Va Ariadna Alvarez EPSJV 2020

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

ARIADNA PATRICIA ESTEVEZ ALVAREZ

CONVIVÊNCIA COMO ATIVIDADE


DE PRODUÇÃO DO COMUM:
cartografias com centros de convivência

NITERÓI, RJ
2020
ARIADNA PATRICIA ESTEVEZ ALVAREZ

CONVIVÊNCIA COMO ATIVIDADE


DE PRODUÇÃO DO COMUM:
cartografias com centros de convivência

Tese apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade
Federal Fluminense como
requisito parcial à obtenção do
título de Doutora em
Psicologia.
Linha de pesquisa:
Subjetividade, Política e
Exclusão Social.

Orientadora:
Prof.ª Dr.ª Claudia Osorio da Silva
Coorientadora:
Prof.ª Dr.ª Maria Elizabeth Barros de Barros

Niterói, RJ
2020
ARIADNA PATRICIA ESTEVEZ ALVAREZ

CONVIVÊNCIA COMO ATIVIDADE DE PRODUÇÃO DO COMUM:


cartografias com centros de convivência

Tese apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade
Federal Fluminense como
requisito parcial à obtenção do
título de Doutora em
Psicologia.
Linha de pesquisa:
Subjetividade, Política e
Exclusão Social.

Aprovada em

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Claudia Osorio da Silva – UFF – Orientadora

_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Elizabeth Barros de Barros – UFES – Coorientadora

_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Paula Gomes Cerqueira – UFRJ

_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Roberta Pereira Furtado da Rosa – IFRJ

_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cristina Mair de Barros Rauter – UFF

_________________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Henrique Pereira Passos – UFF

_________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Soares Jorge – EPSJV/Fiocruz (suplente)

_________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Renato Paquiela Givigi – SME-RJ (suplente)

Niterói, RJ
2020
À Izadora Alvarez Ferreira, a menina cartógrafa.
Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças
nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo
encantamento que a coisa produza em nós.
Manoel de Barros
AGRADECIMENTOS

Para escrever esta tese, foi necessário lidar com o permanente paradoxo
entre presença-ausência, convivência-isolamento. Por isso agradeço às
convivências, mas também aos isolamentos necessários.
Primeiramente, agradeço à Fundação Oswaldo Cruz, à Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio, com destaque a toda equipe do Laborat, em especial aos
companheiros do Grupo de Trabalho em Saúde Mental: Pilar Belmonte, Marco
Aurélio Jorge, Nina Soalheiro, Daniel Groisman, Cecilia Carvalho, Marise Ramôa e
Denis Petuco, por cuidarem do trabalho na EPSJV enquanto eu cuidava da pesquisa
de doutorado. Sem esse apoio, esta tese não seria possível.
Ao Nutras 2016-2020: Ana Paula, Lisete, Bete, Claudia, Nathalia, Alice, Karla,
Katia, Roberta, Cristiane, Juliane, Naiara, Lia, Marianna, Luciana, Ana Karla, Thais,
Juliana, Luiza, Ivani, Marilza, Kesia, Emanuelle, Noeli, Renata, Rachel, Isabel,
Deborah, Carol, Wallace e Emerson. Agradeço pelos encontros que nutrem, as
trocas que estimulam, o apoio que faz seguir em frente. É um presente da vida fazer
uma tese com a parceria de vocês. Dá certo porque é coletivo! Desse Nutras maior
preciso destacar a contribuição de Cris, Nai, Thais e Ju por serem copesquisadoras
no campo desta pesquisa, compondo junto os grupos nos CECOs. Agradeço
especialmente também pelo grupo de estudos de Vigotski com Cris, Marianna e
Karla.
A todos os professores do PPG em Psicologia-UFF e às professoras Simone
Oliveira da ENSP/Fiocruz e Katia Santorum PPFH/Uerj pela potente interlocução.
Aos entrevistados: Lisete Vaz, Pedro Gabriel Delgado, Paulo Amarante e em
especial a Neli Almeida, por ter feito da experiência da entrevista um acontecimento
disparador de tantos outros bons encontros. Ao músico Hamilton Assunção e ao
poeta Nilo Sérgio pelas muitas conversas inspiradoras registradas na minha
memória afetiva.
Às companheiras-autoras do Guia Prático Economia Solidária e Saúde
Mental – Dá pra fazer!, gerado durante o doutorado: Angela Figueiredo, Carol Con,
Maria Emilia, Neli Almeida e em especial a Bel Xavier, que colaborou com sua arte
de designer fazendo o infográfico da pesquisa, e o lindo convite para defesa.
A todas e todos participantes do Fórum dos Centros de Convivência do
Estado do RJ, agradeço pela experiência vivida com vocês, que foi a mola
propulsora da escrita da tese. Vocês têm toda a minha admiração. Escrevo aqui
apenas os nomes dos dispositivos CECOs e desejo que sintam o meu
agradecimento sincero à pessoa de cada um e uma de vocês que são multidão de
amor pelo mundo: Centro de Convivência e Cultura da Zona Oeste, Centro de
Convivência e Cultura de Niterói, Centro de Convivência e Cultura Trilhos do
Engenho, Núcleo de Intervenções Culturais, Polo Experimental de Convivência,
Educação e Cultura, Centro de Convivência e Cultura Paula Cerqueira (Carmo),
Centro de Convivência e Cultura de Macaé, Coletivo Convivências/UFRJ, Centro de
Convivência Projad e os que estão por vir... Gratidão pelo sonho sonhado junto e
pela transformação em uma realidade “co-movente”!
Às equipes dos CECOs da cidade do Rio de Janeiro pela confiança,
disponibilidade e parceria de tecermos juntas esta pesquisa em rede, especialmente
a Lucia, Margarete e Janaína. E à Superintendência de Saúde Mental da SMS-RJ
por autorizar a realização desta pesquisa.
A toda a equipe da Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica e
da Luta Antimanicomial da Alerj, em especial a Cíntia Teixeira e Flávio Serafini, pelo
diálogo aberto com a população e por criarem espaços de construção participativa
nas políticas públicas. O PL 4.563/2018, que cria a Política Estadual dos Centros de
Convivência da Rede de Atenção Psicossocial no Estado do Rio de Janeiro, ganhou
existência graças a vocês.
Aos amigos e amigas Marcus, Aline, Paulinha, Marcela, Lu Hall, Livia, Jean,
Ingrid, Vivi, Rapha, Sara e Gabi pelos encontros alegres. A Williana, Luiz Renato e
Marianna pelas leituras atentas, comentários preciosos e estimuladores nos escritos
inacabados. A Luis Eduardo pelo empréstimo de alguns livros.
Às mães “Amigas do Coluni-UFF”: Sandra, Mary, Marcia, Nicete, Lu, Fabi,
Nize, Rose, Edna, Gi, Olivia, Raquel e Tereza, por todos os momentos de
convivência materna que me inspiraram para a maternidade e para a escrita
também.
Ao grupo de estudos Trabalho Afetivo Antimanicomial: Celine Cyr, Thais,
Maribel e Isabella, depois ampliado na modalidade on-line para Debora, Ana, Karla,
Ju, Mari, Cris e Renata, pelos estudos, alegrias e angústias compartilhadas antes da
quarentena e durante.
Ao CEBB pelas meditações e mantras, essenciais para manter alguma
concentração em meio a um forte potencial para dispersão.
Ao professor Adilson e turma do francês do Prolem-UFF, pelos ensinamentos
que ajudaram a ler alguns textos da clínica da atividade indisponíveis em português.
Aos professores de pilates Jean (Mega) e Alice (Asfoc) pelo trabalho que
produz firmeza e prontidão no corpo. A coluna, eixo de sustentação, especialmente
agradece.
Às psicoterapeutas que me atenderam ao longo da vida e me ajudaram a
construir novas versões de mim mesma. Gratidão a Vera, Gabriela e Juliana. A
escuta e a fala de vocês fizeram diferença.
A Dith, pelo amor que colocou no preparo dos alimentos que nutriram a mim e
a todos os seres amados que habitam esse alegre lar, o que me permitiu mais tempo
para a escrita.
Aos doutores Thiago, Tarso, Eduardo e Neli por revisarem o resumo da tese.
Aos professores componentes da banca de qualificação, Roberta Furtado,
Paula Cerqueira, Eduardo Passos, Claudia Osorio, Bete Barros, pelas contribuições
potentes e conversas que ajudaram a guiar o caminho. À professora Cristina Rauter
por me apresentar Spinoza, o maravilhoso Colóquio Spinoza e as Américas, e me
acolher em seus grupos de estudos. E aos professores que aceitaram o convite para
lerem a tese como suplentes, Marco Aurélio Jorge e Luiz Renato Givigi.
À querida Claudia Osorio, por ser uma orientadora suficientemente boa,
estando sempre disponível para atender às necessidades que surgiram e ao mesmo
tempo me deixando livre para criar a tese a minha maneira. Agradeço por você ter
dito lá no início: “O sonho é importante para o trabalho. Se é seu sonho, faz.”
Claudia, você tem toda a minha admiração por sua força e serenidade inspiradoras.
À querida coorientadora Bete Barros, por ser atenta, rigorosa, responder rápido,
enérgica e carinhosa, tudo isso ao mesmo tempo.
Aos grandes amores da minha vida. Ao meu amado companheiro vibrante
Eduardo Caron, por compartilhar a vida junto, pela presença constante e amorosa.
Depois que você chegou, fazer doutorado se tornou uma experiência bem mais
prazerosa e leve. Aos meus pais, pela torcida e o suporte afetivo indispensável e
incondicional, cada um a sua maneira. Agradeço a vocês dois e a todos os
antepassados por me darem a vida e tanto amor. À minha filha Izadora, por me
oferecer a oportunidade de ser sua mãe, por me possibilitar muitas transformações
nas maneiras de sentir, pensar e agir, e me ensinar que a convivência importa. Ser
sua mãe me torna alguém melhor para o mundo, Iza!
A todas as forças humanas e não humanas que colaboraram para a tessitura
desta pesquisa. Agradeço a nossa gata Estrela, que esteve ao meu lado em casa
durante a escrita de TODAS as páginas desta tese, ronronando, miando, pisando no
teclado, deitando nos livros... A presença de Estrela na escrita da tese me faz
retomar aqui a pergunta que o filósofo Montaigne (1533-92) fez em um ensaio:
“Quando estou brincando com meu gato, como posso saber que ele não está
brincando comigo?” Esta questão nos vale para pensar a convivência não só com os
gatos, mas com todos os seres, pois cada ser é um mundo. Suspeitamos que
apesar do enigma que o outro é, apesar de nem sempre sermos capazes de saber,
ou de entender o que se passa com o outro, não estamos impedidos de viver juntos
por causa disso. Podemos conviver, podemos viver-com, ainda que vivamos em
mundos diferentes.
Por último, agradeço a Deus e/ou às Deusas. Gratidão a essa força que me
habita e conduz.
Muito obrigada!!!!
RESUMO

O propósito da tese foi problematizar a noção de convivência a partir de pesquisa


cartográfica com os Centros de Convivência e Cultura (CECOs) da cidade do Rio de
Janeiro, realizada entre os anos de 2016 e 2020. Os CECOs estão ligados à Rede
de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde visando sustentar a
diversidade na cidade por meio de ações de arte, cultura, esporte, educação, lazer,
trabalho e economia solidária. No que concerne às políticas públicas de saúde, os
CECOs têm transitado entre a marginalidade, a inclusão e a exclusão das fronteiras
do que é instituído e do que é instituinte, o que produz um grau de invisibilidade
desse trabalho. Este estudo se ocupou em investigar como se constitui a atividade
de trabalho da convivência seguindo o princípio metodológico da clínica da atividade
de que colocar o trabalho em debate amplia o poder de agir dos trabalhadores. A
pesquisa instaurou diferentes dispositivos dialógicos e está organizada em cinco
cartografias: 1) Encontros de conviventes no Fórum Estadual de CECOs do Rio de
Janeiro; 2) Entrevistas com militantes históricos da luta antimanicomial; 3) Grupos de
coanálise da atividade com a equipe do CECO Trilhos do Engenho, em que se
analisou o lugar do CECO; 4) Grupos com a equipe do CECO Polo Experimental,
em que se analisou o ofício dos oficineiros; e 5) Grupos com a equipe do CECO
Zona Oeste, em que se analisou a dimensão afetiva desse trabalho. Afirma-se a
atividade de convivência dos CECOs como um trabalho afetivo antimanicomial, feito
principalmente por oficineiros, cujo ofício é estar sensível agindo de modo coletivo
com um público heterogêneo, que transita na cidade. A saúde dos conviventes,
sejam usuários, sejam trabalhadores ou pesquisadores, é produzida na convivência.
E a convivência é ao mesmo tempo produto e produtora do comum. Foi no
dispositivo dialógico do Fórum, em que a interlocução e a convivência contavam
com maior grau de transversalidade na comunicação, que se produziu coletivamente
o projeto de lei n. 4.563/2018, o qual criou a Política Estadual dos Centros de
Convivência da Rede de Atenção Psicossocial no Estado do Rio de Janeiro. A tese
na qual a pesquisa chegou é de que a convivência, no contexto dos CECOs, é uma
atividade de trabalho coletiva de produção do comum, conceito compreendido como
multiplicidade que se manifesta por meio dos processos sociais colaborativos de
produção.

Palavras-chave: Centro de Convivência e Cultura. Atividade. Saúde. Trabalho.


Convivência.
ABSTRACT

The purpose of the thesis was to problematize the notion of conviviality from
cartographic research with the Conviviality and Culture Centers (CECOs) in the city
of Rio de Janeiro, held between the years 2016 and 2020. The CECOs are linked to
the Psychosocial Atention Network of the Unified Health System aiming to sustain
diversity in the city through actions of art, culture, sport, education, leisure, work and
solidary economy. With regard to public health policies, CECOs have moved between
marginality, inclusion and exclusion from the borders of what is instituted and what is
instituting, which produces a degree of invisibility in this work. This study was
concerned with investigating how the conviviality work activity is constituted, following
the methodological principle of the clinic of activity that putting the work in debate
increases the workers' power to act. The research established different dialogical
devices and is organized in five cartographies: 1) Meetings of cohabitants at the
State Forum of CECOs in Rio de Janeiro; 2) Interviews with historical militants of the
anti-asylum movement; 3) Co-analysis groups with teams from the CECO Trilhos do
Engenho, in which the place of the CECO was analyzed; 4) Groups with team from
the CECO Polo Experimental, in which the office of the workshop staff was analyzed;
and 5) Groups with team from the CECO Zona Oeste, where the affective dimension
of this work was analyzed. The CECOs' conviviality activity is affirmed as an anti-
asylum affective work, done mainly by workshop workers, whose job is to be
sensitive acting collectively with a heterogeneous public, who lives in the city. The
health of cohabitants, whether users, workers or researchers, is produced in the
conviviality. And conviviality is both a product and a producer of the common. It was
in the Forum's dialogical device, in which dialogue and conviviality had a greater
degree of transversality in communication, that law project no. 4,563/2018, which
created the State Policy for Psychosocial Atention Networks in the State of Rio de
Janeiro. The thesis is that conviviality, in the context of CECOs, is an colective
activity of production of the common, a concept understood as multiplicity that
manifests itself through the collaborative social processes of production.

Keywords: Conviviality and Culture Center. Activity. Health. Work. Conviviality.


SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: PRELÚDIO, p. 15


1.1 Carta aos leitores, p. 15
1.2 Como as questões da tese foram fabricadas?, p. 19
1.3 O processo de doutorado: a narrativa de uma autora-personagem, p. 27
1.4 Alianças teórico-metodológicas, p. 31
1.4.1 A dimensão do trabalho via clínica da atividade em uma aposta cartográfica, p.
33
1.4.2 A dimensão dos afetos e da produção de possíveis pela via spinozista, p. 40
1.5 Itinerários percorridos: os encontros na pesquisa, p. 44
2 CARTOGRAFIA 1 – ATIVIDADE DE CONVIVÊNCIA E PRODUÇÃO DO COMUM,
p. 52
2.1 Território pesquisa-movimento social, p. 52
2.2 O Fórum de CECOs do RJ e o comum, p. 54
2.3 Transversalidade e atividade de convivência, p. 66
2.3.1 (Trans)Formação de quem forma no CECO, p. 67
2.3.2 (Trans)Mutação de quem usa o CECO, p. 68
2.3.3 (Trans)Missão de quem se avizinha ao CECO, p. 69
2.4 Desafios para atividade de convivência: produção do comum e da saúde dos
trabalhadores, p. 69
3 CARTOGRAFIA 2 – CONVERSAÇÕES MILITANTES: MONTAGEM DO CENÁRIO,
p. 73
3.1 Práticas de cultura e lazer na cidade do Rio de Janeiro no âmbito da saúde
mental, p. 77
3.2 Qual a vocação de um Centro de Convivência e Cultura? Revisão de ideias e
textos, p. 87
4 CARTOGRAFIA 3 – O LUGAR EXCÊNTRICO DO CECO, p. 103
4.1 Território Engenho de Dentro, p. 103
4.2 Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho, p. 104
4.3 Semeando o caminho no caminhar: apontamentos teórico-metodológicos, p. 107
4.4 Debate de artigo como via para análise da atividade, p. 108
4.5 Colheita no campo: CECO para quem? Entre a desmedicalização da sociedade,
a desinstitucionalização da loucura e a promoção da saúde no território, p. 112
4.6 Desfechos que abrem novos caminhos: convivência como potência de
transformação, p. 134
5 CARTOGRAFIA 4 – OS OFICINEIROS, p. 137
5.1 Território Jacarepaguá – Taquara – Colônia, p. 137
5.2 Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura, p. 138
5.3 Os oficineiros nas políticas de saúde mental, p. 142
5.4 Semeando o caminho no caminhar: apontamentos teórico-metodológicos, p. 145
5.5 O riso nas rodas: termômetro vibracional, p. 151
5.6 Construção de personagem como via para análise da atividade, p. 152
5.7 Colheita no campo: coletivo como operador de saúde no trabalho, p. 157
5.8 Oficineiro novato e a zona de desenvolvimento potencial, p. 161
5.9 Desfechos que abrem novos caminhos: protagonismo dos oficineiros na
pesquisa, p. 166
6 CARTOGRAFIA 5 – O TRABALHO AFETIVO ANTIMANICOMIAL, p. 171
6.1 Território Campo Grande, p. 171
6.2 Centro de Convivência e Cultura da Zona Oeste, p. 171
6.3 Semeando o caminho no caminhar: apontamentos teórico-metodológicos, p. 174
6.4 Colheita no campo: oficina de fotos como via para análise da atividade, p. 176
6.4.1 Grupo 1 Preliminar – Conhecendo a implantação, p. 176
6.4.2 Grupo 2 Oficina de fotos – Afetos alegres e afetos tristes no trabalho, p. 183
6.4.3 Grupo 3 Desenlace – A orquídea que floresce, p. 201
6.5 Desfechos que abrem novos caminhos: o trabalho afetivo antimanicomial, p. 205
6.6 A vez dos invisíveis: o plano comum e um milhão de reais, p. 207
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ENCERRAMENTO, p. 212
7.1 Extratos da experiência e abertura para novos caminhos, p. 212
7.2 Fonte de inspiração: é preciso dizer sim para a vida, p. 219
8 REFERÊNCIAS, p. 223
9 ANEXOS, p. 234
ANEXO 1 – Roteiro de entrevista, p. 234
ANEXO 2 – Programação 30 Anos de Dia Nacional da Luta Antimanicomial, p. 236
ANEXO 3 – MANIFESTO BAURU 1987, p. 237
ANEXO 4 – CARTA BAURU 30 ANOS – 2017, p. 238
ANEXO 5 – Portaria 396, de 07/07/2005 – Centros de Convivência e Cultura e
observações sobre sua suspensão, p. 240
ANEXO 6 – Programação I Encontro, p. 242
ANEXO 7 – Carta de Propostas, p. 243
ANEXO 8 – Relatos dos Fóruns, p. 247
ANEXO 9 – Projeto de lei 4.563/2018, que CRIA A POLÍTICA ESTADUAL DOS
CENTROS DE CONVIVÊNCIA DA REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL NO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO, p. 267
ANEXO 10 – Resumo do trabalho premiado na I Conferência de Promoção da
Saúde da Fiocruz – 2019, p. 270
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 – Comparativo RAPS nas portarias de 2011 e 2017, p. 26


Quadro 2 – Componentes estratégicos da RAPS (Portaria 3.088), p. 89
Quadro 3 – Publicações sobre Centro de Convivência e Cultura, p. 91
Quadro 4 – Equipe do Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho
(novembro de 2018), p. 106
Quadro 5 – Equipe do mBrac em janeiro de 2020, p. 141
Quadro 6 – Equipe do Centro de Convivência e Cultura da Zona Oeste (fevereiro de
2020), p. 176
Figura 1 – Falta de estrutura absurda, p. 185
Figura 2 – Luz no fim do túnel, p. 185
Figura 3 – Utopia, p. 186
Figura 4 – Locomoção no território, p. 186
Figura 5 – Somos todos um só, p. 189
Figura 6 – Ocupação dos espaços públicos promovendo a inclusão, p. 189
Figura 7 – Relações de afeto, p. 190
Figura 8 – Faço parte da sociedade, p. 190
Figura 9 – Acróstico CONVIVÊNCIA, de Ariadna Patrícia Estevez Alvarez e Izadora
Alvarez Ferreira, 2020, p. 222
LISTA DE SIGLAS

CAPS - Centro de Atenção Psicossocial


CAPSad - Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior
CECO - Centro de Convivência e Cultura
CERSAM - Centro de Referência em Saúde Mental
CNES - Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde
CPRJ - Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
EPSJV - Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
ENSP - Escola Nacional de Saúde Pública
FIOCRUZ - Fundação Oswaldo Cruz
IFRJ - Instituto Federal do Rio de Janeiro
IPUB - Instituto de Psiquiatria da UFRJ
LAPS - Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção
Psicossocial
mBrac - Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea
NAPS - Núcleo de Atenção Psicossocial
NUPPSAM - Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental
NUTRAS - Núcleo de Estudos e Intervenções em Trabalho, Subjetividade e Saúde
RAPS - Rede de Atenção Psicossocial
SES-RJ - Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro
SMS-RJ - Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
SUS - Sistema Único de Saúde
UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFF - Universidade Federal Fluminense
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
15

1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: PRELÚDIO

Liberdade pra pensar os rumos do mundo


Paciência pra junto poder navegar
Amizade pra ver o que é mais profundo
E coragem pra fazer o mundo mudar.
(Chico Oliveira)

1.1 Carta aos leitores

Mesmo sem saber quem é você que percorre com os olhos estas linhas,
quero que saiba que esta tese foi escrita para você! Desejo boas-vindas ao texto,
espero que você tenha uma boa experiência de leitura. Ao longo dos quatro anos de
pesquisa, muitas vezes me perguntei: para quem estou escrevendo esta tese? No
início, os leitores imaginários eram gestores do campo da saúde mental. A tese seria
um instrumento para que gestores pudessem qualificar a implantação dos Centros
de Convivência e Cultura (CECOs) na cidade. O propósito de fazer a tese era dar
visibilidade ao marginalizado trabalho realizado pelos CECOs da cidade do Rio de
Janeiro, de modo que as experiências pudessem ser reconhecidas e valorizadas
publicamente.
No decorrer do processo, com a criação coletiva do Fórum dos Centros de
Convivência do Estado do Rio de Janeiro, a publicização desse trabalho começou a
acontecer sem que a tese estivesse pronta e fosse lida. Esse reconhecimento e
essa valorização do trabalho dos CECOs se deram pelos próprios agenciamentos
tecidos no percurso da pesquisa.
Percebi, então, que não estava mais escrevendo a tese para os gestores e
me peguei refazendo a pergunta: para quem estou escrevendo esta tese?
Imediatamente, meu pensamento era povoado pelas imagens das trabalhadoras e
dos trabalhadores dos Centros de Convivência. Sim, é com elas e eles que estou
falando, é para elas e eles que estou escrevendo a tese. Contudo, com o tempo
outros interlocutores foram entrando em cena: deputados da Alerj, militantes do
campo da arte e da cultura, professores e estudantes de outros cursos, colegas de
trabalho, conviventes.
Na conclusão, retumba outra vez a pergunta: para quem estou escrevendo
esta tese? A imagem que vem é da banca avaliadora. No final das contas, é a única
16

leitura garantida, e então outras preocupações emergiram. Agora, olhando a tese


pronta, penso que também a escrevi para mim mesma, para viver essa aventura,
para exercitar a infinita capacidade criadora que habita todos nós. Depois de parida,
a tese-criança é vida do mundo, e só podemos aceitar que não sabemos os rumos
que ela vai tomar.
Esta tese foi escrita para inspirar quem lê, para olhar para seu trabalho, para
suas relações na vida e pensar na convivência, nisso que é tão simples e tão
complexo ao mesmo tempo: viver junto. A tese é ela mesma a realização de um
sonho de afirmar a alegria, a potência do coletivo, a vida que nutre e é nutrida pelo
plano comum na construção de novos mundos e outros modos de existir por meio da
convivência.
E qual é a tese? A tese que sustentamos nesta pesquisa é de que a
convivência, no contexto dos Centros de Convivência e Cultura, é uma atividade de
trabalho de produção do comum. O comum não é uniforme, não é uma massa de
gente que pensa, age e sente da mesma forma. Ele também não está dado a priori,
ele é produzido. O comum é um composto de multiplicidades, que com suas
diferenças em composição pode ampliar o poder de agir de quem participa dele. O
comum pode produzir saúde, pode fabricar sujeitos-subjetividades que têm sua
capacidade de renormatização fortalecida na medida em que as distintas
experiências são colocadas em diálogo. Esses sujeitos-subjetividades que dialogam
no trabalho podem ser usuários, trabalhadores, pesquisadores do CECO.
Reconhecemos que, embora haja diferenças entre esses diversos lugares de
enunciação, ao propormos que somos todos conviventes procuramos borrar essas
fronteiras instituídas, de modo que todos possam se apropriar de sua força vital e
sua potência criadora na experimentação de outros lugares. Criar espaços
dialógicos no trabalho é uma direção da clínica da atividade, uma das clínicas do
trabalho, e foi o propósito ético desta pesquisa.
A pesquisa está organizada em três blocos e distribuída em cinco
cartografias: 1) Encontros de conviventes no Fórum de CECOs do Estado do Rio de
Janeiro; 2) Entrevistas com militantes históricos da luta antimanicomial; 3) Grupos
com trabalhadores dos três CECOs da cidade do Rio de Janeiro: Trilhos do
Engenho, Polo Experimental e Zona Oeste.
17

Cada uma dessas cartografias tem uma música de referência, se assenta em


um solo, é totalmente localizada, assim como os CECOs são – afinal, cada CECO é
um CECO. Na cartografia 1, com base na experiência com o Fórum dos CECOs,
que se constituiu durante a pesquisa, sublinham-se o caráter político, a
inseparabilidade entre transformar-conhecer e as interferências na produção de
políticas públicas e na produção de conhecimento, que gerou no coletivo o Projeto
de Lei 4.563/2018, que CRIA A POLÍTICA ESTADUAL DOS CENTROS DE
CONVIVÊNCIA DA REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL NO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO, apresentado pela Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e Luta
Antimanicomial. Analisamos três pistas a respeito da atividade da convivência, que
também podem ser úteis na construção de políticas e movimentos: 1) ABERTURA –
estar aberto à participação de todos, não restringir; 2) ITINERÂNCIA – se
movimentar sem se fixar em um mesmo lugar; 3) MULTIPLICIDADE – produzir
diferenças e heterogênese em vez de obstruir o trânsito entre elas.
Na cartografia 2, por meio das entrevistas com militantes da luta
antimanicomial, professores-pesquisadores atores-chave dessa história, o traçado
mostra que há mais divergências do que consensos sobre o lugar e a função do
trabalho dos CECOs. Configura-se um campo problemático que investiga qual é o
trabalho do Centro de Convivência. Com a análise das entrevistas, temos três linhas:
1) CECO como complemento do tratamento, que tem como função apontar
caminhos para autonomia e sociabilidade do usuário; 2) CECO como unidade de
saúde, que funciona numa lógica terapêutica por pertencer à rede de atenção, sem
fazer ruptura total com medicalização da vida; 3) CECO como dispositivo de
desconstrução de identidade monolítica de paciente, o qual se diferencia de uma
unidade de tratamento, pois possibilita uma outra relação na vida com lazer,
trabalho, cidade e consigo próprio.
Na cartografia 3, indagamos sobre onde, para quem e como o trabalho da
convivência acontece. No CECO Trilhos do Engenho, realizamos grupos de debate
com a equipe usando um artigo de um periódico (GALETTI, 2015) como disparador.
Recolhemos os enunciados dos trabalhadores escritos no diário de campo que
foram restituídos posteriormente em um grupo ampliado, incluindo equipe e
parceiros, a fim de viabilizar a autoconfrontação. Verificamos que o público para
quem o CECO dirige sua atividade é marcado pela heterogeneidade, pois dele faz
18

parte tanto uma clientela que passou anos hospitalizada no manicômio, usuária de
medicação psiquiátrica contínua e que vem encaminhada pelos CAPS, quanto uma
clientela da comunidade, que nunca foi internada e vem encaminhada por amigos ou
pela atenção básica. O lugar onde a atividade de convivência acontece é no entre,
pois o CECO ocupa um lugar de excentricidade, é desviante, situa-se fora do
Centro, habita lugar fronteiriço. Ocorre entre espaços de arte, cultura, lazer, esporte,
educação e trabalho na cidade. Verificamos que há uma tripla função no trabalho da
convivência: a desmedicalização da sociedade; a desinstitucionalização da loucura
como doença e perigo; e a promoção da saúde, ligada à ideia de autonomia como
exercício de participação social.
Na cartografia 4, está em relevo o trabalho da convivência realizado pelos
oficineiros. No CECO Polo Experimental, realizamos grupos com os oficineiros,
dialogando com eles, buscando mapear juntos como é constituído o seu ofício. Por
meio da construção de um personagem fictício e da análise da organização de uma
festa junina na praça, identificamos como gesto marcante no ofício do oficineiro a
sensibilidade, assim como o coletivo funcionando como operador de saúde. Além
das oficinas, o ofício do oficineiro requer uma sensibilidade ativa capaz de provocar
a atividade de modo a ampliar a potência do outro. Os CECOs trazem o desafio de
se tornarem espaços coletivos de invenção.
Na cartografia 5, nos grupos com a equipe do CECO Zona Oeste, ao
colocarmos a atividade em discussão, destacou-se a dimensão afetiva como a
característica principal. Por meio da oficina de fotos, a equipe mapeou os afetos
alegres e tristes no trabalho, ou seja, os que ampliam ou reduzem a potência e a
saúde. Os trabalhadores têm seu poder de agir aumentado quando desmontam os
manicômios existentes nas relações, fazendo do trabalho da convivência um
trabalho afetivo antimanicomial. Nesses processos, os conviventes – trabalhadores e
participantes – experimentam a desconstrução de lugares institucionalizados que
separam normais e anormais, pacientes e técnicos. Os trabalhadores e gestores se
tornam mais observadores do próprio trabalho. Passa-se a entender a atividade da
convivência como um trabalho afetivo antimanicomial, que se define pelas relações
corpo a corpo, as relações de afeto. Trabalho afetivo que produz subjetividade,
sociedade e vida. Nesse trabalho, é feito um convite a um certo modo de produzir
cuidado em que a convivência está no centro da vida.
19

Se a discussão com atores-chave da Reforma Psiquiátrica Brasileira situa-se


num terreno em que uma multiplicidade de questões em torno da convivência e da
desinstitucionalização da loucura emerge, são as cartografias traçadas com os
trabalhadores dos CECOs e pelo movimento do Fórum que constroem essas
questões como problema político e de saúde coletiva e penetram na tênue rede do
agir que constitui a atividade e o trabalho nesse campo. Nesse percurso, habitamos
territórios em que a atividade de convivência dos CECOs é qualificada como
trabalho afetivo antimanicomial, feita primordialmente por oficineiros, cujo ofício é
estar sensível agindo de modo coletivo, para um público heterogêneo, que transita
na cidade entre arte, cultura, trabalho, educação, lazer e esporte. A saúde dos
conviventes (usuários, trabalhadores ou pesquisadores) é produzida na convivência.
E a convivência é ao mesmo tempo produto e produtora do comum.
O texto que resulta desse percurso é composto pela imbricação de campos
distintos de produção da investigação. Um caminho que mobilizou diversos atores
que se ocuparam intensamente dos temas em diferentes perspectivas. Assim,
embora cada campo seja visto na sua delimitação própria que o texto precisa,
convidamos você, leitor, a olhar essas cartografias em conexão, para fora das
bordas dos campos, no plano comum que constitui esta tese .
Espero que a leitura suscite em você, caro leitor, muitos diálogos interiores, e
que depois eles possam ser transformados em diálogos falados comigo, autora da
tese, para que sigamos nas conversas a respeito da convivência. Até breve!

1.2 Como as questões da tese foram fabricadas?

As questões são fabricadas, como outra coisa qualquer.


Se não deixam que você fabrique suas questões, com
elementos vindos de toda parte, de qualquer lugar,
se as colocam a você, não tem muito o que dizer.
A arte de construir um problema é muito importante:
inventa-se um problema, uma posição de problema,
antes de se encontrar a solução.
(Gilles Deleuze)

As experiências vividas ao longo de mais de dez anos de atuação profissional


como psicóloga e como trabalhadora do Sistema Único de Saúde, implicada com a
construção das políticas públicas, nos fizeram chegar até a formulação desta
pesquisa, que se delineou a partir de um interesse em estudar os mundos do
20

trabalho do ponto de vista da atividade 1 e das questões que emergem do campo da


saúde mental.
Durante a graduação em psicologia na UFF, a condição de estudante-
trabalhadora despertou o interesse em estudar-intervir no campo de estudos sobre
trabalho. Ao mesmo tempo, a militância na luta antimanicomial na construção de um
outro mundo possível, menos opressor e mais libertário, nos aproximou dos debates
das políticas de saúde mental. Entre as numerosas experiências vividas nessa
história, que nos conduzem a analisar as implicações, 2 destaco a da assessoria de
geração de trabalho, renda e cultura na coordenação de saúde mental da SMS-RJ,
no período de 2010-2012. Por meio dela nos dedicávamos a apoiar as iniciativas
vinculadas ao Programa Mãos que Tecem a Rede, que reunia oficinas com uma
grande diversidade de produções artístico-culturais: música, dança, teatro, carnaval,
rádio, grafite, alimentícios, artesanato em mosaico, em tecido, em papel, em pet, em
bordado, em jornal, em barrogravura, em metal, em velas, entre outras expressões e
matérias-primas. Paralelamente à função de assessora na SMS-RJ, trabalhávamos
no CPRJ, uma unidade de saúde da SES-RJ, juntamente com os projetos de
geração de trabalho e renda do Programa Geração & Harmonia. 3
O início do trabalho como psicóloga no CPRJ se deu concomitantemente à
finalização do mestrado, justamente em uma pesquisa que interrogava as relações
entre saúde e trabalho produzidas em uma oficina de geração de trabalho e renda
na rede de Niterói, a oficina do misto-quente. Portanto, vivemos uma situação em
que os estudos teóricos do mestrado, a discussão sobre autonomia, eram colocados
à prova no cotidiano do serviço, o que produzia muitas inquietações.
Uma das inquietações era que víamos um grande número de usuários para
quem a atenção diária mais parecia uma forma de preencher o tempo do que um
convite à ampliação de autonomia. Os efeitos da medicação psiquiátrica por uso

1 O trabalho estudado do ponto de vista de atividade se refere à concepção de trabalho como


atividade humana, em que transformamos e somos transformados nesse processo. Entende-se
trabalho como condição ontológica, que nos constitui como humanos, e não trabalho restrito ao
sentido de emprego ou assalariamento.
2 Implicados sempre estamos – resta saber como e com quais instituições proceder uma análise
implicacional. “A implicação é um nó de relações; não é boa (uso voluntarista) nem má (uso jurídico-
policialesco). A sobreimplicação, por sua vez, é a ideologia normativa do sobretrabalho, gestora da
necessidade do implicar-se” (Lourau, 2004, p.190).
3 O nome do programa homenageia a Praça da Harmonia, localizada em frente ao CPRJ. Parte da
experiência neste programa está narrada no artigo “Saúde e trabalho: o que o psicólogo tem a ver
com a construção destas políticas públicas?”, disponível em:
<http://www.crprj.org.br/site/wp-content/uploads/2014/02/3o-premiomargarete.pdf>.
21

contínuo, somados a um determinado funcionamento institucional, produziam corpos


em que a cronificação era perceptível.
Nas reuniões de equipe do CPRJ, eu notava que raramente ou nunca nos
ocupávamos com um público que aos poucos ia se tornando invisível, pessoas que
iam ficando por ali no hospital-dia, não entravam mais em crise por muito tempo,
tinham uma rotina bem estabelecida, mas muito restrita ao serviço. Alguns eram
presença cativa de certas oficinas, outros não participavam de nenhuma, passavam
o dia sentados, fumando; alguns eram moradores de abrigo, e simplesmente por
‘não darem trabalho’ para a equipe, em comparação com outras situações mais
agudas, e por não sabermos muito bem o que mais poderíamos oferecer, iam
ficando por ali. O questionamento de Rauter (2000) no artigo ‘Oficinas para quê?’
nos levava a problematizar o caráter adaptativo que as oficinas ganhavam e a
interrogar constantemente em nossa prática até que ponto o trabalho e a arte
estavam funcionando como vetores de existencialização.
Na função de assessora da CSM, fui notando que isso que acontecia no
CPRJ também ocorria em diversos CAPS que eu percorria pela cidade. Nos CAPS
em que a articulação com o território 4 era mais potente – o trabalho mais voltado
para fora, em rede – isso acontecia menos; nos CAPS com um funcionamento mais
endógeno, com o trabalho mais voltado para dentro do serviço, isso era mais
patente.
Quando eu trabalhava na CSM, a equipe da assessoria fez algumas
tentativas de implantar CECO durante o ano de 2010. Duas colegas foram até Belo
Horizonte (MG) para conhecer a experiência de Centros de Convivência com a
proposta de trazer para o Rio de Janeiro conhecimentos que favorecessem a
implantação, o que não aconteceu exatamente naquele momento. No debate sobre
a implantação de CECOs no Rio, este nome desde o princípio me provocou algum
estranhamento.
Em relance inicial, conviver parece ser algo tão espontâneo e natural que
prescinde de uma intencionalidade, ou uma ação específica para sua realização. Por

4 Território é um conceito polissêmico. No cotidiano dos serviços do SUS, muitas vezes ele é
empregado na linguagem oral como sinônimo de região de saúde, ou área programática que atende
uma dada população. Nesta tese, a noção de território adotada se refere à de Santos (2005), em que
ele é um espaço do acontecer, é onde a vida acontece. Estamos nos referindo ao território usado, ao
território composto pelo fato e sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. É a base para o
trabalho, para o morar, para as trocas materiais e espirituais da vida sobre os quais ele influi e sob as
quais se forma. Território na perspectiva de seus usos em que os vínculos e laços se constroem ali.
22

isso, a existência de um centro nos intrigava – ou seja, determinar um lugar para


onde as pessoas se dirigem em busca de conviver (que é algo que parece ser tão
inerente à própria vida) parecia estranho. Eu questionava: centro de convivência
para quê? Afinal, o que é convivência?
Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa
(CUNHA, 1997), ao pesquisarmos a etimologia do verbo CONVIVER nos deparamos
com sua origem do latim convivĕre, que significa “viver em comum com outrem”. Em
dicionário on-line de português5 aparecem quatro sentidos que se distinguem:
– Verbo transitivo direto e intransitivo:
1) Possuir convivência; ter uma vida em comum; ser próximo de alguém: o
professor convivia com seus alunos.
2) Ter uma boa relação com alguém: os vizinhos convivem harmoniosamente.
3) Coexistir; partilhar um mesmo local, ambiente ou recinto: os cães convivem
bem com os gatos.
– Verbo transitivo indireto:
4) Adaptar-se, ficar acostumado com situações ou condições exteriores: não
convivia com o terrorismo.
Esses quatro diferentes sentidos do verbo conviver, ao serem pensados em
relação aos Centros de Convivência, nos traziam alguns problemas. Um centro para
ter uma vida em comum? Um centro para ter boas relações? Um centro para habitar
um mesmo local? Um centro para se adaptar a condições exteriores? Qual seria a
finalidade de um CECO para usuárias e usuários da rede de atenção psicossocial?
Ele poderia favorecer a autonomia daquelas pessoas que iam ‘ficando por ali’ no
CPRJ e nos CAPS?
Esses questionamentos a respeito do que é a convivência e para que a
sociedade precisaria de CECOs ficaram suspensos por um tempo. Em dezembro de
2011, tornei-me mãe, o que mudou a vida totalmente. Em 2012, fui convocada pela
aprovação no concurso para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) como analista de
gestão em saúde pública, e mais adiante, em 2014, iniciei minhas atividades na
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), no Grupo de Trabalho em
Saúde Mental do Laboratório de Educação Profissional em Atenção à Saúde. Lá,
com muita alegria, integro uma equipe que trabalha com ensino e pesquisa em três

5 Disponível em: <https://www.dicio.com.br/conviver/>. Acesso em: 3 nov. 2018.


23

linhas: 1 – atenção psicossocial; 2 – cuidado ao idoso; e 3 – álcool e outras drogas,


que compõem um grupo de pesquisa intitulado Desinstitucionalização, Políticas
Públicas e Cuidado".6 Comecei a me dedicar à formação de trabalhadores do SUS,
principalmente com ensino médio: cuidadores, agentes comunitários de saúde,
oficineiros. Estes últimos são o público a quem essa pesquisa também se dirige e
busca construir junto com eles.
Tornei-me professora dos cursos de qualificação profissional em saúde
mental, atenção ao uso prejudicial de álcool e outras drogas, práticas grupais em
saúde e cuidadores de idosos. O momento mais esperado dos cursos era ir com os
estudantes-trabalhadores visitar os serviços, sempre sendo um prazer estar ali. No
entanto, percebia que mesmo entre os que trabalham no SUS, alguns nunca haviam
ouvido falar sobre Centros de Convivência e Cultura, que nesse momento já eram
três na cidade. Ao entrar em contato com as práticas promovidas pelos CECOS, nos
chamaram a atenção três características a respeito do modo como se constituíram
no Rio de Janeiro: 1) sem apoio financeiro para sua implantação; 2) por iniciativa de
trabalhadoras de outros pontos de atenção da rede; 3) por um surgimento posterior
em comparação a outras metrópoles brasileiras, como São Paulo, Belo Horizonte e
Campinas (SP).7
Em meio ao processo de trabalho na EPSJV, relacionado com ensino e
pesquisa, as questões que haviam ficado suspensas encontraram o momento
oportuno para serem tocadas. Em diálogo com a equipe do CECO Trilhos do
Engenho e a Superintendência de Saúde Mental, construímos um projeto de
pesquisa com o objetivo de analisar as relações entre a autonomia dos
frequentadores e a convivência promovida pelo CECO. 8 Os resultados nos
mostraram que seria necessária uma pesquisa-intervenção que se ocupasse com os
trabalhadores dos CECOs, de modo que tivessem um espaço para colocar o

6 Informações sobre o grupo estão disponíveis no seguinte endereço eletrônico:


<http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7322195566393203>.
7 A proporção entre número de CAPS e número de CECOs também é bem diferente no Rio. Segundo
informações acessadas nos sites das secretarias de saúde, em 2019 a cidade de São Paulo, com 12
milhões de habitantes, tem 92 CAPS e 23 CECOs; a cidade de Belo Horizonte, com 1,4 milhão de
habitantes, tem dez CAPS e nove CECOs; a cidade de Campinas (SP), para 1,2 milhão, conta com
14 CAPS e 13 CECOs. No caso da cidade do Rio de Janeiro, onde somos 6,3 milhões, temos 34
CAPS e apenas três CECOs, sendo o primeiro CECO inaugurado em 2011.
8 A experiência da pesquisa está narrada no artigo “Centro de Convivência e Cultura: diálogos
sobre autonomia e convivência”, de Ariadna Patricia Estevez Alvarez, Jessika Oliveira da Silva e
Ana Caroline de Moraes Oliveira, disponível em: <http://www.periodicoshumanas.uff.br/ecos/article/
view/1859>.
24

trabalho que realizam em debate. Essa necessidade foi confirmada pelo convite para
que uma pesquisa fosse realizada também nos outros dois Centros de Convivência,
quando realizamos a restituição em junho de 2016 e estavam presentes não só os
frequentadores e trabalhadores participantes da pesquisa no CECO Trilhos do
Engenho, mas também duas coordenadoras dos outros dois centros de convivência
da cidade.
Se antes a atenção estava voltada para os efeitos da convivência na
construção da autonomia dos chamados usuários da saúde mental (uma
preocupação implicada com o lugar de trabalhadora psicóloga), depois, como
professora da educação profissional em saúde, a ocupação passou a ser com a
atividade e a saúde dos trabalhadores dos CECOs. Por isso, vemos o doutorado
também como um desdobramento dessa pesquisa anterior.
Desse modo, o objetivo da pesquisa apresentada nesta tese foi mapear com
os trabalhadores os principais facilitadores e desafios na SUStentação dos CECOs,
por meio da análise da atividade, com foco nos recursos coletivos para o trabalho, e
gerar subsídios para a formulação das políticas públicas de saúde, especialmente
que sirvam na implantação de novos CECOs. Buscamos analisar as relações entre a
atividade realizada e seus efeitos nas produções de subjetividades desses
trabalhadores, à luz do conceito de saúde proposto por Canguilhem (2007) e
incorporado pela Clínica da Atividade. A pesquisa tem como perguntas norteadoras:
como se constitui a atividade de convivência nos CECOs? Esse trabalho pode
operar saúde?
O estudo desse trabalho local não está descolado do que acontece na política
em âmbito nacional. No que diz respeito à legislação federal, a primeira tentativa de
regulamentação de CECOs foi a portaria n. 396, de 7 de julho de 2005, que
estabelecia diretrizes para os CECOs. No entanto, no mesmo ano de 2005, a
portaria foi revogada e não houve a criação de nova norma federal para seu
funcionamento, financiamento ou implantação, o que fragiliza a sustentação dos
CECOs. Com a portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que instituiu a Rede
de Atenção Psicossocial (RAPS), os CECOs ficaram previstos na atenção básica.
Contudo, em dezembro de 2017, enquanto o movimento nacional da luta
antimanicomial estava reunido na cidade de Bauru (SP), na capital do país era
divulgada uma política de saúde mental, consubstanciada pela resolução CIT n. 32
25

(BRASIL, 2017), que reformulou a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Brasil,


apontando para um retrocesso no cuidado em saúde mental, uma vez que visa
retornar com o modelo manicomial que se pretendia superar. Segundo Duarte
(2018), o que aconteceu foi um "golpe dentro do golpe". O governo de Michel Temer
(2016-2018),

com sua base de sustentação no campo da saúde mental, álcool e outras


drogas, tanto com os setores conservadores como com o corporativismo
médico, manobra e impõe uma nova política de saúde mental no Brasil, a
partir de conchavo e articulação política junto à Comissão Intergestores
Tripartite (...) baseando-se única e exclusivamente nessa instância, institui a
portaria GM/MS n. 3.588/2017 (DUARTE, 2018, p. 235).

Com isso, a Lei da Reforma Psiquiátrica (n. 10.216/2001), que dispõe sobre a
proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental, tem seus princípios colocados em risco. Na
nova proposta de RAPS, os hospitais psiquiátricos especializados estão previstos,
ou seja, os hospícios ressurgem. O retorno de uma assistência hospitalocêntrica
tende a fortalecer os interesses das corporações psiquiátricas e da lógica
manicomial. Ocorre ao mesmo tempo a retirada da ênfase nos serviços e ações de
base comunitária, como os Centros de Convivência e Cultura. Também desaparece
da RAPS o eixo de reabilitação psicossocial caracterizado pelas iniciativas de
geração de trabalho e renda e empreendimentos de economia solidária, que
oferecem ações pautadas na produção de autonomia. O quadro comparativo
(Quadro 1) mostra a diferença da composição da RAPS nas portarias de 2011 e
2017, respectivamente:

Quadro 1 – Comparativo RAPS nas portarias de 2011 e 2017

Portaria 3.088/2011 Portaria 3.588/2017

I - Atenção Básica: UBS; Equipe de A) Nível primário: Unidade Básica de Saúde


apoio/NASF; Centro de Convivência e B) Nível secundário:
Cultura; Consultório na Rua Assistência multidisciplinar de média
II - Atenção Estratégica: CAPS I, II, III complexidade (AMENT) - Apoio ao NASF/eSF e
26

(CAPS, CAPSi, CAPSad) Hospital-Dia


III - Atenção às Urgências e Centro de Atenção Psicossocial - CAPSad IV
Emergências: SAMU e UPA Serviços de Urgência e Emergência
IV - Atenção Hospitalar: Leitos em C) Nível terciário:
Hospital Geral Hospitais Gerais
V - Atenção Residencial de Caráter Hospitais Psiquiátricos Especializados
Transitório: CAT, UA, CT D) Serviços com fins à saúde:
VI - Estratégias de UA e SRT
Desinstitucionalização: SRT, PVC
VII - Reabilitação Psicossocial:
Iniciativas de geração de trabalho e
renda; e ECOSOL

Fonte: Duarte (2018).

Conforme observa-se no Quadro 1, os CECOs, que até então estavam


previstos no âmbito da RAPS do Sistema Único de Saúde como unidade pública,
onde são oferecidos à população em geral, espaços de sociabilidade, produção e
intervenção na cultura e na cidade (portaria 3.088/2011), desaparecem na nova
RAPS. Se antes esse dispositivo contava com uma frágil institucionalidade por não
dispor de destinação orçamentária para seu financiamento, e de parâmetros e
estrutura para seu funcionamento, no texto da portaria 3.588/2017 os CECOs, assim
como os consultórios na rua, estão extintos do texto da política oficial de saúde
mental do Brasil.

1.3 O processo de doutorado: a narrativa de uma autora-personagem


Resumo afetivo da experiência de doutorado – ano a ano

2016. Era agosto de 2016. Agosto foi mês de desgosto. Agosto tinha um gosto de
golpe, tinha um gosto de confiança traída, de esfacelamento da democracia. O país.
Parecia o quê? Parecia uma paçoca de festa junina esfarelada. Antes redonda e
inteira, virou farelo que não dá mais para juntar. Pereceu. Virou sujeira. Parecia que
tudo estava a ruir, a desmoronar. Tudo que é sólido desmancha no ar. E estava
27

desmanchado. Era uma entre muitas manchas na história do Brasil. Tombamos.


Lembrava das palavras de Antonio Lancetti ditas em maio de 2016, em que se
referia à situação da Argentina após a derrota nas urnas: “Podemos perder as
eleições, mas não podemos perder os princípios. Há que se preservar o princípio da
democracia no Brasil.” Tudo estava perdido. Um estranho déjà vu de um pesadelo
sonhado antes da entrada no doutorado. O Rio, a cidade olímpica, era uma ilha que
explodia e todos os seus habitantes morriam, eram atirados do chão para os ares, e
como num passe de mágica, tornavam-se poeira no vento que caía no mar. Não
sobrava nada, nem ninguém. Era um fim sem resto. A cidade maravilhosa, a cidade
em que nasci, coloriu cinza. Tão linda e tão destruída.
No dia 31 de agosto de 2016, Dilma Rousseff é derrubada por 61 votos a 20 no
senado, Michel Temer é efetivado presidente. Golpe consumado. No dia 31 de
agosto de 2016, a nova turma do doutorado do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia faz sua matrícula. Ingresso realizado.
Como escrever tese (atividade que pede tesão) na bad trip (pesadelo)? Essa,
certamente, foi, é e será uma questão que mesmo que não apareça no texto, ainda
que seja fora-texto, hors-textuel,9 atravessa de algum jeito o processo de pesquisa
de todos nós doutorandos de 2016. Em meio ao trâmite dos projetos golpistas de
escola sem partido, de PEC do fim do mundo que impõe teto aos “gastos” públicos,
insurgiram ocupações, movimentos de resistência, atos, passeatas, protestos com o
gás lacrimogênio ardendo nos olhos. E uma pergunta retumbava na minha cabeça:
os CECOs, com tamanha fragilidade institucional, sem financiamento, sobreviverão?
Como fica a RAPS num SUS desmontado?

2017. Não sei por onde começar. As lágrimas ainda rolam. Nem sempre dá para
conter. Elas não me obedecem, brotam dos olhos e saem sem querer saber onde
estou. O luto foi substantivo antes de virar verbo. Decido me afastar do trabalho.
Aquele trabalho pelo qual lutei tanto... Vou abrir mão do prazer e da alegria de
coordenar cursos, produzir material didático, me reunir com professores, orientar
alunos, participar de bancas, dar aulas nos cursos, participar de câmaras técnicas,

9 Segundo René Lourau (1993, p. 71) “a essa escrita quase obscena, violadora da 'neutralidade',
chamei de 'fora do texto'. 'Fora do texto' no sentido literal e etimológico do termo: aquilo que está fora
da cena; fora da cena oficial da escritura". O diário de campo pode contribuir com a produção de um
conhecimento da temporalidade da pesquisa oferecendo ao leitor elementos de como ela foi feita no
cotidiano.
28

analisar pedidos de bolsa-auxílio, organizar e participar de eventos, congressos,


seminários, oficinas e outros espaços em que formamos e somos também formados.
Esse trabalho precisa ficar pausado para dar lugar a um novo trabalho que é fazer
pesquisa de doutorado e escrever tese. O tiro que furou o vidro da janela do meu
lado também me empurrou para fora da Escola. 10 Os companheiros compreendem.
Começamos a levantar do tombo. “Reconhece a queda. E não desanima. Levanta,
sacode a poeira e dá a volta por cima!” 11 Este passou a ser o lema. Dar a volta por
cima. O ofício materno ganha mais expressão na vida. Necessidade vital atendida. O
Nutras12 me nutre, e sinto que nutro o Nutras. Começar a escrita pela fala. Fazer
entrevistas. Apostar nos bons encontros: esta passa a ser a ética. E os bons
encontros aconteceram. Um baita bom encontro foi com o grupo de cinco mulheres
com que produzimos o Guia Prático de Economia Solidária e Saúde Mental - Dá
para fazer!13 Dica do Domingos Sábio14 procurar a Neli Almeida. O Sábio sabe das
coisas. E muitos desdobramentos advieram. Até a Bauru fui. Depois de trinta anos,
lutar por uma sociedade sem manicômios, ainda. No caminho, descobri que o Bauru
mais famoso não é de Bauru, mas de São Paulo. No fim de 2017, sentimos que o
desejo precisa agir em sintonia com o que a vida lhe demanda, e a vida demanda
afirmar potência.

2018. Marielle Franco é brutalmente assassinada. Há uma tentativa de silenciar os


devires minoritários. O CECO é minoritário. Loucos, pobres, negros, crianças,
mulheres são CECO. Cerca de um mês depois é Paul Singer, nosso mentor da
economia solidária, que parte. Não vão nos calar, não vamos nos calar. Existimos
para resistir, e é por vocês também. Estamos juntos e nossas mãos estão dadas. O
guia está pronto. Precisa ser lançado. Como lançar o guia? Podíamos apenas
10 Uma bala perdida varou a janela da sala de trabalho da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio/Fiocruz do terceiro andar, onde trabalho, no dia 17/4/2017. A Fundação Oswaldo Cruz fica
no bairro de Manguinhos, onde há um contexto de violência deflagrada. Em 2017, cerca de
seiscentos alunos ficaram sem aulas ou com calendário escolar alterado.
11 Verso da música Volta por Cimam, de Paulo Vanzolini.
12 Núcleo de Estudos e Intervenções em Trabalho, Saúde e Subjetividade da Psicologia da UFF.
13 O Guia Prático de Economia Solidária e Saúde Mental - Dá pra fazer! é um produto que integra um
conjunto de atividades apoiadas pelo edital CNPq n. 89/2013, referente à implantação da Incubadora
Tecnológica de Cooperativas Populares do IFRJ, e foi construído em 2017 por autoras que traziam
diferentes experiências nos campos da saúde mental e da economia solidária.
14 Aqui fazemos um trocadilho com o sobrenome de Domingos Sávio Alves, médico neurologista e
sanitarista, com especialização em Psiquiatria Social pela ENSP/Fiocruz. Desde a década de 1980,
como médico e duas vezes diretor da Colônia Juliano Moreira, e durante os anos 1990, como
coordenador da Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde, tem sido um dos
protagonistas do processo de Reforma Psiquiátrica no país.
29

distribuir pelo correio sem fazer lançamento, podíamos chamar os serviços e dar
uma palestra de como usar o guia, podíamos fazer mais que isso. Tomada
completamente pelo princípio do dialogismo da clínica da atividade – de que colocar
a atividade em diálogo amplia o poder de agir dos trabalhadores –, propus às
companheiras de autoria do guia que fizéssemos um encontro em que as
experiências CECO pudessem ser debatidas. Publicamente. Elas toparam. A alegria
tomou conta, se espalhou, contagiou e fez a gente acreditar que sim, dá para fazer!
Foi um dia-acontecimento. Foi o dia em que a Carta de Propostas dos CECOS e o
Fórum dos CECOs do RJ foram criados. Daí em diante, por estar com a atividade de
escrita aguçada, coloquei-me no Fórum, na posição de quem registra. Ao me
apresentar, com caderno e caneta em mãos, afirmei que estava fazendo uma
pesquisa com os CECOs. Muitos já me conheciam porque, concomitantemente ao
Fórum, os grupos nos CECOs cariocas estavam acontecendo. Em seguida, passei a
produzir relatos dos fóruns para o grupo de Whatsapp. Depois foi criado um site15 na
internet, uma importante ferramenta para disseminar os passos desse processo.
Após a validação dos participantes do Fórum, os relatos vão para o site, tornam-se
públicos. Os relatos são elementos que ajudam a compor uma cartografia, em que o
trabalho da análise é a um só tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-
subjetividade. E percebíamos que a produção e a leitura deles produziam efeitos
entre todos os conviventes: em nós e nos outros. Concluímos 2018 com o projeto de
lei estadual n. 4.563, que cria a política de CECOs, protocolado na Alerj, com quatro
deputadas mulheres, negras e antifascistas eleitas pelo Rio de Janeiro e a certeza
de que nada será fácil com a extrema direita no governo do país, porém com a
confiança de que estamos mais unidos do que nunca. Eles tentaram nos enterrar,
mas não sabiam que éramos sementes.

2019. O movimento dos CECOs acompanha a tramitação do projeto de lei (PL) n.


4.563 durante 2019, comissão a comissão. Primeiramente, na de Constituição e
Justiça, precisamos explicar qual a demanda e a proposta para a criação dessa
política; depois, na de Cultura, fomos indagados sobre como a cultura produz saúde.
A cada encontro, tendo como interlocutores os deputados na Alerj, um coletivo de
trabalho se compunha para responder ao que nos era perguntado. E desse modo os

15 Disponível em: <https://forumcentrosdeconvivenciadorj.wordpress.com/>.


30

saberes iam se produzindo e deslocando. A aprovação da lei estadual n. 8.164 – em


que o estado se torna cofinanciador da RAPS, ou seja, o PL em que recursos dos
impostos arrecadados pelo estado vão para Centros de Atenção Psicossocial,
Serviços Residenciais Terapêuticos e Unidades de Acolhimento – aproximou o
movimento dos CECOs da gestão estadual de saúde mental. Acontece uma
audiência pública na Alerj, levamos e penduramos no plenário a faixa que pede pela
aprovação do PL 4.563 dos CECOs, a mesa faz referência várias vezes ao
movimento. O movimento foi convidado pela Secretaria Estadual de Saúde a
apresentar para todos os coordenadores municipais o projeto de lei, e nosso coletivo
de trabalho, novamente, se montou para atender o pedido. Isso nos fez pensar o
quanto esse é um movimento em que as hierarquias foram subvertidas: o
movimento social estava pautando a política e não a gestão instituída. A Fiocruz
organiza uma Conferência de Promoção da Saúde. Intuímos que o debate do CECO
precisa se aproximar da promoção da saúde. Inscrevemos na conferência um
trabalho sobre o movimento, o qual é premiado em primeiro lugar. As forças em
conexão são múltiplas. Isso é o comum – esse plano em que os acontecimentos se
sucedem em uma articulação nem sempre visível, mas sempre imprevisível e
indomável. A diretoria do Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz, presente nessa
premiação, atende ao pedido de apoio para levar de ônibus os participantes do
movimento à cidade de Carmo, a duzentos quilômetros da capital, onde realizamos
o IV Fórum. Foi lindo demais. Coração dispara com a memória de tudo que vivemos
nessa viagem. Já valeu a pena. Vêm pela frente as Conferências de Saúde (distrital,
municipal, estadual e nacional). Ainda que críticas possam ser feitas aos espaços de
controle social do SUS, vimos os trabalhadores mobilizados a manterem acesa a
chama da democracia por meio de sua participação. Dois participantes do Fórum
foram eleitos como delegados, e pela primeira vez foi aprovada uma moção pelos
CECOS na Conferência Nacional de Saúde (8+8) levada por eles. Há um corte de
mais de 30% nas verbas das universidades públicas. No final do ano, o CNPq não
aprova o projeto que propõe o I Encontro Nacional de CECOs. O inverno é longo e
frio. O calor dos encontros é o que nos mantém aquecidos e vivos. Isso é a
convivência, também.
31

Infográfico elaborado por Ariadna Patricia Estevez Alvarez. Design gráfico por Isabel Xavier.
Esta é uma síntese visual dos acontecimentos mais marcantes do percurso do doutorado, traçando
os atravessamentos e movimentos entre a pesquisa e o cenário político nacional.

1.4 Alianças teórico-metodológicas

A pesquisa se situa na interface entre três eixos teórico-metodológicos em


mútua interferência. Esses três eixos atravessam todo o texto da tese e ganham
mais ou menos relevo de acordo com o contexto local e o debate em questão. O
primeiro deles diz respeito à clínica da atividade, uma das clínicas do trabalho, da
qual utilizamos principalmente os conceitos de atividade e ofício. O segundo se
refere à filosofia política construída por Hardt e Negri (2005, 2016), de que nos
servimos acerca dos conceitos de comum, multidão e trabalho afetivo. E o terceiro,
que constitui uma das bases epistemológicas dos outros dois anteriores, é a filosofia
de Spinoza (2011), autor que nos fornece as concepções de afeto, política e
democracia.
É importante afirmar que essas alianças foram se fazendo no processo e não
estavam escolhidas previamente. À medida que a pesquisa se desenvolvia, fomos
necessitando de ferramentas teóricas que nos fornecessem meios de operar e
32

produzir análises com o campo. O campo da pesquisa foi que conduziu as escolhas
teóricas conforme as situações se apresentavam. Esse modo de construção da
pesquisa é inspirado no método cartográfico, em que o caminho é construído ao
longo do caminhar. Há uma reversão do sentido tradicional de método (metá-hódos)
para hódos-meta, isto é, abandonamos as metas predefinidas e nos aliamos ao
primado do caminhar que traça no percurso suas metas (PASSOS; BARROS, 2009).
Do método cartográfico destacamos a pista do comum, a pista da confiança e
a pista da atividade. Na pista do comum, encontramos que cartografar é traçar um
plano comum, em que o ato de conhecer é criador de realidades. Essa criação de
realidades é coletiva e paradoxalmente combina, ao mesmo tempo, acessar e
construir um plano comum entre pesquisadores e pesquisados (KASTRUP;
PASSOS, 2014). A pista da confiança nos indica que o ato de pesquisar é um ato de
fiar com, tecer junto, compor com o outro, e não de produzir verdades sobre o outro.
Entendemos a confiança como uma disposição baseada no vínculo com o plano da
experiência anterior, que aumenta a potência de agir em conexão com o plano de
forças (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2014). Na pista da atividade, em que o trabalho
do cartógrafo é tomado pelo ponto de vista da atividade, entende-se que pesquisar
não se limita a verificar hipóteses ou resolver problemas; também é operar em um
vazio de normas que convoca à criação em meio aos desafios apresentados pelo
campo empírico. A atividade do pesquisador, assim como qualquer outra, é tomada
como atravessamentos múltiplos que se agenciam e demandam escolhas. Assim, a
cartografia toma a atividade como algo a ser investigado, e também a atividade do
próprio cartógrafo deve ser analisada no processo (BARROS; SILVA, 2014).
Portanto, nesta introdução indicamos para os leitores alguns conceitos que
nos serviram nesse processo como ferramentas com a finalidade de situar quem são
os interlocutores teóricos da pesquisa. Contudo, é ao longo das cartografias que a
contribuição desses autores em ação na experiência ganha mais sentido. Nas
cartografias, sinalizamos nos apontamentos teórico-metodológicos como os
diferentes dispositivos operaram. Entendemos que na pesquisa cartográfica o
dispositivo é o que possibilita a irrupção daquilo que se encontrava bloqueado para a
criação, é o que potencializa fazer ver e falar o que estava invisível e não enunciado.
Entre os dispositivos que utilizamos nesta pesquisa, podemos citar entrevistas,
diários de campo, grupos de debate de artigo, oficina de fotos, construção de
33

personagem e o fórum de CECOs que se constituiu no processo interferindo


diretamente na produção coletiva de políticas públicas. Os grupos como dispositivos
(BARROS, 2007) com capacidade de irrupção naquilo que se encontrava bloqueado
de criar, eles foram presentes em todo percurso da pesquisa de diversos modos. E
os grupos não podem ser separados dos movimentos e processos que os produzem
(JORGE. 2017), eles foram se constituindo como maneiras de subjetivar no trabalho.

1.4.1 A dimensão do trabalho via clínica da atividade em uma aposta cartográfica

A aposta cartográfica consiste em acompanharmos os processos de trabalho


que se dão nos territórios existenciais. A cartografia, como método de pesquisa, se
dá como um desenho que acompanha os movimentos de transformação da
paisagem e se faz simultaneamente a eles (GUATTARI; ROLNIK, 1989). Nesse
processo de produção, usamos a clínica da atividade como metodologia para análise
do trabalho com a proposta de potencializar as estratégias criadas pelas
trabalhadoras e pelos trabalhadores para lidar com as variabilidades das situações
de trabalho nos CECOs.
Essa conexão clínica da atividade-cartografia não está dada de antemão, é
preciso forjá-la. Contamos com Barros e Silva (2014) como aliados para pensar o
trabalho do cartógrafo do ponto de vista da atividade. Os autores afirmam o gênero
pesquisador-cartógrafo como “a constituição de um ethos de pesquisa em que se
destaca uma dupla-inscrição, ou seja, um gênero que sempre toma como objeto
uma atividade e tem como aposta metodológica a problematização da atividade do
pesquisador” (BARROS; SILVA, 2014, p. 149).
Entendemos que a questão “como e o que fazem os trabalhadores dos
Centros de Convivência do Rio? ” não está separada da questão “como os Centros
de Convivência são produzidos e o que produzem?”. Do mesmo modo, a questão
“como e o que fez esta pesquisadora?” não está separada da questão “como esta
pesquisa foi produzida e o que ela produziu?”. Ainda entendemos que
pesquisadores e outros trabalhadores também são efeitos do produzir, considerando
o produzir como um encadeamento de práticas corporificadas material ou
afetivamente (SCHEINVAR, 2015).
34

Desse modo, na produção de uma conjugação da clínica da atividade com a


cartografia, consideramos a dimensão ético-estético-política dos processos de
trabalho, pois afirmamos que os modos de pesquisar dizem respeito a atitudes
(maneiras de se conduzir), a formas de se expressar (regimes de sensibilidade) e de
se relacionar com o que é público, com o que acontece na polis (múltiplas forças que
atuam nos arranjos sociais). Ainda sobre as interferências mútuas entre clínica da
atividade e cartografia, Teixeira e Barros (2009, p. 89) afirmam:

Ambas nos provocam a sair de nós mesmos e a nos abrir ao que é da


ordem do impessoal, da história, do plano do coletivo que nos atravessa.
Somos incitados a questionarmos os modos como estamos sendo
subjetivados, a não aceitá-los como naturais, a nos colocarmos em desvio;
somos levados à construção de agenciamentos coletivos e à desconstrução
das certezas e das cristalizações das formas dadas nos mundos do
trabalho.

Para a clínica da atividade, o trabalho é compreendido como atividade


dialógica, em que é no mínimo triplamente dirigida. Ela é dirigida pelo sujeito,
através do objeto da tarefa, para o(s) outro(s). É dialógica porque sempre tem um
destinatário, e compreende diálogos falados e não falados, o que implica processos
de produção subjetiva. Para a clínica da atividade: "Subjetividade e atividade são
matérias-primas e produtos em um mesmo processo" (OSORIO DA SILVA, 2016a, p.
46).
Que conceito de atividade é esse que se conjuga ao de subjetividade? O
conceito de atividade se diferencia do conceito de tarefa. Tarefa é aquilo que se deve
fazer, e atividade é aquilo que se faz (LEPLAT; HOC, 1983). A atividade inclui o que
não é visível, mas que estava presente como diálogo interior enquanto se fazia o
que se fez. Na atividade, é preciso considerar o real da atividade, que é

também aquilo que não se faz, aquilo que não se pode fazer, aquilo que se
busca fazer sem conseguir – os fracassos –, aquilo que se teria querido ou
podido fazer, aquilo que se pensa ou que se sonha poder fazer alhures. É
preciso acrescentar isso – o que é um paradoxo frequente – aquilo que se
faz para não fazer aquilo que se tem a fazer ou ainda aquilo que se faz sem
querer fazer. Sem contar aquilo que se tem de refazer (CLOT, 2006a, p.
116).

O real da atividade deve ser pensado como um processo, não observável por
métodos diretos, do qual emerge o realizado. O real da atividade é uma dimensão
conflitual mais difícil de acessar, que precisa de métodos indiretos, em que a análise
da atividade se faz colocando em debate registros da atividade. O trabalho prescrito
35

(o que se deve fazer) nunca coincidirá completamente com o trabalho realizado (o


que se fez). Do conceito de atividade faz parte a atividade realizada, assim como o
real da atividade. Nesse aspecto do real da atividade, nos interessamos
principalmente pelos sonhos dos trabalhadores. “O sonho é parte da atividade. Inclui
o que eu fiz e o que eu não fiz. O que eu não fiz, paradoxalmente, faz parte da
atividade” (CLOT, 2006b, p.105). Isso significa que o realizado não possui o
monopólio do real, pois o homem está sempre pleno de possibilidades ainda não
realizadas, há sempre outros modos a serem experimentados.

Há uma diferença entre a atividade realizada e o real da atividade. O real e


o realizado não são a mesma coisa. O realizado não tem o monopólio do
real na vida psicológica. O real é muito mais amplo. Há, finalmente, outra
ideia forte: o que não foi realizado, o que não foi efetuado, não é menos
real. Não foi realizado de forma visível, mas para o sujeito, ela é real, ou
seja, é real tudo o que foi chamado de atividades contrariadas – atividades
impossíveis. Portanto, o impossível e o possível estão no real. O impossível
está também no real das atividades psicológicas (CLOT, 2006c, p. 21).

A clínica da atividade interessa-se também por esse não realizado, por aquilo
que não foi possível fazer, mas estava interferindo de algum modo no que foi feito.
Existe, portanto, um permanente conflito entre atividades; elas são sempre
concorrentes e dirigidas, e a atividade realizada foi a vencedora dessa disputa em
um dado momento.
No caso desta pesquisa com os trabalhadores dos CECOs, usamos essa
concepção de atividade para construir um campo problemático: como se constitui a
atividade dos/as trabalhadores/as dos Centros de Convivência e Cultura do Rio de
Janeiro? Quais são os sonhos ainda não realizados nessa atividade?
Além do conceito de atividade, o conceito de ofício nos interessa na pesquisa.
A palavra ofício tem sua origem no latim officium, que está relacionada a dever,
obrigação moral. Em francês (métier) ela também corresponde à forma popular da
palavra ministério, ministerium ou mysterium, que se relaciona com a dimensão
sagrada cultivada em rituais. Na língua portuguesa, tem vários significados:
profissão, ocupação, emprego, incumbência, missão, tarefa que uma pessoa se
compromete a fazer, comunicação entre autoridades, conjunto de rituais associados
a cerimônias religiosas. Destarte, a palavra ofício nos remete a algo que precisa ser
feito, e para ser feito é preciso um saber que não necessariamente é formalizado,
mas cultivado e transmitido para outros.
36

O ofício, na clínica da atividade, pode se definir como um instrumento,


simultaneamente, técnico e psicológico; ele é um instrumento de ligação. O ofício
possui, quatro instâncias, o que faz dele permanente conflito. Ele é impessoal,
transpessoal, interpessoal, pessoal. Sua vivacidade depende do movimento entre
essas diferentes dimensões. A instância impessoal corresponde ao que há de mais
prescrito em um ofício; está ligada à tarefa, àquilo que em grande parte está escrito
em instruções, orientações, procedimentos; é o que está mais fortemente instituído.
A dimensão transpessoal tem relação com a memória profissional que não pertence
a ninguém, mas está disponível para todos, que atravessa gerações, diz respeito ao
gênero de atividade profissional. Ele é interpessoal, pois se dá entre vários, depende
de destinatário para existir, requer interlocutor para ter sentido. É pessoal porque
carrega a marca de quem faz, carrega a especificidade de alguém. As dimensões
interpessoal e pessoal são consideradas fortemente instituintes, correspondem
àquilo que é exposto ao imprevisível, ao que se apresenta na variação da vida; é o
que há de inesperado no ofício.

Um ofício não é, certamente, apenas uma prática. Também não é apenas


uma atividade. Nem apenas uma profissão. Podemos defini-lo como uma
discordância criativa – ou destrutiva – entre as quatro instâncias em conflito
de uma arquitetura fundamentalmente social que pode adquirir uma função
psíquica interna (CLOT, 2013, p. 6).

Portanto, um ofício vivo é necessariamente nômade. Para viver, ele passa por
migrações funcionais entre as suas quatro dimensões. O ofício pode entrar num
círculo virtuoso e se desenvolver, mas também pode entrar num círculo vicioso e se
degenerar. Sua degenerescência ocorre quando há um desligamento entre as quatro
instâncias. Seu desenvolvimento ocorre quando é possível deixar de ser prisioneiro
dos invólucros em que pode estar fixado, ou seja, para se desenvolver é preciso
manter corrente o fluxo entre as diferentes dimensões.
Para melhor compreender a dinâmica das migrações funcionais, é
interessante traçar como elas acontecem quando um novato ingressa em um
contexto profissional. Quando alguém novo chega para trabalhar em uma equipe, o
impessoal do ofício se apresenta como algo extremamente valioso, pois ele será a
fonte consultada para agir em um momento inicial. Contudo, diante dos obstáculos
do trabalho real, o novato logo perceberá o conflito existente entre a prescrição
37

(impessoal) que ele tentará usar e a série de outras alternativas realizadas por meio
de cada um de seus colegas (pessoal) que estão acontecendo ao seu redor.
Esse conflito é ao mesmo tempo problema e solução. Partindo do conflito, é
possível comparar a atividade de uns e de outros e notar que as justificativas que
oferecem são muitas vezes contraditórias. O novato superará a dificuldade ao utilizar
os recursos interpessoais do ofício, tirando proveito do diálogo entre os antigos.
Esse diálogo entre os antigos pode fornecer os “previsíveis genéricos da atividade”
(CLOT, 2010, p. 296), propiciando que o ofício interpessoal se abra para sua
dimensão transpessoal. Gradualmente, o novato se apropria, à sua maneira, do
gênero de atividade profissional, reconhecendo-se a si próprio em algo mais
independente dos colegas, e agora esse ofício transpessoal torna-se meio de agir no
meio. Ele estará pronto para assumir as responsabilidades do ato, sendo capaz de
agir diante do devir do ofício. Descortina-se a possibilidade de estilizar, de variar,
quando se domina o gênero de atividade profissional. O ofício “é pessoal no final
desse ciclo” (CLOT, 2010, p. 298). É pelo trabalho coletivo sustentado pelo coletivo
de trabalho que “a função psicológica do ofício se desenvolve em cada sujeito e sua
função social se desenvolve na organização” (CLOT, 2010, p. 298). Portanto, é
diante das surpresas da vida que o ofício pode se manter vivo, por meio do
movimento permanente de ligar, desligar e religar as suas diferentes instâncias.
Os métodos de pesquisa desenvolvidos pela clínica da atividade usam
registros da atividade (fotos, vídeos, textos, desenhos, por exemplo) como
disparadores da fala sobre o trabalho, pois falar sobre escolhas/debates de normas
para o analista do trabalho e seus pares já produz transformações nos modos de
trabalhar. Elegemos, como critério para escolha da estratégia metodológica de
registro, usar a avaliação de qual delas mais ajudava a manter ancoragem na
discussão da situação concreta de trabalho naquele contexto.
Nessa perspectiva, é preciso romper com um modelo tradicional de ciência
em que primeiro deve-se saber para depois prever, para por fim agir. “A intervenção
pode se efetivar sem que haja uma proposta de pesquisa concomitante, o mesmo
não se pode dizer da pesquisa: a proposta da clínica da atividade pressupõe o
transformar para compreender” (OSORIO DA SILVA, 2016a, p. 50, grifo da autora) A
clínica da atividade propõe uma inversão nesse modo sequencial de pesquisar, pois
38

trata-se de primeiro agir, reconhecendo que não é possível prever, mas que é só a
partir da ação que se poderá construir os saberes.O método parte de

uma direção metodológica de pesquisa que articula investigação e


intervenção, de modo a produzir intercessão entre diferentes saberes, com
o objetivo de potencializar estratégias utilizadas pelos trabalhadores para
lidar com a variabilidade das situações de trabalho (Teixeira e Barros, 2009,
p. 81).

Osorio da Silva e Ramminger (2014, p. 4752) afirmam que a discussão sobre


as “condições de trabalho precárias e inadequadas e seus possíveis efeitos sobre a
saúde dos trabalhadores acaba, muitas vezes, encobrindo a importante função do
trabalho como operador de saúde para o ser humano”. Entendemos que pensar o
trabalho como operador de saúde é um convite à subversão de uma dada posição
no campo da saúde do trabalhador que tende a olhar mais para o adoecimento, para
o sofrimento, para os impedimentos e patologias no mundo do trabalho. Isso que
acontece com essa dada posição no campo da saúde do trabalhador também
acontece com frequência em variados campos da psicologia clínica e no campo da
saúde mental.
O trabalho, quando é considerado bem-feito por seus autores, ou seja,
quando é possível o reconhecimento do trabalhador em sua própria atividade, pode
ser fonte de saúde. O trabalho pode ser operador de saúde quando há lugar para a
criação coletiva e pessoal. Essas duas dimensões são distintas, mas inseparáveis.
Por isso, à clínica da atividade interessa construir métodos que mostrem aos
trabalhadores que é possível transformar o próprio trabalho, colocando-o em análise.
Vale ressaltar aqui o conceito de saúde com o qual nos aliamos. Não estamos
falando da saúde como ausência de doenças, nem como “um estado de completo
bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou
enfermidade”.16 A pesquisa compreende saúde na perspectiva de Canguilhem
(2007), para quem a noção de saúde não se opõe à de doença. Saúde se associa à
ideia de normatividade, conceito central na obra do autor. A saúde se constitui como
uma norma superior e se expressa quando nós viventes conseguimos criar novas
normas diante das variabilidades do meio. "O que caracteriza a saúde é a
possibilidade de superar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade

16 Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde. Documentos


básicos, suplemento da 45ª edição, outubro de 2006. Disponível em espanhol
em: <https://www.who.int/governance/eb/who_constitution_sp.pdf>.
39

de tolerar infrações à norma habitual e de instituir novas normas em situações


novas" (CANGUILHEM, 2007, p. 148).
O patológico está associado à redução da capacidade de constituir novas
normas, ao impedimento, ao sentimento de vida contrariada. O pathos seria uma
restrição do exercício da normatividade, ou uma norma de vida inferior. O estado
patológico é definido pela experiência individual e subjetiva, sendo parcialmente
inacessível aos outros; portanto, o vivente é quem pode dizer o que acontece com o
próprio corpo, consigo mesmo.

A saúde está muito ligada tanto ao meio em que vivemos quanto à


capacidade que temos e desenvolvemos (individual e coletivamente), para
transformá-lo segundo nossos interesses e valores, (re)afirmando nossa
potência de vida (BRITO, 2017, p.101).

Desse modo, não estamos fadados a viver de forma contrariada se o modo


como o meio se apresenta não nos convém. Somos capazes de recriar o meio em
que vivemos – isso também faz parte de exercer normatividade e tem relação com a
produção de saúde.Quando encaramos as variabilidades da vida, não se trata de
mera adaptação, pois "o próprio do ser vivo é de criar o seu meio" (CANGUILHEM,
2001, p. 116).
Clot (2010, p. 111), com base em Canguilhem, define saúde como “poder de
ação sobre si e sobre o mundo, adquirido junto dos outros”. 17 Nesta definição, vemos
o quanto a saúde não é um atributo exclusivamente individual, isolado; pelo
contrário, ela é relacional, se faz nos encontros, pois esse poder de ação é
construído na relação com os outros. Portanto, é possível aproximar essa ideia de
saúde com a de estar ativo na coletividade, com a ideia de que estar saudável é
estar normativo no mundo. Não é possível separar a saúde dos modos de relação
que se engendram na vida vivida com os outros, nas múltiplas convivências. Assim,
admitir que o poder de ação sobre si e sobre o mundo adquirido junto com os outros
é uma concepção de saúde é reconhecer a saúde como poder de agir.

1.4.2 A dimensão dos afetos e da produção de possíveis pela via spinozista

17 A respeito dessa definição do conceito de saúde, é relevante apresentar o original em francês, pois
compreendemos que o mais apropriado seria se afirmar a saúde que é adquirida junto COM os outros
e não junto DOS outros, conforme aparece na tradução em português: “la santé est un pouvoir
d’action sur soi et sur le monde gagné auprés des autres” (CLOT, 2008a, p. 96).
40

A ideia de saúde como poder de agir afirmada na clínica da atividade tem seu
fundamento não só em Canguilhem pela associação com o conceito de
normatividade, mas também em Spinoza pela articulação com a teoria dos afetos. É
na EIII18 que o filósofo trata da natureza e da origem dos afetos. “Por afeto entendo
as afecções do corpo pelas quais a potência de agir do próprio corpo é aumentada
ou diminuída, favorecida ou coibida, e simultaneamente as ideias destas afecções”
(EIII, def.3). Spinoza afirma que se somos causa adequada de alguma dessas
afecções, então por afeto se entende ação; caso contrário, paixão.
A clínica da atividade se depara com o problema da afetividade, ela se
interessa pela questão do desenvolvimento da afetividade na atividade. Clot (2016)
encara o desafio de conceituar a afetividade nas dimensões dos sentimentos, das
emoções e dos afetos. Compreende-se que há uma interfuncionalidade entre estas
três dimensões que compõem a afetividade humana, e interessa aqui distingui-las.
Parte-se de um paradigma não dualista presente tanto em Spinoza quanto em
Vigotski em que mente e corpo são uma só substância que se expressa por atributos
diferentes.
Os sentimentos são entendidos como ideias que nos vêm, e as emoções
podem ser caracterizadas como aquilo que é profundamente corporal. Mas não só
corporal – a emoção “é um evento traduzido em duas línguas diferentes: em reações
fisiológicas e em um vivido subjetivo que passa pela linguagem” (CLOT, 2016, p. 88).
Há um entrelaçamento muito forte entre as reações orgânicas e o vivido subjetivo.
Assim, as reações orgânicas tais como enrubescer, tremer, ter náuseas, lacrimejar,
gaguejar estão imbricadas com o vivido subjetivo. A interferência entre essas duas
diferentes línguas é o que permite o desenvolvimento. Nessa perspectiva, o corpo
seria o organismo acrescido da linguagem e da história singular e social.
Clot (2016) dá o exemplo do trabalho dos atores que quando interpretam
papéis são capazes de chorar mesmo sem estarem tristes no plano pessoal, ou de
rirem mesmo sem estarem alegres. Nesse caso, as emoções estão na posição de
objetos, de meios para viver; elas se tornam objetos de trabalho. Assim, os atores
teriam uma tessitura funcional mais bem desenvolvida, pois dispõem de mais
capacidade de mudar de registro; o ofício os convoca a desenvolverem suas

18 A obra Ética, de Spinoza (2011) está organizada em cinco partes (EI – Deus; EII – A natureza e
origem da mente; EIII – A origem e natureza dos afetos; EIV – A servidão humana ou a força dos
afetos; EV – A potência do intelecto ou a liberdade humana). Ao citá-la, usaremos a letra E para
designar o livro Ética e o numeral em romano (I, II, III, IV, V) para designar a parte.
41

reações orgânicas, sendo capazes de brincar com elas. Porém, não só os


profissionais atores são capazes de desenvolver essa tessitura, já que em alguma
medida todos somos um pouco atores da vida subjetiva, e o trabalho coletivo
desenvolve a tessitura da consciência de cada um.

Um sujeito é tanto mais capaz de agir em um determinado contexto quanto


mais ele dispõe de um sistema interfuncional flexível, variado, ou seja, de
uma liberdade de ação, da possibilidade de se servir de suas emoções para
pensar, mas também da possibilidade de pensar para se servir de emoções
(CLOT, 2016, p. 89).

Esse parece ser um interessante vice-versa: se servir das emoções para


pensar e pensar para se servir das emoções – o que aponta para a
indissociabilidade entre pensamento e emoção, entre pensar e emocionar. Contudo,
é válido ressaltar que as emoções diferenciam-se dos afetos; o afeto é o que
aumenta ou reduz a capacidade de agir. Então ele está diretamente ligado com a
ação, e um afeto só pode ser ultrapassado por um afeto maior. Isso significa que não
basta querer mudar de afeto; isso não passa pela vontade, mas pelo
desenvolvimento da afetividade que em sua interfuncionalidade é composta de
sentimentos, emoções e afetos. Tal afetividade é conflitual, há discordância entre
esses componentes, e as intervenções em clínica da atividade visam desenvolver
essa afetividade profissional, passar de um nível de atividade a outro, por meio da
observação do próprio agir no trabalho.
Pelo afeto a atividade humana aumenta ou diminui. Interessou na pesquisa
mapear com os trabalhadores os itinerários afetivos, as ações não só no que se
refere à atividade da convivência dirigida pelo CECO ao público naquele território,
mas também as ações políticas engendradas no comum. Quando constituímos o
Fórum de CECOs, uma ágora genuinamente participativa em que usuários,
trabalhadores, gestores, estudantes, professores, pesquisadores, militantes
compartilham de modo intenso suas experiências e todos se deslocam de suas
posições, se engendra um outro modo de fazer política que exercita o rompimento
da lógica manicomial e simultaneamente a produção de uma saúde, de normas no
coletivo.
Segundo a visão spinozista da política, as normas e as leis são expressões
de um direito, de uma potência da multidão. 19 O direito é algo que é mais constituído
19 O conceito de multidão utilizado aqui baseia-se em Espinosa (2009), proposto em seu Tratado
Político (TP), a qual é definida como uma potência coletiva ou, em seus termos, como um direito
42

do que reivindicado. Na multidão há um plano de organização em que as normas


são construídas, elas não estão dadas para serem obedecidas; destarte, localiza-se
na filosofia de Spinoza um antijuridismo. “As forças são inseparáveis de uma
espontaneidade e uma produtividade que tornam possível seu desenvolvimento sem
mediação, ou seja, sua composição. Elas são em si mesmas elementos de
socialização” (DELEUZE, apud Negri, 1993, p. 7). No Fórum de CECOs, estamos
em socialização sem mediação; não há representação. Cada presença, cada voz,
está em conexão direta, são forças em composição. Nessa concepção de político, “a
democracia é uma política da multitudo organizada na produção” (NEGRI, 1993, p.
24).
É partindo da ideia de multitudo contida na filosofia de Spinoza que Negri
propõe uma definição ontológica de multidão como potência. Não sabemos o que
pode um corpo, mas compreendemos todo corpo como uma multidão. “A multidão é
um conjunto de singularidades (…) Quando prestamos atenção aos corpos
percebemos que não nos defrontamos simplesmente com uma multidão de corpos,
mas que todo corpo é uma multidão” (NEGRI, 2004, p. 20). Se não sabemos o que
pode um corpo, imagina o que pode um corpo em relação com outros corpos? A
indeterminação de produção do comum parece ser maior ainda.
No modo de produção capitalista, a atividade dos corpos é ao mesmo tempo
força produtiva e geralmente matéria-prima. A multidão, nesse caso, é tanto sujeito
de produção como objeto de exploração. Ela é objeto de exploração e ao mesmo
tempo é o que impede a dominação completa, porque ela é primeira, ontológica.
Negri (2004) fala em potência ontológica da multidão, no sentido de que a produção
da multidão é constitutiva do ser, ela se realiza no terreno do comum. A experiência
do comum não requer nem comando nem exploração; ela se coloca como a base e
como pressuposto da expressão humana produtiva e/ou reprodutiva.

A linguagem é a forma principal de constituição do comum; e quando o


trabalho vivo e a linguagem se cruzam e se definem como máquina
ontológica, é então que a experiência fundante do comum se verifica
(NEGRI, 2004, p. 23).

Se é também na linguagem que o comum se constitui, interessa, então, criar


dispositivos dialógicos que possibilitem o exercício democrático. É nessa direção
que a clínica da atividade em muito contribui para a produção comum dos
natural constituinte baseado na produção do comum.
43

trabalhadores, uma vez que partindo da ideia de que linguagem é atividade, ideia
fundada no dialogismo de Bakthin,20 se produzem outros possíveis ao se colocar em
debate a atividade profissional. Por meio dos dispositivos montados na pesquisa, o
trabalhador, ao se tornar observador do próprio trabalho, no diálogo entre pares no
coletivo, age e transforma o mundo criando outros possíveis. Esse comum é o plano
de coengendramento que torna vivo tanto o trabalho coletivo como o coletivo de
trabalho.
O trabalho coletivo tem necessidade de um coletivo de trabalho, cuja
história permeia cada um e da qual cada um possa sentir-se responsável:
algo diferente que merece ser defendido a fim de que a vida no trabalho, em
cada dia, permaneça defensável para cada um (CLOT, 2010, p. 79).

Portanto, a via spinozista – a qual, no estudo dos afetos, aponta para a


potência dos corpos que em composição podem ter o poder de agir ampliado – nos
serve para pensar como no plano comum os trabalhadores, colocando a atividade
em diálogo, conseguem produzir novos possíveis nos CECOs e no SUS. E para
melhor compreender por quais caminhos a pesquisa foi sendo tecida e como foi
produzindo comum com esses trabalhadores, nos parece ser útil ao leitor apresentar
os itinerários percorridos ao longo dos quatro anos de estudo.

1.5 Itinerários percorridos: os encontros na pesquisa

A pesquisa foi totalmente tecida por meio de encontros que se deram por
vários itinerários. Compartilhamos a seguir um mapeamento dos encontros
produzidos no percurso do doutorado, que qualificamos em quatro distintas e
inseparáveis dimensões dessa cartografia: encontros-campo (entrevistas, CECOs 1,
2, 3); encontros-movimento político; encontros-contágio do processo da pesquisa;
encontros-livro. As forças que moveram a produção desses encontros são
completamente distintas, e consideramos que todas foram indispensáveis para a
produção da tese. A tese é um produto extraído desses encontros, por isso
precisamos afirmá-los e não ocultá-los nesta escrita.

ENCONTROS-CAMPO – ENTREVISTAS CARTOGRÁFICAS

20 Para Bakthin, o diálogo é uma relação, na interlocução viva, entre previsíveis e imprevisíveis, entre
o reiterável e o acontecimento (CLOT, 2010).
44

Data Entrevistados militantes-chave Local


01 17/05/17 Lizete Vaz – terapeuta ocupacional – Uerj – Maracanã
UFRJ
02 20/07/17 Pedro Gabriel Delgado – médico – UFRJ –
UFRJ Botafogo
03 23/08/17 Neli Almeida – psicóloga – IFRJ UFRJ –
Botafogo
04 28/09/17 Paulo Amarante – médico – Fiocruz Café Lamas –
Flamengo

ENCONTROS-CAMPO 1 – TRILHOS DO ENGENHO

Dia Data Ação


01 01/12/17 Experimentar oficina no CECO.
Participação na aula de IOGA.
02 19/12/17 Apresentar a pesquisa para a equipe (total: 7 pessoas)
Participação na reunião e escolha de estratégia para
início da pesquisa: grupo de estudos com leitura de texto
sobre CECO (Caderno temático CECO CRP-SP).
03 27/02/18 1ª Grupo de Discussão texto Galletti.
Reflexão e debate na reunião de equipe.

04 21/03/18 Participação no “encontro de ideias” com


frequentadores (clientes) e equipe. Experimentar
planejamento da agenda cultural.
05 27/03/18 2ª Grupo de Discussão texto Galletti.
Reflexão e debate na reunião de equipe.
06 26/04/18 Experimentar atividade do CECO no território.
Sarau de poesias no Clube Mackenzie – Méier.
07 22/05/18 3ª Grupo de Discussão texto Galletti.
Reflexão e debate na reunião de equipe.
08 31/07/18 4ª Grupo de Discussão texto Galletti. Construção dos
passos seguintes, repactuação do funcionamento da
pesquisa. Conversa sobre saída de um membro da
equipe.
09 10/08/18 Participação no Arraiá Cai na Roça, na Praça Rio
Grande do Norte, realizada em parceria entre CECO
45

e demais iniciativas culturais do IM Nise da Silveira.


10 19/09/18 Grupo com equipe e parceiros para confrontação com
frases.
11 30/10/18 Atendimento da demanda de preparação para o IV
Fórum dos Cecos no Trilhos do Engenho.
12 14/02/19 Atendimento da demanda de preparação das
trabalhadoras para conferências distritais e municipal
de saúde.
13 28/02/19 Desfile Bloco Loucura Suburbana.
14 17/09/19 Entrevista com coordenadora.
15 29/11/19 Seminário Memórias da Loucura – Participação em
roda de conversa sobre convivência.

ENCONTROS-CAMPO 2 – POLO EXPERIMENTAL

Dia Data Ação


01 20/02/18 Apresentar o projeto da pesquisa na reunião de equipe.
Participação no final da reunião (8 oficineiros e 3
coordenação).
02 14/03/18 Participar na abertura das ações do Museu 2018. Diálogo
com artistas do mBrac, almoço no bistrô, cortejo com
bloco no bairro Colônia.
03 20/03/18 Realizar roda do Nutras com Polo.
Conversa com trabalhadores e estudantes do IFRJ.
Apresentação das ações no Polo/conversa com artistas.
04 24/04/18 Participar da assembleia.
Havia 30 pessoas. Divulgação lançamento guia,
organização de ações no mês da luta antimanicomial.
05 05/06/18 1º grupo com oficineiros.
Entrevista preliminar sobre o trabalho da convivência.
TCLE, discussão/definição da forma de registro e da
atividade a ser analisada.
06 19/06/18 2º grupo com oficineiros.
Construção de personagem “superoficineiro”: como é, o
que ele faz e não faz, o que curte e não curte.
07 26/06/18 3º grupo com oficineiros.
Analisar atividade: como oficineiros realizam festa junina?
08 25/08/18 Participação na abertura da exposição Quilombo do
46

Rosário.
09 04/12/18 Encontro de partilha da carta com oficineiros.
10 02/10/19 Entrevista com coordenadora. Visita à exposição Utopias.
11 21/11/19 Conversa com pessoas que usam o CECO. (Não) Coma
o microfone.

ENCONTROS-CAMPO 3 – CECO ZONA OESTE

Dia Data Ação


01 10/05/16 Conhecer pessoalmente o Ceccozo.
Apresentação do projeto para coordenação do CECO.

02 08/06/18 Apresentar pesquisa para equipe e usuários.


Participação na oficina de grafite.

03 30/06/18 Experimentar atividade no território com conviventes.


Visita ao Museu do Pontal.

04 07/11/18 1º grupo com equipe.


TCLE, discussão/definição da forma de registro e da
atividade a ser analisada.
Entrevista sobre como o Ceccozo foi implantado, qual o
trabalho da convivência.
05 13/11/18 2º grupo com equipe.
Oficina de fotos: projeção e debate das fotos e criação
de legendas, afetos alegres e tristes no trabalho.
06 04/06/19 3º grupo com equipe.
Encontro de partilha da carta.
Debate com materiais: fotos reveladas, legendas criadas
e trechos das transcrições dos grupos anteriores.

07 13/08/19 Sarau da Diversidade.


Conversa com pessoas que usam o CECO.
08 05/02/20 Entrevista com coordenadora Ceccozo.

ENCONTROS-PESQUISA-MOVIMENTO POLÍTICO
Dia DATA AÇÃO LOCAL
47

01 03/05/18 Pré-encontro Zona Centro-Sul IPUB –


Botafogo
02 04/08/18 Pré-encontro Zona Norte-Oeste IFRJ –
Realengo
03 10/05/18 I Encontro de geração de trabalho e renda, UERJ –
cultura e saúde mental: políticas públicas, centros Maracanã
de convivência, inclusão social pelo trabalho e
programas de arte e cultura
04 28/06/18 I Fórum dos CECOS do RJ UERJ –
Maracanã
05 29/08/18 II Fórum dos CECOS do RJ Ceccozo –
Campo
Grande
06 04/10/18 III Fórum dos CECOS do RJ MAC –
Niterói
07 31/10/18 Reunião na Frente Parlamentar em defesa ELERJ –
da reforma psiquiátrica Centro
08 28/11/18 IV Fórum dos CECOS do RJ CECO
Trilhos –
Engenho de
Dentro
09 05/12/18 Reunião na Frente Parlamentar em defesa ALERJ –
da reforma psiquiátrica Centro
10 20/02/19 Reunião na Frente Parlamentar em defesa ALERJ –
da reforma psiquiátrica Centro
11 26/03/19 V Fórum dos CECOS do RJ NIC –
Botafogo
12 27/03/19 Audiência Pública sobre PL ALERJ –
cofinanciamento RAPS Centro
13 02/04/19 Reunião com a Comissão Constituição e ALERJ –
Justiça para defesa do PL Centro
14 16/04/19 VI Fórum dos CECOS do RJ Polo –
Jacarepaguá
15 18/05/19 1º Circular da Loucura no Dia da Luta Circo
Antimanicomial Voador –
48

Lapa
16 05/06/19 Reunião com a Comissão de Cultura para ALERJ –
defesa do PL Centro
17 27/06/19 Reunião com coordenadores de saúde SES –
mental do Estado para debate do PL Centro
18 03/07/19 Entrega do Prêmio da Conferência de Fiocruz –
Promoção da Saúde – 1º lugar Manguinhos
19 13/08/19 VII Fórum dos CECOS do RJ CECO
Paula
Cerqueira –
Carmo
20 19/11/19 VIII Fórum dos CECOS do RJ UFF –
Niterói
21 27/04/20 I Fórum dos CECOs do RJ Online Jitsi
aplicativo

ENCONTROS-CONTÁGIO DO PROCESSO DA PESQUISA

DATA NOME EVENTO / TRABALHO INSCRITO LOCAL


01 JUN /2017 ABRASME – Associação Brasileira de Saúde Mental Florianópolis –
UFSC
02 JUL/2018 ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro –
Fiocruz
03 SET/2018 ABRASME – Associação Brasileira de Saúde Mental Brasília – CCUG

04 OUT/2018 Simpósio Franco-Latino-Americano Subjetividade e Trabalho Cuba – Havana

05 ABR/2019 I Conferência de Promoção da Saúde Rio de Janeiro –


Fiocruz
06 JUN/2019 ABRASME – Associação Brasileira Saúde Mental Salvador – UFBA

07 OUT/2019 IV Colóquio Internacional de Clínica da Atividade Bragança


Paulista – UFS
08 NOV/2019 Memórias da Loucura II Rio de Janeiro –
IM
Nise da Silveira
09 DEZ/2019 XVI Colóquio Internacional Spinoza e as Américas Rio de Janeiro –
49

PUC-RJ

ENCONTROS-LIVRO

Anos Livros Autores


01 16-20 Trabalho e poder de agir Yves Clot
02 18-20 Multidão e bem-estar comum Antonio Negri &
Michael Hardt
03 18-20 Ética Benedictus Spinoza
50

O MUNDO MUDOU
(Hamilton Assunção)

O mundo mudou
Tá tudo muito diferente
Para sobreviver
Tem que ter sorte
E ser inteligente
Passar batido
Mesmo sendo seguido
Fazer o bem
Não importa para quem
É a falta de insumos
Para o trabalho no mundo
É uma conscientização
Que somos todos irmãos
Brancos, negros, índios, isolados
É a diversidade
Ocupando seus espaços
Água, terra, fogo e ar
Mata e serra
Rio e mar
Água, terra, fogo e ar
Mata e serra,
Rio e mar
O mundo mudou
51

2 CARTOGRAFIA 1 – ATIVIDADE DE CONVIVÊNCIA E PRODUÇÃO DO COMUM


“Somente na convivência com o outro na cidade somos livres.”
(Chauí, 2019)21

2.1 Território pesquisa-movimento social

Assumimos uma posição junto com (BENEVIDES e PASSOS, 2005) de que


atenção e gestão, assim como clínica e política, se distinguem, mas não se
separam. E foi a partir da experimentação desta pesquisa de doutorado que
pudemos formular a hipótese de que pesquisa e movimento social são atividades
que, ao se misturarem, podem aumentar a potência uma da outra. Entendemos que
a atividade de pesquisa é uma atividade de produzir conhecimento. No caso de
pesquisas que envolvem seres humanos, há uma escolha a ser feita a respeito de
como se posicionar. Podemos nos posicionar lado a lado e pesquisar junto com
determinados sujeitos ou nos posicionar no lugar de quem olha de cima, ou de fora,
e pesquisar sobre determinados sujeitos. Vivenciamos no percurso do doutorado,
uma pesquisa que investiga com trabalhadores lado a lado, do ponto de vista da
atividade, em que eles são encarados não como objetos, mas como sujeitos
protagonistas dos rumos da pesquisa e das transformações do próprio trabalho. E
que ao estar incumbida do trabalho de pesquisar, sou também trabalhadora. A
análise do trabalho da convivência foi realizada em movimento, o que torna
“impossível distinguir pesquisa de intervenção: uma mesma ação do clínico pode
gerar o desenvolvimento de um conceito e um efeito (desejado ou não) no campo”
(OSORIO DA SILVA, 2014, p. 81).
As intervenções construídas durante a pesquisa e apresentadas nas
cartografias em composição foram realizadas no interior dos três CECOs da cidade
do Rio. Elas aconteceram no mesmo ano em que foi deflagrado um movimento
político pela implantação de CECOs no Estado. Reconhecemos que isso não foi
mera coincidência. Os questionamentos, as reflexões e os debates nos pequenos

21 Essa frase foi enunciada em conferência pela professora Marilena Chauí durante o Colóquio
Spinoza e as Américas em dezembro /2019 e se apoia na EIV P73, em que Spinoza afirma: “O
homem que se conduz pela razão é mais livre na sociedade civil, onde vive de acordo com as leis
comuns, do que na solidão onde obedece apenas a si mesmo.” Compreendemos que a convivência
implica criar regras no coletivo, ordenamentos com o outro, e esse exercício é necessário à liberdade.
Assim, a liberdade é possível na cidade, na pólis, na relação, na convivência. Na solidão não
experimentamos a construção de normas comuns, por isso somos menos livres.
52

grupos não estavam descolados de uma pauta mais ampliada, que envolveu outros
atores políticos para além das equipes dos CECOs cariocas.

O debate sobre a construção de outros modos de existir está diretamente


associado à possibilidade de interrogarmos nosso presente. Este parece
oferecer outros desafios, e um deles é podermos passar do plano das
reivindicações para o da elaboração e encaminhamento de propostas de
ação em diferentes frentes. (...) Partimos da ideia de que a transformação
do existente, a possibilidade de invenção de novos modos de viver, se faz
na construção de espaços públicos, como espaços de liberdade (AGUIAR,
1997, p. 98).

Compreendemos o movimento social como uma atividade de produzir


políticas, que é sempre feita entre vários. As pesquisas, de modo geral, não
reconhecem seu caráter político, principalmente por uma ideologia que pressupõe o
imperativo da neutralidade do pesquisador. Entretanto, não podemos dizer que fazer
movimento social e fazer pesquisa são atividades completamente coincidentes, pois
cada uma traz demandas, implicações e produções diferentes. Nesta pesquisa
habitamos um lugar híbrido, talvez um espaço de interseção entre o agir-
pesquisadora e o agir-militante.
Contudo, o que sustenta essa interseção entre pesquisa e militância, a
dimensão comum entre as duas, é a dimensão de politização.

Nas fronteiras, passagens, limites, desertos e limiares urbanos, o ato de


politizar realiza-se no desenho de suas bordas; afirma-se também nas
linhas de corpos e almas, em formas humanas e inumanas; formas onde o
desejo de eternidade e de paz de qualquer estética ou ética não encontraria
morada (BAPTISTA, 2015, p. 190).

Quando começamos o doutorado, em 2016, dada a dura conjuntura política


do país em uma democracia em vertigem, 22 jamais poderíamos supor que
caminharíamos para o fim da pesquisa tendo como resultado um projeto de lei que
cria a Política Estadual de Centros de Convivência no Rio de Janeiro, fruto de um
processo coletivo de debate e produção. Além disso, o trabalho intitulado “Centro de
Convivência e Cultura como dispositivo de promoção da saúde: a afirmação da vida
no coletivo” recebeu o prêmio de primeiro lugar na I Conferência de Promoção da
Saúde da Fiocruz. Quando inscrevemos o trabalho na conferência, não sabíamos

22 Democracia em vertigem é um documentário (2019) da cineasta Petra Costa, indicado ao Oscar,


sobre o processo de impeachment da ex-presidente do Brasil Dilma Rousseff, que foi considerado
como um dos reflexos da polarização política e da ascensão da extrema-direita para o poder.
53

que haveria premiação, portanto, para nós foi uma surpresa o reconhecimento desse
trabalho inscrito em coautoria com trabalhadoras do CECO.
Pensamos ser interessante oferecer ao leitor uma narrativa de como se
processaram esses acontecimentos, mas não no sentido de fornecer uma fórmula
para ser replicada, pois o agenciamento de criação

depende de um clima, de uma escuta potencial, depende de uma linguagem


ambiente, depende de cinquenta mil coisas que não se pode reproduzir,
assim como não se pode reproduzir a Comuna de Paris ou o Maio de 68
(GUATTARI, in UNO, 2016, p. 23).

Compartilhamos a experiência de constituição dos Fóruns dos CECOs para


que ela possa inspirar outras, pelo contágio afetivo. Estamos em consonância com
Spinoza, que faz do itinerário ético “um percurso do conhecimento, que
simultaneamente toma por objeto a afetividade humana e pretende transformá-la, ou
ao menos vivê-la de outra maneira, para viver verdadeiramente” (SÉVÉRAC, 2009,
p. 18). O que buscamos fazer funcionar é um deslocamento dos saberes instituídos
para os regimes de sensibilidade, construir um saber do coração, que não está
separado dos encontros com os saberes formalizados que tivemos nesse percurso.

2.2 O Fórum de CECOs do RJ e o comum

Encontramos no conceito de comum, conforme proposto por Hardt e Negri em


Multidão (2005) e Bem-estar comum (2016), um ponto de ligação com Spinoza. Na
EIV, escólio da proposição 35, ele afirma que “da sociedade comum dos homens
advêm muito mais vantagens do que desvantagens”. E que “por meio da ajuda
mútua, os homens conseguem muito mais facilmente aquilo de que precisam, e que
apenas pela união das suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam por
toda parte” (p. 178).
Gostaríamos de pontuar que a união dessas forças pode ser pensada como
uma potência do comum. Além de evitar os perigos que nos ameaçam, conforme
afirma Spinoza, essa união de forças abre a possibilidade de imaginar e criar juntos
outros mundos, outras maneiras de viver. Quanto aos perigos que nos ameaçam,
certamente eles não são poucos, no que se refere aos desmontes das políticas de
saúde pública no Brasil. Em relação ao SUS e às políticas de saúde mental, a
54

sensação é de que a cada dia os perigos se agravam. No caso do SUS no Rio de


Janeiro, historicamente a cidade ostenta o pior índice de desempenho do SUS
(IDSUS)23 entre as capitais de todo o país.
Por mais que possamos criticar os padrões avaliativos dos indicadores de
desempenho, eles nos servem para elucidar as situações que atravessamos junto
com os trabalhadores nesse percurso. Durante o período de 2016-2019, o SUS
municipal do Rio sofreu ataques muito duros: equipes inteiras demitidas na atenção
básica (cerca de 55 mil trabalhadores), fechamento de clínicas da família, com
destaque para o ano de 2019, em que a Justiça precisou intervir na gestão municipal
em defesa da população desassistida e dos trabalhadores sem pagamento. 24
As fontes que podemos consultar não são fontes oficiais, pois nem a SMS-RJ
nem o Ministério da Saúde produzem mais relatórios públicos sobre os
investimentos em atenção psicossocial. Os últimos dados sobre financiamento e
seus impactos foram publicados pelo Ministério da Saúde em um documento
chamado “Saúde Mental em Dados”, em 2015. O documento foi retirado da página
oficial do Ministério da Saúde e não está mais acessível. Contudo, por meio de
artigos, podemos constatar que antes do golpe de 2016 os dados indicavam um
caminho adiantado na direção da desospitalização e a consolidação de uma atenção
psicossocial essencialmente de base comunitária:

Considerando o investimento em serviços de atenção psicossocial,


especialmente em CAPS, que em 2014 ultrapassam a cifra dos 2 mil, e
alcançam uma cobertura de 0,86 CAPS por 100 mil/habitantes. Os gastos
com hospitais caíram de 75,24% em 2002 para 20,61% em 2013, enquanto
que, revertendo a política, os gastos com atenção psicossocial passam de
24,76% para 79,39% no mesmo período” (AMARANTE; NUNES, 2018, p.
2.072 ).

Outra fonte a que podemos recorrer são os manifestos dos movimentos


sociais que expõem os efeitos nefastos concretos no cotidiano de muitas vidas. O
informe do Núcleo Rio Sem Manicômios intitulado “A saúde mental adoece!”, 25
23 Em 2012, foi divulgada uma avaliação feita pelo Ministério da Saúde em que a cidade contou com
a nota 4,33 no Índice de Desempenho do SUS (IDSUS), o qual pretende avaliar o desempenho de
acesso e qualidade dos serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde no país. Notícia disponível
em: <http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/03/rio-e-capital-com-pior-avaliacao-do-
atendimento-do-sus-diz-governo.html>, acessada em 3/2/2020.
24 Justiça manda bloquear R$ 320 milhões devidos aos mais de 22 mil trabalhadores do SUS sem
pagamento há três meses. Disponível em:
<https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/11/26/mais-de-22-mil-funcionarios-que-prestam-
servico-para-a-saude-do-rio-estao-com-os-salarios-atrasados-justica-manda-bloquear-r-320-
milhoes.ghtml>.
25 Disponível em: <https://www.facebook.com/lutaantimanicomialrj/>. Acesso em: 16 jan. 2020.
55

publicado em 19/12/2019, afirma que os/as usuários/as dos serviços de saúde


mental que recebem a Bolsa Rio (bolsa indenizatória para as pessoas que ficaram
dois anos ininterruptos internadas ou mais antes da lei da Reforma Psiquiátrica)
estavam há dois meses sem receber; alguns CAPS não têm alimentação para os/as
usuários/as diariamente, ou seja, os/as usuários/as estão passando fome; os
serviços residenciais terapêuticos estavam com os aluguéis atrasados, sendo os/as
moradores/as ameaçados/as de despejo, além dos cuidadores sem salário por três
meses; houve CAPS que teve a luz cortada em 2019 porque a Prefeitura não pagou
a conta. A Prefeitura não investe em serviços de base comunitária, mas financia
hospitais psiquiátricos desenhando um aumento no número de leitos. A situação é
grave. Em meio a esse cenário de desmonte do SUS, como preservar forças para
construir? Como não perder nossa capacidade imaginativa, criativa, diante das
terríveis notícias que nos atingem diariamente? Retomando a questão inicial do
projeto desta pesquisa, como o trabalho, em condições tão precárias, pode operar
saúde?
Sigamos pela pista do comum. O comum é aqui pensado como multiplicidade,
como um composto de singularidades, em que essas singularidades estão elas
próprias estabelecidas no comum. O comum não se refere à noção tradicional de
comunidade, mas baseia-se na comunicação entre singularidades, que se manifesta
por meio dos processos sociais colaborativos de produção. O comum não está dado,
não é espontâneo, mas ele é produzido e tende a deslocar as dicotomias entre
indivíduo e sociedade, subjetivo e objetivo, privado e público.
O comum é ao mesmo tempo precondição e resultado da produção da
multidão. Ele é o que configura a substância móvel e flexível da multidão. E multidão
não se refere a uma identidade única de um povo, nem a uma uniformidade das
massas. Mas são as diferenças em comunicação que permitem o comum ser
produzido e o agir em conjunto.
Sem desconsiderar as condições ambivalentes para o surgimento da
multidão, que podem levar tanto à libertação como a um novo regime de exploração
e controle, entendemos a multidão como um projeto de organização política, que só
pode ser concretizado mediante as práticas sociais.
Fica a pergunta: como podemos constituir práticas sociais e movimentos em
que as forças ativas tenham preponderância sobre as forças reativas?
56

Compartilhamos a seguir, passo a passo, a trajetória percorrida pelo Fórum dos


CECOs, em um recorte de tempo de 18 meses (maio de 2018 a novembro de 2019,
em oito edições), entendendo que ele é ao mesmo tempo produto e processo do
movimento que debate o trabalho da convivência.
Apostamos que as transformações acontecem por meio dos encontros, dos
bons encontros. Em 8 de maio de 2018, cinquenta anos depois do maio de 68,
realizamos na UERJ o I Encontro de Geração de Trabalho e Renda, Cultura e Saúde
Mental: políticas públicas, centros de convivência, inclusão social pelo trabalho e
programas de arte e cultura. 26 Pela primeira vez, os CECOs do Estado se
encontraram e suas diferentes maneiras de trabalhar foram discutidas. Éramos mais
de duzentos participantes ligados a cerca de setenta coletivos e/ou instituições
diferentes – uma pequena multidão composta de trabalhadores, usuários, gestores,
familiares, estudantes e militantes, não só da luta antimanicomial e saúde mental
como também de variados campos como arte, cultura e economia solidária.
Antecederam o I Encontro dois pré-encontros, um na Zona Centro-Sul e outro
na Zona Norte-Oeste, com o objetivo de construirmos coletivamente como
organizaríamos as diferentes pautas que estavam por ser debatidas. Ao fazermos os
convites para compor as mesas do Encontro, percebemos uma prontidão enorme
dos profissionais para falarem sobre seus trabalhos. Ficou explícito que o tema do
trabalho que se faz nos CECOs sensibiliza muito. A mesa das experiências mais
parecia uma roda, pois éramos dez pessoas em torno dela. Foram seis experiências
CECO apresentadas em cento e trinta minutos para um público extremamente
atento a cada palavra. Todos escutam o que cada um faz e cada um faz diferente.
Além dessa mesa do debate de experiências, tivemos uma outra que nos
lembrou da dura conjuntura da política de saúde mental pós-golpe de 2016, que
propõe o retorno dos manicômios e do eletrochoque, e que extinguiu o CECO e os
Consultórios na Rua da RAPS. Tomados pelo afeto da alegria da manhã de que
“sim, dá para fazer!” e também pela impressão de que “estamos todos no mesmo
barco e o vento não sopra a nosso favor, vamos juntos mudar os rumos!”, nos
organizamos em quatro grupos de trabalho (GTs) temáticos com um caderno de
questões para debate e formulação de propostas. Na plenária final, reunimos e
lemos publicamente todas as propostas dos GTs. Depois de alguns destaques,

26 Na ocasião do I Encontro, ocorreu também o lançamento do Guia Prático de Economia Solidária e


Saúde Mental - Dá pra fazer!.
57

aprovamos um conjunto de propostas para a confecção de um documento político: a


Carta dos CECOs do Rio de Janeiro. Encerramos esse I Encontro com o embrião da
carta nas mãos e a sensação de que foi um potente encontro. Contudo, aquele dia
não fora suficiente. Havia muitos desafios a serem enfrentados juntos pela frente.
Deliberamos, então, a criação do Fórum Permanente de Centros de Convivência do
Estado do Rio de Janeiro. Desse I Encontro foram gerados três produtos: a Carta, o
Fórum e, posteriormente, o projeto de lei.27
No I Fórum, também na Uerj, tínhamos uma pauta e nenhuma certeza. Com
meia hora de início precisamos mudar de sala, pois já éramos mais de cinquenta
pessoas. Avaliamos o I Encontro e passamos para a Carta, que foi debatida em seus
termos e composta por onze propostas organizadas em três eixos: legislação e
financiamento; infraestrutura; e formação. Foi sugerido que criássemos uma
comissão dedicada à legislação, e logo seis pessoas se ofereceram para isso.
Pactuamos que a carta seria impressa e assinaturas de apoio seriam recolhidas.
Combinamos que os fóruns seriam itinerantes, de modo a ampliar a participação dos
conviventes e comunidades locais. Essa também foi uma via para que todos
pudessem conhecer o bairro, o acesso, os ares e os lugares de cada CECO, usando
o método de raciocinar com os pés,28 aquele que caminha e vive o cotidiano.
O II Fórum aconteceu no CECO da Zona Oeste, em Campo Grande, que tem
a especificidade de funcionar dentro de uma Lona Cultural. 29 Os temas da pauta
prevista eram: mobilidade urbana, comercialização de produtos da economia
solidária e estratégias de divulgação da carta. Contudo, além da pauta prevista,
havia uma pauta real que era saber como é a relação nos territórios com as Lonas.
O coletivo presente começa a pensar em estratégias de implementação de CECO
via outras Lonas Culturais, assim como se deu naquela exitosa parceria em Campo
Grande. A ideia é de que oficinas que aconteciam dentro do CAPS possam ocorrer
27 Nos anexos, disponibilizamos na íntegra a Programação do I Encontro, a Carta e o Projeto de Lei
4.563/2018.
28 Raciocinar com os pés é um termo que muito inspira o Fórum. Está publicado em Venturini (2010)
e enunciado como Pensar com os pés por Tosquelles no vídeo em que diz: “O que conta não é a
cabeça. São os pés! Você tem de saber onde põe os pés. São os pés! São eles os grandes leitores,
do livro do mundo, da geografia. Não é sobre a cabeça que você anda. Tenho de saber onde ponho
os pés. Os pés são o lugar de recepção do que virá ser o tônus. Por isso é que toda mãe começa
fazendo cócegas nos pés. Trata-se de ficar de pé, de fazer uma distribuição do tônus, para ir para
algum lugar. Mas é com os pés que você vai, não com a cabeça!” Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=plR9t3fA3QQ>. Acesso em: 22 jan. 2020.
29 Lona Cultural é o nome comum de uma série de teatros de arena cobertos, administrados pela
Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro, onde ocorrem atividades de cunho
cultural como shows, peças teatrais, oficinas, feiras de arte e artesanato, cursos etc.
58

fora, nas Lonas, e serem abertas a toda comunidade. Nessa cena, vemos
claramente como o Fórum possibilita um diálogo que amplia o poder de ação do
coletivo de trabalhadores não só dos CECOs, mas também dos CAPS. É sugerida
ainda a criação de um site30 como estratégia de comunicação da carta e divulgação
do Fórum no mundo virtual.
No Museu de Arte Contemporânea, organizado pelo CECO de Niterói,
aconteceu o III Fórum. Das mais de setenta pessoas, cada uma se apresentou
dizendo seu nome e o que a tinha movido até ali, o que fez emocionar muitos
conviventes. Instaura-se um modo de fazer Fórum, dividido em dois momentos: um
primeiro tempo focado no local, em que o CECO anfitrião apresenta seu modo de
fazer convivência e suas parcerias; e um segundo tempo focado no geral, em que
discutem-se os problemas comuns a todos e se pensam estratégias coletivas. A
questão do que é atividade de convivência foi debatida intensamente; nos
concentramos em criar respostas para a questão: o que deve ter no Centro de
Convivência que não pode faltar de jeito nenhum? Conversas, pessoas que
entendem a gente, união, fidelidade, harmonia, apoio, acolhimento melhor,
coordenador, supervisor, psicólogo, apoio da Prefeitura, van, ônibus, música,
oportunidade de cursos e de trabalho, vale-social, registro de ações realizadas. O
tema do vale-social/passe livre retorna como algo imprescindível para a circulação
na cidade. Essa é uma bandeira de luta não só dos Centros de Convivência, mas
que se atualiza na essencialidade desse direito para a realização das práticas
culturais, artísticas e de lazer no trânsito entre os espaços públicos. Surge então a
palavra tratamento, pois se é para tratamento, esse direito de transitar no transporte
sem pagar parece estar assegurado, ainda que com restrições. Algumas falas
defendem o Centro de Convivência como tratamento. É isso que se quer? Afirmá-lo
como tratamento? Quem trata trata o quê? A quem o Centro de Convivência se
dirige? É afirmada a necessidade de diálogo entre equipes CAPS-CECO. No fim,
temos uma entre muitas definições possíveis do que é tratamento enunciada por
quem usa o CECO: “tratamento é saúde, é se soltar para o mundo, é viver a vida
cotidiana.”
Os saberes formalizados, acadêmicos, são desmontados e remontados nos
encontros com quem usa o dispositivo. Se afirmamos que conviver também é

30 <https://forumcentrosdeconvivenciadorj.wordpress.com/>. Neste site, é possível encontrar a carta


de propostas e os relatos expandidos de cada Fórum que também estão nos anexos.
59

manejar controvérsia, que estamos ali no Fórum convivendo, é preciso operar essa
ética, em que múltiplas forças em tensão coemergem. Essa passagem nos remete a
Di Ruzza e Schwartz (2003), que ao correlacionarem a atividade militante, no caso o
saber sindical e a elaboração de saberes, se baseiam na hipótese de que os
saberes produzidos na confluência da experiência militante com a transmissão de
conhecimentos são marcados por uma especificidade que possuem uma tripla
exigência: 1) exigência pedagógica, pois devem ser assimilados pelos militantes,
pelo conjunto de trabalhadores; 2) exigência analítica, uma vez que a organização
sindical tem a obrigação de compreender e interpretar o movimento da sociedade e
do mundo do trabalho; 3) exigência prático-normativa, a fim de se darem os meios
para agir na e sobre essa sociedade e esse mundo. Em nossa análise, embora o
Fórum não seja uma organização sindical, mas sim um movimento político, ele está
sujeito a essa tripla exigência que os autores destacam. Há pesquisadores,
professores, estudantes universitários no Fórum; as dimensões pedagógica e
analítica interferem nas exigências prático-normativas, como por exemplo na
elaboração de documentos políticos. A Carta de Propostas dos CECOs,
transformada em abaixo-assinado, recebeu centenas de assinaturas à caneta –
cada pessoa que assina se contagia pela causa. Propusemos encaminhá-la para a
Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica da Alerj. O fato de o
movimento ganhar cada vez mais participantes produz alegria no coletivo.
Aprendemos com Spinoza que “o desejo que surge da alegria é, em igualdade de
circunstâncias, mais forte que o desejo que surge da tristeza” (EIV, P18, p.168).
Sentimos a predominância das forças ativas sobre as reativas.
Na sua IV edição, o Fórum se alocou no CECO Trilhos do Engenho, no
Engenho de Dentro. Contou com a participação de mais de oitenta conviventes,
alguns que passaram por internações psiquiátricas longas e outras mais curtas.
Muitos falaram das mudanças positivas que perceberam em suas vidas a partir da
participação no CECO. Uma das falas mais marcantes foi: “Antes eu era bicho do
mato, não conseguia ir no portão; hoje vou no Centro da cidade, sou apaixonado
pela vida que tenho!” No segundo tempo, o esboço do texto do projeto de lei
formulado pela comissão de legislação foi apresentado e discutido. O tema da
composição da equipe do CECO trouxe muitas controvérsias a serem manejadas.
Coemergiram questões complexas: profissional com ensino fundamental pode ser
60

contratado? Precisa ter ensino médio completo? Artesanato requer ensino


formalizado? Mencionar ou não no texto da lei as 14 profissões da área da saúde?
Quais entram, quais ficam de fora? Vivemos intensamente uma experiência
democrática, uma democracia direta, sem representante, em que a voz de todos,
seja lá quem fosse, era ali ouvida e considerada como de direito. Como afirma
Spinoza no TP CII17:

Esse direito, que é definido pelo poder da multidão, costuma-se chamar


ESTADO, e está em plena posse desse direito quem por consentimento
comum zela pelas coisas públicas, isto é, estabelece leis, interpreta-as,
abole-as, fortifica as cidades, decide da guerra e da paz, etc. Se tudo isto se
faz por uma assembleia saída da massa do povo, o Estado chama-se
DEMOCRACIA.

A experiência democrática da construção do projeto de lei que cria a Política


Estadual dos Centros de Convivência da Rede de Atenção Psicossocial no Estado
do Rio de Janeiro (PL 4.563/2018) nos convoca a elencar três diferentes sentidos
das políticas públicas. O primeiro diz respeito às políticas relacionadas com um
determinado governo, ou mandato; a política é pública, uma vez que atende à
população, mas tem seu fim marcado quando se encerra uma dada gestão. O
segundo sentido tem a ver com o Estado; nesse caso, a política pública é a política
estatal que está para além do fim de um governo. Ela tem mais institucionalidade do
que as políticas de governo, sendo incorporada de tal forma que não pode ser
facilmente extinta quando uma dada gestão termina. O terceiro sentido, aquele que
exercitamos na experiência do Fórum, diz respeito às políticas públicas que se
referem a uma gestão comum (HARDT; NEGRI, 2005). O sentido de público se
atrela à participação popular que constrói a política ativamente, e que neste caso
promove saúde por ser também uma atividade de convivência no contexto dos
CECOs. Os Fóruns passaram a ser incorporados como uma atividade da agenda
cultural de alguns CECOs, indicando a inseparabilidade entre gestão e atenção.
O Fórum seguinte, em sua quinta edição, foi organizado pelo Núcleo de
Intervenções Culturais do IMPP,31 em Botafogo. Muitos projetos artístico-culturais da
Zona Centro-Sul se fazem presentes – o tema do carnaval é marcante. Percebemos
que ainda que não haja um CECO implantado pela Prefeitura naquela área, a Praia
Vermelha tem uma vocação cultural fortíssima. Há um projeto no papel sobre um

31 Instituto Municipal Philippe Pinel.


61

CECO na Zona Sul há muitos anos. Tivemos a notícia de que o PL 4.563/2108 foi
protocolado na Alerj no fim de 2018 e iria tramitar por cinco comissões antes de ir
para votação. Pactuamos acompanhar esse processo nos encontrando com essas
comissões, quando necessário. Era véspera da audiência pública na Alerj que iria
pautar o Estado como cofinanciador da RAPS e estávamos mobilizados com ela.
Fizemos uma faixa que clamava pela aprovação do PL 4.563/2018; ela foi
pendurada na Alerj durante a audiência.
O VI Fórum foi realizado no Polo Experimental de Convivência, Educação e
Cultura, em Jacarepaguá. O clima do mês da luta antimanicomial já ocupava o
coletivo – o 18 de maio, dia da luta antimanicomial, seria celebrado no Circo Voador,
um espaço histórico de resistência da arte na cidade desde a década de 1980. O
corpo Fórum estava determinado em si mesmo e agia na afirmação de uma política
da convivência. Conversamos sobre fazer do Circo Voador, no 18 de maio, um
grande Centro de Convivência, e assim foi. A organização e a realização do evento
Circular da Loucura no Circo Voador foram uma alegre produção comum que
concentrou a participação de movimentos diversos: luta antimanicomial,
agroecologia, feminismo negro, cultura popular, população em situação de rua, entre
outros. No sentido spinozista, nessa experiência há uma concordância entre os
diferentes movimentos pela potência, pela afirmação da vida em liberdade, pela
afirmação da convivência na cidade, como política. Quando dizemos que as coisas
concordam em natureza, compreende-se que concordam em potência, e não em
impotência ou em negação, conforme na EIV, P.32.
O VII Fórum foi no Centro Cultural Professor Jair Nunes Macuco, que sedia o
CECO na cidade de Carmo, interior do Estado, a duzentos quilômetros da capital.
Dois ônibus com mais de quarenta e duas vans de 15 pessoas se moveram do Rio e
de Niterói para conhecer a experiência de Carmo, que fechou um manicômio e
constituiu uma potente e articulada rede de saúde. As palavras proferidas na
abertura pela coordenadora de saúde mental da cidade, Erica Victorio, traduzem
algumas das forças que nos moveram até lá:

“Aos Conviventes
Quero agradecer a quem veio neste mundo de braços abertos pra abraçar o vizinho, o
louco, o amigo, o irmão, o religioso, o ateu, o sem-teto, o com-teto, o livre, o preso…
62

Bem-vindo aqui quem está disposto a quebrar os muros do preconceito, da exclusão


social, da desigualdade racial, e lutarmos até o fim de nossa existência
por nossos direitos.
Somos militantes, sim, militantes da vida, contra qualquer discurso de ódio, de
desvalorização da pessoa seja de que origem for, pois temos direito à vida e
de estarmos nesse mundo da forma mais digna possível;
Não podemos aceitar como destino, muito menos pensar que a meritocracia fez o filho
do doutor vencer na vida e que eu, meu filho e meu neto precisamos servi-lo;
Precisamos lutar pela igualdade social, pela liberdade do louco, do diferente, não somos
soldadinhos de chumbo que precisamos passar por um sistema de qualidade
pra saber se servimos ou não;
Todos temos valor, independente se produzimos para este capitalismo selvagem ou não;
o valor não está só nos bens de consumo, na produção de capital;
Nosso valor está na cultura, na arte, na música, na criatividade, no trabalho que expande
a alma e liberta a mais refinada loucura que existe dentro de cada um de nós.
Sejam abertas as cortinas da mais saudável e inocente loucura!
Bem-vindos ao VII Fórum dos Centros de Convivência do Estado do Rio de Janeiro.”

A experiência do Fórum em Carmo deixou notável que, no propósito do


Fórum, além de um debate da esfera macropolítica, está embutida a atividade de
convivência. Passamos mais tempo viajando, ouvindo, tocando, cantando, fazendo
música, poesia, teatro, feijoada completa do que nos dedicando à pauta. É feito um
convite a determinado modo de fazer política que compreende a atividade de
convivência como um trabalho afetivo antimanicomial, aquele trabalho que nos
provoca a “construir conceitos e inventar práticas que operem em pleno campo
produtivo de sociabilidade e de vida” (LANCETTI, 2008, p. 124).
Contudo, as dimensões micro e macropolítica 32 são inseparáveis. Não
podemos negar que o Fórum também se ocupa com o fato de os CECOs não terem
financiamento nem recursos próprios (não têm destinação orçamentária), de
funcionarem sem o reconhecimento da gestão (não têm cadastro no SUS: CNES),

32 Os termos micro e macropolítica aqui se alinham com os propostos por Guattari e Rolnik (1989)
em que a questão micropolítica se refere à questão de uma análise das formações do desejo no
campo social. Eles chamam de molar o modo como se cruza o nível das diferenças sociais mais
amplas. Porém, entre esses dois níveis – macropolítica (molar) e micropolítica (molecular) – não há
uma oposição distintiva; as lutas sociais são, ao mesmo tempo, molares e moleculares.
63

de não haver parâmetros para a realização desse trabalho (não têm portaria
nacional que regulamenta). Por isso, o VII Fórum também foi espaço para pautar a
participação na 16ª Conferência Nacional de Saúde, por meio de dois delegados
eleitos, que levaram uma moção em prol dos CECOs. A moção contou com mais de
90% de aprovação. Os participantes do Fórum na Conferência Nacional se
articularam com trabalhadores de CECOs de outros estados visando à mobilização
para um futuro Encontro Nacional de CECOs. Na ocasião desse Fórum, o PL
4.563/2018 já estava aprovado em quatro das cinco comissões da Alerj.
O último Fórum de 2019, o VIII, aconteceu na UFF, no Auditório Marielle
Franco, no campus do Gragoatá. Esse Fórum ocorreu nove meses depois do
primeiro do ano, e é interessante ver que entra em ação o Coletivo Convivências da
UFRJ no campus Praia Vermelha, que pretende pensar e trabalhar vivências que
pensem a coletividade e o conviver, em diálogos com as atividades e os estudos do
dispositivo Centros de Convivências do Sistema Único de Saúde. Ele nasce
exatamente em uma área da cidade em que não existe CECO, mas tem um projeto
no papel há muito tempo para existir. Em nossa análise, o surgimento desse coletivo
é resultado do desenvolvimento da capacidade dialógica dos trabalhadores
propiciada por diversos espaços, entre eles o Fórum. Mais uma vez confirmamos a
hipótese da atividade de convivência como produção do comum.
O percurso narrado serve para explicitar como a atividade de convivência é
constituída pela construção desse plano comum, um plano em que um corpo social
se reapropria de sua potência criadora, de seu conatus, e é capaz de agir, de
transformar a realidade. Chegamos, então, à formulação da tese de que a atividade
de convivência é a produção do comum, desse plano que é ao mesmo tempo “aquilo
que partilhamos e em que tomamos parte, pertencemos, nos engajamos”
(KASTRUP; PASSOS, 2014, p. 21).
Esse cenário está colocado em tempos de epidemia das drogas psiquiátricas,
de medicalização e patologização da vida, de ataques ao SUS e à democracia.
Segundo Negri e Hardt (2016), o neoliberalismo e sua crise instauraram algumas
figuras da subjetividade, que destacamos em nossa análise: 1) o endividado, que é
produzido pela hegemonia das finanças e sofre com o empobrecimento da vida que
foi vendida ao capital; 2) o mediatizado, produzido pelo controle das informações e
que sofre por sua atenção estar constantemente absorvida pelas telas; 3) o
64

securitizado, produzido pelo regime de (in)segurança no estado de exceção, que


sofre em ser vigia e vigiado, conduzido pelo medo; e 4) o representado, produzido
pela corrupção da democracia.
Diante desses problemas, pensamos que urge nos encontrarmos, urge
fortalecer o comum. O Fórum foi se delineando como um mesmo espaço em que se
fala sobre os efeitos da experiência CECO na vida de cada convivente e se constrói
política pública. Quando usamos a palavra con-viventes, estamos fazendo uma
torção. Reconhecemos que embora haja diferenças entre os diversos lugares de
enunciação (usuário, trabalhadores dos CECOS e de outros dispositivos, gestor,
familiar, estudante, parceiros, lugar nenhum), ao propor que somos todos con-
viventes procuramos borrar essas fronteiras instituídas, de modo que todos possam
se transformar na experimentação de outros lugares. Esse traço aponta para a
potência da multiplicidade. Quanto mais pudermos entrar em contato com aquilo que
é novo e é diferente, mais potentes nos tornaremos (EIV, P38).
Parece que existe aí um fio da navalha. No processo constituinte por uma
política da convivência, afirmamos a vida, a liberdade e a alegria que se produz nos
encontros. Contudo, estamos cientes dos riscos da servidão em nome da liberdade.
Não sabemos o que está por vir, o que pode resultar depois da aprovação do PL
4.563, por exemplo. Confiamos na potência do comum para romper com as
subjetividades assujeitadas: que possamos deixar de ser endividados e criar outras
interdependências produtivas; que possamos deixar de ser mediatizados e quebrar o
feitiço das telas inventando outras formas de nos comunicar que fortaleçam os
afetos políticos; que possamos deixar de ser securitizados e nos libertar deixando de
alimentar e ser alimentados pelo medo; que possamos, em vez de nos posicionar
como representados, nos constituir e falar com nossa própria voz no exercício das
ações democráticas.
A experiência com o Fórum nos fornece três valiosas pistas a respeito da
atividade da convivência, as quais também podem ser úteis na construção de
políticas e movimentos: 1) ABERTURA – estar aberto à participação de todos, não
restringir; 2) ITINERÂNCIA – movimentar-se sem se fixar em um mesmo lugar; 3)
MULTIPLICIDADE – desejar as diferenças e não obstruir o trânsito entre elas.

2.3 Transversalidade e atividade de convivência


65

Para Guattari (1987, p. 96), a transversalidade se define como uma “dimensão


que pretende superar os dois impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma
simples horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicação máxima
se efetua entre os diferentes níveis e sobretudo nos diferentes sentidos”. O conceito
de transversalidade está em oposição a uma verticalidade e a uma horizontalidade.
Na verticalidade, as diferenças sobressaltam em separação; ela funciona pela
hierarquia. Usuário usa. Trabalhador trabalha. Pesquisador pesquisa. Gestor gere.
Estudante estuda. Professor ensina. Na horizontalidade, há uma junção pela
igualdade, a semelhança une, a identidade aproxima, faz um só corpo, uma
corporação. O Fórum reúne pessoas que lutam por uma sociedade sem
manicômios, que defendem o SUS, a educação pública, gratuita e de qualidade, a
cultura e a liberdade de expressão. Na transversalidade, as diferenças estão ativas
em conjunção, em composição. A ampliação do grau de transversalidade se dá
quando a comunicação não se reduz aos dois eixos tradicionais, a verticalidade da
hierarquia e a horizontalidade do corporativismo, e um eixo transversal pode se
constituir.
Quando formula o conceito de transversalidade, Guattari está ocupado com a
clínica, com a terapêutica institucional; ele serve para “problematizar os limites do
setting clínico, definindo esse conceito como um aumento dos quanta
comunicacionais intra e intergrupos em uma instituição” (PASSOS; BARROS, 2009,
p. 26). O método cartográfico nos convoca a descrever, intervir e criar efeitos-
subjetividade a um só tempo; é aqui um método de pesquisa, e não se reduz a um
contexto de setting clínico.
Ao longo da tese, damos destaque aos processos de desenvolvimento da
atividade e da ampliação do poder de agir dos trabalhadores. Contudo, não
gostaríamos de deixar de fora o que pudemos recolher sobre o trabalho da
convivência na relação com outros atores dessa história. Ao analisar a experiência
66

do lugar de participante do Fórum, evoco algumas cenas que compreendo como


sinalizadoras da transversalidade na atividade de convivência.

2.3.1 (Trans)Formação de quem forma no CECO: a professora universitária

Os CECOs têm funcionado como espaço de formação de estagiários e


residentes da área da saúde e arte, ocasionalmente. 33 Uma professora universitária
falou publicamente sobre seus medos que fundamentavam estigmas e estereótipos
em relação à loucura e como esses medos foram diluídos por meio da atividade de
convivência no CECO. Atitudes como não ficar de costas para os usuários, evitar
ficar sozinha com eles, imaginar ser agredida fisicamente são apenas alguns dos
sinais de que possuir ensino superior, ser pós-graduada e dispor de vasto
conhecimento formalizado não nos garante uma experiência livre de preconceito no
encontro com esse outro que nos é estranho. Ocupar a posição de quem forma nem
sempre abre caminho para a desterritorialização. Com os pés bem fincados nos
saberes que oferecem solo seguro, não são todos os professores que são capazes
de enunciar, perante os estudantes que formam, as transformações e os
deslocamentos que os processos de formação provocam em si mesmos. O mais
frequente por parte dos docentes é apontar a mudança operada nos estudantes, nos
trabalhadores, nos usuários, ou seja, no fora de si. A verticalidade da hierarquia
professor-ensina-aluno-aprende foi quebrada com a experiência da convivência. A
transversalidade emergiu quando docentes, discentes, usuários e trabalhadores
produziram novas subjetividades em comunicação. Desse modo, no encontro com a
professora, me senti convocada a perguntar-me também: em que a pesquisa
deslocou os saberes que me ofereciam esse solo seguro? Essa capacidade
interrogativa é condição para a produção de subjetividade, entendida como “o
conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas
estejam em posição de emergir como território existencial autorreferencial, em

33 As coordenações dos CECOs podem optar por receberem ou não estagiários do programa
municipal acadêmico bolsista (da área da saúde) e residentes multiprofissionais em saúde mental
(graduados em psicologia, enfermagem, terapia ocupacional, serviço social e educação física). O
Polo Experimental conta com um programa de residência artística. Além disso, outras parcerias são
feitas localmente entre CECOs e universidades que permitem o estágio extracurricular. No projeto de
lei 4.563/2018, no artigo que especifica o que compete ao CECO, foi proposto que o CECO sirva
como espaço de formação profissional (estágio e residência multiprofissional) em parceria com
instituições de ensino e pesquisa.
67

adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva”


(GUATTARI, 1992, p. 19).

2.3.2 (Trans)Mutação de quem usa o CECO: a jovem que busca aula de teatro

Uma cena narrada por um oficineiro elucida o processo de transmutação de


quem usa o CECO. Uma jovem chega até a Lona Cultural em busca de aula de
teatro. A expectativa dela e de sua mãe é que ela possa desenvolver seu talento
como atriz e, futuramente, consiga algum papel em emissora de televisão. Ao chegar
na aula de teatro e se depararem com a diversidade de modos de existência que
compõem o grupo, a jovem e sua mãe levam um choque. Aos poucos, a convivência
acontece, as diferenças continuam ali; contudo, a maneira como cada um lida com a
diferença vai se alterando. Aquelas expectativas que tinham sido projetadas no início
vão se desconstruindo. Passa a importar mais a experiência que está acontecendo
ali, que está sendo vivida, do que aonde vai se chegar depois. As pessoas que
pareciam tão estranhas vão se tornando familiares. As diferenças estão ativas, em
conjunção, lado a lado, nos ensaios, na criação do roteiro, na formação de duplas,
nos exercícios de improvisação, na definição dos papéis. Estigmas vão sendo
quebrados, vínculos vão sendo criados, e na apresentação final da peça, todos que
se abriram para a convivência saem transmutados. Contudo, nem todos os pais que
levam o seu filho considerado normal para fazer teatro dão continuidade quando
enxergam no CECO outra criança gritando, correndo, girando. Alguns tiram o filho da
aula de teatro, e a convivência é interrompida, ou nem se inicia. Isso também serve
como um elemento para se pensar que a transversalidade pode ter seu grau
reduzido ao mínimo, quiçá a zero, quando simplesmente não é possível que as
diferenças estejam lado a lado.

2.3.3 (Trans)Missão de quem se avizinha ao CECO: o vizinho, dono da academia

Em nossa visão, o fato de contar com a presença de parceiros-vizinhos do


CECO no Fórum que se deslocaram até lá para debater junto a experiência da
convivência já é, em si, um sinalizador de transversalidade. Em diálogo interior, me
perguntava: o que move alguém para suspender seus compromissos e ir até aquela
68

roda compartilhar com outras pessoas – em sua maioria desconhecidas – como é


sua experiência na relação com o CECO? Sem ter certeza dessa reposta, apenas
escutei aberta o dono da academia de ginástica, que disse: “Ela veio me fazer um
pedido e acabou me fazendo um favor!” Ela é a coordenadora do CECO, o pedido é
para usar a sala da sua academia de ginástica para oferecer aula de ioga
gratuitamente para os moradores do bairro, e o favor é ter aumentado o movimento
da academia, ter gerado novas matrículas em outras modalidades oferecidas ali. A
academia de ginástica é um espaço privado, que o CECO, ao firmar uma parceria,
opera uma função de publicização nesse ponto do território. Decorre daí a
transmissão de uma estratégia e de uma política, da estratégia de avizinhamento e
da política da convivência. Não é por uma hierarquia, por uma relação vertical, que o
empresário se move até o Fórum. Tampouco é por uma igualdade, por uma relação
horizontal, pois ele não mantém nenhuma relação com o movimento antimanicomial.
A transversalização operada pelo CECO no território faz o dono da academia ir até o
Fórum transmitir a experiência que acontece com ele, com seus clientes no bairro
onde vivem.

2.4 Desafios para atividade de convivência: produção do comum e da saúde


dos trabalhadores

Começamos a pesquisa instigada pela saúde dos trabalhadores, buscando


investigar como o trabalho dos CECOs pode operar saúde para os trabalhadores
que nele atuam. A pesquisa em si, como aventura pela estrada do conhecimento,
nunca termina, mas há um ciclo chamado doutorado que um dia se encerra. A
atividade de convivência, mediada pelo Fórum, produziu saúde para os
trabalhadores no sentido de que eles foram capazes de criar outras normas para a
vida no trabalho a partir dos debates coletivos. Em um contexto municipal em que a
saúde mental adoece, os participantes puderam encontrar ali uma pequena brecha,
um pouco de possível para não sufocarem.
Podemos afirmar que o Fórum é um produto dos tempos que vivemos. O
projeto neoliberal – e sua crise – nos forçou a inventar saídas para o que se torna
insuportável. A convivência como uma ação política se tornou uma atividade de
primeira necessidade. O percurso traçado nesses quatro anos encontram eco nas
69

palavras de Rolnik (2018) quando ela afirma que não basta resistir
macropoliticamente no atual regime, é preciso agir para reapropriarmo-nos da força
de criação e cooperação. E essa reapropriação do impulso de criação só se efetua
ao incidir sobre as ações do desejo. O Fórum se constitui como uma comunalidade
de diferenças transitórias. É resultado de infinitas conexões e ao mesmo tempo cria
novas e indeterminadas ligações; novos pontos de interlocução podem ser sempre
acionados e adicionados. O Fórum, assim como o CECO, funciona pela lógica da
adição: Centro de Convivência E Cultura; E Cooperativismo; E Arte; E Trabalho...
Niterói E Rio E Carmo E Macaé…
Por fim, o principal desafio dos tempos que vivemos é descolonizar
inconscientes (ROLNIK, 2018). É preciso que sejamos capazes de desanestesiar
nossa vulnerabilidade às forças. É preciso estarmos conectados à potência, à
perseveração no ser, ao conatus coletivo. A experiência com os Fóruns nos mostrou
que mesmo em um cenário de crise, um cenário de democracia em vertigem, é
possível construirmos experiências democráticas, experiências em que cada um
possa se expressar com sua própria voz, sem ter alguém que fale por nós. Isso só é
possível se é criado um comum sensível, um afeto político de que estamos todos no
mesmo barco que resiste ao constrangimento e ao embrutecimento que o projeto
neoliberal tenta nos impor. Para isso, é necessário acolhermos a fragilidade do
estado instável, sem interpretá-la como coisa ruim, nem ceder à vontade de
conservação das formas de existência (ROLNIK, 2018).
A arte-cultura funciona como motor da ativação da sensibilidade, então nos
fóruns não dispensamos a declamação de poesias, música, teatro, entre outras
expressões de conexão com o sensível. A cultura tem seu sentido originário como
cultivo, "como uma ação que conduz à plena realização das potencialidades de
alguma coisa ou de alguém. " (Chauí, 2009, p.24)
O Fórum é movido pelo desejo de se encontrar, de partilhar, de criar. Nada
garante que aquela edição que acontece não seja a última. Seguimos em frente
abertos a experimentar a cada vez a instabilidade de um coletivo que se sustenta no
fio tênue da imaginação criadora de novas possibilidades de (r)existirmos juntos pela
convivência. Na próxima cartografia, seguimos pelo fio da militância. Vamos nos
concentrar na cidade do Rio de Janeiro, buscando montar no cenário as forças
70

precursoras dos CECOs na conversa com militantes históricos da luta


antimanicomial.
71

RIO 40 GRAUS
(Fernanda Abreu)

Rio quarenta graus


Cidade maravilha
Purgatório da beleza e do caos

Capital do sangue quente do Brasil


Capital do sangue quente
Do melhor e do pior do Brasil
Cidade sangue quente
Maravilha mutante

O Rio é uma cidade de cidades misturadas


O Rio é uma cidade de cidades camufladas
Com governos misturados, camuflados, paralelos
Sorrateiros ocultando comandos

Comando de comando submundo oficial


Comando de comando submundo bandidaço
Comando de comando submundo classe média
Comando de comando submundo camelô
Comando de comando submáfia manicure
Comando de comando submáfia de boate
Comando de comando submundo de madame
Comando de comando submundo da TV
Submundo deputado – submáfia aposentado
Submundo de papai – submáfia da mamãe
Submundo da vovó – submáfia criancinha
Submundo dos filhinhos

Na cidade sangue quente


Na cidade maravilha mutante

Rio quarenta graus...

<https://www.youtube.com/watch?v=AhuJ3dUVQvc>
72

3 CARTOGRAFIA 2 – CONVERSAÇÕES MILITANTES: MONTAGEM DO


CENÁRIO

“Os Centros de Convivência e Cooperativa não transformarão o mundo, mas


o mundo só se transformará com projetos deste tipo.” (Paulo Freire)

O propósito deste texto é apresentar os movimentos que antecederam a


constituição dos Centros de Convivência e Cultura no Rio de Janeiro. Ao pesquisar
as experiências, sempre moventes, também percorremos a história da luta
antimanicomial, a história da reforma psiquiátrica, a história da rede de atenção
psicossocial nessa cidade.
Elegemos conversar com algumas pessoas que, no período escolhido
(década de 90 para cá), ativamente interferiram nas políticas públicas. Com suas
palavras, obtivemos elementos para a composição de UMA versão dessa história.
Procuramos compartilhar os movimentos, as tensões, as maneiras de fazer, as
bandeiras de luta, os impasses, as conquistas e os desafios de uma determinada
época.
A ideia de entrevistar essas pessoas que expressam uma participação
marcante surgiu de um encontro no NUTRAS (Núcleo de Estudos de Trabalho
Saúde e Subjetividade) no qual discutíamos sobre o quanto a história da reforma
psiquiátrica já foi contada e recontada muitas vezes em várias produções
acadêmicas. Mesmo sabendo que a história não está em algum lugar guardada no
baú, que ela se transforma ao ser contada, questionamos: em que contribuiria nesta
tese recontar essa história? De que maneira ela pode comparecer? Acreditamos ser
infrutífero novamente repetir as mesmas palavras que já foram escritas apenas para
cumprir com um formalismo acadêmico. Ainda que a cada vez a história seja
contada de forma diferente, pois o passado se atualiza no presente modificado,
parece ser uma mesma história.
Indagávamos também sobre como podemos inventar outros modos de se
apresentar um cenário. Realizar revisão bibliográfica é um caminho de situar o leitor,
valorizar e referenciar produções anteriores ao estudo de um dado tema. Desse
modo, além de levantar o que foi produzido sobre a saúde dos trabalhadores da
saúde mental, do centro de convivência e rede de atenção psicossocial, dedicamo-
73

nos a procurar não apenas textos, mas também algumas pessoas. Pareceu-nos
interessante criar um novo modo de começar a escrever a tese, inaugurar a escrita
pela fala.
Queremos falar com. Ao considerar que algumas das referências
bibliográficas sobre os temas centros de convivência, reforma psiquiátrica e luta
antimanicomial estão vivas e vívidas, acessíveis ao nosso contato, buscamos
escutá-las, por meio de entrevistas, sobre o que pensam no presente a respeito do
que ajudaram a construir com seu trabalho em outros tempos.
Como essas pessoas foram escolhidas? Qual critério? É possível arriscar
dizer que foram escolhidas por serem reconhecidamente a favor da luta
antimanicomial, por terem longa trajetória profissional no campo da saúde mental,
pelos lugares que ocuparam e pela implicação que publicamente expressam com a
construção de uma sociedade sem manicômios.
Trata-se de pesquisar fontes escritas e faladas para produzir novas falas e
escritos, acompanhando esse processo antecedente aos centros de convivência no
Rio. Não tínhamos ideia de como essas entrevistas seriam perturbadoras, de como
elas operariam deslocamentos nas maneiras de pensar e de pesquisar, antes
mesmo de o trabalho de campo nos CECOs iniciar. As vozes não foram uníssonas
em torno das questões tratadas; trouxeram controvérsias e nos convocaram a
operar um trabalho de colocá-las em diálogo. Quando se pretende escapar de não
contar o que já esta contado, já se conta uma nova história. Se antes de fazer as
entrevistas tínhamos a expectativa de encontrar e unir peças de um quebra-cabeça
para formar uma imagem para o leitor, depois de elas acontecerem temos a
impressão de que as peças não se encaixam, e de que o que temos não são peças
já prontas, previamente desenhadas, com formas definidas para se encaixarem, mas
temos cacos, pedaços de história – e o que conseguimos compor se parece mais
com um mosaico do que com uma figura com traços nítidos.
Com inspiração no uso da entrevista na cartografia, nos aliamos com
Tedesco, Sade e Caliman (2014), que partem de três pistas ao analisarem os
procedimentos que permitem uma função cartográfica na entrevista: 1) cartografar é
acompanhar processos; 2) a cartografia como método de pesquisa-intervenção; 3) o
coletivo de forças como plano de experiência cartográfica. Ao se questionarem sobre
o que buscam com a entrevista na cartografia, três diretrizes são propostas: 1) a
74

entrevista não visa à fala sobre a experiência, e sim à experiência na fala; 2) a


entrevista intervém na abertura à experiência do processo do dizer; 3) a entrevista
busca a pluralidade de vozes.
Sobre a primeira diretriz, de que a entrevista não visa à fala sobre a
experiência, é importante destacar que “a entrevista não é procedimento para coleta
de dados, mas sim para colheita de relatos que ela mesma cultiva” (TEDESCO;
SADE; CALIMAN, 2014, p. 105). Começamos a semear os relatos muito antes de as
entrevistas acontecerem. Os convites em e-mails, mensagens de textos,
telefonemas, encontros, suscitavam as perguntas: mas o que você quer saber?
Como que eu vou poder colaborar com esta pesquisa? Os aceites e as entrevistas
vieram acompanhados de indicações, de outros nomes de parceiros de trabalho que
também fizeram parte dos relatos, frutos, efeitos da semeadura.
As questões que motivaram as entrevistas giravam em torno de querer saber
que forças e experiências abriram caminho para a constituição dos CECOs na
cidade do Rio, e que relações existem entre as atividades culturais e o campo da
saúde mental. Como contávamos com diferentes olhares, alteramos o roteiro para
cada entrevistado,34 considerando a especificidade de cada um, modulando as
questões para o que cada um – por meio da singularidade dos lugares ocupados e
das distintas implicações que têm com a temática da cultura, saúde mental, centros
de convivência, redes de atenção – pudesse trazer de elementos para a composição
dessa versão da história.
A primeira conversação/entrevista aconteceu no dia 17 de maio de 2017 na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, durante um evento chamado A Loucura
na Roda,35 realizado em apoio à Uerj (Loucos pela Uerj) e comemorativo de trinta
anos do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, tomando como marco o Encontro de
Bauru, ocorrido em 1987. 36 Nesse dia, conversamos com Lisete Vaz (LV), terapeuta
34 O roteiro básico encontra-se no Anexo 1; as questões extras aparecem com uma numeração ao
lado. O roteiro tinha uma função de bússola para o rumo da conversa, mas não nos prendemos muito
a ele; algumas questões não foram tocadas, e outras foram criadas no curso da conversa.
35 A programação desse evento encontra-se no Anexo 2.
36 Em dezembro de 1987, trabalhadores da saúde mental reunidos em Bauru redigiram o manifesto
que marcou o início da luta antimanicomial no Brasil. Com o lema Por uma sociedade sem
manicômios, o congresso discutiu as formas de cuidado com os que apresentam sofrimento mental
grave e representou um marco histórico do Movimento da Luta Antimanicomial, instituindo o Dia
Nacional da Luta Antimanicomial, o 18 de maio. Os 350 trabalhadores de saúde mental presentes no
congresso ocuparam as ruas da cidade e fizeram a primeira manifestação pública organizada no
Brasil pela extinção dos manicômios, o chamado Manifesto de Bauru, que encontra-se no Anexo 3. A
carta fruto do Encontro Bauru 30 anos, do qual participamos em dezembro de 2017, também
encontra-se no Anexo 4.
75

ocupacional, professora da UFRJ no Departamento de Terapia Ocupacional,


preceptora da residência multiprofissional no IPUB e militante da luta antimanicomial
e da reforma psiquiátrica por muitos anos. Lisete Vaz atuou durante alguns anos
juntamente com o Clube da Esquina, 37 experiência carioca pioneira, primeiro clube
de lazer assistido do Brasil que começou suas atividades em 1996.
A segunda entrevista foi realizada no dia 20 de julho de 2017, com Pedro
Gabriel Delgado (PGD), professor do IPUB, que foi Coordenador Nacional de Saúde
Mental, Álcool & Outras Drogas do Ministério da Saúde de agosto de 2000 a
dezembro de 2010. Antes desta experiência na gestão, Pedro participou no Rio de
Janeiro, na década de 90, da primeira equipe fixa da experiência do Clube da
Esquina. A entrevista aconteceu numa sala do NUPPSAM, onde trabalha
atualmente.
Por sugestão de Pedro Gabriel Delgado e do também ex-Coordenador de
Saúde Mental Domingos Sávio Alves, procurei a psicóloga e professora Neli Almeida
(NA), do curso de terapia ocupacional do Instituto Federal do Rio de Janeiro, com
quem foi realizada a terceira entrevista no dia 23 de agosto de 2017. Segundo a
entrevistada, sua ligação com o tema da cultura e trabalho em saúde mental
começou em 1995, quando trabalhava na ONG de direitos humanos Instituto Franco
Basaglia, uma organização apoiadora do Clube da Esquina.
A quarta e última conversa/entrevista aconteceu com o professor Paulo
Amarante (PA). Por sua reconhecida produção no campo da cultura e saúde mental,
consideramos importante escutá-lo sobre as relações entre esses campos e como
se relacionam com os Centros de Convivência e Cultura. Foi um dos pioneiros do
movimento brasileiro de reforma psiquiátrica, e entre suas diversas inserções
destacamos as de professor, pesquisador titular e coordenador do LAPS da
ENSP/Fiocruz.
As entrevistas foram audiogravadas, e os entrevistados consentiram por
escrito com a divulgação de seus nomes neste trabalho. 38 Cada entrevista durou
37 O Clube da Esquina foi definido como uma iniciativa socialmente inovadora na inclusão social de
pessoas com transtornos mentais por meio de atividades de lazer e na luta por uma sociedade sem
manicômios, que objetiva auxiliar na construção da cidadania em detrimento do estigma de doente
mental, na dissertação de mestrado de Iris Mara Guadartti de Souza. Disponível em:
<http://www.producao.ufrj.br/index.php/br/teses-e-dissertacoes/teses-e-dissertacoes/mestrado/
2014/26–20/file>.

38 O projeto desta pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFF e da SMS-RJ.
Foi aprovado com o parecer número 2.075.940. Agradecemos muito às entrevistadas e aos
entrevistados por consentirem na divulgação de seus nomes neste trabalho, pois isso ampliou as
76

cerca de uma hora. Após as transcrições, obtivemos cerca de sessenta páginas. Ao


escutar as gravações, fazer e ler transcrições, selecionar e produzir escritos,
percebemos que o que estava em jogo era a instauração de uma política da
narratividade (PASSOS; BARROS, 2009). O método cartográfico exige uma
mudança nos modos de narrar, especialmente quando se refere a uma pesquisa em
saúde em que o objeto requer a inclusão da dimensão subjetiva. A posição de onde
narramos se articula com as políticas que estão em jogo: as de saúde, as de
pesquisa, as de subjetividade. Afirmamos a política da narratividade como “uma
posição que tomamos quando, em relação ao mundo e a si mesmo, definimos uma
forma de expressão do que se passa, do que acontece” (PASSOS; BARROS, 2009,
p. 151).
Criamos para o leitor um diálogo entre essas diferentes vozes. A partir das
quatro entrevistas, dois eixos narrativos emergem, por meio dos quais traçaremos
nosso percurso: 1) Práticas de cultura e lazer na cidade do Rio de Janeiro no âmbito
da saúde mental; 2) Qual a vocação de um Centro de Convivência e Cultura?

3.1 Práticas de cultura e lazer na cidade do Rio de Janeiro no âmbito da saúde


mental

Nossa primeira entrevistada iniciou a conversa fazendo referência ao que foi


debatido durante a mesa de abertura do evento Loucos pela Uerj, em que um dos
palestrantes afirmou que ao olhar para os últimos trinta anos da reforma psiquiátrica
brasileira é possível identificar três grandes momentos: o do confinamento, o do
tratamento e o da convivência. O momento do confinamento seria a época em que a
internação psiquiátrica era usada como recurso principal e vivíamos a expansão do
parque manicomial brasileiro, ou seja, a era da indústria da loucura que, por meio
das clínicas privadas, confinavam uma grande população por longos períodos,
promovendo uma série de violações de direitos humanos. O que fazer com a
loucura? Confinar. O momento do tratamento se refere ao início de uma política de
substituição do hospital psiquiátrico por outras formas de tratamento; seria o começo
dos serviços chamados abertos, tais como os ambulatórios de saúde mental e os
Centros de Atenção Psicossocial associados ao uso intensivo de medicações

intensidades e reverberações dos diálogos nesse campo de estudos.


77

psiquiátricas que permitiriam oferecer a contenção necessária à loucura. O que fazer


com a loucura? Tratar. O terceiro momento, o da convivência, seria o que vivemos
hoje, em que tratar não é mais suficiente; questiona-se o uso excessivo e
prolongado dos psicofármacos, a atenção básica se expande e se constrói o
entendimento de que o lugar da loucura é a cidade. O que fazer com a loucura?
Conviver.
Sabemos que não há uma linearidade na história, e que esses três momentos
coexistem em distintos espaços por meio de experiências variadas que não
respeitam essas supostas fronteiras temporais. Contudo, nos parece válido ressaltar
as práticas e os desafios primordiais de uma época e afirmar a convivência com a
loucura na cidade como concernente aos nossos tempos atuais. A entrevistada faz
um resgate do percurso que possibilitou a emergência de uma experiência como o
Clube da Esquina:

Nós atravessamos o final da década de 70 com o movimento felizmente dos


sanitaristas, fomos nos engajando com eles, e o movimento da Reforma
Psiquiátrica nasceu e cresceu e criou também, caminhamos muito juntos.
Então, a década de 80 toda e a década de 90... A década de 90 já
começando com trabalhadores de saúde mental, a gente nem sabia que era
isso, as pessoas ou eram psiquiatras, ou eram psicólogos, ou eram
terapeutas ocupacionais, mas... Antes do Congresso de Bauru, nós fomos
um movimento de trabalhadores em saúde mental. E isso foi agarrado,
agarrado pelos usuários e pelos familiares, né? De fato, sem eles a gente
não teria caminhado nem dez anos. Se o movimento não tivesse essa
característica do protagonismo dos usuários e dos familiares, também a
gente não se caracterizaria como um movimento social. Então na década
de 90 começamos, começaram os primeiros CAPS no Brasil. Inspirados lá
por Santos, que não era um CAPS, era um NAPS, a gente nem tinha ainda
uma nomenclatura comum. Então, nós tínhamos NAPS em São Paulo,
tínhamos CERSAM em Belo Horizonte e tínhamos CAPS que fomos num
esforço de criar, de efetivar a política, efetivar a política. A lei 10.216 ainda
não havia sido aprovada. Então a gente estava, a gente não tinha nem a
garantia da lei, mas a gente já estava no campo das conquistas, das
construções, melhor dizendo, das construções. Então nós tínhamos
experiências isoladas e a que você acabou de ver, essa mesa-redonda
conversando e falando assim a partir do primeiro censo dos hospitais
psiquiátricos no município do Rio de Janeiro é que a gente foi sabendo
quem era a população que habitava ali. Quem habitava os serviços
privados, quem habitava os serviços públicos, porque eram habitantes, não
eram moradores, eram habitantes. E aí a gente foi criando iniciativas
diversas, elas eram pulverizadas ainda, elas eram pulverizadas. Então o
Clube da Esquina foi nascendo, nasceu, batizou, pronto, é isso que vai
fazer, nós não sabíamos o que íamos fazer, não mas é preciso fazer assim.
Ela foi lá no Instituto de Psiquiatria estreita ligação com o Hospital que
chamava-se na época Hospital Dr. Philippe Pinel. Então foram técnicos que
foram conversando entre si e pensando naquelas pessoas, usuários que
poderiam participar, o que seria, mas não, centro de convivência teria sido
uma ideia muito avançada talvez na época. Então, nós começamos com eu
creio que foi a primeira iniciativa no Brasil de centro de lazer assistido. E
78

assim, tinha que ser protegido porque como os usuários do serviço, que era
único, que era um hospital psiquiátrico, não podia sair porque eles eram
perigosos, os estigmas muito mais fortes, muito mais excludentes. Então foi
preciso que fosse assim.

É partindo desse ponto que LV compartilha conosco que, no início das


atividades do Clube da Esquina, os usuários, posteriormente chamados de sócios do
clube,
não podiam, por exemplo, pegar a barca para ir para Paquetá. Porque não
se sabia: será que eles iam pular pro mar? A gente não podia ir no cinema
na sessão das 18h, ou das 16h, a gente ia no cinema na sessão do meio-
dia, mas tinha que sair terminado o filme ou não às 13:30. (...) porque a
sessão dos normais começava às 14h.

Este enunciado de LV nos convocou a revisitar nossas memórias de


trabalhadora de um serviço da rede de saúde mental. Em 2010, tive a oportunidade
de visitar a ilha de Paquetá. Passeamos de barca, fizemos um piquenique com um
grupo de mais de vinte usuários de um hospital-dia, e em nenhum momento durante
a organização do passeio nos ocorreu, ou se enunciou, que alguém poderia pular
para o mar ou que deveríamos deixar de fazer esse passeio, sugerido numa
assembleia, por algum risco semelhante.
Bakhtin (2003) nos alerta que não devemos ignorar a natureza do enunciado,
enfraquecendo o vínculo entre a língua e a vida. Enunciado é um pensamento que
se completa, ao qual é possível responder. Cabe salientar a diferença entre resposta
e réplica. Uma resposta pode tender a um automatismo (por exemplo: que horas
são? 17h); já uma réplica contém uma atividade nela (por exemplo: que horas são?
É cedo para ir embora). Desse modo, o enunciado da entrevista pertence a um
gênero de linguagem que atende a uma dada função, neste caso a uma pesquisa.
Esse enunciado não está descolado da vida, e nos mostra que os enunciados
produzem práticas, sabendo que a linguagem é uma atividade.

A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam,


e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua.
O enunciado situa-se no cruzamento excepcionalmente importante de uma
problemática (BAKHTIN, 2003, p. 282).

Quando os trabalhadores afirmam que não se podia ir até Paquetá com um


grupo de usuários em 1990, essa fala responde a uma série de outras falas que a
antecederam, e que diziam que o louco não podia circular livremente pela cidade
pelo perigo que representava para si mesmo e para os outros. Uma fala que impede
79

essa atividade. Quando em 2010 se sugere numa assembleia ir até Paquetá, essa
fala também é resposta a outras falas antecedentes que diziam que é
completamente possível e desejável ir até Paquetá, pois o lugar da loucura é a
cidade. Uma fala que promove essa atividade. Percebemos que os discursos, em
seus variados gêneros, produzem e são produtos de um contexto histórico, social,
político, econômico e cultural.
Outro ponto que nos chamou a atenção durante a entrevista foi o imperativo
de abandonar a sessão no cinema, independentemente de o filme ter terminado ou
não às 13h30min, pois se aproximava o horário da sessão dos normais, às 14h.
Naquela época, poderia ser considerado inovador ir ao cinema com usuários; o lugar
dos loucos era o local do tratamento, e sair dos muros da instituição por si só já se
configurava como uma novidade, ainda que a saída fosse para participar de uma
sessão especial, uma sessão realizada exclusivamente para os loucos, que
deveriam deixar o cinema antes de os normais chegarem. Hoje nos provoca
estranhamento que não se pensasse em ir a uma sessão comum para assistir ao
filme como os demais interessados. Por que não? – perguntamos. Por que sair
antes de o filme terminar? Há uma produção de subjetividade instaurada por
determinados modos de trabalhar, já que o trabalho não se reduz a aspectos
operatórios, pois inclui equívocos, variabilidade, criação, transgressões e também
mobilização subjetiva. “Todos os sujeitos, enquanto trabalham, produzem existência,
realimentam e transformam as configurações culturais e sociais, ‘fazem história’”
(BARROS; FONSECA, 2007, p. 119).
Conta a entrevistada como isso acontecia:

E isso porque tinha muito diálogo com quem administrava os cinemas, e era
circunscrito a alguns lugares da Zona Sul, ponto-final, não tinha muito
assim: vamos no cinema! Não. Quem é que responde? Quem vai assinar se
houver depredação aos materiais da sala de cinema? E se alguém entrar
em crise? [Tom enfático, seguido de pausa.] Então isso não foi um trabalho
rápido [a entrevistada estala os dedos], não era um trabalho de comando,
era um trabalho de convite, era um trabalho de convivência. E ainda não era
convivência, era um lazer assistido. Então ir a um shopping foi muito
posterior, muito posterior.

A entrevistada nota que a participação nas decisões e a variedade de


itinerários dos passeios têm se ampliado.
80

Cada vez mais eles têm decidido, isso já vem de algum tempo. Eles
decidem: “Nós vamos no cinema? Não. Estamos cansados de ir ao cinema,
nós não podemos ir ao Centro Cultural do Banco do Brasil, por exemplo?
Ah, podemos. Então, quem vai?” (Voz enfática.) Aí vai a coordenadora do
grupo e eventualmente um ou outro usuário. Então isso ampliou muito,
agora que modificou de fato, ampliou muito isso aí, a cidade é o espaço
atualmente do Clube da Esquina. As ci-da-des.

Na entrevista com PGD, também verifica-se tal sinalização de uma


participação mais intensa dos usuários nas decisões atualmente do que na década
de 90. O conceito de atenção psicossocial ainda não estava construído. Ele diz que
a mudança foi “da água para o vinho”. E afirma que a emergência de um
protagonismo dos usuários foi o que impulsionou a criação do Clube da Esquina, por
exemplo.
Na década de 90 não existia propriamente, se quer assim, o conceito de
atenção psicossocial no território e sequer a ideia bem construída de que a
tarefa que estava em jogo não era apenas de desinstitucionalização, de
mudança do modelo assistencial, mas de construir um espaço social que
acolhesse a experiência radical da loucura. Isso era uma coisa ainda
germinativa, então a diferença que tem pra comparar são vinte anos aí, né?!
É absolutamente da água pro vinho. Em que sentido? No sentido de que
nos anos 90 a construção de um projeto como o Clube da Esquina visou
responder às demandas que eram colocadas com os trabalhos e iniciativas
que se faziam, relacionadas à cidadania e aos direitos dos usuários.
Começou um pouco assim: começou com a progressiva emergência do
protagonismo dos usuários. E foi progressiva, não foi uma coisa assim que
depende só da intenção, do desejo, né?! Então os usuários que passaram a
participar de outras formas de encontro, de reuniões, deixaram claro que
existia uma demanda. Que existia uma necessidade do prolongamento de
formas de sociabilidade que se construía por exemplo em reuniões,
debates, e até o início dos movimentos sociais dos anos 90, debate em
torno também da lei Paulo Delgado. E começou a ficar claro o seguinte: o
que vamos fazer no fim de semana? Então o fim de semana surgiu muito
assim naturalmente, porque o fim de semana era parte da semana penosa
para os usuários e seus familiares. Porque significava para aqueles que não
estavam institucionalizados viver uma experiência de um relativo abandono.
Não que eles precisassem ficar o tempo todo sob o cuidado ou o
tratamento, mas a gente percebia que tanto as famílias como os usuários,
aí eu tô me referindo a pacientes com transtornos graves, que
necessitavam de um acompanhamento mais próximo, referiam a sua
experiência do fim de semana a uma experiência muito pesada, muito
desamparada (PGD).

Essa fala que diz que a experiência dos fins de semana, momento em que
os serviços de atenção diária estavam fechados é uma parte penosa para os
usuários e familiares; é uma fala que não é a primeira vez que ouço. Escutar isso me
evoca as memórias do tempo de trabalhadora da RAPS, quando nas manhãs de
segunda, ao fazer o acolhimento, sempre ouvia histórias de solidão, algumas de
81

crise, de coisas que se desestabilizaram no fim de semana. Escutar que o “final de


semana é difícil” faz contraste com o que Gilberto Gil fala:

Nós, os homens, os seres humanos ativos, trabalhamos 4, 5 dias na


semana, 6 dias na semana, para entronizarmos a cultura no fim de semana.
Ali onde temos o lazer, onde vamos ao teatro, onde vamos ao cinema, à
festa no coreto da cidade, onde vamos namorar no parque de diversão...
Trabalhamos para a cultura. O homem opera, trabalha, é engenheiro, é
arquiteto, para entronizar no seu coração [pausa]: o espírito, no final da
semana (Gil, 2017).39

Esse humano do qual Gil nos fala, o humano ativo, é o humano que acessa
a cultura no fim de semana. Embora muitos dos que usam serviços de saúde mental
não trabalhem cinco, seis dias na semana, defendemos a ideia de que o direito à
cultura seja para todos. E por que não no fim de semana? Por que os usuários no
fim de semana experimentavam relativo abandono e não acessavam cultura? Na
década de 90, tempo em que os CAPS ainda não estavam consolidados no Rio,
muito menos CAPS III funcionando 24 horas, tempo em que não havia centro de
convivência, em que consistia a proposta do Clube da Esquina? O que se pretendia
com essa iniciativa?

Primeiro, que a questão do criar um espaço agradável de convivência tava


colocada como tarefa principal. Segundo, expandir as redes sociais dessas
pessoas, entendeu? De modo que eles construíssem amizades,
conhecimentos. E eu vi surgir amizades consistentes, entre usuários de
serviços muito distantes (PGD).

E a relação de amizade não se dava apenas entre usuários. A experiência de


estar na cidade possibilita encontros em que a presença da diferença passa a ser
desejada. LV nos fala dos espaços da cidade que estabelecem uma relação com o
grupo de sócios do Clube da Esquina, que criam conexões, vínculos.

Eu tenho a certeza de pelo menos um restaurante que faz questão que o


almoço de final de ano seja lá, você entende? Há movimentos também de
gente que não tem nada a ver com o campo da saúde mental. Nada a ver...
(LV).

Em seguida, ela nos exemplifica como funciona um certo tipo de cuidado de


uns com os outros, um cuidado que está para além da questão da cultura, com os
espaços da cidade, e que constrói laços entre os sócios, ou amizades, como disse
39 Fala extraída e transcrita do evento UFF Debate Brasil com o tema “Reinvenções da cultura”, que
buscou refletir sobre a produção recente e as necessidades de reinvenção da cultura na nova
conjuntura que se desenha para o país. Realizado em 5/9/2017. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=aVHQnjxy2Fs>.
82

PGD. Um cuidado que se dá pela convivência, e que ela chama de cuidado


solidário.
A gente está falando de cuidado, esse outro cuidado que é uma
solidariedade. A solidariedade é a marca muito viva no Clube da Esquina.
Viva, vivíssima. É no sentido: “Eu quero que você vá, por que você não foi?”
“Ah, agora você está vindo sem sua mãe, não é?” Coisas assim da vida
diária, dos tormentos diários. “Você não dormiu nada essa noite, hein! Olha
só a sua cara, lava, vai lavar seu rosto para você passear com a gente de
tarde.”

Esse cuidado solidário tem a ver com interdependências, pois todos nós
humanos somos dependentes uns dos outros. Entretanto, quando o clube de lazer
organiza coletivamente, com os sócios, a visita a um espaço cultural, ele exerce uma
função mediadora entre cidade e cidadão? O exercício dessa função impede ou
limita o acesso direto à experiência com a cidade?

Por que eles não podem ir lá sozinhos? Claro que podem! E vão, e vão
sozinhos. Mas NO CLUBE, é essa convivência um com o outro. É essa
convivência. “Como é que você está se sentindo? Tá dormindo direito? Se
não tá conseguindo, não tá tomando seu remédio.” Né? É um cuidado. Mas
é um outro cuidado, talvez seja um cuidado muito mais solidário do que o
cuidado técnico. Acho que é muito mais um cuidado solidário.

Nessa perspectiva, o fato de sermos dependentes, de agirmos como


cuidadores e sermos cuidados, não significa que estamos impedidos de fazer coisas
sozinhos e ocupar os espaços na condição solitária também. Essa passagem da
entrevista nos fornece a pista de que as aproximações e distâncias entre esse
cuidado nomeado de solidário e o cuidado nomeado de técnico merecem ser
exploradas mais detidamente nos trabalhadores dos CECOS. Ela os faz
problematizar como a convivência opera nessa relação de cuidado? A questão da
convivência e diferença, o quanto podem ser transformadoras, mereceu destaque na
fala da entrevistada.

Eu penso que a convivência com pessoas que às vezes são muito


diferentes de nós amplia o nosso olhar sobre o mundo, amplia o nosso
entendimento dos fatos, do trabalho. Amplia de uma forma que depois você
não consegue ficar estreitinho, cabendo ali nas estreitas amarras dos
nossos trabalhos, por exemplo. Então, eu acho que é um ganho, MUITO
importante, para todos nós. Pra cidade é bacana, nosso jeito de lidar com o
dinheiro, nosso aprendizado em relação à solidariedade, sabe? A nossa
sensibilização para a dor do outro. Eu acho que o campo da saúde mental,
o sofrimento que acompanha essas pessoas é inimaginável, em geral, é
inimaginável. Mas também é inimaginável o quanto ganhamos... de
amplidão… De esforços de estar na vida, né?"
83

O reconhecimento de que há um nós e há um eles/elas/outras/outros que em


muito diferem não extingue a possibilidade de que haja a experimentação de algo de
comum nesse encontro que é bom para ambos. Schwartz (2011), no Manifesto por
um ergoengajamento, nos leva a pensar que não existe nós e eles quando temos
como direção a produção do comum. Todos somos semelhantes, estamos em
permanente debate interno na luta por criar novas normas a favor da vida. “Somos
todos, como seres humanos, atormentados por debates internos, ‘debates de
normas’, mais ou menos visíveis aos outros e a nós mesmos, mais ou menos
invisíveis também” (SCHWARTZ, 2011, p. 132).
LV traz a fala de um sócio do Clube da Esquina que dialoga com essa ideia
do nós:
Ele é do cancioneiros do IPUB, agora, eu estou no Museu de Imagens do
Inconsciente. Estou fazendo pinturas, eu sou iniciante, mas estou fazendo
pinturas. Mas é bom, é bom a gente fazer aquilo que a gente gosta. E eu
acho que é bom pra nós, e é bom pra todos vocês. Vocês estarem conosco
também é bom pra vocês.

Essa fala remete diretamente ao que nos moveu em direção a esta pesquisa:
a participação nas atividades culturais pode produzir saúde não somente para os
chamados usuários dos serviços, mas esse estar com, esse fazer o que gosta, pode
produzir saúde e ampliar a vida dos trabalhadores também? Colocar a atividade dos
trabalhadores dos Centros de Convivência em análise, de maneira que eles sejam
protagonistas do desenvolvimento de seu próprio ofício e que experimentem de
algum modo a ampliação do seu poder de agir, é um caminho para a pesquisa
intervir a favor de um trabalho que possa ser reconhecido como um trabalho bem
feito? Com o termo trabalho bem feito, nos referimos à ideia introduzida por Clot
(2013) que se sustenta na possibilidade de nos encontrarmos naquilo que fazemos,
de nos reconhecermos em alguma coisa que transcende as circunstâncias.
O trabalho realizado pelo Clube da Esquina, iniciado nos anos 90, também
deixou como legado o fomento de outras iniciativas culturais que foram criadas e até
hoje movimentam a cultura da cidade. A entrevistada Neli Almeida estabelece uma
conexão entre as atividades do Clube e a criação do bloco do bairro da Urca que faz
parte do calendário oficial do carnaval carioca.
84

O Clube da Esquina também foi fundamental para ajudar a gente a estar


criando o Tá Pirando, Pirado, Pirou!40 Primeiro porque o Clube da Esquina
estabeleceu essa narrativa da importância de estar na cidade, né? E
quando pensamos a cidade do Rio de Janeiro, vem muito forte em termos
de lazer e cultura a questão do samba e do carnaval. Então, assim, dentro
da experiência do Clube da Esquina, foi um pulo muito rápido, né? A gente
pensar que seria possível trazer mais elementos culturais da cidade para
fazer parte de um movimento, movimento cultural… Aproximar a cultura da
saúde mental, a possibilidade de existir esse grupo de pessoas
interessadas, né? Interessadas na cidade, em conhecer a cultura, de fazer
visitações, de estar fora do espaço circunscrito do hospital psiquiátrico, isso
tudo vai acumulando uma série de aprendizagens, conhecimentos (NA).

Ter mencionado a criação do Coletivo Carnavalesco Tá Pirando, Pirado,


Pirou!, que assim como outras experiências cariocas foi contemplado com o edital
dos Pontos de Cultura, traz à tona a questão da chamada arte institucionalizada.
Não temos muita clareza do que significa essa expressão, mas notamos que ela se
difere de experiências artístico-culturais como, por exemplo, o Tá Pirando, que se
transformaram em Pontos de Cultura. 41 Supostamente, se difeririam daquelas que
começam e permanecem dentro dos serviços e estabelecem pouco diálogo com
outros interlocutores além do campo da saúde mental. No texto de Amarante et al.
(2012), “Da arteterapia nos serviços aos projetos culturais na cidade: a expansão
dos projetos artístico-culturais da saúde mental no território”, notamos uma crítica à
arte nos serviços e um elogio aos projetos, ao propor que a arte saia dos espaços de
tratamento para ocupar os espaços da cidade. Essas experiências de arte-cultura no
campo da saúde mental no Brasil, mais ligadas a projetos e menos a serviços,
promoveriam a criação de um outro lugar social para loucura e representariam uma
via de ruptura. Mas ruptura com o quê?

Rupturas com o discurso técnico-científico e médico-psiquiátrico como


detentor da verdade e como hegemônico sobre a loucura, desdobrando-se
numa crítica ao conceito de doença e uma redefinição da noção de reforma
psiquiátrica; a ruptura com a noção de arte como terapêutica; e a ruptura
40 O Coletivo Carnavalesco Tá Pirando, Pirado, Pirou! foi criado em 2005 por profissionais e usuários
de diversas instituições e dispositivos da rede de saúde mental do Rio de Janeiro, como o Instituto
Franco Basaglia, o Instituto Municipal Philippe Pinel (IMPP), o Instituto de Psiquiatria da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ) e diversos Centros de Atenção Psicossocial, a partir do
desejo de profissionais e usuários de saúde mental de se integrarem ao carnaval de rua da cidade
(XISTO, 2012).
41 Pontos de Cultura são grupos, coletivos e entidades que desenvolvem e articulam atividades
culturais em suas comunidades, certificados pelo Ministério da Cultura. Trata-se de instrumento de
realização das ações previstas na Política Nacional de Cultura Viva (PNCV), por meio da parceria da
União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios com a sociedade civil, no campo da cultura,
com o objetivo de ampliar o acesso da população brasileira às condições de exercício dos direitos
culturais. Fonte: <http://www.cultura.gov.br/documents/10883/1433812/carta-servicos-2017-2.pdf/
7592302d-f23e-4e5e-8fae-5bd7cf34f839>.
85

com a concepção de cultura como restrita à arte institucionalizada


(AMARANTE; TORRE, 2017, p. 121).

Por outro lado, na citação abaixo, vemos que o campo de onde se situa
continua sendo o da saúde mental, ainda que se proponha uma apropriação do
conceito de diversidade cultural na tentativa de uma ruptura.

No campo da saúde mental, a apropriação da noção de diversidade cultural


representa ainda um deslocamento, ou uma ruptura, caráter de resistência
ao processo de medicalização/psiquiatrização que ocorre na área, pois
significa que nem tudo que é diferente, diverso ou desviante é patológico,
tanto no aspecto das diversidades coletivas, quanto individuais
(AMARANTE; COSTA, 2012, p. 62).

Mais adiante, durante a conversa, Paulo faz uma comparação entre o ponto
de cultura e o centro de convivência e cultura.

O ponto de cultura é ainda mais radical nessa ruptura; o centro de


convivência já nasceu dentro de um discurso biomédico; o ponto de cultura,
não. O ponto de cultura nasceu como ponto de cultura. Eu acho que o ponto
de cultura é a ruptura mais radical, inovadora (PA).

O entrevistado resgata uma história mais recente, dos anos 2000, e fala sobre
a inspiração de Gilberto Gil, Ministro da Cultura no período de 2003 a 2008, ao criar
os pontos de cultura que permanecem até os tempos atuais. De acordo com o
entrevistado, a ideia do ponto de cultura se inspira na medicina oriental:

Para a medicina ocidental a doença está no corpo, numa certa bioquímica,


numa anatomia... A medicina ocidental dividiu o homem entre cabeça,
tronco e membros, entre mente e corpo, tudo foi dividido. E aí a medicina
oriental, ao contrário, ela pensa em fluxos, em relações, em redes. O
homem não está no fígado, a doença, a hepatite, não está no fígado, ela
está nas energias que circulam. Então é uma outra concepção tanto
filosófica quanto até estética (PA).

Assim como a acupuntura, oriunda da medicina chinesa, que toca no ponto


que já existe, que está lá, a função do Ministério da Cultura seria estimular esses
pontos que já existiam. Não se tratava de inaugurar teatros, mas de abrir editais com
financiamento e oferecer apoio para os grupos que já existiam: grupos de
artesanato, de carnaval, de capoeira, grupos que de alguma forma se traduziam em
expressões da cultura brasileira.

O Gil falava assim: a questão da cultura não passa por fazer dispositivos,
equipamentos, tecido de cultura, a CULTURA JÁ ESTÁ no corpo social.
86

Tenho que identificar onde, e massagear. Achei um barato isso: a ideia do


ponto de cultura igual à do ponto de acupuntura (PA).

Quando perguntada sobre suas impressões a respeito dessa arte


institucionalizada, NA fala sobre a complexidade dessa discussão e afirma que a
relação entre arte e saúde mental não é nada simples. Em contraste com a
comparação feita por PA, em relação às formas de ruptura, NA constrói sua fala no
sentido de que não se trata de valorizar ou desvalorizar uma ou outra experiência.
Segundo a entrevistada, se o processo artístico fica submetido ao processo
terapêutico,
isso cria uma direção pro trabalho, cria condicionantes para a realização
deste trabalho. (...) isso não quer dizer que essa arte é menor ou maior, ou
mais complexa ou menos complexa. Simplesmente ela vai estar vinculada a
uma perspectiva do cuidado, da relação terapêutica, do significado daquele
trabalho para o paciente. (...) Então, do meu ponto de vista, eu não acho
que a relação seja a de qualificação, ou desqualificação. A questão toda é
abrir o universo da saúde mental para você estabelecer novas
conexões com novos campos do conhecimento e das práticas do
viver. E daí que eu acho fundamental como dispositivo de abertura e
de construção desses laços o próprio centro de convivência. (...) Acho
que são lugares distintos que respondem a lógicas e a propósitos distintos,
mas acho muito interessante que haja a possibilidade das duas dimensões
(NA)Grifos nossos.

3.2 Qual a vocação de um Centro de Convivência e Cultura? Revisão de ideias


e textos

Para uma pergunta comum a todos os entrevistados – Como você definiria o


que é Centro de Convivência para alguém que não sabe o que é? –, as diferentes
respostas que deram indicaram que não há consenso sobre o que é, para que serve
e como deve funcionar um centro de convivência e cultura. Sem buscar o consenso,
mas procurando mapear as arestas que sustentam as divergências entre os
entrevistados, apontamos que há uma zona nebulosa em torno do tema.
No que concerne às políticas públicas de saúde e o lugar que os CECOs têm
ocupado ao longo da história, afirmamos que há um trânsito desse lugar entre a
marginalidade, a inclusão e a exclusão das fronteiras do que é instituído e do que é
instituinte. Segundo Baremblitt (1992), o instituinte aparece como um processo,
enquanto o instituído emerge como um resultado. O instituinte transmite uma
característica dinâmica, já o instituído transmite uma característica estabilizada; um
não existe sem o outro. Como a vida é pura variação, há um permanente jogo entre
87

as formas instituídas e os movimentos instituintes. Com esta cartografia, buscamos


acompanhar e visibilizar esse jogo.
No que diz respeito à legislação, a portaria n. 396, de 7 de julho de 2005, 42
que estabelecia diretrizes para os CECOs, é mencionada pelo Ministério da Saúde
no relatório de 2012 Saúde Mental em Dados 11. No entanto, no mesmo ano de
2005, a portaria foi revogada e não houve a criação de nova norma federal para seu
funcionamento, financiamento ou implantação, o que fragiliza a sustentação dos
CECOs. Isso faz com que até os dias atuais, em 2020, quinze anos depois, ainda
exista uma luta para que os CECOs sejam normatizados por portaria nacional
específica. Segundo esse relatório, em 2007 havia 51 CECOs no país. Ele aponta
que, para a consolidação dessas unidades como dispositivos a serem ofertados
pelas Redes Municipais e Estaduais de Saúde Mental, permanece como tarefa o
estabelecimento de diretrizes e de financiamento para os CECOs.
Com a portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011 (republicada em 2013),
que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no âmbito do Sistema Único de
Saúde, os CECOs estão previstos na atenção básica, conforme exposto no Quadro
2.

Quadro 2 – Componentes estratégicos da RAPS (Portaria 3.088)

42 No Anexo 5, disponibilizamos o texto completo da portaria e a justificativa oficial de sua revogação.


Muitos trabalhadores afirmam terem se apoiado no que está previsto na portaria para balizarem suas
práticas nos CECOS.
88

No inciso III dessa portaria, temos que o “Centro de Convivência é unidade


pública, articulada às Redes de Atenção à Saúde, em especial à RAPS, onde são
oferecidos à população em geral espaços de sociabilidade, produção e intervenção
na cultura e na cidade.” O 4º parágrafo da mesma portaria diz que os

Centros de Convivência são estratégicos para a inclusão social das pessoas


com transtornos mentais e pessoas que fazem uso de crack, álcool e outras
drogas, por meio da construção de espaços de convívio e sustentação das
diferenças na comunidade e em variados espaços da cidade.

Já na portaria n. 3.588, de 21 de dezembro de 2017, apelidada de RAPS do


retrocesso, é proposto o retorno dos hospitais psiquiátricos especializados, e os
CECOs ficam de fora do texto oficial da política de saúde mental do país, assim
como os consultórios na rua, nos apontando para onde reside com mais intensidade
a força antimanicomial que tenta ser sufocada pelos interesses da indústria da
loucura que lucram com as internações psiquiátricas por tempo indeterminado, se
opondo ao modelo comunitário.
Portanto, salientamos que há diferenças não só quanto à definição mas até
mesmo quanto ao público a quem se destina ao longo desse trânsito dos CECOs –
entre marginalidade, inclusão, exclusão do texto das políticas. Em 2005, eram
definidos como “Dispositivos públicos componentes da rede de atenção substitutiva
89

em saúde mental, onde são oferecidos às pessoas com transtornos mentais


espaços de sociabilidade, produção e intervenção na cidade”. Já em 2011, no texto,
os CECOs são destinados à população em geral. Na cartografia 1 da tese,
apresentamos o percurso da criação do projeto de lei que cria a política de CECOs
no Estado do Rio de Janeiro.
Vale destacar que em pesquisa realizada no Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde (CNES), 43 ao buscar o termo Centro de Convivência no
campo nome fantasia, encontramos 64 ocorrências. Mais da metade deste número
corresponde a unidades localizadas na Região Sudeste: Minas Gerais (20) e São
Paulo (11). Entre estes 64 cadastrados, muitos estão relacionados ao atendimento
da população idosa, inclusive uma Instituição de Longa Permanência para Idosos
(ILPI) em Santa Catarina. Isso aponta para o fato de que sob o nome Centro de
Convivência respondem serviços de saúde com finalidades não apenas diferentes,
mas em alguns casos com propostas totalmente opostas. Por outro lado, muitos
desses CECOs cadastrados aparecem com nomes que não sugerem um público-
alvo específico. No caso do Estado do Rio de Janeiro, aparecem cinco ocorrências,
relativas aos municípios de Macaé (1), Itaguaí (1), Mangaratiba (2) e Campos dos
Goytacazes (1), sendo todos eles dirigidos à população idosa.
Além das definições nas políticas legalmente instituídas, buscamos nesse
eixo mapear, por meio das falas, alguns dos discursos vigentes. Mas não no esforço
de enquadrar os centros de convivência em uma definição única e fechada.
Buscaremos, com base nos enunciados já construídos, avançar na discussão,
ampliar e criar novas perspectivas ainda não inventadas para as atividades que os
CECOS promovem.
Nesse eixo, valem as pesquisas que se dedicaram a estudar os CECOs em
outros municípios do Brasil. Algo que há em comum entre as produções encontradas
é que elas mencionam a escassez bibliográfica sobre os Centros de Convivência.
Desconhecemos pesquisas ligadas a Programas de Pós-Graduação stricto sensu
que abarquem o estudo dos três Centros de Convivência na cidade do Rio de
Janeiro.

43 Consulta realizada em 6/9/2018 no portal: <http://cnes.datasus.gov.br/>. Os CECOs que


acompanhamos na pesquisa não possuem CNES até 30/3/2020.
90

Ao colocar o termo centro de convivência no portal Capes de teses e


dissertações,44 aparecem 214 trabalhos, sendo que sua maioria relaciona-se aos
centros de convivência específicos para idosos ou crianças. Ao colocar o termo
centro de convivência e cultura, aparecem três trabalhos (3, 8, 9) que incorporamos
no Quadro 3, construído mais a partir de encontros com autores em eventos
públicos e espaços de militância do que por pesquisa em base de dados que não
nos forneceram todas essas informações. A itinerância da pesquisa favoreceu a
construção dessa lista, que passou a incluir outras produções realizadas durante o
doutorado (2016-2020), além de dissertações e teses.

Quadro 3 – Publicações sobre Centro de Convivência e Cultura

Cidade do
Centro de Título
Tipo de publicação Ano Autora/Autor
Convivên
cia
1 Niterói-RJ Mestrado em 2018 Mediação entre loucura e
Cultura e cidade: olhares sobre
Territorialidades – uma experiência no Francisco
UFF Centro de Convivência e Verani Protásio
Cultura de Niterói

2 Niterói-RJ Mestrado em 2009 Trajetórias, acusações e


Antropologia Social sociabilidade: uma
– UFRJ etnografia em um centro Silvia Monnerat

de convivência para Barbosa

pacientes psiquiátricos

3 Campinas- Mestrado em 2014 Centro de Convivência e


SP Saúde, Cultura e suas
Interdisciplinaridade repercussões na vida de Priscila Helena

e Reabilitação – usuários de um Centro de Rubin Ferreira

Unicamp Atenção Psicossocial

44 Busca realizada no site: <http://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/>, em 15/7/2018.


91

4 Campinas- Doutorado em 2013 Cartografia dos centros


SP Saúde Coletiva – de convivência de Sabrina Helena
Unicamp Campinas: produzindo Ferigato
redes de encontros

5 Campinas- Doutorado em 2010 Experiências


SP Psicologia – comunitárias em saúde
Unicamp mental: repensando a Karina Cambuy
clínica psicológica no
SUS

6 Campinas- Mestrado em 2016 Centro de convivência e


SP Psicologia – Unesp atenção psicossocial:
invenção e produção de Juliana Maria

encontros no território da Padovan Aleixo


diversidade

7 São Paulo Doutorado em 2007 Itinerários de um serviço


-SP Psicologia – PUC- de saúde mental na
SP cidade de São Paulo: Maria Cecilia

trajetórias de uma saúde Galletti

poética

8 Goiás-GO Mestrado 2014 Implantação do Centro


Profissional em de Convivência e Cultura
Saúde Coletiva – da Rede de Atenção Marla Borges
UFG Psicossocial de Goiânia: de Castro
olhares dos usuários,
trabalhadores e gestor

9 Belo Mestrado em 2012 As contribuições da


Horizonte- Educação – UFMG Educação de Jovens e
MG Adultos na construção de Marcus Macedo
processos inclusivos no da Silva

campo da Saúde Mental

10 Belo Mestrado em 2016 Basaglia e a prática Carla Luiza


Horizonte- Psicologia – UFMG reabilitativa no Centro de Oliveira
92

MG Convivência

11 Belo Mestrado em 2014 Reabilitação Psicossocial


Horizonte- Psicologia – UFMG no Centro de Eliane
MG Convivência: uma Rodrigues da
possibilidade para o laço Silva
social?

12 Campina Mestrado em 2010 Rede de Cuidado da


Grande-PB Enfermagem – Saúde Mental: tecendo Elisangela
UFPB práticas de inclusão Braga de
social no município de Azevedo
Campina Grande-PB

13 São Paulo- Mestrado em 2017 Insumos, arte e laço


social no contexto das
SP Educação Keronlay da
práticas contemporâneas
Profissional em em redução de danos Silva Machado
Saúde – Fiocruz

14 Rio de Revista ECOS – v. 6, Centro de Convivência e Ariadna


Janeiro-RJ Estudos Cultura: diálogos sobre Patricia
n. 1,
Contemporâneos da autonomia e convivência Estevez
Subjetividade 2016 Alvarez;
Jessika
Oliveira da
Silva; Ana
Caroline de
Moraes Oliveira
15 Rio de Monografia de 2017 Delirando para além dos
Janeiro-RJ Conclusão de muros do hospício: uma Fernanda
Estágio Acadêmico experiência do Centro de Cristina
Bolsista Convivência e Cultura Nascimento de
Trilhos do Engenho Lorena
habitando o território

16 Rio de Archivos Ano 2, Trilhos do Engenho: Lucia Maria


Janeiro-RJ Contemporâneos do v. 2, potencializando vidas Andrade;
Engenho de Dentro n. 2, através da arte e da Fabiane Dias
93

nov. cultura em diálogo com o Mendonça;


2019 território Stella Camargo
Pace
17 Belo Revista Polis e V. 8, (Com)Viver com a Raquel Ferreira
Horizonte- Psique n. 2, loucura: por um cuidado Pacheco; Celso
MG 2018 extramuros Renato Silva
18 Rio de Monografia de 2019 O dispositivo da
Janeiro- Conclusão do Curso convivência em saúde
Laiz Rosa e
RJ de Terapia mental: um território
Silva
Ocupacional – IFRJ- empático de produção de
RJ cuidado

19 Rio de Monografia de 2016 Práticas profissionais nas


Janeiro- Conclusão de oficinas em Saúde
RJ Estágio Acadêmico Mental: um relato de Hannah Valéria
Bolsista experiência da oficina Gomes Ramos
artística "Tecendo as
Redes"
Fonte: A autora.

Além da busca de produções acadêmicas que abordem Centro de


Convivência e Cultura, buscamos bibliografias que tenham contribuído para o tema
da saúde dos trabalhadores da saúde mental. Ao realizar esse levantamento,
encontramos em Ramminger (2008) uma consistente revisão de estudos brasileiros
que integra um volume especial da revista Saúde em Debate dedicado ao tema da
saúde mental. Neste artigo, a autora aponta que a relação entre saúde e trabalho na
área de saúde mental era um tema relativamente recente. No final dos anos 90,
havia predomínio dos estudos em torno do conceito de estresse em profissionais da
área da enfermagem e outros trabalhadores dos hospitais psiquiátricos.
Posteriormente, sobretudo de 2006 em diante, há um crescimento no número de
estudos que se tornam mais complexos e qualificados e passam a privilegiar os
trabalhadores da saúde mental dos CAPS. Esse artigo propõe o agrupamento da
produção bibliográfica em três grandes blocos: 1) Estresse, carga e sobrecarga no
trabalho em saúde mental; 2) Sofrimento e prazer no trabalho em saúde mental; 3)
94

Subjetividade, discursos, práticas e vivências dos trabalhadores em saúde mental.


Segundo essa revisão, o trabalho em saúde mental é compreendido como uma
atividade simultaneamente “singular e coletiva, criativa e angustiante, gratificante e
desgastante” (RAMMINGER, 2008, p. 67).
Destacamos ainda, no estudo do trabalho no campo da saúde mental, as
pesquisas realizadas no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Subjetividade/
UFF que usam o referencial teórico-metodológico da clínica da atividade: Armaroli
(2009); Alvarez (2009); Albuquerque (2010); Martins (2012); Pacheco (2016); Rosa
(2017).
Portanto, em relação ao estado da arte, afirmamos que não são muitos os
trabalhos disponíveis que abordem as práticas dos CECOs no âmbito do SUS e que
sejam recentes, pois todas as obras foram publicadas a partir da segunda metade
da primeira década do século XXI. Em relação aos CECOs na cidade do Rio de
Janeiro, não foi encontrada nenhuma pesquisa ligada à pós-graduação stricto sensu
anterior. Entre os estudos existentes sobre Centro de Convivência e Cultura em
outras regiões do país, nenhum deles dirige seu olhar com mais atenção para a
saúde de seus trabalhadores e para o trabalho do ponto de vista da atividade.
No caso de alguns trabalhos do Quadro 3, conseguimos acessar os resumos,
outros apenas o título, e de outros temos o trabalho integral. Dentre os que estavam
integralmente disponíveis para acesso, por dispormos do contato do autor ou autora,
observamos que todos mencionam a portaria de 2005, em relação à qual um de
nossos entrevistados (PGD) colaborou na construção. Na entrevista, ele reitera sua
posição em que o CECO aparece como pertencente à rede de atenção, direcionado
para usuários em tratamento, ainda que numa posição complementar:

Eu entendo como um dispositivo complementar da rede de atenção que


funciona como uma interface com a área da cultura e com a área... do
território como um todo, da sociedade como um todo. E que permite um
espaço de aproximação dos usuários em tratamento em outros dispositivos
entre si, com seus familiares e com pessoas da comunidade (PGD).

Nessa resposta, observamos que o CECO é entendido como um


complemento, que seria destinado a usuários em tratamento. A questão da cultura
seria secundária, pois apenas depois foi agregada a ideia inicial de convivência,
conforme o entrevistado menciona no trecho a seguir:
95

Foi incorporado o termo cultura posteriormente porque, aqui no caso


brasileiro, porque se viu que a convivência com ela era mediada pela
cultura. Mediada por atividades culturais. Que não havia um convívio que
não estivesse mediado por atividades culturais. Então, eu entendo assim,
como um dispositivo complementar da rede de atenção. Que tem a
finalidade não estritamente de se incorporar ao projeto terapêutico, mas
apontar caminhos de apoio à autonomia e à sociabilidade do usuário, né?!
Que vão funcionar bem se puderem ser espaços muito vivos dentro da
comunidade. Não espaços médicos, não espaços da rede estritamente. São
complementares. São quase que um pé do lado de fora da rede, né?!
(PGD).

Observamos que existe um movimento de titubear quando essa pergunta é


feita. A expressão quase que um pé do lado de fora da rede nos faz perguntar: qual
é o lugar dos centros de convivência na rede de atenção psicossocial? Na rede, há
um dentro e um fora? Quais as implicações de estar dentro ou fora?

Acho que os centros de convivência estão indo nessa direção, de construir


essa ruptura, sustentando essa ruptura, na medida em que vai permitir
como serviço, como dispositivo vai possibilitar que esse grupo de pessoas,
mais vulnerável, numa situação que demanda mais cuidado, possa ser um
dispositivo de mediação com os espaços da vida, com os espaços
outros da vida, com o lazer, com o trabalho, com a cidade, com a cultura,
consigo próprio de uma outra forma (NA).

Segundo Galletti (2007), que em sua tese acompanha uma experiência de


Centro de Convivência na cidade de São Paulo, o mandato social dos CECOs é a
inclusão de pessoas em situação de exclusão, e não apenas aquelas que são
diagnosticadas com algum tipo de sofrimento psíquico. Sobre os CECOs de
Campinas (SP), contamos com a contribuição de Ferigato (2013), que problematiza
a ideia de inclusão e até mesmo de quem seria o seu público-alvo. Será que CECO
se dirige apenas às necessidades de pessoas ditas mais vulneráveis ou pessoas em
tratamento psiquiátrico?

Problematizando essa concepção de inclusão, entendemos que os Cecos


podem fazer mais do que “incluir pessoas excluídas”. Os Cecos têm
fabricado novos modos de sociabilidade, ou formas de sociabilidade
alternativa, da qual todos nós estamos excluídos, na medida em que todos
nós somos privados pelo projeto neoliberal de sociedade de viver um
modo de convivência que valorize a ação coletiva (FERIGATO, 2013, p.
101, grifo nosso).

Os novos modos de sociabilidade, os que valorizam uma ação coletiva,


podem ser benéficos para todas e todos nós. A pluralidade dos modos de trabalhar
dos diversos CECOs no país nos aponta para uma diversidade que as políticas
também precisam contemplar.
96

Até por que os centros de convivência, eles não têm uma formatação muito
fechada, né? Então você vai ver centros de convivência que trabalham com
pessoas com transtornos mentais, ou graves e persistentes, ou então mais
comuns, mais no campo da saúde mental. Outros não, outros trabalham,
recebem uma população restrita no entorno, né? Outros são ligados a
algum CAPS, outros não. Então o centro de convivência, ele talvez seja…
Ele possa ser… Eu tenho loucura por centro de convivência, então, ele
pode ter uma abrangência populacional muito mais diversificada, muito
mais enriquecedora (LV).

Sobre a especificidade da cidade do Rio de Janeiro, percebemos que se por


um lado existe uma disposição, uma inclinação carioca para convivência, por outro a
configuração da RAPS do Rio pode ter interferido no fato de um surgimento posterior
dos CECOs, comparado com outras capitais do Sudeste como São Paulo e Belo
Horizonte. A rede de saúde do Rio conta com a presença dos chamados Institutos
Municipais (Philippe Pinel, Juliano Moreira e Nise da Silveira), que são espaços em
que ainda funcionam ou funcionavam hospitais psiquiátricos, o primeiro deles
originário do Hospício Pedro II, o mais antigo manicômio do Brasil.

E o carioca tem uma veia natural para isso, assim, tem uma veia de
convivência. Agora a gente tá passando por tempos tenebrosos, essas
deflagrações sociais, mas sempre… Não centros de convivência como a
gente tá falando aqui, mas em cada morro tem um centro de convivência.
Em cada comunidade tem um centro de convivência. E a gente não
conversou ainda com eles. Talvez falte a gente conversar ainda com eles
com um olhar diferente, porque isso já tá lá em cada território (LV).

Sobre a relação CAPS-CECO, a entrevistada NA traz uma memória


importante da fala do querido e saudoso usuário e militante da luta antimanicomial
Julio Cesar de Carvalho:

Quem falou de uma forma muito clara no debate foi o Julio Cesar, que era
usuário do CAPS Simão Bacamarte em Santa Cruz... Faleceu tem cinco
anos, acho, e o Júlio, num debate na Alerj, uma coisa imensa, deputados...
Ele falou… O único que falou de uma forma. assim, pertinente, desse lugar
que é o centro de convivência. Ele era do CAPS, né? Ele disse: “Olha, eu
gosto do trabalho que as pessoas fazem lá, mas eu já não estou cabendo
dentro do CAPS. Já não tem mais nada pra mim dentro do CAPS. E eu
gostaria de ter um outro espaço o qual eu pudesse estar, que eu pudesse
fazer outras coisas, que eu pudesse conviver com as pessoas, mas não
precisa mais ser o CAPS.” Eu acho que os usuários vão dizendo e vão
elaborando, e eu acho que se a gente tiver uma escuta a gente vai
entendendo (NA).

A fala de Julio Cesar de Carvalho – que hoje dá nome a um CAPSad na Zona


Oeste do Rio – foi enunciada publicamente, e ao ser partilhada nos convoca a
pensar na vocação dos CECOS. Escolhemos a palavra vocação para destacar o
97

caráter do CECO que evoca algo. Existe um chamado público pela voz de alguém
que fala do lugar de usuário para a concretização desse lugar que não é o CAPS,
não é o lugar de tratamento, onde há psiquiatras, medicação, mas é um lugar para
convivência. Sabemos que os CAPS também se valem da convivência, muitos
inclusive têm até uma plaquinha pendurada na parede onde está escrita a palavra
convivência, assim como as palavras consultório, sala de oficina, administração.
Geralmente, nesse ambiente da casa onde se situa o CAPS chamado convivência,
há um sofá, algumas vezes uma televisão, uma mesa com cadeiras, e as pessoas
dormem, conversam, assistem TV, convivem. Esse lugar do CAPS se parece com
uma sala de estar. Já escutei também trabalhadores de CAPS dizerem: “Hoje eu vou
ficar na convivência”; ou “Vou fazer convivência”, e dizerem que ali quando parecem
não estarem “fazendo nada”, tem muita coisa acontecendo. Ao longo da mesma
entrevista, observamos a mutação no discurso sobre como se daria essa relação
entre CECO-CAPS.

Em hipótese alguma eu ache que ele deve ser extensão do CAPS, nem
uma variação do CAPS, né? O Centro de Convivência precisa se diferenciar
de uma unidade de tratamento, no stricto sensu, uma unidade terapêutica...
Porque, de fato, o centro de convivência teria o objetivo também de mediar
a relação desse usuário com a cidade. [...] o dispositivo Centro de
Convivência é a possibilidade de você desconstruir, desconstruir essa
identidade monolítica do paciente, né? (NA).

Mapeamos, em meio ao diálogo com os entrevistados, três concepções


assistencial por ser um serviço de saúde; ele funcionaria seguindo uma lógica
terapêutica por pertencer à rede de atenção, sem fazer ruptura total com
medicalização da vida, explicitada pelo entrevistado PA; 2) Como dispositivo
complementar à rede de atenção, pensado para pessoas em tratamento, cuja
finalidade não seria estritamente se incorporar ao projeto terapêutico, mas apontar
caminhos de apoio à autonomia e à sociabilidade do usuário, apontada pelo
entrevistado PGD; 3) Como espaço de desconstrução do lugar identitário de
paciente /usuário de serviço de saúde mental, que se diferencia de uma unidade de
tratamento e possibilita uma outra relação na vida envolvendo lazer, trabalho,
cidade, cultura e consigo mesmo, que foi levantada pelas entrevistadas LV e NA.
Se na esfera municipal, se na cidade do Rio temos esse mapeamento inicial
de sentidos, no âmbito do Estado do Rio destacamos a experiência do outro lado da
Baía de Guanabara, em Niterói. O Centro de Convivência de Niterói se chamava
98

Oficinas Integradas, onde em 2008 realizamos parte de nossa pesquisa de mestrado


acompanhando a oficina do misto-quente (ALVAREZ, 2009). Nessa época, o CECO
Niterói situava-se numa casa anexa ao Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. Ali estava
desde 1999 e era definido como uma instituição pública da Rede Substitutiva de
Atenção à Saúde Mental do município, funcionando de segunda a sexta-feira, das 8h
às 17h. Nesse período, era visto como uma “instituição extra-hospitalar, uma vez
que em períodos considerados como de crise e de necessidade de internação, os
usuários param de frequentar as dependências da mesma e são encaminhados para
tratamento em hospital psiquiátrico” (MONNERAT, 2011, p.145).
Protasio (2018, p. 06) aborda a função do CECO de mediação com a cidade.
O autor, que era também trabalhador do CECO, afirma que o CECO Niterói “se
coloca enquanto mediador na relação entre as pessoas que fazem tratamento
psiquiátrico e a cidade”. Esse dispositivo não teria um papel clínico stricto sensu,
mas sim de mediação. Atualmente, promove atividades também nos fins de semana,
ganhou a palavra Cultura em seu nome e sua sede se deslocou para o Centro da
cidade. Afirma ainda o autor que quando entrou na equipe em 2014,

a discussão sobre a localização era recorrente e a equipe já avaliava que,


para atingir os objetivos pretendidos, seria necessária uma sala, apenas
como função de escritório, longe do hospital psiquiátrico e preferencialmente
em uma área central da cidade, para ter uma possibilidade maior de acesso
a moradores de diferentes bairros. Essa sala serviria para receber usuários
para inscrição em uma primeira vez, para fazer reuniões entre os técnicos,
guardar objetos e realizar trabalhos mais administrativos (PROTASIO, 2018,
p. 59).

A questão da localização mostra que o CECO de Niterói não pretende mais


focar a direção do trabalho para a realização de oficinas, pois para isso seria
necessário um espaço físico interno. Por estar focado na função de mediação, na
ocupação intensiva do território, a equipe prescindiu de pleitear por uma casa, assim
como os CAPS dispõem para seu funcionamento. Talvez a definição do espaço
físico tenha relação com o que se quer para cada proposta.
O CECO Paula Cerqueira, situado no município de Carmo, na região serrana
do Estado, também mudou de localização para funcionar numa lógica mais
comunitária. A cidade tinha um hospício e constituiu uma rede potente no processo
de fechamento do manicômio. Visitamos este CECO em 2019 já funcionando no
Centro Cultural Jair Nunes Macuco, equipamento cultural da cidade ligado à
99

Secretaria de Cultura. Antes de janeiro de 2017, ele funcionava num galpão que era
uma certa extensão do CAPS e tinha pouca relação com a comunidade – mudar de
endereço fez parte de uma estratégia de ampliação de interlocução com o território.
Essas diferenças em torno do lugar dos CECOs dão visibilidade a uma zona
fronteiriça entre o que corresponde à área da saúde/SUS/RAPS e o que é lugar de
vida na cidade. Como na atividade dos trabalhadores opera a relação entre
assistência/tratamento/cuidado e convivência; entre ação terapêutica/medicalizante
e arte/cultura/lazer/trabalho? Considerando os três verbos encarnados na história
(isolar, tratar, conviver), buscamos problematizar a atividade dos CECOS por meio
do acompanhamento dos movimentos dos trabalhadores na
arte/cultura/lazer/trabalho.
Nesse debate, nos posicionamos junto com Ferigato (2013), que afirma que
os CECOs são dispositivos híbridos que extrapolam as fronteiras sanitárias.
Concordamos que os CECOs podem ser definidos como dispositivos multifacetados,
ou como “(...) um movimento, um sistema tão flexível e aberto que dribla qualquer
definição rígida de ‘saúde’, de ‘cultura’ ou de ‘serviço’” (Ferigato, 2013, p.158).
Somamos à ideia de hibridismo a noção de excentricidade para situar esse lugar
fronteiriço, ocupado pelos CECOs. O lugar dos CECOs é um lugar primordialmente
do entre, o qual desenvolveremos nas próximas cartografias no diálogo com os
trabalhadores dos CECOs.
100
101

ENGENHO DE DENTRO
(Jorge Ben Jor)

Olha aí, meu bem


Prudência e dinheiro no bolso
Canja de galinha
Não faz mal a ninguém

Cuidado para não cair


Da bicicleta
Cuidado para não esquecer
O guarda-chuva

Conversa, bitoca
Espera, passa o rodo
Para melhorar
Chama pra dançar

Engenho de Dentro
Quem não saltar agora
Só em Realengo
Engenho de Dentro
Quem não dançar agora
Só no próximo baile
Em Realengo

<https://www.youtube.com/watch?v=6U5b9_-lALU>
102

4 CARTOGRAFIA 3 – O LUGAR EXCÊNTRICO DO CECO

4.1 Território Engenho de Dentro

O Engenho de Dentro é um bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro,


com 45 mil habitantes, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) de 2010. Desenvolveu-se, na segunda metade do século XIX, a
partir da implantação da antiga Estrada de Ferro Pedro II (Estrada de Ferro Central
do Brasil). Após a proclamação da República, foi erguido um galpão de pintura de
carros, atual Museu do Trem. A construção da Linha Amarela, em 1997, foi outro
marco para o bairro, pois possibilitou a ligação dos subúrbios com a Barra da Tijuca,
na Zona Oeste da cidade. Em 2007, um Estádio Olímpico, conhecido como
Engenhão, foi inaugurado, trazendo uma referência esportiva importante para a
cidade.
As principais ruas são a Dias da Cruz, a Adolfo Bergamini e a Doutor Bulhões,
perto de onde há o portão do Instituto Nise da Silveira, que ocupa um quarteirão
inteiro. Os moradores do bairro têm lazer nas praças, como a Rio Grande do Norte e
a Amambaí. O Sesc Engenho de Dentro foi a primeira unidade do Sesc inaugurada
no Rio de Janeiro, em 1947. Tem ações nas áreas de cultura, educação social,
esporte e lazer, saúde e turismo social e já fez parcerias importantes com o CECO
como oficina de cinema, slow motion, entre outras. O acesso ao Engenho de Dentro
pode ser feito de carro, pela via expressa Linha Amarela, de ônibus, pois várias
linhas circulam por ali e levam passageiros para as zonas Norte, central e Oeste da
cidade, além do trem que corta a cidade integrado com o metrô a partir da Central.
Em relação à área da saúde, o bairro pertence à área programática (AP) 3.2,
composta também por Abolição, Água Santa, Cachambi, Del Castilho, Encantado,
Engenho da Rainha, Engenho Novo, Higienópolis, Inhaúma, Jacaré, Jacarezinho,
Lins de Vasconcelos, Maria da Graça, Méier, Piedade, Pilares, Riachuelo, Rocha,
Sampaio, São Francisco Xavier, Todos os Santos e Tomás Coelho. A RAPS nesta AP
é composta por um CAPS II; dois CAPS III; um CAPSad III com Unidade de
Acolhimento; um CAPSi; uma equipe de consultório na rua; nove SRTs; uma
103

policlínica que tem emergência em saúde mental; e cerca de 25 unidades básicas de


saúde (clínicas da família e centros municipais de saúde). 45

4.2 Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho

O Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho foi inaugurado em


2012, situa-se dentro do Instituto Municipal de Saúde Nise da Silveira, no bairro do
Engenho de Dentro. Seu processo de implantação iniciou-se em agosto de 2011;
tornou-se o segundo CECO na cidade. De acordo com Andrade, Pace e Mendonça
(2019), no início foi necessário improvisar, pois a equipe era formada apenas por
uma psicóloga e um estagiário voluntário, e não havia espaço físico para que ele
funcionasse. As ações iniciais se deram em parceria com o Ponto de Cultura
Loucura Suburbana, por meio do ateliê de adereços, fantasias e modas, e o
CAPSad Mané Garrincha, representado por um oficineiro que era carnavalesco. Em
maio de 2012, o CECO dispunha de uma única sala dentro do instituto, e os
profissionais foram pouco a pouco agenciando diferentes formas de conviver e
produzir encontros com espaços culturais como Centro Cultural Banco do Brasil,
Caixa Cultural, Teatro Carlos Gomes etc. Posteriormente, em 2013, houve a
expansão do espaço físico com a aquisição de algumas salas que passaram a ser
ocupadas por entidades parceiras, como Associação de Cuidadores da Pessoa
Idosa (Acierj), Grêmio, entre outras.
Assim como os demais CECOs da cidade, ele não está cadastrado no CNES.
Para entrar no CECO Trilhos do Engenho, é necessário passar pelo portão principal
do instituto, que ocupa um grande quarteirão. A coordenação considera que, por não
haver acesso direto da rua para o CECO, o espaço físico não é adequado para sua
finalidade – antes de ser reformado, era uma moradia de internos do hospital
psiquiátrico.
Em relação às ações ofertadas por este CECO, elas se subdividem em duas
modalidades: as regulares e as da agenda cultural. As primeiras contam com uma
definição prévia de qual será o profissional responsável, tem dia da semana e
horário, local marcado. Em 2018, elas foram: Grupo de Ajuda e Suporte Mútuo de
Familiares; Oficina de Teatro; Oficina de Experimentação Musical; Tai Chi Chuan;

45 Dados obtidos em: <www.data.rio/pages/rio-em-sntese-2>, acessado em fevereiro de 2020.


104

Oficina de Capoeira; Oficina de Relaxamento; Oficina de Pintura em Tela; Oficina de


Artesanato; Oficina Corpo em Movimento; Grupo de Ajuda e Suporte Mútuo de
Usuários; Ioga e Futebol. Algumas dessas atividades acontecem na sede do CECO,
mas a maioria delas ocorre em outros espaços do bairro em que foram constituídos
vínculos para que aquele grupo ocupasse aquele lugar – pontos do território cheios
de antigas e novas histórias a se fazer, como por exemplo na Vila Olímpica do
Encantado, no Galpão Engenhão e no Imperator.
As atividades que compõem a agenda cultural são divulgadas mensalmente
na página do Facebook46 e construídas coletivamente, envolvendo tanto os
trabalhadores como os participantes do CECO em um espaço nomeado Encontro de
Ideias. Fizemos um mapeamento do conteúdo dessas agendas culturais nos doze
meses de 2018. Pelo menos uma vez por mês, um dos eventos aconteceu durante o
fim de semana (sábado ou domingo), nos remetendo àquela vocação do Clube de
Lazer mencionada nas entrevistas. Foram elas: Piquenique em Paquetá, Manhã
Cultural no Ponto de Cultura Mestre Grilo, Ocupa Méier, Aniversário do Mestre Grilo,
Marcos Frota Circo Show (Quinta da Boa Vista), Corrida e Caminhada pela
Valorização da Vida (Urca), Piquenique no Parque Lage, Ioga na Praça.
Em relação ao público que faz parte deste CECO, tomando como base o mês
de agosto de 2019, o CECO Trilhos tem em média cerca de vinte novos
ingressantes mensais. Destes, nove vieram encaminhados pela Atenção Básica
(NASF); seis vieram espontaneamente da comunidade, encaminhados por amigos;
quatro vieram encaminhados por CAPS (três por CAPSad; um pelo CAPS) e dois
por ambulatório de saúde mental. São 563 conviventes cadastrados, e estima-se
que destes, cerca de 50% já passaram por internação psiquiátrica, 70% fazem uso
de psicofármacos e praticamente 100% já receberam diagnóstico psiquiátrico em
algum momento da vida. Por dia, em média, participam cerca de vinte pessoas das
atividades oferecidas pelo CECO, que em sua maioria acontecem no território. A
idade dos conviventes varia entre 20 e 75 anos. Muito pontualmente, participam
também crianças e adolescentes que são encaminhados pelo CAPSi.
No que se refere à equipe, tomando por referência o mês de novembro de
2018, ela estava formada conforme o Quadro 4 por:

46 Disponível em: <https://www.facebook.com/trilhosdoengenho/>.


105

Quadro 4 – Equipe do Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho


(novembro de 2018)

Contratação/Função Formação Tipo de vínculo

1 Coordenação Psicologia Servidor

2 Profissional Ensino Superior Psicologia Contrato CLT

3 Profissional Ensino Médio/ Psicologia Contrato CLT


Oficineiro

4 Profissional de Ensino Médio/ Ensino Médio Contrato CLT


Oficineiro

5 Agente Cultural de Saúde Artes visuais Servidor

6 Apoio administrativo Ensino Médio Contrato CLT

7 Professora de Ioga Psicologia Servidora de outro


setor/Parceira

8 Professor de Capoeira Capoeira Parceiro

9 Professor de Pintura Artes plásticas Parceiro

10 Professor de Tai Chi Chuan Tai Chi Chuan Parceiro

Fonte: A autora.

Venturini (2016) sinaliza o voluntariado e a mútua ajuda como indicadores de


qualidade do trabalho no contexto da desinstitucionalização. Os voluntários
representariam uma possibilidade de quebrar o monopólio dos especialistas,
funcionando como analisadores sociopolíticos da situação institucional, catalisando
tudo o que não diz respeito à medicina. O autor afirma que a extensão da
solidariedade além dos vínculos familiares é reconhecida como um fator
indispensável para o funcionamento de um sistema democrático, porque através
dela se faz a transmissão de conhecimentos por meio de vínculos horizontais e
recíprocos. Desse modo, o voluntariado representaria o chamado capital social de
uma comunidade.
No CECO Trilhos do Engenho, os profissionais voluntários são denominados
de parceiros e constituem quase que metade da força de trabalho. Se por um lado a
106

presença dos voluntários possibilita ampliação e diversificação na oferta das


atividades para os participantes do CECO, por outro ela sinaliza a quantidade
reduzida de profissionais com vínculo de trabalho formalizado. 47

4.3 Semeando o caminho no caminhar: apontamentos teórico-metodológicos

O CECO Trilhos do Engenho possui a especificidade de já termos realizado


com ele uma pesquisa sobre a produção de autonomia de seus frequentadores em
2015/2016. Por isso, apresentar o projeto de pesquisa do doutorado foi de algum
modo um retorno, pois foi ali que o interesse pelo tema iniciou. Em dezembro de
2017 fomos até a reunião de equipe, composta por seis pessoas, a última do ano,
para planejarmos juntos o desenvolvimento da pesquisa em 2018. Afirmo a clínica
da atividade como metodologia, fazendo diferir da pesquisa realizada anteriormente,
que usou grupos focais. Destaco o objetivo que é conhecer como a equipe
desenvolve o trabalho no CECO, interrogando se esse trabalho pode produzir saúde
para quem ali trabalha também. Explico que existe uma proposta inicial que pode ser
mudada, de fazermos cerca de três rodas de conversa, ou encontros sobre o
trabalho, em que escolheremos juntos uma atividade realizada pelo CECO para ser
analisada. E que precisaremos criar uma forma de registro para disparar o processo
de análise da atividade. Depois havia a previsão de um outro momento para restituir
a análise dessa atividade. Falo sobre a importância do protagonismo dos
trabalhadores no processo de pesquisa, e que definiremos juntos como esse método
se processará. Uma parte da equipe já participou de um processo de pesquisa
anteriormente e acumulou algumas experiências; ainda assim, todos poderão
contribuir nesse sentido. Eles dizem que pensam ser importante a participação dos
usuários na pesquisa, mesmo que o enfoque dessa vez seja nos trabalhadores.
Levei um exemplar do caderno temático do CRP-SP 48 sobre centro de
convivência, e eles sugeriram iniciar nossos encontros com a leitura e a discussão
em formato de grupo de estudo, como fizemos na outra pesquisa. A diferença é que

47 Não é nosso foco de análise a precarização do trabalho em saúde mental. O modelo gerencial que
vem sendo implementado na saúde mental do município do Rio de Janeiro e seus processos de
privatização foram brilhantemente estudados na tese de doutorado Processos de privatização na
saúde mental: o método da clínica como resistência, de Williana Louzada (2018), a qual
recomendamos fortemente a leitura para os interessados no assunto.
48 O caderno temático se encontra disponível em: <http://www.crpsp.org/fotos/pdf-2015-11-05-16-14-
35.pdf>.
107

da outra vez sempre chamávamos um convidado para debater o texto; dessa,


pactuamos debater entre nós, uma vez que estávamos interessados em analisar a
atividade de trabalho.
Entre os quatro textos do volume, eles escolhem o texto da Maria Cecília
Galleti, cujo título é: Qual o lugar do Centro de Convivência na rede substitutiva?
Agendamos para fevereiro o início do grupo de estudos, dispondo do tempo da
metade da reunião de equipe (15h às 16h30min) para realizar essa tarefa.
Reativamos o grupo do WhatsApp, incluindo os novos participantes e excluindo
antigos.

4.4 Debate de artigo como via para análise da atividade

Em fevereiro de 2018, iniciamos a discussão do texto combinado, e um


trabalhador disse que ter feito a leitura do texto “trocou a pilha” (sic). Perguntei:
como o texto trocou a pilha? Ele disse que passou um tempo se sentindo
desanimado por causa dos recorrentes atrasos no pagamento; devido à
precarização das condições de trabalho estava se sentindo com a “bateria fraca”
(sic). Ao ler o texto (transcrição de uma palestra ocorrida durante o I Encontro
Estadual dos CECOS em 2011/Campinas-SP), ele contou que se viu no que estava
escrito ali; afirmou que muito do que a autora trazia é o que eles faziam no Trilhos do
Engenho, e que isso o fez se sentir animado outra vez com o trabalho.
Essa afirmativa nos remeteu ao conceito de trabalho bem-feito. Segundo Clot
(2010), o trabalho bem-feito é aquele que é fonte de saúde para o trabalhador. A
adjetivação bem-feito nada tem a ver com agir de modo mais próximo da prescrição,
trabalhar idêntico ao que é esperado pela organização. O trabalho bem-feito é
aquele em que nós nos reconhecemos nele, nos sentimos satisfeitos por o termos
realizado, percebendo o resultado de nossa ação no mundo, e ao mesmo tempo em
diálogo com o sobredestinatário da atividade, o gênero de atividade profissional.
Sentir que trabalhamos bem é uma forma de cuidar do trabalho, de se sentir capaz
não só de realizá-lo, mas também de transformá-lo, de ordená-lo conforme as
variações da vida: “[...] transformar o trabalho, mas também, em francês, fazer um
bom trabalho, é a qualidade do trabalho bem-feito que é uma fonte de saúde”
(CLOT, 2010, p. 222).
108

O texto escolhido para leitura no grupo tem forte cunho político e analítico dos
principais impasses do trabalho que acontece nos CECOs e ao mesmo tempo
valoriza a função social desse serviço. Talvez, ao ler o texto e se reconhecer em um
gênero trabalhador de CECO, aquele trabalhador foi capaz de olhar para seu
trabalho, perceber a maneira como estava se sentindo diante dele e transformar
aquilo de algum modo. Observamos que ao longo da leitura e discussão do texto de
Galletti, que traz a ênfase do trabalho dos CECOS para as estratégias de
avizinhamento, algumas oficinas que aconteciam dentro do espaço do CECO
passaram ser realizadas na casa de vizinhos, como por exemplo a oficina de
relaxamento, que em abril/2018 era oferecida na sala de reunião do CECO e em
outubro/2018 passou a acontecer na academia ACM, fora dos muros do Instituto
Nise da Silveira. Consideramos que essa foi uma transformação significativa, pois
ampliou a interlocução entre o CECO e o bairro.
No começo da pesquisa ali, não tínhamos certeza nem clareza de como
aqueles grupos de discussão no trabalho propostos inicialmente no projeto
funcionariam. Entendemos que faz parte do método cartográfico esse grau de
abertura ao que o campo vai trazer e não chegar com uma programação definida de
etapas a serem cumpridas pela pesquisa. Conforme os encontros para debate do
artigo foram acontecendo, passei a perceber que os trabalhadores produziam
enunciados muito interessantes sobre o trabalho da convivência e fui registrando
essas falas em um caderno de campo, enquanto eles debatiam. Esses enunciados
diziam respeito principalmente a três temáticas: 1) as condições de trabalho e seus
impasses; 2) o público a quem o CECO se destina; 3) o lugar que o CECO ocupa e
as estratégias para a convivência acontecer no território.
No total, foram quatro encontros de grupo de estudo que tive com a equipe
durante cinco meses, até esgotarmos a leitura e o debate do artigo. Além disso,
participei de atividades diversas do CECO, como Encontro de Ideias, Sarau de
Poesias, bloco de carnaval, festa junina, entre outras, sentindo como as relações no
trabalho se davam nesses espaços.
Quando compartilhei no NUTRAS-UFF como a pesquisa estava se
processando no campo Trilhos do Engenho, foi sugerido que eu aproveitasse esses
registros escritos dos debates e que eu NÃO fizesse novas rodas para analisar a
atividade, pois a análise da atividade com os trabalhadores já estava acontecendo.
109

Durante o diálogo com o NUTRAS, percebi que o que havia a ser feito era um
trabalho de análise do material que eu já tinha e depois levá-lo até o campo para a
produção de novos debates com os trabalhadores, como forma de restituir e
confrontar com o que ficou desses quatro grupos.
Combinei com as bolsistas de iniciação científica do NUTRAS um encontro
para que à luz da clínica da atividade pudéssemos olhar para esse material anotado
e selecionar algumas frases para levar para a equipe. Partindo da premissa de que a
controvérsia tem o potencial de desenvolver o trabalho, usamos como critério para a
escolha das frases aquelas que acendessem mais a discussão, aquelas que não
representavam pontos de consenso. Paralelamente a isso, conversei com a equipe
sobre esse encontro de confrontação, e a equipe sugeriu que além deles estivessem
presentes os parceiros, ou seja, profissionais que não estavam nas reuniões de
equipe em que fizemos os grupos de estudo, mas que oferecem atividades para o
CECO. Desse modo, participaram do encontro de 14 pessoas: eu-doutoranda,
bolsista de iniciação científica do NUTRAS, seis trabalhadores da equipe do CECO,
três parceiros do CECO, uma professora universitária de enfermagem e duas
estagiárias de enfermagem.
No encontro de confrontação, começamos com uma rodada de
apresentações. Logo em seguida narramos o percurso da pesquisa até ali, pois os
parceiros não haviam participado dos grupos anteriores. Levamos cartazes coloridos
com frases sobre o trabalho escritas em tamanho grande que foram recolhidas dos
grupos de estudo-debate do artigo. Os autores das frases não foram identificados
nos cartazes, mas a própria equipe foi buscando lembrar quem havia dito o quê. As
frases partilhadas foram:

A- “Não é meu papel tirar do meu dinheiro para pôr no trabalho. Tem
cliente que ganha mais que eu.”

B- “Levar pessoas? Ir junto? Encontrar em outro lugar? Nossa utopia:


que eles possam transitar na cidade sem a gente.”

C- “Um passeio pode ser só um passeio, mas um passeio pode ser


também um estímulo para a autonomia.”
110

D- “Estratégia de avizinhamento é uma trabalheira do cão!”

E- “Por ser funcionário, a gente tenta fazer tudo certo, mas às vezes
precisa fazer gato para ter música na praça.”

F- “A gente se diverte, mas a gente está a trabalho, precisa ficar ligado,


ver se há perigo, se há risco, não é brincadeira.”

As reações ao se confrontarem com as frases foram de surpresa, de


reconhecimento, de concordância e de discordância. O convite feito era produzir
novos debates sobre o trabalho a partir delas. Parte daquele grupo havia participado
da leitura e do debate do artigo, parte não. Isso produziu análise sobre o que é fazer
parte da equipe do CECO.Uma das parceiras disse: “Da participação nos textos, da
discussão de equipe, nada disso eu estou dentro aqui.” Independentemente de
terem participado ou não da enunciação ou escuta daquelas frases pela primeira
vez, avaliamos que elas dispararam um processo de auto-observação que
transforma o já vivido em vívido novo. Sobre o princípio da autoconfrontação, afirma-
se que:
O vivido, revivido em uma situação transformada, troca de lugar na atividade
do sujeito. De objeto, ele se converte em meio. Nesse deslocamento, não se
reencontra o vivido anterior. Descobre-se que ele continua vivo, que não é
somente o que havia acontecido ou o que se havia feito, mas o que não
chegou a acontecer ou o que não se fez e que, eventualmente, poderia ter
sido feito (CLOT, 2010, p. 253).

Em nossa avaliação, mais do que analisar os enunciados soltos, o que


interessa para a pesquisa é o debate que cada um deles possibilitou nesse encontro
que chamamos aqui de confrontação. Em nossa colheita, compartilhamos alguns
trechos transcritos substituindo os nomes dos participantes da pesquisa por nomes
de poetisas e poetas. Vamos então articular alguns desses debates, situações que
observamos no campo com as questões da pesquisa para produzir novas análises
transversalizando dois eixos: 1) o público para quem o CECO se destina; 2) o lugar
que o CECO ocupa e suas estratégias para a convivência acontecer no território.

4.5 Colheita no campo: CECO para quem?


Entre a desmedicalização, a desinstitucionalização da loucura e a promoção
da saúde no território
111

A problematização de para quem o trabalho da convivência se destina não


está descolada da problematização da função do Centro de Convivência e do lugar
que ele ocupa na cidade. Para a clínica da atividade, a atividade é sempre dirigida,
por isso a discussão do público-alvo do CECO colabora na análise deste trabalho.
Destacamos a seguir diálogos que serviram para pensar essas três dimensões:
público, função e lugar.

Florbela: Tem uma ficha minha que está caindo agora (…) Tem gente que
não precisa de psicologia nem de psiquiatria, precisa de contato, precisa
circular pela cidade.
Pagu: Precisa de uma rede de amigos.
Florbela: De amigos, gente, as pessoas precisam de amigos. Eu estou
resgatando todos os meus amigos, encontrei gente de vinte anos atrás,
porque nesse momento principalmente acho que quanto mais rede, mais
afeto, mais a gente consegue sobreviver ao que está acontecendo.

Dizer que ao se deparar com as frases acontece de cair a ficha aponta para o
efeito produzido pelo método da clínica da atividade em que o trabalhador tende a
se tornar observador do próprio trabalho. Florbela é uma parceira do CECO que
divide sua carga horária entre CECO e ambulatório. Ao longo do encontro, ela
compara sua prática profissional no ambulatório como psicóloga e sua prática
profissional como professora de ioga no CECO; talvez essa dupla inserção no
trabalho em saúde também tenha favorecido esse descolamento de posição.
A fala “nem todo mundo precisa de psicólogo e psiquiatra” (sic), considerando
o contexto da atenção psicossocial, faz uma crítica à psicologização e à
psiquiatrização das pessoas em sofrimento psíquico. O enunciado aponta para a
potência de despatologização da vida que o trabalho do CECO coloca em
funcionamento.
O debate no grupo caminhou para a função do CECO como um espaço de
produção de amizades e o quanto isso é necessário para a saúde humana.
Destacamos que a trabalhadora começa falando sobre o público que faz sua aula de
ioga e depois termina o enunciado falando de sua própria experiência, e da
necessidade que tem tido de resgatar amigos, dando ênfase aos tempos atuais de
dura conjuntura política. Essa maneira de se posicionar diante da vida – de olhar
para o outro e reconhecer que há nele uma necessidade, e que essa necessidade
que ele tem pode ser a mesma que eu tenho, ainda que ocupemos lugares
112

diferentes – favorece a formação e a consolidação dos vínculos. Essa é a súmula da


ideia de que somos todos conviventes.
Agir no mundo com o entendimento de que somos todos conviventes facilita a
produção do plano comum, do qual participamos, de onde é possível produzir saúde.
Há uma disposição ético-cognitiva para que isso se processe, pois como afirma
Teixeira (2005, p. 593), há “o reconhecimento do outro como um legítimo outro; o
reconhecimento de cada um como insuficiente; o reconhecimento de que o sentido
de uma situação é fabricado pelo conjunto dos saberes presentes”. Portanto, todos
sabem alguma coisa e ninguém sabe tudo. Ressaltamos que os saberes que
fabricam um trabalho que opera saúde para os trabalhadores também fabricam
saúde para os usuários, isto é: saber que a amizade é necessária à saúde humana é
um saber que transcende lugares instituídos.
Por outro lado, dependendo do percurso formativo profissional e de vida dos
trabalhadores, eles também trazem estereótipos, medos, preconceitos em relação à
loucura. O debate disparado pelas frases também deu visibilidade a isso. Tornou-se
visível o quanto, por meio da convivência, estereótipos, medos e preconceitos vão
se desmanchando e novos processos de subjetivação vão se constituindo no
trabalho, como destacamos no trecho a seguir:

Cora: Essas frases mexeram bastante comigo, porque assim... eu não sou
da área de saúde mental, sou intensivista, né? Mestrado, doutorado,
especialização tudo em terapia intensiva, né? E aos quarenta e cinco do
segundo tempo eu caí na saúde mental porque a professora de psiquiatria
entrou de licença e eu vim dar uma cobertura, isso há sete, seis anos e
meio atrás, e aí me internaram, né? E não consigo sair mais [risadas].
Fiquei. Não voltei mais para terapia intensiva. E esse trabalho que é feito
aqui para mim foi um aprendizado ímpar. (…) Quando eu cheguei aqui, eu
confesso a vocês que eu ficava sempre ligada, que eu tinha sempre a
sensação que algum usuário iria me dar um soco ou ia me empurrar,
né, porque é o que a gente traz lá de fora, que eles são agressivos, né?
E aí eu cheguei bem assustada e não sabia lidar com eles direito porque eu
estava acostumada a comandar o cuidado, a comandar a minha prática. (...)
na oficina que a gente começava, eu começava a organizar a atividade e
eles desorganizavam a atividade. Aquilo me inquietava muito, que eu falava:
“Senhor, toda hora eu arrumo e eles desarrumam”. A gente preparando para
fazer os bonecos da festa julina ou preparando algum outro material, eu
separava lápis de cor aqui, papel aqui e nanana, tudo na caixinha, quando
eu achava, né, no meu pragmatismo que tinha que ser, e eles
desconstruíam aquilo tudo. Então, foi assim muito sofrido no começo
para eu entender que era o jeito deles, e eu aprender a fazer COM eles.

As fronteiras entre quem cuida e quem é cuidado existem; contudo, a ideia de


que somos todos conviventes, que implica reconhecer o outro como legítimo outro,
113

passa pelos ditos usuários reconhecerem os trabalhadores como insuficientes ou


vulneráveis também. A vulnerabilidade dos trabalhadores no âmbito da questão
financeira, por exemplo, apareceu na frase A dos cartazes: “Não é meu papel tirar
do meu dinheiro para pôr no trabalho. Tem cliente que ganha mais que eu.”
Essa controvérsia do dinheiro para pôr no trabalho apareceu algumas vezes
no decorrer da pesquisa. Uma delas foi na reunião de equipe com a coordenação.
Apareceu também no encontro de ideias, espaço cogestivo de construção da
programação mensal do CECO, quando os usuários desejavam fazer atividades que
implicavam um custo que os trabalhadores não estavam dispostos a pagar,
principalmente por estarem sem receber salário, sem vale-transporte, ou seja,
privados dos direitos trabalhistas mais básicos. Recordo-me de uma trabalhadora
falando para uma usuária que era preciso eles entenderem que por mais que
quisessem fazer o passeio X juntos, não era possível por estarem sem pagamento.
Após várias divergências, o destino do passeio foi mudado para um em que todos
teriam gratuidade.
Em nossa participação, observamos que o encontro de ideias funciona de
modo semelhante a uma assembleia. Com base no princípio democrático, todos têm
direito a voz e voto, cada um expõe, argumenta, avalia o que considera positivo ou
negativo no que eles já realizaram juntos (avaliação do que aconteceu no último
mês), ao mesmo tempo que discutem e deliberam o que pretendem fazer juntos
(construção da agenda do mês seguinte). Nessa conversa, as pessoas trazem como
se sentiram em determinado espaço da cidade, o que aquele encontro produziu
nelas, se desejam retornar ou não, e também falam de seus desejos, de com quem
gostariam de estar em um próximo evento, o que vestir, como se deslocar até lá, o
que naquela opção atrai ou repele.

A assembleia não é um grupo de psicoterapia, mas tampouco é um


parlamento. Ela é mais interativa em termos de situações reais do que um
grupo terapêutico, mas é muito mais pessoal que um sistema de
representação indireta (MOFFATT,1980, p. 171).

A frase A também aponta para a precariedade das condições de contrato de


trabalho na saúde pública carioca, em que os salários são realmente muito baixos.
Houve época em que cuidadores das residências terapêuticas chegaram a receber
menos que o salário mínimo nacional. O que pode produzir saúde no trabalho dos
CECOs, certamente, não são as condições de contrato de trabalho, pois o descaso
114

com as políticas de saúde por parte da Prefeitura é notório. Contudo, o retorno que
os trabalhadores obtêm por quem se beneficia das suas ações, como vemos no
diálogo a seguir, transforma a relação com o próprio trabalho.

Florbela: Na sexta eu tenho percebido assim, eu estou preferindo vir de


trem, aí eu vou caminhando pelo Engenho de Dentro.
Pagu: É o dia que ela dá ioga.
Florbela: Que é o dia que eu dou ioga, exatamente. Aí eu venho
caminhando pelo Engenho de Dentro, aí encontro a galera que vai para
ioga na rua [risada], aí vem todo mundo batendo papo. É assim, é claro que
eu tenho retorno deles. (...) de que assim – "Pô, parei de tomar o Rivotril de
uma hora para outra”, eu falei: “Não, peraí” – não, mas oh, não tá fazendo
falta, não. Tem esses retornos, mas assim, eu percebo que é algo que me
nutre muito. É um dia diferente de lidar com o trabalho, é bem mais leve,
né?

O diálogo nos dá indícios de que o trabalho no CECO faz a trabalhadora ficar


mais exposta aos afetos dos conviventes, e ela sente alegria com essa exposição. O
trabalho do CECO produz mudanças na vida do usuário (ele para de tomar o
psicofármaco Rivotril) e na vida da professora de ioga (que passa a ir para o
trabalho de trem às sextas-feiras e vai caminhando pelo Engenho de Dentro). Nos
dias em que ela atua no ambulatório como psicóloga, o percurso até o trabalho não
é feito assim.
Vivemos em tempos de medicalização da sociedade como um todo, não só
da loucura. Compreendemos a medicalização como

um processo amplo pelo qual condições humanas e problemas ordinários


passam a ser definidos e tratados como condições médicas, tornando-se,
portanto, objeto de estudo médico, diagnóstico, prevenção e tratamento
(FREITAS; AMARANTE, 2015, p. 131).

Contudo, no que se refere à medicalização em psiquiatria, a era da epidemia


das drogas psiquiátricas (ansiolíticos, estabilizadores de humor, antidepressivos,
estimulantes, antipsicóticos) faz crescer a indústria farmacêutica cada vez mais e
mais. Whitaker (2017) nos mostra como foi possível que, a partir da década de 90 do
século passado, os problemas mentais tenham aumentado vertiginosamente,
precisamente quando foi propagado pelas associações científicas que o melhor
tratamento para lidar com tais problemas seriam os psicofármacos.
Na frente de um psiquiatra com o DSM-V em mãos, parece que ninguém
pode escapar de ganhar algum diagnóstico, seja lá qual for a experiência de
sofrimento que se atravessa. Crianças, adolescentes, adultos, idosos, pobres, ricos,
115

no sistema de saúde pública ou na saúde privada, ainda que a incidência seja


distinta, todos estamos suscetíveis ao diagnóstico. E acoplado com ele vem a
receita, a prescrição medicamentosa. Estamos de acordo com Caponi (2014)
quando critica o modelo proposto pelo DSM, sugerindo abandoná-lo como modelo
hegemônico de diagnóstico no campo da psiquiatria, e afirma a necessidade de
inventarmos outras estratégias que nos permitam compreender os sofrimentos
psíquicos, estratégias que considerem as histórias de vida, os nossos ódios e
amores, os nossos medos, conquistas e fracassos.
Freitas e Amarante (2015) apontam que um dos principais desafios é saber
como oferecer assistência psicossocial nos dispositivos territoriais sem criar uma
população que não seja chamada de ex-paciente, sobrevivente da psiquiatria, ou
curado. Esse desafio está apresentado para os CECOs. Na pesquisa e nos espaços
políticos, temos usado a palavra conviventes. Comecei a usar este termo ao me
dirigir por escrito ao grupo de WhatsApp do Fórum Estadual dos CECOs e depois fui
observando como as coordenações do CECOs se apropriaram do termo na palavra
falada. Este termo busca transmitir a ideia de que independentemente de a pessoa
ser ou não usuária de psicofármaco, ter sido ou não diagnosticada, ter sido ou não
internada na psiquiatria, estar ou não em acompanhamento em serviço
especializado como os CAPS, estamos todos vivendo juntos, partilhamos as alegrias
e as tristezas da vida convivida.
O enunciado da trabalhadora que se nutre ao saber que a participação do
convivente na aula de ioga do CECO colaborou para a interrupção do uso de um
psicofármaco nos convoca a problematizar o caráter desmedicalizante do CECO.
Desmedicalizar não se reduz a diminuir ou interromper o uso dos medicamentos.
Pode ser parar de tomar remédio, ou continuar tomando remédio, dependendo do
contexto, da relação que se estabelece. Desmedicalizar é romper com um sistema
prescritivo em que o saber médico é totalizante em apontar o que é melhor para o
outro, e esse outro fica numa posição passiva, de paciente, de doente. Por isso, é
necessário desmedicalizar as palavras, os discursos, os olhares, os ouvidos, os
gestos, os modos de pesquisar e produzir conhecimento também.
A partir do trabalho do CECO, fazer amigos se configura como uma via de
desmedicalização. Temos pistas de que desmedicalizar a vida produz saúde não só
para o desmedicalizado, mas também para os trabalhadores desmedicalizadores,
116

que ampliam sua capacidade normativa na relação com o próprio trabalho, como
escutamos naquele enunciado. Além do CECO, está em curso a assunção de uma
série de estratégias desde o final do século XX que contrariam a crescente
medicalização e são baseadas na construção de espaços dialógicos em rede, tais
como o diálogo aberto (KANTORSKI; CARDANO, 2017); os grupos de ouvidores de
vozes (KANTORSKI et al., 2017); a gestão autônoma da medicação (CARON;
FEUERWERKER, 2019), os grupos de ajuda e suporte mútuos em saúde mental
(BRASIL, 2013a), entre outros.
Afirmamos que o trabalho da convivência pode colaborar na
desmedicalização da sociedade. Ainda que este não seja reconhecido como seu
objetivo primeiro, temos observado de modo não-sistemático que tal tem sido um
dos efeitos desse trabalho. Notamos ainda que essa desmedicalização, no sentido
de uma liberação da contenção afetiva pela via medicamentosa, pode se associar
com um processo de desinstitucionalização da loucura como doença mental,
rompendo com o paradigma da psiquiatria.
Há uma polissemia do termo desinstitucionalização. Aqui nos interessa a
perspectiva de desinstitucionalizar não como desospitalizar – uma redução de leitos
psiquiátricos – ou como transinstitucionar – uma transferência de uma instituição
para outra. Fazemos referência à desinstitucionalização da loucura como
transformação das relações de poder entre instituições e sujeitos.
Desinstitucionalização como um processo individual e coletivo de emancipação, de
libertação, que conta com o componente do sofrimento individual, mas não se reduz
a ele. Ela envolve trabalhadores, administradores públicos, políticos, cidadãos
comuns, na busca utópica, mas paradoxalmente realizável, de uma sociedade sem
manicômios (VENTURINI, 2016).
Acompanhar o trabalho da convivência nesta pesquisa nos mostrou que para
desinstitucionalizar a loucura como doença não é possível prescindir da produção do
comum, da produção da multidão (HARDT; NEGRI, 2005). Romper com a opressão
da psiquiatria requer uma certa dose de indignação coletiva. Isso foi muito visível
nas participações em audiências públicas e diversos atos em defesa de uma
sociedade sem manicômios que encheram as cadeiras da Alerj, as escadarias da
Câmara Municipal do Rio, o Largo da Carioca, a Cinelândia, entre outros pontos da
cidade. Para Hardt e Negri (2016, p. 263), a indignação é matéria-prima da revolta e
117

da rebelião; ela surge como fenômeno singular, como resposta a um obstáculo ou


violação específica. Pensamos que a luta pela liberdade contém algo de revoltoso.
Os gritos de guerra criados e cantados nos atos públicos expressam essa
indignação: “A nossa luta é todo dia / Nossa saúde / Não é mercadoria.” “Nossa
saúde / Não é brinquedo / O manicômio exclui os meus direitos.” Esses gritos ecoam
no cotidiano dos trabalhadores, dos conviventes que compõem esse comum.
Outro aspecto é que do trabalho da convivência faz parte uma dimensão
desinstitucionalizante que é a desconstrução do manicômio por meio de gestos
elementares. Como dizem Rotelli, Leonardis e Mauri (2001), são gestos
elementares: eliminar os meios de contenção; restabelecer a relação do indivíduo
com o próprio corpo; reconstruir a capacidade de uso dos objetos pessoais;
reconstruir o direito e a capacidade de palavra; eliminar a ergoterapia; abrir as
portas; produzir relações, espaços e objetos de interlocução; liberar os sentimentos;
restituir os direitos civis eliminando a coação, as tutelas jurídicas e o estatuto de
periculosidade; reativar uma base de rendimentos para poder ter acesso aos
intercâmbios sociais.

Fragmento de diário: Sobre ser acometido, se controlar e conviver


No Seminário Memórias da Loucura 2, na roda de conversa sobre a convivência,
após a apresentação de alguns trabalhos acadêmicos sobre o tema, um jovem
rapaz pergunta : “o que é acometido?” Em um dos slides apresentados, estava
escrito “pessoa acometida por transtornos mentais”. Uma psicóloga na roda tenta
responder, mas ele não se deu por satisfeito com a resposta dada. Outra psicóloga
consulta o dicionário no celular e diz que acometido significa “Que se acometeu, que
foi alvo da ação de algo ou de alguém.” Ela diz que, no caso, seria uma pessoa que
é alvo de sofrimento psíquico.
Quando retoma a palavra, o rapaz fala da dificuldade que é a convivência de quem
tem alguma necessidade especial. Ele traz alguns exemplos da comunidade onde
mora, que tem pessoas com necessidades especiais que não saem de casa nunca,
que não vão a lugar nenhum, ficam trancadas. Ele fala que a pessoa acometida
desde um tique nervoso até aquele que fala sozinho, ela não é aceita como ela é na
sociedade, por isso ela não convive, ela fica isolada em casa. Ela não sai porque
quando ela sai e age da forma como ela é, as pessoas zombam, e isso dói. Para
118

evitar a dor, a própria família fica quase sempre em casa. O rapaz vai se exaltando
ao fazer sua narrativa. Seu tom de voz vai ganhando ira, o volume vai aumentando.
Ele fala que dizem para ele que ele precisa se controlar, segurar sua onda quando
está na rua, que não pode sair por aí gritando. Ele fala que a pessoa acometida
precisa, sim, gritar; precisa, sim, se exaltar; precisa, sim, se expressar, para dizer
que as pessoas acometidas precisam de respeito e de aceitação. Enquanto não tiver
respeito e aceitação, mas aceitação da pessoa como é, e não aceitação da pessoa
controlada, não vai ter convivência. O rapaz é aplaudido e nossa roda se encerra.

Essa cena nos mobilizou a pensar para quem o CECO dirige suas atividades.
Para acometidos controlados? A condição de isolamento não se extingue por si só
com o fechamento dos leitos psiquiátricos. Quando defendemos o cuidado em
liberdade, precisamos embutir nessa defesa o direito à convivência. Pode parecer
sinônimo, liberdade e convivência, mas há uma nuance, que às vezes passa
imperceptível. O fato de a pessoa viver em uma casa, com a família, fora do
hospital, sugere que a liberdade e a convivência dos acometidos estão garantidas. A
fala do rapaz mostrou com toda a visceralidade que não está. Mesmo aqueles que
nunca foram internados, quem têm “desde um tique nervoso ao que fala sozinho”
(sic), também sofrem com essa condição que muitas vezes é de autoisolamento por
constrangimento.
Escutei o grito do rapaz como um grito não só pela liberdade dele, mas pela
de muitos. Embora ele não tenha usado exatamente essas palavras, traduzo a
mensagem dele como um chamamento indignado, que clama “socorro, precisamos
conviver com respeito!”. Para Spinoza, na definição dos afetos (EIII), a indignação é
um ódio por alguém que fez mal a um outro (p. 145). Acreditamos que o caminho do
ódio não é o melhor caminho. Contudo, identificamos que o afeto da indignação
desempenha uma função significativa nas transformações sociais.
Ficou nítido na fala dele a expressão do manicômio que insiste nas relações,
aquele manicômio invisível que tem desejo de correção, de controle, de dominação
sobre aquilo que é desviante. Embora ele estivesse se dirigindo a vários
profissionais naquele momento, não fez referência ao trabalho dos profissionais do
CECO em seu enunciado, mas sim às relações familiares. Ainda assim, a
119

problematização daquele pedido de autocontrole também está apresentada para o


trabalho da convivência.
Esse pedido de autocontrole carrega claramente um tom adaptativo, baseado
em um discurso que não aceita as cores reais ou verdadeiras das variações do
humor, as “true colors49 dos acometidos”. A letra desta música, True colors, de Cyndi
Lauper, nos oferece um ensinamento valioso para a convivência. Pensamos que a
convivência exige a ativação de um olhar capaz de captar a beleza do arco-íris de
cada um, na variação de suas tonalidades, intensidades, brilhos e opacidades.
Compreendemos que a convivência que o rapaz deseja não é a convivência com
cores disfarçadas, apagadas, camufladas ou escondidas, mas a convivência com
cores que podem aparecer como quer que sejam – sejam elas exaltadas, vibrantes,
contrastantes, bizarras, explosivas, elas poderão ser amadas e não desvalorizadas
por isso.
A cena também nos remeteu a frase de Brecht (1973)“Do rio que tudo arrasta
se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”
Identificamos como margens que comprimem a loucura: o estigma, uma marca
indelével, que segrega e exclui; a patologização da vida que atribui doença à
variação; e a medicalização que visa reparar essa variação que é entendida como
defeito a ser consertado, sintoma a ser curado.
Venturini em sua palestra sobre desmedicalização 50, propõe interessantes
perguntas: quem move a curva da normalidade? Como e por que se move? O que
motiva esse movimento? Como alguns são colocados para dentro ou para fora? Ser
mais ou menos produtivos, ser mais ou menos aquiescentes às regras do sistema?
Sem a pretensão de responder a tais questões, as mantemos pulsando em
nosso pensamento durante a pesquisa sobre o trabalho da convivência. Essas
questões produzem subjetividades que não se separam da análise da atividade. Na
frase B, podemos notar que a trabalhadora se interroga sobre como se posicionar
em meio ao trabalho da convivência, ao trabalho que requer ocupar a cidade e à

49 “I see your true colors / Shining through / I see your true colors / And that's why I love you / So
don't be afraid to let them show / Your true colors / True colors are beautiful / Like a rainbow” (“Eu
vejo suas cores reais / Brilhando por dentro / Eu verei suas cores reais / E é por isso que eu te amo /
Então não tenha medo de deixá-las aparecerem / Suas cores reais / Cores reais são lindas / Como
um arco-íris” (tradução livre da autora).
50 Palestra "A contribuição de Franco Basaglia e Franca Basaglia na crítica à patologização da vida",
proferida em 30/10/2019. Disponível em: <https://youtu.be/I3BEeH4lIiA>.
120

heterogeneidade. Dependendo das impressões que recolhe sobre os destinatários


de sua atividade, sobre os conviventes, os modos de trabalhar se alteram.
“Levar pessoas? Ir junto? Encontrar em outro lugar? Nossa utopia é que
eles possam transitar na cidade sem a gente!”
Levar pessoas traduz uma ideia de passividade das pessoas que precisam
ser levadas, e nos sugere que a trabalhadora supõe que as pessoas são incapazes
de se moverem por si sem a ajuda da equipe. Escutamos os resquícios da tutela
nesse modo de se expressar no trabalho. Ir junto traduz uma ideia de
acompanhamento, em que ninguém está carregando ninguém, mas que todos
podem se locomover em companhia uns dos outros; pressupõe agir em conjunto.
Encontrar em outro lugar transmite a ideia de que haverá um desvio do ponto de
partida inicial, que seria o CECO, ou seja, desloca-se o centro do encontro do CECO
para a cidade, para o local de interesse, para o local do evento, e isso implica
transitar na cidade sem acompanhamento, ou criar companhias outras para esse
trânsito. A diversidade do público, a diversidade dos destinatários da atividade de
trabalho da convivência, requer modos de gerir diversificados; respostas múltiplas
precisam ser inventadas a cada nova situação.
Compreendemos que trabalhar é fazer escolhas. Há sempre muitas
possibilidades, e agir implica escolher, ainda que aquilo que não é realizado interfira
no realizado. Foi interessante a trabalhadora enunciar algumas das diversas
possibilidades de organização do encontro, fazendo com que seu diálogo interior se
tornasse audível por seus pares, e o debate pudesse ser disparado. Esse debate
que tensiona a função do CECO foi ganhando consistência para pensar a relação
autonomia-tutela. No trecho a seguir, vemos que a autonomia do convivente que ao
mesmo tempo é a utopia também é algo que deixa o profissional sem saber o que
fazer. Tal situação produz afetos ambivalentes. Prescindir do acompanhamento do
profissional do CECO pode significar que esse trabalho se torne dispensável. Esse é
um paradoxo do trabalho do cuidado que a trabalhadora compara com o trabalho da
mãe com o filhote: agir com esse outro que ainda depende de mim de modo que eu
me torne desnecessária. Tornar-se desnecessário passa a ser o indicador do
trabalho bem-feito de quem busca produzir autonomia.
Esse tema percorreu o encontro de ideias, a reunião de equipe, e retornou
nesse grupo. Ao se confrontar com a frase B no cartaz, Clarice diz:
121

Clarice: Porque assim, é legal ir junto? É legal ir junto. Mas quando eles
começarem a ir sozinhos? É isso que a gente quer? É, de verdade. Mas no
fundo, no fundo, vai dar aquela coisa assim de “tá, e agora, o que eu faço?”
A gente sabe que vai ter sempre outras demandas e vai ter sempre o que
fazer. Mas é disso, é isso que a gente tem que pensar e desapegar. Sabe?
Eu não tenho que ser sempre necessário, o dia que eu não for mais, que
legal. Esse é o objetivo, agora é que eu vou ser feliz. Sabe? E isso é difícil,
porque a gente se apega. A gente se prende e às vezes a gente esquece
que não, que tem que soltar, tem que deixar ir. É igual coisa de mãe e
filhote mesmo.

No caso do trabalho da convivência, que diz respeito a um viver junto, o ir


sozinho se torna mais complexo ainda porque o sozinho nem sempre é exatamente
sozinho. Quando a trabalhadora fala sozinho quer dizer ir sem o profissional ao lado,
mas pode ser com outros companheiros. Ela mesma diz que muitas vezes é o
profissional que “se prende, se apega”.
Observamos que no decorrer da pesquisa, dois meses depois do início, houve uma
mudança na pactuação entre trabalhadores e frequentadores sobre essa controvérsia que se
materializou na divulgação da agenda cultural. Na agenda, passam a aparecer duas opções de
horário, uma com a saída do CECO e outra com encontro no local da atividade cultural. Na
agenda de fevereiro aparece apenas uma opção, e a partir da agenda de março duas opções de

horário passam a ser sugeridas, conforme mostramos a seguir.


122

Vale

destacar que a pesquisa viabilizou o dispositivo dialógico, mas os trabalhadores é


que foram os autores da transformação da agenda cultural, o que compreendemos
que foi um caminho que eles encontraram para cuidar do trabalho. “Cuidar do
trabalho é transformar a organização do trabalho. Essa é uma forma de abordagem
da ação. Criar situações e encontrar técnicas nas quais se transformem os
trabalhadores em sujeitos da situação” (CLOT, 2010, p. 222). Esse cuidado com o
trabalho é também exemplo de desenvolvimento da atividade a partir do
123

protagonismo dos trabalhadores ao coanalisá-la. Ao pensar em nosso trabalho de


pesquisadora-cartógrafa do ponto de vista da atividade, vemos nosso objeto se
fazendo enquanto é pesquisado, pois as interferências são mútuas, o par objeto-
sujeito coemergente, e a “atividade de pesquisa é ela mesma atividade criadora de
mundos e sujeitos” (BARROS; SILVA, 2014, p. 128).
Outro exemplo de ampliação do poder de agir da equipe do CECO foi a
itinerância do dispositivo Encontro de Ideias. Antes dos grupos de debate do artigo
da pesquisa, que mediou a coanálise da atividade, o Encontro de Ideias acontecia
sempre dentro do Instituto Nise da Silveira (em sala no próprio CECO ou no centro
de estudos). Os debates ao longo dos meses de fevereiro até julho/2018 sobre os
modos de organizar o Encontro de Ideias conduziram a equipe a uma
transformação. Em agosto/2018, realizaram-se duas versões do Encontro de Ideias,
um no CECO e outro no CAPS Dircinha e Linda Batista, em Guadalupe, que
pertence a outra área programática (AP3.3). Em setembro/2018 também houve duas
edições, no CECO e no CAPS Fernando Diniz, em Olaria, na AP 3.1. O CECO
Trilhos está na AP3.2 e é o único das zonas Norte, Centro e Sul da cidade.
124
125

Ter feito o Encontro de Ideias itinerante nos CAPS de outras áreas abriu o
diálogo com profissionais de outras equipes e diversificou o público participante do
CECO, uma vez que esses outros interlocutores passaram a interferir nas escolhas
das programações, especialmente os passeios a serem realizados. A frase C gerou
debate ao articular passeio e autonomia.
“Um passeio pode ser só um passeio, mas um passeio pode ser também
um estímulo para a autonomia.”
A autonomia se expressa tanto no ato de poder gerir seus recursos
financeiros para realizar o passeio desejado como na relação com o imprevisível da
cidade. Uma trabalhadora trouxe a situação de um passeio em que ocorreu um
acidente de trânsito e narrou como coletivamente foi possível lidar de modo bastante
favorável com a adversidade.

Pagu: Sim. Querem ir a tal lugar, querem ir a um passeio? O passeio é um


pouquinho caro? Reserva um pouquinho de dinheiro.
Clarice: Se não a gente vai continuar sendo necessário. Vai continuar
sendo a mamãe que abraça o filhote para que ele não consiga andar
sozinho.
Pagu: A gente viveu uma situação que a gente foi no AquaRio e a gente
pegou o ônibus. Muitas pessoas em pé, né? O ônibus estava cheio e tal. O
ônibus bateu, desceu todo mundo, ficamos no ponto do ônibus esperando
outro ônibus e eles ficaram muito bem, obrigado. Outros passageiros,
pessoas ditas normais, começaram a discutir. Um rapaz queria bater em um
senhor, não sei o quê, e os nossos estavam muito bem. Os clientes juntos
com as pessoas da comunidade. A gente entrou de novo no outro ônibus,
mais cheio ainda, todo mundo em pé, e chegamos até lá o Centro da
cidade, pegamos o VLT [veículo leve sobre trilhos]. Todo mundo passou seu
cartãozinho no VLT e tal, e fomos. Entendeu? Então é isso que a gente
acha que é importante. Para que eles possam depois fazer isso sozinhos,
um chamar o outro e fazer.

Essa narrativa nos pareceu exemplar de como a autonomia, no sentido de


criar normas novas diante das adversidades, exercida no coletivo, produz saúde
para os viventes. Como diz Canguilhem (2012, p. 159): “Uma vida sadia, uma vida
confiante, em sua existência, em seus valores, é uma vida em flexão, em
maleabilidade, quase em suavidade.” Diante do obstáculo do acidente de trânsito, os
conviventes agiram de modo maleável, suave, e poderão certamente usar essa
experiência vivida para viver outras experiências.
Desse modo, pontuamos que o trabalho da convivência, além de contar com
a dimensão da desinstitucionalização, se configura também como uma atividade de
126

construção, de produção, de promoção da saúde. A ocupação de espaços públicos,


o trânsito por equipamentos culturais e a produção artística possibilitam a invenção
de novos territórios existenciais. São piqueniques, festas, campeonatos de futebol,
saraus de poesia, banhos de mar na praia e de piscina em parques aquáticos,
visitas a exposições, peças de teatro, que promovem saúde por meio dos encontros.
Disse um convivente em uma roda em que se falava sobre a diferença que a
experiência de participar do CECO Trilhos do Engenho produz na vida das pessoas:
“Antes eu era bicho do mato, não conseguia ir no portão; hoje vou no Centro da
cidade, sou apaixonado pela vida que tenho!”
O enunciado aponta para o trabalho da convivência como um trabalho de
promoção da saúde, intrinsecamente ligado à relação com a cidade. O convivente
mostra como sinal de saúde ir até o Centro da cidade, ele compara o antes e o
agora. A promoção da saúde é definida como

Uma das estratégias de produção de saúde que, articulada às demais


estratégias e políticas do Sistema Único de Saúde, contribui para a
construção de ações transversais que possibilitem atender às necessidades
sociais em saúde (BRASIL, 2013b).

A proposta de construir cidades mais saudáveis está relacionada com a


crescente urbanização do país nos últimos cinquenta anos, a qual produz grandes
iniquidades que impactam as condições sociais de saúde (WESTPHAL, 2018).
Segundo Malta et al. (2016), no Brasil, a caminhada para formulação,
implementação e revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS)
ocorreu em três períodos: 1) 1998/2004, denominado o Embrião da Promoção da
Saúde; 2) 2005 a 2013, onde nasceu, cresceu e se desenvolveu uma PNPS; 3)
2013-2015, revisando, ampliando e divulgando a PNPS.
Os CECOs da cidade do Rio nascem (2011-2014) quando a PNPS está no
seu auge. Em junho de 2012, na ocasião da Rio+20 (Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que trouxe ao Rio de Janeiro 188
nações de todo o mundo), diversos grupos de economia solidária ligados à RAPS e
a projetos artístico-culturais oriundos do campo da saúde mental da cidade
participaram do evento, na Cúpula dos Povos, no Aterro do Flamengo, se
apresentando, expondo seus produtos, participando dos debates. Muitos dos que
hoje são trabalhadores e conviventes dos CECOs fizeram parte desse momento
histórico, que sofreu vários questionamentos por alguns movimentos sociais.
127

Do lugar de assessora técnica da coordenação de saúde mental do


município, pude presenciar esse contágio pelas ideias da promoção da saúde. Há
deslocamento do foco de atenção da doença e do indivíduo para os determinantes
sociais da saúde (DSS). Os DSS são fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-
raciais, psicológicos, comportamentais e ambientais que influenciam o processo
saúde-doença, tais como habitação, saneamento, condições de trabalho, serviços
de saúde e educação, incluindo a trama de redes sociais e comunitárias. Os pilares
de intervenção sobre os DSS são a intersetorialidade e a participação social
(BRASIL, 2013c).
Para Castiel (2004) a promoção da saúde pode estar fundamentada em duas
estratégias políticas que se distinguem: uma conservadora que responsabiliza o
indivíduo pela sua própria saúde atribuindo a ele seu papel na prevenção e redução
de riscos, e uma outra que seria libertária, no sentido que procura mudar a relação
entre cidadãos e Estado, buscando ações intersetoriais e participação nas políticas
públicas. Consideramos que o CECO se alia a segunda via, e tem uma função
estratégica em promover a saúde de um território, uma vez que as redes
comunitárias integram as condições socioeconômicas, culturais e ambientais. O
CECO é um ativador de redes, ele lança mão da estratégia de avizinhamento para
fazer isso. O trabalho da convivência ativa não somente um convívio comunitário,
mas também “uma estratégia de composição, de avizinhamento, experiências que
podem reinventar a diferença entre isolamento e vida coletiva” (GALETTI, 2015,
p.20).
Temos alguns exemplos de como essa estratégia de avizinhamento se
organiza no cotidiano: o curso de cerâmica negra, por meio do ponto de cultura; a
capoeira que acontece no espaço Mestre Grilo; a aula de Tai Chi Chuan que
acontece no galpão do Engenhão; o futebol que acontece na Vila Olímpica do
Encantado, entre outras atividades regulares oferecidas pelo CECO que implicam
firmar uma parceria. Esse vizinho que abre seu espaço dedica o seu tempo, seu
saber, seu fazer, também se transforma nesse processo de produção subjetiva
coletiva por meio da convivência. Contudo, esse não é um trabalho simples; em
nossa visão, ele é engenhoso, e muitas vezes produz um cansaço em parte da
equipe também, como pudemos notar na frase D:
“Estratégia de avizinhamento é uma trabalheira do cão!”
128

Cecília: Pensando no avizinhamento, nas estratégias, na trabalheira do


cão. Eu fiquei pensando assim, que tipo de cão, né? É um poodle ou um
rottweiler? [risadas]
Pagu: É rottweiler mesmo.
Cecília: É que a gente vem fazendo essa itinerância, tem o encontro de
ideias, de estar expandindo, de estar tendo contato com outros profissionais
de outros dispositivos ou até do território mesmo. O quanto que isso deixou
a gente um pouco mais leve.

Avizinhar requer se deslocar, explicar, pactuar, repactuar permanentemente,


exige disponibilidade. Em tom de brincadeira, vemos que Pagu associa o trabalho a
um cão rottweiler, um cão feroz. Por sua vez, Cecília sente que o trabalho se tornou
mais leve com a itinerância, visitando a casa dos vizinhos, pois desse modo é
possível compartilhar com outros pares. Isso nos sinaliza que não há consenso na
equipe sobre o quanto avizinhar impacta cada trabalhador: para uns suaviza, para
outros intensifica o trabalho.
No trabalho da convivência, avizinhar implica coletivizar. “Coletivizar: acessar/
produzir o plano coletivo de forças; ação de constituição do comum” (ESCÓSSIA,
2015, p. 53). Notamos que há um duplo movimento de coletivização: um para dentro
da equipe e outro para fora. Para fora é esse que busca parceiros no território; para
dentro é coletivizar entre os próprios trabalhadores o que tem impedido ou não o
trabalho. Essa coletivização dos desafios aconteceu na reunião de equipe-grupos de
debate da pesquisa. Tornaram-se observadores do próprio trabalho no coletivo. Isso
fez a equipe desvelar outras possibilidades de agir ante o tema dos ingressos
obtidos para atividades noturnas, por exemplo. Em vez de o profissional buscar os
ingressos, no diálogo um novo possível surge.

Manoel: Ontem mesmo nós estávamos em reunião de equipe, e aí eu estou


superassociando com as frases que estão aqui hoje, né? A questão de levar
pessoas, ir junto, encontrar no lugar, nós discutimos sobre isso ontem. Uma
estratégia de avizinhamento com os nossos parceiros, né? Ontem
estávamos discutindo sobre os ingressos que nós temos de atividades
noturnas, e aí já se discute quanto a carga horária, como nós vamos sair do
trabalho para ir para uma atividade noturna, já para estender o horário de
trabalho, e aí a gente volta e começa a discutir. Uma parte da equipe traz
um questionamento diferente: “Pô, por que a gente não tenta incentivar a
autonomia do cliente dele ir sozinho? Dele pegar o ingresso.” E acho que
essas frases e algum momento que a equipe para para refletir só tende a
produzir, só tende a gente ganhar conhecimento a partir da discussão.
Pagu: E aí a gente monta uma estratégia, né?
Manoel: Monta uma estratégia.
Pagu: E isso, ontem a gente conversando, a gente estava pensando:
vamos começar pela comunidade, né, ver se as pessoas da comunidade
podem se responsabilizar em pegar esses ingressos, né? E quem sabe um
dia a gente possa chegar a que eles mesmos possam pegar os ingressos,
129

se responsabilizar e distribuir entre os colegas, né? Acho que é um


processo, né, mas que a gente não deixa de vislumbrar isso. É um
processo, pode ser lento, né, não sei, o tempo é o tempo de cada um, né?
Mas é interessante [pausa] a gente vê isso. Antes também, algum tempo
atrás a gente sequer pensava nisso, né? [pausa]. Agora, no momento
que a gente está vivendo, a gente já começa a pensar nessa possibilidade.

Por fim, identificamos, no curso da pesquisa, que a pergunta de qual o lugar


dos CECOs e seus trânsitos é uma pergunta que insiste em várias conversas. Com
base tanto na experiência com os grupos como na análise das agendas culturais
durante o ano de 2018, afirmamos que seu lugar diz respeito à excentricidade. O
CECO se faz excêntrico, pois desvia do Centro, habita lugar fronteiriço: o lugar do
entre. A atividade dos trabalhadores ocorre entre arte, cultura, lazer, esporte e
trabalho na cidade. A estratégia de avizinhamento, que segundo relato de
trabalhadora é uma “trabalheira do cão”, é ferramenta indispensável, e se passa
entre múltiplas parcerias que permitem a convivência como sustentação da
diferença na comunidade. Desse modo, a excentricidade, o centrar para fora, uma
das direções deste trabalho, foi também propiciada pelo processo de coanálise da
atividade. Quando Pagu faz a pausa e depois diz que começam a pensar em outras
possibilidades, vemos isso.
Outro traço do trabalho dos CECOs é a heterogeneidade do público atendido.
A atribuição de oferecer “à população em geral espaços de sociabilidade, produção
e intervenção na cultura e na cidade” é atravessada nesse CECO pela perspectiva
da desinstitucionalização da loucura como perigo e incapacidade. Outra pergunta
insistente é: CECO para quem? Afirmamos que a desinstitucionalização ocorreu
quando houve um desmantelamento das relações de tutela que sustentam a lógica
manicomial, e outro lugar social pautado no exercício da autonomia coletiva pôde se
instituir. Um exemplo de desinstitucionalização do manicômio mental foi quando a
equipe procurou um parque aquático para se informar e organizar a festa de fim de
ano e na conversa com o dono do espaço encontrou alguns entraves, que foram
pouco a pouco sendo desmanchados no diálogo.

Pagu: Aí começamos a conversar lá com o dono e tal e ele falou: “Vocês


são da onde?” Eu falei: “Nós somos lá do Nise da Silveira, o Centro de
Convivência e tal.” “Ah, eu vou ter que reservar o dia só para vocês.”
Elisa: Sendo que antes ele tinha dito que ele não reservava o dia.
Adélia: Mas quando soube que eram pessoas...
Pagu: “Eu vou reservar o dia só para você.” Eu falei: “Mas como, moço?”
“Não, eu vou reservar o dia só para vocês, porque aí é melhor, não tem
outras pessoas de fora e tal.” Eu falei: “Mas não precisa, a gente quer que
estejam todos. Como tem hoje pessoas aqui, a gente gostaria que tivessem
130

outras pessoas juntas no nosso dia.” “Não, mas nós vivemos uma situação
em que veio um menino aí, vocês são de onde? É de Caxias?” “Do
Engenho de Dentro.” “Ah, que nós vivemos uma situação em que veio uma
moça lá de Caxias com um menino autista, né, e ele mordeu uma moça.”
Eu falei: “Ah, moço, isso aí qualquer um pode morder qualquer um. O
senhor lembra daquele jogador de futebol que mordia outros?” [risadas].
Não veio outra coisa na minha cabeça, depois falei: meu Deus, que maluca!
[risos de todos no grupo]
Pagu: “O senhor está nos rejeitando?” “Não, de forma alguma, não sei o
quê.” Aí o homem mudou para o outro lado assim: “Ah, eu vou dar então
quarenta gratuidades para vocês.” “Também a gente não quer isso.”
Entendeu? Antes eu não quero vocês juntos com os demais, quero vocês
sozinhos. Depois, não, vocês podem ficar juntos, mas eu vou dar gratuidade
para vocês. Então é isso, assim, essa estratégia de avizinhamento, né, é ir
falando, ir levando essa proposta e desconstruindo isso. E no primeiro
momento ele falou: “As pessoas são perigosas, vocês vêm de uma
instituição psiquiátrica, então vão ficar só vocês.” Mas a gente vai continuar
excluídos? É tudo que a gente não quer! [...] Então, é um trabalho
constante.

Essa história remete àquela narrada por nossa entrevistada Lisete Vaz,
quando na década de 90 se fazia uma sessão de cinema só para os pacientes, e se
o filme não tivesse terminado no horário de os normais chegarem, eles tinham que
sair antes do fim do filme. A subjetividade manicomial que permeia essa prática é a
mesma da do dono do parque que sugeriu fazer um dia exclusivo só para o CECO.
Nesse caso, o exclusivo é o excludente. O desfecho dessa história foi que o grupo
de conviventes foi ao parque em um dia em que o parque estava aberto a outros
grupos. Eles se divertiram numa tarde ensolarada de dezembro juntos e misturados
com os outros banhistas na piscina, com música e altos papos. Entre os diversos
participantes, foram usuários de alguns CAPS, familiares, pessoas da comunidade,
moradores e cuidadores de residências terapêuticas.
Como disse Pelbart em “Manicômio mental: a outra face da clausura”,51 é
preciso que esse chamamento de apenas três palavrinhas (sociedade sem
manicômios) tenha a força de uma questão candente, em brasa. Dar fim ao
manicômio, explodir o manicômio mental, é fazer valer o direito à desrazão, que
significa poder pensar loucamente, poder levar o delírio à praça, fazer do acaso um
campo de invenção, liberando a subjetividade das amarras da verdade. Quando o
CECO incendeia o manicômio perpetuado nas relações, ele desinstitucionaliza a
loucura no tecido social. É um trabalho de desconstrução, em que o manicômio deve
virar cinzas.

51 “Manicômio mental: a outra face da clausura” é o nome de um texto apresentado por Peter Pal
Pelbart no encontro organizado em São Paulo pelo Plenário de Trabalhadores em Saúde Mental, em
comemoração ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, em 18 de maio de 1989.(Pelbart, 1991, p.137)
131

Por outro lado, a promoção da saúde no CECO, pela via da participação


popular, se efetiva mediante a atuação na construção das políticas públicas por
parte de todos os conviventes engajados nesse processo em encontros de
militância, audiências, fóruns, atos, conferências, tendo constituído um movimento
social em que a vida é afirmada no coletivo. Por exemplo: a aula de ioga na praça é
clínico-política, pois alonga o corpo e contrai o tecido social. Os conviventes ali
exercitam não só o corpo, mas a cidadania. Em praça pública, discutem suas
necessidades de saúde e confeccionam cartazes para audiência pública na Alerj em
defesa do financiamento da RAPS, do SUS, dos serviços que eles mesmos usam.
Verificamos, então, que as dimensões macropolítica e micropolítica são
distintas, mas inseparáveis. A dimensão macropolítica nos lembra o que não temos e
o que não somos, no que se refere também aos direitos instituídos. Os CECOs não
têm financiamento, recursos próprios, destinação orçamentária, funcionam sem o
reconhecimento da gestão, não têm cadastro no SUS, CNES, portaria que
regulamenta – CECO não é unidade de saúde. A dimensão micropolítica nos lembra
que o CECO é movido pelos afetos, desejos, por subjetividades que estão mais
interessadas em anunciar a ampliação da vida do que denunciar as injustiças nas
formas do mundo vigentes. Os trabalhadores parceiros trouxeram situações que
ilustram como fazer parte do comum produz saúde, amplia a capacidade normativa,
produz alegria por trilhar juntos novas vias.

Vinícius: Você vê o Noel, vou dar o exemplo do Noel, nossa senhora! Noel
chegava lá, sentava e não falava nada, nem levantava. Hoje o Noel vem
jogar capoeira, o Noel pega nos instrumentos, ele canta, ele chega alegre,
ele fala o que aconteceu com ele no dia a dia, né? [...] Isso tudo um trabalho
de formiguinha, que eu fico feliz, né? […] O Noel falou assim: “Poxa, eu
queria namorar.” E falou assim: “Mestre, eu queira namorar, mestre. Queria
namorar uma companheira.”
Adélia: Ele sente falta, né?
Vinícius: É, daí você trabalha. Eu falei: “Noel, para você arrumar uma
companheira, você vai ter que fazer o seguinte: procurar se relacionar mais,
procurar alguns ambientes, fazer parte de outros grupos, né, ir no baile.”

Entre desinstitucionalizar a loucura e promover a saúde, passando pela


desmedicalização da sociedade, os trabalhadores do CECO têm podido usar sua
capacidade imaginativa coletiva a favor do comum, da multiplicidade de
singularidades que buscam expressão. Essa capacidade imaginativa é determinada
pelo estado do corpo e vice-versa. O modo como percebemos a realidade, assim
como a redução ou ampliação da possibilidade de imaginar, tem a ver com um
132

aumento ou diminuição da nossa potência de agir. “A mente esforça-se, tanto quanto


pode, por imaginar aquelas coisas que aumentam ou estimulam a potência de agir
do corpo” (EIII, P12). Assim, em Spinoza, temos uma positivação da capacidade
imaginativa, pois a mente não erra por imaginar; o problema é tomar a imaginação
por verdade. Por exemplo: não há nada de errado em imaginar um cavalo alado, o
problema é acreditar que pode voar nele e se machucar.
Por outro lado, quanto mais pudermos imaginar o que nos amplia a potência,
mais potentes nos tornamos. Coletivamente, quando isso ocorre, quando múltiplos
corpos imaginam uma coisa semelhante, os afetos são potencializados nesse
encontro com o outro. “Mesmo que aquilo pelo qual a coisa se assemelha ao objeto
não seja a causa eficiente desses afetos, amaremos, ainda assim, aquela coisa”
(Demonstração, EIIIP16). Desse modo, pensamos que não é coincidência que
quando Noel experimenta alegria passa a imaginar coisas que não imaginava antes.
O corpo alegra, a imaginação floresce. O professor de capoeira conta que Noel saiu
do ensimesmamento, que seu corpo, antes parado, hoje levanta, dança, canta, toca
instrumentos, e que ele começa a imaginar como pode conseguir uma namorada.
Ele se torna mais potente, e sua mente esforça-se por imaginar coisas que
aumentam sua potência de agir. Essa imaginação torna-se coletiva ao ser partilhada
com o professor, que passa a imaginar junto com ele vias para que ele possa ter um
encontro amoroso (bailes, outros grupos, novos ambientes). Portanto, ampliar a
capacidade imaginativa coletiva, seja para lutar por formas de financiamento, seja
para vislumbrar novos relacionamentos, faz parte da atividade de convivência nos
CECOs.

4.6 Desfechos que abrem novos caminhos: convivência como potência de


transformação

Trazemos aqui algumas palavras escritas pelos trabalhadores na avaliação da


experiência sobre o encontro com a pesquisa. No final do encontro, afirmou-se em
relação a participação na pesquisa que:
133

Foi a potência de transformação da convivência (…) Através do vínculo que


se estabelece no convívio, é possível acontecerem transformações em si
próprio e no outro.

Desconstruir para construir novos caminhos (…) Entender que o trabalho


coletivo que reconhece as potencialidades e limitações do outro tem um
poder transformador.

Foi oportunidade de me enxergar e me mostrar para a equipe do Centro de


Convivência.

Foi ver todo o afeto, todo o investimento da equipe. Dá pra ver que não
esmorece, apesar das dificuldades da falta de investimento da Prefeitura.

Foi muito importante essa troca de experiências com a equipe. Tive a


oportunidade de aprender e vivenciar com depoimentos de superação,
transformação e conquista.

O que mais me afeta em nossa equipe é a vontade de fazer dar certo.

Foi vivenciar um momento de trocas com os parceiros do dispositivo de


forma presencial.(...) Me suscitou o questionamento: de que forma estamos
construindo, nos alimentando e fortalecendo as parcerias? Compreendi o
quanto estamos enquanto corpo técnico distante dos nossos parceiros.

Foram as discussões construtivas a respeito da autonomia dos usuários,


que por mais que os profissionais criem um vínculo muito forte, devem
sempre estimulá-los a andarem com as próprias pernas.

Os textos que escreveram nos indicam que a convivência implica


TRANSFORMAÇÃO. O trabalho da convivência produz mudanças em todos nós
conviventes que fazemos parte dele: pesquisadores, usuários, parceiros,
trabalhadores, familiares, vizinhos, esperamos que leitores de tese também!
Portanto, os processos de subjetivação não estão separados dos processos de
trabalho. O trabalho da convivência é um trabalho afetivo antimanicomial, que tem
potencial de desinstitucionalizar a loucura como doença ao desmedicalizar a
sociedade e promover saúde de conviventes de todo tipo no território. Na próxima
cartografia, vamos concentrar nossa atenção em trabalhadores fundamentais nas
equipes dos CECOs: os oficineiros.
134

ÔNIBUSFOBIA

(Jota Quest)

Ah, isso aqui tá muito bom


Ah, isso aqui tá bom demais
Ah, isso aqui tá muito bom
Ah, isso aqui tá bom demais

Burrup mas que nervoso estou


Burrup sou neurastênico
Burrup preciso me casar
Se não eu vou pra Jacarepaguá

E Jacarepaguá é longe pra caramba


Jacarepaguá só se eu tiver de carro
Jacarepaguá só se eu tiver na Barra
Se não, não vou nem se amarrado

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xN_IF7-18Hg>


135

5 CARTOGRAFIA 4 – OS OFICINEIROS

5.1 Território Jacarepaguá – Taquara – Colônia

Jacarepaguá, que em tupi significa enseada dos jacarés, é um bairro que


tem mais de 157 mil habitantes na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ele é composto
pelos seguintes núcleos urbanos: Anil, Curicica, Cidade de Deus, Freguesia,
Gardênia Azul, Pechincha, Praça Seca, Vila Valqueire, Tanque e Taquara. Na
Taquara, temos o sub-bairro Colônia com uma área de mais de 7 mil km² (o
equivalente ao bairro de Copacabana), onde o Polo Experimental de Convivência,
Educação e Cultura se situa.
Para falar do bairro Colônia, é preciso visitarmos sua história. Ao
caminharmos pelo local, nos deparamos imediatamente com seus prédios históricos,
como o aqueduto. Inaugurada em 1924, a instituição era chamada de Colônia de
Psicopatas Homens de Jacarepaguá. Em 1925, passou a se chamar Colônia Juliano
Moreira para homenagear o seu idealizador. Na década de 40, instituíram-se a
praxiterapia, a lavoura, a pecuária e a confecção de artefatos de vime e de colchões.
A Colônia, especialmente na primeira metade do século XX, foi lugar do horror
psiquiátrico realizando práticas como lobotomia, eletrochoque, punição em celas
fortes. Com o advento dos psicofármacos, veio a era da indústria da loucura, na
década de 70, com expansão das internações para o setor privado. Com o
Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, muitos dos horrores na Colônia são
denunciados, e a instituição sofre intervenções. Em 1996, as terras são
municipalizadas e a Colônia passa a se chamar Instituto Municipal de Assistência à
Saúde Juliano Moreira (IMASJM). Há nessa década a criação dos CAPS e
residências terapêuticas na região. Mais recentemente, a construção da
Transolímpica, via expressa inaugurada em 2016, impactou diretamente a região:
moradores do entorno foram removidos, ruas foram abertas, o comércio local se
instalou, um dos acessos ao Polo Experimental foi interrompido, o ônibus 762 deixou
de circular no bairro. Atualmente, é possível acessar a Colônia por meio de van ou
carro.
Em relação à rede de saúde da área programática 4.0, fazem parte, junto com
Jacarepaguá, os bairros: Barra da Tijuca, Camorim, Cidade de Deus, Grumari,
136

Itanhangá, Joá, Recreio dos Bandeirantes, Vargem Grande e Vargem Pequena. A


área conta com cerca de 22 unidades básicas, dois CAPSIII, um CAPSadIII com
unidade de acolhimento, um CAPSi e cinco hospitais gerais, sendo a emergência em
saúde mental em hospital geral, mais de 35 serviços residenciais terapêuticos e o
IMASJM.52

5.2 Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura

Antes chamado de Centro de Convivência Pedra Branca, hoje chamado de


Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura, o equipamento iniciou seu
funcionamento como CECO no ano de 2011, em Jacarepaguá, no bairro Colônia, e
tem seu percurso antecedido pelo projeto chamado Clube de Lazer (AQUINO;
CAVALCANTI, 2004), iniciado em 2001 como programa de lazer assistido para
usuários do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira. Embora o
Polo Experimental não se autonomeie como Centro de Convivência, entendemos
que as características do trabalho que ali acontece e a sua história nos permitem
reconhecê-lo como tal. Notamos que há, de fato, uma especificidade de estar ligado
ao Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea (mBrac) desde 2015, o que o
distingue dos demais CECOs.
Arthur Bispo do Rosário (Japaratuba-SE, 1911 – Rio de Janeiro-RJ, 1989) foi
um artista visual. Em 1925, muda-se para o Rio de Janeiro, onde trabalha na
Marinha Brasileira e na companhia de eletricidade Light. Em 1938, após um delírio
místico, apresenta-se a um mosteiro que o envia para o Hospital dos Alienados na
Praia Vermelha. Diagnosticado como esquizofrênico-paranoico, é internado na
Colônia Juliano Moreira. Entre 1940 e 1960, alterna os momentos no hospício e
períodos em que exerce alguns ofícios em residências cariocas. No começo da
década de 1960, trabalha na Clínica Pediátrica Amiu, onde vive em um quartinho no
sótão. Ali, inicia seus trabalhos, realizando com materiais rudimentares diversas
miniaturas, como de navios de guerra ou automóveis, e vários bordados. Em 1964,
regressa à Colônia, onde permanece até a sua morte. Cria por volta de mil peças
com objetos do cotidiano, como roupas e lençóis bordados. Em 1980, uma matéria
de Samuel Wainer Filho para o programa Fantástico, da TV Globo, revela a

52 Dados obtidos em: <www.data.rio/pages/rio-em-sntese-2>, acessado em fevereiro de 2020.


137

produção de Bispo. O artista tem sido enfocado em filmes de curta e média-


metragem, em livros e peças teatrais. Sua produção está reunida no mBrac. 53
Portanto, a criação do Polo tem uma ligação com a história do IMASJM e do mBrac.

Com a reformulação do mBrac, novas discussões surgem sobre a


estruturação das práticas de cultura e geração de renda desenvolvidas pelo
IMASJM. Se antes elas aconteciam de forma isolada e pouco integradas, foi
preciso criar uma estratégia de imprimir mais potência a essas práticas. O
Programa de Lazer (atividades culturais), o Programa de Geração de Renda
(oficinas e serviços que geram renda) e o Atelier Gaia (espaço de produção
de obras de arte) são transferidos para um prédio comum, designado Polo
Experimental de Convivência, Educação e Cultura, e ficam subordinados
ao mBrac para terem o mesmo direcionamento de trabalho. Algumas
resistências aconteceram, mas, desde o início de 2015, o mBrac passa a
funcionar como “um grande guarda-chuva” para abrigar todas as ações
culturais e de geração de renda do IMASJM. As ações são abertas aos
usuários, familiares, profissionais e à comunidade do entorno (ARAUJO,
2018, p. 55).

O mBrac é considerado um museu de território. É o único equipamento


cultural municipal da região. Ele trabalha com a memória da comunidade da Colônia
Juliano Moreira para romper estigmas e promover a positivação como cidadão
carioca morador da Zona Oeste, buscando criar laços de pertencimento que
promovam o engajamento do público. O mBrac tem uma coordenação geral, e a
Escola Livre de Artes tem uma coordenadora de saúde e uma coordenadora de arte.
A ação do museu se dá além do espaço expositivo, com três grandes linhas de
ação: 1) Preservação do Acervo de Bispo do Rosário; 2) Exposições e
Programações Culturais; 3) Escola Livre de Artes (ELA). 54
É na Escola Livre de Artes que se desenvolvem três direções de trabalho:

1 – Oficinas de Geração de Trabalho e Renda.


São cinco oficinas: Mosaico; Costura e Bordado; Cantinas; Restaurante Bistrô Bispo;
e Cozinha Experimental, que são conduzidas pelos oficineiros e contam com a
participação de aproximadamente 55 usuários.

2 – Formação.

53 Fonte: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10811/arthur-bispo-do-rosario>.
54 Disponível em: <http://museubispodorosario.com/polo-experimental/>.
138

Ateliê Gaya: espaço de arte e criação que, por meio da construção de um


pensamento estético, estimula a prática artística e profissional de seus
frequentadores.
Casa B-Residência Artística: programa de domicílio de artistas visitantes no qual os
participantes são acolhidos no Polo Experimental para o desenvolvimento de
pesquisas poéticas por meio do diálogo com a comunidade e com outros programas
desenvolvidos pelo mBrac.

3 – Programa Cultural e de Lazer.


São ações coordenadas por um núcleo composto por usuários e trabalhadores do
espaço. Suas ações culturais: ioga, pilates, dança, música, canto, violão, Banda 762
(em referência ao número da linha do ônibus que passava na região, Madureira-
Colônia), Bloco Império Colonial e Rádio Delírio Cultural. O programa organiza
passeios, festas e viagens, com o objetivo de incentivar a apropriação dos espaços
urbanos e reforçar a ideia do direito ao lazer e ao pertencimento, buscando estimular
a vivência crítica, cidadã e criativa para a transformação social. 55

55 Informações extraídas da apresentação realizada na mesa Experiências, durante o I Encontro de


Geração de Trabalho, Renda e Cultura, que aconteceu na Uerj em 9/5/2018, e no website
<http://museubispodorosario.com/polo-exp/o-polo-experimental/>, em 4/9/2019.
139

No que se refere à equipe, tomando por referência o mês de janeiro de 2020,


ela é composta conforme apresentado no quadro 5.

Quadro 5 – Equipe do mBrac em janeiro de 2020

Função/Contratação Formação Tipo de


vínculo
1 Direção Medicina/Psiquiatria e Cinema Servidor
2 Curador Museu História da Arte Contrato CLT /
OS
3 Coordenação pedagógica História Contrato CLT /
OS
4 Assistente pedagógico História da Arte MEI
5 Mediador Ensino Médio Contrato CLT /
OS
6 Coordenação de Psicologia Contrato CLT /
Integração Psicossocial OS
7 Assistente da Psicologia Contrato CLT /
Coordenação de OS
Integração Psicossocial
8 Profissional com Ensino Ensino Fundamental Contrato CLT /
Médio / Oficineiro OS
9 Profissional com Ensino Ensino Médio Contrato CLT /
Médio / Oficineiro OS
10 Profissional com Ensino Ensino Médio/Técnico de Contrato CLT /
Médio / Oficineiro Enfermagem/Costureira OS
11 Profissional com Ensino Ensino Médio/Curso Culinária Contrato CLT /
Médio / Oficineiro OS
12 Profissional com Ensino Ensino Médio Contrato CLT /
Médio / Oficineiro OS
13 Profissional com Ensino Ensino Médio Contrato CLT /
Médio / Cuidadora OS
14 Museóloga Museologia Contrato CLT /
OS
15 Coordenação Agente administrativo com Servidor
administrativa graduação em fonoaudiologia
16 Recepcionista Ensino Médio Contrato CLT /
140

OS
17 Recepcionista Ensino Médio Contrato CLT /
OS
18 Apoio administrativo Ensino Médio Contrato CLT /
OS
19 Apoio administrativo Ensino Médio Contrato CLT /
OS
Fonte: A autora.

5.3 Os oficineiros nas políticas de saúde mental

A portaria n. 336/2002, que regulamenta os CAPS, afirma que os profissionais


com Ensino Médio que compõem a equipe mínima são: técnico e/ou auxiliar de
enfermagem, técnico administrativo, técnico educacional e artesão. No texto da lei,
não aparece o termo oficineiro. Contudo, na linguagem cotidiana, não se fala nos
CAPS em técnico educacional, ou artesão, mas sim em oficineiro.
Já na portaria n. 396/2005, que visava regulamentar os CECOS, o termo
oficineiro aparece. Em relação à equipe, a portaria ressalta:

As equipes dos Centros de Convivência e Cultura são integradas por


oficineiros, artistas plásticos, músicos, atores, artesãos, auxiliares
administrativos e de limpeza. A gerência do serviço poderá estar a cargo de
profissional de nível superior do campo da saúde. A equipe mínima do
Centro de Convivência e Cultura deverá estar assim constituída: 1 gerente e
3 oficineiros (nível médio e superior).

Os oficineiros que trabalham nos CAPS e CECOs da RAPS do Rio de Janeiro


são contratados por organizações sociais que administram parte dos serviços de
saúde da cidade. Há diversas OSs nas diferentes áreas programáticas do município,
e em alguns casos no contracheque deles vem escrito como função a palavra
oficineiro, embora na carteira de trabalho o cargo seja outro. Uma questão que nos
ocupa é: qual a diferença entre o que faz um oficineiro e outro profissional que faz
oficina? O que dá ao oficineiro uma função específica? Então nos interessa
pesquisar se o oficineiro pode agir como um provocador da convivência, talvez um
conviveiro, um trabalhador que facilita o conviver, além de realizar oficinas.
141

Durante alguns anos, a assessoria de geração de trabalho, renda e cultura da


Superintendência de Saúde Mental da SMS-RJ realizou um trabalho de supervisão
com os oficineiros que atuavam em diferentes serviços da RAPS (CAPS, CAPSi,
CAPSad, iniciativas de geração de trabalho, renda e cultura etc.). Eram encontros
quinzenais em que esses trabalhadores reunidos falavam sobre suas práticas
cotidianas. A partir desse acompanhamento, foi produzido e publicado (SMS-RJ,
2016) um conjunto de sete diretrizes para a atuação dos oficineiros contratados para
atuar na RAPS. São elas:

1 – Os oficineiros devem desenvolver atividades direcionadas ao campo do trabalho,


da geração de renda e do desenvolvimento ou resgate de habilidades, assim como
atividades artísticas, de cultura, esporte e lazer.

2 – O trabalho dos oficineiros visa promover saúde por meio de ações voltadas à
inclusão social, circulação e ocupação da cidade. Os oficineiros devem executar
atividades com os usuários e demais interessados na sua Unidade; e, no mínimo um
turno por semana, fora dela.

3 – Os oficineiros também devem executar atividades em parceria com o Centro de


Convivência e Cultura da área ou dispositivo que funcione como tal. Deverão
reservar um turno por semana para essas atividades.
RAPS Zona Oeste: Centro de Convivência da Zona Oeste (5.2)/Polo Experimental
(4.0).
RAPS Zona Norte: Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho (3.2).
RAPS Centro Sul: Núcleo Intervenção Cultural IMPP (2.1).

4 – As atividades dos oficineiros devem ser compatíveis com a demanda dos


usuários dos serviços de saúde mental.

5 – Os oficineiros devem participar do Fórum de Geração de Renda e Cultura de sua


RAPS, que é realizado mensalmente, no horário das 10h às 12h. Os oficineiros
devem ser liberados um turno por mês do CAPS para participar do Fórum.
142

6 – Os oficineiros devem compor a miniequipe de trabalho e geração de renda dos


CAPS de modo a estimular autonomia, a participação em iniciativas de geração de
renda, a qualificação profissional dos usuários e até mesmo a possível inserção em
postos de trabalho formal.

7 – Os oficineiros não devem, prioritariamente, realizar grupos de


recepção/acolhimento ou ser técnico de referência de usuários, uma vez que a
especificidade de seu trabalho está na realização de atividades coletivas de geração
de trabalho e renda e/ou de arte, cultura, esporte e lazer.

Essas diretrizes são apenas diretrizes muito gerais, que não especificam a
ação dos oficineiros. Contudo, elas nos oferecem o tom de um fazer e sistematizam
em alguma medida os pontos de discussão que apareciam mais intensamente nas
supervisões, apontando para a dimensão impessoal do ofício, ou seja, a dimensão
que corresponde ao que há de mais prescrito no trabalho, o que é atribuição, o que
é desejável e o que não deve ser realizado pelos oficineiros. Na leitura delas,
podemos identificar os conflitos do trabalho real em que elas tocam: realizar a
atividade dentro ou fora da unidade; a relação CAPS-CECO; a demanda dos
usuários e a demanda dos trabalhadores na escolha do tipo de atividade a ser
realizada; a participação da equipe dos serviços em espaços políticos; o grau de
envolvimento dos oficineiros com a inclusão de usuários em postos de trabalho
formal; os limiares entre o que é função de outros profissionais da equipe e o que é
considerado função do oficineiro.
Outros trabalhadores no âmbito das políticas de saúde mental –
principalmente os que têm ensino superior, que contam com conselho profissional,
sindicato, associação e outros aparatos institucionais – dispõem de prescrições mais
formais para a realização do seu trabalho. Por exemplo: psicólogos, assistentes
sociais e técnicos de enfermagem têm parâmetros de atuação definidos por seus
conselhos. Até outros trabalhadores majoritariamente com ensino médio, como os
cuidadores, contam com uma associação estadual que promove encontros regulares
que debatem seu processo de trabalho. O fato de os oficineiros não contarem até
então com nenhuma prescrição advinda de nenhum aparato institucional colaborou
143

para abrir espaço para a invenção dessas diretrizes que dão uma direção mínima
para o trabalho acontecer.

5.4 Semeando o caminho no caminhar: apontamentos metodológicos

Na prática de um cartógrafo, não importa tanto quais são as referências


teóricas, mas sobretudo que a teoria é sempre cartografia, pois ela se faz
juntamente com as paisagens cuja formação ele acompanha (ROLNIK, 2006). Essa
pista cartográfica combina-se muito bem com um dos princípios do método de
Vigotski, no qual o autor propõe analisar processos, e não objetos, pois “é somente
em movimento que um corpo mostra o que é” (Vigotski, 2007, p. 68). Interessa-nos a
apropriação-criação de métodos que permitam dar a ver os processos, os
movimentos. Ao absorver as matérias de expressão de múltiplas procedências, nos
indagamos que direção dar às composições das intensidades que percorrem nosso
corpo no encontro com outros corpos.
A direção metodológica da pesquisa foi se constituindo a cada passo dado.
Em junho de 2016, na ocasião da restituição da pesquisa desenvolvida pela Fiocruz
no CECO Trilhos do Engenho, anterior ao ingresso no doutorado, a coordenação do
Polo Experimental fez um convite para que uma pesquisa também fosse realizada
no Polo, de modo a dar visibilidade ao trabalho ali desenvolvido. Um ano e meio
depois, ao chegarmos no Polo com um projeto de pesquisa – o do doutorado –, cujo
olhar se dirige principalmente aos trabalhadores, fomos tateando por onde e com
quais trabalhadores dialogar.
Em um contato inicial (fevereiro/2018) com a coordenação, combinamos que
o espaço ideal para discutir o projeto da pesquisa seria a reunião dos oficineiros,
que naquele momento era um encontro quinzenal em que a coordenação se reunia
com eles. Cerca de um mês depois, essa reunião deixou de acontecer com a
justificativa de que era um tempo que a equipe precisava para dar conta de outras
demandas. Os grupos não estão dados a priori, mas se constituem e se desfazem
em permanente movimento de composição e recomposição. Talvez houvesse um
grupo de oficineiros, mas estava por se fazer um grupo de pesquisa com oficineiros.
Nesse primeiro encontro, chego no Bistrô às 15h. Aguardo um pouco ser
concluída a discussão que realizam. A coordenadora-geral entra e se senta à mesa.
144

Logo depois, pedem que eu me junte a eles. Falo um pouco sobre o percurso
profissional destacando a relação que tenho com esse trabalho, apresento o projeto
da pesquisa que propõe potencializar as estratégias dos trabalhadores para lidar
com as variabilidades das situações de trabalho nos Centros de Convivência do Rio
de Janeiro. Resumo a questão central da pesquisa: trabalhar nos centros de
convivência pode ser bom para a saúde dos trabalhadores da rede de atenção
psicossocial? Este serviço pode promover saúde não só para os usuários, mas
também para os trabalhadores que nele atuam? Nossa conversa com os oficineiros
inicia, e começa a se constituir um grupo com o qual a pesquisa vai operar. Osorio
da Silva (2014, p. 97) ressalta a importância da formação de um grupo de referência
que possibilitará o permanente protagonismo dos trabalhadores nas muitas decisões
que as modulações do método exigem.
Eles se apresentam: Tarsila, trabalha na oficina de culinária na sede, diz que
faz quitutes doces e salgados. Romero trabalha na oficina de música, no Polo, que
se desdobra em três atividades: 1) Bloco Império Colonial; 2) Banda 762; e 3) Rádio
Delírio Cultural. A banda tem uma articulação com as oficinas de literatura que
acontecem no CAPS, pois as poesias que os usuários fazem se transformam em
letras de música da banda. Candido trabalha na oficina de mosaico; a oficina está
aberta à comunidade. Oswald e Anita fazem oficina de culinária que produz
refeições para o Bistrô Bispo (restaurante a peso). Abigail trabalha nas cantinas.
Lygia (costura e bordado) e Tina (dança, alongamento, pilates) não estavam na
reunião, mas foram mencionadas como integrantes da equipe. Eles me convidam a
participar da inauguração da nova exposição, chamada Bispando.
Nesse contato inicial, Abigail conta que na cantina recebeu um usuário que
veio do manicômio judiciário após mais de vinte anos internado. Muito agradecido,
ele lhe disse que depois de muitos anos voltou a escrever outra vez. Não pegava em
uma caneta e escrevia havia muito tempo. Agora ele precisa anotar no caderno o
que vende na cantina. A oficineira se alegra em contar que trabalhar na cantina o fez
perceber que não esqueceu como se escreve, apesar de todos os anos que passou
em reclusão, confinado no manicômio. Essa alegria tem a ver com trazer de volta à
vida a alegria da convivência.
Ainda nesse encontro, Candido diz:
145

Não existe super-herói na saúde mental, ninguém é Super-Homem e


ninguém é Hulk, que faz tudo, resolve tudo sozinho. Na saúde mental tem
que trabalhar em conjunto, um apoiando o outro, para as coisas darem
certo.

Esse enunciado fez a pesquisadora problematizar as questões formuladas


inicialmente no projeto. No TCLE que já estava pronto, dizia: “trabalhar nos centros
de convivência pode ser bom para a saúde dos trabalhadores da rede de atenção
psicossocial? Este serviço pode promover saúde não só para os usuários, mas
também para os trabalhadores que nele atuam?” Esta questão formulada no projeto
de doutorado estava em diálogo com a ideia do trabalho como operador de saúde
(OSORIO DA SILVA; RAMMINGER, 2014).
No entanto, nesse encontro com o grupo de oficineiros conversamos a
respeito da necessidade de incluir o debate sobre esse ofício. Isso aconteceu não
somente no texto escrito da tese, mas no curso da pesquisa. A afirmação de que não
há super-herói quando enunciamos a pergunta sobre a saúde dos trabalhadores
sinalizou que não é possível separar a questão “como se opera saúde no trabalho?”
da questão “como se dá esse trabalho/que atividade é essa?”. Aqui está um
movimento do pesquisar com os oficineiros, e não sobre os oficineiros. Desse modo,
as questões teóricas foram surgindo durante a intervenção.
Sabemos que nos cabe, como analista do trabalho, favorecer o debate,
promovendo análises em que o trabalhador do ofício em foco ocupe o lugar de
protagonista (OSORIO DA SILVA, 2016b). Por isso não podemos perder de vista que
é justamente o protagonismo do trabalhador que nos fez abandonar uma perspectiva
hierarquizada de etapas em que “a pesquisa começa quando a intervenção termina”
(KOSTULSKI, 2010, p. 27-28) e manter uma permanente abertura na pesquisa,
permitindo que pesquisa e intervenção se cruzem o tempo todo em mútua
interferência (OSORIO DA SILVA, 2016b).
Combinamos de fazermos rodas de conversa – a escolha do termo roda de
conversa é mais popularizada, transmite a ideia da circulação da palavra. Usamos
este termo para nos comunicarmos numa linguagem mais conectada com a dos
oficineiros. O que nos propusemos a fazer foi analisar a atividade junto com os
oficineiros, abrindo um espaço para intercâmbios entre diferentes modos de
trabalhar, agenciando a criação de novos possíveis. “O trabalho em conjunto com
nossos interlocutores sobre o terreno permite enriquecer a gama de possibilidades
146

da ação humana, de descobrir aquilo que até então era inimaginável” (CLOT, 2008b
p. 69, tradução da autora).
As oficinas que eles realizam são extremamente heterogêneas entre si. Por
exemplo: a oficina do mosaico e da música mobilizam recursos, ferramentas e
saberes bem diferentes. Contudo, como nos interessamos pelo ofício do oficineiro,
dispor de alguma homogeneidade em relação à função nas rodas é relevante, pois
os coloca em um patamar de enunciação mais equânime. O que havia de comum
era exercerem a função de oficineiros, e não necessariamente o tipo de oficina.
As trabalhadoras que ocupam a função de coordenação do Polo não
participaram das rodas, pois entendemos coletivamente que a presença delas
poderia inibir algumas falas. Os critérios para composição das rodas foram
construídos num processo dialógico entre grupo de pesquisa (NUTRAS) e equipe do
Polo, buscando criar condições favorecedoras ao protagonismo dos trabalhadores.
Consideramos que lidar com a tensão entre homogeneidade-heterogeneidade
foi um permanente desafio na construção metodológica da pesquisa. As questões
tocadas nos grupos levaram em conta: 1) A problemática mais geral da pesquisa: o
trabalho como operador de saúde; 2) As singularidades daquele local: um CECO
que é um Polo Experimental; 3) O grupo a quem se dirige: seis oficineiros; 4) As
ferramentas teórico-metodológicas que nos dispomos a usar: aportes da clínica da
atividade e cartografia.
Ao indagar de que se trata o ofício dos oficineiros?, estamos fazendo de uma
só vez duas perguntas, que podem ser assim traduzidas: quais são as incumbências
com o que o oficineiro se ocupa? E quais são as discordâncias criativas-destrutivas
entre as quatro instâncias em conflito no trabalho do oficineiro? Quando nos
interessamos pelo ofício do oficineiro, não estamos interessados em revelar uma
verdade, em encerrar em uma definição o que é que o oficineiro faz. Estamos
interessados em construir saberes coletivamente, buscamos colocar a arte do ofício
em atividade “cela relève de l’art du métier en acte” (CLOT, 2008b, p. 68). Nas rodas,
tínhamos três oficineiras e três oficineiros; os dois mais novatos haviam ingressado
ao mesmo tempo na equipe, em uma fase de reestruturação do Polo, dois anos
atrás, e o mais antigo no grupo trabalha há vinte anos no IMAS Juliano Moreira e
teve a oportunidade de vivenciar toda uma transformação nos modelos de atenção à
saúde mental naquele território.
147

As três rodas e mais um encontro de compartilhamento/validação foram


audiogravadas e transcritas. A coordenação dos grupos foi feita pela autora da tese
em parceria com a pesquisadora do NUTRAS Cristiane Lisboa.
Na primeira roda, além da apresentação dos participantes, nos dedicamos a
realizar em conjunto duas escolhas: 1) uma tarefa/situação de trabalho para ser
analisada; e 2) uma forma de registro dessa tarefa/situação de modo que ela
pudesse ser analisada coletivamente. Pedimos que esta fosse uma em que todos os
oficineiros estivessem envolvidos. Tivemos um debate e emergiram três
possibilidades: evento festa junina, assembleia ou passeio. Ofereci alguns exemplos
de registros usados em pesquisas anteriores, como oficina de fotos que foi realizada
no Hospital dos Servidores do Estado, dramatização usada com uma roda de
residentes de psicologia de um hospital da Fiocruz, instrução ao sósia que foi usado
com alunos do curso de terapia ocupacional da IFRJ, história em quadrinhos,
gravação em vídeo com trabalhadores da vigilância em saúde, explicitando que há
muitas formas diferentes de usar o registro como disparador de diálogo sobre o
trabalho e como via para a autoconfrontação (OSORIO DA SILVA, 2014).
Alguém havia falado sobre ser superoficineiro. O oficineiro seria esse
profissional da equipe que dá conta de muitas funções diferentes. Um enunciado de
Candido, endossado por seus companheiros, relatou que eles fazem o trabalho
pertinente a vários profissionais de saúde, então eles precisariam ser
superoficineiros: “Além de ser oficineiro, você é psicólogo, você é terapeuta, você é
enfermeiro, você é tudo, e tem muitas pessoas que não reconhecem isso e não
valorizam, dentro da saúde mental é muito cansativo” (Candido).
A partir dessa fala, a copesquisadora Cristiane sugeriu que construíssemos
esse personagem fictício, o superoficineiro, como uma via de colocar em debate a
atividade. Todos imediatamente apoiaram essa ideia, que foi posta em prática no
encontro seguinte. Na segunda roda, começamos com um aquecimento por meio de
um exercício chamado CURTOGRAMA. Trata-se de quatro combinações possíveis a
serem sorteadas: Curto-Faço, Curto-Não faço, Não curto-Faço, Não curto-Não faço.
Depois fizemos a construção do personagem o superoficineiro e escolhemos a festa
junina para ser analisada no encontro seguinte.
148

Na terceira roda, tivemos como direção despessoalizar o personagem de um


dos oficineiros que foi tomado como inspiração. Como trazer para esse personagem
as características de cada um? Com este mote, os desafios comuns do cotidiano
dos oficineiros começam a aparecer:
– o oficineiro faz muitas coisas que considera que estão fora da sua alçada;
– precisa ser apaixonado pelo trabalho, mas não pode se casar com ele;
– é tocado pelas mais diversas circunstâncias que acometem os usuários, mas não
pode favorecer um em detrimento do outro;
– não sabe o que fazer diante de situação de roubo dentro da oficina;
– cria estratégias de segurança no uso de ferramentas cortantes;
– lida com o dilema de ler ou não ler o prontuário dos usuários e querer ou não
saber sobre sua história.
Partimos para a coanálise da sequência de um dia do superoficineiro em que
ele organizará a festa junina. Surge a pergunta sobre o destinatário da atividade: a
festa é para quem? Eles respondem que é para comunidade, e toda ela participa
dessa construção. O método de análise do material registrado foi escutar os áudios
das rodas várias vezes e grifar no material transcrito aquilo que consideramos mais
relevante, considerando as questões da pesquisa. Posteriormente, esses grifos
feitos pela autora da tese foram compartilhados com as bolsistas de iniciação
científica e debatidos à luz dos conceitos da clínica da atividade. Produzimos um
duplo movimento: de formação de novas pesquisadoras que ganham um campo
para experimentar os estudos teóricos do NUTRAS; e de transformação da análise
do material da pesquisa que ganha novas interlocutoras somando outros olhares.

Fazer da pesquisa a clínica da atividade é retornar sobre a ação produzida


para estudar os mecanismos de desenvolvimento ou impedimento daquela
ação. Nesta ação produzida, incluo a atividade do pesquisador (CLOT,
2008b, p. 71, tradução da autora).56

56 No original: “Faire de la recherche en clinique de l’activité, c’est revenir sur l’action produite pour
étudier les mécanismes de développement ou d’empêchement de cette action. Dans cette ‘action
149

A atividade de pesquisadora não começou e não termina na realização das


rodas, mas é contínua, perpassando cada ação dirigida ao Polo, que não se reduz
às rodas. A presença nas inaugurações das exposições, nas assembleias, nas
feiras, nos eventos em outros espaços, em atividades de militância antimanicomial,
entre tantos encontros que tivemos com a equipe e artistas do Polo, nos forneceu
importante material que perpassa a análise da produção do CECOs e os
apontamentos acerca do ofício dos oficineiros. Desse modo, temos aqui mais uma
característica da variação metodológica cartografia-clínica da atividade; temos uma
intensificação do modo de pensar a intervenção, tomada como uma instauração de
um acompanhamento contínuo.

5.5 O riso nas rodas: termômetro vibracional

Uma das coisas que nos chamaram a atenção durante a realização das rodas
e ao analisar as gravações foi a maneira como os oficineiros se expressaram no
grupo por meio de brincadeiras, piadas, como zombavam uns dos outros e das
diversas situações que enfrentavam no cotidiano. O tom jocoso com que falavam
rapidamente se transformava em um riso que se espalhava e em algumas situações
contagiava as pesquisadoras. Em uma das transcrições de áudio da roda, por 26
vezes as falas foram entrecortadas por risos. Nesses momentos de riso intenso, não
era possível compreender o que havia sido falado. Essa presença tão marcante do
cômico nos grupos às vezes dizia respeito a afetos alegres, mas em outros casos
não, pois junto com aquilo que parecia engraçado havia uma situação difícil de ser
vivida.
Em Bergson (1983), encontramos a compreensão das diversas expressões
do riso. O autor faz um estudo da comicidade das formas e dos movimentos, da
força de expansão do cômico; da comicidade de situações e comicidade de
palavras; da comicidade de caráter. Ao sinalizar três observações fundamentais
referentes ao riso, ele destaca que não há comicidade fora do que é propriamente
humano; o homem definido como um animal que ri pode ser também definido pela
sua capacidade de fazer rir.

produite’, j’inclus l’activité du chercheur.”


150

Ele sinaliza que há uma insensibilidade que naturalmente acompanha o riso.


Apesar de ser possível rir de alguém que nos inspire piedade ou afeição, é preciso
esquecer por alguns instantes essa afeição ou emudecer essa piedade. O cômico
exige algo como certa anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu
efeito; é preciso que eu não me comova diante de algo para poder rir disso.
Outro ponto que ele salienta é que todo riso é o riso de um grupo, e que não
desfrutaríamos do cômico se nos sentíssemos isolados; o riso precisa de eco. “Por
mais franco que se suponha o riso, ele oculta uma segunda intenção de acordo,
quase cumplicidade, com outros galhofeiros, reais ou imaginários” (BERGSON,
1983, p. 8). Nas rodas, experimentamos momentos em que foi possível rir todos
juntos, mas em outros, por não partilhar de uma mesma condição, a graça não nos
contagiou. Já se notou que certos efeitos cômicos são intraduzíveis de uma língua
para outra por serem relativos aos costumes e ideias de certa comunidade. “O riso
deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma
significação social” (BERGSON, 1983, p. 9), portanto, ele está inscrito em um
contexto compartilhado, o que nos aponta uma relação direta com a noção de
gênero de atividade profissional (CLOT, 2010), com a dimensão genérica, com
aquilo que está coletivamente subentendido no trabalho. O riso funcionou como um
termômetro vibracional, permitindo verificar a temperatura dos afetos nas rodas.

5.6 Construção de personagem como via para análise da atividade

Ao chegarmos no Polo para a primeira roda, propusemos escolher uma


sequência de ações para ser analisada e uma forma de registro que facilitasse os
trabalhadores se deslocarem e se tornarem observadores de seu próprio trabalho.
Mas como operar esse método? Quais seriam as vantagens e desvantagens de
cada um? Estes eram alguns dos questionamentos que estavam propostos para a
pesquisa.
Foi o próprio grupo que nos forneceu as pistas de por onde devíamos
caminhar. Pactuamos criar um personagem, o superoficineiro. Sua criação foi uma
via para provocar o diálogo com os oficineiros a respeito de como se dá e o que
caracteriza o seu trabalho de modo mais genérico, forjando uma situação hipotética.
Foi um modo de produzir registro, de colocar em debate os pontos de convergência
151

e as controvérsias, em uma aposta de que elas e o próprio diálogo em motricidade


podem desenvolver a atividade.
Depois de realizada essa experiência, percebemos que em comparação com
o uso do vídeo que conhecemos por meio de relatos de outras pesquisas, a
construção de um personagem trouxe limitações para o exercício de confrontação.
Por exemplo: o trabalhador não pode ver a si próprio em ação em uma tela como no
vídeo, o que limita a observação visual direta de si mesmo. Por outro lado, o fato de
o personagem ser fictício deu mais liberdade para todos se expressarem; o grupo
ficou bastante desinibido pelo caráter lúdico da forma de registro sobre o trabalho (o
desenho). Sua criação foi uma obra conjunta, em que cada um colocou um pouco de
si, fatores que nos pareceram interessantes para esse grupo em que todos têm em
comum a função de oficineiro, mas fazem oficinas completamente distintas. E a
proposta foi baseada em elementos advindos do que disseram logo na primeira
roda: “Nós somos oficineiros [risos] superoficineiros, você não tem noção!” (Tarsila).
Em uma folha de papel pardo, usando hidrocores coloridos, um dos
oficineiros começa a desenhar o superoficineiro, enquanto fazemos perguntas sobre
ele. As perguntas se referem a suas características, seus modos de viver e de
trabalhar. O desenho é feito pari passu com as respostas e os comentários que o
grupo faz. Anotamos no canto da folha as características, as habilidades, os hábitos
e atitudes enunciados. São três linguagens colocadas em ação na roda: a falada
pelos oficineiros, a escrita pelas pesquisadoras e o desenho por um dos oficineiros.
Ele foi como um homem que tem 52 anos, mora no bairro Colônia, anda a cavalo e
seu lazer é assistir à Netflix (provedora de filmes e séries de televisão). É pessoa de
fácil convivência, atencioso, possui grande sensibilidade, é parceiro, educado,
calmo, amigo, destemido. É forte e sua força se expressa em três vertentes: força
física, força de vontade e força psíquica (desejo). O superoficineiro precisa ter um
relógio de duzentas horas, assim tem tempo de fazer tudo.
Entre os diversos desafios elencados no debate do trabalho, destacamos um
que emergiu como uma controvérsia a respeito da relação dos oficineiros com a
história de tratamento dos usuários. Sobre as controvérsias e o coletivo, Clot afirma
que é precisamente quando os trabalhadores não concordam que, de certa maneira,
há uma mobilização grande, subjetiva, intensa e, várias vezes, há ainda um grande
prazer em discutir no trabalho. “Quer dizer que a controvérsia é a fonte do coletivo,
152

não o contrário. Não é o coletivo sendo a fonte, mas a controvérsia sendo a fonte do
coletivo” (CLOT, 2008c, p. 66).
Então encontramos aí uma discordância criativa que apresentamos a seguir.
A controvérsia está entre buscar ou não informação por outras fontes ao acolher um
novo usuário, ler ou não ler prontuário, que valor dar à história e ao que está escrito
sobre esse outro com quem vai se trabalhar. Esse diálogo que foi puxado pelo tema
da formação percorreu todo o terceiro encontro.

Quando eu vim trabalhar aqui, eu não tive uma especialização. Eu não sou
psicóloga, psiquiatra, eu não sou da área da saúde, eu trabalho na área da
saúde, mas não sou da área da saúde. Pra que eu tenho que saber
prontuário de paciente? O que o paciente tem? Eu não vou conseguir
trabalhar, cara (Tarsila).

Quando o paciente vinha pra minha mão, eu queria saber o prontuário dele,
a causa dele, porque eu tenho uma facilidade. Eu cobrava isso direto. Fazia
as fichas, tudo direitinho. Até que chegou um tempo que eu comecei a pedir,
mas eu sentia que ele ficava um pouco meio que assim: “pô, o cara quer
saber de tudo, né?” Quando vem pra minha mão, pra ler… Mas eu não tô
mais indo nessa linha, não (Candido).

Eu gosto de saber. Logo que eu vim pra x, ele era paciente psiquiátrico,
mas ele tinha caso de estupro. Estuprava as pessoas quando era mais
novo. Eu precisava saber daquilo, porque e se eu não soubesse e
acontecesse alguma coisa? (Anita).

Por que eu não olho o prontuário? Porque quando eu vou desenvolver


alguma coisa, eu não penso no funcionamento da terapia. [...] o que eu
tenho são atividades a serem desenvolvidas HOJE (Romero).

O cara pega o prontuário dele, depois fica... [pausa] Eu sinto isso, porque
às vezes o cara chega com uma história e a dinâmica aqui já é outra. […]
Por isso que eu não gosto de saber do prontuário, porque eu não quero...
[pausa] Eu trato eles como eu trato vocês aqui. Entendeu? Com essa
naturalidade. E assim vão vivendo, e assim vamos (Candido).

Essa última afirmativa apontou para um caráter desmedicalizante da relação


que os oficineiros estabelecem com quem participa das oficinas. Encontra-se nessa
passagem uma diferença entre o ofício do oficineiro e o de outros profissionais que
são exigidos a usarem o prontuário como um instrumento no trabalho do cuidado em
saúde. Percebemos uma tentativa de não colocar como pré-requisito a informação
sobre a loucura do outro para poder realizar um trabalho em conjunto, ainda que
isso não seja consenso. Entendemos que no diálogo entre pares foi se construindo
uma direção de se estar aberto para o encontro sem saberes prévios. O olho que lê
o prontuário psiquiátrico é aquele olho que cria uma lente que vê doença mental, e
não é isso que interessa no trabalho do CECO; não é disso que se trata no trabalho
153

da convivência, que para acontecer precisa do gesto da sensibilidade. O gesto


profissional não é uma bola que se passa, tampouco não é plenamente imitável,
mas ele é, sim, transmissível: “Na maior parte das vezes, ao se misturar às
diferentes maneiras de fazer o mesmo gesto em determinado meio profissional, é
que, pelo jogo de contrastes e comparações entre pessoas, o gesto se decanta”
(CLOT, 2010, p. 160).
O gesto da sensibilidade nos ensejou a compreender como se dá na atividade
o estar sensível presente no ofício do oficineiro. A extrema sensibilidade mencionada
pelos oficineiros se expressa em situações concretas. A dimensão vibrátil é ativada
quando um oficineiro percebe que o usuário está com a cara fechada e se sente
intrigado em saber o porquê. É ativada quando a oficineira diz que o usuário confia
100% e que “pela experiência de vida, você já sabe do que eles são capazes... e
quem é capaz de fazer tal coisa” (Lygia). Ela se manifesta quando o oficineiro se
emociona ao narrar na roda como eles preparam e o que acontece na
confraternização de final de ano com pessoas que não têm contato há anos com a
família. Ela se realiza quando o oficineiro olha para um usuário que fica todos os
dias sentado na entrada do CAPS, se aproxima e conversa com ele começando uma
nova história de trabalho.
Esse gesto da sensibilidade, no caso dos oficineiros, compõe-se com aquilo
que é chamado na clínica da atividade de gênero de atividade profissional. O gênero
diz respeito àquilo que é difícil de definir em palavras, mas que sem isso o trabalho
não acontece. Sobre o conceito de gênero de atividade profissional, ressaltamos:

É a parte subentendida da atividade, o que os trabalhadores de determinado


meio conhecem e observam, esperam e reconhecem, apreciam ou temem;
o que lhes é comum, reunindo-os sob condições reais de vida; o que sabem
que devem fazer, graças a uma comunidade de avaliações pressupostas,
sem que seja necessário reespecificar a tarefa a cada vez que ela se
apresenta. É como que uma “senha” conhecida apenas por aqueles que
pertencem ao mesmo horizonte social e profissional. Essas avaliações
comuns subentendidas adquirem, nas situações incidentais, uma
significação particularmente importante. De fato, para serem eficazes, elas
são parcimoniosas e, na maior parte das vezes, sequer são enunciadas.
Elas estão entranhadas na carne dos profissionais, preorganizam suas
operações e sua conduta; de algum modo, estão grudadas às coisas e aos
fenômenos que lhes correspondem. Por isso, não exigem, forçosamente,
formulações verbais particulares. O gênero, como intermediário social, é um
conjunto de avaliações compartilhadas que, de maneira tácita, organizam a
atividade pessoal (CLOT, 2010, p. 121-122, grifos nossos).
154

É na contribuição que a clínica da atividade encontra sua inspiração para o


conceito de gênero de atividade profissional. Bakhtin, linguista que cria a noção de
gêneros de discurso, propõe que “falamos em gêneros variados, sem suspeitarmos
da sua existência” (CLOT, 2010, p. 121), uma vez que nossa fala é moldada em
formas precisas de gêneros padronizados mais ou menos flexíveis. Os gêneros do
discurso são “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2003, p. 279);
eles retêm a memória das trocas verbais a fim de que elas possam seguir adiante. A
maneira pela qual nos expressamos em um documento oficial, em uma obra literária,
em uma conversa entre familiares, em um pronunciamento formal ou em um
trabalho acadêmico responde a gêneros discursivos completamente distintos. Assim
como recebemos uma dada língua materna, entramos em determinados gêneros
discursivos muitas vezes sem perceber. É infinita a variedade de gêneros
discursivos (orais e escritos), pois a

variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa


atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se
desenvolve e fica mais complexa (BAKHTIN, 2003, p. 279).

O gênero é aquilo que orienta a ação em um meio profissional; é o que


permite que duas pessoas que não se conhecem, que nunca se viram antes,
consigam trabalhar juntas e executar determinada tarefa. Os oficineiros – sejam eles
músicos, sejam costureiras, cozinheiros ou artistas plásticos – conseguem fazer um
trabalho em comum porque há um gênero trabalhador da saúde mental
(ALBUQUERQUE, 2010) operando naquela situação, a dimensão transpessoal do
ofício está colocada, está em funcionamento um trans-ofício (ANDRADE, 2014).
Assim como o gênero discursivo, o gênero de atividade profissional está associado à
dimensão do que é partilhável, do que se refere ao coletivo. 57

5.7 Colheita no campo: coletivo como operador de saúde no trabalho

57 Em nossa experiência militante, sentimos como é potente e vivo o diálogo nesse gênero
discursivo. Quando estamos diante de um problema e um militante, ainda que seja de um movimento
social diferente, diz “vamos fazer oficina de cartazes, carta aberta, ato público”, outro militante
rapidamente já compreende, responde nesse mesmo gênero discursivo, a tarefa já começa a se
organizar e a se realizar.
155

Coletivo, um conceito, múltiplos sentidos. Dentre os autores com os quais a


pesquisa se alia, muitos são os que lançam mão do conceito do coletivo, ainda que
com diferentes concepções. Os seus usos por vezes ficam confusos porque ora se
aproximam, ora se afastam, convergindo e divergindo, misturando-se num
emaranhado. Um texto que nos ajudou a discriminar alguns dos sentidos foi “O
conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo-sociedade”. No artigo,
Kastrup e Escóssia (2016) fazem um primoroso apanhado de autores
contemporâneos que buscam superar tal dicotomia, entre os quais citam: Arendt
(1989), Touraine (1995), Enriquez (1990), Elias (1994), Sennet (1998), Vernant
(1988); além dos clássicos no campo da psicologia: Luria (1976), Vigotski (1978) e
Lewin (1965).
Buscamos estudar o termo coletivo nas seguintes inter-relações: trabalho
coletivo, coletivo de trabalho e coletivo como plano de coengendramento. O trabalho
coletivo é aquele que mantém a ação conjunta em torno de um mesmo objeto a ser
trabalhado – aqui, coletivo é adjetivo. Para a clínica da atividade, o trabalho é
sempre coletivo, uma vez que, mesmo quando um trabalhador atua aparentemente
sozinho, ele carrega os diálogos falados e não falados com os outros para quem sua
ação se dirige. Então, mesmo aquele controlador de tráfego aéreo que trabalha em
uma torre que só tem ele como habitante, não trabalha sozinho, pois sua atividade
está em diálogo com pilotos, passageiros dos aviões, trabalhadores da pista de
pouso, entre tantos outros interlocutores.
Essa ideia que adjetiva o trabalho como coletivo tem suas raízes na
perspectiva histórico-cultural de Vigotski em que a atividade coletiva é ao mesmo
tempo fonte (onde ela se alimenta) e recurso (com o que ela opera) para a atividade
individual. O instrumento do trabalho coletivo elaborado pelo coletivo de trabalho é o
que denominamos anteriormente de gênero de atividade profissional. Ele é
desenvolvido coletivamente pelas discordâncias no trabalho, como diz Clot:

Temos que organizar o trabalho coletivo não somente em torno do desejo de


cooperação, mas em torno do que não é falado, das coisas que ninguém
quer falar. É dessa maneira que o coletivo se instala. Quando se fala
cooperação, não é somente concordar, é fazer alguma coisa das desuniões
no trabalho (CLOT, 2008c, p.66).

Vale aqui explicitar o que chamamos de o coletivo de trabalho, ou seja, o


coletivo substantivo. Além de um agrupamento de trabalhadores colocados lado a
156

lado, o termo coletivo de trabalho diz respeito ao trabalho que é feito por um corpo
de trabalhadores em que há o exercício da cooperação. “Um coletivo de trabalho
como a re-criação na ação e para a ação de uma história que, por não pertencer a
alguém em particular, apresenta-se (ou não) como um instrumento pessoal para
cada profissional” (CLOT, 2010, p. 168).
Portanto, embora em muitas situações coletivo seja uma palavra usada como
o oposto de singular, individual, ou como sinônimo de social, ela não se restringe a
esses sentidos mais dicotômicos. Na perspectiva cartográfica, coletivo se difere de
um simples somatório de pessoas reunidas em determinado espaço e tempo,
significando “uma rede de composição potencialmente ilimitada de seres tomados na
proliferação das forças de produção de realidade” (KASTRUP; PASSOS, 2014, p.
26). Adotamos como ferramenta de trabalho, na pesquisa, esse conceito de coletivo
como rede, sustentado por redes em composição.
Tais conceitos nos servem na elucidação da situação em que o Polo recebeu
uma grande encomenda de bolsas pela Via Rio. Bolsa é um tipo de produto
confeccionado, a princípio, pela oficina de bordado e costura. Contudo, foi pactuado
entre os oficineiros e participantes que as diferentes oficinas entrariam nessa
produção colaborando cada qual com sua arte no atendimento desse pedido. As
bolsas que foram produzidas contaram com o trabalho das mãos não só dos
participantes da oficina de bordado, mas também com as mãos do mosaico e do
ateliê de pintura. As bolsas não eram mais apenas bordadas, mas decoradas com
diferentes texturas, desenhadas e pintadas pelas mãos de vários artistas. A
experiência é narrada com alegria, como um “trabalho integrado” (sic) e com intenso
grau de troca e aprendizado entre todos. Isso que eles chamam de integrado nos
remeteu ao conceito de cooperação, elemento necessário ao coletivo de trabalho. A
cooperação pode ser definida como “uma forma de trabalho em que muitos
trabalham planejadamente lado a lado e conjuntamente, no mesmo processo de
produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos” (MARX, 1996, p.
422).
A cooperação propicia que o trabalhador se desfaça de suas limitações
individuais e possa desenvolver suas potencialidades na relação com os outros. Na
situação em questão, as múltiplas linguagens artísticas dialogaram. Nenhuma bolsa
saiu igual à outra, e cada um produziu nessa experiência uma nova maneira de
157

trabalhar. Talvez se fosse apenas a oficina de bordado a única para responder à


encomenda, o tempo não teria sido hábil, como foi contando com a participação de
todos. O trabalho coletivo de fabricação de bolsas atendeu de forma satisfatória a
encomenda, produzindo saúde nos trabalhadores, uma vez que eles consideraram
que aquele foi um trabalho bem feito. Trazer coisas para a existência, produzir
marca positiva no mundo coletivamente, opera saúde no trabalho.

Sinto-me bem, na medida em que sou capaz de arcar com a


responsabilidade dos meus atos, de trazer coisas para existência e de criar
entre elas relações que sem minha intervenção, não teriam existido
(CANGUILHEM, 2002, p. 68, apud CLOT, 2010, p. 7).

Outra situação em que mapeamos o coletivo operando saúde no trabalho dos


oficineiros foi quando coanalisamos a atividade de organização da festa junina.
Reafirmamos que quando falamos em coletivo não se trata de uma coletânea de
ações; também não diz respeito ao ajuntamento de pessoas, nem se refere a um
simples somatório de entidades em relação. Coletivo é entendido como resultado de
uma dinâmica de forças que contrai, uma dinâmica de contração de grupalidade.
Os oficineiros afirmam que, para fazer a festa junina, a “união é um
ingrediente fundamental”. União, comunicação, contribuição. A proposta é fazer uma
só festa junina que integre os diferentes serviços de saúde do bairro. Isso que já era
imaginado por vários anos se torna possível em 2018. Vale lembrar que durante
muito tempo as festas juninas aconteciam dentro dos muros dos hospitais
psiquiátricos sem contar a presença de ninguém além de pacientes internados e
equipe. “No início, objeto de apropriação para a atividade individual, o coletivo de
trabalho deve tornar-se meio para o desenvolvimento da ação de cada um” (CLOT,
2010, p. 176).
Se antes cada serviço individualmente fazia sua festa junina dirigida ao
público que atende, alguma coisa muda e se passa a fazer uma festa junina da rede
local. Participam da organização a Clínica da Família, o CECO, o CAPS, o CAPSad.
E o local da festa? Não é um serviço, nem o outro. O lugar da festa é a rua.
Segundo os oficineiros, a festa começa muito antes do dia em que ela acontece.
Cada equipe oferece o que sabe fazer para a população, organizando oficinas que
antecedem a festa: oficina de quadrilha, oficina de decoração, oficina de baião
(música e dança), oficina de culinária. Forma-se um coletivo de trabalho; ali há
cooperação, em que existe um fator ético como uma habilidade. A cooperação
158

requer a capacidade de entender e mostrar-se receptivo ao outro, para agir em


conjunto. Ela pode ser também definida como “uma troca em que as partes se
beneficiam” (SENNET, 2018, p. 15).
Quando indagamos se eles se divertem na festa, um deles responde: “Não.
Sabe por quê? A gente faz um acordo com o paciente, mas ele não consegue
sustentar, ou por medicação, ou porque é muito tempo em pé” (Romero). Esta fala
retoma a ideia da contração da grupalidade, dos contra-actus, dos contratos, que
podem ou não ser levados adiante dependendo dos limites e possibilidades que
cada um expressa. Eles mesmos disseram que não há super-herói, e os oficineiros,
como todos que fazem parte dos CECOs, são con-viventes, e as dores fazem parte
da vida também. É nesse aspecto do convívio que entendemos o coletivo como um
meio de operar saúde, uma vez que tal princípio encarnado no modo de trabalhar
possibilita trocas materiais e imateriais entre os diversos conviventes.
O modo cooperativo possibilita o desenvolvimento das capacidades criativas,
inventivas, no trabalho, mesmo que isso não seja nada divertido em alguns
momentos, como Romero destacou. Os oficineiros são chamados a renormatizar a
todo tempo diante dos imprevistos, recusas, recuos e surpresas na relação com os
conviventes. Ao entendermos saúde, na perspectiva de Canguilhem (2007), como a
capacidade de criar novas normas diante das variabilidades da vida, afirmamos que
o trabalho da convivência produzirá saúde para o oficineiro quando for possível se
valer das normas propulsivas e abandonar as normas repulsivas. Osorio da Silva e
Ramminger (2014) afirmam que as normas propulsivas são aquelas que não
constituem obstáculo a novas normas; já as repulsivas são as que sustentam uma
vida limitada, que forçam o indivíduo a se preservar de mudanças, não suportando
muitas variações.
Além da realização das oficinas, o ofício do oficineiro diz respeito à
convivência, que requer lidar com uma diversidade infindável de variabilidades.
Convivência como atividade de cultivo desse coletivo de trabalho, que é transversal
às diferentes ações de geração de trabalho, renda, cultura, arte e lazer que ocupam
a cidade e transformam as relações entre os conviventes. Propomos a ideia de que
o oficineiro, além de convivente, é um conviveiro, isto é, um provocador da
convivência; ele agencia, convida a participar, chama à vida ativa. Seja no
atendimento da encomenda de bolsas, seja na organização da festa junina ou na
159

simples pausa para dar bom-dia, o que está sendo produzido por esse trabalho
coletivo é a convivência.

5.8 Oficineiro novato e a zona de desenvolvimento potencial

Na clínica da atividade, há uma apropriação dos conceitos elaborados por


Vigotski ao longo de suas pesquisas com crianças e a vida escolar para os estudos
do desenvolvimento da atividade dos adultos e da vida no mundo do trabalho. Isso
se torna possível porque o autor russo, ao contrário do que muitos imaginam, não
criou uma psicologia infantil, mas uma psicologia geral. Para Vigotski (2007), a
relação entre aprendizado e desenvolvimento permanece obscura e pode ser
reduzida a três grandes posições teóricas: 1) os processos de desenvolvimento da
criança são independentes do aprendizado; 2) aprendizado é desenvolvimento;
desenvolvimento concebido como elaboração e substituição de respostas inatas, ele
reduz-se à acumulação de todas as respostas possíveis; 3) tenta superar os
extremos das outras duas, simplesmente combinando-as. O desenvolvimento se
baseia em dois processos inerentemente diferentes, mas que um influencia
diretamente o outro: 1) maturação, que depende do desenvolvimento do sistema
nervoso; 2) aprendizado, que é em si mesmo processo de desenvolvimento.
Nesse cenário, embora o autor rejeite as três posições teóricas até então
existentes, considera-as em sua análise e propõe dois tópicos separados até chegar
à ideia de zona de desenvolvimento potencial: 58 1) relação geral entre aprendizado e
desenvolvimento; 2) aspectos específicos dessa relação quando a criança atinge a
idade escolar. Ele assume que o aprendizado das crianças começa muito antes de
elas frequentarem a escola. A zona de desenvolvimento potencial significa:

a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma


determinar através da solução independente de problemas, e o nível de
desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas
sob a orientação de um adulto ou de companheiros mais capazes (Vigotski,
2007, p. 97).

58 Prestes (2010) adota o termo zona de desenvolvimento iminente, e não imediata, proximal ou
potencial como usado por outros tradutores da obra de Vigotski. A autora afirma que Zona
blijaichegorazvitia é exatamente aquilo que a criança consegue fazer com ajuda do adulto, pois o que
ela faz sem ajuda, e não mediação, do adulto já se caracteriza como nível do desenvolvimento atual.
Ela defende o termo iminente pois sua característica essencial é a das possibilidades de
desenvolvimento, mais do que o imediatismo e a obrigatoriedade da ocorrência. Nesta pesquisa,
optamos pelo termo potencial, pois é o utilizado nos livros que consultamos.
160

Clot (2010) afirma que o indivíduo se torna sujeito quando faz, sozinho e de
outro modo, o que já havia experimentado com os outros, quando reconstrói para si,
de outro modo, o que havia produzido e o que se produziu com os outros, ao
encontrar-se com eles uma cabeça acima dele mesmo, em uma zona de
desenvolvimento potencial. Dessa forma, nos interessa perguntar: como um
oficineiro desenvolve a atividade do outro? Como as rodas foram espaços para que
esse exercício pudesse ocorrer?
Os oficineiros que chegaram na equipe por último recorreram aos mais
experientes quando se depararam com situações em que eles não sabiam como
agir. O novato, ao ingressar, coloca à prova seus recursos pessoais no diálogo
interpessoal, observando e conversando com os colegas. Por exemplo: um dos
oficineiros conta que aprendeu com os dois mais antigos no Polo que é
indispensável dar atenção, ter um momento prévio de conversa antes de iniciar a
tarefa propriamente dita. Ele narra um dia de trabalho em que estava muito
atrasado, pois precisavam fazer a gravação de um programa na rádio, e ele passou
por um dos participantes da oficina correndo, apressado pela urgência do horário,
sem parar para cumprimentá-lo. Mais tarde notou que ele estava com uma cara
aborrecida, recusando participar. Ele perguntou o que tinha acontecido, e o usuário
não respondeu. Então ele indagou a outra funcionária, que disse que ele havia
reclamado porque o oficineiro tinha passado e não lhe dado bom-dia, que as
pessoas não davam um bom-dia para ele. Ele aprendeu com os colegas mais
antigos sobre a necessidade de dar atenção, que “aquele momento em que a gente
constrói alguma coisa também é um momento de atenção, de cuidado, de conversa,
em que as situações são construídas coletivamente” (Romero).
Esse oficineiro nunca havia trabalhado na área da saúde mental; sua
experiência era como professor de música em escolas com crianças. Ele relata que
aos poucos foi percebendo as regras importantes para que o trabalho no Polo
pudesse acontecer. Diz que antes não dava muita importância ao fato de memorizar
os nomes dos alunos, mas que na saúde mental os usuários se importam muito com
isso. Quando ele esquecia durante a oficina, eles retrucavam: “Como assim, não
sabe meu nome?!” E foi conversando com os colegas que ele compreendeu que o
nome é o que dá identidade, identifica como uma pessoa; que no passado muitos
foram identificados por números nas internações, e o nome é algo que ninguém tira
161

deles. Portanto, como oficineiro, é importante lembrar o nome dos participantes da


oficina.
Ele afirma que é muito diferente ensinar música em uma escola para crianças
e fazer oficina de música no Polo também em relação ao tempo. Depois de dois
anos trabalhando no Polo,

[...] eu consigo colocar em prática todas as ideias com o tempo, entendendo


o timing que é diferente da escola. Numa escola, você tem um bimestre; na
faculdade, semestre. Lá, não. Lá você tem um tempo que ele não é ligado a
um bimestre, ao semestre, mas ele corresponde a uma responsabilidade
que a gente tem (Romero).

Os oficineiros utilizam diferentes matérias-primas e ferramentas para que as


oficinas aconteçam – ladrilhos no mosaico, alimentos na culinária, instrumentos
musicais, linhas e tecidos no bordado. Mas isso que é nomeado por esse oficineiro
como atenção/responsabilidade para com os participantes é algo necessário ser
mobilizado independentemente do tipo da oficina. No contexto de oficina, ao
pensarmos o conceito de atividade como aquilo que se passa entre três instâncias –
1) um sujeito que faz; 2) o outro para quem se dirige; e 3) um objeto que se produz
–, compreendemos que a atividade é diálogo polifônico.
Os outros para quem a atividade se dirige são múltiplos. Quando se produz
um programa de rádio, ou uma música, ou um bloco de carnaval, não é só para os
ouvintes que o sujeito se coloca em atividade. Aquele usuário que vai ser
entrevistado ou vai aprender a tocar um instrumento musical é destinatário, o
operador de som também, o familiar, o técnico de referência, o cuidador da
residência terapêutica, são muitos e muitos os destinatários.
Ao pensarmos o nomadismo do ofício, aquilo que o torna vivo, notamos que
inicialmente pautado na dimensão impessoal, mais ligada ao prescrito, Romero foi
conduzido a agir com pressa, orientado pela ideia de que um programa de rádio
deve começar no horário. Ao se deparar com um obstáculo (não participação do
usuário), isso o levou a ativar a dimensão interpessoal do ofício. Ele foi buscar
compreender juntamente com os colegas mais experientes as razões que impediam
a participação de um dos usuários (ele não ter parado e dado bom-dia). O
interpessoal, então, se abre ao transpessoal do ofício. A memória profissional
(dimensão transpessoal) de como um oficineiro deve agir diz que é necessário
pausa nas urgências para conversas com usuários. Isso não estava escrito em lugar
162

nenhum, não é prescrito, apesar de ser necessário para que o trabalho aconteça. Ao
começar a dominar o gênero de atividade profissional oficineiro, ele transforma a sua
maneira de agir na relação com o usuário, ele passa a se aproximar e dizer: “Aí eu
cheguei nele: ‘Oi, bom dia, você já tomou café? Como é que você está?’” (Romero).
O oficineiro imprime, então, sua maneira de fazer, é a dimensão pessoal do
ofício que se apresenta. Essa dimensão pessoal, da experiência profissional
anterior, singular, em que ele já cruzava gêneros diversos, permite a invenção de
novos modos de agir, a cada nova barreira, que não foram poucas, no início. Uma
das oficineiras atribui as resistências dos usuários em participar das oficinas com os
profissionais recém-chegados à saída de profissionais que eles amavam muito.
Romero narra como fez para chamar o usuário a participar com o argumento de que
falta algo no trabalho para o que ele poderia contribuir (fazer alegoria). Essa foi uma
estratégia que criou para estimular a participação dele na oficina.

“Tudo bem, você não é obrigado a fazer, mas eu acho que falta uma
alegoria no bloco de carnaval. Eu acho que não tem. Eu acho que você
poderia fazer alguma coisa...” E daí ele fez um boneco que é tipo uma
marionete e que ele leva para todas as apresentações do bloco. Eu
consegui na minha insistência perceber a resistência que ele tinha, e eu
consegui no meu caso tentar dar um significado. Não quebrei
completamente essa resistência, é um trabalho diário (Romero).

Nesse trecho, temos o diálogo dentro do diálogo. O oficineiro compartilha na


roda com seus pares seu diálogo com o usuário, a estratégia que ele usou para
chamá-lo à atividade. Afirmamos que as migrações funcionais do ofício são o que o
mantêm vivo e o que cria condições para seu desenvolvimento. Além disso, a zona
de desenvolvimento potencial foi ativada quando o oficineiro recorre aos colegas
mais experientes diante do obstáculo que encontra, e depois consegue por si
mesmo criar maneiras de enfrentar as dificuldades do cotidiano, encontra uma
cabeça acima de si mesmo. É na experiência e na relação com os outros que ele
aprende que é indispensável dar atenção, dar pausa nas urgências, e se permitir o
tempo da convivência, que é diferente do tempo da escola onde estava habituado a
trabalhar.
O tempo da convivência nesse ofício nos convida a pensar nos tempos e
suas variações. A determinação que produz a organização, a instituição, determina
também sujeitos e processos de subjetivação. Quando se escapa da zona de
determinação, podem ser experimentadas outras formas de sentir, de pensar, de
163

existir, viver tempo de trânsitos. Deleuze e Guattari (1997) diferenciam o tempo


aiônico do tempo cronológico. Aion está na molecularidade, está na intensividade. O
tempo de aion não tem tamanho, mas velocidade. Já cronos está na molaridade,
está na extensividade, é extenso o que tem medida, quantidade: segundos,
horas,dias, meses, anos, séculos.

Aion, que é o tempo indefinido do acontecimento, a linha flutuante que só


conhece velocidades, e ao mesmo tempo não para de dividir o que
acontece num já-aí e um ainda-não-aí, um tarde-demais e um cedo-demais
simultâneos, um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se
passar. E Cronos, ao contrário, o tempo da medida, que fixa as coisas e as
pessoas, desenvolve uma forma e determina um sujeito (DELEUZE;
GUATTARI, 1997, p. 42).

A experiência com o tempo no trabalho no CECO e na escola difere


radicalmente. Ainda que a função de ensinar música pareça ser a mesma, foi
apenas quando o trabalhador compreendeu o timing do CECO que ele conseguiu
realizar o trabalho. Foi quando passou a subjetivar-se mais em regime aiônico e
menos em regime cronológico que foi possível ativar outras sensibilidades. E talvez
seja aí que ele tornou-se menos professor da escola e mais oficineiro do CECO.
Outro indicador de que o tempo do trabalho do oficineiro no CECO ultrapassa o
tempo cronológico é que, ao construir o personagem, eles desenham um relógio de
duzentas horas. Estão nos sinalizando que, apesar de usarem um equipamento de
cronos, eles o subvertem, pois esse ofício não cabe no tempo cronológico.

5.9 Desfechos que abrem novos caminhos: protagonismo dos oficineiros na


pesquisa

Havíamos pactuado com os oficineiros que depois da realização dos grupos a


que estávamos dedicados a analisar a atividade retornaríamos ao Polo, visando
partilhar com eles um certo conjunto de considerações feitas em meio ao processo
de pesquisa de modo mais organizado. Com inspiração em Cesar et al. (2016. p.
144), nos deslocamos de uma posição mais costumeira da devolutiva das pesquisas
em que os pesquisadores retornam ao campo para destinar aos pesquisados os
dados coletados, para uma posição em que propomos um desenlace da pesquisa
em que o “cultivo de um processo que potencializa a entrada participativa de todos
164

os envolvidos (...) abrindo novos cursos éticos por onde a vida pode se movimentar
e transformar-se”.
Fizemos um exercício de memorar nas rodas como os rostos, as vozes, os
risos e os silêncios se expressavam. Lendo as transcrições, escutando os áudios,
pensamos em como as questões ecoaram na pesquisa ali, localmente: convivência,
que atividade é essa? Como se constitui o ofício do oficineiro? Construímos um
texto, uma carta dirigida àquele grupo de oficineiros, colocando nas palavras
endereçadas a eles suas próprias palavras. Acrescentamos, cuidadosamente, no
caldeirão um pouco de cada um e muito de todos. O resultado foi uma narrativa do
que se passou nas rodas, deixando novas possibilidades de conversa abertas.

CARTA AOS OFICINEIROS POLO EXPERIMENTAL – 04/12/2018

Esta pesquisa nasceu de um desejo de se aproximar das atividades desenvolvidas pelos


Centros de Convivência da cidade do Rio de Janeiro. Conviver: que atividade é essa?
Convivência através da arte, cultura, trabalho, geração de renda, economia solidária.
Convivência para quem? Entre quem? Para quê? Como viver COM e sustentar as
diferenças? Convivência é tratamento? É a convivência que desinstitucionaliza a
loucura? Produzir situações de convivência é um trabalho? Este trabalho produz saúde?
Qual saúde? Para quem? Quem faz o trabalho de convivência?
No Centro de Convivência do Polo Experimental, no bairro Colônia, em Jacarepaguá, a
convivência é feita entre muitos, e nosso olhar neste campo de pesquisa se dirige com
peculiar interesse aos oficineiros. “Sou artista, sou artesão, mas aqui sou conhecido
como oficineiro.” Qual é o ofício do oficineiro?
Um único ofício que converge das inter-relações de vários: psicólogo, cuidador,
enfermeiro, terapeuta, psiquiatra, mãe, pai, irmão, tia, professor, administrador. Um único
ofício que se desdobra nas especificidades de cada oficina: Mosaico, Música, Culinária
Experimental, Bistrô Restaurante, Bordado e Costura. Qual é o comum nas oficinas?
Nas rodas de conversa construímos algumas pistas que nos ajudam a desenhar um
mapa dessa atividade comum. Ser oficineiro é: parar para dar aquele bom-dia; é saber o
nome de cada um que participa da oficina; é no domingo de manhã ir até o ponto parar
um ônibus para o outro entrar; é pegar colher com pé; é explicar como chegar em um
lugar diferente e estar ao lado na primeira viagem de elevador e de escada rolante de
165

alguém; é olhar para aquela pessoa que fica sentada o dia inteiro na entrada do CAPS e
ir até ela fazer um convite para a oficina; é estar num trabalho que não te cansa embaixo,
mas a cabeça fica cheia de informação e te cansa muito em cima; é ter um cafezinho em
casa e deixar alguém abrir a porta, beber e sair; é cuidar de um, de outro, de vários e de
si mesmo; é apesar de ter levado pancada, se arrepiar ao contar sobre como é a festa de
final de ano; é não se ver fazendo outra coisa e sentir que mesmo com as dificuldades
esse trabalho é gratificante.
O Superoficineiro, personagem criado pelo grupo, não curte quando não tem almoço para
todo mundo, já ficou mais de 75 dias sem receber pagamento, e fez rodízio para o
trabalho não ser interrompido. Enfrenta resistências quando a equipe muda e vai
quebrando a resistência aos poucos, usando a linguagem que todos entendem: a
linguagem do trabalho. Mas o superoficineiro não faz nada sozinho, por isso ele é super,
mas não é herói. Seu superpoder é o agir. São oficineiros e oficineiras que agem
compondo uma liga da justiça, um coletivo que é cultivado cotidianamente. Esse cultivo
do coletivo, aqui chamado de convivência, é necessário ao trabalho. Trabalhar é viver
junto. Vocês sabem disso e nos contaram sobre como isso funciona:
Sabe o que é gratificante nesse grupo? É que a gente se quer muito bem. Mesmo sem
estar junto todo dia a gente vai vivendo o dia a dia um do outro.
Como diria o poeta Rubem Alves: “Todo fim venta um começo”. Espero que o fim deste
pequeno texto faça ventar novas sensibilidades no ofício de oficineiro. Abrimos o começo
da circulação da palavra no encontro desta tarde com a seguinte questão: como as rodas
de conversa afetaram vocês e o trabalho que realizam?

Os oficineiros gostaram tanto deste texto-carta que preparamos e lemos que


pediram para ficar com o texto para eles. Usaram o texto-carta no Seminário Interno
de final de ano que ocorreu na semana seguinte com a equipe completa do Museu e
do Polo, ou seja, se tornaram protagonistas do processo da pesquisa de uma forma
ampliada, prescindindo da presença das pesquisadoras da UFF e criando novos
interlocutores no debate de seu ofício. Isso nos indica que “intervenção e pesquisa
fertilizam-se mutuamente” (OSORIO DA SILVA, 2016b, p. 160).
Além disso, no final desse encontro um dos oficineiros propôs que eles
passassem a se encontrar para discutir as situações de trabalho entre eles, pois não
tinham esse espaço e sentiam essa necessidade. Estes são indicativos de
166

transformação, são os próprios oficineiros criando novos recursos no trabalho.


Combinaram de continuar fazendo rodas para discutir o trabalho apenas entre eles,
no segundo dia útil de cada mês no ano seguinte.
Nesse encontro de desenlace, a pesquisa colocou em ação uma dupla
dimensão: a de partilha da colheita e a de plantio de novas sementes.

A roda de conversa é importante porque a gente pode ouvir e falar aquilo


que preciso ouvir e falar. (...) A gente vivencia situações com o usuário que
só a gente vivencia. Outro dia X disse “Estou namorando” e tirou um anel do
bolso e mostrou. Como explicar uma experiência que se tem com uma
pessoa dessa? (Romero).

Então há uma dimensão do ofício do oficineiro que é difícil de ser colocada


em palavras, de ser explicada. O trabalho que o oficineiro faz às vezes se faz
apenas com um olhar: “É estar ao lado para o outro se sentir amparado, só olhar e
mostrar: estou aqui” (Lygia). Nas rodas, mesmo usando como recurso a criação de
um personagem fictício desenhado a partir dos enunciados sobre o trabalho,
notamos que há dimensões que permaneceram intransmissíveis por meio da
linguagem oral. Contudo, apesar dos limites que reconhecemos termos
experimentado, avaliamos que o exercício de colocar a atividade em debate
colaborou para dar mais materialidade ao trabalho que realizam. Falar sobre o que
funciona bem provoca mudanças, ainda que sutis, no trabalho uns dos outros, como
vemos no diálogo a seguir:

– Não sou polvo (Tarsila).


– Acho que você tem que fazer uma distribuição de tarefas. Fiz isso e
funcionou muito bem (Romero).

Por fim, extraímos desse encontro uma fala que aponta para a necessidade
da criação de espaços em que o diálogo sobre o trabalho seja possível:

[...] um espaço como esse dá essa dimensão do que a gente vivencia de


verdade, e não só o que é idealizado ou imaginado. Entre o que é
imaginado e o agir, há um caminho muito grande (Romero).

Fazemos eco a esse enunciado, que nos indica que de fato entre o trabalho
pensado e o trabalho realizado há um intervalo, que é a própria atividade. Colocá-la
em debate colabora para problematizar o que é realizado, mas também cria novas
possibilidades de agir, produzindo um círculo virtuoso. O caminho é longo e repleto
de impasses, mas quando o coletivo de trabalho e o trabalho coletivo se fazem
167

fortes, e o gesto da sensibilidade está ativo, é possível criar juntos e expandir os


recursos para a ação, colocando a arte do ofício em ação.
Portanto, no CECO Polo Experimental, realizamos grupos com os oficineiros,
dialogando com eles, buscando mapear juntos como é constituído o seu ofício. Por
meio da construção de um personagem fictício e da análise da organização de uma
festa junina na praça, identificamos como gesto marcante no ofício do oficineiro a
sensibilidade, assim como o coletivo funcionando como operador de saúde. Para
além das oficinas, o ofício do oficineiro requer uma sensibilidade ativa capaz de
provocar a atividade de modo a ampliar a potência do outro. Os CECOs trazem o
desafio de se tornarem espaços coletivos de reinvenção, produção de diferença e
heterogênese. Assim, o ofício do oficineiro opera uma multiplicidade de redes em
diversas conexões e sentidos, seja na realização de uma festa, seja na confecção
de artesanatos nos projetos de economia solidária. Na próxima cartografia, vamos
colocar em debate os afetos na atividade de trabalho da convivência.
168

SWING DE CAMPO GRANDE


(Novos Baianos)

Minha carne é de carnaval


O meu coração é igual
Minha carne é de carnaval
O meu coração é igual
Minha carne é de carnaval
O meu coração é igual

Aqueles que têm uma seta


E quatro letras de amor
Por isso onde quer que
Eu ande em qualquer pedaço
Eu faço
Um Campo Grande
Um Campo Grande
Um Campo Grande

Eu não marco touca


Eu viro touca
Eu viro moita

<https://www.youtube.com/watch?v=iRnNeUmR558>
169

6 CARTOGRAFIA 5 – O TRABALHO AFETIVO ANTIMANICOMIAL

6.1 Território Campo Grande

Campo Grande é um bairro da Zona Oeste que, além de ser o mais populoso
da cidade do Rio de Janeiro, é o bairro mais populoso do Brasil. Segundo o Censo
do IBGE de 2015, Campo Grande contava com mais de 336 mil habitantes. Com
economia diversa, o bairro tem áreas rurais, uma zona industrial importante para a
cidade e um comércio crescente. Na área da saúde, Campo Grande pertence à área
programática 5.2, junto com os seguintes bairros: Barra de Guaratiba, Cosmos,
Guaratiba, Inhoaíba, Santíssimo, Senador Vasconcelos e Pedra de Guaratiba, que
conta na sua RAPS com cerca de 35 unidades básicas de saúde (clínicas da família
e centros municipais de saúde), dois CAPS II, um CAPSi e cinco serviços
residenciais terapêuticos.59
Inicialmente, o Centro de Convivência e Cultura da Zona Oeste (Ceccozo) foi
criado pensando-se em uma composição com os três CAPS da área e os NASFs da
região, garantindo a ampliação do espaço de convivência entre a comunidade, os
usuários e familiares de saúde mental. Segundo a coordenação do Ceccozo, grande
parte da clientela que frequenta os serviços de saúde mental tem uma rotina
empobrecida e de pouca circulação no bairro onde eles vivem, bem como na cidade.
“O Ceccozo ele nasce de um desejo do território de construir algum tipo de atividade
de cultura e lazer pra esse território” (sic).

6.2 Centro de Convivência e Cultura da Zona Oeste

O Centro de Convivência e Cultura na Zona Oeste foi criado em 2014 no


bairro de Campo Grande, próximo à estação de trem, e funciona dentro da Lona
Cultural Elza Osborne.60 O horário de funcionamento da Lona Cultural é de terça a

59 Dados obtidos em: <www.data.rio/pages/rio-em-sntese-2>, acessado em fevereiro de 2020.


60 Lona Cultural é o nome comum de uma série de teatros de arena cobertos, administrados pela
Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro, onde ocorrem atividades de cunho
cultural como shows, peças teatrais, oficinas, feiras de arte e artesanato, cursos etc. São dez
equipamentos distribuídos pelas zonas Norte e Oeste, em bairros com pouquíssimos recursos
culturais e/ou regiões periféricas da cidade (Realengo, Vista Alegre, Guadalupe, Anchieta, Maré,
Santa Cruz, Ilha do Governador, Jacarepaguá e Bangu). Com chancela da ONU, o projeto nasceu em
1993 como uma forma de aproveitar as lonas doadas pelos governos inglês e holandês na
conferência Rio-92. Fonte: <https://oglobo.globo.com/cultura/lonas-culturais-chegam-aos-25-anos-
170

domingo, das 9h às 17h. O Ceccozo oferece ações nos seguintes dias: terça, o dia
todo; quarta, sexta e domingo, de manhã; e quinta, à tarde. Além do Ceccozo, outros
espaços públicos de convívio da região são igrejas, centro esportivo, Teatro Arthur
Azevedo, praça e a Arena Chacrinha, que fica no bairro Pedra de Guaratiba. Assim
como os demais CECOs da cidade, ele não está cadastrado no CNES, sendo sua
gestão, fruto de uma articulação local. A coordenação considera o espaço adequado
para sua finalidade, embora a estrutura física da Lona pudesse melhorar (pleiteiam
obra para colocação de termotelha). Sobre as ações intersetoriais, o Ceccozo realiza
reuniões com a economia solidária, com o centro esportivo, com o conselho distrital
de saúde e com os serviços da RAPS das áreas programáticas 5.1, 5.2, 5.3.
As inscrições para as oficinas abrem em fevereiro e há três grandes eventos
ao longo do ano: o Sarau da Diversidade, o Fazendo Arte (festa com as crianças) e
uma apresentação teatral em dezembro. O Ceccozo também realiza passeios,
visitas a exposições, museus, teatros, organiza eventos em praças e outros espaços
públicos. A reunião de equipe passou a ser semanal no decorrer da pesquisa; eles
fazem assembleia bimestral. O Ceccozo faz parte de um bloco carnavalesco
chamado Zona Mental, organizado pelo coletivo de serviços da Zona Oeste (Campo
Grande, Bangu e Santa Cruz), e monta exposições com a produção artística dos
usuários, que somaram cerca de 125 pessoas inscritas em 2019.
Em relação ao público que faz parte deste CECO, somando todas as
inscrições (2014 a 2019), ele tem 637 conviventes cadastrados, totalizando a média
de 106 inscritos por ano. Estima-se que diariamente cerca de cinquenta pessoas
participam das ações oferecidas pelo Ceccozo. Segundo estimativa da coordenação,
apenas cerca de 3% já passaram por internação psiquiátrica, 10% fazem uso de
psicofármacos e praticamente 15% (24 de 125) declararam ter recebido algum
diagnóstico psiquiátrico61 em algum momento da vida. A idade dos conviventes varia
entre 7 e 70 anos. Além da demanda espontânea, são locais que encaminham para
o Ceccozo: as Clínicas da Família, os CAPS, os CAPSi, ambulatório da policlínica e
FUNLAR (subsecretaria da pessoa com deficiência). O público é composto
principalmente por pessoas menos favorecidas socioeconomicamente, tendo como
renda familiar estimada entre dois e três salários mínimos.

sem-festa-23205654>.
61 Na ficha de inscrição, não há nenhuma pergunta específica sobre diagnóstico. Há a pergunta:
“Está ligado a alguma instituição? Qual? Técnico de Referência:”. Algumas pessoas citam o serviço
que encaminhou, quando é o caso; outras não citam.
171

A equipe inicial62 era composta por uma psicóloga que coordena o CECO e
dois oficineiros. Um deles oferece oficinas de teatro (adulto e infantil) e o outro,
oficina de grafite, dividindo sua carga horária com o CAPSi. Além disso, o Ceccozo
conta com parceiros que oferecem aulas de violão, hip hop, circo, artes visuais e
artesanato.
No que se refere à equipe atual, tomando por referência o mês de fevereiro
de 2020, ela estava conforme indica o Quadro 6:

Quadro 6 – Equipe do Centro de Convivência e Cultura da Zona Oeste (fevereiro de


2020)

Função / Contratação Formação Tipo de vínculo


1 Coordenação Psicologia Servidor
2 Profissional com ensino médio / Artes Cênicas Contrato CLT /
Oficineiro OS
3 Profissional com ensino médio / Designer Contrato CLT /
Oficineiro OS
(carga horária
cedida do
CAPSi)
4 Coordenação Lona História MEI
5 Musicoterapeuta Musicoterapia Servidor (carga
horária dividida
com CAPS)
6 Coordenação grupo de ajuda mútua – Ensino médio Contrato
familiares superintendência
de saúde mental
7 Assessor de Economia Solidária Não informado Contrato
Secretaria
municipal
ECOSOL
8 Professor oficina de circo Não informado Voluntário
9 Estagiário extracurricular Psicologia (12h) Parceria com

62 Quando a pesquisa de doutorado começou, a equipe era formada por quatro profissionais, e foram
esses que participaram dos grupos que fizemos no Ceccozo em 2018. Quando o questionário foi
aplicado em 2020, a equipe havia mais que dobrado de tamanho. A entrada dos novos profissionais
se deu por meio de parcerias, na medida em que o trabalho foi se tornando mais visível. Contudo,
nenhum dos profissionais que ingressaram foi contratado exclusivamente para o Ceccozo pela
Prefeitura.
172

UFRRJ
10 Estagiário extracurricular Psicologia (12h) Parceria com
UFRRJ
Fonte: A autora.

6.3 Semeando o caminho no caminhar: apontamentos teórico-metodológicos

Além do acompanhamento das programações oferecidas pelo Ceccozo, como


a oficina de grafite para crianças e adolescentes, o passeio no Museu do Pontal, o
Sarau da Diversidade, a assembleia, o que fortaleceu o solo onde a pesquisa deu
seus passos, foi montado com os trabalhadores um grupo para analisarmos
conjuntamente a atividade do Ceccozo.
Aconteceram três encontros, dos quais participaram a coordenadora da Lona,
a coordenadora do Ceccozo e os dois oficineiros, 63 os quais foram audiogravados e
depois transcritos. Os nomes originais dos trabalhadores foram alterados para
nomes de artistas da Tropicália. Cada encontro durou cerca de duas horas e foi
realizado no camarim da Lona Cultural Elza Osborne. Chamamos o grupo 1 de
encontro preliminar; o grupo 2 de oficina de fotos; e o grupo 3 de desenlace.
Em nossa concepção, a oficina de fotos funcionou como um dispositivo, como
uma máquina para fazer ver e dizer o que não se via e não se dizia antes.
Destacamos que não se trata de revelar verdades sobre o trabalho, mas de
transformar-conhecer o trabalho. A oficina se fez com um conjunto de trabalhadores,
que para acontecer implicou a constituição de um grupo composto pelas
pesquisadoras da UFF e a equipe Ceccozo.
A própria discussão da composição do grupo participante da oficina nos
fornece linhas de discussão para problematizá-lo, o que nos faz interrogar: o que a
oficina pode colocar em ação? Alianças, proximidades e distâncias são colocadas
em análise. Por exemplo: ao conversarmos no Ceccozo sobre quem participaria da
oficina de fotos, a coordenadora do CECO sugeriu que a coordenadora da Lona
Cultural participasse, ainda que formalmente ela não possua qualquer vínculo de
trabalho com o CECO. Foi considerada importante sua participação por entender

63 Nos dois primeiros encontros, além da doutoranda, estiveram presentes atuando como
observadoras as copesquisadoras do NUTRAS Naiara Duque, Juliane Chaves e Thais dos Santos.
173

que ela passou a fazer parte da equipe do CECO. Outro argumento apresentado foi
de que por ela “não ser da saúde, mas ser da cultura” (sic), traria um olhar
diferenciado sobre o trabalho, o que agregaria valor ao conhecimento produzido na
pesquisa. A inseparabilidade do par saúde-cultura no trabalho do Ceccozo pode
ganhar expressão não só na composição do grupo, mas no decorrer dos encontros
da pesquisa. Já o diretor da Lona não teve sua participação cogitada.
O dispositivo oficina de fotos, assim como todo o processo de pesquisa,
participou de um “processo de produção de realidade que não é jamais estática e
acabada. (…) A pesquisa é um novo gênero de atividade profissional que se cruza
com os já existentes no ambiente pesquisado, produzindo novas estilizações”
(OSORIO DA SILVA, 2016a, p. 60). Nosso trabalho como cartógrafa do ponto de
vista da atividade (BARROS; SILVA, 2014) tem caráter construtivista, uma vez que a
pesquisa não está ali para descobrir verdades ocultas, mas sim para construir junto
com os processos que já estão em curso.
Utilizamos como critério para seleção dos diálogos a serem analisados
aqueles que mostravam as controvérsias da atividade de convivência, os trechos
que nos forneceram pistas para problematizar o conceito de convivência e o trabalho
realizado pelos CECOs. Destacamos que, segundo a perspectiva de Bakhtin, os
diálogos se desenvolvem na presença de um sobredestinatário, que seria um
terceiro participante invisível, que corresponde à dimensão transpessoal do ofício,
sua história coletiva, seria o grande diálogo. Além deste sobredestinatário, há o
subdestinatário, que corresponde às vozes do diálogo interior, seria o pequeno
diálogo consigo mesmo (CLOT, 2010). Desse modo, ao ler cada um dos enunciados
selecionados, é preciso levar em conta que há três diálogos em um: com o
destinatário imediato (pesquisadoras); com o subdestinatário (consigo mesmo); e
com o sobredestinatário (história coletiva). Há, então, uma heterogeneidade
plurivocal.

6.4 Colheita no campo: oficina de fotos como via para análise da atividade

6.4.1 Grupo 1 Preliminar – Conhecendo a implantação


174

Podemos localizar nos diálogos que aconteceram no grupo 1 dois temas


principais: 1) a história de implantação do CECO; 2) como se constitui o trabalho do
CECO. Começamos com a apresentação de cada um e mapeamos os percursos
que conduziram a equipe à constituição do Ceccozo. Os trabalhadores afirmam que
um desejo de fora foi a força motora dessa produção. Um dos oficineiros que já era
trabalhador de um CAPSi conta como o Ceccozo nasceu a partir de um encontro
entre uma ideia que ele já tinha imaginado e uma conversa que teve com a
psicóloga que escreveu o projeto do Ceccozo.

Eu cheguei no CAPSi e eu estava com a proposta de fazer um trabalho


fora. Não sou morador aqui do território, e sempre nesse trajeto, eu sempre
passava aqui de ônibus e via a lona, e tinha muita vontade de conhecer a
lona. Só que eu não conseguia ter acesso aqui. (...) eu sempre passava
aqui na porta e tinha muita vontade de vir e pegar o telefone, ligar, mas eu
não tinha contato. Até que a Gal foi no CAPSi apresentar o projeto do
centro de convivência. Aí eu converso com ela e falo com ela da lona. Pra
ela tentar o contato com a lona, aí ela consegue esse contato, e a gente
meio que faz uma reunião com os diretores aqui da lona, e assim vai surgir
o projeto de centro de convivência aqui dentro da lona. E “tamo” até hoje
(Gilberto).

Segundo Vigotski (2018), qualquer inventor é sempre fruto de seu tempo e de


seu meio. As criações surgem das necessidades que são criadas antes dele e
apoiam-se em possibilidades que existem além dele. Toda invenção depende das
condições materiais e psicológicas necessárias para seu surgimento. Além disso, há
uma dependência mútua entre imaginação e experiência: imaginação apoia-se na
experiência, e experiência apoia-se na imaginação. Quanto mais rica for a
experiência pessoal, mais material está disponível para sua imaginação.
Criar um Centro de Convivência e Cultura, equipamento da RAPS/SUS,
dentro de uma Lona Cultural, equipamento da Secretaria de Cultura, foi uma
inovação, fato inédito na cidade, produto de atividade criadora que se apoia nas
experiências vividas pelos interlocutores que dialogaram sobre isso. O oficineiro já
havia sentido a necessidade de fazer um trabalho fora do Capsi, a coordenadora do
CECO que foi diretora de CAPS também havia sentido a necessidade de um espaço
cultural que promovesse a convivência; eles imaginaram antes de se encontrarem e
conversarem. Contudo, foi somente quando aconteceu o encontro e se estabeleceu
um diálogo entre eles dois, e depois com novos interlocutores, que o Ceccozo pôde
ganhar existência e a proposta foi desenvolvida.
175

Se levarmos em conta a presença da imaginação coletiva, que une todos


esses grãozinhos não raro insignificantes da criação individual, veremos que
grande parte de tudo que foi criado pela humanidade pertence exatamente
ao trabalho criador anônimo e coletivo de inventores desconhecidos
(Vigotski, 2018, p. 17).

Essa ideia de que tudo o que temos ao nosso redor, de que todo o mundo da
cultura, é imaginação humana cristalizada é extremamente potente para se pensar o
trabalho. A capacidade de fazer uma construção de elementos combinando o velho
de novas maneiras constitui a base da criação. Por exemplo: ao perguntarmos sobre
as forças que moveram os trabalhadores a implantar este CECO, nos deparamos
com as experiências vividas anteriormente. A atual coordenadora do Ceccozo narra
que, quando era diretora de CAPS, sentia que o espaço físico do CAPS era muito
pequeno e apertado, e eles acabavam fazendo as ações muito para fora do serviço,
no território. Nessa época, a equipe começou a perceber o quanto esse movimento
de saída, dos passeios, era potente para os usuários. A coordenadora fala sobre a
situação de uma senhora, usuária do CAPS, que estava se sentindo deprimida,
morando sozinha, tinha história de tentativas de suicídio, a família tentava apoiá-la, a
convidava para passar o fim de semana na praia, mas ela nunca queria ir, pois
queria ficar só em casa. No CAPS, eles estavam fazendo uma pesquisa sobre Luiz
Gonzaga, sobre sua vida, sua arte, sua música, pois programavam assistir ao filme
que estava em cartaz nos cinemas. Um dia, essa senhora chega até o CAPS no
momento em que se falava sobre ir ao cinema e deixa todos surpresos ao dizer que
ela já tinha ido assistir ao filme do Luiz Gonzaga. Por iniciativa própria ela se
arrumou, comprou o ingresso e foi ao cinema no fim de semana. Ela diz: “Agora que
já sei, posso ir”. A equipe entende que isso é resultado de um trabalho iniciado no
CAPS, de querer sair, de viver a vida, de se sentir capaz de circular na cidade.
Outro enunciado relevante foi de que pediam por um espaço de convívio em
Campo Grande. Os usuários do CAPS participavam de algumas atividades
oferecidas pelo Centro de Convivência Pedra Branca de Jacarepaguá (atualmente
chamado Polo Experimental), contudo, ainda que ambos os bairros sejam
considerados da Zona Oeste (Campo Grande e Jacarepaguá), o deslocamento na
cidade ficava muito difícil, pois as distâncias são longas, o trânsito intenso, e isso os
desanimava a participarem, apesar do interesse nas atividades oferecidas.
Ainda outro enunciado que se soma a esse diálogo sobre as forças vem de
um dos oficineiros. Antes de ele atuar no CAPSi do Rio, já havia trabalhado em um
176

CAPSi em outra cidade, e lá começou com um trabalho fora com os adolescentes


que funcionava muito bem, ainda que no início a equipe ficasse receosa e
questionasse como é que seria isso. Ele diz: “Eu cheguei a levar um autista, e as
pessoas achavam que seria muito difícil de um autista ir pra lá, e deu certo.” Ele
afirma que procurava esses lugares fora, ligados à cultura, centro esportivo, lona
cultural, as bibliotecas, e percebia efeitos interessantes.
Contudo, as experiências vividas como oficineiro de CAPSi e como psicóloga
diretora de CAPS de nada serviriam para criar um CECO se não houvesse o
encontro entre eles. Qualificamos o encontro entre oficineiro e psicóloga, entre
projeto de CECO e Lona Cultural, como bom encontro, nessa situação, pois a
potência de agir foi ampliada; os corpos além de se conservarem, prosperaram
gerando uma terceira nova relação: o Ceccozo. A alegria produzida nos encontros
moveu esses trabalhadores a instituírem uma nova forma de trabalhar naquele
território.
Tanto o pensamento quanto o sentimento são motores da criação humana,
tanto os fatores intelectuais quanto os emocionais são necessários para o ato de
criação. Ao apontar a inseparabilidade entre imaginação e sentimento, Vigotski nos
apresenta a lei da realidade emocional da imaginação. Segundo essa lei, “todas as
formas de imaginação criativa contêm em si elementos afetivos” (VIGOSTSKI, 2018,
p. 30). Destarte, qualquer construção da fantasia influi em nossos sentimentos,
ainda que essa construção por si só não corresponda à realidade; todo sentimento
que provoca é verdadeiro, é vivenciado pela pessoa, se apossa dela.
Relacionando o eixo implantação com o eixo atividade do CECO e seus
efeitos, é possível afirmar que o CECO instalar-se dentro da Lona amplia o acesso
cultural a usuários da RAPS e comunidade local. Mesmo o teatro de arena existindo
há mais de cinquenta anos, a Lona Cultural há mais de 25 anos e o Ceccozo há
cinco anos, o espaço e o que acontece ali dentro ainda eram inabitados por muitas
pessoas que residem na região, conforme escutamos no relato do trabalhador:

[...] muitos usuários nunca tinham pisado aqui dentro na lona. Então desde
quando o centro de convivência começa a se instalar aqui dentro, ele
começa a fazer parte da cultura local. Isso foi o grande boom (Caetano).

A união de um equipamento SUS com um equipamento cultural em um


mesmo espaço faz os trabalhadores sentirem que sua ação colabora na construção
177

de uma sociedade melhor, um outro mundo possível, apesar dos desafios


enfrentados para que as esferas da gestão pública compreendam isso.

A gente precisa estar unido. Quando a Prefeitura entender que a cultura, a


educação e a saúde elas têm que estar ligadas, entrelaçadas, uma
ajudando a outra, a gente vai construir uma sociedade melhor (Betania).

Em sua fala, Betania expressa a necessidade de entrelaçamento entre


cultura, educação e saúde, o que nas políticas públicas chamamos de
intersetorialidade. Entendemos que a intersetorialidade nos CECOs se faz em um
interstício, nesse pequeno intervalo entre os diferentes saberes, setores, disciplinas,
políticas, fios de cores distintas que, entrelaçados, formam uma colorida trama.
Sobre a intersetorialidade, Venturini (2010) distingue dois modelos
organizativos para a saúde mental: 1) administração passiva, baseada em
indicadores de quantidade de pessoas, que leva a separação, medicação e práticas
assistenciais; 2) socialização ativa, em que os serviços sociossanitários ativam a
integração entre redes sociais e instituições. Em meio à experimentação da
pesquisa, identificamos que a intersetorialidade operada pelos CECOs se
caracteriza pelo segundo tipo, em que há um critério temporal das funções, as
parcerias são compostas e desmanchadas mediante as necessidades apresentadas
pelos conviventes. Podemos reconhecer a intersetorialidade como socialização ativa
na atividade dos trabalhadores do Ceccozo.
Contudo, o exercício da intersetorialidade não é simples, e não se dá sem
conflitos ou sem tensões. Destacamos que o fato de esse CECO situar-se dentro de
uma Lona Cultural traz questões novas, que ainda não haviam sido tocadas no
debate sobre CECOs no que se refere ao que é prescrito aos profissionais da
equipe. Por exemplo: quando os profissionais da área da cultura que não têm
experiência prévia em atender o público da saúde em geral e/ou da saúde mental, e
sem nenhuma formação específica para isso, são chamados a lidar com as
singularidades que surgem no percurso, há o relato de que sentem “friozinho na
barriga”. Esse friozinho na barriga não paralisa, mas provoca perguntas, diálogo
interior, e faz a trabalhadora buscar no plano da afetabilidade os recursos para a
ação.
Um aluno me procurou sábado que eu tava aqui, ele tava fazendo a aula, e
me chamou: “Queria falar com você. Posso?” Falei: “Lógico!” “Preciso
desabafar.” Toda vez que um aluno da saúde fala que precisa desabafar,
me dá um friozinho na barriga. Me dá um friozinho na barriga porque eu fico
178

imaginando como falar, como agir. “O que será que essa pessoa tá
querendo de mim?” Aí eu lembro, ela tá querendo amor (Betania).

Esta fala enunciada por uma trabalhadora da cultura – sua formação é


produção cultural – nos aponta para várias direções. Uma delas é a disposição que
o CECO tem para escapar do campo psi, mas, ao mesmo tempo, manter uma
relação com o domínio psi. O fato de a lona oferecer aulas de teatro para pessoas
usuárias de CAPS faz aparecer esse tipo de demanda reconhecida como demanda
psi (ex.: preciso desabafar). E pode um não psi atender a esse tipo de pedido?
Precisa ser psi para estar no CECO atendendo a esse tipo de pedido? O que está
em jogo é a construção de um outro olhar que parte de um saber não estruturado,
talvez menos patologizante. Seria necessário “vencer o olhar da Medusa da
psiquiatria, aquele olhar do poder terapêutico, que petrifica e converte pessoas em
objetos” (VENTURINI, 2010, p. 478).
A questão do trabalhador do CECO não especialista retornou em outros
enunciados. No campo da saúde mental os profissionais psis (psiquiatras,
psicólogos, psicanalistas) exercem hegemonia, tanto quantitativa em número de
contratos quanto qualitativa no peso que têm nas decisões tomadas pelas equipes,
afinal, como o próprio nome diz, a rede de atenção é PSIcossocial. Longe de negar
o papel dos profissionais psis nas vidas de quem se trata nos CAPS e outros
serviços de atenção especializada, buscamos problematizar o seu lugar em um
processo mais amplo de transformação social, na era da convivência, como
enunciado na cartografia 2.
No CECO, o trabalhador da cultura (produtores culturais, artistas, oficineiros,
professores de arte) ocupa um lugar estratégico, e quando sua posição é substituída
por um profissional de saúde com ensino superior, como um psicólogo, por exemplo,
é feita uma crítica a essa substituição.

Eu tenho analisado muito isso, e eu acho que não é uma coisa muito boa o
que acontece pela saúde mental que são as contratações, por exemplo, de
oficineiro e acabam contratando psicólogos. Aí você deixa de ter uma
equipe interdisciplinar e acaba tendo uma equipe de um olhar só. Eu
acho que isso é uma coisa que prejudica a saúde mental. Eu acho que o
diferencial da saúde mental são esses vários olhares que tem,
entendeu? Não só o do psicólogo (Gilberto) [ grifos da autora].
179

Por outro lado, quando no grupo pergunto sobre qual seria a composição
ideal de uma equipe de CECO, de imediato uma pessoa retoma a necessidade de
ter profissional com formação em psicologia.

É fundamental termos uma psicóloga, isso é fundamental. Eu não vejo


como não ter uma psicóloga. E a gente ficou sem a Gal aqui por um
período, foi bastante difícil, porque a gente tinha medo de errar o tempo
todo (Betania) [grifos da autora].

Em meio a essa controvérsia sobre a (des?)necessidade de profissionais psis


na composição da equipe dos CECOs, trazemos a noção de trans-ofício, em que um
trans-ofício é o que atravessa e é atravessado por diferentes profissões e ocupações
(ANDRADE, 2014). O desmanchamento dos especialismos se faz na afirmação dos
“saberes da ação frente aos acontecimentos” (CLOT, 2010, p. 282). Nesse debate
sobre como os outros trabalhadores lidam com as questões que a princípio seriam
destinadas aos profissionais psis, identificamos um movimento no diálogo, que
desloca o saber lidar e o ensinar dos profissionais psis para os próprios usuários.
Tais usuários da saúde no CECO são referidos na posição de alunos, pois realizam
cursos/oficinas. Mais uma vez a dimensão pedagógica se apresenta na atividade do
CECO. No enunciado a seguir, a mesma trabalhadora que afirmou antes ser
indispensável ter psicólogo na equipe afirma que o usuário tem capacidade de
ensinar, e que o professor (trabalhador da cultura), mesmo sem ter curso na área da
saúde, pode aprender com os próprios alunos.

Mesmo às vezes o professor não tendo esse curso, essa especialização em


saúde, os professores, eles aprendem com os alunos. Porque o usuário da
saúde ele tem esse poder de ensinar. Ele ensina o tempo todo aqui pra
gente (Betania) [grifos da autora].

Interessa-nos, portanto, mapear esse processo, essa dinâmica dos


encadeamentos conversacionais, dar a ver esse movimento que é dialógico, em que
os falantes vão mudando de posição enquanto falam, desenvolvendo novas
maneiras de trabalhar. Não buscamos chegar a uma sentença final, ou à solução de
uma questão, mas explicitar o movimento.

O movimento dialógico cria: relações renovadas, de situação em situação,


entre o falante sujeito e outros, assim como entre esse mesmo falante e
aquele que ele havia sido na situação precedente, além do modo como ele
havia sido. Procedendo assim, ele transforma, manifesta e revela, no
sentido fotográfico do termo, as posições dos interlocutores que se
180

elaboram no decorrer do movimento, até mesmo se desestruturam sob o


efeito de contradições engendradas por esse mesmo movimento dialógico
(CLOT, 2010, p. 135).

Além de analisar com os trabalhadores como constroem suas posições sobre


os requisitos e as necessidades de composição de equipe do CECO, faz-se
necessário pontuar as mudanças que ele produz para as pessoas da comunidade
que vêm buscar no CECO aulas de teatro, por exemplo. O trabalho prescrito de uma
aula de teatro (formar atores e atrizes) é transformado quando a oficina de teatro
passa a acontecer na Lona sendo organizada a partir do Ceccozo. Notamos que o
sentido da atividade muda quando o destinatário muda.

É porque assim, quando a comunidade vem procurar um curso de teatro, eu


tô falando do meu, claro! Por quê? Porque quer ver seu filho ou filha atriz
sair pra Globo e tal. E quando chega aqui, vê uma coisa que não está no
plano deles, mas uma coisa que é mais importante do que isso, que é
saber lidar com o outro, aí que eles vão se dar conta: “Nossa! O projeto é
muito mais do que isso. Minha filha não vai sair daqui como atriz, mas vai
sair um ser humano, aceitar o próximo, as diferenças. Então isso é muito
mais importante. Eles chegam aqui (palma) e é aquele choque. Mas
depois vai convivendo com um, aceitando, descobrindo, se
relacionando… Então, assim, é uma troca muito boa. Muito boa mesmo
(Caetano) [ grifos da autora].

Nesse enunciado, o oficineiro aponta que a comunidade é surpreendida


quando percebe que o curso de teatro oferecido ali na Lona é mais que um curso de
teatro. A prescrição do trabalho desse professor mudou com a criação do projeto do
Ceccozo. Antes, sua atribuição estava centrada em ensinar teatro, formar atrizes e
atores, e agora ele sinaliza que faz parte de sua atividade o trabalho da convivência,
a relação com a alteridade entrou no prescrito do seu trabalho.

6.4.2 Grupo 2 Oficina de Fotos – Afetos alegres e afetos tristes no trabalho

Ao fim do primeiro grupo, conversamos sobre qual seria a forma de registro


que usaríamos para coanalisar a atividade. Demos alguns exemplos de métodos
usados pela clínica da atividade, e foi feita a escolha pela oficina de fotos. Os
trabalhadores disseram que costumam tirar sempre muitas fotos do trabalho, pois
como o Ceccozo não existe oficialmente, tirar fotos do que fazem é uma forma de
comprovar o trabalho que realizam.
181

Conectamos essa fala de que costumam tirar muitas fotos do trabalho com a
fala de que “essa equipe se une no afeto” (Gal) e propomos que cada trabalhador(a)
escolhesse de uma a duas fotos que expressassem afetos alegres e afetos tristes no
trabalho. Segundo a metodologia da clínica da atividade, a relação entre trabalho e
subjetividade é centrada na atividade de trabalho. A subjetividade é considerada
produto da atividade (CLOT, 2006a). Um caminho para transformar-conhecer a
produção subjetiva é o método da oficina de fotos (OSORIO DA SILVA, 2010). Este
se apresenta como uma variação, ou uma estilização do método da
autoconfrontação (simples ou cruzada) proposto pelos franceses Daniel Faita e Yves
Clot. Ambas se dão em um contexto de coanálise da atividade realizada por
analistas do trabalho (neste caso, pesquisadoras da UFF) e trabalhadores de uma
determinada equipe, ou segmento profissional (neste caso, equipe do Ceccozo).

Observamos então que seria possível levar os próprios trabalhadores a


fazerem as fotos a serem analisadas: a máquina fotográfica poderia produzir
um efeito interessante, de distanciamento e de produção de espaço para o
diálogo interior, ou seja, para um diálogo consigo e com o gênero
profissional em questão. Essas mesmas marcas – fotos – são então
discutidas com pares e analistas/pesquisadores, devendo o fotógrafo dizer
porque as fez da forma como fez (OSORIO DA SILVA, 2010, p. 45).

Introduzimos algumas variações, considerando o contexto específico desta


pesquisa e as transformações tecnológicas em curso. Em vez de a pesquisadora
oferecer uma máquina fotográfica, as fotos foram produzidas por câmeras dos
celulares dos próprios trabalhadores; em vez de eles produzirem as fotos durante a
oficina, foi combinado que seria feito o envio das fotos para o e-mail da
pesquisadora. Isso ocorreu sem que as fotos fossem vistas previamente pelos
integrantes da equipe entre si. Pactuamos que as fotos poderiam ser novas, tiradas
para a ocasião da oficina, ou antigas, tiradas antes da oficina.
Em definições dos afetos (EIII), Spinoza define alegria como “a passagem do
homem de uma perfeição menor para uma maior”. A tristeza é definida como “a
passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor”. Vemos, então, que
esses dois afetos básicos, dos quais derivam todos os demais, são caracterizados
como passagem de um estado a outro. Por exemplo: amor, admiração, glória,
satisfação consigo mesmo, atração, esperança, segurança, gáudio são variações da
alegria. Ódio, vergonha, humildade, aversão, medo, desespero, arrependimento,
decepção são variações da tristeza.
182

Para Spinoza, não existe o Bem ou o Mal, ou seja, não há uma moral em
jogo. Na moral, há um julgamento de valores transcendentes (Bem/Mal), deve-se
fazer ou deixar de fazer isso ou aquilo, em nome do Bem ou do Mal. Na Ética, existe
o bom e o mau como uma diferença qualitativa de modos de existência. Bom é
quando o corpo compõe diretamente em relação com o nosso, e com toda ou com
uma parte de sua potência aumenta a nossa; é o que convém a nossa natureza.
Bom (livre, razoável ou forte) é também um modo de existência que tem a ver com
dinamismo, composição de potências, é o que se esforça o quanto pode para
organizar os encontros. Mau é quando o corpo decompõe a relação do nosso, é o
que não convém a nossa natureza. Mau (escravo, insensato ou fraco) é um modo de
existência que vive ao acaso dos encontros, sofrendo com as consequências e
fazendo acusações (DELEUZE, 2002)
Tomemos a prudência de não qualificar os indivíduos como bons ou maus,
fortes ou fracos, livres ou escravos, razoáveis ou insensatos. Trata-se de modos de
existência, de composições e decomposições entre determinados corpos. Não há
nada nem ninguém que seja bom ou mau em si mesmo. Uma leitura atenta da obra
de Spinoza observa que “os indivíduos não são maus nem bons por natureza, mas
são as sociedades que são mal organizadas e fracassam em produzir a paz e a
concórdia” (RAUTER, 2017, p. 49).
Ao analisarmos a totalidade das fotos que os trabalhadores apresentaram na
oficina, uma coisa nos chamou a atenção: em todas as fotos escolhidas para
expressar alegria havia pessoas, e em todas as fotos escolhidas para expressar
tristeza não havia pessoas nela. Esse fato nos fez pensar que a alegria no trabalho
do CECO se produz nos encontros entre viventes, entre con-viventes. A ausência da
figura humana nas fotos que expressavam tristeza nos fez pensar no lugar que a
dimensão material do trabalho ocupa para estes trabalhadores. A questão do espaço
físico, os aspectos concretos, palpáveis, de mobilidade, elementos que também são
necessários para as tarefas acontecerem ganharam visibilidade na expressão de
sua precariedade. Os trabalhadores agem quando os bons encontros entre
conviventes acontecem, pois a atividade é sempre “afetada ou desafetada pelo outro
ou pelo próprio sujeito” (CLOT, 2010, p. 6), e a alegria conduz à ação. As fotos foram
projetadas na parede do camarim, e o grupo foi debatendo o trabalho que faz por
meio da criação conjunta de legendas para cada uma delas.
183

RETRATOS DA TRISTEZA

Figura 1 – Falta de estrutura absurda Figura 2 – Luz no fim do túnel


184
185
186
187
188

Figura 3 – Utopia

Figura 4 – Locomoção no território


189

Na figura 1, vemos um armário enferrujado. A trabalhadora tirou essa foto


para expressar a precariedade das condições de trabalho do CECO, e o grupo
nomeou a foto como falta de estrutura absurda.

É um armário da lona, e eu acho que representa um pouco da precariedade


que a gente vive. Acho que com todo o empenho que a lona tem de
oferecer as coisas pra gente, mas assim, a gente tá aqui como projeto da
saúde, como projeto da superintendência de saúde mental. E eu acho que a
gente não ter pra começar o trabalho nem um armário realmente demonstra
assim a precariedade do serviço. (…) Uma falta de estrutura porque não
tem de fato uma verba destinada para o centro de convivência. Não só pra
esse, mas pra nenhum da cidade, né? (Gal).

Sabemos que não é privilegio dos CECOs enfrentar a situação de


precarização, uma vez que ela está presente no trabalho de todos os setores da
saúde brasileira. Segundo Morosini (2016), precariedade e precarização são termos
que incluem a desregulamentação do emprego, a intensificação e deterioração das
condições do trabalho, a extensão da jornada, a redução dos salários, a crescente
desproteção social, a difusão do sofrimento físico e/ou mental relacionados ao
trabalho e o desemprego estrutural. Contudo, o que há de específico no caso dos
CECOs cariocas é que, além de viverem toda essa situação de precariedade comum
ao SUS, ainda paira sobre a equipe a dúvida sobre a continuidade do trabalho
devido ao fato de não haver nenhuma verba destinada para o funcionamento do
CECO. Esse cenário produz insegurança e sobrecarga para os trabalhadores, mas
move a equipe a buscar outras formas de recursos para sustentar o trabalho que
realiza, o que se traduz como um conflito. Notamos que, no Ceccozo, a sensação de
ameaça da descontinuidade das ações aparece com mais intensidade do que em
relação aos outros CECOs. A criação de redes é a estratégia principal para a
sustentação do trabalho além do equipamento.

Por a gente acreditar muito no trabalho, muito na competência, na


valorização que esse trabalho traz, não só pro usuário da saúde mental,
mas pra comunidade, a gente também acaba entrando nesse conflito de a
cada ano “será se vamos continuar?” (...) Então é um trabalho de
resistência, e é um desgaste físico e emocional. Tem várias reuniões aqui
da rede. (...) Então esse deslocamento, esse desdobramento, e acaba
ficando muito, muito sobrecarregado (Caetano).

A falta de reconhecimento pelas esferas da gestão municipal também é outro


fator que produz afetos tristes nos trabalhadores. Por exemplo: em 2016, quando a
190

SMS-RJ lança a carteira de serviços64 que contém a relação de serviços prestados


na atenção primária à saúde, os CECOs não são citados como componentes da
atenção básica no eixo saúde mental. O enunciado que a equipe formula para a
marginalidade desse trabalho dos CECOs reside na desqualificação da cultura e do
lazer pela sociedade em geral e pelo pouco investimento institucional para as
políticas de saúde.

Por que a questão da cultura e do lazer ela é desqualificada? Ela é


desqualificada na nossa sociedade A gente toma como uma coisa que é
fora a parte do trabalho, do trabalho real. É como se o tempo todo a gente
tivesse brincando. A questão do lazer ela é capturada com essa forma
capitalista onde você diz que lazer no dicionário atual lazer é o tempo que
sobra quando você não tá trabalhando. Mas quando você pega lá atrás,
você vai lá estudar lá na Grécia o que significava lazer, é o cuidado de si, é
o cuidado constante com aquilo que te dá prazer. Tá ligado diretamente,
isso é uma forma de vida. E assim, isso hoje ela tá apartado. Então, o
nosso trabalho eu acho que a gente fica à margem também como centro de
convivência por isso. Porque a gente não tá como prioridade pra saúde
(Gal).

Na foto 2, legendada como luz no fim do túnel, o trabalhador escolheu uma


foto de um corredor vazio, escuro, com a claridade entrando pelo lado de fora, e
mais uma vez aparece a necessidade de que as esferas públicas institucionais
acreditem nesse trabalho.

É o que eu sinto aqui no centro de convivência. É um puta projeto, mas falta


o serviço público acreditar mais nele, acreditar que ele pode, sim. Que ele
tem uma força tão grande quanto os outros serviços (Caetano).

Novamente, no comentário da foto 4, aparece a necessidade de apoio


externo. A foto foi tirada durante um evento chamado Fazendo Arte, que foi
construído quase que totalmente com recursos dos próprios conviventes, comércio
local e parceiros do território.

Porque a gente não tem de fato, a gente só vai construir de fato a


igualdade, a liberdade e a fraternidade, de fato, quando eu falo de fato
acontecendo mesmo, quando a gente tiver o apoio que a gente precisa…
(Betania)

RETRATOS DA ALEGRIA (página seguinte)

64 <https://subpav.org/download/impressos/_SMSDCRJ_carteira_de_servicos_Vprofissionais.pdf>.
191

Figura 5
– Somos
todos um só

Figura 6 – Ocupação dos espaços públicos promovendo a inclusão


192

Figura 7 – Relações de afeto

Figura 8 –
Faço parte da sociedade
193

A figura 5 nos mostra o grupo de teatro dentro da Lona Cultural, ocupando o


palco. O professor-oficineiro e os alunos-atrizes-atores juntos, diferentes em
composição, em distintas posições, mas formando um só corpo.

Essa foto remete a um conjunto, a sociabilidade, a união que é o teatro, o


teatro que é minha área. O teatro compõe a comunidade, os alunos de
saúde mental, que a gente não consegue distinguir ali quem é quem
(Caetano).

A legenda criada para a figura 5 (“Somos todos um só”) remete à perspectiva


da multiplicidade e se baseia na ideia de que

quanto mais encontros fizermos, tanto no que diz respeito ao atributo


pensamento quanto ao atributo extensão, mais potentes seremos. Quanto
mais pudermos entrar em contato com o novo e o diferente, melhor
pensaremos e agiremos (RAUTER, 2015, p. 45).

Fazer parte de um grupo de teatro, entrando em contato com múltiplas


maneiras de existir, de organizar o próprio pensamento, de usar a linguagem, de se
movimentar pelo espaço, de olhar, de calar e falar, de se vestir, de caminhar, pode
ampliar as possibilidades de sentir e de se inventarem outras maneiras de viver, de
se relacionar consigo mesmo e com os outros. A ampliação da capacidade de afetar
e ser afetado está apresentada para todos, independentemente de se estar na
posição de professor ou de aluno, de oficineiro ou de usuário, de atriz/ator que veio
encaminhado por amigos ou por um serviço de saúde. Os dualismos parecem se
desmanchar quando pensamos em termos de multiplicidade, pois para Spinoza:

O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua
potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não
tornam sua potência de agir nem maior nem menor (EIII, postulado 1).

Compreendemos, então, que não há garantias ou predeterminação de que a


participação em um grupo de teatro amplie necessariamente essa capacidade de
afetar e ser afetado, no sentido de que a potência dos corpos seja aumentada.
Contudo, os caminhos da pesquisa nos mostram que o trabalho realizado pelos
trabalhadores dos CECOs tem produzido diferença na maneira como as relações
entre as pessoas diagnosticadas e as não diagnosticadas têm se estabelecido. Por
exemplo: temos duas situações narradas nos grupos que ilustram essa afirmativa.
Na primeira, uma trabalhadora faz um relato emocionado de uma cena que
194

presenciou em uma apresentação em uma escola que não tem relação com o
CECO. Logo em seguida, outra trabalhadora faz um relato também emocionado de
uma cena que presenciou em uma atividade promovida pelo CECO em um parque.
As duas cenas têm relação com a convivência entre crianças.

CENA 1
Teve uma apresentação numa escola que eu não vou citar o nome, e toda
vez que tem uma apresentação, eu fico do começo até o final, que eu quero
que fique impecável. Então assim, tem vezes que alguma música que tá
ruim, como eu vibro muito eu fico perturbando, “ô, aumenta!” ou “diminui!”,
faz isso ou... Aí entrou um grupo de crianças pra dançar, e eu percebi que
na hora que começou, todas as crianças aqui, e a outra ficou sozinha aqui.
No palco, nesse canto aqui... (faz sinal com a mão para o lado oposto)
Dançando da forma dele, e ali que as crianças não perceberam ele.
Naquele momento foi me dando uma agonia. Porque assim, eu não podia
desrespeitar a escola, mas poxa vida, por que uma professora não
entrou ali, né? A gente tem que tá preparada pra isso. Ir lá dançando,
pegar, puxar ele e voltar com ele. Então ele ficou do começo até o final do
evento parado aqui (faz sinal com a mão para o lado oposto) com todas as
outras crianças aqui (faz sinal com a mão para o lado oposto). Tipo, lá no
cantinho, do cantinho do palco, fazendo as coisinhas dele lá e tal. E
aquilo ali eu falei: “Poxa vida!” Nesse momento é que você começa...
Porque uma criança ela tem que perceber o outro na hora em que tu tá
fazendo uma roda, você tem que perceber que aquele tá fora da roda. Na
hora em que tá fazendo, tá sentado... Você tem que perceber que aquele
levantou e foi embora. Então as crianças desde pequenininhos elas têm
que perceber o outro. E ninguém fez nada, e aquilo me deixou numa
AGONIA que vocês não têm noção de como eu fiquei. Aí eu cheguei pro
técnico de som da escola, e falei: “Só não consegui entender por que com
tantas professoras aqui, coordenadoras, ninguém resolveu uma situação
como essa. De ter auxiliado isso.” Aí ele falou: “Ele é autista”, aí eu percebi,
“agora eu entendi”. Porque tipo (faz o gesto de dar de ombros) “deixa ele,
deixa ele lá, qual é o problema?” (faz gesto de empurrar/separar com as
mãos) Entende? (silêncio emocionado) Aquilo ali dói, dói na alma, sabe?
Dói na alma... (Betania) [grifos da autora].

CENA 2
Olha, certa vez a gente participou de um passeio. A cena que mais me
marcou durante o passeio foi apesar da gente ter ido pra vários lugares ali...
A gente foi pro zoológico, a gente foi pro museu, a gente foi pro circo, a
gente almoçou junto, né? Teve momento da gente sentar no chão e fazer
um piquenique à tarde pra lanchar, e a galera de circo fazer uma oficina
com perna de pau... O que mais me marcou até hoje foi o parque. Que
assim, a galera fica muito solta. A gente não tá ali de babá de ninguém, a
gente oferece o passeio pra galera curtir. Então a Betania falou assim:
“Gente, olha só, entramos no zoológico, meio-dia o ponto de encontro é
aqui. Cada um vai passear, passear. Curtir a tarde. A manhã, no caso. E aí
a gente se encontra aqui meio-dia pra almoçar.” Aí eu fui olhando, eu vou
registrando de minhas várias formas, ou num celular, ou vou tirando fotos
com os meus olhares mesmo. Aí sentados, tava eu e Gilberto e eu falei:
“Que cena linda!” as crianças brincando no parque. Crianças. Eram
crianças, não interessa se era autista, se não era. Se era pobre, se era
rica, se era média... Não interessa! Eram crianças, com pé no chão,
correndo, brincando. Os pais olhando em volta rodando naquele negócio
de girar, as filhas do professor junto com as crianças do CAPSi, cena linda,
195

linda. Emocionante, ver todo mundo brincando, rindo, se divertindo. Aí eu


falei assim: “Gente, É ISSO que é centro de convivência" (risos) (Gal)
[grifos da autora].

Na primeira cena, a trabalhadora fala da agonia, da dor, e a vemos em


situação de pleno conflito: sem poder trair o gênero da atividade, a dimensão
coletiva das regras do ofício de educadora, ela aponta que “não podia desrespeitar a
escola”. Observando seu diálogo interior “por que uma professora não entrou ali?”,
ela amplia o sentido do trabalho das professoras, propõe uma renormatização do
que é prescrito ao trabalho docente, afirmando que as educadoras devem estar
preparadas para despertar nas crianças o olhar para a alteridade, constituir uma
certa sensibilidade, que promova o gesto da convivência, um agir que deseja estar
em relação com aquele outro que se desvia: “tem que perceber quem está fora da
roda”.
A cena 1 emociona pela tristeza porque exclui a diferença. No relato, nos
sentimos emudecidos pela dor da segregação da criança que fica no cantinho do
cantinho do cantinho... Estar no cantinho é a experiência da dissimulação da
inclusão, é quando a diferença está em cena, sem estar no coração. Eliane Brum
aponta isso em um texto que distingue o que é tolerância e o que é abertura à
experiência de estar com o outro:

A pessoa que se arrisca à experiência não é aquela que “tolera” o outro, que
tem uma deficiência, como se fosse magnânima porque tolera, como se
fosse uma enorme concessão que se expressa pela condescendência.
Como acontece com tantos ao considerar que já é uma grande coisa
cumprimentar com um sorriso a pessoa com deficiência que trabalha na
mesma sala por determinação legal. Ou quando reclamam que o “deficiente”
não é simpático, já que deveria estar eternamente agradecido e
subserviente porque lhe concederam um lugar, ainda que num canto
(BRUM, 2016).

Para uma criança diagnosticada com autismo chegar a estar no palco junto
com outras crianças não diagnosticadas em uma apresentação escolar, já houve um
caminho percorrido ao longo da história, pois uns trinta anos atrás, antes da era da
educação inclusiva, isso não seria factível. Contudo, destacar o caráter histórico não
deve servir para promover a benevolência. Ainda que ele esteja no mesmo palco, o
isolamento persiste. Como esse menino está ali? O que é que dói na alma da
Betania e que faz ecoar dor na alma de quem escuta seu relato? Talvez seja a
196

incapacidade de afetação, ou insensibilidade ao isolamento do outro. Ao enunciar o


diagnóstico de autismo, o técnico de som enuncia também uma explicação para o
comportamento desviante.
O diagnóstico dessensibiliza a experiência, racionaliza o sentir. O diagnóstico
é um pacote que, além do rótulo que estampa, explica e define o que a criança é,
traz junto os sintomas, os sinais, as atipias. Tudo que a criança faz, sua maneira de
viver e se expressar, passa a ser traduzido por uma categoria médica que a
distingue da normalidade. E as outras crianças incorporam esse discurso médico
também. Às vezes essa incorporação se dá em palavras, às vezes se dá em gestos,
em atitudes ou em não atitudes. Como afirma Clot (2006a), nos manifestamos
naquilo fazemos, mas também naquilo que deixamos de fazer. Como é que as
outras crianças vão perceber o outro? Como vão ser afetadas pelo fato de ter outra
criança fora da roda e pegá-la pela mão chamando para a atividade conjunta? Como
produzir essa sensibilidade? Quanto mais somos capazes do múltiplo simultâneo,
mais somos potentes. Ser capaz de se deixar afetar pelo outro amplia a potência de
todos. A relação com a alteridade é necessária à vida. Como podemos favorecer a
convivência? Há um trabalho a ser feito. Um trabalho afetivo, um trabalho de
convivência.
Na cena 2, somos emocionados pela alegria. Podemos dizer que o fato de
uma cena ter sido enunciada logo após a outra, e de alguma forma criando uma
relação de contraste entre elas, em que em uma não há o trabalho do CECO e que
na outra há o trabalho do CECO, faz com que a cena 2 seja uma réplica da cena 1.
A réplica, de acordo com Bakhtin (2003), é um enunciado que contém uma atividade
nela. A atividade que está embutida na cena 2, em resposta à cena 1, é que o
trabalho da convivência é esse de se tornar sensível e provocar a sensibilidade do
outro, possibilitando conexões até então não formadas. No enunciado da
trabalhadora, as crianças brincam juntas, estão em relação umas com as outras,
compartilhando uma mesma experiência em que há um vínculo, que não é apenas a
experiência de dividir um mesmo espaço físico com as diferenças com que cada
uma se constitui. Vemos que, no final do enunciado da cena 2, a trabalhadora indica
que encontrou o critério de trabalho bem-feito: “Aí eu falei assim: gente, É ISSO que
é centro de convivência”.
197

A cena das crianças que brincam juntas ao ar livre em um parque, de pé no


chão, correndo, que pode parecer tão trivial, tem se tornado cada vez mais rara nas
metrópoles. Essa raridade expressa matizes da infância nas cidades grandes, nas
cidades das grades. Grades de proteção, grades de horários, que para proteger e
formar para o capital controlam o tempo e a circulação pelo espaço. As grades
serializam os modos de subjetivar ao longo das gerações, as grades são a
materialização de uma das barreiras da convivência.

A metrópole, com suas margens e realidades virtuais, anula os espaços


físicos de que necessitam especialmente as crianças em seu processo de
crescimento. As gerações passadas tinham espaços de socialização: as
ruas, os pátios das vilas, o campo da periferia ou da aldeia, o recreio
paroquial. Hoje faltam lugares de socialização e de encontro. Sucede que as
crianças somem das cidades existentes, de um universo de relações
possíveis.(...) O filho excluído – e não importa se metido em uma
Disneylândia ou em algum Bronx – reaparece posteriormente sob a rubrica
de problema social: da inadaptação genérica até as formas mais complexas
de sofrimento psíquico (VENTURINI, 2016, p. 133).

Para compor a cartografia, trazemos uma memória da infância, na década de


90, em uma cidade pequena do dia de São Cosme e São Damião, 27 de setembro.
Éramos um grupo composto de muitos, corríamos pelas ruas de terra em bando. Já
sabíamos quais eram as casas que davam doces. A informação sobre quem ia dar
doce, se era de manhã ou de tarde, se o saco era caprichado ou não, ia percorrendo
boca a boca. Tinha aquela casa nova que ao escutar a balbúrdia de crianças e
jovens, vinda da rua, abria o portão e começava a distribuição de doces,
aumentando a arrecadação. Outras naquele ano não iam dar. Saíamos cedo com
bolsa, mochila, sacola vazia, faltávamos a escola naquele dia, afinal, aquele dia era
dia de correr atrás de doce. No final da tarde, quando o sol ia embora e as estrelas
despontavam no céu, estávamos fartos, sujos, cansados da correria na rua e felizes
com as mochilas e bolsas cheias de saquinhos. Trinta anos depois, na cidade
grande, a nossa experiência como mãe mostra que hoje não são as crianças que
correm atrás dos doces, mas são os doces que correm atrás das crianças. Os doces
não são distribuídos por moradores, são distribuídos por motoristas em carros, em
trânsito, que, em sua maioria, param ao lado da mãe e da criança, afinal, a criança
não anda mais em bando solta pela cidade, e perguntam primeiro para a mãe se a
criança pode comer aquele doce. Essa breve memória ativada pela experiência do
presente corrobora o que aponta Venturini (2016), que as crianças sumiram das
198

cidades existentes de um universo de relações possíveis. É desse tipo de


sociabilidade de livre circular na cidade de que muitas crianças estão privadas,
independentemente de terem sido carimbadas ou não com um diagnóstico.
Portanto, a imagem que vemos na figura 6 da oficina de fotos, legendada de
“ocupação dos espaços públicos promovendo a inclusão”, escolhida para expressar
fonte de alegria no trabalho, expressa não só o trabalho de um CECO, mas a
realização de uma necessidade das metrópoles contemporâneas: a convivência. A
alegria no trabalho é produzida quando é possível o trabalhador experimentar a
sensação de que o trabalho foi bem feito, quando ele se reconhece no que fez,
quando sente que ele foi capaz de transformar o mundo por meio de sua ação. Em
nossa visão, o que se produz com o trabalho da convivência é algo que se distingue
de inclusão social (palavra usada pelos trabalhadores). A convivência, ao mesmo
tempo processo e produto, produz e é produzida no encontro entre zonas de
comunidade e zonas de singularidade.

A “zona de comunidade”, isto é, a descoberta daquilo que nos outros corpos


convém ao nosso, é apenas o primeiro patamar de uma relação consistente.
Naturalmente, por mais raro que tenha se tornado, este ainda é o patamar
mais fácil de alcançarmos e aquele que, talvez, nos dará a força necessária
para conhecer o que é mais difícil: aquilo que nos outros é diferente e
corresponde a sua “zona de singularidade”. Porque é preciso uma potência
ainda maior para se conhecer, nos outros corpos, aquilo que não nos
convém (TEIXEIRA, 2004, p. 5).

O termo inclusão social se firmou no Brasil principalmente a partir da lei


brasileira de inclusão (lei 13.146/ 2015), em que o conceito de deficiência sofre uma
mudança, que desloca a limitação antes centrada na pessoa e a transfere para o
ambiente. O entendimento é de que a deficiência passa a ser externa à pessoa, por
ser resultante da inacessibilidade encontrada no meio, que precisa diminuir suas
barreiras para o pleno exercício da cidadania. Inclusão social passa a se definir
como um conjunto de ações que garantiria a participação igualitária de todos na
sociedade. Mais do que mera substituição de palavras, buscamos colocar em xeque
os modos como a vida tem se constituído a partir desses lugares. Por exemplo, no
cotidiano escolar se usa muito o termo aluno de inclusão, que é problematizado
quando se usa o termo aluno em situação de inclusão (FRELLER, 2010) para
sinalizar o movimento de uma condição que hoje pode ser de inclusão e amanhã
pode não ser mais. A reflexão sobre as muitas formas de lidar com as diferenças
199

está tão difundida que vemos nas redes sociais imagens que buscam traduzir a
distinção entre os vários conceitos usados na dia a dia: exclusão, segregação,
integração e inclusão.
Em termos de políticas relacionais, qual seria a diferença entre inclusão e
convivência? Usaremos o artifício da comparação para explicar e desenvolver tais
noções, tomando o grande círculo como um campo de forças, que pode ser
entendido como um grupo, coletivo ou instituição (escola, família, festa, oficina, sala
de aula, praça, plateia, palco etc.). Na situação de exclusão, as minorias (cadeirante,
idoso, mulher, louco) estão fora do grande círculo, não fazem parte; a elas coube o
extermínio, perseguição, punição. Na situação de segregação, é criado um novo e
pequeno círculo exclusivo para as minorias em que elas se relacionam apenas entre
si sem fazer parte do grande círculo; temos uma lógica de isolamento, caridade e
assistencialismo. Na situação de integração, as minorias fazem parte do grande
círculo, mas continuam isoladas por um pequeno círculo que as separa dos demais
componentes; há um esforço de aproximação, mas se mantém a separação. Na
situação de inclusão, todos estão juntos e misturados, mas o que desejamos
destacar é que não necessariamente por estarem partilhando de um mesmo espaço
há conexão, há relação, há uma comunicação entre as zonas de singularidade e as
zonas de comunidade. A concepção de convivência que aqui propomos ultrapassa a
ideia de inclusão, pois para a atividade da convivência se estabelecer é
imprescindível a ligação afetiva com o outro, não basta estar ao lado, precisa
acontecer a afetação mútua. Em uma tentativa de ilustrar a ideia, poderíamos propor
um novo diagrama, em que no paradigma da convivência não é possível dispensar
as linhas de mão dupla que criam as múltiplas conexões. Todos temos os arcos e as
flechas do Cupido para lançarmos e para também sermos atingidos. Conviver é ser
ao mesmo tempo alvo e arqueiro no mundo de Eros, é deixar viver a força
propulsora da união, da atração entre os seres.
Retomando as duas cenas enunciadas, é possível afirmar que na cena 1
temos uma situação de inclusão, mas não de convivência. Segundo o relato da
trabalhadora, apesar de o menino compor um mesmo grupo com as demais crianças
no palco da apresentação escolar, ele não está em relação, ele fica no canto, a
conexão afetiva não foi estabelecida entre elas. Já na cena 2, em que as crianças
brincam no parque, temos uma situação de convivência, pois – assim como na figura
200

5, legendada como “somos todos um só” – elas estão em conexão umas com as
outras. Sobre a figura 5, o trabalhador diz que “não é possível distinguir quem é
quem”. Quando os rótulos se desmancham, a lógica manicomial que segrega a
loucura se desfaz.
Esse seria um trabalho afetivo a ser feito – o trabalho afetivo é uma das
variações do que tem sido chamado de trabalho imaterial. O trabalho imaterial é o
trabalho que “cria produtos imateriais, como informação, conhecimento, ideias,
imagens, relacionamentos e afetos” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 100).
O trabalho imaterial se expressa em duas formas fundamentais: a primeira
se refere ao trabalho primordialmente intelectual ou linguístico, centrado nas tarefas
simbólicas, analíticas, de resolução de problemas, que produz códigos, textos,
imagens, ideias. A segunda forma se refere ao trabalho afetivo, que é o que produz
ou manipula afetos. Em maior ou menor grau, o trabalho afetivo é um componente
fundamental no setor de serviços. Podemos vê-lo, por exemplo, no trabalho de
assessores jurídicos, de comissários de bordo, de atendentes, no setor de
entretenimento ou até mesmo em instituições financeiras. Mesmo muitas vezes
sendo corporal, seus produtos são intangíveis, como, por exemplo, sentimento de
tranquilidade, de bem-estar, de satisfação, de entusiasmo. O trabalho de toda
produção traz consigo materialidade – o que os autores afirmam ser imaterial, nesse
caso, é o produto. Para Hardt (2003), o trabalho afetivo representa, em si e
diretamente, a constituição de comunidades e subjetividades coletivas, uma vez que
requer o contato e a proximidade humana.
Propomos que a busca de recursos para ativar a convivência é um trabalho
de desfazer os manicômios nas relações. Isso nos leva a afirmar a atividade da
convivência como um trabalho afetivo antimanicomial. É Lancetti (2008) quem nos
provoca a pensar o trabalho afetivo no campo da saúde mental. O autor nos oferece
algumas indicações sobre o que seria esse trabalho afetivo – e questionamos,
adicionando aqui, como seria, então, esse trabalho afetivo antimanicomial (ou pós-
manicomial, como ele diz):

O trabalho afetivo produz subjetividade, sociedade (redes sociais) e vida.


Esses três conceitos: trabalho afetivo (Hardt), trabalho imaterial (Hardt e
Negri) e biopoder (Foucault) são pistas para o entendimento de uma clínica
pós-manicomial. Isto é, de produção de saúde e de saúde mental de nosso
tempo. As relações corpo a corpo, as relações de afeto, são anteriores às
relações de troca. No arcabouço conceitual dos operadores da reforma
psiquiátrica pode-se encontrar uma reiteração do conceito de troca. Se o
201

hospício é o local de troca zero, a reabilitação psicossocial consiste na


possibilidade de o cidadão trocar e aumentar sua capacidade de troca, à
medida que vai construindo sua cidadania. A capacidade de aumentar as
trocas é fundamental para o processo de produção de subjetividade cidadã,
mas elas são secundárias a respeito das relações pré-significantes ou de
afeto. As experiências revolucionárias mostram isso. Introduzir o conceito de
trabalho afetivo na clínica é diferente de ampliar a clínica. Não se trata de
levar o modelo do consultório para ser multiplicado em territórios populares,
mas de construir conceitos e inventar práticas que operem em pleno campo
produtivo de sociabilidade e de vida (LANCETTI, 2008, p. 123).

Optamos por usar o termo antimanicomial e não pós-manicomial porque


compreendemos que, embora muitos leitos psiquiátricos tenham sido extintos no
Brasil, muitos manicômios tenham sido desativados – o que certamente é uma
vitória a ser (co)memorada –, os manicômios ainda insistem em existir nas relações.
Portanto, não podemos transmitir a ideia de que o problema dos manicômios é um
problema superado porque ele não é.

A ideia de uma sociedade sem manicômios mereceria enfim ser


problematizada desde a base. Não para que seus termos sejam recusados,
mas ao contrário, a fim de que eles sejam radicalizados, isto é, para que ao
mesmo tempo se entendam os seus limites e se estenda o seu alcance. O
que só é possível, como tentarei mostrar a seguir, se evitarmos que a ideia
de uma sociedade sem manicômios se esgote em sua evidência primeira. É
preciso que esse chamamento de apenas três palavrinhas – SOCIEDADE
SEM MANICÔMIO – recupere a força de uma questão candente (PELBART,
1993, p. 103).

Ampliamos então o sentido da palavra manicômio, que deixa de coincidir


apenas com o hospital psiquiátrico e passa a compreender toda forma de opressão
à diferença e assujeitamento do outro. Para Basaglia (2005), o manicômio não se
restringe ao seu local físico, mas ele se faz nas relações. A vontade de racionalizar e
não estar aberto ao que é radicalmente estranho às formas de conhecimento
dominantes tem relação com a edificação dos manicômios. Sem eximir os técnicos
do funcionamento de reprodução do manicômio, fica a questão: qual seria então a
função dos trabalhadores?

Nós, técnicos, somos incumbidos de usar nosso saber e o poder implícito ao


nosso papel como instrumentos de domínio. Em vez disto, devemos, cada
um em seu próprio setor, usar esse poder para explicitar os processos
através dos quais se exercita esse domínio, a fim de que a classe que é
objeto de opressão, em todos os níveis, se apodere desse conhecimento,
torne-o seu e recuse seu mecanismo (BASAGLIA, 2005, p. 236).
202

Compreendemos que o trabalho afetivo antimanicomial é um trabalho que


acontece nas relações. Relações pré-significantes, relações corpo a corpo, relações
de afeto anteriores às relações de troca. É também nas relações que se constroem
ou se destroem os manicômios. No trabalho afetivo antimanicomial a matéria-prima
é o afeto, é pela via do afeto que se instauram ou se desmancham os manicômios
visíveis e invisíveis, os que têm muros e os que estão a céu aberto.
Na figura 7, legendada como “relações de afeto”, a trabalhadora tece o
seguinte comentário a respeito da foto:

Ela saiu, a mãe saiu com o menor e eu fiquei. Nisso que eu fiquei, ela
sentou do meu lado e ela pousou a mão assim, em cima da minha mão, e
ficou. Eu tava com a mão na mesa e ela pousou, quando ela pousou aí eu
segurei. Eu achei tão lindo (riso emocionado). Segurando a mão como
quem diz assim: “Estamos juntos. Vamos lá.” Aí eu tirei uma foto, não
aguentei (Gal).

Portanto, o trabalho afetivo antimanicomial requer o abandono da


neutralidade, requer se deixar afetar. Esse trabalho produz saúde para os
trabalhadores quando eles reconhecem que conseguiram transformar a relação
entre os conviventes. O trabalho é considerado bem-feito quando os conviventes
ampliam suas experiências, deixando de ver a si mesmos apenas como portadores
de um diagnóstico psiquiátrico, e ainda ampliando os modos como se apresentam,
provocando com outros novos diálogos.
Isso acontece quando eles passam a se enxergarem e a serem vistos
ocupando outros lugares, como o de artistas. Vemos isso, por exemplo, no
enunciado no debate da figura 8, legendada como “Faço parte da sociedade”, em
que a trabalhadora aponta que, além do elo afetivo, a questão da valorização da
autoestima do convivente e do reconhecimento da arte como uma profissão é
compreendida como um critério para o trabalho bem-feito pela equipe do CECO:

Uma das importâncias fundamentais, além do elo afetivo que se cria, é essa
autoestima. Essa autoestima que é avassaladora para eles, e é
avassaladora pra gente que consegue perceber isso. Então, assim, essa
foto eu fiquei muito na dúvida porque é tanto aspecto positivo que eu fiquei
sem saber o que fazer. Aí eu vi uma foto do J. com um sorriso lindo que ele
tem. Eu falei: “Gente, o que eu faço?” Só que eu acho que o M. ele
representa melhor, porque de fato ele vê isso como uma profissão. Se ele
vai trabalhar com isso pra ganhar dinheiro, isso é o que menos importa. O
importante é ele se sentir pertencente à profissão de artista. Eu acho que
isso é o grande diferencial. E ele se sente mesmo (Betania) [grifos da
autora].
203

Consideramos que há uma assimetria constitutiva desse encontro entre


convivente-trabalhador e convivente-usuário, pois uma das partes está em busca de
uma satisfação de necessidades, enquanto a outra é presumida deter os meios de
satisfazer a ela. Supomos que há o estabelecimento de uma zona de comunidade
que se dará em torno desse reconhecimento recíproco: o que um precisa e o que o
outro tem a oferecer. Reconhecemos que há êxito no encontro, em seus resultados
afetivos, quando os corpos em presença experimentarem afetos aumentativos de
alegria e potência (TEIXEIRA, 2005). Spinoza corrobora essa ideia de que é pela via
da alegria, pela via da imaginação de nossa própria potência, que somos capazes
de ampliar nosso poder de agir no mundo. “Quando a mente considera a si própria e
sua potência de agir, ela se alegra, alegrando-se tanto mais quanto mais
distintamente imagina a si própria e a sua potência de agir” (EIII, P53).

6.4.3 Grupo 3 Desenlace – A orquídea que floresce

No terceiro grupo, levamos as fotos escolhidas reveladas coladas em cartões


coloridos e as legendas impressas. Fixamos os cartões na parede e sorteamos as
oito legendas para que os trabalhadores colassem nas fotos correspondentes.
Houve um intervalo de cerca de seis meses entre o grupo 2 (oficina de fotos) e o
grupo 3 (desenlace), o que provocou como efeito um esquecimento de qual legenda
pertencia a que foto. Então um trabalhador foi auxiliando ao outro a identificar a
legenda de cada foto.
Além das fotos e legendas, levamos quinze trechos das transcrições dos
grupos anteriores sem a identificação de quem falou. Eles foram sorteando, lendo,
tentando associar o enunciado ao autor, se confrontando com suas próprias falas e
tecendo novos enunciados sobre o que disseram. Foi interessante que em alguns
casos já não se sabia mais quem tinha dito o quê; era uma fala da equipe que
poderia ter sido dita por qualquer um. Esse aspecto dá relevo ao que é genérico, à
dimensão plural e coletiva do trabalho. Em outros casos, era fácil saber quem era o
falante em questão, apontando para o que se refere aos processos de estilização na
linguagem – aquilo evidencia um dado modo de dizer de determinado trabalhador.
A maioria dos trechos selecionados eram comentários sobre as fotos que
sinalizavam os aspectos positivos, alegres, que produzem saúde, ampliando a
204

normatividade, que aumentam a potência de agir no trabalho, e os aspectos


negativos, que reduzem a saúde, restringem a normatividade, diminuem a potência
de agir no trabalho. Entretanto, em alguns casos essas diferenças não ficavam tão
nítidas, e novos olhares sobre uma mesma imagem, novos enunciados sobre uma
mesma legenda, foram surgindo.
Isso ocorreu no caso da foto da figura 3, legendada como “utopia”, em que há
uma hesitação, um caráter dúbio. No dia da oficina de fotos (grupo 2), a trabalhadora
que escolheu essa foto como produtora de afetos tristes afirmou que para os
princípios escritos na foto (liberdade, igualdade e fraternidade) acontecerem, isso
dependia de um apoio externo que eles não tinham. Já no grupo 3, outra
trabalhadora apontou que esses princípios, coisas que parecem positivas,
dependem de que a equipe faça o trabalho para que aconteçam. Vemos um
reposicionamento da equipe diante do próprio trabalho, antes condicionando o
exercício desses princípios a agentes externos e depois condicionando-o ao trabalho
que eles mesmos fazem. A equipe deixou de colocar fora de si a responsabilidade e
passou a perceber que o trabalho que faz já colabora para uma sociedade mais
igualitária, libertária e fraterna.

Apesar de serem igualdade, liberdade, fraternidade coisas que parecem


positivas, né, ela disse que ela ainda acha que isso ainda é uma utopia. Se
a gente de fato não fizer o trabalho, essas coisas de fato não acontecem
né?! (Gal).

A própria leitura em voz alta para o grupo de um trecho transcrito (ler a escrita
de uma fala com interjeições, pausas, risos) por si só já provocou um estranhamento
nos trabalhadores. Mesmo quando coincidia de o trabalhador sortear um trecho em
que ele próprio havia sido o autor, vimos operar uma mudança comparando com o
dia da oficina. Depois dos debates das transcrições, lemos a carta a seguir, escrita
pelas pesquisadoras para essa equipe.

Rio, 04 de junho de 2019.


CARTA PARA EQUIPE Ceccozo

Como se produz um Centro de Convivência? Como os trabalhadores têm suas subjetividades


produzidas por ele? Se a pergunta da pesquisa no início, em 2016, era: como nasce um Centro de
Convivência? Hoje em 2019 é: como se SUStenta um Centro de Convivência? Como a atividade de
205

trabalho pode produzir saúde?


Considerando que o trabalho do CECO diz respeito à delicada arte de produzir encontros, e seguindo a
pista do afeto, fornecida por esta equipe, montamos essa devolutiva com muito afeto e desejosas de que
seja um potente encontro.
Tudo começou também numa devolução do estudo-piloto realizado no Ceco Trilhos do Engenho. Ali a
coordenadora deste CECO esboçou o desejo de que uma pesquisa fosse também realizada no Ceccozo.
Para dar conta de pesquisar com os 3 CECOs era necessário um tempo maior, um mergulho mais
profundo, a pesquisa pedia um novo curso, um curso de doutorado, e antes mesmo da aprovação viemos
visitar esse espaço que já era conhecido somente por conversas. Primeiras impressões: o portão verde da
entrada com uma bilheteria, os cartazes das atividades culturais, a lona listrada, a arena, o chegar pela
calçada da rua, a estação de trem próxima, já nos sinalizavam a facilidade de acesso a este Centro de
Convivência e o quanto ele exala Cultura para todos.
Para ilustrar essa relação Lona-Ceccozo veio a metáfora da orquídea hospedeira, a mais bela das plantas
epífitas, que são as que vivem sobre outras plantas, sem retirar nutrientes delas, mas apenas se apoiando
nelas (se retirassem nutrientes delas, não seriam epífitas, mas parasitas). O epifitismo é algo comum nas
florestas tropicais, onde a competição por luz e espaço não permite que plantas herbáceas prosperem
sobre o solo. Necessitam de grande quantidade de umidade e de luz. As epífitas são tipos de vegetais que
não enraízam no solo, fixando-se em outras árvores ou objetos elevados.
A metáfora da orquídea diz respeito a um novo modo de ser fazer centro de convivência, um modo que
expressa que é preciso mais do que interagir com o território, ele lá e eu cá. Mas é preciso entrar, ocupar,
se misturar com ele, fazer parte dele. Um novo modo que faz a hora, não espera acontecer. Um modo que
se arrisca a instituir outras formas de trabalhar, modos mais autônomos e confiantes. Se defendemos a
autonomia dos usuários, é necessário a coragem de exercê-la enquanto trabalhadores. Trabalhadores que
dividem (ou multiplicam?) sua carga horária no SUS; se desdobram em variados projetos artísticos ao
mesmo tempo; se abrem para conhecer e receber novos parceiros e vestem uma camisa que antes era
deles, e que depois passa a ser nossa; assinam o ponto fora.
Porque o ponto fica fora da curva quando nos posicionamos diferentemente da média ou da norma já
instituída. E é com os pontos fora da curva que os CECOs se constroem, não para colocá-los dentro da
curva, da média, da norma, mas para viver junto e com intensidade coletiva toda a vida, a arte, o lazer, a
cultura, o trabalho que há para serem vividos fora da curva.
E esse trabalho aqui começa bem cedo, muitas vezes nos primeiros anos da vida. Nas oficinas de grafite,
de teatro, nos passeios, experimentamos o quanto é forte a presença das crianças no Ceccozo. Crianças
que aprendem arte juntas, passeiam juntas, convivem em suas diferenças, independente de por qual via
cada uma chegou até aqui. Apesar dos obstáculos, que não são poucos, no Ceccozo a equipe exerce com
potência as cinco forças que temos mapeado na pesquisa com os CECOs cariocas: coletivo; território; arte,
cultura e lazer; trabalho, cooperação e ecosol; e viver junto a diferença. Saibam que sim, vocês estão
plantando com este trabalho sementes de uma sociedade melhor, mas percebam a linda orquídea que já
cresceu, graças ao cuidado de vocês.
206

A leitura da carta produziu sorrisos, lágrimas e silêncio. A equipe pede para


postar na página do Ceccozo. Não havia muito tempo para conversar sobre a carta,
pois já estava na hora da assembleia. A coordenadora diz que marcou o horário logo
após ao do encontro da pesquisa para que eu pudesse participar da assembleia,
que começou logo em seguida, com ampla participação da comunidade. A
coordenadora do CECO leva a metáfora da orquídea que acabávamos de enunciar
poucos minutos antes para a assembleia com os frequentadores. A Lona corria o
risco de suspender suas atividades e fechar as portas, devido à Prefeitura não ter
renovado o contrato e acumular uma dívida de cerca de R$ 100 mil, após sete
meses sem receber. São problemas de várias ordens: mais de 120 furos
remendados na Lona que é o teto do espaço, redução da equipe, necessidade de
isolamento acústico etc.
Durante a assembleia o diretor do espaço recebe uma ligação da Prefeitura,
que faz o público respirar mais aliviado, ainda que não muito confiante em que todos
os problemas estruturais que a Lona enfrenta serão sanados. Coletivamente, a
assembleia delibera a elaboração de um abaixo-assinado virtual e um real,
elaboração de vídeos nas redes sociais em apoio à Lona, pacto de que todos ligarão
para a ouvidoria pedindo para reformar a lona colocando termotelha e marcar um dia
para dar um grande abraço na Lona.
No dia seguinte, nós é que fomos surpreendidos ao recebermos uma
mensagem da equipe do Ceccozo que nos restitui sobre o encontro de desenlace:

Primeiramente agradecer pelo trabalho acadêmico com os Centros de Convivência e Cultura. Gostaria de
ressaltar profunda admiração em fazer parte de um projeto que, além de proporcionar Cultura, tem um
trabalho de consciência com a cidadania, onde existe troca efetiva, construção e reconhecimento de ser
cidadão. O Centro de Convivência e Cultura em parceria com a Lona Elza Osborne tem a preocupação de
fazer nossa clientela, sejam alunos, pais, comunidade do entorno, a perceber a importância de todos
sermos protagonistas da nossa vida, com erros, acertos, sentimentos de alegrias, às vezes de tristeza, mas
acima de tudo pessoas humanas, que têm um olhar mais apurado para com o outro. Esse trabalho não é
engessado, ele vem sendo construído através desse elo afetivo, além das vivências individuais e coletivas
que vêm sendo trocadas no decorrer dos projetos que desenvolvemos no coletivo. Eu percebi, na
prática, que alguns usuários da saúde mental tiveram um reconhecimento de identidade no momento que o
mesmo se sentiu agregador na vida do outro, momento único ao perceber e ouvir de um aluno/usuário da
saúde que “Eu sou um Artista, eu arrasei”, essa frase deu sentido para minha vida, força para seguir em
frente, sabendo que apesar das dificuldades o trabalho está sendo construído de uma forma humana,
207

criando uma autonomia, elevando o sentido de “Eu” posso, “EU” faço, “Eu” compartilho com o outro. O Ato
de doar-se significa ajudar o próximo, fazê-lo feliz de alguma forma, por mais simples que seja a sua ação.
“… O Centro de Convivência e Cultura em parceria com a Lona vem proporcionar essa troca, fazendo elos,
dando e fazendo sentido através da arte, cultura, amor, empatia para com o outro e para com a gente.”

6.5 Desfechos que abrem novos caminhos: o trabalho afetivo antimanicomial

Foi no encontro entre os conceitos cotidianos, ou seja, os conceitos de que os


trabalhadores lançaram mão para agir e os conceitos científicos, isto é, os conceitos
que como pesquisadoras acionamos para compor a tese, que novos conhecimentos
emergiram. Há um movimento incessante entre esses diferentes conceitos, pois eles

devem “germinar para baixo por intermédio dos conceitos cotidianos”


elaborados pelos trabalhadores, exercício de grande exigência para eles,
pois há parcela da experiência que lhes escapa. É necessário também que
os conceitos espontâneos “germinem para cima por intermédio dos
conceitos científicos” a fim de que novos conhecimentos emanem desse
processo (VIGOTSKI apud CLOT, 2010, p. 86) [grifos da autora].

Sem estabelecer hierarquias entre os lugares (cima, baixo, dentro, fora, lado),
afirmamos que o conceito de trabalho afetivo antimanicomial foi forjado em meio à
experimentação cartográfica. Não concordamos que é para cima ou para baixo que
se germina, mas admitimos que há aí, sim, uma germinação, no sentido de que as
ideias que os trabalhadores do Ceccozo trouxeram nos grupos se infiltraram no solo
da pesquisa, como por exemplo:

Que a gente precisa acabar com os manicômios dentro da gente (...) porque
a gente reproduz o manicômio em qualquer espaço, se a gente não tomar
cuidado... (...) (Gal) a gente tem que avançar e dizer mesmo que a gente
tem que destruir esse lugar do manicômio, né? Não é negócio de reformar
nada, não tem que reformar nada, tem que destruir essa porcaria logo!( Gil).

Ao mesmo tempo, alguns acontecimentos no percurso foram apontando para


uma ascensão dos conceitos científicos apropriados pelos trabalhadores para outras
esferas. Essa é a mútua interferência, ou coemergência entre sujeito-objeto,
pesquisador-pesquisado. Por exemplo: uma das trabalhadoras que foi eleita como
delegada para 16ª Conferência Nacional de Saúde em Brasília escreve uma moção
que obtém um percentual de 91,3% de aprovação ao ser votada. Ela precisou
conseguir quatrocentas assinaturas em dois dias e meio para isso. No texto da
208

moção, vemos que ela lança mão dos conceitos de intersetorialidade e promoção da
saúde que foram debatidos ao longo da pesquisa. A seguir, o texto da moção:

Os delegados do Estado do Rio de Janeiro vêm pedir apoio à criação de lei interministerial que defina os
parâmetros de funcionamento dos CECOS em âmbito nacional de forma Intersetorial, garantindo ao
usuário do SUS em sofrimento psíquico a circulação na cidade, a convivência social, com qualidade,
equidade e igualdade como prevê a lei 8.080/88 do SUS. Os centros de convivência fazem parte da RAPS
de 2011 e são dispositivos de vital importância para a promoção da saúde não somente dos usuários em
sofrimento psíquico mas também para as diversas comunidades que utilizam esses serviços, sempre
localizados nos territórios em articulação com os CAPS, CAPSIJ, CAPSAD e atenção básica.
Fonte: RESOLUÇÃO CNS Nº 617, DE 22 DE AGOSTO DE 2019, pg.47.
Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2019/Reso617.pdf>.

Outro ponto que merece destaque foi o fato de o processo da pesquisa ter
despertado na equipe a necessidade de escrever sobre o próprio trabalho em um
formato acadêmico: dois dos quatro trabalhadores participantes dos grupos da
pesquisa se inscreveram em cursos de pós-graduação para produzir escritos
autorais sobre o trabalho que fazem no Ceccozo. Pela primeira vez em cinco anos,
um dos oficineiros inscreveu um trabalho sobre sua oficina em um congresso
científico que será realizado em outro estado do país. A coordenadora do Ceccozo
afirma que, ao repensar o trabalho na pesquisa, a equipe percebeu

a importância da gente começar a escrever. (…) eu resolvi voltar a estudar,


resolvi fazer a pós na Fiocruz, (...) achei importante poder escrever, falar
deste trabalho, colocar em artigo, monografia, não sei ainda o que vou
fazer, mas colocar essa história em algum lugar, escrever isso, porque está
todo mundo escrevendo sobre isso, mas a gente não, então, está na hora
DA GENTE falar disso, eu acho que foi importante.

Dessa fala, recolhemos que os possíveis agenciados por uma pesquisa são
ilimitados. Pesquisar implica questionar, se perguntar, reconhecer que há muito que
não se sabe, e ao mesmo tempo se sentir capaz de produzir novos saberes no
processo. A vida não está isolada do campo problemático em que a pesquisa
acontece. As interrogações da pesquisa a respeito da atividade de convivência, do
trabalho afetivo, ao serem compartilhadas com os trabalhadores, se tornaram
interrogações para a própria equipe, levando-os a retornarem à condição de
estudante e de problematizadores do próprio trabalho.
209

6.6 A vez dos invisíveis: o plano comum e um milhão de reais

A ausência de uma política de financiamento para os CECOs é uma questão


que emergiu no curso da pesquisa repetidas vezes. Há o desejo de ampliar a
equipe, mas não há recurso financeiro para contratar. Esse tema foi pautado e
debatido em diversos espaços de militância antimanicomial ao longo dos quatro
anos em que acompanhamos os movimentos em prol dos CECOs. Os conviventes
se mobilizam muito para buscar formas de ampliar recursos que possibilitem o
investimento artístico-cultural (compra de instrumentos musicais, material para
festas, artesanato etc.).
No início da pesquisa, era impensável que o Ceccozo pudesse conseguir uma
verba de um milhão de reais. Mas como isso se deu? O Ceccozo participou de um
encontro no SINPRO (Sindicato dos Professores) organizado pelo mandato de um
deputado federal do PSOL para discutir uma pauta muito importante: um milhão de
reais seriam indicados para a saúde da região da Zona Oeste por meio de emenda
parlamentar participativa – e os presentes decidiriam o destino final do recurso. Com
duas propostas apresentadas (uma para compra de um aparelho de raio-X para um
hospital geral e outra para o fortalecimento da rede para saúde mental), a vencedora
foi o direcionamento para a rede de saúde mental da Zona Oeste – Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS) e Centros de Convivência das APs 5.1, 5.2 e 5.3. Vale
lembrar que os que estiveram presentes nessa reunião passaram a fazer parte de
uma comissão que realizará o monitoramento desses recursos até a sua devida
aplicação.
Os presentes apresentaram as demandas, as dificuldades que vêm
enfrentando, e nesse encontro se reforçou a necessidade de organização da Zona
Oeste, que foi e é uma região negligenciada em relação às políticas públicas na
cidade. Em entrevista, a coordenadora do Ceccozo narrou que ela e mais um
trabalhador da RAPS Zona Oeste foram indicados para participar dessa reunião pelo
grupo que faz o bloco carnavalesco Zona Mental, o que nos mostra a importância de
um coletivo de trabalho que sustente afetivamente a presença em espaços de
disputas. O bloco não pertence a um serviço específico, ele é do território Zona
Oeste, e precisa de dinheiro para custear suas atividades. Eles foram até essa
reunião noturna movidos também por isso. A coordenadora estava em seu dia de
210

folga, e disse que foi sem muita expectativa de que um recurso para a saúde
pudesse ser destinado para ações que têm interface com a cultura.
O próprio deputado, ao ouvir sobre o trabalho do Ceccozo, questionou e
afirmou que o dinheiro era para saúde e não para cultura, e nesse momento a
coordenadora argumentou:

Não, o centro de convivência não é da cultura, ele é da saúde, é um


dispositivo da saúde mental, que não tem recursos e tal, comecei a explicar
para ele, e aí quando eu começo a explicar, ele pergunta: então, qual é a
proposta? e aí ninguém se manifesta, e eu: “Então, bem, a proposta é que
esse dinheiro venha para o centro de convivência”.

Em seguida, o grupo do hospital reforçou a proposta da compra de um


aparelho de raio-x novo. Na hora da votação, uma senhora da comunidade se
levantou e disse:
Hoje o dinheiro não vai para o raio x, não vai para o Rocha Faria [hospital],
hoje o dinheiro vai para os invisíveis, a gente precisa dar visibilidade
para essas pessoas, hoje o dinheiro vai para os invisíveis, a gente vai
DEFENDER a saúde mental aqui!”.

Essa senhora que se levantou é avó de cinco netos que usam o Ceccozo
para aula de circo, e não tem relação direta com os serviços especializados de
saúde mental, mas percebe a necessidade de valorizar o trabalho do Centro de
Convivência e defender o público que ele atende: os invisíveis, como ela chamou. A
coordenadora do Ceccozo e essa senhora até então não se conheciam
pessoalmente, mas estavam conectadas por um propósito comum, faziam parte do
plano comum que afetou a todos na reunião e fez a saúde mental sair vencedora. É
curioso o fato de que a compra de um aparelho de raio-x, onda eletromagnética
capaz de atravessar corpos para produzir imagem médica, tenha sido preterido em
detrimento de uma política da convivência. Isso nos faz pensar que havia uma outra
onda ressoando, uma onda em que moléculas imperceptíveis navegam entre
aqueles corpos que defendiam os invisíveis, uma onda desmedicalizante, que
aposta que saúde pode ser mais que fazer exames médicos.
A coordenadora em sua argumentação reivindicou para o CECO um lugar de
saúde e não de cultura, estrategicamente. Nessa situação, o trabalho afetivo
antimanicomial, uma tecnologia leve, que tem como diretrizes acolher, vincular,
articular redes de conversa (MERHY, 2013), foi mais potente que uma tecnologia
dura, de caráter estruturado, inscrita em instrumentos. Isso nos apontou que a
211

potência pode estar mais na leveza do que na dureza, em alguns casos. Ela disse
que saiu flutuando da reunião:

Aí eu achei lindo porque assim, ela não é da saúde mental, é mais pelo
trabalho que ela vê a gente fazendo aqui, que ela defendeu... Achei lindo!
(pausa) Eu acho que precisava falar, né? (voz embargada) Porque na hora
eu saí flutuando, porque gente, eu não tô acreditando que o dinheiro caiu no
nosso colo assim, entendeu?

Essas cenas nos mostraram como no plano comum de imanência, esse plano
em que todos os corpos estão conectados, o inesperado acontece. Esse plano é um
plano não no sentido organizativo, de um projeto, de um programa a ser realizado,
mas sim um plano no sentido de forças em relação, em que não há sujeito, mas
estados afetivos. O corpo, que carrega uma infinidade de partículas que variam
entre repouso e movimento, é definido por sua capacidade de afetar e ser afetado
(DELEUZE, 2002).
As distintas velocidades e lentidões que compõem esse plano comum de
imanência instauram modos de viver em que não sabemos ao certo do que é capaz
um corpo, não sabemos o que ele pode. Precisamos distinguir aqui dois planos,
esse que chamamos de plano comum de imanência, ou plano de composição, e um
outro plano, um plano de organização, um plano das formas. Embora esses planos
não sejam separados um do outro, há diferenças entre eles:

1) formas desenvolvem-se, sujeitos formam-se, em função de um plano que


só pode ser inferido (plano de organização-desenvolvimento); 2) só há
velocidades e lentidões entre elementos não formados, e afetos entre
potências não subjetivadas, em função de um plano que é necessariamente
dado ao mesmo tempo que aquilo que ele dá (plano de consistência ou de
composição) (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 49).

As emendas parlamentares situam-se numa esfera macropolítica, que tem


relação com o Estado, tem a ver com o plano das formas, o plano de organização.
De acordo com a Constituição, a emenda parlamentar é um instrumento que o
Congresso Nacional possui para participar da elaboração do orçamento anual. Por
meio dela, os deputados podem acrescentar novas programações orçamentárias
com o objetivo de atender às demandas das comunidades que representam. Temos
aí um exercício democrático que se funda na representação de um deputado eleito.
Nesse plano das formas, é possível ver e ouvir as desigualdades na distribuição de
direitos e perceber que o Estado e suas leis sustentam essas assimetrias.
212

Pensamos que se a saúde é direito de todos e dever do Estado, tanto o novo raio-x
do hospital quanto os Centros de Convivência deveriam ter seu provimento
garantido por ele, independentemente da emenda parlamentar oriunda de um
deputado. Contudo, cientes de que o real e o prescrito nunca coincidem
completamente, é necessário buscar outros caminhos que viabilizem o trabalho.
Fazemos aliança com o pensamento que afirma que:

Não basta um combate pelo poder macropolítico e contra aqueles que o


detêm, há que se levar igualmente um combate pela potência afirmativa de
uma micropolítica ativa, a ser investida em cada uma de nossas ações
cotidianas – inclusive naquelas que implicam nossa relação com o Estado,
quer estejamos dentro ou fora dele (ROLNIK, 2018, p. 89).

A cena da reunião dá a ver a inseparabilidade entre as esferas macro e


micropolítica. Ao mesmo tempo que há uma luta por direitos que possam ser
exercidos de modo mais igualitário, há também a produção de uma multidão
(HARDT; NEGRI, 2005), de um conjunto de singularidades constituídas em
imanência, no plano comum, via ressonância intensiva, em que todo e cada corpo já
é uma multidão. Na conversa com a coordenadora do Ceccozo, notamos que o
critério que guiou sua decisão de ir até essa reunião foi o de uma bússola ética, com
a agulha apontada para aquilo que a vida estava pedindo como condição para
perseverar, operando pelo modo da afirmação de uma política da convivência. Além
do recebimento do recurso financeiro, o que estava em jogo naquele debate era a
defesa dos invisíveis.
Entendemos que a pesquisa, em seu caráter construtivista, ou de
intervenção, está implicada com a construção dessa bússola, que é fruto de um
trabalho coletivo, feito entre vários.

Eu não sei se esse dinheiro vai chegar, Ariadna, não sei mesmo, porque
hoje tem muita briga na saúde, mas esse momento, para mim, foi a glória!
Poder ver a comunidade defendendo a saúde mental, gente que não é da
saúde mental, para mim isso é fruto também do nosso trabalho, entendeu?
Do NOSSO. Quando digo nosso, não digo nosso só do centro de
convivência, é nosso mesmo, é do fórum de centros de convivência, da tua
pesquisa, deste trabalho que os centros de convivência vêm fazendo na
comunidade. (Gal)

Depois da enunciação dessas palavras pela voz da trabalhadora, e de ver


que a pesquisa cumpriu com seu propósito ético-político, só nos resta ir para as
considerações finais.
213

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ENCERRAMENTO

7.1 Extratos da experiência e abertura para novos caminhos

A pé e de coração leve eu enveredo pela estrada aberta, saudável, livre,


O mundo à minha frente, o longo atalho pardo à minha frente
para levar-me aonde eu queira.
Daqui em diante não peço mais boa-sorte, boa-sorte sou eu mesmo.
Daqui em diante eu não lamento mais, eu não adio mais,
Não careço de nada; acabei com as queixas portas adentro,
bibliotecas, críticas rixentas;
forte e contente vou eu pela estrada aberta.

Canto da estrada aberta


(Walt Whitman)

Chegamos ao fim da escrita da tese com a sensação de que novos inícios


estão por vir. Foi uma jornada de se aventurar pela estrada encarando os desafios
no momento em que eles apareceram, e assim fui me desenvolvendo em variados
aspectos. Foi no percurso do doutorado que aprendi a dirigir e foram muitíssimos
quilômetros rodados para chegar até cada CECO, até cada convivente, até cada
encontro. Foi no percurso do doutorado que aprendi minhas primeiras (e até hoje
poucas) palavras em francês, que me possibilitaram ler textos não traduzidos da
clínica da atividade. Foi no percurso do doutorado que aprendi outros modos de
exercer a maternidade, escutando outras mães, que nem sabiam que, além de
pesquisadora, eu era mãe. Procuramos nos livrar das durezas que enrijecem e
simplesmente deixar o apetite aberto de viver novos ares, leituras e experiências.
Foram quatro anos de uma permanente observação e busca de transformação de
nossos modos de pensar, sentir e agir na cidade, como uma convivente
coengendrada pelo coletivo.
Nossa expectativa maior foi a de que por meio das experimentações da
pesquisa construiríamos a tese, e não de já ter uma tese que se comprova por meio
de uma pesquisa. Esse inesperado e desconhecido provocou tensão até bem perto
do fim do processo de escrita. Contudo, estávamos com o pensamento de que tudo
poderia acontecer e de que no final teríamos uma inédita e singular produção.
Fui pessoalmente transformada, e a pesquisa também sofreu transformações.
Entre a pesquisa prevista no projeto e a pesquisa realizada, houve um grande
intervalo. Experimentamos uma ampliação da pergunta inicial, que antes se
214

concentrava em como se produz a saúde dos trabalhadores e se expandiu para


como transformar-conhecer a atividade de convivência, não mais concentrada
apenas nos trabalhadores, mas experimentada com todos os conviventes: usuárias,
usuários, trabalhadoras, trabalhadores, gestoras, familiares, pesquisadoras,
estudantes, professores. Os conviventes são vaga-lumes nos tempos sombrios que
vivemos. Tempos de desinvestimento nas políticas públicas, especialmente nas de
saúde e educação, em que se impõe um teto que deveria ser piso.
Se o Ceccozo é a orquídea da Lona Cultural, pois é epífita, agrega valor sem
parasitar o hospedeiro, o Fórum é a flor de lótus dos CECOs do RJ, flor que brota do
pântano simbolizando a força da vida que nasce do inóspito. O Fórum é afirmação
da vida no coletivo em tempos em que os afetos tristes tomavam conta do cenário
político. Quando pesquiso CECO, convido os trabalhadores a discutir CECO. No
início, o elo entre os CECOs da cidade era a pesquisa. Depois, esse elo se
proliferou, constituindo uma rede de conversações para muito além da pesquisa e
para muito além da cidade do Rio, incluindo outros municípios. O que se constituiu
foi um afeto político que afirma que “a gente vai fazer CECO, faça chuva ou faça sol.
Se não tem verba, a gente cria uma lei que vai dar verba”. Acessei nesta pesquisa a
experiência de uma democracia direta sem representante, que funciona pela lógica
da adição: o que vier eu traço. Como diria o poeta Leminski (2013): “Não discuto
com o destino, o que vier, eu assino”. Esse movimento que expressa CECO
expressa uma rede móvel, sem nós fixos em que o sentido é a itinerância e a
ampliação da capacidade de pensar e agir juntos. E concluímos que é em
movimento que uma pesquisa mostra o que ela pode.
Assim como a convivência é produzida no plano comum, um plano em
conexão diversa, mapeamos uma diversidade de definições possíveis emergentes
para a convivência nesse trajeto. Segundo esta pesquisa, a convivência é um
veículo, e não um fim. Esse veículo mutante, a atividade de convivência, pode nos
levar a diferentes lugares. Convivência é:
– Troca de aceitação.
– Via para desmedicalização.
– Via para desinstitucionalização.
– Via para promoção da saúde.
– Um trabalho afetivo antimanicomial.
215

– Um novo paradigma na relação com a diferença que se distingue da


inclusão, pois requer vínculo afetivo.
– Uma política necessária aos tempos pós-golpe em que con-viver é criar
uma relação não antagônica.
– Produção do comum. É um encontro de pluralidade de forças, de diferenças
que não delegam e se expressam por si.
– Um ofício da sensibilidade.
– Um composto de forças: coletivo, território, arte-cultura-lazer, trabalho-
cooperativado, viver-junto-as-diferenças.
Com esta tese-cartografia, buscamos alimentar o debate teórico-
metodológico, desenvolvendo um conceito de convivência como atividade de
produção do comum. Construímos uma narrativa de ampliação de recursos locais
para ação em cada CECO, mas também desenvolvedora de recursos para a
construção das políticas de saúde do SUS no exercício da intersetorialidade entre
cultura, economia solidária, educação, esporte e lazer, construindo um marco lógico
presente no texto do projeto de lei 4.563. No encontro com os militantes históricos,
configuramos um campo problemático em que a relação dos CECOs com a saúde e
a cultura estava em questão; no encontro com o CECO Trilhos do Engenho, vimos
os trabalhadores se tornarem observadores do próprio trabalho mudando o modo de
organização dos passeios em uma direção de autonomia; no encontro com os
oficineiros do Polo Experimental, percebemos que a pesquisa funcionou como um
dispositivo para dar mais visibilidade ao ofício dos oficineiros e o quanto eles foram
protagonistas desse processo, levando a carta devolutiva para discussão com toda a
equipe; no encontro com a equipe do Ceccozo, ao colocar em debate os afetos no
trabalho, construímos com eles a noção de trabalho afetivo antimanicomial, o que
mobilizou a equipe a buscar e conseguir mais recursos financeiros para a execução
dessa proposta e a realizar também cursos de pós-graduação na direção de produzir
conhecimento a partir do próprio trabalho da convivência; como participante do
Fórum de CECOs, vi nascer uma ágora efetivamente participativa em que usuários,
trabalhadores, familiares, gestores, militantes, todos conviventes, compartilhamos de
maneira muito intensa um mesmo campo de afetabilidade em que todos nos
deslocamos no exercício democrático, instaurando uma nova forma de fazer política
216

fundada na afirmação, na vida, na alegria, e não fundada na negação, na queixa, na


tristeza dominante.
Sustentamos a tese de que colocar o trabalho em diálogo potencializa os
recursos para agir, e que esse agir se faz na convivência, coengendrada no plano
comum. Esse modo de fazer pesquisa-intervenção produziu saúde para os
trabalhadores, uma vez que estes se tornaram capazes de inventar no coletivo
outras maneiras de lidar com as variabilidades do mundo do trabalho, aumentaram a
normatividade.
Outro alimento para o debate teórico-metodológico foi demonstrar que a
clínica da atividade pode ser um instrumento de politização do processo de trabalho
– a ampliação do poder de agir diz respeito a um agir político. Afirmamos aqui a
clínica da atividade como uma clínica-política. Esta pesquisa é a encarnação de uma
resposta aos que consideram que a análise da atividade, por ter um compromisso
com a ampliação do poder de agir, está aliada ao capital e não aos trabalhadores. A
análise da atividade não se reduz a um inventário de prescrições de como proceder
em um posto de trabalho para aumentar a produtividade, ou oferecer mais lucro ao
patrão. Esse nos parece ser um falso problema.
A clínica da atividade se faz uma clínica-política, uma vez que produz desvios
nos percursos das histórias de trabalho. Foram os trabalhadores, em seu
protagonismo, que ao se escutarem e dialogarem entre si a respeito dos limites e
possibilidades de atuação, das várias maneiras possíveis de enfrentar os desafios,
criaram com os demais conviventes o projeto de lei 4.563, construíram sua
participação nas conferências de saúde (distrital, municipal, estadual e nacional),
foram defender um projeto político, coletivo, comum de CECOs junto a gestores e
parlamentares. Foram os trabalhadores que passaram a observar, a olhar para o
próprio trabalho de outro modo. Alguns trabalhadores que no início da pesquisa
falavam em desistir desse trabalho e pensavam em sair do CECO pelas dificuldades
encontradas, mudaram sua perspectiva, se reencantaram com o próprio trabalho,
trocaram a pilha (sic) produzindo novas subjetividades. O princípio do dialogismo da
clínica da atividade, em que a linguagem é atividade, por meio desta pesquisa
produziu outros modos de trabalhar. Até mesmo um Fórum de CECOs on-line foi
possível ser criado durante a pandemia do Covid-19, algo inédito na experiência do
movimento.
217

Afirmamos ainda a pesquisa com os CECOs como conspiração democrática


(TEIXEIRA, 2019). Nessa concepção, ressoa em nós a ideia de que a instalação de
dispositivos dialógicos é uma valiosa contribuição para experiências democráticas.
Maturana chama de conversar o entrelaçamento entre linguajar e emocionar. O
autor propõe que a cultura “constitui e define uma maneira do conviver humano
como uma rede de coordenações de emoções e ações” (MATURANA; VERDEN-
ZOLLER 1997 p. 22). Essa rede de conversações é tecida por um dado modo de
conviver que Maturana chama de cultura matrística. A palavra usada é matrística e
não matriarcal, porque não se trata de substituir o patriarcado (regime em que o
homem domina) pelo matriarcado (regime em que a mulher domina), pois ambos
têm uma figura dominante, seja o homem, seja a mulher. Uma cultura matrística
busca engendrar uma convivência em que homens e mulheres podem participar de
um modo de vida centrado em uma cooperação não hierárquica, em uma relação de
confiança e não de dominação, controle e autoridade (TEIXEIRA, 2019).
Ao olharmos retrospectivamente para a pesquisa, vemos que ela funcionou o
tempo todo fundada em uma convivência de cultura matrística, ainda que no
decorrer do processo desconhecêssemos esse conceito. Não foram poucas as
vezes em que o entrelaçamento do emocionar com o linguajar tomou conta das
cenas, convidando todas e todos a habitarem territórios inusitados e a
desestabilizarem os mundos habituais. Essa certamente é uma força potente que se
manteve e mantém viva no movimento. Indicamos aqui que os Centros de
Convivência e Cultura sejam centros de uma convivência de cultura matrística, isto
é, espaços em que todas e todos se cuidem nessa relação, que os CECOs possam
ser espaços de viver a democracia, substantivo feminino.

A democracia, como uma forma de coexistência matrística em meio a uma


cultura patriarcal que a ela se opõe e constitutivamente a nega, não pode
ser estabilizada nem defendida (como se tivesse validade universal
transcendente), pode apenas ser vivida e será democracia somente
enquanto seja vivida (MATURANA; VERDEN-ZOLLER, 1997, p. 62)

Por outro lado, identificamos que os CECOs da cidade do Rio de Janeiro têm
como fragilidade a dependência dos institutos municipais. Destacamos que a
questão da localização do CECO faz muita diferença para o acesso do público e
para um rompimento radical com a lógica manicomial. Ficou evidente que os CECOs
que se situam dentro dos institutos municipais, ou quando estão muito perto dos
218

hospitais psiquiátricos que ainda existem, estão muito mais suscetíveis a se


depararem com os rastros manicomiais. Por exemplo: questões como ler ou não
prontuário e distribuição do almoço na oficina não estão apresentadas para um
CECO que não tem vinculação com o aparato institucional hospitalar. O trabalho
afetivo antimanicomial é um trabalho de cuidado, mas para que o trabalho do CECO
seja de fato antimanicomial, ele precisa ser capaz de romper com a lógica
manicomial, fundada na tutela e na objetificação do outro, desmoronando os
manicômios mentais que certamente não estão restritos aos muros dos hospitais
psiquiátricos. Desse modo, sair de dentro dos institutos é importante não só para se
livrar dessa lógica hospitalar que ainda incide no trabalho, mas também para ampliar
o acesso de pessoas da comunidade em geral, para que o CECO seja efetivamente
visível e acessível a todas e todos, para a população em geral, e não só para as
pessoas que vão encaminhadas de algum ponto da RAPS, da atenção
especializada, como os CAPS.
Na sua relação com os CAPS, os CECOs se distinguem. Os CAPS têm como
prerrogativa o atendimento de crise; os CECOs podem até eventualmente passar
uma situação em que precisem lidar com alguém em crise, mas esse não é seu
mandato. Os CAPS são dirigidos para pessoas com transtornos mentais graves e
persistentes; os CECOs são para todos e qualquer um. OS CAPS podem – e
devem, para não se cronificarem – fazer um trabalho de convivência, de ocupação
de espaços públicos e articulação em rede no território; os CECOs têm essa como
sua atribuição principal agenciando arte, cultura, lazer, geração de trabalho, renda e
economia solidária. A composição da equipe também se diferencia: nos CAPS há
médicos, farmacêuticos e uma equipe numerosa de profissionais de saúde; nos
CECOs, a equipe não se restringe a profissionais de saúde, mas se deseja a
presença de artistas, e ali não se encontra dispensação de medicamento, também
não se encontram médicos e farmacêuticos. Portanto, ao elencarmos essas
distinções, queremos defender a ideia de que ainda que CAPS e CECOs façam um
trabalho que parece semelhante, para um público que parece semelhante, eles
fazem o que fazem de lugares completamente diferentes. É necessária uma boa
relação e uma forte parceria para que ambos trabalhem bem. Esta pesquisa mapeou
que quando a relação CAPS-CECO está fortalecida, o CECO pode funcionar como
uma porta de saída do CAPS, ou seja, o CECO pode atender a uma demanda de
219

agenciar um circuito fora dos itinerários da saúde mental, fora da atenção


psicossocial especializada, expandindo as possibilidades de vida.
Poucos estudos tocam nesse ponto, e consideramos que os meandros dessa
relação CAPS-CECO precisam ser investigados mais detidamente, o que não
fizemos nesta tese, mas deixamos aqui a indicação para que outras pesquisas
façam. Outro estudo que ainda precisa ser feito é um levantamento das
características sociodemográficas da população atendida pelos CECOs, o que seria
de grande valia para melhor compreensão de quem efetivamente usa os CECOs,
que já sabemos que é um dispositivo de baixíssimo custo e altíssimo impacto na
saúde dos territórios dos quais fazem parte. Saúde do território ligada à ideia de que
o bem viver coletivo promovido pelos CECOs não é um supérfluo, mas um artigo de
primeira necessidade em saúde, em uma concepção de saúde não biomédica.
Por fim, é preciso dizer que estas últimas linhas são escritas durante a
pandemia do coronavírus, Covid-19. O imperativo fique em casa produz uma
intensificação da convivência no espaço doméstico, das relações no âmbito privado,
e um impedimento da convivência na cidade, nos espaços públicos, das relações
presenciais extralar. Essa situação tende a acirrar os conflitos, e não é à toa que
temos observado um expressivo aumento nos casos de violência doméstica. Temos
defendido a ideia de que somente na convivência com o outro na cidade somos
livres, e que a liberdade é terapêutica. Contudo, o que o momento nos exige é
sacrificarmos o direito de ir e vir, a ocupação dos espaços públicos, em nome de
uma causa maior que é a saúde coletiva, sem a qual não há saúde individual.
A imprevisibilidade da situação, a profusão de informações, as fake news, a
falta de políticas sociais que assegurem os direitos básicos tendem a produzir medo,
angústia, insegurança e sensação de opressão. Seja qual for a situação de moradia,
a intervenção do distanciamento físico nos faz prezar cada vez mais a convivência
presencial, a conexão com o outro. Por sua vez, as redes virtuais antes criticadas
como via de desconexão com quem está ao seu lado se tornaram imprescindíveis
nesse momento, para que possamos estar juntos, mesmo que distantes.
Na reta finalíssima da escrita, no dia 18 de maio de 2020, dia da luta
antimanicomial, com quase 17 mil óbitos por Covid-19 no Brasil, o projeto Centro de
Convivência Virtual – Promoção de Saúde e Redes de Afeto em tempos de
pandemia foi uma das 47 propostas aprovadas entre as 109 apresentadas ao edital
220

Ideias e Produtos Inovadores Fiocruz-Covid-19. O CECO Virtual é ideia que surgiu


no diálogo com um convivente da Zona Oeste e trabalhadoras militantes. A aposta é
que esta seja uma ferramenta para redução dos danos associados ao isolamento
social que tem impactado acentuadamente o público usuário da RAPS, ao impedir
encontros coletivos. A promoção da saúde dos territórios onde os CECOs se
inserem se dá via participação social, que é parte fundamental do cuidado em saúde
mental. Os conviventes contarão com um espaço de encontro coletivo virtual e um
canal de expressão dialógica e interação alternativo aos encontros presenciais.
Busca-se minimizar a exposição ao contágio pela Covid-19, fortalecer vínculos
afetivos, criar novas redes de afeto por meio da arte-cultura e reduzir os danos
emocionais associados ao isolamento social necessário no período da pandemia.
Nesse sentido, ressaltamos que não importa onde, estamos em rede. A
pandemia exige acompanharmos o processo por fontes seguras e confiáveis, agindo
para que o dano social seja o menor possível. O coronavírus, que é um conectivo
biológico, fortaleceu a necessidade dos conectivos tecnológicos: celulares, internet,
aplicativos de comunicação virtual. E o bom cultivo das relações afetivas, seja pela
convivência presencial, seja pela convivência virtual, certamente tornou-se o
epicentro do cuidado da saúde mental coletiva nesse momento. Se é possível extrair
já algum aprendizado dessa experiência pandêmica, a qual ainda não temos certeza
de quanto tempo vai durar, é de que somos todos interdependentes uns dos outros,
e que estamos em permanente conexão no plano comum nas diferentes
modulações da convivência em rede.

Traçar é um agir.
Que a rede seja um agir é algo que mais dificilmente se admite.
E, no entanto, ou ela é um agir, ou não é rede (DELIGNY, 2015, p. 87).

7.2 Fonte de inspiração: é preciso dizer sim para a vida

Desde há muito tempo, eu e minha filha sonhávamos juntas visitar o Projeto Tamar.
Izadora ama animais; quando perguntam o seu nome, ela responde: Izadora, rainha
dos bichos. Fez-se a oportunidade de ir para a Bahia, e lá fomos nós. Ao
chegarmos, vimos que na programação do dia constava: alimentação das tartarugas
e alimentação interativa com tubarões. Soubemos que a alimentação interativa com
221

as tartarugas seria apenas no dia seguinte. Fomos visitando cada tanque, nos
surpreendendo e admirando as tartarugas de diferentes espécies, tamanhos e cores.
Tocamos nas raias, escutamos um pouco da visita guiada, vimos os peixes, os
esqueletos de tartarugas, o cinetamar e cada cantinho do projeto que é muito
atraente para crianças. O momento esperado era a alimentação das tartarugas,
agendada para 16h. Quando a funcionária chegou com o balde contendo pedaços
de peixes para alimentá-las, formou-se em volta do grande tanque/piscina um
aglomerado de gente que calculo que tivesse entre oitenta e cem pessoas. Era
feriado de São João, dia 24/06/2019. A moça explicou o tipo de peixe que era dado
como alimento, algumas características da espécie e começou a atirar os pedaços
na água. As tartarugas nadavam até a superfície para comer, e muitas pessoas com
celulares filmavam e fotografavam. Eu só conseguia olhar para Izadora correndo de
um lado para outro, em volta do tanque, tentando se aproximar da moça, que estava
em um local que era inacessível ao público. Diante da impossibilidade de chegar até
o balde e pegá-lo para alimentar as tartarugas, o que eu sabia que era a intenção
que a movia, ela quebrou o silêncio, falou alto e todos olharam: “Moça, moça, eu
quero dar comida para a tartaruga!” A moça respondeu que não podia, que não era o
dia da alimentação interativa, que seria só no dia seguinte. Não conformada, Izadora
continuou insistindo com sua voz meiga e intensa: “Por favor, moça, deixa eu dar
comida pra ela!” A moça respondeu constrangida: “Poxa, não pode, agora só EU
posso dar comida pra tartaruga... Se não, eles brigam comigo.” Abaixei até o ouvido
da Izadora, com vergonha por ela não parar de insistir em seu pedido já negado
duas vezes, e disse que mais tarde daríamos comida para os tubarões. Expliquei
que a moça disse que naquela hora não podia e que ela tinha que ficar quieta. A
moça seguiu atirando pedaços e as tartarugas comendo. Minhas palavras foram em
vão. Izadora mais vez ignorou o que dissemos e repetiu agora com mais volume e
mais tom de súplica, causando no público um burburinho favorável a seu pedido
com a mãozinha estendida e pulando: “Por favor, moça, me dá um pedaço!!!” A
moça não resistiu e deu o último pedaço de peixe do balde na mão da Izadora, que
o atirou imediatamente na água. A tartaruga chegou perto de Izadora e comeu o
peixe. Izadora sorriu ao ver a tartaruga comer o pedaço que ela deu, olhou para a
moça e disse: “Obrigada!” Meus olhos se encheram de água e as gotas de emoção
caíram na piscina.
222

*************************************************************************************************

Essa experiência me abriu o questionamento: na convivência diária, quantos


nãos dizemos que poderiam ser um sim? Tenho certeza de que as crianças
precisam de limites, que o não é essencial para formação subjetiva, e que nem todo
não pode virar sim. Contudo, sinto que nós adultos muitas vezes usamos o Não
desnecessariamente com as crianças, com os outros, com nós mesmos. Então,
encerro a tese com a partilha do ensinamento que essa fonte de inspiração
maravilhosa chamada maternidade me trouxe: o sim é a conexão na rede, e é
preciso dizermos mais sim para as crianças, para os outros, para nós mesmos, para
a VIDA que persevera em (COM)viver!!!

Figura 9 – Acróstico CONVIVÊNCIA, de Ariadna Patrícia Estevez Alvarez e


Izadora Alvarez Ferreira, 2020
223

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233

9 ANEXOS

ANEXO 1 – ROTEIRO DE ENTREVISTA

-Como você definiria o que é Centro de Convivência para alguém que


não sabe o que é?
-Na sua opinião, qual é a principal função de um Centro de
Convivência?
-Hoje temos 3 CECOS em funcionamento na cidade do Rio. O Pedra Branca
(2011), em Jacarepaguá, ligado ao Polo experimental, o Trilhos do Engenho (2012),
situado no Engenho de Dentro, e o Ceccozo (2013), em Campo Grande, na Lona
Cultural Elza Osborne. Entre as experiências que envolvem atividades culturais e de
lazer, uma de grande destaque é o Clube da Esquina, que se iniciou em 1996. Que
diferenças você percebe da década de 90 para cá na relação entre a ocupação
dos espaços públicos, a circulação na cidade e a loucura? Quais eram os
desafios daquela época e os atuais? O que mudou e onde precisamos
avançar?
-Que efeitos que percebe que esse tipo de dispositivo produz para os
seus frequentadores/conviventes (usuários, trabalhadores, familiares)?
-Em outras cidades do Brasil, como São Paulo, Campinas e BH, os CECOS
foram implantados muito antes que no Rio. Você tem alguma suposição que
explique isso?
-A portaria que instituiu os CECOS em 2005 e depois foi revogada foi fruto
da Oficina “Centros de Convivência: diálogos das experiências dos municípios”, em
BH. Qual a importância desse tipo de espaço (encontros, seminários, fóruns)
para a construção das políticas publicas?
-Outros serviços da RAPS têm seu recurso previsto pelo governo federal,
como CAPS, Consultórios na Rua, UA, NASF. Como você acredita que os CECOs
devem ser financiados?
-Existe uma crítica à noção de arte e cultura como terapêuticas. Haveria
uma “arte institucionalizada” e uma “arte desinstitucionalizada”? O que você
pensa a respeito disso? (1)
234

-Existe um documento que está sendo preparado visando a uma resolução


sobre Centro de Convivência no município do Rio. Você poderia ler e opinar a
respeito? (2)
-Este ano, o congresso de Bauru faz 30 anos. Como militante do movimento
da luta antimanicomial, me diga: quais eram os principais desafios e impasses
do fim da década de 80 e da década de 90 no que se refere aos processos de
desinstitucionalização da loucura como doença e como perigo? De que modo
os Centros de Convivência podem colaborar na construção de uma sociedade
sem manicômios? (3)
235

ANEXO 2 – PROGRAMAÇÃO 30 ANOS DE DIA NACIONAL DA LUTA


ANTIMANICOMIAL
236

ANEXO 3 – MANIFESTO BAURU 1987

Manifesto de Bauru
Um desafio radicalmente novo se coloca agora para o Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental. Ao ocuparmos as ruas de Bauru, na primeira manifestação pública organizada no Brasil pela
extinção dos manicômios, os 350 trabalhadores de saúde mental presentes ao II Congresso Nacional
dão um passo adiante na história do Movimento, marcando um novo momento na luta contra a
exclusão e a discriminação. Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agente da
exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana,
inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta racionalizar e modernizar os
serviços nos quais trabalhamos. O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e
sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O
compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a
classe trabalhadora organizada. O manicômio é expressão de uma estrutura presente nos diversos
mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de
adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar
pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os
trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida. Organizado
em vários estados, o Movimento caminha agora para uma articulação nacional. Tal articulação
buscará dar conta da Organização dos Trabalhadores em Saúde Mental, aliados efetiva e
sistematicamente ao movimento popular e sindical. Contra a mercantilização da doença! Contra a
mercantilização da doença; contra uma reforma sanitária privatizante e autoritária; por uma reforma
sanitária democrática e popular; pela reforma agrária e urbana; pela organização livre e independente
dos trabalhadores; pelo direito à sindicalização dos serviços públicos; pelo Dia Nacional de Luta
Antimanicomial em 1988!
Por uma sociedade sem manicômios!
Bauru, dezembro de 1987 - II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental
237

ANEXO 4 – CARTA BAURU 30 ANOS – 2017

CARTA DE BAURU – 30 ANOS Há 30 anos, aqui em Bauru, denunciamos o papel de agentes da


exclusão designado aos trabalhadores de saúde mental; afirmamos a defesa intransigente dos
direitos humanos e da cidadania dos chamados loucos; compreendemos que a nossa luta faz parte
da luta por uma transformação social ampla e verdadeira; reafirmamos o manicômio como mais uma
forma de opressão da sociedade. Uma escolha foi feita e decidimos a nossa direção: rumo a uma
sociedade sem manicômios! Movidos pela alegre energia de um tempo tão fecundo, quando a
democracia brasileira se afirmava nos movimentos e nas ruas, seguimos fielmente o rumo desejado.
Tomando a palavra, as pessoas em sofrimento psíquico defenderam seu direito de viver, trabalhar,
conviver e criar nos espaços das cidades; organizados em movimento social, trabalhadores,
estudantes, usuários e familiares sustentam unidos, desde então, a Luta Antimanicomial. Cientes de
que a nossa causa era justa, fomos incansáveis ao lutar por ela. Construímos o projeto de lei
antimanicomial, e trabalhamos por sua aprovação no Congresso Nacional. No desafio da
implementação do SUS, construímos passo a passo, com efetiva participação social, expressas em
quatro Conferências Nacionais, uma nova Política Nacional de Saúde Mental. Realizamos marchas,
manifestações, passeatas, ofertando à sociedade brasileira o alegre sabor da liberdade ainda que
tam tam. Descontruindo o modelo asilar, reduzimos significativamente os leitos em hospitais
psiquiátricos, exercendo no território o cuidado em liberdade. Inventamos novos serviços e redes,
arranjos e experiências, que gritam com voz forte a potência deste cuidado. Combatemos a cada dia
o manicômio em suas várias formas, do hospital psiquiátrico à comunidade terapêutica, incluindo o
manicômio judiciário; e a lógica manicomial que disputa o funcionamento de todos os espaços do
viver. Gravamos, em corpos e mentes, a certeza de que toda a vida vale a pena, a ser vivida em sua
pluralidade, diversidade e plenitude. Temos orgulho das conquistas que garantiram a transformação
da atenção pública em saúde mental em todos os quadrantes de nosso país: milhares de CAPS,
ações na atenção básica, o Programa De Volta Pra Casa, novos modos de trabalhar e produzir,
múltiplos projetos de arte, cultura, economia solidária, geração de trabalho e renda e protagonismo.
Assumimos o desafio de construir uma política de cuidado às pessoas em uso de álcool e outras
drogas, como uma política para as pessoas, antiproibicionista e pela legalização do uso, na
perspectiva da redução de danos, produzindo uma atenção intrinsecamente conectada com a defesa
de seus direitos. Com a exigência do cuidado para a infância e juventude, enfrentamos a
medicalização das crianças e a criminalização dos jovens. A presença protagonista de crianças e
adolescentes e seus familiares nesse Encontro é um marco histórico e indica a importância da
continuidade e avanço das políticas públicas de saúde mental intersetoriais para crianças e
adolescentes na perspectiva do cuidado sem controle, garantindo seu direito à voz para a construção
de uma sociedade livre de manicômios. Cuidar da infância e da adolescência em liberdade é
fundamental na nossa luta! Nestes 30 anos, entretanto, o mundo viveu a globalização e a hegemonia
da ideologia neoliberal, produzindo uma gritante desigualdade: 1% da população mundial tem mais
riquezas que os outros 99%. Isto conduziu a uma ruptura do pacto civilizatório contido na Declaração
Universal dos Direitos Humanos: quando os interesses do capital tudo dominam, não há direito que
238

se respeite nem vida que tenha valor. No Brasil, um processo de redução das desigualdades sociais,
iniciado nos anos 2000, foi brutalmente interrompido pelo golpe de 2016; golpe que resultou, dentre
tantos outros efeitos deletérios, na ampliação do processo vigente de privatização e na redução de
recursos para as políticas públicas sociais, como moradia, transporte, previdência, educação, trabalho
e renda e saúde. Vivemos um violento ataque ao SUS, com a diminuição do financiamento e a
desfiguração de seus princípios de universalidade, equidade e integralidade. Nossa democracia,
ferida, vive hoje sob constante e forte ameaça. Precisamos fortalecer a luta por um processo de
educação permanente, por nenhum serviço a menos, nenhum trabalhador a menos e nenhum direito
a menos. Apesar desses graves retrocessos e dos riscos crescentes, os efeitos destes anos de livre e
amoroso cuidado são indeléveis e duradouros. Acesa e viva, mantém-se a nossa disposição de lutar
contra tudo aquilo que é intolerável para a dignidade das pessoas e nefasto para o seu convívio
enquanto iguais: a exploração e a ganância, o manicômio e a tortura, o autoritarismo e o Estado de
exceção. Tecemos laços de afeto e de solidariedade que nos acolhem na dor e nos protegem no
abandono – sustentando o delicado equilíbrio da esperança em nossos corações. Portanto,
prosseguimos, com o mesmo empenho tenaz, na luta por uma sociedade sem manicômios. Não
podemos deixar de frisar o avanço do conservadorismo e da criminalização dos movimentos sociais,
defendemos a diversidade sexual e de gênero, as pautas feministas, a igualdade racial. Somos
radicalmente contra o genocídio e a criminalização da juventude negra, a redução da maioridade
penal, a intolerância religiosa e todas as formas de manicômio, que seguem oprimindo e aprisionando
sujeitos e subjetividades. Apontamos a necessidade urgente de articulação da Luta Antimanicomial
com os movimentos feministas, negro, LGBTTQI, movimento da população de rua, por trabalho,
moradia, indígena, entre outros, a fim de construirmos lutas conjuntas. A conjuntura presente, que
intensifica o risco das conquistas duramente obtidas, exige um posicionamento que reafirme e
radicalize nossos horizontes. É preciso sustentar que uma sociedade sem manicômios reconhece a
legitimidade incondicional do outro como o fundamento da liberdade para todos e cada um; que a vida
é o valor fundamental; que a sociedade sem manicômios é uma sociedade democrática, socialista e
anticapitalista.
NENHUM PASSO ATRÁS: MANICÔMIO NUNCA MAIS! POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS!
Bauru, dezembro de 2017
239

ANEXO 5 – Portaria 396, de 07/07/2005 – Centros de Convivência e Cultura e


observações sobre sua suspensão

PORTARIA Nº 396 DE 07 DE JULHO DE 2005

O Secretário de Atenção à Saúde, no uso de suas atribuições,

Considerando as determinações da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a


proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo
assistencial em saúde mental;
Considerando as recomendações da III Conferência de Saúde Mental, ocorrida em Brasília, de
11 a 15 de dezembro de 2001;
Considerando as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental, que buscam construir um
efetivo lugar social para os portadores de transtornos mentais, por intermédio de ações que ampliem
sua autonomia e melhora das condições concretas de vida;
Considerando o documento elaborado a partir das discussões ocorridas na Oficina “Centros de
Convivência: Diálogos entre as experiências dos municípios”, evento realizado pela Prefeitura de Belo
Horizonte e o Ministério da Saúde, em 25 de fevereiro de 2005, resolve:

Art.1º - Aprovar as seguintes diretrizes gerais para o Programa de Centros de Convivência e


Cultura na rede de atenção em saúde mental do SUS:
I - Os Centros de Convivência e Cultura são dispositivos públicos componentes da rede de
atenção substitutiva em saúde mental, onde são oferecidos às pessoas com transtornos mentais
espaços de sociabilidade, produção e intervenção na cidade;
II - Os Centros de Convivência e Cultura, através da construção de espaços de convívio e
sustentação das diferenças na comunidade e em variados espaços da cidade, facilitam a construção
de laços sociais e inclusão da pessoa com transtornos mentais;
III - A clientela dos Centros de Convivência e Cultura é composta, sobretudo, de pessoas com
transtornos mentais severos e persistentes. As oficinas e atividades coletivas são o eixo dos Centros
de Convivência e Cultura, facilitando o convívio, a troca e a construção de laços sociais;
IV - A exposição, troca ou venda dos produtos produzidos nas oficinas é eventual e poderá ser
estimulada, ocupando espaços comerciais ou culturais relevantes na comunidade e na cidade;
V - As equipes dos Centros de Convivência e Cultura são integradas por oficineiros, artistas
plásticos, músicos, atores, artesãos, auxiliares administrativos e de limpeza. A gerência do serviço
poderá estar a cargo de profissional de nível superior do campo da saúde. A equipe mínima do Centro
de Convivência e Cultura deverá estar assim constituída: 1 gerente e 3 oficineiros (nível médio e
superior);
VI - A implementação de um Centro de Convivência e Cultura deve ocorrer apenas em
municípios que já tenham construído resposta pública efetiva para os transtornos mentais severos e
persistentes. A rede SUS substitutiva destes municípios deve contar com cobertura adequada,
especialmente de CAPS. Os Centros de Convivência e Cultura não poderão dispensar medicação ou
prestar atendimento individual ou em grupo (psiquiátrico ou psicoterápico). Os Centros de
Convivência não são equipamentos assistenciais, mas espaços de articulação com a vida
quotidiana;
VII - A articulação dos Centros de Convivência e Cultura com os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), Centros de Saúde, Serviços Residenciais Terapêuticos, Programa de Saúde da
Família e outros dispositivos de saúde, da rede de assistência social, e de outros campos como os
do trabalho, cultura e educação, é fundamental para a reinserção social dos usuários e para o
fortalecimento dos laços comunitários;
VIII - Pessoas com transtornos mentais decorrentes do uso de álcool e outras drogas, em
tratamento na rede substitutiva, também poderão ser acolhidas pelos Centros de Convivência e
Cultura. Esta questão, por suas peculiaridades, será objeto de formulação específica;
IX - Os Centros de Convivência e Cultura devem ser estimulados a realizar parcerias com
associações, órgãos públicos, fundações, ONG, empresas ou outras entidades, para captação de
recursos financeiros ou equipamentos, realização de oficinas, troca de informações ou saberes, entre
outras ações;
X - Os Centros de Convivência e Cultura são equipamentos estratégicos para a inclusão social
das pessoas com transtornos mentais, sendo recomendados para os municípios com mais de
200.000 habitantes.
240

Art.2º - Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

JORGE SOLLA
Secretário

PORTARIA Nº 396/SAS, DE 07 DE JULHO DE 2005

Observações
1) Trata de diretrizes para o Programa de Centro de Convivência e Cultura.
2) Deveria ser uma portaria Interministerial.
3) Os Centros de Convivência não se constituem Unidades de Saúde, e a PT diz da
necessária articulação com os CAPS e que a gerência do serviço poderia estar
vinculada ao um profissional da Saúde.
4) Os recursos humanos (oficineiros, artistas plásticos não compõem o quadro de
RH da Saúde).
5) Portaria não estabelece forma de financiamento.
Quanto ao mérito – os Centros de Convivência são importantes equipamentos para
socialização e inclusão social deve ser oferecida à população, pois fortalecem o
processo de Reforma psiquiátrica instituída no Brasil, entretanto deve ser um esforço
conjunto do MS e outros Ministérios.

SUGESTÃO: Manter suspensa por mais 60 dias, formar um grupo de trabalho para
aprofundar as negociações interministeriais e apresentar à CIT.
241

ANEXO 6 – Programação I Encontro

09/05/2018 – UERJ – 11º andar – auditório 111

PROGRAMAÇÃO
9:00 – Mesa de boas-vindas – Mesa de Abertura do evento
Assessoria Técnica de Trabalho, Renda e Cultura – SMS/ Rio (Marcela Weck e
Raquel Silva)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Incubadora Tecnológica de Cooperativas - ITCP- IFRJ – campus Realengo/ Guia
Prático Dá Para Fazer! (Neli Maria de Almeida)
9:30 – Mesa da Manhã: Experiências em Debate – Trabalho e Renda, Cultura e
Saúde Mental
NOT – Núcleo de Oficinas e Trabalho – Campinas – SP (Carol Con Luiz)
Centro de Convivência Paula Cerqueira – Carmo – RJ (Catarina Guida e Erica
Victório)
Centro de Convivência e Cultura de Niterói – RJ (Francisco Verani e Petrônio
Ornellas)
Centro de Convivência e Cultura da zona Oeste – Campo Grande – RJ (Fagner
Medeiros)
Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho – Engenho de Dentro – RJ
(Fabiane Mendonça e Nádia Soares)
Polo Experimental – Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea – Jacarepaguá –
RJ (Raquel Fernandes)
12:00 às 13:00 – Intervalo
13:00 – Homenagem ao Paul Singer e Lançamento do Manual “Dá Para Fazer!
Guia Prático de Economia Solidária E Saúde Mental”
Apresentação da metodologia dos Grupos de Trabalho
14:00 - Mesa da Tarde: Políticas públicas e Movimento Social – O que
queremos construir?
Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia – Coope/UFRJ (Gonçalo Guimarães)
Núcleo Estadual do Movimento da Luta Antimanicomial (Paulo Sergio)
14:30 - Composição dos Grupos de Trabalho
16:00 - Plenária Final
Aprovação das propostas dos GTs e da “Carta dos Centros de Convivência: Cultura
e Cooperativismo – RJ” INFORMAÇÕES : itcp.creal@ifrj.edu.br / Inscrições gratuitas no
local do evento!
242

ANEXO 7 – Carta de Propostas

Carta de Propostas de Centros de Convivência, Cooperativismo, Arte e Cultura


I Encontro de Geração de Trabalho e Renda, Cultura e Saúde Mental
UERJ, MAIO DE 2018

Nós, trabalhadoras, trabalhadores, usuárias, usuários, familiares e estudantes,


participantes do I Encontro de Geração de Trabalho e Renda, Cultura e Saúde
Mental: Políticas Públicas, Centros de Convivência, Inclusão Social pelo Trabalho e
Programas de Arte e Cultura, exercendo o protagonismo político que nos cumpre,
vimos manifestar nossa preocupação face ao atual momento da Reforma
Psiquiátrica trazendo propostas necessárias ao seu enfrentamento.
Na atual conjuntura, constatamos a grave ameaça de retrocesso representada pela
política governamental para a atenção às pessoas que usam a Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS). Tal política se coloca em
clara contradição com nossa valiosa prática do cuidado em liberdade, ferindo,
ademais, a garantia constitucional da saúde como direito de todas e todos e dever
do Estado.
Reivindicamos, pois, ao poder público, principalmente às esferas municipais e
Estadual do Rio de Janeiro, a adoção de uma política decidida e coerente no âmbito
da atenção psicossocial, em apoio aos Centros de Convivência, e às iniciativas de
trabalho, cooperativismo, arte e cultura segundo os princípios da Reforma
Psiquiátrica Brasileira e do SUS, que vimos tão arduamente sustentando no
cotidiano das nossas redes.
Reunidos no Encontro que contou com a presença de cerca de 200 representantes
de instituições de diferentes regiões do Estado, debatemos as experiências dos
Centros de Convivência, as Políticas Públicas e o Movimento Social da Luta
Antimanicomial. Os participantes se organizaram em grupos de trabalho, e
elaboraram propostas para Centros de Convivência, a partir de 3 eixos:
Legislação/Financiamento; Infraestrutura e Formação. Na plenária final foi
deliberada a criação do Fórum Permanente dos Centros de Convivência do Estado
do Rio de Janeiro, e foram aprovadas as seguintes propostas e estratégias para
implantação e implementação de Centros de Convivência no Estado do Rio de
Janeiro.

Legislação e financiamento para os Centros de Convivência


1. Publicação de Portarias Municipais e Estaduais para implantação de Centros de
Convivência com previsão de infraestrutura e recursos humanos, definindo formas
de incentivo e financiamento para sua implantação e manutenção de grupos de
trabalho e ações de arte e cultura.
2. Desenvolver marcos legais regionais que possam fomentar a ampliação e/ou
produção de Centros de Convivência, contemplando inclusive a possibilidade do
estabelecimento de um financiamento específico para esse dispositivo;
243

3. Construção e proposição de um Projeto de Lei Municipal (Rio de Janeiro) “Paul


Singer”, que trata dos empreendimentos econômicos solidários do campo da saúde
mental, a ser pautado pela Frente Parlamentar de Saúde Mental.
4. Políticas públicas intersetoriais entre as Secretarias de Saúde/Cultura/Turismo,
Trabalho e Renda e Transporte, que regulamentem e fomentem atividades de arte e
cultura como imprescindíveis na promoção de cuidado, garantindo-se o acesso livre
aos meios de transporte de circulação na cidade.
5. Regulamentação de uma lei estadual que crie incentivo para implantação e
implementação dos Centros de Convivência Arte e Cultura.
6. Regulamentação de uma lei estadual para o transporte público gratuito que
atenda a todos os vínculos dos usuários e familiares junto a RAPS, permitindo a livre
circulação deste público.

Infraestrutura dos Centros de Convivência na Rede de Atenção Psicossocial


7. Garantir a construção de sedes próprias para Centros de Convivência e
Cooperativismo através de orçamento participativo público, pleiteando recursos
públicos no plano plurianual e na lei orçamentária da Cidade /Estado.
8. Garantir espaço para escoamento e comercialização dos produtos elaborados nos
grupos de trabalho (cooperativas).

Formação e capacitação de Recursos Humanos para os Centros de


Convivência
9. Garantir educação permanente de profissionais e/ou usuários nas instituições
públicas e privadas de ensino, pesquisa e extensão, visando capacitação em saúde
mental e economia solidária.
10. Fomentar educação permanente sobre a temática da inclusão social pelo
trabalho, salientando a importância das diversas frentes de investimento, tais como
cooperativismo social e economia solidária, inserção no mercado formal, entre
outras.
11. Garantir a educação permanente dos profissionais e/ou usuários para
desenvolver atividades de arte e cultura.

Estiveram presentes no Encontro participantes das seguintes instituições:


CAPS AD BARRA DO PIRAÍ
CAPS AD MUSSUM
CAPS AD RAUL SEIXAS
CAPS AD RESENDE
CAPS AD TRES RIOS
CAPS ANGRA DOS REIS
CAPS CLARICE LISPECTOR
CAPS DIRCINHA BATISTA
CAPS EAT
CAPS ERNESTO NAZARETH
244

CAPS FRANCO BASAGLIA


CAPS JOÃO FERREIRA
CAPS LIMA BARRETO
CAPS MANOEL DE BARROS
CAPS NEUSA SANTOS
CAPS PATY DOS ALFERES
CELSO LISBOA
CENTRO CULTURAL JAIR NUNES
CENTRO DE CONVIVÊNCIA - Ceccozo
CENTRO DE CONVIVENCIA ARTE CRUZ
CENTRO DE CONVIVENCIA NITERÓI
CENTRO DE CONVIVENCIA PAULA CERQUEIRA
CENTRO DE CONVIVENCIA TRILHOS DO ENGENHO
CLINICA DA FAMILIA ESTÁCIO DE SÁ
COLONIA JULIANO MOREIRA
CONSULTÓRIO NA RUA
COOPERATIVA DA PRAIA VERMELHA
CPRJ
EAT
FACHA
FACULDADE DE ENFERMAGEM UERJ
FIOCRUZ
FÓRUM DE ECO SOLIDÁRIA
FORUM ECO SOL MESQUITA
GERAÇÃO DE RENDA
HOSPITAL JURANDIR MANFREDINI
HOSPITAL JURUJUBA
HOSPITAL MUNICIPAL DE CARMO
IFRJ / CURSO DE TERAPIA OCUPACIONAL
IMPP
IPUB HOSPITAL DIA/CAD
MINISTÉRIO DO TRABALHO
MUSEU BISPO DO ROSÁRIO
NISE DA SILVEIRA
ONG ARTE DE TODO LUGAR
PAPEL PINEL
PREFEITURA BARRA DO PIRAÍ
PROJETO GERAÇÃO DE RENDA / RESENDE
PROPED
PUC
RESIDENCIA SMS
RESIDENCIA CPRJ
SAÚDE MENTAL
245

SECRETARIA DE SAÚDE VOLTA REDONDA


SEPLAG - FÓRUM DE ECONOMIA SOLIDÁRIO DE VOLTA REDONDA
SUBSECRETARIA DA PESSOA COM DEFICIENCIA
SUPERINTENDENCIA SAÚDE MENTAL
TV PINEL
UERJ
UERJ LETRAS
UERJ PEDAGOGIA
UFF
UFRJ / CURSO DE TERAPIA OCUPACIONAL
UNIDADE DE ACOLHIMENTO
UNIFESO
UNIPSI RIO
UNISUAM
UNIVERSIDADE ESTACIO DE SÁ
VEIGA DE ALMEIDA
246

ANEXO 8 – Relatos dos Fóruns

I Fórum dos CECOs do RJ – Maracanã – 28/06/2018


UERJ – PPFH
Havíamos reservado uma sala no PPFH (políticas públicas e formação
humana) na Uerj onde cabiam no máximo 30 pessoas. O tamanho da sala tinha sido
alvo de vários debates e considerações entre nós organizadoras do guia. O I
Encontro deliberou a criação do Fórum e que sua primeira reunião seria novamente
na Uerj, mas quem viria nesse Fórum? Qual é o seu propósito? Quem se sente
“pertencente” a este debate? Trabalhadores, gestores, frequentadores de centro de
convivência, dos CAPS, de outros serviços da RAPS, da ECOSOL, estudantes,
estagiários, residentes, professores, artistas, militantes se fizeram presentes.
Pessoas que estiveram presentes no Encontro e pessoas que estavam ali
participando pela primeira vez.
Era o primeiro Fórum, tínhamos uma pauta e nenhuma certeza. Com meia
hora de início, precisamos mudar de sala. Éramos mais de 50. Nosso primeiro ponto
foi avaliar o Encontro. Foram relatos muito positivos sobre a necessidade e
importância de um conhecer um o trabalho do outro, dar visibilidade às experiências,
construir conceitos sobre as práticas e constituir um movimento político. Houve uma
crítica geral sobre ter mais tempo para conversar com mais vagar e tranquilidade, e
a sugestão de que o próximo Encontro ano que vem deve durar dois dias.
Fazemos a leitura da parte inicial da carta com alguns pequenos ajustes e
depois a leitura e aprovação de cada item das propostas que estão organizados em
três eixos: legislação e financiamento, infraestrutura e formação. Contamos com a
presença do vereador Reymond, que preside a frente parlamentar de economia
solidária e está prestes a assumir a presidência da frente parlamentar de cultura que
era nossa Mariele a presidente. Ele nos dá várias dicas importantes, como por
exemplo que precisamos constituir um GT, um grupo de trabalho específico para
discutir a questão da legislação. Ao final do fórum, tiramos uma comissão composta
de 6 pessoas para discutir essa proposta Legislativa. Pactuamos também que os
foruns serão itinerantes e o próximo fórum será no centro de convivência da Zona
Oeste com data a definir. Ficou pactuado também a criação de um espaço virtual,
um blog, além do Facebook. E também criamos um grupo de WhatsApp.
247

Pactuamos que além da assinatura institucional na carta contaremos com


assinaturas individuais conforme foi sugerido por Hamilton Assunção. Ester sugeriu
que no encontro tivéssemos uma festa, um momento em que pudesse se celebrar,
que pudéssemos contar com as produções das diversas iniciativas. Definimos como
pauta do próximo encontro a luta por uma audiência pública sobre Centro de
Convivência. Também discutiremos a questão da formação e da comercialização dos
produtos dos grupos de economia solidária. Outro ponto a ser discutido é a questão
da nomenclatura a ser usada em nossos documentos.

II Fórum dos CECOs do RJ – 29/08/2018 – Campo Grande


Centro de Convivência e Cultura da Zona Oeste

Chego na Lona Cultural Elza Osborne, em Campo Grande, todos estão


reunidos compondo uma roda, no centro há uma mesa com café e biscoitos, me
apresento. Somos cerca de 30 pessoas sob a lona verde. Logo em seguida entra
também na roda Aline, a coordenadora da Lona, que faz muito mais do que se
apresentar. Ela partilha conosco uma bela narrativa.
Aline conta que já existia uma parceria entre a cultura e a educação, que ela
como professora já havia experimentado o uso da cultura como um meio de fazer
respirar e “desestressar” os professores nas escolas. Mas com a saúde era algo
desconhecido, que ela não sabia como poderia fazer isso na prática. Janaína trouxe
a proposta de o Centro de Convivência funcionar na Lona. A gente que usa a Lona
agora é a gente que também usa CAPS, CAPSi, Clínica da Família, abrigo.
O primeiro dia de aula foi inesquecível. No primeiro dia de aula, os grupos
sempre fazem um esquete de 15 minutos e se apresentam. Após a apresentação se
costumava fazer críticas, não viam a potencialidade, mas sim os defeitos, as falhas,
se apontava o que precisava ser de outro jeito. “Você precisa falar mais para fora,
mais alto.” Os usuários da saúde, ao contrário, mesmo com toda a perturbação e
dificuldade de ser incluído numa sociedade que os exclui o tempo todo, são
extremamente positivos ao olharem para o outro. Eles destacaram, após os
esquetes, o que havia de melhor em cada apresentação. “Nossa, parabéns, como
você foi bem!” Isso a fez pensar que a gente dá o que a gente tem, e que há ali
muito amor para dar.
248

Ela e outros presentes narram diversas situações que mostram como a


Lona/Ceccozo tem contribuído para que as pessoas possam ser sujeitos da própria
história. Ficamos muito emocionados com as histórias que estão sendo construídas.
“Isso aqui me deu a razão de estar viva! ” É a fala de uma mulher. No último sarau
se encontraram cerca de 215 pessoas de diferentes espaços, ali na Lona. O que nos
faz refletir como a cultura pode trazer leveza, fazer questionamento e ser
transformadora.
Temos uma pauta prevista: mobilidade urbana, formação, comercialização,
legislação e divulgação da carta. Mas qual é a pauta real daquele encontro?
Refazemos a pauta acolhendo as demandas daquele tempo e espaço.
Neli pergunta: como é a relação no território com as Lonas Culturais?
Pergunta que enuncia que o modo como aquela parceria de sucesso se deu,
pode inspirar e se dar em outros territórios.
Uma mãe conta como a troca de experiências promove o aprendizado para
lidar com as dificuldades da vida. “Uma mãe vai aprendendo com a outra.”
“Quando um CAPS dá muito certo, ele vira um Centro de Convivência. E se
ele vira um Centro de Convivência, isso cria um problema para ele.” Isso faz sentido
para todos?
Contamos com a presença de trabalhadores de CAPS de outros bairros da
Zona Oeste onde também há Lonas Culturais que participam desta discussão.
Temos desejo de fazer coisas novas, a gente faz “cavucando”.
Com outras Lonas podem funcionar assim?
No CAPS Neusa já há uma parceria com Lona em que fazem um sarau
itinerante pelo território, num primeiro momento, voltado para a área da saúde.
Como pensar em estratégias de implantação de CECO via Lona?
Trabalhadores do Centro de Convivência de Niterói trazem a discussão da
diferença entre contato e parceria. Com os pontos de contato do território se fazem
eventos pontuais como a aquisição de ingressos para atividades específicas. Com
os parceiros se estabelece uma relação de mão de dupla, em que precisamos
combinar o que vamos oferecer.
Os Centros de Convivência são de partida intersetoriais, pois têm interface
com saúde, cultura, trabalho e educação. Nesta Lona se oferece aula de circo, hip
hop, grafite, teatro. Esse movimento está provocando a gestão a pensar os centros
249

de convivência. Foi realizada uma reunião com as coordenações dos CECOS do Rio
e a Superintendência, e um projeto de criação de um CECO por área programática
está sendo formulado.
Como transformar a carta em instrumento de luta?
Fica combinado que Aline agendará com os coordenadores das Lonas de
Bangu e Realengo um encontro com as equipes dos CAPS desses bairros com o
objetivo de criar uma parceria entre saúde e cultura também nesses territórios.
Lemos as mensagens da Bel, designer gráfica, sobre as estratégias de
comunicação e divulgação do Fórum e Carta: lançar site dia 03/09; divulgar site com
carta via wa e fb; fazer e-mail de apresentação para as frentes parlamentares,
universidades e parceiros intersetoriais informando sobre novo site.
“Os CECOS já existem, o que queremos é o reconhecimento!”
“Entre sorrisos e choros, há mais sorrisos do que choros.”
O III Fórum de Centros de Convivência do RJ será em 04/10, quinta, 14h,
Niterói. Levaremos cartas impressas para divulgação e coleta de assinaturas.

III Fórum de CECOs RJ – Niterói – 04/10/2018


Museu de Arte Contemporânea

Ao chegarmos no Museu de Arte Contemporânea, fomos gentilmente


recepcionados pela equipe do Centro de Convivência e Cultura de Niterói. No
auditório organizado em formato de roda, as cadeiras foram pouco a pouco sendo
ocupadas ao som de uma melodia de sax e violão ativadora de sensibilidade.
Iniciamos o Fórum com a presença do atual coordenador de saúde mental da
cidade, que destacou a importância da integração entre os diferentes setores para a
realização deste trabalho, o que ficou visível pela diversidade de parcerias
agenciadas pelo CECO: Teatro Municipal, Biblioteca Parque, Caminho Niemeyer,
Famath, Universo, Aufa, Escola de Gastronomia, Artes e Ofícios, MAC, SESC,
Cineclube, além dos serviços da rede de saúde.
Após a emocionante leitura de um texto inaugural pela coordenação do Ceco,
cada uma das mais de 70 pessoas presentes se apresentou. Somos trabalhadoras e
trabalhadores da rede, usuárias e usuários, estudantes, familiares, parceiros, somos
todxs conviventes!
250

Temos uma fala de contextualização deste movimento tão aberto, diverso e


intersetorial, em que o comum talvez seja a humanização das cidades, essa tal
“delicada arte de produzir encontros”. Escutamos histórias de vida, relatos de
experiência, depoimentos em primeira pessoa, em terceira pessoa, do lugar de
quem se beneficiou da ação da convivência, do lugar de quem trabalhou para que
essa convivência acontecesse, do lugar de quem recebeu, acolheu, do lugar de
quem se arriscou e foi.
O tema do trabalho é muito forte e presente nas falas, nos faz pensar que no
Centro de Convivência e Cultura também cabe o trabalho, quando esta é uma
direção. Parece que há neste trabalho uma direção de ir juntos. “Onde nós estamos,
vamos juntos.” O samba de Dicró é lembrado:

Domingo de sol adivinha pra onde nós vamos


aluguei um caminhão
vou levar a família na praia de Ramos

Fazemos um intervalo em que nos servimos de delícias preparadas com


muito afeto e trocamos mais afeto nas conversas fora da roda. Ao retornar, nos
concentramos em criar respostas para a questão: o que deve ter no Centro de
Convivência que não pode faltar de jeito nenhum?
Conversas, pessoas que entendem a gente, união, fidelidade, harmonia,
apoio, acolhimento melhor, coordenador, supervisor, psicólogo, apoio da Prefeitura,
van, ônibus, música, oportunidade de cursos e de trabalho, vale-social, registrar
ações realizadas.
O tema do vale-social/passe livre retorna como algo imprescindível para a
circulação na cidade. Essa é uma bandeira de luta não só dos Centros de
Convivência, mas se atualiza na essencialidade desse direito para a realização das
práticas culturais, artísticas e de lazer no trânsito entre os espaços públicos. Surge
então a palavra tratamento, pois se é para o tratamento, esse direito de transitar no
transporte sem pagar parece estar assegurado, ainda que com restrições. Algumas
falas defendem o Centro de Convivência como tratamento. É isso que se quer?
Afirmá-lo como tratamento? Quem trata trata o quê? A quem o Centro de
Convivência se dirige? É afirmada a necessidade de diálogo entre equipes CAPS-
CECO. No fim, temos uma entre muitas definições possíveis do que é tratamento:
“tratamento é saúde, é se soltar para o mundo, é viver a vida cotidiana”. Fica
251

combinado que voltamos a nos encontrar dia 28/11, às 13:30, quarta-feira, no Centro
de Convivência Trilhos do Engenho.

IV Fórum dos CECOs – Engenho de Dentro – 28/11/2018


Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho

Na trilha para o Trilhos do Engenho, dentro do Instituto Nise da Silveira, fomos


recepcionados por belas bonecas coloridas que sinalizavam o caminho para chegar
até o Centro de Convivência onde aconteceu o IV e último Fórum deste ano. O salão
repleto de cadeiras já se encontrava com muitas delas ocupadas, o livro já continha
várias assinaturas. O momento era esperado. As pessoas que vieram de outras
cidades estavam curiosas por conhecer o espaço. Fomos guiadas pelas instalações
do Trilhos e de seu vizinho Ponto de Cultura Loucura Suburbana. Iniciamos o
encontro numa tarde calorosa com a fala emocionada da coordenadora do espaço,
seguida pela apresentação de cada membro da equipe e de seus parceiros.
Parceria. Palavra transversal que marca o modo de funcionar dos Centros de
Convivência em diferentes territórios, ali se fez presente em diversos relatos. “Ela
veio fazer um pedido e acabou fazendo um favor.” Fala de parceiro que abriu espaço
e ganhou um monte de gente, movimento, vida. Ocupar espaços, oferecer
atividades, movimento de mão dupla, virtualidades que se realizam quando o que
vale é acreditar junto no que a gente quer. O que a gente quer? Sair da caixinha,
experiência, formação de curta duração e intensa afetação, transformar a cidade em
lugar de prazer e troca e não só de violência e medo, provocar intervenções
urbanas.
A direção do Instituto Nise da Silveira nos fala que o Instituto está em franco
processo de desconstrução. Nos últimos tempos 251 pessoas voltaram para suas
casas ou foram morar em residências terapêuticas, são pessoas que estiveram por
20, 30 anos internadas. Ela traz a memória de que exatamente ali, onde nos
encontrávamos, naquele amplo salão de piso cerâmico, que ficou pequeno pelo
tanto de gente, naquele salão de paredes enfeitadas com bonecas coloridas,
fazendo acontecer o IV Fórum dos Centros de Convivência, existiam muitas pessoas
internadas há poucos anos. O Centro de Convivência e Cultura também precisa
252

dispor de sua independência no território, ao mesmo tempo que se afirma a


importância de que outros serviços venham a substituir o atendimento tradicional. É
preciso ampliar a saúde mental, uma saúde mental que inclua a cultura, o lazer, a
formação, o esporte. O projeto é construir o Parque Nise da Silveira.
Há um movimento de alegria e encantamento em torno dos Centros de
Convivência, junto com um convite para carnavalizar, pois o fim do ano já é começo
da agenda de blocos: Tá Pirando, Pirado, Pirou!, Loucura Suburbana, Zona Mental,
Império Colonial, Loucos pela Vida. Carnavalizar é também conviver.
A roda continua girando e a palavra circulando, são muitas as frases
pronunciadas que nos tocam:
“Antes eu era bicho do mato, não conseguia ir no portão, hoje vou no Centro
da cidade, sou apaixonado pela vida que tenho!”
“Vivendo e aprendendo com as pessoas é que a gente consegue sobreviver.”
“Quando cheguei aqui era o hospital Pedro II, hoje na aula de pintura sou a
mais velha, mas me sinto igual.”
“Acessamos coisas que a gente não consegue acessar sem o Centro de
Convivência. Saúde não é só medicamento.”
“Aprendi a estimar o conhecimento que se adquire com eles.”
“Sou muito realizado por manter a oficina de vender pães!”
“Nosso trabalho é fortalecer a cultura pelo bairro, a gente vai derrubando
muros, ou subindo pelas paredes.”
“Atendo muita gente que não saía nunca, o centro de convivência é um
trampolim para passar a sair sozinha.”
“No grêmio, nós somos uma equipe, essa sala é uma sala de aconchego,
recebemos com muito amor e carinho.”
“A gente precisa ter algo pra fazer, alguém pra amar, e esperança no futuro.”
O tempo corre enquanto a palavra passa por todas as bocas que se
apresentam e contam o que fazem ali. Debatemos e decidimos fazer o intervalo para
o lanche. As bocas que acabaram de falar ficam cheias, e o salão depois do
intervalo fica mais vazio, mas ainda bastante ocupado.
Temos uma pauta-tarefa: discutir uma proposta de iniciativa legislativa que
garanta financiamento e outros pontos que faça avançar a política dos CECOS. Toda
253

pauta tem uma história, condições de possibilidade para sua emergência. Como
esse contexto se configurou? Abram-se os parênteses.
(No Encontrão de maio na Uerj, confeccionamos a carta de propostas para os
CECOS do RJ, um dos eixos é a legislação, pois identificamos que os CECOS não
têm financiamento próprio e parâmetros de funcionamento. Durante o I Fórum, por
sugestão do Reymont, vereador que preside a Frente Municipal de Economia
Solidária, tiramos uma comissão composta por 6 participantes do Fórum para
elaborar uma proposta de iniciativa legislativa. Pensamos que seria interessante
uma articulação com a Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica da
ALERJ, e ficamos mais animados depois de setembro ao saber da aprovação do
Projeto de Lei 8.154/2018. de autoria do Flavio Serafini, deputado que preside esta
Frente, em que o Estado do RJ se torna cofinanciador dos seguintes serviços da
RAPS: CAPSIII, CAPSi, CAPSadIII, Serviço Residencial Terapêutico, Unidade de
Acolhimento, Unidade de Acolhimento Infantil. 65 Fomos até a reunião da Frente do
dia 30/10/18, que seria a última do ano, se não houvéssemos demandado uma nova
reunião com a pauta CECO. Encontramos uma roda muito diversa composta por
atores do legislativo, usuários, militantes históricos da luta antimanicomial, familiares
que perderam entes amados pela violência psiquiátrica, trabalhadores recém-
demitidos da saúde do município do Rio, pesquisadores, estudantes, gestores,
professores, todos implicados com a defesa da Reforma Psiquiátrica. Vale lembrar
que tivemos as eleições presidenciais dois dias antes, com um resultado nada
favorável para quem defende a democracia e está à esquerda. Os tempos sombrios
que parecem se aproximar despertam a sede de coletivo, estamos unidos, ainda que
com uma sensação de fragilidade. Apresentamos a carta de propostas e nos
comprometemos a trazê-la na reunião seguinte com centenas de assinaturas, além
de um esboço de iniciativa legislativa construído junto com o IV Fórum.)
No intervalo ficamos, com uma hesitação. Como trazer essa discussão de
modo que possamos mais ouvir do que falar? Tínhamos um esboço preparado pela
comissão de legislação, era esboço, portanto, inacabado. Queríamos partilhá-lo com
todos os participantes do Fórum, mas apenas como um ponto de partida.

65 O artigo 3º, que determina que o Estado seja cofinanciador da RAPS, foi vetado pelo governador.
Coincidentemente, no dia 29/11 o governador foi preso de manhã e à tarde houve a votação na Alerj
desse veto, que foi derrubado. A lei foi publicada em 11/12/2018 (DO), e essa conquista garantida.
254

Retomamos o trabalho com uma brevíssima contextualização, seguida da


pergunta: o que não pode faltar num Centro de Convivência? Uma mulher
prontamente responde: MÉDICO! Trocamos olhares cúmplices entre quem acredita
que o CECO pode ser uma via para desmedicalização da vida, indagando em
silêncio como pode caber um médico numa equipe que pretende promover saúde
sem medicalizar. Tentamos compreender melhor o que estava sendo pedido com a
palavra médico. A usuária afirma que tem que ter alguém em quem ela possa
confiar, profissionais de saúde. Nossos saberes são desmontados e remontados nos
encontros com quem usa o dispositivo. Penso que se conviver é manejar
controvérsia, estamos ali também no Fórum convivendo, é preciso operar essa ética,
em que múltiplas forças em tensão coemergem.
Discutimos sobre quem seria a equipe do Centro de Convivência. Oficineiro
pode ser um cargo? Temos esse profissional na RAPS, mas não na CBO
(Classificação Brasileira das Ocupações). Como traduzir esse fazer? Instrutor?
Professor? Artesão? Educador social, popular? Reconhecemos que não sabemos e
deixamos essa tarefa para a equipe legislativa.
A gratuidade de transporte público para a participação nas atividades do
CECO retorna com força. Uma pessoa destaca a importância de usar o transporte
público e não ter uma van, kombi ou ônibus institucional. Circular na cidade é
tratamento. Há o pedido de inclusão no texto do aumento do número de passagens
para quem frequenta Centro de Convivência.
Estamos mobilizados a participar na semana seguinte da reunião da frente
parlamentar, cuja pauta é o Projeto de Lei que recém-discutimos; indicamos a
realização do V Fórum em março /2019, o II Encontrão em maio na Uerj, e
queremos fazer acontecer em 2020 uma agenda de projetos coletivos, mostra de
práticas, que possa percorrer junto a cidade, unir os blocos de carnaval, seja num
grande desfile na avenida Rio Branco depois do Cacique de Ramos, ou em um
grande baile. Boas festas, vamos juntos e em frente!

V Fórum dos CECOs RJ – Botafogo – 26/03/2019


Núcleo de Intervenções Culturais – IMPP
255

O V Fórum teve a peculiaridade de acontecer em uma região da cidade do


Rio que não conta ainda com um equipamento Centro de Convivência: a zona
Centro-Sul. Contudo, o movimento foi acolhido pelo NIC, Núcleo de Intervenções
Culturais, composto pela TV Pinel, Papel Pinel, Shoppinel e Cooperativa da Praia
Vermelha. Contamos também com o relato da experiência de inclusão no mercado
formal de trabalho, o PISTRAB, que segue ampliando sua esfera de atuação.
Começamos com a exibição de um belo vídeo produzido pela TV Pinel, de uma série
chamada Relatos da existência. Assistimos Morar em liberdade, que nos brinda com
o viver fora do manicômio de Barbacena.
As iniciativas locais têm em comum o fato de serem pioneiras, de muitas
persistirem por mais de vinte anos e de em sua maioria permanecerem sediadas
dentro do Instituto Pinel. É feita uma provocação de pensar quais são as vicissitudes
naquela área que impedem a criação de um Centro de Convivência. Já foram feitos
muitos movimentos para isso acontecer, precisamos nos debruçar na questão: quais
são os impasses e barreiras? Como fazemos para avançar?, já que a zona Centro-
Sul é um território tão potente e plural na criação de práticas artístico-culturais, de
geração de trabalho e renda e economia solidária. Em seguida vamos para a pauta,
e fica em mim uma inquietude, pois uma questão importante é levantada, mas não
nos debruçamos sobre ela. Sinto que embora não tenha se falado sobre isso, essa
pergunta pode ficar ecoando nos que estavam presentes e talvez futuramente se
desdobre em algo. Alguns relatos de experiências como a da Escola de Informática,
CDI, nos mostram como elas deixam uma marca positiva na história de trabalho e de
vida de quem faz parte delas.
Nós nos apresentamos, somos cerca de quarenta conviventes vindos das
zonas Norte, Sul, Oeste, Centro da cidade e de outras bandas do lado de lá da Baía
de Guanabara. Encontramos muitos estudantes de psicologia, vindos da aula que
mudou de lugar, saiu das paredes da sala da faculdade e foi dialogar e conviver em
Botafogo. Falamos sobre a audiência pública que é no dia seguinte na Alerj e
tentará derrubar o veto da lei que torna o Estado cofinanciador da RAPS. Faixa e
cartazes foram preparados para levar lá!
Conversamos sobre a Liga da Saúde Mental Unida (LISMU): há uma proposta
de fazer um desfile unificado dos blocos (Tá Pirando, Loucura Suburbana, Zona
256

Mental, Império Colonial, Tremendo nos Nervos, Loucos pela Vida e possíveis
outros) no ato da luta antimanicomial deste ano que vai acontecer na sexta dia 17 de
maio às 13h, na Carioca, o que precisará ser articulado com os blocos e com as
reuniões do movimento da luta, que acontecem na Uerj, às quartas, às 18h. É
montada uma comissão em prol da LISMU que visa articular os blocos (Oswaldo,
Lucia, Neli, Janaína, Thiago, Caroline, Vera, Denise, Ana Rangel, Eni, Patrícia).
Futuramente, quem sabe teremos uma escola de samba que desfilará na Intendente
Magalhães, em Campinho, berço do samba.
Pausa para o lanche. Bolo de chocolate delicioso. Retomamos falando do II
Encontrão. Em maio temos uma agenda cheia de eventos. Pensamos juntos que o II
Encontro seja o momento de trazer o protagonismo dos usuários na formação e na
convivência. Alguns dos presentes já são sondados para compor uma mesa. Há
sugestão de que cada centro de convivência/projeto/serviço indique um usuário que
gostaria de contar sua experiência. O local do evento poderá ser na Uerj, pela
facilidade do acesso. A data inicial proposta é uma sexta, 11/05 (ainda a ser
confirmada por questão de logística).
Por último falamos sobre as conferências de saúde, em que as propostas
relativas aos CECOs conseguiram ser aprovadas nas distritais das áreas 5.1 e 3.2 e
chegarão até a etapa municipal. Precisamos lutar para que passem para a etapa
estadual.
O VI Fórum acontecerá no Polo Experimental da Colônia, em Jacarepaguá,
às 10h dia 16/04, terça-feira, quando daremos continuidade à construção coletiva
iniciada neste dia. Estamos todxs convidadxs!
No final, somos presenteados com as músicas do Tá Pirando, Pirado, Pirou!
O samba da Mangueira 2019 virou nosso hino nacional, Marielle vive! Cantamos
juntos as canções da reexistência! Ninguém solta a mão de ninguém!

VI Fórum dos CECOs do RJ – Jacarepaguá – 16/04/2019


Polo Experimental
Chegamos ao Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura em
uma manhã ensolarada. O Polo está situado em uma área com muito verde em
volta, tem ao seu lado o CAPS Bispo do Rosário e em frente um campo de futebol.
257

Longa estrada, longa caminhada para chegar até lá. Há uma grande roda à
esquerda da entrada. Começamos pela apresentação de cada um, somos um pouco
mais de trinta conviventes. Em seguida, temos uma contextualização para quem
estava chegando ao Fórum pela primeira vez. O Fórum é espaço aberto de
construção coletiva das políticas de Centro de Convivência, arte, cultura, trabalho e
demais intersetorialidades. Por ser itinerante, permite a visitação e o intercâmbio
entre experiências e amplia a participação dos parceiros locais. A pergunta “o que
nos impede de crescer mais e como podemos avançar?” nos faz seguir. Naquele
espaço, o Centro de Convivência está ligado ao Museu Bispo do Rosário e oferece
oficinas de bordado, costura, culinária, mosaico, bloco de carnaval Império Colonial,
passeios, bistrô restaurante e a Loja B, que são pontos de venda fixos. É feito um
convite para o Simpósio A estratégia de desinstitucionalização no SUS, que
acontecerá no auditório da sede do Instituto Juliano Moreira nos dias 30 e 31/05.
Também somos convidados a visitar a exposição recém-inaugurada chamada Eu
vim me apresentar no Museu Bispo. Damos os informes dos andamentos do projeto
de lei dos CECOs e da participação na audiência pública para a derrubada do veto à
lei em que o Estado se torna cofinanciador da RAPS, que foi vitoriosa.
Vamos para a pauta da organização do 18 de maio. O evento no Circo
Voador será no próprio 18, sábado, e se chamará I Circular da Loucura, das 9h às
15h. É lembrada a importância de aproximar a cultura e a diversidade cultural no
evento como uma força a mais. Não há uma instituição organizadora, mas são
pessoas, coletivos diversos que se unem em torno de uma causa em comum. Isso
nos remete ao Fórum Social Mundial, aquele tipo de encontro sem autoria, que
ninguém sabe quem organiza, mas todo mundo vai. A programação começará com
uma entrância. Das 9 às 11h30 acontecerão as oficinas: ioga, percussão, capoeira,
palhaçaria, fotografia, entre outras. Das 11h30 às 13h haverá microfone aberto com
roda sobre Arte, Cultura, Democracia e Saúde Mental. Das 13h às 14h30 temos as
apresentações de palco. De 14h30 às 15h o cortejo saindo do Circo com os blocos
de carnaval. Ao longo do evento, haverá feira. Alguém pergunta: vai ter
apresentação minha? A resposta é outra pergunta: quanto tempo dura sua
apresentação? Isso depende do relógio da pessoa. O riso circula. Conversamos
sobre a feira, a associação com outros movimentos além da luta antimanicomial, e
debatemos o uso da moeda social na feira de artesanato, alimentos e produtos
258

agroecológicos. As experiências que já tivemos são memoradas. Os prós são:


facilita pela questão de troco, dispensa o manuseio com cédulas que sujam as
mãos, imprime o sentido da ecosol, mostrando que uma outra economia é possível.
Os contras são: dificuldade de compreensão de que a moeda social será convertida
em real, necessidade de aguardar até o fim da feira/evento para converter e ir
embora, uma pessoa disponível para ficar o dia todo no caixa. A avaliação desse
contexto, em que teremos um encerramento do evento na área externa ao Circo,
nos fez decidir por não criar uma moeda social específica para o I Circular da
loucura. Organizamos uma lista de grupos que desejam ocupar o espaço da feira
levando sua produção. Percebemos que neste Fórum temos a presença de todos os
CECOs do Estado: Ceccozo, Trilhos, Niterói, Carmo e Polo (anfitrião), nos
aplaudimos como meio de celebrar nossa união e força.
No dia 17/05, no ato da luta antimanicomial na Carioca-Cinelândia, os blocos
estão sendo chamados a se apresentarem. Os mais jovens estão se fiando de que
os mais antigos sustentarão o batuque com suas baterias e instrumentos. Con-fiar
significa fiar junto, confiança necessária ao trabalho, necessária à convivência.
Constatamos que será mais viável organizar o II Encontrão mais adiante pelo
excesso de eventos em maio. A presença de Carmo nesse Fórum nos faz pensar a
natureza do Fórum, sua finalidade, funcionamento e possibilidades. Pactuamos que
o VII Fórum dos CECOs será na cidade de Carmo, dia 14/08/19, uma quarta-feira.
Nos organizaremos para conseguir um ônibus que viabilize nossa viagem coletiva
que atravessará fronteiras de tempo e espaço!

27/06/2019 – Encontro na Secretaria Estadual de Saúde com


coordenadores de saúde mental e outros trabalhadores.

Encontramos um auditório com algumas pessoas e a nossa anfitriã que


também já é parceira do movimento. Observamos se é possível fazer uma roda,
para favorecer a circulação da palavra, mas percebemos que as cadeiras são fixas.
Outros companheiros atuantes no Fórum se unem compondo uma mesa em que
estão presentes as experiências de Carmo, Niterói e Rio de Janeiro. Traçamos um
histórico do movimento em prol dos Centros de Convivência até chegar na fase atual
259

do projeto de lei, lembrando as perguntas de trabalho que nos acompanham: o que


é um Centro de Convivência?; como conquistar mais gente para esse movimento?;
qual a melhor relação entre CAPS e CECO?
Em seu momento atual, o PL vai seguir para a comissão de orçamento da
Alerj, que para nós parece ser o maior desafio.
Conta-se um pouco sobre o funcionamento do CECO de Niterói, que
entende que o seu papel tem a ver com agenciar os usuários na cidade,
aproveitando os recursos que já existem nela. Esse agenciamento se dá tanto no
mundo do trabalho, ampliando as possibilidades de formação e empregabilidade,
como também no campo da cultura.
Partilha-se uma situação em que ao agendar um passeio em um parque
aquático o dono sugere fechar o parque nesse dia apenas para os frequentadores
do CECO, sob a justificativa de que uma vez uma pessoa de CAPS mordeu outra.
Responde que era importante o parque funcionar como em qualquer outro dia, com
todo tipo de frequentador habitual, e lembra a história do jogador de futebol que
mordeu o outro e continua jogando. Por que então não permitir a convivência por
isso? Os considerados não loucos muitas vezes fazem atrocidades maiores do que
os ditos loucos.
Na experiência de Carmo, se observa que há diferença entre as pessoas
que procuram o CECO e as que usam o CAPS. E que essa questão ainda merece
debate e reflexão. Relata uma cena em que uma profissional segurava o portão para
a pessoa não sair e isso a impressiona. Isso me faz lembrar o quanto nenhum
dispositivo está livre de reproduzir uma lógica manicomial, uma vez que este se
instaura nas relações.
Contamos uma situação em que uma pessoa veio com a família inteira para
o passeio e ao final a abraçou e agradeceu muito, pois há muito tempo não passava
o dia todo com a família toda fazendo alguma coisa interessante.
Macaé diz que eles têm Centro de Convivência na cidade e se interessam
em participar do próximo Fórum em Carmo.
Falamos também do II Encontrão, e o sonhado Encontro Nacional de
CECOs em 2020 no Rio de Janeiro.
Mangaratiba diz que na cidade ainda não tem, mas eles têm vontade de
fazer CECO. Gostou da ideia de Centro de Convivência para descentralizar. Elogia-
260

se o movimento, partilham conosco os motivos pelos quais na 3088 o CECO ficou


sem parâmetro de financiamento, e sinaliza que é equipamento de baixo custo, mas
que necessita financiamento para equipe mínima, ainda que estejamos “tirando leite
de pedra”. Ressalta a importância do CECO na atenção básica. Diz que o tema de
fato merece estudo, e que nesse momento devemos nos concentrar em estabelecer
formas de custear os CECOs.
Contamos com a presença de 17 municípios diferentes.
Todos são convidados a participar do próximo fórum em Carmo, dia 14/08.

VII FÓRUM DOS CECOS DO RJ – 14/08/2019 – Carmo


Centro de Convivência e Cultura Paula Cerqueira

O VII Fórum dos CECOs do RJ em Carmo começou a ser imaginado em abril


no Polo. Fomos aos poucos desenhando os caminhos que nos levaram a percorrer
200 km para ir e 200 km para voltar em um mesmo intenso dia. Foi necessário
mobilizar e acionar apoio institucional (Asfoc, Sindifrj, CRP) para viabilizar o
transporte/deslocamento das mais de 70 pessoas que saíram de diferentes pontos
da cidade do Rio de Janeiro (zonas Oeste, Norte, Sul, Centro) e conviventes de
outros municípios como Maricá, Nova Iguaçu, Niterói e Macaé. Fomos
acompanhando como as vagas no ônibus se ocupavam e se desocupavam em um
movimento de se aproximar-afastar-embarcar nessa viagem de militância
antimanicomial, política pública e convivência em busca da delicada arte de produzir
encontros. Novos interlocutores entram nessa rede de conversações, como os
estudantes da UFRJ que vieram em um ônibus acompanhados por sua professora
tocada pela proposta dos CECOs.
O dia estava frio e chuvoso, mas nossos corações estavam calorosos e
radiantes, pois ativamos as redes afetivas que colocam em ação a construção das
políticas públicas, entendendo que o público, no seu sentido mais democrático,
significa aquilo que conta com a participação popular. A viagem de ida foi embalada
por músicas, conversas, alguns enjoos e risadas: “Fica caRmo que já está
chegando!”
261

O ônibus chegou. Sentimos que éramos muito esperados. No Centro Cultural-


CECO da cidade, encontramos a equipe-Carmo que nos aguardava com muito
afeto. Até camisas comemorativas daquele dia haviam preparado para a ocasião do
VII Fórum e dia da desinstitucionalização. Assistimos a uma emocionante
apresentação teatral preparada pelos conviventes de Carmo, que tiveram a vida
marcada pelo manicômio e hoje podem viver em liberdade, a maioria morando em
residências terapêuticas. O registro fotográfico desse momento histórico, produzido
por João Aranha, vale ser degustado. Histórico pois pela primeira vez todas as
experiências CECO (Polo, Trilhos, Ceccozo, CCCNiterói, CCCMacaé) estiveram
juntas no primeiro CECO do Estado, o Centro de Convivência e Cultura Paula
Cerqueira.
Também fomos agraciados com a oficina do barulho que transmitiu a
mensagem “Salvem os loucos, pois os normais estão acabando com o mundo”.
Duas pessoas que haviam vindo do Rio subiram ao palco e também cantaram junto.
Uma delas, na edição anterior do Fórum, não abriu a boca sequer para dizer seu
nome quando todos nos apresentávamos na roda. Em Carmo, a pessoa não só
subiu no palco, mas cantou duas canções despertando alegria e comoção no
auditório lotado que assistia a eles.
Tivemos a mesa de abertura com a presença do prefeito da cidade, das
secretarias de saúde e cultura e outros trabalhadores-gestores, nos mostrando que
quando a gestão é parceira, tudo caminha com mais fluidez. As palavras da
coordenadora de saúde mental, Erica Vitorio, sintetizaram o propósito daquele dia.
Uma pausa para o almoço, e que almoço! Feijoada completa, doce de leite,
goiabada e queijo. Sentimos em cada detalhe o cuidado na decoração do espaço e
no sabor dos alimentos. Tivemos o tempo de livre circular pelo Centro Cultural, que é
composto por várias atividades e salas de artes. Do lado de fora, debaixo de uma
árvore, o grupo Intervalo Musical do CECO Niterói nos brindou com suas canções,
uma delas o samba-enredo de 2019 que homenageou Nise da Silveira. Livros e
bottons antimanicomiais marcavam a aposta do cuidado em liberdade.
Ao retornarmos para o auditório, Hamilton e André, do Harmonia Enlouquece,
cantaram seus maiores sucessos em um pocket show. O poeta Nilo Sergio
declamou poesias, e então demos início ao Fórum. Tivemos a fala de contexto do
projeto de lei que cria a política estadual de CECOs; os informes dos delegados que
262

foram na 16ª Conferência Nacional de Saúde em que foi aprovada com 90% uma
moção em prol dos CECOs; e o planejamento dos rumos do movimento. Pactuamos
que faremos o II Encontro de CECOs e programas de trabalho, ECOSOL, arte,
cultura e lazer na saúde mental na primeira quinzena de novembro. Também será
agendada uma reunião da comissão de legislação com especialista no tema
orçamento, pois essa é a próxima comissão pela qual o PL vai passar. Encerramos o
Encontro com música, belamente tocada pelo CECO de Niterói. E já era hora de
pegar a estrada outra vez. O tempo foi curto, corrido, passou rápido demais o dia
que foi tão esperado. Deixou vontade de voltar, sede de conhecer mais a cidade, a
rede, as pessoas que fazem todo aquele trabalho. As conversas começadas no
Fórum continuam no ônibus. Depois, a conversa passa a ser: como voltar para
casa? Juntos e com autonomia, é assim que vamos!
Agradecemos a todxs que viajaram junto nessa viagem da convivência que
traz luz para os tempos sombrios, traz fartura para os tempos de escassez, traz
calor para os anos de inverno, transformando as redes frias em redes quentes.
Gratidão pela confiança, pela presença, pelo sentido que imprimem nessa pesquisa-
experimentação coletiva do que é con-viver.

VIII Fórum dos CECOs RJ – 19/11/19 – Niterói


UFF – Campus Gragoatá – Auditório Marielle Franco

Esse fórum teve a especificidade de acontecer em uma universidade, e não


em um espaço da saúde ou da cultura, como na maioria das edições. De alguma
forma, estar na universidade traz para o fórum a necessidade de problematizar as
relações entre os CECOs e as instituições de ensino e pesquisa. A cidade de Niterói
recebe o fórum pela segunda vez. Roda preparada, mesa com lanche arrumada,
frases de luta espalhadas, a música tocada pelo trio Intervalo Musical abre os
trabalhos do último fórum de 2019.
Nas palavras de boas-vindas, lembramos da satisfação em fazer parte desse
movimento por tudo que já criamos juntos em tempos tão duros e por tudo que ainda
temos por criar. Ninguém solta a mão de ninguém. Na rodada de apresentação,
percebemos que contamos com ampla participação dos companheiros de Carmo,
que nos dizem que são loucos pela estrada, e que até de helicóptero já viajaram.
263

Um dos conviventes era surdo-mudo, em nossa roda não tínhamos ninguém que se
comunicasse em Libras, o que nos mostrou o quanto ainda somos analfabetos em
acessibilidade. Alguns não puderam estar por limitações do passe-livre
intermunicipal, luta necessária que retorna a cada encontro.
Somos um pouco mais de quarenta conviventes oriundos do Rio, Niterói,
Carmo e Macaé entre estudantes, moradores de residências terapêuticas, militantes,
cuidadoras, oficineiros, professores, artistas, coordenadores, por exemplo.
Muitos participam pela primeira vez desse espaço, apontando para a força
crescente do fórum. Afirmamos, então, alguns combinados que já temos em nossa
história: a itinerância, a abertura e a multiplicidade. Nosso percurso é apresentado
em um vídeo de fotos dos encontros anteriores. Também enunciamos algumas
perguntas que norteiam nossos debates: o que é convivência, um centro de
convivência? / Qual a melhor relação possível CAPS-CECO? / Como podemos
existir para resistir juntos?
Fazemos ainda uma torção na questão CAPS-CECO, para perguntar sobre a
relação entre universidades (instituições de ensino-pesquisa) e CECOs.
Passamos a conhecer a experiência do Coletivo Convivências, que teve sua
primeira ação em 23/10/19 no campus da Praia Vermelha/UFRJ e articula diversas
iniciativas de cultura, arte e saúde da região, oferecendo atividades de feira,
exposição, oficinas e conversa com os transeuntes da área. Conhecemos através de
relato também o trabalho do Centro de Convivência ligado ao PROJAD, voltado para
adultos com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas; o CECO
oferece oito oficinas, algumas delas itinerantes. O fato de este CECO atuar em uma
relação próxima com o espaço de internação trouxe inquietações e produziu
questões sobre o que diferencia o trabalho de um CECO e o de um hospital-dia.
Com mais informações, debatemos a respeito da ética de redução de danos, dos
limites e das possibilidades da relação com espaços que também servem para a
residência médica em psiquiatria.
Vimos que os temas das residências multiprofissionais em saúde, do CECO
como espaço de formação para estágio, do que os CECOs e os profissionais em
formação ganham nessa relação, do que isso tem produzido, merece mais
aprofundamento e poderá ser pautado no próximo encontro estadual. É sugerido o
264

convite às coordenações dos programas das residências multiprofissionais para


participarem do Fórum.
O Centro de Convivência de Macaé partilha sobre sua história que nasceu de
uma roda de conversa que acontecia em um ambulatório. O CECO funciona em uma
casa que é dividida com o consultório na rua e inicia suas atividades em 2014/2015.
A rede da cidade é constituída por um CAPS, um CAPSi , um CAPSad, duas
residências terapêuticas, unidades básicas e a escola de redução de danos. A
equipe é composta por cinco profissionais que oferecem atividades de coral,
meditação, ioga, tai chi chuan e educação permanente.
O Centro de Convivência da Zona Oeste do Rio partilhou como foi o processo
de conquistar o recurso de um milhão de reais através de emenda parlamentar por
via de decisão comunitária e como estão pactuando a distribuição desse recurso.
Foi discutido o caráter deliberativo do fórum e depois foi aprovada a escrita e
divulgação de duas moções: MOÇÃO DE APOIO AO MOVIMENTO DE DEFESA DO
CAMPUS DA PRAIA VERMELHA CONTRA A ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA e
MOÇÃO DE APOIO AOS TRABALHADORES DO SUS DO MUNICÍPIO DO RIO DE
JANEIRO COM SALÁRIO EM ATRASO. Sugeriu-se a criação de um jornal para
circulação na Praia Vermelha com o nome “Enquanto estamos vivos”, com a
proposta de dar visibilidade às questões locais e fortalecer a mobilização em defesa
do campus.
O projeto de lei 4.563 segue na Alerj, na comissão de orçamento. Soubemos
depois do fórum que o presidente dessa comissão foi afastado e que um novo
deputado (ainda não sabemos quem) assumirá esse lugar ano que vem. Planejamos
que ao longo de 2020 organizaremos um encontro comemorativo dos vinte anos da
Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira, a ser realizado em 06/04/2021. Avaliamos
que talvez precisaremos confeccionar uma nova carta de propostas de CECOs, pois
já avançamos em alguns pontos. Divulgamos a “agenda da resistência” prevista
ainda para 2019 (assembleias comunitárias, viradão cultural, plenária da saúde).
Seguimos com o sonho do desfile da liga dos blocos de carnaval. Ficou pactuado
que a próxima edição do Fórum será na cidade de Macaé, ainda no primeiro
semestre de 2020.
Havíamos pedido apoio à Aduff e ao Sindifrj para o almoço dos participantes
do fórum, o qual foi negado pelas duas entidades. Contudo, isso não impediu que
265

almoçássemos juntos no restaurante Mãe D’água, ao som do Intervalo Musical, na


praça da Cantareira. Os conviventes de Carmo foram aproveitar a viagem a Niterói
depois do Fórum.
Gratidão pela nossa convivência em 2019 e que 2020 seja um ano rico de
experiências, apoio mútuo, solidariedade, bons encontros, parcerias, alegrias e
aprendizados para todxs nós!

“Sou água que corre entre as pedras. Liberdade caça jeito.”


(Manoel de Barros)
266

ANEXO 9 – Projeto de lei 4.563/2018, que CRIA A POLÍTICA ESTADUAL DOS


CENTROS DE CONVIVÊNCIA DA REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL NO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

EMENTA:
CRIA A POLÍTICA ESTADUAL DOS CENTROS DE
CONVIVÊNCIA DA REDE DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
Autor(es): Deputado FLÁVIO SERAFINI, CARLOS MINC

A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO


RESOLVE:
Art. 1º Os Centros de Convivência no Estado do Rio de Janeiro são
dispositivos intersetoriais integrantes da Rede de Atenção Psicossocial do
Sistema Único de Saúde, onde são oferecidos às pessoas com transtornos
mentais espaços de sociabilidade, produção e intervenção na cidade. Podem
variar de acordo com as seguintes modalidades, de acordo com a ênfase de
suas práticas:

I. Centro de Convivência e Cultura;

II. Centro de Convivência,Trabalho e Cooperativismo;

III. Centro de Convivência, Cultura e Cooperativismo.

Art. 2º Compete aos Centros de Convivência:

I. Promover espaços de convivência na cidade entre pessoas da comunidade


e pessoas com necessidade de tratamento e cuidados específicos em saúde
mental;

II. Ofertar oficinas de arte, geração de trabalho, renda e economia solidária,


eventos culturais, atividades de esporte e lazer em articulação com território e
espaços públicos;

III. Contribuir para a criação de políticas públicas para a saúde mental de


modo intersetorial;

IV. Desenvolver estratégias de educação permanente para seus trabalhadores


e participantes visando a inclusão social através do trabalho, arte, cultura e
267

lazer;

V. Servir como espaço de formação profissional (estágio e residência


multiprofissional) em parceria com instituições de ensino e pesquisa;

VI. Participar do gerenciamento do Programa Bolsa de Trabalho para usuários


da Rede de Atenção Psicossocial, quando houver.

Art.3º As equipes dos Centros de Convivência poderão ser integradas por


profissionais de nível médio e superior, tais como oficineiros, artistas
plásticos, músicos, atores, artesãos, auxiliares administrativos e de limpeza.

Parágrafo único. A gerência do serviço poderá estar a cargo de profissional de


nível superior do campo da saúde ou das ciências humanas,
preferencialmente com experiência em saúde mental.

Art. 4º Os Centros de Convivência e Cultura não poderão dispensar


medicação ou prestar atendimento individual ou em grupo, seja psiquiátrico e/
ou psicoterápico.

Art. 5º O Poder Executivo regulamentará a presente Lei no prazo de 90


(noventa) dias.

Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Plenário Barbosa Lima Sobrinho, 20 de dezembro de 2018


FLAVIO SERAFINI CARLOS MINC

JUSTIFICATIVA
Os Centros de Convivência são dispositivos intersetoriais que articulam
políticas públicas de inclusão social, por meio da construção de espaços de
convívio e sustentação das diferenças na comunidade e em variados espaços
da cidade.

O Estado do Rio de Janeiro participará ativamente como cofinanciador dos


Centros de Convivência em suas diferentes modalidades, nos termos da Lei
n.º 8.154/2018, que estabelece parâmetros de participação do Estado na
Rede de Atenção Psicossocial.

De acordo com a Lei n.º 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a
proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em saúde mental, as pessoas portadoras de
268

transtornos mentais devem ser tratadas em ambiente terapêutico pelos meios


menos invasivos possíveis, assim como deverão ser tratadas,
preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

As recomendações contidas no Relatório Final da IV Conferência Nacional de


Saúde Mental Intersetorial realizada em 2010 destaca a importância em
implantar e prover custeio de Centros de Convivência como dispositivos
intersetoriais estratégicos para a rede de saúde mental, assim como promover
a criação de Centros de Convivência e Cooperativa (CECCO), através do
financiamento intersetorial da infraestrutura e dos recursos humanos e
materiais necessários ao pleno funcionamento das oficinas.

Dentre as determinações da Lei n.º 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que


Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou
transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Centro de
Convivência está incluído na Rede de Atenção Psicossocial, onde são
oferecidos à população em geral espaços de sociabilidade, produção e
intervenção na cultura e na cidade.

Diante das considerações acima, torna-se relevante e necessária a criação da


Política Estadual dos Centros de Convivência da Rede de Atenção
Psicossocial no Estado do Rio de Janeiro, visto que atualmente esses
equipamentos enfrentam muitas dificuldades e correm o grave risco de
desassistir uma população que participa dos centros de convivência e se
encontra em situação de vulnerabilidade.

<http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1519.nsf/
18c1dd68f96be3e7832566ec0018d833/6fe33ee2aaf668a1032583690053706e?OpenDocument>
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ANEXO 10 – Resumo do trabalho premiado na I Conferência de Promoção da


Saúde da Fiocruz – 2019

Centro de Convivência e Cultura como dispositivo de promoção da saúde: a


afirmação da vida no coletivo

Este trabalho relata a experiência de construção participativa de uma política


de implementação do Centro de Convivência e Cultura (CECO) como estratégia de
promoção da saúde no Estado do Rio de Janeiro. Previstos no âmbito da atenção
básica, CECOs são unidades onde se oferece à população em geral espaços de
sociabilidade, produção e intervenção na cultura e na cidade (portaria 3.088/2011).
No Rio, os CECOs estão articulados a serviços de saúde mental tanto pela
contratação da equipe como pelas instalações do espaço físico. Além da ocupação
de espaços culturais, os CECOs cariocas realizam: grafite, teatro, música, capoeira,
ioga, mosaico, bordado, costura e blocos de carnaval que tematizam a luta
antimanicomial. Muitas das ações ocorrem fora da sede do CECO, usando a
estratégia de avizinhamento. A promoção da saúde no CECO se liga com a ideia de
autonomia como um exercício de participação social.
Em 2018 realizamos o I Encontro de geração de trabalho e renda, cultura e
saúde mental: políticas públicas, centros de convivência, inclusão social pelo
trabalho e programas de arte e cultura. Pela primeira vez puderam ser discutidas as
experiências dos CECOs do Estado num encontro com mais de duzentos
participantes.
Como resultados, foi redigida uma carta de propostas para a constituição de
Centros de Convivência e foi criado o Fórum Permanente dos CECOs do RJ,
itinerante, de forma ampliar a participação dos conviventes e comunidades locais.
Nos Fóruns, os conviventes têm defendido o acesso a práticas comunitárias
que não acessavam sem o CECO e a importância destas para a integralidade da
saúde. Com a participação dos usuários e trabalhadores, em articulação com a
Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica da Alerj, foi elaborado um
projeto de lei que cria a Política Estadual dos Centros de Convivência da Rede de
Atenção Psicossocial no Estado do Rio de Janeiro (PL 4.563/2018).
270

Em tempos de epidemia das drogas psiquiátricas e proposta de retorno do


eletrochoque (ECT), urge fortalecer os serviços de base comunitária. No mesmo
espaço em que se fala sobre os efeitos da experiência CECO na vida de cada
convivente, se constrói política pública e se promove a saúde do território. Conclui-
se que é necessário criar estratégias coletivas como via de promoção da saúde de
usuários/as, trabalhadores/as e gestores/as. É fundamental a produção de
resistência às tentativas de desmonte do SUS, e ela é inseparável da participação
popular que afirma a potência da vida no coletivo.

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