De Uma A Outra Imagem Andre Brasil

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Nota do autor:
Versões iniciais deste tex-
to foram apresentadas em
duas ocasiões: no Colóquio
Internacional Pós-fotogra-
fia, Pós-cinema: o devir das
imagens contemporâneas da
arte, abrigado pelo Programa de
Pós-Graduação em Comuni-
cação da Universidade Federal
andré brasil do Ceará, e no III Colóquio
Internacional Cinema, Estética
é professor do Departa- Urihi, aquilo que poderíamos traduzir por “terra-floresta”, trata-se de um espaço sociocos-
e Política, organizado pelo Pro-
mento de Comunicação da grama de Pós-Graduação em
mológico complexo1 ou, em outros termos, um cosmos2: ainda que remeta a uma imagem
UFMG e participa do Grupo Comunicação da Universidade
essencial da floresta, a seu princípio de fertilidade, ele não pode ser fechado a priori, pois
Poéticas da Experiência e Federal Fluminense, ambos em abriga uma rede de relações interétnicas e interespecíficas mantidas por meio de uma quan-
2014. Aos organizadores desses tidade inaudita de agências e de sujeitos. Longe de se restringir aos humanos, essas agências
da equipe de editores da
eventos, agradeço pela oportu- se estendem aos animais e seres sobrenaturais. Urihi – terra-floresta – é também Urihinari,
Revista Devires – Cinema espírito da floresta, “as incontáveis imagens das árvores, aquelas das folhas que são seus ca-
nidade de lançar as hipóteses
e Humanidades. Integra aqui desenvolvidas. Grato ainda belos, e aquelas dos cipós. São também as imagens da caça e dos peixes, das abelhas, das
o Comitê Pedagógico de ao Grupo de Pesquisa Poéticas tartarugas, dos lagartos, das minhocas e mesmo dos caramujos warama aka”3.
Formação Transversal em da Experiência (CNPq/UFMG): Guardemos, por ora, a sugestão de que a floresta, o espírito da floresta e as imagens
Saberes Tradicionais na o texto não seria possível sem da floresta sejam termos, de certo modo, intercambiáveis. Ao articular, de forma surpreen-
UFMG. Com pós-doutorado os preciosos comentários de dente, simplicidade e complexidade, Kopenawa (e os Yanomami) imaginam a natureza como
alunos e professores em torno multiplicidade que não para de se multiplicar, se desdobrar, se enredar e se refratar4. A difi-
junto ao Centro de Mídia,
dos filmes. Agradeço, por fim, culdade e a riqueza dessa imagem da natureza residem justamente no fato de que, em cada
Cultura e História da New a leitura e contribuição de Ana uma de suas agências e relações, o cosmos está longe de ser unívoco, homogêneo ou apazi-
York University e doutora- Gomes, Bernard Belisário e Ro- guado, abrigando mundos incomensuráveis, tantas vezes incompatíveis e irreconciliáveis:
do em Comunicação pela sângela de Tugny. Este trabalho quão distantes estamos, nesse caso, de qualquer cosmopolitismo que resultasse teleologica-
UFRJ, desenvolve pesquisas é parte da pesquisa “Formas mente em uma “paz perpétua”5. Se a paz pode ser “almejada”, ela será precária e provisória
de vida na imagem: biopolíti- (pois traz a guerra em seu interior), a exigir o permanente trabalho da tradução e da diplo-
no domínio do cinema e do
ca, perspectivismo e cinema”, macia. Estas são tão necessárias quanto necessitam ser constantemente inventadas.
documentário, com atenção financiada pelo Programa Pes-
à produção de filmes por di- quisador Mineiro da Fapemig
retores e coletivos indígenas. (2011-2013). 1 Bruce Albert, “O ouro caníbal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da natureza”, in: B. Albert;
A. Ramos (orgs.), Pacificando o branco: cosmologias do contato norte-amazônico, São Paulo: Unesp, 2002.
2 Isabelle Stengers, “The Cosmopolitical Proposal”, in: B. Latour; P. Weibel (eds.), Making Things Public: Atmospheres of
Democracy, Cambridge: MIT Press, 2005.
3 D. Kopenawa; B. Albert, La Chute du ciel: paroles d’un chaman yanomami, Paris: Plon, 2010, p. 514. [Tradução nossa.]
4 De modo a fazermos jus à proposição perspectivista e multinaturalista aí implicada, teríamos que dizer não de uma
natureza a abrigar mundos distintos, mas desde o início de naturezas múltiplas que se fundam – ontologicamente – por
múltiplos pontos de vista.
5 Cf. debate entre Bruno Latour e Ulrich Beck em U. Beck, “The Cosmopolitan Society and its Enemies“, Theory, Culture
& Society, v. 19, n. 1-2, London/Thousand Oaks/New Delhi: Sage, 2002, pp. 17-44; e B. Latour, “Whose Cosmos, Which
Cosmopolitics: Comments on the Peace Terms of Ulrich Beck”, Common Knowledge, v. 10, n. 3, 2004, pp. 450-62.

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Se o xamã é exímio conhecedor da terra-floresta, não é porque consegue apreen- por trás das equivalências de linguagem11. Por outro lado, ainda que saiba – por experiência

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dê-la na forma de objetos passíveis de conhecimento, destacados de sua sociabilidade, mas – caminhar sobre equívocos, não se exime de encontrar ressonâncias, ligações íntimas que
porque consegue ver (ver, nesse caso, encerra um sentido preciso): trata-se menos de obje- permitam, em meio aos encontros interétnicos ou interespecíficos, conferir consistência,
tivar do que de deixar-se subjetivar por aquilo que se quer conhecer; o mutismo e a opaci- inventar uma composição, mesmo que, para isso, precise “torcer” a linguagem ordinária.
dade da natureza serão rompidos para que se veja agir e interagir os seus espíritos-animais,
para que se possa ser por eles “acionado” (observado, espreitado, afetado, surpreendido, Como se escrutasse por apalpadelas, como se abordasse um domínio desconheci-
atordoado, amedrontado, ofuscado, cegado, sonhado, perpassado, cortado, dobrado, ex- do cujos objetos só se deixam ver parcialmente, o xamã adota uma linguagem que
pandido, amplificado). Ver é assim ser visto e transformado por aquilo que se vê. O co- expressa um ponto de vista parcial. Essas manchas claras são brânquias de peixes
nhecimento não pode, dessa forma, produzir-se como abstração ou transcendência, sendo ou o colar de um caititu? E o peixe acaba sendo chamado de caititu. Há, sem
permanentemente posto em situação e em relação. dúvida, aqui um jogo no qual a linguagem, em seu registro próprio, manifesta a
Muito se diz do caráter diplomático dos xamãs: seus corpos são permutadores de incerteza da percepção alucinada12.
código6; eles são tradutores, decifradores, geógrafos de mundos de algum modo incomen-
suráveis7; são interlocutores ativos no diálogo cósmico: “como diplomatas que tomam a seu Se hoje a diplomacia dos xamãs é necessária, é porque, se ela cessa ou fracassa,
cargo as relações interespécies, operando em uma arena cosmopolítica onde se defrontam o cosmos arrisca-se a entrar em uma espécie de entropia descontrolada de agências. A
diferentes categorias socionaturais”8. Em meio a essa intrincada sociabilidade que invia- inconsciência em relação a essa complexa sociabilidade e a intervenção desmedida e ne-
biliza, ou ao menos dificulta, qualquer tentativa apriorística de totalização, a sofisticada gligente em seu equilíbrio (sempre provisório), resultará naquilo que os Yanomami temem
diplomacia dos xamãs constitui-se por boa dose de vulnerabilidade. Como vimos, aquele como “a queda do céu”13. Identificada a uma epidemia, xawara waki,-xi, a fumaça produ-
que conhece precisa subjetivar-se, ou melhor, deixar-se subjetivar pelo outro (ou pelos múl- zida pelo manejo do ouro e de outras matérias-primas, por exemplo, acaba por emanar-se
tiplos) que reconhece, em grande medida, desconhecer9. deleteriamente para a uhiri pata (o universo, o “mundo inteiro”), que se queima “como um
Quanto ao trabalho de tradução – de um a outro mundo, de uma a outra pers- saco plástico derretendo no calor”14.
pectiva –, o xamã é parcial: quando o “sentido” último e originário é distante, inalcançável, Há muito Kopenawa exerce essa diplomacia própria dos xamãs: de um lado, esta-
senão inexistente, ele percorre a direção oposta à do nomóteta, aproximando-se por “apal- belece um diálogo com os xapiripë (espíritos xamânicos dos animais ancestrais), de outro,
padelas”: “Ao longo de suas viagens a outros mundos, ele observa sob todos os ângulos, exa- por meio de suas narrativas, interpela os brancos em hereamu, discurso de aconselhamento,
mina minuciosamente e abstém-se cuidadosamente de nomear o que vê”10. Longe de qual- de tom exortativo, proferido pelos velhos ao seu grupo; voz potente do falcão (kãokãoma)
quer “literalidade”, busca correspondências e equivalências parciais, inesperadas, muitas que se instala no peito do orador permitindo que as boas palavras se firmem15. Como dirá
vezes disjuntivas, entre códigos díspares (que, mais amplamente, vinculam-se a habitus). Renato Sztutman, essa diplomacia endereçada aos brancos justifica-se menos porque se
Por um lado, o trabalho do xamã-tradutor expõe os equívocos constituintes da tradução. precise constituir um mundo comum e mais porque se deve encontrar um modo de viver
Ele deve acusar a alteridade referencial entre homônimos, a diferença ontológica escondida no mesmo planeta, ainda que separadamente.
Em 2011 e 2012, Davi Kopanawa organizou dois encontros de xamãs na aldeia
Watoriki, espécies de parlamentos cosmopolíticos, assembleias cujo “debate” se manifesta

11 Buscando ele próprio reconstituir a intentio de uma “antropologia ameríndia”, via perspectivismo, Eduardo Viveiros
de Castro define a tradução como equivocação controlada: “Ao fazer isso, devo observar que o perspectivismo projeta
uma imagem da tradução como processo de equivocação controlada – “controlada” no sentido em que se pode dizer que
caminhar é um modo controlado de cair. O perspectivismo indígena é uma teoria da equivocação, ou seja, da alteridade
referencial entre conceitos homônimos. A equivocação aparece aqui como o modo de comunicação por excelência entre
6 José Gil, Metamorfoses do corpo, Lisboa: Relógio D’Água, 1997, p. 20. diferentes posições de perspectiva – e, portanto, como condição de possibilidade e, ao mesmo tempo, limite da tarefa an-
7 M. Carneiro da Cunha, “Xamanismo e tradução: pontos de vista sobre a Floresta Amazônica”, in: M. C. da Cunha, tropológica” (Viveiros de Castro, “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation”, Tipiti: Journal
Cultura com aspas, São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 113. of the Society for the Anthropology of Lowland South America, 2004, p. 5). Assim, o papel do tradutor, ou, em nosso caso
8 E. Viveiros de Castro, “Xamanismo e sacrifício”, in: E. V. de Castro, A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de específico, do xamã-tradutor, “não é o de encontrar um ‘sinônimo’ (uma representação correferencial) em nossa lingua-
antropologia, São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 468. gem humana conceitual para as representações que outras espécies de sujeitos utilizam para falar da mesma coisa. Em vez
9 Ao caracterizar a prática do xamanismo entre os Tikmũ’ũn (Maxakali), a etnomusicóloga Rosângela de Tugny sugere disso, o objetivo é evitar perder de vista a diferença oculta no interior de ‘homônimos’ equívocos entre nossa linguagem e
a correlação com a prática da escuta: os xamãs devem amplificar seus corpos, funcionando como “receptáculos” de outras a de outras espécies, visto que nós e elas nunca estamos falando das mesmas coisas” (ibid., p. 7).
falas. “Se a tradição da cultura musical erudita é fortemente marcada por um ideal de beleza, uma noção de sublime como 12 M. Carneiro da Cunha, “Xamanismo e tradução: pontos de vista sobre a Floresta Amazônica”, op. cit., p. 108.
a superação do humano pela exaltação do que ele consegue negar de sua animalidade, o que as músicas ameríndias bus- 13 D. Kopenawa; B. Albert, op. cit., p. 514.
cam é a superação das fronteiras do humano enquanto corpo orgânico, em busca da captura objetiva de mais subjetivida- 14 Kopenawa citado por B. Albert, “O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da
des, sejam elas animais, vegetais ou minerais.” R. Tugny, Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, Rio de Janeiro: natureza”, op. cit., p. 252.
Azougue, 2009, p. 17. 15 Renato Sztutman, “Cosmopolíticas transversais: a proposta de Stengers e o mundo ameríndio ”, palestra no Museu
10 M. Carneiro da Cunha, “Xamanismo e tradução: pontos de vista sobre a Floresta Amazônica”, op. cit., p. 108. Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 29 de novembro de 2013.

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no corpo e cujo “plenário” acolhe o visível e o invisível (este é, portanto, um “plenário” que cintilar, saturar, dilacerar

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não é pleno, mas vazado por suas relações com o “fora”). Os xamãs inalam o pó yãkõanahi,
feito da seiva de uma árvore amazônica, e, por meio de suas performances, fazem descer os Xapiri é um filme de fotografia elaborada, extremamente construída, e de monta-
xapiripë, espíritos-animais primordiais. Na conhecida descrição de Kopenawa, eles dançam gem – na verdade uma espécie de mixagem – enfática: os blocos ou sequências que organi-
em grandes espelhos que descem do céu. São minúsculos, brilhantes, magníficos: seus cor- zam o filme não partem da performance de cada xamã (a estilística individual se desfaz em
pos, sempre ornados, nunca são cinzentos16. uma espécie de maquinismo). Ainda que uma narrativa se insinue, podemos dizer que o
Quando a máquina do cinema se aproxima do mundo dos xapiri, ela se depara critério que circunscreve cada parte é principalmente o tratamento plástico da imagem e do
com uma realidade de imagens que convocam outro modo de ver (vinculado a outro modo som (muitas vezes dissociados). Assim, o primeiro bloco nos mostra uma floresta mágica
de ser). A pergunta central então será: por meio da máquina fenomenológica do cinema, de cores alteradas: a folhagem avermelhada vai-se povoando pelos Yanomami, crianças,
como filmar aquilo que é ao mesmo tempo visível e invisível, virtual e corpóreo, magnífico mulheres e homens, cujo corpo é presente, mas translúcido, meio humano, meio espírito.
e minúsculo, belo e terrível? Como filmar aquilo que é já uma imagem, mas uma imagem Após uma passagem em fade, surgem belas imagens e sons da floresta e da aldeia apresen-
ativa (que nos olha mais do que se oferece ao nosso olhar)? Como essa mediação – espécie tadas agora em matiz ultranaturalista. Os xamãs preparam-se para o ritual: as imagens são
de intrusão – do cinema faz mais do que registrar ou documentar, participando performa- já acompanhadas por um de seus cantos; gestos e rostos se destacam pelo plano detalhe.
tivamente dos processos de tradução em curso? Ressalta-se, nessas imagens, uma explícita intencionalidade da tomada que, se
Os encontros dos xamãs na aldeia Watoriki moveram a realização de dois filmes, dura pouco, ainda assim recebe variações de foco e movimentos de câmera bem calculados,
duas traduções fílmicas, que conectam o mundo dos Yanomami, o mundo dos bichos-espí- algo ressaltado pela diminuição da velocidade do plano. Os xamãs inalam o yãkõanahi: seus
ritos e o mundo dos brancos. O primeiro é Xapiri (realizado em coautoria por Bruce Albert, gestos e rostos se desfazem na imagem, em rastros que se acumulam e se fundem uns nos
Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos, Leandro Lima e Stella Senra)17. O filme propõe outros.
uma tradução de aspectos da cosmologia Yanomami a partir de um repertório tecnoestéti- Lentamente, os corpos se multiplicam e se desmaterializam, em planos menos
co digital. Ele parte das performances para compor um mundo de visualidade exuberante, fotográficos do que pictóricos. Sob o canto xamânico, estamos agora diante de imagens
de corpos resplandecentes e cintilantes. Nesse caso, ver significa ver mais (em um quadro em alto contraste e, na sobreposição entre elas, criam-se recortes pelo contraluz, em seg-
saturado de cores e sobreposições), ainda que ver mais signifique exaurir, segmentar e, mui- mentação dos corpos e do espaço. Translúcidos, os corpos dos xamãs são atravessados por
tas vezes, dilacerar aquilo que se vê. O segundo filme é Urihi Haromatimape (Curadores da outros corpos e por pontos luminosos, algo que retoma, talvez de modo demasiado literal,
terra-floresta, 2013), fotografado e dirigido por Morzaniel Iramari Yanomami18. Por meio a descrição dos xapiripë feita por Davi Kopenawa (“partículas de poeira cintilantes”).
do cinema – “magia do homem branco”19 –, ele se move pelo mundo (ou pelos mundos) Mais adiante, em uma tradução inesperada e desconcertante, as performances
dos xamãs, em um registro econômico, amparado no plano longo. Ainda que a imagem aparecem fortemente mutiladas, desfiguradas, em acelerada segmentação: o som não é
seja transparente, estamos diante de extrema opacidade: o que acontece ali? Que persona- mais o do canto, mas o de uma espécie de diálogo cerimonial, e os planos tornam-se ex-
gens são esses? Com quem dialogam? O que cantam, o que “performam”? Ver, nesse caso, tremamente curtos, como que picotados pela máquina de edição. Ressalta-se assim, ainda
significa ver menos (dada a economia formal do enquadramento), ainda que ver menos mais, o caráter maquínico – produtivo – da montagem. A máquina do ritual – sim, porque
signifique ver demais, ver mais do que, talvez, teríamos a capacidade de ver. trata-se também de uma máquina, em sentido amplo – é então desfigurada pela máquina
Aqui, trata-se menos de confrontar de modo valorativo os dois filmes do que de de mixagem. As imagens desaceleram novamente e novamente o corpo se desfaz, no limiar
nos atentar para a maneira como, cada qual a seu modo, traduzem o acontecimento ao qual da abstração. O filme encerra-se com sequências de crianças que brincam sobre as árvores,
se dedicam. Xapiri parte de nosso mundo e, por meio do cinema, se lança em outra cosmo- seus corpos são translúcidos, como que encantados, atravessados pela ramagem da flo-
logia, cujos traços são, em grande medida, intraduzíveis (porque incomensuráveis). Para resta. Para criar sua tradução da experiência xamânica entre os Yanomami, o filme Xapiri
dar conta da experiência em curso, o filme cria uma máquina visual produtiva e proliferan- opta por exaurir o campo visual, em uma operação que tem ressaltada sua natureza ma-
te, que varia intensamente procedimentos e formas. Curadores parte das performances e se quínica: a máquina, nesse caso, tem força centrípeta, absorvendo o máximo de elementos
endereça, em grande medida, ao nosso mundo e a nosso modo de ver. A máquina xamânica em seu campo visual. A referência mais evidente para muitas das sequências é o trabalho
encontra a fenomenologia do cinema, que nos abre um campo constituído não apenas pelo da fotógrafa Claudia Andujar, que conviveu e militou durante mais de trinta anos com os
visível mas também pelo invisível. Yanomami. Em algumas de suas fotografias ou ensaios, para apreender e recriar o mundo
mítico dos Yanomami, a fotógrafa vale-se de estratégias de intervenção na imagem, seja
no momento da tomada, seja no momento de pós-produção. Para tanto, recorre a proces-
16 D. Kopenawa; B. Albert, op. cit., p. 93.
17 Realização do Instituto do Século 21 e Hutukara Associação Yanomami.
sos manuais, analógicos, utilizando materiais e resinas afins ao universo da floresta. Como
18 O filme foi realizado por ação conjunta entre a Hutukara Associação Yanomami, o Instituto Socioambiental e o Ob- dirá a própria Andujar, trata-se de um trabalho de reelaboração da cosmologia yanomami,
servatório da Educação Escolar Indígena na Universidade Federal de Minas Gerais. “uma bricolagem de adaptação e de atualização dos tempos dos mitos primordiais. Sem
19 A expressão vem de um artigo de Carlos Fausto, no qual relata sua experiência com o cinema entre os Kuikuro. Cf.
C. Fausto, “No registro da cultura”, in: Ana Carvalho (org.), Vídeo nas Aldeias 25 anos, Olinda: Vídeo nas Aldeias, 2011, p.
167.

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esse passado, sem a sua história, a bricolagem cairia no vazio”20. Talvez por isso mesmo, máquinas sugere, aos moldes de Gilbert Simondon24, a natureza dividual e pré-individual

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quando recorre às estratégias de intervenção fotográfica, a imagem menos se desmaterializa dos corpos. Como se a imagem fosse não estritamente um reflexo (a tradução como re-
do que se adensa, ganha espessura, deixando que nela se inscrevam outras indicialidades produção) da experiência corporal xamânica, mas o resultado das múltiplas emanações e
provenientes dos processos e materiais utilizados. refrações de um cristal.
Ainda que parcialmente se distanciem da figuração, estas são imagens “nada abs- Produz-se como efeito a exaustão do campo visual, que ocupa e esgota a dimen-
tratas, impregnadas de águas, pedras, folhas, tempo e memória”21. A relação entre o lastro são invisível da imagem. Extasiado pela beleza das imagens, o olhar se regozija a passear por
de uma memória ancestral e a intervenção na imagem produz uma espécie de vulnerabili- suas texturas, rastros e cintilações, em uma espécie de “esquecimento” do extracampo. Por
dade, que as fotografias, a seu modo, compartilham como os próprios Yanomami. Algo que, conta de seu intenso povoamento pelas imagens, o invisível tem seu poder de agência – sua
em seu belo ensaio sobre Andujar, Laymert Garcia dos Santos caracterizou como uma zona dimensão performativa – diminuído. A pergunta, então, seria: onde podem se abrigar os
de perturbação e oscilação do real. “O real vacila e exibe ao mesmo tempo a fulgurância xapiripë, seres-imagem que, paradoxalmente, precisam do invisível para se fazer ver, que
da existência e o inexorável caráter de sua impermanência”. A vulnerabilidade, nesse caso, precisam do invisível para fazer ver?
“atua como uma brecha por onde o existente pode, no instante mesmo em que é, deixar
de ser”22. Ela reside então nesse encontro de difícil equação entre ser e devir; devir-outro durar, alterar, crer
próprio da atividade xamânica.
Essa breve digressão pelo trabalho de Claudia Andujar mostra como, mesmo que Curadores da terra-floresta, filme de Morzaniel Yanomami, opta por estratégias
a matéria expressiva da imagem seja objeto de intervenção e alteração, a fotografia man- outras, podemos dizer diametralmente opostas àquelas de Xapiri. Trata-se, em certo senti-
tém-se carregada de indicialidades. O índice, no caso, é signo de atestação, testemunho, do, de um trabalho de autoetnografia. Mas, longe de qualquer purismo, digamos logo que,
mas opera por meio de constante oscilação23 e de necessária tradução: como se a imagem se o diretor participa da mesma comunidade daqueles que filma, a mediação do cinema
recebesse inscrições e traços de uma forma de vida que, em seus vínculos e tramas com a – da câmera – defasa logo essa afinidade em alteridade: afinal, filmar não se faz sem distân-
terra-floresta, é apreendida em seu momento de vulnerabilidade. Ao mesmo tempo em que cia, sem que se esteja, em alguma medida, separado daquilo que se filma. Essa separação
se atesta, o real – seres e performances – já está a se tornar outra coisa, oscilando entre este torna-se ainda mais evidente se pensarmos que Curadores é filiado à tradição do direto, ou
e outro mundo. mesmo do filme etnográfico, optando pelo registro em tom observacional. Paradoxalmen-
Mesmo que se assemelhem os resultados, ao rarefazer e desmaterializar a ima- te, em sua “transparência”, o filme não deixa de preservar uma ampla zona de opacidade,
gem, Xapiri, o filme, se aproxima de certa iconicidade, não sem que sobre ela – ou ao fundo que constitui fortemente nossa experiência de espectadores. Após acompanhar a chegada
dela – operem processos simbólicos. Se, por um lado, as imagens são levadas ao limiar e recepção dos xamãs na aldeia, Curadores da terra-floresta nos ensina sobre a feitura e os
da abstração, essa abstração é também submetida a uma espécie de literalização, como se, poderes do yãkõanahi, que possibilita ver e, ao mesmo tempo, tornar-se xapiri. Quem não
direta ou indiretamente, a dimensão simbólica, textual (o que se disse e se escreveu sobre inala o pó continua “com olhos de fantasma” e nada vê.
os Yanomami e os xamãs), incidisse sobre o trabalho com o ícone. Na busca de traduzir, Em uma breve sequência antes do início do ritual, os xamãs se preparam, ciosos
em experiência sensorial, o transe e a alucinação xamânicas, o filme não deixa de literalizar dos desenhos que fazem sobre a pele e dos artefatos que trarão em seu corpo. Agora, as-
sua manifestação em imagem: em alguma medida, ele nos devolve a verossimilhança. Esta, sentados em torno do pátio, eles observam, mirando vez ou outra a câmera que filma late-
como sabemos, é a semelhança construída no interior de uma verdade: seja a verdade de ralmente. A narração em voz over continua ainda nesse início do ritual: “vou explicar para
um texto, seja a verdade de um “imaginário”. vocês sobre o pajé”. O texto reafirma o endereçamento do filme, não apenas aos Yanomami,
Façamos jus ao filme e digamos em seguida que, para além de uma tradução mas talvez e principalmente aos não-índios. Reivindica-se aí, explicitamente, o caráter de
mimética, Xapiri produz o acoplamento de duas máquinas: uma máquina xamânica, cons- mediador do cinema, que participa da rede de traduções acionada pelo encontro de xamãs.
tituída pelo corpo, pelo canto e pelo espaço aberto do pátio; e uma máquina numérica, que Nossa hipótese, que desenvolveremos adiante, é de que essa participação do cinema sugere
produz, sobrepõe, segmenta as imagens e sons das performances. Vez ou outra, em seus o encontro entre duas ontologias da imagem, que se alteram mutuamente. De um lado,
momentos mais agudos, o filme acentua seu maquinismo: o acoplamento entre as duas um regime escópico moderno, ocidental, que o cinema herda (não sem contribuir para

20 Claudia Andujar, “Os Yanomami em minha vida”, in: C. Andujar, A vulnerabilidade do ser, São Paulo: Cosac Naify, 24 A insuspeitada relação entre a “visão de mundo” dos Yanomami e a perspectiva simondoniana – entre xamanismo e
2005, pp.168-9. tecnoestética – foi indicada anteriormente por Laymert Garcia dos Santos: “Tal interface [entre cibernética e animis-
21 Diógenes Moura, “O dia em que Claudia Andujar abriu sua gaveta”, in: C. Andujar, op. cit., p. 43. mo] foi estabelecida pelo filósofo Gilbert Simondon quando, estudando a questão da invenção a partir do paradigma
22 L. Garcia dos Santos, “Experiência estética e simpatia bergsoniana”, in: C. Andujar, op. cit., p. 56. tecnológico e da noção de informação, descobriu que a ontogênese da individuação nos campos da física, da biologia e
23 Em seu livro sobre a fotografia, já tornado referência, Philippe Dubois ressalta a dimensão de atestação característica da tecnologia podia ser pensada por um único referencial teórico capaz de compreender o plano de realidade pré-indi-
de uma pragmática do índice na fotografia. O próprio autor, contudo, acusa uma flutuação também constituinte: “Por vidual a partir do qual os seres se individuam. Em cada um desses campos a invenção se dá quando a informação atua
mais certificante que seja – pois sabemos que o que ela mostra necessariamente existiu –, a foto, porque adiada, fendida, nessa realidade pré-individual, intermediária, que o filósofo denomina “o centro consistente do ser”. L. Garcia dos Santos,
esburacada, nem por isso deixa de ser uma imagem flutuante: flutua exatamente na certeza”. P. Dubois, “O ato fotográfico: Amazônia transcultural: xamanismo e tecnociência na ópera, São Paulo: n-1, 2013, p. 22. Digamos, em complemento, que
pragmática do índice e efeitos de ausência”, in: P. Dubois, O ato fotográfico, Campinas: Papirus, 1993, p. 91. esse “centro” teria a forma de um cristal, sendo a multiplicidade sua consistência.

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deslocar). De outro, as imagens-espíritos dos xapiripë, paradoxais na medida em que são variação do corpo se module, cada gesto mínimo ganhando uma unidade provisória para

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tão ativas quanto permanecem invisíveis: são índices e não ícones, menos se oferecem ao que possa logo se transformar em outro. O corte respeita e espera a integralidade interna
exercício da visão do que, em sua invisibilidade, provocam e acionam esse exercício. da performance e parecem ser os gestos – seu desenvolvimento – que, em certa medida,
determinam o corte, sempre seco e econômico. A ausência de tradução do canto desloca
Ora, o que define uma “imagem” é sua visibilidade eminente: uma imagem é al- o trabalho do espectador, da dimensão semântica à materialidade sonora, que se modula
go-para-ser-visto, é o correlativo objetivo necessário de um olhar, uma exteriori- em variações no interior da repetição e em intensidades. Desse modo, o desenvolvimento
dade que se põe como alvo da mirada intencional; mas os xapiripë são imagens sonoro – aliado à performance – talvez também contribua para determinar a incidência do
interiores, “moldes internos”, inacessíveis ao exercício empírico da visão. Eles são corte.
o objeto, poder-se-ia dizer, de um exercício superior ou transcendental desta fa- Por outro lado, o plano longo se liga à série, à composição das várias performances,
culdade: imagens que seriam então como a condição daquilo de que são imagem; uma em seguida da outra. Com isso, vai-se ressaltando a estilística deste ou daquele xamã,
imagens ativas, índices que nos interpretam antes que os interpretemos; enigmá- inscrita singularmente em sua manerie. Vemos, na verdade, seu corpo ganhar a maneira de
ticas imagens que devem nos ver para que possamos vê-las […]25. outro corpo, xapiri, em devir-animal. Corpo-jaguar, corpo-pecari, corpo-urubu-rei... estilo
e maneira não se submetem estritamente a uma mimese, ancorada em verossimilhança.
Voltemos a Curadores da terra-floresta. Discreta, a câmera acompanha a per- Diríamos que, mais propriamente, eles acionam, por ressonância, as afecções do corpo-es-
formance dos xamãs, variando pouco (mas precisamente) seu enquadramento. Este é, na pírito (Figura 4). Talvez, sem exagero, pudéssemos afirmar que, em sua singularidade, cada
maior parte do tempo, lateral, e não decupa os corpos, nem encerra os gestos em plano de- performance é capaz de convocar uma origem, uma memória ancestral, um princípio vital;
talhe; não estabelece com eles qualquer coreografia26, priorizando o plano fixo. Quando se cada performance parece acionar um mundo cujos habitantes não vemos, mas cuja pre-
desgarra dessa fixidez, o movimento da câmera acompanha discretamente as performances, sença e arquitetura intuímos. Baseado nessa espécie de indicialidade das afecções, o regime
em tomadas longas, no interior das quais se realizam poucas panorâmicas e pequenos ajus- sensível em curso não pode, afinal de contas, basear-se exclusivamente na visão, a não ser
tes, na tentativa do melhor ponto de vista. Se há didatismo, portanto, ele não é impositivo, que se tenha uma concepção alargada de visão, de imagem e de ponto de vista, que valorize
mas generoso: abre-se a imagem, em planos que permitem apreender, à boa distância, a sua dimensão invisível.
plenitude (ou quase plenitude) deste ou daquele corpo, bem situado no espaço, em intera- No caso das performances corporais, filmar a infralíngua dos xamãs não poderia
ção com os demais. O enquadramento adequado não oculta ajustes e oscilações, mas, ao fazer-se por meio da decupagem ou segmentação dos corpos, destacando do todo e do en-
contrário, constitui-se dessas impurezas. Por vezes, a câmera precisa posicionar-se atrás dos torno este ou aquele gesto, esta ou aquela expressão. Não se poderia fazer também pela dis-
xamãs, esforçando-se para enquadrar a performance à distância no pátio. sociação entre a imagem e o som, entre o corpo e o canto, já que ambos atuam como forças
Se a câmera é predominantemente observacional, nessa observação, participa, na intensivas capazes de “precipitar” uma transformação. Cada modo e cada modulação, cada
medida em que sua presença faz-se notar sutilmente pelo modo preciso como se movimen- gesto singular são acolhidos sem se recortar do corpo, de sua relação parcial com o espaço e
ta, se ajusta, se detém; pelo modo como busca a posição adequada, como enquadra e como, com os outros corpos que o habitam (sejam visíveis ou invisíveis). Situado, o corpo é então
ao enquadrar, ela parece crer (se essa crença é de difícil construção e apreensão no filme, um feixe de afecções. Singular, ele não deixa de ser coletivo. A singularidade, ressalta José
será nossa tarefa tentar sublinhá-la). Gil, não é a de um indivíduo, separado da comunidade, “mas sim a de um corpo em comu-
O enquadramento permite assim apreender, em suas variações mínimas, os ges- nicação com toda a natureza e toda a cultura e tanto mais singular que se deixa atravessar
tos e expressões dos corpos xamânicos, que, em repetições e ressonâncias, fazem descer e pelo maior número de forças sociais e naturais”28.
dançar os espíritos auxiliares (xapiri), bichos-espíritos que são imagens dos seres em sua Digamos ainda que, em sua simplicidade, o protocolo de filmagem sugere afini-
forma primordial. Os planos longos nos convocam a um exercício de percepção, de nature- dade por parte do fotógrafo ao universo retratado: discretamente, ele acompanha o movi-
za fenomenológica, atento aos movimentos ínfimos dos corpos. Estamos próximos, quem mento dos corpos no espaço, encontrando uma “solução” – ao mesmo tempo econômica
sabe, ao que José Gil chamou certa vez de infralíngua, nascida da emergência de uma inte- e incisiva – para apreender sua relação com o invisível. Também nesse sentido a câmera
ligência propriamente corporal27. é participante; ela participa da comunidade que filma e isso, de certo modo, informa seu
Entendemos então a necessidade do plano longo: ele permite que, por um lado, a olhar no filme. Como se, na mediação entre aquele que filma e a experiência filmada, se
insinuasse o habitus. Trata-se, assim, de uma câmera sóbria, cuja sobriedade crê, compar-
tilha a crença com aqueles que são filmados. Se esse nos parece um registro objetivo, em
25 E. Viveiros de Castro, “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”, Cadernos de Campo, São tom observacional, teríamos que imaginar então uma espécie de objetividade reencantada
Paulo, n. 14-15, 2006, p. 325.
26 Penso, por exemplo, no contraponto de As hipermulheres (2011), filme de Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo
(objetividade cosmológica), que, como dizíamos, concebe o mundo objetivo como vários
Sette, no qual a câmera filma em elaborada coreografia com os corpos em seu cotidiano e em situações ritualísticas. mundos, fundados em uma multiplicidade de agências, práticas e perspectivas.
27 “Esta inteligência do mundo específico do corpo vai refluir, por sua vez, sobre a linguagem e o intelecto puro: vai
neles induzir movimentos subtis, associações, impregnações, contaminações semânticas imperceptíveis mas decisivas
que testemunham a transformação do espírito numa espécie de grande corpo felino capaz de intuições, pressentimentos,
fulgurações, ‘sextos sentidos’ que só o pensamento por imagens pode fornecer.” José Gil, op. cit., p. 46. 28 Ibid., p. 58.

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trabalho com o invisível em campo, é o mundo sob o ponto de vista dos espíritos31. Canto, performance xamânica e

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imagem participam, nesse sentido, de um dispositivo relacional, que opera passagens entre
Se, de um lado, em seus enquadramentos, o filme nos permite exercitar a percep- um mundo e outro. Ao cinema – que não deixa de ser, em alguma medida, uma máquina
ção das variações mínimas da singularidade, o modo como as imagens convocam nossa fenomenológica –, cabe a inscrição material dessa passagem. Vez ou outra, os xamãs apon-
crença passa pela articulação entre esse plano visível – fenomenológico – e outro, invisível – tam, indicam algo que não é visível na imagem e que permanece oculto no extracampo, e,
cosmológico. Ressaltemos que Curadores da terra-floresta constitui-se fortemente por meio nesse gesto simples, conectam dois mundos.
de um trabalho com o invisível. Trata-se de compor com o invisível, abrir o plano para que
ele opere em contiguidade com o extracampo. O enquadramento acolhe, é generoso com o de uma imagem a outra: o equívoco
invisível – o amplo pátio vazio, que cremos (ao ponto de quase vê-los) povoado pelos xapi-
ripë (Figura 5). O canto, aliado a essa dimensão invisível, ganha corpo e intensidade: como Como apreendemos por meio das narrativas de Davi Kopenawa, os xapiripë são
se, por meio do canto, algo invisível – um espírito, suas afecções – atravessasse o corpo do imagens, seres-imagem, e, para acessar o seu mundo, os xamãs devem, eles mesmos, se
xamã, precipitando-se em imagem visível, material. Essa precipitação do invisível no visível tornar imagem. Os espíritos são imagens e, paradoxalmente, são também a “essência” da
– como se um reverberasse29 (ou ressoasse) no outro, fazendo-o vibrar, se agitar e se alterar floresta e de seus seres. Digo “paradoxalmente” em referência ao repertório cultural met-
– provoca o encontro de um duplo regime sensível: no plano visível, o pátio está vazio; mas ropolitano, que se constrói na separação entre ser e aparecer, entre imagem e objeto, entre
no plano ampliado do sensível, esse espaço vazio é povoado por uma legião. artifício e ontologia. Mas, se podemos dizer que Curadores da terra-floresta é um “filme que
Convocado de tal modo, o invisível não se opõe ao visível; ele participa de um filma imagens” – ou seja, que se produz, em mise-en-abyme, como imagens de imagens –
mesmo dispositivo, configurando-se como espaço virtual que “faz vibrar” o visível por temos que acusar logo o equívoco nessa afirmação. Para tanto, darei novamente ao equívoco
meio da performance e do canto do xamã. Sua atualização não se dá sob a forma do ícone, o sentido que Viveiros de Castro reivindica para o termo, ou seja, a equivocidade por detrás
mas do índice; se nós não “vemos” imagens dos xapiripë, podemos contudo vê-las agir da univocidade; a exposição da diferença oculta entre homônimos32. No caso que nos inte-
sobre o corpo do xamã, que ativa assim “poderes de um outro corpo”30. É peculiar o modo ressa aqui, eis um possível equívoco: o que chamamos imagem pode não ser o mesmo que
de funcionamento do índice: como espectadores somos convocados não a crer naquilo que Davi Kopenawa, xamã Yanomami, esteja definindo como tal.
nossos olhos veem, e sim naquilo que os olhos não veem, mas que ainda assim age sobre o O que o filme filma são já imagens, mas as imagens que ele filma não são a mes-
corpo em performance. Algo atravessa esse corpo, como o vento atravessa a vela de um bar- ma coisa que as imagens que historicamente o cinema concebeu como tal. Herdeiro de um
co, tornando-se visível em sua invisibilidade e conferindo à vela e ao barco algo de seu po- dado regime escópico, construído sobre o oculocentrismo, o cinema é uma máquina de
der. Trata-se não apenas de uma representação, mas de um acontecimento e de uma relação criação e montagem de pontos de vista: enquadra, captura e inscreve em sua matéria sensí-
na qual se deve estar vulnerável, aberto para assumir (e sofrer) poderes sobre os quais não vel os objetos do mundo – estes que são tornados objetos justamente por conta de um olhar
se tem pleno controle. Afinal, essa diplomacia não se dá no interior de um mesmo mundo, que, oculto, de fora do mundo, pode enquadrá-los e filmá-los. Mas aquilo que Morzaniel
mas faz a passagem entre um mundo e outro, entre o invisível e o visível, entre dois modos filma são imagens-espírito: na cosmologia Yanomami, os xapiripë são “formas espectrais”,
de presença e de imaginação. imagens invisíveis em situações “normais” e “supremamente visíveis” em situações es-
Esse pátio vazio – na verdade, habitado – desdobra-se em um amplo extracam- pecíficas (ou melhor, interespecíficas), nas quais os xamãs não apenas veem os espíritos,
po, um prolongamento, fora da cena, da dimensão invisível que a constitui. Mas, nesse mas veem por meio de seus olhos. Trata-se, portanto, de uma imagem que, normalmente
“prolongamento”, nota-se uma cisão, uma disjunção, uma diferença ontológica: ainda que invisível, pode, em situações xamânicas, ser vista e fazer ver: a um só tempo imagem vista
contíguos, vizinhos, o mundo visível no campo do filme (o pátio, os xamãs Yanomami, e imagem que vê, ou melhor, imagem que permite ver.
sua performance) é outro, diferente daquele dos bichos-espírito, xapiripë, invisíveis no ex- Como dispositivo fenomenológico, o cinema não pode ver esses espíritos, muito
tracampo. O que está visível em campo é o mundo a partir do ponto de vista humano; o menos ver por meio de seus olhos (o cinema é sempre uma mediação que instaura cer-
que está invisível no extracampo, mas que age sobre os corpos e sobre o espaço visíveis ta distância); como dispositivo, digamos, cosmopolítico (aquele que faz a passagem entre
mundos díspares), ele pode fazer durar, preservar o invisível, abrir espaço para que o invisí-
vel possa agir no filme. Filmando o invisível, o cinema nos oferece índices de uma presença,

31 Em sua dissertação de mestrado, Bernard Belisário chama a atenção para essa disjunção entre campo e extracampo,
29 Esse processo de comunicação por reverberação ou interafecção é descrito por Rosângela de Tugny em outro contexto: entre aldeia e floresta, em filmes indígenas, especificamente no âmbito do cinema produzido pelos Kuikuro. A floresta, ob-
os Tikmũ’ũn, nos diz a autora, entram em reverberação com os yãmĩyxop – povos-espírito, animais-humanos – para canta- serva o autor, é um outro lugar, “exatamente porque é nela (mas não só, como vimos no exemplo das onças na aldeia) que
rem seus cantos. Gesto, corpo, escrita, comida, canto: “Ali, onde os homens da aldeia acompanham os espíritos emanando se expressa o mundo do qual os animais e os itseke [bichos-espírito entre os Kuikuro] são o “ponto de vista”. É ali que estão
seus cantos, constitui-se uma zona de refração especular, onde cada regime de linguagem é levemente desajustado”. R. suas aldeias, onde caçam, pescam e cozinham o seu alimento, onde bebem o seu mingau, onde cantam e dançam seus
Tugny, op. cit., p. 7. rituais, onde se casam e fazem guerra”. B. Belisário, As hipermulheres: Cinema e ritual entre mulheres, homens e espíritos,
30 E. Viveiros de Castro, “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”, in: Viveiros de Castro, A inconstância dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG, 2014, p. 121.
da alma selvagem, op. cit., p. 393. 32 E. Viveiros de Castro, “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation”, op. cit.

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ou índices de múltiplas presenças (e mesmo da coexistência de incompossíveis). veríamos é: será que o filme não nos pode ensinar a ver o que nele não está totalmente ou

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A visão, reiteramos, talvez não seja a melhor categoria para dizer do regime sen- facilmente visível?
sível em curso: assim como os corpos xamânicos são dispositivos cosmopolíticos que per- Para Bruce Albert, antropólogo com quem Kopenawa realizou essa importante
mitem ao invisível agir sobre o plano visível, fenomenológico; assim como eles se tornam obra de filosofia política – o livro La chute du ciel (2010) –, aquelas narrativas se configuram
“indexadores de afetos”, entrando em relação de reverberação ou de interafecção33 com os como uma verdadeira “crítica xamânica da economia política da natureza”37. Poderíamos
seres de que são imagens, o cinema pode, quem sabe, recuar sua vocação escópica, fazê-la pensar nesses filmes, no sentido do que vínhamos argumentando, como uma espécie de
atravessar por outra: aquela que permitiria imaginar e crer – mas de modo muito prático, crítica xamânica da economia política das imagens?
concreto, nada transcendente – no que efetivamente não se vê.
Se o filme não nos oferece imagens dos xapiripë, é porque estas “são imagens in-
teriores, ‘moldes internos’, inacessíveis ao exercício empírico da visão”34. Mas, como vimos,
temos acesso à sua presença por meio das ações e afecções. Arrisquemos a levar adiante
nossa crença: esses espíritos que atravessam o corpo do xamã, fazendo com que ele veja,
com que ele veja por meio de seus olhos, será que esses espíritos nos veem? Em outros ter-
mos, povoado pelos xapiripë, seria o invisível capaz de nos ver? Ao assistir a Curadores da
terra-floresta, temos a impressão de não apenas testemunhar à distância a transformação
dos xamãs, mas também de receber, de volta, o olhar dos espíritos sobre nós. (Figura 6).
Em uma sequência ao final de Curadores, a câmera passeia pelo rosto dos xamãs e, um a
um, recebemos sua mirada. O modo como devolvem o olhar para a câmera, contudo, não é
direto, mas um relance efêmero, oblíquo, refratado. Eles nos olham, e logo parecem desviar
o olhar para o extracampo.
Os xapiripë, nos diz Viveiros de Castro na esteira de Kopenawa, são imagens que
devem nos ver para que possamos vê-las – “quem não é olhado pelos xapiripë não sonha, só
dorme como um machado no chão”35 –; imagens através das quais vemos outras imagens.
Nesse sentido, se os xamãs são diplomatas entre o mundo dos espíritos e o mundo dos
Yanomami, ao filmar os xamãs assim tão economicamente, o filme exerce também uma di-
plomacia entre o mundo dos espíritos e o nosso. Para isso, ele precisa deixar agir o invisível
para que os seres que o povoam nos olhem e, para que, por meio de sua mirada, possamos
ver36. Acostumada a capturar aquilo que filma para fazê-lo objeto de uma mirada, a imagem
cinematográfica precisa tornar-se, ela própria, vulnerável, e, com ela, nós os espectadores
(aproximam-se nesse caso a visão e a escuta? A visão e a cegueira?).
Mas ver o olhar que nos é devolvido, e por meio dele rever, trata-se de um difícil
exercício, ainda mais quando esse olhar é astuto, esquivo, enviezado. Uma ressalva que
pode ser, não sem razão, endereçada a nossa abordagem diria que isso tudo – todo esse
repertório cosmológico – não está na imagem, não está no filme. A pergunta que devol-

33 R. Tugny, “Enfanter les images cinema et ritual chez les Tikmũ’ũn”, Cultures-Kairós: Revue d’anthropologie des pratiques
corporelles e des arts vivants, 2013.
34 E. Viveiros de Castro, “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”, op. cit., p. 325.
35 Davi Kopenawa, “O sonho das origens”, disponível em: <http://www.proyanomami.org.br/osonho.htm>, acesso em:
27 nov. 2017.
36 Em seu trabalho com os Tikmũ’ũn, Rosângela de Tugny sugere que, no âmbito da cosmologia Maxakali, para ver,
precisamos ser cegados. “Foi por uma flechada certeira de um ancestral Tikmu’un também cegado que o céu abriu sua pas-
sagem aos homens que estavam na terra. Para se tornar xamãs, os jovens são ‘cegados’ com mel de fumo no olhos e estão
sempre a exercitar esta modalidade não empírica, não intencional de visão. Um dos mais importantes yãmiyxop caçadores,
aquele que traz flechas aos homens, chamado koatkuphi, conta entre sua população com uma classe de koatkuphi cegos
(koatkuphi pahok). Flechadores e cegos. Suas flechas seriam então olhos que se deslocam em busca do corpo que olham.
Os Tikmu’un são flechados por estas imagens vedoras.” R. Tugny, Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex, op. cit.,
p. 21. 37 B. Albert, “O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da natureza”, op. cit.

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