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Olga Dueñas. Intermezzo 11. Acrílico y tinta sobre masonita e Plexiglas. 45x60cm. 2017.

Volume nº 14- Ma1o/2024 - ISSN 2618-4109

DE PSICANÁLISE DA
FEDERAÇÃO AMERICANA

ORIENTAÇÃO LACANIANA
UMA VOLTA MAIS
COMEÇAR A SE ANALISAR.
REVISTA FAPOL ONLINE
LacanXXI
LacanXXI REVI S TA FA P OL ON LI N E

Revista Eletrônica da FAPOL

Federação Americana de Psicanálise de Orientação Lacaniana

ISSN 2618-4109
Vol. 14 - Maio de 2024

Diretora responsável:
Mónica Febres Cordero

Assessor:
Iordan Gurgel

Staff:
Adolfo León Ruiz, Beatriz García Moreno, Mercedes Iglesias,
Paula Kalfus, Mariana Schwartzman, Gustavo Moreno, Flavia Cera,
Cleyton Andrade, Jussara Jovita da Rosa

Equipe de tradução:
Marita Salgado, Silvina Rojas, Marita Salgado, Silvina Rojas,
Ana Beatriz Zimmermann Guimarães, Gustavo Ramos da Silva
Késia Ramos, Paola Salinas, Pablo Sauce, Maria Rita Guimarães
Giselle Moreira, Diego Cervelin, Daniela Nunes Araujo, Márcia Bandeira, Juan Pablo
Bitar, Silvina Molina, Taina Rocha, Paula Nocquet.

Web designer:
Bruno Senna

Bureau FAPOL:
Ricardo Seldes, Presidente
Fernanda Otoni, Vicepresidenta
Mónica Febres Cordero, Secretaria

Conselho da FAPOL:
Presidente FAPOL: Ricardo Seldes
Presidente EOL: Manuel Zlotnik
Diretor EOL: Gabriela Camaly
Presidente NEL: Ana Viganó
Conselheiro NEL: Gladys Martínez
Presidente EBP: Maria do Carmo Dias Batista
Diretor EBP: Patrícia Badari
Presidente AMP: Christiane Alberti
LacanXXI
REVI S TA FA P OL ON LI N E
LacanXXI
REVI S TA FA P OL ONL IN E

SUMÁRIO
EDITORIAL 6
Mónica Febres Cordero

ENTREVISTAS DA EOL
ENTREVISTA COM MAURICIO TARRAB 10
Paula Kalfus, Mariana Schwartzmann e Gustavo Moreno

ENTREVISTA COM MARCUS ANDRÉ VIEIRA 13


Por Mariana Schwartzman e Gustavo Moreno, do Staff de Lacan XXI

ECOS DA EBP
ANALISTA PRESENTE! 20
Iordan Gurgel

REVERBERAÇÕES DO XI ENAPOL: AMOR DE TRANSFERÊNCIA, REAL E CORPO 23


Jussara Jovita Souza da Rosa

“NADA SERÁ COMO ANTES, AMANHÔ? 26


Renata Mendoça

AS MARCAS NO SUJEITO 29
Gustavo Ramos

A MESA A QUE NÃO ASSISTI 31


Jorge Forbes

ECOS DA NEL
TRÊS PERGUNTAS A CLARA HOLGUÍN 34
Mercedes Iglesias e Beatriz García Moreno e Adolfo Ruiz

EFEITOS DE SABER NA EXPERIÊNCIA ANALÍTICA 36


Mercedes Iglesias

AS ENTRADAS EM ANÁLISE: ENTRE A URGÊNCIA E A PACIÊNCIA 39


Beatriz García Moreno
LacanXXI
RE V I STA FA P OL ONL INE Editorial
LacanXXI
R E V ISTA FAPO L O NL INE

Editorial
Mónica Febres Cordero

Nós que fazemos a Lacan XXI, não queríamos que o XI ENAPOL, “Começar a se ana-
lisar” (Buenos Aires, setembro de 2023) passasse rapidamente seguindo o ritmo verti-
ginoso dos tempos. Quisemos fazer nossas as palavras de Ricardo Seldes para alargar o
tempo, dar lugar para a reflexão, e conseguir extrair consequências do acontecimento
Enapol. O staff da revista, assim como nossos convidados, deteve o tempo para dar uma
volta a mais, outra leitura das intervenções nas mesas e nas conversações que se ocor-
reram no Enapol.

Agradecemos a cada autor, a cada resposta, assim como o cuidadoso trabalho dos
tradutores. Traduzir, não é uma leitura a mais?

Conversação inacabada com Ricardo Seldes e Fernanda Otoni

Retomo ecos e conversações com Ricardo e Fernanda, conversações abertas, em


curso, não acabadas. Retomar, por exemplo, a reflexão de Ricardo: extrair consequên-
cias e não deixar os saldos dos Encontros, como o XI Enapol, adormecerem (o que res-
ta?). Isso daria lugar a novas conversações. Para Ricardo, falar “baixinho” a língua do
Outro permite fazer-nos ouvir, possibilita a transferência com a psicanálise. Fernanda
sustenta a importância da conversação federativa entre as três Escola que formam a
Fapol e propõe que o federativo faça laço de cada lalíngua em direção a uma língua co-
mum. As conversações dentro da Fapol permitiram a percussão das ideias, assim como
os avanços clínicos em cada instância. Maneira única com que a psicanálise subverte.

Entrevista de Mauricio Tarrab, por Paula Kalfus, Gustavo Moreno e Mariana


Schwartzman

Ressalto a última pregunta da entrevista, a que concerne à formação do analista e


que inclui um tempo projetado ao futuro: “a posição aberta ao que virá”. Ao responder,
Tarrab destaca o dispositivo analítico como “… o lado da formação que depende do que
se transmite na experiência analítica”. Orientação ao que virá que toca os três pilares da
psicanálise… a história, a repetição e a estrutura.

Entrevista de Marcus André Vieira, por Mariana Schwartzman e Gustavo Moreno

Mariana Schwartzman e Gustavo Moreno fazem uma entrevista com Marcus André
Vieira que, como ele mesmo diz, permite “falar um pouco mais”. A meu ver, uma bela
entrevista, que é uma leitura que permite esse ganho, esse “pouco mais”, sobre os te-
mas trabalhados.

Iordan Gurgel retoma os ecos do Enapol em seu texto “Analista presente”. Discute
a política da psicanálise lacaniana em instituições e conclui: “Assim, o uso da psicanáli-
se nas instituições, ao respeitar a singularidade do sujeito… produz efeitos significativos

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LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

sobre os saberes estabelecidos. É uma forma do discurso analítico se submeter ao dis-


curso do mestre e também subvertê-lo” 1.

Em “Reverberações do XI Enapol: amor de transferência, real e corpo”, Jussara Jo-


vita Souza da Rosa recorda que o XI Enapol convidava a pensar o que e como se instala
hoje em dia esse misterioso amor chamado transferência. Percorre, entre outros, um texto
de C. Leguil e propõe considerar na prática analítica a transferência vinculada à realidade
sexual do inconsciente ao corpo e ao real.

Gustavo Ramos em “As marcas do sujeito” faz um interessante percurso e anota:


“Cernir o ponto de gozo do Outro sobre o sujeito não implica em vitimizá-lo… ao contrário,
faz com que o ser falante possa se a ver com aquelas marcas deixadas pelo encontro com
o Outro e criar algo novo a partir disso”.

Renata Mendonça escreve “Nada será como antes, amanhã”?2 Toma o tema de uma
canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos para introduzir um tempo que se anteci-
pa: o amanhã já é hoje. Nomear-se negro pode estar no romance familiar, no fantasma, na
história do sujeito. O analisante, ao dizer sobre seu corpo negro, faz furo, dilui o Outro, da
verdade… do que é ser humano. Conclui: “’nada será como antes’ é um momento frutífero,
se o psicanalista não se faz especialista da desidentificação”.

Três perguntas a com Clara Holguín por Mercedes Iglesias, Beatriz García Moreno
e Adolfo Ruiz

Em relação às perguntas da entrevista, anotamos algumas resposta de Clara para a


Lacan XXII. O sujeito se confronta com um real, fora de sentido, fora do saber, diante do
qual se solicita estabelecer um laço de palavra “…enodar essa urgência ao campo do Outro,
mas não de qualquer modo”. Propõe que o sintoma se usa, o que introduz a ideia de uma
“medida” singular.

No texto “Efeitos de saber na experiência analítica”, Mercedes Iglesias retoma a


problemática do saber no percurso analíticos e através de uma leitura fina e atenta aos
detalhes, refere-se a diferentes intervenções durante o Enapol que trataram o tema.

Em “As entradas em análise, entre a urgência e a paciência”, Beatriz Garcia Moreno


se pregunta se os tempos da urgência e da paciência nos quais ela se detém permanecem
durante o trabalho analítico. Existem diferentes tipos de urgência, sustenta, ainda que seja
uma forma particular dela que leva à análise.

No seu texto “A mesa a que não assisti”, Jorge Forbes escreve sobre o (inevitável?)
desencontro em cada encontro.

1 Miller, J. A. Questão de Escola: Proposta sobre a Garantia. Opção Lacaniana online nova série, n. 23, julho 2017.

2 Música de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos (1972). O ponto de interrogação se acrescenta para dizer
que amanhã já é hoje.

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Olga Dueñas. Trémolo 11. Acrílico y tinta sobre madera e Plexiglas. 36x57cm. 1970.
LacanXXI
RE V I STA FA P OL ONL INE Entrevistas da EOL
LacanXXIR E V ISTA FAPO L O NL INE

Entrevista com Mauricio Tarrab


Paula Kalfus, Mariana Schwartzmann e Gustavo Moreno

Como membros da equipe do Lacan XXI, nos interessamos pela apresentação de Mau-
ricio Tarrab “As primeiras entrevistas desde o último ensino”, apresentada no último Ena-
pol realizado em Buenos Aires em setembro de 2023.

Para promover a conversa entre nós, convidamos Mauricio para expandir alguns eixos
que consideramos importantes para nossa formação. Dessa discussão surgem os seguin-
tes esclarecimentos que o autor teve a gentileza de compartilhar conosco.

1. Como pensar o real no início, na urgência, sob a forma de inibição, sintoma e


inércia - e não apenas na forma clássica de angústia? E, por outro lado, como pensar
nisso, neste real no começo de uma análise, mas do lado do analista como impotência?

Vocês perguntam... como pensar o real...? Aqui está toda a complexidade da psicaná-
lise quando considera o real. Falando de começos, deveríamos começar, em relação à sua
pergunta, a nos questionar como JAM faz em seu curso “O real na experiência analítica”. Ali,
é posto de início que a pergunta “o que é o real?” é imprópria, a meu ver porque remete ao
real como conceito e não como experiência. Ao contrário, e isso está no nome desse curso,
a questão é “onde está o real na experiência analítica?”. Eu dizia em minha intervenção so-
bre as primeiras entrevistas, que não via por que deveríamos descartar a ênfase que tomou
em nossa formação e em nossa prática o eixo interpretação – transferência – retificação
subjetiva – abertura do inconsciente – histerização, já que isso é colocar em ato o discurso
analítico e o SSS sem o qual não há análise. Pode haver outras coisas, mas não uma análise.
E eu dizia que hoje adicionamos, que deveríamos adicionar, uma pergunta marcada pelo
último ensino: onde está o real em tudo isso?

Se a primeira vertente tem como referência o sujeito, o sujeito do inconsciente e o Ou-


tro, a segunda indica outra coisa. Isso se verifica na urgência, claro, no que urge ao sujeito,
e não apenas no começo. Mas principalmente no começo.

Onde está o real no começo? JAM responde de maneira simples e clássica, ou se quise-
rem, freudiana: esse real se apresenta não só como urgência e como angústia, mas também
como inibição e como sintoma. E é interessante pensar dessa maneira, claro. Especialmente
porque atrás dessa simplicidade há um desenvolvimento substancial em relação à nossa
prática. Parece elementar, mas para chegar lá, para formular uma clínica que coloca seu foco
no real, foi necessário ir além da ideia de que o trauma era o único real a discernir na expe-
riência. O trauma é o “primeiro nome do real na Psicanálise” (Sem XI), mas apenas o primeiro.

Mas como se chega à evidência de que há um real que não é apenas definido como
trauma? Para isso, Lacan teve que enfrentar o fato de que em sua prática, ele diz assim “na
minha prática e na de vocês” o sentido escapa. Esse é o limite do freudismo. De certa for-
ma, isso obrigou Lacan, se me permitem dizer, a buscar obsessivamente aquilo que, apesar
de sua incidência, de sua insistência, de sua persistência, não poderia ser capturado pelo

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sentido e com isso renovou uma vez mais o ensino de Freud. Esta questão persiste até hoje:
como tocar aquilo que escapa ao sentido e que é o núcleo da clínica e da prática. E isso no
começo da análise se capta como inibição, como sintoma e como angústia.

E do lado do analista?, nessa aula JAM diz que isso se apresenta como impotência. Isso
lhes parece muito exagerado? No entanto, ele refere isso de maneira precisa a quando o
analista encontra fechado o acesso ao inconsciente. Entendo que com isso ele quer fazer
o analista também responsável por esse fechamento. Eu dizia em minha intervenção que
faríamos bem em não responsabilizar rapidamente esse fechamento à época, simplifican-
do sua complexidade, a complexidade da época e a do psicanálise. Os analistas constroem
também variados argumentos e gambitos: que a época, que não vêm para se analisar, que
o capitalismo, de acordo com suas preferências ou suas sutilezas... ou sua impotência. O
problema é que com isso deixa do lado de quem consulta a responsabilidade pelo fecha-
mento do inconsciente, quando por seus princípios e pelos do psicanálise, deveria assumir
essa responsabilidade também como sua. Claro que isso não significa que não haja um
impossível que não ceda, nem ao analista Orfeo (seminário XI) que convoca com sua arte
essa abertura, nem ao que tenta perturbar essa defesa.

2. Pode expandir as consequências de Arcachon em relação à sua incidência na


prática da psicanálise, tanto nas entradas quanto na direção da cura?

As Conversações de Arcachon e Antibes foram fundamentais e produziram a abertura


para novas perspectivas tanto na concepção e abordagem das Psicoses como em renovar
a prática. A partir daí, foram colocadas em tensão a clínica estrutural e o que chamamos
de “uma clínica continuista”. Digo tensão e não oposição. Não há uma clínica continuista
versus uma clínica descontinuista, isso não se sustenta para nós. Não há uma ou outra.
Desde a Conversação de Arcachon até hoje, a clínica continuista não fez desaparecer nem
a clínica estrutural, que foi resituada em suas certezas com enorme ganho; nem a clíni-
ca sob transferência, que agora favorece uma pragmática das estabilizações singulares e
produz abordagens inéditas aos sintomas contemporâneos. Como aponta Miller “O único
ponto verdadeiramente interessante é prático: como fazer para que a evolução de um
sujeito seja mais contínua que descontínua”. E isso vale tanto para o começo quanto para
o desenvolvimento de uma análise.

A paradoja irônica da hipótese continuísta, de uma clínica universal do delírio - todo


mundo é louco - é que leva a clínica lacaniana em direção ao singular. Por quê? Porque o
que importa não é apenas o “para todos” desse “todo mundo”, o que nos importa é como
cada um é louco, tendo a chance de inscrever sua singularidade no universal.

3.Quais caminhos ou dispositivos considero mais adequados para que, nas Escolas
da América, se promova uma formação que inclua a “formalização lógica” e a “posição
aberta ao que virá”?

Qual dispositivo considero adequado para isso?... o dispositivo analítico. É o lado da for-
mação que depende do que é transmitido na experiência analítica. Isso depende dos ana-
listas, de como os analistas conduzem sua prática, não das Escolas. As Escolas fazem o seu
papel e fazem muito bem ao incentivar o controle e contrastar as experiências. Acaso não

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é isso que nos ensinam e às vezes nos surpreendem as conversas clínicas onde os casos,
além de sua problemática, mostram a posição dos analistas nas intervenções e em como
conduzem a cura? Isso também está no que produzem os testemunhos dos AE como en-
sinamento, ao transmitir o coração da experiência e que mostram a prática daqueles que
foram seus analistas. Resumo: a “realidade efetiva”, a Wirklichkeit, que a comunidade de
experiência vai construindo nas Escolas ao redor da prática, dirá se essas duas vertentes se
conservam, convergem ou divergem.

As vias por meio das quais isso se obtém não posso resumi-las de outra forma senão
dizendo: mais Psicanálise!!!!

Mas esclareçamos também que nenhum dispositivo garante não ficar entre dois dis-
cursos, nem garante que o que fazemos seja psicanálise e não psicoterapia.

Nossa formação é atravessada tanto pela formalização lógica quanto pelo que vocês
extraíram do meu texto como “posição aberta ao que virá”.

A questão é que não é fácil livrar-se de Freud. Em “O últimíssimo Lacan”, Miller diz: “Na
análise, temos que tomar as coisas como se nada estivesse estabelecido, como se tudo
estivesse por ser obtido”. Eu levo isso a sério. E essa é uma posição aberta ao que virá, mas
ao mesmo tempo, se radicalizarmos essa orientação, vemos que isso questiona três pilares
fundamentais aos quais estão sujeitos o psicanálise e os psicanalistas: a história, a repeti-
ção e a estrutura. E então me parece que uma das perguntas importantes que temos que
fazer quando passamos de Freud é o que fazemos com a história, com a repetição e com
a estrutura.

Fomos formados na exigência de extrair a lógica do caso, e pelo aviso de que um psi-
canálise não é apenas um «conte-me sua vida».

Tradução de Juan Bitar

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Entrevista com Marcus André Vieira1


Por Mariana Schwartzman e Gustavo Moreno, do Staff de Lacan XXI

Lacan XXI: Em seu texto você ressalta que os semblantes, inclusive o falo e o Nome de Pai,
atualmente estão desnaturalizados e que todos eles –no contexto de “todo o mundo é louco” –
são defesas frente ao real. Entretanto, você nos esclarece que hoje em dia, mais do que nunca,
devemos estar mais atentos e ser respeitosos com os semblantes. Você perguntae: com qual
bússola um semblante pode ser tocado? E conclui a respeito da importância de que, tanto o
diagnóstico como a interpretação, além dos significados, toquem o que não se pode dizer,
nomeando-o.

Gostaríamos de conversar a respeito desses pontos, sobre a importância de respeitar os


semblantes hoje em dia e sobre essa bússola de nomear o que não é dito nem significado para
“fazer um furo”.

Marcus André Vieira: Fico alegre pelo interesse em meu texto, sobretudo porque, quando
se trata de um texto para uma apresentação, o fazemos de forma muito condensada. Poder
falar um pouco mais sobre ele é algo que me agrada muito.

A primeira pergunta é sobre os semblantes. A tese geral é que já não temos um semblante
que pareça real. O falo, por exemplo, o órgão mesmo, assinalava um poder real, biológico, dos
homens sobre as mulheres e dos pais sobre as crianças. Hoje, muitos querem recuperar esse
poder, mas esse semblante fálico está desnaturalizado, não pode mais passar pelo semblante
de raça, da natureza, não constitui mais um semblante no real. Quanto ao Nome do Pai, não
o colocaria como um semblante: é o ponto de crença em algo da tradição que se associava
ao falo como semblante, para produzir esse efeito de falo, como se fosse o semblante de um
poder real. Os dois não estão mais juntos porque, como o semblante do pai já não funciona,
como a crença na tradição se foi, o falo fica como um semblante entre outros.

Novos semblantes

M.A.V.: Como fazer uma diferença entre os semblantes? Como estabelecer a diferença
entre o que é um semblante e o que é uma imagem? O semblante tem um pé no imaginário,
mas com um ponto de real. Por exemplo, o pai se apoiava no semblante do trovão, a voz do
trovão. E isso se enodava ao imaginário do poder, de um homem forte. Isso fazia um nó, mas
já não temos mais esse nó. Quando chegamos em um ponto no qual já não existe um sem-
blante de exceção, temos que procurar algumas diferenças. Talvez fazer uma diferença entre
os semblantes que se apresentam como sendo da natureza, um pouco mais do lado do real, e
os outros que se sustentam apenas pelo imaginário.

Assim, por exemplo, pessoas que tiram fotos de suas férias em Bali,e água azul e areia
branca..., são imagens do “eu ideal”. Mas quando falamos, por exemplo, do semblante da “terra

1 Marcus André Vieira é AME da Escola Brasileira de Psicanálise e Doutor pela Universidade de Paris VIII. Foi
AE no período 2012-2015.

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arrasada”, do deserto, é um semblante de destruição, de devastação, que está muito presente


como semblante distópico e hoje tem uma urgência muito importante no real.

Proponho distinguir entre esses dois semblantes. Há novos semblantes que estão em
uma posição nova, que ordenam toda uma série de ficções. Entre eles há aqueles que não são
apenas formações do eu ideal, são quase sempre coisas mais fora de sentido e sabemos que
são esses que têm uma função mais pregnante no tratamento. Isso poderia ser uma bússola
para navegar entre os semblantes em nossa clínica.

Lacan XXI: Você destacou diferenças a partir de semblantes que têm um pé no real e
outros que não o têm.

M.A.V.: Sim. Nosso mundo está cheio de imagens. Mas os semblantes que capturam
um pouco de real são os mais interessantes.

Um exemplo bem clássico, quando o homem dos Ratos diz a seu pai de “sua Mesa!”
como um insulto, isso é o que eu chamaria de um semblante em um ponto de real.

Lacan XXI: E como isso se relacionaria com o tema da nomeação?

M.A.V.: O que o Homem dos Ratos faz em criança é um insulto, mas é usado como um
semblante ou um nome? É um ponto da teoria que é um ponto de passagem, e esses são
sempre os pontos mais difíceis. Há um ponto de passagem quando um semblante atua
como S1, ou nome.

A passagem é difícil, porque temos a ideia de que os significantes são palavras, são
escritos, e que a escrita não tem nada a ver com o imaginário. As coisas vacilam quando se
assume que há semblantes que habitam a escrita.

Temos toda uma teoria do nome próprio, feita por Lacan e desenvolvida por Jacques-
-Alain Miller. Mas, pensamos o nome próprio na língua e fazemos como se a natureza, o
imaginário, estivesse fora do simbólico da língua. Bem, creio que há semblantes que fun-
cionam como nomes: é um ponto entre o imaginário e o simbólico, muito complexo. Há
semblantes que funcionam como nomes próprios, há imagens que às vezes funcionam
como nomes próprios. Mas, para que o sejam, têm que perder seu sentido. No que diz
respeito à língua, em certa medida, todos os significantes são nomes próprios, e em si não
têm sentido, mas no jogo entre eles, sim. Para nós, um nome próprio é um nome que está
expulso da cadeia. Mas isso é do ponto de vista da cadeia de linguagem. Se olharmos do
ponto de vista do imaginário, há coisas que tem sentido, que perdem o sentido e é por isso
que pertencem ao registro do nome. “A Rainha da Inglaterra”, não é tão importante pensar
em quem ela é, nem em seu nome, é um semblante com valor de nome próprio.

Semblantes que capturam o corpo


A aplicação clínica disso é que há semblantes que funcionam como nomes, esses são
talvez mais interessantes que os outros. No meu trabalho, por exemplo, com adolescentes
que estão com milhões de imagens o tempo todo, sentidos e mais sentidos, cada vez um

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novo, quando percebo um, um desses semblantes, por exemplo: de um amigo que lhe
disse “o bom agora é a música trap” - o trapeiro é um homem sofrido que fala da dor com
violência, é um semblante, muitos semblantes que falam no trap -. Quando, para um ado-
lescente, por exemplo, o trap o faz pensar ou captura seu corpo de uma maneira que os
outros não fazem, lhe dou preferência, para fazer disso um nome.

Lacan XXI: Quando você falou de como se orienta na clínica, localizou certa dimensão
do corpo, como esses semblantes tocam o corpo de um modo diferente.

M.A.V.: Sim. O trap por exemplo é todo um conjunto de semblantes e há nomes pró-
prios no trap. Um jovem, um adolescente, só por escutar o trap, tem todo um conjunto de
sentidos e alguns podem terminar ressoando como nomes próprios. “Eu sou do trap” é um
pertencimento e, ao mesmo tempo, não somente isso. Ele me disse: “eu sou o beatbox do
trap”, que dá o ritmo, ou seja, com o seu corpo. Não digo que o melhor seja ter este cru-
zamento de semblantes como nome, mas comparado a outros, na profusão de sentidos e
imagens, esse talvez possa ser alguma coisa. Semblantes de exceção, alguns que conse-
guem captar uma cadeia da vida.

Se nós, lacanianos, tendemos a tomar os significantes como fora do sentido, sobretu-


do a partir do último ensino de Lacan, em nosso tempo acontece o contrário. As pessoas
acreditam que tudo que se diz tem uma referência, só se fala de coisas concretas, isso é o
que se pensa. Essa é a nossa dificuldade. Costumamos dizer que temos de trabalhar com
a equivocidade para que uma significação fixa possa oscilar. Concordo, mas se fazemos
apenas equívocos para alguém que só acredita na univocidade, isso nem sempre funcio-
na. Por isso, podemos também pensar que para ter o mesmo efeito podemos procurar os
semblantes que fazem furo. O semblante não faz sentido, mas tem um pé no real. Voltando
ao jovem do trap, o que funcionou foi falar de um tipo de trap, ele estava falando desse tipo
e eu lhe perguntei o que esse tipo tinha. Disse “não sei o que tem, mas é uma beat trap”,
isso permitiu localizar um gozo próprio. Com esse furo há quem tenha um gozo que não se
explica. Isso serviu ao jovem para poder situar-se a si mesmo como tendo coisas que não
sabe explicar. Um gozo que faz furo e que não faz catástrofe, é apenas um estilo de alguém.
Isso sem falar de estilo ... apenas dos semblantes do trap.

O analista tem que encontrar os significantes que interpretam


M.A.V.: Também há muito o que falar do tema do nome próprio em termos mais cole-
tivos, como fator aglutinador de povos ou pessoas para com isso, fazer um efeito de grupo.
É todo o trabalho de Laclau. Se há uma exceção que ordena um grupo, essa exceção não
precisa ser necessariamente um líder, pode ser apenas um nome. Encontrar os nomes que
produzem efeitos de coletividade é uma arte, mesmo hoje em dia. Para dizer como Èric
Laurent, o analista deve encontrar os significantes que interpretam. Mas o que é interpre-
tar senão encontrar o significante que produz o efeito de coletividade? Há duas coisas aqui:
interpretar é um significante que normalmente tem o efeito de separação, de corte. Mas,
quando se trata de uma multidão que não tem corpo, este significante pode ter um efeito
de união, uma interseção entre pessoas que se reconhecem pelo mesmo nome, para que
cada um possa fazer a sua separação a partir desse significante. Este efeito de coletividade

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LacanXXIR E V ISTA FAPO L O NL INE

não é diretamente um efeito de interpretação, mas me parece que ser necessário primei-
ramente o furo, para depois haver uma desidentificação.

No Brasil, por exemplo, a população indígena é a que mais cresce na população em


geral, porque as pessoas estão começando a dizer “eu sou indígena”, com o nome de sua
tribo, “eu sou krenak”. E quando se diz “eu sou krenak” cria-se uma população que não
existia, todos os krenaks. Este significante krenak provoca um efeito de separação, porque
ninguém é o mesmo krenak, não é um significante identitário. Não é “todos negros” ou
“todos indígenas” é “todos krenak”. Estamos vendo surgir coletividades assim, com nomes
próprios de gente que já morreu, os avós, por exemplo, mas com os nomes com os quais
os avós se reconheciam, faz-se uma coletividade dos novos indígenas. Era isso que eu tinha
na cabeça quando falei sobre os nomes que fazem coletivos

O nome e a democracia

Lacan XXI: Uma pergunta que queremos lhe fazer, com base em uma das afirmações
do seu texto é: como essa escolha de nome que começa a aparecer nas narrativas amerín-
dias abre uma possibilidade de democracia e não de ressentimento fascista?

M.A.V.: Há dois votos clássicos, digamos, se pode votar na direita ou na esquerda, sabe-
mos onde estamos com isso. Os nomes que vêm da direita ou da esquerda. Dos da esquer-
da diz-se: “Já conheço tudo isso, são os velhos políticos, não quero”, dos de direita diz-se a
mesma coisa. Portanto, não há votos pelo sistema democrático de direito. Os votos para a
extrema-direita são geralmente dirigidos a um nome que representa o ódio antisisstema;
você pode escolher o nome próprio de alguém antissistema que disso não tem nada, so-
menee suas declarações antissistema, como Milei. Ou podemos escolher um nome que
pode não ser um nome antissistema, mas um nome de um novo povo. Um trabalhará pela
destruição, o outro terá que construir algo, se eu acredito que o nome próprio dessa nova
multidão pode ser pela democracia. O que proponho é que há também um voto com este
nome que produz multidões, povos, coletividades e que não sabemos muito bem o que
representam. Poderia ser interessante.

Quando escrevi o texto, estava pensando nessa ideia a partir da perspectiva dos ame-
ríndios, mas também há o que os negros estão fazendo, no Brasil pelo menos, que é en-
contrar nomes próprios que não têm signficiado, mas que passam a representá-los... Cha-
mam-lhes nomes da ancestralidade. Tudo isso ainda é muito novo.

Se falamos sobre isso, é porque temos a sensação de que há algo para pensar a partir
da psicanálise também, o que não é tão fácil.

A falência do global

Lacan XXI: É uma perspectiva que Miller esboçou em “A grande conversação” apon-
tando que, finalmente, a globalização não existe, não aconteceu, mas que os efeitos de
rejeição e segregação foram impostos. Isso parece se apresentar como uma resposta sin-
tomática a esse fato. A recuperação do nome, esvaziado de sentido, em um momento de
empuxo a apagá-lo no pós-global.

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LacanXXI
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M.A.V.: Exatamente, a falência do global, é isso que Miller assinala. Em “O Outro que
não existe...” lembro-me que tanto Miller como Laurent falavam dos United Symptoms of
America, no sentido de que os Estados Unidos eram um conjunto de tribos, de grupos,
cada um marcado por um sintoma. E é verdade que se pode dizer que a falência da globa-
lização é a explosão da tribalização, como faz Maffezolli. Apenas tribos, umas contra as ou-
tras. Esse é o lado ruim da coisa, você pode pensar no lado bom, se ele existe, sem nostalgia
do tempo em que havia somente uma grande tribo. Existem tribos e tribos. Há tribos que
se criam em torno do gozo de um líder, uma seita. Há tribos que se criam com pequenos
líderes. Há tribos que se que criam com a prática da violência. E há tribos que se sustentam
com nomes próprios e que talvez sejam interessantes. Vale a mesma coisa que vale para os
semblantes. A tribalização do mundo não é interessante, mas uma vez que estamos nisso:
quais são as tribos interessantes e as menos interessantes? E a nossa tribo também... como
caminha a nossa tribo? (risos)

O furo de uma prática

Lacan XXI: Essa poderia ser a última pergunta: como você considera que nossa tribo
caminha?

M.A.V.: É um grupo muito forte, visto de fora. Ouço muitos jovens que dizem: “a AMP é
a nova IPA”, ouço-os porque estão fora e vêem a AMP como algo muito grande, muito forte,
muito sólido. É verdade... somos um grupo grande, sólido e forte, especialmente nos países
latinos. E essa tribo tem nomes próprios que a sustentam. Mas, ao mesmo tempo, se sus-
tenta mais pelo furo de uma prática. Há um ponto de furo de uma prática, que não se sabe
o que é totalmente. Isso parece-me ser algo que devia ser exportado. Não sei há quantos
anos estamos aqui... Quais são as condições para que uma comunidade de praticantes
tenha coesão e coerência suficientes para sobreviver como tal? Como tivemos condições
de trabalhar juntos por tanto tempo e em tantos lugares sem ser a partir do Nome do Pai?
é uma investigação que segue. Há algo da prática... o Passe? Sim. E seríamos a única co-
munidade com algo assim? Como pensar isso nas tribos de hoje? Existe algo assim? Seria
interessante ver se existe uma comunidade semelhante, vale a pena estudá-la... É a ideia
de sair um pouco de nós mesmos, passar pelo Outro do nosso tempo, para nos olhar.

Lacan XXI: Muito obrigado, Marcus!

Tradução: Maria Rita Guimarães


Revisão: Paola Salinas

17
Olga Dueñas. Embarcación. Acrílico y tinta sobre madera e Plexiglas. 84x100cm. 1980.
LacanXXI
RE V I STA FA P OL ONL INE
Ecos da EBP
LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

Analista presente!
Iordan Gurgel

A conversação1 realizada durante o XI ENAPOL sobre “Primeiras entrevistas em dife-


rentes dispositivos de atenção”, repercutiu principalmente para àqueles que praticam a
psicanálise nas diferentes instituições do Outro social. Em resumo, podemos dizer que três
questões orientaram nossas discussões (– O que esperar do encontro com um analista?
– como orientar-se pelo real desde as primeiras entrevistas? e, – que efeitos aí se produ-
zem?), e continuam instigando nossas reflexões.

A política da psicanálise, a partir de Lacan, é tratar, também nas instituições, o real em


nossa prática analítica aplicada à terapêutica. “A neutralidade do analista não se refere a
não assumir a direção do tratamento ou aceitar a política institucional; ela é política e se
refere à neutralização do supereu e do eu do analista”2. É não julgar, não aconselhar. Os
efeitos de sua prática estariam na dependência da disponibilidade do analista, que seria
produto da psicanálise pura e consequência do resultado de sua formação. Para que acon-
teça a aplicação da psicanálise na instituição, é necessário que o analista se disponha a
tanto. A política da disponibilidade do analista é servir para muitas coisas segundo condi-
ções precisas; não há regras ou critérios gerais. É a função multiuso do analista, que descar-
ta o modelo standard de aplicabilidade da psicanálise: ali onde estavam critérios e normas,
surge a ênfase na formação e na capacitação daquele que vai se oferecer como analista de
uma outra experiência3.

Neste contexto, não se trata, então, de indicar ou contra indicar e sim de se oferecer, de
acolher o impossível de suportar experimentado pelo sujeito. É a oferta do discurso analí-
tico, onde o analista opera a partir de sua dessubjetivação, de um não saber, para dar lugar
à surpresa, ao aleatório, ao acontecimento imprevisto, ao real como impossível de prever.

Sabemos que não há análise em uma instituição, mas se produzem efeitos a partir do
encontro com um analista. Neste sentido, o desafio maior é como se orientar pelo real que
podemos entender que toma como ponto de partida, aplicar o modo de dizer próprio da
psicanálise: introduzir o mal-entendido e submeter-se às posições subjetivas do paciente
para que o encontro se realize. Nesta perspectiva, algo da transferência deve se manifestar
e, a partir do consentimento possível do sujeito, possa se produzir algum efeito – esta é uma
‘questão preliminar’. É considerar a transferência em que o analista se faz presente para fazer
aparecer um sentido diferente do senso comum; algo que escapa do discurso do sujeito.

1 Em 30/09/23, que contou com as participações de Marcelo Magnelli e Musso Greco (EBP), Nicolas Mascialino e Maria-
na Isasi (EOL), Carlos García e Mackling Limache (NEL), além dos comentários de Maria Hortencia Cárdenas, de Beatriz
Udênio e sob minha presidência.

2 Citação de M.H.Brousse no Seminário Internacional: O inconsciente é a política, na EBP – SP., nov/2002.

3 Estas e outras considerações neste texto tomam como referência o cap.16 (Psicanálise, Política e Instituição – Não
retroceder frente à psicose), de minha autoria, do livro: O campo Uniano. O último ensino de Lacan e suas consequências
– Bernardino Horne e Iordan Gurgel, organizadores.

20
LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

Os colegas da EBP presentes na conversação consideraram ser necessário ‘diferenciar


as entrevistas preliminares das primeiras entrevistas como um passo importante para se
conceber o trabalho analítico nos dispositivos institucionais. Aqui se aplica um ‘modo de
dizer’ próprio à psicanálise – introduzindo o mal-entendido, alusão direta ao funcionamen-
to do inconsciente – que possa produzir uma mudança na posição do sujeito. Por outro
lado, diante de sujeitos onde não observamos o consentimento à abertura ao inconsciente,
permanecendo soldados a um gozo monolítico, importa menos pensar em “entrada em
análise” e mais na “entrada do analista”, a partir de sua presença, com efeito de aconteci-
mento e partidário da ética da diferença absoluta. O analista, então, pode se colocar como
parceiro para as invenções que buscam aparelhar o gozo fora do sentido4.

A questão da ação do discurso analítico na sua relação com outras disciplinas foi um
tema trabalhado pelos colegas da EOL: – de que modo a presença de um analista pode afe-
tar um dispositivo sustentado no enquadre interdisciplinar e vice-versa: como esse enqua-
dre afeta o praticante? Tornar possível a ação analítica que efetive a passagem do mal-dizer
do mal-estar ao bem-dizer do sujeito é o desafio ético possível. A ética vinculada a orientação
do homem em relação ao real e a uma clínica não regida exclusivamente pelo mecanismo
significante. É a presença e o desejo do analista fazendo obstáculo ao furor curandis do dis-
curso médico. Esta posição, sem dúvidas, faz ruido na relação com outros discursos.

Assim, o uso da psicanálise nas instituições, ao respeitar a singularidade do sujeito, im-


plicando o espaço público, a palavra e a ação, produz efeitos significantes sobre os saberes
estabelecidos. É uma forma do discurso analítico, ao se submeter ao discurso do mestre,
também subvertê-lo5.

O trabalho dos colegas da NEL, ao considerar que o encontro com um analista não
implica, necessariamente, na entrada em análise, trouxe uma pergunta que norteou o de-
senvolvimento de suas contribuições: – o que leva um sujeito a procurar um analista? Esta
questão, nos dispositivos institucionais, ao nosso entender, sofre uma torção que passa
pelo efeito surpresa: o sujeito vem procurar o saber médico e se defronta com um não
saber prévio daquele que o atende e escuta. Mesmo se considerando que não se trata de
uma demanda propriamente dita, há um movimento que pode produzir uma vacilação
nas certezas do sujeito e, em consequência, é possível implicá-lo subjetivamente, conside-
rando uma nova relação com sua palavra. Aqui se verifica uma tensão com o discurso do
mestre evocado pela saúde mental e o analista pode, com sua presença, descompletar o
arcabouço institucional movido por regras e o saber instituído. Se trata de deslocar o que
é da ordem do universal, do para todos do discurso médico, para o singular de cada um,
implicando-o enquanto sujeito. Mesmo se considerando que não há análise em uma insti-
tuição – mas, é da dimensão do ato analítico levar o discurso da psicanálise às instituições
– verificamos que efeitos se produzem a partir do encontro com um analista.

E, quanto a estes efeitos, constatamos, segundo nossa experiencia e o relato dos co-
legas, que a partir da prática lacaniana nas instituições, há uma maior sensibilidade para

4 Este e o parágrafo anterior estão baseados no texto apresentado pelos colegas da EBP na conversação.

5 Miller, J. A. Questão de Escola: proposta sobre a garantia, in Opção Lacaniana online, Ano VIII, 2017

21
LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

com o sujeito e suas singularidades; maior disposição para acolher o real e a decisão de
não recuar frente à sujeitos antes segregados, além de provocar mudanças na posição da
equipe de saúde mental.

Tais efeitos, gerais e específicos, nos levam a concluir que a ética da psicanálise não
está restrita ao consultório, mas encontra-se em qualquer lugar no qual o psicanalista pen-
sa à luz da palavra e da linguagem6. É algo de novo na psicanálise, que nos remete ao
início do ensino de Lacan, com Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise,
quando ele nos adverte que o analista deve “alcançar em seu horizonte a subjetividade de
sua época”. A nossa época impõe a nós, psicanalistas-cidadãos, romper com a dicotomia
do para todos os cidadãos da ideologia do Estado e do para todos os clientes que podem
pagar da psicanálise, estendendo a orientação lacaniana às instituições de saúde e outras.

Não retroceder frente à psicose é um mandato político que impele o analista em dire-
ção ao trabalho institucional. São as instituições de saúde mental que abrigam o psicótico
que, em geral, não procura espontaneamente o analista. É a instituição que favorece o
encontro da psicanálise com o psicótico; é aí que se inicia o tratamento, quando o analista
pode ajudar a formular uma demanda e provocar a separação do psicótico com a institui-
ção. Neste sentido, a contribuição da psicanálise é relevante no que se refere ao tratamen-
to das psicoses, orientando o agente do discurso em sua prática: introduzir o sujeito, quer
dizer, implicar o sujeito na sua história – aí onde está o homem, o cidadão, o indivíduo com
sua história, seu delírio, fazer aparecer o sujeito de direito; é fazê-lo responsável e não o tra-
tar tão somente como objeto de observação e de cuidados. Para tanto, o analista precisa
estar presente!

6 Conforme F. Leguil, em Registros, Bs. As., Ano I, tomo violeta, p. 49

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LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

Reverberações do XI Enapol: amor


de transferência, real e corpo
Jussara Jovita Souza da Rosa

A convicção racionalista de Lacan é que a transferência não é um milagre diante do


qual o psicanalista deva ajoelhar-se. A teoria do Sujeito Suposto Saber situa a trans-
ferência como a consequência imediata do que Lacan chamou de discurso analítico.1

J-A Miller, 1979

O argumento do XI Enapol nos convida a “[...] pensar sobre como, e o que desse amor
misterioso chamado transferência se instala hoje”. Vivemos uma época que “[...] tende à
desvalorização do saber, favorece a ‘autogestão’, promove a liquidez dos laços amorosos e
empurra para a ‘autopercepção’, versão mais recente da negação do inconsciente”2. Supo-
mos que haja dificuldade para a instalação da transferência3. Entretanto, no cenário vivo de
nossa prática vemos que os/as analistas continuam sendo procurados por um sofrimento,
um mal-estar que é pago com o corpo. Apesar da sedução do discurso capitalista de que
a felicidade e o bem-estar podem ser comprados, o corpo e as questões ligadas ao amor
estão em cena. Convém examinarmos o que da psicanálise se mantém no tempo.

Nos diz Lacan, “O que distingue o discurso do capitalismo é isto: a Verwerfung, a re-
jeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei
- rejeição de quê? Da castração. Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo
deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, de coisas do amor [...].”4 Segundo Mario
Goldberg este discurso “[...] como um novo modo de dominação que converge com o dis-
curso da ciência, põe em questão a ordem da natureza, mas também a do sentido.”5

Da parte da psicanálise, como nos escreve Bernardino Horne, “A transferência é o úni-


co conceito ou noção com o qual todos os psicanalistas concordam, e que todos usam.”6
A partir do Seminário 11, Lacan promove mudanças substanciais neste conceito. Ele situa
a transferência próxima da pulsão, e o inconsciente próximo da repetição, tal mudança,
além de aproximar a transferência do corpo e do real, separada da noção de transferência

1 MILLER, Jacques-Alain. Cinco conferências caraqueñas sobre Lacan (1979). In: Seminarios en Caracas y Bogotá. Bue-
nos Aires: Paidós, 2015. p. 197

2 ASSEF, Jorge. Argumento . XI Encontro Americano de Psicanálise - ENAPOL . Começar a se analisar, publicação ele-
trônica Buenos Aires, 2023. p. 27

3 KRUGER, Flory Prólogo. XI Encontro Americano de Psicanálise - ENAPOL . Começar a se analisar, publicação eletrôni-
ca Buenos Aires, 2023.

4 LACAN, Jacques. Estou falando com as paredes conversas na capela de Saint-Anne. Rio de janeiro: Zahar, 2011. p. 88

5 GOLDBERG, Mário. Discurso capitalista. In: Scilicet Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p. 120

6 HORNE, Bernardido. Os nomes do amor. Opção lacaniana. Revista Brasileira Internacional de psicanálise, nr. 48 mar-
ço 2007. p. 43

23
LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

presente na elaboração freudiana., situa a repetição na via do real. No que tange ao amor,
temos uma outra dimensão que,

Revela-se no entrecruzamento do amor com o saber, [...] trata-se de um novo amor. [...]
Lacan desata um nó no qual intervém amor, crença e suposição. O amor ao saber move o
falasser pela sua paixão pela ignorância. Assim aparece um desejo não natural no animal
humano, o desejo de saber localizável no discurso analítico, no eixo Sujeito-Saber.7

A transferência neste Seminário “[...] é concebida como curto-circuito que dá acesso à


realidade sexual”, e a pulsão “[...] testemunha o forçamento do princípio do prazer e o fato
de existir um gozo [...]”8 a mais. O encontro com “O real, está para além do autômaton, do
retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio
do prazer. O real é o que vige sempre por trás do autômaton [...].”9 Lacan demarca que a
realidade do inconsciente é sexual e “[...] é na transferência que devemos ver inscrever-se
o peso da realidade sexual.” 10 A dimensão do corpo se presentifica por meio da ligação das
zonas erógenas ao inconsciente porque é lá que se amarra a presença do vivo.11

Clotilde Leguil, em sua conferência “Presença do analista e experiências do inconscien-


te”, baseada na teoria do parceiro de Miller, nos diz que “A presença do analista é correlativa
à experiência do inconsciente, “[...] o analista é o ‘parceiro’ do inconsciente, o parceiro do su-
jeito do inconsciente” 12. Leguil nos propõe três modalidades de experiência do inconscien-
te: “O analista presente como Outro de corpo ausente”, refere-se ao “inconsciente estrutu-
rado como uma linguagem”, nesta modalidade, “[...] a função da presença da analista visa
fazer existir um Outro, [...] o sujeito, em vez de se interessar pelo seu eu, se interessa por sua
fala, na medida em que ela mesma vem do Outro.” 13 Na segunda modalidade, “O analista,
testemunha de uma perda”, a presença do analista é “correlativa à repetição e ao trauma.” 14
A experiência do inconsciente surge como acontecimento. “O inconsciente se manifesta,
então, sob o modo do encontro, da tiquê. [...] O que sempre retorna ao mesmo lugar [...].” 15
A última modalidade, “Presença de corpo [en-corps] do analista e ejeção”, refere-se ao que
é possível “[...] fazer ao final do deciframento do capítulo censurado na nossa história [...]”,
temos aí uma nova experiência da presença do analista, na qual entra em “[...] cena o corpo

7 Ibidem, p. 44

8 LACAN, Jacques. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964) Rio de Janeiro: Zahar,
2008. p. 170

9 LACAN, Jacques. Ibidem, p. 59

10 Ibidem, p. 147

11 Ibidem, p. 195

12 LEGUIL, Clotilde. Presença do analista e experiências do inconsciente. IN: Correio Revista da Escola Brasileira de Psi-
canálise. São Paulo: nr. 90, Abril, 2023. p. 112

13 Ibidem, p. 114

14 Ibidem, p. 118

15 Ibidem, p. 119

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LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

do analista como caixa de ressonâncias do corpo do analisante.” 16 Nesta modalidade, que


se constitui a partir das referências do ultimíssimo ensino de Lacan, “O corpo do analista [...]
testemunha, então, o que afeta o corpo do analisante.” 17 Ela se orienta pelo dito de Lacan:

“as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer. Esse dizer, para que ressoe,
para que consoe, [...] é preciso que o corpo lhe seja sensível. É um fato que ele o é. Porque
o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não pode
se tapar, se cerrar, se fechar. É por esse viés que, no corpo, responde o que chamei de voz.” 18

No que tange a formação do analista, esta modalidade está mais próxima da experi-
ência do passe, mas porta elementos a serem considerados na prática analítica em geral: a
transferência ligada à realidade sexual do inconsciente, ao corpo e ao real.

Para concluir, retomo a epígrafe aqui contida. A transferência não é um “milagre”,


mas “consequência imediata do que Lacan chamou de discurso analítico”. Esse aconte-
cimento que descrevemos como misterioso por certo se relaciona com o que condensa o
matema do discurso analítico, no qual o objeto a se dirige ao $, e o seu produto é um S1. O
mistério da transferência está relacionado ao “mistério do corpo falante”, e ao “mistério do
inconsciente”.19 Em tempo de dominância do discurso capitalista, de rejeição da castração,
sem Outro, o discurso analítico é uma via para se aceder ao Um em seu modo de singular
de gozo tendo o analista como parceiro. O amor aí em questão é aquele a que Lacan se
refere na “Nota italiana”20, o amor mais digno, “mais digno do que a profusão do palavrório
que ele constitui até hoje”21, ou seja, um amor que não contenha a suposição de que a re-
lação sexual existe.

16 Ibidem, p. 123

17 Ibidem, p. 124

18 LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma. (1975-1976) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2007. p. 18-19

19 LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1985. p. 178

20 LACAN, Jacques. Nota italiana. (1973) In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 2003.

21 Ibidem, p. 315

25
LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

“Nada será como antes, amanhã” 1?


Renata Mendoça

A partir da queda do patriarcado lidamos com os novos modos de gozo e a fragmen-


tação do mundo, vemos em nossos consultórios, modos de funcionamento e laços sociais
diferentes do que era nos tempos da existência do Outro.

Na clínica os analisandos trazem questões, sobre a segregação dos corpos, relaciona-


das ao racismo; elas podem estar presentes no Romance Familiar, elas podem mostrar
uma identificação ao analista e perguntas que atualizam o inconsciente e os modos de
gozo. Assim, quando lemos em um dos relatórios do XI Enapol2 uma analisanda dizendo
“eu quero que você me escute como uma mulher negra!” Algo que poderia ser escutado
por um analista como a recusa do inconsciente ou enrijecimento do imaginário, pode ser
escutado de outra maneira, já que, a miscigenação, o branqueamento, nomear-se negro,
é uma questão que pode estar no Romance Familiar, na fantasia, na história mais singular
daquele sujeito.

Chegar avisado de seu corpo e do lugar que ele ocupa na “dinâmica do laço social
no Brasil” (ANDRADE, RAMOS et. al 2024), de como a circulação dos corpos se faz, não é
sem efeitos. Não é sem consequência saber-se negro e tem efeitos o analista estar avisado
disso. É preciso escutar se esse saber é além do letramento racial3, se tem relação com a
fantasia do analisando.

O que é dito nas sessões pode ter um efeito de atualização da relação do analista com
o analisante, pois, o “analisante convoca ou faz existir uma analista advertida das questões
raciais,” (ANDRADE, RAMOS et al., 2023). Advertida da posição fantasmática e da incidência
das violências racializadas do Outro. O analisando ao dizer do seu corpo negro ele faz furo,
revela a diluição do Outro, daquele que detinha a verdade do que é ser humano.

M. relata: “minha mãe aos 12 anos me ofereceu uma rinoplastia e alisava meu cabelo
quando eu era pequeno, ela suportou muito mais eu ser gay que preto”

Podemos afirmar, com este fragmento, que ler as questões raciais somente como o
rechaço do inconsciente ou uma fixação imaginária é não dar lugar para o que pode ter
vindo do Outro, do par parental e, também, da violência social sobre os corpos.

O branco europeu, o colonizador, que incita em “assumir a condição de ser humano”

1 Música de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos (1972). Coloco a interrogação para dizer que o amanhã já é hoje

2 Texto apresentado nas Conversações o XI Enapol: Eixo Nº 3: Modos de apresentação das consultas atuais: identidades,
virtualidades, sintomas e caráter. Coordenadores: Cleyton Andrade e Gustavo Ramos https://enapol.com/xi/wp-content/
uploads/2023/08/Eje-3-EBP-PORT-C3.1-docx.pdf

3 Conjunto de práticas pedagógicas que têm por objetivo conscientizar o indivíduo da estrutura e do funcionamento
do racismo na sociedade e torná-lo apto a reconhecer, criticar e combater atitudes racistas em seu cotidiano. https://
www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/letramento-racial

26
LacanXXIR E V ISTA FAPO L O NL INE

(FANON, 2008), todo o resto estava fora desta condição, eram selvagens. Assim, dizer-se
preto, negro, pode ser uma enunciação: “sou humano”. Sem precisar gozar como o corpo
do mestre.

Essa constatação do corpo próprio e de como ele circula é fundamental, já que, pode
ser uma enunciação. Sabemos, também, que as marcas do racismo estrutural não podem
ser apagadas, apaga-las é tentar um branqueamento, mas, essas marcas não dizem tudo
sobre o sujeito, sobre a pessoa e seu lugar no mundo.

O racismo
A ideia do racismo determina o que é civilizado, é a ideia de um gozo único, de um úni-
co Deus. Souza afirma que com o monoteísmo inauguramos o racismo, a boa civilização,
assim, tudo ligado ao corpo era considerado selvagem. Ele afirma “o racismo (...) é sempre,
(...) reduzir o outro a um corpo animalizado e, portanto, ‘inferior’” (SOUZA, 2021)

Essa ideia está em Racismo 2.0, Laurent, a partir de Lacan, afirma que não se trata do
choque de civilizações, mas, do choque dos gozos. O gozo não é normatizado, mas, rejeita-
mos o gozo do Outro, do diferente. Com isso, normatizar o gozo do selvagem é para o “dito
‘bem dele’”:

“ «Deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo, eis o que só seria
possível não lhe impondo o nosso, não o tomando por subdesenvolvido.
(…). Esses gozos múltiplos fragmentam o laço social, daí a tentação de
apelo a um Deus unificador” (Laurent,)

Podemos afirmar que a frase: “sou negra, me escute sabendo do meu lugar” pode ser
uma enunciação de um lugar novo, ainda não sabido, que era encoberto pelo enunciado:
“eu nunca sofri racismo”. Um analisando afirma: “só consegui saber que eram violências
racistas quando eu soube da minha negritude”.

O inconsciente não é estático, não é um deposito. Em Lacan, temos o “inconsciente é


a política”, “trata-se de um desdobramento de outra tese lacaniana ‘o inconsciente é o dis-
curso do Outro’” (SELDES, et. al 2024). Surge aí o inconsciente na dimensão do laço social,
que pode ser lido com tudo que cabe à esfera social, a identificação, a defesa, o recalque e
a não relação sexual.

Com isso, como acreditarmos que, falar do corpo negro e silencia-lo, não teria conse-
quência sobre o inconsciente?

Nascemos mergulhados em uma estrutura de linguagem que inclui o racismo e ela


nos revela uma hierarquia, pois o branco, desumaniza o preto para existir como humano
(FANON, 1952)

“Para construir a lógica do laço social, Lacan não avança a partir da


identificação ao líder, mas a uma primeira rejeição pulsional. O seu
tempo lógico chega a propor para toda formação humana três tempos

27
LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

segundo os quais se articulam o Sujeito e o Outro social:

1) Um homem sabe que não é um homem;

2) Os homens se reconhecem entre si;

3) Eu afirmo ser um homem, com medo de ser convencido pelos ho-


mens de não ser um homem.” (LAURENT, 2008)

A hierarquia instituída pelo colonizador, para garantir a própria humanidade, autoriza


a violência sobre os corpos que não gozam ou não tem o fenótipo branco.

Com a queda do patriarcado assistimos a uma fragmentação do mundo, em que cor-


pos antes silenciados podem usar a palavra a seu modo, mas também, vemos tentativas de
resgate de um Pai opressor e violento.

Na clínica, quando a frase “sou negro” for uma enunciação, é preciso oferecer um tem-
po para a identificação, “autorizar-se contanto com alguns outros4” autorizar a identifica-
ção para entender que ser preto, é possível. Depois, ir além do “negro” sem perde-lo, como
nos ensina Recalde em seu Passe, “a negra já não está irremediavelmente ligada à injúria”
(RECALDE, 2024).

Com isso, é preciso dar tempo ao tempo, o “nada será como antes” é um momento
frutífero, se o psicanalista não ser o especialista da desindentificação. (LAURENT, 1999).
Souber de se seu próprio corpo e querer saber de uma época além do patriarcado.

Bibliografia:
ANDRADE, C. RAMOS, G. ARAÚJO, D. BOTREL, R. GUERRA, A. LANA, C. LÊDA, C. LIMA, A. LIMA, V. MENEZES, D. QUEI-
ROZ, M. ROCHA, J. SATO, S. SILVESTRIN, J. VIEIRA, A. XAVIER, R. “Modos de apresentação das consultas atuais: identida-
des, virtualidades, sintoma e caráter” – XI Enapol 2023 – “Começar a se analisar” https://enapol.com/xi/wp-content/uplo-
ads/2023/08/Eje-3-EBP-PORT-C3.1-docx.pdf
CISCATO, M. MARTINEZ, R. “Autorizar-se contando com alguns outros” https://jornadasebprioicprj.com.br/2022/eixo-3-au-
torizar-se-contando-com-alguns-outros/
FANON, Frantz “Pele Negra Máscaras Brancas” Ano 2008 Salvador/Bahia editora UFBA
GUTERMANN-JACQUET, D. COTTINO, G. GONZÁLEZ, C. HOORNAERT, G. KORETZKY, C. “Doutrinas da Enunciação” Grande
Conversação da Escola Una – AMP Paris, 2024.
LAUIRENT, Éric O Racismo 2.0 https://ebp.org.br/nordeste/jornadas/2022/2022/08/16/o-racismo-2-0/
LAURENT, Éric “Analista Cidadão”
MILLER, Jacques-Alain Extimidade e Racismo https://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/accordion-a-2/o-
-entredois-ou-o-espaco-do-sujeito
RECALDE, M. “Sobre coletivos e singularidades” Rev. Derivas Analíticas – Número 20- Março de 2024. https://revistaderiva-
sanaliticas.com.br/index.php/sobre-coletivos-e-singularidades
SELDES, R. SOKOLOWSKY, L. VIGANÓ, A. MATTOS, S. ROSSI, C. “A Política segundo Freud e Lacan” Grande Conversação
da Escola Una – AMP Paris, 2024.

4 “Autorizar-se contando com alguns outros” Eixo 3 da Jornada da seção Rio de Janeiro de 2022 – Lógicas coletivas nos
tempos que correm https://jornadasebprioicprj.com.br/2022/eixo-3-autorizar-se-contando-com-alguns-outros/

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LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

As marcas no sujeito
Gustavo Ramos

Quando pensa os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan vai produzir


um importante giro com relação ao conceito de sujeito, o qual não será mais pensado
como senhor de si, mas sim como dividido e só se mostrando na irrupção de uma equi-
vocação. Nesse sentido, haveria uma estreita relação entre o conceito de inconsciente e
o de sujeito, na medida em que na dupla operação de causação do sujeito - alienação e
separação -, o que resta da operação de constituição do sujeito no campo do Outro é o in-
consciente. De tal modo que há uma conexão importante entre esses dois polos, os quais
podem ser lidos à maneira de J.-A Miller como S1 e S2, havendo o retorno de S2, o saber, lugar
do Outro, ao S1, significante primeiro, lugar do sintoma. Aqui existe um ponto interessante:
o saber constitutivo do ser falante vem do lugar do Outro, não é intrínseco ao sujeito, o que
se coloca como “primeiro” vem de segunda mão, já com os traços e vestígios do Outro. Se
formos pensar somente pela via estrutural, digamos assim, esse procedimento acontece
sempre da boa maneira, com o Outro fornecendo significantes para libidinizar e nomear
algo para esse sujeito por nascer - o que não significa, é importante dizer, que ao longo
da vida desse sujeito ele não irá se deparar com os efeitos muitas vezes mortíferos de um
discurso segregacionista. É preciso levar em consideração que esse Outro pode assumir as
vestes de um discurso racista, homofóbico, machista e deixar marcas indeléveis no cerne
desse processo ao produzir sintomas específicos.

É nesse meio de campo que Lacan vai afirmar em Joyce, o sinthoma: “Achamos que
dizemos o que queremos, mas é o que quiseram os outros, mais particularmente nossa
família, que nos fala. Escutem esse nós como um objeto direto. Somos falados e, por causa
disso, fazemos, dos acasos que nos levam, alguma coisa de tramado. Com efeito, há uma
trama - chamemos isso de nosso destino” 1. Nesse trecho Lacan está dando vazão ao pró-
prio estatuto do sujeito em psicanálise: ele está sempre ligado ao Outro e às suas marcas. É
por isso que podemos ler tal afirmação com o estatuto do ser imigrante, aquele que nun-
ca pertence ao lugar onde está localizado, está sempre em relação de diferença e não de
igualdade com a terra. “Ser um imigrante é o estatuto mesmo do sujeito em psicanálise. O
sujeito como tal, definido por seu lugar no Outro, é um imigrante. Não definimos seu lugar
no Mesmo porque só tem residência no Outro”2. No procedimento de conexão S1 e S2, há
um elemento que não chega a ser abarcado pela linguagem: o gozo. Ele não consegue ser
preenchido pela linguagem e, com isso, não entra na lógica do significante e assim se loca-
lizaria no registro do mesmo, do invariável do gozo. Se entrasse pela via significante, o gozo
poderia se aproximar do idêntico, da lógica de uma identidade com “[...] os paradoxos e as
dificuldades que implicam a definição significante lógica da identidade consigo mesma.”3

1 LACAN, J. Joyce, o sinthoma. In: O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar,
2007. p. 158-159.

2 MILLER, J.-A. Racismo. In: Extimidad. Trad. de Nora González. Buenos Aires: Paidós, 2017. p. 43. Tradução nossa.

3 Ibid, p. 45. Tradução nossa.

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LacanXXI
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O gozo, por não estar submetido à linguagem e à lógica significante, permanece no


âmbito do mesmo, mas e o analista diante disso? Como fica o trabalho do analista diante
dos marcadores sociais, de gênero, raça e de toda diferença, que deixam suas marcas na
mesmidade do gozo e tais marcas recaem no sintoma do ser falante? Os atravessamentos
da história de cada um irão compor a constelação simbólica e imaginária, e o analista ad-
vertido dessas questões abre mão de saber de antemão a respeito de uma suposta fragili-
dade, de uma ideia antecipada de imaginarização ou identitarismo, para se colocar diante
de um cuidado frente às narrativas e construções que tais sujeitos tecem acerca de seus
encontros com Outro e com as respostas sintomáticas advindas daí.

As marcas na clínica
Sob essa ótica, o trabalho analítico nas entrevistas preliminares, em torno da verdade
não toda que esbarra no real, parece carecer de três tempos. O primeiro, de localizar os no-
mes do pior, apelidos do gozo em um dado discurso a que o sujeito aderiu, ensejando a fi-
xação de uma manifestação do gozo, não na forma de sintoma, mas de anteparo simbólico
a um recorte de real. Essa localização de um ponto de gozo em algum significante, eleito
e imposto ao sujeito, favorece que sujeito e Outro se disjuntem na operação de separação
a qual, em nosso tempo, incide também sobre o Outro. Cernir o ponto de gozo do Outro
sobre o sujeito não implica em vitimizá-lo ou em fortalecer processos de identificação, ao
contrário, faz com que o ser falante possa se a ver com aquelas marcas deixadas pelo en-
contro com o Outro e criar algo novo a partir disso.

Essa segunda operação, nas entrevistas preliminares que se alongam no tempo, é ne-
cessária para decantar o excesso, fazer borda no uso do corpo, a fim de que o sujeito possa
se separar desses nomes alienantes. Ele cifra o gozo preliminarmente num significante,
num movimento, mesmo que deles não nasça um enigma sobre seu desejo. Esse ponto
fisgado se torna, então, ponto de onde uma enunciação pode dar início a um trabalho ana-
lítico, se esse for possível, de conjugar o verbo único e singular de seu corpo de gozo em
uma língua compartilhada, mas não a mesma. O Um do gozo não caminha sem encontrar
um modo de coexistência com outros modos de gozo.

O trabalho analítico de sintomatizar, num só depois, o arranjo pulsional, de extrair os


significantes de sua cadeia, de cifrar o corpo como Outro gozo e nomear-se, seriam opera-
ções inauguradas por esse tempo preliminar. Um analista não pode estar tão identificado
ao seu cosmos a ponto de não conseguir descentrar-se dele, pois isso implica um se deixar
desalojar da posição “de psicanalista” para possibilitar que algo inédito possa ser construí-
do e tecido a partir das marcas deixadas pelo discurso do Outro.

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LacanXXI
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A mesa a que não assisti


Jorge Forbes

Respondo ao convite da revista on line da Fapol, LacanXXI, para dar uma impressão
pessoal sobre o que assisti no XI Enapol, congresso que reúne as três Escolas americanas
da AMP, realizado no final de setembro de 23, em Buenos Aires.

Sendo fiel à pessoalidade do convite, vou comentar a mesa a que não assisti.

Recebi o anúncio do tema do congresso – escolha da qual não participei – com curio-
sidade. “Começar a se analisar”. A priori me pareceu um tema já por demais debatido nas
discussões sobre as “entrevistas preliminares”, de Freud, e no princípio da “retificação sub-
jetiva”, de Lacan. Também me pareceu bastante vago dizer “Começar a se analisar”, sem
qualquer especificação. Sei que assim fazendo se facilita a multiplicidade de participação,
mas, ao mesmo tempo, se aposta no genérico.

Como é inevitável para qualquer pessoa nessa situação, preenchi por mim mesmo,
à luz de minhas pesquisas atuais, um detalhamento desse tema. Ficou mais ou menos
assim: Começar a se analisar no mundo inundado de IA, de inteligência artificial. Se a má-
quina consegue reproduzir sua imagem, seu estilo de pensar, sua voz, seus maneirismos,
se ela é igual a você, então, quem é você? Seria interessante, pensei, refletir sobre o des-
bussolamento das identidades nas atuais entradas em análise. Pus essa questão na minha
bagagem e tomei o avião para Buenos Aires.

Lá chegando, me deparei com um congresso bem-organizado e com muita gente. No


programa, chamou-me a atenção estudos sobre conceitos clássicos lacanianos e temas
clínicos, mais para os tradicionais. Fez-me pensar em Freud, na sua postura de preferir as
perguntas, às respostas. Fazer doutrina, evitando, no entanto, o provar como estava certo,
preferindo comentar e avançar o tratamento daquilo que questiona a tradição. Nesse sen-
tido, nossa época não pode ser mais propícia.

Se não assisti à essa mesa, se não acertei na minha expectativa temática, acertei no
outro lado que um congresso propicia. Para mim, um congresso tem ao menos duas fun-
ções: o conhecimento e discussão dos trabalhos, e os múltiplos encontros com os colegas,
nas salas de conferência, nos corredores, nos cafés, nos restaurantes. Frequentemente é ali
que surgem ótimas ideias e aprimorações.

Lacan várias vezes, a esse respeito, usou a expressão coloquial francesa: “garde-fou” .
Faz rir se traduzirmos ao pé da letra: “guarda da loucura”. Melhor tradução é “salvaguarda”.
Trabalhamos, os psicanalistas, com um Real evasivo, que volta sempre ao mesmo lugar,
que não tem sentido nem nunca terá. Isso pode enlouquecer os isolados; é bom ter um
“garde-fou” por perto, na medida do possível uma salvaguarda, com o cuidado de não pas-
teurizar o novo na imaginária garantia do “Freud dixit”, do “Lacan dixit”.

Vamos ao próximo congresso.

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Olga Dueñas. Trémolo Dominante. Acrílico y tinta sobre madera e Plexiglas. 90x90cm. 1968.
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RE V I STA FA P OL ONL INE Ecos da NEL
LacanXXIR E V ISTA FAPO L O NL INE

Três perguntas a Clara Holguín


Mercedes Iglesias e Beatriz García Moreno e Adolfo Ruiz

Mercedes Iglesias: Uma das vertentes da discussão do último ENAPOL se refere ao


fato de nos encontrarmos diante de sujeitos nos quais predomina a urgência da satisfa-
ção e seus enredos para lográ-la. Assinalar que nesse tipo de sujeito é mais importante
o fazer que o saber. Então, a análise permitiria um efeito de fazer de outro modo sem
passar pelo saber ou no percurso analítico se elabora um saber desse “saber fazer”?

Clara Maria Holguin: Frente à “urgência de satisfação”, isso é, aquilo que não é domina-
do pelo simbólico nem pelo imaginário, em que o significante é impotente para dominar
o corpo ou, dito de outra forma, nossa subjetividade é alcançada e algo não é subjetivável.
O sujeito enfrenta um real que além de ser fora de sentido é fora de saber, frente ao que
requer estabelecer um laço com a palavra, enodar essa urgência ao campo do Outro (A),
mas não de qualquer modo. A pergunta é como se apropriar desse real sem lei? Lacan
propõe tomar o nó tal qual, sem concebê-lo, sem elucubração, o que supõe prevalecer o
fazer sobre o saber. Que prevaleça um sobre outro não significa que não se conjuguem, de
modo tal que se trata de um “saber fazer”, sempre e quando esse saber não seja um saber
no sentido do simbólico, que não seja um saber de construção, mas um saber a serviço do
fazer. O saber funciona por seu puro valor de uso.

Efetivamente, será necessária uma formação que nos permita ser incautos. É esta po-
sição a que possibilita introduzir o sentido da menor maneira possível, porque com o sen-
tido se introduzem os imbróglios. O incauto lacaniano sabe o que é semblante no sentido,
tenta se manter no nível do real. Serve-se do nó para dar o sentido do real. O analista que
se forma sabe que não sabe, que não há saber completo, na medida em que se desprende
da posição fálica. A partir daí tem lugar seu ato.

2. Beatriz García Moreno: Na sua intervenção no ENAPOL 2023, você postula que
o analista faz par com a demanda de urgência nos pedidos de análise, não desde uma
posição de “abstenção e apagamento”, mas, pelo contrário, se dispõe a interrogar “so-
bre o modo como cada falasser mantém o corpo junto, assim como as possibilidades
de inventar”, e se detém nos detalhes com a finalidade de isolar o significante que o
torna singular. Poder-se-ia pensar que, a partir desse momento, a atenção do analista
está colocada no sintoma, tanto para abordá-lo como o que mantém o corpo junto,
como para vê-lo como caminho para uma invenção, ao modo do sinthome, que lhe
permita um maior enodamento?

Clara Maria Holguin: Não há outro modo de fazer frente à urgência, nos diria Lacan,
do que fazendo par com ela, isso é, encarnando esse rechaço fora do campo do Outro (A
) para restabelecer um laço de palavra. Junto ao sujeito, o analista encarna a presença de
um Outro para inventar. Na medida que se pode captar e/ou isolar esse singular do falas-
ser, isso é, ao extrair uma palavra que possa recobrir o que sustenta o sujeito da urgência
será possível extrair as soluções próprias. Trata-se então de se orientar pela singularidade

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da resposta sinthomática para fazer factível a reparação do nó ou um novo enodamento.

3. Adolfo Ruiz: Encontro especial interesse na expressão “Medir o uso do sintoma”.


Como pensar esse “medir” por parte do analista orientado pelo real para ir mais além
da armadilha ou das armadilhas do princípio de prazer e tornar possível que, em seu
ato sempre contingente, algo da relação singular do falasser com o real “não seja omi-
tido”, condição de possibilidade para uma psicanálise?

Clara Maria Holguin: O termo “medir o uso do sintoma” surgiu no après-coup do escri-
to para introduzir a utilidade do sintoma no tratamento. Falar que o sintoma se usa, mais
que assinalar que é algo a se curar, nos permite introduzir a ideia de uma “medida” que
não tem a ver com a norma, para todos, mas com uma medida singular. Essa paradoxal
“mediação” consiste em voltar sobre os significantes, isolá-los e separá-los da cadeia, loca-
lizando um modo de dizer próprio, para encontrar seu uso particular. Pegar um pedaço de
real para enodá-lo à transferência, isso é, ao Outro (A).

Para resumir e retomar as três perguntas diria, citando E. Laurent, que se trata de
“tornar-se o destinatário dos signos ínfimos, entrar na matriz do discurso pelo signo e não
pelo sentido”. Esta perspectiva responde a um enfoque caracterizado por “uma particular
atenção ao dizer”, na qual se trata para o analista de “se fazer partenaire de uma discreta
sintomatização do sujeito”.

Tradução: Gustavo Ramos


Revisão: Pablo Sauce

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Efeitos de saber na experiência


analítica
Mercedes Iglesias

Seldes1 termina seu Florilégio do XI Enapol dizendo o seguinte: “Há um tempo para
refletir sobre o que está por vir e outro em que podemos refletir sobre o que foi feito para
extrair as consequências e não deixar com que os acontecimentos dos encontros nos dei-
xem adormecidos.”

Nesse sentido, tomo como um traço que me interroga: a dimensão do saber no trans-
curso de uma análise, i. e., a problemática do saber. Esta aparece em diferentes mesas e
discussões durante o evento.

Alberti postula que a psicanálise elabora outra forma de argumentação, outras formas
de colocar em evidência, outro modo de fornecer provas. Trata-se de um sujeito extrair um
saber no sentido mais forte, o saber de um corpo falante2. Este saber mais forte implica não
somente o saber do reprimido, mas o saber do gozo, pois tal gozo se inscreve em um corpo
que fala.

Algo destacado no evento é que nem sempre nos encontramos com sujeitos reativos
ao inconsciente e, como consequência, ao saber e ao amor. O fazer e o ter primam sobre o
ser, as consequências disso é um sujeito deslocalizado que omite o retorno sobre si mesmo
e o desejo de saber. Como já foi dito, as estruturas clínicas não se apagam, mas a ênfase é
colocada nos limites do gozo.3

Tarrab4 sustenta que não devemos entender o último ensino com um “ou” excludente
com respeito ao primeiro ensino, eles vão juntos. De um lado temos o reprimido, supondo
o inconsciente e sua interpretação e, por outro, a defesa frente ao real sem lei. Ao real fora
de sentido se acrescenta o inconsciente transferencial.

O desejo de saber não é um desejo natural, na realidade há ‘horror ao saber’. Parte


do percurso de uma análise é a surpresa do reprimido, o poder que tem a existência do
inconsciente para todos aqueles que passam por uma análise. De repente, há uma outra
história, e aí a história oficial criada pelo sujeito fica em suspenso, perde sua estabilidade.
Isso acontece mediante a crença no saber inconsciente, na “outra cena”, como diria Freud,
constituindo um desdobramento do saber não sabido no sujeito. Em Lacan, esse saber vai
construindo diferentes estádios até chegar à lógica do fantasma. Há uma lógica do trata-

1 Seldes, R., Florilégio, Publicação Eletrônica, XI Enapol, FAPOL, p. 365.

2 Alberti, C., Estar em análise ou se analisar?, Publicação Eletrônica, XI Enapol, FAPOL.

3 Ibid.

4 Tarrab, M., As primeiras entrevistas a partir do último ensino, Publicação Eletrônica, XI Enapol, FAPOL, p. 52.

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mento que marca a direção de uma análise.

Miller sustenta: “Bom, a lógica é um termo que muitos de nós utilizamos falando da
lógica do tratamento, mas o que queremos dizer quando falamos de lógica? O que quere-
mos dizer é: i) consequências constatadas, i. e., de um ponto passamos a outro, um ponto
se deduz de outro, ii) também inversão, i. e., que um ponto encontra sua contraparte ao
avesso e no anverso, e iii) também são relações de complementação, um ponto deixa um
vazio, uma falta e vem outro a preenchê-la, a encaixar nela”5

É tarefa do analista ler o desdobramento dessa lógica do tratamento. Contudo, Torres6


destaca que o analista deve estar preparado para receber demandas de quem não procura
saber. O saber mudou de lugar, não há amor nem suposição de saber, o analista, então, se-
gue o analisante, tem uma posição de testemunha, como secretário, como companheiro,
como par.

Assim, encontramos sujeitos em que predomina a urgência de satisfação e seus enre-


dos para lográ-la. Holguín7 assinala que com esses sujeitos é mais importante o fazer que o
saber. Essas novas formas de apresentação dos sujeitos nos permitem ir ao último ensino
de Lacan, não somente porque este consegue ver certas características do porvir de sua
época, mas também porque seu último ensino enfatiza a dimensão da satisfação do sinto-
ma ou a satisfação do Um sozinho.

Nesse último ensino, trata-se de “saber fazer aí”, um corpo falante que goza e busca
uma satisfação fixa. Nesse “saber e fazer”, que tipo de saber existe? Nessa satisfação, o
corpo que fala, por que vão juntos, qual saber elabora? Como sustenta Cárdenas8 em seu
comentário: “assinalam que o analista escuta, corta, nomeia, suporta, questiona, essas in-
tervenções, que saldo de saber deixa?” Também poderíamos nos perguntar se saber fa-
zer algo, se saber gozar e, os assinalamentos realizados pelo analista, produzem efeitos de
saber, e como se constitui esse saber. Certamente é um saber pragmático, mas como se
desdobra, ou de que ordem seriam os efeitos que constatamos?

O pragmatismo americano não se insere nas discussões sobre a possibilidade do co-


nhecimento: o tomam como garantido. Desse modo, afirmam que nossos problemas com
o mundo são resolvidos mediante a ação. Desse modo, a verdade, como conveniência, é
captada na ação, sustentam que advém na ação. A verdade é aceita pelos acontecimentos,
são eles que nos dão um tipo de convicção de verdade.

5 Miller, J.-A., Comentário ao Testemunho de passe de Felicidad Hernández, fev. 2024, XIV Congresso da AMP, Todo
mundo é louco, Paris.

6 Torres, M., Uma ética da vergonha, Publicação Eletrônica, XI Enapol, FAPOL.

7 Holguín, C., De uma questão preliminar a toda psicanálise possível. Medir o uso do sintoma, Publicação Eletrônica,
XI Enapol, FAPOL.

8 Cárdenas, M.H., Comentário, Publicação Eletrônica, XI Enapol, FAPOL.

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Levando isso ao corpo falante, esse ‘saber fazer aí’ seria um saber do gozo que se apre-
senta com convicção, posto que é vivido como tal. Millas9 assinala que, por um lado, temos
a lógica da demonstração, do tratamento, temos o matema, mas ele nos lembra que a
certeza não vem do lado do saber porque compreendemos que o saber não pode domi-
nar a singularidade da experiência. Isso constitui a fase real do sintoma que não pode ser
demonstrada senão constatada. Em tal caso é um saber da experiência que se constata.

Alvarenga10 também remete a essa distinção: a vertente investigativa e a vertente de-


monstrativa. A interpretação aponta ao significante, o ato produz certeza. Essa certeza do
ato se constata. Tal constatação produz um efeito de saber que parte do fazer, posto que
se pensa que é o passo para fazer de outro modo.

E isso acontece assim, devido à exclusão do saber e o real: “Uma vez tomada a pers-
pectiva segundo a qual o acordo entre o real e o saber está rompido, cabe dizer que todo
saber se reduz ao estatuto do inconsciente, i. e., ao da hipótese, da extrapolação, inclusive
da ficção” 11

Mandil assinala que no L’insu..., Lacan afirma que a psicanálise é o ‘que faz verdadeiro’:
“Não da verdade como estrutura de ficção, mas da verdade em sua dimensão referencial,
naquilo que ela aponta o gozo, [...] restituindo a possibilidade de nomeá-lo por meio de um
significante novo” 12. Tratar-se-ia, então, de um saber que permita assinalar um novo nome
para aquilo que determinou sua existência.

Tradução: Gustavo Ramos


Revisão: Paola Salinas

9 Millas, D., Comentário, Publicação Eletrônica, XI Enapol, FAPOL.

10 Alvarenga, E., Comentário, Publicação Eletrônica, XI Enapol, FAPOL.

11 Miller, J.-A., El lugar y el lazo, Buenos Aires, Paidós, 2013, p. 132. Tradução nossa.

12 Mandil, R., O mundo rumo à psicose, Eixo 1 da XXVI Jornada da EBP-MG “Há algo de novo nas psicoses... ainda”, p. 8.

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LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

As entradas em análise: entre a


urgência e a paciência
Beatriz García Moreno

A argumentação exposta nos trabalhos apresentados no ENAPOL 2023 “Começar


a se analisar” permite propor que nos inícios de análise se coloca o encontro entre dois
tempos: o da urgência que acompanha o pedido de quem faz a consulta e o da paciên-
cia que introduz o analista para conseguir o desdobramento da palavra que dê forma
ao sintoma e permita que se instale o ato analítico. Uma pergunta que surge com a
leitura desses textos é se esses dois tempos permanecem no decorrer da análise. Tento
abrir caminho para a resposta a partir do recolhimento de algumas das elaborações
apresentadas.1

As demandas de análise acontecem em meio a diversos tipos de urgência: a que


está relacionada com o pânico e a angústia, a que está atrás daqueles que resistem, a
que se esconde no simbólico. A solicitação na urgência se refere a algo fora da cadeia
significante, a algo que chega sem perguntas, sem pedido de amor nem de saber, mas
com gozo; entretanto, é justamente “um algo” que precipita a demanda de análise.

Quando Lacan, no “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” 2, articula urgência


com satisfação, se refere à urgência do parlêtre, relacionada com a perda de satisfação
do sintoma que não pode ser dita no simbólico e aparece como algo que urge com uma
necessidade imperiosa de satisfação. O real do gozo irrompe no plano das ressonâncias
de lalíngua, do gozo do Um que fala sozinho. Isso que urge se refere a um encontro
traumático com o real que desestabiliza o parlêtre, gera sofrimentos e o impede de
seguir o ritmo de sua vida. Entretanto, no meio da multidão de lalínguas, das irrupções
singulares de cada Um, é possível que ocorra Um encontro.

A angústia na urgência mantém aberta a demanda ao Outro, não o apaga. Por isso
se busca um analista e se arrisca a dizer algo do que lhe ocorre; não por uma transferên-
cia que implique amor ou um saber suposto ao Outro; ela vai mais além do significante.
Lacan, em seu último ensino3, se refere à transferência como espelhismo, sugestão; e
afirma que antes de que se apresente o sujeito-suposto-saber, o paciente faz a deman-
da por uma urgência vital que convoca o analista a fazer par com o que urge.

Na urgência, se rompem as coordenadas de espaço e tempo do sujeito e este se


precipita em uma temporalidade marcada pela angústia. Atender essa urgência impli-
ca em acolhê-la no instante de ver, o qual não se refere ao frenesí do tempo que impõe

1 Ao final do texto, em Referências, estão os nomes dos autores consultados.

2 Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” em Outros escritos, Jorge Zahar Ed, Rio de Janeiro, 2003, pp.
567-569.

3 Lacan, J., Seminario 24, La une bévue…, Inédito.

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o mestre moderno ou à pressa que responde ao imperativo superegoico do goze, mas


ao tempo de algo que urge no real.

Esta demanda requer que um analista faça par com a urgência e com o Um do gozo
do solicitante, sem retroceder diante do real. O analista, com seu desejo e sua presença,
atende a urgência e introduz um tempo de suspensão que permite a leitura dos elemen-
tos em jogo e, desse modo, abre lugar para acolher o que urge. Nas entrevistas prelimina-
res, o analista deixa de ocupar o lugar do suposto saber e se coloca como parceiro de gozo,
orientado por perguntas que visam precisar se trata-se de uma urgência de satisfação, se
o sujeito tem como batalhar e se virar com seu sintoma. O estar convocado a fazer par com
a urgência coloca perguntas ao analista sobre seu modo de operar na entrada, para passar
da urgência como sofrimento ao que urge no real.

Permitir que isso que urge se sustente no percurso analítico, exige paciência para in-
troduzir um tempo que permita dar forma ao sintoma, advertidos de que a urgência refe-
rida ao real é a que orienta o discurso analítico e impõe os tempos de tratamento. No ins-
tante de ver, aparecem comprimidos os momentos em que o gozo irrompe, mas em outro,
a palavra se desdobra de tal modo que o sintoma conquista alguma forma. O jogo desses
dois tempos, o do instante de ver próprio da urgência e o do desdobramento da palavra,
permitem passar da urgência do sujeito que produz sofrimento à urgência do parlêtre que
abre espaço ao real do sintoma.

Quando a urgência direciona a demanda, a flexibilidade do analista é necessária para


consolidar um ritmo tolerável ao sujeito, um tempo singular de acordo com cada um. Ain-
da que a urgência catalogada como tal, nos serviços de saúde, se apresenta como a ne-
cessidade urgente de ser atendido e introduz a pergunta do tempo requerido para essa
atenção, a urgência na análise requer de outro tempo que exige a paciência do analista
para tentar causar a palavra ou desembaraçar o dizer emaranhado, de tal modo que pos-
sam encontrar os significantes que o representam e dar alguma forma. O início da análise
requer sustentar a paciência e a prudência do tempo de cada parlêtre, sem evitar algum
forçamento que abra caminho para a forma do sintoma.

A paciência, como atitude frente ao real, permite acompanhar os pacientes até que se
produza a ruptura com algo soldado. A política do sintoma que nos orienta requer paciên-
cia para sua leitura. Quando se trata de uma psicose, a paciência permite a precaução para
abordar o desenodamento exposto e introduzir o tempo necessário para a palavra que irá
indicar alguma possibilidade de manobra. O encontro com o discurso analítico requer pa-
ciência, o tempo lógico que lhe é próprio requer paciência.

Pode-se dizer que a urgência, como algo do real que acompanha os pedidos de análi-
se, direciona a análise e exigirá a paciência do analista para encontrar a satisfação esperada
que marca seu fim. 4

4 Lacan, J., Ibid.,, pp. 600-601.

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LacanXXI R E V ISTA FAPO L O NL INE

Tradução: Daniela Nunes Araujo


Revisão: Giselle Moreira

Referências consultadas em FAPOL, XI ENAPOL, 2023


“Começar a se analisar”
Publicação eletrônica: XI-ENAPOL-Publicación-PT.pdf

-Andrade, Renato e Iturra, Paula (Coordenadores), “Perturbar a defesa e a atualidade da nossa prática”, pp. 279-284.
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-Aragón, Luisa e Carrasco, Joaquín (Coordenadores), “Modos de apresentação das consultas atuais: consequências e de-
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-Arciniegas, Laura, “Comentário”, pp.168-170.
-Argaña, Ezequiel e Soler, Ana Lucía (Coordenadores), “Fazer par com a urgência”, pp.126-132.
-Assef, Jorge; Giraldo, María Cristina; ZacK, Oscar; Cordeiro de Mattos, Sergio. Argumento, pp. 27-30.
-Casali, Valeria e González Quiroga, Camila (Coordenadores), “No umbral da porta do analista”, pp.182-187.
-Clavijo, María Victoria e Maino, Felipe (Coordenadores), Da demanda à entrada em análise: seus impasses, o gozo, o Um.
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-Cuomo, Gabriela e Valcarce, Laura (Coordenadores), “Um diagnóstico que abre a porta à solução singular”, pp. 242-249.
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-Miller, Jacques-Alain. “Come iniziano le análisi”, pp.12-25.
-Otoni Brisset, Fernanda, “Da multidão de lalínguas um encontro se faz”, pp. 356-359.
-Ram, Mandil, “O final antecipado pelo início ”, pp. 56-59.
-Seldes, Ricardo, “Abertura”, pp. 32-34.
________, “Florilégio”, pp.363-365.
-Udenio, Beatriz, “Comentário”, pp. 311-314.

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“Lo cinético es una forma de modificar y dar otra
dimensión a lo estático.”

Nota: As ilustrações da revista são da obra de Olga Valasek, que se tornou Olga Dueñas
durante sua vida no Equador. A música foi sua inspiração e tema de sua pesquisa plásti-
ca. Nas suas peças cinéticas procura representar, através da linha abstrata, a vida mesma,
que não para, que nunca deixa de estar em movimento contínuo. E isto, talvez, a partir de
uma primeira impressão que se repete.

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