cmartins1,+REVISTA 03 01
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“A essa confusão – determinação dos preços por oferta e demanda e, ao mesmo tempo,
determinação da oferta e demanda pelos preços – devemos acrescentar que a demanda
determina a oferta e esta, por sua vez, a demanda, ou, o que dá no mesmo, que a produção
determina o mercado, e este, a produção.” (MARX, 2017b, p. 266).
Ao longo desta década, e em aberto contraste com a política repressiva que, com
raras exceções, os Estados adotaram no campo científico e cultural, o marxismo teve
uma notável difusão nos meios intelectuais e acadêmicos latino-americanos. Isso
levou a que estudos realizados sobre a realidade de nossos países, do ponto de vista
de diferentes disciplinas, incorporassem o instrumental de análise marxista com
maior ou menor grau de ortodoxia. Essa incorporação é um processo que apresenta,
progressivamente, um caráter duplo: por um lado, um melhor conhecimento da obra
12 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
I
1 Ao iniciar na segunda seção o estudo da rotação do capital, Marx adverte, em relação aos ciclos do
capital-dinheiro e do capital produtivo, que “[...] é preciso atentar para o primeiro sempre que se tratar
fundamentalmente da influência da rotação sobre a formação de mais-valor, e para os segundo quando
se tratar de sua influência sobre a formação do produto” (MARX, 2014, p. 262-263). Um pouco antes,
observa, em relação à fórmula do capital-mercadoria, que “[...] é importante a última seção, na qual o
movimento dos capitais é concebido em conexão com o movimento do capital social total” (MARX,
2014, p. 262).
2 Questionando-se sobre a origem do dinheiro necessário à circulação de mais-valia, Rosa Luxemburgo
censura Marx pelo fato de que “[...] apóia-se exclusivamente no momento do primeiro trânsito da repro-
dução simples à acumulação”, destacando ainda que o referido trânsito “[...] é uma ficção teórica, como
o é a reprodução simples do capital” (LUXEMBURGO, 1970, p. 134). Além de expressar a tendência que
a caracteriza de reduzir o lógico ao histórico, fonte de todos os erros de sua obra de valor inegável, Rosa
Luxemburgo se equivoca na apreciação do conceito de reprodução simples, posto que uma abstração
não é o mesmo que uma ficção.
3 Como nota Roman Rosdolsky, isso indica que, com base nos pressupostos de Marx, as taxas de acu-
mulação de ambos os setores devem guardar uma proporcionalidade inversa às taxas de composição
orgânica (ROSDOLSKY, 2001).
4 “Sua tendência é converter toda a produção possível em produção de mercadorias; para tanto, seu
meio principal é justamente essa incorporação da produção em seu processo de circulação; e a produ-
ção de mercadorias, quando atinge seu estágio desenvolvido, é produção capitalista de mercadorias. A
intervenção do capital industrial estimula por toda parte essa transformação, mas, com ela, também a
transformação de todos os produtores diretos em trabalhadores assalariados” (MARX, 2014, p. 211).
14 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
siderado neutro5. Esse nível de abstração é congruente com a premissa metodológica
geral de Marx, segundo a qual, “Numa investigação geral, pressupõe-se sempre que
as relações reais correspondam a seu conceito ou, o que é o mesmo, que as relações
reais só se apresentam na medida em que expressam seu próprio tipo geral” (MARX,
2017b, p. 177-178).
É certo que
[o] dinheiro que o trabalhador desembolsa para o pagamento de seus meios de subsistência
existe anteriormente como forma-dinheiro do capital variável e, por isso, é originalmente
lançado na circulação pelo capitalista, como meios de compra ou de pagamento da força de
trabalho. (MARX, 2014, p. 479).
5 “A produção capitalista não pode existir de modo algum sem comércio exterior. Mas quando se pres-
supõe uma reprodução anual normal, numa escala dada, com isso se pressupõe também que o comércio
exterior não faz mais do que substituir artigos locais por artigos de outra forma de uso ou forma natural,
sem afetar as relações de valor [...]” (MARX, 2014, p. 643).
6 Por isso é inadequado um conceito como o de “terceira demanda”, que Pierre Salama utiliza em seu li-
vro El Processo de Subdesarrollo (1976) e que apaga a origem de classe das determinações da distribuição
e, por conseguinte, da demanda. Sobre o tema, ver meu artigo “La acumulacion capitalista mundial y el
subimperialismo” (MARINI, 1977 p. 29-30).
7 A fórmula é de Claudio Napoleoni; ver sua introdução a El futuro del capitalismo (1978).
8 Napoleoni, no texto citado, distingue a linha que se inicia com Smith, continua com a tese de Ricardo
sobre a queda da taxa de lucro e culmina na tese da estagnação de Stuart Mill, da linha que, sustentando
a tendência do sistema à superprodução crônica, se expressa principalmente por meio de Sismondi e de
Malthus. Marx recorre a essa dupla problemática, como indica Napoleoni, mas critica ambas posições,
que representavam, a sua vez, o ponto de vista da burguesia industrial (Ricardo), da pequena burguesia
(Sismondi) e dos rentistas e demais grupos parasitários (Malthus). Ver mais no livro Historia Crítica de
la Teoría de la Plusvalía (MARX, 1965).
9 Coletti (1978), que identifica em Marx uma “teoria do colapso”, em sua lei sobre a tendência à queda
da taxa de lucro, assinala corretamente que as tendências objetivas do sistema que apontam a sua des-
truição “por si só não podem ter valor resolutivo” e “só tem sentido quando aparecem como condições e
premissas reais da luta de classes”. No entanto, tende a considerar incompatíveis ambas as formulações,
ao exigir uma “teoria do colapso” que autonomiza o fator objetivo, o que certamente não está presente
em Marx e tampouco nos partidários mais decisivos do “colapso”, como Rosa Luxemburgo, Grossmann
e mesmo Bukharin. A mesma contradição de Coletti parece derivar de sua impossibilidade de com-
preender que a análise econômica marxista (e também sociológica, política) não é senão um ângulo
de ataque do problema; é isso que leva Coletti a opor categorias como capital variável e constante (“ele-
mentos internos ao capital”) ao de classes sociais, esquecendo-se que o capital, em Marx, só pode ser
entendido como relação entre classes. O curioso é que, no mesmo texto, Coletti cita passagens de Schum-
peter, que apontam de maneira muito mais certeira essa direção. Ver sua introdução a El Marxismo y el
‘Derrumbe’ del Capitalismo (COLETTI, 1978).
16 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
russos, assim como com o próprio Sismondi, acaba por se juntar a eles no fim do
caminho, ao defender que, embora determinada por uma contradição interna fun-
damental, a sorte do sistema foi selada por sua impossibilidade de se realizar histo-
ricamente como sistema universal, como supuseram os esquemas; isso, que negava
os dois primeiros pressupostos de Marx, era estabelecido precisamente por causa da
rejeição do terceiro pressuposto (LUXEMBURGO, 1970).
Ora, por mais importante que seja a contribuição que o debate sobre os esque-
mas de reprodução trouxe para o aprofundamento da teoria marxista, é evidente que
esse debate padece, em sua raiz, de um vício básico, que Lenin já havia colocado em
evidência na polêmica russa: a confusão entre o lógico e o histórico, o abstrato e o
concreto10. Escrevia Lenin:
A questão da realização é um problema abstrato, vinculado com a teoria do capitalismo em
geral. Que tomemos um país sozinho ou o mundo inteiro, as leis fundamentais da realização
descobertas por Marx são sempre as mesmas. O problema do comércio exterior ou do mer-
cado exterior é um problema histórico, um problema das condições concretas do desenvolvi-
mento do capitalismo em tal ou qual país, em tal ou qual época. [...]
Desta teoria [da realização] se deduz que, ainda que a reprodução e a circulação do conjun-
to do capital fossem uniformes e proporcionais, não se poderá evitar a contradição entre o
aumento da produção e os limites restringidos do consumo. Além disso, o processo de rea-
lização não se desenvolve na realidade segundo uma proporção idealmente uniforme, mas
enfrenta dificuldades, “flutuações”, “crises”, etc. (LENIN, 1974, p. 234 ).
10 Em Rosa Luxemburgo, esse erro aparece de maneira mais eloquente e reiterada; por exemplo: “O
esquema pressupõe, por conseguinte, um movimento do capital total que contradiz a marcha efetiva da
evolução capitalista. A história do sistema de produção capitalista caracteriza-se [...]” (LUXEMBURGO,
1970, p. 294)
11 Bernstein já insistia nessa “ruptura”, aferrando-se ao fato de que o rascunho do Livro II que Engels
utiliza é posterior ao Livro III, razão pela qual “em geral, o segundo livro contém frutos mais tardios e
maduros da investigação marxiana”. Ver o trecho de seu livro Las Premisas del Socialismo y las Tareas de
la Socialdemocracia (1982).
18 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
ou seja, em sua totalidade, compreende não apenas a circulação do capital, mas tam-
bém a circulação geral das mercadorias”, estabelecendo que:
Primordialmente, esta última [a circulação de mercadorias] só pode consistir de dois com-
ponentes: 1) o próprio ciclo do capital e 2) o ciclo das mercadorias que entram no consumo
individual, ou seja, das mercadorias nas qual o trabalhador gasta seu salário e o capitalista, seu
mais-valor (ou parte dele). (MARX, 2014, p. 502)12.
O problema que Marx trata de resolver é “[...] como se repõe, segundo seu valor
e a partir do produto anual, o capital consumido na produção, e como o movimento
dessa reposição se entrelaça com o consumo que os capitalistas e os trabalhadores
efetuam, respectivamente, do mais-valor e do salário?” (MARX, 2014, p. 551-552).
Sua solução passa pela consideração do valor sob sua forma natural de meios de
produção e meios de consumo (em consequência, a divisão do aparato produtivo em
dois grandes setores, I e II), ou seja, pela consideração do valor em íntima conexão
com o valor de uso13. Aqui, é retomada a problemática levantada no capítulo 1 do
20 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
po e na mesma medida, o novo grau de intensidade mais elevado se converteria no grau
normal, fixado socialmente no costume, e deixaria, assim, de ser contado como grandeza
extensiva. (MARX, 2017-a, p. 592).
Essa semelhança aparente entre produtividade e intensidade do trabalho, em ter-
mos de seu efeito sobre o valor e o valor de uso das mercadorias, esconde diferenças
que merecem destaque. Assim, em termos gerais, isto é, para o produto social e seu
conjunto, a lei da produtividade vale para todos os setores da produção, mas não para
os capitais individuais; desse modo, ao elevar sua produtividade acima do nível nor-
mal que estabelece o tempo de trabalho socialmente necessário14, ou seja, acima do
nível que determina o valor social da mercadoria, o capitalista individual consegue
que uma mesma jornada renda um produto de maior valor, precisamente porque,
apesar de o valor individual da mercadoria ter caído em termos reais, ela continua
apresentando o mesmo valor social, mas agora é produzida em maior quantidade
[por esse capitalista]; em suma, dado que o valor é uma relação social, é o valor social
que conta, e afirmar que o capitalista individual reduziu o valor unitário de sua mer-
cadoria nada mais é do que dizer que seus custos de produção foram reduzidos em
relação aos demais capitalistas do ramo. É por meio desse mecanismo que o capital
individual obtém uma mais-valia extraordinária, que se converte, na competição in-
tercapitalista, no fator por excelência de introdução do progresso técnico.
Porém, isso não é tudo no que se refere à lei da produtividade. Na medida em
que ela permite ao capitalista individual reduzir custos, e sendo o capital variável
um elemento integrante dos custos, o aumento da produtividade implica a redução
da participação dos salários na massa de valor criada, ainda que o preço da força de
trabalho permaneça invariável (ou seja, a relação entre seu valor e o número de horas
trabalhadas, sobre a base de uma determinada intensidade) e o salário tampouco se
modifique em termos reais ou nominais, considerando que seja elevado o grau de ex-
ploração (a relação entre tempo de trabalho necessário e trabalho excedente) e a taxa
de mais-valia (essa relação expressada em valor). A mais-valia extraordinária não é,
pois, um mecanismo de transferência que atua somente na competição intercapita-
lista, mas também é um fator que incide na relação de distribuição entre mais-valia e
salário, do ponto de vista do capitalista individual.
Para que o efeito seja similar em todo o ramo da produção, é necessário que a
produtividade do trabalho se eleve nele todo, se estabelecendo em um nível superior.
Isso implica, imediatamente, a supressão da mais-valia extraordinária, enquanto me-
14 Esse nível não corresponde necessariamente ao nível médio da produtividade, assim como o valor
social da mercadoria não é sempre a média dos valores produzidos no ramo, mas ambos são afetados
também pela concorrência (MARX, 2017b).
15 “[...] uma variação na grandeza do valor da força de trabalho – e, por conseguinte, na grandeza do
mais-valor – se os produtos dos ramos industriais afetados entram no consumo habitual do trabalha-
dor” (MARX, 2017a, p. 592). Como Marx coloca em outras passagens, a produtividade atua no mesmo
sentido quando se trata de ramos que, ainda que não produzam bens de consumo habitual, determinam
as condições de produção desses.
16 “[...] se vimos não ser possível nenhuma variação absoluta de grandeza no valor da força de trabalho
e do mais-valor sem uma variação de suas grandezas relativas, segue-se agora que nenhuma variação de
suas grandezas relativas de valor é possível sem uma variação na grandeza absoluta de valor da força de
trabalho” (MARX, 2017a, p. 590).
17 “Toda variação na magnitude extensiva ou intensiva do trabalho afeta [...] o valor da força de traba-
22 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
seu preço como o salário. Assim, para que se eleve a taxa de mais-valia, ou pelo menos
para que se eleve em um grau mais que proporcional ao aumento da intensidade do
trabalho, será necessário que – independentemente do aumento do preço e do salário
da força de trabalho – esta se remunere por debaixo de seu valor, ou seja, seja objeto
de uma superexploração18. Nessas condições, tal como se a jornada de trabalho se
prolongasse num determinado ramo de produção em grandeza superior aos outros
ramos, o aumento da intensidade em qualquer ramo resultará numa mais-valia ex-
traordinária em relação ao restante da economia (como vimos, isso só não ocorre se
a elevação da intensidade do trabalho for uniforme ao longo de toda economia). A
particularidade da intensidade do trabalho reside, pois, na possibilidade que contém
de gerar mais-valia extraordinária em todos os ramos da economia, quer se trate dos
dois subsetores do setor II, quer se trate do setor I19. O mesmo para a produtividade,
isso é válido se nos atermos exclusivamente à teoria da mais-valia.
Assim, sem ir além da teoria da mais-valia, se entende por que, ao buscar esta-
belecer as proporções em que se trocam as mercadorias, tomadas como unidade de
valor e valor de uso, Marx teve que necessariamente descartar as mudanças na pro-
dutividade ou na magnitude intensiva do trabalho, bem como, em geral, no grau de
exploração. Os esquemas de reprodução do Livro II resolvem o problema colocado
por Marx, qual seja, o de saber como se articula a reprodução do capital com o consu-
mo individual dos agentes da produção, no marco da circulação geral de mercadorias,
mas com a condição de considerar estas como unidade de valor e valor de uso, ou seja,
sem recorrer aos fatores que, ao exacerbar a contradição latente entre ambos no pro-
cesso de produção, cortariam de raiz a possibilidade de abstrair o seu movimento no
processo de reprodução. É evidente que isso assinala o papel específico e, por isso
mesmo, limitado que os esquemas cumprem na construção teórica de Marx, cujo fio
lho na medida em que acelera seu desgaste” tradução literal [de Marini] de O Capital (MARX, 2017a,
p. 592).
18 “É claro que se o produto de valor da jornada de trabalho varia, por exemplo, de 6 para 8 xelins,
ambas as partes desse produto de valor, o preço da força de trabalho e o mais-valor, podem aumentar
ao mesmo tempo, seja em grau igual ou desigual. Se o produto de valor sobe de 6 para 8 xelins, o preço
da força de trabalho e o mais-valor podem ambos de 3 para 4 xelins. O aumento do preço da força de
trabalho não implica aqui, necessariamente, um aumento de seu preço acima de seu valor. Ao contrário,
ele pode vir acompanhado de uma queda de seu valor. Esse é o seu caso sempre que a elevação do preço
da força de trabalho não compensa seu desgaste acelerado” (MARX, 2017a, p. 592). Onde se lê “queda de
seu valor” deve-se ler “queda abaixo de seu valor”, como faz notar a edição da Siglo XXI, México, 1975,
tomo 1, volume 2, na nota do editor [essa nota também está presenta na edição da Boitempo, utilizada
nesta tradução].
19 “Se a grandeza do trabalho varia extensiva ou intensivamente, à sua variação de grandeza correspon-
de uma variação na grandeza de seu produto de valor, independentemente da natureza do artigo no qual
esse valor se representa” (MARX, 2017a, p. 592).
20 Assim, em sua obra clássica sobre o tema, Bukharin (1984, p. 23-24) estabelece a noção de econo-
mia mundial e afirma: “O intercâmbio internacional repousa sobre a divisão internacional do trabalho.
Não se deve crer, porém, que ela se efetua apenas nos limites que lhe atribui essa divisão. Os países não
trocam apenas produtos de natureza diferente, mas também produtos similares. Tal país, por exemplo,
pode exportar para outro não apenas mercadorias que este último não produz, ou produz em ínfima
quantidade – mas pode também exportar suas mercadorias fazendo concorrência à produção estrangei-
ra. A troca internacional, nesse caso, tem fundamento não na divisão do trabalho – que implica a produ-
ção de valores mercantis de natureza diversa – mas unicamente na diferença dos custos de produção, na
diferença dos valores individuais (para cada país) que, na troca internacional, se resumem no trabalho
socialmente necessário em todo mundo”.
24 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
mais-valia se traduzem em mais-valia extraordinária e implicam, portanto, uma mu-
dança na relação básica de distribuição; porém, essa modificação na distribuição do
produto excedente entre salário e mais-valia (ou, o que é o mesmo, no grau de explo-
ração) é realizada, no caso da produtividade, sem necessariamente superexplorar a
força de trabalho, enquanto, caso se trate de um aumento da intensidade do trabalho,
a superexploração tende a ocorrer, pois esse aumento também aumenta o valor da
força de trabalho.
No segundo caso, o dos ramos de produção, constatamos que o aumento da taxa
de mais-valia só se expressa em mais-valia extraordinária se esses ramos pertencerem
ao subsetor IIb (assim como nos ramos de produção do setor I que produzem exclu-
sivamente para ele) e se esse aumento for decorrente de uma maior produtividade,
enquanto, se o aumento da taxa de mais-valia se dever à intensificação do trabalho,
existe a possibilidade de mais-valia extraordinária para qualquer ramo de qualquer
setor. Por sua vez, a relação básica de distribuição (e, portanto, de grau de exploração)
se altera em toda a economia se, em ambos os casos (produtividade e intensidade), os
ramos afetados correspondem ao setor I e ao subsetor IIa (generalização da mudança
da taxa de mais-valia ou, em outros termos, passagem da mais-valia extraordinária
à mais-valia relativa), ou se modifica apenas no ramo em questão, se este pertence
ao subsetor IIb, deixando invariável a relação básica de distribuição no conjunto da
economia, ainda que altere a distribuição de mais-valia daquele ramo (fixação da
mais-valia extraordinária).
Ora, o ganho de mais-valia extraordinária não é mais do que um pressuposto
para a apropriação do lucro extraordinário. A realização ou não dessa apropriação
depende da concorrência. Isso se deve ao fato de que a variação da taxa de mais-va-
lia em função de modificações na produção faz com que a massa de valores de uso
produzida varie no mesmo sentido, mas sua expressão em valor social está sujeita à
validação que essa massa de valores de uso opera na demanda (necessidades sociais
solventes)21. Assim, dependendo do nível de demanda em relação à oferta, a magni-
21 “Ainda que ambos os elementos, a mercadoria e o dinheiro, sejam unidades de valor de troca e de
valor de uso, já vimos (Livro I, capítulo 1, item 3) que, nas operações de compra e venda, essas duas
funções aparecem distribuídas como polos extremos, de modo que a mercadoria (vendedor) represen-
ta o valor de uso, e o dinheiro (comprador), o valor de troca. A mercadoria tem um valor de uso, ou
seja, satisfaz uma necessidade social, e isso constitui precisamente um dos requisitos da venda. O outro
requisito é, como vimos, que a quantidade de trabalho contida na mercadoria representa trabalho so-
cialmente necessário, ou seja, que o valor individual (e o que sob esse pressuposto é sinônimo, o preço
de venda) da mercadoria coincida com seu valor social” (MARX, 2017b, p. 216). E também: “Para que
uma mercadoria seja vendida por seu valor de mercado, isto é, na proporção do trabalho socialmente
necessário nela contido, a quantidade total de trabalho social empregada na massa total desse tipo de
mercadoria tem de corresponder à quantidade das necessidades sociais, isto é, às necessidades sociais
solventes. A concorrência e as oscilações dos preços de mercado que correspondem às oscilações da
relação entre oferta e demanda tendem constantemente a reduzir a essa medida a quantidade total do
trabalho empregado em cada tipo de mercadoria” (MARX, 2017b, p. 227-228).
22 “O suposto de que as mercadorias das diferentes esferas da produção são vendidas a seus valores
significa apenas, naturalmente, que seu valor é o centro de gravitação em torno do qual giram os preços
e com base no qual se compensam suas constantes altas e baixas. Além disso, será sempre preciso dis-
tinguir entre um valor de mercado, do qual falaremos mais adiante, e o valor individual das mercadorias
produzidas pelos diversos produtores. O valor individual de algumas dessas mercadorias ficará abaixo
do valor de mercado (quer dizer, menos tempo de trabalho será necessário para sua produção do que o
expresso pelo valor de mercado), e o de outras mercadorias ficará acima desse valor. O valor de mercado
deverá ser considerado, por um lado, como o valor médio das mercadorias produzidas numa esfera de
produção e, por outro, como o valor individual das mercadorias produzidas sob as condições médias
dessa esfera e que formam a grande massa de seus produtos. Apenas conjunturas extraordinárias podem
fazer com que mercadorias produzidas sob péssimas condições, ou sob as mais favoráveis, venham a
regular o valor de mercado, o qual, por sua vez, constitui o centro de gravitação dos preços de mercado,
que são sempre os mesmos para mercadorias do mesmo tipo. Quando a oferta das mercadorias ao valor
médio, ou seja, ao valor médio da massa situada entre ambos os extremos, satisfaz a demanda habitual,
as mercadorias cujo valor individual é inferior ao valor de mercado realizam um mais-valor ou lucro
extraordinário, ao passo que aquelas cujo valor individual é superior ao valor de mercado não podem
realizar uma parte do mais-valor nelas contido” (MARX, 2017b, p. 212-213). Mais adiante, Marx acres-
centa: “E o que dizemos sobre o valor comercial também se aplica ao preço de produção, quando ele
substitui o valor comercial” (MARX, 2017b, p. 182-183 e 186).
23 “A oferta e a demanda, numa análise mais detalhada, pressupõem a existência das diversas classes e
subclasses entre as quais se reparte a renda total da sociedade para ser por elas consumida como renda,
e que, portanto, constituem parte da demanda formada pela renda [...]” (MARX, 2017b, p. 230).
26 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
incremento de valor de capital constante em IIa e IIb, assim como de capital variável
(embora não necessariamente na mesma proporção) e, por conseguinte, na valoriza-
ção da massa de mercadorias que se lançam no mercado. Portanto, o mercado para o
setor II tem que se expandir, sob o risco de que a massa de valor realizada seja inferior
à produzida (seja porque parte das mercadorias não se vendem, seja porque o preço
dos bens cai); se isso ocorrer, a maior massa de mais-valia criada nos dois subsetores
se traduziria em uma massa de lucro menor e, mesmo que esta fosse igual à que antes
pertencia ao setor II, sua taxa de lucro cairia à medida que os custos de produção
aumentaram. Em consequência, ou a) se reduziria a demanda criada por IIa e IIb,
o que forçaria a redução dos preços de c produzido por I (essa redução correspon-
dendo a uma redução no valor), ou b) capitais de ambos subsetores emigrariam para
I, seja porque se tornaram capital em excesso devido às limitações do mercado, seja
em razão de uma taxa de lucro maior no setor I, ou por ambos os motivos; nos dois
casos, seria imposto o nivelamento da taxa de lucro em I e II, desaparecendo o lucro
extraordinário de I. Para que isso não ocorra, é preciso que o mercado de II aumente;
mas como v permanece constante em I na melhor das hipóteses, a expansão do mer-
cado só poderia ser realmente importante para IIb graças à conversão da mais-valia
extraordinária de I, ou parte dela, em consumo individual dos capitalistas. Assim,
devido ao condicionamento do mercado, o lucro extraordinário de I se traduziria no
aumento da participação nos lucros de IIb e dos ramos de I que produzem para ele.
Somente na medida em que os lucros maiores de I e IIb expandirem a escala de acu-
mulação, é que o subsetor IIa e os ramos de I dirigidos a ele poderiam se integrar ao
movimento expansivo iniciado em I, com atraso e de forma subordinada, eliminando
o lucro extraordinário dos primeiros lentamente.
Uma observação: é evidente que, como a mais-valia se acumula em qualquer se-
tor, o incremento da mais-valia de I pode se destinar à acumulação em II, o que
assegura não só a realização do produto c, como também poderia compensar, teo-
ricamente, por meio do aumento de v em II, a redução relativa de v em I. Mas isso
só ocorrerá se a mais-valia incrementada, ao se converter em capital excedente no
setor I, pressionar para baixo a taxa de lucro (do mesmo modo que aconteceria com
a mais-valia que emigra de II) e tender a nivelá-la com a do setor II. Se ocorrer essa
migração de capital, teríamos que a modificação da relação básica de distribuição em
I obriga a extensão da escala de acumulação em toda a economia para assegurar a
expansão do mercado e, portanto, a realização da massa de mercadorias produzida,
bem como o aumento de mais-valia. Isso, repetimos, só pode ocorrer na medida em
que se opera a tendência de nivelação da taxa de lucro e se elimina, pois, a mais-valia
extraordinária em I, o que supõe a emigração prévia de capital de II para I ou uma
24 Isso é o que Bukharin esqueceu, o que o levou a deduzir falsas relações de sua fórmula de equilíbrio
para a reprodução ampliada. Ver em Rosdolsky (2001, p. 374-375).
28 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
acumulada é feita fora do ciclo do capital produtivo, e, portanto, a determinação do
valor social nessa esfera da circulação não afeta a valorização do capital em I e IIa,
mas apenas a taxa de acumulação (na medida em que influencia a forma como a
mais-valia é dividida em mais-valia acumulada e não acumulada). É, pois, compreen-
sível que, quanto mais a mais-valia aumenta na economia, maior a elasticidade dessa
demanda. Por outro lado, considerando que tal demanda não entra na circulação do
capital, mas configura um caso de circulação geral de mercadorias, é natural que o
valor de uso adquira uma importância mais decisiva na realização do produto; daí
a maior diferenciação dos artigos produzidos pelo subsetor IIb, os desvios mais fre-
quentes da lei do valor (como a superestimação da produção artesanal em relação à
produção fabril) etc.
Deve-se ter em mente que, ao transferir os preços em menor medida de I e IIa aos
aumentos de produtividade, o subsetor IIb estabelece com os demais uma relação
que implica uma transferência intersetorial de mais-valia, via preços, que vai além do
que corresponderia estritamente aos mecanismos de nivelação da taxa de lucro e que,
em vez disso, os violam; em outros termos, se configura uma situação similar à que
alude à noção de trocas desiguais na economia internacional. Isso reduz, assim, a taxa
de lucro que alcança I e IIa (ainda que os ramos de I que produzem fundamentalmen-
te para IIb possam ser ressarcidos, recorrendo também à mais-valia extraordinária)
e pressiona para baixo a taxa de lucro desses setores. Em outras palavras, o setor IIb
exerce um efeito depressivo sobre a taxa de lucro geral, o qual, rigorosamente, é a
contrapartida do lucro extraordinário que se verifica nele25.
Notemos, finalmente, que a especificidade de IIb, em termos de produção de
mais-valia extraordinária e sua conversão em lucro extraordinário, se acentua ne-
cessariamente onde prevalece a superexploração do trabalho, configurando uma si-
tuação em que prevalecem salários baixos e lucros elevados. Com efeito, isso implica
que, ao mesmo tempo em que a esfera inferior de circulação se apresenta com pouco
dinamismo, a esfera superior tende a inflar-se. Em tais circunstância, se entende per-
feitamente que o subsetor IIb tende constantemente ao crescimento desproporcional
em relação aos demais, bem como se acentua, no plano do mercado, a subordinação
do setor I em relação ao subsetor IIb, mais que em relação ao subsetor IIa. Como em
qualquer outro campo observado, também aqui a economia dependente, baseada
na superexploração do trabalho, sofre de maneira ampliada as leis gerais do regime
capitalista de produção.
25 Esse efeito depressivo não se traduz automaticamente em redução da taxa de lucro, já que pode ser
combatido por diferentes mecanismos, entre os quais se destaca a superexploração do trabalho, particu-
larmente no subsetor IIa. Mas, sobretudo neste caso, a consequência desse efeito depressivo é a atrofia
do subsetor IIa e a hipertrofia do IIb, com a distorção correspondente do setor I.
1. Esclarecidos alguns dos problemas colocados pelo uso dos esquemas como
representação de uma economia capitalista concreta, passaremos agora aos trabalhos
de Maria da Conceição Tavares (1998) e Francisco de Oliveira (1977), que se valem
dos esquemas. Convém esclarecer que, ainda que ambos, via Kalecki26, se remetam
aos esquemas de reprodução de Marx como ponto de referência para a análise da
problemática que querem resolver, não procedem à elaboração de esquemas próprios
e ignoram as controvérsias que deram lugar às tentativas dessa natureza. Os dois tra-
balhos têm em comum a preocupação em relação ao peso e papel do subsetor de pro-
dutos de bens de consumo de luxo (que ambos os autores identificam, grosso modo,
como bens de consumo duráveis) na economia brasileira atual, isto é, do pós-guerra.
Enquanto Oliveira foca sua atenção explicitamente ali, com objetivo de examinar
a relação entre o dito subsetor e a crise econômica que atravessa neste momento o
país, Tavares busca uma teorização mais ampla, que não só contempla o problema do
desenvolvimento desse subsetor nos países capitalistas avançados, mas, sobretudo,
pretende estabelecer um marco de análise para essa questão nas economias que cha-
ma semi-industrializadas, ou seja, as economias capitalistas dependentes de maior
desenvolvimento relativo, para chegar finalmente ao caso brasileiro, considerado
principalmente à luz da industrialização do período pós-guerra e da crise econômica
que esta enfrentou na década de 1960. No entanto, ao longo de todo o trabalho, a
preocupação subjacente de Tavares, assim como de Oliveira, se orienta para a atual
crise do capitalismo brasileiro. Ao analisar ambos os trabalhos, meu propósito não é
examinar todos seus pressupostos teóricos nem o quadro explicativo que apresentam
para a dinâmica da economia brasileira, mas tão somente verificar o uso que fazem
dos esquemas e o papel que eles desempenham nas conclusões a que chegam.
Não é tarefa fácil, particularmente com o trabalho de Tavares. Com efeito, ali se
observa uma modificação progressiva de aparato analítico: a estrutura setorial tri-
partite, que se estabelece no capítulo I (e que, como descobrimos no final do capí-
26 Ambos os autores invocam Michel Kalecki para denominar o subsetor de bens de consumo de luxo
como Departamento III, mantendo a designação Departamento I para os meios de produção e nomean-
do Departamento II a produção de bens de consumo necessários. A realidade é que não é necessário
recorrer a Kalecki para estabelecer um setor de Departamento III, já que isso se apresenta na obra de
Tugan-Baranovsky, que deu origem à polêmica tratada e que data de 1894, havendo sido aceito por
muitos marxistas, entre eles o próprio Kautsky. Por outro lado, não custa observar que, em Kalecki
(1977), o setor que produz bens de consumo para os capitalistas é o II, sendo o III o que produz para os
trabalhadores. Como quer que seja, não tendo importância a denominação dos setores e subsetores da
produção se estes se encontram bem definidos, aceitaremos aqui a terminologia de Oliveira e Tavares.
30 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
tulo, aplica-se apenas ao setor manufatureiro industrial, reservando para os demais
o esquema cepalino indústria-agricultura, ampliado pelos serviços e o Estado), se
combina, no capítulo II, com a organização diferenciada da empresa nos distintos se-
tores (oligopólio competitivo, oligopólio diferenciado e oligopólio concentrado, que,
mais ou menos, correspondem respectivamente aos setores II, III e I), para quase
desaparecer no capítulo III; aqui, as categorias complexas setores de produção-formas
de organização empresariais substituem o esquema setorial do capítulo I, com ênfase
na organização empresarial e sua dinâmica competitiva, e se aplicam exclusivamente à
indústria, regendo os demais âmbitos da produção o instrumental analítico cepalino27.
A própria justificativa do esquema setorial tripartite é discutível. Tavares introduz
o setor III por supor que em Marx o consumo dos capitalistas é tratado apenas “[...]
como uma apropriação e utilização de mais-valia, não necessitando ser introduzido
como um setor de produção específico, com seus problemas próprios de produção e
realização” (TAVARES, 1998, p. 32), o que reitera ao acrescentar que o “[...] gasto im-
produtivo do excedente diminui a taxa de poupança e acumulação do sistema (visão
clássica ortodoxa)” (TAVARES, 1998, p. 33). Tavares confunde, portanto, a concepção
de David Ricardo, e principalmente a de Thomas Malthus, sobre o consumo impro-
dutivo, com a de Marx, para quem o consumo improdutivo, na verdade, corresponde
a um subsetor específico da produção (IIb), com seus próprios problemas de produ-
ção e realização, participando dinamicamente da reprodução, tanto pela acumulação
que ali ocorre, na forma c + v, como por meio da circulação de mercadorias que
engendra, implicando no processo a circulação de mais-valia produzida no setor. No
entanto, apesar de propor um tratamento diferenciado do setor III, Tavares não cita
o único motivo que justificaria esse tratamento: as peculiaridades que a produção de
mais-valia ostenta como base para a apropriação de lucro extraordinário no referido
setor, que incide na tendência à acumulação em direção a ele, assim como o peso que
ele adquire na determinação das estruturas de distribuição.
Isso não é por acaso, mas corresponde à forma como Tavares analisa o desenvol-
vimento do setor III e, o que está ligado intimamente a isso, a passagem à concor-
rência oligopolista e suas estruturas de produção. Sua tese central sobre o setor III é
que ele corresponde à industrialização avançada, dentro da qual a diferenciação do
consumo dos capitalistas sobre o consumo dos trabalhadores contribui para resolver
os problemas da reprodução de capital (TAVARES, 1998). Tais problemas surgem do
fato de que o progresso técnico, ao reduzir os custos gerais de produção (ou seja, au-
27 Esses saltos metodológicos em Tavares são habituais. Assim, por exemplo, a autora adverte, no co-
meço de seu trabalho, que não trabalha com valores, mas com preços de produção, porém, ao não
considerar o problema da formação da taxa média de lucro, raciocina em função dos preços de mercado.
[...] o limite da acumulação passa a estar dado não pelas condições de ‘produção de mais-va-
lia’, mas sim pelas condições de sua realização dinâmica em escala ampliada. Vale dizer, os
problemas se deslocam para a órbita da ‘insuficiência de demanda efetiva’, colocados, porém,
em termos dinâmicos e não em termos estáticos como nos esquemas keynesianos. (TAVA-
RES, 1998, p. 47-48).
O setor III é introduzido nesse marco analítico para absorver superlucros, ou seja,
se explica pelo lado da realização, passando a funcionar em termos de uma “terceira
demanda” endógena à reprodução de capital.
Na realidade, ao transferir o “limite” da acumulação para a realização, são assumi-
das leis malthusianas sobre o consumo improdutivo28, ainda que em outro contexto,
como também uma visão de produtividade que não distingue seus efeitos na antino-
mia valor-valor de uso. O aumento geral da produtividade no sistema (ou, o que dá
28 É assim que, em sua correspondência com Ricardo, Malthus sustentava: “Não posso, de modo algum,
concordar com você quando observa que ‘o desejo de acumulação agirá sob demanda com a mesma
eficácia que o desejo de consumir’ e que ‘o consumo e a acumulação promovem igualmente a demanda’.
Confesso que não conheço, na verdade, outra causa para a queda dos lucros, que acredito que você ge-
ralmente atribuirá à acumulação, se não que o preço dos produtos cai em comparação aos gastos de pro-
dução, ou, em outras palavras, que diminui a demanda efetiva”. E adiciona, em outra carta: “De modo
algum quero negar que umas ou outras pessoas tenham dinheiro para consumir tudo o que se produz;
mas a grande questão está em saber se está distribuído de tal maneira entre as diferentes partes interessa-
das, de modo a ocasionar maior demanda efetiva para a produção futura. E defendo, expressamente, que
uma tentativa de acumular muito rapidamente, o que supõe uma considerável diminuição de consumo
improdutivo, deve frear prematuramente o progresso da riqueza ao debilitar muito os motivos [móviles]
usuais da produção”. Citada por John Maynard Keynes (1970), incluído como prólogo a T. R. Malthus,
Primer ensayo sobre la población.
32 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
no mesmo, a redução dos custos gerais), embora produza um aumento na massa de
valores de uso, não altera por si só a massa de valor criada se mantiver a magnitude
extensiva e intensiva da jornada de trabalho. No entanto, reduz nesse valor a parte
que corresponde ao capital constante e variável, e é isso que se expressa na redução
de custos (uma unidade de capital constante passa a representar uma magnitude de
valor menor, e o mesmo acontece com a força de trabalho). A esse caso corresponde
a hipótese de Tavares sobre o aumento dos lucros independentemente do comporta-
mento da mais-valia.
Consideremos mais de perto essa hipótese. A elevação da produtividade faz su-
bir a composição técnica do capital, ou seja, a relação física entre trabalho vivo e
trabalho morto, e incide sobre a massa de mercadorias produzidas, mas entendidas
apenas como valores de uso. Para que saibamos se o aumento de valores de uso cor-
responde a um aumento de valor, é necessário remeter-se à composição orgânica
do capital, isto é, a relação existente entre capital constante e capital variável, toma-
dos como expressão de valor. Suponhamos que a composição orgânica não se altera:
como se elevou a massa de mercadorias produzidas, o valor do capital empregado
na produção (variável e constante) se divide em uma maior quantidade de produtos,
reduzindo o custo unitário da produção, mas mantendo o custo de produção global;
em outros termos, a maior quantidade de produtos incorpora, em termos de custo, a
mesma massa de valor. Nesse nível, não há variação de valor total da produção; para
que isso se modifique, isto é, se eleve, o que implicaria a redução relativa do custo de
produção, o valor novo (a mais-valia), criado por efeito de uma maior produtividade,
deve ser validado a nível de mercado, o que tenderá a uma elevação, não necessaria-
mente proporcional, do lucro obtido pelo capital em cada mercadoria individual e,
portanto, um lucro total superior em relação à massa global de mercadorias. Para
o capitalista individual, que eleva sua produtividade acima da média do ramo, esse
efeito é automático, na medida em que a redução do valor individual das mercadorias
que ele produz não alterou o valor social delas; em outras palavras, esse capitalista
terá produzido uma mais-valia extraordinária convertida em lucro extraordinário
para si próprio. Se colocarmos na perspectiva do ramo, o efeito é passageiro, uma vez
que o aumento da produtividade média deverá reduzir, eventualmente, o valor social
da produção ao seu valor individual; se isso não ocorrer, e o ramo pertencer ao setor
I ou ao setor II, não haverá redução de custos nos demais ramos, o que dificultaria
as reduções de custos posteriores no ramo em questão; ao passo que, se pertence ao
setor III, os capitalistas de todos os setores serão obrigados a destinar uma maior par-
te da mais-valia ao consumo improdutivo, limitando, assim, a escala de acumulação
de capital. Em qualquer caso, e independentemente do setor a que pertence, o ramo
34 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
pital na esfera da circulação não deve nos fazer esquecer que, salvo em situações ex-
cepcionais, como as crises, essas manipulações só dão resultados se acompanharem
as tendências da produção. Os lucros monopólicos não constituem, nesse sentido,
uma exceção.
Se Tavares pode sustentar pontos de vistas distintos, é porque confunde o efeito
da produtividade na criação de valores de uso e de valor, ao tempo que não distingue
a dinâmica própria dos capitais individuais, dos ramos especiais de produção e a eco-
nomia em seu conjunto. Isso é o que a leva a explicar o crescimento desproporcional
do setor III por meio da realização, em vez de partir das condições de produção e
circulação da mais-valia. Deste modo, não percebe que o aumento da produtividade
do sistema segue dependendo da produção de mais-valia e, mais ainda, só tem sen-
tido se se expressa numa elevação dessa mais-valia sobre a base da redução do valor
da força de trabalho, que se traduza em uma redução de capital variável, relativa,
portanto, independentemente de um aumento de salário do operário individual. São
os aumentos de produtividade não canalizados nessa direção que, ao influenciar a
esfera de circulação, levam ao desequilíbrio setorial, com a hipertrofia do setor III e
dos ramos que produzem para ele.
Nas economias dependentes, o crescimento desproporcional do setor III, que
preocupa Tavares, explica-se da mesma forma e leva ao mesmo ponto de chegada,
embora seu movimento seja mais exacerbado, como ocorre com fenômenos econô-
micos nesse tipo de economia capitalista. Por um lado, o aumento da produtividade
no setor III pode se traduzir facilmente em superlucros, devido a que a produtivida-
de média dos outros setores é inferior (e quando é alta em certos ramos do setor I,
parte dela se transfere aos demais, situação em que o Estado desempenha um papel
importante). Por outro lado, devido à superexploração do trabalho, ou seja, ao fato
de que a força de trabalho é remunerada abaixo de seu valor, a necessidade de des-
valorizá-la não se impõe na mesma forma que nos países capitalistas avançados; os
mecanismos econômicos que engendram a superexploração e que a reforçam, em
particular o crescimento do exército industrial de reserva, atuam naturalmente no
sentido de elevar a taxa de mais-valia e criam, no nível político, condições para que
os trabalhadores sofram pressões no mesmo sentido. Em consequência, o aumento
da produtividade, que normalmente se traduz em superlucros no setor III, tende a
orientar-se de maneira ainda mais decidida em sua direção (e, com ela, a acumula-
ção), provocando a hipertrofia do setor. A produção de superlucros no setor III, fren-
te a um setor II que não oferece estímulo significativo ao aumento de produtividade,
e as diferenças de composição orgânica que os mediam acentuam o escoamento da
mais-valia para o setor III e enviesam toda a estrutura produtiva, traduzindo-se, no
[...] se expressa na contradição entre uma industrialização voltada para o mercado interno
mas financiada ou controlada pelo capital estrangeiro e a insuficiência de geração de meios de
pagamento internacionais para fazer voltar à circulação internacional de capitais a parte do
excedente que pertence ao capital internacional. (OLIVEIRA, 1977, p. 87).
36 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
Por outro lado, a predominância do setor III, com seu controle oligopolista sobre
a economia, leva a que aumentos de produtividade em qualquer setor sejam transfe-
ridos para ele e para o setor I das economias centrais, ao qual está vinculado (OLI-
VEIRA, 1977), embora os mecanismos para tais transferências não sejam indicados.
Isso implica extrema concentração de renda, que esteve na base do desenvolvimento
do setor III.
Sempre de acordo com Oliveira, esse padrão de crescimento conduziu à crise
de 1962-1967, que se superou se aprofundando, agravando os problemas. A crise
atual abre, portanto, duas possibilidades de estratégias: uma de superação efetiva do
problema, mediante a internacionalização do padrão de reprodução, o que supõe o
desenvolvimento do setor I; a outra é uma estratégia de simples amortização, por
meio do crescimento da dívida sustentado pelo aumento de exportações (OLIVEI-
RA, 1977).
Não reiteraremos aqui as críticas já feitas à Tavares, no sentido de que as razões
do desenvolvimento desproporcional do setor III não devem ser buscadas na circula-
ção (concentração do investimento, perfil de demanda); adicionaremos apenas que o
recurso às tendências de investimento estrangeiro no Brasil, que se orienta crescen-
temente ao setor industrial desde os anos 50, além de manter a questão no plano da
circulação (movimento de capitais), não proporciona um fator explicativo suficiente:
se é certo que esse investimento se dirigiu preferencialmente ao setor III, deve-se
explicar por que se sucedeu dessa maneira. Se descartarmos a ideia de um complô, só
resta como razão o comportamento particular que esse setor assume na formação de
lucros extraordinários. Mais interessante, por ser um problema que Tavares preferiu
deixar de lado, é examinar como, do ponto de vista de Oliveira, a estrutura setorial
da economia brasileira e suas relações interdepartamentais afetaram sua relação com
a economia internacional.
Vimos que Oliveira considera crucial a contradição entre desenvolvimento do se-
tor III sob o controle do capital estrangeiro, mas centrado no mercado interno, e a
necessidade das empresas estrangeiras de remeter seus lucros ao exterior. Neste sen-
tido, é enfático em negar a possibilidade de crise de realização no mercado interno,
convertendo o problema em um de obtenção de divisas para a repatriação de lucros
já realizados em moeda nacional. Nos encontramos, assim, com um problema de
realização de mais-valia que não tem a ver com sua mudança de forma de mercadoria
para dinheiro, mas se desdobra na mudança de forma que o próprio dinheiro deve
realizar, na medida em que não é dinheiro mundial. Essa é a razão pela qual Oliveira
contempla de passagem, como uma solução pelo menos parcial para o problema, que
38 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
notável que o Banco do Brasil passou nos últimos dez anos é apenas consequência
desse fenômeno. Isso pode perfeitamente assumir, como agora, a forma de créditos
para garantir a expansão das exportações de mercadorias; mas já se observa, junto
a isso, como a circulação de dinheiro originário do Brasil passa a assumir a forma
de investimento direito ou indireto no exterior (o que fornece uma base ainda mais
efetiva para a expansão da circulação de mercadorias).
A diversificação da circulação é o que hoje pode permitir ao Brasil reproduzir
sua dependência de maneira ampla e representa a base sobre a qual terá que resol-
ver a contradição que a nova divisão internacional do trabalho criou entre o nível
de produção e o de mercado. Marx apontou que as contradições só se resolvem se
aprofundando, ou seja, ampliando o âmbito em que podem seguir se desenvolvendo;
desde o momento em que isso deixa de acontecer, nada resta senão a crise final e de-
finitiva. Como a ideia de que o capitalismo atingiu um ponto decisivo de ruptura pa-
rece estar longe das cogitações de Oliveira, não lhe restaria senão enfrentar de forma
mais dialética a relação entre a circulação de mercadorias e de dinheiro e, portanto,
admitir que a superação da crise brasileira atual só se dará mediante uma integração
plena com a economia mundial como centro de produção e circulação de capital,
sob as três formas em que completa seu ciclo: capital monetário, capital mercantil e
capital produtivo.
3. Isso parece dar razão à crítica que Gilberto Mathias (1977) faz aos autores
que acabamos de comentar. Na realidade não é bem assim, pois que a crítica de Ma-
thias se baseia em equívocos. Em primeiro lugar, Mathias aceita a afirmação sem
fundamento de Tavares de que os esquemas da reprodução de Marx se estabelecem
sobre a base de dois departamentos (excluindo a produção de bens de luxo), quan-
do admite que “[...] a introdução de um terceiro setor nesses esquemas, que produz
majoritariamente bens de consumo duráveis, permite sem dúvida a construção de
um ‘modelo’ que melhor dá conta da evolução da estrutura industrial desses países
[dependentes]”, etc. (MATHIAS, 1977, p. 68). Esse é um erro menor. Mais grave é o
fato de que Mathias dispensa a conveniência de recorrer a esquemas para a análise
concreta em benefício da referência ao movimento cíclico do capital; em outras pa-
lavras, contrapõe o estudo do ciclo do capital, tal como formulado na primeira seção
do Livro II, ao estudo do processo de reprodução e circulação, da forma como é
posto na terceira seção, incorrendo no erro metodológico de opor entre si elementos
da construção teórica de Marx, em lugar de utilizá-la como um todo para a análise
concreta. Finalmente, e ainda mais grave, Mathias erra ao privilegiar o ciclo do ca-
29 Ver minha crítica a Pierre Salama, de quem Mathias toma a ideia, em “La acumulación capitalista y
el subimperialismo” (MARINI, 1977).
40 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
da taxa de lucro30, Mathias não parte desse fato para explicar esse desenvolvimento
(o que o obrigaria a recorrer ao conceito de mais-valia extraordinária), que é simples-
mente tomado como um dado, e se preocupa apenas com seus efeitos negativos nos
mecanismos que, do ponto de vista do capital constante e variável, combatem a queda
tendencial da taxa de lucro. Em sua análise, esses efeitos se expressam na atrofia dos
outros dois setores de produção, o que, por não ter sido revelado o comportamento
da taxa de mais-valia nos três setores, não chega a ser uma explicação e o deixa em pé
de igualdade com Oliveira e em retrocesso em relação a Tavares.
A suposição de Mathias de que os bens de produção não sofrem reduções signi-
ficativas de preços no mercado mundial, independentemente de seu custo de pro-
dução ser cada vez mais baixo, é, pelo grau de absolutização em que é formulado,
suscetível de provocar dúvidas. A teoria ensina que os aumentos de produtividade
se transferem ou não aos preços, nesses bens como em quaisquer outros, segundo
as condições da concorrência; a prática mostra que, ainda que de modo geral a re-
dução de preços desses bens seja mais lenta que a dos produtos primários e bens
intermediários, devido às diferenças de produtividade e intensidade do trabalho nos
países que produzem uns e outros (e aí radica a chave para as trocas desiguais), tal
redução não deixa de acontecer, particularmente em períodos em que se acentua a
competição por mercados. Isso se comprova facilmente se examinamos as relações
internacionais de troca no início desta década; naturalmente, a elevação dos preços
do petróleo e a subsequente agudização da inflação mundial modificaram a situação.
O essencial – e Mathias deve ter tirado as consequências de suas formulações
em relação à atrofia dos setores I e II – é que, nas economias dependentes de maior
desenvolvimento relativo, a busca por superlucros e a elasticidade da demanda que
corresponde à esfera alta de circulação orientam os investimentos ao setor III – em
30 Em vez disso, como indiquei anteriormente, atua no sentido de deprimir a taxa geral de lucro. No-
te-se que, ao estudar os mecanismos de compensação da queda da taxa de lucro, Marx aponta o desen-
volvimento da produção de luxo como um deles (MARX, 2017b). No entanto, ele está se referindo aos
ramos de produção, de bens suntuários ou não, que se baseiam no aumento da superpopulação relativa
e, por isso, graças à redução dos salários abaixo do nível médio, têm como base uma baixa composi-
ção orgânica do capital, “[...] de modo que, nesses ramos de produção, tanto a taxa como a massa do
mais-valor são extraordinariamente elevadas” (MARX, 2017b, p. 276); a equalização da taxa de lucro é
responsável por fazer com que o conjunto do capital social se beneficie dessa situação. Isso ainda é válido
hoje, mas em menor escala: o setor III ao qual nos referimos aqui não é mais constituído principalmente,
como na fase de desenvolvimento capitalista referida por Marx, de ramos de baixa composição orgâ-
nica, derivados da superestimação de produção artesanal ou semiartesanal (os produtos “feitos à mão”
de nossos dias, na indústria de chapéus, calçados, roupas em geral, por exemplo), mas de ramos com
alta composição orgânica, cuja maior parcela de valor agregado vem de sua superioridade tecnológica
e se traduz em mais-valia extraordinária. Isso é particularmente verdadeiro se nos atermos ao setor III,
conforme definido por Oliveira, Tavares e pelo próprio Mathias, ou seja, referente à produção de bens
de consumo duráveis, como automóveis e eletrodomésticos.
42 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
“simplificações abusivas”, tanto no plano teórico como no histórico. O recurso à pro-
dutividade do trabalho, como método de extração de mais-valia, não é algo que está
por vir para quando se esgota a possibilidade de extraí-la com base na superexplo-
ração, mas é justamente porque esse recurso já é amplamente utilizado que a supe-
rexploração no Brasil se agravou. É o que examinei em outro lugar, ao indicar como,
ao influenciar uma estrutura produtiva baseada na superexploração, o aumento da
produtividade do trabalho leva à aceleração do crescimento do exército industrial
de reserva, o que torna possível uma maior pressão do capital sobre as condições de
trabalho e remuneração dos trabalhadores31. O fato de, junto com isso, a burguesia
recorrer ao Estado para quebrar a resistência operária e tornar ainda mais eficaz a
ação do exército de reserva (eliminando, por exemplo, a estabilidade de emprego,
fixando tetos salariais, suprimindo o direito à greve etc.) não modifica o problema
em seus termos essenciais. Consequentemente, para que os trabalhadores brasileiros
consigam superar a superexploração, eles terão de fazê-lo – ao contrário do que pen-
sa Mathias – derrubando a economia dependente que existe no Brasil, por maiores
que sejam os avanços que o regime capitalista de produção apresenta.
***
31 Cf Dialética da Dependência (MARINI, 2011). Polemizando comigo a respeito desse ponto, Ma-
thias comete erros que não sei se atribuo à má compreensão ou má-fé. Assim, sustenta que pretendo
caracterizar “[...] o capitalismo latino-americano pelo fato de que isso [sic] dispensa o industrial de se
preocupar em aumentar a produtividade do trabalho para [...] depreciar a força de trabalho, etc” com
base em um trecho do texto acima mencionado. A frase se encontra lá, de fato, mas não como uma
caracterização geral do capitalismo latino-americano, mas da industrialização realizada até 1950, isto é,
um período que, de maneira nada feliz, Mathias chama de “reinserção” da economia latino-americana
à economia capitalista mundial. No parágrafo seguinte, no entanto, meu texto se volta às condições que
obrigam os capitalistas industriais a enfrentar a necessidade de recorrer ao aumento da produtividade
do trabalho e indica de que maneira isso ocorreu, ou seja, como se verificou a transição entre um modo
de acumulação baseado essencialmente na superexploração do trabalho a outro, em que a superexploração
é a base sobre a qual incide o aumento da produtividade do trabalho, cf. em particular p. 171 e o último
parágrafo do texto em questão.
44 CLÁSSICOS - DOSSIÊ
Apesar de sua pretensão de realizar um estudo endógeno da acumulação no Brasil,
Oliveira não leva realmente em conta a acumulação em si e sua mola vital, a explora-
ção do trabalho, e justamente por isso sua análise acaba por privilegiar as relações da
economia brasileira com a economia mundial (não importa, aqui, se se baseia em um
esquema setorial) e, finalmente, foca o problema da realização do dinheiro nacional
em dinheiro mundial como questão central; preso nessa contradição aparente, toda
a análise de Oliveira conclui em direção à solução que representaria a busca de um
esquema setorial mais equilibrado, graças ao desenvolvimento do setor I, que mal
disfarça o retorno do autor ao redil das ilusões sobre o desenvolvimento capitalista
autônomo no Brasil que alimentaram as elaborações ideológicas do pensamento de-
senvolvimentista. A crítica de Mathias, por sua vez, se circunscreve à taxa de lucro,
ela mesma resultado da concorrência, sem esclarecer as questões próprias da acumu-
lação enquanto tal, ou seja, como fator de produção imediato, não indo ao fundo do
problema. Consequentemente, Mathias não só incide no desvio autonomista de Oli-
veira, como, ao confundir a superexploração do trabalho com extração de mais-valia
absoluta, e esta com um determinado período histórico, alimenta ilusões na entrada
do capitalismo brasileiro em uma fase em que este não se distinguiria essencialmente
do capitalismo tal como se desenvolveu nos grandes centros imperialistas.
Os três autores analisados encontram-se, no final do caminho, destacando a im-
portância do Estado em abrir caminho para as tendências progressistas que eleva-
riam o desenvolvimento capitalista brasileiro a um patamar superior: reorientação
das tendências do mercado, maior equilíbrio entre os setores da produção, passagem
para o estágio da mais-valia relativa etc. O esforço de Mathias por recolocar o pro-
blema do Estado, ressaltando que sua ação não escapa às leis gerais que regem o capi-
talismo brasileiro, ainda que represente um passo adiante em relação ao pessimismo
de Tavares e constitua a parte mais interessante e bem escrita de seu trabalho, não
é suficiente para situá-lo de maneira correta. E não é pelo fato de que essas leis não
estão claramente estabelecidas em sua análise, que salta das relações relativas à teoria
do valor para aquelas relativas à teoria do lucro, sem se deter nas relativas à teoria
da mais-valia e da acumulação de capital. No entanto, esse vínculo é essencial para
uma adequada compreensão do capitalismo brasileiro e do papel do Estado em seu
desenvolvimento.
O marxismo é uma teoria complexa, que permite uma análise extremamente rica
das realidades concretas a que se aplica. O esquematismo e a aridez que o leitor en-
contra nesse ensaio não invalidam essa proposição: nosso objetivo, como apontamos
no início, consistia apenas em verificar a possibilidade de utilizar os esquemas de
reprodução na análise concreta. Se, quando considerados à luz da produção e rea-
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