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Saude Cultura

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Estudo ISSN 2525-8222

DOI: http://dx.doi.org/10.33361/RPQ.2022.v.10.n.23.451

O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA NA PERSPECTIVA CULTURAL:


APONTAMENTOS PARA A PANDEMIA SARS-CoV2/COVID-19

THE HEALTH-DISEASE PROCESS IN THE CULTURAL PERSPECTIVE:


NOTE FOR THE PANDEMIC SARS-CoV2 / COVID-19

Reinaldo Antonio Silva-Sobrinho1


Antonio Ruffino-Netto2

Resumo: O estudo promove discussões acerca do processo saúde-doença, sob a ótica da cultura com
enfoque na pandemia da COVID-19. Trata-se de um estudo teórico reflexivo, a partir da interpretação
crítica da literatura, selecionada pela revisão narrativa. Os fatores constituintes do processo saúde-doença,
demonstram que a Pandemia da COVID-19 possui múltiplas facetas, as quais envolve cenários ambientais,
socioeducacionais, genéticos, ideológicos, políticos, econômicos e culturais. Compreende-se que os
determinantes sociais do processo saúde-doença, sofre influência dos elementos culturais, que se
materializam na sociedade e, para serem legitimados obrigatoriamente passam pelas crenças e valores dos
indivíduos, como por exemplo as medidas de higiene, o distanciamento interpessoal, o uso de máscaras e a
vacinação. Os fatores culturais exercem força sobre os determinantes do processo saúde-doença, de modo
que a compreensão sobre a causa das doenças e os modos de cuidado, carecem de uma abordagem
multidisciplinar e multiprofissional, como manifestada por ocasião da Pandemia da COVID-19.

Palavras-chave: Processo Saúde-Doença; Cultura; Cuidado Culturalmente Competente; Infecções por


Coronavirus.

Abstract: The study promotes discussions related to the health-disease process, from the perspective of
culture with a focus on the COVID-19 pandemic. This is a reflective theoretical study, based on the critical
interpretation of literature, selected by the narrative review. The constituent factors of the health-disease
process demonstrate that the COVID-19 Pandemic has multiple facets, which involve environmental, socio-
educational, genetic, ideological, political, economic and cultural scenarios. It is understood that the social
determinants of the health-disease process are influenced by cultural elements, which materialize in society
and, in order to be legitimized, necessarily pass through the beliefs and values of individuals, such as
hygiene measures, interpersonal distancing, the use of masks and vaccination. Cultural factors exert force
on the determinants of the health-disease process, so that the understanding of the cause of illnesses and
modes of care lacks a multidisciplinary and multiprofessional approach, as manifested during the COVID-
19 Pandemic.

Keywords: Health-Disease Process; Culture; Culturally Competent Care; Coronavirus Infections.

1 Notas introdutórias

Da Idade Primitiva à Idade Contemporânea, as concepções de saúde e doença se


transformaram e sofreram diferentes interpretações, próprias da dinâmica civilizatória da

1
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Professor na Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste). Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil. E-mail: reinaldo@unioeste.br
2
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Professor na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
(FMRP/USP). Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. E-mail: aruffino@fmrp.usp.br

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humanidade. Na primeira fase, isto é, Idade Primitiva, os pensamentos referentes a saúde


e doença eram restritos, baseados na experiência vivida, razão pela qual esses fenômenos
eram explicados exclusivamente como produto de forças sobrenaturais que agiam sobre
o homem. Tais explicações tinham um profundo sentido mágico-religioso. Atualmente,
em "tempos" de Idade Contemporânea, são vários os enfoques e as formas de
compreender a saúde e a doença, todas dependentes em grande medida do olhar particular
que seja feito (SCLIAR, 2007).
A pluralidade de crenças, sociedades e culturas dificulta a unificação de termos e
definições, e em todas elas existe forte influência do pensar biológico, característico do
sistema médico dominante. Essa etapa histórica caracteriza-se pela pluralidade de
interpretações e possibilidades de articulação entre classes sociais, grupos de militância e
processos de mudança social em torno do processo saúde-doença (GUALDA;
BERGAMASCO, 2004).
Assim como a sociedade, também a compreensão dos processos de saúde-doença
não tem comportamentos estáticos, pois ambas se transformam continuamente.
No campo da saúde pública, diferentes autores, a partir de 1950, como cita
McKeown (1979), produziram investigações segundo as quais a pobreza desempenha
contundente papel na causa das doenças, sendo a principal determinante. A saúde e a
doença dependem das condições socioeconômicas, ainda que não somente delas.
Entretanto, a saúde na ótica da antropologia e das ciências sociais não é
consequência somente de fatores socioeconômicos. Uma corrente de pensadores
interpreta a doença como um produto culturalmente determinado; sendo assim, a cultura
pode ser interpretada como um agrupamento de ideias, conceitos, regras e
comportamentos partilhados em um grupo cultural definido, e portanto, a cultura confere
ordem à experiência da doença e do comportamento de maneira diversificada nas
diferentes sociedades (KLEINMAN, 1988).
O modo de perceber e conceituar a doença, nas diferentes culturas, surgiu antes
da concepção de saúde, como fenômeno inerente à sociedade em primeiramente
interpretar e categorizar o que se considera “desvio da normalidade” para a seguir,
denominar o que se compreende como comum, que caracteriza o “normal”. Nessa
sequência, "a doença, continuamente parece informar sobre um indivíduo ou um período,
muito mais que a saúde, apesar de o motivo disso, não ser muito cognoscível,
possivelmente a explicação resida na premissa de que o bem-estar completo esquipa da
atenção (SCHAURICH; COELHO; MOTTA, 2006).

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Destaca-se que muitos estudos apontam que não há concordância na comunidade


científica quanto aos conceitos explicativos para expressar a saúde, a doença, o normal e
o patológico (ALMEIDA-FILHO, 2001). Não obstante, há certo consenso que as diversas
definições de saúde e doença vieram à tona como um processo que recebe interferências
emanadas das relações sociais, econômicas, individuais, políticas, filosóficas, religiosas,
por fim, da cultura compartilhada pela humanidade em um determinado período e
ambiente de vivência, que coincidentemente também induz o dinamismo dessas relações
(GUALDA; BERGAMASCO, 2004).
Percebe-se que a evolução dos conceitos de saúde e doença se submete às
conjunturas culturais presentes em dado período histórico junto à sociedade em que se
desenvolvem, permanecendo em constante evolução, a qual é dinâmica e relacional frente
a comportamentos de indivíduos e coletividades margeadas nas estruturas e interações
sociais.
Na esteira da evolução das percepções humanas, atualmente existe certo consenso
em discutir os acontecimentos de saúde e doença a partir de um conceito ampliado,
denominado processo saúde-doença. Este, por sua vez, atrela-se diretamente “à forma
como o ser humano, no decorrer de sua existência, foi se apropriando da natureza para
transformá-la, buscando o atendimento às suas necessidades” (GUALDA;
BERGAMASCO, 2004). No tocante a sua determinação causal, o processo saúde-doença
representa o agrupamento dinâmico de associações e fatores que produzem e
condicionam o estado de saúde-doença de um conjunto social de pessoas, que varia em
diferentes períodos históricos em consonância com o pensar científico da humanidade
(VIANNA, 2012).
Dessa maneira, existem propostas teóricas que defendem que o processo saúde-
doença deveria ser compreendido por meio da perspectiva cultural, valorizando os
hábitos, crenças, conhecimentos, valores, ações e atitudes individuais e sociais, os quais
são herdados e conformados pelo processo de vida ao longo da história humana
SCHAURICH; COELHO; MOTTA, 2006).
Assim, compreende-se que as medidas sanitárias recomendadas para
enfrentamento da COVID-19 como as medidas de higiene, o distanciamento interpessoal,
o uso de máscaras e a vacinação precisam ser legitimadas pelas crenças e valores dos
indivíduos – elementos dos determinantes sociais do processo saúde-doença.
Diante do exposto, o objetivo deste estudo é promove discussões relativas ao
processo saúde-doença, sob a ótica da cultura com enfoque na Pandemia da COVID-19.

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2 Abordagem metodológica

Trata-se de um estudo teórico-reflexivo, elaborado a partir da interpretação crítica


da literatura, a qual foi selecionada pela revisão narrativa. Quanto à abordagem científica,
este estudo é do tipo qualitativo, considerando a interpretação e a exploração dos achados
teóricos encontrados nos textos selecionados. Esta modalidade metodológica é
reconhecida como um caminho relevante para desvelar uma temática especifica,
explicitando novas descobertas, conceitos e métodos para o desenvolvimento da ciência
(ELIAS, et al., 2012; VOSGERAU; ROMANOWK, 2014).
O marco teórico empregado na reflexão foi o conceito processo saúde-doença na
perspetiva cultural. O qual traz em seu bojo as diversas interfaces, como hábitos, crenças,
conhecimentos, valores, ações e atitudes individuais e convívio social, os quais são
conformados e transmitidos a cada nova geração pelo contexto cultural durante o processo
de vida, situações que manifestam percepções e experiências de saúde e doença
(GUALDA; BERGAMASCO, 2004; SCHAURICH; COELHO; MOTTA, 2006;
HELMAN, 2009; MINAYO, 1988).
Foram recuperados artigos indexados na Rede de dados Scientific Electronic
Library Online (Scielo), National Library of Medicine – Medline - NLM), durante os
meses de novembro e dezembro de 2019 e o período para busca das referência foram os
últimos 20 anos disponíveis nas bases. Além deste critérios foram consultados livros e
registros científicos online.
Empregou-se termos de indexação ou descritores processo saúde-doença, saúde e
cultura, COVID-19, prática social de cuidado em saúde, cultura (em língua portuguesa e
inglesa). O critério estabelecido para seleção das publicações eram ter as expressões
utilizadas nas buscas no título ou palavras-chave, ou ter clarificado no resumo que o tema
da publicação tratava do processo saúde doença na perspectiva cultural e/ou COVID-19.
Na sequência conduziu-se a leitura dos títulos, resumos e palavras-chave para
classificação do material que atendesse os critérios, após a leitura foram selecionados 14
artigos que convergiam com o estudo e outras 20 referências somendo livros, capítulos
de livros e registros científicos de outra categoria foram inseridos devido a pertinência ao
propósito narrativo.

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3 Desenvolvimento

No que tange à perspectiva cultural e sua influência no comportamento humano,


a exposição de Laraia (2007) parece fazer sentido quando afirma que o comportamento
humano é determinado pela cultura acumulada pelos seus ancestrais, diferentemente nos
animais, que por não possuir um sistema de comunicação oral articulado, são guiados
pelos instintos inatos, que não estão presentes em humanos. Assim, a cultura é o conjunto
de experiências vividas e repassadas dos pais/sociedade aos indivíduos mais novos.
Ruffino-Netto (2011) enuncia que o homem exerce duplo papel histórico, o
primeiro como um aprendiz e o segundo como transformador da sociedade, guarnecido
com as ferramentas que dela absorveu. Tal processo é o modus da formação existencial
da humanidade, contínua no tempo e explicitada por uma transformação díade, de
maneira que o homem modifica a natureza e a natureza modifica o homem. Destarte, a
cultura e a educação (dois conceitos consubstanciados) conformam papéis primordiais
nesse processo de "socialização do ser humano”.
A cultura é um agrupamento de ensinamentos que os sujeitos herdam por serem
partícipes de um agrupamento social, aquela em que nasceram e/ou vivem, que por seu
turno lhe explicitam como enxergar e relacionar-se com o mundo, seu entorno e com as
forças imateriais. Ademais, a cultura proporciona aos indivíduos a consciência e os
caminhos para a transmissão do “background” próprio do grupo no qual estão imersos às
próximas gerações. E a cultura pode ser compreendida como uma “lente” herdada por
intermédio da qual o homem se situa e interpreta o mundo do qual faz parte e apreende a
nele viver (HELMAN, 2009).
Geertz (1989), ao versar sobre a repercussão do conceito de cultura sobre o
conceito de homem, amplia o leque de análises em torno dos elementos que compõem a
natureza humana ao propor o estudo do particular, do circunstancial, do concreto. Ficam
adicionados outros aspectos além do cultural na análise, entre estes o funcionamento do
sistema nervoso, da organização social, do processo psicológico e da evolução física que
são partes e por isso formam o todo, portanto interdependentes, embora essa ideia seja
pouco explorada por (LARAIA, 2007). Não obstante, trata-se tão somente de uma
abordagem adicional, a defendida por Geertz (1989), para aproximar-se o máximo
possível do complexo conceito de humanidade e o debruçar sobre as diferentes culturas,
pretendendo, essencialmente, desvelar os diferentes tipos de indivíduos integrantes de
culturas distintas.

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Supõe-se que a cultura é a unidade primordial e constituinte do ser humano e as


diferenças entre os indivíduos são influenciadas por um conjunto de ações, conforme
enunciado. Nesse sentido, a construção da realidade vivida é confirmada pela interação
entre indivíduos, e em última análise é mantida por processos sociais. Assim, a instituição
das características humanas é determinada pelo acúmulo cultural vivido e transmitido,
somado a outras unidades formadoras do homem como a organização social, processos
psicológicos, evolução física, funções neurais que determinam funções e padrões de
comportamento a depender do ambiente físico e social no qual se encontra o ser humano
(BERGUER; LUCKMANN, 1976).
Geertz (1989) e Berguer; Luckmann (1976) declaram que, além da influência da
cultura, outros elementos careiam para conformar a natureza humana, como as relações
entre corpo e psique.
Reconhece-se que os mistérios da mente humana continuam por ser explorados e
as reações, emoções que motivam o homem a se portar, proteger-se e gerir sua vida
dependem de um estado de equilíbrio mental e de sua visão/ posicionamento frente ao
mundo.
Sacks (1995) assinala, que a forma com que se vê o mundo depende da realidade
diária, a qual não é construída instantaneamente, mas desenvolvida no curso da vida.
Sabe-se que campos do córtex cerebral que primordialmente coordenariam a visão ao
longo dos anos foram redirecionados para ampliar outros sentidos (de forma
compensatória) como o tato, a audição, e estes propiciam noção de espaço, tempo e
autoconsciência e consciência do mundo. O mundo que se vê todos os dias é aprendido;
o paradigma que se construiu interfere na realidade, isto é, nos pensamentos, crenças e
valores.
Dessa maneira, conceitos abstratos e individuais conformam a realidade humana
e por esse motivo é necessário diferenciar as complexas conexões do processo saúde-
doença a que os sujeitos estão imersos. Essas conexões são as próprias crenças e
experiências, os relacionamentos com os pares e com o contexto cultural manifestos pela
influência e interpretações advindas da sociedade, política, educação, ciência, filosofia,
economia, religiosidade, espiritualidade, entre outros (SCHAURICH; COELHO;
MOTTA, 2006).
Com essa base, é possível pensar que a saúde e a doença envolvem uma
multiplicidade de fenômenos, não sendo coerente tê-las como um conceito polar, visto
que essa interpretação limita a compreensão da complexidade das experiências dos

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indivíduos frente ao estado de saúde e doença. Entendê-los como conceitos antagônicos


restringe a capacidade do indivíduo, que necessita de “cuidado” ao perceber sua
importância como sujeito partícipe influente na relação de cuidado (GUALDA;
BERGAMASCO, 2004).
De acordo com Leininger (1971), o cuidado é concebido de diferentes formas nas
variadas culturas, mas é "universal" e necessário para a sobrevivência da raça humana. A
autora enfatiza a necessidade do cuidado se ajustar às convicções, padrões e à voga das
culturas, de outra forma, pode não ser benfazejo e significante. Desse modo, torna-se
importante uma definição de cuidado aplicável no âmbito operacional da saúde “como
ato assistencial”. Sendo assim, reportando Leininger (1971), o conceito do Cuidado
Transcultural configura a “avaliação consciente e um esforço deliberado para usar valores
culturais, crenças, modo de vida de um indivíduo, família ou grupo comunitário, para
fornecer auxílio significativo para estas necessidades de cuidado nos serviços de saúde”.
Pode-se verificar em Helman (2009) a aplicabilidade do conceito de cultura para
explicar os processos de adoecimento-saúde e as diversas formas de ajudas e
“curandeiros” a que recorrem as coletividades humanas quando sentem suas vidas
ameaçadas. Estes são divididos em setores: Popular Sector, Professional Sector e Folk
Sector.
Poucas vezes os cientistas da saúde na rotina de trabalho consideram a
complexidade humana para desencadear o cuidado; muitas vezes o foco é a eliminação
do agente agressor que causa o incômodo, o qual é identificado a partir de exames
laboratoriais, de imagem, na observação clínica e em última instância na valorização das
“falas” e percepções dos indivíduos que vivenciam a doença. Outras vezes são criados
estados patológicos e deficiências que não são entendidas como tais pelas pessoas
(estados especiais como a gestação, a velhice, puberdade entre outras) ou ainda indicados
procedimentos desnecessários, criando na sociedade uma relação “cosmética” com
procedimentos invasivos, medicamentos e terapias sobrenaturais.
Ao reafirmarem que a existência humana é um fenômeno natural complexo,
muitos profissionais da saúde caem na armadilha de considerar tão somente o enfoque
biológico ao assistirem o doente, esquecendo-se de levar em conta a situação social,
econômica e especialmente o modus de vida, a sua cultura.
Nessa direção, sugere-se a importância do enfoque qualitativo em saúde, que pode
revelar minúcias e desvelar as condicionantes escondidas ou não percebidas pela
aplicação exclusiva das ideias do método quantitativo, objetivo, numérico. Estes, ao

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serem aplicados como ferramenta para a busca da causa e efeito ou para indicar e propor
objetivos sem considerar integralmente a natureza humana podem falhar. Um bom
exemplo disso foi citado por Helman (2009) ao registrar a rejeição da Terapia de
Reidratação Oral no Paquistão, visto que aquela sociedade não reconhecia a diarreia como
doença, enxergando-a como uma fase da dentição e própria do desenvolvimento infantil.
Segundo Minayo (1988), "há uma teoria preconceituosa que parte de uma visão
evolutiva da sociedade em que o primitivo é considerado atrasado e, no caso, o atraso
seria uma concepção "supersticiosa" dos acontecimentos ligados à vida e à morte".
O moderno, por outro lado, é tratado como mais evoluído, representado nesse caso
pelo saber científico, revestido de autoridade para garantir que a doença é representada
por alterações presentes em um órgão do corpo e, portanto, passível de intervenção por
meio de um profissional da saúde habilitado em consertá-lo. O conceito da doença, assim,
estaria assentado na ideia de uma máquina que sofre avaria e que pode ser reparada
tecnicamente, objetivamente por um competente mecânico. Ressalta-se que “nem de um
lado nem de outro a realidade acontece dessa forma linear e dicotômica” (MINAYO,
1988).
Sabe-se que os grupos sociais possuem concepções pluralísticas da saúde-doença,
englobando explicações de causação natural, emocional, sobrenatural e ecológica,
requerendo, desse modo, uma abordagem de cuidado multidimensional e transdisciplinar
(MINAYO, 1988).
Hegenberger (1998), ao discutir os binômios doente/não doente e doente/sadio,
sinaliza que as alterações na saúde são atribuídas oficialmente pelos profissionais de
saúde e não percebidas pelos sujeitos como se pensa: “A pessoa, indisposta, procurando
o profissional de saúde (ou é levada até ele) ingressa no inventário dos doentes [...]”.
Dessa maneira, o estado de saúde ou doença é determinado pelos cientistas da saúde
depois de ouvida a reclamação sobre a indisposição do sujeito, e esses eventos/decisões
são mais recorrentes do que se pensa, e como consequência podem levar, por exemplo, a
resultados falso positivos e medicalização.
Nessa linha, Mendes (2011) cita o Institute of Medicine quando informa que, em
1999, os óbitos causados por iatrogenia médica foram a terceira causa de mortes nos
Estados Unidos da América e a informação mais chocante é que a maioria dessas mortes
seriam evitáveis. Diante dessa complexidade, a análise conceitual sobre a maneira como
as pessoas expressam os problemas/perturbações em sua saúde pode ser útil nesta
discussão.

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Diferentes palavras são expressas para designar estado e percepções sobre os


problemas de saúde. Na língua anglo-saxônica, empregam-se "disease, illness e sickness",
as quais são conceitualmente distintas e relevantes. Assim, “disease” é um termo utilizado
para designar um processo patológico, geralmente físico, como uma infecção de garganta
ou câncer de pulmão, às vezes de origem indeterminada, como a esquizofrenia
(WIKMAN; MARKLUND; ALEXANDERSON, 2005).
Por outro lado, “iIIness” configuraria a resposta a um sentimento, uma experiência
de insalubridade totalmente pessoal, advinda do interior do paciente. Nesse caso, a doença
"illness" é definida como um problema de saúde com a qual a pessoa se identifica,
geralmente com base em sintomas físicos ou mentais "relatados" (BOYD, 2000).
Finalmente, “sickness” é o modo público e externo de não-saúde, é um mal-estar
em sentido mais genérico, quando a doença está relacionada com condições sociais,
políticas e econômicas, envolve o reconhecimento por parte da sociedade que a pessoa
denominada doente deve ser protegida e sustentada economicamente por não ter condição
de exercer plenamente seu papel social (KLEINMAN, 1988; BOYD, 2000; WIKMAN;
MARKLUND; ALEXANDERSON, 2005).
Ante a multiplicidade de sensações, sentimentos e percepções dos seres humanos
quanto ao bem-estar, indisposição, saúde e doença, a educação médica tradicional não se
sente à vontade ao encarar a “doença” (illness), uma vez que o paciente não pode oferecer
ao médico nada para satisfazer seus sentidos (ver, cheirar, apalpar, medir) (BOYD, 2000).
Inclusive, o indivíduo pode sentir-se doente e não ter uma patologia, ou tê-la e não se
sentir doente, e até mesmo permanecer sentindo-se doente depois de receber a notícia
médica de cura (KLEINMAN, 1988).
Embora os textos de Nordenfelt (2000) sejam recheados de considerações
filosóficas nem sempre unânimes entre os diversos estudiosos, é virtuosa sua discussão
sobre as regras utilizadas para determinar os valores referenciais de normalidade
funcional dos diversos órgãos e sistemas do corpo humano. Em sua acepção, a saúde pode
ser mensurada em graus, tendo como baliza os limites de saúde perfeita e má saúde
máxima. No entanto, a fronteira entre saúde e não saúde somente pode ser indicada pelo
indivíduo, o qual é o único (frequentemente) que pode determinar se seu estado é
satisfatório ou não. Assim, o parâmetro de homeostase não pode ser determinado
conceitualmente (NORDENFELT, 2000). Respaldado nessa concepção, parece ser um
desacerto o profissional de saúde estabelecer critérios descolados dessa ideia para criar
uma divisória exata entre saúde e má saúde.

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Ao se transpor a ideia para o nível de sistemas de saúde, discute-se que os gestores


da saúde planejam a execução de estratégias e programas de saúde pública e essas
decisões organizacionais quase que invariavelmente são desenhadas tendo como
exclusividade o modelo cartesiano, biologicista, sem a observância do processo dinâmico
humano (corpo-mente e sistemas socioeconômicos e culturais) e as relações entre
profissionais e pacientes. Tais ausências têm determinado o não sucesso dessas estratégias
e programas de saúde pública.
Parece importante considerar o processo saúde-doença a partir de suas diferentes
faces, visando ao cuidado em nível individual e ao planejamento de ações coletivas de
saúde permeadas por diferentes óticas, entre estas a cultural.
O texto de Duarte (1999), “Império dos Sentidos” acerca do limitado poder que
os profissionais da saúde têm para contribuir com a sociedade nos processos de vida
saudável e adoecimento, indica que esses eventos também são em parte dependentes das
chamadas “situações de risco” que estão muitas vezes à mercê do livre-arbítrio, no direito
e poder de escolha conformado na construção da cultura ocidental.
Em epidemiologia, o estudo do processo saúde-doença por meio da magnitude e
distribuição de agravos/eventos é consagrado, porém o nó górdio é revelado quando se
discutem fatores dos determinantes do processo saúde-doença. Como exemplo, o estudo
do papel dos determinantes sociais no processo saúde-doença requer aprofundada
reflexão teórica e conceitual; o estudo de fatores pela abordagem unicausal centrada tão
somente no campo biológico há muito tempo está superado (ou deveria ser pensado por
ardil astuto) e mesmo nas abordagens multicausais que pretendem ser explicativas há que
se considerar na equação a inter-relação entre os fatores e o envolvimento de variáveis
qualitativas (RUFFINO-NETTO, 2019).
O ponto que ainda não está superado é o entendimento que os determinantes
sociais do processo saúde-doença nunca exercem influência no campo biológico/plano
individual sem a ação da dimensão antropológica (MINAYO, 2006). Sem dúvida, os
determinantes sociais se manifestam nas "esferas sociais, econômicas, educacionais e
outras, mas para que esta seja reconhecida/acolhida no campo individual é preciso que a
mesma seja aceita e abonada pelas crenças/valores do indivíduo” (RUFFINO-NETTO,
2019).
Por essa razão, os "processos de vida saudável e adoecimento, em parte, estão na
dependência das chamadas “situações de risco”, que de certa maneira são configuradas
pelo modus vivendi, escolhas e crença de indivíduos e sociedades face a sua cultura.

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No que diz respeito à Pandemia da COVID-19, a “Nature Medicine” publicou, em


março de 2020, artigos informando que desde as primeiras notícias sobre a distribuição
espacial, temporal e as características dos infectados se vinculou o mercado de Huanan
em Wuhan na China como ponto provável de contato entre humanos e o vírus SARS-
CoV2 (ZHOU, et al., 2020) e que possivelmente uma fonte animal portadora do vírus
estivesse presente naquele local (ANDERSEN et al., 2020).
Embora por enquanto inexiste a certeza da origem exata do vírus, há uma hipótese
de que sofreu mutação no interior de um hospedeiro animal, e na sequência com
capacidade infecciosa parasitou os humanos. Outra hipótese sinaliza que passou do
animal aos humanos, mas se tornou patogênico no organismo do homem. No entanto,
sabe-se que o SARS-CoV-2 se originou por seleção natural e que o parasito é semelhante
a alguns tipos de vírus encontrados em morcegos e pangolins, conforme assevera a
publicação "The proximal origin of SARS-CoV-2” (ANDERSEN et al., 2020).
Salienta-se que o conhecimento referente à História Natural das Doenças é de
suma relevância para o enfrentamento de eventos infectocontagiosos. As epidemias mais
recentes, como as causadas pela SARS, influenza H1N1 (gripe suína), H5N1 (gripe
aviária), ebola e zika mostraram a relevância de se identificar a fonte de infecção, o agente
causador e os mecanismos de transmissão para o processo de prevenção, tratamento e
cura.
Há notícias que a China vem se esforçando consistentemente na proibição do
comércio de animais silvestres (SALO, 2020) (prática disseminada em todos os
continentes, em maior ou menor frequência) destinados para diferentes finalidades, que
vão desde o consumo como alimento, uso medicinal, em rituais de cura, como animais de
estimação, entre outros (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2020).
Em uma avaliação de contexto, as características culturais são fontes de
informação para a compreensão de processos de adoecimento (como no caso da COVID-
19), a investigação de fatores associados às práticas culturais pode revelar a
vulnerabilidade de uma população e os riscos a que está exposta.
Em uma reflexão intitulada "From Italy: anthropological reflections on
coronavírus COVID-19”, discute-se que os vírus e outros micróbios são parte do processo
ecológico, portanto indispensáveis à produção de alimentos, à saúde e a outros aspectos
da sobrevivência humana e do desenvolvimento sustentado. Sendo assim, a questão é
como buscar compreensão para manter essa co-habitação pacífica – o antagonismo
microbiano (RAFFAETÀ, 2020).

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Nessa reflexão, emergiu também a questão sobre o motivo pelo qual a


contaminação intraespécie pode ter acontecido. O que levou o vírus, agora denominado
SARS-CoV2, deixar os animais e migrar para o organismo humano e qual pode ter sido
o papel do homem, assim como sua responsabilidade na co-habitação intraespécies. A
autora defende a discussão acerca da vida social do vírus e seu envolvimento com as
condições ambientais e sociopolíticas, uma vez que a interação e a exploração da natureza
podem gerar reações patológicas, e estas podem ocorrer com frequência crescente: “As
mutações virais se cruzam com as condições sociopolíticas e materiais locais, como as
condições de infra-estruturas de saúde, clima e hábitos culturais” (RAFFAETÀ, 2020).
O estudo da História Natural da Doença precisa ser acompanhado do
entendimento referente ao variado risco a que estão expostos os grupos sociais, bem como
à interpretação dos porquês dos adoecimentos. Para tal, exige-se a análise das relações
entre o homem, o meio ambiente e o agente e, mormente, as relações entre os homens,
pormenorizando o ambiente socioeconômico, político e cultural (RUFFINO-NETTO;
PEREIRA, 1981).
No momento, compreender a História Natural da Doença parece ser essencial para
estabelecer um plano de contingência visando prevenir o aumento da morbimortalidade
por COVID-19. Entretanto, aventar essa hipótese (interação-exploração da natureza)
pode ajudar a prevenir epidemias no futuro e revelar informações sobre a vida e a
dinâmica do vírus SARS-CoV2.
No modelo defendido por Dahlgren e Whitehead, os determinantes sociais de
saúde influenciam grandemente os fatores comportamentais e de estilos de vida. Assim,
se torna extremamente complexo mudar comportamentos de risco sem alterar as regras
estabelecidas pela cultura envolvidas (BUSS; PELLEGRINI-FILHO, 2007).
Nesse sentido, cabe refletir sobre a limitada capacidade das ciências da saúde em
interferir no processo saúde-doença, visto as escolhas e as situações de risco nas quais
estão imersas as pessoas e as sociedades, seja por negligência política, por omissão da
sociedade ou pela própria escolha individual (sem atribuir culpa por essas escolhas) que
em muitas situações são manifestações culturais herdadas e legitimadas no grupo social
em que se vive.
Obviamente, o modus operandi da vida influencia na disseminação de doenças,
como se observa na presente pandemia da COVID-19 (SILVA-SOBRINHO et al., 2020).
A Figura 1 ilustra os aspectos visíveis e invisíveis da cultura, o comportamento dos
grupos, viagens de lazer e aventura para participação em grandes eventos culturais e

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científicos, expansão de negócios e empreendimentos para fora de seus núcleos sociais


devido ao forte tino comercial observado em algumas culturas. De toda sorte, no mundo
globalizado as trocas interculturais por diferentes motivos ocorrem rotineiramente, e para
isso a mobilidade de pessoas é requisito, aspecto que não desejadamente parece ser
veículo transportador de vírus, bactérias e comportamentos não esperados.

Figura 1 - Aspectos visíveis e invisíveis da cultura

M odelo do I ceberg

Literatura
Comida
Museu
Moda
Teatro
Dança Musica
Aspectos visíveis da cultura Folclore
Aspectos invisíveis da cultura
Crenças
Símbolos Valores

Normas Ética
Rituais
Relações afetivas
Iniquidades sociais Diversidade
Estilo de vida
Equidade
Solidariedade

Fonte: Modelo do Iceberg adapatado de Academy for Systems Change

Em muitas culturas, como, por exemplo, na italiana, brasileira e argentina, é


absolutamente normal a saudação interpessoal com abraços e beijos, porém no Japão não
é parte do costume o contato corporal entre as pessoas para essas situações. Neste último,
o cumprimento arraigado culturalmente é a reverência oriental, o ojigi, o gesto é utilizado,
por exemplo, como sinal de agradecimento, solicitação de desculpas ou satisfação por ser
apresentado a uma pessoa, seguido de uma expressão linguística para demostrar o
propósito do indivíduo ao realizar o ojigi. Não por acaso, esse fato pode ser uma das
variáveis que influenciou a disseminação do SARS-CoV2 e as taxas de morbimortalidade
por COVID-19 de modos tão distintos ao se comparar o Japão e a Itália.
A cultura influencia campos diversos e por meio dela é possível explicar como a
sociedade entende e vivencia os processos de adoecimento e saúde e como lida com a

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doença, dor e outros infortúnios (HELMAN, 2009). Nessa perspectiva, a cultura e os


comportamentos compartilhados entre indivíduos de dado grupo social determinam a
compreensão e a experiência sobre aquilo que é considerado doença ou bem-estar
(GUALDA; BERGAMASCO, 2004).
Entre os aspectos invisíveis da cultura (Figura 1), como as crenças e os valores,
estão os rituais de ensino e aprendizado acadêmico, religioso, informal, etc. Estes refletem
a necessidade humana pela reunião, pelas celebrações, o desejo social de organizar
eventos, e atualmente isso se encontra sob ataque, afirma o antropólogo Nikiwe Solomon.
Em sua concepção, o vírus SARS-CoV2 “está forçando a sociedade global a agir de forma
contraintuitiva", acrescentando que por ora é necessária a ação contraintuitiva, não apenas
para autoproteção, mas principalmente para a proteção do grupo de pessoas cujos sistemas
imunológicos e de apoio social estão comprometidos pela desigualdade (MANDERSON;
LEVINE, 2020).
No caso do Brasil, decorridos quinze meses das recomendações do Ministério da
Saúde acerca da necessidade das medidas para a contenção do vírus, incluindo o
isolamento social, após relativa adesão há registros jornalísticos e epidemiológicos de que
este vem sendo descontinuado, e não aleatoriamente o número de casos e óbitos por
COVID-19 encontram-se em ascendência na curva epidêmica.
Convém retomar que os determinantes sociais do processo saúde-doença, em seu
bojo, contemplam também os fatores culturais, os quais se manifestam nas diferentes
esferas da sociedade; e para serem reconhecidos e legitimados passam pelas crenças e
valores dos indivíduos (RUFFINO-NETTO, 2019). Nesse caso, o isolamento social, as
medidas de higiene e o uso de máscaras vêm passando por esse crivo.
Dessa forma, o planejamento de ações de promoção e prevenção em saúde e,
quando necessário, medidas emergenciais de controle de doenças, como se constata nesta
ocasião da Pandemia SARS-CoV2-COVID-19, deveriam ser amplamente adotados.
Também deveriam ser fortemente observados os pressupostos dos fatores
culturais relativos aos processo saúde-doença, sob pena de exacerbar o limitado poder
dos profissionais de saúde e instituições de saúde acerca da sociedade nos eventos de vida
saudável e adoecimento (DUARTE, 1999).
Em relação ao limitado poder dos profissionais de saúde, destaca-se que a carência
de ensino com abordagem social na perspectiva da cultura sobre o processo saúde-doença
em muitos currículos de cursos da área da ciência da saúde constitui uma lacuna teórico-
conceitual que pode impedir os formuladores de políticas saúde e de

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práticas/recomendações de saúde, inclusive os profissionais de saúde na linha de frente,


vislumbrar que os resultados e impactos das recomendações e de suas práticas são social
e culturalmente determinados. Esse aspecto tem impacto direto na assistência de saúde.
Por isso, essa questão pode ser discutida sob os seguintes conceitos:
a) A concepção da doença como um fenômeno centrado no biológico-individual,
recorrentemente vinculada ao pensamento médico dominante, não alcança base para que
a doença possa ser explicada como um fenômeno coletivo, nem para a compreensão de
seus determinantes. Essa premissa também não serve de base eficiente a uma prática
médica (práticas dos profissionais da área da saúde) com capacidade de resolver os
problemas de saúde coletiva (LAURELL, 1978); b) O processo saúde-doença não deve
ser considerado à margem da sociedade, sujeito a leis puramente biológicas, tampouco à
prática e ao saber médico como resultados do simples desenvolvimento técnico científico,
engendrado no esforço de eliminar a doença (LAURELL, 1978); c) A saúde-doença
constitui um fenômeno coletivo, com sua manifestação concreta no indivíduo, e possui
um caráter parcialmente sociológico (dado o componente biológico envolvido), sempre
sujeita a um valor socialmente determinado, como enuncia Laurell, 1978; d) O saber
médico (dos profissionais da área da saúde) é uma forma de pensamento social que se
ocupa de entender e resolver os problemas que representam a doença, conformado por
conhecimentos científicos, ideológicos e crenças em um dado momento histórico; e) A
prática médica, enquanto isso, é a forma social na qual se organizam as repostas às
enfermidades (LAURELL, 1978).
Nas escolas da área da saúde é corriqueiro constar na base curricular um excesso
de temas (conhecimentos) que aparentemente tratam da realidade percebida pelos
presentes naquele instante. Contudo, esses conhecimentos são orientados para atender o
plano da sociologia médica que se fundamenta em três conceitos básicos: saber-médico,
conceito de saúde-doença e padrão de prática médica (RUFFINO-NETTO, 1988).
Esse plano não é independente, ou seja, é norteado/orientado/controlado pelo
plano superior que se vincula à supraestrutura da sociedade (Figura 2). Ainda no plano da
sociologia médica três conceitos ou fatores determinantes norteiam o pensamento:
política, ideologia e economia (Figura 3).

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Figura 2 - Representação do plano da supraestrutura da sociedade, plano da sociologia médica e o plano


individual

Político Plano da Supraestrutura da Sociedade

Econômico Ideológico

Saúde-Doença Plano da Sociologia Médica

Saber Médico Prática Médica

Plano Individual
Saúde-Doença
Indivíduo

Fonte: Antonio Ruffino-Netto, 1988

É sabido desde há muito que a economia é o carro-chefe, o destaque, pois dela


decorre que as relações, formas e organização do trabalho constituem a base econômica,
a qual, por seu turno, determinará as formas políticas, jurídicas e ideias (crenças, valores
e conhecimentos) (RUFFINO-NETTO, 2019). Dessa maneira, os fatores que conformam
o processo saúde doença (Figura 4) servem para ilustrar que a Pandemia da COVID-19
possui múltiplas facetas, ambientais, socioeducacionais, genéticas, ecológicas,
ideológicas, políticas, econômicas não se podendo esquecer do componente cultural.
Nessa direção, se de fato as crenças, valores e conhecimentos são fortemente
influenciados pela economia, o ensino das escolas de formação em saúde é de igual modo
influenciado por ela, e parece não ser incorreto pensar que esse fator exerce poder,
juntamente com outros, como os culturais nas decisões da população, em aceitar e
praticar, por exemplo, o isolamento social, as medidas de higiene e o uso de máscaras
como maneira de prevenir o adoecimento pelo SARS/CoV2. Parece que por influência da
economia e por dependência dela países, empresas, famílias e indivíduos são
impulsionados a dar sequência as suas atividades laborais e sociais como meio de garantir
a continuidade das formas e hábitos culturais que defendem e praticam, mesmo a
morbimortalidade por SARS/CoV2 se mostrando em ascensão na curva epidêmica.

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Figura 3 - Representação da estrutura da sociedade

Sociedade

Supraestrutura
Normas e Valores
...............................................................................

Relações entre os homens

Infraestrutura
Relações entre homens e natureza

Fonte: Antonio Ruffino-Netto, 1988.

Quando se trata de controlar a incidência e/ou prevalência de doenças com origem


grandemente influenciada pelos aspectos socioeconômicos, a atitude primeira é manejar
esses aspectos. Destarte, o obstáculo reside que, para gerir influências socioculturais e
econômicas, deve-se ter em mente a presença de forte oposição de natureza política,
econômica e frontalmente barreiras advindas das concepções sociais e culturais daqueles
que serão atingidos pelas medidas sanitárias (RUFFINO-NETTO; PEREIRA, 1981).
A ocorrência da Pandemia da COVID-19 deixará preciosas lições para o
enfrentamento de prováveis eventos futuros como este. Neste contexto, parece que a
compreensão sobre o papel da cultura nos processos de saúde-doença pode mostrar a força
da "relação do homem com a natureza e sua capacidade de transformá-la e ser
influenciado por ela” (RUFFINO-NETTO, 2019), pois como a saúde, o bem-estar
depende das crenças culturais.
A publicação intitulada "Mortalidade por tuberculose e condições de vida: o caso
Rio de Janeiro” informa que somente a presença do bacilo de Koch nas populações
humanas não basta para causar o adoecimento. Recorrentemente, os fatores de ordem
social, econômica e cultural precisam estar envolvidos para que a moléstia se desenvolva
RUFFINO-NETTO; PEREIRA, 1981) em última instância, trata-se de vulnerabilidades.

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Figura 4 - Representação teórica para o Processo saúde-doença

Fonte: Elaborado pelos Autores

De igual modo, ainda que o SARS-CoV2 tenha se disseminado primeiro entre as


pessoas de alto nível socioeconômico, a morbimortalidade é significativamente maior
entre aqueles em vulnerabilidade socioeconômica, imunológica e cultural (PATEL et al.,
2020). Assim, não é somente o fator biológico, a interação agente-hospedeiro (SARS-
CoV2 e homem) que vem causando adoecimento e ceifando vidas, mas sim fatores
ligados ao ambiente (emprego/renda, moradia, acesso a serviços de saúde, migração,
transporte, entre outros), envoltos por crenças, valores, ideias e cultura.

4 Considerações finais

O referencial teórico aqui utilizado é conformado pela visão de mundo que comora
na sociedade, o qual baliza a compreensão dos fenômenos sociais. Logo, o processo
saúde-doença como produto do mundo social passa por esse sistema de análise, ou seja,
é submetido a dado referencial filosófico não acrônico, que por sua vez reflete o
pensamento inerente a certo período da história da humanidade.
Esta reflexão pode ser útil para a análise e julgamento dos profissionais de saúde,
e dependendo do grau de apreensão, colaborar para a identificação da força dos fatores
culturais no processo saúde-doença. A finalidade é ampliar o escopo do cuidado para
além da perspectiva biológica, proporcionando a ampliação da base de conhecimentos em

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direção ao progresso da qualidade no ato de cuidar do outro, levando em conta suas


singularidades e particularidades existenciais.
As considerações conduzidas neste texto podem propiciar opções aos
profissionais de saúde, sejam para oferecer cuidados pontuais ou contextualizar suas
ações a partir de um referencial ampliado – perspectiva cultural – visando compreender
as vivências e experiências das pessoas durante o curso da vida em direção à
transfiguração da inter-relações no processo saúde-doença.
Parece que essa proposta deve ser multidisciplinar e multiprofissional, pois
abordar o cuidado com base no processo saúde-doença, considerando os nexos da cultura,
foge completamente das possibilidades de apenas um único campo de prática, como se
vê nestes tempos da Pandemia SARS-CoV2/COVID-19, a qual se impõe entre e sobre
nós.

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