Um Sorriso Negro Traz Felcidade

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UM SORRISO NEGRO TRAZ FELCIDADE?

UMA REFLEXÃO SOBRE


A HISTORICIDADE, ASCENSÃO, MOBILIDADE SOCIAL E
EDUCACIONAL DO NEGRO

DOES A BLACK SMILE BRING HAPPINESS? A REFLECTION ON


BLACK HISTORICITY, ASCENSION, SOCIAL AND EDUCATIONAL
MOBILITY

José Elias Costa Júnior.

RESUMO

O sistema opressivo que o negro suporta por séculos e a manutenção das práticas discriminatórias na
sociedade brasileira obstaculizam sua ascensão à simples condição de gente comum, igual a todos os demais,
sendo mais difícil ele obter educação. Indagado com a dúvida quanto aos mecanismos que fazem internalizar o
condicionamento de negação e ocultamento da condição racial do negro na academia, o objetivo deste estudo é
desvendar as nuances que desencadeiam a opressão, a estigmatização e a discriminação no que se transforma em
condicionamentos psicológicos impeditivos de progresso acadêmico das pessoas negras. Foram analisadas nesse
estudo as teorias descritas na literatura e correlacionadas com o princípio de não estigmatização e não
discriminação da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da Unesco para o enfrentamento de um
ciclo cumulativo de desvantagens que afeta mobilidade social e educacional da população negra. Nota-se com a
análise deste estudo que a saúde mental da população negra é a mais afetada com todo o ciclo de
vulnerabilidades a qual está inserida. Portanto, faz-se necessário a produção de estudos e de políticas públicas de
saúde mental para as pessoas negras, conscientes das consequências transgeracionais dos processos
discriminatórios, para a devida reparação e justiça social a fim de prevenir novas formas de colonialismo.

PALAVRAS-CHAVE: Bioética. Colonialidade. Mobilidade social.

ABSTRACT
The oppressive system that black people have endured for centuries and the maintenance of
discriminatory practices in Brazilian society hinder their rise to the simple condition of common people, equal to
everyone else, making it more difficult for them to obtain an education. Asked with doubts about the
mechanisms that internalize the conditioning of denial and concealment of the racial condition of black people in
the academy, the objective of this study is to unravel these nuances that trigger oppression, stigmatization and
discrimination in what turns into impeding psychological conditioning academic progress of black people. In this
study, the theories described in the literature and correlated with the principle of non-stigmatization and non-
discrimination of the Unesco Universal Declaration of Bioethics and Human Rights were analyzed in order to
face a cumulative cycle of disadvantages that affects social and educational mobility of the black population. It is
noted from the analysis of this study that the mental health of the black population is the most affected by the
entire cycle of vulnerabilities in which it is inserted. Therefore, it is necessary to produce studies and public
policies on mental health for black people, aware of the transgenerational consequences of discriminatory
processes, for due reparation and social justice in order to prevent new forms of colonialism.

KEYWORDS: Bioethics. Coloniality. Social mobility.

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EM FAVOR DE IGUALDADE RACIAL, Rio Branco – Acre, v. 5, n.2, p.., mai-ago. 2023.
1 INTRODUÇÃO

Desde o imperialismo colonial, as práticas de discriminação pesa sobre a população


negra. Em contrapartida, historicamente, a rebeldia negra é muito menor e menos agressiva do
que poderia ser. A principal forma de contrariar o sistema, durante os séculos de escravismo,
era através da fuga para a reconstituição da vida em liberdade nas comunidades quilombolas.
Nessa perspectiva, alguns condicionamentos psicológicos impostos promoveram a
internalização de uma autoimagem desfavorável que limita a motivação e o nível de
aspirações do negro na mobilidade educacional e social. Essa visão negativa das pessoas
negras começa desde cedo nos textos escolares, onde se encontram relatos resumindo que as
crianças brancas são superiores a todas as outras porque produziram a civilização. Dessa
forma, essas práticas regulam as aspirações do negro de acordo com o que o grupo racial
dominante impõe e define como os “lugares apropriados” para pessoas negras (RIBEIRO,
1997).
Analisando a trajetória do negro no Brasil, observa-se que, ao ser introduzido como
escravo, executando tarefas árduas e enfrentando condições precárias de sobrevivência,
mesmo após ascender à condição de trabalhador livre, este enfrenta novas formas de
exploração. Tal como Darcy Ribeiro explana, “Liberto, porém, já não sendo de ninguém, se
encontrava só e hostilizado, contando apenas com sua força de trabalho, num mundo em que a
terra e tudo o mais continuava apropriada” (RIBEIRO, 1997, p. 232), as relações de trabalho,
educação, sociais e culturais ainda representam um desafio para a igualdade e a equidade.
No que se refere ao grau de desigualdade educacional experimentado por pretos e
pardos, a situação de inferioridade persiste. Quando são observados os níveis mais altos de
instrução, os dados do IBGE 2014, mostram que 22,2% da população branca têm 12 anos de
estudos ou mais, enquanto a taxa é de 9,4% para a população negra. O índice de
analfabetismo chega a 11,8% nessa população. Mas esses dados não só imprimem uma
realidade de estigmatização e discriminação, também declaram mecanismos para a
perpetuação desses indicadores (IBGE, 2014).
O sistema opressivo que o negro suporta por séculos e a manutenção das práticas
discriminatórias na sociedade brasileira obstaculizam sua ascensão à simples condição de
gente comum, igual a todos os demais, sendo mais difícil ele obter educação. Reflexo desse
processo são as altas taxas de analfabetismo, de criminalidade e de mortalidade da população
negra que, respirando a pseudodemocracia racial, não tem suporte para integração na
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sociedade na condição de cidadão indiferenciado dos demais (GONZALEZ; HASENBALG,
2022).

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Indagado com a dúvida quanto aos mecanismos que fazem
internalizar o condicionamento de negação e ocultamento da condição racial do negro na
academia,
deste estudo
o objetivo
é desvendar essas nuances que desencadeiam a opressão, a estigmatização e a
discriminação no que se transforma em condicionamentos psicológicos impeditivos de
progresso acadêmico das pessoas negras. Foram analisadas nesse estudo as teorias descritas
na literatura e correlacionadas com o princípio de não estigmatização e não discriminação da
Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da Unesco para o enfrentamento de um
ciclo cumulativo de desvantagens que afeta mobilidade social e educacional da população
negra.
O objetivo deste artigo é refletir sobre os mecanismos sociais que impedem a ascensão
e mobilidade da comunidade negra, e pensar, por meio da bioética, formas de torná- los
visíveis e de enfrentá-los. O estudo toma como base as ideologias e reflexões discutidas nas
obras de Lélia González, Darcy Ribeiro e Stokely Carmichael que, a partir da releitura
histórica dos processos discriminatórios, conduzem de forma ampliada para uma consciência
e reconhecimento da identidade negra. Incialmente, é descrito uma trajetória histórica e
engrenagens para o processo de estigmatização da população negra. Logo após, são descritas
ideologias que os autores descrevem nas obras correlacionando-as com o conceito de
identidade cultural. Por fim, será abordada a posição da bioética frente a sistemática da
repressão, a epigenética e os sentimentos negativos que perpetuam a submissão psicológica
dos negros.

2 PERSPECTIVA HISTÓRICA E ENGRENAGENS PARA O PROCESSO DE


ESTIGMATIZAÇÃO DO NEGRO
O mais antigo documento escrito contendo referência a discriminação contra os negros,
ainda que tivesse sido ditado antes por motivos políticos do que por preconceitos raciais, é
encontrado em um marco mandado erigir por ordem do Faraó Sesóstris III (1887-1849 a.C.).
Eis o seu texto: “Limite Sul. Erigido no VIII ano do reinado de Sesóstris III, Rei do Alto e
Baixo Egito, o qual viverá através das idades. Nenhum negro atravessará este limite por água
ou por terra, de navio ou com seus rebanhos, salvo se for com o propósito de comerciar ou
fazer compras. Os negros que atravessarem para este fim serão tratados com hospitalidade
mas proíbe-se a todo negro, em qualquer caso, descer o rio de barco além de Heh” (COMAS;
LITTLE; SHAPIRO; LEIRIS; STRAUSS, 1970)
A visibilidade da discussão sobre questões raciais no Brasil começou aproximadamente na
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metade do século passado, quando os movimentos sociais que reivindicam causas relativas à

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discriminação por razões de raça ou de gênero, entre os anos 1950 e 1960, difundiu uma vasta
e exitosa ideia de Consciência Negra. Nesse processo, mobilizações e manifestações que
rendeu
o protagonismo do Movimento Negro desde os anos 1970 e 1980, como a criação do MNU –
Movimento Negro Unificado (1978); a Campanha das Diretas Já (1984); as Marchas do
Centenário da Abolição (1988); o I Encontro Nacional de Mulheres Negras (1988); os
Encontros estaduais e regionais do Movimento Negro ao longo dos anos 1980 e 1990; o I
Encontro Nacional de Entidades Negras – ENEN (São Paulo, 1991); a Marcha Zumbi dos
Palmares – Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida (Brasília, 1995) e a Marcha Nacional
de Mulheres Negras (Brasília, 2015) tornou o racismo pauta inarredável da agenda política
nacional. Reanalisar a longa trajetória de lutas negras ao longo do século XX é o suporte para
o diálogo entre mobilidade social associada à educação da nossa população, além de combater
toda forma de exclusão social (PEREIRA, 2018).
Historicamente, a primeira tarefa cultural do negro brasileiro foi a de aprender a falar o
português que ouvia aos berros dos colonizadores. Fornecer sua força de trabalho para não ser
levado à morte através da brutalidade e repressão era outra engrenagem para o sentimento de
submissão. Procurando sua liberdade, enfrenta episódios de miserabilidade, quando ao
deslocar-se do meio rural para as favelas urbanas almejando um grau de esperança enquanto
sua cultura despedaçada dos longos anos de escravidão tentava se regenerar (SANCHES;
MANNES; CUNHA, 2018).
Ademais, o trabalho compulsório dos negros foi justificado por diferentes esforços
ideológicos que, em geral, postulavam a inferioridade dos povos africanos. Estudos científicos
mais antigos afirmavam que o volume do cérebro é menor no negro e concluíam que o negro
é mentalmente inferior. Para a igreja católica, eram amaldiçoados e destinados à servidão. É
no campo psicológico que os mais persistentes esforços foram feitos para provar a
superioridade do homem branco sobre o negro. Sem dúvida, os negros e os brancos não são
de modo algum semelhantes quer seja física, intelectual ou psicologicamente; entretanto, isto
não justifica a afirmativa de que as diferenças impliquem qualquer superioridade de uns sobre
os outros (COMAS; LITTLE; SHAPIRO; LEIRIS; STRAUSS, 1970).
A partir do século XVIII, as teses de racismo científico novamente afirmaram a aptidão
desses povos para a servidão, buscando comprovar tais hipóteses nos campos da biologia e
antropologia (ARANDIA, 2016). Assim, o colonialismo origina a justificativa da
discriminação racial, na medida em que esse sistema se reproduziu através do trabalho
escravizado de negros para legitimar essa opressão através da ideologia do racismo (MOURA,
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1994).

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Apesar da desestruturação da identidade dessa população pelo longo processo de
sofrimento, inúmeras manifestações culturais ocorrem em todos os campos em que não se
exige
escolaridade. Porém, a manutenção de critérios racialmente discriminatórios que, tais como os
modelos de padrões de corpos físicos ou intelectualizados impostos na sociedade,
obstaculizam a ascensão à simples condição de gente comum, tornando mais difícil para a
população negra obter educação e mais fácil incorporar-se na força de trabalho dos setores
modernizados. É nesse processo que as taxas de analfabetismo, de criminalidade e de
mortalidade dos negros são, por isso, as mais elevadas, refletindo o fracasso da sociedade
brasileira em cumprir, na prática, seu ideal professado de uma democracia racial que integre o
negro na condição de cidadão indiferenciado dos demais (MBEMBE, 2018).
A Revolução Cubana demonstra o quanto os negros estão preparados para ascender
socialmente. Nesta época, o governo lançou várias políticas em favor dos mais pobres e
afrocubanos, a exemplo, uma campanha nacional de alfabetização. Com efeito, alguns anos de
escolaridade francamente aberta e de estímulo à auto superação aumentaram rapidamente o
contingente de negros que alçaram aos postos mais altos do governo, da sociedade e da
cultura cubana. José Julián Martí Pérez, político e filósofo cubano, no final do século XIX,
criticou insistentemente o racismo, reforçando o argumento de igualdade e fraternidade racial
(HELG, 2014).
A influência de José Martí encorajou intelectuais negros e mestiços a participar do
movimento independentista de 1895. Assim, essas populações tiveram grande participação
nos campos de batalha (HEREDIA, 2017, p. 422). Diante deste episódio, o movimento
revolucionário de 1895 foi reconhecido como uma escola de valores que fez retroceder o
racismo e atribuiu aos negros uma identidade nacional, pois tornou a cidadania um direito de
todos (HEREDIA, 2017, pp. 423- 424). Simultaneamente, toda a parcela negra da população,
liberada da discriminação e do racismo, confraternizou com os outros componentes da
sociedade, aprofundando assinalavelmente o grau de solidariedade.
Contudo, os negros brasileiros, apesar de concentrados nos estratos mais pobres, não
atuam social e politicamente motivados pelas diferenças raciais, mas pela conscientização do
caráter histórico e social dos fatores que obstaculizam sua ascensão. Essa população ainda se
encontra num estado de semi escravidão socioeconômica, educacional e cultural. Estão
emaranhados numa teia de restrições legais e extralegais. A pobreza, o desprezo e a
submissão fizeram destes o que é hoje. O vigor desse processo, assentado na cultura vulgar e
também ensinada nas escolas, e das atitudes que começam a generalizar-se entre todos os
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brasileiros, permitirão

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enfrentar com êxito as tensões sociais decorrentes de uma ascensão do negro de forma a
garantir sua participação igualitária na sociedade nacional?

3 MECANISMOS E IDEOLOGIAS: É POSSÍVEL A AFIRMAÇÃO DE UMA


IDENTIDADE NEGRA?

O reconhecimento da sua identidade cultural é primordial para o ser humano.


Reconhecer suas origens e ancestralidades faz parte desse processo. No entanto, a teoria da
raça ascendeu uma verdade histórica que dissimulou a possibilidade de desenvolvimento
dessa capacidade. Talvez o racismo à brasileira que impera nos dias de hoje carrega os
conceitos de fabricação dos sujeitos raciais. O conceito de raça é uma ferramenta de
dominação. O preconceito de cor dos brasileiros, incidindo, diferencialmente, segundo o
matiz da pele, tendendo a identificar como branco o mulato claro, conduz antes a uma
expectativa de miscigenação. Expectativa, na verdade, discriminatória, porquanto aspirante a
que os negros clareiem, em lugar de aceitá-los tal qual são. Estamos imersos numa rede de
alienação da condição racial, em que o contexto histórico favorece a naturalização do racismo
brasileiro (GODOI; GARRAFA, 2014).
A sociedade brasileira defende que o problema é a pobreza e que todos somos
mestiços. Porém, dá especial importância à cor da pele, impulsionando um discurso de
negações desse racismo, que continua sendo o lema de sustentação do Estado no processo de
caminhada da modernidade. A pigmentação relativamente escura é uma marca de
diferenciação que condena numerosos grupos humanos ao desprezo e uma posição social
humilhante. O preconceito de cor é tão acentuado em certas pessoas que dá origem a fobias
quase patológicas; estas não são inatas mas refletem, de uma forma exagerada, os
preconceitos do meio social. Afirmar que um homem é um ser humano inferior porque ele é
negro resulta em maiores humilhações, restrições sociais e insultos pessoais. Com efeito, a
modernidade estruturada como uma maneira de arranjar o poder, o saber e o ser, promoveu a
instalação de uma hierarquia entre grupos ou povos, colonizando e controlando a vida, as
ciências e a política (PARANHOS, 2016).
Lélia Gonzalez fala sobre um fato que remete à Ideologia do branqueamento. Nesse
mecanismo, o negro desenvolve alguns condicionamentos psicológicos como ocultamento de
sua “inferioridade” através dos aparelhos ideológicos (família, escola, igreja, meios de
comunicação etc.) que veiculam valores, juntamente com o mito da democracia racial, que
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apontam para uma suposta superioridade racial e cultura branca. Nessa articulação entre mito
e

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ideologia que se esconde o caráter do racismo brasileiro. As pessoas negras internalizam tais
valores e passa a se negar enquanto tais, de maneira mais ou menos consciente. A partir daí
elas
sentem vergonha de sua condição racial e, tais mecanismos, quando tratados em termos
psicanalíticos, fazem entender que o branco deve ser vivenciado com ideal do ego
(GONZALEZ; HASENBALG, 2022).
Todos os meios que fomentam a luta política do negro devem ser reconhecidos e
valorizados. A chamada democracia racial, apesar de afetar principalmente os intelectuais
negros, que conduzindo-os a campanhas de conscientização do negro para a conciliação social
e para o combate ao ódio e ao ressentimento negro, concentra um raciocínio deficiente que
cria condições de convivência em que o negro aproveite as linhas de capilaridade social para
ascende. No entanto, essa ascensão é através da adoção explícita das formas de conduta e de
etiqueta dos brancos bem sucedidos. Nenhuma pessoa pode ditar com exclusividade o estágio
final da evolução humana; não há argumento válido que confirme as características especiais
que possam indicar a superioridade de um grupo em detrimento ao outro (GONZALEZ;
HASENBALG, 2022).

4 SISTEMÁTICA DA REPRESSÃO E A SUBMISSÃO PSICOLÓGICA SOBRE A


ÓTICA DA EPIGENÉTICA

Os mecanismos que caracterizam um processo de submissão e repressão da população


negra apresenta três atores: o negro subalterno, o Estado, com seu controle hierarquizado das
populações e uma sociedade influenciada para que esse controle funcione. A sistemática
exclusão, que começa pela educação, desenhando a população negra como seres inferiores e
que a colonização teve a solidariedade de salvá-los da inferioridade, conduz a um sentimento
de falta de consideração e indiferença. Assim, o que é mais desejado por essa população é a
libertação dessa eterna punição psicológica que os estigmatizam como membros de outra
espécie. É nesse processo que a consciência do dever e da responsabilidade do Estado é
apagada (PARANHOS, 2016).
Analisando todo esse complexo pelo olhar da Bioética, é possível descrever um
cenário de inferioridade que ecoa nas mentes pretas. Um contexto histórico que desvenda a
hostilidade, o rancor e o ódio acumulados diante das ofensas sofridas, as regalias sociais
oferecidas a brancos de cultura e educação muito duvidosas, a desconfiança em face dos
progressos dos brancos, um ódio amargo e as vezes abertamente confesso de tudo o que é
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branco, tudo isso é

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necessário que os negros superem, vençam, esqueçam se quiserem ver estabelecido, entre
esses dois grupos humanos, um espírito de verdadeira compreensão. Se os povos brancos
pararem
tratar os de
negros com indiferença, opressão e injustiça, e adotarem uma atitude caracterizada
pela tolerância e cortesia, será o início de uma caminhada em favor do respeito, equidade e
justiça? (RIVAS; GARRAFA; FEITOSA; NASCIMENTO, 2015)
Tanto a biologia como a antropologia, a evolução e a genética demonstram que a
discriminação racial baseada na cor é um mito sem a menor justificativa científica. No
entanto, ao comparar a perspectiva da epigenética em estudos com gestantes privadas de
alimentação durante o episódio do Inverno da fome holandesa na II guerra mundial, onde
níveis de metilação foram observados no gene do fator de crescimento, um imprinting
materno transmitido aos bebês persistiu até a idade adulta e foi verificado até 6 décadas após
esse episódio de privação, demonstrando assim um efeito transgeracional. É possível que
todos esses mecanismos descritos e refletidos dentro da perspectiva da dignidade humana da
população negra ao longo da história estejam marcados como sentimentos de medo e
depressão de forma epigenética? (HEIJMANSA; TOBIA; STEINB; PUTTERC; BLAUWD;
SUSSERE; SLAGBOOMA; LUMEYE, 2008)
Esses genes estão associados tanto à resposta ao estresse emocional quanto à resposta
ao estresse fisiológico. Assim, as crianças nascidas em famílias pobres e as nascidas de mães
desnutridas iniciam suas vidas em desvantagem em termos de imprinting genético, o que pode
contribuir para a manutenção de sua posição social ou dificultar muito sua mobilidade social.
Tais marcadores epigenéticos comprometem o desenvolvimento psicossocial e podem resultar
em dificuldades de aprendizagem testemunhadas no baixo rendimento escolar e nos níveis de
evasão escolar. A baixa escolaridade resultante causa desemprego, subemprego e dificuldade
no acesso a empregos mais qualificados. Em outras palavras, associando á temática desse
estudo, há uma forma de condenação genética como consequência do mecanismos de
discriminação e estigmatização (GRISOLIA; GARRAFA, 2020).
Entendendo que a bioética é mais um movimento de reforma social, é preciso
considerar que os fatores políticos e socioeconômicos pouco favoráveis que mantém esses
grupos em seu estado atual. A leitura bioética do processo de produção de práticas
estigmatizantes e discriminatórias atravessa os conceitos de identidade, alteridade, diferença e
tolerância. Os efeitos dessas práticas sobre os indivíduos e a sociedade devem ser refletidos
dentro do escopo da dignidade humana e o respeito pelos direitos humanos (FEITOSA;

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NASCIMENTO, 2015).

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O reconhecimento e a valorização da identidade étnica da população negra deve ser
enfatizada em detrimento à privação deste fator para que não ocasione uma imagem distorcida
dos mesmos. É pela afirmação da identidade que seria possível travar embates mais
transformadores, já que os indivíduos teriam ferramentas para lutar contra os processos
discriminatórios. Pensar de que maneira os conceitos de vida estão em jogo para a elaboração
de outros conhecimentos e políticas sobre a vida é tarefa persistente para a Bioética
(FEITOSA; NASCIMENTO, 2015).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As discriminações e preconceitos étnicos são impeditivos para a ascensão social de


grupos da sociedade brasileira, e os resultados desse estudo servem de ferramenta para a luta
em prol do desenvolvimento social também na América Latina. Parâmetros bioéticos não
podem ser somente instrumentalizados e codificados para a discussão do recorte racial no que
tange a mobilidade social e educacional de pessoas negras. Para além, deve-se entender que a
dinâmica da historicidade dos fatos e as experiências da comunidade negra na sociedade
brasileira devem ser fatores integrativos no debate bioético e científico para viabilizar a
concretização dos direitos e a garantida da dignidade humana.
Nota-se com a análise deste estudo que a saúde mental da população negra é a mais
afetada com todo o ciclo de vulnerabilidades a qual está inserida. Portanto, faz-se necessário a
produção de estudos e de políticas públicas de saúde mental para as pessoas negras,
conscientes das consequências transgeracionais dos processos discriminatórios, para a devida
reparação e justiça social a fim de prevenir novas formas de colonialismo. A defesa da
dignidade humana é imperativa, e a bioética deve estar comprometida com a defesa da
diversidade cultural e étnica de forma a impedir o sufocamento do sistema de valores e
crenças dos padrões morais dominantes.

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