Va Ariadna Alvarez EPSJV 2020
Va Ariadna Alvarez EPSJV 2020
Va Ariadna Alvarez EPSJV 2020
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
NITERÓI, RJ
2020
ARIADNA PATRICIA ESTEVEZ ALVAREZ
Orientadora:
Prof.ª Dr.ª Claudia Osorio da Silva
Coorientadora:
Prof.ª Dr.ª Maria Elizabeth Barros de Barros
Niterói, RJ
2020
ARIADNA PATRICIA ESTEVEZ ALVAREZ
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Claudia Osorio da Silva – UFF – Orientadora
_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Elizabeth Barros de Barros – UFES – Coorientadora
_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Paula Gomes Cerqueira – UFRJ
_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Roberta Pereira Furtado da Rosa – IFRJ
_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cristina Mair de Barros Rauter – UFF
_________________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Henrique Pereira Passos – UFF
_________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Soares Jorge – EPSJV/Fiocruz (suplente)
_________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Renato Paquiela Givigi – SME-RJ (suplente)
Niterói, RJ
2020
À Izadora Alvarez Ferreira, a menina cartógrafa.
Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças
nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo
encantamento que a coisa produza em nós.
Manoel de Barros
AGRADECIMENTOS
Para escrever esta tese, foi necessário lidar com o permanente paradoxo
entre presença-ausência, convivência-isolamento. Por isso agradeço às
convivências, mas também aos isolamentos necessários.
Primeiramente, agradeço à Fundação Oswaldo Cruz, à Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio, com destaque a toda equipe do Laborat, em especial aos
companheiros do Grupo de Trabalho em Saúde Mental: Pilar Belmonte, Marco
Aurélio Jorge, Nina Soalheiro, Daniel Groisman, Cecilia Carvalho, Marise Ramôa e
Denis Petuco, por cuidarem do trabalho na EPSJV enquanto eu cuidava da pesquisa
de doutorado. Sem esse apoio, esta tese não seria possível.
Ao Nutras 2016-2020: Ana Paula, Lisete, Bete, Claudia, Nathalia, Alice, Karla,
Katia, Roberta, Cristiane, Juliane, Naiara, Lia, Marianna, Luciana, Ana Karla, Thais,
Juliana, Luiza, Ivani, Marilza, Kesia, Emanuelle, Noeli, Renata, Rachel, Isabel,
Deborah, Carol, Wallace e Emerson. Agradeço pelos encontros que nutrem, as
trocas que estimulam, o apoio que faz seguir em frente. É um presente da vida fazer
uma tese com a parceria de vocês. Dá certo porque é coletivo! Desse Nutras maior
preciso destacar a contribuição de Cris, Nai, Thais e Ju por serem copesquisadoras
no campo desta pesquisa, compondo junto os grupos nos CECOs. Agradeço
especialmente também pelo grupo de estudos de Vigotski com Cris, Marianna e
Karla.
A todos os professores do PPG em Psicologia-UFF e às professoras Simone
Oliveira da ENSP/Fiocruz e Katia Santorum PPFH/Uerj pela potente interlocução.
Aos entrevistados: Lisete Vaz, Pedro Gabriel Delgado, Paulo Amarante e em
especial a Neli Almeida, por ter feito da experiência da entrevista um acontecimento
disparador de tantos outros bons encontros. Ao músico Hamilton Assunção e ao
poeta Nilo Sérgio pelas muitas conversas inspiradoras registradas na minha
memória afetiva.
Às companheiras-autoras do Guia Prático Economia Solidária e Saúde
Mental – Dá pra fazer!, gerado durante o doutorado: Angela Figueiredo, Carol Con,
Maria Emilia, Neli Almeida e em especial a Bel Xavier, que colaborou com sua arte
de designer fazendo o infográfico da pesquisa, e o lindo convite para defesa.
A todas e todos participantes do Fórum dos Centros de Convivência do
Estado do RJ, agradeço pela experiência vivida com vocês, que foi a mola
propulsora da escrita da tese. Vocês têm toda a minha admiração. Escrevo aqui
apenas os nomes dos dispositivos CECOs e desejo que sintam o meu
agradecimento sincero à pessoa de cada um e uma de vocês que são multidão de
amor pelo mundo: Centro de Convivência e Cultura da Zona Oeste, Centro de
Convivência e Cultura de Niterói, Centro de Convivência e Cultura Trilhos do
Engenho, Núcleo de Intervenções Culturais, Polo Experimental de Convivência,
Educação e Cultura, Centro de Convivência e Cultura Paula Cerqueira (Carmo),
Centro de Convivência e Cultura de Macaé, Coletivo Convivências/UFRJ, Centro de
Convivência Projad e os que estão por vir... Gratidão pelo sonho sonhado junto e
pela transformação em uma realidade “co-movente”!
Às equipes dos CECOs da cidade do Rio de Janeiro pela confiança,
disponibilidade e parceria de tecermos juntas esta pesquisa em rede, especialmente
a Lucia, Margarete e Janaína. E à Superintendência de Saúde Mental da SMS-RJ
por autorizar a realização desta pesquisa.
A toda a equipe da Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica e
da Luta Antimanicomial da Alerj, em especial a Cíntia Teixeira e Flávio Serafini, pelo
diálogo aberto com a população e por criarem espaços de construção participativa
nas políticas públicas. O PL 4.563/2018, que cria a Política Estadual dos Centros de
Convivência da Rede de Atenção Psicossocial no Estado do Rio de Janeiro, ganhou
existência graças a vocês.
Aos amigos e amigas Marcus, Aline, Paulinha, Marcela, Lu Hall, Livia, Jean,
Ingrid, Vivi, Rapha, Sara e Gabi pelos encontros alegres. A Williana, Luiz Renato e
Marianna pelas leituras atentas, comentários preciosos e estimuladores nos escritos
inacabados. A Luis Eduardo pelo empréstimo de alguns livros.
Às mães “Amigas do Coluni-UFF”: Sandra, Mary, Marcia, Nicete, Lu, Fabi,
Nize, Rose, Edna, Gi, Olivia, Raquel e Tereza, por todos os momentos de
convivência materna que me inspiraram para a maternidade e para a escrita
também.
Ao grupo de estudos Trabalho Afetivo Antimanicomial: Celine Cyr, Thais,
Maribel e Isabella, depois ampliado na modalidade on-line para Debora, Ana, Karla,
Ju, Mari, Cris e Renata, pelos estudos, alegrias e angústias compartilhadas antes da
quarentena e durante.
Ao CEBB pelas meditações e mantras, essenciais para manter alguma
concentração em meio a um forte potencial para dispersão.
Ao professor Adilson e turma do francês do Prolem-UFF, pelos ensinamentos
que ajudaram a ler alguns textos da clínica da atividade indisponíveis em português.
Aos professores de pilates Jean (Mega) e Alice (Asfoc) pelo trabalho que
produz firmeza e prontidão no corpo. A coluna, eixo de sustentação, especialmente
agradece.
Às psicoterapeutas que me atenderam ao longo da vida e me ajudaram a
construir novas versões de mim mesma. Gratidão a Vera, Gabriela e Juliana. A
escuta e a fala de vocês fizeram diferença.
A Dith, pelo amor que colocou no preparo dos alimentos que nutriram a mim e
a todos os seres amados que habitam esse alegre lar, o que me permitiu mais tempo
para a escrita.
Aos doutores Thiago, Tarso, Eduardo e Neli por revisarem o resumo da tese.
Aos professores componentes da banca de qualificação, Roberta Furtado,
Paula Cerqueira, Eduardo Passos, Claudia Osorio, Bete Barros, pelas contribuições
potentes e conversas que ajudaram a guiar o caminho. À professora Cristina Rauter
por me apresentar Spinoza, o maravilhoso Colóquio Spinoza e as Américas, e me
acolher em seus grupos de estudos. E aos professores que aceitaram o convite para
lerem a tese como suplentes, Marco Aurélio Jorge e Luiz Renato Givigi.
À querida Claudia Osorio, por ser uma orientadora suficientemente boa,
estando sempre disponível para atender às necessidades que surgiram e ao mesmo
tempo me deixando livre para criar a tese a minha maneira. Agradeço por você ter
dito lá no início: “O sonho é importante para o trabalho. Se é seu sonho, faz.”
Claudia, você tem toda a minha admiração por sua força e serenidade inspiradoras.
À querida coorientadora Bete Barros, por ser atenta, rigorosa, responder rápido,
enérgica e carinhosa, tudo isso ao mesmo tempo.
Aos grandes amores da minha vida. Ao meu amado companheiro vibrante
Eduardo Caron, por compartilhar a vida junto, pela presença constante e amorosa.
Depois que você chegou, fazer doutorado se tornou uma experiência bem mais
prazerosa e leve. Aos meus pais, pela torcida e o suporte afetivo indispensável e
incondicional, cada um a sua maneira. Agradeço a vocês dois e a todos os
antepassados por me darem a vida e tanto amor. À minha filha Izadora, por me
oferecer a oportunidade de ser sua mãe, por me possibilitar muitas transformações
nas maneiras de sentir, pensar e agir, e me ensinar que a convivência importa. Ser
sua mãe me torna alguém melhor para o mundo, Iza!
A todas as forças humanas e não humanas que colaboraram para a tessitura
desta pesquisa. Agradeço a nossa gata Estrela, que esteve ao meu lado em casa
durante a escrita de TODAS as páginas desta tese, ronronando, miando, pisando no
teclado, deitando nos livros... A presença de Estrela na escrita da tese me faz
retomar aqui a pergunta que o filósofo Montaigne (1533-92) fez em um ensaio:
“Quando estou brincando com meu gato, como posso saber que ele não está
brincando comigo?” Esta questão nos vale para pensar a convivência não só com os
gatos, mas com todos os seres, pois cada ser é um mundo. Suspeitamos que
apesar do enigma que o outro é, apesar de nem sempre sermos capazes de saber,
ou de entender o que se passa com o outro, não estamos impedidos de viver juntos
por causa disso. Podemos conviver, podemos viver-com, ainda que vivamos em
mundos diferentes.
Por último, agradeço a Deus e/ou às Deusas. Gratidão a essa força que me
habita e conduz.
Muito obrigada!!!!
RESUMO
The purpose of the thesis was to problematize the notion of conviviality from
cartographic research with the Conviviality and Culture Centers (CECOs) in the city
of Rio de Janeiro, held between the years 2016 and 2020. The CECOs are linked to
the Psychosocial Atention Network of the Unified Health System aiming to sustain
diversity in the city through actions of art, culture, sport, education, leisure, work and
solidary economy. With regard to public health policies, CECOs have moved between
marginality, inclusion and exclusion from the borders of what is instituted and what is
instituting, which produces a degree of invisibility in this work. This study was
concerned with investigating how the conviviality work activity is constituted, following
the methodological principle of the clinic of activity that putting the work in debate
increases the workers' power to act. The research established different dialogical
devices and is organized in five cartographies: 1) Meetings of cohabitants at the
State Forum of CECOs in Rio de Janeiro; 2) Interviews with historical militants of the
anti-asylum movement; 3) Co-analysis groups with teams from the CECO Trilhos do
Engenho, in which the place of the CECO was analyzed; 4) Groups with team from
the CECO Polo Experimental, in which the office of the workshop staff was analyzed;
and 5) Groups with team from the CECO Zona Oeste, where the affective dimension
of this work was analyzed. The CECOs' conviviality activity is affirmed as an anti-
asylum affective work, done mainly by workshop workers, whose job is to be
sensitive acting collectively with a heterogeneous public, who lives in the city. The
health of cohabitants, whether users, workers or researchers, is produced in the
conviviality. And conviviality is both a product and a producer of the common. It was
in the Forum's dialogical device, in which dialogue and conviviality had a greater
degree of transversality in communication, that law project no. 4,563/2018, which
created the State Policy for Psychosocial Atention Networks in the State of Rio de
Janeiro. The thesis is that conviviality, in the context of CECOs, is an colective
activity of production of the common, a concept understood as multiplicity that
manifests itself through the collaborative social processes of production.
Mesmo sem saber quem é você que percorre com os olhos estas linhas,
quero que saiba que esta tese foi escrita para você! Desejo boas-vindas ao texto,
espero que você tenha uma boa experiência de leitura. Ao longo dos quatro anos de
pesquisa, muitas vezes me perguntei: para quem estou escrevendo esta tese? No
início, os leitores imaginários eram gestores do campo da saúde mental. A tese seria
um instrumento para que gestores pudessem qualificar a implantação dos Centros
de Convivência e Cultura (CECOs) na cidade. O propósito de fazer a tese era dar
visibilidade ao marginalizado trabalho realizado pelos CECOs da cidade do Rio de
Janeiro, de modo que as experiências pudessem ser reconhecidas e valorizadas
publicamente.
No decorrer do processo, com a criação coletiva do Fórum dos Centros de
Convivência do Estado do Rio de Janeiro, a publicização desse trabalho começou a
acontecer sem que a tese estivesse pronta e fosse lida. Esse reconhecimento e
essa valorização do trabalho dos CECOs se deram pelos próprios agenciamentos
tecidos no percurso da pesquisa.
Percebi, então, que não estava mais escrevendo a tese para os gestores e
me peguei refazendo a pergunta: para quem estou escrevendo esta tese?
Imediatamente, meu pensamento era povoado pelas imagens das trabalhadoras e
dos trabalhadores dos Centros de Convivência. Sim, é com elas e eles que estou
falando, é para elas e eles que estou escrevendo a tese. Contudo, com o tempo
outros interlocutores foram entrando em cena: deputados da Alerj, militantes do
campo da arte e da cultura, professores e estudantes de outros cursos, colegas de
trabalho, conviventes.
Na conclusão, retumba outra vez a pergunta: para quem estou escrevendo
esta tese? A imagem que vem é da banca avaliadora. No final das contas, é a única
16
parte tanto uma clientela que passou anos hospitalizada no manicômio, usuária de
medicação psiquiátrica contínua e que vem encaminhada pelos CAPS, quanto uma
clientela da comunidade, que nunca foi internada e vem encaminhada por amigos ou
pela atenção básica. O lugar onde a atividade de convivência acontece é no entre,
pois o CECO ocupa um lugar de excentricidade, é desviante, situa-se fora do
Centro, habita lugar fronteiriço. Ocorre entre espaços de arte, cultura, lazer, esporte,
educação e trabalho na cidade. Verificamos que há uma tripla função no trabalho da
convivência: a desmedicalização da sociedade; a desinstitucionalização da loucura
como doença e perigo; e a promoção da saúde, ligada à ideia de autonomia como
exercício de participação social.
Na cartografia 4, está em relevo o trabalho da convivência realizado pelos
oficineiros. No CECO Polo Experimental, realizamos grupos com os oficineiros,
dialogando com eles, buscando mapear juntos como é constituído o seu ofício. Por
meio da construção de um personagem fictício e da análise da organização de uma
festa junina na praça, identificamos como gesto marcante no ofício do oficineiro a
sensibilidade, assim como o coletivo funcionando como operador de saúde. Além
das oficinas, o ofício do oficineiro requer uma sensibilidade ativa capaz de provocar
a atividade de modo a ampliar a potência do outro. Os CECOs trazem o desafio de
se tornarem espaços coletivos de invenção.
Na cartografia 5, nos grupos com a equipe do CECO Zona Oeste, ao
colocarmos a atividade em discussão, destacou-se a dimensão afetiva como a
característica principal. Por meio da oficina de fotos, a equipe mapeou os afetos
alegres e tristes no trabalho, ou seja, os que ampliam ou reduzem a potência e a
saúde. Os trabalhadores têm seu poder de agir aumentado quando desmontam os
manicômios existentes nas relações, fazendo do trabalho da convivência um
trabalho afetivo antimanicomial. Nesses processos, os conviventes – trabalhadores e
participantes – experimentam a desconstrução de lugares institucionalizados que
separam normais e anormais, pacientes e técnicos. Os trabalhadores e gestores se
tornam mais observadores do próprio trabalho. Passa-se a entender a atividade da
convivência como um trabalho afetivo antimanicomial, que se define pelas relações
corpo a corpo, as relações de afeto. Trabalho afetivo que produz subjetividade,
sociedade e vida. Nesse trabalho, é feito um convite a um certo modo de produzir
cuidado em que a convivência está no centro da vida.
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4 Território é um conceito polissêmico. No cotidiano dos serviços do SUS, muitas vezes ele é
empregado na linguagem oral como sinônimo de região de saúde, ou área programática que atende
uma dada população. Nesta tese, a noção de território adotada se refere à de Santos (2005), em que
ele é um espaço do acontecer, é onde a vida acontece. Estamos nos referindo ao território usado, ao
território composto pelo fato e sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. É a base para o
trabalho, para o morar, para as trocas materiais e espirituais da vida sobre os quais ele influi e sob as
quais se forma. Território na perspectiva de seus usos em que os vínculos e laços se constroem ali.
22
trabalho que realizam em debate. Essa necessidade foi confirmada pelo convite para
que uma pesquisa fosse realizada também nos outros dois Centros de Convivência,
quando realizamos a restituição em junho de 2016 e estavam presentes não só os
frequentadores e trabalhadores participantes da pesquisa no CECO Trilhos do
Engenho, mas também duas coordenadoras dos outros dois centros de convivência
da cidade.
Se antes a atenção estava voltada para os efeitos da convivência na
construção da autonomia dos chamados usuários da saúde mental (uma
preocupação implicada com o lugar de trabalhadora psicóloga), depois, como
professora da educação profissional em saúde, a ocupação passou a ser com a
atividade e a saúde dos trabalhadores dos CECOs. Por isso, vemos o doutorado
também como um desdobramento dessa pesquisa anterior.
Desse modo, o objetivo da pesquisa apresentada nesta tese foi mapear com
os trabalhadores os principais facilitadores e desafios na SUStentação dos CECOs,
por meio da análise da atividade, com foco nos recursos coletivos para o trabalho, e
gerar subsídios para a formulação das políticas públicas de saúde, especialmente
que sirvam na implantação de novos CECOs. Buscamos analisar as relações entre a
atividade realizada e seus efeitos nas produções de subjetividades desses
trabalhadores, à luz do conceito de saúde proposto por Canguilhem (2007) e
incorporado pela Clínica da Atividade. A pesquisa tem como perguntas norteadoras:
como se constitui a atividade de convivência nos CECOs? Esse trabalho pode
operar saúde?
O estudo desse trabalho local não está descolado do que acontece na política
em âmbito nacional. No que diz respeito à legislação federal, a primeira tentativa de
regulamentação de CECOs foi a portaria n. 396, de 7 de julho de 2005, que
estabelecia diretrizes para os CECOs. No entanto, no mesmo ano de 2005, a
portaria foi revogada e não houve a criação de nova norma federal para seu
funcionamento, financiamento ou implantação, o que fragiliza a sustentação dos
CECOs. Com a portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que instituiu a Rede
de Atenção Psicossocial (RAPS), os CECOs ficaram previstos na atenção básica.
Contudo, em dezembro de 2017, enquanto o movimento nacional da luta
antimanicomial estava reunido na cidade de Bauru (SP), na capital do país era
divulgada uma política de saúde mental, consubstanciada pela resolução CIT n. 32
25
Com isso, a Lei da Reforma Psiquiátrica (n. 10.216/2001), que dispõe sobre a
proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental, tem seus princípios colocados em risco. Na
nova proposta de RAPS, os hospitais psiquiátricos especializados estão previstos,
ou seja, os hospícios ressurgem. O retorno de uma assistência hospitalocêntrica
tende a fortalecer os interesses das corporações psiquiátricas e da lógica
manicomial. Ocorre ao mesmo tempo a retirada da ênfase nos serviços e ações de
base comunitária, como os Centros de Convivência e Cultura. Também desaparece
da RAPS o eixo de reabilitação psicossocial caracterizado pelas iniciativas de
geração de trabalho e renda e empreendimentos de economia solidária, que
oferecem ações pautadas na produção de autonomia. O quadro comparativo
(Quadro 1) mostra a diferença da composição da RAPS nas portarias de 2011 e
2017, respectivamente:
2016. Era agosto de 2016. Agosto foi mês de desgosto. Agosto tinha um gosto de
golpe, tinha um gosto de confiança traída, de esfacelamento da democracia. O país.
Parecia o quê? Parecia uma paçoca de festa junina esfarelada. Antes redonda e
inteira, virou farelo que não dá mais para juntar. Pereceu. Virou sujeira. Parecia que
tudo estava a ruir, a desmoronar. Tudo que é sólido desmancha no ar. E estava
27
2017. Não sei por onde começar. As lágrimas ainda rolam. Nem sempre dá para
conter. Elas não me obedecem, brotam dos olhos e saem sem querer saber onde
estou. O luto foi substantivo antes de virar verbo. Decido me afastar do trabalho.
Aquele trabalho pelo qual lutei tanto... Vou abrir mão do prazer e da alegria de
coordenar cursos, produzir material didático, me reunir com professores, orientar
alunos, participar de bancas, dar aulas nos cursos, participar de câmaras técnicas,
9 Segundo René Lourau (1993, p. 71) “a essa escrita quase obscena, violadora da 'neutralidade',
chamei de 'fora do texto'. 'Fora do texto' no sentido literal e etimológico do termo: aquilo que está fora
da cena; fora da cena oficial da escritura". O diário de campo pode contribuir com a produção de um
conhecimento da temporalidade da pesquisa oferecendo ao leitor elementos de como ela foi feita no
cotidiano.
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distribuir pelo correio sem fazer lançamento, podíamos chamar os serviços e dar
uma palestra de como usar o guia, podíamos fazer mais que isso. Tomada
completamente pelo princípio do dialogismo da clínica da atividade – de que colocar
a atividade em diálogo amplia o poder de agir dos trabalhadores –, propus às
companheiras de autoria do guia que fizéssemos um encontro em que as
experiências CECO pudessem ser debatidas. Publicamente. Elas toparam. A alegria
tomou conta, se espalhou, contagiou e fez a gente acreditar que sim, dá para fazer!
Foi um dia-acontecimento. Foi o dia em que a Carta de Propostas dos CECOS e o
Fórum dos CECOs do RJ foram criados. Daí em diante, por estar com a atividade de
escrita aguçada, coloquei-me no Fórum, na posição de quem registra. Ao me
apresentar, com caderno e caneta em mãos, afirmei que estava fazendo uma
pesquisa com os CECOs. Muitos já me conheciam porque, concomitantemente ao
Fórum, os grupos nos CECOs cariocas estavam acontecendo. Em seguida, passei a
produzir relatos dos fóruns para o grupo de Whatsapp. Depois foi criado um site15 na
internet, uma importante ferramenta para disseminar os passos desse processo.
Após a validação dos participantes do Fórum, os relatos vão para o site, tornam-se
públicos. Os relatos são elementos que ajudam a compor uma cartografia, em que o
trabalho da análise é a um só tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-
subjetividade. E percebíamos que a produção e a leitura deles produziam efeitos
entre todos os conviventes: em nós e nos outros. Concluímos 2018 com o projeto de
lei estadual n. 4.563, que cria a política de CECOs, protocolado na Alerj, com quatro
deputadas mulheres, negras e antifascistas eleitas pelo Rio de Janeiro e a certeza
de que nada será fácil com a extrema direita no governo do país, porém com a
confiança de que estamos mais unidos do que nunca. Eles tentaram nos enterrar,
mas não sabiam que éramos sementes.
Infográfico elaborado por Ariadna Patricia Estevez Alvarez. Design gráfico por Isabel Xavier.
Esta é uma síntese visual dos acontecimentos mais marcantes do percurso do doutorado, traçando
os atravessamentos e movimentos entre a pesquisa e o cenário político nacional.
produzir análises com o campo. O campo da pesquisa foi que conduziu as escolhas
teóricas conforme as situações se apresentavam. Esse modo de construção da
pesquisa é inspirado no método cartográfico, em que o caminho é construído ao
longo do caminhar. Há uma reversão do sentido tradicional de método (metá-hódos)
para hódos-meta, isto é, abandonamos as metas predefinidas e nos aliamos ao
primado do caminhar que traça no percurso suas metas (PASSOS; BARROS, 2009).
Do método cartográfico destacamos a pista do comum, a pista da confiança e
a pista da atividade. Na pista do comum, encontramos que cartografar é traçar um
plano comum, em que o ato de conhecer é criador de realidades. Essa criação de
realidades é coletiva e paradoxalmente combina, ao mesmo tempo, acessar e
construir um plano comum entre pesquisadores e pesquisados (KASTRUP;
PASSOS, 2014). A pista da confiança nos indica que o ato de pesquisar é um ato de
fiar com, tecer junto, compor com o outro, e não de produzir verdades sobre o outro.
Entendemos a confiança como uma disposição baseada no vínculo com o plano da
experiência anterior, que aumenta a potência de agir em conexão com o plano de
forças (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2014). Na pista da atividade, em que o trabalho
do cartógrafo é tomado pelo ponto de vista da atividade, entende-se que pesquisar
não se limita a verificar hipóteses ou resolver problemas; também é operar em um
vazio de normas que convoca à criação em meio aos desafios apresentados pelo
campo empírico. A atividade do pesquisador, assim como qualquer outra, é tomada
como atravessamentos múltiplos que se agenciam e demandam escolhas. Assim, a
cartografia toma a atividade como algo a ser investigado, e também a atividade do
próprio cartógrafo deve ser analisada no processo (BARROS; SILVA, 2014).
Portanto, nesta introdução indicamos para os leitores alguns conceitos que
nos serviram nesse processo como ferramentas com a finalidade de situar quem são
os interlocutores teóricos da pesquisa. Contudo, é ao longo das cartografias que a
contribuição desses autores em ação na experiência ganha mais sentido. Nas
cartografias, sinalizamos nos apontamentos teórico-metodológicos como os
diferentes dispositivos operaram. Entendemos que na pesquisa cartográfica o
dispositivo é o que possibilita a irrupção daquilo que se encontrava bloqueado para a
criação, é o que potencializa fazer ver e falar o que estava invisível e não enunciado.
Entre os dispositivos que utilizamos nesta pesquisa, podemos citar entrevistas,
diários de campo, grupos de debate de artigo, oficina de fotos, construção de
33
também aquilo que não se faz, aquilo que não se pode fazer, aquilo que se
busca fazer sem conseguir – os fracassos –, aquilo que se teria querido ou
podido fazer, aquilo que se pensa ou que se sonha poder fazer alhures. É
preciso acrescentar isso – o que é um paradoxo frequente – aquilo que se
faz para não fazer aquilo que se tem a fazer ou ainda aquilo que se faz sem
querer fazer. Sem contar aquilo que se tem de refazer (CLOT, 2006a, p.
116).
O real da atividade deve ser pensado como um processo, não observável por
métodos diretos, do qual emerge o realizado. O real da atividade é uma dimensão
conflitual mais difícil de acessar, que precisa de métodos indiretos, em que a análise
da atividade se faz colocando em debate registros da atividade. O trabalho prescrito
35
A clínica da atividade interessa-se também por esse não realizado, por aquilo
que não foi possível fazer, mas estava interferindo de algum modo no que foi feito.
Existe, portanto, um permanente conflito entre atividades; elas são sempre
concorrentes e dirigidas, e a atividade realizada foi a vencedora dessa disputa em
um dado momento.
No caso desta pesquisa com os trabalhadores dos CECOs, usamos essa
concepção de atividade para construir um campo problemático: como se constitui a
atividade dos/as trabalhadores/as dos Centros de Convivência e Cultura do Rio de
Janeiro? Quais são os sonhos ainda não realizados nessa atividade?
Além do conceito de atividade, o conceito de ofício nos interessa na pesquisa.
A palavra ofício tem sua origem no latim officium, que está relacionada a dever,
obrigação moral. Em francês (métier) ela também corresponde à forma popular da
palavra ministério, ministerium ou mysterium, que se relaciona com a dimensão
sagrada cultivada em rituais. Na língua portuguesa, tem vários significados:
profissão, ocupação, emprego, incumbência, missão, tarefa que uma pessoa se
compromete a fazer, comunicação entre autoridades, conjunto de rituais associados
a cerimônias religiosas. Destarte, a palavra ofício nos remete a algo que precisa ser
feito, e para ser feito é preciso um saber que não necessariamente é formalizado,
mas cultivado e transmitido para outros.
36
Portanto, um ofício vivo é necessariamente nômade. Para viver, ele passa por
migrações funcionais entre as suas quatro dimensões. O ofício pode entrar num
círculo virtuoso e se desenvolver, mas também pode entrar num círculo vicioso e se
degenerar. Sua degenerescência ocorre quando há um desligamento entre as quatro
instâncias. Seu desenvolvimento ocorre quando é possível deixar de ser prisioneiro
dos invólucros em que pode estar fixado, ou seja, para se desenvolver é preciso
manter corrente o fluxo entre as diferentes dimensões.
Para melhor compreender a dinâmica das migrações funcionais, é
interessante traçar como elas acontecem quando um novato ingressa em um
contexto profissional. Quando alguém novo chega para trabalhar em uma equipe, o
impessoal do ofício se apresenta como algo extremamente valioso, pois ele será a
fonte consultada para agir em um momento inicial. Contudo, diante dos obstáculos
do trabalho real, o novato logo perceberá o conflito existente entre a prescrição
37
(impessoal) que ele tentará usar e a série de outras alternativas realizadas por meio
de cada um de seus colegas (pessoal) que estão acontecendo ao seu redor.
Esse conflito é ao mesmo tempo problema e solução. Partindo do conflito, é
possível comparar a atividade de uns e de outros e notar que as justificativas que
oferecem são muitas vezes contraditórias. O novato superará a dificuldade ao utilizar
os recursos interpessoais do ofício, tirando proveito do diálogo entre os antigos.
Esse diálogo entre os antigos pode fornecer os “previsíveis genéricos da atividade”
(CLOT, 2010, p. 296), propiciando que o ofício interpessoal se abra para sua
dimensão transpessoal. Gradualmente, o novato se apropria, à sua maneira, do
gênero de atividade profissional, reconhecendo-se a si próprio em algo mais
independente dos colegas, e agora esse ofício transpessoal torna-se meio de agir no
meio. Ele estará pronto para assumir as responsabilidades do ato, sendo capaz de
agir diante do devir do ofício. Descortina-se a possibilidade de estilizar, de variar,
quando se domina o gênero de atividade profissional. O ofício “é pessoal no final
desse ciclo” (CLOT, 2010, p. 298). É pelo trabalho coletivo sustentado pelo coletivo
de trabalho que “a função psicológica do ofício se desenvolve em cada sujeito e sua
função social se desenvolve na organização” (CLOT, 2010, p. 298). Portanto, é
diante das surpresas da vida que o ofício pode se manter vivo, por meio do
movimento permanente de ligar, desligar e religar as suas diferentes instâncias.
Os métodos de pesquisa desenvolvidos pela clínica da atividade usam
registros da atividade (fotos, vídeos, textos, desenhos, por exemplo) como
disparadores da fala sobre o trabalho, pois falar sobre escolhas/debates de normas
para o analista do trabalho e seus pares já produz transformações nos modos de
trabalhar. Elegemos, como critério para escolha da estratégia metodológica de
registro, usar a avaliação de qual delas mais ajudava a manter ancoragem na
discussão da situação concreta de trabalho naquele contexto.
Nessa perspectiva, é preciso romper com um modelo tradicional de ciência
em que primeiro deve-se saber para depois prever, para por fim agir. “A intervenção
pode se efetivar sem que haja uma proposta de pesquisa concomitante, o mesmo
não se pode dizer da pesquisa: a proposta da clínica da atividade pressupõe o
transformar para compreender” (OSORIO DA SILVA, 2016a, p. 50, grifo da autora) A
clínica da atividade propõe uma inversão nesse modo sequencial de pesquisar, pois
38
trata-se de primeiro agir, reconhecendo que não é possível prever, mas que é só a
partir da ação que se poderá construir os saberes.O método parte de
17 A respeito dessa definição do conceito de saúde, é relevante apresentar o original em francês, pois
compreendemos que o mais apropriado seria se afirmar a saúde que é adquirida junto COM os outros
e não junto DOS outros, conforme aparece na tradução em português: “la santé est un pouvoir
d’action sur soi et sur le monde gagné auprés des autres” (CLOT, 2008a, p. 96).
40
A ideia de saúde como poder de agir afirmada na clínica da atividade tem seu
fundamento não só em Canguilhem pela associação com o conceito de
normatividade, mas também em Spinoza pela articulação com a teoria dos afetos. É
na EIII18 que o filósofo trata da natureza e da origem dos afetos. “Por afeto entendo
as afecções do corpo pelas quais a potência de agir do próprio corpo é aumentada
ou diminuída, favorecida ou coibida, e simultaneamente as ideias destas afecções”
(EIII, def.3). Spinoza afirma que se somos causa adequada de alguma dessas
afecções, então por afeto se entende ação; caso contrário, paixão.
A clínica da atividade se depara com o problema da afetividade, ela se
interessa pela questão do desenvolvimento da afetividade na atividade. Clot (2016)
encara o desafio de conceituar a afetividade nas dimensões dos sentimentos, das
emoções e dos afetos. Compreende-se que há uma interfuncionalidade entre estas
três dimensões que compõem a afetividade humana, e interessa aqui distingui-las.
Parte-se de um paradigma não dualista presente tanto em Spinoza quanto em
Vigotski em que mente e corpo são uma só substância que se expressa por atributos
diferentes.
Os sentimentos são entendidos como ideias que nos vêm, e as emoções
podem ser caracterizadas como aquilo que é profundamente corporal. Mas não só
corporal – a emoção “é um evento traduzido em duas línguas diferentes: em reações
fisiológicas e em um vivido subjetivo que passa pela linguagem” (CLOT, 2016, p. 88).
Há um entrelaçamento muito forte entre as reações orgânicas e o vivido subjetivo.
Assim, as reações orgânicas tais como enrubescer, tremer, ter náuseas, lacrimejar,
gaguejar estão imbricadas com o vivido subjetivo. A interferência entre essas duas
diferentes línguas é o que permite o desenvolvimento. Nessa perspectiva, o corpo
seria o organismo acrescido da linguagem e da história singular e social.
Clot (2016) dá o exemplo do trabalho dos atores que quando interpretam
papéis são capazes de chorar mesmo sem estarem tristes no plano pessoal, ou de
rirem mesmo sem estarem alegres. Nesse caso, as emoções estão na posição de
objetos, de meios para viver; elas se tornam objetos de trabalho. Assim, os atores
teriam uma tessitura funcional mais bem desenvolvida, pois dispõem de mais
capacidade de mudar de registro; o ofício os convoca a desenvolverem suas
18 A obra Ética, de Spinoza (2011) está organizada em cinco partes (EI – Deus; EII – A natureza e
origem da mente; EIII – A origem e natureza dos afetos; EIV – A servidão humana ou a força dos
afetos; EV – A potência do intelecto ou a liberdade humana). Ao citá-la, usaremos a letra E para
designar o livro Ética e o numeral em romano (I, II, III, IV, V) para designar a parte.
41
trabalhadores, uma vez que partindo da ideia de que linguagem é atividade, ideia
fundada no dialogismo de Bakthin,20 se produzem outros possíveis ao se colocar em
debate a atividade profissional. Por meio dos dispositivos montados na pesquisa, o
trabalhador, ao se tornar observador do próprio trabalho, no diálogo entre pares no
coletivo, age e transforma o mundo criando outros possíveis. Esse comum é o plano
de coengendramento que torna vivo tanto o trabalho coletivo como o coletivo de
trabalho.
O trabalho coletivo tem necessidade de um coletivo de trabalho, cuja
história permeia cada um e da qual cada um possa sentir-se responsável:
algo diferente que merece ser defendido a fim de que a vida no trabalho, em
cada dia, permaneça defensável para cada um (CLOT, 2010, p. 79).
A pesquisa foi totalmente tecida por meio de encontros que se deram por
vários itinerários. Compartilhamos a seguir um mapeamento dos encontros
produzidos no percurso do doutorado, que qualificamos em quatro distintas e
inseparáveis dimensões dessa cartografia: encontros-campo (entrevistas, CECOs 1,
2, 3); encontros-movimento político; encontros-contágio do processo da pesquisa;
encontros-livro. As forças que moveram a produção desses encontros são
completamente distintas, e consideramos que todas foram indispensáveis para a
produção da tese. A tese é um produto extraído desses encontros, por isso
precisamos afirmá-los e não ocultá-los nesta escrita.
20 Para Bakthin, o diálogo é uma relação, na interlocução viva, entre previsíveis e imprevisíveis, entre
o reiterável e o acontecimento (CLOT, 2010).
44
Rosário.
09 04/12/18 Encontro de partilha da carta com oficineiros.
10 02/10/19 Entrevista com coordenadora. Visita à exposição Utopias.
11 21/11/19 Conversa com pessoas que usam o CECO. (Não) Coma
o microfone.
ENCONTROS-PESQUISA-MOVIMENTO POLÍTICO
Dia DATA AÇÃO LOCAL
47
Lapa
16 05/06/19 Reunião com a Comissão de Cultura para ALERJ –
defesa do PL Centro
17 27/06/19 Reunião com coordenadores de saúde SES –
mental do Estado para debate do PL Centro
18 03/07/19 Entrega do Prêmio da Conferência de Fiocruz –
Promoção da Saúde – 1º lugar Manguinhos
19 13/08/19 VII Fórum dos CECOS do RJ CECO
Paula
Cerqueira –
Carmo
20 19/11/19 VIII Fórum dos CECOS do RJ UFF –
Niterói
21 27/04/20 I Fórum dos CECOs do RJ Online Jitsi
aplicativo
PUC-RJ
ENCONTROS-LIVRO
O MUNDO MUDOU
(Hamilton Assunção)
O mundo mudou
Tá tudo muito diferente
Para sobreviver
Tem que ter sorte
E ser inteligente
Passar batido
Mesmo sendo seguido
Fazer o bem
Não importa para quem
É a falta de insumos
Para o trabalho no mundo
É uma conscientização
Que somos todos irmãos
Brancos, negros, índios, isolados
É a diversidade
Ocupando seus espaços
Água, terra, fogo e ar
Mata e serra
Rio e mar
Água, terra, fogo e ar
Mata e serra,
Rio e mar
O mundo mudou
51
21 Essa frase foi enunciada em conferência pela professora Marilena Chauí durante o Colóquio
Spinoza e as Américas em dezembro /2019 e se apoia na EIV P73, em que Spinoza afirma: “O
homem que se conduz pela razão é mais livre na sociedade civil, onde vive de acordo com as leis
comuns, do que na solidão onde obedece apenas a si mesmo.” Compreendemos que a convivência
implica criar regras no coletivo, ordenamentos com o outro, e esse exercício é necessário à liberdade.
Assim, a liberdade é possível na cidade, na pólis, na relação, na convivência. Na solidão não
experimentamos a construção de normas comuns, por isso somos menos livres.
52
grupos não estavam descolados de uma pauta mais ampliada, que envolveu outros
atores políticos para além das equipes dos CECOs cariocas.
que haveria premiação, portanto, para nós foi uma surpresa o reconhecimento desse
trabalho inscrito em coautoria com trabalhadoras do CECO.
Pensamos ser interessante oferecer ao leitor uma narrativa de como se
processaram esses acontecimentos, mas não no sentido de fornecer uma fórmula
para ser replicada, pois o agenciamento de criação
fora, nas Lonas, e serem abertas a toda comunidade. Nessa cena, vemos
claramente como o Fórum possibilita um diálogo que amplia o poder de ação do
coletivo de trabalhadores não só dos CECOs, mas também dos CAPS. É sugerida
ainda a criação de um site30 como estratégia de comunicação da carta e divulgação
do Fórum no mundo virtual.
No Museu de Arte Contemporânea, organizado pelo CECO de Niterói,
aconteceu o III Fórum. Das mais de setenta pessoas, cada uma se apresentou
dizendo seu nome e o que a tinha movido até ali, o que fez emocionar muitos
conviventes. Instaura-se um modo de fazer Fórum, dividido em dois momentos: um
primeiro tempo focado no local, em que o CECO anfitrião apresenta seu modo de
fazer convivência e suas parcerias; e um segundo tempo focado no geral, em que
discutem-se os problemas comuns a todos e se pensam estratégias coletivas. A
questão do que é atividade de convivência foi debatida intensamente; nos
concentramos em criar respostas para a questão: o que deve ter no Centro de
Convivência que não pode faltar de jeito nenhum? Conversas, pessoas que
entendem a gente, união, fidelidade, harmonia, apoio, acolhimento melhor,
coordenador, supervisor, psicólogo, apoio da Prefeitura, van, ônibus, música,
oportunidade de cursos e de trabalho, vale-social, registro de ações realizadas. O
tema do vale-social/passe livre retorna como algo imprescindível para a circulação
na cidade. Essa é uma bandeira de luta não só dos Centros de Convivência, mas
que se atualiza na essencialidade desse direito para a realização das práticas
culturais, artísticas e de lazer no trânsito entre os espaços públicos. Surge então a
palavra tratamento, pois se é para tratamento, esse direito de transitar no transporte
sem pagar parece estar assegurado, ainda que com restrições. Algumas falas
defendem o Centro de Convivência como tratamento. É isso que se quer? Afirmá-lo
como tratamento? Quem trata trata o quê? A quem o Centro de Convivência se
dirige? É afirmada a necessidade de diálogo entre equipes CAPS-CECO. No fim,
temos uma entre muitas definições possíveis do que é tratamento enunciada por
quem usa o CECO: “tratamento é saúde, é se soltar para o mundo, é viver a vida
cotidiana.”
Os saberes formalizados, acadêmicos, são desmontados e remontados nos
encontros com quem usa o dispositivo. Se afirmamos que conviver também é
manejar controvérsia, que estamos ali no Fórum convivendo, é preciso operar essa
ética, em que múltiplas forças em tensão coemergem. Essa passagem nos remete a
Di Ruzza e Schwartz (2003), que ao correlacionarem a atividade militante, no caso o
saber sindical e a elaboração de saberes, se baseiam na hipótese de que os
saberes produzidos na confluência da experiência militante com a transmissão de
conhecimentos são marcados por uma especificidade que possuem uma tripla
exigência: 1) exigência pedagógica, pois devem ser assimilados pelos militantes,
pelo conjunto de trabalhadores; 2) exigência analítica, uma vez que a organização
sindical tem a obrigação de compreender e interpretar o movimento da sociedade e
do mundo do trabalho; 3) exigência prático-normativa, a fim de se darem os meios
para agir na e sobre essa sociedade e esse mundo. Em nossa análise, embora o
Fórum não seja uma organização sindical, mas sim um movimento político, ele está
sujeito a essa tripla exigência que os autores destacam. Há pesquisadores,
professores, estudantes universitários no Fórum; as dimensões pedagógica e
analítica interferem nas exigências prático-normativas, como por exemplo na
elaboração de documentos políticos. A Carta de Propostas dos CECOs,
transformada em abaixo-assinado, recebeu centenas de assinaturas à caneta –
cada pessoa que assina se contagia pela causa. Propusemos encaminhá-la para a
Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica da Alerj. O fato de o
movimento ganhar cada vez mais participantes produz alegria no coletivo.
Aprendemos com Spinoza que “o desejo que surge da alegria é, em igualdade de
circunstâncias, mais forte que o desejo que surge da tristeza” (EIV, P18, p.168).
Sentimos a predominância das forças ativas sobre as reativas.
Na sua IV edição, o Fórum se alocou no CECO Trilhos do Engenho, no
Engenho de Dentro. Contou com a participação de mais de oitenta conviventes,
alguns que passaram por internações psiquiátricas longas e outras mais curtas.
Muitos falaram das mudanças positivas que perceberam em suas vidas a partir da
participação no CECO. Uma das falas mais marcantes foi: “Antes eu era bicho do
mato, não conseguia ir no portão; hoje vou no Centro da cidade, sou apaixonado
pela vida que tenho!” No segundo tempo, o esboço do texto do projeto de lei
formulado pela comissão de legislação foi apresentado e discutido. O tema da
composição da equipe do CECO trouxe muitas controvérsias a serem manejadas.
Coemergiram questões complexas: profissional com ensino fundamental pode ser
60
CECO na Zona Sul há muitos anos. Tivemos a notícia de que o PL 4.563/2108 foi
protocolado na Alerj no fim de 2018 e iria tramitar por cinco comissões antes de ir
para votação. Pactuamos acompanhar esse processo nos encontrando com essas
comissões, quando necessário. Era véspera da audiência pública na Alerj que iria
pautar o Estado como cofinanciador da RAPS e estávamos mobilizados com ela.
Fizemos uma faixa que clamava pela aprovação do PL 4.563/2018; ela foi
pendurada na Alerj durante a audiência.
O VI Fórum foi realizado no Polo Experimental de Convivência, Educação e
Cultura, em Jacarepaguá. O clima do mês da luta antimanicomial já ocupava o
coletivo – o 18 de maio, dia da luta antimanicomial, seria celebrado no Circo Voador,
um espaço histórico de resistência da arte na cidade desde a década de 1980. O
corpo Fórum estava determinado em si mesmo e agia na afirmação de uma política
da convivência. Conversamos sobre fazer do Circo Voador, no 18 de maio, um
grande Centro de Convivência, e assim foi. A organização e a realização do evento
Circular da Loucura no Circo Voador foram uma alegre produção comum que
concentrou a participação de movimentos diversos: luta antimanicomial,
agroecologia, feminismo negro, cultura popular, população em situação de rua, entre
outros. No sentido spinozista, nessa experiência há uma concordância entre os
diferentes movimentos pela potência, pela afirmação da vida em liberdade, pela
afirmação da convivência na cidade, como política. Quando dizemos que as coisas
concordam em natureza, compreende-se que concordam em potência, e não em
impotência ou em negação, conforme na EIV, P.32.
O VII Fórum foi no Centro Cultural Professor Jair Nunes Macuco, que sedia o
CECO na cidade de Carmo, interior do Estado, a duzentos quilômetros da capital.
Dois ônibus com mais de quarenta e duas vans de 15 pessoas se moveram do Rio e
de Niterói para conhecer a experiência de Carmo, que fechou um manicômio e
constituiu uma potente e articulada rede de saúde. As palavras proferidas na
abertura pela coordenadora de saúde mental da cidade, Erica Victorio, traduzem
algumas das forças que nos moveram até lá:
“Aos Conviventes
Quero agradecer a quem veio neste mundo de braços abertos pra abraçar o vizinho, o
louco, o amigo, o irmão, o religioso, o ateu, o sem-teto, o com-teto, o livre, o preso…
62
32 Os termos micro e macropolítica aqui se alinham com os propostos por Guattari e Rolnik (1989)
em que a questão micropolítica se refere à questão de uma análise das formações do desejo no
campo social. Eles chamam de molar o modo como se cruza o nível das diferenças sociais mais
amplas. Porém, entre esses dois níveis – macropolítica (molar) e micropolítica (molecular) – não há
uma oposição distintiva; as lutas sociais são, ao mesmo tempo, molares e moleculares.
63
de não haver parâmetros para a realização desse trabalho (não têm portaria
nacional que regulamenta). Por isso, o VII Fórum também foi espaço para pautar a
participação na 16ª Conferência Nacional de Saúde, por meio de dois delegados
eleitos, que levaram uma moção em prol dos CECOs. A moção contou com mais de
90% de aprovação. Os participantes do Fórum na Conferência Nacional se
articularam com trabalhadores de CECOs de outros estados visando à mobilização
para um futuro Encontro Nacional de CECOs. Na ocasião desse Fórum, o PL
4.563/2018 já estava aprovado em quatro das cinco comissões da Alerj.
O último Fórum de 2019, o VIII, aconteceu na UFF, no Auditório Marielle
Franco, no campus do Gragoatá. Esse Fórum ocorreu nove meses depois do
primeiro do ano, e é interessante ver que entra em ação o Coletivo Convivências da
UFRJ no campus Praia Vermelha, que pretende pensar e trabalhar vivências que
pensem a coletividade e o conviver, em diálogos com as atividades e os estudos do
dispositivo Centros de Convivências do Sistema Único de Saúde. Ele nasce
exatamente em uma área da cidade em que não existe CECO, mas tem um projeto
no papel há muito tempo para existir. Em nossa análise, o surgimento desse coletivo
é resultado do desenvolvimento da capacidade dialógica dos trabalhadores
propiciada por diversos espaços, entre eles o Fórum. Mais uma vez confirmamos a
hipótese da atividade de convivência como produção do comum.
O percurso narrado serve para explicitar como a atividade de convivência é
constituída pela construção desse plano comum, um plano em que um corpo social
se reapropria de sua potência criadora, de seu conatus, e é capaz de agir, de
transformar a realidade. Chegamos, então, à formulação da tese de que a atividade
de convivência é a produção do comum, desse plano que é ao mesmo tempo “aquilo
que partilhamos e em que tomamos parte, pertencemos, nos engajamos”
(KASTRUP; PASSOS, 2014, p. 21).
Esse cenário está colocado em tempos de epidemia das drogas psiquiátricas,
de medicalização e patologização da vida, de ataques ao SUS e à democracia.
Segundo Negri e Hardt (2016), o neoliberalismo e sua crise instauraram algumas
figuras da subjetividade, que destacamos em nossa análise: 1) o endividado, que é
produzido pela hegemonia das finanças e sofre com o empobrecimento da vida que
foi vendida ao capital; 2) o mediatizado, produzido pelo controle das informações e
que sofre por sua atenção estar constantemente absorvida pelas telas; 3) o
64
33 As coordenações dos CECOs podem optar por receberem ou não estagiários do programa
municipal acadêmico bolsista (da área da saúde) e residentes multiprofissionais em saúde mental
(graduados em psicologia, enfermagem, terapia ocupacional, serviço social e educação física). O
Polo Experimental conta com um programa de residência artística. Além disso, outras parcerias são
feitas localmente entre CECOs e universidades que permitem o estágio extracurricular. No projeto de
lei 4.563/2018, no artigo que especifica o que compete ao CECO, foi proposto que o CECO sirva
como espaço de formação profissional (estágio e residência multiprofissional) em parceria com
instituições de ensino e pesquisa.
67
2.3.2 (Trans)Mutação de quem usa o CECO: a jovem que busca aula de teatro
palavras de Rolnik (2018) quando ela afirma que não basta resistir
macropoliticamente no atual regime, é preciso agir para reapropriarmo-nos da força
de criação e cooperação. E essa reapropriação do impulso de criação só se efetua
ao incidir sobre as ações do desejo. O Fórum se constitui como uma comunalidade
de diferenças transitórias. É resultado de infinitas conexões e ao mesmo tempo cria
novas e indeterminadas ligações; novos pontos de interlocução podem ser sempre
acionados e adicionados. O Fórum, assim como o CECO, funciona pela lógica da
adição: Centro de Convivência E Cultura; E Cooperativismo; E Arte; E Trabalho...
Niterói E Rio E Carmo E Macaé…
Por fim, o principal desafio dos tempos que vivemos é descolonizar
inconscientes (ROLNIK, 2018). É preciso que sejamos capazes de desanestesiar
nossa vulnerabilidade às forças. É preciso estarmos conectados à potência, à
perseveração no ser, ao conatus coletivo. A experiência com os Fóruns nos mostrou
que mesmo em um cenário de crise, um cenário de democracia em vertigem, é
possível construirmos experiências democráticas, experiências em que cada um
possa se expressar com sua própria voz, sem ter alguém que fale por nós. Isso só é
possível se é criado um comum sensível, um afeto político de que estamos todos no
mesmo barco que resiste ao constrangimento e ao embrutecimento que o projeto
neoliberal tenta nos impor. Para isso, é necessário acolhermos a fragilidade do
estado instável, sem interpretá-la como coisa ruim, nem ceder à vontade de
conservação das formas de existência (ROLNIK, 2018).
A arte-cultura funciona como motor da ativação da sensibilidade, então nos
fóruns não dispensamos a declamação de poesias, música, teatro, entre outras
expressões de conexão com o sensível. A cultura tem seu sentido originário como
cultivo, "como uma ação que conduz à plena realização das potencialidades de
alguma coisa ou de alguém. " (Chauí, 2009, p.24)
O Fórum é movido pelo desejo de se encontrar, de partilhar, de criar. Nada
garante que aquela edição que acontece não seja a última. Seguimos em frente
abertos a experimentar a cada vez a instabilidade de um coletivo que se sustenta no
fio tênue da imaginação criadora de novas possibilidades de (r)existirmos juntos pela
convivência. Na próxima cartografia, seguimos pelo fio da militância. Vamos nos
concentrar na cidade do Rio de Janeiro, buscando montar no cenário as forças
70
RIO 40 GRAUS
(Fernanda Abreu)
<https://www.youtube.com/watch?v=AhuJ3dUVQvc>
72
nos a procurar não apenas textos, mas também algumas pessoas. Pareceu-nos
interessante criar um novo modo de começar a escrever a tese, inaugurar a escrita
pela fala.
Queremos falar com. Ao considerar que algumas das referências
bibliográficas sobre os temas centros de convivência, reforma psiquiátrica e luta
antimanicomial estão vivas e vívidas, acessíveis ao nosso contato, buscamos
escutá-las, por meio de entrevistas, sobre o que pensam no presente a respeito do
que ajudaram a construir com seu trabalho em outros tempos.
Como essas pessoas foram escolhidas? Qual critério? É possível arriscar
dizer que foram escolhidas por serem reconhecidamente a favor da luta
antimanicomial, por terem longa trajetória profissional no campo da saúde mental,
pelos lugares que ocuparam e pela implicação que publicamente expressam com a
construção de uma sociedade sem manicômios.
Trata-se de pesquisar fontes escritas e faladas para produzir novas falas e
escritos, acompanhando esse processo antecedente aos centros de convivência no
Rio. Não tínhamos ideia de como essas entrevistas seriam perturbadoras, de como
elas operariam deslocamentos nas maneiras de pensar e de pesquisar, antes
mesmo de o trabalho de campo nos CECOs iniciar. As vozes não foram uníssonas
em torno das questões tratadas; trouxeram controvérsias e nos convocaram a
operar um trabalho de colocá-las em diálogo. Quando se pretende escapar de não
contar o que já esta contado, já se conta uma nova história. Se antes de fazer as
entrevistas tínhamos a expectativa de encontrar e unir peças de um quebra-cabeça
para formar uma imagem para o leitor, depois de elas acontecerem temos a
impressão de que as peças não se encaixam, e de que o que temos não são peças
já prontas, previamente desenhadas, com formas definidas para se encaixarem, mas
temos cacos, pedaços de história – e o que conseguimos compor se parece mais
com um mosaico do que com uma figura com traços nítidos.
Com inspiração no uso da entrevista na cartografia, nos aliamos com
Tedesco, Sade e Caliman (2014), que partem de três pistas ao analisarem os
procedimentos que permitem uma função cartográfica na entrevista: 1) cartografar é
acompanhar processos; 2) a cartografia como método de pesquisa-intervenção; 3) o
coletivo de forças como plano de experiência cartográfica. Ao se questionarem sobre
o que buscam com a entrevista na cartografia, três diretrizes são propostas: 1) a
74
38 O projeto desta pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFF e da SMS-RJ.
Foi aprovado com o parecer número 2.075.940. Agradecemos muito às entrevistadas e aos
entrevistados por consentirem na divulgação de seus nomes neste trabalho, pois isso ampliou as
76
assim, tinha que ser protegido porque como os usuários do serviço, que era
único, que era um hospital psiquiátrico, não podia sair porque eles eram
perigosos, os estigmas muito mais fortes, muito mais excludentes. Então foi
preciso que fosse assim.
essa atividade. Quando em 2010 se sugere numa assembleia ir até Paquetá, essa
fala também é resposta a outras falas antecedentes que diziam que é
completamente possível e desejável ir até Paquetá, pois o lugar da loucura é a
cidade. Uma fala que promove essa atividade. Percebemos que os discursos, em
seus variados gêneros, produzem e são produtos de um contexto histórico, social,
político, econômico e cultural.
Outro ponto que nos chamou a atenção durante a entrevista foi o imperativo
de abandonar a sessão no cinema, independentemente de o filme ter terminado ou
não às 13h30min, pois se aproximava o horário da sessão dos normais, às 14h.
Naquela época, poderia ser considerado inovador ir ao cinema com usuários; o lugar
dos loucos era o local do tratamento, e sair dos muros da instituição por si só já se
configurava como uma novidade, ainda que a saída fosse para participar de uma
sessão especial, uma sessão realizada exclusivamente para os loucos, que
deveriam deixar o cinema antes de os normais chegarem. Hoje nos provoca
estranhamento que não se pensasse em ir a uma sessão comum para assistir ao
filme como os demais interessados. Por que não? – perguntamos. Por que sair
antes de o filme terminar? Há uma produção de subjetividade instaurada por
determinados modos de trabalhar, já que o trabalho não se reduz a aspectos
operatórios, pois inclui equívocos, variabilidade, criação, transgressões e também
mobilização subjetiva. “Todos os sujeitos, enquanto trabalham, produzem existência,
realimentam e transformam as configurações culturais e sociais, ‘fazem história’”
(BARROS; FONSECA, 2007, p. 119).
Conta a entrevistada como isso acontecia:
E isso porque tinha muito diálogo com quem administrava os cinemas, e era
circunscrito a alguns lugares da Zona Sul, ponto-final, não tinha muito
assim: vamos no cinema! Não. Quem é que responde? Quem vai assinar se
houver depredação aos materiais da sala de cinema? E se alguém entrar
em crise? [Tom enfático, seguido de pausa.] Então isso não foi um trabalho
rápido [a entrevistada estala os dedos], não era um trabalho de comando,
era um trabalho de convite, era um trabalho de convivência. E ainda não era
convivência, era um lazer assistido. Então ir a um shopping foi muito
posterior, muito posterior.
Cada vez mais eles têm decidido, isso já vem de algum tempo. Eles
decidem: “Nós vamos no cinema? Não. Estamos cansados de ir ao cinema,
nós não podemos ir ao Centro Cultural do Banco do Brasil, por exemplo?
Ah, podemos. Então, quem vai?” (Voz enfática.) Aí vai a coordenadora do
grupo e eventualmente um ou outro usuário. Então isso ampliou muito,
agora que modificou de fato, ampliou muito isso aí, a cidade é o espaço
atualmente do Clube da Esquina. As ci-da-des.
Essa fala que diz que a experiência dos fins de semana, momento em que
os serviços de atenção diária estavam fechados é uma parte penosa para os
usuários e familiares; é uma fala que não é a primeira vez que ouço. Escutar isso me
evoca as memórias do tempo de trabalhadora da RAPS, quando nas manhãs de
segunda, ao fazer o acolhimento, sempre ouvia histórias de solidão, algumas de
81
Esse humano do qual Gil nos fala, o humano ativo, é o humano que acessa
a cultura no fim de semana. Embora muitos dos que usam serviços de saúde mental
não trabalhem cinco, seis dias na semana, defendemos a ideia de que o direito à
cultura seja para todos. E por que não no fim de semana? Por que os usuários no
fim de semana experimentavam relativo abandono e não acessavam cultura? Na
década de 90, tempo em que os CAPS ainda não estavam consolidados no Rio,
muito menos CAPS III funcionando 24 horas, tempo em que não havia centro de
convivência, em que consistia a proposta do Clube da Esquina? O que se pretendia
com essa iniciativa?
Esse cuidado solidário tem a ver com interdependências, pois todos nós
humanos somos dependentes uns dos outros. Entretanto, quando o clube de lazer
organiza coletivamente, com os sócios, a visita a um espaço cultural, ele exerce uma
função mediadora entre cidade e cidadão? O exercício dessa função impede ou
limita o acesso direto à experiência com a cidade?
Por que eles não podem ir lá sozinhos? Claro que podem! E vão, e vão
sozinhos. Mas NO CLUBE, é essa convivência um com o outro. É essa
convivência. “Como é que você está se sentindo? Tá dormindo direito? Se
não tá conseguindo, não tá tomando seu remédio.” Né? É um cuidado. Mas
é um outro cuidado, talvez seja um cuidado muito mais solidário do que o
cuidado técnico. Acho que é muito mais um cuidado solidário.
Essa fala remete diretamente ao que nos moveu em direção a esta pesquisa:
a participação nas atividades culturais pode produzir saúde não somente para os
chamados usuários dos serviços, mas esse estar com, esse fazer o que gosta, pode
produzir saúde e ampliar a vida dos trabalhadores também? Colocar a atividade dos
trabalhadores dos Centros de Convivência em análise, de maneira que eles sejam
protagonistas do desenvolvimento de seu próprio ofício e que experimentem de
algum modo a ampliação do seu poder de agir, é um caminho para a pesquisa
intervir a favor de um trabalho que possa ser reconhecido como um trabalho bem
feito? Com o termo trabalho bem feito, nos referimos à ideia introduzida por Clot
(2013) que se sustenta na possibilidade de nos encontrarmos naquilo que fazemos,
de nos reconhecermos em alguma coisa que transcende as circunstâncias.
O trabalho realizado pelo Clube da Esquina, iniciado nos anos 90, também
deixou como legado o fomento de outras iniciativas culturais que foram criadas e até
hoje movimentam a cultura da cidade. A entrevistada Neli Almeida estabelece uma
conexão entre as atividades do Clube e a criação do bloco do bairro da Urca que faz
parte do calendário oficial do carnaval carioca.
84
Por outro lado, na citação abaixo, vemos que o campo de onde se situa
continua sendo o da saúde mental, ainda que se proponha uma apropriação do
conceito de diversidade cultural na tentativa de uma ruptura.
Mais adiante, durante a conversa, Paulo faz uma comparação entre o ponto
de cultura e o centro de convivência e cultura.
O entrevistado resgata uma história mais recente, dos anos 2000, e fala sobre
a inspiração de Gilberto Gil, Ministro da Cultura no período de 2003 a 2008, ao criar
os pontos de cultura que permanecem até os tempos atuais. De acordo com o
entrevistado, a ideia do ponto de cultura se inspira na medicina oriental:
O Gil falava assim: a questão da cultura não passa por fazer dispositivos,
equipamentos, tecido de cultura, a CULTURA JÁ ESTÁ no corpo social.
86
Cidade do
Centro de Título
Tipo de publicação Ano Autora/Autor
Convivên
cia
1 Niterói-RJ Mestrado em 2018 Mediação entre loucura e
Cultura e cidade: olhares sobre
Territorialidades – uma experiência no Francisco
UFF Centro de Convivência e Verani Protásio
Cultura de Niterói
pacientes psiquiátricos
poética
MG Convivência
Até por que os centros de convivência, eles não têm uma formatação muito
fechada, né? Então você vai ver centros de convivência que trabalham com
pessoas com transtornos mentais, ou graves e persistentes, ou então mais
comuns, mais no campo da saúde mental. Outros não, outros trabalham,
recebem uma população restrita no entorno, né? Outros são ligados a
algum CAPS, outros não. Então o centro de convivência, ele talvez seja…
Ele possa ser… Eu tenho loucura por centro de convivência, então, ele
pode ter uma abrangência populacional muito mais diversificada, muito
mais enriquecedora (LV).
E o carioca tem uma veia natural para isso, assim, tem uma veia de
convivência. Agora a gente tá passando por tempos tenebrosos, essas
deflagrações sociais, mas sempre… Não centros de convivência como a
gente tá falando aqui, mas em cada morro tem um centro de convivência.
Em cada comunidade tem um centro de convivência. E a gente não
conversou ainda com eles. Talvez falte a gente conversar ainda com eles
com um olhar diferente, porque isso já tá lá em cada território (LV).
Quem falou de uma forma muito clara no debate foi o Julio Cesar, que era
usuário do CAPS Simão Bacamarte em Santa Cruz... Faleceu tem cinco
anos, acho, e o Júlio, num debate na Alerj, uma coisa imensa, deputados...
Ele falou… O único que falou de uma forma. assim, pertinente, desse lugar
que é o centro de convivência. Ele era do CAPS, né? Ele disse: “Olha, eu
gosto do trabalho que as pessoas fazem lá, mas eu já não estou cabendo
dentro do CAPS. Já não tem mais nada pra mim dentro do CAPS. E eu
gostaria de ter um outro espaço o qual eu pudesse estar, que eu pudesse
fazer outras coisas, que eu pudesse conviver com as pessoas, mas não
precisa mais ser o CAPS.” Eu acho que os usuários vão dizendo e vão
elaborando, e eu acho que se a gente tiver uma escuta a gente vai
entendendo (NA).
caráter do CECO que evoca algo. Existe um chamado público pela voz de alguém
que fala do lugar de usuário para a concretização desse lugar que não é o CAPS,
não é o lugar de tratamento, onde há psiquiatras, medicação, mas é um lugar para
convivência. Sabemos que os CAPS também se valem da convivência, muitos
inclusive têm até uma plaquinha pendurada na parede onde está escrita a palavra
convivência, assim como as palavras consultório, sala de oficina, administração.
Geralmente, nesse ambiente da casa onde se situa o CAPS chamado convivência,
há um sofá, algumas vezes uma televisão, uma mesa com cadeiras, e as pessoas
dormem, conversam, assistem TV, convivem. Esse lugar do CAPS se parece com
uma sala de estar. Já escutei também trabalhadores de CAPS dizerem: “Hoje eu vou
ficar na convivência”; ou “Vou fazer convivência”, e dizerem que ali quando parecem
não estarem “fazendo nada”, tem muita coisa acontecendo. Ao longo da mesma
entrevista, observamos a mutação no discurso sobre como se daria essa relação
entre CECO-CAPS.
Em hipótese alguma eu ache que ele deve ser extensão do CAPS, nem
uma variação do CAPS, né? O Centro de Convivência precisa se diferenciar
de uma unidade de tratamento, no stricto sensu, uma unidade terapêutica...
Porque, de fato, o centro de convivência teria o objetivo também de mediar
a relação desse usuário com a cidade. [...] o dispositivo Centro de
Convivência é a possibilidade de você desconstruir, desconstruir essa
identidade monolítica do paciente, né? (NA).
Secretaria de Cultura. Antes de janeiro de 2017, ele funcionava num galpão que era
uma certa extensão do CAPS e tinha pouca relação com a comunidade – mudar de
endereço fez parte de uma estratégia de ampliação de interlocução com o território.
Essas diferenças em torno do lugar dos CECOs dão visibilidade a uma zona
fronteiriça entre o que corresponde à área da saúde/SUS/RAPS e o que é lugar de
vida na cidade. Como na atividade dos trabalhadores opera a relação entre
assistência/tratamento/cuidado e convivência; entre ação terapêutica/medicalizante
e arte/cultura/lazer/trabalho? Considerando os três verbos encarnados na história
(isolar, tratar, conviver), buscamos problematizar a atividade dos CECOS por meio
do acompanhamento dos movimentos dos trabalhadores na
arte/cultura/lazer/trabalho.
Nesse debate, nos posicionamos junto com Ferigato (2013), que afirma que
os CECOs são dispositivos híbridos que extrapolam as fronteiras sanitárias.
Concordamos que os CECOs podem ser definidos como dispositivos multifacetados,
ou como “(...) um movimento, um sistema tão flexível e aberto que dribla qualquer
definição rígida de ‘saúde’, de ‘cultura’ ou de ‘serviço’” (Ferigato, 2013, p.158).
Somamos à ideia de hibridismo a noção de excentricidade para situar esse lugar
fronteiriço, ocupado pelos CECOs. O lugar dos CECOs é um lugar primordialmente
do entre, o qual desenvolveremos nas próximas cartografias no diálogo com os
trabalhadores dos CECOs.
100
101
ENGENHO DE DENTRO
(Jorge Ben Jor)
Conversa, bitoca
Espera, passa o rodo
Para melhorar
Chama pra dançar
Engenho de Dentro
Quem não saltar agora
Só em Realengo
Engenho de Dentro
Quem não dançar agora
Só no próximo baile
Em Realengo
<https://www.youtube.com/watch?v=6U5b9_-lALU>
102
Fonte: A autora.
47 Não é nosso foco de análise a precarização do trabalho em saúde mental. O modelo gerencial que
vem sendo implementado na saúde mental do município do Rio de Janeiro e seus processos de
privatização foram brilhantemente estudados na tese de doutorado Processos de privatização na
saúde mental: o método da clínica como resistência, de Williana Louzada (2018), a qual
recomendamos fortemente a leitura para os interessados no assunto.
48 O caderno temático se encontra disponível em: <http://www.crpsp.org/fotos/pdf-2015-11-05-16-14-
35.pdf>.
107
O texto escolhido para leitura no grupo tem forte cunho político e analítico dos
principais impasses do trabalho que acontece nos CECOs e ao mesmo tempo
valoriza a função social desse serviço. Talvez, ao ler o texto e se reconhecer em um
gênero trabalhador de CECO, aquele trabalhador foi capaz de olhar para seu
trabalho, perceber a maneira como estava se sentindo diante dele e transformar
aquilo de algum modo. Observamos que ao longo da leitura e discussão do texto de
Galletti, que traz a ênfase do trabalho dos CECOS para as estratégias de
avizinhamento, algumas oficinas que aconteciam dentro do espaço do CECO
passaram ser realizadas na casa de vizinhos, como por exemplo a oficina de
relaxamento, que em abril/2018 era oferecida na sala de reunião do CECO e em
outubro/2018 passou a acontecer na academia ACM, fora dos muros do Instituto
Nise da Silveira. Consideramos que essa foi uma transformação significativa, pois
ampliou a interlocução entre o CECO e o bairro.
No começo da pesquisa ali, não tínhamos certeza nem clareza de como
aqueles grupos de discussão no trabalho propostos inicialmente no projeto
funcionariam. Entendemos que faz parte do método cartográfico esse grau de
abertura ao que o campo vai trazer e não chegar com uma programação definida de
etapas a serem cumpridas pela pesquisa. Conforme os encontros para debate do
artigo foram acontecendo, passei a perceber que os trabalhadores produziam
enunciados muito interessantes sobre o trabalho da convivência e fui registrando
essas falas em um caderno de campo, enquanto eles debatiam. Esses enunciados
diziam respeito principalmente a três temáticas: 1) as condições de trabalho e seus
impasses; 2) o público a quem o CECO se destina; 3) o lugar que o CECO ocupa e
as estratégias para a convivência acontecer no território.
No total, foram quatro encontros de grupo de estudo que tive com a equipe
durante cinco meses, até esgotarmos a leitura e o debate do artigo. Além disso,
participei de atividades diversas do CECO, como Encontro de Ideias, Sarau de
Poesias, bloco de carnaval, festa junina, entre outras, sentindo como as relações no
trabalho se davam nesses espaços.
Quando compartilhei no NUTRAS-UFF como a pesquisa estava se
processando no campo Trilhos do Engenho, foi sugerido que eu aproveitasse esses
registros escritos dos debates e que eu NÃO fizesse novas rodas para analisar a
atividade, pois a análise da atividade com os trabalhadores já estava acontecendo.
109
Durante o diálogo com o NUTRAS, percebi que o que havia a ser feito era um
trabalho de análise do material que eu já tinha e depois levá-lo até o campo para a
produção de novos debates com os trabalhadores, como forma de restituir e
confrontar com o que ficou desses quatro grupos.
Combinei com as bolsistas de iniciação científica do NUTRAS um encontro
para que à luz da clínica da atividade pudéssemos olhar para esse material anotado
e selecionar algumas frases para levar para a equipe. Partindo da premissa de que a
controvérsia tem o potencial de desenvolver o trabalho, usamos como critério para a
escolha das frases aquelas que acendessem mais a discussão, aquelas que não
representavam pontos de consenso. Paralelamente a isso, conversei com a equipe
sobre esse encontro de confrontação, e a equipe sugeriu que além deles estivessem
presentes os parceiros, ou seja, profissionais que não estavam nas reuniões de
equipe em que fizemos os grupos de estudo, mas que oferecem atividades para o
CECO. Desse modo, participaram do encontro de 14 pessoas: eu-doutoranda,
bolsista de iniciação científica do NUTRAS, seis trabalhadores da equipe do CECO,
três parceiros do CECO, uma professora universitária de enfermagem e duas
estagiárias de enfermagem.
No encontro de confrontação, começamos com uma rodada de
apresentações. Logo em seguida narramos o percurso da pesquisa até ali, pois os
parceiros não haviam participado dos grupos anteriores. Levamos cartazes coloridos
com frases sobre o trabalho escritas em tamanho grande que foram recolhidas dos
grupos de estudo-debate do artigo. Os autores das frases não foram identificados
nos cartazes, mas a própria equipe foi buscando lembrar quem havia dito o quê. As
frases partilhadas foram:
A- “Não é meu papel tirar do meu dinheiro para pôr no trabalho. Tem
cliente que ganha mais que eu.”
E- “Por ser funcionário, a gente tenta fazer tudo certo, mas às vezes
precisa fazer gato para ter música na praça.”
Florbela: Tem uma ficha minha que está caindo agora (…) Tem gente que
não precisa de psicologia nem de psiquiatria, precisa de contato, precisa
circular pela cidade.
Pagu: Precisa de uma rede de amigos.
Florbela: De amigos, gente, as pessoas precisam de amigos. Eu estou
resgatando todos os meus amigos, encontrei gente de vinte anos atrás,
porque nesse momento principalmente acho que quanto mais rede, mais
afeto, mais a gente consegue sobreviver ao que está acontecendo.
Dizer que ao se deparar com as frases acontece de cair a ficha aponta para o
efeito produzido pelo método da clínica da atividade em que o trabalhador tende a
se tornar observador do próprio trabalho. Florbela é uma parceira do CECO que
divide sua carga horária entre CECO e ambulatório. Ao longo do encontro, ela
compara sua prática profissional no ambulatório como psicóloga e sua prática
profissional como professora de ioga no CECO; talvez essa dupla inserção no
trabalho em saúde também tenha favorecido esse descolamento de posição.
A fala “nem todo mundo precisa de psicólogo e psiquiatra” (sic), considerando
o contexto da atenção psicossocial, faz uma crítica à psicologização e à
psiquiatrização das pessoas em sofrimento psíquico. O enunciado aponta para a
potência de despatologização da vida que o trabalho do CECO coloca em
funcionamento.
O debate no grupo caminhou para a função do CECO como um espaço de
produção de amizades e o quanto isso é necessário para a saúde humana.
Destacamos que a trabalhadora começa falando sobre o público que faz sua aula de
ioga e depois termina o enunciado falando de sua própria experiência, e da
necessidade que tem tido de resgatar amigos, dando ênfase aos tempos atuais de
dura conjuntura política. Essa maneira de se posicionar diante da vida – de olhar
para o outro e reconhecer que há nele uma necessidade, e que essa necessidade
que ele tem pode ser a mesma que eu tenho, ainda que ocupemos lugares
112
Cora: Essas frases mexeram bastante comigo, porque assim... eu não sou
da área de saúde mental, sou intensivista, né? Mestrado, doutorado,
especialização tudo em terapia intensiva, né? E aos quarenta e cinco do
segundo tempo eu caí na saúde mental porque a professora de psiquiatria
entrou de licença e eu vim dar uma cobertura, isso há sete, seis anos e
meio atrás, e aí me internaram, né? E não consigo sair mais [risadas].
Fiquei. Não voltei mais para terapia intensiva. E esse trabalho que é feito
aqui para mim foi um aprendizado ímpar. (…) Quando eu cheguei aqui, eu
confesso a vocês que eu ficava sempre ligada, que eu tinha sempre a
sensação que algum usuário iria me dar um soco ou ia me empurrar,
né, porque é o que a gente traz lá de fora, que eles são agressivos, né?
E aí eu cheguei bem assustada e não sabia lidar com eles direito porque eu
estava acostumada a comandar o cuidado, a comandar a minha prática. (...)
na oficina que a gente começava, eu começava a organizar a atividade e
eles desorganizavam a atividade. Aquilo me inquietava muito, que eu falava:
“Senhor, toda hora eu arrumo e eles desarrumam”. A gente preparando para
fazer os bonecos da festa julina ou preparando algum outro material, eu
separava lápis de cor aqui, papel aqui e nanana, tudo na caixinha, quando
eu achava, né, no meu pragmatismo que tinha que ser, e eles
desconstruíam aquilo tudo. Então, foi assim muito sofrido no começo
para eu entender que era o jeito deles, e eu aprender a fazer COM eles.
com as políticas de saúde por parte da Prefeitura é notório. Contudo, o retorno que
os trabalhadores obtêm por quem se beneficia das suas ações, como vemos no
diálogo a seguir, transforma a relação com o próprio trabalho.
que ampliam sua capacidade normativa na relação com o próprio trabalho, como
escutamos naquele enunciado. Além do CECO, está em curso a assunção de uma
série de estratégias desde o final do século XX que contrariam a crescente
medicalização e são baseadas na construção de espaços dialógicos em rede, tais
como o diálogo aberto (KANTORSKI; CARDANO, 2017); os grupos de ouvidores de
vozes (KANTORSKI et al., 2017); a gestão autônoma da medicação (CARON;
FEUERWERKER, 2019), os grupos de ajuda e suporte mútuos em saúde mental
(BRASIL, 2013a), entre outros.
Afirmamos que o trabalho da convivência pode colaborar na
desmedicalização da sociedade. Ainda que este não seja reconhecido como seu
objetivo primeiro, temos observado de modo não-sistemático que tal tem sido um
dos efeitos desse trabalho. Notamos ainda que essa desmedicalização, no sentido
de uma liberação da contenção afetiva pela via medicamentosa, pode se associar
com um processo de desinstitucionalização da loucura como doença mental,
rompendo com o paradigma da psiquiatria.
Há uma polissemia do termo desinstitucionalização. Aqui nos interessa a
perspectiva de desinstitucionalizar não como desospitalizar – uma redução de leitos
psiquiátricos – ou como transinstitucionar – uma transferência de uma instituição
para outra. Fazemos referência à desinstitucionalização da loucura como
transformação das relações de poder entre instituições e sujeitos.
Desinstitucionalização como um processo individual e coletivo de emancipação, de
libertação, que conta com o componente do sofrimento individual, mas não se reduz
a ele. Ela envolve trabalhadores, administradores públicos, políticos, cidadãos
comuns, na busca utópica, mas paradoxalmente realizável, de uma sociedade sem
manicômios (VENTURINI, 2016).
Acompanhar o trabalho da convivência nesta pesquisa nos mostrou que para
desinstitucionalizar a loucura como doença não é possível prescindir da produção do
comum, da produção da multidão (HARDT; NEGRI, 2005). Romper com a opressão
da psiquiatria requer uma certa dose de indignação coletiva. Isso foi muito visível
nas participações em audiências públicas e diversos atos em defesa de uma
sociedade sem manicômios que encheram as cadeiras da Alerj, as escadarias da
Câmara Municipal do Rio, o Largo da Carioca, a Cinelândia, entre outros pontos da
cidade. Para Hardt e Negri (2016, p. 263), a indignação é matéria-prima da revolta e
117
evitar a dor, a própria família fica quase sempre em casa. O rapaz vai se exaltando
ao fazer sua narrativa. Seu tom de voz vai ganhando ira, o volume vai aumentando.
Ele fala que dizem para ele que ele precisa se controlar, segurar sua onda quando
está na rua, que não pode sair por aí gritando. Ele fala que a pessoa acometida
precisa, sim, gritar; precisa, sim, se exaltar; precisa, sim, se expressar, para dizer
que as pessoas acometidas precisam de respeito e de aceitação. Enquanto não tiver
respeito e aceitação, mas aceitação da pessoa como é, e não aceitação da pessoa
controlada, não vai ter convivência. O rapaz é aplaudido e nossa roda se encerra.
Essa cena nos mobilizou a pensar para quem o CECO dirige suas atividades.
Para acometidos controlados? A condição de isolamento não se extingue por si só
com o fechamento dos leitos psiquiátricos. Quando defendemos o cuidado em
liberdade, precisamos embutir nessa defesa o direito à convivência. Pode parecer
sinônimo, liberdade e convivência, mas há uma nuance, que às vezes passa
imperceptível. O fato de a pessoa viver em uma casa, com a família, fora do
hospital, sugere que a liberdade e a convivência dos acometidos estão garantidas. A
fala do rapaz mostrou com toda a visceralidade que não está. Mesmo aqueles que
nunca foram internados, quem têm “desde um tique nervoso ao que fala sozinho”
(sic), também sofrem com essa condição que muitas vezes é de autoisolamento por
constrangimento.
Escutei o grito do rapaz como um grito não só pela liberdade dele, mas pela
de muitos. Embora ele não tenha usado exatamente essas palavras, traduzo a
mensagem dele como um chamamento indignado, que clama “socorro, precisamos
conviver com respeito!”. Para Spinoza, na definição dos afetos (EIII), a indignação é
um ódio por alguém que fez mal a um outro (p. 145). Acreditamos que o caminho do
ódio não é o melhor caminho. Contudo, identificamos que o afeto da indignação
desempenha uma função significativa nas transformações sociais.
Ficou nítido na fala dele a expressão do manicômio que insiste nas relações,
aquele manicômio invisível que tem desejo de correção, de controle, de dominação
sobre aquilo que é desviante. Embora ele estivesse se dirigindo a vários
profissionais naquele momento, não fez referência ao trabalho dos profissionais do
CECO em seu enunciado, mas sim às relações familiares. Ainda assim, a
119
49 “I see your true colors / Shining through / I see your true colors / And that's why I love you / So
don't be afraid to let them show / Your true colors / True colors are beautiful / Like a rainbow” (“Eu
vejo suas cores reais / Brilhando por dentro / Eu verei suas cores reais / E é por isso que eu te amo /
Então não tenha medo de deixá-las aparecerem / Suas cores reais / Cores reais são lindas / Como
um arco-íris” (tradução livre da autora).
50 Palestra "A contribuição de Franco Basaglia e Franca Basaglia na crítica à patologização da vida",
proferida em 30/10/2019. Disponível em: <https://youtu.be/I3BEeH4lIiA>.
120
Clarice: Porque assim, é legal ir junto? É legal ir junto. Mas quando eles
começarem a ir sozinhos? É isso que a gente quer? É, de verdade. Mas no
fundo, no fundo, vai dar aquela coisa assim de “tá, e agora, o que eu faço?”
A gente sabe que vai ter sempre outras demandas e vai ter sempre o que
fazer. Mas é disso, é isso que a gente tem que pensar e desapegar. Sabe?
Eu não tenho que ser sempre necessário, o dia que eu não for mais, que
legal. Esse é o objetivo, agora é que eu vou ser feliz. Sabe? E isso é difícil,
porque a gente se apega. A gente se prende e às vezes a gente esquece
que não, que tem que soltar, tem que deixar ir. É igual coisa de mãe e
filhote mesmo.
Vale
Ter feito o Encontro de Ideias itinerante nos CAPS de outras áreas abriu o
diálogo com profissionais de outras equipes e diversificou o público participante do
CECO, uma vez que esses outros interlocutores passaram a interferir nas escolhas
das programações, especialmente os passeios a serem realizados. A frase C gerou
debate ao articular passeio e autonomia.
“Um passeio pode ser só um passeio, mas um passeio pode ser também
um estímulo para a autonomia.”
A autonomia se expressa tanto no ato de poder gerir seus recursos
financeiros para realizar o passeio desejado como na relação com o imprevisível da
cidade. Uma trabalhadora trouxe a situação de um passeio em que ocorreu um
acidente de trânsito e narrou como coletivamente foi possível lidar de modo bastante
favorável com a adversidade.
outras pessoas juntas no nosso dia.” “Não, mas nós vivemos uma situação
em que veio um menino aí, vocês são de onde? É de Caxias?” “Do
Engenho de Dentro.” “Ah, que nós vivemos uma situação em que veio uma
moça lá de Caxias com um menino autista, né, e ele mordeu uma moça.”
Eu falei: “Ah, moço, isso aí qualquer um pode morder qualquer um. O
senhor lembra daquele jogador de futebol que mordia outros?” [risadas].
Não veio outra coisa na minha cabeça, depois falei: meu Deus, que maluca!
[risos de todos no grupo]
Pagu: “O senhor está nos rejeitando?” “Não, de forma alguma, não sei o
quê.” Aí o homem mudou para o outro lado assim: “Ah, eu vou dar então
quarenta gratuidades para vocês.” “Também a gente não quer isso.”
Entendeu? Antes eu não quero vocês juntos com os demais, quero vocês
sozinhos. Depois, não, vocês podem ficar juntos, mas eu vou dar gratuidade
para vocês. Então é isso, assim, essa estratégia de avizinhamento, né, é ir
falando, ir levando essa proposta e desconstruindo isso. E no primeiro
momento ele falou: “As pessoas são perigosas, vocês vêm de uma
instituição psiquiátrica, então vão ficar só vocês.” Mas a gente vai continuar
excluídos? É tudo que a gente não quer! [...] Então, é um trabalho
constante.
Essa história remete àquela narrada por nossa entrevistada Lisete Vaz,
quando na década de 90 se fazia uma sessão de cinema só para os pacientes, e se
o filme não tivesse terminado no horário de os normais chegarem, eles tinham que
sair antes do fim do filme. A subjetividade manicomial que permeia essa prática é a
mesma da do dono do parque que sugeriu fazer um dia exclusivo só para o CECO.
Nesse caso, o exclusivo é o excludente. O desfecho dessa história foi que o grupo
de conviventes foi ao parque em um dia em que o parque estava aberto a outros
grupos. Eles se divertiram numa tarde ensolarada de dezembro juntos e misturados
com os outros banhistas na piscina, com música e altos papos. Entre os diversos
participantes, foram usuários de alguns CAPS, familiares, pessoas da comunidade,
moradores e cuidadores de residências terapêuticas.
Como disse Pelbart em “Manicômio mental: a outra face da clausura”,51 é
preciso que esse chamamento de apenas três palavrinhas (sociedade sem
manicômios) tenha a força de uma questão candente, em brasa. Dar fim ao
manicômio, explodir o manicômio mental, é fazer valer o direito à desrazão, que
significa poder pensar loucamente, poder levar o delírio à praça, fazer do acaso um
campo de invenção, liberando a subjetividade das amarras da verdade. Quando o
CECO incendeia o manicômio perpetuado nas relações, ele desinstitucionaliza a
loucura no tecido social. É um trabalho de desconstrução, em que o manicômio deve
virar cinzas.
51 “Manicômio mental: a outra face da clausura” é o nome de um texto apresentado por Peter Pal
Pelbart no encontro organizado em São Paulo pelo Plenário de Trabalhadores em Saúde Mental, em
comemoração ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, em 18 de maio de 1989.(Pelbart, 1991, p.137)
131
Vinícius: Você vê o Noel, vou dar o exemplo do Noel, nossa senhora! Noel
chegava lá, sentava e não falava nada, nem levantava. Hoje o Noel vem
jogar capoeira, o Noel pega nos instrumentos, ele canta, ele chega alegre,
ele fala o que aconteceu com ele no dia a dia, né? [...] Isso tudo um trabalho
de formiguinha, que eu fico feliz, né? […] O Noel falou assim: “Poxa, eu
queria namorar.” E falou assim: “Mestre, eu queira namorar, mestre. Queria
namorar uma companheira.”
Adélia: Ele sente falta, né?
Vinícius: É, daí você trabalha. Eu falei: “Noel, para você arrumar uma
companheira, você vai ter que fazer o seguinte: procurar se relacionar mais,
procurar alguns ambientes, fazer parte de outros grupos, né, ir no baile.”
Foi ver todo o afeto, todo o investimento da equipe. Dá pra ver que não
esmorece, apesar das dificuldades da falta de investimento da Prefeitura.
ÔNIBUSFOBIA
(Jota Quest)
5 CARTOGRAFIA 4 – OS OFICINEIROS
2 – Formação.
53 Fonte: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10811/arthur-bispo-do-rosario>.
54 Disponível em: <http://museubispodorosario.com/polo-experimental/>.
138
OS
17 Recepcionista Ensino Médio Contrato CLT /
OS
18 Apoio administrativo Ensino Médio Contrato CLT /
OS
19 Apoio administrativo Ensino Médio Contrato CLT /
OS
Fonte: A autora.
2 – O trabalho dos oficineiros visa promover saúde por meio de ações voltadas à
inclusão social, circulação e ocupação da cidade. Os oficineiros devem executar
atividades com os usuários e demais interessados na sua Unidade; e, no mínimo um
turno por semana, fora dela.
Essas diretrizes são apenas diretrizes muito gerais, que não especificam a
ação dos oficineiros. Contudo, elas nos oferecem o tom de um fazer e sistematizam
em alguma medida os pontos de discussão que apareciam mais intensamente nas
supervisões, apontando para a dimensão impessoal do ofício, ou seja, a dimensão
que corresponde ao que há de mais prescrito no trabalho, o que é atribuição, o que
é desejável e o que não deve ser realizado pelos oficineiros. Na leitura delas,
podemos identificar os conflitos do trabalho real em que elas tocam: realizar a
atividade dentro ou fora da unidade; a relação CAPS-CECO; a demanda dos
usuários e a demanda dos trabalhadores na escolha do tipo de atividade a ser
realizada; a participação da equipe dos serviços em espaços políticos; o grau de
envolvimento dos oficineiros com a inclusão de usuários em postos de trabalho
formal; os limiares entre o que é função de outros profissionais da equipe e o que é
considerado função do oficineiro.
Outros trabalhadores no âmbito das políticas de saúde mental –
principalmente os que têm ensino superior, que contam com conselho profissional,
sindicato, associação e outros aparatos institucionais – dispõem de prescrições mais
formais para a realização do seu trabalho. Por exemplo: psicólogos, assistentes
sociais e técnicos de enfermagem têm parâmetros de atuação definidos por seus
conselhos. Até outros trabalhadores majoritariamente com ensino médio, como os
cuidadores, contam com uma associação estadual que promove encontros regulares
que debatem seu processo de trabalho. O fato de os oficineiros não contarem até
então com nenhuma prescrição advinda de nenhum aparato institucional colaborou
143
para abrir espaço para a invenção dessas diretrizes que dão uma direção mínima
para o trabalho acontecer.
Logo depois, pedem que eu me junte a eles. Falo um pouco sobre o percurso
profissional destacando a relação que tenho com esse trabalho, apresento o projeto
da pesquisa que propõe potencializar as estratégias dos trabalhadores para lidar
com as variabilidades das situações de trabalho nos Centros de Convivência do Rio
de Janeiro. Resumo a questão central da pesquisa: trabalhar nos centros de
convivência pode ser bom para a saúde dos trabalhadores da rede de atenção
psicossocial? Este serviço pode promover saúde não só para os usuários, mas
também para os trabalhadores que nele atuam? Nossa conversa com os oficineiros
inicia, e começa a se constituir um grupo com o qual a pesquisa vai operar. Osorio
da Silva (2014, p. 97) ressalta a importância da formação de um grupo de referência
que possibilitará o permanente protagonismo dos trabalhadores nas muitas decisões
que as modulações do método exigem.
Eles se apresentam: Tarsila, trabalha na oficina de culinária na sede, diz que
faz quitutes doces e salgados. Romero trabalha na oficina de música, no Polo, que
se desdobra em três atividades: 1) Bloco Império Colonial; 2) Banda 762; e 3) Rádio
Delírio Cultural. A banda tem uma articulação com as oficinas de literatura que
acontecem no CAPS, pois as poesias que os usuários fazem se transformam em
letras de música da banda. Candido trabalha na oficina de mosaico; a oficina está
aberta à comunidade. Oswald e Anita fazem oficina de culinária que produz
refeições para o Bistrô Bispo (restaurante a peso). Abigail trabalha nas cantinas.
Lygia (costura e bordado) e Tina (dança, alongamento, pilates) não estavam na
reunião, mas foram mencionadas como integrantes da equipe. Eles me convidam a
participar da inauguração da nova exposição, chamada Bispando.
Nesse contato inicial, Abigail conta que na cantina recebeu um usuário que
veio do manicômio judiciário após mais de vinte anos internado. Muito agradecido,
ele lhe disse que depois de muitos anos voltou a escrever outra vez. Não pegava em
uma caneta e escrevia havia muito tempo. Agora ele precisa anotar no caderno o
que vende na cantina. A oficineira se alegra em contar que trabalhar na cantina o fez
perceber que não esqueceu como se escreve, apesar de todos os anos que passou
em reclusão, confinado no manicômio. Essa alegria tem a ver com trazer de volta à
vida a alegria da convivência.
Ainda nesse encontro, Candido diz:
145
da ação humana, de descobrir aquilo que até então era inimaginável” (CLOT, 2008b
p. 69, tradução da autora).
As oficinas que eles realizam são extremamente heterogêneas entre si. Por
exemplo: a oficina do mosaico e da música mobilizam recursos, ferramentas e
saberes bem diferentes. Contudo, como nos interessamos pelo ofício do oficineiro,
dispor de alguma homogeneidade em relação à função nas rodas é relevante, pois
os coloca em um patamar de enunciação mais equânime. O que havia de comum
era exercerem a função de oficineiros, e não necessariamente o tipo de oficina.
As trabalhadoras que ocupam a função de coordenação do Polo não
participaram das rodas, pois entendemos coletivamente que a presença delas
poderia inibir algumas falas. Os critérios para composição das rodas foram
construídos num processo dialógico entre grupo de pesquisa (NUTRAS) e equipe do
Polo, buscando criar condições favorecedoras ao protagonismo dos trabalhadores.
Consideramos que lidar com a tensão entre homogeneidade-heterogeneidade
foi um permanente desafio na construção metodológica da pesquisa. As questões
tocadas nos grupos levaram em conta: 1) A problemática mais geral da pesquisa: o
trabalho como operador de saúde; 2) As singularidades daquele local: um CECO
que é um Polo Experimental; 3) O grupo a quem se dirige: seis oficineiros; 4) As
ferramentas teórico-metodológicas que nos dispomos a usar: aportes da clínica da
atividade e cartografia.
Ao indagar de que se trata o ofício dos oficineiros?, estamos fazendo de uma
só vez duas perguntas, que podem ser assim traduzidas: quais são as incumbências
com o que o oficineiro se ocupa? E quais são as discordâncias criativas-destrutivas
entre as quatro instâncias em conflito no trabalho do oficineiro? Quando nos
interessamos pelo ofício do oficineiro, não estamos interessados em revelar uma
verdade, em encerrar em uma definição o que é que o oficineiro faz. Estamos
interessados em construir saberes coletivamente, buscamos colocar a arte do ofício
em atividade “cela relève de l’art du métier en acte” (CLOT, 2008b, p. 68). Nas rodas,
tínhamos três oficineiras e três oficineiros; os dois mais novatos haviam ingressado
ao mesmo tempo na equipe, em uma fase de reestruturação do Polo, dois anos
atrás, e o mais antigo no grupo trabalha há vinte anos no IMAS Juliano Moreira e
teve a oportunidade de vivenciar toda uma transformação nos modelos de atenção à
saúde mental naquele território.
147
56 No original: “Faire de la recherche en clinique de l’activité, c’est revenir sur l’action produite pour
étudier les mécanismes de développement ou d’empêchement de cette action. Dans cette ‘action
149
Uma das coisas que nos chamaram a atenção durante a realização das rodas
e ao analisar as gravações foi a maneira como os oficineiros se expressaram no
grupo por meio de brincadeiras, piadas, como zombavam uns dos outros e das
diversas situações que enfrentavam no cotidiano. O tom jocoso com que falavam
rapidamente se transformava em um riso que se espalhava e em algumas situações
contagiava as pesquisadoras. Em uma das transcrições de áudio da roda, por 26
vezes as falas foram entrecortadas por risos. Nesses momentos de riso intenso, não
era possível compreender o que havia sido falado. Essa presença tão marcante do
cômico nos grupos às vezes dizia respeito a afetos alegres, mas em outros casos
não, pois junto com aquilo que parecia engraçado havia uma situação difícil de ser
vivida.
Em Bergson (1983), encontramos a compreensão das diversas expressões
do riso. O autor faz um estudo da comicidade das formas e dos movimentos, da
força de expansão do cômico; da comicidade de situações e comicidade de
palavras; da comicidade de caráter. Ao sinalizar três observações fundamentais
referentes ao riso, ele destaca que não há comicidade fora do que é propriamente
humano; o homem definido como um animal que ri pode ser também definido pela
sua capacidade de fazer rir.
não o contrário. Não é o coletivo sendo a fonte, mas a controvérsia sendo a fonte do
coletivo” (CLOT, 2008c, p. 66).
Então encontramos aí uma discordância criativa que apresentamos a seguir.
A controvérsia está entre buscar ou não informação por outras fontes ao acolher um
novo usuário, ler ou não ler prontuário, que valor dar à história e ao que está escrito
sobre esse outro com quem vai se trabalhar. Esse diálogo que foi puxado pelo tema
da formação percorreu todo o terceiro encontro.
Quando eu vim trabalhar aqui, eu não tive uma especialização. Eu não sou
psicóloga, psiquiatra, eu não sou da área da saúde, eu trabalho na área da
saúde, mas não sou da área da saúde. Pra que eu tenho que saber
prontuário de paciente? O que o paciente tem? Eu não vou conseguir
trabalhar, cara (Tarsila).
Quando o paciente vinha pra minha mão, eu queria saber o prontuário dele,
a causa dele, porque eu tenho uma facilidade. Eu cobrava isso direto. Fazia
as fichas, tudo direitinho. Até que chegou um tempo que eu comecei a pedir,
mas eu sentia que ele ficava um pouco meio que assim: “pô, o cara quer
saber de tudo, né?” Quando vem pra minha mão, pra ler… Mas eu não tô
mais indo nessa linha, não (Candido).
Eu gosto de saber. Logo que eu vim pra x, ele era paciente psiquiátrico,
mas ele tinha caso de estupro. Estuprava as pessoas quando era mais
novo. Eu precisava saber daquilo, porque e se eu não soubesse e
acontecesse alguma coisa? (Anita).
O cara pega o prontuário dele, depois fica... [pausa] Eu sinto isso, porque
às vezes o cara chega com uma história e a dinâmica aqui já é outra. […]
Por isso que eu não gosto de saber do prontuário, porque eu não quero...
[pausa] Eu trato eles como eu trato vocês aqui. Entendeu? Com essa
naturalidade. E assim vão vivendo, e assim vamos (Candido).
57 Em nossa experiência militante, sentimos como é potente e vivo o diálogo nesse gênero
discursivo. Quando estamos diante de um problema e um militante, ainda que seja de um movimento
social diferente, diz “vamos fazer oficina de cartazes, carta aberta, ato público”, outro militante
rapidamente já compreende, responde nesse mesmo gênero discursivo, a tarefa já começa a se
organizar e a se realizar.
155
lado, o termo coletivo de trabalho diz respeito ao trabalho que é feito por um corpo
de trabalhadores em que há o exercício da cooperação. “Um coletivo de trabalho
como a re-criação na ação e para a ação de uma história que, por não pertencer a
alguém em particular, apresenta-se (ou não) como um instrumento pessoal para
cada profissional” (CLOT, 2010, p. 168).
Portanto, embora em muitas situações coletivo seja uma palavra usada como
o oposto de singular, individual, ou como sinônimo de social, ela não se restringe a
esses sentidos mais dicotômicos. Na perspectiva cartográfica, coletivo se difere de
um simples somatório de pessoas reunidas em determinado espaço e tempo,
significando “uma rede de composição potencialmente ilimitada de seres tomados na
proliferação das forças de produção de realidade” (KASTRUP; PASSOS, 2014, p.
26). Adotamos como ferramenta de trabalho, na pesquisa, esse conceito de coletivo
como rede, sustentado por redes em composição.
Tais conceitos nos servem na elucidação da situação em que o Polo recebeu
uma grande encomenda de bolsas pela Via Rio. Bolsa é um tipo de produto
confeccionado, a princípio, pela oficina de bordado e costura. Contudo, foi pactuado
entre os oficineiros e participantes que as diferentes oficinas entrariam nessa
produção colaborando cada qual com sua arte no atendimento desse pedido. As
bolsas que foram produzidas contaram com o trabalho das mãos não só dos
participantes da oficina de bordado, mas também com as mãos do mosaico e do
ateliê de pintura. As bolsas não eram mais apenas bordadas, mas decoradas com
diferentes texturas, desenhadas e pintadas pelas mãos de vários artistas. A
experiência é narrada com alegria, como um “trabalho integrado” (sic) e com intenso
grau de troca e aprendizado entre todos. Isso que eles chamam de integrado nos
remeteu ao conceito de cooperação, elemento necessário ao coletivo de trabalho. A
cooperação pode ser definida como “uma forma de trabalho em que muitos
trabalham planejadamente lado a lado e conjuntamente, no mesmo processo de
produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos” (MARX, 1996, p.
422).
A cooperação propicia que o trabalhador se desfaça de suas limitações
individuais e possa desenvolver suas potencialidades na relação com os outros. Na
situação em questão, as múltiplas linguagens artísticas dialogaram. Nenhuma bolsa
saiu igual à outra, e cada um produziu nessa experiência uma nova maneira de
157
simples pausa para dar bom-dia, o que está sendo produzido por esse trabalho
coletivo é a convivência.
58 Prestes (2010) adota o termo zona de desenvolvimento iminente, e não imediata, proximal ou
potencial como usado por outros tradutores da obra de Vigotski. A autora afirma que Zona
blijaichegorazvitia é exatamente aquilo que a criança consegue fazer com ajuda do adulto, pois o que
ela faz sem ajuda, e não mediação, do adulto já se caracteriza como nível do desenvolvimento atual.
Ela defende o termo iminente pois sua característica essencial é a das possibilidades de
desenvolvimento, mais do que o imediatismo e a obrigatoriedade da ocorrência. Nesta pesquisa,
optamos pelo termo potencial, pois é o utilizado nos livros que consultamos.
160
Clot (2010) afirma que o indivíduo se torna sujeito quando faz, sozinho e de
outro modo, o que já havia experimentado com os outros, quando reconstrói para si,
de outro modo, o que havia produzido e o que se produziu com os outros, ao
encontrar-se com eles uma cabeça acima dele mesmo, em uma zona de
desenvolvimento potencial. Dessa forma, nos interessa perguntar: como um
oficineiro desenvolve a atividade do outro? Como as rodas foram espaços para que
esse exercício pudesse ocorrer?
Os oficineiros que chegaram na equipe por último recorreram aos mais
experientes quando se depararam com situações em que eles não sabiam como
agir. O novato, ao ingressar, coloca à prova seus recursos pessoais no diálogo
interpessoal, observando e conversando com os colegas. Por exemplo: um dos
oficineiros conta que aprendeu com os dois mais antigos no Polo que é
indispensável dar atenção, ter um momento prévio de conversa antes de iniciar a
tarefa propriamente dita. Ele narra um dia de trabalho em que estava muito
atrasado, pois precisavam fazer a gravação de um programa na rádio, e ele passou
por um dos participantes da oficina correndo, apressado pela urgência do horário,
sem parar para cumprimentá-lo. Mais tarde notou que ele estava com uma cara
aborrecida, recusando participar. Ele perguntou o que tinha acontecido, e o usuário
não respondeu. Então ele indagou a outra funcionária, que disse que ele havia
reclamado porque o oficineiro tinha passado e não lhe dado bom-dia, que as
pessoas não davam um bom-dia para ele. Ele aprendeu com os colegas mais
antigos sobre a necessidade de dar atenção, que “aquele momento em que a gente
constrói alguma coisa também é um momento de atenção, de cuidado, de conversa,
em que as situações são construídas coletivamente” (Romero).
Esse oficineiro nunca havia trabalhado na área da saúde mental; sua
experiência era como professor de música em escolas com crianças. Ele relata que
aos poucos foi percebendo as regras importantes para que o trabalho no Polo
pudesse acontecer. Diz que antes não dava muita importância ao fato de memorizar
os nomes dos alunos, mas que na saúde mental os usuários se importam muito com
isso. Quando ele esquecia durante a oficina, eles retrucavam: “Como assim, não
sabe meu nome?!” E foi conversando com os colegas que ele compreendeu que o
nome é o que dá identidade, identifica como uma pessoa; que no passado muitos
foram identificados por números nas internações, e o nome é algo que ninguém tira
161
nenhum, não é prescrito, apesar de ser necessário para que o trabalho aconteça. Ao
começar a dominar o gênero de atividade profissional oficineiro, ele transforma a sua
maneira de agir na relação com o usuário, ele passa a se aproximar e dizer: “Aí eu
cheguei nele: ‘Oi, bom dia, você já tomou café? Como é que você está?’” (Romero).
O oficineiro imprime, então, sua maneira de fazer, é a dimensão pessoal do
ofício que se apresenta. Essa dimensão pessoal, da experiência profissional
anterior, singular, em que ele já cruzava gêneros diversos, permite a invenção de
novos modos de agir, a cada nova barreira, que não foram poucas, no início. Uma
das oficineiras atribui as resistências dos usuários em participar das oficinas com os
profissionais recém-chegados à saída de profissionais que eles amavam muito.
Romero narra como fez para chamar o usuário a participar com o argumento de que
falta algo no trabalho para o que ele poderia contribuir (fazer alegoria). Essa foi uma
estratégia que criou para estimular a participação dele na oficina.
“Tudo bem, você não é obrigado a fazer, mas eu acho que falta uma
alegoria no bloco de carnaval. Eu acho que não tem. Eu acho que você
poderia fazer alguma coisa...” E daí ele fez um boneco que é tipo uma
marionete e que ele leva para todas as apresentações do bloco. Eu
consegui na minha insistência perceber a resistência que ele tinha, e eu
consegui no meu caso tentar dar um significado. Não quebrei
completamente essa resistência, é um trabalho diário (Romero).
os envolvidos (...) abrindo novos cursos éticos por onde a vida pode se movimentar
e transformar-se”.
Fizemos um exercício de memorar nas rodas como os rostos, as vozes, os
risos e os silêncios se expressavam. Lendo as transcrições, escutando os áudios,
pensamos em como as questões ecoaram na pesquisa ali, localmente: convivência,
que atividade é essa? Como se constitui o ofício do oficineiro? Construímos um
texto, uma carta dirigida àquele grupo de oficineiros, colocando nas palavras
endereçadas a eles suas próprias palavras. Acrescentamos, cuidadosamente, no
caldeirão um pouco de cada um e muito de todos. O resultado foi uma narrativa do
que se passou nas rodas, deixando novas possibilidades de conversa abertas.
alguém; é olhar para aquela pessoa que fica sentada o dia inteiro na entrada do CAPS e
ir até ela fazer um convite para a oficina; é estar num trabalho que não te cansa embaixo,
mas a cabeça fica cheia de informação e te cansa muito em cima; é ter um cafezinho em
casa e deixar alguém abrir a porta, beber e sair; é cuidar de um, de outro, de vários e de
si mesmo; é apesar de ter levado pancada, se arrepiar ao contar sobre como é a festa de
final de ano; é não se ver fazendo outra coisa e sentir que mesmo com as dificuldades
esse trabalho é gratificante.
O Superoficineiro, personagem criado pelo grupo, não curte quando não tem almoço para
todo mundo, já ficou mais de 75 dias sem receber pagamento, e fez rodízio para o
trabalho não ser interrompido. Enfrenta resistências quando a equipe muda e vai
quebrando a resistência aos poucos, usando a linguagem que todos entendem: a
linguagem do trabalho. Mas o superoficineiro não faz nada sozinho, por isso ele é super,
mas não é herói. Seu superpoder é o agir. São oficineiros e oficineiras que agem
compondo uma liga da justiça, um coletivo que é cultivado cotidianamente. Esse cultivo
do coletivo, aqui chamado de convivência, é necessário ao trabalho. Trabalhar é viver
junto. Vocês sabem disso e nos contaram sobre como isso funciona:
Sabe o que é gratificante nesse grupo? É que a gente se quer muito bem. Mesmo sem
estar junto todo dia a gente vai vivendo o dia a dia um do outro.
Como diria o poeta Rubem Alves: “Todo fim venta um começo”. Espero que o fim deste
pequeno texto faça ventar novas sensibilidades no ofício de oficineiro. Abrimos o começo
da circulação da palavra no encontro desta tarde com a seguinte questão: como as rodas
de conversa afetaram vocês e o trabalho que realizam?
Por fim, extraímos desse encontro uma fala que aponta para a necessidade
da criação de espaços em que o diálogo sobre o trabalho seja possível:
Fazemos eco a esse enunciado, que nos indica que de fato entre o trabalho
pensado e o trabalho realizado há um intervalo, que é a própria atividade. Colocá-la
em debate colabora para problematizar o que é realizado, mas também cria novas
possibilidades de agir, produzindo um círculo virtuoso. O caminho é longo e repleto
de impasses, mas quando o coletivo de trabalho e o trabalho coletivo se fazem
167
<https://www.youtube.com/watch?v=iRnNeUmR558>
169
Campo Grande é um bairro da Zona Oeste que, além de ser o mais populoso
da cidade do Rio de Janeiro, é o bairro mais populoso do Brasil. Segundo o Censo
do IBGE de 2015, Campo Grande contava com mais de 336 mil habitantes. Com
economia diversa, o bairro tem áreas rurais, uma zona industrial importante para a
cidade e um comércio crescente. Na área da saúde, Campo Grande pertence à área
programática 5.2, junto com os seguintes bairros: Barra de Guaratiba, Cosmos,
Guaratiba, Inhoaíba, Santíssimo, Senador Vasconcelos e Pedra de Guaratiba, que
conta na sua RAPS com cerca de 35 unidades básicas de saúde (clínicas da família
e centros municipais de saúde), dois CAPS II, um CAPSi e cinco serviços
residenciais terapêuticos.59
Inicialmente, o Centro de Convivência e Cultura da Zona Oeste (Ceccozo) foi
criado pensando-se em uma composição com os três CAPS da área e os NASFs da
região, garantindo a ampliação do espaço de convivência entre a comunidade, os
usuários e familiares de saúde mental. Segundo a coordenação do Ceccozo, grande
parte da clientela que frequenta os serviços de saúde mental tem uma rotina
empobrecida e de pouca circulação no bairro onde eles vivem, bem como na cidade.
“O Ceccozo ele nasce de um desejo do território de construir algum tipo de atividade
de cultura e lazer pra esse território” (sic).
domingo, das 9h às 17h. O Ceccozo oferece ações nos seguintes dias: terça, o dia
todo; quarta, sexta e domingo, de manhã; e quinta, à tarde. Além do Ceccozo, outros
espaços públicos de convívio da região são igrejas, centro esportivo, Teatro Arthur
Azevedo, praça e a Arena Chacrinha, que fica no bairro Pedra de Guaratiba. Assim
como os demais CECOs da cidade, ele não está cadastrado no CNES, sendo sua
gestão, fruto de uma articulação local. A coordenação considera o espaço adequado
para sua finalidade, embora a estrutura física da Lona pudesse melhorar (pleiteiam
obra para colocação de termotelha). Sobre as ações intersetoriais, o Ceccozo realiza
reuniões com a economia solidária, com o centro esportivo, com o conselho distrital
de saúde e com os serviços da RAPS das áreas programáticas 5.1, 5.2, 5.3.
As inscrições para as oficinas abrem em fevereiro e há três grandes eventos
ao longo do ano: o Sarau da Diversidade, o Fazendo Arte (festa com as crianças) e
uma apresentação teatral em dezembro. O Ceccozo também realiza passeios,
visitas a exposições, museus, teatros, organiza eventos em praças e outros espaços
públicos. A reunião de equipe passou a ser semanal no decorrer da pesquisa; eles
fazem assembleia bimestral. O Ceccozo faz parte de um bloco carnavalesco
chamado Zona Mental, organizado pelo coletivo de serviços da Zona Oeste (Campo
Grande, Bangu e Santa Cruz), e monta exposições com a produção artística dos
usuários, que somaram cerca de 125 pessoas inscritas em 2019.
Em relação ao público que faz parte deste CECO, somando todas as
inscrições (2014 a 2019), ele tem 637 conviventes cadastrados, totalizando a média
de 106 inscritos por ano. Estima-se que diariamente cerca de cinquenta pessoas
participam das ações oferecidas pelo Ceccozo. Segundo estimativa da coordenação,
apenas cerca de 3% já passaram por internação psiquiátrica, 10% fazem uso de
psicofármacos e praticamente 15% (24 de 125) declararam ter recebido algum
diagnóstico psiquiátrico61 em algum momento da vida. A idade dos conviventes varia
entre 7 e 70 anos. Além da demanda espontânea, são locais que encaminham para
o Ceccozo: as Clínicas da Família, os CAPS, os CAPSi, ambulatório da policlínica e
FUNLAR (subsecretaria da pessoa com deficiência). O público é composto
principalmente por pessoas menos favorecidas socioeconomicamente, tendo como
renda familiar estimada entre dois e três salários mínimos.
sem-festa-23205654>.
61 Na ficha de inscrição, não há nenhuma pergunta específica sobre diagnóstico. Há a pergunta:
“Está ligado a alguma instituição? Qual? Técnico de Referência:”. Algumas pessoas citam o serviço
que encaminhou, quando é o caso; outras não citam.
171
A equipe inicial62 era composta por uma psicóloga que coordena o CECO e
dois oficineiros. Um deles oferece oficinas de teatro (adulto e infantil) e o outro,
oficina de grafite, dividindo sua carga horária com o CAPSi. Além disso, o Ceccozo
conta com parceiros que oferecem aulas de violão, hip hop, circo, artes visuais e
artesanato.
No que se refere à equipe atual, tomando por referência o mês de fevereiro
de 2020, ela estava conforme indica o Quadro 6:
62 Quando a pesquisa de doutorado começou, a equipe era formada por quatro profissionais, e foram
esses que participaram dos grupos que fizemos no Ceccozo em 2018. Quando o questionário foi
aplicado em 2020, a equipe havia mais que dobrado de tamanho. A entrada dos novos profissionais
se deu por meio de parcerias, na medida em que o trabalho foi se tornando mais visível. Contudo,
nenhum dos profissionais que ingressaram foi contratado exclusivamente para o Ceccozo pela
Prefeitura.
172
UFRRJ
10 Estagiário extracurricular Psicologia (12h) Parceria com
UFRRJ
Fonte: A autora.
63 Nos dois primeiros encontros, além da doutoranda, estiveram presentes atuando como
observadoras as copesquisadoras do NUTRAS Naiara Duque, Juliane Chaves e Thais dos Santos.
173
que ela passou a fazer parte da equipe do CECO. Outro argumento apresentado foi
de que por ela “não ser da saúde, mas ser da cultura” (sic), traria um olhar
diferenciado sobre o trabalho, o que agregaria valor ao conhecimento produzido na
pesquisa. A inseparabilidade do par saúde-cultura no trabalho do Ceccozo pode
ganhar expressão não só na composição do grupo, mas no decorrer dos encontros
da pesquisa. Já o diretor da Lona não teve sua participação cogitada.
O dispositivo oficina de fotos, assim como todo o processo de pesquisa,
participou de um “processo de produção de realidade que não é jamais estática e
acabada. (…) A pesquisa é um novo gênero de atividade profissional que se cruza
com os já existentes no ambiente pesquisado, produzindo novas estilizações”
(OSORIO DA SILVA, 2016a, p. 60). Nosso trabalho como cartógrafa do ponto de
vista da atividade (BARROS; SILVA, 2014) tem caráter construtivista, uma vez que a
pesquisa não está ali para descobrir verdades ocultas, mas sim para construir junto
com os processos que já estão em curso.
Utilizamos como critério para seleção dos diálogos a serem analisados
aqueles que mostravam as controvérsias da atividade de convivência, os trechos
que nos forneceram pistas para problematizar o conceito de convivência e o trabalho
realizado pelos CECOs. Destacamos que, segundo a perspectiva de Bakhtin, os
diálogos se desenvolvem na presença de um sobredestinatário, que seria um
terceiro participante invisível, que corresponde à dimensão transpessoal do ofício,
sua história coletiva, seria o grande diálogo. Além deste sobredestinatário, há o
subdestinatário, que corresponde às vozes do diálogo interior, seria o pequeno
diálogo consigo mesmo (CLOT, 2010). Desse modo, ao ler cada um dos enunciados
selecionados, é preciso levar em conta que há três diálogos em um: com o
destinatário imediato (pesquisadoras); com o subdestinatário (consigo mesmo); e
com o sobredestinatário (história coletiva). Há, então, uma heterogeneidade
plurivocal.
6.4 Colheita no campo: oficina de fotos como via para análise da atividade
Essa ideia de que tudo o que temos ao nosso redor, de que todo o mundo da
cultura, é imaginação humana cristalizada é extremamente potente para se pensar o
trabalho. A capacidade de fazer uma construção de elementos combinando o velho
de novas maneiras constitui a base da criação. Por exemplo: ao perguntarmos sobre
as forças que moveram os trabalhadores a implantar este CECO, nos deparamos
com as experiências vividas anteriormente. A atual coordenadora do Ceccozo narra
que, quando era diretora de CAPS, sentia que o espaço físico do CAPS era muito
pequeno e apertado, e eles acabavam fazendo as ações muito para fora do serviço,
no território. Nessa época, a equipe começou a perceber o quanto esse movimento
de saída, dos passeios, era potente para os usuários. A coordenadora fala sobre a
situação de uma senhora, usuária do CAPS, que estava se sentindo deprimida,
morando sozinha, tinha história de tentativas de suicídio, a família tentava apoiá-la, a
convidava para passar o fim de semana na praia, mas ela nunca queria ir, pois
queria ficar só em casa. No CAPS, eles estavam fazendo uma pesquisa sobre Luiz
Gonzaga, sobre sua vida, sua arte, sua música, pois programavam assistir ao filme
que estava em cartaz nos cinemas. Um dia, essa senhora chega até o CAPS no
momento em que se falava sobre ir ao cinema e deixa todos surpresos ao dizer que
ela já tinha ido assistir ao filme do Luiz Gonzaga. Por iniciativa própria ela se
arrumou, comprou o ingresso e foi ao cinema no fim de semana. Ela diz: “Agora que
já sei, posso ir”. A equipe entende que isso é resultado de um trabalho iniciado no
CAPS, de querer sair, de viver a vida, de se sentir capaz de circular na cidade.
Outro enunciado relevante foi de que pediam por um espaço de convívio em
Campo Grande. Os usuários do CAPS participavam de algumas atividades
oferecidas pelo Centro de Convivência Pedra Branca de Jacarepaguá (atualmente
chamado Polo Experimental), contudo, ainda que ambos os bairros sejam
considerados da Zona Oeste (Campo Grande e Jacarepaguá), o deslocamento na
cidade ficava muito difícil, pois as distâncias são longas, o trânsito intenso, e isso os
desanimava a participarem, apesar do interesse nas atividades oferecidas.
Ainda outro enunciado que se soma a esse diálogo sobre as forças vem de
um dos oficineiros. Antes de ele atuar no CAPSi do Rio, já havia trabalhado em um
176
[...] muitos usuários nunca tinham pisado aqui dentro na lona. Então desde
quando o centro de convivência começa a se instalar aqui dentro, ele
começa a fazer parte da cultura local. Isso foi o grande boom (Caetano).
imaginando como falar, como agir. “O que será que essa pessoa tá
querendo de mim?” Aí eu lembro, ela tá querendo amor (Betania).
Eu tenho analisado muito isso, e eu acho que não é uma coisa muito boa o
que acontece pela saúde mental que são as contratações, por exemplo, de
oficineiro e acabam contratando psicólogos. Aí você deixa de ter uma
equipe interdisciplinar e acaba tendo uma equipe de um olhar só. Eu
acho que isso é uma coisa que prejudica a saúde mental. Eu acho que o
diferencial da saúde mental são esses vários olhares que tem,
entendeu? Não só o do psicólogo (Gilberto) [ grifos da autora].
179
Por outro lado, quando no grupo pergunto sobre qual seria a composição
ideal de uma equipe de CECO, de imediato uma pessoa retoma a necessidade de
ter profissional com formação em psicologia.
Conectamos essa fala de que costumam tirar muitas fotos do trabalho com a
fala de que “essa equipe se une no afeto” (Gal) e propomos que cada trabalhador(a)
escolhesse de uma a duas fotos que expressassem afetos alegres e afetos tristes no
trabalho. Segundo a metodologia da clínica da atividade, a relação entre trabalho e
subjetividade é centrada na atividade de trabalho. A subjetividade é considerada
produto da atividade (CLOT, 2006a). Um caminho para transformar-conhecer a
produção subjetiva é o método da oficina de fotos (OSORIO DA SILVA, 2010). Este
se apresenta como uma variação, ou uma estilização do método da
autoconfrontação (simples ou cruzada) proposto pelos franceses Daniel Faita e Yves
Clot. Ambas se dão em um contexto de coanálise da atividade realizada por
analistas do trabalho (neste caso, pesquisadoras da UFF) e trabalhadores de uma
determinada equipe, ou segmento profissional (neste caso, equipe do Ceccozo).
Para Spinoza, não existe o Bem ou o Mal, ou seja, não há uma moral em
jogo. Na moral, há um julgamento de valores transcendentes (Bem/Mal), deve-se
fazer ou deixar de fazer isso ou aquilo, em nome do Bem ou do Mal. Na Ética, existe
o bom e o mau como uma diferença qualitativa de modos de existência. Bom é
quando o corpo compõe diretamente em relação com o nosso, e com toda ou com
uma parte de sua potência aumenta a nossa; é o que convém a nossa natureza.
Bom (livre, razoável ou forte) é também um modo de existência que tem a ver com
dinamismo, composição de potências, é o que se esforça o quanto pode para
organizar os encontros. Mau é quando o corpo decompõe a relação do nosso, é o
que não convém a nossa natureza. Mau (escravo, insensato ou fraco) é um modo de
existência que vive ao acaso dos encontros, sofrendo com as consequências e
fazendo acusações (DELEUZE, 2002)
Tomemos a prudência de não qualificar os indivíduos como bons ou maus,
fortes ou fracos, livres ou escravos, razoáveis ou insensatos. Trata-se de modos de
existência, de composições e decomposições entre determinados corpos. Não há
nada nem ninguém que seja bom ou mau em si mesmo. Uma leitura atenta da obra
de Spinoza observa que “os indivíduos não são maus nem bons por natureza, mas
são as sociedades que são mal organizadas e fracassam em produzir a paz e a
concórdia” (RAUTER, 2017, p. 49).
Ao analisarmos a totalidade das fotos que os trabalhadores apresentaram na
oficina, uma coisa nos chamou a atenção: em todas as fotos escolhidas para
expressar alegria havia pessoas, e em todas as fotos escolhidas para expressar
tristeza não havia pessoas nela. Esse fato nos fez pensar que a alegria no trabalho
do CECO se produz nos encontros entre viventes, entre con-viventes. A ausência da
figura humana nas fotos que expressavam tristeza nos fez pensar no lugar que a
dimensão material do trabalho ocupa para estes trabalhadores. A questão do espaço
físico, os aspectos concretos, palpáveis, de mobilidade, elementos que também são
necessários para as tarefas acontecerem ganharam visibilidade na expressão de
sua precariedade. Os trabalhadores agem quando os bons encontros entre
conviventes acontecem, pois a atividade é sempre “afetada ou desafetada pelo outro
ou pelo próprio sujeito” (CLOT, 2010, p. 6), e a alegria conduz à ação. As fotos foram
projetadas na parede do camarim, e o grupo foi debatendo o trabalho que faz por
meio da criação conjunta de legendas para cada uma delas.
183
RETRATOS DA TRISTEZA
Figura 3 – Utopia
64 <https://subpav.org/download/impressos/_SMSDCRJ_carteira_de_servicos_Vprofissionais.pdf>.
191
Figura 5
– Somos
todos um só
Figura 8 –
Faço parte da sociedade
193
O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua
potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não
tornam sua potência de agir nem maior nem menor (EIII, postulado 1).
presenciou em uma apresentação em uma escola que não tem relação com o
CECO. Logo em seguida, outra trabalhadora faz um relato também emocionado de
uma cena que presenciou em uma atividade promovida pelo CECO em um parque.
As duas cenas têm relação com a convivência entre crianças.
CENA 1
Teve uma apresentação numa escola que eu não vou citar o nome, e toda
vez que tem uma apresentação, eu fico do começo até o final, que eu quero
que fique impecável. Então assim, tem vezes que alguma música que tá
ruim, como eu vibro muito eu fico perturbando, “ô, aumenta!” ou “diminui!”,
faz isso ou... Aí entrou um grupo de crianças pra dançar, e eu percebi que
na hora que começou, todas as crianças aqui, e a outra ficou sozinha aqui.
No palco, nesse canto aqui... (faz sinal com a mão para o lado oposto)
Dançando da forma dele, e ali que as crianças não perceberam ele.
Naquele momento foi me dando uma agonia. Porque assim, eu não podia
desrespeitar a escola, mas poxa vida, por que uma professora não
entrou ali, né? A gente tem que tá preparada pra isso. Ir lá dançando,
pegar, puxar ele e voltar com ele. Então ele ficou do começo até o final do
evento parado aqui (faz sinal com a mão para o lado oposto) com todas as
outras crianças aqui (faz sinal com a mão para o lado oposto). Tipo, lá no
cantinho, do cantinho do palco, fazendo as coisinhas dele lá e tal. E
aquilo ali eu falei: “Poxa vida!” Nesse momento é que você começa...
Porque uma criança ela tem que perceber o outro na hora em que tu tá
fazendo uma roda, você tem que perceber que aquele tá fora da roda. Na
hora em que tá fazendo, tá sentado... Você tem que perceber que aquele
levantou e foi embora. Então as crianças desde pequenininhos elas têm
que perceber o outro. E ninguém fez nada, e aquilo me deixou numa
AGONIA que vocês não têm noção de como eu fiquei. Aí eu cheguei pro
técnico de som da escola, e falei: “Só não consegui entender por que com
tantas professoras aqui, coordenadoras, ninguém resolveu uma situação
como essa. De ter auxiliado isso.” Aí ele falou: “Ele é autista”, aí eu percebi,
“agora eu entendi”. Porque tipo (faz o gesto de dar de ombros) “deixa ele,
deixa ele lá, qual é o problema?” (faz gesto de empurrar/separar com as
mãos) Entende? (silêncio emocionado) Aquilo ali dói, dói na alma, sabe?
Dói na alma... (Betania) [grifos da autora].
CENA 2
Olha, certa vez a gente participou de um passeio. A cena que mais me
marcou durante o passeio foi apesar da gente ter ido pra vários lugares ali...
A gente foi pro zoológico, a gente foi pro museu, a gente foi pro circo, a
gente almoçou junto, né? Teve momento da gente sentar no chão e fazer
um piquenique à tarde pra lanchar, e a galera de circo fazer uma oficina
com perna de pau... O que mais me marcou até hoje foi o parque. Que
assim, a galera fica muito solta. A gente não tá ali de babá de ninguém, a
gente oferece o passeio pra galera curtir. Então a Betania falou assim:
“Gente, olha só, entramos no zoológico, meio-dia o ponto de encontro é
aqui. Cada um vai passear, passear. Curtir a tarde. A manhã, no caso. E aí
a gente se encontra aqui meio-dia pra almoçar.” Aí eu fui olhando, eu vou
registrando de minhas várias formas, ou num celular, ou vou tirando fotos
com os meus olhares mesmo. Aí sentados, tava eu e Gilberto e eu falei:
“Que cena linda!” as crianças brincando no parque. Crianças. Eram
crianças, não interessa se era autista, se não era. Se era pobre, se era
rica, se era média... Não interessa! Eram crianças, com pé no chão,
correndo, brincando. Os pais olhando em volta rodando naquele negócio
de girar, as filhas do professor junto com as crianças do CAPSi, cena linda,
195
A pessoa que se arrisca à experiência não é aquela que “tolera” o outro, que
tem uma deficiência, como se fosse magnânima porque tolera, como se
fosse uma enorme concessão que se expressa pela condescendência.
Como acontece com tantos ao considerar que já é uma grande coisa
cumprimentar com um sorriso a pessoa com deficiência que trabalha na
mesma sala por determinação legal. Ou quando reclamam que o “deficiente”
não é simpático, já que deveria estar eternamente agradecido e
subserviente porque lhe concederam um lugar, ainda que num canto
(BRUM, 2016).
Para uma criança diagnosticada com autismo chegar a estar no palco junto
com outras crianças não diagnosticadas em uma apresentação escolar, já houve um
caminho percorrido ao longo da história, pois uns trinta anos atrás, antes da era da
educação inclusiva, isso não seria factível. Contudo, destacar o caráter histórico não
deve servir para promover a benevolência. Ainda que ele esteja no mesmo palco, o
isolamento persiste. Como esse menino está ali? O que é que dói na alma da
Betania e que faz ecoar dor na alma de quem escuta seu relato? Talvez seja a
196
está tão difundida que vemos nas redes sociais imagens que buscam traduzir a
distinção entre os vários conceitos usados na dia a dia: exclusão, segregação,
integração e inclusão.
Em termos de políticas relacionais, qual seria a diferença entre inclusão e
convivência? Usaremos o artifício da comparação para explicar e desenvolver tais
noções, tomando o grande círculo como um campo de forças, que pode ser
entendido como um grupo, coletivo ou instituição (escola, família, festa, oficina, sala
de aula, praça, plateia, palco etc.). Na situação de exclusão, as minorias (cadeirante,
idoso, mulher, louco) estão fora do grande círculo, não fazem parte; a elas coube o
extermínio, perseguição, punição. Na situação de segregação, é criado um novo e
pequeno círculo exclusivo para as minorias em que elas se relacionam apenas entre
si sem fazer parte do grande círculo; temos uma lógica de isolamento, caridade e
assistencialismo. Na situação de integração, as minorias fazem parte do grande
círculo, mas continuam isoladas por um pequeno círculo que as separa dos demais
componentes; há um esforço de aproximação, mas se mantém a separação. Na
situação de inclusão, todos estão juntos e misturados, mas o que desejamos
destacar é que não necessariamente por estarem partilhando de um mesmo espaço
há conexão, há relação, há uma comunicação entre as zonas de singularidade e as
zonas de comunidade. A concepção de convivência que aqui propomos ultrapassa a
ideia de inclusão, pois para a atividade da convivência se estabelecer é
imprescindível a ligação afetiva com o outro, não basta estar ao lado, precisa
acontecer a afetação mútua. Em uma tentativa de ilustrar a ideia, poderíamos propor
um novo diagrama, em que no paradigma da convivência não é possível dispensar
as linhas de mão dupla que criam as múltiplas conexões. Todos temos os arcos e as
flechas do Cupido para lançarmos e para também sermos atingidos. Conviver é ser
ao mesmo tempo alvo e arqueiro no mundo de Eros, é deixar viver a força
propulsora da união, da atração entre os seres.
Retomando as duas cenas enunciadas, é possível afirmar que na cena 1
temos uma situação de inclusão, mas não de convivência. Segundo o relato da
trabalhadora, apesar de o menino compor um mesmo grupo com as demais crianças
no palco da apresentação escolar, ele não está em relação, ele fica no canto, a
conexão afetiva não foi estabelecida entre elas. Já na cena 2, em que as crianças
brincam no parque, temos uma situação de convivência, pois – assim como na figura
200
5, legendada como “somos todos um só” – elas estão em conexão umas com as
outras. Sobre a figura 5, o trabalhador diz que “não é possível distinguir quem é
quem”. Quando os rótulos se desmancham, a lógica manicomial que segrega a
loucura se desfaz.
Esse seria um trabalho afetivo a ser feito – o trabalho afetivo é uma das
variações do que tem sido chamado de trabalho imaterial. O trabalho imaterial é o
trabalho que “cria produtos imateriais, como informação, conhecimento, ideias,
imagens, relacionamentos e afetos” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 100).
O trabalho imaterial se expressa em duas formas fundamentais: a primeira
se refere ao trabalho primordialmente intelectual ou linguístico, centrado nas tarefas
simbólicas, analíticas, de resolução de problemas, que produz códigos, textos,
imagens, ideias. A segunda forma se refere ao trabalho afetivo, que é o que produz
ou manipula afetos. Em maior ou menor grau, o trabalho afetivo é um componente
fundamental no setor de serviços. Podemos vê-lo, por exemplo, no trabalho de
assessores jurídicos, de comissários de bordo, de atendentes, no setor de
entretenimento ou até mesmo em instituições financeiras. Mesmo muitas vezes
sendo corporal, seus produtos são intangíveis, como, por exemplo, sentimento de
tranquilidade, de bem-estar, de satisfação, de entusiasmo. O trabalho de toda
produção traz consigo materialidade – o que os autores afirmam ser imaterial, nesse
caso, é o produto. Para Hardt (2003), o trabalho afetivo representa, em si e
diretamente, a constituição de comunidades e subjetividades coletivas, uma vez que
requer o contato e a proximidade humana.
Propomos que a busca de recursos para ativar a convivência é um trabalho
de desfazer os manicômios nas relações. Isso nos leva a afirmar a atividade da
convivência como um trabalho afetivo antimanicomial. É Lancetti (2008) quem nos
provoca a pensar o trabalho afetivo no campo da saúde mental. O autor nos oferece
algumas indicações sobre o que seria esse trabalho afetivo – e questionamos,
adicionando aqui, como seria, então, esse trabalho afetivo antimanicomial (ou pós-
manicomial, como ele diz):
Ela saiu, a mãe saiu com o menor e eu fiquei. Nisso que eu fiquei, ela
sentou do meu lado e ela pousou a mão assim, em cima da minha mão, e
ficou. Eu tava com a mão na mesa e ela pousou, quando ela pousou aí eu
segurei. Eu achei tão lindo (riso emocionado). Segurando a mão como
quem diz assim: “Estamos juntos. Vamos lá.” Aí eu tirei uma foto, não
aguentei (Gal).
Uma das importâncias fundamentais, além do elo afetivo que se cria, é essa
autoestima. Essa autoestima que é avassaladora para eles, e é
avassaladora pra gente que consegue perceber isso. Então, assim, essa
foto eu fiquei muito na dúvida porque é tanto aspecto positivo que eu fiquei
sem saber o que fazer. Aí eu vi uma foto do J. com um sorriso lindo que ele
tem. Eu falei: “Gente, o que eu faço?” Só que eu acho que o M. ele
representa melhor, porque de fato ele vê isso como uma profissão. Se ele
vai trabalhar com isso pra ganhar dinheiro, isso é o que menos importa. O
importante é ele se sentir pertencente à profissão de artista. Eu acho que
isso é o grande diferencial. E ele se sente mesmo (Betania) [grifos da
autora].
203
A própria leitura em voz alta para o grupo de um trecho transcrito (ler a escrita
de uma fala com interjeições, pausas, risos) por si só já provocou um estranhamento
nos trabalhadores. Mesmo quando coincidia de o trabalhador sortear um trecho em
que ele próprio havia sido o autor, vimos operar uma mudança comparando com o
dia da oficina. Depois dos debates das transcrições, lemos a carta a seguir, escrita
pelas pesquisadoras para essa equipe.
Primeiramente agradecer pelo trabalho acadêmico com os Centros de Convivência e Cultura. Gostaria de
ressaltar profunda admiração em fazer parte de um projeto que, além de proporcionar Cultura, tem um
trabalho de consciência com a cidadania, onde existe troca efetiva, construção e reconhecimento de ser
cidadão. O Centro de Convivência e Cultura em parceria com a Lona Elza Osborne tem a preocupação de
fazer nossa clientela, sejam alunos, pais, comunidade do entorno, a perceber a importância de todos
sermos protagonistas da nossa vida, com erros, acertos, sentimentos de alegrias, às vezes de tristeza, mas
acima de tudo pessoas humanas, que têm um olhar mais apurado para com o outro. Esse trabalho não é
engessado, ele vem sendo construído através desse elo afetivo, além das vivências individuais e coletivas
que vêm sendo trocadas no decorrer dos projetos que desenvolvemos no coletivo. Eu percebi, na
prática, que alguns usuários da saúde mental tiveram um reconhecimento de identidade no momento que o
mesmo se sentiu agregador na vida do outro, momento único ao perceber e ouvir de um aluno/usuário da
saúde que “Eu sou um Artista, eu arrasei”, essa frase deu sentido para minha vida, força para seguir em
frente, sabendo que apesar das dificuldades o trabalho está sendo construído de uma forma humana,
207
criando uma autonomia, elevando o sentido de “Eu” posso, “EU” faço, “Eu” compartilho com o outro. O Ato
de doar-se significa ajudar o próximo, fazê-lo feliz de alguma forma, por mais simples que seja a sua ação.
“… O Centro de Convivência e Cultura em parceria com a Lona vem proporcionar essa troca, fazendo elos,
dando e fazendo sentido através da arte, cultura, amor, empatia para com o outro e para com a gente.”
Sem estabelecer hierarquias entre os lugares (cima, baixo, dentro, fora, lado),
afirmamos que o conceito de trabalho afetivo antimanicomial foi forjado em meio à
experimentação cartográfica. Não concordamos que é para cima ou para baixo que
se germina, mas admitimos que há aí, sim, uma germinação, no sentido de que as
ideias que os trabalhadores do Ceccozo trouxeram nos grupos se infiltraram no solo
da pesquisa, como por exemplo:
Que a gente precisa acabar com os manicômios dentro da gente (...) porque
a gente reproduz o manicômio em qualquer espaço, se a gente não tomar
cuidado... (...) (Gal) a gente tem que avançar e dizer mesmo que a gente
tem que destruir esse lugar do manicômio, né? Não é negócio de reformar
nada, não tem que reformar nada, tem que destruir essa porcaria logo!( Gil).
moção, vemos que ela lança mão dos conceitos de intersetorialidade e promoção da
saúde que foram debatidos ao longo da pesquisa. A seguir, o texto da moção:
Os delegados do Estado do Rio de Janeiro vêm pedir apoio à criação de lei interministerial que defina os
parâmetros de funcionamento dos CECOS em âmbito nacional de forma Intersetorial, garantindo ao
usuário do SUS em sofrimento psíquico a circulação na cidade, a convivência social, com qualidade,
equidade e igualdade como prevê a lei 8.080/88 do SUS. Os centros de convivência fazem parte da RAPS
de 2011 e são dispositivos de vital importância para a promoção da saúde não somente dos usuários em
sofrimento psíquico mas também para as diversas comunidades que utilizam esses serviços, sempre
localizados nos territórios em articulação com os CAPS, CAPSIJ, CAPSAD e atenção básica.
Fonte: RESOLUÇÃO CNS Nº 617, DE 22 DE AGOSTO DE 2019, pg.47.
Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2019/Reso617.pdf>.
Outro ponto que merece destaque foi o fato de o processo da pesquisa ter
despertado na equipe a necessidade de escrever sobre o próprio trabalho em um
formato acadêmico: dois dos quatro trabalhadores participantes dos grupos da
pesquisa se inscreveram em cursos de pós-graduação para produzir escritos
autorais sobre o trabalho que fazem no Ceccozo. Pela primeira vez em cinco anos,
um dos oficineiros inscreveu um trabalho sobre sua oficina em um congresso
científico que será realizado em outro estado do país. A coordenadora do Ceccozo
afirma que, ao repensar o trabalho na pesquisa, a equipe percebeu
Dessa fala, recolhemos que os possíveis agenciados por uma pesquisa são
ilimitados. Pesquisar implica questionar, se perguntar, reconhecer que há muito que
não se sabe, e ao mesmo tempo se sentir capaz de produzir novos saberes no
processo. A vida não está isolada do campo problemático em que a pesquisa
acontece. As interrogações da pesquisa a respeito da atividade de convivência, do
trabalho afetivo, ao serem compartilhadas com os trabalhadores, se tornaram
interrogações para a própria equipe, levando-os a retornarem à condição de
estudante e de problematizadores do próprio trabalho.
209
folga, e disse que foi sem muita expectativa de que um recurso para a saúde
pudesse ser destinado para ações que têm interface com a cultura.
O próprio deputado, ao ouvir sobre o trabalho do Ceccozo, questionou e
afirmou que o dinheiro era para saúde e não para cultura, e nesse momento a
coordenadora argumentou:
Essa senhora que se levantou é avó de cinco netos que usam o Ceccozo
para aula de circo, e não tem relação direta com os serviços especializados de
saúde mental, mas percebe a necessidade de valorizar o trabalho do Centro de
Convivência e defender o público que ele atende: os invisíveis, como ela chamou. A
coordenadora do Ceccozo e essa senhora até então não se conheciam
pessoalmente, mas estavam conectadas por um propósito comum, faziam parte do
plano comum que afetou a todos na reunião e fez a saúde mental sair vencedora. É
curioso o fato de que a compra de um aparelho de raio-x, onda eletromagnética
capaz de atravessar corpos para produzir imagem médica, tenha sido preterido em
detrimento de uma política da convivência. Isso nos faz pensar que havia uma outra
onda ressoando, uma onda em que moléculas imperceptíveis navegam entre
aqueles corpos que defendiam os invisíveis, uma onda desmedicalizante, que
aposta que saúde pode ser mais que fazer exames médicos.
A coordenadora em sua argumentação reivindicou para o CECO um lugar de
saúde e não de cultura, estrategicamente. Nessa situação, o trabalho afetivo
antimanicomial, uma tecnologia leve, que tem como diretrizes acolher, vincular,
articular redes de conversa (MERHY, 2013), foi mais potente que uma tecnologia
dura, de caráter estruturado, inscrita em instrumentos. Isso nos apontou que a
211
potência pode estar mais na leveza do que na dureza, em alguns casos. Ela disse
que saiu flutuando da reunião:
Aí eu achei lindo porque assim, ela não é da saúde mental, é mais pelo
trabalho que ela vê a gente fazendo aqui, que ela defendeu... Achei lindo!
(pausa) Eu acho que precisava falar, né? (voz embargada) Porque na hora
eu saí flutuando, porque gente, eu não tô acreditando que o dinheiro caiu no
nosso colo assim, entendeu?
Essas cenas nos mostraram como no plano comum de imanência, esse plano
em que todos os corpos estão conectados, o inesperado acontece. Esse plano é um
plano não no sentido organizativo, de um projeto, de um programa a ser realizado,
mas sim um plano no sentido de forças em relação, em que não há sujeito, mas
estados afetivos. O corpo, que carrega uma infinidade de partículas que variam
entre repouso e movimento, é definido por sua capacidade de afetar e ser afetado
(DELEUZE, 2002).
As distintas velocidades e lentidões que compõem esse plano comum de
imanência instauram modos de viver em que não sabemos ao certo do que é capaz
um corpo, não sabemos o que ele pode. Precisamos distinguir aqui dois planos,
esse que chamamos de plano comum de imanência, ou plano de composição, e um
outro plano, um plano de organização, um plano das formas. Embora esses planos
não sejam separados um do outro, há diferenças entre eles:
Pensamos que se a saúde é direito de todos e dever do Estado, tanto o novo raio-x
do hospital quanto os Centros de Convivência deveriam ter seu provimento
garantido por ele, independentemente da emenda parlamentar oriunda de um
deputado. Contudo, cientes de que o real e o prescrito nunca coincidem
completamente, é necessário buscar outros caminhos que viabilizem o trabalho.
Fazemos aliança com o pensamento que afirma que:
Eu não sei se esse dinheiro vai chegar, Ariadna, não sei mesmo, porque
hoje tem muita briga na saúde, mas esse momento, para mim, foi a glória!
Poder ver a comunidade defendendo a saúde mental, gente que não é da
saúde mental, para mim isso é fruto também do nosso trabalho, entendeu?
Do NOSSO. Quando digo nosso, não digo nosso só do centro de
convivência, é nosso mesmo, é do fórum de centros de convivência, da tua
pesquisa, deste trabalho que os centros de convivência vêm fazendo na
comunidade. (Gal)
Por outro lado, identificamos que os CECOs da cidade do Rio de Janeiro têm
como fragilidade a dependência dos institutos municipais. Destacamos que a
questão da localização do CECO faz muita diferença para o acesso do público e
para um rompimento radical com a lógica manicomial. Ficou evidente que os CECOs
que se situam dentro dos institutos municipais, ou quando estão muito perto dos
218
Traçar é um agir.
Que a rede seja um agir é algo que mais dificilmente se admite.
E, no entanto, ou ela é um agir, ou não é rede (DELIGNY, 2015, p. 87).
Desde há muito tempo, eu e minha filha sonhávamos juntas visitar o Projeto Tamar.
Izadora ama animais; quando perguntam o seu nome, ela responde: Izadora, rainha
dos bichos. Fez-se a oportunidade de ir para a Bahia, e lá fomos nós. Ao
chegarmos, vimos que na programação do dia constava: alimentação das tartarugas
e alimentação interativa com tubarões. Soubemos que a alimentação interativa com
221
as tartarugas seria apenas no dia seguinte. Fomos visitando cada tanque, nos
surpreendendo e admirando as tartarugas de diferentes espécies, tamanhos e cores.
Tocamos nas raias, escutamos um pouco da visita guiada, vimos os peixes, os
esqueletos de tartarugas, o cinetamar e cada cantinho do projeto que é muito
atraente para crianças. O momento esperado era a alimentação das tartarugas,
agendada para 16h. Quando a funcionária chegou com o balde contendo pedaços
de peixes para alimentá-las, formou-se em volta do grande tanque/piscina um
aglomerado de gente que calculo que tivesse entre oitenta e cem pessoas. Era
feriado de São João, dia 24/06/2019. A moça explicou o tipo de peixe que era dado
como alimento, algumas características da espécie e começou a atirar os pedaços
na água. As tartarugas nadavam até a superfície para comer, e muitas pessoas com
celulares filmavam e fotografavam. Eu só conseguia olhar para Izadora correndo de
um lado para outro, em volta do tanque, tentando se aproximar da moça, que estava
em um local que era inacessível ao público. Diante da impossibilidade de chegar até
o balde e pegá-lo para alimentar as tartarugas, o que eu sabia que era a intenção
que a movia, ela quebrou o silêncio, falou alto e todos olharam: “Moça, moça, eu
quero dar comida para a tartaruga!” A moça respondeu que não podia, que não era o
dia da alimentação interativa, que seria só no dia seguinte. Não conformada, Izadora
continuou insistindo com sua voz meiga e intensa: “Por favor, moça, deixa eu dar
comida pra ela!” A moça respondeu constrangida: “Poxa, não pode, agora só EU
posso dar comida pra tartaruga... Se não, eles brigam comigo.” Abaixei até o ouvido
da Izadora, com vergonha por ela não parar de insistir em seu pedido já negado
duas vezes, e disse que mais tarde daríamos comida para os tubarões. Expliquei
que a moça disse que naquela hora não podia e que ela tinha que ficar quieta. A
moça seguiu atirando pedaços e as tartarugas comendo. Minhas palavras foram em
vão. Izadora mais vez ignorou o que dissemos e repetiu agora com mais volume e
mais tom de súplica, causando no público um burburinho favorável a seu pedido
com a mãozinha estendida e pulando: “Por favor, moça, me dá um pedaço!!!” A
moça não resistiu e deu o último pedaço de peixe do balde na mão da Izadora, que
o atirou imediatamente na água. A tartaruga chegou perto de Izadora e comeu o
peixe. Izadora sorriu ao ver a tartaruga comer o pedaço que ela deu, olhou para a
moça e disse: “Obrigada!” Meus olhos se encheram de água e as gotas de emoção
caíram na piscina.
222
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8 REFERÊNCIAS
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231
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9 ANEXOS
Manifesto de Bauru
Um desafio radicalmente novo se coloca agora para o Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental. Ao ocuparmos as ruas de Bauru, na primeira manifestação pública organizada no Brasil pela
extinção dos manicômios, os 350 trabalhadores de saúde mental presentes ao II Congresso Nacional
dão um passo adiante na história do Movimento, marcando um novo momento na luta contra a
exclusão e a discriminação. Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agente da
exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana,
inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta racionalizar e modernizar os
serviços nos quais trabalhamos. O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e
sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O
compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a
classe trabalhadora organizada. O manicômio é expressão de uma estrutura presente nos diversos
mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de
adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar
pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os
trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida. Organizado
em vários estados, o Movimento caminha agora para uma articulação nacional. Tal articulação
buscará dar conta da Organização dos Trabalhadores em Saúde Mental, aliados efetiva e
sistematicamente ao movimento popular e sindical. Contra a mercantilização da doença! Contra a
mercantilização da doença; contra uma reforma sanitária privatizante e autoritária; por uma reforma
sanitária democrática e popular; pela reforma agrária e urbana; pela organização livre e independente
dos trabalhadores; pelo direito à sindicalização dos serviços públicos; pelo Dia Nacional de Luta
Antimanicomial em 1988!
Por uma sociedade sem manicômios!
Bauru, dezembro de 1987 - II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental
237
se respeite nem vida que tenha valor. No Brasil, um processo de redução das desigualdades sociais,
iniciado nos anos 2000, foi brutalmente interrompido pelo golpe de 2016; golpe que resultou, dentre
tantos outros efeitos deletérios, na ampliação do processo vigente de privatização e na redução de
recursos para as políticas públicas sociais, como moradia, transporte, previdência, educação, trabalho
e renda e saúde. Vivemos um violento ataque ao SUS, com a diminuição do financiamento e a
desfiguração de seus princípios de universalidade, equidade e integralidade. Nossa democracia,
ferida, vive hoje sob constante e forte ameaça. Precisamos fortalecer a luta por um processo de
educação permanente, por nenhum serviço a menos, nenhum trabalhador a menos e nenhum direito
a menos. Apesar desses graves retrocessos e dos riscos crescentes, os efeitos destes anos de livre e
amoroso cuidado são indeléveis e duradouros. Acesa e viva, mantém-se a nossa disposição de lutar
contra tudo aquilo que é intolerável para a dignidade das pessoas e nefasto para o seu convívio
enquanto iguais: a exploração e a ganância, o manicômio e a tortura, o autoritarismo e o Estado de
exceção. Tecemos laços de afeto e de solidariedade que nos acolhem na dor e nos protegem no
abandono – sustentando o delicado equilíbrio da esperança em nossos corações. Portanto,
prosseguimos, com o mesmo empenho tenaz, na luta por uma sociedade sem manicômios. Não
podemos deixar de frisar o avanço do conservadorismo e da criminalização dos movimentos sociais,
defendemos a diversidade sexual e de gênero, as pautas feministas, a igualdade racial. Somos
radicalmente contra o genocídio e a criminalização da juventude negra, a redução da maioridade
penal, a intolerância religiosa e todas as formas de manicômio, que seguem oprimindo e aprisionando
sujeitos e subjetividades. Apontamos a necessidade urgente de articulação da Luta Antimanicomial
com os movimentos feministas, negro, LGBTTQI, movimento da população de rua, por trabalho,
moradia, indígena, entre outros, a fim de construirmos lutas conjuntas. A conjuntura presente, que
intensifica o risco das conquistas duramente obtidas, exige um posicionamento que reafirme e
radicalize nossos horizontes. É preciso sustentar que uma sociedade sem manicômios reconhece a
legitimidade incondicional do outro como o fundamento da liberdade para todos e cada um; que a vida
é o valor fundamental; que a sociedade sem manicômios é uma sociedade democrática, socialista e
anticapitalista.
NENHUM PASSO ATRÁS: MANICÔMIO NUNCA MAIS! POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS!
Bauru, dezembro de 2017
239
JORGE SOLLA
Secretário
Observações
1) Trata de diretrizes para o Programa de Centro de Convivência e Cultura.
2) Deveria ser uma portaria Interministerial.
3) Os Centros de Convivência não se constituem Unidades de Saúde, e a PT diz da
necessária articulação com os CAPS e que a gerência do serviço poderia estar
vinculada ao um profissional da Saúde.
4) Os recursos humanos (oficineiros, artistas plásticos não compõem o quadro de
RH da Saúde).
5) Portaria não estabelece forma de financiamento.
Quanto ao mérito – os Centros de Convivência são importantes equipamentos para
socialização e inclusão social deve ser oferecida à população, pois fortalecem o
processo de Reforma psiquiátrica instituída no Brasil, entretanto deve ser um esforço
conjunto do MS e outros Ministérios.
SUGESTÃO: Manter suspensa por mais 60 dias, formar um grupo de trabalho para
aprofundar as negociações interministeriais e apresentar à CIT.
241
PROGRAMAÇÃO
9:00 – Mesa de boas-vindas – Mesa de Abertura do evento
Assessoria Técnica de Trabalho, Renda e Cultura – SMS/ Rio (Marcela Weck e
Raquel Silva)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Incubadora Tecnológica de Cooperativas - ITCP- IFRJ – campus Realengo/ Guia
Prático Dá Para Fazer! (Neli Maria de Almeida)
9:30 – Mesa da Manhã: Experiências em Debate – Trabalho e Renda, Cultura e
Saúde Mental
NOT – Núcleo de Oficinas e Trabalho – Campinas – SP (Carol Con Luiz)
Centro de Convivência Paula Cerqueira – Carmo – RJ (Catarina Guida e Erica
Victório)
Centro de Convivência e Cultura de Niterói – RJ (Francisco Verani e Petrônio
Ornellas)
Centro de Convivência e Cultura da zona Oeste – Campo Grande – RJ (Fagner
Medeiros)
Centro de Convivência e Cultura Trilhos do Engenho – Engenho de Dentro – RJ
(Fabiane Mendonça e Nádia Soares)
Polo Experimental – Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea – Jacarepaguá –
RJ (Raquel Fernandes)
12:00 às 13:00 – Intervalo
13:00 – Homenagem ao Paul Singer e Lançamento do Manual “Dá Para Fazer!
Guia Prático de Economia Solidária E Saúde Mental”
Apresentação da metodologia dos Grupos de Trabalho
14:00 - Mesa da Tarde: Políticas públicas e Movimento Social – O que
queremos construir?
Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia – Coope/UFRJ (Gonçalo Guimarães)
Núcleo Estadual do Movimento da Luta Antimanicomial (Paulo Sergio)
14:30 - Composição dos Grupos de Trabalho
16:00 - Plenária Final
Aprovação das propostas dos GTs e da “Carta dos Centros de Convivência: Cultura
e Cooperativismo – RJ” INFORMAÇÕES : itcp.creal@ifrj.edu.br / Inscrições gratuitas no
local do evento!
242
de convivência. Foi realizada uma reunião com as coordenações dos CECOS do Rio
e a Superintendência, e um projeto de criação de um CECO por área programática
está sendo formulado.
Como transformar a carta em instrumento de luta?
Fica combinado que Aline agendará com os coordenadores das Lonas de
Bangu e Realengo um encontro com as equipes dos CAPS desses bairros com o
objetivo de criar uma parceria entre saúde e cultura também nesses territórios.
Lemos as mensagens da Bel, designer gráfica, sobre as estratégias de
comunicação e divulgação do Fórum e Carta: lançar site dia 03/09; divulgar site com
carta via wa e fb; fazer e-mail de apresentação para as frentes parlamentares,
universidades e parceiros intersetoriais informando sobre novo site.
“Os CECOS já existem, o que queremos é o reconhecimento!”
“Entre sorrisos e choros, há mais sorrisos do que choros.”
O III Fórum de Centros de Convivência do RJ será em 04/10, quinta, 14h,
Niterói. Levaremos cartas impressas para divulgação e coleta de assinaturas.
combinado que voltamos a nos encontrar dia 28/11, às 13:30, quarta-feira, no Centro
de Convivência Trilhos do Engenho.
pauta tem uma história, condições de possibilidade para sua emergência. Como
esse contexto se configurou? Abram-se os parênteses.
(No Encontrão de maio na Uerj, confeccionamos a carta de propostas para os
CECOS do RJ, um dos eixos é a legislação, pois identificamos que os CECOS não
têm financiamento próprio e parâmetros de funcionamento. Durante o I Fórum, por
sugestão do Reymont, vereador que preside a Frente Municipal de Economia
Solidária, tiramos uma comissão composta por 6 participantes do Fórum para
elaborar uma proposta de iniciativa legislativa. Pensamos que seria interessante
uma articulação com a Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica da
ALERJ, e ficamos mais animados depois de setembro ao saber da aprovação do
Projeto de Lei 8.154/2018. de autoria do Flavio Serafini, deputado que preside esta
Frente, em que o Estado do RJ se torna cofinanciador dos seguintes serviços da
RAPS: CAPSIII, CAPSi, CAPSadIII, Serviço Residencial Terapêutico, Unidade de
Acolhimento, Unidade de Acolhimento Infantil. 65 Fomos até a reunião da Frente do
dia 30/10/18, que seria a última do ano, se não houvéssemos demandado uma nova
reunião com a pauta CECO. Encontramos uma roda muito diversa composta por
atores do legislativo, usuários, militantes históricos da luta antimanicomial, familiares
que perderam entes amados pela violência psiquiátrica, trabalhadores recém-
demitidos da saúde do município do Rio, pesquisadores, estudantes, gestores,
professores, todos implicados com a defesa da Reforma Psiquiátrica. Vale lembrar
que tivemos as eleições presidenciais dois dias antes, com um resultado nada
favorável para quem defende a democracia e está à esquerda. Os tempos sombrios
que parecem se aproximar despertam a sede de coletivo, estamos unidos, ainda que
com uma sensação de fragilidade. Apresentamos a carta de propostas e nos
comprometemos a trazê-la na reunião seguinte com centenas de assinaturas, além
de um esboço de iniciativa legislativa construído junto com o IV Fórum.)
No intervalo ficamos, com uma hesitação. Como trazer essa discussão de
modo que possamos mais ouvir do que falar? Tínhamos um esboço preparado pela
comissão de legislação, era esboço, portanto, inacabado. Queríamos partilhá-lo com
todos os participantes do Fórum, mas apenas como um ponto de partida.
65 O artigo 3º, que determina que o Estado seja cofinanciador da RAPS, foi vetado pelo governador.
Coincidentemente, no dia 29/11 o governador foi preso de manhã e à tarde houve a votação na Alerj
desse veto, que foi derrubado. A lei foi publicada em 11/12/2018 (DO), e essa conquista garantida.
254
Mental, Império Colonial, Tremendo nos Nervos, Loucos pela Vida e possíveis
outros) no ato da luta antimanicomial deste ano que vai acontecer na sexta dia 17 de
maio às 13h, na Carioca, o que precisará ser articulado com os blocos e com as
reuniões do movimento da luta, que acontecem na Uerj, às quartas, às 18h. É
montada uma comissão em prol da LISMU que visa articular os blocos (Oswaldo,
Lucia, Neli, Janaína, Thiago, Caroline, Vera, Denise, Ana Rangel, Eni, Patrícia).
Futuramente, quem sabe teremos uma escola de samba que desfilará na Intendente
Magalhães, em Campinho, berço do samba.
Pausa para o lanche. Bolo de chocolate delicioso. Retomamos falando do II
Encontrão. Em maio temos uma agenda cheia de eventos. Pensamos juntos que o II
Encontro seja o momento de trazer o protagonismo dos usuários na formação e na
convivência. Alguns dos presentes já são sondados para compor uma mesa. Há
sugestão de que cada centro de convivência/projeto/serviço indique um usuário que
gostaria de contar sua experiência. O local do evento poderá ser na Uerj, pela
facilidade do acesso. A data inicial proposta é uma sexta, 11/05 (ainda a ser
confirmada por questão de logística).
Por último falamos sobre as conferências de saúde, em que as propostas
relativas aos CECOs conseguiram ser aprovadas nas distritais das áreas 5.1 e 3.2 e
chegarão até a etapa municipal. Precisamos lutar para que passem para a etapa
estadual.
O VI Fórum acontecerá no Polo Experimental da Colônia, em Jacarepaguá,
às 10h dia 16/04, terça-feira, quando daremos continuidade à construção coletiva
iniciada neste dia. Estamos todxs convidadxs!
No final, somos presenteados com as músicas do Tá Pirando, Pirado, Pirou!
O samba da Mangueira 2019 virou nosso hino nacional, Marielle vive! Cantamos
juntos as canções da reexistência! Ninguém solta a mão de ninguém!
Longa estrada, longa caminhada para chegar até lá. Há uma grande roda à
esquerda da entrada. Começamos pela apresentação de cada um, somos um pouco
mais de trinta conviventes. Em seguida, temos uma contextualização para quem
estava chegando ao Fórum pela primeira vez. O Fórum é espaço aberto de
construção coletiva das políticas de Centro de Convivência, arte, cultura, trabalho e
demais intersetorialidades. Por ser itinerante, permite a visitação e o intercâmbio
entre experiências e amplia a participação dos parceiros locais. A pergunta “o que
nos impede de crescer mais e como podemos avançar?” nos faz seguir. Naquele
espaço, o Centro de Convivência está ligado ao Museu Bispo do Rosário e oferece
oficinas de bordado, costura, culinária, mosaico, bloco de carnaval Império Colonial,
passeios, bistrô restaurante e a Loja B, que são pontos de venda fixos. É feito um
convite para o Simpósio A estratégia de desinstitucionalização no SUS, que
acontecerá no auditório da sede do Instituto Juliano Moreira nos dias 30 e 31/05.
Também somos convidados a visitar a exposição recém-inaugurada chamada Eu
vim me apresentar no Museu Bispo. Damos os informes dos andamentos do projeto
de lei dos CECOs e da participação na audiência pública para a derrubada do veto à
lei em que o Estado se torna cofinanciador da RAPS, que foi vitoriosa.
Vamos para a pauta da organização do 18 de maio. O evento no Circo
Voador será no próprio 18, sábado, e se chamará I Circular da Loucura, das 9h às
15h. É lembrada a importância de aproximar a cultura e a diversidade cultural no
evento como uma força a mais. Não há uma instituição organizadora, mas são
pessoas, coletivos diversos que se unem em torno de uma causa em comum. Isso
nos remete ao Fórum Social Mundial, aquele tipo de encontro sem autoria, que
ninguém sabe quem organiza, mas todo mundo vai. A programação começará com
uma entrância. Das 9 às 11h30 acontecerão as oficinas: ioga, percussão, capoeira,
palhaçaria, fotografia, entre outras. Das 11h30 às 13h haverá microfone aberto com
roda sobre Arte, Cultura, Democracia e Saúde Mental. Das 13h às 14h30 temos as
apresentações de palco. De 14h30 às 15h o cortejo saindo do Circo com os blocos
de carnaval. Ao longo do evento, haverá feira. Alguém pergunta: vai ter
apresentação minha? A resposta é outra pergunta: quanto tempo dura sua
apresentação? Isso depende do relógio da pessoa. O riso circula. Conversamos
sobre a feira, a associação com outros movimentos além da luta antimanicomial, e
debatemos o uso da moeda social na feira de artesanato, alimentos e produtos
258
foram na 16ª Conferência Nacional de Saúde em que foi aprovada com 90% uma
moção em prol dos CECOs; e o planejamento dos rumos do movimento. Pactuamos
que faremos o II Encontro de CECOs e programas de trabalho, ECOSOL, arte,
cultura e lazer na saúde mental na primeira quinzena de novembro. Também será
agendada uma reunião da comissão de legislação com especialista no tema
orçamento, pois essa é a próxima comissão pela qual o PL vai passar. Encerramos o
Encontro com música, belamente tocada pelo CECO de Niterói. E já era hora de
pegar a estrada outra vez. O tempo foi curto, corrido, passou rápido demais o dia
que foi tão esperado. Deixou vontade de voltar, sede de conhecer mais a cidade, a
rede, as pessoas que fazem todo aquele trabalho. As conversas começadas no
Fórum continuam no ônibus. Depois, a conversa passa a ser: como voltar para
casa? Juntos e com autonomia, é assim que vamos!
Agradecemos a todxs que viajaram junto nessa viagem da convivência que
traz luz para os tempos sombrios, traz fartura para os tempos de escassez, traz
calor para os anos de inverno, transformando as redes frias em redes quentes.
Gratidão pela confiança, pela presença, pelo sentido que imprimem nessa pesquisa-
experimentação coletiva do que é con-viver.
Um dos conviventes era surdo-mudo, em nossa roda não tínhamos ninguém que se
comunicasse em Libras, o que nos mostrou o quanto ainda somos analfabetos em
acessibilidade. Alguns não puderam estar por limitações do passe-livre
intermunicipal, luta necessária que retorna a cada encontro.
Somos um pouco mais de quarenta conviventes oriundos do Rio, Niterói,
Carmo e Macaé entre estudantes, moradores de residências terapêuticas, militantes,
cuidadoras, oficineiros, professores, artistas, coordenadores, por exemplo.
Muitos participam pela primeira vez desse espaço, apontando para a força
crescente do fórum. Afirmamos, então, alguns combinados que já temos em nossa
história: a itinerância, a abertura e a multiplicidade. Nosso percurso é apresentado
em um vídeo de fotos dos encontros anteriores. Também enunciamos algumas
perguntas que norteiam nossos debates: o que é convivência, um centro de
convivência? / Qual a melhor relação possível CAPS-CECO? / Como podemos
existir para resistir juntos?
Fazemos ainda uma torção na questão CAPS-CECO, para perguntar sobre a
relação entre universidades (instituições de ensino-pesquisa) e CECOs.
Passamos a conhecer a experiência do Coletivo Convivências, que teve sua
primeira ação em 23/10/19 no campus da Praia Vermelha/UFRJ e articula diversas
iniciativas de cultura, arte e saúde da região, oferecendo atividades de feira,
exposição, oficinas e conversa com os transeuntes da área. Conhecemos através de
relato também o trabalho do Centro de Convivência ligado ao PROJAD, voltado para
adultos com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas; o CECO
oferece oito oficinas, algumas delas itinerantes. O fato de este CECO atuar em uma
relação próxima com o espaço de internação trouxe inquietações e produziu
questões sobre o que diferencia o trabalho de um CECO e o de um hospital-dia.
Com mais informações, debatemos a respeito da ética de redução de danos, dos
limites e das possibilidades da relação com espaços que também servem para a
residência médica em psiquiatria.
Vimos que os temas das residências multiprofissionais em saúde, do CECO
como espaço de formação para estágio, do que os CECOs e os profissionais em
formação ganham nessa relação, do que isso tem produzido, merece mais
aprofundamento e poderá ser pautado no próximo encontro estadual. É sugerido o
264
EMENTA:
CRIA A POLÍTICA ESTADUAL DOS CENTROS DE
CONVIVÊNCIA DA REDE DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
Autor(es): Deputado FLÁVIO SERAFINI, CARLOS MINC
lazer;
JUSTIFICATIVA
Os Centros de Convivência são dispositivos intersetoriais que articulam
políticas públicas de inclusão social, por meio da construção de espaços de
convívio e sustentação das diferenças na comunidade e em variados espaços
da cidade.
De acordo com a Lei n.º 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a
proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em saúde mental, as pessoas portadoras de
268
<http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1519.nsf/
18c1dd68f96be3e7832566ec0018d833/6fe33ee2aaf668a1032583690053706e?OpenDocument>
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