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TESE DE DOUTORADO

O RITMO COMO FENÔMENO MULTIDIMENSIONAL NAS

BATERIAS DE ESCOLA DE SAMBA E NO CANDOMBLÉ: PONTOS

DE CONVERGÊNCIA A PARTIR DA DIÁSPORA AFRICANA

RAFAEL Y CASTRO

Programa de Pós Graduação em Música


Instituto de Artes – UNESP
São Paulo
2021
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RAFAEL Y CASTRO

TESE DE DOUTORADO

O RITMO COMO FENÔMENO MULTIDIMENSIONAL NAS BATERIAS DE ESCOLA DE


SAMBA E NO CANDOMBLÉ: PONTOS DE CONVERGÊNCIA A PARTIR DA DIÁSPORA
AFRICANA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Scricto Sensu, do Instituto de Artes da
UNESP, como requisito para a obtenção do título de
Doutor em Música.
Área de Concentração:
Criação musical: composição e performance
Orientador: Carlos Stasi

São Paulo
2021
Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da
Unesp. Dados fornecidos pelo autor.
C355r Castro, Rafael Y, 1977-
O ritmo como fenômeno multidimensional nas baterias de escola de
samba e no candomblé : pontos de convergência a partir da diáspora afri-
cana / Rafael Y Castro. - São Paulo, 2021.
290 f. : il. color. + anexo

Orientador: Prof. Dr. Carlos Stasi


Tese (Doutorado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho”, Instituto de Artes

1. Métrica e ritmo musical. 2. Instrumentos de percussão. 3. Escolas


de samba. 4. Diáspora africana. 5. Música - Aspectos sociais. I. Stasi,
Carlos. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título.

CDD 786.8

Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666


UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

Câmpus de São Paulo

CERTIFICADO DE APROVAÇÃO

TÍTULO DA TESE: O RITMO COMO FENÔMENO MULTIDIMENSIONAL NAS BATERIAS DE ESCOLA DE


SAMBA E NO CANDOMBLÉ: PONTOS DE CONVERGÊNCIA A PARTIR DA
DIÁSPORA AFRICANA

AUTOR: RAFAEL Y CASTRO


ORIENTADOR: CARLOS EDUARDO DI STASI

Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Doutor em MÚSICA, área:
Interpretação/Teoria e Composição pela Comissão Examinadora:

Prof. Dr. CARLOS EDUARDO DI STASI (Participaçao Virtual)


Departamento de Música / Instituto de Artes de São Paulo

Prof. Dr. JOHN EDWARD BOUDLER (Participaçao Virtual)


Professor Aposentado / IA/UNESP

Prof. Dr. EDUARDO FLORES GIANESELLA (Participaçao Virtual)


Departamento de Música / Instituto de Artes da UNESP

Prof. Dr. ALBERTO TSUYOSHI IKEDA (Participaçao Virtual)


USP / Universidade de São Paulo

Prof. Dr. CLAUDIO HENRIQUE ALTIERI DE CAMPOS (Participaçao Virtual)


Pesquisador / Independente

São Paulo, 30 de março de 2021

Instituto de Artes - Câmpus de São Paulo -


Rua Dr Bento Theobaldo Ferraz, 271, 01140070
http://www.ia.unesp.br/#!/pos-graduacao/stricto---musica/CNPJ: 48031918001791.
Dedico este trabalho a todos os envolvidos que contribuíram intensamente com esta
investigação e que, a partir disso, também celebram a relevância deste feito para suas
comunidades. Esta foi uma construção coletiva com a participação permanente dos
indivíduos responsáveis pela sabedoria ancestral afro brasileira.
AGRADECIMENTOS

“O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001”.
A Oxalufã (Epa Baba), Yansã (Epahey Oyá) e todos os orixás, por mostrarem o cami-
nho da perseverança e justiça.
Ao meu orientador Prof. Dr. Carlos Eduardo Di Stasi, referência para muitos pela pro-
fundidade conceitual, artística e técnica na área e principalmente pela parceria de sempre.
A Rodolfo Santos dos Reis (Tata Nkisi Kylonderu), zelador da Casa de Angola Kyloa-
tala, onde fui suspenso e iniciado como ogã por chamado de meu orixá.
Ao Prof. Dr. Albeto Ikeda, pelo incentivo nesse tema desde minha época de graduação
(1995), no bairro do Ipiranga.
Ao Prof. Dr. John Edward Boudler, por criar esse espaço mágico, o laboratório de per-
cussão e o Grupo PIAP, proporcionando assim muitos encontros e desenvolvimentos culturais
permanentes.
Ao Prof. Dr. Eduardo Flores Gianesella, pela parceria e paciência ao longo de minha
carreira acadêmica.
Ao Prof. Dr. Claudio Altieri Campos, por todo o acompanhamento e parceria em mi-
nhas pesquisas de mestrado e doutorado.
A todos os alunos do Grupo PIAP, por participarem da criação e perpetuação da bate-
rIA PIAP, a partir da minha pesquisa de Mestrado em 2014.
Aos funcionários do Instituto de Artes da UNESP, pelo carinho e incentivo.
À banca dos recitais, qualificação e defesa: Alberto Ikeda, Carlos Stasi, Claudio Alti-
eri Campos, Eduardo Gianesella, Eliana Giulgimetti Sulpício, John Boudler, Lutero Rodri-
gues, Marcos Fernandes Pupo Nogueira e Wladmir Matos.
Aos professores das disciplinas que colaboram diretamente com esse trabalho: Consi-
glia Latorre, Eliana Sulpício. Ivan Vilella, Margarete Arroyo, Marisa Fonterrada e Rodolfo
Coelho.
A Osvaldo Barro (Osvaldinho da Cuíca) pela parceria, ensinamentos e pela representa-
tividade no meio carnavalesco e percussivo.
A Robson Campos (Mestre Zoinho), há 15 anos na direção da Barcelona do Samba, a
bateria do GRCSES Império de Casa Verde, onde realizo minha pesquisa de campo participa-
tiva como ritmista para manutenção técnica e conceitual nesse contexto.
Ao Pai Rubens de Oxalá, pai de santo responsável pelo Ilê de Oxalufã, terreiro de can-
domblé da nação ketu onde tive a oportunidade de ser aprendiz de ogã nos anos de 1995 a
1998.
Ao ogã e ritmista Edivaldo Carmo de Souza (Gonha), pela iniciação nos ngomas (ata-
baques) em 1995.
Ao ogã e ritmista Carlos Eduardo Martins (Cadu), pela parceria e prática compartilha-
da.
Ao ogã alabê Alan Salgado, por sempre mostrar os caminhos dos pontos de encontro
estruturais entre os terreiros e as baterias.
Ao percussionista, ritmista, apresentador e idealizador do Programa Conversa no Ba-
tuque, – Julio Cesar, parceiro de todas as funções.
Ao percussionista, ritmista e diretor de gravação de discos de samba enredo para o
carnaval paulistano, – Dennys Silva.
Ao Babalorixá, ritmista e diretor de Bateria, – Mokutalofange Anderson de Ogum
(Anderson Jorge Enéas), por colaborar fortemente nas minhas investigações desde o Mestra-
do.
Ao vibrafonista e ogã Tata Inberekwe (Ricardo Valverde), pelo incentivo e incursões
em diversos terreiros de São Paulo.
A todos os meus irmãos e irmãs de santo da Casa de Angola Kyloatala, pelos ensina-
mentos e reencontro.
Ao ogã alabê Leandro Perez, pela referência na área.
Aos Mestres Edson Murú (Panta), Luciano de Souza Rosa, Sérgio Raimundo Rosa,
Silval Rosa Junior, João Cardoso (Batucada), José Roberto Nascimento Arruda1 (Bagulé),
Marcio Valadares (Dentinho), pelos primeiros passos na Batucada desde 1995.
Ao Projeto Guri do qual faço parte desde 1998, pelo apoio de seus gestores e pela ex-
periência compartilhada com os coordenadores de naipe, supervisores, educadores e alunos
envolvidos no ensino coletivo da percussão.
A Ivaldo Bertazzo, por acreditar nas amplas possibilidades humanas através da arte.
Ao Roberto Guariglia – Contemporânea Instrumentos Musicais, por acompanhar a
minha carreira e sempre apoiar diversos percussionistas.
À minha família, pelo suporte de sempre.

                                                                                                               
1  Disponível
em:  https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1855779-velha-guarda-paulista-ha-60-anos-
bagule-zela-pelo-pai-do-samba.shtml  
 
O RITMO COMO FENÔMENO MULTIDIMENSIONAL NAS
BATERIAS DE ESCOLA DE SAMBA E NO CANDOMBLÉ: PONTOS
DE CONVERGÊNCIA A PARTIR DA DIÁSPORA AFRICANA

Resumo

Esta pesquisa identifica, a partir da diáspora africana, pontos de convergência entre o can-
domblé e as baterias das escolas de samba. Utilizamos conceitos expostos por Béhague
(1994), Graeff (2015), Hall (2003), Hesse (1971) e Kubik (1979), referentes a características
que foram trazidas por diversas etnias e aqui foram apropriadas, mantidas e transformadas,
aspectos estes caracterizados pela transculturação, etnicidade e pela compreensão do ritmo
como fenômeno multidimensional. As transcrições e análises foram desenvolvidas com base
em aspectos musicais (técnicos e interpretativos) observados in loco, através de pesquisa par-
ticipativa como membro atuante em alguns terreiros de candomblé e em baterias das escolas
de samba, mais especificamente no Ilê de Oxalufã (Ketu), na Casa de Angola Kyloatala e na
bateria do Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba (GRCSES) Império de Casa
Verde, todos localizados na região metropolitana da cidade de São Paulo. Observamos que
muitas das estratégias adotadas pelos atores responsáveis pela transformação e manutenção
desses padrões resultam em diversas ambiguidades e são realizadas muitas vezes de forma
inconsciente. Identificamos que a produção musical e a identificação cultural, apesar de diver-
sas dubiedades interpretativas ou por influências do meio, continuam sendo desenvolvidas a
partir de estruturas rítmicas e por conceitos mais amplos de ritmo, herdados via diáspora afri-
cana e norteadores de processos coletivos nos terreiros de candomblé e nas baterias das esco-
las de samba – instituições responsáveis pela divulgação destes saberes diaspóricos.

Palavras-chave: Bateria de escola de samba. Candomblé. Diáspora africana. Etnicidade.


Transculturação.
THE RHYTHM AS A MULTIDIMENSIONAL PHENOMENON IN
SAMBA SCHOOL DRUMS AND CANDOMBLÉ: CONVERGENCE
POINTS FROM AFRICAN DIASPORA

Abstract
This research identifies, from the African diaspora, points of convergence between candomblé
and the baterias of the samba schools. We use concepts exposed by Béhague (1994), Graeff
(2015), Hall (2003), Hesse (1971) and Kubik (1979), referring to characteristics that were
brought by different ethnicities and were appropriated, maintained and transformed here, as-
pects that are characterized for transculturation, ethnicity and for understanding rhythm as a
multidimensional phenomenon. The transcriptions and analyzes were developed based on
musical aspects (technical and interpretive) observed in loco, through participatory research
with auto etnographic narrative insertions in candomblé terreiros and in baterias das samba
schools, more specifically in Ilê de Oxalufã, in Casa de Angola Kyloatala and at the drum
section of the Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba (GRCSES) Império de
Casa Verde, all located in the metropolitan área of the city of São Paulo. We observed that
many of the strategies adopted by the actors responsible for transforming and maintaining
these standards result in several ambiguities and are often carried out unconsciously. We iden-
tified that musical production and cultural identification, despite various interpretive doubts or
by influences from the environment, continue to be developed based on rhythmic structures
and broader concepts of rhythm, inherited via the african diaspora and guiding collective pro-
cesses in candomblé terreiros and in the baterias of samba schools - institutions responsible
for the dissemination of this diasporic knowledge.

Keywords: African diaspora. Bateria of samba schools. Candomblé. Ethnicity. Transcultura-


tion.
 
 
 
 
 
 
Lista de ilustrações

Figura 1 - Tata Mukambila (Marcos Menezes) afinando os atabaques de cunha na Casa de


Angola Kyloatala......................................................................................................................07
Figura 2 - Erivaldo Basílio Portela na quadra do GRCES Império de Casa Verde................35
Figura 3 - Tata Kylonderu (Rodolfo dos Reis) dentro do antigo barracão da Casa de Angola
Kyloatala...................................................................................................................................49
Figura 4 - Gãs em exposição no Ile Asé Omo Ose Igbá Alata..................................................54
Figura 5 - Tata Kylonderu exibindo o cadocorô/corocolô no Unzo Kyloatala........................58
Figura 6 - Mestre de bateria Zoinho (Robson Campos), do GRCSES Império de Casa Verde,
tocando caixa em cima..............................................................................................................72
Figura 7 - Rafael Y Castro com caixa de 14”, Tim e Dodô. Desfile do extinto GRCSES Impé-
rio do Cambuci na carnaval de São Paulo no ano de 1995.....................................................75
Figura 8 - Hugo Santana e Klemen tocando caixa vazada em dia de ensaio técnico do
GRCSES Império de Casa Verde (2018)..................................................................................79
Figura 9 - Flyer de divulgação da abertura da segunda noite do desfile carnavalesco em São
Paulo.........................................................................................................................................81
Figura 10 - Imagem de Cristo na cor preta com elementos do orixá Oxalá como o Pachorô na
mão direita e filhos de santo representados em passistas........................................................91
Figura 11 - Flyer de divulgação em site de adeptos a religiosidade de matriz afro separando
alguns fundamentos da religião do carnaval..........................................................................103
Figura 12 - Pai Kumimbara, Exú com vestimenta de terno em reverência a um sambista do
GRCES Mangueira.................................................................................................................104
Figura 13 - Zé Pilintra como capa de um livro, mesma vestimenta do malandro carioca....150
Figura 14 - Malandro carioca nos arcos da Lapa, mesmo sentido, trejeitos e vestimentas de
Exu..........................................................................................................................................151
Figura 15 - Logo da bateria do GRCES Imperador do Ipiranga em São Paulo....................151
Figura 16 - Ricardo Amaral do Grupo Senzala Antiga..........................................................177
Figura 17 - Integrantes da bateria do GRCSES Império de Casa Verde em Ensaio
Técnico....................................................................................................................................178
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................06

CAPÍTULO I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.............................................................15


1.1 Diáspora..............................................................................................................................15
1.2 Transculturação e aculturação a partir da diáspora.............................................................33
1.3 Etnicidade/Identidade étnica...............................................................................................40
1.4 O Ritmo como fenômeno multidimensional.......................................................................43

CAPÍTULO II – O CANDOMBLÉ.......................................................................................46
2.1 O candomblé no Brasil: influências iniciais, transformações, ramificações e característi-
cas.............................................................................................................................................46
2.2 Terreiros..............................................................................................................................48
2.3 As nações............................................................................................................................50
2.4 A música: função e sentido coletivo...................................................................................52
2.5 Música como linguagem.....................................................................................................53
2.6 Os instrumentos..................................................................................................................53
2.6.1 O conjunto percussivo tradicional...........................................................................54
2.6.2 Outros instrumentos essenciais ao ritual.................................................................57
2.6.3 Instrumentos secretos...............................................................................................59
2.6.4 Instrumentos “incomuns” à tradição......................................................................59

CAPÍTULO III – AS ESCOLAS DE SAMBA E O CARNAVAL.....................................62


3.1 Panorama............................................................................................................................62
3.2 Os instrumentos..................................................................................................................72
3.2.1 As caixas: caixa em cima, caixa vazada, caixa com talabarte de 14”, tarol e
malacaxeta......................................................................................................................72

CAPÍTULO IV – AS CONEXÕES ENTRE O CANDOMBLÉ E O SAMBA


...................................................................................................................................................80
4.1 Ambiguidades e outros fatores que impactam negativamente em discursos sobre as
conexões entre o candomblé e o samba....................................................................................91
4.2 Sabedoria ancestral, estrutura, significados e características dos rituais..........................105
4.2.1 Sabedoria, funções e reconhecimento do conhecimento ancestral independente de
idade..............................................................................................................................105
4.2.2 Funções extras do cotidiano.................................................................................107
4.2.3 Estrutura do xirê, roteiro de enredo e outras semelhanças.................................111
4.2.4 Instrumentos e construção musical no conjunto percussivo................................112
4.2.5 Prática musical condutora como essência.......................................................... 116
4.2.6 Mito de origem nas práticas e filosofia de vida...................................................119
4.3 Fundamentos.....................................................................................................................123
4.3.1 Elemento ritual.....................................................................................................133
4.3.2 Percussão como linguagem..................................................................................136
4.4 Estratégia de sobrevivência – engenhosidades.................................................................138
4.4.1 Memória e respeito aos antepassados.................................................................138
4.4.2 Identidade.............................................................................................................141
4.4.3 Segredos que retêm o conhecimento....................................................................145
4.4.4 Malandragem.......................................................................................................149
4.4.5 Tradição...............................................................................................................154
4.5 Métodos caracterizados em procedimentos com fim na performance..............................155
4.5.1 Intergeracionalidade, Oralidade, Imitação, Repetição, Educação não formal,
Prática familiar, Relativização do tempo......................................................................155
4.6 Códigos visuais.................................................................................................................172
4.6.1 Imagens, Cores, Vestimentas, Símbolos...............................................................172
4.7 Múltiplas habilidades........................................................................................................178
4.7.1 O corpo sonoro.....................................................................................................178
4.7.2 Pluralidade: ritmo, canto e movimento................................................................181
4.7.3 Flexibilidade no andamento, pulsação e matriz temporal...................................184
4.7.4 Performance: rotatividade pelo número flexível de integrantes e visão
periférica.......................................................................................................................187

CAPÍTULO V – TOQUES E LEVADAS E SEUS PONTOS DE ENCONTRO


ESTRUTURAIS....................................................................................................................195
5.1 Toques estruturais do candomblé da nação Angola e Ketu utilizados nas
baterias....................................................................................................................................195
5.2 Indicação de símbolos notacionais – candomblé: atabaques e gã.....................................197
5.3 Indicação de símbolos notacionais – bateria.....................................................................197
5.4 Toques...............................................................................................................................198
5.4.1 Toques clássicos...................................................................................................198
5.4.2 Toques relacionados, que originam levadas e variações.....................................203
5.4.3 Outros toques........................................................................................................207
5.5 Levadas de repinique e outros instrumentos, derivadas de toques de atabaques e outras
conexões..................................................................................................................................209
5.6 Levadas de caixa em baterias do Rio de Janeiro e São Paulo...........................................216
5.7 Sobreposição das levadas, toques e seus pontos de encontros estruturais........................222
5.8 Transcrições de bossas - 2019/2020.................................................................................230
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................240
REFERÊNCIAS....................................................................................................................246
GLOSSÁRIO.........................................................................................................................259
APÊNDICE A – COMUNIDADE KYLOATALA.............................................................261
APÊNDICE B – BATERIA DO GRCSES IMPÉRIO DE CASA VERDE.....................263
APÊNDICE C – ENTREVISTADOS .................................................................................264
APÊNDICE D – TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTAS REALIZADAS A PARTIR DE
QUESTIONÁRIO SISTEMATIZADO..............................................................................266
 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho analisa pontos de convergência nas relações existentes entre o


candomblé e as escolas de samba em geral e as baterias em particular, partindo da tese de que,
apesar da falta de conhecimento, ou mesmo negação deste fato, existem relações diretas entre
os dois contextos. Nossa tese é de que existe a relação e circularidade de padrões rítmicos que
são utilizados desde o início do surgimento das escolas de samba, sendo que tais referenciais
identitários permaneceriam na musicalidade desenvolvida nas baterias pelo fato de que os
indivíduos de ambas as formações – terreiros e baterias –, circulam, atualmente e em gerações
anteriores, em maior número nesses ambientes, de maneira a utilizar tais padrões como iden-
tidade cultural, mesmo que isto não seja claramente exposto. Nossa hipótese central é de que
isto não é tratado abertamente por alguns motivos: estratégia de sobrevivência, desinteresse
no resgate de uma cultura originária, medo, preconceito, sentido na práxis, entre outros. En-
tendemos que as baterias das escolas de samba são extensões dos terreiros em muitos aspec-
tos, e que o fato deste conhecimento não ser exposto de maneira perceptível – eventualmente
por razões depreciativas históricas de sobreposição de poder de um grupo sobre o outro – di-
ficulta o reconhecimento da relevância dessa produção musical e cultural complexa pós diás-
pora. Ao mesmo tempo, este fato interfere, diretamente, na exposição destes saberes, mesmo
da parte daqueles que os reproduzem e os utilizam como elemento estrutural em suas práticas.
O conceito de ritmo discutido e analisado aqui parte do entendimento de inúmeras
possibilidades de definição além daquelas mais comumente conhecidas. Não se trata, por
exemplo, da ideia simplista de ritmo musical, mas sim de processos humanos e artísticos pe-
dagógicos que ampliam o entendimento do termo, assim como seu alcance multidimensional
e relevância nos contextos aqui discutidos. Musicalmente falando, o ritmo apresenta uma
completude sonora que também pode ser considerada melódica ou polifônica, possível a partir
de complexas combinações de articulações, intensidades, timbres, texturas, nuances e funções
contrapontísticas ou somatórias de cada instrumento e sua resultante sonora na execução de
uma grade rítmica. Além disso, ‘fazer um ritmo (toque ou levada) daquele jeito’, quando dito
por um Mestre de Bateria ou por um alabê, significa uma possibilidade de reconexão ancestral
em equilíbrio com as necessidades técnicas interpretativas altamente complexas intrínsecas a
estes conjuntos percussivos afro brasileiros.
Inicialmente, pensamos que fosse possível tratar apenas de questões musicais de ma-
neira específica, porém, para compreendê-las em suas amplitudes, se fez necessário analisar

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diversas questões sociológicas apresentadas em pontos de cruzamento diversos, onde a músi-


ca é uma ferramenta de formação de valores coletivos. Da mesma maneira, notamos também,
de forma muito evidente, essas formas existenciais dentro das práticas das comunidades aqui
analisadas, nas quais o ritmo é utilizado como meio mnemônico cultural, a partir dos toques
de atabaques utilizados no candomblé e nas levadas de caixa e outros instrumentos das bateri-
as. Em ambas as formações, este vocabulário peculiar funciona como código interno identitá-
rio que tem como base os referenciais trazidos da África.

Figura 1 - Tata Mukambila (Marcos Menezes) afinando os atabaques de cunha na Casa de Angola
Kyloatala

Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro, 18/10/2019.

Observamos que esta conexão se dá a partir de características e sentidos existenciais


encontrados nos pontos de origem da própria África, estes transferidos para o Brasil. Nossa
análise aborda: a) aspectos políticos, b) estratégias de sobrevivência, c) questões étnico-
raciais, d) estratégias de reconhecimento social, e) diferentes sistemáticas existenciais, f) iden-
tidades, g) características de performances artísticas e h) conteúdos técnico-musicais.
A performance desenvolvida nos grupos de percussão envolvem fundamentos musi-
cais e de desenvolvimento integral do ser humano, que determinam conhecimento e fortale-
cimento comunitário dentro da chamada tradição oral ancestral. Analisamos então quais seri-
am esses pontos de encontro rítmicos estruturais entre o que é produzido musicalmente nos
conjuntos percussivos existentes nos terreiros de candomblé – atabaques e gã –, com foco na

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Casa de Angola Kyloatala no município de Embu Guaçu, e nas baterias das escolas de samba,
em especial no GRCSES Império de Casa Verde, a “Barcelona do Samba”.
Muitos elementos rítmicos podem ser utilizados como fundamentos nas baterias e se-
riam oriundos do que é desenvolvido nos terreiros. Estes, automaticamente, reproduzem uma
cultura de resistência, promovida pela diáspora africana no Brasil. Historicamente, parte desta
cultura estabeleceu-se por meio da circularidade de pessoas que frequentavam ambos os am-
bientes, o que tornou-se característica fundamental daquilo que se construiu musicalmente
entre os terreiros e as baterias. Estas, reproduzem uma parte considerável do que herdaram
dessa movimentação, que atualmente inclui outras influências.
O conceito do ritmo como fenômeno multidimensional pode representar a própria co-
nexão entre essas estruturas musicais gerais e seus pontos específicos. Nesse sentido, busca-
mos averiguar se o ritmo teria se tornado uma espécie de fundamento social que determina a
continuação de uma cultura reinventada pelos povos que aqui chegaram via diáspora africana.
Atualmente, não é mais possível separar a música brasileira das características herdadas da
musicalidade africana e pós-diaspórica – afro-brasileira. O ritmo assim, abrangeria a constru-
ção musical identitária do Brasil, aspecto este fortemente derivado dos conceitos trazidos da
polirritmia negra e seus sentidos existenciais.
Ainda assim, pouco se fala de tais relações e heranças, tanto na sociedade brasileira
como um todo, como nos ambientes aqui analisados. Julgamos que a análise desse fato é uma
necessidade premente, vista por nós também como uma espécie de obrigação e reparação mo-
ral, na tentativa de diminuir o que consideramos ser um apagamento cultural estratégico. Afi-
nal, desde o período da diáspora africana na musicalidade brasileira, esta cultura serve como
estrutura social e musical na formação de indivíduos que convivem dentro e fora destes ambi-
entes. No entanto, apesar de determinadas conexões entre o candomblé e o samba, desde o
processo inicial de formação das escolas, por exemplo, muitos apontamentos não referenciam
tais pontos de encontro por diversos motivos. Alguns deles despertaram nossa inquietação em
busca de referidas justificativas.
Sendo assim, levantamos sete questões sobre a falta de reconhecimento destas circula-
ridades nas comunidades envolvidas, e tais questões fundamentaram nossas pesquisas. Por
que os conteúdos rítmicos trazidos do candomblé para as baterias não são expostos ampla-
mente dentro e fora do contexto destas comunidades? Partindo do ponto de que a diáspora
africana representa a própria essência da continuidade cultural africana praticada nos terreiros
e nas escolas, como isso não é reconhecido de maneira clara? Por que isso é um tabu, que
impede, em geral, qualquer explanação de parte de seus atores? Os integrantes dessas comu-

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nidades reconhecem e valorizam essa ancestralidade, visto que elementos representativos ico-
nográficos do candomblé são encontrados em locais estratégicos nas quadras, barracões, car-
ros alegóricos, fantasias, entre outros? Se as relações entre o candomblé e o samba não são
normalmente reconhecidas, por que, anualmente, grande parte das escolas cria enredos e sam-
bas de enredo com letras voltadas para a cosmogonia afroreligiosa? E se de alguma forma,
essa herança diaspórica fosse reconhecida, os integrantes das escolas que têm outra religiosi-
dade saberiam lidar com uma cultura afro-brasileira fundamentada nas religiões de matriz
africana, normalmente vistas de forma depreciativa? O racismo estrutural seria responsável
por todo esse amplo conhecimento ser considerado um tabu e, assim, não estar claramente
exposto, dificultando o entendimento e aceitação desta sabedoria africana permanente no Bra-
sil?
Por outro lado, verificamos que essas conexões existem, dentro de algumas variantes:
1) Algumas pessoas sabem da herança e a valorizam, sem sentir a necessidade de ex-
pressar isto verbalmente;
2) Algumas pessoas sabem e querem esconder; e
3) Algumas pessoas realmente não sabem, mas observam a conexão herdada.
Com base em nossas experiências pessoais e profissionais nos locais investigados ao
longo da pesquisa, trazemos como tese também que a relação específica entre as estruturas
rítmicas dos toques dos ritos do candomblé e os utilizados nas baterias das escolas de samba,
permanece em menor grau do que inicialmente (quando do surgimento das primeiras escolas
de samba), mas ainda fundamenta a estrutura das baterias.
O objetivo geral deste trabalho é estudar o amplo conhecimento rítmico e cultural de-
senvolvido no candomblé, que foi e é transmitido para as baterias, a partir de uma matriz con-
ceitual africana ocasionada pela diáspora negra desde o sistema escravagista. Da mesma for-
ma, analisar comportamentos humanos derivados da migração de pessoas que deixaram para
as suas comunidades atuais um legado histórico-cultural, identitário e político-musical. Ou
seja, procuramos compreender melhor como determinados locais se estabeleceram no sentido
de manter tal herança, averiguando também como os vários envolvidos a compreendem.
Como objetivos específicos, procura-se:
1) Compreender os modos pelos quais os toques são reproduzidos nas baterias, des-
crevendo os encontros estruturais entre os toques realizados nos atabaques e gã e nas levadas
utilizadas nos naipes das baterias, breques e variações;
2) Trazer o conceito multidimensional do ritmo e sua amplitude social, herança diaspó-
rica e marca da coletividade promovida nesses locais;

  9  
 

3) Entender como são representados historicamente e socialmente os elementos trazi-


dos dos candomblés para as escolas de samba.
Naquilo que se refere às concepções da diáspora negra, nosso trabalho se baseou em
conceitos de Hall (2013), Hesse (1971), Pereira (2006), Pinto (2015), Béhague (1994), Graeff
(2015) e Kubik (1979). Stuart Hall aborda questões da diáspora em relação à migração de
indivíduos caribenhos para a Grã-Bretanha no pós-guerra, simbolizando o nascimento da di-
áspora afro-caribenha neste local e suas complexidades. As transformações comportamentais
dos indivíduos analisados por ele nesse processo, nos remeteram à diáspora afro-brasileira.
Hesse (1971) aborda especificamente fatores resultantes da diáspora e, assim como Pereira
(2006), apresenta concepções acerca dos termos transculturação ou transculturalidade, que se
relacionam diretamente com o movimento diaspórico nos seguintes aspectos: musicalidade,
percussão, religiosidade, coletividade e sociedade. Tiago de Oliveira Pinto (2015) trata das
relações estruturais da rítmica afro-brasileira oriundas da diáspora e da relação diversificada
da transculturalidade como característica que transforma a sonoridade, assim como da impor-
tância da performance no contexto sociocultural. Behágue (1992) discute o reconhecimento
destas características e peculiaridades. Nina Graeff (2015) aborda características do ritmo
como fenômeno multidimensional, analisando como estas obedecem a princípios de organiza-
ção específicos em seus contextos culturais e Kubik (1979) discorre sobre questões de ambi-
guidade, da qual também tratamos. Ou seja, ao mesmo tempo que a cultura do ‘continente
mãe’ – África – é cultuada, referenciada e transformada, tem sido, durante muitos anos, igno-
rada.
No que se refere especificamente ao candomblé (Capítulo II), utilizamos conceitos de
Reginaldo Prandi (2001), Pierre Verger (1998) e Angelo Cardoso (2006). Prandi – importante
referência na pesquisa do candomblé no Brasil –, discorre sobre a ideia central de como se dá
a relação dos humanos com os orixás desde a origem do candomblé, analisando vários aspec-
tos da mitologia afroreligiosa. Verger trata de relações em comum e distintas entre o candom-
blé na Bahia e suas semelhanças na África, bem como dos conceitos sobre sua visão a partir
de um ponto de vista – europeu, branco e racionalista – sobre o contexto afroreligioso e Ange-
lo Cardoso (2006) apresenta o conceito da percussão como linguagem, prática intrínseca ao
candomblé e transmitida para as baterias, com forte destaque para as proximidades e similares
entre o vocabulário peculiar do rum e do repinique, assim como as funções destes instrumen-
tos em seus conjuntos percussivos.
Com relação mais específica às escolas de samba, baterias e carnaval (Capítulo III),
utilizamos conceitos de Castro (2016), Pegado (2005), Crecibeni (2000), Moraes (1997) e

  10  
 

Narloch (2009). Rafael Y Castro aborda aspectos sobre linguagem e idioma do instrumento
repinique e posição social a partir da performance instrumental nas baterias. Pegado (2005)
discute como o carnaval brasileiro foi construído historicamente. Crecibeni (2000) analisa
especificamente o carnaval paulistano, tema importante para não se utilizar, de forma perma-
nente, apenas um único modelo, o carioca. Moraes (1997) explora questões políticas sobre
como estabeleceram-se, socialmente, o lugar (status) e o reconhecimento (ou não) da cultura
negra a partir de processos migratórios nas relações entre diversas classes e etnias no carnaval
em São Paulo no período da indústria cafeeira e Narloch (2009) analisa aspectos instituídos
politicamente, fazendo uma crítica ao projeto denominado “Nação”, utilizado para aproveitar
a popularidade do samba como representante de um modelo de sucesso social.
Com relação às transcrições realizadas (Capítulo V), utilizamos conceitos e sistemas
notacionais desenvolvidos por Carlos Stasi, especialista nesse tipo de pesquisa, visando repre-
sentar uma proposta mais coerente em relação às especificidades em transcrições com instru-
mentos de percussão. Estes conceitos são apresentados por autores como Sampaio (2001),
Lacerda (2010), entre outros.
Sobre nosso objeto central de pesquisa – os pontos de encontro rítmicos estruturais en-
tre os conjuntos percussivos do candomblé e das baterias –, não encontramos nenhum traba-
lho que evidenciasse a complexidade destes contextos e suas peculiaridades rítmicas. Exis-
tem publicações histórico-sociológicas e jornalísticas relevantes, mas sem essa abordagem em
específico. De forma geral, em relação à questão dos encontros rítmicos derivados da diáspo-
ra, esse material não demonstra realmente em qual nível apresentam-se estas conexões. Os
exemplos limitam-se, normalmente, ao telecoteco – nome popular dado ao timeline do tambo-
rim no samba, derivado, em sua totalidade, do gã, no cabula do candomblé da nação Angola.
No ano de 2016 trouxemos, em uma dissertação de mestrado, parte dessa complexida-
de do contexto das baterias, a partir do que um instrumento pode representar socialmente com
base na performance de seu executante. Já havíamos então iniciado uma abordagem mais de-
talhada de questões idiomáticas dentro desta linguagem, que por sua vez nos direcionou à
construção de uma notação musical que fosse mais adequada, diferentemente das propostas
apresentadas em publicações do meio musical (principalmente métodos de ensino). Mesmo
avaliando outros modelos de transcrição e considerando a flexibilidade da sonoridade repro-
duzida no contexto, cremos que a notação tradicional é particularmente relevante.
Como parte de nossa metodologia de pesquisa optamos pela seguinte organização:
primeiramente iniciamos nossas análises a partir da revisão bibliográfica, em estudos ligados

  11  
 

ao tema e aos conceitos já estabelecidos. Utilizamos diversos recursos investigativos nos se-
guintes materiais: audiovisuais, livros, métodos de ensino instrumental, artigos, revistas, di-
versas postagens na internet, redes sociais, jornais, periódicos e anais de congressos.
Realizamos entrevistas com pessoas dos terreiros de candomblé e das baterias, assim
como com pessoas externas a estes, com a intenção de obter imparcialidades em possíveis
opiniões distintas ou semelhantes. Utilizamos o formato de entrevistas semiestruturadas que,
desde o início, já nos permitia refletir sobre determinadas questões. Foi realizada a transcrição
na íntegra destas entrevistas, que consta no Apêndice D. Além das entrevistas realizadas a
partir de questionário sistematizado, foram coletados relatos dos participantes dos locais in-
vestigados, de maneira a documentar suas práticas e visões tão importantes para a permanên-
cia desses ambientes. A pesquisa de campo participativa nos possibilitou adentrar em detalhes
profundos de ambos os contextos, no sentido de participar de momentos considerados secre-
tos e muito especiais, cujas peculiaridades não são expostas para o público em geral. Conse-
guimos isso de acordo com o tempo em que vivemos nesses locais, através de participações
ativas e intensas que nos permitiram analisar vários aspectos sociais e culturais, assim como
significados, simbologias e performances, o que evidencia o caráter documental do presente
trabalho.
Com relação ao candomblé, desde o ano de 1995 atuamos como ogã, especialmente na
cidade de São Paulo e, naquilo que se refere ao samba, tivemos passagens importantes como
ritmista pelas seguintes agremiações: Império do Cambuci, Caprichosos da Zona Sul, Barroca
Zona Sul, Imperador do Ipiranga, Tom Maior, Leões de Nova Iguaçu e Mangueira. No mes-
mo período participei de alguns terreiros como convidado de ogãs mais velhos, onde tive e
possibilidade de compreender alguns pontos de conexão já a partir desta época. Há dez anos
toco repinique na bateria do GRCSES Império de Casa Verde e, em setembro de 2019, resolvi
ser iniciado na religião do candomblé. A participação ativa dentro dos dois contextos, além de
entrevistas únicas, também permitiu realizar gravações, em áudio e vídeo, de momentos não
abertos ao público.
Em relação à questão musical, fizemos análises comparativas de excertos utilizados no
candomblé e nas baterias. Para a edição de partituras foi utilizado o programa Finale. O traba-
lho é estruturado em 5 capítulos.
No capítulo I analisamos conceitos sobre diáspora, transculturalidade, aculturação, et-
nicidade e ritmo como fenômeno multidimensional, com base em importantes autores como
Stuart Hall, Tiago de Oliveira Pinto, Fernando Ortiz, Béhague e Graeff, assim como discuti-

  12  
 

mos o amplo reconhecimento e importância da desmistificação de determinados pormenores


que envolvem essa pesquisa.
No capítulo II apresentamos um panorama do candomblé e suas nações: Ketu, Angola,
entre outras. Discuto o conceito de linguagem da música no candomblé como ferramenta de
comunicação a partir de códigos internos trocados entre o ritmo, suas variações e a dança,
evidenciando que tais características foram apropriadas via diáspora e são marcas da musica-
lidade do candomblé transpassadas para as baterias e os passistas2. Destacamos a formação
instrumental existente nesse rito afro-brasileiro e a função de cada um desses instrumentos.
No capítulo III, apresentamos um panorama sobre as escolas de samba e o carnaval
brasileiro, a partir de suas influências desde suas origens. Mostramos como um de seus prin-
cipais elementos estruturais – a bateria – é responsável até pelo surgimento dessas agremia-
ções, como toda a função multidimensional desse corpo musical específico tem como base
fundamentos rítmicos. Este conjunto rítmico é instituído sobre a função de sustentar toda a
movimentação de uma escola em dia de desfile carnavalesco. Abordamos detalhadamente as
características do trabalho, a partir da metodologia dos Mestres, juntamente com os naipes e
as classificações da formação instrumental.
No capítulo IV, evidenciamos as conexões diretas entre elementos do candomblé e das
escolas de samba, dentro de toda a ambiguidade que envolve as relações entre estes contextos.
Detalhamos e dividimos em seções aspectos estruturais que nos mostram quais são os pontos
de convergência entre ambos. Também mostramos as similaridades entre as performances
artísticas destes grupos nos xirês (festas nos terreiros) e os ensaios técnicos e desfiles carnava-
lescos. Observamos uma enorme quantidade de pontos de conexão, em oposição ao que é
normalmente estabelecido. Argumentamos que a minimização deste conhecimento serve para
que não se reconheça a amplitude de tais conexões, assim como o sentido existencial dos in-
divíduos remanescentes das gerações que migraram em diáspora africana para o Brasil, e que
estes mantêm elementos trazidos de seus locais de origem como estratégias de sobrevivência
e reconhecimento social.
No capítulo V, através da notação musical, tratamos especificamente da análise musi-
cal. Este recurso foi utilizado para ilustrar o que já se apresenta como estabelecido a partir da
tradição oral do candomblé para as escolas de samba, partindo do repertório construído para

                                                                                                               
2
Termo utilizado em referência aos integrantes das escolas de samba que possuem o “samba no pé” (habilidade
para dançar).  

  13  
 

os toques dos atabaques e levadas3 dos instrumentos nas baterias. Com esse recurso, pudemos
analisar os pontos de conexões existentes em ambos os contextos. Tais conexões foram ob-
servadas de várias maneiras. Primeiramente, na transcrição musical de cada toque de atabaque
do candomblé que apresentasse maior similaridade com levadas de caixas4 e repiniques na
bateria. Posteriormente, na sobreposição dessas células rítmicas, o que possibilitou verificar
pontos de encontro em cada um desses toques e levadas. Desta forma, mostramos a complexi-
dade de todo esse processo, dentro das funções de cada instrumento, levadas e variações.
Nas Considerações Finais, destacamos as descobertas que respondem às hipóteses ini-
ciais, como por exemplo quais as razões do desconhecimento das relações investigadas e os
níveis desse desconhecimento, apesar de os fundamentos rítmicos serem estruturais nessas
tradições. Observamos como a performance musical é fator determinante na tentativa de rein-
serção e aceitação social e profissional de muitos envolvidos nos cenários investigados. Ob-
servamos que o desenvolvimento humano se dá de maneira integrada com a prática musical,
que promove os indivíduos a partir de fundamentos oriundos da diáspora.
Com o desenvolvimento da tese, observamos que, por muitos anos, muitas escolhas
que determinaram a utilização de alguns padrões nas baterias foram feitas de forma conscien-
te ou inconsciente, através da memória coletiva ou individual de seus atores. Estes, por sua
vez, nos parecem representar a força de todo um conhecimento ancestral e étnico, que revela
uma tentativa de ressignificação da própria existência de uma população oprimida socialmen-
te. Nesse sentido, a utilização do ritmo evidencia-se como ferramenta de desenvolvimento
humano, a partir da performance de seus executantes. Determinados códigos musicais inter-
nos são absorvidos pelas comunidades destas instituições, assim como pelo público simpati-
zante em geral. A relação do ritmo e seus reflexos multidimensionais nos demonstraram mui-
tas questões estratégicas intrínsecas desenvolvidas pelos executantes, fundamentais na forma-
ção histórico-cultural e artística dessas comunidades.

                                                                                                               
3  Levada é um termo popular utilizado por músicos em referência a padrões rítmicos oriundos de conjuntos per-
cussivos tradicionais e transpassados para o instrumento bateria. Quando um  baterista executa uma levada, ele,
na verdade, está simulando um conjunto de percussão. Por outro lado, é comum utilizar o termo em padrões
individuais nas escolas de samba, como no caso das levadas de caixa, repinique, entre outros.  
4  O naipe de caixa pode ser subdividido em diferentes instrumentos, cada um realizando uma levada própria.

Este naipe pode apresentar dois tipos diferentes de padrões/levadas. Enquanto um padrão é considerado conecta-
do aos timelines do candomblé, o outro, normalmente, é considerado como um preenchimento necessário à sus-
tentação do ritmo. Os nomes mais utilizados para as caixas são malacaxeta, tarol e caixa de 14”. Algumas esco-
las utilizam combinações de malacaxetas com tarol e outras de malacaxeta com caixa de 14”. A proporção de
instrumentos quando há duas caixas, é de 20 instrumentos de cada, totalizando 40 por naipe em uma bateria do
Grupo Especial.

  14  
 

CAPÍTULO I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1 Diáspora

A aceitação ou recusa de determinada influência de uma cultura sobre outra, nos con-
textos específicos aqui analisados – candomblés e escolas de samba – fazem necessária a
apresentação e discussão de determinados conceitos de Diáspora sobre os quais nos baseamos
em nosso trabalho. Este termo define a movimentação, voluntária ou forçada, de uma grande
quantidade de indivíduos originários de um determinado local para outras áreas. Este deslo-
camento gera uma série de fenômenos adaptativos, entre eles os chamados pontos de tensão,
naturais ao próprio processo. Ou seja, ao mesmo tempo que o indivíduo que se mudou de um
local para outro necessita transformar-se e reinventar-se para sobreviver, a massa populacio-
nal ali existente apresenta diferentes níveis de aceitação deste mesmo indivíduo.
De forma geral, o termo Diáspora refere-se à dispersão e migração de qualquer povo
ou etnia pelo mundo. Para Stuart Hall, autor internacionalmente reconhecido como relevante
pesquisador da diáspora negra, em especial a migração de populações negras para o Caribe, a
cultura deve ser compreendida como um local crítico, tensionado pela ação social provocada
por uma intervenção instável. As relações de poder determinam conflitos necessários para a
ressignificação de povos em movimento. Na perspectiva de Hall (2018), dentro dos chamados
estudos culturais, o conceito de diáspora se apoia na concepção binária de diferença, numa
fronteira de exclusão que exige a transformação do indivíduo, condição esta forçada pela opo-
sição entre o de dentro e o de fora, ou seja, entre o indivíduo que já estava em determinado
local e aquele que chegou. Nesse sentido, a identidade cultural mesclada necessita da diferen-
ça como lugar de passagem, adaptável de acordo com necessidades locais. O termo se presta
a dar conta, especialmente, dos fenômenos relativos às migrações humanas de ex países colo-
niais para as antigas metrópoles:
O conceito fechado de diáspora se apoia sobre uma concepção binária de diferença.
Está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da constru-
ção de um 'outro' e de uma oposição rígida entre o de dentro e o de fora. Porém as
configurações sincretizadas da identidade cultural requerem a noção derridiana de
différance, uma diferença que não funciona através dos binarismos, fronteiras vela-
das que separam finalmente, mas são também places de passage (lugares de passa-
gem) e significados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de
um espectro sem começo nem fim. (HALL, 2018, p. 36)

Para o autor, um aspecto característico destas movimentações é a carga cultural trazida


como marca de um povo, que inclui um elemento essencial para nossa análise neste trabalho –
o mito:

  15  
 

Possuir uma identidade cultural [...] é estar primordialmente em contato com um nú-
cleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente em uma linha
ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de “tradição”, cujo teste é o
de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma, sua “au-
tenticidade”. É claro, um mito – com todo o potencial real dos nossos mitos domi-
nantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado
às nossas vidas e dar sentido à nossa história. (HALL, 2018, p. 32)

Segundo Hall (2018), os mitos são transistóricos e seu poder seria encontrado no futu-
ro a partir de um passado esquecido. Suas estruturas são cíclicas e, portanto, seu significado é
constantemente transformado. Nesse sentido, poderíamos considerá-lo um fenômeno transcul-
tural.
As instituições aqui investigadas – os terreiros e as baterias – apresentam-se também
como locais de resistência política, abrangendo interesses, expectativas e experiências diver-
sas, centrais nas negociações analisadas por Hall (2018). Do mesmo modo, os já mencionados
pontos de tensão permitem novas ressignificações. Portanto, visualizamos estes locais como
espaços fundamentais para a construção de uma nova identidade em conjunto com a herdada,
já que são locais de constantes reconstruções, definições de práticas e culturas e propostas de
autorreconhecimento. Em ambos os locais, apesar da influência de certos elementos midiáti-
cos ou comerciais, permanece ainda um sentido coletivo apoiado em estruturas musicais her-
dadas, principalmente naquilo que se refere a uma compreensão conceitual da amplitude do
ritmo, tanto no sentido musical (ritmo-melódico) como social.
Segundo historiadores como Nei Lopes, Rafael Galante e Jovino Silva, que conside-
ram o Brasil como o local com a maior presença de africanos fora da África, este movimento
diaspórico trouxe diferentes etnias para o novo território, muitas delas fundamentadas em
culturas altamente percussivas e musicais, no sentido amplo e interdisciplinar do termo – voz,
ritmo e movimento. Nesse sentido, muitos estilos musicais que utilizam a percussão no Brasil,
formados por grupos rítmicos afro-brasileiros (afoxés, maracatus, escolas de samba, entre
outros), são organismos reprodutores de fundamentos que, em grande parte, foram trazidos
pela diáspora negra. Estas manifestações, justamente por serem formadas desde sua fundação
por indivíduos afrodescendentes, mantêm códigos culturais essenciais associados à identidade
cultural ancestral. Durante nossas pesquisas ouvimos vários relatos de pessoas, tanto em ter-
reiros como em escolas de samba, a respeito de familiares escravizados, sugerindo que tais
locais funcionam como centros de resistência e acolhimento social. Para a Fundação Palmares
alguns aspectos essenciais dos indivíduos em diáspora não são apagados, pois parte de sua
cultura, modo de vida e práticas religiosas são utilizados como ferramentas políticas em prol

  16  
 

de uma reconstrução social, exatamente como observamos em nossa pesquisa de campo parti-
cipativa.
Há de considerar que os fenômenos das culturas tradicionais guardam valores mo-
rais, religiosos, políticos, lúdicos, estéticos e outros tantos herdados, e que, portanto,
de alguma forma, refletem a própria história das suas comunidades, repondo o pas-
sado no presente, e sendo então sempre atuais. São práticas aglutinadoras, que repe-
tidas ciclicamente reforçam os valores socialmente aceitos e importantes para os
grupos e indivíduos, vitalizando-os. Por serem fatos preservados e geridos coletiva-
mente, são sempre práticas de identificação e inclusão social, e, até mesmo, de resis-
tência política diante dos problemas que as comunidades enfrentam, assim como fa-
zem frente à avalancha comunicacional cotidiana a que estão submetidas. (IKEDA,
2013, p.185)

Em busca de uma compreensão mais abrangente dos significados analisados na rela-


ção entre os elementos do candomblé e das baterias das escolas de samba, sentimos a necessi-
dade de analisar como os reflexos do movimento da diáspora poderiam determinar ou influ-
enciar esta compreensão, visto que os indivíduos responsáveis pela troca destes elementos
convivem nestes locais e são considerados reprodutores de um conhecimento herdado e trans-
formado, mas que nem sempre é reconhecido de forma clara ou em sua totalidade. Conforme
já apresentado, esta condição relaciona-se diretamente ao que Hall (2018) estabelece sobre o
termo diáspora, que tem como base a “construção de uma fronteira de exclusão que depende
da construção de um 'Outro', assim como de uma oposição rígida entre o ‘de dentro’ e o ‘de
fora’.” (HALL, 2018, p. 36).
Também nos interessamos por analisar quais seriam os reflexos sociais dessa fricção
entre diferenças e grupos. Em outras palavras, o que seria realmente reconhecido em ambien-
tes externos aos contextos analisados – terreiros e escolas de samba – e o quanto este “conhe-
cimento” colabora para o estabelecimento de possíveis compreensões equivocadas ou tenden-
ciosas sobre o próprio fenômeno – a migração de pessoas que trazem uma cultura identitária
que é transformada de diversas maneiras nestes locais. De acordo com o tempo de nossas aná-
lises, reflexões, leituras e entrevistas com pessoas destes contextos, assim como externas aos
mesmos, buscamos entender como tais relações são vistas ou aceitas de forma geral, notando
certos conflitos que corroboram com a falta de compreensão sobre a relevância da herança
cultural diaspórica. Afinal, investigamos algo relacionado a um conjunto social e, portanto,
representativo de significados múltiplos.
Justamente pelo aspecto traumático deste processo – diáspora –, muitos conhecimen-
tos foram, de uma forma ou de outra, preservados como algo que não poderia ser esquecido,
estabelecendo significados relacionais que servem de base para a permanência destas pessoas
em um novo local, lugares de passagem (Hall, 2003). Trata-se da manutenção de certos ele-
mentos identitários como forma de resistência e reconexão com determinados locais de ori-
  17  
 

gem, na tentativa de ressignificá-los estrategicamente como ferramenta de sobrevivência. É


fato, no entanto, como demonstram os casos aqui analisados, que, atualmente, boa parte das
pessoas – normalmente aquelas de gerações mais novas – não reconhecem claramente muito
do que elas mesmas reproduzem e herdam via diáspora. Falamos aqui daqueles que produzem
e desenvolvem os saberes oriundos destas influências – da cultura negra –, e que compõem
grande parte do pensamento percussivo afro-brasileiro, reproduzido nos terreiros e nas bateri-
as.
Outro ponto essencial foi a observação de como se dão os processos de tradição e
transformação, ou seja, como determinadas questões culturais se transformam em relação a
adaptações fundamentais, de acordo com cada época e necessidades sociais. Ao mesmo tempo
que se tenta ressignificar algo dentro de determinada tradição, este processo nos pareceu con-
flitante em relação a eventuais possibilidades de inovação. Dentro dos grupos analisados, ao
mesmo tempo em que há um controle de conteúdo utilizados em suas atividades, existe a ne-
cessidade de inovação. Conforme estabelece Queiroz,
Tradição e transformação constituem conceitos em aparente contradição. O primeiro
pressupõe a continuidade através das idades, portanto permanência nas maneiras de
ser e de fazer; o segundo implica substituição de uma coisa por outra, seja pela tro-
ca, seja pela criação de algo novo. (QUEIROZ, 1992, p. 160)

Os pontos de encontro e suas adaptações são aspectos que permeiam toda a existência
desses grupos. Queiroz (1992) discorre ainda sobre a diferenciação entre conexão rítmica e
seu ponto de origem no carnaval brasileiro – ritual –, e termina por relacioná-lo com manifes-
tações ligadas às religiosidades de matriz africana como o candomblé. Estas, apresentam ca-
racterísticas trazidas via diáspora, especificamente na mistura de tradições africanas – consi-
deradas a base da construção percussiva nas escolas de samba – e europeias.
Conforme já mencionado acima, Hall (2003) discute também questões da diáspora em
relação à migração de indivíduos caribenhos para a Grã-Bretanha no pós-guerra, simbolizan-
do o nascimento da diáspora afro-caribenha neste local e suas complexidades. Apesar de esse
não ser o foco de nosso trabalho, o que nos chama atenção na discussão de Hall (2018) e fun-
damenta nosso trabalho, é o fato de que ele considera que “as nações, não são apenas entida-
des políticas soberanas, mas ‘comunidades imaginadas’” e que tal questão é central “não ape-
nas para seus povos, mas para as artes e culturas que ‘produzem, onde um certo ‘sujeito ima-
ginado’, está em jogo.” (HALL, 2003, p. 28). O objetivo de Hall (2018) é apontar a comple-
xidade de se analisar aspectos herdados, e como estes se transformam e retêm uma identidade
– aquela que teria sido trazida por pessoas via diáspora e que as sustentariam por várias vias –

  18  
 

, assim como o fato de ser difícil representá-la genuinamente sem outras interferências intrín-
secas a este processo ambíguo.
Notamos que parte das pessoas que vieram de determinados lugares da África para o
Brasil via escravização, buscam reconquistar o que teria sido perdido neste movimento dias-
pórico, contribuindo para a somatória de uma nova cultura local, já que houve uma diversida-
de de povos que somaram suas especificidades e criaram uma nova cultura somente aqui. A
utilização deste conhecimento, em prol de uma tentativa de reconexão com o local de origem
imaginado, de reconstrução de uma identidade, ocorre de várias maneiras. Nos casos aqui
estudados, a própria linguagem se faz presente nesta reconexão, mantendo-se como base de
uma apropriação evidenciada através da utilização de determinados termos nos terreiros de
candomblé. Termos como Angola, Bantu, Rainha Ginga, Orixás e Candomblé, os quais fazem
parte de um sistema de reconhecimento e reconexão com a cultura ancestral afro-brasileira,
apontam para a confluência entre práticas, saberes e sentidos, num processo aqui denominado
de “circularidade” entre terreiros e baterias de escolas de samba. Do mesmo modo, são muitas
as referências utilizadas em letras de enredo que nos remetem à linguagem trazida e funda-
mentada nestes locais. Além disso, nos interessa considerar como estes elementos são tratados
e utilizados dentro da multiplicidade apontada por Hall (2018). O depoimento abaixo nos pa-
receu marcante em relação a esta questão, deixando clara a ideia de uma reconquista de iden-
tidade oriunda via diáspora:
Sou nascido no interior de Minas Gerais, fruto de uma mistura de cores e culturas
que é o nosso Brasil. Sou Angola em Português, por parte de meu pai, e Bantu... por
parte de minha mãe. Tenho em mim os sons dos tambores de guerra da rainha Gin-
ga, a guerreira maior, e que hoje é o exemplo do povo angolano para a sua unifica-
ção, e claro, está em mim o toque dos Orixás de todas as nações. (CANTERO, 2014,
p. 8)

Este depoimento de Jorge Luiz Cantero, pesquisador e radialista negro, nos traz diver-
sas relações com o que estamos tratando, como por exemplo o reconhecimento de uma cultura
herdada via diáspora identificada em alguns estados brasileiros. Minas Gerais, por exemplo, é
uma região com africanos oriundos de países da cultura Bantu (Congo, Angola, povos Kim-
bundos, Ovimbundos e muitos outros), cultura esta que também é herdada e utilizada no can-
domblé de Angola brasileiro que investigamos neste trabalho. Outro marco desse encontro ou
troca de saberes, é facilmente identificado nas letras das cantigas e toques dos atabaques utili-
zados nos mais variados rituais religiosos desta nação. Neste sentido, o termo “Angola”, ao
qual o autor se refere, além de ser um local sustentado por esta cultura – a Bantu –, nos reme-
te a uma real referência e troca entre Brasil e África, presente em enredos de compositores
como Martinho da Vila, Alcione e muitos outros.

  19  
 

Outro exemplo não especificamente relacionado ao tema central deste trabalho, seria a
Capoeira de Angola, que para nós representa também um ponto de confluência relacionado ao
movimento diaspórico, principalmente naquilo que se refere à sua ressignificação no Brasil.
Além disso, observamos também que a Rainha Ginga é um referencial de poder para
os indivíduos afrodescendentes no Brasil, assim como vários outros nomes que servem como
exemplo de luta pela aceitação desta cultura. Do mesmo modo, os orixás também representam
uma conexão direta com o imaginário identitário negro aqui analisado, já que todos eles são
cultuados e imaginados no Brasil como representantes simbólicos de um poder espiritual an-
cestral. Mesmo não sendo visíveis, por serem considerados seres encantados ou, segundo Pi-
erre Verger (1998), compreendidos como fragmentos da natureza, servem como símbolos
arquetípicos da própria cultura diaspórica cultuada aqui, não somente nos terreiros, mas for-
temente nas escolas de samba como um todo. Isso é facilmente identificado na escolha de
temas de enredo e sambas dos desfiles de carnaval, que anualmente abordam as mais distintas
divindades.
No capítulo específico sobre o candomblé, explicaremos todas essas características e
diferenças entre o candomblé brasileiro e o vodun africano, religiosidade que deu origem ao
candomblé mas que utiliza os orixás de outra forma, o que também nos mostra como grande
parte deste conhecimento é apropriado, mantido e transformado de maneiras distintas e natu-
rais aos processos de reafirmações identitárias via diáspora.
Pensar a diáspora é entrar em um jogo de interesses, estratégias e adequações suporta-
das por diversos conjuntos sociais em busca de uma nova atuação coletiva. Nesse sentido, tais
conjuntos se transformariam por diversas vias, desde aquelas que se tornaram mais necessá-
rias na busca de uma nova ressignificação de simbologias, àquelas relacionadas a tentativas de
conquista de uma maior reafirmação social, dentro do próprio coletivo. Segundo Ikeda,
(...) o fazer musical sempre se vinculou às mais variadas práticas, (...) fazendo-se
presente nas atividades religiosas, nos momentos solenes e de exaltação coletiva, no
trabalho, na educação, nas expressões dramáticas e coreográficas, servindo à demar-
cação identitária de pessoas, grupos e povos e tantos vínculos mais. (IKEDA, 2001,
p.1)

Utilizamos também alguns conceitos de Moore (2012), pertinentes à nossa discussão


atual sobre o fenômeno da diáspora. Além de apresentar três elementos centrais à compreen-
são da diáspora, a saber: a) deslocamento traumático, b) identificação com o local de origem e
c) manutenção de uma identidade, diferente da local, que se forma através da junção com
grupos de indivíduos com semelhantes origens culturais ou de outra característica e influên-
cias, estes já situados previamente nos locais de encontro, Moore (2012) afirma que é neces-

  20  
 

sário pensar no conceito de “diáspora da diáspora” pois, ao investigar a migração de africanos


para o Caribe ele se deparou justamente com a falta de reconhecimento ou identificação de
várias pessoas com determinada cultura herdada ou local de origem, nesse caso também a
África: “Os residentes afro-caribenhos não necessariamente se identificam como um grupo
unificado ou concebem a África como sua casa” (MOORE, 2012, p. 306).
Essa condição é muito próxima daquilo que acontece, de certa forma, no Brasil. Con-
forme já dito, consideramos que essa é uma das características apresentadas por boa parte de
pessoas entrevistadas, assim como de determinadas referências analisadas, sendo o motivo
central para a não aceitação ou reconhecimento da relação de origem com uma cultura anteri-
or. Nos perguntamos se essa não seria uma estratégia de se tentar estabelecer outros níveis de
status social, por meio de conexões com outras culturas mais aceitas que representam certa
superioridade em relação àquilo considerado como negro e africano em geral. Isso porque
grande parte dos discursos – comuns e simplistas – são carregados de preconceitos, estabele-
cendo determinado status social de acordo com locais específicos. Um dos motivos, seria o
próprio evento colonialista. Por sermos um povo colonizado, ainda temos resquícios de certos
comportamentos, como o possível costume de ser oprimido. Como fazem parte da cultura
negra pessoas consideradas menos favorecidas, elas mesmas podem ser alvo de subestimação,
já que seus principais atores poderiam ser vistos como pessoas que deveriam servir a outras
classes.
Nesse sentido, é comum que os negros trabalhem para os brancos, não o contrário.
Portanto, a cultura africana como um todo pode ser depreciada. Estes mesmos indivíduos que
seriam alvos de preconceito, por exemplo, acabam se referindo a qualquer pessoa por meio do
termo “patrão”, mesmo não existindo esse vínculo direto entre as partes. Trata-se de um hábi-
to que determina inferioridade por parte de quem utiliza esse discurso, uma espécie de sub-
missão a alguém melhor. Cremos ser este um exemplo cotidiano daquilo que é associado
normalmente aos indivíduos afrodescendentes, os mesmos que vieram via diáspora e susten-
tam as práticas e todo o conhecimento do candomblé e das baterias. Outro exemplo seria o
fato de que, no contexto específico das escolas de samba, é comum encontrarmos alguém que
toca em uma bateria, ou participa de algum setor da instituição, cuidando de carros ao redor
das quadras em dias de ensaio. Essas pessoas, em geral, se sentem subestimadas socialmente,
pois aqueles que normalmente chegam com carros para os ensaios são as pessoas com melho-
res condições – geralmente brancas. Nesse exemplo, especificamente, pode-se entrever que
um ritmista que produz a cultura diaspórica teria menos valor do que aqueles que chegam
para apreciar o ensaio em seus carros, algumas vezes até luxuosos.

  21  
 

As diferenças sociais demonstram-se de diversas maneiras. E ao mesmo tempo, na


própria escola de samba, muitos desses indivíduos não são reconhecidos amplamente por suas
potencialidades artísticas. Não queremos dizer que isto ocorre somente dessa forma, porém é
mais difícil que ocorram tais diferenças com as pessoas brancas. Aquilo que ocorreu no pas-
sado – na escravização – se repete em outros formatos, os quais estabelecem lugares diferen-
ciados para uns em relação a outros. A cultura produzida pelos negros pode apresentar, facil-
mente, um status social menor do que outras, exatamente pelo motivo de subestimação das
pessoas que a produzem, o que foi estabelecido durante muitos anos no Brasil. Além disso, a
cultura negra é também alvo de associações e distorções midiáticas que não representam sua
complexidade. Do mesmo modo, são muitos os exemplos do cotidiano que nos mostram o
racismo no Brasil, permitindo que a cultura produzida por estes indivíduos nestes locais seja
subestimada pelo consenso público generalizado. Silva (2005) nos traz suas impressões a res-
peito, a partir de pesquisas sobre a subestimação histórica da cultura africana no Brasil, assim
como da importância de seus significados para alguns grupos e manifestações, como no caso
dos quilombos.
Se por um lado, na História oficial e nos livros didáticos, a África é representada por
um vazio, por outro, para os afro-descendentes são redes feitas de fios descontínuos
de memórias e esperanças por melhores dias. A África no Brasil é parte de uma His-
tória negada. São memórias fragmentárias e múltiplas que alimentam práticas políti-
cas, religiosas e culturais, estando presentes no cotidiano e em eventos pontuais que
recriam identidades. São estas identidades que estão em processo de construção e
movimento quando se trata dos remanescentes de quilombolas em luta pela titulação
de terras ancestralmente ocupadas. São identidades históricas e igualmente contras-
tivas que emergem quando se fala na juventude negra urbana, questionando por
meio de sua cultura musical a violência policial da qual são as vítimas preferenciais.
(SILVA, 2005, p. 99-100)

Além dos quilombos, outros locais complementam essa resistência, na tentativa de um


reconhecimento e permanência cultural. São justamente as escolas de samba e os terreiros
aqui analisados, principalmente no que se refere à ligação dos fundamentos metodológicos
existenciais de um para o outro.
Silva (2005) também trata da perseguição policial que extermina jovens negros nas pe-
riferias, tema apresentado diariamente em noticiários e mídias. Nesse sentido, esses jovens
são expostos a partir do preconceito e da associação da cor do ser humano como um perigo
constante. No caso do presente trabalho, julgamos que este assunto representa, de forma dire-
ta, um dos motivos da falta de interesse e compreensão da cultura oriunda da diáspora. Essas
falas foram institucionalmente construídas e reproduzidas através do tempo, criando um dis-
curso depreciativo no conjunto de conhecimentos trazidos pelos indivíduos que foram escra-
vizados.

  22  
 

Outros fatores que também nos mostram certa depreciação do conhecimento africano
no Brasil, diretamente relacionados aos terreiros e escolas de samba, são: a) a localização e
estrutura dos locais onde tais manifestações acontecem, b) a falta de segurança, vista como
uma ameaça para o público acessar tais locais, c) a associação do samba e do povo de santo
com algo marginalizado, d) a oralidade, entendida como uma cultura menor em relação àque-
las estabelecidas pelo texto ou pela academia como um todo, salvo algumas pequenas exce-
ções, e) os chamados subempregos, com a estipulação dos menores salários para os indiví-
duos afrodescendentes, já que estes possuem uma formação escolar deficiente e, portanto, não
teriam condições de competitividade com outros (predominantemente brancos), f) a associa-
ção direta do candomblé com algo demoníaco, estabelecida estrategicamente por outras reli-
giões como tentativa de dominação de fiéis (Exu = Diabo), g) os processos metodológicos da
tradição oral, utilizados no ensino e aprendizagem, pedagógicos e artísticos nestes locais e
que são associados com algo menos desenvolvido, mais primitivo, menos refinado, em rela-
ção a outros. Tudo isso, em conjunto com outros fatores – como os midiáticos, associados a
toda uma subestimação de uma cultura complexa não reconhecida em sua amplitude, sim-
plesmente por ser produzida por negros –, dificulta uma maior compreensão ou aceitação do
conhecimento diaspórico, resultando em sua depreciação, assim como na recusa de determi-
nada “herança cultural” que, como já apontado acima, não é reconhecida por grande parte dos
agentes envolvidos em todo esse processo por fatores estratégicos de sobrevivência.
Algo que acentua ainda mais essa discussão, é o fato de que, ao mesmo tempo que um
indivíduo negro utiliza ferramentas de marcas de sua herança – como o corte de cabelo, ves-
timentas, trejeitos, postura, apropriação e empoderamento de suas origens –, outro indivíduo
pertencente à mesma origem, portanto com as mesmas, ou parecidas heranças culturais, pode
não se reconhecer, ou ser reconhecido, como negro. Assim, é muito comum a discussão sobre
a questão da pele retinta que determina níveis de intensidade da cor negra, reconhecida e vali-
dada somente naqueles indivíduos totalmente negros, com intensidade da cor preta em suas
peles. Estes, por sua vez, seriam reconhecidos como os verdadeiros mantenedores de uma
cultura africana. Portanto, com base neste ponto de vista, não basta ser negro, mas sim total-
mente preto.
No ano de 2019, por exemplo, a cantora Fabiana Cozza, considerada uma pessoa afro-
descendente – termo indicado para se dirigir às pessoas de cor negra no Brasil –, foi convida-
da para representar a cantora Ivone Lara em um musical. No mesmo período, ela foi alvo de
diversos ataques por parte de pessoas negras que não a reconheciam como representante da
negritude. O fato se deu porque ela não teria uma tonalidade de cor preta forte o bastante para

  23  
 

tal papel. Também ocorre que muitos indivíduos negros não se reconhecem como pretos, já
que há um custo muito alto em bancar essa identidade no Brasil. Nesse sentido, quando a pes-
soa não tem uma tonalidade de pele forte, parece mais conveniente não reconhecer-se como
preta, já que de uma forma ou de outra é constrangedor assumir isso socialmente.
Por outro lado, os movimentos negros buscam uma identificação com a chamada bele-
za negra, que deve ser reconhecida como ferramenta de reforço cultural próprio, oposta ao
que foi estabelecido como referência pela indústria da moda, por exemplo. De forma geral,
cremos que todos esses fatores interferem, em determinados níveis, na falta de reconhecimen-
to da cultura afro-brasileira, já que, de fato, para muitos é bastante difícil assumir uma cor que
é alvo constante de preconceito social. Observamos isso em alguns de nossos depoimentos,
uma certa recusa à própria origem. Entendemos que seria muito mais fácil para algumas des-
sas pessoas dizer que é branca, apenas pelo fato de não ter uma intensidade de destaque na cor
preta, o que seria uma estratégia de busca de uma maior aceitação social.
Assim, ao mesmo tempo que nossa pesquisa nos mostrava uma possível aceitação de
determinada origem africana, apontava também justamente o contrário, o que faz referência
ao conceito de ambiguidade que será melhor discutido no Capítulo IV. Buscamos então en-
tender os motivos da condição de ambiguidade através dos conceitos apresentados por Moore
(2012), em relação ao não reconhecimento cultural de um local de origem, o que de fato nos
motivou em busca de uma compreensão sobre as variantes escolhidas ou impostas socialmen-
te sobre o conhecimento herdado via diáspora. Neste sentido, notamos que existe uma reali-
dade cultural muito forte, promovida pelos terreiros e baterias de escolas de samba. Tratamos
especificamente de conexões herdadas da África que se ressignificam nos pensamentos, práti-
cas e resultados sonoros daquilo que é desenvolvido no conjunto percussivo do candomblé
(Nação Angola e Ketu) e mantido nas baterias. Nesse processo, intensificamos e especifica-
mos nossas pesquisas na Casa de Angola Kyloatala (Angola), Ilê de Oxalufã (Ketu) e na bate-
ria do GRCSES Império de Casa Verde, todos localizados na cidade de São Paulo.
No entanto, para alcançarmos outros níveis de reflexão e discussão, tivemos a necessi-
dade de complementar nossa investigação e análise em outras baterias e terreiros localizados
em outros estados, justamente pelo fato de eles serem influenciados pelo movimento da diás-
pora e também serem reconhecidos por influenciarem diretamente outros grupos, inclusive
aqueles primeiramente analisados em São Paulo. A Bahia e o Rio de Janeiro, por exemplo,
são responsáveis pela reprodução de saberes e sentidos culturais herdados da diáspora em São
Paulo. No caso da Bahia, por ser considerada culturalmente como “a própria África” - pela
quantidade de habitantes afrodescendentes e pela musicalidade produzida com a percussão

  24  
 

dentro e fora dos terreiros –, e no caso do Rio de Janeiro, por herdar sua produção percussiva
dos terreiros de candomblé, apresentar clara representatividade social referente a esta cone-
xão, estabelecer o que é produzido para o carnaval – local de transbordamento cultural dias-
pórico afro-brasileiro –, e por tudo aquilo que é produzido musicalmente nas baterias.
O Rio de Janeiro é a pátria por excelência do Carnaval Brasileiro. Seu papel de nú-
cleo disseminador de folguedos data do século XIX. (...) tornou-se portanto o centro
de difusão de novidades para as diferentes províncias – incluídas as novidades car-
navalescas. (QUEIROZ, 1992, p. 24)

No contexto aqui apresentado, a reconhecida Tia Ciata apresenta-se também como


uma das principais responsáveis pela continuação do movimento e transição cultural diaspóri-
ca entre África, Bahia, Rio de Janeiro e, sequencialmente, São Paulo.
Do mesmo modo, ocorrem outras influências que apontam relações que representam
parte dessa herança, mesmo que não seja no sentido musical mais direto. É o caso, por exem-
plo, da ala das baianas, setor que, desde a década de 20, é considerado como responsável pela
marca e visualização do encontro entre os terreiros e as escolas de samba. Mesmo não sendo
central no nosso trabalho – focado nas relações musicais –, a análise da ala das baianas nos
mostra como há muitas conexões que complementam e comprovam parte das relações inves-
tigadas aqui dentro do universo religioso afro-brasileiro, e que compõe grande parte do que é
produzido nas baterias. A ala das baianas é item obrigatório em uma escola de samba, ou seja,
não pode faltar em um desfile, mesmo sem ser pontuada no julgamento do Carnaval, o que
mostra o tamanho da sua representatividade como um todo, já que tal ala inicialmente era
formada por mães de santo – as chamadas “Tias Baianas” –, consideradas responsáveis pelo
próprio início do samba:
No início do século XIX, a proibição de grupos dançantes e de carros alegóricos nas
procissões religiosas privava o povo de um prazer estético e teatral que ele muito
prezava (...) Muito mais tarde, como parte integrante das escolas de samba desde a
primeira aparição destas, é encontrada uma ala de baianas vestida à moda tradicio-
nal; componente obrigatório de todas as escolas, o grupo reúne as mais antigas das
componentes, consideradas testemunhas vivas do passado carnavalesco. (QUEI-
ROZ, 1992, p. 175)

A ala das baianas é um setor de extrema representatividade para a transmissão dos sa-
beres e significados afroreligiosos dos terreiros para as escolas, instituições utilizadas como
ferramentas de legitimação da cultura diaspórica ressignificada. Queiroz (1992), a partir de
Bastide, aponta que as escolas de samba almejavam, de uma certa forma, essa legitimação,
apresentando-se como um “centro fixo e firme que os preserva do desaparecimento, por lhes
oferecerem a solidariedade e a disciplina indispensáveis para a sua continuidade”. (QUEI-
ROZ, 1992, p. 176).

  25  
 

O que nos interessa mais especificamente neste ponto, além da influência em diversos
setores das escolas, é a absorção de elementos em comum trazidos do candomblé para a esco-
la de samba. Conforme já observado acima, refletindo sobre a falta de compreensão geral so-
bre a complexidade cultural e musical promovida por essa herança, concluímos que os ambi-
entes aqui estudados estão classificados de maneira menor, de acordo com a representativida-
de promovida por eles. Nesse sentido voltamos ao conceito de Hall (2003), no qual as “comu-
nidades e sujeitos imaginados” tornam-se pontos determinantes para uma melhor compreen-
são daquilo que representam socialmente, mesmo que o conhecimento promovido por eles
não seja reconhecido ou utilizado, ou mesmo seja depreciado ou minimizado em suas poten-
cialidades. O próprio contexto religioso já determina alguns julgamentos externos que podem
subestimar a produção cultural produzida por estes sujeitos nos terreiros.
Nesse sentido, é preciso refletir sobre questões dogmáticas que identificam alguns
ambientes religiosos, assim como aquilo que é produzido musicalmente nestes locais – terrei-
ros e escolas de samba –, como deficientes. Atualmente, há uma falta de cuidado em analisar
a complexidade e necessidade deste conhecimento para os herdeiros do movimento diaspóri-
co, responsável por grande parte da musicalidade afro-brasileira. As pessoas envolvidas na
migração passaram por processos de modificação e atuação, transformando-se dentro de um
sistema visto como necessário para sua própria existência e pela própria migração. Há uma
espécie de jogo de negociações necessário à própria sobrevivência dessas pessoas, o que se
apresenta como justificativa para determinadas ambiguidades apontadas no trabalho. Ao nos-
so ver, isso resulta de imagens da essência cultural destes povos que foram construídas de
forma distorcida. Por outro lado, também é muito complexo julgar esse tipo de transformação,
já que para determinados processos evolutivos ocorrem também necessidades adaptativas que
podem reinventar sentidos. Ou seja, aquilo que funciona em determinado período histórico-
social pode não funcionar tão bem assim em outro, já que os distintos significados são sempre
posicionais e relacionais (Hall, 2008).
Outro importante pesquisador que trata da movimentação da cultura negra é John
Storm Roberts (1972), que analisa reflexos dessas migrações culturais e suas variantes em
alguns continentes, como a América. As influências dessa movimentação desde a origem do
jazz e do blues, assim como do samba brasileiro, são destaques em suas pesquisas5. Um dos
pontos realçados por ele e já apresentado acima, é aquele da confusão entre etnia e cor, ou
seja, a atribuição de raça no lugar de cor, o que vemos como um erro básico, já que algumas
                                                                                                               
5
Lembramos também de um nome referencial sobre as musicalidades brasileiras populares que, segundo nossas
reflexões, influenciou diretamente Roberts em suas conceituações: José Ramos Tinhorão.

  26  
 

características físicas representam o humano como um todo e não as diferenças entre eles.
Roberts (1972) analisa também o equívoco reproduzido e utilizado no ensino infantil da His-
tória, que representa uma distorção do entendimento real das culturas e pessoas determinadas
como mulatas (termo considerado equivocado atualmente) ou pardas, termos que, ao mesmo
tempo que tentam expressar a mescla entre o branco, o negro e o índio, também não permitem
reconhecer uma pessoa na sua essência. Na verdade, alguns termos sempre foram equivoca-
dos e, apenas atualmente, é que existe uma preocupação maior com essa questão, a partir de
diversos movimentos que buscam o reconhecimento das potencialidades étnicas, assim como
os significados de suas práticas culturais.
Nesse sentido, ser preto – um dos termos também sugeridos por esses movimentos –,
seria motivo de orgulho, e não corroboraria com diversas depreciações hoje consideradas ul-
trapassadas. Através da utilização de termos que não representam determinadas etnias, torna-
se difícil reconhecê-las e, portanto, compreender a própria cultura trazida por elas.
O termo negro em si, como qualquer termo racial, é vago. Os países da América do
Sul geralmente dividem as pessoas em várias categorias: branco, mulato, preto, indi-
ano e mestiço. Mas no Brasil, mulatos e mestiços são agrupados como "pardos". Isso
causa problemas quando se tenta estabelecer laços culturais entre grupos6. (RO-
BERTS, 1974, p. 72, tradução nossa)

Já para Béhague (1994) o termo ‘black’ discutido por Roberts (1972), possui também
um passado pejorativo e tem servido à depreciação de negros em diversos locais, já que se
estabeleceu como sinônimo de coisas ruins associadas às pessoas pretas. Esse processo fica
evidente no uso de expressões como “…Black Death for the bubonic plague, black market,
black cat, black magic, black sheep, to blackmail, blacklist, blackout, black widow, black
spot, and so on” (Béhague, 1994, p. 23-24). Neste sentido, o termo black magic (magia negra)
também é utilizado no Brasil por lideranças religiosas opostas às de matriz afro, no sentido de
depreciar o conhecimento cultural destas religiosidades, criando um discurso social que as
coloca em um lugar (status) menor em relação a outras.
Roberts (1972) nos apresenta possíveis distorções em relação à cultura negra, a partir
de deturpações e conceituações étnicas opressoras, que ao nosso ver, podem representar o
afastamento e apagamento social que compõem nosso objeto central de estudo. Nota-se então
ser difícil reconhecer identidades, pois essas classificações além de distorcerem a real cor e
também provável origem de grupos em diáspora, também colaboram para a não aceitação ou

                                                                                                               
6
The term black itself, like any racial term, is vague. South American countries generally divide people into
several categories: white, mulatto, black, indian, and mestizo. But in Brazil, mulattos and mestizos are lumped
together as “pardos”. This causes problems when one tries to establish cultural links between groups (ROB-
ERTS, 1974, p. 72).

  27  
 

conscientização de uma provável cultura de origem. Dessa forma, terminam por contribuir
fortemente para a continuidade do que chamamos de apagamento ou sufocamento identitário
e étnico.
Ampliando sua análise, Roberts (1972) diz que a música indígena brasileira também
possui fortes influências da música africana. Sabemos, por exemplo, que algumas musicalida-
des como o caso dos Caiapós e do Boi Garantido e Caprichoso, também apresentam uma
mescla entre a herança africana e indígena. Segundo Rafael Galante (2015), algumas influên-
cias ocorreram através de certo sincretismo, pelo qual a utilização de elementos pertencentes a
determinado grupo mais aceito poderia ser uma estratégia de aceitação social, muitas vezes a
única. Dessa forma, os indivíduos afrodescendentes7, em determinados períodos, como no
pós-escravidão, utilizavam a cultura indígena como escudo social para sobreviverem, obser-
vando que “Elementos característicos da música indígena brasileira eram semelhantes aos
elementos básicos nos estilos africanos: canto de chamada e resposta, uma ampla variedade de
assuntos, danças em grupo ou rituais e o uso dos chocalhos na música8” (ROBERTS, 1972, p.
72, tradução nossa).
Ao mesmo tempo, Roberts (1972) atribui influências rítmicas à musicalidade brasileira
que a diferenciam da portuguesa, pela utilização de elementos rítmicos derivados da África
Ocidental e Central:
Grande parte da diferença decidida entre os estilos melódicos português e brasileiro
parece resultar do uso brasileiro de uma abordagem rítmica frequentemente sinco-
pada e mais complexa, com acentuações deslocadas e ritmos cruzados diante da per-
cussão, características da técnica da África Ocidental e Central9. (ROBERTS, 1972,
p. 74, tradução nossa)

Ou seja, o aspecto que mostraria maior diferenciação seria o rítmico, mais especifica-
mente a síncopa, como única possibilidade de compreensão e simplificação da produção mu-
sical percussiva da África. Por outro lado, apesar de esta ser uma provável herança, a síncopa
também ocorre em outros países. Do mesmo modo, não basta apenas referenciar a influência
da rítmica africana sob esse aspecto, seria uma redução muito simplista relacionar a herança
rítmica diaspórica somente à síncopa. Na verdade, são muitos os pontos referenciais herdados,
                                                                                                               
7  Este
termo é indicado conceitualmente por estudiosos sobre questões raciais para se referir aos indivíduos afro-
descendentes de maneira menos pejorativa, considerando potencializar a origem histórica de pessoas e suas he-
ranças étnicas. Dessa maneira, procura-se contrapor e superar possíveis subestimações ou indiferenças, a partir
de qualificações estabelecidas por meio de termos considerados ultrapassados, como o caso de raça ou cor.  
8
“Characteristic elements of Brazilian Indian music were similar to basic elements in Africans styles: call-and-
response singing, a wide variety of subject matter, a group or ritual dances, and the use the rattles in music
(ROBERTS, 1974, p. 72)”.
9
Much of the decided difference between Portuguese and Brazilian melodic styles seems to stem from the Bra-
zilian use of a frequently syncopated and more complex rhythmic approach with displaced accentuations and
cross-rhythms against the percussion, all features of West and Central African technique (ROBERTS, 1974, p.
74).

  28  
 

como por exemplo o pensamento percussivo coletivo bastante representado nos conjuntos
rítmicos afro-brasileiros.
Roberts (1972) também discute a influência da cultura Bantu (Congo – Angola) na
Congada Mineira, no roteiro do chamado cortejo. No entanto, para os objetivos do nosso tra-
balho, observamos que esta influência da cultura Bantu é muito mais ampla, já que é funda-
mento do candomblé de Nação Angola e produz elementos musicais centrais de referência
para diversos estilos e artistas brasileiros, juntamente com a Yorubá. No capítulo V detalha-
remos, em seções específicas, os pontos de encontro descobertos nas estruturas rítmicas e suas
derivações transmitidas do candomblé para as baterias, influências diretas da musicalidade
africana.
Ainda segundo Roberts (1972), o cinema também contribui como referência da cultura
negra, como é o caso do filme Orfeu Negro e sua associação com a percussão africana:
O samba das favelas, música de força polirrítmica devastadora, proporcionou grande
parte do impacto auditivo do filme Orfeu Negro, cuja trilha sonora dá uma impres-
são do poder dos tambores e da dança afro-americanas10. (ROBERTS, 1974, p. 76,
tradução nossa)

Este filme foi realizado em uma comunidade carioca, típico ambiente periférico tam-
bém conhecido como “morro”, com alta produção cultural derivada de habitantes afrodescen-
dentes com menor status social. Os morros são locais culturalmente fortes e cercados por es-
colas de samba e terreiros, sendo que muitos ogãs e ritmistas são oriundos destes locais e pro-
duzem a cultura afro-brasileira de geração em geração. Já no filme Cidade de Deus, também
filmado em favelas e morros com predominância de negros, há uma cena do protagonista Zé
Pequeno na qual ele consulta um orixá (Exu) para planejar quais seriam as suas futuras ações.
Este é um exemplo clássico da aceitação e realidade de parte da população ligada à religiosi-
dade do candomblé, muito presente em áreas mais carentes, com pessoas em vulnerabilidade
social. É por isso que, usualmente, notamos o uso do ditado popular “Psicólogo de pobre é
Pai de santo” e expressões como “Macumba é um ponto de lazer para o povo que não tem
estrutura social”.
Roberts (1972) também enfatiza o reconhecimento do lundu11 como primeiro ritmo
brasileiro a ser reconhecido pela classe média como derivado da África, o que nos mostraria
uma possível aceitação dessa origem diaspórica, oposta à recusa que sustentamos: “O lundú
                                                                                                               
10  The
samba of the slums, music of devastating polyrhythmic drive, provided much of the aural impact of the
film Black Orpheus, whose sound track gives some impression of the sheer power of Afro-American drumming
and dancing (ROBERTS, 1972, p. 76).  
11
Ver página 234 - frase rítmica do atabaque lé no ijexá. O resultado sonoro é idêntico, porém neste exemplo soa
de forma desdobrada. Para a compreensão da célula rítmica do lundu é necessário transformar a semínima do
ijexá em colcheia e as duas colcheias em duas semicolcheias.

  29  
 

foi a primeira música de origem africana aceita pela burguesia brasileira12” (ROBERTS, 1972,
p. 78, tradução nossa). Porém, é necessário observar que alguns compositores também utiliza-
vam estratégias de aceitação social, modificando o nome de ritmos realizados em suas com-
posições. Ernesto Nazareth, por exemplo, optava por escolher termos socialmente mais acei-
táveis para alguns estilos, como no caso da troca do termo maxixe por tango brasileiro. Essas
escolhas se faziam porque tudo o que fosse associado à dimensão cultural africana – danças,
batuques e cantorias –, poderia ser entendido como algo lascivo que pudesse deturpar a ordem
pública. Sendo assim, no caso do maxixe, seria mais bonito referenciá-lo ao tango, já que este
sim era um ritmo considerado sofisticado e importante. Essa prática sempre permeou a depre-
ciação da cultura negra, constantemente relacionada com algo marginalizado.
Dessa forma, a escolha e mudança de termos para alguns ritmos apresenta-se como
uma necessidade para sua aceitação, como foi feito, segundo alguns entrevistados, com a mu-
sicalidade desenvolvida nos terreiros e apropriada pelas escolas de samba – instituições de
legitimação da cultura negra sufocada. Ou seja, com base nesses depoimentos, por exemplo,
observa-se que é mais fácil a aceitação do termo escola de samba (apesar também de certa
discriminação) do que outro diretamente oriundo da religiosidade de matriz africana. Essa
distorção permanece no imaginário dos brasileiros e permeia um universo cultural que contri-
bui para apagar, recusar e também sufocar o que é normalmente entendido como algo “mais
primitivo” – a percussão e todas as manifestações populares das quais ela é base. De fato, fica
muito difícil dizermos até que ponto essa suposta aceitação do lundu por parte da burguesia,
descrita por Roberts (1972), realmente ocorreu. O que nos compete é compreender a estrutura
por ele chamada de esquelética, a que outros pesquisadores se referem como clave ou timeli-
ne. Ou seja, investigar se a estrutura rítmica central de um estilo ainda faz parte daquilo que
foi herdado.
O lundu está sim presente em boa parte dos ritmos afro-brasileiros ou africanos, sendo
que, provavelmente, o que mais apresenta similaridade com ele é o ijexá, ritmo trazido pelos
Yorubás da região da Nigéria. Este ritmo está presente em boa parte do que é produzido tanto
nos terreiros quanto nas baterias das escolas de samba, assim como nos blocos afirmativos da
Bahia, como o Ile aiyê e os Filhos de Gandhi. Da mesma maneira, muitos compositores se
utilizam deste ritmo em suas composições – Djavan, Gilberto Gil, João Bosco, entre outros.
Questionamos então o motivo da escolha do termo ijexá e não lundu, visto serem praticamen-
te o mesmo ritmo, sendo que a diferença central seria a quantidade de pulsos entre um e outro.
                                                                                                               
12
The lundú was the first African-derived music accepted by the Brazilian bourgeoisie (ROBERTS, 1972, p.
78).

  30  
 

O lundu apresenta dois tempos de duração, enquanto o ijexá apresenta quatro, o dobro. O de-
talhe que chama a atenção é exatamente a parte inicial do ijexá, que entendemos como motivo
causador do conflito que leva a certa dificuldade de diferenciação entre os dois ritmos. Ou
seja, o começo da levada do ijexá (2 tempos), seria o próprio lundu. (Ver Cap. V). Este gênero
sim, pelo fato de se apresentar em quatro tempos, é base para muitas levadas de caixa, repini-
que e breques nas baterias, assim como é utilizado constantemente nos terreiros.
Analisaremos a apropriação desse ritmo para as baterias no capítulo V, entendendo
que alguns dos ritmos mais utilizados na musicalidade brasileira foram estabelecidos com o
tempo a partir do que herdamos do continente africano e as outras misturas. Desconhecê-los
seria desconhecer a própria identidade brasileira. Além disso, independente de serem utiliza-
dos também na religiosidade de matriz afro como o candomblé e a umbanda, é necessário
compreender como esses ritmos são estruturais e utilizados de forma ampla também fora da
religiosidade. Nesse sentido, categorizá-los apenas como parte de um segmento religioso re-
sulta no não reconhecimento de sua total abrangência. Da mesma forma, seria um equívoco
considerar a musicalidade produzida nos terreiros apenas como religiosa, o que não é um fato,
já que muito do que se utiliza na religiosidade foi transposto para outros locais. Dessa manei-
ra, entendemos como necessário separar a religião da musicalidade e da cultura como um to-
do, pois, independente de serem utilizados em ambos os locais, é preciso reconhecê-los como
parte da musicalidade afro-brasileira. De outra forma, estaríamos reduzindo-os e condicio-
nando-os a lugares determinados, a fim de não assumir o alcance dos mesmos.
Outro aspecto discutido por Roberts (1972) é o processo normalmente definido como
pergunta e resposta, característico de países da América do Sul e partes do Caribe. Apesar de
o autor indicar tal prática apenas no coro, observamos que, na verdade, trata-se de uma ferra-
menta bastante didática e artística nos conjuntos de percussão analisados. A musicalidade
brasileira, em grande parte, utiliza esse recurso, o que para nós seria uma marca muito carac-
terística daquilo que foi e é ainda produzido na África, como ocorre no caso do uso do djêm-
be, instrumento que possui característica de liderança e proporciona diversos diálogos com
outros instrumentistas de percussão, algo muito próximo do que é realizado pelos primeiros
repiniques e a bateria. Essa influência é um fato típico da consciência musical herdada, repro-
duzida nos terreiros e nas baterias.
Apesar de termos recebido essa influência direta, algo notável na performance destes
grupos, realmente não sabemos até que ponto os próprios indivíduos que utilizam este materi-
al como produção de suas performances possuem clareza dessa relação, da continuidade de
um modelo cultural no qual a percussão é compreendida como linguagem, indo além de suas

  31  
 

funções sonoras básicas. A percussão promove uma comunicação eficiente que proporciona
para seus praticantes uma inserção social poderosa, proporcionando um outro lugar (status)
nas comunidades. Consideramos assim, que trata-se da tentativa de conquista de um lugar de
fala a partir da performance.
Nesse sentido, tendo acompanhado diversos exemplos de crescimento de ritmistas e
ogãs em seus locais de ensaios, observamos que, de geração para geração, a evolução é uma
marca. Muitos se desenvolvem rapidamente e conquistam lugares estratégicos de liderança,
suportados pelas bases e fundamentos diaspóricos. Em pouco tempo a performance coloca o
indivíduo em posições privilegiadas de liderança que destacam suas habilidades, que servem
de referência para os mais novos. Tudo isso é cíclico e coletivo, uma outra marca daquilo que
a reprodução de uma cultura ressignificada proporciona. Nesse sentido, a metodologia utiliza-
da nestes locais é desenvolvida a partir do referencial africano, cujas principais estratégias são
intrínsecas à oralidade: imitação e repetição. Não somente os aspectos musicais são reprodu-
zidos, mas também os trejeitos de pessoas mais velhas, que se tornam referência, são muitas
vezes imitados pelos mais novos. Formas de fala, vestimentas, acessórios e cortes de cabelo
fazem parte de estratégias de reconhecimento de um modelo afro.
A conquista de uma posição significativa dentro desse ambiente, por meio da perfor-
mance, é também derivada de um conteúdo representativo de elementos identitários que mui-
tas vezes não é comunicado explicitamente, mas está sempre em desenvolvimento nestes gru-
pos. É este conteúdo que dá ao indivíduo – ogã ou ritmista – um vocabulário próprio que fun-
cionará como código interno extremamente valorizado pelos grupos nos terreiros e baterias.
Em geral, essa forma de reproduzir aquilo que seria de uma cultura anterior não é muito clara,
pois este algo já teria se reinventado, sem haver qualquer necessidade de busca de sua origem.
A metodologia utilizada é a reprodução de símbolos, como é o caso dos padrões rítmicos di-
versos que compõem as levadas e variações. A necessidade de falar sobre tais processos nor-
malmente cabe aos indivíduos externos, como é o caso de pesquisadores que tentam esmiuçar
esses processos. Para os atores locais não há sentido em muita argumentação, e a imitação e a
observação dão conta das necessidades pela execução.
Assim, se os indivíduos em questão realizam suas práticas e se satisfazem com seus
resultados, tudo se resolve sem qualquer preocupação. Essa falta de preocupação em desco-
brir explicações sobre a fonte, ou sobre parte do passado, acaba também por não colocar essa
cultura em um local de reconhecimento por completo, já que as próprias pessoas que a reali-
zam não enxergam ou sentem essa necessidade. Dessa forma, toda a sua complexidade pode-
ria não ser visualizada, apenas sentida e realizada. Por outro lado, parte da potencialidade das

  32  
 

sabedorias existentes nesses espaços também desperta a curiosidade de outros setores sociais,
que a enxergam como fonte de descobertas, apesar de, muitas vezes, pelo viés do exotismo ou
da excentricidade.
Sendo assim, o fato de se associar as escolas de samba com o entretenimento reduz a
compreensão daquilo que as baterias produzem musicalmente. Isso também ocorre com o
candomblé, quando associado conceitualmente apenas à religião, o que compromete o enten-
dimento de sua total abrangência, conforme já discutido. Trata-se de uma redução estratégica,
limitada e depreciativa da cultura africana, feita de maneira inconsciente ou não.

1.2 Transculturação e aculturação a partir da diáspora

Em nossa fundamentação teórica, como parte integrante da nossa pesquisa sobre a di-
áspora negra, acabamos selecionando outros fenômenos que se relacionam simultaneamente a
este movimento – de migração de pessoas –, de maneira a considerar em quais níveis aconte-
cem as adaptações, recusas e transformações de determinadas heranças culturais identitárias.
Tais fenômenos já foram estudados por diversos autores e seus conceitos nos serviram como
referência durante toda a construção do texto. São conceitos que determinam como são obser-
vadas as modificações de comportamento social a partir de interesses do grupo migrado em
conjunto com um outro grupo já estabelecido como local. Sobre transculturação, utilizamos
como referenciais teóricos Hesse (1971), Ortiz (1983), Pereira (2006), Pinto (2015), Santos
(2007) e Weismmann (2018). Consideramos aqui a transculturação como a possibilidade de
aceitação de uma cultura originária em conjunto com adaptações de ressignificação da identi-
dade, transformação esta derivada do encontro de diversas etnias escravizadas que somente
encontraram-se no Brasil no processo de escravização. A senzala, onde os indivíduos ficavam
neste processo, possibilitou o encontro e a reinvenção existencial. Outra consideração sobre
transculturação, a partir dos autores referenciais, é o próprio encontro com a união dos saberes
originários (África) com os saberes locais (Brasil e outras influências de culturas diversas).
Weissmann (2018) considera os grupos locais como possibilidade de formação de um
vocabulário de inserção social. Nesse aspecto, corrobora com nossa visão e tratamento das
duas instituições aqui investigadas, consideradas organismos vivos de inclusão de pessoas na
sociedade. Para a autora, há:
[...] necessidade de se estar inserido em um código social, o que faz com que os su-
jeitos estejam incluídos em uma história, permitindo um trabalho de memória e re-
cuperação daquilo que foi perdido e barrado, para ser recuperado e incluído na cultu-
ra dos sujeitos. (WEISSMANN, 2018)

  33  
 

Para Weissmann (2018), a relação do indivíduo com um espaço físico é determinante


para a sustentação da memória dos antepassados e aceitação de uma cultura local. Percebemos
isso em comportamentos de indivíduos que moram nas roças de candomblé, como no Kyloa-
tala, e também nas comunidades formadas em sua grande maioria por indivíduos afrodescen-
dentes13. Essas pessoas tratam os terreiros e as escolas de samba (como no caso dos ritmistas
do GRCSES Império de Casa Verde) como extensões de suas casas, um ambiente entendido
como uma grande família do samba ou de santo. Achamos importante este apontamento, de-
vido à reconexão com uma identidade a partir de um local (território) perdido pela diáspora
em um novo território, utilizado como ressignificação cultural:
O que se perde na migração é o sentimento de pertencimento outorgado pela habitu-
alidade que dá o morar [...] só através do tempo vivido se vai criando um sentimento
de familiaridade com o espaço geográfico, paralelamente à experiência de interiori-
dade. Desse modo, o ambiente físico operaria como sustentação da memória, estabe-
lecendo quem somos e de onde viemos, gerando um antes e um depois como uma
linha contínua que possibilita ao sujeito se identificar com uma dada cultura e se
sentir dela fazendo parte. (WEISSMANN, 2018)

Uma Casa de candomblé é um espaço compartilhado no qual há sempre lugar para no-
vas pessoas que ali queiram viver ou frequentar, cada um da sua forma. O mesmo comporta-
mento ocorre nas escolas, já que há pessoas que moram nos barracões ou são adotadas como
filhos nestes locais. Este é o caso de Erivaldo Basílio Portela, vendedor de balas nas imedia-
ções da quadra do GRCSES Império de Casa Verde que foi adotado carinhosamente por Rob-
son Campos (Mestre Zoinho). Assim, desde o ano de 2018, Erivaldo faz parte da equipe de
suporte, chamada de apoio, na bateria do Império de Casa Verde. Ele é conhecido como Bar-
ba pelos ritmistas e, aos poucos, mesmo com idade avançada, está se tornando um verdadeiro
sambista, tocando, dançando e cantando junto com a comunidade do bairro da Casa Verde.

                                                                                                               
13
Tata Kylonderu, Mãe Kwanzademin, Tata Mukambila, Tata Kamuanga, Tata Ganga Zoimbe, Tata Inberekwe,
Manzelê e outros.

  34  
 

Figura 2 - Erivaldo Basílio Portela na quadra do GRCSES Império de Casa Verde

Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro, 10/02/2020.

Boa parte dessas pessoas possui uma carga identitária muitas vezes apagada pelo so-
frimento e dificuldades sociais, o que não quer dizer que não possuam uma cultura de seus
antepassados. Ao redor dos barracões das escolas de samba, ou do candomblé, há diversas
pessoas com dificuldades financeiras que possuem uma relação com a cultura diaspórica. É o
caso de muitos jovens internos nos Centros de Atendimento Sócio Educativo ao Adolescente
(FCASA) em relação à prática e memória afetiva com a musicalidade afro-brasileira, pratica-
da anteriormente em seus bairros e comunidades formados por uma maioria de indivíduos
afro descendentes. Isto se relaciona ao fenômeno da migração e ao conceito de territórios

  35  
 

comunitários, cujos mecanismos são discutidos pelo eminente geógrafo brasileiro Milton San-
tos, conforme explicita Weissmann (2018):
Milton Santos (2007, p.82) trata das migrações e nos transmite como as mesmas
"[...] agridem o indivíduo, roubando-lhe parte do ser, obrigando-o a uma nova e dura
adaptação em seu novo lugar. Desterritorialização é frequentemente uma outra pala-
vra para significar alienação, estranhamento, que são, também, desculturização". O
autor alude à dor pelas rupturas e às perdas da cultura como âncora e salvaguarda do
conhecimento de modos de pensar, agir e inserir-se no social, em um dado território.
Isso nos traz um foco na dor individual que implica, já que cada sujeito terá que fa-
zer sua própria adaptação e construir sua própria forma de morar nesses universos
cruzados pelas semelhanças e as diferenças, os quais trazem à tona esse trânsito pelo
mundo. A perda e o luto serão algumas das fases desse périplo individual [...]. Po-
demos pensar que, depois do reconhecimento e da perda da cultura própria na terra
de nascença, o sujeito consiga reformular uma cultura que faça sentido para ele
mesmo, dando conta da nova realidade na qual está vivendo. (WEISSMANN, 2018)

Nas migrações ocorre uma transmutação entre aquilo que é natural para o indivíduo
com o que lhe é estranho, diferente. Traça-se, assim, um espaço de transformação daquilo que
foi herdado de um local de origem em conjunto com o que está no local de chegada. Também
é possível uma reconexão com elementos identitários já utilizados por indivíduos de mesma
origem que chegaram anteriormente. Esse fluxo resulta então em uma constante adaptação de
experiências e culturas diversas, o que pressupomos ser um processo de tensão entre tradição
e inovação, uma díade bastante presente e atual nestes locais. Para Ortiz, a partir de Pereira
(2006), Cuba se constituiu por meio destas transmutações culturais que determinam a identi-
dade e evolução de seus habitantes:
Para o pioneiro da transculturação, o cubano Fernando Ortiz, a história de Cuba é
feita de complexas transmutações de culturas que determinam a evolução do povo
cubano no âmbito institucional, jurídico, ético, religioso, artístico, linguístico, psico-
lógico, sexual, assim como nos demais aspectos de sua vida. (PEREIRA, 2006, p.
16)

Segundo Pereira (2006), em seu trabalho dedicado a Ortiz, aspectos amplos determi-
nam a complexidade do processo transcultural promovido pela diáspora. A semelhança com o
ocorrido no Brasil nos pareceu interessante, de maneira a considerarmos alguns apontamentos
sobre tais transformações:
Há toda uma transculturação de culturas e raças negras (...) provindas da África. (...)
Esse fluxo de raças negras, em sua condição de escravos, é arrancado de suas for-
mações sociais originárias e suas culturas são oprimidas pelas dominantes do Novo
Mundo. (PEREIRA, 2006, p. 16)

Para Ortiz e Pereira (2006) a tensão é um fator intrínseco à transculturalidade, haven-


do conflitos necessários e naturais nesse processo, conforme já apontado anteriormente no
início deste capítulo por Hall (2008), que são intrínsecos a indivíduos em movimento diáspo-
ricos. Pinto (2015) nos traz uma abordagem direta da transculturalidade com a música, discu-
tindo a relação da amplitude da transculturação com a sonoridade. Sua abordagem associa a

  36  
 

performance com o corpo. Ou seja, a transculturação seria representada amplamente não ape-
nas na sonoridade, mas sim num conjunto de ações que envolve fatores como o próprio mo-
vimento corporal utilizado na execução instrumental.
Em geral a transculturação musical desconhece a autonomia total e absoluta do som,
inclusive porque em sendo música, sonoridades sempre fazem parte de um aconte-
cimento performático maior. A importância da mimesis – padrões de movimento
como técnicas motoras (do músico) ou mecânicas (ao instrumento musical) – é in-
trínseca a toda a manifestação musical. (PINTO, 2015, p. 126)

Observamos claramente tais associações em dias de toques, xirês, ensaios e desfiles.


Para estes grupos não há separação da questão musical de outros fatores citados. Tudo se co-
necta e representa uma identidade herdada da África que foi apropriada, mantida e transfor-
mada.
Pinto (2015) reforça a relação diversificada da transculturalidade como característica
que transforma a sonoridade e a importância da performance no contexto sócio cultural, um
processo de mutação de elementos no próprio acontecimento cultural, no qual dinamismo e
modificação fazem parte da ação:
Ao mesmo tempo que a perspectiva transcultural diversifica os conceitos voltados
aos fenômenos sonoros, fazendo aumentar substancialmente o leque tipológico dos
mesmos, ela também dá importância ao ensejo e, portanto, ao fenômeno vivo, à per-
formance e seu contexto, ambos igualmente dentro de uma perspectiva dinâmica e
processual do acontecimento cultural. (PINTO, 2015, p. 126)

Dentro de uma perspectiva transcultural a transformação é complexa, pois determina


uma nova forma. Para Santiago (2012), sobre a concepção de Ortiz, a transculturação resulta
da própria concepção de nação e suas diversidades a partir da migração de pessoas. O sentido
da transculturação se daria dentro das multiplicidades, o que observamos na riqueza das con-
cepções musicais a partir do ritmo oriundo das culturas e diversas etnias africanas, que segun-
do diversos historiadores, só encontraram-se em alta proporção no Brasil a partir do período
escravagista. Isto, de fato, determinou uma enorme riqueza conceitual que é utilizada ampla-
mente nas comunidades investigadas.
Santiago (2012), segue explanando sobre definições de Ortiz que corroboram com o
que observamos no comportamento dos indivíduos do contexto investigado. Estes, demons-
tram utilizar uma profunda conexão com aqueles que partiram do local de origem, não permi-
tindo uma ruptura com a matriz africana, mesmo com determinadas transformações que re-
presentem o que é atualmente a sonoridade do candomblé e das baterias de escolas de samba,
em conjunto com todos os seus amplos significados sociomusicais. Esta matriz transformada
pós diáspora determina, ao nosso ver, o que é o Brasil e suas musicalidades a partir da percus-

  37  
 

são, o que faz referência ao termo utilizado por Hall (2013) – configurações sincretizadas da
identidade cultural.
Independentemente da questão de uma possível dominação ou poder de um grupo so-
bre outro, a transculturação é complexa, e portanto não acontece de maneira unilinear:
Diferente dessa visão, transculturação denota que o processo de embates sociocultu-
rais não se dá de maneira tão unilinear, tão subjugado a relações de poder. A dinâ-
mica do entrelaçamento de elementos culturais, de mentalidades e de técnicas de sa-
ber é muito mais complexa. (PINTO, 2015, p. 122)

Por outro lado, Hesse (1971), discutindo a transculturação, trata de uma suposta perda
de identidade que ocorre por meio da recusa do próprio local de origem por parte de alguns
herdeiros da cultura diaspórica, evidenciando as transformações pelo coletivo e suas escolhas.
Isso pode justificar o que chamamos de apagamento ou escolhas de não assumirem o próprio
objeto central investigado, dentro e fora do contexto:
Transculturação musical é um processo coletivo na cultura (...) que acontece através
de uma seleção crítica (...), induzindo o surgimento de uma nova cultura musical,
cuja marca de reconhecimento passa a ser a não-identidade com determinados ele-
mentos ou com a soma das culturas de origem. (HESSE, 1971, Apud PINTO, 2015,
p. 124)

Essa recusa foi observada nas manifestações e conjuntos sociais pesquisados. Se por
um lado pode haver uma relação automática de alguém em diáspora com seu passado, como
se fosse algo natural, por outro, essa associação pode ocorrer de forma distorcida, desconhe-
cendo-se as amplitudes culturais do local de origem, o que ocorre constantemente na mídia,
que normalmente apresenta tais sujeitos de forma bastante superficial, criando uma imagem
até depreciativa da cultura anterior, caso da associação das baterias apenas com o carnaval e
deste com o entretenimento. No relato abaixo, Pinto (2015) discorre sobre definições de Hes-
se, que nos parecem contraditórias mas que também apresentam possibilidades e conclusões
múltiplas sobre os processos a partir da migração:
É notável esta definição de transculturação musical de Axel Hesse (…) não só por-
que abre mão da ideia segundo a qual membros de uma cultura dominada necessari-
amente ficam submetidos à cultura daqueles que os domina (aculturação), mas tam-
bém por ignorar um certo historicismo romântico das “raízes” da presença negra no
continente americano. (PINTO, 2015, p. 124)

Lembramos que a definição do termo aculturação é bastante ampla e não pode ser in-
terpretada apenas como esta indicada por Pinto (2015). Como já apontamos, para compreen-
der este termo é necessário primeiramente reconhecer sua definição inicial como sinônima ao
conceito de transculturação, para depois também referenciá-lo em relação à perda ou recusa
de uma identidade herdada do ponto de origem dos indivíduos em diáspora. Este fato é muito
significativo, naquilo que ser refere ao comportamento de alguns indivíduos que utilizam es-

  38  
 

truturalmente algo que foi redefinido culturalmente através do movimento diaspórico. Nas
baterias, o pensamento musical percussivo é estrutural e reconhecido como elemento identi-
tário que reconecta os atores com sua cultura originária transformada desde sua chegada no
Brasil. A possibilidade de encontro e readaptações, de acordo com diferenças encontradas na
religiosidade da África e do Brasil, assim como na influência direta do culto dos orixás em
ambos os contextos, nos mostra como, no Brasil, foram construídos códigos internos inovado-
res que partem de uma origem ancestral africana. A não aceitação, ou mesmo o desconheci-
mento deste fato, nos levou a compreender que a necessidade transforma, estrategicamente, a
validação ou a recusa da própria identidade. Nesse sentido, a aculturação pode determinar
uma facilidade temporária ou até uma suspensão da necessidade de defesa de determinado
ponto de vista, quando há qualquer tipo de polêmica que envolve esta escolha. Sendo assim,
partindo do ponto de que nossa tese indica fortes relações de tais heranças, buscamos compre-
ender quais seriam os motivos desta recusa, visto tamanha importância e utilização destes
códigos herdados. Segundo PINTO (2015), há uma recusa deste chamado historicismo ro-
mântico por questões ligadas especificamente à racialização. Hesse (1971), também aponta
isto como uma estratégia de sobrevivência. Nesse sentido, a aculturação poderia promover a
sensação de uma nova identidade temporária, sem qualquer necessidade de evidenciar rela-
ções com o passado. Para nós, a aculturação é um fenômeno causado diretamente pelo pre-
conceito racial, onde o indivíduo prefere não deixar perceptível a sua identidade, visto que
isto, em um país racista, poderá lhe trazer dificuldades de sobrevivência. Por outro lado, a
aculturação também se dá de forma inconsciente, de maneira que o indivíduo sequer percebe
como poderá ser prejudicado por não assumir quem de fato é. Esta recusa de uma herança
cultural anterior pode também interferir, drasticamente, na evolução do indivíduo, em diver-
sos aspectos, como o próprio desenvolvimento cognitivo. Como afirma Rodrigues (2016), “as
variáveis relacionadas à aculturação interferem no processo de ensino e aprendizagem”.
(RODRIGUES, 2016, p. 4). Já para, SANTOS; BARRETO (2006) sobre aculturação, no sen-
tido de transformação ou recusa identitária:
É necessário preocupar-se menos com o que se extingue do que com o que se trans-
forma. Tal parece também ser a questão central na relação entre identidade e lugar,
nos seus fixos e fluxos. Além disso, o raciocínio que vincula, de modo fixo, identi-
dade e lugar, fundamenta-se em narrativas de subjetividades originárias e iniciais,
cuja superação coloca-se na contemporaneidade como algo teoricamente inovador e
politicamente crucial. Coloca-se hoje, sobretudo, a necessidade de focalizar aqueles
momentos ou processos que são produzidos na articulação das diferenças culturais
(SANTOS; BARRETO, 2006, p. 268).

  39  
 

Apesar de corroborarmos com este conceito, também reconhecemos a relevância em se consi-


derar a origem, naquilo que ela pode servir na determinação da aceitação social de maneira
ampla.
Consideramos então o conceito de aculturação tanto como sinônimo de transcultura-
ção como de recusa da origem identitária.

1.3 Etnicidade/Identidade étnica


Etnicidade é outro conceito que nos parece essencial à análise de comportamentos dos
grupos oriundos do movimento da diáspora negra, exatamente pelo motivo de que muitos
indivíduos têm como origem etnias africanas diversas que acabaram se misturando entre si no
Brasil através do sistema escravagista. Isto nos despertou curiosidade pelo motivo da possível
aceitação ou recusa de determinada cultura inicial e sua representatividade em determinados
grupos. O termo etnicidade em si pode apresentar amplos significados, mas para os objetivos
deste trabalho o definimos como a capacidade do indivíduo de reconhecer uma cultura própria
em seu grupo como um todo. Nesse aspecto, cultura e sociedade são entendidas como partes
de uma movimentação social, onde a música é uma ferramenta significativa de reinserção e
conexão com os antepassados.
Mesquita (2020) nos traz possíveis conceituações associadas ao termo etnicidade, que
se relacionam à construção de uma identidade étnica:
A construção de identidades étnicas se dá pela necessidade do homem conviver em
grupos sociais. Os grupos sociais surgem da auto-afirmação individual que resulta.
A etnicidade é fruto da autoconsciência de especificidades culturais, e do reconhe-
cimento do outro. As formas de organizações sociais decorrentes da etnicidade se
expressam por meio de representações que permitem a caracterização e compreen-
são das relações sociais14. (MESQUITA, 2020, online)

Por tratarmos de grupos derivados de determinadas etnias africanas, mesmo com di-
versas outras influências culturais e participação de muitas outras descendências, estes grupos
mantêm hábitos relacionados com essa origem. Tais hábitos são representados fortemente na
estrutura de sua musicalidade e na relação desta com as comunidades envolvidas. Notamos
determinadas heranças nos seguintes aspectos: a) tríade ritmo, voz e movimento, b) polirrit-
mias diversas em combinações entre naipes e linhas rítmicas de atabaques e gã, c) instrumen-
tos/materiais (madeira e couro/atabaques, tambores africanos e ferro/gã), d) pergunta e res-
posta (breques/djêmbes) e e) música utilizada como rotina, em tarefas diárias, entre outros.

                                                                                                               
14
Disponível em: http://artigos.netsaber.com.br/resumo_artigo_36298/artigo_sobre_a-construcao-da-identidade-
etnica-e-as-representacoes-sociais.

  40  
 

Outro aspecto essencial nessas comunidades trazido via diáspora é a coletividade, a


necessidade da troca, da construção compartilhada. Nesse sentido, Mesquita (2020) nos traz
uma marca do que observamos nos terreiros e nas baterias, a necessidade do reencontro nos
locais, novos territórios de reafirmação social, a partir da construção coletiva de um grupo,
que pode ter elementos étnicos:
A sociedade humana é formada por pessoas que têm necessidade umas das outras
para continuarem a espécie, buscarem seus objetivos, e sobreviverem. É uma imensa
corrente que permite que o ser humano nasça, cresça e viva. O homem é um ser so-
cial, pois tende a agrupar-se através do compartilhamento de propósitos, gostos,
preocupações e costumes. São os chamados grupos sociais que, para a sociologia,
aparecem enquanto um sistema de relações e de interações recorrentes entre pessoas.
(MESQUITA, 2020, online)

Para Mesquita (2020), os grupos sociais são ferramentas necessárias à existência das
pessoas, o mesmo que percebemos nas funções dos terreiros e escolas para as suas comunida-
des e também para o público externo.
Mesquita também aborda etnicidade como um fenômeno múltiplo, no qual questões
biológicas não representam suas especificidades. Há, segundo a autora, a necessidade de não
tratar certos grupos de maneira isolada, tendo em vista que questões sociais são influenciadas
pelo contexto:
Características comuns a um conjunto de pessoas que as vai diferenciar de outro
grupo. Os grandes exemplos seriam a etnicidade indígena e negra. Que não podemos
tratar sob a ótica biológica. Esta divisão não assume mais a denotação raça. Fala-se
sobre o conjunto de características sociais-antropológicas de cada um, que os une
em determinados grupos, difereciando-os de outros. Logo se faz pertinente enunciar
que o mais importante é perceber a consciência que os grupos têm deles próprios e
em relação aos outros, pois não faz sentido falar em etnicidade em culturas isoladas,
mas sim num contexto multi-étnico em que o comportamento social é influenciado
pelas alterações contextuais. (MESQUITA, 2020, online)

Isso nos parece muito relevante pelo fato de analisarmos a utilização de determinadas
estratégias comportamentais de sobrevivência que determinam o grau de aceitação ou recusa
de determinada cultura étnica. Muitas vezes, como mostraremos no Capítulo IV, item 4.1 –
Ambiguidades, alguns envolvidos preferem não assumir certas heranças mesmo que a repro-
duzam estruturalmente nas baterias. Ao nosso ver, certas pessoas preferem fazer uma escolha
para não se expor e portanto não sofrer determinados preconceitos. Segundo Mesquita (2020),
(....) identidade étnica se expressa pelo ato de um grupo poder contar "com membros
que se identificam a si mesmos e são identificados pelos outros". Desse modo a
construção da identidade étnica tem na auto-afirmação sua grande base fundadora.
Ainda que as análises culturais sejam essenciais, a etnicidade não pode ser generali-
zada por ações da cultura. Segundo Manuela Cunha, não podemos definir grupos ét-
nicos a partir da sua cultura, pois os processos de identificação vão além das percep-
ções culturais. Barth acentua que o fato de compartilhar cultura comum pode ser vis-
ta como consequência, não como fator causa dos grupos étnicos e suas identidades.
(MESQUITA, 2020, online)

  41  
 

Para Kubik (1979), existe uma dificuldade em se atribuir etnicidade a grupos de de-
terminadas etnias que vieram para o Brasil, já que estes seriam separados apenas por nações
(Ketu, Angola). Dessa forma, o reconhecimento étnico de cada um nestes grupos teria sido
sufocado pela classificação de escravos a partir de suas etnias (apenas para a seleção de mão
de obra), de qualidades específicas segundo seus exploradores. Entendemos isso como parte
do processo de tentativa de apagamento das etnias africanas, depreciadas e não reconhecidas
em devida proporção no Brasil. Neste caso, era mais fácil dominar um indivíduo que não re-
conhecesse sua cultura, devido ao apagamento identitário, conforme relatado no documentário
intitulado Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás15, lançado no ano de 1998.
Além desse aspecto, segundo outros estudiosos da temática da africanidade no Brasil,
como é o caso do sambista e pesquisador Nei Lopes, tiveram períodos anteriores sustentados
por uma política de tentativa de apagamento étnico cultural, o que de fato não se sustentou,
exatamente pelo tamanho da diversidade e desenvolvimento desta herança no Brasil. Porém,
isso ainda implica em desconsiderações das especificidades e da total amplitude da cultura
diaspórica.

Hoje, as divisões étnicas no Brasil são difíceis de rastrear. Mas as antigas divisões
étnicas vivem como agrupamentos culturais. Embora a identidade étnica dos povos
africanos no Brasil tenha se desintegrado gradualmente após 1888, quando nenhum
reforço étnico chegou ao Brasil da África16 (…). (KUBIK, 1979, p. 10, tradução
nossa)

Isso realmente pode ser determinante para a descoberta dos motivos da existência de
diferentes níveis de aceitação ou recusa de uma identidade cultural. Socialmente, esse conhe-
cimento não foi assumido no nível que poderia ser, provavelmente também por essas marcas
do passado. Os resquícios ou sequelas do sistema escravagista ainda são reproduzidos por
indivíduos afrodescendentes, mesmo que de maneira inconsciente. A Memória das pessoas
que, de alguma maneira, passaram por isso em gerações anteriores, traz aspectos conflituosos
que contribuem para um desconhecimento de sua etnicidade. O apagamento causado por es-
tratégias de dominação destruiu, ao menos em parte, a cultura de origem. Porém, mesmo com
tantos conflitos, alguns traços permanecem e servem como códigos internos e insígnias de
poder em grupos e instituições de resistência social e étnica, como nos terreiros e nas escolas
de samba.

                                                                                                               
15
Disponível em: https://youtu.be/V1OqdhQItrI
16
Today, ethnic divisions in Brazil are difficult to trace. But the former ethnic divisions live on as cultural
groupings. Although the ethnic identity of African peoples in Brazil disintegrated gradually after 1888, when no
further ethnic reinforcements came to Brazil from Africa (…) (KUBIK, 1979, p. 10).
 
  42  
 

1.4 O Ritmo como fenômeno multidimensional


Observando as múltiplas funções do ritmo dentro das comunidades investigadas, deci-
dimos tratar desta ferramenta como elemento representativo de diversas ações, dentre elas as
sociais, a partir da performance. Como parte de nossa fundamentação dentro desse aspecto,
utilizamos os seguintes autores: Arom (1991), Fernandez (1986), Graeff (2015), Ikeda (2013),
Mukuna (2000) e Silva (2005).
Para Graeff (2015), em seu trabalho em busca de conexões e heranças africanas no
samba de roda que se expande de alguma forma para outras regiões do Brasil, como o Rio de
Janeiro, alguns aspectos a partir de estudos de Pinto e Mukuna seriam centrais no reconheci-
mento desta influência. A autora enfatiza o termo e a necessidade de compreendê-lo como
fenômeno multidimensional: “Fenômenos rítmicos são multidimensionais e obedecem a prin-
cípios de organização específicos a seus contextos culturais” (GRAEFF, 2015, p. 134). Isso
mostra como são necessárias diversas compreensões para tratar de aspectos rítmicos dentro de
determinadas culturas. Tais aspectos representam a relação do indivíduo e consequentemente
do seu grupo, através da performance. É a partir dela que tenta-se uma reinserção social.
Fernandez (1966) afirma que “entre os traços musicais que os africanos contribuíram
na formação da música americana, em particular a da América Latina, o ritmo possui uma
importância especial.17” (FERNÁNDEZ, 1966, p.7-8). Para o autor, o ritmo é um elemento
relevante na transição diaspórica. Nesse sentido, ele discute a herança dos ritmos ternários
africanos com subdivisões ímpares e suas mudanças adaptativas para subdivisões pares, em
alguns ritmos. Notamos claramente esta característica na transformação do alujá de Xangô,
ritmo utilizado no candomblé da Nação Ketu, em 12/8, para a levada de caixa implantada por
Mestre Louro no GRCSES Acadêmicos do Salgueiro18 em 4/4 (Ver Capítulo V).
Silva (2005) também aborda o ritmo como elemento amalgamado com os aspectos so-
ciais, ancestrais e religiosos do conceito percussivo africano, e consequentemente a funda-
mentação do pensamento percussivo afro-brasileiro:
Em um contexto de sociedade tradicional, ritmos impressos nos instrumentos são
também elementos fundamentais do conhecimento musical, quase sempre relaciona-
do com outros aspectos da vida cotidiana, como atividades de trabalho, da relação
com o sagrado e com as forças da natureza ou fenômenos tidos como sobrenaturais
em civilizações ocidentais. (SILVA, 2005, p. 190).

Nesse aspecto, Ikeda (2013) também relaciona questões desenvolvidas em grupos tra-
dicionais como ancestrais, em busca de uma memória anterior:
                                                                                                               
17
Entre los rasgos musicales que los africanos contribuyeron a la formación de la música americana, en particu-
lar la de América Latina, el ritmo tiene una importancia especial. (FERNÁNDEZ, 1966, p.7-8).
18
Disponível em: https://youtu.be/bN98usP_39g

  43  
 

Os grupos tradicionais são os continuadores das heranças dos antepassados. São as


expressões de músicas, danças, rituais e festas que existem em milhares de comuni-
dades, que são as referências para outros grupos que as imitam. É importante desta-
car que nesses casos, na grande maioria das vezes, essas manifestações estão relaci-
onadas a rituais, cerimoniais, de devoção, em festividades religiosas. Não se
trata de atividades de interesse apenas estético, artístico. (IKEDA, 2013, p. 177-178)

Dentro dos grupos tradicionais, o ritmo é um elemento com capacidade multidimensi-


onal. A partir dele muitos aspectos são trabalhados socialmente. Segundo Kubik (1979), uma
das heranças e traços mais evidentes da conexão com aquilo que nos foi deixado via diáspora
é exatamente o nosso objeto de estudo – o encontro estrutural de matrizes similares entre ter-
reiros e musicalidades brasileiras como o samba e as baterias das escolas de samba em especí-
fico. Quando falamos deste fenômeno, entendemos que o que circula entre estes dois locais é
basicamente uma construção nova a partir do que foi recebido justamente neste processo.
Há diversas denominações para determinar essas sequências rítmicas em comum –
clave, timeline, estrutura esquelética, padrão estrutural – que representam células rítmicas
estruturais de um padrão específico, o que normalmente remete o ouvinte a um reconhecimen-
to identitário, que é facilmente direcionado pela memória através da escuta musical de um
determinado ritmo. Alguns instrumentos são centrais neste reconhecimento – agogô, tambo-
rim, por exemplo. “É um elemento focal no qual todos os outros instrumentistas, cantores e
dançarinos encontram um ponto de pivô para sua orientação19 (KUBIK, 1979, p. 13, tradução
nossa)”. Além desta definição, o timeline é um elemento de extrema significância para o cole-
tivo, pois, a partir dele, o público ou uma comunidade específica, além daqueles que estão
tocando nos conjuntos percussivos, se relacionam diretamente. Trata-se de um padrão de re-
conhecimento que proporciona um conforto no sentido de localização, no qual o ouvinte ou
executante se reconhecem e se identificam com aquele momento a partir da sonoridade de
referência.
Normalmente as pessoas, independente de estarem tocando, se identificam e se reco-
nhecem como parte daquele grupo, já que a sonoridade os remete a uma marca identitária. Tal
marca pode ser associada “àquilo que veio antes”, à Memória dos antepassados que pode ser
um dos pontos centrais de reconexão, mesmo que inconsciente, daquele que “habitava” o lo-
cal de origem – África – mas se movimentou e se reencontrou novamente no Brasil.
Outras ampliações do ritmo, tanto no sentido musical como social, serão tratados mais
detalhadamente no capítulo IV, o que corrobora com o próprio conceito do ritmo como fenô-
meno multidimensional, nos permitindo, inclusive, criar novos termos, na tentativa de reco-

                                                                                                               
19
It is a focal element in which all the other instrumentalists, the singers and dancers find a pivot point for their
orientation (KUBIK, 1979, p. 13).

  44  
 

nhecer a amplitude social a partir do ritmo, como por exemplo: a) perspectivas antropológicas
a partir do ritmo, b) estruturas identitárias musicais expandidas coletivamente, c) o ritmo co-
mo ferramenta interseccional, d) engenhosidades a partir do ritmo, e) o ritmo e suas insígnias
de poder, entre outros. Não nos faltariam opções que demonstrariam a potencialidade do rit-
mo no sentido coletivo e político-social. De fato, observamos esta função social do ritmo nas
comunidades aqui investigadas. O alcance social do ritmo é incalculável e, ao nosso ver, de-
terminante para a manutenção destas instituições – os terreiros e as escolas de samba.

  45  
 

CAPÍTULO II – O CANDOMBLÉ

2.1 O candomblé no Brasil: influências iniciais, transformações, ramificações e caracte-


rísticas

O candomblé é uma religião brasileira com origem na África, cujos elementos estrutu-
rais chegaram no Brasil através dos indivíduos escravizados procedentes de diversas cidades,
etnias, práticas e culturas próprias. Uma de suas mais significativas influências é o vodum,
rito religioso cultuado em algumas regiões africanas, com destaque para aquelas hoje conhe-
cidas como Benin e Nigéria. Nestas regiões encontram-se as principais raízes dos cultos reli-
giosos afro-brasileiros, já que o candomblé da Bahia, o Xangô Pernambucano e o Tambor de
Mina no Maranhão, por exemplo, possuem fortes vínculos de origem com as características
religiosas dos povos de línguas iorubás e fons.
Os vodúns cultuados na África são uma espécie de anjo da guarda de uma comunida-
de, reforçando o laço e o sentido de família nas aldeias. Obviamente, isso se dá de maneira
totalmente distante de qualquer associação com algo maléfico, como apontam, por exemplo,
as referências depreciativas normalmente feitas ao orixá Exú pelas igrejas católicas e evangé-
licas, reproduzidas de forma preconceituosa em grande escala.
É necessário observar que, atualmente, o modelo do candomblé no Brasil é único, não
existindo nesse formato em outros países e nem na própria África, como estabelece Barros
(2007):
Os candomblés, no Brasil, são espaços privilegiados de manutenção dos valores de
povos africanos oriundos dos antigos reinos localizados nas regiões onde hoje se si-
tuam os países de Angola, Congo, Moçambique, Benim e Nigéria. Dessas regiões
foram trazidas pessoas de diferentes etnias, cujo modo de ser e existir foi capaz de
criar sobrevivências culturais, sociais e linguísticas em condições absolutamente ad-
versas devido ao processo escravista. Podem-se observar as manifestações culturais
de inspiração africana em todo o território brasileiro. Mas é nas comunidades religi-
osas de matriz africana que se encontra o centro dos cultos prestados às divindades
trazidas, majoritariamente, pelos povos ambundos, bacongos, fons e iorubas. No
Brasil, o culto às divindades foi (re)interpretado de tal maneira que os ritos foram
reorganizados, adquirindo aspectos diferenciados e, embora, mantenha a mitologia
de origem dessas divindades, não é uma religião africana, mas afro-brasileira, em
que as características se reestruturaram, dando vida a uma religiosidade brasileira de
matriz africana. (BARROS, 2007, p. 4)

Ou seja, no processo de adoção desta prática externa, observamos que assim que ela
chegou no Brasil suas características já se modificaram. Um exemplo dessa diferença se dá
pela quantidade de divindades (orixás), espíritos ancestrais (caboclos) e diversas energias cul-
tuadas – caso dos nkisis no candomblé Angola. Na África, por exemplo, comunidades especí-
ficas possuíam crenças individuais e podiam cultuar apenas uma divindade, caso do Reino de

  46  
 

Oyo que cultuava o orixá Xangô20. Já no Brasil, é comum o culto a diversos orixás ao mesmo
tempo, como ocorre nos xirês, – grande ritual realizado para a manifestação dos orixás e ca-
boclos nos terreiros das diversas nações. No chamado enredo da gira21, por exemplo, normal-
mente são apresentados e reverenciados muitos orixás em uma única performance. Vejamos o
que o alabê e mestre Iuri Passos (2017), nos traz sobre esse tema:
No Brasil, uma roça de candomblé cultua vários orixás. Na África, cada região ou
cidade cultua um determinado orixá. Portanto, a palavra candomblé foi uma forma
de denominar as reuniões feitas pelos escravizados para cultuar seus deuses, porque
também era comum chamar de candomblé toda festa ou reunião de negros no Brasil.
(PASSOS, 2017, p. 40)

Outra diferença que Passos também aponta se dá pelo sincretismo e suas mudanças
adaptativas:
Diante de tanta transformação e adaptação dos cultos de origem africana aqui no
Brasil, é importante ressaltar a acuidade do sincretismo como uma poderosa arma
para que muitos povos conseguissem manter suas tradições aqui já adaptadas de tal
forma que, até hoje, em alguns terreiros, se usa o termo santo em vez de orixá, ape-
sar de sabemos que muitos adeptos discordam dessa junção religiosa, tida como o
sincretismo no Brasil. (PASSOS, 2017, p. 40)

E continua:
Contudo, é importante esclarecer que os santos católicos não interferem nas práticas
religiosas dentro dos candomblés aqui instalados, de forma que, dentro dos terreiros
de origem Ketu, Éfon, Jeje e Congo Angola, quando estão fazendo suas obrigações,
oferecem suas dádivas para os Orixás, Vodus e Inkises e não para Santa Bárbara,
São Jorge e Senhor do Bonfim. (PASSOS, 2017, p. 40)

É importante considerar também que o sincretismo foi uma forma utilizada para a pos-
sível aceitação de práticas e religiões de matriz africana no Brasil que, ainda hoje, são vistas
de maneira preconceituosa, apesar de algumas parcelas da população hoje demonstrarem inte-
resse em conhecer melhor tais religiões, cujo motivo pode ser um provável reconhecimento
dos valores e das amplas linguagens que compõem estas práticas, como o canto, a dança e o
ritmo. Dessa maneira, entendemos que o candomblé, de alguma forma, passa também por um
processo ambíguo de reconhecimento. Ou seja, se por um lado algumas religiões, como a ca-
tólica e as neopentecostais, o atacam, do outro ele é também compreendido como algo além
da religiosidade e considerado como prática cultural, mesmo por pessoas que não fazem parte
da própria religião.
Atualmente, o candomblé pode ser considerado um termo genérico para representar
algumas religiões afro-brasileiras com características em comum. Nelas, são representadas,
por exemplo, o fenômeno das possessões, no qual as divindades cultuadas são incorporadas
                                                                                                               
20
Ver composições Kaô Kabecile, disponível em: https://youtu.be/Kbx8enkevDE e Brado de Xangô disponível
em https://youtu.be/8pCs_vVJCVU. Saudações a Xangô - ogã Tião Casemiro.
21
O mesmo que roda, termo utilizado em relação ao movimento circular realizado pelos participantes no ritual.  

  47  
 

nos humanos que são chamados de filhos de santo ou nkises. As divindades são arquétipos,
símbolos (idioma simbólico) e representações de elementos da natureza, sendo que, por
exemplo, o arco-íris está associado a Lissá, os rios e o mar a Yemanjá e a Oxum, e o trovão e
a chuva a Xangô.

2.2 Terreiros
A prática religiosa do candomblé ocorre nos chamados terreiros com maior destaque
para os ritos centralizados nos barracões, espaços nos quais atividades diversas são realizadas.
Para o presente trabalho, é essencial observar que estes termos – barracão e terreiro – são
também utilizados para se definir as quadras das escolas de samba. O relevante pesquisador
Pierre Verger descreve estes locais da seguinte maneira:
Esses terreiros são geralmente compostos de uma construção, denominado barracão,
com grande sala para as danças e cerimônias públicas, de uma série de casas, onde
são instalados os pejís, consagrados aos diversos orixás, e de casas destinadas à resi-
dência das pessoas que fazem parte do Candomblé. A responsabilidade do culto re-
pousa sobre o pai ou a mãe de santo, correspondentes aos nomes de origem ioruba,
babalorixá ou Ialorixá. (VERGER, 1981, p.32)

A principal atividade realizada no terreiro é o xirê (nação ketu), também chamado de


quizomba na nação Angola e de gira na umbanda, assim definido por Passos:
Uma festa se inicia com o Xirê, com uma sequência de cantos para cada orixá, sem-
pre começando com o orixá Exú e é dançado em uma roda no sentido anti-horário.
Logo depois os orixás “começam a chegar”, ou seja, os orixás se manifestam através
do transe nas pessoas iniciadas para aquele orixá em específico. Em seguida a roda
se desfaz e começa a tocar para os orixás que se manifestaram nas pessoas para pres-
tigiar a festa até que chega a hora de se cantar e tocar para o orixá, dono da festa,
sendo esse o momento mais esperado da noite. (PASSOS, 2017, p. 42)

Numa roça de candomblé tradicional há diversos espaços, cada um com suas especifi-
cidades em relação às atividades necessárias. O barracão, como falamos, local aonde ocorrem
as festas e xirês, é visto pelos filhos da casa como um local de exposição do ritual para o pú-
blico externo. Além disso, ele é usado para outros rituais secretos. Ou seja, é um local que
divide-se entre o sagrado e a celebração coletiva com as comunidades e simpatizantes de uma
forma geral.
É muito importante que a roça seja construída em um lugar afastado das grandes cida-
des, com amplo acesso à natureza, árvores, plantas para a colheita de folhas específicas e
água, de maneira a permitir um reencontro com o universo, distante dos problemas do cotidi-
ano. No entanto, atualmente, essa exigência não é uma realidade, apesar de muitos terreiros
tradicionais ainda estarem localizados em locais afastados, em busca deste contato com uma
natureza e devido a condições sociais repressivas.

  48  
 

Em horários diferentes das cerimônias, o barracão também é utilizado para a socializa-


ção dos filhos de santo, sendo que as crianças podem coletivizar e trocar experiências a partir
de brincadeiras, muitas vezes imitando as danças e os toques de atabaques dos adultos – me-
todologia inerente à tradição oral.
Outros locais comuns em um terreiro são a casa de Exu, o roncó, a senzala, a Casa dos
egúns e a sala de jogo. Cada um desses locais tem suas práticas e exige cuidados específicos,
sendo que alguns filhos de santo são designados como responsáveis por cada um deles. Dessa
forma, diversas obrigações dentro dos fundamentos da religião, também chamados de precei-
tos, se fazem necessários, e é muito comum que estes preceitos sejam cumpridos semanal-
mente. A demanda e responsabilidade de todos os filhos é muito grande e o Pai de santo exige
total respeito e competência nos afazeres. Justifica-se tal dedicação e seriedade por respeito
aos orixás, considerados os protetores e detentores de todo o axé (a energia protetora da casa).

Figura 3 - Tata Kylonderu (Rodolfo dos Reis) dentro do antigo barracão da Casa de Angola Kyloatala

Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro, 18/10/201922.

                                                                                                               
22
Este barracão foi substituído por outro de alvenaria no ano de 2020.  

  49  
 

2.3 As Nações
Para cada nação do candomblé há uma língua específica. Na nação Ketu por exemplo,
Babalorixá é o termo para o Pai de santo ou Ialorixá para a mãe de santo, no candomblé An-
gola, que se utiliza da língua Bantu e não a Yorubá, referencia-se o Pai de santo como Tata
Nkise e a Mãe de santo como Mameto Nkise.
De maneira geral, observamos vários aspectos que se diferenciam nas nações, de acor-
do com a origem de cada uma delas. Porém, há muitas semelhanças e características em co-
mum, tais quais:
a) o aprendizado se dá pela oralidade (sem muitos questionamentos) e pelo sentimento
e observação;
b) a oralitude é reconhecida como ciência primordial que se dá através de passagens
históricas mitológicas contadas pelos mais velhos;
c) os participantes se entrelaçam e são reconhecidos como família de santo ou povo de
santo em suas comunidades;
d) os fundamentos são conquistados nos elementos rituais e nos conhecimentos sacer-
dotais, sempre acompanhados pelo pai ou mãe de santo;
e) o barracão é o espaço principal para as festividades ou toques, e cada espaço repre-
senta uma simbologia específica que guarda os segredos da casa;
f) outros espaços ao redor da roça representam a simbologia ancestral e os segredos da
família ancestral da casa;
g) as entidades são homenageadas nos rituais, com alimentos e ferramentas específi-
cas, na dança, cantos e toques;
h) a iniciação de cada indivíduo que irá se tornar um filho de santo transpassa saberes
ancestrais, através das obrigações mediadas pelos sacerdotes de cada casa;
i) no conjunto musical há predomínio de instrumentos de percussão;
j) os ogãs precisam saber cantar, tocar e narrar uma história rítmica reconhecível pelas
divindades;
k) a função percussiva transpassa a questão musical e pode ser considerada como lin-
guagem, pois é a partir dela que se dará, ou não, a comunicação para a incorporação das enti-
dades;
l) há uma vestimenta específica para cada orixá e festa;
m) há comidas específicas para cada orixá;
n) as danças são no sentido anti-horário;

  50  
 

o) há incorporação de entidades em muitos participantes, independente de qualquer


obrigatoriedade;
p) muitos elementos da natureza representam todo o sentido dessa cultura, assim como
os orixás;
r) na nação Angola, o intervalo utilizado na afinação dos atabaques é de uma 4ª justa.
(o mesmo dos surdos de 1ª, 2ª e 3ª);
s) na nação Ketu há um intervalo determinado também na afinação dos atabaques. Po-
rém, como há a utilização dos aquidavis, não existe, segundo alguns ogãs, a necessidade de
um preciosismo na afinação, como no caso da nação Angola, na qual os atabaques são execu-
tados com as mãos.
A questão da afinação é muito importante para a sonoridade do conjunto. O Pai de
santo já espera a mesma sonoridade sempre. Pode mudar um pouco, mas se não tiver
no jeito, pode se preparar que vem bucha. Sempre cuido dessa parte, a afinação nos
atabaques. Principalmente no Angola, temos essa marca. (MENEZES, Marcos. (Ta-
ta Mukambila). 02/01/2019. Teatro Décio de Almeida Prado, São Paulo/SP. Entre-
vista concedida a Rafael Y Castro.)

Cardoso (2006) relata a identificação dos filhos de santo com cada nação de candom-
blé à qual é pertencente, o que traz uma sensação de pertencimento ao próprio grupo. Do
mesmo modo, ele aponta para uma situação social de conforto em relação a um território que
simboliza a prática afrodiaspórica.
As mencionadas religiões são chamadas pelos seus próprios adeptos de “nação”.
Sendo assim, pode-se dizer que esse termo é utilizado como uma forma de distinguir
a religião a qual o fiel pertence. É comum ouvir, por exemplo, entre os adeptos das
mencionadas religiões afro-brasileiras, frases do tipo: “sou de candomblé, minha na-
ção é angola”, ou “pertenço à nação queto”. (CARDOSO, 2006, p.1 e 2)

É importante citar que para cada nação há uma sequência específica de cantos para os
orixás. Outro detalhe é que, em cada nação dentro da tradição, exige-se que se cante e se apre-
sentem os orixás de forma única, o que não ocorre atualmente em muitas Casas. Nesse senti-
do, é muito difícil controlar a pureza de uma tradição, já que muitos filhos de santo trazem
aprendizados diversos de outros locais, ou seja, de outras nações. Cabe então ao Pai de santo
determinar até que ponto haverá flexibilidade para mesclar cantigas e toques de nações dife-
rentes em sua Casa em específico. No caso do Kyloatala, há uma preocupação constante em
tentar controlar o repertório utilizado. Dessa forma, nesse lugar só podem ser utilizadas músi-
cas da nação Angola, de origem Bantu. Porém, na prática, isto não acontece, já que muitas
outras influências chegam nos terreiros e é comum haver mistura entre nações. Ou seja, difi-
cilmente encontramos terreiros com o chamado purismo em uma nação específica.

  51  
 

Um ponto de destaque da mescla que então se dá, é o repertório de diversas nações em


momentos específicos de rituais. Por outro lado, também ocorre a tentativa de resgate da cul-
tura específica de cada nação, havendo uma série de discussões e estratégias para se tentar
controlar a pureza de cada nação, mesmo reconhecendo-se a dificuldade em determinar uni-
dades próprias. Outra prática que determina a mistura entre nações como Ketu e Angola, é a
participação de indivíduos que tenham migrado de uma casa de Ketu para outra de Angola.
No entanto, esta não é uma prática comum, pois normalmente a pessoa que muda de terreiro
procura manter a nação de origem. Dessa forma, este indivíduo traz consigo um conhecimen-
to e repertório específicos que poderão, em algum momento informal, ser compartilhados,
permitindo misturas diversas.

2.4 A música: função e sentido coletivo


A música do candomblé não exerce papel meramente ilustrativo ou coadjuvante, pois
ela lidera estruturalmente um xirê, sendo um dos elementos mais importantes na macroestru-
tura. Notamos essa importância ao observar uma performance, já que o rito se inicia e se con-
clui juntamente com a música. No caso dos toques – padrões estruturais feitos pelos atabaques
e que são utilizados para a dança dos orixás –, é necessário o conhecimento de toda a mitolo-
gia que representa a característica de cada divindade reverenciada no xirê, pois para cada uma
delas há um vocabulário próprio. Este ponto importante se dá pelo fato de que há uma repre-
sentação dramática na dança que ora é impulsionada pela música, ou seja pelos toques de san-
to, e ora é respondida pelos ogãs, através dessa comunicação entre os dançarinos e os músi-
cos.
Essa conexão e caminho desenvolvido pelos ogãs com o povo de santo, nos remete à
mesma situação entre ritmistas e passistas – rainha, princesa ou madrinha. Essa comunicação
e decisão do que acontecerá no momento, seja do xirê ou de um desfile, acontece pela forte
relação entre seus atores, embasada na experiência dos indivíduos com este vocabulário e na
capacidade de improvisação e adaptação, de acordo com o contexto. Em ambos os casos, o
enredo do ritual é construído de forma dependente daquilo que é proposto pelo percussionista.
Daí a necessidade de bastante experiência e conhecimento em ambas as funções.
O povo de santo do candomblé geralmente afirma que cada toque é para apenas um
orixá. No entanto, observamos que muitos desses toques são reproduzidos para vários orixás,
dependendo da nação de candomblé que está sendo considerada. Ocorre também o uso de
nomes variados para os mesmos toques.

  52  
 

Cardoso (2006), nos traz algumas das possibilidades de utilização dos toques e cantos
sagrados em reverência aos orixás:
O aderé que comumente está associado a Ogum, também é utilizado para acompa-
nhar uma canção de Oxalá; o ijexá, toque de Oxum, acompanha cantigas de quase
todos os outros orixás; e assim ocorre com vários toques. Nesses casos, o toque per-
de a exclusividade com a divindade a qual comumente está associado e a canção
passa a ser o referencial da divindade, homenageada através do canto. A uma canti-
ga para Ossaim, acompanhada pelo ijexá, por exemplo, falar-se-á, entre o povo-de-
santo, que se está tocando para Ossaim. (CARDOSO, 2006, p. 247)

2.5 Música como linguagem


De maneira a compreender a percussão do candomblé como linguagem, no sentido de
comunicar-se com a dança a partir dos toques e vocabulários específicos deste conhecimento
percussivo ancestral, utilizamos alguns conceitos formulados na tese de Cardoso (2006):
A música na religião nagô tem um objetivo que vai além de, simplesmente, desper-
tar o prazer estético. No candomblé, a música cumpre o papel de comunicar, ela é
um código com fins dialógicos. (CARDOSO, 2006, p. 46)

Esse entendimento embasa o presente trabalho, exatamente por percebermos, no de-


correr da investigação, que há um desdobramento desta concepção nas baterias das escolas de
samba, com destaque para a conversa (musical) do primeiro repinique com as passistas. O
orixá Exu é muito representativo nesta função – a de comunicação e ponto de partida para os
atos –, o mesmo que ocorre com a função dos primeiros repiniques em uma bateria. O diálogo
e a possibilidade de continuidade somente ocorre após as saudações a Exu no candomblé,
assim como após a chamada de repinique nas escolas. Outras características e similaridades se
apresentam também, como a possibilidade do erro e do acerto, a contradição, a provocação, a
criatividade, a ousadia e a liberdade, tanto para os indivíduos que tocam os chamados ripas de
bossa, como para aqueles que tocam para o orixá Exu, com provocações e insinuações ao de-
safio, típico comportamento deste orixá.

2.6 Os instrumentos
Como sabemos, a música do candomblé é produzida pelo canto e, de forma geral, pelo
toque dos atabaques – rum, rumpi e le – e do gã, juntamente com outras sonoridades corporais
como as palmas e os próprios passos dos filhos de santo em performance.
Os instrumentos nessa religião transcendem a mera concepção material de um objeto
que produz som, eles também são considerados entidades e, em alguns casos, passam por ritos
específicos, como no caso dos atabaques que são alimentados como alimenta-se um orixá e,
por vezes, recebem inclusive nomes carinhosos, sendo tratados como a própria entidade.

  53  
 

A seção mais conhecida de instrumentos é o próprio conjunto percussivo: os três ata-


baques e o gã. Também há os considerados instrumentos de fundamento. Cardoso (2006) de-
finiu-os dentro dos seguintes critérios: as organizações sonoras e a frequência de utilização
deles nos rituais. De uma forma geral, os considerados instrumentos de fundamento aparecem
menos vezes nos rituais e são executados por outras pessoas além dos ogãs, – músicos conhe-
cidos popularmente pela execução de atabaques. Já os instrumentos do conjunto percussivo
aparecem frequentemente nos rituais e apresentam maior complexidade de repertório e aspec-
tos técnicos para sua execução.

(...) os instrumentos de fundamento representam a essência da força do próprio ori-


xá; esses instrumentos simbolizam o poder da divindade. Um exemplo dessa força
(...) vem da ligação desses instrumentos com o fenômeno da possessão. Enfim, o
fundamento, em geral, faz parte do tabu dessa religião. (CARDOSO, 2006, p. 47)

2.6.1 O conjunto percussivo tradicional


Entende-se por esta denominação o trio de atabaques rum, rumpi e lé, e o gã, – instru-
mento que tem a função de chamar os ogãs para a entrada dos atabaques e possui a função de
guia estrutural devido a sua característica de condução constante do timeline. O gã pode ser
substituído por um agogô com campanas duplas chamado de gonguê no candomblé Angola,
instrumento similar ao utilizado no samba. Outros instrumentos que podem excepcionalmente
ser utilizado como gã é o cowbell ou bloco sonoro.

Figura 4 - Gãs em exposição no Ile Asé Omo Ose Igbá Alatan

Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro, 27/10/201923.


                                                                                                               
23
Instrumentos confeccionados pelo ogã Marcos Vinícius Alves Correia (Vinícius de Oxalá).  

  54  
 

Compreende-se por gã, um idiofone (instrumento que produz som pelo próprio corpo)
de apenas uma campana que será executado na maioria das casas com uma baqueta de madei-
ra. É muito comum que este instrumento não suporte o excesso de intensidade sonora direcio-
nado na sua execução e soe de forma distorcida. Este instrumento é referencial para a indica-
ção do andamento, já que ele inicia o toque pelo timeline antes dos outros três atabaques. Em
muitos casos, mesmo que ele indique sonoramente um determinado andamento, há uma acele-
ração do andamento quando os atabaques entram.
Essa mesma variável do que se espera em relação ao andamento ocorre nas baterias,
principalmente nas chamadas retomadas – quando a bateria realiza a transição de um breque
para o retorno da levada –, havendo uma aceleração natural que deve ser considerada como
flexibilidade intrínseca a estas musicalidades. É muito comum o gã começar em um andamen-
to e, na entrada dos atabaques, ocorrer uma aceleração, que pode ser discreta ou com mais
diferenciação entre o que foi proposto inicialmente pelo gã. Para que ocorra a sincronia do
conjunto – atabaques e gã –, há a necessidade de que ele também acelere até se ajustar e con-
seguir ficar no mesmo andamento dos outros instrumentos. Caso haja a necessidade de um
andamento mais lento, o pai de santo poderá solicitar a interrupção abrupta da performance
dos ogãs e pedir para recomeçar mais lento. Observamos essa prática em diversas festas no
Kyloatala.
Como dissemos, o gã é um instrumento referencial, por executar o timeline – uma cé-
lula rítmica sem variação do começo ao fim de cada toque – e pelo destaque de sua sonorida-
de metálica. É bastante comum que ele seja executado por um ogã bastante experiente, como
é o caso de João Talabi – filho de santo da Casa de Angola Redandá que atua também na Casa
Kyloatala em dias de festas mais importantes. Neste caso, é ele quem conduz todo o ritual em
parceria com o pai de santo local, a partir do timeline e do amplo repertório cantado nos xirês.
O gã também é o principal referencial para todos os outros filhos da casa, pois apoia ritmica-
mente todos os cânticos. Nas baterias, ocorre o mesmo, tanto com o naipe de agogôs de 4
campanas como com o naipe de tamborins, que executa o timeline mais conhecido e referen-
cial para toda a comunidade – o telecoteco.
O conjunto dos atabaques é formado por três peças: rum (grave), rumpi (médio) e lé
(agudo). No candomblé Angola estes mesmos instrumentos são chamados originalmente de
Kasumbi, Mukundu e Txina respectivamente. Segundo Tata Mukambila, – ashogum da Casa
Kyloatala, alguns termos são utilizados do ketu de forma geral, porém cada nação possui um
tronco linguístico e suas características específicas:

  55  
 

A nagotização, a mistura, a milonga como é falado, as pessoas acabaram assimilan-


do muito o Ketu e esqueceram o Angola. Até por conta do Ketu ser mais aberto,
mais expansivo em número de pessoas e adeptos. Ficaram sendo mais utilizadas as
palavras e costumes iorubanos do que o próprio Congo Angola. (MENEZES, Mar-
cos. 28/11/2020. Casa de Angola Kyloatala. Entrevista concedida a Rafael Y Cas-
tro.)

Vale destacar que dentro da musicalidade africana há a utilização de uma trilogia de


tambores que determina essa concepção em algumas outras culturas pelo mundo. Como
exemplo, podemos citar os três batás cubanos, as três alfaias do maracatu, os três berimbaus
da capoeira e os três surdos das baterias, todos estes com intervalos e funções específicas
complementares em suas execuções. Essa relação é tão significativa, que os intervalos de
quarta ou quinta justa utilizados na afinação entre os atabaques são os mesmos entre os surdos
de primeira, segunda e terceira. No entanto, na prática, essa teorização não é necessária, pois a
metodologia utilizada é a da tradição oral.
Os materiais utilizados para a confecção dos atabaques são madeira, ferro e peles ani-
mais que, em alguns casos, têm os pelos mantidos. Há também diferenciações na própria
constituição destes instrumentos, como é o caso da utilização das cunhas – estacas de madeira
que são batidas para aumentar a tensão das peles, utilizadas especificamente no candomblé de
nação Angola – e dos parafusos de afinação, nesse caso um procedimento mais atualizado de
confecção industrial e estabelecido no trio de atabaque do candomblé de nação Ketu.
As células rítmicas utilizadas nos toques variam entre as nações. Na nação ketu, nor-
malmente, os atabaques rumpi e lé utilizam as mesmas frases e são executados por aquidavis.
Na nação Angola há uma maior diferença entre as levadas utilizadas no rumpi e no lé. O rum
apresenta função idêntica em ambas as nações, a de conduzir o discurso musical variado e
trocado com a dança.
Vejamos o que Cardoso (2006) relata sobre o rum:
De fato, as frases musicais mais complexas cabem ao rum. Mas sua complexidade
não se resume às organizações sonoras, mas, também, às relações que extrapolam o
âmbito do som. Ao rum é atribuída a função de dialogar, de apresentar frases musi-
cais distintas e, por meio dessas, enviar ou responder aos vários tipos de mensagens
que existem nos rituais de candomblé. (CARDOSO, 2006, p. 57)

Cardoso também apresenta mais alguns detalhes sobre a musicalidade produzida pelo
chamado conjunto percussivo tradicional (atabaques e gã):
A música advinda desse quarteto é denominada, pelos próprios adeptos da religião
nagô, de toque. Ou seja, cada toque é constituído de frases musicais distintas, toca-
das no rum, e ostinatos que, generalizando, se mantêm todo o tempo, tocado nos
demais instrumentos. Outra característica do toque é que, de maneira geral, cada um
é associado a um orixá. (CARDOSO, 2006, p. 58)

  56  
 

Há uma enorme dedicação do alabê para que ele possa dar conta do amplo repertório
utilizado nos rituais, nos quais o canto não é separado dos toques. Todo ogã precisa conhecer
uma série de cantigas que serão cantadas juntamente com a execução dos toques. Conhecer os
toques dos atabaques é também conhecer muitas cantigas, aquelas que compõe o panteão dos
orixás cultuados no candomblé brasileiro.
Nesse sentido, podemos considerar o corpo como um outro instrumento que também
compõe o conjunto musical do candomblé. Vale lembrar que, em um processo iniciático, o
ogã também aprende alguns passos das danças de alguns orixás, o que mostra a enorme com-
plexidade desse amplo conhecimento. A tríade ritmo, voz e movimento não é uma escolha,
mas sim uma determinação, ao mesmo tempo que é um processo natural de aprendizado que
se consolidará apenas com o tempo de convívio de cada pessoa envolvida em seu terreiro.
2.6.2 Outros instrumentos essenciais ao ritual
Os chamados instrumentos de fundamento mais conhecidos são: adjá, arô, cadocorô,
xerê e o xaorô, – este último, utilizado no pé dos iniciados dentro do roncó. Por motivos éti-
cos da tradição religiosa, não nos é permitido descrever maiores detalhes dos acontecimentos
deste espaço de iniciação na religião, ao passo que conseguimos informações relevantes jus-
tamente por fazer parte. Dentro de nossa investigação, também nos cabe o respeito e os cui-
dados mantidos por gerações, em relação às estratégias de preservação específica dentro de
algumas necessidades dos preceitos religiosos.
Cada um dos preceitos está associado a alguma divindade. Para alguns autores como
Angela Lunhing (1990, p. 48), estes instrumentos de fundamento deveriam ser classificados
como instrumentos rituais, e não musicais. Nesse sentido, corroboramos com Cardoso, por
compreender a dupla função destes. Ou seja, ao mesmo tempo que são instrumentos fora do
conjunto consagrado, também funcionam musicalmente durante os rituais. São reconhecidos
exatamente pelas sonoridades únicas que somam-se no conjunto de todas as outras, impulsio-
nando determinadas ações a partir de suas execuções pontuais.
O adjá é constituído de duas campanas com arruelas amarradas dentro. É o mais utili-
zado nos rituais e tem a função de atrair os orixás do início ao fim dos rituais. Um exemplo da
sua utilização é quando algum yawó está prestes a incorporar um orixá e uma ekédi de maior
graduação na casa, ou mesmo o próprio pai de santo. Mesmo quando incorporado, o adjá é
balançado para que o orixá mantenha-se no local. O adjá está associado a Oxalá – orixá con-
siderado como a maior divindade do panteão Yorubá e em outras etnias. Por esse motivo, ele
é o mais utilizado de todos na seção de instrumentos de fundamento.
Também demonstrando a associação do instrumento de fundamento com a posses-

  57  
 

são, Roger Bastide, sobre o adjá, observa que “quando o transe custa para se produ-
zir, sacerdotes ou sacerdotisas agitam o adjá junto ao ouvido das filhas de santo que
dançam, e não é raro que, importunada por esse ruído agudo e alucinante, a divinda-
de se decida a montar em seu cavalo. (CARDOSO, 2006, p. 49)

Montar em seu cavalo significa que a pessoa está sendo utilizada como transporte de
outro corpo, no caso, do orixá que se utiliza de uma pessoa no ayê, quando desce do orum.
O arô é um par de chifres, normalmente de boi, que apresentam uma sonoridade opaca
ao serem percutidos entre si. Este instrumento está ligado ao orixá Oxóssi e, por este motivo,
é utilizado nas festividades específicas para o caçador – função deste orixá dentro da mitolo-
gia africana.
O cadocorô, na nação Ketu ou corocolô, no candomblé Angola, é constituído de duas
campanas de ferro como as que conhecemos no agogô, porém nesse caso, elas são separadas,
sendo executadas percutindo-se uma contra a outra. É um instrumento associado ao orixá
Ogum, o grande guerreiro. A habilidade em trabalhar com o elemento ferro faz parte de um
conhecimento tecnológico avançado do povo africano, fato apontado por vários historiadores,
sendo que este orixá – Ogum – representa justamente isto.

Figura 5 - Tata Kylonderu exibindo o cadocorô/corocolô no Unzo Kyloatala

Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro, 18/10/2019.

  58  
 

O xerê é praticamente um maracá, o mesmo chocalho utilizado na música indígena.


Constitui-se de uma cabaça com sementes dentro, presas em um cabo, que é executado por
algum filho de santo específico em festas para Xangô. Nesse aspecto, observamos elementos
da mescla entre a cultura afro e indígena existente no candomblé, assim como no caso da in-
corporação dos caboclos no chamado candomblé de caboclo e em outras nações (no Kyloata-
la, o Seu Araribóia).
Há também um pequeno sino, com sonoridade aguda e estridente utilizado em vesti-
mentas do orixá Omolu – o senhor da cura e das enfermidades - e um outro sino preso com
uma espécie de contra-egun24. Este instrumento representa como os indivíduos escravizados
eram controlados, alertando o momento no qual o iniciado se distancia do roncó. Na inicia-
ção, parte da metodologia utilizada serve como estratégia para demonstrar como os antepas-
sados sofreram. Neste caso, o instrumento contribui para o controle da movimentação dos
filhos de santo em recolhimento.
2.6.3 Instrumentos secretos
Sabemos da existência de outros instrumentos utilizados em momentos específicos,
apenas para o público da Casa de candomblé. Um exemplo clássico na Casa Kyloatala, dentro
dessas outras sonoridades, dá-se no conjunto de vasos utilizados para a cerimônia do axexê –
uma espécie de funeral realizado pelos filhos da Casa quando um indivíduo desta localidade é
enterrado. Ainda não participamos desse tipo de cerimônia, mas fomos informados da exis-
tência destes vasos, bem como da performance e do repertório secreto realizados nesse mo-
mento.
Outros instrumentos que se encaixam nessa seção são três tambores parecidos com os
octobans, confeccionados com tubos de pvc com uma pele nas extremidades. Este trio de
tambores seria utilizado especificamente por Exu Malungo na Casa Kyloatala. Apesar de
nunca termos passado por essa experiência, enquanto participamos como filhos de santo desta
Casa, presenciamos um local específico para a guarda destes instrumentos no local.
2.6.4 Instrumentos “incomuns” à tradição
Resolvemos citar nessa seção algo bastante específico que observamos na Casa de
Angola Kyloatala e que nos chamou muito a atenção. Para alguns casos, como nas festas do
caboclo Araribóia, é comum a utilização de outros instrumentos do naipe que não são da tra-
dição do candomblé, o que indica que, nesta localidade, há uma abertura para outras sonori-
dades externas àquelas utilizadas dentro da tradição da religiosidade. Conforme já citado, nes-
                                                                                                               
24
Trançado de palha da costa que serve de proteção espiritual para o povo de santo. O contra egun normalmente
é preso ao braço do indivíduo. Egun é o termo referente ao espírito da pessoa falecida.

  59  
 

ta Casa é comum a utilização do instrumento surdo – nesse caso um de 20” e com pele ani-
mal, idêntico aos utilizados nos conjuntos de samba –, pandeiro de nylon, zabumba e triângu-
lo. Essa necessidade se faz pela ascendência do caboclo da Casa incorporado por Tata Kylon-
deru – o caboclo Araribóia. Por possuir um passado em terras distantes e dentro dessa cultura
musical, há a necessidade da execução de ritmos e cantigas nordestinas, por exemplo. Além
disso, são necessários também para os chamados sambas de caboclo, como dissemos anteri-
ormente. Nesse caso, o pandeiro e o surdo são essenciais.
Apesar de sabermos de diversas restrições em outras casas, quanto à possibilidade de
utilização de outros instrumentos além dos tradicionais (trio de atabaques e gã), percebemos
uma tranquilidade nessa casa em relação à aceitação de outras sonoridades. Outro fato que
corrobora com essa afirmação é termos presenciado a utilização de batás25 pelo músico cuba-
no Jorge Ceruto nesta Casa. Segundo ele, o próprio Exú Malungo do Kyloatala (incorporado
por Tata Kilonderu) o solicita para trazer os três batás, de maneira que estejam disponíveis
para alguma festa específica para ele.
Nesse caso, Jorge Ceruto, músico cubano que é ogã da Casa e possui formação na san-
teria26 cubana, também precisou levar os instrumentos (antes da festa) para que fossem consa-
grados pelo zelador. Somente após essa preparação é que o instrumento ficou disponibilizado
para utilização dentro da religiosidade. Segundo o próprio zelador, antigamente era muito
comum que os chefes de naipe, responsáveis pelas seções da baterias das escolas de samba,
levassem algum instrumento para que fosse consagrado por algum zelador, de forma que es-
ses chefes de naipe (que também seriam ogãs) pudessem utilizá-lo nas baterias. Segundo o
zelador da Casa, apenas após essa consagração é que todo o naipe seria protegido espiritual-
mente por esse instrumento que representaria todos os outros utilizados pelos integrantes.
Esse procedimento também deixa bastante evidente a circularidade existente entre o
candomblé e o samba (nesse caso, mais especificamente, com relação à bateria), para a qual é
trazida a herança ancestral cultuada nos ritos afroreligiosos. É interessante notar como tudo
isso se mistura com os batás e a roda de samba formada especialmente para a referida festa.
Ceruto nos informou que percorreu boa parte do Brasil em busca da consagração do instru-
mento, como os estados do Rio de Janeiro e a cidade de Salvador, sem ter sido aceito. Por

                                                                                                               
25
Instrumentos reconhecidos pela utilização nos ritos afro-religiosos em Cuba como a Santeria, provenientes da
Nigéria, mais especificamente do povo Yorubá e posteriormente pelos Lukumis cubanos. O batá é associado ao
orixá Xangô e a formação tradicional possui três, com tamanhos, afinações e células rítmicas que se complemen-
tam, como as congas e os atabaques.
26
Termo reconhecido pelo culto aos Santos adorados pelos escravos e ex-escravos africanos migrados para Cu-
ba. Uma espécie de sincretismo com a mescla do catolicismo, assim como na umbanda brasileira, porém com
uma rítmica mais complexa.

  60  
 

possuir forte vivência na santeria, por parte de sua família em Cuba, ele pretendia consagrar
seus instrumentos e dar continuidade à religiosidade aqui no Brasil, país onde vive desde
1998. Este fato ocorreu apenas no Kyloatala, pelo interesse mútuo entre ele e o zelador Tata
Kylonderu – uma liderança inovadora, equilibrada e respeitosa dentro das tradições.

  61  
 

CAPÍTULO III – AS ESCOLAS DE SAMBA E O CARNAVAL

3.1 Panorama

Definir o carnaval no Brasil é algo bastante complexo, porém o fato mais significativo
para o presente trabalho é que, apesar de toda a influência midiática, da imprensa, da comer-
cialização, do embranquecimento e da descaracterização de elementos e sentidos iniciais, ele
ainda é elaborado e realizado com predominância de indivíduos afrodescendentes (na totali-
dade da mão de obra para a construção das alegorias, fantasias, bateria, ala musical, entre ou-
tros).
No que se refere, por exemplo, à questão de poder nas escolas de samba, atualmente
há uma série de questionamentos sobre a predominância de presidentes brancos, o que ocorre
por diversos motivos como: a) disputa de posições de poder social, b) financeiros, c) domina-
ção hierárquica do branco sobre o negro, entre outros. Apesar disso, ocorre um processo natu-
ral de participação de pessoas das mais diversas etnias nas escolas de samba, pois essas insti-
tuições também foram pensadas para o compartilhamento de valores sociais coletivos. Ou
seja, mesmo que a escola de samba seja algo mais característico da cultura negra, têm-se a
intenção de compartilhamento com diversos setores sociais.
Por outro lado, há correntes conceituais e indivíduos que defendem que esse espaço é
um dos poucos ainda existentes para a preservação da cultura negra. Notamos isso fortemente,
por exemplo, naquilo que é preparado anualmente pelas escolas para o carnaval de São Paulo
e do Rio de Janeiro, considerado (midiaticamente) como “o maior espetáculo da terra”. As-
sim, ao mesmo tempo que o carnaval é visto como um ambiente “democrático”, muitas vezes
não o é, por conta de vários aspectos comerciais que o envolvem. No entanto, entendemos que
este fato não interfere no processo de preparação dos desfiles no decorrer de todo o ano nas
quadras das escolas, sendo que o que ocorre nesses momentos (ensaios e festas) é determinan-
te para a vida dos sambistas.
Dessa forma, seus atores defendem este território, que é utilizado como possibilidade
existencial onde seus valores, princípios e costumes são preservados, como acontece com o
povo de santo nos terreiros. Para alguns sambistas, há a necessidade de limitar o acesso como
única forma de garantir a continuidade do seu próprio povo através de um conhecimento que
não pode ser “tomado”. Notamos então, que o conhecimento que circula entre os terreiros e as
escolas é uma forma de resistência que resulta no reconhecimento dessas potencialidades pe-
los promotores desse espetáculo. Além disso, mesmo que aquilo que realmente se consagre
nos processos anuais de preparação seja o desfile final, para os sambistas conta muito o que
  62  
 

antecede esse momento, já que todos os processos promovidos pelas práticas culturais negras
reforçam os valores e significados do próprio indivíduo e seu grupo. O desfile é uma celebra-
ção compartilhada, porém os pormenores e práticas anteriores é que valem a própria existên-
cia desses indivíduos, pois a identidade individual e coletiva são preservadas justamente nes-
sas preparações (ensaios, elaboração de arranjos, decisões e metodologias diversas).
Sabemos que, com a colonização, tivemos a influência das tradições carnavalescas eu-
ropeias, essencialmente do entrudo. Para Pegado (2005), o carnaval chegou aqui no século
XVIII trazido pelos portugueses, sendo o entrudo uma brincadeira de se atirar bexigas com
líquidos diversos. Já para Crecibeni (2000), o período correto seria o século XVII, também
com o formato do entrudo. Para ele, nessa época, as autoridades tentavam coibir essa forma
de manifestação pelo uso exagerado de substâncias insalubres que eram jogadas nas pessoas:
Por diversas vezes, as autoridades tentaram proibir os abusos praticados pelos foli-
ões: este folguedo violento consistia em atirar nas pessoas não apenas água, através
de cuias, bisnagas ou baldes, mas também farinha de trigo, cal e outros. (CRECI-
BENI, 2000, p. 15-16)

Segundo Tinhorão (1991), o entrudo era algo um pouco diferente, e permaneceu até o
século XIX. Para ele, esta era uma festa na qual os escravos corriam pelas ruas sujando-se
entre si, enquanto as famílias brancas jogavam das janelas de suas casas líquidos sujos nos
participantes que estavam pelas ruas.
O entrudo, do qual se tem notícia desde o início do século XVII... limitou-se até me-
ados do século XIX a uma festa em que os escravos da Colônia e do Império saíam
em correrias pelas ruas, sujando-se uns aos outros com farinha de trigo e polvilho,
enquanto as famílias brancas, refugiadas em suas casas, divertiam-se derramando
pelas janelas tinas de água suja sobre os passantes... (TINHORÃO, 1991, p. 111)

Para Tinhorão (1991), muitos autores tendem a direcionar todo o histórico carnavales-
co para a cidade do Rio de Janeiro, principalmente pelo fato de ela ter sido a capital do país e
apresentar grande diversificação social. Nelson Crecibeni (2000) também destaca característi-
cas que corroboram com Tinhorão (1991), observando ser importante compreender as caracte-
rísticas próprias do carnaval paulistano, como por exemplo, das festas de Pirapora do Bom
Jesus, com seu samba de bumbo, e também dos batuques de Piracicaba, Tietê e Capivari. Isso
determina diferenças essenciais entre o samba do Rio de Janeiro e o de São Paulo, desde o
período carnavalesco.
Refletimos sobre os relatos acima de Tinhorão (1991) e Crecibeni (2000) e, intencio-
nando levar nossa discussão para a cidade de São Paulo, citamos Vinci de Moraes (1997) que,
em seu livro intitulado Sonoridades Paulistanas, classifica esse momento como representati-
vo de uma separação social entre a elite europeia que dominava a indústria cafeeira na época,

  63  
 

e o povo descendente de escravos. Estes últimos se tornariam ex-escravos, e seriam, aos pou-
cos, colocados nos bairros mais afastados da cidade de São Paulo, como o Campos Elísios, o
Largo da Banana e a Barra Funda – bairro ainda hoje rodeado por diversas quadras de agre-
miações carnavalescas que continuam sendo dominadas pela mão de obra negra.
A cidade no seu processo distorcido e perverso de crescimento deixava aos negros
os espaços mais sombrios e afastados. Três áreas se constituíram na passagem do
século passado para o século XX, como regiões de grande concentração negra: Barra
Funda, Bexiga e Lavapés. Nesses bairros, os negros sobreviviam a partir das ativi-
dades marginais, do subemprego e dos baixos salários, morando instavelmente mas
sempre arrumando tempo para manterem vivas suas histórias e memórias. (MORA-
ES, 1997, p. 61-62)

Moraes (1997) também apresenta uma versão sobre a origem do carnaval pelo entru-
do:

Até a segunda metade do século passado, o entrudo – brincadeira de origem ibérica


– englobava todos os modos de brincar o carnaval nos centros urbanos e sua forma
sempre foi livre e sem organização alguma, objetivando apenas a diversão e o banho
d’água nos transeuntes, as vezes resvalando na violência. Com o tempo essa brinca-
deira tornou-se mais elegante, permitindo a participação das famílias, que brincavam
entre si ou em disputa direta entre elas. (MORAES, 1997, p. 78)

Segundo Moraes, todo o processo civilizatório influenciou as características do carna-


val paulistano. Para ele, houve uma separação proposital denominada de grande carnaval e
Pequeno Carnaval, já que, enquanto os brancos ficavam nas janelas de seus casarões na ave-
nida Paulista – tentativa de cópia da famosa avenida Champs Elysees em Paris –, os negros,
pouco a pouco, iam sendo conduzidos para essas outras regiões.
Para a professora Olga Von Simson, referência no tema, o grande carnaval baseava-se
no carnaval elitizado, do luxo e do brilho, conhecido por carnaval veneziano, o que de certa
forma permanece atualmente nas escolas de samba, por meio da utilização de materiais como
plumas, grandes carros alegóricos e fantasias luxuosas e caríssimas. O Pequeno Carnaval ba-
seava-se nas tradições lúdico-religiosas portuguesas, negras e indígenas. Para ela, já na déca-
da de 1840, o catolicismo era a religião oficial e a sociedade brasileira já possuía estrutura
consolidada, o que favorecia a apropriação de culturas e formas de expressão diversas. Essa
mistura, segundo Simson (2007), se tornava possível principalmente pela religiosidade encon-
trada em todas as camadas da sociedade, nas quais eram comuns manifestações e festas não
religiosas, sempre em contrapartida às procissões promovidas pela Igreja, o que resultaria em
algumas das características que hoje temos no carnaval, como por exemplo, a mescla de um
pouco de todos esses elementos nos desfiles carnavalescos. Porém, umas das maiores marcas
do carnaval atual é a reprodução de elementos culturais negros, entre eles a construção rítmica
de uma bateria.

  64  
 

Nogueira (2008) destaca o mesmo exemplo de Moraes (1997) e Simson (2007), refor-
çando esse conceito de carnaval – ‘Grande’ e ‘Pequeno’. Para ele, do Grande Carnaval parti-
cipava a elite da cidade, que se encontrava nos bailes de máscaras realizados com o uso de
muito luxo e brilho nos salões de festa e, do Pequeno Carnaval, participava a população me-
nos favorecida, que realizava suas brincadeiras nas ruas. Trata-se, claramente, de uma separa-
ção intencional, estabelecida pela própria elite que, de forma geral, não reconhece a cultura
popular, e mantém uma visão eurocêntrica e hegemônica instituída na colonização. Por outro
lado, na realidade, uma total separação mostra-se impossível, pelo fato de que a própria elite
também colaborou para a organização e reconhecimento do carnaval por meio do poder pú-
blico e do estabelecimento de determinadas leis:
O processo de organização da nova festa carnavalesca, pautada na junção de interes-
ses das manifestações do Grande Carnaval e Pequeno Carnaval, representados res-
pectivamente pela elite e povo, dar-se-ia a partir do século XX com a imposição
gradativa de regulamentações cada vez mais estruturadas por parte do poder público
como, por exemplo, policiamento ostensivo nos locais da festa, itinerário previa-
mente definido aos grupos carnavalescos e logradouros roteirizados. (NOGUEIRA,
2008, p. 52)

Para Tinhorão (1991), isso determinaria o início dos cordões carnavalescos. Essas
agrupações são responsáveis pelo formato inicial das conhecidas escolas de samba, que foram
se modificando e crescendo em setores hoje conhecidos como alas, entre elas a bateria. No
relato dele, além de todos os envolvidos, há destaque inicial para o povo negro na formação
dos cordões e no uso de instrumentos de percussão.
Obrigado à adoção de formas mais disciplinadas de brincar nas ruas, por forças de
repetidas repressões policiais contra o entrudo, o povo lembrou-se de paganizar a es-
trutura das procissões e no correr da segunda metade do século XIX apareceram os
cordões... primeiros núcleos de criadores da autêntica música de carnaval. Integra-
dos por negros e mestiços, e logo pelos brancos das camadas mais humildes da cida-
de, os cordões apresentavam-se como uma massa mais ou menos compacta de fanta-
siados, que, ao som de instrumentos de percussão, avançavam pelas ruas. (TINHO-
RÃO, 1991, p. 113-114)

Para Pegado (2005), há também uma influência ibérica, já apontada anteriormente por
Moraes:
Em 1846 um fato marcaria para sempre a história do carnaval carioca e brasileiro. O
sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes, o Zé Pereira, querendo lem-
brar os tempos de romaria e festanças lusas, saiu às ruas no sábado de carnaval,
acompanhado de patrícios já “alegres” das doses de vinho e aguardente, batucando
zabumbas e tambores. Foi tanto o sucesso, que no carnaval seguinte, pequenos gru-
pos, munidos de tambores e latas popularizaram o gênero. Este, aliás, ao bater o
bumbo com competência e precisão passou a ser considerado o precursor do surdo
de marcação, hoje fundamental e existente em todas as Baterias de Escolas de samba
(PEGADO, 2005, p. 21).

Tinhorão (1991) afirma que os ranchos – grupos que saíam em procissão, ao som de
marchas de rancho –, tentavam disciplinar o carnaval, organizando e estabelecendo critérios
  65  
 

para que não se saísse do controle, visando a diminuição da violência característica do entru-
do. E com relação à criação dos dois gêneros musicais que correspondiam a essa nova forma
de organização – a marcha e o samba –, afirma que “o estilo de passeata de ranchos, blocos e
cordões estava pedindo um ritmo marchado, necessariamente binário, com acentuação no
tempo forte, e cuja marcação deveria facilitar o avanço da massa de foliões.” (TINHORÃO,
1991, p. 120).
Voltando ao processo que estabelece o que hoje conhecemos como escolas de samba,
observamos então que a sequência correta de tal evolução seria: a) corsos, b) ranchos, c) cor-
dões e d) escolas de samba. O corso foi o início deste processo, quando a elite assistia pelas
janelas dos casarões o desfile de carros na avenida Paulista. De certa forma, é o mesmo que
ocorre hoje em dia com o desfile das escolas de samba, pois os carros alegóricos substituíram
os carros de passeio, e o público, ao invés de ficar nas janelas, fica nas arquibancadas do
Anhembi (no caso da cidade de São Paulo). No Rio de Janeiro, o sambódromo é chamado de
Marquês de Sapucaí. No Brasil inteiro existe esse tipo de estrutura para a apreciação de desfi-
les carnavalescos.
Outra semelhança ocorre nos desfiles cíveis das cidades, como o de 7 de setembro.
Nesse caso, o público fica em pé na rua assistindo, o que também acontecia antigamente nos
desfiles carnavalescos. Em São Paulo, por exemplo, pontos conhecidos de desfiles carnava-
lescos foram a avenida Tiradentes e a avenida São João. Nesta última, até hoje, acontecem
desfiles de blocos carnavalescos e escolas de grupos menores, os chamados grupos de acesso.
Vale lembrar também que os blocos (que possuem estrutura parecida a uma escola de samba,
porém menor) participam de uma avaliação classificatória, podendo mudar de grupo. Há tam-
bém outros blocos de rua pela cidade que não seguem o modelo de uma escola e podem desfi-
lar ao som de outros estilos musicais. Os Blocos com o formato de escola representam suas
comunidades e mantém tradições, valores e significados.
Apesar dos Blocos carnavalescos serem mais conhecidos atualmente, não podemos
esquecer das agremiações que deram origem às escolas atuais, como o cordão, como já ante-
riormente citado. Estes, eram formados por um grupo de foliões mascarados acompanhados
por um conjunto de sopros e percussão conduzido por um mestre que utilizava um apito. Esse
novo formato de grupo era relativamente pequeno e tinha como base núcleos familiares, como
aponta Osvaldinho da Cuíca:

Na realidade, não passavam de pequenas turmas de familiares, vizinhos e amigos


que saíam às ruas com figurinos simples, feitos em casa, e com formação musical
muito reduzida e improvisada. (CUÍCA; DOMINGUES, 2009, p.46)

  66  
 

O cordão mais conhecido em São Paulo, por ser reconhecido como o primeiro a se es-
tabelecer na cidade, foi o Grupo Barra Funda, formado em 1913 (e com fundação em 12 de
março de 1914). Diferentemente do Rio de Janeiro, os cordões em São Paulo utilizavam o
chamado baliza, já existente nas bandas e fanfarras de música com a mesma formação ins-
trumental – sopros e percussão. O baliza fazia coreografias e brincadeiras com o público, rea-
lizando uma espécie de abertura para todos os outros participantes que se apresentariam du-
rante o desfile. O baliza é considerado, por relevantes sambistas e estudiosos do tema, a ori-
gem da conhecida comissão de frente das escolas atuais. Na verdade, o que ocorre é que inici-
almente haviam diferenças entre Rio e São Paulo e posteriormente houve reprodução do mo-
delo carioca até os dias atuais. O chamado samba rural é uma marca característica em São
Paulo e, segundo alguns sambistas de gerações mais anteriores, pode ser menos evidenciado
em relação ao modelo do desfile carioca adotado.
Um dos grandes precursores do carnaval paulistano foi Dionísio Barbosa, fundador do
Grupo Barra Funda – o primeiro cordão da cidade. Ele era compositor, pandeirista e remode-
lou as marchas do carnaval carioca ao seu estilo.
Como em toda a história do negro no Brasil, as reuniões e os batuques eram objeto
de frequentes perseguições policiais e de antipatia por parte das autoridades brancas.
Assim se destacou a liderança do negro Dionísio Barbosa, pois fundou o primeiro
cordão carnavalesco em São Paulo, num tempo em que para sair às ruas era preciso
muita fibra. (CARVALHO, p. 86, 2009 apud MORAES, 1978).

Segundo o relato acima, observamos, mais uma vez, que os autores reforçam uma
maior participação de descendentes afro-brasileiros como precursores das escolas de samba.
Crecibeni (2000) reforça a presença dos negros nos cordões e também relata alguns elementos
estruturais desse tipo de agremiação, que seriam substituídos por outros nas futuras escolas:
Formados pelos negros e pelas camadas mais pobres da população, adotando um
desfile em forma de procissão durante suas andanças pela cidade, não tinham enre-
do, apenas um tema, e desfilavam com abre alas, balizas, porta-estandarte, rei, rai-
nha, um grupo feminino e ao som de conjuntos instrumentais de corda e sopro e ao
ritmo do batuque quando paravam. Com predomínio de instrumentos pesados, foram
certamente os antepassados das Escolas de samba. Alguns relatos dão conta de que
os grupos desfilavam com animação, até encontrar um grupo rival, quando então era
travada violenta pancadaria. (CRECIBENI, 2000, p. 20)

Outro fato que corrobora com a tese de que as escolas se originaram dos cordões é a
existência do cordão carnavalesco Vai-Vai (fundado na década de 1930) que deu origem à
escola homônima no bairro do Bixiga. Do mesmo modo, temos o Grupo Barra Funda, que
coexiste no GRCSES Camisa Verde e Branco no bairro Barra Funda.
A partir da mistura de elementos existentes nos grupos relatados, temos a origem das
escolas de samba em núcleos familiares permeados pela herança cultural ancestral. Esses sa-
  67  
 

beres persistiram durante a evolução desses grupos e resistem, em forma de conhecimento


compartilhado coletivamente pelos atores envolvidos no processo da tradição oral. O carnaval
se popularizou e, apesar de várias influências externas (mídia, imprensa e comércio), preserva
o conhecimento e a tradição na coletividade dos afrodescendentes.
As Escolas de samba, tal como nos Cordões, sempre traziam a marca de origem – o
sistema “familiar”. Tão importante que dela poderia depender o sucesso ou o desa-
parecimento da Escola, como disse Inocêncio Tobias: - “é que a Escola de samba,
morre o cabeça, acaba”. (MORAES, 1978, p. 54 apud CASTRO, 2016)

Interessante destacar que essa relação e respeito pelo núcleo familiar, característica da
cultura popular, também se mostra bastante presente nos ritos afro-brasileiros, entre eles o
candomblé, já que os ensinamentos são normalmente passados de pai para filho. No caso da
Casa de Angola Kyloatala, por exemplo, Tata Kilonderu se orgulha muito em falar que ele foi
escolhido para levar o nome de sua família, sendo o sucessor de sua mãe: Mameto Vanda
Pereira dos Santos (Bandadeloyo) – fundadora do Inzo Kyloatala, sacerdotisa responsável por
iniciar toda a família. Muitos outros irmãos e cunhados, e inclusive a própria esposa de Ki-
londeru, possuem cargos relevantes na Casa e promovem a continuação de todo esse conhe-
cimento, o que também acontece nas escolas de samba.
Por outro lado, todo esse conhecimento sempre foi desafiado, de maneira que, mesmo
com toda essa herança cultural significativa, há uma tendência em recusá-la. Por exemplo, ao
mesmo tempo que o carnaval torna-se um negócio lucrativo, a grande mídia promove uma
história do carnaval bastante estereotipada que mascara todo o conhecimento e profundidade
dessa produção cultural permeada pelo saber ancestral afrodiaspórico. Esta visão, principal-
mente no início de surgimento das escolas, estabelece que essa cultura representa uma certa
ameaça ao controle social:
O Samba [...] (gênero musical) e, principalmente, a primeira (instituição festiva) são
produtos da década 1920 e do bairro do Estácio de Sá, uma parte da zona de obso-
lescência em torno do centro do Rio de Janeiro, habitado por imigrantes, negros,
operários, estivadores, prostitutas e malandros, moradores de cortiços, morros e fa-
velas circundantes, cujos hábitos, costumes e festividades eram desdenhados pela
elite e reprimidas pela polícia. (FERNANDES, 2012, p. 2)

A origem do termo “escola de samba” encontra-se no já citado bairro do Estácio do


Rio de Janeiro, por volta de 1925:
Quanto à denominação ‘Escola de samba’, deveu-se a uma natural vaidade dos
Bambas do Estácio – alguns já compositores profissionais na ocasião – que, queren-
do se distinguir dos rivais, proclamavam-se professores, pois, além de viverem na
vizinhança da Escola Normal (que formava professores), então localizada no Largo
do Estácio, eram, afinal, os criadores de um novo samba. (SEVERIANO, 2008, p.
119)

Tinhorão (1991) aponta uma provável época para o surgimento dos sambas enredo e

  68  
 

seus objetivos: “O Samba Enredo, criado pelos compositores das escolas de samba para con-
tar em versos a história escolhida como tema do desfile carnavalesco, surgiu a partir da déca-
da de 40” (TINHORÃO, 1991, p. 169). Já para Narloch (2011), esses novos sambistas, que se
autointitulavam professores (‘novos bambas do Estácio’), submeteram-se ao que ele chama de
marketing da pobreza, produzindo um novo estilo de samba em oposição a “velhos” composi-
tores como Donga, Sinhô e Pixinguinha, cujas músicas não pareciam tão brasileiras assim.
Narloch também afirma que “Apesar do desdém dos velhos compositores, o samba do Está-
cio, acompanhando o enredo das escolas, ganhou o país pelas rádios e como propaganda de
Getúlio Vargas” (NARLOCH, 2011, p. 163). Aqui, entendemos que Narloch faz uma crítica
ao projeto de Nação, determinado politicamente para aproveitar a popularidade do samba co-
mo representante de um modelo de sucesso social.
Nesde período, por ordem do governo de Getúlio Vargas, as escolas de samba (através
de seus enredos) foram utilizadas como ferramenta de exaltação que, com a intenção de evitar
a repressão por parte da polícia, ajudaram a contar uma falsa história de democracia e igual-
dade social dentro do país. Atualmente, os sambas enredo ainda são utilizados para se contar
uma história idealizada sobre determinado tema, em troca de apoio financeiro de alguns pa-
trocinadores. Nesse processo, observamos várias transformações e interferências em caracte-
rísticas identitárias nas escolas, que se submetem às escolhas daqueles que nelas investem, o
que gera um outro ciclo vicioso de dependência mútua e direciona as escolas para outros inte-
resses e objetivos, com base na ideia de existência de um certo poder paralelo ilusório.
Antes dessas transformações, como já citamos acima, os Blocos e escolas coexistiram
sem problemas até 1934, o que teria contribuído para a uma maior aceitação por parte do po-
der público:

A preocupação dos primeiros organizadores de Escolas de samba era simplesmente


a de conferir uma certa respeitabilidade aos seus blocos (até pelo menos 1934 as de-
nominações bloco e Escola de samba coexistiam sem preferência), afastando assim a
humilhante perseguição policial. (TINHORÃO, 1991, p. 169)

Vejamos o que Narloch nos traz sobre as interferências políticas da época:


Em 1937 [...] foi instituído que todos os Sambas Enredo deveriam homenagear a
história do Brasil [...]. Esse carnaval disciplinado e patriótico não nasceu só por im-
posição do governo: os grupos também aderiram espontaneamente a ele. A Deixa
Falar [...] desfilou em 1929 usando na comissão de frente cavalos da Polícia Militar
do Rio de Janeiro. Três anos depois, o samba enredo da Escola era A Primavera e a
Revolução de Outubro, em homenagem à tomada de poder de Getúlio Vargas em
outubro de 1930. A apresentação contou com participantes vestidos de militares.
(NARLOCH, 2011, p. 145)

Contestamos, no entanto, a “adesão espontânea” citada pelo autor, no sentido de se

  69  
 

utilizar elementos da própria opressão social nos enredos e desfiles. Nesse momento, o samba
teria sido melhor aceito, espalhando-se pelas cidades com um maior alcance, dentro dessa
estratégia de parceria com a imposição de controle e segurança social. Teriam então surgido
novos agrupamentos que se estruturavam pouco a pouco, desenvolvendo temas, e apresentan-
do-os pelas ruas do Rio de Janeiro, com controle e organização reconhecidos pelos órgãos
federais. É relatado, por filhos de sambistas da época, que essa prática tinha o objetivo de
legalizar estas agrupações junto à polícia. A própria utilização de termos como “Social” e
“Cultural” no nome das agremiações, deriva-se desse “reconhecimento”, uma tentativa de
mostrar a importância destes locais como formadores da sociedade.
É por isso que, de forma geral, as escolas têm em seus nomes oficiais siglas incluindo
essas letras – “S” e “C”: GRCSES – Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba
Camisa Verde e Branco, GRCSES – Grêmio Recreativo, Cultural e Social Escola de Samba
Nenê de Vila Matilde, GRCSES – Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba Ro-
sas de Ouro e o GRCSES – Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba Império de
Casa Verde. Ou seja, tudo isso colaborava, e ainda colabora, para uma maior aceitação das
escolas pelo poder público. A própria valorização de enredos patrióticos nos desfiles, discuti-
da acima, resultou em patrocínios para os concursos oficiais de desfiles de escolas de samba
de 1943 a 1945.
Como decorrência desse processo de evolução do carnaval em parceria com o poder
público, o que era considerado como uma possível variação de Bloco de rua começou a se
determinar como evento da cidade, já com a utilização do termo escola de samba no ano de
1932, no primeiro desfile de escolas com a participação de 19 grupos. Em 1935, três anos
depois, ocorreu a legalização das escolas de samba e a oficialização dos desfiles. A partir des-
te período, o carnaval cresceu e começou, de forma progressiva, a representar cada vez mais a
cultura brasileira, tanto dentro como fora do país. Em decorrência desse crescimento, as esco-
las de samba tiveram um aumento relevante do número de componentes:

Foi pois quando o número de componentes das Escolas começou a crescer, no início
da década de 30 era de oitenta a cem figurantes, permitindo melhor aproveitamento
teatral do enredo pela multiplicação das alas, no final da década de 40 algumas Es-
colas já desfilavam com cerca de quinhentas pessoas. (TINHORÃO, 1991, p. 175)

Em 1952, fundou-se a Associação das Escolas de Samba da cidade do Rio de Janeiro,


que passaria a comandar a organização dos desfiles, implantando a divisão das escolas por
grupos. Em São Paulo, a Liga das Escolas de Samba surgiu posteriormente a esse período.
No Rio de Janeiro, os desfiles ocorreram na Praça Onze até 1942, passando então para

  70  
 

o centro da cidade, onde permaneceram até meados da década de 1970. Com a urbanização da
cidade e a influência da mídia, principalmente da TV, as escolas de samba ganharam nova
dimensão e em 1978 os desfiles passaram a acontecer na Avenida Marquês de Sapucaí. O
famoso sambódromo, onde atualmente ocorrem os desfiles, foi construído somente em 1984.
Na cidade de São Paulo, os desfiles acontecem no sambódromo do Anhembi, importante local
para a apresentação desse formato turístico de carnaval.
Atualmente, há uma série de discussões sobre onde chegou o carnaval, comercialmen-
te falando, e o que é entendido como positivo ou negativo nesse processo evolutivo. Chega-
mos então, em nossa discussão, na problemática entre evolução e tradição, pois após o que foi
estabelecido nos sambódromos, temos um carnaval que o mundo inteiro conhece da seguinte
maneira: escolas enormes, com mais de 4 mil componentes divididos entre muitas alas, com
destaque para a bateria e outros setores. Porém, pouco se discute a respeito das tensões exis-
tentes em todo este processo. Os núcleos coletivos, que fazem sentido para as populações
afrodescendentes e demais interessados, surgem de maneira espontânea e envolvem momen-
tos de tensão e de luta, conflitos amplamente discutidos no Capítulo I, necessários em nego-
ciações ocasionadas pelo movimento da diáspora, suas reconexões, recusas e até transforma-
ções – compreendidas aqui como estratégia de sobrevivência para muitos indivíduos que, em
geral, são vistos apenas como formadores de núcleos de entretenimento.
Considerar qualquer escola de samba e sua população, assim como os terreiros, como
locais de convívio inconsciente, no sentido do não reconhecimento de suas forças políticas e
sociais, ao nosso ver, é um erro ou uma depreciação proposital com outros fins, normalmente
o de dominação de um grupo sobre outro. Vejamos, a seguir, o que nos traz Moraes (1978),
relevante pesquisador no contexto das escolas de samba sobre a importância e relação entre os
terreiros e estas agremiações: “As escolas de samba, tal como a umbanda, são núcleos de in-
tegração social e racial, podemos deduzir que nelas os aspectos da cultura espontânea são
predominantes” (MORAES, 1978, p.145).
É importante lembrar que esse processo de transformação das características das esco-
las, em especial o aumento do número de integrantes, ocorre até os dias de hoje, e também de
forma rotativa, havendo bastante circulação de pessoas novas. Porém, as alas das escolas con-
sideradas como identitárias – ala das baianas e bateria –, apesar de também sofrerem com
essas mudanças, preservam a maioria de seus integrantes. Ou seja, justamente as alas que pos-
suem maior conexão com o candomblé. No caso da ala das baianas, por conta da relação iden-
titária e histórica com a escola e, no caso da bateria, pelas várias conexões musicais de ele-

  71  
 

mentos do candomblé com a bateria, extensivamente analisados neste trabalho.


As escolas de samba são verdadeiros núcleos de resistência e inclusão social. Em al-
gumas delas existem projetos específicos para o público infantojuvenil, onde são formadas
escolas dentro do perfil dessa faixa etária. Chamadas de “escolas mirins”, também possuem
data específica para a realização de seu desfile anual, tendo como base todo o conhecimento
oriundo de uma escola tradicional. As mais conhecidas são a “Mangueira do Amanhã” do Rio
de Janeiro e o “Projeto Samba se Aprende na Escola”, que acontece em algumas escolas de
São Paulo, com destaque para o GRCSES Rosas de Ouro. Nestes casos, o conhecimento afro-
diaspórico é transmitido em uma perspectiva intergeracional, pois em uma escola de samba,
assim como no candomblé, utiliza-se esta metodologia típica nos grupos musicais. Abordare-
mos algumas características similares e específicas sobre estas relações no capítulo IV.

3. 2 Instrumentos

3.2.1 As caixas: caixa em cima, caixa vazada, caixa com talabarte de 14”, tarol e malacaxeta

Além dos instrumentos da bateria que tratamos amplamente neste trabalho (repinique,
surdos, tamborim, entre outros), destacamos aqui uma seção especial, assim como fizemos
com o capítulo anterior com diversos outros instrumentos menos conhecidos e “encaixados”
em seções específicas no candomblé.
As caixas em cima são assim denominadas por serem tocadas sem o talabarte e próxi-
mo ao ombro do ritmista. Estas caixas possuem 3 variantes – malacachetas, vazadas ou tarol.
Apenas a malacaxetas vazadas ou tradicionais podem também ser utilizadas com talabarte.
Dessa forma, definimos caixas em cima como uma seção específica na bateria, independente
do instrumento utilizado. Estes instrumentos apresentam características específicas individu-
ais, naquilo que se refere a: a) técnica, b) afinação, c) sonoridade, d) postura e e) materiais –
baquetas e talabartes. Estes aspectos são representativos das conexões abordadas na totalidade
deste trabalho. Portanto, tornou-se elemento fundamental para a compreensão do nosso objeto
central. Um dos fatos observados a respeito deste naipe, por exemplo, resulta da circularidade
dos saberes trazidos pelos indivíduos que frequentam os terreiros e as baterias. Ou seja, a pró-
pria concepção do ritmo como fenômeno multidimensional, que fundamenta-se a partir de
possibilidades polifônicas e polirrítmicas resultante de timbres e sonoridades diversas, de-
monstra uma concepção musical ampliada oriunda da diáspora, já que isso ocorria original-
mente nos conjuntos percussivos africanos e chegou no Brasil pela migração escravagista. As

  72  
 

combinações realizadas pelas funções de cada naipe e suas complexidades, apresentam a es-
sência dessas influências e do processo transitório cultural estrutural no Brasil.
A partir dos apontamentos de Tinhorão (1991), Osvaldinho da Cuíca, e muitos outros
nomes relevantes do contexto, notamos que a caixa é considerada como uma espécie de ins-
trumento coringa no naipe de percussão, por representar fundamentos técnicos que permitem
a transição técnica e aplicabilidade para muitos outros instrumentos, tanto dentro como fora
do contexto do samba.
Para Rafael Galante27 (2015), na diáspora havia diversas embaixadas africanas que
apresentavam esse tipo de instrumento, o que nos leva a considerar que haveriam duas possi-
bilidades de surgimento e absorção deste instrumento nas formações das baterias – origem
europeia e origem africana. Nesse ponto, como é argumentado neste trabalho, acreditamos
que possa ter ocorrido um certo apagamento dessa segunda influência diaspórica, assim como
complexos pontos de transição.
Este instrumento foi amplamente utilizado nos cordões carnavalescos em suas mar-
chas – estilo herdado da tradição europeia militar. Posteriormente, essa utilização se estendeu
a diversas bandas (civis) com formação instrumental de sopros e percussão, o que, de acordo
com o tempo, foi se modificando. Essas modificações resultaram em novas técnicas, células
rítmicas idiomáticas e afinações, algo facilmente perceptível na conhecida levada de caixa em
cima implantada na década de 1970 por Mestre Louro (Lourival de Souza Serra), no Salguei-
ro. Atualmente, ocorre uma fusão dessa levada – considerada uma marcha – com elementos
do arrebate e do alujá de Xangô – toques utilizados no candomblé. Detalharemos isso mais
adiante, a partir de informações coletadas em entrevistas, de transcrições musicais desses to-
ques em formato de partitura e da análise musical de elementos em comum.
Há narrativas populares que são utilizadas para determinar as características da caixa
em cima, algo que, técnica e fisicamente, é considerado algo muito diferente, a ponto de pro-
vocar estranhamento de vários percussionistas, algo já superado pelos ritmistas. Nesse senti-
do, ocorre justamente o contrário atualmente. Ou seja, os ritmistas preferem utilizar as caixas
em cima por conta de uma maior possibilidade de projeção sonora, assim como de uma maior
possibilidade de movimentação do ritmista durante o desfile. Sendo assim, o ritmista que se
acostumou a tocar as caixas em cima não quer mais utilizar caixas com talabarte, por exem-
plo. A história contada por alguns sambistas, como Osvaldinho da Cuíca e Junior Silva, refe-
re-se à possível origem da posição do instrumento:
                                                                                                               
27
Curso ministrado pelo autor. A diáspora centro africana e a formação das musicalidades afro-brasileiras
(Sécs. XVI-XIX). Instituto de Artes da UNESP. Março a Abril de 2019.

  73  
 

Antigamente a turma utilizava este recurso por um simples motivo. Alguns ritmistas,
quando saíam do sistema carcerário, voltavam para suas escolas de samba, princi-
palmente no período de festas de ano novo e carnaval. O que ocorria é que, para es-
conder o rosto que ficava à mostra, quando o ritmista estava em exibição [perfor-
mance], eles colocavam a caixa na frente e, para fazer isso, precisavam deixar o ins-
trumento próximo à cabeça. Dessa forma, o corpo [do instrumento] serviria de es-
conderijo perante a justiça (CUÍCA, Osvaldinho da. 18/07/2017. Residência do en-
trevistado no bairro do Ipiranga, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y
Castro.)

Para Junior Silva (diretor de bateria do GRCSES Império de Casa Verde), o contexto
das rotinas de ensaio de uma bateria, poderia tranquilamente ter dado origem a esta história da
caixa em cima.
É, a rapaziada [os presos] participa. Não é de hoje! Sempre foi assim. Onde tem ba-
teria, o povo chega. Faz parte da história. As escolas surgiram com o objetivo de
atender o povo. É bem provável que esta história da caixa seja verdade, pois sempre
a rapaziada encostou. Cada um com sua dificuldade, dependendo do procedimento,
pode participar da bateria (SILVA, Junior. 10/02/2017. Quadra do GRCSES Impé-
rio de Casa Verde, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)

As caixas em cima – fixadas acima do ombro do ritmista – que, a princípio, impossibi-


litariam um melhor desempenho da mão esquerda, já que esta, além de ser utilizada para to-
car, serve, ao mesmo tempo, para apoiar/segurar o próprio instrumento, serviam então apenas
como estratégia de esconder a face do ritmista. Para outros sambistas ela foi desenvolvida a
partir de uma concepção estratégica, em busca de uma sonoridade diferenciada, e não apenas
dentro desta chamada lenda sobre sua origem – chamada assim pelos próprios ritmistas, dire-
tores e mestres.
Ouvimos também, de quem não participa do contexto, que a origem da chamada caixa
em cima poderia se dar simplesmente pela falta de um item para pendurar o instrumento, de
maneira que essa forma tenha sido improvisada para se conseguir executar o instrumento em
cima do ombro. O mesmo teria ocorrido com a chamada baqueta carioquinha de repinique
que, apesar de ter se quebrado em determinada performance, continuou a ser usada pelo ritmi-
sta. Com isso, posteriormente, este modelo de baqueta menor teria sido adotado para o repini-
que. São transformações possíveis que acabam por modificar aspectos ergonômicos, havendo
a necessidade de adaptações constantes para a performance. Nesse sentido, o corpo também é
reinserido em novas necessidades, por diversos motivos: a) técnicos, b) falta de materiais, c)
estratégias de sobrevivência, entre outros.

  74  
 

Figura 6 - Mestre de bateria Zoinho (Robson Campos), do GRCSES Império de Casa Verde, tocando
caixa em cima

Fonte: Acervo pessoal de Dennys Silva.

A lenda da caixa retrata, além de aspectos históricos referentes ao surgimento de de-


terminadas peculiaridades nessas formações, parte do imaginário desse mundo marginalizado
que envolve o samba. Essa também seria uma forma de malandragem que convém, pois trata-
se de uma estratégia elaborada para superar determinadas dificuldades de inserção social e
aceitação, levando-se em conta as dívidas do indivíduo (nesse caso, o ritmista) com o sistema
judiciário. A prática de sair em alguma bateria, quando o indivíduo recebe o chamado indulto,
é uma realidade em muitas comunidades do entorno das quadras das escolas de samba.
Dennys Silva destaca essa característica em dias de desfile no carnaval de São Paulo:
Em algumas escolas mais tradicionais, você sabe bem quais são [esses ritmistas].
Ainda é comum. Antigamente acontecia mais, só que ainda é assim. O cara sai da
cadeia e vai direto pegar a fantasia para desfilar. Não quer saber de quem é. Real-
mente ele chega, pega e sai. (SILVA, Dennys. 20/10/2020. Estudio Mosh, São Pau-
lo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)

Ouvimos sobre essa prática muitas vezes, e também a vivenciamos no ano de 1997.
No dia do desfile de uma conhecida agremiação de São Paulo, fomos surpreendidos pela falta
de nossa fantasia, o que, a princípio, não poderia ocorrer, pois estávamos programados para
desfilar.

  75  
 

Outro fato que também poder ter contribuído para o surgimento das caixas em cima, é
o de que quando os ritmistas que saem da cadeia desfilam, muitas vezes o fazem com a fanta-
sia incompleta nas partes de cima do corpo, utilizando o instrumento também para esconder
esse problema. Isso pode ocorrer tanto em grupos de menor destaque, como os chamados “de
acesso”, como também em escolas mal administradas. Ouvimos narrativas de vários casos
ocorridos em São Paulo. Por outro lado, para Dennys Silva, há uma concepção musical muito
bem resolvida em relação a esse instrumento, o que o leva a acreditar em outra possibilidade
do surgimento da caixa em cima:
De tempo em tempo, alguém tenta desenvolver uma melhor sonoridade e volume de
som (intensidade). As caixas em cima soam mais pelo fato de não estarem presas à
cintura do ritmista e serem abafadas pela própria fantasia, o que tira o som do ins-
trumento. É por isso que hoje em dia vemos mais caixas em cima do que caixas com
talabarte. (SILVA, Dennys. 03/08/2020. Quadra do GRCSES Império de Casa Ver-
de, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)

Há constantemente necessidades de atualização nas baterias. Nesse sentido, seus ato-


res realizam diversas experiências. Visto que neste trabalho levantamos alguns pontos de co-
nexão, por meio de códigos internos presentes nas caixas e atabaques, por exemplo, observa-
mos também que, para que um novo padrão nas caixas seja instituído, há muitas questões en-
volvidas. O padrão utilizado nas caixas da bateria do Império, liderada pelo respeitado Mestre
Zoinho, por exemplo, provém da Unidos da Tijuca do Rio de Janeiro. Esta levada é uma
transposição do toque utilizado no atabaque rumpi no cabula – ritmo referencial realizado no
candomblé da nação Angola, que é considerado – pelo ogã Sapopemba (José Silva dos San-
tos) e outros nomes representantes do contexto – como a origem do próprio samba. Também
corroboramos com isso, mas de maneira ampliada, ou seja, considerando não ser possível
determinar a origem do samba com base apenas em um único toque, mas em vários, como o
congo de ouro e o ijexá, amplamente utilizados em levadas de diversos instrumentos quando
os sambistas estão em performance. Estes padrões, tornaram-se também variações de levadas
dentro do próprio estilo. Dessa maneira, acabam formando o vocabulário rítmico diverso afro-
brasileiro, onde fica praticamente impossível determinar uma única derivação.
Compreendemos que Sapopemba, assim como outros informantes, referem-se às pro-
ximidades rítmicas reconhecidas pelo timeline do cabula, que é do telecoteco. Nesse sentido,
seria realmente o toque mais próximo ao que se compreende como samba, levando-se em
conta apenas a percepção auditiva coletiva – aquilo que fica na memória das pessoas quando
se remetem ao estilo.
Para ocorrer a modificação de uma levada existem algumas questões que traremos a
seguir. As caixas normalmente apresentam menores variações dentro desses padrões exata-

  76  
 

mente por esse motivo. Apesar disso ocorrer com todos os instrumentos, no caso específico
das caixas há um ciclo maior da chamada frase rítmico-melódica da levada, que ofereceria
mais possibilidades de variação, por exemplo. Mesmo assim, para que um padrão, técnica ou
materiais utilizados possam ser modificados, há uma série de possibilidades relacionadas a
elementos como: a) talabarte (com ou sem), b) baquetas, c) afinações e d) posicionamento do
ritmista com o instrumento, entre outros. Observamos que, nas caixas, essas diferenças tam-
bém promovem diversas possibilidades sonoras e troca de timbres, realizadas através das
combinações dos arranjos e levadas, como quando as escolas utilizam duas vozes rítmicas: as
caixas em cima e as caixas com talabarte. A resultante sonora dessa combinação, que varia
entre as escolas, proporciona complexidades e níveis de desenvolvimento musical resultantes
do que se produz nestas formações. Nesse sentido, as caixas proporcionam novas possibilida-
des em fluxo contínuo. Os Mestres, constantemente, modificam as combinações, trocando
tipos de instrumentos que variam dentro dessas quatro possibilidades. Uma característica co-
mum é utilizar caixas de 14” com a levada da Vila Isabel (semicolcheias com acentos no 1 e
no 4), e um outro tipo de caixa com um padrão mais identitário, caso do tarol do Salgueiro.

Figura 7 - Rafael Y Castro com caixa de 14”, Tim e Dodô

Fonte: Acervo pessoal de Carolina Velasquez28.

                                                                                                               
28
 Desfile do extinto GRCSES Império do Cambuci na Carnaval de São Paulo no ano de 1995. escola histórica
referencial no surgimento das primeiras escolas de samba nesta cidade.  

  77  
 

As caixas de 14” são caixas comuns, como as utilizadas por bateristas, e possuem uma
sonoridade mais grave e cheia, exatamente pelo tamanho e afinação referencial utilizada pelos
mestres. Dessa forma, uma outra característica identificada no pensamento dos mestres, den-
tro destas combinações, é justamente a da afinação. Ou seja, sempre que existirem duas vozes
de caixa, a caixa em cima apresentará uma sonoridade mais estridente, sendo mais aguda e
com um timbre quase metálico. Enquanto isso, as caixas de 14” apresentarão uma sonoridade
mais grave, pelo fato de serem entendidas como preenchimento na subdivisão, permitindo
assim maior sustentação para a concepção polirrítmica entre todos os instrumentos do naipe e
entre todos os naipes.
É uma prática comum entre os mestres de bateria utilizar percussionistas neste naipe.
Nesse sentido, entende-se que o músico percussionista, mesmo sem fazer parte do contexto do
samba, pode contribuir no preenchimento das vagas dessas formações, tendo em vista que
aspectos técnicos de outras linguagens musicais (orquestral, bateria) também sejam utilizados,
complementando as necessidades diversas do naipe e portanto de toda a bateria. É mais co-
mum encontrar músicos interessados em participar das baterias que começam neste naipe,
essencialmente nas caixas de maior preenchimento (levada da Vila Isabel).
As caixas vazadas – sem o casco –, foram pensadas para oferecer, além de maior leve-
za para a execução e performance do ritmista, outra sonoridade mais “gritada”. Sendo assim,
haveria maiores possibilidades ainda de variações timbrísticas e sonoras em todo o conjunto.
Para Dennys Silva, não é possível trabalhar com possibilidades de afinações diferentes nas
caixas vazadas. O motivo se dá pelo fato de este instrumento apresentar uma sonoridade, co-
mo dissemos, muito estridente, quase soando como um instrumento metálico e, portanto, com
menor possibilidade de variações de níveis de tensão na pele, já que ele não possui a caixa
acústica convencional que permite que o corpo reverbere e emita uma sonoridade mais
“cheia”:
Eu já tentei várias vezes afinar as caixas vazadas. Desisti, porque não é possível.
Você afina, afina, e não chega em uma frequência médio-grave dentro das possibili-
dades que são comuns com as outras caixas. Desisti! Prefiro sempre tocar e trabalhar
em direções de gravações, ou qualquer projeto com bateria, com as caixas comuns,
aquelas com o casco. Também me acostumei com as caixas em cima, dá muito mais
agilidade. Eu e Zoinho só tocamos assim, e muitos outros também. Dá para tirar on-
da de verdade, você fica solto na avenida. Nesse sentido, isso contribui até para o
quesito de julgamento evolução. Você conduz o grupo solto. (SILVA, Dennys.
20/10/2020. Estudio Mosh, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)

  78  
 

Figura 8 - Hugo Santana e Klemen tocando caixa vazada em dia de ensaio técnico do GRCSES Império de Casa
Verde

Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro, 2018, Sambódromo do Anhembi.

 
 

  79  
 

CAPÍTULO IV – AS CONEXÕES ENTRE O CANDOMBLÉ E O


SAMBA29

É fato que desde a formação das primeiras Escolas, houve uma conexão direta destas
com os terreiros30; algo apontado por Nei Lopes, importante autor e sambista que critica o uso
do termo “quadra” para o espaço de atividades das Escolas de samba, observando que este é
mais apropriado para locais de práticas desportivas31. Ou seja, desde os primórdios, havia,
num mesmo ambiente, espaços próximos onde os orixás eram cultuados, sendo que o terreiro
sempre serviu para a realização de diferentes manifestações, incluindo ensaios. Ainda hoje,
dentro de algumas agremiações, notamos a existência destes espaços sagrados nos quais po-
demos encontrar orixás32 guardiões, representantes e protetores dessas comunidades. Na cida-
de de São Paulo, por exemplo, a pesquisa apontou que metade das escolas do Grupo Especial
possuía esse tipo de espaço. Observamos também a representatividade destas conexões na ala
das baianas. Outro fato marcante é a abertura do carnaval no sambódromo pelas Tias baianas,
objetivando a proteção e a preparação do local para o grande ritual. Vejamos uma publicação
do portal G1 da Globo, intitulado Baianas e Mães de Santo Fazem Lavagem do Sambódromo,
sobre esta prática que demonstra parte desta circularidade cultural entre os terreiros e as Esco-
las:
O público começou a chegar no Sambódromo por volta das 18h. Para abrir o evento,
baianas e mães de santo realizaram a tradicional lavagem da Marquês de Sapucaí. O
ritual de purificação pede a proteção dos orixás para o carnaval. Baianas de várias
escolas e mães de santo jogaram água de cheiro na avenida. O cortejo contou tam-
bém com a imagem de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro. O ritual serve pa-
ra trazer boas energias para todos os sambistas, escolas e o público33. (SAMBÓ-
DROMO..., 2020)

Do mesmo modo, outro costume que antecede o desfile é a passagem dos chamados
Blocos Afros Afirmativos de Afoxé, que desfilam na avenida do samba ao toque do Ijexá –

                                                                                                               
29
Parte deste capitulo também foi publicado no decorrer desta pesquisa por: CASTRO, Rafael Y; STASI, Car-
los. A utilização de elementos musicais estruturais do candomblé na preparação e performance das baterias de
escolas de samba para o carnaval. InterFACES, 30(1), 67-81. Disponível
em: https://revistas.ufrj.br/index.php/interfaces/article/view/39691. Rio de Janeiro, 2020.
30
Locais sagrados, com chão de terra, onde acontecem as manifestações religiosas de matriz africana, muito
utilizado também para danças e festas.
31
Depoimento extraído da gravação do Programa Ensaio da TV Cultura (Fundação Padre Anchieta), no ano de
1999. As músicas e entrevistas desta apresentação, foram lançadas em CD pelo selo SESC SP, no ano de 2003,
intitulado: A música brasileira deste século por seus autores – Nei Lopes. Um disco histórico referencial sobre a
compreensão de parte da abrangência da musicalidade afrobrasileira diaspórica.
32  Ancestrais africanos divinizados, trazidos pelos escravos e cultuados em religiões formadas pela diáspora.

Representam força, poder e sentido existencial.


33
Matéria disponibilizada pelo portal do canal online do G1. Disponível em:
https://g1.globo.com/rj/riodejaneiro/carnaval/2020/noticia/2020/02/16/sambodromo-passa-por-testes-com-
ensaio-da-mangueira-baianas-e-maes-de-santo-fazem-lavagem-daavenida.html).

  80  
 

ritmo utilizado amplamente na musicalidade brasileira a partir dos terreiros de candomblé, em


reverência para vários orixás, especialmente a Oxum e, sequencialmente, a Oxalá. Este mes-
mo toque é frequentemente citado em breques das baterias em momentos cruciais dos sambas
enredo referenciais à herança africana.

Figura 9 - Flyer de divulgação da abertura da segunda noite do desfile carnavalesco em São Paulo

Fonte: Facebook, 22/02/2020.

Os afoxés, segundo alguns estudos e apontamentos, representam parte do chamado


candomblé de rua. Portanto, é uma formação bastante representativa da religiosidade dentro
das Escolas. Vejamos um relato sobre as simbologias e fundamentos da cultura afro diaspóri-
ca, encontrado no site da Casa de Oxumaré, relevante fonte destas conexões para pesquisado-
res desta temática:
EM NOITE MEMORÁVEL, O AFOXÉ OMO DADÁ ABRE O SÁBADO DE
CARNAVAL DE SÃO PAULO NO ANHEMBI
Antes de tudo é preciso dizer o que é o afoxé e o que ele representa. Isso porque
muita gente o confunde com um simples bloco carnavalesco, mas não é. Afoxé, pa-
lavra de origem africana Yorubá, pode ser traduzido como “o enunciado que faz
acontecer” o simplesmente “a fala que faz”. É um cortejo afro-brasileiro, comumen-
te chamado de “candomblé de rua” que sai às ruas durante o carnaval. E, exatamente
por isso, a maioria dos seus integrantes é do candomblé ou são adeptos de religiões
de matrizes africanas. Os afoxés, que teve (sic) sua primeira manifestação nas ruas

  81  
 

em 1885 na Bahia, com o grupo chamado ‘Embaixada da África’, possuem por ca-
racterísticas as roupas africanas, que geralmente trazem as cores dos orixás, os cân-
ticos em língua yorubá e os instrumentos de percussão, como atabaques, xequerés,
agogôs etc. Os ritmos das cantigas entoadas e da dança são os mesmos daqueles rea-
lizados nos terreiros. Assim, por carregarem todo esse caráter místico e também re-
ligioso se distinguem dos blocos carnavalescos. Além disso, o Afoxé possui um ca-
ráter especial de luta e resistência contra o racismo e a discriminação racial e religio-
sa. (CASA.. .34, 2020. Facebook.)

Portanto, além de toda a carga cultural trazida pelos afoxés para as Escolas, eles se
tornam um elemento transitório daquilo que se produz, em aspectos gerais, dos terreiros para
o sambódromo. Seria assim, mais uma importante manifestação cultural com as mesmas pre-
ocupações que a dos terreiros e as Escolas de samba – luta e resistência contra o racismo e
preconceito religioso. Esse processo se dá através daquilo que se constrói com a percussão
nestes locais. Ou seja, a música representa um ponto de partida que, através da performance,
carrega questões sociais existenciais para seus praticantes, ou grande parte deles. Ao mesmo
tempo, as Escolas possuem a função de dar voz àquelas outras instituições – terreiros e afoxés
– de maneira a divulgar a importância dessa herança.
Observamos também que no esquenta – período anterior ao desfile da primeira noite
de carnaval no ano de 2020 –, ouvimos atentamente muitos intérpretes de Escolas paulistanas
puxarem cantigas de terreiros como forma de reverência aos Orixás, mostrando as mesmas
preocupações e funções dos afoxés no período pré-desfile. Quando estávamos na formação da
bateria da Escola de samba Império de Casa Verde observamos esta prática – de cantar canti-
gas para os Orixás no esquenta – em várias Escolas como o GRCSES Acadêmicos do Tatuapé
– Escola de forte representatividade da cultura afroreligiosa diaspórica –, no GRCSES Barro-
ca Zona Sul, no Unidos do Peruche, na Mocidade Alegre, entre outras. Esta prática nos reme-
te fortemente ao reconhecimento estrutural desta cultura amalgamada no desfile.
A partir desse ponto de vista, defendemos a conexão entre o grande ritual de um desfi-
le com o xirê dos terreiros – festas com roteiros performáticos pré-definidos, representantes
da cultura afrodiaspórica e suas peculiaridades, como a tríade ritmo, voz e movimento. As
Escolas seriam, segundo nosso ponto de vista, extensões dos terreiros. Apesar de termos al-
guns avanços no processo de reconhecimento da religiosidade de matriz afro no Brasil, as
Escolas ainda cedem a um apelo mais midiático, por serem instituições mais facilmente reco-
nhecidas popularmente pela população.
Muito do que é construído musicalmente nas baterias parte dessa inter-relação com
elementos que foram trazidos pela diáspora ao Brasil, seja: a) na performance de uma bateria
                                                                                                               
34
Relato extraído de página do Facebook. 22/02/2020. Casa de Oxumaré Disponível em:
https://www.facebook.com/casadeoxumare/.

  82  
 

Show, b) em um breque (convenção rítmica estabelecida entre diferentes naipes de uma bate-
ria) construído para os arranjos de determinado samba enredo do ano, c) em padrões escolhi-
dos para determinada levada35 de cada Escola, ou d) nas variações e formas de executar cada
instrumento. Nas baterias, algumas características dos mestres, ritmistas e diretores, bem co-
mo a sonoridade reproduzida pelos grupos dirigidos, também poderiam ser reconhecidos co-
mo reflexos daquilo que aqui chamamos de etnicidade.
Nesse sentido, a diferenciação entre as baterias se dá, por exemplo, pela utilização de
apelidos que tentam expressar características próprias destes grupos. Estes apelidos são utili-
zados com orgulho por pessoas pertencentes a esses grupos e também são validados por pes-
soas de fora, seja por sambistas ou por parte da sociedade. Ou seja, todas as baterias são ape-
lidadas, no sentido de reforçar diferenças e características próprias. Os momentos mais impor-
tantes nos quais isto pode ser visualizado são as festas de Bateria. Nessas festas, as sonorida-
des e diferenças ficam mais expostas e o grau da etnicidade – ligação maior com a tradição ou
herança negra – fica evidente.  
A presença étnica negra é bastante significativa na formação da chamada equipe técni-
ca das baterias – diretores e mestre –, assim como no conjunto de ritmistas e no grupo de dan-
çarinas que representam cada bateria – rainhas, princesas e musas. A importância da etnicida-
de dentro de alguns grupos foi observada em vários momentos de nossas pesquisas de campo,
já que o reconhecimento de uma sonoridade como parte de um coletivo oferece um sentido de
pertencimento para as pessoas que participam dos terreiros e das baterias. O conceito de etni-
cidade, trazido por Béhague (1994), estabelece-se pelo reconhecimento da cultura típica de
um grupo, de determinados traços herdados que, além de representarem a própria herança,
também se reconectam em uma nova identidade, esta utilizada como parte de uma referência
do próprio coletivo.
Trata-se então de uma cultura trazida por diversas etnias que, ressignificadas em um
outro lugar com inúmeras influências, continuam associadas ao reconhecimento cultural do
grupo com sua ancestralidade ou cultura local. A atribuição de apelidos para determinadas
baterias, nos pareceu fixar parte do que é entendido por etnicidade, já que a sonoridade destas
são identitárias e reconhecidas como representantes culturais de determinadas comunidades.
Alguns desses apelidos funcionam como estratégias de diferenciação, em busca de uma marca
própria fixa, de uma cultura herdada e readaptada no local de chegada. Ao mesmo tempo, eles
proporcionam, para seus envolvidos, um reconhecimento cultural próprio.

                                                                                                               
35
Padrão rítmico reconhecido como elemento identitário de um idioma musical.

  83  
 

Além desta relação, trazemos, no decorrer de todo o trabalho, as estruturas e o concei-


to do ritmo africano ressignificado no Brasil. Nesse sentido, afirmamos que determinadas
influências da musicalidade passada dos terreiros para as baterias, utilizadas como centrais
para a performance de seus conjuntos percussivos, são oriundas de diversas etnias, aquelas
que também tratamos como grupos ou povos – Bantu, Yorubá, Jejê, Fon, Nagô, entre outros –
, e determinam a conexão do termo etnicidade de forma mais direta, por ser uma derivação da
própria palavra etnia.
A etimologia então, poderia nos trazer uma outra relação, além daquela trazida pelos
conceitos de nossos autores referenciais. Sendo assim, a palavra etnia, derivada do grego
ethnos, seria uma referência ao povo que possui o mesmo ethos, portanto a mesma origem,
cultura, língua e religião. Há outras concepções sobre o termo etnia que abarcam cultura e
características de identificação de indivíduos dentro de determinados grupos. Nesse sentido,
comportamentos e utilização de alguns códigos acabaram tornando-se representativos de et-
nia, como aspectos físicos (formato do nariz, estrutura corporal e dentes), corte de cabelo e
vestimentas36. Um exemplo característico, referente a este último elemento apontado, é quan-
do visualizamos alguns corredores quenianos em maratonas ou grupos de senegaleses em São
Paulo. Neste segundo caso, a vestimenta é marcante, no sentido de apontar a unidade desse
grupo, encontrado no centro urbanizado da cidade, onde também realizam, todas as segundas-
feiras, uma roda de djembês (Praça da República). Este encontro demonstra como esse grupo
também é reconhecido pelas pessoas como “o grupo dos senegaleses”, tanto pela vestimenta
como pela sonoridade característica deles nos instrumentos típicos africanos.
Nesse sentido, há uma associação da vestimenta com a sonoridade, mesmo que ela
também aconteça em outros grupos não senegaleses na África. O imaginário popular constru-
ído pelas pessoas que circulam nessa região, os identifica como senegaleses por três motivos:
a) habitarem o centro da cidade, b) vestimentas ímpares, c) sonoridade “do continente”. Um
outro local característico destes grupos africanos referenciados como “senegaleses” é a cha-
mada “galeria dos africanos”, que fica ao lado da conhecida galeria do rock. Nesse sentido, há
também uma relação da etnicidade com o território conquistado. Notamos que nas Escolas de
samba e nos terreiros, a partir da diáspora, o encontro de diversas etnias também é uma reali-
dade, independente dos indivíduos reconhecerem a amplitude da herança cultural e de como
suas origens distintas, porém comuns, fornecem conhecimento musical para essas práticas.

                                                                                                               
36  Ver: https://www.significados.com.br/etnia/  

  84  
 

Sabemos que em uma Escola de samba, segundo alguns sambistas, o que importa é a
mistura de todos. As Escolas deveriam, desde a sua origem, representar o encontro de todos
os povos, independente de qualquer fator étnico e racial. Percebemos que isso de fato ocorre,
porém, o que se mantém como estrutura musical, apesar da mistura com tantos imigrantes no
Brasil, tem como base fundamental aquilo trazido pela diáspora negra. Outras questões, como
o embranquecimento ou tentativa de dominação de brancos nas direções da maioria das esco-
las em São Paulo, apontam que estes são locais de disputa de poder. No candomblé também
há, cada vez mais, a participação de brancos como integrantes, filhos de santo. Estes locais
são vistos como pontos de tensão, uma problemática trazida por autores como Hall (2007),
Brubaker (2005) e Moore (2012). Este último considera o movimento da diáspora e sua tenta-
tiva de reconquista de locais sociais, o que, em algum momento, se choca com outros interes-
ses, como aqueles já dominados por outros povos politicamente:
(...) diáspora negra é frequentemente caracterizada pelo hibridismo e enfatiza a ten-
são na literatura existente entre as maneiras com que a música pode servir para man-
ter as fronteiras sociais através da identificação com determinadas comunidades.
(MOORE, 2012, p. 310-311)

Vejamos alguns exemplos daquilo que aqui estabelecemos como etnicidade em algu-
mas baterias:
- A bateria da Mangueira é conhecida por ‘Surdo Um’ – característica única des-
ta Escola, o que representa certa identidade e etnicidade.
- ‘Não existe mais quente’, é um jargão utilizado para a bateria do mestre André
– GRCSES Mocidade Independente de Padre Miguel –, eternizado na voz da cantora El-
za Soares (escolhida como enredo desta Escola em 2020). Ele representa a força da sono-
ridade desta bateria em relação ao balanço, criatividade e identidade sonora nas caixas,
que é uma marca reconhecida como fator que a diferencia das outras.
- ‘Ritmo Puro’ é o apelido dado à bateria de mestre Sombra – Mocidade Alegre
–, e faz referência à qualidade e preocupação com a execução do ritmo dentro da lingua-
gem do samba, uma das preocupações centrais de mestres de gerações mais antigas, já
que atualmente existe uma crítica aos trabalhos com baterias mais performáticas e com
excesso de breques, portanto com menor preocupação com a essência do ritmo – função
central de uma bateria em um desfile carnavalesco.
- ‘Barcelona do Samba’ é o apelido dado à bateria do Império de Casa Verde,
sob os cuidados de mestre Zoinho. Esse apelido é bastante reconhecido entre os sambistas
em São Paulo, após a excelência de gestão e resultados dessa bateria nos carnavais paulis-
tanos. Fazemos até uma crítica que remete a um possível eurocentrismo, já que a referên-

  85  
 

cia se dá a um time de futebol europeu – o Barcelona da Espanha. Esta comparação se


deu porque, em determinada época, esse time apresentava os melhores resultados no
campo e, portanto, era idealizado por muitos outros. Como futebol e samba sempre se
conversaram, até porque muitas baterias surgiram em torcidas de arquibancada nos cam-
po de futebol, a escolha se deu por comparar qualidade e elenco. Ou seja, isso que era
percebido no time de futebol de Barcelona era também visto nos ritmistas e equipe desta
bateria brasileira, cujo apelido anterior era ‘arame farpado’, também significativo por re-
ter um espaço que deve ser protegido, portanto de valor, e que também pode ser perigoso,
pois possui pontas e pode machucar quem o desrespeitar.
‘Pegada de Macaco’ é uma referência à bateria do GRCSES Vai-Vai, ao objetivo
de assumir a herança e força da cultura negra via diáspora. Seus ritmistas utilizam esse
apelido como orgulho deste conhecimento assumido.
Cardoso (2006) fala mais especificamente da comunicação entre alguns praticantes do
candomblé – ogãs37, filhos e pais de santo – através dos atabaques, pelo fato de esses instru-
mentos possuírem a função de determinar o que poderá acontecer na chamada gira38, algo que
depende completamente daquilo que é proposto musicalmente pelo executante desses instru-
mentos. O ogã mais proficiente (conhecido por alabê), executa o atabaque mais grave – rum –
, responsável pelas improvisações, através do uso de padrões rítmicos que determinam o su-
cesso de cada performance, o que permitirá ou não atingir o estágio maior que é o poder de
proporcionar a incorporação dos orixás pelo chamado povo de santo.
É isso também que observamos com relação ao executante do repinique nas baterias,
já que é a partir deste instrumento que se define todo o roteiro da execução de uma bateria,
através do uso similar de padrões musicais presentes na memória de seus integrantes. É fato
que em várias baterias existem muitos integrantes que fazem parte de ambos os contextos, ou
seja, são sambistas e filhos de santo. Vale ressaltar que em um terreiro há uma hierarquia e
uma divisão de funções dentro do ritual, assim como acontece nas baterias.
Além de tudo isso, determinadas práticas relacionadas ao ensino de padrões rítmicos
em alguns instrumentos assemelham-se, e muito, com aquelas existentes em alguns grupos
africanos. Assim, tomando o tamborim como exemplo, observamos tal similaridade ao reali-
zar nossas pesquisas na chamada Escolinha de samba da Vila Maria. Nosso trabalho participa-
tivo – como alunos aprendizes nessa Escolinha – permitiu averiguar que a maneira pela qual o

                                                                                                               
37
Músicos do Candomblé que atuam na formação do conjunto musical do rito onde acontece a relação com a
dança e as divindades. Podem tocar agogô (gã) ou atabaques, e também precisam saber os cantos.  
38
Momento do ritual do Candomblé onde há o movimento da dança em roda entre os participantes.

  86  
 

padrão carreteiro é ensinado se assemelha, por exemplo, àquela pela qual alguns músicos
Ewes de Gana ensinam instrumentos como o sogo, kidi e kaganu em danças como Atsia Cir-
cular.
Neste contexto, o ensino de alguns padrões se dá sem qualquer conhecimento do local
onde o mesmo deverá ser executado dentro do ciclo completo do padrão básico do gankogui39
– tipo de agogô que também tem a mesma função de manutenção da chamada timeline ou
clave, que serve como referência básica para todos os outros instrumentos da agrupação. Ao
aprender, por exemplo, o padrão a ser executado no tambor mais agudo – kaganu (mais está-
vel no sentido de manter sempre o mesmo ritmo sem variações, assim como os instrumentos
do candomblé – quanto mais agudo menor a variação e quanto mais grave maior o poder de
variação e improvisação), o músico é levado a crer que a primeira batida do padrão tem um
sentido de apoio, sustentação, já que o timeline não lhe é, a princípio, apresentado.

Fig. 1: Ritmo básico do instrumento kaganu em Atsia Circular

Utilizamos abaixo uma notação gráfica para que o leitor não músico possa compreen-
der melhor nossa discussão:
123 123 123 123
00– 00– 00– 00–
DE DE DE DE

0 = nota aberta com a baqueta tocando na pele do instrumento


– = pausa/silêncio
D = Mão direita
E = Mão esquerda

Porém, quando o músico é convidado a tocar este padrão dentro do ciclo tocado pelo
gankogui percebe que, na verdade, aquilo que lhe foi ensinado como “um”, como a “cabeça
do ritmo”, ocorre na segunda nota de cada tempo. Sendo assim, no compasso de 12/8 deste
ciclo, essas “primeiras notas” do kaganu são tocadas, na verdade, na segunda, quinta, oitava e
décima primeira notas do ciclo.

                                                                                                               
39
Notamos a enorme proximidade entre os termos gã e gankogui, nomes dados ao tipo de agogô do candomblé e
da música ewe respectivamente.
 
  87  
 

Fig. 2: Ritmo básico do instrumento kaganu em Atsia Circular (linha inferior)


em relação ao padrão cíclico do gankogui (linha superior)
ou
12 / 8 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Gankogui ¢ – u – u u – u – u – u
Kaganu – 0 0 – 0 0 – 0 0 – 0 0

¢= Nota grave do instrumento


u = Nota aguda do instrumento

O que permite ao músico reconhecer o local correto deste tipo de “encaixe” é justa-
mente o ponto no qual ele é ensinado a começar a execução de seu padrão, nunca a partir da
segunda nota, mas somente na quinta, onde ocorre a repetição de duas notas agudas do gan-
kogui. Uma vez iniciado, ele prossegue repetindo o padrão completo.

Fig. 3: Local de entrada do instrumento kaganu em Atsia Circular


ou

12 / 8 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 | 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Gankogui ¢ – u – u u – u – u – u | ¢ – u – u u – u – u – u
Kaganu – – – – 0 0 – 0 0 – 0 0 | – 0 0 – 0 0 – 0 0 – 0 0
é é
Início do padrão
- único local do ciclo onde duas notas são tocadas juntas

  88  
 

Surpreendentemente, em nossa experiência observando o ensino do tamborim na Es-


cola de samba Vila Maria, um dos padrões rítmicos mais conhecido deste instrumento – o já
citado carreteiro – foi ensinado de maneira similar. Assim, aprende-se a tocar três notas para
baixo na pele do instrumento e uma para cima (o que só pode ser feito girando-se a parte su-
perior do instrumento em direção à cabeça da baqueta, o que é representado o exemplo abaixo
pelo sinal x):

Fig. 4: Ritmo básico do tamborim, conforme ensinado na Escolinha de Samba de Vila Maria

ou
1 2 3 4 | 1 2 34 | 1 2 3 4 | 1 2 3 4 |
êêêé êêêé êêêé êêêé

ê = Toque para baixo


é = Toque para cima, com giro do instrumento

Porém, da mesma forma, quando o músico é convidado a executar o padrão dentro do


contexto – com todos outros instrumentos da bateria tocando – ele é, de maneira instintiva,
obrigado a deslocar este padrão em uma nota para que o mesmo se encaixe, ou seja:

Fig. 5: Carreteiro – ritmo básico do tamborim, em notas sequenciais regulares, executado no samba

ou
1 2 34 | 1 2 3 4 | 1 2 3 4 | 1 2 3 4 |
êêéê êêéê êêéê êêéê

É interessante observar, assim como no caso da música ewe, que essa forma de ensi-
namento faz com que os padrões sejam executados e sentidos de maneira extremamente di-
versificada. No caso do ciclo de doze notas do gankogui, por exemplo, se o músico pensar em
subdividir cada tempo em três e tocar na segunda e terceira notas, ele automaticamente perde-
rá o sentido do padrão, visto que estará pensando o primeiro tempo como uma pausa e a se-
gunda e terceira notas como tempos mais fracos. Nada mais equivocado, visto que isso esta-

  89  
 

belece uma relação completamente distante da questão idiomática deste tipo de música – que
o sentido de “um” seja simplesmente acoplado sobre uma das notas do gankogui, sem qual-
quer subdivisão do padrão como se faz na música ocidental em geral, com um tempo forte e
outros mais fracos condicionados a ele.

Fig. 6: Forma equivocada de se pensar o ritmo básico do kaganu


ou
12 / 8 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Kaganu – 0 0 – 0 0 – 0 0 – 0 0

Forma equivocada de se pensar um “tempo forte” para a execução do kaganu (indicado em negrito)
Notamos assim que a conhecida polirritmia já apontada por diversos autores, entre eles
Simha Arom, nos mostra certa simbiose entre elementos musicais estruturais vindos da África
e que são ainda mantidos de maneira a garantir o reconhecimento da identidade desses ritmis-
tas afrodescendentes.

  90  
 

4.1 Ambiguidades e outros fatores que impactam negativamente em discursos sobre as


conexões entre o candomblé e o samba

Figura 10 - Imagem de Cristo na cor preta com elementos do Orixá Oxalá como o Pachorô na mão di-
reita e filhos de santo representados em passistas

Fonte: Extraonline40.

O objetivo desse subcapítulo é apontar elementos comuns ao candomblé e às Escolas


de samba em geral e às baterias em particular. Muitas questões se apresentaram e, de forma
geral, observamos que as visões apresentadas pelos vários interlocutores a respeito dessas
relações são bastante ambíguas, algo natural em processos identitários em transformação:

                                                                                                               
40  Este mesmo Tripé foi vetado pela Igreja Católica para o Carnaval de 2020 do GRCSES Estação Primeira de
Mangueira.  

  91  
 

(...) experiências dos variados sujeitos históricos na compreensão das zonas de con-
tato e mediações interculturais, deixando ver que entre idas e vindas, índios e negros
recriaram costumes, renovaram e readaptaram rituais, festas e tradições na ambigui-
dade de viveres. (PACHECO, 2016)

Pacheco (2016) relaciona a ambiguidade como um processo marcante em comunida-


des afroindígenas, uma parte da chamada miscigenação racial no Brasil, que estrutura algu-
mas manifestações: cabocolinhos, caiapós, bois e até parte da religiosidade nos caboclos, ju-
remas e Escolas de samba. Nesse sentido, ao mesmo tempo que algumas informações foram
coletadas com certa facilidade, enfrentamos grande dificuldade no levantamento de várias
outras, o que nos despertou para uma certa ambiguidade. Tal dicotomia apresentou-se entre os
próprios atores, pelo fato de parte deles não reconhecer tal herança ou também não assumi-la
por vários motivos. Além disso os indivíduos que a reconhecem, ou a utilizam de forma cons-
ciente, também não deixam isso claro. Por outro lado, muitos a utilizam como marca identitá-
ria de empoderamento.
Como observa Hall, “nas situações da diáspora, as identidades se tornam múltiplas”
(HALL, 2013, p. 29). Essa pluralidade nos trouxe maior interesse ainda pelo tema, dentro de
toda a complexidade investigada. Estamos falando de uma herança cultural que permeia ques-
tões históricas de um povo em específico, os africanos escravizados e seus remanescentes,
indivíduos que ainda produzem e fazem parte da sabedoria e de todo o conhecimento musical
gerado nos terreiros e nas Escolas de samba, o que se ramificou fortemente para toda a musi-
calidade afro-brasileira.
De forma geral, esses discursos ambíguos – de acordo com a temática abordada –,
ocorrem dentro de três categorias básicas, a saber: a) aqueles que se dão mais especificamente
dentro do ambiente das Escolas de samba, b) aqueles que ocorrem dentro de determinados
terreiros de candomblé e c) aqueles que ocorrem, de forma similar, em ambos os contextos.
Apesar de as ambiguidades apresentarem complexidades individuais nestes locais, represen-
tam em muitos aspectos uma grande unidade, baseada em fundamentos em comum e estraté-
gias de ressignificação social circular e sucessiva. Ou seja, o que se realiza em um terreiro é
retransmitido em uma Escola de samba. Mesmo que isso não esteja tão claro, por não se falar
abertamente sobre determinadas particularidades, notamos grande representatividade em con-
teúdos e comportamentos.
Abaixo, descrevemos, de forma resumida, diferentes níveis de situações que, de uma
forma ou de outra, apresentam dados sobre a complexidade e ambiguidades da investigação.
1) Níveis de significados atribuídos às relações aqui discutidas:

  92  
 

Diversos entrevistados consideram o conhecimento específico existente na tradição do


candomblé (e da Diáspora Negra em geral) como algo menor e sem significância, algo que,
conforme já discutido, atribui-se ao preconceito racial que se transpõe para a depreciação cul-
tural da herança diaspórica. Ao mesmo tempo que existem fontes que atestam haver uma rela-
ção direta entre vários elementos do candomblé e a Escola de samba, há outras que, mesmo
usando dessas relações não as assumem, tanto por considerar que os conhecimentos do can-
domblé são menos desenvolvidos, ou por recusa pessoal, como se não fizesse sentido falar
sobre isso. Como exemplo, poderíamos citar o caso do compositor Douglas Germano, que
mesmo tendo composto vários sambas (enredos e outros) com temática afroreligiosa, nega
completamente que exista qualquer relação entre ambos, o candomblé e o samba:
Eu sinceramente não acredito nessas coisas da religiosidade afro-brasileira nas bate-
rias. Acho que isso é um discurso utilizado para deixar algo como uma sabedoria
mágica, um mistério. Mesmo que tenha, não acho que é pra utilizar disso como sím-
bolo de poder. (GERMANO, Douglas. 04/03/2017. São Paulo/SP. Entrevista conce-
dida a Rafael Y Castro.)

Interessante notar que Germano tem uma produção totalmente voltada para a temática
da religiosidade de matriz afro em suas composições, desde sambas enredo a canções que se
baseiam estruturalmente, quase que na sua totalidade, em estruturas polirritmicas oriundas dos
atabaques, e em letras que reverenciam fortemente os orixás. Um de seus álbuns, por exem-
plo, se intitula “Ori”, termo que designa a cabeça de um filho de santo. Entendemos que esta
postura é gerada pela dificuldade em se aceitar determinadas origens, como algo que não va-
lesse a pena ser assumido. Ou seja, no caso deste compositor, apesar de utilizar-se desse co-
nhecimento, ele não tem, segundo ele mesmo, um motivo para reconhecer isso. Parece ser
também uma fala contra a importância do carnaval carioca, uma espécie de bairrismo, já que
há indícios fortíssimos da apropriação dessa influência direta das baterias e outros setores das
Escolas de samba cariocas do carnaval de São Paulo.
2) Desconhecimento ou negação da amplitude e importância da tradição oral:
Apesar de, nesses ambientes, a maioria das pessoas utilizarem a oralidade como meio
de transmissão de conhecimento, elas não estabelecem ou reconhecem a mesma como signi-
ficativa. Várias situações, no decorrer da pesquisa, mostraram essa depreciação. Quando um
músico que apresenta conhecimento e intimidade com a leitura musical, é chamado de maes-
tro, por exemplo, este termo é utilizado em reverência a um conhecimento de uma outra tradi-
ção, a da música ocidental, estabelecida popularmente como a que representa maior refina-
mento. O termo maestro é visto como superior, até com relação ao próprio mestre.

  93  
 

Desde o ano de 2019, o mestre de bateria do GRCSES Império de Casa Verde – Rob-
son Campos (mestre Zoinho) – realiza a encomenda de partituras contendo os arranjos reali-
zados em sua bateria para os sambas enredos apresentados na avenida. Essa atitude daria mai-
or peso àquilo que foi construído, e seria também uma forma de facilitar o entendimento da
construção musical para os jurados que, atualmente, apresentam formação musical na qual a
escrita e a leitura de partituras são uma exigência. Apesar de essa não ser uma prática nas ba-
terias, este mestre em específico inova no sentido de realizar uma aproximação entre o que é
realizado dentro da oralidade para a produção textual, nesse caso em notas musicais impres-
sas. Esta é uma estratégia de mestre Zoinho, vista como valorização do que é produzido a
partir da oralidade, já que a produção de todo o trabalho anual ficaria registrada como docu-
mento e também facilitaria a visualização do arranjo de sua bateria realizado para o samba
enredo. Atualmente, alguns ritmistas também buscam uma maior e melhor formação nesse
sentido.
3) Preconceito:
O preconceito é elemento central para entender alguns dos motivos de estes saberes
serem recusados por algumas pessoas, inclusive aquelas que os reproduzem. Abaixo, algumas
situações nas quais isso se dá:
a) na relação com o conhecimento presente nas religiões de matriz afro,
b) na relação com o conhecimento presente nas baterias, por estar associado ao entre-
tenimento,
c) na reprodução de conceitos dominadores de outras religiões ou culturas,
d) nas estratégias políticas (essencialmente aquelas da política atual) e
e) no conceito que estabelece que esses ambientes e pessoas atrapalham a ordem pú-
blica.
Os negros, ao mesmo tempo que são vistos como objetos idealizados pela força ou se-
xualidade, também são subestimados, como se tivessem uma capacidade intelectual menor em
relação a outros povos. Historicamente, a imagem do negro é falsa, pois não apresenta a po-
tencialidade intelectual utilizada na complexidade de todo o conhecimento estabelecido e de-
senvolvido nos terreiros e nas Escolas de samba. Vimos alguns problemas em relação à per-
seguição religiosa que estabelece dificuldades no reconhecimento cultural afro-brasileiro em
toda essa problemática.

As mães de santo sempre acolheram os sambistas perseguidos pela polícia. Para o


sistema político da época, quando os malandros ficavam batucando pelas ruas, pra-
ças e outras localidades, isso tudo era considerado um incômodo social, algo não
aceitável dentro da chamada ordem pública. Por isso o sambista era visto como uma

  94  
 

perturbação da ordem pública. A polícia saia prendendo geral porque entendia-se


que o samba promovia desordem na cidade. Nesses momentos muitos de nós eram
acolhidos nos terreiros, as mães de santo entendiam politicamente esse ataque e nos
protegiam. Por isso até hoje a ala das baianas possui um local estrategicamente pre-
servado em uma estrutura de uma Escola de samba e muitas das mulheres que lá es-
tão também são mães ou filhas de santo. Esta ala é entendida como uma ala sagrada
tradicionalmente, representa o candomblé e o Samba ao mesmo tempo. Tudo está
conectado. (PENTEADO, 2019, Documentário “Samba à paulista”)

Para Stuart Hall (2013), o povo sempre teve que se unir para combater a desigualdade,
de forma que o coletivo se opusesse contra uma minoria com maiores condições – o chamado
bloco do poder –, que tenta controlar toda uma situação que impõe a desigualdade, encaixan-
do pessoas em setores de acordo com o interesse hegemônico onde a cultura popular é tratada
como um problema social:
O povo versus o bloco do poder: isto em vez de “classe contra classe”, é a linha cen-
tral da contradição que polariza o terreno da cultura. A cultura popular, especialmen-
te, é organizada em torno da contradição: as forças populares versus o bloco do po-
der. Isto confere ao terreno da luta cultural sua própria especificidade. Mas o termo
“popular” – e até mesmo o sujeito coletivo ao qual ele deve se referir - “o povo” é
altamente problemático (HALL, 2013, p. 290).

Para se compreender o povo, e seus respectivos comportamentos, é necessário obser-


var de uma outra forma as diversas possibilidades de existência. O ambiente de tensão, as
contradições e ambiguidades se fazem naturais, de acordo com o que cada indivíduo traz con-
sigo e experimenta na troca dentro do coletivo.
Notamos que, a partir deste tipo de impasse, há uma falta de compreensão de todo o
conhecimento promovido dentro da umbanda e do candomblé, bem como o quanto elas repre-
sentam para o samba. De acordo com o que analisamos, ao mesmo tempo que parte dessa
cultura é reconhecida, é também utilizada de forma equivocada, estereotipada ou caricata. O
preconceito contra o Samba também é uma realidade. Como listamos acima, muitas vezes ele
foi visto como algo marginalizado, portanto indesejado por pessoas consideradas de bem na
sociedade.
Vejamos trechos de uma publicação sobre a demissão de um radialista, ícone defensor
do estilo e artistas deste gênero, em fevereiro de 2020. Essa demissão foi um ato de censura,
pelo fato do referido profissional se opor a determinadas ordens do sistema político religioso
vigente que utiliza Deus como ferramenta de violência, o que já foi apontado pelo enredo do
GRCSES Mangueira “A verdade vos fará livre” deste mesmo ano.
Após mais de cinco décadas dedicadas ao rádio, dando vez e voz a sambistas, o ra-
dialista Adelzon Alves foi demitido e teve seu programa retirado da grade de pro-
gramação da Rádio Nacional, que pertence à Empresa Brasileira de Comunicação
(EBC). O radialista, de 80 anos, foi comunicado de sua demissão no estúdio instan-
tes antes do início do programa que apresentava “Amigo da Madrugada”. Adelzon
foi demitido num ato de censura do governo Jair Bolsonaro por não concordar com a
proibição da entrada de sambistas no prédio da Rádio Nacional. O trabalho do radia-

  95  
 

lista consistia exatamente nisto, em dar espaço para sambistas, e novos sambistas
divulgarem seu trabalho. A retaliação acontece justamente pela cultura popular, em
especial, o samba se colocar firmemente contra as políticas antinacionais e antipovo
de Bolsonaro. Os artistas afirmam: “A EBC cometeu a maior injustiça de todos os
tempos, tirou do ar o maior Radialista do Brasil o Mestre “Adelzon Alves – O Ami-
go da Madrugada”, a alegação é que não está satisfeita com o número de SAMBIS-
TAS que estão tendo acesso a Rádio Nacional durante a madrugada para divulgar
seus trabalhos, não vamos nos calar diante da injustiça a esse ser humano que só faz
o bem para cultura do país há décadas, essa é a hora de retribuirmos tudo que o Mes-
tre tem feito por todos nós do samba e da música de forma geral, dia 10/02 próxima
segunda as 11:00 horas da manhã, vamos nos reunir em frente ao prédio da EBC na
Rua da Relação para defender a permanência do maior defensor do Samba e da Mú-
sica, essa é a hora de mostrar a nossa gratidão e nos posicionarmos perante esse ab-
surdo”. (GOVERNO... 41, 2020. Notícia)

Também há uma série de outros motivos que colaboram para a difícil clareza dessas
conexões. Estes, contribuem para a ambiguidade na compreensão final sobre o tema.
4) Medo:
O medo se dá pelo motivo do que foi estabelecido estrategicamente como correto, ou
seja, determinadas religiões criaram conceitos que distorcem as religiões de matriz afro, aon-
de o orixá Exu é associado pejorativamente ao diabo. Reginaldo Prandi, que é uma referência
na pesquisa sobre o candomblé no Brasil, escreveu, no ano de 2001, um artigo especificamen-
te sobre esta questão – a tentativa de demonização do orixá Exu por parte de lideranças religi-
osas perseguidoras daquelas de matriz afro –, com o objetivo de que a população não siga
essas premissas.
Assim é retratado Exu por padre Baudin:
“O chefe de todos os gênios maléficos, o pior deles e o mais temido, é Exu,
palavra que significa o rejeitado; também chamado Elegbá ou Elegbara, o forte, ou
ainda Ogongo Ogó, o gênio do bastão nodoso (...)
(...) Os primeiros europeus que tiveram contato na África com o culto do
orixá Exu dos iorubás, venerado pelos fons como o vodum Legba ou Elegbara, atri-
buíram a essa divindade uma dupla identidade: a do deus fálico greco-romano Pría-
po e a do diabo dos judeus e cristãos. (PRANDI, 2001, p. 47-48)

5) Segredos:
Os segredos também criam um distanciamento do entendimento da complexidade des-
sas religiões, já que ao mesmo tempo que são utilizados de forma a valorizar a própria cultura,
acabam impossibilitando uma maior compreensão social sobre as mesmas. Ou seja, os misté-
rios são utilizados como defesa desde os primórdios, porém isso também afasta e mistifica
demais o que é natural. Cria-se um mundo à parte que é inalcançável para quem poderia se
interessar em conhecer. Servem também para evitar o preconceito de outros grupos sociais, já
que o que ficou no imaginário construído, conforme já visto, depreciou esta cultura.

                                                                                                               
41 Disponível em: https://horadopovo.com.br/governo-demite-adelzon-alves-da-radio-nacional  

  96  
 

Há dificuldades também em se separar o conhecimento produzido dentro da religiosi-


dade. Normalmente, prefere-se utilizar a própria religião como impedimento para um acesso à
cultura. O samba também é colocado nesse lugar, por diversas questões – locais de difícil
acesso, sexualidade exagerada, marginalidade e associação com a diversão.
6) Racismo:
O preconceito racial está estabelecido no Brasil. Apesar de não ser muito assumido,
inúmeros exemplos diários nos mostram como ele é um fato. Naquilo que se refere mais espe-
cificamente ao tema aqui analisado, autores como Vitor da Trindade (2019) apontam vários
fatos relacionados a essa questão:
No correr da história o samba foi proibido, assim como a Capoeira, o Candomblé e
tudo o mais que envolvesse a cultura de raiz africana, sendo que as proibições se ba-
seavam em falsas questões: muito violento, letras ofensivas da moral, muito lasciva,
esta dança tem teor sexual explícito e assim por diante. Os ensinamentos milenares
trazidos pelo Candomblé são parte muito importante dos fundamentos da cultura
brasileira. Infelizmente, por causa de inúmeros fatores, esta fundamentação depara
com barreiras que se organizam com base no preconceito relativo à cultura africana
e, predominantemente na instituição do racismo. Preconceito e racismo são coisas
diferentes, mas são profundamente interligados e têm força maior quando estão na
literatura formal, na formação escolar e também na inexistência de pessoas negras
ocupando cargos que possam influir de forma decisiva no comportamento cultural
brasileiro. (TRINDADE, 2019, p. 56)

Corroboramos com Trindade (2019) nesse sentido, apesar de perceber determinada


mudança a partir do surgimento, por exemplo, das cotas nas Universidades, algo que gera
bastante polêmica. Lia Vainer SCHUCMAN (2019) também fundamenta fortemente essa
questão do racismo enraizado, o que ao nosso ver justifica que o conhecimento diaspórico,
que transborda para o candomblé e as baterias, seja reconhecido em toda sua riqueza e com-
plexidade. SCHUCMAN (2019) separa o racismo de três formas: estrutural, interpessoal e
institucional. Outros autores o separam em biológico, cultural e institucional. Enfim, são di-
versas as formas de racismo no Brasil. No Encontro Técnico do Projeto Guri, Schucman
(2019) disse:
O branco não precisa responder pela sua cor, pelo grupo, pelos estereótipos. O negro
responde pelo entendimento que se tem, subjugado a uma cor menor, menos impor-
tante socialmente. A branquitude é um lugar de privilégio racial, econômico e políti-
co, no qual a racialidade, não nomeada como tal, carregada de valores, de experiên-
cias, de identificações afetivas, acaba por definir a sociedade. (SCHUCMAN, 2019.
Palestra.)

Dennys Silva, apresenta algumas das várias questões relacionadas à discriminação ra-
cial:
No mês passado (outubro de 2019), fizemos uma grande apresentação em São Pau-
lo, algo enorme com temática na percussão do samba. Algumas pessoas não acredi-
taram muito no projeto, houve desrespeito e parabenizaram somente no final. Os
técnicos de som e de iluminação não deram a atenção necessária, já depreciavam

  97  
 

nós, os instrumentos, nos julgavam como menores. Houve restrição a lugares especí-
ficos de acesso fora do Teatro, como se fôssemos destruir ou pegar inapropriada-
mente alguma coisa de valor. Isso já é atribuído ao negro e ao sambista. Foi uma ex-
periência positiva artisticamente, mas o sentimento que fica é ruim porque você tem
que provar que tem um bom trabalho. Parece que você tem que se preocupar mais
do que algumas classes. Quando toquei muitas vezes com outros músicos lá não
houve isso. Por isso alguns artistas chegam com o pé na porta, são agressivos, já pa-
ra não dar espaço pra humilhação. Há sim preconceito com negros, menosprezam a
nossa cultura, os instrumentos, de forma velada e muitas vezes abertamente. É só
ver como a polícia nos trata na rua. Pra uns eles fazem de um jeito e pra nós de ou-
tro. (SILVA, Dennys. 22/11/2019. Quadra do GRCSES Império de Casa Verde, São
Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)

Dennys fala de racismo estrutural, mas também do que chamamos de racismo institu-
cional, o que de fato ocorre de forma velada em organismos complexos de grande circulação
de pessoas: empresas, escolas e centros de convenções. Ele continua:
Em todos os ambientes – em instituições de ensino, em aulas teóricas, prática de
conjunto – se você toca samba, o que você faz aqui? Para alguns trabalhos, um meio
musical considerado mais refinado, não nos chamam! No Teatro você sofre precon-
ceito. Quando você vai dar um workshop como substituto você já é depreciado. É
melhor você ir sempre como primeiro convidado. Eu não aceito convites assim.
Sempre analiso os dois lados da moeda. Tem dinheiro que é melhor nem pegar.
(SILVA, Dennys. 22/11/2019. Quadra do GRCSES Império de Casa Verde, São
Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)

Outro fato apontado por ele é a inversão do preconceito, algo bastante polêmico pois
quando se fala nisso a pessoa já é naturalmente acusada de um preconceito estrutural. Ou seja,
para alguns movimentos radicais em defesa dos negros, ou do gênero feminino, se você não
tem o chamado lugar de fala, não pode ser respeitado, você já é errado.
Também ocorrem algumas discriminações inversas, porém nada comparado ao nú-
mero de pessoas e do sofrimento que nós negros passamos. Vou te dar alguns exem-
plos. Quando um músico de orquestra quer tocar em bateria é discriminado. Muitas
vezes em gravações de discos de samba há preferência para negros. É preciso olhar
o ser humano, o que importa é dar conta do recado. Outro exemplo: Nós tocamos no
baile da Vogue, uma das maiores festas que tem em São Paulo. A modelo e cantora
convidada era branca de olhos azuis e estava com uma trança enorme no cabelo (al-
go comum à herança africana) e foi altamente criticada pela apropriação indevida de
algo que não era de sua ascendência. A história com a cantora Fabiana Cozza, que
foi criticada por não ter uma cor forte de negro e por isso não poderia fazer o papel
no musical sobre Dona Ivone Lara, uma bobagem completa. Ela é uma baita cantora
e é negra, mesmo que seja mais clara. Na verdade o que importa, ou pelo menos de-
veria importar, seria a sua competência. (SILVA, Dennys. 07/11/2019. Quadra do
GRCSES Império de Casa Verde, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y
Castro.)

Hall (2013) comenta sobre a potencialização da cultura popular a partir da diáspora,


fato que poderia reforçar a identidade de um povo. Portanto, a cultura originária poderia re-
forçar a identidade de origem, o que poderia ir contra o racismo, desde que reconhecida como
potência. Nesse sentido, seus atores poderiam ter um outro lugar (status):
Esse descentramento ou deslocamento abre caminho para novos espaços de contes-
tação, e causa uma importantíssima mudança na alta cultura das relações culturais

  98  
 

populares, apresentando-se dessa forma, como uma importante oportunidade estra-


tégica para a intervenção no campo da cultura popular. (HALL, 2013, p. 374)

Esses ambientes – os terreiros e as Escolas de samba – simbolizam resistência, a partir


do deslocamento do local de origem:
Não importa o quão deformadas, cooptadas e inautênticas sejam as formas como os
negros e as tradições e comunidades negras pareçam ou sejam representadas na cul-
tura popular, nós continuamos a ver nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura
popular recorre, as experiências que estão por trás delas. Em sua expressividade, sua
musicalidade, sua oralidade, e na sua rica, profunda e variada atenção à fala; em su-
as inflexões vernaculares e locais; em sua rica produção de contra narrativas; e, so-
bre tudo, em seu uso metafórico do vocabulário musical, a cultura popular negra tem
permitido trazer à tona até nas modalidades mistas e contraditórias da cultura popu-
lar mainstream, elementos de um discurso que é diferente – outras formas de vida,
outras tradições de representação. (HALL, 2013, p. 380)

Ser macumbeiro ou sambista no Brasil é uma filosofia de vida. Não é aceitável ser jul-
gado de forma depreciativa e, infelizmente, o custo social desta escolha é alto, pois apresenta-
se como uma afronta em aspectos que vão contra um comportamento dito normal ou civiliza-
do, aqueles estabelecidos por pessoas que possuem apenas uma forma de compreensão exis-
tencial. Entender o candomblé e o samba como filosofia de vida é essencial para se tentar
compreender outras maneiras de se pensar e viver. Ao mesmo tempo, sustentar essa escolha é
algo que se apresenta dentro de uma tensão social. Normalmente, a pessoa desses contextos
precisa se justificar e prestar conta de sua própria escolha. Segundo Hall (2013), o povo negro
está sempre em profunda negociação pois não se reconhece sua identidade, ao mesmo tempo
que ele é analisado dentro de uma sistemática da lógica ocidental.
A questão não é simplesmente que, visto que nossas diferenças raciais não nos cons-
tituem inteiramente, somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferen-
tes tipos de diferença, - de gênero, sexualidade, classe. Trata-se também do fato de
que esses antagonismos se recusam a ser alinhados; simplesmente não se reduzem
um ao outro, se recusam a se aglutinar em torno de um eixo único de diferenciação.
Estamos constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições
que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posi-
ções diferentes. Cada uma delas tem para nós o seu ponto de profunda identificação
subjetiva. Essa é a questão mais difícil da proliferação do campo das identidades e
antagonismos: elas frequentemente se deslocam entre si. (HALL, 2013, p. 385)

Segundo Vitor da Trindade (2019), os negros sofrem mais de pressão alta pelo motivo
de estarem sempre prestando contas, justificando qualquer uma de suas ações. Algo que nor-
malmente não ocorre com os brancos:
Falo isso não é para vocês sentirem pena ou qualquer outra coisa, mas para entender
como é difícil ser negro no Brasil. Você vai ao mercado e é perseguido pelos segu-
ranças. Você precisa toda hora explicar o que irá acontecer, caso contrário você po-
de ser acusado de alguma prática incorreta. Como se a sua cor o representasse como
marginal. (TRINDADE, 2019. Palestra.)

E continua,

  99  
 

Não adianta falar que é racismo inverso, isso não existe. Nós nunca podemos parti-
cipar de diversas coisas, precisamos ter os nossos espaços, pelo menos em algum lu-
gar reforçamos a nossa identidade adormecida. Os terreiros e as Escolas de samba
são espaços fundamentais para isso, assim como os Blocos Afirmativos como os Ilê
Ayê, este mesmo chamado de bloco afro. (TRINDADE, 2019. Palestra.)

Além do racismo que determina a limitação social sobre a cultura afro-brasileira, todos
esses aspectos aqui evidenciados corroboram para a o baixo nível de compreensão ou aceita-
ção destas conexões.
7) Diferenciações entre modelos de carnavais de classes sociais opostas:
José Geraldo Vinci de Moraes – relevante pesquisador sobre as problemáticas na rela-
ção de desenvolvimento urbano, civilização e sociedade – fala do conceito de Pequeno e
Grande Carnaval, apontado por alguns autores como Olga Von Simson, Maria Aparecida Ur-
bano e Nelsinho Crecibeni. Tal conceito buscava estabelecer diferenciações de um carnaval
elitista na cidade de São Paulo, em pleno desenvolvimento no ciclo do café – transição entre
os séculos XVIII e XIX –, e mostra como esta questão racial já era predominante a favor dos
brancos e não negros. Para Rufino (1993), o mesmo termo fora utilizado também na segrega-
ção racial estratégica, promovida por algumas classes dominantes em relação a outras:
O termo Grande Carnaval surge em contraposição a Pequeno Carnaval, que era
realizado por negros e mulatos livres da periferia carioca que, aproveitando-se das
sobras da festa maior (confetes e serpentina), faziam sua comemoração, acom-
panhada de músicas afro. (RUFINO, 1993, p. 245)

Apesar das dificuldades também apontadas por eles, em relação aos imigrantes de
forma geral, que trabalhavam na indústria cafeeira, os negros foram afastados estrategicamen-
te para os bairros mais pobres da cidade como o Glicério, a Barra Funda e o Bexiga. Automa-
ticamente, o que era promovido culturalmente por eles – pelos negros – era chamado de Pe-
queno Carnaval, enquanto o desfile de carros na avenida Paulista era chamado de Grande
Carnaval. O mesmo acontecia nos clubes da cidade, onde havia uma reprodução do carnaval
europeu e suas músicas de época. Os chamados batuque, folia, bagunça, e a considerada saca-
nagem, aconteciam no Pequeno Carnaval, ou seja, a arte promovida pelos negros nas suas
danças, canções e ritmos eram entendidos como uma arte menor. Este efeito é replicado atu-
almente por boa parte da sociedade e através da mídia, que também é uma importante ferra-
menta de distorção de papeis. Ao mesmo tempo que ela promove e divulga os desfiles carna-
valescos, por exemplo, mostra uma imagem totalmente associada à venda de bebidas alcoóli-
cas e sexualidade aflorada.
Isso, de fato, não é uma realidade nesses ambientes. É necessário separar e entender a
complexidade destes grupos e tudo que é proporcionado para suas comunidades durante o ano
inteiro, não apenas no período carnavalesco midiático. Para Vitor da Trindade (2019), a cultu-
  100  
 

ra africana, de um modo geral, sempre foi depreciada por associarem coisas negativas a ela.
Isso também foi observado nos documentários de Geraldo Filme (depoimento de Toniquinho
Batuqueiro), no Programa Ensaio da TV Cultura (Geraldo Filme) e no primeiro episódio da
série Samba à Paulista (depoimento de Penteado do Vai-Vai).
8) Em algumas escolas consideradas mais tradicionais – no sentido da relação entre a
tradição do candomblé e do samba – transparece uma relutância em se disponibilizar e trocar
informações de parte de integrantes negros com integrantes brancos, o que aponta para um
ambiente de permanente conflito étnico-racial. Atualmente, algumas dessas Escolas lutam
para reconquistar seus espaços perdidos nos campeonatos perdidos sucessivamente. São Esco-
las consideradas de maior população negra, cujos integrantes são criticados por não se enten-
derem entre si, pela vaidade excessiva e falta de competência na gestão de pessoas. Muitos
dos seus atores acabam se deslocando e se reinserindo em outras Escolas com mais capacida-
de de gestão de pessoas. Por outro lado, a maioria dos Presidentes das Escolas de samba atu-
almente são brancos, acusados também de dominar espaços de propriedade negra, espaços de
eterna disputa étnico-racial, apesar de parte das pessoas não assumir ou não pensar realmente
dessa forma. Por ser branco, e tocar em bateria e terreiro, por exemplo, sinto forte pressão por
parte de outros integrantes, algo diferente em relação a novatos não brancos. A cobrança é
maior para brancos, que exatamente por estarem sendo aceitos em comunidades negras preci-
sam constantemente mostrar que correspondem às expectativas. No meu caso, vejo isso como
uma oportunidade de entender tais tensões, o que para outros colegas pode ter causado afas-
tamento. Nos muitos anos dedicados a percorrer estes locais, pude acompanhar diversas situa-
ções interessantes para reflexão e compreensão dos dois lados da história.
9) Estratégias de defesa deste conhecimento em relação ao pesquisador acadêmico:
Segundo alguns interlocutores, há uma falta de ética por parte dos pesquisadores, de
acordo com situações ocorridas no passado. Isso se deve porque, historicamente, alguns
pesquisadores não deram retorno para as comunidades e utilizaram as mesmas como projeto
pessoal, não valorizando os integrantes dessas comunidades, ambiente ou objeto estudado.
Julio Cesar Barro, relevante percussionista e ritmista na cidade de São Paulo, em dia
de ensaio da bateria do GRCSES Águia de Ouro, ouviu a seguinte fala de Talita Badia, dire-
tora da ala de rocar do Águia de Ouro, sobre determinados comportamentos com pesquisado-
res anteriores: “Nem adianta vir aqui com essas coisas de tese, de mestrado. Não vamos falar
nada sobre isso. O cara veio aqui ano passado e sumiu. Nem deu as caras”. Talita é reconhe-
cida pela excelência com o trabalho prático neste naipe – o chocalho rocar –, tendo passagens
na Mancha Verde como ritmista, no Mocidade como Diretora e na Vila Maria. Esse reconhe-

  101  
 

cimento se deve à qualidade de seus arranjos, linguagem musical, nível técnico no instrumen-
to, resultados e liderança do naipe.
A inserção de pesquisadores brancos neste contexto (meu caso), fica evidenciada co-
mo um incômodo, como se observa também na fala a seguir:
É meu povo, agora nós vamos ter que engolir. Olha a desse cara, é flamenguista,
gosta de samba e macumba, branco! Qual é que é a dele hein? Isso é porque nós não
fizemos o que tinha que ser feito (REIS, Rodolfo., incorporado dentro da tradição do
candomblé pelo caboclo Arariboia. 13/11/2019. Casa de candomblé Kyloatala. Fala
aos filhos de santo.)

A conversa acima se deu com o caboclo Arariboia – espírito ancestral incorporado por
Tata Kylonderu (Rodofo Santos dos Reis) – na Casa de candomblé Angola Kyloatala. Nesse
caso, fica evidente um incômodo pelo fato de um branco se interessar em falar sobre o
conhecimento gerado por negros, algo que está na memória ancestral. Por outro lado, o
próprio zelador, em outro dia de entrevista, se interessou pela pesquisa, pois o elemento
textual poderia dar um outro tipo de reconhecimento para a sua Casa, e também para sua
comunidade como um todo. Atualmente, grandes líderes espirituais sabem da importância
dessa troca e procuram aceitar mais pessoas do que antigamente. Nesse sentido, para o
caboclo Arariboia, seria uma falha dos indivíduos da diáspora pelo fato de se apoiarem
sempre na prática e no elemento ritual, onde a parte teórica não foi pensada como uma
ferramenta de apoio e conquista.
Paira sempre a crítica à diferença, o mesmo que acontece entre músicos teóricos e
práticos, acadêmicos ou de fora. Ou seja, a justificativa de determinada limitação se dá no
ataque à diferença, o que ele mesmo fez. Entendo também que o caboclo incorporado, ou
qualquer outra entidade ou orixá, apresenta sempre uma mediação do próprio indivíduo que o
incorpora. De fato, parece que algum controle e divisão de tarefas se dá na dinâmica da
própria incorporação. Por isso, entendo como algo dividido entre a consciência e a
inconsciência. Isso é fundamental para termos algo mais concreto e com maior aceitação
dentro das nossas próprias limitações com o desconhecido. É fato que existem diversas
modalidades de incorporação, cada uma com suas especificidades, havendo várias
publicações a respeito.
10. Separação entre o sagrado e o profano:
Para alguns integrantes do Candomblé, determinados ritos não podem ser realizados
publicamente, tornando-se difícil reconhecer determinadas relações entre elementos comuns
às duas tradições.
Nesse sentido você vai no fundo da questão, pois acaba sendo um dilema, quem po-
deria ajudar mais seriam os mais antigos. Mesmo assim é um assunto delicado por-

  102  
 

que envolve muitos tabus, preconceito, medo. Muitos não gostam de falar disso. Pa-
ra muitos não faz sentido falar dessas coisas pelo fato de cair no mérito do sagrado.
(SALGADO, Alan. 04/03/2018. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
 
Para algumas pessoas, há a necessidade de reconhecer territórios de maneiras diferen-
tes. Nesse sentido, o que é praticado no terreiro não deveria sair e chegar, por exemplo, em
uma Escola de samba. Compreendo que há um conflito, como se essa prática tivesse que ser
controlada e, por estar em um ambiente festivo, poderia representar um certo desrespeito à
mesma. Acredito que ocorre justamente o contrário, ou seja, quanto mais isso for reconhecido
e assumido, melhor para toda a compreensão social sobre a própria religião. Isso soa muito
como uma compreensão ambígua, como se qualquer ressignificação não fosse aceita. Por ou-
tro lado, as Escolas utilizam desta temática fortemente, o que mostraremos mais detalhada-
mente no sub capítulo 4.8.

Figura 11 - Flyer de divulgação em site de adeptos a religiosidade de matriz afro separando alguns
fundamentos da religião do carnaval

Fonte: Facebook de canal religioso42.

                                                                                                               
42  Aponta-se o ambiente festivo desta mescla como algo maléfico, uma compreensão ambígua e depreciativa
presente em alguns membros entrevistados por nós.  

  103  
 

11) O elemento ritual é visto como algo místico:


Tanto nas Escolas de samba como nos terreiros, apresentam-se processos ritualísticos
coletivos que são tratados apenas como crença. Já ouvi ritmistas, por exemplo, dizendo que
ficavam com medo quando Cabelinho (Anderson Jorge Enéas) incorporava na avenida ou em
algum ensaio. Ele poderia, a qualquer momento, entrar em transe enquanto reproduzia o toque
de Cabula no ripa mor. Algo curioso, pois ele mesmo fala da necessidade de separação entre o
sagrado e o profano. Porém, segundo colegas de ritmo, em dias de ensaio ele já chegou a in-
corporar tocando ripa. Cabelinho é Pai de santo – yawó – e tem capacidade reconhecida na
religião para incorporar. Apesar de ele tocar atabaque e também ser percussionista no meio do
samba, o que não lhe daria habilidade para incorporar, pode apresentar realmente dificuldades
em controles mediúnicos quando está nas Escolas, o que provavelmente seja um dos motivos
para querer separar o sagrado do profano.

Figura 12 - Pai Kumimbara, Exú com vestimenta de terno em reverência a um sambista do GRCSES
Mangueira, incorporado por Anderson Jorge Enéas

Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro.

  104  
 

12) Mídia:
A mídia possui papel central na ambiguidade presente na compreensão social sobre as
religiões de matriz afro e o samba. Normalmente, ambos são tratados com determinado misti-
cismo e considerados apenas no período festivo. As insinuadas propagandas que associam o
carnaval com a sexualidade, tratando-o apenas de forma associativa com uma pseudo felici-
dade, também não correspondem à realidade. A produção anual de seus atores e a riqueza de
suas ações estão longe de serem conhecidas pela população de forma geral, um reflexo do que
a própria mídia estabelece anualmente.

4.2 Sabedoria ancestral, estrutura, significados e características dos rituais


4.2.1 Sabedoria, funções e reconhecimento do conhecimento ancestral independente de idade
Nas comunidades dos terreiros e das Escolas de samba é muito comum que os mais
novos apresentem voz ativa, desde pequenos. Respeita-se a descendência familiar e a ances-
tralidade reconhecida pelas famílias e por toda a comunidade. No caso dos grupos aqui anali-
sados, considera-se a sabedoria dentro do contexto, independente da idade do indivíduo, sen-
do que o que conta é o tempo como participante no contexto.
Como exemplo oposto a essa estrutura familiar tradicional, vemos nos locais aqui in-
vestigados uma maior liberdade para os indivíduos mais novos, ao contrário do que estamos
acostumados. Estes recebem, ao menos parcialmente, maior consideração nas condições ação-
risco-execução, tendo mais direito ao que é considerado erro, o que não ocorre na forma tra-
dicional. Mesmo com pouca idade – 13 a 18 anos –, possuem funções e responsabilidades
estratégicas no contexto.
Depois de participar de vários encontros nos grupos aqui analisados, observamos que
esta é uma prática bastante interessante. Como característica intrínseca a processos evoluti-
vos, desenvolvem-se práticas opostas em relação às mais convencionais: a) a hierarquia se dá
pelo tempo de participação nestes espaços, independentemente da idade do participante, b) o
respeito é maior pela proficiência na performance musical, em especial quando há uma dire-
ção maior para a prática de um instrumento específico – aquele que fará parte da própria per-
sonalidade do indivíduo, funcionando como uma marca própria, pois quanto mais ele se des-
tacar na performance, mais será admirado e respeitado, c) o comprometimento (disciplina e
outros fatores) de cada indivíduo, determinará um destaque dele em relação ao grupo, servin-
do como modelo a ser seguido e mesmo que apresente maior dificuldade técnica em relação a
outros, em alguns casos isso muda (entrevista Mukambila/Tariganga e Zoinho), d) os mais
novos apresentam maior proficiência nos instrumentos, fato natural pelo condicionamento

  105  
 

físico e e) alguns instrumentos são mais comuns para faixas etárias específicas. Na bateria,
por exemplo, os ritmistas mais velhos tocam surdos e cuícas e os ritmistas mais novos tocam
repiniques e tamborins. No candomblé Kyloatala e em outras casas temos o alabê tocando
rum e gã, enquanto os demais atabaques são executados tanto por ogãs mais novos quanto
mais velhos. É uma tendência, no caso do rumpi (atabaque do meio), ser mais tocado por ogãs
na chamada meia idade, entre 30 e 50 anos. Os mestres de bateria e os alabês preferem inves-
tir na formação dos mais novos, já que estes serão o futuro das Escolas e terreiros.
O interesse por determinados instrumentos ocorre porque as funções em comum entre
ogãs e ritmistas direcionam atuações escolhidas por indivíduos que, além do gosto pessoal e
identificação particular com um dos instrumentos, também pensam estrategicamente nos re-
sultados sociais promovidos pelas práticas musicais, já que estas estão inseridas em socieda-
des maiores, como os outros setores da Escola e também na exposição a outros cargos dos
filhos de santo no candomblé – yawós, ekedis, rodantes e zeladores. Por estarem em constante
observação, em geral os mais novos preferem instrumentos de maior destaque, caso do repi-
nique de bossa, surdo de terceira e atabaque rum. As pessoas mais novas apresentam uma
necessidade maior de reconhecimento, pois ainda estão testando algumas coisas. Isso também
pode variar de acordo com a personalidade de cada integrante.
Em ambos os locais, existe uma expectativa em relação ao olhar externo, seja de ou-
tros integrantes em suas funções ou do próprio público. Normalmente, os indivíduos mais
velhos são admirados pela experiência e maior controle físico, necessários para o equilíbrio
entre a resistência e a sonoridade, pois nem sempre o mais novo, o que apresenta maior con-
dição física, terá a resistência adequada em todo o desgastante tempo de duração das ativida-
des – desfiles, ensaios técnicos, festas para os orixás e funções diversas. Muitas vezes, os rit-
mistas e ogãs passam noites em claro em performance, executando seus instrumentos. No
candomblé, é uma obrigação de todos da Casa se referirem aos mais velhos como Pai, já su-
bentendendo-se uma referência aos que tem mais experiência, mesmo que tenha pouca idade,
o contrário do que acontece na dita sociedade civilizada em geral ou na família tradicional
brasileira. Nesse sentido, a referência se dá pelo respeito ao conhecimento daquelas pessoas
nos saberes e costumes de sua cultura como essência.
Numa bateria, isso também é muito comum. Atualmente, os cargos de liderança a par-
tir do mestre, e muitas vezes até o dele, são ocupados pelos mais novos, exatamente por apre-
sentarem maior capacidade de ação em relação aos mais velhos, que podem estar mais exaus-
tos, reflexo da própria entrega e prática constante no meio. Muitos dos mais velhos acabam
saindo por questões de saúde debilitada e também pela incapacidade nos processos de gestão

  106  
 

de pessoas que os tratam com desrespeito, inclusive nas baterias e nos terreiros. Todos os in-
divíduos, independentemente da idade que apresentam, são necessários. O equilíbrio é fun-
damental e a renovação se dá por pessoas novas que observaram o erro dos mais velhos para
que não repitam modelos ineficientes do passado.
Sem desrespeitar ou desmerecer qualquer faixa etária, uma realidade nova se desenha
nas escolas do Rio de Janeiro e de São Paulo, e nos terreiros. Cada vez mais, ano após ano, os
indivíduos que se destacam na gestão destes grupos musicais (bateria e candomblé) são mais
novos, normalmente na faixa dos 30 a 45 anos. Essa característica é uma marca da atualidade,
já que anteriormente era exatamente o oposto que acontecia. Isso mostra um processo de re-
novação muito dinâmico, relativo à necessidade de velocidade na mudança, tendo em vista a
complexidade exigida em ambos os locais para solucionar problemas e inovar.
Os indivíduos mais novos também apresentam uma formação mais ampla, possível de
acordo com a progressão do conhecimento e metodologias encontradas em cada época. É uma
tendência que mestres de bateria mais novos possuam maior proficiência artística de acordo
com as possibilidades técnicas atuais e este também é um motivo de destaque na gestão de
todo o grupo. É pela performance almejada, em equilíbrio com o poder de tratamento e co-
municação eficiente, que haverá mais seguidores e também pessoas mais novas. O conteúdo
histórico cultural também pode ser uma marca dos mais novos, com pesquisas em estratégias
pedagógicas e atuação artística, assim como a busca por novas práticas e resultados.
Por outro lado, os que apresentam mais idade em relação a outros, por terem vivido
em outra época, também fazem parte da história do reconhecimento de suas capacidades pelos
mais novos, pois viraram a própria história no presente. Nesse caso, a experiência e o equilí-
brio podem ser maiores. Nossa intenção não é determinar qual grupo de pessoas em suas fai-
xas etárias correspondem mais às necessidades atuais dos grupos, mas sim mostrar como os
mais novos possuem poder de atuação maior em relação ao que é estabelecido socialmente em
culturas diferentes. Isso foi observado nas práticas destes grupos como enriquecedor para o
conjunto como um todo, refletindo na promoção de pessoas mais novas, estratégia escolhida
exatamente para que a cultura seja mantida, de geração para geração.
4.2.2. Funções extras do cotidiano
As tarefas do cotidiano nesses locais – os terreiros e as quadras das Escolas de samba
– são entendidas como parte do processo de formação e de função social em prol do grupo de
indivíduos participantes. Considerando que são ambientes onde o coletivo se faz necessário
para a execução de ações bastante diversas, e não somente as artísticas visualizadas pelo pú-
blico externo mais facilmente – como no caso dos ogãs quando tocam os atabaques e dos rit-

  107  
 

mistas em um ensaio ou desfile de Escola de samba –, há a necessidade de que se estruture as


atividades (ensaios, festas, apresentações, entre outras) para que os participantes, além de
executarem suas práticas ligadas essencialmente à musicalidade destes grupos, realizem tare-
fas das mais comuns às mais complexas, com responsabilidades diversas dentro de todo o
complexo social que envolve esses grupos.
Nesse sentido, percebemos algumas semelhanças entre ogãs e ritmistas. Os líderes se
apoiam neles para que consigam organizar previamente preparos básicos antes do momento
artístico. Somente quem participa presencialmente, como ocorre no caso de nossa pesquisa de
campo, consegue observar como algumas dinâmicas desse tipo são importantes. Elas refletem
uma complexidade dentro do conjunto social formado por diversos indivíduos com suas expe-
riências, formações e faixas etárias bastante distintas.
Toda essa mistura de diferenças favorece a riqueza do conjunto de pessoas, sendo que
as trocas de saberes acontecem nos momentos de realização de tarefas, através de conversas
informais nas quais é muito comum presenciar o relato de histórias conectadas à sabedoria
ancestral e cultural destes povos, oriundos em sua maioria da diáspora. A seguir, alguns
exemplos de como essa prática acontece.
Em uma bateria, além dos diretores que também realizam funções diversas e não ape-
nas a de dirigir os naipes de ritmistas, há uma outra parte dos ritmistas (10%) que é escolhida
pelo mestre para algumas tarefas como: a) distribuição de camisetas em dias de ensaio técni-
co, b) organização e entrega de instrumentos para o restante dos ritmistas em ensaios e apre-
sentações, c) manutenção de instrumentos, d) recolhimento de quantias de dinheiro para di-
versas necessidades (confecção de carteirinha da Escola, compra de bonés e camisetas), e)
limpeza da sala de instrumentos, f) entrega de bebidas em intervalos ou fim de ensaio e g)
ações diversas.
Nos terreiros, os ogãs possuem função múltipla: a) limpeza de espaços como salas,
quartos e barracões, b) coleta de folhas, plantas, madeiras específicas para os rituais e c) sacri-
fício de animais (ashogun).
Existem nomenclaturas diversas para os ogãs que realizam outras funções além das ar-
tísticas. Abaixo alguns exemplos:
Ogã peri – administração financeira da casa.
Ogã pejigan – responsável pelos chamados “axés” da casa, a alquimia entre os ele-
mentos utilizados para proteção local. Nesse caso, há necessidade de muita prática e relação
com o sagrado. O zelador transmite as necessidades e conta com esse ogã para esses cuidados
essenciais em uma Casa de Candomblé.

  108  
 

Ogã ashogun – sacrifício de animais nos ritos. Este cargo é ocupado normalmente por
uma pessoa que assumirá a casa na falta do zelador. É um cargo de muita responsabilidade e
exige muita experiência do ogã.
Ogã alabê – responsável pelo rum, todo conjunto percussivo e os cânticos. Este cargo,
apesar das especificidades musicais, não isenta o indivíduo das tarefas cotidianas.
Exatamente pelo fato de essas tarefas serem entendidas como fundamentais para o co-
letivo, todos precisam realizar parte delas, para que todas as necessidades sejam sanadas.
Como há um grande número de participantes nestes locais, os espaços precisam ser organiza-
dos, como é o caso da limpeza de banheiros ou outros locais já anteriormente citados. Tam-
bém há a necessidade de compra de itens de alimentação para que todas as pessoas da casa ou
visitantes sejam atendidas. É muito comum que se façam coletas de valores financeiros para a
compra de um botijão de gás ou compra de alimentos para todas as pessoas.
No caso das baterias, é muito comum que alguns dos ritmistas mais velhos busquem
alimentos – como pizzas e bebidas –, quando os ensaios são longos ou quando alguns chegam
muito antes do horário para os ensaios. Esses momentos compartilhados são riquíssimos para
a troca de conhecimento. As conversas a respeito de diversas situações em ensaios ou desfiles
anteriores, por exemplo, trazem muita experiência. As tarefas do cotidiano, portanto, se mos-
tram importantes para a troca de conhecimento, necessário para a manutenção cultural do po-
vo de axé e dos sambistas, sendo impossível, na verdade, separá-las. Além dos ensaios de
bateria, xirês e apresentações diversas, não há momento determinado para práticas ou troca de
conhecimento. Apesar de elas acontecerem também de outras maneiras, é na execução das
tarefas do cotidiano que se mantém a cultura da diáspora. Observamos isso em deslocamento
de ritmistas para locais de apresentação e em intervalos de xirês, quando os ogãs formam ro-
das de conversas enquanto cuidam dos outros afazeres da Casa – a segurança, por exemplo.
Os ogãs, assim como os primeiros repiniques, são considerados pelos líderes (zelador e mes-
tre) como guardiões destes locais, estando atentos a tudo, ao chamado movimento. São eles
que sinalizam alguma alteração no curso da performance ou a necessidade de alguma interfe-
rência. Como são locais de alta circulação de pessoas, os ritmistas e ogãs cuidam e se prote-
gem entre si. Muitas vezes isso se dá através do olhar, de gestos e de uma comunicação inter-
na reconhecida somente pelo próprio grupo. Como convivem, no geral, por muito tempo jun-
tas, estas pessoas se conectam rapidamente. Muitas vezes não há a necessidade de uma expo-
sição oral muito explicativa. O que será realizado ou modificado pode ser sinalizado com um
gesto.

  109  
 

Também é tarefa do ogã e do ritmista mais experiente orientar os mais novos. Além de
realizarem as tarefas do cotidiano e executarem seus instrumentos nos ritos – xirês e desfiles –
são obrigados a explicarem as necessidades musicais e também orientar o passo a passo para a
realização das tarefas gerais. Esse sentido do coletivo é esperado pelos líderes dos ogãs e rit-
mistas mais velhos. Os líderes observam e verificam se o que lhes foi passado está sendo mul-
tiplicado43.
Abaixo temos um relato de Tata Mukambila - ogã ashogun da Casa Kyloatala:
Eu deixo o Tariganga tocar porque ele sempre me ajuda com as tarefas da Casa.
Somente deixarei tocar quem está aqui para o todo. Não adianta vim querer ser artis-
ta e achar que vai sair tocando. Precisa fazer tudo, carregar pedra, cortar lenha, fazer
fogo, carregar peso, serviço de pedreiro. O que o Pai de santo pedir a gente faz. Fa-
zemos isso para nosso santo. (MENEZES, Marcos - Tata Mukambila. 04/11/2019.
Casa Kyloatala. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
 
Para Robson Campos, também há essa espécie de reconhecimento da dedicação do
ritmista com as tarefas do dia a dia, tarefas essas que, na maioria das vezes, são extramusicais:
Você pode ver aqui, quem está sempre comigo desde os Gaviões, coisa de pelo me-
nos 20 anos atrás, é a rapaziada que levou pedra, passamos por tudo juntos. Tudo
que eu preciso esses caras fazem, ensinar um instrumento para alguém novo ou var-
rer a quadra. É sol ou chuva e estamos juntos sempre. São os meus diretores e al-
guns dos ritmistas mais chegados. (CAMPOS, Robson. 02/07/2019. GRCSES Impé-
rio de Casa Verde, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)

Considerando estes locais como sociedades que valorizam aspectos do coletivo, o que
representa sentido para estas pessoas é a troca e a soma de forças individuais em prol de todo
o grupo. Muitas vezes, o que é representado em um desfile ou festa de Candomblé não conse-
gue demonstrar tamanha complexidade e competência de todos nas mais diversas tarefas do
cotidiano. Muitas vezes, será a partir delas que as ações serão planejadas e posteriormente
executadas com excelência, seja em aspectos artísticos ou de desenvolvimento humano.
A relação de respeito e obrigações do ogã com o orixá, é a mesma do ritmista com o
pavilhão da Escola, algo que se estabelece também como sagrado. A relação com o universo e
a natureza, de forma geral, representa um sentido maior na execução de diversas tarefas, co-
mo se a execução musical por si só não fosse necessária. Para estas pessoas não faz sentido
apenas isto, chegar e tocar em algum local, apenas como forma de apresentação artística –
algo comum em outros contextos. Há muitas outras necessidades individuais que significam
resultados para o coletivo.

                                                                                                               
43
Podemos observar isso claramente no vídeo do ogã Marcelinho de Logun Edé postado no Youtube em 01 de
agosto de 2018: https://youtu.be/I0ExuEx43No
 
  110  
 

Esse pensamento e prática pode representar, por exemplo, o motivo de tamanha entre-
ga nas atividades com durações prolongadas, já que esses indivíduos não pensam na perfor-
mance separada das necessidades do grupo. É como se valesse a pena estar sempre à disposi-
ção, não pensando apenas em suas necessidades ou falta de tempo.
4.2.3 Estrutura do xirê, roteiro de enredo e outras semelhanças
Em um xirê, também conhecido como gira, que consiste no ritual em que os orixás são
apresentados abertamente para o público em dias de festa, há o chamado roteiro. Ou seja, uma
sequência estrutural, como em qualquer apresentação artística estabelecida. O mesmo ocorre
em um desfile carnavalesco, no qual uma ordem a respeito de determinado enredo é apresen-
tada. No enredo, há um tema específico, e a história sobre este tema deve ser reproduzida pe-
las alas, fantasias e alegorias que passarão pela avenida. Durante esses rituais (xirê, desfile),
há pequenos ritos que simbolizam a identidade dessas manifestações. Encontramos alguns
sinais de certas conexões, a partir de algumas semelhanças que as justificam.
Partindo do pressuposto de que a Escola de samba sempre foi associada com os terrei-
ros, seja pelos participantes em comum, significados, características culturais, vestimentas e
muitos outros aspectos já abordados, mostraremos questões que também representam o que
investigamos e não encontramos em publicações. Vejamos abaixo algumas destas questões,
divididas nos xirês e desfiles ou ensaios de Escolas de samba durante os rituais: a) reverências
a bandeiras e brasão, b) vestimentas em dias de desfile (presidentes, diretores e ritmistas utili-
zando guias de proteção), c) respeito com a hierarquia a partir dos anciões, d) ritos pontuais
nos barracões, e) ritos pontuais nas quadras, f) ritos pontuais no esquenta, g) cantigas para os
orixás no esquenta em ordem de xirê e h) movimentações circulares de algumas alas, como a
das baianas. Todos os anos as Escolas apresentam referências aos orixás e à cultura africana
em geral. Muitos carros alegóricos possuem esculturas que os simbolizam, assim como nas
fantasias e materiais carregados pelos passistas: machado de Xangô, atabaques, adjás, guias,
entre outros. Outra característica é a que já discutimos com relação à roupa na ala das Baia-
nas, que são vestidas por diversas mães de Santo ou ekédis, ou seja, pelo povo de santo. Ve-
jamos um desses casos, apresentados no sambódromo do Rio de Janeiro:
As surpresas do desfile começaram na comissão de frente. No centro de uma roda de
candomblé, os sambistas Beth Carvalho e Jorge Aragão acompanhavam a evolução
dos dançarinos. Representando os orixás, os integrantes dançavam numa plataforma
que lembrava o terreiro onde o bloco Cacique de Ramos foi criado, com uma grande
árvore ao fundo. Durante o desfile, os orixás desciam da plataforma para interagir
com o público, emitindo sons. (MANGUEIRA...44, 2012. Notícia.)

                                                                                                               
44
Disponível em: http://vermelho.org.br/noticia/176196-1.  

  111  
 

A própria concepção de um xirê é reproduzida na ala das baianas, com suas passistas
rodando em círculos, com a diferença de terem que andar para a frente, acompanhando a pas-
sagem da Escola como um todo na Avenida. No xirê, os ogãs tocam na parte de trás do barra-
cão, ao fundo, enquanto os chamados rodantes circulam no centro do barracão, formando uma
grande roda. Esta roda é muito parecida com a chamada evolução das baianas ao longo de
toda a avenida. Os ogãs também possuem função relacionada com uma bateria em desfile, a
de movimentar as pessoas que estão na gira, da mesma forma que os ritmistas impulsionam
toda a movimentação em uma Escola. O local onde a bateria fica no meio de um desfile, cha-
mado de recuo, é bastante simbólico em relação a essa função da percussão – a linguagem.
Este local, visualmente, representa, em partes, o mesmo local dos atabaques, já que é ali que
se observa toda a movimentação dos integrantes que circulam e passam, enquanto o grupo
percussivo observa e dá o suporte sonoro para a movimentação da totalidade dos envolvidos.
A chamada evolução dos passistas é marcada por pequenas coreografias planejadas ou
involuntárias impulsionadas pelo ritmo. Da mesma forma, ocorrem com as ekédis e o povo da
gira, algumas movimentações com os braços, mãos e as pernas, que são idênticas àquelas fei-
tas pelos passistas. O timeline referencial é reproduzido por palmas e expressado corporal-
mente de diversas formas, sutilmente ou mais enfatizado. A compreensão do corpo como ex-
tensão do que é sentido sonoramente pela bateria ou pelos atabaques, é uma característica
marcante destas semelhanças e também da representatividade da percussão para estes grupos.
Como dissemos no início, o que é apresentado no enredo é a tentativa de se contar
uma história, da mesma forma que o roteiro do xirê reproduz uma história mítica encenada
para o público. A diferença é que essa história poderá ou não ser reconhecida, sendo que pro-
vavelmente em uma Escola de samba haverá mais clareza de acordo com o passar das alas,
enquanto na gira muitas sequências somente são reconhecidas por entendedores da religião.
Há uma série de justificativas para tais sequências, já que essas histórias formam parte da mi-
tologia sobre os orixás e nos remetem a uma conexão com a cultura ancestral africana em
diáspora. Pela quantidade de participantes que possuem práticas nas religiões de matriz afro
como o Candomblé, e também pelas pessoas que, independentemente de terem afinidade com
a religiosidade em questão, compreendem a cultura dentro dela, também pareceu-nos um
momento de extensão do ritual em si. Para muitas pessoas entrevistadas, o desfile é conside-
rado uma extensão dos terreiros, seja pelo sentido simbólico ou por questões em comum, que
se comunicam no terreiro e na avenida.
4.2.4 Instrumentos e construção musical no conjunto percussivo

  112  
 

Muitas semelhanças são compartilhadas e observadas nas funções de alguns dos ins-
trumentos que compõem a chamada orquestra do candomblé – atabaques Rum, Rumpi e Lé –
e os mais conhecidos que formam os naipes das baterias – repiniques, caixas, surdos e tambo-
rins.
Para se falar em Bateria, torna-se necessário dizer algo a respeito do surgimento dos
instrumentos e como a coisa foi evoluindo. Inicialmente as pessoas ligadas à origem
das Escolas de samba e dos Ranchos, participavam de reuniões festeiras (Caxambú,
Lundú, Jongo) ou ainda do culto afro-brasileiro, onde tornavam parte ativa e inten-
samente. Instrumentos tais como: atabaques, tambores, tamboretes, agogô, tambo-
rim, pandeiro, triângulo que auxiliavam nas festas e no ritual. Com relação ao can-
domblé, onde são cantados pontos, chamado popularmente de ponto de macumba,
obedecendo ao ritmo quente exigindo dos participantes o molejo necessário para
acompanhá-lo. Das brincadeiras de samba, realizadas em casa do Sr. Napoleão, Sr.
Vieira, Dona Neném, Dona Esther e outros, participavam geralmente pessoas liga-
das ao culto afrobrasileiro com suas diversas linhas e nações. (CANDEIA; IS-
NARD, 1978, p. 42)

Notamos como algumas transformações acontecidas no Candomblé refletiram na pró-


pria adaptação do diálogo existente anteriormente entre os naipes de surdos de terceira, por
exemplo. Este fato é bastante contestado pelos sambistas mais velhos por tirar a essência do
próprio estilo, algo que também acabou acontecendo nos dois ambientes para fins de organi-
zação sonora de ambos os conjuntos musicais. Seria uma forma mais ocidentalizada de reco-
nhecer uma maior “limpeza” e equilíbrio entre todos os instrumentos dos conjuntos. O mesmo
fenômeno aconteceu e ficou estabelecido para os primeiros repiniques em relação aos repini-
ques de base, sendo que apenas alguns dos ritmistas mais proficientes, com a responsabilidade
nos ripas de bossa, podem fazer as variações, enquanto os outros (de base), fazem a condução,
a chamada sustentação do ritmo.
Por exemplo, quando eu aprendi os tambores, haviam dois toques diferentes execu-
tados pelos tambores Rumpi e Lê. Tomando por referência o ritmo para Oxum, o
Ijexá, havia uma base contínua do tambor Lê e um acompanhamento do tambor
Rumpi, que fazia um diálogo entre o tambor com Rum, que mantinha as frases em
diálogo com o Orixá e a base tocada no Lê. Hoje em dia, Rumpi e Lê tocam em
uníssono, enquanto o Rum dobra. (TRINDADE, 2019, p. 136)

Entendemos isso como uma adaptação inevitável que acabou sendo responsável pela
transformação da tradição, na tentativa de resolver algumas questões no sentido de serem me-
lhores julgadas dentro do regulamento do Carnaval, mas engessando, por outro lado, a liber-
dade dos performers expressada pela sonoridade modificada dos grupos – os atabaques com o
gã e as baterias.
Sobre o Rum – o atabaque mais grave –, Trindade nos mostra uma total relação da
função desse instrumento com o Ripa de bossa, pois é através dele que os outros instrumentis-
tas reconhecem os símbolos sonoros e apontam para o que deve ser feito nos arranjos e im-
provisações. Mais essencialmente, Trindade nos mostra a relação deles – do Rum e do Ripa
  113  
 

de Bossa – com a sinergia entre a percussão e o movimento, o vocabulário único entre o dan-
çarino e o percussionista, no entendimento da percussão como linguagem.
Ao contrário do que se pensa, o tambor Rum não improvisa e sim repete alguns pa-
drões melódicos que seguem a tradição desde a antiguidade, sendo como frases me-
lódicas que ocorrem durante momentos organizados com o texto do cântico e devem
ser executados exatamente nos momentos para que foram organizados. É isto que
torna tão difícil a compreensão deste atabaque, porque a forma como ele soa para os
ouvidos de quem não conhece dá a impressão de improviso. (TRINDADE, 2019, p.
136)

Trindade refere-se à dificuldade do reconhecimento do vocabulário do instrumento por


parte do público externo, pois para os outros ogãs, e na nossa análise, a partir da vivência em
terreiros e baterias, todo esse conhecimento ímpar dos alabês e dos repiniques de bossa é fa-
cilmente reconhecido e correspondido pelos outros integrantes dos conjuntos, independente
da quantidade.
Outra informação de Trindade nessa mesma publicação, diz respeito ao tempo neces-
sário na performance dos ogãs, que é bastante parecido com o tempo de atividades dos ritmis-
tas. Observa, primeiramente, que a relação com o tempo cronológico para os ensaios e festi-
vidades é bastante relativo, quando comparado ao das nossas atividades ou demandas da roti-
na social, principalmente pelo fato de ocuparem muitas horas ininterruptas com pequenos
intervalos na execução. Nesse sentido, a questão técnica determinará, juntamente com a resis-
tência física, quais serão os indivíduos mais proficientes, já que além do suposto talento ou
competência, também há uma necessidade de resistência adaptativa maior do que em outros
lugares ou qualquer tipo de atuação artístico musical mais convencional.
Vejamos a descrição de Trindade, sobre as caraterísticas técnicas do atabaque rum. Ao
nosso ver, este atabaque apresenta semelhanças diretas com o repinique, tanto naquilo que se
refere à técnica quanto à função desses instrumentos:
Para tocar o tambor Rum com aquidavis, usa-se somente um aquidavi na mão domi-
nante do instrumentista, ou seja, a mão a qual ele impõe mais destreza sobre o ins-
trumento, buscando agudos, médio e graves extremamente distantes da nota central.
A outra mão deve estar sem nada e soa nos contratempos geralmente de forma grave
ou abafada, e também com tons abertos, deixando soar os harmônicos do atabaque.
(TRINDADE, 2019, p. 138)

Nesse caso, podemos ver como aquilo que é feito no rum – uma mão executando as
sonoridades grave ou abafadas –, é feito da mesma forma no repinique – a mão que não está
com a baqueta diretamente na pele do instrumento executa o tapa e o som aberto. Ou seja,
realiza-se o mesmo efeito em ambos os instrumentos – o atabaque e o repinique.
Trindade também registra as relações e conexões entre algumas levadas de caixa e pa-
drões utilizados no candomblé. Neste sentido, ele relaciona a levada da bateria do GRCSES

  114  
 

Portela com o aguerê de Yansã e a da Mangueira com o aguerê de Odé. Além destes exem-
plos, apontaremos muitos outros no decorrer deste trabalho.
Um descuido comum de diversos autores é referenciar essa herança apenas às baterias
e instrumentos do estado do Rio de Janeiro. A partir de 1968, data de oficialização do carna-
val de São Paulo, quando foi extinto o naipe de sopros dos cordões, São Paulo adotou padrões
rítmicos do Rio. Justamente por isso, ainda atualmente, o Rio é um centro de pesquisa para
diversos mestres, diretores e ritmistas, pois muito do que é construído musicalmente nas bate-
rias e outros setores das agremiações do Rio, servem de modelo para o carnaval paulistano.
Outro ponto observado é a estrutura chamada de trilogia dos tambores e o pensamento
da construção da polirritmia que gera a polifonia (AROM, 1991), presente através da herança
diaspórica. Vale reforçar que são instrumentos rítmicos afinados com intervalos melódicos
entre si, justamente para dar essa sensação melódica em conjunto com os outros que com-
põem os conjuntos percussivos. Nesse sentido, o protagonismo da percussão se diferencia da
utilização mais comercial no Ocidente, já que muitas músicas midiáticas utilizam apenas a
sonoridade grave no primeiro ou no primeiro e terceiro tempos do compasso, complementan-
do agudos no segundo e quarto tempo – como o bumbo e a caixa do padrão do rock ou pop
em geral.
O Babalorixá Vadinho do Gantois, nos mostra também uma outra preocupação com
relação à parte da transformação ocorrida na musicalidade desenvolvida nos terreiros – exces-
so de técnica e virtuosismo. Podemos considerar essa preocupação de Vadinho como legítima
à realidade de uma bateria, pois é muito comum as pessoas mais antigas reclamarem do ex-
cesso proporcionado pelo virtuosismo. Nesse caso, “a técnica estaria sobrando”, sendo de-
monstrada excessivamente de maneira a descaracterizar a sonoridade e inibir sutilezas, mes-
mo em instrumentos que lideram o conjunto. Muitos ritmistas que se preocupam com uma
boa execução do ritmo dentro da linguagem do samba, apresentam a mesma preocupação com
o repinique e outros instrumentos da bateria, ou seja, as mesmas que Vadinho do Gantois –
terreiro de referência do candomblé baiano –, tem com o atabaque rum.
Outro ponto em comum é o cuidado em relação à preservação dos instrumentos e os
locais onde ficam estrategicamente protegidos nos ambientes. No caso dos atabaques, sempre
cobertos por panos, não é permitido o acesso por pessoas senão os alabês responsáveis. No
caso das baterias, os executantes dos repiniques – talvez os instrumentos que mais se asseme-
lham às funções e responsabilidades do Rum –, também ocupam espaços específicos e estra-
tégicos dentro de toda a formação. Apenas os mais proficientes os executarão e poderão reali-
zar as chamadas variações para a comunicação com os outros instrumentistas e passistas dire-
  115  
 

tamente na dança. Ambos são tratados como instrumentos chave, centrais e até tratados nos
preceitos da religião, estando fora ou dentro de ambientes sagrados. O que pode ser conside-
rado profano para o público em geral, como é o caso do carnaval, por exemplo, para outros
(neste caso os ritmistas e suas responsabilidades) é considerado preceito, função hierárquica
adquirida com a experiência e repertório aprendido oralmente nestas tradições. Muito do que
acontece nas baterias de forma processual é bastante próximo e muitas vezes idêntico à meto-
dologia utilizada no aprendizado para o povo de santo.
Sobre o entendimento e o lugar (status) da percussão em ambos contextos, também
notamos similaridades pois, assim como os atabaques, determinados instrumentos da forma-
ção de uma bateria são vistos como algo menos desenvolvido45.
É muito comum quando tocamos instrumentos de ascendência africana que chega-
ram ao Brasil junto com os escravizados, se considere que esta música e estes ins-
trumentos são de menor importância dentro de um combo (como se fala da formação
de uma banda), mesmo que a nossa MPB se encha de ritmos e melodias baseados
nessa influência, como o samba e suas ramificações, ou isso ocorra em outros ritmos
da diáspora africana fora do Brasil, como o Jazz – Norte americano, o Reggae Ja-
maicano e a Salsa Cubana. (TRINDADE, 2019, p. 26)

4.2.5 Prática musical condutora como essência


A amplitude que abrange a musicalidade africana e afro-brasileira como continuação
de uma sistemática intrínseca aos povos em questão, já nos transmite uma relação direta com
qualquer prática necessária às atividades do dia a dia. A música por si só se compreende, nes-
tes grupos, como amálgamas de processos necessários para a própria sobrevivência como
alimentação, preparar a terra para o plantio, colheita de alimentos e lavagem de roupas. Tudo
é feito em conjunto com as atividades musicais na tríade, voz, ritmo e movimento. Sendo as-
sim, observamos total conexão com as práticas dos povos em diáspora e na África como um
todo, em alguns momentos que justificam o conceito e a compreensão da música como neces-
sidade associada a outras práticas.
Segundo Geraldo Filme, entre os negros africanos a prática musical estava imbrica-
da no cotidiano: “Tudo do negro é através do canto. Ele reza cantando, nos candom-
blés, nos terreiros.” Ele também trabalha cantando: alguns cantos de trabalho africa-
nos foram reproduzidos em seu álbum Canto dos Escravos, em parceria com tia Do-
ca e Clementina. Ainda segundo ele, toda a democracia que caracterizou bairros co-
mo o Bexiga e a Barra Funda na primeira metade do século XX, democracia transfe-
rida do campo para a cidade, existia devido à prática musical, único interesse co-
mum da heterogeneidade cultural destes bairros. (PRADO, 2013, p. 10)

Um desses momentos de reconhecimento e associação direta com esta tríade musical


foi nosso próprio processo iniciático (setembro de 2019), realizado durante os 10 dias do
chamado roncó, que ocorre no quarto sagrado onde ficam as pessoas nesses processos que são

                                                                                                               
45
Para um melhor entendimento sobre esta questão, sugerimos a leitura do trabalho de Stasi, 1998.

  116  
 

intitulados de feitura de cabeça ao orixá ou raspagem para o santo, pelo motivo de ocorrer
em um dos ritos realizados. Ou seja, para realizar este trabalho, sentimos a necessidade do
aprendizado na religião e na própria formação no candomblé. Sendo assim, nesta iniciação
fizemos praticamente tudo o que corresponde a esta tríade como a) dançar, tentando aprender
os passos necessários para a dança dentro de alguns toques e b) cantar, ouvindo os toques para
saber alguns roteiros dentro dos ritos (nesse período ainda não era ainda autorizado tocar os
atabaques ou gãs). Esse foi um momento de curiosidade extrema, na tentativa de entender
qual a razão de não ser permitido tocar atabaques no período da iniciação, mesmo para os
cargos de ogã. Entendíamos isso como um certo desperdício, com base em nossa ansiedade
em começar a desempenhar um papel entendido como principal em uma Casa de Santo. De
fato, com o passar do tempo, percebemos que esta não é uma função primordial de um ogã,
pois há muitas outras entendidas como necessárias ao coletivo, como é o caso da guarda e
proteção dos yawós, zeladores e de toda a segurança da Casa.
O fato de não poder tocar instrumentos não diminui a compreensão da prática musical
como essência, pois em muitas outras ocasiões, para não dizer em todas, ela acontece. Para
todas as atividades que fizemos no roncó tínhamos que cantar (antes, durante e depois de de-
terminados momentos), uma união perfeita entre o rito e rotina diária. Apreendemos diversas
canções na língua Bantu, que é fundamento dentro do candomblé da nação Angola, e também
diversas rezas que compõem o chamado Ingorossi (N’gorossi), a maior reza Bantu aprendida
pelos filhos de santo desta nação. Tivemos como obrigatoriedade decorá-la até o último dia da
nossa saída, sem a liberação para a escrita ou gravação em áudio. O que fizemos foi estudar o
Ingorossi, em muitos momentos, com os irmãos do chamado barco de iniciação, mesmo fa-
zendo esta reza com nosso pai criador e mãe criadeira – terminologias utilizadas em referên-
cia aos nossos pais de iniciação, estabelecidos pelo zelador. Antes de tomar banho, também
havia uma cantiga com o badalar do adjá – instrumento utilizado para invocar os orixás, que
não é utilizado por ogãs, mas por ekédis, yawós e essencialmente pelos zeladores. É um ins-
trumento essencial para todas as práticas em uma roça (outro nome para uma Casa de can-
domblé ou terreiro).
Outro momento de extrema musicalidade diaspórica acontecia antes das refeições e no
final, quando todos os irmãos de barco – indivíduos em processos iniciáticos no roncó –, fina-
lizavam as suas refeições. Essa cantiga é extremamente ritmada e “coreografada”, havendo
muita movimentação dos braços dos iniciados que seguram o prato de comida, o balançam
lateralmente, o abaixam e levantam constantemente durante a execução da cantiga. Esta ação
foi observada como fortemente conectada com o que chamamos tríade interdisciplinar: canto,

  117  
 

ritmo e movimento. Depois do processo iniciático continuamos praticando e compreendendo


a musicalidade e cultura africanas nas atividades da roça em novos oros – ritos específicos
para os orixás –, normalmente internos e sem abertura para participação de público externo
nos xirês, despachos diversos de folhas, animais e elementos utilizados nas alquimias dentro
dos preceitos religiosos (moedas, alimentos, chifres, cascos).
Observamos que a música é utilizada como determinante em momentos pontuais den-
tro de todo o roteiro de qualquer atividade. Aprendemos que, até para a incorporação de um
yawó, existem cantigas específicas que são utilizadas para invocar os orixás, mas que também
servem como sinais para os indivíduos preparados se anteciparem à incorporação. Então, des-
sa maneira, a música funciona como código, sendo que cada uma dessas ações inicia-se so-
mente a partir do que é tocado, cantado ou dançado, e na maioria das vezes no encontro dos
elementos da tríade de forma simultânea.
Em uma Escola de samba, tudo isso também é compreendido como necessário para
suas diversas atividades operacionais, como varrer uma quadra ou o barracão onde são con-
feccionadas as fantasias e alegorias ou na manutenção de instrumentos e em intervalos de dias
de festas. Nesses dias, também observa-se uma constante movimentação lateral na quadra de
maneira interna e externa. Nos intervalos ou nas finalizações de determinados eventos, para
não dizer todos, formam-se pequenos grupos que executam instrumentos diversos, cantam e
dançam, uma espécie de celebração mais íntima e pontual nesses espaços específicos.
Outro momento em que a música é condutora de ações, é quando a bateria está monta-
da (formada), e se movimenta para o esquenta – momento de aquecimento pré-desfile no qual
diversos sambas e hinos alusivos são cantados. Nesse deslocamento, os ritmistas andam enfi-
leirados, percutindo seus instrumentos de outras maneiras, enquanto cantam diversos sambas,
pagodes e até um funk atualmente. É um momento importante de concentração e celebração,
pois na sequência virá o esquenta e, posteriormente, o desfile, um momento especial para as
comunidades carnavalescas.
Vemos então, a necessidade de se compreender a música como um todo, e acrescen-
tamos a importância da identificação do próprio ritmo como fenômeno multidimensional. A
compreensão deste conceito engloba questões amplas, sociais e musicais. O ritmo, em seu
amplo desenvolvimento nas comunidades aqui pesquisadas, representa identidade cultural,
territorial e social. Nesse sentido, ele é utilizado para representar continuações de saberes ori-
undos da África. A chamada seção rítmica é central nessas musicalidades, e toda a sua abran-
gência multidimensional representa a própria importância de sua utilização. Em uma Escola

  118  
 

de samba, por exemplo, nada se inicia sem a instituição de um conjunto rítmico e tudo será
conduzido por esse conjunto, do começo ao fim das atividades, assim como no desfile.
Estabelece-se, portanto, todo o sentido da reconexão com um passado remoto nos có-
digos internos identitários, como é o caso dos timelines e das levadas de caixa, repiniques e
também fortemente das levadas e variações dos surdos de terceira. Portanto, a música possui
um alcance em diversos indivíduos, tanto naqueles que a produzem como em toda a comuni-
dade. A prática musical é vista como elemento impossível de ser desvinculado dessas institui-
ções – os terreiros e as Escolas de samba. É ela que irá representar sentido para as ações artís-
ticas ou do cotidiano, não havendo a possibilidade da existência de nenhum desses locais sem
a prática musical como norteadora de processos e ações.
Apesar de sabermos de possíveis inovações, como terreiros em locais urbanizados ou
em prédios, e de transformações que envolvem mudanças que fogem à regra, como a não uti-
lização da tríade de atabaques – instrumentos identitários no Candomblé –, julgamos que essa
ausência acaba não dando conta de representar a estrutura de uma Casa de santo dentro da
tradição africana. Estes instrumentos fazem parte dos fundamentos, assim como as baterias
para suas Escolas. As musicalidades acontecem de diversas formas e, portanto, mesmo quem
não toca, também as realizam em respostas de coro nas cantigas, com palmas batidas coleti-
vamente na pulsação, ou nos timelines de determinados toques, como o agogô no Cabula e no
Ijexá. Além dos aspectos essencialmente musicais, reforçamos que tudo se faz cantando, dan-
çando e percutindo, seja o próprio corpo, com instrumentos, ou em qualquer material, como é
o caso de pratos, garrafas ou talheres.
4.2.6 Mito de origem nas práticas e filosofia de vida
A relação mítica, realidade nos terreiros pela fundamentação cultural ancestral, trans-
passa locais e é observada claramente em diversos setores nas Escolas de samba, e no Carna-
val como um todo. O mito, como origem dos sentidos para o cumprimento das atividades in-
trínsecas nesses locais, se justifica pela crença em significados culturais que relacionam os
indivíduos com a natureza e o universo como um todo. A possibilidade na crença de uma tra-
dição idealizada e reproduzida, representa um dos significados do mito de origem. Observa-
mos que o candomblé e as escolas de samba perpetuam isso como sentido das próprias práti-
cas, acreditando em algo originário e necessário. Isso conectaria e justificaria a própria atua-
ção e participação dos indivíduos dentro destes territórios. O próprio entendimento e práticas
cíclicas, repetitivas e ritualísticas, inclusive dentro da construção musical percussiva, também
representa tal relação. Quando não se dá conta de explicar ou justificar determinadas ações,
como o comprometimento ou a entrega dessas pessoas em suas obrigações, as entendemos

  119  
 

dentro do próprio Mito. Algumas ações podem não ter uma justificativa clara para uma pessoa
externa, porém para a pessoa evolvida na mitologia algo lhe toca, levando-a a tal entrega.
Queiroz (1992), referindo-se ao Mito, diz:
O Carnaval brasileiro apresenta algo a mais; encerra também a imagem de uma so-
ciedade alternativa e desencadeia a ação no sentido de colocá-lo no lugar daquela
que existe. Não haveria então um Mito carnavalesco, do qual a festa seria o rito?
(QUEIROZ, 1992, p. 181-182)

O autor analisa conceitos amplos sobre o carnaval, bem como a sua relação dentro do
sentido espiritual do rito, apesar de determinadas ambiguidades. A ambiguidade se dá pela
compreensão paradoxal da sociedade sobre o que é o carnaval em sua totalidade, fato que
contribui para a falta de aceitação da inter-relação entre a religiosidade e a festa, por exemplo.
O ritual do desfile representa a mitologia dos orixás de maneira constante. Nesse aspecto,
apresenta-se uma transferência do sagrado para o profano, saindo do terreiro para a sociedade
de maneira clara, sem os segredos do contexto apenas religioso. Para Queiroz, “a narrativa
carnavalesca brasileira toma um aspecto declarado de mito, expressando-se todos os anos, no
momento certo e marcado, por ritos específicos” (QUEIROZ, 1992, p. 183). O mito também,
segundo este autor, abrange a concepção do carnaval como evento ritualístico dentro do pró-
prio mito.
O conceito de mito pode extrapolar o aspecto religioso, pois compreende diversos sig-
nificados. Inclusive, no próprio candomblé, muitas das atuações se desprendem da religião,
exatamente por serem compreendidas dentro de uma rede de significados que ultrapassam a
religiosidade. As necessidades são outras e amplas, aquelas que conectam a pessoa com o
universo como um todo, no sentido energético e pela troca e somatória de forças da própria
natureza. O sentido de mito é comunitário, é onde a coletividade se encontra para determinar
novos momentos, novos caminhos através da performance. Apesar de também oferecer um
sentido de utopia, ele é a pura realidade de acordo com as práticas, muitas inexplicáveis e
injustificadas para algumas pessoas que não as entendem como essenciais, mas como escolhas
pessoais com conexões vistas como abstratas. Neste sentido, “o mito (...) é uma narrativa que
explica a realidade, a partir de dados de experiência” (QUEIROZ, 1992, p. 184).
Os ritos justificam o sentido do mito. Dessa forma, muito do que se produz em um ter-
reiro, nas diversas modalidades dentro do ritual, bem como nas práticas dos sambistas, repre-
senta sentido para uma busca constante de uma vida melhor, muitas vezes diferente da con-
vencional.
Sodré (1979), nos apresenta o samba conectado a um todo dentro da religiosidade de
matriz afro e, portanto, também tendo o mito como local de origem. A representatividade dos

  120  
 

orixás para as Escolas de samba é um ponto central desta conexão em muitos aspectos e seto-
res estruturais destas instituições.
Sodré (1979) estabelece uma relação territorial do mito, na qual o morro é um local de
reforço da identidade cultural negra, assim como a favela atualmente. O termo seria utilizado
para dar força às práticas culturais negras, pois é lá que elas acontecem, distantes da civiliza-
ção ou da parte mais urbanizada das cidades, chamada por ele de planície. O morro também
remete a um local de recolhimento e proteção da malandragem, algo misterioso e de reconhe-
cimento somente das pessoas que lá habitam. Um território cheio de códigos e que deve ser
visto como local de pouco acesso para outras pessoas, as que não fariam parte deste complexo
cultural negro. Sabemos que isso mudou muito hoje em dia, mas de certa forma a compreen-
são sobre o morro, ou a favela, ainda funciona assim e apresenta-se no imaginário de boa par-
te da população. O mesmo acontece com as determinações sociais sofridas ou associadas às
Escolas de samba e os terreiros, exatamente por estabelecerem seus códigos e por serem lo-
cais de resistência, assim como por muitos outros motivos já apresentados no início deste ca-
pítulo.
O morro, no contraste com a planície, significa um espaço mítico de liberdade. No
samba tradicional carioca, a frequente louvação (...) de aspectos da vida no morro
pode ser entendida como a referência a um dispositivo simbólico capaz de minar o
sistema de valor da cultura dominante. (SODRÉ, 1979, p. 46)

O autor afirma ainda que “o morro (...) é a utopia do samba (...,) a instauração filosó-
fica de uma ordem alternativa, onde se contestam os termos vigentes no real histórico” (SO-
DRÉ, 1979, p. 46). Da mesma maneira que Sodré associa o morro e o samba, nós, de uma
certa forma, atribuímos o conceito e sentido dos terreiros e das Escolas de samba como algo
fora da compreensão concreta social, pois as relações com os significados reducionistas midi-
áticos ou estratégicos, além do preconceito religioso e cultural, determinam a inferiorização
destes locais, a partir da subestimação do desconhecido, normalmente associado com algo
menor.
Existem diversas associações com a mitologia dos orixás e o samba, inclusive nos se-
tores das Escolas de samba. “Exu é o orixá que os pastores ou sacerdotes cristãos, ignorando o
sistema simbólico nagô, aproximam da concepção ocidental de demônio ou diabo” (SODRÉ,
1979, p. 48). O autor cita esta deturpação cultural também na música norte americana, especi-
ficamente no jazz. Segundo ele, desde a emancipação dos escravos em 1863, a chamada Devil
Music praticada nos cultos das igrejas negras, no sul dos EUA, teria sido uma derivação do
blues, associada ao diabo. No Samba, a figura de Exu, segundo Sodré, seria representada pela
síncopa, pela concepção da falta do tempo forte, que seria reproduzida pelo próprio corpo dos

  121  
 

sambistas. Os trejeitos na dança ou movimentação de algum passista, poderiam ser associados


ao movimento de Exu, ao inesperado, inconstante, à surpresa e ao susto. Apesar de isso pare-
cer um certo exagero, como também já dissemos, há, em muitos aspectos, forte relação mítica
do sambista carioca com o orixá Exu, inclusive na vestimenta e nos trejeitos, atitudes, estraté-
gias e funções.
Por outro lado, há pessoas que relacionam questões reais que ultrapassam o que pode
ser considerado mito, de forma que o mito possa ser compreendido como realidade. Segundo
Flávio Luís Ferreira de Souza, que por oito anos cobriu como jornalista os desfiles das Esco-
las de samba do Rio de Janeiro, observando diversas baterias em performance, esta conexão é
um fato de difícil separação, não por escolha própria e envolvimento, mas por razões históri-
cas:
Em 2010 a Escola de samba Mocidade Alegre, fez um carro com esculturas de Exus
ao redor e apenas teve vestimenta da cintura para cima. Houve desrespeito com to-
das a construção do Orixá. Do nada pegou fogo no carro no meio do desfile e aca-
bou com a Escola. Muitos outros carros quebraram na avenida com enredos mal
construídos, onde os preceitos não foram feitos da forma correta, apenas por interes-
ses. (SOUZA, Flávio. 10/09/2019. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)

Para Flávio, assim como muitos outros entrevistados, o descuido com os preceitos e a
utilização comercial da tradição afro pelas escolas de samba é um problema atual que dificulta
o entendimento de todos em relação à própria cultura, e também provoca alguns problemas já
observados em dias de desfile, como temporais, carros quebrados ou pegando fogo.
Toda Escola tem o seu orixá e os toques da bateria são em homenagem a eles. Eles
representam as agremiações ao mesmo tempo que dão proteção. Outra coisa, você
não lembra dos casos aqui em São Paulo de dias de tempestade no desfile de Esco-
las. O que acontece é que nem sempre é feito da forma correta. Os cuidados não
acontecem e aí já sabe, né. (SILVA, Dennys. 15/03/2019. Entrevista concedida a
Rafael Y Castro.)

Muitas questões que têm como base os mesmos fundamentos e preceitos, podem em
alguns momentos representar determinadas contradições. De fato, ficaria muito difícil deter-
minar quais seriam os motivos para acontecerem determinados acidentes ou descuidos com a
Escola. Com certeza existem razões concretas para determinados resultados com as Escolas
em dia de desfile, porém o que é considerado por parte de uma população, e faz sentido para
ela, também há de ser respeitado como uma sabedoria, mesmo que imaginária ou popular.
Nem sempre é o caso de tentar avaliar apenas a partir de um ponto de vista racionalista, frio e
calculista. Pierre Verger nos mostrou alguns caminhos com estudos da religiosidade, que se-
gundo ele não deveriam ser julgados com esse ponto de vista racional.
Por outro lado existe uma falta de cuidado com os preceitos, algo já relatado por al-
guns entrevistados, como é o caso do ogã alabê da Casa de Angola Kyloatala:

  122  
 

Depois que a mãe Obá faleceu desandou, nunca mais conseguiram se reerguer. Al-
guma coisa foi feita de errada. Os caras vão em outras casas mas não fazem o certo.
Querem mexer com magia e é proibido (MENEZES, Marcos - Tata Mukambila.
27/10/2019. Casa Kyloatala. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.).

Segundo Tata Mukambila (Marcos Menezes), determinada Escola de samba do Grupo


Especial do carnaval paulistano no ano de 2019 sofre, há tempos, com alguns descuidos de
seus administradores (eticamente não citaremos nomes aqui, mas discorreremos sobre algu-
mas reflexões que fazem parte do imaginário do povo de santo e das Escolas de samba quan-
do misturam religião com Carnaval). Além da incompetência em procedimentos de gestão
administrativa e de pessoas, existem questões que colaboram com algumas posições e situa-
ções nas quais algumas agremiações se encontram. Por sinal, normalmente, isso se passa nas
Escolas mais antigas e tradicionais, as que mais teriam a relação sine qua non com os terrei-
ros.
O que concluímos de fato, ao investigar este objeto central, é que essas situações são
significativas para muitos dos envolvidos, o que por si só já representaria algo relativo a essa
conexão. Não nos cabe analisar se isso de fato é o motivo de determinadas situações, ou seja,
quando os preceitos não são realizados da forma correta haverá punição. Para nós, o impor-
tante é observar o quanto isso afeta, ou se torna uma verdade, para os envolvidos.
4.3 Fundamentos
Como dissemos, existe uma complexa rede de conexões estabelecida entre os terreiros
e as Escolas de samba, independente do fato de isso ser, ou não, evidente para a sociedade em
geral. Vale ressaltar que, com base na ética necessária a este tipo de pesquisa, tivemos per-
missão (limitada, segundo determinados princípios) de ambos os locais investigados, visto
que, além de pesquisadores, somos integrantes destas comunidades e as representamos dentro
dos chamados preceitos necessários. Ou seja, trabalhamos nossos dados de acordo com o ní-
vel de profundidade que temos como participantes em ambos os contextos e seguindo deter-
minados limites éticos.
A dissertação de Lucas Bártolo Martins de Oliveira, intitulada “O enredo de Cosme e
Damião no Carnaval Carioca” (2018), trata de semelhanças diversas entre o Candomblé e as
Escolas de samba. Abaixo temos alguns exemplos mais centrais do trabalho deste autor que
seguem outra linha – alegorias, simbologias e comportamentos em comum e circulares do
povo de santo. Segundo Oliveira (2018), o comportamento dos filhos de santo, e a disciplina
na formação e metodologia, são os mesmos utilizados nos terreiros, e isso é transpassado para
os barracões (mesmo nome dos locais de rituais nos terreiros), onde as alegorias e fantasias
são confeccionadas:

  123  
 

Do barracão de candomblé, os filhos traziam a obediência ao tempo e às prescri-


ções na execução das tarefas. Além disso, levava-se para o barracão de alegorias o
saber em realizar com perfeição as tarefas exaustivas e minuciosas, e de desempe-
nhar com dedicação e atenção obrigações que nem sempre são de seu agrado. Por
essa perspectiva, a aproximação entre o barracão de candomblé e o de Escola de
samba não se dá apenas no nome em comum, mas também pela forma de organi-
zação, da transmissão de saberes, entre outras semelhanças que fogem do alcance
desta dissertação. (OLIVEIRA, 2018, p. 74)

Outro apontamento de Oliveira (2018), é sobre a utilização de símbolos em comum,


que seriam apropriações das Escolas daquilo que é realizado nos terreiros:
O candomblé se fazia presente e, mais do que isso, se materializava no barracão de
alegorias quando os filhos de santo encomendavam ferramentas de orixás e escul-
turas de entidades aos profissionais do barracão, em paralelo à confecção do car-
naval, atividades que nem sempre chegavam ao conhecimento do carnavalesco.
(OLIVEIRA, 2018, p. 68)

Abaixo, seguem-se mais especificidades e informações relevantes sobre a circularida-


de, quando o elemento simbólico retorna para o terreiro, como dissemos sobre um tipo de
batismo de instrumentos da bateria que são levados para ser consagrados por zeladores de
santo nos terreiros, e posteriormente retornam com maiores controles de todo o conjunto per-
cussivo, alcançando os objetivos desejados. Isso mostra a conexão com o sagrado, e indepen-
dente das crenças de todos os participantes envolvidos, é algo que está sempre permeando
estas conexões e simultaneidades:
Notei, por exemplo, uma escultura de Pomba Gira ainda em etapas primárias da
confecção a partir do isopor. Também estavam sendo confeccionados uma adaga e
um adê (espécie de coroa) de Oxum. Os itens seriam levados pelo decorador para
o seu terreiro de candomblé (OLIVEIRA, 2018, p. 69).

O chamado “fundamento” que é feito em cada local, seja terreiro ou quadra, é uma
forma de zelar, pedir ajuda aos orixás, reverenciando as entidades para que tudo ocorra da
melhor forma nesses locais. A conexão com o orum também é feita a partir destes fundamen-
tos, como se alguém de um outro local sagrado estivesse olhando para todos os participantes
destes ambientes. É uma crença que reforça o envolvimento deste público com a ancestralida-
de e identidade herdada da diáspora. Nas quadras de algumas Escolas de samba, normalmen-
te as mais tradicionais como a Nenê de Vila Matilde, o fundamento – local separado no centro
dos terreiros, nos cantos dos barracões, nas entradas das Casas e no telhado, o que também
ocorre nas quadras das Escolas – está sendo feito de forma que foge aos preceitos da religião
e tradição, uma espécie de descuido com toda a questão ritualística. Alguns procedimentos
são deixados de lado dentro do roteiro tradicional nos terreiros, e por isso a ideia inicial não é
mantida em todos os locais onde há essa transposição – dos terreiros para as Escolas de sam-
ba.

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Com relação aos símbolos utilizados em ambos os contextos aqui analisados, citamos:
a) velas diversas, b) quartinhas (vasilha de cerâmica utilizada para água oferecida para os
Orixás), c) alguidar (potes de cerâmica utilizado para oferendas, normalmente alimentos para
os Orixás), d) imagens diversas de santos, mina46 (axé assentado ou plantado), e) utilização de
charutos por ritmistas antes de entrar na avenida em dias de desfile e ensaios técnicos, guias
espirituais, f) altares, g) a recorrência ao jogo de búzios por parte de diretores das Escolas, h)
contratação de zeladores (pais de santo) para preparar os ambientes das quadras das Escolas
de samba, i) rezas e semelhanças entre os alusivos/hinos e o ritual religioso, j) escolha de lo-
cais específicos para os axés (canto e alto das quadras, minas centrais, salas sagradas, k) ba-
nhos espirituais nas casas de santo e antes de momentos de ensaios e apresentações com as
baterias. Além disso, fundamentos que são carregados nos terreiros e nas Escolas de samba, l)
branco como cor de roupas, m) o traje e trejeitos do orixá Exú e do sambista malandro – parte
do imaginário e da mitologia afro-brasileira e fundamento, n) cores dos pavilhões e bandeiras
levadas por porta-bandeiras, o) escolha de temas afro corriqueiramente para os enredos e nas
letras dos sambas, p) ala das baianas, q) reflexo e sentidos de práticas coletivas, r) ebós pré-
rituais (desfiles, ensaios técnico), s) utilização do fogo como elemento espiritual (foguetes
antes do início de ensaios técnico e desfiles e t) reverência e pedido de permissão aos Orixás
antes de diversas atividades.
Abaixo, detalhamos um pouco melhor alguns desses elementos:

- A mina
Após algumas entrevistas em busca de informações sobre quais elementos em comum
justificariam a conexão aqui investigada, ficamos surpresos com a descoberta do elemento
que apresentaremos a seguir. De fato, estamos tratando de um elemento central que simboliza
uma extensão dos próprios terreiros nas Escolas de samba, nesse caso mais especificamente
dos barracões (abaça) na nação Angola, para as quadras onde acontecem os rituais carnava-
lescos. Chamaremos assim porque o que iremos apresentar transforma e fundamenta, no sen-
tido religioso (sagrado), a realocação do terreiro para as quadras, normalmente naquelas Esco-
las mais tradicionais. Em São Paulo colhemos informações mais especificas no GRCSES Ne-
nê de Vila Matilde, Vai-Vai e Camisa Verde e Branco, o que não quer dizer que esse encontro
aconteça somente nestes locais.

                                                                                                               
46
A mina é um buraco realizado no centro dos locais com os chamados axés plantados, estes são formados por
elementos com o objetivo de realizar uma alquimia entre eles. Estes, tornam-se símbolos de proteção de todo o
espaço delimitado como terreiro e em algumas quadras de escola de samba.

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A mina representa, para o povo de santo – no caso aqui também para os sambistas, se
é que é possível separar um do outro –, todo o resguardo no sentido de proteção para o local
onde ela está estabelecida, o centro dos barracões. É uma espécie de buraco central onde fi-
cam depositados elementos simbólicos da conexão destes indivíduos com o sagrado, com a
energia protetora universal e com a própria natureza como um todo. Estes elementos ficam
dentro dela e não são expostos para o público externo, podendo ser colocados ou retirados
somente para os ritos por pessoas iniciadas na religião, nesse caso o ogã ashogum, que possui
essa e outras responsabilidades após o zelador. Somente eles podem mexer com tais elemen-
tos.
A mina possui função protetora no sentido cíclico, onde a energia de dentro promovi-
da pela alquimia dos elementos se conecta com a energia do coletivo, das pessoas que estão
em volta dela pelo lado de fora. É entendido, assim como o sentido universal na conexão com
a natureza dos africanos, que essa energia se renove por via de mão dupla – de dentro para
fora e de fora para dentro. Obtivemos permissão para falar neste trabalho, sobre algumas
questões dentro da religiosidade, porém não todos os detalhes – como quais elementos seriam
detentores deste poder de proteção. Dentro da tradição do candomblé, caso estes segredos
sejam expostos a não iniciados, por exemplo, pode-se afetar a própria proteção e, dessa forma,
interferir negativamente no desenvolvimento das pessoas que estão sob esses cuidados.
Não nos cabe julgar, apesar de já comentarmos em parte sobre essa problemática – a
da abertura dos segredos como expansão do próprio reconhecimento destas práticas cultural-
mente. Entendemos também que a não abertura dos segredos não implica no alcance desta
pesquisa, pois são muitos os pontos necessários que, de certa forma, dão conta do trabalho
científico. Segundo Tata Mukambila (Marcos Menezes) – ogã ashogum da Casa Kyloatala –,
a mina é um assentamento fundamental dentro de uma Casa de Candomblé, o equilíbrio entre
o céu e a terra:
Muitos dizem ser a base da nossa força um filtro de energia dentro do nosso abaça,
tem muitos fundamentos plantados. O fluxo de energia é infinito. Não é qualquer um
que pode mexer. Muitos preceitos precisam ser feitos antes desse assentamento –
resguardo de 3 ou 7 dias de quem irá mexer (zelador ou ashogum), banhos de ervas
(amassi), ou ebós. É muito sério, essa função compromete o destino de todos da Ca-
sa. Os elementos utilizados, posso te falar mas não é permitido que seja escrito.
(MENEZES, Marcos - Tata Mukambila. 10/12/2019. Entrevista concedida a Rafael
Y Castro.)

Para Flávio Luís Ferreira de Souza (Templo Espírita Maria Quitéria), sambista e um-
bandista, as quadras das Escolas de samba são realocações dos próprios terreiros. Além das
pessoas que em geral as frequentam, muitos filhos de santo resguardam estes locais, sendo

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que a mina é um elemento em comum observado e relatado por pessoas responsáveis por es-
tes cuidados:
Há muito tempo atrás me falaram de uma mina na Nenê, fiquei sabendo que foi pre-
parado por um pai de santo na época e que o objetivo da existência dela na quadra
era o mesmo dos terreiros, a proteção necessária para as pessoas do lugar e para um
bom andamento das atividades. Isso é muito comum, desde o início do Samba essas
relações são parte do imaginário e de toda a realidade dos sambistas e filhos de san-
to. É só você pensar na bateria e nas baianas por exemplo, mas tem muitas outras
coisas também. (SOUZA, Flávio Luís Ferreira de. 05/04/2019. Projeto Guri, São
Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)

Como vimos, a mina faz parte dos chamados fundamentos do terreiro e da Escola de
samba. Mesmo que a totalidade dos participantes não conheça detalhes, e muitas vezes nem a
própria existência dela, ela representa esse sentido na conexão com o sagrado. Nem mesmo
nos próprios terreiros a totalidade dos participantes tem a consciência ou conhecimento de
detalhes sobre a importância da mina, mas o que nos chamou a atenção é o quanto ela é repre-
sentativa para as pessoas que sustentam esta conexão, pessoas responsáveis pelo resguardo de
todos espiritualmente e, essencialmente, pela manutenção de uma tradição que prevalece nes-
tes locais.
O chamado axé – termo utilizado pelo povo de santo expandido para outros locais e
utilizado dentro da mina –, designa uma espécie de força ou poder pessoal na relação com o
sagrado e com todas as pessoas. Apesar de ser utilizado exageradamente e também ser alvo de
preconceito, o sentido essencial do termo se relaciona com a cultura mantida pela própria re-
ligiosidade afro-brasileira.
Percebendo que alguns elementos como a mina estabelecem sentido para parte das
pessoas que frequentam esses locais, podendo ser refletidos (mesmo que de maneira inconsci-
ente) dentro de todo o ritual, essa seria mais uma prova da extensão do rito ou da reconexão
de um local com o outro. Muito do que acontece em uma Escola de samba, como o próprio
desfile, reproduz aquilo que é desenvolvido nos terreiros: metodologias, relação com o sagra-
do, processos artísticos, relações e reproduções de referências musicais afro diaspóricas, entre
outros.
Partindo do pressuposto de que a mina existente em uma quadra de Escola de samba
esteja ali em função de uma prática religiosa que transborda para estes locais, ela seria o sen-
tido essencial do entendimento do barracão da Escola como o próprio barracão (abaça), e por
isso haveria a necessidade da existência dela no centro de uma quadra como fundamento deste
local. O axé contido nela pode determinar o andamento das ações e consequentemente e reco-
nexão com o sagrado dentro ou fora dos terreiros:

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A noção de axé, possui em si certo caráter coletivo que integra coisas, pessoas e di-
vindades num mesmo plano, estabelecendo relações de propriedade que não são ex-
clusivas a um indivíduo. Como recurso analítico parto da separação de três eixos
principais – o espiritual, o material e o jurídico – para demonstrar como a fundação
do espaço sagrado do terreiro opera em níveis que se interconectam e participam de
uma mesma realidade. Nesse sentido, fundar um axé é dar início ao processo que
envolve a construção de uma casa de santo em sua totalidade, o que também não
deixa de evidenciar a atuação das divindades e espíritos na política dos seres huma-
nos. (EVANGELISTA, 2015, p. 2)
- Rezas e hinos
Segundo o dicionário etimológico e informal, o significado dos termos orar, rezar e re-
citar, são os seguintes:
O latim "orare" tinha o sentido de pronunciar uma fórmula ritual, uma súplica, um
discurso, pedir, rogar, pleitear, advogar. Estas duas últimas acepções estão presentes
nos cognatos "oração" (lat. "oratione") e orador, da linguagem jurídica. Mas o verbo,
por influência do latim da Igreja, especializou-se no sentido de suplicar a Deus, rezar.
"Recitare", ler em vez alta, recitar, ler, além da forma erudita "recitar", com o mesmo
sentido, deu-nos a forma popular "rezar", cujo sentido se especializou como recitar ou
ler orações. (...) Rezar vem do latim recitare, que também deu em portu-
guês recitar. Significa: adoração, louvor, súplica, rogo, prece, pedido ou petição,interc
essão, agradecimento, expiação, bênção, presença. Rezar é uma forma de obter para si
mesmo e/ou para os outros graças, bens e bênçãos de Deus e a salvação da alma. (Di-
cionário etimológico online)47 .

Já no site do Centro Apologético Cristão de Pesquisas, além dos significados em co-


mum citados acima, que se assemelham ao que estes termos representam socialmente pelos
discursos e entendimentos gerais, nos chamou a atenção a origem do termo “orar” que seria
uma derivação do latim “oro” – o mesmo utilizado em ritos de candomblé de extrema impor-
tância em reverência aos orixás e fundamentais nos chamados processos iniciáticos dos novos
filhos de santo:
Se estudarmos a origem latina (rezar em latim é “recito”) da palavra “rezar” vamos
descobrir que ela traz um significado de “recitar”, “ler em voz alta”, “apresentar
lendo”, “citar”, “pronunciar uma fórmula”, “repetir”, “dizer de cor”. Este estudo da
raiz e da significação do termo “rezar” nos mostra que tal palavra se aplica melhor
às preces prontas, de autoria de terceiros, que aprendemos e repetimos. Já o verbo
“orar” tem suas raízes no termo latino “oro”, que significa “dizer”, “falar”, de onde
também se deriva o termo “oral”, ou seja, “dito”, “falado”. Este entendimento se en-
caixa melhor com as preces na forma de uma fala, uma conversa. Orar é abrir o co-
ração a Deus, como a um amigo. (Centro Apologético Cristão de Pesquisas48)

Pensando na reza como um momento crucial e específico dentro de um ritual, encon-


tramos algumas semelhanças entre o que é praticado no candomblé e em alguns momentos
nas Escolas de samba. No nosso período iniciático no candomblé, todos os dias às seis horas
da manhã e da tarde tínhamos que rezar o Ingorossi – conjunto de rezas da cultura Bantu, pra-
ticados nessa mesma língua. Essa reza é bastante similar às cantigas da religião, por possuir
características de divisão rítmica significativa dentro da cultura africana, utilização do corpo
                                                                                                               
47
Disponível em:  https://www.dicionarioetimologico.com.br/orar-recitar-e-rezar/.  
48
Disponível em: http://www.cacp.org.br/qual-e-a-diferenca-entre-orar-e-rezar/.

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como percussão e movimentação muito ampla. Possui duração de 55 minutos por período.
Esse momento foi bastante necessário para compreender como a prática religiosa afro-
brasileira é ainda uma reconexão com o que foi trazido na diáspora e toda a sua relação com a
ancestralidade e especificidades culturais africanas. Nos fez muito sentido participar deste
aprendizado para compreender a profundidade destas inter-relações culturais entre Brasil e
África.
A reza ou oração, como sabemos, é algo comum em qualquer prática religiosa. Apesar
disso, nos atentamos a algumas particularidades que evidenciam a função da reza como ele-
mento inicial pré-ritual: a) no começo de ensaios e festas nas quadras, b) nos ensaios técnicos
e c) no chamado esquenta antes do desfile e dos ensaios técnicos. O motivo principal é o fato
de ser realizada por todos os sambistas. Não há a necessidade de que se tenha projeção vocal,
mas sim que se saiba a letra dos hinos alusivos, o que se aproxima muito da voz falada da
reza. Esse momento é o de celebração e concentração para que se tenha foco durante todo o
desfile. O intérprete principal de samba enredo (antigo puxador), realiza uma série de comu-
nicados solicitando concentração, determinação e entrega para que o objetivo central do desfi-
le seja alcançado: o título do campeonato daquele ano. É um momento bastante especial e a
partir dele a emoção, a conexão e a ancestralidade são colocadas na pista.
Tudo aquilo que foi preparado durante o ano passará em minutos na avenida e depen-
derá da atuação nos itens descritos acima, de cada um dos integrantes da Escola. A força do
trabalho coletivo é despertada pelo intérprete que dá diversos recados no microfone com alto
volume de som, possibilitado pelo sistema disponível no sambódromo, ao mesmo tempo que
canta hinos alusivos à Escola e também sambas de anos anteriores. As letras dessas composi-
ções são sentidas e atingem de forma emocional os componentes, entre eles a bateria como
um todo.
Muitas manifestações dos ritmistas foram observadas e também realizadas por nós, pe-
lo fato de participarmos ativamente desde 1995 destes momentos, entendidos como centrais
para a profundidade do que queremos relatar. Somente passando pelas mesmas experiências
dos investigados conseguimos sentir tamanha significação de certos comportamentos.
Nesse momento, muitos ritmistas se abraçam (e isso também é solicitado pelo intér-
prete) e choram pela emoção derivada dos hinos alusivos e outros. Esse sentido da reprodução
de uma emoção coletiva também nos parece muito semelhante ao momento de uma reza cole-
tiva. Apesar de os participantes terem diferentes religiões (inclusive o próprio intérprete pode
ter uma que não necessariamente seja de matriz afro), a musicalidade e a cultura ancestral nos
parece estar estabelecida por grande parte dos sambistas. Somente em alguns casos nos pare-

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ceu não existir tal reconhecimento. Mesmo com tanta diversidade, e crenças levadas pelos
sambistas para a avenida ou quadras, ficamos atentos àquelas que se mostraram semelhantes
ao que é realizado no candomblé de Angola, justamente por ter passado por processos de fei-
tura de santo – a chamada iniciação na religião – e os ritos complexos permeados pela cultura
Bantu via diáspora, marca e base encontrados nos fundamentos do candomblé de nação Ango-
la.
Nesse sentido, assim como nos hinos e sambas, onde existe a possibilidade de variação
na escolha do repertório a ser cantado no esquenta das Escolas de samba, essas rezas também
podem ser diferentes entre as Casas de culto, nesse caso até por conta das adaptações (corrup-
telas) realizadas entre as palavras de origem Bantu e as de origem portuguesa. Alguns desses
detalhes, mesmo que não sejam centrais, são importantes para situarmos e entendermos as
complexidades e tensões nestes locais. De fato, o que achamos essencial destacar aqui são as
semelhanças encontradas entre algumas rezas do Ingorossi feitas por todo filho de santo. Em
muitas passagens de um trecho para outro de uma reza, por exemplo, ocorrem momentos de
utilização de palmas, puxadas pelo recitador, para que os outros respondam, o que configura
uma semelhança com aquilo que o intérprete faz em um esquenta, tanto na forma que cha-
mamos de pergunta e resposta na voz, como também na utilização de percussão corporal já
discutida – nesse caso as palmas. Ou seja, o puxador da reza executa determinado padrão rít-
mico e outros respondem coletivamente, similarmente ao que é realizado entre os naipes de
bateria – as famosas bossas, breques ou paradinhas.
Uma das diferenças é que o Ingorossi não pode ser recitado por pessoas não iniciadas
e nem em festividades abertas, portanto faz parte dos chamados segredos necessários à pre-
servação das particularidades da religião, aquelas que sustentam o conhecimento como forma
de garantia de direitos e do próprio sentido e luta existencial, já que seria a única coisa, assim
como a alma destes indivíduos, não passíveis de acesso. Existem variados discursos que justi-
ficariam esse comportamento por parte de indivíduos remanescentes do processo de escravi-
zação. Muitos deles são herdeiros diretos de escravos e ex-escravos, tendo um distanciamento
temporal pequeno, portanto sentiram de perto algumas destas questões.
Outra semelhança encontrada foi que, além das palmas realizadas em pergunta e res-
posta como os breques – algo natural na cultura e musicalidade percussiva africana (conjuntos
com djembês, dununs, sangbans e kenkeli) e afro-brasileira como um todo –, as linhas cen-
trais (chamadas de timeline) sempre referenciam padrões herdados e adaptados via diáspora,
algo natural na musicalidade local. Além destes padrões em comum e dos diálogos (pergunta
e resposta), as palmas também entram complementando ritmicamente algumas rezas, unindo

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canto com ritmo, algo comum nas atribuições de um ritmista em uma Escola de samba e na
contextualização necessária ao indivíduo que estuda ou investiga musicalidades intrínsecas à
Cultura Popular, algo típico da oralidade. O próprio Ingorossi não pode ser escrito, justamente
para não ser transmitido e entregar o conhecimento para quem não possa acessá-lo. Este pro-
cesso torna-se extremamente dificultoso para os novos filhos de santo, pois dependendo da
formação que se tenha, geralmente a escrita (falamos de letras de rezas e canções) facilitaria e
acabaria acelerando o processo de aprendizagem.
Fazendo um paralelo com as atribuições do ritmista, eu mesmo sou obrigado a decorar
o samba de cada ano, porque sou ritmista de uma Escola na cidade de São Paulo. Nesse pro-
cesso, me utilizo do recurso da escrita, tanto da letra como de algumas bossas (escrita musi-
cal) e, após escrever duas vezes o samba inteiro enquanto o escuto diversas vezes, tenho mai-
or facilidade na memorização e, após este processo, consigo executar meu instrumento em
movimento (outra necessidade nas baterias) e cantar o samba da Escola. Essa semelhança na
necessidade de cantar, seja em reza ou não, é uma característica de ambos os contextos, exa-
tamente pela necessidade de se entender e criar a raiz da própria cultura.
Outra semelhança, é que as rezas que formam o Ingorossi são bastante musicais no
sentido melódico, na divisão rítmica e na harmonia, algo comum aos sambas. Muitas se asse-
melham de fato a melodias conhecidas nas Escolas e portanto fariam parte da estrutura musi-
cal herdada via diáspora.
O que nos pareceu interessante, foram diversos aspectos em comum, muitas vezes di-
fíceis de serem explicados ou justificados, mas sentidos de maneira muito próxima em relação
às similaridades e significados de processos que envolvem e estruturam toda esta complexi-
dade e proximidade cultural. Aliás, muito do que se faz nestes ambientes fundamentados na
oralidade, é exatamente realizar sem a necessidade de dar maiores explicações. Nos pareceu
que esta prática, nesse sentido, se assemelha muito ao que chamamos de performance, no
mais amplo sentido do termo – a própria obra estabelecendo o sentido da execução e conec-
tando-se com o todo. O sentido da reza é reproduzir em emoções o que o executante realiza,
como se fosse uma introdução de todo o trabalho que será apresentado, e também tem o obje-
tivo da troca, da comoção, da parceria necessária entre o performer e o ouvinte, ou entre o
sambista e o público da arquibancada.
Enfim, a comoção causada pela reza inicial no esquenta, juntamente com a qualidade
do samba e de todas as alas da Escola, poderá determinar em que nível acontecerá a troca e o
quanto ela atingirá as pessoas de fora. Isso é central para uma Escola de samba, podendo gerar
até pontuações em harmonia e evolução, pois quanto mais as pessoas de fora reagirem ao que

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está sendo mostrado e proposto de forma geral por toda a Escola, mais será estimulada a pró-
pria evolução dos passistas. Por isso, o momento inicial, a reza, determina também um bom
início que influencia todo o andamento de um desfile.

- Charutos e Marafos
Nas Escolas de samba, ocorre uma associação direta com a ancestralidade – africana e
afro-brasileira. Esta associação é muitas vezes automática e aceita pela maioria da comunida-
de, mesmo por pessoas que possuem outras crenças, mas entendem a cultura ancestral como
algo diretamente ligado ao carnaval, caso contrário não estariam ali. Por outro lado, existem
aquelas que não compreendem dessa maneira, como é o caso de pessoas que mudam de reli-
gião e acabam saindo das Escolas, o que também ocorre.
Dentro e fora das quadras das Escolas de samba, percebemos outras práticas idênticas
às que acontecem nos terreiros. No momento do esquenta, por exemplo, alguns dos ritmistas
que são filhos de santo, fumam charutos antes de começarem a tocar, hábito comum em um
terreiro quando os yawós estão incorporados pelos orixás, mais especificamente pelos cabo-
clos e boiadeiros. O ato de fumar charuto pode ser compreendido pelo leitor como um ato
comum, independente das conexões aqui analisadas. No entanto, devemos observar que as
pessoas que fumam o charuto, em sua grande maioria, são exatamente aquelas com cargos
específicos na religião, caso dos ogãs, yawós e até zeladores (pais de santo). Como na Escola
de samba e, portanto, nas baterias, há muitos envolvidos por conta da circularidade de indiví-
duos entre ambos os locais, notamos esta prática e sentido associados à religiosidade no
acompanhamento de diversos esquentas.
Conversando com alguns desses indivíduos, foi-nos dito que o efeito de fumar charuto
representa uma conexão espiritual necessária para a performance que se seguirá – o desfile,
ensaio técnico, entre outros. A própria imagem da pessoa fica muito parecida em ambos os
locais, parecendo que está realmente em um estado de transe controlado. Apesar de algumas
pessoas – como é o caso de Anderson Jorge Enéas (Babalorixá e diretor de bateria) – não gos-
tarem de fazer determinadas conexões por verem uma necessidade em separar o sagrado do
profano e ter maiores cuidados e respeito com a religião, que acreditam e defendem a separa-
ção, por outro lado mostram e praticam diversas similaridades, dentro e fora dos terreiros (le-
vada de ripa mor, incorporação, entre outros).
Há também uma variedade de bebidas alcoólicas, vendidas ao redor do Sambódromo
para os sambistas, combinações que em alguns casos são chamadas de marafo. Esta nomeação
se dá por conta da relação com um destilado específico tipicamente consumido pela pessoa

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incorporada no orixá Exu. O chamado marafo de Exu é entendido como a bebida principal do
próprio Exu. Ouvimos muito, em dias de ensaios, essas referências: É hora do marafo, Está
na hora do marafo, Vamos no marafo.
A utilização de um termo que se refere à bebida típica de Exu, em ambos os locais, re-
presenta parte do reconhecimento estrutural dos sentidos entre eles, ou seja, tanto na estrutura
do xirê como na do terreiro. Vemos então que é um termo aceito e utilizado dentro e fora do
terreiro, normalmente por quem divide a religiosidade com o samba, onde o marafo é conside-
rado também a bebida dos ritmistas, muito significativa para os sambistas.
Também ouvimos falas de diretores pedindo para os ritmistas “maneirarem” (não exa-
gerar) no marafo antes do desfile. Atualmente há um trabalho muito disciplinado dos mestres
e diretores de bateria, aqueles considerados modelo de gestão em relação ao comportamento e
performance dos seus ritmistas, caso do mestre Zoinho no GRCSES Império de Casa Verde.
Não só há uma tentativa de controle sobre o consumo de bebidas alcoólicas e outros itens co-
muns ao contexto por esses líderes, mas também por ritmistas que entendem e priorizam uma
certa concentração a partir do autocontrole. Assim como nos resultados do desfile, analisados
segundo critérios de um sistema de julgamento ocidentalizado – na forma de compreender e
esperar certas características sonoras como limpeza, equalização e equilíbrio. Há assim, uma
certa exigência e tentativa de controle de determinados hábitos como a bebida. Normalmente,
a maior dificuldade com esse tipo de ação se dá nas Escolas mais tradicionais.
4.3.1 Elemento ritual
Na tentativa de compreender as dinâmicas das práticas diversas que ocorrem nos ter-
reiros e nas baterias (artísticas e não artísticas) como rituais, pois possuem uma estrutura para
que elas aconteçam e nem sempre o ritual deve ser visto como algo ligado à espiritualidade
mas sim à celebração de um resultado individual somado ao resultado coletivo de um grupo,
percebemos que a sensação dos grupos aqui analisados dentro das suas práticas é bastante
ritualística. Lembramos a importância de diferenciar o conceito de ritual do Ocidente, oposto
às ações do cotidiano que fazem sentido nas necessidades de rotina de povos que ritualizam
práticas cotidianamente, como uma necessidade prática interligada com a arte. Para a realiza-
ção de qualquer ato como cozinhar, lavar roupa, tomar banho, há um rito que precede, acom-
panha todo o tempo da atividade e fecha a ação, seja ela qual for.
Percebemos essa característica na África por diversas vias, mas também a percebemos
essencialmente ao passar pelo processo iniciático religioso no candomblé, bem como nos
momentos dentro e fora da quadra do GRCSES Império de Casa Verde com a comunidade
desta Escola. Há ocasiões em que isso pôde ser vislumbrado, como nos momentos de deslo-

  133  
 

camento de ônibus em dias de apresentação em diversos locais e também no Anhembi. Tudo


se faz cantando, tocando e dançando, herança direta da diáspora e toda a amplitude cultural
apropriada, mantida, reproduzida e transformada.
A etimologia da palavra rito se dá pelo conjunto de regras necessárias à realização do
ritual. Estas podem ser a execução de procedimentos que estabelecem uma cerimônia, pois
esse processo não necessariamente pode ser considerado apenas dentro da religiosidade. No
caso do candomblé, isso já é mais rapidamente compreendido pelo fato de associar o termo
diretamente com a religião. Para nós, o que acontece em uma bateria pode estar dentro da
religiosidade, mas não necessariamente. Entendemos que os resultados e a própria caracterís-
tica da celebração de toda a comunidade em um desfile, por exemplo, seja um ritual quase
sagrado. Nesse sentido, o termo sagrado é utilizado com significados mais amplos, além do
religioso, mesmo que este também seja associado diretamente à religião. O sagrado deve ser
entendido aqui em relação à seriedade e entrega das pessoas a determinado tema, pois a rela-
ção dos ritmistas com a Escola é quase vista como sagrada, independente de se falar em reli-
gião. A confiança e entrega, para com algo que não é explicável, representa muito respeito
com o que é entendido primeiramente como sagrado.
Alguns aspectos ritualísticos nas baterias seriam: a) os ritmistas mais novos reverenci-
am os ritmistas mais velhos. Trata-se de uma obrigação, e eles são orientados pelos mestres e
diretores a fazer isso, b) o esquenta da bateria, em ensaios técnicos e no próprio desfile é ritu-
alístico, por referir-se à ancestralidade. Muitos ritmistas choram enquanto tocam, lembrando
de seus antepassados e familiares falecidos que transmitiram este sentido de dedicação de
geração para geração, c) o ato de beijar o pavilhão, a bandeira com o brasão da Escola trazida
pela porta bandeira, é obrigação de um mestre de bateria, d) o cuidado com a vestimenta é
sinal de respeito com o samba, e) o uso da roupa branca (herança da roupa de santo), clara-
mente observada em passistas e forte marca da ala das baianas – formada por diversas mães
de santo vindas da Bahia para o Rio de Janeiro no início da formação das escolas – é uma
tradição que permanece inalterada até hoje, toda escola de samba é obrigada a ter uma ala de
baianas, f) a adoração de determinado orixá – patrono da escola ou da bateria, g) o consumo
de bebidas ou o chamado churrasco para os ritmistas em alguns ensaios e h) a relação e neces-
sidade da utilização do corpo como um todo, no canto, ritmo e dança.
Alguns momentos ritualísticos nos terreiros: a) os ogãs reverenciam (termo utilizado
no terreiro - pedir a benção) primeiramente o zelador e os filhos mais velhos de iniciação/de
santo, b) o roteiro do xirê como um todo, c) a limpeza e cuidado com a vestimenta como sinal

  134  
 

de respeito aos orixás, d) a utilização da cor branca pela neutralidade e limpeza espiritual e e)
a relação e necessidade da utilização do corpo como um todo no canto, ritmo e dança.
Uma Escola de samba quando apresenta um enredo através de suas alas e toda a catar-
se promovida no desfile pode ser, e é entendida, como um grande ritual, reflexo do próprio
xirê dos terreiros. Alguns pesquisadores estabelecem relações ritualísticas, mesmo que de
forma mitológica (que compõe o imaginário de Sambistas e de algumas pessoas externas),
entre setores específicos das Escolas e os terreiros: a) comissão de frente com o orixá Exú,
por conta da função deste setor de abrir caminho para toda a Escola passar, assim como em
qualquer xirê é obrigatório cantar e pedir permissão para esse orixá, b) ala da baianas com as
mães de santo, c) ritmistas com os ogãs, d) a utilização da percussão como linguagem e com
vocabulário próprio através da oralidade em alguns instrumentos, com forte destaque no rum
e no primeiro ripa, promovendo troca com dançarinos, passistas ou yawós.
Para Canclini (2003), também há uma relação e importância do ritual dentro da possi-
bilidade de o indivíduo renascer, reconectando-se à sua essência. Nesse sentido, consideramos
os ambientes estudados, o candomblé e o samba, como momentos e estados ritualísticos que
promovem a (re) conexão com a cultura aos antepassados:
A palavra de ordem que sustenta a magia pré-formativa do ritual é “transforma-te no
que és”. Você que recebeu a cultura como um dom e a tomou como algo natural, in-
corporado ao seu ser, comporte-se como você já é, um herdeiro (CANCLINI, 2003,
p. 193).

O ritual então é tratado como uma forma de deslocar o indivíduo das situações, com-
portamentos e condições sociais, oferecendo uma simbologia daquilo que, a partir de uma
nova atuação, pode proporcionar aos envolvidos. Isso, de certa forma, deixaria todos em uma
posição igualitária (mesmo que simbólica), o que potencializaria o conhecimento herdado,
utilizado para fortalecer a sua própria existência:
O ritual, sanciona então no mundo simbólico, as distinções estabelecidas pela desi-
gualdade social. Todo o ato de instituir simula, através da encenação cultural, que
uma organização social arbitrária é assim e não pode ser de outra maneira. Todo o
ato de instituição é “um delírio bem fundamentado”, dizia Durkheim, “um ato de
magia social”, concluiu Bordieu (CANCLINI, 2003, p. 193).

Canclini (2003) aponta as instituições como organismos contraditórios e capazes de


estabelecerem algo que não é realmente o que é. Por este lado, também corroboramos e con-
sideramos as instituições – as Escolas de samba e os terreiros – como instituições que podem
causar confusão em seus praticantes, pelo fato de haver uma suspensão da realidade através
do rito, seja na incorporação de entidades, na encenação proporcionada e realizada pelos sam-
bistas na avenida, ou em outras formas de deslocamento do real. Em um desfile, por exemplo,
o indivíduo, independente da sua condição financeira e de sua colocação social (status), as-
  135  
 

sume a condição de artista, e o sofrimento e as dificuldades da vida real são temporariamente


suspensos49.
A suspensão da realidade também é um dos motivos de tratarmos esse tema como um
paradoxo, pois ao mesmo tempo que muitas questões interessantes ocorrem dentro da rede
complexa de saberes que os envolvem, podem também dar um sentido que, fora destes territó-
rios, não dão conta do que é promovido nestes locais.
O carnaval por si só é o próprio ritual, e no desfile todos os resultados obtidos a partir
dos ritos praticados pela Escola anteriormente são representados, assim como os ritos mais
ligados diretamente com a religiosidade de matriz afro ou com as próprias tarefas do dia a dia.
Tudo o que se pratica antes do dia do desfile faz parte do chamado rito e, somente após a pas-
sagem pelos diversos ritos, é que a grande celebração acontecerá. O ritual também se dá na
troca dos executantes dele – passistas, ritmistas e sambistas em geral – com a comunidade e o
público participante. O mesmo acontece com os filhos de Santo e as pessoas que assistem a
ambas as cerimônias. Há uma troca de energia proporcionada coletivamente que representa
conexão com os antepassados, no sentido cultural e espiritual.
4.3.2 Percussão como linguagem
A utilização da percussão como linguagem não é nenhuma novidade, pois desde o
surgimento da espécie humana sonoridades produzidas pelo próprio corpo do indivíduo, ou
com utilização de ferramentas e materiais diversos, eram uma forma de transmitir alguma
mensagem, uma manifestação pessoal na tentativa de uma conexão com algo externo, inde-
pendente da distância.
No caso do objeto aqui investigado, se faz necessária a relação do ritmo e da percus-
são como um todo com a estrutura e complexidade que envolvem as práticas dos grupos mu-
sicais, nos terreiros e nas Escolas de samba. Além da sonoridade estabelecida e reconhecida
por todo o público interno ou externo a esses locais no próprio ritmo, por exemplo, alguns
detalhes essenciais destas práticas podem ser melhor observados e reconhecidos. Nesse senti-
do, muito do que acontece nas práticas destes grupos, além de não ter a necessidade de uma
verbalização da própria escrita, como já dissemos, pelo fato de tratarmos da oralidade recor-
rente à cultura popular, traz aspectos mais profundos produzidos musicalmente que nos cha-
maram a atenção. Consideramos dois exemplos mais centrais e convergentes dentro do con-
                                                                                                               
49
Ver o depoimento do puxador/intérprete Quinho do GRCSES Acadêmicos do Salgueiro:
https://www.youtube.com/watch?v=fK-I8cqG8FM). Este depoimento é uma contrapartida à entrevista de Jame-
lão sobre a diferença entre puxador e intérprete, mas simboliza muito bem o que falamos sobre suspensão da
realidade promovida pelo elemento ritual. (Ver entrevista do intérprete/puxador Jamelão:
https://www.youtube.com/watch?v=KUbtxLzZ9X8).

  136  
 

texto analisado: a) o vocabulário do rum e sua relação com a dança e também com a condução
do conjunto percussivo do candomblé, b) o vocabulário do repinique e sua relação com todo o
conjunto percussivo (a bateria) e com a dança. Um detalhe sobre o qual também vale a pena
refletirmos, é que o rum é o único atabaque no candomblé da nação Ketu que pode ser tocado
com um aquidavi e uma mão sem baqueta. Os outros (o rumpi e o lé) precisam ser tocados
nesta nação com dois aquidavis cada um deles. Notamos aqui certa semelhança com os toques
dos tambores piano, repique e chico (trilogia do Candombe – gênero afro-uruguaio), com
muitas similaridades com relação às técnicas, padrões rítmicos e levadas, nos permitindo per-
ceber a enorme influência e ramificação da musicalidade herdada da diáspora negra. Ou seja,
ela não se faz presente apenas na transição dos elementos dos terreiros para as baterias, mas
apresenta uma conexão bem mais ampla com muitas outras musicalidades.
Voltando à discussão mais específica deste tópico, além de todo o ritmo produzido pe-
los executantes de repiniques e atabaques e suas variações dentro das próprias levadas, há um
complexo discurso musical que soa como improviso, realizado pelos alabês e primeiros repi-
niques, que é utilizado em momentos de interação entre a percussão e os dançarinos, sejam
estes passistas ou yawós. Existe um reconhecimento de determinados padrões rítmicos utili-
zados em fraseados específicos que são reconhecidos pelas pessoas que dançam. A partir des-
tes padrões, haverá um diálogo entre a percussão dos ogãs e ritmistas com os dançarinos –
passistas e yawós. Para que isso aconteça é necessário muitos anos de prática e convivência
em ambos os contextos, pois este discurso musical, necessário para esta função – a de se co-
municar com outras pessoas, no caso aqui com dançarinos, sem qualquer outro recurso, ape-
nas com toques e variações específicas –, é muito complexo.
Normalmente, o que está sendo proposto neste diálogo pode durar muito tempo, entre
5 minutos ou mais, o que já é bastante para um diálogo rítmico. Muitos ogãs e primeiros repi-
niques tornam-se especialistas neste diálogo elaborado para a dança. É muito comum observar
pessoas que se destacam nestas funções. Normalmente, são aquelas mais atentas ao todo nes-
sas manifestações, e que se preocupam com os aspectos gerais dos ritos e de todo o ritual, não
somente em executar um instrumento como se estivesse desconectado do todo. Quem partici-
pa destes grupos acaba tendo outras conexões com toda a estrutura, seja espiritual ou sim-
plesmente artística. O espetáculo como um todo depende dessa relação. Por isso, também os
ritmistas e ogãs apresentam uma relação de entrega ampla com o conjunto da obra. Todos
precisam cantar, tocar e se movimentar. Apenas dessa forma entenderão a importância da
individualidade ampliada no coletivo.

  137  
 

Além deste aspecto específico, e que já justifica a utilização da percussão como lin-
guagem, também gostaríamos de enfatizar a própria importância da produção da sonoridade
como um todo nestes grupos. A resultante sonora proporcionada pela massa de todo o conjun-
to é de uma potencia incalculável, pois o volume de som é uma característica e também uma
necessidade marcante nas baterias e nos terreiros. O som reverbera a muita distância do local
onde os ritmistas e ogãs estão tocando. No caso das baterias, por exemplo, é necessário que
toda a Escola escute o ritmo que sustenta o desfile e, no caso dos terreiros, a intensidade utili-
zada na performance também poderá determinar momentos de incorporação, ou não, na pró-
pria comunicação entre o atabaque e os outros filhos de santo, como já dito no caso dos
yawós. Entendemos que a intensidade necessária e proporcionada pelas baterias e no can-
domblé, também servem como uma comunicação possível e com longo alcance.
Nesse sentido, a percussão é utilizada como linguagem, a partir do discurso musical
aliado à potência sonora necessária para a execução dos roteiros nos xirês e desfiles. Do
mesmo modo, por conta da consideração da percussão como linguagem, mostra-se necessária
certa coerência entre aquilo que é executado e o ritual em si. Citamos aqui uma referência na
qual fica clara a problemática do ogã não conseguir dar conta da comunicação desejada entre
o toque e a dança:
Chamo a atenção para o fato de que os alabês atuais estão fazendo variações demais
no rum, tocando muito rápido e prejudicando a dança dos Orixás. Ressalto a dife-
rença entre tocar ritmos do Candomblé em um grupo de folclore e tocar em um ritu-
al de terreiro, afirmando que o Orixá pode até parar de dançar se o alabê não estiver
tocando direito. Sinto saudade da época em que se perguntava ao ogã mais velho
como era que se tocava e dizia que é preciso respeitar os mais velhos. (Vadinho do
Gantois, in TRINDADE, 2019, p. 133)

Em diversos rituais percebemos preocupações similares de alguns pais de santo quan-


do não identificam o discurso musical adequado proposto pelo alabê para a dança, o que afeta
negativamente a performance das pessoas que dançam e representam a conexão com os ori-
xás.
4.4 Estratégia de sobrevivência - engenhosidades
4.4.1 Memória e respeito aos antepassados
Partindo do ponto que nos locais aqui estudados os participantes lutam para preservar
uma tradição herdada de uma cultura anterior, ou seja, uma cultura que possui uma origem e
que se adaptou com o tempo, tornando-se única, a tensão estabelecida nos processos sociais
destas pessoas representa a busca por espaços a partir da manifestação da sua própria cultura,
da arte como meio de reorganização social e também como fim em si mesma, da necessidade
de entrega e responsabilidades com a performance. A origem, o ponto de partida é relevante,
por representar padrões e signos que continuam, porém a tensão encontrada nas atividades
  138  
 

destes indivíduos em evolução é determinante para a compreensão dessas manifestações. Nes-


se sentido, a memória pode ser observada e é determinante por muitas formas e significados.
Para Ramos; Marroco (2010), o campo do conhecimento e da memória se conectam
para estabelecer e transformar em informação o que vem de fora – o ponto de origem –, e o
que vem de dentro – o grupo atual e suas próprias características. Dessa maneira, a mescla
possibilitada pelo encontro é enriquecedora e os conteúdos externos se misturam com os no-
vos. A memória coletiva herdada de eventos do passado é sinônimo de cultura. Também é
necessário um distanciamento para compreender o que se produzia anteriormente e como isso
é incorporado e se transforma, de acordo com novos grupos. “A memória está sempre vincu-
lada à lembrança de eventos passados. Ela só é possível com certo distanciamento histórico-
temporal” (RAMOS; MARROCO, 2010, p. 158).
A memória estabelece a manutenção de conceitos da própria tradição em conflito com
novas necessidades, naturais aos grupos em evolução. Afinal, como manter o que já foi esta-
belecido e, portanto, representa uma tecnologia comprovada e efetiva durante um tempo, em
conjunto com as necessidades de indivíduos jovens e altamente criativos em adaptar novos
padrões? É esse o ponto que pode ser visto como algo tenso nas dinâmicas sociais destes gru-
pos:
Esta (re)construção é sempre tensionada; ao mesmo tempo em que se busca lembrar
as experiências históricas passadas, geram-se novas memórias e apagam-se outras.
Essa “luta” travada na memória revela que a cultura é sempre uma questão de reco-
nhecimento e pertencimento fronteiriço; uma disputa do dentro-e-fora. (RAMOS;
MARROCO, 2010, p. 158).

Entendemos como Memória toda a herança cultural proporcionada pela oralidade e


que ajuda a preservar a cultura dos antepassados. Além do conceito, a memória também é
crucial como ferramenta para armazenar conhecimento sem a utilização da leitura e escrita
musical. No caso da musicalidade desenvolvida nas baterias e nos terreiros, há uma necessi-
dade intrínseca de armazenamento cerebral de uma série de padrões rítmicos que o indivíduo
precisa ter para poder executá-los coletivamente, são eles: a) os diversos toques dos ataba-
ques, b) os breques de bateria, c) o vocabulário do rum para a comunicação com a dança, d)
as levadas diversas dos instrumentos dos naipes das baterias, e) as variações para momentos
específicos do samba ou do xirê, entre outros.
Outra fonte que produz uma conexão com a memória do passado são as imagens, pois
é através de determinados símbolos que as pessoas se reconectam com algo já utilizado ante-
riormente (ver o tópico “4.6 Códigos Visuais”).

  139  
 

A memória representa a carga ancestral cultural que dá sentido para um grupo, seja pe-
la prática de algo parecido com o que se fazia anteriormente ou pela tentativa de estabelecer
uma nova história. No futuro essa tentativa também fará parte da memória e será utilizada
como estratégia de reconexão e de referência para um novo modelo que se renova ciclicamen-
te. Este processo é natural ao ser humano e é um exercício de equilíbrio entre o passado e o
futuro, a partir de experimentos do presente.
A relação entre as culturas africanas e a brasileira via diáspora não pode ser entendida
apenas como origem e cópia, mas sim como algo que se transforma e continua a se transfor-
mar por motivos diversos. Hall (2013) discute a flexibilidade da cultura, a importância da
tradição, a mutação necessária ao crescimento e a perspectiva dos indivíduos de diversas ge-
rações. Este conceito de cultura de Hall permeia também a representatividade da própria Me-
mória:
[...] cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não
é uma arqueologia. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recur-
sos, seu trabalho produtivo. Depende de um conhecimento da tradição enquanto o
mesmo em mutação e de um conjunto efetivo de genealogias. (HALL, 2013, p. 49)

Silva (2005) também corrobora com aspectos de tensão anteriormente expostos:


História e memória são territórios eivados de perspectivas conflitantes, são lugares
de tensões socioculturais. Coletividades inteiras, colocadas fora de uma certa a His-
tória anseiam instituir espaços mais amplos e complexos da criação, reflexão e vei-
culação da produção cultural, artisticamente expressadas e identificadas com suas
origens africanas. São percebidos avanços e retrocessos empreendidos por diversos
indivíduos e grupos que atuam na sociedade brasileira. (SILVA, 2005, p. 41- 42)

Memória, para Silva (2005), é também algo estabelecido como fundamental nas práti-
cas dos africanos. Para nós, isso reflete diretamente nos terreiros e nas Escolas de samba, e no
fato de esses locais serem politicamente importantes por preservar a Memória:
Memória deixa de ser apenas função psíquica ou terminologia de especialistas para
habitar o cotidiano daqueles cujo direito vital ao passado tem sido negado por impe-
dimentos políticos, econômicos ou sociais. Também no Brasil as lutas culturais por
História e Memória têm-se dado em lugares de difícil apreensão, contudo, não há
como apagar a presença desses sujeitos, que a despeito de uma escrita historiográfi-
ca, teimam em se inscrever nas trajetórias, seja da cidade, da região ou do país. En-
tre estes encontram descendentes de povos africanos na diáspora. (SILVA, 2005, p.
41- 42)

Mais uma vez, Silva (2005) relaciona a Memória com a própria história dos afrodes-
cendentes e também com seu aspecto identitário, algo discutido mais profundamente em nos-
so tópico seguinte.
Criações, renovações, rupturas e permanências em enredos, cortejos e encenações
dramáticas somam-se com as técnicas de construção e manejo de instrumentos mu-
sicais dos africanos na diáspora, fruto expresso de uma profusa cultura material e
musical que, ao início do século XX, demonstraram-se fundamentais constituintes e
definidoras dos estilos musicais contemporâneos. Quando falamos de História de

  140  
 

Africanos na Diáspora, trata-se de rompimento e recomposição identitária constan-


tes, processos que, agregando demandas da contemporaneidade, dinamiza e oxigena
aquilo que na perspectiva dos descendentes de africanos pode ser concebido tanto
enquanto memórias, como Histórias (SILVA, 2005, p. 38).

4.4.2 Identidade
Muitos autores já discorreram sobre aspectos relevantes para o entendimento e análise
do comportamento de indivíduos inseridos em contextos sociais, naquilo que se refere à iden-
tidade. Achamos importante mostrar alguns pontos sobre essa temática, por servirem como
reflexão acerca de possíveis características e significados das dinâmicas existentes nos locais
aqui analisados. Isto se mostra necessário para se ter uma melhor compreensão sobre as carac-
terísticas gerais e identitárias da cultura diaspórica. Para Canclini (1998), por exemplo, a iden-
tidade de um grupo está ligada essencialmente aos indivíduos unicamente do contexto, os que
são de dentro:
Ter uma identidade, sem antes de mais nada, ter um país, uma cidade ou um bairro,
uma entidade onde tudo o que é compartilhado pelos que habitam esse lugar se tor-
nasse idêntico ou intercambiável. Nesses territórios a identidade é posta em cena,
celebrada nas festas e dramatizada também nos rituais cotidianos. Aqueles que não
compartilham constantemente esse território, nem o habitam, nem tem portanto os
mesmos objetos e símbolos, os mesmos rituais e costumes, são outros, os diferentes
(CANCLINI, 1998, p. 77).

Costa (2008), nos fala de modificações ocorridas de acordo com os processos escrava-
gistas no período que antecede a abolição. Para ele os terreiros seguem como instituições de
reconexão identitária. Para nós, não somente os terreiros, mas também as Escolas de samba,
representam essa função – a de tentativa de autorreconhecimento identitário. É nestes locais –
terreiros e Escolas –, que a Cultura afrodiaspórica se mantém, apesar de toda a transformação
sofrida na industrialização do carnaval, da deturpação midiática e do embranquecimento nos
terreiros e nas Escolas de samba:
Ao se aproximar os anos precedentes à Abolição, identidades africanas específicas –
cassage, baca, xambá – e/ou gerais – nagô, mina, jeje, angola – foram tomando no-
vos significados. Nos espaços religiosos como os terreiros de culto aos orixás, essas
ressignificações identitárias passaram a ser compreendidas dentro da lógica de expe-
riência do tráfico e escravização atlântica que os ex-escravizados e seus descenden-
tes foram reinventando para reestruturar suas ‘raízes’ étnicas, culturais e religiosas
esgarçadas no movimento transatlântico. (COSTA, 2008, p. 01)

Para Stuart Hall (2011), três aspectos com relação à definição de identidade são consi-
derados: a) o homem nasce e permanece da mesma forma até a sua morte, b) o homem se
altera de acordo com a sua interação com a sociedade e c) a identidade passa a ser fragmenta-
da e o indivíduo pode conter várias. Hall (2011) também usa o termo identidades culturais,
nas quais aspectos de identidade surgem do pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguís-
ticas, religiosas e nacionais (HALL, 2011, p.8).

  141  
 

Nesse sentido, é muito ampla a possibilidade de compreensão de uma identidade, que


não pode ser única, mas entendida como complexa e mutável. Com o passar dos anos, o pro-
cesso escravagista sustentado pela diáspora acabou alterando possíveis aspectos identitários
que, ao nosso ver, representam ainda essa falta de consciência de toda a potencialidade e
complexidade do universo oriundo da Cosmogônia Bantu e Yorubá, por exemplo, pois de
acordo com tantas interferências sofridas pelos indivíduos colocados no processo da escravi-
dão, a própria identidade ainda tenta ser reconstruída, sendo os terreiros e as Escolas de sam-
ba instituições de extrema importância para essa tentativa de inserção social.
Também foi no Brasil que muitos povos se encontraram nas senzalas. Segundo alguns
pesquisadores, isso só foi possível aqui. Dessa forma, esta seria uma das possibilidades bem
aceitáveis para tamanha diversidade na construção e desenvolvimento de toda essa cultura,
transpassada na amplitude do entendimento rítmico como protagonista de uma cultura oral,
popular, e que tenta se reafirmar como necessária. Hall (2011) também cita o processo da
globalização como causador de uma homogeneização cultural, desvinculando indivíduos de
suas próprias tradições. Ao nosso ver, isso foi reinventado no Brasil, na tentativa de reafirma-
ção – uma estratégia de sobrevivência. Hertzman (2014), fala dessas transformações no Brasil
colonizado:
Na procura de um equilíbrio entre identidades locais, nacionais e diaspóricas, muitas
vezes a condição pós-colonial do Brasil funcionou como um contrapeso que favore-
ceu afiliações nacionais em detrimento de conexões globais e diaspóricas. (HER-
TZMAN, 2014, p. 329-330)

Em Hertzman (2014), vê-se que o termo “transculturação” representa a presença de


uma cultura pura pré-existente que é submetida, adaptada ou perdida com a criação de uma
cultura nova, sugerindo que:
... músicos afro-brasileiros construíram definições de África e Brasil baseadas entre
uma interação constante entre as forças do mercado, os direitos autorais e a perspec-
tiva global do Brasil. (HERTZMAN, 2014, p. 330)

Estamos falando então de uma certa perda, mas também da assimilação de uma cultu-
ra, identidade e saberes. O autor também destaca a perda de raízes anteriores nesse processo.
Compreendemos que parte dessa perda é natural à própria migração e outros fatores, como o
caso da escolha estratégica de assumir ou não as heranças. Porém, percebemos nas comunida-
des investigadas, que existe uma Memória enzimática – termo utilizado pelo pesquisador Luiz
Antonio Simas sobre estas relações:
Acho importante que saibamos a origem dos toques. A gramática dos tambores é
uma realidade que observamos também nas baterias, – esta, derivada do que se pro-
duz musicalmente nos terreiros afro-brasileiros. Escola de samba precisa ser pensada
amplamente, a partir do complexo de saberes das culturas da diáspora. Os tambores

  142  
 

comunicam a transição identitária do povo através da Memória enzimática que veio


do outro lado do Atlântico. (SIMAS, 2016. Entrevista concedida ao autor).

Entendemos que a essência se mantém mais fortemente nesses locais por eles terem
uma função existencial. São locais sagrados que, mesmo adaptados, servem à troca de sabe-
res; saberes estes apropriados, mantidos e transformados em uma nova identidade, algo que
realmente só foi possível nesse processo que se divide em três etapas: a) a diáspora (e no caso
aqui, a escravização de seres humanos), b) os terreiros e c) as Escolas de samba (uma exten-
são dos próprios terreiros).
Para Canclini (1998), a identidade dos envolvidos torna-se possível nos próprios locais
onde elas acontecem, nos chamados territórios. Isso é socialmente ampliado se analisarmos a
projeção de alguns destes sujeitos a partir da relação identitária com o seu próprio território.
Por outro lado, Canclini (1998) também observa que existe uma construção de espetaculariza-
ção em relação aos mitos nacionais, o que de fato não corresponderia à realidade das relações
sociais existentes, da própria identidade. Em alguns casos, este comportamento considerado
espetacular poderia ser entendido como um desvio da identidade, da essência do ser, como se
fosse um desvio cultural, não correspondendo às suas origens.
Ao mesmo tempo, essa pode ser uma estratégia de sobrevivência e reconhecimento
dentro de um sistema que também recusou historicamente essa identidade, já que os indiví-
duos desse contexto eram escravizados e portanto deveriam servir a uma outra classe, aquela
que estrategicamente os colocou em um lugar menor, recusando ou tentando abominar sua
cultura, costumes, e todo o conhecimento e tecnologias antes desenvolvidas por eles em sua
terra de origem. Entendemos que a suspensão da realidade encontrada no elemento ritual co-
labora, em algum nível, e absorve estas estratégias ou práticas; ou seja, pode ser uma forma
de se estabelecer um novo vínculo com o sentido das ações da pessoa envolvida nesse jogo
duplo.
Apesar de já termos nos debruçado sobre essa questão, vale reiterar que nas baterias
das Escolas de samba e no conjunto percussivo do candomblé existem elementos que repre-
sentam a identidade de cada uma delas. Nas baterias: a) levadas de caixa, b) levadas de repi-
nique, c) levadas de surdos de terceira, d) arranjos (estilos de breques), e) afinação dos ins-
trumentos, f) quantidade de instrumentos por naipe, g) andamento, h) modelo e tamanho dos
instrumentos, i) tipos de baquetas e j) caixas em cima sem talabarte ou caixas embaixo com
talabarte. No candomblé: a) toques dos atabaques, b) atabaques com ou sem cunha (nação
Angola - cunha, nação Ketu – parafuso, c) utilização de aquidavis ou não, d) cores e orixás da
Casa, e) andamento, f) discurso do rum e g) reverências variadas às lideranças.

  143  
 

A identidade de cada um destes grupos é reconhecida pelos outros. A identidade é res-


ponsável por que cada um dos grupos (baterias e Casas de candomblé) tenha o seu próprio
estilo. Mais do que isso, acreditamos que a identidade se apresenta mais especificamente nas
diferenças sutis existentes, tanto nas baterias como nas Casas de candomblé. Neste sentido,
por exemplo, pequenas mudanças na acentuação de uma levada, manulação ou articulação já
representam uma nova identidade. Esta identidade é facilmente percebida por pessoas que
vivenciam estes locais, sendo que é a partir do resultado sonoro que se identificam tais dife-
renças. Com relação a essa questão, alguns exemplos mais marcantes em São Paulo seriam:
- GRCSES Nenê de Vila Matilde: sonoridade pesada, afinação grave dos surdos, leva-
da de caixa fragmentada, herdada da mistura entre a levada da Portela e da Mangueira quando
Seu Nenê viajava em pesquisa ao Rio de Janeiro. Ambas as Escolas Cariocas são reconheci-
das pela herança diaspórica da levada de caixa, oriundas do aguerê de Odé e Oyá. Então a
levada da Nenê seria resultante de um processo de hibridização dos dois aguerês – Oyá e Odé.
- GRCSES Vai-Vai: andamento acelerado, não padronização dos surdos de terceira (o
que vai contra a evolução das baterias, porém mantém a liberdade do ritmista e essência do
estilo pela criatividade)
- GRCSES Império de Casa Verde: complexidade na criação de arranjos (bossas),
sonoridade bem definida e equilibrada entre os naipes, chamada de equalização da bateria,
qualidade da levada e sonoridade das caixas.
- GRCSES Unidos de Vila Maria: leveza, equalização e controle de intensidade (ca-
racterística fundamental na desconstrução da necessidade de uma sonoridade sempre ao for-
tíssimo). Mostra que é possível ter qualidade com menor volume sonoro.
A identidade de uma bateria, ou de um ogã com a sonoridade resultante do conjunto
percussivo da sua Casa de santo, funciona como ferramenta social para estes indivíduos. Eles
se fortalecem a partir do reconhecimento dessa sonoridade, que dá propriedade, particularida-
de e funciona como uma marca do próprio ritmista ou ogã. Eles se fortalecem quando falam
de suas levadas, bossas e da performance como um todo. Ao mesmo tempo, a própria identi-
dade, no sentido de que cada pessoa tem a sua – pessoal e intrasferível por ser única –, é de-
senvolvida nessas práticas. É a partir delas que a pessoa se reconecta ou reforça a sua conexão
social. Se há alguma coisa que a represente, mesmo que sonoramente, isso a empodera. Ou-
vimos isso em muitas conversas em dias de festas e ensaios. Existe muito orgulho de parte de
cada um que expressa a sua sonoridade individual, assim como orgulho de toda a massa sono-
ra, de ambos os conjuntos percussivos. Nesse sentido, a identidade sonora promove a identi-
dade do ritmista ou ogã como um todo.

  144  
 

4.4.3 Segredos que retêm o conhecimento


No samba, e nas Casas de candomblé, é muito comum a dificuldade em obter-se in-
formações, principalmente dos mais velhos. É como se houvesse a necessidade de ser do meio
para assim ter acesso aos segredos. Por outro lado, atualmente há uma tendência de que tudo
seja melhor compartilhado, pois somente assim, divulgando toda a potência desse conheci-
mento – do candomblé e do samba – é que também seria possível encontrar maiores aliados e,
portanto, legitimar cada vez mais estas práticas.
Os chamados segredos, ou a retenção de parte de um conhecimento dentro de toda a
complexidade que abrange a herança cultural da diáspora africana, é ainda uma prática entre
os Sambistas e dentro da própria religiosidade de matriz afro, já que antigamente sua sabedo-
ria era utilizada como forma de resistência que objetivava a tentativa de manutenção de um
povo em específico, nesse caso, os africanos escravizados e ex-escravizados. A cultura em si
era vista como uma ferramenta de luta contra qualquer tipo de dominação, muitas vezes o
último recurso. Por ser visto como algo inalcançável, não era possível acessá-la por parte do
opressor.
Dessa forma, entendemos que esse ainda é o comportamento de alguns sambistas e re-
ligiosos desse contexto, apesar de toda a evolução e também de uma outra corrente de pessoas
que pensam e agem no sentido contrário – caso daquelas que acreditam ser necessário a aber-
tura do conhecimento para se conseguir maior adesão e respeito, ao contrário de guardá-lo
somente para um determinado grupo. Para algumas lideranças do candomblé e mestres de
bateria é necessário utilizar o conhecimento para disseminar a força e amplitude da cultura
negra, e não segurá-lo, pois isso compromete o reconhecimento mais amplo de outros setores
sociais.
Por outro lado, notamos certas dificuldades em acessar parte do conhecimento, como
já dito, provavelmente pelo fato de esta retenção ainda prevalecer (mesmo que entendida co-
mo estratégia ultrapassada), em grande parte, entre indivíduos de gerações mais velhas, que
justificam esse comportamento porque também foram impedidos de acessar determinados
níveis dessa sabedoria. Dessa forma, estariam reproduzindo um modelo vivenciado pessoal-
mente.
No ano de 1996, quando eu estava em contato direto, quase diário com Osvaldinho da
Cuíca, patrimônio cultural do carnaval paulistano, fiquei atento à seguinte frase: “estou te
passando parte de uma informação, porém o pulo do gato não50”. Entendi que para ele o cha-
mado “pulo do gato” referia-se a alguma artimanha que também poderia representar alguma
                                                                                                               
50
CUÍCA, Osvaldinho da. 12/10/1996. Residência do artista. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.

  145  
 

marca especial de algo conquistado por ele, como uma identidade em uma execução e criação
de algum padrão rítmico. Segundo Osvaldinho, isso era muito comum na sua época, o ritmista
desenvolvia uma identidade a partir de toda a sua dedicação a um instrumento específico ou
até algum material novo para ser utilizado, que acabava se tornando referência, sendo repro-
duzido em parte por outros seguidores. Para ele, a marca pessoal é uma necessidade – a de se
ter uma identidade pela própria sonoridade.
Sabemos que isso é muito importante musicalmente. Quantas vezes ouvimos falar so-
bre a relevância de um músico ser reconhecido pelo que produz sonoramente, sobre uma par-
ticularidade que somente ele alcançou. Essa descoberta pessoal então torna-se um segredo
estratégico e precisa ser resguardada, pois funcionará como estratégia de sobrevivência, já que
é a partir dela que determinado indivíduo poderá tornar-se importante no meio profissional.
Entre as baterias, por exemplo, os mestres também possuem as suas estratégias que sustentam
a identidade de seus conjuntos percussivos, seja em arranjos, levadas, afinações, sonoridades,
tipos, tamanhos e quantidades de instrumentos, entre outros. Não é muito comum que estes
pormenores sejam compartilhados, e mesmo que a sonoridade de uma bateria seja claramente
audível, até pela intensidade da execução instrumental, marca destas formações, muitos deta-
lhes fazem parte deste jogo de segredos, e normalmente ficam retidos entre os próprios líderes
(mestres e diretores).
Essa foi uma de nossas principais dificuldades durante o período desta pesquisa, pois
para acessar certos níveis desta conexão – do candomblé com as baterias –, tivemos que pla-
nejar estrategicamente nossas ações. Talvez este seja o ponto central de nossa discussão: a
estratégia, consciente ou inconsciente, de muitos sambistas não reconhecerem ou não gosta-
rem de falar sobre a conexão, até porque muitos também herdam essa estratégia intrínseca à
tradição, na qual nem sempre há a necessidade de verbalização ou reflexão acerca do que se
produz. Nesse sentido, o que importa é a sensação e a realização dos atos, a prática por si só
gera sentido, independente da necessidade de explanação sobre certos assuntos. Muitos ritos
precisam ser executados e nem sempre argumenta-se sobre os processos, eles se fazem valori-
zados pela execução, e não pela explicação. Esta é uma prática comum neste trânsito dos ter-
reiros para as baterias. Em uma bateria não se conversa muito, apenas em momentos centrais
de organização. Em geral, a marca é a própria prática necessária à performance. Os sentidos
se criam no fazer artístico.
Dentro da religiosidade do candomblé essa é uma característica essencial, já que mui-
tos ritos são entendidos como fechados ao grande público e somente pessoas de dentro os
acessam. Existe tradicionalmente uma série de conhecimentos que não são abertos, o que

  146  
 

mostra a complexidade desta investigação. Para acessá-los e descobrir a importância de parte


deles na transição de um conhecimento de um grupo para o outro – do candomblé para as
baterias –, houve a necessidade de uma pesquisa de campo ampliada, como anteriormente
citado, naquilo que se refere à própria iniciação no candomblé.
Além do que já foi discutido, e naquilo que se refere ao tema aqui discutido – segredos
–, percebi alguns comportamentos de lideranças que recusavam compartilhar certos conheci-
mentos, por eu ser novo na Casa. Vejamos a fala de Tata Kamuanga (Ramsés Santos dos
Reis): “ainda não sabemos se podemos confiar em vocês, por isso passaremos parte do conhe-
cimento e não a totalidade”. Esta fala representa uma resistência em disponibilizar o conhe-
cimento, ou parte dele, os referidos segredos.
A pergunta que surgiu, naquele momento, foi: - se fomos escolhidos (eu e mais dois
irmãos de barco) para sermos iniciados, e portanto aceitos até pelo próprio orixá de cada um
de nós, já que dentro da tradição são os orixás que escolhem os próximos filhos a serem inici-
ados por já estarem preparados para entrar no grupo, por que então ainda não poderiam confi-
ar em nós? Por outro lado, entendo também que por sermos novos na Casa ainda havia uma
certa recusa, no sentido de que somente o tempo poderia determinar o nível de confiança e,
portanto, o que poderia ser transmitido dentro desta cultura para os novos iniciados.
Outra dificuldade observada, tanto em baterias quanto em terreiros, é a própria recusa
em transmitir algum conhecimento para uma pessoa de cor branca, até pelo fato histórico com
os colonizadores. Isso sim está marcado na memória destas pessoas e é uma justificativa para
a manutenção de certos segredos. No meu caso, por exemplo, apesar dessas dificuldades, me
considero privilegiado e muito respeitado, e por isso tive acesso a locais e níveis diferencia-
dos desta cultura. Conquistei isso com o tempo de convívio nestes locais e pelo respeito e
ética com a pesquisa, promovendo estes indivíduos dentro das possibilidades e não me apro-
priando de uma cultura para projeto pessoal, sem uma função social. A grande importância
das descobertas desta pesquisa se encontra na tentativa de valorizar o reconhecimento da am-
plitude desta cultura para diversos setores e principalmente para as pessoas que a produzem.
Elas precisam ter consciência de toda essa sabedoria.
Por outro lado, tendo participado ativamente como ritmista durante mais de 24 anos,
também me considero um sambista, porém, diferente de quem tenha nascido e absorvido este
conhecimento desde a infância. Todas essas minhas experiências, aliadas à acadêmica, me
ajudaram a ter uma compreensão e amplitude mais conectada com outros setores, o que en-
tendemos como fundamental para um pesquisador.

  147  
 

O texto abaixo, extraído da página do Facebook “Filhos do Rei Xangô”, apesar de


desconsiderar alguns dos outros motivos do resguardo dos chamados “segredos da religião” e,
portanto, o conhecimento dentro de toda a complexidade existente na Cosmogônia Bantu, (ou
de qualquer outra nação dentro da religiosidade do candomblé), nos remete a algumas seme-
lhanças no tratamento deste saber e na postura e na forma como ele é tratado e promovido
pelos seus responsáveis.
O Candomblé é a única religião onde o conhecimento é tratado como segredo! En-
quanto as demais religiões incentivam o estudo, a pesquisa e o saber sobre sua litur-
gia, quase tudo no Candomblé é guardado a sete chaves. O saber no Candomblé é
usado como distinção de classe e status de poder, quem sabe mais segredos é consi-
derado superior, o melhor! Esta aberração cultural incentiva a ignorância e enfra-
quece a religião, afinal, na falta de uma orientação correta, muitos acabam fazendo
as coisas erradas ou inventando. Até cantigas, um simples xirê, uma roda de Xangô
ou uma sassanha, em muitas casas não se ensina, quem sabe alega falta de paciência
de ensinar ou preguiça! Mentira! Na verdade, quem sabe quer palco, quer ser admi-
rado pela comunidade e ser tratado por ela como uma pessoa importante, porque sa-
be mais do que os outros! Enquanto persistirmos no erro da ignorância e continuar-
mos a tratar o saber como segredo, o Candomblé não evoluirá e os erros e aberra-
ções que assistimos todos os dias não será culpa daqueles que os praticam, mas sim
daqueles que tem responsabilidade de ensinar e se calam! Os que sabem morrem
com o segredo e quem fica inventa e engana os que chegam. (O SEGREDO...51,
2019. Facebook.)

Essa é uma prática bastante comum encontrada no próprio samba, como se fosse ne-
cessário um cuidado para que não seja passado o “pulo do gato”, que poderia ser utilizado
como estratégia de sobrevivência a seu favor – alguma coisa que você executa tão bem, por
exemplo, e que te diferencia dos outros. O outro ponto é que, ao mesmo tempo que você segu-
ra esse segredo que permite este poder, também enfraquece a própria cultura. No caso acima
citado, a referência se faz em relação ao Candomblé pois, segundo o autor, isso enfraquece a
própria força contida no conhecimento, ou seja, seria bom compartilhá-lo.
Segundo Jorge Ceruto, músico cubano radicado no Brasil há 25 anos, com experiência
familiar religiosa na santeria e no candomblé, os segredos também precisam ser abertos:
Não há segredos, é preciso escancarar a realidade. Em Cuba tudo é feito na rua, no
meio das pessoas, nada é mistério. O importante é que as coisas sejam assumidas,
somente assim haverá maior e entendimento e portanto, menos preconceito. É só fa-
zer uma comparação com as igrejas evangélicas no Brasil por exemplo. Ninguém
muda de nome para serem aceitos, uma Casa de candomblé é uma Casa de candom-
blé igual qualquer outra instituição. Procurei o significado de Exu no dicionário por-
tuguês e estava lá, Exu = Demônio. O correto na religião é mensageiro. Houve uma
construção que depreciou a cultura dos negros vindos de África e Cuba para o Bra-
sil. O embargo comercial é um exempla de tentativa de dominação americana
(EUA), porque Cuba era um centro comercial forte e isso atrapalhava o desenvolvi-
mento de muitos. Tivemos muitos colonizadores: Espanhóis, Franceses, Ingleses,
todos eles sempre quiseram tomar conta de nossa identidade. Isso reflete fortemente
nas inúmeras tentativas de apagamento cultural afro cubano, como disse, refletidos

                                                                                                               
51
 Disponível em:  https://www.facebook.com/FilhosDoReiXango/  
  148  
 

no Brasil. Aqui isso acontece muito ainda. (CERUTO, Jorge. 25/02/2019. Entrevista
concedida a Rafael Y Castro).

Para Ceruto, há algumas questões que determinam o preconceito em relação ao can-


domblé: a) o próprio membro cria um mundo misterioso que afasta a compreensão social da
religião e, portanto, da cultura negra como um todo e b) questões políticas determinaram o
lugar (status) das coisas atualmente. Segundo ele, pouco se fala também a respeito da relação
identitária entre Cuba e Brasil, e mesmo sobre a África, que é matriz inicial de ambos os paí-
ses (Cuba e Brasil). Para o músico, os lugares que melhor funcionam atualmente são aqueles
em que há abertura para o reconhecimento das diferenças. É importante cuidar da tradição
sem reproduzir comportamentos e tratamentos com as pessoas no mesmo formato que fizeram
no sistema escravagista. As pessoas que possuem cargos de lideranças no candomblé ainda se
limitam a esconder o que não deve ser escondido. Da mesma forma, em relação ao tratamento
com os filhos de santo, observa que para se ter respeito não é necessário qualquer tipo de hu-
milhação. Segundo Ceruto, isso já acabou, e o que é necessário é mostrar fortemente o que é
de fato o candomblé, a ponto de desmistificá-lo e resultar numa maior afinidade das pessoas
em geral.
Observamos isso da mesma forma com o samba, apesar de seu apelo popular maior,
pelo motivo de que as pessoas o compreendem no campo do entretenimento ou alegria, o que
apenas parte da realidade – aquela que fica no imaginário popular, e que tem maior represen-
tatividade. Muitos sambistas de gerações anteriores possuem práticas que escondem alguns
caminhos e dificultam o interesse ou o tempo de compreensão de aspectos pedagógicos dos
instrumentos, por exemplo. Há uma tentativa de validação de ambos os conhecimentos (can-
domblé e samba), que podem ser entendidos por quem o retém, como forma de despertar
maior curiosidade, aqueles chamados de pulo do gato, por exemplo. Muitos sambistas utili-
zam algumas dessas terminologias para demonstrar controle de determinados conteúdos, o
que acaba afastando o interesse e não preserva nenhuma cultura, pelo contrário, afasta e as
deixa no lugar onde estão, os mesmos determinados politicamente: a) Pequeno e Grande Car-
naval, b) áreas desprivilegiadas urbanisticamente, c) falta de investimento, d) local de entrete-
nimento, e) religião inatingível, entre outros.
4.4.4 Malandragem
O termo malandragem possui diversas possibilidades interpretativas. A primeira delas
é em relação às questões mais estabelecidas socialmente de forma pejorativa: preguiça, des-
confiança, truques, maldade e mentira, adjetivos que também podem representar, em parte, a
compreensão deste termo. Apesar de estes conceitos representarem esse lado do chamado

  149  
 

malandro, no contexto do Samba o termo está ligado diretamente a uma escolha de vida, per-
sonificada em trejeitos da pessoa e também muitas vezes no “figurino”, utilizado em atuação
social – chapéu panamá, calça branca social, camisa branca ou vermelha, chapéu social em
geral branco, ou com detalhes em vermelho ou preto – associação também às cores de Exu.
Além disso, ser malandro corresponde ao desenvolvimento de diversas habilidades ne-
cessárias a um possível estereótipo do próprio sambista, como é o caso do modelo reconheci-
do internacionalmente do malandro carioca, também facilmente associado com o orixá Exu.
Ambas as imagens abaixo nos parecem muito similares: o malandro carioca e o orixá Exu.
Nos referenciamos a eles como personagens por representarem parte importante desta cone-
xão entre a religiosidade e o samba. Realmente, Exu é muito discutido e representativo nos
trejeitos do sambista autêntico, aquele que não existe atualmente (segundo pessoas que convi-
veram anteriormente com os “verdadeiros” malandros), no sentido da esperteza, da multipli-
cidade artística e das possibilidades de sobrevivência nas cidades, a partir das estratégias de
subsistência.

Figura 13 - Zé Pilintra como capa de um livro, mesma vestimenta do malandro carioca

Fonte: https://www.google.com/search?q=ze+pilintra&tbm.

  150  
 

Figura 14: Malandro carioca nos arcos da Lapa, mesmo sentido, trejeitos e vestimentas de Exu

Fonte: https://www.google.com/search?q=z%C3%A9+pilintra+malandro&sxsrf52.

Figura 15 - Logo da bateria do GRCSES Imperador do Ipiranga em São Paulo

Fonte: https://www.google.com/search?q=logo+bateria+imperador+do+ipiranga+mestre+vitor&tbm53.

Além destas associações que nos parecem realmente fazer sentido, mesmo que de
forma popular, e que portanto representam sentido social, alguns comportamentos em comum
com as próprias associações, não apenas em imagens e figurino, realmente acontecem no dia
a dia dos Sambistas. Um exemplo é o que se expressa em letras de canções e suas associações
com conquistas amorosas, em muitos casos no papel do homem como vítima de um amor não
correspondido, em que a culpa de sua frustração é do sexo oposto. O que sabemos é que, na
realidade, existe um comportamento masculino antigo (machista) que pode ter a ver com a
própria herança diaspórica, falando sobre possíveis compreensões em relação à poligamia,

                                                                                                               
52
Apenas a bebida representada é a cerveja, e não o Marafo.  
53
Logo  idealizado pelo mestre Vitor Velloso no ano de 2018, por associação ao Seu Zé (outro termo para refe-
renciar Zé Pilintra).  

  151  
 

característica comportamental comum em alguns locais do mundo, que influencia diretamente


nosso objeto central54. A possível malandragem no comportamento em relação a traições, por
exemplo, não se restringe ao gênero, porém essa prática é vista como um comportamento de
sucesso no meio masculino, portanto uma malandragem aceitável e desejada por muitos. No
caso da mulher, isso não é visto positivamente, pelo contrário. Então, poderíamos dizer que
tal malandragem seria aceita para uns, enquanto para outros não. Nesse sentido, a malandra-
gem é vista como um estilo, uma habilidade que representa sucesso, mesmo que tenha signifi-
cados múltiplos.
No caso dos sambistas, e no discurso popular, é muito comum utilizar a denominação
de malandro para uma pessoa que resolve determinadas situações, que possui certas articula-
ções ou estratégias rápidas para resolver as mais diversas necessidades diárias. De certa for-
ma, o sambista sempre precisou resolver suas questões com extrema sabedoria, já que, como
se diz popularmente, quem pode mais chora menos. O sentido de poder mais remete exata-
mente ao poder possuído pela pessoa que resolve situações independentemente da forma de
escolha, pela malandragem, por exemplo.
Como no início e no desenvolvimento do samba tiveram caminhos difíceis de serem
conquistados socialmente, muito pelo fato de estarmos falando de pessoas geralmente menos
favorecidas – aquelas oriundas do movimento da diáspora –, características como a malandra-
gem eram estratégias que cada um possuía para conquistar o seu espaço. Muitos destes indi-
víduos recebiam, e ainda recebem, pouca formação escolar e profissional, portanto, apresen-
tam pequena possibilidade de concorrer ao mercado de trabalho. Atualmente isso mudou mui-
to, hoje diversos setores sociais e pessoas com diferentes condições adentram nesses contex-
tos.
Na religiosidade de matriz afro, exatamente por ela estar sempre na berlinda da com-
preensão social, e consequentemente da aceitação do poder público de forma geral, também
existem as malandragens necessárias à própria sustentação de uma Casa de culto, vistas pelos
seus fiéis como necessidades específicas em prol da coletividade. Existem, por exemplo, di-
versas negociações sobre valores financeiros, necessários para a manutenção de uma Casa: a)
alimentação das pessoas, b) contas diversas (água, luz, telefone), c) gás para cozinhar, d) ob-
jetos necessários nos preceitos, e) vestimentas, f) colaborações coletivas com algum caso es-
pecífico de saúde de um irmão, g) reformas, h) novas construções, entre outros. Tudo isso só

                                                                                                               
54
Ver: FELINTO, Renata. “A construção da identidade afrodescendente por meio das artes visuais contemporâ-
neas: estudos de produções e de poéticas”. Tese de Doutorado. 2016.
 
  152  
 

será possível através da capacidade de argumentação e convencimento de um líder que, para


conseguir o que precisa para todos, muitas vezes pode ser visto também como um malandro,
aquele que possui uma aptidão com o desenvolvimento do coletivo, portanto, uma habilidade
social importante. Não haveria outra alternativa, já que institucionalmente há maiores apoios
para outras religiões, ou para aquelas que são instituídas como melhores ou inclusive dentro
do próprio sistema político e suas lideranças de dominação religiosa.
Uma malandragem positiva destes líderes, que também pode ser compreendida como
uma habilidade, é saber determinar valores diferentes de contribuição de acordo com as pos-
sibilidades financeiras de cada filho de santo, isso pode soar como algo justo dentro do coleti-
vo. Analisando determinadas diferenças entre algumas Casas, percebemos que é o mais ma-
landro quem sempre vence (no sentido visionário), aquele que desenvolve competências para
resolver situações independente de sua condição particular. Apesar de acontecer em vários
segmentos, ou com todos nós de uma certa forma, pois socialmente temos que nos virar como
podemos, o que se nota nesses casos (candomblé e samba) é a malandragem como representa-
tividade de uma positividade dentro de uma cultura em específico, a cultura das multiplicida-
des. Isso está estabelecido como algo natural nestes locais.
Outra malandragem intrínseca às necessidades e funções do ogã e do ritmista, também
pode ser visualizada na interdisciplinaridade entre o movimento, ritmo e canto. O nível de
fluência em todos esses aspectos também pode determinar certos níveis de malandragem. Um
mestre, igualmente, será respeitado como um bom malandro quando executar, com níveis de
excelência, um ou mais instrumentos. Nesse sentido, quanto maior o número de instrumentos,
maior será a compreensão social de sua malandragem no contexto.
Outra grande e notória característica de um mestre de referência, assim como um pres-
tigiado zelador de santo, é a sua capacidade na gestão de pessoas, o que interferirá na quanti-
dade e qualidade de sua bateria, por exemplo. Quando um desses mestres sai de determinada
Escola, por algum motivo, praticamente a maioria dos integrantes da bateria o seguem para
outro local, formando uma nova bateria em outra Escola. Esse mestre é visto como um ma-
landro por excelência, por determinar o fim e o recomeço de um novo ciclo, aquele que fará
novos seguidores permanentemente. Ser um bom malandro representa a possibilidade de ser
aceito em ambas as comunidades. Para isso, é necessário compreender o contexto e aprender a
partir das diferenças, valorizar o coletivo e as habilidades individuais. É necessário compre-
ender o malandro fora dos padrões ocidentais, aqueles criados a partir de um ponto de vista
muitas vezes dominador. Nesse sentido, a dualidade entre o bem e o mal, algo estabelecido

  153  
 

em outras religiões, não faz sentido pois esta é uma estratégia para o próprio desenvolvimento
social destas comunidades. Assim, elas continuarão mantendo suas atividades.
4.4.5 Tradição
A partir da tradição, os valores de determinadas comunidades serão mantidos, preser-
vados dentro do que foi estabelecido através de diversas tentativas, entre erros e acertos. Com
o passar do tempo, as descobertas mais efetivas, ou seja, aquelas que solucionam determina-
dos problemas, contribuem para a realização de determinadas tarefas do cotidiano de uma
sociedade ou de um pequeno grupo. Para as comunidades que estudamos, tais tarefas se co-
nectam com o todo, e é a partir delas que os aprendizados e os sentidos da própria existência a
partir da realização delas fazem sentido.
Nesse ponto fazemos um paralelo com um pesquisa científica, pois é apenas depois de
muitas descobertas dentro de um objeto central escolhido (e que de preferência faça sentido
para o pesquisador), que surge a possibilidade de contribuir com novas descobertas que serão
utilizadas como soluções efetivas, facilitando assim novas necessidades e aplicabilidades que
possam surgir.
Assim, acreditamos que haja aproximação entre aquilo que se desenvolveu durante os
anos na permanência de uma tradição e a repetição de práticas efetivas para seus atores. Inde-
pendente do sistema, oral ou escrito, o que realmente importa é a efetividade da descoberta.
Por isso, muitas vezes é difícil uma tradição ser modificada. No nosso caso, compreendemos
que tanto as levadas de caixa, quanto os toques de atabaques representam fortemente a justifi-
cativa e manutenção de padrões duradouros, ambos trazidos de timelines referenciais afrodi-
aspóricos. A manutenção de uma tradição também representa um reconhecimento em um ter-
ritório, o que pode determinar o status de reconhecimento de seus envolvidos.
Para pessoas que não possuem conexão com a sistematização da oralidade como for-
madora de processos próprios e efetivos, pode ser difícil reconhecer a importância e comple-
xidade desta cosmovisão, invalidando determinadas metodologias. Normalmente quem as
reconhece é quem as realiza, ou possui conhecimento da importância de tais práticas a partir
de compreensões de possibilidades culturais diversas.

Tudo que uma sociedade considera importante para o perfeito funcionamento de su-
as instituições, para uma correta compreensão dos vários status sociais e seus res-
pectivos papéis, para os direitos e obrigações de cada um, tudo é cuidadosamente
transmitido. Numa sociedade oral isso é feito pela tradição, enquanto numa socieda-
de que adota a escrita, somente as memórias menos importantes são deixadas à tra-
dição. É esse fato que levou durante muito tempo os historiadores, que vinham de
sociedades letradas, a acreditar erroneamente que as tradições eram um tipo de conto
de fadas, canção de ninar ou brincadeira de criança. Toda instituição social, e tam-
bém todo grupo social, tem uma identidade própria que traz consigo, um passado

  154  
 

inscrito nas representações coletivas de uma tradição, que o explica e o justifica.


ZERBO, 2010, p. 146)

4.5 Metodologia caracterizada por procedimentos com fim na performance


4.5.1 Intergeracionalidade, Oralidade, Imitação, Repetição, Educação não formal, Prática
familiar, Relativização do tempo, Intergeracionalidade
O conceito desta palavra consiste na convivência mútua de indivíduos com idades di-
versas, a partir da troca e construção coletiva, onde o essencial é a consideração pelo que re-
sultou da mescla de ambas as experiências – as de pessoas com menos idade e de pessoas com
mais. Considerando a intergeracionalidade como uma prática comum em muitos grupos cole-
tivos, principalmente naqueles ligados à Cultura Popular, buscamos averiguar em qual nível
ela se torna relevante para a compreensão de alguns fenômenos relacionados ao objeto aqui
analisado. A partir desta característica, pudemos compreender mais corretamente sua impor-
tância para o dinamismo das atividades realizadas pelos grupos envolvidos e a amplitude de
variedades encontrada nos resultados construídos nessa troca de conhecimento e experiências
entre gerações.
As dinâmicas realizadas no contexto do nosso objeto central se dão através do encon-
tro das pessoas que circulam nos terreiros e nas Escolas de samba. A presença de determina-
dos participantes é bastante variável, mudando muito de um dia para o outro, e esta caracterís-
tica deve ser considerada em busca de uma compreensão adequada dos significados gerais.
Este aspecto representa um sentido muito natural às práticas comunitárias, que resulta na so-
matória das capacidades individuais diferentes em conjunto com a potencialidade e marca de
um grupo como um todo.
Em ambientes onde valoriza-se a intergeracionalidade no conjunto das competências
destes indivíduos, as diferenças tornam-se importantes e a riqueza do contexto se dá pelas
características opostas. Em uma mesma geração, há os conservadores, mas também os consi-
derados progressistas. Isso é visto por nós como necessário à evolução e permanência dentro
das chamadas comunidades tradicionais. Estas apresentam constantemente a necessidade de
se atualizar para permanecer em atividade. Nesse sentido, o conflito intergeracional é uma
oportunidade para o crescimento do grupo. As trocas acontecem de forma conflituosa, pelas
diferenças.
No candomblé e nas baterias, há constantemente uma necessidade de ressignificar cer-
tos padrões herdados de gerações anteriores. Observamos isso diretamente, por exemplo, ana-
lisando em que nível o que é oriundo de gerações anteriores foi apropriado, mantido, trans-
formado e representa sentido, tornando-se necessário em aspectos culturais para os participan-
tes mais novos destas comunidades nos seguintes itens: a) na permanência e transformação de

  155  
 

um padrão rítmico e em toda a representatividade deste como marca de um grupo (levadas de


caixa e outros instrumentos), b) nas adaptações e apropriações de ritmos do candomblé em
toda a bateria (breques de bateria) e c) nas adaptações e citações de outras fontes (culturas),
dentro da tradição do samba.
Nosso objetivo é entender como o conflito intergeracional pode determinar certos con-
ceitos, representando a própria marca de um grupo. No caso das levadas de caixa, por exem-
plo, já comentamos que elas se modificam e são consideradas de fato a marca de determinada
bateria, sendo oriundas, ou não, de determinado toque de atabaque. Neste caso, para os inte-
grantes mais novos em uma bateria, a distância da origem desta prática e da conexão com os
elementos do candomblé pode não ser tão significativa, já que eles possuem outras referências
(natural em novas gerações).
Outro exemplo, a aceitação de determinado ritmo diferente do próprio samba em de-
terminado breque, pode ocorrer de forma tranquila por ritmistas mais novos, como no caso já
citado de um ritmo que remeta ao estilo Funk em algum arranjo de samba enredo. Apesar de
outros conflitos herdados de discursos que desviam intencionalmente a aceitação social dos
saberes encontrados nas religiões de matriz afro, nos pareceu mais natural a aceitação por
integrantes com idades diferentes na execução de levadas e breques, bem como a aceitação de
letras de enredo em que o ritmista canta em conjunto com a execução instrumental, mesmo
com crenças e formações diferentes. Esta também nos pareceu uma estratégia para não entrar
em determinados conflitos com os próprios ritmistas, ou seja, não falar do assunto para não
apresentar dúvida ou desrespeito com a sua própria religião, que poderia ser outra não origi-
nária de matriz afro.
Algumas gerações anteriores nos mostraram uma conscientização histórica maior, já
que os mais velhos vivenciaram um período mais próximo da origem desta conexão – a do
candomblé com o início das Escolas de samba. Por outro lado, os mais jovens também se ali-
mentam culturalmente deste saber, não fazendo sentido a discussão ou consciência histórica.
Nesse sentido, a falta desta conexão se fundamenta na intergeracionalidade. A diferença se dá
entre os mais velhos e os mais novos da seguinte forma: os mais novos reconhecem menos as
conexões e os mais velhos mais. Os outros conflitos ocorrem independente da idade dos parti-
cipantes, por conta de crenças e preconceitos, e nos mostra também a abrangência que vai
além da própria vontade do indivíduo e que se estende a todo o conjunto social e atua na
transformação de uma geração para a outra.
Assim, consideramos o nosso objeto central como complexo e conflituoso também por
este aspecto. A troca de saberes, a transmissão da memória sócio-histórica e os rituais, são

  156  
 

aspectos estabelecidos pela intergeracionalidade para a sociedade como um todo, que reco-
nhece e potencializa as individualidades em prol de um grupo. Trata-se de pessoas diferentes
que convivem mesmo que de maneira conflituosa, porém necessária à construção de uma no-
va história, natural em processos evolutivos da humanidade.
Apesar da intergeracionalidade ser uma característica comum em ambientes de Cultu-
ra Popular, como dito anteriormente, não é reconhecida socialmente como uma prática em
todo o seu potencial. No caso do ensino coletivo de instrumentos, por exemplo, apesar de cer-
tas limitações no aprendizado do indivíduo, se apresentam aspectos importantes da pluralida-
de do grupo, o que não seria possível de forma somente individualizada, distante da coletivi-
dade – algo comum nos terreiros e baterias. Ainda há preconceitos sobre as práticas e métodos
de ensino intergeracional, mas sua importância no coletivo se dá exatamente por caracterizar a
troca de saberes vivenciados de várias formas.
A construção dinâmica encontrada na musicalidade do candomblé e do samba, com
toda a criatividade que enriquece o discurso musical, se dá pela combinação de tradição e
evolução. Uma característica em comum nestes dois locais é o equilíbrio necessário para o
conhecimento da tradição e a inserção de novos elementos, como se estivesse sendo criado
um novo vocabulário, a partir da mistura dos padrões referenciais em conjunto com novas
propostas. Pelo fato de os mais jovens terem normalmente mais condição técnica em relação à
própria resistência física necessária para execução dos instrumentos como os agogôs, ataba-
ques, caixas, repiniques, tamborins e surdos de terceira, podem surgir novas variações das
matrizes estruturais. Normalmente, com o tempo, elas se modificam porque alguém as reali-
zou de forma diferente da tradicional, como por exemplo quando um músico proficiente se
destaca em algum instrumento, torna-se referência e o seu estilo começa a ser reproduzido por
boa parte do grupo, já que ele é um exemplo almejado. A dinâmica dessa troca entre gerações
se dá: a) no respeito pela tradição (o que já foi estabelecido como referência), b) equilíbrio e
controle da intensidade, c) qualidade na sonoridade, d) reconhecimento amplo da linguagem e
e) novos caminhos.
A intergeracionalidade é realmente uma potência promovida através da troca, apresen-
tando resultado significativo não só para determinado grupo, mas para a continuação da cons-
trução do conhecimento do povo para o povo. São necessidades sociais.
O conhecimento promovido pela coletividade intergeracional se dá pelo respeito e ex-
periência dos mais velhos com os mais jovens. Nas comunidades por nós estudadas, este equi-
líbrio é uma premissa na somatória dos resultados entre tradição e evolução. O conflito é ne-
cessário para o crescimento de ambos os locais. Ao mesmo tempo que muitas funções especí-

  157  
 

ficas se atribuem aos mais novos, outras são acompanhadas e aprovadas pelos mais velhos.
Percebemos que algumas divergências são aceitas, mesmo com relutância em algum momen-
to. A flexibilidade das lideranças também pode determinar se uma nova sugestão será aceita
ou pelo menos experimentada. Como a criatividade é uma marca desses grupos, os responsá-
veis pela gestão de pessoas tentam mediar certos conflitos, ao mesmo tempo que se tornam
experientes nas suas funções com o passar do tempo. A própria característica do líder refletirá
nos resultados e comportamentos dos liderados. Por esse motivo, são poucos os mestres de
bateria com resultados técnico musicais satisfatórios, e os que os têm, são indivíduos com
uma idade considerada média (30-50 anos), provavelmente por entender melhor os dois lados,
o dos jovens e o dos mais experientes. No caso do candomblé, a importância da capacidade de
gestão do alabê ou de outras lideranças como a do próprio zelador, determinará o lugar em
que determinado grupo se encontrará socialmente em relação a outros.
O reconhecido status de uma Casa de santo ou bateria será um reflexo dos cuidados
com os seus participantes no reconhecimento das capacidades do grupo de forma intergeraci-
onal. O crescimento do grupo como um todo será reflexo destes métodos. Temos alguns
exemplos negativos em alguns locais, como no Vai-Vai e no Redandá. Estes locais estão sen-
do criticados socialmente como ultrapassados, pela falta de habilidade de algumas lideranças
em aspectos interdisciplinares, exigindo controle pela autoridade ou depreciando potenciali-
dades individuais.
Apesar de o tema “intergeracionalidade” ser pouco explorado no Brasil, entendemos
que não há como avaliar um grupo com essa característica sem conhecer as possibilidades e
resultados compartilhados nesse processo.
Em ambos os locais aqui investigados notamos que: a) os mestres são respeitados,
desde que aproveitem a idade e experiência no entendimento e reconhecimento do comporta-
mento dos mais jovens, utilizando a diferença a seu favor, b) os mais novos possuem funções
estratégicas e são formados com base nos fundamentos locais, c) as gerações atuais replicam
o modelo das anteriores, d) há uma tentativa de equilíbrio entre a tradição e a inovação neces-
sária ao mercado, e) os mais novos são vistos com respeito com base em sua proficiência ar-
tística, f) os mais velhos são responsáveis pela continuidade através da transmissão do conhe-
cimento, g) o imediatismo dos jovens nas propostas precisa ser aprovado pelos mais velhos e
h) esta troca se dá mais constantemente em comunidades pobres – ambientes com maior cole-
tividade, por apresentarem maior necessidade de divisão de espaços.

  158  
 

Oralidade
A oralidade é uma prática utilizada por diversos grupos étnicos. Apesar de esta ser
uma marca reconhecida nas tradições encontradas na chamada Cultura Popular, ainda se apre-
senta desconhecida em sua potencialidade em relação a outras, principalmente quando compa-
rada à produção textual, pelo fato de o texto ser algo mais concreto visualmente, considerado
portanto fora da subjetividade.

Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação di-
ária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, vene-
rada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. A tradição
pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma ge-
ração para outra. (ZERBO, 2010, p. 139-140)

Esta é uma ferramenta essencial para a transmissão do conhecimento, nesse caso pela
fala, onde a escrita não é considerada essencial.
A tradição oral foi definida como um testemunho transmitido oralmente de uma ge-
ração a outra. Suas características particulares são o verbalismo e sua maneira de
transmissão, na qual difere das fontes escritas. Devido à sua complexidade, não é fá-
cil encontrar uma definição para tradição oral que dê conta de todos os seus aspec-
tos. (ZERBO, 2010, p. 140)
Na religiosidade afro-brasileira, por exemplo, a escrita também é considerada um pro-
blema, já que serviria como um documento que transmitiria os chamados segredos dos fun-
damentos. Nesse sentido, a oralidade torna-se uma ferramenta de manutenção em si mesma,
tanto dos valores culturais como de todo o conhecimento de resistência de um povo, sendo
muitas vezes, o único. Em batalhas históricas, na conquista de espaços territoriais, sabemos
que este conhecimento suportado pela tradição oral representa a identidade e resistência de
um grupo. Ou seja, o próprio grupo a reconhece em suas complexidades a partir da tradição
oral, que serve para resguardar a existência de boa parte dos grupos aqui analisados, que pos-
suem o reconhecimento de suas complexidades, mesmo sem expor isso de maneira clara ou
por escolha estratégica.
Desde os primórdios, esta foi uma ferramenta importante para a manutenção das práti-
cas dentro de determinadas tradições. É nela que as pessoas pertencentes a esses grupos se
apoiam, mantendo a sua crença em determinadas práticas. Ela é uma forma essencial de reco-
nhecimento mútuo para um grupo. Mesmo assim, não é amplamente reconhecida em sua po-
tencialidade pela sociedade, estando fora de uma sistemática na qual o ensino, por exemplo, é
estruturado de outra forma. Isso leva a uma compreensão que minimiza sua abrangência em
determinadas culturas.
Salvo raríssimas exceções, somente ao final da década de 1980 pode-se falar no apa-
recimento de temáticas como as formas de religiosidade, as musicalidades, os cos-

  159  
 

tumes e tradições fundadas na oralidade. Não se trata apenas somente de novos olha-
res, mas novas correlações de força sociais e culturais. (SILVA, 2005, p. 375)

A oralidade reflete uma sabedoria em particular, sendo portanto necessária e determi-


nante para a transmissão de conhecimento nos seguintes pontos observados no nosso objeto
investigado: a) transmissão de toques (atabaques) e levadas (caixa, repinique) especificamente
para os aprendizes, b) conceitos diversos baseados nos fundamentos, c) memorização de de-
terminados padrões em levadas e toques, c) transmissão do passo a passo para a montagem de
determinados breques ou do próprio vocabulário do alabê no rum, d) transmissão das varia-
ções realizadas nos instrumentos e utilizadas em momentos de solo ou em conjunto, e) com-
binados diversos em ações estratégicas, f) memorização de letras diversas (sambas) e canti-
gas para orixás específicos ou do roteiro do xirê, g) variedade de sonoridades desejada dos
instrumentos e h) memorização de hinos (alusivo) e rezas.
Como recurso de transmissão de um conhecimento anterior para um grupo mais novo,
a oralidade também pode tornar-se um elemento complicador para o ensinamento de determi-
nado conceito ou padrão rítmico, por exemplo. No caso de uma pessoa não ter nada como
prova do que foi dito, a outra (a receptora do conteúdo) poderá precisar futuramente realizar
determinada conferência e, por não ter nada escrito sobre o conceito ou conteúdo transmitido,
também modificar determinado padrão. Isso pode ser visto como algo natural na oralidade,
porém, não gera confiança para determinado grupo. Nesse sentido, poderia ainda ser mais
depreciada, pela dependência total do invisível, do que não pode ser medido nem sentido ma-
terialmente.
Dentro da cultura ancestral presente no candomblé, e em partes nas Escolas de samba,
a oralitura55 é uma forma de transmissão de significados encontrados no conhecimento de
determinados povos, em especial dos que estavam no processo da diáspora. Ela, a oralitura,
tornou-se ferramenta essencial de reconexão com a própria história. No caso deste trabalho,
os griots (anciões sábios africanos), por exemplo, nos remetem a uma associação com os
sambistas mais velhos e com os pais de santo, principalmente aqueles com mais idade. O fato
destes serem reprodutores de histórias, mitos e conhecimentos ancestrais, conectando as pes-
soas com sua cultura adquirida através de seus antepassados, seria então uma forma de empo-
deramento de um povo, através da fala e da literatura oral. A oralidade como um todo pode
ser representativa no sentido de dar propriedade a uma cultura e suas práticas. Refletimos que
                                                                                                               
55
O termo “oralitura” conserva em si seu valor de “letra”, literatura. Portanto, é entendida como “rasura da lin-
guagem, alteração significante, constitutiva da alteridade dos sujeitos, das culturas e de suas representações sim-
bólicas” (MARTINS, 2001, p. 83). Disponível em: www.letras.ufmg.br/literafro
 
  160  
 

ela poderia ser responsável pelo comprometimento dos integrantes dos grupos aqui investiga-
dos, já que nos encontros destas pessoas ela é utilizada diariamente. São nos ensaios de bate-
ria ou nos intervalos dos xirês que as pessoas trocam saberes pela oralidade. Percebemos essa
prática como uma característica essencial destes grupos.
A oralitura é utilizada como elemento central nos significados de grupos negros. O
termo surge inicialmente em 1971:
Oralitura foi proposto pela primeira vez por Ernst Mirville, em 1971, no intuito de
abranger os enredos do narra crioulo, história contadas geralmente a noite e que ti-
nha a intenção de contra cultura, pois as narrativas eram sobre a resistência negra e
sobre os horrores da escravidão. (SILVA; FREITAS, 2016, p. 213)

É por este e outros motivos que apontamos a oralidade como norteadora de processos
encontrados nas práticas culturais diaspóricas, tendo uma conexão com o passado, o presente
e o futuro – da África para os candomblés, e consequentemente para as baterias.
Imitação
Apesar de este ser um aspecto natural do ser humano, no sentido de os indivíduos mais
novos tentarem reproduzir o comportamento dos mais velhos de forma consciente ou não,
percebemos na imitação uma possibilidade rápida que favorece a agilidade na transmissão de
conceitos e modelos identitários para os indivíduos pertencentes aos grupos aqui analisados.
Além disso, acabou tornando-se uma ferramenta importante para que esse conhecimento che-
gasse de um lugar a outro.
Partindo do pressuposto de que nosso objeto central investigado está inserido em am-
bientes caracterizados pelas práticas realizadas dentro dos conceitos da cultura popular, ou
seja, pela oralidade, um desses aspectos mais marcantes é o processo da transmissão de co-
nhecimento de um líder para os iniciantes através da imitação. Dessa forma, o aprendizado
dos iniciantes se dá pela observação – imitação. Para que todos os iniciantes consigam reali-
zar com eficiência o conteúdo existente nessas linguagens, é necessário que as lideranças
(alabês, ogãs mais velhos, mestres e diretores de bateria) consigam transmitir, de forma efici-
ente, os conteúdos dentro do que já foi estabelecido como modelo, algo que já funciona e que
também representa a identidade de seus grupos nos seguintes aspectos: a) sonoridade, b) ma-
nulação, c) acentuação, d) andamento, e) afinação, f) postura, g) materiais, entre outros. Nesse
sentido, este processo necessita ser acompanhado, pois a característica de cada grupo depende
da combinação de novas propostas em equilíbrio com as anteriores.
Assim, é necessário começar pelo que já foi estabelecido em cada um desses locais.
Cada bateria ou Nação de candomblé possui uma marca própria nos fatores listados acima que
deve ser mantida e assim, todo o cuidado é necessário. Além dos aspectos musicais, os trejei-

  161  
 

tos das lideranças são de certa forma reproduzidos. Muitos diretores de bateria e ogãs se espe-
lham nos mestres e alabês, tentando seguir o modelo implantado de forma natural ou progra-
mada nos seguintes aspectos: a) modelo e intensidade de fala com o restante do grupo, b) ves-
timenta, c) movimentação corporal, d) regência, e) se usa ou não apito, f) vocabulário do rum,
entre outros.
A maneira encontrada por estes grupos para aprender o que deve ser feito é a imitação.
Normalmente, em momentos pontuais de ensino e aprendizagem, os padrões são reproduzidos
da seguinte forma: um líder reproduz em blocos menores todas as partes de determinada es-
trutura, até que ela fique completa e executada em sua totalidade. Este modelo será repetido
lentamente por todos os outros participantes, de forma coletiva ou individual. Observamos
isso nos ensaios de bateria e nos terreiros. Também analisamos outros momentos em que a
imitação é uma prática mais natural, como quando as crianças ficam tocando nos instrumentos
da bateria em algum intervalo ou no término de algum ensaio ou quando as crianças ficam
tocando nos atabaques, normalmente aquelas que pertencem à família da Casa ou das pessoas
mais próximas. Estas crianças, na bateria e nos terreiros, imitam o que foi executado anteri-
ormente pelos mais experientes. Pelo fato de estarem presentes na execução anterior realizada
pelos mais velhos, já armazenaram parte do conteúdo na memória. Mesmo que elas não con-
sigam reproduzir o que é desejado tecnicamente, parte do que foi escutado é reproduzido e é
sempre visível nesse processo. É um momento muito enriquecedor de aprendizado, pois as
crianças ficam motivadas a tocar devido ao que foi feito pelos mais velhos, exemplos a serem
seguidos. Uma boa parte dessas crianças que começam imitando os outros se tornará uma
nova geração de ritmistas ou ogãs. Essa forma (imitação) é comum em ambientes coletivos
diversos, pela necessidade de transmissão de conhecimento de geração para geração.
Para nós, o que chamou a atenção foi a velocidade no aprendizado. Os resultados apa-
recem rapidamente. Pelo fato de esses grupos terem muitos indivíduos novos que são inicia-
dos bem cedo a partir da imitação, esta se tornou uma ferramenta que não precisa ser comuni-
cada. A reprodução de um padrão ocorre pela manifestação de interesse na sonoridade estabe-
lecida anteriormente. É um modelo eficiente, formador e espontâneo, pois ninguém dá uma
ordem para que o indivíduo imite o outro, apenas acontece.
Como já apontado, nas baterias das Escolas de samba e nos terreiros o método utiliza-
do é a prática de alguns padrões estruturais que devem ser reproduzidos pelos novos interes-
sados em participar destes grupos, e pelos que já apresentam familiaridade com os conteúdos.
Nesse caso, mesmo que as pessoas apresentem experiência em níveis variados, haverá sempre
um novo modelo a ser seguido, que poderá ser determinado como uma nova referência.

  162  
 

Por tratarmos de ambientes musicais com alto nível de criatividade por parte dos inte-
grantes, onde muitas vezes se estabelece um novo padrão quando ainda boa parte dos inte-
grantes nem memorizou o modelo sugerido anteriormente, é muito comum que estes modelos
sejam sugeridos e estabelecidos durante os ensaios de bateria e xirês. A liberdade em experi-
mentar é bem aceita na maioria dos casos, salvo algumas exceções, como por exemplo quan-
do as novas propostas surgem sem um espaço de tempo necessário ao aprendizado de todo o
grupo, como se um breque de bateria fosse memorizado e na sequência outro surgisse, e assim
por diante. Isso é de fato comum acontecer, pois até que haja a escolha de determinado arran-
jo, muitos experimentos serão realizados. O mesmo fenômeno ocorre no terreiro em relação
aos improvisos e vocabulário do rum – o atabaque solista.
Em uma bateria, na criação de breques, a imitação é a essência daquilo que chamamos
popularmente de “pergunta e resposta”. Normalmente, um instrumentista realiza um discurso
musical reconhecido pelos outros e estes o respondem sonoramente, com a execução de pa-
drões também reconhecidos. Estes padrões são repetidamente imitados por cada um dos inte-
grantes, até ficarem estabelecidos em um arranjo. No caso do candomblé, a imitação se dá
pela necessidade de cantar as cantigas, seguindo o modelo de um zelador ou ogã mais velho
que as cante com mais fluência. Além dos mais novos precisarem aprender tais cantigas, tam-
bém há necessidade de resposta pelos outros, no mesmo sentido dos breques de bateria.
A diferença entre as baterias e os terreiros é que no primeiro caso esse processo de
imitação se dá pela execução rítmica, e no segundo pelo canto. No entanto, ambos são identi-
ficados como uma forma de “eco musical”, num processo de pergunta e resposta. No caso das
baterias, normalmente o eco será uma imitação do que foi proposto pelo primeiro ripa. No
candomblé, além das outras formas de imitação, como a do vocabulário musical do rum, o eco
é uma imitação do que o alabê propôs cantando. A imitação é uma necessidade para o cresci-
mento do grupo como um todo. No caso da transição de algum toque de caixa, por exemplo,
ou de qualquer outro fundamento que passa do candomblé para uma bateria, haverá a necessi-
dade de que seja feita uma reprodução via imitação de um padrão que será adotado, mantido e
transformado de acordo com o reconhecimento dele e sentido para a sonoridade daquela bate-
ria. Consequentemente, este mesmo padrão também será imitado e adotado por outra bateria
(caso da transição de levadas de caixa do Rio para São Paulo). O fluxo será também pela imi-
tação, a única diferença é que normalmente alguma modificação será feita na tentativa de re-
criar um novo padrão estrutural. Essa modificação é pequena e se dá através de alguns ele-
mentos como: a) acentuação, b) manulação, c) intensidade, d) postura, entre outros. A imita-
ção proporciona a adoção de uma referência inicial que, com o tempo, se transformará de

  163  
 

acordo com as necessidades de um novo reconhecimento dos grupos, de uma nova identidade
a ser conquistada.
Repetição
A repetição também é uma característica essencial em algumas manifestações popula-
res. No caso das investigadas neste trabalho, achamos necessário compartilhar em que nível
ela torna-se relevante em diversos processos: artísticos, pedagógicos e nas atividades do dia a
dia – as que entendemos também como parte formadora dos indivíduos do contexto.
Primeiramente, há uma necessidade em repetir constantemente um padrão rítmico no
aprendizado de todos os instrumentos envolvidos nesta investigação: atabaques, gãs, caixas,
repiniques, entre outros. Outro ponto exaustivo para acertos com a qualidade da massa sonora
final produzida pelos conjuntos percussivos se dá na repetição cíclica constante, na execução
do ritmo por todos, seja ele o samba ou um toque para determinado orixá.
Os ensaios e as festas são realizados no sentido de terem o suporte da massa percussi-
va, esta que se repete exaustivamente. Nesse caso, a resistência física e a técnica dos músicos
são fundamentais para que isso aconteça, pois nos ensaios tudo é repetido inúmeras vezes. É
muito comum que uma bateria toque sem interrupções apenas o ritmo, sem a execução de
breques, por exemplo. Nesse momento, o mestre e os diretores indicam as correções para a
qualidade na execução e a resultante sonora desejada.
Os ogãs também executam constantemente os toques para os orixás. No geral, não há
um momento exato para o término das performances, mesmo que haja um tempo estipulado,
como é o caso de um desfile carnavalesco. O que acontece é que o enredo se repete até a indi-
cação de alguém para que seja feita a interrupção. Isso é transmitido por diversas pessoas que
se comunicam durante a performance até chegar no mestre e, consequentemente, nos diretores
e ritmistas.
No caso do candomblé o processo é bastante similar, porém mais curto. Normalmente
o próprio zelador (Pai de santo) sinaliza diretamente aos ogãs, que sob a liderança do alabê da
casa interrompem a execução. Até este momento – o da finalização da execução do conjunto
–, o ritmo é tocado repetidamente sem previsão para término. Claro que há uma organização
prévia dentro do roteiro do xirê, assim como do desfile, porém tudo é muito variável e pode
ser modificado. Essa flexibilidade é algo bem peculiar à música popular, em especial dentro
destas manifestações. Outro exemplo ocorre no momento da chamada dispersão, quando toda
a Escola passou pela avenida mas ainda continua tocando em um outro espaço, para somente
depois de muita repetição, finalizar. Seria um processo inverso ao chamado esquenta, que é
realizado antes da entrada da Escola na avenida. O momento da dispersão é entendido como

  164  
 

um desaquecimento, o contrário do esquenta. Nesse momento os ritmistas estão relaxando e


comemorando o final do desfile, independente das condições de toda a Escola.
A repetição se dá também na escolha de padrões estabelecidos em breques criados nos
arranjos dos sambas enredos de anos anteriores, e nas frases utilizadas em variações de ins-
trumentos considerados mais solistas, como é o caso do vocabulário do rum e do primeiro
ripa. Como exemplo, podemos considerar que quando um alabê ou primeiro ripa de uma ge-
ração anterior estabelece um motivo rítmico como sua marca, algo bastante comum nestes
locais, este mesmo motivo é adotado como referência e será utilizado por ritmistas e ogãs
mais novos. Nesse caso, o padrão poderá ser repetido em sua totalidade ou servirá como ele-
mento impulsionador para a criação de um novo padrão, sendo repetido em partes e transfor-
mado em outro referencial que certamente poderá ser repetido em gerações futuras.
A repetição faz parte dos processos cíclicos e também é necessária dentro do ritual. É
através dela que algumas sensações são transmitidas pelo coletivo (transe, catarse). Ela pro-
move uma somatória de forças e energias no conjunto da massa sonora promovida por seres
humanos.
A própria referência e adoção do modelo do carnaval carioca em alguns estados, assim
como a referência dos candomblés da Bahia em todo o Brasil, são processos de repetição de
modelos que, apesar de terem sido criados no Brasil, pois o Candomblé e o Samba que conhe-
cemos são algo bem típico daqui, inicialmente originaram-se de outras influências e alguns
padrões foram e ainda são repetidos via diáspora. Entendemos esta conexão como algo que de
certa forma tenha sido repetido de outras referências como os voduns africanos, os modelos
do carnaval veneziano e outras influências como a portuguesa, mesmo que atualmente o can-
domblé e o samba sejam algo tipicamente brasileiro.
A prática necessária dentro da tradição oral pela repetição de determinadas tarefas, a
execução de determinados instrumentos e várias outras responsabilidades desenvolvem a au-
toestima das pessoas. Mesmo que haja certa competitividade, algo inerente às atividades em
grupo, essa disputa também não deixa de incentivar o desenvolvimento individual. É ela que
poderá levar o indivíduo para outro lugar, no sentido do desenvolvimento técnico e conceitu-
al. Notei que no candomblé e no samba as pessoas apresentavam uma entrega diferente de
uma simples participação, ou obrigação. Há uma relação forte, diferente de uma tarefa do
cotidiano. É como se aquele momento de extrema dedicação, desgaste e entrega constante
pelas muitas horas que essas pessoas ficam nesses locais, fosse o necessário para dar sentido
às suas vidas. A identificação, portanto, se faz pela relação que vai além do necessário na
simples execução de uma tarefa com começo, meio e fim.

  165  
 

Educação não formal


Nesses locais observamos uma espécie de formação continuada, chamada também de
educação não formal, ou informal. Observamos que, muitas vezes, essa forma educacional
pode ser a única para os participantes. Lembramos de alguns termos como Casa de Angola,
Tenda de umbanda e Escola de samba, todos, de alguma forma, reforçando o fato de serem
lugares de acolhimento e formação. Cria-se intimidade, propriedade, pertencimento e interes-
se das pessoas em estarem ali. Também há casos de gestões mal feitas que acabam afastando
as pessoas destes locais, promovendo um objetivo inicial distorcido desde o surgimento destes
espaços. Alguns deles são bastante competitivos e acabam afastando as pessoas.
Considerados como não formais, há uma série de procedimentos didáticos
metodológicos peculiares que fazem a diferença no aprendizado de seus participantes,
normalmente naqueles em estágios iniciais. É através de diversos métodos utilizados dentro
das estratégias de ensino da Cultura Popular que aspectos musicais impulsionam o
desenvolvimento do indivíduo dentro da sociedade. A performance final é almejada como
desafiadora e os exemplos dos mais velhos são transmitidos como referenciais para os mais
novos, algo que também apontamos em intergeracionalidade.
O que trazemos aqui são as diversas abordagens pedagógicas que também são
originárias dos traços da cultura africana, em ambos os locais. Algumas delas determinam a
própria continuidade dos traços mantidos e utilizados como estruturais nessas comunidades:
a) a repetição, conforme já visto acima, b) a associação do aprendizado de um ritmo a partir
da melodia, letra, c) os fundamentos da religiosidade ou do samba, d) a observação e
imitação, e) a exaustão física, associada ao desempenho desejado e entrega à proposta destas
linguagens, entre outros. Enfim, são diversas práticas específicas que geram resultados para
suas comunidades. Tais ações são repensadas constantemente, mas possuem uma conexão
com o período pré-diaspórico, em que há um sentido filosófico dentro delas associado à
execução instrumental. Nesse caso, a performance final desafiadora acaba sendo um elemento
formativo de amplos aspectos do indivíduo, multiplicado pelo resultado do coletivo. O ritmo
compreendido como multidimensional no sentido musical, conforme trazido por Graeff no
Capítulo I, e social, conforme corroborado e ampliado por nós ao identificarmos estas
relações nas comunidades, torna-se um elemento de formação pessoal.
A partir do desenvolvimento de diversas etapas, os aprendizes se colocam socialmente
e profissionalmente em suas comunidades, mas também fora delas. Esse processo funciona
como uma espécie de empoderamento. Nesse sentido, o significado para este termo faz-se a
partir da educação considerada não formal nestes locais, que é extremamente importante para

  166  
 

a formação das pessoas e para o crescimento destas comunidades de forma ampliada, dentro e
fora delas.

Prática familiar
Algumas peculiaridades dentro dos métodos e das diversas práticas em algumas mani-
festações, são marcas que reconectam com uma origem passada, o que pode acontecer nas
mais variadas formas. Uma das maneiras mais características é a propagação dos conteúdos
no princípio da intergeracionalidade, como falamos, mas também pelo que se transmite dentro
de uma mesma família. O conceito de família nesse caso pode ser ampliado. Num primeiro
momento, o termo se refere mais especificamente àquilo já estabelecido, ou seja, a formação
de núcleos pontuais de pessoas de uma mesma árvore genealógica, aquelas que possuem os
mesmos sobrenomes e normalmente se instituem tradicionalmente em um ambiente dividido
coletivamente: pai, mãe e filhos, de forma resumida. Isso já nos leva a compreender algumas
características divididas entre os membros de uma mesma família nas dinâmicas encontradas
e desenvolvidas nos ambientes aqui investigados. Porém, num segundo momento, outra pos-
sibilidade de definição do termo deve ser considerada. Para muitas comunidades, é a sensação
de construção de um grupo específico com o qual a pessoa se identifica e sente pertencer. Ou
seja, indivíduos que se apoiam entre si e que compactuam as mesmas práticas, definido como
um grupo identitário familiar, independentemente da quantidade de membros e de árvore ge-
nealógica.
Nos locais acompanhados para fins de análise, percebemos essa última definição como
essencial para a construção e troca de diversos saberes, incentivados e supervisionados pela
chamada “família”. Em uma bateria de escola de samba, o mestre normalmente se comunica
com o grupo com definições essenciais de família, objetivando criar e manter vínculos, a par-
tir do conceito inicial familiar, aquele que representa unidade. Nesse conceito, há a necessida-
de de colaboração mútua, já que todos precisam participar e dividir ações em prol do mesmo
objetivo, solucionar problemas e crescer coletivamente. Pensando dessa maneira, todos se
desenvolvem, funções específicas podem ser direcionadas e tarefas são atribuídas. Em uma
roça de candomblé também é comum o zelador – o sacerdote supremo – e todos os filhos de
santo, se referirem ao grupo como parte de uma mesma família. Como exemplo, o próprio
zelador é chamado de Pai, e alguns orixás também. Estes últimos, quando entendidos como
do gênero masculino, são chamados de Pai, e quando femininos, de Mãe: Pai Oxóssi, Pai Ara-
ribóia, Pai Marujo, Pai Ogum, Mãe Iansã, Mãe Oxum e Mãe Iemanjá.

  167  
 

Outro termo que utilizamos no decorrer de todo o trabalho é filhos de santo. Os ogãs
são considerados nascidos feitos, e por isso já possuem, de acordo com os preceitos da reli-
gião, sete anos de iniciação, mesmo quando não foram raspados. Estes, obrigatoriamente,
precisam ser chamados de Pai, igualmente como acontece com as ekédis – mulheres, filhas de
santo, que são chamadas de Mães ekédis.
O Pai de santo trata seus filhos como parte de uma mesma e grande família, não mais
aquela carnal que também participa da religião, mas aquela que abarca todos os iniciados a
partir dos mesmos objetivos, nesse caso o do culto aos orixás. A prática familiar é uma carac-
terística realmente bastante marcante nesses locais, e todos se correspondem com sentimentos
de um grande grupo familiar. As responsabilidades são divididas e todos são considerados
culpados quando algo não dá certo. Do mesmo modo, todos se envolvem na exaltação com a
coletividade e suas conquistas, que podem ser compreendidas como sociais.
Uma característica marcante dentro do primeiro conceito de família aqui considerado,
é aquele onde as pessoas de uma mesma árvore genealógica transmitem seus conhecimentos a
partir da convivência em uma mesma casa. Naturalmente, muitos ritmistas e ogãs são indiví-
duos de gerações mais novas que foram influenciados pelas práticas e costumes de gerações
anteriores. Observamos muitos mestres de bateria derivados da mesma família, e algumas
vezes mais de um filho reproduz profissionalmente o que foi apreendido das sabedorias de seu
pai.
Em São Paulo, vemos isso claramente na família do amplamente conhecido e respeita-
do Neno (Roberto Moreira), cujos filhos também são mestres: Fernando e Felipe Moreira.
Ambos os filhos possuem alta projeção no contexto graças a esta prática familiar. É comum,
enquanto o mestre rege a bateria, seus filhos menores de idade (a partir de 6 anos de idade)
também serem vestidos como um mestre aprendiz, com apito pendurado no pescoço, baqueta
normalmente na mão direita para reger e também com a mesma vestimenta do pai, mostrando
referência a um modelo representativo da mesma família. Este mesmo mestre que está como
modelo atualmente, pode ter tido outros familiares como seus influenciadores. Um exemplo
disso foi observado no GRCSES Tom Maior, no ano de 2011. Enquanto mestre Carlão co-
mandava sua bateria, seu filho tentava imitá-lo e acabava também sendo um representante de
uma cultura familiar. A sensação de todo o restante da Escola era de reconhecimento, de um
sentido coletivo que desemboca em nosso segundo conceito de família – o do grande grupo
familiar, das comunidades e suas práticas.
A participação de crianças é uma característica marcante da democracia e do sentido
coletivo. Muitas vezes presenciamos diversos carrinhos de bebês praticamente dentro das ba-

  168  
 

terias, com os filhos de algum ritmista ou rainha de bateria. Mesmo sendo considerado um
ambiente insalubre, com relação à sonoridade excessiva dos instrumentos e pelo sistema de
som, algo não recomendado para crianças pequenas, a realidade nas quadras das Escolas de
samba é outra. Esse fenômeno, que pode até ser alvo de crítica, dentro de determinada racio-
nalidade, não representa aquilo que o encontro das gerações em formação cultural promove.
Isto ocorre exatamente da mesma maneira nos terreiros, enquanto os ogãs mais velhos tocam
os atabaques e cantam as cantigas e os filhos menores ficam pelo barracão. Muitos deles já
começam a arriscar as primeiras execuções dos instrumentos, dançando na gira ou cantando,
em alguns intervalos dos xirês. Em uma roça de candomblé também há momentos para a prá-
tica familiar entre a família carnal do Pai de santo. Nesse momento, os filhos carnais estão
sendo formados para serem os novos sucessores. Pouco a pouco, eles assumem os postos dos
mais velhos, (caso do Tata Kilonderu, Kamuanga, Kianleci, Zaira, Luanda e outros), na Casa
de Angola Kyloatala.
A prática familiar representa tanto para estas culturas, que pode determinar a continui-
dade da própria tradição, que dependerá do que é transmitido e consequentemente reproduzi-
do pelas novas gerações. É praticamente uma necessidade para a sobrevivência destas mani-
festações e pode ser comparada à continuidade de uma árvore genealógica.
Relativização do tempo
Sabemos que tanto no candomblé quanto no samba, ser do santo ou sambista, é muito
mais do que uma escolha, é também uma postura em relação às possibilidades de uma forma
de viver diferente da que se enquadra necessariamente no sistema, fato observado em relação
ao tempo cronológico das atividades e no que faz sentido para os indivíduos envolvidos nes-
ses processos. É como se fosse algo atemporal e contrário ao que politicamente se estabelece.
Não estamos afirmando aqui que todos os envolvidos são dessa forma.
Sabemos que para qualquer organização social é necessária uma organização, e que
esta depende completamente do tempo cronológico. A dependência que criamos com o reló-
gio é algo realmente visto como a não possibilidade de qualquer ação fora do tempo calculado
para a execução de diversas tarefas do nosso dia a dia. Até para a nossa organização familiar
sabemos que dependemos dessa premissa, temos horário para tudo, para levantar, para levar
filhos para a Escola, chegar e sair do trabalho e assim por diante. Nesse sentido, não conse-
guimos imaginar uma outra forma, pois criamos essa dependência e em partes ela dá conta de
parte de uma lógica social.
Apesar dessa organização a partir do tempo “do relógio”, percebemos uma outra rela-
ção entre os sambistas e o povo de santo. Algo que para os que não são do meio fica difícil de

  169  
 

entender pelas necessidades de rotina. Atualmente, isso vem se modificando, pois também
para a própria organização destes locais e pelo alto número de participantes de uma Escola,
por exemplo, fica praticamente impossível organizar todos os procedimentos e necessidades
para o todo.
Mesmo assim, notamos que em determinados momentos, a falta de obrigatoriedade
com um começo, meio e fim cronometrado não parece ser uma preocupação. Isso ocorre exa-
tamente pela catarse que acontece no processo ritual, onde tudo se transforma e poderá acon-
tecer sem a interrupção de uma hora marcada. É exatamente esse método que poderá levar a
um resultado esperado dentro de uma prática, como a incorporação, a dança e o que poderá
ser construído musicalmente pelo conjunto percussivo. Então, de certa forma, uma possível
libertação de um tempo exato pode ajudar em melhores resultados.
Observamos isso muitas vezes em ensaios de bateria e nos xirês. Para quem não está
acostumado, determinadas ações tornam-se extremamente cansativas, porém para o povo da
Casa ou para os Sambistas, a relação é diferente, parece que a entrega com o que está sendo
realizado tem uma outra conexão, diferente de uma forma muitas vezes fria com que realiza-
mos nossas tarefas diárias. Nas festas para os orixás que acontecem dentro do calendário da
religião anual nos terreiros, esse descompromisso com o tempo cronológico é um hábito que
pode ser entendido como uma simples desorganização, porém pode significar outra relação
com a proposta. É muito natural que estes rituais comecem a partir das 20 horas e não tenham
hora para acabar. O que acontece, por exemplo, é o fato de existirem pessoas – como os
yawós e os zeladores – incorporados dos orixás. Apenas quando estas pessoas, que possuem a
capacidade mediúnica da incorporação, ficam livres do que incorporam, ou seja, a partir do
momento em que os orixás vão embora e saem do corpo dos yawós e zeladores, é que pode se
iniciar o processo de finalização dos ritos. O que se sabe, normalmente, e que ocorre de forma
mais precisa, é o horário de início que ocorre com pouco ou nenhum atraso, porém o término
é bastante relativo. No caso descrito acima, por exemplo, não é possível você despachar um
orixá pela sua própria vontade, apesar de existirem formas de incorporação diversas – das
mais programadas às totalmente dependentes do tempo abstrato.
Para os sambistas, normalmente, os ensaios de bateria ocorrem dentro de um tempo
determinado. Porém, os ensaios com toda a comunidade, aqueles que acontecem normalmente
uma vez por semana para que as pessoas se identifiquem com o novo samba enredo para o
desfile do ano, não se iniciam na hora correta e normalmente atrasam entre uma ou duas ho-
ras. Do mesmo modo, não terminam rapidamente, com no mínimo duas horas de duração,
incluindo o tempo de execução específico da bateria. Estes ensaios são exaustivos e parecem

  170  
 

somente fazer sentido para as pessoas que estão dentro dele, as que fazem parte da Escola e
que teriam maior conexão com o próprio ritual.
Outro detalhe importante a ser relatado aqui é o fato de que mesmo no término destes
ensaios longos com toda a comunidade, é natural que se formem pequenos grupos com batu-
cada nos quais as pessoas continuam cantando, dançando e executando instrumentos de per-
cussão. Fica claro o descontentamento com o término do que é produzido coletivamente. A
energia do coletivo reverbera e estimula as pessoas a continuarem com o ensaio segmentado.
Mais um exemplo se dá em dias de festa nas quadras, nos quais muitos grupos de samba reali-
zam performances no palco e tudo vira uma grande festa. Em dias de encontro de Festas de
bateria, quando algumas baterias (normalmente entre 3 e 6) se apresentam em determinada
escola, estes grupos de samba realizam suas apresentações. Dessa forma, além das 7 baterias
(calculando no máximo 6 convidadas mais a da casa da Escola que sedia o Encontro), para a
maior parte dos envolvidos há a necessidade de complemento com outros grupos, como os de
samba tradicional ou pagode. Dessa forma, o tempo não é uma preocupação, pois a libertação
dele é uma forma de conseguir se desligar dos problemas do dia a dia, um dos sentidos do
próprio carnaval.
Há outros fatos relacionados à relativização do tempo que também acabaram gerando
determinadas formas de preconceito, mesmo que isso ocorra de acordo com a lógica de parte
destes locais. Existe um consenso comum em não chamar sambistas para determinados traba-
lhos, justamente aqueles com hora marcada, pelo fato de não saber se realmente estes chega-
rão dentro de determinados horários. Isso é complexo, pois mostra como uma prática dentro
de um contexto pode interferir negativamente em outro. Apesar de isso realmente ter se tor-
nado uma forma de preconceito, por generalizar o comportamento de todos os envolvidos, por
outro lado essa necessidade parece não fazer sentido ainda para parte dos sambistas. Esta pa-
rece ser uma forma de resistência a certas adequações sociais, já que o Samba também é visto
como elemento de combate a padrões dominantes56.
Lembramos também da frase histórica do compositor Adoniran Barbosa em uma de
suas músicas que ironiza a sistematização social – “Você sabe o que nóis faz, nóis não faz
nada”. Neste mesmo documentário (indicado na nota de rodapé desta página), no minuto se-
guinte (26’), Toniquinho Batuqueiro – baluarte do carnaval paulistano – cita a possibilidade
do sambista trabalhar ou não, como se fosse uma escolha da parte destas pessoas, e até uma

                                                                                                               
56
Ver Documentário - Samba à Paulista Parte 1, minuto 25. Disponível em: https://youtu.be/KD1gx9xxVD8.

  171  
 

dificuldade em se adequar ou cumprir certas rotinas, aquelas consideradas mais normais den-
tro do sistema social adotado.
Vale refletir aqui sobre o entendimento de outras possibilidades existenciais. Não nos
compete criticar, porque desta forma estaríamos julgando certos comportamentos apenas por
não serem aqueles que achamos serem mais apropriados. Quando analisamos grupos sociais
complexos, precisamos entender diversas tensões neles existentes e, portanto, o que é signifi-
cativo para eles, pode ser exatamente o contrário de outras formas de existir. Para entender
outras culturas, e essencialmente as que fazem parte de um outro grupo étnico, é necessário se
libertar de crenças e experiências pessoais. O que pode ser significativo dentro de um grupo,
para outro pode ser exatamente o oposto. Não nos cabe, por exemplo, estabelecer que essas
pessoas não têm uma organização necessária, pois isso seria subestimar outras formas e senti-
dos de vida. Ou seja, os fatos aqui discutidos não significam a impossibilidade de que esses
grupos se encaixem em determinadas rotinas, e que por isso sejam menores e não apresentem
uma organização própria, já que no final geram os resultados esperados, mesmo que de forma
caótica, quando vistos através daquilo que é convencionalmente estabelecido socialmente.
4.6 Códigos visuais
4.6.1 Imagens, Cores, Vestimentas, Símbolos
Imagens
Em muitas das relações observadas em comum entre os terreiros e o contexto do car-
naval como um todo, presenciamos uma série de representações destas relações nos mais va-
riados níveis. Um dos destaques principais foi a utilização de imagens consagradas no sincre-
tismo, pela mistura entre o catolicismo, a umbanda e o candomblé, já que dividem as mesmas
representações – os santos em comum com nomenclaturas diferentes e que já relatamos ante-
riormente neste trabalho. Para nossa surpresa, há uma a quantidade considerável de imagens
apresentadas em formato de estatuetas em lugares estratégicos de proteção espiritual, como os
pequenos altares construídos em algumas quadras, com uma quantidade dominante de orixás
em relação a outros santos.
Além dos altares, muitas destas imagens se apresentam em outros locais nas quadras
como no quarto da bateria, na sala da Diretoria ou Comissão Técnica e Presidência, e até no
palco utilizado para ensaios, onde os intérpretes e diretores de harmonia ficam durante os en-
saios e festividades. Nos terreiros, estas imagens nem sempre são utilizadas, por serem con-
feccionadas comercialmente e estarem à venda em casas de artigos religiosos, o que fica dis-
ponível para qualquer pessoa da religião ou simpatizante para que possa utilizar em sua casa
de forma particular. Nos terreiros não há essa necessidade porque os orixás estão representa-

  172  
 

dos diretamente nos xirês – em ibás e estátuas de nkisis –, e nas incorporações – com suas
roupas e ferramentas. Ou seja, eles são incorporados pelos yawós (médiuns), que são entendi-
dos como a presença do próprio orixá, como se as entidades tivessem saído do orum (o local
aonde vivem os orixás) e estivessem ao vivo, de forma carnal, no ayê (a terra aonde vivemos).
Mesmo assim, em algumas casas, mais comumente nas de prática Umbandista, as esta-
tuetas são muito comuns e ficam localizadas em mesas ou outros lugares. Muitas delas são
fortemente identificadas como sincréticas: Yansã (Santa Bárbara), Ogum (São Jorge), Oxóssi
(São Sebastião), Oxum (Nossa Senhora da Conceição) e muitas outras.
As imagens sagradas, independente do tamanho que elas possuam e com quais materi-
ais foram confeccionadas, possuem diversos significados pessoais, mas também representam
a possibilidade de reconhecimento e tentativa de reconexão com o sagrado permeado por toda
uma cultura. No caso das Escolas de samba, trata-se de uma reconexão com o que é trazido
dos terreiros e que também se mistura com outras religiões.
Os carros alegóricos, por exemplo, constantemente apresentam impressões de orixás
lateralmente, em espécies de placas coloridas de plástico onde as imagens destes ficam em
alto relevo e em volta de todo o carro. O carro como um todo pode ser um orixá, as fantasias
diversas dos passistas, as camisetas e bonés utilizados por sambistas em dias de ensaios e fes-
tividades, e também camisetas do próprio enredo do ano quando se homenageia algum orixá,
terão a imagem impressa em tamanho ainda maior. Além da imagem, muitas camisetas apre-
sentam também nomes diversos escritos: Oxum, Xangô, Oxalá, entre outros.
Em toda a estrutura de uma Escola de samba pode aparecer uma imagem de algum
orixá: a) Comissão de Frente (na própria fantasia dos integrantes ou naquela espécie de carri-
nho que é levado durante o desfile), b) em qualquer fantasia de passista, c) na fantasia da ba-
teria (quando esta é associada a algum mais especificamente ou pelo enredo), d) nas alas
(aonde o roteiro do enredo é apresentado durante o desfile em ordem progressiva), e) nos car-
ros alegóricos e f) nas estatuetas em locais específicos da Escola, já relatados acima no texto,
entre outros.
Cores
As cores são elementos centrais nos terreiros e nas Escolas de samba. Nos terreiros por
determinarem os orixás específicos e estes serem reconhecidos primeiramente pelas cores que
os representam, e nas agremiações carnavalescas por representarem a própria identidade de
cada uma delas. Em muitos dos casos aqui analisados, diversas Escolas são reconhecidas ini-
cialmente pela cor, ou pela mistura de algumas cores que representam a identidade destas
instituições. Notamos que em algumas das Escolas mais tradicionais, a escolha pela cor que as

  173  
 

representa, desde o início de sua fundação, foi determinada pela proteção de um orixá especí-
fico, considerado o protetor e constantemente reverenciado em homenagens pelas Escolas.
A forma mais conhecida de se homenagear os orixás são os enredos, nos quais as co-
res assumem um papel fundamental. Um exemplo disso pode ser visto na utilização de diver-
sas cores na representação dos 14 orixás mais cultuados no Brasil na comissão de frente da
Escola de samba Mancha Verde, no desfile do ano de 2012, na cidade de São Paulo57. Neste
desfile, os integrantes da comissão de frente utilizaram vestimenta na cor de cada orixá. Além
disso, utilizaram ferramentas representando-os, como exemplo: o machado de Xangô com
vestimenta vermelha, o pachorô de Oxalá com vestimenta branca e o escudo e espada de
Ogum com vestimenta azul.
A Escola mais representativa da questão da cor associada a um orixá é o GRCSES
Acadêmicos do Salgueiro – vermelho, orixá Xangô. Muitas Escolas dividem a proteção do
mesmo orixá, como é o caso de Ogum (no sincretismo São Jorge), responsável pela proteção
de várias Escolas, o que veremos mais abaixo. Nesse caso, a cor não seria algo determinante
porém, a proteção do orixá sim. Lembramos também que um mesmo orixá pode possuir di-
versas vestimentas, dependendo do conceito do rito. Assim, cada cor representa um significa-
do, porém, mesmo assim há relações mais diretas com determinadas cores e seus Orixás, por
exemplo: azul com Iemanjá, branco de Oxalá e verde de Oxóssi.
O que hoje se chama quadra da Escola, antigamente era chamado de terreiro como
ainda é denominado os lugares aonde acontecem os cultos de umbanda e candomblé.
As cores das Escolas de samba foram escolhidas segundo homenagens a santos da
igreja católica ou às entidades da umbanda e do candomblé. Assim Oxalá equivale a
Nosso Senhor do Bonfim, Ogum que corresponde a São Jorge é padroeiro de diver-
sas Escolas tais como Beija-Flor, Império Serrano, Imperatriz Leopoldinense, União
da Ilha, Porto da Pedra e Grande Rio. Xangô corresponde a São Jerônimo e São Pe-
dro é Orixá padroeiro do Salgueiro. (BARBOSA, 2011)

Vejamos abaixo alguns dos setores mais representativos da utilização das cores nas
Escolas de samba: a) Estandartes e Bandeiras em geral, b) bateria – camisetas, bonés, instru-
mentos, peles, c) fantasias nas alas, d) alegorias – carros alegóricos e outros, e) ala das baia-
nas – o branco utilizado nas roupas com destaque para as enormes saias rodadas, referência à
religiosidade das tias baianas (mães de santo), responsáveis pela influência delas no surgi-
mento do samba da Bahia para o Rio de Janeiro e em referência ao próprio orixá central –
Oxalá, orixá do equilíbrio, da harmonia e da paz e soberano, f) camisetas e roupas diversas
dos passistas, g) a vestimenta e trejeitos do Exu associado ao malandro sambista – indivíduo

                                                                                                               
57
Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/1818725/.

  174  
 

central no imaginário referencial do verdadeiro sambista e h) as cores utilizadas na pintura das


quadras.
Com relação às cores escolhidas para representar cada pavilhão, grande parte dos
entrevistados atestou existir relação destas com a vestimenta de determinados orixás, como no
GRCSES Acadêmicos do Salgueiro, cujas cores vermelho e branco fazem referência ao orixá
Xangô. Além desta relação a utilização do branco seria algo derivado da religiosidade.

Vestimentas
As vestimentas utilizadas por filhos de santo e sambistas, dividem algumas semelhan-
ças derivadas da conexão destes ambientes – os terreiros e as escolas – desde os primórdios.
Seria a partir da frequência de indivíduos em ambos os locais que isso teria começado. Apesar
de ainda não termos maiores comprovações nesse sentido, achamos relevante destacar certas
semelhanças.
Segundo Dennys Silva, relevante percussionista, ritmista e diretor de bateria na cidade
de São Paulo, a utilização de roupas de cor branca trazida por ogãs, por exemplo, ocorre des-
de os tempos do início das Escolas:
Antigamente muitos ogãs deram origem às baterias, era muito comum sair do terrei-
ro para batucar nas baterias, então muitos dos que chamamos ritmistas hoje, na ver-
dade foram ogãs e ao mesmo tempo ritmistas. Isto derivou muitas características,
aquelas que nós vemos hoje nas baterias e também nas Escolas como um todo. Em
muitos setores há essa herança, a da influência das religiões afro. Na minha família
mesmo, há muitas gerações, o povo vai para todos os cantos. Todo mundo tem mui-
tos kits de branco e utilizam os mesmos nestes locais desde sempre, e pelo que me
contam sempre foi assim. (SILVA, Dennys. 10/08/2019. Quadra do GRCES Império
de Casa Verde Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)

Dennys refere-se à circularidade dos indivíduos afrodescendentes de sua família na


participação de terreiros e de Escolas de samba, como algo extremamente conectado e que,
portanto, representa o mesmo sentido para as suas práticas.
Roupas brancas e adereços
A utilização de roupas brancas nos pareceu ser uma marca central na transição de ele-
mentos dos terreiros para as Escolas de samba. Nos terreiros, o branco é utilizado e a justifica-
tiva da escolha dessa cor se dá pela neutralidade da mesma. Por isso, ela seria a cor responsá-
vel pela harmonização de todas as outras, como as utilizadas nas vestimentas dos orixás in-
corporados. É muito comum que um filho de santo tenha diversos conjuntos com roupas
brancas, comuns para o dia a dia e mais sofisticadas para ocasiões especiais. Vejamos alguns
dos principais itens: calças, camisetas, batas, quipás e sapatos. É comum a um filho de santo
já iniciado ter em seu guarda-roupa diversas peças que serão utilizadas nos rituais, e também
as roupas consideradas de gala para festas maiores.
  175  
 

O uso de correntes e anéis de ouro por parte de pais de santo também representa ou
simboliza poder e autoridade, algo muito criticado por algumas pessoas que relacionam o uso
exagerado de alguns destes elementos com pouca espiritualidade, visto que o dinheiro estaria
substituindo o verdadeiro desenvolvimento espiritual.
O mesmo ocorre com aqueles chamados de “verdadeiros sambistas”, aqueles que, des-
de a execução instrumental até a escolha e cuidado com a vestimenta, também representam
um sinal de respeito e conexão maior com o samba. Os sambistas mais antigos apresentavam
com maior naturalidade essa relação com a vestimenta e também com a própria dedicação e
respeito com o todo. Observamos alguns destes cuidados em muitas situações nas Escolas de
samba, o que entendemos como herança dessa relação da vestimenta nos terreiros. Para o po-
vo de santo, a limpeza com a roupa também é uma necessidade, de acordo com o respeito
necessário em prol do próprio orixá, que reconheceria essa dedicação e ajudaria o indivíduo
com uma vida melhor, em resposta a essa dedicação.
Vejamos algumas práticas que apresentam cuidados e características na utilização da
vestimenta nas Escolas, o que seria herdado da religiosidade: a) roupas de mestre salas e porta
bandeiras, b) fantasias de passistas, c) roupas de ritmistas para festas e ensaios técnicos – cal-
ça e sapatos e em alguns casos tênis brancos, d) estilos de sapatos sociais e brancos (iguais
aos utilizados em festividades mais importantes nos terreiros), e) utilização das guias espiritu-
ais com as cores dos orixás também são comuns em mestres, diretores, ritmistas e sambistas
em geral, e também complementa a vestimenta, f) a utilização de correntes, anéis simbolizan-
do poder e status, provável herança africana e afro-norte-americana, g) roupa utilizada pelas
baianas, que é a mesma das mães de santo e, muitas vezes, essas participantes são mães de
santo – fato comprovado na migração das tias baianas, como a Tia Ciata, no início do samba
carioca e das Escolas de samba.
No Brasil inteiro, as Escolas de samba tiveram um papel fundamental na preserva-
ção das tradições dos terreiros. A obrigatoriedade da ala das baianas é a marca in-
contestável da herança de Tia Ciata e da presença do candomblé na formação das
escolas. (DIÁLOGOS...58, 2017. Notícia.)

O sentido de adereços como correntes e anéis, que compõem parte da vestimenta dos
participantes dos terreiros e dos sambistas, nos parece ter uma conexão com hábitos herdados
de povos diversos.
Outro ponto observado nos diversos cuidados com as roupas utilizadas por essas pes-
soas, é a tentativa de reconhecimento social através do uso das mesmas. Segundo alguns en-
                                                                                                               
58  Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/do-terreiro-a-avenida-o-tempo-e-o-
templo-dos-orixas/  

  176  
 

trevistados, essa é uma prática herdada desde a infância, devido ao fato de a própria família
ter sofrido preconceito por gerações em períodos anteriores, quando o preconceito racial era
ainda mais severo no Brasil. Segundo eles, há um esforço por parte deles (negros) em relação
à limpeza das roupas, já que este poderia ser mais um alvo de preconceito, além dos que eles
já sofrem socialmente. Segundo Vitor da Trindade, os indivíduos afrodescendentes no Brasil
apresentam níveis altíssimos de pressão alta, sintomas recorrentes de algumas justificativas
que eles (os negros) teriam que dar o tempo todo pelo fator de sua cor. Isso corrobora com os
cuidados que os negros teriam que ter também como justificativa da própria existência, como
se socialmente eles pudessem ser mais aceitos pelo fato de estarem mais bem apresentados.

Figura 16 - Ricardo Amaral, integrante do Grupo Senzala Antiga, com vestimenta branca e guias espi-
rituais utilizadas como proteção e reverência aos orixás

Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro, 23/9/2017, Quadra do GRCSES Caprichosos do Piqueri59.

                                                                                                               
59
O lampião em cima da mesa com toalha branca, também representa os tempos de cativeiro e é símbolo da
entidade Preto Velho.

  177  
 

Figura 17 - Integrantes da bateria do GRCSES Império de Casa Verde em Ensaio Técnico, com calça e
calçado branco

 
Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro, 21/01/2019, Sambódromo do Anhembi.

4.7 Múltiplas habilidades


4.7.1 O corpo sonoro
O corpo é uma ferramenta essencial nas manifestações aqui estudadas, sendo central
para a atuação de excelência dos ritmistas e ogãs. Além deste aspecto unificado entre o ritmo
e o movimento, o que se reproduz com o corpo através da expressividade e características
dessas linguagens também é transmitido, recebido e estimulado como uma automática ligação
do individual com o coletivo de forma ampliada. Isso significa que o resultado de todo o con-
junto, consiste na relação entre quem toca e quem dança, como na relação dos ritmistas com
as passistas, com o público e com todos os intérpretes de uma forma geral durante todo o des-
file. Ambos (ritmo e movimento) pulsam fortemente de diversas formas: a) pulo para o alto na
pulsação do samba enredo, b) movimentos laterais de acordo com a subdivisão, juntamente
com a linha rítmica dos instrumentos que fazem a sustentação da bateria, c) movimentos
combinados para a movimentação da bateria quando está em deslocamento na avenida, d)
marcações e interrupções nos breques expressados nos corpos do público em geral, entre ou-
tros.
Robson Campos realiza um ensaio com os seus ritmistas correndo enquanto tocam em
volta da quadra da escola. Segundo ele, é para o caso de ocorrer a possibilidade de ter que
passar rapidamente no final do desfile, toda a bateria precisa conseguir tocar com a sonorida-

  178  
 

de desejada enquanto corre. Isso de fato aconteceu durante um desfile da escola no ano de
2018 e, segundo o mestre, caso não houvesse ocorrido essa preparação anteriormente, não
teria sido possível fechar o desfile de toda a Escola no tempo limite.
Tocar um instrumento por si só já pode ser uma tarefa bastante desafiadora nesse con-
texto, e unir isso com uma corrida pode ser trágico. Muitas vezes, em ensaios nessa Escola, o
mestre solicita a movimentação corporal de seus ritmistas. Para Robson, o ritmista precisa
balançar, não tem como tocar dentro da linguagem do Samba sem pulsar junto. Esta seria uma
estratégia deste e outros mestres, e do samba em geral, objetivando a coerência com a lingua-
gem musical, herança da integração do corpo com a música – característica intrínseca às prá-
ticas percussivas em musicalidades africanas. Não há música sem movimento, mesmo que
minimizado em alguns casos. Este conceito se mostra de forma oposta ao do Ocidente e de
algumas outras escolas musicais, onde a necessidade é exatamente oposta, executar com a
maior precisão técnica e sonoridade possíveis. Nesse outro contexto, o mínimo movimento,
extremamente medido, é mais adequado. Embora pareça ser algo robotizado, é uma necessi-
dade em determinados casos.
Também não adianta balançar o corpo e reproduzir uma sonoridade incoerente com
determinadas especificidades contextuais. Dessa forma, pode haver um exagero, como deter-
minadas coreografias excessivas em alguns contextos e sem a sonoridade ou precisão deseja-
das. Utilizar o corpo como conceito é algo automático no Samba. Precisa-se compreender
essa necessidade como algo que contribui com a própria performance. A sonoridade se modi-
fica de forma contrastante quando um ritmista tem o equilíbrio entre o ritmo e o movimento.
Nesse aspecto, o corpo integra-se com o todo no sentido do pensamento coletivo, pois o que o
ritmista realiza pode ser imitado e somado com todos os outros integrantes das Escolas e com
o público de forma geral, uma possibilidade inclusive de conquista de melhores notas no jul-
gamento dos quesitos evolução e harmonia. Movimentar-se junto com um grupo de 250 ritmi-
stas em dia de desfile, de forma organizada, é uma tarefa que precisa ser praticada, sentida e
reproduzida de acordo com o tempo, o que se aprende convivendo nesse contexto.
A mesma necessidade que o ritmista possui para executar seu instrumento e desfilar
(tocar em movimento), ocorre na formação de um ogã. O que o ritmista sente no samba, atre-
lado ao movimento, é também uma necessidade para o ogã. A única diferença é que o ogã
normalmente toca parado e não em movimento. A necessidade da utilização do corpo como
um todo para um ogã se dá em processos iniciáticos de formação nos ritos do candomblé. É
nesse momento que o ogã aprenderá as danças dos toques referenciais, de acordo com as can-
tigas utilizadas na sua saída de Santo. Existe, nesse momento, uma série de músicas, e o cha-

  179  
 

mado barco dos iniciados sai do roncó, para que eles sejam apresentados para a comunidade
como novos filhos da Casa. Em diversos momentos da chamada festa de saída, os iniciados
dançam, pois foram ensinados durante os dias de roncó. Dependendo da Casa, há uma série de
ensaios para esta festa de saída. Esse aprendizado é anterior à possibilidade de tocar o ataba-
que, pois isso só acontecerá depois, e é essencial para a boa relação e compreensão do ogã
que ele precisará interagir com os rodantes no xirê e com os orixás.
Outro momento de movimentação dos ogãs, ou seja, da relação do corpo conectado
com o todo, ocorre durante algumas festas específicas ou apresentações em locais externos.
Na festa para o orixá Exu, por exemplo, há um momento específico para a participação dos
ogãs dançando, uma espécie de desafio entre eles, e neste momento destaca-se a habilidade de
cada um, pois dançam individualmente de forma sequencial. Essa dança poderá ocorrer de
forma espontânea ou provocada como desafio, exatamente para mostrar que há uma disputa
em jogo, a da malandragem no sentido ampliado. Um bom ogã teria que se movimentar da
mesma forma que toca, não havendo separação do corpo com a performance musical. A ima-
gem que o público de forma geral tem dos ogãs, associados essencialmente ao toque, não
condiz com a necessidade de atuação e formação deles nas Casas de candomblé. O corpo co-
mo um todo é uma necessidade da linguagem artística e, consequentemente, na troca entre o
individual e o coletivo, da mesma forma que ocorre entre os ritmistas e as passistas e com o
público em geral. O estimulo da somatória necessária à força do coletivo é uma realidade nes-
ses locais. Este estímulo depende fortemente do que é sentido e transmitido pelo corpo desses
indivíduos.
É bastante natural e respeitoso o tratamento que se dá para as diferentes formas de uti-
lização do corpo nos ritmistas e nos ogãs. Cada um realiza o que é possível, não é algo coreo-
grafado, mas sim expressado pela somatória do que se sente coletivamente. O corpo é um
elemento condutor de toda a cultura diaspórica que está sendo manifestada, e é uma marca
indissociável e completamente necessária para a própria realização da manifestação.
Outro aspecto que notamos, quando nos foram apresentados sonoramente alguns to-
ques e suas transformações transculturais, é uma certa confluência entre alguns padrões que
anteriormente ocorriam numa fórmula de compasso e mudaram para outra. Ou seja, um mes-
mo padrão, ou um padrão muito próximo de algo anterior (clave ou levada), era realizado em
uma subdivisão ternária e passou para uma outra subdivisão em semicolcheias – mudando de
ímpar para par (uma subdivisão com três sub-pulsos ternários para quaternários), o que causa
outra interpretação e resultado sonoro. Nesse sentido a reverberação do corpo do ritmista,
nessa modificação, também interfere no resultado sonoro modificado. Como o ritmista marca

  180  
 

junto com o tempo (andamento) o timeline e a subdivisão, tudo isso somado é representado de
acordo com o entendimento de cada padrão, mesmo que seja de forma inconsciente. Este fe-
nômeno foi observado em dias de ensaio de bateria e em festas de candomblé (no caso dos
terreiros, há uma utilização grande da subdivisão ternária). Quando estes padrões foram leva-
dos para as baterias, e suas subdivisões foram modificadas, houve também transformação na
movimentação corporal, caso do alujá de Xangô para a levada de caixa em cima do Salgueiro
(Ver Capítulo V).
Os ritmistas também realizam algumas coreografias, combinadas ou não, quando ocor-
re o momento dos breques. Para reforçar o sentido destas convenções rítmicas em arranjos de
sambas enredo, podem ser preparadas pelo mestre uma série de movimentações realizadas
pelos ritmistas em dia de desfile. Estas são entendidas como uma forma de valorização do
espetáculo cênico como um todo.
São aqueles componentes ligados ou não à Escola de samba e que transmitem o rit-
mo do Samba através da ginga do corpo e, principalmente, mostram nos pés a músi-
ca do povo. [...] Há passistas que dançam com a marcação do surdo, outros do pan-
deiro, outros do atabaque, depende de sua formação. Não é todo samba que leva o
passista a mostrar todo o valor de sua ginga. Há necessidade de que o ritmo esteja
coordenado e que seu corpo sinta motivação para transmitir os movimentos. Todo
bom passista é altamente sensível ao ritmo (CANDEIA; ISNARD, 1978, p. 10).

O corpo também é um modelo de encenação e reforço do próprio espetáculo, represen-


tado no enredo da Escola. Essa necessidade é intrínseca ao ritmista, ele faz parte do espetácu-
lo e da encenação. Dançar, ou se movimentar minimamente, salvo raríssimas exceções, como
no caso de alguma limitação física, não é uma escolha, mas sim uma forma de mostrar a pró-
pria identidade do samba. O corpo em movimento pode ser compreendido também pelo pú-
blico como sentimento de felicidade, alegria. Esse sentimento está no imaginário popular so-
bre o samba, é uma característica diretamente relacionada com esse estilo. O ritmo tem papel
estrutural nessa transmissão corporal, pois é a partir dele que o corpo se manifestará, repre-
sentando as múltiplas necessidades de um autêntico sambista. A partir dos padrões herdados
do candomblé, o corpo se reconecta com estes através da movimentação das baterias.
4.7.2 Pluralidade: ritmo, canto e movimento
Em ambos os contextos aqui estudados, esta tríade é uma concepção natural, não ha-
vendo possibilidade de separação destes elementos. Para uma compreensão ampla do próprio
conceito rítmico há a necessidade de unir o canto e o movimento. Primeiramente, pela própria
função do percussionista em relação à troca entre a performance rítmica com a dança, con-
cepção herdada da diáspora e já discutida no tópico “Percussão como linguagem”. Outra
questão é a necessidade de compreensão técnica do ritmo. Para que este soe de maneira ade-
quada, há a necessidade do movimento corporal do seu executante, independente do grau em
  181  
 

que ele aconteça. A movimentação corporal impulsiona o executante dentro do andamento


desejado no coletivo. A sonoridade dependerá de determinadas movimentações para soar den-
tro do idioma determinado, seja nos terreiros ou nas baterias. Além dessa necessidade técnica
individual, pois essa tríade é inseparável, ela é também necessária para todo o grupo, como é
discutido no tópico intitulado “Elemento corpo conectado com o todo”, pois dependerá deste
impulso corporal individual, a movimentação de todo o grupo.
Outra questão, dentro da tríade, é a utilização da voz. O percussionista, para entender
determinados padrões, certamente precisará conhecer determinadas melodias e letras de can-
tigas do candomblé, assim como de determinados Sambas enredo, pelo menos os mais clássi-
cos, para assim compreender parte da construção musical ali realizada. Esta é uma questão até
profissional, já que a atuação deste músico no meio musical dependerá da intimidade com
esse repertório. Ele precisa reconhecer minimamente a letra de determinados sambas e, se
possível cantá-los, já que essa habilidade também é reconhecida em determinados contextos
como uma vantagem perante outros percussionistas que não a tem. Culturalmente falando,
não há maneiras de compreensão da função rítmica sem a utilização da voz e do movimento,
uma necessidade interdisciplinar. O conceito da performance individualizada, resolvida tecni-
camente somente por questões motoras sonoras separadas, não corresponde à realidade da
atuação dos ogãs e ritmistas. Ambos sempre estão utilizando a voz no sentido de apoio, pois
não há a necessidade de certas qualidades musicais como a de um cantor. No caso de ritmista
e ogã, cantar e se movimentar em diversos momentos da performance não é uma escolha, é
uma necessidade até prioritária em questões necessárias à coletividade.
O processo de aprendizado e intimidade com o canto e o movimento atrelado ao ritmo
– múltipla função do percussionista que vai de outra escola musical para estes contextos (meu
caso) –, é uma questão de prática e abertura para determinadas conquistas que determinarão
sua aceitação nessas comunidades, sendo necessário quebrar certos preconceitos utilizados
como estratégia de defesa. Para quem é do contexto, ou seja, nasceu ali e pratica isso desde
sempre, tudo é muito natural e nem é pensado, apenas imitado e sentido, algo natural para a
própria prática e evolução desses grupos. Os conjuntos rítmicos (falamos sobre o conceito
ampliado de ritmo em diversos aspectos, ver “Ritmo como fenômeno multidimensional” –
Capítulo IV) também provocarão modificações sociais a partir da música pela amalgamação
destes três elementos. É a partir da união destes elementos – ritmo, canto e movimento – que
novas perspectivas poderão ou não surgir. O que é sentido dentro do coletivo, promovido pela
tríade, representa a própria existência e evolução destes grupos. As comunidades se desenvol-
vem a partir desta tríade, é ela quem impulsiona e motiva novas conquistas. Podemos atribuir,

  182  
 

por exemplo, parte das notas de um campeonato em um julgamento de Escola de samba à


qualidade de um indivíduo reproduzido no coletivo pelas habilidades dentro da tríade, que
poderá ser o ponto de desempate dentro de alguns critérios de julgamento como evolução,
harmonia, canto e bateria.
No caso do candomblé, o ogã não possui este título apenas porque toca um instrumen-
to dentro de determinada excelência. Isso não basta. Uma de suas obrigações é puxar um xirê,
e muitas vezes vários. Cada xirê possui um repertório específico, de acordo com o que será
transmitido no enredo. Uma observação muito relevante é a escolha do mesmo termo – enre-
do – nas Escolas de samba. É assim que se fala dentro das Casas de candomblé, o enredo do
xirê. Cada enredo apresenta determinado orixá ou parte da mitologia africana, seja ela dentro
da cultura Bantu ou Yorubá, e também outras como Jejê ou Nagô. Cada estrutura ou roteiro
de um xirê muitas vezes é cantada por ogãs diversos. O primeiro que precisa ter conhecimento
destes repertórios específicos é o alabê. Sem essa competência, a de cantar e tocar, não há
alabê. Posteriormente, todos os outros ogãs, que estão presentes em grande quantidade, uma
média de dez para cada Casa devido à necessidade de revezamento durante o toque, precisam
cantar todo o repertório. No Kyloatala, por exemplo, o Pai de santo determina quem irá puxar
o enredo do próximo xirê, e assim, de maneira sucessiva, em cada festa haverá alguém pu-
xando e sendo preparado para o canto, necessidade essencial dentro da função de um ogã em
uma Casa de candomblé.
Outro momento que tem a necessidade da atuação tripla do canto, movimento e exe-
cução instrumental nas baterias é o ensaio em que são realizadas as convenções construídas
para o arranjo do samba enredo (os breques). Em muitos desses ensaios de bateria não há a
participação dos intérpretes de samba enredo. Nesse momento, o mestre pede para que todos
os ritmistas, a partir de determinado momento, normalmente na chamada virada de 2, quando
vai para a segunda parte do samba, comecem a cantar fortemente a letra do enredo. Somente
após todos cantarem com clareza e com muitas repetições, é que serão realizados os breques,
sendo que todos precisam saber em qual parte do samba cada um realizará determinada con-
venção, muitas delas em uníssono.
A utilização do canto é a única forma de localização para os ritmistas. Vivenciamos
este fato anualmente nos ensaios de bateria do GRCSES Império de Casa Verde, foi lá que
percebemos, durante muitos anos, a necessidade de pensar de forma diferente daquela que
havíamos aprendido em outros contextos musicais. Nesse mesmo momento, todos os ritmistas
realizam movimentos, com o objetivo já mencionado de impulsionar todo o grupo para a ma-
nutenção do andamento. Além dessa necessidade, existem alguns outros momentos em que há

  183  
 

um destaque para determinadas coreografias mais fortes. Essas coreografias possuem a função
de transmitir a força destes grupos, algo entendido como impulsionador para todos os indiví-
duos externos, necessidade essencial de uma bateria. Ou seja, a de sustentar um desfile de
uma Escola de samba, durante a passagem dos mais de 3.000 integrantes pelo sambódromo.
4.7.3 Flexibilidade no andamento, pulsação e matriz temporal
Uma característica bastante forte nos grupos percussivos aqui investigados se dá a par-
tir de uma relação diferente com a precisão, aquela que normalmente necessitamos em níveis
diferentes dependendo do contexto musical, caso de orquestras ou de execuções de repertório
originário de outras culturas e países, como os da tradição da música europeia, por exemplo.
É importante situar nosso leitor em relação a certas flexibilidades comuns dentro do
que consideramos como uma característica de certos estilos musicais. Na música popular, o
ritmo possui função essencial condutora da massa humana formada pelas pessoas que tocam e
que não tocam instrumentos. Mesmo assim, apesar desta ser uma premissa e, portanto, soar
como necessária uma determinada precisão, dentro do considerado andamento da música e
pulsação, há algumas variáveis que são relativamente aceitáveis em alguns estilos, enquanto
que em outros não.
Além desta necessidade, que determinará certa flexibilidade temporal, há a necessida-
de de ajustes de andamento, que variam de acordo com várias necessidades em ambas as per-
formances – xirês e desfiles. Vejamos o que Graeff (2012), nos traz a partir do conceito de
certa relativização temporal, abordado por Pinto (2001):
A pulsação elementar na música africana levanta até hoje controvérsias. Por um la-
do, há dificuldades em se comprovar sua existência por se tratar de um processo
subjetivo, inconsciente dos músicos. No caso do Samba de Roda, a percepção dos
pulsos elementares não é apenas subjetiva, mas também acústica. Por outro lado,
considera-se que a pulsação elementar deveria ser isocrônica, quer dizer, que as dis-
tâncias temporais entre as batidas deveriam ser exatamente iguais – o que é pratica-
mente impossível, inclusive para músicos que treinam com metrônomo. No entanto,
a suposta isocronia não se refere a uma exatidão temporal, mas sim a uma “rede fle-
xível”, ou à flexibilidade da matriz temporal (PINTO apud GRAEFF, 2012, p. 7).

Graeff (2012) destaca determinadas flexibilidades como inerentes ao ser humano, as


mesmas flexibilidades que citamos sobre o sistema de julgamento do carnaval paulistano, que
não condiz com as características conceituais da musicalidade afro-brasileira:
Tal não-isocronia costuma ser entendida pelas pesquisas microrrítmicas como “dis-
crepâncias participatórias” (KEIL, 1987). No entanto, ela é um fenômeno natural do
ser humano, sendo inerente à prática musical, e não uma discrepância, um desvio da
norma (GRAEFF, 2012, p. 7).

Na chamada música popular, há uma certa liberdade em relação a este tipo de preci-
são, visto que essa variação é entendida como natural em certos grupos, como nos terreiros e

  184  
 

nas baterias das Escolas de samba. A manutenção da pulsação é uma exigência em muitos
contextos musicais, porém, em alguns, ela pode fazer parte da própria linguagem. Vários
exemplos disso ocorreram em ensaios de bateria, desfiles e xirês, evidenciando que é muito
comum que a performance desses grupos seja variável. Isso interfere até nas ações e métodos
dos líderes e dos ritmistas e ogãs mais experientes. Estes indivíduos executam seus instrumen-
tos, ou apitos e gestos, para estimular uma manutenção de determinado andamento progra-
mado para a execução de todo o grupo. Para que isso aconteça, gestos grandes com os braços,
apitadas fortes e outros tipos de estímulos como os corporais, são utilizados como ferramentas
para impulsionar certa aceleração no andamento. Um momento crucial em que isto acontece
em uma bateria ocorre nas viradas de 2 ou de 3 que, como encaminha para uma parte com
menor potência sonora (volume) do samba, para uma parte chamada menor em relação à har-
monia musical, em que a intensidade do conjunto rítmico cai, diminui.
Para que essa queda na intensidade não seja tão marcante e se misture com a automáti-
ca queda do andamento – erro corriqueiro em execução musical, principalmente em conjuntos
coletivos –, há a necessidade de exigir mais força física e sonoridade de todos os ritmistas,
para que o andamento não caia e possa haver potência e volume necessários à massa sonora
proporcionada pela bateria. Nesse momento, o que acaba acontecendo muitas vezes (presen-
ciamos isso tocando junto com esses grupos), é uma aceleração no andamento, algo natural
para tentar não deixar cair tanto o andamento do grupo com uma média de até 250 integrantes
em dia de desfile. Essa, e outras estratégias dos mestres, são uma marca característica de osci-
lações diversas durante uma performance de até uma hora de duração, com um grupo tão
grande de pessoas. Controlar isso minuciosamente, mesmo com tolerância em pequenas vari-
ações, pode ser visto como uma regra não condizente com essa linguagem musical, que pode-
ria ser considerada como um modelo musical diferente da realidade. Utilizar uma ferramenta
mecânica para medir essa quantidade de músicos e suas variáveis significa considerar um
pensamento ocidental como dominante, o oposto do que a musicalidade afro-brasileira tem
como essência, exatamente as variáveis.
Por outro lado, a tentativa de determinar isso como regra é um caminho para tentar es-
tipular certos itens em prol da escolha de uma bateria que varie menos nesse ponto. Observar
no metrônomo uma certa precisão no andamento, de forma comparativa, quando uma bateria
está em performance, se movimentando, e muitas vezes embaixo de chuva, também não pare-
ce ser uma ação que leve em consideração características fundamentais herdadas via diáspora.
Compreendemos as tentativas de controlar minimamente essa questão por parte da Liga das
Escolas de samba e dos jurados, mas achamos necessárias discussões mais adequadas em re-

  185  
 

lação às características de certas linguagens musicais. É uma compreensão fundamental para


poder considerar outras questões, como a criatividade e identidade de grupos que estão muito
padronizados, segundo alguns especialistas, exatamente pelos critérios de julgamento opostos
à identidade cultural dessas musicalidades.
Nos terreiros também ocorre uma série de variáveis em relação ao andamento e pulsa-
ção dos grupos musicais em performance. É muito desgastante fisicamente executar os ins-
trumentos dentro de determinados ritos, em alguns dos quais toca-se sem parar durante três
dias, como no caso dos chamados xirês de Ketu, também denominado Rum de Ketu. Em vá-
rios outros momentos os músicos tocam constantemente e, mesmo com estratégias, como o
revezamento de pessoas com qualidade técnica e bastante experientes, ocorrem excessos ne-
cessários para muitas festas ou rituais. Como já observado, não há tempo estipulado para o
final de alguns destes eventos. Nas Casas tradicionais, por exemplo, deve-se esperar a saída
do orixá que está incorporado por alguém, o que não acontece rapidamente e pode durar dias
seguidos.
Em muitas dessas festas ficamos tocando constantemente durante o dia e a noite, e em
alguns outros casos também continuamos tocando no dia seguinte. Nesses momentos, não é
permitida a interrupção do toque por um período muito longo. Os ogãs fazem um esforço qua-
se sobre-humano para dar conta de tamanha necessidade em continuidades de toques. Mesmo
com determinados intervalos, algumas vezes até com um dia de duração, muitos ritos duram
até mais de uma semana. No caso da iniciação na religião, por exemplo, passamos por isso
durante dez dias seguidos. Conforme já dito, nós que formávamos o chamado barco, não po-
díamos tocar ainda, porém, observávamos os nossos outros irmãos (referência entre todos os
filhos da Casa) tocando diariamente em muitos períodos. Nesse sentido, não há corpo humano
que dê conta de determinadas precisões e, por isso, ocorrem os revezamentos. No entanto,
apesar disso, o processo é muito cansativo para todos, pois além das performances musicais
todos são obrigados a realizar muitos outros afazeres na roça em outros períodos.
Essas tarefas são bastante desgastantes: carregar coisas pesadas, cortar lenha, sacrifi-
car e manejar animais, cortar a grama e árvores, entre outras. Tudo isso interfere no que cha-
mamos aqui de flexibilidade no andamento e pulsação. Por isso, falamos que essas variáveis
precisam ser consideradas como naturais em relação às características fundamentais de certas
musicalidades. Não há nenhuma outra tarefa musical que possa ser comparada à complexida-
de da jornada de um ogã. Equilibrar tarefas do cotidiano com a de performer, nesses casos, é
algo bastante complicado, devido ao grau de exigência em muitas questões atribuídas a esta
função. Isso acaba determinando a própria flexibilidade da performance. Observamos, diver-

  186  
 

sas vezes, indivíduos exaustos antes do início dos xirês, exatamente porque haviam acabado
de realizar tarefas durante vários dias e noites e precisavam estar de prontidão para o toque.
Não há qualquer tipo de alívio em relação a isso. O ogã é visto como uma pessoa forte, por
isso precisa aguentar tamanha exigência. Não é por acaso que ele tem a função de guardião da
Casa todos os dias, uma espécie de segurança contínuo. O ogã está alerta o tempo todo e, se
não estiver, com certeza o pai de santo local irá cobrar sua atenção.
Outro momento em que há a chamada flexibilidade no andamento, é quando o orixá
está prestes a chegar em algum yawó e todos começam a cantar, tocar e se movimentar com
mais intensidade. Isso acontece muitas vezes em um xirê. Nesse momento, o ogã precisa estar
atento, porque é esperada uma aceleração no andamento. Será a partir dessa aceleração que o
orixá poderá ou não chegar. Ou seja, é um momento crucial para o qual a experiência do alabê
é determinante. É por meio dele, na relação da percussão como linguagem (códigos internos
entre dança e toque), que o auge acontecerá.
Precisamos aqui fazer um paralelo entre a relação do ritmista com a passista. É comum
a rainha de bateria escolher algum ritmista para realizar movimentações a partir da sonoridade
do instrumento. Esse também é considerado um momento auge, pois o ritmista escolhido fica
altamente satisfeito pela escolha e contribui realizando variações, uma espécie de solo, duran-
te o período da troca entre o movimento corporal da passista e do ritmista. Observamos isso
ocorrer muitas vezes em ensaios técnicos e na quadra do GRCSES Império de Casa Verde,
enquanto tocávamos nossos instrumentos e também na própria troca com a rainha. Não há
como manter o andamento e a sonoridade na mesma intensidade nessa hora. Como é um mo-
mento especial, é esperado uma intensidade maior e, portanto, uma sonoridade mais destaca-
da, ao mesmo tempo que ocorre uma certa aceleração intrínseca a esta linguagem.
Tocar para frente é um termo atribuído popularmente no contexto de alguns estilos,
assim como tocar para trás. Essas variantes são associadas aos próprios estilos. O samba en-
redo é algo vibrante e demanda muita capacidade física, assim como o barravento, o alujá de
Xangô ou o ilú de Iansã. A aceleração é uma característica, e se ela não ocorrer a percussão
não cumprirá o seu papel como linguagem no momento da troca com a dança. Durante o des-
file, ensaios e xirês, determinados ajustes no andamento e na manutenção da pulsação são
entendidos como naturais. É bastante complicado desconsiderar algo natural destas musicali-
dades, dentro de determinados conceitos estipulados como determinantes em relação a outros.
4.7.4 Performance: rotatividade pelo número flexível de integrantes e visão periférica
Rotatividade pelo número flexível de integrantes

  187  
 

A possibilidade de apresentar, de formas diferentes, um resultado sonoro a partir do


coletivo, seja em um terreiro ou em uma bateria, é um fato real, dentro das inúmeras variantes
em cada dia de apresentações, ensaios ou ritos. Tocar com uma quantidade de integrantes di-
ferente em cada um desses eventos provoca resultados finais muito variáveis. Vejamos alguns
pontos que podem ser modificados, diante desta realidade nesses grupos: a) intensidade, b)
arranjos, c) variações, d) novas propostas para arranjos finais, e) número e estilo de bossas, f)
realização de chamadas de repinique, g) duração dos eventos, h) níveis de tensão ou tranquili-
dade, dependendo do grupo presente, i) repertório, entre outros.  

Um certo grau de risco, sempre atribuído à dependência daqueles que estarão disponí-
veis para a performance em cada evento, é natural à própria dinâmica desses grupos, assim
como as diversas possibilidades com a performance final. Esse risco causa interesse pela pos-
sibilidade de uma nova relação com a sonoridade, pois novas parcerias surgem em cada dia de
atividade. A troca é essencial, seja pelo olhar, imitação instrumental ou movimentação corpo-
ral, o que muitas vezes está completamente integrado. A atenção com o coletivo é essencial,
independente de quem esteja tocando ao lado de cada integrante. No decorrer deste trabalho,
foi sempre interessante manter a atenção na massa sonora que se forma de maneiras diferentes
e observar os olhares atentos dos ritmistas mais próximos em dias de ensaio, validando ou não
aquilo que estava sendo tocado. Ou seja, se estava dentro da linguagem necessária ao estilo.  

O mesmo ocorre na preocupação ou desconforto gerados quando, por exemplo, al-


guém erra no momento de um breque. Quando um ritmista, seja ele menos ou mais experien-
te, toca quando é pausa, desperta uma espécie de ira dos outros que estão analisando a per-
formance individual o tempo todo. Cada ritmista é observado, não só pelo mestre e diretores,
mas também pelos outros ritmistas, principalmente aqueles que se dedicaram mais tempo aos
dias de ensaio, querem perfeição e cobram de quem não esteve presente. Pela característica da
rotatividade dos participantes, a cada dia ocorre uma performance diferente, todas dando con-
ta de cumprir as necessidades das Escolas. Porém, há aquelas mais ideais do que outras. Lidar
com o risco é também conseguir se libertar, até certo ponto, de determinadas amarras concei-
tuais, pois tais métodos podem não dar conta de lidar com tantas variantes e riscos constante-
mente.  

Ocorre também que muitos ritmistas não tocam seus instrumentos principais em co-
meços de ensaio, momento no qual a bateria ainda está com um número pequeno de integran-
tes e é necessário tocar as caixas, instrumentos essenciais para dar sustentação ao ritmo. No
GRCSES Império de Casa Verde, por exemplo, vários instrumentistas de excelência come-

  188  
 

çam os ensaios tocando caixa. O mestre e os diretores também realizam esta função, a de to-
car em um momento inicial do ensaio, ou até durante todo o tempo, dependendo do dia.  

Outro momento é a chamada partida do samba, no qual alguns diretores tocam nor-
malmente os surdos de terceira com um pequeno grupo no palco e depois retornam para diri-
gir a bateria. Nesse momento, quando o mestre, diretores e alguns ritmistas mudam de função,
ou seja, saem da regência e de seus instrumentos para tocar outros, estas figuras representam a
flexibilidade necessária a um ritmista. O mestre, ou diretor, que toca em momentos alternados
de ensaio, além de ser visto como uma referência na performance, também modifica a sonori-
dade final de todo o grupo e, portanto, corrobora com a apresentação de uma performance
flexível. Alguns instrumentistas também mudam de lugar durante os eventos, com fins de
organização das baterias, pois estas tocam em movimento, havendo então a necessidade de
determinadas inversões de posições.  

Isso acaba acontecendo, por exemplo, quando uma bateria entra no recuo no sambó-
dromo, com os tamborins de frente, e ao voltar para a avenida precisa-se que esse naipe seja o
último, já que foi o primeiro a entrar. Portanto, ele terá que esperar todos os outros saírem
para retornar ao desfile em movimento, e tudo isso transforma a sonoridade do grande grupo.
A equalização, por exemplo, será modificada, pois instrumentos com alturas e timbres dife-
rentes deslocaram suas sonoridades para outros locais do espaço onde estavam.  
Nesses momentos de inversões de localização dentro da bateria, novos contatos e par-
cerias surgem pela troca proporcionada na coletividade. Muitos momentos de variações po-
dem acontecer, e normalmente acontecem, pela felicidade de um colega mais próximo encon-
trar o outro. São nesses momentos que acontecem determinadas empolgações que levam à
mudança da sonoridade do grupo, portanto, a performance se modifica como um todo. Diver-
sos subgrupos são formados em uma bateria, seja em ensaios, festas e até no desfile. Alguns
integrantes se reencontram pelas mudanças durante o percurso e criam novos momentos sono-
ros pontuais que duram alguns segundos. São momentos riquíssimos de troca, com muitas
variações combinadas, improvisações, mudança de intensidade e coreografias. Esta é uma
característica do Samba, a criatividade e espontaneidade de seus indivíduos. Essa marca pro-
porciona uma performance variável e coerente à própria linguagem. Nada é estático e, apesar
de certas necessidade atuais, isto ainda é preservado espontaneamente.  

A mesma flexibilidade ocorre no conjunto percussivo do candomblé, já de maneira


inicial na própria necessidade do revezamento constante entre membros destes grupos,
os ogãs. Estes músicos circulam o tempo todo entre os atabaques e também são substituídos e
substituem outros que precisam trocar seus lugares. Tais necessidades já foram apontadas,

  189  
 

mas vale aqui reiterá-las. O esforço físico necessário para repetitivas e longas performances
requer diversas trocas, pois cada ogã possui uma sonoridade característica e identidade musi-
cal nos toques e variações. Dessa forma, cada vez que se troca um destes indivíduos a perfor-
mance também tem diversas resultantes, mas nada que atrapalhe o ritual. A flexibilidade aca-
ba sendo a própria marca de todo o grupo, e também não há outra possibilidade nesse aconte-
cimento.  

Nesse sentido há, por necessidade, uma intimidade com essas variantes. Outra modifi-
cação que acontece na performance é quando determinados ogãs mais experientes, responsá-
veis por outras funções como as do recolhimento aos preceitos, precisam ser substituídos.
Muitos ogãs também participam como convidados em algumas Casas. Por motivos de inicia-
ção de uma mesma Casa matriz, por exemplo, é comum diversos ogãs participarem juntos em
Casas diferentes. Na Casa Kyloatala, por exemplo, muitos ogãs mais velhos da Casa de Ango-
la Redandá participam das festas e xirês. Nesses encontros a sonoridade final proporcionada
pela percussão é completamente diferente daquelas nas quais apenas ogãs da Ca-
sa Kyloatala participam.  

Nos terreiros, a variação de ogãs também é uma prática. Ela ocorre de algumas manei-
ras parecidas com as que ocorrem nas baterias. Muitos ogãs ficam ao lado de quem está to-
cando, enquanto batem palma na pulsação ou junto com determinados timelines dos toques e
reforçam as cantigas pelo canto. Estes que não estão tocando, irão sucessivamente substituir
os outros por alguns motivos: a) descanso e revezamento físico pela exigência e desgaste do
corpo, mesmo com um desenvolvimento técnico avançado, b) formação de novos ogãs e tam-
bém, c) troca pelo coletivo, objetivando um desenvolvimento de todos que servirão de exem-
plo para toda a Casa. Nesse momento, os rodantes ficam observando os novos ogãs em trei-
namento e também confirmam ou não os avanços percebidos pelo olhar.  

Nos terreiros, em dias de festas para as necessidades dos xirês, também pode haver a
falta de algum ogã e outros precisarão substituí-lo. Outro fato bastante comum é o pai de san-
to convidar algum ogã mais experiente, com maior idade e conhecimento em cantigas varia-
das, somadas a uma qualidade vocal diferenciada, para conduzir o xirê. Este fato ocorre em
muitas festas no Kyloatala. O ogã Talabi (João Redandá) é exímio conhecedor da cultura do
Candomblé e participa de muitas destas festas a convite do pai de santo desta ro-
ça. Talabi chega no dia da festa e conduz todo o rito sem pestanejar, sendo um exemplo a ser
seguido por todos os outros nessa situação – ogãs mais novos e, portanto, com menor experi-
ência, como no meu caso.  

  190  
 

Nesta roça há exímios ogãs e alabês, em diversos sentidos: a) conhecedores de repertó-


rio variado e b) com funções específicas como as de ashogum, feita por um ogã que possui
cargo bem próximo hierarquicamente do zelador supremo da Casa. Quem assumirá a lideran-
ça do local, quando o pai de santo não estiver, será este ogã, o ashogum. Ele também é res-
ponsável pelos diversos sacrifícios e ritos durante as iniciações, boris, axexês, xirês e outros
ritos. Este ogã também realiza um revezamento com o pai de santo, pois sabe conduzir muito
bem tudo que é necessário para os diversos ritos. É ele quem acaba se tornando o próprio pai
de santo em alguns momentos.  

Isso é uma determinação feita dentro da tradição do candomblé. Alguém precisa saber
de todos os segredos da religião, e é normalmente o alabê que tem este papel. Na falta
do alabê para substituir o pai de santo em um xirê, todo o conjunto percussivo poderá ser pre-
judicado, já que ele é o condutor, o líder. Sua função é reger o grupo, com proficiência em
toques, variações, variedade de cantigas, amplo repertório e conhecimento dos fundamentos
da religião. Quando este ogã sai do posto de alabê, naturalmente precisa ter outro para substi-
tuí-lo, o ogã mais velho depois dele, já treinado durante as festas para começar a liderar certos
momentos. Nesse sentido, a flexibilidade de integrantes, bem como a rotatividade destes, é
mais do que uma necessidade, é algo estrutural. Todos poderão mudar de lugar em algum
momento, de acordo com as necessidades diversas e vivência na roça. Não há confiança em
quem não consiga estar presente.  

Outra variável dentro desse aspecto é quando um ogã mais novo é mais presente do
que outro. O alabê irá convidar aquele ogã para tocar mais vezes do que outros que colabora-
ram menos com as atividades da roça. Todo ogã precisa realizar diversas tarefas, diferen-
tes das musicais, como limpar o terreno, pegar folhas e plantas para os ritos, limpar animais,
entre outras. Nesse sentido, será comum um ogã menos experiente musicalmente ter mais
possibilidades de revezar nos toques dos atabaques do que outros que não possuam tanta dis-
ponibilidade para a roça.  

Esse assunto é bastante polêmico, pois alguns membros da religião trabalham fora ou
moram mais afastados das Casas e outros não. Portanto, conciliar tais diferenças também é
tarefa que cabe ao método assertivo de um grande líder, nesse caso a do pai de santo, a mesma
de um grande mestre de bateria. Será a partir de suas decisões que determinadas flexibilidades
na rotatividade e quantidade de integrantes ocorrerão. Atualmente, diversos destes líderes
perceberam que é melhor lidar com a rotatividade do que ter menos integrantes. Nesse senti-
do, o risco nas diversas variantes acaba compensando. Essa é uma estratégia atual desses líde-
res, considerar tais especificidades não existentes em várias outras agrupações musicais.  

  191  
 

A performance poderá ser também flexível, no sentido de se apresentar de muitas for-


mas, pois cada grupo se formará de maneiras diferentes em cada dia de encontro. É importan-
te que esse seja considerado um grande desafio para a permanência desses grupos, e não é
uma tarefa simples organizar musicalmente um grupo dentro dessas características. É necessá-
rio muito controle e flexibilidade ao mesmo tempo. Contar com o risco é uma atitude para
algumas pessoas, já que nem todos têm perfil para esse tipo de trabalho.  

A responsabilidade de um pai de santo ou mestre de bateria é enorme, pois a partir de


suas decisões as pessoas serão ou não inseridas e permanecerão nesses locais. Essa flexibili-
dade na gestão é uma estratégia de contar com as pessoas de acordo com as possibilidades
delas. Porém, mesmo assim, há regras e limites estabelecidos pois, como dissemos, muitos
ritmistas são cortados em momentos próximos das apresentações.  

A tolerância faz parte do método. A autonomia com responsabilidade poderá ser de-
senvolvida pelos integrantes de acordo com o tempo, quando cada um entenderá a sua impor-
tância individual para todo o grupo. Além disso, outra similaridade com o método utilizado no
candomblé é que muitos ritmistas proficientes são formados para serem os novos diretores e
também mestres, seja na mesma Escola ou em outras. A partir desta realocação de setores em
uma bateria, aquele lugar que o ritmista mais proficiente liberou para assumir o posto de dire-
tor precisará ser coberto por outro. Até isso acontecer à altura, demandará muito trabalho e
estratégias, fato visto com vários integrantes do GRCSES Império de Casa Verde.  

Durante os dez anos de minha convivência nessa bateria, pude presenciar muitos mo-
mentos de formações de indivíduos para atuarem em outras baterias e também assumirem
cargos hierárquicos maiores no Império. Da mesma forma ocorreu no Kyloatala. A perfor-
mance flexível mostra como o risco é uma realidade com esses grupos. Existe uma organiza-
ção e muito trabalho para evitar certos problemas, mas sempre haverá determinadas variações.
A condução de uma bateria por um mestre é algo muito complicado, de acordo com a cobran-
ça que existe dentro desta função. É necessária muita habilidade e confiança, pois ele sempre
trabalhará com a performance flexível. O mestre Robson Campos fala que é necessário fazer
ensaios estratégicos com grupos diferentes a cada dia, já que apenas no dia do desfile ele terá
sua bateria o mais completa possível. Ou seja, reiteramos que a performance será sempre fle-
xível.  

No Kyloatala fui requisitado para dias de apresentações externas, como a que ocorreu
no dia 02 de fevereiro de 2020, data de comemoração a Iemanjá. Para esse dia, al-
guns ogãs mais experientes estavam em preceito e outros tinham compromissos pessoais. Ta-
ta Kamuanga me contatou e solicitou suporte pela necessidade de revezar o toque com ou-

  192  
 

tros ogãs. De qualquer forma, eu estaria presente, mas com o chamado deste sacerdote (Ta-
ta Kamuanga) pude analisar o quão importante é a compreensão de coletividade destes gru-
pos. De outra maneira, não seria possível eles permanecerem. Nesse dia atuei de forma mais
intensa, visto que tive uma responsabilidade, mas também uma consideração e aceitação dos
membros da Casa. Entendi este momento como uma grande oportunidade para retribuir e as-
sumir uma posição privilegiada e de extrema responsabilidade.  

Visão periférica  
A chamada visão periférica é uma habilidade necessária em algumas práticas voltadas
para a performance, normalmente em grupos grandes, nos quais há a necessidade de o indiví-
duo realizar mais de uma tarefa ao mesmo tempo. Em uma orquestra sinfônica, os músicos de
orquestra, por exemplo, ao mesmo tempo que executam seus instrumentos individualmente,
precisam olhar para a partitura em conjunto com a regência do maestro. Normalmente, um
músico que possua um contato direto com o regente possui mais vínculo coletivo, sendo que
os regentes entendem esse aspecto como facilitador do trabalho nessas formações. Neste caso,
o músico que possui essa intimidade com a chamada visão periférica transmite segurança para
o regente.  

Em uma bateria, o mestre precisa que ao mesmo tempo que seus ritmistas toquem,
cantem e se movimentem, olhem constantemente para a regência dele e dos diretores. Como
os grupos musicais são grandes, os diretores reproduzem os mesmos sinais do mestre, refor-
çando a regência em outros locais do grupo. O grupo pode chegar a uma média de 300 inte-
grantes, dessa forma, é muito necessário o olhar dos ritmistas, que tocam e são ensinados a
olhar sempre para frente, focando a visualização da regência do mestre e diretores. A habili-
dade específica nesse caso é em relação à movimentação do grupo como um todo durante um
desfile ou ensaio de rua.  

Nesse sentido, há a necessidade de desenvolver o olhar periférico com atenção para


diversos detalhes. Um deles é acompanhar a fileira do naipe, se está se movimentando de
forma regular lateralmente, frontalmente e quando se afasta no chamado recuo. Nesse mo-
mento, a inversão da bateria ocorrerá e toda a movimentação contará pontos no quesito evolu-
ção e também harmonia. O olhar periférico é uma necessidade para a atuação de excelência de
um ritmista.  

Outra questão que também percebemos relaciona-se às execuções de breques, chama-


das de cortes e viradas de 2 e de 3. Para a execução precisa dos breques, muitos deles em
uníssono, os ritmistas precisam olhar para seu instrumento revisando o local de ataque da ba-

  193  
 

queta contra a pele, olhar a movimentação das fileiras e acompanhar de maneira uniforme,
enquanto olham firmemente para o regente.  

Alguns ritmistas deixam de desenvolver a visão periférica e podem comprometer a


performance, como quando alguém passa direto em uma interrupção, ou seja, continua tocan-
do em momentos de pausas nos breques ou cortes. Esse tipo de descuido, atrelado à falta de
desenvolvimento da visão periférica, é considerado fatal no sentido do julgamento desses
grupos, dentro dos critérios de avaliação da Liga das Escolas de samba.  

Notamos também a mesma prática entre os ogãs em dias de xirê. Todos precisam
acompanhar a movimentação do povo que está no centro do barracão, enquanto olham firme-
mente para o zelador e também para as pessoas que estão incorporadas pelos orixás. Há uma
série de ritos (cumprimentos, bençãos) que podem acontecer a qualquer momento. Outra ne-
cessidade é a leitura labial, quando há alguém novo tentando aprender uma cantiga ou toque.
O repertório é extenso e, até o novato aprender boa parte dele (uma obrigação religiosa), mui-
to da sua possibilidade de êxito em sua função, seja a de cantar ou tocar
ou como yawó ou ekédi, dependerá de sua capacidade de visão periférica, a mesma que o rit-
mista precisa ter dentro da bateria e com a Escola como um todo.  

Acompanhar a movimentação do coletivo, seja no xirê ou na bateria é uma competên-


cia ligada à capacidade de intimidade com a visão periférica de seus participantes.
A performance como um todo dependerá da visão periférica, aqueles indivíduos que se desta-
cam mais nessa questão poderão interferir positivamente na sonoridade do grupo. O fato de
transmitir segurança para o regente também demonstra confiança e o músico poderá executar
seu instrumento com uma sonoridade mais forte, que é uma necessidade nos terreiros e
nas baterias. É a partir disso que algumas questões podem ou não acontecer, como por exem-
plo as acelerações em processos de incorporação (o nível de intensidade utilizado funciona
como código estimulante). Nas baterias isso ocorre também, com a diferença de que não há
incorporação, mas uma espécie de correspondência entre quem está ouvindo ou sambando e a
percussão. O auge da performance ocorre de acordo com as múltiplas habilidades da visão
periférica, como falamos na própria sonoridade que representará maiores ou menores níveis
de progressão na evolução dos grupos em sua totalidade.  

  194  
 

CAPÍTULO V – TOQUES E LEVADAS E SEUS PONTOS DE ENCON-


TRO ESTRUTURAIS

5.1 Toques estruturais do candomblé da nação Angola e Ketu utilizados nas Baterias
Separamos os toques em: a) clássicos – anualmente utilizados em arranjos rítmicos
construídos pelas baterias para os sambas enredos, b) relacionados – que possuem semelhança
e originam as levadas de caixa, surdo, repinique, tamborim e outros instrumentos que consti-
tuem os naipes das baterias e c) outros toques – menos conhecidos, mas que apresen-
tam também alguma relação. Alguns desses toques, definimos como híbridos, por serem usa-
dos tanto nas construções dos breques, como nas levadas dos instrumentos: caixa, repinique e
surdo de terceira.  
A possibilidade de deixar registrada parte das conexões que apontamos no decorrer do
trabalho representa a importância documental em identificar determinadas heranças. Além da
questão histórica, fica explicitada, musicalmente, uma amostra das estruturas em comum que
continuam estabelecendo aspectos identitários nas baterias. Tais símbolos, divididos entre o
candomblé e esses conjuntos percussivos, transmitem e mantêm um desenvolvimen-
to polirrítmico bastante característico daquilo que é apontado por Graeff (2015)
e Kubik (1979) como um fenômeno multidimensional do ritmo – todas as possibilidades, e
não somente musicais, de conexão das comunidades com elementos como timelines e identi-
dades sonoras.  

Este fenômeno multidimensional está pautado pela resultante melódica a partir do rit-
mo. Ou seja, pelo fato de que a polirritmia e suas diversas combinações em conjuntos percus-
sivos africanos, soam como melodia de timbres. Esta relação é clara nas sonoridades do can-
domblé e das baterias das escolas de samba, pela variedade de naipes e frequências agudas,
médias e graves, pelo uso de instrumentos de metal como o agogô de 4 campanas e chocalhos
com platinelas metálicas, e de tambores diversos que variam entre o agudo e o grave.  

Autores como Arom (1991), Koeting (1970), Kubik (1979) e Pinto (2015) abordam a
perspectiva multidimensional sob este prisma, o da melodia de timbres. Nesse sentido, para o
estudo dos ritmos tradicionais de influência africana, fundamentalmente, se faz necessário
perceber a amálgama entre ritmo e timbre. Desta relação, deriva a melodia resultante de múl-
tiplas combinações:  
Os padrões rítmicos do conjunto de percussão deveriam ser estudados como padrões
de ritmo/sonoridade, não podendo ser realmente equiparados com os pa-
drões rítmicos ocidentais, nos quais nós geralmente pensamos sem incluir suas qua-
lidades tonais e tímbricas como elementos significativos (KOETTING, 1970, p. 210
apud GRAEFF, 2012, p. 2).
 

  195  
 

Pinto (2001) diz: “Por conseguinte, no contexto do samba, ritmo ocupa ao mesmo
tempo uma função de organização temporal e de execução de “‘configurações tímbricas’ que
muitos músicos chamam de ‘melodias’” (PINTO, 2001, p. 100), e Graeff (2012), por sua
vez, comenta ainda sobre as possibilidades timbrísticas de um instrumento em relação
à técnica utilizada em performance: “A depender da técnica de execução empregada, um úni-
co instrumento pode produzir diferentes timbres e frequências sonoras (GRAEFF, 2012, p.
2)”.  
Kubik (1979), utilizou o termo Timbre-Sequenz para conceituar estas relações entre
ritmo e timbre, mas com a junção de mais um elemento, o movimento, o que já foi discutido
no Capítulo IV.  

Com relação a essa amplitude do ritmo e sua abrangência social, percebemos que há
uma identificação pessoal com cada motivo rítmico identitário destes grupos, ou seja, nas
baterias identitárias, nas Casas de candomblé e nos timelines registrados nas memórias ances-
trais das comunidades, tais códigos internos promovem a reconexão com a ancestralidade, a
partir da transculturação e etnicidade, aspectos próprios de movimentos diaspóricos já discu-
tidos por Hall (2003), Béhague (1994), Pinto (2015) e Ortiz (1940).  
Os toques aqui apresentados foram transcritos a partir da execução de diver-
sos ogãs do Kyloatala (Angola) e do Ilê de Oxalufã (Ketu), e podem variar de acordo com a
rotatividade dos músicos, assim como de terreiro para terreiro. Para isto, estabelecemos o se-
guinte sistema notacional, de maneira a representar o amplo material levantado e evidenciar
suas conexões:  

  196  
 

5.2 Indicação de símbolos notacionais60 - candomblé: atabaques e gã

5.3 Indicação de símbolos notacionais61 - bateria

                                                                                                               
60
Desenvolvidos por Carlos Stasi.
61
Idem.

  197  
 

5.4 TOQUES

5.4.1 Toques clássicos


Esses toques são utilizados, anualmente, em diversos arranjos de baterias. São padrões
mais reconhecidos pelo público em geral, fundamentais nesta circulação dos terreiros para as
baterias e que estruturam fortemente a musicalidade afro-brasileira e brasileira de maneira
geral, como por exemplo, em composições de diversos artistas relevantes como João Bosco,
Gilberto Gil, Clara Nunes, Martinho da Vila e muitos outros, que também reconhecem a rele-
vância da polirritmia herdada via diáspora.
A transcrição que apresentamos representa as várias possibilidades sonoras do ataba-
que rum e fundamenta-se nas variações mais usuais que ouvimos nas Casas pesquisadas. No
caso específico deste instrumento, há uma série de possibilidades rítmicas referenciais que são
identitárias, dependendo de quem toca e de como isto foi construído em cada terreiro ou na-
ção de candomblé. O rum é um instrumento solista em constante diálogo com o conjunto per-
cussivo, tanto em contrapontos como em uníssonos que reforçam padrões dos outros ataba-
ques. Observamos que o mesmo ocorre com o repinique nas baterias, que apresenta funções e
características similares.
Sobre o rum, o diretor e alabê Alan Salgado observa que o instrumento é tocado mais
livremente, o que também depende de cada matriz religiosa do candomblé. Do mesmo modo,
ele comenta a respeito das relações do rum com os surdos das Escolas:
O rum vem soltão, fazendo as marcações dele. Esse padrão pode ser Tumba Jussara,
por exemplo, ou Bate Folha. Todos os surdos (primeira, segunda e terceira), provêm
do Congo de Ouro. Principalmente a terceira, que sempre corta no contra. A subida,
do surdo de terceira, por exemplo, entra como uma chamada de rum, tanto do Congo
de Ouro quanto na primeira da dobra do Vassi de Ogum. (SALGADO, Alan.
12/03/2019. Casa de Cultura do Butantã, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Ra-
fael Y Castro.)

E continua:
As dobras do rum, no cabula, têm muito, por exemplo, do que no Rio eles chamam
de trovoada na terceira. A levada de terceira colocada pelo Marçal na Portela é exa-
tamente uma passagem do Modovi ou Bravum (toques para odowa ou oxumarê, na
mitologia yorubá). Isso se mantém até hoje, mesmo quando ele foi pra Tijuca ele co-
locou lá. Nessa época do Marçal já tinham muitos grandes candomblés instalados no
Rio de Janeiro. Ele criou um padrão nas terceiras que é da linguagem do rum, as do-
bras. As chamadas de giro, ou de dobra, ficaram como referências do candomblé nas
baterias. Mostra muito do que aconteceu no início das Escolas e suas influências.
(SALGADO, Alan. 12/03/2019. Casa de Cultura do Butantã, São Paulo/SP. Entre-
vista concedida a Rafael Y Castro.)

Observamos também que, no caso do congo casado – termo normalmente utilizado


para o diálogo do rumpi com o lé –, aparece a linguagem herdada da musicalidade africana no
conceito da contramétrica (ver AROM, 1991). Ou seja, enquanto o lé toca uma base tradicio-

  198  
 

nal de congo de ouro do candomblé da nação Angola, o rumpi faz um contraponto como res-
posta. Nesse caso, fica bastante evidente que o toque do atabaque médio representa muito da
linguagem transmitida dos terreiros para as baterias. Essas mesmas frases rítmicas, na chama-
da contramétrica, são utilizadas de forma marcante nos surdos de terceira, nas caixas, repini-
ques e tamborins. O congo casado, segundo Salgado (2018), é tradicional em algumas Casas
de Angola, mas, conforme já observado, dependendo da matriz pode ser diferente. De qual-
quer forma, há sempre muita dificuldade em realizar este contraponto de forma precisa.
É preciso ensaiar muito pra ficar bom, por isso poucas Casas fazem, mas é uma ca-
racterística da linguagem do candomblé que chegou nas baterias. Veja só! Pra isso
estar presente nas baterias hoje, foi necessário muita transformação e prática. Hoje,
nós escutamos isso de maneira precisa, mas é muita dedicação dos responsáveis,
além da circularidade destes indivíduos entre os terreiros e as baterias (SALGADO,
Alan. 12/03/2019. Casa de Cultura do Butantã, São Paulo/SP. Entrevista concedida a
Rafael Y Castro.)

Em relação aos andamentos indicados nos toques a seguir, levamos em conta os mais
utilizados e averiguados em nossa pesquisa. Por outro lado, há uma série de flexibilizações
que alteram estas indicações: a) identidade de cada terreiro, b) rodízio e quantidade de parti-
cipantes, c) níveis técnicos, d) possibilidades de variações de acordo com a movimentação no
xirê, e) necessidade de potência na sonoridade, f) solicitação do Pai de santo, entre outros. A
transcrição do rum pode levar a uma certa falta de compreensão da liberdade característica
daquilo que é desenvolvido com base no vocabulário deste instrumento. Mesmo assim, fize-
mos questão de apontar alguns padrões que nos servem como possibilidades identitárias,
exemplos estes essencialmente coletados em pesquisas de campo participativas na Casa de
Angola Kyloatala.

  199  
 

Indicamos a escuta do toque congo de ouro62, gravado no Unzo Kyloatala, disponibilizado nos
links abaixo.

                                                                                                               
62
Toque cabula completo:
https://drive.google.com/file/d/1gDF7as8q0mf80Txk2Xt2tQ1h5bxTq2Gv/view?usp=sharing
Rum: https://drive.google.com/file/d/1g5Xrs-1YET5Rf-f6lYTnUdrwi_Hykuyv/view?usp=sharing
Rumpi: https://drive.google.com/file/d/1g1wg6euucBnGFZPrihlzci25FOlcgLcI/view?usp=sharing
Lé: https://drive.google.com/file/d/1g0XAFOo2WhtYNmXyY_MbIuVs4kgwpesO/view?usp=sharing
Gã: https://drive.google.com/file/d/1fxAFPQ7jqg5cCQP_925IR8HXgjaKIaVf/view?usp=sharing
 
  200  
 

O toque quebrado (a seguir), é um toque tradicional do candomblé Angola. É também


conhecido como olubajé63 no Ketu. É um toque utilizado no tabuleiro64 ou kupuanã65, para os
nkisis Nsumbo e Kavungo, em agradecimento às safras de colheita do ano, pesca e energias
diversas da natureza. Características fundamentais em relação à sua proximidade com o sam-
ba são: a) o peso nos graves no segundo tempo e b) as variações do rum, similares ao surdo de
terceira.

                                                                                                               
63
Olubajé é um rito em celebração as safras e colheitas diversas de alimentos que são compartilhados de maneira
coletiva anualmente pelos candomblecistas. Referência diretas as festividades africanas celebrativas ao acesso
aos alimentos plantados e colhidos anualmente em comunidades.
64
Tabuleiro é outro nome popular que é dado ao olubajé.
65
Kupuanã também é outro nome dado no candomblé Angola ao olubajé, – termo originalmente Yorubá do
Ketu.

  201  
 

Indicamos a escuta do do toque cabula66 gravado no Unzo Kyloatala, disponibilizado nos links
abaixo.

Indicamos a escuta do toque barravento67 gravado no Unzo Kyloatala, disponibilizado nos


links abaixo.
                                                                                                               
66
Toque cabula completo:
https://drive.google.com/file/d/1gd4_Y4OijRwVB7nGLgXbDpcWidYf4cKR/view?usp=sharing
Rum: https://drive.google.com/file/d/1gbLi9auD6pykBWdq9vYrPA1R35Z1xEMH/view?usp=sharing
Rumpi: https://drive.google.com/file/d/1gRpv1Na9I2Jkc8-V8PSERVtpttcPCWwK/view?usp=sharing
Lé: https://drive.google.com/file/d/1gFxvM1eFuHQjWY_tlonVCWCj_ZYPoX_2/view?usp=sharing
Gã: https://drive.google.com/file/d/1gEimZXo9l1WUdFDgvdpyz-BG8Ljdro3p/view?usp=sharing
67 Toque barravento completo:

https://drive.google.com/file/d/1hLT_2ycngSrycd9_-jDDcL7g0drmmH-n/view?usp=sharing

  202  
 

5.4.2 Toques relacionados, que originam levadas e variações

O aguerê de Odé apresenta variações que dependem da matriz da Casa de candomblé


Ketu. Transcrevemos, a seguir, um padrão que se relaciona mais diretamente com as levadas
da Mocidade Independente de Padre Miguel e Águia de Ouro.

Com relação ao alujá de Xangô (a seguir), Salgado observa que:

A marcação do rum no alujá de Xangô é utilizada no surdo centrador também (aque-


la que a gente chama de 2 por 2), além da própria levada de caixa original dos taróis
do Salgueiro derivarem do rumpi e do lé, como já todo mundo comenta né! (SAL-
GADO, Alan. 12/03/2019. Casa de Cultura do Butantã, São Paulo/SP. Entrevista
concedida a Rafael Y Castro.)

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
Rum: https://drive.google.com/file/d/1hJqd28BDwWyrqRIydH6wKcLOiQhYLwP8/view?usp=sharing
Rumpi: https://drive.google.com/file/d/1h57qCvk9rF8XYOOPjf4sW0nK1MDIG0Ib/view?usp=sharing
Lé: https://drive.google.com/file/d/1h1VrgdLhUvvaz1c2Ic1x9K_xQlTcfe1x/view?usp=sharing
Gã: https://drive.google.com/file/d/1gwtv4tScYdva7AmMAvaWzgyFq198qlCz/view?usp=sharing
 
  203  
 

O toque a seguir (arrebate), é utilizado em momentos de transição entre uma parte e


outra dentro do roteiro do xirê. Funciona como uma espécie de marcha, finalizando ciclos em
entradas ou saídas de orixás, assim como em outros momentos distintos do ritual. O mesmo
ocorre com o toque chamado Paó. Diferentemente de outros toques, eles representam, sono-
ramente, um ponto de atenção para todos os envolvidos, evidenciando mudanças na estrutura
estabelecida pelos donos da Casa, liderados pelo Zelador, sacerdote supremo nos terreiros,
conhecido popularmente por Pai de santo. Estes, que possuem comunicação direta com os
ogãs, muitas vezes, visualmente, determinam ou apontam necessidades de mudanças e adap-
tações ao desenvolvimento da performance. O mesmo fenômeno ocorre com o Mestre de ba-
teria e seus músicos, os ritmistas. Ou seja, muito do que se determina na performance percus-
siva em ambos os contextos depende de necessidades momentâneas.

  204  
 

O quebra prato (a seguir), é amplamente utilizado nas Casas de candomblé da nação


Ketu. É também conhecido como aguerê de Oyá ou Yansã, agó, daró e ilu.

O toque dos atabaques médio e agudo, respectivamente rumpi e lé, originam a levada
de caixa da Portela e de outras Escolas, na totalidade dos tempos e suas subdivisões ou em
boa parte deles (pelo menos em 50% da totalidade, ou seja, em dois tempos, se considerarmos
as levadas completas com quatro tempos).

  205  
 

O toque do atabaque grave solista/improvisador evidencia a identidade musical de


cada alabê dentro de um terreiro, e é normalmente associado às variações e funções do surdo
de terceira, instrumento também solista, improvisador e com uma levada identitária em cada
bateria. Segundo Nilo Sérgio68, Mestre de bateria do GRCSES Portela, nessa mesma bateria
havia dois surdos de terceira com funções diferentes. Este naipe era constituído por ritmistas e
diretores cuja terça parte eram ogãs, o que corrobora a visão de muitos entrevistados de que
esses surdos tinham a função de um atabaque rum. As levadas desses dois surdos de terceira
da Portela seriam

Atual:

Anterior (rum):

                                                                                                               
54
Ver: “Mestre Nilo Sérgio explica os segredos da bateria da Portela”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=97NRxKV89wk

 
  206  
 

5.4.3 Outros toques

  207  
 

  208  
 

5.5 Levadas de repinique e outros instrumentos, derivadas de toques de atabaques e ou-


tras conexões

Muitas levadas transcritas a seguir representam a transposição direta dos pontos de


encontro entre o que saiu dos terreiros e expandiu-se para a rua. A possibilidade de utilização
destes códigos internos, que simbolizam a manutenção destas tradições e suas relações, apre-
sentam-se como modelos estabelecidos sonoramente dentro das formações das baterias de
escolas de samba. Vale destacar que, atualmente, o que estaria ligado diretamente apenas à
religiosidade, toma espaço social mais amplo, não havendo a necessidade do ritmista estar
ligado às práticas religiosas dentro dos terreiros. Dessa forma, estes padrões são executados
em formatos diversos na performance dos primeiros repiniques: em alguns breques, variações
ou até mesmo nos concursos Ripa de Ouro.
Assim, independente do executante reconhecer ou assumir estas relações, termina por
manter e evidenciar sua existência, o que se deriva da sonoridade funcional do instrumento,
sempre aguardada pelo público em geral, com base naquilo já discutido sobre a compreensão
do ritmo como fenômeno multidimensional. Apesar de qualquer contradição, ou mesmo apa-
gamento deste conhecimento mantido, de parte dos próprios atores, fato este observado em
nossas entrevistas, esta permanência e reprodução dos toques dos atabaques do candomblé no
repinique é uma marca estrutural que evidencia como todo este saber está conectado, não sen-
do possível ignorá-lo.
Separamos o material levantado em algumas seções específicas, para melhor compre-
ensão e reconhecimento dos níveis destas relações. Diferentes andamentos são utilizados,
dependendo da necessidade ou interesse do solista. Indicamos, preferencialmente, padrões
que mantêm o mesmo andamento dos toques herdados na transição estrutural nos timelines de
cada levada.
Apresentamos a seguir, aqueles mais ouvidos durante nossa investigação.

  209  
 

Ijexá

Cabula

Este padrão estabeleceu-se no ano de 2010 em São Paulo, por Tateto Dia Nkisi Awo
Nita Motukalofanje, Babalorixá Anderson D’Ogun (Anderson Jorge Enéas), com quem pude
tocar durante seis anos seguidos na bateria do GRCSES Império de Casa Verde. Mestre, rit-
mista, diretor e Pai de santo, também conhecido por Cabelinho, é um nome altamente repre-
sentativo em relação ao nosso objeto de estudo central, devido a importância e funcionalidade
de sua sonoridade no repique mor. Neste sentido, Anderson apresenta uma sonoridade que se
identifica com aquilo produzido por seus antepassados.

  210  
 

O exemplo a seguir foi desenvolvido por Rafael Y Castro a partir da mistura de dois
fundamentos do candomblé da nação Angola: a) a levada base de repinique oriunda do ataba-
que lé, b) a levada acima de Anderson Jorge Enéas, oriunda do rumpi:

O próximo exemplo é utilizado como fundamento para muitos instrumentos (pandeiro


e surdo, por exemplo) e também para o repinique na década de 1960 em São Paulo. Este pa-
drão era realizado no chamado charuto ou charutinho, uma espécie de repinique que, esteti-
camente, se aproxima do repinique e do repique mor. Trata-se de um repinique de doze pole-
gadas mais comprido, tocado como um repinique normal, que tinha esta levada como funda-
mento, o que mostra, claramente, algo que é transferido dos terreiros e que serve como fun-
damento para o samba, a partir do toque do atabaque lé no Cabula.

  211  
 

Outro padrão bastante utilizado no repique mor – instrumento mais próximo da sono-
ridade, frequência e afinação dos atabaques nas baterias –, é utilizado no GRCSES Beija Flor
na cidade do Rio de Janeiro. Fizemos questão de transcrevê-lo, para mostrar uma outra in-
fluência que, apesar de não ser o foco de nossa pesquisa, conecta-se com todo o ambiente
cultural, histórico e religioso de ambos os rituais aqui abordados. Nesse caso, o ritmo realiza-
do na caixa do caboc“o”linho em Pernambuco, representa a matriz indígena miscigenada à
africana. Isto, de fato, também é notado em outras seções das Escolas de samba, como alego-
ria e fantasia, por exemplo. Os elementos da natureza, sejam da representatividade indígena
ou africana (orixás), e o sentido da relação destas manifestações, são utilizados de maneira
bastante criativa pelos carnavalescos.

Partido Alto ou Partido

O padrão abaixo, bastante comum, é diretamente associado com o timeline do agogô,


derivado também de padrões africanos que estruturam a musicalidade brasileira:

Observamos também a proximidade do timeline do cabula, na levada de repinique


(muito utilizada em solos), com o toque do atabaque rumpi. Este é um padrão também refe-
rencial no pandeiro de nylon utilizado no partido alto, que tem como matriz original o cabula
  212  
 

do candomblé de Angola. Vale frisar que o cabula é utilizado no samba de roda, estilo peculi-
ar às musicalidades do recôncavo baiano, o que evidencia, mais uma vez, a transposição da-
quilo que é utilizado dentro para fora dos terreiros.

Congo de Ouro

Os padrões a seguir foram transcritos com base em processos de memorização de uma


série de levadas utilizadas por vários performers de repinique em baterias de São Paulo. Um
modelo determinante, para o desenvolvimento e escolha destes padrões, foi o percussionista
Julio Cesar, pesquisador do samba em São Paulo e apresentador do programa Conversa no
Batuque exibido no Youtube – marco atual de ressignificações da memória cultural paulista, a
partir da tradição e reconhecimento do que foi herdado musicalmente e culturalmente dos
mestres e também de ritmistas e lideranças em atividade no circuito de baluartes paulistanos.
Conforme já apontado, é importante observar que este virtuoso, percussionista e ritmista, não
possui qualquer relação com a religiosidade do candomblé. No entanto, a identidade musical,
representada pela sonoridade que o caracteriza, nos remete fortemente aos antepassados, por
meio de motivos rítmicos utilizados nas próprias práticas religiosas. Neste sentido, mesmo
sem ser ogã, ele transfere padrões adotados destes lugares para o samba, comprovando que
esta transição é, de fato, representativa, de maneira a permanecer em sua performance, assim
como na performance de diversos outros ritmistas e percussionistas. Ou seja, os toques do
candomblé estruturam a performance de muitos músicos, tanto de dentro como de fora do
contexto dos terreiros e baterias.

  213  
 

Levada de Congo de Ouro a partir de modelos apresentados pelo músico Julio Cesar:

  214  
 

  215  
 

5.6 Levadas de caixa em Baterias do Rio de Janeiro e São Paulo

Apresentamos, primeiramente, as levadas características de cada Escola. Em seguida,


analisamos as relações destas com os toques dos atabaques, objetivando mostrar aquilo que é
chamado de ponto fixo dos timelines (GRAEFF, 2015).
Algumas Escolas possuem levadas idênticas, como é o caso da Mocidade Independen-
te de Padre Miguel (Rio de Janeiro), Águia de Ouro (São Paulo), Unidos da Tijuca (Rio de
Janeiro), Império de Casa Verde (São Paulo) e Mocidade Alegre (São Paulo).
Há também a utilização de mais uma caixa em algumas baterias. Nesse caso, optamos
por manter apenas a levada compreendida como identitária, por compreender que, de forma
geral, quando existe outra caixa ela realiza uma levada mais básica de sustentação, apoiada na
subdivisão alternada das mãos (com acentos na primeira e na quarta semicolcheias em cada
um dos quatro tempos). Neste caso, há uma função parecida com a do ganzá no samba. Por
outro lado, há uma levada de caixa (mesma do chocalho) também identitária na bateria do
GRCSES Unidos de Vila Isabel (Ver página 215).
Outro detalhe observado, que parece evidenciar uma forte tendência de apropriação
técnica causada pela reprodução através da oralidade, foi a utilização de toques triplos (repeti-
ção de três toques com a mesma mão, normalmente a direita), em algumas levadas de baterias
na cidade de São Paulo – Acadêmicos do Tucuruvi, Império de Casa Verde, Mocidade Alegre
(página 215 216), e X9 Paulistana (página 218). No Rio de Janeiro, identificamos no máximo
a repetição de dois toques em cada mão.

Levadas de caixa do Rio de Janeiro

Estácio de Sá:

Império Serrano:

  216  
 

Mangueira:

Mocidade Independente de Padre Miguel:

Portela:

Salgueiro:

União da Ilha do Governador:

  217  
 

Unidos de Vila Isabel (antiga):

Unidos da Tijuca:

Levadas de caixa de São Paulo

Acadêmicos do Tucuruvi:

Águia de Ouro:

  218  
 

Camisa Verde e Branco:

Império de Casa Verde:

Mocidade Alegre:

Nenê de Vila Matilde (antiga):

Nenê de Vila Matilde (atual):

  219  
 

Rosas de Ouro:

Tom Maior:

Unidos do Peruche:

Unidos de Vila Maria:

Vai-Vai (antiga):

  220  
 

Vai-Vai (atual):

X9 Paulistana:

Levada de caixa de diversas Escolas na década de 90 (Rio e SP):

Algumas escolas não possuem levadas antigas descritas neste trabalho porque não
houve mudança significativa em relação aos padrões atuais.
Conforme discutido no Capítulo III, algumas baterias possuem uma divisão dos naipes
de caixas, as chamadas caixas em cima (sem talabarte) e as caixas embaixo (com talabarte),
como por exemplo, Vila Isabel no Rio e Camisa Verde e Branco em São Paulo. O fato de se
ter duas caixas com células rítmicas diferentes, assim como instrumentos com afinação, sono-
ridade e tamanho diferentes, com ou sem talabarte, pode ser um experimento temporário em
algumas Escolas. Alguns mestres optam por experimentar novas sonoridades no conjunto
percussivo e decidem manter, ou não, de ano para ano, essa proposta.

  221  
 

5.7 Sobreposição das levadas, toques e seus pontos de encontros estruturais

Águia de Ouro, Padre Miguel e Aguerê de Odé

Estácio de Sá e Congo de Ouro69

Rosas de Ouro e Congo de Ouro70

Salgueiro e Congo de Ouro71

                                                                                                               
69
https://drive.google.com/file/d/1n8Md02Sk_w0euNwwsLf1OFUrMASNnkHG/view?usp=sharing
70
 https://drive.google.com/file/d/1XwsVqZLrZSWHuuNd5JB9G_zglRL3qCzh/view?usp=sharing
71
https://drive.google.com/file/d/1FUtKs-5J7K3DcN_nBu0R9gh7ElDHaqqf/view?usp=sharing

  222  
 

Tucuruvi e Congo de Ouro72

Levada antiga de caixa e Congo de Ouro73

Conforme já observado, essa batida foi uma das mais utilizadas por diversas baterias
na década de 1990 em São Paulo e no Rio de Janeiro, antes do processo identitário estabeleci-
do atualmente.

Império Serrano e Aguerê de Oyá74

Obs. Nesta levada do Império Serrano pode-se também fazer um rufo no tempo 4 no segundo
compasso.

                                                                                                               
72
https://drive.google.com/file/d/1svxl5EIAzAnJ_BzMNSG2bgdUUa1HK6Oh/view?usp=sharing
73
 https://drive.google.com/file/d/1BpLBFzYl1j4oz7MMxmhpYrwTYwxN-ZPB/view?usp=sharing
74
https://drive.google.com/file/d/10uXqOKOdsOZtpNbZp-KNGg3blmWqhkC1/view?usp=sharing

  223  
 

Mangueira e Aguerê de Oyá75

Peruche e Aguerê de Oyá76

Portela e Aguerê de Oyá77

                                                                                                               
75  https://drive.google.com/file/d/1msK10JqO6w3hDHX32UVnm3l-Icwq_hyU/view?usp=sharing
76
https://drive.google.com/file/d/1fjUX2yvIRSu2HapPYAHhOk5Z7dVB7P44/view?usp=sharing
77
https://drive.google.com/file/d/1LAOsO-eCeGE6aW1UH5NrCze5x7mq6yNF/view?usp=sharing

  224  
 

União da Ilha e Aguerê de Oyá78

Vai-Vai e Aguerê de Oyá79

Salgueiro e Cabula80

Tijuca e Cabula81

                                                                                                               
78
https://drive.google.com/file/d/11mt5getlXghiccJrNqLsu6y7s-YpjFTX/view?usp=sharing
79
 https://drive.google.com/file/d/1hgBT35Lg0NRrYWI2iX3ulM8HJvnoes9e/view?usp=sharing
80  https://drive.google.com/file/d/1U-SwAnLouU0U8xHuA1chVM2cyH5GOYkX/view?usp=sharing
81
https://drive.google.com/file/d/1neGxq_hlYcXIoGWQw99b2ds6ffNvWnXT/view?usp=sharing

  225  
 

Império de Casa Verde, Mocidade Alegre e Cabula82

Império, Mocidade e Monjolo83

Levada inicial das caixas nas primeiras formações das Baterias e Monjolo84

No início das formações das baterias (1910), utilizava-se um padrão de levada de cai-
xa muito similar ao telecoteco do tamborim, conforme já apontado anteriormente por Osval-
dinho da Cuíca. Isso, segundo alguns sambistas, “dava um molho, balanço” especial para as
baterias, até porque era executado em um andamento mais lento, o que permitia uma maior
flexibilidade no ritmo. Posteriormente a este período, começaram a surgir as levadas mais
relacionadas aos toques de candomblé, que permanecem estruturalmente até os dias atuais nas
baterias. Mesmo que, a partir de Mestre Louro no Salgueiro (1970), muitas baterias começa-
ram a reproduzir levadas de caixa em cima parecidas com aquela criada por ele (Tatu), reco-
nhecemos diversas conexões entre os toques dos atabaques e as levadas de caixa e repinique
atualmente.

                                                                                                               
82
https://drive.google.com/file/d/101QXhizmdtl43uYzimIkzBFLStXuwa9i/view?usp=sharing
83
 https://drive.google.com/file/d/19PO8x_6xAX2Kx0k-JBvjVou2f_Anlsle/view?usp=sharing
84
https://drive.google.com/file/d/1cVa5TFz5FGlO0_NJZbsPk3SNnYMdCIqM/view?usp=sharing
 
  226  
 

Salgueiro e Arrebate85

Alguns sambistas, normalmente de gerações passadas e que possuem conceitos e ex-


periências específicas com as baterias, dizem que a levada do Salgueiro descende da marcha,
o que resultaria em menor flexibilidade e, consequentemente, balanço no ritmo. O chamado
molho perderia o efeito pela marcação, reconhecida por eles como algo mais quadrado que
tira a essência do samba. Nesse sentido, reconhecemos e identificamos também uma outra
conexão entre essas duas batidas – Salgueiro e arrebate. Este último possui exatamente esta
função – de marcha –, marcando novos momentos da Gira.
Entendemos também as próprias baterias como agrupamentos que utilizam instrumen-
tos de bandas de música civis e militares, principalmente os classificados como pesados –
caixas, repiniques e surdos –, que necessitam ser organizados em naipes cujas fileiras de inte-
grantes, para muitos, mais marcham do que sambam. Conforme já visto, essa batida – tatu –,
criada por Mestre Louro, é utilizada até hoje e reproduzida com muitas variações em diversas
Escolas com as caixas em cima, exatamente para marcar melhor a marcha necessária aos pa-
drões atuais exigidos pelo sistema de julgamento e classificação do carnaval. Por este e mui-
tos outros motivos, os sambistas criticam essa transformação, que representa a perda do senti-
do e essência do “verdadeiro” carnaval. Ao nosso ver, como essa mesma levada foi aos pou-
cos sendo melhor preenchida dentro das subdivisões das semicolcheias em cada tempo, jun-
                                                                                                               
85
https://drive.google.com/file/d/1oTYEOt-4DNqaqqWuSqyx405IFScOsyqq/view?usp=sharing
 
  227  
 

tamente com acentuações diferenciadas, ela não deixou de representar o próprio samba. Ou
seja, mesmo com função e origem provavelmente relacionadas à marcha, não conseguimos
afirmar que ela descaracterizou o samba.

Salgueiro e Ijexá86

Tijuca e Ijexá87

Vila Maria e Ijexá88

                                                                                                               
86
 https://drive.google.com/file/d/1cNW2GuhNI4YcbNTpRo5qr14NaSnBNOfr/view?usp=sharing
87
https://drive.google.com/file/d/1B7L--Ca48B3IIdIy18epa5TxDLRis_Gd/view?usp=sharing
88
https://drive.google.com/file/d/1h4YSIs5ZQf7sn4l3F6-rBTSrIOrmFPYM/view?usp=sharing
 
  228  
 

Salgueiro e Alujá de Xangô89

Diversas Escolas em 90 e Alujá de Xangô90

Notamos aqui o que é apontado por Fernández (1986) como processo de binarização
dos ritmos ternários africanos na América Latina. Ou seja, um timeline ou clave que apresenta
uma subdivisão ternária em colcheias e é transformado em uma subdivisão quaternária em
semicolcheias, mudando a subdivisão de um sub-pulso ímpar para par, em um mesmo espaço
no compasso, e com um pulso comum entre as duas possibilidades.

Vila Isabel e Vamunha91

                                                                                                               
89
 https://drive.google.com/file/d/1wcpo3wAzbmsE68crRR9AjsjVjl7gbxdj/view?usp=sharing
90
 https://drive.google.com/file/d/18E8BC3W5SXOqz0FRM0roWnpY18ous54n/view?usp=sharing
91
 https://drive.google.com/file/d/1xhBFDLr0Alb_AOqDE2cQWeGN8V2bkpzz/view?usp=sharing
 
  229  
 

5.8 Transcrições de bossas - 2019/2020


No final de 2018, nos ensaios finais para o carnaval paulistano que ocorreria em mar-
ço de 2019, participei do processo iniciado por Mestre Zoinho (Robson Campos) na bateria
do GRCSES Império de Casa Verde, cujo objetivo era a escrita, em partitura, dos arranjos
construídos para o samba enredo daquele ano, o que se repetiu no carnaval de 2020. A inten-
ção do Mestre era entregar tais transcrições para os jurados que analisam e pontuam as bateri-
as dentro dos critérios estabelecidos pela Liga das escolas de samba. Estes jurados, em geral,
são músicos formados academicamente e têm prática e intimidade com o universo da leitura
de partituras.
Interessante notar que, mesmo que essa não seja uma prática dentro das baterias, o
Mestre, por ter uma visão cultural e musical abrangente, achou também importante ter
as partituras como documento, de maneira a ajudar a validar seu trabalho construído para a
performance de sua bateria. Talvez a ideia de entregar uma grade daquilo que seria executado
por sua bateria pudesse destacar seu trabalho, oferecendo-lhe um certo status, já que esta é a
única bateria que apresenta uma partitura para os jurados, tanto no Rio de Janeiro como em
São Paulo. Isso também parece objetivar uma facilitação para os jurados, para o entendimento
de toda a construção musical, pontualmente destacada na grade rítmica. Por outro lado, este
pedido também me soou, como se fala popularmente, um “prato cheio”, pois possibilitou ana-
lisar musicalmente vários elementos como: motivos rítmicos de cada naipe, sonoridades, in-
tensidades, diálogo entre os naipes, melodia de timbres, timelines, flexibilidades da matriz
temporal, variações de andamento nas retomadas, entre outros.
A prática da escrita musical não é uma necessidade nesse meio. Porém, é uma ferra-
menta que pode ser manejada produtivamente para a pesquisa e para músicos que circulam
entre os dois mundos – o popular e o orquestral. É também uma possibilidade de colocar esta
cultura – do samba, da bateria – em um outro lugar, já que a partitura serve como um docu-
mento visual impresso daquilo que é produzido sonoramente. A partitura estabelece ainda um
  230  
 

local (status) diferenciado. Entre os ritmistas, por exemplo, é muito comum se referenciar a
algum músico que tenha essa prática da leitura musical como Maestro. Eu mesmo sou chama-
do de Maestro ou professor nestes locais, mesmo que hajam diversos diretores, mestres e pro-
fessores com outras habilidades significativas da tradição oral, como memória e escuta dife-
renciadas.
O músico que precisa decorar uma série de breques, por exemplo, acaba tendo um
desenvolvimento diferenciado para esta tarefa, bem distinto do músico que apenas lê partitu-
ras e não precisa memorizar. Apesar de nos terreiros e nas baterias ser característica a repro-
dução e o aprendizado de instrumentos sem a necessidade da leitura, entendemos como cres-
cente a possibilidade do encontro entre esses dois mundos – o da teoria e o da prática. Atual-
mente, por exemplo, é muito comum encontrarmos ogãs ou ritmistas em busca de instituições
de ensino de música com a prática da escrita, leitura e técnicas musicais de outras tradições –
fato que também influência a modificação de padrões estabelecidos nos terreiros ou baterias,
explicitado pela circularidade e somatória de conhecimentos diferentes de variadas escolas
musicais.
Apresentamos abaixo o trabalho solicitado para o carnaval paulistano, por entender-
mos ser um marco inicial de muitas novas possibilidades.

 
 

  231  
 

Bossa 1 Império de Casa Verde 2019 Mestre


Mestre Zoinho
Marcão
q = 146 Transcrição de Rafael Y Castro
Romances que tanto marcaram
Convenção preparatória não foram esquecidos no fundo Ritmo até indicação para virada de
para o início da bossa 1 do mar (início da bossa 1) 2 ou de 3 e/ou repetição da bossa 1 ou 2

Tamborim ã c œœyœœ œ œ Œ œ Œ œœŒ œ œ. Œ œ œ œ .. œ œ y œ œ œ y œ œ œ y œ œ œ y œ


...
Chocalho ãc yyyyy y y Œ ! ! .. y y y y y y y y y y y y y y y y
j
Cuíca ã c œœœœœ œ œ Œ ! ! .. " œ . œ œ œ œ " œ œ
ddeddd d d d d e...
Repinique ã c œœœœœ œ œ Œ œ Œ œœŒ œ œ. Œ œ œ œ .. œ g g œ œ g g œ œ g g œ œ g g œ
ddeddd d dded dede dede dded
Caixa ã c œœœœœ œ œ Œ œ Œ œœŒ œ œ. Œ œ œ œ .. œ œ œ g œ œ g œ œ œ g œ œ œ œ g

Surdo de segunda ãc œ œ œ œ œ Ó .. œ œ

Surdo de primeira ãc œ Œ œ œ œ œ œ .. œ œ

Surdo de terceira ãc œ Œ œ œ œ œ œ .. œ œ "œ œ

㜠œ y œ œ œ y œ œ œ y œ œ œ y œ ..

ãy y y y y y y y y y y y y y y y ..
j
...

ã" œ. œ œ œ œ " œ œ ..

㜠g g œ œ g g œ œ g g œ œ g g œ ..

㜠œ œ g œ œ g œ œ œ g œ œ œ œ g ..

㜠œ ..

ã œ œ ..

ã œ œ œ " œ œ ..

 
 

  232  
 

q = 146
Bossa 2 Império de Casa Verde 2019
Mestre Zoinho/Mestre Marcão
Seja você um personagem, Transcrição de Rafael Y Castro
a grande estrela da sétima arte
Telecoteco

Tamborim ãc œ Œ Œ œ œ Œ œ œ œœ y œœœ y œœ Œ œ œ œ œ œ œ œ. œ

Chocalho ãc y Œ Œ y y Œ y y yy yyyy yyy Œ yyyyyyyyyyyyyyyy


j
Cuíca ãc œ Œ Œ œ œ Œ œ œ œœ œœœœ œœœ Œ !œ . œ œ œ œ !œ œ
Solo primeiros ripas
3

ã c œ g g œœ œ œ Œ œ œ œg gœœg gœœ Œ
3

Repinique œggœœggœœggœœggœ

Caixa ãc œ Œ Œ œ œ Œ œ œ œœ œgœœ gœœ Œ œœœgœœgœœœgœœœœg

Surdo de segunda ãc œ œ œ œ œ œ Œ "

Surdo de primeira ãc œ œ œ œ œ œ Œ "


j
Surdo de terceira ãc œ œ œ œ œ ‰ œ œ+ œ. œ+ œ+ œ. œ+

j j j
ã ! œ œ ‰ œ œ œ œ. œ ! œ œ ‰ œ œ œ œ. œ ! œ œ ‰ œ œ œ œ. œ

ãyyyyyyyyyyyyyyyy yyyyyyyyyyyyyyyy yyyyyyyyyyyyyyyy


j j j
ã!œ. œ œ œ œ !œ œ !œ. œ œ œ œ !œ œ !œ. œ œ œ œ !œ œ

ãœggœœggœœggœœggœ œggœœggœœggœœggœ œggœœggœœggœœggœ

㜜œgœœgœœœgœœœœg œœœgœœgœœœgœœœœg œœœgœœgœœœgœœœœg


j
ã " œ. œ‰ œ Œ Œ "
j
ã " œ. œ‰ œ Œ Œ "

ã œ+ œ. œ+ œ+ œ " "
©

 
 

  233  
 

Império de Casa Verde 2020


q = 80
Barcelona do Samba Mestre Zoinho
Transcrição Rafael Y Castro
Intro j j j
Tamborim ãc w w œ œ Ó œ œœ‰œ œ w Œ ‰œ œ ‰œ

Chocalho ãc ! ! Ó Ó ! ! !
j j j
Guira ãc / / / / Ó / //‰/ / / Œ ‰// ‰/

Cuíca ãc ! ! Ó
Solo primeiros repiniques (motivo: derbak)
Ó ! ! !
d dede d
Repinique ãc œ gœœœg œ gœœœg œ gœœœg œ gœœœ g œ gœœœg œ gœ œœg
j j j
Caixa ãc w w œ œ Ó œ œœ‰œ œ w Œ ‰œ œ ‰œ

Surdo de segunda ãc w w œ œ Ó œ œœ œ œ ! Œ œœ œ

Surdo de primeira ãc w ˙ Œ œ œ œ Ó œ œœ œ œ ! Œ œœ œ

Surdo de terceira ãc w w œ œ Ó œ œœ œ œ w Œ œœ œ

 
 
 
 

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, realizado de maneira participativa no GRCSES Império de Casa Verde
e na Casa de Candomblé Angola Kyloatala, averiguamos, a partir de determinados cruzamen-
tos, parte das conexões existentes entre o candomblé e as Escolas de samba, tanto de maneira
geral quanto específica. Tais conexões demonstram como alguns pensamentos e estratégias de
determinados grupos sociais se desenvolvem e se modificam de acordo com necessidades
coletivas.
Nesse sentido, o ritmo, analisado aqui como um fenômeno multidimensional, é visto
como elemento responsável pela reconexão dos descendentes afro-brasileiros de gerações
mais novas com o local de origem – África –, que sustentam um conhecimento ancestral iden-
titário a partir da prática percussiva. Ou seja, o ritmo possui uma função social ampla, não
somente para quem o executa, mas também para a população que acompanha a performance.
Notamos que, de maneira estratégica, determinados conceitos depreciativos em rela-
ção ao samba e ao candomblé foram socialmente construídos. Concluímos que, no caso do
samba, a mídia, a industrialização do carnaval e o turismo de entretenimento contribuem para
a determinação de certo status apenas comercial atribuído a este gênero musical.
No caso do candomblé, observamos também que determinações tendenciosas e crimi-
nosas de alguns grupos religiosos construíram um imaginário popular no qual as divindades
africanas foram demonizadas, afastando parte do público de uma melhor compreensão da
realidade dos terreiros e desta cultura como um todo. Notamos que aquilo que ocorre por es-
colha de alguns grupos específicos, é uma reprodução direta e automática de conceitos equi-
vocados que são utilizados como estratégias de dominação. Nesse sentido, parte da população
repete a distorção conceitual discriminatória, afastando-se dessa cultura e dando prossegui-
mento ao seu apagamento cultural. Os próprios locais onde os terreiros de candomblé e as
quadras das Escolas de samba se situam – em sua maioria afastados das áreas consideradas
mais urbanizadas –, fortalecem tal apagamento e afastamento.
Ao nosso ver, a compreensão do candomblé como algo limitado à própria religiosida-
de o deixa de lado socialmente, não permitindo que ele seja reconhecido como instituição de
formação de pessoas e promoção cultural, o que é claramente evidenciado nos ritos e perfor-
mances ancestrais. Entendemos isso como uma minimização da potência cultural brasileira.
Percebemos também que a falta de reconhecimento acerca desta cultura multiplica-se através
dos próprios indivíduos promotores de suas práticas. Ao mesmo tempo que parte dos envolvi-
dos considera questões de empoderamento sócio-cultural por meio dessas práticas – a partir
de longos processos de conscientização, estudo e reconhecimento histórico –, outra parte pre-

  240  
 

fere não adentrar nesta questão e relações culturais, optando por não se expressar abertamente
a respeito.
Observamos que isto se dá como uma estratégia de sobrevivência, por conta do amplo
preconceito social em relação às identificações culturais de matriz afro, preconceito este que
se dá em níveis étnico-raciais e religiosos, resultando no fato de que esta cultura seja vista
como marginal, com base num referencial de refinamento hegemônico eurocêntrico. Há um
amplo desconhecimento das peculiaridades destas musicalidades e subestimação de potencia-
lidades promovidas pela coletividade em processos artísticos encontrados na performance dos
grupos e ambientes analisados. No caso do samba, geralmente associado ao entretenimento,
observamos a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, do reconhecimento da profundidade de
elementos rituais a ele associados. Nesse sentido, nossas inquietações se deram na tentativa de
averiguar quais seriam os motivos de não haver um reconhecimento amplo das complexidades
existentes nestas práticas e quais seriam de fato as heranças culturais trazidas pela diáspora.
Verificamos que a relação de atividades do cotidiano com as práticas musicais é es-
sencial para o desenvolvimento de sentidos sociais para os grupos envolvidos. Ao mesmo
tempo, é pela necessidade da ação social, a partir da musicalidade, que os elementos identitá-
rios rítmicos, e diversos outros pontos de encontro entre os terreiros e as baterias, aparecem
como insígnias de poder. Estes códigos fazem parte da memória coletiva e do reconhecimento
territorial destes indivíduos. A sonoridade dos grupos de percussão representam território e
pertencimento.
Alguns conceitos centrais tratados aqui como norteadores dos comportamentos de
movimentos diaspóricos em diversos contextos e locais, abordados amplamente por Hall, Or-
tiz, Pinto e Kubik, acabaram correspondendo a determinados comportamentos observados por
nós nas comunidades analisadas, naquilo que se refere à transculturação e etnicidade. Alguns
exemplos mais diretos destas correspondências conceituais seriam: a) nem sempre quem mi-
gra de um lugar para outro, no caso da África para o Brasil, opta por continuar ou referenciar
a origem e portanto as conexões culturais, mesmo quando as utiliza em seu repertório, b) o
reconhecimento da potencialidade cultural de determinado grupo, a partir de sua etnia, pode
também não ser considerado como algo significativo em determinadas práticas ou comporta-
mentos do indivíduo. Nesse sentido não há uma clareza explícita dos conteúdos e significa-
dos, mesmo que estes sejam particulares, c) por outro lado, caso seja conveniente, estas rela-
ções, quando identificadas, servem para empoderar o indivíduo a partir do seu coletivo e d)
independente dos exemplos anteriores (a, b ou c), ele opta por deixar estas relações e valores
mantidos como segredos, preferindo não expressar claramente estas conexões.

  241  
 

Compreendemos que diversas questões sociológicas se apresentaram em pontos de


cruzamento diversos, onde a música é uma ferramenta de formação de valores coleti-
vos. Presenciamos também, de forma muito evidente, maneiras diferentes de existência dentro
das práticas das comunidades analisadas. Como já observado, o ritmo é um conector de senti-
dos sociais, e é justamente no contexto da performance destas formações que muitos desdo-
bramentos representam a própria conexão entre os terreiros e as baterias. Os códigos internos
– toques e levadas –, funcionam como elementos representativos da identidade social desses
grupos. A possibilidade de executar e reproduzir elementos identitários recriados no pós-
diáspora, justificam a continuação da memória cultural africana. Os toques e levadas torna-
ram-se então, meios mnemônicos.
Como cultura e sociedade estão conectados mais fortemente nesses e em alguns outros
grupos, descobrimos que além de verificar o próprio sentido do ritmo como fenômeno multi-
dimensional, foi a amplitude dos pontos de convergência entre os terreiros e as Escolas de
samba. É a partir destes encontros que o ritmo se desenvolve plenamente, ou seja, ele só exis-
te a partir dessas conexões. Por outro lado, não nos interessa determinar qual seria o ponto de
partida (do musical para o social ou do social para o musical), porque compreendemos que
não há separação entre cultura e sociedade. O que procuramos evidenciar foram os encontros
e seus significados, ainda pouco expostos socialmente, tanto dentro como fora dos próprios
contextos musicais analisados. Enaltecemos a reconexão de todos os envolvidos, apresentada
pela performance de seus conjuntos percussivos e seus amplos significados coletivos.
Identificamos uma série de toques utilizados no candomblé – aguerê de Odé, alujá de
Xangô, cabula, congo de ouro, ijexá, ilú de Iansã, entre outros –, como responsáveis pelas
levadas de caixa, repinique e surdos utilizadas nas baterias das escolas de samba. Estes refe-
renciais rítmicos – originários principalmente de países da diáspora centro-africana de cultura
Bantu e de grupos étnicos como os Yorubás, da Nigéria – chegaram e transformaram-se em
processos evolutivos musicais de readaptação. Lembramos que o nome de uma das nações
mais representativas do candomblé no Brasil é Ketu, oriundo de uma região relevante pela
ancestralidade musical transposta através da diáspora, o conhecido reino do Benin (anti-
go Daomé).
Nesse sentido, esses referenciais rítmicos promovem tentativas de reconexão identitá-
ria para suas comunidades, tanto para aqueles que tocam como para aqueles que participam e
escutam nos terreiros e nas Escolas de samba (Memória ancestral). Encontramos e destaca-
mos então diversos elementos identitários a partir do ritmo: a) nos chamados pontos fixos de
encontro em timelines de diversas levadas de caixa, b) em levadas e variações de repinique, c)

  242  
 

em levadas de surdo e d) na contramétrica utilizada em padrões referencias em solos, varia-


ções e momentos específicos do xirê e do samba enredo. Todos esses referenciais fundamen-
tam a integração entre as linguagens do samba e do candomblé, oriundas de práticas percussi-
vas africanas suportadas pela oralidade que evidenciam possibilidades de compreensão do
pulso diferentes daquelas estabelecidas na música ocidental.
Destacam-se os seguintes pontos mais marcantes de toda a investigação:
Musicais
a) flexibilidade na performance: matriz temporal, andamento e diálogos musicais (per-
gunta e resposta), b) percussão como linguagem, c) instrumentos, d) técnicas, e) pluralidade
entre ritmo, voz e movimento (características e funções do ogã e do ritmista) e f) prática mu-
sical como essência.
Breve descrição de alguns exemplos mais destacados por esta investigação:
a) a levada de caixa em cima, criada por Mestre Louro no GRCSES Acadêmicos do
Salgueiro (Rio de Janeiro), possui origem inicial no alujá de Xangô (Ketu). Por outro la-
do também é considerada uma levada marchada pelas gerações anteriores (conexão híbrida
com o toque arrebate do candomblé Angola), b) a levada de caixa em cima utilizada em al-
gumas baterias como na Vila Maria e no Bloco Carnavalesco Filhos da Santa em São Paulo,
possui origem híbrida, dividida entre o cabula (conexão mais direta com a origem do próprio
samba) e o ijexá, ritmo essencialmente utilizado no candomblé para diversos orixás, apesar de
ser associado mais diretamente à Oxum e ser também uma marca identitária nos Blocos Afir-
mativos Afro, como é o caso do Ile Ayê em Salvador no estado da Bahia, c) a levada de caixa
da Portela é oriunda do aguerê de Yansã, toque este também conhecido por quebra prato
e ilú de Yansã, d) a levada de caixa da bateria do GRCSES Mocidade Independente de Padre
Miguel provém do aguerê de Odé (especificamente na variação do atabaque rum), e) a segun-
da célula rítmica mais executada no pandeiro de náilon dentro do partido alto é uma apropria-
ção do cabula (assim como as variações realizadas na contramétrica), f) há uma associação do
agogô do GRCSES Império Serrano com Ogum – orixá patrono dessa Escola cujo elemento
de poder na mitologia Yorubá é o ferro, material base utilizado na construção desse instru-
mento. Lembramos que os africanos eram considerados grandes mestres na construção de
ferramentas com o ferro, por exemplo. Observamos também que muitas Escolas utilizam o
símbolo de São Jorge (Ogum sincretizado na religiosidade brasileira) e outros orixás como
Xangô como protetores espirituais.
Diversos

  243  
 

Destacamos conexões que ocorrem na circularidade cultural entre os terreiros e as Es-


colas. Estas características em comum, que também se apresentam em outras realidades, justi-
ficam as relações e encontros analisados, corroborando as conclusões a partir de nossa hipóte-
se: a) oralidade, b) elemento ritual, c) filosofia de vida, d) símbolos, e) cargos de liderança, f)
memória e respeito aos antepassados, m) preceitos, g) identidade e pertencimento, h) segredos
utilizados como resistência, i) métodos, j) relativização do tempo, k) intergeracionalidade,
l) xirê e desfile, entre outros.
O trabalho evidencia determinados comportamentos de indivíduos pertencentes a esses
grupos que, apesar de não exporem abertamente determinadas conexões por diversos motivos
já descritos, utilizam estes elementos como sentido existencial em suas práticas. Ao mesmo
tempo, eles optam por não querer relacionar tais elementos, tanto pela ausência de reflexão a
respeito como pela falta de necessidade, já que a práxis, por si só, justifica esses encontros.
Por outro lado, alguns defendem tais encontros e reconhecem parte destas relações.
Outro ponto que averiguamos, foi o grande contingente de mestres, diretores e ritmis-
tas jovens atualmente nas baterias. Esta característica também foi interpretada como respon-
sável pela falta de conexões histórico culturais, já que muitos destes não possuem relações
com a religiosidade de matriz afro. Por outro lado, utilizam desta estrutura e concepção musi-
cal de maneira inconsciente.
Entendemos que este trabalho contribui para a aproximação comunitária, unificação de
linguagens e possibilidades de ensino, reconhecendo a totalidade das características e costu-
mes brasileiros promovida pela forte influência de diversas etnias africanas em conjunto com
suas descendências. Encontramos nos contextos investigados um saber complexo que pode
somar-se ao que já é produzido de maneira positiva na academia. Tratamos de buscar o reco-
nhecimento cultural afro-brasileiro dentro de sua amplitude, que não tem sido relatado de ma-
neira profunda, principalmente naquilo que se refere às peculiaridades encontradas em nossas
análises musicais e nas derivações do ritmo como fenômeno multidimensional para as comu-
nidades estudadas.
Mesmo que ainda não haja o total reconhecimento da dimensão que estes lo-
cais atingem, bem como o nível de promoção social e profissional de seus agentes, o trabalho
aponta para o fato de que esses locais preservam, de fato, práticas sustentadas essencialmente
pela percussão, construída de maneira coletiva. O desenvolvimento da própria construção
musical está diretamente relacionado com o desenvolvimento do ser humano de maneira inte-
gral, visando uma relação de parceria entre a performance e o próprio indivíduo. Participar
destas comunidades como ritmista ou ogã, torna-se símbolo de novas possibilidades de atua-

  244  
 

ção, a partir de metodologias vivenciadas nestes ambientes. É uma possibilidade de formação


histórico-cultural pela própria performance, através da oralidade.
Para a sociedade de maneira geral, e para as comunidades pesquisadas, esperamos
contribuir fortemente na documentação textual de práticas ainda apagadas politicamente. Des-
sa maneira, por exemplo, esse conhecimento poderá ser utilizado também em instituições de
ensino. Essa é uma tentativa de resistência contra a marginalização destes saberes estruturais,
ainda subestimados socialmente. As importantes instituições de formação de pessoas a partir
da performance aqui analisadas, podem ser, de fato, referenciais de metodologias complexas
intrínsecas encobertas pela oralidade. Nesse sentido, o texto corrobora para uma melhor com-
preensão destes saberes.
Com base em nossos estudos, na qual há o encontro de saberes desenvolvidos nos ter-
reiros que são transpassados para as baterias, e a partir de nossas análises, concluímos que os
toques utilizados no candomblé permanecem nas baterias de maneira estrutural, ainda que não
sejam expostos claramente desde sua origem. Todo o arcabouço cultural trazido via diáspora
permanece de maneira central nas escolas de samba. O fato de isto não ser discutido nestes
ambientes, ou mesmo fora deles, é apenas uma questão de escolha estratégica por parte dos
envolvidos.
Da mesma maneira, diversos outros pontos de encontro tratados neste trabalho justifi-
cam a relação apresentada, apontando para a amplitude de aspectos comuns à cultura e à soci-
edade.

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GLOSSÁRIO

Adjá: instrumento parecido com o agogô utilizado para atrair os Orixás.

Alabê: líder do conjunto percussivo do Candomblé na nação Ketu.

Amazi: água na língua Bantu.

Aquidavi: baquetas de bambu, goiabeira, tucum e outras variedades de materiais, utilizadas


para a execução dos toques dos atabaques na nação Ketu.

Ashogun: ogã com a função do sacrifício de animais na roça, também substitui ou reveza com
o Pai de santo as ações nos ritos estruturais como o Xirê.

Ayê: terra, local aonde vivem os humanos.

Barracão: salão aonde acontecem os rituais como o Xirê no Camdomblé, também utilizado
como nome referencial de uma quadra de Escola de samba.

Casa de Santo: o mesmo que terreiro ou roça.

Ebó: oferenda para os Orixás.

Ekédi: filha de santo com a função de apoio ao zelador e realização de todos os outros cuida-
dos domésticos em uma roça. Zeladora dos orixás.

Filhos de Santo: indivíduos praticantes da religião do Candomblé.

Inzo: terreiro em Bantu.

Kizomba: roteiro e enredo da gira. O mesmo que xirê em Ketu.

Kota/Makota: Anciões mais velhos, com mais de sete anos de iniciação no Candomblé Ango-
la.

Maionga: banho.

Mameto: Mãe de Santo. O mesmo que Yalorixá no Candomblé de Ketu.

Marafo: bebida específica destilada do Orixá Exu. Termo utilizado nos terreiros e nas baterias
por alguns indivíduos que circulam em ambos os ambientes.

Muzenza: O mesmo que Yawó no Candomblé de Ketu.

Nkise: a própria natureza em sua força máxima no Candomblé da nação Angola. Diferente de
orixá, mas reverenciados com o mesmo ou maior grau de importância espiritual para os filhos
da Casa.

Obi: semente sagrada africana utilizada nos rituais do Candomblé.

Odé: Oxóssi.

  259  
 

Ogã: percussionista e filho de santo com diversas funções estruturais nas roças ou terreiros,
como o da proteção e guarda dos rodantes e do zelador.

Ori: Cabeça.

Oro: Rito específico que acontece no barracão ou no Roncó.

Orum: local onde vivem os orixás, diferente do céu.

Oyá: Iansã.

Pai: referência aos ogãs ou Pai de santo.

Roça de Candomblé: o mesmo que terreiro.

Rodante: filho de santo que possui a capacidade mediúnica da incorporação.

Roncó: local de iniciação dos filhos de santo, entendido como o útero da Mãe Iansã, exata-
mente por que será ali que os filhos de santo renascerão dentro da religião.

Suspenso: indivíduo escolhido para ser iniciado na religião.

Tata Kambando: O mesmo que ogã no Candomblé de Ketu.

Tata Nkisi: Pai de santo em Bantu

Terreiro: Casas de Santo, local aonde acontecem os rituais.

Xicaringoma: líder do conjunto percussivo do candomblé da nação Angola. O mesmo que


Alabê no Ketu.

Yawó: indivíduo que possui capacidade mediúnica de incorporação.

Zamba: O mesmo que Ekédi no Candomblé de Ketu.

Zelador: o mesmo que Pai de santo.

  260  
 

APÊNDICE A -COMUNIDADE KYLOATALA

MAMETO
Vanda Pereira dos Santos (Bandadeloyo) – fundadora do Inzo Kyloatala (in memorian)

TATA NKISI
Kylonderu (Rodofo Santos dos Reis)

KOTA
Ramsés Reis (Kamuanga)

MAKOTAS
Carolina Doin (Manzele)
Rosângela Santos (Mazakyssy)
Roseli Pereira (Danssejy)

MUZENZAS
Cristiane Dias (Gundery)
Ester Caparelli (Dandassaley)

TATAKAMBANDOS
Cristiano Nardis (Dymewazamby)
Jorge Ceruto (Gangazonybe)
José Paulo Rodrigues (Obadarubenym)
Júlio Mesquita (Gunbewango)
Kauan de Oliveira (Taringanga)
Luan Borges (Mutaru)
Marcos Menezes (Mukambila)
Rafael Y Castro (Bewalaja)
Ricardo Valverde (Ymberekwe)

ZAMBAS
Andréia Elias (Kwanzademy)
Beatriz Góes (Mussambazuyla)
Danielle Lima (Ojufarany)
Dayra Reis (Kyanlecy)
Débora Oliveira (Kalymazy)

  261  
 

Isabela Faria (Oyamurejy)


Kauany Santos (Zyngewala)
Roseleide Santos (Monamazy)
Sônia Donin (Kesnzalejy)

  262  
 

APÊNDICE B - BATERIA DO GRCSES IMPÉRIO DE CASA VERDE


(2017-2020) (Equipe Técnica)

Robson Campos (Zoinho) – Mestre

Edmir Augusto Fernandes - Diretor/Ala de Cuíca

Edson Martins Junior (Teco) – Diretor/Ala de Guira

Emerson Machado (Sam) – Diretor

Fernando Luis dos Santos (Nando) - Diretor

Jefferson da Silva Cruz (Gê Nota 30) - Diretor

Jorge da Silva Cruz (Trovão) - Diretor

Jorge Vinícius - Diretor/Ala de Tamborim

José Roberto da Silva Junior (Chulé) - Diretor

Matheus Felipe (Emílio) - Diretor

Ricardo Luiz dos Santos (Viola) - Diretor

Sergio Vertente Lima (Serginho) – Diretor/Ala de Tamborim

Wellington Candido (Welitão) – Diretor/Ala de Chocalho

  263  
 

APÊNDICE C - ENTREVISTADOS

Adeir Rodrigues (Thinta)


Alan Salgado (Ogã Alagbê)
André Silva
Anderson Jorge Enéas (Awo Nita Mokutalofanje Anderson D’Ogun) (Cabelinho)
Bruno Romano (Primeiro Repinique)
Claudemir Romano (Mestre de bateria)
Douglas Germano
Koka Pereira
Dennys Silva
Erivaldo Basílio Portela (Barba)
Fernando Moreira (Mestre Neninho)
Flávio Luís Ferreira de Souza
Francisco Santana
Hugo Santana
Jeferson Magno
Jorge Ceruto (Tata Ganga Zonibe)
José Roberto da Silva Junior (Chulé/Diretor de bateria)
Julio Cesar (Primeiro Repinique)
Lucas Quexo (Primeiro Repinique)
Luiz Antonio Simas
Marco Antonio da Silva (Mestre Marcão)
Marcos Menezes (Tatakambando Ashogum Mukambila)
Michel Romano (Primeiro Repinique)
Osvaldo Barro (Osvaldinho da Cuíca)
Paulo Henrique Souza (Pupa) (Primeiro Repinique)
Pedro Moita
Rafael Oliveira (Mestre de bateria)
Ramsés Santos dos Reis (Tata Kamuanga)
Ricardo Valverde (Tatakambando Inberekwe)
Robson Campos (Mestre Zoinho)
Rodolfo Santos dos Reis (Tata Nkisi Kylonderu)
Rodrigo Santos
  264  
 

Vitor da Candelária (Primeiro Repinique)


Vitor da Trindade (Ogã Alabê)
Vitor Velloso (Mestre de bateria)

  265  
 

APÊNDICE D – TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTAS REALIZADAS A


PARTIR DE QUESTIONÁRIO SISTEMATIZADO

Perguntas:

1) Você acredita em alguma influência do candomblé nas baterias? Caso seja sim, fale sobre.
2) Alguém que você conhece já falou sobre algum acontecimento disso nas escolas de samba?
3) Quando você ouve ou toca uma levada de algum instrumento da bateria, você identifica
algum toque do candomblé? Explique.
4) Caso você tenha informações sobre estas relações, teria alguma ideia do motivo delas não
serem faladas abertamente?
5) Você tem alguma iniciação na religiosidade do candomblé?
6) Você acha relevante discutir essas relações?
7) Historicamente já ouviu algo sobre o que pode sair do terreiro e ir para a avenida?

Respostas dos entrevistados:

Adeir Rodrigues (Thinta)

1) Sim, com certeza, isso é mais do que a realidade, apesar de muitos não falarem por diver-
sos motivos. O principal acredito que seja o preconceito de quem é de fora e também a falta
de segurança de quem é de dentro e pratica a religião mas prefere deixar no silencia. Dessa
forma, evita se aborrecer com gente que já tem estabelecido padrões de dominação.

2) Sim, conheço bem o Andrezinho, filho do finado Mestre André da Mocidade. Lá sempre
falaram que a batida de caixa tinha origem no aguerê. Na verdade nem sei de qual aguerê que
seria a origem e se é Ketu ou Angola mas muito se falou da escolha do toque para ser utiliza-
do nas caixas.

3) Sim, eu adoro tocar congas em gravação de samba enredo. Pode ver o dvd do Leandro Le-
art quando eu toco é macumba pura. Tem até um solo meu lá. Outra coisa, os toques dos repi-
ques também são idênticos aos toques dos atabaques, é só você ouvir o lé do cabula por
exemple e a levada básica no repique, é igual.

4) Como disse anteriormente, penso que seria uma estratégia para evitar certa falta de enten-
dimento da importância do terreiro para as escolas, assim cada um faz o seu e não se aborrece.

5) Sim, toda minha família sempre foi da macumba e do samba, somos do Engenho da Rainha
no Rio e tenho passagens pelo Salgueiro e afinidade pela Mangueira. Em São Paulo, já não
frequento mas simpatizo com o Mocidade Alegre e Império de Casa Verde. Gosto das pessoas
de lá. Hoje tá difícil frequentar por motivos pessoais e profissionais.

  266  
 

6) Eu acho mais do que essencial, isso é a nossa história. O negro, o branco, todos precisam
compreender a importância disso culturalmente e politicamente para a identidade do brasilei-
ro. Não é interessante deixar isso esquecido. É uma história de muita sabedoria, apesar das
diversas dificuldades que todos nós já sabemos né.

7) Todo o universo mágico da identidade do negro é contada no desfile. Os enredos trazem a


história, o passado. A bateria mostra a sonoridade que atravessou o atlântico para aqui ser
reinventada.

Alan Salgado (ogã alabê)

1) Olha, são tantas, por exemplo, uma das que mais conheço é do alujá de xangô com a levada
de caixa em cima do Salgueiro. Pode perceber que a transição da tercina para semicolcheia é
uma coisa que também ocorre nos terreiros. Dependendo da Casa isso ocorre sempre. Outra
coisa, muitos ogãs também são ritmistas porque se identificam com ambos os significados.

2) Sempre ouvi curiosidades, mas de fato pouca profundidade vem quando o povo fala disso.
De fato precisaria fazer um levantamento maior sobre isso.

3) Sim, muita coisa vem dos atabaques, pandeiro, tamborim, repique, surdo, caixa. Acredito
que as levadas de referencia destes instrumentos foram construídas a partir do que temos na
Memória coletiva das sonoridades dos terreiros. De maneira consciente e inconsciente. São
nossas referencias desde pequenos.

4) Puro preconceito ou desconhecimento mesmo. As pessoas preferem não ter o trabalho em


se auto conhecer.

5) Sim, sou feito no Ketu. Minha mãe já era de um terreiro e eu sempre frequentei. Há 3 anos
fui iniciado como alabê.

6) Acho fundamental mas para os ritmistas talvez passe batido. Muitos querem tocar e mos-
trar qualidades técnicas e nem tanto a consciência do que está sendo feito. Acho que alguns
mais velhos sabem mais destas influências e procuram mesmo com algumas dificuldades en-
tender melhor para passar as informações corretas, quando forem abordados.

7) Tudo praticamente que é construído já possui embasamento nestas relações. Até há algu-
mas críticas quando o povo exagera e utilizada algumas simbologias de maneira equivocada
ou não faz o preceito de maneira correta. Assim ocorrem diversos problemas como fogo e
quebra de carro alegórico, atrasos e muito mais. Penso que os orixás só ajudam mas também
cobram disciplina e respeito.

André Silva

1) Sim, isso sempre teve, não dá para separar, a única diferença é o lugar e os procedimentos
mas os objetivos se encontram. Valorizar a identidade do povo negro.

2) Meu pai, você sabe quem foi né. Sempre me contou e me mostrou como as batidas surgi-
ram dos couros. Também vejo que isso é mais forte em algumas escolas como a Mocidade e
Mangueira.
  267  
 

3) Sim, percebo isso bem claro nas levadas de caixa em cima derivadas do Salgueiro e essas
que já te falei.

4) Há, isso sempre foi um mistério né, é muito difícil. No Brasil é mais fácil um preto falar
que é branco para se proteger do que trazer seus costumes como realidade. Historicamente
isso sempre foi difícil.

5) Eu não sou iniciado mas sempre frequentei, já me interessava desde pequeno por fazer par-
te de uma tradição da família. Muitos tios são de Casas de santo.

6) Eu acho interessante desde que a pessoa consiga ter uma vivência para se familiarizar com
o assunto. É importante assumir isso como um conhecimento de nossos antepassados.

7) Muitas representações de momentos dos ritos do candomblé ocorrem na avenida. A comis-


são de frente é uma marca disso.

Anderson Jorge Enéas (Awo Nita Mokutalofanje Anderson D’Ogun) (Cabelinho)

1) É difícil falar disso porque o povo faz muita bagunça, não consegue separar o sagrado do
profano e assim ocorre o desrespeito.

2) Eu mesmo preciso me controlar pois quando toco ripa mor como tenho mediunidade de-
senvolvida posso incorporar enquanto toco, o que não é indicado no ambiente das escolas. No
meu terreiro tudo bem, faz parte.

3) Sim, o toque que te passei, eu criei ele aqui em São Paulo. Peguei do rumpi do cabula e
passeis para o ripa mor. Só eu toco desse jeito.

4) É preciso cuidar da religião de maneira cuidadosa, sem expor ao ridículo o que serve para a
formação das pessoas e não para o entretenimento.

5) Sou pai de santo e com muito orgulho represento o que aprendi com meus mais velhos.

6) É importante desde que as pessoas tenham cuidado e intimidade para falar com responsabi-
lidade.

7) Sim, todo o saber do negro é representado pelas manifestações populares. O carnaval das
escolas de samba é uma porta de entrada para tratar disso com sabedoria e não ao contrário.

Bruno Romano (primeiro repinique)

1) Sempre ouvi falar mas como sou de outra religião não tenho conhecimento para te passar.

2) Sim, meus tios e toda a tradição da Nenê de Vila Matilde. Seu Nenê já ia pro Rio e trazia
essas coisas de lá.

3) As funções dos surdos pra mim são pensadas como os atabaques, cada um faz a sua parte
no conjunto.
  268  
 

4) Muitas pessoas preferem tocar e cada um fica com as suas crenças. Musicalmente dá pra
resolver tudo sem questionar muito.

5) Eu até teria mas como parte da família acabou indo pra outro segmento então perdemos um
pouco essa raíz.

6) Eu acho sim mas na prática ficamos com diversas obrigações para resolver e isso fica mais
pra quem gosta de conversar.

7) Praticamente desde o início isso ocorreu porque o terreiro conseguiu uma espécie de exten-
são do ritual na avenida.

Claudemir Romano (Mestre de bateria)

1) Olha eu prefiro fazer música e pensar no bem das pessoas. Reconheço que isso seja parte
da tradição e deve ser respeitado porém no meu caso fico tranquilo com o samba em si.

2) Sim, ouvi muito principalmente do pessoal do Rio né, isso por lá é mais forte do que aqui.

3) Eu até penso que sim porque todas as batidas lembram muito.

4) Acho que é porque as pessoas se preocupam em acreditar cada um na sua fé, assim seria
uma forma de evitar problemas.

5) Não tenho mas também é como se tivéssemos. Todos nós do samba acreditamos na ances-
tralidade do povo negro que condiz com a mesma base, os orixás.

6) Acho sim, penso que seria uma forma de desmistificar e assim falar melhor disso tudo,
compreendendo de fato esta importância.

7) Todos os anos as escolas representam isso basta ver a quantidade e o domínio dos enredos
com a temática afro sempre.

Douglas Germano

1) Sinceramente não, penso que isso virou uma história de moda, apesar de identificar tais
relações vejo um certo exagero nisso.

2) Muitos falam mas é difícil ter de fato algo comprovado, então prefiro não entrar nesses
detalhes.

3) Não penso dessa forma.

4) Acho que cada um prefere acreditar no significado das coisas de maneira individual.

5) Tenho, sou atuante desde sempre e toco atabaques e outros instrumentos do samba tam-
bém.

  269  
 

6) Prefiro não tratar destas influências.

7) Sempre as escolas trazem isso mas é preciso cuidar com a qualidade e competência de todo
o desfile.

Koka Pereira

1) Toda, penso que sem candomblé não haveria bateria.

2) Sim, lembra do Jorge Gomes que te falei, ele me contou que antigamente era mais forte e
hoje muitas levadas ficaram para trás. Isso representou com o passar do tempo a perda de
identidade das baterias. Hoje é tudo muito igual, uma pena mesmo.

3) Os repiques e as caixas.

4) Acho que é preconceito. Algumas pessoas conversam de boa sobre isso e pensam na histó-
ria mas nem sempre foi assim.

5) Tive quando criança mas com o passar do tempo fui ficando distante por motivos diversos.

6) É sempre bom, essas coisas mostram como isso é um complexo de conhecimento precioso.

7) As batidas que estão na bateria já representam isso diretamente.

Dennys Silva

1) Sim, sempre ouvimos isso mas é ainda pouco desvendado.

2) Vários mestres do Rio.

3) No pandeiro, repique e caixa com certeza isso é uma realidade.

4) Penso que o povo prefere não se comprometer quando não sabe de fato os detalhes disso.

5) Não tenho.

6) Com certeza, ainda é difícil entender isso de fato. Algumas pessoas falam mas não expli-
cam.

7) Muitas ideias nos arranjos dos sambas enredo que a bateria faz todos os anos apresentam
parte dos toques dos atabaques.

Erivaldo Basílio Portela (Barba)

1) Eu não entendo disso mas gosto do som.

2) Nunca ouvi nada.

  270  
 

3) Me lembra alguma coisa que não sei explicar.

4) Acho que é pessoal.

5) Não.

6) Sim, tudo que trás entendimento é bom pra nós.

7) Não.

Fernando Moreira (Mestre Neninho)

1) Sim, sempre foi assim. Os antigos traziam essa concepção. As pessoas que frequentavam
os terreiros também saiam nas baterias. Assim este conhecimento ficou em comum.

2) Há, isso com certeza, meu pai você sabe né quem foi para carnaval de São Paulo e para
mim, então ele mesmo já me falou muita coisa.

3) Várias similaridades. Dá pra fazer uma lista.

4) Isso sempre foi uma realidade e ao mesmo tempo um mistério. Seria importante discutir
mais sobre isso.

5) Tenho.

6) Com certeza.

7) Culturalmente não haveria tanta informação no carnaval sem essa origem. A cultura do
povo negro vem do terreiro.

Flávio Luís Ferreira de Souza

1) Com certeza tem, porque é algo em comum.

2) Sempre ouvi falar, mais forte em escolas mais tradicionais, Nenê, Camisa, Vai-Vai.

3) Sim, parece que estou em um terreiro.

4) Perseguição religiosa com certeza. As pessoas seguem com o preconceito inicial que apaga
nossa história.

5) Não tenho mas frequento. Gosto muito também de ir na missa congo da igreja da Penha
uma vez por mes.

6) Claro, acredito que isto deveria fazer parte do currículo das escolas de ensino para formar o
povo com a história verdadeira e não aquele que foi inventada por estratégia de dominação.

7) Tudo que há no desfile foi oriundo dos terreiros.

  271  
 

Francisco Santana

1) Com certeza, sabemos que isso é uma incógnita mas identifico e acredito nessas coisas.

2) Vários ritmistas me falaram nos ensaios da Nenê por exemplo.

3) Sim, sei que tem origem nos toques mas como não sou ogã não consigo de te falar com
precisão.

4) Falta de conhecimento.

5) Não tenho mas gostaria.

6) Muito relevante, precisamos dessas informações.

7) A própria origem da Tia Ciata por exemplo e o surgimento da Pequena África no Rio re-
presentam a influência do candomblé nas escolas.

Hugo Santana

1) Sim, prefiro não comentar.

2) Já ouvi bastante mas penso em tocar só.

3) Sim, muitas levadas são praticamente idênticas aos toques.

4) Acho que o medo pode ser um motivo forte.

5) Não mas acredito em São Jorge e sigo com ele sempre.

6) Sim, é importante para entendermos melhor o que de fato aconteceu desde o surgimento
das escolas.

7) Penso que muitas coisas que são construídas trazem esta origem, os enredos, as alas, a ba-
teria e por aí vai.

Jeferson Magno

1) Isso seria bom você falar com os carnavalescos daquelas escolas com maior diversidade
no Rio.

2) Já ouvi bastante mas sem detalhes.

3) Não percebo.

4) Falta de conhecimento aprofundado.

  272  
 

5) Não mas respeito todas as formas de crenças. O importante é a atitude e o respeito com as
pessoas.

6) Acho sim mas sinceramente até hoje fiz sempre o meu tocando pandeiro e fazendo malaba-
rismo com as mulatas.

7) Acho que os temas dos enredos trazem isso claramente todos os anos. Não é possível falar
ao contrário né.

Jorge Ceruto (Tata Ganga Zonibe)

1) Tudo que temos aqui no Brasil, do ritmo veio da África e Cuba. É uma mesma abordagem
dos conceitos polirrítmicos e melódicos.

2) Sim, sabemos que tudo que é produzido nas escolas possui forte influência, fantasias, ale-
gorias, enredos e ritmo.

3) Eu sempre escutei o Pérola Negra por ser do lado de casa e ouço direto os tambores, como
se tivesse num terreiro. É muito forte. A sonoridade é bem presente e as improvisações tam-
bém demonstram a liberdade e a utilização da música como expressão da vida.

4) Em Cuba o candomblé é feito na rua em lugar aberto. Aqui no Brasil tudo é muito separa-
do. Há um tendência em deixar no mistério e isso enfraquece a própria sabedoria ancestral.

5) Sim, somos feitos no mesmo barco né. Somos irmãos de santo e temos ligação espiritual
forte.

6) Vejo como uma necessidade, abordar isso nas escolas para que as futuras gerações com-
preendam o que veio e permanece como marca e identidade cultural do povo negro.

7) Tudo que começou nas escolas, roupas, ala das baianas, ritmo, instrumentos, sempre veio
da macumba.

José Roberto da Silva Junior (Chulé/diretor de bateria)

1) No Rio isso é muito forte, aqui também temos nossos padroeiros e a sonoridade da bateria
é ligada sim. Surdos, repiques, caixas e outros instrumentos mostram isso claramente.

2) Eu mesmo falo pelo que sempre ouvi dos meus mais velhos. Isso mostra identificação da
nossa comunidade com essas coisas.

3) Pra mim, isso é mais forte nos surdos e repiques. As levadas de caixa do Rio tem isso tam-
bém.

4) Ainda o preconceito é o que impera. No Brasil temos que brigar muito para não morrer na
rua. Sempre tem alguém desconfiando e achando que você é ladrão Sua cor representa des-
confiança. Algo irreal que foi plantado por muitos anos na cabeça das pessoas para dominar e
explorar o próximo.

  273  
 

5) Sou filho de santo e frequento desde criança. Pra mim o terreiro, o Império e os Gaviões
são a minha casa.

6) É sempre importante. Os mais novos precisam ter essas informações para entenderem nos-
so conhecimento. O samba representa muito do que queremos dizer a partir da macumba.

7) Tudo, atualmente são coisas inseparáveis. Mesmo com outras religiões que crescem inclu-
sive nas escolas de samba, ainda há um forte número de filhos de santo que participam.

Julio Cesar (primeiro repinique)

1) Eu identifico nas levadas de caixa e repinique parte dos toques que reconheço por ouvir,
mesmo sem frequentar os terreiros.

2) Meu pai sempre falou. Tem um vídeo dele com o Wilson das Neves falando disso. Eles
explicam a diferença do Rio para São Paulo. Segundo eles por ser mais horizontal a arquitetu-
ra daqui os terreiros ficaram mais afastados enquanto no Rio, os morros (vertical), sempre
forma mais próximos das escolas. Na verdade tudo está muito ligado independente disso. Os
significados em comum são para todos.

3) Sim, como falei antes identifico.

4) Acredito que não deve ser fácil explicar isso pois teria que ter bastante vivencia tanto de
samba quanto do candomblé. Mesmo assim ainda teria que saber descrever os detalhes.

5) Não.

6) É importante, visto que comentam sobre mas ainda não concluem o que realmente há em
comum.

7) Meu pai sempre falou dos enredos, inclusive compôs alguns conhecidos para o Vai-Vai.
Isso é coisa antiga que sempre existiu e as escolas apresentam isso cotidianamente.

Lucas Quexo (primeiro repinique)

1) Nunca pensei sobre isso.

2) Sempre ouvi comentários mas sem nenhuma clareza.

3) Não penso nisso porque não conheço muito bem os toques mas no repique tem o ijexá e o
cabula né.

4) Pode ser o medo das pessoas em falar do que não sabem direito.

5) Não tenho mas acredito que possa ter algum dia.

6) Acho que pode ser necessário para uma melhor compreensão deste mundo em comum dos
terreiros e do samba.
  274  
 

7) Vejo isso muito nas letras de sambistas como o Zeca, Alcione e muitos intérpretes do Rio e
São Paulo.

Luiz Antonio Simas

1) Todas. A mumunha que veio pelo atlântico está presente naquilo que chamo da gramática
dos tambores. O surdo de terceira demonstra o drible, a malandragem, a contradição. A pos-
sibilidade da síncope representa o trejeito de exu que comunica através do inesperado.

2) Todos nossos ancestrais viveram destes encontros. É nas quadras das escolas que o terreiro
chega na chamada urbanização das comunidades. Assim o grande xirê ocorre na descontração
e profunda organização de um ensaio.

3) A batida de caixa da Mocidade, Mangueira e Portela pra mim são as mais representativas.

4) É perigoso falar disso. Você não está vendo nossos representantes políticos. Eles tem medo
disso. O povo negro chegou nas universidades e viaja de avião. Agora eles (os brancos) tem
medo de dividir o que nos é de direito.

5) Sim, sou filho de santo. Nasci e fui criado em terreiro. Sempre participei e me fez sentido.

6) É mais do que necessário, muitos pontos precisam ser esclarecidos e discutidos como en-
tendimento de um saber afro diaspórico.

7) Basta você ver os desfiles. Lembra da Grande Rio em 2019. Tata Londirá, nosso Joãozinho
da Gomeia um dos pais de santo mais importantes do candomblé foi enredo e proporcionou
um belíssimo desfile.

Marco Antonio da Silva (Mestre Marcão)

1) Sim, sempre notamos estas semelhanças.

2) Em todos os ensaios isso é uma realidade. Basta você ouvir as batidas e os arranjos de bate-
ria.

3) Caixas, repiques e surdos.

4) As vezes as pessoas preferem não entrar em detalhes para não se comprometer. Fica menos
trabalhoso. Faz sentido para alguns mas sem abrir.

5) Tenho sim, sou filho de santo desde pequeno. Toda a minha família sempre foi e continua.

6) Ao meu ver pode ser interessante mas não para todos. Penso que cada um se preocupa com
alguma coisa diferente.

7) Já ouvi de todas as batidas porque elas são parecidas, apesar de cada escola ter a sua.

  275  
 

Marcos Menezes (Tatakambando Ashogum Mukambila)

1) Sei que muitos ogãs também são ritmistas.

2) Meus mais velhos também frequentavam as escolas e são filhos e pais de santo.

3) Não toco nada de samba.

4) Como isso é um conhecimento de dentro da religião ainda há um pensamento atrasado e


muito difícil de ser quebrado. Por isso fica sempre um mistério quando fala-se desses assun-
tos.

5) Sim sou ashogum do Unzo Kyloatala.

6) Com certeza, é mais do que necessário.

7) O meu Tata Nkisi por exemplo que é o mesmo do que o seu sempre falou dessas trocas. Ele
mesmo trabalhou e ainda recebe o povo das escolas para fazer algum trabalho espiritual de
proteção. Eles acreditam que assim poderá ajudar para o sucesso do trabalho de toda a escola.

Michel Romano (primeiro repinique)

1) Sempre teve. Na Nenê tinha vários macumbeiros.

2) Meu tio trazia várias histórias dos desfiles anteriores que aconteciam coisas inacreditáveis.

3) O repique que é o meu instrumento é bem parecido com o que se faz nos atabaques. Muitas
levadas parecidas.

4) O povo prefere deixar no gelo. Fica menos complicado explicar. Isso quando o cara conhe-
ce né.

5) Não tenho.

6) É sempre complicado, pode ser que você arranje algumas inimizades mas cada um no seu
interesse.

7) Participo há muitos anos dos desfiles, você sabe porque conhece toda a minha família.
Sempre vimos as coisas juntas.

Osvaldo Barro (Osvaldinho da Cuíca)

1) Isso mais no Rio e em São Paulo depois de 68 quando o modelo carioca foi adotado. Antes
tínhamos o samba rural mas o modelo do carnaval das escolas hoje é tudo igual.

2) Sempre teve o povo de santo presente nas escolas, basta ver a ala das baianas formado ini-
cialmente por mães de santo.

3) Muitas batidas das escolas são derivadas dos atabaques.


  276  
 

4) O povo não quer falar porque quer tocar e participar de qualquer forma. As vezes é mais
simples.

5) Não tenho.

6) Acho desde que não exagere. Também há uma tendência em aumentar um pouco a história.

7) São coisas que andam juntas então tudo que é produzido como espetáculo tem boa parte
dos terreiros.

Paulo Henrique Souza (Pupa) (primeiro repinique)

1) Acredito sim, vejo bastante parecido.

2) Sim, os mais velhos sempre trouxeram isso.

3) Toco repinique e percebo como é parecido com o que a gente escuta nos atabaques e con-
gas. Dentro e fora dos terreiros.

4) Cada um prefere fazer pra si e não entrar em detalhes.

5) Não tenho mas gostaria.

6) Talvez seja bom para entender o que representa nos detalhes nessas transições ainda miste-
riosas.

7) No Vai-Vai temos uma comunidade bastante forte negra. Ë um quilombo urbanizado. As-
sim todos os anos mostramos isso através dos enredos e da identidade da nossa bateria. Pode
ver que em São Paulo é a única onde os surdos de terceira são livres, não são padronizados e
isso mostra a liberdade, a mesma do alabê no rum.

Pedro Moita

1) Há isso é coisa antiga né. As batidas de caixa por exemplo da Portela, Mangueira e Moci-
dade. Sempre falaram sobre isso.

2) Sim, conheço alguns mestre, diretores e ritmistas e conversamos de vez em quando sobre
isso.

3) Quando fiz a transcrição dos breques de uma escola a pedido de um mestre conhecido per-
cebi melhor como tudo é muito parecido com o que é feito na umbanda e no candomblé.

4) Apesar de ser um fato histórico e em comum entre os terreiros e as escolas, acredito ser
algo polêmico também por não termos maiores informações em especificidades.

5) Não tenho.

  277  
 

6) É muito importante porque trata-se de um conhecimento sobre ritmos e toda a concepção


de nossas maiores influências na música popular – a musicalidade e ancestralidade negra.

7) Sim, sei que nas levadas de caixa por exemplo percebo que tudo que é feito com flam nos
atabaques passa para toque múltiplo. Tecnicamente é uma adaptação e esse recurso é utiliza-
do, a substituição da apojatura pelo rebote.

Rafael Oliveira (Mestre de bateria)

1) Toda, lembra do caso que fui consultar Seu exu Kumimbara para saber qual bossa fazer na
parte do opanijé que colocamos no enredo né.

2) Mestres mais antigos sempre me falaram e quando eu precisei fui direto no pai de santo
que conheço.

3) Na verdade eu mesmo não tenho muita informação sobre os toques mas a sonoridade da
bateria tem isso fortemente.

4) Há muito medo e preconceito ao mesmo tempo. Como isso vem de religião de negro, mui-
tas pessoas erroneamente desconfiam. Pura discriminação. É uma pena mesmo.

5) Não tenho mas já fui convidado algumas vezes e quando posso frequento como simpatizan-
te.

6) Seria mais acessível caso as pessoas pudessem trocar informações de maneira livres sobre
isso e qualquer assunto. Coisa natural de um país e povo evoluído.

7) Como disse, muitas vezes ouvi diversas histórias e inclusive cobranças pelo motivo de fa-
zer apresentar isso sempre com respeito como fiz quando precisei definir a bossa no opanijé.

Ramsés Santos dos Reis (Tata Kamuanga)

1) Claro que sim, isso é mais do que parte da história. Não há separação e nunca haverá.

2) Meus antepassados e toda a minha família de santo e carnal. Sempre tivemos contato e
participação frequente.

3) Eu não toco mas reconheço também a semelhança nas melodias, principalmente naquelas
da umbanda. Outra coisa a pergunta e resposta das cantigas no xirê são características dos
partidos e enredos por exemplo.

4) Perseguição talvez mas acho que quem conhece mesmo discute isso tranquilamente sem
problemas.

5) Sim, você sabe do meu Vô Tata Mona Guiamazê e tudo que o Redandá representa para o
Kyloatala.

6) Com certeza isso sempre trás clareza e conexão com a sabedoria popular da tradição oral
que herdamos da África. O canto, o ritmo e a dança que praticamos aqui veio de lá.
  278  
 

7) Enredos, breques, melodias, passos, coreografias, fantasias, alegorias e muitos símbolos de


empoderamento identitário de nós, os herdeiros do conhecimento de nossos reis e príncipes
africanos.

Ricardo Valverde (Tatakambando Inberekwe)

1) Muitos ogãs participam das baterias. Dessa forma já é um ponto de atenção desta circulari-
dade.

2) Ouvi bastante coisa dos meus amigos ogãs que frequentam as Escolas. Para eles é tudo o
mesmo significado. A expressão e o grito da cultura própria de suas comunidades.

3) Na verdade toco poucos instrumentos das baterias mas analiso como muitas levadas são
parecidas. Também é utilizado no Kyloatala o surdo do samba no candomblé de caboclo,
lembra? Penso que também é uma via de mão dupla. Assim si do terreiro para as baterias e de
alguma forma retorna.

4) Muitas vezes as pessoas procuram apenas executar e dar conta da parte técnica e sonorida-
de. Nem sempre ocorrem os momentos de reflexão, a não ser em momentos informais nos
intervalos dos ensaios de bateria e também na roça de candomblé. Pelo menos é assim que
aprendemos muito na nossa Casa, conversando e ouvindo os mais velhos.

5) Tenho sim e acredito muito nos nkisis e orixás. São eles que movem o nosso caminho.

6) Cada vez mais me parece ser uma necessidade e nem uma vontade. Isso é importante para a
formação das pessoas.

7) Aquelas coisas mais características como comissão de frente, bateria e ala das baianas.

Robson Campos (Mestre Zoinho)

1) Olha eu prefiro não me envolver com isso porque trabalho com ritmistas de todas as religi-
ões. Penso em resolver os problemas musicais e apresentar o melhor com nosso trabalho.

2) Muitos mestres do Rio tem essas informações. É algo mais forte para o povo de lá. Até
exagerado.

3) Sim, com certeza. Tudo tem ligação. É uma sonoridade que está na nossa Memória ances-
tral.

4) Vejo que precisamos dos ritmistas por exemplo tocando bem. Se não tocar nem falamos
nada sobre essas coisas.

5) Não tenho mas respeito todas as formas. Acredito nas pessoas pelo bem e pelo empenho.

6) Acho sim desde que as pessoas que estão para tocar em uma bateria consigam dar conta do
recado. Caso contrário fica estranho.

  279  
 

7) Aquilo que as Escolas trazem para os desfiles e a própria origem das Escolas juntamente
com os terreiros.

Rodolfo Santos dos Reis (Tata Nkisi Kylonderu)

1) Sempre teve isso né filhão. Você sabe. Lembra o que te falei dos ritmistas que levavam
seus instrumentos para serem preparados no candomblé e assim proteger toda a bateria. En-
tão, é só um caso. São muitos.

2) Muitos dirigentes das Escolas procuram os pais de santo para fazerem trabalhos de prote-
ção.

3) Muitos são praticamente idênticos. Veja o cabula e o próprio arrebate como se parecem
com aquilo que você tocou na caixa.

4) São assuntos que devem ser tratados dentro dos preceitos do candomblé para termos os
cuidados e não reproduzir erros.

5) Sim, sou o sacerdote supremo Tata Nkisi do Unzo Kyloatala.

6) Relevante para as pessoas que possuem interesse e precisam ter a informação correta. Au-
tomaticamente isso chega para o povo em geral.

7) O grande ritual do candomblé é representado no desfile. Mesmo que esteja dentro de uma
festa e possa ser confundido apenas como entretenimento as Escolas apresentam nossa cultura
com sabedoria.

Rodrigo Santos

1) Sim, vejo muito no gã e no tamborim.

2) Normalmente os mais velhos gostam de lembrar das histórias e mitos que envolvem essa
relação.

3) Sim, você sabe que saio de tamborim e a levada por exemplo do telecoteco é igual do gã no
cabula, o toque utilizado na nação Angola.

4) Cai muito naquilo do mistério. As pessoas apresentam dificuldade em abrir determinados


segredos da religião como se fossem desrespeitar o conhecimento. Acho que pode ser falado
com respeito.

5) Sim, sou filho de santo praticante.

6) Para alguns sim e para outros não, depende muito do interesse de cada um. Não é um tema
que você escuta constantemente no dia a dia das Escolas.

7) A dança, o ritmo e as cores como o branco por exemplo mostram similaridades fortes.

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Vitor da Candelária (primeiro repinique)

1) Tenho vários amigos que falam sobre essas coisas mas prefiro tocar.

2) Ouvi sim mas faz tempo.

3) Pra mim o repique é um tambor que trás os fundamentos dos atabaques. Basta você ver as
levadas, das básicas até as mais avançadas e variações.

4) A rapaziada muitas vezes separa as questões religiosas.

5) Não.

6) Sim, sempre.

7) As ideias de nossos antepassados são transmitidas pelas Escolas através do canto, do ritmo
e da dança.

Vitor da Trindade (ogã alabê)

1) Sim, lembra que te falei da Escola Quilombo.

2) Meu vô sempre trouxe essas semelhanças.

3) Identifico isso fortemente em diversos instrumentos mas o mais importante é o significado


deste encontro.

4) Pouco se fala porque ainda as coisas não se apresentam abertamente. Trago a necessidade
de discutirmos isso no meu livro.

5) Sim, sou ogã alabê.

6) Como formação de pessoas isso deveria ser conteúdo da grade curricular das Escolas de
ensino regular.

7) Para nós negros, o terreiro é uma ferramenta existencial que pode ser apresentada através
de um desfile por exemplo. Toda a sua força e raíz da sabedoria ancestral se encontram nesses
lugares.

Vitor Velloso (mestre de bateria)

1) Com certeza, você viu o logo da minha bateria do Zé Pilintra. É uma amostra pequena dis-
so. O próprio malandro sambista apresenta os trejeitos do orixá exu pela comunicação e pro-
vocações.

2) Muitos já trouxeram histórias bastante importantes.

3) Sim principalmente o alujá e o cabula.

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4) Cada um tenta descobrir sem fazer muito alarde.

5) Tenho sim, minha família toda.

6) De acordo com o interesse de cada um. Também não é um assunto que deve ser falado na
marra.

7) Pra mim, nos desfiles encontramos os amplos significados da sabedoria ancestral que her-
damos.

 
 

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