Uma Canção No Outono Livro 3 As Quatro Estações He

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Direitos autorais © 2024 Helen Soares

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Este e-book ou qualquer parte dele, não pode ser reproduzido ou usado de forma alguma sem
autorização expressa por escrito da autora, exceto pelo uso de citações breves em uma resenha do
mesmo.
Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Quaisquer similaridades com pessoas
reais é mera coincidência e não foram intenção da autora.

Capa por: @klacerdadesign/@brunasilvacapista


Ilustrações: @desenhos_da_mari/@_bluebble
Revisão: Clara e Helen
PLAYLIST
ÍNDICE

01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
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42
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44
Existem coisas melhores
adiante do que qualquer outra
que deixamos para trás.
C. S. Lewis
01

— Sorria! — era a centésima oitava vez que eu dizia a mesma


palavra naquele dia.
O vento de outono soprava meus cabelos selvagemente, volta e meia
cobrindo meus olhos. Meus pés já estavam dormentes dentro do meu par de
botas de couro preto, implorando por um pouco mais de espaço. No entanto,
eu ainda teria uma noite inteira de diversão pela frente. Um sorriso puxou
meus lábios ao lembrar da fantasia que comprei especialmente para a
ocasião.
Enquanto isso, o sol brilhava timidamente por trás das nuvens
brancas sobre o Hyde Park, enquanto eu finalmente acabava aquela sessão
de fotos entediante. A cena estava repleta de crianças irritantes que só
sabiam gritar e correr de um lado para o outro, celebrando o aniversário de
dez anos do filho da minha vizinha.
— As fotos ficaram ótimas — Sorri de canto, fitando a tela da minha
câmera importada, que custou uma grana boa, satisfeita com meu trabalho.
— Podemos ver? — perguntou Timothy, o aniversariante, junto com
seus coleguinhas, já se aproximando com pulinhos animados.
Reprimi a vontade de revirar os olhos e abri um sorriso falso.
— Não.
O garoto de dez anos me encarou como se eu fosse um bicho-papão.
Antes que ele pudesse abrir a boca e perguntar o motivo do não – porque
nessa fase as crianças simplesmente questionam tudo –, a mãe dele parou à
minha frente, sorrindo feito uma palhaça.
Era tudo que ela sabia fazer: sorrir e se intrometer na vida dos outros.
Sinceramente, se eu não estivesse com uma fatura astronômica de
cartão de crédito para pagar, teria – com muito prazer – recusado o trabalho.
— Mãe, a Ravena não quer deixar eu ver as fotos — Timothy fez
beicinho e abraçou a cintura da mãe, me olhando de lado.
Pirralho!
Maggie, mãe do garoto, me encarou com o cenho franzido.
Abri e fechei a boca, tentando pensar em uma resposta rápida para
sair daquela saia justa. Se a mulher ficasse irritada, poderia facilmente se
recusar a pagar o restante do valor acordado, que não era nada menos que
£500 libras.
— E-eu não disse isso, Timmy, você entendeu errado — Inclinei-me
para frente com um sorriso falso e tentei tocar seu cabelo castanho claro.
Porém, o garoto se encolheu, murmurando que eu estava mentindo.
Juro que fui à lua e voltei.
— Timothy, querido, a Ravena foi muito gentil em aceitar o trabalho
de última hora. Seja bonzinho, hum? Além disso, você vai poder ver as
fotos assim que a tia Ravena editá-las para ficarem ainda mais lindas no seu
painel de fotos, não é mesmo senhorita Watts? — Maggie acariciou as
bochechas sardentas e gordinhas do filho como se ele fosse um poodle, não
um garoto quase do tamanho dela, enquanto me encarava com um olhar de
quem não estava satisfeita.
E que merda era aquela de tia Ravena? Eu era tia o caramba!
— Claro! — afirmei, já com o estômago embrulhado de tanto ter
que sorrir pra aquela gente.
— Ótimo! Agora vamos cantar o parabéns e cortar o bolo —
Maggie disse ao filho.
— Oba! — Timothy pulou animado, batendo palminhas, e correu
em direção à mesa, localizada a poucos metros de distância sobre o
gramado. O móvel estava repleto de docinhos, refrigerantes, cachorros-
quentes e, claro, o bolo de dois andares, coberto de glacê branco, com
morangos ao redor e um Lego “enorme” do Superman no topo.
A geração Z ainda gostava de super-heróis das antigas? Parece que a
resposta era sim. No entanto, aquele bolo era uma bomba calórica que com
certeza eu não iria ingerir.
— Quer se juntar a nós, senhorita Watts? — ofereceu a mãe do
aniversariante.
— Obrigada, Maggie, mas tenho outro compromisso. — Era
parcialmente verdade.
A mulher assentiu fraco e retirou do sutiã um pequeno bolo de
dinheiro.
Suspirei fundo, reprimindo a vontade de abrir um sorriso quando
meus olhos pousaram sobre as notas de £50 libras, novinhas, cheirando a
papel fresco.
— Aqui está o restante do pagamento. — Estendeu o maço em
minha direção.
— Obrigada. — Sorri e, em seguida, franzi o cenho quando ela
segurou a quantia por um pouco mais de tempo, antes de soltá-la com um
sorriso sem jeito.
Mão de vaca, resmunguei internamente enquanto conferia o valor
nota por nota, porque não sou idiota pra confiar em qualquer um.
— Certinho — garanti, guardando o dinheiro dentro da minha
bolsa fotográfica, pendurada sobre o meu ombro.
Maggie se despediu e começou a caminhar, tentando se equilibrar
nos saltos de sua sandália anabela plataforma. Eu quase rolei na grama
úmida de tanto rir quando ela quase torceu as pernas e esticou os braços
com os olhos arregalados.
Balancei a cabeça, guardei minha câmera dentro da bolsa e segui
em direção a uma das tantas saídas do parque. O Winter Wonderland –
parque de diversões de Natal construído dentro do Hyde Park todos os anos
– já estava quase montado. Parei por um momento, fitando os trabalhadores
erguendo andaimes para cima e para baixo, e senti um aperto no peito.
Eu costumava gostar de ir ao parque quando era criança, até
mesmo durante minha adolescência, junto com meus pais e meus irmãos.
No entanto, depois do que aconteceu… Engoli em seco e pisquei os olhos
para espantar as lágrimas que ameaçavam escorrer.
— Ravena! — Olhei por cima do ombro e vi Timothy com mais
três garotos, todos parados, me encarando.
Franzi o cenho e fiquei de frente para eles, embora os garotos
estivessem a quase cinquenta metros de distância de onde eu estava.
— O que foi? — perguntei alto, com os braços cruzados sobre
minha jaqueta preta de couro, levemente fria sob minhas palmas.
Timothy mostrou o dedo do meio junto com sua língua gorda e
nojenta, e começou a soltar risadas, que logo foram acompanhadas pelas de
seus amigos.
Arregalei os olhos e trinquei o maxilar.
— Timmy! — gritei de volta, atraindo sua atenção e a dos idiotas
que o acompanhavam. — Tenho um presente pra você — completei, com as
mãos ao lado da boca.
O garoto encarou seus amigos antes de dar dois passos para
frente. Ele estava se borrando de medo, e eu estava adorando cada segundo.
Sorri, satisfeita com seu olhar aterrorizado, e mostrei o dedo do meio com
ambas as mãos para ele.
Timothy franziu o cenho e fez um bico, enquanto seus amigos
davam risadinhas.
— Te devolvo em dobro! — Pisquei, antes de dar as costas e
caminhar livre, leve e solta para longe daquele lugar.
No entanto, não ousei olhar novamente para o Winter
Wonderland.

Quando cheguei ao apartamento que divido com a minha amiga


Alissa, já eram quase sete da noite. Apesar de ser outono, a temperatura
estava tão instável que, às vezes, eu podia jurar que já estávamos no
inverno.
— Rav, finalmente você chegou! Eu te liguei um montão de
vezes, mas só caía na caixa postal — Ali reclamou enquanto andava pela
sala de estar colocando um brinco enorme e dourado na orelha.
— A bateria acabou — Bocejei, fechando a porta do apartamento
com o pé.
— Se arruma logo ou vamos perder o melhor da festa.
— Pra você, porque pra mim a melhor parte é o meio e o final,
quando todo mundo já tá com a cara cheia e começa a dar vexame.
— Tipo você na despedida de solteiro da sua irmã? — retrucou
com um sorriso de canto e os braços cruzados.
Meu sorriso se desfez, dando lugar a uma carranca enquanto eu
fitava minha amiga nos olhos, antes de descê-los para a fantasia de
Chapeuzinho Vermelho da ruiva.
— Sério que essa é a sua fantasia? — Apontei, com um sorriso de
canto debochado para a peça em seu corpo.
O espartilho preto com fitas de cetim se encaixava perfeitamente
na cintura fina; porém, o capuz vermelho, contrastando com seus cabelos
alaranjados, dava a Ali um ar de garota má que não combinava nem um
pouco com ela.
— Qual o problema? — murmurou com beicinho, deslizando as
mãos pela fantasia.
— Nenhum — dei de ombros, retirando meu par de botas antes de
chutá-lo para o canto atrás da porta. — Mas deixa eu adivinhar, o Logan é o
Lobo Mau?
Alissa estreitou os olhos e abriu um sorriso falso.
— Muito engraçadinha! — cuspiu. — Mas você errou. — Sorriu
de canto. — Ele é o Lenhador. — Piscou, me deixando com os lábios
entreabertos, completamente sem palavras.
— Agora, anda logo, Ravena. Daqui a pouco o Log chega e eu
não vou pedir a ele pra te esperar — disse, empurrando meus ombros em
direção ao corredor.
Suspirei fundo e segui para o meu quarto sem emitir um único
som.
— A propósito, qual é a sua fantasia? Eu bem tentei bisbilhotar
no seu quarto, mas a senhorita trancou a porta — resmungou com um bico,
parando ao lado da porta com os braços cruzados.
Abri um sorriso curto.
— Tranquei exatamente porque sabia que você é uma curiosa sem
escrúpulos e eu não queria que ninguém roubasse a minha ideia.
— Ah, mas que petulância! Eu já tinha escolhido a minha fantasia
há mais de um mês — afirmou, estalando os dedos para enfatizar sua fala.
— Mas também não me contou, então fica na sua. — Ergui a mão,
antes de tirar a chave do meu quarto do bolso da calça e abrir a porta.
Minha fantasia de pirata repousava sobre meu colchão impecável,
linda e perfumada.
Alissa nem mesmo esperou que eu entrasse primeiro, ela
simplesmente passou por mim, colidindo seu ombro com o meu, e foi direto
até a cama, fitando a peça com a boca aberta e as mãos na cintura.
— Pirata? — perguntou, quase chocada, olhando entre mim e a
peça e vice-versa.
— É a minha cara, não é? — falei, orgulhosa, encostada no
batente da porta com os braços cruzados, enquanto observava a reação da
minha amiga.
Ela assentiu com as sobrancelhas arqueadas.
— E sexy pra caramba… Isso não é um pouco curto? — Pegou a
camisa branca, que na verdade era uma espécie de vestido, fitando-a com
curiosidade.
Revirei os olhos e caminhei até ela, arrancando a peça de suas
mãos.
— Cai fora! Vou tomar um banho e me trocar.
— Claro, já que você pediu tão educadamente — disse irônica,
apertando minhas bochechas, o que me fez estreitar os olhos, irritada com
sua ação. Sem mais delongas, com uma risadinha, a ruiva finalmente deixou
o quarto.
Meu banho durou quase vinte minutos e, se a Alissa não tivesse
gritado que o Logan já estava há dez minutos do nosso apartamento, eu
teria ficado mais vinte.
A condensação do chuveiro embaçou o espelho do banheiro,
obrigando-me a limpá-lo com a mão para fitar meu reflexo. Meus cabelos
estavam molhados e minha pele levemente avermelhada. Dizer que eu
gostava de banho quente, bem quente, seria um eufemismo.
Assobiando, caminhei até o quarto enrolada em uma toalha, com
outra repousando sobre a minha cabeça, na tentativa de absorver um pouco
da água que cobria os fios longos.
Sequei meus cabelos com o secador, escovando os fios sem pressa
alguma, antes de fazer duas tranças finas, deixando uma de cada lado do
meu rosto.
Vesti a fantasia, calcei um par de botas de cano médio preto, desenhei
uma pequena âncora abaixo do olho direito, me maquiei, fazendo questão
de pesar a mão na sombra e no lápis preto sobre e ao redor dos meus olhos,
destacando sua cor azul-esverdeada. Completei o look com um cinto de
couro preto, um pano vermelho sob, uma corrente com moedas falsas ao
redor e, por último, mas não menos importante, um colar dourado com uma
caveira.
— Ravena! O Logan chegou… — Alissa quase derrubou a porta ao
abri-la de forma abrupta. — Você ainda tá se arrumando? — perguntou
chocada.
— Putz! Eu já tô pronta, ruiva. Só falta colocar a bandana e passar
um batom. — Fitei-a por cima do ombro antes de enrolar na cabeça uma
bandana branca e vermelha com o desenho de uma bússola e deslizar sobre
meus lábios cheios, um batom marrom matte. — Que tal?
— Você tá gata como sempre, agora vamos logo! — Deu as costas e
marchou pelo corredor.
Voltei a olhar meu reflexo no espelho de corpo inteiro ao lado do
guarda-roupa e abri um sorriso de canto.
— Hoje a noite promete. — Pisquei para mim mesma, resistindo à
vontade de morder o lábio para não sujar meus dentes de batom, e deixei o
quarto.
O namorado musculoso da minha amiga estava sentado no banco do
motorista de uma caminhonete monstruosa, como ele, brincadeira!
Enquanto nos aguardava.
— Oi, amor! — Alissa soltou melosa, sentando-se no banco do
passageiro ao lado dele, antes de beijar seus lábios carnudos.
— Senti saudades. — Logan acariciou a bochecha da ruiva, que
estava tão corada quanto o capuz vermelho que cobria sua cabeça.
— Que romântico, pombinhos! — Soltei, enojada e zombeteira, com
tamanha demonstração pública de afeto, já sentada no banco de trás. Estava
louca para me atirar pela janela caso eles continuassem por mais um
segundo naquele grude. — Vamos, antes que a festa acabe.
Logan sorriu de canto e se afastou da namorada, ligando o veículo.
Alissa revirou os olhos e murmurou “chata” baixinho, mas eu ouvi e
não poderia me importar menos.
02

— É melhor você afinar bem essa guitarra, Batman — zombei,


apontando com o queixo para o guitarrista da Smash Secrets, nossa banda
desde a adolescência. Ainda me lembrava dos tempos em que tocávamos na
garagem do meu avô nos finais de semana e durante as férias de verão,
enquanto ele nos assistia orgulhoso, de pé do outro lado do pequeno palco.
— Fale por você, senhor Aladim. Ou eu devo pedir pra você
esfregar a lâmpada e ver se o mágico te descola algum talento? — retrucou,
debochado, segurando sua “Preciosa” – acredite, é assim que ele se refere à
sua guitarra Stratocaster branca.
Nevan e Elion – respectivamente baterista e baixista da Smash
Secrets – soltaram risadas enquanto eu balançava a cabeça com um sorriso
de canto, afinando a minha própria preciosa.
A fantasia de Aladim não era tão ridícula quanto pensei que seria
quando meus amigos e companheiros de banda praticamente me arrastaram
para dentro de uma loja no centro da cidade. Lá, vendiam-se artigos para
festas em geral, incluindo a fantasia que naquele momento cobria meu
corpo desde o chapéu vermelho até as sapatilhas pontudas.
No entanto, a fantasia ainda era composta por um colete roxo de
cetim aberto, deixando à mostra meu peitoral definido e as tatuagens no
meu braço direito. Minha autoestima é coisa de outro mundo, embora eu
não me considere um cara metido. E para completar, uma calça branca
bufante com um pano vermelho ao redor da minha cintura, servindo como
cinto.
— A que horas começa essa festa? Eu ainda tenho outro
compromisso... — Elion resmungou, ajeitando o enorme chapéu de sua
fantasia de Chapeleiro Maluco.
— Cara, não leva a mal, mas você ficou muito estranho com essas
lentes verdes. — Davian fitou o baixista com uma careta.
Ele revirou os olhos.
— Faz parte da característica física do personagem, não faria
sentido eu não usá-las se quero me fantasiar como ele. Além disso, essa é a
sua opinião e adivinha? Ela não me interessa. — retrucou Elion, afiado
como sempre.
— Nossa, mas é a educação em pessoa. — Davian soltou com um
sorriso falso, voltando sua atenção para a sua guitarra, mas o baixista
continuou:
— E antes de falar de mim, você deveria se olhar no espelho. —
Sorriu de canto, observando a fantasia do Batman de cima a baixo. — Esse
macacão justo faz meus olhos queimarem toda vez que eu olho pra você —
zombou e apontou desde a máscara do super-herói sobre a cabeça do nosso
amigo até o par de botas estranhos. A capa que cobria suas costas também
não passava despercebida.
— Cara, o Batman é como um rei em Gotham City, muito melhor,
mais sexy e forte do que o Chapeleiro Maluco, que, como o próprio nome
diz, é maluco.
— Então acho que o Elion acertou em cheio na escolha. —
brinquei, com a pontinha da língua para fora, presa entre meus dentes.
O baixista revirou os olhos e mostrou o dedo do meio.
— Ainda não acredito que a gente realmente vai tocar no Electric
Ballroom. — Finalmente, Nevan se pronunciou com um sorriso orgulhoso
enquanto girava suas baquetas, sentado em um banco revestido de couro
preto, atrás de sua bateria.
— Pena que tenhamos que nos vestir feito palhaços. — Elion
soltou com deboche e um sorriso de canto.
Um momento de silêncio pairou sobre nós e apenas o som da
vassoura deslizando sobre o piso de madeira do salão de uma das melhores
casas de show da cidade era audível. O senhor de cabelos ralos, vestido com
um macacão cinza de mangas longas, dobradas até os cotovelos, parecia
totalmente alheio à nossa conversa enquanto continuava seu trabalho de
manter o local limpo até a chegada dos convidados, que o sujariam em
menos de meia hora após pisarem no local.
— Você não tava reclamando quando escolheu a sua fantasia. —
Nevan retrucou, vestido de Hércules; e por incrível que pareça, a fantasia
caiu feito uma luva no baterista, combinando perfeitamente com seus
cabelos loiros e cacheados.
— Disse o rei da Grécia. — Elion cruzou os braços, mantendo
seu sorriso irritante e debochado de quem se achava coberto de razão.
— Rei? Cara, eu lembro que você matava as aulas de mitologia,
mas não pensei que tivesse sido reprovado. — Davian soltou com um
sorriso, mordendo o lábio inferior.
Foi impossível não rir com o comentário.
Elion fez uma careta e se limitou a exibir o dedo do meio para o
guitarrista, que soltou uma risada e piscou de volta.
— A quinta séria que habita em vocês me embrulha o estômago
— murmurei, olhando de um para o outro como se não acreditasse nas
besteiras que saíam daquelas bocas.
— Cala a boca, Aladim! — disse o trio em uníssono, nos
arrancando risadas, que cessaram assim que o produtor do evento que nos
contratou, adentrou o salão. O homem marchava como um cavalo, usando
um par de óculos escuros – apesar de estar noite – com os cabelos pretos
duros e brilhantes de gel.
Olhei para a cara dele com o cenho franzido.
Ao receber o convite para tocar naquela festa, confesso que
hesitei. Apesar de saber que o cachê seria bom, muito bom e que aquele
seria o maior show que já fizemos durante nossa carreira de quase oito
anos.
Tocar em uma casa de shows como a Electric Ballroom, com
capacidade para 1.500 pessoas, era um sonho que até então me parecia
quase impossível de alcançar. O problema era que o organizador do evento,
Kasper Thompson, é um playboyzinho, filhinho de papai, que exigiu que a
gente entrasse na vibe e fossêmos fantasiados também. Ele afirmou com
todas as letras que nos deixaria a ver navios sem um tostão e foderia com o
nosso sucesso inexistente – palavras dele – caso não fizéssemos o que ele
“pediu”.
— Hey! Vocês vão ser os primeiros a tocar. Espero que façam valer a
pena as quatro mil libras que eu vou pagar a vocês — disse alto e petulante,
de frente para o palco, enquanto mascava um chiclete, segurando um
cigarro aceso na mão que não estava em sua cintura.
Idiota!
— Pode deixar, parceiro. — Elion fez sinal de continência, apenas
para abrir um sorriso debochado quando o cara revirou os olhos e rosnou
um palavrão, marchando para o escritório da casa de shows.
— Se não fosse pelas mil libras que cada um de nós vai pegar…
cara, eu teria mandado ele pra pu–
— Já entendemos seu ponto, Elion. — Ergui a mão, segurando a
palheta da minha guitarra entre o polegar e o indicador.
— Eu tava até tranquilo, mas agora confesso que tô suando frio
— Nevan murmurou, remexendo-se no banco e chocando suas baquetas
uma contra a outra, deixando claro suas palavras.
— Vai dar tudo certo! — garanti, encarando o baterista.
— Você acha? — Davian perguntou, soando tão inseguro quanto
Nevan.
— Hey! Eu tenho certeza! — afirmei, olhando para eles com um
sorriso, que não retribuíram de imediato. Suspirei fundo e passei a mão
pelos cabelos, deixando meu chapéu de Aladim cair no chão. — Qual foi
gente, nós somos a Smash Secrets. Eles são sortudos por nos verem tocar,
enquanto ainda não precisam lutar nas filas de bilheterias onlines e físicas
para conseguirem ingressos para os nossos shows.
— O Caleb tem razão. Nós vamos foder com essa bagaça e
mostrar do que somos capazes!
— É isso aí Chapeleiro Maluco! — Ergui o polegar.
Elion revirou os olhos e murmurou um palavrão, o que me fez
soltar uma risadinha e umedecer os lábios.
— Agora vem cá vocês três. — Gesticulei com a mão, vendo-os
se aproximarem com cautela. — Como é que a gente fala, hum? Quem nós
somos?
— Smash Secrets — responderam baixo, desanimados.
Balancei a cabeça e coloquei a mão na cintura.
— Não, isso tá muito fraco. Vou repetir. Quem nós somos?
— Smash Secrets! — responderam, mais animados.
— Isso aí. E para onde vamos?
— Infinito e além! — completaram, sorrindo uns para os outros.
Estava óbvio que nosso quarteto era fã de Toy Story e foi
inevitável não “roubar” a fala de um dos meus personagens animados
preferidos.
— É isso aí! — apertei os ombros de Elion e Davian, piscando
para Nevan. — Vamos tentar mais uma vez. — Estendi a mão e eles
imitaram, cobrindo-a com as suas até formar um pequeno monte.
— Nós somos a Smash Secrets, para o infinito e além! —
Erguemos as mãos, soltando risadas.
Estávamos prontos para o show.

— Uau! A entrada já tá lotada — suspirou Alissa, fitando a


calçada em frente à entrada da casa de shows onde seria a festa.
— Imagino como deve estar lá dentro — completou Logan com o
cenho franzido, enquanto procurava por uma vaga na rua movimentada,
cercada de carros em ambos os lados.
Após o que pareceu uma eternidade, ele finalmente estacionou o
veículo em uma rua atrás da Electric Ballroom. Seguimos caminhando até o
local da festa, cruzando com alguns convidados já bêbados e
engraçadinhos, que quase saíram com o nariz quebrado quando um deles
tentou a sorte com a minha amiga ruiva.
Logan era ciumento pra caramba. Se alguém mexesse com a ruivinha
dele, ele partia pra cima sem pensar duas vezes.
— Oiiii! — Catarina acenou animada ao lado da porta de vidro da
Electric, de braços dados com a Mich.
Meus olhos simplesmente não acreditavam no que estavam vendo. A
bióloga estava vestida como uma policial feminina, com um look todo
preto, um quepe sobre a cabeça, usando um vestido justo e curto demais
para boas garotas como ela. Uma algema estava pendurada no cinto de
couro ao redor de sua cintura, enquanto ela segurava um enorme cacetete,
calçada com botas de salto, que se estendiam pelo comprimento de suas
pernas até os joelhos.
Já a Michele não me surpreendeu tanto.
A jornalista vestia uma fantasia de anjo, e eu me perguntava se era
uma “homenagem” ao seu namorado que, graças a Deus, não estava
presente. Sua fantasia era toda branca, desde a auréola que cobria sua
cabeça cacheada, passando pelas asas cheias de penas em suas costas, o
vestido longo de alcinha com uma fenda na perna direita até o par de tênis.
É claro que ela usaria a fantasia com tênis, mas o que me surpreendeu
foi o fato de ela estar sem seus preciosos óculos. Acredito que ela estava
finalmente se acostumando a usar lentes de contato.
Revirei os olhos internamente e abri um sorriso ao me aproximar
delas.
— Quem você vai prender hoje à noite? — Sorri de canto e cruzei os
braços.
Catarina soltou uma risadinha e deu um tapa no meu ombro, fazendo-
me inclinar para frente e quase beijar a parede.
Arregalei os olhos e resmunguei um palavrão, massageando a área
atingida. Às vezes eu me pergunto se ela é uma versão feminina do Popeye,
já que come espinafre quase todos os dias e tem a mão tão pesada quanto a
de um levantador de peso.
— Para de falar bobagem, Rav! — retrucou com as bochechas
coradas, fitando o chão.
Revirei os olhos enquanto ela e Mich cumprimentavam Alissa e
Logan. Pouco interessada naquela interação, me juntei aos convidados da
festa que atravessavam a porta em direção ao interior do local.
— Ali! Eu amei sua fantasia de Chapeuzinho Vermelho. — Ouvi
Catarina dizer antes de atravessar a porta.
Havia alguma coisa no mundo que ela não amava?
— Boa noite! Nós somos a Smash Secrets e é um prazer tocar para
vocês esta noite!
Franzi o cenho, desviando de alguns corpos já suados, enquanto
tentava enxergar o palco onde uma banda com quatro membros se
preparava para tocar.
O que era aquilo que eles estavam vestindo?
Tudo bem que a festa era à fantasia e, sinceramente, eu estava
chocada com algumas que já haviam passado por mim, mas aqueles caras
estavam beirando o ridículo. Nunca na minha vida vi uma banda de rock –
pelo menos eu esperava que eles tocassem rock – tocar vestida feito
palhaço.
Abri um sorriso de canto, esperando pelo terror que seria assistir
àquele show, e cruzei os braços, encostando-me na parede atrás de mim.
— Vai ter música ao vivo? — Catarina perguntou ao meu lado.
— É o que parece. — Dei de ombros, com os olhos grudados no
palco.
Minha sobrancelha esquerda arqueou quando os primeiros acordes de
“Beggin” do Måneskin começaram a tocar.
— Ah, meu Deus, Rav! Essa é a sua música preferida do Måneskin.
— Michele e Catarina disseram em uníssono, enquanto a bióloga me
balançava pelos ombros.
Não perdi de vista o sorrisinho que Alissa e o namorado abriram,
abraçadinhos, ela com as costas contra o peito másculo dele e ele com os
braços ao redor do peito dela, como se a estivesse protegendo. Agora, do
quê, eu não fazia ideia.
Aqueles dois eram um grude que chegava a me embrulhar o
estômago.
— Me solta, garota! — Afastei as mãos de Catarina, tentando ouvir o
cover de uma das minhas bandas preferidas. Eles só perdem para o Arctic
Monkeys, a minha favorita para toda a eternidade.
No entanto, eu detestava admitir, mas o vocalista vestido de Aladim,
tocando guitarra com os olhos fechados como se estivesse sentindo a
música em cada poro do seu corpo estava se saindo bem. Muito bem, na
verdade.
Sem falar no baterista vestido de Hércules. O cara sabia como bater
aquelas baquetas no ritmo certo.
— Nossa, aquele Aladim é um gato, hein! Além de cantar super bem,
ele ainda por cima toca guitarra e é tatuado… Totalmente o seu tipo, Rav!
— Catarina abriu a boca de matraca e piscou, cutucando minha cintura,
antes de pegar duas garrafas de cerveja que Logan estendeu para ela e me
entregar uma.
— Não sabia que você tem mais conhecimento do meu tipo do que
eu mesma — Soltei com um sorriso falso, antes de levar à boca minha
garrafa de cerveja.
Catarina sorriu, desprovida de humor, e deu de ombros, fitando o
palco com a cabeça inclinada de lado, antes de soltar:
— Agora, olhando bem para aquele sorriso simpático, ele não me
parece ser o seu tipo… Ele é açucarado demais para um limão azedo como
você — soltou debochada, bebericando um gole de sua bebida.
— Meninas, estamos aqui para nos divertir, apesar de que às vezes eu
tenho minhas dúvidas se a Ravena sabe o que é isso, não para discutir a
nuvem negra que é o humor da nossa amiga, marrentinha. — Alissa soltou
com um sorriso falso, me fazendo estreitar os olhos e encará-la com
desgosto.
Merda de apelido ridículo!
— Tá, tá, tá! Então calem a boca e me deixem ouvir a minha música
— resmunguei, engolindo mais um longo e generoso gole de cerveja.
Graças a Deus, elas atenderam à minha demanda e calaram o bico.
As luzes dos holofotes estavam baixas, deixando a plateia no
“escuro”, e apenas o palco iluminado com luzes oscilantes e nostálgicas,
dançando no ritmo da música, barulhenta e animada.
Confesso que a banda tocava e cantava em perfeita harmonia, o que
me fez sussurrar meus trechos preferidos.
Nossa distância do palco não passava de cinquenta metros, mas,
confesso que, quando o vocalista abriu os olhos e observou ao redor da casa
de shows – com os lábios colados no microfone, tocando uma guitarra
preta, brilhante e afinada – até que seu olhar se fixou em mim, senti um
arrepio na nuca.
A maneira como ele me encarava enquanto se apresentava naquele
palco estava me hipnotizando de tal forma que eu não conseguia desviar o
olhar, embora tenha tentado com todas as minhas forças não encarar os
olhos escuros e brilhantes do “Aladim sem nome”.
Então, sempre que eu sangrar, me deixe ir
Sim, sempre que me nutrir, me avise
Sempre que procurar, me deixe saber
Pois plantei essa semente, apenas me deixe ir

Aquele era o meu trecho preferido da música inteira.


Suspirei, mordendo o lábio inferior. Ele ainda me encarava e um
discreto sorriso apontou no canto de seus lábios cheios, apresentando uma
covinha.
Caralho!
— Hummm, parece que o Aladim gostou da senhorita pirata aqui —
Mich sorriu, apontando sem o mínimo de descrição na direção do rapaz que
ainda mantinha seus olhos fixos em mim, como se eu fosse uma TV.
Revirei os olhos, apenas para disfarçar a súbita vontade de abrir um
sorriso.
O que estava acontecendo comigo?
A energia no salão era de outro mundo; todos pulavam e cantavam
com entusiasmo, como se o espaço fosse infinito e não estivessem todos se
acotovelando e soltando risadas.
Quando a música acabou, para a minha tristeza, ele desviou o olhar
para o público à sua frente e se inclinou em uma breve reverência,
recebendo o coro de aplausos e assobios.
— Obrigado! — Acenou com o braço estendido para cima e um
largo sorriso.
Seus companheiros de banda também sorriam entusiasmados,
parecendo satisfeitos e, ao mesmo tempo, surpresos com a resposta do
público. Eles eram bons, não havia como negar, mas confesso que nunca
ouvi falar da banda.
Como era mesmo o nome dela?
— Achei um lugar pra gente sentar e comer alguns petiscos —
informou Logan, apontando para o outro lado do salão, longe o suficiente
dos espectadores do show.
Aparentemente a banda ainda iria tocar outra música e, por alguma
razão, aquilo me fez abrir um sorrisinho discreto e seguir meus amigos até
um sofá de suede branco, ao lado do bar.
Bastou eu me sentar no móvel, para o vocalista anunciar a próxima
música, também cover de uma banda que eu não fazia ideia de qual era.
Porém, assim que ele começou a cantar as primeira linhas, já notei que a
música era boa.
Se o fato de ele olhar para o local onde há minutos eu estava
encostada, assistindo ao show, fez meus pelos dos braços se arrepiarem, eu
preferia não imaginar o que sentiria quando ele me localizasse novamente.
O que, no fundo, eu duvidava que fosse acontecer, a iluminação era fraca
onde estávamos, além disso, não havia nenhuma razão para ele agir de tal
forma.
Nem nos conhecemos, apesar de achar que seria interessante se
fizéssemos…
Com certeza eu daria uns pegas nele, sem sombra de dúvidas.
— Eu queria tanto que o Angel tivesse aqui... — Mich murmurou ao
meu lado com um beicinho, brincando com o guarda-chuva do seu drinque.
— Pensei que você diria que gostaria de estar com ele em Paris. —
Catarina brincou, empurrando o ombro da jornalista com o dela.
— Ele prometeu que nas minhas férias vamos passar alguns dias lá e
fazer um tour pelo interior do país para conhecer os alpes franceses. —
Sorriu, um pouco mais animada, com os olhos brilhando sob os holofotes
dourados.
Revirei os olhos.
Eu estava longe de engolir aquele relacionamento, e meu sexto
sentido ainda me alertava de que aquilo não daria certo… Só esperava que a
Mich não saísse com o coração partido.
— Ai, amiga, ainda me custa acreditar que você está mesmo
namorando aquele lindo e gostoso do Angelo Hamish.
— Hey! — Michele exclamou com o cenho franzido. — Mais
respeito com o namorado alheio.
Catarina soltou uma risadinha, voltando a beber sua cerveja antes de
voltar sua atenção para Logan. Ele estava sentado no braço do sofá ao lado
da Ali, que estava comendo queijo grelhado com orégano no palito.
— Agora, Logan, de quê você está fantasiado mesmo? — perguntou
a bióloga, fitando os braços musculosos do rapaz expostos sob a regata
branca.
— Dele mesmo? — brinquei, com uma sobrancelha arqueada.
Logan estreitou os olhos na minha direção, me fazendo pressionar os
lábios para esconder um sorriso, e voltou sua atenção para a Cat.
— Lenhador. — respondeu com um sorriso de canto arrogante.
— Ah, faz todo sentido! A Ali de chapeuzinho e você lenhador… só
faltou o machado. — Soltou uma risadinha, tapando a boca com a mão.
Ele balançou a cabeça com um sorriso e continuou sentado com toda
sua postura de macho alfa e a elegância de homem rico do campo,
segurando entre os dedos longos, sua garrafa long neck.
— Mas não seria melhor lobo mau? — Michele comentou confusa.
— Só se a Ali fosse a vovó, porque foi ela quem o lobo mau comeu.
— Pisquei, esperando que ela entendesse o duplo significado e ficasse
horrorizada.
E foi exatamente o que aconteceu.
— Ravena! — Mich e Ali disseram ao mesmo tempo, em alto e bom
som.
— Vê se guarda as suas piadas escrotas pra você mesma —
resmungou a ruiva, mastigando seu queijo com brutalidade.
— Não liga pra ela, ruivinha. — Logan murmurou ao pé do ouvido
da namorada, massageando seus ombros antes de plantar um beijo sobre
seus cabelos alaranjados.
Revirei os olhos com seu comentário, mas não poderia me importar
menos.
— Só eu que não entendi a piada? — Catarina perguntou, confusa e
com um beicinho, olhando entre nós, na espera de que alguém lhe
explicasse, mas o silêncio foi sua única resposta.
03

— Já vou procurar a Smash Secrets no Spotify e salvar algumas


músicas na minha playlist “músicas para ouvir quando estou na TPM” —
disse Catarina sorrindo enquanto abria o aplicativo de músicas em seu
celular. Ela procurou pela banda, que havia encerrado sua apresentação
após cantar cinco músicas, sendo duas delas covers das minhas bandas
favoritas, e adicionou a maior quantidade possível de músicas que
conseguiu.
— Ou seja, todos os dias, né? — zombei, com os braços
cruzados.
— Credo, Ravena! Eu sou um doce de pessoa, mesmo na TPM —
murmurou com um biquinho.
Não achei necessidade em comentar o óbvio. A verdade é que desde
que conheço a Catarina, há mais de cinco anos, nunca a vi perder a cabeça,
pelo menos não no sentido de brigar e xingar. Pelo contrário, acredito que
ela seja a mais otimista de nós quatro, sempre vendo o lado bom das coisas.
Chega a ser irritante, mas eu seria hipócrita se dissesse que essa não é a
principal razão pela qual ainda somos um quarteto.
Cat é como a cola que nos mantém unidas, mesmo que às vezes surja
uma rachadura ou outra.
— Quero mais um drinque, vai querer? — perguntei, vendo-a
distraída no celular.
— Não, obrigada. — gesticulou com a mão, não tirando os olhos da
tela.
Suspirei e segui para o bar; minha garganta estava seca e eu só queria
encher a cara depois da semana estressante que tive fotografando um bando
de pirralhos bem parecidos com o Timothy: irritantes, grudentos e
mimados.
— Uma tequila, por favor — debruçada sobre o balcão de madeira,
pedi ao barman, um gatinho com uma barba bem aparada e pele negra.
Olhei por cima do ombro e vi a fantasia inteiramente branca da Mich,
o que tornava difícil sua intenção de passar despercebida pela pequena
multidão de corpos dançantes e meio embriagados, ou talvez
completamente.
A julgar pela expressão desconfortável no rosto da jornalista, ela
sabia que estava segurando vela para Alissa e Logan, que estavam sorrindo
um para o outro, volta e meia trocando beijos e carícias. Enquanto isso, a
nerd se balançava de um lado para o outro sob as luzes coloridas dos
holofotes, que disparavam em todas as direções do salão.
O que ela ainda estava fazendo lá com aqueles dois?
— Aqui está, moça — A voz do barman, me estendendo um copo
cheio da bebida que eu havia pedido há um minuto, chamou minha atenção.
— Valeu! — agradeci com um sorriso de canto. — Quanto é?
— Por conta da casa — Sorriu, lançando-me uma piscadinha. — Mas
se você quiser me encontrar depois da festa, eu aceito isso como forma de
pagamento.
Mordi o lábio inferior, fitando seus braços fortes, escondidos sob as
mangas longas de sua camisa social branca. Imaginei uma série de
possibilidades para o nosso fim de noite, entre elas nós dois, sozinhos em
um lugar reservado, fazendo coisas que deixariam minha mãe com os
cabelos em pé. No entanto, ponderei.
Eu estava bem comportada naquela noite e, mesmo estando há mais
de um mês sem sexo, ainda não estava subindo pelas paredes.
O intercurso sexual com estranhos ainda era algo que eu preferia
evitar. Geralmente acontece no segundo e último encontro, nunca antes
disso.
— Quem sabe, gatinho? — pisquei e dei de ombros.
Não sou tão fácil assim.
— Se mudar de ideia, você sabe onde me encontrar. — Ele pegou
minha mão sobre o balcão, a beijou e encarou meus olhos o tempo todo,
mantendo seu sorriso bonito.
Arquei as sobrancelhas, sorri de volta e agradeci novamente o
drinque. Senti o olhar do bonitão queimando em minhas costas enquanto
caminhava decidida até minha amiga cacheada, no meio do salão.
— Vem comigo — falei no ouvido da nerd, puxando-a pelo braço.
— Mas eu tava dançando com a Ali e o Logan — apontou por cima
do ombro, quase trombando com um cara gigante e musculoso, usando uma
peruca loira, fantasiado de Thor.
— Corrigindo, você estava segurando a maior vela da história, isso
sim!
Chegamos até a Catarina, que estava encostada na parede, ainda
entretida no celular, não notando nossa presença.
— E aí gatinha, será que eu posso ser preso hoje? — Um cara de
cabelos loiros, fantasiado de Peter Pan, se dirigiu à bióloga, sorrindo feito
um palhaço, fantasia que sinceramente combinava muito mais com ele.
Michele me encarou confusa, mas meus olhos estavam focados no
“garoto que não quer crescer” da Shopee.
Catarina levantou os olhos da tela do celular, finalmente notando
minha presença e a da Mich, e piscou os olhos, olhando confusa para o
rapaz.
— Ah, você tá falando isso por causa da minha fantasia, né? Porque
eu não sou uma policial de verdade. — Gesticulou com a mão, sorrindo
inocentemente.
Revirei os olhos.
Como alguém de 23 anos poderia ser tão inocente e tapada?
Ela conseguia ser pior do que a Michele!
O rapaz sorriu de canto, aproximando-se da jovem com as mãos nos
bolsos de sua calça verde musgo, enquanto a olhava de cima a baixo. Ele
ainda teve a cara de pau de demorar alguns segundos no par de coxas
expostas, antes de alcançar novamente o rosto da bióloga.
— Mas podemos fazer uso dessas algemas lá na minha casa, que tal?
Cat engoliu em seco, corando feito um tomate. Em seguida, soltou
uma risada alta, desprovida de humor, e deu um tapa no ombro do rapaz,
coisa que ela sempre faz quando está envergonhada ou desconfortável com
a situação.
Apesar do choque momentâneo, o idiota não se deixou abalar e
voltou a se aproximar dela, pressionando seu corpo contra o dela, até fazê-
la colidir com as costas na parede.
— Você não vai fazer nada? — Michele sussurrou em meu ouvido,
com os olhos grudados na cena à nossa frente.
— Ela tem que aprender a se defender. Eu não vou estar por perto
sempre — rosnei baixo, com os olhos estreitos.
A raiva pulsava em minhas veias com uma velocidade
impressionante, alterando minha visão de forma que, quando ele a puxou
pela cintura e tentou beijá-la, eu só conseguia enxergar vermelho.
— Solta ela, seu idiota do caralho! — gritei, puxando-o pelos ombros
para longe da minha amiga, que estava com os olhos arregalados e a
respiração ofegante.
— Qual foi, gatinha? Você pode se juntar a nós se quiser…
Bastou ele completar a frase para a minha mão, fechada em punho, se
chocar contra seu nariz asqueroso.
— Merda! — resmungou o Peter Pan, era até uma ofensa chamá-lo
assim, no caso, ofensa ao personagem. — Perdeu o juízo, foi? — Veio em
minha direção, com o nariz vermelho, começando a escapar sangue.
— Hey, calminha aí, meu camarada — disse Logan, entrando na
frente com o braço esticado.
— O que aconteceu? — perguntou Ali, assustada.
Ninguém ao redor da festa parecia prestar atenção em nossa pequena
comoção, o que, no fundo, era melhor.
— Apenas aquele idiota tentando se aproveitar da Cat. — soltei com
desgosto, apontando para o sem noção, que não poderia ser chamado de
homem.
— Me aproveitar? — cuspiu com uma risada falsa e nojenta. — A
garota se veste feito uma vagaba e a culpa é minha?
— Hey, vê se controla a língua se não quiser perdê-la. — Logan
rosnou, com seus olhos azuis mais escuros que o normal e as mãos fechadas
em punho.
Ele estava furioso, e o Logan em fúria era uma coisa que testemunhei
apenas uma vez e não gostaria de ver novamente.
— Vão à merda! — resmungou o Peter Pan idiota, fazendo questão
de chocar o ombro contra o de Logan, apenas para murmurar de dor
segundos depois. No entanto, ele continuou marchando, por entre a pequena
multidão, com o nariz sangrando.
— Vai você! Escroto de merda! — Catarina gritou, surpreendendo a
todos.
Michele e Alissa, até mesmo o Logan, estavam com a boca aberta, ao
contrário de mim, que sorri feito uma mãe orgulhosa.
— Isso aí, garota! Não deixe esses machos escrotos pisarem em você.
Catarina ergueu o queixo.
— Não vou! Eu sou gostosa e não tem mal nenhum mostrar isso.
Michele soltou uma risadinha e Alissa balançou a cabeça, tentando
conter um sorriso.
Logan, por sua vez, passou os braços ao redor da bióloga e disse:
— Posso te ajudar a aprender uns golpes de direita muito eficazes.
— Amor, não incentiva. — Ali murmurou.
O ogro, quero dizer, Logan, apenas deu de ombros.
— Eu agradeço, ogro — Catarina arregalou os olhos, arrancando uma
risadinha minha, da Ali e até da Mich. — Q-quero dizer, valeu, Logan. —
corou, com a cabeça baixa.
No entanto, o rapaz rosnou baixinho, fitando sua namorada.
— Você ainda me paga por esse apelido, ruivinha.
— Você já disse isso antes, mas não fez nada que eu não quisesse. —
Piscou, mordendo o lábio inferior com um sorriso.
Logan deixou os ombros da Cat e foi até ela, enchendo seu rosto de
beijos, enquanto a veterinária se agarrava nos ombros dele, soltando
risadinhas.
Respirei fundo, segurar vela não era uma das minhas especialidades.
De repente, a música parou e todos voltaram sua atenção para o
palco.
— Senhoras e senhores, vamos agora à última apresentação da noite.
— Disse um homem, usando um microfone sobre um pedestal, fantasiado
de Homem de Ferro.
Um coro de lamentação ecoou pelo salão, antes de ele continuar:
— Eu sei, eu sei, a festa está um máximo, mas temos horário pra
fechar antes que os vizinhos chamem a polícia para nos expulsar sob balas.
As risadas rapidamente preencheram o ambiente, tornando-o mais
descontraído e animado novamente.
— Então, vamos continuar nossa noite com o grupo de dança Blink
Street, diretamente do norte de Londres!
Os convidados começaram a aplaudir enquanto o animador deixava o
palco. No entanto, quando “Billie Jean” do Michael Jackson começou a
tocar e um grupo de dançarinos fantasiados do rei do pop surgiram no
palco, a gritaria foi geral. E quando digo geral, refiro-me à maior parte do
público feminino.
— Ah, meu Deus! Isso é maravilhoso. Olha aqueles quadris! —
Catarina disse alto, abanando o rosto com as bochechas coradas, quando os
homens começaram a executar com maestria a coreografia.
Ela com certeza já estava bêbada.
— Catarina, deixa de ser assanhada. Quem vê assim, acha que você
tá matando cachorro a grito e paulada — cuspi irritada, vendo-a se remexer
feito um boneco inflável de posto.
Ela estava agindo como se nunca tivesse visto homens com blazers
brancos abertos, deixando à mostra os abdomens sarados, usando calças
sociais pretas, com chapéus da mesma cor e sapatos de sapateado.
— Talvez eu esteja mesmo — lamentou com um beicinho, mas
durou pouco. Dois segundos depois, seus lábios voltaram a exibir um largo
sorriso e seus olhos brilharam para os machos sobre o palco, dançando
como se suas vidas dependessem disso.
Aquilo era demais para mim.
Enquanto minhas amigas, na verdade, a Catarina, babavam sobre os
homens de preto – ou quase todos de preto –, eu segui para o cantinho do
bar, me escorando na parede de tijolos, próxima ao toalete, enquanto
assistia a tudo ao meu redor com olhos de águia. Uma guitarra branca em
um quadro decorava a parede, refletindo as luzes roxas de neon, e um
letreiro escrito “rock and roll” brilhava acima na parede ao lado, quase
alcançando o teto.
— Eu te achei afinal.
Pulei quando uma voz masculina soprou em meu ouvido. Uma voz
que já não era, nem de longe, desconhecida, mas que com certeza habitaria
meus pensamentos nas próximas horas.
Engoli em seco, sob a iluminação parcial do salão, fitando o cara
fantasiado de Aladim. Foi inevitável não piscar quando meus olhos
encontraram os dele, escuros, grandes e brilhantes. Ele era mais bonito de
perto do que eu poderia julgar, vendo-o se apresentar cantando e tocando
daquela forma melódica sobre o palco, como se tivesse nascido para aquilo.
Sem falar na pele bronzeada, no braço e na mão direita tatuados, e o
abdômen definido, exposto sob aquele pedaço de pano que não deveria
sequer ser considerado uma peça de roupa.
— Até onde eu sei, meu nome não é Jasmine e muito menos sou uma
princesa para ser procurada pelo Aladim. — Sorri falso e cruzei os braços,
com o queixo erguido.
O cantor “sem nome” sorriu, exibindo uma covinha na bochecha
esquerda que deveria ser proibida. Eu quase podia sentir meus dedos
coçando para afundarem nela à medida que seu sorriso crescia mais e mais.
— Talvez eu não esteja atrás de uma princesa… — Ele arqueou uma
sobrancelha, sustando seu sorriso arrogante. — Mas gostei da sua fantasia,
ela me chamou bastante atenção — acrescentou, me olhando de cima a
baixo.
Engoli em seco, meio desconcertada com seu olhar, sentindo um
arrepio na nuca.
Seu braço tatuado atraía minha atenção como um imã, mas não me
deixei afetar. Eu não poderia e não queria.
Revirei os olhos e balancei a cabeça com um sorriso de lado.
— Não estou interessada. — Fui direto ao ponto e dei de ombros,
voltando a fitar o palco.
Eu sabia o que ele queria ao ir até ali.
A forma como seus olhos me encaravam, como seus dentes
pressionavam contra seu lábio inferior e sua respiração soprava seu peito
para cima e para baixo, quase ofegante, deixavam nítidas suas intenções.
O gatinho queria sexo, mas já disse e repito, não sou tão fácil assim.
Com certeza, aquele desconhecido teria que fazer muitos solos de
guitarras para me conquistar.
No entanto, sua risada foi o que chamou minha atenção de volta para
ele.
— Eu disse algo engraçado? — Franzi o cenho, com os olhos
estreitos.
— Pra mim, sim. — Inclinou a cabeça de lado.
Aquela covinha já estava começando a me dar nos nervos, mais ainda
o sorriso idiota que ele insistia em manter naqueles lábios cheios.
Arqueei as sobrancelhas e fiquei de frente para ele.
— Não acho que entendi…
— Dizer que não está interessada quando eu nem mesmo insinuei
alguma coisa é muita pretensão sua, você não acha? Eu posso ter uma
namorada… — sugeriu com as sobrancelhas unidas, demonstrando uma
falsa seriedade, e umedeceu os lábios.
— Se tiver, só prova que você é um canalha por estar aqui flertando
comigo no cantinho do salão sob essas luzes de neon oscilantes, longe das
vistas de todo mundo, quase como se estivesse no “escurinho do cinema”.
O cantor/guitarrista deu um passo para trás, com os olhos estreitos e
os braços cruzados. Fiz de tudo para não olhar para baixo e, graças a Deus,
fui muito bem-sucedida, já que o deixei completamente calado. Sinal de que
consegui atingir um ponto.
Ponto para Ravena!
— Além disso, não é pretensão minha. Eu simplesmente conheço seu
tipinho e acredite, não me atrai nem um pouco. — Dei de ombros.
— Meu tipinho?
Assenti.
— Que acha que só porque toca em uma banda consegue pegar todas
que quiser.
De repente, ele soltou uma risadinha.
— Você é sempre marrenta assim?
— Acredite, essa é a minha versão garota bem comportada.
— Hum… — Mordeu o lábio inferior enquanto, descaradamente,
encarava os meus. — Eu gosto de garotas bem comportadas, mas…
confesso que prefiro ainda mais as malcriadas. — Aproximou-se e apoiou
uma mão ao lado da minha cabeça sobre a parede fria às minhas costas.
Seu hálito de menta, refrescante e adocicado, soprou em meus lábios.
Tudo o que passava na minha cabeça naquele momento era beijar aquela
boca atrevida e arrogante dele.
— E sabe de mais uma coisa? — continuou, ainda mais próximo.
A pele do meu braço tocava o tecido fresco e macio de seu colete…
Eu deveria achar ridículo um homem parecer ridiculamente atraente e
charmoso vestido com aquela fantasia, não deveria?
Pisquei e neguei, completamente sem palavras, coisa que nunca havia
me ocorrido antes, exceto quando… Para, Ravena! Não volte sua mente
para aquele poço escuro e profundo.
— Por uma pirata como você, eu andaria na prancha sem pensar duas
vezes. — Piscou com um sorriso de canto, algo que eu não deveria achar
tão sensual e instigante.
Revirei os olhos, mas abri um sorriso discreto.
— Essa foi a melhor cantada que você pensou?
O Aladim de meia-tigela inclinou a cabeça de lado e estalou a
língua no céu da boca, encarando atentamente os meus olhos.
— Admito que não foi a melhor, mas pelo menos você sorriu.
Entreabri os lábios, notando que ele tinha razão e dei de ombros.
— É impossível não sorrir de desgosto quando se escuta algo tão
clichê.
A risada do desconhecido soou em meus ouvidos e as covinhas –
porque naquele momento eram duas – que surgiram, fundas sobre suas
bochechas, quase me fizeram suspirar. Quase.
— Qual é o seu nome, senhorita pirata?
— Quem quer saber? — Ergui o queixo, com a sobrancelha
arqueada.
— Caleb Fleet, ao seu dispor. — Sorriu, inclinando-se em uma
reverência do século XIX e estendeu a mão, que eu fitei por cinco segundos
antes de finalmente tocá-la.
— Ravena Watts — murmurei e desviei o olhar, como se
estivesse entediada, o que, por incrível que pareça, não era como eu estava
me sentindo.
Caleb beijou o dorso da minha mão, atraindo minha atenção,
enquanto encarava meus olhos com os seus, cor de mel.
A contragosto e, no fundo, surpresa com seu gesto, engoli em
seco, mas disfarcei, puxando minha mão mais bruscamente do que deveria.
— Pois bem, senhorita Watts, eu estou muito a fim de ficar com
você, mas ao que parece a senhorita não partilha do mesmo desejo — disse
bem-humorado, embora seus olhos brilhassem com uma seriedade
desconcertante. No entanto, ele voltou a se aproximar, cercando meu corpo
quente com seus braços esticados sobre a parede atrás de mim.
Suspirei fundo e trêmula, encarando-o naquele cantinho escondido.
Olhei rapidamente para o lado e todos, incluindo meus amigos, estavam
entretidos demais com a apresentação que acontecia no palco para
prestarem atenção em nós.
— Eu não gosto de promessas… — afirmei, fitando-o intensamente,
para que não restasse dúvidas de que aquilo não passaria de uma ficada.
— Não estou te pedindo para que cumpra nada — Piscou, mordendo
o lábio inferior e ergueu uma mão.
Engoli em seco, descendo meus olhos por seu rosto até pousar em
seus lábios.
Caleb se inclinou para frente, sua respiração ofegante soprava em
meu rosto, aumentando a antecipação do que estava prestes a acontecer.
Meus olhos não conseguiam desviar daquele pedaço de carne preso entre
seus dentes, e a sensação de calor que começava a dominar meu corpo
chegava a ser desagradável.
— Se eu passar mais um minuto aqui, tão perto assim de você, sou
capaz de contar cada sarda que cobre esse seu rosto bonito — Sua mão
cobriu minha cintura, puxando meu corpo contra o seu, enquanto a outra,
livre, ainda estava apoiada na parede ao meu lado.
— Então não perca mais tempo — soltei ansiosa, me detestando por
soar tão desesperada, mas dane-se se eu não queria aquele homem.
Meus batimentos estavam fazendo meus ouvidos zumbir e a pele dos
meus braços se arrepiou quando ele puxou meu lábio inferior entre os
dentes, lentamente, olhando em meus olhos, antes de lambê-lo e soltar um
gemido baixinho.
Juro que tremi até o último fio de cabelo.
Canalha! Ele sabia o efeito que estava causando em mim e parecia se
deliciar com isso, mas eu não deixaria barato.
Eu também sei brincar.
Espalmei minhas mãos em seu peito nu sob o colete e apertei seus
mamilos. Caleb fechou os olhos com um sorriso e o cenho franzido,
engolindo em seco.
— Se é pra brincar, vamos brincar direito — sussurrei em seu ouvido
e mordisquei o lóbulo de sua orelha.
Para minha surpresa e satisfação, Caleb pressionou meu corpo contra
a parede com mais intensidade e colou seus lábios nos meus, arrancando
meu fôlego com apenas um golpe.
Aquele beijo estava sugando minha alma e não era nem mesmo uma
metáfora.
Suas mãos percorriam a fantasia de pirata com desejo, pressa e uma
pitada generosa de desespero, mas eu estaria mentindo se dissesse que as
minhas mãos não estavam agindo igual, ou até pior.
A pele de seu peito era quente, macia e estava levemente suada, mas
foi apenas quando minha mão pousou sobre o lugar onde seu coração
pulsava que minha cabeça começou a girar. Seus batimentos eram tão
intensos e rápidos quanto os que pulsavam sob o meu peito.
Se apenas um beijo era capaz de nos deixar daquela forma, sem
fôlego, ansiando por mais, desesperados para fundir nossos corpos em um
só, eu preferia não imaginar o estrago que seria nós dois sob os lençóis…
Não sobraria nada.
04

Minha boca estava faminta, devorando, chupando e lambendo a


daquela marrentinha, e não havia nada naquele momento que pudesse me
afastar de Ravena. Meu corpo, minha mente e até a minha alma, cada
pedacinho do meu ser ansiava por aquela mulher. Aquilo estava assustando
a merda fora de mim, mas também me excitava a ponto de um gemido
baixo e lascivo deixar meus lábios quando ela deslizou a mão pelo meu
abdômen e brincou com o cós da minha calça.
Se eu estava excitado antes, nada havia me preparado para como
me sentiria naquele minuto: duro, sem fôlego, quase de joelhos, pronto para
implorar para que ela me deixasse levá-la para casa, a minha de preferência.
Ravena soltou um suspiro e virou o rosto, sem fôlego, respirando
ofegante. Meus lábios ansiosos não queriam deixar os dela, mas se
contentaram em distribuir beijos por todo seu rosto bonito até que ela
recuperasse o fôlego, pronta para mais, porque eu lhe daria tudo, tudo que
ela pedisse, quisesse…
Merda! Eu estava mesmo perdendo a cabeça.
— Jesus! — soltou a pirata sexy, apertando meus ombros para me
encarar. — Há quanto tempo você não beija? — Sorriu debochada, fitando-
me com os olhos azuis entreabertos e nublados de desejos.
Respirei fundo, naquele momento, um pouco mais controlado.
Abri um sorriso de canto, contornando desenhos sobre sua cintura fina,
protegida pelo tecido da sua fantasia.
— Menos de dois dias, devo ser honesto. — Suspirei, encarando
seus lábios, enquanto lutava contra a vontade selvagem de tomá-los
novamente.
Eu estava pior do que um cachorro no cio.
Que merda era aquela?
Ravena arqueou uma sobrancelha com uma expressão séria.
Aquilo era uma breve demonstração de ciúmes? Não! Talvez
apenas incômodo. Ciúmes seria um pouco demais para uma garota como
ela, exalando confiança até o último fio de cabelo.
— Eu acho que você está mentindo… — Estreitou os olhos.
Abri um sorriso de canto e sussurrei ao pé de seu ouvido:
— Se tem uma coisa que eu não faço nessa vida é mentir,
marrentinha.
Não sei se foi algo que eu falei ou fiz que a fez me empurrar
bruscamente pelos ombros e me encarar com adagas disparando em direção
ao meu rosto.
— Nunca mais, tá me ouvindo? — Ergueu o dedo indicador com
o rosto vermelho, e não era de timidez ou desejo. — Nunca mais me chama
assim — cuspiu com nojo. — Eu detesto esse apelido.
— Eu perguntei se você é marrenta e você não reagiu assim.
— Marrentinha é diminutivo, e muito pior, porque as minhas
amigas costumam me chamar assim e eu não suporto — rosnou, com o
peito subindo e descendo rapidamente.
Ok, aquele era um tópico sensível. Anotado!
— Foi mal! — Ergui as mãos e dei um passo cauteloso para
frente, mas ela literalmente rosnou. Entendi aquilo como uma indicação de
que, se eu avançasse mais um pouco, ela iria, com certeza, me acertar como
fez com o idiota fantasiado de Peter Pan.
Quando notei o que estava acontecendo, admito que pensei em ir
até lá e intervir, mas antes que meus pés pudessem sair do lugar, ela já
estava acertando o cara com um soco de direita muito bom para uma garota
aparentemente delicada.
Meus amigos também viram a cena e soltaram altas risadas.
Bando de idiotas.
— Se você não quiser, eu não te chamo assim…
— Eu não quero. — revirou os olhos.
— Tudo bem! — Ergui as mãos. — Mas acho que o apelido
combina muito com você — brinquei, sabendo que ela ficaria irritada. —
Então, acho que mesmo a contragosto, vou continuar te chamando de
marrentinha.
Ravena trincou os dentes, engoliu em seco e deu um passo para
frente, encarando meus olhos intensamente.
Meu corpo já estava novamente dando sinais de estar afetado pela
proximidade, e minhas mãos coçavam para puxá-la para mim e beijá-la,
como meus lábios imploravam desde que nos separamos para recuperar o
fôlego.
— Se você tiver amor à sua vida, não vai querer arriscar. — Disse
baixinho, ameaçadoramente, causando arrepios na minha pele, arrepios
bons pra caramba.
— Nunca fui covarde — retruquei.
Sem medo de levar um tapa, ou um soco de direita, biquei seus lábios
rapidamente. A pirata arregalou os olhos e piscou confusa, antes de se
afastar com as bochechas coradas, naquele momento, não mais de raiva.
— Você é muito atirado — resmungou, evitando encarar meus
olhos.
Hum, a marrentinha também é tímida, mesmo que nunca fosse
admitir o que para ela pode ser considerado uma “fraqueza”.
— Você não reclamou enquanto me beijava como se a sua vida
dependesse disso.
Ravena soltou uma risada de deboche e balançou a cabeça.
— Você consegue ser cada vez mais convencido à medida que os
minutos passam. — Cruzou os braços com um sorriso de canto.
— Confessa que isso te atrai e é o principal motivo de você ainda
não ter dado as costas e me deixado aqui, plantado feito um poste. —
Segurei sua cintura, suspirando de alívio quando ela não se afastou,
enquanto empurrava seu corpo de costas até colidir novamente contra a
parede.
A marrentinha entreabriu os lábios, sem palavras, e abaixou a
cabeça, mordendo o lábio inferior.
— Talvez você tenha razão — murmurou.
Toquei seu rosto, acariciando sua bochecha com o polegar antes
de erguer seu queixo para que ela olhasse nos meus olhos.
— Ravena, eu quero muito que a gente… — minha frase foi
interrompida quando as luzes se apagaram e tudo se tornou uma completa
escuridão. De repente, todos começaram a falar alto e assobiar, na tentativa
de entender o que estava acontecendo.
A eletricidade tinha que acabar justo quando eu iria pedir à pirata
mais linda do mundo seu número e uma chance de vê-la de novo?
Distraído demais, olhando ao redor escuro, demorei dois
segundos para notar que minhas mãos estavam frias e vazias. Ela não estava
mais ali, aquecendo meu corpo.
— Ravena? — chamei, tateando a parede e olhando ao redor, mas
em vão. Era impossível enxergar sequer uma silhueta com toda aquela
escuridão.
— WOW! — Alguns gritaram quando as luzes voltaram
subitamente, iluminando novamente a casa de shows.
Estreitei os olhos, tentando me acostumar com a repentina
claridade, e girei a cabeça freneticamente para todos os lados, mas nenhum
sinal dela.
— Droga! — resmunguei, passando as mãos pelos cabelos.
— Caleb? Onde você se meteu, cara? Eu estava feito um louco
atrás de você. Kaster vai nos pagar agora. Vamos logo! — Elion me
empurrou pelos ombros em direção ao escritório, enquanto eu ainda olhava
para trás em busca da marrentinha.

— Aí estão vocês! — Kaster sorriu, sentado atrás de uma mesa de


madeira um pouco velha e manchada. — Sentem-se, ou pelo menos dois de
vocês, já que eu só tenho duas cadeiras. — Soltou uma risada como se
tivesse dito algo realmente hilário.
O humor do cara havia mudado drasticamente desde o nosso
último encontro, meia hora antes do nosso show…
— Devo admitir que vocês me surpreenderam. — continuou,
cruzando os braços quando não nos movemos e permanecemos os quatro de
pé, com a porta aberta atrás de nós. — Eu não esperava que a Smash
Secrets realmente fosse valer as £4 mil libras que vou tirar da minha conta
bancária. Não que esse dinheiro me fará falta, eu tenho muito mais… —
disse com um sorriso de canto arrogante e nojento, girando na cadeira
aparentemente enferrujada o suficente para rangir durante os movimentos
do idiota à nossa frente.
Eu só queria pegar o dinheiro logo e dar o fora dali.
Ninguém abriu a boca para emitir uma palavra desde que
entramos naquela sala, menor do que a garagem do meu avô. Notando que
iríamos permanecer daquele jeito, calados, apenas o encarando com tédio
evidente, o homem se deu por vencido e continuou:
— Enfim, vamos logo ao que interessa — disse irritado, inclinando-
se para abrir o que eu supus ser a gaveta da mesa. — Tá aqui a grana de
vocês. Mil para cada um. — Jogou quatro maços de dinheiro sobre a mesa,
enrolados com elástico.
Elion foi o primeiro a pegar a quantia, sorrindo feito uma hiena.
— Valeu, Thompson! — Ele agradeceu, sem tirar os olhos das
notas de cinquenta libras.
Nevan e Davian foram os próximos, e eu fui o último, nem de
longe tão empolgado quanto deveria por ter mais um mês de aluguel salvo e
não precisar pedir ajuda à minha mãe e meu avô.
Obrigado, Ravena, por ter conseguido me desarmar com apenas
alguns minutos de interação, por me abandonar durante aquele apagão sem
se despedir e por deixar minha cabeça uma completa confusão.
— Valeu, Kaster — murmurei, guardando o maço de notas dentro
do bolso da minha calça.
— Pode ser que eu entre em contato novamente, mas não vou
garantir. Bandas como a de vocês têm em cada esquina de Londres. —
Kasper deu de ombros com um sorriso de canto, maldoso e hipócrita como
ele.
— O mesmo eu digo sobre casas de shows. — Elion retrucou
afiado, com um sorriso tão debochado quanto o do homem sentado na
cadeira.
— Você deveria segurar mais essa sua língua afiada, Chapeleiro
Maluco — rosnou o produtor de eventos, ostentando um sorriso irritado.
Não perdi a forma como meu amigo trincou o maxilar, pronto
para abrir a boca novamente, porque se tem uma coisa que o Eli não aceita
é levar desaforo para casa.
Prevendo um desastre iminente, interferi:
— Vamos pegar nossas coisas e ir pra casa — falei baixo,
deixando o escritório sem olhar para trás.
— O que aconteceu, Caleb? Você tá estranho… — Nevan tocou
meu ombro, caminhando ao meu lado pelo corredor estreito até o nosso
“camarim”, onde deixamos nossos pertences e instrumentos após o show.
Não respondi, apenas abri a porta do pequeno espaço, cheirando a
incenso barato, e suspirei fundo.
— A garota fantasiada de pirata… — Comecei, pegando minha
mochila jogada sobre o sofá para guardar o dinheiro que eu havia colocado
no bolso da minha fantasia barata de Aladim.
— Você deu uns pegas nela? — Davian perguntou curioso,
guardando sua guitarra dentro da case preta de couro que ele leva para cima
e para baixo e, logo em seguida, sua máscara de Batman.
— Rolou, e se querem saber, foi bom pra caramba! — Suspirei,
mordendo o lábio inferior, e deslizei as mãos pelos cabelos. Em seguida, me
joguei sobre o sofá com as pernas abertas, minha mochila no colo e um
sorriso bobo.
— Deve ter sido mesmo… — Elion zombou, deslizando a língua
pelos dentes brancos e retos, enquanto exibia um sorriso safado.
— Olha a cara dele, gente. — Nevan sorriu, apontando para mim. —
Consigo até ver os emojis de carinha feliz com olhinhos de coração
flutuando ao redor da cabeça grande e cabeluda dele.
Davian e Elion soltaram risadas, e eu revirei os olhos.
— Vocês não têm nada pra falar e ficam soltando baboseiras. —
Levantei-me do sofá e caminhei até a minha guitarra, que repousava linda e
brilhante sobre a mesa onde minutos antes do show começar havia alguns
petiscos, frutas e bebidas. Abri minha case e guardei meu instrumento.
— E aí? Você pegou o número dela? — Davian continuou com
suas perguntas intrometidas.
— Bem, eu teria tentado se ela não tivesse ido embora
sorrateiramente quando houve o apagão — resmunguei, voltando a me
sentar no sofá.
— Quer dizer então que a pirata gatinha deixou você na mão? —
Nevan soltou, não contendo um sorriso, antes de se sentar no sofá ao meu
lado.
— Literalmente — acrescentou Elion, sorrindo feito o idiota que ele
é, enquanto fazia um gesto obsceno com a mão.
— Elion, você não precisa de faculdade, sabe por quê?
— Não. — soltou com um sorriso debochado, porém confuso.
— Você já nasceu com graduação em ser um pé no saco!
— WOW! — Davian e Elion soltaram em uníssono.
— Podia dormir sem essa, hein? Chapeiro Maluco! — zombou o
guitarrista da banda.
— Calem a boca, Batman e Hércules — resmungou o baixista,
lançando seu chapéu em direção ao guitarrista que, soltando risadinhas, o
pegou e colocou na cabeça, nada afetado pelo olhar matador do amigo. —
Além disso, eu sei que tenho razão, pois vi o Caleb aos amassos com ela no
cantinho perto do bar, quase se engolindo. Então, não duvido nada que o
nosso amiguinho aqui estava duro feito um mastro.
Estalei a língua no céu da boca, com a cabeça inclinada para trás,
mas optei pelo silêncio. Ele não estava errado; porém, eu não lhe daria o
gostinho de tirar uma com a minha cara novamente em menos de cinco
minutos.
— E aí Smash Secrets? Vocês deram um verdadeiro show lá fora
hoje, hum?!
Um cara, que eu nunca tinha visto na vida, vestido como um
roqueiro dos anos setenta, com uma calça jeans flare e uma camisa
estampada horrorosa parcialmente coberta por uma jaqueta marrom-escuro,
entrou no camarim. O homem agia como se fosse dono do lugar, e começou
a nos cumprimentar com tapas nas costas e aperto nos ombros como se
fôssemos seus velhos amigos.
Seus cabelos castanhos-escuros e lisos chegavam até a altura da nuca,
com costeletas nas laterais, e seu bigode estilo Chevron, me fez franzir a
testa. Para completar o look retrô, ele ainda calçava botas de couro preto,
tão brilhantes quanto uma moeda de ouro.
Meus amigos e companheiros de banda se entreolharam, tão confusos
quanto eu.
— Desculpe, mas… Quem é você? — perguntei com as
sobrancelhas arqueadas.
— Ah, claro! Que grosseria a minha entrar sem me apresentar. —
Sorriu, exibindo dentes amarelados, provavelmente de tanto fumar.
Na verdade, ele exalava nicotina, e meu nariz já estava
começando a dar sinais de irritação.
— Sou Felix Mariano, empresário artístico. Trabalho em Los
Angeles, quero dizer, aqui e ali, mas atualmente estou passando uma
temporada em Londres à procura de novos talentos. — Ajeitou sua jaqueta
de couro, em seguida, o cinto de mesmo material que sustentava sua calça
jeans desbotada e um pouco… suja. — É como dizem, as melhores bandas
de rock saem das terras da rainha — piscou, esperando que
concordássemos, mas apenas nosso silêncio foi sua única resposta.
— Empresário? — estreitei os olhos, com um vinco entre as
sobrancelhas, quebrando o silêncio que se instalara no pequeno cômodo.
— Aqui está o meu cartão. — Estendeu um pedaço de papel em
minha direção.
Fitei o pequeno objeto com o cenho ainda mais franzido do que
há segundos, lendo aquelas pequenas letras pretas com atenção. Ali dizia
que ele era empresário musical com mais de vinte anos de carreira… Eu
nunca tinha ouvido falar ou visto nada sobre aquele cara.
— E o que você quer com a gente? — encarei-o, mordendo o
lábio inferior.
— Vocês são muito bons! Como eu disse, vocês deram um show e
tanto lá fora. A plateia foi à loucura. — Sorriu admirado, sacudindo as
mãos.
— Eu agradeço em nome da banda, mas… Você ainda não
respondeu à minha pergunta — insisti, cruzando os braços enquanto
segurava entre os dedos o seu cartão.
— Ah, claro! — Felix coçou a nuca sem jeito. — Eu quero saber
se vocês já têm um empresário…
— Não! — Nevan foi rápido em responder.
Virei a cabeça na direção do baterista com os olhos estreitos,
fazendo-o se encolher no sofá.
— Não temos um empresário. — respondi, voltando minha
atenção para o “suposto” empresário e suspirei fundo.
— Mas também não estamos à procura de um — Elion soltou
com um sorriso falso, retirando seu casaco de chapeleiro maluco, antes de
jogá-lo sobre o ombro e colocar um chiclete na boca.
— Quem é o líder aqui? — Felix perguntou, não dando ouvidos
às palavras do baixista da Smash Secrets.
— Sou eu mesmo, Caleb Fleet. — Levantei-me do sofá, notando
nossa semelhança de altura.
— Caleb, nome de artista, hein?! — Deu um tapa em meu ombro
e o apertou.
Observei desde sua mão em meu ombro até seus olhos, deixando-
o desconcertado, enfim, retirando-a de mim.
O tal empresário pigarreou e ajeitou os ombros.
— Vou direto ao ponto, tá legal? Quero empresariar vocês porque
acredito que a Smash Secrets possui um potencial grande para conquistar
toda Inglaterra, quem sabe até a Europa?! Por isso, se vocês aceitarem
assinar um contrato de exclusividade comigo, vou transformá-los na maior
banda da atualidade de todo o Reino Unido e fazê-los tocar nos maiores
festivais do país!
Abri a boca para dizer que aquilo soava muita esmola para um
santo não desconfiar, mas alguém interrompeu minha quase fala:
— Qual foi? Tá pensando que nós somos idiotas? Ninguém aqui vai
cair nesse seu papinho furado não, ouviu bem? — Elion soltou na
defensiva, com o queixo erguido e os braços cruzados, mascando seu
chiclete com brusquidão.
— Calminha aí, garotão! — Felix ergueu as mãos com um sorriso
zombeteiro. — Ninguém aqui está falando merda pra você agir feito um
idiota.
O baixista arqueou as sobrancelhas, boquiaberto, e olhou entre
mim e os rapazes.
— Você me chamou de idiota?
O empresário deu de ombros.
— Qual foi, cara? Perdeu o juízo, hum? — Elion soltou, raivoso,
e avançou na direção do homem, mas rapidamente Davian o segurou pelos
ombros.
Suspirei fundo e fui até o baixista.
— Calma, Eli, vamos sentar e conversar — murmurei em seu
ouvido, tentando acalmá-lo, enquanto segurava seu ombro.
— Conversar o quê, Caleb? Tá na cara que esse cara é um
golpista tentando lucrar às nossas costas só porque viu que nós temos
potencial!
Suspirei fundo novamente e o soltei, antes de ele se jogar no sofá
com um bico do tamanho do mundo, realmente aparentando ser um garoto
mimado, o que, no fundo, ele era.
— Quantas pessoas já disseram a mesma merda antes e depois
deixaram a gente no prejuízo? — completou, ignorando totalmente a
presença do Felix Mariano.
— Isso é verdade. — Davian concordou baixo, e eu o encarei
com o olhar sério.
O guitarrista engoliu em seco e ergueu as mãos, calando a boca
que eu preferia que ele nem tivesse aberto para falar asneiras.
No entanto, eles estavam com a razão.
Não era a primeira vez que alguém se dizendo ser um empresário
importante na indústria da música nos Estados Unidos nos dizia as mesmas
palavras, repletas de promessas tentadoras, brincando com o nosso maior
sonho: ser a maior banda de rock do século XXI.
Pode soar arrogante, e talvez até seja, mas se tem uma coisa que
aprendi com o meu avô foi nunca desistir dos meus sonhos, por mais
impossíveis que eles possam parecer.
— Escuta, eu sei que pode parecer brincadeira, mas eu realmente
enxergo um grande potencial em vocês, hum? E sinceramente, eu não saio
por aí oferecendo meus serviços para qualquer um.
— De qualquer forma, você tem que admitir que a sua proposta é
um tanto ousada demais para não pensarmos se tratar de um golpe. — Sorri
falso, com os braços cruzados.
— Vocês não são obrigados a aceitar, eu só estou tentando ajudar
aqui, beleza? Se a sua resposta é não, então eu não tenho mais nada a dizer.
— Ajeitou sua jaqueta, pronto para seguir até a porta escancarada, que ele
mesmo deixou aberta.
— Espera! — falei alto, fazendo-o parar no meio do caminho e
me fitar com uma sobrancelha arqueada.
— Caleb… — Elion começou, mas apenas ergui a mão para que
ele não dissesse nada.
— Nós podemos pelo menos conversar entre nós antes de aceitar
ou recusar a sua proposta?
— Vou dar a vocês dois dias, apenas dois — enfatizou, exibindo o
número com os dedos. — Me liga quando decidirem. — Deu as costas e
deixou a pequena sala.
— Caleb, você não está pensando em aceitar essa merda, né?
Você simplesmente não pode tá caindo na conversa fiada daquele cara com
fedor horrível de cigarro.
— Você também fuma. — Retruquei zombeteiro.
Elion revirou os olhos e deslizou a língua pelos lábios, hábito que
ele executa sempre que está nervoso.
— Escuta, temos que tomar essa decisão juntos, o Davian, por
exemplo nem sequer abriu a boca para dar a opinião dele desde que Felix
Mariano entrou aqui. — Olhei para o guitarrista, que estava mais
preocupado em limpar sua preciosa do que em prestar atenção ao seu redor
e na importante conversa que estávamos tendo.
— O que foi? — perguntou confuso.
Revirei os olhos e peguei minha case com minha guitarra,
pendurando-a sobre meu ombro.
— Vamos pra casa, amanhã a gente fala sobre isso.
— Eu não tenho nada para falar. A minha decisão já está tomada.
Não vou assinar a porra de contrato nenhum! — Elion soltou irritado,
passando por mim feito um furacão em direção ao corredor.
— Quem vai levar o James Bond ? — Nevan perguntou, com
seus cachos bagunçados, referindo-se ao baixo do estressadinho.
Eu ainda estava com o cenho franzido quando ouvi o apelido do
instrumento, segurando o riso. Querendo ou não, era um apelido bem
peculiar e engraçado, principalmente quando desconhecidos o escutavam e
se perguntavam do que estávamos falando.
Todos ali parecem ter dado nomes aos seus instrumentos, exceto
eu.
Ao perceber que nem eu nem o Nevan estavámos dispostos a
responder, o guitarrista soltou um suspiro desanimado:
— Eu levo. — resmungou, carregando sua case de um lado e a do
amigo baixista do outro.
05
Eu poderia ser chamada de covarde naquele exato momento,
enquanto caminhava apressada em direção à saída da casa de shows até a
calçada, mas não iria me defender, porque eu sabia que estava agindo feito
uma.
Quando Caleb me pressionou novamente contra aquela parede,
acariciou meu rosto como se eu fosse a pintura da Mona Lisa, delicada e
inestimável – ou quase – meu coração parecia prestes a saltar do meu peito.
Meu corpo tremia tanto, que eu temi desmaiar ali mesmo, aos pés dele,
naquele chão imundo, fedendo a bebida barata.
No fundo, eu estava apavorada com a ideia de que ele fosse pedir
para nos encontrarmos novamente, ou o meu número, endereço, sei lá mais o
quê!
No entanto, fui sincera quando disse a ele que não passaríamos de
alguns beijos quentes e ele havia concordado. Então, por que Caleb me
olhava daquele jeito e dizia meu nome como se fosse um mantra sagrado?
Não, eu não iria cair naquela ilusão de novo. Eu simplesmente não
admitia agir feito uma idiota novamente e acreditar em um cara que eu mal
conhecia, por mais que a nossa química tenha sido surreal e excitante.
— É uma pena a festa ter acabado assim… — Catarina lamentou,
segurando uma embalagem com balas Tubes coloridas.
Onde ela conseguiu uma em primeiro lugar?
— O pessoal da companhia de energia elétrica disse que as
chances de ocorrer um novo apagão são grandes e que era melhor encerrar a
festa antes que algo pior pudesse acontecer, tipo um curto-circuito ou
incêndio — informou Michele, tirando suas asas.
— Bem, de qualquer forma, nós nos divertimos o suficiente, não é
ruivinha? — Logan sorriu, passando os braços ao redor da Ali.
A ruiva assentiu com um largo sorriso, acariciando os braços
fortes do namorado fazendeiro.
Suspirei fundo, de repente, sentindo a sensação do calor dos braços
do Caleb ao meu redor enquanto nos beijávamos como se o mundo fosse
acabar.
Droga! Eu só queria tomar um banho e lavar da minha pele o
aroma do perfume masculino dele. Talvez assim o cantor deixasse minha
mente em paz por algum tempo.
— Vamos embora? Eu estou cansada e amanhã ainda tenho que
trabalhar — falei alto o suficiente para todos ouvirem.
Meus amigos me encararam confusos, mas não disseram nada.
Logan fez questão de dar uma carona para Catarina e Michele, mas
eu preferia que ele tivesse deixado a bióloga ir para casa a pé. Quem sabe
assim ela não me deixasse à beira de um ataque de nervos, pronta para
sufocá-la com as balas açucaradas que ela continuava a enfiar na boca, uma
atrás da outra.
— Rav, aconteceu alguma coisa? Você tá calada… — ela comentou,
mastigando uma bala comprida, açucarada e rosa.
— Eu tô legal — murmurei, encostando a cabeça contra o vidro
fechado da janela.
Meus pensamentos estavam confusos e, de vez em quando, um par
de covinhas e um sorriso arrogante surgiam para me atormentar, fazendo
com que eu quisesse bater a cabeça em um poste qualquer.
Caleb Fleet, você me paga!
Aquele vocalista de banda de garagem estava conseguindo grudar
na minha pele com mais força do que eu pretendia quando aceitei trocar
alguns beijos, nada inocentes, com ele naquele cantinho escondido da
Electric.
Suspirei fundo, voltando a chamar a atenção da bióloga sentada ao
meu lado.
— Ravena, desembucha logo! O que foi que aconteceu na festa
que a gente não tá sabendo e deixou você assim tão quieta?
— Eu já disse que eu tô legal! — falei mais alto, irritada, prestes a
abrir a porta daquele monstro com quatro rodas e voltar caminhando para
casa, ainda que corresse o risco de ser levada pelo vento forte daquela noite
de outono.
Um momento de silêncio pairou dentro da caminhonete, até que
Logan o quebrou, informando que já estávamos parados em frente ao prédio
onde eu moro com sua namorada.
Sem mais uma palavra, abri a porta e desci do carro, marchando
em direção à portaria.
— Ravena, espera! — Alissa gritou, batendo a porta do veículo
antes de correr atrás de mim.
Não me importei em esperar por ela, apenas pressionei forte e
apressadamente o bendito botão do elevador, na esperança de que ele abrisse
logo suas portas de inox frias e blindadas.
Assim que o elevador chegou, fui a primeira a entrar, não
perdendo tempo e apertando o botão para o quinto andar. Mas, claro que
Catarina e Mich, a dupla Debi e Lóide, tinham que surgir correndo feito
loucas com aquelas fantasias ridículas.
— Espera! — Cat acenou, deixando um rastro de balas sobre o
piso impecavelmente limpo do hall.
O zelador com certeza ficaria muito feliz no dia seguinte ao chegar
e ver a lambança doce e colorida deixada de brinde para ele.
— E o Logan? — Alissa perguntou, olhando para o corredor enquanto
nossas amigas adentravam ofegantes e descabeladas no elevador.
— Ele pediu para dizer que foi passar a noite no AP dele em St. John’s
Wood. — Catarina disse meio embolado, mastigando suas balas.
Ela simplesmente não se cansava de comer!
— Por quê?
— Logan disse que nós quatro precisamos conversar e que ele não
seria de grande ajuda — completou Mich.
— Aaaah, meu ogro é tão compreensivo. — Ali sorriu com um
beicinho e as mãos sobre o peito.
Revirei os olhos, encostada na parede da caixa de metal com um bico,
o cenho franzido e os braços cruzados.
Assim que as portas do elevador abriram, empurrei as intrometidas
pelos ombros, passando entre elas enquanto ouvia seus resmungos sobre
como eu sou grossa e mal-educada.
Minha intenção era ir direto para o quarto, tomar um banho, engolir
com tudo um remédio para dormir e apagar até o dia seguinte. No entanto,
claro que o trio “trem da alegria” não deixaria meu sonho se realizar tão
fácil.
— Ravena, vem aqui. — Alissa segurou meu braço, guiando-me feito
uma criança perdida até o sofá, onde se sentou ao meu lado e gesticulou para
que Catarina e Michele fizessem o mesmo no tapete em frente a nós. —
Agora, você vai tirar essa carranca do rosto e nos contar o que aconteceu
durante a festa.
Abri a boca, pronta para afirmar mais uma vez a mentira da noite,
mas minha amiga bióloga foi mais rápida:
— E não diga que “não aconteceu nada”, porque nós te conhecemos o
suficiente para saber quando você está chateada com algo. — Catarina disse
séria, pela primeira vez naquela noite.
— O que é basicamente 98% do tempo. — Mich brincou, soltando
uma risadinha, que cessou assim que ela encarou minha expressão gélida e
desprovida de emoção. — Desculpa — murmurou com um beicinho e a
cabeça baixa, brincando com a borda do seu vestido branco de anjo.
Me encostei no sofá e apoiei a cabeça no encosto, com os olhos
fechados.
— Eu fiquei com o vocalista da Smash Secrets… — admiti baixo,
mantendo os olhos fechados.
— O quê? — Ali e Mich disseram em uníssono, mas o silêncio da
Catarina foi o que me fez abrir os olhos e encará-la.
Ela simplesmente nunca ficava calada em ocasiões como aquela, que
envolviam assuntos românticos e sentimentais.
— Você não vai dizer nada? — questionei com uma careta.
De repente, a bióloga abriu um largo sorriso e gritou:
— Eu sabia! — Bateu palminhas, animada. — Antes de as luzes
apagarem, eu olhei ao redor do salão, procurando por você, e vi vocês dois
conversando bem pertinho no cantinho próximo ao bar. Ele estava
acariciando sua bochecha…
— Mentira! — Michele disse alto, com a boca aberta, em completo
choque.
— Cat, quem usa óculos aqui é a Mich, mas talvez você também
esteja precisando de um. — Alissa soltou debochada. — Desde quando a
Ravena deixa um cara acariciar o rosto dela? — perguntou com um sorriso
de canto.
Trinquei o maxilar, fechei as mãos em punho sobre meu colo e engoli
em seco.
De todas as pessoas no planeta, justo a Catarina tinha que ter me visto
com o Caleb?
O universo estava mesmo ao meu favor, ou não!
— Mas é verdade! Eu vi com esses olhos que a terra ainda há de
comer, daqui a muitos anos, eu espero.
Michele soltou uma risadinha e balançou a cabeça após a fala da
tapada da bióloga.
— Diz pra elas, Rav! — Catarina gesticulou com as mãos.
— Eu só deixei porque estava meio… bêbada. — menti, encarando a
mesa de centro.
— É… sério isso? — Alissa me encarou com o cenho franzido.
— Por que você tá me olhando como se eu fosse um alienígena? Eu
deixei ele tocar meu rosto, e daí? Existe uma lei contra isso? — Soltei
frustrada e levantei-me do sofá.
— Uau. — Mich suspirou.
— Então é por isso que você está irritada? Porque deixou a guarda
baixar? — continuou a ruiva, com os olhos grudados em mim enquanto eu
andava de um lado para o outro da sala, com as mãos na cintura.
— É… frustrante, sabe? Nós apenas trocamos alguns beijos…
— Nada inocentes eu imagino. — insinuou Catarina.
— Cala a boca! — rosnei com a mão erguida, mas ela não se
incomodou, apenas deu de ombros e piscou para a Mich, que sorriu e
abaixou a cabeça. Suspirei fundo e revirei os olhos. — Só que… eu não sei,
aquilo me abalou um pouco, a forma como ele bateu de frente comigo, não
desistiu e foi direto. Os caras geralmente não são tão confiantes perto de
mim, na verdade, sou eu quem controla a situação — cuspi, irritada comigo
mesma por ter me deixado levar por um cara metido e carismático.
A pior combinação.
— Tá, mas e aí? Você gostou? Foi bom? — Ali cruzou os braços e
cruzou as pernas.
— Que pergunta, Ali! Olha a frustração dela, eu sinto como se fosse
tomar um choque só de encostar um dedo na Ravena. — Catarina disse com
o cenho franzido, olhando-me de cima a baixo.
— Você é ótima calada, Cat. — Soltei irônica, exibindo um sorriso
falso.
— Rav, não mude de assunto… — Alissa continuou, encarando-me
com os olhos estreitos.
— Se eu gostei ou não, não faz a mínima diferença. — Dei de
ombros.
— Ah, mas faz sim, se ele conseguiu deixar você mais irritada do que
já é. — Michele disse séria e levantou-se do tapete. — Sabe, Rav, você
deveria deixar alguém entrar, pelo menos uma vez… Não custa nada, não
dói nada. — Tocou meu ombro.
— Dói mais do que você pensa — murmurei, sentindo minha garganta
apertada e meus olhos marejados.
— Ravena, você tá chorando? — Alissa perguntou baixo e levantou-
se do sofá.
— Não! — Arregalei os olhos, na tentativa frustrante de espantar as
lágrimas. Porém, o olhar preocupado das minhas amigas estava tornando
aquela tarefa praticamente impossível.
— Mas é o que parece. — Mich virou meu rosto e ergueu meu queixo.
— Conta pra gente, amiga. O que aconteceu de tão grave que deixou você
com essa descrença tão grande em relação ao amor?
Aquela pergunta me abalou mais do que eu poderia sequer sonhar, e
quando dei por mim, já havia desmoronado e começado a chorar como há
muito não fazia.
— Meu Deus! — Ali veio até mim e me conduziu de volta ao sofá. —
Ravena, respira — pediu, gesticulando com a mão para eu inspirar e expirar
devagar, mas eu só sabia chorar e soluçar. — Cat, pega um copo com água e
açúcar para ela, por favor.
Catarina assentiu e correu até a cozinha, voltando segundos depois
com um copo duplo, que eu mal conseguia segurar devido ao tremor das
minhas mãos.
— Calma, Rav… Estamos aqui. — Mich sussurrou, abaixada ao meu
lado, enquanto acariciava meu joelho.
— Eu seguro o copo, agora bebe devagar. — pediu a veterinária,
segurando o copo com paciência.
Bebi, gole por gole, sentindo o gosto salgado das lágrimas se
misturando ao açúcar da água.
— Respira fundo.
Fiz o que a ruiva pediu e, naquele momento, estava um pouco, mas
apenas um pouco, mais calma.
— Nunca vi você chorar, Rav… — Cat murmurou preocupada, me
estendendo um lenço de papel.
— Conta pra gente, hum? — Alissa voltou ao assunto que iniciou toda
aquela crise de choro.
— Eu tinha dezesseis anos… — comecei, fechando os olhos com
força, deixando as lágrimas pingarem em minha roupa de pirata.
Dizer em voz alta o que aconteceu era tão doloroso… Eu sentia
como se todos os meus quase dez anos de terapia estivessem indo para o
ralo. No entanto, eu precisava desabafar; minhas amigas precisavam saber o
que aconteceu, talvez assim elas entendessem melhor aquele meu jeito
complicado de ser.
— Continua… — Mich incentivou, ainda acariciando meu joelho
em círculo.
— Quando eu estava no último ano do ensino médio, conheci um
garoto. Ele tinha dezessete anos e era novato na escola, mas rapidamente se
enturmou e se tornou o mais popular do colégio, sempre rodeado de outros
garotos e garotas que babavam por ele e faltavam pouco para beijar o chão
que ele pisava. — Fiz uma pausa, fechei minhas mãos em punho, mordendo
o lábio inferior enquanto fitava meu colo. — O nome dele era… Nolan. —
cuspi com nojo, sentindo meu estômago revirar e enxuguei o rosto
bruscamente usando o lenço, que quase rasgou.
— Meu Deus, por que eu tô com medo de ouvir essa história? —
Catarina murmurou com uma careta quase cômica.
— Cat, cala por pelo menos um minuto, por favor. — Ali rosnou
irritada.
A bióloga sussurrou um pedido de desculpas e fez gesto de calar a
boca e jogar a chave fora.
— Ótimo. — suspirou a ruiva, voltando sua atenção para mim. — O
que foi que aconteceu entre vocês? — ela perguntou, passando o braço ao
redor dos meus ombros.
— No começo ele era um fofo, educado e lindo com aqueles olhos
azuis e os cabelos pretos, quase a versão fetus do Henry Cavill… Toda vez
que ele olhava nos meus olhos, eu perdia o ar… Que nojo, agora falei igual a
Catarina — resmunguei, fungando o nariz e arrancando risadinhas das
minhas amigas ruiva e cacheada, e uma exclamação nada amigável da
bióloga.
“Enfim — suspirei fundo, antes de continuar: — um dia ele me
esperou depois da aula e me convidou para tomar um milkshake. Quando ele
tocou meu ombro, quase desmaiei de tanto que meu coração batia forte. Os
amigos dele ficaram o tempo todo nos observando, o que me deixou nervosa
e tímida. Acreditem ou não, eu era pior do que a Michele nessa época.”
— Hey! — exclamou a cacheada indignada.
— Continuando… eu aceitei o convite e nós fomos para a
lanchonete mais próxima do colégio. Claro que os amigos dele foram atrás e
ficaram o tempo todo soltando risadinhas e fazendo piadas idiotas, mas ele
me defendia e mandava eles pararem. Conversa vai e vem, após o
milkshake, ele me acompanhou até em casa. No entanto, antes que eu
pudesse entrar, ele me encostou no tronco de uma árvore e me beijou. —
Sorri fraco, lembrando a sensação, antes de o nojo e desgosto me dominarem
a ponto de eu querer lavar a boca com sabão. — Aquele foi o meu primeiro
beijo — murmurei, apertando o lenço úmido entre os dedos.
— Você perdeu o BV com 16 anos? — Catarina perguntou
espantada. — Caramba, Rav, até eu me saí melhor do que você nessa. —
Sorriu vitoriosa, mas eu rapidamente dei a volta por cima.
— Pelo menos eu não sou virgem — retruquei com um sorriso de
canto e a sobrancelha arqueada em desafio.
Seu sorriso deu lugar a um beicinho e ela deu de ombros, calando
a boca.
Para a alegria da nação!
— Aquele pareceu ser o dia mais feliz da minha vida… Tudo foi às
mil maravilhas nos dias que sucederam o nosso primeiro beijo. Ele me pediu
em namoro e me buscava para irmos juntos para a escola de bicicleta,
embora não entrasse na minha casa. Nós andávamos de mãos dadas pela
escola, e seus amigos até reclamaram que ele já não lhes dava a mesma
atenção por minha causa. Sem falar nas garotas do colégio que queriam até
me bater por ter “roubado” delas a preciosa atenção do idiota do meu ex e a
chance de algum dia serem a senhora Mayfield — soltei uma risada de
deboche. — Bando de idiotas!
— Vocês ficaram juntos por muito tempo? — Mich perguntou curiosa,
até se inclinando para ouvir melhor.
— Alguns meses, até ele…
— O quê? — As três perguntaram em uníssono.
Suspirei fundo.
— Até ele me levar para a cama. — Senti minha garganta se fechar
novamente e as lágrimas se acumularem em meus olhos.
— Oh! — murmuraram, também em uníssono.
— Você perdeu o BV e a virgindade aos dezesseis anos… — Catarina
disse baixo, fitando a parede ao lado da porta.
— No início eu não queria… Não estava pronta para dar aquele passo,
fosse com ele ou qualquer outro cara. No entanto, ele era tão gentil,
carinhoso, dizendo que me amava, que queria casar e ter filhos comigo,
apesar de sermos tão jovens... Foi impossível não acreditar.
— Por favor, diz que ele não abusou de você. — Michele sussurrou
com um olhar preocupado.
— Não! — afirmei com o cenho franzido. — O Nolan pode ser um
idiota, mas não acredito que ele seria podre a esse ponto. O que ele fez foi se
aproveitar da situação e me manipular, afirmando que seria bom para nós
dois, para o nosso relacionamento, que eu não precisava me preocupar e blá,
blá, blá. — Engoli em seco, sentindo as lágrimas escorrerem pelo meu rosto,
mas respirei fundo. Aquilo me faria bem, desabafar, saber que minhas
amigas não me julgariam, e continuei: — Nós ficamos, mas tudo foi tão
rápido, que não usamos preservativo.
— Ravena! — Ali disse alto.
— Eu sei que foi irresponsabilidade, tá legal? — falei mais alto. —
Porém, nós ficamos bem por um tempo, continuamos namorando. Mas após
algumas semanas ele começou a se distanciar e me evitava sempre que eu
tentava conversar com ele, passar mais tempo juntos. E quando seus amigos
me zoavam por ser tímida e calada, ele já não me defendia mais… — Fiz
uma pausa e umedeci os lábios.
— Depois de conseguir o que queria, ele ficou frio. Idiota! —
resmungou Catarina.
Respirei fundo e continuei, tentando ignorar o aperto no peito e a
respiração dolorosa.
— Mas tudo piorou quando a minha menstruação atrasou um mês,
depois outro, e foi aí que o pânico começou a me dominar. — Peguei uma
almofada e abracei contra o peito, apertando-a como se minha vida
dependesse disso.
“Eu pensei que estava grávida, então achei melhor contar ao Nolan;
ele precisava saber. No entanto, quando soube da possibilidade, meu ex
entrou em pânico, disse que a culpa era minha, que eu o havia seduzido e
tantas outras merdas. Meu mundo simplesmente caiu. O cara que dizia me
amar havia se aproveitado de mim e pretendia me abandonar no momento
em que eu mais precisava dele. Para complicar ainda mais, quando contei
aos meus pais… — Engoli em seco, relembrando o caos que foi toda a
situação.
“Minha mãe mal conseguia me olhar nos olhos; minha irmã, que me
via como um exemplo, sua heroína, estava chocada e mal disse uma palavra.
Já o meu pai… bem, a garotinha dos olhos dele havia se tornado sua maior
decepção. — suspirei fundo, tremendo durante o processo, mas continuei: —
Meu irmão queria literalmente matar o Nolan por roubar a virtude da sua
irmãzinha, mas eu fui categórica em afirmar que ele não havia me forçado a
nada. Apesar de tudo, o canalha perguntou mais de uma vez se eu estava
segura do que queria, mesmo que no fundo ele estivesse usando chantagem
psicológica e emocional para conseguir que eu cedesse, e no fim… Bem, no
fim ele conseguiu o que queria. — Sorri amarga.
— M-mas você estava mesmo grávida? — Catarina perguntou.
Um momento de silêncio, quase ensurdecedor, dominou a sala de
estar.
06

— Não.
Minhas amigas suspiraram, tão aliviadas quanto eu fiquei quando o
terceiro teste de farmácia que eu havia comprado deu negativo.
— Apesar disso, minha família já não me enxergava da mesma
forma… O clima lá em casa era péssimo. Minha mãe acordava cedo,
preparava o café e voltava para o quarto, apenas para não ter que me
encontrar. Na escola, meus “amigos” me deram as costas. Nolan havia dito
a todos que eu era uma vagabunda, tentando lhe aplicar o golpe da barriga,
apenas porque o idiota pertence a uma família rica. — Sorri falso, querendo
muito chutar e socar um saco de boxe. — Decidi então começar a fazer
terapia, pesquisei na internet e vi que poderia ajudar de alguma forma.
— Eu não fazia ideia de que você faz terapia. — Ali murmurou,
como se se sentisse culpada.
— Você não teria como saber, porque nunca comentei com vocês —
murmurei.
— Mas tá funcionando? — Cat perguntou insegura, me fazendo abrir
um fraco sorriso de canto e estalar a língua no céu da boca.
Catarina era a única capaz de me fazer sorrir enquanto relembrava
um dos maiores pesadelos da minha vida.
— Acredite, eu melhorei muito depois do que aconteceu. — Sorri
fraco.
— Então é por isso que você não se envolveu sério com mais
ninguém? — Alissa murmurou ao meu lado.
Assenti com a cabeça baixa.
— Depois do Nolan, nunca mais me senti daquele jeito por alguém…
Mas quando o Caleb me beijou, foi ainda mais intenso do que era com ele.
Uma parte minha sentiu que podia confiar nele, mas… — Fechei os olhos e
joguei o lenço molhado no chão.
— Rav, nós te entendemos, eu te entendo, mas você não pode se
privar de conhecer alguém bacana por acreditar que todos os caras são
iguais e vão te decepcionar — Ali continuou séria, segurando minha mão.
— Eu era jovem, ingênua e inexperiente. Me deixei levar por
palavras bonitas e gestos românticos, acreditando que eram sinceros. Não
quero e não vou passar por aquilo novamente! Ser do jeito que sou foi a
forma mais fácil que encontrei para me proteger.
— Mas o Nolan foi um idiota, Rav. Isso não significa que o Caleb é
igual e que você tenha que se proteger dele — disse Catarina.
— Eu sei, mas não posso arriscar... — Apertei minhas mãos em
punho e fechei os olhos, soltando um suspiro longo, profundo e até um
pouco trêmulo. — Sabe, eu me senti um lixo por anos. Como eu disse,
minha mãe ficou um mês sem falar absolutamente nada comigo; minha
irmã não confiava mais em mim e meu irmão me achava uma vagabunda…
Meu pai foi o único que demonstrou um pouco de compaixão, embora eu
sentisse que, no fundo, ele me enxergava como a vergonha da família.
— Por isso você nunca fala deles? — Ali perguntou baixo, como se
estivesse com medo da resposta. — Vocês ainda estão brigados?
— Não, quero dizer, mais ou menos… — murmurei, coçando a testa.
— Meu irmão até fala comigo uma vez ou outra e se desculpou por ter me
chamado de vagabunda; inclusive, foi ele quem me indicou a minha
terapeuta. Já a minha irmã, ela me ama demais para ficar mais de uma
semana sem falar alguma merda comigo, e vocês a conhecem… — Sorri
fraco, e elas retribuíram.
— A Reyna é o completo oposto de você. — Mich brincou, soltando
uma risadinha.
— E os seus pais? — Alissa perguntou séria.
Soltei um suspiro, acompanhado de uma risadinha desprovida de
humor.
— Minha mãe ainda não fala muito comigo, apenas quando é
extremamente necessário. Além disso, meu pai é um capacho nas mãos
dela, faz tudo o que ela manda, então... vocês já sabem a resposta.
— Sinto muito, amiga. — Mich sussurrou.
— Eu também — soltei amarga, com um nó na garganta. — E é
por isso que eu afirmei para a minha terapeuta que não importa o que
acontecesse, eu não seria mais aquela garota ingênua e romântica, que
acreditou nas palavras de um idiota qualquer e quase teve o futuro
estragado por uma irresponsabilidade.
Minhas amigas me fitaram em silêncio pelo que pareceu horas,
até Michele quebrá-lo:
— Sei que você não quer falar dele, e admito que é idiotice da
minha parte perguntar, mas e o seu ex? Vocês já se encontraram depois do
que aconteceu? — murmurou, estalando os dedos da mão, mania irritante
que ela não parece ter intenção de abandonar.
Senti meu estômago revirar e neguei, balançando a cabeça
devagar.
— Ele foi embora para Copenhague estudar medicina — fechei
os olhos, massageando minhas têmporas. — Claro que ele iria fugir quando
a possibilidade de ser pai bateu à porta — soltei uma risada de desdém. —
É isso que os covardes fazem.
— Sabemos que foi barra passar por tudo isso praticamente sozinha
e–
— Eu estava completamente sozinha, Catarina. Até aqueles que se
diziam ser meus “amigos” me abandonaram, me deram as costas,
acreditaram nas palavras daquele idiota.
A bióloga engoliu em seco e assentiu devagar, antes de continuar:
— Mas o Caleb não tem culpa de nada disso — disse, mudando de
assunto.
— Ainda estamos falando dele? — Revirei os olhos.
— Claro que sim! — Cat enfatizou com as mãos na cintura e o cenho
franzido.
Ela estava levando mesmo a sério o simples beijo que troquei com o
músico.
— Você tem que procurá-lo, ele pode ser a sua alma gêmea!
— Ah, Catarina, me poupe do seu romantismo delulu. — Revirei os
olhos, com a mão erguida. — Além disso, duvido muito que eu vá encontrá-
lo novamente, não que eu queira, claro. Até porque, Londres tem mais de 9
milhões de pessoas, as chances são de uma em nove milhões. — Sorri
debochada.
— Ainda assim, existe uma chance — Mich ponderou com um
sorriso fraco.
— Chega desse assunto, entenderam? — Levantei-me bruscamente
do sofá. — Eu não quero mais falar do meu ex, muito menos, do cara que
eu vi uma vez na vida e com quem troquei apenas uns amassos. — Suspirei
fundo, tirando a bandana da cabeça. — O Caleb pode ser um cara legal, ou
não! Nunca saberemos. Então, até segunda ordem, ele é assunto proibido,
ouviram bem? — Ergui o dedo, olhando de uma para a outra com o cenho
franzido, mais séria do que o necessário.
Mas elas precisavam entender e deixar aquele assunto de lado.
Eu não queria um relacionamento com ninguém. Estava muito bem
solteira e desimpedida. Um amor não faria a minha vida melhor; apenas me
traria dor de cabeça, decepção e me impediria de viver como eu gostaria:
livre, leve, solta e, o melhor de tudo, 100% independente.
Minhas amigas permaneceram em silêncio. Sendo assim, segui até o
quarto e bati a porta antes de me jogar de bruços sobre o colchão, sujando
meu travesseiro de maquiagem ao apertá-lo sob minha cabeça.
Não tive coragem de me olhar no espelho.
Eu deveria estar parecendo uma assombração com a maquiagem
borrada.

— Sabe, Cal, às vezes eu tenho dó do seu precioso Ford Cortina.


— Nevan sorriu, batendo a porta do porta-malas após guardarmos nossos
instrumentos no compartimento.
Meu velho Ford preto, presente de dezoito anos do meu avô,
assim que completei a maioridade e tirei a carteira de motorista,
encontrava-se lotado de instrumentos a ponto de quase não conseguir
manter a porta traseira fechada.
— Acho que vamos precisar de um caminhão para acomodar tudo
isso — brinquei, gesticulando com a cabeça para que o baterista entrasse no
veículo.
Colocar a bateria do Nevan no carro era sempre um exercício de
paciência e uma luta cansativa.
Elion, por outro lado, ainda ostentava um bico enquanto mexia no
celular, sentado no banco de trás, vestido de chapeleiro maluco. A verdade
era que nenhum de nós estava a fim de perder mais tempo e trocar de
roupas. Todos estávamos cansados, com sono, implorando por um banho
quente e uma cama macia.
— Amanhã quero todo mundo lá em casa pra gente decidir o que
fazer sobre a proposta do Felix — reforcei, apenas para que não houvesse
mal-entendidos.
— Minha opinião continua a mesma — resmungou o baixista,
me encarando através do retrovisor.
Suspirei fundo e revirei os olhos, conduzindo meu velho Ford até
a rua principal da Camden High Street. O local estava lotado de boêmios,
curtindo uma noite outonal de sexta-feira, como se não tivessem um milhão
de problemas para resolver e uma pilha de contas para pagar.
A vida noturna na capital parecia tão fácil que, às vezes, eu me
questionava se Londres pertencia ao mundo real.
Deixei meus amigos em suas respectivas casas, sendo que dois
deles, Davian e Nevan, ainda vivem com os pais. Elion, por sua vez, era um
espírito livre, que vivia aprontando quando não estava sob o meu radar.
— Tá entregue, chapeleiro — falei, desligando o carro em frente
à entrada com grama aparada e seca, coberta de folhas caídas das árvores ao
redor do prédio nos subúrbios da cidade. No entanto, a fachada de tijolos
pichada de preto, exibia palavras que eu preferia não repetir.
— Valeu — murmurou, abrindo a porta do veículo.
— Eli, espera! — pedi, colocando o braço na janela ao meu lado.
O baixista suspirou fundo, segurando contra o peito o chapéu que
fazia parte de sua fantasia, e parou ao meu lado.
— Você vem amanhã, né?
Ele abriu a boca para responder, mas continuei:
— Eu sei que você já tem a sua opinião formada, mas precisamos
tomar essa decisão juntos. Nós somos mais do que uma banda e você sabe
disso…
Elion me fitou com o cenho franzido, em completo silêncio, antes
de assentir fracamente.
— Agora me empresta a chave para eu pegar o James Bond. —
Ele estendeu a mão.
Abri um sorriso de canto e fiz o que o baixista pediu.
Meu amigo me devolveu a chave e seguiu pela grama com passos
lentos, quase arrastados, até a portaria do prédio com a case contendo seu
instrumento, pendurada sobre o ombro direito.
Fiquei observando-o até que ele desapareceu no interior da
construção, já um pouco precária devido às mudanças climáticas e falta de
zelo dos moradores.
Já pedi ao rapaz mais de uma vez para que ele viesse morar
comigo, mas o cara é cabeça dura. O baixista afirma com todas as letras
que vai “perder” sua liberdade se dividir um pequeno espaço comigo,
mesmo que meu apê tenha dois quartos com tamanho razoável o suficiente
para ele se acomodar bem. Sem falar que no meu bairro as coisas são bem
mais “tranquilas”.
Não havia um dia em que a polícia não desse as caras por ali, e
foi exatamente o que aconteceu no minuto seguinte. Um rapaz estava sendo
algemado e conduzido por uma policial feminina até a viatura da polícia
metropolitana, com a cabeça baixa, enquanto outro policial segurava uma
sacola plástica que provavelmente continha algo ilegal.
Suspirei fundo, balancei a cabeça e liguei novamente meu carro.
Estava exausto e louco para chegar em casa e dormir, pensando na melhor
decisão para a Smash Secrets no dia seguinte.

Quando fechei a porta do meu apartamento, já passava da meia-


noite. Estava tudo silencioso, frio e escuro, até eu ouvir um baixo miado.
— Candy! — Sorri e olhei para baixo, vendo a gata vira-lata com
pelos marrom e branco, se esfregar na minha perna com o rabo erguido.
Acariciei seus pelos macios e cheirosos, arrancando mais um miado
satisfeito do animalzinho – que encontrei perdido na rua há dois anos – e
joguei minhas chaves sobre a mesa de centro.
As luzes noturnas de Wimbledon, bairro onde moro desde que saí de
casa em busca do meu sonho de ser cantor profissional, brilhavam sob o céu
escuro, com nuvens cinzas e pesadas, prometendo uma chuva mais tarde.
Alguns postes já estavam começando a ser enfeitados com
estrelas cadentes para o Natal, que só chegaria dali a dois meses. No
entanto, os londrinos são conhecidos pela agilidade e pontualidade, então
deixar algo para última hora, não está no dicionário dos ingleses.
Tirei meu chapéu, em seguida o par de sapatilhas do Aladim, e
tratei logo de ligar o aquecedor. A sala estava gelada e ainda nem havíamos
chegado ao inverno.
— Está com frio, Candy?
— Miau!
Acredito que aquilo foi um não.
Deslizei a mão pelos meus cabelos, suspirei fundo e caminhei até
a janela, fitando a rua deserta. Havia apenas um casal se beijando contra
uma parede, dois bêbados brigando por uma garrafa de gim tônica e um
homem solitário, fumando um cigarro com o pé na parede e a mão livre no
bolso de seu casaco preto, com alguns furos evidentes.
Puxei a cortina e olhei ao redor da sala. As paredes estavam
decoradas com quadros de guitarras e algumas bandas que eu gosto; um
velho toca-disco sobre uma estante de madeira, alguns discos de vinil que
ganhei do meu avô ao redor e uma grande almofada estampada com a
bandeira do Reino Unido descansando sobre o sofá velho de couro marrom
que comprei em uma loja de segunda mão.
Ainda restavam algumas garrafas de cerveja, embalagens de
isopor e sachês de ketchup espalhados sobre a mesa de centro. Resumindo,
estava tudo uma completa bagunça. Porém, em minha defesa, naquele
momento eu estava cansado demais para sequer imaginar pegar uma
vassoura para varrer os farelos de pão pintando o tapete.
Se minha mãe chegasse ali naquele exato momento, acredito que
ela ficaria decepcionada com o filho mais velho. Também estaria
insatisfeita por saber que, aparentemente, ele não está se virando bem como
um homem adulto e responsável. Talvez nem tanto.
Após me certificar de que a pequena vasilha de comida da minha
gatinha, que fica ao lado da estante da TV, estava cheia, apaguei a luz do
cômodo e segui para o quarto acompanhado pela Candy. Ela adorava dormir
ao pé da minha cama.
Um suspiro de alívio e prazer deixou meus lábios quando a água
quente do chuveiro cobriu meu corpo, aquecendo-o da cabeça aos pés em
questão de segundos.
Fechei os olhos, apreciando a sensação relaxante, e rapidamente
meus pensamentos voltaram para os acontecimentos da noite: os beijos e
carícias que troquei com a Ravena, as trocas sutis de farpas e a frustração de
perdê-la de vista após o apagão.
Respirei fundo, ensaboando meu corpo com uma bucha vegetal velha
e aos pedaços. A cada milímetro que o objeto deslizava pela minha pele, um
arrepio era sentido, trazendo à memória a sensação dos toques da pirata
marrenta.
— Será que algum dia te verei novamente, marrentinha? — sussurrei,
abrindo um sorriso de canto, enquanto deixava a água limpar os rastros de
sabão.
A ideia de que aquilo tenha sido uma vez e nada mais, apertava meu
coração. Sei que disse a ela que aceitava sua condição de apenas alguns
beijos e ponto final, mas não esperava que a nossa química fosse me
desestabilizar como fez.
Meu corpo ansiava por mais, muito mais, e só ela era capaz de saciar
a fome que invadiu meu ser de fora para dentro.
Balancei a cabeça e deslizei a mão pelos fios molhados e ondulados
que a cobriam, em seguida fechei a torneira do chuveiro. Minha toalha,
aquecida pelo sistema de calefação do banheiro, cobriu minha cintura. Por
sua vez, meus pés descalços deixaram um rastro molhado sobre o piso de
madeira enquanto caminhava até o quarto em busca de alguma roupa
qualquer para dormir.
Deitei de costas sobre o colchão macio e quente, cobri meu corpo
com um cobertor e encarei o teto com algumas lascas soltas, pensando em
como convencer Elion a aceitar a proposta do Felix. Talvez fosse um risco
assinar aquele contrato. Entretanto, só saberíamos se tentássemos.
O problema era que se o baixista mantivesse sua ideia de não aceitar
a proposta, não sei o que faríamos: perderíamos a melhor oportunidade de
nossa carreira, ou um amigo em troca do sucesso incerto?
Fechei os olhos e deitei de lado, abraçando o travesseiro sob minha
cabeça.
Candy se enroscou sobre o cobertor ao lado dos meus pés e
adormeceu.
No dia seguinte, eu iria atrás da melhor pessoa para dar conselhos no
mundo: senhor Elliot Fleet, também conhecido como meu avô. Ele sempre
me apoiou em todas as decisões e é o fã número um da melhor banda de
garagem da Inglaterra, palavras do próprio.
Com um sorriso e esse pensamento, adormeci minutos depois.

Minha boca abriu em um bocejo quando atravessei a porta de


casa, segurando as chaves do meu carro para ir visitar minha mãe, meu avô
e meu irmão caçula. A ideia era conversar com o senhor Fleet e voltar antes
que o trio da Smash Secrets chegasse para a nossa reunião decisiva.
No entanto, uma dor de cabeça vinha me atormentando desde a
noite passada. Tudo por culpa da teimosia e relutância do Elion, que era
contrário a quase tudo que envolvesse assinar um contrato e ser
empresariado por alguém que não fosse nós mesmos.
Enquanto dirigia em direção à casa da minha família, passei em
frente à esplanada do Wembley Stadium, o maior estádio da Inglaterra e um
dos mais famosos do mundo. O sonho de todo artista é um dia se apresentar
para uma multidão naquele lugar, e tenho certeza de que um dia estarei lá,
em cima daquele palco, tocando e cantando com meus companheiros, como
sempre almejamos.
A Smash Secrets é capaz de isso!
O Wembley fazia parte da minha vida desde que me entendo por
gente; praticamente cresci dentro daquele lugar. Sempre que podia, meu pai
me levava para assistir às partidas do FC Wimbledon, time de futebol do
coração do meu velho, especialmente durante o campeonato inglês.
Então, quando coloquei na cabeça que queria ser cantor e formar uma
banda de rock, ele afirmava que ainda me veria tocar no mesmo lugar que o
Queen, Roger Waters e tantas outras bandas e artistas de sucesso.
Engoli em seco com a lembrança, sentindo o peito apertado,
segurando firme o volante do meu Ford Cortina. Infelizmente, esse era um
sonho que nem eu, muito menos ele, iria realizar. A perda do meu pai ainda
era um tópico sensível na família. Apesar de já terem se passado quatro
anos, o vazio ainda estava presente, uma lacuna que jamais seria
preenchida.
Mordi o lábio inferior para conter as lágrimas iminentes e virei na
próxima esquina. Poucos metros adiante, avistei meu avô juntando, com um
rastelo, as folhas de maple espalhadas pelo chão cimentado da calçada.
Buzinei ao me aproximar, atraindo sua atenção, e o sorriso que ele
abriu, aqueceu meu coração. Depois do meu pai, o senhor Fleet era o meu
maior herói e exemplo.
— Caleb, você não morre tão cedo! Ainda há alguns minutos eu
estava falando com seu irmão sobre sua apresentação no Electric ontem…
Desci do carro e travei as portas com o alarme, seguindo até ele.
— Ah, sim? E o que acharam?
Meu irmão afirmou que mostraria a apresentação da Smash
Secrets para nossa mãe e nosso avô através de uma live no instagram, e
parece ter cumprido sua promessa.
— Vocês arrebentaram a boca do balão! — Apertou meu ombro.
Soltei uma risadinha com sua expressão antiquada.
— Valeu, vô! — Dei-lhe um abraço, recebendo alguns tapinhas
gentis na costas.
— Vamos entrar, sua mãe vai ficar feliz em vê-lo — Gesticulou
com a cabeça em direção à porta de entrada, pintada de branco, com um
olho mágico no centro e um porta-cartas abaixo.
07

Minha mãe estava de pé na cozinha, ocupada com algumas


panelas sobre o fogão e nem se deu conta da minha presença.
Olhei para o meu avô, que piscou e gesticulou para que eu fosse
até ela no mais absoluto silêncio, pé por pé. Sorrindo, fiz o que ele indicou
e a abracei por trás, fazendo-a soltar um grito e dar um pulo que quase a fez
derrubar as panelas no chão.
— Caleb! — exclamou, me dando um tapa no ombro. — Você
quase me mata de susto, garoto!
Soltei risadinhas e ergui as mãos, tentando me proteger dos
tapinhas de pluma dela.
— Foi ideia do vovô — apontei.
Senhor Fleet arqueou as sobrancelhas e cruzou os braços.
— Eu não disse nada, disse?
Neguei, balançando a cabeça.
Meu avô sorriu vitorioso e pegou uma caneca sobre o armário
antes de despejar um pouco de café fumegante dentro do objeto de louça.
— Hum, sei… De qualquer forma, que surpresa boa, querido! —
Minha mãe segurou meu rosto em concha e beijou minhas bochechas com
fervor. — Estava com tanta saudade… Você está se alimentando bem?
Espero que não esteja se empanturrando de fast food e bebendo todos os
dias.
— Mãe, eu tô legal. Não se preocupe — garanti, pegando suas mãos
e retirando-as do meu rosto antes de beijá-las com ternura.
— Caleb! — Clarence – meu irmão caçula – gritou, descendo as
escadas de madeira como uma manada de búfalos. O jovem entrou na
cozinha com os pés descalços, com os cabelos castanhos e ondulados como
os meus, desgrenhados, sem camisa e com a bermuda de seu pijama
deixando boa parte de sua cueca da Calvin Klein à mostra.
— E aí, pirralho? — Acenei, abraçado com a nossa mãe. Meus
braços cobriam seu peito sobre o avental de cozinha estampado com o
desenho de uma senhora com cabelos grisalhos, segurando uma colher de
pau.
— Cara, vocês foram fodas ontem! Meus colegas da escola
ficaram de boca aberta quando contei a eles que você é meu irmão. Eles
nunca acreditaram quando eu disse que meu irmão é vocalista de uma
banda, mas agora… — Fez uma pausa, mordendo o lábio inferior com um
largo sorriso. — Agora, eles estão loucos para conhecer você e os meninos.
— A live foi um sucesso, querido — disse minha mãe, olhando-
me por cima do ombro e exibindo um sorriso orgulhoso.
— Foi mesmo — concordou meu avô, ainda segurando sua
caneca.
— Fico feliz. — Sorri, colocando as mãos no bolso do meu
moletom preto.
— Agora, senta aqui e tome um café da manhã decente e
reforçado. — Dona Adelaine Fleet puxou uma cadeira e gesticulou para que
eu me sentasse.
— Eu já tomei em casa mãe… — Sentei-me, apenas para vê-la
me encarar com as mãos na cintura e os olhos estreitos.
— Caleb, isso não foi um convite.
Ergui as mãos e não disse mais nada.
— Clarence, aproveita e come também — ordenou, abrindo o
armário acima da pia para pegar dois pequenos pratos.
— Eu ainda não escovei os dentes…
— Então, o que você ainda está fazendo aqui?
Clarence revirou os olhos, e eu o repreendi. Ele deve fazer o que
ela pede sem reclamar; nossa mãe estava apenas cuidando dele, assim como
fez e ainda faz comigo.
— Foi mal — murmurou com a cabeça baixa e deixou a cozinha.
— Ele tá dando trabalho? Se estiver, é só me falar que eu dou uns
puxões de orelha nele — falei à minha mãe, observando-a despejar calda de
chocolate sobre as panquecas.
— Seu irmão é quase um anjo, querido. — Apertou minha
bochecha, colocando os pratos sobre a mesa.
Olhei para o meu avô, calado e perdido em seu prórpio mundo.
— Vô?
— Sua mãe está certa, meu neto. Clarence é um bom menino,
apenas um pouco desajeitado e eufórico. — Sorriu, sentando-se do outro
lado da mesa de frente para mim.
Assenti fraco com o cenho franzido.
O aroma das panquecas doces e quentes invadiu meu olfato e
encheu minha boca d’água. Nada se comparava à comida caseira que só
minha mãe é capaz de fazer, e que eu sentia muita falta, só não mais do que
a presença constante da minha pequena família sempre ao meu redor.
Apesar da saudade constante, sei que tomei a decisão certa ao sair de casa
aos 21 anos para me virar sozinho, fazendo um bico aqui e ali, já que a
faculdade não rolou pra mim.
Meu pai nos deixou um mês antes de eu tentar o exame de
admissão na faculdade de Manchester com bolsa parcial para cursar música.
Minha cabeça deu um nó e não consegui mais me concentrar em nada. Para
piorar, as dívidas que ele deixou com o banco por fazer empréstimos, a fim
de dar um upgrade na sua velha oficina de carros, quase nos fizeram perder
a casa em uma hipoteca.
Nossa sorte foi que meu avô tinha algumas economias que deram
conta de pagar a hipoteca antes que o pior pudesse acontecer.
Até hoje não me conformo com o que aconteceu. Meu pai era o
meu maior exemplo e sempre será, mas ele foi irresponsável em arriscar o
nosso único bem, o único teto que tínhamos sobre nossas cabeças, em troca
de crescer um empreendimento que já estava fadado ao fracasso.
Balancei a cabeça, não querendo mais pensar naquele assunto.
Finquei o garfo na panqueca, levando-o até a boca antes de soltar um
gemido de prazer com o sabor único da massa suculenta, coberta de
chocolate. O meu preferido desde criança.
— Mãe, a senhora não faz ideia do quanto eu senti falta dessas
panquecas.
— Você fala como se não as tivesse comido na semana passada
— zombou Clarence, antes de entregar ao nosso avô o jornal do dia e se
sentar ao meu lado. Naquele momento, o jovem estava mais apresentável,
vestido com uma camisa do Arctic Monkeys que dei a ele no seu
aniversário de dezesseis anos, e uma bermuda preta da Nike.
— Cala a boca, pirralho — sacudi seus cachos, fazendo-o arrastar
sua cadeira para o lado, resmungando sobre eu não deixar seu cabelo
desgrenhado em paz.
— Vamos comendo vocês dois e parem de implicar um com o
outro! — repreendeu-nos nossa mãe, apontando para os dois pratos.
Sorri com suas palavras e voltei minha atenção para o objeto de louça
sobre a mesa, com seu conteúdo já pela metade. Eu estava com mais fome
do que pensei.

Após o café, limpei os lábios com um guardanapo e olhei para o


meu avô, entretido com seus óculos de grau quase na ponta de seu nariz,
enquanto lia atentamente o jornal.
Meu relógio de pulso marcava oito da manhã e eu havia
combinado com os rapazes às nove lá em casa. Ou seja, tinha apenas uma
hora para conversar com meu avô e voltar para casa, antes de aquela tropa
chegar atropelando e bagunçando meu apartamento, que eu custava muito
para manter em ordem.
— Vô, posso ter uma palavrinha com o senhor?
— Claro! — Deixou o jornal sobre a mesa e gesticulou com a cabeça
para que eu o acompanhasse até o jardim ao fundo da casa.
Minha mãe e Clarence estavam na sala, entretidos com algo na TV e
não notaram nossa rápida saída.
— Sobre o que você quer falar? — Meu avô foi direto ao ponto,
como sempre.
— O senhor me conhece mesmo…
Ele assentiu com um sorriso de canto, colocando as mãos nos bolsos
de sua calça jeans, um pouco suja de terra. Meu avô era um homem forte,
tanto no sentido físico quanto emocional. Mesmo com os cabelos grisalhos
e cheios, ele exalava confiança e força, não deixando a peteca cair nem nos
momentos mais difíceis, como foi quando meu pai partiu, deixando sua
filha e os dois netos “sozinhos”.
— Desde que você nasceu — piscou, me fazendo soltar um riso e
colocar o capuz do meu moletom sobre a cabeça. O vento soprava forte e
frio, agitando os troncos das árvores e espalhando as folhas no ar.
— Após o show ontem, um cara foi até o nosso camarim e–
— Vocês tiveram um camarim? — interrompeu, com uma
sobrancelha arqueada e tom humorado.
— Pela primeira vez. — Sorri, com a cabeça baixa, fitando a
grama bem aparada e seca do jardim.
— Desculpe interromper, continua… — Gesticulou com a mão,
até nos sentarmos em um velho banco de madeira sob uma árvore de
cerejeira nua.
— Bem, em resumo, ele nos disse ser empresário musical e que
gostou da nossa apresentação. Também perguntou se tínhamos um
empresário e blá, blá, blá… — Fiz uma pausa e suspirei fundo. — O fato é
que ele nos fez uma proposta: assinar um contrato de exclusividade com ele
para que possa gerenciar a nossa carreira, com a promessa de tornar a
Smash Secrets a maior banda de rock da atualidade.
— Wow! — soprou. — Audacioso ele, hum? — Empurrou meu
ombro suavemente com o seu.
— O Elion acha que é furada e afirmou que não vai assinar
contrato nenhum…
Meu avô abriu um sorriso de canto, mas não disse que era exagero do
baixista e, no fundo, não sei se isso era bom ou ruim.
— Meu neto, sei que não é uma decisão que cabe apenas a você, mas
como líder da banda, você precisa agir como tal. — Apertou meu ombro. —
O Elion é cabeça dura, mas nada que você não consiga contornar.
Assenti fraco, pensando em suas palavras enquanto fitava o gramado.
— Caleb, essa é uma oportunidade de ouro. Se der certo, ótimo, e
se não der, pelo menos vocês tentaram — completou o homem mais sábio
que conheço.
— O senhor tem razão.
— Quase sempre eu tenho. — Piscou, me fazendo sorrir, dando-
lhe um abraço apertado, que ele retribuiu com carinho.
— Bem, preciso ir antes que aqueles três cheguem a todo vapor e
derrubem a porta do meu apê.
— Hahahaha! — meu avô soltou, bem-humorado. — Se cuide,
meu neto e qualquer coisa, você sabe onde me encontrar.
Assenti e me levantei, seguido pelo meu avô, que me puxou
novamente para um abraço fraternal e apertado.
— Só não conta nada pra mamãe, não quero que ela se
decepcione.
— Você jamais seria motivo de decepção para a sua mãe, Caleb
— afirmou sério, fitando meus olhos com intensidade. — Mas vou fazer o
que pediu.
— Prometo que se tudo der certo, eu mesmo contarei a ela.
Meu avô assentiu ainda sério e após alguns segundos, abriu seu
sorriso de canto charmoso.
Acho que o puxei…
— Já está indo, querido? — Foi a primeira pergunta que minha
mãe fez ao me ver girar as chaves do carro no dedo, interrompendo a tarefa
de dobrar as roupas que estavam sobre uma cadeira na sala de jantar.
— Sim, mãe. Marquei com os rapazes lá em casa, e eles já devem
estar quase chegando… — Olhei novamente para o relógio, e já passava de
08:30.
— Caleb, posso dormir na sua casa semana que vem? — Clarence
perguntou, com os olhos grudados no celular. Ele estava quase afundando a
tela touchscreen devido à força com que a pressionava, enquanto jogava um
jogo qualquer.
— Vamos ver. — Dei de ombros.
— Por quê? Você já tem compromisso? — continuou, virando-se
de lado no sofá e finalmente tirando sua atenção do aparelho eletrônico em
suas mãos.
Abri a boca para afirmar que eu ainda não sabia, mas minha mãe
interrompeu:
— Filho, longe de mim querer controlar a sua vida. Você já é um
homem adulto, porém, ainda é meu filho. Sendo assim, vou deixar claro que
me considero muito jovem para ser avó.
Meu avô soltou uma risada alta e meu irmão fez cara de nojo.
— Adelaine, o Clarence ainda é muito jovem para ouvir esse tipo de
conversa…
— Vô, o senhor se esqueceu que existe internet? — perguntou o
adolescente com um sorriso zombeteiro.
— E o que isso significa, garoto? — Minha mãe voltou sua atenção
para o caçula com a expressão séria e as mãos na cintura. — O que você
anda assistindo na internet, Clarence Joseph Fleet?
Disse o nome completo… Alguém estava encrencado.
Pressionei os lábios juntos para esconder um sorriso quando meu
irmão arregalou os olhos, engoliu em seco e começou a balbuciar, sem
saber o que dizer.
— Bem, está na minha hora. Fui! — Acenei e abri a porta.
— Vai com Deus, filho! Quanto a você, vamos ter uma conversa,
mocinho. — Ouvi minha mãe se dirigir ao meu irmão e balancei a cabeça
com um sorriso, seguindo com passos largos até meu carro.
É claro que, ao chegar no segundo andar, onde está o apartamento
que alugo há mais de dois anos, o trio da pesada estaria conversando alto e
parado à porta do imovél. Enquanto isso, Elion pressionava a campainha
com um som irritante, quase abrindo um buraco na parede.
— Merda, Caleb! Onde foi que você se meteu? Estamos há mais
de dez minutos aqui, parados feito postes — resmungou o baixista com o
cenho franzido após me notar caminhando em direção a eles.
— Sua vizinha do 202 até pensou que éramos um trio terrorista
ou traficantes, tentando arrombar seu apartamento — disse Nevan, com os
braços cruzados, encostado na parede do corredor ao lado da porta.
— Inclusive, ela ameaçou chamar a polícia — acrescentou
Davian, antes de sugar seu milkshake através de um canudo plástico.
— Nossa sorte é que o sem-vergonha do Elion jogou um charme
pra cima da velha e ela faltou pouco beijar os pés dele — completou o
baterista com um sorriso, balançando a cabeça.
— Ou mais para cima — piscou Davian.
— Seus idiotas — Elion revirou os olhos. — Vocês não entendem
nada sobre o sexo oposto, por isso não pegam nem resfriado — soltou
zombeteiro. — É importante dar atenção, ser gentil, escutar cada palavra,
por mais entendiante que seja… é assim que se consegue algo de uma
mulher. Aprendam com o mestre — piscou com um sorriso arrogante.
— Anotado, senhor guru dos amores — Davian zombou,
curvando-se em uma reverência.
— Tá legal! Vamos entrar logo e resolver esse assunto — Passei
entre eles e abri a porta.
— Caramba, Caleb! Morreu um gambá aqui dentro? —
resmungou o guitarrista da banda, tapando o nariz com a mão, assim que
pisou na sala de estar.
O cômodo aparentava estar um tanto mais bagunçado do que no dia
anterior. Havia algumas peças de roupas jogadas sobre o sofá de couro
marrom com um furo no meio. Além disso, algumas latas de cervejas
estavam sobre a mesa com quatro cadeiras ao lado da janela com vista para
a rua. Para completar a desorganização, uma toalha de banho cobria
parcialmente a tela da TV de 40 polegadas, que eu ainda não tinha acabado
de pagar.
— Não — murmurei com o cenho franzido, antes de fazer uma
careta quando o odor quase insuportável dominou meu olfato. — Eu juro
que não estava fedendo assim quando saí — me defendi, olhando ao redor à
procura do causador daquele mal-cheiro.
— Acho que sei o que está causando esse revirar no meu
estômago e no de todo mundo aqui — disse Elion da cozinha, conjugada
com a sala de estar, erguendo uma sacola plástica. — Têm dois
hambúrgueres velhos aqui dentro — fez cara de nojo.
— Uau! Caleb, você é de longe o melhor dono de casa que eu
conheço — brincou Davian, balançando a cabeça, antes de sugar mais um
pouco do seu milkshake. — Oi, Candy! — sorriu, acariciando a gatinha
que, particularmente, parecia ter uma queda pelo guitarrista, se é que aquilo
era possível.
— Pelo menos eu não moro com os meus pais — retruquei,
arrancando aquele sorrindo debochado dos lábios dele.
Davian fez um beicinho, deu de ombros e empurrou para o lado
algumas peças de roupas que estavam no sofá antes de se sentar no móvel.
— E aí, qual vai ser a pauta da reunião? — Ele sorriu, cruzando
as pernas enquanto apoiava o braço aberto no encosto do sofá.
Suspirei, peguei as peças de roupas e a toalha sobre a TV, e as
joguei no cesto de roupas na área de serviço. Em seguida, voltei para a sala,
e me sentei em uma cadeira, segurando minha gata no colo, de frente para
os meus três amigos sentados no sofá.
— A pauta vocês já estão cansados de saber — revirei os olhos.
— E já vou adiantando, a decisão será tomada de forma unânime. Ou seja,
quem não estiver de acordo, só tem uma opção…
— Qual? Deixar a banda? — Elion cruzou os braços e ergueu o
queixo, petulante e arrogante.
— Não vejo outra — retruquei sério, encarando-o com a mesma
intensidade com que seus olhos me fitavam.
O baixista engoliu em seco e desviou o olhar, estalando a língua
no céu da boca.
Ajeitei minha postura e observei os outros integrantes da banda.
Candy pulou do meu colo para ir se deitar no parapeito da janela
fechada. A gata era considerada a fiscal de rua da casa.
— Quero a opinião sincera de vocês sobre o Felix Mariano e a
proposta que ele nos fez.
— Na boa, achei o cara folgado e um tanto esquisito — Nevan foi
o primeiro a dar sua opinião.
— Ok — assenti, voltando meu olhar para o guitarrista ao lado
dele. — Davian?
— Ah, sei lá. Nunca vi o cara antes… É difícil formar uma
opinião mais concreta, mas, honestamente, acho que ele tem pinta de
empresário e pode ser realmente uma boa oportunidade para nós — disse
sério e deu de ombros.
— Elion?
— Você já sabe a minha opinião — resmungou, encarando a
parede um pouco descascada do outro lado da sala.
— Certo. Bem, a minha opinião, e para não gerar nenhuma
conversinha, eu pensei a noite toda sobre isso e quase não dormi. Também
fui falar com o meu avô, e vocês o conhecem para saber que ele não é do
tipo que gosta de elogiar apenas para agradar. Ele disse que pode ser uma
boa oportunidade e que devemos arriscar. Se der certo, ótimo, se não, pelo
menos tentamos, e eu concordo com ele. Essa é a minha opinião.
Elion soltou um riso baixo, que atraiu minha atenção e a dos
outros garotos.
— Falei algo engraçado?
— Você já parou para contar quantas vezes já tentamos?
— Na verdade, já parei há algum tempo.
— Então, Caleb! Você não pode cair na conversa de outro
canalha, querendo foder com a gente.
— Elion, eu entendo o seu receio, mas só vamos saber se o Felix
é de confiança ou não se tentarmos.
— Beleza! — Ele bateu uma palma e se inclinou para frente,
apoiando os cotovelos nos joelhos. — Vamos fazer uma contraproposta.
Franzi o cenho, confuso.
— C-como assim?
— Se ele discolar algo realmente bom pra gente, aí sim assinamos
o contrato.
Um momento de silêncio pairou sobre nós, todos ficamos
pensativos.
— A ideia é boa e nos dá uma garantia caso as coisas não saiam
como planejado — Nevan concordou.
— Isso aí! Se a gente ver que é roubada, dá pra cair fora sem a
multa de um contrato que nem sabemos como é — complementou Davian.
Assenti devagar, ainda ponderando, mas realmente, a ideia do
Elion era boa. Não sei como pensei em realmente assinar um contrato de
exclusividade sem ao menos um teste prévio.
— Vou ligar para ele e fazemos a proposta. Se ele aceitar, temos
um empresário temporário.
— Se ele recusar? — perguntou Elion.
— A gente se vira como sempre fizemos.
08

— Ele disse que nos esperaria aqui — parei o carro em frente a


um pub com arquitetura remanescente, pintado de preto e com letreiros
dourados na região de Hammersmith.
— O cara tá mesmo desesperado para que a gente aceite a
proposta, já que marcou o nosso encontro em um dos bairros mais rock and
roll de Londres — Elion sorriu de canto, sentado ao meu lado no banco do
passageiro.
Hammersmith é um bairro voltado para o comércio, prestação de
serviços e, principalmente, entretenimento. O The Apollo Theatre é um
teatro de shows para os amantes do rock e fica localizado não muito longe
de onde estávamos parados, dentro do meu Ford Cortina. Entretanto, ainda
não estávamos muito certos de que nossa decisão era a melhor para a banda,
mas antes que pudéssemos perder a coragem e começar a discutir
novamente, abri a porta do carro e pedi aos três passageiros que me
acompanhassem.
Apesar de ser horário de almoço, o céu de Londres estava escuro,
com nuvens cinzentas e carregadas, tornando o ambiente um tanto sinistro e
pesado. Enquanto isso, o vento soprava forte ao redor, bagunçando meus
cabelos a ponto de eu ter que passar a mão uma dezena de vezes pelos fios
na tentativa de deixá-los um pouco menos caóticos.
Empurrei a porta do pub, e rapidamente o calor do aquecedor
tomou meu corpo dos pés à cabeça. Minha blusa cinza com preto, de manga
comprida, estava dobrada até os cotovelos, deixando à mostra minhas
tatuagens no braço direito, evitando que o calor repentino me fizesse
transpirar feito uma chaleira.
Localizei Felix sentado à uma mesa nos fundos do
estabelecimento, naquele horário, cheio o suficiente para não deixar mesas
disponíveis. Suspirei fundo e segui até o empresário, gesticulando com a
cabeça para que os meus amigos seguissem meus passos.
Felix notou nossa presença e acenou com um largo sorriso, como
se já previsse qual era a nossa resposta, sem saber que não era bem o que
ele esperava ouvir.
— Ah, vocês chegaram em ponto! — disse o homem mais velho,
antes de conferir as horas em seu relógio de pulso prata e se levantar para
nos cumprimentar com apertos de mãos. — Sentem-se, por favor. —
Apontou para as quatro cadeiras livres ao redor da mesa de madeira.
O cheiro de comida e fritura ao redor do pub estava fazendo meu
estômago roncar. Eu ainda não tinha almoçado e os meninos também não,
então, se era pra ter aquela conversa ali, que fosse com a barriga cheia.
— Confesso que fiquei surpreso com a sua ligação, Caleb. Pensei
que vocês iriam demorar mais um pouco para se decidirem. — Cruzou as
mãos sobre a superfície da mesa, exibindo um sorriso presunçoso.
— Que ironia você dizer isso, já que foi bem explícito ao afirmar
que nos daria apenas dois dias para dar uma resposta. — Elion disse,
irritado, fitando o homem com uma sobrancelha arqueada e um sorriso
falso.
Felix se limitou a encarar o rapaz por alguns segundos, optando
por não responder à sua provocação, deixando claro que seu desgosto pelo
baixista da banda era recíproco.
— Antes de mais nada, queria fazer o pedido de um hambúrguer
com batata frita porque meu estômago tá quase nas costas — falei,
quebrando o clima desconfortável.
Peguei o menu sobre a mesa e, com olhos de águia, comecei a ler
atentamente as opções oferecidas. No entanto, não estava muito certo de
que apenas um hambúrguer e uma porção de batatas seriam o suficiente
para saciar a minha fome de leão.
— Claro! É por minha conta. Podem pedir o que quiserem —
disse Felix, amigável.
— Puxa-saco de merda — resmungou Elion, mas o chutei sob a
mesa, já que o bad boy estava sentado ao meu lado.
— Au! Que isso, Caleb? — grunhiu com o cenho franzido,
provavelmente acariciando o local atingido.
— Cala boca — sussurrei, enquanto mantinha um sorriso falso
para o empresário do outro lado da mesa, que nos observava com atenção.
Nevan e Davian aproveitaram ao máximo a generosidade do
nosso futuro – ou não – empresário e pediram logo dois X-burguer com
batata frita, fish and chips e milkshake de chocolate.
Elion se negou a aceitar a gentileza do homem e afirmou que não
era mendigo para precisar de esmola.
— Posso pagar pelo meu almoço — cuspiu, acenando para a
garçonete.
Se aqueles dois continuassem sendo hostis um com o outro
daquela forma, eu conseguia imaginar o terror que seria conviver com eles
na estrada dia e noite… Eles acabariam se atracando feito dois selvagens.
— Olá, gatinha. — saudou o baixista com um sorriso de canto
quando a garçonete loira, de olhos azuis e jovem demais, parou ao seu lado.
Ela usava seu uniforme de trabalho, composto por uma camisa polo branca
e apertada nos seios, e uma calça jeans preta, com um avental da mesma cor
amarrado ao redor de sua cintura fina.
— Olá! — Sorriu de volta, corando ao notar o olhar do rapaz, que
a observava de cima a baixo, sem fazer a mínima questão de
disfarçar.
Cafajeste! Pensei, balançando a cabeça com um sorriso discreto.
— O que deseja? — perguntou ela, com um tom que indicava um
duplo significado naquela pequena frase.
— Ah, querida, eu desejo muitas coisas, mas não creio que aqui
seja o local apropriado para realizá-las — Elion piscou, mordendo o lábio
inferior. A garçonete corou tanto, que suas bochechas estavam vermelhas,
como se tivesse levado um tapa no rosto pálido.
— Ele vai querer uma porção de fish and chips e uma coca, e eu
um hambúrguer com batatas, querida — intrometi, fazendo o baixista me
encarar com uma expressão fechada, como se eu tivesse acabado de
estragar sua conquista do dia.
De fato eu estava quase obtendo êxito.
— Ah, e um shot de vodka, por favor — acrescentou Elion,
voltando sua atenção para a garçonete.
— Não — intervi novamente.
— Caleb, qual foi? — revirou os olhos, irritado.
— Garotos, com licença, preciso atender a essa ligação — disse
Felix de repente, já se levantando, antes de atravessar o pub com passos
largos até desaparecer de vista após passar pela porta.
Assim que o homem estava longe o suficiente, voltei minha
atenção para o meu amigo:
— Qual foi, digo eu. Nós estamos aqui a trabalho, não é hora pra
você encher a cara e começar a falar merda — rosnei baixo, não querendo
atrair a atenção dos outros clientes do pub.
No entanto, enquanto Nevan e Davian comiam como náufragos
recém-resgatados, readaptando-se à civilização, Felix andava de um lado
para o outro na calçada em frente ao pub, com o celular colado ao ouvido.
— Então, o que eu anoto? — perguntou, confusa, a garçonete
bonita. Ela era realmente atraente, e seus olhos azuis, um pouco
esverdeados pela luz natural do ambiente, me lembraram os de alguém em
quem eu não deveria estar pensando naquele momento.
Engoli em seco e balancei a cabeça.
— Vou querer apenas o que meu amigo aqui disse, princesa. Um
fish and chips e uma lata de coca — respondeu Elion com um sorriso
forçado.
A loira assentiu, anotando tudo rapidamente em um pequeno
bloco de notas.
— Volto em quinze minutos — disse ela.
— Estarei bem aqui — Elion sorriu, umedecendo os lábios
lentamente.
A moça engoliu em seco, apertando a caneta entre os dedos, antes
de dar as costas e desaparecer no interior do que eu supus ser a cozinha do
pub.
— Você não se emenda mesmo, hein?! — Revirei os olhos.
Ele apenas sorriu, deslizando a língua pelo interior da boca.
— Será que se eu pedir com jeitinho o Felix me paga mais um
milkshake? — Davian perguntou com a boca suja de ketchup.
— Preciso mesmo responder? — Arqueei uma sobrancelha e
cruzei os braços, encarando-o com seriedade.
— Cara, às vezes eu me pergunto se vocês estão passando fome e
escondendo isso da gente — Elion soltou com uma careta, observando o
guitarrista e o baterista da nossa banda comerem ávidos e focados.
— Se minha mãe escuta uma merda dessas, você não pisa mais lá
em casa nem coberto de diamantes — Nevan sorriu, mastigando um
punhado de batatas.
O baixista deu de ombros e mostrou o dedo do meio para o
amigo.
— Desculpa a demora, rapazes, mas era uma ligação importante
— Felix sorriu e voltou a se sentar à mesa, ajeitando seu terno de linho
cinza.
Naquele momento, parei para observar melhor as roupas do
homem e, apesar de não me considerar um bom entendedor de moda, Felix
era muito cafona para se vestir; nada que ele usava parecia combinar.
Na verdade, ele parecia estar preso nos anos setenta, sem intenção
alguma de deixar a década passada.
— Estão satisfeitos? — perguntou ele.
— Eu e o Cal ainda não comemos. — Elion informou com os
braços cruzados, não olhando um momento sequer nos olhos do homem.
Entretanto, bastou o rapaz encerrar sua frase, para a garçonete
voltar, segurando uma bandeja com os nossos pedidos.
— Aqui estão, rapazes! — Sorriu, depositando a bandeja sobre a
mesa enquanto colocava os dois pratos com peixes fritos e batatas fritas,
com molho de churrasco e ketchup ao redor.
— Obrigado! — agradecemos em uníssono.
Não perdi tempo e peguei uma batata coberta de molho, levando-
a até a boca. Em seguida, apenas fechei os olhos e soltei um suspiro de
prazer com o sabor único e delicioso.
— Alguém estava mesmo com fome. — Felix soltou bem-
humorado.
Assenti com um sorriso e voltei a comer.

— Agora que estão todos satisfeitos, podemos ir ao que interessa,


hum? — Felix começou e cruzou os braços, encostado na cadeira, enquanto
nos fitava, um por um, aguardando a nossa resposta.
— Nós pensamos e conversamos muito sobre o assunto e
chegamos a um consenso — falei, encarando meus companheiros que
assentiram.
— E qual foi?
— Antes de assinar o contrato, queremos fazer um teste — disse
Elion, inclinado sobre a mesa, com um sorriso de canto ao ver a expressão
confusa no rosto do homem.
— Como assim um teste? — Felix estreitou os olhos.
— Você consegue algum show realmente bom pra gente e, então,
assinamos o acordo — esclareceu o baixista, sentindo-se vitorioso e no
controle da situação.
O empresário arqueou a sobrancelha e olhou para cada um de nós
com atenção, ponderando se aquilo se tratava ou não de uma piada.
— E o que seria algum show bom na opinião de vocês? —
retrucou com o cenho franzido, aparentando não estar muito contente com a
condição que impusemos a ele. Afinal, as posições tinham mudado.
— Ah, sei lá, você não é empresário? — Elion sorriu debochado.
— Deve conhecer um monte de lugares bacanas e festivais de destaque no
mundo do rock onde a gente possa tocar. — Deu de ombros. — Não vou
dizer Rock in Rio porque acho que é um pouco demais.
Nevan e Davian não seguraram uma risadinha com o deboche do
rapaz, e eu apenas mordi o lábio inferior, mais interessado em saber se o
cara aceitaria ou não a nossa condição. Talvez estivéssemos brincando com
fogo e perdendo uma oportunidade realmente boa.
— Ok, então deixa eu ver se entendi. Em troca de assinar um
contrato que iria beneficiar a banda de vocês que, até onde eu sei é
desconhecida, não tem um empresário e ainda toca em bares pela cidade em
troca de uma mixaria, eu tenho que conseguir que vocês toquem em algum
lugar bacana?
— Entendeu certo! — Elion disse, com o queixo erguido.
Felix soltou um riso de escárnio e balançou a cabeça.
— Acho que vocês são bem audaciosos e, acredite, minha
vontade agora é de me levantar dessa cadeira, mostrar o dedo médio pra
vocês e os mandar irem à merda por me fazerem perder meu precioso
tempo.
Arregalei os olhos e engoli em seco, sentindo o coração acelerar
com a possibilidade de que ele desistisse de nós por um capricho idiota.
Por que eu fui dar ouvidos ao Elion? Ao Elion, caramba!
Antes que eu pudesse abrir a boca, desesperado para reverter
aquela situação, Felix continuou:
— Mas porque eu realmente acredito no potencial dessa banda,
vou aceitar a condição de vocês. Só preciso de alguns dias para descolar
algo realmente bom. — Suspirou fundo. — Se é para começar bem, que
seja com o pé direito e chave de outro. Dessa maneira, vocês já conquistam
espaço por serem marcantes e é assim que vocês têm que se introduzir nessa
indústria. Sendo marcantes, do contrário, a banda de vocês não vai durar
mais do que alguns meses e, se tiverem sorte, alguns anos até caírem no
esquecimento.
— Vira essa boca pra lá, urubu! — Elion resmungou com uma
careta.
Abri um sorriso e balancei a cabeça.
— Temos um acordo? — perguntei, estendendo a mão para o
homem.
— Acordo fechado! — Apertou minha mão.

Meus pés estavam me matando quando finalmente cheguei em


casa e me joguei no sofá. Já passava das sete da noite, mas para mim era
como se o tempo tivesse parado. Passei o dia todo em pé, de um lado para o
outro, hora abaixada, hora inclinada, tudo em nome da fotografia, minha
paixão desde que peguei uma câmera fotográfica pela primeira vez, aos dez
anos de idade.
— Ah, eu quero morrer — sussurrei com os olhos fechados e a
cabeça apoiada no encosto do sofá.
— Ah, Logan… isso, não para…
Levantei a cabeça, com os olhos arregalados, e encarei meu
reflexo na TV desligada, tentando entender o que estava acontecendo dentro
da minha casa.
O som de algo batendo repetidamente contra a parede e o som
úmido de corpos se encontrando era muito parecido com… Merda! Não
acredito que a Alissa e o Logan estavam fodendo aquela hora.
— Eu vou matar aqueles dois! — resmunguei, com as mãos
fechadas em punho, levantei do sofá e segui marchando até o quarto da
ruiva.
— Vai ruivinha, continua rebolando assim, gostoso, vai… — gemeu
aquele fazendeiro safado.
Eu estava prestes a vomitar no piso de madeira do corredor.
— ALISSA! — gritei, batendo na porta com violência.
— AH! — ouvi seu grito do outro lado da porta. — É a Rav. —
sussurrou, não baixo o suficiente para impedir que eu ouvisse. — O-oi?
— Eu acabei de chegar em casa e tô morta de cansaço, então, se
vocês querem se acasalar feito dois animais selvagens, pelo menos que seja
em silêncio.
— E me diz como a gente faz isso, senhorita puritana? — Logan
gritou do outro, bruto e arrogante.
— Amor, não fala assim — murmurou a ruiva, me fazendo revirar os
olhos.
Não sei o que a Ali viu nele. A verdade é que o Logan só perde pro
idiota do Angelo, mas os dois podem dar as mãos no quesito machos com
cérebro de topeira. Se bem que isso é uma ofensa aos animais da espécie.
Em resumo, é triste saber que as minhas amigas têm o dedo tão podre
quanto o meu para escolher homem.
— Não sei, ogro! — gritei de volta, fazendo questão de enfatizar o
apelido que a própria namorada deu a ele, e que me orgulha tanto, porque
ela acertou em cheio. — Você é um animal racional, deveria procurar uma
alternativa de sobrevivência. — Mordi o lábio inferior para conter um
sorriso e continuei, sabendo que ele ficaria furioso: — Imagina que você
está com a sua fêmea no meio do pasto, durante um intercurso sexual e de
repente surge um predador, o que você faz pra conseguir gozar sem ser
morto antes?
— O QUÊ? — gritou, antes de murmurar para a ruiva: — Ela me
chamou de animal?
— O que está acontecendo? — Dei um pulo ao ouvir a voz da
Catarina atrás de mim no corredor estreito, chupando um picolé.
— O-o que v-você tá fazendo aqui? — perguntei com o cenho
franzido, olhando entre ela e o início do corredor, completamente em
choque. — Como você entrou em primeiro lugar? — Pisquei, confusa.
— Aprendi com você o truque do alicate de unha. Como toquei a
campainha e ninguém atendeu, achei por bem colocar minhas habilidades
em prática. — Deu de ombros como se aquilo não fosse bizarro.
Senhor, eu criei um monstro.
— Pensei que vocês estavam mortas aqui dentro — completou,
lambendo seu picolé.
Entreabri os lábios com uma careta e balancei a cabeça. Antes que eu
pudesse dizer uma palavra, a porta do quarto da Ali abriu bruscamente e o
Logan apareceu de cueca boxer preta, exibindo seu corpo escultural – devo
admitir – enquanto me encarava com faíscas nos olhos.
— Sabe, Ravena, você é mesmo uma empata-foda — cuspiu com os
olhos estreitos.
Catarina soltou uma risada alta e começou a chorar de tanto rir, quase
engasgando com seu picolé.
— Obrigada pelo elogio! — Pisquei com um sorriso zombeteiro.
Logan literalmente rosnou, e deu as costas, voltando para o interior
do quarto.
— Desculpe, amiga. Eu não sabia que você ia chegar mais cedo… —
Alissa surgiu à porta com as bochechas coradas, enrolada em um lençol
branco… Aquele era o meu lençol?
Não podia ser…
— Por um acaso… esse lençol é o meu? — perguntei, com o coração
apertado devido ao medo da resposta, a boca entreaberta e a língua no céu
dela, me segurando para não surtar.
Ali olhou para a peça ao redor de seu corpo e arregalou os olhos,
antes de abrir um sorriso nervoso.
— E-eu ia lavar e devolver…
— Não acredito, Alissa Walsh! — rosnei, sendo contida por Catarina.
Ela segurou meu braço antes que eu avançasse para cima da ruiva, que
tremia diante do meu olhar fuzilador.
— Calma, Rav — sussurrou Cat, com uma mão no meu braço e a
outra segurando seu picolé, que parecia nunca acabar.
— Por favor, Ali, nem se dê ao trabalho de me devolver essa… coisa
— falei, apontando com nojo para o pedaço de pano contaminado. — Pode
atear fogo, é um favor que você me faz — resmunguei, com um sorriso
falso, e dei as costas. Segui até o meu quarto, bati a porta e me joguei sobre
a cama.
— Ravena? — Catarina chamou do outro lado, batendo suavemente
no pedaço de madeira.
— Tô dormindo — resmunguei, com a voz abafada, e o rosto
afundado no travesseiro.
— Não acho, se você tivesse, não estaria me respondendo. — Soltou
uma risadinha.
Revirei os olhos internamente e me virei de costas, fitando o teto
escuro do quarto.
— O que foi?
— Vim te chamar para dar uma volta comigo… Podemos ir até
aquele pub que você gosta em Wimbledon.
Ponderei. Era melhor sair com ela do que ficar em casa com aquela
dupla de tarados.
Suspirei fundo e me levantei da cama.
— Eu topo — falei, assim que abri a porta.
— Obaaaa! — Cat bateu palminhas e me puxou pelo braço.
Chegamos à sala e Ali e Logan estavam lá, a ruiva sentada com as
pernas cruzadas sobre o móvel, e ele ao lado, naquele momento, vestido,
graças a Deus, enquanto assistia a um jogo de futebol.
— Rav e eu estamos indo a um pub em Wimbledon. Vocês querem
vir com a gente? — sugeriu Catarina, a sem noção.
— Deus que nos livre! — Soltei com os olhos arregalados, fazendo o
sinal da cruz. — Deixe esses dois aí. — Gesticulei com uma careta. — Do
jeito que eles são, é bem capaz de sermos presos por atentado ao pudor se
alguém pega esses dois se agarrando em um canto qualquer no meio da rua.
— Credo, Rav! Assim você nos ofende, você me ofende. — Ali
murmurou, com um beicinho, e os braços cruzados.
— Não vejo a hora de ter um cantinho só meu — sussurrei,
observando Logan abrir uma lata de cerveja. No entanto, Catarina ouviu, e
antes que ela abrisse aquela boca de matraca, eu a encarei com os olhos
estreitos e o maxilar travado.
A bióloga entendeu a ameaça silenciosa e engoliu em seco, abrindo
um sorriso nervoso.
— Por que Wimbledon? Isso é do outro lado da cidade. — Logan nos
fitou com o cenho franzido antes de levar à boca a lata de cerveja que
segurava entre seus longos dedos.
— Porque lá é onde fica o pub favorito da Rav, e onde tocam as
melhores bandas de rock da cidade. — Sorriu animada.
O fazendeiro deu de ombros e voltou sua atenção para a tela à sua
frente.
— Vê se não voltam tarde — disse Alissa, com um beicinho.
Ela estava se sentindo mal por ter sido pega? Não é como se fosse a
primeira vez.
Agora, imagina como eu me sentia ao saber que ela e o namorado
rolaram sobre meu lençol favorito.
— Ah, querida, por mim eu dormiria lá mesmo. — Sorri falso e dei
as costas, abrindo a porta antes de ser seguida às pressas por Catarina.
09

Meus cabelos soltos voaram ao redor do meu rosto quando empurrei


a porta de vidro da portaria do prédio, parando na calçada à espera do Uber
que nos levaria até o nosso destino naquela noite.
— Você falou sério quando disse que não vê a hora de ter um
cantinho só seu? — Cat murmurou ao meu lado, abraçando seu corpo sob
um casaco de algodão preto.
Assenti fraco e peguei um maço de cigarros no bolso da minha
jaqueta, antes de acender um, usando o isqueiro que sempre levo comigo.
Entretanto, eu não me orgulhava do mau hábito de fumar, porém, não
considerava um vício. Eu poderia parar se quisesse, mas era algo que
desenvolvi aos dezoito anos, após toda confusão com o Nolan. Soprar a
nicotina tóxica me fazia sentir menos inferior, mais poderosa, no controle
da situação. Totalmente diferente daquela garota de anos atrás, perdida e
confusa, sofrendo por um homem que nunca me daria o valor que eu
mereço.
— Sim — sussurrei, tragando o cigarro.
— Hum… — Cat murmurou, com a cabeça baixa, fitando seu par de
tênis preto da Vans. — E você já falou isso pra Ali?
— Eu deveria?
— Rav! Vocês moram juntas há mais de quatro anos… Acho que
você deve isso a ela.
Suspirei, soprando mais um pouco de nicotina, e dei de ombros,
encarando a movimentação quase escassa da rua principal de Crofton Park.
— Sabe qual é o problema? — falei e me virei para a Cat.
— Hum?
— Não é ela foder com o namorado, mas sim o fato de ela não me
avisar que estaria com ele. Poxa, eu também mereço respeito, sabe? Sei que
posso ser debochada, escrota e irritante, mas é foda chegar em casa cansada
e ficar ouvido gemidos e estocadas brutas.
— Meu Deus! Que vergonha! — Ela sorriu, com as bochechas
coradas, tapando a boca.
— Apesar de ser meio “inocente” e tapada, você também é bem
safadinha, não é, Catarina? Essa sua pose de boa moça não me engana não.
— Fitei-a com os olhos estreitos. — Eu sei muito bem o que você esconde
na segunda gaveta da sua cômoda.
A bióloga arregalou os olhos e abriu a boca, que por pouco não
entrou uma mosca.
— C-como v-você… — Fez uma pausa e engoliu em seco. — I-isso
é invasão de privacidade! — soltou indignada, com os braços esticados ao
lado do corpo, e as mãos fechadas em punho.
Revirei os olhos, joguei fora meu cigarro e acenei para o Honda CR-
V preto que se aproximava na rua quase deserta e parcialmente iluminada.
Os postes de Londres eram simplesmente horríveis para iluminar qualquer
rua de forma decente e eficaz.
— Só reza para a sua tia não descobrir. — Apertei sua bochecha, com
um sorriso zombeteiro, e passei por ela, abrindo a porta do passageiro do
veículo.
Catarina ainda permaneceu dez segundos parada na calçada com a
boca entreaberta e o cenho franzido. Eu poderia apostar a minha câmera
fotográfica favorita que ela estava internamente surtando com a
possibilidade de a tia dela descobrir os “brinquedinhos” que ela esconde.
Quando os vi pela primeira vez, fiquei cinco segundos em choque,
apenas para começar a chorar de tanto rir. Bem diz aquele ditado: as
aparências enganam. E, como eu disse, a Cat pode até ser um pouquinho
inocente e tapada, mas ainda é mulher e tem suas necessidades.
— Hey! Vamos logo. — Gesticulei para que ela entrasse, já sentada
no banco de trás do veículo.
Catarina piscou os olhos e se apressou, sentando-se ao meu lado.
— Por favor, não conte nada a ela — implorou, com as mãos postas
e um biquinho dramático.
Pressionei os lábios para esconder um sorriso e fitei-a com os olhos
estreitos.
— Só se você me pagar uma porção de bife acebolado com batata
frita.
— Fechado! — Sorriu, fazendo sinal de continência.
Revirei os olhos com um sorriso e balancei a cabeça.

Nossa pequena viagem até Wimbledon, bairro bem longe de onde


moro com a ruiva, demorou mais de meia hora, graças ao trânsito caótico de
Westminster. Ainda estávamos parados dentro do carro a mais de cem
metros do pub onde costumo ir quando quero espairecer e ouvir música boa,
de qualidade, não essas merdas que fazem sucesso no Tik Tok e uma semana
depois ninguém lembra mais.
As buzinas e sirenes de polícia e ambulância, transitando pelo local
para cima e para baixo na rua lotada de veículos, já estavam começando a
me causar dor de cabeça.
Soltei um suspiro profundo e revirei os olhos.
Perderíamos a noite toda ali se não fôssemos a pé até o pub.
— Pode nos deixar aqui, a gente segue caminhando — pedi ao
motorista por aplicativo, com a mão apoiada no banco do homem.
— Tudo bem. — Deu de ombros e destravou as portas.
— Valeu! — agradeci e paguei a corrida com uma nota de vinte
libras e outra de dez.
— Nossa, se eu soubesse que estaria tão caótico aqui, teria sugerido
outro lugar. — Cat suspirou, colocando uma touca ninja na cabeça.
— Se você tivesse sugerido outro lugar, eu estaria em casa com
aqueles dois no cio.
Catarina soltou uma risadinha e balançou a cabeça antes de se
colocar na minha frente, me impedindo de caminhar.
— Ah, Ravena, acho que essa sua implicância com a vida sexual da
Ali e do Logan é invejaaa… — insinuou com um sorriso, mordendo o lábio
inferior.
Estreitei os olhos e arqueei uma sobrancelha, cruzando os braços.
— Inveja por quê?
— Porque você não faz sexo há mais de um mês.
— Como você sabe? — cuspi.
— Porque sua nova embalagem de preservativos ainda está fechada
no seu guarda-roupa. — Deu um pulinho. — Você acha que só você sai por
aí bisbilhotando gavetas alheias? — Cruzou os braços com um sorriso
vitorioso.
— Minha vida sexual ativa não é segredo pra ninguém — rosnei,
passando por ela, mas não sem fazer questão de chocar meu ombro contra o
dela.
— Sua vida sexual era ativa, ultimamente não mais — soltou
debochada, caminhando ao meu lado.
— Pior é a sua, que é simplesmente inexistente.
— Poxa, não precisa humilhar.
Parei de caminhar e a encarei.
— Catarina, se você não sabe brincar, então fica na sua, hum? —
Pisquei com um sorriso falso. — Você sabe que não é páreo para mim.
— Nojenta — resmungou baixinho, me fazendo abrir um sorriso
discreto e seguir pela calçada com as mãos nos bolsos da minha jaqueta.
Catarina finalmente calou a boca, caminhando ao meu lado com a
cabeça baixa, mas infelizmente durou apenas alguns segundos até seus
olhos pousarem em algo, ou melhor, alguém.
— Rav! — disse alto, com os olhos arregalados, puxando meu braço
para parar no meio da calçada. — Aquele não é o Aladim?
Franzi o cenho e olhei na direção em que ela apontava.
Engoli em seco ao ver Caleb conversando com um morador de rua,
que estava sentado sobre um cobertor velho e rasgado, enquanto o rapaz lhe
entregava uma embalagem de isopor.
Ele estava alimentando aquele homem?
E o pior, por que na Terra eu tinha que encontrá-lo novamente, sendo
Londres a maior cidade do país? Eu jurava para mim mesma que nunca o
veria novamente e estava perfeitamente bem com isso. No entanto, o
destino… Ele é mesmo engraçado.
Dei tudo de mim para ignorar a repentina mudança nas batidas do
meu coração que, por alguma razão que eu desconheço, estavam aceleradas.
Juro que, se as minhas pernas tremeram, não foi intencional.
— Ele parece ser tãoooo bonzinho ajudando os mais necessitados. —
Catarina murmurou com um beicinho enquanto fitava o vocalista daquela
banda com nome estranho. — Você não acha? — perguntou, com os olhos
grudados em meu rosto.
Dei de ombros, não querendo admitir que o gesto, no fundo, bem lá
no fundo, me surpreendeu.
— Qualquer um poderia fazer isso — murmurei, voltando a caminhar
na direção do Aladim da Shopee, ignorando com todas as minhas forças o
tremor nas minhas pernas.
— Atá! Qualquer um? Você, por acaso, já comprou comida para um
morador de rua? — arqueou a sobrancelha enquanto apertava os passos para
me acompanhar.
À medida que eu me aproximava de onde Caleb ainda conversava
com o senhor de barba grande e grisalha, sentia meu coração martelando
nas minhas costas.
Sensação do caramba!
— Nunca comprei porque nunca pediram — resmunguei, com os
olhos focados no braço tatuado de Caleb, exposto sob sua jaqueta verde-
musgo, dobrada até os cotovelos.
Eu ainda não conseguia esquecer a sensação daquele braço me
rodeando, aquecendo e…
Respirei fundo e fechei os olhos, voltando a abri-los apenas quando
tentei passar por ele, mas falhei, chocando meu ombro com tudo contra o
dele.
Quando foi que ele se levantou?
— Ravena? — Segurou minha mão com delicadeza.
Apesar da noite fria e ventosa, a mão dele estava quente e macia,
igualzinha àquela noite…
Merda! Eu já deveria ter superado aquilo.
No entanto, até a voz irritantemente bonita dele me causava arrepios.
Porém, eu seria hipócrita e a porra de uma mentirosa se dissesse que eram
ruins.
Engoli em seco novamente, querendo me esmurrar por estar agindo
feito uma adolescente insegura, e o encarei com o queixo erguido.
— Oi.
Caleb abriu um sorriso, exibindo sua covinha sexy. Se não fosse a luz
do poste, bem acima de nossas cabeças, eu poderia afirmar que seus olhos
estavam brilhando.
— Você tá me stalkeando?
Arregalei os olhos, franzi o cenho e fiquei boquiaberta antes de puxar
minha mão de seu toque. Estava completamente irritada com a petulância e
arrogância dele em pensar tal absurdo de mim, logo de mim!
— Você já se olhou no espelho, querido? Eu tenho mais o que fazer
do que perder meu tempo stalkeando um cantorzinho que se acha um
rockstar. — Cruzei os braços sobre minha jaqueta de couro preta,
encarando-o intensamente.
Para a minha surpresa, ele não se sentiu ofendido pelo comentário.
Na verdade, o músico soltou uma risadinha e cruzou os braços, dando um
passo para frente. Seus braços estavam quase tocando os meus e, mesmo
com uma quantidade significativa de roupas separando nossas peles, eu
quase podia jurar que sentia o calor que emanava do seu corpo aquecer o
meu.
— Ravena! Você poderia ao menos me esperar. — Cat se aproximou
com um bico enorme, ajeitando seus cabelos pretos sob a touca ninja azul
que ela sempre usa quando o outono chega, antes de encarar Caleb e abrir
aquele sorriso amigável, marca registrada dela. — Oi, Aladim! — Acenou.
Caleb arqueou as sobrancelhas, surpreso com o apelido.
— O nome dele é Caleb. — Revirei os olhos, ansiosa para fumar um
cigarro. Isso sempre acontece quando estou estressada, à beira do meu
limite, o qual não é raro de ser atingido.
— Ah, desculpa. — Soltou uma risadinha. — A Ravena falou
mesmo o seu nome, uma dúzia de vezes na verdade, mas eu sou péssima
pra guardar coisas no geral. Além disso, achei a sua fantasia do personagem
tão icônica que dificilmente conseguirei te olhar sem me lembrar de você
vestido nela.
Juro que quis tapar a boca dela com uma rolha bem grande, mas
infelizmente, eu não tinha uma!
— Qual é o seu nome? — perguntou ele, com um sorriso.
— Catarina Bianchi, muito prazer! — Estendeu a mão para o rapaz,
que a apertou suavemente, eu suponho.
— O prazer é todo meu, senhorita Bianchi.
— Ah, para! Não precisa usar essas formalidades comigo. Pode
me chamar de Cat, eu até prefiro. — Piscou com uma risadinha.
Louca!
— Se você insiste. — Ergueu as mãos. — Aonde vocês estavam
indo? — Dessa vez, sua atenção estava em mim.
— Não acho que seja da sua conta e — comecei, mas fui
interrompida antes de encerrar minha fala.
— Até o Rock and Chill! — Catarina se intrometeu.
Tudo que eu queria era colocar minhas mãos em volta do pescoço
dela, bem apertado.
— Que coincidência! Eu estava mesmo indo pra lá. — apontou
para o local, poucos metros à frente, de onde era possível ouvir o som de
uma bateria animada e uma voz masculina.
Arqueei as sobrancelhas e abri um sorriso falso.
— Mesmo? — Cruzei os braços.
Caleb assentiu antes de se despedir do morador de rua.
— Até mais, Sebastian! — Acenou.
— Se cuida, Cal! — Sorriu o homem, acenando de volta.
— Cal? Esse é o seu apelido? — perguntei, com um sorriso de
canto zombeteiro.
— Você tem outro melhor, marrentinha? — retrucou, arqueando a
sobrancelha.
— Eu disse que não gosto que me chamem assim — rosnei, com
os olhos estreitos.
— E eu disse que, mesmo a contragosto, vou continuar te
chamando assim, marrentinha. — Beijou rapidamente minha bochecha. —
Cat, vamos entrar? — Abriu a porta do pub, lotado por sinal, e adentrou o
local com a minha amiga cantarolando feliz feito os Teletubbies.
Os dois já eram melhores amigos?
E que beijo foi aquele?
Levei minha mão até a bochecha e senti um arrepio ao lembrar da
sensação dos lábios dele sobre o local, mesmo que por apenas um milésimo
de segundo.
Bufei alto e empurrei a porta de vidro do pub, rapidamente sendo
envolvida pelo calor do estabelecimento, que estava repleto de espectadores
do concerto que acontecia no pequeno palco.
— Acho que vou segurar a maior vela aqui… — Catarina
sussurrou ao pé do meu ouvido com um biquinho humorado e, logo em
seguida, piscou ao ver Caleb se aproximando de nós, segurando três
garrafas de cerveja.
— Não sei por que. — Dei de ombros. — Não vai rolar nada
entre mim e aquele roqueirozinho sem filtro.
— Ah, que pena. — zombou, com uma mão sobre o peito. — Eu
acho que ele super combina com você. É tipo água e óleo, não se misturam,
mas se completam, sabe? Você, esse limão azedo, e ele, aquele pedacinho
de cupcake delicioso.
— Delicioso? Isso é jeito de falar?
— Tá com ciúmes? — desafiou, mordendo o lábio inferior.
— Escuta aqui, sua bióloga recém-graduada, no dia em que eu
sentir ciúmes de algum macho, eu mesma me interno.
Catarina sorriu e deu de ombros.
— Aqui, garotas. — Ele estendeu duas garrafas para nós. — São
por minha conta. — Abriu a tampa de sua garrafa com a mão, e por alguma
razão, aquilo me impressionou.
Talvez todos aqueles músculos valessem para alguma coisa além
de enfeitar o corpo do guitarrista/cantor.
— Obrigada, Cal! É muita gentileza da sua parte, não é, Rav? —
Cat cutucou meu quadril com o cotovelo.
— Tanto faz, eu tenho dinheiro. — Levei a garrafa até a boca e
puxei a tampa com os dentes.
— Au! Meus dentes doem só de ver você fazer isso — Ela
murmurou, sustentando uma careta. — Custa usar um abridor?
— Eu posso abrir a sua, Cat — ofertou o roqueiro.
Cat. Aquilo realmente estava começando a me irritar.
Como duas pessoas que se conheceram há meia hora podem se
tratar de forma tão amigável em tão pouco tempo? Aquilo era um dorama e
esqueceram de me avisar?
— Ah, que fofo! Eu quero sim.
Observei Caleb executar novamente sua manobra de abrir
garrafas, sem conseguir deixar de encarar as mãos masculinas, com veias
proeminentes. Elas seguravam firmemente aquela garrafa, fazendo-a
parecer tão pequena…
Engoli em seco e tapei a boca com o bico da minha própria
garrafa, temendo soltar algo que faria eu me arrepender amargamente mais
tarde.
— Ali tem uma mesa vaga, podemos nos sentar lá e assistir ao
show enquanto comemos alguma coisa. — Ele sugeriu, apontando para o
outro lado do pub.
— Você tá meio que se intrometendo na nossa noite, percebeu?
— Ai, Ravena, deixa de ser chata. O que custa deixar ele ficar
com a gente?
— Não quero incomodar e–
Revirei os olhos, cansada daquele lenga lenga.
— Anda logo, antes que alguém pegue a mesa e nos faça ficar de
pé a noite toda, como se eu já não tivesse feito isso o dia inteiro. — Passei
entre ele e a Catarina, seguindo plena e confiante até a mesa vaga, a única
por sinal.
O cantor da noite era um escôces que vive em Londres há mais de
dez anos e adotou a cidade como seu lar doce lar, palavras dele. Naquele
momento, ele estava dando uma pausa em sua apresentação para falar um
pouco sobre sua carreira.
— Eu também costumo me apresentar aqui nos finais de semana
— disse Caleb. Ele estava sentado com as pernas cruzadas, um braço no
encosto da cadeira, enquanto segurava sua garrafa, fitando o palco.
Por que ele parecia tão sexy?
— Com a Smash Secrets? — perguntou Catarina.
O rapaz assentiu com um sorriso de canto, exibindo sua covinha.
Imediatamente, desviei o olhar quando seus olhos encontraram os meus.
— Ajuda nas despesas — ele completou e deu de ombros,
bebericando sua bebida.
Até a forma como Caleb erguia o pequeno objeto em sua mão e
levava à boca era atraente, e eu só conseguia pensar em beijá-lo de novo e
de novo.
Jesus, eu deveria estar mesmo na seca.
Resumindo, o que eu precisava era ficar com alguém que não
fosse o vocalista da Smash Secrets, ou ficaria louca, louca de desejo
frustrado e insaciável.
Engoli minha cerveja com apenas três goles, me recusando a
encarar o homem do outro lado da pequena mesa, mesmo sabendo que seus
olhos observavam cada movimento meu.
10

Apesar da companhia inesperada de Caleb, a noite estava sendo


melhor do que eu esperava. Realmente, a decisão de deixar minha amiga e
seu namorado em casa para sair com a Cat foi a melhor que eu poderia ter
tomado. Pois, a verdade é que eu precisava de um lugar onde pudesse
espairecer, e isso parece sempre acontecer quando vou àquele pub.
Caleb foi o primeiro a se levantar, assobiando antes de começar a
aplaudir assim que o músico no palco acabou sua apresentação. Por reflexo,
ou não, segui seu exemplo e comecei a bater palmas. O rapaz que havia se
apresentado tinha feito um bom trabalho; sua voz era melódica o suficiente
para nos despertar sentimentos conflitantes, fazendo-nos refletir sobre um
milhão de coisas e nada ao mesmo tempo.
Era quase a mesma sensação que sinto quando Caleb canta,
embora eu o tenha ouvido apenas uma vez. Porém, no fundo, eu ansiava por
ouvi-lo novamente, mas de forma alguma deixaria que ele soubesse disso.
Seu ego já era grande demais para que eu o alimentasse em troca de mais
uma demonstração de seu talento.
— Quando você se apresentar com a Smash Secrets novamente,
nos deixe saber, Caleb. Rav e eu fazemos questão de prestigiar vocês! —
Catarina sorriu para o músico, e eu franzi o cenho.
— Não lembro de ter dito isso — resmunguei.
Ela apenas revirou os olhos e ignorou minhas palavras. Caleb, por
sua vez, me encarou com um sorriso discreto, pensativo e calado.
Seus olhos permaneceram por tempo demais no meu rosto, me
causando novamente aquela sensação de desconforto, que não era
exatamente ruim, apenas… era estranha.
Pigarreei, desviando o olhar, e murmurei algo sobre ir até o lado
de fora do pub para fumar.
Suspirei fundo e fechei os olhos ao sentir a brisa fresca da noite
bater em meu rosto e beijar meu corpo da cabeça aos pés. O vento soprava
mais frio do que há uma hora, quando chegamos ao pub, balançando os
galhos das árvores, quase completamente nuas devido à falta de folhas, que
já se encontravam mais espalhadas pelas calçadas.
Peguei meu cigarro no bolso da minha velha companheira, a
jaqueta preta de couro que amo usar quando o outono chega, e o acendi,
tragando um pouco da nicotina com os olhos fechados.
No entanto, o abrir e fechar da porta de vidro do pub foi o que me
fez abrir um dos olhos e ver Caleb com as mãos nos bolsos de sua calça
jeans preta e a cabeça baixa.
— Você parece gostar de brincar de gato e rato — disse ele,
baixo, abrindo aquele sorriso capaz de me desestruturar inteira.
Droga! Deveria existir uma lei que proíba as pessoas de sorrirem
por qualquer razão, especialmente se o sorriso tiver efeito colateral naqueles
mais próximos.
— Isso porque você parece um gato atrás de mim, como se eu fosse a
última lata de atum. — revirei os olhos, fitando os automóveis que
circulavam pela rua estreita para cima e para baixo.
Caleb ergueu as mãos com um sorriso nos lábios antes de escondê-las
novamente nos bolsos de sua calça, mas não negou minha afirmação.
Suspirei fundo e assoprei a fumaça tóxica do meu cigarro.
— Fumar faz mal, mas acredito que você sabe bem disso. —
afirmou, quebrando o silêncio.
— Você não fuma? — Fitei-o de lado, com a sobrancelha arqueada.
Negou.
Soltei uma risada e desviei o olhar para o cigarro entre meus dedos.
Voltei a tragar mais sua nicotina e encarei Caleb com os olhos estreitos,
enquanto exibia um sorriso zombeteiro.
— Um bad boy que toca em uma banda de rock e não fuma. Uau!
Você é mesmo a exceção à regra.
— Posso até ser uma exceção, mas com certeza não sou um bad boy.
— Mas parece.
— Por causa das tatuagens?
— Talvez, mas não apenas por isso. Seu superego e atitude atrevida
também o fazem parecer um. — Dei de ombros.
Caleb umedeceu os lábios, com um brilho humorado nos olhos, e
suspirou fundo, cruzando os braços fortes.
Por que eu estava mesmo notando esse detalhe tão insignificante?
Porque eu não tinha nada melhor para fazer, com certeza essa era a
resposta mais aceitável e verdadeira!
— Você diz isso apenas porque não conheceu o Elion. Ele sim pode
ser considerado o bad boy da banda, embora, no fundo, seja realmente um
cara legal que… só passou por um bocado de coisas — completou baixo,
fitando o chão sujo da calçada cimentada.
— Que tipo de coisas? — estreitei os olhos.
Nunca fui do tipo curiosa, porém, algo na forma como ele falou e em
sua expressão, que de repente se tornou, sombria e distante, fez eu me
questionar sobre o que ele sabia.
No entanto, Caleb apenas me encarou com um olhar triste, vazio e
até um pouco frio.
Meu corpo se arrepiou e eu engoli em seco.
Subitamente, uma vontade de abraçá-lo tomou conta de mim, mas
balancei a cabeça.
Vendo que ele não iria respondeu à minha pergunta, continuei:
— Não me interessa. — Dei de ombros, jogando o cigarro em
uma lixeira. — Isso não é problema meu — falei séria, encarando-o com o
queixo erguido antes de passar por ele, mas não sem sentir uma descarga
elétrica e um arrepio na nuca.
Ignorei a sensação e entrei no pub, sentindo novamente meu corpo
aquecido.
Foi difícil ignorar a sensação elétrica que Ravena despertou em
meu corpo quando passou por mim antes de entrar no pub. Tudo é tão
intenso quando se trata de nós; parece que estamos andando sobre uma
corda bamba, nos esforçando para não cair, lutando contra algo
desconhecido para nós, mas que nos puxa um para o outro como imãs
inseparáveis.
Entretanto, nada era mais frustrante do que a relutância dela em
me deixar entrar e conhecê-la como eu desejava: de maneira profunda e
íntima, no mais completo sentido que se pode conhecer outro ser humano.
Suspirei fundo e passei a mão pelos cabelos, voltando para o
interior do pub, naquele momento, quase vazio.
Já passava das onze da noite quando cheguei à mesa onde as duas
amigas estavam conversando, e o assunto simplesmente pareceu ter se
encerrado.
Ambas me fitaram em silêncio, e enquanto Ravena me encarava com
os olhos estreitos, a simpática Catarina sorria.
Ela era uma figura muito interessante; seu humor contagiante e sua
atitude amigável me faziam questionar como duas pessoas diferentes como
ela e Ravena podem ser tão amigas.
— Vim saber se vocês precisam de carona. — perguntei baixo.
— Sim!
— Não!
As amigas responderam em uníssono, me deixando confuso.
O “não” da Ravena não me espantava. No entanto, era engraçado
ver seus olhos azuis, naquele momento, um pouco mais escuros devido à
luz ambiente, me encararem com falso tédio, como se eu fosse um mosquito
irritante, zumbindo em seus ouvidos.
— Sim ou não? — reforcei, sabendo que a marrentinha reviraria
os olhos irritada, e foi exatamente o que aconteceu.
Pressionei os lábios para esconder um sorriso. Era a segunda vez
que nos encontrávamos e eu já conseguia prever seu próximo passo.
Talvez, no fundo, ela não fosse um diário trancado a sete chaves
no fundo de um baú perdido em um canto qualquer.
Eu só precisava ter paciência para entender como ela funciona, a
forma que ela revela seus segredos e onde pressionar os locais
certos.
— Nós precisamos sim, Cal! — Catarina respondeu e se levantou
da cadeira, puxando pelo braço, sua amiga mau-humorada. — Deixa de ser
orgulhosa, Rav — resmungou baixo ao pé do ouvido da amiga, mas eu ouvi
perfeitamente.
Ravena resmungou um palavrão e cruzou os braços feito uma
criança mimada.
— Então vamos! Eu deixo vocês em casa. — Gesticulei com a
cabeça para a saída do pub.
— Obrigada, querido! — agradeceu Cat.
As duas amigas deixaram o estabelecimento enquanto eu pagava
a conta e, apesar de ter dito que tinha dinheiro, a marrentinha não pagou a
dela.
Balancei a cabeça, com um sorriso, e mordi o lábio inferior,
guardando minha carteira no bolso da minha jaqueta.
— Vou só pegar meu carro e já volto — informei a elas, já na
calçada, sentindo o vento soprar meus cabelos.
— Onde ele está? — Ravena perguntou, olhando ao redor.
— Na garagem do meu prédio. — Apontei por cima do ombro.
— Você mora aqui? — Arqueou uma sobrancelha.
Assenti e apontei para a próxima esquina.
— Ah, Caleb, então não precisa nos dar uma carona. Você deve
estar cansado… Rav e eu moramos do outro lado da cidade, você vai levar
horas para chegar em casa. — disse Catarina, com um sorriso fraco,
parecendo culpada.
— Vocês não moram juntas?
Ambas negaram, balançando a cabeça.
— Deixa, Catarina, ele se ofereceu, agora que lute. — Sorriu
debochada a marrentinha, batendo o pezinho na calçada, enquanto me
encarava com um olhar desafiador.
— Tadinho, Ravena — murmurou com um beicinho.
— Não se preocupe, Cat. Eu faço questão. — Pisquei e, com
passos largos, segui até o prédio onde moro.
Meu Ford estava limpo, pleno e estacionado na minha vaga de
sempre. Ou, pelo menos, era isso que eu pensava até entrar no veículo.
Resmunguei um palavrão assim que notei os papéis de bala e de
chiclete espalhados no banco traseiro. Aqueles imprestáveis e porcos que eu
chamo de amigos, deixaram uma pequena bagunça que eu não havia notado
durante nosso encontro com o Felix.
Ah, se eu não estivesse apressado, querendo causar uma boa
impressão na marrentinha e sua amiga… Faria questão de deixar tudo sujo
como estava no momento, apenas para ter o prazer de fazê-los limpar com a
língua caso eles começassem a reclamar demais.
Suspirei fundo, catei bruscamente os papéis e os joguei na lixeira
da garagem antes de ligar o carro, deixando o prédio segundos depois.
Ravena estava encostada na parede ao lado da fachada do pub, com outro
cigarro entre os lábios.
Ela fumava mais do que eu poderia considerar saudável, se é que em
algum momento o cigarro pudesse ser considerado algo do tipo.
Dirigindo devagar até onde elas estavam, ao parar o veículo, apenas
buzinei, atraindo a atenção dela e de Catarina, que estava entretida no
celular.
— Você tem um Ford Cortina 1970? — Ravena perguntou, surpresa e
ao mesmo tempo admirada, observando o veículo com curiosidade e um
leve brilho de satisfação.
— Presente de dezoito anos do meu avô. — Sorri, dando de ombros,
e abri a porta para que ela entrasse.
A moça não perdeu tempo e, após atirar seu cigarro no meio da rua,
sentou-se ao meu lado, colocando rapidamente o cinto de segurança.
Catarina, por sua vez, sentou-se no banco de trás e elogiou meu velhinho,
afirmando se sentir em um filme retrô dos anos setenta, bem parecido com
o que sua tia costuma assistir aos finais de semana.
— E seus pais, eles também gostam? — perguntei, com um
sorriso, girando o volante.
Um momento de silêncio pairou sobre nós, desconfortável e
pesado.
Eu havia dito algo errado?
Pelo olhar perdido de Catarina, que encarei através do retrovisor, e o
suspiro de Ravena ao meu lado, a resposta não poderia ser outra senão um
sim.
— E-eu não tenho pais, q-quero dizer, eu tenho, ou acho que tenho,
mas… é complicado. — Ela gaguejou, tentando encontrar as palavras
certas.
No entanto, um sorriso fraco se formou em seus lábios, pela primeira
vez naquela noite, não alcançando seus olhos. Isso foi bem longe de ser seu
típico sorriso animado e amigável.
— Desculpe, e-eu não sabia… — murmurei, me sentindo um idiota
por ter tocado no assunto. Porém, em minha defesa, eu não fazia ideia de
que a garota tem problemas familiares com os pais.
— Tá tudo bem — disse baixinho, desviando o olhar para a janela
fechada.
Olhei de soslaio para Ravena, mas ela apenas me encarou de volta
em silêncio, antes de dar de ombros, tirar um chiclete de menta do bolso da
calça e começar a mastigá-lo com lentidão.

A viagem até Catford, bairro onde Catarina mora com a tia, durou
pouco mais de meia hora. Ao que eu pude notar, vivem apenas as duas na
casa simples, com dois pavimentos, revestida de tijolinhos alaranjados e
janelas estilo guilhotina, iguaizinhas às outras da rua.
— Obrigada, Cal! — agradeceu a moça com longos cabelos
pretos e as bochechas coradas, estendendo a mão, ainda sentada no banco
de trás.
— Foi um prazer conhecer você, Cat. — Sorri e apertei
suavemente sua mão fria.
— Igualmente! — piscou antes de voltar sua atenção para
Ravena, adormecida, com a cabeça apoiada contra o vidro da janela. — Ela
apagou, tadinha. Deve estar exausta. — Suspirou.
— O que ela faz?
— Ravena trabalha como fotógrafa freelancer, não tem emprego
fixo. Agora, você imagina o quanto ela tem que trabalhar para pagar as
despesas…
Assenti seriamente, observando a moça dormir com os lábios
entreabertos, o peito subindo e descendo em uma respiração tranquila,
parecendo tão vulnerável e delicada.
— Bem, já vou indo. Mais uma vez, obrigada pela carona e, por
favor, cuide dela. — Apertou meu ombro, antes de abrir a porta do carro.
— Pode deixar que vou deixá-la em casa sã e salva.
— Não espero menos de você. — Piscou, com um sorriso de
canto, e bateu suavemente a porta.
Ainda esperei Catarina entrar em casa e fechar a porta antes de
ligar novamente o carro e dirigir em direção a Crofton Park. Minha sorte é
que ela informou o endereço correto da amiga, e eu o coloquei no GPS.
Do contrário, eu teria que acordar a marrentinha e lhe arrancar essa
informação. Isso seria uma pena, já que ela parecia um anjo dormindo
daquela forma tão serena, sem um vinco – aparentemente permanente –
entre as sobrancelhas.
Enquanto eu dirigia pelas ruas noturnas da capital inglesa, minha
boca se abriu em um bocejo mais vezes do que eu poderia contar e meus
olhos já estavam marejados. Ainda assim, minha atenção não diminuía.
Entretanto, quando estava a apenas alguns metros do prédio onde Ravena
mora com outra amiga, a fotógrafa acordou, esticando os braços para frente.
— Já chegamos? — perguntou, com a voz rouca, antes de abrir a
boca e soltar um longo bocejo.
— Estamos quase lá — respondi, não tirando os olhos da rua deserta.
— Hum… — murmurou e olhou por cima do ombro. — Você já
deixou a Catarina em casa?
— Há mais de vinte minutos.
— Oh. — Foi tudo o que ela disse.
— Prontinho, senhorita. Está entregue. — Sorri e desliguei o veículo,
observando a fachada do prédio moderno.
— Valeu — agradeceu baixo, tirando o cinto de segurança.
Observei seus movimentos lentos e ela realmente parecia cansada,
com os olhos inchados e entreabertos, como se ainda estivesse dormindo.
— Posso te acompanhar até o seu apartamento?
Ravena parou e me encarou antes de abrir um sorriso preguiçoso.
— Sabia que essa sua “boa ação” de nos deixar em casa teria um
preço.
Franzi o cenho, confuso, antes de entender seu comentário. Em
seguida, abri um sorriso de canto, mordendo o lábio inferior e balançando a
cabeça.
— Assim você me ofende, senhorita Watts — falei, dramático, com
uma mão sobre o peito, um biquinho nos lábios e a cabeça inclinada de
lado.
Ravena soltou uma risadinha, que eu nunca ouvi antes, mas que
arrepiou cada centímetro da minha pele.
De repente, como uma gata, ela se aproximou com movimentos
lentos, porém precisos e decididos, até ficar frente a frente comigo. Sua
respiração soprava meu rosto, enquanto seus olhos bonitos encaravam os
meus com um brilho travesso.
— Mas eu não me importo de pagar — sussurrou, antes de puxar
minha nuca e selar nossos lábios em um beijo. Sua ação me pegou
desprevenido, porém, eu estaria mentindo se dissesse que não passei a noite
toda sonhando com aquilo.
Segurei firmemente sua cintura e invadi sua boca gulosa – quase
tanto quanto a minha – com a língua. Isso arrancou um suspiro profundo
dela, fazendo-a cravar os dedos nas mechas do meu cabelo e puxá-lo,
causando um arder prazeroso.
— Admite que você queria isso tanto quanto eu… — sussurrei,
mordiscando seu queixo. Sem fôlego, segurei um punhado de seus cabelos e
puxei sua cabeça para trás, de forma firme, mas sem machucá-la.
Ravena abriu um sorriso lento, com os olhos fechados, e os lábios
inchados, deixando à mostra seu pescoço esbelto, feminino e pálido.
— Senta e espera, querido — retrucou em desafio.
Eu não esperava menos dela. Sorri com o pensamento, porém, meu
ego cresceria do tamanho do Everest se ela – por algum milagre – admitisse
minha afirmação.
— Me contento com a sua afirmação através de gestos — falei, com
um sorriso, e lambi uma faixa do seu pescoço lentamente. Foi possível
sentir sua pele deslizar sob minha língua, como se fosse um deleite.
Ravena gemeu baixinho, e merda, isso arrepiou até mesmo os pelos
da minha nuca e se concentrou todo no meio entre as minhas pernas.
Aquela seria a segunda vez que a marrentinha me deixaria com uma ereção
e um problema para resolver debaixo do chuveiro. Pois, nem nos meus
melhores sonhos, eu arriscava acreditar que ela cederia tão facilmente para
se enroscar comigo sob os lençóis.
No entanto, se tem algo que eu possuo e considero uma virtude, é a
minha persistência.
Podia não ser naquele dia, ou no seguinte, e nem no sucessor a ele,
mas algo me dizia, no mais profundo do meu ser, que aquela hora chegaria,
e foda-se se eu não iria me sentir o homem mais sortudo do mundo.
— Deveria ser proibido alguém beijar tão bem como você… — Ela
sussurrou, abrindo os olhos para encarar os meus com intensidade.
— Isso foi um elogio, marrentinha?
Droga! Soltei o apelido sem querer.
Subitamente, meu corpo se retesou, esperando sua reação negativa,
talvez um tapa na cara, que soltasse um palavrão e me mandasse ir à merda,
ou simplesmente saísse do carro e batesse a porta com brutalidade. Porém,
ela apenas continuou me encarando em silêncio por alguns segundos,
fazendo meu coração bater forte a ponto saltar pela minha boca entreaberta.
Após o que pareceram horas, finalmente a fotógrafa esboçou uma
reação, e foi surpreendente para mim. Ravena soltou um riso e balançou a
cabeça.
— Você esperava que eu fizesse alguma coisa, não é? — disse baixo,
com os olhos estreitos e a cabeça inclinada de lado. — Acredite, passou sim
pela minha cabeça um milhão de diferentes formas de torturá-lo por ser um
atrevido de merda, mas seu beijo gostoso apaziguou sua situação. —
Apertou meus ombros e desviou o olhar, encarando seu colo.
Mordi o lábio inferior e coloquei uma mecha de seu cabelo atrás da
orelha, atraindo novamente sua atenção.
— Então, vou considerar isso um elogio, porque eu beijo bem pra
caramba. — Segurei seu rosto em concha e tomei seus lábios novamente.
Se eu pudesse, ficaria ali a noite toda, beijando-a, tocando-a até o dia
amanhecer.
Ravena suspirou e segurou meus pulsos, erguendo-se do banco do
passageiro para encontrar abrigo em meu colo, e circular meus quadris com
os joelhos dobrados sobre o banco do motorista.
Caralho! Parecia um sonho aquela mulher maravilhosa, sentada no
meu colo, me engolindo como se eu fosse a última gota de água no planeta
inteiro.
Ainda sem fôlego, com o corpo em chamas, deslizei minhas mãos
ansiosas por suas costas até alcançar seu traseiro e apertá-lo com firmeza.
Ela gemeu e se inclinou para frente, tocando meu peito com seus seios
macios, aumentando minha vontade de tocá-los e vê-los antes que aquilo
acabasse.
No entanto, o que aconteceu segundos depois foi que algum
intrometido do caramba bateu à janela do carro, nos fazendo arregalar os
olhos e encarar o homem com cara de quem não estava satisfeito com o que
estava vendo.
11

Eu queria tanto, mas tanto, matar o Logan naquele momento que,


se eu saísse dali algemada no banco de trás de uma viatura da polícia
metropolitana, estaria feliz por ter feito algo de bom para a humanidade,
especialmente para a minha amiga Alissa.
Engoli em seco e respirei fundo, saindo do colo de Caleb,
enquanto ele abaixava a janela do carro com o cenho franzido e confuso.
— Boa noite — disse o músico, encarando o namorado da minha
amiga.
Logan estava vestido apenas com uma regata branca e uma cueca
samba-canção de bolinhas. Sinceramente, ele deveria atear fogo naquilo e, o
principal, ter vergonha de ser visto em público com aquela aberração
disfarçada de roupa íntima.
Onde estava Alissa que não impediu aquele desastre?
Minha resposta veio segundos depois, quando a ruiva surgiu ao lado
do namorado, apertando um robe branco de cetim ao redor do corpo.
— Viemos saber o motivo de um carro suspeito estar parado há mais
de vinte minutos em frente ao prédio da minha ruivinha. — grunhiu o
fazendeiro.
— Quem? — perguntou Caleb, ainda mais confuso.
Logan cruzou os braços e arqueou a sobrancelha com cara de
desdém.
— Rav, desculpe. Log e eu não sabíamos que era você. — Alissa
soltou timidamente, com as bochechas coradas de vergonha.
— Vocês são uma dupla de inconvenientes — rosnei. — Caleb e eu
estávamos nos divertindo até vocês estragarem tudo — encarei Logan com
os olhos estreitos.
Para estremecer ainda mais os meus nervos, o idiota – com olhos tão
azuis quanto os meus – abriu um sorriso zombeteiro e soltou:
— Agora estamos quites, senhorita empata-foda.
— O quê? — Caleb soltou, com os olhos arregalados, e se segurou
para não abrir um sorriso.
Bufei e revirei os olhos, abrindo a porta do Ford Cortina, bem
parecido com o do meu pai. Após descer do veículo, dei a volta até ficar de
frente para o casal de patetas.
— É bom vocês trancarem a porta antes de dormirem. — Estreitei os
olhos para ambos. — Quanto a você, ogro, abre bem os olhos comigo e
cuidado para não amanhecer seco feito um sapo — ameacei baixinho, com
os braços cruzados, para que apenas ele e a namorada ouvissem.
Alissa arregalou os olhos e segurou o braço do namorado como se
estivesse apavorada. No entanto, a intenção era essa. Já o ogro fazendeiro,
rico e mimado, franziu o cenho com uma careta e murmurou algo sobre eu
ser louca.
— Ah, querido, você não faz ideia do quanto.
— Credo, Ravena. — Ali murmurou com um biquinho.
Recado dado aos dois, me virei para Caleb:
— Valeu pela carona, cantorzinho.
Acho que encontrei um apelido para ele. Sorri com o pensamento.
— Ao seu dispor, marretinha. — Piscou, ligando novamente seu
carro. — Boa noite pra vocês também. — disse baixo, fitando minha amiga
e o namorado, antes de seguir dirigindo devagar pela rua parcialmente
iluminada.
— E-ele te chamou de… marrentinha? — perguntou Alissa, com o
cenho franzido e a boca aberta em completo choque.
— Sim. — Dei de ombros, passando por ela.
— M-mas v-você nem brigou com ele! — exclamou, correndo para
me alcançar, aparentando não se importar em deixar o ogro para trás.
Revirei os olhos com seu comentário e pressionei o botão do
elevador.
Afs! A caixa de metal ainda estava no quarto andar.
— Me explica isso melhor, Rav. — insistiu a ruiva.
— Não tem nada para explicar — Falei com tédio e entrei no
elevador, pressionando o botão para o quinto andar.
— Espera! O Log já vem. — Segurou minha mão, gesticulando com
a outra para que o ogro se apressasse.
Revirei os olhos, querendo muito subir pelas escadas, mas eu estava
exausta.
— Agora, Ravena, eu quero saber o motivo de aquele desconhecido
poder te chamar de marrentinha e eu e as meninas não. — Cruzou os
braços, com o cenho franzido, aguardando uma resposta.
Respirei fundo e me virei de frente para ela.
— Eu não gosto que ele me chame assim e já falei isso pra ele. —
Torci os lábios. — Mas o cantorzinho continua, então, não posso fazer nada.
— Dei de ombros. No entanto, assim que as portas do elevador abriram,
Logan e eu ficamos “garrados”, ombro a ombro, enquanto tentávamos
passar entre elas ao mesmo tempo.
— M-mas isso não é justo! — Ela continuou sua lamentação
irritante. Porém, eu tinha problemas mais sérios para tratar, tipo: sair
daquela situação desconfortável em que me encontrava com o namorado
dela.
— Ai, seu ogro, você tá me esmagando com todos esses músculos
desnecessários — rosnei, tentando sair daquele aperto.
Como era possível aquelas portas serem tão estreitas?
— Desnecessários? Você diz isso porque nunca me viu trabalhando
na fazenda — resmungou indignado. — Isso aqui, querida, que você chama
de desnecessário, aqueles frescos de academia nunca vão ter. — Afastou-se
para trás, me deixando respirar novamente, e apertou os bíceps. — Estes
são os músculos de um homem que trabalha duro, de sol a sol, carregando
feixes de feno e tudo que precisar.
Quase vomitei com a visão.
— O que você disser, ogro. — Gesticulei com desdém.
— Para de me chamar assim. Só a Ali tem esse direito — rosnou,
porque é só isso o que ele sabe fazer, e passou os braços ao redor da
namorada.
Eu já estava pelas tampas com aqueles dois.
A possibilidade de me mudar realmente estava começando a alugar
um tríplex na minha cabeça.
— Pensei que você e a Catarina tivessem ido ao seu pub favorito, não
que você tivesse se mancomunado com ela para ir a um encontro sem me
dizer — resmungou Alissa, com as mãos na cintura. No entanto, antes que
eu pudesse abrir a boca, ela continuou: — E além disso, eu já não vi aquele
cara antes?
— Primeiro, eu não mancumunei com ninguém, você mesma viu que
eu e a Cat saímos juntas, mesmo aquilo não sendo a minha intenção. Porém,
parece que seu namorado já está morando aqui e vocês simplesmente
esqueceram de me avisar, por isso, ficam como dois animais no cio. —
Cruzei os braços. — Eu nem tenho paz para chegar em casa e descansar…
Logan revirou os olhos, soltando uma lufada de ar.

Entretanto, mesmo irritada com seu gesto, continuei meu desabafo:


— Então, eu saí com a minha amiga para espairecer e foi exatamente
o que nós fizemos. — estreitei os olhos para a ruiva. — E segundo, sim,
creio que você já deve ter visto o Caleb antes. Ele é o vocalista da Smash
Secrets, a banda que tocou na festa à fantasia na sexta. — Concluí, quase
sem fôlego, e segui para o meu quarto, marchando feito um soldado rumo à
guerra.
Tudo o que eu queria era um pouco de paz e dormir. No dia seguinte,
eu teria outro trabalho e precisava estar com a cabeça fria, embora meu
corpo estivesse o completo oposto disso.
— Ravena, espera! Você disse o vocalista daquela banda? — Ali
praticamente gritou, seguindo-me apressada pelo corredor.
Não dei ouvidos, apenas continuei a passos largos, com os olhos
fixos na entrada do meu ninho.
Entretanto, antes que eu pudesse bater a porta, Alissa me impediu
com os olhos arregalados. Ela simplesmente espalmou a mão na superfície
de madeira e colocou o pé à frente, impedindo que eu a fechasse na cara
dela, como eu tanto queria fazer.
— Você ouviu, por que tá perguntando de novo? — falei entredentes.
Minha amiga abriu um sorriso lento e mordeu o lábio inferior.
— Vocês ficaram na festa e agora ele te trouxe até em casa, e não
havia nenhum sinal da Cat. Para colocar no topo, vocês se agarraram no
carro dele… Isso não faz o seu estilo.
Revirei os olhos, tentando empurrar a porta novamente, mas ela
continuou a impedir com o pé e a mão.
— Quer dizer que você tá a fim dele? — insistiu, intrometida.
— Mas que pergunta idiota é essa? Quantas vezes eu já fiquei com
caras aleatórios?
— O Caleb não é um cara aleatório. Além disso, você não fica com
o mesmo sujeito mais de uma vez sem ter ido a um primeiro encontro com
ele.
— Você já ouviu falar em exceções? Pois é, elas existem — soltei
com ironia e finalmente consegui empurrar a porta, fechando-a na cara da
minha amiga.
— Ravena! Eu ainda não acabei — disse alto, batendo na porta.
— Mas eu sim! — gritei, deslizando minha calça pelas pernas.

Parecia um sonho, ou melhor, pesadelo, quando acabei de fechar os


olhos e meu despertador começou a tocar alto, irritante e inconveniente ao
meu lado. Meu corpo estava todo dolorido e meus olhos tão inchados que
poderiam ser confundidos com duas bolas de tênis.
Abri a boca, com um longo bocejo, e me levantei, ainda zonza, para
seguir até o banheiro.
Um banho quente seria o único capaz de me despertar naquele
momento.
Pensar que eu teria mais uma sessão de fotos em duas horas, me fazia
querer arranhar as minhas unhas pintadas de preto em um quadro negro. O
ato seria de forma lenta e agonizante, deixando todos ao redor com os
ouvidos zumbindo e a pele arrepiada de nervoso.
Entretanto, já pronta para mais um dia de trabalho duro, porém
prazeroso – assim eu esperava – caminhei até a cozinha, com os pés
calçados apenas com um par de meias de cano alto cinza. Chegando ao
cômodo, encontrei Alissa preparando uma caneca com chá.
— Bom dia! — Ela sorriu, despejando mais água fervente na caneca
de louça.
— Bom — murmurei, me debruçando sobre a bancada no centro da
cozinha.
Minha amiga suspirou e deixou a chaleira sobre a pia, antes de voltar
seu olhar para mim e cruzar os braços, encostada na pia de inox.
— Sobre ontem, eu–
— Ali, não vamos falar sobre isso. — Ergui a mão, indisposta para
ter aquela conversa em plena oito da manhã de um domingo. — O que
aconteceu ontem me fez refletir e eu percebi que você e o Logan precisam
de um espaço só de vocês…
— O-o que isso quer dizer? — perguntou baixo e engoliu em seco.
— Acho melhor eu procurar outro lugar para morar.
Alissa arregalou os olhos e veio até mim, segurando meus ombros.
— Rav, não, por favor! Eu amo morar com você — disse com voz
chorosa. — Eu pedi desculpas e também conversei com o Logan. Se ele não
tivesse um compromisso hoje bem cedinho, também iria se desculpar…
— Eu não quero as desculpas dele nem de ninguém. — Tirei suas
mãos dos meus ombros e fui até o armário sobre a pia. Peguei minha caneca
com desenho de um coração abraçando um livro, e continuei: — Tudo que
eu preciso é do meu próprio espaço — completei, despejando um pouco de
chá na minha caneca.
— Mas você não vai conseguir pagar um aluguel aqui sozinha…
— Vou procurar outro bairro.
— Ravena, para com isso agora! Você não vai se mudar — disse alto,
com as bochechas coradas e as mãos fechadas em punho ao lado de seu
corpo.
— Quem decide isso sou eu, não você! — cuspi, ainda mais alto,
segurando a asa da caneca com força.
— M-mas eu já pedi desculpas… — sussurrou com os olhos
marejados.
Senti um aperto no peito com a visão e suspirei fundo, deixando
minha caneca sobre a pia antes de seguir até ela.
— Eu já desculpei você e aquele ogro que é o seu namorado, mas já
faz um tempo que eu quero isso.
Ali franziu o cenho e fungou o nariz, secando, com as costas da mão,
a lágrima que deslizou pelo seu rosto.
— Como assim? Você nunca comentou nada.
— Parece que você e o Logan estão mesmo de cabeça nesse
relacionamento, e não é difícil imaginar vocês dois casados, morando no
meio do mato com dez filhos–
— Ravena, dez é muito! — resmungou, me fazendo abrir um sorriso.
— Enfim, é melhor vocês terem o cantinho de vocês.
— Se você acha isso, então, quem tem que se mudar sou eu, não
você. Além disso, o Logan tem um apê aqui em Londres.
— Mas você não disse que a Maria vai morar lá no próximo ano
quando for cursar a faculdade de artes?
— Sim, mas eu duvido que o Logan vai deixá-la morar naquele
espaço enorme sozinha… Você sabe como ele é.
— Claro, possessivo, mandão e arrogante.
Alissa revirou os olhos e cruzou os braços, estalando a língua no céu
da boca.
— Bem, já tá na minha hora — suspirei. — Quando eu voltar a gente
conversa melhor sobre isso. — Dei um tapinha em seu ombro e finalizei
meu chá com apenas três goles. Por sorte, a bebida não estava muito quente.
— Eu não vou deixar você sozinha, Rav, pode esquecer.
A encarei com os lábios entreabertos, mas não disse nada, deixando a
cozinha segundos depois.
Com minha mochila nas costas, levando meu celular, garrafa d’água
e, claro, o item principal do meu trabalho, minha câmera maravilhosa, desci
até a garagem do prédio. Peguei minha bicicleta encostada na parede do
espaço ocupado pelo carro da minha amiga, um Mini Hatch e olhei ao
redor.
Alissa é a única que possui um veículo, que ela “carinhosamente”
apelidou de azulinho. Com isso, você deve ter deduzido a cor do carro
“nada” chamativo da veterinária. No entanto, apesar de não ser muito ligada
a questões ambientais, não quero contribuir para o aquecimento global, por
isso, prefiro pedalar pelas ruas estreitas e confusas de Londres.
Catarina soltaria fogos de artifícios, caso me ouvisse dizer tal coisa.
Balancei a cabeça com um sorriso e pedalei para fora da garagem.
Segui pela lateral da rua movimentada em direção ao Greenwich Park, um
dos meus parques favoritos na cidade, onde eu iria fotografar um bebê
prestes a comemorar seu primeiro ano de vida.
Cheguei ao local pontualmente e avistei um casal jovem, sentado em
um dos bancos de ferro – pintado de verde-escuro – no jardim do parque,
que naquele momento estava razoavelmente vazio, o que seria muito bom
para as fotos.
Empurrei minha bicicleta pela passagem asfaltada de pedestres,
enquanto pisava em uma quantidade generosa de folhas alaranjadas
espalhadas pelo chão, caídas das árvores acima da minha cabeça, que
cercavam ambos os lados da rua estreita.
Finalmente, ao chegar no jardim, prendi minha bicicleta com uma
corrente e cadeado em uma das grades ao redor do local arborizado.
Quando me aproximei do casal, notei o bebê: uma menina com
grandes olhos azuis e cabelos pretos, sentada no colo da mãe. A moça não
aparentava ter trinta anos, com sua pele marrom-claro e cabelos cacheados,
que me lembravam muito minha amiga Michele. Ao lado, estava o pai, um
rapaz também aparentemente jovem, com cabelos castanhos-claros e lisos,
pele pálida, exibindo um sorriso enquanto brincava com sua pequena filha.
— Olá! — Saudei, acenando com a mão.
— Ah, você deve ser a Ravena — disse a mãe da bebê, com um
sorriso caloroso; seu nome, se eu não estava enganada e com a memória
fraca, era Diana.
— Sim, sou eu mesma. — afirmei.
— É um prazer — disse o rapaz após se levantar e me estender a
mão. — Ouvimos falar muito bem do seu trabalho, sem falar no seu
portfólio impecável.
— Obrigada! Fico feliz que tenham gostado e que confiem em mim
para fotografar essa bebezinha linda. — Inclinei-me para frente e peguei a
mãozinha pequena e quente da menina.
Eu estava pronta para o choro que viria a seguir quando ela olhasse
em meus olhos e visse todos os monstros que habitam em mim. No entanto,
quando a menininha sorriu, exibindo um sorriso banguela, meu coração
parou por um milésimo de segundo, apenas para bater ferozmente em
seguida, quente e pulsante.
Ela estava mesmo sorrindo para mim?
Sempre fui uma negação com crianças; parece que elas não gostam
de mim e, devo admitir, às vezes o sentimento é mútuo. Apesar de tudo, ao
encarar aquela bebê linda e frágil nos braços da mãe, percebi que ela não
me via como uma ameaça.
— O nome dela é Evangeline — disse a mãe, acariciando a
cabecinha redonda e pequena da menina, com um laço vermelho
enfeitando-a.
— Olá, Evangeline. — Balancei sua mãozinha, fazendo-a soltar uma
risadinha deliciosa e contagiante, tornando impossível não sorrir de volta.
— Ela gostou de você. — Foi a vez do pai da menininha dizer.
— Bem, então vamos aproveitar o clima amigável e começar os
trabalhos, enquanto o sol ainda está ao nosso favor. — sorri de canto e
ajeitei a postura com as mãos na cintura, de repente, mais animada.
Os pais da menina assentiram e começaram a pegar as roupas que ela
usaria na sessão de fotos de dentro da bolsa grande e rosa, que repousava no
chão ao lado do banco.
O vento, apesar de não muito eufórico, ainda soprava frio ao redor e
conseguia sacudir os galhos de algumas árvores com fervor, levantando
algumas folhas da grama baixa e seca do parque.
Diana e Derek, nome do pai da Evangeline, que descobri minutos
depois, optaram por deixar a filha com roupas mais quentes, não querendo
correr o risco de ela pegar um resfriado. Não sugeri nada diferente,
concordando que aquelas peças eram a melhor opção para o bem da bebê, e
pedi a eles que colocassem a manta felpuda sobre a grama e deixassem a
menina sentada sobre ela.
Diana deu à filha seu brinquedo favorito, uma girafinha de pelúcia
branca com pintinhas rosas, que ela balançava para cima e para baixo,
soltando risadinhas agudas e altas.
Apontei a câmera na direção da menina e me abaixei para ficar a uma
distância considerável dela, e conseguir fotografá-la com aquele enorme
sorriso de diferentes ângulos.
— Evangeline! — chamei, atraindo sua atenção. — Olhe para mim
um pouquinho, hum?
— Dadá! — disse animada, me estendendo sua girafinha.
Peguei o brinquedo e o segurei, fazendo-a manter os olhos na minha
direção, até que ela olhasse para a câmera.
— Isso aí, bebê! Está linda! — falei, satisfeita, vendo-a encarar a
câmera com aquele sorrisão lindo.

Infelizmente, a sessão de fotos durou menos do que eu gostaria e,


após pouco mais de uma hora, estava juntando minhas coisas, assim como
os pais de Evangeline. Naquele momento, ela estava nos braços da mãe, que
ajudava o marido a guardar as coisas da filha.
Enquanto colocava minha mochila nas costas, parei por um
momento, observando o jovem casal, aparentando tão feliz e apaixonado
com a filha bebê e tão frágil nos braços da mãe, e senti um aperto no peito.
Quando pensei estar grávida de Nolan, a princípio foi um choque,
e a ideia fez meu estômago revirar. Eu era jovem demais para ser mãe,
ainda nem havia deixado o ensino-médio. No entanto, à medida que os dias
passavam – antes de descobrir que tudo não passava de um engano – eu
estava começando a me acostumar com ideia de ter uma vida crescendo
dentro de mim.
Após toda a decepção que sofri, nunca mais voltei a pensar nessa
possibilidade. Eu havia me tornado uma versão de mim que nunca imaginei
que algum dia poderia ser. Por isso, não acreditava que seria capaz de dar
amor a uma criança, ou a qualquer pessoa, sem magoá-la com meu jeito
distante e frio de ser.
Algo dentro de mim se quebrou quando Nolan disse que eu não
era alguém digno de confiança.
— Ravena, você se importa de receber por transferência?
A pergunta de Derek me fez piscar os olhos e voltar à realidade.
— Hã.. o-o que foi que você disse? — Engoli em seco, abrindo e
fechando minha mão para controlar a ansiedade. Essa foi uma das dicas que
minha terapeuta me indicou.
Ele apenas sorriu, repetiu sua pergunta e eu respondi:
— Não, claro que não! Faça como for melhor pra vocês. — Sorri
fraco.
O rapaz assentiu e disse que faria o pagamento até o final do dia.
Com passos lentos e um sorriso, fui até Diana e Evangeline para
me despedir.
— Tchauzinho, linda! — Acariciei a bochechinha redonda da
garotinha e senti novamente meu coração disparar quando ela segurou
minha mão, enorme em comparação à sua tão pequenina, e a beijou.
— Quer carregá-la um pouquinho? — perguntou Diana, já me
estendendo a menina.
— E-eu… — comecei, mas não tive tempo de dizer o que quer
fosse. No entanto, meio sem jeito, segurei entre os braços a bebê, que me
encarava com seus olhos grandes, azuis e brilhantes.
Evangeline sorriu e tocou meu rosto, antes de esconder seu rostinho
na curva do meu pescoço.
Senti um arrepio bom da cabeça aos pés. E, por cinco segundos, me
permiti fechar os olhos, sentindo aquele abraço puro e verdadeiro de quem
não queria nada em troca além de um pouco de carinho e atenção.
Entretanto, quem estava precisando de tudo isso era eu, não a bebê
com pais amorosos, que fariam de tudo para protegê-la.
12

— Tem certeza de que não quer uma carona? — Derek perguntou


pela terceira vez, ao lado da porta do motorista do seu Jaguar I-PACE preto
e impecavelmente lustrado. O carro estava parado no acostamento da rua,
em frente à entrada lateral do parque.
— Tenho sim. Obrigada! — agradeci e segurei minha bicicleta.
— Se cuida, Ravena! — disse Diana, acenando, sentada no banco
do passageiro.
Evangeline, por sua vez, estava em sua cadeirinha no banco
traseiro, entretida com sua girafinha.
Assim que eles saíram, fiquei observando o carro se distanciar na rua
longa, até desaparecer na primeira esquina. Depois, montei na minha
bicicleta e pedalei de volta para casa. Meu estômago estava roncando e a
simples ideia de ir para o fogão me causava arrepios horrendos.
Nesse caso, comida mexicana era a melhor opção!
Eu estava mesmo precisando de algo apimentado para esquecer
certas ideias que pairavam sobre a minha cabeça, como aves de rapinas.
Graças a Deus, nem a Ali nem o namorado irritante dela estavam em
casa, e o cheirinho da comida quente e apetitosa que eu levava numa sacola
plástica, predominou no ambiente silencioso e aconchegante do meu lar
doce lar.
Sei que a ideia de mudar partiu de mim, mas no fundo, eu não queria
sair daquele lugar. Crofton Park se tornou mais do que simplesmente um
endereço nas minhas faturas de cartão de crédito, se tornou um lar e, apesar
de tudo, eu era muito feliz vivendo ali com a minha amiga.
O problema é que, querendo ou não, as coisas mudam com o tempo,
seja para melhor ou pior. Não importa, elas simplesmente evoluem e saem
do nosso controle, se é que em algum momento realmente temos o controle
de nossas vidas.
Com um suspiro profundo, chutei meu par de botas para o canto atrás
da porta. Em seguida, sentei-me no sofá, deixei a embalagem de isopor
sobre a mesa de centro e liguei a TV. O primeiro canal que apareceu ao ligar
o aparelho, foi o de culinária. Abri um sorriso de canto e comecei a comer,
com um garfo plástico, o maravilhoso Chili vegano que eu havia comprado
no caminho para casa.
Nada era mais prazeroso para mim do que comer, assistindo aos
outros cozinharem; isso, de certa forma, me fazia sentir melhor, pois
aquelas comidas maravilhosas só vemos atrás das telas.
No entanto, o chef do programa estava preparando um salmão
com molho de alho e limão, o que fez minha boca salivar, mesmo estando
ela cheia de proteína texturizada de soja e molho de tomate.
— Droga! Talvez não tenha sido a melhor ideia assistir a isso —
resmunguei, trocando de canal, apenas para visualizar o noticiário da noite
falando sobre o show da última sexta na Electric Ballroom.
Apesar das imagens de calculadora, foi possível ver Caleb e sua
banda tocando no pequeno palco sob os holofotes dourados, enquanto a
plateia ia à loucura.
O telejornal ainda destacava a popularidade do evento nas redes
sociais, afirmando que a live de transmissão ultrapassou a marca de 100 mil
telespectadores em tempo real.
Para uma banda anônima, isso era bastante impressionante…
Enquanto as imagens do show eram exibidas na tela, eu sorri,
imaginando a reação do Caleb ao se ver na TV. No entanto, esse mesmo
sorriso deu lugar a uma carranca segundos depois.
Eu não deveria estar pensando nele…
Sinceramente, por que eu tinha que mudar o canal justo na hora
daquela bendita reportagem e ver aquele rostinho bonito e sorridente, que
na noite anterior me beijava com tanto desejo e saudade?
Bufei e revirei os olhos, optando por desligar a TV.
Levei o garfo à embalagem, mas franzi o cenho quando olhei para
baixo e ela já se encontrava vazia.
— Afs, nem deu pra encher — murmurei, com um beicinho,
pensando seriamente em pedir mais uma refeição, porém desisti.
O melhor que eu poderia fazer naquele momento, além de escovar os
dentes, era trabalhar na edição das fotos dos meus últimos trabalhos, que
incluíam a festa chata do Timmy e a sessão maravilhosa da Evangeline.
Apenas a lembrança da garotinha era o suficiente para me fazer abrir
um sorrisinho.
Balancei a cabeça e fui até a mesa ao lado da janela, com vista para a
rua, trabalhar no meu notebook. Meu dedo deslizava com precisão sobre o
touchpad, enquanto meus olhos estavam focados nas imagens na tela.
Entretanto, vez ou outra, meus pensamentos se distanciavam da minha
tarefa, voando até algum lugar naquela cidade onde se encontrava um certo
músico tatuado e atrevido.
O que ele estava fazendo naquele momento? Pensando em mim,
como eu estava nele? Cantando? Compondo?
Quem sabe beijando alguma garota aleatória…
Subconsciente de merda!
Por que a ideia me irritava tanto?
Ele mesmo admitiu, no nosso primeiro encontro na casa de shows,
que não beijava há apenas dois dias. Eu, por minha vez, não beijava há mais
de um mês antes de aqueles lábios gulosos dele se colarem nos meus.
Apesar disso, Caleb não parece ser do tipo mulherengo, mas as
aparências enganam, ah, como enganam…
Outra pergunta que me atormentava era: até onde teríamos ido se o
idiota e intrometido do Logan não tivesse nos interrompido?
Meu corpo arrepiou com imagens nada ortodoxas se projetando em
minha mente, envolvendo Caleb e eu sobre uma grande cama de casal,
coberta por lençóis brancos, macios e perfumados, fazendo coisas que
deixavam minhas bochechas quentes e meu corpo em chamas…
— Foco, Ravena! — falei para mim mesma, respirando fundo, antes
de voltar a focar na tela à minha frente.

— CALEB! LIGA AGORA A TV NO CANAL DA BBC! — Foi a


primeira coisa que Davian gritou do outro lado da linha, após eu atender sua
terceira ligação em apenas 30 segundos.
Franzi o cenho, mas fiz o que o guitarrista “pediu” com tanto
desespero.

“Todos estão curiosos para conhecer


a banda que promete ser a nova
sensação do rock and roll britânico!”.

Meu queixo quase caiu no chão quando a repórter completou sua


fala, de pé em frente à entrada da Electric Ballroom. Logo em seguida,
imagens da Smash Secrets na última sexta-feira começaram a ser exibidas
na tela da minha TV, que nunca pareceu tão linda. Era como se cada
centavo que eu era obrigado a pagar todos os meses valesse a pena,
enquanto as benditas prestações não acabavam.
— Não acredito que a gente tá na porra da BBC! — falei alto e
animado no alto-falante do meu celular, ouvindo os gritos eufóricos do meu
amigo do outro lado.
— Eu sei, cara! É melhor do que a gente podia sequer sonhar, Cal!
— Infinitamente melhor! — Sorri, ainda processando toda aquela
repentina, porém tão prazerosa informação.
— Precisamos comemorar, cara. As coisas estão realmente
começando a dar certo pra nós… — disse ele, emocionado.
Assenti, como se Davian pudesse ver, e antes de encerrar a ligação,
combinamos de nos encontrar, os quatro, no nosso pub favorito, o lugar
onde fizemos o nosso primeiro show profissional. O dono do bar, Jeremiah
Ryde, foi o primeiro a apostar em nós e pagar um generoso cachê de £200
por uma única apresentação.
Para quem lê, assim deve pensar: poxa, mas isso é muito pouco. Eu
discordo. Para garotos adolescentes, recém-formados no ensino-médio,
aquele era um dinheiro para ser valorizado até o último centavo.
Lembro que cada um de nós recebeu a quantia de £50. Torramos
metade dela na mesma noite, bebendo no próprio pub até cairmos no chão
soltando risadas. Sonhávamos com o dia em que seríamos rockstars,
viajando pelo país em um ônibus enorme estampado com a nossa foto na
lateral e o nome da banda em letras grandes para quem quisesse ver, e para
quem não quisesse também.
Ainda acredito que esse dia vai chegar, só precisamos ter paciência e
não desistir. Mesmo que, às vezes, a ideia me passe pela cabeça, tento não
deixá-la entrar com profundidade. Como líder, os meninos confiam em mim
e esperam que eu tome as rédeas da situação, seja ela qual for.
Suspirei fundo, sentindo o peso da responsabilidade, mas
rapidamente espantei o medo e as dúvidas para o lado, focando na melhor
notícia do dia.
No entanto, minha família precisava saber a boa nova.

— A primeira rodada é por conta da casa! — Jeremiah disse alto,


erguendo seu copo com uísque e gelo.
— Wow! — meus amigos e eu soltamos em uníssono, imitando o
gesto do nosso primeiro fã, claro, depois de nossas próprias famílias.
Jeremy, apelido para os mais próximos, fechou o pub exclusivamente
para nós e, sinceramente, era uma honra e tanto. Apesar do coração enorme,
o homem é um empreendedor que não brinca em serviço quando a questão
é não perder dinheiro. Seu pub é o melhor e mais bem frequentado da
região, ou seja, fechar duas horas mais cedo poderia afetar um pouco seu
caixa, mas segundo ele, aquilo não o deixaria mais pobre.
— Vocês merecem, garotos! — disse, com um largo sorriso,
apertando meu ombro.
— Valeu, Jeremy! — agradeci, segurando minha garrafa de cerveja
com os braços apoiados sobre a mesa de madeira, com cinco cadeiras
ocupadas.
— A sorte parece estar finalmente sorrindo para nós… — disse
Davian, segurando um copo com tequila e limão.
— Cara, apesar da qualidade duvidosa daquela filmagem, eu
fiquei bem gato com aquela fantasia de chapeiro, fala aí? — Elion brincou,
empurrando com o ombro, Nevan, sentado ao seu lado.
O baterista sorriu e abaixou a cabeça, balançando-a devagar.
— Você é mesmo um egocêntrico do caramba, né, Elion? Tudo
que conseguiu notar nas imagens foi você mesmo? — perguntou Davian,
com a sobrancelha arqueada.
— Claro! A mulher ainda entrevistou uma garota, gata pra
caramba devo ressaltar, que perguntou, ou melhor, implorou, para saber o
nome do baixista mais gato e sexy do planeta. — Sorriu arrogante e cruzou
os braços. — Palavras dela — completou, erguendo as mãos.
— Ah, mas que exagero! — soltei, com o cenho franzido, e sorri
antes de bebericar mais um gole da cerveja gelada.
— Tadinha, a moça deve estar precisando visitar um
oftalmologista — zombou o guitarrista da banda, antes de esconder seu
sorriso atrás do copo quase vazio que segurava na mão.
— Você tá é com inveja — retrucou o baixista, sorrindo de canto.
— De você? — Davian apontou, com a sobrancelha arqueada e
uma expressão de desdém, para o amigo sentado à sua frente do outro lado
da mesa.
Elion assentiu e pegou sua garrafa de cerveja, idêntica à minha.
— Só se eu fosse muito perturbado — completou, revirando os olhos.
Uma risada coletiva ressoou no ambiente fechado, repleto de garrafas
de bebida atrás de um grande balcão de mármore. Ao redor, ainda havia
cadeiras de cabeça para baixo sobre mesas de madeira, quadros com fotos
em preto e branco de bandas de rock antigas, e discos de vinil enfeitando as
paredes revestidas de tijolos escuros.
Elion exibiu o dedo do meio para o guitarrista e resmungou algo
sobre ir ao banheiro, após afirmar que aquela seria a sua última garrafa de
cerveja da noite.
— Cerveja só serve pra fazer a gente mijar de dez em dez minutos —
cuspiu ele, segurando suas partes íntimas.
Abri um sorriso de canto e acabei de beber minha bebida, deixando a
garrafa vazia sobre a superfície da mesa.
— Enquanto você vai ao banheiro, vou conferir se a Astrid acabou de
fritar os peixes e as batatas. — informou Jeremy, levantando-se da cadeira
para seguir até a cozinha.
— Vou com você, quem sabe eu descolo uma batatas antes de todo
mundo? — disse Nevan, esperto, seguindo atrás do homem mais velho.
— E você líder? Onde tá com a cabeça? — Davian quebrou o
silêncio repentino, me observando com curiosidade.
— Hum? — Franzi o cenho, não entendendo sua pergunta.
— Ah, Caleb, você tá aqui, mas não tá, sabe? Desde que nós
chegamos você tá meio calado, distante… Quer dizer o que aconteceu?
— Nada demais, quero dizer, eu encontrei a garota da festa de novo.
— A pirata? — ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.
Abri um sorriso com o apelido que ele parece ter dado à marrentinha
e assenti.
— Sério? Onde?
— Chame de coincidência, destino, o que for, mas foi inusitado e
inesperado. Eu estava perto de casa, no Rock and Chill, do outro lado da
rua, e ela apareceu do nada com uma amiga, muito engraçadinha, aliás. —
Sorri, lembrando-me do jeito despreocupado e até mesmo inocente da
Catarina.
— E aí? O que aconteceu? — Davian inclinou-se para frente,
apoiando os braços sobre a mesa.
— Você é muito curioso, cara — brinquei.
Ele apenas deu de ombros e gesticulou para que eu continuasse.
— Bem, ela ficou na defensiva, claro. — Revirei os olhos com um
sorriso. — Mas, depois de uma certa insistência da minha parte e um jogo
de charme aqui e ali, ela acabou cedendo — falei, me sentindo confiante.
— Quer dizer que vocês ficaram de novo?
— Exatamente! — Cruzei os braços, esticando as pernas abertas sob
a mesa.
— Olha, eu tiro meu chapéu pra você, Caleb Fleet. Você nem
acreditava que seria possível encontrá-la de novo… Vai ver essa coisa de
almas gêmeas existe mesmo.
— O quê? — soltei com um riso.
— É, cara, tipo, sei lá! Vocês dois se encontram assim do nada e aí
rolou de novo… Sei não, isso me parece muito cinematográfico.
— Não sei, só sei que foi bom pra caramba e que eu quero mais —
afirmei, sincero demais.
— Mais? Quer dizer então que vocês não ultrapassaram o sinal
vermelho?
— Não, infelizmente. — Suspirei frustrado, lembrando do homem
musculoso, com aparência raivosa, que apareceu do nada e começou a bater
na janela, quase quebrando o vidro. — Um cara, parece que é namorado da
amiga com quem ela divide o apartamento, apareceu de repente e começou
a bater na janela, dizendo que tava achando muito suspeito um carro parado
há mais de vinte minutos em frente ao prédio da ruivinha dele.
Meu amigo soltou uma risada e balançou a cabeça.
— Eu pagava pra ter visto essa cena!
Revirei os olhos.
— O fato é que eu queria muito contar a ela sobre a matéria que saiu
sobre nós na TV… — Umedeci os lábios, e deslizei a mão pelos meus
cabelos.
— Por que você não liga pra ela ou manda uma mensagem?
— Eu faria, se tivesse o número dela — resmunguei, me sentindo um
idiota por não ter aproveitado a oportunidade.
Davian me encarou com uma careta.
— Sério que vocês se pegaram de novo, mas você ainda não tem o
número dela?
— Pedir o número da marrentinha, foi a última coisa que passou pela
minha cabeça quando ela puxou minha nuca e começou a me beijar. Além
disso, meu juízo quase se atirou pela janela quando ela sentou no meu colo
e–
— Ah, não! Por favor, sei que somos amigos, mas me poupe dos
detalhes sórdidos.
Sorri de canto, abrindo outra garrafa de cerveja.
— Pelo menos agora eu sei onde ela mora. — estreitei os olhos,
mordendo o lábio inferior.
— Caramba, é mesmo! — arqueou as sobrancelhas, deslizando as
mãos pelos seus cabelos pretos. — E agora, você vai fazer o quê? Dar uma
de stalker e esperar ela aparecer para ir falar com ela e finalmente pedir seu
número?
— Não! — quase engasguei com cerveja. — A intenção é me
aproximar dela, não fazê-la correr de medo.
O guitarrista sorriu zombeteiro e deu de ombros.
— Foi apenas uma pergunta.
Revirei os olhos, sabendo que ele estava apenas querendo me irritar.
— Minha ideia é ir até lá e convidá-la para um encontro. — informei.
— Tipo?
— Ah, não sei. O Winter Wonderland abre essa semana, pensei que
seria um programa legal.
— E romântico pra caramba — completou minha fala.
— Você acha que soa muito desesperado? — perguntei, com o cenho
franzido, de repente, inseguro se ela acharia a ideia boa, ou até mesmo que
topasse.
— Acho que se você está tãoooo a fim dela, o que eu tenho certeza,
caso você ainda tenha dúvidas. — Fez uma pausa e piscou. — Vai em frente
e arrisque. Você sempre nos diz para não desistir daquilo que queremos,
então, que isso sirva pra você também. Meu apoio você sempre terá.
Engoli em seco e abri um sorriso emocionado.
— Valeu, Davi! — Estendi a mão em punho para ele, que usou a sua
para chocar contra, completando nosso cumprimento desde a escola.
O assunto se deu por encerrado quando nossos companheiros
voltaram, Nevan e Jeremy segurando duas bandejas com fish and chips, e
Elion, com os cabelos e a camisa levemente molhados.
A comida estava com um cheiro delicioso, por isso, não perdi a
oportunidade de afundar de uma só vez, quatro batatas palito no molho de
barbecue que só a Astrid – cozinheira do pub – sabe fazer.
Que minha mãe não soubesse disso!
— Espero que não se esqueçam desse velho aqui quando ficarem
famosos, lotando estádios ao redor do mundo. — disse Jeremy,
emocionado, fungando o nariz.
— Aaaaaah! — Soltamos em uníssono, e eu abracei de lado, o
homem que teve a coragem de dar uma oportunidade de ouro para quatro
adolescentes inexperientes, com apenas um sonho em comum.
— Claro que não vamos nos esquecer de você, Ryde! — afirmou
Elion, levantando-se para abraçar o homem.
Nevan e Davian também se levantaram e fizeram o mesmo. No final,
éramos cinco homens soltando risadas e se abraçando como se nunca
tivessem feito aquilo na vida.
13

Passei a semana toda pensando se deveria, ou não, ir até Crofton


Park visitar uma certeza fotógrafa marrenta de língua afiada e humor
questionável.
A ideia de convidá-la para um encontro oficial e, finalmente,
pedir seu número me atormentava o dia todo, até mesmo nos meus sonhos,
quando eu tentava, a custo adormecer sem pensar nela. No entanto, aquilo
estava se tornando quase impossível.
Tudo que eu fazia me lembrava a Ravena, desde uma fotografia
em preto e branco pendurada em uma parede no pub da esquina até o
simples acorde do meu violão. Confesso que tenho pensado – e muito – na
ideia de escrever uma música para ela, mas isso soava demais até para mim.
Eu mal conhecia a garota e já ia dedicar uma música inteira para
ela?
Sim! Gritou meu subconsciente ansioso e fã da marrentinha.
A primeira música que escrevi para uma garota foi quando eu
tinha quinze anos e estava no segundo ano do ensino médio. Ela era a mais
bonita da escola e tinha os olhos castanhos mais lindos que já tinha visto na
vida. O simples sorriso dela era capaz de me fazer ficar de joelhos. No final
das contas, eu era apenas um garoto na puberdade, com um crush pela
garota mais popular da escola, que acabou se tornando a minha primeira
namorada meses depois.
Nunca cheguei a criar uma melodia para a canção. Ela acabou se
perdendo entre tantas outras que escrevi nos anos seguintes em um velho
caderno que sempre levo comigo, já que nunca sei quando a inspiração vai
bater à porta.
— Miau! — Candy soltou de repente, enquanto se enroscava na
minha perna com carinho.
Peguei minha gata no colo e encarei meu violão, que repousava
ao meu lado sobre o sofá, me puxando como um imã para que eu o pegasse
e começasse a soltar as notas que habitavam o meu coração.
— O que eu faço, Candy? — perguntei, como se a gata realmente
pudesse me dar uma resposta.
No entanto, ela apenas miou de volta, me fazendo abrir um
sorriso e beijar sua cabecinha pequena e peluda.
Olhei para a chave do meu carro, que descansava sobre a mesa de
centro. Minhas pernas nervosas subiam e desciam em um tique nervoso,
enquanto eu travava uma luta interna na minha mente, pesando as
vantagens e desvantagens de ir atrás da Ravena.
A primeira seria eu levar um baita “não” na cara, essa com
certeza era a probabilidade com maior porcentagem de acontecer. A
segunda, era ela não aparecer nem por reza, e eu passar o dia todo parado
dentro do carro à espera de um vislumbre dela. E a última, porém muito
importante, era eu acabar levando um soco na cara ou parar na delegacia,
caso o fortão lá resolvesse colocar na cabeça que sou uma ameaça à sua
ruivinha.
Quem apelida a namorada assim?
O mesmo cara do grupo dos que apelidam de marrentinha.
A diferença, subconsciente, é que a Ravena não é a minha
namorada!
Eu só podia estar ficando louco para discutir comigo mesmo
sobre algo que não fazia o mínimo sentido.
— Se eu ficar aqui sentado o dia inteiro, não vai resolver nada. —
Suspirei fundo e coloquei Candy sobre o tapete. — É melhor levar um não e
saber que tentei, do que ficar com um monte de “e se” na cabeça. — Peguei
minhas chaves sobre a mesa de centro e me levantei do sofá, decidido a ir
até o outro lado da cidade, apenas para convidar aquela marrentinha para
um encontro no parque de diversões mais colorido de Londres.

— Eu juro que não indiquei seu nome, Rav. Foi ideia da Eshe...
— Mich lamentou pela décima vez naquele dia por ter me colocado em uma
tremenda saia justa.
Fotografar para London Fashion Magazine nunca foi algo que
almejei, ainda mais depois de saber a chave de cadeia que é a CEO da
revista, vulgo, chefe da minha amiga nerd.
— Por que então ela exigiu que eu fosse a fotógrafa do evento?
— Sei lá! — Abriu os braços frustrada. — Acho que ela viu
algum trabalho seu, ou algum amigo dela indicou seus serviços. — Fez uma
pausa, abaixou a cabeça com um biquinho e suspirou fundo. — O fato é que
ela faz questão de que seja você.
— Mas aquela revista maluca já tem o Brandon — retruquei,
revirando os olhos.
Michele retesou com a menção do amigo, ou ex amigo, eu já não
tinha mais certeza.
— O Brand saiu de férias, disse que precisava espairecer um
pouco — murmurou, desviando o olhar.
— Acho que essa foi a melhor desculpa que ele arrumou para não
dizer que está evitando você — disse Catarina, antes de morder um pedaço
generoso de hambúrguer.
Eu ainda não tinha entendido o fato de elas terem saído do
trabalho, em plena sexta-feira à noite, para se enfiar lá em casa, como se ali
fosse o ponto de encontro do nosso quarteto estranho.
Só faltava a Alissa, mas aquela lá deveria estar com o namorado,
que parece ter resolvido deixar o campo e retornar à civilização.
Para a minha completa tristeza.
— Cat, para com isso. — Mich murmurou, cabisbaixa, sentando-
se no sofá antes de apoiar o queixo nas palmas das mãos e os cotovelos
sobre os joelhos.
— Por que ela deveria? A Catarina tem razão, Mich. Você está
tentando tapar o sol com a peneira, apenas para não admitir que o motivo da
tristeza do Brandon é o seu namoro com o Angel — cuspi com desdém.
— Mas que culpa eu tenho de ter me apaixonado por ele? — disse
com a voz chorosa.
— Amiga, ninguém aqui está te culpando, só que não é certo você
fingir que nada está acontecendo. — disse Catarina séria, deixando seu
hambúrguer sobre o prato para ir até a cacheada à beira de uma crise de
choro.
— E-eu tentei conversar com ele, m-mas ele me evita o tempo
todo. Não me dá a oportunidade de me explicar…
— Explicar o quê? O Brandon já é grandinho o suficiente para
levar um fora e seguir em frente, mas eu não julgo o rapaz por agir assim.
Deve ser muito foda você ter que ver todos os dias a pessoa por quem é
apaixonado e não poder tocá-la, beijá-la e, para completar, ainda ter que vê-
la nos braços de outra.
— Rav, não tá ajudando. — Catarina balançou a cabeça, acariciando
os cabelos cacheados da Mich.
— Calei. — Ergui as mãos e me sentei ao lado da cacheada. — Olha,
amiga, você sabe a minha opinião sobre esse seu namoro com aquele
modelo…
Michele revirou os olhos e murmurou algo inaudível, mas fui firme e
continuei:
— Eu não engulo o Angelo, e acredito que dificilmente algum dia
irei, mas sei o quanto você é apaixonada por ele e ele por você; isso eu não
posso negar. Só que se coloca no lugar do Brandon, ele é o seu amigo há
anos e nunca escondeu a queda – penhasco, na verdade – que ele tem por
você…
— E-eu sempre achei que era brincadeira, sabe? Ele sempre foi tão
autoconfiante, charmoso e flertador… Nunca passou pela minha cabeça que
ele estivesse sendo sincero.
— Mas ele estava, e agora não adianta chorar sobre o leite
derramado. O que você precisa fazer é tentar salvar essa amizade, ou tirar o
Brandon de vez da sua vida — falei, séria.
— Ah, não! O Brand é o cara mais incrível que eu já conheci, e se
não fosse o Angelo, acho que… — Fez uma pausa, mordendo o lábio
inferior.
— O quê, Mich? Fala! — Catarina disse alto, com os olhos
arregalados, quase em cima da Michele.
— Deixa pra lá. — Ela sacudiu a cabeça.
— Você daria uma chance ao fotógrafo, é isso o que você faria —
completei em alto e bom som o que a nerd não tinha coragem de dizer.
Mich engoliu em seco, mas não negou minha afirmação.
— Que coisa complicada… Também, quem mandou a Michele
arrumar um gato daqueles como melhor amigo? — Catarina suspirou,
balançando a cabeça com o cenho franzido.
— E a ruiva, a tal de Blaise, ela já o superou? — perguntei, curiosa.
— E-eu não sei… Na verdade, desconfio de que os dois estão juntos.
— Mich murmurou e deu de ombros.
— Nada mais justo. O rapaz tem direito de seguir em frente e
esquecer você — afirmei, sincera.
— Chega desse assunto. — Ela resmungou e voltou seu olhar para
mim. — E aí, você vai ou não aceitar fotografar o evento da London
Fashion?
— A grana é boa?
— Cinco mil libras por uma noite.
Arregalei os olhos, e Catarina cuspiu seu suco de limão com
gengibre, molhando meu sofá, impecavelmente limpo.
— Você vai limpar, sua nojenta — resmunguei com uma careta, antes
de encarar novamente minha amiga jornalista. — C-cinco mil assim,
limpinhos, sem desconto?
— Uhum.
— Fala para a sua chefe sem escrúpulos que eu topo! — Estendi a
mão para a minha amiga, que a apertou com uma expressão de
desconfiança.
Cinco mil libras a mais na minha conta poderiam tornar possível a
minha futura mudança de apartamento. Fazia algum tempo que eu estava
juntando dinheiro para dar entrada em um imóvel e, honestamente, vinha
sendo bem-sucedida. Minha conta já contava com quase vinte mil e, embora
aquele valor não representasse nem um terço do valor total, já era alguma
coisa.
Se eu continuasse pegando trabalhos grandes como o da London
Fashion, as chances de conseguir pelo menos metade do valor aumentariam
muito e, o melhor, a curto prazo.
— Será que a Ali vai demorar muito? Eu queria muito dar um abraço
nela. Mal nos vimos essa semana. — disse Cat, com um beicinho, pegando
seu casaco no encosto da cadeira.
— Você tá tão carente assim? — arqueei a sobrancelha.
— Acho que a Catarina está precisando sair em um novo encontro às
cegas — brincou Mich, cutucando a bióloga com o dedo indicador.
— Eu já desisti de tentar encontrar minha alma gêmea nesses
aplicativos deploráveis. — suspirou, ajeitando seus cabelos pretos sob a
gola de seu casaco.
— Lembra aquele último? O cara de óculos, tipo você, Mich,
esquisito e nerd, vestido com uma camisa xadrez azul abotoada até o queixo
— zombei, juntando os guardanapos sujos de ketchup sobre a mesa para
jogar na lixeira da cozinha.
— Hey! — Michele exclamou irritada, me arrancando uma risadinha.
— Ele era um cara legal, mas a coleção de aranhas dele era pavorosa.
— Catarina murmurou com uma careta, aparentando se lembrar da cena e
sacudiu os braços.
— Eu juro que imaginei vocês casados — continuei o deboche,
sabendo que isso a deixaria irritada.
— HAHAHA! Você sempre tão hilária e preocupada com a
felicidade alheia, não é, senhorita Watts?
Dei de ombros e segui para a cozinha.
Quando voltei, Michele e Catarina já estavam prontas para irem
embora.
Graças a Deus!
— Acompanha a gente até a portaria? — pediu Cat, deslizando um
protetor labial sobre os lábios ressecados.
— Por quê? Vocês não são visitas. — Franzi o cenho e cruzei os
braços.
— Credo, Ravena! Não precisa ir se não quiser. — Mich resmungou,
abrindo a porta com brusquidão.
Revirei os olhos e resolvi acompanhá-las.
Meu pijama de frio lilás, com a calça repleta de orelhinhas de coelho
e a blusa manga longa com uma enorme estampa do Pernalonga, não
pareceu o suficiente para apaziguar o frio que senti quando o vento da noite
de outono bateu em meu rosto, assim que Catarina abriu a porta de vidro da
portaria.
— Puts! Por que eu desci com vocês? Lá em cima estava bem melhor
do que nesse gelo — resmunguei, esfregando meus braços.
— Nem parece que estamos no outono. — murmurou Catarina,
fitando o céu escuro.
Uma buzina e meu nome sendo gritado, foram o que fizeram os meus
olhos se desviarem para o outro lado da rua, apenas para ver um Ford
Cortina preto, com um motorista bonito e tatuado ao volante.
— Caleb? — murmurei, com o cenho franzido, encarando o rapaz
que acenava com um largo sorriso.
— Caleb? O vocalista daquela banda de rock que você beijou na
festa à fantasia? — Mich perguntou, confusa, observando o músico com a
cabeça inclinada de lado.
— Ele mesmo! — respondeu Catarina, sorridente, acenando de volta
para ele, como se fosse o nome dela que o cantorzinho tinha acabado de
chamar. — Oi, Cal!
— Vocês já são amigos, Cat? — Mich perguntou à bióloga, fitando-a
com uma sobrancelha arqueada.
— Na cabeça dela, eles se conhecem há 100 anos — resmunguei,
revirando os olhos.
— E a Ravena morre de cíumes. — Piscou, mordendo o lábio
inferior.
— Claro! Isso, segundo as “fontes da sua cabeça” — debochei com
desgosto.
Michele soltou uma risadinha e tapou a boca quando a encarei com
os olhos estreitos.
— Como vai, Catarina?
A voz do rapaz atraiu novamente minha atenção para ele.
— Vou muito bem, obrigada! E a Ravena tá morrendo de saudades!
— disse alto, com as mãos ao lado da boca, me empurrando pelo ombro em
direção à rua. — Deixa de ser orgulhosa e vai lá falar com ele — sussurrou
ao pé do meu ouvido, antes de me empurrar novamente.
— Você quer que eu seja atropelada? — falei, irritada, com os pés na
beirada do meio-fio.
— Desculpa. — Ela sorriu sem jeito, erguendo as mãos em sinal de
rendição.
Respirei fundo, cerrando as mãos em punhos, e me virei de frente
para as duas esquisitas, deixando o músico às minhas costas.
O que ele estava fazendo ali?
Aquela pergunta estava fazendo minha cabeça girar, louca por uma
resposta.
— Vocês não vão embora? — perguntei, com os olhos estreitos e os
braços cruzados.
Catarina e Michele trocaram olhares e assentiram.
— Então… — insisti, esperando que elas pegassem a dica e
sumissem dali.
— Hã… N-nós — Mich começou a balbuciar. — V-você não quer
que a gente fique mais um pouco?
— É! Tipo, para te dar conselhos ou coisas assim… — Catarina
complementou, não ajudando em nada.
— Não! Podem ir para casa, eu me viro com o Caleb, suas curiosas.
— Hey! — exclamaram em uníssono.
— Não somos curiosas. — resmungou Mich.
— Tchau! — acenei com um sorriso falso.
— Vamos, Mich. Ela quer ficar a sós com o Caleb. E está só
esperando a gente dar as costas para subir com ele e fazer o mesmo que a
Ali e o Logan costumam fazer quando acham que ninguém está em casa. —
Catarina insinuou, com um sorriso de canto, conduzindo nossa amiga
cacheada calçada abaixo.
Revirei os olhos e dei de costas, olhando de um lado para o outro da
rua, antes de finalmente atravessá-la em direção ao vocalista da Smash
Secrets.
— Boa noite, marrentinha! — saudou assim que parei à sua frente, ao
lado da porta do motorista.
Caleb não deveria parecer tão atraente, sentado de maneira relaxada e
confiante, com um braço na janela e o outro no volante, mascando um
chiclete.
— O que você tá fazendo aqui?
— Não vai me desejar boa noite antes de perguntar?
Mordi o lábio inferior, olhando ao redor da rua, antes de voltar a
encará-lo com um sorriso falso.
— Boa noite, Caleb! O que você está fazendo aqui? — perguntei,
impregnada de ironia, fazendo-o abrir um sorriso preguiçoso, como se já
antecipasse minha resposta.
— Pijama legal. — Ele comentou, apontando para o conjunto que
cobria meu corpo.
Olhei para as duas peças que protegiam meu corpo e me encolhi um
pouco quando o vento soprou mais forte, esvoaçando meus cabelos a ponto
de algumas mechas cobrirem meus olhos.
— Você vai ou não dizer o que veio fazer aqui? Porque se não for, eu
vou entrar — afirmei, pronta para dar as costas. No entanto, o rapaz me
impediu, dizendo:
— Me dá um desconto, estou meio nervoso. — Suspirou, deslizando
a mão pelos fios sedosos e ondulados de seu cabelo.
Arqueei uma sobrancelha, curiosa para saber o motivo do seu
nervosismo. Sua habitual confiança e despreocupação normalmente
escondiam bem suas emoções.
— Desembucha logo. Eu tô quase constipada de tanto frio. —
Enfatizei, apertando os braços ao meu redor para tentar me aquecer.
— Quer entrar aqui? — sugeriu ele, indicando o interior de seu
veículo, que parecia tão quente e convidativo.
Considerei aceitar por um momento, mas as lembranças da última
vez que estive dentro daquele carro vieram à mente, arrepiando minha pele
e provocando uma contração no meu ventre.
Se eu entrasse ali novamente, duvidava que conseguiria deter o que
Logan interrompeu naquela outra noite.
— Não! Eu estou bem aqui e sei que você não vai demorar mais que
um minuto porque estou contando. Vou voltar para casa assim que os
sessenta segundos acabarem. — Ergui o queixo em desafio.
Caleb engoliu e umedeceu os lábios cheios e macios…
Para, Ravena! Foca, mulher!
Obrigada, subconsciente, você finalmente está fazendo um trabalho
decente.
— Ok! — Ele suspirou, ajeitando sua postura sobre o banco de
couro. — E-eu vim aqui convidar você para ir comigo ao Winter
Wonderland que abre amanhã.
Franzi o cenho e senti um aperto no peito com a menção do parque.
Eu tinha muita vontade de voltar a frequentar aquele lugar, mas algo me
impedia de atravessar seus portões de ferro. Era como se meus pés
estivessem colados na grama fria e úmida do parque, impossibilitando
qualquer movimento passo adiante.
— Isso é um encontro?
14

— Só se você quiser que seja. — respondi.


A fotógrafa me encarou de lado, com uma expressão desconfiada
e os olhos estreitos, ponderando se deveria aceitar o convite.
Internamente, eu estava rezando fervorosamente para que ela
dissesse sim.
— Hum… — Ravena murmurou, com os lábios torcidos em
indecisão.
A demora dela estava me deixando ainda mais nervoso. Minhas
mãos estavam suadas e meu coração batia tão forte que eu temia que ela
pudesse sentir a vibração no ar.
— Já se passou mais de um minuto. — Tentei brincar, soltando
uma risada estranha e aguda.
Ravena ainda permaneceu em silêncio por alguns segundos, antes
de finalmente soltar:
— Pode ser. — Deu de ombros, como se eu tivesse acabado de
dizer que ela ganhou um vale compras de vinte libras no Iceland, ou seja,
nada muito empolgante.
Não consegui conter um sorriso e assenti, mordendo o lábio
inferior na tentativa de parecer tão despreocupado quanto ela, mas temo ter
falhado.
— Amanhã eu passo aqui às oito, está bom para você?
— Estarei aqui. E se você se atrasar, já sabe — ameaçou com os
olhos estreitos e virou as costas, partindo sem esperar minha resposta, antes
de seguir até o interior do prédio.
Bati as mãos no volante, sorrindo entusiasmado, e em seguida
coloquei-as atrás da cabeça, apoiando-as no encosto do banco.
— Ravena, Ravena, a senhorita pode até se fazer de difícil, mas
eu sei que você já está na minha. Só precisa de mais um empurrãozinho, e
boom! Você será minha, completamente minha.
Com esse pensamento, liguei o carro e acelerei pelas ruas
noturnas do bairro, seguindo de volta para o meu lar doce lar.
Pela primeira vez em muitos dias, eu conseguiria dormir em paz.

Meu coração ainda galopava feito uma manada de cavalos


selvagens quando fechei a porta do meu apartamento e me recostei contra
ela, soltando um suspiro profundo. Em seguida, levei a mão ao peito na
tentativa de acalmar os batimentos involuntários.
O convite de Caleb me pegou de surpresa, como tudo que o
envolve. No entanto, confesso que lutei com todas as minhas forças para
conter a vontade de abrir um sorriso e me entregar à loucura de agradecer
pelo convite.
Ir ao Winter Wonderland com o rapaz, a princípio, me pareceu
uma ideia maluca e contrária a todas as sessões de terapia onde afirmei com
todas as letras jamais colocar os pés novamente naquele lugar. Entretanto,
algo na forma como os olhos gentis e ansiosos do Caleb me encaravam,
aguardando uma resposta, tocou meu coração. Há muito intocável por
pessoas que não fossem minhas três únicas amigas no mundo todo e minha
família, apesar do raso relacionamento que tenho com eles.
Talvez fosse bom voltar a um lugar tão especial para mim, onde
vivi tantas coisas boas e do qual guardo apenas lembranças inesquecíveis de
uma época que não voltaria mais. Se eu pudesse voltar no tempo, teria feito
as coisas diferentes. Acredito que é isso que sempre dizemos após cometer
uma burrada, pensando que agiríamos de outra maneira se tivéssemos uma
segunda oportunidade. Sendo que, na verdade, correríamos o risco de
cometer um erro ainda maior.
Me apaixonar pelo Nolan não estava nos meus planos, assim
como muitas outras coisas. Entre elas, conhecer um certo músico, beijá-lo
às escondidas durante uma festa à fantasia e encontrá-lo novamente, apenas
para me atirar em seus braços e sugar sua alma com um beijo pelo qual eu
matava e morria para que durasse uma eternidade.
Fechei os olhos e bati suavemente com a cabeça contra a porta.
O que estava acontecendo comigo?
Não era possível que, depois de tantos anos cuidando de mim, eu
caísse novamente na mesma armadilha de rato, da qual levei quase um
século mental para sair.
Abri os olhos e encarei a estante de livros, repleta de exemplares
de diferentes gêneros.
Suspirei fundo, erguendo o queixo.
Se tem uma coisa que aprendi com tudo que passei durante e pós
Nolan, foi a não ser mais uma covarde, um ratinho perdido em uma cidade
grande, lutando para sobreviver em uma selva de pedra capaz de sugá-lo até
os ossos.
O convite já estava aceito, eu não voltaria atrás.
— Não vai doer você ir a esse encontro, Ravena — disse para
mim mesma.
Então era mesmo um encontro?
Dane-se! Aquilo era um encontro, e eu faria com que Caleb
tivesse certeza disso.
Abri um sorriso de canto e segui para o meu quarto.
Era melhor deixar pronto o look para a noite seguinte.
— Se você borrifar mais um pouco desse perfume, é capaz de
matar alguém intoxicado. — Davian resmungou, abanando a mão em frente
ao rosto.
Abri um sorriso de canto e balancei a cabeça, encarando meu
reflexo no espelho do meu velho guarda-roupa, em estado de petição.
Satisfeito com o que estava vendo, ajeitei meu blazer preto, contrastando
com a camisa branca de manga curta que eu estava usando por baixo.
— Em vez de me criticar, você deveria me dar os parabéns por ter
seguido o seu conselho e ido atrás da marrentinha. — Fitei-o rapidamente
por cima do ombro, antes de voltar a encarar a minha imagem e deslizar as
mãos pelos meus cabelos.
Eu ainda estava em dúvida se deveria deixar os fios castanhos
penteados para trás, de lado, ou apenas bagunçados, como já estou
acostumado a usar no dia-a-dia.
— Acredite, meu amigo, estou muito orgulhoso de você, embora
ainda um pouco surpreso pela sua relutância. — Sorriu e se sentou na cama
com as pernas esticadas e cruzadas. — Você nunca foi do tipo que tem
medo de levar um fora, mesmo isso sendo bemmmm raro de acontecer.
Mordi o lábio inferior e resolvi deixar meu cabelo do mesmo jeito
de sempre, uma completa bagunça, com mechas onduladas espalhadas para
todos os lados.
— Não é medo de levar um fora, é só que… — Fiz uma pausa e
suspirei fundo, sentando-me ao lado do guitarrista. — Sei lá! A Ravena é
intrigante, o jeito marrento e super confiante de garota malvada dela de
alguma forma desperta algo selvagem e primitivo dentro de mim… Não sei
explicar.
— Hum… Selvagem e primitivo, a combinação mais poderosa e
perigosa — enfatizou, com o cenho franzido.
— Por que perigosa?
— Não quero te desanimar, Cal, mas acho melhor você colocar os
dois pés no freio antes de continuar com essa corrida.
Respirei fundo e abaixei a cabeça, fitando meu par de coturnos
pretos de couro.
— Como assim? A gente tá apenas se conhecendo, não estou
apressando as coisas... — Soltei um riso nervoso.
Davian suspirou e umedeceu os lábios.
— Por isso mesmo você deveria ir com calma. Você parece tão
eufórico e empolgado com essa garota que, às vezes, me assusta…
— Eu sei me cuidar, e ninguém nunca morreu de coração partido.
— Romeu e Julieta, sim.
Revirei os olhos enquanto sorria.
— Não somos eles, pode ficar tranquilo. — Dei um tapinha em
sua coxa e me levantei. — Bem, tá na minha hora. — Olhei para o meu
relógio de pulso e já passava das sete da noite.
— Boa sorte e, por favor, se rolar, não esqueça de usar
preservativo — disse zombeteiro, exibindo um beicinho com as mãos
postas.
— Você parece mais otimista do que eu. — Brinquei, arqueando
as sobrancelhas.
Davian revirou os olhos, contendo um sorriso, e mostrou o dedo do
meio.
— Se cuida, e qualquer coisa, já sabe. — Gesticulou um telefone
com os dedos.
— Quem é o mais velho aqui mesmo?
— Vai logo! — empurrou-me pelos ombros.
— Quer carona? — ofereci, enquanto descíamos as escadas do
prédio onde moro.
— Não, valeu! Até você me deixar em casa e chegar a Crofton
Park, a Ravena é capaz de já estar dormindo e uma fera com você por se
atrasar.
— Pelo pouco que conheço dela, você tá coberto de razão.
Davian soltou uma risada, acenou e seguiu para o ponto de ônibus
mais próximo, com as mãos nos bolsos de sua jaqueta jeans azul-claro.
Talvez meu amigo estivesse certo quando disse que alguém
poderia morrer intoxicado devido à quantidade exagerada de perfume que
borrifei. Digo isso, porque uma senhora que passou por mim na calçada
espirrou três vezes em apenas dez segundos.
— Afs! — resmunguei, baixinho, cheirando a gola do meu blazer.
— Tá! Acho que exagerei, mas agora não dá tempo de tomar outro banho.
Até eu chegar ao apartamento da marrentinha, ele já vai ter exalado — disse
para mim mesmo e abri a porta do meu carro.
Meus dedos batucavam impacientes no volante enquanto eu
aguardava o semáforo verde acender para virar a primeira esquina da rua
onde a fotógrafa marrenta mora. O motorista do carro à frente parecia estar
dormindo ao volante, tanto que tive que pressionar a buzina por quase
quinze segundos até que ele avançasse pela rua noturna, repleta de postes
acesos.
Ravena estava de pé ao celular, encostada na parede ao lado da
portaria, enquanto fumava um cigarro, e nem notou a minha aproximação.
Abaixei a janela do passageiro e a chamei, finalmente atraindo sua atenção.
A marrentinha soprou a fumaça tóxica do cigarro e o jogou fora na
calçada, antes de guardar o celular no bolso de seu cardigan de lã preto.
— São oito em ponto — foi a primeira coisa que ela disse,
enquanto abria a porta do passageiro e se sentava no banco ao meu lado.
— Sou um homem que leva a sério seus compromissos. —
Pisquei.
A fotógrafa apenas abriu um sorriso de canto e colocou o cinto de
segurança.
Olhando no retrovisor ao meu lado, girei o volante e voltei para o
meio da pista, antes de ligar o rádio. Não estava muito certo de que aquela
ação poderia ser vista como um meio para evitar conversar com a
marrentinha, mas foi apenas algo automático que faço sempre ao assumir o
volante.
Ouvir minha playlist favorita enquanto dirijo durante a noite pelas
ruas da capital, especialmente durante o outono/inverno – minhas estações
preferidas – me faz sentir bem, livre e relaxado.
— Devo admitir que seu gosto musical é muito bom. — Ravena
finalmente comentou, após alguns minutos de completo silêncio, sendo a
voz de Ed Sheeran a única no interior do veículo.
— Agradeço o elogio, especialmente por ser músico. — Sorri de
canto, olhando-a rapidamente de soslaio.
Ravena sorriu fraco e desviou o olhar para a janela, encostando a
cabeça no vidro fechado.
— As músicas geralmente são uma forma de escape para mim,
assim como os livros. Ambos me ajudam a desviar dos meus hábitos
ruins… — disse baixo, pensativa, como se apenas seu corpo estivesse ali.
— Tipo fumar?
— Esse é apenas um deles… Mas não considero o pior e, não,
eles não são bons o suficiente para acabar com esse mau hábito.
— Então, quais hábitos ruins os livros e as músicas te impedem
de fazer?
A fotógrafa me encarou com a expressão ilegível e suspirou
fundo antes de soltar com frieza:
— Falta muito para chegarmos ao Hyde Park? Não conheço essa
rota. — Olhou através da janela, com curiosidade, enfatizando suas
palavras.
Seu tom de voz distante me causou um arrepio estranho, e um milhão
de perguntas surgiram em minha mente. Ela estava escondendo algum
segredo que não confiava em mim o suficiente para revelar e, no fundo, eu
não sabia se aquilo me deixava curioso ou decepcionado.
Eu também tinha cicatrizes que preferia esconder, cicatrizes internas,
que não poderiam ser vistas a olho nu, mas que eu sentia todos os dias na
pele e no coração. Então, não tinha o direito de julgá-la por não revelar as
dela.
Ainda era muito cedo…
— Na verdade, já chegamos — informei, já visualizando as luzes
coloridas e a roda-gigante do parque.

Quando Caleb completou aquela tão pequena e simples frase, meu


corpo simplesmente congelou sobre o banco do carro. Minhas pernas, de
repente, estavam dormentes, meu coração apertado, minha boca seca e
minhas mãos suadas e frias. No entanto, isso tudo não era culpa do clima,
muito pelo contrário, e eu sabia bem disso.
Ainda assim, minha mente foi teletransportada para dez anos atrás…
— Vamos, Rav! A roda-gigante está bem ali! — Reyna disse alto,
puxando meu braço em direção ao enorme brinquedo, com luzes brilhantes,
do outro lado do parque.
Nossos pais sorriram e gesticularam para que seguíssemos nosso
caminho, enquanto meu irmão se preocupava apenas em comer seu
hambúrguer, repleto de ketchup, não dando a mínima para os pulos
animados da nossa irmã caçula…
— Vamos! — Caleb soltou, animado, me despertando daquele breve
devaneio. Ele foi o primeiro a abrir a porta, depois de rodar por quase dez
minutos ao redor do parque, em busca de uma vaga para estacionar.
Engoli em seco e pisquei rapidamente, tentando recobrar o raciocínio
que pareceu ter se esvaído ao vento, que me atingiu assim que o músico
abriu a porta ao meu lado e me estendeu a mão.
Olhei, desde a sua mão esticada, até o seu rosto, estampado com
um sorriso caloroso, e respirei fundo, sentindo o calor da sua palma contra a
minha quando segurei firme a sua mão.
— Tá sentindo frio? Sua mão tá um gelo. — Soltou um riso, com
um vinco entre as sobrancelhas grossas.
— N-não, e-eu só… é normal. Meus pés e mãos demoram muito
para aquecer — menti, entrelaçando nossos dedos.
Aquilo pareceu tão íntimo para um primeiro encontro. No
entanto, eu estava tensa, à beira de um ataque de pânico, que aumentou
quando parei, com os olhos arregalados, em frente à entrada do parque,
onde várias pessoas pagavam por seus ingressos.
— O que foi? Ravena, você está pálida… — a voz preocupada de
Caleb apenas me fez sentir pior. Lágrimas se acumularam em meus olhos
quando ele ficou de frente para mim e ergueu meu queixo para olhar nos
meus olhos. — Você quer ir embora? Eu disse algo de errado?
Pressionei os lábios juntos para conter o choro e neguei,
balançando a cabeça. O rapaz suspirou aliviado, mas o vinco entre suas
sobrancelhas permaneceu intacto.
— Então, por que você está assim?
— Faz muito tempo que eu não venho aqui… A última vez foi
com a minha família. — Engoli em seco, sentindo o peso da dor sobre os
ombros, como se estivesse carregando o mundo nas costas.
Caleb estreitou os olhos, como se buscasse por respostas, mas
tivesse medo de perguntá-las.
— Quer falar sobre isso?
— Não, por favor. — Abaixei a cabeça.
— Podemos ficar aqui fora se você não estiver se sentindo bem…
— Não, e-eu tô bem, podemos entrar. Foi para isso que viemos.
— Ergui o queixo e funguei o nariz, piscando os olhos para não derramar as
lágrimas irritantes que se acumularam neles.
— Tem certeza?
— Se você perguntar mais uma vez, eu entro sozinha —
resmunguei.
Caleb entreabriu os lábios, antes de abrir um lento sorriso e exibir
suas covinhas sexys e irritantes.
— Essa é a minha, garota! — Piscou, bicando minha bochecha
com um beijo na velocidade da luz.
Abri e fechei a boca, completamente pega de surpresa com seu
gesto, e fiquei parada por cinco segundos. Mesmo ainda processando sua
petulância e o fato de ele ter me chamado de sua garota, segui com passos
largos atrás do músico. Ele já estava atravessando a entrada do parque, com
as mãos nos bolsos da calça, enquanto caminhava despreocupado e
assobiando por entre a multidão.

— Por onde você quer começar? Pela roda-gigante? Acerte o


Alvo? Ou a pista de patinação no gelo? — perguntei, com os braços
abertos, caminhando à frente da marrentinha.
Ravena olhou ao redor do parque, com os olhos brilhando, e por
um momento, meu coração se apertou com a hipótese de ela começar a
chorar. Confesso que fiquei nervoso e preocupado com sua reação antes de
entrarmos no parque.
O fato de a última visita dela ao local ter sido com a família e isso a
deixa triste, não me parece uma coisa boa. Porém, se ela não queria falar
sobre o assunto, eu respeitaria, mesmo que a curiosidade estivesse me
corroendo por dentro.
— Vamos lá, marrentinha! Não é tão difícil assim escolher uma
atração — falei, bem-humorado, passando os braços ao redor de seus
ombros.
A fotógrafa revirou os olhos e me empurrou para longe.
— Quero ir ao “Acerte o Alvo”! Aposto que posso ganhar de você —
disse, confiante, com as mãos na cintura.
— Você pode tentar, querida. — Pisquei, passando por ela em
direção à barraquinha de tiros, repleta de bichos de pelúcia. Prêmios para
aqueles que acertarem o alvo com precisão.
Outras pessoas também estavam de pé em frente à barraquinha,
arriscando acertar as garrafas verdes, com as argolas de tamanho
questionável, soltando risos e suspiros decepcionados quando não eram
bem-sucedidas.
— Aquelas argolas deveriam ser maiores. — Ravena murmurou ao
pé do meu ouvido, me causando arrepios deliciosos que fiz de tudo para
ignorar.
— A senhorita Watts, super confiante, está com medo de errar todas
as tentativas? — perguntei debochado, sabendo que ela ficaria irritada.
Ravena me encarou com os olhos estreitos e o lábio inferior preso
entre os dentes.
Não olha! Não olha!
— Espere e veja! — gesticulou com a mão e pediu ao rapaz,
atendente da barraquinha, cinco argolas.
Para a terrível frustração da marrentinha, ela errou todas as cinco
tentativas. Eu considerava tal proeza impossível, já que o espaço estava
cheio de garrafas, tornando muito fácil a simples tarefa de acertar pelo
menos três para levar um dos prêmios.
— Droga! Isso deve ser marmelada — resmungou, cruzando os
braços, com um biquinho.
— Hey, moça, aqui ninguém é golpista! — disse o rapaz, na
defensiva.
Ravena abriu a boca para retrucar, mas fui mais rápido e intervi,
antes que acabássemos expulsos do parque, devido ao estopim curto da
fotógrafa:
— Ela tá só brincando, camarada! — Pisquei, com um sorriso
amigável e passei os braços ao redor da marrentinha, para tirá-la de perto da
barraquinha. — Melhor você controlar essa língua nervosa e saborosa, se
não quiser sair daqui no banco de trás de uma viatura policial.
— Nervosa e saborosa? É assim que você define o músculo dentro
da minha boca? — Cruzou os braços com um sorriso de canto, debochado e
arrogante, igualzinho à dona.
— Quando você diz assim, parece que estou em um açougue, mas
você entendeu a minha insinuação. — Beijei sua testa e dei de costas,
decidido a ganhar um prêmio naquela noite.
15

Acertar as cinco argolas nas garrafas vazias parecia tão simples


quanto tirar doce de criança. Difícil foi conter o riso diante dos resmungos
indignados da marrentinha, que afirmava que eu havia subornado o dono da
barraca para acertar os alvos com apenas uma tentativa cada.
— Assim você me ofende, marrentinha! — falei, com um
beicinho e a mão sobre o peito.
O rapaz da barraquinha já estava cansado de nós e muito mal-
humorado devido às insinuações explícitas da fotógrafa, que colocavam em
dúvida a integridade do seu negócio.
— Escolhe logo o seu prêmio e dá o fora. — Ele resmungou,
impaciente.
Fitei a prateleira atrás do homem e franzi o cenho. As opções
eram muitas, e pensei em qual daqueles bichinhos aumentaria as minhas
chances naquela noite de ganhar um beijo da marrentinha sem levar um
tapa na cara em seguida.
— Vou querer aquele urso com cachecol vermelho! — Apontei
para o bichinho de tamanho médio, pendurado com uma linha de barbante.
O rapaz pegou o objeto com uma carranca e me entregou, não
esperando por um agradecimento, antes de gritar:
— Próximo!
— Valeu! — exclamei em voz alta, apenas para irritá-lo e mostrar
que, ao contrário dele, recebi educação em casa. — Para você. — Estendi o
urso para a Ravena, que me encarou como se eu tivesse acabado de fugir de
um hospício.
— É… sério?
Assenti, incentivando-a a pegar o urso de cor bege, com um fofo
cachecol de flanela ao redor do pescoço espumado.
— Hã… O-obrigada? — agradeceu meio incerta, meio surpresa,
estampando uma expressão engraçada.
— De nada, marrentinha! — Beijei novamente sua testa, um gesto
que parecia tão natural para mim. Subitamente, ao olhar em seus olhos, as
palavras de Davian voltaram à minha mente.
Nunca fui de demonstrar tanto afeto em público e sempre considerei
beijos na testa íntimos e respeitosos demais para distribuir a qualquer
pessoa que não fosse a minha mãe.
Talvez meu amigo estivesse certo ao dizer que eu estava indo um
pouco rápido demais.
Ravena me encarou com seus lindos olhos azuis, naquele momento
mais escuros devido à luz natural da noite e à iluminação do parque.
Enquanto isso, eu a fitava com o cenho franzido, questionando como era
possível ter me apegado tão rápido a alguém que, no fundo, era tão
diferente de mim.
Talvez não fosse tanto assim…
Meu subconsciente não deveria me fazer questionar tal coisa.
Se ela partisse meu coração, não sei se seria tão fácil superar como
brinquei com o Davian mais cedo.
De fato, eu nunca soube de ninguém que tenha morrido de amor, mas
já ouvi dizer que a dor pode ser tão forte e profunda, que é como se você
tivesse morrido, ou desejado ter.
Pisquei os olhos, quando ouvi os estalos de seus dedos em frente ao
meu rosto.
— Terra para Caleb! — Sorriu sem jeito, abraçando o urso.
Ela com certeza tinha gostado do presente.
Ponto para mim!
— Estou bem aqui e pronto para a próxima rodada!
— Que é…? — perguntou, um pouco apreensiva.
— Patinar no gelo!
Ravena arregalou os olhos e, antes que ela pudesse recusar-se a
participar da atividade comigo, a puxei pelo braço, correndo por entre as
pessoas em direção à pista de patinação, não muito longe de onde
estávamos.
Eu estava mais animado e ansioso do que deveria, enquanto colocava
um par de patins, sentado em um banco de madeira.
— Já faz um tempo que não patino no gelo… — Ravena sussurrou
ao meu lado, amarrando os cadarços dos seus patins azuis.
— E isso quer dizer…?
— Quer dizer que se eu cair e quebrar uma perna ou braço, a culpa é
sua — resmungou com o cenho franzido.
Soltei uma risadinha.
— Pois saiba que eu sou um ótimo enfermeiro — sussurrei ao pé do
seu ouvido e mordisquei o lóbulo de sua orelha.
Ravena suspirou fundo e me empurrou.
— Têm crianças aqui, seu tarado — cuspiu entredentes, olhando
disfarçadamente ao nosso redor.
Balancei a cabeça e suspirei, pressionando os lábios para esconder
um sorriso.
— Vamos lá! — Levantei do banco e estendi a mão para ela. — Se
você cair, eu te levanto.
Mesmo relutante, ela pegou minha mão e, juntos, seguimos para a
pista, repleta de pessoas de todas as idades e tamanhos, se divertindo e
dando risadas quando caíam no chão gelado e úmido.
Meus pés já estavam prontos para deslizarem sobre aquela superfície
fina de gelo, mas ao dar o primeiro passo, a voz da marrentinha, me fez
parar e encará-la por cima do ombro.
— Espera! — Ravena implorou, segurando-se na lateral da pista,
enquanto tentava se equilibrar. — Eu preciso de um minuto para me
acostumar com o piso escorregadio — completou, engolindo em seco.
O pânico estava estampado em seu rosto, e eu deveria me sentir mal
por achar isso tão hilário. No entanto, sendo ela quem é, a senhorita nariz
em pé, que não se abala com nada, era interessante e engraçado ver que
mesmo os fortes têm suas fraquezas.
— Tudo bem, eu espero. Temos a noite toda, ou quase toda — soltei
bem-humorado, fazendo-a revirar os olhos e respirar fundo.
— Ok, vamos. — Abriu os braços, e tive que dar tudo de mim para
não sorrir com a cena que meus olhos testemunharam.
Ravena, dura feito uma pedra, toda desengonçada, tentando a todo
custo não cair de bunda no gelo, enquanto seguia até o centro da pista. Até
as crianças pequenas ao redor pareciam ter mais equilíbrio e coragem de
deslizar sobre o gelo, sem medo de cair e voltar para casa com um roxo nas
pernas, do que a fotógrafa.
— Eu te ajudo! — Sorri, segurando suas mãos, enquanto patinava de
costas.
— Você nasceu no Alaska ou algo assim? — resmungou, observando
meus pés deslizarem com destreza sobre a pista.
Soltei uma risada e inclinei a cabeça para trás.
— Se concentra ou eu vou te deixar sozinha.
— Pode ir, eu não preciso de caridade — cuspiu, soltando as
minhas mãos, apenas para arregalar os olhos quando dois adolescentes
trombaram nela, quase derrubando-a no chão.
— Foi mal, tia! — gritou um dos jovens.
— Tia é o cacete!
Tapei a boca para esconder um sorriso, mas falhei.
Pais e mães que patinavam com seus filhos pequenos fitaram a
fotógrafa com julgamento e balançaram a cabeça, afastando as crianças da
patinadora louca e desequilibrada, literalmente.
— Já que você consegue se virar sozinha, vou para o outro lado.
— Dei de ombros e ignorei o olhar de pânico dela com um sorriso discreto.
Algumas crianças estavam apontando para a marrentinha, enquanto
ela tentava se equilibrar nos patins, caindo a cada dez segundos. Revirei os
olhos; ela era mais orgulhosa do que o saudável. No entanto, patinei de
volta até ela.
— Parece que alguém precisa de ajuda... — Arqueei uma
sobrancelha e cruzei os braços, parando ao lado dela, que ainda estava
sentada no chão de gelo com uma carranca.
— Tá! Talvez eu precise de ajuda. — Estendeu a mão para que eu a
ajudasse a levantar, mas apenas estreitei os olhos, encarando-a.
— Talvez?
Ravena deslizou a língua pelo interior da boca, irritada com a minha
provocação, e olhou para mim com um sorriso falso.
— Você ganhou, cantorzinho. Eu preciso de ajuda. Agora, me ajude a
levantar logo — resmungou, tentando se erguer sozinha, apenas cair
novamente com o traseiro sobre o gelo.
— Qual a palavrinha mágica? — Inclinei-me para frente, com o
indicador sob o queixo.
Ravena trincou os dentes e respirou fundo.
— Por favor — cuspiu, fazendo-me umedecer os lábios com um
sorriso vitorioso e segurar sua mão estendida.
Não estava nos meus planos cair sobre ela, mas foi o que
aconteceu quando uma menina, patinando “desgovernada”, trombou em
minhas costas. Sua ação me fez perder o equilíbrio, arregalar os olhos e
cobrir o corpo da marretinha com o meu.
— Você tá bem? — perguntei, preocupado, observando seu rosto
corado pelo esforço, enquanto ela estava com os olhos fechados e as mãos
sobre o peito.
Ravena não respondeu, e isso estava começando a me deixar
ainda mais preocupado, com medo de tê-la machucado, até que ela
começou a soltar risadas e abriu os olhos, me fitando com humor.
— Isso que dá fazer papel de moralista — disse, em meio às
risadinhas mais fofas que já ouvi.
Balancei a cabeça e abri um sorriso de canto.
— Mas agora, falando sério, você é muito pesado — franziu o
cenho, sem fôlego.
Arqueei as sobrancelhas e me apressei a levantar e puxá-la
comigo.
— Obrigada. — agradeceu baixinho, colocando uma mecha de
seu cabelo atrás da orelha.
Ela estava tão linda sem maquiagem, com a pele pálida e os
lábios levemente ressecados, implorando para que eu os umedecesse com os
meus.
Engoli em seco com o pensamento e deslizei a mão pelos cabelos,
desviando o olhar.
— Por nada — murmurei.

O vento soprava meus cabelos e os fios longos da Ravena


enquanto saíamos do parque, cada um segurando um algodão doce.
— Por que você decidiu tatuar o braço e as costas das mãos? — Ela
perguntou de repente, arrancando mais um pedaço do seu doce branco,
enquanto segurava, debaixo do braço, o urso que dei a ela de presente.
Olhei para ela de soslaio e sorri com sua curiosidade.
— Não sei. — Dei de ombros, mastigando meu algodão. — A
ideia de que todo roqueiro tem uma tatuagem em algum momento começou
a fazer sentido para mim.
— Mas você sabe que isso não é exatamente verdade, né? —
Sorriu, com as sobrancelhas arqueadas.
— Naquela época, eu não sabia disso — zombei, fazendo-a
desviar o olhar.
— Seus pais não se importam? Os meus teriam feito um
escândalo. — suspirou.
Franzi o cenho com a menção de seus pais, mas achei melhor não
render o assunto e simplesmente responder à sua pergunta:
— Minha mãe não gostou nem um pouco — revelei, partindo
mais um pedaço do algodão docinho. — Até hoje me lembro do escândalo
que ela fez quando viu minha primeira tatuagem. Ela quase foi parar no
hospital. — Sorri, lembrando da cena cômica, apesar de ter levado um susto
quando a senhora Fleet começou a ficar pálida, mal conseguindo respirar.
— Sério? Então acho que ela já deve estar enterrada, porque você
cobriu quase o braço inteiro.
— Nah! Ela tá bem, até se acostumou. — Sorri de canto. —
Inclusive, tatuei o nome dela. — Mostrei a tattoo acima do desenho de
bússola.
— Adelaine?
Assenti orgulhoso.
— No início, ela brigou, mas depois se sentiu uma donzela por
ter o nome tatuado na pele do filho mais velho e gato. — Pisquei, exibindo
minha covinha, e acabei de comer meu doce, jogando o palito de madeira
em uma lixeira.
— Atá! Você é muito convencido. — A marrentinha revirou os
olhos, também acabando de comer seu algodão doce.
— Nem tanto. — Dei de ombros.
— Quer dizer então que você tem um irmão ou irmã mais novos?
Assenti novamente.
— Tenho um irmão de dezesseis anos, o nome dele é Clarence.
— Imagino que ele te ache o maioral por tocar e cantar em uma
banda de rock.
— Creio que sim. — Sorri, lembrando do pirralho. — E você?
Tem irmãos ou irmãs?
— Tenho os dois — respondeu, de forma curta e direta, não
encarando meus olhos.
Falar sobre os parentes parecia ser algo muito complicado para
ela, e não era difícil deduzir que a fotógrafa e sua família não se dão muito
bem.
Sem querer estragar o clima agradável que havia entre nós e,
principalmente, sabendo que o assunto “família” era um tabu para ela,
decidi mudar de tópico e perguntar o que a marrentinha achou do nosso
encontro, ou não encontro, já que ela ainda não havia me revelado.
— Gostou da nossa primeira noite?
— Isso deveria ter duplo sentido?
— Juro que não falei na maldade, mas agora que você levantou a
hipótese, confesso que estou começando a pensar coisas…
Ravena revirou os olhos, empurrou meu ombro suavemente e
abraçou seu ursinho. Soltei uma risadinha, e voltei logo para o seu lado.
— Você disse ontem que isso só seria um encontro se eu quisesse
que fosse um… — Ela continuou, mordendo o lábio inferior.
Engoli em seco, desejando muito que a fotógrafa oficializasse
logo aquilo. No entanto, ao pararmos ao lado do meu carro, estacionado em
uma rua pouco iluminada e deserta pela falta de pedestres, notei que ambos
os lados da pista estreita estavam cheios de veículos.
— E o que você decidiu? — perguntei, sentindo meus batimentos
acelerados, louco para saber a resposta para algo tão simples, mas que
significava o mundo para mim naquele momento.
— Bem, já que você me deu esse urso de presente, acho que seria
muito idiota, até mesmo para mim, não admitir que isso é um encontro —
disse baixo, antes de me encarar com os olhos brilhando sob a luz amarela
do poste.
A observei, umedecendo os lábios, e não me contive. Segurei seu
braço, puxando-a para mim, coloquei o urso de pelúcia sobre o capô do
carro e beijei seus lábios, arrancando-lhe um suspiro surpreso.
Toquei seu rosto em concha com uma mão e repousei a outra em
sua cintura fina, protegida pelo cardigan de lã que a mantinha aquecida
contra os fortes ventos de outono, aprofundando o beijo com a minha língua
faminta.
Ravena suspirou e apertou meus bíceps, como se temesse que eu
desaparecesse ou a deixasse cair.
Sempre era um perigo iminente estarmos juntos daquela forma,
ainda mais ali, devido às câmeras de segurança da rua e estabelecimentos ao
redor. Eu não queria dar um show para algum tarado metido a voyeur, mas a
marrentinha tornava árdua a tarefa de separar meus lábios dos dela quando
me beijava daquele jeito, tão entregue, cheia de desejo.
— Eu não consigo parar de beijar você… — Suspirei, sem fôlego,
com minha testa apoiada contra a dela e os olhos fechados.
— P-por quê? — perguntou baixinho, não passando de um
sussurro, com o peito subindo e descendo rapidamente. Em seguida, ela
esfregou o nariz contra o meu.
— Porque estou muito a fim de você. — Deixei escapar, ofegante e
sincero, mordiscando seu lábio inferior, não me importando se soei
desesperado. Naquele momento, eu estava tomado pelo desejo por ela e não
sabia o que fazer para apaziguar a chama que queimava dentro de mim.
— N-nós devemos parar… — Inclinou a cabeça para trás, expondo
seu pescoço, enquanto apertava firmemente meus ombros. — Alguém pode
nos ver… — completou, quase inaudível.
Eu sabia que ela tinha razão, mas meu corpo e mente se recusavam a
interromper aquele momento que passei a noite toda, o dia todo, na verdade,
ansiando para realizar.
Deslizei meus lábios pela pele exposta e quente, distribuindo beijos
molhados e lentos, causando arrepios na fotógrafa. Eu era capaz de sentir
sua reação na carne dos meus lábios.
— Hey! Achem um quarto! Aqui é um bairro de família, não um
motel de beira de estrada! — gritou um homem, da janela de uma casa.
Ravena se afastou, com os olhos arregalados, e apertou seu cardigã
ao redor do corpo.
— Eu disse que alguém poderia ver. — Sorriu de canto e pegou a
chave do carro no meu bolso traseiro, não perdendo a oportunidade de
apalpar minha bunda.
— Marrentinha, não brinca com fogo… — Ameacei, sentindo meu
membro pulsar.
Aquilo estava se tornando uma tortura.
Todas as vezes em que Ravena e eu ficamos, sempre fico com
uma ereção desconfortável. No entanto, recusando-me a bater uma para me
aliviar, pois não sou mais um adolescente descontrolado incapaz de dominar
seus instintos mais selvagens.
Porém, quando se trata daquela fotógrafa intrigante, eu me torno
muito mais fraco do que um adolescente na puberdade. Transformo-me em
um menino inseguro, curioso e inconsequente.
Ravena abriu a porta do carro e entrou no veículo, segurando seu
ursinho, enquanto eu ainda estava parado feito um bobo, encarando-a do
lado de fora através da janela.
— Vai ficar parado aí a noite toda? Eu preciso dormir — disse,
zombeteira, após abaixar o vidro da janela.
Pisquei os olhos e passei a mão pelos cabelos, antes de dar a volta
e entrar no meu velho Ford.
Para minha tristeza, o percurso até o endereço da marrentinha
durou menos do que eu gostaria. Assim que desliguei o carro, em frente à
entrada do prédio, senti um pesar enorme no peito.
Eu queria passar mais tempo com ela, mas não podia reclamar.
Nosso primeiro encontro foi muito melhor do que eu esperava.
— Não sou de agradecer duas vezes, mas obrigada pela noite. Já
fazia tempo que eu não me divertia assim — murmurou, brincando com a
orelhinha do urso.
— Fico feliz que tenha gostado, me esforcei bastante para isso —
soltei flertador, fazendo-a revirar os olhos.
— Não acho que dei tanto trabalho assim para agradar. Costumo
ser bem pior.
— Você quem está dizendo. — Ergui as mãos.
Ravena abriu um sorriso de canto e se inclinou, beijando meus
lábios.
Sua ação me surpreendeu tanto que não consegui reagir a tempo
antes de ela se afastar e abrir a porta do carro.
De repente, lembrei de algo e segurei seu braço.
— Me passa o seu número. Assim, fica mais fácil a gente
combinar outro encontro ou apenas bater um papo, sei lá. — Cocei a nuca,
sentindo meu rosto quente.
Eu estava tímido?
Afs! Quem é você e o que fez com Caleb Fleet, o melhor – e
único – vocalista da Smash Secrets?
— Me dá seu aparelho. — Estendeu a mão.
Entreguei meu celular para ela, já com a tela desbloqueada, e
observei-a digitar os números com rapidez.
— Só não me manda áudio de dez minutos, porque eu não vou
ouvir — disse séria.
Mordi o lábio inferior, com um sorriso, e assenti.
— Mas e se for uma música, você estaria disposta?
16

— Só se eu for a musa inspiradora. — Pisquei com um sorriso


arrogante, e saí do carro. — Boa noite, cantorzinho.
Caleb abriu um sorriso de canto e acenou antes de ligar o carro
novamente. No entanto, permaneceu parado, observando-me entrar no
prédio até que eu desaparecesse de vista no corredor aquecido.
O som do motor de seu velho Ford, acelerando pela rua, foi o
único audível naquele silêncio reconfortante antes de eu entrar no elevador.
Se alguém me perguntasse o motivo do sorriso constante em meu
rosto enquanto eu caminhava tranquilamente e assobiava no corredor vazio,
eu mentiria. Diria que aquilo não era um sorriso, mas consequência de um
procedimento estético mal-sucedido.
Suspirei profundamente ao abrir a porta do apartamento que
divido com Alissa. Estava cansada só de pensar em ter que ver a cara do
Logan novamente. No entanto, o silêncio no ambiente me fez franzir o
cenho e olhar ao redor, enquanto fechava a porta e chutava minhas botas
para o canto de sempre, atrás da porta.
— Ali? — chamei alto, tirando meu cardigan e, em seguida,
jogando-o sobre o sofá. — Alissa? — gritei, um pouco mais alto, mas não
obtive resposta.
Um sorriso lento e satisfeito começou a crescer em meus lábios
quando me dei conta de que o casalzinho de milhões – só que não – estava
fora de casa.
— Ah! — Suspirei e me deitei no sofá, abraçando o sobre o peito
o ursinho que ganhei do Caleb. Enquanto isso, comecei a pensar nos
acontecimentos das últimas horas, fitando o teto da sala.
Admito que não tinha grandes expectativas para esse encontro.
Pensei que seria a mesma coisa entediante, metódica e o velho clichê com o
qual eu já estava acostumada. Entretanto, Caleb era uma caixinha de
surpresas e, quanto mais o conheço, mais quero fazê-lo.
No fundo, eu sabia que aquele era um terreno perigoso,
semelhante a um campo de areia movediça; no entanto, sempre gostei do
perigo e nunca fui covarde. Eu sabia até onde poderia ir com aquilo sem me
machucar e esperava que ele fizesse o mesmo.
Apesar de tudo, o músico tem se mostrado um bom rapaz, embora
fosse cedo demais para uma opinião definitiva, e se tem uma coisa que
aprendi com o Nolan: é que idiotas no início também parecem ser legais.
Mas, como em tudo na vida, as máscaras caem e o que estava oculto vem à
tona da pior maneira possível, inundando tudo como se fosse uma
enxurrada sem fim.
Eu não queria magoar o Caleb e deixá-lo com o coração partido;
contudo, também não podia oferecer algo do qual não tinha certeza de
poder dar.
O amor próprio nunca fez tanto sentido para mim como quando
comecei a fazer terapia. Desde então, sempre me coloco em primeiro lugar,
porque se eu não me amo, dificilmente alguém o fará por mim.
Sei que pode soar egoísta – e talvez o seja –, mas após vivenciar
certas situações na vida, você acaba pensando dessa maneira.
— Se um dia as coisas derem errado entre mim e o cantorzinho,
não vou devolver você para ele — brinquei, segurando o ursinho em frente
ao rosto. — Por isso, vou te chamar de Luck, que significa sorte e, por
algum motivo, acho que você vai me dar muita.
Sorri com a ideia e o abracei novamente, sentindo o perfume do
músico misturado ao meu envolvê-lo.
Aquele bichinho fofo, com seu elegante cachecol vermelho, seria
para sempre a lembrança de uma noite em que deixei alguns fantasmas
serem enterrados para poder seguir em frente, sem olhar mais para trás, não
importa o que acontecesse. Mesmo sem deixá-lo saber, Caleb foi o
instrumento principal para o fim daquele ciclo que me torturou por tempo
demais.
Com os olhos pesados, se fechando pouco a pouco, adormeci no
sofá, abraçando Luck com um sorriso nos lábios, enquanto sonhava com
luzes de neon, beijos calientes e abraços íntimos ao som de uma guitarra
super afinada tocando ao fundo.

O ar invadia meus pulmões, como se queimasse cada célula do


meu corpo, enquanto eu corria pelo parque. Minha camisa estava colada ao
peito devido ao suor que não parava de escorrer pela minha testa.
Fazia semanas que eu não saía de casa para uma corrida matinal e,
naquele momento, estava arcando com as consequências. Meu corpo estava
todo dolorido e latejando em lugares que pensei serem impossíveis de
latejar, mas não diminuí o ritmo, completando a segunda volta no parque
repleto de crianças e idosos.
Apenas o som de notificação do meu smartwatch conseguiu me fazer
cessar a corrida no meio da passagem para pedestres e desviar para o lado,
quando um cara surgiu pedalando uma bicicleta.
Eu havia acabado de receber uma mensagem, entre tantas outras
que enchiam meu WhatsApp, mas estavam no “silencioso” do aplicativo. A
verdade é que, por estar em tantos grupos, optei por colocá-los com
notificações silenciosas, assim não precisava verificar meu aparelho a cada
dois segundos.
No entanto, o número que havia me enviado uma mensagem era
desconhecido.
— Quem será? — perguntei a mim mesmo, abrindo a mensagem.
Número desconhecido:
Bom dia, cantorzinho!
Espero que tenha dormido bem!
Se você sonhou comigo,
tenho certeza que visitou o paraíso por algumas horas.
Não esqueça de salvar meu número;P
Beijos, Ravena!
Umedeci os lábios, não escondendo o sorriso que surgiu ao ler o
nome da marrentinha.
Como ela conseguiu o meu número?
Confesso que fiquei um pouco decepcionado quando ela não
pediu o meu número na noite passada. Apesar disso, me contentei em ser o
primeiro a dar aquele passo. Entretanto, se ela tinha conseguido meu
contato – de uma maneira ainda desconhecida para mim – e enviou uma
mensagem antes mesmo que eu tivesse a oportunidade, aquilo deveria ser
um bom sinal, não era?
Balancei a cabeça para espantar algumas ideias e digitei uma
rápida resposta:

Eu:
Bom dia, marrentinha!
Sinto muito murchar o seu ego,
mas não sonhei com absolutamente nada.
Apenas capotei e acordei hoje pela manhã…
Agora me diz, como você conseguiu o meu número?

Sustentando um sorriso, salvei o contato dela como


“marrentinha”, é claro, e voltei a correr, com o coração acelerado e ansioso
para saber o que ela diria.
A corrida de volta para casa nunca pareceu tão prazerosa. Meus
pulmões já não queimavam, e eu não parecia prestes a desmaiar na calçada.
Subi os degraus até o meu apartamento de dois em dois e suspirei quando
me joguei sobre o sofá, com o corpo suado e quente.
Eu precisava urgentemente de um banho. Constatei, após secar
minha testa com a manga curta da minha camisa, que há horas era branca e
cheirosa, mas naquele momento estava transparente e com odor de madeira
úmida.
— Miau! — Candy sempre me saudava quando eu chegava em
casa e não perdia tempo em se lançar sobre meu colo.
— Garota, estou cheirando a suor.
— Miau! — retrucou, deslizando sua pequena cabeça peluda
sobre a minha coxa, parcialmente exposta sob o short de malha preto.
— Você não se importa? Bem, você deve ser a única fêmea na
face da Terra que pensa assim — brinquei, acariciando seus pelos macios e
perfumados.
Meu celular e meu smartwatch, de repente, tocaram
simultaneamente com um bip. Arregalei os olhos, pegando meu aparelho
sobre a mesa de centro, na esperança de ser uma nova mensagem da
Ravena, e eu estava certo.
Marrentinha:
Que pena você não ter sonhado comigo, cantorzinho…
Mas acredite, isso não abala meu ser narcisista :D
Ah, e respondendo à sua pergunta,
consegui seu número na bio da Smash Secrets no insta!
Vocês não têm um empresário, não?
E sim, você deveria se preocupar com as minhas habilidades
“investigativas”

Franzi o cenho e soltei uma risada, inclinando a cabeça no encosto do


sofá. Candy me fitou com a cabeça inclinada de lado e lambeu minha mão,
que segurava o celular.
Eu:
Sério que você me stalkeou no insta da banda?
Dizer que pesquisar sobre mim é uma investigação
me faz sentir importante haha
Ah, e respondendo à sua pergunta,
oficialmente ainda não temos um empresário,
porém, fizemos acordo com um cara
que parece ser bom no que faz.

Ravena visualizou a mensagem no exato momento em que foi


enviada, e foi inevitável não manter o sorriso em meus lábios. Ela parecia
genuinamente interessada na nossa conversa.

Marrentinha:
Cuidado para não cair na conversa de qualquer
idiota da indústria.
O que mais tem por aí são picaretas
querendo se aproveitar de bandas talentosas como a de vocês.

Eu:
Você nos acha talentosos?

Não quis soar carente de elogios, mas vindo dela, era algo que não
podia ser ignorado. Além disso, sua preocupação realmente me tocou.

Marrentinha:
Claro!
Detesto admitir,
mas a sua bandinha de garagem é foda pra caramba LoL!

Soltei um riso nasalado e mordi o lábio inferior.

Eu:
Você está mais do que convidada
para o nosso próximo show.

Marrentinha:
Valeu!
Mas não posso confirmar a minha presença :(
Hoje mesmo tenho um evento para fotografar
e se a grana não fosse boa, eu teria mandado
a chefe da minha amiga para aquele lugar onde o
sol não brilha.

Eu:
:D
Você com certeza precisa se controlar
ou vai acabar na fila do seguro desemprego haha

Marrentinha:
Nah! Eu tenho minhas economias
e posso me virar um bom tempo com elas…
mas a questão não é o dinheiro
eu fotografo porque amo o que faço.
A fotografia é o amor da minha vida❤

Eu:
Eu deveria sentir ciúmes dela?

Ponderei se deveria ou não enviar a mensagem, e meu dedo pairou


sobre o pequeno avião por mais de dez segundos.

Marrentinha:
Ainda tá aí cantorzinho?

Pisquei os olhos, notando sua nova mensagem e pressionei o botão


de apagar. Dizer que eu estava com “ciúmes” da sua profissão soaria
praticamente como uma declaração, que eu não estava pronto para fazer,
especialmente sem ter absoluta certeza do que estava sentindo.
Eu estava muito a fim da Ravena, até um cego seria capaz de ver,
mas dizer certas coisas poderia afastá-la e arruinar o que estávamos
construindo dia após dia.

Eu:
Estou sim!
Estava apenas me preparando para o banho;P

Não era totalmente mentira.

Marrentinha:
Hum…
Podemos nos falar mais tarde
Eu:
Nah!
Meus banhos são bem rápidos

Marrentinha:
Outra coisa que não temos em comum haha
meus banhos duram quase meia hora
para desespero da minha amiga e colega de quarto

Abri um sorriso e caminhei para o quarto, com os pés apenas


cobertos pelas minhas meias, antes de seguir até o banheiro e abrir a
torneira do chuveiro, esperando que a água aquecesse o suficiente.
Eu:
Além dos longos banhos,
em que mais você acredita que somos diferentes?

Puxei a camisa pela cabeça e a atirei no cesto de roupas ao lado da


pia. Em seguida, deslizei minha bermuda pelas pernas, juntamente com a
minha boxer preta, e as atirei em direção ao mesmo local.
A água quente encharcou meus cabelos e cobriu meu corpo, fazendo-
me soltar um suspiro. Naquele momento, a marrentinha teria que esperar
um pouco pela minha preciosa atenção, embora meu coração disparasse
cada vez que meu celular soava com uma nova notificação.
Ela estava digitando um texto?
Sorri com a ideia, não duvidando da lista que a fotógrafa estava
escrevendo com tudo que ela acha que nos difere um do outro, além do fato
de sermos homem e mulher.
Ravena não parece ser o tipo de mulher que curte muito conversas
profundas e mensagens longas. No entanto, lá estava ela, conversando
comigo sobre coisas triviais e agindo como se não tivesse fugido de mim no
nosso primeiro encontro na casa de shows há mais de uma semana.

Aquela pergunta era tão difícil, mas ao mesmo tempo tão fácil de
responder. Então, por que eu estava há quase cinco minutos encarando a
lista que escrevi em quinze segundos, ponderando se deveria ou não enviá-
la?
Caleb tinha o direito de saber a toca de lobo na qual ele estava se
enfiando, mas, no fundo, acho que eu não queria que os meus fantasmas e
monstros do passado o afastassem de mim.
Apesar de tudo, conversar sobre coisas idiotas do dia a dia com
um cara com quem troquei alguns bons amassos nunca pareceu tão fácil e
satisfatório como estava sendo naquele momento.
O cantorzinho deve ter feito alguma lavagem cerebral em mim.
Minha mente e coração não conseguiam encontrar outra resposta para o
sorriso permanente e idiota que surgia em meu rosto toda vez que eu lhe
enviava uma mensagem e aguardava ansiosamente por sua resposta.
Balancei a cabeça e respirei fundo.
Ele ainda devia estar no banho, já que não questionou minha
demora em citar todas as coisas que nos diferenciam.
— Melhor resumir tudo em apenas uma coisa, ou talvez duas —
murmurei para mim mesma.

Eu:
Seu sorriso que diz
“sou amigo de todo mundo”
e sua positividade de
“Vamos viver a vida como se não houvesse amanhã”
são as duas coisas que mais nos diferenciam

Enviei a mensagem e me joguei de costas na cama, segurando o


objeto contra o peito, enquanto fitava o teto pintado de branco do meu
quarto.
Por que meu coração insistia em bater descontroladamente e minhas
mãos, de repente, começaram a tremer?
Eu estava com medo de ele concordar que sou um “limão azedo”,
como minhas amigas costumam me chamar? Seria uma injustiça! Desde
que o conheci, nunca sorri tanto em tão pouco tempo. Claro que eu também
resmungava e revirava os olhos com a mesma frequência, mas ainda assim,
para Ravena Watts, aquilo era um progresso e tanto.
Meu celular vibrou sobre meu peito, e ao desbloquear a tela,
mordendo o lábio inferior com força, murchei toda. Não era o cantorzinho
da banda de garagem, mas sim a minha amiga nerd, confirmando minha
presença no evento da revista naquela noite.
Não era como se eu tivesse outra opção.
Ou eu ia, ou ia. A menos que estivesse disposta a pagar uma multa
astronômica e ter a minha foto estampada nos jornais de toda Londres como
a fotógrafa que deixou a London Fashion Magazine na mão em um dos dias
mais importantes para a empresa de moda.
A revista já havia depositado o valor integral na minha conta, e
confesso que soltei um gritinho quando recebi a notificação da transferência
no app do meu banco.
Revirei os olhos, minha marca registrada, devido à mensagem, e
respondi um seco e curto “sim”.
O que me animava era que finalmente eu teria a oportunidade de usar
um vestido maravilhoso que comprei no último Natal na Selfridges. Custou
uma nota, mas acredito que valeu cada libra.
Bip.
Dei um pequeno salto sobre o colchão, assustada, e engoli em
seco. Naquele momento, era o cantorzinho.
Cantorzinho:
hahahaha
Meu sorriso diz mesmo isso?
E desde quando positividade é algo ruim?
Você deveria aprender com o mestre ;)
17

Abri um sorriso discreto. Pelo menos ele tinha levado na brincadeira


e não se sentido ofendido. Olhei para o céu através da janela e ele estava
azul, com nuvens brancas e um sol tímido brilhando.
Suspirei suavemente e voltei a fitar a tela do meu celular.
Se eu pudesse, passaria o dia todo trocando mensagens com Caleb,
mas eu tinha um milhão de coisas para fazer, a começar pelo preparo mental
de aguentar olhar para a cara da Eshe Fenton durante a maior parte da noite.
Bufei e revirei os olhos com o pensamento.

Eu:
Positividade demais pode ser
comparada com ilusão, sabia?
Enfim, o papo está ótimo,
mas eu preciso ir à academia,
preciso me preparar fisicamente
e mentalmente para o evento que irei
fotografar hoje à noite

Cantorzinho:
Não vou atrapalhar você
Mas por que você não parece animada
para esse tal evento?

Ele estava mesmo interessado?


Se ele perguntou, agora teria que ouvir, ou melhor, ler tudinho.
Contei a ele tudo, desde o quanto a Eshe é uma FDP da pior espécie
até a parte que eu sou fominha de academia sim, com muito orgulho.
Aquelas pernas maravilhosas não estariam ali se não fosse pelas horas que
eu passo levantando-as na cadeira flexora.

Cantorzinho:
Boa sorte lá! Tenho certeza
de que você vai arrasar!
E qualquer coisa,
me liga que eu vou lá colocar
essa tal Eshe no lugar dela

Soltei uma risadinha e mordi o lábio inferior.


Eu:
Agradeço a oferta,
mas sei me defender ;P

Cantorzinho:
Depois do soco de direita
que você deu no Peter Pan
não tenho dúvidas disso :D

Ele era mesmo um bobo.


Levantei da cama, troquei meu pijama do Pernalonga por uma calça
legging preta, um top cinza da Puma e calcei meu par de tênis esportivo
antes de prender meus cabelos em um rabo de cavalo alto.
Já na sala de estar, peguei minha garrafa de água sobre a mesa e a
segurei pela alça. No entanto, o silêncio no apartamento me fez franzir o
cenho.
A porta do quarto da Ali estava fechada e não ouvi nenhum som
vindo do interior do cômodo, que para mim era mais parecido com uma
câmara dos horrores.
Ela deve ter passado a noite na casa do namorado. Melhor para mim.
Dei de ombros e saí de casa rumo à academia do bairro, que naquele
horário deveria estar lotada de marombas tão fominhas quanto eu. Mas era
tudo em prol da boa saúde e forma física de milhões.

Cheguei em casa suada e faminta; entretanto, a minha disposição


para cozinhar estava no zero. Então, pedi comida por aplicativo e comi
sentada no sofá, com uma almofada no colo, as pernas esticadas e os pés em
cima da mesa de centro.
O fato de a Alissa ainda não ter dado as caras estava começando a
me incomodar. Mesmo eu dizendo para mim mesma que estava feliz por
passar o dia inteiro em casa sozinha e poder andar de sutiã e calcinha pela
casa sem correr o risco de aquele ogro se materializar à minha frente,
parecendo um muro de quase dois metros.
Suspirei fundo e deixei a embalagem de comida vazia sobre a
mesa. Deitei-me no sofá e adormeci até o final da tarde com a TV ligada.
Meus sonhos nos últimos dias eram basicamente os mesmos, com Caleb
cantando para mim em um palco parcialmente iluminado em um salão
vazio, enquanto eu o observava com os olhos fixos e brilhantes. Ele se
aproximava, inclinava o corpo para frente e encostava sua testa contra a
minha, ainda segurando o microfone, deixando sua voz bonita e suave
preencher o ambiente.
Eu sempre acordava com o coração acelerado e um fio de suor
escorrendo pela testa, exatamente como estava acontecendo naquele
momento.
Sentei-me abruptamente no sofá e levei a mão à testa, sentindo a
palma úmida. Suspirei fundo e balancei a cabeça antes de pegar meu celular
e soltar um palavrão ao notar que já passava das seis da tarde.
— Preciso tomar um banho e me arrumar — resmunguei, ainda
um pouco zonza. Com passos lentos, semelhantes aos de um zumbi, segui
até o quarto.
Saí do banheiro com os pés calçados em um par de chinelos e abri
um sorriso ao avistar meu vestido lindo e maravilhoso repousando sobre a
cama. O preto era um contraste com o rosa da minha colcha, mas eu não
poderia estar mais satisfeita com a compra que fiz há alguns meses.
A peça de grife – porque eu tenho o direito de me presentear com
algo caro – era preta, com alças finas e um decote sob medida. O
comprimento chegava até os tornozelos, com uma fenda na perna direita e,
para completar, o vestido possuía correntes douradas caindo ao longo da
parte frontal da peça.
Sem muito tempo para admirar meu queridinho da vez, me
troquei rapidamente, cobrindo meu corpo com o vestido em questão de
segundos. Meus sapatos de salto alto e bico fino complementaram meu look
de maneira harmoniosa, deixando tudo na medida certa, assim como meus
cabelos levemente ondulados caindo sobre os meus ombros.
Minha maquiagem era simples: apliquei um batom nude, um
pouco de delineador nos olhos para deixá-los mais marcantes e dei algumas
batidinhas de blush nas bochechas. No entanto, eu estava indo para o evento
não apenas como “empregada” mas também como convidada.. Então, claro
que eu iria me dar ao prazer de beber algumas taças de champanhe e curtir
um pouco. Afinal, não sou de ferro.
Mas eu estava o luxo em pessoa!
— Garota, você é muito gata! Argrrrrr! — soltei, arranhando o ar
com as minhas unhas longas, completamente satisfeita com o que os meus
olhos encaravam através do espelho.
Eu dava tudo de mim para que Caleb me visse naquele vestido…
Sorri com o pensamento e mordi o lábio inferior quando tive uma
ideia.
Às pressas, peguei meu celular em cima da cama e tirei uma selfie
em frente ao espelho de corpo inteiro, certificando-me de destacar a fenda
na perna direita, e enviei para o músico.

Eu:
Look básico da noite ;P
Para a minha surpresa e satisfação, o rapaz respondeu quase no
mesmo segundo:

Cantorzinho:
Se eu não tivesse um jantar em família hoje,
arranjaria um jeito de ir a esse evento,
apenas para prestigiar o evento
que é você nesse vestido

Jantar em família?
Por que uma parte de mim estava verde de inveja?
Balancei a cabeça. É claro que Caleb tem uma boa relação com a
família; o rapaz se dá bem até com um poste, se não for um exagero meu.
Suspirei profundamente e digitei uma rápida resposta:

Eu:
É uma pena…
por isso, contente-se com essa
foto
e imagine tudo o que está por baixo desse vestido
e você está perdendo…

Cantorzinho:
Marrentinha… não brinca com fogo

Mordi o lábio inferior com um sorriso e ajeitei meu cabelo sobre os


ombros, fitando meu reflexo.

Eu:
Talvez eu goste de me queimar S2
Não esperei por uma resposta. O carro por aplicativo que solicitei
já estava parado em frente ao prédio, faltando apenas meia hora para o
início do evento. Não demoraria cinco minutos e a Mich começaria a me
ligar, desesperada para saber o motivo da minha demora. Sem falar que a
insuportável da chefe dela ficaria pegando no pé da coitada.
Ainda não sei por que minha amiga se submete a esse tipo de
tratamento.
Para não correr o risco de perder o foco durante o trabalho,
desliguei meu celular e o guardei na mochila, juntamente com minha
jaqueta e minha câmera. Dizer que eu parecia uma estrela de filme de ação
enquanto caminhava até o carro com aquela mochila preta nas costas, o
vestido e sapatos da mesma cor, o vento soprando meus cabelos, deixando
os pelos dos meus braços arrepiados, não seria uma comparação incoerente;
pelo contrário.
— Boa noite, senhorita! — saudou o motorista com um sorriso
simpático. No entanto, não deixei de notar seu olhar rápido para a minha
coxa parcialmente exposta.
Segurei a vontade de revirar os olhos e apenas respondi, curta e
grossa, como sempre sou:
— Boa! — Sorri falsamente, deixando minha mochila ao meu
lado sobre o banco.
Mantive a janela ao meu lado parcialmente aberta e fechei os
olhos, sentindo o vento bater em meu rosto à medida que o carro avançava
pelas ruas noturnas, iluminadas e movimentadas da capital.
Para a minha sorte e, principalmente, a do motorista, ele permaneceu
com o bico calado durante todo trajeto até o museu Victoria & Albert, onde
seria a festa.
Londres era puro charme durante o outono.
As folhas das árvores, com diferentes tons de laranja espalhadas
pelas calçadas, o clima frio, as vitrines das lojas com manequins vestidos
com sobretudos e cachecóis, e os londrinos se preparando para o inverno,
sempre me deixavam com um sentimento de nostalgia.
— Chegamos, senhorita — anunciou o motorista, após parar o carro
em frente à entrada do museu.
Suspirei fundo e encarei a entrada da imponente construção do
século XIX, iluminada com luzes douradas, repleta de fotógrafos e um
enorme banner da London Fashion Magazine – estrelado por ninguém
menos do que Angelo Hamish – pendurado acima das portas do local.
— Começamos bem a noite — resmunguei baixinho.
— Disse alguma coisa, senhorita?
— Hã? Ah, não, quero dizer, quanto é mesmo a corrida?
— £25 libras.
Era mais barato do que pegar um táxi. Abri minha mochila e tirei
o dinheiro da carteira antes de entregá-lo ao motorista.
— Obrigado e tenha uma boa noite.
— Igualmente. — murmurei.
Desembarquei do veículo e ajeitei minha mochila de lado sobre o
ombro, enquanto observava as pessoas ao meu redor.
O tapete vermelho que se estendia pelos degraus do museu até as
duas portas principais me fez sentir uma celebridade enquanto caminhava
lentamente por ele.
No entanto, o foco não estava em mim, mas sim nas mulheres
magras, altas e esbeltas que posavam para fotos vestidas dos pés à cabeça
com adornos que devem valer mais do que os meus dois pulmões. Estes,
que não estavam lá grandes coisas devido à quantidade de cigarro que
venho consumido ultimamente. Se bem que, parando para pensar, já fazia
dois dias que eu não fumava. Aquilo era um verdadeiro milagre.
Mas já disse e repito: fumar, no meu caso, não é um vício, mas
sim um mau hábito. Posso parar a hora que quiser e nem sinto falta da
nicotina entrando nos meus pulmões e na minha caixa torácica.
Ao colocar os pés no enorme salão do museu, a primeira pessoa
que encontrei foi Michele. A jornalista estava deslumbrante com seu
vestido rosa pink de seda até os tornozelos, os cachos soltos e selvagens ao
redor de sua cabeça nerd, destacando-se no ambiente decorado com pilares
de mármore mesclado e um lustre dourado no centro do teto de gesso
branco.
— Uau! Amiga, você tá linda! Esse vestido está maravilhoso e
caiu feito uma luva em você. — me elogiou, assim que parou à minha
frente, segurando uma taça.
— Querida, tudo que eu me proponho a usar cai feito uma luva
em mim.
Minha amiga revirou os olhos e resmungou baixinho algo sobre eu
ser uma narcisista sem limites, o que me fez abrir um sorriso.
— Você também não está nada mal — elogiei de volta,
observando seu a peça rosa em seu corpo. — Só acho que você deveria ter
deixado a dupla de tampas de garrafa em casa — resmunguei quando notei
seu par de óculos, que na verdade é bem difícil de passar despercebido.
Mich deu de ombros, com um beicinho, e bebericou mais um gole
de seu champanhe.
— Não sei como você vai conseguir fotografar calçando esses
saltos finos… — Gesticulou com a cabeça na direção dos meus pés.
— Além de ser uma das fotógrafas da festa, eu também sou
convidada. Não pretendo comparecer a um evento como esse, lotado de
celebridades e influencers, parecendo uma palhaça — expliquei, ajustando a
alça do meu vestido. — E também, já estou acostumada a usar saltos, ao
contrário de certas pessoas…
Ela franziu o cenho, com a boca entreaberta.
— Certas pessoas quem? Eu? Pois fique sabendo que sei muito
bem como me equilibrar em saltos altos, só prefiro sapatos baixos por
questão de conforto.
— Claro que essa é a única razão! — sorri falso, fazendo-a rosnar
e revirar os olhos.
— Ravena Watts! — Olhei para o lado ao ouvir meu nome saindo
da boca de quem eu menos gostaria de ver, mas que, infelizmente, era
obrigada a engolir.
Tudo em nome da fotografia e do dinheiro que ela me
proporciona.
Eshe Fenton caminhava em nossa direção como se fosse uma
modelo sobre a passarela e, eu detestava admitir, mas a mulher era muito
bonita e estava ainda mais usando aquele vestido da Prada caríssimo. Eu
sabia disso porque namorei um igual por quase um mês até criar coragem
de entrar na loja e perguntar o preço, apenas para sair de lá traumatizada.
Jurei para mim mesma que não valia a pena eu gastar mais de seis mil libras
da minha poupança para satisfazer um capricho bobo e fútil.
— Fico feliz que tenha aceitado nossa proposta, senhorita Watts! —
Eshe completou assim que parou à nossa frente.
— Eu que agradeço pela confiança no meu trabalho, senhorita
Fenton. — Sorri falso, ajeitando a alça da minha mochila sobre o ombro.
— Agora é senhora Davies.
— Ah…
— Sim, eu me casei em uma cerimônia super discreta, apenas para
amigos e familiares, com Rufus Davies, também conhecido como o
proprietário da London Fashion Magazine. — Sorriu orgulhosa, como se
tivesse ganhado na loteria, e ela tinha, não literalmente, mas vocês
entenderam.
— Você apenas juntou o útil ao agradável, não é mesmo?! — Pisquei
com um sorriso irônico.
Eshe franziu o cenho e abriu um sorriso estranho, parecendo confusa.
Michele, por sua vez, beliscou minha bunda, e devo dizer, doeu!
Trinquei os dentes, porém fiz cara de paisagem.
— Bem, quero fotos de todos os convidados e ambientes do museu
onde estão sendo exibidas imagens das nossas campanhas. — exigiu a CEO
da revista de moda mais popular da Inglaterra, gesticulando para o arredor.
— Deixa comigo! — Fiz sinal de continência.
Ela assentiu, com os olhos estreitos, e me olhou de cima a baixo.
— Vestido bonitinho. — Apontou com desdém e deu as costas,
rebolando em direção ao marido, que estava conversando com alguns
convidados do outro lado do salão.
Bonitinho?
Aquilo era inveja porque eu estava muito mais bonita e atraente do
que ela.
Revirei os olhos e fitei minha amiga.
— Por que você beliscou a minha bunda? — resmunguei,
massageando discretamente o local dolorido.
— Porque você não segura essa língua! Sorte sua que a Eshe não
entendeu a sua insinuação.
— Não foi uma insinuação, e sim uma constatação. — Dei de
ombros. — Ela conseguiu mesmo aplicar o golpe do baú para cima do
velho, e ninguém tira isso da minha cabeça — soltei, balançando a cabeça
lentamente, com o cenho franzido, enquanto fitava a Eshe dando uma
bitoquinha no homem que parecia ter o dobro da idade dela.
— Rav, pelo amor do pai, fala baixo! — Mich murmurou, com os
olhos arregalados atrás das lentes de seus óculos, olhando ao redor. — Se
alguém ouve isso e conta para ela, estamos as duas perdidas. — Fez sinal
de cortar o pescoço antes de terminar o resto de seu champanhe.
— Não tô nem aí. Você concorda comigo, mas, ao contrário de mim,
tem medo de dizer a verdade. Se for verdade, eu falo mesmo, doa a quem
doer. — Dei de ombros. — Além disso, vá com calma aí com esse
champanhe, não estou a fim de te carregar até o táxi.
— Só bebi duas taças, contando com essa.
— E já estou vendo os efeitos nas suas bochechas coradas, que com
certeza não são de blush.
Mich tocou seu rosto e fez um beicinho.
— Bem, preciso ir trabalhar. Se cuida! — Beijei sua bochecha quente
e corada. — Te vejo mais tarde. — Apertei seu ombro e comecei a
caminhar para longe.
— Tá bom! Mas, Rav?
Parei e a encarei por cima do ombro.
— Seja boazinha com o Angel, pode ser?
— Tanto faz. — Revirei os olhos e continuei meu caminho em
direção ao vestiário do museu para deixar minha mochila.
Eu quase tinha me esquecido de que o modelo hétero top iria à festa.
Após assumir publicamente o namoro com a minha amiga jornalista,
antes de sua viagem à cidade luz, o rapaz parece um cachorro sem dono.
Ele não a deixa livre nem em um evento da revista para a qual ela trabalha,
o que é motivo de alegria para Eshe, que falta pouco para beijar o chão que
aquele lá pisa.
18

Devo admitir que o evento estava muito bem produzido. Notei


isso enquanto apontava minha câmera para todos os lados possíveis,
fazendo o máximo para capturar a essência do lugar e o que ele se propunha
a mostrar.
Os três telões espalhados pelo salão do museu e no jardim
exibiam os ensaios e campanhas mais recentes da revista, com modelos
famosos e influencers, incluindo o namorado da minha amiga. Para o meu
desprazer, ele havia acabado de chegar à festa, rodeado de fotógrafos e
flashes disparando para todos os lados.
— O Angel chegou! — Mich apertou meus braços, se
materializando ao meu lado com um largo sorriso e os olhos brilhando.
Enquanto isso, a minha expressão era uma careta de desânimo e vontade de
me embriagar.
Angelo, por sua vez, estava posando para as fotos com seu típico
semblante arrogante de bad boy narcisista, muito pior que eu, antes de notar
sua namorada e acenar com um sorriso.
— Ah, não! Me diz que ele não vai vir até aqui e atrair a atenção
de todo mundo — sussurrei entredentes no ouvido da minha amiga,
mantendo um sorriso falso.
Que boca bendita a minha!
O modelo se desviou das pessoas, em sua maioria fotógrafos
sedentos que o rodeavam, e se aproximou de onde estávamos,
acompanhado de sua assistente Blaise Cooper e… Brandon?
Mich pareceu não ter notado o ex-melhor amigo de mãos dadas
com a ruiva enquanto abraçava apertado o namorado, escondendo o rosto
na curva do pescoço do rapaz perfumado da cabeça aos pés. Meu estômago
chegava a revirar com o odor masculino caro e forte.
— Oi, coisinha peculiar. Eu estava morrendo de saudades —
disse o modelo com a voz abafada, antes de se afastar do abraço e acariciar
o rosto corado da cacheada.
— Por que você não disse que chegaria ontem de Paris? Pensei
que não viria à festa até ver sua mensagem hoje pela manhã. — Mich deu
um tapinha leve no ombro do namorado.
— Quis fazer uma surpresa! — Piscou ele, puxando-a pela cintura
para um beijo de cinema.
Os flashes ao nosso redor estavam embaçando minha visão e
começando a me deixar irritada.
No dia seguinte, aquelas fotos estariam estampadas em todas as
revistas e sites de fofoca. Eu estaria em alguma delas, com uma careta
esquisita, parecendo ter levado um soco nos olhos por estar com um aberto
e o outro fechado devido às luzes irritantes que não paravam de disparar
para todos os lados.
Mich deixou o abraço íntimo, com as bochechas vermelhas
escarlate de tanta timidez, e evitou olhar ao redor. Ela era culpada, sem
defesa.
Apesar de tudo, minha amiga abriu um sorriso tímido ao encarar
novamente o namorado e colocou uma mecha de seu cabelo cacheado atrás
da orelha antes de finalmente notar Blaise e Brandon, ainda de mãos dadas.
— Brand?
— Oi, Mich. — Sorriu de canto, com uma mão no bolso de sua
calça preta social.
Ele estava um gato, eu não podia negar.
— Não sabia que você vinha… — Michele murmurou,
observando a mão do rapaz entrelaçada com a da moça que o acompanhava.
— Oi, Mich! — Blaise saudou animada e segurou minha amiga
pelos ombros, plantando um beijo estalado em sua bochecha, deixando uma
marca de batom vermelho no local.
— Você também estava em Paris? — perguntou a jornalista, sem
desviar o olhar de seu amigo fotógrafo, enquanto os olhos de Angelo a
fuzilavam.
Eu queria tanto ter um balde de pipocas e uma poltrona para assistir
àquele drama sentadinha e plena…
— Sim! — Blaise respondeu por ele.
— Ah. — Foi tudo o que minha amiga disse.
No fundo, lá no fundo, eu sentia pena da Mich. Ela gostava muito do
Brandon – como amigo, é claro – e eu sabia o quanto o afastamento dele a
estava machucando. Apesar de tudo, ele sempre foi um bom amigo para ela
e eu sou testemunha.
Talvez mais tarde eu trocaria uma palavrinha com ele…
Pigarreei, tentando quebrar aquele clima gelado e desconfortável
que havia se instalado entre aqueles quatro, e abri um sorriso falso.
— Como vai, Angel? — Estendi minha mão para o modelo, que
finalmente me notou e abriu um sorriso zombeteiro, apertando-a.
— Minha cara Ravena. Vou muito bem, e você?
— Trabalhando. — Sorri falsamente, levantando minha câmera.
— Você é a fotógrafa da noite? — Brandon perguntou com uma
sobrancelha arqueada.
— Coisa da Eshe. — encolhi os ombros.
O rapaz sorriu de canto e assentiu.
— Posso tirar uma foto de vocês? — propus.
— Claro! — Blaise foi a única a responder, mas todos se
juntaram, e é claro que o Angelo se colocou entre a Mich e o Brandon
quando percebeu que os dois ficariam lado a lado na foto.
Patético!
Meus dedos já estavam dormentes de tanto pressioná-los contra o
disparador da câmera, mas eu amava o que fazia e, por mais que nem
sempre fosse fácil, o prazer de “congelar” momentos únicos em uma
simples fotografia fazia tudo valer a pena.
Naquele momento, eu estava no jardim do museu, com um lago
artificial no centro, coberto por um gramado ao redor. Enquanto isso, os
convidados da festa conversavam, comiam e bebiam de pé,ou sentados ao
redor do espaço, iluminado com vários cordões de luzes pendurados em
postes espalhados pelo local.
Minha boca estava seca e implorando por um gole de champanhe,
mas eu estava trabalhando e não podia me dar ao luxo de encher a cara e
começar a passar vergonha. Não que eu seja do tipo que fica bêbada com
quatro taças, mas… era melhor prevenir do que remediar.
— Vou querer ver todas as suas fotos quando forem publicadas.
— murmurou Brandon subitamente ao pé do meu ouvido, o que me fez dar
um pequeno pulo de susto.
Suspirei fundo e o fitei por cima do ombro.
O rapaz bonitão exibia um sorriso com as mãos nos bolsos de sua
calça.
— Se me matar antes, vai ser praticamente impossível.
Brand soltou uma risada e inclinou a cabeça para trás.
Ah, se eu não tivesse conhecido o Caleb… Teria facilmente dado
uns pegas naquele fotógrafo.
Que merda eu acabei de pensar?
Se eu não tivesse conhecido o Caleb? O que aquele cantorzinho tinha
a ver com isso?
Franzi o cenho e engoli em seco, temendo que a minha repentina
mudança de expressão pudesse confundir minha companhia naquele
momento.
— Mas foi bom você ter aparecido, eu tenho algumas coisinhas
para falar e perguntar. — comecei.
— Pode falar, sou todos ouvidos.
— Você e a ruiva, tão namorando ou só ficando?
Brandon suspirou fundo – até demais – e umedeceu lentamente os
lábios.
— Estamos curtindo o momento. — Deu de ombros, fitando a
água parada do lago. — A Blaise é uma garota legal, e nós já tínhamos
passado um tempo muito bom em St. Ives…
— E reviveram isso em Paris? A cidade mais romântica do
mundo?
— Não exatamente… — Sorriu sem jeito, coçando a nuca.
— Para mim parece exatamente isso.
Brandon se virou na minha direção, cruzou os braços e
semicerrou os olhos.
— Por que você se importa?
— Eu não faço, mas a Mich sim.
O fotógrafo franziu o cenho e seu peito se encheu com a menção
da minha amiga.
Cara, ele não a superaria tão cedo…
A assistente do Angelo teria que comer muito arroz com feijão
para tirar a nerd da cabeça do rapaz.
— C-como assim? — soltou, com a voz afetada, quase sem
fôlego, e engoliu em seco duramente.
— Brandon, a Mich está muito chateada com a forma como você
a vem tratando nos últimos meses.
— Mas eu não fiz nada — murmurou, desviando o olhar.
— Fez sim! — retruquei, sem paciência. — Ignorar as mensagens
e ligações dela e evitá-la na revista, como se evita doenças contagiosas, não
me parece atitude de um homem adulto.
— Eu só estou tentando seguir em frente, entendeu?
— Eu entendo, e não estou te julgando. Você tem todo direito,
mas não acha melhor conversar com ela em vez de fugir da situação?
— Você não tem ideia do quão difícil é para mim ver ela com
aquele cara e não poder fazer nada! — cuspiu, com os olhos marejados.
Por favor, não chora! Gritei internamente.
— Brand, a Mich ama o Angelo e ele a ama, isso não vai mudar.
— Não precisa me lembrar disso, caramba! — disse alto e abriu
os braços, atraindo a atenção de alguns convidados.
Olhei ao redor, com um sorriso sem jeito, e puxei o fotógrafo pelo
braço, para um lugar mais reservado atrás de um arbusto.
— Brandon, escuta. — Coloquei as mãos em seus ombros e
encarei profundamente seus olhos verdes. — Eu sei que dói, mas antes de
tudo, a Mich é sua amiga, e para ela, você sempre vai ser um amigo
querido. Então, se você realmente se importa com ela, não a abandone e
jogue fora essa coisa bonita que vocês têm por causa de um amor não
correspondido. O tempo cura tudo, e pode não ser hoje ou amanhã, mas um
dia essa dor que você sente aí — espalmei minha mão em seu peito, bem
acima do coração — vai passar.
O rapaz me encarou com os olhos marejados e, quando uma
lágrima deslizou pelo seu rosto bonito, senti vontade de chorar também. O
amor não mata, mas pode machucar de forma inexplicável.
Brandon atirou os braços ao meu redor e me apertou em um
abraço, enquanto seu corpo tremia e balançava devido ao choro
compulsivo.
Suspirei fundo e o abracei de volta, sabendo que ele precisava
disso.
— Olha para mim. — Segurei seu rosto em concha e fitei seus
olhos brilhantes de lágrimas. — Só conversa com ela, mas faça isso quando
o Angelo não estiver por perto.
— Vou tentar–
— Não! Você vai fazer isso, não por ela, mas por você mesmo! —
Apertei suas bochechas.
Brandon fungou e secou o rosto com as mangas de seu blazer
preto.
— Valeu, Ravena. — Respirou fundo, ajeitando sua camisa
branca por baixo do blazer.
Abri um sorriso fraco e assenti.
— Agora volta lá e finge que isso não aconteceu.
Ele soltou um riso, mordeu o lábio inferior e virou as costas,
seguindo de volta para o interior do museu, pisando no gramado.
Balancei a cabeça e respirei fundo.
Parece tão mais simples colocar as coisas no lugar quando o
problema não é nosso.
O som dos aplausos do outro lado do jardim chamou minha
atenção, e foi quando notei que a Eshe e o marido fariam um
pronunciamento. Aquele era o momento mais importante da noite, e eu não
poderia deixar de fotografá-lo. Por isso, caminhei apressadamente até o
outro lado do lago artificial, sem me importar em arriscar quebrar meu salto
ao andar na grama bem cuidada, embora mais macia do que aparentava.
Ao chegar entre as dezenas de convidados, já com a câmera
pronta, posicionei-me para capturar o momento.
— Primeiramente, gostaria agradecer a presença de todos em nome
da London Fashion Magazine! Estamos muito satisfeitos com todo o
progresso da revista nos últimos meses e, por isso, viemos anunciar algo
muito importante esta noite. — disse Eshe, com um sorriso, segurando a
mão do marido.
— Sim, minha querida. — Rufus Davies beijou a bochecha da
esposa e tomou a palavra. O casal estava à frente de todos, de pé à porta do
jardim. — É com muito orgulho que anunciamos uma nova filial da London
Fashion, aqui mesmo em South Kensington!
Novamente, o coro de aplausos preencheu o ambiente a céu
aberto.
— Uau! — murmurei baixinho, com um olho focado na lente da
minha câmera, fotografando tudo.
Apesar do vento, eu estava longe de sentir frio. No entanto, ver
algumas mulheres com casacos de pelo estava fazendo meus braços
coçarem. Minha sensação de calor se devia ao fato de eu caminhar de um
lado para o outro, sem tempo nem mesmo para um copo d’água. Por falar
nisso, minha garganta estava seca.
— Vamos abrir vagas para a nova filial muito em breve. Portanto,
pedimos aos interessados que não deixem de acompanhar nossas redes
sociais para mais informações! — Eshe informou com um largo sorriso.
— No mais, é isso. Aproveitem a festa! — Rufus ergueu uma taça
de champanhe e beijou novamente a esposa.
Quando o casal top – só que não – voltou para o interior do
museu, seguidos por mais pessoas – bando de puxa-sacos –, suspirei fundo
e encarei as fotos na pequena tela da minha câmera.
— Wow! — soltei, quando o objeto, que custou mais de duas mil
libras, quase foi parar no chão após algum idiota se chocar contra as minhas
costas.
— Desculpe!
Eu estava pronta para xingar o desastrado que quase havia
quebrado minha câmera, enquanto a colocava em volta do pescoço, mas me
contive quando o reconhecimento me apunhalou pelas costas como uma
adaga longa e afiada.
— Ravena?
Engoli em seco, sentindo meu coração parar e minha cabeça girar
ao encarar aqueles olhos azuis que escondiam uma tempestade feroz.
— N-Nolan?
Aquilo era muito pior do que um pesadelo.
19

Não, não, não! Um milhão de vezes NÃO!


Era tudo o que minha mente gritava naquele instante.
O tremor em minhas mãos, o coração acelerado, a cabeça girando e a
pele arrepiada, de repente com frio, só podiam ser coisas da minha cabeça.
Meu ex não estava ali, naquele museu, olhando nos meus olhos, com
um sorriso nos lábios, segurando um copo com uísque, vestido da cabeça
aos pés como o riquinho metido que ele sempre foi. Não, eu estava
enganada… Era tudo em que eu queria acreditar, mas quando ele tocou meu
braço, eu soube que era real, muito real.
Pisquei os olhos lentamente várias vezes.
Minha mente continuava a girar, e eu temi desmaiar ali mesmo.
Os lábios de Nolan se moviam enquanto ele examinava meu rosto
com uma expressão de preocupação, mas eu não conseguia ouvir sua voz,
apenas um zumbido irritante.
Fechei os olhos e engoli em seco.
Minha garganta estava tão seca quanto há alguns minutos.
— Ravena, você está bem?
Finalmente, consegui ouvir e abri os olhos abruptamente, dando um
passo para trás ao perceber que sua mão ainda tocava minha pele.
Eu queria muito lavá-la naquele momento.
— O-o que você está fazendo… — Fiz uma pausa, respirando
ofegante. Era difícil até de falar. — Aqui? — completei sem fôlego.
Nolan franziu o cenho, confuso, e olhou ao redor do jardim antes de
seus olhos pousarem novamente nos meus.
— A agência da qual sou sócio organizou a festa.
Fiz uma careta.
— Agência? Quer dizer que você não se formou em medicina?
Por que eu ainda estava ali, conversando com ele?
Vai embora daí, Ravena! Essa era a minha consciência, sensata e
correta.
No entanto, quem disse que os meus pés queriam obedecer ao meu
cérebro? Eu estava paralisada, ainda tentando processar a bagunça que
estava se passando bem diante dos meus olhos.
— Deixei o curso de medicina no terceiro ano… Aquilo não era para
mim. — Respondeu baixo.
Soltei uma risada de escárnio e desviei o olhar para o céu, notando-o
nublado e escuro, antes de umedecer os lábios e respirar fundo.
— É claro que aquilo não era para você. — Encarei seus olhos, com
desgosto, e continuei: — Sua especialidade é estragar vidas, não salvá-las.
Nolan engoliu em seco.
— Ravena. — Deu um passo para frente, mas ergui a mão.
Ele que não ousasse se aproximar de mim, ou eu não sei do que seria
capaz.
— Por favor, me deixe explicar… — implorou.
Sorri debochada e cruzei os braços.
— Explicar o quê? O fato de você ter me dado às costas quando a
possibilidade de ser pai surgiu do nada? Por você ter falado mal de mim
para a escola inteira e deixar todos pensarem que eu era uma vagabunda que
tinha seduzido você e tentado aplicar o golpe do baú? — Fiz uma pausa,
com um falso drama, e coloquei o indicador sob o queixo: — Ah! Ou
talvez, quem sabe, explicar o motivo de você ter ido embora do país sem
sequer se despedir de mim?
— Eu juro que não foi a minha intenção… E-eu só fiquei assustado
— balbuciou, fitando o gramado sob nossos pés.
— E VOCÊ ACHA QUE EU NÃO? — gritei, frustrada, com os
olhos ardendo e o peito subindo e descendo rapidamente.
Alguns convidados nos fitaram com desconforto, mas eu estava me
lixando para o que eles poderiam estar pensando.
— Eu era a porra de uma adolescente ingênua! — rosnei, um pouco
mais baixo.
— Eu também era jovem demais para sequer pensar na ideia de ser
pai, Rav…
— Pra você é Ravena Watts! Se bem que não pronunciar o meu nome
é um favor que você me faz.
Nolan balançou a cabeça e deixou sua taça vazia sobre a mesa, sem
desviar os olhos dos meus.
— Eu sei que as coisas que falei e minhas atitudes foram idiotas, e
que você não merecia passar por aquilo, mas, por favor, eu juro que estou
arrependido. — Deu um passo para frente, e por mais que eu tenha tentado
me afastar, não consegui me mover. Meus pés estavam travados na grama
como se tivessem sido colados com cimento.
No entanto, se o chão se abrisse sob eles naquele momento, eu seria
engolida com prazer.
Qualquer coisa era melhor do que ficar ali, sem reação, temendo ser
encoberta por uma escuridão dolorosa e sem fim.
— Me perdoa, por favor — implorou, tentando tocar meu rosto, mas
desviei, sentindo nojo por simplesmente ter que olhar para ele e ouvir sua
voz.
Eu simplesmente não acreditava no que ele estava dizendo…
Como alguém poderia ser tão baixo, cínico e escroto a esse ponto?
— Você pode não acreditar, mas eu senti muito a sua falta durante
todos esses anos. Inclusive, quando voltei para Londres no fim do ano
passado, pensei em ir até a casa dos seus pais, saber notícias suas, mas não
acho que eles ficariam felizes em me ver e, muito menos, me diriam onde
você estava…
Abri a boca, soltando uma respiração ofegante de descrença.
— Você é muito cara de pau, não é?
O rapaz de cabelos pretos e brilhantes, com os olhos tão azuis
quanto o oceano, aqueles mesmos que um dia me fizeram apaixonar por ele,
franziu o cenho, confuso, e inclinou a cabeça de lado.
— Não entendi…
Revirei os olhos e coloquei as mãos na cintura.
— É muito fácil para você vir aqui, dizer um monte de merda e
achar que tudo vai ficar bem, não é? Como se o mundo girasse ao seu redor.
Nolan suspirou fundo e umedeceu os lábios, colocando as mãos
nos bolsos de sua calça social.
— Só estou tentando acertar as coisas.
— Coloca uma coisa na sua cabeça, Nolan. — Apontei com o
indicador para a minha própria cabeça e continuei: — NUNCA, tá me
ouvindo? NUNCA as coisas vão ficar bem entre nós novamente! —
exclamei, cansada daquele teatro.
Ele não estava arrependido, mas sim com o ego ferido.
— Sinto muito a sua falta… — continuou, como se não tivesse
ouvido o que eu tinha acabado de dizer.
Inclinei a cabeça para trás e soltei uma risada de escárnio. Minha
vontade era de dar na cabeça dele com uma garrafa de champanhe por ser
tão irritante, mentiroso e por subestimar tanto a minha inteligência.
— Você não sente a minha falta, você sente falta do que o meu
amor representava para você, o fortalecimento do seu ego — cuspi,
enojada, e abri um sorriso fraco e falso. — Eu fingi estar feliz apenas para
que você se sentisse feliz, fingi gostar dos seus amigos, mesmo quando eles
zombavam de mim e você não dizia nada… — Fiz uma pausa, suspirei
fundo e engoli em seco. — Sabe, Nolan, no fundo, eu plantei uma flor que
não podia florescer em um sonho que não podia se tornar real, porque nós
não éramos reais. — Apontei entre os nossos corpos.
— Eu te amo, Ravena… — murmurou, com os olhos cheios de
lágrimas tão falsas quanto ele e seu suposto amor.
Fechei os punhos com força.
Ele não estava me ouvindo?
— Some da minha vida, Nolan. Esqueça que algum dia nos
conhecemos, porque é o que eu tenho feito há quase quase dez anos —
declarei.
— Não acredito que você tenha simplesmente apagado tudo o que
vivemos juntos… — Balançou a cabeça, com uma lágrima escorrendo pelo
seu rosto. — É por causa de outro, não é?
— Sim! — soltei, antes que começasse a pensar demais. — E
estamos muito felizes! — acrescentei, com o queixo erguido.
Nolan engoliu em seco, abaixou a cabeça por um momento e
então me encarou com determinação.
— Eu não vou desistir de você, Rav.
Eu precisava sair dali antes que cometesse um assassinato ou
tivesse um ataque cardíaco.
Sem dizer mais uma palavra, virei as costas e atravessei a porta
em direção ao interior do museu.
— Ravena! Espera!
Se ele me seguisse, eu seria capaz de fazer um escândalo.
Fingi não ouvi-lo e continuei com passos largos para o mais longe
possível daquele homem. Minha cabeça ainda girava, meu corpo tremia e
meu coração não parava de bater violentamente.
Nem mesmo sabia para onde estava indo, apenas continuei
caminhando pelo salão do museu sem rumo até parar ao lado da Michele,
que estava encostada em um dos pilares de mármore.
— O que aconteceu, Rav? Você tá pálida… — Minha amiga
tocou meu ombro, fitando-me com preocupação.
Engoli em seco, tentando acalmar a respiração trêmula, ofegante e
dolorosa enquanto massageava meu peito, como se estivesse à beira de um
infarto.
Droga, Nolan! Por que você tinha que aparecer justo ali com
tantos lugares no mundo?
— É-é o m-meu ex… — balbuciei baixo, sentindo a garganta
cada vez mais apertada, e me apoiei no pilar.
— O quê? — Mich arregalou os olhos.
— E-eu o vi, e-ele está aqui… — Fechei os olhos e abri a boca
para soltar a respiração que meu nariz não suportava mais expirar.
— Aqui? Onde? — Olhou ao redor freneticamente, ainda mais
chocada.
Não teria como ela saber quem ele é, e graças ao bom Deus,
aquele idiota já tinha ido embora, assim eu esperava.
— Não faço ideia — soprei, sentindo-me tonta, e apoiei minha
cabeça no mármore frio. — Provavelmente em algum buraco que não me
interessa descobrir — resmunguei, sentando-me em um dos pufes brancos e
redondos espalhados pelo salão.
— Por que ele está aqui?
— Ah, porque ele é o sócio do seu vizinho! — exclamei com
desgosto.
— O quê? — Ela soltou alto, com os olhos arregalados de
incredulidade. — Seu ex trabalha com o Duncan na agência?
— O idiota não prestou nem para ser formar em medicina.
Segundo o próprio me disse, ele largou tudo após o terceiro ano. — Bufei,
revirando os olhos. — Disse que não se encontrou na profissão e que aquilo
não era para ele.
Mich suspirou e balançou a cabeça.
— Que mundo pequeno, hein? O Duncan e o Nolan são sócios… —
murmurou a cacheada, com o cenho franzido, sentando-se ao meu lado.
— Claro que seu vizinho idiota tinha que se associar ao idiota ao
cubo do meu ex. Os dois são o par perfeito! — resmunguei, cruzando os
braços.
— Rav, você está bem? Você tá tremendo…
Olhei para a minha amiga com o maxilar travado e uma carranca.
— É claro que eu não tô bem, Mich! — Suspirei fundo,
desviando o olhar. — A pessoa que eu menos queria ver de novo na vida
está aqui, como eu poderia estar bem?
— Acho melhor você ir para casa. — Sugeriu.
— Não posso. O evento ainda não acabou…
— Eu falo com a Eshe que você teve uma indisposição. Ela vai
compreender.
— Duvido muito.
— Amiga, por favor…
Mordi o lábio inferior. Ela só estava querendo ajudar, e quem eu
estava querendo enganar? Ficar ali, correndo o risco iminente de encontrá-
lo novamente só me faria sentir pior, sem mencionar que o meu ânimo para
o trabalho se esvaiu feito água. As fotos sairiam horríveis caso eu insistisse
naquela farsa.
— Tudo bem — murmurei derrotada.
— Vou pedir ao Brandon para te levar.
— Vocês estão bem?
Mich assentiu com um sorriso fraco.
— Melhor do que antes, eu diria.
— Fico feliz em saber disso, mas não precisa falar nada com ele,
eu vou de táxi.
— Tem certeza?
Assenti e continuei:
— Não acho que a Blaise ficaria muito satisfeita… Você sabe que eu
sou uma tentação, talvez ele não consiga resistir — brinquei, fazendo minha
amiga revirar os olhos e abrir um sorriso de canto.
— Você deve estar melhor, já que o seu narcisismo está atacando
novamente junto com o seu humor ácido.
— Não vou deixar aquele idiota acabar com tudo o que conquistei
após superá-lo…
— Isso mesmo, Rav! Você é uma mulher forte e te admiro muito por
isso. — puxou-me para um abraço, e segurei a vontade de chorar.
Eu gostaria de acreditar que era forte, mas, no fundo, reencontrar o
Nolan me abalou mais do que admitiria sob tortura. Lembrar dos seus olhos
aparentando arrependimento e a forma descarada com a qual ele pediu
desculpas, como se não tivesse me iludido, machucado e abandonado, era
tão doloroso quando deslizar uma navalha afiada sobre a pele.
Entretanto, ele continuava o mesmo garoto egoísta, porém agora na
pele de um homem bem-sucedido.
Levantei-me do pufe, seguida por Michele, e ajeitei os ombros.
— Vou pegar a minha mochila.
— Eu vou com você!
Murmurei um agradecimento quase inaudível e, de braços dados com
a minha amiga, segui com passos lentos até o vestiário.
— Me manda uma mensagem quando chegar em casa. — Mich pediu
assim que fechou a porta do táxi.
Assenti com um sorriso fraco e coloquei o cinto de segurança.
— Para onde, senhorita? — o taxista perguntou, me encarando
através do retrovisor.
— Crofton Park — sussurrei, com a cabeça apoiada contra a janela
fria e fechada, enquanto Michele acenava da calçada com um sorriso
preocupado.
O jantar com a minha família foi divertido e durou mais do que eu
esperava. Cheguei em casa quase às onze da noite e mal conseguia manter
os olhos abertos por mais de cinco segundos.
Deslizei a mão pelos cabelos, chutei meu par de coturnos para um
canto qualquer da sala de estar e liguei o aquecedor. Mesmo tendo
desfrutado de um tempo a mais com a minha família, eu estaria mentindo se
dissesse que, volta e meia, minha mente não voava para longe até uma certa
fotógrafa marrenta.
Toda vez que eu abria a foto que a Ravena me enviou, um sorriso
involuntário surgiu em meus lábios. A garota era mesmo ousada e
confiante, duas coisas que me puxavam para ela feito um imã e faziam meu
corpo ansiar por ela de novo e de novo, como uma droga viciante da qual
você não consegue se livrar.
Tirei meu moletom e o atirei sobre o sofá antes de fazer o mesmo
com a chave do carro e meu celular, que estavam no bolso da minha calça.
Ponderei se deveria ou não enviar uma mensagem para a
marrentinha, perguntando se estava tudo bem. Àquela hora, o tal evento que
ela disse que iria fotografar já devia ter acabado.
— Melhor deixar para amanhã — murmurei para mim mesmo e
fui para o quarto com os pés calçados em um par de meias brancos e
encardidos.
Tudo o que eu precisava era de uma boa noite de sono.
No dia seguinte, a banda teria ensaio na garagem da casa dos pais
do Nevan. Os únicos que se dispuseram a nos emprestar um espaço melhor
do que um casebre velho e caindo aos pedaços que meu vizinho quis alugar
para nós. Como se o nosso dinheiro suado fosse capim!
Após tomar um banho quente, vesti uma camisa larga, uma calça
moletom e me deitei, fitando o teto do meu quarto com algumas lascas. O
dono do imóvel estava me enrolando há mais de seis meses para pintá-lo,
mesmo eu mantendo os pagamentos em dia.
Eu teria que cobrá-lo novamente, do contrário, correria o risco de
comer lascas de cimento pintado durante a noite.
Suspirei fundo e me deitei de lado, olhando pela janela, com a
cortina aberta, a noite sem estrelas, apenas com a lua solitária, volta e meia
encoberta por uma nuvem ou outra.
Meus olhos estavam pesados, mas eu não conseguia pegar no sono.
Um milhão de pensamentos me atormentavam, o principal deles, o fato de
Felix não ter mais dado notícias. Talvez ter exigido que ele conseguisse
algo grandioso para a banda não tenha sido a melhor ideia.
Virei de costas novamente e deslizei as mãos pelos cabelos.
As paredes do meu quarto estavam cobertas por pôsteres e discos de
vinil de bandas que são referências para mim, e até pendurei algumas
samambaias artificiais ao redor, apenas para dar um charme extra ao
ambiente meio caótico, não diferente do dono.
Também havia uma pilha de livros velhos da escola – que eu
planejava doar para a biblioteca pública do bairro, mas estava
procrastinando há mais de seis anos. Os cadernos estavam ao lado do
amplificador da minha guitarra e a própria, repousava linda e plena,
encostada na parede…
Cada cantinho daquele espaço refletia muito bem a minha
personalidade.
A primeira vez que minha mãe entrou naquele lugar, ela quase
desmaiou. Já fazia algum tempo que dona Adelaine não colocava os pés no
meu apartamento, e algo me dizia que não demoraria até ela aparecer sem
aviso, querendo virar tudo do avesso e organizar do jeito que ela acha que
deve ser.
Balancei a cabeça, com um sorriso, e fitei meu violão sobre o baú ao
pé da minha cama. Candy dormia pesadamente ao lado do instrumento e
não deu sinal de vida desde que cheguei em casa. A gata tinha um sono
invejável para qualquer um que sofra de insônia, algo que eu estava
experimentando naquele exato momento.
Sabendo que tentar dormir era em vão, sentei na cama e empurrei
meu edredon para o lado antes de pousar meus pés descalços no tapete
verde abacate e pegar meu violão.
Meu caderno de composições estava ao lado da minha cama, sobre a
minha mesinha, que ainda continha alguns papéis de bala, um relógio
digital adiantado cinco minutos, uma vela aromática acesa, minha paleta,
um lápis quase sem ponta e meu velho fone de ouvido.
Já não me lembrava da última vez que escrevi uma música, muito
menos, ter acordado durante a noite para compor uma. Porém, naquele
momento, uma inspiração repentina se acendeu em minha mente, e eu
precisava muito colocá-la no papel.
O caderno com capa de couro desbotada, bem velhinho, estava
repleto de rascunhos de letras que nunca cheguei a transformar em música,
pois não as considerava boas o bastante para serem ouvidas por alguém.
Suas páginas em branco já estavam quase extintas, mas ainda restava
espaço para escrever algumas letras nelas.
20

Não estava nos meus planos dedicar uma música para Ravena,
embora eu já tenha pensado nisso há alguns dias. A ideia desapareceu
porque eu estava mais concentrado em conseguir um encontro com ela sem
acabar com o nariz quebrado. No entanto, naquele momento, tudo na minha
cabeça girava em torno dela, assim como os planetas giram em torno do sol.
Eu precisava muito expressar com palavras escritas aquilo que minha boca
era incapaz de proferir.
Peguei meu caderno e o lápis, posicionei meu violão no colo e, com a
paleta na boca, comecei a dedilhar algumas notas simples, apenas para ter
uma base.
— Seus… lindos… olhos azuis… — murmurei, anotando
rapidamente no caderno, com a paleta entre os dentes. — Tom menor… —
sussurrei, dedilhando as cordas do violão.
Não era minha intenção escrever uma música triste, mas estava bem
óbvio que o tema era romântico, e eu não conseguia imaginar cantar aquela
canção com uma bateria explodindo ao fundo. Talvez algo mais acústico…
apenas violão e guitarra… Acho que o Davian iria gostar.
Sorri com o pensamento e continuei escrevendo a letra.
— Você disse “não gosto de promessas”... — Deslizei o lápis
rapidamente sobre o papel, lembrando da noite em que conheci a
marrentinha, que foi categórica em afirmar que não gostava de fazer
promessas.
Ela poderia até não gostar de promessas, mas sabia quebrá-las como
ninguém.
De repente, Candy miou baixinho, chamando minha atenção, e
levantou-se do baú para caminhar lentamente sobre o colchão até sentar ao
meu lado, abrindo a boquinha em um bocejo.
— Acordei você, garota? — Sorri, acariciando sua cabecinha.
— Miau!
— Foi mal, Candy. — Fiz um beicinho dramático e bem-humorado.
— Prometo que vou acabar rapidinho.
Bem, era o que eu esperava. No entanto, os segundos, minutos e
horas foram passando, e eu ainda estava cantarolando a melodia, relendo a
letra um milhão de vezes e rabiscando-a tantas vezes mais, nunca satisfeito
o suficiente.
— Merda, Caleb, isso não é uma declaração… é só uma música,
como tantas que você já escreveu — resmunguei, fitando o teto, deitado
com o violão sobre o estômago, ainda tocando as primeiras notas de “Ocean
Eyes”.
Pelo menos, eu tinha encontrado um nome para a música que
descrevia muito bem a marrentinha.
Aqueles olhos azuis profundos podiam ser comparados às águas de
um oceano tempestuoso, puxando-me para baixo feito a âncora de um navio
atracado em alto mar, consumindo-me por inteiro, corpo, alma e mente.
Quando acordei na manhã seguinte, o sol queimava meu rosto. Eu
estava todo torto sobre a cama, deitado de bruços, abraçando meu violão
com um braço, o outro debaixo do travesseiro, uma perna dobrada e meu
caderno aberto com a capa virada para cima, quase caindo à beira da cama.
Para completar, Candy dormia no parapeito da janela ao meu lado.
Sempre gostei de deixar minha cama encostada na parede, assim
posso adormecer e acordar com a visão da rua pacata onde fica meu lar
doce lar. Sem contar que a vista da cidade também não era nada ruim.
— Ai — gemi, me virando de costas, com os olhos fechados e as
mãos na cabeça.
Meu corpo estava todo dolorido, e tudo o que eu precisava era de
um banho de banheira, isso, se eu tivesse uma.
— Merda! — exclamei, abrindo os olhos ao lembrar do ensaio da
Smash Secrets naquele dia em… — Porra! Tô atrasado. — Saltei da cama e
fui direto para o banheiro.
Saí de casa quase aos tropeços, com minha guitarra dentro da case
sobre meu ombro, enquanto Candy permanecia sentada no tapete da sala,
me encarando como se questionasse:
— Qual a porra do problema com os humanos?
Eu poderia escrever uma enciclopédia, mas não havia tempo.
— Bom dia, senhor Fleet! — saudou minha vizinha de quase
oitenta anos, senhora Prince, caminhando pela calçada em frente ao nosso
prédio, com seu mini bulldog, quase tão velho quanto ela.
Isso não foi uma brincadeira, nem uma ofensa à senhora. Até onde
sei, um ano de vida de um cachorro equivale a sete de um ser humano, e se
não me engano, o cachorro da senhora Prince já tinha mais de dez…
— Bom dia! — Acenei de volta e abri a porta do meu carro,
deixando minha case sobre o banco do passageiro.
Na noite passada, cheguei da casa do meu avô tão cansado que acabei
deixando o automóvel estacionado na rua.
Quanta responsabilidade, hein, Caleb!
— Minha neta está louca para conhecê-lo! — Senhora Prince
exclamou, exibindo um largo sorriso.
Parei com a porta entreaberta, apoiei o braço sobre ela e franzi o
cenho, com um sorriso confuso, observando a senhora e seu cão parados na
calçada.
— Perdão?
Com passos lentos, minha vizinha e seu cachorro, Sherlock,
aproximaram-se do meu carro.
Jesus, eu estava atrasado…
— Eu disse que a minha neta quer muito conhecê-lo depois de
assistir à reportagem sobre você e sua banda no canal da BBC! —
esclareceu, segurando a coleira do bulldog com uma mão, enquanto a outra
mantinha seu casaco fino fechado.
— Ah, claro! Fico muito feliz em saber disso, senhora Prince. —
agradeci. — Agora eu preciso ir. Minha banda tem um ensaio daqui a meia
hora. — Conferi o horário no meu relógio de pulso, acenei, enquanto
sentava no banco do motorista e fechava a porta.
— Divirta-se, querido!
Buzinei e arranquei o carro.
Minha sorte era que o trajeto de carro até a casa dos pais do Nevan
era de aproximadamente vinte minutos do meu apartamento. Caso
contrário, eu seria obrigado a ouvir um sermão daqueles três por chegar
atrasado.
Como se eles não fizessem pior!
Especialmente o Elion.
Certa vez, além de chegar atrasado, o baixista chegou bêbado depois
de virar a noite na farra.
Suspirei fundo, após me lembrar da situação, e virei na próxima
esquina. Dirigi tranquilamente pela rua estreita e pacata, com casas estilo
vitoriano bem semelhantes, diferenciando-se apenas pelas portas, pintadas
com cores diferentes, até parar em frente à casa de dois andares, revestida
de pequenos tijolos laranjas e janelas guilhotina.
Se você pensava que a garagem onde nossa banda ensaia, pelo menos
três vezes por semana, era algo semelhante às dos filmes americanos que
você costuma assistir na Netflix, sinto informar, mas era bem diferente
disso. Na Inglaterra, aquele estilo de construção não é comum – apenas para
não dizer inexistente, por isso, a maioria dos imóveis nem sequer possui
uma garagem. Sei que pode parecer confuso e imprudente, mas… bem-
vindos à velha e nostálgica Inglaterra!
Desci do carro, travei-o com o alarme e pendurei minha case sobre o
ombro enquanto caminhava até a porta de madeira pintada de branco,
girando no dedo a chave do meu velho Ford. Toquei a campainha e aguardei
até que a senhora Gray atendesse a porta, o que não demorou mais do que
vinte segundos.
— Ah, Caleb! Que bom vê-lo, querido! Os meninos estão na
garagem, ansiosos pela sua chegada. O Elion já está quase careca de tanto
deslizar os dedos pelo cabelo. — Revirou os olhos com um sorriso de canto.
Soltei uma risada e balancei a cabeça.
— Olá, senhora Gray! — Inclinei-me para frente e beijei sua
bochecha.
Senhora Gray era uma mulher jovem, com pouco mais de quarenta
anos, pele marrom-clara, cabelos castanhos e cacheados como os do filho e
muito bonita. Era quase como uma segunda mãe para mim e também para
os outros membros da banda.
— Já tomou o café? — perguntou ela, após fechar a porta e caminhar
ao meu lado pelo estreito corredor com carpete cinza-claro.
— Sim! — Sorri fraco.
Aquela foi uma mentira deslavada, mas em minha defesa,
conhecendo a senhora Gray como conheço, se eu dissesse que não, ela iria
me puxar pelo braço até a cozinha, me fazer sentar à mesa e comer toda a
despensa. Em troca disso, meus amigos me devorariam vivo.
— Tem certeza de que não quer um dos meus bolinhos? Ainda estão
quentinhos…
— Obrigado, senhora Gray, mas estou satisfeito! — Acariciei meu
estômago, apenas para enfatizar a mentira.
A mulher piscou com um sorriso e disse que estaria em seu
escritório. Não mencionei, mas a mãe do baterista da Smash Secrets é
corretora de imóveis, e das boas, diga-se de passagem.
— Se precisar de qualquer coisa, é só bater à porta. — Beijou minha
bochecha e seguiu para o fim do corredor.
Encontrei meus amigos nos fundos da casa, na garagem com o portão
fechado coberta apenas por um toldo. Elion estava fumando um cigarro
encostado na parede do imóvel, com seu baixo pendurado sobre o ombro;
Nevan estava comendo, sentado em seu banco atrás da bateria, desfrutando
do que parecia ser um dos bolinhos deliciosos feitos por sua mãe, enquanto
Davian tocava em sua guitarra algumas notas da primeira música que
fizemos juntos.
— Olha só quem chegou! Pensei que teríamos que ir te buscar com
um reboque. — Elion foi o primeiro a dizer quando me notou caminhando
pela grama em direção a eles.
— Bom dia pra você também. — Sorri falsamente, coloquei a chave
do carro no meu bolso traseiro, antes de me abaixar, abrir minha case e tirar
minha guitarra do seu casulo.
— Agora que o Caleb chegou, podemos começar a ensaiar logo? Eu
preciso de uma distração. — Elion resmungou, jogando seu cigarro no chão
antes de pisoteá-lo, como se ele fosse o culpado pelos seus problemas.
Davian deu de ombros e se posicionou, ajeitando o pedestal do seu
microfone. Enquanto isso, Nevan engolia seu bolinho em seco e girava suas
baquetas antes de ecoar um som pelo espaço aberto da garagem ao tocar seu
bumbo – tambor da bateria que fica no chão – com apenas uma nota.
Suspirei fundo e segui para o meu lugar de sempre, no centro,
atraindo a atenção de todos para mim. A verdade é que ser o vocalista nem
sempre é algo agradável. Sou basicamente considerado o “rosto” da banda;
todos olhares se voltam para mim – até os holofotes – quando estamos no
palco, e às vezes, me sinto pressionado, como se, caso eu desse um passo
errado, todos iriam cair junto comigo…
Com a paleta entre os dentes, ergui o pedestal do meu microfone até
a altura certa e testei o instrumento.
— Vamos começar com Till Dawn? — perguntei aos meus
companheiros, fitando-os por cima do ombro.
— Pode ser! — murmuraram em uníssono.
“Till Dawn” é uma música no estilo rock de garagem, e foi uma das
primeiras que gravamos em um estúdio amador. Foi uma experiência bem
louca, porém muito gratificante. Tivemos que desembolsar uma graninha,
mas valeu a pena.
Iniciei a música tocando a guitarra em tom menor antes da bateria
entrar no ritmo, lenta, apenas ecoando alguns toques no chimbal e um na
caixa.
Com os lábios quase colados no microfone, comecei a cantar:
Eu sabia que você seria minha quando te encontrei parada
durante aquela festa e ninguém prestava atenção
Saímos bêbados, rindo feito loucos no gramado
Oh, baby, você estava tão linda naquele vestidinho preto

Sorri ao lembrar do dia em que escrevemos aquela música. A letra


não era sobre mim, mas sobre o Davian e foi motivo de piada entre nós por
um tempo, quando soubemos que a garota rebelde que inspirou a canção era
a mesma com quem ele perdeu a virgindade.
Éramos apenas garotos adolescentes e imaturos…
Quando o baixo e a segunda guitarra se uniram à música, o som
ecoou por todo o jardim, fazendo-me fechar os olhos e mergulhar nas notas
como se as sentisse em cada poro do meu ser, até chegar à minha parte
favorita: o refrão, e cantar a plenos pulmões:

Você sabe como me conquistar, baby


Feche os olhos e sinta a adrenalina correr nas veias
Temos a noite toda, baby
Se você quiser, vamos continuar até o amanhecer.

Meus companheiros de banda cantavam ao fundo, completando a


função de backing vocals. Todos são talentosos, mas o guitarrista é
realmente o melhor.
Graças a Deus, o Nevan e o Elion não podem ler meus pensamentos!

Eu sei que é isso o que você queria


seus olhos brilhantes imploram por mais um pouco
daquilo que só eu posso te dar
Então, baby, vamos continuar até o amanhecer
Até o amanhecer

Nevan adorava tocar aquela bateria de forma animalesca. Essa


música era a sua favorita por esse mesmo motivo.
Com a guitarra erguida, toquei a última nota.
— Yeah! — exclamei alto, com os lábios juntos ao microfone.
— Wow! Arrasamos, hein! — Davian sorriu, olhando entre nós.
— Mais uma?
— Vamos lá! — Nevan bateu suas baquetas animado.

Ainda ensaiamos mais três músicas, incluindo dois covers, um do


Green Day e outro do U2, bandas que também são grandes referências para
nós.
O suor já estava escorrendo pela minha testa, apesar do vento outonal
que soprava algumas mechas do meu cabelo que não estavam grudadas na
minha pele.
— Pausa para o descanso! — Ergui a mão ao encerrarmos a música e
sorri de canto, desligando o amplificador.
— Finalmente! — Elion revirou os olhos e suspirou fundo. — Parece
que faz um ano que eu não toco. Meus dedos estão dormentes. — Fez uma
careta, abrindo e fechando as mãos.
Aproveitei a pausa para me sentar em um banco de madeira com a
minha guitarra no colo, pegar o meu caderno e o lápis que eu havia deixado
entre suas páginas dentro da minha case. Eu precisava acabar a letra de
“Ocean eyes”; era questão de honra para mim.
— Preciso de água. — Nevan disse, levantando-se do banco,
enquanto secava o suor em sua testa com as costas das mãos.
— Somos dois. — Elion suspirou, também suado, e deixou seu baixo
encostado de pé em frente à bateria, antes de seguir o baterista em direção à
cozinha do outro lado do jardim.
Davian balançou a cabeça com um sorriso, enquanto observava os
dois, antes de voltar sua atenção para mim:
— Qual é a do caderninho, o lápis e a guitarra? Tá escrevendo uma
música nova?
Assenti, com o lápis na boca, tocando alguns acordes.
— Hum… e deixa eu adivinhar, é para a fotógrafa pirata?
Abri um sorriso de canto e tirei o lápis da boca.
— Eu já disse que o nome dela é Ravena.
— Ah, então eu acertei! A música é mesmo para ela. — Piscou,
com um sorriso convencido.
— Ainda estou fazendo alguns ajustes no refrão…
— Hum… E você vai lançá-la? — continuou os questionamentos
curiosos.
Dei de ombros.
— Quem sabe? Quando chegar em casa, vou gravar uma guia para
ela…
— Você tem que saber, cara! Porque se você tá apaixonado, isso com
certeza será hit!
Entreabri os lábios para dizer que aquela conclusão era muito
precipitada, mas Elion surgiu, mascando um chiclete, com uma carranca de
quem detestava acordar antes do meio-dia.
— Quem tá apaixonado?
Balancei a cabeça disfarçadamente, olhando para Davian, rezando
para que ele mantivesse a boca fechada. Graças a Deus, meu amigo
entendeu a dica.
— Eu, claro! Ali Hazelwood vai lançar outro livro, e já estou
completamente apaixonado pelos personagens que eu ainda nem conheço.
Elion revirou os olhos.
— Não sei por que você ainda insiste nessa história de ler.
— Porque ler é vida? Uma arte?
— Só se for pra você. — Elion retrucou, afiado, e cruzou os braços.
Pressionei os lábios para esconder um sorriso enquanto os dois
emendavam uma discussão bizarra e sem nexo sobre o porquê de a
literatura ser importante para o mundo – ponto de vista do Davian – e o fato
de ela ser totalmente desnecessária – segundo o ponto de vista do Elion.
Sabendo que aquela discussão iria se prolongar por mais tempo, caso
eu não interferisse, terminei o refrão da música e fechei o caderno,
colocando-o de volta na case antes de me levantar e pendurar novamente
minha guitarra sobre o ombro.
— Vamos ensaiar mais uma e encerramos por hoje?
Todos assentiram e assumiram novamente suas posições.
21

— Caleb, eu não ia tocar no assunto, mas… Você sabe alguma


coisa do Felix? — Davian perguntou, guardando sua guitarra dentro da
case.
Franzi o cenho e apenas neguei, balançando a cabeça.
— Eu disse que aquele cara era roubada… — Elion resmungou,
concentrado em seu baixo.
Revirei os olhos e suspirei fundo.
— Acho que o Elion tem razão, Cal. Já tem quase um mês que o
Felix não dá as caras. — disse Davian, baixo, enquanto retirava a
embalagem de um pirulito que guardava no bolso de seu moletom preto.
— Eu sei, mas temos que confiar nele — falei sério, olhando de um
para o outro. — Ele não disse que voltava a nos procurar quando
encontrasse algo bom o suficiente pra gente? Não foi essa a condição que
impusemos para assinar o contrato?
— Sim, mas–
— Mas nada! Parem de reclamar e esperem antes de sair tirando
conclusões.
— Não sei por que você ainda o defende… — Elion resmungou
baixinho.
— Não estou defendendo ninguém, só estou dizendo a verdade.
— O problema, Caleb, é que não podemos ficar sentados esperando.
— disse Nevan, girando suas baquetas, ainda sentado atrás da bateria.
— E para piorar, já faz mais de uma semana que a gente não faz um
show. — Elion suspirou fundo, me encarando com um olhar preocupado.
— Pensei que depois de aparecermos na BBC os convites iam chover
na nossa horta. — Davian murmurou, com um beicinho, antes de chupar
seu pirulito.
— Confesso que também pensei isso — admitiu Nevan, batendo
suavemente sua baqueta sobre um dos chimbal da bateria.
— Eu tô com um monte de contas para pagar, já estão até ameaçando
cortar o meu gás! O que eles querem? Que eu morra congelado? — Elion
soltou indignado.
— Ah, deixa de ser exagerado! Ainda nem estamos no inverno. —
Davian revirou os olhos.
— Diz isso para o clima, não para mim — cuspiu o baixista, irritado.
— De quanto você precisa? — perguntei.
— Nem vem, Cal! Eu já tô te devendo o dinheiro do aluguel do mês
passado… Não quero aumentar a minha dívida.
— Você quem sabe — dei de ombros e peguei minha case do
chão com a minha guitarra dentro. — Agora, a única coisa que eu posso
dizer a vocês é que, se o Félix não nos procurar nos próximos dias, a gente
finge que nunca aconteceu.
— Ah, como se fosse fácil!
— Elion! — falei alto, sério, com a mão erguida, encarando o
baixista com o maxilar cerrado. — Já deu!
Ninguém disse mais nada e agradeci mentalmente por isso.
Às vezes, o pessimismo do baixista me irritava. Como se as nossas
inseguranças sobre o futuro da banda não fossem suficientes, ele ainda
insistia em adicionar mais pressão.
— O Caleb tá certo. Vamos aguardar mais alguns dias e ver no que
dá — Davian disse, seriamente, e me lançou uma piscada discreta.
— Valeu — agradeci silenciosamente, apenas movendo a boca.

Meu chá estava fumegante, e eu já tinha queimado minha língua


duas vezes desde que comecei a tomá-lo, sentada no parapeito da janela da
sala, aproveitando o silêncio do apartamento enquanto lia minha leitura do
momento.
Depois da noite bizarra que tive, eu precisaria de mais de um litro
de chá de camomila para me acalmar. Passei a noite toda em claro, me
revirando na cama, como se ela estivesse repleta de pulgas, volta e meia
relembrando meu encontro com o Nolan.
Minhas mãos se fechavam em punho toda vez que eu recordava
as palavras mentirosas e nojentas dele, principalmente, quando me
lembrava de que ele havia tocado meu braço.
Bufei e revirei os olhos, bebericando mais um pouco do chá com
cautela, enquanto lia as palavras no livro que repousava em meu colo:

“Sermos nós mesmos faz com que acabemos excluídos pelos outros.
No entanto, fazer o que os outros querem nos exila de nós mesmos.”

Ah, sábias palavras Clarissa Pinkola! E era justamente por esse


motivo que eu me identificava tanto com aquela obra. A simples, porém tão
profunda frase, descrevia tudo o que sempre senti ao longo da minha vida,
sempre querendo agradar aos outros, esquecendo de quem eu era.
Suspirei fundo, fitando a vista do meu bairro desde as árvores ao
longe, espalhadas entre as construções, até a rua movimentada lá embaixo.
No entanto, o som de vozes vindas do corredor do lado de fora do
apartamento, desviou minha atenção para a porta de entrada.
Revirei os olhos.
Meu momento de leitura pacífica e serena tinha acabado quando
aquelas três abriram a porta, como se estivessem em uma feira ao ar livre,
falando alto e soltando risadas.
— Rav! Pensei que ainda estivesse dormindo. — Alissa foi a
primeira a dizer, quando me notou sentada no parapeito da janela fechada
da nossa sala de estar.
— O que você está lendo? — perguntou Mich, curiosa, já se
aproximando para descobrir a resposta por si mesma. — Uau! “Mulheres
que Correm com os Lobos”, dizem que esse livro é uma autodescoberta
revolucionária para o sexo feminino. — Sorriu, retirando seu sobretudo
vermelho-vinho. — Depois você me empresta?
Abri a boca para dizer um belo “não”, mas a matraca da Catarina
foi mais rápida:
— Se tem uma coisa que eu sempre admirei é o gosto literário da
Ravena — disse séria, sentando-se no sofá antes de apoiar os pés calçados
com meias de estampa de ursinho sobre a mesa de centro.
Folgada!
— Agradeço o elogio. — Sorri falsamente e voltei minha atenção
para Michele, que ainda aguardava minha resposta com um sorriso
esperançoso. — Você sabe que eu não gosto de emprestar os meus livros…
— Prometo que vou cuidar dele como se fosse o filho que eu
ainda vou ter — garantiu, com as mãos postas, exibindo um biquinho.
— O Angelo sabe dessa sua intenção? — Ali perguntou, bem-
humorada, batendo nas pernas de Catarina para que ela retirasse os pés de
cima da mesa e a deixasse passar.
Michele olhou por cima do ombro para a ruiva e murmurou:
— Ainda não. — Deu de ombros, voltando a me encarar.
Alissa e Catarina sorriram uma para a outra e ligaram a TV.
— Rav, por favor… — Michele gemeu baixinho.
Bufei e revirei os olhos.
— Quando eu acabar, eu te empresto — resmunguei, fechando o
livro de capa dura, lindo e maravilhoso, e me levantei.
— Adorei a sua blusa, amiga! — Ali elogiou em alto e bom som,
enquanto eu seguia até a estante para colocar o livro de volta ao seu habitat
favorito.
— O que tá escrito? — perguntou a bióloga, tentando enxergar a
estampa, mas eu estava de costas.
— Reading is sexy! — respondi, com um sorriso satisfeito, e
pisquei. — E se tornou a minha frase favorita a partir de agora.
— Hum… E como você tá depois de ontem? — perguntou Alissa,
receosa, mudando completamente de assunto, para o meu desprazer.
Se dependesse de mim, a Catarina e a Alissa nunca saberiam do
meu “reencontro” com o Nolan, mas claro que a Michele iria contar tudo,
com o máximo possível de detalhes.
— Normal.
— Imagino que deve ter sido um baque encontrar seu ex assim de
forma tão repentina... — continuou a ruiva, mas eu não queria discutir
aquele assunto.
— Não quero falar sobre ele — cuspi, cruzando os braços.
— Tudo bem! — Ela ergueu as mãos com um sorriso
constrangido.
— Mas ele te procurou a festa toda… — Mich soltou baixo e
mordeu o lábio inferior sem encarar meus olhos.
— Como assim? — franzi o cenho, me aproximando do sofá onde
minha amiga estava sentada.
— Eu não te contei esse detalhe porque não queria aumentar seu
estresse, mas o Nolan passou a festa toda perguntando por você até chegar
em mim...
— Ele falou com você? — perguntei, irritada, com os olhos
estreitos e as mãos na cintura.
Michele assentiu.
— Porém, eu não disse que somos amigas, apenas falei que você
já tinha ido embora.
— E ele?
— Ah, ele ficou decepcionado. Eu até fingi preocupação para
saber o que ele queria, mas o cara apenas disse que não era nada demais e
que esperava vê-la novamente.
— Ah, mas é muito merdinha mesmo! — rosnei e revirei os
olhos, sentindo uma vontade imensa de esmurrar ou quebrar alguma coisa.
Como poderia alguém despertar tantas emoções negativas em
outra pessoa?
— Deixa pra lá, Rav. Não vale a pena ficar lembrando disso. —
disse Catarina, com um sorriso fraco. — Agora, nos conte como estão indo
as coisas com o Caleb…
— Não tem nada para contar. — murmurei, sentindo o coração um
pouco mais leve após a menção do cantorzinho.
— Nada tira da minha cabeça que ele vai escrever uma música sobre
vocês, porque não tem nada mais romântico! — Ela bateu palminhas.
Arqueei as sobrancelhas e gesticulei, indicando à bióloga que abrisse
espaço para que eu me sentasse ao seu lado no sofá.
— Eu preferia que ele fizesse uma tatuagem — zombei.
— Deixa de ser chata, garota! — Catarina empurrou meu ombro com
o dela.
— Não seria legal tatuagens combinando? — continuei, zombeteira.
— Você nem tem tatuagens… — Alissa soltou com um riso.
— Quem disse?
— Você tem? — as três perguntaram em uníssono, e foi realmente
engraçado ver a expressão de espanto na cara delas quando afirmei,
balançando a cabeça.
— Mentira! — Michele exclamou.
— Onde? — Catarina foi além.
— Eu quero ver! — Alissa afirmou, levantando-se do sofá para ficar
em pé à minha frente.
— Nós também! — Catarina disse, representando tanto ela quanto a
Mich.
Soltei uma risadinha e mordi o lábio inferior, com as sobrancelhas
arqueadas.
Aquilo seria divertido.
— Não sei se vocês vão querer ver depois que eu falar…
— Ai, Ravena! Para de suspense — resmungou Michele, com um
beicinho.
— Mostra logo! — gesticulou Ali com as mãos.
— Ok! Vocês pediram! — Ergui as mãos com os ombros encolhidos
e me levantei do sofá, antes de desabotoar meu short jeans, abaixá-lo até os
joelhos e ficar de costas para elas.
— Por que você tá pelada? — perguntou Catarina, com a cabeça
inclinada de lado.
Fitei-as por cima do ombro e, com um sorriso travesso, comentei:
— Olhem para a minha bunda!
Um silêncio completo envolveu o trio. Apenas o som distante das
sirenes, buzinas e automóveis ecoava no interior do apartamento, criando
uma atmosfera de suspense e tensão.
— Você tatuou uma câmera… — Alissa, finalmente, quebrou o
silêncio.
— Na bunda? — completou Catarina, um pouco mais alto.
— Claro que ela faria uma tatuagem lá. — caçoou Mich, revirando
os olhos, o que apenas me fez sorrir.
— Tem tudo a ver comigo. — Dei de ombros, abotoando meu short,
já de volta no lugar.
— Ah, absolutamente tudo! — Alissa soltou, zombeteira, balançando
a cabeça com um sorriso irônico.
— E que bichinho de pelúcia é esse? É seu, Ali? — Cat perguntou
subitamente, pegando Luck de cima da cadeira do outro lado da sala.
— É meu! — afirmei, puxando Luck das mãos dela. — O Caleb me
deu no nosso primeiro encontro — murmurei, abraçando o urso contra o
peito.
— Ele te deu um urso de pelúcia? Que coisa mais fofa, gente! —
Catarina fez um coração com as mãos.
— Acho que o Caleb tá apaixonado por você, Rav, e você é a única
que não enxerga isso. — Mich arqueou a sobrancelha, exibindo um sorriso
desafiador.
Revirei os olhos.
— Se olha no espelho antes de falar de mim, Michele — cuspi com
ironia. — O Brandon sempre foi a fim de você, e a senhorita também nunca
percebeu. Além do mais, eu não saio por aí te lembrando disso.
— Ravenaaaaa, para! Brand e eu somos apenas amigos…
— Porque você quer… E se quer saber, eu sou muito mais ele do que
o Angel das asas quebradas.
— Ok, meninas! Não vamos discutir, hum? E Rav, cala a boca. Você
sabe que a Mich e o Angelo se amam e–
— Vão se casar e ter lindos bebês com cabelos pretos e cacheados —
completou Cat, com um ar delulu e intrometido.
— O fato é, Caleb e eu estamos bem do jeito que estamos, sem
rótulos, apenas nos curtindo…
— Aham, tá! Quero ver até onde isso vai dar… — Catarina sorriu. —
A Ravena, saindo há quase um mês com o mesmo cara. — Ela inclinou a
cabeça para trás e soltou uma risada. — Amiga, eu te avisei, um dia você ia
engolir as suas próprias palavras.
— Você e a Michele me jogaram uma praga, não foi um aviso.
Minhas amigas riram, e eu estreitei os olhos, balançando a cabeça,
sem achar a menor graça.
De repente, olhei por cima do ombro ao ouvir meu celular vibrar
sobre a estante ao lado da TV. Peguei o aparelho e não pude deixar de sorrir
ao ver que se tratava de uma mensagem do Caleb me convidando para
encontrá-lo na estação de trem em Wimbledon.
Wimbledon? Não é o bairro onde ele mora?
O que você está planejando, Caleb Fleet?
Um sorriso discreto surgiu em meus lábios com a ideia, mas
rapidamente o disfarcei, guardando meu celular no bolso traseiro do meu
short. Eu não queria que as minhas amigas soubessem de cada passo meu,
então contar a elas meus planos estava fora de cogitação.
— Vou sair, tenho que encontrar um cliente em potencial — inventei
uma desculpa qualquer, porque sabia que elas iriam encher minha cabeça
caso eu desse mais detalhes.
— Cat e eu também já estamos indo — disse Mich, levantando-se do
sofá.
— Estamos? — perguntou a bióloga, visivelmente confusa.
Michele suspirou, revirou os olhos e colocou sua bolsa sobre o
ombro.
— Podem ir na frente, eu ainda tenho que me trocar. — Gesticulei,
com a mão, e segui para o meu quarto com passos largos.
Por alguma razão, meu coração estava batendo mais rápido e eu não
conseguia parar de morder o lábio inferior com um sorriso. Sem tempo para
pensar muito no motivo de Caleb querer me encontrar naquele fim de tarde
nublado, abri meu guarda-roupa. Com as mãos na cintura, fitei as dezenas
opções de roupas penduradas nos cabides.
Optei por vestir algo informal, mas ao mesmo tempo atraente, não
que eu estivesse interessada em seduzir o cantorzinho, bem longe disso.
Isso Ravena, continua mentindo para si mesma…
Revirei os olhos, ignorando meu subconsciente, e vesti uma calça
jeans wide leg azul-claro, um cropped preto de manga longa sem estampa e
um cardigan bege sobre a peça.
Por fim, sentada à beira da cama, calcei meu par de All Star cano
médio preto e branco.
— Será que ficaria muito na cara se eu me maquiasse? — murmurei,
fitando meu reflexo no espelho do banheiro.
Sacudi a cabeça e suspirei fundo, decidida a aplicar apenas um batom
vermelho. Deixei meu cabelo solto, peguei apenas uma pequena bolsa e a
pendurei sobre o ombro ao sair do quarto, caminhando apressadamente pelo
corredor.
— As meninas já foram? — perguntei à minha colega de
apartamento.
— Uhum. — Ali respondeu, com os olhos grudados no celular,
enquanto mastigava um pedaço de pizza que ela certamente havia
desenterrado do congelador.
— Então, já vou indo. Te vejo mais tarde!
— Vai com Deus! — acenou a veterinária com um sorriso, mantendo
os olhos fixos na tela do seu aparelho.
O que ela estava vendo de tão interessantes ali?
A ideia de que talvez fossem nudes do Logan fez meu estômago
revirar.
Balancei freneticamente a cabeça e pisquei os olhos, abrindo a porta
com a mão pesada, doida para me ver livre daqueles pensamentos.
Após um passo para frente, parei e encarei minha amiga por cima do
ombro.
— Se cuida! Acho que não vou demorar, mas não me espere e, muito
menos, me ligue ou mande mensagem.
Finalmente, Alissa me encarou com o cenho franzido.
— Mas você não está indo apenas encontrar um cliente?
Parabéns, Ravena! Isso que dá não segurar a língua dentro da boca.
— Sim! — soltei, mais alto e nervosa do que gostaria. — Beijo! Fica
com Deus também! Fui! — Acenei e fechei a porta, respirando fundo
enquanto caminhava com passos largos pelo corredor vazio.
Eu agia como se estivesse prestes a assaltar um banco, quando na
verdade, era o completo oposto disso. O problema era que eu não queria
que minhas amigas começassem a desconfiar de que talvez, repito, talvez,
eu estivesse desenvolvendo uma certa empatia pelo Caleb, pois tudo para
elas se resume a amor, paixão e essas bobagens.
Coloquei meus earpods nos ouvidos e segui em direção à estação de
trem. Meus cabelos, volta e meia, cobriam meu rosto devido à força com
que o vento soprava. O pôr do sol no horizonte de Londres parecia tão
bonito que, se eu não estivesse tão apressada, teria parado para tirar uma
foto. No entanto, de acordo com meu aplicativo de transporte público da
cidade, o próximo trem chegaria em exatos dois minutos e eu estava a mais
de um minuto da estação.
Bastou eu aproximar meu cartão no leitor da estação para o trem
parar e abrir suas portas, com passageiros desembarcando depois de um
longo dia de trabalho e outros embarcando, prontos para uma noite de
diversão. Pelo menos era isso que dava a entender quando um grupo de
jovens animados entrou no transporte.
Me sentei em uma das poltronas vazias e encostei a cabeça no vidro
fechado. Abri um sorriso, pensando nas inúmeras possibilidades de como
seria meu novo encontro com o Caleb e, admito, a curiosidade para saber o
que ele queria comigo estava me consumindo.
O rapaz não revelou nada, apenas pediu para que eu o encontrasse na
estação às seis da tarde, e era exatamente isso que eu iria fazer.

Eu:
Estou a caminho!

Cantorzinho:
Te vejo em uma hora ;)

— Uau! Isso foi rápido — murmurei com um sorriso, e olhei para os


lados, certificando-me de que ninguém tinha ouvido minha conversa
comigo mesma e pensasse que eu estava bêbada ou era uma louca.
Não que eu me importasse.
22

— Não seria mais charmoso e educado se você viesse me buscar


em casa? — brinquei, assim que parei em frente ao músico no meio da
estação movimentada.
Ele parecia ainda mais bonito do que eu me lembrava. Seus cabelos
ondulados e castanhos pareciam um pouco mais longos do que da última
vez que o vi, há menos de uma semana. Para completar, sua pose de galã,
com as mãos nos bolsos da calça jeans, usando um sobretudo preto até os
joelhos, lhe conferia um ar sofisticado e misterioso.
— Desculpa, mas a gasolina tá cara e você mora muito longe. —
Piscou, exibindo uma de suas covinhas, antes de envolver os braços ao
redor dos meus ombros e me cobrir em um abraço quente e aconchegante.
Com os olhos fechados, inspirei o seu perfume masculino,
abraçando-o de volta, enquanto rodeava sua cintura fina.
— Vamos? — Gesticulou com a cabeça após se afastar do abraço.
Assenti e seguimos para fora da estação com passos lentos. Não
estávamos com pressa.
— Espero que você não esteja planejando me sequestrar e manter
em cárcere privado… — brinquei, empurrando seu ombro suavemente com
o meu, enquanto caminhávamos lado a lado na calçada.
As luzes dos postes já estavam acesas e o vento parecia não
cessar, balançando os galhos das árvores de um lado para o outro,
levantando algumas folhas do chão, incluindo as de papel, jogadas por
pessoas que não sabem o que é uma lixeira.
— Essa não seria uma má ideia, mas você é esperta demais para não
encontrar uma saída e fugir com menos de meia hora.
Soltei uma risada e assenti, mordendo o lábio inferior.
Olhei para ele e suspirei, sentindo uma paz interior e um sentimento
muito semelhante à saudade. Eu estava com saudades dele, de conversar e
sorrir com ele.
Engoli em seco ao constatar isso e desviei o olhar quando seus olhos
encontraram os meus. Sem jeito por ter sido “pega” encarando-o, pigarrei
para disfarçar meu constrangimento.
— Ainda temos que caminhar muito?
— Já chegamos. — Apontou para o prédio do outro lado da rua. —
Não é muito longe, hum? — Sorriu, após abrir a portaria.
Dei de ombros e atravessei a porta.
O prédio parecia bem mais antigo por dentro do que por fora, e havia
uma pilha de cartas no corredor em frente a um dos apartamentos. A escada
de madeira rangia à medida que subíamos os degraus até o segundo andar
onde Caleb disse estar seu cantinho. No entanto, as paredes descascando ao
redor pareciam já ter visto dias melhores.
— Bem-vinda à Fleet’s house! — Caleb piscou e abriu a porta do
apartamento, deixando o braço esticado.
Arqueei a sobrancelha e entrei devagar, observando atentamente o
ambiente ao meu redor. Eu esperava encontrar várias garrafas de bebidas e
bitucas de cigarros espalhadas pelo chão ou sobre a pequena mesa de
centro. Contudo, me lembrei de que Caleb não fuma e apenas tem a
aparência de bad boy.
O músico fechou a porta atrás de mim silenciosamente e parou no
meio da sala, onde um velho sofá com alguns furos estava à mostra,
juntamente com uma almofada grande estampada com a bandeira do Reino
Unido – um item clássico e indispensável na casa de qualquer britânico que
se preze, especialmente se ele for cantor de uma banda de rock.
Mais curiosa para descobrir o que aquelas paredes escondiam,
continuei caminhando pelo espaço, observando desde o piso de madeira,
passando pelas paredes decoradas com quadros de família e amigos, até o
teto branco.

Confesso que estava um pouco nervoso enquanto observava Ravena


olhar ao redor do meu apartamento com curiosidade, sem deixar muito clara
sua opinião sobre o espaço.
— Você tem um toca-discos? — perguntou de repente, fitando o
objeto vintage que comprei em uma loja de segunda mão, assim como a
maioria dos meus outros móveis e objetos.
— Sim, inclusive tenho vários discos de vinil que costumo tocar
nele. — Caminhei até ela com as mãos nos bolsos.
— Eu sempre quis ter um… — Sorriu triste. — Meu pai
costumava me colocar em seu colo quando eu era criança para ouvir suas
músicas preferidas no toca-discos que meu avô lhe deu de presente quando
ele se casou com a minha mãe — revelou, parecendo não se dar conta.
Eu não disse nada, apenas deixei que ela continuasse. No entanto, ela
se calou, dando por encerrada a visita às suas memórias do passado.
Já estava bem claro para mim que Ravena não nutre um bom
relacionamento com a família, e minha curiosidade me fazia questionar o
motivo. O que teria acontecido para que chegassem a esse ponto em que ela
nem mesmo se sente confortável para falar sobre eles?
Notando que ela estava perdida em seus próprios pensamentos,
pigarreei e engoli em seco antes de falar:
— Eu te convidei para vir aqui porque quero muito te mostrar algo,
mas estou me borrando de medo de você detestar e me mandar ir à merda–
— Wow! Essa é a ideia que você tem de mim? — cortou, zombeteira,
cruzando os braços.
Soltei um riso nervoso e abaixei a cabeça, mordendo o lábio inferior.
— O que você quer me mostrar de tão importante para me fazer
despencar do outro lado da cidade até aqui? — arqueou a sobrancelha em
desafio.
Respirei fundo e peguei sua mão, guiando-a até o sofá.
— Senta aqui que eu já volto.
— Mas–
— Vai ser rápido! — Corri até o meu quarto, peguei meu violão que
estava sobre a cama e voltei para a sala.

Eu estava tão confusa quanto Catarina ao ver Caleb sentar ao meu


lado com o violão, me encarando com um sorriso nervoso.
— Vai dar um show particular para mim? — brinquei, tentando
deixá-lo mais relaxado. Parece ter funcionado, já que o rapaz soltou um riso
e deu de ombros.
Após deixar minha bolsa jogada ao meu lado, me ajeitei para vê-lo
melhor e descobrir do que se tratava todo aquele mistério envolvendo o
violão.
— Quase isso — murmurou depois de um tempo, respirou fundo e
acrescentou: — Espero que goste.
Abri a boca, pronta para falar, mas nenhum som saiu, pois Caleb
começou a tocar as primeiras notas no violão antes de começar a cantar:

Eu sei o que disse naquela noite


Uma vez era o suficiente
Você disse “não gosto de promessas”
Baby, não estou te pedindo para cumprir o que você não pode dar
Mas a forma como você me toca é tão doce,
que eu me pego afogando no mar dos seus olhos
sempre que você olha para mim

O músico não tirava os olhos dos meus, enquanto pronunciava as


palavras com doçura e intensidade. No entanto, minha pele estava arrepiada
da cabeça aos pés, e meu coração batia descontroladamente. Minhas mãos
estavam suadas, e meus olhos nem sequer piscavam. Minha boca, porém,
estava seca, implorando por um copo de água à medida que o significado
daquela música começava a me atingir.
Enquanto isso, ele seguia cantando e tocando, intensificando as
notas no violão e deixando o som ecoar por todo o espaço.
Seus lindos olhos azuis são como as águas do oceano
Me levam para longe além do infinito
Você me deixa mergulhar no oceano dos seus olhos?
Por favor, me deixe mergulhar no oceano dos seus olhos.

A melodia do instrumento foi gradualmente silenciada, até parar


completamente, deixando apenas o som da nossa respiração pesada, como
se tivéssemos corrido uma maratona sem sair do lugar.
Engoli em seco quando a realidade de que aquelas palavras
cantadas eram sobre mim, sobre nós, e respirei fundo, umedecendo os
lábios.
— V-você escreveu para… mim?
— Sim. — assentiu timidamente, com as bochechas coradas,
coçando a nuca. — O nome dela é “Ocean Eyes” e… Não cantei ela toda
porque… acho que posso melhorar um pouco, mas… é isso aí! — soltou
com um riso nervoso.
Eu não sabia o que dizer e como agradecer a honra, porque no fundo
era uma honra ser a inspiração por trás de uma música tão linda. Eu não
merecia aquilo…
— Você gostou? — perguntou, soando inseguro, e engoliu seco.
Umedeci os lábios novamente, estreitei os olhos e, em seguida, tirei o
violão de seus braços, colocando-o sobre a mesa de centro. Subi em seu
colo e entrelacei meus dedos nos fios ondulados de seu cabelo macio.
— Gostei muito! — Segurei seu rosto em concha e beijei sua
bochecha. — Obrigada!
Caleb abriu um lindo sorriso, com direito a um par de covinhas, e
suspirou aliviado.
— Achei mesmo que você ia me mandar à merda. — Apertou minha
cintura, bem-humorado.
Dei um tapinha em seu ombro e balancei a cabeça.
— Seu bobo! Não sou tão malvada assim. — Fiz um beicinho, que
ele desfez ao beliscar meus lábios entre o indicador e o polegar. — Além
disso… você realmente acha que tenho olhos de oceano?
Caleb me encarou intensamente, deslizando as mãos para cima e para
baixo em minhas costas.
— Eu me afogo neles toda vez que você olha para mim. — Ele
respondeu em um tom baixo e rouco, causando arrepios na minha pele sob
as camadas de roupas.
Juro que perdi completamente o fôlego ao ouvi-lo.
Ficamos alguns segundos nos encarando, com o peito subindo e
descendo pesadamente, até o rapaz descer os olhos até os meus lábios,
segurar minha nuca e tomar minha boca em um beijo quente.
Era sempre inexplicável a sensação de ser beijada por ele. Meus
sentidos pareciam se aguçar duas vezes mais, e meu corpo só sabia implorar
por qualquer coisa que ele estivesse disposto a me dar.
Gemi baixinho quando ele mordiscou meu lábio inferior, respirando
ofegante, e apertei meus dedos em seu cabelo, fazendo-o suspirar de prazer.
Sem uma palavra, Caleb se levantou do sofá comigo em seu colo e
me carregou até seu quarto no fim do corredor.

Os lábios molhados e macios de Ravena deslizavam pela pele do


meu pescoço, deixando um rastro de arrepios no lugar, enquanto meu corpo
se encontrava em chamas, ansioso para os próximos passos, se é que
haveria algum. A verdade era que, se a fotógrafa não fosse minha naquela
noite, eu seria capaz de sofrer uma combustão de desejo frustrado.
Chutei a porta entreaberta do quarto, fazendo-a chocar contra a
parede, e depositei a marrentinha no chão.
Meu quarto estava uma pequena bagunça organizada e, no fundo,
fiquei um pouco envergonhado por ela vê-lo naquele estado, mas já era
tarde.
— Então é aqui que você passa as noites sozinho? — Ela olhou
ao redor, com as mãos no bolso traseiro de sua calça, caminhando pelo
pequeno espaço, assim como fez na sala.
A marrentinha era bem curiosa e observadora.
— Quem disse que eu passo sozinho? — retruquei, com o cenho
franzido e os braços cruzados, fingindo seriedade, apenas para ver a reação
dela.
Ravena se virou para mim, com os olhos estreitos, e estalou a
língua no céu da boca, arqueando as sobrancelhas.
— Foi apenas um palpite. — Ergueu as mãos e desviou o olhar.
Seu tom de voz era frio, e posso quase jurar que sua voz tremeu.
Ela ficou incomodada com a hipótese?
Interessante... Sorri com o pensamento.
— Já que você é tão curiosa e tocou no assunto, eu passo as noites
sempre acompanhado, marrentinha. A Candy é… uma companhia muito
agradável.
— Candy? — Sua voz realmente soou com um rosnado, e fui
“obrigado” a pressionar os lábios juntos para conter um sorriso.
Ravena ciumenta era algo inédito para mim, e eu estava
apreciando cada segundo das reações dela às minhas provocações.
No entanto, comecei a sentir pena da fotógrafa. Seus olhos estavam
mais escuros e suas mãos apertavam as mangas de seu cropped com um
pouco mais de força do que eu consideraria seguro.
Antes que eu pudesse esclarecer quem era Candy, a própria surgiu de
trás da cortina fechada, esticando as patinhas sobre meu colchão. Sorri,
sabendo que ela estava dormindo no parapeito da janela como de costume.
— Senhorita Watts, vulgo, marrentinha, apresento a você, Candy
Fleet! — Estiquei os braços em direção à gata, que naquele momento
pulava da cama para parar aos meus pés.
— Candy é uma gata?
— E muito gata, não é? — Sorri com o trocadilho, e a fotógrafa
revirou os olhos, não contendo um sorriso de canto.
Ravena suspirou, parecendo genuinamente aliviada, embora não
fosse admitir. Ainda assim, ela se abaixou, estalando os dedos para chamar
a atenção da gata, que estava lambendo sua pata de forma despreocupada.
— Candy? — chamou baixo.
A gata miou e, por incrível que pareça, foi até ela, caminhando
tranquilamente.
Ravena sorriu e carregou minha companheira no colo, acariciando
sua pequena cabecinha peluda.
— Ela é fofa! — elogiou e soltou uma risadinha quando Candy
puxou uma mecha de seu cabelo com a patinha. — Você a adotou?
— Acho que sim, considerando que eu a encontrei dentro de uma
caixa de sapato abandonada durante o inverno há dois anos.
— Mas que tipo de monstro abandona uma coisinha fofa e indefesa
dessas durante a estação mais fria do ano? — resmungou, acariciando o
rosto sobre a cabeça da gatinha, que parecia estar gostando da carícia.
Encolhi os ombros, não querendo pensar muito no assunto, porque
sinceramente, a lembrança me deixava furioso. Candy era apenas um filhote
indefeso quando a encontrei com alguns flocos de neve sobre o pelo gelado.
— Você tem algum animal de estimação?
A fotógrafa negou, balançando a cabeça, e colocou Candy no chão
delicadamente.
— Mal tenho tempo para mim. Animais de estimação exigem
dedicação e tempo, duas coisas que eu não tenho. — Deu de ombros e
voltou a inspecionar o meu quarto. — Gostei do seu quarto. Tem uma vibe
bem rockstar.
— Valeu! — Umedeci os lábios e cruzei os braços, fitando-a com os
olhos estreitos. — Qual a sua banda favorita? — perguntei, não tendo ideia
da resposta.
— Arctic Monkeys — respondeu, pegando algumas das fitas cassetes
que deixei sobre a minha mesa de computador no canto ao lado do guarda-
roupa.
— Sério?
Assentiu com um sorriso de canto.
— E pelo jeito é a sua também. — Apontou para a parede com
posters da banda e trechos das minhas músicas preferidas.
— Eles são uma grande influência e inspiração para nós — falei,
observando a parede repleta de outras influências para a Smash Secrets. —
Qual a sua música favorita deles?
— I wanna be yours, com certeza! — Piscou, caminhando ao redor
do quarto, deslizando suavemente os dedos sobre a minha guitarra.
— Isso tem duplo significado? — Arqueei as sobrancelhas, com um
sorriso arrogante no canto dos lábios.
Ravena não me encarou, apenas balançou a cabeça e sentou-se na
cama, cruzando as pernas com os braços esticados para trás.
— E se tiver? O que você vai fazer a respeito?
Mordi o lábio inferior, umedeci os lábios, mantendo a cabeça baixa,
enquanto fitava meu tapete verde musgo. Avancei em sua direção com
passos lentos até parar à sua frente. Ravena ergueu a cabeça e encarou meus
olhos com desejo.
— Eu posso realizar o seu desejo, e você vai ser minha esta noite, e
quantas mais vezes desejar — falei baixo, sentindo o peso das palavras em
meu peito, enquanto acariciava seu queixo.
— Sorte sua que eu realmente quero isso… — sussurrou e levou meu
dedo até a boca, chupando-o com lentidão.
Meu corpo estremeceu, e senti todo o meu sangue se concentrar entre
as minhas pernas. Engoli em seco e me inclinei sobre ela, fazendo-a deitar
de costas no colchão.
— Se você quiser parar, essa é sua chance de dizer, porque duvido
muito que vou conseguir parar no momento em que a minha pele tocar a
sua. — Respirei fundo e ofegante, encarando seus olhos azuis, que naquele
momento pareciam dez tons mais escuros.
— Se eu quisesse parar, acredite, você não estaria nem a um metro
perto de mim — Ela revelou, com a testa colada na minha, encarando
profundamente meus olhos.
Soltei um riso e mordi o lábio inferior.
— Agora, cala a boca e me beija! — Puxou minha nuca, mandona e
faminta, tomando meus lábios em um beijo tão gostoso, que fez um gemido
rouco e sôfrego me escapar.
Minha língua se entrelaçou com a da marrentinha e éramos uma
bagunça completa. Eu simplesmente não sabia onde beijar e tocar, querendo
sentir tudo ao mesmo tempo, mesmo sabendo que aquilo era impossível.
Ravena empurrou meu sobretudo pelos ombros, não tirando os lábios
dos meus, enquanto eu apertava sua cintura, colando meu corpo ao dela,
quente e macio. Atirei meu casaco no chão e puxei minha camisa pela
cabeça, deixando-a se juntar à outra peça.
— Você é deliciosa, sabia? — sussurrei, deslizando a língua
lentamente ao longo de sua garganta.
Ravena suspirou, inclinando a cabeça para trás, dando-me mais
espaço para explorar seu pescoço, enquanto arranhava minhas costas,
deslizando as unhas de forma agonizante.
Eu sabia que aquilo deixaria marcas, mas eu não me importava se
fossem marcas e lembranças de uma noite de amor e paixão.
— Eu tô com muito calor… — Ela suspirou, ofegante,
interrompendo o beijo e sentando-se na cama, antes de puxar seu cropped
de forma brusca pela cabeça.
Para o meu deleite, ela não estava usando sutiã, e a visão que tive
naquele momento me deixou boquiaberto, sem ar, com o membro dolorido
e duro como um poste de concreto.
— Nunca viu antes? — zombou a fotógrafa diante do meu
deslumbramento.
— Não tão bonitos assim… — Pisquei e envolvi com as mãos seus
seios bonitos, com mamilos rosados.
Ravena gemeu e voltou a deitar de costas, com os olhos fechados,
apreciando a sensação.
Eu estava faminto para provar o gosto dela e, sem conseguir me
controlar por mais um segundo, tomei seu mamilo direito na boca, sugando-
o com prazer. O som reverberou pelo quarto, e nem mesmo a brisa fresca
que atravessava a fresta da janela entreaberta parecia ser suficiente para
refrescar a sensação térmica de trinta graus dentro daquele espaço.
De repente, senti suas pernas se enroscarem nas minhas, antes de o
meu corpo colidir de costas no colchão.
— Eu fico por cima, gatinho. — afirmou, confiante.
Sua força me surpreendeu, assim como sua atitude.
— Você é mesmo uma marrentinha.
Sua risadinha era mais encantadora do que qualquer música que já
toquei ou ainda irei tocar. A simples nota solitária era o bastante para tocar
minha alma e coração.
— Depois desta noite, vou te transformar em um poeta e tudo que
você escrever será sobre mim. — Sorriu de canto, deslizando as mãos pelo
meu peito até parar sobre o zíper da minha calça.
Com os olhos grudados nos meus, ela desabotoou a peça e ergueu a
sobrancelha, indicando que eu levantasse o quadril para ajudá-la a tirá-la
com mais agilidade e rapidez. Porém, por ser quem é, a fotógrafa não
hesitou e puxou a minha cueca boxer preta pelo cós, deslizando-a
juntamente com a calça.
— Uau! — Suspirou, após atirar minha roupa no chão, olhando para
o meu membro ereto e pronto para ela.
— Nunca viu antes? — Sorri, mordendo o lábio inferior, com um
braço atrás da cabeça, repetindo suas palavras contra ela.
Ravena estalou a língua no céu da boca, com a cabeça inclinada de
lado, ainda encarando meu membro, e negou, balançando a cabeça.
— Sempre fui a favor da ideia de que tamanho não é documento,
mas… você é exceção à regra.
Soltei uma risada, que fez o colchão tremer sob nós, e me sentei,
passando os braços ao redor da sua cintura.
— Sua vez… — sussurrei, fitando seus olhos, e mordisquei seu lábio
inferior, deslizando minha mão para dentro da sua calça antes de apertar
firme seu traseiro.
A marrentinha suspirou e beijou minha boca com firmeza, antes de se
levantar sobre o colchão e tirar sua calça, junto com a calcinha, atirando-as
do outro lado do quarto.
Minha boca se entreabriu, meu coração batia descontrolado, minha
pele estava arrepiada, meu membro incrivelmente duro e dolorido e meus
olhos fixos na beleza que era aquela mulher de pé, praticamente sobre mim,
completamente nua e maravilhosa.
Engoli em seco e desci os olhos até suas coxas expostas, distribuindo
beijos na pele macia e pálida. Seu cheiro doce estava me deixando
inebriado e selvagem. Além disso, minha visão estava turva de tanto desejo,
e tudo que eu queria era estar dentro dela.
Ravena se ajoelhou e me empurrou suavemente pelos ombros até
minhas costas colidirem novamente no colchão.
— Tem preservativo? — perguntou com a voz rouca.
As palavras pareciam me faltar naquele momento, então, apenas
assenti e apontei para a pequena gaveta da mesa onde fica o computador. A
fotógrafa se levantou, foi até o móvel e pegou uma das várias embalagens
que estavam lá dentro.
— Isso que eu chamo de um homem prevenido — zombou ela, com
uma sobrancelha arqueada, sacudindo o pacote prateado.
Dei de ombros e bati no colchão ao meu lado para que ela voltasse
logo e se juntasse a mim, pois eu já não sabia quanto tempo aguentaria
aquela tortura de ver aquela garota linda, sem uma peça de roupa, e não
fazer nada.
No entanto, preliminares entre nós pareciam desnecessárias quando
havia tanto desejo e paixão envolvidos.
E sem mais delongas, tudo aconteceu muito rápido. Ravena deslizou
o preservativo em meu membro, mantendo os olhos fixos nos meus, e
sentou-se em meu colo, suspirando, enquanto nos tornávamos um. Gemi
baixinho, estreitando os olhos com os lábios entreabertos, sentindo sua
intimidade quente e apertada ao meu redor, envolvendo-me por completo.
Segurei seu quadril e apertei a carne entre os dedos, enquanto ela
começava a se movimentar lentamente, para cima e para baixo, com as
mãos em meus ombros, gemendo baixinho e suspirando alto.
— Isso é tortura, marretinha… — sussurrei, beijando seu peito, já
brilhando com suor pelo esforço.
— Mas eu não estou com pressa… — retrucou ela, com os fechados
e a cabeça inclinada para trás.
— Eu não vou durar muito se você continuar nesse ritmo… —
suspirei, sôfrego, umedecendo os lábios secos.
Ravena encarou meus olhos e entrelaçou os dedos no meu cabelo,
puxando minha cabeça para um beijo.
— Você quer mais? — perguntou, ofegante, com a testa colada na
minha.
Assenti, sem fôlego, completamente hipnotizado.
— Então me tome.
Demorei alguns segundos para entender sua demanda, e quando o fiz,
nos virei, ela de costas contra o colchão e meu corpo sobre o dela. Ergui
suas pernas e as envolvi ao redor da minha cintura, aprofundando as
estocadas com os cotovelos apoiados ao lado de sua cabeça.
O som da cabeceira da cama chocando contra a parede ecoava por
todo quarto, e eu estava me fodendo se os vizinhos estavam ouvindo um
show. Aquilo era bom demais para ser mantido em silêncio.
Enquanto isso, Ravena estava linda, gemendo e arqueando os quadris
contra os meus. Seus cabelos cobriam o travesseiro como uma cortina de
seda delicada, e eu só queria eternizar aquele momento.
— Ah, Caleb… isso… é tão bom… — gemeu, com as unhas
cravadas em meus ombros.
— Eu sei, amor. — Inclinei-me, beijando seu pescoço.
Eu sabia que nós dois sob os lençóis seria uma loucura deliciosa, mas
nada se comparava àquilo que eu estava sentindo. Nenhuma adrenalina na
veia chegava aos pés da sensação de chegar ao clímax com Ravena
gemendo meu nome em alto e bom som, implorando para que eu não
parasse.
— Sem chance, querida. — Beijei seus lábios e invadi sua boca com
a língua. Contudo, franzi o cenho quando senti aquela pontada de prazer
intensa e explodi com os braços e pernas trêmulos.
Ravena veio logo em seguida, com a cabeça jogada para trás,
expondo seu pescoço delicado, suado e bonito, enquanto gemia baixinho e
ofegante.
Aquela foi a melhor noite da minha vida.
23

Meu corpo estava mole, e eu não conseguia parar de sorrir, enquanto


encarava o teto do quarto, parcialmente escuro, iluminado pela luz da lua.
Caleb não era apenas um bom cantor, mas também um amante
maravilhoso. Nunca na minha vida imaginei que poderia experimentar tanto
prazer com alguém daquela forma.
Sem falar que, quando ele me chamou de amor, meu coração quase
saltou pela boca e uma onda de desejo dominou meu corpo. Era fato que o
músico não notou o fato de ter deixado a palavra escapar durante aquele
momento tão íntimo, mas eu senti, senti em cada poro do meu ser, se
acumulando todo no meu coração.
Tudo o que eu queria era que ele continuasse falando aquelas
palavras no meu ouvido, olhando para mim com aquele brilho nos olhos,
enquanto me proporcionava a noite mais prazerosa da minha vida.
Contudo, eu não estava me apaixonando por ele, não era isso que
estava acontecendo. Eu estava apenas envolvida em uma névoa de desejo,
prazer e satisfação, mas… por que eu continuava ansiando pelos nossos
abraços?
Suspirei fundo e balancei a cabeça, sentindo seus braços me
envolverem em um abraço aconchegante. Outra coisa com a qual eu não
estava acostumada. Geralmente, depois do sexo, vou embora sem pensar
duas vezes, mas naquele momento, eu não queria fazer isso, não queria
deixar aquele cara gentil e carinhoso para trás.
— Tudo bem? — Caleb quebrou o silêncio, acariciando meus cabelos
com uma mão enquanto a outra repousava em minha cintura.
Assenti, com a cabeça sobre seu peito, ouvindo as batidas aceleradas
do seu coração.
— Acho que perdi um pouco o controle no final… — soltou um riso
nervoso e coçou a nuca, deixando o local onde sua mão estava, frio e
solitário.
Se eu pudesse, grudaria as mãos dele na minha pele, apenas para não
sentir aquela sensação congelante novamente.
— Se aquilo foi você perdendo o controle, então, querido, quero que
perca o controle todas as vezes. — Beijei seu peito, bem acima do coração,
e lhe lancei uma piscadinha.
— Quer dizer então que a senhorita já está pensando na próxima vez?
— Ainda preciso recuperar as energias, você conseguiu roubar meu
fôlego de fominha de academia.
Caleb soltou uma risada gostosa e deslizou a mão pelos cabelos
desgrenhados e molhados de suor.
Um breve e confortável silêncio se instalou entre nós, até eu quebrá-
lo.
— Eu gosto muito das suas tatuagens… — comentei, fitando desde a
bússola em seu antebraço, passando pela cara de uma águia, até chegar na
rosa em sua mão direita.
— Obrigado! — agradeceu, com um meio sorriso, apreciando a arte
em sua pele.
— Elas têm algum significado especial? Quero dizer, uma eu sei que
é o nome da sua mãe, mas e as outras?
— Bem, a rosa simboliza romance, paixão, pureza… A bússola, bem,
ela representa foco na direção correta, sabe? Serve para me manter focado
naquilo que eu almejo…
— Tipo o sucesso da Smash Secrets?
— Principalmente. — Sorriu de canto, antes de continuar: — Já a
águia, foi indicação do Davian, meu amigo e guitarrista da banda. Ela
significa coragem e liberdade.
Assenti devagar, observando os detalhes, e soltei um riso fraco,
chamando sua atenção.
— O que foi? — Sorriu, confuso, exibindo uma covinha.
— Você não reparou que eu também tenho uma, não é?
O rapaz franziu o cenho e deslizou os olhos pelo meu corpo em busca
do desenho misterioso. Seu olhar, de alguma forma, fez meu corpo se
aquecer novamente e minhas pernas apertarem uma contra a outra.
Merda! Eu já estava excitada novamente.
— Onde? — perguntou, ansioso, fazendo-me piscar os olhos e
afastar os pensamentos nada puritanos que passavam pela minha mente.
Virei-me de lado, revelando a câmara tatuada na nádega direita.
— Uau! — Suspirou, tocando o desenho com a mão quente.
Inspirei fundo e soltei, trêmula, a respiração engatada em minha
garganta pelo simples contato.
— É uma…
— Câmera fotográfica — declarei, com uma risadinha,
apreciando seu toque.
— Lugar bem peculiar para se fazer uma tattoo. — Apertou meu
traseiro e me puxou para os seus braços, cobrindo meu pescoço de beijos.
Fechei os olhos e abri um sorriso.
— Peculiaridades são o meu passatempo preferido.
— Não tenho dúvidas — rosnou, bem-humorado, e mordiscou o
lóbulo da minha orelha.
— Minhas amigas ficaram chocadas quando mostrei para elas a
minha tatuagem. — Soltei uma risadinha e escondi o rosto em seu peito.
— Confesso que me surpreendi mais por não ter notado antes. Mas é
muita a sua cara tatuar uma câmera no traseiro.
— Hey! — Ergui a cabeça, com o cenho franzido, me segurando para
não abrir um sorriso. — Isso era suposto ser um elogio?
— Não foi uma ofensa. — Ergueu a mão com um beicinho.
Ravena sorriu lindamente e deitou-se sobre mim.
— Mais uma rodada antes de voltarmos para o mundo real? —
sugeriu ela, com a sobrancelha arqueada.
— Você quem manda! — concordei, fazendo um gesto de
continência bem-humorado. No entanto, virei-a de costas, fazendo-a soltar
risadinhas e se contorcer quando comecei a lhe encher de cócegas.
Meu coração errou uma batida quando parei e fiquei fitando seu rosto
bonito e radiante, porque, naquele momento, ela estava tão reluzente quanto
os raios de sol que brilham durante um dia de verão.
Sua pele nua e cheirosa me deixava sem ar, com o corpo quente,
implorando para tê-la mais uma vez e depois outra e mais outra, até o
amanhecer. E acredite, ainda tínhamos a noite toda pela frente.
— Não se esqueça do preservativo… — brincou, com uma pitada de
seriedade, enquanto meus dedos desenhavam formas aleatórios em suas
coxas.
Abri um sorriso discreto, concordando. Levantei-me, fui até a gaveta
da mesa do computador e retornei com uma embalagem pequena segundos
depois.
— Acho que seus vizinhos não vão conseguir dormir esta noite… —
insinuou ela, mordendo o lábio inferior com um sorriso malicioso,
observando-me deslizar o preservativo no meu membro ereto e pronto para
ela.
— Eles que lutem e tapem os ouvidos, porque aqui nós vamos nos
divertir mais um pouco.
Cobri seu corpo com o meu e, sem mais delongas, deslizei meu
membro em seu interior, fazendo-nos suspirar e gemer com os olhos
fechados. Eu nunca me cansaria daquela sensação tão prazerosa e intensa.
Os primeiros raios de sol surgiram pouco mais das sete da manhã. A
cada dia que passava, os dias se tornavam mais curtos e as noites mais
longas. Não que eu estivesse reclamando, mas o inverno estava bem
próximo e com ele, o frio congelante e as constantes e repentinas nevascas.
Enquanto isso, a visão da marrentinha adormecida despertou em mim
a vontade de preparar um prato cheio de panquecas. Com seus lábios
entreabertos e suas costas nuas sob o lençol, a cena era tão encantadora que
não pude resistir à ideia.
Sem querer acordá-la, levantei-me silenciosamente e fui para a
cozinha. Quando voltei para o quarto, com um prato cheio de panquecas
com calda de mel e dois copos com suco de laranja sobre uma bandeja, a
fotógrafa já estava vestida, ajeitando sua calça.
— Pensando em fugir pela janela?
Ravena me fitou e sorriu de canto.
— Você definitivamente estragou os meus planos. — Revirou os
olhos, bem-humorada.
— Preparei o café! Não é nada sofisticado, mas garanto que você
nunca provou panquecas caseiras tão saborosas.
— Me diz, além de arrogante, metido e bom beijador, você tem
algum outro defeito? — perguntou, zombeteira, com as mãos na cintura.
— Não sabia que ser um bom beijador era um defeito. — Franzi o
cenho, com um beicinho, colocando a bandeja sobre a cama.
Ela apenas estreitou os olhos, revelando um sorrisinho enigmático.
Entretanto, gesticulei para que ela sentasse na cama, onde
começamos a comer silenciosamente, aproveitando o clima agradável após
uma noite intensa de prazer. Prova disso eram meu lençol amarrotado,
parcialmente fora do lugar, e as minhas peças de roupa ainda espalhadas
pelo chão do quarto.
Impulsivamente, Ravena balançou a cabeça, com um sorriso e soltou
um gemido ao levar o garfo com um pedaço de panqueca até a boca.
— Uau! Você é mesmo prendado! Isso aqui tá divino. — enfatizou,
beijando as pontas de seus dedos.
— Receita da minha mãe. — Peguei um pedaço de panqueca e
mastiguei lentamente, enquanto a observava devorar metade do prato. —
Alguém está mesmo com fome, hein?!
— Depois de três rodadas seguidas de sexo, é normal que eu esteja
faminta, você não?
Dei de ombros.
— Tô acostumado.
— Idiota! — Empurrou meu ombro, quase me fazendo entornar um
pouco de suco no colchão. Soltei uma risadinha e limpei os lábios com as
costas das mãos.
— Aquilo é uma câmera? — perguntou de repente e apontou para o
objeto sobre a prateleira, fixada na parede, decorada com algumas
miniaturas de instrumentos musicais.
— Uhum… — murmurei, bebericando um pouco do suco. — Não é
super profissional como a que eu acredito que você tem, mas dá pro gasto.
— Por quê?
Ravena não respondeu, apenas se levantou da cama e pegou o
objeto sobre a estante.
— Quero tirar uma foto sua!
— Ah, não!
— Por quê? — indagou, com o cenho franzido e os olhos fixos no
objeto, aparentemente tentando descobrir como ele funciona.
— As câmeras não gostam muito de mim…
— Deixa de bobagem! — Empurrou-me suavemente pelos
ombros, fazendo-me deitar de costas no colchão antes de subir no meu colo.
— Agora, faça uma pose — exigiu, com um olho no visor da câmera.
Olhei para cima, vendo a janela de cabeça para baixo. Minha
posição, deitado sobre aquela cama com a Ravena em meu colo, não me
dava muitas opções, então, apenas coloquei um braço atrás da cabeça e
encarei a lente do objeto que a marrentinha parecia amar tanto.
— Você é muito fotogênico! — elogiou baixo, apontando a
câmera para o meu rosto.
— Não concordo, mas agradeço o elogio. — Sorri de lado,
deslizando minhas mãos por suas coxas, infelizmente, cobertas pela sua
calça jeans.
Contudo, ela, sentada sobre mim, segurando aquela câmera com
tanta paixão, estava me deixando excitado pra caramba e isso deveria me
preocupar, o fato de me excitar com tão pouco quando se trata dela.
— Por que você não concorda? Estou apenas dizendo a verdade, e
não é para inflar seu ego, já super inflado. — revirou os olhos, abaixando a
câmera.
— Eu sempre saio horrível nas fotos da banda.
— Deve ser porque o fotógrafo é horrível.
— Diz isso para o Elion e você terá um inimigo para o resto da
vida.
Ravena soltou uma risadinha, que balançou o colchão sob nós, e
me fez querer apertá-la entre os braços, enchê-la de beijos e outras
coisitas…
— O papo está bom, mas eu preciso ir para casa. Ainda tenho que
responder a alguns emails de clientes e editar as fotos do evento da revista.
— Ah, por falar nisso, como foi a festa? — perguntei, brincando
uma mecha longa de seu cabelo.
No entanto, ela pareceu congelar no lugar, seu olhar se tornou
sombrio e distante enquanto encarava a janela.
— Marrentinha? — chamei, despertando sua atenção.
A fotógrafa piscou e se levantou da cama sem responder à minha
pergunta, deixando a câmera de volta no lugar.
— Foi normal, a grana foi boa e isso é o que importa. — deu de
ombros. — Vai querer a última panqueca?
Ela estava evitando o assunto… mas por quê?
— Não, pode comer. — Sorri forçado, ainda pensando na reação
estranha que ela teve apenas pelo fato de eu ter perguntado como foi o
evento.

— É sério, Caleb, não precisa se incomodar… — Ravena


murmurou, com um beicinho, pendurando sua bolsa sobre o ombro
enquanto eu colocava meu casaco.
— Eu já disse e repito, não é incômodo algum. — Biquei seus
lábios, com um beijo rápido, e peguei a chave do carro e minha carteira
sobre a mesa de centro. — Vamos? — Estendi a mão para ela.
A fotógrafa suspirou com um sorriso e revirou os olhos, segurando
minha mão, enquanto caminhávamos para fora do meu apartamento.
Ela havia dito e repetido várias vezes após o café que não era
necessário eu levá-la até em casa, mas era óbvio que não lhe dei ouvidos. O
mínimo que eu poderia fazer era deixá-la em seu apartamento, sã e salva
depois da noite incrível que tivemos. Minha mãe ficaria chateada se
soubesse que fiz o contrário.
Enquanto eu dirigia pelas ruas no distrito de Merton, o silêncio no
carro era completo e agradável. Ravena estava com os olhos fechados, um
sorriso discreto, e a cabeça encostada na janela, que tinha o vidro
parcialmente aberto.
Por um momento, pensei que ela estivesse dormindo…
— O jantar com a sua família foi bom? — perguntou de repente,
quebrando o silêncio no pequeno espaço.
— Ótimo! — afirmei, olhando rapidamente para ela.
— Hum… Você parece se dar muito bem com eles…
— Sim, somos muito unidos.
— Seus pais estão casados há muito tempo?
Respirei fundo e senti um aperto no peito devido à pergunta.
— Meu pai faleceu há quatro anos.
— Oh! Desculpe, e-eu não fazia ideia.
— Tá tudo bem. — Sorri fraco, fitando a rua repleta de
automóveis e pedestres. — Agora somos só eu, minha mãe, meu avô e meu
irmão.
— Hum… Legal — murmurou, fitando seu colo.
Franzi o cenho e olhei rapidamente para o retrovisor ao meu lado
antes de mudar de pista. Podia ser só impressão, mas eu sentia que ela
queria dizer algo a mais, porém não tinha coragem.
Não sei se tocar no assunto de sua família era a melhor opção,
mas eu tinha que arriscar.
— E você e a sua família? Lembro-me de você ter dito que tem
irmãos… — Olhei para ela de soslaio, observando sua reação.
A fotógrafa assentiu, com o rosto virado para a janela.
— Tenho uma irmã mais nova chamada Reyna, que tem 21 anos.
Também tenho um irmão, chamado Raylan, que tem 28 anos — respondeu
baixo.
— Vocês se dão bem?
— Mais ou menos. — encolheu os ombros. — Aconteceram
algumas coisas no passado que… nos distanciaram.
Franzi o cenho e estreitei os olhos, sem desviar a atenção da rua.
— E os seus pais?
Ravena soltou um riso desprovido de humor e respirou fundo.
— Também não somos tão próximos como antigamente, pelas
mesmas razões que me distanciei dos meus irmãos.
— Não vou pedir para você me contar se não quiser… —
Coloquei uma mão em seu joelho e o apertei suavemente sem tirar os olhos
da estrada.
— Obrigada — sussurrou, colocando a mão sobre a minha. —
Talvez um dia eu te conte…
— Tome seu tempo.
Ela suspirou fundo e assentiu, voltando a apoiar a cabeça na
janela.
— De qualquer forma, acho que você deveria tentar se
reaproximar deles. — sugeri.
— Quem?
— Sua família, especialmente os seus pais…
A marrentinha balançou a cabeça e umedeceu os lábios.
— Você não tem ideia das coisas que minha mãe me disse,
Caleb...
— Não faço mesmo, mas… — Fiz uma pausa e deslizei a mão
pelo meu cabelo, mantendo a outra no volante. Suspirei e olhei rapidamente
pela janela ao meu lado. — Digo isso, porque perdi meu pai em um
acidente de carro quando ele voltava para casa depois do trabalho. Nunca na
minha vida imaginei ser possível sentir um vazio tão profundo como o que
eu senti quando vi o caixão dele ser colocado a sete palmos abaixo da terra.
— Engoli em seco.
Abri a boca, com a língua no céu, tentando segurar as lágrimas
que enchiam meus olhos.
— Sinto muito mesmo… — Acariciou meu rosto, e permiti-me
inclinar a cabeça em sua palma quente para sentir mais daquele calor.
Contudo, mesmo querendo, foi impossível evitar que uma lágrima
deslizasse pelo meu rosto.
Após mais alguns metros, parei o carro em frente ao prédio da
fotógrafa, nem mesmo me dando conta de como chegamos ali tão rápido,
desliguei o veículo e virei para encará-la.
— Não é fácil perder alguém que você ama, especialmente
quando esse alguém te deu a vida. Apesar de tudo o que aconteceu, mesmo
sem saber o que foi, e não estou ignorando a sua dor, seus pais ainda estão
vivos, e vocês ainda podem aproveitar mais tempo juntos… se perdoarem.
— Eu queria que fosse tão simples… — Fungou, piscando os
olhos rapidamente para evitar que suas lágrimas escorressem.

Era um saco não conseguir me controlar e deixar minhas emoções


falarem mais alto.
— Eu sei que não é tão simples quanto soa quando eu falo assim,
mas eles são os seus pais e sempre serão — disse Caleb, apertando meu
joelho com carinho. Quando não respondi, com a cabeça baixa, brincando
com meus dedos sobre meu colo, ele continuou: — A vida é curta demais,
marrentinha. Não perca tempo com ressentimentos, mais cedo ou mais
tarde, eles vão corroer sua alma de dentro para fora.
Respirei fundo, lutando contra minhas emoções, mesmo minhas
mãos tremendo e meu peito subindo e descendo rapidamente.
Engoli em seco antes de criar coragem para pedir a ele algo muito
importante para mim:
— S-se algum dia eu… criar coragem para ir até a casa deles…
Você vai comigo? — perguntei, insegura, sem coragem de encarar seus
olhos.
— A hora que você quiser. — Beijou minha mão e depois minha
testa.
Ele estava me acostumando muito mal com toda aquela atenção e
demonstrações de afeto.
Se algum dia isso acabar, não sei o que será de mim.
24

Meu coração ainda estava apertado, mesmo após a Ravena ter


desaparecido no interior do prédio onde ela mora. Vê-la daquele jeito,
frágil, insegura e receosa com relação à própria família era de partir o
coração de qualquer pessoa decente.
Buzzz
Franzi o cenho ao ouvir meu celular vibrar sobre o painel do
carro.
— Felix? — murmurei, fitando o nome na tela infinita. — Alô?
— Caleb Feet! Que prazer ouvir sua voz!
Revirei os olhos.
— Me admira você dizer isso depois de desaparecer por
semanas… — zombei.
— Justo o suficiente — pigarreou, desconfortável. — Mas eu te
liguei porque preciso conversar com você e o resto da banda.
— Pode adiantar o assunto? — Engoli em seco, com o coração
acelerado
— Não. Sinto muito.
Suspirei fundo e estalei a língua no céu da boca, deslizando a mão
pelo meu cabelo.
— Onde você quer nos encontrar?
— Que tal no seu apartamento? Acho que será mais tranquilo…
Franzi o cenho novamente, sem entender o motivo de todo aquele
mistério. Ele ia dar com o pé na nossa bunda? Não tinha conseguido algo
bom pra gente?
Merda, não custava nada ele adiantar o assunto, isso pouparia a
minha mente de navegar por águas obscuras, despertando minha ansiedade
pouco controlada.
— Pode ser. — Encolhi os ombros, como se ele pudesse ver.
— Me passe seu endereço.
Ditei o endereço rapidamente, batucando os dedos no volante.
— Vejo vocês em duas horas! — Encerrou a ligação.
Fiquei parado alguns minutos, pensando naquela ligação estranha.
O tom de voz do suposto empresário era distante e difícil de decifrar.
Confesso que estava com medo de tudo ter dado errado e a banda pagar o
preço por uma falha minha.
Respirei fundo e liguei o carro, dirigindo de volta para casa.
Parado no semáforo, aproveitei para enviar uma rápida mensagem
no grupo da banda e deixar os garotos a par do que estava acontecendo. Não
esperei para ver o que eles diriam, especialmente o Elion. Eu já teria que
lidar com ele e o Felix se estranhando, para não mencionar o fato de que o
baixista já estava desacreditado o suficiente… eu não precisava lhe dar mais
munição.
Cheguei em casa e aproveitei para tomar um banho, enquanto as
“visitas” não chegavam, o que não demorou mais de meia hora.
— E aí, cara? — Nevan me deu um abraço de lado, entrando no
apartamento, seguido pelo Elion e o Davian.
— Por que a urgência? — perguntou o guitarrista, com o cenho
franzido.
— É, Cal, você deixou a mensagem no grupo e vazou —
comentou Elion, cruzando os braços.
— Felix ligou e quer conversar com a gente — informei,
sentando-me na poltrona.
— Ah, quer dizer então que ele está vivo? — zombou Elion,
sentando-se no sofá com a perna cruzada.
— Eli, não começa… — Davian revirou os olhos.
O baixista deu de ombros e colocou um chiclete na boca,
mascando-o com lentidão.
De repente, a campainha tocou e me levantei.
— Tenta segurar essa língua — rosnei para Elion, que apenas
revirou os olhos. Bufei e fui até a porta, abrindo-a com um sorriso fraco. —
Como vai, Felix? — Estendi a mão para o homem.
— Caleb! Vou muito bem e você? — Apertou minha mão com
firmeza.
— Indo. — Arqueei as sobrancelhas. — Entra. — Abri espaço.
— Bom dia, Smash Secrets! — saudou o empresário, com as
mãos nos bolsos de sua calça.
— Olha só quem resolveu dar as caras depois de quase um mês.
Felix revirou os olhos e deslizou a mão pelos cabelos compridos.
— Elion… — repreendi o baixista, com expressão séria.
Ele era simplesmente cabeça dura demais para obedecer alguém e
manter a boca calada.
— Por que você está reclamando? Eu estava atrás de algo
realmente bom e grandioso para a estreia oficial de vocês para toda a
Inglaterra. Agora, é assim que vocês me recebem? — Felix franziu o cenho
e olhou para mim.
Elion apenas deu de ombros e arqueou a sobrancelha.
— Graças à repercussão da matéria sobre o show de vocês na
BBC News, consegui várias propostas, porém, nenhuma delas se encaixava
em algo que poderia realmente agregar à carreira de vocês. Por isso, a
minha demora em contatá-los novamente — afirmou, com um sorriso falso,
fitando Elion com os braços cruzados.
— Isso quer dizer que… — comecei, esperando que ele
confirmasse aquilo que minha mente já estava começando a elaborar.
— Quer dizer que, depois de analisar todas as opções, consegui
encaixar vocês no próximo festival de música em Leeds. — Abriu os braços
com os lábios franzidos e as sobrancelhas arqueadas.
— Wow! — exclamou Nevan subitamente, com as mãos na cabeça.
Davian, por sua vez, arregalou os olhos e abriu a boca. No entanto,
acredito que a minha expressão era igual ou bem parecida com a do
guitarrista, pois tamanho era meu espanto.
— Sério? — Elion foi o primeiro a conseguir emitir uma palavra,
com a sobrancelha arqueada.
— Eu estou com cara de quem está brincando, rapaz?
O baixista bufou e fez um bico, mas não respondeu à pergunta.
Felix pareceu satisfeito com o silêncio do rapaz e voltou sua
atenção para mim.
— L-Leeds? — Balbuciei e engoli em seco.
O empresário assentiu, com um sorriso orgulhoso, e cruzou os
braços.
— No festival Live at Leeds: In the park!
— Porra!
— Caralho!
— Merda!
— Puts!
Cada um de nós soltou um palavrão diferente, fazendo Felix
soltar uma risada.
— Pelo jeito, vocês gostaram da notícia — disse ele, bem-
humorado, observando nossa reação, no mínimo, cômica.
— Você tá de sarro com a nossa cara? É claro que a gente gostou da
notícia. — garantiu Elion, com o cenho franzido e os braços abertos, antes
de continuar: — Caramba! Nós vamos tocar em um dos maiores festivais de
música do país… — Sorriu, não contendo o entusiasmo, enquanto
caminhava de um lado para o outro da sala com as mãos atrás da cabeça.
— Valeu ou não valeu a pena a espera? — Felix ajustou seu terno
marrom-escuro e listrado e sentou-se elegantemente no sofá .
— Valeu super! — respondeu Nevan com um largo sorriso.
— Agora, quero saber sobre o repertório de vocês. O que
costumam cantar além dos covers?
— Temos várias músicas autorais, mas — começou Davian.
— Bom! Toquem duas e o resto covers. Vocês vão apresentar
quatro músicas, então, é um equilíbrio bom. — Deu de ombros, tirando um
cigarro do bolso de seu terno. — Mas vou dar um conselho a vocês, toquem
músicas que estão em alta, tipo Arctic Monkeys, Coldplay, ou qualquer
coisa nessa linha… — murmurou, com o cigarro preso entre os lábios, antes
de acendê-lo com um isqueiro.
Eu até pensei em pedir a ele para fumar na janela, mas duvido que
o vento deixaria sua fonte de nicotina acesa por mais de cinco segundos.
Além disso, eu estava feliz pra caramba para me importar em contaminar
minimamente meus pulmões com a fumaça tóxica. O cara merecia aquele
rápido momento de relaxamento depois de trabalhar duro para cumprir sua
palavra.
Abri um sorriso e balancei a cabeça, ainda sem acreditar no que
estava acontecendo. Nós, a Smash Secrets, íamos mesmo fazer um show em
um festival com mais de oitenta mil pessoas… Cara, aquilo era melhor do
qualquer sonho que eu já tive.
— E quanto a novas músicas? Vocês têm alguma? — continuou
Felix.
— O Cal escreveu uma muito boa, e já tem a letra e a melodia
prontas. — Davian, o fofoqueiro, soltou, fazendo todos me encararem com
curiosidade.
Juro quis matá-lo com as minhas próprias mãos.
— É mesmo, Caleb? — Felix sorriu de canto e cruzou os braços.
— Posso ouvir?
— Ainda precisa de alguns ajustes–
— Sem problemas.
Suspirei fundo, sentindo-me derrotado, e sorri falso, assentindo
devagar.
Fui até o quarto, peguei meu violão e retornei à sala com a cabeça
baixa. Sentei-me no sofá ao lado de Felix e comecei a tocar e cantar
“Ocean Eyes”, a música que escrevi para a marrentinha. Após a noite que
tivemos, aquela canção pareceu ter adquirido um significado ainda mais
profundo, intenso e, principalmente, íntimo do que antes.
Com os olhos fechados, encerrei a música antes de ouvir os
aplausos ao meu redor.
— Valeu — murmurei, meio sem jeito, coçando a nuca.
— A música é boa. — Felix disse, balançando a cabeça.
Sorri de canto e murmurei um obrigado.
— Uau, Caleb! Para quem você escreveu essa música? — Elion
perguntou seriamente.
— Tá mais do que óbvio que é para a fotógrafa que ele
carinhosamente chama de marrentinha! — comentou Nevan, com um
biquinho, fazendo um coraçãozinho com as mãos.
Estreitei os olhos para o rapaz, fazendo-o sorrir abertamente.
— Marrentinha? — Felix perguntou com um sorriso bem-
humorado.
— Ela é um pouquinho marrenta, mas nada que seja impossível
de domar. — Dei de ombros.
— Hum… Acho que se tem alguém domado nessa história é
você, não ela. — retrucou Elion, com um sorriso zombeteiro.
— Bem, eu gostei da música. — Felix confessou, fitando-me com
atenção. — Realmente, ela precisa de alguns retoques finais, e se você
estiver disposto a lançá-la, posso falar com um amigo produtor meu…
— Sério?
Felix assentiu.
— E-eu–
— É claro que ele quer, e nós também! — Elion cortou, antes que
eu pudesse abrir a boca, com os braços ao redor dos meus ombros, sentado
ao meu lado no braço do sofá .
— Ótimo! — Sorriu e se levantou. — A propósito, você pode
pedir para sua namorada fotografá-los no festival?
— E-ela não é a minha namorada — murmurei, com um riso
nervoso, coçando a nuca.
— Mas você bem quer que seja. — Nevan zombou.
— Cala a boca! — rosnei, fazendo o baterista soltar uma risada.
— Diz a ela que é por minha conta. Mil libras por um dia inteiro
de trabalho.
— Acho que vou comprar uma câmera e sair por aí fotografando
qualquer coisa pra ver se começo a ganhar dinheiro fácil assim — debochou
Elion, com uma careta, as pernas cruzadas e os pés sobre a mesa de centro.
Folgado do caramba!
— Fotografar é uma arte, Elion. — Felix disse sério.
O baixista apenas deu de ombros e tirou outro chiclete do bolso
de sua calça jeans preta, rasgada nos joelhos. A falta do cigarro o fazia
mascar aquelas gomas uma após a outra sem sequer se dar conta.
Felix suspirou e revirou os olhos antes de voltar sua atenção
novamente para mim.
— Fala com ela e me diz se ela aceita ou não. Se ela disser não,
ou estiver muito ocupada, eu procuro outra pessoa. No entanto, quero
alguém lá, um profissional de primeira para fotografar vocês.
— Por que a urgência, se é que podemos saber? — Davian
perguntou, com os braços cruzados, sentado na minha velha poltrona.
— Vocês precisam ter um perfil profissional da banda nas redes
sociais. Os fãs vão querer isso.
— Nós temos um instagram, mas já faz um tempo que não
postamos lá… — murmurei.
— Então, agora vão voltar! — afirmou. — Com o tempo, nós
vamos ajeitando as coisas…
— Você quer dizer, quando vocês começarem a ganhar dinheiro,
nós vamos ajeitando as coisas — retrucou Elion, desafiador.
— Elementar, meu caro Watson — Felix soltou com ironia.
— Watson? Meu sobrenome é Kinsley. — corrigiu o baixista, com
um sorriso debochado. Mal sabia ele que aquilo era apenas uma ironia por
parte do nosso futuro empresário.
— Cara, você é burro assim mesmo, ou cursou na faculdade que
você nunca frequentou? — Davian estreitou os olhos, estampando uma
careta.
— Bem, eu volto a entrar em contato em breve, mas antes, trouxe
o contrato para vocês assinarem — disse Felix, retirando o papel de dentro
do bolso interno de seu terno.
— Felix… — interrompi, com a mão erguida, e deixei o violão
sobre o sofá.
— Sim?
— Você se importa se a gente assinar depois do festival?
O homem franziu o cenho e olhou para mim e para os outros
membros da banda, tão surpresos quanto ele, antes de voltar a pousar os
olhos em mim.
— T-tudo bem! É justo. Vocês não confiam em mim o
suficiente…
— Não é isso–
— Eu entendi, Caleb — interrompeu ele, guardando o papel de
volta no bolso interno de seu blazer. — E respeito a decisão de vocês. —
Ergueu as mãos e deu as costas, caminhando até a saída.
Meus companheiros de banda me fitaram com o cenho franzido e
murmuraram “qual foi, cara?” entre outras perguntas, mas os ignorei e, com
passos largos, passei na frente do Felix e abri a porta para ele.
— Valeu por acreditar na gente e ter se esforçado para descolar
algo realmente bom para nós — agradeci com um sorriso discreto.
Ele sorriu de volta, porém, bem mais fraco, e assentiu.
— Se eu não acreditasse, não estaria aqui. — Apertou meu ombro
e seguiu pelo corredor, com passos confiantes, antes de parar de repente e
voltar para mim. — Ah, já ia me esquecendo, fique atento ao seu celular.
Vou falar com um produtor conhecido meu, e é bem capaz de ainda hoje ou
amanhã ele entrar em contato com você para agendar a gravação da música.
Mordi o lábio inferior, tentando conter um sorriso, e assenti com
um sinal de continência. Felix seguiu seu caminho até dobrar o corredor, e
eu fechei a porta.
— Cara, por que você não nos deixou assinar o contrato de uma
vez? Não era esse o combinado? — questionou Nevan, um pouco frustrado,
sentando no sofá com os braços cruzados.
— Achei mais prudente esperar o festival; aí sim, vamos poder ter
certeza de que as intenções dele são realmente boas.
— Concordo com o Cal. E ainda tô meio chocado com a notícia.
Porra, tocar em Leeds? Nem nos meus melhores sonhos eu fui tão ousado.
Isso é quase melhor do que um orgasmo — Elion declarou, mascando
lentamente seu chiclete.
— Seu escroto! Cala a boca. — Davian sorriu, atirando uma
almofada no baixista.
Balancei a cabeça, com um sorriso, e suspirei fundo.
— Vou falar com a Ravena.
— Hum… Essa era a desculpa que você precisava para vê-la
novamente, não é?
Arqueei as sobrancelhas e cruzei os braços, fitando meus amigos.
— Eu não ia comentar, porque eu não sou do tipo que beija e
conta, mas… Ela passou a noite aqui.
— WOW! — Os três soltaram em uníssono.
— Caleb, eu te admiro, cara! Quando crescer, quero ser como
você. — Davian zombou, apertando meus ombros.
— Idiota! — Empurrei sua cabeça com um sorriso de canto.
— Você não desiste mesmo, hein?! Estou orgulhoso de você.
Agora, só falta você nos apresentar a sua musa inspiradora. — Elion
piscou, mastigando seu chiclete.
— Vou apresentar, se ela aceitar a proposta de nos fotografar no
festival.
— Ah, se ela não quiser, eu estou aqui.
— Elion, você é o baixista da banda. Como é que você pretende
tocar e nos fotografar ao mesmo tempo, gênio? — enfatizei com a
sobrancelha arqueada.
Nevan segurou o riso, tapando a boca, e eu revirei os olhos.
— Sem falar que as habilidades fotográficas dele são nulas —
comentou o baterista, mordendo o lábio inferior.
Elion se limitou a mostrar o dedo do meio para o amigo e deu de
ombros.

Depois que meus amigos foram embora, sentei-me no sofá da sala


com a guitarra no colo e a TV ligada, transmitindo a reapresentação do
Rock in rio. Era surreal assistir àquelas pessoas tão animadas, cantando e
dançando ao som de seus artistas preferidos com tanta paixão e calor
humano.
Seria literalmente a realização de um sonho um dia tocar naquele
festival e, de quebra, conhecer a cidade maravilhosa. Nunca fui ao Brasil,
mas ouvi dizer que lá é um dos melhores países para se fazer shows. O
público é super apaixonado e canta todas as músicas linha por linha, às
vezes, até mais alto do que o próprio artista.
Insano!
Suspirei, sonhando acordado, e olhei para o meu celular, que
repousava ao meu lado. Se o tal amigo produtor do Felix não ligasse nos
próximos minutos, eu sabia que passaria a noite em claro. Já passava das
onze da noite e nem sinal do cara.
— Será que ele vai ligar ainda hoje, Candy? — perguntei baixo,
com o olhar perdido. Minha gata não emitiu um som, adormecida e
enrolada feito uma bola de pelo sobre o tapete.
Desisti de ficar acordado e fui para o quarto.
Bastou eu fechar a porta, para o meu celular começar a tocar em
minha mão.
Número desconhecido. Será que era o…
Pisquei os olhos e quase deixei o aparelho cair no chão,
desesperado para pressionar o botão verde.
— A-alô? — Por que eu estava gaguejando?
Merda!
— Caleb Fleet?
— Sim…
— Aqui é Declan Price! Sou produtor musical. O Felix me
passou seu contato.
Caralho!
— Ah, claro! — soltei, mais alto do que deveria. Respirei fundo,
tentando me controlar e fechei os olhos, coçando a testa. — É, ele falou que
você ia me ligar, só não imaginei que fosse tão rápido — menti.
— Peço desculpas pelo horário. Se você estiver ocupado, posso
ligar a–
Arregalei os olhos.
— Não! Q-quero dizer, tá tudo bem. Eu estou em casa de boa.
— Ótimo! Então, podemos nos encontrar no estúdio amanhã às
treze horas?
— É só me falar onde.
Anotei o endereço rapidamente em uma folha de papel, rasgada
sobre a mesa do computador. Agradeci ao homem e encerrei a ligação,
socando o ar com animação.
25

Meus dedos batucavam incessantemente na superfície de madeira


da mesa do café, onde eu aguardava a marrentinha chegar para convidá-la a
ser a fotógrafa da Smash Secrets por vinte e quatro horas. Enquanto isso,
eu observava através da janela, a chuva cair serena e silenciosamente,
deixando a calçada molhada e talvez escorregadia.
Passei a noite me revirando na cama, eufórico demais para conseguir
pregar os olhos. Então, acabei enviando um áudio de cinco segundos para a
Ravena, pedindo que se encontrasse comigo.
Minha vontade mesmo era ligar para a marrentinha e contar a
novidade, mas estava de madrugada e ela, com certeza, estava dormindo
seu sono de beleza. Assim, achei que seria justo não incomodá-la.
Fitei a xícara de café, solitária e parcialmente cheia, refletindo
sobre as últimas horas e como as coisas pareciam estar começando a dar
certo para mim e a banda.
— Oi! — pisquei, ao ouvir a voz da fotógrafa. — Desculpe a
demora. O trânsito está caótico e eu quase caí de bunda duas vezes nessa
calçada escorregadia. — completou ela, ofegante, com uma boina preta –
muito semelhante àquela que os parisienses usam – sobre a cabeça, os
cabelos úmidos nas pontas, enquanto tirava seu casaco longo azul-escuro
para colocá-lo atrás da cadeira.
Me levantei e a cumprimentei, com um beijo demorado na
bochecha, segurando sua cintura.
— Não tem problema. Cheguei há dez minutos.
A fotógrafa sorriu de canto e assentiu, sentando-se na cadeira do
outro lado da mesa.
— Então, sobre o que você quer falar? Não vai me pedir em
casamento, né? Eu não era mais virgem… — sussurrou a última parte,
inclinada sobre a mesa.
Soltei um riso e umedeci os lábios, grato pelo seu bom humor,
que me distraiu do nervosismo que eu estava sentindo por ter que sair dali e
ir direto para o estúdio gravar a música dela.
— Não. — suspirei com um falso drama. — Apesar de ser
considerado um cara certinho, não sou antiquado. — Pisquei, bem-
humorado.
Ravena assentiu com os olhos estreitos e pegou o menu sobre a
mesa.
— Pelo menos você lembrou da minha recomendação de não me
enviar áudios de dez minutos… — disse zombeteira, deixando apenas os
olhos com um brilho divertido visíveis acima do menu.
— Eu sabia que você não ouviria, então não quis arriscar — dei
de ombros e acenei para uma garçonete. — É por minha conta.
— Não precisa, Caleb–
— Eu faço questão — cortei.
— Olá! Em que posso ajudar? — perguntou a funcionária do café,
segurando uma caneta e um pequeno bloco de notas.
— Hum, eu vou querer uma xícara de capuccino e um pedaço de
torta inglesa, por favor. — respondeu a marrentinha.
— E o senhor?
— Estou bem, obrigado!
— Não vai mesmo querer nada? — Ravena perguntou assim que
a garçonete saiu.
Neguei, balançando a cabeça.
— Ok… — murmurou com um beicinho antes de completar: —
Aconteceu alguma coisa? Você tá tenso…
Ela parecia me conhecer tão bem…
— Aconteceu. — Soltei um riso nervoso.
— Então me conta! Eu detesto suspense.
Respirei fundo e enxuguei a palma das mãos na minha calça.
— O nosso empresário. — Fiz uma pausa e balancei a cabeça
com os olhos fechados. — Nosso quase empresário descolou para a gente
um show no festival de música de Leeds–
— O Live at leeds: In the park? — Ravena interrompeu, com a
boca entreaberta e os olhos arregalados.
Sorri com seu espanto e assenti, não contendo a satisfação em lhe
dar aquela informação.
— E por alguma razão — continuei baixo, esperando que ela não
fizesse perguntas, ou eu iria literalmente corar. — Ele descobriu que você é
fotógrafa e quer contratá-la para nos fotografar no festival.
— Sério? — Arqueou as sobrancelhas.
— Claro! E não vai ser de graça, prometo!
— Até porque se fosse, eu não aceitaria. — Cruzou os braços
com um sorriso zombeteiro.
— Então quer dizer que isso é um sim?
A marrentinha deu de ombros e assentiu, ajeitando as mechas
soltas de seu cabelo sobre os ombros. Satisfeito com sua confirmação,
continuei, um pouco mais nervoso do que há segundos:
— Inclusive, queria te dizer que depois daqui eu vou até um
estúdio… — Fiz uma pausa, com o lábio inferior preso entre os dentes e os
olhos fixos nas reações dela.
— Sério? Vocês vão gravar alguma música?
Assenti, sentindo o coração disparado no peito. Eu não sabia se
ela iria gostar da notícia, mas achei melhor contar de uma vez, antes que ela
soubesse de outra forma e ficasse uma fera.
— Nosso empresário ouviu “Ocean Eyes” e afirmou que ela tem
potencial para ser um grande single… — Parei quando a garçonete voltou
com o pedido da fotógrafa, depositando-o sobre a mesa.
— Obrigada — agradeceu à garçonete.
Ravena deu um gole em seu café, franzindo o cenho, e depois
colocou a xícara de volta na mesa lentamente, me encarando com um mar
de perguntas não ditas – ainda.
Seu silêncio e gestos contidos estavam me deixando inquieto.
E se ela não tivesse gostado da ideia de ter uma música sobre ela
tocando por aí? O que eu faria?
— Você vai gravar a música que escreveu para mim e ela vai
tocar nas rádios de toda a Inglaterra?
— Não sei se ela vai tocar nas rádios, isso seria muito melhor do
que nos meus sonhos, mas… talvez sim.
— Então, por que você tá com essa cara de quem comeu e não
gostou?
Abri a boca para dizer que não era bem aquilo que ela estava
pensando, mas Ravena continuou:
— Poxa, eu vou me sentir muito foda se você der uma entrevista
contando sobre sua inspiração por trás da música… — Fez uma pausa
pensativa, olhando a rua através da janela do café, com o olhar perdido,
bem longe dali, antes de me encarar com os olhos brilhando e continuar: —
Mas não diz o meu nome, isso dá ibope, todos vão querer saber quem é a
inspiração do vocalista gostoso da Smash Secrets, e eu vou poder me sentir
um máximo, porque eu sei a resposta! — Bateu palminhas e, eu nunca a vi
tão animada com algo antes.
— Você me acha gostoso? — perguntei, com a sobrancelha
arqueada e um sorriso de canto, sabendo que ela ficaria irritada.
Bingo!
— De tudo que eu disse você só focou nisso? — Suspirou
indignada, com as mãos espalmadas sobre a mesa.
Soltei uma risada e inclinei a cabeça para trás, umedecendo os
lábios.
— Então… Você não está brava por eu gravar a música?
— Claro que não!
Suspirei aliviado e deslizei a mão pelo cabelo.
— Na verdade, estou bastante orgulhosa de você e dos seus amigos,
mesmo que eu ainda não os conheça pessoalmente.
— Ah, mas isso vai mudar quando formos para o festival.
— Uau! Será a primeira vez que farei um trabalho do tipo e confesso
que parece muito interessante.
Sorri de canto, observando-a comer sua torta com um brilho nos
olhos.

— Me conta tudo depois, tá bom? — Ravena pediu, com os braços


ao redor do meu pescoço, enquanto enrolava uma mecha do meu cabelo.
A puxei para mais perto, segurando firme sua cintura fina, e rocei
meu nariz no dela antes de assentir, fitando seus lábios rosados. Estávamos
de pé na calçada repleta de folhas caídas das árvores em frente à entrada do
café, e a chuva havia cessado, deixando apenas o asfalto molhado e o cheiro
de terra no ar.
— Estou mais nervoso do que gostaria, mas vou ficar bem.
— Não precisa ficar nervoso. Tenho certeza de que vocês vão arrasar
e gravar a melhor música de todos os tempos!
— Esse seu lado otimista é novidade para mim. — Ajeitei sua boina.
Ravena deu de ombros com um beicinho.
— Eu tenho meus momentos.
Assenti com um sorriso e segurei seu rosto em concha antes de beijar
seus lábios. Se nós não estivéssemos em público, eu facilmente a teria
empurrado contra a parede e a beijado como realmente queria, porém eu
precisava me controlar.
E guardaria aquela energia para mais tarde.
— Vou mantendo contato e te passo as informações sobre a data da
viagem.
— Ok!
Por que era tão difícil deixá-la?
Ravena parecia pensar o mesmo, enquanto nos encarávamos, incertos
do próximo passo.
— Então é isso! — soltou ela, sem jeito, com os braços abertos, e
pigarreou, afastando-se. — Te vejo em breve, e boa sorte na gravação! —
Acenou, mas antes que ela pudesse dar mais um passo, segurei-a pelo
braço, e a abracei forte, com os olhos fechados.
— Se cuida — sussurrei em seu ouvido e beijei sua nuca.
Ela apenas suspirou e assentiu com o queixo sobre meu ombro.
Depois do que pareceu uma eternidade, finalmente nos afastamos.
Ravena seguiu para o lado oposto ao meu, e eu só consegui sair do lugar
quando ela desapareceu na primeira esquina.
Estalei o pescoço de um lado, depois o outro, e dei a volta rumo ao
estúdio. Davian, Elion e Nevan já estavam me aguardando do lado de fora
do prédio moderno, com revestimento de vidro e algumas paredes “vivas”
ao redor. Antes de me juntar a eles, peguei minha guitarra no meu carro
estacionado em frente ao local, do outro lado da rua, e depois fui até os
meus companheiros, que também estavam com seus instrumentos, exceto
Nevan.
Não era fácil carregar uma bateria para cima e para baixo.
— Cara, apesar do vento, estou suando tanto que parece que acabei
de sair da academia — disse o baterista, balançando os braços, enquanto
estalava o pescoço.
— Eu nem dormi essa noite — Elion murmurou, antes de tragar seu
cigarro.
— O Felix disse se viria? — Davian perguntou, ajeitando seu boné
do Chelsea.
— Nem precisa responder. Olha ele ali. — indicou o baixista com o
queixo antes de soprar mais nicotina.
Estreitei os olhos, tirei uma mecha do meu cabelo sobre o olho e
observei o homem descer de um Mustang clássico preto, tão elegante
quanto um sapato italiano. A ideia de que aquele carro deveria custar uma
pequena fortuna me fez questionar o quão rico Felix era e se o seu dinheiro
vinha da gestão da carreira de bandas como a nossa.
— Chegaram no horário combinado. Isso é muito bom, demonstra
responsabilidade e comprometimento. — Foi a primeira coisa que o
empresário disse quando parou à nossa frente com um cigarro entre os
dedos.
Ele e Elion eram mais parecidos do que ambos jamais admitiriam.
Após os cumprimentos com apertos de mãos, Felix nos liderou até o
interior do prédio. Minhas pernas estavam um pouco dormentes e,
sinceramente, tive que diminuir os passos algumas vezes para me controlar.
— Você tá bem, Cal? — Davian sussurrou com uma mão em meu
ombro.
Eu estava encostado na parede do corredor acarpetado e aquecido.
— Só um pouco ansioso. — Suspirei, com a cabeça apoiada na
parede e o queixo erguido.
— Vai dar tudo certo, cara! — Sacudiu meu ombro suavemente. —
Agora, vamos lá e dar o nosso melhor.
Respirei fundo e assenti.
Felix e os outros membros da banda já estavam na sala de gravação,
conversando com o cara que eu supus ser o tal produtor com quem
conversei na noite passada.
— Então, vocês são a Smash Secrets! — saudou Declan Price com
um largo sorriso assim que Davian e eu nos juntamos a eles.
— Isso aí! — Elion foi o primeiro a apertar a mão do homem,
deixando bem claro seu entusiasmo.
— Vocês já visitaram um estúdio antes?
— Mais ou menos, quero dizer, a gente gravou uma demo uma
vez, mas… Cara, o estúdio nem se comparava a isso aqui — admitiu
Nevan, com suspirou, olhando ao redor do espaço moderno.
— Muito menos os equipamentos — acrescentou Elion.
— Vocês podem se considerar sortudos. Esse cara aqui é um dos
melhores descobridores de talentos desta cidade — afirmou o produtor,
referindo-se ao Felix, com um braço ao redor dos ombros do homem.
Elion olhou para mim de soslaio, e eu apenas arqueei as
sobrancelhas.
— Não é pra tanto — Felix disse modesto.
— Ah, mas você sabe que é! Se vocês não sabem, foi o Felix
quem lançou a Celestial Angels.
— Putz! Isso é sério? — Elion perguntou, tão chocado quanto o
resto de nós.
Felix apenas deu de ombros.
A Celestial Angels é uma das bandas mais famosas da Europa nos
últimos anos. Os caras já foram até nomeados ao Grammy! Caramba,
pensar que achamos que o cara era um charlatão querendo nos aplicar um
golpe…
Davian e Nevan se entreolharam e pressionaram os lábios para
esconder um sorriso. Eu sabia que eles ficaram ainda mais empolgados após
essa informação, e caralho, eu também!
— Agora que as apresentações foram feitas, mãos à obra! —
Felix bateu uma palma e gesticulou para que o seguíssemos.
Antes de começar a gravação, partimos para a pré-produção da
música. Tivemos que escolher a entonação de voz para eu cantar, apesar de
eu já ter uma guia – gravação da música com um instrumento – que criei no
violão. Também tivemos que escolher os instrumentos que estariam
presentes na canção, os arranjos a serem feitos, entre outros, e partimos para
o planejamento da gravação.
Quando entramos na cabine acústica para finalmente começar a
gravar “Ocean Eyes”, senti meu coração disparar e uma adrenalina
percorrer minhas veias. Eu queria começar a cantar logo naquele microfone
e descarregar na letra da música tudo que estava sentindo.
Meu desejo era que a minha voz transmitisse toda a paixão que
habitava meu ser naquele momento, para que todos que ouvissem a música
sentissem um arrepio dos pés à cabeça e um gosto de quero mais.
Porque a Ravena sempre me deixava ansiando por mais.
Meus amigos assumiram suas posições nos seus instrumentos, e
eu pendurei minha guitarra sobre o ombro, me certificando de que ela
estava conectada ao amplificador.
— Todos prontos? — Declan perguntou do lado de fora da cabine
através de um microfone.
Coloquei o fone e suspirei fundo, aquecendo um pouco mais a
voz.
— Prontos? — perguntei, olhando por cima do ombro para os meus
companheiros.
Meus três irmãos do peito assentiram com um sorriso, e eu fiz
sinal de positivo para Declan, que gesticulou para que começasse a
gravação.
A sensação de estar em um estúdio, gravando uma música tão
pessoal, era indescritível. Os primeiros acordes de “Ocean Eyes”
começaram comigo na guitarra, e, ao invés do baixo, Elion tocava um
violão.
Era inevitável eu fechar os olhos enquanto cantava, e ali não foi
diferente. Conforme a música ganhava vida, as lembranças da noite que
passei com a Ravena voltavam à minha mente como imagens de um filme
em uma tela de cinema: grande, nítido e em alto e bom som.
No entanto, tudo o que eu queria era saber se ela era minha.
Eu queria ouvi-la dizer que sou dela…
O arrepio na minha pele apenas intensificava meu tom de voz,
reverberando pela cabine junto com os outros instrumentos.

Passamos o dia todo no estúdio e apenas fizemos uma pausa de


meia hora para almoçar e voltar à gravação. Modéstia à parte, o resultado
estava melhor do que eu esperava e, se tudo desse certo – o que com certeza
ia acontecer – a música estaria pronta nos próximos dias, talvez após o
festival em Leeds. Por falar no festival, eu mal podia conter a ansiedade
para que o tão esperado dia chegasse.
Já era noite quando finalmente deixamos o estúdio. Com minha
case sobre o ombro, segui até meu carro com meus amigos em meu encalço.
Felix se despediu de nós e saiu da vaga larga onde estava seu Mustang,
antes de assumir lugar no centro da pista da rua pouco movimentada.
— Vai rolar uma carona? — perguntou Elion, com um braço ao
redor dos meus ombros.
— Vai colocar gasolina?
— Mão de vaca — resmungou e afastou-se, me fazendo soltar um
riso e abrir a porta do carro. — Entra aí. — Gesticulei com a cabeça para
que ele assumisse lugar no banco do passageiro. — E vocês dois? Também
vão querer carona?
— Valeu, mas… temos outros planos… — disse Nevan, sem
contato visual.
Franzi o cenho.
Eu estava perdendo alguma coisa?
— E posso saber quais? — Coloquei uma mão na cintura e um
braço sobre o teto do carro.
Davian e Nevan se entreolharam e deram de ombros.
— Não é nada demais, nós só vamos… É–
— Você é péssimo para mentir, Davian, então desista. — Arqueei
a sobrancelha.
O guitarrista suspirou e coçou a nuca, desviando o olhar para o
arredor.
— Ele vai comigo em um encontro às cegas, é isso — Nevan
murmurou, com as bochechas levemente coradas.
— Por quê? — Elion perguntou, com uma careta, sentado no
banco do passageiro e com a cabeça para fora através da janela.
— Porque se der ruim, eu tenho alguém lá pra me ajudar,
entendeu?
— Hum… — murmurou o baixista com os olhos estreitos. —
Você vai se encontrar com uma traficante ou algo assim? — soltou
debochado.
— HAHAHAHAAH! Hilário — brincou o baterista, com
sarcasmo, fingindo enxugar uma lágrima.
— Por que você não falou? — Voltei ao assunto.
— Esses dois vivem de segredinhos… — Elion resmungou.
— Cala a boca, Eli! — Nevan rosnou, antes de voltar sua atenção
para mim. — Eu não falei, Caleb, porque da última vez você e o Elion
ficaram me julgando — murmurou, cruzando os braços com um beicinho.
— Claro! A garota queria transar com você em troca de nudes
nossos. Isso é coisa que se pede a alguém que você mal conhece? —
retruquei indignado.
— Era o fetish da gata — Elion zombou, com a língua entre os
dentes.
— Olha, se você puder apenas levar minha preciosa para o seu apê, já
ajuda. — Davian disse impaciente. — Eu já não estou a fim de ir, só vou
porque o Nevan não me deixou em paz a semana toda.
— Hey! — exclamou o baterista, aparentemente indignado.
— Coloque no banco de trás — resmunguei e revirei os olhos ao
entrar no carro.
— Acho que o Nevan deveria desistir dessa coisa de encontro às
cegas. Ele só se mete em roubada — Elion comentou baixo no interior do
carro.
— Por isso ele vai com o Davian.
O baixista soltou um riso e revirou os olhos.
— Grande coisa!
— Davian é faixa preta em Taekwondo, Elion, acho que isso é sim
uma grande coisa. Agora coloca o cinto. — Apontei com o queixo.
— Valeu, Cal! — agradeceu o guitarrista, batendo a porta do carro.
Buzinei para os dois músicos na calçada e dirigi para fora da vaga no
acostamento da rua.
26

Uma semana depois…


Finalmente chegou o tão sonhado dia da viagem para Leeds. O
festival seria no dia seguinte, ao final da tarde, e eu não poderia estar mais
animado. Resolvi pedir à senhora Prince para tomar conta da Candy
enquanto eu estivesse fora, e a mulher foi solícita em aceitar o pedido.
— Será um prazer cuidar dessa coisinha fofa! — Acariciou a
cabecinha da gata em meus braços, enquanto seu mini bulldog, Sherlock,
latia, aparentemente com ciúmes da atenção que Candy estava recebendo de
sua dona.
— Obrigado, senhora Prince! — agradeci, entregando-lhe a gata.
— Boa sorte no show amanhã, querido! Estarei aqui rezando e
torcendo para que dê tudo certo. — Acariciou minha bochecha.
Assenti com um sorriso e as mãos nos bolsos da calça.
— Ah, inclusive, é bem provável que você encontre a minha neta.
Ela comprou ingressos para o festival.
Arqueei as sobrancelhas e cruzei os braços.
— Mesmo?
— Sim! Eu disse a você que ela é fã da sua banda, especialmente
do senhor. — Piscou.
A formalidade dela em me chamar de “senhor Fleet” às vezes me
fazia sentir um ancião.
— Qual é o nome dela?
— Zola Prince!
Balancei a cabeça e coloquei as mãos nos bolsos do meu moletom
do Lakers.
— Espero conhecê-la.
— Eu também, querido! Vocês dariam um casal muito bonito. —
Sorriu com uma piscadela.
Arregalei os olhos e arqueei as sobrancelhas, começando a
entender a situação. Minha vizinha queria me empurrar para os braços da
neta.
Desculpe, mas não vai rolar, senhora Prince.
— Quero dizer, você é um rapaz solteiro e, apesar de eu não ser fã de
tatuagens. — Apontou para os desenhos em meu braço, acariciando os
pelos da Candy. — O considero um bom jovem, senhor Fleet.
— Obrigado, senhora Prince, mas–
— Você tem namorada? — perguntou espantada.
— Ah, n-não. — Cocei a nuca sem jeito. — Mas estou saindo com
uma garota…
— Oh. — Suspirou, e me dei por satisfeito com aquela conversa
estranha.
— Já vou indo. E você, senhorita Candy Fleet, trate de se comportar.
— Acariciei a cabecinha da minha gata e plantei um beijo no local. Candy
soltou um baixo miado e se encolheu nos braços da minha vizinha.
Ela sabia que eu ficaria fora por alguns dias e não pareceu gostar da
ideia.
— Até logo, senhor Fleet! Boa viagem. — Acenou, enquanto eu
caminhava até o fim do corredor, ouvindo os rangidos do assoalho de
madeira gasto.
Fechei a porta do meu apartamento e fitei a pequena bagunça que
estava na sala de estar. Nós iríamos ficar em Leeds até o domingo, apenas
dois dias, então não considerei necessário levar muita coisa. Por isso, estava
levando uma mochila preta com algumas peças de roupas, minha case com
a guitarra e uma câmera fotográfica polaroid, que geralmente deixo no
porta-luvas do meu carro. Eu gostava de colecionar fotos nesse estilo.
Apesar da sensação de a semana ter se arrastado por uma
eternidade, eu não poderia reclamar. Passei todos os dias ensaiando com os
meninos na casa do Felix, que modéstia à parte, era uma verdadeira
mansão. O cara morava sozinho em uma casa com piscina, sauna, jacuzzi e
um estúdio particular – sonho de qualquer músico – nos arredores de
Notting Hill, aquele bairro com casinhas coloridas que aparece no filme
“Um lugar chamado Notting Hill”.
Durante a noite, eu trocava mensagens e ligações com a Ravena.
A fotógrafa não escondia sua empolgação com o fato de fotografar a “futura
banda de rock mais foda do planeta” – palavras da marrentinha.
Olhei para o meu relógio de pulso e suspirei fundo. Ainda teria
que passar na casa do Davian para buscá-lo, juntamente com o Elion e o
Nevan. Decidimos nos encontrar no mesmo lugar, já que cada um morava
em uma região de Londres, e o guitarrista era o mais próximo do meu
apartamento.
Em seguida, eu iria buscar a Ravena. A marrentinha é a que mora
mais longe. De lá, seguiríamos viagem até Leeds, onde Felix nos
encontraria no hotel que ele mesmo reservou para nós.
Eu estava começando a me sentir um cantor profissional bem-
sucedido.
Juntei o resto das minhas coisas dentro da mochila, peguei minha
jaqueta e as chaves do carro sobre a mesa de centro e deixei o apartamento,
segurando firme a case com a minha guitarra.

Quando parei em frente à entrada da casa do Davian, encontrei


meus amigos de pé na calçada. Elion estava fumando um cigarro – para
variar – com uma perna dobrada e o pé encostado no muro, e Nevan parecia
bem mais interessado no celular que ele segurava nas mãos, porém não
havia nenhum sinal do guitarrista da banda.
Buzinei de repente, conseguindo chamar a atenção dos dois músicos.
Segurei um riso quando Nevan soltou um palavrão ao se assustar com o
barulho alto, quase deixando seu aparelho cair no chão.
— Seu encontro ontem foi bom? — perguntei zombeteiro, abaixando
o vidro da janela.
— A garota não foi, acredita? — Elion respondeu pelo baterista,
antes de tragar seu cigarro.
Franzi o cenho.
Nevan suspirou e deslizou a mão pelos cachos loiros com algumas
mechas pretas.
— Sinto muito, cara. — Lamentei sinceramente.
— Não era pra ser. — Deu de ombros, com a língua no céu da
boca.
— Nevan é o último dos românticos… — Elion revirou os olhos,
jogando seu cigarro na rua. — Ainda acho que essa insistência em ir a
encontros às cegas é para esquecer alguém... — Piscou para o baterista.
— Do que ele tá falando? — perguntei confuso.
Nevan engoliu em seco e desviou o olhar.
— Não se preocupe, meu amigo — Elion continuou, apertando o
ombro do baterista. — Quando você for o baterista mais famoso desse país,
vai chover mulher na sua horta seca.
— Seu otimismo é contagiante. — Nevan soltou, com um sorriso
falso, empurrando a mão do baixista.
De repente, Davian abriu a porta de casa e saiu resmungando algo
incompreensível, carregando sua mochila sobre o ombro e sua case na mão.
— Bom dia! — saudei, mas meu amigo me retribuiu com uma
carranca e uma resposta atravessada:
— Só se for pra você.
— Qual foi, cara? — Elion sorriu de canto, com uma sobrancelha
arqueada, observando o guitarrista de cima a baixo. — Chupou limão e
esqueceu de cuspir?
Davian revirou os olhos e soltou irritado:
— A Maliah colocou na cabeça que quer ir com a gente pra
Leeds, mas eu já disse que o carro vai cheio, então se ela insistir, você fala
com ela. — Apontou para mim.
Abri a boca para dizer que não estava a fim de me intrometer na
briga dos irmãos, mas Maliah surgiu, usando um moletom dois números
maior do que o tamanho dela e um short curto – para desespero do Davian –
que deixava à mostra parte da sua tatuagem na coxa direita. Enquanto isso,
ela chupava despreocupadamente um pirulito.
— A Maliah tá cada dia mais gata… — elogiou Elion,
praticamente secando a garota.
— Hey! — Davian e Nevan resmungaram em uníssono.
— E aí, Caleb? — saudou ela, após tirar o pirulito da boca com
um estalo.
A jovem parecia até fofa e inofensiva, com seus cabelos pretos presos
em duas tranças longas, mas não se deixe enganar. Maliah Jang era uma
bomba-relógio prestes a explodir. Apesar disso, ela era uma garota legal e
quase uma irmã mais nova para mim.
— Oi, Mali!
— O idiota do meu irmão não quer me deixar ir com vocês para o
festival. — Fitou o guitarrista com os olhos estreitos.
Olhei para o Davian, que olhava para o céu com um bico maior
do que o mundo.
— Você está cansada de saber que o carro tá cheio — rosnou.
— Cheio por quê? São cinco assentos e vocês são quatro, ainda
resta uma vaga — Sugou mais um pouco do seu pirulito vermelho,
provavelmente de morango, antes de continuar: — Além disso, sempre
posso ir no colo de um dos seus amigos, não é Nevan? — Piscou para o
rapaz com um sorriso de canto.
O baterista arregalou os olhos e engoliu em seco ao ser encarado
por todos.
— Para de dar em cima dos meus amigos — Davian grunhiu,
ajeitando a mochila sobre o ombro.
— Eu sinto muito, Mali, mas a minha na… — parei, quando me
dei conta da loucura que estava prestes a falar. Engoli em seco e balancei a
cabeça com os olhos fechados. — A nossa fotógrafa, Ravena, vai com a
gente.
— Ah. — Maliah suspirou com um biquinho. — Que pena. —
Sorriu fraco, antes de encarar o irmão com uma carranca. — Você poderia
ter dito isso antes. — Deu um tapa no ombro do Davian. — Teria me
poupado de fazer papel de idiota.
— Eu teria, se você tivesse agido feito uma adulta de 19 anos e
me escutado — cuspiu, acariciando seu ombro atingido.
— Mas dá uma força pra gente nas redes sociais, compartilhando
posts, reels, Tik Tok, tudo o que possa engajar a banda. — pedi, com o braço
apoiado na janela do carro, enquanto entregava a chave do veículo para o
guitarrista guardar seus objetos no porta-malas.
— Deixa comigo! — Fez um gesto de continência e me lançou
um beijinho.
Davian soltou um rosnado ao ver o gesto da irmã e me devolveu a
chave do carro após guardar suas coisas.
— Passa pra casa. — Apontou ele, com o dedo em direção à
porta.
— Eu não sou cadela pra você falar comigo desse–
— Maliah… — disse baixo, entredentes.
A garota revirou os olhos e suspirou com os ombros caídos.
— Tchau, meninos! E Nevan, arrasa na bateria como você sempre
faz. — Piscou com um sorriso para o baterista, e eu quase podia jurar que
seus olhos brilhavam para o rapaz.
Eu estava perdendo alguma coisa ali?
— Valeu, Mali. — Nevan sorriu sem jeito, coçando a nuca.
— Agora você tá sacando o motivo de tantos encontros às cegas?
— Elion sussurrou no meu ouvido, me fazendo saltar sobre o banco. Nem
mesmo vi o baixista entrar no carro.
— O quê? V-você tá dizendo que o Nevan é a fim da Maliah?
— Elementar meu caro Watson — zombou, revirando os olhos.
— E acredite, é 100% recíproco.
Não tive tempo de argumentar. Nevan abriu a porta do outro lado
do passageiro e se sentou no banco de trás, enquanto Davian se acomodou
ao meu lado, ainda sustentando uma carranca.
— A Maliah não toma jeito. Já cansei de dizer a ela que não tem
graça ficar flertando com vocês, como ela costuma fazer com os caras que
ela conhece na balada, mas entra em um ouvido e sai pelo outro —
resmungou, colocando o cinto de segurança.
— Não se preocupe, Davi. A Mali é como uma irmã para nós…
Aqui ninguém a vê com outros olhos — garanti, enquanto olhava para o
Nevan e o Elion pelo retrovisor, sentados no banco de trás.
Elion abriu um sorriso debochado e cruzou os braços. Nevan, por
sua vez, desviou o olhar, mordendo o lábio inferior.
— Vamos logo antes que eu tenha uma indigestão só de pensar na
minha irmã com um de vocês... Imagina a Maliah com o Elion? — soltou o
guitarrista, com uma careta.
— Hey! Qual o problema? Se eu fosse seu cunhado, você deveria
ajoelhar e agradecer aos céus, porque tá pra nascer homem mais gentil e
foda do que eu.
Revirei os olhos com o comentário narcisista e pressionei os
lábios para esconder um sorriso, enquanto dirigia o carro para fora do
acostamento.
— Ah, Elion! Me poupe — Davian resmungou.
— Mas não se preocupe não. Apesar de achar a sua irmã uma
gata — Davian se virou bruscamente no banco para fitar o baixista. Elion
revirou os olhos e continuou: — Ela não faz o meu tipo. — completou, com
as sobrancelhas arqueadas e um sorriso falso.
Pelos próximos dez minutos, o silêncio foi geral. Apenas o som
do rádio e o sopro do vento através das janelas abertas eram audíveis.
— Onde mesmo você disse que a fotógrafa mora? — Elion
quebrou o silêncio depois que desliguei o rádio.
— Eu não disse. — Suspirei, girando o volante.
— Crofton Park. — Davian informou, com um sorriso de lado.
— Puts! Isso é do outro lado de Londres. Por que ela não vai de
trem?
— Por que você não vai? Posso te deixar na estação Victoria sem
problemas — falei com tom irritado e um sorriso falso, fitando o rapaz
através do retrovisor.
Elion deu de ombros.
Não foi preciso sequer enviar uma mensagem para a Ravena
avisando que eu estava parado do lado de fora, do outro lado da rua, porque
a fotógrafa já nos aguardava, sentada no meio-fio da calçada.
— Aquela é a tal marrentinha? Ela parece bem diferente sem a
fantasia de pirata — Elion comentou, com os olhos estreitos, tentando
enxergar melhor a fotógrafa, que atravessava a rua até o carro com passos
decididos e uma mochila pendurada sobre o ombro.
— Ravena — rosnei para o rapaz. — Marrentinha é só para os
íntimos, no caso, eu.
— Lado Caleb possessivo, ativado com sucesso! — Davian
caçoou, me fazendo revirar os olhos.
Nevan e Elion soltaram uma risada.
— Vai pro banco de trás — ordenei para o guitarrista,
gesticulando com a cabeça.
— O quê? — perguntou ele, confuso.
— Vai logo — resmunguei, abrindo um sorriso assim que Ravena
parou ao meu lado da janela. — Oi, linda!
— Apelido novo? — brincou, com uma sobrancelha arqueada.
— Pensei que “marrentinha” estava ficando repetitivo. —
Pisquei, gesticulando para que ela entrasse no carro.
Após fechar a porta do meu Ford, a primeira coisa que a fotógrafa
fez foi me puxar pela nuca e plantar um beijo na minha boca. Sua língua
atrevida nem mesmo pediu licença, apenas invadiu o espaço, assumindo a
liderança que ela parecia gostar de agarrar com unhas e dentes.
— Senti falta desses seus lábios carnudos — soltou ela, após
encerrar o beijo com um estalo, que ecoou pelo interior do veículo e se
acumulou todo entre as minhas pernas.
Dirigir excitado por mais de três horas não estava nos meus
planos.
Droga, Ravena!
— Hã… Você não vai nos apresentar a sua amiga, Cal? — Elion
interrompeu nossa interação, observando a marrentinha, com as
sobrancelhas arqueadas.
— Oh! Foi mal gente, eu não vi vocês —disse Ravena, com as
bochechas um pouco coradas, colocando uma mecha do seu cabelo atrás da
orelha.
A fitei admirado. Aquela era a primeira vez que a vi
genuinamente tímida.
— Ah, deu pra perceber — continuou o baixista.
Olhei para ele, com os olhos arregalados e os lábios apertados,
mas claro que o idiota não se intimidou.
— Bem, marrentinha, estes são, Elion, baixista da Smash, aquele
é o Davian, nosso segundo guitarrista, e o do canto é o Nevan, baterista da
banda.
— Resumindo, Chapeleiro Maluco, Batman e Hércules. —
Sorriu, apontando para cada um conforme dizia o nome dos personagens.
— Sua memória é boa. — Davian sorriu de canto.
Ravena deu de ombros.
— É um prazer conhecer vocês!
— Igualmente! — retribuíram os três em uníssono, e eu sorri
satisfeito.
27

Os amigos do cantorzinho eram bem legais. E embora achasse o


baixista um tanto convencido, uma parte minha tinha se identificado com o
rapaz. Seu humor ácido e debochado complementava o meu de maneira
amigável e nos garantia boas risadas.
— E aí, Ravena? Você curte rock? — perguntou o rapaz de
cabelos pretos, com traços asiáticos, que, se não me engano, era o
guitarrista da banda e se chamava Davian.
— Curto sim! — declarei, com o braço para fora da janela,
enquanto o vento soprava meus cabelos e Magnificent do U2 ecoava no
rádio do carro.
Eu me sentia como se estivesse em um dos aqueles filmes hips
dos anos oitenta, dentro daquele carro vintage, com quatro caras rumo a
uma diversão iminente. Com uma perna dobrada sobre o banco e a outra
esticada, aproveitei para curtir a paisagem natural ao redor, enquanto a
rodovia vazia passava em alta velocidade por nós.
— Caleb deu sorte então. — Davian sorriu e cruzou os braços.
— Muita! Porque a última garota que ele namorou, detestava as
nossas músicas — comentou Elion, com os olhos fechados e a cabeça
encostada na janela.
Arqueei uma sobrancelha e fitei o vocalista da Smash Secrets.
Caleb permaneceu com a expressão impassível e focado na direção do
carro; no entanto, pude jurar que um sorrisinho safado estava despontando
do canto de seus lábios.
— Mesmo? Foi por isso que vocês terminaram, cantorzinho? —
perguntei entredentes, apesar de estampar um sorrisinho de canto,
totalmente desprovido de humor, o que eu não deixaria evidente.
Então, por que fiquei irritada de repente ?
Caleb franziu o cenho e olhou para a janela ao seu lado, antes de
me fitar rapidamente e voltar a focar na estrada.
— Não exatamente. — Suspirou e passou a mão pelos cabelos. —
Nós… Apenas não éramos compatíveis.
Os três rapazes no banco de trás soltaram uma risada, e eu os
encarei por cima do ombro.
— Compatíveis? O que isso deveria significar? — Encarei
novamente o músico, muito curiosa para o meu próprio bem, em saber o
que aconteceu com a tal namorada e se eles ainda mantinham contato. —
Vocês ainda mantêm contato?
— Não.
— Tá querendo saber demais, hein, fotógrafa — intrometeu
Elion, zombeteiro, me fitando com um olho aberto, ainda com a cabeça
encostada na janela, as pernas compridas esticadas e os braços cruzados.
Revirei os olhos e dei de ombros, engolindo em seco.
— Só curiosidade. — cuspi.
Caleb me olhou de soslaio e abriu um sorrisinho de canto.
Idiota! Aposto que estava pensando que eu estava com ciúmes.
Coitado, não podia estar mais enganado.
— Acho até que ela vai no festival… — insinuou o guitarrista da
banda, atraindo minha atenção.
— Por quê? — soltei rápido, com o coração nas costas, quase
torcendo o pescoço ao virar para encarar o rapaz.
Davian umedeceu os lábios e deu de ombros.
— O Caleb não te contou? A Isla mora em Leeds.
Isla?
Estreitei os olhos e, involuntariamente, minhas narinas se
dilataram. Eu parecia um boi bravo encarando Caleb, como se fosse me
atirar sobre ele a qualquer momento.
Vontade não me faltava, no entanto.
— Ela se mudou para lá após o término deles — completou o
guitarrista, mordendo o lábio inferior, enquanto olhava entre mim e o amigo
e vice-versa.
Ele parecia realmente estar se divertindo com toda aquela
situação.
— Não, ele não me disse. — Sorri falso, ainda com os olhos
grudados no vocalista da Smash Secrets, enquanto meu peito subia e descia
com uma respiração ofegante.
— Eu deveria? — Olhou-me de soslaio. — Não importa se ela vai
ou deixa de ir. — Deu de ombros.
Merda! Não era suposto eu reagir daquela forma. Mas eu estava
rezando para que essa tal ex do Caleb não desse as caras no festival. Não
acho que eu conseguiria agir como se aquilo não me afetasse, porque
afetava, mais do que eu jamais admitiria e gostaria.
Graças a Deus, o assunto se deu por encerrado, porém o clima
parecia pesado.
— Falta muito pra gente chegar? Preciso fazer xixi — Nevan
murmurou no banco de trás.
— Só mais uma hora — respondeu o cantorzinho, olhando para o
rapaz através do retrovisor.
— Cara, não acho que vou aguentar…
Caleb suspirou e deu seta para parar o carro no acostamento.
O baterista nem esperou o músico parar o carro completamente
para abrir a porta e correr em direção ao campo aberto, repleto de árvores e
arbustos, com alguns cavalos a certa distância, quase no topo da colina com
grama baixa.
— Acho que vou aproveitar e ir também. — Elion se espreguiçou
desajeitadamente – porque o espaço era limitado para um rapaz com braços
e pernas longas como ele – e desceu do veículo.
— E-eu… hum, vou com eles. — Davian sorriu sem jeito e
seguiu atrás do baixista.
Caleb e eu permanecemos no Ford Cortina, em completo silêncio,
após o rapaz desligar o rádio, enquanto eu fumava e observava a paisagem
ao redor.
— Você ficou calada de repente… — Ele quebrou o silêncio.
Dei de ombros, com os lábios torcidos de lado, soltando meu
cinto de segurança.
— Impressão sua.
— Então, por que eu tenho a impressão de que essa carranca se
deve ao fato de você ter descoberto, através daqueles fofoqueiros, que
minha ex talvez vá ao festival?
Arqueei uma sobrancelha e o encarei.
— Eu tô pouco me lixando se essa fulana vai ou não ao show de
vocês… Estou indo lá para trabalhar, não ficar rosetando atrás de macho
feito uma groupie.
— A Isla não era uma groupie. — retrucou, com uma sobrancelha
arqueada.
Ele estava adorando me provocar.
Mordi a língua, desviando o olhar para a janela, me segurando
para não cair naquela armadilha e me delatar ainda mais. Meu cigarro tinha
se apagado e nem mesmo me dei conta. Atirei-o no asfalto sob o carro e
cruzei os braços.
— Seus amigos estão demorando… — murmurei, olhando ao
redor do campo, mas nem sinal daqueles três.
— Você tá com ciúmes — afirmou o cantorzinho, retomando o
assunto.
Fechei os olhos e respirei fundo.
Ele não deixaria aquilo de lado tão facilmente, deixaria?
— Por que eu teria ciúmes dela ou de quem quer que seja? —
Sentei-me de lado no banco e o encarei. — Eu me garanto, cantorzinho.
Caleb arqueou uma sobrancelha e deslizou a língua lentamente
pelos lábios. Involuntariamente, meu olhar desceu até eles e senti meu
ventre se contrair. Lembranças do que aquela língua era capaz de fazer me
fizeram perder o fôlego.
— Faz o que você quer fazer de uma vez, Ravena.
Algo na maneira como ele disse meu nome ativou meu lado
primitivo e, sem pensar duas vezes, me lancei sobre ele, envolvendo sua
cintura com as pernas e apertando minhas mãos em seus ombros largos.
Caleb suspirou profundamente e cravou as mãos no meu traseiro,
apertando com vontade.
— Pare de me provocar, cantorzinho… — sussurrei, com a testa
colada na dele, encarando seus lábios entreabertos.
— Talvez provocar você tenha se tornado meu fetiche… —
Puxou meu lábio inferior entre os dentes, fazendo-me suspirar, e lambeu a
carne lentamente.
Entrelacei meus dedos nos fios ondulados e macios de seu cabelo,
puxando sua cabeça para cobrir seus lábios com os meus. Caleb gemeu
baixinho, rouco e sensual, aprofundando o beijo. Sua língua fazia
maravilhas dentro da minha boca, e eu só queria ficar ali, beijando-o como
se tivéssemos todo tempo do mundo.
Mas infelizmente não era assim…
— Ah, que alívio! — Nevan foi o primeiro a dizer, se aproximando
da porta.
Assustada, dei um pulo, saindo rapidamente do colo de Caleb,
ajeitando meu cabelo como se estivesse realmente desgrenhado. Meu peito
subia e descia em uma respiração ofegante, assim como o do músico, que
me encarava com os lábios inchados e um pouco avermelhados.
Soltei um riso e mordi o lábio inferior, colocando de volta o cinto de
segurança. Caleb, por sua vez, suspirou com um leve sorriso e encostou a
cabeça no encosto do banco, encarando a estrada. Ele parecia
verdadeiramente sem fôlego.
Davian e Elion entraram em seguida, e o cantorzinho retomou a
direção do veículo para continuarmos nossa viagem.
— PORRA! — Nevan gritou de repente.
— Que foi, cara? Quer me deixar surdo? — Davian resmungou,
cutucando o ouvido.
— Olha lá! — Apontou para um outdoor de LED no canto da
estrada. — Somos nós! — completou animado.
— O quê? — Elion e Davian disseram em uníssono, quase
montados no colo do baterista para ver melhor as imagens da Smash no
show de Londres, onde Caleb e eu nos conhecemos, enquanto era
anunciada a participação da banda do festival em Leeds.
— Uau! — Caleb murmurou e balançou a cabeça.
— Acostumem-se. — Pisquei para ele.
— Mas eu sou muito gato, né? Olha a minha expressão de
baixista apaixonado. — declarou Elion, com seu super ego.
Davian empurrou o rapaz para que saísse de cima dele e revirou
os olhos.
— Sou muito mais eu, o segundo guitarrista sexy. — Deslizou a
mão pelos cabelos pretos e lisos.
— Eu tive mais tempo de tela, então calem a boca! — Nevan
cruzou os braços com orgulho.
— Ninguém liga pro baterista, Nevan. Você fica lá no fundo… —
Elion zombou, fazendo o rapaz com cachos loiros mostrar-lhe o dedo
médio.

Quando chegamos a Leeds, eu já estava faminta, implorando por


uma pizza quentinha com quatro queijos e bastante orégano, e um banho de
banheira com sais relaxantes.
Por falar em banho, Caleb e eu íamos dividir o quarto?
A resposta para aquela pergunta viria mais tarde. Naquele
momento, eu estava me espreguiçando de pé na calçada em frente ao
enorme hotel na rua principal do centro da cidade, enquanto os meninos
descarregavam suas coisas.
Entretanto, ao se aproximar de mim, Caleb me entregou minha
mochila e perguntou se eu estava bem.
Me senti tocada com sua pergunta e assenti, colocando a mochila nas
costas. O músico entrelaçou nossos dedos e nos conduziu em direção ao
interior do hotel.
— Aquele é o nosso quase empresário — revelou ele, bem-
humorado, apontando com o queixo em direção ao homem de pé em frente
ao balcão da recepção, conversando com uma das atendentes do local.
O cara parecia ter sido teletransportado direto de um filme
clássico dos anos setenta, vestido da cabeça aos pés como um gangster
chique de alguma série norte-americana.
— Esqueceram de avisar a ele que estamos na segunda década do
segundo milênio?
Caleb soltou um riso baixo e deu de ombros.
— É o estilo do cara, temos que respeitar.
Franzi o cenho e voltei a encarar o homem alto, nem muito
magro, nem muito forte. Seu cabelo castanho, um pouco comprido, parecia
desidratado, como se não visse água há alguns dias. A calça flare jeans
apertava suas coxas e se afrouxava no comprimento das pernas, mas a
cereja do bolo foi a camisa brega com estampa de oncinha, aberta até a
metade, deixando expostos os pelos escuros do seu peito.
Quase revirei os olhos ao notar o bigode dobrado nas pontas.
Imagina beijar um homem com um bigodão daqueles?
Eu preferia não fazê-lo.
Pisquei rapidamente e abri um sorriso forçado quando Caleb me
apresentou ao homem, Felix Mariano. Enquanto isso, a sensação de que
aquele look lhe dava uma pinta de golpista persistia, mas as aparências
enganam... E eu sabia bem disso.
— Então, você é a famosa Ravena! — Estendeu a mão, com
alguns anéis que aparentavam valer três vezes mais do que a minha câmera.
— Em carne e osso. — respondi, apertando sua mão.
— Fico feliz que tenha aceitado o convite para fotografar a banda
do nosso querido Caleb. — Apertou o ombro do músico, balançando-o
suavemente.
— A oportunidade era boa, eu não podia recusar.
Felix assentiu e arqueou as sobrancelhas ao ser chamado pela
recepcionista para receber os cartões-chave dos quartos.
— Tomei a liberdade de escolher os quartos, espero que não se
importem.
— Você tá pagando este hotel pra gente? — Nevan arregalou os
olhos, observando ao redor do espaço.
Felix soltou uma risada e balançou a cabeça.
— É tudo por conta da organização do festival.
Bem, aquele não era o hotel mais sofisticado do mundo, mas
grátis, até injeção na testa. Porém, sendo sincera, o lugar não era tão ruim.
As instalações eram decentes o suficiente para você não preferir dormir
debaixo da ponte, e o melhor era a proximidade do local do festival, ou seja,
poderíamos dormir um pouco mais, algo que eu realmente estava desejando
naquele momento.
— Aqui estão os cartões dos quartos — disse o empresário,
distribuindo os objetos entre nós. — Nevan e Elion vão dividir um quarto
com duas camas de solteiro, Davian e eu ficaremos com o outro, e Ravena e
Caleb na suíte.
— Suíte? — Elion indagou, com o cenho franzido.
Enquanto isso, peguei o cartão, muito satisfeita com a
informação.
— Algum problema? — Felix arqueou a sobrancelha, fitando o
baixista.
O rapaz engoliu em seco e suspirou, mas não disse nada.
— Nos vemos amanhã no café e, em seguida, vamos para o
Temple Newsam, onde será o festival. — informou o empresário, colocando
um par de óculos escuros, apesar da falta de luz solar. — Não esqueçam,
vocês têm ensaio às dez.
Sem mais delongas, Felix seguiu com Davian em direção ao
elevador.
— Vamos subir? Eu preciso de um banho. — Nevan perguntou a
Elion, antes de cheirar debaixo do próprio braço.
— Tanto faz — o baixista resmungou, ajeitando bruscamente sua
mochila sobre o ombro e pegou sua case com o baixo do chão, seguindo em
direção ao elevador para se juntar aos outros.
— É impressão minha ou ele não gostou muito do fato de a gente
ter ficado com a suíte?
— Não é impressão — Caleb murmurou.

A primeira coisa que fiz quando coloquei os pés na suíte foi abrir
as cortinas brancas, quase transparentes, deixando um pouco da luz solar
atravessar as janelas de vidro que se estendiam do teto ao chão, para
apreciar a vista da cidade.
O quarto não era grande, mas a cama de casal parecia bem
confortável, e eu só conseguia imaginar Caleb e eu sob aqueles lençóis
macios e perfumados. Ao redor do espaço aconchegante, havia ainda duas
poltronas, um pequeno sofá e uma cômoda com uma TV de LED em cima.
Caleb largou nossas mochilas sobre uma das poltronas, sua case
no chão de carpete cinza-claro ao lado do sofá, e caminhou em minha
direção. O músico passou os braços ao redor da minha cintura e pousou o
queixo sobre o meu ombro. Embora não tivéssemos uma diferença de altura
significativa, o rapaz ainda precisava abrir um pouco as pernas para não
precisar se curvar.
— Gostou da suíte? — perguntou ele.
— Não é a melhor em que já me hospedei, mas dá pro gasto.
Caleb beijou minha nuca e me virou de frente para ele.
— Ainda não vimos a banheira…
— Isso é uma sugestão? — Arqueei a sobrancelha, colocando os
braços ao redor de seu pescoço.
Ele não respondeu, apenas me ergueu nos braços, pegando-me
totalmente de surpresa, e nos conduziu até o banheiro. Quando a porta
fechou atrás de nós, não demorou dois minutos para estarmos nus, dentro da
banheira de louça branca e polida, com a água quente cheia de espuma,
cobrindo nossos corpos.
— Eu não queria tocar no assunto de novo, mas… Não entendi o
motivo de o Elion ter ficado chateado — murmurei, acariciando as espumas
sobre a superfície da água.
O peito de Caleb estava colado às minhas costas, quente e firme,
subindo e descendo ritmicamente. Seu braço estava ao redor do meu peito,
enquanto o outro envolvia minha cintura.
Eu estava “presa” e não me importava nem um pouco.
— Com certeza ele pensou que estou tendo tratamento
diferenciado por ser o vocalista e líder da banda… Essa não é a primeira e
nem será a última vez que ele pensa assim.
— Isso não te incomoda? — Apoiei a cabeça em seu peito e o
encarei.
Caleb suspirou e deslizou a mão pelos cabelos úmidos, sujando
alguns fios com espuma.
— Contanto que isso não atrapalhe nossa amizade e o bem-estar
da Smash, eu não me importo. — Desviou o olhar para a janela ao lado,
com vista para a cidade, antes de completar: — Elion sempre foi um cara
intenso, um pouco mimado, mas bom rapaz.
Assenti fraco e mergulhei na água.
— Agora, chega de falar do meu amigo… — Caleb sorriu, com o
lábio inferior entre os dentes, quando o fitei após emergir da água com os
cabelos mais longos e escuros.
— O que você sugere? — indaguei, sentada em seu colo,
passando os braços ao redor de seu pescoço.
— Eu prefiro mostrar. — Apertou meu traseiro, me puxando para
mais perto, fazendo nossos peitos colidirem, e tomou meus lábios em um
beijo lento e molhado.
Se eu pudesse tirar uma foto daquele momento, o faria com
prazer. No entanto, preferia ficar ali, nos braços dele, trocando beijos como
estávamos, enquanto as batidas do meu coração saltavam sob meu peito,
fazendo minha cabeça girar e minha mente flutuar sobre nuvens de prazer.
Deslizei minhas mãos pelo seu peito molhado, sentindo as
ondulações do abdômen definido, e soltei um gemido lascivo quando senti
sua mão acariciar meu ponto mais sensível.
— Podemos brincar um pouquinho, cantorzinho, mas… —
Engoli em seco, com os olhos fechados e a cabeça inclinada para trás. —
Sem camisinha não vai rolar… — Suspirei, ondulando os quadris de
encontro ao movimento de sua mão.
— Então você terá que ser mais forte do que eu e me fazer parar,
porque não acho que consigo… — admitiu rouco, segurando minha cabeça
para que eu encarasse seus olhos.
Aquele homem era a minha condenação e redenção.
28

Sair daquela banheira sem tomar a Ravena mais uma vez foi a
tarefa mais dolorosa e difícil que executei na vida. Eu estava à beira de uma
combustão com tanto tesão reprimido, mas não havia nada que eu pudesse
fazer. Então, apenas descemos para o restaurante e jantamos com o resto da
banda e Felix.
Já era tarde quando voltamos para nossa suíte, e tudo que fizemos foi
deitar na cama e adormecer até a manhã seguinte.
No entanto, Felix parecia mais animado do que nós quando nos
encontrou na saída do hotel, prontos para seguir para o primeiro ensaio
antes do show, que aconteceria no início da noite.
— Animados para o grande dia? — perguntou ele, antes de
soprar seu cigarro.
Não estava muito cedo para o empresário estar fumando?
— Minhas mãos estão coçando para tocar minha bateria! —
Nevan disse animado, esfregando as mãos.
Elion, por outro lado, sustentava uma carranca, com os braços
cruzados. Acordar antes do meio-dia não era mesmo a praia dele. Por isso,
o rapaz estava usando um par de óculos escuros para esconder seus olhos
sonolentos e as olheiras sob eles.
— Guarde essa energia para o show — aconselhou Felix,
apontando para o baterista com os dois dedos que seguravam seu cigarro.
— Quanto a você, senhorita Watts, trate de fotografar tudo que puder, pré e
pós-show.
— Esse é o meu trabalho — afirmou Ravena, com a câmera
pendurada no pescoço.
Felix assentiu, com um sorriso de canto, aparentemente, satisfeito
com a resposta da marrentinha, antes de voltar sua atenção para o baixista
da Smash.
— E você, Elion, vai conseguir tocar ou precisa de um banho
gelado para acordar?
— Se eu estivesse dormindo, não estaria aqui de pé, me dando ao
trabalho de responder a essa pergunta idiota — resmungou, passando pelo
homem em direção ao meu carro estacionado em frente ao hotel.
Felix estreitou os olhos para o rapaz e balançou a cabeça.
— Liga não, Felix. Ele é muito pior quando acorda às seis —
Davian deu um tapinha no ombro do empresário e seguiu atrás do baixista.
Peguei a mão da Ravena e acenei para o Felix. Ele afirmou que
iria de táxi até o local do show, já que meu carro estava cheio.
— Nos vemos lá — despediu-se pela janela do veículo.
O Temple Newsam é um palácio inglês estilo Tudor/Jacobeano,
com amplos jardins, sendo o principal local do festival anual da cidade, que
atrai milhares de amantes da música.
Quando chegamos ao local, outra banda estava fazendo a
passagem de som sobre o palco enorme, digno de um festival de música.
Enquanto eu caminhava pelo gramado do palácio, com Ravena ao meu
lado, tudo o que passava pela minha cabeça era qual deveria ser a sensação
de tocar lá em cima para uma multidão de espectadores.
— Há algo sobre aquele castelo ao fundo que torna tudo mais
interessante e meio peculiar, você não acha? — comentou a marrentinha,
apontando sua câmera em direção à enorme construção datada do século
XV.
— É uma construção imponente e difícil de ser ignorada —
observei, com as mãos nos bolsos da minha jaqueta.
— Cara, eu tô tremendo — disse Nevan, sacudindo as mãos para
enfatizar sua fala. — Tô com medo de ter uma dor de barriga antes do
show. — Ele me encarou com o cenho franzido.
Soltei um riso e segurei seus ombros, encarando-o com confiança.
— Fica tranquilo. Vai dar tudo certo.
— Mas eu te aconselho a não ingerir nada pesado antes da nossa
apresentação, porque se você vomitar e a gente tiver que parar o show, eu te
mato — disse Davian com os olhos estreitos, em tom de ameaça.
Nevan fez um beicinho e deu ombros.
— A gente não controla esse tipo de coisa. — murmurou, com a
cabeça baixa.
— Hey! — Felix gritou do outro lado do campo aberto, acenando
em frente ao palco.
— Acho que tá na hora. — Ravena sorriu, acariciando meu braço.
Olhei para ela, retribuí o sorriso e beijei sua testa.
Era tão estranho descrever a sensação de liberdade que senti
quando finalmente subi no palco e pude testemunhar a visão panorâmica do
gramado vazio, que em poucas horas estaria lotado. Se alguém me
perguntasse, eu não saberia responder.
Enquanto nos preparávamos para assumir nossas posições,
Ravena se aproximou da grade e começou a tirar fotos.
Eu estava mais do que feliz por ela estar ali, mas ao mesmo
tempo me perguntava até onde aquela cumplicidade e comodidade nos
levariam. Nem mesmo sabia rotular toda a intimidade que estávamos
vivenciando. Éramos um casal de ficantes, amigos? Não, amigos não fazem
as coisas que fazemos, nem se olham como nos olhamos.
Tentei não dar muita importância a isso e deixar as coisas fluírem
naturalmente, sem cobranças; porém, não sabia até onde estava disposto a
seguir com aquilo sem colocar todas as cartas na mesa.
— Vamos colocar o retorno, pode ser? — um dos auxiliares
técnicos do festival se aproximou de mim com o microfone, interrompendo
meus pensamentos.
— Claro!
O rapaz me ajudou a colocar o microfone no bolso traseiro da
calça e os fones nos ouvidos. Naquele momento, a ficha de que aquele show
era realmente profissional começou a cair, de forma lenta, mas definitiva.
Testei o microfone sobre o pedestal e minha guitarra, me
certificando de que tudo estava funcionando bem. Enquanto isso, Nevan
tocou um pouco na bateria, Davian na guitarra e Elion no baixo.
Como combinado, ensaiamos dois covers e duas músicas autorais.
Entretanto, eu gostava de surpresas e a Ravena teria uma na hora do show.
Eu só precisava deixar meus amigos e o Felix a par da mudança para não
correr o risco de as coisas darem errado, o que não poderia, de forma
alguma, acontecer.
Aquele show era o nosso passaporte para o universo musical dos
nossos sonhos, eu não podia foder com tudo.

Passamos a manhã inteira ensaiando, e quando deixamos o


gramado do palácio, já passava de uma da tarde. Almoçamos no hotel e,
após a refeição, Ravena e eu subimos novamente para a suíte, onde
adormecemos pelo resto da tarde.
Meus sonhos se resumiam a estar no palco, cantando para uma
multidão ensandecida por música, pulando, cantando e gritando o nome da
nossa banda, implorando por mais.
— Você precisa mesmo ir gato assim para o show? — Ravena
perguntou, encostada no batente da porta do banheiro com os braços
cruzados. Enquanto isso, eu abotoava minha camisa e observava meu
reflexo no espelho sobre a pia de mármore branco.
— Queria que eu fosse feio? — Sorri de canto, deixando os
primeiros botões da minha camisa branca abertos e meu colar de prata à
mostra.
— Hum… Talvez um pouquinho mais desgrenhado.
— Se eu quero conquistar fãs, tenho que parecer mais sexy do
desgrenhado. — Fiz um beicinho e lancei uma piscadinha para ela. — Já
você, não está com frio usando esse short? — Arqueei a sobrancelha,
deslizando os olhos pelas pernas expostas. Apesar de a fotógrafa estar
usando uma meia-calça preta transparente, que a deixava ainda mais sexy e
deliciosa.
— Não sinto muito frio nas pernas, sem falar que vou passar a
noite toda andando de um lado para o outro.
— Hum… sei. — Franzi o cenho, com os lábios torcidos de lado.
— Se algum engraçadinho começar a encher seu saco, me fala, mesmo que
eu tenha que parar o show para dar um esculacho nele, ou um soco mesmo.
Ravena soltou uma risada, inclinando a cabeça para trás, e
mordeu o lábio inferior ao me encarar, antes de caminhar lentamente até
mim.
Suas botas de couro a deixavam um pouco mais alta, mas eu
ainda era uns bons dez centímetros mais alto do que a marrentinha. No
entanto, seu cropped branco estilo corset, estava atraindo toda minha
atenção para a protuberância que se destacava sob ele, e eu sabia muito bem
o gosto que tem.
— Se você continuar falando assim, vou começar a pensar que
você é red flag.
— Não sou possessivo, mas quando se trata do que é meu, meu
cuidado é dobrado. — Apertei sua cintura, puxando-a para mim.
— Isso soou bem possessivo para mim… — disse baixo,
deslizando a mão quente lentamente pelo meu peito até onde a abertura da
camisa permitia.
Um rastro de arrepios foi deixado no lugar sobre a pele exposta e, se
não parássemos ali, eu a sentaria naquela pia gelada e faria coisas que com
certeza me fariam chegar atrasado ao show.
Inclinei-me para frente e rocei meus lábios nos dela, pintados de
um marrom intenso que combinava perfeitamente com sua pele macia e
pálida.
— Eu tenho uma surpresa para você…
Ravena suspirou e fechou os olhos, roçando o nariz no meu.
— Que surpresa?
— Se eu te contar, não será mais uma surpresa — brinquei,
beijando a ponta do seu nariz.
Sua risadinha ecoou pelo banheiro, e eu não me contive. Tomei
sua boca em um beijo molhado que, eu podia jurar, a deixou com as pernas
bambas. Digo isso pela força com que ela se segurou em meus ombros,
como se estivesse prestes a cair de um penhasco.
— Caleb! — Uma batida alta na porta do quarto e meu nome
sendo gritado foram os motivos de nos afastarmos, com a respiração
ofegante e os lábios formigando.
— É o Davian — Ravena sussurrou, engolindo em seco.
— Sim… — suspirei, encarando seus lábios.
Nossa química sempre me deixava desarmado. Sinceramente,
parecia uma droga, e eu estava cada vez mais viciado, sem chance de
qualquer reabilitação.
— Caleb!
— Já vou! — gritei de volta, um tanto irritado com meu amigo
por nos interromper. Porém, no fundo, eu estava grato, pois sabia que a
Ravena e eu não iríamos conseguir parar até estarmos nus.
— Vou pegar minhas coisas — disse baixo a marrentinha,
mordendo o canto do lábio inferior.
— Para de me olhar assim… — rosnei, sentindo meu membro
cada vez mais duro sob a calça. Contudo, a risadinha safada dela só
aumentou meu desejo.
— Vamos logo! — Virei-a de costas para mim, nos conduzindo
para fora do banheiro, e estalei um tapa em seu traseiro.
Ravena suspirou e me fitou por cima do ombro.
— Eu gosto disso…
Respirei fundo e estalei a língua no céu da boca.
— Mulher, você ainda vai ser a minha perdição... — Segurei seu
queixo e plantei um beijo estalado nos lábios borrados. — Acho melhor
você retocar. — Apontei com o indicador para os meus próprios lábios.
— Caleb, já estamos quase atrasados — Davian resmungou,
assim que eu abri a porta do quarto. — O Felix está uma fera.
— Ainda temos três horas…
— Diz isso pra ele, merda. — Revirou os olhos e marchou pelo
corredor em direção ao elevador.
— Isso tudo é estresse pré-show? Não quero nem imaginar como
será nos bastidores. Mas não se preocupe, estarei lá para fotografar tudo nos
mínimos detalhes. — Ravena piscou e deu um tapinha no meu ombro,
passando por mim e seguindo pelo corredor.
Enquanto isso, Davian batia o pé incessantemente no piso do
elevador, com os braços cruzados, e nem mesmo esperou eu adentrar a
caixa de metal para pressionar o botão para o térreo.
— Quer me matar esmagado antes do show? Não acho que seja
uma boa ideia — cuspi entredentes, fitando o guitarrista com uma carranca.
Davian suspirou fundo e deu de ombros.
Realmente, nós estávamos uma pilha de nervos e, em nossa
defesa, acredito que todo artista se sente assim antes de uma apresentação
importante. Não importa quantas vezes você já tenha feito aquilo, sempre
será como a primeira vez.
Isso deveria ser considerado um bom sinal, porque a partir do
momento que você não sentir mais borboletas no estômago antes de fazer
algo que você ama, é porque aquilo já não te acrescenta mais. E, no fundo,
isso é triste pra caramba.
— Quero ver se, quando formos a banda mais foda e famosa desta
Terra, ainda vamos poder passear de carro por entre uma multidão, sem um
bando de fãs malucas e sedentas no nosso pé. — Elion sorriu de canto,
enquanto eu dirigia devagar em direção ao estacionamento do palácio.
Vários espectadores já estavam no local, ocupando boa parte da
entrada do festival, e mais uma quantidade significativa chegava a cada
minuto. Estacionei meu velho Ford no gramado aos fundos do palácio que,
honestamente, já estava bem cheio, e seguimos direto para os bastidores
atrás do palco.
Felix estava conversando com um dos organizadores do evento e
acenou para nós quando nos avistou caminhando em sua direção.
— Quero todo mundo preparado, e para isso, a Lucinda vai ajudar
vocês com o aquecimento vocal — informou ele, apresentando a mulher de
pele negra, cabelos longos trançados e um sorriso gentil.
— É um prazer conhecê-los, rapazes! — Estendeu a mão para
mim e, em seguida, para os outros membros.
— O prazer é todo nosso! E obrigado pela ajuda — agradeci.
— Imagina! É um prazer testemunhar o começo da nova geração
do rock.
— Que chique... Nós somos a nova geração do rock — Elion
murmurou atrás de mim, no ouvido do Nevan.
— Vou mostrar a vocês o camarim. — Felix gesticulou com a
mão para o seguirmos.
O som de alguma banda ensaiando no palco era abafado à medida
que caminhávamos pelo interior acortinado dos bastidores, repleto de caixas
enormes de som, cabos, microfones, instrumentos musicais e dezenas de
trabalhadores.
— É aqui que vocês vão ficar até a hora do show. — Abriu os
braços, mostrando o espaço de tamanho médio, com cortinas brancas, um
sofá de três lugares e uma mesa repleta de petiscos e frutas. — Tem um
frigobar ali, com garrafas d’água, suco, latas de refrigerantes–
— Cerveja? — Elion interrompeu.
Felix arqueou uma sobrancelha e fitou o baixista.
— Não.
— Afs — resmungou baixinho, e eu sorri de canto.
— Não quero ninguém bêbado na porra do primeiro show de
vocês — resmungou o empresário. — Vou dar uma olhada nos arranjos…
Enquanto isso, fiquem aí, relaxando e, tentem manter a calma. Surtar não
vai ajudar em nada — comentou, encarando Nevan com um olhar sério.
O rapaz entreabriu os lábios, olhando confusamente entre nós, e
abaixou os ombros.
— Às vezes é mais forte do que eu…
— Tente se controlar — cuspiu Felix, antes de deixar o camarim.
Um momento de silêncio pairou sobre nós, e Ravena parecia a
mais proativa, já abrindo sua mochila sobre o sofá e tirando sua câmera.
— Não era suposto termos cabeleireiros, maquiadores e essa
porra toda? — Elion quebrou o silêncio, caminhando ao redor do camarim
com as mãos na cintura.
— Elion, abaixa a bola… — Davian gesticulou com a mão.
— Acho que vou comer um pouco desses bolinhos, parecem
deliciosos. — Nevan umedeceu os lábios, fitando as diversas opções sobre a
mesa.
— Só tenta não se empanturrar… — alertei o baterista.
O rapaz revirou os olhos e colocou o bolinho inteiro na boca.
— Vocês… falam… como se eu fosse… um guloso de merda —
disse pausadamente, com a boca cheia.
— Bem, não é educado falar de boca cheia. Então, se você não é
guloso, é mal-educado. — Ravena cruzou os braços e encarou meu amigo.
Davian e Elion soltaram risadas, e sentei-me no sofá, cruzando as
pernas com um sorriso de canto.
— Poxa, Ravena, assim você me ofende — murmurou o baterista,
fazendo um biquinho.
A marrentinha deu de ombros e colocou a câmera em volta do
pescoço.
— Não tô com a vida ganha como vocês, então vou começar a
fotografar por aqui mesmo. Depois me passa a senha da conta de vocês no
insta que, após eu editar tudo, vou postar as melhores lá.
— Mas eu sempre cuidei do nosso insta… — declarou Elion, com
um bico, me encarando como se esperasse uma intervenção minha, mas não
ia rolar.
— Que está há seis meses desatualizado — retrucou Ravena,
antes de virar as costas.
O assunto se deu por encerrado bem ali.
29

— Você precisa mesmo nos fotografar até no camarim? —


Davian questionou a fotógrafa, com o cenho franzido e a boca cheia de
donut com cobertura de chocolate.
— Claro, querido! Quanto mais íntimas forem as fotos, mais os fãs
vão se sentir próximos a vocês e curiosos para saberem mais sobre a banda,
como é o dia a dia de vocês e blá, blá, blá. — Revirou os olhos e gesticulou
com a mão enquanto verificava sua câmera, super concentrada, com o
cenho franzido e um biquinho fofo que eu queria muito beijar.
Claro que eu não faria isso na frente dos meus companheiros de
banda. Eu sei bem o que aconteceria: eles começariam a zuar e soltar
piadinhas idiotas – porque são adolescentes em corpos de homens. Além
disso, eu correria o sério risco de ficar com o maxilar quebrado, caso a
marrentinha não gostasse da minha investida e resolvesse soltar o braço,
como fez com o idiota na casa de shows no dia em que nos conhecemos.
— Eu não me importo. Na verdade, acho que nosso engajamento nas
redes sociais vai aumentar muito quando a Ravena postar fotos do meu
tanquinho de milhões. — Elion piscou arrogantemente, ajeitando seu
cabelo.
Arqueei uma sobrancelha com os lábios torcidos, enquanto fitava o
convencido.
— Não acho que o Caleb vai gostar da garota dele ficar fotografando
você seminu. — Davian umedeceu os lábios e piscou para mim.
Minha garota?
Arregalei os olhos e engoli em seco, pronto para ouvir o esculacho da
marrentinha. Para a minha sorte – ou não –, ela parecia não ter ouvido, mais
interessada nas fotos que sua câmera havia tirado, pressionando com
rapidez o botão do objeto.
Fechei os olhos e contei mentalmente até cinco, antes de fitar meu
amigo guitarrista e lançar um “foda-se” inaudível, que o rapaz entendeu
muito bem. No entanto, seu sorriso zombeteiro me fez ter certeza de que ele
não se importava com o meu olhar matador.
— Rapazes, vamos começar o aquecimento vocal? — disse
Lucinda, assim que entrou no camarim, caminhando direto em minha
direção. — Caleb, querido, qual técnica você costuma usar com mais
frequência?
— O velho e bom exercício com canudo.
— Ah, é mesmo. Chega a ser irritante aquele barulho — Elion
zombou e levou um tapa do Davian no braço. — Au!
— É um bom exercício, mas recomendo começar sempre com o
“bocejo-suspiro”, sabe como é?
Neguei, balançando a cabeça, meio sem jeito por não estar muito a
par de exercícios vocais como deveria.
— Vou te explicar, ele é bem simples. Você só precisa bocejar e
inspirar, mas com a boca fechada, e expirar pelo nariz como se estivesse
suspirando.
— Para que serve esse? — perguntou Nevan.
— Para relaxar a voz e melhorar o alcance. — respondeu ela.
Concentrado, fiz o que Lucinda disse um total de três vezes.
— Vocês são backing vocals? — perguntou a preparadora vocal aos
rapazes, enquanto eu continuava o exercício.
— Sim — responderam em uníssono.
— Então, tratem de se exercitar também. Não acho que o Felix ficará
feliz se tivermos um bando de gatos miando desafinados ao fundo das
músicas.
Segurei a vontade de sorrir e continuei expirando pelo nariz. Aquele
exercício realmente estava me ajudando a relaxar.

Assistir aos rapazes se preparando para o show e fotografar tudo,


realmente estava sendo mais interessante do que pensei que seria quando
aceitei a proposta de fotografá-los. Como disse anteriormente, a
preparadora vocal, Lucinda, estar ali era testemunhar o começo da nova
geração do rock e, sobretudo, o crescimento de uma banda que merecia o
mundo.
— Hora do show! — Caleb soltou, alongando os ombros.
Ele estava de tirar o fôlego, vestindo aquela camisa branca, com
os primeiros botões abertos e os cabelos desgrenhados como sempre, o que
o deixava com uma aparência tão sexy, digna de um astro do rock.
Volta e meia, eu me pegava assustada com as coisas que sentia
quando ele estava por perto, especialmente quando me olhava e tocava,
como se eu fosse uma preciosidade e dona dos seus sonhos e pesadelos dia
e noite. Sentia-me capaz de largar tudo se ele pedisse, e isso era tão
perigoso: aquela paixão avassaladora, a química sem limites e o desejo
constante…
— Ravena! Tira uma foto nossa? — Davian pediu, passando os
braços ao redor dos ombros do Caleb e do Elion.
— É o que tenho feito desde que cheguei — zombei.
Apontei a câmera em direção aos quatro amigos, que estampavam
a felicidade nos sorrisos e olhos brilhantes, e tirei uma foto que, com
certeza, iria para o instagram da banda.
— Parece que estou indo para guerra, no bom sentido, claro —
Elion suspirou, alongando as pernas.
— E existe bom sentido em ir para a guerra? — Davian ponderou
com um sorriso de canto, pendurando sua guitarra sobre o ombro.
— Você vai ficar na frente do palco? — perguntou Caleb, parado
à minha frente, colocando uma mecha do meu cabelo solto atrás da orelha.
— Vou andando para tentar pegar os melhores ângulos, ora sobre
o palco, ora em frente a ele… — Beijei a palma de sua mão, que estava em
minha bochecha, e fitei seus olhos.
— Obrigado.
— Pelo quê?
— Por estar aqui, me apoiando, apoiando a gente, mesmo com
seu humor de um milhão de alfinetes.
Soltei uma risada e umedeci os lábios.
— Não precisa agradecer. Na verdade, fico feliz de estar aqui
antes de vocês se tornarem os fodões do rock and roll e esquecerem da
fotógrafa freelancer aqui — murmurei com a cabeça baixa e um sorriso
bem sem graça.
— Hey! — ergueu meu queixo e me fitou sério, até demais. —
Sem chance disso acontecer.
Suspirei fundo e engoli em seco com seu tom confiante e
decidido.
— Caleb, hora do nosso grito de guerra. — Nevan gesticulou com
a cabeça para que o vocalista se aproximasse deles, do outro lado do
camarim.
— Vocês têm um? — Arqueei a sobrancelha, com um meio
sorriso.
— É meio que o nosso ritual pré-show. — Deu de ombros e
beijou minha mão antes de seguir até seus amigos.
Meu coração batia tão forte no peito que me obriguei a sentar no
sofá e beber metade de uma garrafa de água.
— É isso, pessoal. Nós vamos subir naquele palco e entregar
tudo, como sempre fizemos e até mais — Caleb garantiu, com os braços ao
redor dos ombros do Elion e do Davian.
Os quatro membros da Smash Secrets estavam reunidos em um
pequeno círculo, enquanto eu os observava. Deixei a garrafa de água ao
meu lado, sobre o sofá, e tirei algumas fotos do momento íntimo entre eles.
— Vai dar tudo certo! — afirmou Elion, estendendo a mão.
— Já deu tudo certo. Por que quem nós somos? — comecei.
— SMASH SECRETS!
— E para onde vamos?
— INFINITO E ALÉM! — Ergueram as mãos e soltaram risadas,
antes de se abraçarem e pegarem seus instrumentos.
— Vocês roubaram a fala do Buzz Lightyear? — perguntei, bem-
humorada.
Caleb sorriu e deu de ombros.
— Somos fãs de Toy Story.
— E se encaixou bem, não é? — Nevan abriu um sorriso de
canto, colocando seus fones, e eu assenti, balançando a cabeça.
Acompanhei os rapazes pelo corredor, e o som da multidão do
lado de fora, e da banda que estava se despedindo no palco se tornaram
mais altos à medida que nos aproximávamos do local atrás das cortinas.
— Boa sorte! — falei para Caleb, com as mãos em seu peito.
— Obrigado, marrentinha. — Sorriu, exibindo seu par de
covinhas irresistíveis.
A banda que estava se apresentando saiu do palco e passou
rapidamente por nós, cumprimentando os membros da Smash.
— Smash Secrets, pode assumir o palco — informou um dos
integrantes do staff do festival, gesticulando com a mão para que os rapazes
subissem ao palco.
Caleb beijou meus lábios rapidamente, ajustou seu par de fones e
seguiu seus amigos em direção ao palco. Quando eles pisaram no local, os
gritos começaram a ecoar, e eu abri um sorriso, fitando o público atrás de
uma enorme cortina preta.
O local estava lotado; quase não havia espaços vazios no gramado
que se estendia por toda propriedade do palácio. Pessoas estavam sentadas
até no alto da colina, que com certeza oferecia uma visão privilegiada do
palco e de seus ocupantes.
— E aí, Leeds in the park? Nós somos a Smash Secrets e vamos nos
divertir juntos esta noite! — Caleb saudou o público, com sua guitarra
pendurada sobre o ombro e um dos braços erguidos.
A resposta da plateia foi um coro de gritos e assobios, antes de os
espectadores começarem a ecoar o nome da banda por todo campo aberto
em uma sincronia quase programada.
Com um sorriso satisfeito e orgulhoso, comecei a disparar flashes
em direção ao palco, tirando fotos de todos os ângulos possíveis, fazendo de
tudo para registrar cada minuto daquele dia tão especial para os rapazes.
Os primeiros acordes de um cover de “Beautiful things” de
Benson Boone começaram a preencher o espaço a céu aberto, antecipando a
performance de Caleb com a música do momento. A plateia foi à loucura
quando a guitarra entrou em cena, tornando a música mais potente.
Assistir a todas aquelas pessoas cantando junto com a banda era
indescritível. Fiz questão de fotografar a reação do público, por isso desci
do palco e fui para a grade. A visão era bem melhor e me permitia ver o
Caleb de frente e trocar alguns olhares com ele.
No entanto, mesmo querendo seus olhos em mim o tempo todo,
eu não queria atrapalhá-lo. Sorri com esse pensamento e fui para o outro
lado, passando em frente a uma multidão de garotas que gritavam e
cantavam junto com o meu… Engoli em seco, balancei a cabeça e voltei a
tirar mais fotos.
— CALEB, SEU GATO DA PORRA! — gritou uma das garotas,
que estavam se matando para conseguirem manter seus lugares na grade.
Entretanto, o decote da fulana era tão profundo que eu quase
podia ver seus seios prestes a saltar para fora. Voltei meu olhar para o palco,
mais especificamente para o vocalista da Smash, e franzi o cenho.
Caleb poderia ver aquilo de um ângulo muito mais
comprometedor…
Trinquei o maxilar e fiz questão de ficar à frente da garota.
— Hey! Você tá tampando a minha visão. — ela tocou meu
ombro, com a voz irritada.
— Sinto muito, querida, mas aqui é o melhor local para tirar as
fotos. — Fitei-a por cima do ombro e abri um sorriso falso.
A garota revirou os olhos e continuou a gritar.
Honestamente, se minha câmera não fosse tão preciosa – e cara – eu
daria na cara daquela groupie com ela.
— Valeu, pessoal! — agradeceu Caleb após o fim da primeira
música da noite. — A próxima música, vocês provavelmente não
conhecem, mas é de nossa autoria. Então, gostaria que vocês batessem
palmas e nos acompanhassem, tudo bem?
— SIM! — respondeu o público em alto e bom som.
Aquele era, de longe, o trabalho mais prazeroso que já tinha feito.
Mesmo tendo que subir e descer escadas, andar de um lado para o outro em
frente às enormes caixas de som e ficar com os ouvidos zumbindo, eu fiquei
feliz por estar ali.
Minha câmera estava lotada de fotos e até alguns vídeos que
filmei, e naquele momento a Smash Secrets se preparava para a última
música da noite.
— A última música da noite–
— AAAAAAH! — O coro de lamentações do público interrompeu a
fala de Caleb, fazendo-o soltar uma risadinha deliciosa e olhar para seus
companheiros.
— Sinto muito, pessoal. Se pudéssemos, também ficaríamos aqui a
noite toda com vocês…
— YEAH!
Caleb soltou outra risada e coçou a nuca, meio sem jeito.
— Mas tenho certeza de que vocês vão se divertir com os outros
artistas da noite! — Respirou fundo para recobrar o fôlego, antes de
continuar: — A próxima música é cover de uma das nossas bandas
preferidas, especialmente minha. Eles são uma grande inspiração para mim,
e alguém especial gosta muito desta canção. Espero que ela goste, e vocês
também.
Franzi o cenho e cruzei os braços, com minha câmera pendurada ao
redor do meu pescoço.
— Agora, por favor, acendam a lanterna dos celulares. Vamos fazer
isso juntos.
O que eles estavam aprontando? E que pessoa especial era essa de
quem o Caleb falou?
A resposta para todas as minhas perguntas veio quando a melhor
música de todas começou a ser tocada naquele palco grande, para aquela
multidão de pessoas, balançando os celulares, iluminados com luzes
amarelas.
Engoli em seco quando o cantorzinho começou a cantar “I Wanna Be
Yours”.

Eu quero ser o seu aspirador de pó


Respirar sua poeira
Eu quero ser seu Ford Cortina
Eu nunca vou enferrujar

— Ele disse que é a sua favorita da banda — Felix sussurrou ao pé


do meu ouvido, com os olhos grudados no palco, enquanto exibia um
sorriso orgulhoso.
Assenti com os olhos marejados.
A versão original era maravilhosa, mas a voz de Caleb conseguia
abalar minhas estruturas a ponto de me fazer favoritar mais um cover do
que a versão da minha banda favorita. Se bem que, naquele momento, acho
que o Arctic estava indo para a segunda posição.
Se você gosta de seu café quente
deixe-me ser sua xícara
Você que manda, amor
Eu só quero ser seu

— Eu realmente quero ser seu! — Caleb acrescentou no final da


música e piscou para mim.
Engoli em seco com a declaração explícita e apertei a minha mão
em meu braço para controlar a agitação que percorria minhas veias. Aquele
homem estava se infiltrando em cada poro do meu ser, grudando na minha
pele de fora para dentro.
— Foi um prazer passar essa meia hora com vocês! Nos vemos em
breve. Valeu, Leeds in the park! — Caleb agradeceu e deixou o palco após
se curvar em uma reverência, que agradou muito o público, levando-os a
gritar ainda mais.
Não perdi tempo e, com passos largos, segui para os bastidores.
Tudo o que eu queria era encher aquele cara de beijos e tudo mais
que ele pedisse.
— Vocês foram fodas pra caralho! — Felix disse alto, estampando
um largo sorriso ao entrar no camarim, seguido por mim.
Não prestei atenção em nada ao redor; meu foco estava no Caleb, que
sorria para seus amigos, enquanto deixava sua guitarra sobre o sofá. Sem
dizer uma palavra, virei seu rosto para mim e o beijei, arrancando um
suspiro do músico. Ele passou os braços ao redor da minha cintura e,
mesmo sendo pego de surpresa, correspondeu ao beijo com o mesmo fervor.
— WOW!
— FIU-FIU!
Os assobios e exclamações ecoaram pelo camarim, mas nada era
capaz de desgrudar meus lábios dos do cantor, exceto a necessidade humana
de respirar. Se não fosse por esse pequeno detalhe, ainda estaríamos
trocando salivas com muito prazer.
— Peguem um quarto! — reconheci a voz de Elion.
Caleb e eu nos afastamos do beijo, ofegantes, e nos encaramos,
com o peito subindo e descendo rapidamente, e as testas grudadas.
— Você me pegou de surpresa, cantorzinho…
— Mas você gostou? — Roçou seu nariz suavemente no meu,
com os olhos fechados.
— Se eu não tivesse, duvido que estaria aqui te beijando a ponto
de sugar a sua alma.
O rapaz soltou um riso e bicou meus lábios uma última vez, antes
de se afastar e fitar a pequena plateia ao nosso redor.
— Valeu pessoal! Nós fizemos isso.
Todos aplaudiram, e Caleb abraçou seus amigos, que não
escondiam a satisfação e o orgulho que estavam sentindo uns dos outros.
— Felix. — Caleb virou para o empresário com uma expressão
séria.
— Sim?
— Quero agradecer a você em nome da banda. Obrigado por
acreditar em nós e não ter desistido, mesmo quando estávamos
desconfiados de suas boas intenções.
— A recompensa está aí. Não precisam agradecer. — Felix abriu
os braços e deu um abraço no músico.
— O Caleb tem razão, e… — Elion começou e estalou a língua
no céu da boca. Pela expressão em seu rosto, eu sabia que o quer que seja
que ele tivesse a dizer, era bem difícil para ele. — Foi mal por todas as
vezes que eu fui um idiota com você. Eu só estava tentando nos proteger.
Felix estreitou os olhos e abriu um meio sorriso para o rapaz.
— Vem aqui, seu cordeirinho em pele de bad boy.
Todos soltaram uma risada, e Elion revirou os olhos; no entanto,
foi até o homem, dando-lhe um abraço.
30

— Acho que agora podemos finalmente assinar o contrato… —


Olhei para Felix.
O homem arqueou as sobrancelhas, obviamente surpreso, e
balbuciou.
— C-claro! Eu o deixei… — Fez uma pausa, batendo nos bolsos
de sua calça e, em seguida, nos de seu terno, até finalmente tirar um
conjunto de folhas grampeadas do bolso interno da peça. — Está aqui!
— Você ficava andando com esse contrato para cima e para
baixo? — Elion perguntou com uma careta.
— Sou um homem prevenido. Eu não sabia quando vocês
mudariam de ideia, então achei por bem manter o contrato por perto antes
de mudarem de ideia.
Ninguém argumentou contra suas palavras.
— Mas antes de assinar, vamos dar uma lida, né? — sugeriu o
baixista, pegando o contrato das mãos do homem.
— Eu não entendo bem essas coisas, mas… — Comecei.
— Eu entendo, meu irmão é advogado — disse Ravena.
Fitei-a com os lábios entreabertos e murmurei um “obrigado”.
A fotógrafa piscou e começou a ler o documento após Elion entregá-
lo em suas mãos.
— Existe uma multa de cinquenta mil libras por quebra de contrato?
— perguntou ela a Felix, com a sobrancelha arqueada.
— Sim. — respondeu o empresário, dando de ombros como se fosse
algo comum.
Poderia ser para ele, mas definitivamente não para nós.
— Cinquenta mil? — Davian soltou um suspiro alto e profundo,
balançando a cabeça.
— Isso se aplica tanto a mim quanto a vocês — esclareceu.
— É, mas a diferença é que você dispõe desse valor, já a gente… —
Elion cuspiu e cruzou os braços.
— Aqui também há uma cláusula que deixa bem claro que vocês têm
um contrato de três álbuns sob a gerência do Felix — continuou a
marrentinha.
— Se a gente gravar três álbuns, já é uma vitória — disse Nevan,
bem-humorado.
— Bem, aparentemente está tudo dentro da lei. — Ravena entregou-
me o contrato. — Fora a multa, não há nenhum risco para vocês —
sussurrou ao pé do meu ouvido.
— Ok! Vamos assinar este contrato logo — falei, pegando a caneta
que Feliz estendeu para mim.
Fui o primeiro a assinar as quatro folhas. Davian foi o próximo,
seguido por Nevan e, por último, Elion.
— Bem-vindos ao mundo do rock and roll, Smash Secrets! —
exclamou Felix, erguendo uma lata de refrigerante.
— Parabéns! — disse Ravena ao meu lado, acariciando meu braço
sobre as tatuagens.
Abracei a fotógrafa, girando-a ao redor da sala, enquanto ela
soltava risadinhas que apenas aumentavam minha felicidade, impossível de
descrever com palavras.
— Vocês ainda vão vender mais do que os Beatles! — Felix
acrescentou, tão sonhador quanto nós.
— Ah, meu querido, não somos tão ambiciosos assim. — Sorri de
canto, balançando a cabeça, e passei os braços ao redor do peito da
marrentinha.
— Mas devem! Quem sonha pequeno não conquista coisas
grandes. Você conquista a proporção dos seus sonhos. — Piscou, apertando
meu ombro.
— Já que é assim, quando vamos começar a produzir o nosso
primeiro álbum?
Todos olhamos para o Elion. Sua pergunta pegou todos de
surpresa, embora fosse algo que, no fundo, todos estávamos pensando.
— Isso vai depender de vocês e da resposta do público.
— Mas você é o nosso empresário…
— Sim, mas não sou dono de uma gravadora. Eles querem que
vocês mostrem trabalho para então fazer uma proposta.
Todos abaixamos a cabeça e permanecemos em silêncio antes de
Felix continuar:
— Não façam essas caras de derrota. Para a alegria e sorte de
vocês, acabei de receber uma mensagem do Declan e “Ocean Eyes” está
quase pronta. Daqui a alguns dias vamos poder impactá-la nas rádios!
— O quê? — perguntamos em uníssono, com os olhos
arregalados.
— E o melhor vocês ainda não sabem–
— Tem mais? — perguntei.
— Ah, sim, e é muito melhor! Então, é bom vocês continuarem
sentadinhos. — Gesticulou com as mãos. — Depois de algumas ligações e
ter que chorar, e não estou brincando, eu tive mesmo que encenar um choro,
consegui encaixá-los para uma entrevista em uma rádio famosa da capital, e
se tudo der certo, vocês vão lançar a música nova ao vivo em Londres.
— Caralho!
— Porra!
— Uau, Felix! Você está conseguindo subir no meu conceito… —
Elion cruzou os braços, balançando a cabeça.
— Acredite, não é a minha intenção. — Sorriu falso.
Abri um sorriso de canto, enquanto Davian e Nevan se
contorciam nas cadeiras, com as bocas entreabertas e os olhos como duas
linhas finas, sorrindo silenciosamente, com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— E para comemorar, que tal uma pizza? É por minha conta —
ofereceu o nosso empresário oficial.
— Só se for agora! — Davian vestiu sua jaqueta, pegou sua case
sobre o sofá e pendurou sobre o ombro.
— Encontro vocês na pizzaria próxima ao hotel em meia hora,
combinado?
Nevan e Elion fizeram sinal de continência e seguiram Felix em
direção à saída do camarim.
— Cal, vamos te esperar no estacionamento, pode ser? — Davian
perguntou, parado no batente da porta.
Assenti.
— Vê se não demora. — Elion piscou, gesticulando entre mim e a
Ravena.
— Vai se foder. — Revirei os olhos, fazendo o baixista soltar uma
risada. — Se quiser, pode ir com eles… eu preciso muito ir ao banheiro —
falei para Rav, acariciando sua bochecha quente.
— Ok! Te vejo lá. — Bicou meus lábios e vestiu seu cardigan
azul antes de caminhar confiante para fora do camarim, com sua câmera
pendurada ao lado.
Deslizei os olhos pelo seu corpo e suspirei diante da visão de suas
coxas torneadas sob a meia-calça preta. Balancei a cabeça e umedeci os
lábios. Se eu continuasse com aquela ideia, estaria com uma ereção difícil
de resolver.

O festival ainda não tinha acabado enquanto eu caminhava em


direção ao estacionamento do palácio. A música alta e os gritos da plateia
ecoavam ao longe, e um sorriso despontou em meus lábios ao encarar o
palco do outro lado, o mesmo onde eu e meus amigos fizemos nossa estreia
nacional.
A ficha ainda estava caindo, mas eu estaria mentindo se dissesse
que não estava me sentindo foda pra caramba ao lembrar das milhares de
pessoas que gritavam o nome da nossa banda e cantavam junto com a gente.
Não existia coro mais bonito.
Meu celular soltou um bip com a notificação de uma mensagem,
e eu nem precisei ler para saber que se tratava da Ravena. Com certeza, a
fotógrafa já tinha visto a foto que mandei para ela e já tinha uma opinião
formada e pronta para me lançar.
Abaixei a cabeça, ainda com meu sorriso sonhador, e parei de
repente quando senti uma mão em meu ombro.
Olhei para trás e vi uma garota, que com certeza nunca tinha visto
antes.
— Olá! — saudou com um largo sorriso. Seu cabelo longo e preto
chegava até a metade de sua cintura fina, e sua maquiagem pesada a fazia
parecer mais velha do que realmente era.
— Olá — saudei de volta, ficando de frente para ela.
A iluminação ali não era das melhores, mas volta e meia as luzes
do holofotes se refletiam na copa de algumas árvores ao redor, que ainda
não estavam completamente nuas devido à chegada cada vez mais próxima
do inverno.
— Você não me conhece, mas… A minha avó é sua vizinha —
esclareceu ela, mascando um chiclete.
Franzi o cenho e, em seguida, arqueei as sobrancelhas com a
constatação.
— Você é a Zola, neta da senhora Prince!
— Isso mesmo! Ela te falou sobre mim?
Assenti com um sorriso de canto.
— Ela disse que você se tornou nossa fã depois de assistir à matéria
sobre nós no canal da BBC.
A garota, que não aparentava ter mais do que vinte anos, sorriu e
umedeceu os lábios, olhando desavergonhadamente meu corpo de cima a
baixo, mesmo na penumbra da noite.
— É uma pena que eu não tenha conhecido vocês antes… Vocês são
o máximo! — Aproximou-se e pegou meu colar, deslizando os dedos sobre
a bijuteria de prata. — Você é o máximo.
Sorri forçado.
— Valeu — murmurei e desviei o olhar.
— Você tem companhia pra depois do festival? — Sorriu, com o
lábio inferior preso entre os dentes, enquanto enrolava uma mecha de seu
cabelo, ainda brincando com o meu colar.
Abri a boca para responder, mas uma certa fotógrafa foi mais rápida:
— Tem sim, querida. E é comigo. — piscou, com um sorriso falso,
entrelaçando o braço no meu.
Aquilo era ciúmes? A marrentinha estava se rendendo ao meu
charme irresistível?

— Onde o Caleb se meteu? — Davian resmungou impaciente,


olhando ao redor escuro do estacionamento.
— Eu vou procurá-lo. — declarei.
No entanto, enquanto caminhava com um sorriso nos lábios, pelo
gramado parcialmente iluminado do estacionamento em busca do
cantorzinho, pensava na selfie que ele tinha tirado no banheiro, com a
camisa aberta, e enviado para mim. Contudo, eu preferia que ele tivesse
tirado a calça.
Meu sorriso se esvaiu quando meus olhos pousaram sobre o Caleb,
conversando com uma garota que não parava de exibir os dentes para o
músico, como se ele fosse dentista, em um canto próximo a uma árvore.
Se não fossem as luzes dos holofotes, eu não os teria visto.
Engoli em seco e arregalei os olhos quando a ideia de que talvez
aquela fosse a Isla, a tal ex dele, surgiu em minha mente. E quando dei por
mim, meus pés já estavam me levando até os dois.
Cheguei bem a tempo de ouvir a nojenta praticamente se oferecer a
ele em uma bandeja.
— Você tem companhia para depois do festival? — Sorriu ela,
com o lábio inferior preso entre os dentes, enquanto enrolava uma mecha de
seu cabelo, brincando com o colar do cantorzinho.
Caleb até abriu a boca para lhe dar uma resposta, porém, eu fui
mais rápida:
— Tem sim, querida. E é comigo. — Pisquei, com um sorriso falso, e
passei os braços ao redor dos ombros e peito do músico, antes de plantar um
beijo molhado em sua bochecha e deixar a marca do meu batom.
A garota me encarou da cabeça aos pés com desdém, arqueou a
sobrancelha e exibiu um sorriso sem graça, porém irritante e egocêntrico.
— Se mudar de ideia, gatinho, estou hospedada no Leeds Hotel,
apartamento 402. — piscou, ignorando totalmente a minha presença, e
deslizou a língua pelos dentes.
Mas era muita cara de pau mesmo!
— Com certeza, ele não vai mudar de ideia, querida, porque
estará ocupado demais gemendo o meu nome para se lembrar de uma
groupie como você. — declarei com o queixo erguido.
— Jesus, Ravena. — Caleb suspirou e apertou minha cintura,
certamente na tentativa de me controlar, mas se havia uma coisa que eu não
levava para casa era desaforo.
— Groupie? — rosnou a suposta fã, fechando as mãos em punho ao
lado do corpo.
Arqueei a sobrancelha e dei de ombros. Eu poderia ter dito coisa
muito pior, e nós duas provavelmente iríamos rolar naquele gramado. No
entanto, eu detesto baixaria, ainda mais por causa de homem, embora
admita que as minhas mãos estavam coçando…
— De qualquer forma, quando eu for visitar a minha avó, dou uma
passadinha no seu apartamento para dizer um “oi”. — afirmou ela, com um
sorrisinho, e passou por mim, fazendo questão de chocar seu ombro contra
o meu.
Me virei, pronta para puxá-la pelos cabelos – que, honestamente,
eram longos demais –, mas Caleb segurou meu braço suavemente.
— Não vale a pena.
— E que merda é essa de avó?
— A avó dela é minha vizinha.
— Afs! — ralhei, respirando fundo.
— Isso nem é você sendo possessiva, não é?
Franzi o cenho e fitei seu sorriso arrogante.
— Eu só não gosto de dividir.
— Mesmo? Eu quase podia jurar que você curte uma orgia…
Dei um tapa em seu ombro e revirei os olhos, fazendo-o soltar uma
risada e me puxar pela cintura.
— Eu sei que você nunca vai admitir isso, mesmo sob tortura, mas
gosto de ver esse seu lado ciumento–
— Não é ciúmes.
— Marrentinha… — Ergueu meu queixo e encarou meus olhos. —
Seja honesta consigo mesma ao menos uma vez.
— Tá, seu chato! Eu fiquei com ciúmes! Satisfeito?
Caleb inclinou a cabeça para trás, com um largo sorriso, e ergueu os
braços, como se a Inglaterra tivesse acabado de fazer um gol na Copa do
Mundo de Futebol.
— Eu queria ter gravado isso.
— Idiota! — Empurrei seu peito e dei as costas, marchando em
direção ao carro onde seus amigos nos aguardavam.
Caleb deu uma corridinha para me alcançar e, antes de nos
aproximarmos de seus amigos, segurou-me pelo braço e me puxou, fazendo
com que minhas costas se chocassem contra o tronco de uma árvore. Em
seguida, ergueu meus braços acima da cabeça.
— Aquilo sobre eu estar ocupado demais gemendo o seu nome foi
uma promessa?
— Ah, querido. Aquilo foi um juramento. — Inclinei-me para frente
e puxei seu lábio inferior entre os dentes, mantendo contato visual.
Caleb ofegou e soltou um rosnado baixo antes de colidir os lábios
contra os meus.
— Eu vou cobrar, marrentinha, e aí de você se não cumprir… —
Deslizou as mãos pelas curvas do meu corpo até acomodá-las no meu
quadril.
— Mas eu vou, porque eu quero isso tanto quanto você. — Puxei um
punhado de seu cabelo, fazendo-o abrir um sorriso com os olhos fechados e
umedecer os lábios. — Agora vamos, antes que seus amigos façam ligação
direta no seu carro e nos deixem aqui. — Empurrei-o suavemente pelo peito
e segurei sua mão.
— Uau! Você já está mesmo entendendo como eles são.
Franzi o cenho antes de entender o que ele disse e soltei uma
risadinha.
31

— Essa pizza é a melhor que eu já provei! — Nevan soltou, com


a boca cheia e os olhos fechados.
A pizzaria onde marcamos de nos encontrar com o Felix estava
parcialmente cheia, e aquela já era a nossa segunda pizza da noite.
Estávamos tão famintos e animados com os próximos passos da banda que
seríamos capazes de comer todas as mais de vinte opções de sabores do
menu.
— Eu ainda consigo sentir os arrepios de quando ouvi o público
cantando com a gente, especialmente na parte em que aquele mar de
pessoas ergueu os celulares com as lanternas ligadas e começou a cantar “I
Wanna Be Yours”… Cara, foi surreal. — Elion soltou um baixo assobio e
pegou mais uma fatia de pizza, fazendo uma longa linha de queijo
acompanhá-la até sua boca.
— Essa é uma noite pra ficar na história da nossa banda — disse
Davian pensativo, com os braços cruzados e as pernas esticadas sob a mesa.
— Ravena, quero as melhores fotos nas redes sociais da banda até
o final do dia de amanhã — Felix disse em tom autoritário, antes de levar
seu copo de cerveja à boca.
— Isso não é um pouco rápido? A marrentinha passou o dia todo
tirando fotos… — comecei, com o cenho franzido, não satisfeito com sua
imposição.
— Tá tudo bem. — Ravena segurou meu braço, acariciando a
pele quente. — Amanhã à noite, quando eu chegar em casa, dou uma
conferida e seleciono as melhores.
Assenti fraco e bebi um gole de cerveja gelado.
— Vou até dar uma olhada no nosso Instagram pra ver quantos
seguidores conseguimos após o festival. — disse Elion, tirando o celular do
bolso do moletom.
— A última vez que eu olhei, estávamos com 8 mil — Davian
murmurou, mastigando sua pizza.
— Puts! — Elion soltou e mordeu a mão fechada em punho. —
20 mil seguidores.
— O quê? — Arregalei os olhos.
Davian e Nevan quase saltaram sobre o baixista para ver a tela do
aparelho.
— Caralho! — exclamou o nosso guitarrista antes de soltar uma
risada alta, que atraiu olhares dos outros clientes da pizzaria.
— Uau! Isso foi bem rápido. — Felix sorriu de canto, palitando
os dentes.
Fitei a fotógrafa ao meu lado e seus olhos já estavam sobre mim.
Apesar do seu sorriso, seus olhos pareciam distantes e… tristes?
— Parabéns! Vocês estão crescendo… — Ela pegou minha mão e
a segurou em seu colo.
Assenti e lhe dei um abraço, beijando seu cabelo perfumado.
A segunda pizza da noite já tinha acabado, e meus amigos
pediram a terceira; no entanto, eu já estava mais do que satisfeito. Por isso,
estava de pé no corredor, aguardando Ravena sair do banheiro, o que não
levou mais do que cinco minutos.
— Você realmente não consegue ficar longe de mim, não é? —
disse ela, zombeteira, assim que me encontrou ao lado da porta.
— Mais ou menos isso… — Pisquei e cruzei os braços. — Na
verdade, vim te fazer um convite.
— Qual?
— Tem uma colina não muito longe daqui, na saída da cidade.
Ouvi dizer que a vista de lá é incrível… A gente podia ir até lá beber umas
cervejas e–
— E? — arqueou uma sobrancelha, com o lábio inferior entre os
dentes.
— Conversar — completei com um meio sorriso.
— Aham, sei…
De mãos dadas, voltamos ao salão da pizzaria e as gargalhadas
estridentes dos meus amigos ecoavam por todo o espaço. O estabelecimento
estava praticamente deserto, e eu podia jurar – com base nas expressões
faciais – que os funcionários do local não viam a hora de que aqueles quatro
– porque eu estava incluindo o Felix – partirem, de preferência da cidade.
— Ravena e eu vamos dar uma volta — informei, de pé, fitando
os quatro.
— Hum… os pombinhos querem ficar sozinhos. — Elion insinuou,
fazendo um coração com as mãos.
Revirei os olhos e mostrei o dedo do meio para o meu amigo, que
apenas soltou uma risada e acenou para nós.
— Se cuidem! E vocês sabem o que eu quero dizer. — Felix
reforçou e piscou antes de bebericar mais um gole de sua cerveja.
— Sou uma mulher prevenida! — Ravena piscou de volta, me
fazendo arquear as sobrancelhas enquanto entrelaçava nossos dedos.
— Ah, e não esqueçam de que amanhã vamos embora bem cedo.
— Davian alertou com o indicador erguido.
— Vocês não vão sem mim. O carro é meu e as chaves estão
comigo. — Balancei o objeto entre meus dedos após tirá-lo do bolso da
minha calça.
— Esqueci desse detalhe — resmungou e revirou os olhos.
Acenei com um sorriso vitorioso para eles e fui até o balcão da
pizzaria. Peguei quatro garrafas long neck de cerveja com o barista e deixei
o local com a marrentinha.
Enquanto dirigia pela estrada deserta, o vento soprava em meus
cabelos e nos da fotógrafa, que estava com o braço para fora através da
janela do carro, cantando uma canção que tocava na rádio. Apesar de
algumas nuvens, a lua brilhava no centro do céu, com algumas estrelas ao
seu redor, tornando o clima relaxante e um pouco nostálgico.
Estacionei o carro no gramado da colina e peguei duas garrafas de
cerveja. Ravena, por sua vez, deixou sua câmera no porta-luvas do Ford e
saiu do veículo.
— Uau! A vista daqui é mesmo incrível. — suspirou a
marrentinha, observando a cidade abaixo da colina, parecendo tão distante,
com suas luzes acesas.
— Foi o que eu disse. — Entreguei-lhe uma garrafa e nos
sentamos na grama.
— Nem me lembro a última vez que saí assim, só para curtir em
paz, sem barulho na minha cabeça e um bando de desocupados opinando
sobre a minha vida. — comentou ela, com as pernas dobradas e os
cotovelos sobre os joelhos, antes de levar sua garrafa à boca.
— Suas amigas parecem se importar com você…
— Eu sei que sim, mas às vezes o silêncio e a solidão são a nossa
melhor companhia.
Assenti fraco e fitei a cidade. Era possível ver o brilho de alguns
vagalumes se aventurando ao redor das árvores e o canto dos grilos atrás de
nós.
— Quando meu pai morreu, eu costumava passar horas deitado
no jardim da nossa casa, sozinho, olhando para o céu, enquanto me
perguntava se ele podia me ver de lá.
Eu podia sentir o olhar dela sobre mim e, quando ela permaneceu
quieta e em completo silêncio, continuei, ainda fitando a vista noturna e
brilhante da cidade de Leeds:
— Não é sobre religião, é sobre você acreditar que a morte não é
o fim, mas apenas o começo, entende? — Virei o rosto e a encarei.
— Acho que sim…
— Os primeiros meses foram os mais difíceis. Havia dias em que
eu achava que iria morrer de tanta saudade. Minha mãe chorava escondido
no quarto deles quase todas as noites, mas eu sempre ouvia quando
acordava durante a madrugada, por não conseguir dormir, e passava em
frente à porta do quarto dela.
— Eu sinto muito mesmo, Caleb. — sussurrou, afagando suavemente
as minhas costas, enquanto deslizava as mãos para cima e para baixo.
— Com o tempo as coisas vão voltando ao “normal”, mas você sabe
que nunca mais serão as mesmas. Você simplesmente se acostuma com a
ausência de alguém, é como se a pessoa tivesse ido ao mercado e fosse
voltar a qualquer momento. A diferença é que a espera dura a sua vida
inteira.
Um silêncio confortável, porém sombrio, pairou sobre nós. Eu
sabia o que ela estava pensando, mas optei por não tocar no assunto.
Encontrar ou não a família novamente era uma escolha que só cabia a ela, e
eu estaria ao seu lado, não importando sua decisão.
— Sua família deve estar muito orgulhosa de você, e creio que
seu pai, onde quer que ele esteja, também está. — disse a marrentinha,
quebrando o silêncio com um sorriso reconfortante.
Deixei a garrafa, já vazia, deitada na grama e a abracei. O calor
do seu corpo e os batimentos do seu coração eram capazes de curar
qualquer ferida que estivesse aberta em algum canto da minha alma.
Nesse momento, a realidade me atingiu.
Eu estava me apaixonando por Ravena e não conseguia enxergar um
caminho de volta.

— Você sabe o nome de todas as constelações? — perguntei,


curiosa, com uma mão sobre seu peito e a cabeça descansando abaixo de
seu ombro.
Sua mão deslizava lentamente pelas minhas costas, enquanto a
outra descansava sob sua cabeça, servindo de travesseiro. Estávamos
deitados na grama, observando o céu estrelado, e Caleb me contava o nome
da constelação que aparece durante o outono no hemisfério Norte: Pegasus.
— Não, mas gostaria.
— Ela se parece com uma aranha gigante. — Franzi o cenho e
inclinei a cabeça de lado, tentando realmente identificar as posições das
estrelas.
— Agora que você disse… Realmente, parece que aquelas na
posição leste são patas enormes — disse, bem-humorado, e eu ergui a
cabeça para ver seu sorriso zombeteiro.
— Você está zombando de mim. — Belisquei seu mamilo,
fazendo-o abrir a boca com uma careta.
— Isso dói. — Acariciou o local.
Dei de ombros e me sentei antes de esticar os braços acima da
cabeça.
— Acho melhor a gente voltar para o hotel... Eles têm horário
limite para entradas durante a noite, não?
— Talvez, mas eu realmente preciso de um banho. — Caleb
puxou a gola de sua camisa, cheirando-a rapidamente.
Em seguida, ele levantou-se e bateu as mãos na calça jeans.
— Preciso de ajuda. — Fiz um beicinho e estiquei os braços em
sua direção. O rapaz revirou os olhos com um sorrisinho e me ajudou a
levantar da grama. Então, pegamos as garrafas de cerveja vazias e seguimos
em direção ao veículo do músico.
O interior do carro estava bem mais quente do que o gramado do
lado de fora. Apesar de há minutos não sentir frio, a brisa que bateu em meu
rosto conseguiu deixar minha pele arrepiada, mesmo sob meu cardigan.
Sentadinha no banco do Ford Cortina, coloquei o cinto de
segurança em perfeita sincronia com Caleb antes de o rapaz ligar o veículo
– ou pelo menos tentar. No entanto, apenas ecoou um barulho estranho e o
motor nem deu sinal de vida.
— Afs — resmungou ele, girando novamente a chave na ignição,
apenas para ouvir o mesmo ruído irritante de antes. — Merda. — Socou o
volante e suspirou fundo, com a cabeça apoiada no encosto do banco.
— Não funciona?
Caleb negou, balançando a cabeça, e abriu a porta do carro.
Permaneci sentada no banco do passageiro enquanto o observava
abrir o capô do veículo.
— Não dá pra enxergar muito bem com a lanterna do celular.
— Quer que eu ajude? Posso segurar o aparelho… — falei da
janela do carro.
— Nah… Não acho que vai resolver. — Suspirou fundo, bateu o
capô com mais força do que o necessário e voltou para o interior do Ford.
— Acho que deve ser algum problema na ignição, mas só vou conseguir ter
certeza pela manhã. — Passou as mãos pelo cabelos antes de me fitar. —
Parece que vamos ter que passar a noite aqui.
— Hum… a ideia não me parece tão ruim. — Olhei ao redor.
Exceto pelas luzes dos faróis e as da cidade abaixo da colina, não
havia nenhuma outra luminosidade.
Caleb virou o rosto em minha direção e abriu um meio sorriso.
— Você não tem medo?
— Eu? — Revirei os olhos. — Até parece que você não me
conhece. Caso tenha se esquecido, meu soco de direita é certeiro e capaz de
causar um estrago bem grande no nariz alheio.
A risada dele preencheu o interior do veículo, e me peguei
observando-o com um sorriso bobo, sentindo os cantos dos meus lábios
erguidos, mesmo que de forma involuntária.
— Com isso, eu tiro a conclusão de que você definitivamente não
é uma donzela em perigo.
— Está corretíssimo! — Cruzei os braços e fechei os olhos, com a
cabeça encostada no banco. — E o que você sugere que façamos? Porque
não estou com o mínimo de sono.
— Acho que tenho um baralho de UNO por aqui…
Abri um olho e o fitei de soslaio.
— Sério que essa é a sua sugestão?
— Você tem outra melhor? — Arqueou a sobrancelha, e eu sabia
que o safado estava me provocando.
Dei de ombros e fechei os olhos novamente.
— Eu poderia escrever uma lista…
— E qual seria a opção número 1? — Ouvi seus movimentos no
banco e senti o calor que emanava de seu corpo mais próximo ao meu, mas
não abri os olhos.
— Me diz você…
Caleb começou a beijar o meu pescoço, deslizando os lábios pela
pele arrepiada, enquanto sussurrava coisas em meus ouvidos que faziam o
meu ventre se contrair e aumentavam o meu desejo insaciável por ele a cada
segundo.
— O banco é reclinável, você sabe… — provocou, mordiscando
o lóbulo da minha orelha.
Abri os olhos e o encarei.
— Sexo no carro me parece interessante. — Arqueei a
sobrancelha.
— Coisas interessantes são a minha especialidade. — Piscou,
deslizando a mão tatuada pela minha coxa.
Se não fosse aquela bendita meia-calça, eu estaria ainda mais
molhada.
— Além disso, você fez uma promessa. — Fez uma pausa,
balançou a cabeça, com a língua entre os dentes e continuou, baixo e rouco:
— Aliás, você fez um juramento de me deixar bem ocupado gemendo o seu
nome para não ir atrás da minha fã tão… dedicada.
— Cala a boca — rosnei, empurrando-o pelo peito e colocando-o
de volta, sentadinho e lindo no banco do motorista. Montei em seu colo e
segurei seu rosto em concha, mantendo seu olhar preso ao meu. — Não
tente me provocar, porque eu tenho certeza de que você não vai aguentar
lidar com as consequências…
Caleb mordeu o lábio inferior e cravou as mãos no meu traseiro,
puxando-me contra sua ereção, já bem destacada sob sua calça.
— É um risco que estou disposto a pagar… — disse baixo,
deslizando o nariz lentamente sobre o meu peito.
Fechei os olhos e inclinei a cabeça para trás.
— Tira esse short… — ordenou, brincando com as fitas do meu
cropped, antes de puxá-lo de lado. Seus olhos quase saltaram quando
encarou meu peito nu. Eu não estava usando sutiã; o top me permitia aquele
luxo.
— Você sempre vai reagir assim quando ver os meus seios?
— Eles são lindos demais para eu reagir de outra forma…
Não tive tempo de soltar um deboche, pois o músico abocanhou
um deles e sugou a pele de maneira deliciosa e lenta.
Gemi baixinho e apertei seus ombros, rebolando em seu colo.
Caleb parecia tão desesperado que enfiou a mão dentro do meu short,
apenas para soltar um gemido frustrado quando encontrou a barreira da
minha meia-calça.
Soltei uma risadinha e o encarei, sorrindo ainda mais ao notar o
vinco entre suas sobrancelhas.
— Merda! Por que você tinha que usar essa meia-calça sob o
short?
— Para dificultar a sua vida.
— Discordo, é para me matar de tesão, isso sim.
Soltei uma risada e sentei-me no banco do passageiro ao lado,
sentindo os olhos do rapaz grudados em mim. Fiz de tudo para disfarçar as
mãos trêmulas enquanto deslizava o short pelas pernas antes de atirá-lo no
banco de trás, acompanhado da bendita meia-calça.
Caleb apenas abriu a calça e a prendeu sob os joelhos, deixando
expostas suas coxas bronzeadas e torneadas, antes de puxar sua cueca pelo
mesmo caminho. Confesso que salivei com a visão. Ele parecia uma pintura
de tão perfeito.
Voltei a me sentar em seu colo e nós dois soltamos um gemido
com o contato nu e cru.
— Não tenho preservativo, marrentinha… — sussurrou em meu
ouvido, acariciando minhas coxas nuas.
Engoli em seco. Seria muita imprudência transar sem camisinha,
mas eu sentia como se fosse entrar em combustão caso não tivesse aquele
homem naquele momento.
— Eu tomo pílula… — Encarei seus olhos.
— Não quero que se sinta forçada…
Cobri sua boca com a mão e balancei a cabeça.
— Nada com você me faz sentir obrigada, lembre-se disso. —
Substituí minha mão pelos meus lábios e puxei sua camisa com mais força
do que o necessário.
Caleb suspirou e olhou para o botão da peça, que foi parar no
painel do carro, antes de soltar uma risada, que eu imitei, tão surpresa
quanto ele.
— Talvez eu vá precisar de uma camisa nova.
Revirei os olhos e o beijei novamente.
Eu não queria papo nem comentários sarcásticos; eu o queria, ele e
somente ele.
Suspiramos em uníssono à medida que seu membro me invadia,
lentamente, deslizando com uma facilidade quase vergonhosa. Nunca, em
toda a minha vida, havia ficado tão excitada por alguém, nem mesmo na
minha primeira vez…
Para, Ravena. Caleb não é ele.
Fechei os olhos apertados, me concentrando no prazer que
somente Caleb era capaz de me proporcionar, e comecei a cavalgar em seu
colo. Os gemidos lascivos do músico eram melhores do que qualquer
canção.
Suas mãos deslizavam pelo corpo, e sua voz suave o fazia tremer de
prazer, enquanto minha pele se arrepiava, implorando pelo seu toque.
Se alguém me perguntasse a sensação de fazer amor sem uma
barreira, eu diria que era melhor do que todo algodão doce do mundo. Era
uma comparação idiota, mas minha mente estava nublada demais para
pensar em coisa melhor.
— Porra… — Caleb gemeu, empurrando o quadril contra o meu.
— Você é tão… — Engoliu em seco. — E-eu… — inclinou a cabeça para
trás com os olhos fechados.
Nossa respiração ofegante embaçava os vidros do carro,
aumentando ainda mais o calor. Nossos corpos estavam suados e
escorregadios. Tudo era tão intenso e profundo, que eu seria capaz de
desfalecer com tamanha sensação.
— Ah, Caleb… — gemi, aumentando o ritmo.
— Estou aqui, linda… — Ele encarou meus olhos.
— E-eu vou… — Abri a boca, com os olhos estreitos.
— Vem comigo… — implorou rouco, estocando com mais força.
Me senti em uma cena do filme Titanic quando, consumida pelo
prazer e sem mais forças para lutar contra o orgasmo iminente, espalmei
minha mão suada na janela do carro, deixando ali sua marca registrada.
Éramos uma bagunça suada, satisfeita e perfeita.

Meu peito subia e descia ritmicamente, ao mesmo tempo que o de


Caleb sob o meu. Seus braços me mantinham aquecida, mas após todo
nosso intercurso, tivemos que abrir as janelas do seu velho Ford porque o
calor estava quase insuportável. No entanto, naquele momento, o vento
soprava mais frio, fazendo-me encolher entre os braços fortes do rapaz.
— Tá com frio?
— Um pouco.
— Eu tenho uma manta no porta-malas que geralmente uso para
forrar o assoalho e não deixar os instrumentos arranharem… Vou pegar. —
Beijou o topo da minha cabeça, levantou-se delicadamente, me deixando
sentada sobre o banco de couro, e saiu.
Segundos depois, ele voltou com a peça felpuda.
— Prometo que está limpa. — Sorriu de canto, voltando a se deitar
no banco antes de me puxar novamente para os seus braços.
Eu poderia ficar ali para sempre.
Apesar de negar para mim mesma, eu era inteligente o suficiente para
saber que estava me apaixonando por Caleb e não sabia até onde estava
disposta a levar tudo aquilo. As marcas no meu coração ainda eram
profundas demais; se eu as tocasse, poderia sentir a saliência na ponta dos
dedos.
Ele não merecia ser engolido pelos meus fantasmas.
Fechei os olhos ao ouvir sua voz cantarolar a música que ele
escrevera para mim e adormeci.
32

— Pode ligar! — gritei para a Ravena, que estava sentada no


banco do motorista do meu Ford, pela terceira vez naquela manhã.
Minha camisa, que até a noite passada era branca, estava suja de
graxa e amarrotada, sem contar os botões que faltavam devido ao desejo
desesperado da marrentinha em arrancar a peça do meu corpo.
Um sorriso de canto se abriu em meu rosto com a lembrança,
enquanto eu balançava a cabeça. Voltei a fitar as velas e cabos da ignição do
veículo, com um braço esticado segurando o capô e uma mão na cintura.
Ravena girou a chave na ignição e finalmente, o som do motor
roncou em alto e bom som.
— Foi! — gritei satisfeito e abaixei o capô. — Agora podemos
voltar para o hotel — afirmei assim que a marrentinha saiu do carro, com
uma manga do seu cardigan caída de lado, deixando exposta, sua pele
macia e sua câmera pendurada ao lado.
— Você fica sexy parecendo um mecânico de beira de estrada…
— Mordeu o lábio inferior, puxando-me pela camisa até parar à sua frente.
— Mais algum fetiche que eu deva saber?
— Além de curtir homens fantasiados de Aladim, transar no carro
e rockeiros românticos que escrevem músicas para mim?
Arqueei a sobrancelha, acariciei seu rosto e me inclinei para
sussurrar em seu ouvido, apertando sua cintura:
— Não gostei do plural… — Lambi o lóbulo de orelha e abri um
sorriso arrogante ao ouvir seu suspiro. Suas mãos apertaram em torno do
tecido de algodão, deixando-o ainda mais amarrotado.
— Convencido. — Empurrou-me pelos braços.
Soltei um riso baixo e passei a mão pelo cabelo.
Aposto que os fios ondulados estavam desgrenhados e
implorando por uma lavagem caprichada.
— Uau! Olha aquele nascer do sol. — Ravena suspirou e apontou
com o indicador. Apesar de ainda estar um pouco sonolento, avistei o
mesmo que ela.
— É mesmo de tirar o fôlego — concordei.
— Com certeza, uma foto desse lugar seria digna de uma exposição.
— Não seja por isso — soltei, atraindo sua atenção.
— Como assim?
— Fica ali, vou tirar uma foto sua.
— E-eu não estava falando de mim — murmurou com um biquinho,
visivelmente confusa.
Sem dar atenção, fui até o carro, abri o porta-luvas e peguei minha
câmera Polaroid.
— Não é uma super câmera como a sua, mas dá pro gasto. Agora fica
ali. — Indiquei com o dedo para que ela ficasse de costas entre duas árvores
que estavam nos fundos.
Naquele momento, a natureza parecia combinar mais com a
serenidade que exalava da marrentinha do que a cidade do outro lado do
campo.
Desde que conheci Ravena, nunca a vi tão leve e relaxada como
naquele instante.
— Não tô acostumada a ficar em frente à câmara. — Sorriu tímida,
colocando seus longos cabelos de lado.
Fitei-a com um sorriso, sentindo o coração batendo forte e quente.
Ela ficava ainda mais linda quando estava tímida, uma pena que soubesse
esconder isso tão bem.
O nascer do sol ao fundo da colina enfeitada, com algumas árvores
solitárias, e a marretinha exibindo um sorriso delicado, com o vento
soprando seus cabelos, pareciam uma verdadeira miragem, da qual eu
nunca me cansaria de admirar.
Ela parecia deslumbrante, com um braço atrás da cabeça, algumas
mechas de seu cabelo beijando seu rosto, um dos ombros exposto e a
câmera pendurada ao lado do quadril estreito.
Ravena não brincou quando disse que me transformaria em um poeta.
Cliquei na câmera e a foto instantânea foi impressa com
qualidade e filtro.
— Deixa eu ver! — Correu até mim e pegou o pedaço de papel.
— Uau! Ravena Watts, você é mesmo uma gata.
— E nada egocêntrica e narcisista — zombei, pegando a foto de
volta.
— Diz o senhor superego rockstar. — Fez um beicinho, com o
cenho franzido, e ergueu os braços como se estivesse exibindo os músculos
que faltavam ali.
— Eu não me acho um rockstar. Eu sou um. — Pisquei, fazendo-
a revirar os olhos. — Agora vamos voltar logo para o hotel. Já são quase
sete da manhã e, conhecendo aqueles três como eu faço, eles já devem estar
surtando.
— Como você sabe quantas horas são? — perguntei, com a
sobrancelha arqueada.
— Pela altura do sol.
— Sério?
— Uhum… — Peguei sua mão, nos conduzindo até o carro.
— Isso parece tão o meu avô falando.
— Eu aprendi com o meu, quando costumávamos sair para
acampar em Hampshire.
Ravena assentiu antes de abrir a porta do carro, seguida por mim.
— Meu celular morreu. Merda — resmunguei, ligando o carro
após tentar entrar em contato com Davian para avisá-lo do nosso retorno
para o hotel.
— O meu só tem 5%. Vou passar a viagem toda lendo meu
livro… — Deu de ombros, com os olhos fechados, sentindo o vento soprar
em seu rosto à medida que o carro avançava pela estrada.
— Você gosta de ler?
— Sim.
— Davian vai ficar feliz em saber disso.
— Sério que o guitarrista gosta de ler?
Assenti, com os olhos grudados na rodovia.
— Bom saber que alguém ali tem cultura.
— Hey! Eu também sou… culto.
Ravena deu um tapinha na minha coxa, mas não disse nada.
— Vou interpretar seu silêncio como uma concordância —
resmunguei, ouvindo sua risadinha.

— Cara, onde vocês se meteram? Eu te liguei mais de vinte


vezes! — foi a primeira coisa que o guitarrista da Smash Secrets cuspiu
quando colocamos os pés na calçada, após Caleb parar o carro em frente à
entrada do hotel.
— Meu carro teve um problema nas velas e cabos de ignição.
— Ah, acasalar no meio do mato agora mudou de nome. — Elion
soltou debochado, e eu não contive um meio sorriso com sua audácia e
comentário desnecessário.
Eu era exatamente igual.
— Cala a boca — Caleb rosnou para o amigo e mostrou o dedo
médio.
— Acasalar? Você parece comigo falando com o namorado da
minha amiga Alissa.
— Por quê? Por um acaso ele é um animal?
— 99% do tempo ele se comporta como um. — Dei de ombros.
— Imagina ser namorado de uma amiga da Ravena, deve ser pior
do que a casa dos horrores. — brincou Davian.
— Engano seu. Eu sou apenas uma amiga prudente e atenciosa.
Quero o melhor para elas, assim como elas querem para mim.
— Se você diz. — O guitarrista encolheu os ombros e abriu a
porta de trás do carro. — Vamos embora logo.
— Mas temos que pegar as nossas coisas… — comecei,
apontando por cima do ombro para a entrada do hotel .
— Ah, não precisa se dar ao trabalho. Quando soubemos que os
pombinhos passaram a noite fora, a moça da recepção, que por um acaso é
nossa fã, nos fez a gentileza de entrar na suíte de vocês e pegar seus
pertences. — sorriu Davian com ironia.
— Economizamos tempo e o risco de vocês fornicarem
novamente, enquanto nós ficávamos aqui, parados feito três patetas. —
Elion exibiu um sorriso falso, antes de entrar no carro e assumir seu lugar
ao lado da janela do passageiro no banco de trás.
Olhei para Caleb, com os lábios entreabertos, e ele deu de
ombros. O cantorzinho apenas beijou minha testa e deu a volta no carro
para assumir novamente sua direção.
Umedeci os lábios e balancei a cabeça.
Eu só esperava que a viagem de volta fosse mais rápida. Apesar
de ter me divertido, eu precisava muito dormir na minha cama.

Caleb foi gentil o suficiente para me deixar em casa primeiro,


então eu não quis abusar da sua boa vontade e prendê-lo com beijos e
carícias, mesmo que a vontade não me faltasse.
Ele ainda tinha que deixar seus amigos em casa e, a julgar pelos
olhos inchados e um pouco vermelhos, o músico estava exausto após dirigir
por mais de quatro horas até a minha casa.
— Boa sorte amanhã na rádio. Vou fazer questão de sintonizar
para não perder o lançamento da minha música.
— Sua música?
— Você entendeu, Elion. — Revirei os olhos e beijei rapidamente
os lábios do cantorzinho. Peguei minha mochila no assoalho sob meus pés e
deixei o carro. — Juízo, crianças. — Acenei com um sorriso zombeteiro,
ouvindo os resmungos dos rapazes.
Apertei os lábios para esconder meu contentamento e atravessei a
rua. Caleb buzinou, com o lábio inferior preso entre os dentes, e colocou
seu par de óculos escuros enquanto avançava pela rua.
Assim que fechei a porta do apartamento atrás de mim, fui direto
para o meu quarto. Nem mesmo fiz questão de saber se a Alissa estava em
casa; tudo o que eu queria era tomar um banho e dormir na minha cama
pelo resto do dia e da noite, se deixassem.

— Você acha que essa camisa combina com essa calça, Candy?
— perguntei à gata pela segunda vez naquela manhã, como se os miados
dela realmente fossem me dar uma opinião concreta.
No dia anterior, quando a busquei na casa da senhora Prince, dei
de cara com a neta da mulher, a Zola. Meus olhos quase saltaram das
órbitas, mas consegui disfarçar bem, talvez não tanto quanto a neta da
minha vizinha, que parecia outra pessoa vestida dos pés à cabeça como uma
puritana.
Eu duvidava muito que a senhora Prince desconfiasse da dupla
personalidade da neta, que praticamente havia se atirado nos meus braços
dois dias antes e quase saído no tapa com a marretinha. Por falar nela, era
melhor a Ravena nem sonhar com esse reencontro...
Fitei meu reflexo no espelho uma última vez e me dei por
satisfeito.
Minha camisa preta, com os primeiros botões abertos e a calça
jeans da mesma cor, rasgada nos joelhos, pareciam o look perfeito para uma
entrevista em uma das rádios mais famosas da Inglaterra.
Um sorriso incessante pintava meus lábios desde a hora que
acordei. Se bem que eu nem havia dormido realmente, apenas cochilei uma
ou duas horas. Tamanha era minha ansiedade e animação, que meus olhos
não conseguiam permanecer fechados por mais do que alguns minutos.
Se tudo corresse bem, nossa música poderia entrar no top 100 da
Billboard. Eu sei que talvez isso fosse sonhar alto demais, mas ninguém
nunca foi preso por acreditar que sonhos, por maiores que sejam, possam se
realizar.
— Me deseje sorte, Candy. — Olhei para a gata, deitada em
minha cama.
— Miau!
Meu sorriso se alargou – se é que era possível – e beijei o topo de
sua cabeça pequena.
— Prometo que quando eu for rico, você só vai comer enlatado de
marca.
— Miau! — A gata me encarou profundamente, talvez com um
pouco de dúvida, e voltou a lamber sua pata.
Balancei a cabeça e peguei meu celular, colocando-o no bolso
traseiro.
A entrada dos estúdios da Capital FM nunca me pareceu tão
atraente como naquele momento em que a encarava de pé na calçada. O
prédio de seis andares, pintado de branco, com um enorme letreiro azul com
o nome da rádio, seria o primeiro lugar onde iríamos tocar oficialmente o
novo single da nossa banda.
Meu estômago se revirava toda vez que eu me lembrava de que teria
que falar ao vivo para milhares de ouvintes, incluindo Ravena, que
prometeu ouvir toda a nossa participação no programa de rádio.
— Caleb! — Davian surgiu atrás de mim e sacudiu meus ombros.
Seus olhos estavam brilhando, e acredito que os meus estavam igualmente
radiantes, se não mais. — Pronto para a nossa primeira entrevista oficial?
— Nasci pronto. — Eu realmente queria acreditar nisso.
Como líder da banda, eu me sentia no dever de manter a ordem e
o ânimo entre os membros, mas às vezes só desejava ter alguém que fizesse
isso por mim.
Meus amigos e eu entramos no prédio e encontramos Felix já no
interior do estúdio, conversando com o radialista responsável pela
entrevista, Elliot Hart, um dos mais famosos do país.
— Aí está a banda do momento. Smash Secrets! É um prazer
conhecê-los, rapazes. — Elliot cumprimentou cada um de nós com um
aperto de mãos firme e profissional.
— O prazer é nosso — afirmei em nome da banda.
— Então, não vamos perder tempo! Entramos no ar em cinco
minutos. — Abriu a porta da sala de transmissão e apontou para uma mesa
grande, com vários computadores, microfones e câmeras. — Podem se
sentar ali. A Daphne vai ajudá-los com o microfone.
— Essas cadeiras são macias. Agora, eu realmente estou me
sentindo um rockstar — sussurrou Elion ao meu lado, girando na cadeira de
estofado almofadado.
— Mantenha os dois pezinhos no chão — sussurrei de volta e dei
um tapinha em sua coxa com um sorriso zombeteiro.
O baixista deu de ombros e sorriu para a moça, que supus ser a
Daphne, e nos ajudou a colocar os fones.
— Preparados? — Elliot perguntou, com os polegares erguidos, e
nós assentimos.
Minha testa estava úmida, me obrigando a secá-la com a manga da
minha camisa. Tentei disfarçar quando vi a câmera focada em mim. Quase
me esqueci de que a entrevista seria gravada e posteriormente postada no
canal da rádio no YouTube.
— No ar em, 3, 2, 1!
— Bom dia para você que está no metrô, trem, ônibus, carro, moto
ou apenas caminhando apressado pelas calçadas da cidade rumo a mais um
dia de trabalho ou estudo. Boa sorte para vocês! — Elliot soltou uma risada.
— Hoje estamos nos estúdios da Capital FM com a banda queridinha do
momento dos internautas, que arrasou no último final de semana no festival
de Leeds, a Smash Secrets! — Disse alto o nome da banda e começou a
aplaudir, junto com os outros funcionários da rádio presentes no espaço.
— Rapazes, antes de tocarmos a música em rede nacional pela
primeira vez, os fãs nos mandaram algumas perguntas no Twitt– X. — Ele
fechou os olhos, com os lábios apertados. — Cara, eu nunca vou me
acostumar com esse nome. — Suspirou, balançando a cabeça.
Meus amigos e eu sorrimos em concordância. O clima estava
descontraído e, aos poucos, o nervosismo estava dando lugar ao entusiasmo
de ouvir uma música nossa tocando pela primeira vez em uma
rádio.
— Vamos lá! A primeira pergunta é da Alora Jones e foi feita
para o vocalista: “Caleb, Ocean Eyes está creditada como uma composição
sua, então podemos ter o prazer de saber quem é a musa inspiradora por trás
dela”? Hum, eu também estou curioso para saber a resposta.
Inspirei fundo. Apesar de já prever aquela pergunta, ainda não
tinha certeza de como deveria respondê-la. Olhei para Felix, posicionado
com os braços cruzados atrás do vidro, e ele discretamente balançou a
cabeça.
Entendi aquilo como um sinal de que não deveria entrar em detalhes.
— É aquela velha história: conto o milagre, mas não conto o
santo.
Todos soltaram uma risada, e o radialista ergueu as mãos.
— Vamos ter que aguardar mais um pouco para descobrir…
Agora, a pergunta que não quer calar: vocês pretendem lançar um clipe
oficial de “Ocean Eyes”?
— Hã… — Abri a boca, mas não consegui formular uma
resposta.
— Claro! — Elion tomou a palavra, segurando o microfone à sua
frente, e eu quase o chutei sob a mesa. — Nosso empresário já está
cuidando disso. — Piscou com um sorriso para Felix, que arregalou os
olhos, assentiu com um sorriso forçado e ergueu o polegar.
Ele iria matar o baixista e, se precisasse de ajuda, eu estava mais
do que disponível.
— Wow! Podemos esperar muitas surpresas e novidades da
banda. — garantiu o radialista, parecendo animado.
— A próxima pergunta é para o Elion, e foi feita pela Pandora
Watson. Aqui ela diz: “Elion, você é um gato”, palavras dela — Elliot fez
uma pausa bem-humorada, com as sobrancelhas arqueadas, arrancando
risadas dos presentes, antes de continuar: “Você tem alguma tatuagem
secreta?” Elion, pense bem na resposta, não queremos que o programa saia
do ar.
Novamente um coro de risadas preencheu o ambiente.
— Tudo bem, tudo bem! — O baixista ergueu as mãos, bem-
humorado. — Não é secreta, mas tenho sim, querida. É uma flor com as
pétalas fechadas, e fica no meu… — Fez uma pausa dramática, e o
sonoplasta soltou um som de tambores para entrar na brincadeira. —
Antebraço — completou com os lábios torcidos, como se estivesse
decepcionando a internauta com a sua resposta.
— Satisfeita, Pandora? — brincou o radialista. — Vamos agora
com pergunta para o Davian, guitarrista da Smash. Essa pergunta é boa,
hein! Ela foi feita pela Ashley Calloway: “Davian, eu amei a sua guitarra.
Ela é recomendada para iniciantes?”
— Hã… Sim! É uma Stratocaster, e por ser considerada uma das
mais versáteis do mercado, ela é super recomendada para quem está
começando a tocar o instrumento.
— Aqui no final ela ainda pergunta se você pode ensiná-la com
aulas particulares…
Todos soltamos uma risada, e eu achei ainda mais graça quando
as bochechas do meu amigo coraram.
— Seria um prazer. — Engoliu em seco, com um sorriso sem
jeito.
— Só temos mais duas perguntas e a próxima vai para o Nevan,
baterista da banda. Hazel Greenwood pergunta: “Nevan, estou apaixonada
pelo seu cabelo cacheado, casa comigo?” Acabamos de receber uma
proposta de casamento, minha gente! E aí, Nevan, encontramos a futura
senhora Gray?
Meu amigo soltou uma risada nasalada e balançou a cabeça baixa.
— Acho que, antes de aceitar a proposta, temos que nos conhecer
melhor, Hazel. Mas não é impossível! — piscou, com o polegar erguido,
olhando diretamente para a câmera.
— Ouviu, né, Hazel? A esperança é a última que morre. — Elliot
apontou e também piscou para a câmera. — Agora, a última pergunta que
selecionamos vai para todos da banda e foi a mais pedida nos comentários
do nosso perfil na rede social do passarinho, porque eu me recuso a falar X
de novo.
— Você acabou de falar — brincou o sonoplasta do outro lado do
estúdio, com a voz soando abafada.
Elliot deu um tapa na própria testa e continuou:
— Os fãs querem saber qual de vocês está solteiro e se rola um
encontro com uma delas.
— Estamos todos solteiros e, claro que sim, estamos abertos a
encontros com as nossas fãs. Afinal, elas são as nossas maiores inspirações
— Elion soltou, galanteador.
Davian e Nevan me encararam, com o cenho franzido, e eu apenas
balancei a cabeça.
O que eu poderia dizer? Era a verdade.
Embora não me considerasse totalmente solteiro devido ao meu
relacionamento com a Ravena, que sinceramente, não fazia ideia de como
definir, eu estava tecnicamente solteiro. Pelo menos até colocarmos as
coisas em pratos limpos.
— Agora, vocês fizeram a alegria da nação! E para comemorar,
vamos logo soltar essa música, porque eu já não me aguento de ansiedade
— declarou Elliot.
Elion pegou minha mão sob a mesa e apertou tanto, que senti
meus dedos estalarem. Fechei os olhos e respirei fundo.
Aquela era a hora da verdade, o ponto de partida da Smash em
direção ao infinito e além.
33

O livro de capa dura que eu segurava nas mãos, em pé na sessão


de romances de época da livraria, quase caiu no chão quando Elliot Hart,
um dos radialistas mais famosos do país, anunciou que “Ocean Eyes”
começaria a tocar.
Naquele momento, até me esqueci do fato de que Elion tinha
respondido pelos rapazes sobre seus status de relacionamento. Não que eu
tenha ficado irritada pelo Caleb estar na roda, porém ele não estava
totalmente solteiro. Quero dizer, ele estava, e eu também, mas…
Meus pensamentos em crise foram interrompidos quando a
música começou a tocar. Tentei conter ao máximo o sorriso que se formava
em meus lábios, enquanto mordia o lábio inferior com tanta intensidade que
a pele ardia, e então suspirei fundo.
— Não posso acreditar que eles conseguiram — murmurei
baixinho, emocionada, ouvindo a voz linda de Caleb ressoar através dos
alto-falantes da livraria.
Minhas mãos estavam um pouco trêmulas devido à emoção e às
lembranças da noite em que Caleb cantou aquela música para mim. Fui a
primeira a ouvir aquela canção, e ninguém poderia tirar isso de mim.
Apertei o livro contra o peito e me encostei na parede, com os olhos
fechados, ouvindo atentamente cada palavra da minha canção.
Seus lindos olhos azuis são como as águas do oceano
Me levam para longe, além do infinito
Você me deixa mergulhar no oceano dos seus olhos?
Por favor, me deixe mergulhar no oceano dos seus olhos.

A versão de estúdio era boa, mas não se comparava à versão


acústica e intimista que eu tive o prazer de ouvir Caleb cantar
exclusivamente para mim.
— Essa é aquela banda que tocou no Live at Leeds no final de
semana? — ouvi uma garota cochichar com outra que estava ao seu lado,
segurando um exemplar de “Uma sombra na brasa”.
— Acho que sim… Minha prima foi ao show e disse que eles são
uns gatos, principalmente o vocalista. Ela garantiu que as tatuagens só o
deixam mais sexy e quente.
Ambas soltaram uma risadinha, e eu não sabia se sorria porque
estavam falando bem – até demais – dos rapazes, ou se ficava brava por
todas estarem focando mais no Caleb.
Eles são quatro, por que o Caleb tem que ser o mais cobiçado?
Geralmente é o que acontece com os vocalistas... Meu
subconsciente parecia contra mim naquela situação.
Suspirei fundo e peguei meu celular.
Elas até poderiam falar o quão sexy e atraente Caleb é, mas quem
tinha o número pessoal dele e iria lhe mandar uma mensagem naquele
momento era eu, a musa inspiradora de “Ocean Eyes”, e não elas, simples
fãs anônimas.
Mesmo sabendo que ele só conseguiria ver a mensagem mais
tarde, escrevi brevemente sobre ter ouvido a música na rádio de uma
livraria – não muito longe do prédio da rádio – e que eu estava super feliz
por eles.
Eu queria muito vê-lo, então, como quem não quer nada, tratei de
especificar onde ficava a livraria, caso ele saísse da rádio e quisesse me
encontrar lá. O melhor era não criar expectativas. A agenda da banda estava
ficando mais cheia e o tempo livre do rapaz, mais escasso.
Uma parte de mim, a mais egoísta, no fundo, começava a temer o que
aquilo poderia significar para nós e para o nosso relacionamento sem
rótulos.

Assim que a música acabou, todos na rádio, inclusive nós


mesmos, começamos a aplaudir. Meus olhos estavam marejados, assim
como os dos meus amigos. Estávamos tão felizes, que era difícil conter as
lágrimas.
Aquele era o começo da realização do nosso sonho.
— Essa música com certeza vai para a minha playlist! — Elliot
garantiu assim que abriram novamente seu microfone. — E por falar nisso,
fãs da Smash Secrets, tratem de dar o máximo de streams que puderem em
todas as plataformas digitais. Vamos fazer essa música rodar o mundo!
— Obrigado! — agradeci, fungando o nariz.
— Querem deixar algum recado para os fãs de vocês?
— Queremos agradecer o apoio e por acreditarem na gente. Nós
não vamos decepcioná-los. — Davian afirmou com um sorriso largo.
— Obrigado pela presença, rapazes! Espero recebê-los
novamente para o lançamento de uma nova música.
— Valeu, Elliot! — agradecemos em uníssono.
A entrevista se encerrou e uma música começou a tocar enquanto
saíamos da sala.
— Vocês se saíram muito bem — elogiou o radialista, dando um
tapinha nas minhas costas.
Agradecemos mais uma vez, antes de o rapaz voltar para o seu
trabalho. Nos despedimos do pessoal da rádio, mas bastou colocarmos os
pés na calçada do lado de fora do prédio para Felix aparecer feito um
furacão e segurar o ombro de Elion.
— Que merda foi aquela de clipe? Você tem noção do quanto custa
produzir um videoclipe profissional, garoto?! — rosnou ele, quando
estávamos a sós, segurando um cigarro entre os dedos e uma mão na
cintura.
— Admite que a ideia é boa. — Elion arqueou a sobrancelha,
com o queixo erguido, e cruzou os braços.
— Mas não sei se você sabe, geralmente lançamos a música e o
clipe juntos, não o inverso. — grunhiu o empresário.
— Então, vamos ser conhecidos por fazer diferente. Smash
Secrets, a banda de rock que veio para abalar a indústria da música! — o
baixista deslizou as mãos pelo ar como se estivesse colando aquela frase em
uma parede.
Felix bufou e revirou os olhos.
— A ideia é boa, mas não garanto nada, então, sem cobranças
para cima de mim — alertou com o dedo indicador em riste. — Nos vemos
em breve. — Não esperou por uma resposta, apenas tragou mais uma vez
seu cigarro e caminhou em direção ao seu Mustang estacionado do outro
lado da rua.
Conferi meu celular e vi uma mensagem da Ravena. Ela disse
estar super feliz e afirmou ter ouvido a música na rádio através dos alto-
falantes de uma livraria.
Uau! A música está em todos os cantos de Londres.
Decidi encontrá-la no local, rezando para que ela ainda estivesse
lá quando eu chegasse. Segundo o Google Maps do meu celular, a livraria
não ficava muito longe da rádio.
— Já pensaram se ele realmente descolar a grana para um clipe?
— Elion soltou, chamando minha atenção, enquanto eu guardava meu
celular no bolso da minha calça.
— Acho melhor a gente sonhar um pouco mais baixo… —
Davian deu um tapinha no ombro do baixista.
— Que tal uma pizza? Eu estou faminto — Nevan sugeriu,
acariciando seu abdômen chapado.
— Novidade — Elion zombou, revirando os olhos.
— Vou passar. A Ravena me enviou uma mensagem e–
— Ela já te colocou o cabresto, hein?! — brincou o baixista,
tocando meu ombro.
Revirei os olhos e afastei sua mão.
— Não é nada disso — resmunguei.
— Deixa ele, gente. — Davian piscou, passando o braços ao
redor dos ombros de Elion e Nevan. — O Caleb é jovem, assim como nós, e
tem mais é que aproveitar mesmo. A diferença é que não temos essa carinha
de cachorro pidão e esses olhos enormes de Bambi que ele tem para
desfrutar com a mesma intensidade.
— Cachorro pidão e Bambi? Isso era para ser um elogio? —
Arqueei uma sobrancelha.
Davian sorriu e deu de ombros, enquanto Nevan e Elion me
encaravam, com um brilho bem-humorado nos olhos.
— Vejo vocês por aí. — Acenei e segui em direção ao meu carro.

A sacola de papel kraft que eu carregava nas mãos, enquanto


empurrava a porta de vidro na saída da livraria, continha os dois primeiros
livros da série “Fourth Wing” da Rebecca Yarros. O feedback dos livros no
Goodreads era impressionante, com mais de um milhão de resenhas, o que
apenas aumentou minha vontade de conhecer a história da Violet
Sorrengail.
Fechei os olhos quando o vento forte soprou uma mecha do meu
cabelo sobre o rosto e apertei meu casaco ao redor do corpo com a mão
livre. Dei dois passos na calçada, que cessaram assim que ouvi meu nome
ser chamado por aquela voz, que eu pensei nunca mais ter que ouvir após o
evento da London Fashion, há mais de uma semana…
— Ravena.
Congelei, de costas para o dono daquela voz, e apertei minha mão
em torno da alça de papel.
Entretanto, Nolan era orgulhoso demais para ser deixado falando
com as paredes – o que com certeza iria acontecer, caso ele não tivesse se
colocado à minha frente, impedindo a minha passagem.
Fitei seus olhos azuis e engoli em seco, com o queixo erguido.
— O que você tá fazendo aqui? — perguntei, com a garganta
apertada, olhando ao redor.
— Vi você entrar nessa livraria e resolvi esperar para
conversarmos.
Ele estava me stalkeando?
— Nós não temos nada para conversar — cuspi e tentei passar
por ele, mas o nojento segurou meu braço.
— Rav–
— Não me chama assim — rosnei, puxando meu braço de seu
aperto.
Nolan suspirou fundo, passou a mão pelos cabelos, onde um dia
eu havia feito cafuné, e em seguida mordeu o lábio inferior.
— Eu estou tentando consertar as coisas, mas você não está
ajudando…
Entreabri os lábios e arqueei as sobrancelhas, não acreditando nas
merdas que saiam daquela boca suja.
— Tentando consertar as coisas depois de o quê? — Fiz uma
pausa e coloquei ironicamente o indicador sobre o queixo. — Quase dez
anos?
Meu ex balançou a cabeça e permaneceu em silêncio.
Revirei os olhos e tentei passar por ele novamente.
— Você tem que me escutar. — Ele puxou meu braço, apertando
a carne a ponto de fazê-la arder.
Eu ficaria com um roxo na pele, tudo por causa daquele idiota.
— Me solta, seu escroto de merda! — gritei.
— Só vou soltar quando você aceitar conversar comigo com uma
pessoa normal.
Soltei uma risada de escárnio, balancei a cabeça e mordi o lábio
inferior, enquanto lutava contra o seu aperto.
Por que ninguém se intromete quando é preciso?
— Você se julga normal?
— Eu não vou desistir de você. — Nolan avançou em minha
direção, ignorando minhas palavras. Ainda apertando meu braço, o cínico
teve coragem de tentar me beijar.
Foi preciso eu reunir toda a minha força para empurrá-lo o mais
longe possível de mim.
— Eu já disse que não quero mais nada com você! Me deixa em paz,
porra! — gritei, atraindo a atenção de alguns transeuntes, mas eu estava me
lixando se estava dando um espetáculo para eles.
— Ravena!
Suspirei aliviada e quase chorei ao ver Caleb atravessar a rua,
correndo em minha direção.
— O que tá acontecendo aqui? Quem é esse cara? — perguntou
ofegante. Com o cenho franzido, ele disparou olhares entre mim e meu ex,
envolvendo-me com os braços.
— Nolan Mayfield. — respondeu o idiota debochado, fazendo
uma reverência. — Muito prazer. Mas não se preocupe, está tudo sob
controle. Isso aqui é entre mim e a minha querida Ravena.
— Sua o caralho — ralhei.
Meu ex fingiu não ouvir e continuou, aumentando meus nervos a
um nível perturbador:
— Ravena, meu amor, vamos conversar em outro lugar, hum? As
pessoas estão nos olhando.
— Que se danem eles, que se dane VOCÊ!
Nolan engoliu em seco e deslizou as mãos pelos cabelos pretos,
mordendo o lábio inferior a ponto de deixá-lo branco. Eu sabia o que aquilo
significava: ele estava perdendo o controle e sua máscara de arrependido
escorrendo por água abaixo.
— Quer saber? Fica com a porra da sua vida sem graça e esquece
que algum dia eu quis voltar com o problema que é você! — gritou, com os
braços abertos, sorrindo como se estivesse coberto de razão, enquanto
caminhava de costas na calçada úmida.
— Hey, cara! Veja como fala com ela se não quiser que eu
arrebente a sua cara — Caleb rosnou com a mão erguida, dando um passo à
frente.
— É por isso aí que você me trocou? — Nolan cuspiu debochado,
apontando para Caleb com um sorriso nojento.
— Vai embora, Nolan — praticamente implorei.
Eu não queria que Caleb se metesse em confusão por minha causa,
especialmente naquele momento em que ele estava tão feliz e começando a
fazer sucesso com sua banda.
Uma polêmica daquelas só complicaria as coisas para ele e para a
Smash Secrets.
— Fica esperto com ela, meu amigo. Ela vai destruir a sua vida
como fez com a minha. A Ravena só é boa pra dar de quatro, mas não vale
o chão que pisa.
Tudo aconteceu muito rápido. Quando dei por mim, Caleb já
estava desferindo um soco na boca de Nolan, fazendo o rapaz cambalear
para trás e levar as mãos à boca atingida, que começara a sangrar com
tamanho impacto.
— LAVE A PORRA DA SUA BOCA ANTES FALAR ASSIM
COM ALGUMA MULHER — o músico gritou a plenos pulmões,
ofegante.
Sem fôlego, suspirei com a boca entreaberta, completamente
chocada com a atitude do cantorzinho. Mas Nolan merecia aquilo e muito
mais.
— Merda. — Meu ex gemeu, fitando as mãos sujas de sangue.
— Vamos embora. — Caleb me puxou pela mão e, entre buzinas
e freadas bruscas dos carros, nos conduziu até seu Ford Cortina. Ele abriu a
porta do passageiro para mim, a bateu com mais força do que o necessário,
e deu a volta, entrando no veículo logo em seguida.
Suas mãos tremiam e seu peito subia e descia em uma respiração
descompensada e pesada.
Era tudo culpa minha.
— Você tá bem? — perguntou baixo, me olhando pesadamente.
Assenti, sem forças para formular uma resposta.
Caleb ligou o carro e acelerou pelas ruas.
Na verdade, o rapaz estava dirigindo rápido demais, mas eu não
podia julgá-lo. Ele precisava daquilo para não enlouquecer e fazer algo
muito pior do que desferir um soco bem dado na boca do meu ex.
— Quem era o cara? — perguntou de repente, quebrando o
silêncio pesado e ensurdecedor, com uma carranca e os olhos fixos na rua à
frente.
— Meu ex. Nolan Mayfield — murmurei, com a cabeça baixa,
brincando com meus dedos sobre o colo, envergonhada demais para olhá-lo
nos olhos.
— Sério? — cuspiu com o cenho franzido, me olhando
rapidamente de soslaio.
Assenti e me encolhi sobre o banco do passageiro, apertando
minha sacola contra o peito. O silêncio que se estabeleceu dentro do carro
nos minutos seguintes era quase sufocante, aumentando minha ansiedade e
o medo de que não houvesse outra alternativa senão contar para o Caleb
tudo o que aconteceu entre mim e ele.
Mesmo sem dizer uma palavra, reconheci o trajeto por onde
estávamos passando e soube que o cantorzinho estava me levando para
casa. Tentei sorrir pelo fato de ele parecer me conhecer tão bem, mas não
consegui, porque a verdade era que ele não me conhecia.
Talvez, quando o idiota do Nolan disse ao músico que eu iria estragar
sua vida, ele estivesse certo.
34

— Vai levar o violão? — perguntei a Caleb, com o cenho


franzido, após descer do carro em frente à entrada do prédio onde moro.
— Não gosto de deixar meus instrumentos dentro do carro… é só por
uma questão de segurança. — respondeu, pendurando a case sobre o ombro
direito.
— Tá tudo bem. — Dei de ombros e segurei sua mão,
entrelaçando nossos dedos.
Eu só precisava daquele contato, saber que ele estava ali comigo e
não me julgaria pelas coisas que eu iria lhe contar sobre o meu passado.
Apesar de tremer até os ossos com a simples ideia de lhe contar todos os
meus traumas e fantasmas que me assombravam, ele tinha que saber onde
estava se metendo e com quem estava se envolvendo.
Subimos de elevador até o quinto andar e senti minhas pernas
bambas, enquanto caminhava até a porta do meu apartamento. Eu rezava
para que não tivesse ninguém em casa, pois a conversa que eu teria com
Caleb não permitia interrupções.
— Seja bem-vindo. — Abri a porta com um sorriso fraco,
tentando aliviar o clima, e deixei que ele entrasse primeiro.
Caleb murmurou um agradecimento e entrou com uma mão no
bolso de sua calça, enquanto a outra segurava a alça de sua case.
O músico foi caminhando lentamente até o centro da sala,
observando ao redor do espaço durante o curto trajeto, antes de deixar seu
instrumento em pé, encostado no sofá.
— Você e sua amiga são mais organizadas do que eu. — Ele
coçou a nuca com um meio sorriso.
Apenas assenti fraco, sentindo meus lábios tremerem quando
tentei sorrir de volta. Deixei minha sacola sobre a mesa, enquanto pensava
na melhor forma de abordar o assunto, mas não foi necessário, Caleb fez
isso por mim.
— Agora você vai me contar por que o seu ex fez aquele papel
ridículo na frente de todo mundo e, principalmente, gritou com você?
Respirei fundo, sentindo meu coração disparado, e gesticulei para
nos sentarmos no sofá após tirar meu casaco e deixá-lo nas costas de uma
das cadeiras da sala de estar.
— Eu e o… — Fiz uma pausa, deslizando a língua pelo interior
da bochecha, e inspirei fundo. — Nolan. — Engoli em seco, antes de
continuar: — Nos conhecemos há alguns anos no ensino médio.
Estudávamos na mesma escola.
Caleb escutava tudo em silêncio, o cenho franzido, prestando
atenção em cada palavra. Eu não sabia se aquilo me deixava aliviada por
notar seu interesse, ou se me deixava ainda mais nervosa, temendo sua
reação.
— Enfim, ele foi o meu primeiro em tudo, tudo mesmo. —
murmurei, longe de estar orgulhosa.
O músico se remexeu no sofá e desviou o olhar, antes de voltar a
me fitar, silenciosamente pedindo que eu continuasse. Minhas mãos
estavam cada vez mais suadas e não paravam de mexer sobre meu colo.
— Na nossa primeira vez, esquecemos de usar preservativo —
pausei, quando Caleb soltou uma lufada de ar, mas não o encarei, ou
perderia coragem. — Quase três meses depois, eu comecei a surtar porque o
meu período não descia. Então, pensei que estava grávida e contei a ele
antes mesmo de fazer um teste…
— Ele surtou. — Caleb não perguntou, ele simplesmente afirmou,
com a voz baixa e irritada, estampando um brilho raivoso nos olhos.
Assenti fraco e abaixei a cabeça.
— A princípio não o julguei. Eu também estava assustada, afinal,
só tinha dezesseis anos…
— Putz. — Suspirou ele, deslizando a mão pelos cabelos.
— Contudo, o pior foi a forma como ele me tratou depois de eu
apenas levantar a hipótese… Ele espalhou para a escola inteira que eu o
tinha seduzido para aplicar o golpe do baú.
— Canalha — Caleb rosnou, com as mãos fechadas em punho.
— Eu era muito jovem e estava apaixonada, acreditando que
aquele idiota era um princípe encantado e o amor da minha vida. — Soltei
uma risada amarga, desprovida de humor, com os olhos lacrimejando, e
funguei o nariz.
— E ainda assim, o canalha pediu para voltar? Porque eu aposto que
era isso que ele estava tentando fazer… Ele pensa que você é trouxa?
— Talvez, não sei. A Ravena do passado provavelmente teria
aceitado ele de volta — afirmei, derrotada, brincando com meus dedos.
— Mas não a Ravena de agora, não é?
O tom de voz dele me fez encará-lo. Caleb soou inseguro e até
mesmo amedrontado.
Abri um sorriso de canto e acariciei seu rosto.
— Não, a Ravena de agora mandou ele pra um lugar onde o sol com
certeza não brilha. — Pisquei, fazendo-o soltar aquela risada que me fazia
admirá-lo cada dia mais, e quebrar aquele clima estranho e pesado que se
instalara.
Caleb beijou a palma da minha mão, e aos poucos, seu sorriso foi
se desfazendo, dando lugar a um cenho franzido e olhos estreitos.
— E os seus pais?
Ele sabia a resposta, apenas queria ouvir da minha boca.
— Foi por isso que eu me afastei deles. Minha mãe me xingou
horrores, meu pai não disse nada, apenas permaneceu calado, como o bom
capacho dela que ele é. Já os meus irmãos… Você consegue imaginar. —
Mordi o lábio inferior, quando uma lágrima pingou sobre ele, e fechei os
olhos. — Meu pai acabou me expulsando de casa, e eu fui morar com uma
tia, irmã dele, a única que entendeu a minha situação, até eu completar
dezoito anos e começar a trabalhar como fotógrafa freelancer. — Soltei um
riso triste. — Minha tia foi quem comprou a minha primeira câmera.
— Mas se você não estava grávida, por que ele te expulsou?
Quero dizer, mesmo que estivesse, eles são a sua família, deveriam te dar
apoio.
Fitei Caleb com o peito apertado. Ele era mesmo um bom rapaz
por pensar daquela forma, pena que a maioria não pensasse igual.
— Porque minha mãe me considerava a vergonha da família, e ele
é covarde demais para ir contra as vontades dela… — Engoli em seco. — A
família dela sempre foi muito tradicional, seria um escândalo se eles
soubessem que a filha mais velha dos Watts, exemplo da caçula, perdeu a
virgindade aos dezesseis anos antes de se casar, e quase engravidou.
Caleb segurou minhas mãos e ergueu meu queixo. Apesar de
temer encará-lo e enxergar o nojo e julgamento em seus olhos, respirei
aliviada ao ver apenas empatia.
— Eu sinto muito que você tenha passado por tudo isso.
Pela primeira vez, em muitos anos, eu me permiti chorar e lavar toda
a amargura que habitava dentro de mim, sugando minha energia dia após
dia, e me tornando a pessoa amarga, rancorosa e debochada que eu nunca
imaginei me tornar algum dia.
No entanto, Caleb me puxou para um abraço e apertou os braços ao
meu redor, enquanto minhas lágrimas deixavam sua camisa encharcada.

Ravena ainda estava chorando e soluçando em meus ombros, e


tudo que eu queria era poder apaziguar a dor que ela estava sentindo.
Quando a aconselhei a procurar os pais, não fazia ideia do motivo que a
levou a se afastar deles em primeiro lugar. Agora, naquele momento,
sabendo a razão, não estava mais certo de que aquela era a melhor opção.
Meus pensamentos foram interrompidos quando a marrentinha se
afastou, com o rosto molhado e vermelho, me encarando.
— Você deve me achar uma escrota, não é?
— Claro que não! Marrentinha, você não teve culpa de nada. Se
alguém errou nessa história, foi o idiota do seu ex que não soube enxergar a
garota incrível e maravilhosa que ele tinha ao lado. — Sequei suas lágrimas
com os polegares, lutando contra o tremor nas minhas mãos e a raiva que
pulsava em minhas veias.
Se algum dia eu visse aquele cara novamente, duvido muito que
conseguiria manter o controle e não avançar novamente para cima dele,
causando um estrago muito maior do que apenas uma boca sangrenta.
— E-eu pensei que, quando você soubesse, iria me olhar de um
jeito diferente, me julgar… — murmurou ela, fungando o narizinho
vermelho.
— Eu não tenho o direito de julgar você, ou quem quer que seja. —
Beijei sua testa, mantendo os lábios na pele quente, e fechei os olhos,
inspirando o perfume de seu cabelo, antes de me afastar. — Mas em uma
coisa você tem razão, eu realmente estou começando a vê-la com olhos
diferentes…
Ravena engoliu em seco e entreabriu os lábios.
— C-como? — Sua voz não passou de um sussurro fraco.
— Como uma mulher forte, capaz de superar qualquer decepção de
cabeça erguida, dar a volta por cima e seguir em frente. É assim que eu vejo
você, Ravena Watts.
A fotógrafa não sabia se sorria ou chorava, ou ambos ao mesmo
tempo; ela apenas lançou os braços ao meu redor e murmurou um
agradecimento, com a voz trêmula e abafada pelo contato.
Inspirei fundo e fechei os olhos, mantendo-a segura em meus braços.
— Fazia muito tempo que eu não chorava assim… Mas foi bom, me
sinto como se um peso tivesse sido tirado das minhas costas.
Sorri de canto e afaguei seus cabelos longos.
— Se ele voltar a te incomodar, você vai ter que denunciá-lo, e isso
não é um conselho, é uma ordem — falei sério, fitando-a com intensidade.
Ravena assentiu com os lábios pressionados juntos.
— Mas não acredito que ele vá voltar… O Nolan é um covarde de
merda e só estava agindo daquela forma por estar com o ego ferido e não
aceitar o fato de eu não me rastejar de volta para ele.
— Ainda assim, marrentinha... Você promete que vai me falar?
— Prometo. — Cruzou os dedos e os beijou para enfatizar sua
promessa. — Me ensina a tocar? — pediu de repente, apontando para a case
onde estava meu violão.
— Posso tentar… — Sorri, colocando delicadamente uma mecha
de seu cabelo atrás da orelha.
— Prometo que serei uma aluna muito dedicada. — piscou, com
um sorriso fraco.
Soltei uma risadinha e assenti, pegando meu violão de dentro da
case.
— Senta aqui — pedi, dando umas batidinhas no espaço vazio entre
as minhas pernas abertas e dobradas, após me sentar no tapete felpudo sobre
o piso de madeira.
Ravena obedientemente se sentou entre as minhas pernas, cruzando-
as em posição de índio, e eu coloquei o instrumento musical sobre seu colo.
— Primeiro, você precisa segurar o violão assim… — Ajustei a
posição de seu braço direito sobre o instrumento, apoiando a traseira do
violão sobre sua coxa direita. — Deixe o peito e as costas retos para
permitir uma boa respiração.
Ela ajeitou a postura, fazendo exatamente como eu disse.
— Muito bem. Agora, você posiciona o polegar atrás do braço do
violão, abaixo da pestana, e fecha a mão como se fosse um gancho…
— Jesus, que nomes são esses?
Soltei um riso nasalado e umedeci os lábios.
— Concentra aqui, depois você critica os nomes.
Ravena suspirou e assentiu.
Posicionei seus dedos nos acordes e pedi que ela fizesse um pouco
mais de força para que o som das notas ecoasse melhor.
— A primeira nota é o mi, que também é a mais aguda.
— Certo.
— Agora, os outros dedos você posiciona nas outras notas… —
Coloquei os outros dedos na notas abaixo para formar os primeiros acordes.
— Com a mão direita você toca para baixo e para cima.
Ravena começou a tocar, mas o som não era nem de longe agradável;
tratava-se apenas de um barulho estridente e desafinado. Pelo menos ela
estava tentando.
Pressionei os lábios para esconder um sorriso e deixei que ela
continuasse.
— Isso é muito difícil — resmungou, com um beicinho, após
desafinar algumas notas.
Balancei a cabeça e beijei sua bochecha.
— Gosto mais da guitarra — Ela disse baixo, colocando o violão
sobre a mesa de centro.
— Que é bem mais difícil de aprender a tocar — zombei, fazendo-a
dar de ombros, antes de abrir a boca em um bocejo e fitar a janela.
— Já anoiteceu… — murmurou.
Olhei na mesma direção que ela e assenti, mesmo que ela não
pudesse ver.
— Você é um bom professor, senhor Fleet — brincou, me encarando
rapidamente por cima do ombro, plantando um beijinho em meu queixo
antes de se levantar.
— Agradeço o elogio. — Pisquei, me levantando em seguida.
Ravena olhou ao redor, como se estivesse querendo dizer algo, mas
não tivesse coragem.
— Eu sou todo ouvidos. — Cruzei os braços, chamando sua atenção.
A fotógrafa pareceu surpresa e entreabriu os lábios, engolindo em
seco.

— Quer dormir aqui esta noite? — pedi baixo, e por alguma


razão, minhas bochechas estavam quentes; não duvido que estivessem
coradas.
Patético! Eu já tinha visto o cara nu inúmeras vezes… Tá! Talvez
nem tantas, mas ainda assim, já era para eu estar acostumada com aqueles
olhos grandes e brilhantes que pareciam me devorar, sem ser necessário o
uso de palavras para deixarem mais explícitas as suas intenções…
— Sua amiga não vai se importar?
— Nem se ela fizesse. A Alissa não tem direito algum de
reclamar por eu dormir com alguém aqui em casa, e ela sabe bem disso.
— Ok! — Caleb ergueu as mãos. — Eu aceito o convite.
Não contive um sorriso de canto e mordi o lábio inferior.
— Você deve estar com fome…
— Um pouco, mas por quê? Você vai cozinhar para mim? —
Cruzou os braços, com a sobrancelha arqueada.
— Sinto decepcioná-lo, milorde, mas minhas habilidades
culinárias se resumem a miojo e ovo frito.
— Que decepção… Pensei que uma fotógrafa tão bem-sucedida
também era uma boa dona de casa.
— Em minha defesa, nunca tive paciência para aprender.
— Se quiser, eu posso te dar umas aulinhas... — Arqueou as
sobrancelhas para cima e para baixo, aproximando-se devagar, até envolver
minha cintura com seus braços fortes, e pressionar seu peito contra o meu.
Meu ventre se contraiu e, de repente, todos os acontecimentos das
últimas horas desapareceram feito pó ao vento.
— Já pode casar então…
— Só me falta a noiva.
Engoli em seco. Aquela brincadeira estava tomando um rumo
perigoso demais…
Com um pigarreio, desviei do assunto.
— Suas aulas de culinária ficam para outro dia, porque eu estou
faminta e topo muito comer um hambúrguer grelhado, com bastante molho
de churrasco e batata frita. — Passei os braços ao redor dos seus ombros e
me coloquei na ponta dos pés.
— Minha boca encheu de água. — Roçou a ponta do nariz na minha
bochecha, fazendo-me inspirar profundamente, com os olhos fechados, de
repente, tonta de desejo. — Posso usar o banheiro até o pedido chegar?
Pisquei os olhos.
— Isso não é uma desculpa para não dividir a conta, é?
Caleb soltou uma risada deliciosa e balançou a cabeça.
— Não sou mão de vaca.
— Hum… Sei — murmurei, com os olhos estreitos. — Pode usar o
banheiro do meu quarto, ele fica no fim do corredor. — Apontei para o
outro lado da sala.
35

O peito de Caleb subia e descia tranquilamente sob minha cabeça,


enquanto eu traçava contornos em sua pele macia. O sol brilhava tímido do
lado de fora, atravessando a cortina branca, e me peguei soltando um
suspiro ao relembrar a noite passada.
Apesar do clima ter esquentado entre mim e o cantorzinho após
tomarmos uma ducha juntos, não passamos daquilo. Mesmo desejando-o
com todo meu ser, eu não estava no clima. As palavras de Nolan ainda me
assombravam.
O músico me garantiu que estava tudo bem e não se importou em
apenas dormir de conchinha. Seus braços quentes e fortes ao meu redor me
fizeram sentir segura e acreditar que tudo ficaria bem. Mas, no fundo, eu só
queria que a gente ficasse bem.
Eu nunca diria em voz alta, mas a rápida ascensão da Smash Secrets
fazia minha pele arrepiar e meu coração disparar todas as vezes em que a
ideia de que todo o sucesso que eles ainda iriam conquistar, o afastaria de
mim, mais cedo ou mais tarde; era apenas uma questão de tempo.
Apertei os olhos fechados e beijei o peito do cantorzinho. Era
fascinante a forma serena como ele dormia, com o rosto em uma expressão
de completa paz e os lábios entreabertos. Meus dedos coçaram para tirar
uma foto dele naquele estado tão pacífico e vulnerável.
Buzz, Buzz, Buzz.
Franzi o cenho e olhei por cima do ombro para o meu celular, que
vibrava sobre a escrivaninha ao meu lado. Minha expressão se tornou ainda
mais confusa quando fitei o nome da minha irmã brilhando na tela.
O que Reyna queria comigo em plena sete da manhã de uma terça-
feira?
Com um tremendo cuidado para não acordar o cantorzinho, afastei o
braço de Caleb que repousava em minha cintura e me levantei da cama,
deixando o quarto pé por pé até chegar ao corredor.
— Alô?
— Rav! Onde você se meteu que não respondeu às minhas
mensagens nem atendeu as minhas ligações?
— Bom dia para você também, irmãzinha — sussurrei, encostada na
parede do corredor e revirei os olhos.
— Sem ironias para cima de mim.
— O que aconteceu de tão urgente para você querer tanto falar
comigo?
— Tenho uma notícia para dar à família, e você, querendo ou não,
faz parte dela.
Suspirei fundo e cocei a testa.
— Reyna, para de graça, fala logo.
— Nananina não.
Fechei os olhos, na tentativa de me controlar para não proferir uma
quantidade significativa de palavrões e acordar o Caleb.
— Me diz o dia e a hora…
— Hoje, daqui a… Duas horas!
— O quê?
— Beijo, maninha!
Encerrou a ligação na minha cara.
Abri a boca, completamente sem palavras, e fitei a tela apagada do
meu celular.
Que merda a Reyna estava aprontando?
— Bom dia! — Caleb saudou, sem camisa, deixando sua linha V
proeminente à vista quando esticou os braços acima da cabeça, de pé à
porta do meu quarto.
Salivei com a visão daquele homem maravilhoso, apenas de cueca
boxer preta à minha frente, e quase esqueci de como se fala um simples
“bom dia”.
— B-bom dia — pigarreei, desviando os olhos daquela tentação.
— Que cara é essa? Aconteceu alguma coisa? Não vai me dizer que o
seu ex deu as caras de novo…
— Não! — Ergui a mão. — Mas não sei se a realidade é muito
melhor do que essa hipótese.
— Como assim?
Suspirei fundo e passei por ele, adentrando o quarto.
— Minha irmã me ligou e disse que precisa dar uma notícia muito
especial e quer que a família esteja reunida.
— Na casa dos seus pais?
Assenti fraco e inspirei fundo.
— Você vai?
Soltei um riso desprovido de humor e dei de ombros.
— Ela não me deu outra opção. Além disso, quero muito saber do
que se trata. Agora, se for uma besteira, eu juro que mato ela com as minhas
próprias mãos.
Caleb sorriu de canto e se aproximou, com os pés descalços, seminu,
exalando masculinidade. Foi difícil não desviar meus olhos para o seu
abdômen definido.
— Talvez seja uma boa oportunidade para você se livrar de vez dos
fantasmas do seu passado.
— Caleb, eu–
— Não estou dizendo que você precisa voltar às boas com eles como
se nada tivesse acontecido, só estou dizendo que seria bom tentar colocar as
coisas em pratos limpos. Posso ver nos seus olhos que esse afastamento te
atormenta…
Engoli em seco, sentindo meus olhos marejados, e deslizei a língua
pelos dentes para conter as lágrimas.
— Faça isso por você, não por eles — completou.
Quando ele dizia as coisas daquela forma tão sensata e leve, tudo
parecia mais fácil, e eu realmente queria acreditar que eram, mas
infelizmente a vida não era um conto de fadas.
Pisquei os olhos, enquanto a memória do que ele disse há dias
voltava à minha mente, e antes que eu perdesse a coragem, resolvi testar
para ver se ele cumpriria sua promessa.
— V-você pode ir comigo? Se não puder, t-tudo bem… Você não tem
obrigação nenhuma e–
— É claro que eu posso ir. Eu disse que iria se você quisesse, não
disse? — cortou, segurando meu rosto com delicadeza.
Meu coração martelava sob o peito, fazendo-o subir e descer em
uma respiração ofegante. Essa era apenas uma das reações que a simples
possibilidade de encontrar minha família me causava.
Caleb provou ser mesmo um homem de palavra, e não acho que
eu merecia alguém como ele ao meu lado. No fundo, eu era uma covarde, e
tinha certeza de que iria abandonar o barco na primeira tempestade.

Meus pais moravam no distrito de Blackheath, não muito longe


da minha casa, mas distante o suficiente para eu não correr o risco de
encontrar a minha mãe no sábado de manhã quando ela costuma ir à feira,
ou o meu pai quando ele vai jogar xadrez com seus amigos no Greenwich
Park.
À medida que o velho, mas bem conservado Ford Cortina de
Caleb se aproximava da casa onde passei grande parte da minha vida,
minhas mãos suavam e meu peito se apertava a ponto de tornar difícil
respirar. Se eu desmaiasse a qualquer momento, não seria surpresa para
mim.
Caleb parou o carro em frente à entrada, e o silêncio foi geral.
Não tive coragem de fitar a casa da minha família. Apenas fechei os olhos,
apoiei a cabeça no encosto do banco e apertei o tecido da minha calça.
— Se eles perguntarem o que somos, por favor, só diga que
somos amigos… — Suspirei fundo, e abri os olhos, desviando-os para a rua
pacata, onde eu costumava brincar quando criança. — Sei que amigos não
dizem nem fazem as coisas que nós fazemos, mas…
— Eu entendi, não se preocupe — disse baixo, com um sorriso
que não alcançou os olhos.
Assenti fraco e respirei fundo, tocando a maçaneta da porta do
carro.
— Hey, fica calma, vai dar tudo certo. — Caleb disse
suavemente, segurando minha mão fria com a sua quente e macia, antes de
levá-la aos lábios e beijá-la com ternura.
Aquele homem ainda me deixaria louca com tanta demonstração de
carinho.
Saímos do carro e, com passos lentos e pesados, segui até a porta.
Pressionei a campainha com a mão trêmula e abaixei a cabeça. Não sabia
quem eu esperava que fosse abrir a porta, mas certamente preferia que não
fosse meu irmão, Raylan.
— Ravena? — perguntou, com o cenho franzido, não disfarçando seu
espanto.
Ele parecia mais musculoso e maduro do que da última vez que o
vi. Seus cabelos castanhos-escuros estavam mais curtos e levemente
desgrenhados. No entanto, sua pose de galã continuava lá, e seus olhos
escuros, diferentes dos meus, ainda ostentavam aquele brilho de seriedade,
típico de um advogado bem-sucedido, pronto para foder com qualquer um
que atravessasse seu caminho.
Por que ele estava espantado? Nossa mãe não o avisou sobre a minha
visita? Na verdade, ela sabia que eu iria até lá?
Reyna, Reyna…
Tantas perguntas… Mas aquele não era o momento propício.
— Posso entrar? — perguntei, cansada de encará-lo como se fosse
um espelho.
Meu irmão engoliu em seco e assentiu, abrindo passagem.
Olhei por cima do ombro e vi Caleb, com as mãos nos bolsos de sua
calça, nos encarando sem jeito.
— Vem, Cal! — Estendi a mão para ele.
— Quem é? — Raylan perguntou com uma carranca, apontando com
o queixo para Caleb e cruzando os braços.
— Lá dentro você vai saber.
Meu irmão revirou os olhos e seguiu pelo corredor estreito, nos
deixando à porta.
— Grosso — resmunguei, fazendo Caleb soltar um riso baixinho
antes de dizer:
— Tente se controlar. Discutir com o seu irmão não vai tornar as
coisas melhores e mais fáceis.
— Vou tentar — murmurei com um bico e fechei a porta com o pé.
— Vamos lá — o músico disse baixo e gesticulou com a cabeça para
que eu fosse na frente, enquanto ele massageava meus ombros suavemente.
Benditas mãos!
— Rav! Que bom que você veio! — Reyna bateu palminhas
animada assim que pisei na sala de estar.
Ela estava, de alguma forma, tão diferente quanto nosso irmão.
Seus cabelos castanho-claros, assim como os meus, estavam mais longos e
lisos. Seu quadril um pouco mais avantajado, assim como seus seios, que
pareciam implorar por socorro, espremidos sob o decote reto de seu vestido
longo.
Abri um sorriso fraco e desconfiado, com o cenho franzido, e
olhei ao redor da sala. Meus pais estavam lado a lado, me fitando com
expressões similares e difíceis de descrever. Não que eu esperasse que
fossem me receber com beijos e abraços – embora no fundo eu tivesse essa
esperança –, mas acho que esperava um pouco mais de emoção.
Meu irmão assumiu seu lugar e estava encostado no batente da porta
da cozinha com os braços cruzados, o cenho franzido, e os olhos grudados
no Caleb. Já meu cunhado, Duke Beckett, estava sentado no sofá com um
sorriso discreto, me encarando educadamente, antes de acenar.
— Como vai, Ravena? — perguntou baixo.
— Bem, apenas curiosa para saber qual é a notícia tão importante que
a Reyna tem para nos contar.
Minha irmã deu a volta na sala e parou à minha frente com um largo
sorriso.
— Bem, o Duke, a mamãe e o papai já sabem porque eu não me
aguentei e liguei para eles assim que o teste deu positivo–
— Teste?
Ela mordeu o lábio inferior, mantendo seu sorriso do Coringa, e
assentiu antes de soltar a bomba:
— Você vai ser titia! — Sacudiu meus ombros antes de me
envolver em um abraço apertado.
Engoli em seco, sem reação, sentindo meus olhos marejados, não
sei se de alegria ou espanto. Reyna seria uma mãe maravilhosa, disso não
tenho dúvidas, mas ela ainda era jovem demais…
O que nossos pais disseram quando a caçula deles, de apenas 21
anos, lhes contou sobre sua gravidez?
Provavelmente soltaram fogos de artifícios, considerando que
minha irmã, apesar da pouca idade e de estar cursando a faculdade de
gastronomia, é casada com um homem de família tradicional e de posses,
que possui uma casa e estabilidade financeira.
— E como fica a faculdade? Você vai trancá-la? — Foi a primeira
coisa que deixei escapar, e pela expressão no rosto da minha irmã quando se
afastou do abraço, ela não gostou da pergunta.
— E-eu ainda não sei, a-acho que não. — Franziu o cenho e
encolheu os ombros. — Até a barriga crescer, vou estar no fim do último
semestre… — respondeu com os braços cruzados.
— Hum… — murmurei, desviando o olhar para Caleb, encostado
na parede com um sorriso de canto.
Sorri de volta, um pouco menos confiante, mas grata por ele estar
ali comigo naquele momento tão estranho e desconfortável.
Eles eram a minha família, então por que parecíamos um bando
de desconhecidos parados em uma estação de trem?

— Então, filha... Você não nos apresentou seu namorado... —


disse minha mãe, enquanto despejava chá nas xícaras de todos, exceto a
minha, pois eu segurava a minha velha caneca com estampa do Snoopy.
Fiquei surpresa ao saber que o objeto ainda não tinha sido jogado
fora.
— Eu sou apenas um amigo, senhora Watts — Caleb respondeu por
mim, sorrindo educadamente.
Eu sabia que ela faria perguntas, e pela expressão em seu rosto,
também já sabia o que estava pensando.
— Amigo? — Arqueou a sobrancelha e voltou a se sentar em uma
das poltronas, com as pernas cruzadas e meu pai como guarda, de pé ao seu
lado.
Caleb assentiu sem jeito e se remexeu no sofá, quase deixando o chá
entornar.
Honestamente, eu estava com dó dele.
— E com que você trabalha, meu rapaz? — foi a vez do meu pai
fazer o interrogatório, emitindo uma frase pela primeira vez desde que pisei
naquela casa.
— Eu sou–
— Caleb não veio aqui para falar da vida dele, hum? Vocês estão
deixando-o desconfortável, caso não tenham percebido.
Eu sabia o que eles diriam se soubessem que o rapaz é cantor de uma
banda de rock. Minha mãe seria capaz de expulsá-lo a pontapés.
— Não vejo problema algum em querer conhecer melhor o seu
amigo. — minha mãe disse despretensiosamente, antes de bebericar um
gole do seu típico chá com duas gotas exatas de leite. — Queremos saber
com que tipo de pessoas você anda convivendo depois de sair de casa.
— Depois de você e o papai me expulsarem, a senhora quis dizer —
cuspi, sentindo meus lábios tremerem.
— Rav… — Reyna balançou a cabeça, sentada ao meu lado no sofá,
e colocou uma mão sobre meu joelho. — Estamos aqui para comemorar o
crescimento da nossa família, não é mesmo? — Olhou para todos com um
sorriso.
Minha mãe sorriu forçadamente, com as bochechas coradas, e
pousou delicadamente sua xícara na bandeja de prata sobre a mesa de
centro.
— Ravena, querida. Podemos ter uma palavrinha na cozinha? –
Levantou-se e deu um tapinha no ombro do meu pai para que ele a seguisse.
Com todo respeito, ele parecia mais um cachorro nas mãos dela
do que um esposo.
— Tentem não quebrar todos os pratos. — Raylan zombou,
sentado ao lado do nosso cunhado no sofá de dois lugares, com um braço
esticado sobre o encosto do móvel e as pernas cruzadas.
Ignorei suas palavras e segui meus pais, não sem lançar um
rápido olhar para Caleb, que apenas piscou com um sorriso reconfortante.
Eu esperava que essa “palavrinha” que minha mãe tinha para
trocar comigo não demorasse muito, pois tinha medo do que meus irmãos
poderiam colocar na cabeça de Caleb.
Assim que pisamos na cozinha, a senhora Watts foi direto até a
pia e se encostou nela com os braços cruzados. Não preciso dizer onde meu
pai estava; você já sabe a resposta.
— Parece que a sua língua está mais afiada do que nunca, não é,
mocinha?
— Com todo respeito, mãe, mas foi a senhora quem começou.
— Eu só estava tentando ser gentil com o rapaz.
— Gentil? Aquilo parecia mais uma análise de caráter, como se
fosse possível julgar alguém que você nunca viu na vida pela aparência.
— Ele tem tatuagens — sussurrou, inclinando-se para frente e
olhando rapidamente por cima do meu ombro, claro, com medo de que
alguém pudesse ouvir.
— Qual é o problema?
— Não é certo desenhar na pele…
— Mãe, vamos parar por aqui, hum? Se não fosse pela Reyna, eu
nem estaria aqui em primeiro lugar — soltei honestamente, mas eles
precisavam saber.
— Pensei que tivesse vindo porque sentiu saudades, filha — meu
pai disse baixo, com um sorriso triste.
A impressão que eu tinha era que ele vivia daquele jeito, triste,
vivendo à sombra de uma mulher que não media esforços para humilhar os
outros.
— Eu senti, muita, pai. — Suspirei fundo. E pela primeira vez
naquele dia, notei como seus cabelos, antes pretos, estavam grisalhos, e sua
pele enrugada.
Minha mãe pigarreou, aparentemente não querendo ir por aquele
caminho, e soltou:
— Como está indo seu trabalho como fotógrafa? — perguntou,
com o queixo erguido.
— Muito bem. Estou juntando dinheiro para comprar um
apartamento. — respondi, sem vontade de entrar em detalhes, balançando
suavemente a caneca com chá.
Ela, por sua vez, arqueou as sobrancelhas, abrindo um sorriso
fraco e debochado.
— Comprar um apartamento em Londres trabalhando como
fotógrafa freelancer? — Olhou para o meu pai, que mantinha a cabeça
baixa e as mãos nos bolsos da calça. — Nossa filha é mesmo uma
sonhadora, Tristan.
Engoli em seco.
— Sei que pode parecer impossível, mas se a senhora soubesse o
quanto eu ganho–
— Não estou interessada, Ravena. Essa sua mania de se achar
superior aos outros é irritante. Eu pensei que depois de todo desgosto que
você nos deu, teria aprendido a ser mais humilde.
Entreabri os lábios, com o cenho franzido, encarando seus olhos
azuis e frios, e cruzei os braços. Minhas mãos tremiam, mas eu não daria a
Teresa Watts o gostinho de saber como suas palavras duras e desprovidas de
sentimento maternal me afetaram.
— Se tem alguém aqui que não é humilde, não sou eu, mãe. — A
palavra, tão pequena, mas tão significativa, saiu cuspida.
Minha mãe estreitou os olhos com o maxilar travado, pronta para
retrucar, porque a última palavra tinha que ser sempre dela, mas meu pai foi
mais rápido:
— Ficamos felizes em saber que você está se saindo bem no
trabalho, filha.
Deu um passo para frente, parecendo ponderar se deveria ou não
se aproximar.
Eu só queria um abraço dele…
— Obrigada, pai — agradeci, com a voz embargada, e não esperei
que ele desse o primeiro passo. Apenas me lancei em seus braços,
apertando-o com os olhos fechados, enquanto as lágrimas escorriam pelo
meu rosto, molhando seu suéter, com cheirinho fresco de amaciante.
Apesar de tudo, eu o amava e sentia falta das nossas tardes no
jardim da casa, ouvindo o canto dos pássaros, enquanto observávamos os
esquilos correndo pelas cercas de madeira com pedaços de comida.
— Mesmo não tendo cursado uma faculdade decente, como a
maioria dos bons filhos fazem. — Dona Teresa cuspiu, depois de um tempo,
exibindo um sorriso falso.
Sua amargura estava correndo-a de fora para dentro. Sua pele
parecia flácida e pálida, contrastando com os cabelos castanhos-escuros
como os do meu irmão. Ela com certeza pintava os fios.
Funguei o nariz e limpei as lágrimas com as mangas do meu
moletom.
Caleb estava de pé, com as mãos para trás, encostado no batente
da porta, assistindo a tudo em completo silêncio.
Será que ele ouviu as coisas que minha mãe disse?
— Vou fingir que não ouvi isso — falei séria, encarando minha
genitora.
Ela apenas deu de ombros, demonstrando não se importar com o
que eu pensava.
— De qualquer forma, fico satisfeita de você não vir à nossa porta
pedir dinheiro.
— Nem se eu estivesse morando debaixo da ponte.
— Ravena! — soltou alto, com os olhos arregalados.
— Desculpa. — Engoli meu orgulho, pois eu sabia que tinha ido
longe demais. Talvez nem tanto, mas fiz pelo meu pai, não por ela.
Apesar de tudo, ele sempre foi bom para mim. Apenas era fraco
demais para contrariar a esposa.
Sinceramente, eu ansiava pelo dia em que as coisas mudariam.
Minha mãe assentiu, com o peito estufado, e se aproximou de
repente, me abraçando tão rápido, que mal pude piscar os olhos. Eu gostaria
de dizer que aquele gesto, mesmo sem calor humano, me tocou, mas estaria
mentindo.
Sem proferir uma palavra, Dona Teresa se afastou e deixou a
cozinha.
— Obrigado por ter vindo, filha. — Meu pai segurou meu ombro e,
em seguida, seguiu atrás dela.
Inclinei a cabeça para trás, fitando o teto de gesso da cozinha e
inspirei fundo.
O pior já tinha passado.
36

— Você ouviu tudo? — perguntei baixinho a Caleb, enquanto


meus pais caminhavam à nossa frente até a porta.
— Se eu disser que não, vai fazer você se sentir melhor. Não, eu
não ouvi nada.
Abri um sorriso suave e apertei sua mão.
— Caleb e eu já estamos indo… — informei aos meus irmãos e
meu cunhado, que acariciava a barriga ainda invisível da minha irmã.
Eu nem mesmo perguntei de quantos meses ela estava. Em minha
defesa, eu ainda estava em choque.
— Ah, mas já? Não vão ficar para o almoço? — Reyna lamentou,
com um beicinho, e levantou-se do sofá.
— Tenho muita coisa para fazer — menti.
— Hum… De qualquer forma, obrigada por ter vindo.
— Prometo que vou ao batizado do bebê.
— Ai, Ravena! Ainda vai demorar muito. Eu quero você no chá
de bebê. — Acariciou meu braço. — Aliás, Duke e eu andamos
conversando e concordamos que seria legal se você fotografasse a minha
gestação… — Mordeu o lábio inferior, enquanto aguardava uma resposta.
— Não precisa responder agora, eu sei que a sua agenda é super lotada, etc.
Mas… promete que vai pensar com carinho? — Pegou minhas mãos, me
fitando com olhos de cachorro pidão.
— Prometo. — Mesmo detestando promessas.
Reyna bateu palminhas e beijou minha bochecha.
— Agora precisamos ir. — Olhei para Caleb e ele assentiu,
seguindo até a porta aberta.
— Você ainda está indo à terapeuta que eu te indiquei? — Raylan
perguntou após minha irmã e seu esposo deixarem a sala.
Suspirei fundo e assenti.
— Bom.
— É.
Ficamos parados em silêncio no centro da sala, olhando para
todos os lados, menos um para o outro.
— Eu senti sua falta. — Ele quebrou o silêncio e me encarou com
os olhos levemente avermelhados.
— Também senti a sua. — Pisquei rapidamente para espantar as
lágrimas.
— Se cuida, tá bom?
Assenti, mordendo o lábio inferior. Minha visão já estava
embaçada. No entanto, eu não iria chorar.
Raylan deu o primeiro passo e passou os braços ao meu redor. O
abracei de volta, ainda lutando contra as lágrimas e me afastei.
— Se cuida você também.
Assim que pisei do lado de fora, olhei ao redor e tudo parecia
igual, talvez apenas a cor da porta do vizinho que estivesse diferente, e eu
não havia notado antes. No entanto, as plantas do meu pai estavam no
mesmo lugar, secas, mas estavam lá.
— Carro muito bonito, rapaz — ele elogiou o Ford Cortina de
Caleb, certamente lembrando do seu estacionado na garagem de casa.
— Obrigado, senhor Watts — o músico agradeceu e adentrou o
veículo.
Meu pai sorriu de canto e assentiu.
— Bom dia pra vocês. — Acenei para todos e entrei no carro.
— Tchau, Rav! — Reyna acenou da calçada, abraçada com o
marido.
À medida que o carro se afastava, eu sentia finalmente o ar
adentrar novamente em meus pulmões, permitindo uma respiração mais
leve, sem o peso do mundo nas costas.
— Já foi — Caleb sussurrou, apertando meu joelho.
— Poderia ter sido pior, não poderia? — perguntei com um
sorriso estranho, que mais parecia uma careta.
— Com certeza. — Sorriu de volta, mas seu sorriso era tão
estranho quanto o meu.
Talvez, no fundo, eu me sentisse envergonhada por Caleb
testemunhar a família fria e desunida que eu tinha. E me perguntava se ele
comparava meu relacionamento com eles ao dele e sua própria família.
— Afs! — soltei alto e revirei os olhos, encostando a cabeça no
encosto do banco enquanto olhava através da janela, para a paisagem
nublada e fria de Londres.
— O que foi?
— Ainda não acredito que a minha irmã está grávida… É tão
difícil imaginar a Reyna segurando e amamentando um bebê… Para mim,
ela ainda é um.
Caleb soltou um riso e girou o volante.
— É normal, já que ela é casada… E você sabe o que as pessoas
casadas fazem.
Arqueei a sobrancelha e o encarei com um sorriso de canto.
— Não são só as pessoas casadas que fazem bebês.
O músico soltou uma risada que fez meu ventre se contrair, mas
não discordou.
— Você tem algum compromisso hoje? — perguntei, com os
olhos fixos nele, completamente vidrada.
— Não… — Franziu o cenho.
— Posso ir com você para a sua casa? Não quero ter que
conversar com as minhas amigas sobre esse… encontro com a minha
família, pelo menos não hoje.
— Tudo bem. — Ele piscou, exibindo um sorriso de canto.
— Obrigada.
Não sei explicar ao certo quando foi que Caleb e eu ficamos tão
excitados ao ponto de nos agarrarmos enquanto subíamos as escadas até seu
apartamento. Mas lá estávamos nós, devorando um ao outro entre tropeços
e gemidos de dor e prazer.
— Au! — Caleb gemeu, quando o empurrei forte demais e o
músico bateu com a cabeça na parede do corredor.
— Desculpa. — lamentei baixinho.
— Tá tudo bem. — Ele deu de ombros e voltou a me beijar.
Seus lábios pressionavam os meus com tanta intensidade a ponto de a
pele arder, mas era tão prazeroso que deixava as minhas pernas bambas.
Com muita dificuldade – e eu quase caí de bunda no degrau da
escada duas vezes – em meio a risos abafados e mãos atrevidas, finalmente
entramos no apartamento do rapaz.
Caleb bateu a porta atrás de nós com o pé e não esperou um
segundo para voltar a me rodear com seus braços fortes e quentes, sugando
minha língua com desejo. Chutamos nossos sapatos às cegas, não nos
importando com seu paradeiro, enquanto continuávamos a nos agarrar
como se nossas vidas dependessem daquele contato incessante.
Apertei seus ombros e senti minhas costas colidirem contra a
parede do corredor. As mãos do cantorzinho estavam por toda parte em meu
corpo, enquanto minha cabeça estava inclinada para trás contra a parede,
meus lábios entreabertos e os olhos fechados, intensificando as sensações
que seus toques provocavam.
— Vai ser sempre assim? — Caleb sussurrou em meu ouvido,
distribuindo beijos pela pele do meu pescoço.
— O-o quê?
— Esse desejo incontrolável entre nós… Vai ser sempre assim?
— Afastou-se ofegante e fitou meus olhos.
— Espero que sim. Mas, se não temos certeza, vamos aproveitar
enquanto há tempo… — Arranhei seu peito lentamente, deslizando minhas
unhas pela pele exposta sob sua camisa entreaberta, antes de puxá-la pelos
seus ombros, com mais delicadeza do que da outra vez.
— Meus botões agradecem. — Caleb brincou.
Soltei uma risadinha e o puxei pela nuca para outro beijo.
Ele deslizou as mãos quentes por baixo do meu moletom, subindo
a peça até puxá-la sobre minha cabeça e atirá-la no chão de madeira. Eu
estava apenas de sutiã e suspirei quando o músico beijou o topo dos meus
seios, acariciando a carne suavemente.
Soltei um gemido baixo e abri sua calça, apressada para deslizá-la
por suas pernas musculosas. Caleb apertou meu traseiro, erguendo minha
perna até a altura de seu quadril e me puxou de encontro à sua ereção,
lambendo meus lábios, enquanto mantinha os olhos abertos e fixos nos
meus. Aquilo não deveria parecer tão erótico, mas era, e isso aumentava
ainda mais meu desejo por ele.
No entanto, a tarefa de manter os olhos abertos estava se tornando
quase impossível à medida que minha mente flutuava para longe, absorta
em pensamentos que envolviam eu e o cantorzinho sobre uma cama,
completamente nus e suados.
Sem mais uma palavra, Caleb me ergueu do chão, e eu enlacei
minhas pernas ao redor de sua cintura, enquanto nos beijávamos durante o
curto trajeto até o seu quarto.
Minha calça foi parar com a minha calcinha em algum lugar
daquele cômodo, mas não me preocupei em saber; meu foco estava na boca
de Caleb, que fazia maravilhas entre as minhas pernas.
— Ah… Caleb… — Eu só conseguia gemer e gemer, com a
cabeça inclinada para trás sobre o travesseiro que exalava o perfume do
músico, as costas arqueadas e os olhos fechados.
Apertei o lençol branco e amassado entre os dedos, e arqueei o
quadril ao encontro da língua gulosa do futuro rockstar.
— Não quero gozar na sua boca… — Puxei seu cabelo, erguendo
sua cabeça.
— Isso é uma pena, porque você é deliciosa pra caramba. — Ele
lambeu os lábios lentamente, me fazendo engolir em seco e pressionar as
pernas juntas.
Eu parecia uma selvagem, com os cabelos desgrenhados, o suor
escorrendo pela testa e os lábios entreabertos, enquanto encarava o
cantorzinho.
— Prometo te recompensar mais tarde, agora vem! — Puxei-o
pelos ombros, arrancando-lhe uma risada gostosa.
— Porra, Ravena… — praguejou, investindo profundamente em
meu interior úmido e apertado. — Eu poderia passar a vida enterrado em
você e não me cansaria.
— Caleb… não fala assim…
— Eu sei que você gosta. — Ele lambeu a pele do meu pescoço,
sem cessar seus movimentos.
Ainda que o fôlego nos faltasse, os beijos não cessavam; apenas
mudavam de local, deslizando pela pele um do outro com devoção e
carinho.
Os fracos raios de sol atravessavam a cortina fechada, enquanto
Caleb aumentava a intensidade de suas estocadas, gemendo meu nome
baixinho em meu ouvido. O som da cabeceira da cama batendo contra a
parede ecoava pelo espaço.
Seus vizinhos já deviam estar acostumados.
Um sorriso brotou em meus lábios ao pensar nisso.
— Eu vou gozar… — Caleb gemeu, com a cabeça sobre meu
ombro e beijou a pele ali, deixando um arrepio no lugar.
— Eu… também… não vou aguentar mais…
Mil caleidoscópios não seriam suficientes para descrever a
explosão de prazer que senti quando aquele homem atingiu o orgasmo.

Caleb já estava no chuveiro há mais de cinco minutos e, apesar de


ter sido convidada para me juntar a ele, me senti obrigada a declinar. Depois
de passarmos o dia inteiro em intercurso, eu estava dolorida e com as
pernas dormentes. Se eu entrasse naquele box com ele, teria que sair de lá
arrastada.
Balancei a cabeça com o pensamento e acendi um cigarro.
A guitarra preta do músico repousava ao lado do amplificador e
parecia ainda mais brilhante do que quando a vi pela última vez, no festival
em Leeds. O som que aquele instrumento produzia mexia comigo de forma
inexplicável. Eu era simplesmente apaixonada por solos de guitarra e
sempre tive vontade de aprender a tocar, porém nunca tive tempo ou
disposição.
Traguei meu cigarro e assoprei a fumaça antes de me levantar,
vestida apenas com uma camisa do Chase Atlantic que Caleb me emprestou
e que parecia mais um vestido em meu corpo.
Peguei o instrumento e voltei a me sentar na cama, com as pernas
cruzadas e a guitarra no colo, enquanto mantinha o cigarro entre os lábios.
O cantorzinho tinha razão ao dizer que tocar guitarra era mais
difícil do que violão; nenhum som agradável havia saído do instrumento
desde que coloquei minhas mãos nele.
— Eu desisto! — Suspirei, deixando a guitarra delicadamente
sobre a cama.
O som da água vindo do banheiro havia cessado, e meu cigarro
estava quase deixando suas cinzas caírem sobre o edredom branco do
músico.
— Merda! — exclamei, arregalando os olhos.
Rapidamente, peguei um copo de louça ao lado do relógio sobre a
mesinha e despejei o cigarro com suas cinzas e tudo dentro do objeto.
Contudo, algo que eu não havia notado antes chamou minha atenção,
e minha curiosidade exacerbada me fez pegar um velho caderno com capa
de couro. Fiz isso antes que meu cérebro pudesse me alertar de que aquilo
não era uma boa ideia, mas sim uma invasão de privacidade.
Observei o pequeno objeto com a cabeça inclinada de lado, curiosa
sobre o que poderia ser.
— O que é isso? Não vai me dizer que você escreve em um diário?
— perguntei, zombeteira, ao ver Caleb saindo do banheiro com os cabelos
molhados, mais escuros que o normal, usando apenas uma toalha ao redor
da cintura que deixava à mostra seu V perfeito.
Engoli em seco e admito que salivei diante a visão, mas pisquei
rapidamente e balancei a cabeça para me recompor. Meu foco estava em
descobrir o que era aquele caderno e se realmente se tratava de um diário.
O rapaz franziu o cenho antes de fitar o que eu segurava na mão.
Seus olhos se arregalaram e ele atravessou o quarto com passos largos,
deixando um rastro úmido sobre o piso de madeira até o tapete, de onde
pegou o caderno da minha mão.
— Isso não é um diário. É meu caderno de composições. —
Suspirou, deslizando a mão pelos cabelos úmidos, que gotejavam sobre seu
peito até desaparecer sob a toalha…
Aquela visão era uma tentação para os meus olhos e, principalmente,
para o meu corpo ainda insaciado, porém dolorido.
Novamente, engoli em seco, suspirei fundo e fechei os olhos por dois
segundos antes de voltar a fitá-lo:
— Hum… e por que esse desespero? Tem algo aí que eu não posso
saber? Tipo, uma infinidade de músicas que você escreveu para outras? —
Cruzei os braços, um pouco mais irritada com a ideia do que gostaria de
admitir.
— Mais ou menos isso.
Estreitei os olhos.
— Agora, vamos dormir um pouco. Estou exausto — disse ele,
colocando o caderno de volta no lugar. Em seguida, Caleb simplesmente
abriu a toalha, exibindo seu corpo nu sem o mínimo de receio. — Não é
como se você não tivesse visto isso tudo o dia inteiro — acrescentou
debochado, enquanto puxava uma cueca boxer branca pelas pernas.
— Isso tudo? Mas é muito pretensioso mesmo. — Revirei os
olhos.
— Eu sei que você gosta… — inclinou-se sobre mim, fazendo-
me deitar de costas sobre o colchão. — Se eu não tivesse pegado pesado e
você não estivesse dolorida, poderíamos ir para o quarto round —
Mordiscou minha orelha, deslizando a mão pela minha coxa.
— Posso retribuir o favor de mais cedo — sugeri, deslizando
minha mão pelo seu peito até alcançar a protuberância sob sua cueca.
Caleb ofegou e mordeu o lábio inferior.
— Não vou ser modesto e dizer que não quero, porque eu
quero… muito.
Sem mais uma palavra, o afastei suavemente pelos ombros e me
levantei da cama. Ajoelhei-me à sua frente e puxei sua cueca para baixo,
mantendo os olhos fixos nos seus, castanhos e escuros.
O cantorzinho engoliu em seco e colocou uma mecha do meu
cabelo atrás da orelha, enquanto eu o acariciava. Então, engoli seu membro
por completo e soltei um gemido, sentindo sua textura macia e quente na
minha língua.
— Ravena… — seu gemido ecoou, rouco e sensual.
Ele parecia uma miragem, com os lábios entreabertos, o peito
subindo e descendo em uma respiração ofegante, e os cachos caindo sobre
seu rosto, enquanto eu lhe proporcionava o prazer que ele merecia.
Jurei para mim mesma que jamais ficaria de joelhos por um
homem, mas se Caleb quisesse, eu não pensaria duas vezes.
37

— Nós dois estamos parecendo dois desocupados, deitados neste


sofá em plena quarta-feira, no meio da semana, como se não tivéssemos
nada melhor para fazer. — Balancei a cabeça enquanto Caleb tocava seu
violão, deitado sobre o móvel com a cabeça em meu colo.
— Devemos ser gratos e aproveitar a oportunidade que poucos
têm. — piscou ele, dedilhando algumas notas suaves no instrumento.
— Tá esperando alguém? — perguntei, confusa, quando a
campainha soou, acariciando seus cachos ondulados e macios.
— Não, mas vou ver quem é. — Bicou meus lábios e levantou-se,
deixando o violão sobre a poltrona.
Ele foi até a porta sem camisa, descalço e com a calça moletom baixa
o suficiente para exibir o cós da sua cueca.
— É a minha mãe — declarou, coçando a cabeça.
— O quê? — sussurrei, mais alto do que um sussurro real, apenas
para não gritar. Levantei do sofá num pulo, totalmente descabelada e
perdida com a informação.
Meus olhos quase saltaram das órbitas e meu coração disparou,
pronto para saltar do meu peito agitado a qualquer momento.
Conhecer a mãe de Caleb era a última coisa que eu queria na face da
Terra. E, para piorar, eu estava apenas de calcinha e vestida com uma
camisa do músico.
— Espera, vou buscar minha calça — sussurrei, com as mãos
erguidas e o coração martelando.
Corri, quase caindo de bunda no chão quando perdi o equilíbrio, e
pude ouvir a risadinha de Caleb antes de a campainha soar novamente. A
mãe dele estava com pressa.
Vesti minha calça com uma velocidade descomunal e calcei meu par
de tênis, não me dando ao trabalho de amarrar os cadarços. Em seguida,
corri de volta para a sala de estar, enquanto ajeitava meu cabelo, ou pelo
menos tentava.
— Não vai vestir uma camisa? — perguntei ao músico, franzindo o
cenho.
Caleb apenas deu de ombros e abriu a porta.
— Bom dia, filho! — A mulher bonita, com cabelos castanhos e
ondulados como os de Caleb, exibindo um par de covinhas, beijou a
bochecha do rapaz e entrou no apartamento, segurando uma travessa de
vidro tapada com um pano de prato impecavelmente branco. — Ah, não
sabia que você estava com visita… — comentou, sorrindo timidamente ao
notar minha presença.
Ela, que podia ser considerada quase a versão feminina do homem
com quem passei a noite fazendo coisas que ela com certeza não gostaria de
saber, me observava com atenção e curiosidade.
Droga! Eu só queria me enterrar ou pular a janela daquele
apartamento.
— Mãe, essa é a Ravena Watts–
— Uma amiga do seu filho — interrompi, antes que o clima ficasse
ainda mais estranho, e estendi a mão para a mulher. — É um prazer
conhecê-la, senhora Fleet.
— Amiga… — Ela olhou entre mim e o filho, com as sobrancelhas
arqueadas, claramente não comprando a minha mentira deslavada, antes de
pegar minha mão e abrir um sorriso amigável. — Pode me chamar de
Adelaine, querida.
Sorri, meio sem jeito, e assenti.
Caleb coçou a nuca – o que parecia ser um tique nervoso – e
pigarreou.
— Não esperava a sua visita, mãe.
— Ah, querido. Desculpe vir sem avisar, mas é que eu assei essa
torta de frango com molho branco, a sua preferida. Falei com seu avô e
achei que seria uma boa ideia trazer para você um pedaço antes que o
Clarence coma tudo. Aquele garoto parece um aspirador.
Caleb soltou uma risadinha e abraçou a mãe, beijando sua testa com
ternura antes de pegar a travessa de sua mão.
Engoli em seco, assistindo àquela demonstração de afeto. Dizem que
você conhece um bom homem pelo jeito que ele trata a mãe e, se o Caleb
era assim com a mãe, imagina quando ele…
Balancei a cabeça e enrolei meu cabelo de um lado, jogando-o por
cima do ombro.
— Obrigado, mãe.
— Ela ainda está quentinha, mas sugiro esquentá-la no microondas…
Vocês devem estar com fome, hum? — disse a última parte, lançando-me
um olhar sugestivo.
Que vergonha, meu pai!
— N-na verdade, e-eu já estava de saída…
— Ah, não! Espero que não seja por causa da minha repentina visita.
Não quis atrapalhar…
— Imagina, é que eu tenho mesmo um compromisso daqui a uma
hora.
— Prove pelo menos um pedacinho da torta… — pediu, juntando as
mãos. — Diga a ela, Caleb, que não há torta mais saborosa do que a da
receita da sua avó.
— Ela tem razão, marren– Ravena. — corrigiu, suspirando fundo.
Segurei a vontade de soltar uma risadinha com seu quase deslize e
assenti.
— Já que é assim, posso levar um pedaço?
— Claro! — Adelaine bateu uma palma antes de se dirigir à cozinha,
levando a travessa.
Caleb olhou para mim, ergueu as mãos e encolheu os ombros.
— Caleb! — a senhora Fleet gritou da cozinha.
— Sim?
— Onde estão suas vasilhas plásticas, querido? Isso aqui está
parecendo a cozinha de um pub, uma bagunça total.
O músico suspirou com um sorriso derrotado, me fazendo sorrir
junto, e foi até a cozinha.
Aproveitei que eles estavam ocupados e corri até o quarto do
cantorzinho para pegar o meu moletom. Olhando através da janela, o vento
parecia estar soprando até os ossos.
Enquanto estava no corredor, ouvi a voz da mãe de Caleb
murmurando baixo, porém não o suficiente para que eu não pudesse ouvir:
— Vocês usaram preservativo? E ela é mesmo apenas uma amiga?
Achei ela bem bonita…
Sorri com a última fala e balancei a cabeça, entrando na sala.
— Bem, já vou indo — falei alto, fazendo-a arregalar os olhos e se
levantar do sofá com uma pequena vasilha plástica nas mãos. — Mais uma
vez, foi um prazer conhecê-la, senhor– Adelaine.
A mãe de Caleb sorriu satisfeita, entregando-me o recipiente
contendo sua torta. Para a minha surpresa, ela segurou meus ombros
suavemente e plantou dois beijos em meu rosto.
— O prazer foi todo meu, querida. Espero vê-la novamente em breve.
Olhei para Caleb, que apenas mordeu o lábio inferior com um sorriso
e deu de ombros.
— Claro! — Sorri forçadamente.
Minhas mãos ainda tremiam.
— Eu te acompanho até a porta — disse ele, caminhando à minha
frente.
— Desculpa… — sussurrei após ele fechar, ficando de pé no
corredor.
— Eu é que peço desculpas. Não tinha ideia de que ela viria.
Balancei a cabeça e gesticulei com a mão.
— Ela é um doce. Você tem sorte. — Sorri triste.
Caleb me fitou com seriedade e me puxou para um abraço.
— Se precisar de qualquer coisa, é só me ligar que eu vou no
mesmo segundo — garantiu, com a voz abafada, acariciando minhas costas.
Fechei os olhos e assenti, com o queixo sobre seu ombro.
— Tchau. — Acenei, seguindo pelo corredor até a escada de
madeira velha e barulhenta.

Suspirei fundo e fechei a porta quando Ravena desapareceu escada


abaixo. Aquele primeiro encontro entre ela e minha mãe quase me causou
um ataque cardíaco.
— Não vou mais te encher de perguntas — disse dona Adelaine, com
os braços cruzados, sentada no sofá, assim que fechei a porta, e me virei
para ela.
Abri um meio sorriso e me sentei ao seu lado.
— Você anda se alimentando direito, filho? Estou te achando
magro… — Inclinou a cabeça de lado, apertando a carne da minha cintura.
— Vou levar isso como um elogio, mãe — soltei um riso baixo,
deslizando a mão pelo cabelo.
— Hum… — Ela deu de ombros. — Mas eu vim mesmo foi para te
dar os parabéns, querido! — Segurou meu rosto em concha e marcou minha
bochecha com um beijo estalado. — Seu avô, seu irmão e eu ficamos tão
orgulhosos de ver você naquele palco enorme! — Sorriu, com os olhos
brilhando. — E a entrevista na rádio? A música que vocês lançaram é tão
linda… E você escreveu para essa mocinha que estava aqui, não foi? Os
olhos azuis dela são bem intensos para passarem despercebidos…
Assenti, mordendo o lábio inferior, e abaixei a cabeça.
Minha mãe era tão perspicaz que me deixava desarmado.
— Aquela letra não me parece ser para uma amiga. — Levantei a
cabeça e a encarei. — Mas… não vou estender o assunto. — Ergueu as
mãos.
O breve silêncio entre nós durou pouco, até meu celular começar a
tocar escandalosamente sobre a mesa de centro. Peguei o aparelho e franzi o
cenho ao ver o nome de Felix brilhando na tela.
Atendi à ligação e ele foi direto ao assunto. Pediu, ou melhor, exigiu
que eu e os rapazes o encontrássemos em frente aos estúdios da Planets
Music, na Pancras Square, em menos de uma hora.
— Porra, Felix, isso é longe pra caramba da minha casa.
— Dê seu jeito! — Encerrou a ligação.
Pisquei, tirando o celular do ouvido.
— Quem era? — perguntou minha mãe.
— Nosso empresário.
— E o que ele disse?
Parei para pensar na conversa – se é que poderia chamar aquilo de
uma, foram apenas três frases em menos de quinze segundos – e foi aí que
uma lâmpada se acendeu na minha cabeça.
Ele disse, Planets Music, uma das maiores gravadoras de música do
mundo… Aquilo significava que…
Merda!
— E-eu preciso ir, mãe. — Levantei-me bruscamente do sofá,
parecendo um louco, enquanto olhava ao redor em busca de algo, que eu
nem mesmo sabia o que era.
Era o nervosismo. As hipóteses do que aquele encontro poderia
significar estavam girando na minha cabeça, me impedindo de raciocinar
apropriadamente.
— C-como assim, Caleb? — Minha mãe se levantou assustada. — O
que foi que seu empresário disse? É-é uma notícia ruim?
Parei de caminhar pela sala e segurei seus ombros suavemente,
encarando seus olhos profundamente.
— Rezemos para que não — falei, beijando sua testa. Deixei-a
parada, com os lábios entreabertos no meio da sala, e corri até o meu quarto
para me vestir adequadamente.
Se fosse o que eu estava pensando, a Smash Secrets estaria prestes a
decolar de vez. No entanto, antes de contar à minha mãe, eu preferia ter
certeza. Não queria deixá-la feliz apenas para depois lhe jogar um balde de
água fria; na verdade, estava tentando fazer o mesmo comigo, me proteger.
Puxei uma calça pelas pernas, vesti uma camisa preta sem estampa e
peguei minha jaqueta sobre a cadeira, antes de voltar para a sala, onde
encontrei minha mãe pronta para ir embora.
— A senhora pode ficar aqui se quiser — ofereci.
— Claro que não. Tenho um milhão de coisas para fazer em casa.
Mas filho, você não vai mesmo me contar o que o seu empresário disse
naquela breve ligação?
— Prometo que contarei assim que souber mais detalhes, mãe. Mas,
por favor, não se preocupe, hum? Não é nada grave — tentei tranquilizá-la e
a puxei para um abraço.
Eu realmente esperava que não fosse nada ruim.
— Quer que eu te deixe em casa? — perguntei, apenas para ser um
bom filho, pois interiormente, estava rezando para que ela dissesse não.
Eu não tinha tempo; se chegasse atrasado, Felix me esfolaria vivo.
— Não, querido. Pode apenas me deixar na estação, eu me viro de lá.
Assenti e abri a porta do meu apartamento.
Deixei minha mãe na estação de trem de Wimbledon e me despedi,
esperando até que ela desaparecesse por entre os outros passageiros que
entravam e saíam do local a todo momento.
Segui às pressas, dirigindo 2 quilômetros acima da velocidade
permitida e, talvez, tenha avançado um sinal vermelho ou dois durante o
percurso. Mas, em minha defesa, a culpa era do nosso empresário.
Quando estacionei o carro, me dei conta de que havia gasto 50
minutos para percorrer um trajeto que normalmente leva mais de uma hora
e cinco minutos.
Não ficaria surpreso se, em alguns dias, encontrasse debaixo da
minha porta pelo menos três envelopes contendo multas astronômicas, as
quais eu não tinha dinheiro para pagar.
Desci do carro e fitei a enorme construção onde está instalada a sede
da gravadora em Londres. O prédio, de dez andares, é revestido com janelas
de vidro e possui um terraço no topo, visível de longe, situado no centro de
uma praça. Ao redor, o local é rodeado por mais dois prédios e alguns
canteiros com árvores secas devido ao clima frio.
Caminhei tranquilamente, com as mãos nos bolsos da minha jaqueta,
até a entrada que tinha uma porta de vidro giratória. Olhei ao redor,
buscando algum sinal dos outros membros da Smash, até que os encontrei
caminhando em minha direção.
— E aí, Cal? — Nevan me cumprimentou com um aperto de mão e
um rápido abraço.
— Como vão? — perguntei aos três.
— Bem, eu acho. A verdade é que quase desmaiei quando Felix me
ligou. Minha sorte é que minha mãe estava em casa e me fez uma
compressa de gelo para colocar na testa — respondeu o baterista, ajeitando
sua jaqueta de couro preto.
Abri um sorriso de canto e balancei a cabeça. Ele era dramático
demais.
— Vocês têm alguma ideia do que ele quer nos fazendo vir até aqui?
— Davian perguntou, examinando a fachada do prédio de baixo a cima.
— Cara, vocês são mesmo um bando de tapados. A Planets Music é
uma gravadora de música, e nós somos o quê? Músicos. É óbvio que tem
algo a ver com isso, com certeza eles vão nos fazer uma proposta —
afirmou Elion, com a sobrancelha arqueada.
— Não vamos correr rápido demais para não cairmos do cavalo. —
Dei um tapinha em seu ombro.
— Estou apenas sendo realista e otimista. — Ele deu de ombros.
— Isso é novidade — Davian zombou, revirando os olhos.
Elion abriu a boca para retrucar, mas Felix surgiu, pela primeira vez
realmente parecendo um empresário do século XXI, com seu terno preto,
uma camisa branca sob a peça e uma calça de linho cinza-escuro, apesar de
manter o cabelo cumprido e o bigode peludo.
— Vamos subir? — ele foi direto ao ponto, sem rodeios.
Custava dizer um simples, “bom dia, rapazes”?
— Bom dia para você também, empresário — Elion soltou com um
sorriso falso.
— Bom dia — Felix revirou os olhos e entrou no prédio com passos
largos, empurrando a porta giratória.
Se o lado de fora da construção era impressionante, o interior era
ainda mais. Dezenas de pessoas trabalhavam no local, que parecia ainda
maior visto de dentro, com várias salas, móveis modernos, computadores e
quadros decorativos nas paredes brancas, tudo sob uma iluminação intensa.
Subimos de elevador até o nono andar, onde Felix disse estar
localizada a sala de reuniões. Lá, dois homens altos e engravatados nos
aguardavam no interior do espaçoso cômodo, que dispunha de uma mesa
comprida de mármore com cores mescladas no centro, mais de doze
cadeiras ao redor e uma vista panorâmica da cidade de Londres ao fundo.
— É um prazer conhecê-los! Sou Lance Hayes, diretor artístico e
responsável por criar planos de carreira, e este é o meu colega, Matteo
Barrow, executivo da gravadora.
— Prazer, rapazes — Matteo saudou com um aceno.
— Igualmente — respondemos em uníssono.
— Por favor, sentem-se — disse Lance, apontando para as cadeiras
vazias ao redor da mesa.
Sentamo-nos ao redor da mesa comprida e ouvimos atententamente
às palavras dos dois homens.
— Assistimos à apresentação de vocês no Live at Leeds e ficamos
bastante impressionados.
— E, sem rodeios, nossa proposta é que vocês assinem um contrato
de exclusividade por quatro anos com a nossa gravadora — Matteo
acrescentou, cruzando os braços e se encostando na cadeira, enquanto
observava cada um de nós atentamente, como se estivesse estudando nossas
reações.
— Seremos responsáveis pela produção das músicas, marketing,
assessoria de imprensa e tudo que envolver a Smash Secrets, contando com
os melhores profissionais da indústria da música — prosseguiu Lance, de
maneira profissional.
Eu tentava absorver todas aquelas informações com o máximo de
atenção, mas, após ouvir “assinar contrato”, meus ouvidos pareceram parar
de enviar ondas sonoras ao meu cérebro, de modo que eu não conseguia
ouvir mais nada.
Meus amigos pareciam tão em êxtase quanto eu, apenas fitando os
dois homens com os lábios entreabertos e os olhos fixos, em completo
silêncio.
Felix nos encarou, com um braço dobrado e o outro por cima,
sustentando seu queixo entre o indicador e o polegar.
— Porém, há um detalhe, não é rapazes? — Nosso empresário
quebrou o silêncio, se dirigindo aos gerentes da gravadora.
— Sim, mas creio que não será problema… — Lance começou,
deixando um suspense no ar.
— Exatamente — Matteo concordou, sem ajudar a acalmar as batidas
desenfreadas do meu coração.
— E-eu qual seria esse detalhe? — perguntei, com a voz baixa e a
garganta seca, falando pela primeira vez desde que me sentei na cadeira.
— Vocês terão que se mudar para Nova York.
38

— Puts! — Elion foi o primeiro a reagir, como se tivesse saído de um


transe.
Davian e Nevan também piscaram e se entreolharam, franzindo o
cenho.
— Mas por quê? — perguntei, engolindo em seco.
Não sei se a pergunta foi conveniente, já que Felix me fitou com cara
de tipo “você é idiota ou se finge?”. Mudar de cidade, ou melhor, de país,
de continente, definitivamente não estava nos meus planos, especialmente
naquele momento…
— Nova York é apenas a sete horas de voo até Londres. Vocês podem
vir visitar suas famílias sem problema algum — disse Lance, notando nosso
desconforto com a informação.
Elion soltou uma risada debochada.
— Cara, você tem noção de quanto custa uma passagem de Nova
York para Londres?
— Se vocês assinarem com a gente, garanto que dinheiro não será
mais um problema — garantiu Matteo.
O baixista engoliu em seco e me encarou com as sobrancelhas
arqueadas.
— Se você diz… — murmurou e cruzou os braços, recostando-se
novamente na cadeira.
— Desculpe, mas você ainda não disse o motivo de termos que nos
mudar para o outro lado do Oceano Atlântico. — Pisquei lentamente,
voltando minha atenção para os dois representantes da gravadora.
— Como vocês devem saber, a indústria da música é
predominantemente baseada na América do Norte, mais especificamente
nos Estados Unidos. Ou seja, se vocês alcançarem sucesso lá, conquistarão
o mundo, meu jovem. — Matteo abriu os braços para enfatizar suas
palavras.
— Além disso, os americanos adoram bandas de rock britânicas,
especialmente o público feminino. Elas adoram um bad boy com sotaque
inglês — completou Lance, esboçando um meio sorriso.
— Acham charmoso e sexy. E convenhamos, o nosso sotaque é
mesmo o melhor — Matteo sorriu de canto, deslizando a mão pelos cabelos
pretos e lisos. — Mas, pela expressão de vocês, essa mudança para a terra
das oportunidades parece ser um problema.
— É claro que não é um problema! — Felix se apressou a responder
por nós, e eu não gostei nenhum pouco. — Eles sabem que essa
oportunidade é de ouro, que são poucos que têm o privilégio de fazer essa
escolha — completou, com um sorriso falso, enquanto nos fitava como se
estivesse prestes a saltar sobre nós caso discordássemos de suas palavras.
No fundo, eu sabia que ele estava certo.
Porra! Nos mudar para Nova York tornaria tudo mais fácil.
Ou não. Alertou meu subconsciente, mas o ignorei.
Eu pensava demais nas coisas e, volta e meia, me ferrava por isso.
— Eu topo! — Ergui a mão.
Meus amigos me fitaram simultaneamente e deram de ombros.
— Se o Caleb topa, eu também. — Davian ergueu a mão, seguido por
Elion e Nevan.
— Minha mãe vai surtar quando eu contar para ela — sussurrou o
baterista ao meu lado, balançando a cabeça e soprando um assobio.
— Sua mãe é sua maior fã, Nev. Tenho certeza de que ela não vai se
opor — afirmei.
— Até porque, você é maior de idade — completou Davian.
— Mas ainda sou filho único.
O guitarrista e eu nos entreolhamos, compreendendo a situação, mas
não dissemos nada.
— Ótimo! Tenho certeza de que essa parceria será muito lucrativa
para ambos os lados — Lance sorriu e estendeu o contrato em direção ao
nosso empresário.
— Posso ler? — perguntei ao diretor da gravadora, pegando a folha
antes que Felix pudesse tocá-la.
— Leve o tempo que precisar — respondeu ele, erguendo as mãos
em um gesto de calma.
Assenti e examinei as palavras em negrito, que se destacavam contra
o branco do papel. Não entendi muito do que estava escrito ali; os termos
eram técnicos demais. Quando assinamos com Felix, Ravena estava
presente e nos ajudou, mas ali, quem faria isso por nós?
Me remexi na cadeira, sentindo o suor começar a se acumular em
minha testa, e ergui os olhos. Todos estavam em silêncio, aguardando que
eu concluísse a leitura do documento.
— Felix — chamei nosso empresário de pé, encostado na parede.
— Sim?
Gesticulei para que ele se aproximasse.
— Não estou entendendo nada do que está escrito aqui…
— Me deixa dar uma olhada. Esse é o meu dever. — Sorriu, com
uma piscadinha discreta.
Entreguei-lhe as quatro folhas grampeadas e suspirei fundo, evitando
encarar os dois homens do outro lado da mesa. Felix colocou seu par de
óculos e começou a ler o contrato. Sinceramente, parecia que estava
levando uma eternidade.
Enquanto isso, Nevan não parava de batucar os dedos sobre a mesa.
Elion mastigava seu chiclete como se fosse um pedaço suculento de carne.
Davian, por sua vez, estava com os olhos fixos sobre a superfície da mesa.
Eu sabia que o guitarrista não estava com a cabeça ali, mas bem longe.
Quando Felix suspirou pesadamente, todos o encaramos. Inclinando-
se para baixo, o empresário sussurrou em meu ouvido:
— Está tudo certo. E devo dizer, vocês são sortudos pra caralho. —
Arqueei a sobrancelha.
— Estamos confiando em você — sussurrei de volta.
Felix assentiu, sério.
— Não vou decepcioná-los, mas façam o mesmo por mim. — Ele
piscou, dando um tapinha em meu ombro. — Senhores, só para esclarecer
tudo aos meus clientes, pelo que entendi do contrato, vocês estão propondo
à banda exclusividade de quatro anos, como dito anteriormente, uma
porcentagem de 10% sobre os lucros da receita geral, apoio financeiro
equivalente a um depósito inicial para custear a produção do primeiro
álbum da banda e uma multa bastante considerável em caso de quebra.
— 200 mil libras, é um valor justo, você não acha? — Lance cruzou
os braços, girando suavemente sobre sua cadeira.
Arregalei os olhos, juntamente com meus amigos.
— E a gente achando que os cinquenta mil do contrato com o Felix
era muito — Davian murmurou com ironia ao meu lado.
— Sabemos que é um valor consideravelmente alto, mas estamos
apostando todas as nossas fichas na banda — Matteo complementou a fala
de seu colega, não minimizando em nada os efeitos que aquele valor nos
causara.
— Os rapazes é quem vão decidir — disse Felix, erguendo as mãos.
Lance e Matteo olharam diretamente para mim como se eu fosse “os
rapazes”. Eu já disse e repito, era aquele tipo de pressão que caía sobre mim
por ser o líder da Smash que me fazia sentir como se estivesse pisando em
ovos.
— O que acham? — Olhei para Davian, sentado ao meu lado, e
depois para Elion e Nevan, do outro lado da mesa.
— A oportunidade é única. Não custa nada tentar — disse o baixista,
com os olhos fixos nos meus.
— Por mim, tá tudo bem — Davian concordou.
— Nev? — perguntei ao baterista.
— Eu também topo.
— E quanto a você, Caleb? Qual é sua decisão? — Lance
perguntou, com um meio sorriso, os braços cruzados e uma sobrancelha
arqueada, como se estivesse me desafiando.
Senti o olhar dos outros presentes na sala de reuniões sobre mim e
sequei minhas mãos suadas sob a mesa, deslizando-as pela minha calça.
— Se é para o bem da banda, eu também topo. — Sorri, mas
aquele não foi, nem de longe, um sorriso genuíno.
No entanto, fui o primeiro a assinar as quatro folhas do contrato e,
apesar de estar contente com o que estávamos prestes a conquistar, uma
parte de mim não conseguia parar de pensar na minha família e na
marrentinha. Um aperto sufocava meu peito sempre que a ideia de como ela
vai reagir surgia em minha mente.
— Bem-vindos à família Planets Music! — Lance estendeu a
mão, que apertei firmemente.
— E para comemorar, vamos estourar uma garrafa de champanhe. —
Sorriu Matteo, com as mãos nos bolsos de sua calça social preta.
— Você pega as taças e eu a garrafa — disse o diretor da
gravadora para o colega ao lado.
Matteo assentiu e juntos, os dois deixaram a sala.
— Caramba! Agora nós somos parte da família Planets Music.
Vocês ouviram isso?
— Não somos surdos, Eli — Davian revirou os olhos. — Ainda
não acredito que assinamos contrato com uma gravadora como essa. —
Suspirou, balançando a cabeça.
— Você é mesmo um empresário bom pra cacete, Felix — Nevan
elogiou o homem, passando o braço ao redor de seus ombros.
— Sei… — Felix murmurou, com os olhos estreitos, antes de
continuar: — Vou fingir que não notei o breve brilho de dúvida nos
olhinhos dos quatro. Especialmente, nos do senhor Fleet.
Sorri fraco e estalei a língua no céu da boca, ainda sentado na
cadeira, sem a mínima vontade de me levantar, a menos que fosse para sair
daquele lugar.
— Ele ficou assim por causa da fotógrafa, não foi, Cal? — Elion
disse sério, me encarando com os braços cruzados.
Fitei meu amigo com os olhos estreitos e apenas assenti.
— Não vou me intrometer em questões pessoais. — Felix ergueu
as mãos. — Mas sugiro que você converse com ela antes de a informação
ser publicada oficialmente pela assessoria da gravadora.
O assunto se deu por encerrado quando os dois chefões da
gravadora voltaram para a sala, trazendo uma garrafa de champanhe e sete
taças de vidro.
— Vou tomar apenas uma taça porque estou em horário de
trabalho — Lance disse bem-humorado, estourando a garrafa com um
estalo. — Mas a ocasião merecia uma comemoração à altura, hum?
Com todas as taças cheias até a metade, brindamos ao futuro
sucesso da Smash Secrets e ao início da banda, a próxima lenda do rock.

— Você tá bem, Cal? — Davian tocou meu ombro assim que


Elion e Nevan foram embora de carona com o Felix.
Estávamos parados no meio da praça em frente à gravadora, e eu
parecia perdido, simplesmente não sabendo qual próximo passo dar.
— Tô sim. — Sorri fraco.
— Eu sei que não estava nos seus planos a mudança, mas… É
uma boa oportunidade. Tenho certeza de que a Ravena vai entender e, na
melhor das hipóteses, quem sabe ela até vá conosco?
Franzi o cenho.
— Você acha?
Davian encolheu os ombros.
— Não custa nada você tentar fazer o convite, já que as coisas
parecem bem sérias entre vocês…
Para mim, elas já estavam sérias há um bom tempo, mas algo
dentro de mim, duvidava de que a Ravena estivesse no mesmo ritmo.
— Tem razão, mas primeiro vou falar com a minha família. —
Soltei um riso, me lembrando dos olhos amedrontados da minha mãe e da
agonia que ela exalava quando a deixei na estação. — Minha mãe deve
estar uma pilha.
Davian sorriu e me deu um abraço.
— Qualquer coisa, me liga.
— Valeu!
Suspirei fundo e segui até o meu carro. A casa do meu avô era tão
longe de Pancras Square quanto a minha, mas a viagem seria boa para
aliviar a tensão que pesava sobre os meus ombros.
O sol brilhava fraco atrás de algumas nuvens, mas a sensação de
frio fez minha pele se arrepiar.
Quando parei em frente à casa da minha família, vi meu irmão
ajudando nosso avô a jogar enormes sacos de lixo dentro da lixeira verde
que ficava do lado de fora da casa, assim como em todas do bairro.
— Olha, vô! É o Caleb! — Clarence acenou animado, segurando
a tampa do container de lixo.
— E aí? — Baguncei os cabelos do adolescente que mais amo no
mundo, e ganhei um abraço em troca. — Vô? — Fui até o homem mais
velho, dando-lhe um abraço, que eu não sabia que precisava.
— Como vai, meu neto?
— Bem. E trago boas notícias.
Ele me encarou com um sorriso, mas seus olhos diziam que ele
sabia que, apesar de a notícia ser boa, eu não estava tão feliz quanto
deveria.
— Clarence, por que você não leva essa vassoura lá para dentro?
O garoto assentiu e correu porta adentro.
— Sua mãe me contou sobre a sua namorada…
Soltei um riso nasalado e balancei a cabeça.
— Imaginei que tivesse. Mas a Ravena não é a minha namorada,
e eu disse isso para a mamãe.
— Você sabe como ela é. — Meu avô deu de ombros e passou o
braço ao redor dos meus ombros. — Vamos lá dentro para você nos contar a
boa nova.
Assenti e passei o braço ao redor de sua cintura, caminhando com
ele até o interior da casa, que estava bem mais agradável do que o lado de
fora.
— Caleb! Que bom que você veio, querido. Eu não parei de
pensar em você o dia inteiro. — Minha mãe exclamou aliviada assim que
pisei na sala de estar, segurando uma toalha de banho no braço.
— Você faz isso todo dia, mãe — Clarence zombou, mastigando
um pedaço de banana.
Nossa mãe revirou os olhos e ignorou as palavras do filho caçula.
— Aqui estou e vou direto ao ponto. A Smash Secrets acabou de
assinar um contrato de quatro anos com a Planets Music! — Abri os braços
com um sorriso vitorioso.
Meu avô sentou no sofá com os lábios entreabertos, meu irmão
parou de mastigar sua banana, e minha mãe levou a mão ao peito.
— Ah, meu Deus! Era essa a notícia que você não queria me
contar? — Ela abriu a boca, indignada, antes de me dar um beliscão no
braço. — Eu passei o dia inteiro preocupada, achando que era algo ruim, e
você nem para me tranquilizar.
— Mãe, eu disse que a notícia não era ruim — murmurei, acariciando
o local beliscado.
— Mas também não disse que era tão boa — retrucou.
— Não quis correr o risco de ser outra coisa e decepcionar a senhora.
— Ah, meu filho, eu jamais ficaria decepcionada por algo que não
depende de você. — Acariciou meu braço, sorrindo maternalmente.
— Quer dizer que eu vou ser irmão de rockstar? Cara, meus colegas
da escola vão ficar verdes de inveja. — Clarence sorriu, antes de morder
mais um pedaço de sua banana.
— Mas que notícia maravilhosa, meu neto! — exclamou meu
avô, levantando-se do sofá para me envolver em um abraço apertado,
enquanto dava leves tapinhas em minhas costas.
— Obrigado, vô. Mas tem mais uma coisa… — Afastei-me um
pouco do abraço.
— Ah, meu Deus. — Minha mãe suspirou fundo e se sentou no
sofá. — É coisa ruim agora, não é?
Hesitei por um momento, entreabrindo os lábios e balançando a
cabeça levemente.
— Eu não diria que é ruim, mas definitivamente é uma mudança e
tanto.
— Então, fala logo, Caleb. Não aguento mais suspense. —
gesticulou com uma mão, apertando a toalha em seu colo com a outra.
— Os rapazes e eu vamos ter que nos mudar para Nova York.
Bastou eu completar a frase para um trovão ecoar pela sala, fazendo
o chão tremer.
Minha mãe engoliu em seco, sem tirar os olhos dos meus.
— M-mudar? M-mas por quê?
— Os caras da gravadora disseram que teríamos mais chances de
sucesso se investíssemos no mercado americano.
— Errados eles não estão — ponderou meu avô.
— Nossa, por essa eu não esperava, porém fico feliz por vocês,
filho. É uma oportunidade que vocês não podem desperdiçar. Mas vou
morrer de saudades — murmurou com um biquinho e os olhos marejados.
Soltei uma risadinha e me ajoelhei à sua frente.
— Prometo que vou manter contato, e a senhora vai ficar cansada
de tanto ouvir minha voz. — Acariciei seus joelhos.
— Impossível, querido. — Afagou meu rosto e fungou o nariz
para espantar as lágrimas.
— Também vou sentir saudades, mano. Mas confesso que tô feliz
com a hipótese de passar as férias de verão em Nova York.
— Vamos com calma, Clarence. — Nossa mãe rosnou, me
fazendo soltar um riso.
— Também vou sentir sua falta pirralho. — Pisquei, fazendo-o
sorrir.
— Pessoal, não vamos pensar em despedidas por agora, hum?
Caleb ainda não está se mudando, então, vamos comemorar — meu avô
soltou bem-humorado e disse que pegaria algumas latas de cerveja na
geladeira.
— Vou colocar uma carne para assar na air fryer. Fica pronta
rapidinho — disse minha mãe, levantando-se do sofá e levando a toalha
consigo.
Levantei-me do tapete e me sentei no sofá ao lado do meu irmão.
— Parabéns mesmo, Cal. — Ele apertou meu joelho.
Abri um sorriso de canto e o puxei, abraçando-o de lado,
enquanto sua cabeça repousava em meu ombro.
39

Fazia tempos que eu não passava uma tarde sentado no sofá da


sala assistindo à Champions League com meu irmão e meu avô. No entanto,
ali estávamos nós três, desfrutando de um tempo juntos, focados no jogo
sendo transmitido na TV da sala de estar, enquanto bebíamos uma cerveja
gelada – exceto meu irmão.
— Não vejo a hora de completar dezoito anos — Clarence
resmungou, segurando uma lata de refrigerante.
Pressionei os lábios para esconder um sorriso e mantive o foco no
jogo, levando a lata de cerveja até a boca e ingerindo o resto do líquido.
— A carne está quase pronta — informou minha mãe, de pé à porta
da cozinha, enxugando as mãos em um pano de prato. — Caleb, querido,
você pode me dar uma ajudinha?
— Claro. — Deixei minha lata vazia sobre a mesa de centro e fui até
a cozinha.
— Parece que vai cair um temporal — murmurou dona Adelaine,
fitando o céu através da janela acima da pia da cozinha.
— O trovão de minutos atrás me faz ter certeza disso. — Sorri de
canto e cruzei os braços, encostado na bancada de mármore, antes de olhar
ao redor. — A senhora precisa de ajuda com o quê?
— Nada.
Arqueei uma sobrancelha e franzi o cenho.
— Desculpe, querido. Foi apenas uma desculpa que inventei para
falar com você a sós.
— Sobre?
— Aquela moça… Ravena, o nome dela, não é?
Suspirei fundo com a menção do nome da marrentinha, assenti e
encarei o porcelanato branco do piso.
— Você… Já contou a ela sobre a sua mudança?
— Pretendo fazer isso quando sair daqui. — Sorri fraco.
— Eu gostei dela. — Abriu a air fryer e fechou os olhos quando o
aroma da carne chegou ao seu olfato e exalou por toda cozinha. — Quero
conhecê-la melhor… Por que você não a traz aqui?
— Mãe, nós ainda estamos nos conhecendo…
— Vocês já transaram?
Arregalei os olhos e comecei a tossir de nervoso.
— Q-que pergunta é essa, mãe? — Engoli em seco, passando as
costas da mão pelos lábios.
— Apenas responda. Ela não estava aquele dia no seu apartamento
usando sua camisa somente por diversão.
Senti minhas bochechas arderem de tanta vergonha.
— S-sim — sussurrei, na esperança de que ela não tivesse ouvido,
mas minha mãe tem uma audição de morcego.
— Então, não são mais desconhecidos. Apesar da banalidade de
vocês jovens, o sexo é uma das coisas mais íntimas entre dois seres
humanos.
— Uau, a senhora é mesmo direta.
— Querido, o que eu quero dizer é que, se você está apaixonado, por
que negar o óbvio.
Apaixonado?
É assim que as pessoas definem o sentimento de querer estar o tempo
todo com uma pessoa, sorrir quando ela sorri, chorar quando ela chora,
querer tocá-la a cada segundo, ouvir sua voz, sentir seu calor, protegê-la a
todo custo, custe o que custar, sentir suas mãos e corpo tremer, e seu
coração bater mais forte apenas ao ouvir seu nome e vê-la se aproximar?
Isso é estar apaixonado?
Se a resposta for sim, eu estava anos-luz apaixonado por aquela
marrentinha e estava ciente disso há um bom tempo, só não queria admitir
para proteger meu coração.
— Não precisa fazer essa carinha de assustado, querido. Eu percebi a
forma como você olha para ela, é atenciosa e carinhosa. Na verdade, fico
feliz em saber que o meu filho se tornou um verdadeiro príncipe.
Balancei a cabeça com um sorriso.
— A última coisa que eu sou é um príncipe.
— Concordo.
Fitei-a com o cenho franzido.
Ela tinha acabado de retirar o elogio, era isso?
— Você é melhor do que qualquer príncipe. — piscou, apertando
minhas bochechas, antes de beijar minha testa, enquanto eu sorria feito uma
criança.
— Estou com medo do que isso possa significar para o nosso
relacionamento — murmurei, soltando um suspiro profundo e doloroso
apenas por pensar na possibilidade de realizar o meu sonho à custa de
perder a garota mais incrível que já conheci.
— Filho, se ela realmente gosta e se importa com você, ela será a
primeira a te apoiar e dizer para você ir.
Eu queria que as coisas fossem fáceis como ela disse.
— O problema, mãe, é que eu não quero ir sem ela.
— O que isso quer dizer? Você está pensando em convidá-la para
ir morar com você em Nova York?
— É a única solução que encontro. — Encolhi os ombros.
— E você ainda insiste em dizer que vocês estão apenas se
conhecendo. Faça-me o favor, Caleb Fleet.
Soltei um riso e coloquei as mãos nos bolsos da minha calça.
— No entanto, deixe para pensar nisso enquanto estiver indo para
a casa dela. Mas uma coisa eu te digo, filho: siga o seu coração. — Tocou
meu peito, bem acima de onde meu órgão vital batia incessantemente, e
beijou minha testa. — Agora, vamos almoçar. É um milagre seu irmão
ainda não ter–
— Mãe! O almoço tá pronto? — Clarence gritou da sala.
— Eu sabia que estava muito bom para ser verdade. — Suspirou
ela, revirando os olhos.
Balancei a cabeça, com um sorriso, e abri o armário para pegar os
pratos e os talheres na gaveta abaixo.

Se eu pudesse parar o tempo e ficar ali com a minha família para


sempre naquele almoço descontraído e leve, eu o teria feito. Pensar que eu
iria morar do outro lado do oceano, tão longe deles, apertava meu coração,
mas por outro lado, me alegrava a ideia de que eu poderia dar a eles uma
condição de vida melhor. Não que a que eles tinham atualmente não fosse,
mas eu poderia pagar a faculdade do meu irmão. Clarence, não estava longe
de se formar.
— Dirija com cuidado, filho — minha mãe pediu, acenando da
calçada ao lado do meu avô e meu irmão, assim que entrei no carro.
As folhas das árvores cobriam a calçada e o vento soprava meus
cabelos a ponto de cobrir meus olhos. Bati a porta do meu Ford e fiz
questão de deixar a janela ao meu lado fechada; do contrário, não
conseguiria nem sair com o veículo do lugar.
— Vejo vocês antes da viagem!
— Mas é claro que sim. Você não é doido de ir embora sem se
despedir — senhora Fleet resmungou com os braços cruzados.
— Vai com Deus, meu neto. E juízo! — Meu avô piscou, com um
braço ao redor dos ombros da minha mãe.
— Pode deixar, vô!
— Tchau, Cal! — Clarence gritou, com os cabelos desgrenhados
devido ao vento forte.
Acenei e buzinei para eles.
Não demorou muito para começar a chover após eu deixar a casa da
minha família. Bastou eu dirigir alguns metros para a chuva começar a cair
forte, ecoando no teto do carro e cobrindo o asfalto, formando poças e mais
poças d’água.
Os limpadores de para-brisa do meu velho Ford não paravam de
balançar de um lado para o outro, enquanto eu dirigia sob aquela chuva
grossa e barulhenta. Volta e meia um clarão atravessava o céu e refletia no
interior do carro. Nem mesmo parecia pouco mais de seis da tarde. O céu
estava escuro e a visibilidade não era das melhores.
Aquilo parecia quase um aviso…
Suspirei fundo e balancei a cabeça, avançando devagar à medida que
os veículos à minha frente faziam o mesmo.
Eu só queria chegar logo ao apartamento da marrentinha e contar a
novidade de uma vez, antes que ela soubesse por outras fontes.

Saí da casa do Caleb tão apressada que me esqueci de tirar sua


camisa, que naquele momento cobria meu corpo e ainda continha o perfume
suave que ele usava.
Se ele não cobrasse, acho que eu não iria devolvê-la…
Dei um pulo no sofá quando um clarão atravessou a janela da sala
de estar. Estava caindo um temporal do lado de fora, as árvores não
paravam de balançar de um lado para o outro, e o sopro forte do vento
chegava a assobiar através da fresta da janela.
Eu não deveria estar com a TV ligada em meio àquela tempestade,
assistindo a um filme de comédia romântica. No entanto, lá estava eu, com
um balde de pipocas sobre o colo, sem sequer piscar os olhos, focada
demais na cena de quase beijo entre os protagonistas.
Honestamente, eu não suportava aquele suspense. Se eles queriam se
beijar, que fizessem logo. A vida é curta demais, mas é claro que nem
sempre a ficção imita a realidade.
Quem, na vida real, fica encarando o outro daquele jeito, inspirando o
hálito da outra pessoa por tanto tempo?
Minha sessão de cinema e críticas ao filme foram interrompidas
quando a campainha tocou.
— Aposto que a Ali esqueceu as chaves. — Revirei os olhos,
deixando o pote de pipocas quase vazio sobre a mesa de centro, e caminhei
até a porta com os pés descalços. — Caleb? — sussurrei, com o cenho
franzido, após ver o rapaz através do olho mágico.
Suspirei fundo e balancei a cabeça antes de abrir a porta.
— Já está com saudades, cantorzinho? — zombei, com um sorriso de
canto, tentando ignorar as batidas descontroladas do meu coração ao ver o
músico parado à minha porta, e me escorei no batente de madeira.
Confesso que fiquei surpresa com sua visita surpresa. Pensei que
ele estivesse ensaiando com os meninos para o próximo show ou algo do
tipo.
— Posso entrar? — perguntou sério, com as mãos no bolso de sua
calça escura. Foi quando notei que ele não abriu seu típico sorriso charmoso
e amigável.
Nenhum beijo, abraço, nada?
Engoli em seco, assenti, abrindo espaço para que ele entrasse, e
fechei a porta devagar.
Algo não estava certo, e meu coração, que antes estava disparado de
alegria em vê-lo, naquele momento estava apertado, prevendo uma
tempestade tão forte quanto a que caía barulhenta do lado de fora.
O que ele tinha para dizer? A expressão em seu rosto estava péssima,
e tudo o que passava pela minha cabeça era que ele havia se cansado de
mim após enxergar quem eu realmente sou.
Talvez ter sido sincera com ele sobre o Nolan e tê-lo levado para
conhecer a minha família o tenha assustado…
Caleb suspirou fundo, atraindo minha atenção. Ele passou a mão
pelos cabelos sedosos antes de se sentar no sofá e dar dois tapinhas de leve
ao seu lado, sinalizando para que eu me sentasse.
Não sei como expressar com palavras o que eu estava sentindo
naquele momento, mas minhas pernas estavam tão bambas que eu mal
conseguia caminhar sem temer cair desfalecida no chão de madeira.
Ainda assim, graças a Deus, consegui me aproximar lentamente,
passo a passo, até chegar a ele e me sentar rígida ao seu lado. O filme sendo
exibido na TV parecia já não fazer sentido, enquanto eu fitava a tela,
brincando com meus dedos sobre o colo.
Com a mão trêmula, peguei o controle da TV e a desliguei.
— Por que você tá com essa cara de enterro? — zombei, com um
sorriso nervoso, fitando Caleb.
No entanto, o músico não retribuiu, apenas me encarou em completo
silêncio. Sua expressão era séria, séria demais e, para piorar, o brilho triste
em seus olhos apertou ainda mais meu coração.
Antes de responder à minha pergunta, Caleb pegou minhas mãos
trêmulas e suadas, e respirou fundo.
— Nós recebemos uma proposta. — Fez uma pausa, encarando
meus olhos, mas eu mal estava ouvindo. Meu coração batia tão forte, que
meus ouvidos zumbiam. Quando eu não disse nada, ele continuou: — Uma
gravadora com sede nos Estados Unidos se interessou pelo nosso trabalho e
nos fez uma proposta, mas… Para isso, precisamos nos mudar para Nova
York.
Foi bem naquele momento que o castelo de cartas que era o nosso
romance se desfez.
— N-Nova York? — mal reconheci minha própria voz.
Caleb assentiu e apertou minhas mãos.
— E v-vocês aceitaram? — continuei, sentindo minha cabeça girar
com medo da resposta. No entanto, no fundo, eu já sabia qual era.
— Era uma oportunidade única para nós… — disse ele, como se
sentisse dor.
Claro que eles aceitaram, que pergunta idiota, Ravena!
— Acredite, não estava nos meu planos, mas–
— Não vou pedir para você ficar. — Cortei, com a voz
embargada. — Esse é seu sonho... E-eu seria egoísta se pedisse para você
largar tudo e ficar.
— Mas eu quero você… — sussurrou, acariciando minha bochecha
quente. — Nós podemos ficar juntos, você pode vir para Nova York e–
Levantei-me bruscamente e dei um passo para trás, fugindo do seu
toque, enquanto balançava a cabeça.
— Eu não vou largar tudo, a minha vida, o meu trabalho, para
acompanhar um cara aleatório até o outro lado do mundo.
— Cara aleatório? É isso que eu sou pra você? — disse baixo e
levantou-se devagar.
A decepção brilhava em seus olhos como nunca vi antes.
— Caleb, e-eu, não… — comecei, mas ele continuou:
— Sabe, eu realmente pensei que você ficaria feliz por nós…—
murmurou, colocando as mãos nos bolsos de sua calça.
— E eu tô! — exclamei, com os braços abertos. Meu coração
estava tão apertado que eu sentia como se fosse sofrer um infarto a qualquer
momento. — Mas não me peça para fazer algo que não quero!
Droga! Eu nunca havia me sentido daquele jeito, nem quando
meu pai educadamente pediu que eu me retirasse de sua casa.
— Então, por que você tá reagindo desse jeito e gritando?
— Porra, eu não tô gritando! — falei alto.
Tá, talvez eu estivesse “gritando”.
— Não consigo te entender, Ravena — sussurrou com o cenho
franzido.
Ravena?
Ele nunca disse meu nome daquela forma amarga e fria…
Eu preferia mil vezes “marrentinha”, mas acho que não tinha
direito de exigir nada dele naquele momento.
Senti meu estômago revirar quando encarei seus olhos,
decepcionados e brilhantes.
— Acredite, eu tô muito feliz por você e pelos meninos, mas…
— falei, um pouco mais baixo.
— Mas o quê? — Aproximou-se devagar, procurando meus olhos
quando ergueu meu queixo para que eu o encarasse. No entanto, fechei-os,
sem coragem para dizer o que diria a seguir sem querer vomitar.
— Sabia que mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer.
Abri os olhos lentamente e fitei os castanhos melosos e brilhantes
de Caleb.
Seu cenho estava franzido e sua expressão era ainda mais confusa
do que há segundos.
— Acontecer o quê?
Soltei uma risada desprovida de humor e me afastei do seu toque,
imediatamente sentindo falta do calor de sua mão em minha pele.
— Caramba, vocês são bons pra caralho! Era tão claro quanto
água que uma hora ou outra alguém ia reconhecer o talento de vocês e fazer
uma proposta dessas apenas pra levar você pra longe de mim — completei
baixo, fitando o chão.
O silêncio que sucedeu à minha fala era quase ensurdecedor e só
foi quebrado quando o som de um trovão ressoou, tremendo o chão da sala.
Ele não ia dizer nada?
— Nós podemos dar um jeito… — sussurrou, fraco demais.
Ergui os olhos e franzi o cenho.
— Dar um jeito? — repeti ainda mais baixo. — Que jeito? Você
vai pra Nova York, é isso o que você tem, e vai fazer — afirmei, sentindo
minha garganta seca, a sensação era quase sufocante e fazia meu corpo
tremer.
— Ravena…
— Para de me chamar assim! — gritei, extravasando toda a
frustração que se acumulava em meu peito e poros.
Caleb arregalou os olhos e deu um passo para trás.
— Eu detesto quando você fala meu nome como se estivesse com
dor.
— Você não me deixa explicar, caramba! — disse alto, pela
primeira vez demonstrando alguma emoção verdadeira do que a sua
habitual tranquilidade. — Eu quero ficar com você e nós podemos fazer
isso se você também quiser ficar comigo. E-eu posso esperar você se
decidir… N-nós podemos manter um namoro a distância e–
— Que namoro? — cortei afiada. — Nós não estamos
namorando. — cuspi, sentindo nojo de mim mesma quando fitei a
expressão dolorosa no rosto dele.
Eu era mesmo uma idiota com I maiúsculo.
— E-eu pensei que a essa altura nós já estávamos no mesmo
lugar...
— Você se enganou, Caleb — continuei, querendo me estapear
por não calar a boca e deixar a parte egoísta e covarde que habita em mim
sentir prazer em vê-lo naquele estado, triste e decepcionado.
Caleb engoliu em seco e estreitou os olhos, antes de soltar baixo e
rouco:
— Quem é você? Porque a Ravena que eu conheci não é uma
covarde.
— Eu sou a mesma Ravena que você conheceu naquela festa, mas
lamento que não tenha enxergado isso a tempo. — Ergui o queixo, me
sentindo um lixo.
Caleb permaneceu com os olhos fixos nos meus, brilhando com o
que pareciam lágrimas não derramadas, antes de engolir em seco e abaixar a
cabeça, deixando os fios ondulados de seu cabelo cobrirem parcialmente
seu rosto bonito.
— Eu não me importo de esperar você tomar uma decisão…
Droga!
Por que ele tinha que tornar as coisas mais difíceis e dolorosas para
nós?
Abaixei a cabeça, umedecendo os lábios, e neguei.
— Entende de uma vez por todas, Caleb, não seria justo eu te
pedir para esperar por mim. Mais cedo ou mais tarde você iria jogar isso na
minha cara — falei baixo, apertando os braços ao meu redor, como se eles
fossem me impedir de desmoronar na frente do rapaz por quem eu estava
completamente e perdidamente apaixonada.
— Mas é justo você jogar fora tudo que a gente viveu — cuspiu,
com os olhos escuros, como nunca vi antes.
Mordi o lábio inferior para conter minhas lágrimas.
Aquele rompimento estava sendo muito mais doloroso do que
pensei que seria.
— Esse é o seu sonho... Eu seria egoísta se pedisse para você
desistir dele.
— Não seria a primeira vez que você seria egoísta, não é? —
disse amargo, com um sorriso maldoso e falso. Encarei-o com os lábios
entreabertos e engoli em seco.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer, Ravena, que você é a porra da pessoa mais
egoísta que eu já conheci na vida! Você só olha para o seu próprio umbigo e
pensa que o mundo gira ao seu redor, que todos são obrigados a engolir as
suas grosserias e palavras chulas, desprovidas de sentimentos! — gritou e
fez uma pausa, com a respiração ofegante e o peito subindo e descendo com
rapidez. — É isso que eu quero dizer! — completou com um último grito,
como se precisasse daquilo para não enlouquecer de vez.
As lágrimas que tanto tentei segurar, deslizaram pelo meu rosto, uma
após a outra, sem nenhum intervalo. Não lutei contra; eu precisava colocar
aquilo para fora, tanto quanto o Caleb.
— E é por ser tudo isso que eu não vou te pedir para ficar, nem
para esperar por mim — falei baixo, chorando como nunca pensei que faria.
Caleb estalou a língua no céu da boca, me encarando com os
olhos vermelhos e lágrimas molhando seu rosto e sua camisa.
— Quer saber? Você tá certa. — Abriu os braços. — Não seria justo
eu abrir mão do meu sonho por alguém que não sente o mesmo que eu e
não está disposta a fazer sacrifícios, porque ela se acha boa demais para um
simples sonhador como eu.
— Eu mereço ouvir tudo isso — murmurei, encarando-o com o
pouco de coragem que me restava.
Esperei que ele gritasse mais, desabafasse mais, me ofendesse
mais, porque eu merecia, mas ele apenas abaixou a cabeça, cansado demais
daquilo. Parecendo sem forças, Caleb engoliu em seco e deslizou as mãos
pelos cabelos, antes de dar as costas, abrir a porta e fechá-la com um baque
alto e violento.
Me ajoelhei sobre o piso de madeira e permiti que minhas
lágrimas o lavassem junto com minha alma, fraca e partida. Se uma lasca
daquele piso fincasse nos meus joelhos, doeria menos do que o rasgo no
meu peito.
40

Empurrei a porta de vidro com força e olhei para o céu antes de


seguir pela calçada. As gotas de chuva que molhavam meu corpo da cabeça
aos pés se misturavam com as lágrimas que deslizavam pelo meu rosto,
embaçando minha visão.
Atravessei a rua sem olhar para os lados e quase fui atropelado. O
motorista gritou um palavrão após frear o carro bruscamente, fazendo os
pneus soltarem um ruído agudo e alto sobre o asfalto molhado, e piscou os
faróis do veículo, mas eu estava me fodendo para aquilo.
Abri a porta do meu Ford bruscamente e entrei no veículo, batendo a
porta com violência. Comecei a socar o volante, como se ele tivesse culpa
de eu ter me apaixonado perdidamente por uma garota que, mais cedo ou
mais tarde, eu sabia que iria quebrar meu coração em mil pedaços e pisoteá-
lo até virar pó.
Um relâmpago cruzou o céu, me fazendo respirar fundo e apoiar a
cabeça molhada contra o encosto do banco. Mordi o lábio inferior, tentando
conter a batalha interna que meu coração travava, enquanto minhas mãos
tremiam. Tudo o que eu queria era uma injeção que pudesse aliviar a dor
que me consumia tão rapidamente quanto uma chama acesa em uma folha
de papel.
Por que a Ravena tinha que ser tão egoísta e covarde? Por que ela
estava desistindo de nós depois de tudo o que aconteceu e do que eu fiz para
apoiá-la quando ela mais precisou?
Fechei os olhos e engoli em seco. As lágrimas quentes não paravam
de cair pelo meu rosto, molhando ainda mais minha camisa.
Eu precisava sair dali, antes que acabasse perdendo de vez a cabeça.
Sinceramente, não sei como cheguei em casa vivo depois de
ultrapassar dezenas de vezes a velocidade máxima permitida e quase bater
em uma série de veículos que encontrei pelo caminho.
Joguei minha jaqueta úmida sobre o sofá e, em seguida, me sentei
sobre o móvel como se fosse um saco de entulho, pesado e quebrado em
centenas de pedaços.
— Miau!
Olhei para o lado e vi Candy caminhar lentamente em minha direção,
com o rabo erguido, até pular no sofá e se sentar no meu colo.
— Oi, Candy. — Beijei sua cabecinha e dei-lhe um abraço, molhando
seu pelo macio com minhas lágrimas. Embora tivessem diminuído desde
que saí da casa da marrentinha – eu ainda a chamava daquele apelido –, não
haviam cessado. — Agora eu tenho certeza de que você é a única garota
que jamais partiria meu coração.
— Miau.
Abri um sorriso fraco em meio às lágrimas.
Honestamente, eu parecia um zumbi me arrastando pelos cantos da
casa. Após muita força de vontade, finalmente consegui me levantar do
sofá, colocar mais ração para a Candy e ir tomar um banho quente. A água
chegava a queimar minha pele, mas nada era mais doloroso do que a chama
de dor que crepitava em meu peito.
Ela sim, ardia como fogo em brasa, reduzindo tudo a pó.
A chuva caía insistentemente do lado de fora, molhando o vidro
fechado da minha janela com a cortina aberta.
Londres estava reduzida a uma umidade fria e sombria.
Deitei-me na cama, vestido com uma camisa larga e uma calça
moletom, e me cobri com o edredom. Nem mesmo me dei ao trabalho de
ligar o aquecedor. Um resfriado não me mataria mais do que um coração
partido.
Fiquei fitando o teto escuro, volta e meia, iluminado pelos clarões
dos trovões e relâmpagos, até finalmente sentir os olhos pesados e
adormecer como se estivesse com o peso de um elefante nas costas.

Apertei a almofada contra o peito. Eu estava há mais de uma hora


sentada naquele sofá e parecia não ter nenhuma intenção de deixá-lo para ir
me deitar na cama, que, sinceramente, soava mais atraente naquele
momento.
Tudo o que eu queria era me afundar no colchão e deixar que a dor
me consumisse por inteiro, até o sono chegar e aliviar a sensação de querer
beber uma garrafa inteira de uísque sem gelo. Pelo menos a bebida me
manteria anestesiada por algumas horas.
Ouvi o barulho de chaves e, em seguida, a porta de entrada se abriu,
revelando minhas amigas, Alissa e Catarina, usando capas de chuva que
pingavam pelo chão, molhando o piso de madeira.
Péssima hora para elas chegarem.
— Rav, o que aconteceu? A gente pensou ter visto o Caleb saindo
daqui. Ele parecia desnorteado e–
— Era ele. — Cortei a fala de Catarina, fitando a TV apagada com os
olhos inchados.
— Ravena, você tá… chorando? — Ali murmurou após se aproximar
e se sentou ao meu lado no sofá, antes de virar meu rosto em sua direção.
— O que aconteceu?
— Você e o Caleb brigaram? — Catarina sentou do meu outro lado
do móvel.
Assenti, sentindo mais lágrimas quentes escorrerem pelo meu rosto.
— Mas por quê? Vocês pareciam tão bem depois que voltaram de
Leeds… — disse a bióloga.
— Ele vai embora para Nova York, a banda dele assinou contrato
com uma gravadora grande e eles vão ter que se mudar…
Alissa entreabriu os lábios e soltou um suspiro.
— Poxa, e-eu sinto muito.
— Pois não deveria. Esse é o sonho dele e, apesar da nossa briga e
não querer que ele vá, estou feliz por eles — admiti com a voz embargada.
— Ele só veio aqui para se despedir? — continuou a ruiva.
— Não, ele veio para pedir que eu fosse com ele.
— E pela sua cara, eu devo adivinhar que você recusou.
— Mas é claro que eu recusei, Catarina! Não posso simplesmente
largar tudo para seguir um futuro rockstar, como se eu fosse uma dondoca e
não tivesse mais nada o que fazer da vida.
— Rav, por esse lado, eu até te entendo, mas… Nova York
poderia te oferecer muitas oportunidades. O Caleb mesmo poderia te ajudar
a encontrar trabalhos… — Alissa tentou ser compreensiva, mas falhou.
— Isso! Você mesma não fotografou a banda dele no festival?
Poderia fazer de novo lá… — Catarina acrescentou, como se fosse uma
possibilidade fácil e maravilhosa.
Revirei os olhos, joguei a almofada sobre o colo da Catarina e me
levantei.
— Vocês falam como se fosse fácil.
— Se tem alguém que está complicando as coisas aqui é você —
Alissa murmurou, pressionando os lábios juntos.
— Sabe o que eu acho? Que você está com medo de o Caleb te
rejeitar como o No–
— Não. Fala. O. Nome. Dele — cuspi entredentes, pausadamente.
Catarina não tinha o direito de trazer meu ex para aquela conversa,
nem ela nem ninguém. Aquilo era sobre mim e o Caleb; Nolan não tinha
nada a ver com as minhas decisões.
Era naquilo que eu queria acreditar. Seria mais fácil do que
aceitar que, sim, eu estava me borrando de medo que o Caleb se cansasse
das minhas crises e me jogasse para escanteio na primeira oportunidade.
No entanto, eu não o culparia se ele o fizesse.
— Então é isso? Você vai deixá-lo ir… — Catarina murmurou
com o cenho franzido.
Engoli em seco, lutei contra as lágrimas, mordendo o lábio
inferior, e assenti devagar.
— Eu te amo, Ravena, mas às vezes tenho vontade de pegar a sua
cabeça e bater na parede para ver se ela se abre e coloca um pouco de bom
senso aí dentro — Alissa cuspiu, parecendo tão indignada quanto eu deveria
estar comigo mesma.
Cruzei os braços, parada de pé à frente delas no meio da sala,
enquanto uma lágrima escorria pelo meu rosto. Tanto eu quanto minhas
amigas nos entreolhamos, em um completo silêncio que pesava o ambiente
tanto quanto uma manada de elefantes.
— Essa camisa é dele? — perguntou Catarina, quebrando o clima
pesado.
— E não vou devolver. — Enxuguei o rosto com as costas das mãos
e funguei o nariz.
— Sei que a minha opinião não vai fazer diferença, mas eu ainda
acho que você não deveria fazer isso, Rav… — Ali começou, mas eu não
tinha mais paciência.
Elas não tinham o direito de julgar as minhas decisões, mesmo que
estivessem erradas, e eu sabia que estavam. Porém, o orgulho e o medo me
impediam de voltar atrás.
Suspirei fundo e revirei os olhos.
— Vocês deveriam ficar felizes porque, pela primeira vez na vida,
estou pensando em alguém além de mim! — soltei alto, ofegante. — Eu
seria muito egoísta e filha da puta se pedisse a ele para esperar enquanto
tomo uma decisão. Pela forma como ele falava, tenho certeza de que, se
pedisse para desistir e ficar aqui comigo, ele o faria, mas eu não posso agir
assim, não sou tão escrota! — gritei, precisando daquilo para aliviar o peso
que estava sobre as minhas costas.
Minhas amigas me fitavam, com os lábios entreabertos,
completamente sem palavras. Ainda ofegante, com o peito subindo e
descendo, deixei as duas na sala e marchei até o meu quarto, fazendo
questão de bater a porta com violência e trancá-la. Encostada, com a cabeça
na superfície de madeira, fitei um objeto com um cachecol vermelho, difícil
de passar despercebido.
Luck, o urso que Caleb havia me dado de presente no nosso primeiro
encontro, estava sobre a minha cama, encostado no travesseiro. Apenas um
vislumbre dele foi o suficiente para me fazer cair novamente em uma crise
horrenda de choro.
Me joguei sobre o colchão em posição fetal e abracei o urso
fortemente contra o peito, deixando finalmente meu corpo tremer, enquanto
as lágrimas molhavam o travesseiro macio e perfumado sob minha cabeça.

Meus olhos demoraram pelo menos um minuto para se


acostumarem com a claridade que atravessava a janela. De repente, o som
da campainha ecoou por todo apartamento, enquanto Candy lambia minha
mão.
— Candy? — perguntei, com a voz rouca, e os olhos entreabertos.
Eu estava péssimo. Era como se eu estivesse de ressaca, mesmo
sem ter bebido uma gota de álcool, o que sinceramente me surpreendeu. Na
noite passada, cheguei tão extasiado que nem me lembrei da existência de
algumas garrafas na despensa da cozinha.
Novamente, o som alto e irritante da campainha soou, me
obrigando a soltar um palavrão e me levantar da cama, ainda zonzo, para
caminhar até a sala, me escorando nas paredes durante o trajeto.
Nem mesmo tive forças para olhar através do olho mágico de
quem se tratava; apenas destranquei a porta e me deparei com três pares de
olhos, há muito conhecidos, me encarando como se eu tivesse saído de uma
lixeira qualquer.
— Caleb! O que aconteceu, cara? Liguei mais de um milhão de
vezes e seu celular só dava caixa postal. — Davian nem mesmo esperou eu
abrir a porta completamente para soltar um milhão de palavras sobre a
minha cabeça dolorida.
O guitarrista era sempre o primeiro a me procurar.
— Ele parece ter sido atropelado por um caminhão que deu ré pelo
menos três vezes — disse Elion, com o cenho franzido, fitando-me de cima
a baixo.
Revirei os olhos.
— O que vocês estão fazendo aqui? — Escorei-me no batente da
porta.
— Viemos saber se você tá vivo. — respondeu o baixista, como se
fosse óbvio.
— Além disso, o Felix tá louco atrás de você. Ele também tentou te
ligar várias vezes e quase veio aqui, mas nós dissemos que não precisava —
Nevan disse, cruzando os braços.
— O que ele quer de tão urgente?
— Nós temos um show na sexta no The 100 Club, na Oxford Street.
— Show?
— Caleb, você tá aqui? Porque eu tô vendo a sua alma ir de arrasta
pra cima bem agora. — Elion gesticulou com a mão em direção ao teto.
— Foi mal, eu… só não tive uma noite boa.
— Ah, disso não temos dúvidas — zombou ele.
— Podemos pelo menos entrar? — Davian pediu com um olhar
preocupado.
Sem uma palavra, abri espaço para que meus amigos entrassem e fui
direto para o sofá, deixando a missão de fechar a porta para o Nevan.
— Você vai nos dizer o que aconteceu? — O guitarrista se sentou ao
meu lado, apoiou os cotovelos sobre os joelhos e me encarou, aguardando
uma resposta.
— Acho que eu sei a resposta…
— Eli, deixe o Caleb falar.
— Eu e a Ravena terminamos — soltei um riso amargo e umedeci os
lábios secos. — Quero dizer, não se pode chamar de término aquilo que
nem começou.
— Sabia… — Elion suspirou, sentando-se na poltrona ao lado do
sofá.
— Ela não topou ir pra Nova York? — Davian continuou, ignorando
o baixista.
— Tá na cara do Caleb que não, né, Davi! — Elion soprou, revirando
os olhos.
— Eu sinto muito, cara — o guitarrista lamentou, apertando meu
joelho.
— Não mais do que eu. — Fechei os olhos e me esparramei no sofá,
com as pernas abertas e esticadas.
— Se isso te serve de consolo, mulher é igual ônibus, vai uma vem
três. — Elion deu de ombros, acendendo um cigarro.
— Cara, cala a boca! — Davian resmungou com uma careta, fitando
o baixista.
O rapaz apenas arqueou a sobrancelha, ergueu as mãos e continuou:
— Olha, eu sei que é barra, Cal, porque você gosta dela e tal. Mas
olha pelo lado bom, isso serviu para você ver quem a Ravena realmente é.
Se ela estivesse levando a sério esse lance entre vocês, teria topado na
mesma hora ir com você para Nova York. Qual foi?! Nós estamos falando
de Nova York! Seria uma oportunidade de ouro até mesmo para a carreira
dela de fotógrafa… — Fez uma pausa, mordeu o lábio inferior e colocou
uma mão na cintura. — Já pensou se você tivesse desistido do contrato por
causa dela? Agora todos nós estaríamos pagando o pato — concluiu,
soprando seu cigarro.
Um momento de silêncio recaiu sobre nós, tão pesado quanto a chuva
da noite anterior que encharcou não apenas minha roupa, mas a minha alma
inteira.
— Não quero falar mais sobre isso, sobre ela. A Ravena fez a
escolha dela, e eu fiz a minha. Vida que segue.
— É assim que se fala, amigo. — Nevan apertou meu ombro,
sentado ao meu lado no braço do sofá.
— Agora, por que você não vai tomar um banho e escovar os
dentes? Eu estou sentindo seu bafo daqui. — Davian fez uma careta,
abanando a mão em frente ao rosto.
— Em minha defesa, eu acabei de acordar — resmunguei,
levantando-me do sofá.
Meus amigos soltaram uma risada e, por um momento, me senti
grato por eles estarem ali.
— Vamos esperar você aqui. — Davian cruzou as pernas e abriu o
braço no encosto do sofá.
— Por quê? — Arqueei a sobrancelha, encarando o guitarrista.
— Temos ensaio daqui a duas horas para o show de sexta, caso
você ainda esteja dormindo e tenha se esquecido.
— Nevan falou sobre o show, não sobre um ensaio agora. —
Franzi o cenho.
— Pois é, mas nós temos um ensaio. O show é depois de amanhã,
não temos muito tempo. — Davian apenas encolheu os ombros.
— É um show de despedida, então temos que arrebentar a boca
do balão. — Nevan piscou com um meio sorriso.
— Cara, cê desenterrou essa direto do túnel do tempo — Elion
zombou, fazendo uma voz dramática.
Suspirei fundo e cocei o nariz com a cabeça baixa.
Minha vontade de tocar e cantar era nula, mas eu precisava me
distrair. Ficar lamentando pelos cantos não tornaria a minha vida mais fácil
nem diminuiria a dor que ainda latejava em meu peito.
— Você disse show de despedida? Quer dizer que eles já têm uma
data para a nossa mudança?
— Felix ainda não nos disse oficialmente, mas… Parece que vai
fazer isso hoje.
Engoli em seco, lutando contra a vontade de começar a chorar
novamente. Nunca pensei que ficaria tão mal por causa de uma garota, mas
lá estava eu, prestes a me ajoelhar se aquilo significasse que Ravena
aceitaria ir comigo para Nova York.
No entanto, eu não faria aquilo, pois ela não iria mudar de ideia e eu
tinha que respeitar.
41

Era a terceira vez, em menos de cinco minutos, que éramos obrigados


a parar o ensaio, e a culpa era toda minha.
— Caleb, desse jeito não dá. Você já errou a música três vezes.
Música essa que você mesmo compôs. — disse Felix.
— Quer saber? Vamos tirar “Ocean Eyes” do repertório. Não tenho
estômago para cantar essa música. — Deslizei a mão pelos cabelos e tirei
minha guitarra do ombro, deixando-a escorada na bateria do Nevan. — Vou
beber um pouco de água. Volto em cinco minutos.
Não esperei por permissão, apenas desci do palco e segui com passos
lentos, porém pesados, em direção ao banheiro do outro lado do espaço. A
casa de shows estava revestida com paredes vermelhas, decoradas com
dezenas de quadros das bandas e artistas lendários que já passaram por ali.
No entanto, antes de adentrar o corredor, ouvi Felix resmungar se eu
estava louco de querer tirar o nosso primeiro single oficial do repertório.
Não o julgo por estar furioso.
Graças a Deus, nosso primeiro single oficial estava fazendo mais
sucesso do que esperávamos para uma banda que até um mês atrás era
completamente desconhecida. Com apenas quatro dias, a canção já estava
com quase um milhão de streams no Spotify. Aquilo era um feito e tanto
para nós.
Nenhum artista em sua sã consciência deixaria de fora de um show
sua música mais popular.
Mas como eu conseguiria subir ao palco e cantar uma música tão
íntima, que me traria tantas memórias que, naquele momento, eu preferia
enterrar no fundo da minha mente e coração, a sete chaves? Aquilo seria
tortura, e eu já estava fraco demais.
Apesar de tudo isso, o tempo estava voando. Era difícil de acreditar
que, em apenas um mês, tantas coisas tivessem acontecido, começado e
acabado.
Fitei meu reflexo no espelho manchado do banheiro e apoiei as mãos
sobre a pia fria. Meus olhos estavam inchados e meus cabelos uma bagunça
maior do que já são, por natureza. Os fios estavam cada dia mais longos e
eu não tinha nenhuma intenção de cortá-los.
Talvez mudar de visual fosse bom.
Abri a torneira e joguei um pouco de água fria no rosto. Eu precisava
me concentrar. A banda não podia ser prejudicada pelos meus problemas
pessoais.
Deslizei minhas mãos úmidas pelo meu cabelo e respirei fundo, antes
de enxugar o rosto com um pedaço de papel e criar coragem para voltar ao
palco.
— Ainda não acredito que vamos tocar no mesmo lugar que Paul
McCartney, Oasis, White Stripes e tantos outros artistas fodas pra caramba.
— Nevan não conseguia conter seu entusiasmo, enquanto girava suas
baquetas, encostado na parede com um enorme número 100 pintado de
branco decorando-a.
Realmente, o fato de tocarmos em um local tão histórico para o
mundo do rock era um privilégio que poucos tinham. Eu gostaria de estar
mais empolgado com essa grande e única oportunidade, mas o rompimento
com a Ravena ainda estava mexendo comigo de um jeito bem ruim.
Já haviam se passado quase vinte e quatro horas desde a nossa briga,
e eu ainda sentia os efeitos das palavras frias e mentirosas que atiramos um
no outro, como flechas venenosas. Não sei se algum dia conseguirei seguir
em frente. Sinceramente, eu esperava que sim, e queria muito acreditar no
ditado que diz que o tempo cura qualquer ferida.
A minha parecia profunda demais para sequer algum dia ser
cicatrizada.
— Melhorou, Caleb? — Felix perguntou com o cenho franzido.
Apesar de estar irritado, ele parecia genuinamente preocupado comigo.
— Sim. — Assenti com um sorriso fraco.
— Os rapazes me contaram sobre seu rompimento com a Ravena
e–
— Pode ter certeza de que isso não vai afetar meu desempenho.
— Fiz uma pausa quando nosso empresário arqueou a sobrancelha com
ironia e cruzou os braços. Suspirei fundo e entendi a deixa. — Pelo menos,
não de agora em diante.
— Isso quer dizer que “Ocean Eyes” volta para o repertório?
Entreabri os lábios, mas Davian se intrometeu, vindo em meu
socorro.
— Felix, sei que não é a melhor estratégia de marketing, mas… A
música foi escrita pra Ravena. Não acho que cantá-la, sendo tudo tão
recente, vá fazer o Cal se sair melhor.
Felix revirou os olhos e deslizou a mão pelos cabelos.
— Merda. Que hora para essa garota dar pra trás, hum? — Ele me
encarou sério, mas não falei nada. Nosso empresário bufou e disse: — Tudo
bem! Agora, se o pessoal da gravadora reclamar, vocês vão se entender com
eles. E tenho dito! Agora, voltem para o ensaio. Quero vocês 100% nesse
palco na sexta.
Peguei de volta a minha guitarra e a pendurei sobre o ombro.
— Valeu, cara — murmurei um agradecimento a Davian.
O guitarrista deu um tapinha em meu ombro e piscou, ajeitando
seu próprio instrumento sobre o ombro.

A única coisa que me fazia sentir um pouco melhor depois da


briga com Caleb era praticar pilates na sala de estar. A TV estava ligada e
exibia o canal de pilates que gosto de acompanhar no YouTube.
O problema era que meu perfil na rede social era gratuito, ou seja,
volta e meia o vídeo era parado para exibir aquelas propagandas irritantes
que me faziam ir à lua e voltar três vezes.
Foi o que aconteceu bem quando eu estava de cabeça para baixo,
com os braços esticados, o traseiro para cima e uma perna erguida.
Uma propaganda anunciando o show da Smash Secrets quase me
fez perder o equilíbrio e bater a cara no tapete. Sentei-me bruscamente e
encarei as imagens na TV, que incluíam algumas do show em que Caleb e
eu nos conhecemos e novas imagens do show em Leeds. Para me deixar
ainda mais sem fôlego, eles estavam usando “Ocean Eyes” como áudio de
fundo.
Não percam!
A Smash Secrets fará um show de despedida nesta sexta
no exclusivo The 100 Club, na Oxford Street.
Mas corram, os ingressos são limitados!
Garanta o seu no site oficial da banda!

Eles iriam fazer um show de despedida no The 100 Club? Aquilo era
foda pra caramba!
Pisquei os olhos, ainda processando a informação, enquanto tentava
ignorar a pontada no meu peito quando relembrei a palavra “despedida”
mencionada na propaganda. No entanto, criei coragem para me levantar e
pegar meu celular sobre a mesa onde estava meu computador no canto da
sala.
Sem pensar duas vezes, mesmo com as mãos trêmulas, enxuguei
um fio de suor sobre a testa com o braço, entrei no site da Smash Secrets e
adicionei um ingresso ao carrinho. Segundo o site, só restavam três. As
vinte e cinco libras que eles estavam cobrando não me fariam falta alguma,
por isso, cliquei em “comprar” e suspirei aliviada quando recebi a
confirmação da compra por e-mail antes de levar o celular ao peito.
Abri um sorriso triste. Eles estavam realmente crescendo dia após
dia, e eu teria que assistir a tudo de longe, apenas torcendo por eles, por
Caleb, com o peito consumido pela dor de perdê-lo.
No fundo, eu sabia que ir àquele show seria uma tortura, mas eu
precisava ver o Caleb mais uma vez antes de ele partir para outro país, outro
continente…
— Acho que já deu por hoje. Vocês estão dispensados. — Felix
gesticulou com as mãos no ar, sentado em uma cadeira de frente para o
palco, segurando um cigarro entre os dedos.
— Cara, finalmente. Pensei que passaríamos a noite ensaiando —
Elion murmurou, estalando o pescoço e guardando seu baixo dentro da
case.
— Venham todos vocês aqui, por favor. Tenho informações sobre
a mudança de vocês — nosso empresário pediu, levantando-se da cadeira,
enquanto soprava a fumaça tóxica de seu cigarro.
Senti um frio na espinha e engoli em seco, descendo do palco até
ficar frente a frente com ele.
— Lance e Matteo me enviaram uma mensagem mais cedo e
disseram que já está tudo pronto para a mudança de vocês.
— E quando iremos viajar? — Nevan perguntou, um pouco
receoso, deslizando um lenço sobre a testa suada.
— Na próxima sexta.
— O quê? Na próxima sexta?
— Sim, sim. Após a sexta do show. — Gesticulou impaciente.
— Mas isso não é um pouco em cima? — Davian coçou a nuca.
— Se é ou não, não dá mais para questionar. Vocês assinaram um
contrato e vão ter que cumpri-lo.
— Mas onde é que a gente vai morar? — perguntei confuso.
— Ah, aí vem a melhor parte. A gravadora alugou uma casa para
vocês em Harlem, lugar foda pra caralho, cheio de contatos. Um dos
melhores bairros de Nova York. … Vai ser moleza descolar shows para
vocês na cidade.
— Nós vamos morar juntos? — Elion arqueou a sobrancelha.
— Algum problema?
— Não… quero dizer, acho que não — murmurou, desviando o
olhar.
— Ótimo. — Felix revirou os olhos, antes de continuar: —
Quanto às passagens, não se preocupem, também será tudo por conta da
gravadora.
— Eles estão tão sendo bonzinhos demais… não sei não.
— Isso chama-se negócios, Elion. Eles não estão sendo
bonzinhos, vocês vão ter que pagar por tudo isso, vendendo ingressos para
shows, produtos personalizados da banda–
— Tipo camisas, bonés, essas merdas todas? — interrompeu o
baixista, com um brilho nos olhos.
— Sim, essas merdas todas e muito mais. Principalmente,
conquistando fãs para comprarem tudo isso e o que mais tiver a marca de
vocês.
— Só tem um detalhe, Felix… — comecei.
— E qual seria?
— Nós não temos passaporte, quero dizer, eu, o Elion e o Nevan.
Davian é o único que possui um.
— É! Nosso amigo guitarrista aqui é o único que já se aventurou para
outros países, especialmente a Coreia do Sul. — Elion sorriu, balançando o
ombro do nosso amigo.
— Você é descendente de sul-coreanos, Davian? — Felix perguntou
curioso, com a cabeça inclinada de lado.
— Sou! Meus pais são coreanos, mas se mudaram para Londres
antes de eu nascer. Então, costumo passar o Natal e Ano Novo com a nossa
família que ainda mora lá.
— O irmão mais novo dele, Joonho, ainda mora em Seul, não é,
Davi? — Elion continuou.
O guitarrista assentiu com um sorriso triste.
— Já faz um ano que eu não o vejo. Ele foi embora para estudar o
último ano do ensino médio lá… E ao que parece, vou ficar mais um tempo
sem vê-lo. — Coçou a nuca sem jeito.
— Ele pode ir visitar você em Nova York… — Felix sugeriu,
tragando mais seu cigarro.
— Talvez. — Suspirou fundo, com os ombros encolhidos.
— Bem, então vou agendar para vocês a solicitação dos
passaportes… Acreditem, vocês vão precisar de um não apenas para essa
viagem…
— Como assim? — Franzi o cenho.
Felix abriu um sorriso de canto misterioso, mas apenas disse:
— Esperem e verão.
— Quanto suspense… — Elion sussurrou em meu ouvido com
um bico debochado.
Revirei os olhos e abriu um meio sorriso.
— Vejo vocês na sexta! Estejam aqui às seis em ponto. — Felix
acenou, caminhando tranquilamente até a saída.
— Mas o show começa às nove… — declarou Nevan, um pouco
mais alto, com o cenho franzido.
— Melhor prevenir do que remediar. — Ele deu de ombros e
deixou o local.
Após a saída de Felix, juntamos nossas coisas e voltamos cada
um para sua casa. Eu nem queria ter saído da minha em primeiro lugar. Só
rezava para que os dias passassem mais rápido e chegasse logo o dia da
nossa mudança. Talvez a viagem pudesse minimizar a sensação de vazio
que insistia em se abrigar no meu peito.
42

Mesmo estando triste e com olheiras enormes devido às noites


mal dormidas e às crises de choro repentinas, eu me recusava a sair de casa
parecendo um espantalho.
Coloquei um pouco de maquiagem e passei um batom vermelho
sobre os lábios, o meu favorito. Vesti uma calça jeans preta mais larga, um
pullover cinza-claro e um casaco preto até a altura dos tornozelos. Por
último, calcei um par de tênis velho.
O frio do lado de fora parecia quase congelante, e eu não queria
correr o risco de pegar um resfriado. Isso só me faria afundar de vez
naquele sentimento de estar continuamente me afogando. Eu respirava por
dez segundos, apenas para submergir por uma eternidade, indo e voltando à
superfície na tentativa de sobreviver mais um pouco.
Apertei o casaco ao redor do corpo assim que pisei na calçada e
caminhei com passos largos em direção à estação de trem mais próxima.
Alissa e Logan tinham saído para jantar, e eu não quis dizer à minha amiga
que iria ao show do meu ex… Caleb era meu ex? Parecia uma ofensa
chamá-lo de tal forma, mas… Balancei a cabeça e tirei uma mecha do meu
cabelo que o vento soprara sobre meu olho.
O show da Smash começaria em menos de uma hora, e eu queria
estar lá antes que isso acontecesse. Não que eu estivesse planejando ir falar
com o Caleb nos bastidores ou algo do tipo, até porque duvidava que ele
sequer olharia na minha cara.
Não, eu só queria ver tudo desde o início, esperando realmente
aguentar ficar até o fim.
A entrada da casa de shows, no coração do centro comercial de
Londres, estava lotada. Fãs e mais fãs da Smash Secrets conversavam
animados na calçada e cantos da famosa avenida, esperando ansiosamente
pelo início do show. Naquele momento, faltavam apenas dez minutos.
— É uma pena que eles vão ter que se mudar para Nova York. —
lamentou uma fã, vestida com uma camisa do Arctic Monkeys.
— Ah, nem me fala. Eu queria muito vê-los mais um pouco,
especialmente o Caleb. — Outra fã soltou com uma risadinha. — Vocês
viram a paixão com que ele cantou no show em Leeds? Eu me pergunto se
ele tem namorada…
— Pelo que eles falaram na entrevista da rádio, todos estão
solteiros.
— Mas e a música que ele escreveu, “Ocean Eyes?” Ela é tão
linda, eu quase choro quando escuto. Com certeza ele escreveu para alguém
muito especial — disse novamente a garota com a camisa da minha
segunda banda favorita.
— Quem será a sortuda, hein? — perguntou outra garota.
Não fiquei ali para saber o que mais elas pensavam, apenas engoli
em seco e entrei no The 100 Club, procurando um lugar bem escondidinho
para assistir ao show, sem que o Caleb ou um dos rapazes pudessem me ver.
Às nove em ponto, as luzes se apagaram e os holofotes se
acenderam apenas no palco, com um grande número cem decorando a
parede vermelha.
— Boa noite, senhoras e senhores! Agradeço a presença de todos
em nome da The 100 Club e da Smash Secrets — saudou o apresentador do
show.
— YEAH! — exclamou o público entusiasmado.
— Tô gostando de ver a animação de vocês. É disso que os
nossos garotos precisam, dessa energia positiva que eles só encontrarão
aqui, na casa deles!
— SIM! — novamente o público gritou eufórico.
— Sendo assim, recebam, para o último show antes de uma nova
era, SMASH SECRETS!
Um coro de gritos, palmas e assobios tomou conta do espaço –
não muito grande – da casa de shows. Meu coração batia
descontroladamente e meus lábios permaneceram entreabertos à espera de
um vislumbre do Caleb.
Elion foi o primeiro a subir ao palco com seu típico sorriso arrogante,
acenando para o público com seu baixo pendurado sobre o ombro. Davian e
Nevan surgiram logo em seguida, acenando animados para a plateia, que
gritava cada vez mais alto. Por último, a verdadeira estrela da noite, o
melhor vocalista de todos, Caleb, apareceu lindo e impecável, assumindo
seu lugar diante do microfone, com sua guitarra de sempre pendurada sobre
o ombro.
— Boa noite, The 100 Club!
O público foi ao delírio com a saudação do músico, gritando o
nome do rapaz em meio a assobios e aplausos.
— Muito obrigado por terem vindo nos prestigiar nesta noite tão
especial para nós. — ele fez uma pausa, aguardando o público se acalmar,
antes de continuar com um sorriso de canto: — É um prazer tocar para
vocês antes de embarcamos em uma nova aventura. Então, vamos nos
divertir ao máximo durante essa noite, vocês estão com a gente?
— SIM!
Caleb sorriu e assentiu para Nevan, que chocou suas baquetas,
contando até três antes de começar a tocar sua bateria.
Eu daria tudo para estar com a minha câmera naquele momento,
registrando tudo através de suas lentes, mas nem mesmo meu celular eu
tinha coragem de pegar. Ver o Caleb daquele jeito no palco, cantando e
tocando com tanto entusiasmo, por um lado me deixava feliz por saber que
ele estava seguindo em frente, mas por outro, a minha parte mais egoísta e
egocêntrica queria vislumbrar ao menos um pouco de tristeza naqueles
lindos olhos castanhos.
— Sei que a música que vou cantar agora é apenas um cover, mas
no momento, ela representa melhor do qualquer canção que eu já escrevi o
que está se passando aqui. — Massageou seu peito, bem acima do coração.
Engoli em seco, sentindo lágrimas se acumularem em meus olhos.
O que eu estava fazendo ali? Aquilo era tortura: assistir a ele
cantar e não poder cantar junto, vê-lo e não poder tocá-lo, e o principal,
observar de camarote o amor da minha vida escapar entre os meus dedos,
porque sou orgulhosa e cabeça dura demais para lutar por ele.
— Espero que gostem — Caleb disse baixo, com um sorriso que
não alcançava os olhos.
Um coro de aplausos ecoou no pequeno espaço, cheio o suficiente
para que algumas pessoas permanecessem de pé, escoradas nas paredes do
clube, assim como eu.
Senti meu coração disparar quando Caleb começou a tocar os
primeiros acordes da música no violão, o mesmo que ele usou para me
ensinar a tocar. Pressionei os lábios juntos com força, segurando a vontade
de chorar, mas minha garganta estava cada vez mais apertada e meus olhos
mais embaçados.

Os pássaros deixaram suas árvores


A luz cai sobre mim
Posso sentir você deitada lá, completamente sozinha
Ele começou a cantar, com os olhos fechados, dedilhando as cordas
do instrumento. Seus lábios volta e meia tocavam o microfone, e eu nunca,
em toda a minha vida, imaginei que sentiria inveja de um simples objeto
como aquele. Era nos meus lábios que ele deveria estar tocando com tanta
intensidade e paixão.

Não posso nos salvar, minha Atlântida, nós caímos


Nós construímos essa cidade em terreno movediço
Não posso nos salvar, minha Atlântida, oh, não
Nós a construímos para derrubá-la
Foi esse refrão que me fez desabar.
Ele disse que aquela música representava tudo o que estava em
seu coração naquele momento, e era tudo sobre nós, nossa história. Ele
queria nos salvar, mas não podia, e a culpa era toda minha.
Construímos nosso amor em areia movediça, que se abria sob
meus pés a cada segundo que eu o encarava às escondidas, tremendo e
chorando como se meu mundo fosse acabar. No entanto, ele estava
lentamente desabando, pedra por pedra, até formar um buraco cheio de
escombros impossíveis de se erguerem novamente.
Quando a música acabou, tudo o que se ouvia eram aplausos,
assobios e um coro pedindo mais. Um sorriso fraco e triste puxou os cantos
dos meus lábios, até se desfazer gradualmente, quando o público começou a
gritar pedindo “Ocean Eyes”.
Caleb engoliu em seco e olhou por cima do ombro para os seus
companheiros de banda e melhores amigos. Pela expressão em seu rosto, a
música não estava no repertório do show. Não sei se aquilo me deixava
aliviada, ou ainda mais triste por saber que ele estava tão chateado comigo
que nem mesmo queria cantar a música que escreveu para mim.
— Pessoal, e-eu sinto muito, mas–
— OCEAN EYES, OCEAN EYES, OCEAN EYES!
O público continuava a clamar.
Minha cabeça parecia girar sem sair do lugar, e eu tive que me
escorar na parede para não perder o equilíbrio e cair bem ali, no meio
daquela multidão, chamando a atenção de quem não gostaria de me ver nem
pintada de ouro.
Respirei fundo, engolindo em seco, e senti minha garganta doer.
Elion fez um gesto para Caleb e moveu os lábios, dizendo algo
inaudível para o músico, que assentiu e voltou a falar no microfone:
— O pedido de vocês é uma ordem. — Sorriu, não alcançando os
olhos.
A plateia foi à loucura e, quando a música começou a tocar, meus
olhos já estavam expulsando as lágrimas contidas.
Aquilo era demais para mim. Eu não tinha mais forças para
aguentar aquela tortura. Com uma respiração trêmula, fungando o nariz e
secando as lágrimas com as costas das mãos, olhei uma última vez para
Caleb, sentindo meu coração rasgar ao meio, e deixei o local.
A água quente da banheira cobria meu corpo, enquanto eu
soprava a fumaça do meu cigarro, fitando a janela embaçada do banheiro.
Eu já nem sabia o que eram lágrimas e o que era simplesmente a água
que enchia aquele pedaço de louça onde eu me encontrava naquele
momento.
Ter ido ao show da Smash Secrets, como eu havia premeditado,
foi mais doloroso do que imaginei. Ver o Caleb e não poder fazer nada, doía
mais do que mil agulhas perfurando minha pele.
Se eu acreditava que meu término com o Nolan foi doloroso, nada
se comparava à rachadura que Caleb abriu em meu coração. No entanto, a
culpa era minha; eu estava cansada de saber disso, mas… Eu queria que ele
tivesse lutado mais, insistido mais.
Talvez eu tivesse mudado de ideia.
Sei que isso soa egoísta, e talvez até seja, mas como ele mesmo disse,
eu sou egoísta e não estou certa de que algum dia vou mudar.
Talvez minha mãe e meu ex estivessem certos.
Se Caleb ficasse comigo, mais cedo ou mais tarde o peso daquela
decisão recairia sobre nós e acabaria com todo o respeito que tínhamos um
pelo outro, ou pelo menos, o que eu nutria por ele.
Fechei os olhos, afundando mais o corpo sob a água quente, e
traguei meu cigarro. Minha vida parecia destinada a ser pintada em preto e
branco, sem a mínima chance de um arco-íris após a tempestade.
Meu coração gritava para que eu engolisse meu orgulho, deixasse
o medo de lado e fosse atrás de quem realmente importava para mim.
Porém, mais do que o temor do passado, eu temia o futuro.
Ao abrir os olhos, fitei a paisagem noturna. A fumaça do meu
cigarro embaçava a janela, e aos poucos a condensação do ambiente
fechado começava a escorrer lentamente pelo vidro fechado, assim como as
minhas lágrimas escorriam pelo meu rosto.
Meu corpo já começava a tremer à medida que a água da banheira se
tornava morna. Tomei a deixa para sair dali e me enrolar em uma toalha.
Meus pés descalços molhavam a cerâmica fria, enquanto eu seguia até o
quarto, caminhando como se tivesse acabado de acordar de um sono
profundo.
Eu estava funcionando no piloto automático, por isso, vesti
apenas um pijama qualquer e me deitei sobre o edredom, abraçando Luck
com os olhos fechados.
Com todos os últimos acontecimentos, mal tive tempo para ir à
terapia. A doutora Grace Colleman, minha terapeuta há quase dez anos,
devia estar preocupada comigo. Apesar de tudo, da linha tênue entre médico
e paciente, ela havia, com o passar do tempo, se tornado uma espécie de
amiga.
E eu precisava falar com ela, alguém que sabia me ouvir como
ninguém.
Peguei meu celular sobre a escrivaninha e busquei o número dela na
agenda do aparelho. Apertei o urso mais forte contra o peito, virei de costas
e fitei o teto escuro do meu quarto, enquanto esperava a ligação ser
atendida. Embora já fosse tarde da noite, eu acreditava que ela não se
importaria.
Doutora Grace atendeu no terceiro toque.
— Desculpa a hora… — foi tudo o que eu disse.
No entanto, a minha terapeuta já me conhecia o suficiente para
reconhecer minha voz, mesmo estando rouca e trêmula. Além disso, apesar
de nunca ter me dito, eu tinha quase certeza que ela tinha meu número
salvo.
— Ravena! Que surpresa boa. Confesso que já estava sentindo sua
falta. Você não marca uma consulta há mais de um mês… Esse foi o tempo
mais longo desde que começou com as sessões.
— Aconteceram algumas coisas. — Fiz uma pausa e balancei a
cabeça, como se ela pudesse ver. — Na verdade, aconteceram várias coisas
nas últimas semanas… não tive tempo. Desculpe.
— Ah, está tudo bem, querida. Eu entendo. E não se preocupe com
relação ao horário, estou aqui para isso. Mas seu tom de voz não parece
muito bom… Você quer falar sobre isso?
— Vou resumir porque você sabe que eu não gosto de dar voltas. —
Engoli em seco e continuei: — Eu me apaixonei por um futuro astro do
rock e vivemos um romance intenso nas últimas semanas. Porém, há dois
dias tivemos uma discussão, porque ele e sua banda assinaram contrato com
uma gravadora e agora ele terá que se mudar para Nova York. — Suspirei
fundo, quase sem fôlego.
Um momento de silêncio pairou entre nós, separadas por aquela
ligação, antes de minha terapeuta finalmente falar:
— Você se apaixonou novamente?
— Sim.
— E como você está depois dessa discussão? Vocês já se falaram
para tentar resolver as coisas?
— Não. Já está tudo resolvido. Ele vai para Nova York, ficar famoso
e rico, enquanto eu continuo minha vida aqui em Londres, fazendo o que
amo, que é fotografar.
— Essa sua decisão não tem algo a ver com–
— Não! — cortei, com a mão fechada em punho, sabendo sobre
quem ela estava começando a falar.
Grace suspirou do outro lado e permaneceu em silêncio,
provavelmente esperando que eu acrescentasse algo, mas não fiz. Não
estava nos meus planos contar a ela, naquele momento, sobre o meu trágico
reencontro com ele.
— Você está mesmo bem, ou isso é apenas uma mentira que você
criou para se proteger?
Mordi o lábio inferior e arregalei os olhos para conter as lágrimas que
já se acumulavam em meus olhos, mas foi em vão. Quando dei por mim,
meu corpo estava tremendo devido ao choro repentino.
— Está sendo mais difícil do que pensei que seria. — Pisquei os
olhos, fungando o nariz.
— Admitir isso já é um passo para superar…
Soltei um riso desprovido de humor.
— Discordo, mas tudo bem. Só liguei porque precisava desabar e
achei que você deveria saber.
— Fico feliz que tenha se lembrado de mim em um momento tão
complicado, querida. Mas me diga, o que você pretende fazer?
— Eu já disse, vou continuar minha vida.
— Você acha que isso é tão simples?
— Nunca é, mas eu não tenho outra alternativa.
— Sempre existe uma segunda opção, Ravena, seja ela boa ou ruim.
Engoli em seco e suspirei fundo.
— Obrigada por me ouvir.
— Me ligue sempre que precisar. E se, por alguma razão, você se
mudar para Nova York, não esqueça de me avisar.
Abri a boca para dizer que não havia hipótese alguma de aquilo
acontecer, mas ela foi mais rápida:
— Meu marido chegou com a pizza. Se cuida!
— Obrigada, você também.

— Isso é o que eu chamo de um show de despedida! — Felix


elogiou, apertando meu ombro, assim que pisamos nos bastidores do show,
que naquele momento havia acabado com 100% de aprovação do público.
— A plateia foi à loucura quando vocês começaram a cantar “Ocean Eyes”.
E você fez bem em atender a vontade deles, Caleb. Isso se chama
profissionalismo. Estou orgulhoso de você, de todos vocês.
— Valeu, Felix — murmurei fraco e me sentei em uma cadeira.
Minha cabeça estava explodindo. Tudo o que eu queria era ir para
casa e dormir o máximo de tempo possível.
— Vou sentir falta dessa energia. — Nevan disse com um meio
sorriso.
— Ah, mas vocês vão ter públicos muito mais animados do que
esse. Que eles não me ouçam — nosso empresário soltou bem-humorado,
olhando por cima do ombro para a saída.
— Somos ingleses, Felix. Sempre vamos preferir o público inglês
— Elion zombou com um sorriso de canto.
— Sei… — Ele arqueou uma sobrancelha. — Depois que vocês
tocarem na América do Sul, quero ver se vão continuar pensando o mesmo.
— América do Sul? Tipo, Brasil, Argentina e outros? — Nevan
perguntou animado.
— Claro!
— Cara, imagina se algum dia a gente tocar no Rock in Rio? Eu
não preciso de mais nada — brincou o baterista, com os olhos brilhando.
Davian sorriu, sacudindo os cachos do amigo.
— Mas, por enquanto, vamos focar apenas em Nova York, hum?
— Felix chamou nossa atenção e pegou seu celular no bolso da calça. — Já
entrei com o pedido de passaporte para vocês três. — Apontou para mim,
Elion e Nevan.
— Já comecei a fazer as malas. — afirmou o baixista, orgulhoso de si
mesmo. — Não quero correr o risco de esquecer nada importante.
— Como se você tivesse muita coisa de valor… — Davian zombou,
cruzando os braços.
— Hey! Qual foi, Davi?
— Espero que você tenha pagado as contas atrasadas — falei sério,
fitando o baixista.
O sorriso presunçoso do rapaz se desfez no mesmo instante.
— E-eu já estou com a grana e vou pagar tudo antes da viagem.
— Acho bom. — Felix disse ainda mais sério. — Não quero
escândalos envolvendo nenhum de vocês. A Smash Secrets ainda está
começando nesse meio e vocês não fazem ideia dos lobos selvagens que
existem por aí, só esperando um descuido para devorar cada pedacinho dos
“novatos”. Além disso, não sou do tipo de empresário que curte polêmicas
para promover trabalhos. Para mim, trabalho e vida pessoal não se
misturam, ouviram bem? — Arqueou a sobrancelha, fitando cada um de nós
com as mãos na cintura.
— Sim — murmuramos em uníssono.
Felix ajeitou seu terno e assentiu satisfeito.
— Na sexta, quero todos no apartamento do Caleb–
— Por quê? — Davian e Elion perguntaram juntos.
— O apartamento dele fica mais próximo do aeroporto de Heathrow,
então é melhor nos encontrarmos todos lá. Assim, já aproveito para entregar
seus passaportes. Tive que pedir com urgência, pois o prazo mínimo é de
três semanas e nós não temos tanto tempo. Não foi barato desembolsar uma
grana para a agilidade do serviço, mas valeu a pena. Eles garantiram que na
sexta de manhã já estarei com os passaportes em mãos.
— E a que horas é o nosso voo?
— Ao meio-dia, claro, se não houver atraso. — Revirou os olhos.
— Inclusive, já estou com as passagens. — Abriu sua pasta de couro preto
que estava sobre a mesa de petiscos e bebidas, e nos entregou um a um.
Fitei o papel em minhas mãos e engoli em seco.
Uma semana nunca me pareceu tão pouco tempo como naquele
momento.
43

Tudo o que tentei fazer nos últimos dias foi me concentrar no que
eu mais amo: a fotografia. Passei a semana toda enfurnada dentro de casa,
não saí nem mesmo para ir à academia. Eu sabia que, quando criasse
coragem para voltar à minha rotina de exercícios – porque uma hora ou
outra eu teria que reagir – ficaria com os músculos doloridos, sem conseguir
sequer ficar sentada ou em pé por muito tempo.
Eu estava dando tudo de mim para não errar na edição daquelas
fotos que encarava na tela do meu computador, mas minha cabeça parecia
distante. Volta e meia, lembranças da noite em que Caleb e eu brigamos
voltavam à minha mente, apertando meu peito e deixando a minha garganta
seca.
Sem falar que eu estava procrastinando a todo custo para não
abrir a pasta onde continha as fotos que tirei da Smash Secrets durante o
festival de Leeds. Simplesmente me faltava coragem para rever aquelas
imagens de um dia tão feliz e importante para eles, e de certa forma para
mim também. O problema era que já tinha passado do prazo e Felix não
parava de me enviar mensagens cobrando as imagens no perfil da banda.
Elion tinha ficado de me passar a senha, mas eu duvidava muito
que o rapaz o faria após descobrir a briga que Caleb e eu tivemos. Era óbvio
que o baixista da Smash Secrets tomaria as dores do amigo, e ele estava
certo.
Suspirei fundo, deslizando o dedo pelo touchpad do meu
notebook, e aumentei o volume da música que estava ouvindo através do
meu Headset – fone de ouvido.
Eu estava finalmente conseguindo me concentrar no meu
trabalho, por esse motivo nem mesmo vi ou ouvi, minhas amigas Alissa e
Michele entrarem no apartamento carregando sacolas de compras.
— Achei essa carta na nossa caixa de correios — Ali comentou com
o cenho franzido, após levantar um dos lados do meu fone, observando o
papel de todos os ângulos, enquanto virava o envelope de um lado, depois o
outro.
Olhei para ela com uma careta, muito irritada por ter sido
interrompida e por ter perdido a pouca concentração que tinha naquele
momento. No entanto, coloquei meu fone sobre a mesa e suspirei fundo.
— É para você — disse Michele, cruzando os braços.
— Para mim? — Franzi o cenho, pegando o papel que Alissa me
estendera. — Não tem remetente… — murmurei, olhando o papel de todos
os lados em busca de alguma informação, mas foi inútil. Suspirei fundo,
levantei-me da cadeira e abri o envelope. — Quem ainda escreve cartas em
pleno século XXI? — resmunguei, abrindo a tal carta.

Em primeiro lugar, já adianto que sou péssimo com essas coisas e, acredite,
não foi fácil escrever esta carta. Tive que engolir meu orgulho masculino
para criar coragem de me expressar através desta folha de papel…
Não vou me prolongar, no entanto, então… Aí vai:
Apesar de tudo, das coisas horríveis que dissemos um ao outro, eu te amo,
marrentinha. Acredite, também, que não era assim que eu me imaginei
dizendo essas três palavras pela primeira vez, mas você não me deu outra
escolha.
Estou indo para Nova York na sexta e saiba que estarei pensando em você
durante cada segundo dessa viagem, porque uma parte minha vai ficar com
você em Londres.
Espero que ouça as músicas que eu ainda vou escrever sobre você nas
rádios ou onde preferir.
Você sempre será a minha musa inspiradora.
Beijos do fundo do meu coração.
Com amor, Caleb S2

A lágrima que escorreu pelo meu rosto gotejou na folha que eu


segurava firme nas mãos, com medo de que um sopro repentino pudesse
levá-la para longe, e carregar aquelas palavras lindas, mas ao mesmo tempo
tão dolorosas de serem lidas.
— Amiga, ele confessou que te ama… — Ali sussurrou ao pé do
meu ouvido, com o queixo apoiado em meu ombro.
Assenti fraco e tentei enxugar o rosto, mas as lágrimas não
paravam de descer, escorrendo pelo meu peito até desapareceram entre a
gola da minha blusa.
— Por que ele tem que ser assim? — murmurei fraco.
— Romântico, gentil, amoroso? Não sei… Ele basicamente é o
sonho de toda mulher — Alissa rosnou com ironia, exibindo um sorriso
forçado.
— Eu sei que o Caleb é incrível, mas…
— Mas o quê, Rav?
— Eu não sou boa o suficiente para ele... Uma hora ou outra ele
vai conseguir ver isso.
— Ravena, olha para mim. — Michele segurou-me pelos ombros
e ficou frente a frente comigo, fitando meus olhos com uma seriedade que
ela raramente demonstrava. — Para de se menosprezar, para de se vitimizar.
Eu sei que o que você passou com aquele idiota foi barra, todas nós
sabemos, embora só você saiba o quanto isso te afetou aí dentro… Mas, o
Caleb não tem culpa das decisões que a Ravena do passado tomou. Ele é o
seu presente e só depende de você decidir se ele também será o seu futuro.
Engoli em seco, piscando os olhos úmidos freneticamente. Sem dizer
uma palavra, me lancei nos braços da minha amiga, deixando as lágrimas
caírem uma após a outra. Eu precisava daquilo para respirar.
— O que você vai fazer? — perguntou ela, com a voz abafada.
— E-eu não sei…
— No fundo, você sabe sim, amiga. — Mich sorriu fraco,
acariciando minhas costas.
— Ele não vai me perdoar por ter sido uma idiota… — murmurei
envergonhada, afastando-me suavemente do abraço.
— Se ele estivesse com tanta raiva, não teria se dado ao trabalho
de escrever essa declaração.
— O Caleb te ama, Rav. Não deixe os fantasmas do seu passado
te impedirem de enxergar o futuro. — Alissa disse, séria.
— M-mas o voo dele é na sexta e–
— Sexta… não é hoje? — Michele arqueou uma sobrancelha,
olhando entre mim e a ruiva.
Arregalei os olhos e encarei minha amiga veterinária.
— Merda! Há quanto tempo esse envelope estava na nossa caixa
de correios?
— E-eu n-não sei… Dois, três dias no máximo. A última vez que
eu conferi a caixa foi na terça de manhã…
— Droga, Alissa — resmunguei.
— Hey! Eu não tenho culpa. Você passou a semana toda
enfurnada nesse apartamento, poderia ter ido lá dar uma olhada também,
né?!
Sentei-me bruscamente no sofá, segurando firme a carta entre os
dedos. O papel já estava um pouco amassado.
— Agora realmente acabou. Não tem mais jeito. A uma hora dessas
ele já deve ter embarcado.
— Na carta não diz a que horas é o voo? — Mich perguntou, sentada
ao meu lado.
Neguei, balançando a cabeça com os ombros encolhidos, me sentindo
derrotada.
— Por que você não envia uma mensagem para o empresário da
banda dele? — sugeriu a jornalista.
Soltei um riso de escárnio.
— Eu tenho evitado o Felix a todo custo a semana inteira, sem falar
que ele deve estar querendo me matar por não postado as fotos da banda…
Além disso, duvido que ele me dê essa informação.
— Não custa nada tentar. — A jornalista levantou-se e foi até a mesa
onde estava meu computador, o fone e meu celular.
— Michele, eu–
Parei assim que vi minha amiga cacheada com meu celular nas mãos.
— O que você tá fazendo?
— Salvando a sua vida.
Franzi o cenho e entreabri os lábios. Sinceramente, se eu estivesse no
meu dia normal, teria levantado daquele sofá e pegado aquele aparelho das
mãos dela, enquanto proferia um milhão de xingamentos. Mas eu não
estava em um dia normal faz muito tempo.
— Enviei e… — Fez uma pausa e arregalou os olhos. — Ele
respondeu! Parece estar escrevendo um texto, mas… — Estreitou os olhos
por trás das lentes de seus óculos, encarando a tela do aparelho, e disse: —
O voo sai ao meio-dia do aeroporto de Heathrow.
Levantei-me com o coração disparado, pela primeira vez em muitos
dias, sentindo um pouco de esperança no peito.
— E ele respondeu assim… de boa? — Arqueei uma sobrancelha.
Michele olhou para mim e depois para a Ali, e abriu um sorriso
forçado.
— Não totalmente, mas… Depois você se entende com ele; no
entanto, é melhor não ver a mensagem que ele te enviou.
Pisquei confusa.
— E qual é o plano? — murmurei.
— Você quer ou não ir com ele para Nova York? — Alissa
perguntou, com as mãos na cintura, me fitando com intensidade.
— E largar tudo aqui? — Cruzei os braços, acariciando-os para cima
e para baixo como se estivesse com frio, mas era apenas um mecanismo de
defesa.
— Ravena, pensa rápido! Não temos o dia todo. — Minha amiga
ruiva bateu o pé no chão, revirando os olhos.
— A-acho que sim.
— Achar é melhor do que nada. Então, Mich, liga para a Cat em uma
chamada de vídeo.
— A Catarina não está no laboratório? — perguntei, ainda mais
confusa.
Alissa apenas ergueu a mão.
— Tá chamando. — Mich disse baixo, fitando a tela do celular.
— Fala comigo! — Ouvi a voz de Catarina, um pouco abafada.
— Ela tá comendo.
Revirei os olhos e abri um fraco sorriso.
— Estranho seria se ela não estivesse.
Alissa beliscou meu braço e balançou a cabeça, antes de sorrir para a
tela da Michele.
— Oi, Cat! Precisamos muito da sua ajuda. Você que é boa com sites
de promoção de passagens aéreas, consegue comprar uma passagem para
Nova York no voo do meio-dia?
— Nova York? Não vai me dizer que–
— Sim, é isso mesmo que você ouviu, eu vou atrás do Caleb. —
Sorri nervosa, encarando minha amiga com seus longos cabelos pretos,
presos em um rabo de cavalo alto.
— Ah, meu Deus! Finalmente você enxergou a burrada que estava
cometendo deixando aquele homem maravilhoso ir embora.
— Tá, tá, tá! Mas você pode ou não me ajudar?
— Vocês deram sorte que estou no meu horário de almoço, do
contrário, meu chefe não deixaria nem eu colocar o nariz para fora do
laboratório.
— Desculpe atrapalhar seu precioso horário de almoço. — Ali sorriu
de canto.
— É por uma boa causa. — Deu de ombros com uma piscadinha. —
Vou ligar meu computador. — Levantou-se, andando pela sala, segurando
seu celular. — Esse horário não é muito bom para as promoções…
— Eu pago o preço que for — soltei, nem um pouco preocupada com
o fato de soar desesperada, pelo simples motivo de que eu estava muito
desesperada.
— Wow! — Cat soltou de repente.
— O que foi? — Soltamos as três em uníssono.
— Parece que todo mundo resolveu ir para Nova York hoje... O voo
do meio-dia tá cheio.
Entreabri os lábios, saboreando um gosto amargo na boca.
Senti os olhos da Alissa e da Michele sobre mim, mas não as
encarei. Minha cabeça estava girando e o medo corria pelas minhas veias
em uma velocidade surreal.
Antes que eu pudesse abrir a boca para dizer que se aquela era a
situação, então era melhor deixar tudo do jeito que estava, ruim e
deprimente, Catarina disse alto, do outro lado da tela:
— Cara, o destino realmente quer vocês juntos!
— Como assim?
— Para a sua tremenda sorte, ainda há uma passagem disponível na
classe econômica.
— Então compra logo!
A bióloga soprou um assobio e balançou a cabeça.
— O preço tá salgado… A classe econômica está por £2.107 libras.
Ali e Michele suspiraram, mas eu nem pisquei os olhos.
— Pode comprar! Eu pago.
Catarina bateu palminhas e assentiu.
— Vou enviar para o seu e-mail.
— Obrigada, Cat, de coração — agradeci, com os olhos marejados,
honrada por ter as amigas que tenho.
— Se cuida, amiga. Queria muito poder te dar um abraço, mas não
vou poder. — Fez um beicinho, gesticulando um coração com as mãos.
— Eu te mando notícias quando chegar lá, isso, se o Caleb ainda me
quiser. — Sorri, fazendo um coração para ela também. Depois de todo
esforço, ela merecia.
— Vira essa boca pra lá, mulher! Caleb é louco por você, é claro
que ele vai te querer. Mas sinceramente, eu prefiro que ele te dê um
esculacho bem grande antes de partir para o sexo de reconciliação. Talvez
assim você aprenda a ser mais humana.
Abri a boca para retrucar, mas Catarina acenou com seu sorriso
irritante e encerrou a chamada de vídeo. Michele e Alissa soltaram uma
risadinha em uníssono, e eu as fitei por cima do ombro.
— Quem diria, hein! Ravena Watts prestes a correr, literalmente,
atrás de um homem — Ali disse zombeteira, com um sorriso vitorioso e
desafiador, enquanto me fitava com os braços cruzados.
— Como diz o velho ditado, o mundo dá voltas. — Michele se juntou
à ruiva, jogando seus deboches sobre mim.
— Isso, suas najas, vão tripudiando. Eu mereço.
As duas idiotas continuaram exibindo os dentes e disseram que eu
tinha menos de vinte minutos para arrumar minha mala, e embarcar em um
carro por aplicativo se quisesse chegar a tempo no aeroporto.
44

Despedir-me da minha família pareceu a coisa mais difícil e


dolorosa do mundo, quase tanto quanto perder a Ravena. Minha mãe tentou
se fazer de durona, mas quando a abracei na calçada em frente à nossa casa,
ela desabou a chorar e se recusava a me libertar do seu abraço de urso
materno, do qual eu sentiria muita falta.
Meu irmão e meu avô também estavam emocionados, embora
Clarence estivesse animado com a hipótese de viajar para a América no
próximo verão.
Eu sentiria falta daquele rapazinho, que parecia estar crescendo
rápido demais. Clarence estava perto de completar dezessete anos e se
parecia cada vez mais com o nosso pai, até mesmo seus olhos claros.
Suspirei fundo e balancei a cabeça, voltando a focar na arrumação da
minha mala. Eu não estava levando muita coisa, apenas algumas peças de
roupas, meu caderno de composições, itens de higiene pessoal, um pequeno
quadro da minha família… Parei e abri um sorriso triste quando encontrei a
foto polaroid que tirei da marrentinha em Leeds, bem em cima da minha
escrivaninha.
O sorriso dela era tão encantador, que uma lágrima escorreu pelo
meu rosto ao me lembrar da noite mágica que passamos juntos antes de eu
tirar aquela foto.
Guardei a pequena imagem dentro da carteira. Aquilo poderia ser
considerado tortura psicológica, mas em minha defesa, eu esperava um dia
poder olhar para aqueles olhos sem sentir uma dor dilacerante no peito.
Não sei se a Ravena leu a carta que pedi a uma vizinha dela para
colocar na caixa de correios do apartamento que a marrentinha divide com a
amiga… Isso foi há três dias, e ela nem mesmo me enviou uma mensagem.
Talvez já tenha seguido em frente, sem nenhum arrependimento por ter
desistido de nós, de mim.
Suspirei fundo, começando a me sentir frustrado e chateado com ela
novamente. Não que eu não estivesse me sentindo assim a semana toda, na
verdade, desde a última vez que nos vimos e tivemos aquela discussão.
Foi difícil engolir meu orgulho e escrever aquela carta para ela. No
entanto, eu era um idiota apaixonado e ainda inconformado de perder a
garota por quem meu coração batia mais forte, incessantemente.
Meus pensamentos foram interrompidos quando a campainha tocou.
— É, Candy. Chegou a hora.
— Miau.
Sorri de canto e a segurei com delicadeza, antes de colocá-la dentro
da caixa de transporte.
Minha mãe se ofereceu para cuidar dela até eu me organizar em Nova
York, mas eu não conseguiria ficar sem a minha fiel companheira por tanto
tempo. Candy era mais do que um pet para mim, ela já era parte da família
Fleet. Além disso, a gatinha já tinha sido abandonada uma vez; não queria
que ela sentisse o mesmo de novo, não depois de eu tê-la resgatado.
Por isso, comprei aquela caixa de viagem para que ela fosse
transportada no bagageiro do avião.
Ding-dong!
Revirei os olhos quando o som irritante da campainha soou
novamente.
Peguei minha mala sobre a cama e a coloquei no chão. Verifiquei
meus documentos e, segurando a casinha onde Candy estava com uma mão
e minha mala sem rodinhas com a outra, segui até a porta do meu quarto.
Parei ao lado do batente e olhei o espaço uma última vez.
Com um sorriso triste, observei meus pôsters e discos. Suspirei
fundo, ajeitei os ombros e dei as costas, seguindo para a sala.
Abri a porta do apartamento e encarei Felix, que estava junto com os
rapazes, e foi o primeiro a adentrar o imóvel. O homem parecia apressado,
gesticulando com as mãos, enquanto falava tudo e nada ao mesmo tempo.
— Já está pronto? — Ele me olhou de cima a baixo. — O carro da
gravadora que vai nos levar até o aeroporto já está chegando.
— Estou pronto — afirmei.
— Ótimo! Aqui estão os passaportes. — Entregou os pequenos
objetos para cada um de nós, exceto Davian.
Minha foto não tinha ficado tão ruim, mas meu cabelo estava
precisando de um corte. Eu estava parecendo o Tarzan.
— Tenho mais uma boa notícia. O pessoal da gravadora em Nova
York me ligou e disseram que vocês já têm marcada a gravação do clipe
oficial de “Ocean Eyes”.
— Wow! — Elion e Davian soltaram em uníssono.
— I-isso é sério? — completou o baixista, com os olhos
arregalados, exibindo um sorriso sonhador.
— Sim. Mas vocês saberão mais detalhes quando chegarem lá.
Meus amigos começaram a murmurar uma conversa animada,
planejando as cenas que, segundo eles, não podem faltar no clipe. E, claro,
para o Elion, o essencial era ter garotas bonitas, desfilando seminuas para
cima e para baixo, enquanto nós tocamos em um palco no topo de um
arranha-céu em Nova York.
A parte do arranha-céu era boa, mas eu discordava totalmente do
resto.
— Caleb, eu tenho uma coisa para te falar… — Felix começou sério,
mas foi interrompido quando seu celular vibrou no bolso da calça. — Nosso
carro chegou.
— O que você tem para falar comigo? — perguntei, com o cenho
franzido.
Nosso empresário me encarou em silêncio, antes de abrir um sorriso
e dar um tapinha em meu ombro.
— Não era nada de mais. — Deu as costas e deixou o apartamento.
Balancei a cabeça e peguei minhas coisas. Candy estava tranquila
dentro de sua casinha, parecendo não se importar em deixar o que nos
últimos dois anos também foi seu lar.
Após todos saírem, parei à porta de saída e, assim como fiz no meu
quarto, dei uma rápida e melancólica olhada no apartamento. Foi ali que
iniciei minha vida como um adulto independente. Aquelas paredes
testemunharam muitas mudanças na minha vida e momentos felizes, mas
também os tristes, os quais eu deixaria para trás. Eu precisava fazê-lo.
Suspirei fundo e fechei a porta.

Minha ansiedade era tanta que, assim que Michele disse que o
carro por aplicativo estava a dez minutos de distância do meu prédio, eu
peguei minha mochila e desci até o hall.
O vento estava soprando violento do lado de fora e as nuvens
pareciam cada vez mais escuras. Por isso, optamos por aguardar o veículo
no hall mesmo, observando a movimentação através das portas de vidro.
— O carro chegou — Mich informou, empurrando a porta.
Fui a primeira a sair do local quente e protegido do vento, e suspirei
ao sentir meu cabelo voando para todos os lados. Se não fosse pela touca
ninja preta que cobria minha cabeça, ele estaria bem mais desgrenhado.
— Nós vamos com você! — disse Alissa, abrindo a porta do carro
preto por aplicativo.
Encarei minha amiga, com um sorriso fraco, e umedeci os lábios
secos.
— Você não vai se meter em problemas por faltar à clínica?
— Nah! Eu me acerto com eles depois.
Com um sorriso emocionado, abracei minha amiga apertado o
suficiente para deixá-la sem ar.
— OIIII! — ouvimos um grito e olhamos para o lado, vendo uma
Catarina correr ofegante, com o rosto vermelho em nossa direção.
— Cat? O que você tá fazendo aqui? — perguntei espantada,
fitando-a com o cenho franzido.
A bióloga se inclinou para frente, com uma mão erguida e a outra
apoiada no joelho, enquanto tentava recuperar o fôlego.
— Eu… Não conseguia me concentrar no trabalho, me
perguntando se tudo ia dar certo, se você iria ou não conseguir embarcar
com o Caleb… Então, — engoliu em seco. — inventei uma desculpa para o
meu chefe, dizendo que minha tia tinha sido hospitalizada, e ele me deixou
sair. — Ajeitou a postura com uma careta.
Soltei um riso, não acreditando no que ela tinha feito.
— Obrigada por ter vindo — agradeci, abraçando-a apertado.
— Imagina, amiga! Mas nem ouse contar à minha tia essa
mentira. Ela detesta que eu minta sobre questões de saúde, ainda mais
aquelas que envolvam o nome dela.
Assenti, afastando-me do abraço aconchegante.
— Agora, é melhor irmos logo. — Alissa gesticulou para o
interior do carro.
— Pisa fundo moto, é caso de vida ou morte! — Catarina disse ao
motorista assim que se sentou entre mim e a Michele no banco de trás.
— Não exagera — murmurei, revirando os olhos.
— Cala a boca! Você quer perder o Caleb pra sempre? — a bióloga
retrucou séria, me fazendo arquear as sobrancelhas com surpresa devido ao
seu tom de voz e à expressão em seu rosto, uma que eu nunca havia visto
antes.
— E-eu… não.
— Então, larga de ser uma idiota ao quadrado e fica calada! —
Suspirou fundo, jogou o cabelo sobre o ombro e apertou o encosto do banco
do motorista, quase com a boca colada na orelha do homem. — Quer que
eu dirija, caramba?!
Dei um salto sobre o banco e pisquei os olhos rapidamente.
Aquela era uma versão da Catarina totalmente nova e exclusiva para
todas nós. Enquanto isso, Alissa me fitou através do retrovisor com os olhos
arregalados e os lábios entreabertos, exatamente como a Mich, sentada ao
meu lado.
O som de buzinas era quase ensurdecedor. Estávamos parados há
mais de cinco minutos em uma fila extensa a poucos metros da entrada
principal do aeroporto, e todo aquele caos estava aumentando meu estresse
e ansiedade a ponto de eu começar a roer minhas unhas. Um hábito que eu
não tinha desde os doze anos.
— O trânsito está bem lento, moças. Podemos ficar aqui por mais
meia hora — disse o motorista, me encarando através do retrovisor.
— Eu vou a pé. — Não pensei duas vezes, abrindo a porta ao meu
lado.
— Mas, Rav… — Michele começou, mas balancei a cabeça.
— Faltam vinte e oito minutos para o portão de embarque fechar.
Se eu esperar mais um minuto, vou perder o Caleb de vez. — Empurrei a
porta, estremecendo da cabeça aos pés quando a temperatura atingiu meu
corpo. Acenei para as minhas amigas, antes de bater a porta do veículo e
correr em direção ao terminal 3.
A mochila pesada em minhas costas não estava facilitando minha
corrida, mas eu não tinha outra opção. Trombando com metade dos
pedestres na calçada, continuei a correr em direção à entrada do saguão do
maior aeroporto do Reino Unido.
Ofegante, sentindo uma queimação na boca do estômago, olhei
para ambos os lados do terminal, em busca do guichê da companhia aérea.
Não havia nenhum sinal do Caleb ou dos rapazes. O painel de voos
pendurado no alto da parede mostrava que faltavam apenas vinte minutos
para a decolagem do avião.
Engoli em seco e me dirigi até um dos guichês. Minhas mãos
estavam tremendo e a atendente me encarou com um olhar de preocupação.
— A senhorita está se sentindo bem? Está pálida…
Eu ainda não tinha recuperado totalmente o fôlego após a corrida,
então apenas assenti com um sorriso fraco e entreguei meu passaporte junto
com a passagem.
— O portão de embarque do seu voo fecha em dois minutos,
senhorita. Não sei se–
Revirei os olhos e bati a mão espalmada sobre o balcão.
— Moça, por favor, dê um jeito! Eu não posso perder esse voo —
falei entredentes.
A atendente da companhia aérea arregalou os olhos e assentiu,
pegando o telefone com as mãos trêmulas.
— V-vou ligar para o meu supervisor.
Respirei fundo, com o peito subindo e descendo, aguardando
enquanto ela falava com quem quer que seja do outro lado da linha.
— Ok, obrigada! Senhorita… — Fez uma pausa, conferindo meu
passaporte. — Watts. A senhorita tem apenas cinco minutos, eles não
podem segurar mais o embarque.
Assenti freneticamente.
— Alguma bagagem para despachar?
— Não. — Gesticulei com a mão de forma estabanada.
— Tenha uma boa viagem, senhorita Watts. — Sorriu amigável,
devolvendo-me o passaporte e a passagem.
— Obrigada — agradeci rapidamente e corri novamente para o
mais longe possível dali. Só esperava que toda aquela adrenalina e
desespero valessem a pena no final das contas.
Enquanto isso, minha cabeça só pensava no Caleb, se ele já tinha
embarcado e qual seria sua reação ao me encontrar. No fundo, eu estava me
borrando de medo de ele fazer uma cena e me mandar de volta para casa
com o rabo entre as pernas.
Suspirei fundo, estremecendo com o pensamento, e balancei a
cabeça, continuando meu caminho com passos largos.

A fila de embarque parecia se arrastar à minha frente, enquanto


meu dedos nervosos batucavam na capa do passaporte azul-escuro. Olhei
por cima do ombro e vi meus amigos entretidos com suas próprias coisas,
aparentemente, muito mais calmos do que eu.
Felix, por sua vez, foi o primeiro a passar pelo portão de
embarque, sem sequer um olhar para trás.
— Eles podiam ao menos ter pago as nossas passagens na
primeira classe — Elion resmungou, usando um par de óculos escuros onde
não havia sequer um resquício de luz solar.
Revirei os olhos e abri um sorriso de canto, balançando a cabeça.
— Caleb!
Ouvi meu nome sendo gritado no meio do saguão do aeroporto e, ao
olhar por cima do ombro, vi uma Ravena quase tropeçando nos próprios pés
e trombando com metade dos passageiros que circulavam pelo local. A
fotógrafa estava correndo em minha direção com uma mochila pendurada
sobre as costas.
Senti meu coração apertar e disparar ao mesmo tempo, ansioso para
saber o que ela queria comigo.
— A garota é mais louca do que eu pensava. — Ouvi Elion soltar
zombeteiro, mas não dei ouvidos.
Meu foco estava na marrentinha correndo em minha direção, quase
derrubando uma senhora de bengalas, com os cabelos voando livres ao
redor de seu rosto bonito. Se ela estava ali, naquele exato momento, só
podia significar uma coisa…
— Ravena? O-o que você está fazendo aqui? — perguntei, com o
cenho franzido e um sorriso nervoso, assim que ela parou à minha frente,
com o rosto corado e o peito subindo e descendo em uma respiração
ofegante.
— Eu também amo você — soltou de repente.
Engoli em seco, sentindo o ar me faltar e o coração disparar ainda
mais.
Ela estava tão linda com os cabelos um pouco desgrenhados devido à
corrida, e os olhos azuis brilhando enquanto encarava os meus, exibindo um
lindo e emocionado sorriso. No entanto, sua declaração me pegou
totalmente desprevenido.
— V-você…
— É isso mesmo que você ouviu, cantorzinho. Eu te amo, te amo
muito! — reafirmou com as bochechas ainda mais coradas e os olhos
marejados, antes de tocar meu rosto. — E peço desculpas por ter sido uma
idiota orgulhosa.
— Você foi mesmo — soltei honesto, ajustando a alça da minha
mochila sobre o ombro, tentando muito não me afetar com seu toque.
Ravena abriu um sorriso triste e assentiu com a cabeça baixa.
— Mas eu também não deveria ter dito as coisas que disse… —
murmurei, fitando intensamente seus olhos que sempre me lembram o
oceano.
— Você não mentiu, no entanto. — Ela arqueou as sobrancelhas. —
Mas aquelas palavras serviram para abrir os meus olhos. Eu não posso
deixar meu passado afetar meu futuro e me impedir de ser feliz como eu
mereço, como nós merecemos. — Respirou fundo, antes de continuar: —
Porém, vou entender se você não quiser mais nada comigo… — sussurrou,
com os lábios pressionados juntos.
Estreitei os olhos e mordi o lábio inferior.
No fundo, eu queria que ela sentisse um pouco o gosto amargo de ser
desprezada, mas não estava no meu sangue ser cruel dessa forma.
Segurando um sorriso, umedeci os lábios, ainda sem acreditar no que
estava acontecendo, e segurei sua mão fria. Abri a boca, pronto para falar o
que eu achava de tudo aquilo, mas Ravena parecia decidida a desabafar, me
surpreendendo ainda mais:
— E eu vou com você!
Aquilo não soou nem de longe como um pedido.
— C-como assim? — Franzi o cenho e engoli em seco novamente,
mas dessa vez ainda mais duro. Fiquei completamente chocado com suas
palavras, temendo ter ouvido errado.
— Comprei a passagem antes de sair às pressas. — Corou, desviando
o olhar, enquanto colocava uma mecha de seu cabelo sedoso atrás da orelha.
— Mas se for demais, eu posso ficar e–
— Você vem comigo — afirmei, com o peito subindo e descendo em
uma respiração ofegante, devido à adrenalina que percorria minhas veias
naquele momento crucial para nós, e a puxei para um abraço.
— Nós podemos fazer isso dar certo! — ela afirmou, com a voz
abafada. — Não podemos? — Afastou-se um pouco, encarando meus olhos.
— Podemos e vamos! — Abri um sorriso e segurei seu rosto em
concha, antes de beijar seus lábios intensamente.
Ravena suspirou e segurou meus braços, tão entregue quanto eu
naquele simples gesto. Se eu pudesse parar o tempo, seria exatamente
naquela hora.
Ofegantes, nos afastamos do beijo, mantendo nossas testas coladas e
os olhos fechados. Meu coração parecia prestes a saltar do meu peito ao
abrir os olhos e encontrar os dela, me fitando com um brilho intenso.
— M-mas não sei muito bem como vamos fazer para viver em Nova
York e… — murmurou, insegura.
Balancei a cabeça, não querendo que ela começasse a pensar demais
no futuro próximo, como sei que aconteceria se eu não impedisse.
— Não vamos pensar nisso agora… — fui interrompido quando
alguns passageiros irritados começaram a resmungar sobre estarmos
atrasando o embarque.
Soltei um riso sem jeito e murmurei um pedido de desculpas.
— Vamos logo, antes que sejamos linchados. — Entrelacei sua mão
com a minha, fazendo-a me encarar com surpresa. Ravena apertou minha
mão e abriu um sorriso brilhante.
— Caleb! — Davian acenou, prestes a atravessar o portão de
embarque.
Olhei novamente para a marrentinha, e ela assentiu confiante. Após
termos nossas passagens conferidas, atravessamos juntos o portão, seguindo
pelo finger, aquela espécie de “tubo” que liga o portão de embarque à
aeronave.
— Como você descobriu o horário do voo?
— Minha amiga Michele enviou uma mensagem para o Felix do
meu celular. Inclusive, tenho que pedir desculpas a ele… — Mordeu o lábio
inferior.
— Então era isso que ele ia me dizer antes de sairmos… —
murmurei, com o cenho franzido.
— O quê?
Balancei a cabeça com um sorriso e beijei as costas de sua mão.
Saudamos uma das aeromoças que estava à porta do avião e
começamos a procurar nossas poltronas. A minha era ao lado do Elion.
Quando vi o rapaz sentado, com os olhos fechados e o fone nos ouvidos, já
sabia que era ali que eu passaria as próximas sete horas.
Ao me aproximar do baixista, dei um cutucão em seu ombro,
fazendo-o abrir os olhos e nos fitar com um vinco entre as sobrancelhas.
Com um sorriso zombeteiro, Elion tirou o fone e voltou sua atenção para
Ravena, que estava de pé ao meu lado.
— Eu sabia que você ia dar as caras nos quarenta e cinco do segundo
tempo.
A fotógrafa revirou os olhos e deu de ombros. No entanto, abriu um
sorriso de canto e retrucou:
— Eu gosto do perigo. E como diz o ditado, antes tarde do que
nunca.
— Ah, não tenho dúvida. E para provar que sou um bom amigo, vou
deixar os dois pombinhos viajarem juntos. Não quero passar a viagem
inteira ouvindo o Caleb suspirar cada vez que olhar para você.
Bufei e murmurei um agradecimento.
— Onde é a sua poltrona, marrentinha? — perguntou o baixista.
Ravena apontou com o indicador em direção a uma das últimas
poltronas, localizada ao lado da porta do toalete.
— Afs! Perto do banheiro? Ah, não. Vou ficar por aqui mesmo.
— Elion, por favor? — Ela praticamente implorou com um beicinho.
Meu amigo soltou uma lufada de ar, revirou os olhos e pegou sua
almofada de pescoço. Sem mais uma palavra, Elion levantou-se, deu as
costas e se sentou na poltrona que seria da marrentinha.
— No final das contas, ele não é tão bad boy assim — Ravena soltou,
bem-humorada.
Encolhi os ombros e assenti, dando espaço para que ela se sentasse à
janela.
— Você só trouxe essa mala? — perguntei com o cenho franzido,
pela primeira vez, notando que ela não segurava nada além de sua mochila.
Ela apenas deu de ombros.
— Quando você ficar rico, vai poder comprar roupas novas para
mim. — Piscou, me entregando o objeto, antes de sentar-se na poltrona e
colocar o cinto de segurança. — Você queria que eu viesse, não queria?
Agora lute — completou com um sorriso desafiador, ajeitando-se sobre a
poltrona.
Soltei uma risada e balancei a cabeça.
— De qualquer forma, ela parece bem recheada — afirmei,
levantando a mochila para cima e para baixo.
— Isso é porque Luck ocupou a maior parte do espaço.
— Luck? — arqueei a sobrancelha, confuso.
— O urso que você me deu de presente.
— Você deu um nome pra ele e ainda o trouxe? — Estreitei os olhos.
Por que aquilo estava me fazendo abrir um sorriso bobo e
apaixonado?
— Não achei certo deixá-lo para trás — disse baixo e fechou os
olhos.
Ela não parava mesmo de me surpreender.
Eu queria ter me despedido melhor das minhas amigas, mas sabia
que elas entenderiam. A saudade que eu iria sentir daquelas três patetas
apertava meu coração à medida que o avião começava a avançar na pista de
decolagem, deixando o chão firme aos poucos para voar por entre as
nuvens.
— Tudo bem? — Caleb perguntou ao meu lado, interrompendo meus
pensamentos.
Assenti, apertando sua mão.
— Eu juro que pensei que você iria me mandar de volta para casa. —
Sorri fraco, fitando seus olhos bonitos.
— Foi a primeira coisa que me passou pela cabeça quando te vi
correndo feito louca pelo aeroporto.
— Hey! — resmunguei falsamente, empurrando seu ombro com o
meu. — Se não fosse aquela carta, eu não teria vindo.
— E se não fosse “eu te amo” a primeira coisa que você disse quando
parou à minha frente, eu realmente teria te mandado voltar para casa —
disse sério.
Engoli em seco, notando o brilho de decepção em seus olhos.
— Eu sinto muito mesmo… Você é mesmo muito melhor do que
eu… No seu lugar, não sei se teria sido tão compreensiva.
— Se tem uma coisa que aprendi com meu avô, é a não guardar
rancor, não importa o quanto tenham ferido você. Além disso, você só foi
idiota, mas veja pelo lado bom, reconheceu isso a tempo. — piscou,
ajeitando-se sobre a poltrona macia.
Apesar do tom humorado, eu sabia que ele tinha falado sério.
No entanto, Caleb estava mais do que certo. Por isso, não retruquei
suas palavras.
Encostei a cabeça na poltrona e fitei a janela. Tudo o que eu podia
ver eram nuvens e mais nuvens, e o oceano infinito e azul lá embaixo. Virei
a cabeça ao ouvir um baixo ronco e não pude conter um sorriso ao ver
Caleb adormecido, com os lábios entreabertos e a cabeça inclinada para o
lado.
— Obrigada por ter escrito aquela carta, obrigada por não ter
desistido de nós, de mim — sussurrei, acariciando seu cabelo, que estava
bem mais longo desde a última vez que eu o tinha visto.
Meus olhos deveriam estar brilhando em contentamento à medida
que os arranha-céus da “cidade de pedra” surgiam sob as nuvens brancas,
que pareciam algodões.
As sete horas de voo passaram em um piscar de olhos.
De mãos dadas, Caleb e eu caminhamos até a saída do aeroporto,
seguidos pelos outros membros da banda e por Felix Mariano.
Aquele seria o começo de um novo futuro para nós dois e para a
Smash Secrets…

FIM
(ou não)
NOTA DA AUTORA

Primeiramente agradeço a Deus e a Nossa Senhora Aparecida por


me inspirarem, a minha mãe pelo apoio, a minha assessora Ellen Carolina;
você caro(a) leitor(a) por ler este livro; e as parceiras que se dedicaram a
ler, resenhar e avaliar essa história tão especial para mim.
Espero que tenha gostado de ler tanto quanto gostei de escrever!
Muito em breve, nos veremos no livro da Catarina, quarto e
último da série. (Eu sei, também não quero me despedir desse quarteto). No
entanto, prometo que vocês vão dar boas risadas com algumas maluquices
dessa bióloga meiga e engraçada haha!
Beijos no coração S2
H.S
Agora, antes de encerrar, segue abaixo alguns recadinhos pra
vocês:
Não se esqueça de avaliar
Sua opinião é muito importante para mim e para as pessoas que estão
pensando em ler o livro. Além disso, não custa nada pressionar as
estrelinhas ;)
Contatos:
Se quiser entrar em contato comigo, terei o maior prazer em
respondê-lo (a), conversar e saber o que achou do livro!
Instagram: @autorahelensoares / X: @autorahsoares

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