Aventuras Na História #243 - Ago23

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GUERRA DA COREIA:

AGOSTO DE 2023

O ARMISTÍCIO QUE
NÃO DEU CERTO

BRASIL: QUANDO
ÉRAMOS ESPANHÓIS

SANTOS PECADORES:
WWW.AVENTURASNAHISTORIA.UOL.COM.BR CRIMES ANTES DA
CANONIZAÇÃO

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HÁ 60 ANOS O ATIVISTA PELOS DIREITOS CIVIS REUNIA 250 MIL PESSOAS


EM WASHINGTON PELA IGUALDADE ENTRE BRANCOS E NEGROS
PRESIDENTE
Luis Fernando Maluf

DIRETOR EDITORIAL:
Pablo de la Fuente

EDIÇÃO:
Izabel Duva Rapoport

EDITORA DE ARTE COLABORADORA:


Marília Filgueiras

REVISÃO:
Hellen Ribeiro

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O SONHO DE
MARTIN LUTHER KING
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HÁ 60 ANOS O ATIVISTA PELOS DIREITOS CIVIS


REUNIA 250 MIL PESSOAS EM WASHINGTON PELA
IGUALDADE ENTRE BRANCOS E NEGROS

EDIÇÃO 243

SÃO PAULO
EDITORA PERFIL
2023
EDITORIAL

UMA ROSA
NO CAMINHO
gota d’água que fez Martin Luther de AVENTURAS NA HISTÓRIA, valendo-

A King abraçar de vez a causa da igual-


dade racial foi dada por uma mulher
em 1955: Rosa Parks. Em um dos períodos
se do olhar apurado da jornalista Raphae-
la de Campos Mello à importante e enorme
Marcha sobre Washington, ocorrida há 60
mais turbulentos para os negros nos Esta- anos. Além de garantir o direito ao voto
dos Unidos, ela recusou ceder seu lugar a livre a todos os cidadãos dos EUA, sem
um branco num ônibus e foi presa. Luther discriminação, o discurso histórico do ati-
King, já farto dessa segregação institucio- vista acabou com o racismo declarado nas
nalizada, passou a liderar um boicote aos campanhas políticas e até hoje é fonte de
transportes públicos seguido de muitos inspiração e influência para mudanças ain-
outros movimentos para que a igualdade da e lamentavelmente necessárias.
entre brancos e negros fosse assegurada Boa leitura,
por lei. Sua vida, dedicada ao evangelho e
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Izabel Duva Rapoport
aos direitos civis, é destaque desta edição
Editora

      


        


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SUMÁRIO

30
CAPA: O SONHO
(E A REALIDADE)
DE LUTHER KING
RENDEU A ELE O
PRÊMIO NOBEL
DA PAZ EM 1964,
UM ANO APÓS
SEU DISCURSO

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6 GALERIA
Bollywood: a Hollywood Indiana
22 RELIGIÃO 56
COLUNA
Os crimes e pecados de alguns santos RICARDO
12 HOJE NA HISTÓRIA
Aconteceu em agosto antes da canonização LOBATO

14 ARTE
Calendário asteca, também conhecido 40 GUERRA 58
MEMÓRIA
como Pedra do Sol Há 70 anos foi assinado um cessar-fogo
ANDY
entre as Coreias. A ideia era ter paz,
WARHOL
16 COMO FAZÍAMOS SEM
Xampu
mas não foi bem assim

18 LINHA DO TEMPO
A evolução do turismo 50 BRASIL
Por seis décadas, Portugal pertenceu à

21 DÚVIDA CRUEL
O verdadeiro Indiana Jones sumiu no Brasil?
Espanha, deixando heranças em terras
brasileiras

NO PODCAST SEMANAL DA AVENTURAS NA HISTÓRIA VOCÊ


ACOMPANHA OS PRINCIPAIS ASSUNTOS SOBRE A HISTÓRIA DO
MUNDO E DO BRASIL AO LONGO DOS SÉCULOS. AVENTURE-SE!
GALERIA

CENAS DE
BOLLYWOOD
A INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA QUE MAIS CRESCE NO MUNDO É A INDIANA
POR IZABEL DUVA RAPOPORT

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6 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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AVENTURAS NA HISTÓRIA 7
GALERIA

UMA ESTREIA DE RESPEITO


O primeiro filme produzido na Índia foi o curta-metra-
gem silencioso Raja Harishchandra, lançado em 1913
pelo cineasta Dadasaheb Phalke, considerado o
precursor do cinema indiano. Com a chegada do
cinema sonoro no início da década de 1930, foi feito o
primeiro longa falado na Índia, Alam Ara (ao lado), de
Ardeshir Irani. Alguns anos depois, vieram as cores,
lançadas no filme Kisan Kanya (abaixo), em 1937, por
Moti B. Gidwani. Já nessa época, o número de
produtoras disparava, assim como o de filmes produzi-
dos: de 108 lançados em 1927 para 328 em 1931.
Naquelas décadas, mesmo num contexto tumultuado
no país, afetado pela Grande Depressão e pela
Segunda Guerra Mundial, além dos conflitos internos
da pré-independência da Inglaterra, ocorrida em 1947,
as produções mantiveram um público crescente e fiel.
Nos bastidores, isso explica por que há muitos atores
paquistaneses atuando na Índia.

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8 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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A ERA DE OURO
No final da década de 1940, o cinema indiano
passou por transformações expressivas,
substituindo a maioria de filmes com foco
histórico e mitológico para obras sociais e
políticas, com olhar crítico sobre temas como
o sistema de dotes, a poligamia, a prostituição
e a violência. Nos anos 1950 e 1960, marca-
dos pela chamada Era de Ouro de Bollywood,
os filmes coloridos já eram muito populares,
sobretudo os romances e melodramas
musicais que retratavam personagens da
classe trabalhadora do país. Mother Índia (à
esquerda), lançado em 1957 por Mehboob
Khan, foi o primeiro longa indiano a ser
indicado para um Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro. Não venceu, mas foi diretriz em
produções hindus pelos anos seguintes. Entre
os mais famosos épicos bollywoodianos está
Mughal-e-Azam (acima), dirigido por K. Asif
em 1960. A obra, que estrelava Dilip Kumar,
ator de peso no país, também lançava uma
década impulsionada pelo desejo de oferecer
ao público um maior senso de realismo e com-
preensão do homem comum.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 9
GALERIA

O SONHO INDIANO
“Quero que as pessoas esqueçam sua miséria.
Quero levá-las para um mundo de sonho onde não
há pobreza, onde não há mendigos, onde o destino
é bom e Deus está ocupado, cuidando de seu
rebanho”, afirmou Manmohan Desai, diretor de
Amar Akbar Anthony (ao lado), lançado em 1977.
Considerado o pai dos filmes masala, abordagem
indiana que mistura diversos gêneros – ainda ativa
nas produções atuais –, ele foi um dos diretores
mais bem-sucedidos de Bollywood. Foi nesta
época, aliás, que surgiu o termo que dá nome à
indústria, uma junção de “Hollywood” e “Bombay”,
antigo nome do centro econômico do país, Mumbai.
Há quem diga, no entanto, que o primeiro filme
masala foi Yaadon Ki Baaraat (abaixo), lançado anos
antes, em 1973, por Hussain, e escrito pela dupla
de roteiristas Salim-Javed, responsáveis por
mostrar o submundo do crime da capital indiana.
Entre os filmes mais famosos desse período está
Zanjeer (página ao lado), de Prakash Mehra, cujo
protagonista é o ator Amitabh Bachchan, que
personificou a figura do “jovem homem revoltado”.
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10 AVENTURAS NA HISTÓRIA
IMAGENS JOHN HENRY CLAUDE WILSON & ROBERT HARDING, GETTY IMAGES, NATIONAL FILM ARCHIVE OF INDIA E REPRODUÇÃO

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AVENTURAS NA HISTÓRIA
11
HOJE NA HISTÓRIA

ACONTECEU
EM AGOSTO
1 A garota judia
Anne Frank
1944 escreve pela
2 É travada a
Batalha de
338aC Queroneia, na
3
881
Acontece a
Batalha de
Saucourt-en-
4 Nasce o papa
Urbano VII.
1521 Reinando por
última vez em seu diário. qual as forças combina- Vimeu, que marcou a meros três dias, decretou
Para escapar dos das de Atenas e aliados disputa dos vikings, a primeira proibição de
nazistas, ela havia sofrem derrota decisiva pagãos, contra o exército fumar conhecida, nos
passado dois anos para os macedônicos, cristão de Luís III, da arredores de igrejas. A
escondida num porão dominando quase toda a França. Cerca de 8 mil pena era a excomunhão.
com a família. Grécia, menos Esparta. vikings foram mortos.

5Entre em nosso6grupo no telegram: t.me/clubederevistas


EUA, Reino Unido
e União Soviética
1963 assinam o
Aos 72 anos,
morre na Espanha
1973 o ex-ditador de
Tratado de Interdição Cuba Fulgêncio Batista.
Parcial de Ensaios Ele liderou o país por duas
Nucleares para impedir vezes, a primeira de 1933
testes com bombas na a 1944 e, depois, entre
atmosfera (incluindo o 1952 e 1959.
espaço) ou sob a água.

7 Oito militares são


sentenciados à
1944 morte pelo
Tribunal Popular de
Berlim, sob a acusação de
atentar contra Hitler no mês
anterior – uma bomba foi
colocada perto do ditador,
que saiu ileso da explosão.

8 O padre brasileiro
Bartolomeu de
1709 Gusmão cria a
9 Singapura,
ex-colônia do
1965 Reino Unido,
10 Inaugurado em
Paris o Museu do
1793 Louvre, com
11 Durante os Jogos
Olímpicos de
2008 Pequim, a judoca
“Passarola”, o primeiro ganha soberania como acervo formado principal- Ketleyn Quadros se
balão de ar quente. Os república, menos de mente por pinturas consagra como a primeira
IMAGENS GETTY IMAGES

experimentos foram feitos dois anos depois de confiscadas da família real mulher do Brasil a
diante da corte portugue- fundir-se com Malaya, e dos aristocratas fugidos conquistar uma medalha
sa. Considerado perigoso, Sabah e Sarawah para da Revolução Francesa. numa categoria individual.
o invento não entusiasmou. formar a Malásia. Deu bronze.

12 AVENTURAS NA HISTÓRIA
12 No Mar de
Barents, ao norte
2000 da Noruega e da
13582
Flávio Maurício
Tibério Augusto
assume o Império
14 Duncan I, rei da
Escócia, é
1040 assassinado pelo
15 É inaugurado
oficialmente o
1914 Canal do
Rússia, naufraga o Bizantino com a morte de primo Macbeth, que Panamá. Com 77,1 km
submarino nuclear Kursk. Tibério II – que o havia toma o poder. A tragédia de extensão, liga os
Com 118 tripulantes, indicado como sucessor. inspirou o drama homôni- oceanos Atlântico e
sucumbiu à explosão de Casado com a filha de mo de Shakespeare, Pacífico, com a finalidade
um torpedo de teste. Não Tibério, reinou até a escrito no século 17. de facilitar o comércio
houve sobreviventes. morte. marítimo internacional.

16 Madri institui a
Inquisição nas
1570 colônias da
17 Soldados da
Alemanha Oriental
1962 atiram em Peter
18 Morre o líder
mongol Gêngis
1227 Khan, provavel-
19 O austríaco Louis
Schwitzer vence a
1909 primeira Corrida
América. As penas para Fechter, de 18 anos, mente vítima de febre alta. de Indianápolis. Desde
seus condenados eram quando ele tentava cruzar Chefe de uma tribo 1911, as 500 Milhas de
pesadas e violentas, com o Muro de Berlim para o nômade, é um dos Indianápolis ocorrem
morte na fogueira, prisão lado ocidental. Peter maiores conquistadores todo ano, com exceção
perpétua e confisco de agonizou até a morte. da História. dos anos de guerra.
bens.

20Entre em nosso21grupo no telegram:


A baiana Maria
Quitéria de
1823 Jesus Medeiros,
22 t.me/clubederevistas
23
O revolucionário
russo Leon
1940 Trotsky morre na
O papa Paulo
VI se torna o
1968 primeiro líder da
Os britânicos
usam pela
1877 primeira vez no
primeira mulher soldado Cidade do México. Ele Igreja Católica a visitar a mundo a expressão made
brasileira, recebe de dom foi atacado por Ramón América Latina em viagem in, para melhorar as
Pedro I a condecoração Mercader, um comunista à Colômbia. Ele também exportações e diferenciar
de Cavaleiro da Ordem espanhol, que desferiu foi o primeiro papa a pisar os produtos da Grã-Breta-
Imperial do Cruzeiro. um golpe de picareta nos cinco continentes e a nha dos de outros países.
no crânio do político. discursar na ONU.

24 Começa o
massacre da noite
1572 de São Bartolo-
25325
Convocado pelo
imperador
Constantino I, o
26 Acontece a
Erupção do
1883 Krakatoa, nas
27 É perfurado o
primeiro poço
1859 de petróleo do
meu. A tragédia liderada Concílio de Niceia Índias Holandesas (atual mundo, na Pensilvânia,
por reis católicos foi uma termina neste dia e Indonésia). Os 20 milhões EUA. A partir disso, teve
tentativa de eliminar o estabelece o dogma de de toneladas de enxofre início a Corrida do
protestantismo. Entre 30 que Jesus Cristo era filho lançados na atmosfera Petróleo americana. A
mil e 100 mil morreriam. de Deus e igual ao Pai. tornaram o pôr do sol busca fez surgir cidades
vermelho por meses. nos desertos do país.

28 Soldados do
Império reprimem
1824 com violência
29 No Candlestick
Park, em São
1966 Francisco, EUA,
30 Vladimir Lenin,
líder do Partido
1918 Bolchevique, é
31 O rei Eduardo I
publica o Édito
1290 de Expulsão,
a Confederação do acontece o último show baleado com três tiros por em que ordena a expulsão
Equador. A revolta contra oficial dos Beatles. Foi um membro do Partido dos judeus da Inglaterra.
a Constituição que visto por 25 mil pessoas e Socialista Revolucionário Milhares partem para a
centralizava o poder nas durou 30 minutos. Depois após um discurso numa França e a Bélgica e
mãos de dom Pedro I disso, dedicaram-se ao fábrica em Moscou. muitos morrem no
acabaria em novembro. trabalho em estúdio. caminho.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 13
ARTE

PEDRA
DO SOL
UM MITO ASTECA NO MEIO
DA CAPITAL MEXICANA
POR WAGNER GUTIERREZ BARREIRA

Templo do Sol deu início à arqueo-

O logia mexicana ao ser descoberto em


1790, quando operários abrindo
bueiros deram de cara com a estátua de
uma deusa. A escultura monolítica, parte
do Templo Maior de Tenochtitlán, estava
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no atual Zócalo (o centro político e religio-
so dos espanhóis), antigo templo asteca, que
estava em ruínas, pilhado para a construção
da catedral cristã e do palácio do vice-rei.
A Pedra do Sol, ou de Tonatiuh, considera-
da a joia da coroa da construção, é um por-
tento, com suas 24 toneladas, e foi encon-
trada ali pouco depois. Era um recipiente
cerimonial ou um altar de sacrifício. O
monólito narra a lenda do Quinto Sol, que
trata da criação do mundo – a Terra teria
passado por cinco períodos distintos, cada
um regido por um Sol. Nahui-Ollin, o quin-
to, representa o movimento.

RAIO X
NOME: Pedra do Sol
ANO: cerca de 1480
TAMANHO: 358 cm (diâmetro) x 98 cm
IMAGENS GETTY IMAGES

(profundidade)
TÉCNICA: baixo-relevo sobre basalto
LOCAL: Museu Nacional de Antropolo-
gia, Cidade do México

14 AVENTURAS NA HISTÓRIA
PRIMEIRO ANEL
É a representação dos 20 dias do
calendário sagrado dos astecas, que se
combinavam com 13 números para
formar um ano sagrado de 260 dias,
conhecido como tempo ritual. Com ele,
era possível fazer o horóscopo.

PREDECESSORES
Nos quadrados, estão as imagens de
cada um dos quatro deus Sol anteriores.

MÃOS ENSANGUENTADAS
As mãos em forma de garras seguram
corações humanos e têm pulseiras com
um olho, para mostrar que nada escapa
ao deus.

IMAGENS RITUAIS
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No quarto anel, pontas afiadas sagradas
lembram a necessidade dos sacrifícios
para manter o calor do Sol.

OUTROS ANEIS
Os raios mostram que o Sol atinge todas
as quatro regiões do mundo.

O MANDACHUVA
Tonatiuh, o deus do Sol, está cercado por
Ollin, o movimento, no centro da roda. A
parte de cima de seu rosto tem pele, ao
contrário das mandíbulas aparentes –
que representa os ciclos de vida e morte.
Na boca, uma faca de sílex mostra a
necessidade de sacrifícios humanos.

SERPENTES
No quinto e último anel, duas serpentes
de fogo se encaram, no pé da pedra.
Delas surgem perfis de dois deuses – um
ideário asteca de que a Terra é a origem
de todas as transformações.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 15
COMO FAZÍAMOS SEM

XAMPU
DE RAIZ DE COUVE A BANHA
DE URSO, MUITAS FORAM AS
TENTATIVAS PARA DEIXAR O
CABELO LIMPO POR REDAÇÃO AH

limpeza e a saúde dos cabelos são uma pre-

A ocupação que vem da Antiguidade. Plantas


e essências de rosas e jasmim eram usadas
pelos povos antigos do Oriente para limpar os
cabelos, controlar a oleosidade e amaciar os fios.
Durante a Idade Média, as técnicas foram trazidas
para o Ocidente pelas cruzadas. Nesse período, as
receitas ganharam ingredientes mais comuns para
poções mágicas do que produtos de limpeza, tais
como raiz de couve, banha de urso e rãs.
Com o tempo, as fórmulas caseiras foram subs-
Entre em nosso grupo nosemeira
telegram:
popularizar apenast.me/clubederevistas
no século 20, após a Pri-
tituídas por sabão e sabonetes para manter os ca-
Guerra Mundial. No começo era um pro-
belos limpos. A origem do xampu remonta ao ano
de 1759, quando um homem de negócios chamado duto caro e para poucos. Com o tempo e o cres-
Sake Dean Mahomed criou os primeiros banhos cimento da indústria da beleza, o xampu foi
de xampu na Inglaterra, nos moldes dos banhos aprimorado (incluindo as fórmulas com cuidados
turcos. O nome vem do hindu champo, que quer naturais), tornando-se um produto indispensável
dizer “massagear”. Nos anos seguintes, o produto na hora do banho.
começou a ser incorporado pelos cabeleireiros Entre as maiores curiosidades sobre a história
ingleses, que adicionaram ervas aromáticas aos do xampu está a versão de que, no século 16, o
sabões para obter fragrâncias especiais. produto era utilizado como bebida energética pelos
A primeira fórmula para o xampu como exis- guerreiros na Europa. Ao ingeri-lo, acreditava-se
tem nas farmácias atualmente surgiu em um la- que o soldado ganharia forças contra os inimigos.
boratório na Alemanha em 1890, mas começou a Teria surgido daí a expressão “tônico capilar”.

SECADOR DE CABELO PERMANENTE, A FEBRE TINTAS DIFERENTES


VEM DE ASPIRADOR DOS ANOS 1980 PARA MUDAR DE COR
Após o xampu, surgiram outros O permanente de cabelo nasceu em As primeiras tinturas modernas para
produtos para auxiliar a manter a 1906, após o cabeleireiro alemão cabelos começaram a ser vendidas
beleza dos cabelos. O secador Karl Nessler desenvolver uma em 1909 pelo químico francês
surgiu em 1920 e foi desenvolvido técnica para encaracolar os fios Eugène Schueller. Ele desenvolveu
pela empresa americana Racine utilizando produtos químicos e um produto que era vendido para
Universal Motor. O projeto foi tubos metálicos aquecidos no fogo. cabeleireiros parisienses. As tinturas
inspirado no mecanismo do Até aperfeiçoar seu projeto, ele foram a base para a construção de
aspirador de pó, surgido alguns havia feito muitas tentativas, que um dos maiores impérios dos
anos antes. renderam muitas dores às clientes. cosméticos: a L’Oréal.

16 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Conheça as histórias
esquecidas da
independência do Brasil

Em comemoração aos 200


anos da independência do
Brasil, a obra utiliza uma
linguagem simples para
explicar características
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas
pouco faladas sobre a
viagem que antecedeu o
dia 7 de setembro de 1822.
As histórias que não são tão
conhecidas pelos brasileiros
são exploradas pelo autor,
como um relato de viagem.

À venda nas melhores livrarias.


LINHA DO TEMPO

homem já transitou pelo mundo por várias razões, seja para


A EVOLUÇÃO DOS
VIAJANTES, DOS
SPAS ROMANOS
O conquistar, curar-se, reverenciar um deus, viver o ócio, des-
cansar ou simplesmente para conhecer outras culturas. Os
gregos foram os primeiros a sair de suas cidades, para ver as Olim-
ATÉ A LUA píadas. O ato de cruzar fronteiras encanta tanto o homem que hoje
POR REDAÇÃO AH o turismo é a principal fonte de renda de muitos países e começa-
-se até mesmo a vender passagens para a Lua. A seguir, você acom-
panha como e por que o homem viajou ao longo da História.

776 a.C. 476 A.C. 500 A 1400


Entre em nosso grupo no
A 25 A.C.
Os primeiros desloca-
telegram: 1450
As peregrinações
A 1789
At.me/clubederevistas
conquista do mundo
ANOS 1810
Lord Byron, poeta
mentos aconteceram Os romanos foram o religiosas existiram em pelo mar, dominada inglês, parte para uma
na Grécia Antiga, onde primeiro povo a outras épocas, mas por espanhóis, grande viagem pela
o tempo livre dedica- deslocar-se como neste período ganham ingleses e portugue- Europa em busca de
do à cultura, diversão, passatempo, como proporções maiores, ses, começou a cultura. Ele volta
religião e esportes era forma de prazer. O que em número de despertar o interesse renovado e surpreso
muito valorizado. A entendemos por spa pessoas e em pelas grandes com tantas belezas
cada quatro anos, hoje foi invenção deles, distâncias. Os cristãos viagens. Nesse que viu e acaba
milhares de pessoas que adoravam passar passaram a fazer mesmo período, ganhando fama. Com
se dirigiam à cidade horas em banhos expedições entre surgem os primeiros isso, surge o costume
de Olímpia para públicos. As viagens Veneza, na Itália, alojamentos já com o de famílias ricas de
assistir às Olimpíadas. eram comuns durante a Jerusalém, em Israel, nome de hotel. As mandar seus filhos, ao
Havia também as Pax Romana (27 a.C. e também descobri- estâncias termais, que final dos estudos, para
peregrinações a 180 d.C.), pois a ram o Caminho de caíram em desuso na uma viagem longa,
religiosas, e muitos construção das vias Santiago de Compos- Idade Média, voltam que poderia durar de
gregos iam até Delfos de tráfego se tela. Para os muçul- com força, depois três a cinco anos, para
para propor questões desenvolveu nesse manos, a peregrina- especialmente de se conquistar mais
aos deuses. A cidade período, marcado pela ção a Meca é um dos descobrirem os efeitos conhecimento e
não existe mais. prosperidade cinco pilares do medicinais da argila. cultura, chamada
econômica. Assim, islamismo, o que os Surgem então locais Grand Tour. Foi então
alguns cidadãos ricos impõe a fazer, ao como Bath, na que nasceram os
tinham tempo livre e menos uma vez na Inglaterra, que além termos turismo e
dinheiro para aproveitá- vida, viagem ao local. de lazer também turista. E também os
lo. O Mediterrâneo não Assim, criaram-se inspiravam as viagens primórdios dos
tinha piratas e a moeda mapas e serviços para de cura. intercâmbios.
romana era aceita em atender os peregrinos.
todos os lugares.

18 AVENTURAS NA HISTÓRIA
REVOLUÇÃO 1840 A 1900 1914 A 1949 1950 A 1979 1980 ATÉ
Entre em nosso
INDUSTRIAL grupo
Em 1845, acontece a no telegram:
As duas Grandes t.me/clubederevistas
Época do boom HOJE
A Revolução Industrial primeira viagem Guerras paralisaram o turístico. A estabilida- O turismo é tão forte e
dá o grande fôlego organizada da desenvolvimento do de social e a recupe- importante que se
para o crescimento do História. Foi um turismo. Antes de ração econômica transformou na
turismo. A máquina a fracasso! Mas fez de eclodir a Primeira, em fazem emergir uma principal fonte de
vapor traz velocidade, Thomas Cook o pai do 1914, estima-se que classe média interes- renda de muitos
os animais são turismo, pois com ela havia cerca de 150 mil sada em viagens. Com países. Aviões
substituídos por trens, descobriu-se a grande turistas americanos tanta gente colocando potentes deixaram o
com as linhas férreas oportunidade de passeando na Europa. o pé na estrada, surge mundo menor e o
ligando grandes negócio que essa Nessa época, a a padronização dos barateamento dos
distâncias, na Europa atividade poderia utilização do avião roteiros e destinos e, custos democratizou o
e nos Estados Unidos. gerar. Assim, nasceu, como meio de assim, as grandes ato de viajar. Hotéis
A navegação também em 1851, a primeira transporte para operadoras e seus vendem experiências
ganha velocidade. A agência de viagens, a passageiros começa- pacotes turísticos. Em e passagens aéreas
Inglaterra é a primeira Thomas Cook and va a engatinhar. Com 1971, é inaugurado o eventualmente podem
a oferecer passagens Son. Ele também o final da guerra, primeiro parque ter o mesmo valor do
de travessias além- criou, em 1867, um ônibus e carros temático da Disney em trem ou ônibus. Ao
-mar. Nesse período, documento que começam a ser Orlando, o que mudou mesmo tempo,
surge o costume do permitia a utilização fabricados em série. A por completo o começam a ser
souvenir. Após a em hotéis de serviços Segunda Guerra destino daquela vendidos pacotes para
derrota de Napoleão contratados em uma paralisou tudo de vez. cidade ao sul dos a Lua. O primeiro
na Batalha de agência, conhecido O turismo só foi Estados Unidos, e o comprador foi o
Waterloo, turistas até hoje como renascer em 1949. modo de as famílias japonês Yusaku
IMAGENS GETTY IMAGES

invadiram o local em voucher. viajarem. Maezawa, que, além


busca de lembranças de muito dinheiro, tem
de soldados mortos. uma boa dose de
coragem.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 19
LEVE ÁGUA E ESPERANÇA
PARA QUEM MAIS PRECISA

Ajude-nos a construir
100 CISTERNAS
em Mata Grande, no
sertão do Alagoas,
E IMPACTE A VIDA DE
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PARA AJUDAR, ACESSE


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Ou aponte a
câmera do seu
celular para o
QR code ao lado

UMA CAMPANHA DE
DÚVIDA CRUEL

O VERDADEIRO INDIANA
JONES SUMIU NO BRASIL?
BRITÂNICO QUE INSPIROU PERSONAGEM TINHA FASCÍNIO PELA AMÉRICA REDAÇÃO AH

nquanto o famoso arqueólogo e professor com alguns nativos e teriam sido assassinados.

E Indiana Jones (Harrison Ford) se prepara


para se aposentar em Indiana Jones e a Re-
líquia do Destino, o novo filme da série lançada
Para ocultar o crime, os corpos dos jovens foram
encobertos por lama no fundo do rio e o do co-
ronel, enterrado. Villas-Boas cavou com as mãos
em 1981, na vida real, o aventureiro que serviu o local indicado pelos kalapalo e localizou uma
de inspiração para o personagem, o coronel bri- ossada. Vários exames foram feitos nos ossos na
tânico Percy Harrison Fawcett, não se despediu. década de 1950 – alguns deram resultado positi-
E há quem diga que ele sumiu no Brasil. vo; outros, no entanto, apontaram que a ossada
Segundo Hermes Leal, autor de O Enigma do não era do coronel. Brian, outro filho do aventu-
Coronel Fawcett – O Verdadeiro Indiana Jones, reiro (que morreu em 1984, aos 78 anos de idade),
grande parte das aventuras de sua vida aconteceu endossou a segunda versão, já que, segundo ele,
na América Latina, quando participou de missões a dentadura não se encaixava na mandíbula do
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do governo boliviano. Aqui, no começo do sécu-
lo 20, conviveu com tribos indígenas e viu a mor-
esqueleto. Em 1953, Brian lançou o livro A Expe-
dição Fawcett – Jornada para a Cidade Perdida
te de perto atravessando despenhadeiros. de Z (Record) e, só agora, 70 anos depois, chega
Seu fascínio pela América tem explicação. às livrarias brasileiras. Outras tantas obras e ex-
Certa vez, perdido na mata do Ceilão (atual Sri pedições de resgate chegaram a ser lançadas e
Lanka, Ásia), Fawcett deparou com inscrições de organizadas sobre o tema, porém, a verdade é que
um alfabeto desconhecido, descobrindo que até hoje o paradeiro dos corpos é um mistério.
eram semelhantes a outras encontradas numa
suposta cidade perdida do Brasil, provavelmente
na Bahia. Decidiu então que acharia a tal civili-
zação. Em 1920, organizou a esperada expedição,
mas não achou nada na Bahia e investiu na des-
coberta de uma outra cidade, Misteriosa Z, per-
dida no Mato Grosso, que teria sido criada por
descendentes da lendária Atlântida. Em 20 de
abril de 1925, Fawcett, seu filho Jack e o amigo
Raleigh Rimell saíram de Cuiabá com destino à
Floresta Amazônica e desapareceram sem deixar
rastros após algumas semanas.

A POLÊMICA DO CORPO
Até o indigenista brasileiro Orlando Villas-Boas
IMAGENS GETTY IMAGES

tentou solucionar o caso do sumiço de Fawcett e


sua equipe. Em 1951, após anos de busca, indíge-
nas kalapalo contaram a ele que o grupo de Fa- Coronel Percy Harrison Fawcett
no Mato Grosso, em 1925
wcett tinha passado pela aldeia e se desentendido

AVENTURAS NA HISTÓRIA 21
RELIGIÃO

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Tido como feiticeiro, até


hoje São Cipriano é visto
com desconfiança pelos fiéis

22 AVENTURAS NA HISTÓRIA
DURANTE BOA PARTE DA VIDA, ELES VACILARAM. COMETERAM
CRIMES, AFRONTARAM OS VALORES RELIGIOSOS E ATÉ
MATARAM CRISTÃOS. SAIBA O QUE ALGUNS SANTOS ANDARAM
APRONTANDO ANTES DA CANONIZAÇÃO POR MICHELLE VERONESE

C
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amilo era viciado em jogo, rejeita a vocação e passa a viver um conflito”.
amava a luxúria, Paulo matava ino- No fim das contas, segundo a tradição, todos
centes e Cipriano maltratava don- os santos acabaram superando esse conflito e
zelas indefesas. Para não falar no assumindo sua vocação. O que chama a aten-
que fizeram Margarida, Cássio, Sebastião... ção, nos casos a seguir, é como alguns capri-
Segundo a tradição cristã, esses personagens charam na hora de pecar.
viveram histórias de arrepiar. Mas, curiosa-
mente, todos são cultuados como santos. A eles O BRUXO
a Igreja dedica festas, altares e procissões. Mas “Meu glorioso São Cipriano!” Experimente
como esses homens e mulheres conseguiram mencionar essa frase em público. Os mais su-
superar suas falhas e se tornar veneráveis? Bem, persticiosos baterão na madeira, farão o sinal
essa resposta você não vai encontrar aqui – até da cruz ou se fecharão num silêncio constran-
porque as histórias de redenção são bem conhe- gedor. Muitos séculos após sua morte, Cipriano,
cidas e bastante parecidas entre si. Nos relatos chamado de “o feiticeiro”, ainda desperta rea-
a seguir, queremos mostrar o lado menos fa- ções como essas. Há quem negue que ele seja
moso desses santos. O lado que não combina santo, quem garanta que fez pacto com o de-
com as auréolas douradas. mônio e quem não queira nem ouvir falar dele.
A parte obscura das biografias dos santos, Mas por que um santo é lembrado dessa ma-
entretanto, não é vista como algo negativo pela neira? A resposta está na história espinhosa que
Igreja. Ao reconhecer os erros dos indivíduos antecede sua conversão. Diz a tradição cristã
que foram canonizados, a instituição humani- que Cipriano nasceu e viveu na cidade de An-
za seus santos, criando exemplos de superação tioquia, no norte da Síria, no fim do século 3.
a ser seguidos pelo fiéis. Afinal, vacilar tam- Adorador de deuses pagãos, ele estudou magia,
bém faz parte da vida. E da santidade, como alquimia, ocultismo, astrologia e cartomancia.
explicou o teólogo Victor Villavicencio: “Ge- Especializou-se em todo tipo de artes mágicas,
ralmente, o santo sente o chamado da fé, mas empenhando-se em usá-las para causar o

AVENTURAS NA HISTÓRIA 23
RELIGIÃO

mal. E, diz a lenda, ainda tornou-se amigo ín- espécie de almanaque popular, que reúne diver-
timo de espíritos e demônios (Lúcifer e Satanás sos saberes. No passado, era muito utilizado por
seriam os mais chegados), recorrendo a eles camponeses de países como Portugal e Espa-
para conquistar seus objetivos. nha”, afirmou. Na obra atribuída a Cipriano
Uma das histórias mais conhecidas de Ci- estão reunidos feitiços, exorcismos e simpatias
priano trata de sua tentativa de seduzir a jovem que não poupam ervas raras, gatos pretos, sapos,
Justina. Acostumado a ameaçar moças com morcegos e outros ingredientes bizarros. Tudo
seus feitiços para conquistá-las, ele encontrou para que o leitor e candidato a feiticeiro possa
dificuldades daquela vez. Diante do fora que conquistar o que deseja – atrair amor, dinheiro,
levou de Justina, passou a invadir seus aposen- sucesso ou até se livrar da calvície.
tos, à noite, para forçá-la a ficar com ele. De
nada adiantou. Com a ajuda dos demônios, A AMANTE E A PROSTITUTA
teria se transformado em homem, mulher e Nem exemplos de pureza, nem de castidade.
animal para conquistá-la – em vão. Segundo a Existem mulheres que, apesar de terem sido
tradição religiosa, era a fé de Justina que a pro- canonizadas, durante boa parte da vida estive-
tegia contra os feitiços. Por fim, Cipriano de- ram muito longe dos ideais de comportamento
cidiu se vingar. Espalhou boatos maldosos recomendados para as santas. Uma delas é Mar-
sobre Justina e realizou garida de Cortona, que
feitiços contra a família nasceu em 1247, na re-
Ao reconhecer os
dela – um comporta- gião da Toscana, Itália.
mento nada santo para Órfã de mãe, foi criada
erros dessas biografias,
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um futuro santo. por uma madrasta e um
a Igreja humaniza
Propagadas pela tra- pai cruel. Aos 18 anos,
dição oral, as histórias viu no concubinato sua
seus santos, criando
do santo-bruxo percor- chance de mudar de
reram o Oriente e depois vida. Naquela época,
exemplos de superação
a Europa até chegarem nobres, reis e até alguns
ao Brasil. Tirando, claro, membros do clero man-
a parte fantasiosa, é difícil saber se são baseadas tinham uma ou várias amantes. Muitas viviam
em fatos reais e se ele existiu mesmo. “A cons- no luxo e possuíam grande influência sobre
trução da figura do santo se dá principalmente eles, mesmo em questões políticas. Margarida
na imaginação das pessoas. E, no caso de São tornou-se uma delas. Foi concubina de um no-
Cipriano, como no de muitos outros santos, é bre italiano, com quem conviveu durante nove
impossível separar a lenda da história”, descre- anos e com quem teve um filho. Conta-se que,
veu Jerusa Pires Ferreira, autora de O Livro de nesse período, vivia cercada de mimo e de-
São Cipriano – Uma Legenda de Massas. monstrava um grande desprezo pelos pobres.
Lembrado pela Igreja em 26 de setembro, no Já Maria Egípcia, também conhecida como
Brasil São Cipriano ainda permanece cercado Egipcíaca, viveu no século 4, longe do luxo e da
por mistério. Além de seus “feitos”, outra razão corte. Aos 12 anos, abandonou a família e, so-
para sua popularidade negativa está num mis- zinha, foi viver num dos principais centros
terioso livro de magia que leva seu nome. Acre- comerciais da Antiguidade: a cidade de Alexan-
dita-se que a obra, cujo conteúdo traz variações dria, no Egito. Frequentando o porto local, que
dependendo da editora que a publicou (entre as atraía comerciantes de todo o mundo, tornou-
versões mais conhecidas, estão O Livro de São -se prostituta. O diferente é que ela não vendia
Cipriano das Almas e Livro Negro de São Cipria- o corpo pensando em enriquecer. Mesmo quan-
no), seja baseada em manuscritos antigos, que do os clientes queriam lhe pagar, recusava o
teriam circulado após a morte do santo. “É uma dinheiro. “Eu agia dessa maneira porque

24 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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Santa Maria Egípcia teria


sido prostituta – por prazer
e não por necessidade

AVENTURAS NA HISTÓRIA 25
RELIGIÃO

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Viciado em jogo, São


Camilo perdeu tudo o que
tinha e chegou a mendigar

26 AVENTURAS NA HISTÓRIA
queria ter quantos homens fosse possível, fa- apostas, mais aventuras, mais dificuldades fi-
zendo de graça o que me dava prazer”, teria nanceiras. Foi assim durante vários anos. Até
confessado a São Zózimo, um abade que viveu que ele acabou na miséria.
naqueles tempos. Para se sustentar, Maria Egíp- Sem ter mais o que dar como garantia no
cia contou que mendigava e trabalhava na fia- jogo, Camilo empenhou sua capa de militar.
ção de linho. Viveu dessa maneira durante 17 Perdeu a aposta e se viu obrigado a entregar a
anos, até que decidiu partir para a Palestina. roupa em praça pública. Virou mendigo e tor-
O relato sobre como a prostituta conseguiu nou-se alvo de chacota. Para completar, ainda
viajar é especialmente impressionante para sofria com uma chaga incurável no pé, que lhe
alguém que, depois, virou santa. No porto de causava imensas dores. Torturado por elas,
Alexandria, ela teria encontrado vários homens certo dia decidiu mudar de comportamento.
que, apressados, se preparavam para ir a Jeru- Foi, então, pedir abrigo no hospital São Tiago,
salém participar da Festa de Exaltação da San- em Roma, oferecendo-se para auxiliar os en-
ta Cruz. Ela pediu para acompanhá-los, mas fermeiros em troca de tratamento médico. A
era preciso pagar pela viagem e pela alimenta- diretoria do hospital compadeceu-se dele e
ção. Como não tinha um tostão, Maria Egípcia aceitou o acordo.
propôs: “Eu tenho um corpo – podem tomá-lo O novo ajudante foi uma decepção – não
como pagamento pela agradou nem aos doen-
jornada”. Assim ela con- tes, nem aos médicos.
seguiu sua passagem Segundo a tradição, “O rapaz não tinha juí-
para a Terra Santa. zo. Era um cabeça quen-
após o chamado
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas te, brigava com os enfer-
O JOGADOR da fé, os santos vivem mos por qua lquer
Ele t inha tudo pa ra ninharia, discutia com
construir uma carreira em conflito até os enfermeiros e perdia
em meio a guerras, trin- tempo no jogo”, conta o
cheiras e pelotões. Mas
assumirem a vocação monsen hor Ascâ nio
preferiu as cartas, trapa- Brandão no livro São
ças e apostas. Foi em nome delas que Camilo, Camilo. Em 1569, o homem que se tornaria o
mais tarde conhecido como São Camilo de santo protetor dos enfermos foi dispensado por
Lellis, mentiu, mendigou e dedicou parte de sua irresponsabilidade e inaptidão para o trabalho
vida. Ele nasceu em 1550, na cidade de Bucchia- de enfermeiro.
nico, Itália. Ficou órfão de mãe muito cedo e
praticamente foi educado por estranhos, já que CAÇADORES DE CRISTÃOS
o pai era militar e vivia viajando. Durante a Nos primeiros séculos de nossa era, um traba-
juventude, andou em más companhias, fez todo lho comum às tropas romanas era perseguir
tipo de travessuras e logo encontrou a paixão seguidores do cristianismo. Sob as ordens de
pela qual faria muitas loucuras: o jogo. imperadores, eles torturaram e martirizaram
Aos 17 anos, Camilo parecia ter se ajuizado, vários cristãos. Alguns soldados eram espe-
diriam os religiosos. Alistou-se no Exército e cialmente bons nessas tarefas – e, mesmo as-
representou seu país em campanhas militares. sim, se tornaram santos. O primeiro deles teria
Mas a atração pelas apostas era incontrolável, feito suas atrocidades antes que se pudesse
e toda sua vida passou a girar em torno da jo- falar de “cristianismo”, pois o próprio Cristo
gatina. O soldo que recebia como soldado era ainda estava vivo.
todo gasto em jogo. Quando suas reservas aca- Segundo a tradição cristã, o militar romano
bavam, voltava a lutar em novos conflitos. E, Cássio foi designado para acompanhar a exe-
ao regressar, começava tudo novamente – mais cução de Jesus e outros condenados. No fim

AVENTURAS NA HISTÓRIA 27
RELIGIÃO

do dia, cansados de esperar que os crucificados aos cristãos. Naquela mesma época, Jorge da
morressem, seus colegas decidiram acelerar o Capadócia (região que hoje faz parte da Tur-
processo quebrando as pernas e também os quia) teria partido para a Palestina e jurado
braços dos condenados. Cássio assistiu a tudo fidelidade a Roma, servindo também a Diocle-
aquilo sem nada fazer. Quando coube a ele se ciano. Diferentemente de Sebastião, o militar
certificar de que Jesus, de fato, havia morrido, – hoje cultuado como santo guerreiro –, teria
o futuro santo não vacilou: perfurou com a logo se revoltado com as atrocidades cometidas
lança o abdome da vítima. Hoje muita gente contra os seguidores da religião de Jesus.
lembra de São Longuinho – o dos três pulinhos Não há dúvida, entretanto, de que o mais
–, mas nem todo mundo sabe que ele é o cruel lembrado perseguidor de cristãos seja Saulo de
Cássio depois de canonizado. Tarso, hoje conhecido como São Paulo. Filho de
No século 3, Sebastião (o atual padroeiro dos pais judeus e, possivelmente, adepto da seita
prisioneiros) teria feito carreira no Exército de judaica dos fariseus, ele teria sido designado pelo
Roma, chegando ao posto de capitão da Guar- sumo sacerdote de Jerusalém para capturar os
da Pretoriana. O cargo exigia que ele acompa- seguidores de Jesus, que havia acabado de mor-
nhasse as prisões de cristãos e os horrores que rer. Segundo a Bíblia, Saulo testemunhou a mor-
ocorriam nos cárceres do Império Romano. te de Santo Estêvão, lembrado como o primeiro
Para completar, ele ainda teria sido incumbido mártir do cristianismo, e perseguia cristãos no
de zelar pela segurança pessoal de Diocleciano caminho para a cidade de Damasco, na atual
– que governou entre 284 e 305 e foi um dos Síria – nessa mesma estrada ele teria se arrepen-
imperadores mais implacáveis na perseguição dido e se convertido, ainda no século 1.
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ALTOS E BAIXOS
A cada época, um diferente tipo de santo se torna alvo de veneração. Os primeiros cristãos, por exemplo,
cultuavam os mártires – que, nos períodos de perseguição, haviam morrido por defender sua fé. Quando,
no século 4, o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, vieram os santos eremitas – que
abandonavam os bens materiais para viver em desertos e montanhas e protestar contra os rumos da Igreja.
“Cada um a seu tempo, eles serviram como modelo de comportamento diante de determinados desafios
históricos”, explicou o frei Vanildo Zugno, da OFMCap, a Ordem dos Frades Menores Capuchinhos. A
devoção dos fiéis também costuma ressuscitar santos que pareciam superados. Nos anos 1960 e 1970,
durante as ditaduras na América Latina, o culto aos mártires ganhou novo impulso: os perseguidos políticos
se identificavam com santos como Pedro e Sebastião, que haviam sido combatidos por defender um novo
modelo de vida. Veja, abaixo, um pouco de alguns santos no Brasil.

Santa Edwiges Santo Expedito São Vito Santa Luzia


A alemã que pagava a Conhecido por atender Na falta de médicos e Teria feito voto de
conta de pessoas que preces bem rápido, remédios, era aos castidade e se dedica-
haviam sido presas por tornou-se muito popular santos que os fiéis do à caridade. Segundo
não honrar suas dívidas na América Latina. pediam ajuda. Até a a tradição, ao se
tornou-se bastante “Hoje as devoções mais Idade Média, o siciliano recusar a casar, foi
popular entre os comuns são as que Vito era invocado para denunciada por ser
brasileiros. É venerada respondem a necessi- proteger contra a cristã e acabou
por pobres e endivida- dades particulares”, epilepsia e as mordidas torturada e morta pelo
dos em geral. disse o frei Zugno. de animais. Império Romano.

28 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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Para se certificar de que


Jesus havia morrido, Cássio não
vacilou: perfurou com a lança o
abdome da vítima

AVENTURAS NA HISTÓRIA 29
CAPA

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30 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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HÁ 60 ANOS, O PASTOR E ATIVISTA PELOS DIREITOS


CIVIS REUNIA 250 MIL PESSOAS NA CÉLEBRE
MARCHA SOBRE WASHINGTON, CAPITAL DOS
ESTADOS UNIDOS, PARA QUE A IGUALDADE ENTRE
BRANCOS E NEGROS FOSSE ASSEGURADA PELA LEI
POR RAPHAELA DE CAMPOS MELLO

AVENTURAS NA HISTÓRIA 31
CAPA

ão estou descartando a ideia de fa- das de jornais e redigiu a famosa “Carta da pri-
zer uma marcha em Washington, são de Birmingham”.
ou até mesmo protestos no Con- A mensagem se dirigia a um grupo de clé-
gresso para fazer essa questão ser rigos brancos, críticos de suas atividades, su-
dramatizada ao ponto que não possa ser ignora- postamente geradoras de caos e desordem,
da. Estou pensando agora em todas as pessoas de explicando a eles a necessidade dos protestos
boa-fé, brancas e negras, que estão preocupadas não violentos como propulsores da justiça so-
com o sonho americano e com a implementação cial e da igualdade entres brancos e negros.
de princípios básicos da nossa democracia.” Mar- King lutava pela conscientização das pessoas
tin Luther King Jr. revelou os planos da célebre contra a “privação trágica dos direitos consti-
marcha ocorrida em 28 de agosto de 1963, na tucionais básicos”, uma vez que a segregação
capital dos Estados Unidos, em entrevista a David racial infringia a 14ª Emenda à Constituição
Susskind, veiculada em 9 de junho daquele mes- dos Estados Unidos, adotada em 1868, a fim
mo ano pela WPIX-TV New York. de proteger perante a lei a cidadania e a igual-
Cerca de dois meses antes, o pastor batista e dade de direitos entre todos os cidadãos. Ain-
líder do Movimento Americano pelos Direitos da que esta causa lhe custasse a vida, ele estava
Civis tinha sido preso após protestos pacíficos, nela por inteiro. Sem temor. A prova disso é
como passeatas e gestos de desobediência civil, que, mesmo no auge dos atentados e das per-
realizados em Birmingham, a cidade mais se- seguições que sofrera, continuou a circular pelo
gregada dos Estados Unidos, no Alabama. Em país sem guarda-costas.
sua cela, ele pediu ao carcereiro algumas folhas O menino nascido em Atlanta, Geórgia, em
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para que pudesse escrever. Negativo. Diante da
recusa, juntou pedaços de papel higiênico e bor-
15 de janeiro de 1929, filho do reverendo Mar-
tin Luther King, líder da Igreja Batista Ebene-

Martin Luther King Jr.


lidera protesto pacífico pelo
centro de Detroit, EUA,
em 23 de junho de 1963

32 AVENTURAS NA HISTÓRIA
INDIGNADA E FARTA DA
SEGREGAÇÃO NOS ÔNIBUS,
A COMUNIDADE NEGRA
PROPÔS UM BOICOTE A ELES
zer, e de Alberta Williams King, sonhava em
ser o pregador de uma grande congregação
batista urbana no Sul dos Estados Unidos. Pro-
penso aos estudos, terminou o ensino médio
aos 15 anos, a faculdade aos 19, o seminário
aos 22 e o doutorado em teologia pela Univer-
sidade de Boston aos 26. Estava mais do que
preparado para disseminar o Evangelho. “Em
vez disso, quando morreu, em 1968, havia le-
vado milhões de pessoas a romper para sempre
o sistema de segregação racial. Moldara uma
massa eleitoral negra que acabou com o racis-
mo declarado nas campanhas políticas e acu-
Em 1955, num ônibus em
mulara para os negros um poder político maior Montgomery, a ativista Rosa Parks
se senta em um lugar livre, porém
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do que jamais haviam tido no país. Acima de
tudo, trouxera uma dimensão nova e mais ele-
reservado aos brancos, e é presa

vada de dignidade humana para a vida dos


negros”, destaca Coretta Scott King, viúva do inconstitucionalidade da separação entre crian-
ativista, no prefácio do livro As Palavras de ças negras e brancas em estabelecimentos edu-
Martin Luther King (editora Zahar). cacionais. A reação contrária à integração foi
“Sua formação deu-se dentro de um lar e de violenta nos estados sulistas. Cidadãos brancos
uma igreja fortemente enraizada na vibrante se organizaram em conselhos para tentar rever-
tradição evangélica negra norte-americana. Em ter a decisão enquanto a Ku Klux Klan desfila-
uma época em que as igrejas negras, principal- va com suas tochas acesas, espalhando o terror.
mente as batistas e metodistas, vieram a se O transporte público em Montgomery, por
transformar em espaços de resistência e luta seu turno, fazia valer a discriminação com re-
contra o racismo e a segregação racial nos Es- quintes de crueldade. De acordo com as leis do
tados Unidos”, observa Lucimar Felisberto dos Alabama, negros tinham que se restringir à
Santos, historiadora, pós-doutora pela Univer- parte traseira dos ônibus, sentados ou em pé,
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pes- mesmo que houvesse assentos livres na parte
quisadora do Centro de Altos Estudos e Pesqui- dianteira, reservada aos brancos. Além disso,
sas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju. tinham de pagar a passagem na entrada do ve-
ículo, descer, caminhar até a porta dos fundos
A RESISTÊNCIA DE ROSA PARKS pelo lado de fora, e só então reingressar. Não
O apelo definitivo para que ele abraçasse a cau- bastasse esse trâmite, muitos motoristas acele-
sa da igualdade racial veio de uma mulher: Rosa ravam e deixavam os passageiros para trás,
Parks. King e Coretta haviam se mudado para mesmo depois de paga a passagem.
a cidade de Montgomery, Alabama, justamente No final da tarde de 1º de dezembro de 1955,
num período dos mais turbulentos. Em 1954, a Rosa Parks, cansada após um dia de trabalho
Suprema Corte dos Estados Unidos decretou a como costureira numa loja de departamentos,

AVENTURAS NA HISTÓRIA 33
CAPA

sentou-se na primeira fila, bem atrás da seção


exclusiva aos privilegiados. No entanto, o mo-
COM OS PROTESTOS,
torista ordenou que ela fosse para os fundos e
lá ficasse de pé para que um homem branco se
A LIDERANÇA BRANCA
sentasse naquele lugar. Ela se recusou a fazê-lo PROCURAVA PRETEXTOS
e acabou sendo presa.
Indignada e farta desse sistema, a comuni- PARA PRENDER NEGROS
dade negra propôs um boicote aos ônibus de
Montgomery. Martin Luther King ofereceu sua DE PASTOR A HERÓI
igreja para que lideranças se reunissem e acer- Os EUA estavam diante de um novo herói. A
tassem os detalhes da mobilização. Por fim, o revista Time lhe concedeu a capa com a seguin-
pastor fora eleito presidente da Associação pelo te manchete: “O erudito ministro batista negro
Progresso de Montgomery e o boicote começa- que em pouco mais de um ano surgiu do nada
ria em 5 de dezembro de 1955. “Durante mais para se tornar um dos mais extraordinários lí-
de um ano, os 50 mil negros de Montgomery deres da nação”. Martin Luther King foi, sim,
foram para seus trabalhos, escolas e igrejas a pé um homem de seu tempo, entrelaçado a expe-
ou compartilhando carros. Ao ver que o boico- riências religiosas, filosóficas e sociológicas.
te estava realmente funcionando, a liderança “Acredito que o que mais chamou a atenção no
branca da cidade decidiu encontrar pretextos ativismo dele foi justamente o fato de seu posi-
para prender negros”, conta Coretta. O próprio cionamento político sistematizar uma agenda
King foi preso por andar a 50 km/h numa via teológica liberal que organizava as estratégias
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cuja velocidade máxima permitida era 40 km/h.
Ao todo, ele foi encarcerado 26 vezes.
de uma rede de extraordinários líderes locais e
regionais que, junto às suas comunidades, cria-
vam as condições de mobilização visando con-
quistas na luta pelos direitos civis, resultando
em um grande movimento de massa com base
nas comunidades locais”, disserta Lucimar.
A partir do boicote aos ônibus, ficou claro que
aquele gesto não era apenas uma demonstração
de resistência local, e sim um ato potente de al-
cance nacional e internacional como referência
de luta por direitos fundamentais. Tanto é ver-
dade que a Suprema Corte baniu a segregação
nos ônibus em todo o estado do Alabama e, em
21 de dezembro de 1956, eles foram integrados.
Não havia mais como conter o movimento
pelos direitos civis. Novos grupos e iniciativas
foram pipocando em diversas cidades, dentre
eles, a Conferência da Liderança Cristã do Sul
(SCLC, na sigla em inglês), presidida por King
e sediada em Atlanta. A partir dali, ele viajou o
país e o estrangeiro dando conferências e par-
ticipando tanto de reuniões como de manifes-
Ao todo,
Martin Luther
tações. Em nenhum momento titubeou quanto
King foi preso à tática escolhida: desobediência às leis injustas
26 vezes
e protestos não violentos. Afinal, tinha como
inspiração o líder indiano Mahatma Gandhi.

34 AVENTURAS NA HISTÓRIA
“DIGO-LHES HOJE, MEUS AMIGOS, QUE, APESAR DAS DIFICULDADES E FRUSTRAÇÕES DO MOMENTO,
EU AINDA TENHO UM SONHO. É UM SONHO PROFUNDAMENTE ENRAIZADO NO SONHO AMERICANO.

EU TENHO UM SONHO QUE UM DIA ESSA NAÇÃO LEVANTAR-SE-Á E VIVERÁ O


VERDADEIRO SIGNIFICADO DA SUA CRENÇA: CONSIDERAMOS ESSAS VERDADES
COMO AUTOEVIDENTES QUE TODOS OS HOMENS SÃO CRIADOS IGUAIS.

EU TENHO UM SONHO QUE UM DIA, NAS MONTANHAS RUBRAS DA GEÓRGIA, OS FILHOS


DOS DESCENDENTES DE ESCRAVOS E OS FILHOS DOS DESCENDENTES DE DONOS
DE ESCRAVOS PODERÃO SENTAR-SE JUNTOS À MESA DA FRATERNIDADE.

EU TENHO UM SONHO QUE UM DIA MESMO O ESTADO DO MISSISSIPPI, UM ESTADO


DESÉRTICO SUFOCADO PELO CALOR DA INJUSTIÇA, E SUFOCADO PELO CALOR DA
OPRESSÃO, SERÁ TRANSFORMADO NUM OÁSIS DE LIBERDADE E JUSTIÇA.

EU TENHO UM SONHO QUE MEUS QUATRO PEQUENOS FILHOS UM DIA VIVERÃO


EM UMA NAÇÃO ONDE NÃO SERÃO JULGADOS PELA COR DA PELE, MAS
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PELO CONTEÚDO DO SEU CARÁTER. EU TENHO UM SONHO HOJE.

EU TENHO UM SONHO QUE UM DIA O ESTADO DO ALABAMA, COM SEUS RACISTAS CRUÉIS,
CUJO GOVERNADOR COSPE PALAVRAS DE “INTERPOSIÇÃO” E “ANULAÇÃO”, UM DIA BEM LÁ
NO ALABAMA MENINOS NEGROS E MENINAS NEGRAS POSSAM DAR-SE AS MÃOS COM MENINOS
BRANCOS E MENINAS BRANCAS, COMO IRMÃS E IRMÃOS. EU TENHO UM SONHO HOJE.

EU TENHO UM SONHO QUE UM DIA TODOS OS VALES SERÃO ELEVADOS, TODAS AS


MONTANHAS E ENCOSTAS SERÃO NIVELADAS; OS LUGARES MAIS ACIDENTADOS SE
TORNARÃO PLANÍCIES E OS LUGARES TORTUOSOS SE TORNARÃO RETOS E A GLÓRIA
DO SENHOR SERÁ REVELADA E TODOS OS SERES A VERÃO CONJUNTAMENTE.

ESSA É A NOSSA ESPERANÇA. ESSA É A FÉ COM A QUAL EU REGRESSO AO SUL.


COM ESSA FÉ NÓS PODEREMOS ESCULPIR NA MONTANHA DO DESESPERO UMA
PEDRA DE ESPERANÇA. COM ESSA FÉ PODEREMOS TRANSFORMAR AS DISSONANTES
DISCÓRDIAS DO NOSSO PAÍS EM UMA LINDA SINFONIA DE FRATERNIDADE.

[...] QUANDO PERMITIRMOS QUE A LIBERDADE RESSOE, QUANDO A DEIXARMOS RESSOAR DE


CADA VILA E CADA LUGAR, DE CADA ESTADO E CADA CIDADE, SEREMOS CAPAZES DE FAZER
CHEGAR MAIS RÁPIDO O DIA EM QUE TODOS OS FILHOS DE DEUS, NEGROS E BRANCOS, JUDEUS
E GENTIOS, PROTESTANTES E CATÓLICOS, PODERÃO DAR-SE AS MÃOS E CANTAR AS PALAVRAS
DA ANTIGA CANÇÃO ESPIRITUAL NEGRA: FINALMENTE LIVRES! FINALMENTE LIVRES!”
Trechos do discurso pronunciado na Marcha sobre Washington em 28 de agosto de 1963.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 35
CAPA

Milhares de americanos se reúnem


no Lincoln Memorial em prol da
igualdade racial nos EUA

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“Ele foi provavelmente a primeira pessoa na vindas de todas as partes do país se reuniram
história a elevar a ética do amor de Jesus acima em Washington para participar do comício que
da mera interação entre indivíduos, transfor- ficou conhecido como A Grande Marcha ou
mando-a numa força social poderosa e eficaz Marcha sobre Washington. Da escadaria do Lin-
em grande escala”, escreveu o ativista. coln Memorial, Martin Luther King proferiu seu
Contudo, para a polícia, atos protagonizados célebre discurso intitulado “Eu tenho um sonho”
por negros, ainda que pacíficos, eram considera- (leia trechos na pág. 35). “Quando a televisão
dos afrontas à ordem pública. Por isso, a repres- transmitiu a imagem dessa assembleia extraor-
são imperava nas ruas. Cães, jatos d’água e de- dinária através dos oceanos que nos limitam,
tenções eram manobras corriqueiras. Após os todos os que acreditam na capacidade do homem
protestos em Birmingham, em abril de 1963, de se tornar melhor tiveram um momento de
houve manifestações em cerca de mil cidades inspiração e confiança no futuro da raça huma-
americanas. A comunidade negra estava em pol- na. E todo americano consciente pôde se orgu-
vorosa, cansada de esperar por mudanças que lhar, na certeza de que uma experiência dinâmi-
não se implementavam. Pelo contrário, pareciam ca de democracia na capital de sua nação foi
cada dia mais distantes. King e outras lideranças, exibida para o mundo”, ele escreveu.
que haviam apoiado a eleição do presidente John Assim que o evento acabou, King e outros lí-
Kennedy, até então, não tinham obtido a atenção deres da marcha se reuniram com o presidente
esperada por parte do governo para a questão dos John Kennedy na Casa Branca. A conversa se
direitos civis. Era preciso fazer algo monumental desdobrou em importantes avanços legais. Em
para pressionar as autoridades a aprovarem uma 1964, fora aprovada a Lei dos Direitos Civis, que
nova legislação federal que integrasse completa- proíbe a discriminação com base em raça, cor,
mente os negros à sociedade americana. religião, sexo, nacionalidade e, posteriormente,
No dia 28 de agosto de 1963, 250 mil pessoas orientação sexual e identidade de gênero; e, em

36 AVENTURAS NA HISTÓRIA
1965, a Lei do Voto, que estabeleceu o fim das intrometa em outros assuntos da nação”. Já na
práticas eleitorais discriminatórias, decorrentes visão de Lucimar Felisberto, a mudança no ati-
da segregação racial nos Estados Unidos. Ambas vismo de Martin Luther King, quando ele ela-
foram assinadas pelo presidente Lyndon Johnson, bora um forte ataque à política militarista
já que Kennedy fora assassinado em 22 de no- norte-americana e passa a estabelecer uma ín-
vembro de 1963. Outra grande honraria chegou tima conexão entre racismo, pobreza e milita-
do estrangeiro em outubro de 1964. Martin Lu- rismo, foi uma prova de sua imensa lucidez e
ther King havia sido agraciado com o Nobel da visão sistêmica. “Desdobrando esse sentido da
Paz. “Sinto como se este prêmio me tivesse sido militância, passa a pregar, além das reformas
dado por alguma coisa que realmente ainda não políticas, a reestruturação do sistema econômi-
foi alcançada. É uma incumbência de sair e tra- co-militar que produzia tanto o racismo, como
balhar ainda mais arduamente pelas coisas em a pobreza, no país e no mundo”, ela sublinha.
que acreditamos”, ele disse em seu discurso de Contudo, a imagem de King fora maculada
agradecimento em Oslo, Noruega. pela campanha difamatória encabeçada pelo
FBI a mando de seu diretor J. Edgar Hoover. O
MUITA LUTA PELA FRENTE órgão considerava King o homem negro mais
Não poderia estar mais lúcido. De fato, apesar perigoso da América e, por esse motivo, estava
dos recentes avanços materializados em novas empenhado em reunir todos os recursos para
leis, a realidade nas ruas era cada vez mais ten- destruí-lo. Incluindo escutas telefônicas. Agen-
sa e violenta, uma vez que a discriminação con- tes grampearam o telefone do ativista e de seus
tinuava impactando a vida da população negra, assessores, assim como o de 15 hotéis onde eles
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em sua maioria, alijada de boas oportunidades
educacionais e profissionais e, portanto, de uma
se hospedaram. Foi aí que os casos extraconju-
gais do pastor vieram à tona, o que, na leitura
vida economicamente digna. de seus adversários, fazia dele um promíscuo
Estava cada vez mais difícil para King conter imoral indigno da confiança da população.
o anseio pelo revide por parte de certos grupos Nessa época, King apresentava sinais de esgo-
do movimento negro favoráveis à violência tamento físico e emocional. No documentário
como estratégia de luta. O Comitê de Coorde- King no Deserto, seus colegas contam que ele era
nação Estudantil da Não Violência (SNCC), li- workaholic, perfeccionista e exigente, convencido
derado por Stokely Carmichael, e a Organização de que nunca fazia o suficiente pelas causas que
pela União Afro-Americana, comandada por defendia. Eles se preocupavam com sua saúde
Malcom X, estavam entre eles. No entanto, o psíquica e até aventaram a ideia de encaminhá-lo
pastor jamais consentiria com uma revolução a um psiquiatra. Mas desistiram por causa do
armada. “Uma resistência não violenta é a arma risco de as sessões serem grampeadas pelo FBI.
mais potente disponível para o povo oprimido No começo de abril de 1968, a greve dos tra-
em suas lutas por justiça e liberdade, pois o que balhadores da limpeza urbana da cidade de Mem-
vem depois dela é a redenção e a possibilidade phis, no Tennessee, atraiu o apoio de King. Lá foi
da criação de uma comunidade amada”, ele afir- ele liderar a manifestação, que contava com 6 mil
mou em entrevista a David Susskind. E comple- participantes. Antes, porém, ele e sua equipe
mentou: “A não violência não tem como objeti-
vo destruir e aniquilar o adversário, mas ganhar
sua amizade e entendimento”. SUA TÁTICA SEMPRE FOI
Nos anos seguintes, King se envolveu ativa-
mente em duas frentes: o combate à pobreza em A MESMA: DESOBEDIÊNCIA
seu país e à Guerra do Vietnã. Com isso, anga-
riou mais uma porção de desafetos que brada-
ÀS LEIS INJUSTAS DO PAÍS E
vam: “Seu negócio são os direitos civis, não se PROTESTOS NÃO VIOLENTOS
AVENTURAS NA HISTÓRIA 37
CAPA

Nascia um mártir. Seu assassinato desenca-


deou uma onda de revoltas por diversas cidades
americanas. O último sermão dele foi reprodu-
zido em seu funeral na Igreja Batista Ebenezer,
em Atlanta, por meio de uma gravação de 4 de
fevereiro de 1968. Nela, King pedia que em sua
despedida não houvesse menção aos seus prê-
mios e honrarias, e que fosse dito que ele tentou
“alimentar os famintos”, “vestir os desnudos”,
“estar certo na questão da guerra [do Vietnã]”
e “amar e servir a humanidade”.
“Ele fala claramente para a geração atual como
se tivesse sido matéria do jornal de ontem. As
estratégias, filosofia e visão de mundo dele con-
tinuam relevantes”, opina Jesse Jackson, aliado
Manifestantes na luta pelos direitos civis. “Ele nos intima tanto
em protesto após
o assassinato de
hoje quanto nos intimava em 1968. Espero que
Martin Luther King nós o escutemos e terminemos a fase seguinte do
movimento dele. Ele falava da importância de
seguir em frente. Ele dizia: ‘Não tem avião? Di-
rija. Não tem carro? Corra. Não pode correr?
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas Ande. Não pode andar? Rasteje. Mas continue
seguindo em frente”, acrescenta a colega Marian

EM SUA VIDA, LEVOU Wright Edelman, diretora da Associação Nacio-


nal pelo Avanço do Povo Negro (NAACP).
MILHÕES DE PESSOAS A Aqui no Brasil os ecos de Luther King chega-
ram fortes. A mensagem do mais famoso dis-
ROMPER DE VEZ O SISTEMA curso, “Eu tenho um Sonho”, em que defendeu

DE SEGREGAÇÃO RACIAL uma sociedade onde todos seriam iguais sem


distinção de raça e que negros e brancos pode-
riam conviver em harmonia, casou com as ex-
tiveram que contornar uma ameaça de bomba pectativas dos movimentos sociais do Brasil.
contra o avião no qual viajariam. Na noite de “Mas é importante destacar que, ainda que os
3 de abril, mesmo padecendo de dor de cabeça, movimentos sociais brasileiros tenham intensi-
ele se levantou da cama no hotel e, debaixo de ficado a luta pela emancipação do povo negro a
um temporal, se dirigiu ao Templo Mason para partir dos anos 1960, as origens de sua histórica
discursar para centenas de pessoas que o aguar- luta estão nos períodos da escravidão”, frisa Lu-
davam no culto (leia trechos na pág. 39). “Então, cimar Felisberto. A partir do ativismo de Luther
cheguei a Memphis e começaram a me falar das King, ela prossegue, abriu-se a possibilidade de
ameaças ou comentar as ameaças que vieram à o enfrentamento do racismo ser um problema
tona. O que poderiam me fazer alguns de nossos que abarca todas as nações envolvidas na diás-
doentes irmãos brancos?”, ele questionou. No dia pora negra, na medida em que ele foi além de
seguinte, uma bala perfurou sua bochecha direi- seu amor nacionalista, por seu país, e afirmou
ta enquanto conversava, à vontade e brincalhão, um compromisso internacional com os pobres,
da sacada do seu quarto no segundo andar do marginalizados e excluídos de todo o mundo.
hotel Lorraine com um companheiro de luta que Justamente por isso, acredita a acadêmica, ele se
se encontrava no pátio. tornou uma grande ameaça.

38 AVENTURAS NA HISTÓRIA
“LEVANTEMO-NOS NESTA NOITE COM PRESTEZA. FIQUEMOS DE PÉ COM
DETERMINAÇÃO. E SIGAMOS NESTES DIAS PODEROSOS, NESTES DIAS
DESAFIADORES, A FIM DE TRANSFORMAR A AMÉRICA NAQUILO QUE TEM DE
SER. TEMOS A OPORTUNIDADE DE TORNAR A AMÉRICA UM PAÍS MELHOR.

E AGRADEÇO A DEUS, MAIS UMA VEZ, POR ME PERMITIR ESTAR AQUI COM VOCÊS. VOCÊS
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SABEM QUE HÁ ALGUNS ANOS EU ESTAVA NA CIDADE DE NOVA YORK, AUTOGRAFANDO
O PRIMEIRO LIVRO QUE ESCREVI. E, ENQUANTO AUTOGRAFAVA, APARECEU UMA MULHER
NEGRA COM PROBLEMAS MENTAIS. A ÚNICA PERGUNTA QUE ELA ME FEZ FOI: “O SENHOR
É MARTIN LUTHER KING?”. ENQUANTO ESCREVIA, DE CABEÇA BAIXA, EU DISSE QUE SIM.

NO MINUTO SEGUINTE, SENTI ALGO ATINGIR O MEU PEITO. ANTES QUE EU PUDESSE
PERCEBER, HAVIA SIDO ESFAQUEADO POR ESSA MULHER DESEQUILIBRADA. FUI LEVADO
ÀS PRESSAS PARA O HOSPITAL HARLEM. ERA UMA ESCURA TARDE DE SÁBADO.
A LÂMINA PENETRARA FUNDO, E A RADIOGRAFIA REVELARA QUE A SUA EXTREMIDADE
QUASE TOCARA A AORTA, A ARTÉRIA PRINCIPAL. SE A LÂMINA A PERFURASSE, EU
ME AFOGARIA EM MEU PRÓPRIO SANGUE; SERIA O MEU FIM. NA MANHÃ SEGUINTE,
DEU NO NEW YORK TIMES QUE, SE EU TIVESSE ESPIRRADO, TERIA MORRIDO.

[...] BEM, NÃO SEI O QUE ACONTECERÁ AGORA. DIAS DIFÍCEIS VIRÃO (AMÉM).
MAS NÃO ME IMPORTA. POIS EU ESTIVE NO TOPO DA MONTANHA (SIM). E NÃO
ME IMPORTO. COMO QUALQUER PESSOA, GOSTARIA DE VIVER UMA VIDA LONGA.
A LONGEVIDADE TEM O SEU LUGAR. MAS NÃO ME PREOCUPO COM ISSO AGORA.
APENAS DESEJO OBEDECER AOS DESÍGNIOS DE DEUS (SIM). E ELE ME LEVOU AO
TOPO DA MONTANHA, OLHEI AO REDOR E CONTEMPLEI A TERRA PROMETIDA. POSSO
NÃO ALCANÇÁ-LA, MAS QUERO QUE SAIBAM, QUE NÓS, COMO POVO, CHEGAREMOS
À TERRA PROMETIDA. ESTOU TÃO FELIZ; NÃO ME PREOCUPO COM NADA; NÃO TEMO
HOMEM ALGUM, POIS MEUS OLHOS VIRAM A GLÓRIA DA PRESENÇA DO SENHOR.”
Trechos do último discurso de Martin Luther King na véspera de seu assassinato,
em 3 de abril de 1968, em Memphis, Tennessee.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 39
GUERRA

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40 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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AVENTURAS NA HISTÓRIA 41
GUERRA

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m abril de 2018, dois líderes asiáti- entre as duas nações e, por consequência, em
cos protagonizaram um gesto tími- todo o planeta.
do e rápido, mas carregado de sim- “Fico feliz em conhecê-lo”, disse, na ocasião,
bolismos. Em uma das regiões mais o presidente sul-coreano ao ditador comunis-
tensas do planeta, chamada de Pa- ta. Ambos sorriram e caminharam para um
ralelo 38 e que demarca a fronteira entre as local chamado Casa da Paz, na vila de Pan-
duas Coreias, o ditador da Coreia do Norte, munjon, onde, há 70 anos, foi assinado o ces-
Kim Jong-un, meio de improviso, estendeu o sar-fogo que interrompeu a Guerra da Coreia,
braço ao presidente da Coreia do Sul, Moon ocorrida entre 1950 e 1953 e que provocou a
Jae-in, e ambos cruzaram de forma amigável morte de cerca de 3,5 milhões de pessoas, en-
os dois lados da fronteira que divide a penín- tre militares e civis atingidos pelos bombar-
sula coreana. Era a primeira vez, em décadas, deios, em ambos os lados.
que um líder do norte entrava no território do O armistício de Panmunjon, porém, apenas
sul em um encontro meticulosamente prepa- suspendeu as hostilidades bélicas e os dois
rado por ambas as partes e que contou com a países, tecnicamente, continuam em guerra
ajuda de intermediários, como os Estados Uni- até hoje. Por isso, havia muita expectativa em
dos, em uma tentativa de diminuir a tensão torno do encontro realizado em 2018, onde
foram discutidos temas como a desnucleari-
zação do lado norte e propostas definitivas
para a paz na Península Coreana. No livro de
visitas da Casa da Paz, que fica na zona des-
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas
O líder norte-coreano
militarizada e onde geralmente são realizadas
as negociações intercoreanas, Kim escreveu:
Kim Jong-un (esquerda) e o
presidente sul-coreano Moon “Uma nova história começa agora, o ponto de
Jae-in (direita) apertam as mãos
para simbolizar o fim da guerra
partida de uma era de paz”.
Mas ficou tudo por isso mesmo. Apesar de
alguns avanços no diálogo entre os dois países
e muitas imagens dos líderes sorrindo para a
imprensa mundial, o que prevaleceu foi a re-
tórica de ambas as partes e, na prática, a situ-
ação da paz entre as Coreias continua a mesma

ENCONTRO PREPARADO
ENTRE LÍDERES CONTOU COM
A AJUDA DE INTERMEDIÁRIOS
COMO OS ESTADOS UNIDOS

42 AVENTURAS NA HISTÓRIA
OCORRIDA ENTRE 1950 E
1953, A GUERRA DA COREIA
PROVOCOU A MORTE DE
3,5 MILHÕES DE PESSOAS

há 70 anos: tênue e amparada no armistício


assinado em 27 de julho de 1953, que na oca-
sião ordenou o cessar-fogo e o encerramento
das hostilidades entre as partes envolvidas no
confronto. Um acordo para o fim definitivo
do conf lito bélico iniciado em 1950, porém,
nunca formalizado.

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CONFRONTO ARMADO
A Guerra da Coreia ficou conhecida como o
primeiro confronto armado inserido no con-
texto da Guerra Fria, iniciada após a Segunda
Guerra Mundial e que dividiu o mundo em
dois blocos – capitalista, liderado pelos Esta- Na Segunda Guerra,
dos Unidos, e socialista, capitaneado pela soldados americanos
fincam bandeira em Iwo
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas DIVISÃO UNILATERAL Jima, contra o Japão,
(URSS). O conflito, que em tese seria restrito Para entender a Guerra da Coreia é necessário que pretendia garantir o
controle da Coreia
aos dois países divididos no pós-guerra, aca- voltar ao começo do século 20, quando, em
bou envolvendo tropas dos Estados Unidos, 1910, a Coreia, até então um país único, foi
União Soviética, China, Reino Unido e vários ocupada e anexada pelo Japão, em uma ação
outros países em um combate que poderia expansionista e estratégica para o fornecimen-
levar o mundo, ainda traumatizado pela guer- to de mão de obra barata, matéria-prima e
ra na Europa e com um novo mapa geopolíti- alimentos aos japoneses nas décadas seguintes.
co sendo desenhado, a um confronto de pro- Em consequência da adesão nipônica aos na-
porções inimagináveis. zistas, no final da Segunda Guerra Mundial o
“Foi uma guerra que aconteceu no âmbito exército soviético já havia ocupado boa parte
da Guerra Fria, extremamente violenta em da região norte da península coreana, enquan-
todos os aspectos e que colocou o mundo à to os norte-americanos avançaram pelo sul.
beira da Terceira Guerra Mundial”, explica o Com o Japão derrotado junto com as outras
historiador e cientista político Paulo Ribeiro nações que formavam o Eixo – Alemanha e
da Cunha, professor livre-docente de Teoria Itália –, os principais vencedores Aliados (Es-
Política da Universidade Estadual Paulista tados Unidos, URSS e Reino Unido) libertaram
(Unesp) e autor do livro Militares e Militância: a Coreia do Japão e a dividiram em dois terri-
uma Relação Dialeticamente Conflituosa. tórios: ao norte, sob a influência soviética,

AVENTURAS NA HISTÓRIA 43
GUERRA

Na liderança da
Coreia do Norte, os
soviéticos colocaram,
em 1948, Kim II-Sung, o
avô do atual ditador

Diante da falta de acordo em torno da uni-


ficação da península, em julho de 1948 a Co-

A DIVISÃO DO PAÍS reia do Sul elegeu um presidente linha-dura e


ferrenho anticomunista, Syngman Rhee e, em
FOI DEFINIDA PELOS seguida, formou-se um estado independente,
a República da Coreia. A resposta soviética foi
ALIADOS DA II GUERRA a eleição de Kim II-Sung, avô do atual ditador,
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas Kim Jong-un, para dirigir a nova República
SEM CONSULTAR Democrática Popular da Coreia, também cha-
mada de Coreia do Norte.
OS COREANOS Tanto Syngman Rhee como Kim II-Sung
eram personalidades autocráticas, muito na-
cionalistas e sonhavam em reunificar a Coreia
e outro ao sul, controlado pelos Estados Uni- de acordo com o seu sistema político, o que
dos e seus aliados. A divisão, decidida unila- naturalmente elevou a tensão entre os dois
teralmente e sem consultar os coreanos, foi países. As fronteiras passaram a ser militari-
definida na Conferência de Potsdam, realiza- zadas e os tiroteios e confrontos se tornaram
da em julho/agosto de 1945. Na mesma con- comuns. O norte contava com o apoio tático
ferência, em um processo semelhante de divi- da União Soviética e da China, que enxergava
são, os Aliados também rasgaram a Alemanha com bons olhos um aliado na península core-
em duas partes: Oriental, sob influência sovi- ana para garantir a proteção do território da
ética, e a Ocidental, apoiada pelos EUA Manchúria, localizado no nordeste chinês e
A linha demarcatória para instalação da histórico alvo de invasões em busca de seus
fronteira coreana é chamada de Paralelo 38 e, recursos naturais, principalmente por parte
na época, foi definida pelos Estados Unidos, dos japoneses. Já o sul era visto pelos Estados
assegurando que o lado sul tivesse acesso a Unidos como uma forma de deter o avanço
portos importantes e estratégicos em caso de comunista no leste asiático.
invasão. Os soviéticos aceitaram apenas por- “Tanto as lideranças norte-coreanas quan-
que estavam mais preocupados em expandir to as sul-coreanas tinham ambições que o seu
geopoliticamente na Europa e a situação na país pudesse controlar a península completa-
Ásia permaneceu tensa nos anos seguintes, mente. Este é o principal motivo que levou à
com revoltas populares, protestos, repressão Guerra da Coreia”, explica o especialista Feli-
e mortes em ambas as partes. pe Dalcin Silva, doutorando em estudos estra-

44 AVENTURAS NA HISTÓRIA
tégicos internacionais pela Universidade Fe- avanços e recuos estratégicos e conquistas de
deral do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor territórios, mas sem vencedores ou sinais de
de pesquisa do Instituto Sul-Americano de rendição de nenhuma das partes. Tanto Seul
Política e Estratégia (Isape). como Pyongyang, capital da Coreia do Norte,
caíram em mãos inimigas e foram retomadas
A ENTRADA DOS GRANDES posteriormente. Na capital sul-coreana, a po-
O estopim ocorreu em 25 de junho de 1950, pulação local, que antes da guerra era de 1,5
quando tropas norte-coreanas cruzaram o milhão de pessoas, caiu para cerca de 200 mil
Paralelo 38. A diferença de forças era brutal. por causa das grandes batalhas travadas na
Com uma tropa de 200 mil homens contra 100 cidade e que provocaram muitas mortes e eva-
mil sul-coreanos, em três dias a capital sul- cuações de civis.
-coreana, Seul, foi ocupada pelos comunistas Diante da escalada da guerra, em meados
em uma carnificina que incluiu a morte de de 1951 MacArthur acabou deposto pelo pre-
centenas de pessoas em um hospital universi- sidente dos Estados Unidos, Harry Truman,
tário. Acionado pelos Estados Unidos, o Con- após cometer erros militares considerados
selho de Segurança das Nações Unidas auto- estratégicos. Entre eles, ordenar o avanço das
rizou uma intervenção militar com o objetivo tropas sob o seu comando para além do Para-
de encerrar o conflito, o que piorou ainda mais lelo 38, em vez de se limitar a proteger o
a situação e marcou a entrada das grandes
potências na guerra.
Diante da ofensiva ocidental, o líder chinês
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas
Mao Tsé-Tung ordenou o envio de 300 mil
soldados chineses à Coreia como uma “respos-
ta à agressão americana sob o disfarce da
Já na Coreia do
ONU”. Do lado das forças da ONU, sob a li- Sul, o presidente
derança do general norte-americano Douglas eleito em 1948
foi o linha-dura
MacArthur, começou uma reação aos ataques Syngman Rhee,
um ferrenho
com tropas americanas, sul-coreanas e alguns anticomunista
países aliados, como o Reino Unido. Nos dois
anos seguintes, batalhas sangrentas marcaram
vitórias e derrotas para ambos os lados, com

AMBOS OS LÍDERES
QUERIAM REUNIFICAR A
COREIA CONFORME SEU
SISTEMA POLÍTICO.
ISSO ELEVOU A TENSÃO

AVENTURAS NA HISTÓRIA 45
GUERRA

território da Coreia do Sul, e cogitar a utiliza- atritos entre o general e o presidente. “Houve
ção de armas atômicas para colocar fim ao ali um conflito de egos com o próprio Truman.
conflito que se arrastava sem uma solução à MacArthur era um general de prestígio, exer-
vista. Os planos do general para possível uti- ceu vários papéis importantes durante a car-
lização do arsenal nuclear irritou Truman, já reira e era visto nos meios políticos até como
que essa é uma decisão exclusiva do presiden- um potencial candidato à presidência dos Es-
te dos Estados Unidos. tados Unidos”, ressalta Cunha.
“A decisão de MacArthur em ir além da MacArthur foi substituído pelo general
recuperação do território sul-coreano tomado Matthew Ridgway, mas as ofensivas continu-
pela Coreia do Norte agravaram a guerra. O aram provocando baixas dos dois lados e cas-
anseio do general era, inclusive, utilizar armas tigando a população civil. Nos primeiros me-
nucleares e até mesmo invadir a China. Por ses de 1953, já havia conversas para um acordo
conta destes desejos, Truman decide demitir de paz entre os envolvidos, mas as negociações
MacArthur, com receio de o conflito crescer emperravam no acerto das condições como,
ainda mais”, diz Dalcin Silva. Acrescentado a por exemplo, como seria feita a troca de pri-
isso, há também uma questão doméstica, em sioneiros de guerra entre os dois lados.
que a demissão pode ter sido consequência de Segundo o diretor do Isape, caso as tropas
das Nações Unidas, sob a liderança estaduni-
dense, tivessem seguido apenas com o plano
inicial da coalizão, de recuperar o território
da Coreia do Sul para o controle de Seul, o
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas armistício poderia ter sido assinado muito
antes, poupando milhares de vidas de soldados
e civis. Do lado norte-coreano, segundo ele, o
erro de cálculo foi crer que, mesmo com a
O presidente dos EUA,
Harry S Truman e o grande ajuda militar chinesa e tática da União
comandante militar,
general Douglas Soviética, seria possível a conquista da Coreia
MacArthur do Sul sem provocar reação de Washington,
que emergia como a grande potência ocidental
após a Segunda Guerra, e seus aliados.
“Em suma, a Guerra da Coreia também

A DECISÃO DO GENERAL
AMERICANO EM IR
ALÉM DA PROTEÇÃO DO
TERRITÓRIO SUL-COREANO
AGRAVOU A GUERRA

46 AVENTURAS NA HISTÓRIA
deixou claro às superpotências da época, Es-
tados Unidos e União Soviética, que a disputa
entre capitalistas e comunistas não seriam
travadas apenas na Europa, e sim no mundo
inteiro”, destacou Dalcin Silva. Segundo ele,
o que tornou possível a assinatura do armis-
O QUE TORNOU POSSÍVEL A
tício de 1953 foi simplesmente o esgotamento
dos dois lados envolvidos no conflito, já que
Entre em nosso grupo noASSINATURA DO ARMISTÍCIO
telegram: t.me/clubederevistas
os impasses continuavam e ninguém conse-

FOI O ESGOTAMENTO DOS


guia comprovar superioridade bélica ou a ren-
dição do oponente.

SEM PAZ E SEM UNIÃO


DOIS LADOS DO CONFLITO
Em 27 de julho daquele ano, após longos me-
ses de negociação e exaustivas reuniões reali- tentes, dos quais cerca de 600 mil eram sul-
zadas em Kaesong, a velha capital do país -coreanos, 300 mil norte-americanos e 100 mil
unificado, o tenente-general dos Estados Uni- divididos em 20 países diferentes que integra-
dos, William Harrison Júnior, representante vam a coalizão. Deste total, estima-se que cer-
da coalização da ONU, e o general norte-co- ca de 180 mil morreram em combate. Já os Quatro caças F4U
reano Nam II, representando a Coreia do Nor- norte-coreanos e chineses totalizaram ao re- Corsair da Marinha
dos EUA retornam
te e a China, se reuniram em Panmunjon e dor de 1,7 milhão de soldados, com 700 mil de uma missão de
assinaram o armistício. A Coreia do Sul não baixas. Além disso, 2,5 milhões de civis mor- combate sobre a
Coreia do Norte
assinou o documento. Foi decretado um reram durante as hostilidades.
cessar-fogo imediato e a guerra acabou naque- “Isso demonstra o alto nível de mortalida-
le dia. O acordo também estabeleceu uma zona de desta guerra, a qual nenhum lado vislum-
desmilitarizada de quatro quilômetros de lar- brava uma vitória certa sobre o outro, o que
gura ao longo do Paralelo 38. O tratado de paz possibilitou a viabilidade do armistício”, afir-
definitivo, porém, segue como uma incógnita ma o doutorando em estudos estratégicos in-
até os dias de hoje. ternacionais. “No final das contas, os dois
Dalcin Silva cita números dos três anos de países continuaram divididos pelo Paralelo
bombardeios que justificam a exaustão e os 38, o que não representou ganho territorial
prejuízos em vidas para ambas as partes e a algum para nenhum dos lados”, completa.
população como um todo. As tropas da ONU Passadas sete décadas, volta e meia há con-
chegaram ao patamar de 1 milhão de comba- versas entre os dirigentes dos dois países

AVENTURAS NA HISTÓRIA 47
GUERRA

Carregando seu
irmãozinho nas costas,
uma garota cansada
da guerra passa por
um tanque M-26, em
Haengju, Coreia do Sul

dade de unificação futura”, completa.


Segundo Cunha, há grandes interesses ge-
opolíticos em questão na Ásia envolvendo as
grandes potências econômicas e militares

AO CONTRÁRIO DO QUE mundiais, como Estados Unidos, China, Aus-


trália, Rússia e Japão, todos eles com sistemas
ACONTECEU NA ALEMANHA, e concepções geopolíticas diferentes. Além
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas disso, há a questão do armamento nuclear
A UNIÃO ENTRE AS DUAS desenvolvido pela Coreia do Norte, que causa
muita preocupação em todo o planeta e impe-
COREIAS É POUCO PROVÁVEL de que as negociações avancem com a Coreia
do Sul em busca da paz e da união definitivas.
“A Coreia do Norte não vai abrir mão do seu
acerca de um tratado de encerramento oficial arsenal nuclear, pois trata-se de um elemento
da Guerra da Coreia, como ocorreu na simbó- de dissuasão e garantia de sua sobrevivência
lica reunião de 2018, mas nada de concreto foi enquanto Estado e projeto socialista”, explica
acertado e a paz continua amparada em uma o professor da Unesp.
trégua acertada pelos dois lados da guerra, em A opinião é compartilhada com Dalcin Sil-
1953. Mais complexo do que um acordo per- va, especialista em estudos estratégicos inter-
manente de paz, porém, é que, ao contrário do nacionais. Segundo ele, a Coreia do Sul se
que ocorreu na Alemanha, que se unificou coloca como um importante aliado dos Esta-
novamente após o fim da Guerra Fria, a união dos Unidos, que enxergam na aliança com os
entre as duas Coreias é algo muito distante e, sul-coreanos uma forma de limitar a influên-
de acordo com os estudiosos, pouco provável cia chinesa na região e até mesmo como uma
que algum dia aconteça, em razão das grandes plataforma em caso de guerra com a China,
diferenças políticas, econômicas e militares considerado por Washington o principal rival
entre as duas partes. dos americanos na atualidade. Do lado de Pe-
“É como unir a água e o óleo, pois eles ex- quim, explica Silva, a Coreia do Norte exerce
pressam concepções e filosofias de mundo o papel de aliado fronteiriço, essencial para
IMAGENS GETTY IMAGES

completamente diferentes, uma capitalista e a barrar investidas militares estrangeiras na


outra, socialista”, justifica o professor Cunha, porção leste do território chinês. “Uma Coreia
da Unesp. “Pode até haver alguma coexistência unida não seria interessante para potências
pacífica entre ambos, mas não vejo possibili- como China e Estados Unidos”, resume.

48 AVENTURAS NA HISTÓRIA
O BRASIL NA COREIA tropas brasileiras. Ao abrir uma faixa em
A Guerra da Coreia despertou a atenção frente ao palanque das autoridades
política, social e militar no Brasil. No presentes ao desfile com os dizeres “Os
decorrer do conflito, a Secretaria Geral das soldados, nossos filhos, não irão para a
Nações Unidas enviou carta ao governo Coreia”, a ativista foi detida pela polícia.
brasileiro solicitando o apoio formal dos “Era um campo minado para o presiden-
brasileiros enviando tropas para combater te Vargas. De um lado, a UDN, a grande
nas batalhas que transcorriam na Ásia. imprensa e os militares ‘liberais’ pressiona-
Porém tanto no governo federal como na vam para que o Brasil organizasse uma
sociedade civil havia posições favoráveis e Força Expedicionária Brasileira para enviar
contrárias à adesão do país na guerra na à Coreia. De outro, o PCB, a ala nacionalis- Artilharia da ONU
ta das Forças Armadas e parte da opinião dispara projéteis em
Ásia, junto às tropas da coalizão da ONU. posições comunistas na
Durante o segundo governo de Getúlio pública eram completamente avessos ao Guerra da Coreia
Vargas, dois grupos se destacaram no envio de tropas para o conflito coreano”,
cenário político: os liberais e os nacionalis- explica a historiadora Celiane Costa, da
tas. Os liberais defendiam a necessidade Universidade Federal do Paraná (UFPR), no
do alinhamento aos Estados Unidos e estudo O Posicionamento do Brasil na
acreditavam que, ao entrar no conflito ao Guerra da Coreia.
lado da ONU, o Brasil estreitaria suas Passadas as agitações, nenhum soldado
relações com as grandes potências. Um brasileiro foi enviado à Ásia e a participação
dos principais defensores dessa tese era o do Brasil limitou-se ao envio de medica-
ministro das Relações Exteriores, João mentos e alimentos para abastecer as
Neves da Fontoura. Para Fontoura, a tropas das Nações Unidas. “Mesmo não
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas
adesão fortaleceria as relações Brasil-Esta- enviando tropas para combater na Coreia, a
dos Unidos, consideradas essenciais para guerra serviu para colocar à prova os
a modernização e desenvolvimento projetos de desenvolvimento do país.
econômico do país. “Em determinado Vargas teve que lidar com cautela para não
momento, o presidente Getúlio Vargas esta- afastar completamente os estadunidenses”,
va sendo pressionado a enviar uma divisão explica Celiane, em seu estudo. “Manter-se
de combate à Coreia”, explica o historiador na esfera de influência dos Estados Unidos
e cientista político Paulo Ribeiro da Cunha, era imprescindível para angariar recursos
professor livre-docente de Teoria Política necessários aos projetos desenvolvimentis-
da Universidade Estadual Paulista (Unesp). tas do país”, completa a historiadora.
“Isso provocou uma divisão no governo.
Getúlio particularmente era contra, mas
alguns setores, em especial militares e
diplomatas, achavam que seria importante
o Brasil participar da guerra.
Nas ruas, houve protestos contra a
possibilidade de adesão brasileira no
conflito da Coreia. No Recife, a Rádio
Jornal do Comércio organizou uma enorme
missa, com a participação de cerca de 40
mil pessoas, pedindo o fim da guerra. Em
São Paulo, durante o desfile oficial de 7 de
setembro de 1950, a ativista e militante do
Partido Comunista Brasileiro (PCB), Elisa
Branco, foi presa e condenada à prisão
apenas por ter protestado contra o envio de

AVENTURAS NA HISTÓRIA 49
BRASIL

QUANDO ÉRAMOS
ESPANHÓIS
DURANTE 60 ANOS, PORTUGAL – E, CONSEQUENTEMENTE, O BRASIL – PERTENCEU
À ESPANHA. ESSA FASE DEIXOU ALGUMAS HERANÇAS, COMO O FATO DE TERMOS
UM TERRITÓRIO TÃO GRANDE E OTRAS COSITAS MÁS POR ÉRICA MONTENEGRO

Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas

50 AVENTURAS NA HISTÓRIA
O
rei Filipe IV, da Espanha, estava re-
almente furioso. A ponto de anun-
ciar em público que ele em pessoa
tinha vontade de vir ao Brasil para
retomar a cidade de Salvador, então nossa ca-
pital. Depois da declaração, centenas de espa-
nhóis e portugueses voluntariamente se alis-
ta ra m pa ra a briga que se inicia ria no
Atlântico Sul. Saídos da Europa, esses cavalei-
ros se juntaram à poderosa armada espanhola
que se encontrava atracada nas ilhas de Cabo
Verde e formaram uma praticamente invencí-
vel esquadra composta por 52 navios, 1185
canhões e 12566 homens.
Foram 46 dias de travessia até os navios
chegarem ao porto de Salvador, no domingo
de Páscoa de 1625. E mais 30 de cerco até a
rendição total do inimigo. Em 30 de abril da-
quele ano, os holandeses aceitaram retornar
para casa com a promessa de que não voltariam
a invadir o Brasil. Mentira, como alguns anos
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas
mais tarde mostrariam. Essa, porém, não foi a
primeira nem seria a última tentativa de um
país europeu pegar um pedaço da cobiçada
costa brasileira. Holandeses, ingleses e france-
ses diversas vezes atacaram nosso território.
Eles não aceitavam de maneira alguma a divi-
são do “novo mundo” entre Portugal e Espanha
– aquela repartição que o famoso Tratado de
Tordesilhas, linha imaginária que cortava par-
te do Ocidente, estabelecera em 1494.
Os ingleses e os franceses foram os primei-
ros a fazer investidas, logo depois da descober-
ta de terras americanas. Por volta de 1580,
essas tentativas se acentuaram. E, se o Brasil
tem hoje esse tamanho imenso, deve muito à
armada espanhola, decisiva para conter os ata-
ques. Mas o que fazia uma esquadra espanho-
la no Brasil? E que interesse tinha Filipe IV a
ponto de ficar tão irritado com a invasão em
Salvador? Para entender, temos de voltar um
pouco no tempo. Mais precisamente, para o
mês de julho do ano de 1578.

Rei Filipe IV,


BRASIL ESPANHOL
da Espanha O rei português Sebastião tentou naquele julho
uma manobra arriscada. Tropas comanda-

AVENTURAS NA HISTÓRIA 51
BRASIL

das por ele chegaram até o atual Marrocos com de Manuel I, rei de Portugal até 1521, conseguiu
a intenção de reviver as glórias das conquistas então assumir a coroa portuguesa. O monarca
lusitanas da época das grandes navegações – realizou, com isso, uma antiga aspiração de
quando, por exemplo, alcançaram o Brasil e o seus antepassados: a formação da União Ibé-
Timor. O resultado, porém, foi uma derrota rica. Assim, durante 60 anos, entre 1580 e 1640,
catastrófica para a coroa portuguesa contra o o Brasil pertenceu ao maior império do mundo.
sultão Mulei Moluco, apoiado pelos otomanos, E nós fomos espanhóis.
na batalha de Alcácer-Quibir. O jovem monar-
ca de 24 anos morreu na tal expedição (veja GIGANTE PELA NATUREZA
quadro na pág. 55) e Portugal acumulou pre- Além dos interesses comerciais, Filipe II alega-
juízos. Pior ainda: perdeu a independência para va outras motivações para proteger terras bra-
a Espanha, então sob a batuta do rei Filipe II. sileiras. Religioso obstinado, pretendia conver-
No século 16, o Império Espanhol era o ter o mundo inteiro ao catolicismo apostólico
maior do mundo. Territorialmente maior que romano. Como representante da “fé verdadei-
o romano no seu auge ou que o inglês no sécu- ra”, não podia permitir o domínio da América
lo 19, o principal litoral, e bandeiras penetra- por nações protestantes como Inglaterra, Fran-
vam no interior, potência da época. Filipe II ça ou Holanda. Foi justamente contra essas
reinava em meia Europa (Espanha, Flandres, nações que a armada espanhola, ora em apoio
territórios na Bavária, aos portugueses, ora
Nápoles, Sardenha, sozinha, travou algu-
HOLANDESES,
Córsega, Milão e Sicí- mas das mais impor-
INGLESES
Entre em nosso grupoEno
lia), no norte da Áfri-
ca, nas Filipinas, em
FRANCESES
telegram: t.me/clubederevistas tantes batalhas navais
ocorridas no litoral
INVADIRAM VÁRIAS
Jerusalém e em prati- brasi leiro. Em São
VEZES O BRASIL. MAS
camente toda a Amé-
rica. Aparentemente,
Paulo, por exemplo,
portugueses e espa-
A ESPANHA DEFENDEU
não precisava de Por- nhóis lutaram para
tugal. Mas, segundo o expulsar ingleses algu-
historiador e escritor Ricardo Evaristo dos mas vezes – a primeira foi em 1583. Na Paraíba
Santos, autor do livro El Brasil Filipino – 60 e no Maranhão, a partir do mesmo ano, foram
Años de Presencia Española en Brasil (1580- os franceses os rivais. Mais tarde, a partir de
1640), o rei tinha outros interesses. Planejava 1625, em Pernambuco, na Bahia e na Paraíba,
proteger a prata e o ouro encontrados na região os invasores rechaçados eram holandeses.
do Potosí (que corresponde aos atuais Peru e O tamanho do território brasileiro é possí-
Bolívia) e também garantir possíveis novas vel de ser explicado quando se leva em conta o
descobertas, impedindo assentamentos fran- reinado dos Filipes espanhóis. Além de a ar-
ceses e ingleses no litoral atlântico da América, mada espanhola se juntar à portuguesa e de-
praticamente todo do Brasil. Por isso, resolveu fender nosso litoral, os monarcas empregaram
brigar pela posse do trono português – e, assim, no Brasil seu próprio estilo de colonização –
abocanhar suas colônias. penetrar até o interior dos territórios. Tiveram
Após a morte de dom Sebastião, que não início durante a União Ibérica, também cha-
tinha herdeiros, a coroa foi assumida por seu mada de Dinastia Filipina, as incursões dos
tio-avô, cardeal dom Henrique de Avis, duran- bandeirantes Brasil adentro.
te dois anos. Mas ele era idoso para a época Anteriormente proibidos pelas fronteiras
(tinha 66 anos) e, como religioso, não tinha estabelecidas no Tratado de Tordesilhas, esses
descendentes. O trono acabou vago em 1580. exploradores (portugueses, espanhóis e filhos
Filipe II da Espanha, neto por linha materna deles) se arriscaram rumo ao interior do

52 AVENTURAS NA HISTÓRIA
BRASIL, UMA FORTALEZA
FORTES FORAM LEVANTADOS PARA PROTEGER O
LITORAL E BANDEIRAS PENETRAVAM NO INTERIOR

FOGO NA PARAÍBA
Em junho de 1583, uma grande armada
luso-espanhola se dirigiu da Bahia até a
Paraíba. A missão era expulsar os franceses,
estabelecidos por lá. Sete barcos espanhóis
e dois portugueses surpreenderam o inimigo.
Cinco dos seis barcos franceses foram
incediados sem resistir. O sexto fugiu.
USUCAPIÃO Fortim de Nossa Senhora
Apesar dos domínios do Rosário, Jericoacoara,
ultramarinos hispânicos Ceará (1613)
continuarem separados Forte São Felipe,
na teoria, tanto espanhóis Ilha da Conceição,
como portugueses entravam Paraíba (1584)
no território alheio. Esses
desbravadores muitas
vezes fundavam vilas que
se estabeleciam e, com o
tempo, obtinham títulos
de propriedade. Forte Santo Antônio
da Barra, Salvador,
Bahia (1596)
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas

São Paulo EM BUSCA DO AÇÚCAR


Forte Santo Amaro da Os holandeses tentaram
Barra Grande, Santos,
se estabelecer várias vezes
São Paulo (1584)
no Brasil. Em uma delas, em
fevereiro de 1630, ocuparam
INVADINDO A PRAIA
Olinda e Recife, produtores
Uma das primeiras investidas inglesas
de açúcar. Em 1631, Espanha
no Brasil ocorreu em janeiro de 1583,
e Portugal mandam 20 navios
pelo porto de Santos, São Paulo. No
para combater 16 holandeses,
dia 23, três galeões espanhóis lutaram
que perderam a luta, mas
contra quatro embarcações inglesas.
ficaram aqui mais 24 anos.
O comandante Edward Fenton resistiu
por três meses, mas acabou fugindo.

Domínio espanhol em 1598


MARCO ZERO
As primeiras bandeiras,
organizadas pelo governador-
geral da capitania de São
Vicente, Francisco de Sousa,
saíram de São Paulo, como a de
André de Leão, em 1601. Elas
criaram assentamentos nos
atuais Paraná, Rio Grande do Sul,
Minas Gerais, Goiás e Mato
Grosso do Sul.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 53
BRASIL

Brasil sem medo de represálias de forças espa- (em 1588) e contra a França na Catalunha (em Rei João IV,
de Portugal
nholas. As primeiras bandeiras criaram assen- 1640), os saques a navios espanhóis por piratas
tamentos nos atuais estados do Paraná, Rio e corsários e as invasões em suas colônias por
Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás e Mato todo o planeta eram ao mesmo tempo sinais e
Grosso do Sul. A penetração fez escola. Mesmo causas de um declínio evidente. Talvez por isso
depois do fim da União Ibérica, esses bandei- o monarca Filipe IV não tenha mexido nem
rantes continuaram sua exploração em busca uma palhinha quando a aristocracia e a nobre-
de ouro e indígenas. za portuguesa planejavam retomar a coroa
lusa, pouco antes de 1640.
LIÇÃO ESPANHOLA Sobre o início do processo de restauração
Desde sua coroação em Portugal, Filipe II in- da coroa portuguesa, Ricardo Evaristo dos
troduziu o Império Português (o segundo Santos afirmou que os descendentes de Filipe
maior do planeta naqueles tempos) no sistema II (Filipes III e IV) não seguiram o Tratado de
de administração espanhol. Todos os assuntos Tomar. Assinado em 1581, o documento ga-
relativos a Portugal e suas possessões seriam rantia privilégios à nobreza, aos comerciantes
tratados pelo recém-criado Conselho de Por- e à aristocracia portugueses, como facilidades
tugal e, posteriormente, os pareceres do con- comerciais. O descontentamento entre os fi-
selho (composto por portugueses) seriam sub- dalgos lusitanos aumentava e eles somente
metidos à decisão do esperavam um bom
rei. Além disso, a im- momento para a reto-
POR AQUI, OS
plantação das orde- mada da coroa por um
Entre em nossoCOLONIZADORES
grupo no telegram: t.me/clubederevistas
nanças filipinas signi-
f icou os primeiros
português “de puro
sangue”.
ESPANHÓIS
passos do que viria a A cha nce surgiu
PENETRAVAM ATÉ O
ser a Justiça brasileira.
Segundo a historia-
quando grande parte
do Exército de Filipe
INTERIOR DAS TERRAS
dora Roseli Santaella IV estava mobilizada
Stella, em O Domínio contra a França na Ca-
Espanhol no Brasil Durante a Monarquia dos talunha. O duque de Bragança, dom João II,
Felipes, 1580–1640, a organização e as atribui- entrou no palácio do governo português e, sem
ções de cada juiz, suas alçadas e até alguns ti- enfrentar nenhuma resistência espanhola, aca-
pos de punição (como multas) mantiveram o bou sendo coroado rei, em dezembro de 1640.
modelo do código filipino até a publicação do De quebra, o nobre, conhecido a partir daí
primeiro código civil brasileiro – isso só em como rei João IV, governaria territórios muito
1917, mais de 300 anos depois. O código filipi- maiores que os que tinha Portugal antes de per-
no estipulava ainda onde e quem julgaria as der a soberania – ganhou, como legado da União
disputas entre civis e determinava o encami- Ibérica, terras ao sul, ao centro-oeste e ao norte.
nhamento das questões que envolviam milita- Além disso, o monarca português também pas-
res ou clérigos aos conselhos competentes. sava a usufruir o “apoio” político da Inglaterra
Com o passar dos anos, porém, a União e da França, que não tentaram mais invadir o
Ibérica foi sentindo no bolso as consequências Brasil, contra o inimigo comum espanhol.
da manutenção do extenso império. Seus re- Ainda que seu país já não apresentasse o
cursos foram debilitados nos diversos esforços poder que tivera 50 ou 60 anos antes, não fos-
bélicos, enquanto Inglaterra, França e Holan- se pelos desmandos de Filipe IV da Espanha,
da aspiravam ampliar suas influências. Dis- que ostentava também o título de Filipe III de
pendiosas guerras contra a Holanda entre 1568 Portugal, do Brasil e dos Algarves, talvez hoje
e 1648, contra a Inglaterra no Mar Cantábrico em dia estivéssemos hablando español.

54 AVENTURAS NA HISTÓRIA
O REI DE SÃO PAULO
Os ânimos se exaltaram quando as primeiras notícias sobre
a restauração da coroa portuguesa chegaram à então Vila de
Piratininga de São Paulo, em 31 de março de 1641. Como
muitos dos moradores eram espanhóis ou filhos de espa-
nhóis, a questão da fidelidade a Filipe IV, até então rei do
Brasil, dividiu os moradores. Do lado dos “espanhóis”, os
irmãos Rendón de Quevedo se apressaram a considerar o
rei João IV como um vassalo traidor do “legítimo rei”.
Organizaram então uma revolta para declarar a independên-
cia de São Paulo em relação a Portugal. São Paulo seria um
reino fiel a Filipe IV e anexado à América espanhola. Os
irmãos Rendón de Quevedo tinham até um rei para assumir
o cetro paulista. Era Amador Bueno da Ribeira, filho do
bandeirante espanhol Bartolomeu Bueno. No entanto,
Amador, também bandeirante e astuto comerciante, se
negou a assumir o trono com as seguintes palavras: “Viva o
rei João IV, real, real, real, rei de Portugal”. E fugiu para um
convento de beneditinos, onde estaria mais seguro. João IV
foi coroado rei de Portugal em 1º de dezembro de 1640 e,
enfim, reconhecido em São Paulo em 3 de abril do ano
seguinte como rei dos paulistas.
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A VOLTA DO MONARCA
A aura de mito praticamente nasceu com Sebastião de
Avis. Em 1557, com apenas 3 anos, o menino viu-se às
voltas com o trono português, após a morte do avô, já que
perdera o pai antes de nascer. Foi tutorado pelo tio-avô
Henrique até os 14 anos, quando assumiu o governo. A tão
esperada continuidade da Dinastia de Avis, então assegu-
rada, fez com que Sebastião fosse chamado de “O
Desejado”. Durante seu reinado, a Igreja Católica ascendeu
em Portugal – ele próprio era um religioso fervoroso. De
saúde frágil e imprudente, sonhava com grandes conquis-
tas através das armas e em transformar-se em uma espécie
de “capitão de Cristo” numa nova cruzada contra os
mouros. Suas convicções o levaram a arriscar tropas,
dinheiro e a própria vida. Numa batalha contra o sultão
Mulei Moluco, no Marrocos, ele desapareceu e foi dado
como morto. Como seu corpo não havia sido achado, os
súditos começaram a acreditar que Sebastião voltaria no
dia em que Portugal mais precisasse. Nos anos seguintes,
três falsários tentaram se passar pelo rei e foram desmas-
carados. Os restos mortais apresentados por Filipe II como
IMAGENS GETTY IMAGES

sendo do rei Sebastião estão no mosteiro de Santa Maria


de Belém, em Lisboa. Até hoje não se sabe se eles são
mesmo do mítico monarca.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 55
COLUNA RICARDO LOBATO

CIAO BELLA,
BELLA CIAO
uerido(a) leitor(a), depois da edição do O sul da Itália pode ter sido libertado pelos

Q mês passado, em que comemoramos duas Aliados em 1943, mas, com a guerra se alon-
décadas da AVENTURAS NA HISTÓRIA gando por mais dois anos, o norte do país per-
pa s sea ndo por 2 0 bat a l ha s e ma is de maneceu sob controle nazifascista. Neste ce-
5 mil anos de história humana, trago agora uma nário, foram os próprios italianos que pegaram
“história cultural”. Até porque, nestes artigos em armas contra a extrema-direita. Os chama-
sobre guerra e militaria, há também espaço para dos partisans (guerrilheiros) aterrorizavam a
arte e cultura. Então aproveito esta oportuni- retaguarda do inimigo e combatiam de igual
dade para responder a um questionamento re- para igual uma força extremamente bem trei-
ferente a uma canção específica que se tornou nada, como eram as tropas do Eixo. Entretan-
símbolo de resistência e é muito entoada mundo to, no contexto italiano, os partisans possuem
afora: Bella Ciao. um significado diferente. Se na União Soviéti-
Recentemente o cântico ganhou as telas ca e na Ioguslávia o termo era usado para de-
Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas
como um dos temas da aclamada série A Casa signar os guerrilheiros comunistas/socialistas,
de Papel, da Netflix. E mais na Itália, servia para agre-
recente ainda foi sua apari- Na resistência contra gar praticamente todos os
ção nos telejornais, em co- italianos, incluindo ho-
mícios e discursos contra a o fascismo, a música mens, mulheres e, por ve-
atual primeira- ministra da italiana ganhou um zes até crianças, que pega-
Itália, Giorgia Meloni, sem- vam em armas contra as
pre em tom de protesto.
novo significado: forças de Mussolini e os
Mas, afinal, o que une uma “canção da liberdade” alemães.
série televisiva e uma pre- Os partisans italianos
miê do século 21 a uma canção de quase cem eram democratas-cristãos, comunistas, socia-
anos? Pois bem, a resposta está, como sempre, listas, monarquistas, republicanos e tantos
na história. outros que se empenhavam em libertar a Itália.
Bella Ciao se notabilizou como “o hino da E é nesse contexto que surge Bella Ciao. A can-
resistência antifascista italiana” no final da ção era “neutra”. Ao contrário de outras, como
Segunda Guerra Mundial. Para entender isso, Fischia il Vento (Sopra o vento, em tradução
é preciso olhar o contexto (peculiar) da Itália livre), que possui uma ideologia presente –
no conflito: o país entrou na guerra em 1940 sendo, sobretudo, entoada pelos partisans co-
do lado do Eixo; sofreu uma série de reveses munistas e garibaldinos –, Bella Ciao tem um
no campo de batalha; foi invadido em 1943 forte apelo popular, pois fala da natureza, do
pelos Aliados – com o ditador fascista Benito amor e do trabalho no campo, mais especifi-
FOTO REPRODUÇÃO / NETFLIX

Mussolini sendo deposto –; mudou de lado, camente nos arrozais (que, por sinal, têm uma
passando a combater a Alemanha; foi invadido influência direta em sua origem).
pelos nazistas e se viu completamente livre O fato é que ninguém sabe precisar como
apenas com a capitulação de Berlim e o fim da exatamente a canção surgiu ou quem é seu au-
Segunda Guerra em maio de 1945. tor, tendo apenas a concordância de que a ver-

56 AVENTURAS NA HISTÓRIA
Um grupo de partisans acena em Emilia-Romagna,
na Itália, para se juntar às tropas dos Aliados da
Segunda Guerra, em fevereiro de 1945

Entre em nosso grupo no telegram: t.me/clubederevistas

são dos partisans é uma adaptação de cantos vessar duas guerras mundiais e se firmar como
populares entoados durante o trabalho das um ícone cultural. É por isso que, nos dias de
Mondine, as trabalhadoras rurais temporárias, hoje, Bella Ciao é representada como um “hino
em geral provenientes da Emilia-Romagna e do antissistema” – como no caso de A Casa de
Veneto, que se deslocavam para as plantações Papel –, ou entoada como uma forma de pro-
de arroz. Na Primeira Guerra Mundial, travada testo, como pelos opositores da premiê italiana
pela Itália principalmente em sua fronteira Nor- (que vem de um partido de direita).
te (contra a então Áustria-Hungria), “um esbo- Apesar de a letra apresentar um fim melan-
AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

ço” de Bella Ciao, adaptado destes cânticos cólico para o destino do narrador, nos mais de
rurais, era cantado pelos soldados. E no con- 40 idiomas para os quais já foi traduzida, e nos
texto de resistência ampla contra o fascismo na diferentes ritmos em que foi adaptada, a essên-
Segunda Guerra, ganhou sua versão atual, ad- cia permanece inalterada. O sacrifício por algo
quirindo o significado de “canção da liberdade”. em que acredita faz com que feitos heroicos,
Do ponto de vista sociocultural, é interes- como a luta pela liberdade face à opressão,
sante pensar na força de uma canção, cujas adquira contornos de simplicidade – algo tão
origens no trabalho simples, conseguiu atra- essencial em um mundo em reconcerto.

RICARDO LOBATO É SOCIÓLOGO E MESTRE EM ECONOMIA, OFICIAL DA RESERVA DO EXÉRCITO BRASILEIRO E CONSULTOR-
-CHEFE DE POLÍTICA E ESTRATÉGIA DA EQUILIBRIUM – CONSULTORIA, ASSESSORIA E PESQUISA @EQUILIBRIUM_CAP

AVENTURAS NA HISTÓRIA 57
MEMÓRIA

UM RASO
PROFUNDO
Nas mãos de Andy Warhol (1928-1987) qualquer
coisa tinha razão de ser. Um simples objeto
doméstico ou ordinário, como latas de comida,
frutas ou até mesmo retratos simples de bichos e
celebridades viravam peças extraordinárias em
suas telas cheias de cor. E, assim como sua
obra, sem grandes mistérios, o artista se
transformou em lenda.
“Se você quiser saber tudo sobre Andy Warhol,
basta olhar para a superfície de minhas pinturas
e filmes e para mim, e lá estou eu. Não há nada
por trás disso”, dizia ele sobre si. Nascido em 6
de agosto de 1928 num bairro operário de
Pittsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos, era o
terceiro e último filho de um casal de imigrantes
refugiados da Primeira Guerra Mundial, vindos do
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leste europeu, de onde hoje é a Eslováquia.
Ainda pequeno, Warhol lia quadrinhos e revistas
de Hollywood e já demonstrava talento nas aulas
de arte. Com o esforço dos pais, se formou em
design em sua cidade e se mudou para Nova
York, onde começou sua carreira como ilustrador
ativo na linguagem publicitária – mas sem deixar
de buscar seu espaço nas artes plásticas. Logo,
com uma série de publicações comerciais em
revistas famosas, foi se firmando como um ícone
da pop art norte-americana e abriu o estúdio The
Factory, passando por diferentes endereços da
cidade (o registro ao lado foi feito em abril de
1983 na Union Square). O lugar, aliás, recebeu
este nome, “a fábrica”, em referência justamente
ao ponto de partida de sua arte: a produção em
massa, de consumo e celebridade. Além de
pintor, Andy Warhol foi cineasta, produzindo
filmes também com registros brutos do cotidia-
no, uma temática presente em toda a sua vida.
No conjunto da obra, o artista criou um movi-
FOTO BROWNIE HARRIS / GETTY IMAGES

mento e um repertório extenso a partir da


serigrafia, uma técnica que permite a reprodução
em série, dando um aspecto panfletário (e raso)
aos seus trabalhos ao mesmo tempo que, no
caso do papa da art pop, traz reflexão (e profun-
didade) sobre o estilo de vida da modernidade.

58 AVENTURAS NA HISTÓRIA
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AVENTURAS NA HISTÓRIA 59
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EDIÇÃO 243 | AGOSTO/2023

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