Uma Canção No Outono Livro 3 As Quatro Estações He
Uma Canção No Outono Livro 3 As Quatro Estações He
Uma Canção No Outono Livro 3 As Quatro Estações He
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Existem coisas melhores
adiante do que qualquer outra
que deixamos para trás.
C. S. Lewis
01
— Não.
Minhas amigas suspiraram, tão aliviadas quanto eu fiquei quando o
terceiro teste de farmácia que eu havia comprado deu negativo.
— Apesar disso, minha família já não me enxergava da mesma
forma… O clima lá em casa era péssimo. Minha mãe acordava cedo,
preparava o café e voltava para o quarto, apenas para não ter que me
encontrar. Na escola, meus “amigos” me deram as costas. Nolan havia dito
a todos que eu era uma vagabunda, tentando lhe aplicar o golpe da barriga,
apenas porque o idiota pertence a uma família rica. — Sorri falso, querendo
muito chutar e socar um saco de boxe. — Decidi então começar a fazer
terapia, pesquisei na internet e vi que poderia ajudar de alguma forma.
— Eu não fazia ideia de que você faz terapia. — Ali murmurou,
como se se sentisse culpada.
— Você não teria como saber, porque nunca comentei com vocês —
murmurei.
— Mas tá funcionando? — Cat perguntou insegura, me fazendo abrir
um fraco sorriso de canto e estalar a língua no céu da boca.
Catarina era a única capaz de me fazer sorrir enquanto relembrava
um dos maiores pesadelos da minha vida.
— Acredite, eu melhorei muito depois do que aconteceu. — Sorri
fraco.
— Então é por isso que você não se envolveu sério com mais
ninguém? — Alissa murmurou ao meu lado.
Assenti com a cabeça baixa.
— Depois do Nolan, nunca mais me senti daquele jeito por alguém…
Mas quando o Caleb me beijou, foi ainda mais intenso do que era com ele.
Uma parte minha sentiu que podia confiar nele, mas… — Fechei os olhos e
joguei o lenço molhado no chão.
— Rav, nós te entendemos, eu te entendo, mas você não pode se
privar de conhecer alguém bacana por acreditar que todos os caras são
iguais e vão te decepcionar — Ali continuou séria, segurando minha mão.
— Eu era jovem, ingênua e inexperiente. Me deixei levar por
palavras bonitas e gestos românticos, acreditando que eram sinceros. Não
quero e não vou passar por aquilo novamente! Ser do jeito que sou foi a
forma mais fácil que encontrei para me proteger.
— Mas o Nolan foi um idiota, Rav. Isso não significa que o Caleb é
igual e que você tenha que se proteger dele — disse Catarina.
— Eu sei, mas não posso arriscar... — Apertei minhas mãos em
punho e fechei os olhos, soltando um suspiro longo, profundo e até um
pouco trêmulo. — Sabe, eu me senti um lixo por anos. Como eu disse,
minha mãe ficou um mês sem falar absolutamente nada comigo; minha
irmã não confiava mais em mim e meu irmão me achava uma vagabunda…
Meu pai foi o único que demonstrou um pouco de compaixão, embora eu
sentisse que, no fundo, ele me enxergava como a vergonha da família.
— Por isso você nunca fala deles? — Ali perguntou baixo, como se
estivesse com medo da resposta. — Vocês ainda estão brigados?
— Não, quero dizer, mais ou menos… — murmurei, coçando a testa.
— Meu irmão até fala comigo uma vez ou outra e se desculpou por ter me
chamado de vagabunda; inclusive, foi ele quem me indicou a minha
terapeuta. Já a minha irmã, ela me ama demais para ficar mais de uma
semana sem falar alguma merda comigo, e vocês a conhecem… — Sorri
fraco, e elas retribuíram.
— A Reyna é o completo oposto de você. — Mich brincou, soltando
uma risadinha.
— E os seus pais? — Alissa perguntou séria.
Soltei um suspiro, acompanhado de uma risadinha desprovida de
humor.
— Minha mãe ainda não fala muito comigo, apenas quando é
extremamente necessário. Além disso, meu pai é um capacho nas mãos
dela, faz tudo o que ela manda, então... vocês já sabem a resposta.
— Sinto muito, amiga. — Mich sussurrou.
— Eu também — soltei amarga, com um nó na garganta. — E é
por isso que eu afirmei para a minha terapeuta que não importa o que
acontecesse, eu não seria mais aquela garota ingênua e romântica, que
acreditou nas palavras de um idiota qualquer e quase teve o futuro
estragado por uma irresponsabilidade.
Minhas amigas me fitaram em silêncio pelo que pareceu horas,
até Michele quebrá-lo:
— Sei que você não quer falar dele, e admito que é idiotice da
minha parte perguntar, mas e o seu ex? Vocês já se encontraram depois do
que aconteceu? — murmurou, estalando os dedos da mão, mania irritante
que ela não parece ter intenção de abandonar.
Senti meu estômago revirar e neguei, balançando a cabeça
devagar.
— Ele foi embora para Copenhague estudar medicina — fechei
os olhos, massageando minhas têmporas. — Claro que ele iria fugir quando
a possibilidade de ser pai bateu à porta — soltei uma risada de desdém. —
É isso que os covardes fazem.
— Sabemos que foi barra passar por tudo isso praticamente sozinha
e–
— Eu estava completamente sozinha, Catarina. Até aqueles que se
diziam ser meus “amigos” me abandonaram, me deram as costas,
acreditaram nas palavras daquele idiota.
A bióloga engoliu em seco e assentiu devagar, antes de continuar:
— Mas o Caleb não tem culpa de nada disso — disse, mudando de
assunto.
— Ainda estamos falando dele? — Revirei os olhos.
— Claro que sim! — Cat enfatizou com as mãos na cintura e o cenho
franzido.
Ela estava levando mesmo a sério o simples beijo que troquei com o
músico.
— Você tem que procurá-lo, ele pode ser a sua alma gêmea!
— Ah, Catarina, me poupe do seu romantismo delulu. — Revirei os
olhos, com a mão erguida. — Além disso, duvido muito que eu vá encontrá-
lo novamente, não que eu queira, claro. Até porque, Londres tem mais de 9
milhões de pessoas, as chances são de uma em nove milhões. — Sorri
debochada.
— Ainda assim, existe uma chance — Mich ponderou com um
sorriso fraco.
— Chega desse assunto, entenderam? — Levantei-me bruscamente
do sofá. — Eu não quero mais falar do meu ex, muito menos, do cara que
eu vi uma vez na vida e com quem troquei apenas uns amassos. — Suspirei
fundo, tirando a bandana da cabeça. — O Caleb pode ser um cara legal, ou
não! Nunca saberemos. Então, até segunda ordem, ele é assunto proibido,
ouviram bem? — Ergui o dedo, olhando de uma para a outra com o cenho
franzido, mais séria do que o necessário.
Mas elas precisavam entender e deixar aquele assunto de lado.
Eu não queria um relacionamento com ninguém. Estava muito bem
solteira e desimpedida. Um amor não faria a minha vida melhor; apenas me
traria dor de cabeça, decepção e me impediria de viver como eu gostaria:
livre, leve, solta e, o melhor de tudo, 100% independente.
Minhas amigas permaneceram em silêncio. Sendo assim, segui até o
quarto e bati a porta antes de me jogar de bruços sobre o colchão, sujando
meu travesseiro de maquiagem ao apertá-lo sob minha cabeça.
Não tive coragem de me olhar no espelho.
Eu deveria estar parecendo uma assombração com a maquiagem
borrada.
A viagem até Catford, bairro onde Catarina mora com a tia, durou
pouco mais de meia hora. Ao que eu pude notar, vivem apenas as duas na
casa simples, com dois pavimentos, revestida de tijolinhos alaranjados e
janelas estilo guilhotina, iguaizinhas às outras da rua.
— Obrigada, Cal! — agradeceu a moça com longos cabelos
pretos e as bochechas coradas, estendendo a mão, ainda sentada no banco
de trás.
— Foi um prazer conhecer você, Cat. — Sorri e apertei
suavemente sua mão fria.
— Igualmente! — piscou antes de voltar sua atenção para
Ravena, adormecida, com a cabeça apoiada contra o vidro da janela. — Ela
apagou, tadinha. Deve estar exausta. — Suspirou.
— O que ela faz?
— Ravena trabalha como fotógrafa freelancer, não tem emprego
fixo. Agora, você imagina o quanto ela tem que trabalhar para pagar as
despesas…
Assenti seriamente, observando a moça dormir com os lábios
entreabertos, o peito subindo e descendo em uma respiração tranquila,
parecendo tão vulnerável e delicada.
— Bem, já vou indo. Mais uma vez, obrigada pela carona e, por
favor, cuide dela. — Apertou meu ombro, antes de abrir a porta do carro.
— Pode deixar que vou deixá-la em casa sã e salva.
— Não espero menos de você. — Piscou, com um sorriso de
canto, e bateu suavemente a porta.
Ainda esperei Catarina entrar em casa e fechar a porta antes de
ligar novamente o carro e dirigir em direção a Crofton Park. Minha sorte é
que ela informou o endereço correto da amiga, e eu o coloquei no GPS.
Do contrário, eu teria que acordar a marrentinha e lhe arrancar essa
informação. Isso seria uma pena, já que ela parecia um anjo dormindo
daquela forma tão serena, sem um vinco – aparentemente permanente –
entre as sobrancelhas.
Enquanto eu dirigia pelas ruas noturnas da capital inglesa, minha
boca se abriu em um bocejo mais vezes do que eu poderia contar e meus
olhos já estavam marejados. Ainda assim, minha atenção não diminuía.
Entretanto, quando estava a apenas alguns metros do prédio onde Ravena
mora com outra amiga, a fotógrafa acordou, esticando os braços para frente.
— Já chegamos? — perguntou, com a voz rouca, antes de abrir a
boca e soltar um longo bocejo.
— Estamos quase lá — respondi, não tirando os olhos da rua deserta.
— Hum… — murmurou e olhou por cima do ombro. — Você já
deixou a Catarina em casa?
— Há mais de vinte minutos.
— Oh. — Foi tudo o que ela disse.
— Prontinho, senhorita. Está entregue. — Sorri e desliguei o veículo,
observando a fachada do prédio moderno.
— Valeu — agradeceu baixo, tirando o cinto de segurança.
Observei seus movimentos lentos e ela realmente parecia cansada,
com os olhos inchados e entreabertos, como se ainda estivesse dormindo.
— Posso te acompanhar até o seu apartamento?
Ravena parou e me encarou antes de abrir um sorriso preguiçoso.
— Sabia que essa sua “boa ação” de nos deixar em casa teria um
preço.
Franzi o cenho, confuso, antes de entender seu comentário. Em
seguida, abri um sorriso de canto, mordendo o lábio inferior e balançando a
cabeça.
— Assim você me ofende, senhorita Watts — falei, dramático, com
uma mão sobre o peito, um biquinho nos lábios e a cabeça inclinada de
lado.
Ravena soltou uma risadinha, que eu nunca ouvi antes, mas que
arrepiou cada centímetro da minha pele.
De repente, como uma gata, ela se aproximou com movimentos
lentos, porém precisos e decididos, até ficar frente a frente comigo. Sua
respiração soprava meu rosto, enquanto seus olhos bonitos encaravam os
meus com um brilho travesso.
— Mas eu não me importo de pagar — sussurrou, antes de puxar
minha nuca e selar nossos lábios em um beijo. Sua ação me pegou
desprevenido, porém, eu estaria mentindo se dissesse que não passei a noite
toda sonhando com aquilo.
Segurei firmemente sua cintura e invadi sua boca gulosa – quase
tanto quanto a minha – com a língua. Isso arrancou um suspiro profundo
dela, fazendo-a cravar os dedos nas mechas do meu cabelo e puxá-lo,
causando um arder prazeroso.
— Admite que você queria isso tanto quanto eu… — sussurrei,
mordiscando seu queixo. Sem fôlego, segurei um punhado de seus cabelos e
puxei sua cabeça para trás, de forma firme, mas sem machucá-la.
Ravena abriu um sorriso lento, com os olhos fechados, e os lábios
inchados, deixando à mostra seu pescoço esbelto, feminino e pálido.
— Senta e espera, querido — retrucou em desafio.
Eu não esperava menos dela. Sorri com o pensamento, porém, meu
ego cresceria do tamanho do Everest se ela – por algum milagre – admitisse
minha afirmação.
— Me contento com a sua afirmação através de gestos — falei, com
um sorriso, e lambi uma faixa do seu pescoço lentamente. Foi possível
sentir sua pele deslizar sob minha língua, como se fosse um deleite.
Ravena gemeu baixinho, e merda, isso arrepiou até mesmo os pelos
da minha nuca e se concentrou todo no meio entre as minhas pernas.
Aquela seria a segunda vez que a marrentinha me deixaria com uma ereção
e um problema para resolver debaixo do chuveiro. Pois, nem nos meus
melhores sonhos, eu arriscava acreditar que ela cederia tão facilmente para
se enroscar comigo sob os lençóis.
No entanto, se tem algo que eu possuo e considero uma virtude, é a
minha persistência.
Podia não ser naquele dia, ou no seguinte, e nem no sucessor a ele,
mas algo me dizia, no mais profundo do meu ser, que aquela hora chegaria,
e foda-se se eu não iria me sentir o homem mais sortudo do mundo.
— Deveria ser proibido alguém beijar tão bem como você… — Ela
sussurrou, abrindo os olhos para encarar os meus com intensidade.
— Isso foi um elogio, marrentinha?
Droga! Soltei o apelido sem querer.
Subitamente, meu corpo se retesou, esperando sua reação negativa,
talvez um tapa na cara, que soltasse um palavrão e me mandasse ir à merda,
ou simplesmente saísse do carro e batesse a porta com brutalidade. Porém,
ela apenas continuou me encarando em silêncio por alguns segundos,
fazendo meu coração bater forte a ponto saltar pela minha boca entreaberta.
Após o que pareceram horas, finalmente a fotógrafa esboçou uma
reação, e foi surpreendente para mim. Ravena soltou um riso e balançou a
cabeça.
— Você esperava que eu fizesse alguma coisa, não é? — disse baixo,
com os olhos estreitos e a cabeça inclinada de lado. — Acredite, passou sim
pela minha cabeça um milhão de diferentes formas de torturá-lo por ser um
atrevido de merda, mas seu beijo gostoso apaziguou sua situação. —
Apertou meus ombros e desviou o olhar, encarando seu colo.
Mordi o lábio inferior e coloquei uma mecha de seu cabelo atrás da
orelha, atraindo novamente sua atenção.
— Então, vou considerar isso um elogio, porque eu beijo bem pra
caramba. — Segurei seu rosto em concha e tomei seus lábios novamente.
Se eu pudesse, ficaria ali a noite toda, beijando-a, tocando-a até o dia
amanhecer.
Ravena suspirou e segurou meus pulsos, erguendo-se do banco do
passageiro para encontrar abrigo em meu colo, e circular meus quadris com
os joelhos dobrados sobre o banco do motorista.
Caralho! Parecia um sonho aquela mulher maravilhosa, sentada no
meu colo, me engolindo como se eu fosse a última gota de água no planeta
inteiro.
Ainda sem fôlego, com o corpo em chamas, deslizei minhas mãos
ansiosas por suas costas até alcançar seu traseiro e apertá-lo com firmeza.
Ela gemeu e se inclinou para frente, tocando meu peito com seus seios
macios, aumentando minha vontade de tocá-los e vê-los antes que aquilo
acabasse.
No entanto, o que aconteceu segundos depois foi que algum
intrometido do caramba bateu à janela do carro, nos fazendo arregalar os
olhos e encarar o homem com cara de quem não estava satisfeito com o que
estava vendo.
11
— Eu juro que não indiquei seu nome, Rav. Foi ideia da Eshe...
— Mich lamentou pela décima vez naquele dia por ter me colocado em uma
tremenda saia justa.
Fotografar para London Fashion Magazine nunca foi algo que
almejei, ainda mais depois de saber a chave de cadeia que é a CEO da
revista, vulgo, chefe da minha amiga nerd.
— Por que então ela exigiu que eu fosse a fotógrafa do evento?
— Sei lá! — Abriu os braços frustrada. — Acho que ela viu
algum trabalho seu, ou algum amigo dela indicou seus serviços. — Fez uma
pausa, abaixou a cabeça com um biquinho e suspirou fundo. — O fato é que
ela faz questão de que seja você.
— Mas aquela revista maluca já tem o Brandon — retruquei,
revirando os olhos.
Michele retesou com a menção do amigo, ou ex amigo, eu já não
tinha mais certeza.
— O Brand saiu de férias, disse que precisava espairecer um
pouco — murmurou, desviando o olhar.
— Acho que essa foi a melhor desculpa que ele arrumou para não
dizer que está evitando você — disse Catarina, antes de morder um pedaço
generoso de hambúrguer.
Eu ainda não tinha entendido o fato de elas terem saído do
trabalho, em plena sexta-feira à noite, para se enfiar lá em casa, como se ali
fosse o ponto de encontro do nosso quarteto estranho.
Só faltava a Alissa, mas aquela lá deveria estar com o namorado,
que parece ter resolvido deixar o campo e retornar à civilização.
Para a minha completa tristeza.
— Cat, para com isso. — Mich murmurou, cabisbaixa, sentando-
se no sofá antes de apoiar o queixo nas palmas das mãos e os cotovelos
sobre os joelhos.
— Por que ela deveria? A Catarina tem razão, Mich. Você está
tentando tapar o sol com a peneira, apenas para não admitir que o motivo da
tristeza do Brandon é o seu namoro com o Angel — cuspi com desdém.
— Mas que culpa eu tenho de ter me apaixonado por ele? — disse
com a voz chorosa.
— Amiga, ninguém aqui está te culpando, só que não é certo você
fingir que nada está acontecendo. — disse Catarina séria, deixando seu
hambúrguer sobre o prato para ir até a cacheada à beira de uma crise de
choro.
— E-eu tentei conversar com ele, m-mas ele me evita o tempo
todo. Não me dá a oportunidade de me explicar…
— Explicar o quê? O Brandon já é grandinho o suficiente para
levar um fora e seguir em frente, mas eu não julgo o rapaz por agir assim.
Deve ser muito foda você ter que ver todos os dias a pessoa por quem é
apaixonado e não poder tocá-la, beijá-la e, para completar, ainda ter que vê-
la nos braços de outra.
— Rav, não tá ajudando. — Catarina balançou a cabeça, acariciando
os cabelos cacheados da Mich.
— Calei. — Ergui as mãos e me sentei ao lado da cacheada. — Olha,
amiga, você sabe a minha opinião sobre esse seu namoro com aquele
modelo…
Michele revirou os olhos e murmurou algo inaudível, mas fui firme e
continuei:
— Eu não engulo o Angelo, e acredito que dificilmente algum dia
irei, mas sei o quanto você é apaixonada por ele e ele por você; isso eu não
posso negar. Só que se coloca no lugar do Brandon, ele é o seu amigo há
anos e nunca escondeu a queda – penhasco, na verdade – que ele tem por
você…
— E-eu sempre achei que era brincadeira, sabe? Ele sempre foi tão
autoconfiante, charmoso e flertador… Nunca passou pela minha cabeça que
ele estivesse sendo sincero.
— Mas ele estava, e agora não adianta chorar sobre o leite
derramado. O que você precisa fazer é tentar salvar essa amizade, ou tirar o
Brandon de vez da sua vida — falei, séria.
— Ah, não! O Brand é o cara mais incrível que eu já conheci, e se
não fosse o Angelo, acho que… — Fez uma pausa, mordendo o lábio
inferior.
— O quê, Mich? Fala! — Catarina disse alto, com os olhos
arregalados, quase em cima da Michele.
— Deixa pra lá. — Ela sacudiu a cabeça.
— Você daria uma chance ao fotógrafo, é isso o que você faria —
completei em alto e bom som o que a nerd não tinha coragem de dizer.
Mich engoliu em seco, mas não negou minha afirmação.
— Que coisa complicada… Também, quem mandou a Michele
arrumar um gato daqueles como melhor amigo? — Catarina suspirou,
balançando a cabeça com o cenho franzido.
— E a ruiva, a tal de Blaise, ela já o superou? — perguntei, curiosa.
— E-eu não sei… Na verdade, desconfio de que os dois estão juntos.
— Mich murmurou e deu de ombros.
— Nada mais justo. O rapaz tem direito de seguir em frente e
esquecer você — afirmei, sincera.
— Chega desse assunto. — Ela resmungou e voltou seu olhar para
mim. — E aí, você vai ou não aceitar fotografar o evento da London
Fashion?
— A grana é boa?
— Cinco mil libras por uma noite.
Arregalei os olhos, e Catarina cuspiu seu suco de limão com
gengibre, molhando meu sofá, impecavelmente limpo.
— Você vai limpar, sua nojenta — resmunguei com uma careta, antes
de encarar novamente minha amiga jornalista. — C-cinco mil assim,
limpinhos, sem desconto?
— Uhum.
— Fala para a sua chefe sem escrúpulos que eu topo! — Estendi a
mão para a minha amiga, que a apertou com uma expressão de
desconfiança.
Cinco mil libras a mais na minha conta poderiam tornar possível a
minha futura mudança de apartamento. Fazia algum tempo que eu estava
juntando dinheiro para dar entrada em um imóvel e, honestamente, vinha
sendo bem-sucedida. Minha conta já contava com quase vinte mil e, embora
aquele valor não representasse nem um terço do valor total, já era alguma
coisa.
Se eu continuasse pegando trabalhos grandes como o da London
Fashion, as chances de conseguir pelo menos metade do valor aumentariam
muito e, o melhor, a curto prazo.
— Será que a Ali vai demorar muito? Eu queria muito dar um abraço
nela. Mal nos vimos essa semana. — disse Cat, com um beicinho, pegando
seu casaco no encosto da cadeira.
— Você tá tão carente assim? — arqueei a sobrancelha.
— Acho que a Catarina está precisando sair em um novo encontro às
cegas — brincou Mich, cutucando a bióloga com o dedo indicador.
— Eu já desisti de tentar encontrar minha alma gêmea nesses
aplicativos deploráveis. — suspirou, ajeitando seus cabelos pretos sob a
gola de seu casaco.
— Lembra aquele último? O cara de óculos, tipo você, Mich,
esquisito e nerd, vestido com uma camisa xadrez azul abotoada até o queixo
— zombei, juntando os guardanapos sujos de ketchup sobre a mesa para
jogar na lixeira da cozinha.
— Hey! — Michele exclamou irritada, me arrancando uma risadinha.
— Ele era um cara legal, mas a coleção de aranhas dele era pavorosa.
— Catarina murmurou com uma careta, aparentando se lembrar da cena e
sacudiu os braços.
— Eu juro que imaginei vocês casados — continuei o deboche,
sabendo que isso a deixaria irritada.
— HAHAHA! Você sempre tão hilária e preocupada com a
felicidade alheia, não é, senhorita Watts?
Dei de ombros e segui para a cozinha.
Quando voltei, Michele e Catarina já estavam prontas para irem
embora.
Graças a Deus!
— Acompanha a gente até a portaria? — pediu Cat, deslizando um
protetor labial sobre os lábios ressecados.
— Por quê? Vocês não são visitas. — Franzi o cenho e cruzei os
braços.
— Credo, Ravena! Não precisa ir se não quiser. — Mich resmungou,
abrindo a porta com brusquidão.
Revirei os olhos e resolvi acompanhá-las.
Meu pijama de frio lilás, com a calça repleta de orelhinhas de coelho
e a blusa manga longa com uma enorme estampa do Pernalonga, não
pareceu o suficiente para apaziguar o frio que senti quando o vento da noite
de outono bateu em meu rosto, assim que Catarina abriu a porta de vidro da
portaria.
— Puts! Por que eu desci com vocês? Lá em cima estava bem melhor
do que nesse gelo — resmunguei, esfregando meus braços.
— Nem parece que estamos no outono. — murmurou Catarina,
fitando o céu escuro.
Uma buzina e meu nome sendo gritado, foram o que fizeram os meus
olhos se desviarem para o outro lado da rua, apenas para ver um Ford
Cortina preto, com um motorista bonito e tatuado ao volante.
— Caleb? — murmurei, com o cenho franzido, encarando o rapaz
que acenava com um largo sorriso.
— Caleb? O vocalista daquela banda de rock que você beijou na
festa à fantasia? — Mich perguntou, confusa, observando o músico com a
cabeça inclinada de lado.
— Ele mesmo! — respondeu Catarina, sorridente, acenando de volta
para ele, como se fosse o nome dela que o cantorzinho tinha acabado de
chamar. — Oi, Cal!
— Vocês já são amigos, Cat? — Mich perguntou à bióloga, fitando-a
com uma sobrancelha arqueada.
— Na cabeça dela, eles se conhecem há 100 anos — resmunguei,
revirando os olhos.
— E a Ravena morre de cíumes. — Piscou, mordendo o lábio
inferior.
— Claro! Isso, segundo as “fontes da sua cabeça” — debochei com
desgosto.
Michele soltou uma risadinha e tapou a boca quando a encarei com
os olhos estreitos.
— Como vai, Catarina?
A voz do rapaz atraiu novamente minha atenção para ele.
— Vou muito bem, obrigada! E a Ravena tá morrendo de saudades!
— disse alto, com as mãos ao lado da boca, me empurrando pelo ombro em
direção à rua. — Deixa de ser orgulhosa e vai lá falar com ele — sussurrou
ao pé do meu ouvido, antes de me empurrar novamente.
— Você quer que eu seja atropelada? — falei, irritada, com os pés na
beirada do meio-fio.
— Desculpa. — Ela sorriu sem jeito, erguendo as mãos em sinal de
rendição.
Respirei fundo, cerrando as mãos em punhos, e me virei de frente
para as duas esquisitas, deixando o músico às minhas costas.
O que ele estava fazendo ali?
Aquela pergunta estava fazendo minha cabeça girar, louca por uma
resposta.
— Vocês não vão embora? — perguntei, com os olhos estreitos e os
braços cruzados.
Catarina e Michele trocaram olhares e assentiram.
— Então… — insisti, esperando que elas pegassem a dica e
sumissem dali.
— Hã… N-nós — Mich começou a balbuciar. — V-você não quer
que a gente fique mais um pouco?
— É! Tipo, para te dar conselhos ou coisas assim… — Catarina
complementou, não ajudando em nada.
— Não! Podem ir para casa, eu me viro com o Caleb, suas curiosas.
— Hey! — exclamaram em uníssono.
— Não somos curiosas. — resmungou Mich.
— Tchau! — acenei com um sorriso falso.
— Vamos, Mich. Ela quer ficar a sós com o Caleb. E está só
esperando a gente dar as costas para subir com ele e fazer o mesmo que a
Ali e o Logan costumam fazer quando acham que ninguém está em casa. —
Catarina insinuou, com um sorriso de canto, conduzindo nossa amiga
cacheada calçada abaixo.
Revirei os olhos e dei de costas, olhando de um lado para o outro da
rua, antes de finalmente atravessá-la em direção ao vocalista da Smash
Secrets.
— Boa noite, marrentinha! — saudou assim que parei à sua frente, ao
lado da porta do motorista.
Caleb não deveria parecer tão atraente, sentado de maneira relaxada e
confiante, com um braço na janela e o outro no volante, mascando um
chiclete.
— O que você tá fazendo aqui?
— Não vai me desejar boa noite antes de perguntar?
Mordi o lábio inferior, olhando ao redor da rua, antes de voltar a
encará-lo com um sorriso falso.
— Boa noite, Caleb! O que você está fazendo aqui? — perguntei,
impregnada de ironia, fazendo-o abrir um sorriso preguiçoso, como se já
antecipasse minha resposta.
— Pijama legal. — Ele comentou, apontando para o conjunto que
cobria meu corpo.
Olhei para as duas peças que protegiam meu corpo e me encolhi um
pouco quando o vento soprou mais forte, esvoaçando meus cabelos a ponto
de algumas mechas cobrirem meus olhos.
— Você vai ou não dizer o que veio fazer aqui? Porque se não for, eu
vou entrar — afirmei, pronta para dar as costas. No entanto, o rapaz me
impediu, dizendo:
— Me dá um desconto, estou meio nervoso. — Suspirou, deslizando
a mão pelos fios sedosos e ondulados de seu cabelo.
Arqueei uma sobrancelha, curiosa para saber o motivo do seu
nervosismo. Sua habitual confiança e despreocupação normalmente
escondiam bem suas emoções.
— Desembucha logo. Eu tô quase constipada de tanto frio. —
Enfatizei, apertando os braços ao meu redor para tentar me aquecer.
— Quer entrar aqui? — sugeriu ele, indicando o interior de seu
veículo, que parecia tão quente e convidativo.
Considerei aceitar por um momento, mas as lembranças da última
vez que estive dentro daquele carro vieram à mente, arrepiando minha pele
e provocando uma contração no meu ventre.
Se eu entrasse ali novamente, duvidava que conseguiria deter o que
Logan interrompeu naquela outra noite.
— Não! Eu estou bem aqui e sei que você não vai demorar mais que
um minuto porque estou contando. Vou voltar para casa assim que os
sessenta segundos acabarem. — Ergui o queixo em desafio.
Caleb engoliu e umedeceu os lábios cheios e macios…
Para, Ravena! Foca, mulher!
Obrigada, subconsciente, você finalmente está fazendo um trabalho
decente.
— Ok! — Ele suspirou, ajeitando sua postura sobre o banco de
couro. — E-eu vim aqui convidar você para ir comigo ao Winter
Wonderland que abre amanhã.
Franzi o cenho e senti um aperto no peito com a menção do parque.
Eu tinha muita vontade de voltar a frequentar aquele lugar, mas algo me
impedia de atravessar seus portões de ferro. Era como se meus pés
estivessem colados na grama fria e úmida do parque, impossibilitando
qualquer movimento passo adiante.
— Isso é um encontro?
14
Eu:
Bom dia, marrentinha!
Sinto muito murchar o seu ego,
mas não sonhei com absolutamente nada.
Apenas capotei e acordei hoje pela manhã…
Agora me diz, como você conseguiu o meu número?
Marrentinha:
Cuidado para não cair na conversa de qualquer
idiota da indústria.
O que mais tem por aí são picaretas
querendo se aproveitar de bandas talentosas como a de vocês.
Eu:
Você nos acha talentosos?
Não quis soar carente de elogios, mas vindo dela, era algo que não
podia ser ignorado. Além disso, sua preocupação realmente me tocou.
Marrentinha:
Claro!
Detesto admitir,
mas a sua bandinha de garagem é foda pra caramba LoL!
Eu:
Você está mais do que convidada
para o nosso próximo show.
Marrentinha:
Valeu!
Mas não posso confirmar a minha presença :(
Hoje mesmo tenho um evento para fotografar
e se a grana não fosse boa, eu teria mandado
a chefe da minha amiga para aquele lugar onde o
sol não brilha.
Eu:
:D
Você com certeza precisa se controlar
ou vai acabar na fila do seguro desemprego haha
Marrentinha:
Nah! Eu tenho minhas economias
e posso me virar um bom tempo com elas…
mas a questão não é o dinheiro
eu fotografo porque amo o que faço.
A fotografia é o amor da minha vida❤
Eu:
Eu deveria sentir ciúmes dela?
Marrentinha:
Ainda tá aí cantorzinho?
Eu:
Estou sim!
Estava apenas me preparando para o banho;P
Marrentinha:
Hum…
Podemos nos falar mais tarde
Eu:
Nah!
Meus banhos são bem rápidos
Marrentinha:
Outra coisa que não temos em comum haha
meus banhos duram quase meia hora
para desespero da minha amiga e colega de quarto
Aquela pergunta era tão difícil, mas ao mesmo tempo tão fácil de
responder. Então, por que eu estava há quase cinco minutos encarando a
lista que escrevi em quinze segundos, ponderando se deveria ou não enviá-
la?
Caleb tinha o direito de saber a toca de lobo na qual ele estava se
enfiando, mas, no fundo, acho que eu não queria que os meus fantasmas e
monstros do passado o afastassem de mim.
Apesar de tudo, conversar sobre coisas idiotas do dia a dia com
um cara com quem troquei alguns bons amassos nunca pareceu tão fácil e
satisfatório como estava sendo naquele momento.
O cantorzinho deve ter feito alguma lavagem cerebral em mim.
Minha mente e coração não conseguiam encontrar outra resposta para o
sorriso permanente e idiota que surgia em meu rosto toda vez que eu lhe
enviava uma mensagem e aguardava ansiosamente por sua resposta.
Balancei a cabeça e respirei fundo.
Ele ainda devia estar no banho, já que não questionou minha
demora em citar todas as coisas que nos diferenciam.
— Melhor resumir tudo em apenas uma coisa, ou talvez duas —
murmurei para mim mesma.
Eu:
Seu sorriso que diz
“sou amigo de todo mundo”
e sua positividade de
“Vamos viver a vida como se não houvesse amanhã”
são as duas coisas que mais nos diferenciam
Eu:
Positividade demais pode ser
comparada com ilusão, sabia?
Enfim, o papo está ótimo,
mas eu preciso ir à academia,
preciso me preparar fisicamente
e mentalmente para o evento que irei
fotografar hoje à noite
Cantorzinho:
Não vou atrapalhar você
Mas por que você não parece animada
para esse tal evento?
Cantorzinho:
Boa sorte lá! Tenho certeza
de que você vai arrasar!
E qualquer coisa,
me liga que eu vou lá colocar
essa tal Eshe no lugar dela
Cantorzinho:
Depois do soco de direita
que você deu no Peter Pan
não tenho dúvidas disso :D
Eu:
Look básico da noite ;P
Para a minha surpresa e satisfação, o rapaz respondeu quase no
mesmo segundo:
Cantorzinho:
Se eu não tivesse um jantar em família hoje,
arranjaria um jeito de ir a esse evento,
apenas para prestigiar o evento
que é você nesse vestido
Jantar em família?
Por que uma parte de mim estava verde de inveja?
Balancei a cabeça. É claro que Caleb tem uma boa relação com a
família; o rapaz se dá bem até com um poste, se não for um exagero meu.
Suspirei profundamente e digitei uma rápida resposta:
Eu:
É uma pena…
por isso, contente-se com essa
foto
e imagine tudo o que está por baixo desse vestido
e você está perdendo…
Cantorzinho:
Marrentinha… não brinca com fogo
Eu:
Talvez eu goste de me queimar S2
Não esperei por uma resposta. O carro por aplicativo que solicitei
já estava parado em frente ao prédio, faltando apenas meia hora para o
início do evento. Não demoraria cinco minutos e a Mich começaria a me
ligar, desesperada para saber o motivo da minha demora. Sem falar que a
insuportável da chefe dela ficaria pegando no pé da coitada.
Ainda não sei por que minha amiga se submete a esse tipo de
tratamento.
Para não correr o risco de perder o foco durante o trabalho,
desliguei meu celular e o guardei na mochila, juntamente com minha
jaqueta e minha câmera. Dizer que eu parecia uma estrela de filme de ação
enquanto caminhava até o carro com aquela mochila preta nas costas, o
vestido e sapatos da mesma cor, o vento soprando meus cabelos, deixando
os pelos dos meus braços arrepiados, não seria uma comparação incoerente;
pelo contrário.
— Boa noite, senhorita! — saudou o motorista com um sorriso
simpático. No entanto, não deixei de notar seu olhar rápido para a minha
coxa parcialmente exposta.
Segurei a vontade de revirar os olhos e apenas respondi, curta e
grossa, como sempre sou:
— Boa! — Sorri falsamente, deixando minha mochila ao meu
lado sobre o banco.
Mantive a janela ao meu lado parcialmente aberta e fechei os
olhos, sentindo o vento bater em meu rosto à medida que o carro avançava
pelas ruas noturnas, iluminadas e movimentadas da capital.
Para a minha sorte e, principalmente, a do motorista, ele permaneceu
com o bico calado durante todo trajeto até o museu Victoria & Albert, onde
seria a festa.
Londres era puro charme durante o outono.
As folhas das árvores, com diferentes tons de laranja espalhadas
pelas calçadas, o clima frio, as vitrines das lojas com manequins vestidos
com sobretudos e cachecóis, e os londrinos se preparando para o inverno,
sempre me deixavam com um sentimento de nostalgia.
— Chegamos, senhorita — anunciou o motorista, após parar o carro
em frente à entrada do museu.
Suspirei fundo e encarei a entrada da imponente construção do
século XIX, iluminada com luzes douradas, repleta de fotógrafos e um
enorme banner da London Fashion Magazine – estrelado por ninguém
menos do que Angelo Hamish – pendurado acima das portas do local.
— Começamos bem a noite — resmunguei baixinho.
— Disse alguma coisa, senhorita?
— Hã? Ah, não, quero dizer, quanto é mesmo a corrida?
— £25 libras.
Era mais barato do que pegar um táxi. Abri minha mochila e tirei
o dinheiro da carteira antes de entregá-lo ao motorista.
— Obrigado e tenha uma boa noite.
— Igualmente. — murmurei.
Desembarquei do veículo e ajeitei minha mochila de lado sobre o
ombro, enquanto observava as pessoas ao meu redor.
O tapete vermelho que se estendia pelos degraus do museu até as
duas portas principais me fez sentir uma celebridade enquanto caminhava
lentamente por ele.
No entanto, o foco não estava em mim, mas sim nas mulheres
magras, altas e esbeltas que posavam para fotos vestidas dos pés à cabeça
com adornos que devem valer mais do que os meus dois pulmões. Estes,
que não estavam lá grandes coisas devido à quantidade de cigarro que
venho consumido ultimamente. Se bem que, parando para pensar, já fazia
dois dias que eu não fumava. Aquilo era um verdadeiro milagre.
Mas já disse e repito: fumar, no meu caso, não é um vício, mas
sim um mau hábito. Posso parar a hora que quiser e nem sinto falta da
nicotina entrando nos meus pulmões e na minha caixa torácica.
Ao colocar os pés no enorme salão do museu, a primeira pessoa
que encontrei foi Michele. A jornalista estava deslumbrante com seu
vestido rosa pink de seda até os tornozelos, os cachos soltos e selvagens ao
redor de sua cabeça nerd, destacando-se no ambiente decorado com pilares
de mármore mesclado e um lustre dourado no centro do teto de gesso
branco.
— Uau! Amiga, você tá linda! Esse vestido está maravilhoso e
caiu feito uma luva em você. — me elogiou, assim que parou à minha
frente, segurando uma taça.
— Querida, tudo que eu me proponho a usar cai feito uma luva
em mim.
Minha amiga revirou os olhos e resmungou baixinho algo sobre eu
ser uma narcisista sem limites, o que me fez abrir um sorriso.
— Você também não está nada mal — elogiei de volta,
observando seu a peça rosa em seu corpo. — Só acho que você deveria ter
deixado a dupla de tampas de garrafa em casa — resmunguei quando notei
seu par de óculos, que na verdade é bem difícil de passar despercebido.
Mich deu de ombros, com um beicinho, e bebericou mais um gole
de seu champanhe.
— Não sei como você vai conseguir fotografar calçando esses
saltos finos… — Gesticulou com a cabeça na direção dos meus pés.
— Além de ser uma das fotógrafas da festa, eu também sou
convidada. Não pretendo comparecer a um evento como esse, lotado de
celebridades e influencers, parecendo uma palhaça — expliquei, ajustando a
alça do meu vestido. — E também, já estou acostumada a usar saltos, ao
contrário de certas pessoas…
Ela franziu o cenho, com a boca entreaberta.
— Certas pessoas quem? Eu? Pois fique sabendo que sei muito
bem como me equilibrar em saltos altos, só prefiro sapatos baixos por
questão de conforto.
— Claro que essa é a única razão! — sorri falso, fazendo-a rosnar
e revirar os olhos.
— Ravena Watts! — Olhei para o lado ao ouvir meu nome saindo
da boca de quem eu menos gostaria de ver, mas que, infelizmente, era
obrigada a engolir.
Tudo em nome da fotografia e do dinheiro que ela me
proporciona.
Eshe Fenton caminhava em nossa direção como se fosse uma
modelo sobre a passarela e, eu detestava admitir, mas a mulher era muito
bonita e estava ainda mais usando aquele vestido da Prada caríssimo. Eu
sabia disso porque namorei um igual por quase um mês até criar coragem
de entrar na loja e perguntar o preço, apenas para sair de lá traumatizada.
Jurei para mim mesma que não valia a pena eu gastar mais de seis mil libras
da minha poupança para satisfazer um capricho bobo e fútil.
— Fico feliz que tenha aceitado nossa proposta, senhorita Watts! —
Eshe completou assim que parou à nossa frente.
— Eu que agradeço pela confiança no meu trabalho, senhorita
Fenton. — Sorri falso, ajeitando a alça da minha mochila sobre o ombro.
— Agora é senhora Davies.
— Ah…
— Sim, eu me casei em uma cerimônia super discreta, apenas para
amigos e familiares, com Rufus Davies, também conhecido como o
proprietário da London Fashion Magazine. — Sorriu orgulhosa, como se
tivesse ganhado na loteria, e ela tinha, não literalmente, mas vocês
entenderam.
— Você apenas juntou o útil ao agradável, não é mesmo?! — Pisquei
com um sorriso irônico.
Eshe franziu o cenho e abriu um sorriso estranho, parecendo confusa.
Michele, por sua vez, beliscou minha bunda, e devo dizer, doeu!
Trinquei os dentes, porém fiz cara de paisagem.
— Bem, quero fotos de todos os convidados e ambientes do museu
onde estão sendo exibidas imagens das nossas campanhas. — exigiu a CEO
da revista de moda mais popular da Inglaterra, gesticulando para o arredor.
— Deixa comigo! — Fiz sinal de continência.
Ela assentiu, com os olhos estreitos, e me olhou de cima a baixo.
— Vestido bonitinho. — Apontou com desdém e deu as costas,
rebolando em direção ao marido, que estava conversando com alguns
convidados do outro lado do salão.
Bonitinho?
Aquilo era inveja porque eu estava muito mais bonita e atraente do
que ela.
Revirei os olhos e fitei minha amiga.
— Por que você beliscou a minha bunda? — resmunguei,
massageando discretamente o local dolorido.
— Porque você não segura essa língua! Sorte sua que a Eshe não
entendeu a sua insinuação.
— Não foi uma insinuação, e sim uma constatação. — Dei de
ombros. — Ela conseguiu mesmo aplicar o golpe do baú para cima do
velho, e ninguém tira isso da minha cabeça — soltei, balançando a cabeça
lentamente, com o cenho franzido, enquanto fitava a Eshe dando uma
bitoquinha no homem que parecia ter o dobro da idade dela.
— Rav, pelo amor do pai, fala baixo! — Mich murmurou, com os
olhos arregalados atrás das lentes de seus óculos, olhando ao redor. — Se
alguém ouve isso e conta para ela, estamos as duas perdidas. — Fez sinal
de cortar o pescoço antes de terminar o resto de seu champanhe.
— Não tô nem aí. Você concorda comigo, mas, ao contrário de mim,
tem medo de dizer a verdade. Se for verdade, eu falo mesmo, doa a quem
doer. — Dei de ombros. — Além disso, vá com calma aí com esse
champanhe, não estou a fim de te carregar até o táxi.
— Só bebi duas taças, contando com essa.
— E já estou vendo os efeitos nas suas bochechas coradas, que com
certeza não são de blush.
Mich tocou seu rosto e fez um beicinho.
— Bem, preciso ir trabalhar. Se cuida! — Beijei sua bochecha quente
e corada. — Te vejo mais tarde. — Apertei seu ombro e comecei a
caminhar para longe.
— Tá bom! Mas, Rav?
Parei e a encarei por cima do ombro.
— Seja boazinha com o Angel, pode ser?
— Tanto faz. — Revirei os olhos e continuei meu caminho em
direção ao vestiário do museu para deixar minha mochila.
Eu quase tinha me esquecido de que o modelo hétero top iria à festa.
Após assumir publicamente o namoro com a minha amiga jornalista,
antes de sua viagem à cidade luz, o rapaz parece um cachorro sem dono.
Ele não a deixa livre nem em um evento da revista para a qual ela trabalha,
o que é motivo de alegria para Eshe, que falta pouco para beijar o chão que
aquele lá pisa.
18
Não estava nos meus planos dedicar uma música para Ravena,
embora eu já tenha pensado nisso há alguns dias. A ideia desapareceu
porque eu estava mais concentrado em conseguir um encontro com ela sem
acabar com o nariz quebrado. No entanto, naquele momento, tudo na minha
cabeça girava em torno dela, assim como os planetas giram em torno do sol.
Eu precisava muito expressar com palavras escritas aquilo que minha boca
era incapaz de proferir.
Peguei meu caderno e o lápis, posicionei meu violão no colo e, com a
paleta na boca, comecei a dedilhar algumas notas simples, apenas para ter
uma base.
— Seus… lindos… olhos azuis… — murmurei, anotando
rapidamente no caderno, com a paleta entre os dentes. — Tom menor… —
sussurrei, dedilhando as cordas do violão.
Não era minha intenção escrever uma música triste, mas estava bem
óbvio que o tema era romântico, e eu não conseguia imaginar cantar aquela
canção com uma bateria explodindo ao fundo. Talvez algo mais acústico…
apenas violão e guitarra… Acho que o Davian iria gostar.
Sorri com o pensamento e continuei escrevendo a letra.
— Você disse “não gosto de promessas”... — Deslizei o lápis
rapidamente sobre o papel, lembrando da noite em que conheci a
marrentinha, que foi categórica em afirmar que não gostava de fazer
promessas.
Ela poderia até não gostar de promessas, mas sabia quebrá-las como
ninguém.
De repente, Candy miou baixinho, chamando minha atenção, e
levantou-se do baú para caminhar lentamente sobre o colchão até sentar ao
meu lado, abrindo a boquinha em um bocejo.
— Acordei você, garota? — Sorri, acariciando sua cabecinha.
— Miau!
— Foi mal, Candy. — Fiz um beicinho dramático e bem-humorado.
— Prometo que vou acabar rapidinho.
Bem, era o que eu esperava. No entanto, os segundos, minutos e
horas foram passando, e eu ainda estava cantarolando a melodia, relendo a
letra um milhão de vezes e rabiscando-a tantas vezes mais, nunca satisfeito
o suficiente.
— Merda, Caleb, isso não é uma declaração… é só uma música,
como tantas que você já escreveu — resmunguei, fitando o teto, deitado
com o violão sobre o estômago, ainda tocando as primeiras notas de “Ocean
Eyes”.
Pelo menos, eu tinha encontrado um nome para a música que
descrevia muito bem a marrentinha.
Aqueles olhos azuis profundos podiam ser comparados às águas de
um oceano tempestuoso, puxando-me para baixo feito a âncora de um navio
atracado em alto mar, consumindo-me por inteiro, corpo, alma e mente.
Quando acordei na manhã seguinte, o sol queimava meu rosto. Eu
estava todo torto sobre a cama, deitado de bruços, abraçando meu violão
com um braço, o outro debaixo do travesseiro, uma perna dobrada e meu
caderno aberto com a capa virada para cima, quase caindo à beira da cama.
Para completar, Candy dormia no parapeito da janela ao meu lado.
Sempre gostei de deixar minha cama encostada na parede, assim
posso adormecer e acordar com a visão da rua pacata onde fica meu lar
doce lar. Sem contar que a vista da cidade também não era nada ruim.
— Ai — gemi, me virando de costas, com os olhos fechados e as
mãos na cabeça.
Meu corpo estava todo dolorido, e tudo o que eu precisava era de
um banho de banheira, isso, se eu tivesse uma.
— Merda! — exclamei, abrindo os olhos ao lembrar do ensaio da
Smash Secrets naquele dia em… — Porra! Tô atrasado. — Saltei da cama e
fui direto para o banheiro.
Saí de casa quase aos tropeços, com minha guitarra dentro da case
sobre meu ombro, enquanto Candy permanecia sentada no tapete da sala,
me encarando como se questionasse:
— Qual a porra do problema com os humanos?
Eu poderia escrever uma enciclopédia, mas não havia tempo.
— Bom dia, senhor Fleet! — saudou minha vizinha de quase
oitenta anos, senhora Prince, caminhando pela calçada em frente ao nosso
prédio, com seu mini bulldog, quase tão velho quanto ela.
Isso não foi uma brincadeira, nem uma ofensa à senhora. Até onde
sei, um ano de vida de um cachorro equivale a sete de um ser humano, e se
não me engano, o cachorro da senhora Prince já tinha mais de dez…
— Bom dia! — Acenei de volta e abri a porta do meu carro,
deixando minha case sobre o banco do passageiro.
Na noite passada, cheguei da casa do meu avô tão cansado que acabei
deixando o automóvel estacionado na rua.
Quanta responsabilidade, hein, Caleb!
— Minha neta está louca para conhecê-lo! — Senhora Prince
exclamou, exibindo um largo sorriso.
Parei com a porta entreaberta, apoiei o braço sobre ela e franzi o
cenho, com um sorriso confuso, observando a senhora e seu cão parados na
calçada.
— Perdão?
Com passos lentos, minha vizinha e seu cachorro, Sherlock,
aproximaram-se do meu carro.
Jesus, eu estava atrasado…
— Eu disse que a minha neta quer muito conhecê-lo depois de
assistir à reportagem sobre você e sua banda no canal da BBC! —
esclareceu, segurando a coleira do bulldog com uma mão, enquanto a outra
mantinha seu casaco fino fechado.
— Ah, claro! Fico muito feliz em saber disso, senhora Prince. —
agradeci. — Agora eu preciso ir. Minha banda tem um ensaio daqui a meia
hora. — Conferi o horário no meu relógio de pulso, acenei, enquanto
sentava no banco do motorista e fechava a porta.
— Divirta-se, querido!
Buzinei e arranquei o carro.
Minha sorte era que o trajeto de carro até a casa dos pais do Nevan
era de aproximadamente vinte minutos do meu apartamento. Caso
contrário, eu seria obrigado a ouvir um sermão daqueles três por chegar
atrasado.
Como se eles não fizessem pior!
Especialmente o Elion.
Certa vez, além de chegar atrasado, o baixista chegou bêbado depois
de virar a noite na farra.
Suspirei fundo, após me lembrar da situação, e virei na próxima
esquina. Dirigi tranquilamente pela rua estreita e pacata, com casas estilo
vitoriano bem semelhantes, diferenciando-se apenas pelas portas, pintadas
com cores diferentes, até parar em frente à casa de dois andares, revestida
de pequenos tijolos laranjas e janelas guilhotina.
Se você pensava que a garagem onde nossa banda ensaia, pelo menos
três vezes por semana, era algo semelhante às dos filmes americanos que
você costuma assistir na Netflix, sinto informar, mas era bem diferente
disso. Na Inglaterra, aquele estilo de construção não é comum – apenas para
não dizer inexistente, por isso, a maioria dos imóveis nem sequer possui
uma garagem. Sei que pode parecer confuso e imprudente, mas… bem-
vindos à velha e nostálgica Inglaterra!
Desci do carro, travei-o com o alarme e pendurei minha case sobre o
ombro enquanto caminhava até a porta de madeira pintada de branco,
girando no dedo a chave do meu velho Ford. Toquei a campainha e aguardei
até que a senhora Gray atendesse a porta, o que não demorou mais do que
vinte segundos.
— Ah, Caleb! Que bom vê-lo, querido! Os meninos estão na
garagem, ansiosos pela sua chegada. O Elion já está quase careca de tanto
deslizar os dedos pelo cabelo. — Revirou os olhos com um sorriso de canto.
Soltei uma risada e balancei a cabeça.
— Olá, senhora Gray! — Inclinei-me para frente e beijei sua
bochecha.
Senhora Gray era uma mulher jovem, com pouco mais de quarenta
anos, pele marrom-clara, cabelos castanhos e cacheados como os do filho e
muito bonita. Era quase como uma segunda mãe para mim e também para
os outros membros da banda.
— Já tomou o café? — perguntou ela, após fechar a porta e caminhar
ao meu lado pelo estreito corredor com carpete cinza-claro.
— Sim! — Sorri fraco.
Aquela foi uma mentira deslavada, mas em minha defesa,
conhecendo a senhora Gray como conheço, se eu dissesse que não, ela iria
me puxar pelo braço até a cozinha, me fazer sentar à mesa e comer toda a
despensa. Em troca disso, meus amigos me devorariam vivo.
— Tem certeza de que não quer um dos meus bolinhos? Ainda estão
quentinhos…
— Obrigado, senhora Gray, mas estou satisfeito! — Acariciei meu
estômago, apenas para enfatizar a mentira.
A mulher piscou com um sorriso e disse que estaria em seu
escritório. Não mencionei, mas a mãe do baterista da Smash Secrets é
corretora de imóveis, e das boas, diga-se de passagem.
— Se precisar de qualquer coisa, é só bater à porta. — Beijou minha
bochecha e seguiu para o fim do corredor.
Encontrei meus amigos nos fundos da casa, na garagem com o portão
fechado coberta apenas por um toldo. Elion estava fumando um cigarro
encostado na parede do imóvel, com seu baixo pendurado sobre o ombro;
Nevan estava comendo, sentado em seu banco atrás da bateria, desfrutando
do que parecia ser um dos bolinhos deliciosos feitos por sua mãe, enquanto
Davian tocava em sua guitarra algumas notas da primeira música que
fizemos juntos.
— Olha só quem chegou! Pensei que teríamos que ir te buscar com
um reboque. — Elion foi o primeiro a dizer quando me notou caminhando
pela grama em direção a eles.
— Bom dia pra você também. — Sorri falsamente, coloquei a chave
do carro no meu bolso traseiro, antes de me abaixar, abrir minha case e tirar
minha guitarra do seu casulo.
— Agora que o Caleb chegou, podemos começar a ensaiar logo? Eu
preciso de uma distração. — Elion resmungou, jogando seu cigarro no chão
antes de pisoteá-lo, como se ele fosse o culpado pelos seus problemas.
Davian deu de ombros e se posicionou, ajeitando o pedestal do seu
microfone. Enquanto isso, Nevan engolia seu bolinho em seco e girava suas
baquetas antes de ecoar um som pelo espaço aberto da garagem ao tocar seu
bumbo – tambor da bateria que fica no chão – com apenas uma nota.
Suspirei fundo e segui para o meu lugar de sempre, no centro,
atraindo a atenção de todos para mim. A verdade é que ser o vocalista nem
sempre é algo agradável. Sou basicamente considerado o “rosto” da banda;
todos olhares se voltam para mim – até os holofotes – quando estamos no
palco, e às vezes, me sinto pressionado, como se, caso eu desse um passo
errado, todos iriam cair junto comigo…
Com a paleta entre os dentes, ergui o pedestal do meu microfone até
a altura certa e testei o instrumento.
— Vamos começar com Till Dawn? — perguntei aos meus
companheiros, fitando-os por cima do ombro.
— Pode ser! — murmuraram em uníssono.
“Till Dawn” é uma música no estilo rock de garagem, e foi uma das
primeiras que gravamos em um estúdio amador. Foi uma experiência bem
louca, porém muito gratificante. Tivemos que desembolsar uma graninha,
mas valeu a pena.
Iniciei a música tocando a guitarra em tom menor antes da bateria
entrar no ritmo, lenta, apenas ecoando alguns toques no chimbal e um na
caixa.
Com os lábios quase colados no microfone, comecei a cantar:
Eu sabia que você seria minha quando te encontrei parada
durante aquela festa e ninguém prestava atenção
Saímos bêbados, rindo feito loucos no gramado
Oh, baby, você estava tão linda naquele vestidinho preto
“Sermos nós mesmos faz com que acabemos excluídos pelos outros.
No entanto, fazer o que os outros querem nos exila de nós mesmos.”
Eu:
Estou a caminho!
Cantorzinho:
Te vejo em uma hora ;)
A primeira coisa que fiz quando coloquei os pés na suíte foi abrir
as cortinas brancas, quase transparentes, deixando um pouco da luz solar
atravessar as janelas de vidro que se estendiam do teto ao chão, para
apreciar a vista da cidade.
O quarto não era grande, mas a cama de casal parecia bem
confortável, e eu só conseguia imaginar Caleb e eu sob aqueles lençóis
macios e perfumados. Ao redor do espaço aconchegante, havia ainda duas
poltronas, um pequeno sofá e uma cômoda com uma TV de LED em cima.
Caleb largou nossas mochilas sobre uma das poltronas, sua case
no chão de carpete cinza-claro ao lado do sofá, e caminhou em minha
direção. O músico passou os braços ao redor da minha cintura e pousou o
queixo sobre o meu ombro. Embora não tivéssemos uma diferença de altura
significativa, o rapaz ainda precisava abrir um pouco as pernas para não
precisar se curvar.
— Gostou da suíte? — perguntou ele.
— Não é a melhor em que já me hospedei, mas dá pro gasto.
Caleb beijou minha nuca e me virou de frente para ele.
— Ainda não vimos a banheira…
— Isso é uma sugestão? — Arqueei a sobrancelha, colocando os
braços ao redor de seu pescoço.
Ele não respondeu, apenas me ergueu nos braços, pegando-me
totalmente de surpresa, e nos conduziu até o banheiro. Quando a porta
fechou atrás de nós, não demorou dois minutos para estarmos nus, dentro da
banheira de louça branca e polida, com a água quente cheia de espuma,
cobrindo nossos corpos.
— Eu não queria tocar no assunto de novo, mas… Não entendi o
motivo de o Elion ter ficado chateado — murmurei, acariciando as espumas
sobre a superfície da água.
O peito de Caleb estava colado às minhas costas, quente e firme,
subindo e descendo ritmicamente. Seu braço estava ao redor do meu peito,
enquanto o outro envolvia minha cintura.
Eu estava “presa” e não me importava nem um pouco.
— Com certeza ele pensou que estou tendo tratamento
diferenciado por ser o vocalista e líder da banda… Essa não é a primeira e
nem será a última vez que ele pensa assim.
— Isso não te incomoda? — Apoiei a cabeça em seu peito e o
encarei.
Caleb suspirou e deslizou a mão pelos cabelos úmidos, sujando
alguns fios com espuma.
— Contanto que isso não atrapalhe nossa amizade e o bem-estar
da Smash, eu não me importo. — Desviou o olhar para a janela ao lado,
com vista para a cidade, antes de completar: — Elion sempre foi um cara
intenso, um pouco mimado, mas bom rapaz.
Assenti fraco e mergulhei na água.
— Agora, chega de falar do meu amigo… — Caleb sorriu, com o
lábio inferior entre os dentes, quando o fitei após emergir da água com os
cabelos mais longos e escuros.
— O que você sugere? — indaguei, sentada em seu colo,
passando os braços ao redor de seu pescoço.
— Eu prefiro mostrar. — Apertou meu traseiro, me puxando para
mais perto, fazendo nossos peitos colidirem, e tomou meus lábios em um
beijo lento e molhado.
Se eu pudesse tirar uma foto daquele momento, o faria com
prazer. No entanto, preferia ficar ali, nos braços dele, trocando beijos como
estávamos, enquanto as batidas do meu coração saltavam sob meu peito,
fazendo minha cabeça girar e minha mente flutuar sobre nuvens de prazer.
Deslizei minhas mãos pelo seu peito molhado, sentindo as
ondulações do abdômen definido, e soltei um gemido lascivo quando senti
sua mão acariciar meu ponto mais sensível.
— Podemos brincar um pouquinho, cantorzinho, mas… —
Engoli em seco, com os olhos fechados e a cabeça inclinada para trás. —
Sem camisinha não vai rolar… — Suspirei, ondulando os quadris de
encontro ao movimento de sua mão.
— Então você terá que ser mais forte do que eu e me fazer parar,
porque não acho que consigo… — admitiu rouco, segurando minha cabeça
para que eu encarasse seus olhos.
Aquele homem era a minha condenação e redenção.
28
Sair daquela banheira sem tomar a Ravena mais uma vez foi a
tarefa mais dolorosa e difícil que executei na vida. Eu estava à beira de uma
combustão com tanto tesão reprimido, mas não havia nada que eu pudesse
fazer. Então, apenas descemos para o restaurante e jantamos com o resto da
banda e Felix.
Já era tarde quando voltamos para nossa suíte, e tudo que fizemos foi
deitar na cama e adormecer até a manhã seguinte.
No entanto, Felix parecia mais animado do que nós quando nos
encontrou na saída do hotel, prontos para seguir para o primeiro ensaio
antes do show, que aconteceria no início da noite.
— Animados para o grande dia? — perguntou ele, antes de
soprar seu cigarro.
Não estava muito cedo para o empresário estar fumando?
— Minhas mãos estão coçando para tocar minha bateria! —
Nevan disse animado, esfregando as mãos.
Elion, por outro lado, sustentava uma carranca, com os braços
cruzados. Acordar antes do meio-dia não era mesmo a praia dele. Por isso,
o rapaz estava usando um par de óculos escuros para esconder seus olhos
sonolentos e as olheiras sob eles.
— Guarde essa energia para o show — aconselhou Felix,
apontando para o baterista com os dois dedos que seguravam seu cigarro.
— Quanto a você, senhorita Watts, trate de fotografar tudo que puder, pré e
pós-show.
— Esse é o meu trabalho — afirmou Ravena, com a câmera
pendurada no pescoço.
Felix assentiu, com um sorriso de canto, aparentemente, satisfeito
com a resposta da marrentinha, antes de voltar sua atenção para o baixista
da Smash.
— E você, Elion, vai conseguir tocar ou precisa de um banho
gelado para acordar?
— Se eu estivesse dormindo, não estaria aqui de pé, me dando ao
trabalho de responder a essa pergunta idiota — resmungou, passando pelo
homem em direção ao meu carro estacionado em frente ao hotel.
Felix estreitou os olhos para o rapaz e balançou a cabeça.
— Liga não, Felix. Ele é muito pior quando acorda às seis —
Davian deu um tapinha no ombro do empresário e seguiu atrás do baixista.
Peguei a mão da Ravena e acenei para o Felix. Ele afirmou que
iria de táxi até o local do show, já que meu carro estava cheio.
— Nos vemos lá — despediu-se pela janela do veículo.
O Temple Newsam é um palácio inglês estilo Tudor/Jacobeano,
com amplos jardins, sendo o principal local do festival anual da cidade, que
atrai milhares de amantes da música.
Quando chegamos ao local, outra banda estava fazendo a
passagem de som sobre o palco enorme, digno de um festival de música.
Enquanto eu caminhava pelo gramado do palácio, com Ravena ao meu
lado, tudo o que passava pela minha cabeça era qual deveria ser a sensação
de tocar lá em cima para uma multidão de espectadores.
— Há algo sobre aquele castelo ao fundo que torna tudo mais
interessante e meio peculiar, você não acha? — comentou a marrentinha,
apontando sua câmera em direção à enorme construção datada do século
XV.
— É uma construção imponente e difícil de ser ignorada —
observei, com as mãos nos bolsos da minha jaqueta.
— Cara, eu tô tremendo — disse Nevan, sacudindo as mãos para
enfatizar sua fala. — Tô com medo de ter uma dor de barriga antes do
show. — Ele me encarou com o cenho franzido.
Soltei um riso e segurei seus ombros, encarando-o com confiança.
— Fica tranquilo. Vai dar tudo certo.
— Mas eu te aconselho a não ingerir nada pesado antes da nossa
apresentação, porque se você vomitar e a gente tiver que parar o show, eu te
mato — disse Davian com os olhos estreitos, em tom de ameaça.
Nevan fez um beicinho e deu ombros.
— A gente não controla esse tipo de coisa. — murmurou, com a
cabeça baixa.
— Hey! — Felix gritou do outro lado do campo aberto, acenando
em frente ao palco.
— Acho que tá na hora. — Ravena sorriu, acariciando meu braço.
Olhei para ela, retribuí o sorriso e beijei sua testa.
Era tão estranho descrever a sensação de liberdade que senti
quando finalmente subi no palco e pude testemunhar a visão panorâmica do
gramado vazio, que em poucas horas estaria lotado. Se alguém me
perguntasse, eu não saberia responder.
Enquanto nos preparávamos para assumir nossas posições,
Ravena se aproximou da grade e começou a tirar fotos.
Eu estava mais do que feliz por ela estar ali, mas ao mesmo
tempo me perguntava até onde aquela cumplicidade e comodidade nos
levariam. Nem mesmo sabia rotular toda a intimidade que estávamos
vivenciando. Éramos um casal de ficantes, amigos? Não, amigos não fazem
as coisas que fazemos, nem se olham como nos olhamos.
Tentei não dar muita importância a isso e deixar as coisas fluírem
naturalmente, sem cobranças; porém, não sabia até onde estava disposto a
seguir com aquilo sem colocar todas as cartas na mesa.
— Vamos colocar o retorno, pode ser? — um dos auxiliares
técnicos do festival se aproximou de mim com o microfone, interrompendo
meus pensamentos.
— Claro!
O rapaz me ajudou a colocar o microfone no bolso traseiro da
calça e os fones nos ouvidos. Naquele momento, a ficha de que aquele show
era realmente profissional começou a cair, de forma lenta, mas definitiva.
Testei o microfone sobre o pedestal e minha guitarra, me
certificando de que tudo estava funcionando bem. Enquanto isso, Nevan
tocou um pouco na bateria, Davian na guitarra e Elion no baixo.
Como combinado, ensaiamos dois covers e duas músicas autorais.
Entretanto, eu gostava de surpresas e a Ravena teria uma na hora do show.
Eu só precisava deixar meus amigos e o Felix a par da mudança para não
correr o risco de as coisas darem errado, o que não poderia, de forma
alguma, acontecer.
Aquele show era o nosso passaporte para o universo musical dos
nossos sonhos, eu não podia foder com tudo.
— Você acha que essa camisa combina com essa calça, Candy?
— perguntei à gata pela segunda vez naquela manhã, como se os miados
dela realmente fossem me dar uma opinião concreta.
No dia anterior, quando a busquei na casa da senhora Prince, dei
de cara com a neta da mulher, a Zola. Meus olhos quase saltaram das
órbitas, mas consegui disfarçar bem, talvez não tanto quanto a neta da
minha vizinha, que parecia outra pessoa vestida dos pés à cabeça como uma
puritana.
Eu duvidava muito que a senhora Prince desconfiasse da dupla
personalidade da neta, que praticamente havia se atirado nos meus braços
dois dias antes e quase saído no tapa com a marretinha. Por falar nela, era
melhor a Ravena nem sonhar com esse reencontro...
Fitei meu reflexo no espelho uma última vez e me dei por
satisfeito.
Minha camisa preta, com os primeiros botões abertos e a calça
jeans da mesma cor, rasgada nos joelhos, pareciam o look perfeito para uma
entrevista em uma das rádios mais famosas da Inglaterra.
Um sorriso incessante pintava meus lábios desde a hora que
acordei. Se bem que eu nem havia dormido realmente, apenas cochilei uma
ou duas horas. Tamanha era minha ansiedade e animação, que meus olhos
não conseguiam permanecer fechados por mais do que alguns minutos.
Se tudo corresse bem, nossa música poderia entrar no top 100 da
Billboard. Eu sei que talvez isso fosse sonhar alto demais, mas ninguém
nunca foi preso por acreditar que sonhos, por maiores que sejam, possam se
realizar.
— Me deseje sorte, Candy. — Olhei para a gata, deitada em
minha cama.
— Miau!
Meu sorriso se alargou – se é que era possível – e beijei o topo de
sua cabeça pequena.
— Prometo que quando eu for rico, você só vai comer enlatado de
marca.
— Miau! — A gata me encarou profundamente, talvez com um
pouco de dúvida, e voltou a lamber sua pata.
Balancei a cabeça e peguei meu celular, colocando-o no bolso
traseiro.
A entrada dos estúdios da Capital FM nunca me pareceu tão
atraente como naquele momento em que a encarava de pé na calçada. O
prédio de seis andares, pintado de branco, com um enorme letreiro azul com
o nome da rádio, seria o primeiro lugar onde iríamos tocar oficialmente o
novo single da nossa banda.
Meu estômago se revirava toda vez que eu me lembrava de que teria
que falar ao vivo para milhares de ouvintes, incluindo Ravena, que
prometeu ouvir toda a nossa participação no programa de rádio.
— Caleb! — Davian surgiu atrás de mim e sacudiu meus ombros.
Seus olhos estavam brilhando, e acredito que os meus estavam igualmente
radiantes, se não mais. — Pronto para a nossa primeira entrevista oficial?
— Nasci pronto. — Eu realmente queria acreditar nisso.
Como líder da banda, eu me sentia no dever de manter a ordem e
o ânimo entre os membros, mas às vezes só desejava ter alguém que fizesse
isso por mim.
Meus amigos e eu entramos no prédio e encontramos Felix já no
interior do estúdio, conversando com o radialista responsável pela
entrevista, Elliot Hart, um dos mais famosos do país.
— Aí está a banda do momento. Smash Secrets! É um prazer
conhecê-los, rapazes. — Elliot cumprimentou cada um de nós com um
aperto de mãos firme e profissional.
— O prazer é nosso — afirmei em nome da banda.
— Então, não vamos perder tempo! Entramos no ar em cinco
minutos. — Abriu a porta da sala de transmissão e apontou para uma mesa
grande, com vários computadores, microfones e câmeras. — Podem se
sentar ali. A Daphne vai ajudá-los com o microfone.
— Essas cadeiras são macias. Agora, eu realmente estou me
sentindo um rockstar — sussurrou Elion ao meu lado, girando na cadeira de
estofado almofadado.
— Mantenha os dois pezinhos no chão — sussurrei de volta e dei
um tapinha em sua coxa com um sorriso zombeteiro.
O baixista deu de ombros e sorriu para a moça, que supus ser a
Daphne, e nos ajudou a colocar os fones.
— Preparados? — Elliot perguntou, com os polegares erguidos, e
nós assentimos.
Minha testa estava úmida, me obrigando a secá-la com a manga da
minha camisa. Tentei disfarçar quando vi a câmera focada em mim. Quase
me esqueci de que a entrevista seria gravada e posteriormente postada no
canal da rádio no YouTube.
— No ar em, 3, 2, 1!
— Bom dia para você que está no metrô, trem, ônibus, carro, moto
ou apenas caminhando apressado pelas calçadas da cidade rumo a mais um
dia de trabalho ou estudo. Boa sorte para vocês! — Elliot soltou uma risada.
— Hoje estamos nos estúdios da Capital FM com a banda queridinha do
momento dos internautas, que arrasou no último final de semana no festival
de Leeds, a Smash Secrets! — Disse alto o nome da banda e começou a
aplaudir, junto com os outros funcionários da rádio presentes no espaço.
— Rapazes, antes de tocarmos a música em rede nacional pela
primeira vez, os fãs nos mandaram algumas perguntas no Twitt– X. — Ele
fechou os olhos, com os lábios apertados. — Cara, eu nunca vou me
acostumar com esse nome. — Suspirou, balançando a cabeça.
Meus amigos e eu sorrimos em concordância. O clima estava
descontraído e, aos poucos, o nervosismo estava dando lugar ao entusiasmo
de ouvir uma música nossa tocando pela primeira vez em uma
rádio.
— Vamos lá! A primeira pergunta é da Alora Jones e foi feita
para o vocalista: “Caleb, Ocean Eyes está creditada como uma composição
sua, então podemos ter o prazer de saber quem é a musa inspiradora por trás
dela”? Hum, eu também estou curioso para saber a resposta.
Inspirei fundo. Apesar de já prever aquela pergunta, ainda não
tinha certeza de como deveria respondê-la. Olhei para Felix, posicionado
com os braços cruzados atrás do vidro, e ele discretamente balançou a
cabeça.
Entendi aquilo como um sinal de que não deveria entrar em detalhes.
— É aquela velha história: conto o milagre, mas não conto o
santo.
Todos soltaram uma risada, e o radialista ergueu as mãos.
— Vamos ter que aguardar mais um pouco para descobrir…
Agora, a pergunta que não quer calar: vocês pretendem lançar um clipe
oficial de “Ocean Eyes”?
— Hã… — Abri a boca, mas não consegui formular uma
resposta.
— Claro! — Elion tomou a palavra, segurando o microfone à sua
frente, e eu quase o chutei sob a mesa. — Nosso empresário já está
cuidando disso. — Piscou com um sorriso para Felix, que arregalou os
olhos, assentiu com um sorriso forçado e ergueu o polegar.
Ele iria matar o baixista e, se precisasse de ajuda, eu estava mais
do que disponível.
— Wow! Podemos esperar muitas surpresas e novidades da
banda. — garantiu o radialista, parecendo animado.
— A próxima pergunta é para o Elion, e foi feita pela Pandora
Watson. Aqui ela diz: “Elion, você é um gato”, palavras dela — Elliot fez
uma pausa bem-humorada, com as sobrancelhas arqueadas, arrancando
risadas dos presentes, antes de continuar: “Você tem alguma tatuagem
secreta?” Elion, pense bem na resposta, não queremos que o programa saia
do ar.
Novamente um coro de risadas preencheu o ambiente.
— Tudo bem, tudo bem! — O baixista ergueu as mãos, bem-
humorado. — Não é secreta, mas tenho sim, querida. É uma flor com as
pétalas fechadas, e fica no meu… — Fez uma pausa dramática, e o
sonoplasta soltou um som de tambores para entrar na brincadeira. —
Antebraço — completou com os lábios torcidos, como se estivesse
decepcionando a internauta com a sua resposta.
— Satisfeita, Pandora? — brincou o radialista. — Vamos agora
com pergunta para o Davian, guitarrista da Smash. Essa pergunta é boa,
hein! Ela foi feita pela Ashley Calloway: “Davian, eu amei a sua guitarra.
Ela é recomendada para iniciantes?”
— Hã… Sim! É uma Stratocaster, e por ser considerada uma das
mais versáteis do mercado, ela é super recomendada para quem está
começando a tocar o instrumento.
— Aqui no final ela ainda pergunta se você pode ensiná-la com
aulas particulares…
Todos soltamos uma risada, e eu achei ainda mais graça quando
as bochechas do meu amigo coraram.
— Seria um prazer. — Engoliu em seco, com um sorriso sem
jeito.
— Só temos mais duas perguntas e a próxima vai para o Nevan,
baterista da banda. Hazel Greenwood pergunta: “Nevan, estou apaixonada
pelo seu cabelo cacheado, casa comigo?” Acabamos de receber uma
proposta de casamento, minha gente! E aí, Nevan, encontramos a futura
senhora Gray?
Meu amigo soltou uma risada nasalada e balançou a cabeça baixa.
— Acho que, antes de aceitar a proposta, temos que nos conhecer
melhor, Hazel. Mas não é impossível! — piscou, com o polegar erguido,
olhando diretamente para a câmera.
— Ouviu, né, Hazel? A esperança é a última que morre. — Elliot
apontou e também piscou para a câmera. — Agora, a última pergunta que
selecionamos vai para todos da banda e foi a mais pedida nos comentários
do nosso perfil na rede social do passarinho, porque eu me recuso a falar X
de novo.
— Você acabou de falar — brincou o sonoplasta do outro lado do
estúdio, com a voz soando abafada.
Elliot deu um tapa na própria testa e continuou:
— Os fãs querem saber qual de vocês está solteiro e se rola um
encontro com uma delas.
— Estamos todos solteiros e, claro que sim, estamos abertos a
encontros com as nossas fãs. Afinal, elas são as nossas maiores inspirações
— Elion soltou, galanteador.
Davian e Nevan me encararam, com o cenho franzido, e eu apenas
balancei a cabeça.
O que eu poderia dizer? Era a verdade.
Embora não me considerasse totalmente solteiro devido ao meu
relacionamento com a Ravena, que sinceramente, não fazia ideia de como
definir, eu estava tecnicamente solteiro. Pelo menos até colocarmos as
coisas em pratos limpos.
— Agora, vocês fizeram a alegria da nação! E para comemorar,
vamos logo soltar essa música, porque eu já não me aguento de ansiedade
— declarou Elliot.
Elion pegou minha mão sob a mesa e apertou tanto, que senti
meus dedos estalarem. Fechei os olhos e respirei fundo.
Aquela era a hora da verdade, o ponto de partida da Smash em
direção ao infinito e além.
33
Eles iriam fazer um show de despedida no The 100 Club? Aquilo era
foda pra caramba!
Pisquei os olhos, ainda processando a informação, enquanto tentava
ignorar a pontada no meu peito quando relembrei a palavra “despedida”
mencionada na propaganda. No entanto, criei coragem para me levantar e
pegar meu celular sobre a mesa onde estava meu computador no canto da
sala.
Sem pensar duas vezes, mesmo com as mãos trêmulas, enxuguei
um fio de suor sobre a testa com o braço, entrei no site da Smash Secrets e
adicionei um ingresso ao carrinho. Segundo o site, só restavam três. As
vinte e cinco libras que eles estavam cobrando não me fariam falta alguma,
por isso, cliquei em “comprar” e suspirei aliviada quando recebi a
confirmação da compra por e-mail antes de levar o celular ao peito.
Abri um sorriso triste. Eles estavam realmente crescendo dia após
dia, e eu teria que assistir a tudo de longe, apenas torcendo por eles, por
Caleb, com o peito consumido pela dor de perdê-lo.
No fundo, eu sabia que ir àquele show seria uma tortura, mas eu
precisava ver o Caleb mais uma vez antes de ele partir para outro país, outro
continente…
— Acho que já deu por hoje. Vocês estão dispensados. — Felix
gesticulou com as mãos no ar, sentado em uma cadeira de frente para o
palco, segurando um cigarro entre os dedos.
— Cara, finalmente. Pensei que passaríamos a noite ensaiando —
Elion murmurou, estalando o pescoço e guardando seu baixo dentro da
case.
— Venham todos vocês aqui, por favor. Tenho informações sobre
a mudança de vocês — nosso empresário pediu, levantando-se da cadeira,
enquanto soprava a fumaça tóxica de seu cigarro.
Senti um frio na espinha e engoli em seco, descendo do palco até
ficar frente a frente com ele.
— Lance e Matteo me enviaram uma mensagem mais cedo e
disseram que já está tudo pronto para a mudança de vocês.
— E quando iremos viajar? — Nevan perguntou, um pouco
receoso, deslizando um lenço sobre a testa suada.
— Na próxima sexta.
— O quê? Na próxima sexta?
— Sim, sim. Após a sexta do show. — Gesticulou impaciente.
— Mas isso não é um pouco em cima? — Davian coçou a nuca.
— Se é ou não, não dá mais para questionar. Vocês assinaram um
contrato e vão ter que cumpri-lo.
— Mas onde é que a gente vai morar? — perguntei confuso.
— Ah, aí vem a melhor parte. A gravadora alugou uma casa para
vocês em Harlem, lugar foda pra caralho, cheio de contatos. Um dos
melhores bairros de Nova York. … Vai ser moleza descolar shows para
vocês na cidade.
— Nós vamos morar juntos? — Elion arqueou a sobrancelha.
— Algum problema?
— Não… quero dizer, acho que não — murmurou, desviando o
olhar.
— Ótimo. — Felix revirou os olhos, antes de continuar: —
Quanto às passagens, não se preocupem, também será tudo por conta da
gravadora.
— Eles estão tão sendo bonzinhos demais… não sei não.
— Isso chama-se negócios, Elion. Eles não estão sendo
bonzinhos, vocês vão ter que pagar por tudo isso, vendendo ingressos para
shows, produtos personalizados da banda–
— Tipo camisas, bonés, essas merdas todas? — interrompeu o
baixista, com um brilho nos olhos.
— Sim, essas merdas todas e muito mais. Principalmente,
conquistando fãs para comprarem tudo isso e o que mais tiver a marca de
vocês.
— Só tem um detalhe, Felix… — comecei.
— E qual seria?
— Nós não temos passaporte, quero dizer, eu, o Elion e o Nevan.
Davian é o único que possui um.
— É! Nosso amigo guitarrista aqui é o único que já se aventurou para
outros países, especialmente a Coreia do Sul. — Elion sorriu, balançando o
ombro do nosso amigo.
— Você é descendente de sul-coreanos, Davian? — Felix perguntou
curioso, com a cabeça inclinada de lado.
— Sou! Meus pais são coreanos, mas se mudaram para Londres
antes de eu nascer. Então, costumo passar o Natal e Ano Novo com a nossa
família que ainda mora lá.
— O irmão mais novo dele, Joonho, ainda mora em Seul, não é,
Davi? — Elion continuou.
O guitarrista assentiu com um sorriso triste.
— Já faz um ano que eu não o vejo. Ele foi embora para estudar o
último ano do ensino médio lá… E ao que parece, vou ficar mais um tempo
sem vê-lo. — Coçou a nuca sem jeito.
— Ele pode ir visitar você em Nova York… — Felix sugeriu,
tragando mais seu cigarro.
— Talvez. — Suspirou fundo, com os ombros encolhidos.
— Bem, então vou agendar para vocês a solicitação dos
passaportes… Acreditem, vocês vão precisar de um não apenas para essa
viagem…
— Como assim? — Franzi o cenho.
Felix abriu um sorriso de canto misterioso, mas apenas disse:
— Esperem e verão.
— Quanto suspense… — Elion sussurrou em meu ouvido com
um bico debochado.
Revirei os olhos e abriu um meio sorriso.
— Vejo vocês na sexta! Estejam aqui às seis em ponto. — Felix
acenou, caminhando tranquilamente até a saída.
— Mas o show começa às nove… — declarou Nevan, um pouco
mais alto, com o cenho franzido.
— Melhor prevenir do que remediar. — Ele deu de ombros e
deixou o local.
Após a saída de Felix, juntamos nossas coisas e voltamos cada
um para sua casa. Eu nem queria ter saído da minha em primeiro lugar. Só
rezava para que os dias passassem mais rápido e chegasse logo o dia da
nossa mudança. Talvez a viagem pudesse minimizar a sensação de vazio
que insistia em se abrigar no meu peito.
42
Tudo o que tentei fazer nos últimos dias foi me concentrar no que
eu mais amo: a fotografia. Passei a semana toda enfurnada dentro de casa,
não saí nem mesmo para ir à academia. Eu sabia que, quando criasse
coragem para voltar à minha rotina de exercícios – porque uma hora ou
outra eu teria que reagir – ficaria com os músculos doloridos, sem conseguir
sequer ficar sentada ou em pé por muito tempo.
Eu estava dando tudo de mim para não errar na edição daquelas
fotos que encarava na tela do meu computador, mas minha cabeça parecia
distante. Volta e meia, lembranças da noite em que Caleb e eu brigamos
voltavam à minha mente, apertando meu peito e deixando a minha garganta
seca.
Sem falar que eu estava procrastinando a todo custo para não
abrir a pasta onde continha as fotos que tirei da Smash Secrets durante o
festival de Leeds. Simplesmente me faltava coragem para rever aquelas
imagens de um dia tão feliz e importante para eles, e de certa forma para
mim também. O problema era que já tinha passado do prazo e Felix não
parava de me enviar mensagens cobrando as imagens no perfil da banda.
Elion tinha ficado de me passar a senha, mas eu duvidava muito
que o rapaz o faria após descobrir a briga que Caleb e eu tivemos. Era óbvio
que o baixista da Smash Secrets tomaria as dores do amigo, e ele estava
certo.
Suspirei fundo, deslizando o dedo pelo touchpad do meu
notebook, e aumentei o volume da música que estava ouvindo através do
meu Headset – fone de ouvido.
Eu estava finalmente conseguindo me concentrar no meu
trabalho, por esse motivo nem mesmo vi ou ouvi, minhas amigas Alissa e
Michele entrarem no apartamento carregando sacolas de compras.
— Achei essa carta na nossa caixa de correios — Ali comentou com
o cenho franzido, após levantar um dos lados do meu fone, observando o
papel de todos os ângulos, enquanto virava o envelope de um lado, depois o
outro.
Olhei para ela com uma careta, muito irritada por ter sido
interrompida e por ter perdido a pouca concentração que tinha naquele
momento. No entanto, coloquei meu fone sobre a mesa e suspirei fundo.
— É para você — disse Michele, cruzando os braços.
— Para mim? — Franzi o cenho, pegando o papel que Alissa me
estendera. — Não tem remetente… — murmurei, olhando o papel de todos
os lados em busca de alguma informação, mas foi inútil. Suspirei fundo,
levantei-me da cadeira e abri o envelope. — Quem ainda escreve cartas em
pleno século XXI? — resmunguei, abrindo a tal carta.
Em primeiro lugar, já adianto que sou péssimo com essas coisas e, acredite,
não foi fácil escrever esta carta. Tive que engolir meu orgulho masculino
para criar coragem de me expressar através desta folha de papel…
Não vou me prolongar, no entanto, então… Aí vai:
Apesar de tudo, das coisas horríveis que dissemos um ao outro, eu te amo,
marrentinha. Acredite, também, que não era assim que eu me imaginei
dizendo essas três palavras pela primeira vez, mas você não me deu outra
escolha.
Estou indo para Nova York na sexta e saiba que estarei pensando em você
durante cada segundo dessa viagem, porque uma parte minha vai ficar com
você em Londres.
Espero que ouça as músicas que eu ainda vou escrever sobre você nas
rádios ou onde preferir.
Você sempre será a minha musa inspiradora.
Beijos do fundo do meu coração.
Com amor, Caleb S2
Minha ansiedade era tanta que, assim que Michele disse que o
carro por aplicativo estava a dez minutos de distância do meu prédio, eu
peguei minha mochila e desci até o hall.
O vento estava soprando violento do lado de fora e as nuvens
pareciam cada vez mais escuras. Por isso, optamos por aguardar o veículo
no hall mesmo, observando a movimentação através das portas de vidro.
— O carro chegou — Mich informou, empurrando a porta.
Fui a primeira a sair do local quente e protegido do vento, e suspirei
ao sentir meu cabelo voando para todos os lados. Se não fosse pela touca
ninja preta que cobria minha cabeça, ele estaria bem mais desgrenhado.
— Nós vamos com você! — disse Alissa, abrindo a porta do carro
preto por aplicativo.
Encarei minha amiga, com um sorriso fraco, e umedeci os lábios
secos.
— Você não vai se meter em problemas por faltar à clínica?
— Nah! Eu me acerto com eles depois.
Com um sorriso emocionado, abracei minha amiga apertado o
suficiente para deixá-la sem ar.
— OIIII! — ouvimos um grito e olhamos para o lado, vendo uma
Catarina correr ofegante, com o rosto vermelho em nossa direção.
— Cat? O que você tá fazendo aqui? — perguntei espantada,
fitando-a com o cenho franzido.
A bióloga se inclinou para frente, com uma mão erguida e a outra
apoiada no joelho, enquanto tentava recuperar o fôlego.
— Eu… Não conseguia me concentrar no trabalho, me
perguntando se tudo ia dar certo, se você iria ou não conseguir embarcar
com o Caleb… Então, — engoliu em seco. — inventei uma desculpa para o
meu chefe, dizendo que minha tia tinha sido hospitalizada, e ele me deixou
sair. — Ajeitou a postura com uma careta.
Soltei um riso, não acreditando no que ela tinha feito.
— Obrigada por ter vindo — agradeci, abraçando-a apertado.
— Imagina, amiga! Mas nem ouse contar à minha tia essa
mentira. Ela detesta que eu minta sobre questões de saúde, ainda mais
aquelas que envolvam o nome dela.
Assenti, afastando-me do abraço aconchegante.
— Agora, é melhor irmos logo. — Alissa gesticulou para o
interior do carro.
— Pisa fundo moto, é caso de vida ou morte! — Catarina disse ao
motorista assim que se sentou entre mim e a Michele no banco de trás.
— Não exagera — murmurei, revirando os olhos.
— Cala a boca! Você quer perder o Caleb pra sempre? — a bióloga
retrucou séria, me fazendo arquear as sobrancelhas com surpresa devido ao
seu tom de voz e à expressão em seu rosto, uma que eu nunca havia visto
antes.
— E-eu… não.
— Então, larga de ser uma idiota ao quadrado e fica calada! —
Suspirou fundo, jogou o cabelo sobre o ombro e apertou o encosto do banco
do motorista, quase com a boca colada na orelha do homem. — Quer que
eu dirija, caramba?!
Dei um salto sobre o banco e pisquei os olhos rapidamente.
Aquela era uma versão da Catarina totalmente nova e exclusiva para
todas nós. Enquanto isso, Alissa me fitou através do retrovisor com os olhos
arregalados e os lábios entreabertos, exatamente como a Mich, sentada ao
meu lado.
O som de buzinas era quase ensurdecedor. Estávamos parados há
mais de cinco minutos em uma fila extensa a poucos metros da entrada
principal do aeroporto, e todo aquele caos estava aumentando meu estresse
e ansiedade a ponto de eu começar a roer minhas unhas. Um hábito que eu
não tinha desde os doze anos.
— O trânsito está bem lento, moças. Podemos ficar aqui por mais
meia hora — disse o motorista, me encarando através do retrovisor.
— Eu vou a pé. — Não pensei duas vezes, abrindo a porta ao meu
lado.
— Mas, Rav… — Michele começou, mas balancei a cabeça.
— Faltam vinte e oito minutos para o portão de embarque fechar.
Se eu esperar mais um minuto, vou perder o Caleb de vez. — Empurrei a
porta, estremecendo da cabeça aos pés quando a temperatura atingiu meu
corpo. Acenei para as minhas amigas, antes de bater a porta do veículo e
correr em direção ao terminal 3.
A mochila pesada em minhas costas não estava facilitando minha
corrida, mas eu não tinha outra opção. Trombando com metade dos
pedestres na calçada, continuei a correr em direção à entrada do saguão do
maior aeroporto do Reino Unido.
Ofegante, sentindo uma queimação na boca do estômago, olhei
para ambos os lados do terminal, em busca do guichê da companhia aérea.
Não havia nenhum sinal do Caleb ou dos rapazes. O painel de voos
pendurado no alto da parede mostrava que faltavam apenas vinte minutos
para a decolagem do avião.
Engoli em seco e me dirigi até um dos guichês. Minhas mãos
estavam tremendo e a atendente me encarou com um olhar de preocupação.
— A senhorita está se sentindo bem? Está pálida…
Eu ainda não tinha recuperado totalmente o fôlego após a corrida,
então apenas assenti com um sorriso fraco e entreguei meu passaporte junto
com a passagem.
— O portão de embarque do seu voo fecha em dois minutos,
senhorita. Não sei se–
Revirei os olhos e bati a mão espalmada sobre o balcão.
— Moça, por favor, dê um jeito! Eu não posso perder esse voo —
falei entredentes.
A atendente da companhia aérea arregalou os olhos e assentiu,
pegando o telefone com as mãos trêmulas.
— V-vou ligar para o meu supervisor.
Respirei fundo, com o peito subindo e descendo, aguardando
enquanto ela falava com quem quer que seja do outro lado da linha.
— Ok, obrigada! Senhorita… — Fez uma pausa, conferindo meu
passaporte. — Watts. A senhorita tem apenas cinco minutos, eles não
podem segurar mais o embarque.
Assenti freneticamente.
— Alguma bagagem para despachar?
— Não. — Gesticulei com a mão de forma estabanada.
— Tenha uma boa viagem, senhorita Watts. — Sorriu amigável,
devolvendo-me o passaporte e a passagem.
— Obrigada — agradeci rapidamente e corri novamente para o
mais longe possível dali. Só esperava que toda aquela adrenalina e
desespero valessem a pena no final das contas.
Enquanto isso, minha cabeça só pensava no Caleb, se ele já tinha
embarcado e qual seria sua reação ao me encontrar. No fundo, eu estava me
borrando de medo de ele fazer uma cena e me mandar de volta para casa
com o rabo entre as pernas.
Suspirei fundo, estremecendo com o pensamento, e balancei a
cabeça, continuando meu caminho com passos largos.
FIM
(ou não)
NOTA DA AUTORA