vivido no lar
A paternidade e a maternidade
espiritual
8. Maria, mãe dos filhos de Deus

Não temais... Não vos preocupeis...

“Não temais" sou eu, (Lc 12,4) diz o


Senhor aos discípulos atemorizados. E
a mensagem da encarnação começa
precisamente com estas palavras:
"Não tenhas medo, Maria" (Lc 1,30). O
Senhor nos incita à paz e à serenidade,
insistindo: "Não vos preocupeis..." (Mt
6,34). Nós, contudo, damos a
impressão de vivermos habitualmente
atemorizados e preocupados.
Preocupados ou amedrontados por
algo que pode nos acontecer, por algo
que parece estar escondido em nosso
coração em forma de presságio...: o
receio de uma doença, de ficar
desempregado, de fracassar no
trabalho ou nos estudos, de perder um
amor ou de não encontrá-lo, de não
ter a aceitação, a popularidade ou
êxito que desejamos, de não progredir,
o temor de ficar parados numa via
morta, de "marcar passo" no caminho
da vida, de ficar sozinhos,
abandonados, de envelhecer, de
morrer...

Jesus, porém, parece estar nos dizendo


continuamente: "Quanto a vós até
mesmo os vossos cabelos foram todos
contados" (cf. Mt 10,29-31). O Senhor
continuamente nos repete como fez
com os discípulos: "Meus amigos eu
vos digo: não tenhais medo" (Lc 12,4);
ou como proclamou aos pastores:
"Não temais!" (Lc 2,10).

Quando não vivemos ao lado do Pai,


quando perdemos a consciência da
filiação divina, sentimo-nos com
freqüência dominados por um
sentimento de desamparo, de medo,
de solidão. A esse respeito tive uma
experiência pessoal à qual já fiz
referência em outra ocasião. Pregava
um retiro numa fazenda de Miguel
Pereira, próxima ao Rio de Janeiro, e
estando já deitado, escutei um gemido
lancinante que provinha do jardim.
Procurei cobrir-me bem com o
cobertor, para não ouvi-lo e poder
dormir. Mas não conseguia. Era um
lamento agudo, persistente. Parecia o
pranto de uma criança. Que estranho!
Levantei-me. No meio da noite escura
o lamento parecia-me mais dramático
e menos humano. Fui me aproximando
pouco a pouco, enquanto o gemido
lastimoso ia aumentando. De repente,
encontrei no meio da relva um
cachorrinho assustado, abandonado e
tremendo de frio. Então, dei-me conta
de que a cadela da fazenda — a
"Baronesa", como a chamavam —
acabava de ter seus filhotes. Recolhi
entre as minhas mãos um deles e o
coloquei à altura de meu rosto.
Continuava gemendo, e com seus
pequenos olhos parecia me perguntar:
"Quem é você?". E eu lhe respondi:
"Sou seu amigo, não se preocupe que
vou levá-lo a sua mãe". E comecei a
acariciá-lo, enquanto ele agitava
alegremente o rabinho e farejava meu
rosto. Começou a lamber-me uma e
outra vez. Confesso que fiquei
encantado. Comecei a sentir uma
ternura que poderia chamar de
paterna. A solidão, o abandono e a
fragilidade dessa criaturinha, na
escuridão e no frio da noite, fazia-me
sentir verdadeiramente enternecido.
Coloquei, então, o cãozinho no peito
da "Baronesa" e ele começou a mamar
esfomeadamente. Poucos minutos
depois estava dormindo
tranquilamente, debaixo do olhar
protetor de sua mãe.

Já deitado novamente, invadiu-me


uma profunda emoção. E pensei: se
eu, que não tenho nada a ver com esse
animalzinho, senti uma ternura tão
grande diante de sua tristeza e de seu
abandono, quanto mais sentirá por
mim, no meio dos meus gemidos, o Pai
que me criou, que me escolheu para si
"ante mundi constitutionem" (Ef 1,4)
— antes de criar o mundo — e que me
amou a ponto de entregar seu Filho
para morrer por mim numa cruz. Foi
então que, pela primeira vez, de modo
espontâneo, comecei a clamar: Abba,
Abba, papai, papai, papai... e não
conseguia parar. Foi, sem dúvida, o
Espírito Santo. Agora, quando me sinto
só, recordo-me de um pobre
cachorrinho gemendo no meio da
noite e, como por reflexo
condicionado, vêm-me aos lábios estas
palavras: papai, papai, papai.

Talvez essa vivência seja um reflexo da


profunda experiência que teve um
sacerdote, do qual aprendi quase tudo
o que espiritualmente sei, com o qual
convivi durante anos e que agora
tenho a ventura de vê-lo nos altares.
Escutei, em várias ocasiões, do bem-
aventurado Josemaria Escrivá,
fundador do Opus Dei, a narração de
sua experiência, vivida no meio de
suas primeiras contrariedades, que
foram muitas, da incompreensão de
tantos e da incapacidade que sentia
para realizar a Obra divina que Deus
lhe havia encomendado. O fato, que
aconteceu no dia 16 de outubro de
1931, nos foi narrado diretamente por
ele: "Senti a ação do Senhor que fazia
germinar no meu coração e nos meus
lábios, com a força de algo
imperiosamente necessário, esta tenra
invocação: Abba! Pater! Estava na rua,
num bonde [...]. Provavelmente fiz
aquela oração em voz alta. E andei
pelas ruas de Madri, talvez uma hora,
talvez duas, não posso dizer ao certo, o
tempo se passou sem eu sentir.
Deveriam tomar-me por louco. Estive
contemplando com luzes que não
eram minhas essa assombrosa
verdade, que ficou acesa como uma
brasa na minha alma, para não se
apagar nunca"1.

1 Citado por A. Vázquez de Prada, El


Fundador Del Opus Dei. Madrid,
Ediciones Rialp, 1997, v. 1, p.390.
Naquela jornada, num dia de muito
sol, não só soube, senão que sentiu a
profundidade misteriosa da filiação
divina, que, por impulsos do Espírito
Santo, no meio da rua, fazia-lhe
clamar: Abba, Pater! Abba, papai! E
essa consciência da filiação divina foi o
fundamento de sua vida espiritual e a
enorme força com a qual conseguiu
superar todas as dificuldades, como a
torrente das águas ultrapassam todas
as montanhas: "inter médium
montium pertransibunt aquae" (Sl
104,10), palavras estas que o próprio
Espírito Santo gravou, a fogo, no fundo
de sua alma2.

2 Cf. Llano Cifuentes, R. A força di


sacerdócio no Espírito Santo, Rio de
Janeiro, Marques Saraiva, 1998. PP.
32-35.

Abba, é a palavra que as crianças


hebraicas utilizavam para dirigir-se
familiar e carinhosamente aos seus
país: abba, papai, papaizinho, os
primeiros cristãos quiseram conservar,
sem traduzi-la, a mesma palavra
aramaica com que Jesus rezava. Que
entranhavelmente humano o fato de
Jesus dirigir-se ao Pai grandioso e
onipotente com essa palavra! Abba,
papai. E quão amável é também o fato
de nos dirigirmos a ele da mesma
maneira: papai, ajuda-me, papai, estou
nas tuas mãos...

Confiar em Deus

Voltamos a insistir: quando perdemos


a consciência de nossa filiação divina,
parece que nos sentimos entregues
aos caprichos de um destino irracional
e implacável. E é isso o que acontece
com o homem moderno. Apesar de
sua fingida auto-suficiência, padece de
uma enorme insegurança, parece estar
submetido ao poder esmagador das
suas ansiedades e preocupações. Um
exemplo entre mil. Há alguns meses
recebi uma carta de um conhecido, a
qual, em parte, transcrevo a seguir:

Estou passando uns dias esquisitos:


ando estranho, nervoso, mexendo-me
de um lado para o outro, inquieto. Há
quinze dias estou assim. Senti uma
fisgada no peito e desde então tenho a
sensação desagradável de que vai me
acontecer algo grave. Estou
acovardado.

Ontem fui ao médico e, depois das


provas de esforço que me mandou
fazer, disse-me que não tinha por que
me preocupar, mas a verdade é que
continuo ansioso e apavorado. Que
devo fazer? Poderíamos conversar
pessoalmente?

Infelizmente, não é um caso isolado. A


ansiedade, hoje, é epidêmica. Assim há
pouco tempo, dizia-me um médico
que, sem precisar de ulteriores
exames, poderia diagnosticar com
segurança que 30% dos doentes que
iam consultá-lo sofriam de ansiedade.
Isso coincide com o que as últimas
estatísticas têm revelado sobre esse
problema3.
3 Rojas, E. La ansiedad. Madrid, Temas
de Hoy, 1994. P. 26.

O homem que quer dominar o


universo das galáxias, não consegue
dominar seu medo, sua angustia.
Chora no meio do desamparo, da
solidão, como aquele cachorrinho no
meio da noite: ele precisava do
amparo afetuoso da sua mãe.

Da mesma maneira, nossa fraqueza


reclama a fortaleza de Deus. Inezita
Barroso, numa das músicas do folclore
brasileiro, cantava: "Um homem sem
Deus é como um filho sem pai, como
um faminto sem pão, como um morro
sem batucada".
Uma criança órfã, perdida na vida,
sente medo de tudo e de todos. O
homem de hoje, que enfrenta o
advento do terceiro milênio, de uma
cultura que se esvai de costas para
Deus, parece sofrer o desamparo da
orfandade. Isolado, individualista,
auto-suficiente, é extremamente
vulnerável A frustração, o fracasso, a
solidão, a doença, a dor pairam
continuamente por cima da sua cabeça
como uma espada de Dâmocles.
Parece submetido à arbitrariedade de
um destino cego. E isso o apavora,
como se apavora uma criança
abandonada, ou como um animalzinho
desamparado que geme na escuridão.

E isso o que provoca, em última


instância, a ansiedade. Porque esse
sentimento — como todas as outras
manifestações de insegurança — surge
quando o homem não encontra os
elementos necessários para defender a
sua frágil vulnerabilidade.

A investigação fenomenológica atual


foi, pouco a pouco, evidenciando que a
ansiedade aparece onde falta o
sentimento ou a vivência daquilo que
os alemães chamam Geborgenheit e
que se pode traduzir por "amparo
afetivo". Sua expressão mais
característica, mais autêntica, é a do
amor paterno e materno4". Mas o pai
e a mãe, que nos deram a vida e nos
protegem no ambiente familiar, não
têm o poder de libertar-nos dos
perigos que nos rodeiam num universo
freqüentemente agressivo e egoísta.
Para que esse "amparo afetivo" nos
cubra como uma grande cúpula
protetora, tem de ser tão amplo que
abranja as circunstâncias aleatórias e
os eventos cósmicos. E isso, só Deus
pode proporcionar.

4 Cf. Torelló, J. B. Psicologia aberta.


São Paulo, Quadrante, 1987.

Deus é Pai. É a origem e o sustentador


de nossa existência: "Nele vivemos,
nos movemos e existimos! (At 17,28).
Um verdadeiro cristão vive no regaço
de Deus — que é para ele "papai" e
"mamãe" —, sente-se carinhosamente
protegido, seguro, como um "bebê" no
colo da mãe. Entende muito bem
aquelas palavras do Senhor:
"Pode a mãe se esquecer do seu nenê,
pode ela deixar de ter amor pelo filho
de suas entranhas? Ainda que ela se
esqueça, eu não me esquecerei de
você" (Is 49,15).

E a realidade que essas palavras


encerram comunicam-lhe uma
segurança que dissipa todos os medos
e ansiedades.

Deus, sem dúvida, tem uma realidade


objetiva, mas tem também uma
ressonância subjetiva muito profunda.
Quando se acredita que ele é Pai, um
Pai amoroso que nos ama muito mais
do que nos podem amar todos os pais
e todas as mães do mundo juntos,
sentimos realmente um sentimento
íntimo de "amparo materno e
paterno" de dimensões universais.
Quando a fé passa da cabeça para o
coração, da psique para o soma, o
corpo e a alma experimentam uma paz
que ultrapassa todo entendimento
humano. Quando a palavra do Senhor
que nos diz: "Neste mundo vocês terão
aflições, tenham coragem, eu venci o
mundo" (Jo 16,33), penetra a fundo
em nossa vida, invade-nos como que
uma segurança inabalável, mudam as
perspectivas da alma e também — por
que não? — a química do corpo:
sentimos uma serenidade que não se
consegue atingir nem com filosofias de
"pensamento positivo" nem com os
"fármacos" de última geração.

A ansiedade, sem dúvida, pode ter um


fundo biológico -— e, nesse caso, é
necessário ir ao médico —, mas na
maior parte das vezes é conseqüência
de uma falta de fé profunda. Há
muitos cristãos angustiados porque há
muitos cristãos mornos, tíbios. Na
realidade, há uma relação
inversamente proporcional entre a fé e
a ansiedade: mais ansiedade, menos
fé; mais fé, menos ansiedade.

"Que confiança, que descanso e que


otimismo vos dará, no meio das
dificuldades, sentir-vos filhos de um
Pai que tudo sabe e que tudo pode!"5.

5 Bem-aventurado Josemaria Escrivá,


carta de 19 de janeiro de l959, citado
em François Gondrand, Al paso de
Dios, Madrid, 1984, p. 67.
Viver da fé

Nossas preocupações derivam,


precisamente, de nossa pouca fé, de
nossa falta de confiança em Deus. São
Paulo nos diz: "Justus ex fide vivit" (Hb
10,38) "o justo vive da fé". Não é o
mesmo viver com fé, do que viver da
fé. Viver com fé significa simplesmente
juntar, justapor, a vida com a fé: a fé é
apenas um complemento da vida.
Viver da fé é considerar a fé como
vida, como fonte de vida: um
manancial profundo do qual promana
a mais íntima confiança e a mais forte
motivação vital que mobiliza toda a
nossa personalidade: as idéias, as
afeições, os amores, os projetos, as
determinações, as atitudes práticas,
todas estão permeadas por uma
confiança filial despreocupada.

"Justus ex fide vivit" (Hb 10,38). A


preposição ex fala de algo que externa,
que extrai, que expele do mais
profundo do meu ser uma
determinação vital, que arranca minha
existência da plataforma das verdades
naturais e a coloca nas cumeeiras das
verdades sobrenaturais. Quem vive da
fé situa-se numa ordem diferente de
valores. Torna-se uma nova pessoa.
Seria como, no dizer do Evangelho,
"um nascer de novo" (cf. Jo 3,7). Quem
vive da fé não enxerga as coisas como
se utilizasse uma lente de aumento, e
sim como se experimentasse a
implantação de um novo sistema
ocular: uma nova escala de valores,
outra perspectiva vital. As suas
evidências são diferentes. Não pára
nas evidências das coisas naturais. O
que há de mais evidente para um
pescador do que os perigos de um mar
tempestuoso, violentamente agitado?
O que há de mais evidente para ele do
que a impossibilidade de caminhar
sobre as águas? Os discípulos viram o
Senhor caminhando sobre as águas
encapeladas e ficaram apavorados, e
disseram:

"E um fantasma!" E gritaram de medo.


Jesus, porém, logo lhes disse: Tende
confiança! Sou eu. Não tenhais medo
(Mt 14,26).

A confiança é conseqüência necessária


da fé. O medo e a preocupação
decorrem da falta de fé6. Vemos isso
plasmado claramente no
comportamento de Pedro:

6 Cf. Llano Cifuentes, R. Insegurança,


medo e coragem, São Paulo,
Quadrante, 1997. PP. 35-37

"Senhor", se és tu, manda que eu vá


ao teu encontro, sobre a água. Jesus
respondeu: "Vem". Pedro desceu da
barca, e começou a andar sobre a água
em direção a Jesus. Mas ficou com
medo quando sentiu o vento e,
começando a afundar, gritou: "Senhor,
salva-me". Jesus logo estendeu a mão,
segurou Pedro, e lhe disse: "Homem
fraco na fé, por que duvidaste?" (Mt
14,28-31).

Enquanto Pedro tinha fé, caminhava


sobre as águas como se estas se
tivessem transformado em terra firme;
quando, porém, começou a duvidar o
mar transformou-se num pântano de
terra movediça.

Nós duvidamos? Ficamos


amedrontados diante de qualquer
vento de dificuldades? Preocupamo-
nos com um futuro turbulento?
Angustiamo-nos com a perspectiva de
uma doença, de uma situação
econômica desfavorável, da perda de
um ente querido?... Se isso acontece, é
porque nos falta a fé. E é então
quando afundamos.

Quando nossa fé é firme, o mar é


como uma rocha; quando duvidamos
torna-se um sumidouro mortal.
É aí então que o Senhor sai ao nosso
encontro para dizer-nos: "Homem
fraco na fé, por que você duvidou?"

Nós vivemos da fé ou simplesmente


vivemos com fé? Vivemos com uma fé
minguada, com uma fé mirrada, com
uma fé esquálida, com uma fé sem
vida?

Outra pergunta: nós confiamos na


providência divina? Compreendemos
que a história da humanidade — e
essa outra pequena história que
integra nossa biografia pessoal — não
está submetida às forças de um
destino cego? Estamos convencidos de
que o Pai cuida de nós mais do que dos
lírios do campo e dos pássaros do céu?
Quando isso não acontece,
afundamos.

Lembro-me, quando criança de meu


pai, que para ensinar-me a nadar,
queria que eu começasse a boiar.
Dizia-me: fique de costas; ponha a
cabeça para trás; estenda as mãos
como se abraçasse o mar; estique bem
as pernas. Agora relaxe, meu filho, o
mar vai lhe sustentar.

Eu fazia isso e afundava, engolia água


e ficava assustado.

"Mas pai, que brincadeira é essa? Você


quer que eu me afogue?".

- "Não, meu filho, não; o que eu quero


é que você aprenda a nadar."
- Mas então por que eu afundo?

"Você afunda porque está tenso."

E meu pai acrescentou: "Vamos fazer


uma nova tentativa: eu fico lhe
amparando com as minhas mãos." E
assim o fez: "Relaxe, relaxe, relaxe —
dizia-me: — Confie, confie, confie." Eu
vou tirar uma mão. Você vê que não
afunda? Vou tirar a outra. Você já
repara que agora é o mar que o
sustenta? Estou aqui por perto.
Confie..." E assim aprendi a boiar.
Boiava suavemente, repousadamente,
olhando para o céu de tempos em
tempos. Mais ainda, foi assim que
pouco a pouco tornei-me um bom
nadador, como meu pai me garantia.
Nós afundamos porque não
confiamos, por estarmos tensos. Você
já experimentou "boiar" em Deus?
Abandonar-se em Deus? Confiar em
Deus ilimitadamente?

"Relaxe, relaxe, relaxe... Confie, confie,


confie..." E o que agora nos diz nosso
Pai do céu.

Nossa segurança é proporcional à


nossa confiança. Toda a força de Deus
está, por assim dizer, na dependência
de nosso abandono. O mar de Deus
nos sustenta. O abandono "provoca" o
poder e a misericórdia de Deus, move
as entranhas de nosso Pai, como
quando uma criança, aos prantos, se
agarra ao pai, gritando: "Eu só confio
em você!..."; "só confio em você!" Será
que um pai na terra não empregaria
toda a sua força para não decepcionar
o seu filho? E que poderíamos dizer de
Deus, infinitamente bom e todo
poderoso?

Confiar em Deus, "boiar" em Deus,


"descansar" em Deus, são sete letras
diferentes da mesma música:
"Descansa na filiação divina. Deus é
um Pai — o teu Pai — cheio de
ternura, de infinito amor."

"Chama-lhe Pai muitas vezes e diz-lhe


— a sós — que o ama, que o ama
muitíssimo! Que sente a força e o
orgulho de ser seu filho"7.

7 Escrivá. J. Forja, n. 331.


Os salmos ajudam-nos a solicitar de
Deus essa força, essa segurança
fundamentada na confiança:

Sê para mim, Senhor, um rochedo


forte, uma fortaleza que me salve; pois
o meu rochedo e muralha és tu: guia-
me por teu nome, conduze-me! (Sl
31,3-4).

A providência divina

Sobre o amor generoso e previdente


de Deus Pai, o Catecismo da Igreja,
Católica nos diz: "O testemunho da
Escritura é unânime: A solicitude da
divina providência é concreta e direta,
toma cuidado de tudo, desde as
mínimas coisas até os grandes
acontecimentos do mundo e da
história"8.

8 Catecismo da Igreja Católica, n. 303

A total confiança na providência de


Deus é um dos sinais mais
característicos dos santos. Entre mil
exemplos, apresentaria apenas dois: o
santo cura d'Ars e dom Bosco.

Santo cura d’Ars fundou uma


instituição que cuidava de meninas
pobres e órfãs, denominando-a,
precisamente, A Providência. Não
contava com meios econômicos, nem
com recursos de qualquer gênero.
Vivia confiando sempre na
Providência.
Em 1829, segundo narra seu melhor
biógrafo, Francis Trochu, chegaram a
uma situação extrema:

A provisão de trigo, que se guardava


então no celeiro da casa paroquial,
ficou reduzida a quatro punhados
espalhados sobre o pavimento. Nada
podia esperar-se dos paroquianos, pois
a colheita tinha sido péssima [...]. Não
podendo esperar nada dos homens, o
cura d'Ars quis fazer uma prova de
confiança suprema na divina
providência: Pediu um verdadeiro
milagre. Reuniu numa só porção, no
meio do celeiro, todo o trigo disperso
pelo chão, e ocultou nele uma relíquia
de são Francisco de Régis a quem tinha
muita devoção e, depois de
recomendar às pequenas órfãs que se
unissem a ele para pedir a Deus "o pão
de cada dia", pôs-se em oração, e, já
tranqüilizado, disse a Joana Maria, a
padeira da Providência:

— "Vá ao celeiro preparar o trigo que


nos resta."

Agradável surpresa! Mal abriu a porta,


da estreita fenda sai um jato de trigo.
Joana Mana desce e diz ao senhor
cura:

Nunca o celeiro estivera tão cheio.


Maravilharam-se de que a viga mestra,
um tanto carcomida, assim como o
pavimento, não tivessem desabado. A
montanha de trigo tinha a forma de
um cone e cobria toda a superfície.
Visitando-o um dia dom Devie, bispo
da Diocese, ao falar com o cura,
perguntou-lhe à queima roupa:

— "O trigo chegava até ali, não é


isso?", e apontava com um dedo um
ponto elevado da

parede.

— "Não, senhor bispo, mais acima...


até lá."9.

9 Trochu. E. El Cura d’Ars, Madrid,


Palabra, 1984, PP. 256-257.

O milagre foi notório. Ninguém


poderia negá-lo. No entanto, não
causou grande surpresa: todos
reconheciam que a confiança do seu
pároco na providência fazia coisas
prodigiosas.

Outro exemplo admirável da confiança


na providência de Deus, encontramo-
lo em dom Bosco. Auffray, um dos
mais conceituados biógrafos de são
João Bosco, conta-nos uma passagem
de sua vida que bem poderá parecer
uma lenda, se não estivesse
constatada por estudos históricos
fidedignos.

Talvez — diz o autor — algum


incrédulo sorrirá, mas o fato teve suas
testemunhas, que nós chegamos a
conhecer que pudemos interrogar e
que nos confirmaram com juramento
da veracidade do que se narra.

Um “novato” do Oratório de Turim,


depois de um mês de vida de colégio,
escrevera à mãe que não podia
acostumar-se e que, portanto, fosse
buscá-lo e o levasse outra vez para
casa.

A mãe atendeu, foi a Turim, e


prepararam tudo para o menino partir.

Na manhã do dia da partida, porém, o


pequeno quis confessar-se pela última
vez com dom Bosco; os penitentes
eram tão numerosos que não chegou a
vez de nosso herói, senão no fim da
missa. E era a hora da modesta
refeição da manha. Exatamente no
instante em que Dalmazzo — assim se
chamava o menino — ia começar a sua
confissão, aproximou-se de dom Bosco
um dos alunos mais velhos,
encarregado da distribuição dos
pãezinhos, e murmurou ao ouvido do
santo: "Não há pão para esta manhã".
"Impossível!" respondeu dom Bosco,
procure bem. Pergunte a fulano que é
quem deve providenciar. Ele está aí
por perto. Passados poucos minutos, o
menino voltou e disse: "Procuramos
em todos os cantos e só conseguimos
encontrar alguns pãezinhos".

Percebeu-se que Dom Bosco ficou


impressionado.

— Pois então corra ao padeiro e diga-


lhe para trazer tudo o que for preciso.

— Mas, dom Bosco, é inútil ir lá. O


padeiro disse que não dará nada,
enquanto não lhe pagarmos as doze
mil liras que estamos devendo.

— Está bem. Nesse caso, ponha no


cesto tudo o que você encontrou. O
resto Deus mandará. Daqui a minutos
vou eu mesmo fazer a distribuição.

Dalmazzo não perdeu uma sílaba desse


diálogo.

Ficou impressionado, especialmente


com as últimas palavras de dom Bosco.
E quando o viu levantar-se do
confessionário, foi atrás dele cheio de
uma curiosidade bem natural, que se
tornava porém muito mais viva, por
ter ele ouvido poucos dias antes a
narração de vários fatos maravilhosos
acontecidos no Oratório, fatos nos
quais se manifestava evidentemente
certo poder misterioso de dom Bosco.

O menino colocou-se por trás do santo


e contou cuidadosamente os
pãezinhos que estavam no cesto.
Havia quinze.

— Quinze para trezentos! Trezentos


para quinze!... ia monologando o rapaz
e não havia jeito de encontrar solução.
Começou a fila. Cada um passava e
recebia seu pãozinho. A pequena
testemunha, com os olhos arregalados
e todo cheio de comoção, olhava dom
Bosco que ia servindo a todos,
sorridente, sem deixar ninguém com
as mãos vazias. Depois que o último
menino recebeu seu quinhão,
Dalmazzo olhou para o fundo do cesto
de novo: quinze pães, nem um a mais
nem um a menos.

Resultado: disse logo à mãe que não


queria mais ir-se embora do Oratório.

Tornou-se sacerdote e foi primeiro


pároco da paróquia salesiana do
Sagrado Coração em Roma e o
primeiro procurador geral da
Congregação, junto à Santa Sé10.

10 Aufray, A. Dom Bosco 4, Ed. São


Paulo, Editorial Dom Bosco, 1946, PP.
244 e 245

Milagres como esse sucederam-se sem


interrupção na vida do santo. Em
cetros momentos parecia que tudo
vinha abaixo. Chegavam contas
enormes para pagar e a caixa estava
vazia. Iam procurá-lo, suspendia uma
carta que estava escrevendo e
respondia: "Está bem". Naturalmente
insistiam: "É preciso tomar
providências, dom Bosco!" E ele
replicava com calma: "A divina
providência dará uma solução". E
continuava a escrever. E quer se
tratasse de trinta, quer de quarenta ou
cem mil francos, aparecia sempre
alguém no tempo oportuno e lhe
oferecia a soma necessária. Dom
Bosco, sem surpreender-se, sorri11.

11 Aufray, A. Dom Bosco, op. Cit., p.


339

Os santos confiavam em Deus. E essa


confiança, dizia-mos antes, "provoca"
o poder infinito de Deus. Como dizem:
"A oração dos santos é a fraqueza de
Deus".

Deveríamos meditar a fundo as


palavras que o Pai eterno diz a santa
Catarina de Sena, transcritas por ela no
Diálogo:

É a providência que fez e fará tudo,


porque sou eu quem envia e quem
permite todos os acontecimentos, as
provas e as consolações, tanto as
espirituais como as temporais, a fim de
santificar-vos e de levar a cabo a
minha verdade em vós. E essa verdade
vos é mostrada no sangue do meu
único Filho12.

12 Catarina de Sena, Diálogo, n. 106.


Pergunta a esse respeito, Chevrot:

Deus proíbe-nos por acaso, de


preparar esses amanhãs
desconhecido?. De maneira nenhuma,
pois os que não enxergam além do dia
de hoje correm para a ruína. O Senhor
nos proíbe apenas que nos
inquietemos com o amanhã. A
imprevidência é uma falta porque
sacrifica o futuro ao presente; mas a
inquietação não é um erro menos
grave, pois sacrifica o presente ao
futuro13.

13 Chevrot, G. As pequenas Virtudes


do Lar, São Paulo, Quadrante, p. 47.

O abandono nas mãos de Deus não é


uma justificação da imprevidência —
Deus não promove os irresponsáveis e
os preguiçosos — e sim uma muralha
indestrutível contra a inquietação
infecunda.

Teologicamente, sabemos que Deus


nos dá graças atuais para
solucionarmos problemas atuais; mas
não nos dá graças atuais para
solucionarmos preocupações futuras
forjadas por uma imaginação
desenfreada desprovida de fé.

Ternos de fazer o propósito firme de


rejeitar nossas preocupações — fruto
da imaginação desvairada — e trocá-
las por ocupações. As preocupações
crescem à margem das nossas
ocupações, geralmente nos momentos
de ociosidade esvaziada de fé. Ocupar
nosso tempo empenhando-nos a
fundo — impregnados da confiança
em Deus — na realização de um ideal
de vida que represente, diante de
Deus, nossa vocação, tal é o remédio
mais importante contra qualquer tipo
de angústia.

Uma expectativa esperançosa

O futuro pode apresentar-se como um


campo aberto às realizações ou como
um terreno minado de perigos, como
um caminho claro rumo à felicidade ou
como uma picada tortuosa na floresta
escura. Há quem se aventure pelo seu
futuro com espírito de conquista e há
quem nele adentre com ânimo
apreensivo. E nesses diferentes modos
de enxergá-lo, tem um papel
importante a imaginação: "A doida da
casa", como a chamava santa Teresa
de Jesus.

Ninguém escolheria uma doida como


conselheira, escreve Salvatore Canais,
uma doída que:

nos comunica os seus temores e nos


perturba com as suas apreensões, que
nos sussurra ao ouvido suspeitas
infundadas, [...] que nos faz abandonar
a realidade com sonhos fantasiosos,
cheiros de euforia ou de pessimismo14

14 Canals S. Reflexões espirituais. São


Paulo, 1984 pp. 100-101.

Muitas vezes, porém, é exatamente


isso o que fazemos; indícios
insignificantes são agigantados pela
imaginação: um pequeno caroço
transforma-se em câncer, uma dor no
peito em ameaça de enfarte, o atraso
de um ente querido em desastre
rodoviário, um ruído estranho no
motor do avião em sentimento
angustiante...

O Senhor nos convida, no entanto, a


viver em paz no presente sem permitir
que as angústias a respeito do futuro
nos assaltem: "Basta a cada dia a
própria dificuldade" (Mt 6,34). Cumpre
viver o dia de hoje sem nos
preocuparmos com o dia de amanhã,
pois o dia de amanhã trará consigo os
seus próprios cuidados.

É uma insensatez sobrecarregar nosso


espírito com a perspectiva de
problemas e dificuldades futuras,
talvez vistas através das lentes de
aumento da imaginação. A realidade
na vida concreta está feita de um ato e
depois de outro, de um dever que se
cumpre, de uma cruz que se abraça, de
uma tristeza que se aceita, de uma
alegria que se agradece..., a cada
instante, em cada momento. Viver em
plenitude cada minuto, colocar nele
todo o nosso ânimo e toda a nossa
vibração, como se esse minuto fosse
uma eternidade, é o que o Senhor nos
quer dizer quando nos aconselha:
"Basta a cada dia a própria
dificuldade" (Mt 6,34).

"Viver plenamente o momento


presente — diz Chiara Lubich — é o
pequeno segredo com o qual se
constrói, tijolo a tijolo, a cidade de
Deus em nós"15. Viver o momento
presente significa abraçá-lo
decididamente para santificá-lo e
afastar muitos pesos desnecessários e
— tantas vezes! — muito mais difíceis
de carregar nos ombros. Essa
sabedoria é própria dos filhos de Deus
que se sabem nas suas mãos e do bom
senso da experiência do cotidiano:
"Quem fica olhando o vento, nunca
semeará; quem fica olhando as
nuvens, jamais colherá" (Ecl 11,4).

15 Lubich, Ch. Meditação p.61.

O Senhor disse bem: "Tornem-se como


crianças" (cf. Mt l 8,3). A criança não se
angustia com o futuro, confia tudo à
sua mãe e ao seu pai porque sabe que
está sob seus cuidados: Deixa-se levar
pela sua mão: "Tu me agarraste pela
mão direita. Tu me guias com o teu
conselho" (Sl 73,23-24)16.

16 Cf. scarijvErs, J. O dom de si. São


Paulo, Quadrante, 1993- pp. 32-35.

Esse deixar-nos guiar suavemente por


Deus como uma criança, dá muita paz.

Há pessoas, ao contrário, a quem as


apreensões do futuro estragam as
alegrias do presente. Sofrem
antecipadamente. Sofrem
desnecessariamente. Mark Twain
declarava, na sua velhice, que noventa
por cento dos seus presságios
agourentos, que tanto lhe tinham
amargurado a vida, nunca se
realizaram: "Sofri à toa", confessava
com um sorriso irônico.

Ao longo de nossa vida, já se terão


aproximado de nós amigos, parentes,
conhecidos, para nos confidenciarem
os seus temores. Um deles, num
momento de intimidade, comenta:
"Quando me sinto feliz, parece que
uma sombra se aproxima de mim com
esta ameaça: 'Isso vai terminar
logo'...". Aquele colega de trabalho
vem dizer-nos: "Você não reparou
como o diretor anda olhando para
mim? Cada vez fico mais convencido
de que vou ser posto no olho da
rua...". O padrão mental dessas
pessoas é a expectativa do pior;
acrescentaram, às sublimes bem-
aventuranças evangélicas uma
inventada pelo seu pessimismo: "Bem-
aventurados os que não esperam,
porque não serão desesperados".

Tive um colega de escola que tinha


este lema de vida: "Pense no pior".
Éramos vizinhos de carteira. Certa vez,
um funcionário do colégio entrando na
sala, falou com o professor e este, com
uma atitude muito séria disse-me:
"Estão telefonando com urgência da
sua casa". Em voz baixa confidenciei
com esse meu colega: "Estranho!
nunca me telefonaram de casa para o
colégio. O que terá acontecido?" K ele
respondeu-me com voz cavernosa:
"Pense no pior". Saí da sala
impressionado. "O pior, o pior". O que
é o pior?: Minha mãe morreu. Meu pai
morreu. Algum dos meus irmãos
sofreu um desastre... Quando peguei o
telefone estava apavorado.

— Alo! Quem fala?

— É mamãe

— E eu pensei: "Ainda bem, não foi


mamãe que morreu". E então
perguntei:

— E papai, como está?

— Está bem, meu filho.

— Aconteceu alguma coisa com os


meus irmãos?

— Não. Por que esses pensamentos


tão tenebrosos? perguntou-me.

— É que vocês nunca me telefonaram


ao colégio. O que está acontecendo,
mãe?

— Acontece que não encontramos as


chaves do carro e estamos aflitos.

Indiquei o lugar onde as chaves


estariam e, enquanto voltava à sala de
aulas, radiante, ia dizendo: "Graças a
Deus, graças a Deus!".

Pensei então em pregar uma peça ao


tal colega. Aproximei-me dele com a
cara deprimida e ele, com o olhar
"urubulino", perguntou-me: "O que
aconteceu?" Dei-lhe então uma
fortíssima cotovelada nas costas e ele,
enquanto se contorcia, insistia
perguntando: "O que aconteceu?".
"Pense no pior, acho que lhe quebrei
uma costela."

Depois de contar-lhe o verdadeiro


desfecho do telefonema, rimos para
valer. Tive então a oportunidade de
dizer-lhe que o seu lema de vida era
absolutamente "furado", que, com
essa mentalidade de "urubu", não
realizaria nada de valor na vida. A
partir desse momento, meu amigo
mudou.

Não podemos imaginar os estragos


que essa ótica pessimista provoca na
personalidade. Por um lado, entristece
o presente, torna inseguro o caminhar,
diminui as forças, tira o ânimo e
prejudica a saúde da alma e do corpo.
Por outro lado — e este é um aspecto
importante —, as apreensões do
presente barram a feliz realização do
futuro. O pensador alemão
Wassermann expressou essa idéia com
uma frase incisiva: "O temor cria o que
se teme"17.

17 Wassermann, J. El caso Maurizius.


Barcelona,1974. P. 324

Podemos dizer que a expectativa do


fracasso já é um fracasso. É que o
pessimismo, o temor de ser
malsucedido, provoca uma inibição
natural de nossa capacidade: torna-
nos ansiosos, tímidos, covardes.
Bloqueia, por assim dizer, todas as
nossas potencialidades de vitória,
embota a visão e impede que
enxerguemos todos os elementos
necessários à realização do
empreendimento. E é isso o que
provoca o fracasso.

Em sentido contrário, a expectativa da


vitória já é metade da vitória, porque
essa disposição otimista estimula, abre
campos de visão mais largos, aptos
para captar todos os recursos que
propiciam o êxito. Incentiva nossa
energia, catalisa a capacidade para nos
empenharmos a fundo, proporciona
resistência e vitalidade ao nosso
espírito de luta e termina, assim,
criando condições favoráveis ao bom
resultado do projeto.

Essa expectativa de vitória, esse


otimismo cristão — repetimos — é
fruto de nossa fé, de nosso abandono
em Deus. E não conseqüência de "uma
filosofia de vida" que se baseia em
algo tão inconsistente e ingênuo como
o tão difundido "pensamento
positivo".

Há um único caminho para a felicidade


— diz Epicteto, traduzindo para nós a
sabedoria clássica —, e esse caminho é
deixar de nos preocuparmos com as
coisas que estão além do poder de
nossa vontade.

Esse princípio pagão é muito sábio,


porém muito frio, além de insuficiente.
Pois, se as coisas estão fora de nosso
poder, em poder de quem estarão? Do
acaso? Do azar?
A felicidade que Epicteto nos propõe,
não encontra resposta para além
dessas perguntas. E uma felicidade
estóica, que se obtém com uma forte
educação da vontade, mas que não
chega a intuir a suavidade e a paz do
pensamento cristão. Um pensamento
que vamos repetir como um estribilho
ao longo destas páginas:

Não vos preocupeis com a vida [...].


Olhai os corvos; eles não semeiam,
nem colhem [...] Deus os alimenta.
Quanto mais valeis vós do que as aves!
Quem dentre vós pode prolongar por
um pouco a duração de sua vida? [...].
Observai os lírios, como não fiam nem
tecem [...]. Se Deus veste assim a erva
do campo, que hoje existe e amanhã é
queimada no forno, quanto mais a vós,
homens fracos na fé? (Lc 12,22-28)18.

18 Cf. llano cifuentus, R. Otimismo. São


Paulo, Quadrante, 1990. pp. 15-16.

Se somos homens de fé, somos


homens que abandonam em Deus as
suas preocupações.

E se confiamos em Deus... confiemos


de verdade! Ele não nos faltará.
"Segure na mão de Deus e vai... segure
na mão de Deus e ela o sustentará.
Não tema, siga adiante, e não olhe
para trás,... segure na mão de Deus e
vai." Assim rezamos ao cantar aquela
velha música religiosa.

Quando nos custa entender a divina


providência

Há momentos delicados,
especialmente dolorosos em que nos
custa muito entender e aceitar os
desígnios da providência divina.
Parece-nos incompreensível que um
Pai amoroso como Deus possa permitir
que uma pessoa querida por nós se
encaminhe por veredas de perdição, se
marginalize na droga, deslize na
corrupção, na desonestidade, na
infidelidade... Parece-nos incompatível
com a bondade de um Pai, que ele
permita sermos surpreendidos por
uma doença grave, ou uma morte
repentina, uma injustiça ou calúnia
infundada... Há tantas circunstâncias
em que não entendemos Deus...
Tais circunstâncias, contudo, devem
ser iluminadas pela doutrina católica,
que poderia encontrar uma síntese
significativa num texto de João Paulo
II, na sua catequese sobre o amor
providente de Deus Pai:

Diante do amor providente do Pai,


vem espontâneo perguntar-se como se
pode explicar o sofrimento. E é preciso
reconhecer que o problema do
sofrimento constitui um enigma,
diante do qual a razão humana se
perde.

A divina revelação ajuda-nos a


compreender que o sofrimento não é
querido por Deus, tendo entrado no
mundo por causa do pecado do
homem (cf. Gn 3,16-19). Deus o
permite para a própria salvação do
homem, tirando do mal o bem. "Deus
onipotente [...], por ser sumamente
bom, jamais permitiria que qualquer
mal existisse nas suas obras, se não
fosse suficientemente poderoso e bom
a ponto de tirar do próprio mal o bem"
(santo Agostinho). Significativas, a esse
respeito, são as palavras
tranqüilizadoras, dirigidas por José a
seus irmãos, que o tinham vendido e
agora dependiam do seu poder: "Não
foram vocês que me mandaram para
cá. Foi Deus. [...] Vocês pretendiam o
mal contra mim, mas o projeto de
Deus o transformou em bem, a fim de
cumprir o que se realiza hoje: salvar a
vida de um povo numeroso" (Gn 45,3;
50,20).
Os projetos de Deus não coincidem
com os do homem; são infinitamente
melhores, muitas vezes, porém,
permanecem incompreensíveis à
mente humana.

Diz o Livro dos Provérbios: "É lahweh


que dirige os passos do homem. Corno
poderia alguém discernir o próprio
caminho" (Pr 20,24). No Novo
Testamento, Paulo pronunciará este
princípio consolador: "Sabemos que
todas as coisas concorrem para o bem
dos que amam a Deus" (Rm 8,28).

Qual deve ser nossa atitude diante


dessa próvida e clarividente ação
divina? Não devemos, certamente,
esperar de maneira passiva aquilo que
ele nos manda, e sim colaborar com
ele, a fim de que realize tudo o que
começou a fazer em nós. Devemos ser
solícitos sobretudo na busca dos bens
celestes. Estes devem ocupar o
primeiro lugar, como Jesus exige: 'Em
primeiro lugar busquem o Reino de
Deus e a sua justiça"(Mt 6,33).

Os outros bens não devem ser objeto


de preocupações excessivas, pois
nosso Pai celeste conhece quais são
nossas necessidades; é o que nos
ensina Jesus quando exorta os seus
discípulos a "uma entrega filial à
providência do Pai celeste que cuida
das mínimas necessidades dos seus
filhos" (CIC, n. 305)19.

19 João Paulo II, catequese da quarta-


feira, 24 de março de 1999: "Deus Pai:
amor providente". L”Osservatore
Romano, 27 de março de 1999, p. 12,

Essa exposição serena de João Paulo II


projeta uma luz sobre o ministério
incompreensível dos projetos de Deus.

A gravidez de Maria era


incompreensível para José, e para os
dois um verdadeiro mistério o
abandono e desamparo do Menino-
Deus em Belém, a perseguição de
Herodes, a matança dos inocentes, a
fuga para o Egito... Muito mais
incompreensível aos olhos humanos, é
que um Pai infinitamente poderoso e
bom permitisse que seu filho Jesus
fosse caluniado, chicoteado, cuspido,
injuriado, crucificado...
E, no entanto, tudo isso trouxe a
redenção do gênero humano, nossa
salvação. Para onde acudiríamos no
meio das nossas dores e sofrimentos
se não tivéssemos a possibilidade de
abraçar-nos à cruz de Cristo, para
sermos co-redentores com ele? Como
poderíamos oferecer nossas dores a
Deus por nossa própria salvação e pela
salvação dos que nos rodeiam, se não
pudéssemos dizer: "Senhor eu sofro
por você, unindo-me à sua cruz, como
retribuição ao muito que você padeceu
por mim, em reparação dos pecados
do mundo. Que sentido teria oferecer
nossos sofrimentos por uma intenção,
por uma pessoa, se não fosse
participando das dores do Senhor
como verdadeiros co-redentores?
Onde se refugiariam os que sofrem a
marginalização da pobreza, os que
estão confinados nas favelas, os que
padecem nos hospitais...?

Quando ficamos centrados em nós


mesmos, tristes porque não
conseguimos entender o sentido de
uma situação dolorosa, como os
discípulos de Emaús, deveríamos
meditar as palavras que o Senhor lhes
disse, ao longo do caminho: "Como
vocês custam para entender, e como
demoram para acreditar em tudo o
que os profetas falaram! Será que o
Messias não devia sofrer tudo isso,
para entrar na sua glória?" (Lc 24,25-
26).

Será que nós também custamos para


entender que essa circunstância
conflitiva que nos angustia tem um
sentido dentro dos projetos
amorosíssimos de nosso Pai-Deus?

Tudo tem um sentido. Nós vemos as


realidades terrenas como se
estivéssemos observando o trabalho
hábil de um artista confeccionando
uma tapeçaria, mas às avessas, do lado
contrário em que ele vai sendo
sabiamente elaborado. Enxergamos
apenas as cores apagadas, os perfis
confusos, os nós, os fiapos
desajeitados... Não entendemos nada,
não conseguimos perceber a harmonia
do conjunto... mas um dia, quando
passarmos para o lado de lá, quando
deixarmos o tempo e entrarmos na
eternidade, o artista divino nos
mostrará a vertente definitiva e
verdadeira da vida, o significado
daquelas saliências irregulares e
manchas sem sentido: diante de
nossos olhos aparecerá a esplêndida
tapeçaria de nossa existência... E
preciso confiar, esperar, ... aceitar
docilmente o trabalho inigualável, do
tapeceiro divino, mesmo que não
cheguemos a entendê-lo.

Recordo agora com toda a clareza um


incidente doloroso com uma moça que
tinha direção espiritual comigo. Estava
noiva, faltavam poucos dias para o
casamento, os convites já tinham sido
enviados, os detalhes da cerimônia e
da recepção dos convidados prontos...
E, de repente, o noivo desistiu do
casamento. Não dava para entender
uma coisa dessas. Pode-se imaginar
em que estado de ânimo ficou a noiva.
Insistiu com o rapaz. Pediu a Deus mil
vezes um milagre. Ele, porém estava
irredutível. Em prantos, dizia-me que
não podia entender como Deus
permitia uma coisa dessas. Era uma
crueldade. Tentei fazê-la entender que
Deus sabe mais, que algum dia
entenderíamos os últimos porquês dos
acontecimentos... Contudo, não havia
jeito de ela aceitar qualquer tipo de
argumento. Limitei-me, enfim, a
acrescentar que deveríamos rezar para
que o Senhor nos fizesse entender o
significado de tão doloroso
acontecimento. Um mês depois da
data marcada para o casamento, o
rapaz teve um acesso violento de
loucura e foi preciso interná-lo. Sua
doença era grave e já existia,
escondida, larvada há muito tempo.

A moça soluçando dizia-me: "Eu estava


querendo que Deus me permitisse
casar com um louco, [...] se ele tivesse
concordado com o meu pedido, agora
eu estaria unida a um doente mental
por toda a vida... Realmente o senhor
tinha toda razão quando me dizia:
"Deus sabe mais!".

Esse incidente, entre outros, ajudou-


me a colocar no devido lugar muitos
acontecimentos... Há um antigo adágio
da sabedoria popular que diz: "O
tempo e o desengano são dois amigos
leais que despertam quem dorme, e
ensinam quem não sabe". O tempo!
Quanto ensina o tempo! Quantas
coisas entendemos quando olhamos
para trás, quando vamos lendo na
biografia de nossa vida o significado de
tantos acontecimentos... É preciso
saber esperar, crescer na virtude da
paciência e depois decifrar o
significado profundo dos capítulos
mais obscuros e dolorosos de nossa
vida, com a perspectiva que dá a
distância e a luz que Deus nos envia...
O desengano!... A desilusão, a
decepção, o fracasso, a frustração, a
doença, a infidelidade, a morte... Cada
uma dessas palavras traz no seu
âmago uma mensagem pessoal, talvez
uma lição que Deus queira nos ensinar
de modo muito concreto.

Não reconhecemos agora, por acaso,


olhando para trás, a pedagogia divina
encerrada naquele fracasso ou
naquela matéria que reprovamos ou
naquela reprimenda de nosso pai,
chamando a atenção para nossa
preguiça ou nosso desleixo? Não
aprendemos, por ventura, uma lição
divina naquela doença que nos ajudou
a refletir; naquela crítica que burilou
nossa auto-suficiência; naquela
separação dolorosa que nos ensinou a
verdade revelada por são Paulo: "A
aparência deste mundo é passageira"
(lCor 7,31); "O tempo se tornou
breve..."? (1Cor 7,29). Não é verdade
que debruçando-nos sobre as páginas
de nosso passado entendemos
algumas vezes aquilo que nosso
Senhor nos diz: "Eu sou a videira, e
vocês são os ramos [...] sem mim vocês
não podem fazer nada" (Jo l 5,5)? As
"podadas" de Deus nos ramos da
videira são freqüentemente dolorosas,
mas depois nascem brotos mais
fecundos e vigorosos, frutos mais
delicados e saborosos... "Deus sabe
mais!".

Benjamim Hirch toca essa verdade


quando nos fala de um incidente
doloroso da sua vida:

Em 1938, quando eu tinha seis anos,


um grupo de nazistas entrou em nossa
casa em Frankfurt, e levou meu pai
para um campo de concentração. Dias
depois, minha mãe me colocou num
trem que ia para a França. Eu ainda
penso na última vez que a vi, me
dando adeus na estação, chorando,
sem que eu pudesse entender direito
por que aquilo tudo estava
acontecendo.

Muitas coisas na vida me deixam


confuso, como aquela experiência da
minha infância. Entretanto, mesmo
assim ainda sou capaz de entender
que tudo que faço é pela graça de
Deus.

E isso me traz à memória uma história


atribuída ao grande rabino Bal Shen
Tov. Conta-se que ele estava no topo
de uma colina, com um grupo de
estudantes, quando viu uma tropa de
cossacos atacarem a cidade e
começarem a massacrar as pessoas.

Vendo seus amigos lá embaixo,


morrendo e pedindo misericórdia, o
rabino exclamou:
— Ali, se eu pudesse ser Deus!

Um discípulo, chocado, virou-se para


ele:

— Mestre, como ousa proferir uma


blasfêmia dessas? Quer dizer que, se o
senhor fosse Deus, agiria de maneira
diferente? Quer dizer que o senhor
acha que Deus muitas vezes faz o que
é errado?

O rabino olhou nos olhos do discípulo


e disse:

— Deus sempre está certo. Mas se eu


pudesse ser Deus, eu saberia entender
o que está acontecendo.
Nem sempre entendemos a atitude do
Pai. Nem sempre percebemos que ele
utiliza acontecimentos e pessoas como
veículos para realizar seus projetos
paternais.

Nesse sentido Deus se vale amiúde de


percalços, à primeira vista sem
sentido, de situações que nos parecem
fora de razão... Às vezes em coisas
grandes, outras em incidentes
corriqueiros: o próximo que não me
entende, os filhos que não percebem
que buscamos apenas o seu bem, o
superior que não leva em consideração
nossas ponderações, a perda da honra,
da saúde, da fortuna, as pequenas e
grandes dificuldades que nos fazem
sofrer e perder a alegria...
E que sentido têm as coisas sem
sentido?... A resposta no-la dá santo
Tomás Morus, o grande estadista e
escritor, — condenado por não curvar-
se às pretensões de Henrique VIII,
contrárias à fé —, que da Torre de
Londres escrevia assim a sua filha
Margarida:

Tenha bom ânimo, minha filha, e não


se preocupe comigo, seja lá o que for
que me aconteça neste mundo. Nada
pode acontecer-me que Deus não
queira. E tudo o que ele quer, por pior
que nos pareça, na realidade é o
melhor20.

20 Santo Tomás Morus. Carta escrita


na cadeia à sua filha Margarida.
Tomás Morus morreu mártir da fé,
decapitado por defender a verdade
católica. "Um homem válido para
todas as épocas", segundo o título de
um conhecido filme que se fez em sua
memória. Um exemplo de fidelidade e
de coragem que nos faltaria se Deus
não tivesse permitido uma injustiça
tão clamorosa: Deus tirou daquele mal
um grande bem.

O Pai não se esquece de nós. Nunca.


"Ele é rico em misericórdia" (Ef 2,4).
Penetra a fundo nos acontecimentos e
deles tira um benefício para nós. Deus
sempre salva os que nele esperam.

Os homens de Deus nos ensinam a


enxergar as realidades acima dessa
atalaia de Deus que domina o passado,
o presente e o futuro, com aquele
olhar sereno que só a confiança total
na divina providência pode
proporcionar. Transparecia claramente
essa postura na personalidade de são
Pio X.

Ao aparecer o santo — escreve seu


mais importante biógrafo — nas
grandes salas de audiências, com
aquele passo sempre lento e
silencioso, que impressionava, a
multidão colocava-se instintivamente
ao seu redor e não tirava os olhos de
sua figura; ouvia-se um murmúrio de
vozes tímidas que implorava luz e
consolo para as dores e para os
problemas da vida. Então, o papa
santo, elevava o seu olhar sereno,
sobrenatural, que parecia ter reflexos
de um mundo supra-humano e, com
um gesto, abençoava a todos,
passando como uma maravilhosa
visão: atrás de seus passos brilhava "o
poder das chaves supremas", como
dizia ele mesmo referindo-se à
capacidade eminente do vigário de
Cristo, outorgada por nosso Senhor.

Parecia como se um impulso


irresistível empurrasse toda espécie de
atribulados a pedir ajuda ao santo
papa, com a certeza de encontrar, em
contato com suas mãos e na eficácia
de sua benção apostólica, um consolo
para todas as lágrimas, um alívio para
toda dor, um remédio para todas as
inquietudes; e os prodígios que se
produziam lembravam os dias em que
o Mestre divino passava por entre as
ruas da Palestina, fazendo o bem e
curando a todos21.

21 Dal-Gal, G. Pio X. El papa santo.


Madrid, Palabra, 1985. P.292.

Qual era o segredo dessa imensa


serenidade? Uma convicção que ele
sempre expressava nos momentos de
aflição, com uma frase que era como o
lema de sua vida: Deus providebit
[Deus proverá]22, Deus pensa em
tudo, Deus sabe tudo... Ele cuida de
cada um de nós... Não nos
preocupemos...

22 Ibidem, p. 255.

Colocar-nos, por meio da oração,


nessa plataforma divina que domina o
tempo e a eternidade, nos dará essa
visão sobrenatural que envolve tudo
numa aceitação confiante da
amabilíssima providência divina.

O fundamento de nossa confiança:

a filiação divina

Que sentimento de paz nos dá


entregarmo-nos confiantemente no
regaço de nosso Pai-Deus! Sem dúvida,
como já manifestamos
reiteradamente, a filiação divina é o
mais forte alicerce de nossa
serenidade. A angústia e a sensação de
desamparo somem quando vivemos
embebidos do sentimento da
paternidade divina. Quando é assim,
de nosso peito brota um gemido que
nos sossega e acalma: "Abba! pai,
papai! Confio em ti".

A ansiedade diante de um diagnóstico


médico, de uma ameaça de
desemprego, de um perigo iminente,
de um problema sem solução aparente
que martela em nossa cabeça,
encontra um canal de serenidade
quando murmuramos: "Abba! pai,
papaizinho!". A visão negativa que nos
faz ver as coisas sem solução, que nos
conduz ao pessimismo e ao desânimo,
que talvez nos faça pensar: "Deus não
é capaz de libertar-me deste
conflito"..., entra num remanso de paz
quando começamos a orar "Abba!
Papa...!". Então nos enchemos de uma
confiança que nos dá a certeza de que
Deus não é incapaz, que o Pai,
riquíssimo em misericórdia, nunca
falha.

O sentimento da filiação divina nos


proporciona uma grande paz, parecida
à tranqüilidade que sentia aquele
cachorrinho perto da proteção
amorosa da sua mãe. Que paz, que
segurança, que firmeza, que
serenidade nos dá saber que estamos
sob a guarda protetora de um Pai
infinitamente terno, sábio e todo-
poderoso! Você e eu, que estamos
fazendo estas reflexões, não sentimos,
por acaso, a necessidade de murmurar
suavemente, agora e muitas vezes ao
longo de nossa vida, no fundo de
nosso ser:

Pai, estou nos seus braços, não me


abandone... Cuide de mim, como uma
mãe cuida de seu filho... Sem você
parece-me que estou perdido, sozinho,
desamparado... Com você sinto-me
seguro, firme, sereno. Fique comigo,
Senhor..., não me deixe sozinho...

Somos filhos de Deus, Por quê?

É evidente que somos filhos de Deus,


porque ele ao nos criar nos deu tudo
quanto somos e temos. No entanto,
devemos compreender que esse fato
não nos transforma propriamente em
filhos de Deus, pois a relação que se
estabelece entre o criador e as suas
criaturas não é a mesma que existe
entre um pai e seu filho, e sim a que
existe entre um autor e sua obra.

Deus não se conforma que sejamos


apenas suas criaturas, e, movido por
seu amor — um amor que nunca
acabaremos de entender nesta vida —,
aproxima-se de nós e estabelece
conosco uma relação muito mais
estreita e familiar. Vejam, diz são João,
"que prova de amor o Pai nos deu:
sermos chamados filhos de Deus. E
nós, de fato, o somos!" (1Jo 3,1). Ser
filhos de Deus! Não há nada que seja
superior, nada que possa cumular e
satisfazer em tal grau nossas
aspirações. Nem a riqueza, nem a
formosura, nem a sabedoria, nem o
amor humano, podem ser comparados
com a maravilha de sermos filhos de
Deus. A filiação divina ultrapassa, em
muito, nossos mais ambiciosos
desejos.

O homem chega à existência pela


geração, e assim como o animal gera
um animal da sua espécie, também o
homem gera outro homem
semelhante a ele. Com freqüência a
semelhança é grande e a gente se
compraz em reconhecer que tal
criança se parece muito com seu pai
ou com sua mãe: nas feições, no porte,
no modo de olhar, de falar... Da
mesma maneira o cristão torna-se filho
de Deus pelo batismo, que é como
uma nova geração, um nascer de novo.
O batismo foi o grande dom que Jesus
Cristo nos concedeu. Aqueles que o
receberam, aos que acreditaram no
seu nome deu-lhes o poder de se
tornarem filhos de Deus (cf. Jo 1,12)
por isso santo Tomás diz: O Filho de
Deus se fez homem para que o homem
se tornasse filho de Deus. Somos filhos
no Filho. Com efeito, pelo batismo
recebemos uma participação
verdadeira e real da própria natureza
divina que nos torna filhos de Deus e
herdeiros da sua glória. Sem essa
participação seríamos apenas criaturas
de Deus, mas de forma alguma seus
filhos. Depois do batismo, no entanto,
somos verdadeiramente de estirpe
divina, temos os traços, as feições, o
porte anímico do Pai.

Com efeito para ser Pai — escreve o


renomado teólogo António Royo
Marín — é preciso transmitir a outro
ser a própria natureza específica. O
escultor que esculpe uma escultura
não é pai daquela obra inanimada, e
sim unicamente o autor. Em sentido
diferente, nossos progenitores são
verdadeiramente nossos pais na
ordem natural, pois nos transmitiram
realmente, por via de geração, sua
própria natureza humana.

É certo que Deus não nos transmite


pela graça sua própria natureza divina
como a transmite o Pai ao Filho no seio
da Santíssima Trindade, mas sim nos
transmite essa natureza divina, por via
de adoção. Não devemos pensar,
contudo, que essa adoção divina por
meio da graça é da mesma natureza
que as adoções humanas: de nenhum
modo. Quando um filho, órfão de pai e
mãe, e adotado legalmente por uma
família caridosa, recebe dela uma série
de bens e vantagens, entre os quais
destaca-se o sobrenome da família
adotiva e o direito aos bens que
deixarem como herança. Há algo, no
entanto, que não lhe dão, nem
poderão dar jamais: o sangue da
família. Essa pobre criança tem o
sangue que recebeu de seus pais
naturais, mas de nenhum modo de
seus pais adotivos. Entretanto, quando
Deus nos adota pela graça, não só nos
dá o sobrenome da família divina —
filhos de Deus — e o direito à herança
— o céu —, mas também nos
comunica, de uma forma muito real e
verdadeira, sua própria natureza
divina.
Usando apenas de uma metáfora — já
que Deus não tem sangue —, mas de
uma metáfora que encerra no fundo
uma realidade sublime, poderíamos
dizer que a graça é uma transfusão de
sangue divino em nossas almas. Por
causa dessa transfusão divina, desse
enxerto divino, a alma acha-se de tal
modo entranhada na própria vida de
Deus, que não só nos dá direito a
chamarmo-nos filhos de Deus, mas nos
torna efetivamente, realmente, os
seus filhos. Por isso o evangelista são
João exclama estupefato: "Vejam que
prova de amor o Pai nos deu: sermos
chamados filhos de Deus. E nós, de
fato, o somos!" (1Jo 3,l)1.

1 Cf. Royo Marín, A. El gran


desconocido. El Espirito Santo Y SUS
dones. 4 ed. Madrid, BAC. 1977, PP.
64-65.

Tão-só após o batismo — acabamos de


dizer — podemos chamar Deus "Pai
nosso". Antes não. Ninguém nasce
"filho de Deus". Não somos gerados
neste mundo como "filhos de Deus”,
como se a vida divina estivesse contida
num gene e fosse um elemento de
nosso DNA. O homem passa a ser
imagem e semelhança de Deus
somente depois de batizado, quando
recebe a filiação divina: Somos divinae
consortes naturae (cf. 2Pd 1,4),
participantes da natureza divina. Essa
participação é pura graça. É um dom
gratuito que nos faz mais filhos de
Deus do que filhos de nossos
progenitores, pois a estes devemos
apenas o corpo e ao Pai celeste
devemos a alma e a sua própria
natureza que flui, como o sangue, por
todos os poros de nosso espírito. Em
outras palavras. A vida que os filhos
recebem por meio da geração humana
já não é a dos pais; a que se dá aos
homens pelo batismo, ao contrário, é a
própria vida de Deus que permanece
em nós pela graça. Sem que com isso
destrua a própria natureza humana,
somos admitidos na intimidade da
santíssima Trindade. Toda a vida é
afetada pela filiação divina: todo o
nosso ser e a totalidade de nossa
atuação2.
2 Cf. Ocariz, F. El sentido de la filiación
divina. Pamplona, 1982. p. 178.

Quando falamos da participação da


natureza divina, acontece algo
semelhante ao que se passa com o
ferro transformado pelo fogo. O que
era frio e escuro, converte-se em brasa
ardente e luminosa. Sem deixar de ser
ferro, participa da natureza do fogo.
Isso é o que acontece quando Deus
nos concede a sua graça: como o ferro
fica incandescente, assim ficamos
divinizados. De "tal pai, tal filho", diz a
sabedoria popular. É exatamente este
o sentido de nossa divinização:
trazemos em nós os traços de Deus,
nosso Pai. Essa realidade deve nos
levar, como a são Cipriano, bispo de
Cartago, a entoar um verdadeiro hino
de ação de graças:

Ó grandeza da misericórdia do Senhor!


Ó abismo de bondade e admiração!
Ter querido que o chamássemos "Pai
nosso"! Nenhum de nós teria jamais
ousado utilizar esse

título, se Cristo mesmo no-lo houvesse


ensinado.

A dignidade de filhos de Deus é tão


profunda, que existe uma diferença
bem maior entre um batizado e um
pagão, do que entre um homem e um
animal. Com efeito, a passagem do
animal ao homem, pela natureza
racional, é infinitamente inferior ao
salto que se dá entre um homem e um
filho de Deus: é uma distância
incomensurável, pertence a uma
ordem sobrenatural não criada,
porque participa da natureza divina. A
passagem da ordem natural à
sobrenatural é infinitamente superior
à passagem da ordem animal à
racional.

Como deveríamos valorizar o


sacramento do batismo! Com que
cuidado deveríamos tratar a todos os
nossos irmãos batizados, filhos do
mesmo Pai, por mais ignorantes,
pequeninos e carentes que fossem! A
deferência que dispensamos a eles
deveria ser muito maior do que aquela
que prestamos aos grandes da terra só
pelo fato de serem presidentes da
república, príncipes, filhos dos reis e
senhores poderosos.
Lembro-me de um episódio
insignificante da minha vida, mas para
mim realmente significativo. Subia a
encosta do Santuário de Nossa
Senhora da Penha — era o dia da
padroeira! — em procissão solene,
atrás do andor: Mitra e báculo. As
pessoas se aproximavam com carinho
de Maria. Tocavam a sua imagem.
Lançavam-lhe beijos simbólicos. No
entanto, não se aproximavam muito
do bispo. Talvez por respeito. De
repente um menino de rua
maltrapilho, que freqüentava a Igreja,
veio correndo e se encostou em mim.
Eu o abracei com a mão direita. Ele
não se separava de mim. Estava
orgulhoso. Parecia-lhe que ninguém
como ele compartilhava essa
intimidade com o bispo. Porém, quem
estava orgulhoso era eu. Orgulhoso e
feliz: os dois irmãos juntos: ele e eu.
Filhos do mesmo Pai. Ele e eu sentimos
isso. Ele, sem família, sem escola, sem
futuro, sentia-se um príncipe ao lado
do seu irmão e de sua Mãe santíssima.

Tal é a dignidade insubstituível de um


filho de Deus!

Em mil e uma ocasiões pude fazer


valer essa dignidade.

Estava, não faz muito, falando numa


palestra precisamente da misericórdia
de Deus Pai. Observava que diante de
mim alguém escutava atentamente,
não perdia uma palavra. Olhava para
mim sem pestanejar. Era um homem
de meia idade, simples e transparente.
No intervalo da palestra, aproximei-me
dele para lhe dizer: "Muito obrigado
por sua atenção; você me animou
muito com sua atitude durante a
palestra". Ele, com um gesto e um
sorriso, manifestou sua gratidão.
Perguntei-lhe, então, o seu nome. E
ele me respondeu: "Não vale a pena
dizer: eu sou um zé ninguém." —
"Não, você não é um zé-ninguém...
quero falar mais com você... mas agora
não temos tempo... Devo continuar a
conferência...".

De fato, tive de dar continuidade à


segunda parte da palestra. Então
aproveitei a oportunidade para dizer:
“Aqui, entre vocês, há alguém que diz
ser um zé-ninguém, e quero que ele
saiba que tem um nome e um
sobrenome de estirpe real, porque é
filho de Deus e é também meu irmão.
E quero dizer a todos os que pensam
ser um zé-ninguém que, ao pisarem
esta terra que Deus criou para nós,
devem sentir o que sente um príncipe
quando pisa os tapetes do palácio de
seu Pai, o Rei: o orgulho santo de se
saberem filhos de um Pai que é o
criador do universo, a fonte da vida e
do amor, a bondade infinita que não
tem nem princípio nem fim, o 'Rei dos
Reis e o Senhor dos Senhores''" (Ap
19,16).

Quando terminou a palestra, aquele


homem, com lágrimas nos olhos, disse-
me: "Não pode imaginar o que
significaram as palavras que nos
dirigiu. De agora em diante, serei
outro homem. Nunca mais me sentirei
diminuído. Nunca mais terei complexo
de inferioridade, nunca mais pensarei
ser um zé-ninguém".

Sou filho de Deus! Temos de repetir


para nós muitas vezes, com nobre
orgulho: "Sou filho de Deus!" Sou filho
do Rei! Tudo o que está à minha volta
pertence ao meu Pai!

Ao considerar a realidade
surpreendente da filiação divina, as
palavras não podem acompanhar o
coração que se emociona perante a
bondade de Deus. Ele nos disse: "Tu és
meu filho!": não um estranho, não um
servo tratado com benevolência, não
apenas um amigo, que já seria muito,
mas filho!: um filho que se comporta
com a liberdade de quem vive no
mesmo lar de seu Pai, um filho que
pede com o atrevimento de quem
sabe que o Pai é incapaz de lhe negar o
que é bom para ele, um filho que vive
de uma confiança sem limites, porque
sabe que tem o melhor dos pais.

A perda da filiação divina

O homem da pós-modernidade parece


rejeitar qualquer sentido de
subordinação. Dá a impressão de
querer cortar o "cordão umbilical" que
o liga a qualquer autoridade, para
sentir-se plenamente livre. Parece
rejeitar toda paternidade que possa vir
a diminuir sua autonomia.
Nietzsche — mentor da teoria do
"super-homem", que tudo indica ter
sido a origem ideológica do Nacional
Socialismo nazista de Hitler — fala da
"morte de Deus" e compara essa
morte a uma libertação, porque assim:

O horizonte abre-se diante de nós,


sem limites. Podemos desdobrar as
velas dos nossos navios e navegar pelo
mar aberto da nossa liberdade.3 Já
não há Pai; já não há autoridade; já
não há sujeição.

3 Cf. Nietzsche, F. La galla scienza, n. V,


343.

Freud, o pai da psicanálise, nos fala da


emancipação do homem em relação a
Deus. Ele nos diz:
A tentativa de conseguir uma proteção
contra o sofrimento leva muitas
pessoas a refugiar-se na religião, na
proteção de um Pai superior, como se
fosse uma alienação, um delírio. As
religiões devem ser classificadas,
assim, como um delírio de massa. É
necessário libertar o homem desse
delírio para que tome consciência da
sua verdadeira realidade.4 Essa
emancipação de Deus é considerada
por ele como algo semelhante ao
"complexo de Édipo", o rei de Tebas na
tragédia de Sófocles, que se casou com
a própria mãe, Jocasta, e matou o pai,
Laios.

4 Cf. Freud, S. The Future of an Ilusion,


Londres, 1927, p. 28.
Essa é também a trilha seguida pelo
"antiteísmo" marxista que denomina a
religião como "ópio do povo".

Essa emancipação que deseja apagar


da face do homem os traços que
revelam sua semelhança com Deus,
conduziu-o progressivamente à
mesma situação de desespero e
solidão que experimenta um órfão
desprovido das suas raízes, da sua
origem e do seu destino, a tal ponto
que muitas vezes já se designou o
século XX como o Século da angústia.
Assim o declara o pensador alemão
Wassermann:

Como a peste nos séculos


precedentes, como a febre amarela
nos trópicos, agora faz estragos a
doença da alma, a epidemia moral, a
desagregação do sentido da vida [...],
uma espécie de neurose epidêmica5.

5 Wasserman, J. Etzel andergast.


Buenos Aires, 1943. P. 367.

Não poderíamos pensar, por acaso,


que a "morte de Deus", a consideração
do homem não como filho, e sim como
"super-homem", acarretou aquela
guerra fratricida, suscitada por Hitler,
que eliminou do planeta terra milhões
de seres humanos? Não será
porventura a supressão da
paternidade de Deus, a suposta
autonomia ilimitada do homem, o
motivo que levou Nietzsche a morrer
louco, abraçado a um jumento? Não
será a invasão do "pansexualismo" de
Freud uma das causas da multiplicação
dessa neurose epidêmica de que falava
Wasserman? Uma neurose provocada
pelo sentimento de desamparo, de
insegurança e de solidão que
experimenta um filho órfão que, como
Édipo, acabou matando seu pai. Essa é
a conseqüência derradeira da "morte
de Deus".

Sartre, filósofo francês, existencialista


ateu, com grande influencia no
pensamento moderno, sustenta que o
conceito de um Pai criador condena o
homem a uma dependência
permanente. Ele seria um ser
misturado, fundido ao Pai,
inteiramente passivo. De modo muito
semelhante a Nietzsche, pensa que a
verdadeira personalidade humana,
independente e autônoma, só se
consegue suprimindo Deus Pai. Afirma:
"Eu matei Deus Pai, agora é necessário
inventar alguém que crie os valores"6.
Isso é como se dissesse: "Agora é
preciso criar alguém que nos dê
amparo e segurança; que reconstrua
nossas raízes, nossa origem e o sentido
de nossa existência".

6 Cf. Moeler, Ch. Literatura do século


XX e cristianismo. São Paulo,
Flamboyant, 1958. V. II. p.75.

A perda do sentimento da filiação


divina foi uma verdadeira catástrofe
para o ser humano. Se o pai não existe,
a vida é um "caos apocalíptico", dirá
Charles Charbonneau7. "Se Deus,
como pai, não existe, só há uma
verdade fácil de entender e difícil de
aceitar: os homens morrem e não são
felizes"8. "A existência humana é um
perfeito absurdo para quem não tem
fé na imortalidade"9, escreverá
Camus. Se Deus não existe, "somos
uma raça de doentes mentais"10, dirá
Koestler. Se Deus não existe, somos
"náufragos num planeta
condenado”11, afirmará Wiener. Se
Deus não existe, todo "o humanismo é
estéril; é um humanismo do
inferno"12, acrescentará Sartre. E
ainda Dostoievski sentenciará
literalmente: "Se Deus não existe, não
entendo como é que um ateu não se
suicida imediatamente"13.

7 Charbonneau, Ch., Le système et le


chãos. Paris, 1973. p. 173-

8 camus, A. Caligula. Paris, s.d. p. 41.

9 Idem, Le mythe de Sysiphe. Paris,


1952. p. 143.

10 koestler, A. Janus, Paris, 1979. p.


114.

11 WlENER, N. Cibernética e
sociedade. São Paulo, 1968. p. 40.

12 SARTRE, J. P- Saint Genêt, comedien


et martyr. Paris, 1964. p. 203.

13 dostoievski, R Les Possédés. Paris,


1964. p. 608.

Se Deus existe, se ele está ao nosso


lado como um Pai amoroso, por que
nos inquietarmos, por que perder a
paz e o otimismo? Por que não nos
deixarmos penetrar por esse equilíbrio
íntimo, por essa serenidade que se
desprende destas palavras tão
repetidas por nós, simples e
profundas, do Senhor que são "como
um rio de paz" (Is 66,12) no mar
agitado das nossas ansiedades e
pessimismos?:

Não se vendem dois pardais por alguns


trocados? No entanto, nenhum deles
cai no chão sem o consentimento do
Pai de vocês. Quanto a vocês, até os
cabelos da cabeça estão todos
contados. Não tenham medo! Vocês
valem mais do que muitos pardais (Mt
10,29-31).
Quando a fé ocupa todos os espaços e
abrange toda a vida — passado,
presente e futuro —, quando ela
representa uma verdadeira entrega
nas mãos de nosso Pai-Deus, como
não havemos de ser otimistas!

Aquela passagem da tempestade no


lago, a que já fizemos alusão, indica
claramente os pólos extremos entre os
quais a mente humana pode oscilar: o
pessimismo que decorre da falta de fé
e a paz e otimismo que dá a presença
de Deus. Jesus entra na barca com os
discípulos. Inesperadamente, levanta-
se a tempestade. Toda a turbulência
do mar se lança sobre a pequena
embarcação que ameaça desaparecer
entre as ondas. Os apóstolos tremem
apavorados. O Senhor, porém, dorme
esgotado de cansaço; sua
tranqüilidade contrasta vivamente
com a agitação e o medo dos
apóstolos. Aos gritos, acordam o
Senhor: "Salva-nos porque estamos
afundando!" E Cristo levantou-se
sereno, "ameaçou os ventos e o mar e
tudo ficou calmo". E disse-lhes,
recriminando-os: "Por que vocês têm
medo, homens de pouca fé?" (Mt
8,23-27).

Nas dificuldades e perigos da vida,


quando a barca começa a balançar,
quando a insegurança e a angústia,
como grandes vagas, querem alagar o
fundo de nossa alma, não podemos
deixar-nos invadir pelo pessimismo e
pelo temor. O Senhor está ao nosso
lado. Parece estar ausente, dormindo,
não estar se preocupando com nossas
coisas, mas está presente, vivo, como
no meio da tormenta.

Deveríamos ver junto de nós essa


figura branca que se destaca contra o
fundo sombrio de tantos perigos, esse
rosto sereno golpeado pelos ventos,
estendendo os braços sobre o mar
num gesto decidido para gritar-lhe
com a voz forte de comando que rege
as energias intimas da criação:
"Acalma-te". Por que duvidas, homem
de pouca fé?

Conta santa Teresa de Jesus, no Livro


da Vida, que no meio das maiores
aflições, quando ninguém a
compreendia, estando "sem consolo
nem no céu nem na terra", temendo
mil perigos, levantou o seu clamor de
modo muito parecido ao dos apóstolos
no meio da tormenta no lago, e o
Senhor lhe fez ouvir estas palavras:
"Não tenhas medo, filha; sou eu, e não
te hei de desamparar; não temas". E
sentiu então uma paz imensa, como se
o mar da sua alma tivesse serenado
totalmente.

Eu recordava — escreve — de quando


o Senhor mandou que os ventos
ficassem quietos, tendo-se
desencadeado a tempestade no mar.
Dizia eu também: quem é esse, tão
poderoso que assim lhe obedecem
todas as minhas potências, que num
instante faz raiar a luz em tão grande
obscuridade, torna brando um coração
que parecia de pedra e dá água de
suaves lágrimas onde deveria
prolongar-se por muito tempo a seca?
Quem dá esse ânimo? De que tem
medo? Oh! Como Deus é bom! Como o
Senhor é bom e como é poderoso! Dá
não só o conselho, mas também o
remédio. Suas palavras são obras. Oh!
Deus meu, quem terá inteligência,
letras e palavras nunca ouvidas, para
exaltar vossas obras como as vê minha
alma! Levantem-se contra mim todos,
persigam-me todas as criaturas... e
não me falteis vós, Senhor, porque já
tenho experiência do lucro com que
tirais a salvo aqueles que só em vós
confiam14.

14 Santa Teresa de Jesus. Livro da


Vida. Petrópolis, Vozes, 1961. PP.199-
200, citado por Llano Cifuentes, R. em
Otimismo. São Paulo, Quadrante,
1990, PP. 26-29.

Como já apontamos, não é o mesmo


ter fé e viver da fé. "O justo vive da fé"
(Hb 10,38): o cristão encontra seu
impulso vital na fé, as tomadas de
posição da sua vida fazem-se a partir
da fé, e é então que experimenta esse
lucro de que fala santa Teresa, que é o
prêmio dos que só nele confiam. O
mar torna-se sólido e firme sob os seus
pés como quando Pedro caminhava
sobre as águas; a vida, ao contrário,
torna-se flutuante e tenebrosa para
quem hesita, como quando Pedro
começou a afundar entre as ondas por
ter duvidado (cf. Mt 14,22-23).
O homem de nosso tempo, ao
prescindir de Deus Pai, entregue a si
mesmo, afunda-se na insegurança, e
procura como tábua de salvação algo
que não seja a sua auto-suficiência
precária: religiões substitutivas, que
não exijam dele renúncias e sacrifícios,
mas que lhe sirvam de suporte e
segurança; crenças que fazem parte da
promoção desses supermercados da fé
onde se oferecem opções
variadíssimas para todos os gostos. A
proliferação de seitas, de misticismos
esquisitos, de filosofias panteístas de
sabor oriental, com ressonâncias
ecológicas, de religiosidades
esotéricas, de horóscopos e tarôs,
"cristais", “pirâmides", "anjos" de todo
gênero, "duendes" e outras mil
espécimes fantásticas que parecem
confluir para o movimento
denominado Nova Era, tão atraente
quanto confuso, correspondem a esse
mesmo fenômeno. Nunca houve tanta
falta de fé autêntica e nunca houve,
paralelamente, tantos sucedâneos e
invenções espirituais mirabolantes. O
homem "racionalista" do século XX
parece ter voltado ao mundo primitivo
povoado de obscuros e irracionais
cabalismos mágicos. Tudo é um
epifenômeno, uma conseqüência da
falta de proteção de um Pai eterno. É,
simplesmente, nostalgia de Deus; um
eco daquelas palavras do salmo: "ó
Deus [...]. Minha alma tem sede de ti,
[...] como terra, seca, esgotada e sem
água' (Sl 63,2).

Neste mundo de perplexidades, em


que os homens quando sentem medo
se agarram ao que podem, a um
precário apoio humano ou a
espiritualismos estranhos e
superstições esquisitas, o Senhor
estende-nos sempre a sua mão —
como a estendia a um Pedro
apavorado — para que a agarremos
com firmeza.

Essa mão está continuamente ao


nosso lado, para encontrarmos nela
como que a conexão com a rede
infinita da onipotência e do amor de
Deus. Como se, por um ato de
profunda fé, nos tornássemos
condutores de toda a luz, de todo o
calor e de todo o poder de Deus. Já
tivemos a experiência da sua presença
inefável ao nosso lado? Já nos
sentimos alguma vez mergulhados na
corrente do mais alto e mais sublime
amor, que é o amor de Deus? Pela
vivência pessoal, já fizemos nossas,
aquelas palavras de são Paulo: "Tudo
posso naquele que me fortalece"? (Fl
4,13). Quando existe essa experiência
encarnada, a vida de um homem muda
completamente.

A vivência da filiação divina: como


crianças diante do pai

Diante de nosso Pai, que é eterno, nós


— por mais velhos que sejamos —
somos como pequenas crianças.

Diz-nos são Marcos, que "alguns


levaram crianças para que Jesus
tocasse nelas. Mas os discípulos os
repreendiam"'(Mc 10,13).

Junto dessas crianças podemos ver


suas mães, que as empurram
suavemente para diante. Jesus devia
criar à sua volta um clima de bondade
e de simplicidade atraente. Sua
personalidade imponente, seu poder
imenso não assustava as crianças. Sua
simpatia e seu sorriso as encantava.
Essas mulheres sentem-se felizes de
que Jesus imponha as mãos sobre os
seus filhos e os tenha perto de si.

A disputa, entre essas mulheres e os


discípulos, que queriam manter certa
ordem, é o prólogo de um
ensinamento profundo de Cristo. Jesus
põe-se do lado das mães. Ele sente-se
feliz entre os pequeninos:
Deixem as crianças vir a mim. Não lhes
proíbam, porque o Reino de Deus
pertence a elas. Eu garanto a vocês:
quem não receber como criança o
Reino de Deus nunca entrará nele.
Então Jesus abraçou as crianças e
abençoou-as, pondo a mão sobre elas
(Mc 10,14-16).

As crianças e suas mães ganharam a


disputa: naquele dia, regressaram
satisfeitíssimas às suas casas.

Devemos aproximar-nos de Deus Pai


com as disposições das crianças: com
simplicidade, sem preconceitos, com a
alma aberta de par em par. Mais
ainda, é necessário que nos tornemos
como crianças para entrar no Reino
dos céus.

O Senhor não recomenda a


puerilidade, o infantilismo, e sim a
inocência e a simplicidade. Vê nas
crianças traços e atitudes essenciais
para alcançarmos o céu.

A criança não tem nenhum sentimento


de auto-suficiência; precisa
constantemente de seus pais, e sabe
disso; é fundamentalmente um ser
carente. Assim deve ser o cristão
diante de seu Pai-Deus: um ser que é
todo ele necessidade. A criança é
transparente: revela as suas
limitações, chora, grita se for preciso:
assim devemos proceder em nossa
oração e em nossas confidências com
quem dirige nossa alma. A criança vive
em plenitude o presente e nada mais;
a doença do adulto é a inquietação
excessiva pelo "amanhã", que o leva a
deixar vazio o "hoje", quando era o
"hoje" que deveria viver com toda a
intensidade13.

13 Cf. Carvajal, F.F. Falar com Deus.


São Paulo, Quadrante, 1989, v. I, p.
122.

Santa Teresa do Menino Jesus foi uma


exímia na ciência da infância espiritual,
da confiança e do abandono nas mãos
de Deus. Ela desejava ardentemente
chegar aos cumes da santidade, mas
conhecia sua fraqueza. A única coisa
que podia fazer era esforçar-se para
realizar tudo o que estava dentro da
sua capacidade humana e esperar
depois, com confiança, na ação
poderosa de Deus.

Ela se imaginava como uma criança


que tentava subir a imensa escada da
santidade. Lá em cima a estava
esperando o Senhor e a chamava.
Tentava subir o primeiro degrau, mas
não conseguia. O seu pé não chegava a
alcançá-lo: escorregava e caía. Uma e
outra vez. Porém, não desanimava.
Perseverantemente insistia. E num
determinado momento, nos conta ela,
nosso Senhor desceu a escada, pegou-
a nos seus braços e, num instante, ela
chegou até o cimo.

Há uma passagem dos Manuscritos


autobiográficos que revelam essa
experiência:
Sempre desejei ser santa. Mas, que
tristeza! Quando me confronto com os
santos, sempre verifico que entre eles
e mim medeia a mesma diferença que
há entre a montanha, cujo píncaro
desaparece nos céus, e o obscuro grão
de areia, espezinhado pelos
transeuntes. Em vez de desanimar,
assentei comigo: Ó Bom Deus não
seria capaz de inspirar-me desejos
irrealizáveis. Posso, portanto, aspirar à
santidade, não obstante minha
pequenez. Ficar maior, não me é
possível. Devo, pois, suportar-me tal
qual sou, com todas as minhas
imperfeições. Mas procurarei um meio
de ir para o Céu por uma trilha bem
reta, bem curta, uma trilha
inteiramente nova..
Vivemos num século de invenções.
Agora já não se tem a fadiga de subir
os degraus de uma escada. Em casa de
gente abastada, um elevador a
substitui com vantagem. Por mim,
gostaria de encontrar um elevador
para me erguer até Jesus, porque sou
pequenina demais para subir a dura
escada da perfeição. Busquei, então,
nos sagrados livros uma indicação do
elevador, objeto dos meus desejos, e li
estas palavras, emanadas da boca da
Eterna Sabedoria: "Se alguém é
pequenino, venha a mim" (Pr 9,4). Fui,
então, com o pressentimento de ter
achado o que procurava, e com a
vontade de saber, ó meu Deus! o que
faríeis ao pequenino que respondesse
ao vosso chamado. Continuando
minhas reflexões, eis o que encontrei:
"Como uma mãe acaricia o filhinho,
assim vos consolarei, e vos acalentarei
em meu regaço" (Is, 66,12-13). Oh!
nunca vieram alegrar minha alma
palavras mais ternas e mais
melodiosas! O elevador que me
conduzirá até o Céu, são vossos
braços, ó Jesus! Por isso, não preciso
ficar grande. Devo, ao contrário,
conservar-me pequenina, ficar cada
vez mais diminuta. Ó meu Deus, fostes
além da minha expectativa, e por mim
quero cantar vossas misericórdias16.

16 Santa Tereza do Menino Jesus.


Manuscritos autobiográficos. 11. Ed.
São Paulo, Paulus- Carmelo de Cotia,
1979, p. 214.
A consciência de nossas fraquezas e
limitações nunca deverá nos
desanimar. Nos sentimos, talvez,
desencorajados diante da grande
escada da santidade da qual não
conseguimos nem sequer subir o
primeiro degrau, mas não podemos
desistir. Sabendo que Deus não nos
pode inspirar desejos inatingíveis,
temos de continuar insistindo, fazendo
tudo o que depende de nós, pois
vivemos na esperança de que nosso
Pai — ao ver nossa perseverança
descerá um dia, nos pegará nos seus
braços e nos erguerá até o cimo da
escada como fez com santa Teresinha.

O livro Caminho17, por meio de


pensamentos curtos e incisivos, inicia-
nos na prática dessa infância espiritual,
que, ao mesmo tempo, nos
proporciona uma segurança, uma
fortaleza e uma audácia de gigantes.

17 Cf. Bem-aventurado Josemaria


Escrivá. Caminhos 7. Ed. São Paulo,
Quadrante, 1989.

Vamos citar simplesmente alguns


desses pensamentos. Cada um deles é
como uma janela aberta a experiências
espirituais de alcance imprevisível.

Não queiras ser grande. — Criança,


criança sempre, ainda que mortas de
velho. — Quando uma criança tropeça
e cai, ninguém estranha..., seu pai se
apressa em levantá-la.

Quando quem tropeça e cai é mais


velho, o primeiro movimento é de riso.
— Às vezes, passado esse primeiro
ímpeto, o ridículo cede o lugar à
piedade. — Mas os mais velhos têm de
se levantar sozinhos.

Tua triste experiência cotidiana está


cheia de tropeções e quedas, Que seria
de ti se não fosses cada vez menor?

Não queiras ser grande, mas menino.


Para que, quando tropeçares, te
levante a mão de teu Pai-Deus18.

18 Ibidem, n. 870.

Essa infância espiritual comunica-nos


um enorme benefício. Quando somos
crianças não podemos desanimar ao
sentir nossa debilidade. Como
admirar-se da fraqueza de quem já é
fraco por natureza?:

Quando te afligirem tuas misérias, não


fiques triste. — Gloria-te em tuas
fraquezas, como são Paulo, porque às
crianças é permitido, sem temor do
ridículo, imitar os grandes19.

19 Ibidem, n. 879

A fraqueza constitui, então, não um


motivo de desânimo, mas um
autêntico argumento para solicitar
imperiosamente a ajuda de Deus:

Quando queres fazer as coisas bem,


muito bem, é que as fazes pior. —
Humilha-te diante de Jesus, dizendo-
lhe: Viste como faço tudo mal? — Pois
olha: se não me ajudas muito, ainda
farei pior!

Tem compaixão do teu menino; olha


que quero escrever todo dia uma
página grande no livro de minha vida...
Mas, sou tão rude! que se o Mestre
não me pega na mão, em vez de letras
esbeltas, saem de minha pena coisas
tortas e borrões que não se podem
mostrar a ninguém.

De agora em diante, Jesus,


escreveremos sempre juntos os
dois20.

20 Ibidem, n. 882

E esse pedido de ajuda ao nosso Pai


comove suas entranhas paternais e
fomenta uma intimidade com Deus
que, de outra forma, seria difícil
conseguir: a intimidade que um filho
pequeno experimenta quando estreita
a sua debilidade no peito da sua mãe e
de seu pai. Assim o expressa
novamente Caminho:

Estás cheio de misérias. – Cada dia as


vês claramente. – Mas não te assustes
com elas. – Ele bem sabe que não
podes dar mais fruto.

Tuas quedas involuntárias — quedas


de criança — fazem com que teu Pai-
Deus tenha mais cuidado, e que tua
Mãe, Maria, não te largue de sua mão
amorosa. Aproveita-te disso, e,
quando diariamente o Senhor te
levantar do chão, abraça-o com todas
as tuas forças, para que acabem de te
enlouquecer as pulsações de seu
Coração-amabilíssimo21.

21 Ibidem, n. 884.

E Caminho, ainda, insiste


reiteradamente neste argumento tão
consolador:

Esse descoroçoamento que te


produzem tuas faltas de generosidade,
tuas quedas, teus retrocessos — talvez
apenas aparentes — te dão muitas
vezes a impressão de que quebraste
alguma coisa de grande valor — a tua
santificação.

Não te aflijas; aplica à vida


sobrenatural o modo sensato que,
para resolver conflito semelhante,
empregam as crianças simples.

"Quebraram — por fragilidade, quase


sempre — um objeto muito estimado
de seu pai. — Sentem-no, e talvez
chorem, mas... vão desabafar sua
mágoa com o dono da coisa inutilizada
por sua inépcia..., e o pai esquece o
valor — ainda que seja grande —- do
objeto destruído e, cheio de ternura,
não só perdoa, mas até consola e
anima o garotinho. — Aprende"23.

23 Ibidem, n. 887.

A auto-suficiência do adulto leva,


paradoxalmente, a uma situação de
insegurança e de inibição. Colocar-se,
no entanto, nos braços de Deus, como
uma criança, nos proporciona uma
grande coragem e fortaleza. Assim o
vemos na narrativa da vocação do
profeta Jeremias:

Recebi a palavra de Iahweh que me


dizia: "Antes de formar você no ventre
de sua mãe, eu o conheci; antes que
você fosse dado à luz, eu o consagrei,
para fazer de você profeta das
nações". Mas eu respondi: Ah, Senhor
Iahweh, eu não sei falar, porque sou
jovem", Iahweh, porém, me disse:
"Não diga: 'Sou jovem', porque você
irá para aqueles a quem eu o mandar e
anunciará aquilo que eu lhe ordenar.
Não tenha medo deles, pois eu estou
com você para protegê-lo" — oráculo
de Iahweh.
Jeremias força artificialmente a
gagueira, evidência da sua
insegurança; finge uma criancice
artificial para fugir da
responsabilidade; o Senhor, porém,
que conhece o homem no mais íntimo
de seu ser, recrimina-o pela sua
inibição comodista e compromete-se a
dar-lhe forças. E Jeremias arranca a
sua gagueira postiça, esse medroso
"não é possível" que tantas vezes
paralisa o homem, aceita a sua
verdadeira fragilidade de criança —
não a fingida — e seguindo o mandato
divino, confiando-se plenamente na
força do seu Pai-Deus, cumpre,
ajudado pela onipotência divina, a sua
grande missão;

Então Iahweh estendeu a mão, tocou


em minha boca e me disse: "Veja:
estou colocando minhas palavras em
sua boca. Hoje eu estabeleço você
sobre nações e reinos, para arrancar e
arrasar, para demolir e destruir, para
construir e plantar [...]. Eu hoje faço de
você uma cidade fortificada, uma
coluna de ferro e uma muralha de
bronze [...]. Eles farão guerra contra
você, mas não o vencerão, pois eu
estou com você para protegê-lo" (Jr
1,4-19).

Sentir-se filho pequeno do Pai nos


transmite uma fortaleza de ferro, uma
segurança inabalável, uma imensa paz
e alegria: é a grandeza de ser pequeno.

3
As atitudes de um filho de Deus

Aceitar filialmente a vontade de Deus

O conhecido poema de santa Teresa


de Jesus, que vamos citar depois por
extenso, começa dizendo: "Nada te
perturbe, nada te espante..." Nós,
porém, fazemos exatamente o
contrário: com tudo nos perturbamos.
Não é verdade que continuamente
estamos perturbados com a
contrariedade, com as decepções e
fracassos, com a dor, com a doença,
com a morte? (Compreendemos que é
muito difícil aceitar determinados
acontecimentos dolorosos, mas
também deveríamos compreender que
a dor, o sofrimento, nada mais são do
que as sombras que fazem ressaltar as
luzes no quadro da vida. Que contraste
teriam as formas luminosas sem o
pano de fundo das cores escuras? As
pinceladas foscas, pardacentas, têm
também seu significado no
maravilhoso afresco do plano de Deus.
Tudo o que nos acontece no tempo é,
de certa forma, um incidente trivial em
confronto com a eternidade de Deus:
pouco importa sofrer oitenta anos aqui
na terra se conseguirmos gozar,
depois, no céu, de uma felicidade
eterna.

Deus sabe o que faz e o que permite. E


sabe tudo e pode tudo. Por isso
devemos saber aceitar a sua santa
vontade cheios de confiança. Às vezes
nos sentimos como que perdidos,
desconcertados, abatidos, diante de
acontecimentos incompreensíveis para
nós.

Nesses momentos, em que nem


mesmo se sabe qual é a vontade de
Deus, e se protesta: Senhor, como
podes querer isto que é mau [... ] — à
semelhança de Cristo, que se queixava
ao Horto das Oliveiras; quando parece
que a cabeça enlouquece e o coração
se rompe [...]. Se alguma vez sentires
— nos aconselha um homem de Deus
— esse cair no vazio, aconselho-vos
aquela oração que eu repeti muitas
vezes junto do túmulo de uma pessoa
amada: "Faça-se, cumpra-se, seja
louvada e eternamente glorificada a
justíssima e amabilíssima vontade de
Deus sobre todas as coisas — assim
seja — assim seja"1.
1 Postulação da causa de beatificação
e canonização do Servo de Deus
Josemaria Escrivá. Artigos do
Postulado, Roma, 1979, n. 452.

Essa entrega nas mãos de Deus dar-


nos-á uma paz inabalável e nos fará
sentir o braço suave e poderoso de
Deus-Pai, que nos socorre em nosso
desamparo. Também nós saberemos
repetir então, bem devagar,
saboreando-a docemente, esta oração
confiante: "Faça-se, cumpra-se, seja
louvada [...] a amabilíssima vontade de
Deus [...]".

É muito difícil, para não dizer


impossível, encarar a dor e a morte
com coragem quando não se lhes
encontra um sentido. Quando o
encontramos, porém, vemos crescer
diante de nossos olhos admirados o
esplêndido espetáculo dessas fracas
criaturas que se agigantam diante do
sofrimento, com uma coragem que
nos parece sobre-humana. Lembremo-
nos das mártires Perpétua, Felicidade
e Inês, ou daquelas pequenas santas
ainda não canonizadas como Jacinta, a
pastorinha vidente de Fátima, ou a
simpática Montserrat Grases e a frágil
Aléxia2.

2 Cf. Cintra, L. F. Os primeiros cristãos.


2. Ed. São Paulo, Quadrante, 1991;
Ghéon, H. Tereza de Lisiex. São Paulo,
Quadrante, 1990; walsh, "W. T. Nossa
Senhora de Fátima. São Paulo,
Quadrante, 1996; Monge, M. A. Alexia.
São Paulo, Quadrante, 1993; Cejas, J.
M, Montserrat Grases. Madrid, Rialp,
1995-

Quando essas criaturas fracas,


naturalmente medrosas, encontraram
com a graça de Deus os motivos para
sofrer e a força para suportar a dor e a
morte, converteram-se em figuras
gigantescas, de uma valentia que não
encontra paralelo em muitos dos
grandes heróis da história.

Não pensemos, porém, que esses


exemplos são para "os outros", pois
são igualmente para nós. Nós também
somos criaturas fracas que, com a
graça de Deus, seremos capazes de
enfrentar a dor com a coragem dos
santos.
Não podemos fazer aqui uma
exposição aprofundada do sentido
cristão da dor, mas podemos ao
menos lembrar os grandes motivos
que a doutrina cristã apresenta para a
aceitarmos com galhardia.

O sofrimento purifica nossa natureza


caída; serve de penitencia para
limparmos nossos pecados pessoais;
vem a ser cinzel com que o escultor
divino arranca do bloco informe que
somos aquilo que sobra, para nos
configurarmos segundo o perfil dos
filhos de Deus; serve de "megafone de
Deus" para despertar em nós a natural
dependência dele; e, especialmente, é
o grande instrumento para sermos co-
redentores com Cristo: sofrendo como
ele, co-redimiremos com ele.

C. S. Lewis, o famoso professor da


Universidade de Oxford, explica de
forma muito expressiva, em seu livro O
problema da dor, um dos sentidos do
sofrimento ao qual acabamos de
referir-nos:

A dor, a contrariedade, é sem dúvida


um instrumento terrível como
megafone de Deus [...], mas pode ser a
única oportunidade de que dispomos
para ratificar nossa vida. A minha
própria experiência é mais ou menos
assim: avanço pelo caminho da vida
sem modificar meu modo natural de
ser, satisfeito com a minha
mediocridade, dominado pelas alegres
reuniões com os meus amigos, pela
satisfação do meu trabalho que
promove a minha vaidade, por um dia
de folga, pelo êxito de um novo livro
[...]. De repente, uma facada no corpo,
provocada por uma dor abdominal que
prenuncia uma doença grave [...] e
todo o castelo de cartas desmorona.
Estava entretido com os meus
brinquedos, e subitamente vejo-os
todos diante de mim, despedaçados e
imprestáveis [...]. Esses brinquedos
faziam-me esquecer que a minha
verdadeira felicidade se encontra cm
outro imundo, que o meu único
tesouro autêntico e Cristo.

Essa dor é, pois, uma grande graça.


Torna-me capaz de tomar consciência
da minha dependência de Deus; faz-
me perceber onde está a fonte da
minha verdadeira felicidade [...]. Mas,
dois dias depois, passada a dor,
desaparecida a ameaça, lanço-me
novamente a brincar com as
bugigangas de sempre e desejo — que
Deus me perdoe — desterrar de minha
mente a certeza de que preciso
desesperadamente dele, de que ele é
o meu único suporte. Por isso, enxergo
com toda a clareza a necessidade da
tribulação: é que, através dela, Deus se
tornou senhor da minha vida ao
menos durante quarenta e oito
horas'3.

3 Lewis, C. S. El problema Del dolor.


Madrid, Rialp, 1994. P. 99

Um dia teremos de entregar a vida a


Deus e necessitaremos de coragem
suficiente para morrer em paz,
confiando na misericórdia de um Pai
que nos espera com os braços abertos.
Para vivermos essa coragem
derradeira, no entanto, precisamos
exercitar-nos, com valor, ao longo da
vida, nessas outras "pequenas mortes"
representada pelas contrariedades
diárias, pelas mazelas semanais, pelas
gripes e enxaquecas mensais, pelas
doenças anuais...

Esse exercício diário de coragem e de


confiança no Pai, avança em paralelo
com o exercício contínuo de quem
corre para alcançar a santidade. É por
isso que só os santos chegam a amar a
dor como algo permitido por Deus,
para ajudá-los a atingir o seu bem
maior. Para nós, a contrariedade e a
doença representam ainda um "mal",
uma "tragédia" que precisamos evitar
a todo custo, e por isso somos tão
medrosos e angustiados.

Um homem que tenha a coragem de


encarar de frente a dor e a tribulação,
um homem que consiga considerar a
fome, a sede, a dor, a desonra, a
doença, a pobreza como um
"tesouro"4, é um homem superior: e
alguém que pode dizer alegremente
como são Paulo: "Já não sou eu que
vivo, é Cristo que vive em mim" (Gl
2,20), é Cristo que sofre em mim. Esses
são os santos. Os santos não são
figuras de porcelana para serem
admiradas nas vitrinas da história. São
seres como nós que trazem no corpo e
na alma, de alguma maneira — como
são Paulo —, os sinais da paixão de
Cristo e que, por isso, são conscientes
de que morrendo com ele haverão de
ressuscitar como ele.

4 Cf. Bem-aventurado Josemaria


Escrivá. Caminho, n. 194

A existência humana não é uma


caminhada pavorosa em direção à
morte; é uma corrida alegre e corajosa
em direção à vida. Uma vida com V
maiúsculo que, como dois braços
potentes, se agarram ao beiral do céu,
comunicando segurança e
serenidade5.

5 Cf. Llano Cifuentes, R. Insegurança,


Medo e Coragem. São Paulo,
Quadrante, 1997. PP. 59- 62
O bem-aventurado Josemaría Escrivá,
faz uma confidência comovente:

Eu vos contarei um pouco da


experiência de alguém que passou dez
anos com uma doença grave, sem
cura, e que se sentia contente, cada
dia mais contente, porque se
abandonou nos braços de Deus,
porque se persuadiu de que Deus não
é uma enteléquia, um ser longínquo: é
mais do que uma boa mãe. E é todo-
poderoso, não se alegra com nosso
mal, e sim com nosso bem...[...].

Nós, com a visão deste mundo,


estamos vendo uma tapeçaria ao
contrário, pela parte dos nós, e não
compreendemos que a felicidade se
encontra depois, que isso passa, como
passa a água por entre as mãos. Isto é
fugaz. Tempus breve est, afirma o
Espírito Santo6 .

6 Cf. Portillo, A. Del.; Herrans, G.,


Berglar, P. Josemaria Escrivá,
instrumento de Deus, São Paulo,
Quadrante, 1992, p. 77.

O amor, tanto na poesia como na vida,


rima com a dor.

Assim, o cantou Pemán, o poeta:

Só tu és Deus e Senhor.

Tu que por amor me feres,

Tu que com imenso amor


provas com a maior dor

às almas que tu mais queres.

Bendito sejas, Senhor,

por tua infinita bondade,

porque pretendes com amor

sobre os espinho de dor

rosas de conformidade.

Essa rima a encontramos na


impressionante autobiografia de Jaime
Labatour, ferido mortalmente na
famosa batalha de El Alamein, no
norte da África, durante a Segunda
Guerra Mundial. No hospital de
Damasco, o médico esteve a ponto de
assinar o seu atestado de óbito, mas
ainda restava certa palpitação de
vida... Passam os dias. Sucedem-se as
operações. O pai de Jaime vem visitá-
lo.

- Sou eu, Jaime. Sou seu pai. Ânimo,


rapaz!

- Papai, o vejo...

- Isso não importa. A bomba explodiu


diante dos seu olhos, mas fique
tranqüilo... Nada lhe faltará!

Jaime percebe que está cego. Quer


estender os braços para abraçar o pai,
mas o esforço termina no vazio.
- Jaime, não se perturbe... A explosão
arrancou os seus braços... Mas nada
lhe faltará.

Tremenda evidência: não tem olhos


nem braços.

Seu pai está abatido. Não encontra


mais palavras, dá-lhe um beijo e retira-
se.

Jaime fica sozinho numa escuridão


irremediável. Sente-se como que
dentro de um poço sem saída. Não
tem mãos para agarrar-se a uma
hipotética corda de salvação. E brotou
nele a tentação satânica do suicídio.

Mas... quem seria aquele homem que


acabava de sentar-se à sua cabeceira?
Um médico, outro ferido, o capelão do
hospital? Jaime lembra-se de que esse
homem tinha uma voz serena, amiga.
Sentiu-o chegar, sentar-se ao seu lado,
cumprimentá-lo afetuosamente... No
entanto, deixou-se dominar por sua
louca tentação:

— Quem é você? Um enfermeiro? Não


tem aí um barbitúrico desses que
fazem dormir para sempre? Não pode
cortar-me as veias para dessangrar-me
de vez? Não consigo viver assim.

Então aquele visitante — nunca


chegou a saber quem foi — acariciou-
lhe longamente a cabeça e começou a
dizer com voz vibrante: "Pai nosso, que
estais nos céus, santificado seja o
vosso nome, venha a nós o vosso
reino, seja feita a vossa vontade..."

Seja feita a vossa vontade! Era tão


inadmissível aceitar a vontade de
Deus, que precisava pedir mil vezes a
Deus força para poder realmente dizer
com o coração: seja feita a vossa
vontade!

Foi como se o próprio Cristo lhe


falasse. Não podia chorar, porque não
tinha olhos, mas sentiu que seu
coração tremia de forma nova. Já não
queria morrer! Continuou a rezar, não
sabe até quando — seja feita a vossa
vontade —, como não sabe em que
momento aquele personagem foi-se
embora. Assim descreve ele mesmo os
seus sentimentos:
Experimentei um pouco do que Cristo
viveu no Getsêrnani, quando o invadia
a dor e clamou: "Pai, afasta de mim
este cálice!". Ele, porém, aceitou: faça-
se a tua vontade! E nos ensinou a
chegar, como ele, não à resignação —
isso é muito pobre —, mas à aceitação.
Resignar-se é reconhecer-se vencido;
aceitar é vencer. O que parece sobre-
humano, com a graça de Deus chega a
ser possível. Jesus não veio suprimir o
sofrimento; veio enriquecê-lo com sua
presença. Por isso eu recobrei a alegria
e a esperança.

Jaime Labatour desenvolve hoje o seu


trabalho em muitas cidades da França,
de trem, de carro, nas emissoras de
rádio e de televisão. Em apenas um
ano, deu mais de duzentas
conferências em outras tantas cidades.
E o tema de tantas conferências é sua
própria história, seu otimismo e sua
paz. Não poderá abraçar os homens
com os seus braços amputados. Não
poderá ler a palavra do Senhor porque
não tem olhos. Seu coração,
entretanto, pode gritar aos seus
irmãos uma mensagem de otimismo e
de amor. Um amor que nasce da dor.
Uma dor que parecia inaceitável,
incompreensível, e que, contudo,
transformou um soldado simples e
anônimo num apóstolo de valor
inigualável. Talvez só ele pudesse
comunicar-nos uma mensagem como
a que nos passou. Quando alguém lhe
perguntou que palavra pronunciaria
para expressar o seu principal
sentimento, respondeu sem vacilar:

A palavra amor... Eu experimentei o


ódio [...], que foi a causa dos meus
sofrimentos. Por isso afirmo que a
maior desgraça é não amar e não ser
amado [...]. E o amor, no fundo, é
Deus. Quando vejo um companheiro
que sofre digo-lhe: Procure interessar-
se pelos outros; esqueça de você
mesmo e começará a ser feliz, porque
encontrará a Deus. É que não há pior
doença do que estar amputado de
Deus7.

7 Cf. Eyzaguire, R.M. Tesouro


escondido. Santiago de Chile, 1982. PP.
1226 e 245ss, citado por Llano
Cifuentes, R. in Otimismo. São Paulo,
Quadrante, 1990. PP. 40-42.
Um homem atingido por uma dor
inigualável, quando a recebe como
uma dádiva do Pai, como Jaime
Labatour, transforma-se num homem
fora de série. Um homem que sabe
aceitar a dor, a doença e a morte —
como algo que parte da vontade de
seu Pai — estará preparado para
aceitar com alegria todas as
contrariedades e dissabores da vida: os
insucessos e fracassos, o desemprego
e as injustiças, as incompreensões e as
críticas, os atritos e as crises familiares
e, também as rotinas e monotonias,
esse peso da existência quando o fardo
da vida torna-se mais pesado que um
carro e o ritmo do caminhar mais lento
que o passo de um boi.
Essa alegria sobrenatural que dimana
da cruz é o "gigantesco segredo do
cristão", segundo o grande escritor
inglês convertido, Chesterton. 8

8 Chesterton, Ortodoxia. pp, 308-309.

Reconhecendo a nossa fraqueza


peçamos, instantemente, ao Pai, que
nos conceda a graça imensa de aceitar
sempre a sua santa vontade: "Rogo, ó
Pai! que encontre sempre em ti o meu
refúgio... o meu destino está seguro
em tuas mãos" (Sl 16,15).

Tudo é para o bem

Todas essas verdades que estamos


meditando, confluem para um
princípio espiritual que é fonte de paz
e de alegria: "Para os que amam a
Deus tudo contribui para o bem" (Hm
8,10). Tudo o que há no universo
existe porque Deus o sustenta no seu
ser.

Ele cobre o céu com nuvens,


preparando a chuva para a terra. Faz
brotar erva sobre os montes e plantas
úteis ao homem. Fornece alimento
para o rebanho, e aos filhotes do corvo
que grasnam (SI 147, 8-9).

Toda a criação é obra de Deus, que


além disso cuida amorosamente de
todas as criaturas, começando por
mantê-las constantemente na
existência. "Esse manter — nos diz
João Paulo II — é, em certo sentido,
um contínuo criar (conservativo est
continua creano)"9 e estende-se muito
particularmente ao homem, objeto da
predileção divina.

9 João Paulo II. Audiência geral, 29 de


janeiro de l986.

Jesus Cristo dá-nos a conhecer


constantemente que Deus é nosso Pai,
que quer o que há de melhor para os
seus filhos. Tudo aquilo que de bom
poderíamos imaginar para nós
mesmos e para aqueles a quem mais
queremos é superado de longe pelos
planos divinos. O Senhor sabe muito
bem de que coisas necessitamos e o
seu olhar abrange esta vida e a
eternidade, ao passo que nossa visão é
curta, míope e deficiente.
Voltamos a repetir as palavras de Jesus
como o refrão que dá sentido a toda
esta nossa reflexão:

Não fiquem preocupados com a vida,


com o que comer; nem com o corpo,
com o que vestir. Afinal, a vida não
vale mais do que a comida? E o corpo
não vale mais do que a roupa? Olhem
os pássaros do céu: eles não semeiam,
não colhem, nem ajuntam em
armazéns. No entanto, o Pai que está
no céu os alimenta (Mt 6,25-26).

Essas palavras são um convite para


que vivamos com alegre esperança a
tarefa diária, para que encaremos as
sombras desta vida como filhos de
Deus, sem preocupações inúteis, sem a
sobrecarga da revolta ou da tristeza,
pois sabemos que Deus permite esses
acontecimentos para nos purificar,
para nos transformar em co-
redentores.

Os padecimentos, a contradição, a
doença, devem servir-nos para crescer
nas virtudes e para amar mais a Deus:

Não ouviste dos lábios do Mestre a


parábola da videira e os ramos? —
Consola-te. Ele exige de ti porque és
ramo que dá fruto... E te poda "ut
frutum plus afferas" — para que dês
mais fruto. — É claro! dói esse cortar,
esse arrancar. Mas, depois, que
louçania nos frutos, que maturidade
nas obras!10

10 Bem-aventurado Josemaria Escrivá,


Caminho, op. Cit., n. 701.

Não nos desconcertemos nunca com


os planos divinos. O Senhor sabe muito
bem o que faz ou permite.

Examinemos habitualmente se
acolhemos com paz a contradição, a
dor e o fracasso; ou se, ao contrário,
nos queixamos e abrimos a porta à
tristeza ou à revolta, ainda que por
pouco tempo. Vejamos na presença de
Deus se as dificuldades físicas ou
morais nos aproximam de verdade de
nosso Pai-Deus.

Amiúde, não sabemos o que é bom


para nós:

E o que torna a confusão ainda pior é


que pensamos saber. Temos os nossos
próprios planos para a nossa
felicidade, e muito freqüentemente
olhamos para Deus tão-só como
alguém que vai nos ajudar a realizá-
los. A verdadeira situação é
inteiramente outra. Deus tem seus
projetos para nossa felicidade, e está à
espera de que o ajudemos a realizá-
los. E deve ficar bem claro que não
podemos melhorar os planos de
Deus11.

11 B. boylan, Amor supremo, p. 46,


citado por F. F. Carvajal, Falar com
Deus, São Paulo,

Quadrante, 1990. v. III, p. 481.

Ter uma certeza prática dessas


verdades, vivê-las no cotidiano, leva a
uma entrega serena, mesmo perante a
dureza daquilo que não entendemos e
que nos causa dor e preocupação.
Nada desmorona se estamos
amparados no sentido de nossa
filiação divina: "Se Deus assim veste a
erva do campo, que hoje existe e
amanhã é queimada no forno, muito
mais ele fará por vocês, gente de
pouca fé" (Mt 6,30).

Que paz nos dá poder orar com as


palavras do salmo:

Guarda-me, Deus, pois me abrigo em


ti. Eu digo a Iahweh: “Tu é o meu
bem!” os deuses e senhores da terra
não me satisfazem [...].
Iahweh, minha parte na herança e
minha taça, meu destino está em tuas
mãos![...].

Sim, minha herança é a mais bela. [...]

Tenho Iahweh à minha frente sem


cessar. Com ele à minha direita, jamais
vacilarei.

Por isso meu coração se alegra, minhas


entranhas exultam, e a minha carne
repousa em segurança; porque não me
abandonarás no túmulo [...].

Tu me ensinarás o caminho da vida,


cheio de alegria em tua presença e de
delícias à tua direita, para sempre (Sl
16,1-11)
Quando não temos o Senhor ao nosso
lado, quando ele não está diante de
nossos olhos, pode acontecer conosco
— diz santo Tomás — o mesmo que o
leigo em medicina que vê o médico
receitar água a um doente e vinho a
outro conforme lhe dita sua ciência;
não sabendo de medicina, o
observador leigo julga que o médico
receita esses remédios ao acaso.

Assim acontece com relação a Deus.


Ele, com conhecimento de causa, e
segundo a sua providência, dispõe as
coisas da maneira que os homens
necessitam: aflige uns que talvez
sejam bons, e deixa viver em
prosperidade outros que são maus12.

12 Santo Tomás. Sobre o credo, 1.


Não podemos esquecer que Deus nos
quer felizes aqui, mas nos quer ainda
mais felizes com ele, para sempre, no
céu.

A santidade consiste no cumprimento


amoroso da vontade de Deus, ao ritmo
dos deveres e dos incidentes de cada
dia, e numa entrega absolutamente
confiante em seus braços. Tal entrega,
no entanto, deve ser ativa e
responsável, e há de levar-nos a lançar
mão de todos os meios ao nosso
alcance para enfrentarmos cada
situação que se apresente. Assim,
iremos ao médico sem demoras
quando estivermos doentes, faremos
tudo o que pudermos para conseguir o
emprego de que tanto necessitamos e
pelo qual rezamos a Deus,
trabalharemos com esforço para
progredir em nossa empresa,
estudaremos as horas necessárias e
com profundidade para passar naquela
matéria difícil...

Essa entrega a Deus deve estar,


portanto, intimamente unida a uma
atitude operante, que rejeita
prontamente esses argumentos de
resignação inerte ("má sorte", "azar",
ambiente adverso, injustiças, falta de
condições...) que parecem virtuosos,
ou razoáveis, mas que muitas vezes
escondem mediocridade, preguiça,
imprudência... Exige uma disposição
de ânimo valorosa, empreendedora,
que "cresce diante dos obstáculos"13,
em vez de encolher-se num
conformismo antivital. E essa atitude
não é presunção, esquecimento de
Deus, mas, ao contrário, é a
conseqüência lógica de quem se
entregou por completo nas mãos
amorosas da providência e por isso
sabe que tem as costas protegidas.

13 Escrivá, J. Caminho, op. Cit., n. 12.

O sentimento da filiação divina ajuda-


nos a descobrir que todos os
acontecimentos de nossa vida são
dirigidos ou permitidos pela
habilíssima vontade de Deus para
nosso bem. Deus, nosso Pai, concede-
nos o que mais nos convém e espera
que saibamos ver o seu amor paternal
tanto nos acontecimentos favoráveis
como nos adversos.
Repetimos que, no dizer de são Paulo,
"todas as coisas concorrem para o bem
dos que amam a Deus" (Rm 8,28).

Quem ama a Deus com um amor


operante sabe que, aconteça o que
acontecer, tudo será para seu bem,
desde que não deixe de amar. E,
precisamente porque ama, emprega os
meios para que o resultado seja bom,
para que o trabalho bem acabado e
feito com retidão de intenção dê
frutos de santidade e de apostolado. E,
tendo empregado os meios ao seu
alcance, entrega-se a Deus e descansa
na sua providência amorosa.

São Bernardo escreve:


"Repara bem que o Apóstolo não diz
que as coisas servem para o capricho
pessoal, e sim que cooperam para o
bem. Não para o capricho, mas para a
utilidade; não para o prazer, mas para
a salvação; não para nosso desejo, mas
para nosso proveito. Nesse sentido, as
coisas sempre cooperam para o bem,
até a própria morte, até o pecado [...].
Por acaso não cooperam para o bem
os pecados daquele que com eles
torna-se mais humilde, mais fervoroso,
mais solícito, mais precavido, mais
prudente?"14. E depois de
empregarmos os meios ao nosso
alcance, ou diante de acontecimentos
em que nada podemos fazer, diremos
na intimidade de nosso coração:
Omnia m bonum, tudo é para o bem.
14 São Bernardo. Sobre a falácia e a
brevidade da vida, 6.

Com essa convicção, fruto da filiação


divina, viveremos cheios de otimismo
e de esperança, e superaremos muitas
dificuldades:

Parece que o mundo desaba sobre a


tua cabeça. A tua volta, não se
vislumbra uma saída. Impossível, desta
vez, superar as dificuldades.

Mas tornaste a esquecer que Deus é


teu Pai? Onipotente, infinitamente
sábio, misericordioso. Ele não te pode
enviar nada de mau. Isso que te
preocupa, é bom para ti, ainda que
agora os teus olhos de carne estejam
cegos.
Omnia in bonum! Tudo é para o bem!
Senhor, que outra vez e sempre se
cumpra, a tua sapientíssima
Vontade!15.

15 Escrivá, J. Via Sacra, IXa est., n. 4.

Omnia in bonum! Tudo é para o bem!


Tudo pode ser convertido em algo
agradável a Deus e benefício para a
pessoa. Essa expressão de são Paulo
pode servir-nos como jaculatória,
como uma brevíssima oração que nos
dará paz nos momentos difíceis16.

16 Cf. Carvajal, F. F. Falar com Deus.


São Paulo, Quadrante, 1990. V.III, PP.
480-484.
A santíssima Virgem, nossa Mãe, nos
ensinará a viver cheios de confiança
nas mãos de Deus, se recorrermos a
ela freqüentemente cada dia. No
coração dulcíssimo de Maria, Mãe do
perpétuo socorro, encontraremos
sempre paz, consolo e alegria.

Docilidade

Essa atitude de aceitação alegre da


vontade de Deus, contudo, está como
que na dependência de outra
característica muito própria de um
filho de Deus: a docilidade,

Um filho que ama seu pai procura


descobrir o que ele deseja, está atento
às suas orientações, empenha-se em
cumprir as suas determinações
alegremente, sem sentir-se coagido,
limitado, diminuído. A atitude do filho
que não ama caracteriza-se, ao
contrário, pela rejeição da autoridade,
pela rebeldia, pela altiva auto-
suficiência, tão características do
mundo cultural em que vivemos,
dominado por esse complexo de
"emancipação" ao qual já nos
referimos.

A docilidade do primeiro se contrapõe


à insubordinação do segundo.

A docilidade do filho é, pois, uma


decorrência natural do amor: a atitude
de quem secunda os desejos do seu
Pai, procurando satisfazê-los com
extrema sensibilidade e delicadeza.
Se quiséssemos ilustrar graficamente
essa atitude de docilidade, poderíamos
compará-la a uma antena parabólica
potente e sensível, que conseguisse
captar os sinais emitidos por corpos
siderais para além da estratosfera.
Elevando essa metáfora ao seu grau
mais sublime, poderíamos dizer, se nos
for permitido, que o coração de Maria
foi como o mais potente receptor
humano dos desejos divinos. Maria
estava sempre em sintonia com o Pai.
À sua primeira insinuação, seguiu-se a
resposta imediata: Fiat! Faça-se! A vida
de Maria foi a sucessão contínua de
um sim. Se pretendêssemos reduzir a
vida interior aos seus elementos mais
simples, nos encontraríamos, no fundo
da vontade, com um sim ou um não.
Um sim ao Espírito Santo que nos faz
crescer. Um não ao Espírito Santo que
nos encastela em nosso pobre eu, nos
atrofia e diminui. Abrir-se ao Espírito
Santo, corresponder com fidelidade à
graça é o único sistema para
enriquecer-nos e dilatar-nos.

Num instante pode acontecer algo


inesperado — uma inspiração, uma
insinuação de Deus, um
acontecimento fortuito ou dramático,
uma forte contrariedade... — e talvez
cheguemos a pensar: Que desgraça!
Que "droga"!, ou, talvez, que
"bobagem"!, não acontece nada! e, no
entanto, Deus está passando. Quantos
seres humanos, como Maria, mudaram
por completo o rumo de sua vida
nesse mesmo instante em que Deus
passava ao seu lado.
Há momentos em que a atenção e
docilidade a essas inspirações podem
ser decisivas em nossa vida. Santo
Antão, abade -— cuja vida foi tão
importante para a Igreja —, ao ouvir
de um pregador as palavras do
Evangelho se queres ser perfeito vai e

vende tudo quanto tens, dá aos pobres


e segue-me (Mt 19,21), partiu
imediatamente para sua casa, vendeu
tudo quanto tinha e retirou-se para o
deserto. O bem-aventurado Josemaría
Escrivá, sentiu o chamado de Deus ao
ver as pegadas dos pés descalços de
um carmelita impressas na neve.
Experimentou como um toque do
Espírito Santo na raiz de sua alma, que
o convocava a um amor mais
generoso. Foi a partir desse momento
que surgiu uma vocação que revolveu
a vida de tantos milhões de pessoas.
Alphonse Ratisbonne converteu-se de
repente ao entrar na igreja de Santo
André delle-Frate, em Roma e a
conversão radical de André Frossard —
socialista e ateu convicto — ocorreu,
também ao entrar numa igreja, de
modo igualmente fulminante. Paul
Claudel, o grande escritor francês —
afastado como estava de Deus —
começou a chorar como uma criança,
quando, na noite de Natal, ouviu o
comovedor canto Adeste fideles...

Foram momentos decisivos para eles,


e também para muitos que se
sentiram tocados com o seu exemplo e
com a sua conduta. Quantos teriam
avistado naquele dia as marcas
daqueles mesmos pés descalços na
neve e nada experimentaram
interiormente! E, no entanto, para um
rapaz jovem esses sinais foram o ponto
inicial de uma vida de santidade... 17.

17 Cf. Llano Cifuentes, R. A Força do


Sacerdócio no Espírito Santo. Rio de
Janeiro, Marques Saraiva, 1998. P. 68.

A docilidade a um toque
experimentado na consciência, a uma
inspiração, a uma moção sobrenatural
diante de uma desgraça, pode ser o
começo de uma nova caminhada, de
uma cadeia de graças. Desprezado o
primeiro elo, podemos perder uma
série deles de incalculável riqueza.
Deus subordina umas graças a outras.
Se se é fiel e dócil a uma primeira
graça, concede outra e outras cada vez
maiores. O ângulo vai se abrindo
progressivamente... Entretanto, se se
despreza uma, se está desprezando
um verdadeiro rosário de graças que
levaria a uma perfeita união com Deus.

Deveríamos implantar em nosso


cérebro, em nosso coração, em nossa
sensibilidade, como que uma
verdadeira rede de potentes radares
que pudessem captar as mais leves
insinuações da vontade de Deus: essa
perfeita sintonia, que é simplesmente
fidelidade à graça, é o que nos traz a
felicidade verdadeira.

Quando colocamos a vida inteira nas


mãos de Deus, com absoluta
docilidade, é como se
comprometêssemos esse Pai
amorosíssimo a cuidar de nós de modo
especial, é como se o trabalho de
nossa santificação se tornasse uma
questão pessoal para ele; como se
fizéssemos um "desafio" à sua
onipotência e ele assumisse esse
"desafio".

Quando vivemos bem a docilidade


realmente nos convertemos nesse
barro suave, maleável (cf. Jr 18,6) que
parece estar dizendo na sua
disponibilidade: se você é um grande
artista, faça de mim uma obra prima. E
ele faz: dilata nossas estreitas
limitações, dulcifica o que é amargo,
torna flexível o que é duro e
orgulhoso; concede sabedoria ao
ignorante; transforma o coração mais
frio numa brasa brilhante... Para Deus
fazer uma obra-prima basta-lhe um
coração dócil.

Entrega amorosa nas mãos de Deus

A docilidade leva-nos a colocar-nos nas


mãos de Deus "como o barro nas mãos
do oleiro" (Jr 18,6), numa atitude de
entrega aos desígnios de nosso Pai. Em
não poucas ocasiões já temos falado
nestas páginas da entrega a Deus.
Agora, contudo, vamos dedicar ao
tema uma atenção central.

A prática da entrega nas mãos de Deus


é um dos exercícios mais saborosos e
fecundos na vida espiritual. A alma
simples, deixa-se conduzir por Deus
através de todos os acontecimentos de
sua vida. Nada sabendo, nem
querendo saber nada
antecipadamente, limita-se a segurar a
mão que Deus lhe estende e a
acompanhá-lo ao longo do dia. Não
indica ao seu guia qual o caminho a
seguir, não lhe prescreve as paradas
nem o tempo de repouso. Isso é com
Deus. Seu papel é agarrar-se à mão
que o conduz. Não caminha nem mais
depressa nem mais devagar que o seu
guia. Sabe que Deus é Senhor do
tempo e dos acontecimentos e que
chegará o fim na hora por ele fixada. A
alma que Deus conduz de nada se
admira. Muitas vezes, não entende os
acontecimentos que se desenrolam ao
seu redor e as modificações que se
operam nela mesma. Não se perturba
por essa ignorância, pois sabe que
Deus tem a chave de todos os fatos da
história e de todos os detalhes da vida
de cada homem. Aprendeu, por
experiência, que certos eventos
incompreensíveis, aparentemente
fortuitos, contraditórios ou sem
importância, se produziram porque
estavam destinados a ter efeitos
benéficos, ou foram permitidos por
Deus para trazer-lhe um bem
extraordinário ou livrá-la de um
grande perigo.

Também não considera nada supérfluo


ou pouco importante na sua vida.
Acolhe com o maior respeito,
misturado de amor filial, os deveres
mais triviais, os acontecimentos mais
corriqueiros, as menores coisas. Sabe
que são como outras tantas pinceladas
do quadro da vida, ainda que
desconheça o plano artístico da obra
completa18.

18 Cf. Shrijvers, J. O dom de si. São


Paulo, Quadrante. 1993. P. 57.

Deus criou o universo e tudo o que


nele existe e a cada um de nós, seus
filhos, com uma finalidade
extraordinariamente boa,
infinitamente amorosa. Tudo o que
existe e tudo o que acontece tem por
fim desenvolver esse projeto amoroso
de Deus. Mesmo os acontecimentos
que nos parecem insignificantes e
talvez ilógicos, têm, apesar de tudo, o
seu lugar no conjunto do projeto
divino.
Já nos referimos várias vezes a esses
momentos críticos da vida, em que nos
parece que determinados
acontecimentos não tem nenhum
sentido; não nos parecem apenas
ilógicos, mas cruéis. E nos
perguntamos: Porquê; por que nosso
Pai-Deus, sendo tão bom, permite que
aconteçam essas coisas? Não
pensemos que esse por que
representa necessariamente uma
revolta contra o Pai: É, com
freqüência, algo decorrente da
fragilidade da natureza humana.
Estamos mergulhados numa
determinada situação dolorosa, como
numa depressão do terreno da vida, e
não conseguimos enxergar o resto, o
panorama total do projeto de Deus, e
nos sentimos sofridamente perplexos
e interpelados: Por quê?.

Não nos perturbemos. Há incrustado


na história da salvação o mais
dramático e sublime porquê,
pronunciado pelos lábios de um Cristo
agonizante: "Meu Deus, meu Deus, por
que me abandonaste?" (Mc 15,34).
Jesus encontra-se assim abandonado
no meio daquelas trevas. Sua alma é
como um deserto. Sofre a trágica
experiência da completa solidão e do
abandono. Suas palavras, tiradas de
um salmo, faziam referência à oração
do justo que, perseguido e
encurralado, não encontra nenhuma
saída; e que, em sua extrema
necessidade, recorre a Iahweh: "Meu
Deus, meu Deus, por que me
abandonaste? [...] És tu quem me tirou
do ventre e me confiou aos peitos de
minha mãe [...]. Força minha, vem
socorrer-me depressa" (Sl 22,2.10.20).

Por que me abandonaste? São


palavras duríssimas, pronunciadas por
nosso Senhor.

Nesse por que? dirigido ao Pai, Jesus


estabelece um novo modo de
solidariedade com os homens que,
com tanta freqüência, levantam os
olhos e os lábios para exprimir o seu
lamento e alguns, até, a sua
impotência, o seu desespero ou a sua
revolta19. Por que morreu esse jovem
quando mal iniciava sua caminhada
pela vida? Por que essa doença, essa
ruína econômica...? Por que parece
que Deus não escuta a minha oração
nesta necessidade urgente...?

19 Cf. João Paulo II. Audiência geral, 30


de novembro de 1988.

Nossa alma enche-se de paz ao ouvir


Jesus pronunciar esse por que? Nós
também podemos orar assim quando
sofremos.., temos, porém, de ter as
mesmas disposições de confiança e de
entrega filial de que Jesus é mestre e
modelo para todos. Nessas palavras,
não há ressentimento nem rebeldia
que o levem a afastar-se do Pai. Não
há a menor sombra de censura. O
Senhor exprime nesses momentos a
experiência da fragilidade e da solidão,
próprias da alma que se encontra no
mais completo abandono.
Jesus converte-se assim no primeiro
dos "desamparados"20, dos que se
encontram sem nenhuma proteção.
Ao mesmo tempo, porém, ensina-nos
que, mesmo sobre os que se
encontram nessa situação extrema,
vela o olhar benigno e misericordioso
de Deus.

20 Ibidem.

Na realidade, ainda que Jesus sofra por


esse sentir-se abandonado por seu Pai,
sabe, no entanto, que não o está de
maneira nenhuma. No cume da sua
alma tem a visão clara de Deus e a
certeza da sua união com o Pai. No
fundo de sua sensibilidade, entretanto,
não consegue compreender tanta dor,
tanta angústia e dessas profundezas
brota um queixume doloroso: "Pai, por
que me abandonaste?" 2I

21 Fernandez-Carvajal, F. A cruz de
Cristo. São Paulo, Quadrante, 1999. PP.
104-106.

O Pai não respondia. E esse silêncio foi


a pena mais dura, a provocação mais
dolorosa que Jesus sofreu.

A paz e a serenidade que se seguem a


essa pergunta sugere-nos, contudo,
que ele continuaria interiormente
recitando até o fim o salmo que iniciou
em alta voz: "Tu, porém, Iahweh, não
fiques longe! Força minha, vem
socorrer-me depressa".
Essa paz e essa serenidade a
conseguiremos, também nós, quando,
depois da primeira queixa dolorosa
que formula um amargo por que?
soubermos acrescentar: Senhor tu
sabes o porquê de tudo, tu és a minha
esperança, tu conheces todos os meus
passos e todo meu destino; eu, como
Jesus em suas últimas palavras, quero
dizer-vos: "em tuas mãos entrego o
meu espírito" (Lc 23,46).

A entrega amorosa nas mãos de Deus


a apreendemos e reaprendemos
sempre junto de Jesus na cruz. Ao seu
lado, chegaremos a entender o
significado desses acontecimentos tão
duros que não conseguimos aceitar.

A cruz parecia o fim, e no entanto foi o


começo: as trevas se transformaram
em luz; a perplexidade escura de um
porquê, no luminoso resultado de uma
redenção que a tudo dá um claro
sentido.

Temos de levantar o olhar, enxergar a


vida com as pupilas de Deus, para
entender o plano global de nossa
existência.

O que significam nossos setenta,


oitenta, ou noventa anos de vida, se os
compararmos com os milhões de anos
em que se está desenvolvendo esse
maravilhoso projeto de Deus? Se uma
formiga rasteja ao longo da abóbada
da Capela Sixtina, no Vaticano, tudo o
que pode ver é um pouco de tinta
irregular debaixo de suas patas.
Mesmo que tivesse inteligência
humana, não poderia perceber que o
pedaço de pintura sobre o qual se
encontra faz parte do extraordinário
painel do Juízo Final, a grande obra-
prima de Miquelangelo. De maneira
parecida, o que vemos é o pedaço
reduzidíssimo do projeto de Deus. Não
é, pois, de admirar que às vezes
sejamos tentados a exclamar: "Por que
Deus fez isso? Que razão pode ter
Deus para permitir que me aconteça
aquilo?"

A vida, contudo, está como o


esplêndido afresco de Miquelangelo,
repleta de sentido. Devemos lembrar-
nos disso. Dia após dia, o mundo e
todos os que estamos nele, vamos
avançando em direção à realização
completa do desígnio de Deus. Você e
eu somos nas mãos de Deus como o
pincel nas mãos do pintor. Dia a dia,
vamos dando a nossa pequena
colaboração pessoal à grande obra-
prima de Deus, embora só venhamos a
compreender claramente qual foi
nossa parte quando virmos no céu a
obra acabada22.

22 Cf. Trese, L. Não vos preocupeis.


São Paulo, Quadrante, 1991. PP. 17 e
18.

Viver essa verdade consoladora nos dá


muita paz. Deus vai tecendo e
entretecendo todos os
acontecimentos, dizíamos antes, como
se elabora uma tapeçaria, mas nós
vemos essa tapeçaria às avessas, com
os seus desenhos apagados ou
inconseqüentes, com os seus fiapos
desajeitados. Só quando estivermos do
outro lado do tempo, na eternidade,
veremos o resultado magnífico dessa
esplêndida obra de arte. É por tudo
isso — já comentamos — que a prática
da entrega nas mãos de Deus é um dos
exercícios mais proveitosos de nossa
vida espiritual: deixamos que o artista
divino, desenvolva com absoluta
liberdade a sua inigualável
criatividade.

O Espírito Santo move-nos a pôr nossa


confiança no Pai com uma entrega
absoluta: "Entregue seu caminho a
Iahweh, nele confie, e ele agirá" (Sl
37,5). "Descarregue o seu fardo em
Iahweh, e ele cuidará de você" (Sl
55,23). É a recomendação que santa
Catarina de Sena ouviu do Senhor:
"Esquece-te de ti, filha, e pensa em
mim, que eu pensarei continuamente
em ti".

O bem-aventurado Josemaria Escrivá


repetia muitas vezes, pausadamente,
uma jaculatória que dizia lhe dava
muita paz: "Senhor, entrego nas tuas
mãos o passado, o presente e o futuro,
o pouco e o muito, o grande e o
pequeno, o temporal e o eterno".
Poderia também você fazer, como eu
faço com freqüência, a experiência de
entregar-se nas mãos de Deus; de
entregar-se à sua amorosíssima
providência dizendo essas mesmas
palavras, devagar, como que
saboreando-as. Estou certo de que
você experimentará, como acontece
comigo, uma imensa paz, uma
serenidade completa.

Não posso esquecer uma história que


um sacerdote me contou. Ele
trabalhava em Yauyos, uma das
regiões mais escarpadas e inóspitas
dos Andes peruanos. Celebrou a missa
do galo, no Natal, numa aldeia
pendurada a mais de 4.000 m de
altitude. Os montanheses, de fé
simples e profunda, acompanharam-
no no caminho de volta, ao lado do
cavalo, cantando antigas canções
natalinas. A certa altura, porém, se
despediram. Devia celebrar a missa da
aurora numa outra aldeia perdida. As
estrelas como teto. Como única
música, o golpe dos cascos do cavalo
sobre a pedra dura.

De repente percebeu que estava


perdido. Perder-se nos Andes, naquele
labirinto de rochas, significa não
raramente perder a vida. Um
sentimento de angústia o invadiu.
Estava só, desamparado. Foi então que
sentiu dentro um chamado à
realidade: Deus estava com ele, não
estava perdido. Largou as rédeas,
fechou voluntariamente os olhos, e
começou a fazer uma oração de
entrega total nas mãos de Deus, como
que dizendo: "Senhor, pega tu agora as
rédeas e conduze-me por um caminho
seguro". E sentiu uma grande paz.
Repetiu muitas vezes, com os olhos
fechados, essa oração. O tempo ia
escoando ao ritmo dos cascos do
cavalo.

Percebeu subitamente que o ritmo se


acelerava. Lá na sua frente, escondida
na montanha, brilhava uma luz, e o
cavalinho estava decididamente
encaminhando-se para ela. Nunca
poderia imaginar que naquela região
abandonada pudesse viver alguém. O
cavalo parou na frente de uma cabana
miserável. Desceu.

Deitada no chão, agasalhada entre


farrapos, encontrou uma velha que, ao
vê-lo, se soergueu:

— E possível que eu veja o que estou


vendo?

— Está vendo um sacerdote.


— Pois é isso que me parece incrível.
Há meses estou doente de morte, e só
pedia a Deus que, antes de morrer,
pudesse me confessar. Mas aqui não
passa ninguém, muito menos um
padre, e parecia que eu estava
pedindo um milagre. Pois o milagre
aconteceu agora.

E começou a chorar longa e


pausadamente. O sacerdote inclinou-
se sobre ela, e ouviu-lhe a confissão.
Pouco depois de dar-lhe a absolvição,
a senhora entrava em agonia.
Ajoelhou-se ao seu lado, rezando. A
presença de Deus lhe gritava, parecia
reboar das escarpas daquelas imensas
montanhas ao redor. Pouco depois, ao
seu lado, ajoelhava-se silencioso o
filho daquela pobre mulher. Disse
apenas estas palavras:

— Foi a noite de Natal que o Senhor


escolheu para nos visitar. Foi um
grande milagre.

Incríveis experiências cristãs! E, no


entanto, repetidas mil vezes nesses
vinte séculos de cristianismo, em todas
as partes do mundo!

Ao recordar essa história, penso


muitas vezes na tensão febril das
nossas cidades, dos que percorrem
nossas ruas; na apreensão pessimista
que abala tantos homens e tantas
mulheres; na insegurança pelo futuro
que tolda tantos corações. Por que não
soltar por um momento as rédeas de
nossa vida, fechar os olhos pela oração
e balbuciar algumas palavras de
entrega? "

“Iahweh é o meu pastor. Nada me


falta" (Sl 23,1). "Pusilânimes,
reconfortem-se e não temam: eis que
nosso Deus vem em nosso socorro e
nos salvará" (Ts 34,4).

O que poderá temer, como poderá


perder seu otimismo aquele que
realmente se deixa conduzir por quem
tudo sabe e tudo pode? 23

23 Cf. Llano Cifuentes, R. Otimismo.


São Paulo, Quadrante, 1990. PP. 32-34.

A fonte de todo o nosso otimismo


brota de uma verdade que pode ser
sintetizada naquele poema de paz
magistralmente cantado por Teresa de
Ávila.

Nada te turbe,

Nada te espante,

Pois tudo passa.

Deus nunca muda.

A paciência Tudo alcança.

Quem a Deus tem

Nada lhe falta.

Só Deus basta!24
24 Santa Teresa de Jesus. Obras de
Santa Teresa de Jesus. Conceitos do
Amor de Deus. Petrópolis, Vozes,
1951. V.V, p. 17; Llano Cifuentes, R.
Otimismo. São Paulo,

Quadrante, 1990. PP. 32-34.

O exercício diário da entrega à vontade


do Pai

A vida nunca será um fardo, nunca


pesará, como dizíamos antes, como
um carro, e o nosso caminhar nunca
chegará a ser vagaroso e torpe como a
marcha de um boi se entendermos
que cada passada significa diminuir a
distância que nos separa de nosso Pai-
Deus, de nossa felicidade eterna. É
com essa mentalidade que nós nos
levantamos cada dia. Ao despertar
elevamos a Deus nosso pensamento,
oferecemo-lhe todos os trabalhos e
dissabores da jornada, as palavras e as
obras, os sofrimentos e as alegrias, os
êxitos e os percalços, a saúde e a
doença, abrindo-nos assim à aceitação
serena da vontade do Pai. É como um
ato de adesão amorosa a tudo o que
vier a acontecer no dia, seja doce ou
amargo, agradável ou penoso. É uma
alegre disposição de tudo fazer e
sofrer para agraciar nosso Pai.

A partir dai nos esforçaremos por


manter-nos tranquilamente nessa
disposição fundamental, e repetirmos
com freqüência esse ato de adesão
amorosa com que iniciamos o dia.
Durante nossos afazeres
permaneceremos donos de nós
mesmos, serenos, agindo "sem pausa
e sem pressa", sem lentidão nem
precipitação, sem deixar-nos dominar
pela agitação, pela vaidade, pela
ambição, pela inveja, pelo comodismo,
pelo espírito de competição, pela
apatia..., pelas exigências inquietantes
de cada tarefa. Não nos escravizará o
amor próprio, a vontade de aparecer,
o desejo de triunfar, mas suavemente
nos deixaremos conduzir pelos desejos
daquele Pai que só quer nossa
felicidade.

Começamos assim nossas ocupações


sem nos enervar, continuamos com
toda a paz, e as terminamos sem
pressa, sabendo que, depois desse
trabalho, outros virão. Para acalmar
nossa impaciência repetiremos
amiúde: "Enquanto executo esta
tarefa, não devo cumprir outra;
enquanto estiver aqui pela vontade do
Pai, não estou obrigado a estar acolá".

Assim, mansos, tranqüilos,


inteiramente senhores de nós
mesmos, executamos com o coração
livre nossos deveres, uns após outros,
e essa liberdade interior vai nos
permitir empreender tudo com a
mente clara e a atenção contínua, sem
fadigas ou precipitações, sem
desanimes ou molezas.

Chegamos a entender que os homens


realmente ativos e eficientes são os
que menos o aparentam, como a ação
silenciosa do coração que, escondido,
sem se dar a perceber, impulsiona com
energia o sangue até o último vaso
capilar. Tomamos consciência de que
os agitados, os apressados, pouco
fazem. Começam, mas não acabam.
Após o trabalho ficam como que
vazios, inquietos, porque não se
apercebem de que o que realizaram
nesse dia representa uma etapa feliz
do caminho que os conduzirá à sua
realização eterna. Quando, porém,
vivemos entregues à vontade do Pai,
esse caminhar se faz na calma, na
serenidade. Sem pressa, mas com
intensidade. Imitamos assim nosso Pai-
Deus que, na sua imutabilidade, está
sempre ativo, num extraordinário
dinamismo criador 25.
25 Cf. Schrijuers, J. op. cit., PP. 51s.

E ao terminar o dia, quando se adentra


a noite, depositamos os trabalhos nas
mãos de Deus e, com um ato de
agradecimento, talvez com um sorriso,
deixamos sair de nosso coração uma
oração como esta:

Senhor, estou nas tuas mãos! Tu sabes


o que é mais conveniente para mim,
entrego tudo o que sou e serei à tua
divina vontade. Cuida de mim... Indica-
me o caminho que devo seguir e dá-
me a coragem necessária para
caminhar com passo seguro... Senhor,
confio em ti... Maria, Mãe de Jesus e
minha Mãe, mãe de misericórdia, não
me abandones, nem de noite nem de
dia..., nem na vida nem na morte... 26
26 Cf. Llano Cifuentes, R. Insegurança,
medo e coragem. São Paulo,
Quadrante, 1997, p. 69.

Assim vão passando os minutos, as


horas, os dias. Assim, vão passando os
anos, as décadas, a vida toda, até o
momento em que possamos dizer,
como Jesus, exalando seu último
suspiro: "Tudo está realizado! Pai, nas
tuas mãos entrego o meu espírito" (Jo
19,30; Lc 23,44).

Teremos uma morte muito serena se,


vivendo assim, dia após dia, o
cumprimento da vontade de Deus,
pudermos dizer: "Tudo está
realizado!". Há uma grande diferença
entre dizer tudo está consumado, tudo
está realizado, tudo está planificado, e
dizer tudo está consumido, tudo está
acabado, tudo está definhado...!

A oração confiante

A esse estado de alegria permanente,


fruto de uma serena confiança no Pai,
só se chega pela oração.

O que significa, porém, orar? Orar é


conversar com Deus, elevar o coração
até ele, abrir-se diante da sua
presença.

Deus não está longe, lá em cima onde


brilham as estrelas. Está perto, ao
nosso lado. Nosso Deus, não é o Deus
das distâncias astronômicas. É para
nós Jesus, um Deus de coração
humano, aquele que nasceu num
presépio, morreu na cruz e ficou no
sacrário por nosso amor. E ele nos diz:
"Eu estarei com vocês todos os dias,
até o fim do mundo" (Mt 28,20).

A sua proximidade, aproxima-nos do


Pai. Muito mais. Permite que o Pai,
com ele, entre no mais íntimo de nós
mesmos: "Se alguém me ama, guarda
a minha palavra, e meu Pai o amará.
Eu e meu Pai viremos e faremos nele a
nossa morada" (Jo 14,23). Deus está
mais dentro de nós do que nós
mesmos, pois está na própria raiz de
nosso ser: "Nele vivemos, nos
movemos e existimos" (At 17,28).
Podemos encontrá-lo e conversar com
ele a qualquer momento. Com ele, que
é a fonte de toda a alegria e de toda a
felicidade.

Quando queremos acender a luz,


ligamos o interruptor. Um pequeno
dispositivo põe-nos em contato com
toda a rede de energia que se estende
pelo país. É uma maravilha! Pois bem,
colocar-se na presença de Deus e
dizer-lhe: "Meu Senhor e meu Deus,
creio firmemente que você está aqui,
que me vê, que me ouve..." é como
ativar o dispositivo espiritual que nos
põe em conexão pessoal com essa
infinita rede de poder, de sabedoria,
de compreensão, de carinho, de
alegria que é Deus... Não é um
mecanismo eletrônico que se põe em
movimento, é um coração de Pai que
está à nossa escuta. É alguém que nos
diz, tendo nas mãos toda a riqueza do
universo: "Peçam, e lhes será dado!
Procurem, e encontrarão! Batam, e
abrirão a "porta para vocês!" (Mt 7,7).

No meio de nossas preocupações e


angústias, sai de nós, como se fosse
um movimento instintivo, um pedido
de ajuda, um clamor: Domine exaudi
orationem meam! — Senhor escuta
minha súplica, não deixes de escutar
este grito que lanço para ti, Deus
Altíssimo (cf. Sl 53 ou 54).

O Pai não se esquece de nós. Nunca.


Lembremos a história bíblica de
Susana. Ela não se curvou diante das
pretensões libidinosas de dois juízes
malévolos... "Prefiro cair em suas
mãos sem ceder — disse — do que
pecar na presença do Senhor".
Acusada pelos juízes de adultério "ela,
em pranto, erguia os olhos para o céu,
pois seu coração confiava no Senhor".
Susana foi condenada à morte. Então
gritou com voz forte:

Deus eterno, que conheces o que está


escondido e tudo vês antes que
aconteça, tu sabes muito bem que eles
deram falso testemunho contra mim.
Vou morrer, mas sem ter feito nada
disso de que me acusam.

O Senhor ouviu sua súplica.

Como a levassem à morte, Deus


suscitou a inspiração de um moço
chamado Daniel, que se pôs a clamar:

"— Eu não tenho nada a ver com a


morte dessa mulher!"

Todo o povo se voltou para ele e


perguntaram-lhe:

"— O que é que você está dizendo?"

De pé, no meio do povo, ele disse


então:

"— Como vocês são idiotas, israelitas!


Sem julgamento e sem uma idéia clara,
vocês acabaram de condenar à morte
uma israelita! Voltem para o tribunal
porque foi falso o testemunho desses
homens contra ela".

O povo voltou às pressas.

Daniel, segundo a mesma inspiração


divina, desvendou a calúnia, de forma
insofismável. Susana foi salva e os
juízes receberam o seu merecido
castigo.

"Toda a assembléia começou a


aclamar, dando louvores a Deus que
salva os que nele confiam" (Dn 13,41-
62).

Deus pode fazer-se aguardar; pode


demorar em responder aos nossos
pedidos, em desvelar o verdadeiro
significado das coisas, das pessoas e
dos acontecimentos. Ele, porém,
nunca falha. Acaba atendendo àqueles
que nele confiam e a ele imploram. A
verdade sempre terminará
aparecendo. Quando o poder infinito
de Deus fizer brilhar para todos os
homens a verdade infinita de Deus,
então entenderemos a benignidade
incomensurável da sua divina
providência. E passaremos a
eternidade inteira dizendo: "Louvor e
glória a ti Senhor!"

Antecipemos com fé esse momento,


sabendo aceitar com mansidão e
paciência os acontecimentos dolorosos
cujo sentido não chegamos agora a
compreender. E enquanto aguardamos
que Deus nos ajude, não deixemos de
orar incessantemente.

Para isso, contudo, é preciso ter fé:

Se vocês tiverem fé, e não duvidarem,


vocês farão não só o que eu fiz com a
figueira, mas também poderão dizer a
essa montanha: Levante-se, e jogue-se
no mar, e isso acontecerá (Mt 21,21).

Não basta, pois, uma fé interesseira,


que se lembra de Deus apenas na hora
dos "apertos". A paz e a alegria de
Deus não se "compram" em troca de
quatro bugigangas, de quatro orações
mal alinhavadas... Deus espera de nós
uma fé confiante, que se abra num
diálogo filial e amável, que nos leve a
falar com Jesus, exatamente como
faríamos se nos encontrássemos com
ele sentados à margem do mar de
Tiberíades ou à sombra de uma
oliveira na Palestina: "Senhor, hoje
estou triste... Acabo de receber esta
notícia desagradável... Estou sentindo
o meu corpo doente... Não espero
grandes coisas nos próximos anos...
Senhor, ajuda-me!" Peçamos, sim, ele
não deixará de nos atender. Disse
Jesus: Venham para mim todos vocês
que estão cansados de carregar o peso
do seu fardo, e eu lhes darei descanso
(Mt 11,28).

Poderíamos nos perguntar:


acreditamos nessas palavras? Se não
acreditamos, estamos ofendendo a
infinita veracidade e o poder de Deus.
Mas, se acreditamos, por que não nos
lançamos nos braços do Senhor, como
uma criança nos braços de seu pai?:
"Coloquem nas mãos de Deus
qualquer preocupação, pois é ele
quem cuida de vocês" (1Pd 5,7).

A oração supera todas as depressões.


Jesus entrou no jardim das Oliveiras
abatido, dizendo: "A minha alma sente
uma tristeza mortal". E saiu de lá
fortalecido, perguntando
corajosamente: "Quem é que vocês
estão procurando?" (Jo 18,4). E,
quando lhe disseram: "Jesus de
Nazaré", respondeu: "Sou eu". E tal foi
a força da sua palavra, após horas
seguidas de oração ao Pai, que os
soldados caíram por terra. O Pai nos
comunicará a nós também, pela
oração, a força que comunicou ao
Senhor no Getsêmani.

"Não há nem desespero nem tristeza


amarga para quem reza muito", dizia o
convertido intelectual Léon Bloy27.

27 Martin, R. As Grandes Amizades. P.


75.
A oração cura todas as depressões e
angústias. Que é mais difícil curar: a
ansiedade ou a lepra? Pois bem, o
leproso disse ao Senhor: Se queres,
podes curar-me (Mt 8,2). Não disse "se
podes", mas "se queres". Confiava no
poder do Senhor. E o Senhor
respondeu-lhe: "Eu quero, fique
purificado" (Mt 8,3). E
instantaneamente ficou curado.
Digamos nós o mesmo nos momentos
de aflição: Se quiser pode curar-me,
serenar-me, transformar-me.

No entanto, além de atrair em nosso


favor o poder de Deus, a oração cria
em nós a capacidade de aprofundar o
sentido da vida e das coisas, de
conhecer o motivo das nossas
tristezas, depressões e desânimos — a
insegurança, a fraqueza, o orgulho, a
perda da fé, o apego a falsos valores...
— e, conseqüentemente, de enxergar
o roteiro dos verdadeiros valores,
redescobrindo o brilho da "estrela" de
nossa vocação. E quando nela
reparamos — quando voltamos a
vislumbrar a pista do "tesouro" —,
alegramo-nos também como os
magos, ao descobrirem a estrela em
Belém com imensa alegria.

A oração tem, por fim, outro aspecto


extremamente eficaz, embora pareça
mais passivo, pois deixamos toda a
iniciativa nas mãos de Deus. Nós,
como uma porção de barro nas mãos
do oleiro — sícut lutum in manu figuli
(Jr 18,6) —, dizíamos antes, colocamo-
nos nas mãos do artista divino para
dizer-lhe: "Senhor, você sabe o que me
convém; corte, acrescente, purifique,
molde, burile, de acordo com os seus
desígnios. Sei que você quer que eu
seja feliz: faça-me, Senhor, feliz do seu
jeito".

E ele age.

É conhecida a história daquele


mendigo violinista que, à porta da
igreja, tocava cada domingo a mesma
peça no seu velho violino, à espera de
que lhe lançassem aos pés algumas
pobres moedas. Um dia, tocava essa
sua única música diante de um
pequeno auditório que o escutava
benignamente. O violino rangia
desafinado... Quando terminou, um
senhor muito distinto pediu-lhe
polidamente o instrumento. Afinou
cuidadosamente as cordas e começou
a tocar. E fê-lo de tal maneira que em
poucos minutos a praça ficou cheia de
gente; as notas ecoavam no ar com
uma agilidade e vibração
arrebatadoras. Foi quando, no meio do
silêncio, ouviu-se um grito: — "É o
meu violino; é o meu violino!" Era o
pobre mendigo que bradava
entusiasmado, orgulhoso, porque do
seu violino saía uma música tão
maravilhosa... Quem tocava era o
grande violinista Sarasate,
interpretando genialmente uma das
suas Árias ciganas.

Uma vida angustiada é uma vida


desajustada, desafinada. Deus não nos
criou para a depressão, e sim para a
alegria e a paz. Ele sabe como nos
tornar felizes. Coloquemos o pobre
violino de nosso coração — talvez
desgastado, triste e melancólico — nas
mãos do grande artista, para que ele
afine as suas cordas enquanto oramos.
E o nosso miserável instrumento, que
às vezes só sabe interpretar as
mesmas lamúrias e queixumes, poderá
surpreender-nos com a qualidade das
suas notas.

Talvez nos admiremos um dia de que


nossa carcaça desgastada possa
produzir tão bela música e gritemos
entusiasmados: — "É o meu violino!" É
que o artista é tanto mais genial
quanto pior o instrumento de que se
serve. E assim acabaremos por
reconhecer: — "É o violino de Deus!"
In manibus tuís, Domine, sortes meae
(Sl 30,6), diz o salmo: "Nas tuas mãos,
Senhor, está a minha sorte". Confio em
você; oriente a minha vida; endireite
os caminhos tortos da minha tristeza;
mude os meus sentimentos; afine as
fibras do meu coração...

Não nos esqueçamos, porém, de Maria


em nossa oração. Ela é a "onipotência
suplicante" e, ao mesmo tempo, a
"causa de nossa alegria", a "Mãe do
perpétuo socorro", Maria auxiliadora,
"consoladora dos aflitos"... Ela diz a
todos, como nossa Senhora de
Guadalupe ao índio Juan Diego, lá no
México, no início da evangelização da
América Latina: "Não se perturbe o seu
rosto nem o seu coração, não temas
[...]. Não estou eu aqui, eu que sou a
sua mãe? Você não está sob a minha
sombra e proteção? Não sou eu a
fonte de sua alegria? Você não está
debaixo do meu manto e em meus
braços? Por acaso tem necessidade de
alguma outra coisa? Nada o aflija ou o
perturbe [...]"28 Como podemos
continuar preocupados, angustiados,
depois de recorrer a Maria?

28 Cf. Amón, F. O Mistério de


Guadalupe. São Paulo, Quadrante,
1990. P.21.

Duvidamos de tudo isso que acabamos


de dizer? Não acreditamos nessa
receita do apóstolo Tiago, que nos fala
da oração como o melhor remédio
para a tristeza e a depressão? Por que
não a experimentamos? Por que não
fazemos um reste durante uma
semana, recolhendo-nos diariamente
em oração por quinze minutos, no
quarto ou numa igreja?29

29 Cf. Llano Cifuentes, R. Alegria de


viver. São Paulo, Quadrante, 1993. PP.
70-75.

Poderíamos, contudo, nos perguntar: o


que acontece quando um homem não
só não fala com Deus, mas dele se
afasta? Acontece o que se passou com
o filho pródigo.

Nesse momento das nossas reflexões,


entraremos em um novo capítulo, no
qual contemplaremos, com o colorido
da parábola do filho pródigo, a infinita
misericórdia e perdão do Pai eterno,
que reencontra a quem estava perdido
e a quem tanto amava.

O filho pródigo

Quando Jesus quis que sentíssemos a


profundidade misericordiosa do
coração do Pai, contou-nos uma
história muito bonita: um filho,
cansado da monotonia da vida
familiar, pediu ao pai o que lhe
correspondia da herança e com aquele
dinheiro começou a viver uma vida
louca de luxo e diversões. Depois de
gastar tudo, houve uma grande fome
naquele país e começou a passar
necessidades. Terminou tornando-se
guardador de porcos. E nem mesmo a
comida dos porcos lhe era permitido
comer. Caindo em si, disse: "Quantos
empregados do meu pai têm pão com
fartura, e eu aqui, morrendo de fome!"
E partiu depressa para a casa do Pai.

O pai, todos os dias subia numa


pequena colina que havia na frente da
casa, e perscrutava o horizonte para
ver se conseguia enxergar a figura do
seu filho. E um dia, lá onde a vista se
perdia com o horizonte, viu a figura
cambaleante do seu filho, quase
irreconhecível, esfarrapado,
desfalecido, maltratado pela vida, e
saiu correndo para apertá-lo entre os
braços. Quando o filho começou a
dizer: "Pai, pequei contra Deus e
contra ti; já não mereço que me
chamem teu filho", o pai, comovido,
colocando a mão na sua boca, lhe
disse:

”Não fale mais, eu te perdôo de todo o


coração! Vamos celebrar a grande
resta! Eu te recuperei! Tu estás agora
do meu lado! Que felicidade! O teu
arrependimento e o meu perdão são
agora a nossa alegria e o nosso
prêmio” (cr. Lc 15,1 1-32)

O pai não pensa no castigo, e sim na


misericórdia; não lembra as tristezas
causadas pelo comportamento do
filho, mas o júbilo da sua volta.

O filho afastado do pai

O filho partiu para terras distantes.


Enquanto havia dinheiro, mulheres e
diversão, não se lembrava da casa do
pai, mas quando se encontrou sozinho,
quando verificou que as amizades só
permaneciam enquanto havia
dinheiro, começou a sentir imensas
saudades da casa paterna.

Há muitas maneiras de afastar-se de


Deus. Separamo-nos de Deus, quando
imperceptivelmente vamos perdendo
a fé, ou vamos considerando Deus
como um ser distante, colocando-o no
canto das coisas rotineiras e
desinteressantes. Afastamo-nos de
Deus quando nos deixamos invadir por
esse ambiente superficial,
permissivista e sensual. Afastamo-nos
do Pai quando queremos ganhar uma
falsa autonomia, quando por orgulho
nos custa reconhecer a dependência
desse Pai, quando por vergonha nos
recusamos a confessar os próprios
erros. Afastamo-nos de Deus quando
nos deixamos dominar pela ambição
desordenada do dinheiro, da glória e
do poder... Num determinado
momento, contudo, começamos a
sentir-nos mal, como aquele filho
pródigo. Chega a fome: a fome de
sentido, a fome de plenitude, a fome
de Deus... e com ela uma saudade
pungente: saudade de amores mais
profundos, de belezas mais
consistentes, de valores mais
verdadeiros. Saudade de paz, saudade
do carinho paterno, saudade do lar. E,
então, do mais íntimo do ser brota um
desejo que se transforma em grito,
num grito lancinante que parece
ribombar por campos e montanhas:
"Pai! Meu Pai!" O que fiz com o meu
Pai! Ah! Meu Pai, eu não posso ficar
distante de você. Levantar-me-ei e
sairei à sua procura. Soergueu-se e
saiu correndo...

Quando estamos afastados do Pai, do


fundo das nossas angústias, do âmago
do nosso sentimento de orfandade, do
centro das nossas saudades e tristezas
ecoa em nós uma voz que clama:
"Volta para mim! Volta para casa! Sou
eu o teu Pai!" E lá, no mais íntimo,
sentimos uma aguilhoada que nos põe
em pé, que nos impulsiona a caminhar.

A espera amorosa do pai

Desde que o filho partiu, o pai,


deitava-se pensando no seu filho.
Sonhava imaginando a vida do seu
filho e acordava com a esperança de
reencontrá-lo. Todos os dias subia ao
ponto mais elevado das suas terras e,
com um olhar distante, percorria o
horizonte à procura do seu filho. Onde
estará meu filho? O que estará
fazendo?... E, de repente, um dia, um
ponto perdido na distância, ia se
aproximando e ganhando vulto. Seu
coração disparou. Será ele?... E saiu
correndo. À medida que as distâncias
se encurtavam, a dúvida ia tornando-
se certeza. E ele! Sim, é ele! E
começou a gritar: Meu filho! Meu
filho! E os seus gritos se misturaram
com outros que pareciam o seu eco:
Meu Pai! Meu Pai! E as suas vozes
ficaram abafadas no aperto de um
abraço.

Tudo muda quando o filho cai nos


braços do seu pai. E as lágrimas
misturaram-se com os beijos.

"Pai, pequei contra Deus e contra ti, já


não mereço que me chamem teu
filho".

Filho, não fale assim. Não importa o


que aconteceu. O que realmente
importa é que você está aqui entre os
meus braços.

Como pude, pai, passar tantos anos


longe de você! Que triste minha vida
sem o seu olhar! Que amargo o meu
destino sem a sua companhia! Que fiz
eu?! E, no entanto, você me acolhe
assim, e tudo é esquecido e a minha
ingratidão, perdoada, morre num
abraço.

Enquanto o filho se aproxima


vagaroso, amedrontado, esmagado
pelo peso da sua culpa, o pai sai
correndo para antecipar seu perdão.
Enquanto o arrependimento anda a
passo lento, a alegria da misericórdia
sai voando, queimando etapas,
dispensando formalidades,
precipitando o encontro... O perdão é
tão evidente que nem se menciona.
Não foi preciso dizer que o pai
perdoou o filho. O júbilo, a ternura,
ultrapassam o perdão, superam o
perdão.

Como eu gostaria que você e eu


encontrássemos a alegria da
misericórdia! O festim da benignidade,
o banquete da bondade.

O pai soube fazer de um pecado


arrependido uma festa.

O arrependimento confessado

A antífona do sábado da segunda


semana de Quaresma reza assim:

O Senhor é clemente e misericordioso


e rico em piedade e compreensão; o
Senhor é carinhoso com todos,
misericordioso com todas as criaturas.

Quão claramente vemos isso nessa


parábola. Ela não deveria chamar-se
parábola do filho pródigo, e sim
parábola do pai misericordioso. Brilha
nela mais a misericórdia do Pai do que
a prodigalidade do filho.

Misericórdia, O que significa


misericórdia? Etimologicamente
provém da fusão de duas palavras
latinas: miséri e cor: sentir no coração
a miséria de alguém.

Poderíamos nos perguntar: como Deus


vai sentir misericórdia se não lhe
manifestamos nossa miséria? Como o
médico vai me curar, se não lhe revelo
os sintomas de minha doença? Como o
juiz vai me julgar com benignidade, se
não tenho a coragem de confessar
com sinceridade os meus crimes?
Como o pai vai me perdoar, se eu,
como filho, não for até ele para
receber seu abraço? Como Deus vai
perdoar os meus pecados, se não os
reconheço diante do sacerdote que o
representa? João Paulo II, em muitas
ocasiões fala-nos de uma necessária
sinceridade para realizar uma
confissão válida: "Aprendei a chamar
branco ao branco e negro ao negro;
mal ao mal e bem ao bem. Aprendei a
chamar pecado ao pecado"1.

1 João Paulo II. Homilia para


universitários em Roma. 11 de abril de
1979.

O Senhor disse aos seus discípulos,


"tudo o que perdoardes na terra será
perdoado no céu" (cf. Mt 16,19). Ora,
um padre não pode perdoar em nome
de Deus o que ignora: eis aqui a raiz
evangélica da necessidade da
confissão individual.

Essa verdade, aliás, está em


concordância com uma lei que domina
toda a psicologia: ninguém supera o
que não reconhece. Toda a análise
psiquiátrica moderna consiste em
passar o que está no subconsciente ao
consciente para tratar o mal com os
remédios oportunos.

Em nós, porém, a força do orgulho nos


inclina a esconder nossos erros, a
desculpar os nossos pecados, a
sepultá-los no anonimato, a diluí-los
em confissões "comunitárias".
Nenhum doente, que tenha bom
senso, gosta de diagnósticos e de
receitas "comunitárias". Quer ser
auscultado e tratado individualmente,
de forma personalizada.

João Paulo II, em discurso do dia 13 de


março de 1999, dá uma especial
ênfase ao sacramento da penitência e
faz uma síntese prática, muito clara, da
doutrina da Igreja sobre este
sacramento. Ainda que a citação seja
longa, pedimos ao leitor que tenha
paciência de deter-se nela, pois é
extremamente esclarecedora:

É vontade de Deus que a remissão dos


pecados e a instauração da amizade
divina sejam medidas pela obra da
Igreja: "O que você ligar na terra será
ligado no céu, e o que você desligar na
terra será desligado no céu" (Mt
16,19), Jesus disse solenemente a
Simão Pedro e, por meio dele, aos
sumos pontífices seus sucessores. Ele
confiou essa mesma recomendação
aos apóstolos e, por meio deles, aos
bispos seus sucessores: "Tudo o que
vocês ligarem na cerra será ligado no
céu, e tudo o que vocês desligarem na
terra será desligado no céu" (Mt
18,18). Na tarde do dia da
ressurreição, Jesus tornará efetivo
esse poder com a efusão do Espírito
Santo: "Os pecados daqueles que
vocês perdoarem, serão perdoados. Os
pecados daqueles que vocês não
perdoarem, não serão perdoados' (Jo
20,23). Graça a esse mandato, os
apóstolos e os seus sucessores, na
caridade sacerdotal, poderão dizer
com humildade e verdade: perdôo os
seus pecados.
Tenho plena confiança de que o Ano
Santo será, como deve ser, um
capítulo particularmente eficaz da
história da salvação [...]. Por isso tenho
confiança e oro para que, graças ao
serviço generoso dos sacerdotes
confessores, o Ano jubilar seja para
todos os fiéis uma ocasião de
aproximação piedosa e
sobrenaturalmente serena do
sacramento da reconciliação.

— Por instituição de nosso Senhor


Jesus Cristo, como está escrito de
modo explícito no citado trecho do
evangelho segundo João, a confissão
sacramental é necessária para obter o
perdão dos pecados mortais
cometidos depois do batismo.
Contudo se um pecador, alcançado
pela graça do Espírito Santo, conceber
a dor dos seus pecados em virtude da
caridade sobrenatural dado que esses
são uma ofensa a Deus, sumo bem,
obterá imediatamente o perdão dos
pecados, até mesmo mortais, desde
que tenha o propósito de os confessar
sacramentalmente, no tempo devido,
quando puder.

— O penitente que, responsável de


pecados graves, recebe a absolvição
coletiva, sem a prévia confissão
individual dos próprios pecados ao
confessor, deve conceber uma idêntica
resolução (isto é, confessar depois em
confissão individual): esse propósito é
tão necessário que na sua ausência a
absolvição seria inválida, de acordo
com o cân. 962 § l do Código de Direito
Canônico e do cân. 721 § l do Código
dos Cânones das Igrejas Orientais.

— Os pecados veniais podem ser


perdoados também fora da confissão
sacramental, mas sem dúvida é
deveras útil confessá-los
sacramentalmente. De fato, admitindo
as devidas disposições, obtêm-se não
só a remissão do pecado, mas também
a ajuda especial constituída pela graça
sacramental para evitá-lo no futuro.
Neste ponto, é bom reafirmar o direito
que os fiéis têm — e ao seu direito
corresponde a obrigação do sacerdote
confessor — de se confessar e obter a
absolvição sacramental também dos
pecados veniais. Não esqueçamos que
a chamada confissão devocional foi a
escola que formou os grandes santos.

— Para se aproximar da eucaristia, de


maneira lícita e frutuosa, é necessário
que antes se faça a confissão
sacramental, quando se tem
consciência de um pecado mortal.
Com efeito, a eucaristia é a fonte de
todas as graças, enquanto
representação do sacrifício salvífico do
Calvário; no entanto, como realidade
sacramental, não está ordenada
diretamente à remissão dos pecados
mortais: isso é ensinado de modo claro
e inequívoco pelo Concílio de Trento
(Sess. 13, cap. 7 e cânone respectivo,
Denz. 1647 e 1655), dando por assim
dizer autoridade disciplinar e jurídica à
própria palavra de Deus: "Todo aquele
que comer do pão ou beber do cálice
do Senhor indignamente, será réu do
corpo e do sangue de Senhor.
Portanto, cada um examine a si
mesmo antes de comer deste pão e
beber deste cálice, pois aquele que
come e bebe sem discernir o Corpo,
come e bebe a própria condenação"
(1Cor 11,27-19).

Por conseguinte, o Ano jubilar, graças


ao sacramento da penitência, deve ser
especialmente o ano do grande perdão
e da plena reconciliação[...].

Tudo quanto recordei neste encontro


convosco está enunciado, numa
síntese breve e maravilhosa, na
fórmula ritual da absolvição
sacramental: "Deus, Pai de
misericórdia, que pela morte e
ressurreição do seu Filho reconciliou o
mundo consigo e enviou o Espírito
Santo para a remissão dos pecados, te
conceda o perdão e a paz mediante o
ministério da Igreja"2.

2 João Paulo II. Discurso na Audiência


aos participantes do curso promovido
pela Penitência Apostólica, 13 de
março de 1999.

Percebe-se especialmente neste


último ano do segundo milênio, uma
grande preocupação do papa para
valorizar o grande significado do
sacramento da reconciliação. Vejamos
apenas alguns exemplos:

A crise atual do sacramento da


penitência [...] — observa João Paulo
II, na Exortação A Igreja na América —
poderá ser superada graças também a
uma ação pastoral assídua e paciente
[...] pede que os sacerdotes dediquem
o devido tempo à celebração do
sacramento da penitência, e convidem
os fiéis a recebê-lo, sem deixar eles
próprios de recorrer pessoalmente e
com freqüência à confissão3.

3 João Paulo II. Exortação apostólica


pós-sinodal Eclésia in America, 22 de
janeiro de 1999, n. 32.

Preocupado com esse problema o


santo padre, recentemente, na sua
mensagem aos jovens e às jovens do
mundo por ocasião da XIV Jornada
mundial da juventude, celebrada em
Roma e em todas as dioceses no
Domingo de Ramos de 1999, nos diz
nesse sentido:

O homem contemporâneo,
infelizmente, quanto mais perde o
senso do pecado tanto menos recorre
ao perdão de Deus: disto dependem
muitos dos problemas e das
dificuldades de nosso tempo. Neste
ano, convido-vos a redescobrir a
beleza e a riqueza de graça do
sacramento da penitência,
repercorrendo com atenção a parábola
do filho pródigo, onde é ressaltado não
tanto o pecado, como a ternura de
Deus e a sua misericórdia.

Com confiança aproximai-vos do


sacramento da confissão: com a
acusação das culpas mostrareis querer
reconhecer a infidelidade e
interrompê-la; afirmareis a
necessidade de conversão e de
reconciliação, para encontrardes a
pacificante e fecunda condição de
filhos de Deus...].

Recebei [...] com ânimo grato a


absolvição do sacerdote: é o momento
em que o Pai pronuncia sobre o
pecado arrependido a palavra que faz
viver: "Este meu filho reviveu!" A fonte
do amor regenera e torna capaz de
superar o egoísmo e de voltar a amar
com maior intensidade4.

4 João Paulo II. Discurso na XIV


Jornada mundial da juventude
(Domingo de Ramos, 1999)
A confissão dos pecados causa grande
alegria ao nosso Pai-Deus. É certo que
nunca deveríamos ter pecado, termos
abandonado a casa paterna. Nosso
retorno, no entanto, suscita no seu
coração uma felicidade imensa. Não
lhe recusemos essa alegria. Por cima
da vergonha que a manifestação dos
nossos pecados produz, pensemos no
júbilo que lhe causamos e no sossego
que conseguiremos vivendo no lar
paterno, na santa paz de Deus.

De certo modo, a vida humana é um


constante retorno à casa de nosso Pai.
Retorno mediante a contrição,
mediante a conversão do coração, que
se traduz no desejo de mudar, na
decisão firme de melhorar de vida, e
que, portanto, manifesta-se em obras
de sacrifício e de doação. Retorno à
casa do Pai por meio desse
sacramento do perdão em que, ao
confessarmos nossos pecados, nos
revestimos de Cristo e nos tornamos
assim seus irmãos, membros da família
de Deus5.

5 Bem-aventurado Josemaria Escrivá. É


Cristo que passa. São Paulo,
Quadrante. 1973. N. 64.

Devemos ter mentalidade de filhos


pródigos: voltar sempre para a casa do
Pai. Não demorar muito tempo. Voltar
freqüentemente. Retomar muitas
vezes. Depois de uma falha, de um
pecado leve, de uma discussão, de
uma atitude egoísta, de um
movimento de sensualidade, de uma
irritação, de uma crítica azeda, de uma
injustiça, façamos um ato de contrição,
procuremos o sacramento da
reconciliação, voltemos para a casa do
Pai. Na figura do sacerdote
receberemos o abraço misericordioso
de Deus. E a grande festa do perdão
será a eucaristia.

Uma conseqüência da filiação divina:

a ciência de aproveitar os próprios


erros

A mentalidade de filhos pródigos, que


nos inclina a acudir, arrependidos, à
casa do Pai quantas vezes for preciso
— e são muitas! — traz no seu bojo,
também, uma atitude de confiança
filial para recuperar-nos dos nossos
pequenos e grandes distanciamentos
da casa paterna. Não raro nos
inquietamos diante de nossos erros,
falhas e pecados. Deus, contudo, é o
Deus da paz: quer que recomecemos
nossa caminhada sem depressões e
desânimos. Como essas situações
repetem-se com freqüência dedicamos
ao tema um capítulo específico.

Recordemos esta verdade tão simples


e tão paternal: "se quisermos entrar
no Reino de Deus temos de tornar-nos
crianças" (cf. Mc 10,14-10). As crianças
precisam continuamente de ajuda;
têm a transparência de reconhecer a
própria debilidade. Por isso, se somos
crianças não nos deprimiremos diante
das nossas limitações, falhas, erros e
pecados. Há, sem dúvida, uma tristeza
filial e benéfica que parte da dor —
uma dor de amor — que sente um
filho depois de ofender um Pai tão
bom como é Deus; há, porém, outra
tristeza nefasta que brota do orgulho
ferido ao verificar a própria fraqueza: é
a tristeza que gera amargura e
desânimo. Quem vive a infância
espiritual nunca se entristece dessa
forma.

"A tristeza que vem de Deus, diz são


Paulo, produz arrependimento que
leva para a salvação [...] a tristeza
segundo este mundo produz a morte"
(2Cor 7,10). São Francisco de Sales, —
um verdadeiro "mestre" nesta matéria
— comenta a respeito:
A tristeza pode ser boa ou má,
conforme os efeitos que em nós
produz. Mas, em geral, produz mais
efeitos maus que bons, pois os bons
são apenas dois: a compaixão — o
pesar pelo mal dos outros — e a
penitência — a dor de ter ofendido a
Deus —, ao passo que os maus são
seis: angústia, preguiça, indignação,
ciúme, inveja e impaciência. Por isso,
diz o Sábio: "A tristeza mata a muitos e
não há utilidade nela" (Ecl 30,25), já
que, para dois regatos de águas
límpidas que nascem do manancial da
tristeza, nascem seis de águas
poluídas1.

1 São Francisco de Sales. Introdução à


vida devota. IV, 12.
A tristeza má, acabamos de dizer,
provém de um orgulho que em nosso
mundo cultural pós-modernista está
alimentado por um desejo impositivo
de sucesso. Karen Horney o considera
um afã neurótico de auto-afirmação2
que exacerba o espírito de
competição. No fundo há um temor de
ter de reconhecer a própria limitação,
a angústia de sentir-se diminuído, a
necessidade doentia de reestabelecer
o sentimento de auto-estima3. A
tristeza maléfica não procede da
mágoa filial de ter ofendido a Deus,
mas do sentimento de não poder auto-
aceitar-se, de não poder conviver com
as próprias limitações, erros e
pecados. A procura do êxito, o espírito
de competição é, no fundo, uma
necessidade de sentir-se estimado. Dai
partem no terreno espiritual as
depressões e os desânimos.

2 Cf. Horney, K. La Personalidad


neurótica de nuestro tiempo. México,
Paidós, 1992, p. 155

3 São Francisco de Sales, op. Cit.

Tal é a razão pela qual todos os


inimigos de nossa alma fazem grandes
esforços para produzir em nós essa
tristeza má, e, a fim de levar-nos a
desanimar, começam por perturbar-
nos. A voz tentadora encontra
abundantes argumentos para isso; e
sugere: "Não deveríamos afligir-nos
por ter ofendido a majestade divina,
ultrajado a beleza infinita e ferido o
coração de Deus, o mais terno dos
pais?" E uma pergunta revestida de
bondade, de amor filial, mas que
realmente está insuflada pelo amor
próprio ferido, pelo desejo de
reestabelecer o sentimento neurótico
de autocrítica.

São Francisco de Sales nos responde:

Com certeza, devemos entristecer-nos,


mas com um arrependimento
verdadeiro, não com uma dor mal-
humorada, cheia de despeito e
indignação. O verdadeiro
arrependimento é sempre calmo,
como todo sentimento inspirado pelo
bom Espírito: "O Senhor não está na
perturbação" (1Rs 19,11). Onde
principiam a inquietação e a
perturbação, a tristeza má passa a
ocupar o lugar da tristeza boa.

Muitos reconhecerão que se deixaram


envolver nessa perturbação após as
suas faltas e os estragos que ela lhes
causou! Tinham começado a levar a
sério a vida espiritual e seguiam
resolutamente os passos do Mestre
pelo caminho do dever [...] Eis, porém,
que sobrevêm uma queda e, com ela,
a perturbação! A alma levanta-se sob o
amparo do arrependimento e da
absolvição sacramental, que tudo vem
reparar. Mas nem por isso sossega.
Olha-se, examina-se ansiosamente,
conta as feridas mal cicatrizadas,
remexe-as com receio, infecta-as mais
por querer curá-las com despeito e
impaciência, "porque não há nada que
mais conserve os nossos defeitos do
que o desassossego e a pressa em
querer expurgá-los"4.

4 Ibidem. XIV, 120.

Entretanto, o passo vai afrouxando. Já


não se corre; anda-se a custo. A pessoa
arrasta-se, descontente de si e quase
que do próprio Deus; perde a
confiança na oração e aproxima-se dos
sacramentos com medo — até que
uma circunstância especial, por
exemplo, uma confissão
excepcionalmente bem feita ou um
retiro, lhe restitui por certo período o
fervor que tivera a princípio. Mas se,
passado algum tempo após essa
renovação, não elimina essa
intranqüilidade, uma nova queda ou
simplesmente a lembrança das faltas
passadas, provocará nela um surto de
redobrada depressão e melancolia;
voltará ao passo cansado, e, queira
Deus, não termine caindo numa inércia
quase irremediável5.

5 CF. Tisso, T. J. A arte de aproveitar as


próprias faltas. São Paulo, Quadrante,
1990, p. 26.

São Francisco de Sales recomenda


insistentemente a serenidade e a
paciência, em primeiro lugar conosco
mesmos:

Livrai-vos das pressas e dos


desassossegos, pois não há nada que
mais nos estorve o passo no caminho
da perfeição6. Por que os pássaros e
outros animais permanecem presos
nas redes? Porque, tendo caído nelas,
se debatem desordenadamente no
esforço por libertar-se, e assim só
conseguem embaraçar-se cada vez
mais[...]. Não é perdendo a serenidade
de espírito que conseguiremos
desfazer-nos dos laços de algumas
imperfeições; ao contrário, mais nos
embaraçaremos nelas7.

6 XII, 266. Carta a Santa Joana de


Chantal.

7 Opúsculos espirituais.

É preciso sofrer com paciência a


lentidão com que nos vamos tornando
melhores, sem deixar de fazer quanto
pudermos para progredir, sempre com
boa vontade. Esperemos, pois, com
paciência nosso progresso, e, em vez
de nos inquietarmos por termos feito
tão pouco no passado, procuremos
com diligência fazer mais no futuro8.

8 S. Francisco de sales. Tratado do


amor de Deus, livro IX, 7.

Não nos aflijamos por sempre nos


vermos principiantes no exercício das
virtudes, porque, no campo da vida
interior, todos devem se considerar
sempre principiantes. Pensar que já
superamos essa etapa é o sinal mais
evidente, não só de que continuamos
a ser principiantes, mas ainda de que
somos incapazes de deixar de sê-lo. A
obrigação de lutar por servir a Deus e
de progredir no amor divino dura até a
morte9.

9 Cf. TISSO, T. J. A arte de aproveitar as


próprias faltas, op. cit., p. 27.

A disposição básica que considera o


desânimo, o desalento, o pessimismo
como os piores inimigos de nosso
progresso espiritual e a mais frontal
negação da confiança que nos
proporciona a filiação divina, leva-nos
a um posicionamento fundamental:
saber começar e recomeçar muitas
vezes ao longo da vida.

É isso o que continua nos ensinando


são Francisco de Sales:

Quando caíres, levanta-te com grande


serenidade, humilhando-te
profundamente diante de Deus e
confessando-lhe a tua miséria, mas
sem te admirares da tua queda. Pois
que há de extraordinário em que a
enfermidade seja enferma, e a
fraqueza fraca, e a miséria miserável?
Detesta, sim, com todas as tuas forças,
a ofensa que fizeste a Deus, e depois,
com grande coragem e confiança na
sua misericórdia, volta a empreender o
caminho da virtude que havias
abandonado10.

10 S. Francisco de Sales. Introdução à


vida devota. III, 9.

Um homem santo, ao completar os


seus cinqüenta anos de sacerdócio,
confidenciava, com essa suave
maturidade que dá a presença dos
anos e o amor de Deus:

Passados cinqüenta anos, sinto-me


como uma criança que balbucia: estou
começando, recomeçando, como na
minha luta interior de cada jornada. E
assim até o fim dos dias que me
restem: sempre recomeçando. O
Senhor assim o quer, para que em
nenhum de nós haja motivos de
soberba nem de néscia vaidade11.

11 Bernal, S. Perfil do Fundador do


Opus Dei. São Paulo, Quadrante, 1978,
p. 416.

Quantas lutas, quantas tentativas


frustradas, quantos esforços
renovados, integram a vida dos amigos
de Deus! Uma das coisas que veremos
no céu será precisamente que a vida
dos santos não se poderá representar
por uma linha reta sempre em
elevação, uniformemente acelerada, e
sim por uma curva sinuosa,
ascendente e descendente, feita de
urgências animosas e lentidões,
subidas e descidas... e recomeços
vigorosos.

Essa atitude fundamental traz consigo


muitos frutos que, de modo sintético,
vamos especificar nas páginas que se
seguem.

Suscitar uma dor serena que brota do


amor. Uma dor profunda, talvez, não
porém amarga. Uma dor de filho que
traz consigo no peito um desejo de
reconciliação. A amargura parte do
amor próprio ferido que derrama pela
chaga aberta a bílis do despeito e do
desânimo. A serenidade dimana de
uma humildade simples e profunda.

Quem vive a filiação divina não se


entristece nunca, a não ser por ter
ofendido a Deus; mas a sua tristeza
está alicerçada numa profunda,
tranqüila e serena humildade e
submissão, após a qual se levanta pela
bondade de Deus, por uma doce e
perfeita confiança, sem vergonha nem
despeito12.

12 S. Francisco de Sales, Ibidem, XIX,


11.

Não vos aborreçais, ou, ao menos, não


vos perturbeis por vos terdes
perturbado, não vos abaleis por vos
terdes abalado, não vos inquieteis por
vos terdes inquietado por causa desses
impulsos incômodos. Recuperai o
domínio do vosso coração e colocai-o
suavemente nas mãos do Senhor13.

13 S. Francisco de Sales, Ibidem, XVI,


64

Fazei na medida do possível que o


vosso coração torne a estar em paz
convosco mesmos, ainda que vos
saibais miseráveis14.

14 S. Francisco de Sales, Ibidem, XIV,


194.

Crescer em humildade. O
reconhecimento de nossa fraqueza
representa um exercício de humildade.
A humildade é a verdade, a
sinceridade: reconhecer pacificamente
o que realmente somos. E isso em vez
de amargurar-nos deveria gratificar-
nos serenamente, como um médico se
alegra ao reconhecer os sintomas
precisos de uma doença escondida e
larvada, porque assim pode aplicar os
remédios oportunos.

A intranqüilidade que procede dessa


ânsia de saber quais as dimensões de
nosso erro ou as justificativas e
circunstâncias atenuantes que
acalmam nossa consciência, procedem
do orgulho. São Francisco de Sales
observa:

Como conselho geral acrescento que,


quando não soubermos discernir se
cumprimos ou não nosso dever e se
ofendemos ou não a Deus,
humilhemo-nos pedindo-lhe que nos
perdoe e nos dê mais luz da próxima
vez; e, esquecendo totalmente o que
se passou, voltemos às nossas tarefas
habituais. Pôr-se a indagar com
curiosidade e insistência se agimos
bem ou mal é algo que procede, sem
dúvida, do amor-próprio, que deseja
convencer-nos de que agimos bem. O
amor de Deus, quando é puro, nos
deveria dizer na realidade:

— "Como és miserável e covarde!


Humilha-te, apóia-te na misericórdia
de Deus e pede sempre perdão; e, com
um novo propósito de fidelidade, parte
novamente em busca do teu
progresso"15.

15 Cf. S. Francisco de Sales. Introdução


à vida devota, XIV, 136.

Nunca desanimar. A humildade que


nos dá reconhecer nossas misérias,
confiando na misericórdia e no poder
de Deus, nosso Pai, impede sempre
que desanimemos. Assim aconselhava
santa Joana de Chantal:

Os vossos desânimos são uma


verdadeira tentação. Dizei-me, que
frutos tirais deles e quais os motivos
para os ter? Pensais que está em nosso
poder permanecer tão atentas a Deus
que nunca cometamos nenhuma falta?
Para isso teríamos de ser anjos. Peço-
vos, pois, que vos acomodeis a esta
vida de misérias, mas sem desânimo.
Mais agrada a Deus essa humilhação,
esse amor tranqüilo e pacífico do
vosso nada do que a vossa tranqüila
auto-suficiência, as vossas implicantes
íidelidades16.

16 Citado por J. Tissot. Op.. cit., p. 68.

Acudir à misericórdia do Pai. O Pai,


amou-nos de tal sorte que nos enviou
o seu próprio Filho para ser nosso
Salvador. Jesus, significa precisamente,
salvador!17 E salvou a nossa vida com
sua morte!

17 Vem da transcrição grega, traduzido


em hebraico por Jesus que significa
Iahweh é salvação (A. van Den Born,
Dicionário Enciclopédico da Bíblia. 2.
Ed. Petrópolis, Vozes, 1977. P. 778)

A atitude nossa mais próxima do


coração do Pai — o Pai misericordioso
que abraça o filho pródigo — é a de
darmos ao seu Filho unigênito a
possibilidade de ser aquilo que o
identifica: nosso Salvador. Cada vez
que reconhecemos nosso erro lhe
damos a oportunidade de exercer o
seu título mais querido: o título de
Salvador.

Aumentar a confiança em Deus e a


desconfiança de nós mesmos. Todas
essas considerações levam-nos a
entender que quanto mais miseráveis
nos reconhecemos, mais motivos
teremos para confiar em Deus, visto
não possuirmos nada que possa
inspirar-nos confiança em nós
mesmos. A desconfiança de nós
mesmos procede do conhecimento das
nossas imperfeições, e é bom que
desconfiemos de nós mesmos. Mas de
que nos serviria esse sentimento se
não nos levasse a depositar toda a
nossa confiança em Deus e a acolher-
nos à sua misericórdia?18

18 Cf. S. Francisco de Sales. Introdução


à vida devota, XIII, 29.

Corrigir-se com calma e mansidão. É


novamente de são Francisco de Sales
que nos vem este conselho:

Quando cairmos em alguma falta,


examinemos imediatamente nosso
coração e perguntemos-lhe se
contínua a manter viva e inteira a
resolução de servir a Deus. Com
certeza que vos responderá que sim,
que preferiria sofrer mil mortes a
abandonar essa resolução. Fazei-lhe
outra pergunta: — "Por que então
tropeçaste? Por que és tão covarde?"
— "Fui atacado de surpresa, e não sei
como aconteceu; e isso agora me
causa muita pena". E preciso perdoá-
lo: não foi infiel, foi fraco. É necessário
corrigi-lo suavemente, sem aflição, e
não indispo-lo e perturbá-lo mais19.

19 Idem, ibidem.

Já desde a manhã, preparai a vossa


alma para que ande tranqüila, e tende
o cuidado de, no decurso do dia,
chamá-la muitas vezes à paz e colocá-
la em vossas mãos. Se vos suceder
alguma coisa que vos desgoste, não
vos espanteis; humilhai-vos
serenamente na presença de Deus e
procurai recuperar a paz de vosso
espírito. Dizei à vossa alma: — "Que
fazer? Demos um passo em falso;
avancemos agora devagarzinho e com
todo o cuidado". Fazei isso todas as
vezes que cairdes20.

20 XIV, 2.

Crede-me: tal como as repreensões


serenas e cordiais de um pai produzem
mais efeito no filho do que uma
explosão de cólera, assim, diante de
uma falta de nosso coração,
conseguiremos um arrependimento
muito mais profundo e penetrante se
usarmos de compaixão com ele em vez
de paixão contra ele; assim, o seu
arrependimento será muito mais
profundo e penetrante do que se fosse
ditado pelo despeito e pela vergonha.

Quanto a mim, se por exemplo lutasse


para não cair no vício da vaidade e no
entanto viesse a fraquejar
clamorosamente, jamais o
repreenderia desta maneira: —"Mas
será possível que, depois de tantos
propósitos, sejas tão miserável e
abominável que te deixes arrastar pela
vaidade? Morre de vergonha!"
Procuraria, antes, corrigi-lo pela via da
persuasão e da compaixão: — "Ora
bem, pobre coração, acabamos por
cair no buraco que tantas vezes nos
tínhamos proposto evitar. Levantemo-
nos e fujamos para sempre;
recorramos à misericórdia de Deus e
esperemos que nos assista, para
sermos mais firmes daqui por diante, e
voltemos ao caminho da humildade.
Coragem”21

21 Citado por J. Tissot, op. Cit., PP. 32-


33.

Depois de um conselho como esse, tão


humano e tão espiritual, só resta pô-lo
em prática com paz e serenidade.

Ganhar experiência. Cada erro é uma


lição. A vida é um aprendizado. O livro
mais eloqüente para nós é a biografia
de nossa vida. O passado é um grande
mestre. Os percalços, os erros, os
pecados trazem no seu âmago um
ensinamento magistral.

Quando um alimento incompatível


com nosso organismo provoca um
distúrbio orgânico, nasce dentro de
nós uma repugnância instintiva, uma
"alergia", que nos afasta desse tipo de
comida; em sentido semelhante,
quando determinada circunstância—
um percalço aéreo, uma guerra, um
acidente... — causa uma forte angústia
ou dor, provoca um "trauma", que
instintivamente nos afasta também de
uma situação similar. E essas
experiências sofridas representam
para nós como um sistema de "radar"
que cria uma rede de proteção por
cima de nossa vida.

Igual resultado se dá no terreno


espiritual. Quando a dor que produz
em nós nosso egoísmo, nossa vaidade
ou sensualidade, ou uma falta de
modéstia ou de caridade, é intensa,
nasce também um "instinto espiritual"
que nos afasta de qualquer
circunstância parecida.

Tiremos proveito dessa repugnância


instintiva, a fim de evitar novas
recaídas, e digamos a nós mesmos no
momento da tentação:

Lembra-te do desassossego que se


seguiu àquela falta quando tiveste a
infelicidade de a cometer; recorda-te
do que te custou apagar os seus traços
e reparar as suas conseqüências;
lembra-te da falta de paz que sentias
quando pesavam sobre ti pecados
idênticos; do temor que levantava em
ti o futuro julgamento de Deus; da
vergonha que tiveste de vencer para
confessar as tuas misérias... Lembra-te
de tudo isso e evita todas essas
experiências sofridas e humilhações,
por meio de uma fidelidade mais
generosa a teu Deus.

Sem dúvida, tais motivos estão longe


de serem perfeitos, visto procederem
mais do temor que do amor; no
entanto, podem ser de proveito em
mais de um caso e merecem ser
mencionados entre os recursos de que
dispõe a arte de aproveitar as próprias
faltas22.

22 Cf. T. Tissot, op. Cit., p. 99.


Prudência e vigilância. A experiência
amadurece. Os imaturos são
apressados. Vivem de impulsos. Os
homens maduros sabem ponderar,
sabem aguardar. Eles vão criando,
pouco a pouco, uma rede de vivências
experimentais, de sábias precauções
que enriquecem um contínuo processo
de aprofundamento na virtude da
prudência: sabem descobrir de longe
os indícios de perigo, os primeiros
sintomas de uma possível doença
espiritual e tomam, vigilantemente, as
cautelas necessárias.

Uma expressão popular diz que


"apanhando se aprende". É certo que
seria mais inteligente aprender
observando como os outros
"apanham", porém, se não se
consegue ser tão avisado, ao menos
deve evitar-se de cair na "asneira" de
não aprender nem "apanhando".

Aprendamos com os nossos percalços


a ciência suficiente para não voltar a
cair.

Nossas quedas, proporcionando-nos


um conhecimento mais exato de nossa
fraqueza, e dando-nos, por assim
dizer, maior direito à misericórdia
divina, devem levar-nos naturalmente
a estar mais prevenidos e a recorrer
com uma humildade mais confiante
àquele sem o qual nada podemos e
qual podemos tudo.

São João Crisóstomo diz que:


Sem dúvida, devia ser-nos suficiente
saber que homens bem superiores a
nós em santidade não têm estado ao
abrigo dos desfalecimentos, para nos
tornarmos mais circunspectos,
caminharmos com mais precaução e
observarmos uma prudência mais
severa23.

23 São João Crisóstomo. Homilia VII,


sobre a penitência.

Nossas desgraças pessoais, no entanto,


conseguem instruir-nos ainda melhor.
Nossa natureza é tão fraca que tem
necessidade de se ferir nos escolhos
para certificar-se da realidade do
perigo24.

24 Idem, Homilia IV, sobre a


penitência.

Essa verdade é confirmada pelo


Eclesiástico: "Que sabe aquele que não
foi provado?" (Eclo 34,9-11).

Comentando esse texto, diz um Padre


da Igreja:

Uma felicidade tranqüila é muito


perigosa; mas o temor de recair nas
ciladas em que já fraquejou torna o
homem mais vigilante. Por isso um
marinheiro que já se tenha visto em
perigo está mais prevenido, e a
lembrança de um só naufrágio
ocorrido por sua imprudência afasta-o
muitas vezes para sempre dos portos
inóspitos25.
25 Victor. Episc. Cart. Citado por J.
Tissot, op. cit. p. 93.

Esta é a primeira lição que nossa


vigilância deve reter das nossas
quedas: reconhecer e combater as
causas, evitar a imprevidência e a
leviandade e, acima de tudo, fugir das
ocasiões voluntárias de pecado.

Os navegantes têm o seu mapa


marítimo, onde marcam
cuidadosamente os recifes
observados. À luz das nossas faltas
passadas, façamos nós também nosso
próprio mapa de navegação espiritual,
onde vamos anotando as causas das
nossas deserções anteriores, das
ilusões, das faltas de cuidado que nos
têm ocasionado extravios, e, instruídos
pela nossa triste experiência,
evitaremos assim para o futuro os
escolhos assinalados pelos nossos
naufrágios.

Recuperar o tempo perdido. O autor


francês Proust — na sua conhecida
obra A la recherche du temps perdu —
convida-nos a recuperar o tempo
perdido. Mas poderíamos perguntar:
isso não será tão impossível como
pretender fazer voltar para trás as
águas do rio que já se diluíram nas
ondas do mar? Será que existe um
segredo que possa realizar tamanho
prodígio? Esse segredo, realmente
existe: é o amor, um amor que se
aprofunda na dor, no arrependimento
íntimo, na intensidade da reparação:
Davi, o adúltero e homicida, expressou
esse segredo nos seus salmos
penitenciais impregnados dos mais
sentidos lamentos de pesar por ter
pecado. Santa Madalena, mulher da
vida, soube recuperar o seu tempo
numa existência penitente,
mostrando-nos como transformar a
lembrança do pecado em mortificação
generosa... São Pedro fez o mesmo
com aquelas lágrimas de
arrependimento que duraram a vida
inteira. E santa Teresa, a freira que
caiu na tibieza, também o fez, com os
seus protestos de amor: "Senhor, que
numa hora amando, apague tantos
anos que passei fugindo". E santo
Agostinho, filósofo petulante e
mulherengo, ministrando-nos a lição
magistral dessa arte de recuperar o
tempo perdido: "Para os que amam a
Deus tudo coopera para o bem, até os
pecados". Ele soube acrescentar ao
pensamento de Paulo algo que tem
servido de consolo e ajuda a milhares
de pecadores ao longo da História:
etiam peccata também os pecados
contribuem para nosso bem se são
como o estopim que acende uma
grande labareda de amor.

Nunca desanimemos: que a lembrança


dos nossos erros e pecados seja para
nós como o ponto de ignição de um
grande incêndio de amor. Deveria ser
como aquela prodigiosa "máquina do
tempo", inventada pela ficção
científica, que consiga, com a
intensidade do amor — segundo o
desejo de Teresa de Ávila — realizar o
milagre de recuperar o tempo perdido,
apoiando-nos na misericórdia de Deus.
"Deus é rico em misericórdia" (Ef 2,4).

Acelerar o passo: Lutar. Intensificar o


amor significa, em termos concretos,
estreitar nossas relações com Deus,
em nossas práticas de piedade, na
oração, na recepção diligente dos
sacramentos da reconciliação e da
eucaristia, no exercício da presença
habitual de Deus... na luta ascética
diária... É preciso lutar. Nossa entrega
nas mãos de Deus não significa
passividade ou uma espécie de
"quietismo", de "providencialismo"
comodista, que fomenta a preguiça e a
indolência. O amor é sempre diligente.
A palavra diligência provém de uma
raiz latina — diligere — que significa
precisamente amar.
Os santos — diz santo Ambrósio —
levantavam-se das suas quedas com
muito mais decisão de travar novos
combates, a ponto de, longe de
esmorecer o passo, redobrarem a
velocidade da corrida26.

26 Santo Ambrósio. De apologia David.


cap. II.

Compreender os outros. Talvez o fruto


mais saboroso dessa ciência de que
estamos falando seja o da
compreensão das falhas, erros e
misérias alheias.

Aquele Pedro presunçoso, que


arrogantemente jurou por três vezes
uma fidelidade inquebrantável a Jesus
e depois o renegou vergonhosamente
diante do sorriso irônico de uma
simples empregada, poderia ser, por
acaso, intransigente com o erro dos
seus irmãos? Aquele Pedro a quem,
depois da negação, o Senhor lhe
confiou o seu rebanho, revestido da
autoridade do primeiro papa, seria
capaz de não perdoar e não
compreender as fraquezas dos seus
irmãos?

São João Crisóstomo nos diz a


propósito que

Deus permitiu a queda de Pedro,


coluna da igreja, porto da fé, doutor
do universo, para ensiná-lo a tratar os
seus irmãos com misericórdia27.
27 São João Crisóstomo. Homilia sobre
Pedro e Elias.

A lembrança dos nossos erros deveria


ajudar-nos a ter misericórdia com os
erros dos outros. A vergonha e a dor
que sentimos diante de nossas
limitações há de inclinar-nos a utilizar
a maior benignidade para com os
defeitos daqueles que convivem e
trabalham conosco.

São Bernardo expressa algo parecido,


comentando um provérbio:

Quem passa bem não sente o mal


alheio, e quem come bem não sabe
quanto sofre aquele que não tem o
que levar à boca. Quanto mais um
doente se assemelhar a outro e um
faminto a outro faminto, mais
profundamente se compadecerão um
do outro... Para nos sentirmos infelizes
com a infelicidade dos outros, é
necessário que a tenhamos
experimentado pessoalmente. Só se
conhecermos a nós mesmos
poderemos encontrar a alma dos
outros na nossa e saber como ajudá-
los28.

28 São Bernardo. De gradibus humilit.


Cap. III.

Temos de aprender essas lições.


Enquanto nos conservamos de pé, não
podemos desculpar nem mesmo
compreender que os outros caiam;
sentimo-nos escandalizados e
revoltados com as suas quedas. E
quantas vezes um orgulho, secreto
disfarçado de zelo, não nos leva à
indignação! Basta, porém, que uma
falta semelhante nos lance por terra
para vermos como nossa severidade se
transforma bem depressa em
compaixão. Compreendemos então a
sentença de santo Agostinho: "Não
existe nenhum pecado que um homem
possa cometer, e que não possa
manchar também a mim"29.

29 Cf. J. Tissot, op. Cit., p. 64.

A Imitação de Cristo observa: "Todos


somos fracos; mas a ninguém tenhas
por mais fraco do que a ti mesmo"30.
Como não viver a compreensão com os
outros quando nos vemos mais fracos
do que eles e nos sentimos tão
necessitados de compreensão? Não é
verdade que depois de cometer um
erro grave, parece que sentimos
vontade de evadir-nos, de fugir, para
não sentir a vergonha das
repreensões, das críticas, ou, por
ventura, do castigo e das gozações? E
se alguém nos trata bem, nos acolhe e
compreende ou talvez nos corrija com
caridade não sentimos uma grande
alegria? Não afloram nos nossos olhos
lágrimas de agradecimento, não temos
vontade de retribuir de alguma
maneira essa atitude tão humana e tão
cristã?

30 Imitação de Cristo.Livro IV, Cap. II.

Será que não saberemos aproveitar os


nossos erros para compreender os
erros alheios?

Recorrer a Maria. Maria é, segundo a


ladainha lauretana, "Mãe da graça
divina", "Consoladora dos aflitos",
"Refúgio dos pecadores". Muitos
teólogos da Igreja confirmam o que já
dizia, nos primeiros séculos do
cristianismo, santo Inácio, mártir: "É
impossível que um pecador se salve
sem o auxílio de Maria. Não é a justiça
de Deus que nos salva: é a
misericórdia, movida pelas súplicas de
Maria" 31.

31 Santo Inácio de Antióquia. Apud


Celada, de Judith figurata, X. 69.

É por essa razão que cada um de nós


deveria seguir sempre a
recomendação de São Bernardo:

Se o vento das tentações se levanta, se


o escolho das tribulações se interpõe
em teu caminho, olha a estrela, invoca
Maria. Se és balouçado pelas vagas do
orgulho, da ambição, da maledicência,
da inveja, olha a estrela, invoca Maria.
Se a cólera, a avareza, os desejos
impuros sacodem a frágil embarcação
da tua alma, levanta os olhos para
Maria. Se, perturbado pela lembrança
da enormidade de teus crimes,
confuso à vista das torpezas de tua
consciência, aterrorizado pelo medo
do juízo, começas a te deixar arrastar
pelo turbilhão da tristeza, a despenhar
no abismo do desespero, pensa em
Maria.
Nos perigos, nas angústias, nas
dúvidas, pensa em Maria, invoca
Maria. Que seu nome nunca se afaste
de teus lábios, jamais abandone teu
coração; e, para alcançar o socorro da
intercessão dela, não negligencies os
exemplos de sua vida. Seguindo-a, não
te transviarás; rezando a ela, não
desesperarás; pensando nela, evitarás
todo erro. Se ela te sustenta, não
cairás; se ela te protege, nada terás a
temer; se ela te conduz, não te
cansarás, se ela te é favorável,
alcançarás o fim32.

32 São Bernardo de Claraval. Louvores


da Virgem Maria, super missus, 2a
homilia, 17.

Nossas fragilidades, as tentações e até


as quedas podem ser um motivo
providencial para conseguir um bem
maior: acudir a Maria, invocar Maria,
"agarrar-nos" a Maria como uma
criança temerosa e fraca se agarra ao
regaço da sua mãe.

Os frutos da filiação divina

Otimismo

Um fruto imediato do sentimento da


filiação divina é o otimismo.
Compartilharia com vocês agora um
dos pensamentos que tiveram maior
influência na minha vida e que, num
dia abençoado de minha juventude,
encontrei ao abrir, por acaso, o livro
Caminho, pedindo a Deus que falasse
comigo por meio de uma mensagem
especial:

Não sejas pessimista. — Não sabes que


tudo quanto sucede ou pode suceder é
para o bem?.

— Teu otimismo será conseqüência


necessária de tua fé1.

1 Escrivá, J. Caminho. São Paulo,


Quadrante, 1983. n. 378.

Que paz sinto quando evoco esse


pensamento e lembro daquele dia! A
fonte de nosso otimismo é a filiação
divina fundamentada na fé.

É mister reavivarmos nossa fé, pedindo


insistentemente como os apóstolos:
"Aumenta a nossa fé" (Lc 17,5).
Chegaremos assim a mergulhar nas
raízes do otimismo e a compreender,
em toda a sua extensão e
profundidade, estas três verdades que
derivam da própria essência de Deus e
que são o fundamento de todo o
otimismo cristão: Deus é bom; Deus é
fiel; Deus é todo-poderoso.

Somos otimistas, em primeiro lugar,


porque Deus é bom. "Deus é amor"
(1Jo 4,8), Deus nos criou por amor e
nos criou para amar. Colocou no fundo
de nosso ser um anseio infinito de
plenitude. Mais ainda, porque ele é
bom, porque nos quer felizes, não
pode deixar de nos dar os meios para
conseguirmos o objeto desse
mandato: um bom Pai, que dá o fim,
dá os meios. Compreendemos o que
representa saber que Deus está mais
interessado, mais empenhado em
nosso destino, em nossa felicidade, do
que nós mesmos? Isso não deveria
encher-nos de otimismo?

Somos otimistas, em segundo lugar,


porque Deus é fiel. Cumpre o que
promete. Se ele nos afirma: "Eu deixo
para vocês a paz, eu lhes dou a minha
paz" (Jo 14,27), não seria uma terrível
ironia que nos condenasse à
intranqüilidade e ao pessimismo?
Jesus nos diz:

Peçam e lhes será dado! Procurem, e


encontrarão! Batam, e abrirão a porta
para vocês! Pois todo aquele que
pede, recebe; quem procura, acha; e a
quem bate, a porta será aberta. Quem
de vocês dá ao filho uma pedra,
quando ele pede um pão? Ou lhe dá
uma cobra, quando ele pede um
peixe? Se vocês, que são maus, sabem
dar coisas boas a seus filhos, quanto
mais o Pai de vocês que está no céu
dará coisas boas aos que lhe pedirem
(Mt 7,7-11).

Poderá Deus utilizar acentos mais


eloqüentes e sensíveis para convencer-
nos a confiar na sua fidelidade?

Somos otimistas, em terceiro lugar,


porque Deus é todo-poderoso: "Para
Deus nada é impossível" (Lc 1,37). Um
cristão que confia em Deus, confia
também na sua onipotência, como diz
o salmo: "Iahweh é minha salvação: de
quem terei medo? Iahweh é a
fortaleza da minha vida: frente a quem
temerei" (Sl 27,1-2). E nesse sentido
são impressionantes algumas
passagens da Sagrada Escritura, como
a de Davi diante daquele Golias que é
um gigante na estatura: " Você vem
contra mim armado de espada, lança e
escudo. Eu, vou contra você em nome
de Iahweh dos exércitos" (1Sm 17,45).
E o rapazote de dezesseis anos de
idade acabou derrotando o enorme
filisteu, não por suas forças, e sim pelo
poder de Deus.

Esse sadio "complexo de


superioridade" que nos dá a certeza do
poder de Deus nos conduzirá a uma
entrega suave nas mãos de Deus, que
representa o fruto mais saboroso do
otimismo cristão: "Em tuas mãos está
o meu destino” (Sl 30,16), Senhor, sei
que não me abandonarás2.

2 Cf. Llano Cifuentes, R. Otimismo. São


Paulo, Quadrante, 1990, PP. 30-32.

Paz

O segundo fruto da filiação divina é a


paz. "O Senhor mesmo no-lo disse: Eu
deixo para vocês a paz, eu lhes dou a
minha paz" (Jo 14,27). "Neste mundo
vocês terão aflições, mas tenham
coragem; eu venci o mundo" (Jo
16,33). "Essa paz de Deus, que
ultrapassa toda compreensão" (Fl 4,7)
deriva de saber, como já dissemos
tantas vezes, que estamos nas mãos
de alguém que nos ama com ternura.
Por isso — estamos continuamente
evocando aquelas palavras: "Não se
preocupem... Nosso Pai cuida de nós
muito mais do que de um pardalzinho;
nos ama com mais ternura —
repetimos já cem vezes — do que
todas as mães e pais do mundo juntos
podem amar os seus filhos... Por isso
nosso otimismo, nossa confiança,
nossa paz e serenidade são uma
conseqüência necessária de nossa fé.
Não sabemos, por acaso, que tudo é
para o bem, que Deus faz com que
tudo contribua para nosso bem? Sim,
sabemos, mas essa fé que está no
cérebro não passou talvez ao mundo
dos sentimentos, não penetrou em
nossas vísceras, não se instalou nas
glândulas que provocam a ansiedade
ou destilam a "adrenalina", não se
infiltrou nos centros nervosos que são
o caldo de cultura da depressão. É por
isso que nos preocupamos. É por isso,
que apesar de todas essas razoes,
perdemos a paz.

Há presságios de doença... o médico


pede uma bateria completa de
exames... e o temor já começa a
permear o mais íntimo de nosso ser...
Perdemos o sossego! A imaginação
dispara... Como vai ser? Tenho uma
doença grave? Terei de ser operado...?
A sensação de desassossego, a
preocupação insistente e pegajosa se
arraiga cada vez mais em nós; não nos
solta.

E isso que nos afeta por causa de um


assunto qualquer como a doença,
estende-se, também, a muitos outros
casos similares: a uma situação
sentimental, econômica e profissional,
a um conflito conjugal, a um problema
com os filhos... e abrange o universo
das pessoas que nos são caras: os
familiares, os amigos... todas as
pessoas que amamos...: o que atinge a
elas, atinge também a nós... E por esse
motivo, com tanta freqüência, nos
vemos submetidos a processos de
depressão, de ansiedade, de
preocupação, de medo...

O que fazer? Aumentar nossa fé, nossa


confiança? É claro! E evidente...! Nós
queremos aumentá-la, mas
geralmente não conseguimos... Como
gostaríamos de alegrar-nos como os
santos se alegram ao vislumbrar, na
morte, esse encontro eterno com o
Pai! Como gostaríamos de poder
exclamar, ao aproximar-se o momento
desse abraço definitivo com ele:
"Alegrei-me quando me disseram:
Vamos à casa de Iahweh!” (Sl 122,1)
Gostaríamos... sim — e muito! —, mas
não conseguimos! O que fazer?

Devemos ficar tranqüilos.

Talvez durante anos tenhamos


mantido uma fé, uma confiança de
"manutenção", uma vida espiritual que
"dava para o gasto", para resolver os
problemas corriqueiros do dia-a-dia, e,
de repente, aparece um problema
maior, um baque mais forte... e
afundamos. Deveríamos apreender a
lição que o Senhor quer nos dar por
meio dessa circunstância dolorosa e
conflitiva. Deveríamos escutar uma voz
interior que por ventura nos diz:
"parece que só queres ter fé e
confiança para resolver os problemas
imediatos e não para viver como um
bom filho, diariamente, nessa atitude
afetuosa, confiante, filial, que se
cultiva na oração habitual, na
confissão e na comunhão freqüentes...
na direção espiritual... Parece que só
procuras Deus na hora do aperto, para
que acalme as tuas mágoas... como o
filho que só trata com carinho o pai
quando quer conseguir dele um favor,
um 'dinheirinho'"...

Sim, deveríamos parar, ponderar,


meditar, tentar utilizar essa
oportunidade para iniciar um processo
de aprofundamento na filiação
divina...

Bem, isso é verdade, poderíamos


alegar, mas agora neste "aperto" eu
preciso de uma ajuda especial,
imediata!

Fiquemos tranqüilos. Não nos


inquietemos. Nosso Pai entende muito
bem tudo o que alegamos e além de
querer que aprendamos essa lição tão
importante, deseja também, ajudar-
nos nessa hora de "aperto". Dirijamo-
nos a ele como filhos pequenos;
façamos repetidas vezes a oração de
filhos: "Abba, Pai, papai... papaizinho...
sei que a minha atitude é interesseira,
mas estou sofrendo... Sei que só te
procurei para conseguir tua ajuda... Sei
que não a mereço, mas sou fraco e...
Sou teu filho! Não esqueças!... Sou teu
filho! Não esqueças!... Sou teu filho!
Ajuda-me!

Já que a minha fé é menor que um


grão de mostarda, aumenta-me essa
fé; dá-me a esperança que preciso...
arranca de mim essa ansiedade, esse
pessimismo que me atormenta...!"

Os apóstolos, quando o Senhor lhes


dizia: "Tudo é possível para quem crê"
(Mc 10,23), ao sentirem-se —
coitados! — tão fracos na fé, gritavam:
"Aumenta, a nossa fé" (Lc 17,5).
Façamos o mesmo. Digamo-lhe muitas
vezes: "Aumenta-me a fé, a esperança,
a confiança, a serenidade...! Estou
inquieto, preocupado... permite-me
ficar tranqüilo, sossegado, como uma
criança no colo do pai ou da mãe...!"

E o Pai nos escuta, nos atende. Ele não


nos esquece nunca!

Poderia contar muitas experiências


nesse sentido, até pessoais... Deus não
falha!

Lembro de um engenheiro
extremamente apreensivo, com família
numerosa, que começou a sentir
algumas dores estranhas no peito. Foi
imediatamente ao cardiologista.
Depois de uma prova de esforço, o
médico recomendou fazer
cateterismo... Ficou apavorado. Não
conseguia trabalhar, nem dormir, nem
comunicar-se... Imaginava coisas
medonhas... Faltava uma semana para
submeter-se a esse exame e não
conseguia reagir... Até que, no terceiro
dia, decididamente, ao sair do trabalho
entrou numa igreja e começou a
repetir: "Pai, meu Pai, Papai do Céu,
dai-me a paz, coração sacratíssimo e
misericordioso de Jesus, dai-me a
paz..." Sentado num banco da igreja, a
cabeça entre as mãos recitou dezenas
de vezes essa oração... E acrescentava:
"Não posso sair daqui sem que me
comuniques essa paz, essa confiança
filial..."

Ao cabo de quinze minutos, começou a


serenar-se, "parecia — assim me
confidenciava — como se uma paz
desconhecida fosse penetrando no
fundo do meu ser, fosse me
empapando como uma chuva fina..." A
esposa, comentou depois: "Quando
chegou em casa nesse dia era outro
homem"... E o cateterismo não deu em
nada...!

Paz! Que filho pode sentir inquietação


quando está nos braços de sua mãe?
Não nos cansaremos de repetir estas
palavras:

Pode a mãe se esquecer do seu nenê,


pode ela deixar de ter amor pelo filho
de suas entranhas? Ainda que ela se
esqueça, eu não me esquecerei de
você (Is 49,15).

Sem pretender mudar as definições


teológicas de Deus como Pai, ou
distorcer as expressões da Sagrada
Escritura que nunca utiliza o termo
"mãe" para falar de Deus, poderíamos,
no entanto, dizer que em Deus não há
nenhuma limitação, que nele se
encontram, elevados à infinita
potência, a ternura feminina de uma
mãe e a firmeza masculina de um pai.
As expressões de alguns profetas,
como Oséias e Isaías, podem
surpreender-nos, ao descreverem a
ação de Deus enfatizando a grande
ternura materna que o caracteriza (cf.
Os 11,1-9; Is 49,14-15; 66,13).

Assim o expressou, com extraordinária


simpatia, numa das catequeses da
quarta-feira, João Paulo I, o papa do
sorriso: "Deus é Pai e Mãe." E,
igualmente o expressou de forma
plástica Rembrandt no seu famoso
quadro sobre o filho pródigo: a mão
esquerda do Pai tem traços
masculinos, vigorosos e fortes,
enquanto na direita prevalecem os
contornos delicados e femininos. O
gênio do artista soube expressar isso
que todo filho de Deus intui no fundo
de seu coração.

A paz e a serenidade que um filho


experimenta no regaço seguro de sua
mãe, é conseqüência da confiança que
deposita ao entregar-se
tranquilamente nos seus braços.
Recordemos novamente aquelas
palavras da Virgem de Guadalupe ao
índio Juan Diego:

Não se perturbe o teu rosto e o teu


coração... Não estou eu aqui que sou
tua mãe? Não estás sob minha sombra
e proteção?... Não estás embaixo do
meu manto e em meus braços?... Por
acaso tens necessidade de alguma
outra coisa? Nada te aflija ou te
perturbe... 3.

3 Cf. Ansón, F. O Mistério de


Guadalupe. S/ao Paulo, Quadrante.

A ternura de Maria é como a


expressão maternal da amorosíssima
paternidade de Deus.

A alegria de caminhar para o Pai

Dessa paz brota uma alegria profunda.


Essa alegria não é, no dizer de
Caminho,
Uma alegria que poderíamos chamar
"fisiológica", de "animal são", mas
outra sobrenatural que procede de
entregar tudo e de entregar-te a ti
mesmo nos braços amorosos de nosso
Pai-Deus'4.

4 Cf. Escrivá, J. Caminho, op. Cit., n.


659.

Uma alegria que nos dá saber que


estamos caminhando a grandes passos
em direção à nossa realização eterna.
É assim que todos os acontecimentos
acabam por converter-se em afluentes
daquele grande rio de paz e de alegria
que desemboca no mar da infinita
felicidade de Deus Pai. E, desse modo,
entende-se também que no meio das
sombras desta vida se comece a sentir,
na terra, um antecipado sabor de céu.
Quanta razão, pois, para que alguém
que viveu a plenitude da alegria no
meio dos sofrimentos possa ter
escrito: "estou cada vez mais
persuadido disto: a felicidade do céu é
para os que sabem ser felizes na
terra"5.

5 Vazquez de Prada, A. O Fundador do


Opus Dei. São Paulo, Quadrante, 1989.
P. 143.

Vemos dessa forma que a alegria é


como o sintonia mais evidente da
certeza de se estar a caminho da
felicidade.

Saber que cada passo, cada


acontecimento, é algo querido ou
permitido por Deus, nosso Pai, para
atingirmos nossa realização eterna,
enche-nos de alegria. Diríamos que é
como a manifestação sensível de uma
situação interior, ou melhor, o
sentimento mais preciso de um
ajustamento pessoal íntimo. Se a dor é
o sinal — o sensor — de um estado
patológico, a alegria é o indicador de
um estado de plenitude de vida.

Assim o expressa Bergson:

A natureza avisa-nos por um sinal


preciso que nosso destino está
atingido. Esse sinal é a alegria [...].
Onde há alegria, há realização6.

6 Bergson, H. L’énergie spirituelle. 27


ed. Paris. 1940. P. 23.

Se quiséssemos encontrar uma


imagem plástica para representar essa
idéia, diríamos que a alegria é como
um radar que se põe em movimento,
quando percebemos — por uma
convicção íntima — que estamos nos
dirigindo para o centro gravitacional
de nossa existência: a felicidade. Não é
necessário que estejamos na posse
real dessa felicidade. Basta que
tenhamos a expectativa real de estar
no caminho que a ela conduz, como
belamente o expressa o Salmo:
"Alegrei-me quando me disseram:
Vamos à casa de Iahweh" (Sl 122,1)...
Basta ter consciência de estarmos
enveredando pelo roteiro que nos
conduz à casa do Pai.
Sem dúvida, o fundamento de nossa
alegria é nossa filiação divina.

Quando nossa fé é profunda e ocupa


todos os espaços de nossa vida, então
sabemos que somos verdadeiramente
filhos de um Pai que nos ama mais do
que todos os pais e mães do mundo
juntos podem amar um filho único.
Como podemos perder o gaudium cum
pace7 — a alegria e a paz — sabendo
que somos realmente filhos de um Pai
infinitamente bom, infinitamente feliz
e infinitamente poderoso, e que além
disso, deseja mais do que nós mesmos
nossa felicidade?

7Missal Romano, preparação para a


missa.
Meu Pai, que cuida com esmerado
carinho de uma florzinha
insignificante, de um passarinho que
nada vale, como não vai cuidar de mim
que sou seu filho? Se Deus me ama a
tal ponto que quis fazer-se homem e
morrer na cruz por mim, como não vai
estar amorosamente atento às minhas
necessidades, com maior dedicação
que a que põe uma mãe diante das
carências de seu filho?

Dessa confiança filial, dessa serena


paz, brota sempre uma alegria
esperançosa que nos faz ver por detrás
de cada acontecimento um desígnio
oculto de Deus, uma graça, e é isso
que enche de contentamento a alma.
Partindo da fé na providência divina,
entendemos muito bem aquelas
palavras de são Paulo aos Romanos já
meditadas por nós: "Todas as coisas
concorrem para o bem dos que amam
a Deus" (Rm 8,28). Se é assim, se ele
está ao nosso lado como um Pai
amoroso, por que inquietar-nos e
entristecer-nos? Por que perder a paz
e a alegria?

Quando a fé chega assim até a fibra


mais íntima de nosso ser, quando
representa uma verdadeira entrega
nas mãos de nosso Pai celeste, não
perdemos a paz, não é difícil sermos
otimistas e alegres8.

8 Ibidem, p. 23.
A confiança na providência divina faz-
nos ver tudo com alegria. Deveríamos
alegrar-nos com o que temos sem
lamentar-nos por aquilo que nos falta.
Em certa ocasião, lamentava-me com
o meu pai a respeito de um forte abalo
econômico que a família sofrera,
íamos caminhando pela rua. Meu pai
não me respondeu. Disse-me apenas:
— "Olha esse rapaz". Em sentido
contrário, vinha um rapaz numa
cadeira de rodas. E então meu pai
simplesmente acrescentou: — "Vamos
ficar contentes com o que temos, que
aliás é muito: nossa saúde, nossa
família, nossa fé... Não vamos queixar-
nos do que perdemos". A lição foi
inesquecível.

Devemos fomentar nobres ambições


para obter e desenvolver tudo aquilo
que faz parte de nossa vocação
humana e cristã. Entretanto, devemos
saber contentar-nos também com o
que temos e somos: nosso corpo,
nossa saúde, nosso temperamento,
nossas limitações, a família em que
nascemos, o lar em que vivemos, a
profissão em que trabalhamos, o
caráter das pessoas que nos rodeiam...

É assim que a alegria, apesar de todas


as desventuras, chega a ser plena e
permanente. É a alegria do trabalho
criador posto a serviço dos outros. É a
alegria da contrariedade e da dor, que
acabam por tornar-se cruz redentora.
É a alegria que brota desse domínio
próprio, forte e tenso, que supera
custosamente o mundo do puramente
material e biológico. É a alegria de nos
convertermos com esforço em
semeadores de paz e em construtores
de uma nova "civilização do amor". É a
alegria do dia-a-dia, desse bom humor
que unido ao sacrifício, ao carinho e ao
bom senso, se revela como uma forma
superior de inteligência que
transforma o caráter dos nossos
pensamentos e atitudes, desfazendo
tempestades e desanuviando
ambientes abafados. E é
especialmente a alegria de amar. De
amar esta terra bonita que Deus nos
deu como patrimônio. De amar nossos
irmãos, os homens: a alegria cálida de
amar, que consiste em dar e em dar-se
generosamente. De amar — como
fundamento e resumo de todas as
alegrias — a beleza, a perfeição, o
poder, a sabedoria de um Deus que é
para mim Pai e Mãe, infinita e
incansável fonte de onde brota todo o
amor existente...

Isto é entusiasmo: a plenitude da


alegria. Aquilo que permitia a Davi não
apenas dizer, mas cantar: "Meu
coração e minha carne exultam pelo
Deus vivo" (Sl 83,3).

Entusiasmo significa, na sua raiz grega,


endeusamento, Deus dentro de nós: a
força de Deus, a vibração e a alegria de
Deus dentro de nós. Compreendemos
onde está, em última análise, a fonte
do verdadeiro entusiasmo cristão, da
esplêndida alegria de viver que não
tem altos e baixos, que nunca termina,
pois se eterniza na posse eterna de
Deus?9

9 Cf. Llano Cifuentes, R. Alegria de


viver. São Paulo, Quadrante, 1993. PP.
57, 58, 91.

Paternidade de Deus e paternidade do


homem

A paternidade de Deus pervive no


coração do homem. Por isso, o
sentimento da filiação divina devem
experimentá-lo, também de certa
forma, os filhos, quando vivem no seio
protetor dos seus pais, porque "toda
paternidade vem de Deus" (Ef 3,15), e
esta estende-se tanto à paternidade
como à maternidade dentro da família
humana.

Não pensemos que o amor de Deus


esteja limitado pelas características
próprias do amor puramente paterno.
Não. Deus é Pai e é Mãe ao mesmo
tempo, porque em Deus não há
nenhuma limitação de sexo. Ama-nos
com toda a ternura de uma mãe e com
toda a firmeza de um pai. Contudo, de
modo incomensurável. Ama-nos
infinitamente.

Esse amor completo, integral, Deus o


comunica, de acordo com a
capacidade humana, ao pai e à mãe. O
amor que os pais têm pelos filhos é
como uma ressonância do amor que o
Pai eterno tem para cada um de nós,
como se fosse uma faísca que escapou
dessa fogueira infinita de amor que é
Deus e se afincou em nosso coração. O
pai e a mãe amam aos seus filhos,
diríamos, com "o coração de Deus".

Que maravilhoso seria se os filhos, ao


abraçarem o pai ou a mãe, sentissem
no peito deles, a pulsação da ternura,
da segurança de um Deus que tudo
compreende, que tudo perdoa, que
para tudo tem uma solução positiva,
um encaminhamento eficaz, porque o
seu amor, entranhável e exigente ao
mesmo tempo, em tudo faz crescer e
progredir!

Talvez pensemos que no conjunto


global dos problemas deste grande
país que é o Brasil, a vida de um pai e
de uma mãe tenha pouca importância.
Porém, deveríamos estar convencidos
de que nesse outro pequeno conjunto
que forma a família, cada pai, cada
mãe é uma peça fundamental, um
elemento insubstituível, decisivo. Por
essa razão, pretender alargar nossa
influência profissional e social
descuidando e diminuindo nossa
participação no terreno familiar é algo
funesto, profundamente lamentável.
Que pena dá ver um pai ou uma mãe
que pelo seu esforço e experiência vão
conseguindo um horizonte profissional
e social cada vez mais amplo,
paralelamente, porém, quase sem o
perceberem, vão reduzindo cada vez
mais — por desleixo e abandono — o
horizonte vital da sua família, até
transformá-la numa realidade estreita,
acanhada, rotineira, asfixiante...
O pai e a mãe devem entender que sua
realização humana mais profunda é
sua realização como pai e como mãe.
Os êxitos conseguidos dentro do lar
certamente não figurarão no
curriculum vitae, não darão status, não
aparecerão nas colunas sociais,
contudo, engrandecerão os filhos e
enriquecerão esse outro grande e
definitivo curriculum que Deus está
escrevendo continuamente no céu. É
tão ou mais importante ser um bom
pai do que ser um bom profissional. O
certo seria conseguir equilibrar as duas
coisas: ser um bom pai, sem deixar de
ser um bom profissional, e isso é
possível, basta querer e empenhar-se.

O amadurecimento dos filhos


depende, em grande medida, da
devotada dedicação dos pais ao
comunicarem, juntamente com o
carinho e a segurança, uma criteriosa
escala de valores. E nesse âmbito
materno e paterno — aconchegante,
firme e acolhedor — que os filhos
apreenderão como amar e se dedicar
ao seu futuro cônjuge e a sua futura
família. Uma criança, um adolescente,
um jovem que não se sinta amado,
que não encontre segurança, que não
pise firme no terreno da família, não
se sentirá amado e seguro, não pisará
firme em nenhum outro terreno.

Essa idéia deveria criar aquela


autêntica e predominante mentalidade
paternal e maternal, que faz nos
orgulhar ao dizer: "Antes de mais nada
eu sou pai!; eu sou mãe! Essa
exclamação deveria brotar em
primeiro lugar do coração, antes desta
outra: sou médico, sou advogado, sou
enfermeira, sou funcionário público,
sou marceneiro, sou comerciante, sou
manicure, sou engenheiro, sou
cozinheira, sou agricultor...! Porque a
paternidade e a maternidade são as
características humanas que mais
profundamente cunham a identidade
de um homem e de uma mulher.

A expressão mais vibrante da vida


humana deveria surgir do fundo da
paternidade e da maternidade, seja ela
física ou espiritual. Quantas pessoas
esbanjam energia, dinamismo no seu
trabalho, na sua vida social e são
apáticos no seu lar! Quantos
derramam simpatia e amabilidade na
roda de amigos, no clube, no trato
com a secretária, com a moça bonita e
são indiferentes para a esposa e os
filhos! No elevador, no vestíbulo ou na
porta de entrada da casa — como num
camarim de teatro, parece que se
opera em alguns uma incrível
transformação: o artista muda de
feição. O rosto alegre põe-se triste,
carrancudo; o semblante animado,
torna-se cinzento, apagado. O físico
esguio e garboso esmorece, procura
uma poltrona. Para um pai e uma mãe
cristãos, ao contrário, as escadas ou a
porta de entrada, o hall ou o elevador
deveriam ser como um laboratório de
alegria e de boa disposição, onde se
transformam as lágrimas em sorrisos;
as mágoas e as canseiras do trabalho
em amabilidade: as preocupações
profissionais ficam do lado de fora; no
lar só entra o que há de melhor, de
mais alegre. Conheço uma senhora
que tem o hábito de dizer: "Que bom é
voltar para casa. Nosso lar é o melhor
lugar do mundo".

Deveríamos nos perguntar: os filhos,


em contato conosco, sentem algo
dessa cordialidade, dessa vibração e
bondade que se sente ao lado de um
Pai infinitamente bom e
compreensivo? Sei irradiar no meu lar
a segurança, a paz e o otimismo que
comunica a presença desse Pai eterno
que tudo sabe e que tudo pode? Meus
filhos vão procurar tristemente, nos
pais dos seus amigos, a figura daqueles
pais que não encontram em casa?
Estou disposto a esforçar-me para que
na minha família nunca se sinta a
carência de um verdadeiro pai, de uma
verdadeira mãe?

Num dia de Natal, um pai de família


contou-me uma história tão bonita
que não parece real:

Lá pelas duas da madrugada, acordei


por causa dos gritos do meu filho:
"Papal!, papai!"... Levantei-me
rapidamente, apreensivo, e encontrei
meu filho sorridente com a imagem do
Menino-Deus entre os seus braços...

— Mas, meu filho, o que aconteceu,


por que gritou assim?

— Pai, aconteceu uma coisa linda. Já


na cama comecei a pensar que o
Menino-Deus estaria passando muito
frio naquele presépio que montamos
na sala; que se encontraria no meio da
noite, no inverno de Belém... Aí me
levantei e corri com muito cuidado
trouxe-o para minha cama. Aqui, bem
quentinho, perguntei para Jesus:
Agora você deixou de sentir frio? E
parece que ele me respondia: sim,
agora estou muito bem, você foi legal
comigo, muito obrigado... Aí eu dormi,
pai... e tive um sonho maravilhoso.
Sonhei que Jesus e eu nos
misturávamos: eu era ele e ele era eu,
éramos como um só menino, e senti
uma felicidade muito grande e, no
sonho, sem saber por quê, comecei a
gritar: pai, papai! e aí você apareceu...
Mas eu não sei muito bem se chamava
você ou o papai do céu... parecia-me
que também os dois pais se
misturavam: você era o papai do céu e
o pai do céu era você. E eu, tomando-o
nos meus braços, lhe respondi: Sim,
meu filho, foi realmente um sonho
lindo. Saí dali para o meu quarto muito
pensativo: "Será que eu mereço que o
meu filho me confunda com o Pai
eterno?" E esse questionamento ainda
persiste em mim.

Embora seja uma história infantil, o pai


a levou muito a sério: contava-me isso
emocionado, com lágrimas nos olhos.
Que maravilhoso seria se nossos filhos
se identificassem com Jesus, e se
confundissem o Pai eterno com o pai
terreno e que, ao chamarem o Pai, não
soubessem a que pai estão chamando!
Tomara que de alguma maneira isso
possa acontecer, ao experimentarem
os filhos a bondade e a ternura de
Deus na bondade e na ternura dos
pais. Oxalá que essa cena venha a
repetir-se, de algum modo, em cada
um dos nossos lares.

A segurança de Deus que os pais


devem transmitir aos filhos

Se, como dizíamos antes, a


paternidade de Deus perdura no
coração do pai e da mãe, também há
de perdurar neles a segurança que
devem comunicar aos seus filhos.

Quando os pais não sabem transmitir


essa segurança, o edifício psicológico
dos filhos fica enfraquecido, abalado.
Os mais recentes estudos de psicologia
familiar revelam que as perplexidades,
incertezas, medos, inseguranças e
ausências dos pais, afetam de modo
marcante a solidez da personalidade
dos filhos.

Eles têm de sentir que no lar há uma


orientação firme, segura; que os pais
sabem o que devem fazer diante das
contrariedades, dos perigos e das
dificuldades. Sentem que não lhes falta
aquele "amparo afetivo",
indispensável para a sua tranqüilidade
psicológica.

Ouvi contar uma história tocante: no


meio de uma forte tempestade, em
que as ondas invadiam o convés de um
navio e a turbulência fazia estremecer
suas estruturas, rodeada do pavor dos
passageiros e dos tripulantes, uma
criança brincava tranquilamente num
canto.

— "Mas você não está assustada?",


alguém lhe perguntou.

— "Se tenho medo? Não. Meu pai é o


timoneiro. Ele é que está agora no
leme".

Os filhos deveriam sentir no lar a


segurança que dá a mão firme do pai
governando a família. Essa confiança
do filho está fundamentada, por sua
vez, na oração e na confiança que o pai
tem na onipotência de Deus, que faz
com que "todas as coisas concorram
para o bem".
Uma conhecida crônica dos momentos
de maior auge do império romano
conta-nos que outro navio no Mar
Adriático, também surpreendido por
uma forte tormenta, tinha ficado
desgovernado principalmente porque
a tripulação, apavorada, não tinha a
serenidade suficiente para tomar as
medidas adequadas. Escondido na
sombra encontrava-se uma figura
coberta com a sua capa. Observava
aquele desgoverno em silêncio. Num
determinado momento, tirou a capa,
colocou-se no meio da tripulação, e
gritou: "O navio não vai afundar,
porque aqui está presente César
Augusto". A confiança que infundia aos
marinheiros a presença do imperador,
permitiu que imediatamente se
começasse a dar as ordens adequadas
e a tomar as medidas necessárias para
solucionar os problemas. O navio
salvou-se.

A capacidade de comando, a presença


serena dos pais na turbulência da vida,
permitirá que as dificuldades e os
problemas sejam superados. É preciso
que os filhos confiem nos país e é
necessário que os pais confiem nesse
bom piloto que — presente na barca
da família, como Jesus na barca de
Pedro — sabe dominar todas as
tempestades; é imprescindível que não
falte a liderança, a força da
autoridade, a convicção e a fé: a barca
da família não afundará, pois é
governada por Deus.
Por isso o que nunca pode faltar é a
oração.

A oração é o que sustentou a


segurança da igreja ao longo de vinte
séculos. E o que consolidou a coragem
dos santos e das santas de todos os
tempos. Era a oração o que dava
forças ao profeta Davi:

Iahweh é rainha luz e salvação: de


quem terei medo? Iahweh é a
fortaleza da minha vida: frente a quem
tremerei? Que um exército acampe
contra mim! Meu coração não
tremerá. Que uma guerra estoure
contra mim! Ainda assim estarei
confiante! (SI 27,1-3).

Dougherty escreve:
Era a fé de Davi que o encorajava a
vencer o medo todas as vezes que
passava pelo vale escuro das
incertezas. Davi mostra-nos que,
mesmo em situações aterradoras,
tinha confiança que Deus estava com
ele. A fé de Davi suscitava uma
esperança, uma certeza de vitória que
espantava o medo, mesmo nas
condições aparentemente mais
insuportáveis.

E como Davi conseguia ter tanta fé,


tanta confiança na proteção divina?

Pela oração constante e freqüente,


que se intensificava ainda mais nos
momentos de angústia e aflição. No
salmo l, fugindo dos inimigos, Davi
reza suplicante: "O Deus, ouve, o meu
grito, atende à minha prece! Desde os
confins da terra eu te invoco de
coração abatido. Eleva-me sobre a
rocha! Conduze-me! Porque tu és o
meu refúgio, minha torre forte diante
do inimigo" (Sl 61,2-3).

No salmo 141, no meio da tribulação,


reza: "Iahweh, eu te chamo, socorre-
me depressa! Ouve a minha voz
quando eu clamo para ti. Suba a minha
prece como incenso à tua presença" (Sl
141,1).

E depois da vitória sobre os inimigos,


explode em louvores no belíssimo
salmo 18, cantando: "No meu aperto,
invoquei Iahweh, ao meu Deus lancei o
meu grito. Do seu templo ele ouviu a
minha voz, o meu grito chegou-lhe aos
ouvidos" (Sl l 8,7).

Deus ama a todos sem distinção.


Vamos portanto invocar sua proteção,
afastando assim definitivamente o
medo de nossas vidas. Não deixemos
de rezar confiantes como Davi nos
momentos de angústia e depressão. A
fé na oração libertar-nos-á dos medos,
dos traumas e das aflições. A oração é
nossa maior arma contra o medo1.

1 Dougherty, E. Ainda não tendes a fé?


In. Anunciamos Jesus, out. 1992, p. 1.

Sigamos o conselho de um homem de


Deus:

Se atrevido na tua oração, e o Senhor


te transformará de pessimista em
otimista; de tímido em audaz; de
acanhado de espírito em homem de
fé, em apóstolo!2

2 Escrivá, J. Sulco, n. 118.

Façamos oração com confiança e


"atrevimento" de filhos. E peçamos ao
Espírito Santo o dom da fortaleza —
que compreende a virtude da coragem
—, como os apóstolos no dia de
Pentecostes. Eles sentiam o medo das
perseguições e o temor inibidor para
empreender a imensa tarefa de
evangelização mundial que o Senhor
lhes havia confiado. Mas oravam:
"Eram assíduos na oração, junto com
algumas mulheres, entre as quais
Maria, a mãe de Jesus" (At 1,14). E
conseguiram a coragem de que
precisavam para cumprir o mandato
de Cristo: "Vão e façam com que todos
os povos se tornem meus discípulos"
(Mt 28,19)3.

3 Cf. Llano Cifuentes, R. Insegurança,


medo e coragem. São Paulo,
Quadrante, 1997, p. 67.

A oração, se possível feita em família,


é o que dará ao lar essa segurança que
dimana da onipotência de Deus, nosso
Pai.

E esse lar, luminoso e alegre, se


tornará por sua vez um foco irradiador
de valores cristãos.

Somos todos irmãos e filhos do mesmo


Pai formamos uma só família

A família é a célula básica da sociedade


e deve comunicar-se com ela; dela
recebe sangue arterial, e a ela deve
devolver o mesmo sangue,
enriquecido com o seu contributo
próprio e peculiar. Uma célula que só
cresce e se enriquece em benefício
próprio termina se transformando
num tumor canceroso.

Nossa família não pode viver para si


própria, tem de abrir-se a todas as
outras famílias. Tem de conseguir um
salão positivo de amor 4
transbordante, que alague as famílias
que vivem ao nosso redor. É a família
que salvara as famílias; é a família que
santificará as famílias; é a família que
evangelizará as famílias.

4 João Paulo II. Bula de proclamação


do Grande Jubileu do ano 2000, 29 de
novembro de 1998.

A família cristã é convocada a


comunicar-se com as outras famílias.
Ela não pode viver voltada para si
própria, formando uma "panelinha",
uma "casta fechada", uma célula
parasitária, integrando-se apenas com
as famílias que pertencem à mesma
classe social ou condição cultural.

Não há pobres e ricos: há apenas uma


classe; a classe dos filhos de Deus. Não
há sábios e ignorantes: há apenas uma
condição; a condição dos filhos de
Deus. Não há brancos e negros: há
apenas uma raça; a raça dos filhos de
Deus5.

5 Cf. Escrivá, J. É Cristo que passa. São


Paulo, Quadrante, 1975, p. 144.

Formamos uma única família humana.


Não podemos viver indiferentes às
necessidades espirituais e materiais
das outras famílias. A solidariedade
deve ser vívida não apenas nas
relações de vizinhança, parentesco,
amizade e profissão, mas, também, em
outras bem mais abrangentes e
universais: entre os que são
desconhecidos e geograficamente
distantes, pois todos constituem uma
mesma família. As carências dos
outros têm de ser também —
realmente, sem demagogias! —nossas
carências. As dores e problemas deles
têm de ser — sem fingimentos! —
muito pessoais, muito nossos.

Tornemos uma realidade — na porção


social que nos corresponde — aqueles
desejos do Senhor, manifestados na
última ceia: "Para que todos sejam um,
como tu, Pai, estás em mim e eu em ti"
(Jo 17,20-21).

O Senhor pede para que todos


sejamos um. Cada um de nós deve ter
o coração grande, abrindo-o para os
outros: estendendo avenidas de
compreensão, de convivência, de
fraternidade, pois todos somos irmãos,
filhos do mesmo Pai e constituímos
uma única família.
O perdão do Pai eterno vivido no lar

A atitude do Pai e do filho pródigo


deve ter sua expressão na família:
temos de saber perdoar e pedir
perdão.

Perdoar parece representar um ato de


fraqueza, e pedir perdão parece que
nos humilha, especialmente quando
no fundo pensamos que nossa culpa
não é tão grande ou que a outra parte
é mais culpada... Houve uma
discussão, uma briga entre pais e
filhos, entre irmãos, entre marido e
mulher e pensa-se: é ele que tem de
pedir perdão; se tomo a iniciativa
estou dando-lhe razão: isso não é justo
e, sobretudo, se perdoar, já sei que
incorrerá no mesmo erro de sempre;
além disso, é vergonhoso demais
reconhecer o meu próprio erro... Esse
pensamento é fruto do orgulho.
Devemos mudar. A grandeza de
coração consiste em dar o primeiro
passo... Talvez de maneira suave,
dizendo: "Na parte que me toca, tenho
de reconhecer que não fui correto...
peço desculpas" ou, mais fácil ainda,
dando a entender por um gesto, por
um favor, por um sorriso, que
implicitamente estamos pedindo
perdão ou que estamos dispostos a
perdoar.

Hugo de Azevedo conta-nos um


episódio da vida de dom Escrivá de
Balaguer, Fundador do Opus Dei, que
revela um aspecto dessa fineza
humana — desse espírito de perdão —
a que nos estamos referindo:

Lá pelo ano de 1929, num bonde, um


operário sujo de cal, aproximou-se
daquele jovem sacerdote de batina
impecável, e aproveitando-se de uma
sacudidela do veículo manchou
propositadamente de branco a sua
veste eclesiástica, entre o sorriso de
alguns passageiros e o silencio
constrangido de outros. Quando
estava chegando à sua parada, o bem-
aventurado Josemaría Escrivá voltou-
se, com um sorriso divertido e cheio
de afeição, para dizer ao operário:
"Meu filho, vamos terminar esse
trabalho começado..." e deu-lhe um
forte abraço, sujando-se de cal por
completo6.
6 Azevedo, H. de. Teologia Del buen
humor. In: Palabra, Madrid, n. 23, abril
de 1983, p. 19.

Esse homem de Deus escreverá mais


tarde:

Temos de compreender a todos,


temos de conviver com todos, temos
de desculpar a todos, temos de
perdoar a todos. Não diremos que o
injusto é justo, que a ofensa a Deus
não é ofensa a Deus, que o mau é
bom. No entanto, perante o mal, não
responderemos com outro mal, e sim
com a doutrina clara e com a ação boa:
afogando o mal em abundância de
bem (cf. Rm 12,21)7.

7 Escrivá, J. É Cristo que passa. São


Paulo, Quadrante, 1973. P. 246.

Quantos problemas poderiam ser


resolvidos com um sorriso! Quantas
tempestades familiares nascidas de
uma ofensa — talvez irrefletida,
impulsiva — poderiam ter-se superado
se, desde o início, a pessoa atingida as
tivesse passado por alto com um gesto
que viesse a dizer de modo bem
humorado: "Deixa para lá, não tem
importância!"

Esse modo de agir tem um


fundamento ainda mais profundo: o
ensinamento que Jesus nos transmite
na oração do pai-nosso: "Perdoai-nos
as nossas ofensas assim como nós
perdoamos aos que nos têm
ofendido". Existe uma lei de
proporcionalidade entre o perdoar as
ofensas dos outros e o sermos
perdoados por Deus das nossas
próprias ofensas. E há também uma
proporcionalidade semelhante entre a
benignidade com que esquecemos as
afrontas dos outros e a benignidade
com que Deus apaga do seu coração as
nossas próprias afrontas.

Não podemos ter, como dizem,


"memória de elefante". Ouvimos
comentar com freqüência: "Eu perdôo,
mas não esqueço". Já é um grande
mérito perdoar com a vontade, mas
deve haver um movimento mais
profundo, que cauterize esse mundo
informe de lembranças misturadas
com ressentimentos que preservamos
na memória e no coração. Para isso,
devemos enveredar por caminhos de
oração, colocar Cristo crucificado entre
a pessoa que nos ofendeu e nós
mesmos, pensando: "Se o Senhor
derramou o seu sangue por mim, eu
ao menos deveria saber desfazer-me
da bílis amarga da minha mágoa e do
meu rancor. Menos é que não posso
fazer".

Seremos perdoados porque


perdoamos; não seremos julgados
porque também não julgamos... Bom
lema de vida seria seguir o sábio
conselho de São Bernardo:

Ainda que vejais algo de mau, não


julgueis imediatamente o vosso
próximo, mas antes desculpai-o no
vosso interior. Desculpai a intenção se
não puderdes desculpar a ação. Pensai
que a terá praticado por ignorância,
por surpresa ou por fraqueza. Se o
erro for tão claro que não o possais
dissimular, ainda então, procurai dizer
para vós mesmos: a tentação deve ter
sido muito forte8.

8 São Bernardo. Sermão 40 sobre o


Cântico dos Cânticos.

Muitos conflitos conjugais tiveram sua


origem numa pequena ferida que se
abriu através de uma afronta que não
foi perdoada. Permaneceram latentes
em forma de mágoa, depois foram
crescendo por causa de outras
ofensas, e se converteram em chaga,
em ressentimento; e quando este não
foi debelado, terminou gerando ódio.
Em sentido contrário, muitos lares,
abalados pelos desentendimentos,
tiveram um maravilhoso
ressurgimento a partir do
reconhecimento de um erro, da
retificação de uma atitude equivocada,
e, especialmente, de um humilde e
sacrificado perdão.

Quantas vezes a relação entre os


esposos se deteriora
irremissivelmente, talvez porque num
determinado momento — o momento
oportuno! — não se formulou com
humildade um pedido de perdão:
"Sinto muito!"; "Perdoe-me, fui
grosseiro com você!"; "Desculpe-me,
por favor, estava nervosa...!".
Quantas vezes também um pedido de
desculpas, o reconhecimento de uma
falta de delicadeza, abriu a grande
avenida da compreensão mútua ou de
um carinho mais profundo e maduro!

Saiba perdoar com grandeza de alma


e... esquecer com espírito benigno,
pedindo muitas vezes no pai-nosso:
"Perdoai-nos as nossas ofensas, assim
como nós perdoamos a quem nos têm
ofendido".

Sim, assim você saberá virar a página


com magnanimidade crista.

Um padre contou-me uma experiência,


que anoto aqui porque pode ser muito
útil:
Depois de uma pregação sobre o
perdão, um senhor aproximou-se de
mim para dizer-me:

— Não consigo realizar o que o senhor


diz na sua pregação.

— Por quê?, perguntei-lhe.

Com lágrimas nos olhos, respondeu-


me:

— Não sou capaz de perdoar porque


não posso sequer estabelecer um
diálogo com a minha mulher. Faz mais
de um ano que não nos falamos. Ela é
o que mais amo na vida. Que sentido
tem viver assim? Minha vida está
destruída, entreguei-me à bebida. A
cada dia que passa me sinto pior.
Olhei para ele e disse-lhe:

— Por que você não dá o primeiro


passo, tendo um gesto concreto?

— Ela não quer nem saber. Não


esquece uma infidelidade da qual me
arrependo de rodo o coração.

— Não. Não nos falamos mais. Já não


sou capaz!

Chorava de verdade, sinceramente.


Sua vida estava destruída. Vivia com a
esposa na mesma casa e recebia dela
favores como comida, roupa limpa
etc., mas era como se seu coração
secasse dia a dia. Tinha muito amor
pela mulher e pelos filhos, mas estava
bloqueado para dá-lo.

Então tive uma inspiração e disse-lhe:

— Faça de conta que está vivendo o


dia e a hora em que brigou com sua
mulher. Mas não estão sós. Cristo está
com vocês. Ele sabe tudo e disse a
você: "O que você fez foi muito ruim.
Você traiu sua mulher. Olhe para ela;
está muito triste; sente-se sozinha e
desprezada; você a feriu
profundamente. Não tem a quem
recorrer. Você é tudo para ela".
Depois, imagine que Jesus se dirige à
sua esposa com estas palavras: "Eu já
perdoei o seu marido; você o perdoa
também? Você une o seu perdão ao
meu?" Ela, então, disse-lhe chorando:
"Não consigo perdoar, ajuda-me,
Senhor, para fazê-lo"... Naquele
momento, você percebendo quanto
ela estava sofrendo, para ajudá-la na
sua decisão, adiantou o seu perdão e
abraçou-a sentidamente. Ela
simplesmente entregou-se nos seus
braços.

Aquele homem ficou impressionado


com a dramatização que acabava de
fazer. Eu acrescentei: "Agora tem de
confessar, comungar e rezar com
paciência durante alguns dias. Depois,
tente reproduzir com ela a mesma
cena que agora acabamos de
imaginar".

O homem partiu feliz. Fez exatamente


o que eu lhe disse e aconteceu algo
maravilhoso: reconciliou-se com a
mulher e ambos pediram perdão aos
filhos por terem dado tão mau
exemplo.

Essa experiência poderá ajudar a levar


à oração pessoal os próprios
problemas, e a suavizar os
desencontros e atritos familiares com
a presença e a graça de Jesus Cristo.
Ele nos diz: "Perdoem e serão
perdoados". Sim, seremos perdoados
porque perdoamos; não seremos
julgados porque não julgamos.

Antes de terminar esta parte dedicada


à paternidade humana, não posso
deixar de fazer uma referência —
ainda que breve — a uma paternidade
eminente: a paternidade de são José.
João Paulo II nos diz que:
"Deus fez que José participasse, de
forma singular do seu amor paterno,
aquele amor do qual toda família nos
céus como na terra toma o nome" (Ef
3,15)9.

9 Cf. João Paulo II. Alocução no


Angelus, domingo 21 de março de
1999. L’Osservatore Romano. Edição
semanal em português, 27 de março
de 1999, p. 1.

José é, de fato pai de Jesus, porque é


efetivamente o esposo de Maria, e
como pai, trataria Jesus com um
carinho paterno inigualável.

Como toda criança — continua João


Paulo II — Jesus aprendeu dos seus
pais as noções fundamentais do viver e
o estilo de comportamento. E, como
não pensar, com íntima maravilha, que
a sua perfeita obediência à vontade de
Deus foi por ele amadurecida sob o
perfil humano [...] do exemplo do pai
José, "homem justo" (cf. Mt 1,19).

Desejo invocar a celeste proteção de


são José sobre todos os pais e sobre as
suas tarefas no âmbito da família. A
ele confio também os bispos e
sacerdotes, aos quais na família
eclesial é confiado o serviço da
paternidade espiritual10.

10 Ibidem.

Também nós podemos invocar essa


mesma proteção de são José,
especialmente para nosso pai comum,
nosso querido papa — papa quer dizer
"papai" — a quem Deus confiou a
plenitude dessa paternidade espiritual.

A paternidade e a maternidade
espiritual

A Bíblia é reiterativa e extremamente


expressiva quando fala da paternidade
espiritual: uma relação que provêm
não do sangue, nem da carne, mas do
espírito de Deus, da filiação divina.
Assim no livro do Gênesis, o Senhor
fala a Abrão: "E não se chamará mais
Abrão, mas o seu nome será Abraão,
pois eu o tornarei pai de muitas
nações" (Gn 17,5).

O sentido da mudança de nome é clara


no hebraico11, indica a passagem de
uma paternidade consangüínea,
limitada aos parentes, a uma
paternidade espiritual que se
estenderá a uma multidão de pessoas
com as que se cria uma relação mais
elevada que os vínculos do sangue e
do amor puramente humano.

11 Cf. Van Den Born, A. Dicionário


Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis,
Vozes, 1977, p.8.

Como já vimos, Deus tem a plenitude


da paternidade e dela participaram
tanto os nossos pais ao dar-nos a vida,
como também aqueles que de alguma
maneira nos geraram para a vida da fé.

São Paulo em muitas passagens refere-


se a essa paternidade espiritual. Assim
escreve aos primeiros cristãos de
Corinto como a filhos queridos.

De faço, ainda que vocês tivessem dez


mil pedagogos em Cristo, não teriam
muitos pais, porque fui eu quem gerou
vocês em Jesus Cristo, por meio do
Evangelho. Portanto, eu lhes dou um
conselho: sejam meus imitadores12.

12 1Cor 4,14-16.

Também dirige-se aos da Galácia com


acentos de pai e de mãe, ao ter notícia
das dificuldades que enfrentavam pela
fé e ao experimentar a impossibilidade
de atendê-los pessoalmente por
encontrar-se fisicamente distante:
"Meus filhos, sofro novamente com
dores do parto, até que Cristo se
forme em vocês" (Gl 4,19). O Apóstolo
sentia dentro de si as preocupações
próprias de um pai e de uma mãe com
os seus filhos necessitados.

Esse espírito de são Paulo não deve ser


considerado uma peculiaridade
exclusiva do apóstolo. E espírito
característico da Igreja. Na Igreja,
sempre foram considerados pais
aqueles que nos geraram na fé
mediante a pregação e o batismo13.
Dessa paternidade espiritual
participaram os cristãos que tinham
ajudado os outros — quantas vezes
também com dor e fadiga! — a
encontrar Cristo. Essa paternidade
espiritual — tanto mais plena quanto
maior é a entrega a essa tarefa — é
uma parte importante do prêmio que
Deus concede nesta vida aos que o
seguem, por vocação divina, numa
entrega plena:

13 Cf. Catecismo Romano, III, 5, n. 8.

Ele é generoso... Dá cem por um; e isso


é verdade, mesmo nos filhos. Muitos
se privam deles pela glória de Deus, e
têm milhares de filhos do seu espírito.
Filhos, como nós o somos do nosso Pai
que está noscéus14.

14 Escrivá, J. Caminho, n. 779.

Essa missão de paternidade espiritual


— lembra João Paulo II:

Implica também essa cordial ternura e


sensibilidade de que tão
eloqüentemente nos fala a parábola
do filho pródigo (Lc 15,11-32). O amor
misericordioso, portanto, é
sobremaneira indispensável entre
aqueles que convivem mais
intimamente: entre os esposos, entre
pais e filhos, entre amigos; é de igual
modo indispensável na educação e na
pastoral15.

15 João Paulo II. Encíclica. Dives in


misericordia, 30 de novembro de
1980.

São Paulo, continua dando-nos lições


magistrais de paternidade espiritual.
Alude constantemente com emoção a
essa sua solicitude por todas as Igrejas
(cf. 2Cor 11,28): "Quem fraqueja, sem
que eu também me sinta fraco? Quem
caí, sem que eu me sinta com febre?"
(2Cor 11,29)16. Essa atitude do
Apóstolo é um modelo sempre atual
para todos os pastores da Igreja, na
sua solicitude por aqueles que Deus
lhes confiou e também para todos os
cristãos no seu apostolado constante,
pois "como pais em Cristo — diz o
concílio Vaticano II — devem cuidar
dos fiéis que geraram espiritualmente
pelo batismo e pela pregação"17.
Conseqüentemente, todos os cristãos
devem sentir a responsabilidade de
proporcionar aos seus irmãos tudo o
que possa ajudá-los a caminhar para a
santidade: o exemplo, a correção
fraterna quando for oportuno, a
palavra amável que anima, a alegria, o
otimismo, o conselho que orienta nas
dificuldades... E sempre deveremos
oferecer-lhes a ajuda mais eficaz de
todas as que lhes podemos prestar
sem que o saibam: a da oração e da
mortificação.

16 Idem, ibidem, n. 29.

17 Conc. Vat. II, op. cit., 28.

Essa responsabilidade

comporta sempre uma singular


disponibilidade para derramar-se
sobre todos os que se encontram no
raio da sua ação. No matrimônio, é
uma disponibilidade que — embora
deva estar aberta a todos — consiste
particularmente no amor que os pais
dedicam aos filhos. Na virgindade, está
aberta a todos, abraçados pelo amor
de Cristo esposo18.

18 JOÃO PAULO II. Carta Mulieris


dignitatem, 15 de agosto de 1998, n.
21.

No celibato e na virgindade por amor a


Deus, o Senhor dilata o coração do
homem e da mulher para que a
paternidade ou maternidade espiritual
seja mais extensa e profunda. A
entrega a Deus não limita de maneira
nenhuma o coração; ao contrário,
enriquece-o e torna-o mais capaz de
realizar esses sentimentos profundos
de paternidade e de maternidade que
o próprio Senhor colocou na natureza
humana19.
19 Cf. Carvajal. F.F. Falar com Deus.
São Paulo, quadrante, 1990, v. V, PP.
322-325.

Recordemos, enfim, que a virgem


Maria também exerce sua
maternidade sobre todos os cristãos e
sobre todos os homens20. Dela
aprendemos a ter uma alma grande no
trato com aqueles que continuamente
procuramos conduzir ao seu Filho, e
que de certo modo geramos para a fé.
Se imitarmos Maria, participaremos de
algum modo da sua maternidade
espiritual.

20 Cf. Conc. Vat. II. Const. Lumen


gentium, n.61.

8
Maria, mãe dos filhos de Deus

Talvez chame a atenção o fato de


distinguirmos a santíssima Virgem com
o título "Mãe dos filhos de Deus". Mas
não deveria ser assim, porque pouco
antes de Jesus expiar na cruz dirige-se
à virgem e, olhando para João — em
quem a Igreja sempre viu
representados todos os homens —, lhe
disse: "Mulher, eis aí o seu filho" (Jo
19,26).

Não se proclama aqui aos quatro


ventos de maneira solene, no
momento supremo da cruz, que Maria
é nossa Mãe?

Ao dizer que Maria é nossa mãe,


devemos ter presente que — como diz
João Paulo II:

A maternidade determina sempre uma


relação única e irrepetível entre as
pessoas: a da mãe com o filho e a do
filho com a mãe. Ainda quando uma
mesma mulher seja mãe de muitos
filhos, sua relação pessoal com cada
um deles é única e caracteriza a
maternidade na sua mesma essência.
Com efeito, cada filho é gerado de
modo único e irrepetível, e isso vale
tanto para a mãe como para o filho.
Cada filho é rodeado do mesmo modo
por aquele amor fraterno [...]1.

1 João Paulo II. Encíclica Redemptoris


Mater, n. 45.
Sabe-se pela vida de alguns santos
que, ao ficarem órfãos, ou por
qualquer outras circunstâncias,
decidiram tomar como mãe a Mãe do
céu.

Lembro-me — escreve santa Teresa de


Jesus — que quando morreu minha
mãe, fiquei eu com a idade de doze
anos, pouco menos. Quando comecei
a entender o que tinha perdido, aflita
dirigi-me com muitas lágrimas a uma
imagem de nossa Senhora, e suplicava
que ela fosse a minha mãe. Parece-me
que, ainda que eu tenha feito com
simplicidade, isso me valeu, porque
reconhecidamente sempre que me
recomendei a Maria, ela me acolheu2.

2 Santa Tereza. Vida, 1, 7.


Isso, no entanto, não se deve entender
como se Maria, a partir dos pedidos de
Teresa, tivesse começado a ser sua
mãe, porque já o tinha sido antes. E
sim porque foi a partir de então que
Teresa começou a senti-la como mãe.
Convém deixar claro que a virgem não
é nossa Mãe porque nós a tenhamos
escolhido, ou a sintamos como mãe,
mas porque colabora com o Pai para
fazer-nos nascer para uma nova vida
como filhos de Deus.

Nossa Mãe do céu é como um espelho


que reflete o amor que o Pai tem por
nós. Sentir-nos mais filhos de Maria é
sentir-nos, igualmente, mais filhos de
nosso Pai-Deus.
Invocando Maria estamos invocando,
por meio dela, a onipotência do Pai.

Desde os tempos mais antigos


representa-se nossa Senhora, mãe de
misericórdia, pintada com os braços
abertos, protegendo com o seu manto
uma multidão de pessoas de todas as
classes sociais e idades: clérigos,
leigos, religiosas, trabalhadores do
campo e da cidade. Não é raro que
também se represente aos que estão
fora da proteção do manto de Maria,
feridos ou doentes. Esse modo de
imaginar nossa Senhora deveria
inclinar-nos a procurar, nós também,
por nossa oração, proteger-nos no
âmbito maternal de Maria, refúgio dos
pecadores. Em todo momento, mas
especialmente nas circunstâncias em
que nos sentimos em dificuldades.

A palavra refúgio provém da raiz latina


fugere, fugir. Assim como se procura
um refúgio quando se está fugindo de
algum perigo, de alguma guerra ou
bombardeio, ou de alguma
perseguição, da mesma maneira
devemos solicitar a ajuda de nossa
Senhora quando queremos distanciar-
nos — fugir — do pecado, de situações
de angústia ou de ansiedade, criadas
por perigos ou crises econômicas,
conjugais, espirituais, de saúde e de
tantas outras espécies. Poderíamos
pedir essa ajuda por meio de diversas
jaculatórias: refúgio dos pecadores,
roga por nós; refúgio dos carentes, dos
angustiados, dos assustados, dos
perseguidos... roga por nós...
Santo Afonso Maria de Ligorio afirma
que a principal prerrogativa de Maria é
a de ser mãe da misericórdia e, em
conseqüência, refúgio e rainha da paz.

É por isso que nos momentos de


angústia e aflição, temos de recorrer a
Maria, como se isso fosse algo
espontâneo, instintivo. Porque toda
carência reclama a presença da mãe:

Precisamos dela!... Na escuridão da


noite quando uma criancinha com
medo, grita: mamãe!

Assim tenho eu de chamar muitas


vezes com o coração: Mãe! Mamãe!
Não me largues3.
3 Bem-aventurado Josemaria Escrivá.
Via Sacra. São Paulo, Quadrante, 19. P.
46.

A propósito lembro que há algum


tempo um rapaz estudante de
engenharia, que tinha direção
espiritual comigo, e que acabava de
perder a sua mãe — para ele exemplo
de fé e de vida — estava nadando na
praia da Barra, na cidade do Rio de
Janeiro. Passou para além da segunda
arrebentação das ondas, onde o mar
estava mais tranqüilo. Quando tentou
voltar para a praia não conseguiu.
Insistiu inutilmente durante muito
tempo. Ficou esgotado. Nesse
momento, sentindo o perigo iminente
de afogamento, começou a gritar
desesperadamente, como se fosse o
seu último recurso, a sua tábua de
salvação: "Mãe, minha mãe!" Ele dizia-
me: "Eu não sei dizer se chamava a
minha mãe do céu, ou a minha mãe da
terra; penso que pedia o socorro de
ambas. Mas, isso sim tenho certeza, de
que gritava com toda a força e com
toda a fé".

"De repente vi que, lá na praia, dois


pontos quase imperceptíveis
começavam a movimentar-se e, pouco
a pouco, foram ganhando forma
diante do meu olhar surpreso; dois
surfistas que entraram decididamente
na água e se dirigiam na minha
direção, nadando vigorosamente.
Superaram a primeira linha de ondas e
depois a segunda. Ao chegar ao meu
lado, agarraram-me com firmeza e me
colocaram a salvo".

Ele acrescentou: "Por que aqueles


rapazes se levantaram logo depois de
que o meu clamor subiu ao céu? Qual
das minhas duas mães teve uma
intervenção mais decisiva? Não seriam
as duas juntas que se confundiam na
minha cabeça e no meu coração?"

Toda carência, reclama a presença da


mãe, dizíamos antes. E quando
invocamos Maria com a súplica "Mãe,
minha mãe!," nossa mãe do céu nos
acolhe com mais carinho que o carinho
de nossa mãe da terra. Porque está
potencializado pelo amor infinito do
Pai.
Recorramos a ela especialmente
quando estamos angustiados: Ela nos
dará a paz.

A paz infinita de Deus Pai que nos foi


transmitida por intermédio de seu
Filho ao dizer-nos: "A paz esteja
convosco!" (Jo 16,33), também nós a
recebemos por meio de Maria,
medianeira de todas as graças.

Recordo a paz que sentia, quando


criança e ainda como adolescente,
depois que a minha santa mãe nos
dava sua bênção, à noite antes de
dormir. Desfilávamos os nove irmãos,
formados em ordem decrescente
como uma escadinha, diante de minha
mãe, para recebermos dela a sua
tradicional bênção. E enquanto fazia as
respectivas cruzes na testa, nos lábios
e no peito de cada um de nós, ia
dizendo mansamente estas palavras:

O Senhor te abençoe e te guarde, que


ele volte o seu rosto sereno para ti.
Tenha misericórdia para contigo, e te
dê a paz (cf. N m 6,26).

A paternidade de Deus parecia tornar-


se sensível naquele momento por
meio do carinho maternal de minha
mãe. Saíamos todos da sua presença
pulando de alegria. E nos deitávamos
seguros e tranqüilos.

Lembro-me, também que, quando


brigávamos entre nós, ou
desobedecíamos, minha mãe não nos
dava a bênção até que pedíssemos
perdão. E eu, às vezes, casmurro,
ficava sentado no corredor,
emburrado sem querer dar o braço a
torcer. Chorando de pena, ou de raiva,
mas inseguro, triste..., até que,
vencido por um sentimento mais
profundo, batia no quarto dos meus
pais para dizer: "Perdão, peço perdão".
E aí, minha mãe me dava a bênção
enquanto me afagava carinhosamente.
E depois saía limpando as lágrimas,
radiante de alegria, e sorrindo ia
deitar-me com uma grande paz. Que
paz tão grande eu sentia! Parece que
fazia meus os sentimentos do salmo;
"Posso deitar-me, dormir e despertar,
pois é Iahwch quem me sustenta. Não
temo essa multidão de gente que em
cerco se coloca contra mim" (Sl 3,6)
"Em paz me deito e logo adormeço,
porque só tu, Iahweh, me fazes viver
tranqüilo" (Sl 4,9).

Ainda hoje, sinto saudades da paz que


a benção de minha mãe me transmitia.
Talvez, para "matar" essas saudades,
"inventei" no fim dos retiros que
fazemos todos os anos com as famílias
e os jovens, algo que denominamos
"Boa noite, Maria". Saímos pelos
jardins do "Centro de Estudos do
Sumaré", lá no alto da Tijuca, rezando
o terço e cantando uma música
Mariana em cada um dos mistérios. E,
no fim, no grande terraço que se abre
para o esplêndido panorama da cidade
do Rio de Janeiro, iluminada à noite
por milhares de luzes, estendemos
nossas mãos e damos aquela bênção
da minha mãe: "O Senhor te abençoe e
te guarde, volte o seu rosto sereno
para ti... E te dê a paz". E, para
despedirmo-nos, depois de cantarmos
o abraço da paz, dizemos todos em vós
alta: "Boa-noite, Maria!"

Oxalá seja essa também a nossa


atitude quando chegar nossa última
hora... Quando lhe dissermos, com o
último suspiro, "Boa-noite, Maria...
amanhã te verei no céu..." Um velho
bispo da Bahia, ao celebrar seus 80
anos de idade, quis que lhe cantassem
esta tradicional música mariana: "Com
minha mãe estarei, na santa glória um
dia. Junto à virgem Maria..." Ele dizia:
"Cantando essa canção não terei medo
da morte... 'Com minha mãe estarei...'
quando escutar do Senhor aquelas
palavras: 'Venham vocês, que são
abençoados por meu Pai. Recebam
como herança o Reino que meu Pai
lhes preparou desde a criação do
mundo"' (Mt 25,34).

Tomara que em todos os dias de nossa


vida, e também no último, cada um de
nós possa dizer, como uma criança
pequena à sua mãe: “A bênção, Mãe!
Boa-noite, Maria”. Dormiremos
tranqüilos na paz do Senhor, talvez
sorrindo, ao sentir por dentro ecoar as
palavras de Jesus: "Não temam. Não se
preocupem... Deus é o Pai de vocês".

---000---
85 EXPERIÊNCIAS DE AMOR

Sumário

Apresentação
Prólogo

I - O Amor É a Fonte da Alegria


II - O Amor nos Dá Força Para Viver
e Perseverança Para Lutar
III - O Amor Realiza
IV - O Amor Vive de Esperanças e não
se Decepciona nas Lembranças
V - Amar É...
VI - Amar É Ajudar, Semear Alegria e
Bom Humor, Sorrir, Dar-se com
Generosidade, Sacrificar-se
VII - O Amor Rima com a Dor

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