Castro R DR Ia
Castro R DR Ia
Castro R DR Ia
TESE DE DOUTORADO
RAFAEL Y CASTRO
TESE DE DOUTORADO
São Paulo
2021
Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da
Unesp. Dados fornecidos pelo autor.
C355r Castro, Rafael Y, 1977-
O ritmo como fenômeno multidimensional nas baterias de escola de
samba e no candomblé : pontos de convergência a partir da diáspora afri-
cana / Rafael Y Castro. - São Paulo, 2021.
290 f. : il. color. + anexo
CDD 786.8
CERTIFICADO DE APROVAÇÃO
Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Doutor em MÚSICA, área:
Interpretação/Teoria e Composição pela Comissão Examinadora:
1
Disponível
em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1855779-velha-guarda-paulista-ha-60-anos-
bagule-zela-pelo-pai-do-samba.shtml
O RITMO COMO FENÔMENO MULTIDIMENSIONAL NAS
BATERIAS DE ESCOLA DE SAMBA E NO CANDOMBLÉ: PONTOS
DE CONVERGÊNCIA A PARTIR DA DIÁSPORA AFRICANA
Resumo
Esta pesquisa identifica, a partir da diáspora africana, pontos de convergência entre o can-
domblé e as baterias das escolas de samba. Utilizamos conceitos expostos por Béhague
(1994), Graeff (2015), Hall (2003), Hesse (1971) e Kubik (1979), referentes a características
que foram trazidas por diversas etnias e aqui foram apropriadas, mantidas e transformadas,
aspectos estes caracterizados pela transculturação, etnicidade e pela compreensão do ritmo
como fenômeno multidimensional. As transcrições e análises foram desenvolvidas com base
em aspectos musicais (técnicos e interpretativos) observados in loco, através de pesquisa par-
ticipativa como membro atuante em alguns terreiros de candomblé e em baterias das escolas
de samba, mais especificamente no Ilê de Oxalufã (Ketu), na Casa de Angola Kyloatala e na
bateria do Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba (GRCSES) Império de Casa
Verde, todos localizados na região metropolitana da cidade de São Paulo. Observamos que
muitas das estratégias adotadas pelos atores responsáveis pela transformação e manutenção
desses padrões resultam em diversas ambiguidades e são realizadas muitas vezes de forma
inconsciente. Identificamos que a produção musical e a identificação cultural, apesar de diver-
sas dubiedades interpretativas ou por influências do meio, continuam sendo desenvolvidas a
partir de estruturas rítmicas e por conceitos mais amplos de ritmo, herdados via diáspora afri-
cana e norteadores de processos coletivos nos terreiros de candomblé e nas baterias das esco-
las de samba – instituições responsáveis pela divulgação destes saberes diaspóricos.
Abstract
This research identifies, from the African diaspora, points of convergence between candomblé
and the baterias of the samba schools. We use concepts exposed by Béhague (1994), Graeff
(2015), Hall (2003), Hesse (1971) and Kubik (1979), referring to characteristics that were
brought by different ethnicities and were appropriated, maintained and transformed here, as-
pects that are characterized for transculturation, ethnicity and for understanding rhythm as a
multidimensional phenomenon. The transcriptions and analyzes were developed based on
musical aspects (technical and interpretive) observed in loco, through participatory research
with auto etnographic narrative insertions in candomblé terreiros and in baterias das samba
schools, more specifically in Ilê de Oxalufã, in Casa de Angola Kyloatala and at the drum
section of the Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba (GRCSES) Império de
Casa Verde, all located in the metropolitan área of the city of São Paulo. We observed that
many of the strategies adopted by the actors responsible for transforming and maintaining
these standards result in several ambiguities and are often carried out unconsciously. We iden-
tified that musical production and cultural identification, despite various interpretive doubts or
by influences from the environment, continue to be developed based on rhythmic structures
and broader concepts of rhythm, inherited via the african diaspora and guiding collective pro-
cesses in candomblé terreiros and in the baterias of samba schools - institutions responsible
for the dissemination of this diasporic knowledge.
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................06
CAPÍTULO II – O CANDOMBLÉ.......................................................................................46
2.1 O candomblé no Brasil: influências iniciais, transformações, ramificações e característi-
cas.............................................................................................................................................46
2.2 Terreiros..............................................................................................................................48
2.3 As nações............................................................................................................................50
2.4 A música: função e sentido coletivo...................................................................................52
2.5 Música como linguagem.....................................................................................................53
2.6 Os instrumentos..................................................................................................................53
2.6.1 O conjunto percussivo tradicional...........................................................................54
2.6.2 Outros instrumentos essenciais ao ritual.................................................................57
2.6.3 Instrumentos secretos...............................................................................................59
2.6.4 Instrumentos “incomuns” à tradição......................................................................59
INTRODUÇÃO
6
Figura 1 - Tata Mukambila (Marcos Menezes) afinando os atabaques de cunha na Casa de Angola
Kyloatala
7
Casa de Angola Kyloatala no município de Embu Guaçu, e nas baterias das escolas de samba,
em especial no GRCSES Império de Casa Verde, a “Barcelona do Samba”.
Muitos elementos rítmicos podem ser utilizados como fundamentos nas baterias e se-
riam oriundos do que é desenvolvido nos terreiros. Estes, automaticamente, reproduzem uma
cultura de resistência, promovida pela diáspora africana no Brasil. Historicamente, parte desta
cultura estabeleceu-se por meio da circularidade de pessoas que frequentavam ambos os am-
bientes, o que tornou-se característica fundamental daquilo que se construiu musicalmente
entre os terreiros e as baterias. Estas, reproduzem uma parte considerável do que herdaram
dessa movimentação, que atualmente inclui outras influências.
O conceito do ritmo como fenômeno multidimensional pode representar a própria co-
nexão entre essas estruturas musicais gerais e seus pontos específicos. Nesse sentido, busca-
mos averiguar se o ritmo teria se tornado uma espécie de fundamento social que determina a
continuação de uma cultura reinventada pelos povos que aqui chegaram via diáspora africana.
Atualmente, não é mais possível separar a música brasileira das características herdadas da
musicalidade africana e pós-diaspórica – afro-brasileira. O ritmo assim, abrangeria a constru-
ção musical identitária do Brasil, aspecto este fortemente derivado dos conceitos trazidos da
polirritmia negra e seus sentidos existenciais.
Ainda assim, pouco se fala de tais relações e heranças, tanto na sociedade brasileira
como um todo, como nos ambientes aqui analisados. Julgamos que a análise desse fato é uma
necessidade premente, vista por nós também como uma espécie de obrigação e reparação mo-
ral, na tentativa de diminuir o que consideramos ser um apagamento cultural estratégico. Afi-
nal, desde o período da diáspora africana na musicalidade brasileira, esta cultura serve como
estrutura social e musical na formação de indivíduos que convivem dentro e fora destes ambi-
entes. No entanto, apesar de determinadas conexões entre o candomblé e o samba, desde o
processo inicial de formação das escolas, por exemplo, muitos apontamentos não referenciam
tais pontos de encontro por diversos motivos. Alguns deles despertaram nossa inquietação em
busca de referidas justificativas.
Sendo assim, levantamos sete questões sobre a falta de reconhecimento destas circula-
ridades nas comunidades envolvidas, e tais questões fundamentaram nossas pesquisas. Por
que os conteúdos rítmicos trazidos do candomblé para as baterias não são expostos ampla-
mente dentro e fora do contexto destas comunidades? Partindo do ponto de que a diáspora
africana representa a própria essência da continuidade cultural africana praticada nos terreiros
e nas escolas, como isso não é reconhecido de maneira clara? Por que isso é um tabu, que
impede, em geral, qualquer explanação de parte de seus atores? Os integrantes dessas comu-
8
nidades reconhecem e valorizam essa ancestralidade, visto que elementos representativos ico-
nográficos do candomblé são encontrados em locais estratégicos nas quadras, barracões, car-
ros alegóricos, fantasias, entre outros? Se as relações entre o candomblé e o samba não são
normalmente reconhecidas, por que, anualmente, grande parte das escolas cria enredos e sam-
bas de enredo com letras voltadas para a cosmogonia afroreligiosa? E se de alguma forma,
essa herança diaspórica fosse reconhecida, os integrantes das escolas que têm outra religiosi-
dade saberiam lidar com uma cultura afro-brasileira fundamentada nas religiões de matriz
africana, normalmente vistas de forma depreciativa? O racismo estrutural seria responsável
por todo esse amplo conhecimento ser considerado um tabu e, assim, não estar claramente
exposto, dificultando o entendimento e aceitação desta sabedoria africana permanente no Bra-
sil?
Por outro lado, verificamos que essas conexões existem, dentro de algumas variantes:
1) Algumas pessoas sabem da herança e a valorizam, sem sentir a necessidade de ex-
pressar isto verbalmente;
2) Algumas pessoas sabem e querem esconder; e
3) Algumas pessoas realmente não sabem, mas observam a conexão herdada.
Com base em nossas experiências pessoais e profissionais nos locais investigados ao
longo da pesquisa, trazemos como tese também que a relação específica entre as estruturas
rítmicas dos toques dos ritos do candomblé e os utilizados nas baterias das escolas de samba,
permanece em menor grau do que inicialmente (quando do surgimento das primeiras escolas
de samba), mas ainda fundamenta a estrutura das baterias.
O objetivo geral deste trabalho é estudar o amplo conhecimento rítmico e cultural de-
senvolvido no candomblé, que foi e é transmitido para as baterias, a partir de uma matriz con-
ceitual africana ocasionada pela diáspora negra desde o sistema escravagista. Da mesma for-
ma, analisar comportamentos humanos derivados da migração de pessoas que deixaram para
as suas comunidades atuais um legado histórico-cultural, identitário e político-musical. Ou
seja, procuramos compreender melhor como determinados locais se estabeleceram no sentido
de manter tal herança, averiguando também como os vários envolvidos a compreendem.
Como objetivos específicos, procura-se:
1) Compreender os modos pelos quais os toques são reproduzidos nas baterias, des-
crevendo os encontros estruturais entre os toques realizados nos atabaques e gã e nas levadas
utilizadas nos naipes das baterias, breques e variações;
2) Trazer o conceito multidimensional do ritmo e sua amplitude social, herança diaspó-
rica e marca da coletividade promovida nesses locais;
9
10
Narloch (2009). Rafael Y Castro aborda aspectos sobre linguagem e idioma do instrumento
repinique e posição social a partir da performance instrumental nas baterias. Pegado (2005)
discute como o carnaval brasileiro foi construído historicamente. Crecibeni (2000) analisa
especificamente o carnaval paulistano, tema importante para não se utilizar, de forma perma-
nente, apenas um único modelo, o carioca. Moraes (1997) explora questões políticas sobre
como estabeleceram-se, socialmente, o lugar (status) e o reconhecimento (ou não) da cultura
negra a partir de processos migratórios nas relações entre diversas classes e etnias no carnaval
em São Paulo no período da indústria cafeeira e Narloch (2009) analisa aspectos instituídos
politicamente, fazendo uma crítica ao projeto denominado “Nação”, utilizado para aproveitar
a popularidade do samba como representante de um modelo de sucesso social.
Com relação às transcrições realizadas (Capítulo V), utilizamos conceitos e sistemas
notacionais desenvolvidos por Carlos Stasi, especialista nesse tipo de pesquisa, visando repre-
sentar uma proposta mais coerente em relação às especificidades em transcrições com instru-
mentos de percussão. Estes conceitos são apresentados por autores como Sampaio (2001),
Lacerda (2010), entre outros.
Sobre nosso objeto central de pesquisa – os pontos de encontro rítmicos estruturais en-
tre os conjuntos percussivos do candomblé e das baterias –, não encontramos nenhum traba-
lho que evidenciasse a complexidade destes contextos e suas peculiaridades rítmicas. Exis-
tem publicações histórico-sociológicas e jornalísticas relevantes, mas sem essa abordagem em
específico. De forma geral, em relação à questão dos encontros rítmicos derivados da diáspo-
ra, esse material não demonstra realmente em qual nível apresentam-se estas conexões. Os
exemplos limitam-se, normalmente, ao telecoteco – nome popular dado ao timeline do tambo-
rim no samba, derivado, em sua totalidade, do gã, no cabula do candomblé da nação Angola.
No ano de 2016 trouxemos, em uma dissertação de mestrado, parte dessa complexida-
de do contexto das baterias, a partir do que um instrumento pode representar socialmente com
base na performance de seu executante. Já havíamos então iniciado uma abordagem mais de-
talhada de questões idiomáticas dentro desta linguagem, que por sua vez nos direcionou à
construção de uma notação musical que fosse mais adequada, diferentemente das propostas
apresentadas em publicações do meio musical (principalmente métodos de ensino). Mesmo
avaliando outros modelos de transcrição e considerando a flexibilidade da sonoridade repro-
duzida no contexto, cremos que a notação tradicional é particularmente relevante.
Como parte de nossa metodologia de pesquisa optamos pela seguinte organização:
primeiramente iniciamos nossas análises a partir da revisão bibliográfica, em estudos ligados
11
ao tema e aos conceitos já estabelecidos. Utilizamos diversos recursos investigativos nos se-
guintes materiais: audiovisuais, livros, métodos de ensino instrumental, artigos, revistas, di-
versas postagens na internet, redes sociais, jornais, periódicos e anais de congressos.
Realizamos entrevistas com pessoas dos terreiros de candomblé e das baterias, assim
como com pessoas externas a estes, com a intenção de obter imparcialidades em possíveis
opiniões distintas ou semelhantes. Utilizamos o formato de entrevistas semiestruturadas que,
desde o início, já nos permitia refletir sobre determinadas questões. Foi realizada a transcrição
na íntegra destas entrevistas, que consta no Apêndice D. Além das entrevistas realizadas a
partir de questionário sistematizado, foram coletados relatos dos participantes dos locais in-
vestigados, de maneira a documentar suas práticas e visões tão importantes para a permanên-
cia desses ambientes. A pesquisa de campo participativa nos possibilitou adentrar em detalhes
profundos de ambos os contextos, no sentido de participar de momentos considerados secre-
tos e muito especiais, cujas peculiaridades não são expostas para o público em geral. Conse-
guimos isso de acordo com o tempo em que vivemos nesses locais, através de participações
ativas e intensas que nos permitiram analisar vários aspectos sociais e culturais, assim como
significados, simbologias e performances, o que evidencia o caráter documental do presente
trabalho.
Com relação ao candomblé, desde o ano de 1995 atuamos como ogã, especialmente na
cidade de São Paulo e, naquilo que se refere ao samba, tivemos passagens importantes como
ritmista pelas seguintes agremiações: Império do Cambuci, Caprichosos da Zona Sul, Barroca
Zona Sul, Imperador do Ipiranga, Tom Maior, Leões de Nova Iguaçu e Mangueira. No mes-
mo período participei de alguns terreiros como convidado de ogãs mais velhos, onde tive e
possibilidade de compreender alguns pontos de conexão já a partir desta época. Há dez anos
toco repinique na bateria do GRCSES Império de Casa Verde e, em setembro de 2019, resolvi
ser iniciado na religião do candomblé. A participação ativa dentro dos dois contextos, além de
entrevistas únicas, também permitiu realizar gravações, em áudio e vídeo, de momentos não
abertos ao público.
Em relação à questão musical, fizemos análises comparativas de excertos utilizados no
candomblé e nas baterias. Para a edição de partituras foi utilizado o programa Finale. O traba-
lho é estruturado em 5 capítulos.
No capítulo I analisamos conceitos sobre diáspora, transculturalidade, aculturação, et-
nicidade e ritmo como fenômeno multidimensional, com base em importantes autores como
Stuart Hall, Tiago de Oliveira Pinto, Fernando Ortiz, Béhague e Graeff, assim como discuti-
12
2
Termo utilizado em referência aos integrantes das escolas de samba que possuem o “samba no pé” (habilidade
para dançar).
13
os toques dos atabaques e levadas3 dos instrumentos nas baterias. Com esse recurso, pudemos
analisar os pontos de conexões existentes em ambos os contextos. Tais conexões foram ob-
servadas de várias maneiras. Primeiramente, na transcrição musical de cada toque de atabaque
do candomblé que apresentasse maior similaridade com levadas de caixas4 e repiniques na
bateria. Posteriormente, na sobreposição dessas células rítmicas, o que possibilitou verificar
pontos de encontro em cada um desses toques e levadas. Desta forma, mostramos a complexi-
dade de todo esse processo, dentro das funções de cada instrumento, levadas e variações.
Nas Considerações Finais, destacamos as descobertas que respondem às hipóteses ini-
ciais, como por exemplo quais as razões do desconhecimento das relações investigadas e os
níveis desse desconhecimento, apesar de os fundamentos rítmicos serem estruturais nessas
tradições. Observamos como a performance musical é fator determinante na tentativa de rein-
serção e aceitação social e profissional de muitos envolvidos nos cenários investigados. Ob-
servamos que o desenvolvimento humano se dá de maneira integrada com a prática musical,
que promove os indivíduos a partir de fundamentos oriundos da diáspora.
Com o desenvolvimento da tese, observamos que, por muitos anos, muitas escolhas
que determinaram a utilização de alguns padrões nas baterias foram feitas de forma conscien-
te ou inconsciente, através da memória coletiva ou individual de seus atores. Estes, por sua
vez, nos parecem representar a força de todo um conhecimento ancestral e étnico, que revela
uma tentativa de ressignificação da própria existência de uma população oprimida socialmen-
te. Nesse sentido, a utilização do ritmo evidencia-se como ferramenta de desenvolvimento
humano, a partir da performance de seus executantes. Determinados códigos musicais inter-
nos são absorvidos pelas comunidades destas instituições, assim como pelo público simpati-
zante em geral. A relação do ritmo e seus reflexos multidimensionais nos demonstraram mui-
tas questões estratégicas intrínsecas desenvolvidas pelos executantes, fundamentais na forma-
ção histórico-cultural e artística dessas comunidades.
3
Levada é um termo popular utilizado por músicos em referência a padrões rítmicos oriundos de conjuntos per-
cussivos tradicionais e transpassados para o instrumento bateria. Quando um
baterista executa uma levada, ele,
na verdade, está simulando um conjunto de percussão. Por outro lado, é comum utilizar o termo em padrões
individuais nas escolas de samba, como no caso das levadas de caixa, repinique, entre outros.
4
O naipe de caixa pode ser subdividido em diferentes instrumentos, cada um realizando uma levada própria.
Este naipe pode apresentar dois tipos diferentes de padrões/levadas. Enquanto um padrão é considerado conecta-
do aos timelines do candomblé, o outro, normalmente, é considerado como um preenchimento necessário à sus-
tentação do ritmo. Os nomes mais utilizados para as caixas são malacaxeta, tarol e caixa de 14”. Algumas esco-
las utilizam combinações de malacaxetas com tarol e outras de malacaxeta com caixa de 14”. A proporção de
instrumentos quando há duas caixas, é de 20 instrumentos de cada, totalizando 40 por naipe em uma bateria do
Grupo Especial.
14
1.1 Diáspora
A aceitação ou recusa de determinada influência de uma cultura sobre outra, nos con-
textos específicos aqui analisados – candomblés e escolas de samba – fazem necessária a
apresentação e discussão de determinados conceitos de Diáspora sobre os quais nos baseamos
em nosso trabalho. Este termo define a movimentação, voluntária ou forçada, de uma grande
quantidade de indivíduos originários de um determinado local para outras áreas. Este deslo-
camento gera uma série de fenômenos adaptativos, entre eles os chamados pontos de tensão,
naturais ao próprio processo. Ou seja, ao mesmo tempo que o indivíduo que se mudou de um
local para outro necessita transformar-se e reinventar-se para sobreviver, a massa populacio-
nal ali existente apresenta diferentes níveis de aceitação deste mesmo indivíduo.
De forma geral, o termo Diáspora refere-se à dispersão e migração de qualquer povo
ou etnia pelo mundo. Para Stuart Hall, autor internacionalmente reconhecido como relevante
pesquisador da diáspora negra, em especial a migração de populações negras para o Caribe, a
cultura deve ser compreendida como um local crítico, tensionado pela ação social provocada
por uma intervenção instável. As relações de poder determinam conflitos necessários para a
ressignificação de povos em movimento. Na perspectiva de Hall (2018), dentro dos chamados
estudos culturais, o conceito de diáspora se apoia na concepção binária de diferença, numa
fronteira de exclusão que exige a transformação do indivíduo, condição esta forçada pela opo-
sição entre o de dentro e o de fora, ou seja, entre o indivíduo que já estava em determinado
local e aquele que chegou. Nesse sentido, a identidade cultural mesclada necessita da diferen-
ça como lugar de passagem, adaptável de acordo com necessidades locais. O termo se presta
a dar conta, especialmente, dos fenômenos relativos às migrações humanas de ex países colo-
niais para as antigas metrópoles:
O conceito fechado de diáspora se apoia sobre uma concepção binária de diferença.
Está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da constru-
ção de um 'outro' e de uma oposição rígida entre o de dentro e o de fora. Porém as
configurações sincretizadas da identidade cultural requerem a noção derridiana de
différance, uma diferença que não funciona através dos binarismos, fronteiras vela-
das que separam finalmente, mas são também places de passage (lugares de passa-
gem) e significados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de
um espectro sem começo nem fim. (HALL, 2018, p. 36)
15
Possuir uma identidade cultural [...] é estar primordialmente em contato com um nú-
cleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente em uma linha
ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de “tradição”, cujo teste é o
de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma, sua “au-
tenticidade”. É claro, um mito – com todo o potencial real dos nossos mitos domi-
nantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado
às nossas vidas e dar sentido à nossa história. (HALL, 2018, p. 32)
Segundo Hall (2018), os mitos são transistóricos e seu poder seria encontrado no futu-
ro a partir de um passado esquecido. Suas estruturas são cíclicas e, portanto, seu significado é
constantemente transformado. Nesse sentido, poderíamos considerá-lo um fenômeno transcul-
tural.
As instituições aqui investigadas – os terreiros e as baterias – apresentam-se também
como locais de resistência política, abrangendo interesses, expectativas e experiências diver-
sas, centrais nas negociações analisadas por Hall (2018). Do mesmo modo, os já mencionados
pontos de tensão permitem novas ressignificações. Portanto, visualizamos estes locais como
espaços fundamentais para a construção de uma nova identidade em conjunto com a herdada,
já que são locais de constantes reconstruções, definições de práticas e culturas e propostas de
autorreconhecimento. Em ambos os locais, apesar da influência de certos elementos midiáti-
cos ou comerciais, permanece ainda um sentido coletivo apoiado em estruturas musicais her-
dadas, principalmente naquilo que se refere a uma compreensão conceitual da amplitude do
ritmo, tanto no sentido musical (ritmo-melódico) como social.
Segundo historiadores como Nei Lopes, Rafael Galante e Jovino Silva, que conside-
ram o Brasil como o local com a maior presença de africanos fora da África, este movimento
diaspórico trouxe diferentes etnias para o novo território, muitas delas fundamentadas em
culturas altamente percussivas e musicais, no sentido amplo e interdisciplinar do termo – voz,
ritmo e movimento. Nesse sentido, muitos estilos musicais que utilizam a percussão no Brasil,
formados por grupos rítmicos afro-brasileiros (afoxés, maracatus, escolas de samba, entre
outros), são organismos reprodutores de fundamentos que, em grande parte, foram trazidos
pela diáspora negra. Estas manifestações, justamente por serem formadas desde sua fundação
por indivíduos afrodescendentes, mantêm códigos culturais essenciais associados à identidade
cultural ancestral. Durante nossas pesquisas ouvimos vários relatos de pessoas, tanto em ter-
reiros como em escolas de samba, a respeito de familiares escravizados, sugerindo que tais
locais funcionam como centros de resistência e acolhimento social. Para a Fundação Palmares
alguns aspectos essenciais dos indivíduos em diáspora não são apagados, pois parte de sua
cultura, modo de vida e práticas religiosas são utilizados como ferramentas políticas em prol
16
de uma reconstrução social, exatamente como observamos em nossa pesquisa de campo parti-
cipativa.
Há de considerar que os fenômenos das culturas tradicionais guardam valores mo-
rais, religiosos, políticos, lúdicos, estéticos e outros tantos herdados, e que, portanto,
de alguma forma, refletem a própria história das suas comunidades, repondo o pas-
sado no presente, e sendo então sempre atuais. São práticas aglutinadoras, que repe-
tidas ciclicamente reforçam os valores socialmente aceitos e importantes para os
grupos e indivíduos, vitalizando-os. Por serem fatos preservados e geridos coletiva-
mente, são sempre práticas de identificação e inclusão social, e, até mesmo, de resis-
tência política diante dos problemas que as comunidades enfrentam, assim como fa-
zem frente à avalancha comunicacional cotidiana a que estão submetidas. (IKEDA,
2013, p.185)
Os pontos de encontro e suas adaptações são aspectos que permeiam toda a existência
desses grupos. Queiroz (1992) discorre ainda sobre a diferenciação entre conexão rítmica e
seu ponto de origem no carnaval brasileiro – ritual –, e termina por relacioná-lo com manifes-
tações ligadas às religiosidades de matriz africana como o candomblé. Estas, apresentam ca-
racterísticas trazidas via diáspora, especificamente na mistura de tradições africanas – consi-
deradas a base da construção percussiva nas escolas de samba – e europeias.
Conforme já mencionado acima, Hall (2003) discute também questões da diáspora em
relação à migração de indivíduos caribenhos para a Grã-Bretanha no pós-guerra, simbolizan-
do o nascimento da diáspora afro-caribenha neste local e suas complexidades. Apesar de esse
não ser o foco de nosso trabalho, o que nos chama atenção na discussão de Hall (2018) e fun-
damenta nosso trabalho, é o fato de que ele considera que “as nações, não são apenas entida-
des políticas soberanas, mas ‘comunidades imaginadas’” e que tal questão é central “não ape-
nas para seus povos, mas para as artes e culturas que ‘produzem, onde um certo ‘sujeito ima-
ginado’, está em jogo.” (HALL, 2003, p. 28). O objetivo de Hall (2018) é apontar a comple-
xidade de se analisar aspectos herdados, e como estes se transformam e retêm uma identidade
– aquela que teria sido trazida por pessoas via diáspora e que as sustentariam por várias vias –
18
, assim como o fato de ser difícil representá-la genuinamente sem outras interferências intrín-
secas a este processo ambíguo.
Notamos que parte das pessoas que vieram de determinados lugares da África para o
Brasil via escravização, buscam reconquistar o que teria sido perdido neste movimento dias-
pórico, contribuindo para a somatória de uma nova cultura local, já que houve uma diversida-
de de povos que somaram suas especificidades e criaram uma nova cultura somente aqui. A
utilização deste conhecimento, em prol de uma tentativa de reconexão com o local de origem
imaginado, de reconstrução de uma identidade, ocorre de várias maneiras. Nos casos aqui
estudados, a própria linguagem se faz presente nesta reconexão, mantendo-se como base de
uma apropriação evidenciada através da utilização de determinados termos nos terreiros de
candomblé. Termos como Angola, Bantu, Rainha Ginga, Orixás e Candomblé, os quais fazem
parte de um sistema de reconhecimento e reconexão com a cultura ancestral afro-brasileira,
apontam para a confluência entre práticas, saberes e sentidos, num processo aqui denominado
de “circularidade” entre terreiros e baterias de escolas de samba. Do mesmo modo, são muitas
as referências utilizadas em letras de enredo que nos remetem à linguagem trazida e funda-
mentada nestes locais. Além disso, nos interessa considerar como estes elementos são tratados
e utilizados dentro da multiplicidade apontada por Hall (2018). O depoimento abaixo nos pa-
receu marcante em relação a esta questão, deixando clara a ideia de uma reconquista de iden-
tidade oriunda via diáspora:
Sou nascido no interior de Minas Gerais, fruto de uma mistura de cores e culturas
que é o nosso Brasil. Sou Angola em Português, por parte de meu pai, e Bantu... por
parte de minha mãe. Tenho em mim os sons dos tambores de guerra da rainha Gin-
ga, a guerreira maior, e que hoje é o exemplo do povo angolano para a sua unifica-
ção, e claro, está em mim o toque dos Orixás de todas as nações. (CANTERO, 2014,
p. 8)
Este depoimento de Jorge Luiz Cantero, pesquisador e radialista negro, nos traz diver-
sas relações com o que estamos tratando, como por exemplo o reconhecimento de uma cultura
herdada via diáspora identificada em alguns estados brasileiros. Minas Gerais, por exemplo, é
uma região com africanos oriundos de países da cultura Bantu (Congo, Angola, povos Kim-
bundos, Ovimbundos e muitos outros), cultura esta que também é herdada e utilizada no can-
domblé de Angola brasileiro que investigamos neste trabalho. Outro marco desse encontro ou
troca de saberes, é facilmente identificado nas letras das cantigas e toques dos atabaques utili-
zados nos mais variados rituais religiosos desta nação. Neste sentido, o termo “Angola”, ao
qual o autor se refere, além de ser um local sustentado por esta cultura – a Bantu –, nos reme-
te a uma real referência e troca entre Brasil e África, presente em enredos de compositores
como Martinho da Vila, Alcione e muitos outros.
19
Outro exemplo não especificamente relacionado ao tema central deste trabalho, seria a
Capoeira de Angola, que para nós representa também um ponto de confluência relacionado ao
movimento diaspórico, principalmente naquilo que se refere à sua ressignificação no Brasil.
Além disso, observamos também que a Rainha Ginga é um referencial de poder para
os indivíduos afrodescendentes no Brasil, assim como vários outros nomes que servem como
exemplo de luta pela aceitação desta cultura. Do mesmo modo, os orixás também representam
uma conexão direta com o imaginário identitário negro aqui analisado, já que todos eles são
cultuados e imaginados no Brasil como representantes simbólicos de um poder espiritual an-
cestral. Mesmo não sendo visíveis, por serem considerados seres encantados ou, segundo Pi-
erre Verger (1998), compreendidos como fragmentos da natureza, servem como símbolos
arquetípicos da própria cultura diaspórica cultuada aqui, não somente nos terreiros, mas for-
temente nas escolas de samba como um todo. Isso é facilmente identificado na escolha de
temas de enredo e sambas dos desfiles de carnaval, que anualmente abordam as mais distintas
divindades.
No capítulo específico sobre o candomblé, explicaremos todas essas características e
diferenças entre o candomblé brasileiro e o vodun africano, religiosidade que deu origem ao
candomblé mas que utiliza os orixás de outra forma, o que também nos mostra como grande
parte deste conhecimento é apropriado, mantido e transformado de maneiras distintas e natu-
rais aos processos de reafirmações identitárias via diáspora.
Pensar a diáspora é entrar em um jogo de interesses, estratégias e adequações suporta-
das por diversos conjuntos sociais em busca de uma nova atuação coletiva. Nesse sentido, tais
conjuntos se transformariam por diversas vias, desde aquelas que se tornaram mais necessá-
rias na busca de uma nova ressignificação de simbologias, àquelas relacionadas a tentativas de
conquista de uma maior reafirmação social, dentro do próprio coletivo. Segundo Ikeda,
(...) o fazer musical sempre se vinculou às mais variadas práticas, (...) fazendo-se
presente nas atividades religiosas, nos momentos solenes e de exaltação coletiva, no
trabalho, na educação, nas expressões dramáticas e coreográficas, servindo à demar-
cação identitária de pessoas, grupos e povos e tantos vínculos mais. (IKEDA, 2001,
p.1)
20
21
22
Outros fatores que também nos mostram certa depreciação do conhecimento africano
no Brasil, diretamente relacionados aos terreiros e escolas de samba, são: a) a localização e
estrutura dos locais onde tais manifestações acontecem, b) a falta de segurança, vista como
uma ameaça para o público acessar tais locais, c) a associação do samba e do povo de santo
com algo marginalizado, d) a oralidade, entendida como uma cultura menor em relação àque-
las estabelecidas pelo texto ou pela academia como um todo, salvo algumas pequenas exce-
ções, e) os chamados subempregos, com a estipulação dos menores salários para os indiví-
duos afrodescendentes, já que estes possuem uma formação escolar deficiente e, portanto, não
teriam condições de competitividade com outros (predominantemente brancos), f) a associa-
ção direta do candomblé com algo demoníaco, estabelecida estrategicamente por outras reli-
giões como tentativa de dominação de fiéis (Exu = Diabo), g) os processos metodológicos da
tradição oral, utilizados no ensino e aprendizagem, pedagógicos e artísticos nestes locais e
que são associados com algo menos desenvolvido, mais primitivo, menos refinado, em rela-
ção a outros. Tudo isso, em conjunto com outros fatores – como os midiáticos, associados a
toda uma subestimação de uma cultura complexa não reconhecida em sua amplitude, sim-
plesmente por ser produzida por negros –, dificulta uma maior compreensão ou aceitação do
conhecimento diaspórico, resultando em sua depreciação, assim como na recusa de determi-
nada “herança cultural” que, como já apontado acima, não é reconhecida por grande parte dos
agentes envolvidos em todo esse processo por fatores estratégicos de sobrevivência.
Algo que acentua ainda mais essa discussão, é o fato de que, ao mesmo tempo que um
indivíduo negro utiliza ferramentas de marcas de sua herança – como o corte de cabelo, ves-
timentas, trejeitos, postura, apropriação e empoderamento de suas origens –, outro indivíduo
pertencente à mesma origem, portanto com as mesmas, ou parecidas heranças culturais, pode
não se reconhecer, ou ser reconhecido, como negro. Assim, é muito comum a discussão sobre
a questão da pele retinta que determina níveis de intensidade da cor negra, reconhecida e vali-
dada somente naqueles indivíduos totalmente negros, com intensidade da cor preta em suas
peles. Estes, por sua vez, seriam reconhecidos como os verdadeiros mantenedores de uma
cultura africana. Portanto, com base neste ponto de vista, não basta ser negro, mas sim total-
mente preto.
No ano de 2019, por exemplo, a cantora Fabiana Cozza, considerada uma pessoa afro-
descendente – termo indicado para se dirigir às pessoas de cor negra no Brasil –, foi convida-
da para representar a cantora Ivone Lara em um musical. No mesmo período, ela foi alvo de
diversos ataques por parte de pessoas negras que não a reconheciam como representante da
negritude. O fato se deu porque ela não teria uma tonalidade de cor preta forte o bastante para
23
tal papel. Também ocorre que muitos indivíduos negros não se reconhecem como pretos, já
que há um custo muito alto em bancar essa identidade no Brasil. Nesse sentido, quando a pes-
soa não tem uma tonalidade de pele forte, parece mais conveniente não reconhecer-se como
preta, já que de uma forma ou de outra é constrangedor assumir isso socialmente.
Por outro lado, os movimentos negros buscam uma identificação com a chamada bele-
za negra, que deve ser reconhecida como ferramenta de reforço cultural próprio, oposta ao
que foi estabelecido como referência pela indústria da moda, por exemplo. De forma geral,
cremos que todos esses fatores interferem, em determinados níveis, na falta de reconhecimen-
to da cultura afro-brasileira, já que, de fato, para muitos é bastante difícil assumir uma cor que
é alvo constante de preconceito social. Observamos isso em alguns de nossos depoimentos,
uma certa recusa à própria origem. Entendemos que seria muito mais fácil para algumas des-
sas pessoas dizer que é branca, apenas pelo fato de não ter uma intensidade de destaque na cor
preta, o que seria uma estratégia de busca de uma maior aceitação social.
Assim, ao mesmo tempo que nossa pesquisa nos mostrava uma possível aceitação de
determinada origem africana, apontava também justamente o contrário, o que faz referência
ao conceito de ambiguidade que será melhor discutido no Capítulo IV. Buscamos então en-
tender os motivos da condição de ambiguidade através dos conceitos apresentados por Moore
(2012), em relação ao não reconhecimento cultural de um local de origem, o que de fato nos
motivou em busca de uma compreensão sobre as variantes escolhidas ou impostas socialmen-
te sobre o conhecimento herdado via diáspora. Neste sentido, notamos que existe uma reali-
dade cultural muito forte, promovida pelos terreiros e baterias de escolas de samba. Tratamos
especificamente de conexões herdadas da África que se ressignificam nos pensamentos, práti-
cas e resultados sonoros daquilo que é desenvolvido no conjunto percussivo do candomblé
(Nação Angola e Ketu) e mantido nas baterias. Nesse processo, intensificamos e especifica-
mos nossas pesquisas na Casa de Angola Kyloatala (Angola), Ilê de Oxalufã (Ketu) e na bate-
ria do GRCSES Império de Casa Verde, todos localizados na cidade de São Paulo.
No entanto, para alcançarmos outros níveis de reflexão e discussão, tivemos a necessi-
dade de complementar nossa investigação e análise em outras baterias e terreiros localizados
em outros estados, justamente pelo fato de eles serem influenciados pelo movimento da diás-
pora e também serem reconhecidos por influenciarem diretamente outros grupos, inclusive
aqueles primeiramente analisados em São Paulo. A Bahia e o Rio de Janeiro, por exemplo,
são responsáveis pela reprodução de saberes e sentidos culturais herdados da diáspora em São
Paulo. No caso da Bahia, por ser considerada culturalmente como “a própria África” - pela
quantidade de habitantes afrodescendentes e pela musicalidade produzida com a percussão
24
dentro e fora dos terreiros –, e no caso do Rio de Janeiro, por herdar sua produção percussiva
dos terreiros de candomblé, apresentar clara representatividade social referente a esta cone-
xão, estabelecer o que é produzido para o carnaval – local de transbordamento cultural dias-
pórico afro-brasileiro –, e por tudo aquilo que é produzido musicalmente nas baterias.
O Rio de Janeiro é a pátria por excelência do Carnaval Brasileiro. Seu papel de nú-
cleo disseminador de folguedos data do século XIX. (...) tornou-se portanto o centro
de difusão de novidades para as diferentes províncias – incluídas as novidades car-
navalescas. (QUEIROZ, 1992, p. 24)
A ala das baianas é um setor de extrema representatividade para a transmissão dos sa-
beres e significados afroreligiosos dos terreiros para as escolas, instituições utilizadas como
ferramentas de legitimação da cultura diaspórica ressignificada. Queiroz (1992), a partir de
Bastide, aponta que as escolas de samba almejavam, de uma certa forma, essa legitimação,
apresentando-se como um “centro fixo e firme que os preserva do desaparecimento, por lhes
oferecerem a solidariedade e a disciplina indispensáveis para a sua continuidade”. (QUEI-
ROZ, 1992, p. 176).
25
O que nos interessa mais especificamente neste ponto, além da influência em diversos
setores das escolas, é a absorção de elementos em comum trazidos do candomblé para a esco-
la de samba. Conforme já observado acima, refletindo sobre a falta de compreensão geral so-
bre a complexidade cultural e musical promovida por essa herança, concluímos que os ambi-
entes aqui estudados estão classificados de maneira menor, de acordo com a representativida-
de promovida por eles. Nesse sentido voltamos ao conceito de Hall (2003), no qual as “comu-
nidades e sujeitos imaginados” tornam-se pontos determinantes para uma melhor compreen-
são daquilo que representam socialmente, mesmo que o conhecimento promovido por eles
não seja reconhecido ou utilizado, ou mesmo seja depreciado ou minimizado em suas poten-
cialidades. O próprio contexto religioso já determina alguns julgamentos externos que podem
subestimar a produção cultural produzida por estes sujeitos nos terreiros.
Nesse sentido, é preciso refletir sobre questões dogmáticas que identificam alguns
ambientes religiosos, assim como aquilo que é produzido musicalmente nestes locais – terrei-
ros e escolas de samba –, como deficientes. Atualmente, há uma falta de cuidado em analisar
a complexidade e necessidade deste conhecimento para os herdeiros do movimento diaspóri-
co, responsável por grande parte da musicalidade afro-brasileira. As pessoas envolvidas na
migração passaram por processos de modificação e atuação, transformando-se dentro de um
sistema visto como necessário para sua própria existência e pela própria migração. Há uma
espécie de jogo de negociações necessário à própria sobrevivência dessas pessoas, o que se
apresenta como justificativa para determinadas ambiguidades apontadas no trabalho. Ao nos-
so ver, isso resulta de imagens da essência cultural destes povos que foram construídas de
forma distorcida. Por outro lado, também é muito complexo julgar esse tipo de transformação,
já que para determinados processos evolutivos ocorrem também necessidades adaptativas que
podem reinventar sentidos. Ou seja, aquilo que funciona em determinado período histórico-
social pode não funcionar tão bem assim em outro, já que os distintos significados são sempre
posicionais e relacionais (Hall, 2008).
Outro importante pesquisador que trata da movimentação da cultura negra é John
Storm Roberts (1972), que analisa reflexos dessas migrações culturais e suas variantes em
alguns continentes, como a América. As influências dessa movimentação desde a origem do
jazz e do blues, assim como do samba brasileiro, são destaques em suas pesquisas5. Um dos
pontos realçados por ele e já apresentado acima, é aquele da confusão entre etnia e cor, ou
seja, a atribuição de raça no lugar de cor, o que vemos como um erro básico, já que algumas
5
Lembramos também de um nome referencial sobre as musicalidades brasileiras populares que, segundo nossas
reflexões, influenciou diretamente Roberts em suas conceituações: José Ramos Tinhorão.
26
características físicas representam o humano como um todo e não as diferenças entre eles.
Roberts (1972) analisa também o equívoco reproduzido e utilizado no ensino infantil da His-
tória, que representa uma distorção do entendimento real das culturas e pessoas determinadas
como mulatas (termo considerado equivocado atualmente) ou pardas, termos que, ao mesmo
tempo que tentam expressar a mescla entre o branco, o negro e o índio, também não permitem
reconhecer uma pessoa na sua essência. Na verdade, alguns termos sempre foram equivoca-
dos e, apenas atualmente, é que existe uma preocupação maior com essa questão, a partir de
diversos movimentos que buscam o reconhecimento das potencialidades étnicas, assim como
os significados de suas práticas culturais.
Nesse sentido, ser preto – um dos termos também sugeridos por esses movimentos –,
seria motivo de orgulho, e não corroboraria com diversas depreciações hoje consideradas ul-
trapassadas. Através da utilização de termos que não representam determinadas etnias, torna-
se difícil reconhecê-las e, portanto, compreender a própria cultura trazida por elas.
O termo negro em si, como qualquer termo racial, é vago. Os países da América do
Sul geralmente dividem as pessoas em várias categorias: branco, mulato, preto, indi-
ano e mestiço. Mas no Brasil, mulatos e mestiços são agrupados como "pardos". Isso
causa problemas quando se tenta estabelecer laços culturais entre grupos6. (RO-
BERTS, 1974, p. 72, tradução nossa)
Já para Béhague (1994) o termo ‘black’ discutido por Roberts (1972), possui também
um passado pejorativo e tem servido à depreciação de negros em diversos locais, já que se
estabeleceu como sinônimo de coisas ruins associadas às pessoas pretas. Esse processo fica
evidente no uso de expressões como “…Black Death for the bubonic plague, black market,
black cat, black magic, black sheep, to blackmail, blacklist, blackout, black widow, black
spot, and so on” (Béhague, 1994, p. 23-24). Neste sentido, o termo black magic (magia negra)
também é utilizado no Brasil por lideranças religiosas opostas às de matriz afro, no sentido de
depreciar o conhecimento cultural destas religiosidades, criando um discurso social que as
coloca em um lugar (status) menor em relação a outras.
Roberts (1972) nos apresenta possíveis distorções em relação à cultura negra, a partir
de deturpações e conceituações étnicas opressoras, que ao nosso ver, podem representar o
afastamento e apagamento social que compõem nosso objeto central de estudo. Nota-se então
ser difícil reconhecer identidades, pois essas classificações além de distorcerem a real cor e
também provável origem de grupos em diáspora, também colaboram para a não aceitação ou
6
The term black itself, like any racial term, is vague. South American countries generally divide people into
several categories: white, mulatto, black, indian, and mestizo. But in Brazil, mulattos and mestizos are lumped
together as “pardos”. This causes problems when one tries to establish cultural links between groups (ROB-
ERTS, 1974, p. 72).
27
conscientização de uma provável cultura de origem. Dessa forma, terminam por contribuir
fortemente para a continuidade do que chamamos de apagamento ou sufocamento identitário
e étnico.
Ampliando sua análise, Roberts (1972) diz que a música indígena brasileira também
possui fortes influências da música africana. Sabemos, por exemplo, que algumas musicalida-
des como o caso dos Caiapós e do Boi Garantido e Caprichoso, também apresentam uma
mescla entre a herança africana e indígena. Segundo Rafael Galante (2015), algumas influên-
cias ocorreram através de certo sincretismo, pelo qual a utilização de elementos pertencentes a
determinado grupo mais aceito poderia ser uma estratégia de aceitação social, muitas vezes a
única. Dessa forma, os indivíduos afrodescendentes7, em determinados períodos, como no
pós-escravidão, utilizavam a cultura indígena como escudo social para sobreviverem, obser-
vando que “Elementos característicos da música indígena brasileira eram semelhantes aos
elementos básicos nos estilos africanos: canto de chamada e resposta, uma ampla variedade de
assuntos, danças em grupo ou rituais e o uso dos chocalhos na música8” (ROBERTS, 1972, p.
72, tradução nossa).
Ao mesmo tempo, Roberts (1972) atribui influências rítmicas à musicalidade brasileira
que a diferenciam da portuguesa, pela utilização de elementos rítmicos derivados da África
Ocidental e Central:
Grande parte da diferença decidida entre os estilos melódicos português e brasileiro
parece resultar do uso brasileiro de uma abordagem rítmica frequentemente sinco-
pada e mais complexa, com acentuações deslocadas e ritmos cruzados diante da per-
cussão, características da técnica da África Ocidental e Central9. (ROBERTS, 1972,
p. 74, tradução nossa)
Ou seja, o aspecto que mostraria maior diferenciação seria o rítmico, mais especifica-
mente a síncopa, como única possibilidade de compreensão e simplificação da produção mu-
sical percussiva da África. Por outro lado, apesar de esta ser uma provável herança, a síncopa
também ocorre em outros países. Do mesmo modo, não basta apenas referenciar a influência
da rítmica africana sob esse aspecto, seria uma redução muito simplista relacionar a herança
rítmica diaspórica somente à síncopa. Na verdade, são muitos os pontos referenciais herdados,
7
Este
termo é indicado conceitualmente por estudiosos sobre questões raciais para se referir aos indivíduos afro-
descendentes de maneira menos pejorativa, considerando potencializar a origem histórica de pessoas e suas he-
ranças étnicas. Dessa maneira, procura-se contrapor e superar possíveis subestimações ou indiferenças, a partir
de qualificações estabelecidas por meio de termos considerados ultrapassados, como o caso de raça ou cor.
8
“Characteristic elements of Brazilian Indian music were similar to basic elements in Africans styles: call-and-
response singing, a wide variety of subject matter, a group or ritual dances, and the use the rattles in music
(ROBERTS, 1974, p. 72)”.
9
Much of the decided difference between Portuguese and Brazilian melodic styles seems to stem from the Bra-
zilian use of a frequently syncopated and more complex rhythmic approach with displaced accentuations and
cross-rhythms against the percussion, all features of West and Central African technique (ROBERTS, 1974, p.
74).
28
como por exemplo o pensamento percussivo coletivo bastante representado nos conjuntos
rítmicos afro-brasileiros.
Roberts (1972) também discute a influência da cultura Bantu (Congo – Angola) na
Congada Mineira, no roteiro do chamado cortejo. No entanto, para os objetivos do nosso tra-
balho, observamos que esta influência da cultura Bantu é muito mais ampla, já que é funda-
mento do candomblé de Nação Angola e produz elementos musicais centrais de referência
para diversos estilos e artistas brasileiros, juntamente com a Yorubá. No capítulo V detalha-
remos, em seções específicas, os pontos de encontro descobertos nas estruturas rítmicas e suas
derivações transmitidas do candomblé para as baterias, influências diretas da musicalidade
africana.
Ainda segundo Roberts (1972), o cinema também contribui como referência da cultura
negra, como é o caso do filme Orfeu Negro e sua associação com a percussão africana:
O samba das favelas, música de força polirrítmica devastadora, proporcionou grande
parte do impacto auditivo do filme Orfeu Negro, cuja trilha sonora dá uma impres-
são do poder dos tambores e da dança afro-americanas10. (ROBERTS, 1974, p. 76,
tradução nossa)
Este filme foi realizado em uma comunidade carioca, típico ambiente periférico tam-
bém conhecido como “morro”, com alta produção cultural derivada de habitantes afrodescen-
dentes com menor status social. Os morros são locais culturalmente fortes e cercados por es-
colas de samba e terreiros, sendo que muitos ogãs e ritmistas são oriundos destes locais e pro-
duzem a cultura afro-brasileira de geração em geração. Já no filme Cidade de Deus, também
filmado em favelas e morros com predominância de negros, há uma cena do protagonista Zé
Pequeno na qual ele consulta um orixá (Exu) para planejar quais seriam as suas futuras ações.
Este é um exemplo clássico da aceitação e realidade de parte da população ligada à religiosi-
dade do candomblé, muito presente em áreas mais carentes, com pessoas em vulnerabilidade
social. É por isso que, usualmente, notamos o uso do ditado popular “Psicólogo de pobre é
Pai de santo” e expressões como “Macumba é um ponto de lazer para o povo que não tem
estrutura social”.
Roberts (1972) também enfatiza o reconhecimento do lundu11 como primeiro ritmo
brasileiro a ser reconhecido pela classe média como derivado da África, o que nos mostraria
uma possível aceitação dessa origem diaspórica, oposta à recusa que sustentamos: “O lundú
10
The
samba of the slums, music of devastating polyrhythmic drive, provided much of the aural impact of the
film Black Orpheus, whose sound track gives some impression of the sheer power of Afro-American drumming
and dancing (ROBERTS, 1972, p. 76).
11
Ver página 234 - frase rítmica do atabaque lé no ijexá. O resultado sonoro é idêntico, porém neste exemplo soa
de forma desdobrada. Para a compreensão da célula rítmica do lundu é necessário transformar a semínima do
ijexá em colcheia e as duas colcheias em duas semicolcheias.
29
foi a primeira música de origem africana aceita pela burguesia brasileira12” (ROBERTS, 1972,
p. 78, tradução nossa). Porém, é necessário observar que alguns compositores também utiliza-
vam estratégias de aceitação social, modificando o nome de ritmos realizados em suas com-
posições. Ernesto Nazareth, por exemplo, optava por escolher termos socialmente mais acei-
táveis para alguns estilos, como no caso da troca do termo maxixe por tango brasileiro. Essas
escolhas se faziam porque tudo o que fosse associado à dimensão cultural africana – danças,
batuques e cantorias –, poderia ser entendido como algo lascivo que pudesse deturpar a ordem
pública. Sendo assim, no caso do maxixe, seria mais bonito referenciá-lo ao tango, já que este
sim era um ritmo considerado sofisticado e importante. Essa prática sempre permeou a depre-
ciação da cultura negra, constantemente relacionada com algo marginalizado.
Dessa forma, a escolha e mudança de termos para alguns ritmos apresenta-se como
uma necessidade para sua aceitação, como foi feito, segundo alguns entrevistados, com a mu-
sicalidade desenvolvida nos terreiros e apropriada pelas escolas de samba – instituições de
legitimação da cultura negra sufocada. Ou seja, com base nesses depoimentos, por exemplo,
observa-se que é mais fácil a aceitação do termo escola de samba (apesar também de certa
discriminação) do que outro diretamente oriundo da religiosidade de matriz africana. Essa
distorção permanece no imaginário dos brasileiros e permeia um universo cultural que contri-
bui para apagar, recusar e também sufocar o que é normalmente entendido como algo “mais
primitivo” – a percussão e todas as manifestações populares das quais ela é base. De fato, fica
muito difícil dizermos até que ponto essa suposta aceitação do lundu por parte da burguesia,
descrita por Roberts (1972), realmente ocorreu. O que nos compete é compreender a estrutura
por ele chamada de esquelética, a que outros pesquisadores se referem como clave ou timeli-
ne. Ou seja, investigar se a estrutura rítmica central de um estilo ainda faz parte daquilo que
foi herdado.
O lundu está sim presente em boa parte dos ritmos afro-brasileiros ou africanos, sendo
que, provavelmente, o que mais apresenta similaridade com ele é o ijexá, ritmo trazido pelos
Yorubás da região da Nigéria. Este ritmo está presente em boa parte do que é produzido tanto
nos terreiros quanto nas baterias das escolas de samba, assim como nos blocos afirmativos da
Bahia, como o Ile aiyê e os Filhos de Gandhi. Da mesma maneira, muitos compositores se
utilizam deste ritmo em suas composições – Djavan, Gilberto Gil, João Bosco, entre outros.
Questionamos então o motivo da escolha do termo ijexá e não lundu, visto serem praticamen-
te o mesmo ritmo, sendo que a diferença central seria a quantidade de pulsos entre um e outro.
12
The lundú was the first African-derived music accepted by the Brazilian bourgeoisie (ROBERTS, 1972, p.
78).
30
O lundu apresenta dois tempos de duração, enquanto o ijexá apresenta quatro, o dobro. O de-
talhe que chama a atenção é exatamente a parte inicial do ijexá, que entendemos como motivo
causador do conflito que leva a certa dificuldade de diferenciação entre os dois ritmos. Ou
seja, o começo da levada do ijexá (2 tempos), seria o próprio lundu. (Ver Cap. V). Este gênero
sim, pelo fato de se apresentar em quatro tempos, é base para muitas levadas de caixa, repini-
que e breques nas baterias, assim como é utilizado constantemente nos terreiros.
Analisaremos a apropriação desse ritmo para as baterias no capítulo V, entendendo
que alguns dos ritmos mais utilizados na musicalidade brasileira foram estabelecidos com o
tempo a partir do que herdamos do continente africano e as outras misturas. Desconhecê-los
seria desconhecer a própria identidade brasileira. Além disso, independente de serem utiliza-
dos também na religiosidade de matriz afro como o candomblé e a umbanda, é necessário
compreender como esses ritmos são estruturais e utilizados de forma ampla também fora da
religiosidade. Nesse sentido, categorizá-los apenas como parte de um segmento religioso re-
sulta no não reconhecimento de sua total abrangência. Da mesma forma, seria um equívoco
considerar a musicalidade produzida nos terreiros apenas como religiosa, o que não é um fato,
já que muito do que se utiliza na religiosidade foi transposto para outros locais. Dessa manei-
ra, entendemos como necessário separar a religião da musicalidade e da cultura como um to-
do, pois, independente de serem utilizados em ambos os locais, é preciso reconhecê-los como
parte da musicalidade afro-brasileira. De outra forma, estaríamos reduzindo-os e condicio-
nando-os a lugares determinados, a fim de não assumir o alcance dos mesmos.
Outro aspecto discutido por Roberts (1972) é o processo normalmente definido como
pergunta e resposta, característico de países da América do Sul e partes do Caribe. Apesar de
o autor indicar tal prática apenas no coro, observamos que, na verdade, trata-se de uma ferra-
menta bastante didática e artística nos conjuntos de percussão analisados. A musicalidade
brasileira, em grande parte, utiliza esse recurso, o que para nós seria uma marca muito carac-
terística daquilo que foi e é ainda produzido na África, como ocorre no caso do uso do djêm-
be, instrumento que possui característica de liderança e proporciona diversos diálogos com
outros instrumentistas de percussão, algo muito próximo do que é realizado pelos primeiros
repiniques e a bateria. Essa influência é um fato típico da consciência musical herdada, repro-
duzida nos terreiros e nas baterias.
Apesar de termos recebido essa influência direta, algo notável na performance destes
grupos, realmente não sabemos até que ponto os próprios indivíduos que utilizam este materi-
al como produção de suas performances possuem clareza dessa relação, da continuidade de
um modelo cultural no qual a percussão é compreendida como linguagem, indo além de suas
31
funções sonoras básicas. A percussão promove uma comunicação eficiente que proporciona
para seus praticantes uma inserção social poderosa, proporcionando um outro lugar (status)
nas comunidades. Consideramos assim, que trata-se da tentativa de conquista de um lugar de
fala a partir da performance.
Nesse sentido, tendo acompanhado diversos exemplos de crescimento de ritmistas e
ogãs em seus locais de ensaios, observamos que, de geração para geração, a evolução é uma
marca. Muitos se desenvolvem rapidamente e conquistam lugares estratégicos de liderança,
suportados pelas bases e fundamentos diaspóricos. Em pouco tempo a performance coloca o
indivíduo em posições privilegiadas de liderança que destacam suas habilidades, que servem
de referência para os mais novos. Tudo isso é cíclico e coletivo, uma outra marca daquilo que
a reprodução de uma cultura ressignificada proporciona. Nesse sentido, a metodologia utiliza-
da nestes locais é desenvolvida a partir do referencial africano, cujas principais estratégias são
intrínsecas à oralidade: imitação e repetição. Não somente os aspectos musicais são reprodu-
zidos, mas também os trejeitos de pessoas mais velhas, que se tornam referência, são muitas
vezes imitados pelos mais novos. Formas de fala, vestimentas, acessórios e cortes de cabelo
fazem parte de estratégias de reconhecimento de um modelo afro.
A conquista de uma posição significativa dentro desse ambiente, por meio da perfor-
mance, é também derivada de um conteúdo representativo de elementos identitários que mui-
tas vezes não é comunicado explicitamente, mas está sempre em desenvolvimento nestes gru-
pos. É este conteúdo que dá ao indivíduo – ogã ou ritmista – um vocabulário próprio que fun-
cionará como código interno extremamente valorizado pelos grupos nos terreiros e baterias.
Em geral, essa forma de reproduzir aquilo que seria de uma cultura anterior não é muito clara,
pois este algo já teria se reinventado, sem haver qualquer necessidade de busca de sua origem.
A metodologia utilizada é a reprodução de símbolos, como é o caso dos padrões rítmicos di-
versos que compõem as levadas e variações. A necessidade de falar sobre tais processos nor-
malmente cabe aos indivíduos externos, como é o caso de pesquisadores que tentam esmiuçar
esses processos. Para os atores locais não há sentido em muita argumentação, e a imitação e a
observação dão conta das necessidades pela execução.
Assim, se os indivíduos em questão realizam suas práticas e se satisfazem com seus
resultados, tudo se resolve sem qualquer preocupação. Essa falta de preocupação em desco-
brir explicações sobre a fonte, ou sobre parte do passado, acaba também por não colocar essa
cultura em um local de reconhecimento por completo, já que as próprias pessoas que a reali-
zam não enxergam ou sentem essa necessidade. Dessa forma, toda a sua complexidade pode-
ria não ser visualizada, apenas sentida e realizada. Por outro lado, parte da potencialidade das
32
sabedorias existentes nesses espaços também desperta a curiosidade de outros setores sociais,
que a enxergam como fonte de descobertas, apesar de, muitas vezes, pelo viés do exotismo ou
da excentricidade.
Sendo assim, o fato de se associar as escolas de samba com o entretenimento reduz a
compreensão daquilo que as baterias produzem musicalmente. Isso também ocorre com o
candomblé, quando associado conceitualmente apenas à religião, o que compromete o enten-
dimento de sua total abrangência, conforme já discutido. Trata-se de uma redução estratégica,
limitada e depreciativa da cultura africana, feita de maneira inconsciente ou não.
Em nossa fundamentação teórica, como parte integrante da nossa pesquisa sobre a di-
áspora negra, acabamos selecionando outros fenômenos que se relacionam simultaneamente a
este movimento – de migração de pessoas –, de maneira a considerar em quais níveis aconte-
cem as adaptações, recusas e transformações de determinadas heranças culturais identitárias.
Tais fenômenos já foram estudados por diversos autores e seus conceitos nos serviram como
referência durante toda a construção do texto. São conceitos que determinam como são obser-
vadas as modificações de comportamento social a partir de interesses do grupo migrado em
conjunto com um outro grupo já estabelecido como local. Sobre transculturação, utilizamos
como referenciais teóricos Hesse (1971), Ortiz (1983), Pereira (2006), Pinto (2015), Santos
(2007) e Weismmann (2018). Consideramos aqui a transculturação como a possibilidade de
aceitação de uma cultura originária em conjunto com adaptações de ressignificação da identi-
dade, transformação esta derivada do encontro de diversas etnias escravizadas que somente
encontraram-se no Brasil no processo de escravização. A senzala, onde os indivíduos ficavam
neste processo, possibilitou o encontro e a reinvenção existencial. Outra consideração sobre
transculturação, a partir dos autores referenciais, é o próprio encontro com a união dos saberes
originários (África) com os saberes locais (Brasil e outras influências de culturas diversas).
Weissmann (2018) considera os grupos locais como possibilidade de formação de um
vocabulário de inserção social. Nesse aspecto, corrobora com nossa visão e tratamento das
duas instituições aqui investigadas, consideradas organismos vivos de inclusão de pessoas na
sociedade. Para a autora, há:
[...] necessidade de se estar inserido em um código social, o que faz com que os su-
jeitos estejam incluídos em uma história, permitindo um trabalho de memória e re-
cuperação daquilo que foi perdido e barrado, para ser recuperado e incluído na cultu-
ra dos sujeitos. (WEISSMANN, 2018)
33
Uma Casa de candomblé é um espaço compartilhado no qual há sempre lugar para no-
vas pessoas que ali queiram viver ou frequentar, cada um da sua forma. O mesmo comporta-
mento ocorre nas escolas, já que há pessoas que moram nos barracões ou são adotadas como
filhos nestes locais. Este é o caso de Erivaldo Basílio Portela, vendedor de balas nas imedia-
ções da quadra do GRCSES Império de Casa Verde que foi adotado carinhosamente por Rob-
son Campos (Mestre Zoinho). Assim, desde o ano de 2018, Erivaldo faz parte da equipe de
suporte, chamada de apoio, na bateria do Império de Casa Verde. Ele é conhecido como Bar-
ba pelos ritmistas e, aos poucos, mesmo com idade avançada, está se tornando um verdadeiro
sambista, tocando, dançando e cantando junto com a comunidade do bairro da Casa Verde.
13
Tata Kylonderu, Mãe Kwanzademin, Tata Mukambila, Tata Kamuanga, Tata Ganga Zoimbe, Tata Inberekwe,
Manzelê e outros.
34
Boa parte dessas pessoas possui uma carga identitária muitas vezes apagada pelo so-
frimento e dificuldades sociais, o que não quer dizer que não possuam uma cultura de seus
antepassados. Ao redor dos barracões das escolas de samba, ou do candomblé, há diversas
pessoas com dificuldades financeiras que possuem uma relação com a cultura diaspórica. É o
caso de muitos jovens internos nos Centros de Atendimento Sócio Educativo ao Adolescente
(FCASA) em relação à prática e memória afetiva com a musicalidade afro-brasileira, pratica-
da anteriormente em seus bairros e comunidades formados por uma maioria de indivíduos
afro descendentes. Isto se relaciona ao fenômeno da migração e ao conceito de territórios
35
comunitários, cujos mecanismos são discutidos pelo eminente geógrafo brasileiro Milton San-
tos, conforme explicita Weissmann (2018):
Milton Santos (2007, p.82) trata das migrações e nos transmite como as mesmas
"[...] agridem o indivíduo, roubando-lhe parte do ser, obrigando-o a uma nova e dura
adaptação em seu novo lugar. Desterritorialização é frequentemente uma outra pala-
vra para significar alienação, estranhamento, que são, também, desculturização". O
autor alude à dor pelas rupturas e às perdas da cultura como âncora e salvaguarda do
conhecimento de modos de pensar, agir e inserir-se no social, em um dado território.
Isso nos traz um foco na dor individual que implica, já que cada sujeito terá que fa-
zer sua própria adaptação e construir sua própria forma de morar nesses universos
cruzados pelas semelhanças e as diferenças, os quais trazem à tona esse trânsito pelo
mundo. A perda e o luto serão algumas das fases desse périplo individual [...]. Po-
demos pensar que, depois do reconhecimento e da perda da cultura própria na terra
de nascença, o sujeito consiga reformular uma cultura que faça sentido para ele
mesmo, dando conta da nova realidade na qual está vivendo. (WEISSMANN, 2018)
Nas migrações ocorre uma transmutação entre aquilo que é natural para o indivíduo
com o que lhe é estranho, diferente. Traça-se, assim, um espaço de transformação daquilo que
foi herdado de um local de origem em conjunto com o que está no local de chegada. Também
é possível uma reconexão com elementos identitários já utilizados por indivíduos de mesma
origem que chegaram anteriormente. Esse fluxo resulta então em uma constante adaptação de
experiências e culturas diversas, o que pressupomos ser um processo de tensão entre tradição
e inovação, uma díade bastante presente e atual nestes locais. Para Ortiz, a partir de Pereira
(2006), Cuba se constituiu por meio destas transmutações culturais que determinam a identi-
dade e evolução de seus habitantes:
Para o pioneiro da transculturação, o cubano Fernando Ortiz, a história de Cuba é
feita de complexas transmutações de culturas que determinam a evolução do povo
cubano no âmbito institucional, jurídico, ético, religioso, artístico, linguístico, psico-
lógico, sexual, assim como nos demais aspectos de sua vida. (PEREIRA, 2006, p.
16)
Segundo Pereira (2006), em seu trabalho dedicado a Ortiz, aspectos amplos determi-
nam a complexidade do processo transcultural promovido pela diáspora. A semelhança com o
ocorrido no Brasil nos pareceu interessante, de maneira a considerarmos alguns apontamentos
sobre tais transformações:
Há toda uma transculturação de culturas e raças negras (...) provindas da África. (...)
Esse fluxo de raças negras, em sua condição de escravos, é arrancado de suas for-
mações sociais originárias e suas culturas são oprimidas pelas dominantes do Novo
Mundo. (PEREIRA, 2006, p. 16)
36
performance com o corpo. Ou seja, a transculturação seria representada amplamente não ape-
nas na sonoridade, mas sim num conjunto de ações que envolve fatores como o próprio mo-
vimento corporal utilizado na execução instrumental.
Em geral a transculturação musical desconhece a autonomia total e absoluta do som,
inclusive porque em sendo música, sonoridades sempre fazem parte de um aconte-
cimento performático maior. A importância da mimesis – padrões de movimento
como técnicas motoras (do músico) ou mecânicas (ao instrumento musical) – é in-
trínseca a toda a manifestação musical. (PINTO, 2015, p. 126)
37
são, o que faz referência ao termo utilizado por Hall (2013) – configurações sincretizadas da
identidade cultural.
Independentemente da questão de uma possível dominação ou poder de um grupo so-
bre outro, a transculturação é complexa, e portanto não acontece de maneira unilinear:
Diferente dessa visão, transculturação denota que o processo de embates sociocultu-
rais não se dá de maneira tão unilinear, tão subjugado a relações de poder. A dinâ-
mica do entrelaçamento de elementos culturais, de mentalidades e de técnicas de sa-
ber é muito mais complexa. (PINTO, 2015, p. 122)
Por outro lado, Hesse (1971), discutindo a transculturação, trata de uma suposta perda
de identidade que ocorre por meio da recusa do próprio local de origem por parte de alguns
herdeiros da cultura diaspórica, evidenciando as transformações pelo coletivo e suas escolhas.
Isso pode justificar o que chamamos de apagamento ou escolhas de não assumirem o próprio
objeto central investigado, dentro e fora do contexto:
Transculturação musical é um processo coletivo na cultura (...) que acontece através
de uma seleção crítica (...), induzindo o surgimento de uma nova cultura musical,
cuja marca de reconhecimento passa a ser a não-identidade com determinados ele-
mentos ou com a soma das culturas de origem. (HESSE, 1971, Apud PINTO, 2015,
p. 124)
Essa recusa foi observada nas manifestações e conjuntos sociais pesquisados. Se por
um lado pode haver uma relação automática de alguém em diáspora com seu passado, como
se fosse algo natural, por outro, essa associação pode ocorrer de forma distorcida, desconhe-
cendo-se as amplitudes culturais do local de origem, o que ocorre constantemente na mídia,
que normalmente apresenta tais sujeitos de forma bastante superficial, criando uma imagem
até depreciativa da cultura anterior, caso da associação das baterias apenas com o carnaval e
deste com o entretenimento. No relato abaixo, Pinto (2015) discorre sobre definições de Hes-
se, que nos parecem contraditórias mas que também apresentam possibilidades e conclusões
múltiplas sobre os processos a partir da migração:
É notável esta definição de transculturação musical de Axel Hesse (…) não só por-
que abre mão da ideia segundo a qual membros de uma cultura dominada necessari-
amente ficam submetidos à cultura daqueles que os domina (aculturação), mas tam-
bém por ignorar um certo historicismo romântico das “raízes” da presença negra no
continente americano. (PINTO, 2015, p. 124)
Lembramos que a definição do termo aculturação é bastante ampla e não pode ser in-
terpretada apenas como esta indicada por Pinto (2015). Como já apontamos, para compreen-
der este termo é necessário primeiramente reconhecer sua definição inicial como sinônima ao
conceito de transculturação, para depois também referenciá-lo em relação à perda ou recusa
de uma identidade herdada do ponto de origem dos indivíduos em diáspora. Este fato é muito
significativo, naquilo que ser refere ao comportamento de alguns indivíduos que utilizam es-
38
truturalmente algo que foi redefinido culturalmente através do movimento diaspórico. Nas
baterias, o pensamento musical percussivo é estrutural e reconhecido como elemento identi-
tário que reconecta os atores com sua cultura originária transformada desde sua chegada no
Brasil. A possibilidade de encontro e readaptações, de acordo com diferenças encontradas na
religiosidade da África e do Brasil, assim como na influência direta do culto dos orixás em
ambos os contextos, nos mostra como, no Brasil, foram construídos códigos internos inovado-
res que partem de uma origem ancestral africana. A não aceitação, ou mesmo o desconheci-
mento deste fato, nos levou a compreender que a necessidade transforma, estrategicamente, a
validação ou a recusa da própria identidade. Nesse sentido, a aculturação pode determinar
uma facilidade temporária ou até uma suspensão da necessidade de defesa de determinado
ponto de vista, quando há qualquer tipo de polêmica que envolve esta escolha. Sendo assim,
partindo do ponto de que nossa tese indica fortes relações de tais heranças, buscamos compre-
ender quais seriam os motivos desta recusa, visto tamanha importância e utilização destes
códigos herdados. Segundo PINTO (2015), há uma recusa deste chamado historicismo ro-
mântico por questões ligadas especificamente à racialização. Hesse (1971), também aponta
isto como uma estratégia de sobrevivência. Nesse sentido, a aculturação poderia promover a
sensação de uma nova identidade temporária, sem qualquer necessidade de evidenciar rela-
ções com o passado. Para nós, a aculturação é um fenômeno causado diretamente pelo pre-
conceito racial, onde o indivíduo prefere não deixar perceptível a sua identidade, visto que
isto, em um país racista, poderá lhe trazer dificuldades de sobrevivência. Por outro lado, a
aculturação também se dá de forma inconsciente, de maneira que o indivíduo sequer percebe
como poderá ser prejudicado por não assumir quem de fato é. Esta recusa de uma herança
cultural anterior pode também interferir, drasticamente, na evolução do indivíduo, em diver-
sos aspectos, como o próprio desenvolvimento cognitivo. Como afirma Rodrigues (2016), “as
variáveis relacionadas à aculturação interferem no processo de ensino e aprendizagem”.
(RODRIGUES, 2016, p. 4). Já para, SANTOS; BARRETO (2006) sobre aculturação, no sen-
tido de transformação ou recusa identitária:
É necessário preocupar-se menos com o que se extingue do que com o que se trans-
forma. Tal parece também ser a questão central na relação entre identidade e lugar,
nos seus fixos e fluxos. Além disso, o raciocínio que vincula, de modo fixo, identi-
dade e lugar, fundamenta-se em narrativas de subjetividades originárias e iniciais,
cuja superação coloca-se na contemporaneidade como algo teoricamente inovador e
politicamente crucial. Coloca-se hoje, sobretudo, a necessidade de focalizar aqueles
momentos ou processos que são produzidos na articulação das diferenças culturais
(SANTOS; BARRETO, 2006, p. 268).
39
Por tratarmos de grupos derivados de determinadas etnias africanas, mesmo com di-
versas outras influências culturais e participação de muitas outras descendências, estes grupos
mantêm hábitos relacionados com essa origem. Tais hábitos são representados fortemente na
estrutura de sua musicalidade e na relação desta com as comunidades envolvidas. Notamos
determinadas heranças nos seguintes aspectos: a) tríade ritmo, voz e movimento, b) polirrit-
mias diversas em combinações entre naipes e linhas rítmicas de atabaques e gã, c) instrumen-
tos/materiais (madeira e couro/atabaques, tambores africanos e ferro/gã), d) pergunta e res-
posta (breques/djêmbes) e e) música utilizada como rotina, em tarefas diárias, entre outros.
14
Disponível em: http://artigos.netsaber.com.br/resumo_artigo_36298/artigo_sobre_a-construcao-da-identidade-
etnica-e-as-representacoes-sociais.
40
Para Mesquita (2020), os grupos sociais são ferramentas necessárias à existência das
pessoas, o mesmo que percebemos nas funções dos terreiros e escolas para as suas comunida-
des e também para o público externo.
Mesquita também aborda etnicidade como um fenômeno múltiplo, no qual questões
biológicas não representam suas especificidades. Há, segundo a autora, a necessidade de não
tratar certos grupos de maneira isolada, tendo em vista que questões sociais são influenciadas
pelo contexto:
Características comuns a um conjunto de pessoas que as vai diferenciar de outro
grupo. Os grandes exemplos seriam a etnicidade indígena e negra. Que não podemos
tratar sob a ótica biológica. Esta divisão não assume mais a denotação raça. Fala-se
sobre o conjunto de características sociais-antropológicas de cada um, que os une
em determinados grupos, difereciando-os de outros. Logo se faz pertinente enunciar
que o mais importante é perceber a consciência que os grupos têm deles próprios e
em relação aos outros, pois não faz sentido falar em etnicidade em culturas isoladas,
mas sim num contexto multi-étnico em que o comportamento social é influenciado
pelas alterações contextuais. (MESQUITA, 2020, online)
Isso nos parece muito relevante pelo fato de analisarmos a utilização de determinadas
estratégias comportamentais de sobrevivência que determinam o grau de aceitação ou recusa
de determinada cultura étnica. Muitas vezes, como mostraremos no Capítulo IV, item 4.1 –
Ambiguidades, alguns envolvidos preferem não assumir certas heranças mesmo que a repro-
duzam estruturalmente nas baterias. Ao nosso ver, certas pessoas preferem fazer uma escolha
para não se expor e portanto não sofrer determinados preconceitos. Segundo Mesquita (2020),
(....) identidade étnica se expressa pelo ato de um grupo poder contar "com membros
que se identificam a si mesmos e são identificados pelos outros". Desse modo a
construção da identidade étnica tem na auto-afirmação sua grande base fundadora.
Ainda que as análises culturais sejam essenciais, a etnicidade não pode ser generali-
zada por ações da cultura. Segundo Manuela Cunha, não podemos definir grupos ét-
nicos a partir da sua cultura, pois os processos de identificação vão além das percep-
ções culturais. Barth acentua que o fato de compartilhar cultura comum pode ser vis-
ta como consequência, não como fator causa dos grupos étnicos e suas identidades.
(MESQUITA, 2020, online)
41
Para Kubik (1979), existe uma dificuldade em se atribuir etnicidade a grupos de de-
terminadas etnias que vieram para o Brasil, já que estes seriam separados apenas por nações
(Ketu, Angola). Dessa forma, o reconhecimento étnico de cada um nestes grupos teria sido
sufocado pela classificação de escravos a partir de suas etnias (apenas para a seleção de mão
de obra), de qualidades específicas segundo seus exploradores. Entendemos isso como parte
do processo de tentativa de apagamento das etnias africanas, depreciadas e não reconhecidas
em devida proporção no Brasil. Neste caso, era mais fácil dominar um indivíduo que não re-
conhecesse sua cultura, devido ao apagamento identitário, conforme relatado no documentário
intitulado Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás15, lançado no ano de 1998.
Além desse aspecto, segundo outros estudiosos da temática da africanidade no Brasil,
como é o caso do sambista e pesquisador Nei Lopes, tiveram períodos anteriores sustentados
por uma política de tentativa de apagamento étnico cultural, o que de fato não se sustentou,
exatamente pelo tamanho da diversidade e desenvolvimento desta herança no Brasil. Porém,
isso ainda implica em desconsiderações das especificidades e da total amplitude da cultura
diaspórica.
Hoje, as divisões étnicas no Brasil são difíceis de rastrear. Mas as antigas divisões
étnicas vivem como agrupamentos culturais. Embora a identidade étnica dos povos
africanos no Brasil tenha se desintegrado gradualmente após 1888, quando nenhum
reforço étnico chegou ao Brasil da África16 (…). (KUBIK, 1979, p. 10, tradução
nossa)
Isso realmente pode ser determinante para a descoberta dos motivos da existência de
diferentes níveis de aceitação ou recusa de uma identidade cultural. Socialmente, esse conhe-
cimento não foi assumido no nível que poderia ser, provavelmente também por essas marcas
do passado. Os resquícios ou sequelas do sistema escravagista ainda são reproduzidos por
indivíduos afrodescendentes, mesmo que de maneira inconsciente. A Memória das pessoas
que, de alguma maneira, passaram por isso em gerações anteriores, traz aspectos conflituosos
que contribuem para um desconhecimento de sua etnicidade. O apagamento causado por es-
tratégias de dominação destruiu, ao menos em parte, a cultura de origem. Porém, mesmo com
tantos conflitos, alguns traços permanecem e servem como códigos internos e insígnias de
poder em grupos e instituições de resistência social e étnica, como nos terreiros e nas escolas
de samba.
15
Disponível em: https://youtu.be/V1OqdhQItrI
16
Today, ethnic divisions in Brazil are difficult to trace. But the former ethnic divisions live on as cultural
groupings. Although the ethnic identity of African peoples in Brazil disintegrated gradually after 1888, when no
further ethnic reinforcements came to Brazil from Africa (…) (KUBIK, 1979, p. 10).
42
Nesse aspecto, Ikeda (2013) também relaciona questões desenvolvidas em grupos tra-
dicionais como ancestrais, em busca de uma memória anterior:
17
Entre los rasgos musicales que los africanos contribuyeron a la formación de la música americana, en particu-
lar la de América Latina, el ritmo tiene una importancia especial. (FERNÁNDEZ, 1966, p.7-8).
18
Disponível em: https://youtu.be/bN98usP_39g
43
19
It is a focal element in which all the other instrumentalists, the singers and dancers find a pivot point for their
orientation (KUBIK, 1979, p. 13).
44
nhecer a amplitude social a partir do ritmo, como por exemplo: a) perspectivas antropológicas
a partir do ritmo, b) estruturas identitárias musicais expandidas coletivamente, c) o ritmo co-
mo ferramenta interseccional, d) engenhosidades a partir do ritmo, e) o ritmo e suas insígnias
de poder, entre outros. Não nos faltariam opções que demonstrariam a potencialidade do rit-
mo no sentido coletivo e político-social. De fato, observamos esta função social do ritmo nas
comunidades aqui investigadas. O alcance social do ritmo é incalculável e, ao nosso ver, de-
terminante para a manutenção destas instituições – os terreiros e as escolas de samba.
45
CAPÍTULO II – O CANDOMBLÉ
O candomblé é uma religião brasileira com origem na África, cujos elementos estrutu-
rais chegaram no Brasil através dos indivíduos escravizados procedentes de diversas cidades,
etnias, práticas e culturas próprias. Uma de suas mais significativas influências é o vodum,
rito religioso cultuado em algumas regiões africanas, com destaque para aquelas hoje conhe-
cidas como Benin e Nigéria. Nestas regiões encontram-se as principais raízes dos cultos reli-
giosos afro-brasileiros, já que o candomblé da Bahia, o Xangô Pernambucano e o Tambor de
Mina no Maranhão, por exemplo, possuem fortes vínculos de origem com as características
religiosas dos povos de línguas iorubás e fons.
Os vodúns cultuados na África são uma espécie de anjo da guarda de uma comunida-
de, reforçando o laço e o sentido de família nas aldeias. Obviamente, isso se dá de maneira
totalmente distante de qualquer associação com algo maléfico, como apontam, por exemplo,
as referências depreciativas normalmente feitas ao orixá Exú pelas igrejas católicas e evangé-
licas, reproduzidas de forma preconceituosa em grande escala.
É necessário observar que, atualmente, o modelo do candomblé no Brasil é único, não
existindo nesse formato em outros países e nem na própria África, como estabelece Barros
(2007):
Os candomblés, no Brasil, são espaços privilegiados de manutenção dos valores de
povos africanos oriundos dos antigos reinos localizados nas regiões onde hoje se si-
tuam os países de Angola, Congo, Moçambique, Benim e Nigéria. Dessas regiões
foram trazidas pessoas de diferentes etnias, cujo modo de ser e existir foi capaz de
criar sobrevivências culturais, sociais e linguísticas em condições absolutamente ad-
versas devido ao processo escravista. Podem-se observar as manifestações culturais
de inspiração africana em todo o território brasileiro. Mas é nas comunidades religi-
osas de matriz africana que se encontra o centro dos cultos prestados às divindades
trazidas, majoritariamente, pelos povos ambundos, bacongos, fons e iorubas. No
Brasil, o culto às divindades foi (re)interpretado de tal maneira que os ritos foram
reorganizados, adquirindo aspectos diferenciados e, embora, mantenha a mitologia
de origem dessas divindades, não é uma religião africana, mas afro-brasileira, em
que as características se reestruturaram, dando vida a uma religiosidade brasileira de
matriz africana. (BARROS, 2007, p. 4)
Ou seja, no processo de adoção desta prática externa, observamos que assim que ela
chegou no Brasil suas características já se modificaram. Um exemplo dessa diferença se dá
pela quantidade de divindades (orixás), espíritos ancestrais (caboclos) e diversas energias cul-
tuadas – caso dos nkisis no candomblé Angola. Na África, por exemplo, comunidades especí-
ficas possuíam crenças individuais e podiam cultuar apenas uma divindade, caso do Reino de
46
Oyo que cultuava o orixá Xangô20. Já no Brasil, é comum o culto a diversos orixás ao mesmo
tempo, como ocorre nos xirês, – grande ritual realizado para a manifestação dos orixás e ca-
boclos nos terreiros das diversas nações. No chamado enredo da gira21, por exemplo, normal-
mente são apresentados e reverenciados muitos orixás em uma única performance. Vejamos o
que o alabê e mestre Iuri Passos (2017), nos traz sobre esse tema:
No Brasil, uma roça de candomblé cultua vários orixás. Na África, cada região ou
cidade cultua um determinado orixá. Portanto, a palavra candomblé foi uma forma
de denominar as reuniões feitas pelos escravizados para cultuar seus deuses, porque
também era comum chamar de candomblé toda festa ou reunião de negros no Brasil.
(PASSOS, 2017, p. 40)
Outra diferença que Passos também aponta se dá pelo sincretismo e suas mudanças
adaptativas:
Diante de tanta transformação e adaptação dos cultos de origem africana aqui no
Brasil, é importante ressaltar a acuidade do sincretismo como uma poderosa arma
para que muitos povos conseguissem manter suas tradições aqui já adaptadas de tal
forma que, até hoje, em alguns terreiros, se usa o termo santo em vez de orixá, ape-
sar de sabemos que muitos adeptos discordam dessa junção religiosa, tida como o
sincretismo no Brasil. (PASSOS, 2017, p. 40)
E continua:
Contudo, é importante esclarecer que os santos católicos não interferem nas práticas
religiosas dentro dos candomblés aqui instalados, de forma que, dentro dos terreiros
de origem Ketu, Éfon, Jeje e Congo Angola, quando estão fazendo suas obrigações,
oferecem suas dádivas para os Orixás, Vodus e Inkises e não para Santa Bárbara,
São Jorge e Senhor do Bonfim. (PASSOS, 2017, p. 40)
É importante considerar também que o sincretismo foi uma forma utilizada para a pos-
sível aceitação de práticas e religiões de matriz africana no Brasil que, ainda hoje, são vistas
de maneira preconceituosa, apesar de algumas parcelas da população hoje demonstrarem inte-
resse em conhecer melhor tais religiões, cujo motivo pode ser um provável reconhecimento
dos valores e das amplas linguagens que compõem estas práticas, como o canto, a dança e o
ritmo. Dessa maneira, entendemos que o candomblé, de alguma forma, passa também por um
processo ambíguo de reconhecimento. Ou seja, se por um lado algumas religiões, como a ca-
tólica e as neopentecostais, o atacam, do outro ele é também compreendido como algo além
da religiosidade e considerado como prática cultural, mesmo por pessoas que não fazem parte
da própria religião.
Atualmente, o candomblé pode ser considerado um termo genérico para representar
algumas religiões afro-brasileiras com características em comum. Nelas, são representadas,
por exemplo, o fenômeno das possessões, no qual as divindades cultuadas são incorporadas
20
Ver composições Kaô Kabecile, disponível em: https://youtu.be/Kbx8enkevDE e Brado de Xangô disponível
em https://youtu.be/8pCs_vVJCVU. Saudações a Xangô - ogã Tião Casemiro.
21
O mesmo que roda, termo utilizado em relação ao movimento circular realizado pelos participantes no ritual.
47
nos humanos que são chamados de filhos de santo ou nkises. As divindades são arquétipos,
símbolos (idioma simbólico) e representações de elementos da natureza, sendo que, por
exemplo, o arco-íris está associado a Lissá, os rios e o mar a Yemanjá e a Oxum, e o trovão e
a chuva a Xangô.
2.2 Terreiros
A prática religiosa do candomblé ocorre nos chamados terreiros com maior destaque
para os ritos centralizados nos barracões, espaços nos quais atividades diversas são realizadas.
Para o presente trabalho, é essencial observar que estes termos – barracão e terreiro – são
também utilizados para se definir as quadras das escolas de samba. O relevante pesquisador
Pierre Verger descreve estes locais da seguinte maneira:
Esses terreiros são geralmente compostos de uma construção, denominado barracão,
com grande sala para as danças e cerimônias públicas, de uma série de casas, onde
são instalados os pejís, consagrados aos diversos orixás, e de casas destinadas à resi-
dência das pessoas que fazem parte do Candomblé. A responsabilidade do culto re-
pousa sobre o pai ou a mãe de santo, correspondentes aos nomes de origem ioruba,
babalorixá ou Ialorixá. (VERGER, 1981, p.32)
Numa roça de candomblé tradicional há diversos espaços, cada um com suas especifi-
cidades em relação às atividades necessárias. O barracão, como falamos, local aonde ocorrem
as festas e xirês, é visto pelos filhos da casa como um local de exposição do ritual para o pú-
blico externo. Além disso, ele é usado para outros rituais secretos. Ou seja, é um local que
divide-se entre o sagrado e a celebração coletiva com as comunidades e simpatizantes de uma
forma geral.
É muito importante que a roça seja construída em um lugar afastado das grandes cida-
des, com amplo acesso à natureza, árvores, plantas para a colheita de folhas específicas e
água, de maneira a permitir um reencontro com o universo, distante dos problemas do cotidi-
ano. No entanto, atualmente, essa exigência não é uma realidade, apesar de muitos terreiros
tradicionais ainda estarem localizados em locais afastados, em busca deste contato com uma
natureza e devido a condições sociais repressivas.
48
Figura 3 - Tata Kylonderu (Rodolfo dos Reis) dentro do antigo barracão da Casa de Angola Kyloatala
22
Este barracão foi substituído por outro de alvenaria no ano de 2020.
49
2.3 As Nações
Para cada nação do candomblé há uma língua específica. Na nação Ketu por exemplo,
Babalorixá é o termo para o Pai de santo ou Ialorixá para a mãe de santo, no candomblé An-
gola, que se utiliza da língua Bantu e não a Yorubá, referencia-se o Pai de santo como Tata
Nkise e a Mãe de santo como Mameto Nkise.
De maneira geral, observamos vários aspectos que se diferenciam nas nações, de acor-
do com a origem de cada uma delas. Porém, há muitas semelhanças e características em co-
mum, tais quais:
a) o aprendizado se dá pela oralidade (sem muitos questionamentos) e pelo sentimento
e observação;
b) a oralitude é reconhecida como ciência primordial que se dá através de passagens
históricas mitológicas contadas pelos mais velhos;
c) os participantes se entrelaçam e são reconhecidos como família de santo ou povo de
santo em suas comunidades;
d) os fundamentos são conquistados nos elementos rituais e nos conhecimentos sacer-
dotais, sempre acompanhados pelo pai ou mãe de santo;
e) o barracão é o espaço principal para as festividades ou toques, e cada espaço repre-
senta uma simbologia específica que guarda os segredos da casa;
f) outros espaços ao redor da roça representam a simbologia ancestral e os segredos da
família ancestral da casa;
g) as entidades são homenageadas nos rituais, com alimentos e ferramentas específi-
cas, na dança, cantos e toques;
h) a iniciação de cada indivíduo que irá se tornar um filho de santo transpassa saberes
ancestrais, através das obrigações mediadas pelos sacerdotes de cada casa;
i) no conjunto musical há predomínio de instrumentos de percussão;
j) os ogãs precisam saber cantar, tocar e narrar uma história rítmica reconhecível pelas
divindades;
k) a função percussiva transpassa a questão musical e pode ser considerada como lin-
guagem, pois é a partir dela que se dará, ou não, a comunicação para a incorporação das enti-
dades;
l) há uma vestimenta específica para cada orixá e festa;
m) há comidas específicas para cada orixá;
n) as danças são no sentido anti-horário;
50
Cardoso (2006) relata a identificação dos filhos de santo com cada nação de candom-
blé à qual é pertencente, o que traz uma sensação de pertencimento ao próprio grupo. Do
mesmo modo, ele aponta para uma situação social de conforto em relação a um território que
simboliza a prática afrodiaspórica.
As mencionadas religiões são chamadas pelos seus próprios adeptos de “nação”.
Sendo assim, pode-se dizer que esse termo é utilizado como uma forma de distinguir
a religião a qual o fiel pertence. É comum ouvir, por exemplo, entre os adeptos das
mencionadas religiões afro-brasileiras, frases do tipo: “sou de candomblé, minha na-
ção é angola”, ou “pertenço à nação queto”. (CARDOSO, 2006, p.1 e 2)
É importante citar que para cada nação há uma sequência específica de cantos para os
orixás. Outro detalhe é que, em cada nação dentro da tradição, exige-se que se cante e se apre-
sentem os orixás de forma única, o que não ocorre atualmente em muitas Casas. Nesse senti-
do, é muito difícil controlar a pureza de uma tradição, já que muitos filhos de santo trazem
aprendizados diversos de outros locais, ou seja, de outras nações. Cabe então ao Pai de santo
determinar até que ponto haverá flexibilidade para mesclar cantigas e toques de nações dife-
rentes em sua Casa em específico. No caso do Kyloatala, há uma preocupação constante em
tentar controlar o repertório utilizado. Dessa forma, nesse lugar só podem ser utilizadas músi-
cas da nação Angola, de origem Bantu. Porém, na prática, isto não acontece, já que muitas
outras influências chegam nos terreiros e é comum haver mistura entre nações. Ou seja, difi-
cilmente encontramos terreiros com o chamado purismo em uma nação específica.
51
52
Cardoso (2006), nos traz algumas das possibilidades de utilização dos toques e cantos
sagrados em reverência aos orixás:
O aderé que comumente está associado a Ogum, também é utilizado para acompa-
nhar uma canção de Oxalá; o ijexá, toque de Oxum, acompanha cantigas de quase
todos os outros orixás; e assim ocorre com vários toques. Nesses casos, o toque per-
de a exclusividade com a divindade a qual comumente está associado e a canção
passa a ser o referencial da divindade, homenageada através do canto. A uma canti-
ga para Ossaim, acompanhada pelo ijexá, por exemplo, falar-se-á, entre o povo-de-
santo, que se está tocando para Ossaim. (CARDOSO, 2006, p. 247)
2.6 Os instrumentos
Como sabemos, a música do candomblé é produzida pelo canto e, de forma geral, pelo
toque dos atabaques – rum, rumpi e le – e do gã, juntamente com outras sonoridades corporais
como as palmas e os próprios passos dos filhos de santo em performance.
Os instrumentos nessa religião transcendem a mera concepção material de um objeto
que produz som, eles também são considerados entidades e, em alguns casos, passam por ritos
específicos, como no caso dos atabaques que são alimentados como alimenta-se um orixá e,
por vezes, recebem inclusive nomes carinhosos, sendo tratados como a própria entidade.
53
54
Compreende-se por gã, um idiofone (instrumento que produz som pelo próprio corpo)
de apenas uma campana que será executado na maioria das casas com uma baqueta de madei-
ra. É muito comum que este instrumento não suporte o excesso de intensidade sonora direcio-
nado na sua execução e soe de forma distorcida. Este instrumento é referencial para a indica-
ção do andamento, já que ele inicia o toque pelo timeline antes dos outros três atabaques. Em
muitos casos, mesmo que ele indique sonoramente um determinado andamento, há uma acele-
ração do andamento quando os atabaques entram.
Essa mesma variável do que se espera em relação ao andamento ocorre nas baterias,
principalmente nas chamadas retomadas – quando a bateria realiza a transição de um breque
para o retorno da levada –, havendo uma aceleração natural que deve ser considerada como
flexibilidade intrínseca a estas musicalidades. É muito comum o gã começar em um andamen-
to e, na entrada dos atabaques, ocorrer uma aceleração, que pode ser discreta ou com mais
diferenciação entre o que foi proposto inicialmente pelo gã. Para que ocorra a sincronia do
conjunto – atabaques e gã –, há a necessidade de que ele também acelere até se ajustar e con-
seguir ficar no mesmo andamento dos outros instrumentos. Caso haja a necessidade de um
andamento mais lento, o pai de santo poderá solicitar a interrupção abrupta da performance
dos ogãs e pedir para recomeçar mais lento. Observamos essa prática em diversas festas no
Kyloatala.
Como dissemos, o gã é um instrumento referencial, por executar o timeline – uma cé-
lula rítmica sem variação do começo ao fim de cada toque – e pelo destaque de sua sonorida-
de metálica. É bastante comum que ele seja executado por um ogã bastante experiente, como
é o caso de João Talabi – filho de santo da Casa de Angola Redandá que atua também na Casa
Kyloatala em dias de festas mais importantes. Neste caso, é ele quem conduz todo o ritual em
parceria com o pai de santo local, a partir do timeline e do amplo repertório cantado nos xirês.
O gã também é o principal referencial para todos os outros filhos da casa, pois apoia ritmica-
mente todos os cânticos. Nas baterias, ocorre o mesmo, tanto com o naipe de agogôs de 4
campanas como com o naipe de tamborins, que executa o timeline mais conhecido e referen-
cial para toda a comunidade – o telecoteco.
O conjunto dos atabaques é formado por três peças: rum (grave), rumpi (médio) e lé
(agudo). No candomblé Angola estes mesmos instrumentos são chamados originalmente de
Kasumbi, Mukundu e Txina respectivamente. Segundo Tata Mukambila, – ashogum da Casa
Kyloatala, alguns termos são utilizados do ketu de forma geral, porém cada nação possui um
tronco linguístico e suas características específicas:
55
Cardoso também apresenta mais alguns detalhes sobre a musicalidade produzida pelo
chamado conjunto percussivo tradicional (atabaques e gã):
A música advinda desse quarteto é denominada, pelos próprios adeptos da religião
nagô, de toque. Ou seja, cada toque é constituído de frases musicais distintas, toca-
das no rum, e ostinatos que, generalizando, se mantêm todo o tempo, tocado nos
demais instrumentos. Outra característica do toque é que, de maneira geral, cada um
é associado a um orixá. (CARDOSO, 2006, p. 58)
56
Há uma enorme dedicação do alabê para que ele possa dar conta do amplo repertório
utilizado nos rituais, nos quais o canto não é separado dos toques. Todo ogã precisa conhecer
uma série de cantigas que serão cantadas juntamente com a execução dos toques. Conhecer os
toques dos atabaques é também conhecer muitas cantigas, aquelas que compõe o panteão dos
orixás cultuados no candomblé brasileiro.
Nesse sentido, podemos considerar o corpo como um outro instrumento que também
compõe o conjunto musical do candomblé. Vale lembrar que, em um processo iniciático, o
ogã também aprende alguns passos das danças de alguns orixás, o que mostra a enorme com-
plexidade desse amplo conhecimento. A tríade ritmo, voz e movimento não é uma escolha,
mas sim uma determinação, ao mesmo tempo que é um processo natural de aprendizado que
se consolidará apenas com o tempo de convívio de cada pessoa envolvida em seu terreiro.
2.6.2 Outros instrumentos essenciais ao ritual
Os chamados instrumentos de fundamento mais conhecidos são: adjá, arô, cadocorô,
xerê e o xaorô, – este último, utilizado no pé dos iniciados dentro do roncó. Por motivos éti-
cos da tradição religiosa, não nos é permitido descrever maiores detalhes dos acontecimentos
deste espaço de iniciação na religião, ao passo que conseguimos informações relevantes jus-
tamente por fazer parte. Dentro de nossa investigação, também nos cabe o respeito e os cui-
dados mantidos por gerações, em relação às estratégias de preservação específica dentro de
algumas necessidades dos preceitos religiosos.
Cada um dos preceitos está associado a alguma divindade. Para alguns autores como
Angela Lunhing (1990, p. 48), estes instrumentos de fundamento deveriam ser classificados
como instrumentos rituais, e não musicais. Nesse sentido, corroboramos com Cardoso, por
compreender a dupla função destes. Ou seja, ao mesmo tempo que são instrumentos fora do
conjunto consagrado, também funcionam musicalmente durante os rituais. São reconhecidos
exatamente pelas sonoridades únicas que somam-se no conjunto de todas as outras, impulsio-
nando determinadas ações a partir de suas execuções pontuais.
O adjá é constituído de duas campanas com arruelas amarradas dentro. É o mais utili-
zado nos rituais e tem a função de atrair os orixás do início ao fim dos rituais. Um exemplo da
sua utilização é quando algum yawó está prestes a incorporar um orixá e uma ekédi de maior
graduação na casa, ou mesmo o próprio pai de santo. Mesmo quando incorporado, o adjá é
balançado para que o orixá mantenha-se no local. O adjá está associado a Oxalá – orixá con-
siderado como a maior divindade do panteão Yorubá e em outras etnias. Por esse motivo, ele
é o mais utilizado de todos na seção de instrumentos de fundamento.
Também demonstrando a associação do instrumento de fundamento com a posses-
57
são, Roger Bastide, sobre o adjá, observa que “quando o transe custa para se produ-
zir, sacerdotes ou sacerdotisas agitam o adjá junto ao ouvido das filhas de santo que
dançam, e não é raro que, importunada por esse ruído agudo e alucinante, a divinda-
de se decida a montar em seu cavalo. (CARDOSO, 2006, p. 49)
Montar em seu cavalo significa que a pessoa está sendo utilizada como transporte de
outro corpo, no caso, do orixá que se utiliza de uma pessoa no ayê, quando desce do orum.
O arô é um par de chifres, normalmente de boi, que apresentam uma sonoridade opaca
ao serem percutidos entre si. Este instrumento está ligado ao orixá Oxóssi e, por este motivo,
é utilizado nas festividades específicas para o caçador – função deste orixá dentro da mitolo-
gia africana.
O cadocorô, na nação Ketu ou corocolô, no candomblé Angola, é constituído de duas
campanas de ferro como as que conhecemos no agogô, porém nesse caso, elas são separadas,
sendo executadas percutindo-se uma contra a outra. É um instrumento associado ao orixá
Ogum, o grande guerreiro. A habilidade em trabalhar com o elemento ferro faz parte de um
conhecimento tecnológico avançado do povo africano, fato apontado por vários historiadores,
sendo que este orixá – Ogum – representa justamente isto.
58
59
ta Casa é comum a utilização do instrumento surdo – nesse caso um de 20” e com pele ani-
mal, idêntico aos utilizados nos conjuntos de samba –, pandeiro de nylon, zabumba e triângu-
lo. Essa necessidade se faz pela ascendência do caboclo da Casa incorporado por Tata Kylon-
deru – o caboclo Araribóia. Por possuir um passado em terras distantes e dentro dessa cultura
musical, há a necessidade da execução de ritmos e cantigas nordestinas, por exemplo. Além
disso, são necessários também para os chamados sambas de caboclo, como dissemos anteri-
ormente. Nesse caso, o pandeiro e o surdo são essenciais.
Apesar de sabermos de diversas restrições em outras casas, quanto à possibilidade de
utilização de outros instrumentos além dos tradicionais (trio de atabaques e gã), percebemos
uma tranquilidade nessa casa em relação à aceitação de outras sonoridades. Outro fato que
corrobora com essa afirmação é termos presenciado a utilização de batás25 pelo músico cuba-
no Jorge Ceruto nesta Casa. Segundo ele, o próprio Exú Malungo do Kyloatala (incorporado
por Tata Kilonderu) o solicita para trazer os três batás, de maneira que estejam disponíveis
para alguma festa específica para ele.
Nesse caso, Jorge Ceruto, músico cubano que é ogã da Casa e possui formação na san-
teria26 cubana, também precisou levar os instrumentos (antes da festa) para que fossem consa-
grados pelo zelador. Somente após essa preparação é que o instrumento ficou disponibilizado
para utilização dentro da religiosidade. Segundo o próprio zelador, antigamente era muito
comum que os chefes de naipe, responsáveis pelas seções da baterias das escolas de samba,
levassem algum instrumento para que fosse consagrado por algum zelador, de forma que es-
ses chefes de naipe (que também seriam ogãs) pudessem utilizá-lo nas baterias. Segundo o
zelador da Casa, apenas após essa consagração é que todo o naipe seria protegido espiritual-
mente por esse instrumento que representaria todos os outros utilizados pelos integrantes.
Esse procedimento também deixa bastante evidente a circularidade existente entre o
candomblé e o samba (nesse caso, mais especificamente, com relação à bateria), para a qual é
trazida a herança ancestral cultuada nos ritos afroreligiosos. É interessante notar como tudo
isso se mistura com os batás e a roda de samba formada especialmente para a referida festa.
Ceruto nos informou que percorreu boa parte do Brasil em busca da consagração do instru-
mento, como os estados do Rio de Janeiro e a cidade de Salvador, sem ter sido aceito. Por
25
Instrumentos reconhecidos pela utilização nos ritos afro-religiosos em Cuba como a Santeria, provenientes da
Nigéria, mais especificamente do povo Yorubá e posteriormente pelos Lukumis cubanos. O batá é associado ao
orixá Xangô e a formação tradicional possui três, com tamanhos, afinações e células rítmicas que se complemen-
tam, como as congas e os atabaques.
26
Termo reconhecido pelo culto aos Santos adorados pelos escravos e ex-escravos africanos migrados para Cu-
ba. Uma espécie de sincretismo com a mescla do catolicismo, assim como na umbanda brasileira, porém com
uma rítmica mais complexa.
60
possuir forte vivência na santeria, por parte de sua família em Cuba, ele pretendia consagrar
seus instrumentos e dar continuidade à religiosidade aqui no Brasil, país onde vive desde
1998. Este fato ocorreu apenas no Kyloatala, pelo interesse mútuo entre ele e o zelador Tata
Kylonderu – uma liderança inovadora, equilibrada e respeitosa dentro das tradições.
61
3.1 Panorama
Definir o carnaval no Brasil é algo bastante complexo, porém o fato mais significativo
para o presente trabalho é que, apesar de toda a influência midiática, da imprensa, da comer-
cialização, do embranquecimento e da descaracterização de elementos e sentidos iniciais, ele
ainda é elaborado e realizado com predominância de indivíduos afrodescendentes (na totali-
dade da mão de obra para a construção das alegorias, fantasias, bateria, ala musical, entre ou-
tros).
No que se refere, por exemplo, à questão de poder nas escolas de samba, atualmente
há uma série de questionamentos sobre a predominância de presidentes brancos, o que ocorre
por diversos motivos como: a) disputa de posições de poder social, b) financeiros, c) domina-
ção hierárquica do branco sobre o negro, entre outros. Apesar disso, ocorre um processo natu-
ral de participação de pessoas das mais diversas etnias nas escolas de samba, pois essas insti-
tuições também foram pensadas para o compartilhamento de valores sociais coletivos. Ou
seja, mesmo que a escola de samba seja algo mais característico da cultura negra, têm-se a
intenção de compartilhamento com diversos setores sociais.
Por outro lado, há correntes conceituais e indivíduos que defendem que esse espaço é
um dos poucos ainda existentes para a preservação da cultura negra. Notamos isso fortemente,
por exemplo, naquilo que é preparado anualmente pelas escolas para o carnaval de São Paulo
e do Rio de Janeiro, considerado (midiaticamente) como “o maior espetáculo da terra”. As-
sim, ao mesmo tempo que o carnaval é visto como um ambiente “democrático”, muitas vezes
não o é, por conta de vários aspectos comerciais que o envolvem. No entanto, entendemos que
este fato não interfere no processo de preparação dos desfiles no decorrer de todo o ano nas
quadras das escolas, sendo que o que ocorre nesses momentos (ensaios e festas) é determinan-
te para a vida dos sambistas.
Dessa forma, seus atores defendem este território, que é utilizado como possibilidade
existencial onde seus valores, princípios e costumes são preservados, como acontece com o
povo de santo nos terreiros. Para alguns sambistas, há a necessidade de limitar o acesso como
única forma de garantir a continuidade do seu próprio povo através de um conhecimento que
não pode ser “tomado”. Notamos então, que o conhecimento que circula entre os terreiros e as
escolas é uma forma de resistência que resulta no reconhecimento dessas potencialidades pe-
los promotores desse espetáculo. Além disso, mesmo que aquilo que realmente se consagre
nos processos anuais de preparação seja o desfile final, para os sambistas conta muito o que
62
antecede esse momento, já que todos os processos promovidos pelas práticas culturais negras
reforçam os valores e significados do próprio indivíduo e seu grupo. O desfile é uma celebra-
ção compartilhada, porém os pormenores e práticas anteriores é que valem a própria existên-
cia desses indivíduos, pois a identidade individual e coletiva são preservadas justamente nes-
sas preparações (ensaios, elaboração de arranjos, decisões e metodologias diversas).
Sabemos que, com a colonização, tivemos a influência das tradições carnavalescas eu-
ropeias, essencialmente do entrudo. Para Pegado (2005), o carnaval chegou aqui no século
XVIII trazido pelos portugueses, sendo o entrudo uma brincadeira de se atirar bexigas com
líquidos diversos. Já para Crecibeni (2000), o período correto seria o século XVII, também
com o formato do entrudo. Para ele, nessa época, as autoridades tentavam coibir essa forma
de manifestação pelo uso exagerado de substâncias insalubres que eram jogadas nas pessoas:
Por diversas vezes, as autoridades tentaram proibir os abusos praticados pelos foli-
ões: este folguedo violento consistia em atirar nas pessoas não apenas água, através
de cuias, bisnagas ou baldes, mas também farinha de trigo, cal e outros. (CRECI-
BENI, 2000, p. 15-16)
Segundo Tinhorão (1991), o entrudo era algo um pouco diferente, e permaneceu até o
século XIX. Para ele, esta era uma festa na qual os escravos corriam pelas ruas sujando-se
entre si, enquanto as famílias brancas jogavam das janelas de suas casas líquidos sujos nos
participantes que estavam pelas ruas.
O entrudo, do qual se tem notícia desde o início do século XVII... limitou-se até me-
ados do século XIX a uma festa em que os escravos da Colônia e do Império saíam
em correrias pelas ruas, sujando-se uns aos outros com farinha de trigo e polvilho,
enquanto as famílias brancas, refugiadas em suas casas, divertiam-se derramando
pelas janelas tinas de água suja sobre os passantes... (TINHORÃO, 1991, p. 111)
Para Tinhorão (1991), muitos autores tendem a direcionar todo o histórico carnavales-
co para a cidade do Rio de Janeiro, principalmente pelo fato de ela ter sido a capital do país e
apresentar grande diversificação social. Nelson Crecibeni (2000) também destaca característi-
cas que corroboram com Tinhorão (1991), observando ser importante compreender as caracte-
rísticas próprias do carnaval paulistano, como por exemplo, das festas de Pirapora do Bom
Jesus, com seu samba de bumbo, e também dos batuques de Piracicaba, Tietê e Capivari. Isso
determina diferenças essenciais entre o samba do Rio de Janeiro e o de São Paulo, desde o
período carnavalesco.
Refletimos sobre os relatos acima de Tinhorão (1991) e Crecibeni (2000) e, intencio-
nando levar nossa discussão para a cidade de São Paulo, citamos Vinci de Moraes (1997) que,
em seu livro intitulado Sonoridades Paulistanas, classifica esse momento como representati-
vo de uma separação social entre a elite europeia que dominava a indústria cafeeira na época,
63
e o povo descendente de escravos. Estes últimos se tornariam ex-escravos, e seriam, aos pou-
cos, colocados nos bairros mais afastados da cidade de São Paulo, como o Campos Elísios, o
Largo da Banana e a Barra Funda – bairro ainda hoje rodeado por diversas quadras de agre-
miações carnavalescas que continuam sendo dominadas pela mão de obra negra.
A cidade no seu processo distorcido e perverso de crescimento deixava aos negros
os espaços mais sombrios e afastados. Três áreas se constituíram na passagem do
século passado para o século XX, como regiões de grande concentração negra: Barra
Funda, Bexiga e Lavapés. Nesses bairros, os negros sobreviviam a partir das ativi-
dades marginais, do subemprego e dos baixos salários, morando instavelmente mas
sempre arrumando tempo para manterem vivas suas histórias e memórias. (MORA-
ES, 1997, p. 61-62)
Moraes (1997) também apresenta uma versão sobre a origem do carnaval pelo entru-
do:
64
Nogueira (2008) destaca o mesmo exemplo de Moraes (1997) e Simson (2007), refor-
çando esse conceito de carnaval – ‘Grande’ e ‘Pequeno’. Para ele, do Grande Carnaval parti-
cipava a elite da cidade, que se encontrava nos bailes de máscaras realizados com o uso de
muito luxo e brilho nos salões de festa e, do Pequeno Carnaval, participava a população me-
nos favorecida, que realizava suas brincadeiras nas ruas. Trata-se, claramente, de uma separa-
ção intencional, estabelecida pela própria elite que, de forma geral, não reconhece a cultura
popular, e mantém uma visão eurocêntrica e hegemônica instituída na colonização. Por outro
lado, na realidade, uma total separação mostra-se impossível, pelo fato de que a própria elite
também colaborou para a organização e reconhecimento do carnaval por meio do poder pú-
blico e do estabelecimento de determinadas leis:
O processo de organização da nova festa carnavalesca, pautada na junção de interes-
ses das manifestações do Grande Carnaval e Pequeno Carnaval, representados res-
pectivamente pela elite e povo, dar-se-ia a partir do século XX com a imposição
gradativa de regulamentações cada vez mais estruturadas por parte do poder público
como, por exemplo, policiamento ostensivo nos locais da festa, itinerário previa-
mente definido aos grupos carnavalescos e logradouros roteirizados. (NOGUEIRA,
2008, p. 52)
Para Tinhorão (1991), isso determinaria o início dos cordões carnavalescos. Essas
agrupações são responsáveis pelo formato inicial das conhecidas escolas de samba, que foram
se modificando e crescendo em setores hoje conhecidos como alas, entre elas a bateria. No
relato dele, além de todos os envolvidos, há destaque inicial para o povo negro na formação
dos cordões e no uso de instrumentos de percussão.
Obrigado à adoção de formas mais disciplinadas de brincar nas ruas, por forças de
repetidas repressões policiais contra o entrudo, o povo lembrou-se de paganizar a es-
trutura das procissões e no correr da segunda metade do século XIX apareceram os
cordões... primeiros núcleos de criadores da autêntica música de carnaval. Integra-
dos por negros e mestiços, e logo pelos brancos das camadas mais humildes da cida-
de, os cordões apresentavam-se como uma massa mais ou menos compacta de fanta-
siados, que, ao som de instrumentos de percussão, avançavam pelas ruas. (TINHO-
RÃO, 1991, p. 113-114)
Para Pegado (2005), há também uma influência ibérica, já apontada anteriormente por
Moraes:
Em 1846 um fato marcaria para sempre a história do carnaval carioca e brasileiro. O
sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes, o Zé Pereira, querendo lem-
brar os tempos de romaria e festanças lusas, saiu às ruas no sábado de carnaval,
acompanhado de patrícios já “alegres” das doses de vinho e aguardente, batucando
zabumbas e tambores. Foi tanto o sucesso, que no carnaval seguinte, pequenos gru-
pos, munidos de tambores e latas popularizaram o gênero. Este, aliás, ao bater o
bumbo com competência e precisão passou a ser considerado o precursor do surdo
de marcação, hoje fundamental e existente em todas as Baterias de Escolas de samba
(PEGADO, 2005, p. 21).
Tinhorão (1991) afirma que os ranchos – grupos que saíam em procissão, ao som de
marchas de rancho –, tentavam disciplinar o carnaval, organizando e estabelecendo critérios
65
para que não se saísse do controle, visando a diminuição da violência característica do entru-
do. E com relação à criação dos dois gêneros musicais que correspondiam a essa nova forma
de organização – a marcha e o samba –, afirma que “o estilo de passeata de ranchos, blocos e
cordões estava pedindo um ritmo marchado, necessariamente binário, com acentuação no
tempo forte, e cuja marcação deveria facilitar o avanço da massa de foliões.” (TINHORÃO,
1991, p. 120).
Voltando ao processo que estabelece o que hoje conhecemos como escolas de samba,
observamos então que a sequência correta de tal evolução seria: a) corsos, b) ranchos, c) cor-
dões e d) escolas de samba. O corso foi o início deste processo, quando a elite assistia pelas
janelas dos casarões o desfile de carros na avenida Paulista. De certa forma, é o mesmo que
ocorre hoje em dia com o desfile das escolas de samba, pois os carros alegóricos substituíram
os carros de passeio, e o público, ao invés de ficar nas janelas, fica nas arquibancadas do
Anhembi (no caso da cidade de São Paulo). No Rio de Janeiro, o sambódromo é chamado de
Marquês de Sapucaí. No Brasil inteiro existe esse tipo de estrutura para a apreciação de desfi-
les carnavalescos.
Outra semelhança ocorre nos desfiles cíveis das cidades, como o de 7 de setembro.
Nesse caso, o público fica em pé na rua assistindo, o que também acontecia antigamente nos
desfiles carnavalescos. Em São Paulo, por exemplo, pontos conhecidos de desfiles carnava-
lescos foram a avenida Tiradentes e a avenida São João. Nesta última, até hoje, acontecem
desfiles de blocos carnavalescos e escolas de grupos menores, os chamados grupos de acesso.
Vale lembrar também que os blocos (que possuem estrutura parecida a uma escola de samba,
porém menor) participam de uma avaliação classificatória, podendo mudar de grupo. Há tam-
bém outros blocos de rua pela cidade que não seguem o modelo de uma escola e podem desfi-
lar ao som de outros estilos musicais. Os Blocos com o formato de escola representam suas
comunidades e mantém tradições, valores e significados.
Apesar dos Blocos carnavalescos serem mais conhecidos atualmente, não podemos
esquecer das agremiações que deram origem às escolas atuais, como o cordão, como já ante-
riormente citado. Estes, eram formados por um grupo de foliões mascarados acompanhados
por um conjunto de sopros e percussão conduzido por um mestre que utilizava um apito. Esse
novo formato de grupo era relativamente pequeno e tinha como base núcleos familiares, como
aponta Osvaldinho da Cuíca:
66
O cordão mais conhecido em São Paulo, por ser reconhecido como o primeiro a se es-
tabelecer na cidade, foi o Grupo Barra Funda, formado em 1913 (e com fundação em 12 de
março de 1914). Diferentemente do Rio de Janeiro, os cordões em São Paulo utilizavam o
chamado baliza, já existente nas bandas e fanfarras de música com a mesma formação ins-
trumental – sopros e percussão. O baliza fazia coreografias e brincadeiras com o público, rea-
lizando uma espécie de abertura para todos os outros participantes que se apresentariam du-
rante o desfile. O baliza é considerado, por relevantes sambistas e estudiosos do tema, a ori-
gem da conhecida comissão de frente das escolas atuais. Na verdade, o que ocorre é que inici-
almente haviam diferenças entre Rio e São Paulo e posteriormente houve reprodução do mo-
delo carioca até os dias atuais. O chamado samba rural é uma marca característica em São
Paulo e, segundo alguns sambistas de gerações mais anteriores, pode ser menos evidenciado
em relação ao modelo do desfile carioca adotado.
Um dos grandes precursores do carnaval paulistano foi Dionísio Barbosa, fundador do
Grupo Barra Funda – o primeiro cordão da cidade. Ele era compositor, pandeirista e remode-
lou as marchas do carnaval carioca ao seu estilo.
Como em toda a história do negro no Brasil, as reuniões e os batuques eram objeto
de frequentes perseguições policiais e de antipatia por parte das autoridades brancas.
Assim se destacou a liderança do negro Dionísio Barbosa, pois fundou o primeiro
cordão carnavalesco em São Paulo, num tempo em que para sair às ruas era preciso
muita fibra. (CARVALHO, p. 86, 2009 apud MORAES, 1978).
Segundo o relato acima, observamos, mais uma vez, que os autores reforçam uma
maior participação de descendentes afro-brasileiros como precursores das escolas de samba.
Crecibeni (2000) reforça a presença dos negros nos cordões e também relata alguns elementos
estruturais desse tipo de agremiação, que seriam substituídos por outros nas futuras escolas:
Formados pelos negros e pelas camadas mais pobres da população, adotando um
desfile em forma de procissão durante suas andanças pela cidade, não tinham enre-
do, apenas um tema, e desfilavam com abre alas, balizas, porta-estandarte, rei, rai-
nha, um grupo feminino e ao som de conjuntos instrumentais de corda e sopro e ao
ritmo do batuque quando paravam. Com predomínio de instrumentos pesados, foram
certamente os antepassados das Escolas de samba. Alguns relatos dão conta de que
os grupos desfilavam com animação, até encontrar um grupo rival, quando então era
travada violenta pancadaria. (CRECIBENI, 2000, p. 20)
Outro fato que corrobora com a tese de que as escolas se originaram dos cordões é a
existência do cordão carnavalesco Vai-Vai (fundado na década de 1930) que deu origem à
escola homônima no bairro do Bixiga. Do mesmo modo, temos o Grupo Barra Funda, que
coexiste no GRCSES Camisa Verde e Branco no bairro Barra Funda.
A partir da mistura de elementos existentes nos grupos relatados, temos a origem das
escolas de samba em núcleos familiares permeados pela herança cultural ancestral. Esses sa-
67
Interessante destacar que essa relação e respeito pelo núcleo familiar, característica da
cultura popular, também se mostra bastante presente nos ritos afro-brasileiros, entre eles o
candomblé, já que os ensinamentos são normalmente passados de pai para filho. No caso da
Casa de Angola Kyloatala, por exemplo, Tata Kilonderu se orgulha muito em falar que ele foi
escolhido para levar o nome de sua família, sendo o sucessor de sua mãe: Mameto Vanda
Pereira dos Santos (Bandadeloyo) – fundadora do Inzo Kyloatala, sacerdotisa responsável por
iniciar toda a família. Muitos outros irmãos e cunhados, e inclusive a própria esposa de Ki-
londeru, possuem cargos relevantes na Casa e promovem a continuação de todo esse conhe-
cimento, o que também acontece nas escolas de samba.
Por outro lado, todo esse conhecimento sempre foi desafiado, de maneira que, mesmo
com toda essa herança cultural significativa, há uma tendência em recusá-la. Por exemplo, ao
mesmo tempo que o carnaval torna-se um negócio lucrativo, a grande mídia promove uma
história do carnaval bastante estereotipada que mascara todo o conhecimento e profundidade
dessa produção cultural permeada pelo saber ancestral afrodiaspórico. Esta visão, principal-
mente no início de surgimento das escolas, estabelece que essa cultura representa uma certa
ameaça ao controle social:
O Samba [...] (gênero musical) e, principalmente, a primeira (instituição festiva) são
produtos da década 1920 e do bairro do Estácio de Sá, uma parte da zona de obso-
lescência em torno do centro do Rio de Janeiro, habitado por imigrantes, negros,
operários, estivadores, prostitutas e malandros, moradores de cortiços, morros e fa-
velas circundantes, cujos hábitos, costumes e festividades eram desdenhados pela
elite e reprimidas pela polícia. (FERNANDES, 2012, p. 2)
Tinhorão (1991) aponta uma provável época para o surgimento dos sambas enredo e
68
seus objetivos: “O Samba Enredo, criado pelos compositores das escolas de samba para con-
tar em versos a história escolhida como tema do desfile carnavalesco, surgiu a partir da déca-
da de 40” (TINHORÃO, 1991, p. 169). Já para Narloch (2011), esses novos sambistas, que se
autointitulavam professores (‘novos bambas do Estácio’), submeteram-se ao que ele chama de
marketing da pobreza, produzindo um novo estilo de samba em oposição a “velhos” composi-
tores como Donga, Sinhô e Pixinguinha, cujas músicas não pareciam tão brasileiras assim.
Narloch também afirma que “Apesar do desdém dos velhos compositores, o samba do Está-
cio, acompanhando o enredo das escolas, ganhou o país pelas rádios e como propaganda de
Getúlio Vargas” (NARLOCH, 2011, p. 163). Aqui, entendemos que Narloch faz uma crítica
ao projeto de Nação, determinado politicamente para aproveitar a popularidade do samba co-
mo representante de um modelo de sucesso social.
Nesde período, por ordem do governo de Getúlio Vargas, as escolas de samba (através
de seus enredos) foram utilizadas como ferramenta de exaltação que, com a intenção de evitar
a repressão por parte da polícia, ajudaram a contar uma falsa história de democracia e igual-
dade social dentro do país. Atualmente, os sambas enredo ainda são utilizados para se contar
uma história idealizada sobre determinado tema, em troca de apoio financeiro de alguns pa-
trocinadores. Nesse processo, observamos várias transformações e interferências em caracte-
rísticas identitárias nas escolas, que se submetem às escolhas daqueles que nelas investem, o
que gera um outro ciclo vicioso de dependência mútua e direciona as escolas para outros inte-
resses e objetivos, com base na ideia de existência de um certo poder paralelo ilusório.
Antes dessas transformações, como já citamos acima, os Blocos e escolas coexistiram
sem problemas até 1934, o que teria contribuído para a uma maior aceitação por parte do po-
der público:
69
utilizar elementos da própria opressão social nos enredos e desfiles. Nesse momento, o samba
teria sido melhor aceito, espalhando-se pelas cidades com um maior alcance, dentro dessa
estratégia de parceria com a imposição de controle e segurança social. Teriam então surgido
novos agrupamentos que se estruturavam pouco a pouco, desenvolvendo temas, e apresentan-
do-os pelas ruas do Rio de Janeiro, com controle e organização reconhecidos pelos órgãos
federais. É relatado, por filhos de sambistas da época, que essa prática tinha o objetivo de
legalizar estas agrupações junto à polícia. A própria utilização de termos como “Social” e
“Cultural” no nome das agremiações, deriva-se desse “reconhecimento”, uma tentativa de
mostrar a importância destes locais como formadores da sociedade.
É por isso que, de forma geral, as escolas têm em seus nomes oficiais siglas incluindo
essas letras – “S” e “C”: GRCSES – Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba
Camisa Verde e Branco, GRCSES – Grêmio Recreativo, Cultural e Social Escola de Samba
Nenê de Vila Matilde, GRCSES – Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba Ro-
sas de Ouro e o GRCSES – Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba Império de
Casa Verde. Ou seja, tudo isso colaborava, e ainda colabora, para uma maior aceitação das
escolas pelo poder público. A própria valorização de enredos patrióticos nos desfiles, discuti-
da acima, resultou em patrocínios para os concursos oficiais de desfiles de escolas de samba
de 1943 a 1945.
Como decorrência desse processo de evolução do carnaval em parceria com o poder
público, o que era considerado como uma possível variação de Bloco de rua começou a se
determinar como evento da cidade, já com a utilização do termo escola de samba no ano de
1932, no primeiro desfile de escolas com a participação de 19 grupos. Em 1935, três anos
depois, ocorreu a legalização das escolas de samba e a oficialização dos desfiles. A partir des-
te período, o carnaval cresceu e começou, de forma progressiva, a representar cada vez mais a
cultura brasileira, tanto dentro como fora do país. Em decorrência desse crescimento, as esco-
las de samba tiveram um aumento relevante do número de componentes:
Foi pois quando o número de componentes das Escolas começou a crescer, no início
da década de 30 era de oitenta a cem figurantes, permitindo melhor aproveitamento
teatral do enredo pela multiplicação das alas, no final da década de 40 algumas Es-
colas já desfilavam com cerca de quinhentas pessoas. (TINHORÃO, 1991, p. 175)
70
o centro da cidade, onde permaneceram até meados da década de 1970. Com a urbanização da
cidade e a influência da mídia, principalmente da TV, as escolas de samba ganharam nova
dimensão e em 1978 os desfiles passaram a acontecer na Avenida Marquês de Sapucaí. O
famoso sambódromo, onde atualmente ocorrem os desfiles, foi construído somente em 1984.
Na cidade de São Paulo, os desfiles acontecem no sambódromo do Anhembi, importante local
para a apresentação desse formato turístico de carnaval.
Atualmente, há uma série de discussões sobre onde chegou o carnaval, comercialmen-
te falando, e o que é entendido como positivo ou negativo nesse processo evolutivo. Chega-
mos então, em nossa discussão, na problemática entre evolução e tradição, pois após o que foi
estabelecido nos sambódromos, temos um carnaval que o mundo inteiro conhece da seguinte
maneira: escolas enormes, com mais de 4 mil componentes divididos entre muitas alas, com
destaque para a bateria e outros setores. Porém, pouco se discute a respeito das tensões exis-
tentes em todo este processo. Os núcleos coletivos, que fazem sentido para as populações
afrodescendentes e demais interessados, surgem de maneira espontânea e envolvem momen-
tos de tensão e de luta, conflitos amplamente discutidos no Capítulo I, necessários em nego-
ciações ocasionadas pelo movimento da diáspora, suas reconexões, recusas e até transforma-
ções – compreendidas aqui como estratégia de sobrevivência para muitos indivíduos que, em
geral, são vistos apenas como formadores de núcleos de entretenimento.
Considerar qualquer escola de samba e sua população, assim como os terreiros, como
locais de convívio inconsciente, no sentido do não reconhecimento de suas forças políticas e
sociais, ao nosso ver, é um erro ou uma depreciação proposital com outros fins, normalmente
o de dominação de um grupo sobre outro. Vejamos, a seguir, o que nos traz Moraes (1978),
relevante pesquisador no contexto das escolas de samba sobre a importância e relação entre os
terreiros e estas agremiações: “As escolas de samba, tal como a umbanda, são núcleos de in-
tegração social e racial, podemos deduzir que nelas os aspectos da cultura espontânea são
predominantes” (MORAES, 1978, p.145).
É importante lembrar que esse processo de transformação das características das esco-
las, em especial o aumento do número de integrantes, ocorre até os dias de hoje, e também de
forma rotativa, havendo bastante circulação de pessoas novas. Porém, as alas das escolas con-
sideradas como identitárias – ala das baianas e bateria –, apesar de também sofrerem com
essas mudanças, preservam a maioria de seus integrantes. Ou seja, justamente as alas que pos-
suem maior conexão com o candomblé. No caso da ala das baianas, por conta da relação iden-
titária e histórica com a escola e, no caso da bateria, pelas várias conexões musicais de ele-
71
3. 2 Instrumentos
3.2.1 As caixas: caixa em cima, caixa vazada, caixa com talabarte de 14”, tarol e malacaxeta
Além dos instrumentos da bateria que tratamos amplamente neste trabalho (repinique,
surdos, tamborim, entre outros), destacamos aqui uma seção especial, assim como fizemos
com o capítulo anterior com diversos outros instrumentos menos conhecidos e “encaixados”
em seções específicas no candomblé.
As caixas em cima são assim denominadas por serem tocadas sem o talabarte e próxi-
mo ao ombro do ritmista. Estas caixas possuem 3 variantes – malacachetas, vazadas ou tarol.
Apenas a malacaxetas vazadas ou tradicionais podem também ser utilizadas com talabarte.
Dessa forma, definimos caixas em cima como uma seção específica na bateria, independente
do instrumento utilizado. Estes instrumentos apresentam características específicas individu-
ais, naquilo que se refere a: a) técnica, b) afinação, c) sonoridade, d) postura e e) materiais –
baquetas e talabartes. Estes aspectos são representativos das conexões abordadas na totalidade
deste trabalho. Portanto, tornou-se elemento fundamental para a compreensão do nosso objeto
central. Um dos fatos observados a respeito deste naipe, por exemplo, resulta da circularidade
dos saberes trazidos pelos indivíduos que frequentam os terreiros e as baterias. Ou seja, a pró-
pria concepção do ritmo como fenômeno multidimensional, que fundamenta-se a partir de
possibilidades polifônicas e polirrítmicas resultante de timbres e sonoridades diversas, de-
monstra uma concepção musical ampliada oriunda da diáspora, já que isso ocorria original-
mente nos conjuntos percussivos africanos e chegou no Brasil pela migração escravagista. As
72
combinações realizadas pelas funções de cada naipe e suas complexidades, apresentam a es-
sência dessas influências e do processo transitório cultural estrutural no Brasil.
A partir dos apontamentos de Tinhorão (1991), Osvaldinho da Cuíca, e muitos outros
nomes relevantes do contexto, notamos que a caixa é considerada como uma espécie de ins-
trumento coringa no naipe de percussão, por representar fundamentos técnicos que permitem
a transição técnica e aplicabilidade para muitos outros instrumentos, tanto dentro como fora
do contexto do samba.
Para Rafael Galante27 (2015), na diáspora havia diversas embaixadas africanas que
apresentavam esse tipo de instrumento, o que nos leva a considerar que haveriam duas possi-
bilidades de surgimento e absorção deste instrumento nas formações das baterias – origem
europeia e origem africana. Nesse ponto, como é argumentado neste trabalho, acreditamos
que possa ter ocorrido um certo apagamento dessa segunda influência diaspórica, assim como
complexos pontos de transição.
Este instrumento foi amplamente utilizado nos cordões carnavalescos em suas mar-
chas – estilo herdado da tradição europeia militar. Posteriormente, essa utilização se estendeu
a diversas bandas (civis) com formação instrumental de sopros e percussão, o que, de acordo
com o tempo, foi se modificando. Essas modificações resultaram em novas técnicas, células
rítmicas idiomáticas e afinações, algo facilmente perceptível na conhecida levada de caixa em
cima implantada na década de 1970 por Mestre Louro (Lourival de Souza Serra), no Salguei-
ro. Atualmente, ocorre uma fusão dessa levada – considerada uma marcha – com elementos
do arrebate e do alujá de Xangô – toques utilizados no candomblé. Detalharemos isso mais
adiante, a partir de informações coletadas em entrevistas, de transcrições musicais desses to-
ques em formato de partitura e da análise musical de elementos em comum.
Há narrativas populares que são utilizadas para determinar as características da caixa
em cima, algo que, técnica e fisicamente, é considerado algo muito diferente, a ponto de pro-
vocar estranhamento de vários percussionistas, algo já superado pelos ritmistas. Nesse senti-
do, ocorre justamente o contrário atualmente. Ou seja, os ritmistas preferem utilizar as caixas
em cima por conta de uma maior possibilidade de projeção sonora, assim como de uma maior
possibilidade de movimentação do ritmista durante o desfile. Sendo assim, o ritmista que se
acostumou a tocar as caixas em cima não quer mais utilizar caixas com talabarte, por exem-
plo. A história contada por alguns sambistas, como Osvaldinho da Cuíca e Junior Silva, refe-
re-se à possível origem da posição do instrumento:
27
Curso ministrado pelo autor. A diáspora centro africana e a formação das musicalidades afro-brasileiras
(Sécs. XVI-XIX). Instituto de Artes da UNESP. Março a Abril de 2019.
73
Antigamente a turma utilizava este recurso por um simples motivo. Alguns ritmistas,
quando saíam do sistema carcerário, voltavam para suas escolas de samba, princi-
palmente no período de festas de ano novo e carnaval. O que ocorria é que, para es-
conder o rosto que ficava à mostra, quando o ritmista estava em exibição [perfor-
mance], eles colocavam a caixa na frente e, para fazer isso, precisavam deixar o ins-
trumento próximo à cabeça. Dessa forma, o corpo [do instrumento] serviria de es-
conderijo perante a justiça (CUÍCA, Osvaldinho da. 18/07/2017. Residência do en-
trevistado no bairro do Ipiranga, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y
Castro.)
Para Junior Silva (diretor de bateria do GRCSES Império de Casa Verde), o contexto
das rotinas de ensaio de uma bateria, poderia tranquilamente ter dado origem a esta história da
caixa em cima.
É, a rapaziada [os presos] participa. Não é de hoje! Sempre foi assim. Onde tem ba-
teria, o povo chega. Faz parte da história. As escolas surgiram com o objetivo de
atender o povo. É bem provável que esta história da caixa seja verdade, pois sempre
a rapaziada encostou. Cada um com sua dificuldade, dependendo do procedimento,
pode participar da bateria (SILVA, Junior. 10/02/2017. Quadra do GRCSES Impé-
rio de Casa Verde, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
74
Figura 6 - Mestre de bateria Zoinho (Robson Campos), do GRCSES Império de Casa Verde, tocando
caixa em cima
Ouvimos sobre essa prática muitas vezes, e também a vivenciamos no ano de 1997.
No dia do desfile de uma conhecida agremiação de São Paulo, fomos surpreendidos pela falta
de nossa fantasia, o que, a princípio, não poderia ocorrer, pois estávamos programados para
desfilar.
75
Outro fato que também poder ter contribuído para o surgimento das caixas em cima, é
o de que quando os ritmistas que saem da cadeia desfilam, muitas vezes o fazem com a fanta-
sia incompleta nas partes de cima do corpo, utilizando o instrumento também para esconder
esse problema. Isso pode ocorrer tanto em grupos de menor destaque, como os chamados “de
acesso”, como também em escolas mal administradas. Ouvimos narrativas de vários casos
ocorridos em São Paulo. Por outro lado, para Dennys Silva, há uma concepção musical muito
bem resolvida em relação a esse instrumento, o que o leva a acreditar em outra possibilidade
do surgimento da caixa em cima:
De tempo em tempo, alguém tenta desenvolver uma melhor sonoridade e volume de
som (intensidade). As caixas em cima soam mais pelo fato de não estarem presas à
cintura do ritmista e serem abafadas pela própria fantasia, o que tira o som do ins-
trumento. É por isso que hoje em dia vemos mais caixas em cima do que caixas com
talabarte. (SILVA, Dennys. 03/08/2020. Quadra do GRCSES Império de Casa Ver-
de, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
76
mente por esse motivo. Apesar disso ocorrer com todos os instrumentos, no caso específico
das caixas há um ciclo maior da chamada frase rítmico-melódica da levada, que ofereceria
mais possibilidades de variação, por exemplo. Mesmo assim, para que um padrão, técnica ou
materiais utilizados possam ser modificados, há uma série de possibilidades relacionadas a
elementos como: a) talabarte (com ou sem), b) baquetas, c) afinações e d) posicionamento do
ritmista com o instrumento, entre outros. Observamos que, nas caixas, essas diferenças tam-
bém promovem diversas possibilidades sonoras e troca de timbres, realizadas através das
combinações dos arranjos e levadas, como quando as escolas utilizam duas vozes rítmicas: as
caixas em cima e as caixas com talabarte. A resultante sonora dessa combinação, que varia
entre as escolas, proporciona complexidades e níveis de desenvolvimento musical resultantes
do que se produz nestas formações. Nesse sentido, as caixas proporcionam novas possibilida-
des em fluxo contínuo. Os Mestres, constantemente, modificam as combinações, trocando
tipos de instrumentos que variam dentro dessas quatro possibilidades. Uma característica co-
mum é utilizar caixas de 14” com a levada da Vila Isabel (semicolcheias com acentos no 1 e
no 4), e um outro tipo de caixa com um padrão mais identitário, caso do tarol do Salgueiro.
28
Desfile do extinto GRCSES Império do Cambuci na Carnaval de São Paulo no ano de 1995. escola histórica
referencial no surgimento das primeiras escolas de samba nesta cidade.
77
As caixas de 14” são caixas comuns, como as utilizadas por bateristas, e possuem uma
sonoridade mais grave e cheia, exatamente pelo tamanho e afinação referencial utilizada pelos
mestres. Dessa forma, uma outra característica identificada no pensamento dos mestres, den-
tro destas combinações, é justamente a da afinação. Ou seja, sempre que existirem duas vozes
de caixa, a caixa em cima apresentará uma sonoridade mais estridente, sendo mais aguda e
com um timbre quase metálico. Enquanto isso, as caixas de 14” apresentarão uma sonoridade
mais grave, pelo fato de serem entendidas como preenchimento na subdivisão, permitindo
assim maior sustentação para a concepção polirrítmica entre todos os instrumentos do naipe e
entre todos os naipes.
É uma prática comum entre os mestres de bateria utilizar percussionistas neste naipe.
Nesse sentido, entende-se que o músico percussionista, mesmo sem fazer parte do contexto do
samba, pode contribuir no preenchimento das vagas dessas formações, tendo em vista que
aspectos técnicos de outras linguagens musicais (orquestral, bateria) também sejam utilizados,
complementando as necessidades diversas do naipe e portanto de toda a bateria. É mais co-
mum encontrar músicos interessados em participar das baterias que começam neste naipe,
essencialmente nas caixas de maior preenchimento (levada da Vila Isabel).
As caixas vazadas – sem o casco –, foram pensadas para oferecer, além de maior leve-
za para a execução e performance do ritmista, outra sonoridade mais “gritada”. Sendo assim,
haveria maiores possibilidades ainda de variações timbrísticas e sonoras em todo o conjunto.
Para Dennys Silva, não é possível trabalhar com possibilidades de afinações diferentes nas
caixas vazadas. O motivo se dá pelo fato de este instrumento apresentar uma sonoridade, co-
mo dissemos, muito estridente, quase soando como um instrumento metálico e, portanto, com
menor possibilidade de variações de níveis de tensão na pele, já que ele não possui a caixa
acústica convencional que permite que o corpo reverbere e emita uma sonoridade mais
“cheia”:
Eu já tentei várias vezes afinar as caixas vazadas. Desisti, porque não é possível.
Você afina, afina, e não chega em uma frequência médio-grave dentro das possibili-
dades que são comuns com as outras caixas. Desisti! Prefiro sempre tocar e trabalhar
em direções de gravações, ou qualquer projeto com bateria, com as caixas comuns,
aquelas com o casco. Também me acostumei com as caixas em cima, dá muito mais
agilidade. Eu e Zoinho só tocamos assim, e muitos outros também. Dá para tirar on-
da de verdade, você fica solto na avenida. Nesse sentido, isso contribui até para o
quesito de julgamento evolução. Você conduz o grupo solto. (SILVA, Dennys.
20/10/2020. Estudio Mosh, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
78
Figura 8 - Hugo Santana e Klemen tocando caixa vazada em dia de ensaio técnico do GRCSES Império de Casa
Verde
79
É fato que desde a formação das primeiras Escolas, houve uma conexão direta destas
com os terreiros30; algo apontado por Nei Lopes, importante autor e sambista que critica o uso
do termo “quadra” para o espaço de atividades das Escolas de samba, observando que este é
mais apropriado para locais de práticas desportivas31. Ou seja, desde os primórdios, havia,
num mesmo ambiente, espaços próximos onde os orixás eram cultuados, sendo que o terreiro
sempre serviu para a realização de diferentes manifestações, incluindo ensaios. Ainda hoje,
dentro de algumas agremiações, notamos a existência destes espaços sagrados nos quais po-
demos encontrar orixás32 guardiões, representantes e protetores dessas comunidades. Na cida-
de de São Paulo, por exemplo, a pesquisa apontou que metade das escolas do Grupo Especial
possuía esse tipo de espaço. Observamos também a representatividade destas conexões na ala
das baianas. Outro fato marcante é a abertura do carnaval no sambódromo pelas Tias baianas,
objetivando a proteção e a preparação do local para o grande ritual. Vejamos uma publicação
do portal G1 da Globo, intitulado Baianas e Mães de Santo Fazem Lavagem do Sambódromo,
sobre esta prática que demonstra parte desta circularidade cultural entre os terreiros e as Esco-
las:
O público começou a chegar no Sambódromo por volta das 18h. Para abrir o evento,
baianas e mães de santo realizaram a tradicional lavagem da Marquês de Sapucaí. O
ritual de purificação pede a proteção dos orixás para o carnaval. Baianas de várias
escolas e mães de santo jogaram água de cheiro na avenida. O cortejo contou tam-
bém com a imagem de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro. O ritual serve pa-
ra trazer boas energias para todos os sambistas, escolas e o público33. (SAMBÓ-
DROMO..., 2020)
Do mesmo modo, outro costume que antecede o desfile é a passagem dos chamados
Blocos Afros Afirmativos de Afoxé, que desfilam na avenida do samba ao toque do Ijexá –
29
Parte deste capitulo também foi publicado no decorrer desta pesquisa por: CASTRO, Rafael Y; STASI, Car-
los. A utilização de elementos musicais estruturais do candomblé na preparação e performance das baterias de
escolas de samba para o carnaval. InterFACES, 30(1), 67-81. Disponível
em: https://revistas.ufrj.br/index.php/interfaces/article/view/39691. Rio de Janeiro, 2020.
30
Locais sagrados, com chão de terra, onde acontecem as manifestações religiosas de matriz africana, muito
utilizado também para danças e festas.
31
Depoimento extraído da gravação do Programa Ensaio da TV Cultura (Fundação Padre Anchieta), no ano de
1999. As músicas e entrevistas desta apresentação, foram lançadas em CD pelo selo SESC SP, no ano de 2003,
intitulado: A música brasileira deste século por seus autores – Nei Lopes. Um disco histórico referencial sobre a
compreensão de parte da abrangência da musicalidade afrobrasileira diaspórica.
32
Ancestrais africanos divinizados, trazidos pelos escravos e cultuados em religiões formadas pela diáspora.
80
Figura 9 - Flyer de divulgação da abertura da segunda noite do desfile carnavalesco em São Paulo
81
em 1885 na Bahia, com o grupo chamado ‘Embaixada da África’, possuem por ca-
racterísticas as roupas africanas, que geralmente trazem as cores dos orixás, os cân-
ticos em língua yorubá e os instrumentos de percussão, como atabaques, xequerés,
agogôs etc. Os ritmos das cantigas entoadas e da dança são os mesmos daqueles rea-
lizados nos terreiros. Assim, por carregarem todo esse caráter místico e também re-
ligioso se distinguem dos blocos carnavalescos. Além disso, o Afoxé possui um ca-
ráter especial de luta e resistência contra o racismo e a discriminação racial e religio-
sa. (CASA.. .34, 2020. Facebook.)
Portanto, além de toda a carga cultural trazida pelos afoxés para as Escolas, eles se
tornam um elemento transitório daquilo que se produz, em aspectos gerais, dos terreiros para
o sambódromo. Seria assim, mais uma importante manifestação cultural com as mesmas pre-
ocupações que a dos terreiros e as Escolas de samba – luta e resistência contra o racismo e
preconceito religioso. Esse processo se dá através daquilo que se constrói com a percussão
nestes locais. Ou seja, a música representa um ponto de partida que, através da performance,
carrega questões sociais existenciais para seus praticantes, ou grande parte deles. Ao mesmo
tempo, as Escolas possuem a função de dar voz àquelas outras instituições – terreiros e afoxés
– de maneira a divulgar a importância dessa herança.
Observamos também que no esquenta – período anterior ao desfile da primeira noite
de carnaval no ano de 2020 –, ouvimos atentamente muitos intérpretes de Escolas paulistanas
puxarem cantigas de terreiros como forma de reverência aos Orixás, mostrando as mesmas
preocupações e funções dos afoxés no período pré-desfile. Quando estávamos na formação da
bateria da Escola de samba Império de Casa Verde observamos esta prática – de cantar canti-
gas para os Orixás no esquenta – em várias Escolas como o GRCSES Acadêmicos do Tatuapé
– Escola de forte representatividade da cultura afroreligiosa diaspórica –, no GRCSES Barro-
ca Zona Sul, no Unidos do Peruche, na Mocidade Alegre, entre outras. Esta prática nos reme-
te fortemente ao reconhecimento estrutural desta cultura amalgamada no desfile.
A partir desse ponto de vista, defendemos a conexão entre o grande ritual de um desfi-
le com o xirê dos terreiros – festas com roteiros performáticos pré-definidos, representantes
da cultura afrodiaspórica e suas peculiaridades, como a tríade ritmo, voz e movimento. As
Escolas seriam, segundo nosso ponto de vista, extensões dos terreiros. Apesar de termos al-
guns avanços no processo de reconhecimento da religiosidade de matriz afro no Brasil, as
Escolas ainda cedem a um apelo mais midiático, por serem instituições mais facilmente reco-
nhecidas popularmente pela população.
Muito do que é construído musicalmente nas baterias parte dessa inter-relação com
elementos que foram trazidos pela diáspora ao Brasil, seja: a) na performance de uma bateria
34
Relato extraído de página do Facebook. 22/02/2020. Casa de Oxumaré Disponível em:
https://www.facebook.com/casadeoxumare/.
82
Show, b) em um breque (convenção rítmica estabelecida entre diferentes naipes de uma bate-
ria) construído para os arranjos de determinado samba enredo do ano, c) em padrões escolhi-
dos para determinada levada35 de cada Escola, ou d) nas variações e formas de executar cada
instrumento. Nas baterias, algumas características dos mestres, ritmistas e diretores, bem co-
mo a sonoridade reproduzida pelos grupos dirigidos, também poderiam ser reconhecidos co-
mo reflexos daquilo que aqui chamamos de etnicidade.
Nesse sentido, a diferenciação entre as baterias se dá, por exemplo, pela utilização de
apelidos que tentam expressar características próprias destes grupos. Estes apelidos são utili-
zados com orgulho por pessoas pertencentes a esses grupos e também são validados por pes-
soas de fora, seja por sambistas ou por parte da sociedade. Ou seja, todas as baterias são ape-
lidadas, no sentido de reforçar diferenças e características próprias. Os momentos mais impor-
tantes nos quais isto pode ser visualizado são as festas de Bateria. Nessas festas, as sonorida-
des e diferenças ficam mais expostas e o grau da etnicidade – ligação maior com a tradição ou
herança negra – fica evidente.
A presença étnica negra é bastante significativa na formação da chamada equipe técni-
ca das baterias – diretores e mestre –, assim como no conjunto de ritmistas e no grupo de dan-
çarinas que representam cada bateria – rainhas, princesas e musas. A importância da etnicida-
de dentro de alguns grupos foi observada em vários momentos de nossas pesquisas de campo,
já que o reconhecimento de uma sonoridade como parte de um coletivo oferece um sentido de
pertencimento para as pessoas que participam dos terreiros e das baterias. O conceito de etni-
cidade, trazido por Béhague (1994), estabelece-se pelo reconhecimento da cultura típica de
um grupo, de determinados traços herdados que, além de representarem a própria herança,
também se reconectam em uma nova identidade, esta utilizada como parte de uma referência
do próprio coletivo.
Trata-se então de uma cultura trazida por diversas etnias que, ressignificadas em um
outro lugar com inúmeras influências, continuam associadas ao reconhecimento cultural do
grupo com sua ancestralidade ou cultura local. A atribuição de apelidos para determinadas
baterias, nos pareceu fixar parte do que é entendido por etnicidade, já que a sonoridade destas
são identitárias e reconhecidas como representantes culturais de determinadas comunidades.
Alguns desses apelidos funcionam como estratégias de diferenciação, em busca de uma marca
própria fixa, de uma cultura herdada e readaptada no local de chegada. Ao mesmo tempo, eles
proporcionam, para seus envolvidos, um reconhecimento cultural próprio.
35
Padrão rítmico reconhecido como elemento identitário de um idioma musical.
83
36
Ver: https://www.significados.com.br/etnia/
84
Sabemos que em uma Escola de samba, segundo alguns sambistas, o que importa é a
mistura de todos. As Escolas deveriam, desde a sua origem, representar o encontro de todos
os povos, independente de qualquer fator étnico e racial. Percebemos que isso de fato ocorre,
porém, o que se mantém como estrutura musical, apesar da mistura com tantos imigrantes no
Brasil, tem como base fundamental aquilo trazido pela diáspora negra. Outras questões, como
o embranquecimento ou tentativa de dominação de brancos nas direções da maioria das esco-
las em São Paulo, apontam que estes são locais de disputa de poder. No candomblé também
há, cada vez mais, a participação de brancos como integrantes, filhos de santo. Estes locais
são vistos como pontos de tensão, uma problemática trazida por autores como Hall (2007),
Brubaker (2005) e Moore (2012). Este último considera o movimento da diáspora e sua tenta-
tiva de reconquista de locais sociais, o que, em algum momento, se choca com outros interes-
ses, como aqueles já dominados por outros povos politicamente:
(...) diáspora negra é frequentemente caracterizada pelo hibridismo e enfatiza a ten-
são na literatura existente entre as maneiras com que a música pode servir para man-
ter as fronteiras sociais através da identificação com determinadas comunidades.
(MOORE, 2012, p. 310-311)
Vejamos alguns exemplos daquilo que aqui estabelecemos como etnicidade em algu-
mas baterias:
- A bateria da Mangueira é conhecida por ‘Surdo Um’ – característica única des-
ta Escola, o que representa certa identidade e etnicidade.
- ‘Não existe mais quente’, é um jargão utilizado para a bateria do mestre André
– GRCSES Mocidade Independente de Padre Miguel –, eternizado na voz da cantora El-
za Soares (escolhida como enredo desta Escola em 2020). Ele representa a força da sono-
ridade desta bateria em relação ao balanço, criatividade e identidade sonora nas caixas,
que é uma marca reconhecida como fator que a diferencia das outras.
- ‘Ritmo Puro’ é o apelido dado à bateria de mestre Sombra – Mocidade Alegre
–, e faz referência à qualidade e preocupação com a execução do ritmo dentro da lingua-
gem do samba, uma das preocupações centrais de mestres de gerações mais antigas, já
que atualmente existe uma crítica aos trabalhos com baterias mais performáticas e com
excesso de breques, portanto com menor preocupação com a essência do ritmo – função
central de uma bateria em um desfile carnavalesco.
- ‘Barcelona do Samba’ é o apelido dado à bateria do Império de Casa Verde,
sob os cuidados de mestre Zoinho. Esse apelido é bastante reconhecido entre os sambistas
em São Paulo, após a excelência de gestão e resultados dessa bateria nos carnavais paulis-
tanos. Fazemos até uma crítica que remete a um possível eurocentrismo, já que a referên-
85
37
Músicos do Candomblé que atuam na formação do conjunto musical do rito onde acontece a relação com a
dança e as divindades. Podem tocar agogô (gã) ou atabaques, e também precisam saber os cantos.
38
Momento do ritual do Candomblé onde há o movimento da dança em roda entre os participantes.
86
padrão carreteiro é ensinado se assemelha, por exemplo, àquela pela qual alguns músicos
Ewes de Gana ensinam instrumentos como o sogo, kidi e kaganu em danças como Atsia Cir-
cular.
Neste contexto, o ensino de alguns padrões se dá sem qualquer conhecimento do local
onde o mesmo deverá ser executado dentro do ciclo completo do padrão básico do gankogui39
– tipo de agogô que também tem a mesma função de manutenção da chamada timeline ou
clave, que serve como referência básica para todos os outros instrumentos da agrupação. Ao
aprender, por exemplo, o padrão a ser executado no tambor mais agudo – kaganu (mais está-
vel no sentido de manter sempre o mesmo ritmo sem variações, assim como os instrumentos
do candomblé – quanto mais agudo menor a variação e quanto mais grave maior o poder de
variação e improvisação), o músico é levado a crer que a primeira batida do padrão tem um
sentido de apoio, sustentação, já que o timeline não lhe é, a princípio, apresentado.
Utilizamos abaixo uma notação gráfica para que o leitor não músico possa compreen-
der melhor nossa discussão:
123 123 123 123
00– 00– 00– 00–
DE DE DE DE
Porém, quando o músico é convidado a tocar este padrão dentro do ciclo tocado pelo
gankogui percebe que, na verdade, aquilo que lhe foi ensinado como “um”, como a “cabeça
do ritmo”, ocorre na segunda nota de cada tempo. Sendo assim, no compasso de 12/8 deste
ciclo, essas “primeiras notas” do kaganu são tocadas, na verdade, na segunda, quinta, oitava e
décima primeira notas do ciclo.
39
Notamos a enorme proximidade entre os termos gã e gankogui, nomes dados ao tipo de agogô do candomblé e
da música ewe respectivamente.
87
O que permite ao músico reconhecer o local correto deste tipo de “encaixe” é justa-
mente o ponto no qual ele é ensinado a começar a execução de seu padrão, nunca a partir da
segunda nota, mas somente na quinta, onde ocorre a repetição de duas notas agudas do gan-
kogui. Uma vez iniciado, ele prossegue repetindo o padrão completo.
12 / 8 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 | 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Gankogui ¢ – u – u u – u – u – u | ¢ – u – u u – u – u – u
Kaganu – – – – 0 0 – 0 0 – 0 0 | – 0 0 – 0 0 – 0 0 – 0 0
é é
Início do padrão
- único local do ciclo onde duas notas são tocadas juntas
88
Fig. 4: Ritmo básico do tamborim, conforme ensinado na Escolinha de Samba de Vila Maria
ou
1 2 3 4 | 1 2 34 | 1 2 3 4 | 1 2 3 4 |
êêêé êêêé êêêé êêêé
Fig. 5: Carreteiro – ritmo básico do tamborim, em notas sequenciais regulares, executado no samba
ou
1 2 34 | 1 2 3 4 | 1 2 3 4 | 1 2 3 4 |
êêéê êêéê êêéê êêéê
É interessante observar, assim como no caso da música ewe, que essa forma de ensi-
namento faz com que os padrões sejam executados e sentidos de maneira extremamente di-
versificada. No caso do ciclo de doze notas do gankogui, por exemplo, se o músico pensar em
subdividir cada tempo em três e tocar na segunda e terceira notas, ele automaticamente perde-
rá o sentido do padrão, visto que estará pensando o primeiro tempo como uma pausa e a se-
gunda e terceira notas como tempos mais fracos. Nada mais equivocado, visto que isso esta-
89
belece uma relação completamente distante da questão idiomática deste tipo de música – que
o sentido de “um” seja simplesmente acoplado sobre uma das notas do gankogui, sem qual-
quer subdivisão do padrão como se faz na música ocidental em geral, com um tempo forte e
outros mais fracos condicionados a ele.
Forma equivocada de se pensar um “tempo forte” para a execução do kaganu (indicado em negrito)
Notamos assim que a conhecida polirritmia já apontada por diversos autores, entre eles
Simha Arom, nos mostra certa simbiose entre elementos musicais estruturais vindos da África
e que são ainda mantidos de maneira a garantir o reconhecimento da identidade desses ritmis-
tas afrodescendentes.
90
Figura 10 - Imagem de Cristo na cor preta com elementos do Orixá Oxalá como o Pachorô na mão di-
reita e filhos de santo representados em passistas
Fonte: Extraonline40.
40
Este mesmo Tripé foi vetado pela Igreja Católica para o Carnaval de 2020 do GRCSES Estação Primeira de
Mangueira.
91
(...) experiências dos variados sujeitos históricos na compreensão das zonas de con-
tato e mediações interculturais, deixando ver que entre idas e vindas, índios e negros
recriaram costumes, renovaram e readaptaram rituais, festas e tradições na ambigui-
dade de viveres. (PACHECO, 2016)
92
Interessante notar que Germano tem uma produção totalmente voltada para a temática
da religiosidade de matriz afro em suas composições, desde sambas enredo a canções que se
baseiam estruturalmente, quase que na sua totalidade, em estruturas polirritmicas oriundas dos
atabaques, e em letras que reverenciam fortemente os orixás. Um de seus álbuns, por exem-
plo, se intitula “Ori”, termo que designa a cabeça de um filho de santo. Entendemos que esta
postura é gerada pela dificuldade em se aceitar determinadas origens, como algo que não va-
lesse a pena ser assumido. Ou seja, no caso deste compositor, apesar de utilizar-se desse co-
nhecimento, ele não tem, segundo ele mesmo, um motivo para reconhecer isso. Parece ser
também uma fala contra a importância do carnaval carioca, uma espécie de bairrismo, já que
há indícios fortíssimos da apropriação dessa influência direta das baterias e outros setores das
Escolas de samba cariocas do carnaval de São Paulo.
2) Desconhecimento ou negação da amplitude e importância da tradição oral:
Apesar de, nesses ambientes, a maioria das pessoas utilizarem a oralidade como meio
de transmissão de conhecimento, elas não estabelecem ou reconhecem a mesma como signi-
ficativa. Várias situações, no decorrer da pesquisa, mostraram essa depreciação. Quando um
músico que apresenta conhecimento e intimidade com a leitura musical, é chamado de maes-
tro, por exemplo, este termo é utilizado em reverência a um conhecimento de uma outra tradi-
ção, a da música ocidental, estabelecida popularmente como a que representa maior refina-
mento. O termo maestro é visto como superior, até com relação ao próprio mestre.
93
Desde o ano de 2019, o mestre de bateria do GRCSES Império de Casa Verde – Rob-
son Campos (mestre Zoinho) – realiza a encomenda de partituras contendo os arranjos reali-
zados em sua bateria para os sambas enredos apresentados na avenida. Essa atitude daria mai-
or peso àquilo que foi construído, e seria também uma forma de facilitar o entendimento da
construção musical para os jurados que, atualmente, apresentam formação musical na qual a
escrita e a leitura de partituras são uma exigência. Apesar de essa não ser uma prática nas ba-
terias, este mestre em específico inova no sentido de realizar uma aproximação entre o que é
realizado dentro da oralidade para a produção textual, nesse caso em notas musicais impres-
sas. Esta é uma estratégia de mestre Zoinho, vista como valorização do que é produzido a
partir da oralidade, já que a produção de todo o trabalho anual ficaria registrada como docu-
mento e também facilitaria a visualização do arranjo de sua bateria realizado para o samba
enredo. Atualmente, alguns ritmistas também buscam uma maior e melhor formação nesse
sentido.
3) Preconceito:
O preconceito é elemento central para entender alguns dos motivos de estes saberes
serem recusados por algumas pessoas, inclusive aquelas que os reproduzem. Abaixo, algumas
situações nas quais isso se dá:
a) na relação com o conhecimento presente nas religiões de matriz afro,
b) na relação com o conhecimento presente nas baterias, por estar associado ao entre-
tenimento,
c) na reprodução de conceitos dominadores de outras religiões ou culturas,
d) nas estratégias políticas (essencialmente aquelas da política atual) e
e) no conceito que estabelece que esses ambientes e pessoas atrapalham a ordem pú-
blica.
Os negros, ao mesmo tempo que são vistos como objetos idealizados pela força ou se-
xualidade, também são subestimados, como se tivessem uma capacidade intelectual menor em
relação a outros povos. Historicamente, a imagem do negro é falsa, pois não apresenta a po-
tencialidade intelectual utilizada na complexidade de todo o conhecimento estabelecido e de-
senvolvido nos terreiros e nas Escolas de samba. Vimos alguns problemas em relação à per-
seguição religiosa que estabelece dificuldades no reconhecimento cultural afro-brasileiro em
toda essa problemática.
94
Para Stuart Hall (2013), o povo sempre teve que se unir para combater a desigualdade,
de forma que o coletivo se opusesse contra uma minoria com maiores condições – o chamado
bloco do poder –, que tenta controlar toda uma situação que impõe a desigualdade, encaixan-
do pessoas em setores de acordo com o interesse hegemônico onde a cultura popular é tratada
como um problema social:
O povo versus o bloco do poder: isto em vez de “classe contra classe”, é a linha cen-
tral da contradição que polariza o terreno da cultura. A cultura popular, especialmen-
te, é organizada em torno da contradição: as forças populares versus o bloco do po-
der. Isto confere ao terreno da luta cultural sua própria especificidade. Mas o termo
“popular” – e até mesmo o sujeito coletivo ao qual ele deve se referir - “o povo” é
altamente problemático (HALL, 2013, p. 290).
95
lista consistia exatamente nisto, em dar espaço para sambistas, e novos sambistas
divulgarem seu trabalho. A retaliação acontece justamente pela cultura popular, em
especial, o samba se colocar firmemente contra as políticas antinacionais e antipovo
de Bolsonaro. Os artistas afirmam: “A EBC cometeu a maior injustiça de todos os
tempos, tirou do ar o maior Radialista do Brasil o Mestre “Adelzon Alves – O Ami-
go da Madrugada”, a alegação é que não está satisfeita com o número de SAMBIS-
TAS que estão tendo acesso a Rádio Nacional durante a madrugada para divulgar
seus trabalhos, não vamos nos calar diante da injustiça a esse ser humano que só faz
o bem para cultura do país há décadas, essa é a hora de retribuirmos tudo que o Mes-
tre tem feito por todos nós do samba e da música de forma geral, dia 10/02 próxima
segunda as 11:00 horas da manhã, vamos nos reunir em frente ao prédio da EBC na
Rua da Relação para defender a permanência do maior defensor do Samba e da Mú-
sica, essa é a hora de mostrar a nossa gratidão e nos posicionarmos perante esse ab-
surdo”. (GOVERNO... 41, 2020. Notícia)
Também há uma série de outros motivos que colaboram para a difícil clareza dessas
conexões. Estes, contribuem para a ambiguidade na compreensão final sobre o tema.
4) Medo:
O medo se dá pelo motivo do que foi estabelecido estrategicamente como correto, ou
seja, determinadas religiões criaram conceitos que distorcem as religiões de matriz afro, aon-
de o orixá Exu é associado pejorativamente ao diabo. Reginaldo Prandi, que é uma referência
na pesquisa sobre o candomblé no Brasil, escreveu, no ano de 2001, um artigo especificamen-
te sobre esta questão – a tentativa de demonização do orixá Exu por parte de lideranças religi-
osas perseguidoras daquelas de matriz afro –, com o objetivo de que a população não siga
essas premissas.
Assim é retratado Exu por padre Baudin:
“O chefe de todos os gênios maléficos, o pior deles e o mais temido, é Exu,
palavra que significa o rejeitado; também chamado Elegbá ou Elegbara, o forte, ou
ainda Ogongo Ogó, o gênio do bastão nodoso (...)
(...) Os primeiros europeus que tiveram contato na África com o culto do
orixá Exu dos iorubás, venerado pelos fons como o vodum Legba ou Elegbara, atri-
buíram a essa divindade uma dupla identidade: a do deus fálico greco-romano Pría-
po e a do diabo dos judeus e cristãos. (PRANDI, 2001, p. 47-48)
5) Segredos:
Os segredos também criam um distanciamento do entendimento da complexidade des-
sas religiões, já que ao mesmo tempo que são utilizados de forma a valorizar a própria cultura,
acabam impossibilitando uma maior compreensão social sobre as mesmas. Ou seja, os misté-
rios são utilizados como defesa desde os primórdios, porém isso também afasta e mistifica
demais o que é natural. Cria-se um mundo à parte que é inalcançável para quem poderia se
interessar em conhecer. Servem também para evitar o preconceito de outros grupos sociais, já
que o que ficou no imaginário construído, conforme já visto, depreciou esta cultura.
41 Disponível em: https://horadopovo.com.br/governo-demite-adelzon-alves-da-radio-nacional
96
Dennys Silva, apresenta algumas das várias questões relacionadas à discriminação ra-
cial:
No mês passado (outubro de 2019), fizemos uma grande apresentação em São Pau-
lo, algo enorme com temática na percussão do samba. Algumas pessoas não acredi-
taram muito no projeto, houve desrespeito e parabenizaram somente no final. Os
técnicos de som e de iluminação não deram a atenção necessária, já depreciavam
97
nós, os instrumentos, nos julgavam como menores. Houve restrição a lugares especí-
ficos de acesso fora do Teatro, como se fôssemos destruir ou pegar inapropriada-
mente alguma coisa de valor. Isso já é atribuído ao negro e ao sambista. Foi uma ex-
periência positiva artisticamente, mas o sentimento que fica é ruim porque você tem
que provar que tem um bom trabalho. Parece que você tem que se preocupar mais
do que algumas classes. Quando toquei muitas vezes com outros músicos lá não
houve isso. Por isso alguns artistas chegam com o pé na porta, são agressivos, já pa-
ra não dar espaço pra humilhação. Há sim preconceito com negros, menosprezam a
nossa cultura, os instrumentos, de forma velada e muitas vezes abertamente. É só
ver como a polícia nos trata na rua. Pra uns eles fazem de um jeito e pra nós de ou-
tro. (SILVA, Dennys. 22/11/2019. Quadra do GRCSES Império de Casa Verde, São
Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
Dennys fala de racismo estrutural, mas também do que chamamos de racismo institu-
cional, o que de fato ocorre de forma velada em organismos complexos de grande circulação
de pessoas: empresas, escolas e centros de convenções. Ele continua:
Em todos os ambientes – em instituições de ensino, em aulas teóricas, prática de
conjunto – se você toca samba, o que você faz aqui? Para alguns trabalhos, um meio
musical considerado mais refinado, não nos chamam! No Teatro você sofre precon-
ceito. Quando você vai dar um workshop como substituto você já é depreciado. É
melhor você ir sempre como primeiro convidado. Eu não aceito convites assim.
Sempre analiso os dois lados da moeda. Tem dinheiro que é melhor nem pegar.
(SILVA, Dennys. 22/11/2019. Quadra do GRCSES Império de Casa Verde, São
Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
Outro fato apontado por ele é a inversão do preconceito, algo bastante polêmico pois
quando se fala nisso a pessoa já é naturalmente acusada de um preconceito estrutural. Ou seja,
para alguns movimentos radicais em defesa dos negros, ou do gênero feminino, se você não
tem o chamado lugar de fala, não pode ser respeitado, você já é errado.
Também ocorrem algumas discriminações inversas, porém nada comparado ao nú-
mero de pessoas e do sofrimento que nós negros passamos. Vou te dar alguns exem-
plos. Quando um músico de orquestra quer tocar em bateria é discriminado. Muitas
vezes em gravações de discos de samba há preferência para negros. É preciso olhar
o ser humano, o que importa é dar conta do recado. Outro exemplo: Nós tocamos no
baile da Vogue, uma das maiores festas que tem em São Paulo. A modelo e cantora
convidada era branca de olhos azuis e estava com uma trança enorme no cabelo (al-
go comum à herança africana) e foi altamente criticada pela apropriação indevida de
algo que não era de sua ascendência. A história com a cantora Fabiana Cozza, que
foi criticada por não ter uma cor forte de negro e por isso não poderia fazer o papel
no musical sobre Dona Ivone Lara, uma bobagem completa. Ela é uma baita cantora
e é negra, mesmo que seja mais clara. Na verdade o que importa, ou pelo menos de-
veria importar, seria a sua competência. (SILVA, Dennys. 07/11/2019. Quadra do
GRCSES Império de Casa Verde, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y
Castro.)
98
Ser macumbeiro ou sambista no Brasil é uma filosofia de vida. Não é aceitável ser jul-
gado de forma depreciativa e, infelizmente, o custo social desta escolha é alto, pois apresenta-
se como uma afronta em aspectos que vão contra um comportamento dito normal ou civiliza-
do, aqueles estabelecidos por pessoas que possuem apenas uma forma de compreensão exis-
tencial. Entender o candomblé e o samba como filosofia de vida é essencial para se tentar
compreender outras maneiras de se pensar e viver. Ao mesmo tempo, sustentar essa escolha é
algo que se apresenta dentro de uma tensão social. Normalmente, a pessoa desses contextos
precisa se justificar e prestar conta de sua própria escolha. Segundo Hall (2013), o povo negro
está sempre em profunda negociação pois não se reconhece sua identidade, ao mesmo tempo
que ele é analisado dentro de uma sistemática da lógica ocidental.
A questão não é simplesmente que, visto que nossas diferenças raciais não nos cons-
tituem inteiramente, somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferen-
tes tipos de diferença, - de gênero, sexualidade, classe. Trata-se também do fato de
que esses antagonismos se recusam a ser alinhados; simplesmente não se reduzem
um ao outro, se recusam a se aglutinar em torno de um eixo único de diferenciação.
Estamos constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições
que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posi-
ções diferentes. Cada uma delas tem para nós o seu ponto de profunda identificação
subjetiva. Essa é a questão mais difícil da proliferação do campo das identidades e
antagonismos: elas frequentemente se deslocam entre si. (HALL, 2013, p. 385)
Segundo Vitor da Trindade (2019), os negros sofrem mais de pressão alta pelo motivo
de estarem sempre prestando contas, justificando qualquer uma de suas ações. Algo que nor-
malmente não ocorre com os brancos:
Falo isso não é para vocês sentirem pena ou qualquer outra coisa, mas para entender
como é difícil ser negro no Brasil. Você vai ao mercado e é perseguido pelos segu-
ranças. Você precisa toda hora explicar o que irá acontecer, caso contrário você po-
de ser acusado de alguma prática incorreta. Como se a sua cor o representasse como
marginal. (TRINDADE, 2019. Palestra.)
E continua,
99
Não adianta falar que é racismo inverso, isso não existe. Nós nunca podemos parti-
cipar de diversas coisas, precisamos ter os nossos espaços, pelo menos em algum lu-
gar reforçamos a nossa identidade adormecida. Os terreiros e as Escolas de samba
são espaços fundamentais para isso, assim como os Blocos Afirmativos como os Ilê
Ayê, este mesmo chamado de bloco afro. (TRINDADE, 2019. Palestra.)
Além do racismo que determina a limitação social sobre a cultura afro-brasileira, todos
esses aspectos aqui evidenciados corroboram para a o baixo nível de compreensão ou aceita-
ção destas conexões.
7) Diferenciações entre modelos de carnavais de classes sociais opostas:
José Geraldo Vinci de Moraes – relevante pesquisador sobre as problemáticas na rela-
ção de desenvolvimento urbano, civilização e sociedade – fala do conceito de Pequeno e
Grande Carnaval, apontado por alguns autores como Olga Von Simson, Maria Aparecida Ur-
bano e Nelsinho Crecibeni. Tal conceito buscava estabelecer diferenciações de um carnaval
elitista na cidade de São Paulo, em pleno desenvolvimento no ciclo do café – transição entre
os séculos XVIII e XIX –, e mostra como esta questão racial já era predominante a favor dos
brancos e não negros. Para Rufino (1993), o mesmo termo fora utilizado também na segrega-
ção racial estratégica, promovida por algumas classes dominantes em relação a outras:
O termo Grande Carnaval surge em contraposição a Pequeno Carnaval, que era
realizado por negros e mulatos livres da periferia carioca que, aproveitando-se das
sobras da festa maior (confetes e serpentina), faziam sua comemoração, acom-
panhada de músicas afro. (RUFINO, 1993, p. 245)
Apesar das dificuldades também apontadas por eles, em relação aos imigrantes de
forma geral, que trabalhavam na indústria cafeeira, os negros foram afastados estrategicamen-
te para os bairros mais pobres da cidade como o Glicério, a Barra Funda e o Bexiga. Automa-
ticamente, o que era promovido culturalmente por eles – pelos negros – era chamado de Pe-
queno Carnaval, enquanto o desfile de carros na avenida Paulista era chamado de Grande
Carnaval. O mesmo acontecia nos clubes da cidade, onde havia uma reprodução do carnaval
europeu e suas músicas de época. Os chamados batuque, folia, bagunça, e a considerada saca-
nagem, aconteciam no Pequeno Carnaval, ou seja, a arte promovida pelos negros nas suas
danças, canções e ritmos eram entendidos como uma arte menor. Este efeito é replicado atu-
almente por boa parte da sociedade e através da mídia, que também é uma importante ferra-
menta de distorção de papeis. Ao mesmo tempo que ela promove e divulga os desfiles carna-
valescos, por exemplo, mostra uma imagem totalmente associada à venda de bebidas alcoóli-
cas e sexualidade aflorada.
Isso, de fato, não é uma realidade nesses ambientes. É necessário separar e entender a
complexidade destes grupos e tudo que é proporcionado para suas comunidades durante o ano
inteiro, não apenas no período carnavalesco midiático. Para Vitor da Trindade (2019), a cultu-
100
ra africana, de um modo geral, sempre foi depreciada por associarem coisas negativas a ela.
Isso também foi observado nos documentários de Geraldo Filme (depoimento de Toniquinho
Batuqueiro), no Programa Ensaio da TV Cultura (Geraldo Filme) e no primeiro episódio da
série Samba à Paulista (depoimento de Penteado do Vai-Vai).
8) Em algumas escolas consideradas mais tradicionais – no sentido da relação entre a
tradição do candomblé e do samba – transparece uma relutância em se disponibilizar e trocar
informações de parte de integrantes negros com integrantes brancos, o que aponta para um
ambiente de permanente conflito étnico-racial. Atualmente, algumas dessas Escolas lutam
para reconquistar seus espaços perdidos nos campeonatos perdidos sucessivamente. São Esco-
las consideradas de maior população negra, cujos integrantes são criticados por não se enten-
derem entre si, pela vaidade excessiva e falta de competência na gestão de pessoas. Muitos
dos seus atores acabam se deslocando e se reinserindo em outras Escolas com mais capacida-
de de gestão de pessoas. Por outro lado, a maioria dos Presidentes das Escolas de samba atu-
almente são brancos, acusados também de dominar espaços de propriedade negra, espaços de
eterna disputa étnico-racial, apesar de parte das pessoas não assumir ou não pensar realmente
dessa forma. Por ser branco, e tocar em bateria e terreiro, por exemplo, sinto forte pressão por
parte de outros integrantes, algo diferente em relação a novatos não brancos. A cobrança é
maior para brancos, que exatamente por estarem sendo aceitos em comunidades negras preci-
sam constantemente mostrar que correspondem às expectativas. No meu caso, vejo isso como
uma oportunidade de entender tais tensões, o que para outros colegas pode ter causado afas-
tamento. Nos muitos anos dedicados a percorrer estes locais, pude acompanhar diversas situa-
ções interessantes para reflexão e compreensão dos dois lados da história.
9) Estratégias de defesa deste conhecimento em relação ao pesquisador acadêmico:
Segundo alguns interlocutores, há uma falta de ética por parte dos pesquisadores, de
acordo com situações ocorridas no passado. Isso se deve porque, historicamente, alguns
pesquisadores não deram retorno para as comunidades e utilizaram as mesmas como projeto
pessoal, não valorizando os integrantes dessas comunidades, ambiente ou objeto estudado.
Julio Cesar Barro, relevante percussionista e ritmista na cidade de São Paulo, em dia
de ensaio da bateria do GRCSES Águia de Ouro, ouviu a seguinte fala de Talita Badia, dire-
tora da ala de rocar do Águia de Ouro, sobre determinados comportamentos com pesquisado-
res anteriores: “Nem adianta vir aqui com essas coisas de tese, de mestrado. Não vamos falar
nada sobre isso. O cara veio aqui ano passado e sumiu. Nem deu as caras”. Talita é reconhe-
cida pela excelência com o trabalho prático neste naipe – o chocalho rocar –, tendo passagens
na Mancha Verde como ritmista, no Mocidade como Diretora e na Vila Maria. Esse reconhe-
101
cimento se deve à qualidade de seus arranjos, linguagem musical, nível técnico no instrumen-
to, resultados e liderança do naipe.
A inserção de pesquisadores brancos neste contexto (meu caso), fica evidenciada co-
mo um incômodo, como se observa também na fala a seguir:
É meu povo, agora nós vamos ter que engolir. Olha a desse cara, é flamenguista,
gosta de samba e macumba, branco! Qual é que é a dele hein? Isso é porque nós não
fizemos o que tinha que ser feito (REIS, Rodolfo., incorporado dentro da tradição do
candomblé pelo caboclo Arariboia. 13/11/2019. Casa de candomblé Kyloatala. Fala
aos filhos de santo.)
A conversa acima se deu com o caboclo Arariboia – espírito ancestral incorporado por
Tata Kylonderu (Rodofo Santos dos Reis) – na Casa de candomblé Angola Kyloatala. Nesse
caso, fica evidente um incômodo pelo fato de um branco se interessar em falar sobre o
conhecimento gerado por negros, algo que está na memória ancestral. Por outro lado, o
próprio zelador, em outro dia de entrevista, se interessou pela pesquisa, pois o elemento
textual poderia dar um outro tipo de reconhecimento para a sua Casa, e também para sua
comunidade como um todo. Atualmente, grandes líderes espirituais sabem da importância
dessa troca e procuram aceitar mais pessoas do que antigamente. Nesse sentido, para o
caboclo Arariboia, seria uma falha dos indivíduos da diáspora pelo fato de se apoiarem
sempre na prática e no elemento ritual, onde a parte teórica não foi pensada como uma
ferramenta de apoio e conquista.
Paira sempre a crítica à diferença, o mesmo que acontece entre músicos teóricos e
práticos, acadêmicos ou de fora. Ou seja, a justificativa de determinada limitação se dá no
ataque à diferença, o que ele mesmo fez. Entendo também que o caboclo incorporado, ou
qualquer outra entidade ou orixá, apresenta sempre uma mediação do próprio indivíduo que o
incorpora. De fato, parece que algum controle e divisão de tarefas se dá na dinâmica da
própria incorporação. Por isso, entendo como algo dividido entre a consciência e a
inconsciência. Isso é fundamental para termos algo mais concreto e com maior aceitação
dentro das nossas próprias limitações com o desconhecido. É fato que existem diversas
modalidades de incorporação, cada uma com suas especificidades, havendo várias
publicações a respeito.
10. Separação entre o sagrado e o profano:
Para alguns integrantes do Candomblé, determinados ritos não podem ser realizados
publicamente, tornando-se difícil reconhecer determinadas relações entre elementos comuns
às duas tradições.
Nesse sentido você vai no fundo da questão, pois acaba sendo um dilema, quem po-
deria ajudar mais seriam os mais antigos. Mesmo assim é um assunto delicado por-
102
que envolve muitos tabus, preconceito, medo. Muitos não gostam de falar disso. Pa-
ra muitos não faz sentido falar dessas coisas pelo fato de cair no mérito do sagrado.
(SALGADO, Alan. 04/03/2018. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
Para algumas pessoas, há a necessidade de reconhecer territórios de maneiras diferen-
tes. Nesse sentido, o que é praticado no terreiro não deveria sair e chegar, por exemplo, em
uma Escola de samba. Compreendo que há um conflito, como se essa prática tivesse que ser
controlada e, por estar em um ambiente festivo, poderia representar um certo desrespeito à
mesma. Acredito que ocorre justamente o contrário, ou seja, quanto mais isso for reconhecido
e assumido, melhor para toda a compreensão social sobre a própria religião. Isso soa muito
como uma compreensão ambígua, como se qualquer ressignificação não fosse aceita. Por ou-
tro lado, as Escolas utilizam desta temática fortemente, o que mostraremos mais detalhada-
mente no sub capítulo 4.8.
Figura 11 - Flyer de divulgação em site de adeptos a religiosidade de matriz afro separando alguns
fundamentos da religião do carnaval
42
Aponta-se o ambiente festivo desta mescla como algo maléfico, uma compreensão ambígua e depreciativa
presente em alguns membros entrevistados por nós.
103
Figura 12 - Pai Kumimbara, Exú com vestimenta de terno em reverência a um sambista do GRCSES
Mangueira, incorporado por Anderson Jorge Enéas
104
12) Mídia:
A mídia possui papel central na ambiguidade presente na compreensão social sobre as
religiões de matriz afro e o samba. Normalmente, ambos são tratados com determinado misti-
cismo e considerados apenas no período festivo. As insinuadas propagandas que associam o
carnaval com a sexualidade, tratando-o apenas de forma associativa com uma pseudo felici-
dade, também não correspondem à realidade. A produção anual de seus atores e a riqueza de
suas ações estão longe de serem conhecidas pela população de forma geral, um reflexo do que
a própria mídia estabelece anualmente.
105
físico e e) alguns instrumentos são mais comuns para faixas etárias específicas. Na bateria,
por exemplo, os ritmistas mais velhos tocam surdos e cuícas e os ritmistas mais novos tocam
repiniques e tamborins. No candomblé Kyloatala e em outras casas temos o alabê tocando
rum e gã, enquanto os demais atabaques são executados tanto por ogãs mais novos quanto
mais velhos. É uma tendência, no caso do rumpi (atabaque do meio), ser mais tocado por ogãs
na chamada meia idade, entre 30 e 50 anos. Os mestres de bateria e os alabês preferem inves-
tir na formação dos mais novos, já que estes serão o futuro das Escolas e terreiros.
O interesse por determinados instrumentos ocorre porque as funções em comum entre
ogãs e ritmistas direcionam atuações escolhidas por indivíduos que, além do gosto pessoal e
identificação particular com um dos instrumentos, também pensam estrategicamente nos re-
sultados sociais promovidos pelas práticas musicais, já que estas estão inseridas em socieda-
des maiores, como os outros setores da Escola e também na exposição a outros cargos dos
filhos de santo no candomblé – yawós, ekedis, rodantes e zeladores. Por estarem em constante
observação, em geral os mais novos preferem instrumentos de maior destaque, caso do repi-
nique de bossa, surdo de terceira e atabaque rum. As pessoas mais novas apresentam uma
necessidade maior de reconhecimento, pois ainda estão testando algumas coisas. Isso também
pode variar de acordo com a personalidade de cada integrante.
Em ambos os locais, existe uma expectativa em relação ao olhar externo, seja de ou-
tros integrantes em suas funções ou do próprio público. Normalmente, os indivíduos mais
velhos são admirados pela experiência e maior controle físico, necessários para o equilíbrio
entre a resistência e a sonoridade, pois nem sempre o mais novo, o que apresenta maior con-
dição física, terá a resistência adequada em todo o desgastante tempo de duração das ativida-
des – desfiles, ensaios técnicos, festas para os orixás e funções diversas. Muitas vezes, os rit-
mistas e ogãs passam noites em claro em performance, executando seus instrumentos. No
candomblé, é uma obrigação de todos da Casa se referirem aos mais velhos como Pai, já su-
bentendendo-se uma referência aos que tem mais experiência, mesmo que tenha pouca idade,
o contrário do que acontece na dita sociedade civilizada em geral ou na família tradicional
brasileira. Nesse sentido, a referência se dá pelo respeito ao conhecimento daquelas pessoas
nos saberes e costumes de sua cultura como essência.
Numa bateria, isso também é muito comum. Atualmente, os cargos de liderança a par-
tir do mestre, e muitas vezes até o dele, são ocupados pelos mais novos, exatamente por apre-
sentarem maior capacidade de ação em relação aos mais velhos, que podem estar mais exaus-
tos, reflexo da própria entrega e prática constante no meio. Muitos dos mais velhos acabam
saindo por questões de saúde debilitada e também pela incapacidade nos processos de gestão
106
de pessoas que os tratam com desrespeito, inclusive nas baterias e nos terreiros. Todos os in-
divíduos, independentemente da idade que apresentam, são necessários. O equilíbrio é fun-
damental e a renovação se dá por pessoas novas que observaram o erro dos mais velhos para
que não repitam modelos ineficientes do passado.
Sem desrespeitar ou desmerecer qualquer faixa etária, uma realidade nova se desenha
nas escolas do Rio de Janeiro e de São Paulo, e nos terreiros. Cada vez mais, ano após ano, os
indivíduos que se destacam na gestão destes grupos musicais (bateria e candomblé) são mais
novos, normalmente na faixa dos 30 a 45 anos. Essa característica é uma marca da atualidade,
já que anteriormente era exatamente o oposto que acontecia. Isso mostra um processo de re-
novação muito dinâmico, relativo à necessidade de velocidade na mudança, tendo em vista a
complexidade exigida em ambos os locais para solucionar problemas e inovar.
Os indivíduos mais novos também apresentam uma formação mais ampla, possível de
acordo com a progressão do conhecimento e metodologias encontradas em cada época. É uma
tendência que mestres de bateria mais novos possuam maior proficiência artística de acordo
com as possibilidades técnicas atuais e este também é um motivo de destaque na gestão de
todo o grupo. É pela performance almejada, em equilíbrio com o poder de tratamento e co-
municação eficiente, que haverá mais seguidores e também pessoas mais novas. O conteúdo
histórico cultural também pode ser uma marca dos mais novos, com pesquisas em estratégias
pedagógicas e atuação artística, assim como a busca por novas práticas e resultados.
Por outro lado, os que apresentam mais idade em relação a outros, por terem vivido
em outra época, também fazem parte da história do reconhecimento de suas capacidades pelos
mais novos, pois viraram a própria história no presente. Nesse caso, a experiência e o equilí-
brio podem ser maiores. Nossa intenção não é determinar qual grupo de pessoas em suas fai-
xas etárias correspondem mais às necessidades atuais dos grupos, mas sim mostrar como os
mais novos possuem poder de atuação maior em relação ao que é estabelecido socialmente em
culturas diferentes. Isso foi observado nas práticas destes grupos como enriquecedor para o
conjunto como um todo, refletindo na promoção de pessoas mais novas, estratégia escolhida
exatamente para que a cultura seja mantida, de geração para geração.
4.2.2. Funções extras do cotidiano
As tarefas do cotidiano nesses locais – os terreiros e as quadras das Escolas de samba
– são entendidas como parte do processo de formação e de função social em prol do grupo de
indivíduos participantes. Considerando que são ambientes onde o coletivo se faz necessário
para a execução de ações bastante diversas, e não somente as artísticas visualizadas pelo pú-
blico externo mais facilmente – como no caso dos ogãs quando tocam os atabaques e dos rit-
107
108
Ogã ashogun – sacrifício de animais nos ritos. Este cargo é ocupado normalmente por
uma pessoa que assumirá a casa na falta do zelador. É um cargo de muita responsabilidade e
exige muita experiência do ogã.
Ogã alabê – responsável pelo rum, todo conjunto percussivo e os cânticos. Este cargo,
apesar das especificidades musicais, não isenta o indivíduo das tarefas cotidianas.
Exatamente pelo fato de essas tarefas serem entendidas como fundamentais para o co-
letivo, todos precisam realizar parte delas, para que todas as necessidades sejam sanadas.
Como há um grande número de participantes nestes locais, os espaços precisam ser organiza-
dos, como é o caso da limpeza de banheiros ou outros locais já anteriormente citados. Tam-
bém há a necessidade de compra de itens de alimentação para que todas as pessoas da casa ou
visitantes sejam atendidas. É muito comum que se façam coletas de valores financeiros para a
compra de um botijão de gás ou compra de alimentos para todas as pessoas.
No caso das baterias, é muito comum que alguns dos ritmistas mais velhos busquem
alimentos – como pizzas e bebidas –, quando os ensaios são longos ou quando alguns chegam
muito antes do horário para os ensaios. Esses momentos compartilhados são riquíssimos para
a troca de conhecimento. As conversas a respeito de diversas situações em ensaios ou desfiles
anteriores, por exemplo, trazem muita experiência. As tarefas do cotidiano, portanto, se mos-
tram importantes para a troca de conhecimento, necessário para a manutenção cultural do po-
vo de axé e dos sambistas, sendo impossível, na verdade, separá-las. Além dos ensaios de
bateria, xirês e apresentações diversas, não há momento determinado para práticas ou troca de
conhecimento. Apesar de elas acontecerem também de outras maneiras, é na execução das
tarefas do cotidiano que se mantém a cultura da diáspora. Observamos isso em deslocamento
de ritmistas para locais de apresentação e em intervalos de xirês, quando os ogãs formam ro-
das de conversas enquanto cuidam dos outros afazeres da Casa – a segurança, por exemplo.
Os ogãs, assim como os primeiros repiniques, são considerados pelos líderes (zelador e mes-
tre) como guardiões destes locais, estando atentos a tudo, ao chamado movimento. São eles
que sinalizam alguma alteração no curso da performance ou a necessidade de alguma interfe-
rência. Como são locais de alta circulação de pessoas, os ritmistas e ogãs cuidam e se prote-
gem entre si. Muitas vezes isso se dá através do olhar, de gestos e de uma comunicação inter-
na reconhecida somente pelo próprio grupo. Como convivem, no geral, por muito tempo jun-
tas, estas pessoas se conectam rapidamente. Muitas vezes não há a necessidade de uma expo-
sição oral muito explicativa. O que será realizado ou modificado pode ser sinalizado com um
gesto.
109
Também é tarefa do ogã e do ritmista mais experiente orientar os mais novos. Além de
realizarem as tarefas do cotidiano e executarem seus instrumentos nos ritos – xirês e desfiles –
são obrigados a explicarem as necessidades musicais e também orientar o passo a passo para a
realização das tarefas gerais. Esse sentido do coletivo é esperado pelos líderes dos ogãs e rit-
mistas mais velhos. Os líderes observam e verificam se o que lhes foi passado está sendo mul-
tiplicado43.
Abaixo temos um relato de Tata Mukambila - ogã ashogun da Casa Kyloatala:
Eu deixo o Tariganga tocar porque ele sempre me ajuda com as tarefas da Casa.
Somente deixarei tocar quem está aqui para o todo. Não adianta vim querer ser artis-
ta e achar que vai sair tocando. Precisa fazer tudo, carregar pedra, cortar lenha, fazer
fogo, carregar peso, serviço de pedreiro. O que o Pai de santo pedir a gente faz. Fa-
zemos isso para nosso santo. (MENEZES, Marcos - Tata Mukambila. 04/11/2019.
Casa Kyloatala. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
Para Robson Campos, também há essa espécie de reconhecimento da dedicação do
ritmista com as tarefas do dia a dia, tarefas essas que, na maioria das vezes, são extramusicais:
Você pode ver aqui, quem está sempre comigo desde os Gaviões, coisa de pelo me-
nos 20 anos atrás, é a rapaziada que levou pedra, passamos por tudo juntos. Tudo
que eu preciso esses caras fazem, ensinar um instrumento para alguém novo ou var-
rer a quadra. É sol ou chuva e estamos juntos sempre. São os meus diretores e al-
guns dos ritmistas mais chegados. (CAMPOS, Robson. 02/07/2019. GRCSES Impé-
rio de Casa Verde, São Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
Considerando estes locais como sociedades que valorizam aspectos do coletivo, o que
representa sentido para estas pessoas é a troca e a soma de forças individuais em prol de todo
o grupo. Muitas vezes, o que é representado em um desfile ou festa de Candomblé não conse-
gue demonstrar tamanha complexidade e competência de todos nas mais diversas tarefas do
cotidiano. Muitas vezes, será a partir delas que as ações serão planejadas e posteriormente
executadas com excelência, seja em aspectos artísticos ou de desenvolvimento humano.
A relação de respeito e obrigações do ogã com o orixá, é a mesma do ritmista com o
pavilhão da Escola, algo que se estabelece também como sagrado. A relação com o universo e
a natureza, de forma geral, representa um sentido maior na execução de diversas tarefas, co-
mo se a execução musical por si só não fosse necessária. Para estas pessoas não faz sentido
apenas isto, chegar e tocar em algum local, apenas como forma de apresentação artística –
algo comum em outros contextos. Há muitas outras necessidades individuais que significam
resultados para o coletivo.
43
Podemos observar isso claramente no vídeo do ogã Marcelinho de Logun Edé postado no Youtube em 01 de
agosto de 2018: https://youtu.be/I0ExuEx43No
110
Esse pensamento e prática pode representar, por exemplo, o motivo de tamanha entre-
ga nas atividades com durações prolongadas, já que esses indivíduos não pensam na perfor-
mance separada das necessidades do grupo. É como se valesse a pena estar sempre à disposi-
ção, não pensando apenas em suas necessidades ou falta de tempo.
4.2.3 Estrutura do xirê, roteiro de enredo e outras semelhanças
Em um xirê, também conhecido como gira, que consiste no ritual em que os orixás são
apresentados abertamente para o público em dias de festa, há o chamado roteiro. Ou seja, uma
sequência estrutural, como em qualquer apresentação artística estabelecida. O mesmo ocorre
em um desfile carnavalesco, no qual uma ordem a respeito de determinado enredo é apresen-
tada. No enredo, há um tema específico, e a história sobre este tema deve ser reproduzida pe-
las alas, fantasias e alegorias que passarão pela avenida. Durante esses rituais (xirê, desfile),
há pequenos ritos que simbolizam a identidade dessas manifestações. Encontramos alguns
sinais de certas conexões, a partir de algumas semelhanças que as justificam.
Partindo do pressuposto de que a Escola de samba sempre foi associada com os terrei-
ros, seja pelos participantes em comum, significados, características culturais, vestimentas e
muitos outros aspectos já abordados, mostraremos questões que também representam o que
investigamos e não encontramos em publicações. Vejamos abaixo algumas destas questões,
divididas nos xirês e desfiles ou ensaios de Escolas de samba durante os rituais: a) reverências
a bandeiras e brasão, b) vestimentas em dias de desfile (presidentes, diretores e ritmistas utili-
zando guias de proteção), c) respeito com a hierarquia a partir dos anciões, d) ritos pontuais
nos barracões, e) ritos pontuais nas quadras, f) ritos pontuais no esquenta, g) cantigas para os
orixás no esquenta em ordem de xirê e h) movimentações circulares de algumas alas, como a
das baianas. Todos os anos as Escolas apresentam referências aos orixás e à cultura africana
em geral. Muitos carros alegóricos possuem esculturas que os simbolizam, assim como nas
fantasias e materiais carregados pelos passistas: machado de Xangô, atabaques, adjás, guias,
entre outros. Outra característica é a que já discutimos com relação à roupa na ala das Baia-
nas, que são vestidas por diversas mães de Santo ou ekédis, ou seja, pelo povo de santo. Ve-
jamos um desses casos, apresentados no sambódromo do Rio de Janeiro:
As surpresas do desfile começaram na comissão de frente. No centro de uma roda de
candomblé, os sambistas Beth Carvalho e Jorge Aragão acompanhavam a evolução
dos dançarinos. Representando os orixás, os integrantes dançavam numa plataforma
que lembrava o terreiro onde o bloco Cacique de Ramos foi criado, com uma grande
árvore ao fundo. Durante o desfile, os orixás desciam da plataforma para interagir
com o público, emitindo sons. (MANGUEIRA...44, 2012. Notícia.)
44
Disponível em: http://vermelho.org.br/noticia/176196-1.
111
A própria concepção de um xirê é reproduzida na ala das baianas, com suas passistas
rodando em círculos, com a diferença de terem que andar para a frente, acompanhando a pas-
sagem da Escola como um todo na Avenida. No xirê, os ogãs tocam na parte de trás do barra-
cão, ao fundo, enquanto os chamados rodantes circulam no centro do barracão, formando uma
grande roda. Esta roda é muito parecida com a chamada evolução das baianas ao longo de
toda a avenida. Os ogãs também possuem função relacionada com uma bateria em desfile, a
de movimentar as pessoas que estão na gira, da mesma forma que os ritmistas impulsionam
toda a movimentação em uma Escola. O local onde a bateria fica no meio de um desfile, cha-
mado de recuo, é bastante simbólico em relação a essa função da percussão – a linguagem.
Este local, visualmente, representa, em partes, o mesmo local dos atabaques, já que é ali que
se observa toda a movimentação dos integrantes que circulam e passam, enquanto o grupo
percussivo observa e dá o suporte sonoro para a movimentação da totalidade dos envolvidos.
A chamada evolução dos passistas é marcada por pequenas coreografias planejadas ou
involuntárias impulsionadas pelo ritmo. Da mesma forma, ocorrem com as ekédis e o povo da
gira, algumas movimentações com os braços, mãos e as pernas, que são idênticas àquelas fei-
tas pelos passistas. O timeline referencial é reproduzido por palmas e expressado corporal-
mente de diversas formas, sutilmente ou mais enfatizado. A compreensão do corpo como ex-
tensão do que é sentido sonoramente pela bateria ou pelos atabaques, é uma característica
marcante destas semelhanças e também da representatividade da percussão para estes grupos.
Como dissemos no início, o que é apresentado no enredo é a tentativa de se contar
uma história, da mesma forma que o roteiro do xirê reproduz uma história mítica encenada
para o público. A diferença é que essa história poderá ou não ser reconhecida, sendo que pro-
vavelmente em uma Escola de samba haverá mais clareza de acordo com o passar das alas,
enquanto na gira muitas sequências somente são reconhecidas por entendedores da religião.
Há uma série de justificativas para tais sequências, já que essas histórias formam parte da mi-
tologia sobre os orixás e nos remetem a uma conexão com a cultura ancestral africana em
diáspora. Pela quantidade de participantes que possuem práticas nas religiões de matriz afro
como o Candomblé, e também pelas pessoas que, independentemente de terem afinidade com
a religiosidade em questão, compreendem a cultura dentro dela, também pareceu-nos um
momento de extensão do ritual em si. Para muitas pessoas entrevistadas, o desfile é conside-
rado uma extensão dos terreiros, seja pelo sentido simbólico ou por questões em comum, que
se comunicam no terreiro e na avenida.
4.2.4 Instrumentos e construção musical no conjunto percussivo
112
Muitas semelhanças são compartilhadas e observadas nas funções de alguns dos ins-
trumentos que compõem a chamada orquestra do candomblé – atabaques Rum, Rumpi e Lé –
e os mais conhecidos que formam os naipes das baterias – repiniques, caixas, surdos e tambo-
rins.
Para se falar em Bateria, torna-se necessário dizer algo a respeito do surgimento dos
instrumentos e como a coisa foi evoluindo. Inicialmente as pessoas ligadas à origem
das Escolas de samba e dos Ranchos, participavam de reuniões festeiras (Caxambú,
Lundú, Jongo) ou ainda do culto afro-brasileiro, onde tornavam parte ativa e inten-
samente. Instrumentos tais como: atabaques, tambores, tamboretes, agogô, tambo-
rim, pandeiro, triângulo que auxiliavam nas festas e no ritual. Com relação ao can-
domblé, onde são cantados pontos, chamado popularmente de ponto de macumba,
obedecendo ao ritmo quente exigindo dos participantes o molejo necessário para
acompanhá-lo. Das brincadeiras de samba, realizadas em casa do Sr. Napoleão, Sr.
Vieira, Dona Neném, Dona Esther e outros, participavam geralmente pessoas liga-
das ao culto afrobrasileiro com suas diversas linhas e nações. (CANDEIA; IS-
NARD, 1978, p. 42)
Entendemos isso como uma adaptação inevitável que acabou sendo responsável pela
transformação da tradição, na tentativa de resolver algumas questões no sentido de serem me-
lhores julgadas dentro do regulamento do Carnaval, mas engessando, por outro lado, a liber-
dade dos performers expressada pela sonoridade modificada dos grupos – os atabaques com o
gã e as baterias.
Sobre o Rum – o atabaque mais grave –, Trindade nos mostra uma total relação da
função desse instrumento com o Ripa de bossa, pois é através dele que os outros instrumentis-
tas reconhecem os símbolos sonoros e apontam para o que deve ser feito nos arranjos e im-
provisações. Mais essencialmente, Trindade nos mostra a relação deles – do Rum e do Ripa
113
de Bossa – com a sinergia entre a percussão e o movimento, o vocabulário único entre o dan-
çarino e o percussionista, no entendimento da percussão como linguagem.
Ao contrário do que se pensa, o tambor Rum não improvisa e sim repete alguns pa-
drões melódicos que seguem a tradição desde a antiguidade, sendo como frases me-
lódicas que ocorrem durante momentos organizados com o texto do cântico e devem
ser executados exatamente nos momentos para que foram organizados. É isto que
torna tão difícil a compreensão deste atabaque, porque a forma como ele soa para os
ouvidos de quem não conhece dá a impressão de improviso. (TRINDADE, 2019, p.
136)
Nesse caso, podemos ver como aquilo que é feito no rum – uma mão executando as
sonoridades grave ou abafadas –, é feito da mesma forma no repinique – a mão que não está
com a baqueta diretamente na pele do instrumento executa o tapa e o som aberto. Ou seja,
realiza-se o mesmo efeito em ambos os instrumentos – o atabaque e o repinique.
Trindade também registra as relações e conexões entre algumas levadas de caixa e pa-
drões utilizados no candomblé. Neste sentido, ele relaciona a levada da bateria do GRCSES
114
Portela com o aguerê de Yansã e a da Mangueira com o aguerê de Odé. Além destes exem-
plos, apontaremos muitos outros no decorrer deste trabalho.
Um descuido comum de diversos autores é referenciar essa herança apenas às baterias
e instrumentos do estado do Rio de Janeiro. A partir de 1968, data de oficialização do carna-
val de São Paulo, quando foi extinto o naipe de sopros dos cordões, São Paulo adotou padrões
rítmicos do Rio. Justamente por isso, ainda atualmente, o Rio é um centro de pesquisa para
diversos mestres, diretores e ritmistas, pois muito do que é construído musicalmente nas bate-
rias e outros setores das agremiações do Rio, servem de modelo para o carnaval paulistano.
Outro ponto observado é a estrutura chamada de trilogia dos tambores e o pensamento
da construção da polirritmia que gera a polifonia (AROM, 1991), presente através da herança
diaspórica. Vale reforçar que são instrumentos rítmicos afinados com intervalos melódicos
entre si, justamente para dar essa sensação melódica em conjunto com os outros que com-
põem os conjuntos percussivos. Nesse sentido, o protagonismo da percussão se diferencia da
utilização mais comercial no Ocidente, já que muitas músicas midiáticas utilizam apenas a
sonoridade grave no primeiro ou no primeiro e terceiro tempos do compasso, complementan-
do agudos no segundo e quarto tempo – como o bumbo e a caixa do padrão do rock ou pop
em geral.
O Babalorixá Vadinho do Gantois, nos mostra também uma outra preocupação com
relação à parte da transformação ocorrida na musicalidade desenvolvida nos terreiros – exces-
so de técnica e virtuosismo. Podemos considerar essa preocupação de Vadinho como legítima
à realidade de uma bateria, pois é muito comum as pessoas mais antigas reclamarem do ex-
cesso proporcionado pelo virtuosismo. Nesse caso, “a técnica estaria sobrando”, sendo de-
monstrada excessivamente de maneira a descaracterizar a sonoridade e inibir sutilezas, mes-
mo em instrumentos que lideram o conjunto. Muitos ritmistas que se preocupam com uma
boa execução do ritmo dentro da linguagem do samba, apresentam a mesma preocupação com
o repinique e outros instrumentos da bateria, ou seja, as mesmas que Vadinho do Gantois –
terreiro de referência do candomblé baiano –, tem com o atabaque rum.
Outro ponto em comum é o cuidado em relação à preservação dos instrumentos e os
locais onde ficam estrategicamente protegidos nos ambientes. No caso dos atabaques, sempre
cobertos por panos, não é permitido o acesso por pessoas senão os alabês responsáveis. No
caso das baterias, os executantes dos repiniques – talvez os instrumentos que mais se asseme-
lham às funções e responsabilidades do Rum –, também ocupam espaços específicos e estra-
tégicos dentro de toda a formação. Apenas os mais proficientes os executarão e poderão reali-
zar as chamadas variações para a comunicação com os outros instrumentistas e passistas dire-
115
tamente na dança. Ambos são tratados como instrumentos chave, centrais e até tratados nos
preceitos da religião, estando fora ou dentro de ambientes sagrados. O que pode ser conside-
rado profano para o público em geral, como é o caso do carnaval, por exemplo, para outros
(neste caso os ritmistas e suas responsabilidades) é considerado preceito, função hierárquica
adquirida com a experiência e repertório aprendido oralmente nestas tradições. Muito do que
acontece nas baterias de forma processual é bastante próximo e muitas vezes idêntico à meto-
dologia utilizada no aprendizado para o povo de santo.
Sobre o entendimento e o lugar (status) da percussão em ambos contextos, também
notamos similaridades pois, assim como os atabaques, determinados instrumentos da forma-
ção de uma bateria são vistos como algo menos desenvolvido45.
É muito comum quando tocamos instrumentos de ascendência africana que chega-
ram ao Brasil junto com os escravizados, se considere que esta música e estes ins-
trumentos são de menor importância dentro de um combo (como se fala da formação
de uma banda), mesmo que a nossa MPB se encha de ritmos e melodias baseados
nessa influência, como o samba e suas ramificações, ou isso ocorra em outros ritmos
da diáspora africana fora do Brasil, como o Jazz – Norte americano, o Reggae Ja-
maicano e a Salsa Cubana. (TRINDADE, 2019, p. 26)
45
Para um melhor entendimento sobre esta questão, sugerimos a leitura do trabalho de Stasi, 1998.
116
intitulados de feitura de cabeça ao orixá ou raspagem para o santo, pelo motivo de ocorrer
em um dos ritos realizados. Ou seja, para realizar este trabalho, sentimos a necessidade do
aprendizado na religião e na própria formação no candomblé. Sendo assim, nesta iniciação
fizemos praticamente tudo o que corresponde a esta tríade como a) dançar, tentando aprender
os passos necessários para a dança dentro de alguns toques e b) cantar, ouvindo os toques para
saber alguns roteiros dentro dos ritos (nesse período ainda não era ainda autorizado tocar os
atabaques ou gãs). Esse foi um momento de curiosidade extrema, na tentativa de entender
qual a razão de não ser permitido tocar atabaques no período da iniciação, mesmo para os
cargos de ogã. Entendíamos isso como um certo desperdício, com base em nossa ansiedade
em começar a desempenhar um papel entendido como principal em uma Casa de Santo. De
fato, com o passar do tempo, percebemos que esta não é uma função primordial de um ogã,
pois há muitas outras entendidas como necessárias ao coletivo, como é o caso da guarda e
proteção dos yawós, zeladores e de toda a segurança da Casa.
O fato de não poder tocar instrumentos não diminui a compreensão da prática musical
como essência, pois em muitas outras ocasiões, para não dizer em todas, ela acontece. Para
todas as atividades que fizemos no roncó tínhamos que cantar (antes, durante e depois de de-
terminados momentos), uma união perfeita entre o rito e rotina diária. Apreendemos diversas
canções na língua Bantu, que é fundamento dentro do candomblé da nação Angola, e também
diversas rezas que compõem o chamado Ingorossi (N’gorossi), a maior reza Bantu aprendida
pelos filhos de santo desta nação. Tivemos como obrigatoriedade decorá-la até o último dia da
nossa saída, sem a liberação para a escrita ou gravação em áudio. O que fizemos foi estudar o
Ingorossi, em muitos momentos, com os irmãos do chamado barco de iniciação, mesmo fa-
zendo esta reza com nosso pai criador e mãe criadeira – terminologias utilizadas em referên-
cia aos nossos pais de iniciação, estabelecidos pelo zelador. Antes de tomar banho, também
havia uma cantiga com o badalar do adjá – instrumento utilizado para invocar os orixás, que
não é utilizado por ogãs, mas por ekédis, yawós e essencialmente pelos zeladores. É um ins-
trumento essencial para todas as práticas em uma roça (outro nome para uma Casa de can-
domblé ou terreiro).
Outro momento de extrema musicalidade diaspórica acontecia antes das refeições e no
final, quando todos os irmãos de barco – indivíduos em processos iniciáticos no roncó –, fina-
lizavam as suas refeições. Essa cantiga é extremamente ritmada e “coreografada”, havendo
muita movimentação dos braços dos iniciados que seguram o prato de comida, o balançam
lateralmente, o abaixam e levantam constantemente durante a execução da cantiga. Esta ação
foi observada como fortemente conectada com o que chamamos tríade interdisciplinar: canto,
117
118
de samba, por exemplo, nada se inicia sem a instituição de um conjunto rítmico e tudo será
conduzido por esse conjunto, do começo ao fim das atividades, assim como no desfile.
Estabelece-se, portanto, todo o sentido da reconexão com um passado remoto nos có-
digos internos identitários, como é o caso dos timelines e das levadas de caixa, repiniques e
também fortemente das levadas e variações dos surdos de terceira. Portanto, a música possui
um alcance em diversos indivíduos, tanto naqueles que a produzem como em toda a comuni-
dade. A prática musical é vista como elemento impossível de ser desvinculado dessas institui-
ções – os terreiros e as Escolas de samba. É ela que irá representar sentido para as ações artís-
ticas ou do cotidiano, não havendo a possibilidade da existência de nenhum desses locais sem
a prática musical como norteadora de processos e ações.
Apesar de sabermos de possíveis inovações, como terreiros em locais urbanizados ou
em prédios, e de transformações que envolvem mudanças que fogem à regra, como a não uti-
lização da tríade de atabaques – instrumentos identitários no Candomblé –, julgamos que essa
ausência acaba não dando conta de representar a estrutura de uma Casa de santo dentro da
tradição africana. Estes instrumentos fazem parte dos fundamentos, assim como as baterias
para suas Escolas. As musicalidades acontecem de diversas formas e, portanto, mesmo quem
não toca, também as realizam em respostas de coro nas cantigas, com palmas batidas coleti-
vamente na pulsação, ou nos timelines de determinados toques, como o agogô no Cabula e no
Ijexá. Além dos aspectos essencialmente musicais, reforçamos que tudo se faz cantando, dan-
çando e percutindo, seja o próprio corpo, com instrumentos, ou em qualquer material, como é
o caso de pratos, garrafas ou talheres.
4.2.6 Mito de origem nas práticas e filosofia de vida
A relação mítica, realidade nos terreiros pela fundamentação cultural ancestral, trans-
passa locais e é observada claramente em diversos setores nas Escolas de samba, e no Carna-
val como um todo. O mito, como origem dos sentidos para o cumprimento das atividades in-
trínsecas nesses locais, se justifica pela crença em significados culturais que relacionam os
indivíduos com a natureza e o universo como um todo. A possibilidade na crença de uma tra-
dição idealizada e reproduzida, representa um dos significados do mito de origem. Observa-
mos que o candomblé e as escolas de samba perpetuam isso como sentido das próprias práti-
cas, acreditando em algo originário e necessário. Isso conectaria e justificaria a própria atua-
ção e participação dos indivíduos dentro destes territórios. O próprio entendimento e práticas
cíclicas, repetitivas e ritualísticas, inclusive dentro da construção musical percussiva, também
representa tal relação. Quando não se dá conta de explicar ou justificar determinadas ações,
como o comprometimento ou a entrega dessas pessoas em suas obrigações, as entendemos
119
dentro do próprio Mito. Algumas ações podem não ter uma justificativa clara para uma pessoa
externa, porém para a pessoa evolvida na mitologia algo lhe toca, levando-a a tal entrega.
Queiroz (1992), referindo-se ao Mito, diz:
O Carnaval brasileiro apresenta algo a mais; encerra também a imagem de uma so-
ciedade alternativa e desencadeia a ação no sentido de colocá-lo no lugar daquela
que existe. Não haveria então um Mito carnavalesco, do qual a festa seria o rito?
(QUEIROZ, 1992, p. 181-182)
O autor analisa conceitos amplos sobre o carnaval, bem como a sua relação dentro do
sentido espiritual do rito, apesar de determinadas ambiguidades. A ambiguidade se dá pela
compreensão paradoxal da sociedade sobre o que é o carnaval em sua totalidade, fato que
contribui para a falta de aceitação da inter-relação entre a religiosidade e a festa, por exemplo.
O ritual do desfile representa a mitologia dos orixás de maneira constante. Nesse aspecto,
apresenta-se uma transferência do sagrado para o profano, saindo do terreiro para a sociedade
de maneira clara, sem os segredos do contexto apenas religioso. Para Queiroz, “a narrativa
carnavalesca brasileira toma um aspecto declarado de mito, expressando-se todos os anos, no
momento certo e marcado, por ritos específicos” (QUEIROZ, 1992, p. 183). O mito também,
segundo este autor, abrange a concepção do carnaval como evento ritualístico dentro do pró-
prio mito.
O conceito de mito pode extrapolar o aspecto religioso, pois compreende diversos sig-
nificados. Inclusive, no próprio candomblé, muitas das atuações se desprendem da religião,
exatamente por serem compreendidas dentro de uma rede de significados que ultrapassam a
religiosidade. As necessidades são outras e amplas, aquelas que conectam a pessoa com o
universo como um todo, no sentido energético e pela troca e somatória de forças da própria
natureza. O sentido de mito é comunitário, é onde a coletividade se encontra para determinar
novos momentos, novos caminhos através da performance. Apesar de também oferecer um
sentido de utopia, ele é a pura realidade de acordo com as práticas, muitas inexplicáveis e
injustificadas para algumas pessoas que não as entendem como essenciais, mas como escolhas
pessoais com conexões vistas como abstratas. Neste sentido, “o mito (...) é uma narrativa que
explica a realidade, a partir de dados de experiência” (QUEIROZ, 1992, p. 184).
Os ritos justificam o sentido do mito. Dessa forma, muito do que se produz em um ter-
reiro, nas diversas modalidades dentro do ritual, bem como nas práticas dos sambistas, repre-
senta sentido para uma busca constante de uma vida melhor, muitas vezes diferente da con-
vencional.
Sodré (1979), nos apresenta o samba conectado a um todo dentro da religiosidade de
matriz afro e, portanto, também tendo o mito como local de origem. A representatividade dos
120
orixás para as Escolas de samba é um ponto central desta conexão em muitos aspectos e seto-
res estruturais destas instituições.
Sodré (1979) estabelece uma relação territorial do mito, na qual o morro é um local de
reforço da identidade cultural negra, assim como a favela atualmente. O termo seria utilizado
para dar força às práticas culturais negras, pois é lá que elas acontecem, distantes da civiliza-
ção ou da parte mais urbanizada das cidades, chamada por ele de planície. O morro também
remete a um local de recolhimento e proteção da malandragem, algo misterioso e de reconhe-
cimento somente das pessoas que lá habitam. Um território cheio de códigos e que deve ser
visto como local de pouco acesso para outras pessoas, as que não fariam parte deste complexo
cultural negro. Sabemos que isso mudou muito hoje em dia, mas de certa forma a compreen-
são sobre o morro, ou a favela, ainda funciona assim e apresenta-se no imaginário de boa par-
te da população. O mesmo acontece com as determinações sociais sofridas ou associadas às
Escolas de samba e os terreiros, exatamente por estabelecerem seus códigos e por serem lo-
cais de resistência, assim como por muitos outros motivos já apresentados no início deste ca-
pítulo.
O morro, no contraste com a planície, significa um espaço mítico de liberdade. No
samba tradicional carioca, a frequente louvação (...) de aspectos da vida no morro
pode ser entendida como a referência a um dispositivo simbólico capaz de minar o
sistema de valor da cultura dominante. (SODRÉ, 1979, p. 46)
O autor afirma ainda que “o morro (...) é a utopia do samba (...,) a instauração filosó-
fica de uma ordem alternativa, onde se contestam os termos vigentes no real histórico” (SO-
DRÉ, 1979, p. 46). Da mesma maneira que Sodré associa o morro e o samba, nós, de uma
certa forma, atribuímos o conceito e sentido dos terreiros e das Escolas de samba como algo
fora da compreensão concreta social, pois as relações com os significados reducionistas midi-
áticos ou estratégicos, além do preconceito religioso e cultural, determinam a inferiorização
destes locais, a partir da subestimação do desconhecido, normalmente associado com algo
menor.
Existem diversas associações com a mitologia dos orixás e o samba, inclusive nos se-
tores das Escolas de samba. “Exu é o orixá que os pastores ou sacerdotes cristãos, ignorando o
sistema simbólico nagô, aproximam da concepção ocidental de demônio ou diabo” (SODRÉ,
1979, p. 48). O autor cita esta deturpação cultural também na música norte americana, especi-
ficamente no jazz. Segundo ele, desde a emancipação dos escravos em 1863, a chamada Devil
Music praticada nos cultos das igrejas negras, no sul dos EUA, teria sido uma derivação do
blues, associada ao diabo. No Samba, a figura de Exu, segundo Sodré, seria representada pela
síncopa, pela concepção da falta do tempo forte, que seria reproduzida pelo próprio corpo dos
121
Para Flávio, assim como muitos outros entrevistados, o descuido com os preceitos e a
utilização comercial da tradição afro pelas escolas de samba é um problema atual que dificulta
o entendimento de todos em relação à própria cultura, e também provoca alguns problemas já
observados em dias de desfile, como temporais, carros quebrados ou pegando fogo.
Toda Escola tem o seu orixá e os toques da bateria são em homenagem a eles. Eles
representam as agremiações ao mesmo tempo que dão proteção. Outra coisa, você
não lembra dos casos aqui em São Paulo de dias de tempestade no desfile de Esco-
las. O que acontece é que nem sempre é feito da forma correta. Os cuidados não
acontecem e aí já sabe, né. (SILVA, Dennys. 15/03/2019. Entrevista concedida a
Rafael Y Castro.)
Muitas questões que têm como base os mesmos fundamentos e preceitos, podem em
alguns momentos representar determinadas contradições. De fato, ficaria muito difícil deter-
minar quais seriam os motivos para acontecerem determinados acidentes ou descuidos com a
Escola. Com certeza existem razões concretas para determinados resultados com as Escolas
em dia de desfile, porém o que é considerado por parte de uma população, e faz sentido para
ela, também há de ser respeitado como uma sabedoria, mesmo que imaginária ou popular.
Nem sempre é o caso de tentar avaliar apenas a partir de um ponto de vista racionalista, frio e
calculista. Pierre Verger nos mostrou alguns caminhos com estudos da religiosidade, que se-
gundo ele não deveriam ser julgados com esse ponto de vista racional.
Por outro lado existe uma falta de cuidado com os preceitos, algo já relatado por al-
guns entrevistados, como é o caso do ogã alabê da Casa de Angola Kyloatala:
122
Depois que a mãe Obá faleceu desandou, nunca mais conseguiram se reerguer. Al-
guma coisa foi feita de errada. Os caras vão em outras casas mas não fazem o certo.
Querem mexer com magia e é proibido (MENEZES, Marcos - Tata Mukambila.
27/10/2019. Casa Kyloatala. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.).
123
O chamado “fundamento” que é feito em cada local, seja terreiro ou quadra, é uma
forma de zelar, pedir ajuda aos orixás, reverenciando as entidades para que tudo ocorra da
melhor forma nesses locais. A conexão com o orum também é feita a partir destes fundamen-
tos, como se alguém de um outro local sagrado estivesse olhando para todos os participantes
destes ambientes. É uma crença que reforça o envolvimento deste público com a ancestralida-
de e identidade herdada da diáspora. Nas quadras de algumas Escolas de samba, normalmen-
te as mais tradicionais como a Nenê de Vila Matilde, o fundamento – local separado no centro
dos terreiros, nos cantos dos barracões, nas entradas das Casas e no telhado, o que também
ocorre nas quadras das Escolas – está sendo feito de forma que foge aos preceitos da religião
e tradição, uma espécie de descuido com toda a questão ritualística. Alguns procedimentos
são deixados de lado dentro do roteiro tradicional nos terreiros, e por isso a ideia inicial não é
mantida em todos os locais onde há essa transposição – dos terreiros para as Escolas de sam-
ba.
124
Com relação aos símbolos utilizados em ambos os contextos aqui analisados, citamos:
a) velas diversas, b) quartinhas (vasilha de cerâmica utilizada para água oferecida para os
Orixás), c) alguidar (potes de cerâmica utilizado para oferendas, normalmente alimentos para
os Orixás), d) imagens diversas de santos, mina46 (axé assentado ou plantado), e) utilização de
charutos por ritmistas antes de entrar na avenida em dias de desfile e ensaios técnicos, guias
espirituais, f) altares, g) a recorrência ao jogo de búzios por parte de diretores das Escolas, h)
contratação de zeladores (pais de santo) para preparar os ambientes das quadras das Escolas
de samba, i) rezas e semelhanças entre os alusivos/hinos e o ritual religioso, j) escolha de lo-
cais específicos para os axés (canto e alto das quadras, minas centrais, salas sagradas, k) ba-
nhos espirituais nas casas de santo e antes de momentos de ensaios e apresentações com as
baterias. Além disso, fundamentos que são carregados nos terreiros e nas Escolas de samba, l)
branco como cor de roupas, m) o traje e trejeitos do orixá Exú e do sambista malandro – parte
do imaginário e da mitologia afro-brasileira e fundamento, n) cores dos pavilhões e bandeiras
levadas por porta-bandeiras, o) escolha de temas afro corriqueiramente para os enredos e nas
letras dos sambas, p) ala das baianas, q) reflexo e sentidos de práticas coletivas, r) ebós pré-
rituais (desfiles, ensaios técnico), s) utilização do fogo como elemento espiritual (foguetes
antes do início de ensaios técnico e desfiles e t) reverência e pedido de permissão aos Orixás
antes de diversas atividades.
Abaixo, detalhamos um pouco melhor alguns desses elementos:
- A mina
Após algumas entrevistas em busca de informações sobre quais elementos em comum
justificariam a conexão aqui investigada, ficamos surpresos com a descoberta do elemento
que apresentaremos a seguir. De fato, estamos tratando de um elemento central que simboliza
uma extensão dos próprios terreiros nas Escolas de samba, nesse caso mais especificamente
dos barracões (abaça) na nação Angola, para as quadras onde acontecem os rituais carnava-
lescos. Chamaremos assim porque o que iremos apresentar transforma e fundamenta, no sen-
tido religioso (sagrado), a realocação do terreiro para as quadras, normalmente naquelas Esco-
las mais tradicionais. Em São Paulo colhemos informações mais especificas no GRCSES Ne-
nê de Vila Matilde, Vai-Vai e Camisa Verde e Branco, o que não quer dizer que esse encontro
aconteça somente nestes locais.
46
A mina é um buraco realizado no centro dos locais com os chamados axés plantados, estes são formados por
elementos com o objetivo de realizar uma alquimia entre eles. Estes, tornam-se símbolos de proteção de todo o
espaço delimitado como terreiro e em algumas quadras de escola de samba.
125
A mina representa, para o povo de santo – no caso aqui também para os sambistas, se
é que é possível separar um do outro –, todo o resguardo no sentido de proteção para o local
onde ela está estabelecida, o centro dos barracões. É uma espécie de buraco central onde fi-
cam depositados elementos simbólicos da conexão destes indivíduos com o sagrado, com a
energia protetora universal e com a própria natureza como um todo. Estes elementos ficam
dentro dela e não são expostos para o público externo, podendo ser colocados ou retirados
somente para os ritos por pessoas iniciadas na religião, nesse caso o ogã ashogum, que possui
essa e outras responsabilidades após o zelador. Somente eles podem mexer com tais elemen-
tos.
A mina possui função protetora no sentido cíclico, onde a energia de dentro promovi-
da pela alquimia dos elementos se conecta com a energia do coletivo, das pessoas que estão
em volta dela pelo lado de fora. É entendido, assim como o sentido universal na conexão com
a natureza dos africanos, que essa energia se renove por via de mão dupla – de dentro para
fora e de fora para dentro. Obtivemos permissão para falar neste trabalho, sobre algumas
questões dentro da religiosidade, porém não todos os detalhes – como quais elementos seriam
detentores deste poder de proteção. Dentro da tradição do candomblé, caso estes segredos
sejam expostos a não iniciados, por exemplo, pode-se afetar a própria proteção e, dessa forma,
interferir negativamente no desenvolvimento das pessoas que estão sob esses cuidados.
Não nos cabe julgar, apesar de já comentarmos em parte sobre essa problemática – a
da abertura dos segredos como expansão do próprio reconhecimento destas práticas cultural-
mente. Entendemos também que a não abertura dos segredos não implica no alcance desta
pesquisa, pois são muitos os pontos necessários que, de certa forma, dão conta do trabalho
científico. Segundo Tata Mukambila (Marcos Menezes) – ogã ashogum da Casa Kyloatala –,
a mina é um assentamento fundamental dentro de uma Casa de Candomblé, o equilíbrio entre
o céu e a terra:
Muitos dizem ser a base da nossa força um filtro de energia dentro do nosso abaça,
tem muitos fundamentos plantados. O fluxo de energia é infinito. Não é qualquer um
que pode mexer. Muitos preceitos precisam ser feitos antes desse assentamento –
resguardo de 3 ou 7 dias de quem irá mexer (zelador ou ashogum), banhos de ervas
(amassi), ou ebós. É muito sério, essa função compromete o destino de todos da Ca-
sa. Os elementos utilizados, posso te falar mas não é permitido que seja escrito.
(MENEZES, Marcos - Tata Mukambila. 10/12/2019. Entrevista concedida a Rafael
Y Castro.)
Para Flávio Luís Ferreira de Souza (Templo Espírita Maria Quitéria), sambista e um-
bandista, as quadras das Escolas de samba são realocações dos próprios terreiros. Além das
pessoas que em geral as frequentam, muitos filhos de santo resguardam estes locais, sendo
126
que a mina é um elemento em comum observado e relatado por pessoas responsáveis por es-
tes cuidados:
Há muito tempo atrás me falaram de uma mina na Nenê, fiquei sabendo que foi pre-
parado por um pai de santo na época e que o objetivo da existência dela na quadra
era o mesmo dos terreiros, a proteção necessária para as pessoas do lugar e para um
bom andamento das atividades. Isso é muito comum, desde o início do Samba essas
relações são parte do imaginário e de toda a realidade dos sambistas e filhos de san-
to. É só você pensar na bateria e nas baianas por exemplo, mas tem muitas outras
coisas também. (SOUZA, Flávio Luís Ferreira de. 05/04/2019. Projeto Guri, São
Paulo/SP. Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
Como vimos, a mina faz parte dos chamados fundamentos do terreiro e da Escola de
samba. Mesmo que a totalidade dos participantes não conheça detalhes, e muitas vezes nem a
própria existência dela, ela representa esse sentido na conexão com o sagrado. Nem mesmo
nos próprios terreiros a totalidade dos participantes tem a consciência ou conhecimento de
detalhes sobre a importância da mina, mas o que nos chamou a atenção é o quanto ela é repre-
sentativa para as pessoas que sustentam esta conexão, pessoas responsáveis pelo resguardo de
todos espiritualmente e, essencialmente, pela manutenção de uma tradição que prevalece nes-
tes locais.
O chamado axé – termo utilizado pelo povo de santo expandido para outros locais e
utilizado dentro da mina –, designa uma espécie de força ou poder pessoal na relação com o
sagrado e com todas as pessoas. Apesar de ser utilizado exageradamente e também ser alvo de
preconceito, o sentido essencial do termo se relaciona com a cultura mantida pela própria re-
ligiosidade afro-brasileira.
Percebendo que alguns elementos como a mina estabelecem sentido para parte das
pessoas que frequentam esses locais, podendo ser refletidos (mesmo que de maneira inconsci-
ente) dentro de todo o ritual, essa seria mais uma prova da extensão do rito ou da reconexão
de um local com o outro. Muito do que acontece em uma Escola de samba, como o próprio
desfile, reproduz aquilo que é desenvolvido nos terreiros: metodologias, relação com o sagra-
do, processos artísticos, relações e reproduções de referências musicais afro diaspóricas, entre
outros.
Partindo do pressuposto de que a mina existente em uma quadra de Escola de samba
esteja ali em função de uma prática religiosa que transborda para estes locais, ela seria o sen-
tido essencial do entendimento do barracão da Escola como o próprio barracão (abaça), e por
isso haveria a necessidade da existência dela no centro de uma quadra como fundamento deste
local. O axé contido nela pode determinar o andamento das ações e consequentemente e reco-
nexão com o sagrado dentro ou fora dos terreiros:
127
A noção de axé, possui em si certo caráter coletivo que integra coisas, pessoas e di-
vindades num mesmo plano, estabelecendo relações de propriedade que não são ex-
clusivas a um indivíduo. Como recurso analítico parto da separação de três eixos
principais – o espiritual, o material e o jurídico – para demonstrar como a fundação
do espaço sagrado do terreiro opera em níveis que se interconectam e participam de
uma mesma realidade. Nesse sentido, fundar um axé é dar início ao processo que
envolve a construção de uma casa de santo em sua totalidade, o que também não
deixa de evidenciar a atuação das divindades e espíritos na política dos seres huma-
nos. (EVANGELISTA, 2015, p. 2)
- Rezas e hinos
Segundo o dicionário etimológico e informal, o significado dos termos orar, rezar e re-
citar, são os seguintes:
O latim "orare" tinha o sentido de pronunciar uma fórmula ritual, uma súplica, um
discurso, pedir, rogar, pleitear, advogar. Estas duas últimas acepções estão presentes
nos cognatos "oração" (lat. "oratione") e orador, da linguagem jurídica. Mas o verbo,
por influência do latim da Igreja, especializou-se no sentido de suplicar a Deus, rezar.
"Recitare", ler em vez alta, recitar, ler, além da forma erudita "recitar", com o mesmo
sentido, deu-nos a forma popular "rezar", cujo sentido se especializou como recitar ou
ler orações. (...) Rezar vem do latim recitare, que também deu em portu-
guês recitar. Significa: adoração, louvor, súplica, rogo, prece, pedido ou petição,interc
essão, agradecimento, expiação, bênção, presença. Rezar é uma forma de obter para si
mesmo e/ou para os outros graças, bens e bênçãos de Deus e a salvação da alma. (Di-
cionário etimológico online)47 .
128
como percussão e movimentação muito ampla. Possui duração de 55 minutos por período.
Esse momento foi bastante necessário para compreender como a prática religiosa afro-
brasileira é ainda uma reconexão com o que foi trazido na diáspora e toda a sua relação com a
ancestralidade e especificidades culturais africanas. Nos fez muito sentido participar deste
aprendizado para compreender a profundidade destas inter-relações culturais entre Brasil e
África.
A reza ou oração, como sabemos, é algo comum em qualquer prática religiosa. Apesar
disso, nos atentamos a algumas particularidades que evidenciam a função da reza como ele-
mento inicial pré-ritual: a) no começo de ensaios e festas nas quadras, b) nos ensaios técnicos
e c) no chamado esquenta antes do desfile e dos ensaios técnicos. O motivo principal é o fato
de ser realizada por todos os sambistas. Não há a necessidade de que se tenha projeção vocal,
mas sim que se saiba a letra dos hinos alusivos, o que se aproxima muito da voz falada da
reza. Esse momento é o de celebração e concentração para que se tenha foco durante todo o
desfile. O intérprete principal de samba enredo (antigo puxador), realiza uma série de comu-
nicados solicitando concentração, determinação e entrega para que o objetivo central do desfi-
le seja alcançado: o título do campeonato daquele ano. É um momento bastante especial e a
partir dele a emoção, a conexão e a ancestralidade são colocadas na pista.
Tudo aquilo que foi preparado durante o ano passará em minutos na avenida e depen-
derá da atuação nos itens descritos acima, de cada um dos integrantes da Escola. A força do
trabalho coletivo é despertada pelo intérprete que dá diversos recados no microfone com alto
volume de som, possibilitado pelo sistema disponível no sambódromo, ao mesmo tempo que
canta hinos alusivos à Escola e também sambas de anos anteriores. As letras dessas composi-
ções são sentidas e atingem de forma emocional os componentes, entre eles a bateria como
um todo.
Muitas manifestações dos ritmistas foram observadas e também realizadas por nós, pe-
lo fato de participarmos ativamente desde 1995 destes momentos, entendidos como centrais
para a profundidade do que queremos relatar. Somente passando pelas mesmas experiências
dos investigados conseguimos sentir tamanha significação de certos comportamentos.
Nesse momento, muitos ritmistas se abraçam (e isso também é solicitado pelo intér-
prete) e choram pela emoção derivada dos hinos alusivos e outros. Esse sentido da reprodução
de uma emoção coletiva também nos parece muito semelhante ao momento de uma reza cole-
tiva. Apesar de os participantes terem diferentes religiões (inclusive o próprio intérprete pode
ter uma que não necessariamente seja de matriz afro), a musicalidade e a cultura ancestral nos
parece estar estabelecida por grande parte dos sambistas. Somente em alguns casos nos pare-
129
ceu não existir tal reconhecimento. Mesmo com tanta diversidade, e crenças levadas pelos
sambistas para a avenida ou quadras, ficamos atentos àquelas que se mostraram semelhantes
ao que é realizado no candomblé de Angola, justamente por ter passado por processos de fei-
tura de santo – a chamada iniciação na religião – e os ritos complexos permeados pela cultura
Bantu via diáspora, marca e base encontrados nos fundamentos do candomblé de nação Ango-
la.
Nesse sentido, assim como nos hinos e sambas, onde existe a possibilidade de variação
na escolha do repertório a ser cantado no esquenta das Escolas de samba, essas rezas também
podem ser diferentes entre as Casas de culto, nesse caso até por conta das adaptações (corrup-
telas) realizadas entre as palavras de origem Bantu e as de origem portuguesa. Alguns desses
detalhes, mesmo que não sejam centrais, são importantes para situarmos e entendermos as
complexidades e tensões nestes locais. De fato, o que achamos essencial destacar aqui são as
semelhanças encontradas entre algumas rezas do Ingorossi feitas por todo filho de santo. Em
muitas passagens de um trecho para outro de uma reza, por exemplo, ocorrem momentos de
utilização de palmas, puxadas pelo recitador, para que os outros respondam, o que configura
uma semelhança com aquilo que o intérprete faz em um esquenta, tanto na forma que cha-
mamos de pergunta e resposta na voz, como também na utilização de percussão corporal já
discutida – nesse caso as palmas. Ou seja, o puxador da reza executa determinado padrão rít-
mico e outros respondem coletivamente, similarmente ao que é realizado entre os naipes de
bateria – as famosas bossas, breques ou paradinhas.
Uma das diferenças é que o Ingorossi não pode ser recitado por pessoas não iniciadas
e nem em festividades abertas, portanto faz parte dos chamados segredos necessários à pre-
servação das particularidades da religião, aquelas que sustentam o conhecimento como forma
de garantia de direitos e do próprio sentido e luta existencial, já que seria a única coisa, assim
como a alma destes indivíduos, não passíveis de acesso. Existem variados discursos que justi-
ficariam esse comportamento por parte de indivíduos remanescentes do processo de escravi-
zação. Muitos deles são herdeiros diretos de escravos e ex-escravos, tendo um distanciamento
temporal pequeno, portanto sentiram de perto algumas destas questões.
Outra semelhança encontrada foi que, além das palmas realizadas em pergunta e res-
posta como os breques – algo natural na cultura e musicalidade percussiva africana (conjuntos
com djembês, dununs, sangbans e kenkeli) e afro-brasileira como um todo –, as linhas cen-
trais (chamadas de timeline) sempre referenciam padrões herdados e adaptados via diáspora,
algo natural na musicalidade local. Além destes padrões em comum e dos diálogos (pergunta
e resposta), as palmas também entram complementando ritmicamente algumas rezas, unindo
130
canto com ritmo, algo comum nas atribuições de um ritmista em uma Escola de samba e na
contextualização necessária ao indivíduo que estuda ou investiga musicalidades intrínsecas à
Cultura Popular, algo típico da oralidade. O próprio Ingorossi não pode ser escrito, justamente
para não ser transmitido e entregar o conhecimento para quem não possa acessá-lo. Este pro-
cesso torna-se extremamente dificultoso para os novos filhos de santo, pois dependendo da
formação que se tenha, geralmente a escrita (falamos de letras de rezas e canções) facilitaria e
acabaria acelerando o processo de aprendizagem.
Fazendo um paralelo com as atribuições do ritmista, eu mesmo sou obrigado a decorar
o samba de cada ano, porque sou ritmista de uma Escola na cidade de São Paulo. Nesse pro-
cesso, me utilizo do recurso da escrita, tanto da letra como de algumas bossas (escrita musi-
cal) e, após escrever duas vezes o samba inteiro enquanto o escuto diversas vezes, tenho mai-
or facilidade na memorização e, após este processo, consigo executar meu instrumento em
movimento (outra necessidade nas baterias) e cantar o samba da Escola. Essa semelhança na
necessidade de cantar, seja em reza ou não, é uma característica de ambos os contextos, exa-
tamente pela necessidade de se entender e criar a raiz da própria cultura.
Outra semelhança, é que as rezas que formam o Ingorossi são bastante musicais no
sentido melódico, na divisão rítmica e na harmonia, algo comum aos sambas. Muitas se asse-
melham de fato a melodias conhecidas nas Escolas e portanto fariam parte da estrutura musi-
cal herdada via diáspora.
O que nos pareceu interessante, foram diversos aspectos em comum, muitas vezes di-
fíceis de serem explicados ou justificados, mas sentidos de maneira muito próxima em relação
às similaridades e significados de processos que envolvem e estruturam toda esta complexi-
dade e proximidade cultural. Aliás, muito do que se faz nestes ambientes fundamentados na
oralidade, é exatamente realizar sem a necessidade de dar maiores explicações. Nos pareceu
que esta prática, nesse sentido, se assemelha muito ao que chamamos de performance, no
mais amplo sentido do termo – a própria obra estabelecendo o sentido da execução e conec-
tando-se com o todo. O sentido da reza é reproduzir em emoções o que o executante realiza,
como se fosse uma introdução de todo o trabalho que será apresentado, e também tem o obje-
tivo da troca, da comoção, da parceria necessária entre o performer e o ouvinte, ou entre o
sambista e o público da arquibancada.
Enfim, a comoção causada pela reza inicial no esquenta, juntamente com a qualidade
do samba e de todas as alas da Escola, poderá determinar em que nível acontecerá a troca e o
quanto ela atingirá as pessoas de fora. Isso é central para uma Escola de samba, podendo gerar
até pontuações em harmonia e evolução, pois quanto mais as pessoas de fora reagirem ao que
131
está sendo mostrado e proposto de forma geral por toda a Escola, mais será estimulada a pró-
pria evolução dos passistas. Por isso, o momento inicial, a reza, determina também um bom
início que influencia todo o andamento de um desfile.
- Charutos e Marafos
Nas Escolas de samba, ocorre uma associação direta com a ancestralidade – africana e
afro-brasileira. Esta associação é muitas vezes automática e aceita pela maioria da comunida-
de, mesmo por pessoas que possuem outras crenças, mas entendem a cultura ancestral como
algo diretamente ligado ao carnaval, caso contrário não estariam ali. Por outro lado, existem
aquelas que não compreendem dessa maneira, como é o caso de pessoas que mudam de reli-
gião e acabam saindo das Escolas, o que também ocorre.
Dentro e fora das quadras das Escolas de samba, percebemos outras práticas idênticas
às que acontecem nos terreiros. No momento do esquenta, por exemplo, alguns dos ritmistas
que são filhos de santo, fumam charutos antes de começarem a tocar, hábito comum em um
terreiro quando os yawós estão incorporados pelos orixás, mais especificamente pelos cabo-
clos e boiadeiros. O ato de fumar charuto pode ser compreendido pelo leitor como um ato
comum, independente das conexões aqui analisadas. No entanto, devemos observar que as
pessoas que fumam o charuto, em sua grande maioria, são exatamente aquelas com cargos
específicos na religião, caso dos ogãs, yawós e até zeladores (pais de santo). Como na Escola
de samba e, portanto, nas baterias, há muitos envolvidos por conta da circularidade de indiví-
duos entre ambos os locais, notamos esta prática e sentido associados à religiosidade no
acompanhamento de diversos esquentas.
Conversando com alguns desses indivíduos, foi-nos dito que o efeito de fumar charuto
representa uma conexão espiritual necessária para a performance que se seguirá – o desfile,
ensaio técnico, entre outros. A própria imagem da pessoa fica muito parecida em ambos os
locais, parecendo que está realmente em um estado de transe controlado. Apesar de algumas
pessoas – como é o caso de Anderson Jorge Enéas (Babalorixá e diretor de bateria) – não gos-
tarem de fazer determinadas conexões por verem uma necessidade em separar o sagrado do
profano e ter maiores cuidados e respeito com a religião, que acreditam e defendem a separa-
ção, por outro lado mostram e praticam diversas similaridades, dentro e fora dos terreiros (le-
vada de ripa mor, incorporação, entre outros).
Há também uma variedade de bebidas alcoólicas, vendidas ao redor do Sambódromo
para os sambistas, combinações que em alguns casos são chamadas de marafo. Esta nomeação
se dá por conta da relação com um destilado específico tipicamente consumido pela pessoa
132
incorporada no orixá Exu. O chamado marafo de Exu é entendido como a bebida principal do
próprio Exu. Ouvimos muito, em dias de ensaios, essas referências: É hora do marafo, Está
na hora do marafo, Vamos no marafo.
A utilização de um termo que se refere à bebida típica de Exu, em ambos os locais, re-
presenta parte do reconhecimento estrutural dos sentidos entre eles, ou seja, tanto na estrutura
do xirê como na do terreiro. Vemos então que é um termo aceito e utilizado dentro e fora do
terreiro, normalmente por quem divide a religiosidade com o samba, onde o marafo é conside-
rado também a bebida dos ritmistas, muito significativa para os sambistas.
Também ouvimos falas de diretores pedindo para os ritmistas “maneirarem” (não exa-
gerar) no marafo antes do desfile. Atualmente há um trabalho muito disciplinado dos mestres
e diretores de bateria, aqueles considerados modelo de gestão em relação ao comportamento e
performance dos seus ritmistas, caso do mestre Zoinho no GRCSES Império de Casa Verde.
Não só há uma tentativa de controle sobre o consumo de bebidas alcoólicas e outros itens co-
muns ao contexto por esses líderes, mas também por ritmistas que entendem e priorizam uma
certa concentração a partir do autocontrole. Assim como nos resultados do desfile, analisados
segundo critérios de um sistema de julgamento ocidentalizado – na forma de compreender e
esperar certas características sonoras como limpeza, equalização e equilíbrio. Há assim, uma
certa exigência e tentativa de controle de determinados hábitos como a bebida. Normalmente,
a maior dificuldade com esse tipo de ação se dá nas Escolas mais tradicionais.
4.3.1 Elemento ritual
Na tentativa de compreender as dinâmicas das práticas diversas que ocorrem nos ter-
reiros e nas baterias (artísticas e não artísticas) como rituais, pois possuem uma estrutura para
que elas aconteçam e nem sempre o ritual deve ser visto como algo ligado à espiritualidade
mas sim à celebração de um resultado individual somado ao resultado coletivo de um grupo,
percebemos que a sensação dos grupos aqui analisados dentro das suas práticas é bastante
ritualística. Lembramos a importância de diferenciar o conceito de ritual do Ocidente, oposto
às ações do cotidiano que fazem sentido nas necessidades de rotina de povos que ritualizam
práticas cotidianamente, como uma necessidade prática interligada com a arte. Para a realiza-
ção de qualquer ato como cozinhar, lavar roupa, tomar banho, há um rito que precede, acom-
panha todo o tempo da atividade e fecha a ação, seja ela qual for.
Percebemos essa característica na África por diversas vias, mas também a percebemos
essencialmente ao passar pelo processo iniciático religioso no candomblé, bem como nos
momentos dentro e fora da quadra do GRCSES Império de Casa Verde com a comunidade
desta Escola. Há ocasiões em que isso pôde ser vislumbrado, como nos momentos de deslo-
133
134
de respeito aos orixás, d) a utilização da cor branca pela neutralidade e limpeza espiritual e e)
a relação e necessidade da utilização do corpo como um todo no canto, ritmo e dança.
Uma Escola de samba quando apresenta um enredo através de suas alas e toda a catar-
se promovida no desfile pode ser, e é entendida, como um grande ritual, reflexo do próprio
xirê dos terreiros. Alguns pesquisadores estabelecem relações ritualísticas, mesmo que de
forma mitológica (que compõe o imaginário de Sambistas e de algumas pessoas externas),
entre setores específicos das Escolas e os terreiros: a) comissão de frente com o orixá Exú,
por conta da função deste setor de abrir caminho para toda a Escola passar, assim como em
qualquer xirê é obrigatório cantar e pedir permissão para esse orixá, b) ala da baianas com as
mães de santo, c) ritmistas com os ogãs, d) a utilização da percussão como linguagem e com
vocabulário próprio através da oralidade em alguns instrumentos, com forte destaque no rum
e no primeiro ripa, promovendo troca com dançarinos, passistas ou yawós.
Para Canclini (2003), também há uma relação e importância do ritual dentro da possi-
bilidade de o indivíduo renascer, reconectando-se à sua essência. Nesse sentido, consideramos
os ambientes estudados, o candomblé e o samba, como momentos e estados ritualísticos que
promovem a (re) conexão com a cultura aos antepassados:
A palavra de ordem que sustenta a magia pré-formativa do ritual é “transforma-te no
que és”. Você que recebeu a cultura como um dom e a tomou como algo natural, in-
corporado ao seu ser, comporte-se como você já é, um herdeiro (CANCLINI, 2003,
p. 193).
O ritual então é tratado como uma forma de deslocar o indivíduo das situações, com-
portamentos e condições sociais, oferecendo uma simbologia daquilo que, a partir de uma
nova atuação, pode proporcionar aos envolvidos. Isso, de certa forma, deixaria todos em uma
posição igualitária (mesmo que simbólica), o que potencializaria o conhecimento herdado,
utilizado para fortalecer a sua própria existência:
O ritual, sanciona então no mundo simbólico, as distinções estabelecidas pela desi-
gualdade social. Todo o ato de instituir simula, através da encenação cultural, que
uma organização social arbitrária é assim e não pode ser de outra maneira. Todo o
ato de instituição é “um delírio bem fundamentado”, dizia Durkheim, “um ato de
magia social”, concluiu Bordieu (CANCLINI, 2003, p. 193).
136
texto analisado: a) o vocabulário do rum e sua relação com a dança e também com a condução
do conjunto percussivo do candomblé, b) o vocabulário do repinique e sua relação com todo o
conjunto percussivo (a bateria) e com a dança. Um detalhe sobre o qual também vale a pena
refletirmos, é que o rum é o único atabaque no candomblé da nação Ketu que pode ser tocado
com um aquidavi e uma mão sem baqueta. Os outros (o rumpi e o lé) precisam ser tocados
nesta nação com dois aquidavis cada um deles. Notamos aqui certa semelhança com os toques
dos tambores piano, repique e chico (trilogia do Candombe – gênero afro-uruguaio), com
muitas similaridades com relação às técnicas, padrões rítmicos e levadas, nos permitindo per-
ceber a enorme influência e ramificação da musicalidade herdada da diáspora negra. Ou seja,
ela não se faz presente apenas na transição dos elementos dos terreiros para as baterias, mas
apresenta uma conexão bem mais ampla com muitas outras musicalidades.
Voltando à discussão mais específica deste tópico, além de todo o ritmo produzido pe-
los executantes de repiniques e atabaques e suas variações dentro das próprias levadas, há um
complexo discurso musical que soa como improviso, realizado pelos alabês e primeiros repi-
niques, que é utilizado em momentos de interação entre a percussão e os dançarinos, sejam
estes passistas ou yawós. Existe um reconhecimento de determinados padrões rítmicos utili-
zados em fraseados específicos que são reconhecidos pelas pessoas que dançam. A partir des-
tes padrões, haverá um diálogo entre a percussão dos ogãs e ritmistas com os dançarinos –
passistas e yawós. Para que isso aconteça é necessário muitos anos de prática e convivência
em ambos os contextos, pois este discurso musical, necessário para esta função – a de se co-
municar com outras pessoas, no caso aqui com dançarinos, sem qualquer outro recurso, ape-
nas com toques e variações específicas –, é muito complexo.
Normalmente, o que está sendo proposto neste diálogo pode durar muito tempo, entre
5 minutos ou mais, o que já é bastante para um diálogo rítmico. Muitos ogãs e primeiros repi-
niques tornam-se especialistas neste diálogo elaborado para a dança. É muito comum observar
pessoas que se destacam nestas funções. Normalmente, são aquelas mais atentas ao todo nes-
sas manifestações, e que se preocupam com os aspectos gerais dos ritos e de todo o ritual, não
somente em executar um instrumento como se estivesse desconectado do todo. Quem partici-
pa destes grupos acaba tendo outras conexões com toda a estrutura, seja espiritual ou sim-
plesmente artística. O espetáculo como um todo depende dessa relação. Por isso, também os
ritmistas e ogãs apresentam uma relação de entrega ampla com o conjunto da obra. Todos
precisam cantar, tocar e se movimentar. Apenas dessa forma entenderão a importância da
individualidade ampliada no coletivo.
137
Além deste aspecto específico, e que já justifica a utilização da percussão como lin-
guagem, também gostaríamos de enfatizar a própria importância da produção da sonoridade
como um todo nestes grupos. A resultante sonora proporcionada pela massa de todo o conjun-
to é de uma potencia incalculável, pois o volume de som é uma característica e também uma
necessidade marcante nas baterias e nos terreiros. O som reverbera a muita distância do local
onde os ritmistas e ogãs estão tocando. No caso das baterias, por exemplo, é necessário que
toda a Escola escute o ritmo que sustenta o desfile e, no caso dos terreiros, a intensidade utili-
zada na performance também poderá determinar momentos de incorporação, ou não, na pró-
pria comunicação entre o atabaque e os outros filhos de santo, como já dito no caso dos
yawós. Entendemos que a intensidade necessária e proporcionada pelas baterias e no can-
domblé, também servem como uma comunicação possível e com longo alcance.
Nesse sentido, a percussão é utilizada como linguagem, a partir do discurso musical
aliado à potência sonora necessária para a execução dos roteiros nos xirês e desfiles. Do
mesmo modo, por conta da consideração da percussão como linguagem, mostra-se necessária
certa coerência entre aquilo que é executado e o ritual em si. Citamos aqui uma referência na
qual fica clara a problemática do ogã não conseguir dar conta da comunicação desejada entre
o toque e a dança:
Chamo a atenção para o fato de que os alabês atuais estão fazendo variações demais
no rum, tocando muito rápido e prejudicando a dança dos Orixás. Ressalto a dife-
rença entre tocar ritmos do Candomblé em um grupo de folclore e tocar em um ritu-
al de terreiro, afirmando que o Orixá pode até parar de dançar se o alabê não estiver
tocando direito. Sinto saudade da época em que se perguntava ao ogã mais velho
como era que se tocava e dizia que é preciso respeitar os mais velhos. (Vadinho do
Gantois, in TRINDADE, 2019, p. 133)
139
A memória representa a carga ancestral cultural que dá sentido para um grupo, seja pe-
la prática de algo parecido com o que se fazia anteriormente ou pela tentativa de estabelecer
uma nova história. No futuro essa tentativa também fará parte da memória e será utilizada
como estratégia de reconexão e de referência para um novo modelo que se renova ciclicamen-
te. Este processo é natural ao ser humano e é um exercício de equilíbrio entre o passado e o
futuro, a partir de experimentos do presente.
A relação entre as culturas africanas e a brasileira via diáspora não pode ser entendida
apenas como origem e cópia, mas sim como algo que se transforma e continua a se transfor-
mar por motivos diversos. Hall (2013) discute a flexibilidade da cultura, a importância da
tradição, a mutação necessária ao crescimento e a perspectiva dos indivíduos de diversas ge-
rações. Este conceito de cultura de Hall permeia também a representatividade da própria Me-
mória:
[...] cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não
é uma arqueologia. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recur-
sos, seu trabalho produtivo. Depende de um conhecimento da tradição enquanto o
mesmo em mutação e de um conjunto efetivo de genealogias. (HALL, 2013, p. 49)
Memória, para Silva (2005), é também algo estabelecido como fundamental nas práti-
cas dos africanos. Para nós, isso reflete diretamente nos terreiros e nas Escolas de samba, e no
fato de esses locais serem politicamente importantes por preservar a Memória:
Memória deixa de ser apenas função psíquica ou terminologia de especialistas para
habitar o cotidiano daqueles cujo direito vital ao passado tem sido negado por impe-
dimentos políticos, econômicos ou sociais. Também no Brasil as lutas culturais por
História e Memória têm-se dado em lugares de difícil apreensão, contudo, não há
como apagar a presença desses sujeitos, que a despeito de uma escrita historiográfi-
ca, teimam em se inscrever nas trajetórias, seja da cidade, da região ou do país. En-
tre estes encontram descendentes de povos africanos na diáspora. (SILVA, 2005, p.
41- 42)
Mais uma vez, Silva (2005) relaciona a Memória com a própria história dos afrodes-
cendentes e também com seu aspecto identitário, algo discutido mais profundamente em nos-
so tópico seguinte.
Criações, renovações, rupturas e permanências em enredos, cortejos e encenações
dramáticas somam-se com as técnicas de construção e manejo de instrumentos mu-
sicais dos africanos na diáspora, fruto expresso de uma profusa cultura material e
musical que, ao início do século XX, demonstraram-se fundamentais constituintes e
definidoras dos estilos musicais contemporâneos. Quando falamos de História de
140
4.4.2 Identidade
Muitos autores já discorreram sobre aspectos relevantes para o entendimento e análise
do comportamento de indivíduos inseridos em contextos sociais, naquilo que se refere à iden-
tidade. Achamos importante mostrar alguns pontos sobre essa temática, por servirem como
reflexão acerca de possíveis características e significados das dinâmicas existentes nos locais
aqui analisados. Isto se mostra necessário para se ter uma melhor compreensão sobre as carac-
terísticas gerais e identitárias da cultura diaspórica. Para Canclini (1998), por exemplo, a iden-
tidade de um grupo está ligada essencialmente aos indivíduos unicamente do contexto, os que
são de dentro:
Ter uma identidade, sem antes de mais nada, ter um país, uma cidade ou um bairro,
uma entidade onde tudo o que é compartilhado pelos que habitam esse lugar se tor-
nasse idêntico ou intercambiável. Nesses territórios a identidade é posta em cena,
celebrada nas festas e dramatizada também nos rituais cotidianos. Aqueles que não
compartilham constantemente esse território, nem o habitam, nem tem portanto os
mesmos objetos e símbolos, os mesmos rituais e costumes, são outros, os diferentes
(CANCLINI, 1998, p. 77).
Costa (2008), nos fala de modificações ocorridas de acordo com os processos escrava-
gistas no período que antecede a abolição. Para ele os terreiros seguem como instituições de
reconexão identitária. Para nós, não somente os terreiros, mas também as Escolas de samba,
representam essa função – a de tentativa de autorreconhecimento identitário. É nestes locais –
terreiros e Escolas –, que a Cultura afrodiaspórica se mantém, apesar de toda a transformação
sofrida na industrialização do carnaval, da deturpação midiática e do embranquecimento nos
terreiros e nas Escolas de samba:
Ao se aproximar os anos precedentes à Abolição, identidades africanas específicas –
cassage, baca, xambá – e/ou gerais – nagô, mina, jeje, angola – foram tomando no-
vos significados. Nos espaços religiosos como os terreiros de culto aos orixás, essas
ressignificações identitárias passaram a ser compreendidas dentro da lógica de expe-
riência do tráfico e escravização atlântica que os ex-escravizados e seus descenden-
tes foram reinventando para reestruturar suas ‘raízes’ étnicas, culturais e religiosas
esgarçadas no movimento transatlântico. (COSTA, 2008, p. 01)
Para Stuart Hall (2011), três aspectos com relação à definição de identidade são consi-
derados: a) o homem nasce e permanece da mesma forma até a sua morte, b) o homem se
altera de acordo com a sua interação com a sociedade e c) a identidade passa a ser fragmenta-
da e o indivíduo pode conter várias. Hall (2011) também usa o termo identidades culturais,
nas quais aspectos de identidade surgem do pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguís-
ticas, religiosas e nacionais (HALL, 2011, p.8).
141
Estamos falando então de uma certa perda, mas também da assimilação de uma cultu-
ra, identidade e saberes. O autor também destaca a perda de raízes anteriores nesse processo.
Compreendemos que parte dessa perda é natural à própria migração e outros fatores, como o
caso da escolha estratégica de assumir ou não as heranças. Porém, percebemos nas comunida-
des investigadas, que existe uma Memória enzimática – termo utilizado pelo pesquisador Luiz
Antonio Simas sobre estas relações:
Acho importante que saibamos a origem dos toques. A gramática dos tambores é
uma realidade que observamos também nas baterias, – esta, derivada do que se pro-
duz musicalmente nos terreiros afro-brasileiros. Escola de samba precisa ser pensada
amplamente, a partir do complexo de saberes das culturas da diáspora. Os tambores
142
Entendemos que a essência se mantém mais fortemente nesses locais por eles terem
uma função existencial. São locais sagrados que, mesmo adaptados, servem à troca de sabe-
res; saberes estes apropriados, mantidos e transformados em uma nova identidade, algo que
realmente só foi possível nesse processo que se divide em três etapas: a) a diáspora (e no caso
aqui, a escravização de seres humanos), b) os terreiros e c) as Escolas de samba (uma exten-
são dos próprios terreiros).
Para Canclini (1998), a identidade dos envolvidos torna-se possível nos próprios locais
onde elas acontecem, nos chamados territórios. Isso é socialmente ampliado se analisarmos a
projeção de alguns destes sujeitos a partir da relação identitária com o seu próprio território.
Por outro lado, Canclini (1998) também observa que existe uma construção de espetaculariza-
ção em relação aos mitos nacionais, o que de fato não corresponderia à realidade das relações
sociais existentes, da própria identidade. Em alguns casos, este comportamento considerado
espetacular poderia ser entendido como um desvio da identidade, da essência do ser, como se
fosse um desvio cultural, não correspondendo às suas origens.
Ao mesmo tempo, essa pode ser uma estratégia de sobrevivência e reconhecimento
dentro de um sistema que também recusou historicamente essa identidade, já que os indiví-
duos desse contexto eram escravizados e portanto deveriam servir a uma outra classe, aquela
que estrategicamente os colocou em um lugar menor, recusando ou tentando abominar sua
cultura, costumes, e todo o conhecimento e tecnologias antes desenvolvidas por eles em sua
terra de origem. Entendemos que a suspensão da realidade encontrada no elemento ritual co-
labora, em algum nível, e absorve estas estratégias ou práticas; ou seja, pode ser uma forma
de se estabelecer um novo vínculo com o sentido das ações da pessoa envolvida nesse jogo
duplo.
Apesar de já termos nos debruçado sobre essa questão, vale reiterar que nas baterias
das Escolas de samba e no conjunto percussivo do candomblé existem elementos que repre-
sentam a identidade de cada uma delas. Nas baterias: a) levadas de caixa, b) levadas de repi-
nique, c) levadas de surdos de terceira, d) arranjos (estilos de breques), e) afinação dos ins-
trumentos, f) quantidade de instrumentos por naipe, g) andamento, h) modelo e tamanho dos
instrumentos, i) tipos de baquetas e j) caixas em cima sem talabarte ou caixas embaixo com
talabarte. No candomblé: a) toques dos atabaques, b) atabaques com ou sem cunha (nação
Angola - cunha, nação Ketu – parafuso, c) utilização de aquidavis ou não, d) cores e orixás da
Casa, e) andamento, f) discurso do rum e g) reverências variadas às lideranças.
143
144
145
marca especial de algo conquistado por ele, como uma identidade em uma execução e criação
de algum padrão rítmico. Segundo Osvaldinho, isso era muito comum na sua época, o ritmista
desenvolvia uma identidade a partir de toda a sua dedicação a um instrumento específico ou
até algum material novo para ser utilizado, que acabava se tornando referência, sendo repro-
duzido em parte por outros seguidores. Para ele, a marca pessoal é uma necessidade – a de se
ter uma identidade pela própria sonoridade.
Sabemos que isso é muito importante musicalmente. Quantas vezes ouvimos falar so-
bre a relevância de um músico ser reconhecido pelo que produz sonoramente, sobre uma par-
ticularidade que somente ele alcançou. Essa descoberta pessoal então torna-se um segredo
estratégico e precisa ser resguardada, pois funcionará como estratégia de sobrevivência, já que
é a partir dela que determinado indivíduo poderá tornar-se importante no meio profissional.
Entre as baterias, por exemplo, os mestres também possuem as suas estratégias que sustentam
a identidade de seus conjuntos percussivos, seja em arranjos, levadas, afinações, sonoridades,
tipos, tamanhos e quantidades de instrumentos, entre outros. Não é muito comum que estes
pormenores sejam compartilhados, e mesmo que a sonoridade de uma bateria seja claramente
audível, até pela intensidade da execução instrumental, marca destas formações, muitos deta-
lhes fazem parte deste jogo de segredos, e normalmente ficam retidos entre os próprios líderes
(mestres e diretores).
Essa foi uma de nossas principais dificuldades durante o período desta pesquisa, pois
para acessar certos níveis desta conexão – do candomblé com as baterias –, tivemos que pla-
nejar estrategicamente nossas ações. Talvez este seja o ponto central de nossa discussão: a
estratégia, consciente ou inconsciente, de muitos sambistas não reconhecerem ou não gosta-
rem de falar sobre a conexão, até porque muitos também herdam essa estratégia intrínseca à
tradição, na qual nem sempre há a necessidade de verbalização ou reflexão acerca do que se
produz. Nesse sentido, o que importa é a sensação e a realização dos atos, a prática por si só
gera sentido, independente da necessidade de explanação sobre certos assuntos. Muitos ritos
precisam ser executados e nem sempre argumenta-se sobre os processos, eles se fazem valori-
zados pela execução, e não pela explicação. Esta é uma prática comum neste trânsito dos ter-
reiros para as baterias. Em uma bateria não se conversa muito, apenas em momentos centrais
de organização. Em geral, a marca é a própria prática necessária à performance. Os sentidos
se criam no fazer artístico.
Dentro da religiosidade do candomblé essa é uma característica essencial, já que mui-
tos ritos são entendidos como fechados ao grande público e somente pessoas de dentro os
acessam. Existe tradicionalmente uma série de conhecimentos que não são abertos, o que
146
147
Essa é uma prática bastante comum encontrada no próprio samba, como se fosse ne-
cessário um cuidado para que não seja passado o “pulo do gato”, que poderia ser utilizado
como estratégia de sobrevivência a seu favor – alguma coisa que você executa tão bem, por
exemplo, e que te diferencia dos outros. O outro ponto é que, ao mesmo tempo que você segu-
ra esse segredo que permite este poder, também enfraquece a própria cultura. No caso acima
citado, a referência se faz em relação ao Candomblé pois, segundo o autor, isso enfraquece a
própria força contida no conhecimento, ou seja, seria bom compartilhá-lo.
Segundo Jorge Ceruto, músico cubano radicado no Brasil há 25 anos, com experiência
familiar religiosa na santeria e no candomblé, os segredos também precisam ser abertos:
Não há segredos, é preciso escancarar a realidade. Em Cuba tudo é feito na rua, no
meio das pessoas, nada é mistério. O importante é que as coisas sejam assumidas,
somente assim haverá maior e entendimento e portanto, menos preconceito. É só fa-
zer uma comparação com as igrejas evangélicas no Brasil por exemplo. Ninguém
muda de nome para serem aceitos, uma Casa de candomblé é uma Casa de candom-
blé igual qualquer outra instituição. Procurei o significado de Exu no dicionário por-
tuguês e estava lá, Exu = Demônio. O correto na religião é mensageiro. Houve uma
construção que depreciou a cultura dos negros vindos de África e Cuba para o Bra-
sil. O embargo comercial é um exempla de tentativa de dominação americana
(EUA), porque Cuba era um centro comercial forte e isso atrapalhava o desenvolvi-
mento de muitos. Tivemos muitos colonizadores: Espanhóis, Franceses, Ingleses,
todos eles sempre quiseram tomar conta de nossa identidade. Isso reflete fortemente
nas inúmeras tentativas de apagamento cultural afro cubano, como disse, refletidos
51
Disponível em:
https://www.facebook.com/FilhosDoReiXango/
148
no Brasil. Aqui isso acontece muito ainda. (CERUTO, Jorge. 25/02/2019. Entrevista
concedida a Rafael Y Castro).
149
malandro, no contexto do Samba o termo está ligado diretamente a uma escolha de vida, per-
sonificada em trejeitos da pessoa e também muitas vezes no “figurino”, utilizado em atuação
social – chapéu panamá, calça branca social, camisa branca ou vermelha, chapéu social em
geral branco, ou com detalhes em vermelho ou preto – associação também às cores de Exu.
Além disso, ser malandro corresponde ao desenvolvimento de diversas habilidades ne-
cessárias a um possível estereótipo do próprio sambista, como é o caso do modelo reconheci-
do internacionalmente do malandro carioca, também facilmente associado com o orixá Exu.
Ambas as imagens abaixo nos parecem muito similares: o malandro carioca e o orixá Exu.
Nos referenciamos a eles como personagens por representarem parte importante desta cone-
xão entre a religiosidade e o samba. Realmente, Exu é muito discutido e representativo nos
trejeitos do sambista autêntico, aquele que não existe atualmente (segundo pessoas que convi-
veram anteriormente com os “verdadeiros” malandros), no sentido da esperteza, da multipli-
cidade artística e das possibilidades de sobrevivência nas cidades, a partir das estratégias de
subsistência.
Fonte: https://www.google.com/search?q=ze+pilintra&tbm.
150
Figura 14: Malandro carioca nos arcos da Lapa, mesmo sentido, trejeitos e vestimentas de Exu
Fonte: https://www.google.com/search?q=z%C3%A9+pilintra+malandro&sxsrf52.
Fonte: https://www.google.com/search?q=logo+bateria+imperador+do+ipiranga+mestre+vitor&tbm53.
Além destas associações que nos parecem realmente fazer sentido, mesmo que de
forma popular, e que portanto representam sentido social, alguns comportamentos em comum
com as próprias associações, não apenas em imagens e figurino, realmente acontecem no dia
a dia dos Sambistas. Um exemplo é o que se expressa em letras de canções e suas associações
com conquistas amorosas, em muitos casos no papel do homem como vítima de um amor não
correspondido, em que a culpa de sua frustração é do sexo oposto. O que sabemos é que, na
realidade, existe um comportamento masculino antigo (machista) que pode ter a ver com a
própria herança diaspórica, falando sobre possíveis compreensões em relação à poligamia,
52
Apenas a bebida representada é a cerveja, e não o Marafo.
53
Logo
idealizado pelo mestre Vitor Velloso no ano de 2018, por associação ao Seu Zé (outro termo para refe-
renciar Zé Pilintra).
151
54
Ver: FELINTO, Renata. “A construção da identidade afrodescendente por meio das artes visuais contemporâ-
neas: estudos de produções e de poéticas”. Tese de Doutorado. 2016.
152
153
em outras religiões, não faz sentido pois esta é uma estratégia para o próprio desenvolvimento
social destas comunidades. Assim, elas continuarão mantendo suas atividades.
4.4.5 Tradição
A partir da tradição, os valores de determinadas comunidades serão mantidos, preser-
vados dentro do que foi estabelecido através de diversas tentativas, entre erros e acertos. Com
o passar do tempo, as descobertas mais efetivas, ou seja, aquelas que solucionam determina-
dos problemas, contribuem para a realização de determinadas tarefas do cotidiano de uma
sociedade ou de um pequeno grupo. Para as comunidades que estudamos, tais tarefas se co-
nectam com o todo, e é a partir delas que os aprendizados e os sentidos da própria existência a
partir da realização delas fazem sentido.
Nesse ponto fazemos um paralelo com um pesquisa científica, pois é apenas depois de
muitas descobertas dentro de um objeto central escolhido (e que de preferência faça sentido
para o pesquisador), que surge a possibilidade de contribuir com novas descobertas que serão
utilizadas como soluções efetivas, facilitando assim novas necessidades e aplicabilidades que
possam surgir.
Assim, acreditamos que haja aproximação entre aquilo que se desenvolveu durante os
anos na permanência de uma tradição e a repetição de práticas efetivas para seus atores. Inde-
pendente do sistema, oral ou escrito, o que realmente importa é a efetividade da descoberta.
Por isso, muitas vezes é difícil uma tradição ser modificada. No nosso caso, compreendemos
que tanto as levadas de caixa, quanto os toques de atabaques representam fortemente a justifi-
cativa e manutenção de padrões duradouros, ambos trazidos de timelines referenciais afrodi-
aspóricos. A manutenção de uma tradição também representa um reconhecimento em um ter-
ritório, o que pode determinar o status de reconhecimento de seus envolvidos.
Para pessoas que não possuem conexão com a sistematização da oralidade como for-
madora de processos próprios e efetivos, pode ser difícil reconhecer a importância e comple-
xidade desta cosmovisão, invalidando determinadas metodologias. Normalmente quem as
reconhece é quem as realiza, ou possui conhecimento da importância de tais práticas a partir
de compreensões de possibilidades culturais diversas.
Tudo que uma sociedade considera importante para o perfeito funcionamento de su-
as instituições, para uma correta compreensão dos vários status sociais e seus res-
pectivos papéis, para os direitos e obrigações de cada um, tudo é cuidadosamente
transmitido. Numa sociedade oral isso é feito pela tradição, enquanto numa socieda-
de que adota a escrita, somente as memórias menos importantes são deixadas à tra-
dição. É esse fato que levou durante muito tempo os historiadores, que vinham de
sociedades letradas, a acreditar erroneamente que as tradições eram um tipo de conto
de fadas, canção de ninar ou brincadeira de criança. Toda instituição social, e tam-
bém todo grupo social, tem uma identidade própria que traz consigo, um passado
154
155
156
aspectos estabelecidos pela intergeracionalidade para a sociedade como um todo, que reco-
nhece e potencializa as individualidades em prol de um grupo. Trata-se de pessoas diferentes
que convivem mesmo que de maneira conflituosa, porém necessária à construção de uma no-
va história, natural em processos evolutivos da humanidade.
Apesar da intergeracionalidade ser uma característica comum em ambientes de Cultu-
ra Popular, como dito anteriormente, não é reconhecida socialmente como uma prática em
todo o seu potencial. No caso do ensino coletivo de instrumentos, por exemplo, apesar de cer-
tas limitações no aprendizado do indivíduo, se apresentam aspectos importantes da pluralida-
de do grupo, o que não seria possível de forma somente individualizada, distante da coletivi-
dade – algo comum nos terreiros e baterias. Ainda há preconceitos sobre as práticas e métodos
de ensino intergeracional, mas sua importância no coletivo se dá exatamente por caracterizar a
troca de saberes vivenciados de várias formas.
A construção dinâmica encontrada na musicalidade do candomblé e do samba, com
toda a criatividade que enriquece o discurso musical, se dá pela combinação de tradição e
evolução. Uma característica em comum nestes dois locais é o equilíbrio necessário para o
conhecimento da tradição e a inserção de novos elementos, como se estivesse sendo criado
um novo vocabulário, a partir da mistura dos padrões referenciais em conjunto com novas
propostas. Pelo fato de os mais jovens terem normalmente mais condição técnica em relação à
própria resistência física necessária para execução dos instrumentos como os agogôs, ataba-
ques, caixas, repiniques, tamborins e surdos de terceira, podem surgir novas variações das
matrizes estruturais. Normalmente, com o tempo, elas se modificam porque alguém as reali-
zou de forma diferente da tradicional, como por exemplo quando um músico proficiente se
destaca em algum instrumento, torna-se referência e o seu estilo começa a ser reproduzido por
boa parte do grupo, já que ele é um exemplo almejado. A dinâmica dessa troca entre gerações
se dá: a) no respeito pela tradição (o que já foi estabelecido como referência), b) equilíbrio e
controle da intensidade, c) qualidade na sonoridade, d) reconhecimento amplo da linguagem e
e) novos caminhos.
A intergeracionalidade é realmente uma potência promovida através da troca, apresen-
tando resultado significativo não só para determinado grupo, mas para a continuação da cons-
trução do conhecimento do povo para o povo. São necessidades sociais.
O conhecimento promovido pela coletividade intergeracional se dá pelo respeito e ex-
periência dos mais velhos com os mais jovens. Nas comunidades por nós estudadas, este equi-
líbrio é uma premissa na somatória dos resultados entre tradição e evolução. O conflito é ne-
cessário para o crescimento de ambos os locais. Ao mesmo tempo que muitas funções especí-
157
ficas se atribuem aos mais novos, outras são acompanhadas e aprovadas pelos mais velhos.
Percebemos que algumas divergências são aceitas, mesmo com relutância em algum momen-
to. A flexibilidade das lideranças também pode determinar se uma nova sugestão será aceita
ou pelo menos experimentada. Como a criatividade é uma marca desses grupos, os responsá-
veis pela gestão de pessoas tentam mediar certos conflitos, ao mesmo tempo que se tornam
experientes nas suas funções com o passar do tempo. A própria característica do líder refletirá
nos resultados e comportamentos dos liderados. Por esse motivo, são poucos os mestres de
bateria com resultados técnico musicais satisfatórios, e os que os têm, são indivíduos com
uma idade considerada média (30-50 anos), provavelmente por entender melhor os dois lados,
o dos jovens e o dos mais experientes. No caso do candomblé, a importância da capacidade de
gestão do alabê ou de outras lideranças como a do próprio zelador, determinará o lugar em
que determinado grupo se encontrará socialmente em relação a outros.
O reconhecido status de uma Casa de santo ou bateria será um reflexo dos cuidados
com os seus participantes no reconhecimento das capacidades do grupo de forma intergeraci-
onal. O crescimento do grupo como um todo será reflexo destes métodos. Temos alguns
exemplos negativos em alguns locais, como no Vai-Vai e no Redandá. Estes locais estão sen-
do criticados socialmente como ultrapassados, pela falta de habilidade de algumas lideranças
em aspectos interdisciplinares, exigindo controle pela autoridade ou depreciando potenciali-
dades individuais.
Apesar de o tema “intergeracionalidade” ser pouco explorado no Brasil, entendemos
que não há como avaliar um grupo com essa característica sem conhecer as possibilidades e
resultados compartilhados nesse processo.
Em ambos os locais aqui investigados notamos que: a) os mestres são respeitados,
desde que aproveitem a idade e experiência no entendimento e reconhecimento do comporta-
mento dos mais jovens, utilizando a diferença a seu favor, b) os mais novos possuem funções
estratégicas e são formados com base nos fundamentos locais, c) as gerações atuais replicam
o modelo das anteriores, d) há uma tentativa de equilíbrio entre a tradição e a inovação neces-
sária ao mercado, e) os mais novos são vistos com respeito com base em sua proficiência ar-
tística, f) os mais velhos são responsáveis pela continuidade através da transmissão do conhe-
cimento, g) o imediatismo dos jovens nas propostas precisa ser aprovado pelos mais velhos e
h) esta troca se dá mais constantemente em comunidades pobres – ambientes com maior cole-
tividade, por apresentarem maior necessidade de divisão de espaços.
158
Oralidade
A oralidade é uma prática utilizada por diversos grupos étnicos. Apesar de esta ser
uma marca reconhecida nas tradições encontradas na chamada Cultura Popular, ainda se apre-
senta desconhecida em sua potencialidade em relação a outras, principalmente quando compa-
rada à produção textual, pelo fato de o texto ser algo mais concreto visualmente, considerado
portanto fora da subjetividade.
Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação di-
ária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, vene-
rada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. A tradição
pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma ge-
ração para outra. (ZERBO, 2010, p. 139-140)
Esta é uma ferramenta essencial para a transmissão do conhecimento, nesse caso pela
fala, onde a escrita não é considerada essencial.
A tradição oral foi definida como um testemunho transmitido oralmente de uma ge-
ração a outra. Suas características particulares são o verbalismo e sua maneira de
transmissão, na qual difere das fontes escritas. Devido à sua complexidade, não é fá-
cil encontrar uma definição para tradição oral que dê conta de todos os seus aspec-
tos. (ZERBO, 2010, p. 140)
Na religiosidade afro-brasileira, por exemplo, a escrita também é considerada um pro-
blema, já que serviria como um documento que transmitiria os chamados segredos dos fun-
damentos. Nesse sentido, a oralidade torna-se uma ferramenta de manutenção em si mesma,
tanto dos valores culturais como de todo o conhecimento de resistência de um povo, sendo
muitas vezes, o único. Em batalhas históricas, na conquista de espaços territoriais, sabemos
que este conhecimento suportado pela tradição oral representa a identidade e resistência de
um grupo. Ou seja, o próprio grupo a reconhece em suas complexidades a partir da tradição
oral, que serve para resguardar a existência de boa parte dos grupos aqui analisados, que pos-
suem o reconhecimento de suas complexidades, mesmo sem expor isso de maneira clara ou
por escolha estratégica.
Desde os primórdios, esta foi uma ferramenta importante para a manutenção das práti-
cas dentro de determinadas tradições. É nela que as pessoas pertencentes a esses grupos se
apoiam, mantendo a sua crença em determinadas práticas. Ela é uma forma essencial de reco-
nhecimento mútuo para um grupo. Mesmo assim, não é amplamente reconhecida em sua po-
tencialidade pela sociedade, estando fora de uma sistemática na qual o ensino, por exemplo, é
estruturado de outra forma. Isso leva a uma compreensão que minimiza sua abrangência em
determinadas culturas.
Salvo raríssimas exceções, somente ao final da década de 1980 pode-se falar no apa-
recimento de temáticas como as formas de religiosidade, as musicalidades, os cos-
159
tumes e tradições fundadas na oralidade. Não se trata apenas somente de novos olha-
res, mas novas correlações de força sociais e culturais. (SILVA, 2005, p. 375)
ela poderia ser responsável pelo comprometimento dos integrantes dos grupos aqui investiga-
dos, já que nos encontros destas pessoas ela é utilizada diariamente. São nos ensaios de bate-
ria ou nos intervalos dos xirês que as pessoas trocam saberes pela oralidade. Percebemos essa
prática como uma característica essencial destes grupos.
A oralitura é utilizada como elemento central nos significados de grupos negros. O
termo surge inicialmente em 1971:
Oralitura foi proposto pela primeira vez por Ernst Mirville, em 1971, no intuito de
abranger os enredos do narra crioulo, história contadas geralmente a noite e que ti-
nha a intenção de contra cultura, pois as narrativas eram sobre a resistência negra e
sobre os horrores da escravidão. (SILVA; FREITAS, 2016, p. 213)
É por este e outros motivos que apontamos a oralidade como norteadora de processos
encontrados nas práticas culturais diaspóricas, tendo uma conexão com o passado, o presente
e o futuro – da África para os candomblés, e consequentemente para as baterias.
Imitação
Apesar de este ser um aspecto natural do ser humano, no sentido de os indivíduos mais
novos tentarem reproduzir o comportamento dos mais velhos de forma consciente ou não,
percebemos na imitação uma possibilidade rápida que favorece a agilidade na transmissão de
conceitos e modelos identitários para os indivíduos pertencentes aos grupos aqui analisados.
Além disso, acabou tornando-se uma ferramenta importante para que esse conhecimento che-
gasse de um lugar a outro.
Partindo do pressuposto de que nosso objeto central investigado está inserido em am-
bientes caracterizados pelas práticas realizadas dentro dos conceitos da cultura popular, ou
seja, pela oralidade, um desses aspectos mais marcantes é o processo da transmissão de co-
nhecimento de um líder para os iniciantes através da imitação. Dessa forma, o aprendizado
dos iniciantes se dá pela observação – imitação. Para que todos os iniciantes consigam reali-
zar com eficiência o conteúdo existente nessas linguagens, é necessário que as lideranças
(alabês, ogãs mais velhos, mestres e diretores de bateria) consigam transmitir, de forma efici-
ente, os conteúdos dentro do que já foi estabelecido como modelo, algo que já funciona e que
também representa a identidade de seus grupos nos seguintes aspectos: a) sonoridade, b) ma-
nulação, c) acentuação, d) andamento, e) afinação, f) postura, g) materiais, entre outros. Nesse
sentido, este processo necessita ser acompanhado, pois a característica de cada grupo depende
da combinação de novas propostas em equilíbrio com as anteriores.
Assim, é necessário começar pelo que já foi estabelecido em cada um desses locais.
Cada bateria ou Nação de candomblé possui uma marca própria nos fatores listados acima que
deve ser mantida e assim, todo o cuidado é necessário. Além dos aspectos musicais, os trejei-
161
tos das lideranças são de certa forma reproduzidos. Muitos diretores de bateria e ogãs se espe-
lham nos mestres e alabês, tentando seguir o modelo implantado de forma natural ou progra-
mada nos seguintes aspectos: a) modelo e intensidade de fala com o restante do grupo, b) ves-
timenta, c) movimentação corporal, d) regência, e) se usa ou não apito, f) vocabulário do rum,
entre outros.
A maneira encontrada por estes grupos para aprender o que deve ser feito é a imitação.
Normalmente, em momentos pontuais de ensino e aprendizagem, os padrões são reproduzidos
da seguinte forma: um líder reproduz em blocos menores todas as partes de determinada es-
trutura, até que ela fique completa e executada em sua totalidade. Este modelo será repetido
lentamente por todos os outros participantes, de forma coletiva ou individual. Observamos
isso nos ensaios de bateria e nos terreiros. Também analisamos outros momentos em que a
imitação é uma prática mais natural, como quando as crianças ficam tocando nos instrumentos
da bateria em algum intervalo ou no término de algum ensaio ou quando as crianças ficam
tocando nos atabaques, normalmente aquelas que pertencem à família da Casa ou das pessoas
mais próximas. Estas crianças, na bateria e nos terreiros, imitam o que foi executado anteri-
ormente pelos mais experientes. Pelo fato de estarem presentes na execução anterior realizada
pelos mais velhos, já armazenaram parte do conteúdo na memória. Mesmo que elas não con-
sigam reproduzir o que é desejado tecnicamente, parte do que foi escutado é reproduzido e é
sempre visível nesse processo. É um momento muito enriquecedor de aprendizado, pois as
crianças ficam motivadas a tocar devido ao que foi feito pelos mais velhos, exemplos a serem
seguidos. Uma boa parte dessas crianças que começam imitando os outros se tornará uma
nova geração de ritmistas ou ogãs. Essa forma (imitação) é comum em ambientes coletivos
diversos, pela necessidade de transmissão de conhecimento de geração para geração.
Para nós, o que chamou a atenção foi a velocidade no aprendizado. Os resultados apa-
recem rapidamente. Pelo fato de esses grupos terem muitos indivíduos novos que são inicia-
dos bem cedo a partir da imitação, esta se tornou uma ferramenta que não precisa ser comuni-
cada. A reprodução de um padrão ocorre pela manifestação de interesse na sonoridade estabe-
lecida anteriormente. É um modelo eficiente, formador e espontâneo, pois ninguém dá uma
ordem para que o indivíduo imite o outro, apenas acontece.
Como já apontado, nas baterias das Escolas de samba e nos terreiros o método utiliza-
do é a prática de alguns padrões estruturais que devem ser reproduzidos pelos novos interes-
sados em participar destes grupos, e pelos que já apresentam familiaridade com os conteúdos.
Nesse caso, mesmo que as pessoas apresentem experiência em níveis variados, haverá sempre
um novo modelo a ser seguido, que poderá ser determinado como uma nova referência.
162
Por tratarmos de ambientes musicais com alto nível de criatividade por parte dos inte-
grantes, onde muitas vezes se estabelece um novo padrão quando ainda boa parte dos inte-
grantes nem memorizou o modelo sugerido anteriormente, é muito comum que estes modelos
sejam sugeridos e estabelecidos durante os ensaios de bateria e xirês. A liberdade em experi-
mentar é bem aceita na maioria dos casos, salvo algumas exceções, como por exemplo quan-
do as novas propostas surgem sem um espaço de tempo necessário ao aprendizado de todo o
grupo, como se um breque de bateria fosse memorizado e na sequência outro surgisse, e assim
por diante. Isso é de fato comum acontecer, pois até que haja a escolha de determinado arran-
jo, muitos experimentos serão realizados. O mesmo fenômeno ocorre no terreiro em relação
aos improvisos e vocabulário do rum – o atabaque solista.
Em uma bateria, na criação de breques, a imitação é a essência daquilo que chamamos
popularmente de “pergunta e resposta”. Normalmente, um instrumentista realiza um discurso
musical reconhecido pelos outros e estes o respondem sonoramente, com a execução de pa-
drões também reconhecidos. Estes padrões são repetidamente imitados por cada um dos inte-
grantes, até ficarem estabelecidos em um arranjo. No caso do candomblé, a imitação se dá
pela necessidade de cantar as cantigas, seguindo o modelo de um zelador ou ogã mais velho
que as cante com mais fluência. Além dos mais novos precisarem aprender tais cantigas, tam-
bém há necessidade de resposta pelos outros, no mesmo sentido dos breques de bateria.
A diferença entre as baterias e os terreiros é que no primeiro caso esse processo de
imitação se dá pela execução rítmica, e no segundo pelo canto. No entanto, ambos são identi-
ficados como uma forma de “eco musical”, num processo de pergunta e resposta. No caso das
baterias, normalmente o eco será uma imitação do que foi proposto pelo primeiro ripa. No
candomblé, além das outras formas de imitação, como a do vocabulário musical do rum, o eco
é uma imitação do que o alabê propôs cantando. A imitação é uma necessidade para o cresci-
mento do grupo como um todo. No caso da transição de algum toque de caixa, por exemplo,
ou de qualquer outro fundamento que passa do candomblé para uma bateria, haverá a necessi-
dade de que seja feita uma reprodução via imitação de um padrão que será adotado, mantido e
transformado de acordo com o reconhecimento dele e sentido para a sonoridade daquela bate-
ria. Consequentemente, este mesmo padrão também será imitado e adotado por outra bateria
(caso da transição de levadas de caixa do Rio para São Paulo). O fluxo será também pela imi-
tação, a única diferença é que normalmente alguma modificação será feita na tentativa de re-
criar um novo padrão estrutural. Essa modificação é pequena e se dá através de alguns ele-
mentos como: a) acentuação, b) manulação, c) intensidade, d) postura, entre outros. A imita-
ção proporciona a adoção de uma referência inicial que, com o tempo, se transformará de
163
acordo com as necessidades de um novo reconhecimento dos grupos, de uma nova identidade
a ser conquistada.
Repetição
A repetição também é uma característica essencial em algumas manifestações popula-
res. No caso das investigadas neste trabalho, achamos necessário compartilhar em que nível
ela torna-se relevante em diversos processos: artísticos, pedagógicos e nas atividades do dia a
dia – as que entendemos também como parte formadora dos indivíduos do contexto.
Primeiramente, há uma necessidade em repetir constantemente um padrão rítmico no
aprendizado de todos os instrumentos envolvidos nesta investigação: atabaques, gãs, caixas,
repiniques, entre outros. Outro ponto exaustivo para acertos com a qualidade da massa sonora
final produzida pelos conjuntos percussivos se dá na repetição cíclica constante, na execução
do ritmo por todos, seja ele o samba ou um toque para determinado orixá.
Os ensaios e as festas são realizados no sentido de terem o suporte da massa percussi-
va, esta que se repete exaustivamente. Nesse caso, a resistência física e a técnica dos músicos
são fundamentais para que isso aconteça, pois nos ensaios tudo é repetido inúmeras vezes. É
muito comum que uma bateria toque sem interrupções apenas o ritmo, sem a execução de
breques, por exemplo. Nesse momento, o mestre e os diretores indicam as correções para a
qualidade na execução e a resultante sonora desejada.
Os ogãs também executam constantemente os toques para os orixás. No geral, não há
um momento exato para o término das performances, mesmo que haja um tempo estipulado,
como é o caso de um desfile carnavalesco. O que acontece é que o enredo se repete até a indi-
cação de alguém para que seja feita a interrupção. Isso é transmitido por diversas pessoas que
se comunicam durante a performance até chegar no mestre e, consequentemente, nos diretores
e ritmistas.
No caso do candomblé o processo é bastante similar, porém mais curto. Normalmente
o próprio zelador (Pai de santo) sinaliza diretamente aos ogãs, que sob a liderança do alabê da
casa interrompem a execução. Até este momento – o da finalização da execução do conjunto
–, o ritmo é tocado repetidamente sem previsão para término. Claro que há uma organização
prévia dentro do roteiro do xirê, assim como do desfile, porém tudo é muito variável e pode
ser modificado. Essa flexibilidade é algo bem peculiar à música popular, em especial dentro
destas manifestações. Outro exemplo ocorre no momento da chamada dispersão, quando toda
a Escola passou pela avenida mas ainda continua tocando em um outro espaço, para somente
depois de muita repetição, finalizar. Seria um processo inverso ao chamado esquenta, que é
realizado antes da entrada da Escola na avenida. O momento da dispersão é entendido como
164
165
166
a formação das pessoas e para o crescimento destas comunidades de forma ampliada, dentro e
fora delas.
Prática familiar
Algumas peculiaridades dentro dos métodos e das diversas práticas em algumas mani-
festações, são marcas que reconectam com uma origem passada, o que pode acontecer nas
mais variadas formas. Uma das maneiras mais características é a propagação dos conteúdos
no princípio da intergeracionalidade, como falamos, mas também pelo que se transmite dentro
de uma mesma família. O conceito de família nesse caso pode ser ampliado. Num primeiro
momento, o termo se refere mais especificamente àquilo já estabelecido, ou seja, a formação
de núcleos pontuais de pessoas de uma mesma árvore genealógica, aquelas que possuem os
mesmos sobrenomes e normalmente se instituem tradicionalmente em um ambiente dividido
coletivamente: pai, mãe e filhos, de forma resumida. Isso já nos leva a compreender algumas
características divididas entre os membros de uma mesma família nas dinâmicas encontradas
e desenvolvidas nos ambientes aqui investigados. Porém, num segundo momento, outra pos-
sibilidade de definição do termo deve ser considerada. Para muitas comunidades, é a sensação
de construção de um grupo específico com o qual a pessoa se identifica e sente pertencer. Ou
seja, indivíduos que se apoiam entre si e que compactuam as mesmas práticas, definido como
um grupo identitário familiar, independentemente da quantidade de membros e de árvore ge-
nealógica.
Nos locais acompanhados para fins de análise, percebemos essa última definição como
essencial para a construção e troca de diversos saberes, incentivados e supervisionados pela
chamada “família”. Em uma bateria de escola de samba, o mestre normalmente se comunica
com o grupo com definições essenciais de família, objetivando criar e manter vínculos, a par-
tir do conceito inicial familiar, aquele que representa unidade. Nesse conceito, há a necessida-
de de colaboração mútua, já que todos precisam participar e dividir ações em prol do mesmo
objetivo, solucionar problemas e crescer coletivamente. Pensando dessa maneira, todos se
desenvolvem, funções específicas podem ser direcionadas e tarefas são atribuídas. Em uma
roça de candomblé também é comum o zelador – o sacerdote supremo – e todos os filhos de
santo, se referirem ao grupo como parte de uma mesma família. Como exemplo, o próprio
zelador é chamado de Pai, e alguns orixás também. Estes últimos, quando entendidos como
do gênero masculino, são chamados de Pai, e quando femininos, de Mãe: Pai Oxóssi, Pai Ara-
ribóia, Pai Marujo, Pai Ogum, Mãe Iansã, Mãe Oxum e Mãe Iemanjá.
167
Outro termo que utilizamos no decorrer de todo o trabalho é filhos de santo. Os ogãs
são considerados nascidos feitos, e por isso já possuem, de acordo com os preceitos da reli-
gião, sete anos de iniciação, mesmo quando não foram raspados. Estes, obrigatoriamente,
precisam ser chamados de Pai, igualmente como acontece com as ekédis – mulheres, filhas de
santo, que são chamadas de Mães ekédis.
O Pai de santo trata seus filhos como parte de uma mesma e grande família, não mais
aquela carnal que também participa da religião, mas aquela que abarca todos os iniciados a
partir dos mesmos objetivos, nesse caso o do culto aos orixás. A prática familiar é uma carac-
terística realmente bastante marcante nesses locais, e todos se correspondem com sentimentos
de um grande grupo familiar. As responsabilidades são divididas e todos são considerados
culpados quando algo não dá certo. Do mesmo modo, todos se envolvem na exaltação com a
coletividade e suas conquistas, que podem ser compreendidas como sociais.
Uma característica marcante dentro do primeiro conceito de família aqui considerado,
é aquele onde as pessoas de uma mesma árvore genealógica transmitem seus conhecimentos a
partir da convivência em uma mesma casa. Naturalmente, muitos ritmistas e ogãs são indiví-
duos de gerações mais novas que foram influenciados pelas práticas e costumes de gerações
anteriores. Observamos muitos mestres de bateria derivados da mesma família, e algumas
vezes mais de um filho reproduz profissionalmente o que foi apreendido das sabedorias de seu
pai.
Em São Paulo, vemos isso claramente na família do amplamente conhecido e respeita-
do Neno (Roberto Moreira), cujos filhos também são mestres: Fernando e Felipe Moreira.
Ambos os filhos possuem alta projeção no contexto graças a esta prática familiar. É comum,
enquanto o mestre rege a bateria, seus filhos menores de idade (a partir de 6 anos de idade)
também serem vestidos como um mestre aprendiz, com apito pendurado no pescoço, baqueta
normalmente na mão direita para reger e também com a mesma vestimenta do pai, mostrando
referência a um modelo representativo da mesma família. Este mesmo mestre que está como
modelo atualmente, pode ter tido outros familiares como seus influenciadores. Um exemplo
disso foi observado no GRCSES Tom Maior, no ano de 2011. Enquanto mestre Carlão co-
mandava sua bateria, seu filho tentava imitá-lo e acabava também sendo um representante de
uma cultura familiar. A sensação de todo o restante da Escola era de reconhecimento, de um
sentido coletivo que desemboca em nosso segundo conceito de família – o do grande grupo
familiar, das comunidades e suas práticas.
A participação de crianças é uma característica marcante da democracia e do sentido
coletivo. Muitas vezes presenciamos diversos carrinhos de bebês praticamente dentro das ba-
168
terias, com os filhos de algum ritmista ou rainha de bateria. Mesmo sendo considerado um
ambiente insalubre, com relação à sonoridade excessiva dos instrumentos e pelo sistema de
som, algo não recomendado para crianças pequenas, a realidade nas quadras das Escolas de
samba é outra. Esse fenômeno, que pode até ser alvo de crítica, dentro de determinada racio-
nalidade, não representa aquilo que o encontro das gerações em formação cultural promove.
Isto ocorre exatamente da mesma maneira nos terreiros, enquanto os ogãs mais velhos tocam
os atabaques e cantam as cantigas e os filhos menores ficam pelo barracão. Muitos deles já
começam a arriscar as primeiras execuções dos instrumentos, dançando na gira ou cantando,
em alguns intervalos dos xirês. Em uma roça de candomblé também há momentos para a prá-
tica familiar entre a família carnal do Pai de santo. Nesse momento, os filhos carnais estão
sendo formados para serem os novos sucessores. Pouco a pouco, eles assumem os postos dos
mais velhos, (caso do Tata Kilonderu, Kamuanga, Kianleci, Zaira, Luanda e outros), na Casa
de Angola Kyloatala.
A prática familiar representa tanto para estas culturas, que pode determinar a continui-
dade da própria tradição, que dependerá do que é transmitido e consequentemente reproduzi-
do pelas novas gerações. É praticamente uma necessidade para a sobrevivência destas mani-
festações e pode ser comparada à continuidade de uma árvore genealógica.
Relativização do tempo
Sabemos que tanto no candomblé quanto no samba, ser do santo ou sambista, é muito
mais do que uma escolha, é também uma postura em relação às possibilidades de uma forma
de viver diferente da que se enquadra necessariamente no sistema, fato observado em relação
ao tempo cronológico das atividades e no que faz sentido para os indivíduos envolvidos nes-
ses processos. É como se fosse algo atemporal e contrário ao que politicamente se estabelece.
Não estamos afirmando aqui que todos os envolvidos são dessa forma.
Sabemos que para qualquer organização social é necessária uma organização, e que
esta depende completamente do tempo cronológico. A dependência que criamos com o reló-
gio é algo realmente visto como a não possibilidade de qualquer ação fora do tempo calculado
para a execução de diversas tarefas do nosso dia a dia. Até para a nossa organização familiar
sabemos que dependemos dessa premissa, temos horário para tudo, para levantar, para levar
filhos para a Escola, chegar e sair do trabalho e assim por diante. Nesse sentido, não conse-
guimos imaginar uma outra forma, pois criamos essa dependência e em partes ela dá conta de
parte de uma lógica social.
Apesar dessa organização a partir do tempo “do relógio”, percebemos uma outra rela-
ção entre os sambistas e o povo de santo. Algo que para os que não são do meio fica difícil de
169
entender pelas necessidades de rotina. Atualmente, isso vem se modificando, pois também
para a própria organização destes locais e pelo alto número de participantes de uma Escola,
por exemplo, fica praticamente impossível organizar todos os procedimentos e necessidades
para o todo.
Mesmo assim, notamos que em determinados momentos, a falta de obrigatoriedade
com um começo, meio e fim cronometrado não parece ser uma preocupação. Isso ocorre exa-
tamente pela catarse que acontece no processo ritual, onde tudo se transforma e poderá acon-
tecer sem a interrupção de uma hora marcada. É exatamente esse método que poderá levar a
um resultado esperado dentro de uma prática, como a incorporação, a dança e o que poderá
ser construído musicalmente pelo conjunto percussivo. Então, de certa forma, uma possível
libertação de um tempo exato pode ajudar em melhores resultados.
Observamos isso muitas vezes em ensaios de bateria e nos xirês. Para quem não está
acostumado, determinadas ações tornam-se extremamente cansativas, porém para o povo da
Casa ou para os Sambistas, a relação é diferente, parece que a entrega com o que está sendo
realizado tem uma outra conexão, diferente de uma forma muitas vezes fria com que realiza-
mos nossas tarefas diárias. Nas festas para os orixás que acontecem dentro do calendário da
religião anual nos terreiros, esse descompromisso com o tempo cronológico é um hábito que
pode ser entendido como uma simples desorganização, porém pode significar outra relação
com a proposta. É muito natural que estes rituais comecem a partir das 20 horas e não tenham
hora para acabar. O que acontece, por exemplo, é o fato de existirem pessoas – como os
yawós e os zeladores – incorporados dos orixás. Apenas quando estas pessoas, que possuem a
capacidade mediúnica da incorporação, ficam livres do que incorporam, ou seja, a partir do
momento em que os orixás vão embora e saem do corpo dos yawós e zeladores, é que pode se
iniciar o processo de finalização dos ritos. O que se sabe, normalmente, e que ocorre de forma
mais precisa, é o horário de início que ocorre com pouco ou nenhum atraso, porém o término
é bastante relativo. No caso descrito acima, por exemplo, não é possível você despachar um
orixá pela sua própria vontade, apesar de existirem formas de incorporação diversas – das
mais programadas às totalmente dependentes do tempo abstrato.
Para os sambistas, normalmente, os ensaios de bateria ocorrem dentro de um tempo
determinado. Porém, os ensaios com toda a comunidade, aqueles que acontecem normalmente
uma vez por semana para que as pessoas se identifiquem com o novo samba enredo para o
desfile do ano, não se iniciam na hora correta e normalmente atrasam entre uma ou duas ho-
ras. Do mesmo modo, não terminam rapidamente, com no mínimo duas horas de duração,
incluindo o tempo de execução específico da bateria. Estes ensaios são exaustivos e parecem
170
somente fazer sentido para as pessoas que estão dentro dele, as que fazem parte da Escola e
que teriam maior conexão com o próprio ritual.
Outro detalhe importante a ser relatado aqui é o fato de que mesmo no término destes
ensaios longos com toda a comunidade, é natural que se formem pequenos grupos com batu-
cada nos quais as pessoas continuam cantando, dançando e executando instrumentos de per-
cussão. Fica claro o descontentamento com o término do que é produzido coletivamente. A
energia do coletivo reverbera e estimula as pessoas a continuarem com o ensaio segmentado.
Mais um exemplo se dá em dias de festa nas quadras, nos quais muitos grupos de samba reali-
zam performances no palco e tudo vira uma grande festa. Em dias de encontro de Festas de
bateria, quando algumas baterias (normalmente entre 3 e 6) se apresentam em determinada
escola, estes grupos de samba realizam suas apresentações. Dessa forma, além das 7 baterias
(calculando no máximo 6 convidadas mais a da casa da Escola que sedia o Encontro), para a
maior parte dos envolvidos há a necessidade de complemento com outros grupos, como os de
samba tradicional ou pagode. Dessa forma, o tempo não é uma preocupação, pois a libertação
dele é uma forma de conseguir se desligar dos problemas do dia a dia, um dos sentidos do
próprio carnaval.
Há outros fatos relacionados à relativização do tempo que também acabaram gerando
determinadas formas de preconceito, mesmo que isso ocorra de acordo com a lógica de parte
destes locais. Existe um consenso comum em não chamar sambistas para determinados traba-
lhos, justamente aqueles com hora marcada, pelo fato de não saber se realmente estes chega-
rão dentro de determinados horários. Isso é complexo, pois mostra como uma prática dentro
de um contexto pode interferir negativamente em outro. Apesar de isso realmente ter se tor-
nado uma forma de preconceito, por generalizar o comportamento de todos os envolvidos, por
outro lado essa necessidade parece não fazer sentido ainda para parte dos sambistas. Esta pa-
rece ser uma forma de resistência a certas adequações sociais, já que o Samba também é visto
como elemento de combate a padrões dominantes56.
Lembramos também da frase histórica do compositor Adoniran Barbosa em uma de
suas músicas que ironiza a sistematização social – “Você sabe o que nóis faz, nóis não faz
nada”. Neste mesmo documentário (indicado na nota de rodapé desta página), no minuto se-
guinte (26’), Toniquinho Batuqueiro – baluarte do carnaval paulistano – cita a possibilidade
do sambista trabalhar ou não, como se fosse uma escolha da parte destas pessoas, e até uma
56
Ver Documentário - Samba à Paulista Parte 1, minuto 25. Disponível em: https://youtu.be/KD1gx9xxVD8.
171
dificuldade em se adequar ou cumprir certas rotinas, aquelas consideradas mais normais den-
tro do sistema social adotado.
Vale refletir aqui sobre o entendimento de outras possibilidades existenciais. Não nos
compete criticar, porque desta forma estaríamos julgando certos comportamentos apenas por
não serem aqueles que achamos serem mais apropriados. Quando analisamos grupos sociais
complexos, precisamos entender diversas tensões neles existentes e, portanto, o que é signifi-
cativo para eles, pode ser exatamente o contrário de outras formas de existir. Para entender
outras culturas, e essencialmente as que fazem parte de um outro grupo étnico, é necessário se
libertar de crenças e experiências pessoais. O que pode ser significativo dentro de um grupo,
para outro pode ser exatamente o oposto. Não nos cabe, por exemplo, estabelecer que essas
pessoas não têm uma organização necessária, pois isso seria subestimar outras formas e senti-
dos de vida. Ou seja, os fatos aqui discutidos não significam a impossibilidade de que esses
grupos se encaixem em determinadas rotinas, e que por isso sejam menores e não apresentem
uma organização própria, já que no final geram os resultados esperados, mesmo que de forma
caótica, quando vistos através daquilo que é convencionalmente estabelecido socialmente.
4.6 Códigos visuais
4.6.1 Imagens, Cores, Vestimentas, Símbolos
Imagens
Em muitas das relações observadas em comum entre os terreiros e o contexto do car-
naval como um todo, presenciamos uma série de representações destas relações nos mais va-
riados níveis. Um dos destaques principais foi a utilização de imagens consagradas no sincre-
tismo, pela mistura entre o catolicismo, a umbanda e o candomblé, já que dividem as mesmas
representações – os santos em comum com nomenclaturas diferentes e que já relatamos ante-
riormente neste trabalho. Para nossa surpresa, há uma a quantidade considerável de imagens
apresentadas em formato de estatuetas em lugares estratégicos de proteção espiritual, como os
pequenos altares construídos em algumas quadras, com uma quantidade dominante de orixás
em relação a outros santos.
Além dos altares, muitas destas imagens se apresentam em outros locais nas quadras
como no quarto da bateria, na sala da Diretoria ou Comissão Técnica e Presidência, e até no
palco utilizado para ensaios, onde os intérpretes e diretores de harmonia ficam durante os en-
saios e festividades. Nos terreiros, estas imagens nem sempre são utilizadas, por serem con-
feccionadas comercialmente e estarem à venda em casas de artigos religiosos, o que fica dis-
ponível para qualquer pessoa da religião ou simpatizante para que possa utilizar em sua casa
de forma particular. Nos terreiros não há essa necessidade porque os orixás estão representa-
172
dos diretamente nos xirês – em ibás e estátuas de nkisis –, e nas incorporações – com suas
roupas e ferramentas. Ou seja, eles são incorporados pelos yawós (médiuns), que são entendi-
dos como a presença do próprio orixá, como se as entidades tivessem saído do orum (o local
aonde vivem os orixás) e estivessem ao vivo, de forma carnal, no ayê (a terra aonde vivemos).
Mesmo assim, em algumas casas, mais comumente nas de prática Umbandista, as esta-
tuetas são muito comuns e ficam localizadas em mesas ou outros lugares. Muitas delas são
fortemente identificadas como sincréticas: Yansã (Santa Bárbara), Ogum (São Jorge), Oxóssi
(São Sebastião), Oxum (Nossa Senhora da Conceição) e muitas outras.
As imagens sagradas, independente do tamanho que elas possuam e com quais materi-
ais foram confeccionadas, possuem diversos significados pessoais, mas também representam
a possibilidade de reconhecimento e tentativa de reconexão com o sagrado permeado por toda
uma cultura. No caso das Escolas de samba, trata-se de uma reconexão com o que é trazido
dos terreiros e que também se mistura com outras religiões.
Os carros alegóricos, por exemplo, constantemente apresentam impressões de orixás
lateralmente, em espécies de placas coloridas de plástico onde as imagens destes ficam em
alto relevo e em volta de todo o carro. O carro como um todo pode ser um orixá, as fantasias
diversas dos passistas, as camisetas e bonés utilizados por sambistas em dias de ensaios e fes-
tividades, e também camisetas do próprio enredo do ano quando se homenageia algum orixá,
terão a imagem impressa em tamanho ainda maior. Além da imagem, muitas camisetas apre-
sentam também nomes diversos escritos: Oxum, Xangô, Oxalá, entre outros.
Em toda a estrutura de uma Escola de samba pode aparecer uma imagem de algum
orixá: a) Comissão de Frente (na própria fantasia dos integrantes ou naquela espécie de carri-
nho que é levado durante o desfile), b) em qualquer fantasia de passista, c) na fantasia da ba-
teria (quando esta é associada a algum mais especificamente ou pelo enredo), d) nas alas
(aonde o roteiro do enredo é apresentado durante o desfile em ordem progressiva), e) nos car-
ros alegóricos e f) nas estatuetas em locais específicos da Escola, já relatados acima no texto,
entre outros.
Cores
As cores são elementos centrais nos terreiros e nas Escolas de samba. Nos terreiros por
determinarem os orixás específicos e estes serem reconhecidos primeiramente pelas cores que
os representam, e nas agremiações carnavalescas por representarem a própria identidade de
cada uma delas. Em muitos dos casos aqui analisados, diversas Escolas são reconhecidas ini-
cialmente pela cor, ou pela mistura de algumas cores que representam a identidade destas
instituições. Notamos que em algumas das Escolas mais tradicionais, a escolha pela cor que as
173
representa, desde o início de sua fundação, foi determinada pela proteção de um orixá especí-
fico, considerado o protetor e constantemente reverenciado em homenagens pelas Escolas.
A forma mais conhecida de se homenagear os orixás são os enredos, nos quais as co-
res assumem um papel fundamental. Um exemplo disso pode ser visto na utilização de diver-
sas cores na representação dos 14 orixás mais cultuados no Brasil na comissão de frente da
Escola de samba Mancha Verde, no desfile do ano de 2012, na cidade de São Paulo57. Neste
desfile, os integrantes da comissão de frente utilizaram vestimenta na cor de cada orixá. Além
disso, utilizaram ferramentas representando-os, como exemplo: o machado de Xangô com
vestimenta vermelha, o pachorô de Oxalá com vestimenta branca e o escudo e espada de
Ogum com vestimenta azul.
A Escola mais representativa da questão da cor associada a um orixá é o GRCSES
Acadêmicos do Salgueiro – vermelho, orixá Xangô. Muitas Escolas dividem a proteção do
mesmo orixá, como é o caso de Ogum (no sincretismo São Jorge), responsável pela proteção
de várias Escolas, o que veremos mais abaixo. Nesse caso, a cor não seria algo determinante
porém, a proteção do orixá sim. Lembramos também que um mesmo orixá pode possuir di-
versas vestimentas, dependendo do conceito do rito. Assim, cada cor representa um significa-
do, porém, mesmo assim há relações mais diretas com determinadas cores e seus Orixás, por
exemplo: azul com Iemanjá, branco de Oxalá e verde de Oxóssi.
O que hoje se chama quadra da Escola, antigamente era chamado de terreiro como
ainda é denominado os lugares aonde acontecem os cultos de umbanda e candomblé.
As cores das Escolas de samba foram escolhidas segundo homenagens a santos da
igreja católica ou às entidades da umbanda e do candomblé. Assim Oxalá equivale a
Nosso Senhor do Bonfim, Ogum que corresponde a São Jorge é padroeiro de diver-
sas Escolas tais como Beija-Flor, Império Serrano, Imperatriz Leopoldinense, União
da Ilha, Porto da Pedra e Grande Rio. Xangô corresponde a São Jerônimo e São Pe-
dro é Orixá padroeiro do Salgueiro. (BARBOSA, 2011)
Vejamos abaixo alguns dos setores mais representativos da utilização das cores nas
Escolas de samba: a) Estandartes e Bandeiras em geral, b) bateria – camisetas, bonés, instru-
mentos, peles, c) fantasias nas alas, d) alegorias – carros alegóricos e outros, e) ala das baia-
nas – o branco utilizado nas roupas com destaque para as enormes saias rodadas, referência à
religiosidade das tias baianas (mães de santo), responsáveis pela influência delas no surgi-
mento do samba da Bahia para o Rio de Janeiro e em referência ao próprio orixá central –
Oxalá, orixá do equilíbrio, da harmonia e da paz e soberano, f) camisetas e roupas diversas
dos passistas, g) a vestimenta e trejeitos do Exu associado ao malandro sambista – indivíduo
57
Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/1818725/.
174
Vestimentas
As vestimentas utilizadas por filhos de santo e sambistas, dividem algumas semelhan-
ças derivadas da conexão destes ambientes – os terreiros e as escolas – desde os primórdios.
Seria a partir da frequência de indivíduos em ambos os locais que isso teria começado. Apesar
de ainda não termos maiores comprovações nesse sentido, achamos relevante destacar certas
semelhanças.
Segundo Dennys Silva, relevante percussionista, ritmista e diretor de bateria na cidade
de São Paulo, a utilização de roupas de cor branca trazida por ogãs, por exemplo, ocorre des-
de os tempos do início das Escolas:
Antigamente muitos ogãs deram origem às baterias, era muito comum sair do terrei-
ro para batucar nas baterias, então muitos dos que chamamos ritmistas hoje, na ver-
dade foram ogãs e ao mesmo tempo ritmistas. Isto derivou muitas características,
aquelas que nós vemos hoje nas baterias e também nas Escolas como um todo. Em
muitos setores há essa herança, a da influência das religiões afro. Na minha família
mesmo, há muitas gerações, o povo vai para todos os cantos. Todo mundo tem mui-
tos kits de branco e utilizam os mesmos nestes locais desde sempre, e pelo que me
contam sempre foi assim. (SILVA, Dennys. 10/08/2019. Quadra do GRCES Império
de Casa Verde Entrevista concedida a Rafael Y Castro.)
O uso de correntes e anéis de ouro por parte de pais de santo também representa ou
simboliza poder e autoridade, algo muito criticado por algumas pessoas que relacionam o uso
exagerado de alguns destes elementos com pouca espiritualidade, visto que o dinheiro estaria
substituindo o verdadeiro desenvolvimento espiritual.
O mesmo ocorre com aqueles chamados de “verdadeiros sambistas”, aqueles que, des-
de a execução instrumental até a escolha e cuidado com a vestimenta, também representam
um sinal de respeito e conexão maior com o samba. Os sambistas mais antigos apresentavam
com maior naturalidade essa relação com a vestimenta e também com a própria dedicação e
respeito com o todo. Observamos alguns destes cuidados em muitas situações nas Escolas de
samba, o que entendemos como herança dessa relação da vestimenta nos terreiros. Para o po-
vo de santo, a limpeza com a roupa também é uma necessidade, de acordo com o respeito
necessário em prol do próprio orixá, que reconheceria essa dedicação e ajudaria o indivíduo
com uma vida melhor, em resposta a essa dedicação.
Vejamos algumas práticas que apresentam cuidados e características na utilização da
vestimenta nas Escolas, o que seria herdado da religiosidade: a) roupas de mestre salas e porta
bandeiras, b) fantasias de passistas, c) roupas de ritmistas para festas e ensaios técnicos – cal-
ça e sapatos e em alguns casos tênis brancos, d) estilos de sapatos sociais e brancos (iguais
aos utilizados em festividades mais importantes nos terreiros), e) utilização das guias espiritu-
ais com as cores dos orixás também são comuns em mestres, diretores, ritmistas e sambistas
em geral, e também complementa a vestimenta, f) a utilização de correntes, anéis simbolizan-
do poder e status, provável herança africana e afro-norte-americana, g) roupa utilizada pelas
baianas, que é a mesma das mães de santo e, muitas vezes, essas participantes são mães de
santo – fato comprovado na migração das tias baianas, como a Tia Ciata, no início do samba
carioca e das Escolas de samba.
No Brasil inteiro, as Escolas de samba tiveram um papel fundamental na preserva-
ção das tradições dos terreiros. A obrigatoriedade da ala das baianas é a marca in-
contestável da herança de Tia Ciata e da presença do candomblé na formação das
escolas. (DIÁLOGOS...58, 2017. Notícia.)
O sentido de adereços como correntes e anéis, que compõem parte da vestimenta dos
participantes dos terreiros e dos sambistas, nos parece ter uma conexão com hábitos herdados
de povos diversos.
Outro ponto observado nos diversos cuidados com as roupas utilizadas por essas pes-
soas, é a tentativa de reconhecimento social através do uso das mesmas. Segundo alguns en-
58
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/do-terreiro-a-avenida-o-tempo-e-o-
templo-dos-orixas/
176
trevistados, essa é uma prática herdada desde a infância, devido ao fato de a própria família
ter sofrido preconceito por gerações em períodos anteriores, quando o preconceito racial era
ainda mais severo no Brasil. Segundo eles, há um esforço por parte deles (negros) em relação
à limpeza das roupas, já que este poderia ser mais um alvo de preconceito, além dos que eles
já sofrem socialmente. Segundo Vitor da Trindade, os indivíduos afrodescendentes no Brasil
apresentam níveis altíssimos de pressão alta, sintomas recorrentes de algumas justificativas
que eles (os negros) teriam que dar o tempo todo pelo fator de sua cor. Isso corrobora com os
cuidados que os negros teriam que ter também como justificativa da própria existência, como
se socialmente eles pudessem ser mais aceitos pelo fato de estarem mais bem apresentados.
Figura 16 - Ricardo Amaral, integrante do Grupo Senzala Antiga, com vestimenta branca e guias espi-
rituais utilizadas como proteção e reverência aos orixás
Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro, 23/9/2017, Quadra do GRCSES Caprichosos do Piqueri59.
59
O lampião em cima da mesa com toalha branca, também representa os tempos de cativeiro e é símbolo da
entidade Preto Velho.
177
Figura 17 - Integrantes da bateria do GRCSES Império de Casa Verde em Ensaio Técnico, com calça e
calçado branco
Fonte: Acervo pessoal de Rafael Y Castro, 21/01/2019, Sambódromo do Anhembi.
178
de desejada enquanto corre. Isso de fato aconteceu durante um desfile da escola no ano de
2018 e, segundo o mestre, caso não houvesse ocorrido essa preparação anteriormente, não
teria sido possível fechar o desfile de toda a Escola no tempo limite.
Tocar um instrumento por si só já pode ser uma tarefa bastante desafiadora nesse con-
texto, e unir isso com uma corrida pode ser trágico. Muitas vezes, em ensaios nessa Escola, o
mestre solicita a movimentação corporal de seus ritmistas. Para Robson, o ritmista precisa
balançar, não tem como tocar dentro da linguagem do Samba sem pulsar junto. Esta seria uma
estratégia deste e outros mestres, e do samba em geral, objetivando a coerência com a lingua-
gem musical, herança da integração do corpo com a música – característica intrínseca às prá-
ticas percussivas em musicalidades africanas. Não há música sem movimento, mesmo que
minimizado em alguns casos. Este conceito se mostra de forma oposta ao do Ocidente e de
algumas outras escolas musicais, onde a necessidade é exatamente oposta, executar com a
maior precisão técnica e sonoridade possíveis. Nesse outro contexto, o mínimo movimento,
extremamente medido, é mais adequado. Embora pareça ser algo robotizado, é uma necessi-
dade em determinados casos.
Também não adianta balançar o corpo e reproduzir uma sonoridade incoerente com
determinadas especificidades contextuais. Dessa forma, pode haver um exagero, como deter-
minadas coreografias excessivas em alguns contextos e sem a sonoridade ou precisão deseja-
das. Utilizar o corpo como conceito é algo automático no Samba. Precisa-se compreender
essa necessidade como algo que contribui com a própria performance. A sonoridade se modi-
fica de forma contrastante quando um ritmista tem o equilíbrio entre o ritmo e o movimento.
Nesse aspecto, o corpo integra-se com o todo no sentido do pensamento coletivo, pois o que o
ritmista realiza pode ser imitado e somado com todos os outros integrantes das Escolas e com
o público de forma geral, uma possibilidade inclusive de conquista de melhores notas no jul-
gamento dos quesitos evolução e harmonia. Movimentar-se junto com um grupo de 250 ritmi-
stas em dia de desfile, de forma organizada, é uma tarefa que precisa ser praticada, sentida e
reproduzida de acordo com o tempo, o que se aprende convivendo nesse contexto.
A mesma necessidade que o ritmista possui para executar seu instrumento e desfilar
(tocar em movimento), ocorre na formação de um ogã. O que o ritmista sente no samba, atre-
lado ao movimento, é também uma necessidade para o ogã. A única diferença é que o ogã
normalmente toca parado e não em movimento. A necessidade da utilização do corpo como
um todo para um ogã se dá em processos iniciáticos de formação nos ritos do candomblé. É
nesse momento que o ogã aprenderá as danças dos toques referenciais, de acordo com as can-
tigas utilizadas na sua saída de Santo. Existe, nesse momento, uma série de músicas, e o cha-
179
mado barco dos iniciados sai do roncó, para que eles sejam apresentados para a comunidade
como novos filhos da Casa. Em diversos momentos da chamada festa de saída, os iniciados
dançam, pois foram ensinados durante os dias de roncó. Dependendo da Casa, há uma série de
ensaios para esta festa de saída. Esse aprendizado é anterior à possibilidade de tocar o ataba-
que, pois isso só acontecerá depois, e é essencial para a boa relação e compreensão do ogã
que ele precisará interagir com os rodantes no xirê e com os orixás.
Outro momento de movimentação dos ogãs, ou seja, da relação do corpo conectado
com o todo, ocorre durante algumas festas específicas ou apresentações em locais externos.
Na festa para o orixá Exu, por exemplo, há um momento específico para a participação dos
ogãs dançando, uma espécie de desafio entre eles, e neste momento destaca-se a habilidade de
cada um, pois dançam individualmente de forma sequencial. Essa dança poderá ocorrer de
forma espontânea ou provocada como desafio, exatamente para mostrar que há uma disputa
em jogo, a da malandragem no sentido ampliado. Um bom ogã teria que se movimentar da
mesma forma que toca, não havendo separação do corpo com a performance musical. A ima-
gem que o público de forma geral tem dos ogãs, associados essencialmente ao toque, não
condiz com a necessidade de atuação e formação deles nas Casas de candomblé. O corpo co-
mo um todo é uma necessidade da linguagem artística e, consequentemente, na troca entre o
individual e o coletivo, da mesma forma que ocorre entre os ritmistas e as passistas e com o
público em geral. O estimulo da somatória necessária à força do coletivo é uma realidade nes-
ses locais. Este estímulo depende fortemente do que é sentido e transmitido pelo corpo desses
indivíduos.
É bastante natural e respeitoso o tratamento que se dá para as diferentes formas de uti-
lização do corpo nos ritmistas e nos ogãs. Cada um realiza o que é possível, não é algo coreo-
grafado, mas sim expressado pela somatória do que se sente coletivamente. O corpo é um
elemento condutor de toda a cultura diaspórica que está sendo manifestada, e é uma marca
indissociável e completamente necessária para a própria realização da manifestação.
Outro aspecto que notamos, quando nos foram apresentados sonoramente alguns to-
ques e suas transformações transculturais, é uma certa confluência entre alguns padrões que
anteriormente ocorriam numa fórmula de compasso e mudaram para outra. Ou seja, um mes-
mo padrão, ou um padrão muito próximo de algo anterior (clave ou levada), era realizado em
uma subdivisão ternária e passou para uma outra subdivisão em semicolcheias – mudando de
ímpar para par (uma subdivisão com três sub-pulsos ternários para quaternários), o que causa
outra interpretação e resultado sonoro. Nesse sentido a reverberação do corpo do ritmista,
nessa modificação, também interfere no resultado sonoro modificado. Como o ritmista marca
180
junto com o tempo (andamento) o timeline e a subdivisão, tudo isso somado é representado de
acordo com o entendimento de cada padrão, mesmo que seja de forma inconsciente. Este fe-
nômeno foi observado em dias de ensaio de bateria e em festas de candomblé (no caso dos
terreiros, há uma utilização grande da subdivisão ternária). Quando estes padrões foram leva-
dos para as baterias, e suas subdivisões foram modificadas, houve também transformação na
movimentação corporal, caso do alujá de Xangô para a levada de caixa em cima do Salgueiro
(Ver Capítulo V).
Os ritmistas também realizam algumas coreografias, combinadas ou não, quando ocor-
re o momento dos breques. Para reforçar o sentido destas convenções rítmicas em arranjos de
sambas enredo, podem ser preparadas pelo mestre uma série de movimentações realizadas
pelos ritmistas em dia de desfile. Estas são entendidas como uma forma de valorização do
espetáculo cênico como um todo.
São aqueles componentes ligados ou não à Escola de samba e que transmitem o rit-
mo do Samba através da ginga do corpo e, principalmente, mostram nos pés a músi-
ca do povo. [...] Há passistas que dançam com a marcação do surdo, outros do pan-
deiro, outros do atabaque, depende de sua formação. Não é todo samba que leva o
passista a mostrar todo o valor de sua ginga. Há necessidade de que o ritmo esteja
coordenado e que seu corpo sinta motivação para transmitir os movimentos. Todo
bom passista é altamente sensível ao ritmo (CANDEIA; ISNARD, 1978, p. 10).
182
183
um destaque para determinadas coreografias mais fortes. Essas coreografias possuem a função
de transmitir a força destes grupos, algo entendido como impulsionador para todos os indiví-
duos externos, necessidade essencial de uma bateria. Ou seja, a de sustentar um desfile de
uma Escola de samba, durante a passagem dos mais de 3.000 integrantes pelo sambódromo.
4.7.3 Flexibilidade no andamento, pulsação e matriz temporal
Uma característica bastante forte nos grupos percussivos aqui investigados se dá a par-
tir de uma relação diferente com a precisão, aquela que normalmente necessitamos em níveis
diferentes dependendo do contexto musical, caso de orquestras ou de execuções de repertório
originário de outras culturas e países, como os da tradição da música europeia, por exemplo.
É importante situar nosso leitor em relação a certas flexibilidades comuns dentro do
que consideramos como uma característica de certos estilos musicais. Na música popular, o
ritmo possui função essencial condutora da massa humana formada pelas pessoas que tocam e
que não tocam instrumentos. Mesmo assim, apesar desta ser uma premissa e, portanto, soar
como necessária uma determinada precisão, dentro do considerado andamento da música e
pulsação, há algumas variáveis que são relativamente aceitáveis em alguns estilos, enquanto
que em outros não.
Além desta necessidade, que determinará certa flexibilidade temporal, há a necessida-
de de ajustes de andamento, que variam de acordo com várias necessidades em ambas as per-
formances – xirês e desfiles. Vejamos o que Graeff (2012), nos traz a partir do conceito de
certa relativização temporal, abordado por Pinto (2001):
A pulsação elementar na música africana levanta até hoje controvérsias. Por um la-
do, há dificuldades em se comprovar sua existência por se tratar de um processo
subjetivo, inconsciente dos músicos. No caso do Samba de Roda, a percepção dos
pulsos elementares não é apenas subjetiva, mas também acústica. Por outro lado,
considera-se que a pulsação elementar deveria ser isocrônica, quer dizer, que as dis-
tâncias temporais entre as batidas deveriam ser exatamente iguais – o que é pratica-
mente impossível, inclusive para músicos que treinam com metrônomo. No entanto,
a suposta isocronia não se refere a uma exatidão temporal, mas sim a uma “rede fle-
xível”, ou à flexibilidade da matriz temporal (PINTO apud GRAEFF, 2012, p. 7).
Na chamada música popular, há uma certa liberdade em relação a este tipo de preci-
são, visto que essa variação é entendida como natural em certos grupos, como nos terreiros e
184
nas baterias das Escolas de samba. A manutenção da pulsação é uma exigência em muitos
contextos musicais, porém, em alguns, ela pode fazer parte da própria linguagem. Vários
exemplos disso ocorreram em ensaios de bateria, desfiles e xirês, evidenciando que é muito
comum que a performance desses grupos seja variável. Isso interfere até nas ações e métodos
dos líderes e dos ritmistas e ogãs mais experientes. Estes indivíduos executam seus instrumen-
tos, ou apitos e gestos, para estimular uma manutenção de determinado andamento progra-
mado para a execução de todo o grupo. Para que isso aconteça, gestos grandes com os braços,
apitadas fortes e outros tipos de estímulos como os corporais, são utilizados como ferramentas
para impulsionar certa aceleração no andamento. Um momento crucial em que isto acontece
em uma bateria ocorre nas viradas de 2 ou de 3 que, como encaminha para uma parte com
menor potência sonora (volume) do samba, para uma parte chamada menor em relação à har-
monia musical, em que a intensidade do conjunto rítmico cai, diminui.
Para que essa queda na intensidade não seja tão marcante e se misture com a automáti-
ca queda do andamento – erro corriqueiro em execução musical, principalmente em conjuntos
coletivos –, há a necessidade de exigir mais força física e sonoridade de todos os ritmistas,
para que o andamento não caia e possa haver potência e volume necessários à massa sonora
proporcionada pela bateria. Nesse momento, o que acaba acontecendo muitas vezes (presen-
ciamos isso tocando junto com esses grupos), é uma aceleração no andamento, algo natural
para tentar não deixar cair tanto o andamento do grupo com uma média de até 250 integrantes
em dia de desfile. Essa, e outras estratégias dos mestres, são uma marca característica de osci-
lações diversas durante uma performance de até uma hora de duração, com um grupo tão
grande de pessoas. Controlar isso minuciosamente, mesmo com tolerância em pequenas vari-
ações, pode ser visto como uma regra não condizente com essa linguagem musical, que pode-
ria ser considerada como um modelo musical diferente da realidade. Utilizar uma ferramenta
mecânica para medir essa quantidade de músicos e suas variáveis significa considerar um
pensamento ocidental como dominante, o oposto do que a musicalidade afro-brasileira tem
como essência, exatamente as variáveis.
Por outro lado, a tentativa de determinar isso como regra é um caminho para tentar es-
tipular certos itens em prol da escolha de uma bateria que varie menos nesse ponto. Observar
no metrônomo uma certa precisão no andamento, de forma comparativa, quando uma bateria
está em performance, se movimentando, e muitas vezes embaixo de chuva, também não pare-
ce ser uma ação que leve em consideração características fundamentais herdadas via diáspora.
Compreendemos as tentativas de controlar minimamente essa questão por parte da Liga das
Escolas de samba e dos jurados, mas achamos necessárias discussões mais adequadas em re-
185
186
sas vezes, indivíduos exaustos antes do início dos xirês, exatamente porque haviam acabado
de realizar tarefas durante vários dias e noites e precisavam estar de prontidão para o toque.
Não há qualquer tipo de alívio em relação a isso. O ogã é visto como uma pessoa forte, por
isso precisa aguentar tamanha exigência. Não é por acaso que ele tem a função de guardião da
Casa todos os dias, uma espécie de segurança contínuo. O ogã está alerta o tempo todo e, se
não estiver, com certeza o pai de santo local irá cobrar sua atenção.
Outro momento em que há a chamada flexibilidade no andamento, é quando o orixá
está prestes a chegar em algum yawó e todos começam a cantar, tocar e se movimentar com
mais intensidade. Isso acontece muitas vezes em um xirê. Nesse momento, o ogã precisa estar
atento, porque é esperada uma aceleração no andamento. Será a partir dessa aceleração que o
orixá poderá ou não chegar. Ou seja, é um momento crucial para o qual a experiência do alabê
é determinante. É por meio dele, na relação da percussão como linguagem (códigos internos
entre dança e toque), que o auge acontecerá.
Precisamos aqui fazer um paralelo entre a relação do ritmista com a passista. É comum
a rainha de bateria escolher algum ritmista para realizar movimentações a partir da sonoridade
do instrumento. Esse também é considerado um momento auge, pois o ritmista escolhido fica
altamente satisfeito pela escolha e contribui realizando variações, uma espécie de solo, duran-
te o período da troca entre o movimento corporal da passista e do ritmista. Observamos isso
ocorrer muitas vezes em ensaios técnicos e na quadra do GRCSES Império de Casa Verde,
enquanto tocávamos nossos instrumentos e também na própria troca com a rainha. Não há
como manter o andamento e a sonoridade na mesma intensidade nessa hora. Como é um mo-
mento especial, é esperado uma intensidade maior e, portanto, uma sonoridade mais destaca-
da, ao mesmo tempo que ocorre uma certa aceleração intrínseca a esta linguagem.
Tocar para frente é um termo atribuído popularmente no contexto de alguns estilos,
assim como tocar para trás. Essas variantes são associadas aos próprios estilos. O samba en-
redo é algo vibrante e demanda muita capacidade física, assim como o barravento, o alujá de
Xangô ou o ilú de Iansã. A aceleração é uma característica, e se ela não ocorrer a percussão
não cumprirá o seu papel como linguagem no momento da troca com a dança. Durante o des-
file, ensaios e xirês, determinados ajustes no andamento e na manutenção da pulsação são
entendidos como naturais. É bastante complicado desconsiderar algo natural destas musicali-
dades, dentro de determinados conceitos estipulados como determinantes em relação a outros.
4.7.4 Performance: rotatividade pelo número flexível de integrantes e visão periférica
Rotatividade pelo número flexível de integrantes
187
Um certo grau de risco, sempre atribuído à dependência daqueles que estarão disponí-
veis para a performance em cada evento, é natural à própria dinâmica desses grupos, assim
como as diversas possibilidades com a performance final. Esse risco causa interesse pela pos-
sibilidade de uma nova relação com a sonoridade, pois novas parcerias surgem em cada dia de
atividade. A troca é essencial, seja pelo olhar, imitação instrumental ou movimentação corpo-
ral, o que muitas vezes está completamente integrado. A atenção com o coletivo é essencial,
independente de quem esteja tocando ao lado de cada integrante. No decorrer deste trabalho,
foi sempre interessante manter a atenção na massa sonora que se forma de maneiras diferentes
e observar os olhares atentos dos ritmistas mais próximos em dias de ensaio, validando ou não
aquilo que estava sendo tocado. Ou seja, se estava dentro da linguagem necessária ao estilo.
Ocorre também que muitos ritmistas não tocam seus instrumentos principais em co-
meços de ensaio, momento no qual a bateria ainda está com um número pequeno de integran-
tes e é necessário tocar as caixas, instrumentos essenciais para dar sustentação ao ritmo. No
GRCSES Império de Casa Verde, por exemplo, vários instrumentistas de excelência come-
188
çam os ensaios tocando caixa. O mestre e os diretores também realizam esta função, a de to-
car em um momento inicial do ensaio, ou até durante todo o tempo, dependendo do dia.
Outro momento é a chamada partida do samba, no qual alguns diretores tocam nor-
malmente os surdos de terceira com um pequeno grupo no palco e depois retornam para diri-
gir a bateria. Nesse momento, quando o mestre, diretores e alguns ritmistas mudam de função,
ou seja, saem da regência e de seus instrumentos para tocar outros, estas figuras representam a
flexibilidade necessária a um ritmista. O mestre, ou diretor, que toca em momentos alternados
de ensaio, além de ser visto como uma referência na performance, também modifica a sonori-
dade final de todo o grupo e, portanto, corrobora com a apresentação de uma performance
flexível. Alguns instrumentistas também mudam de lugar durante os eventos, com fins de
organização das baterias, pois estas tocam em movimento, havendo então a necessidade de
determinadas inversões de posições.
Isso acaba acontecendo, por exemplo, quando uma bateria entra no recuo no sambó-
dromo, com os tamborins de frente, e ao voltar para a avenida precisa-se que esse naipe seja o
último, já que foi o primeiro a entrar. Portanto, ele terá que esperar todos os outros saírem
para retornar ao desfile em movimento, e tudo isso transforma a sonoridade do grande grupo.
A equalização, por exemplo, será modificada, pois instrumentos com alturas e timbres dife-
rentes deslocaram suas sonoridades para outros locais do espaço onde estavam.
Nesses momentos de inversões de localização dentro da bateria, novos contatos e par-
cerias surgem pela troca proporcionada na coletividade. Muitos momentos de variações po-
dem acontecer, e normalmente acontecem, pela felicidade de um colega mais próximo encon-
trar o outro. São nesses momentos que acontecem determinadas empolgações que levam à
mudança da sonoridade do grupo, portanto, a performance se modifica como um todo. Diver-
sos subgrupos são formados em uma bateria, seja em ensaios, festas e até no desfile. Alguns
integrantes se reencontram pelas mudanças durante o percurso e criam novos momentos sono-
ros pontuais que duram alguns segundos. São momentos riquíssimos de troca, com muitas
variações combinadas, improvisações, mudança de intensidade e coreografias. Esta é uma
característica do Samba, a criatividade e espontaneidade de seus indivíduos. Essa marca pro-
porciona uma performance variável e coerente à própria linguagem. Nada é estático e, apesar
de certas necessidade atuais, isto ainda é preservado espontaneamente.
189
mas vale aqui reiterá-las. O esforço físico necessário para repetitivas e longas performances
requer diversas trocas, pois cada ogã possui uma sonoridade característica e identidade musi-
cal nos toques e variações. Dessa forma, cada vez que se troca um destes indivíduos a perfor-
mance também tem diversas resultantes, mas nada que atrapalhe o ritual. A flexibilidade aca-
ba sendo a própria marca de todo o grupo, e também não há outra possibilidade nesse aconte-
cimento.
Nesse sentido há, por necessidade, uma intimidade com essas variantes. Outra modifi-
cação que acontece na performance é quando determinados ogãs mais experientes, responsá-
veis por outras funções como as do recolhimento aos preceitos, precisam ser substituídos.
Muitos ogãs também participam como convidados em algumas Casas. Por motivos de inicia-
ção de uma mesma Casa matriz, por exemplo, é comum diversos ogãs participarem juntos em
Casas diferentes. Na Casa Kyloatala, por exemplo, muitos ogãs mais velhos da Casa de Ango-
la Redandá participam das festas e xirês. Nesses encontros a sonoridade final proporcionada
pela percussão é completamente diferente daquelas nas quais apenas ogãs da Ca-
sa Kyloatala participam.
Nos terreiros, a variação de ogãs também é uma prática. Ela ocorre de algumas manei-
ras parecidas com as que ocorrem nas baterias. Muitos ogãs ficam ao lado de quem está to-
cando, enquanto batem palma na pulsação ou junto com determinados timelines dos toques e
reforçam as cantigas pelo canto. Estes que não estão tocando, irão sucessivamente substituir
os outros por alguns motivos: a) descanso e revezamento físico pela exigência e desgaste do
corpo, mesmo com um desenvolvimento técnico avançado, b) formação de novos ogãs e tam-
bém, c) troca pelo coletivo, objetivando um desenvolvimento de todos que servirão de exem-
plo para toda a Casa. Nesse momento, os rodantes ficam observando os novos ogãs em trei-
namento e também confirmam ou não os avanços percebidos pelo olhar.
Nos terreiros, em dias de festas para as necessidades dos xirês, também pode haver a
falta de algum ogã e outros precisarão substituí-lo. Outro fato bastante comum é o pai de san-
to convidar algum ogã mais experiente, com maior idade e conhecimento em cantigas varia-
das, somadas a uma qualidade vocal diferenciada, para conduzir o xirê. Este fato ocorre em
muitas festas no Kyloatala. O ogã Talabi (João Redandá) é exímio conhecedor da cultura do
Candomblé e participa de muitas destas festas a convite do pai de santo desta ro-
ça. Talabi chega no dia da festa e conduz todo o rito sem pestanejar, sendo um exemplo a ser
seguido por todos os outros nessa situação – ogãs mais novos e, portanto, com menor experi-
ência, como no meu caso.
190
Isso é uma determinação feita dentro da tradição do candomblé. Alguém precisa saber
de todos os segredos da religião, e é normalmente o alabê que tem este papel. Na falta
do alabê para substituir o pai de santo em um xirê, todo o conjunto percussivo poderá ser pre-
judicado, já que ele é o condutor, o líder. Sua função é reger o grupo, com proficiência em
toques, variações, variedade de cantigas, amplo repertório e conhecimento dos fundamentos
da religião. Quando este ogã sai do posto de alabê, naturalmente precisa ter outro para substi-
tuí-lo, o ogã mais velho depois dele, já treinado durante as festas para começar a liderar certos
momentos. Nesse sentido, a flexibilidade de integrantes, bem como a rotatividade destes, é
mais do que uma necessidade, é algo estrutural. Todos poderão mudar de lugar em algum
momento, de acordo com as necessidades diversas e vivência na roça. Não há confiança em
quem não consiga estar presente.
Outra variável dentro desse aspecto é quando um ogã mais novo é mais presente do
que outro. O alabê irá convidar aquele ogã para tocar mais vezes do que outros que colabora-
ram menos com as atividades da roça. Todo ogã precisa realizar diversas tarefas, diferen-
tes das musicais, como limpar o terreno, pegar folhas e plantas para os ritos, limpar animais,
entre outras. Nesse sentido, será comum um ogã menos experiente musicalmente ter mais
possibilidades de revezar nos toques dos atabaques do que outros que não possuam tanta dis-
ponibilidade para a roça.
Esse assunto é bastante polêmico, pois alguns membros da religião trabalham fora ou
moram mais afastados das Casas e outros não. Portanto, conciliar tais diferenças também é
tarefa que cabe ao método assertivo de um grande líder, nesse caso a do pai de santo, a mesma
de um grande mestre de bateria. Será a partir de suas decisões que determinadas flexibilidades
na rotatividade e quantidade de integrantes ocorrerão. Atualmente, diversos destes líderes
perceberam que é melhor lidar com a rotatividade do que ter menos integrantes. Nesse senti-
do, o risco nas diversas variantes acaba compensando. Essa é uma estratégia atual desses líde-
res, considerar tais especificidades não existentes em várias outras agrupações musicais.
191
A tolerância faz parte do método. A autonomia com responsabilidade poderá ser de-
senvolvida pelos integrantes de acordo com o tempo, quando cada um entenderá a sua impor-
tância individual para todo o grupo. Além disso, outra similaridade com o método utilizado no
candomblé é que muitos ritmistas proficientes são formados para serem os novos diretores e
também mestres, seja na mesma Escola ou em outras. A partir desta realocação de setores em
uma bateria, aquele lugar que o ritmista mais proficiente liberou para assumir o posto de dire-
tor precisará ser coberto por outro. Até isso acontecer à altura, demandará muito trabalho e
estratégias, fato visto com vários integrantes do GRCSES Império de Casa Verde.
Durante os dez anos de minha convivência nessa bateria, pude presenciar muitos mo-
mentos de formações de indivíduos para atuarem em outras baterias e também assumirem
cargos hierárquicos maiores no Império. Da mesma forma ocorreu no Kyloatala. A perfor-
mance flexível mostra como o risco é uma realidade com esses grupos. Existe uma organiza-
ção e muito trabalho para evitar certos problemas, mas sempre haverá determinadas variações.
A condução de uma bateria por um mestre é algo muito complicado, de acordo com a cobran-
ça que existe dentro desta função. É necessária muita habilidade e confiança, pois ele sempre
trabalhará com a performance flexível. O mestre Robson Campos fala que é necessário fazer
ensaios estratégicos com grupos diferentes a cada dia, já que apenas no dia do desfile ele terá
sua bateria o mais completa possível. Ou seja, reiteramos que a performance será sempre fle-
xível.
No Kyloatala fui requisitado para dias de apresentações externas, como a que ocorreu
no dia 02 de fevereiro de 2020, data de comemoração a Iemanjá. Para esse dia, al-
guns ogãs mais experientes estavam em preceito e outros tinham compromissos pessoais. Ta-
ta Kamuanga me contatou e solicitou suporte pela necessidade de revezar o toque com ou-
192
tros ogãs. De qualquer forma, eu estaria presente, mas com o chamado deste sacerdote (Ta-
ta Kamuanga) pude analisar o quão importante é a compreensão de coletividade destes gru-
pos. De outra maneira, não seria possível eles permanecerem. Nesse dia atuei de forma mais
intensa, visto que tive uma responsabilidade, mas também uma consideração e aceitação dos
membros da Casa. Entendi este momento como uma grande oportunidade para retribuir e as-
sumir uma posição privilegiada e de extrema responsabilidade.
Visão periférica
A chamada visão periférica é uma habilidade necessária em algumas práticas voltadas
para a performance, normalmente em grupos grandes, nos quais há a necessidade de o indiví-
duo realizar mais de uma tarefa ao mesmo tempo. Em uma orquestra sinfônica, os músicos de
orquestra, por exemplo, ao mesmo tempo que executam seus instrumentos individualmente,
precisam olhar para a partitura em conjunto com a regência do maestro. Normalmente, um
músico que possua um contato direto com o regente possui mais vínculo coletivo, sendo que
os regentes entendem esse aspecto como facilitador do trabalho nessas formações. Neste caso,
o músico que possui essa intimidade com a chamada visão periférica transmite segurança para
o regente.
Em uma bateria, o mestre precisa que ao mesmo tempo que seus ritmistas toquem,
cantem e se movimentem, olhem constantemente para a regência dele e dos diretores. Como
os grupos musicais são grandes, os diretores reproduzem os mesmos sinais do mestre, refor-
çando a regência em outros locais do grupo. O grupo pode chegar a uma média de 300 inte-
grantes, dessa forma, é muito necessário o olhar dos ritmistas, que tocam e são ensinados a
olhar sempre para frente, focando a visualização da regência do mestre e diretores. A habili-
dade específica nesse caso é em relação à movimentação do grupo como um todo durante um
desfile ou ensaio de rua.
193
queta contra a pele, olhar a movimentação das fileiras e acompanhar de maneira uniforme,
enquanto olham firmemente para o regente.
Notamos também a mesma prática entre os ogãs em dias de xirê. Todos precisam
acompanhar a movimentação do povo que está no centro do barracão, enquanto olham firme-
mente para o zelador e também para as pessoas que estão incorporadas pelos orixás. Há uma
série de ritos (cumprimentos, bençãos) que podem acontecer a qualquer momento. Outra ne-
cessidade é a leitura labial, quando há alguém novo tentando aprender uma cantiga ou toque.
O repertório é extenso e, até o novato aprender boa parte dele (uma obrigação religiosa), mui-
to da sua possibilidade de êxito em sua função, seja a de cantar ou tocar
ou como yawó ou ekédi, dependerá de sua capacidade de visão periférica, a mesma que o rit-
mista precisa ter dentro da bateria e com a Escola como um todo.
194
5.1 Toques estruturais do candomblé da nação Angola e Ketu utilizados nas Baterias
Separamos os toques em: a) clássicos – anualmente utilizados em arranjos rítmicos
construídos pelas baterias para os sambas enredos, b) relacionados – que possuem semelhança
e originam as levadas de caixa, surdo, repinique, tamborim e outros instrumentos que consti-
tuem os naipes das baterias e c) outros toques – menos conhecidos, mas que apresen-
tam também alguma relação. Alguns desses toques, definimos como híbridos, por serem usa-
dos tanto nas construções dos breques, como nas levadas dos instrumentos: caixa, repinique e
surdo de terceira.
A possibilidade de deixar registrada parte das conexões que apontamos no decorrer do
trabalho representa a importância documental em identificar determinadas heranças. Além da
questão histórica, fica explicitada, musicalmente, uma amostra das estruturas em comum que
continuam estabelecendo aspectos identitários nas baterias. Tais símbolos, divididos entre o
candomblé e esses conjuntos percussivos, transmitem e mantêm um desenvolvimen-
to polirrítmico bastante característico daquilo que é apontado por Graeff (2015)
e Kubik (1979) como um fenômeno multidimensional do ritmo – todas as possibilidades, e
não somente musicais, de conexão das comunidades com elementos como timelines e identi-
dades sonoras.
Este fenômeno multidimensional está pautado pela resultante melódica a partir do rit-
mo. Ou seja, pelo fato de que a polirritmia e suas diversas combinações em conjuntos percus-
sivos africanos, soam como melodia de timbres. Esta relação é clara nas sonoridades do can-
domblé e das baterias das escolas de samba, pela variedade de naipes e frequências agudas,
médias e graves, pelo uso de instrumentos de metal como o agogô de 4 campanas e chocalhos
com platinelas metálicas, e de tambores diversos que variam entre o agudo e o grave.
Autores como Arom (1991), Koeting (1970), Kubik (1979) e Pinto (2015) abordam a
perspectiva multidimensional sob este prisma, o da melodia de timbres. Nesse sentido, para o
estudo dos ritmos tradicionais de influência africana, fundamentalmente, se faz necessário
perceber a amálgama entre ritmo e timbre. Desta relação, deriva a melodia resultante de múl-
tiplas combinações:
Os padrões rítmicos do conjunto de percussão deveriam ser estudados como padrões
de ritmo/sonoridade, não podendo ser realmente equiparados com os pa-
drões rítmicos ocidentais, nos quais nós geralmente pensamos sem incluir suas qua-
lidades tonais e tímbricas como elementos significativos (KOETTING, 1970, p. 210
apud GRAEFF, 2012, p. 2).
195
Pinto (2001) diz: “Por conseguinte, no contexto do samba, ritmo ocupa ao mesmo
tempo uma função de organização temporal e de execução de “‘configurações tímbricas’ que
muitos músicos chamam de ‘melodias’” (PINTO, 2001, p. 100), e Graeff (2012), por sua
vez, comenta ainda sobre as possibilidades timbrísticas de um instrumento em relação
à técnica utilizada em performance: “A depender da técnica de execução empregada, um úni-
co instrumento pode produzir diferentes timbres e frequências sonoras (GRAEFF, 2012, p.
2)”.
Kubik (1979), utilizou o termo Timbre-Sequenz para conceituar estas relações entre
ritmo e timbre, mas com a junção de mais um elemento, o movimento, o que já foi discutido
no Capítulo IV.
Com relação a essa amplitude do ritmo e sua abrangência social, percebemos que há
uma identificação pessoal com cada motivo rítmico identitário destes grupos, ou seja, nas
baterias identitárias, nas Casas de candomblé e nos timelines registrados nas memórias ances-
trais das comunidades, tais códigos internos promovem a reconexão com a ancestralidade, a
partir da transculturação e etnicidade, aspectos próprios de movimentos diaspóricos já discu-
tidos por Hall (2003), Béhague (1994), Pinto (2015) e Ortiz (1940).
Os toques aqui apresentados foram transcritos a partir da execução de diver-
sos ogãs do Kyloatala (Angola) e do Ilê de Oxalufã (Ketu), e podem variar de acordo com a
rotatividade dos músicos, assim como de terreiro para terreiro. Para isto, estabelecemos o se-
guinte sistema notacional, de maneira a representar o amplo material levantado e evidenciar
suas conexões:
196
60
Desenvolvidos por Carlos Stasi.
61
Idem.
197
5.4 TOQUES
E continua:
As dobras do rum, no cabula, têm muito, por exemplo, do que no Rio eles chamam
de trovoada na terceira. A levada de terceira colocada pelo Marçal na Portela é exa-
tamente uma passagem do Modovi ou Bravum (toques para odowa ou oxumarê, na
mitologia yorubá). Isso se mantém até hoje, mesmo quando ele foi pra Tijuca ele co-
locou lá. Nessa época do Marçal já tinham muitos grandes candomblés instalados no
Rio de Janeiro. Ele criou um padrão nas terceiras que é da linguagem do rum, as do-
bras. As chamadas de giro, ou de dobra, ficaram como referências do candomblé nas
baterias. Mostra muito do que aconteceu no início das Escolas e suas influências.
(SALGADO, Alan. 12/03/2019. Casa de Cultura do Butantã, São Paulo/SP. Entre-
vista concedida a Rafael Y Castro.)
198
nal de congo de ouro do candomblé da nação Angola, o rumpi faz um contraponto como res-
posta. Nesse caso, fica bastante evidente que o toque do atabaque médio representa muito da
linguagem transmitida dos terreiros para as baterias. Essas mesmas frases rítmicas, na chama-
da contramétrica, são utilizadas de forma marcante nos surdos de terceira, nas caixas, repini-
ques e tamborins. O congo casado, segundo Salgado (2018), é tradicional em algumas Casas
de Angola, mas, conforme já observado, dependendo da matriz pode ser diferente. De qual-
quer forma, há sempre muita dificuldade em realizar este contraponto de forma precisa.
É preciso ensaiar muito pra ficar bom, por isso poucas Casas fazem, mas é uma ca-
racterística da linguagem do candomblé que chegou nas baterias. Veja só! Pra isso
estar presente nas baterias hoje, foi necessário muita transformação e prática. Hoje,
nós escutamos isso de maneira precisa, mas é muita dedicação dos responsáveis,
além da circularidade destes indivíduos entre os terreiros e as baterias (SALGADO,
Alan. 12/03/2019. Casa de Cultura do Butantã, São Paulo/SP. Entrevista concedida a
Rafael Y Castro.)
Em relação aos andamentos indicados nos toques a seguir, levamos em conta os mais
utilizados e averiguados em nossa pesquisa. Por outro lado, há uma série de flexibilizações
que alteram estas indicações: a) identidade de cada terreiro, b) rodízio e quantidade de parti-
cipantes, c) níveis técnicos, d) possibilidades de variações de acordo com a movimentação no
xirê, e) necessidade de potência na sonoridade, f) solicitação do Pai de santo, entre outros. A
transcrição do rum pode levar a uma certa falta de compreensão da liberdade característica
daquilo que é desenvolvido com base no vocabulário deste instrumento. Mesmo assim, fize-
mos questão de apontar alguns padrões que nos servem como possibilidades identitárias,
exemplos estes essencialmente coletados em pesquisas de campo participativas na Casa de
Angola Kyloatala.
199
Indicamos a escuta do toque congo de ouro62, gravado no Unzo Kyloatala, disponibilizado nos
links abaixo.
62
Toque cabula completo:
https://drive.google.com/file/d/1gDF7as8q0mf80Txk2Xt2tQ1h5bxTq2Gv/view?usp=sharing
Rum: https://drive.google.com/file/d/1g5Xrs-1YET5Rf-f6lYTnUdrwi_Hykuyv/view?usp=sharing
Rumpi: https://drive.google.com/file/d/1g1wg6euucBnGFZPrihlzci25FOlcgLcI/view?usp=sharing
Lé: https://drive.google.com/file/d/1g0XAFOo2WhtYNmXyY_MbIuVs4kgwpesO/view?usp=sharing
Gã: https://drive.google.com/file/d/1fxAFPQ7jqg5cCQP_925IR8HXgjaKIaVf/view?usp=sharing
200
63
Olubajé é um rito em celebração as safras e colheitas diversas de alimentos que são compartilhados de maneira
coletiva anualmente pelos candomblecistas. Referência diretas as festividades africanas celebrativas ao acesso
aos alimentos plantados e colhidos anualmente em comunidades.
64
Tabuleiro é outro nome popular que é dado ao olubajé.
65
Kupuanã também é outro nome dado no candomblé Angola ao olubajé, – termo originalmente Yorubá do
Ketu.
201
Indicamos a escuta do do toque cabula66 gravado no Unzo Kyloatala, disponibilizado nos links
abaixo.
https://drive.google.com/file/d/1hLT_2ycngSrycd9_-jDDcL7g0drmmH-n/view?usp=sharing
202
Rum: https://drive.google.com/file/d/1hJqd28BDwWyrqRIydH6wKcLOiQhYLwP8/view?usp=sharing
Rumpi: https://drive.google.com/file/d/1h57qCvk9rF8XYOOPjf4sW0nK1MDIG0Ib/view?usp=sharing
Lé: https://drive.google.com/file/d/1h1VrgdLhUvvaz1c2Ic1x9K_xQlTcfe1x/view?usp=sharing
Gã: https://drive.google.com/file/d/1gwtv4tScYdva7AmMAvaWzgyFq198qlCz/view?usp=sharing
203
204
O toque dos atabaques médio e agudo, respectivamente rumpi e lé, originam a levada
de caixa da Portela e de outras Escolas, na totalidade dos tempos e suas subdivisões ou em
boa parte deles (pelo menos em 50% da totalidade, ou seja, em dois tempos, se considerarmos
as levadas completas com quatro tempos).
205
Atual:
Anterior (rum):
54
Ver: “Mestre Nilo Sérgio explica os segredos da bateria da Portela”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=97NRxKV89wk
206
207
208
209
Ijexá
Cabula
Este padrão estabeleceu-se no ano de 2010 em São Paulo, por Tateto Dia Nkisi Awo
Nita Motukalofanje, Babalorixá Anderson D’Ogun (Anderson Jorge Enéas), com quem pude
tocar durante seis anos seguidos na bateria do GRCSES Império de Casa Verde. Mestre, rit-
mista, diretor e Pai de santo, também conhecido por Cabelinho, é um nome altamente repre-
sentativo em relação ao nosso objeto de estudo central, devido a importância e funcionalidade
de sua sonoridade no repique mor. Neste sentido, Anderson apresenta uma sonoridade que se
identifica com aquilo produzido por seus antepassados.
210
O exemplo a seguir foi desenvolvido por Rafael Y Castro a partir da mistura de dois
fundamentos do candomblé da nação Angola: a) a levada base de repinique oriunda do ataba-
que lé, b) a levada acima de Anderson Jorge Enéas, oriunda do rumpi:
211
Outro padrão bastante utilizado no repique mor – instrumento mais próximo da sono-
ridade, frequência e afinação dos atabaques nas baterias –, é utilizado no GRCSES Beija Flor
na cidade do Rio de Janeiro. Fizemos questão de transcrevê-lo, para mostrar uma outra in-
fluência que, apesar de não ser o foco de nossa pesquisa, conecta-se com todo o ambiente
cultural, histórico e religioso de ambos os rituais aqui abordados. Nesse caso, o ritmo realiza-
do na caixa do caboc“o”linho em Pernambuco, representa a matriz indígena miscigenada à
africana. Isto, de fato, também é notado em outras seções das Escolas de samba, como alego-
ria e fantasia, por exemplo. Os elementos da natureza, sejam da representatividade indígena
ou africana (orixás), e o sentido da relação destas manifestações, são utilizados de maneira
bastante criativa pelos carnavalescos.
do candomblé de Angola. Vale frisar que o cabula é utilizado no samba de roda, estilo peculi-
ar às musicalidades do recôncavo baiano, o que evidencia, mais uma vez, a transposição da-
quilo que é utilizado dentro para fora dos terreiros.
Congo de Ouro
213
Levada de Congo de Ouro a partir de modelos apresentados pelo músico Julio Cesar:
214
215
Estácio de Sá:
Império Serrano:
216
Mangueira:
Portela:
Salgueiro:
217
Unidos da Tijuca:
Acadêmicos do Tucuruvi:
Águia de Ouro:
218
Mocidade Alegre:
219
Rosas de Ouro:
Tom Maior:
Unidos do Peruche:
Vai-Vai (antiga):
220
Vai-Vai (atual):
X9 Paulistana:
Algumas escolas não possuem levadas antigas descritas neste trabalho porque não
houve mudança significativa em relação aos padrões atuais.
Conforme discutido no Capítulo III, algumas baterias possuem uma divisão dos naipes
de caixas, as chamadas caixas em cima (sem talabarte) e as caixas embaixo (com talabarte),
como por exemplo, Vila Isabel no Rio e Camisa Verde e Branco em São Paulo. O fato de se
ter duas caixas com células rítmicas diferentes, assim como instrumentos com afinação, sono-
ridade e tamanho diferentes, com ou sem talabarte, pode ser um experimento temporário em
algumas Escolas. Alguns mestres optam por experimentar novas sonoridades no conjunto
percussivo e decidem manter, ou não, de ano para ano, essa proposta.
221
69
https://drive.google.com/file/d/1n8Md02Sk_w0euNwwsLf1OFUrMASNnkHG/view?usp=sharing
70
https://drive.google.com/file/d/1XwsVqZLrZSWHuuNd5JB9G_zglRL3qCzh/view?usp=sharing
71
https://drive.google.com/file/d/1FUtKs-5J7K3DcN_nBu0R9gh7ElDHaqqf/view?usp=sharing
222
Conforme já observado, essa batida foi uma das mais utilizadas por diversas baterias
na década de 1990 em São Paulo e no Rio de Janeiro, antes do processo identitário estabeleci-
do atualmente.
Obs. Nesta levada do Império Serrano pode-se também fazer um rufo no tempo 4 no segundo
compasso.
72
https://drive.google.com/file/d/1svxl5EIAzAnJ_BzMNSG2bgdUUa1HK6Oh/view?usp=sharing
73
https://drive.google.com/file/d/1BpLBFzYl1j4oz7MMxmhpYrwTYwxN-ZPB/view?usp=sharing
74
https://drive.google.com/file/d/10uXqOKOdsOZtpNbZp-KNGg3blmWqhkC1/view?usp=sharing
223
75
https://drive.google.com/file/d/1msK10JqO6w3hDHX32UVnm3l-Icwq_hyU/view?usp=sharing
76
https://drive.google.com/file/d/1fjUX2yvIRSu2HapPYAHhOk5Z7dVB7P44/view?usp=sharing
77
https://drive.google.com/file/d/1LAOsO-eCeGE6aW1UH5NrCze5x7mq6yNF/view?usp=sharing
224
Salgueiro e Cabula80
Tijuca e Cabula81
78
https://drive.google.com/file/d/11mt5getlXghiccJrNqLsu6y7s-YpjFTX/view?usp=sharing
79
https://drive.google.com/file/d/1hgBT35Lg0NRrYWI2iX3ulM8HJvnoes9e/view?usp=sharing
80
https://drive.google.com/file/d/1U-SwAnLouU0U8xHuA1chVM2cyH5GOYkX/view?usp=sharing
81
https://drive.google.com/file/d/1neGxq_hlYcXIoGWQw99b2ds6ffNvWnXT/view?usp=sharing
225
Levada inicial das caixas nas primeiras formações das Baterias e Monjolo84
No início das formações das baterias (1910), utilizava-se um padrão de levada de cai-
xa muito similar ao telecoteco do tamborim, conforme já apontado anteriormente por Osval-
dinho da Cuíca. Isso, segundo alguns sambistas, “dava um molho, balanço” especial para as
baterias, até porque era executado em um andamento mais lento, o que permitia uma maior
flexibilidade no ritmo. Posteriormente a este período, começaram a surgir as levadas mais
relacionadas aos toques de candomblé, que permanecem estruturalmente até os dias atuais nas
baterias. Mesmo que, a partir de Mestre Louro no Salgueiro (1970), muitas baterias começa-
ram a reproduzir levadas de caixa em cima parecidas com aquela criada por ele (Tatu), reco-
nhecemos diversas conexões entre os toques dos atabaques e as levadas de caixa e repinique
atualmente.
82
https://drive.google.com/file/d/101QXhizmdtl43uYzimIkzBFLStXuwa9i/view?usp=sharing
83
https://drive.google.com/file/d/19PO8x_6xAX2Kx0k-JBvjVou2f_Anlsle/view?usp=sharing
84
https://drive.google.com/file/d/1cVa5TFz5FGlO0_NJZbsPk3SNnYMdCIqM/view?usp=sharing
226
Salgueiro e Arrebate85
tamente com acentuações diferenciadas, ela não deixou de representar o próprio samba. Ou
seja, mesmo com função e origem provavelmente relacionadas à marcha, não conseguimos
afirmar que ela descaracterizou o samba.
Salgueiro e Ijexá86
Tijuca e Ijexá87
86
https://drive.google.com/file/d/1cNW2GuhNI4YcbNTpRo5qr14NaSnBNOfr/view?usp=sharing
87
https://drive.google.com/file/d/1B7L--Ca48B3IIdIy18epa5TxDLRis_Gd/view?usp=sharing
88
https://drive.google.com/file/d/1h4YSIs5ZQf7sn4l3F6-rBTSrIOrmFPYM/view?usp=sharing
228
Notamos aqui o que é apontado por Fernández (1986) como processo de binarização
dos ritmos ternários africanos na América Latina. Ou seja, um timeline ou clave que apresenta
uma subdivisão ternária em colcheias e é transformado em uma subdivisão quaternária em
semicolcheias, mudando a subdivisão de um sub-pulso ímpar para par, em um mesmo espaço
no compasso, e com um pulso comum entre as duas possibilidades.
89
https://drive.google.com/file/d/1wcpo3wAzbmsE68crRR9AjsjVjl7gbxdj/view?usp=sharing
90
https://drive.google.com/file/d/18E8BC3W5SXOqz0FRM0roWnpY18ous54n/view?usp=sharing
91
https://drive.google.com/file/d/1xhBFDLr0Alb_AOqDE2cQWeGN8V2bkpzz/view?usp=sharing
229
local (status) diferenciado. Entre os ritmistas, por exemplo, é muito comum se referenciar a
algum músico que tenha essa prática da leitura musical como Maestro. Eu mesmo sou chama-
do de Maestro ou professor nestes locais, mesmo que hajam diversos diretores, mestres e pro-
fessores com outras habilidades significativas da tradição oral, como memória e escuta dife-
renciadas.
O músico que precisa decorar uma série de breques, por exemplo, acaba tendo um
desenvolvimento diferenciado para esta tarefa, bem distinto do músico que apenas lê partitu-
ras e não precisa memorizar. Apesar de nos terreiros e nas baterias ser característica a repro-
dução e o aprendizado de instrumentos sem a necessidade da leitura, entendemos como cres-
cente a possibilidade do encontro entre esses dois mundos – o da teoria e o da prática. Atual-
mente, por exemplo, é muito comum encontrarmos ogãs ou ritmistas em busca de instituições
de ensino de música com a prática da escrita, leitura e técnicas musicais de outras tradições –
fato que também influência a modificação de padrões estabelecidos nos terreiros ou baterias,
explicitado pela circularidade e somatória de conhecimentos diferentes de variadas escolas
musicais.
Apresentamos abaixo o trabalho solicitado para o carnaval paulistano, por entender-
mos ser um marco inicial de muitas novas possibilidades.
231
Surdo de segunda ãc œ œ œ œ œ Ó .. œ œ
Surdo de primeira ãc œ Œ œ œ œ œ œ .. œ œ
㜠œ y œ œ œ y œ œ œ y œ œ œ y œ ..
ãy y y y y y y y y y y y y y y y ..
j
...
ã" œ. œ œ œ œ " œ œ ..
㜠g g œ œ g g œ œ g g œ œ g g œ ..
㜠œ œ g œ œ g œ œ œ g œ œ œ œ g ..
㜠œ ..
ã œ œ ..
ã œ œ œ " œ œ ..
232
q = 146
Bossa 2 Império de Casa Verde 2019
Mestre Zoinho/Mestre Marcão
Seja você um personagem, Transcrição de Rafael Y Castro
a grande estrela da sétima arte
Telecoteco
Tamborim ãc œ Œ Œ œ œ Œ œ œ œœ y œœœ y œœ Œ œ œ œ œ œ œ œ. œ
ã c œ g g œœ œ œ Œ œ œ œg gœœg gœœ Œ
3
Repinique œggœœggœœggœœggœ
j j j
ã ! œ œ ‰ œ œ œ œ. œ ! œ œ ‰ œ œ œ œ. œ ! œ œ ‰ œ œ œ œ. œ
ã œ+ œ. œ+ œ+ œ " "
©
233
Chocalho ãc ! ! Ó Ó ! ! !
j j j
Guira ãc / / / / Ó / //‰/ / / Œ ‰// ‰/
Cuíca ãc ! ! Ó
Solo primeiros repiniques (motivo: derbak)
Ó ! ! !
d dede d
Repinique ãc œ gœœœg œ gœœœg œ gœœœg œ gœœœ g œ gœœœg œ gœ œœg
j j j
Caixa ãc w w œ œ Ó œ œœ‰œ œ w Œ ‰œ œ ‰œ
Surdo de segunda ãc w w œ œ Ó œ œœ œ œ ! Œ œœ œ
Surdo de primeira ãc w ˙ Œ œ œ œ Ó œ œœ œ œ ! Œ œœ œ
Surdo de terceira ãc w w œ œ Ó œ œœ œ œ w Œ œœ œ
234
235
236
237
238
239
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, realizado de maneira participativa no GRCSES Império de Casa Verde
e na Casa de Candomblé Angola Kyloatala, averiguamos, a partir de determinados cruzamen-
tos, parte das conexões existentes entre o candomblé e as Escolas de samba, tanto de maneira
geral quanto específica. Tais conexões demonstram como alguns pensamentos e estratégias de
determinados grupos sociais se desenvolvem e se modificam de acordo com necessidades
coletivas.
Nesse sentido, o ritmo, analisado aqui como um fenômeno multidimensional, é visto
como elemento responsável pela reconexão dos descendentes afro-brasileiros de gerações
mais novas com o local de origem – África –, que sustentam um conhecimento ancestral iden-
titário a partir da prática percussiva. Ou seja, o ritmo possui uma função social ampla, não
somente para quem o executa, mas também para a população que acompanha a performance.
Notamos que, de maneira estratégica, determinados conceitos depreciativos em rela-
ção ao samba e ao candomblé foram socialmente construídos. Concluímos que, no caso do
samba, a mídia, a industrialização do carnaval e o turismo de entretenimento contribuem para
a determinação de certo status apenas comercial atribuído a este gênero musical.
No caso do candomblé, observamos também que determinações tendenciosas e crimi-
nosas de alguns grupos religiosos construíram um imaginário popular no qual as divindades
africanas foram demonizadas, afastando parte do público de uma melhor compreensão da
realidade dos terreiros e desta cultura como um todo. Notamos que aquilo que ocorre por es-
colha de alguns grupos específicos, é uma reprodução direta e automática de conceitos equi-
vocados que são utilizados como estratégias de dominação. Nesse sentido, parte da população
repete a distorção conceitual discriminatória, afastando-se dessa cultura e dando prossegui-
mento ao seu apagamento cultural. Os próprios locais onde os terreiros de candomblé e as
quadras das Escolas de samba se situam – em sua maioria afastados das áreas consideradas
mais urbanizadas –, fortalecem tal apagamento e afastamento.
Ao nosso ver, a compreensão do candomblé como algo limitado à própria religiosida-
de o deixa de lado socialmente, não permitindo que ele seja reconhecido como instituição de
formação de pessoas e promoção cultural, o que é claramente evidenciado nos ritos e perfor-
mances ancestrais. Entendemos isso como uma minimização da potência cultural brasileira.
Percebemos também que a falta de reconhecimento acerca desta cultura multiplica-se através
dos próprios indivíduos promotores de suas práticas. Ao mesmo tempo que parte dos envolvi-
dos considera questões de empoderamento sócio-cultural por meio dessas práticas – a partir
de longos processos de conscientização, estudo e reconhecimento histórico –, outra parte pre-
240
fere não adentrar nesta questão e relações culturais, optando por não se expressar abertamente
a respeito.
Observamos que isto se dá como uma estratégia de sobrevivência, por conta do amplo
preconceito social em relação às identificações culturais de matriz afro, preconceito este que
se dá em níveis étnico-raciais e religiosos, resultando no fato de que esta cultura seja vista
como marginal, com base num referencial de refinamento hegemônico eurocêntrico. Há um
amplo desconhecimento das peculiaridades destas musicalidades e subestimação de potencia-
lidades promovidas pela coletividade em processos artísticos encontrados na performance dos
grupos e ambientes analisados. No caso do samba, geralmente associado ao entretenimento,
observamos a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, do reconhecimento da profundidade de
elementos rituais a ele associados. Nesse sentido, nossas inquietações se deram na tentativa de
averiguar quais seriam os motivos de não haver um reconhecimento amplo das complexidades
existentes nestas práticas e quais seriam de fato as heranças culturais trazidas pela diáspora.
Verificamos que a relação de atividades do cotidiano com as práticas musicais é es-
sencial para o desenvolvimento de sentidos sociais para os grupos envolvidos. Ao mesmo
tempo, é pela necessidade da ação social, a partir da musicalidade, que os elementos identitá-
rios rítmicos, e diversos outros pontos de encontro entre os terreiros e as baterias, aparecem
como insígnias de poder. Estes códigos fazem parte da memória coletiva e do reconhecimento
territorial destes indivíduos. A sonoridade dos grupos de percussão representam território e
pertencimento.
Alguns conceitos centrais tratados aqui como norteadores dos comportamentos de
movimentos diaspóricos em diversos contextos e locais, abordados amplamente por Hall, Or-
tiz, Pinto e Kubik, acabaram correspondendo a determinados comportamentos observados por
nós nas comunidades analisadas, naquilo que se refere à transculturação e etnicidade. Alguns
exemplos mais diretos destas correspondências conceituais seriam: a) nem sempre quem mi-
gra de um lugar para outro, no caso da África para o Brasil, opta por continuar ou referenciar
a origem e portanto as conexões culturais, mesmo quando as utiliza em seu repertório, b) o
reconhecimento da potencialidade cultural de determinado grupo, a partir de sua etnia, pode
também não ser considerado como algo significativo em determinadas práticas ou comporta-
mentos do indivíduo. Nesse sentido não há uma clareza explícita dos conteúdos e significa-
dos, mesmo que estes sejam particulares, c) por outro lado, caso seja conveniente, estas rela-
ções, quando identificadas, servem para empoderar o indivíduo a partir do seu coletivo e d)
independente dos exemplos anteriores (a, b ou c), ele opta por deixar estas relações e valores
mantidos como segredos, preferindo não expressar claramente estas conexões.
241
242
243
244
245
REFERÊNCIAS
AJAYI, J. F. Ade. História geral da África, VI: África do século XIX à década de 1880.
Brasília: UNESCO, 2010.
AMADO, Jorge. Bahia de todos os Santos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.
AMARAL, Rita; SILVA, Vagner Gonçalves da. Religiões Afro-Brasileiras e Cultura Nacio-
nal: uma etnografia em hipermídia. Revista Pós Ciências Sociais. São Luís, v. 3, nº. 6, p. 1-
24, 2006.
ARAÚJO, Eugênio. Não deixa o samba morrer: um estudo etnográfico sobre o carnaval de
São Luís e a Escola Favela do samba. São Luís: Editora UFMA, 2001.
ARAÚJO, Leandro Alves de. Oralidade e escrita na diáspora religiosa afro brasileira.
Dissertação de mestrado em Educação. UNEB, Alagoinhas, 2016.
AROM, Simha. African polyphony and polyrhythm: musical structure and methodology.
New York: Cambridge University Press, 1991.
BAKKE, Raquel Rua Baptista. Tem Orixá no Samba: Clara Nunes e a presença do Candom-
blé e da Umbanda na Música Popular Brasileira. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, 27(2):
85-113, 2007.
BARBIERI, Ricardo José. As escolas de samba e a cidade de Manaus (AM): construindo uma
proposta de pesquisa etnográfica. Somanlu - Revista de Estudos Amazônicos. Manaus, ano
11, nº 2, p. 81-94, jul./dez. 2011.
BARBOSA, Rui Silva. As Escolas de samba e as religiões afro-brasileiras. Recanto das le-
tras. Niterói/RJ, 02/03/2011. Disponível em:
https://www.recantodasletras.com.br/artigos/2823539.
BARONE, Ana; RIOS, Flávia. Negros nas cidades Brasileiras: (1890-1950). São Paulo:
FAPESP, 2019.
246
BARRETO, Margarita; SANTOS, Rafael José dos. Aculturação, Impactos culturais, Pro-
cessos de hibridação: uma revisão conceitual dos estudos antropológicos do turismo.
Turismo em análise, v. 17, n.2 p. 244-261. Reunião de Antropologia do Mercosul, Montevi-
déu, Uruguai. 16, 17 e 18 de novembro de 2005.
BARROS, Elizabete Umbelino de. Línguas e linguagens nos candomblés de nação angola.
Tese de Doutorado em Letras. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
BARROS, Iuri Passos de. O Alagbê: entre o terreiro e o mundo. Dissertação de mestrado em
etnomusicologia. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.
BÉHAGUE, Gerard H. Music and Black Ethnicity: the caribbean and South America. New
Brunswick and London: University of Miami North-South Center, 1994.
BOAHEN, Albert Adu. História geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-
1935. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010.
BRUBAKER Rogers. The ‘diaspora’ diaspora. Ethnic and Racial Studies, Vol. 28, 2005, p.
1-19.
BURK, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo/Rio Grande do Sul: Unisinos, 2003.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernida-
de. São Paulo: Edusp, 1989.
CANDEIA; ISNARD. Escola de Samba: árvore que esqueceu a raiz. Rio de Janeiro: Lida-
dor, 1978.
CANTERO, Thais Matarazzo. Artistas negros da música popular e do rádio. São Paulo:
Expressão e Arte, 2014.
CARDOSO, Ângelo Nonato Natale. A linguagem dos tambores. Tese de Doutorado em Mú-
sica. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006.
CARVALHO, Marizilda de. Carnaval e Samba na Terra da Garoa. Cultura e artes popula-
res. Rio de Janeiro, v.6, n1, p. 83-96, 2009.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Etnologia Brasileira. São Paulo: ANPOCS, 1999.
247
CHERNOFF, John Miller. African Rhythm and African Sensibility: aesthetics and social
action in african musical idioms. Chicago and London: University of Chicago Press, 1979.
COSTA, Valéria Gomes. Fluxo e Refluxo: africanos e crioulos pós-1888 nas religiões afro-
descendentes entre Recife e Maceió. XIII Encontro de História Anpuh – Identidades. Rio de
Janeiro, 2008.
CRECIBENI, Nelsinho. Convocação geral a folia está na rua: o carnaval de São Paulo
tem história de verdade. São Paulo: O artífice editorial, 2000.
CUÍCA, Osvaldinho da; DOMINGUES, André. Batuqueiros da Paulicéia. São Paulo: Edito-
ra Barcarolla, 2009.
DIÁLOGOS da fé - Do terreiro à avenida, o tempo e o templo dos orixás. Revista Carta Ca-
pital. 08/12/2017. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/do-
terreiro-a-avenida-o-tempo-e-o-templo-dos-orixas/
DIMENSTEIN, Gilberto; ALVES, Rubem. Fomos maus alunos. Campinas: Editora Papirus
7 Mares, 2013.
DÔSSIE IPHAN. 10 Matrizes do samba no Rio de Janeiro: partido alto, samba de terreiro,
samba enredo. Distrito Federal: IPHAN, 2007.
FARIAS, Júlio Cesar. Bateria: o coração da Escola de Samba. Rio de Janeiro: Editora Litte-
ris, 2010.
FASI, Mohammed El. História geral da África, III: África do século XVII ao XI Metodolo-
gia e pré-história da África. 2 ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010, 1056 p. Brasília. ISBN: 978-
85-7652-125-9.
FAUSTINO, Reinaldo. Nei Lopes: Retrato de um Brasil Negro. Selo Negro: São Paulo,
2009.
248
FELINTO, Renata. A construção da identidade afrodescendente por meio das artes visu-
ais contemporâneas: estudos de produções e de poéticas. Tese de Doutorado em Artes. Uni-
versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo, 2016.
GERISCHER, Christiane. O suingue baiano: rhythmic feeling and micro rhythmic Phenom-
ea in Brazilian Percussion. Vol. 50 nº1. Society for Ethnomusicology, Berlin, 2006.
GOVERNO demite Adelzon Alvez da Rádio Nacional. Hora do Povo. 06/fev/2020. Disponí-
vel em: https://horadopovo.com.br/governo-demite-adelzon-alves-da-radio-nacional)
GUERRA, Lucia Helena Barbosa. Xangô rezado baixo. Xambá tocando alto: a reprodu-
ção da tradição religiosa através da música. Dissertação de Mestrado em Antropologia.
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.
249
_______. Negros nas cidades brasileiras (1890-1950). BARONE, Ana; RIOS, Flávia
(Orgs.). FAPESP, 2017.
_______. Os ciclos do samba: inovação, fontes e mitos cem anos depois de “pelo telefone”.
In: Revista Afro-Ásia. CUNHA, Maria Clementina Pereira da; NETO, Lira (Orgs.). 2017. nº
55, p. 259-272.
JESUS, Tiago Silva de Amorim. Corpo, Ritual, Pelotas e o Carnaval: uma análise dos des-
files de rua entre 2008 e 2013. 2013. 367f. Tese de Doutorado em Ciências da Linguagem.
Universidade de Santa Catarina, Palhoça, 2013.
KAÇULA, Tadeu. Casa Verde: uma pequena África paulistana. São Paulo: Editora Liber
Ars, 2020.
KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Compan-
hia das Letras, 2000.
KOETTING, James. Analysis and Notation of West African Drum Ensemble Music. Selected
Reports, v. 1, n. 3, p. 115-146, 1970.
KUBIK, Gerad. Angolan traits in black music, games and dances of Brazil: a study of af-
rican cultural extensions overseas. Lisboa: Centro de Estudos de Antropologia Cultural, 1979.
KUIJLAARS, Antoinette. A difusão dos saberes musicais dos ritmistas fora da Escola de
Samba. Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v.6, n.1, p.67-82, 2009.
KUSCHICK, Mateus Berger. Kotas, Mamás, Mais Velhos, Pais Grandes do Semba: a mú-
sica angolana nas ondas sonoras do Atlântico Negro. 2016. 253f. Tese de Doutorado em Mú-
sica. UNICAMP, Campinas, 2016.
250
LEOPOLDI, José Sávio. Escola de Samba: ritual e sociedade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2010.
MARIA, Maria das Graças. Memória subterrânea: construção das representações de identida-
de do negro em Florianópolis. Esboços, Revista do Programa de Pós-Graduação em História
da UFSC, Florianópolis, vol. 2, n. 2, 1995, p. 58-69.
MARROCO, Beatriz; RAMOS, Julia Capovilla Luz. Pierre Verger e a construção da memória
cultural afro-brasileira em O Cruzeiro: sentido textuais através das fronteiras. Discursos foto-
gráficos, Londrina, v.6, n.9, jul./dez. 2010, p.153-170.
MAZRUI, Ali A; WONDJI, Christophe. História geral da África, VIII: África desde 1935.
Brasília: UNESCO, 2010.
MOKHTAR, Gamal. História geral da África, II: África antiga. 2 ed. rev. Brasília:
UNESCO, 2010.
251
MOORE, Robin. Fernando Ortiz on Music. Philadelphia: Temple University Press, 2018.
_______. Música Negra e a Diáspora: reflexões sobre o caribe hispânico. Projeto História –
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História. São Paulo, n. 44, pp. 305-319,
jun. 2012. Tradução: Luciano Dutra.
MORAES, José Geraldo Vinci de. Sonoridades Paulistanas: final do século XIX ao início
do século XX. Rio de Janeiro: Funarte, 1995.
MORAES, Wilson Rodrigues de. Escolas de Samba de São Paulo. São Paulo: Conselho
Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978.
NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. São Paulo: Edi-
tora LEYA, 2009.
NIANI, Djibril Tamsir. História geral da África, IV: África do século XVII ao XI. 2 ed. rev:
Brasília: UNESCO, 2010.
OGOT, Allan Bethwell. História geral da África, V: África do século XVI ao XVIII Brasí-
lia: UNESCO, 2010.
OLIVEIRA, Emerson Divino Ribeiro de. Transculturação: Fernando Ortiz, o negro e a iden-
tidade nacional Cubana (1906-1940). Dissertação de mestrado em História das Sociedades
Agrárias. Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2003.
OLIVEIRA, Lucas Bártolo Martins de. O Enredo de Cosme e Damião no Carnaval Cario-
ca. Dissertação de mestrado em antropologia social. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, 2018.
OLIVEIRA, Lulla; SOUZA, Raul de; VICENTE, Tânia. Ritmos do Candomblé. Rio de Ja-
neiro: Abbetira Arte e Produções, 2008.
ORTIZ, Fernando. El contrapunteo cubano del azúcar y del Tabaco: do fenômeno social da
transculturação e sua importância em Cuba. Editorial de ciencias sociales, La Habana, 1983.
Tradução: Lívia Reis.
______, Diversas publicações, entrevistas e relatos não declarados, coletados por pesquisado-
res.
252
O SEGREDO é o nosso maior erro. 2019. Facebook: Filhos do Rei Xangô. Disponível em:
https://www.facebook.com/FilhosDoReiXango/
PEGADO, Israel Antônio Sequeira. A evolução do Carnaval Carioca: A festa popular que
virou produto. Trabalho de Conclusão de Curso para Bacharel em Jornalismo. Departamento
de Comunicação Social do Centro de Letras e Artes. Universidade Federal do Pará. Belém,
2005.
PEIXOTO, Fernanda Arêas. Bastide e Verger entre “áfricas” e “brasis”: rotas entrelaçadas,
imagens superpostas. Revista IEB, São Paulo, nº 50, set-mar, 2010.
PORFIRO, André Luiz. Esta Kizomba é nossa Constituição: o Movimento Negro na travessia
dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. (Grupo de Pesquisa Ilè Obà Òyó – Pro-
PEd – UERJ e Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro – ISERJ) In: VIII Seminário
Internacional As Redes Educativas e as Tecnologias: Movimentos Sociais e a Educação.
Rio de Janeiro, 2015.
PRADO, Bruna Queiroz. Vida e obra de Geraldo Filme: uma leitura musical sobre o processo
de modernização de São Paulo. In: Anais das Jornadas de Antropologia da Unicamp,
2011, Campinas. Trajetórias, Contextos e Territorialidades, 8 a 11 de novembro de 2011.
PRANDI, Reginaldo. Aimó: uma viagem pelo mundo dos orixás. São Paulo: Editora
Schwarcz, 2017.
_______. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PRASS, Luciana. Saberes Musicais em uma Bateria de Escola de Samba: uma etnografia
entre os bambas da orgia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
253
PRUDENTE, Celso Luiz. Tambores Negros: antropologia da estética da arte negra dos tam-
bores sagrados dos meninos do morumbi. São Paulo: Editora Fiuza, 2011.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro: o vivido e o mito. São Paulo: Edi-
tora Brasiliense, 1992.
REIS, Isabela. Meca da Macumba: o Rio de Janeiro dos terreiros, rituais e festas de matriz
africana é tema de dois novos livros. Revista Quatro Cinco Um. 01/11/2019.
ROBERTS, John Storm. Black Music of Two Worlds. Plager Publishions: New York: 1972-
1974.
RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas.
Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
SAMBA à Paulista – fragmentos de uma história esquecida. Direção: Eduardo Mello. Produ-
ção: Yara Camargo e Leandro Freire. Co-produção: TV Cultura. Parte 1. 2013. Documentá-
rio. Disponível em: https://youtu.be/KD1gx9xxVD8
SAMBÓDROMO passa por testes com ensaio da Mangueira. Portal do canal online do
G1. Rio de Janeiro, 16/fev/2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/rj/riodejaneiro/carnaval/2020/noticia/2020/02/16/sambodromo-passa-
por-testes-com-ensaio-da-mangueira-baianas-e-maes-de-santo-fazem-lavagem-
daavenida.html
SANTOS, Fernando Burgo Pimentel dos. Estado, política cultural e manifestações popula-
res: a influência dos governos locais no formato dos carnavais brasileiros. Dissertação em
Administração Pública e Governo, Faculdade Getúlio Vargas. São Paulo, 2007.
SANTOS, Tiganá Santana Neves. A cosmologia africana bantu-kongo por Bunseki Fu-
Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil. Tese de doutorado em Letras,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2019.
SCHUCMAN, Lia Vainer. Branquitude e poder: revisitando o “medo branco” no século XXI.
Revista da ABPN. V. 6, nº 13, p.134-147, 2014.
_______. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana. Revista
Psicologia e Sociedade. Universidade de São Paulo, 26 (1), 83-94, 2014.
______. Encontro Técnico do Projeto Guri. 21/nov/2019. Hotel San Rafael, São Paulo/SP.
Palestra.
SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernida-
de. São Paulo: Editora 34, 2008.
SILVA, Assunção de Maria Sousa e. Por dentro do Caroço de dendê: a sabedoria dos terrei-
ros, de Mãe Beata de Yemonjá. Rio de Janeiro. Revista África e Africanidades, nº 8, fev.
2010.
255
SILVA, Camila de Matos; FREITAS, Sávio Roberto Fonseca de. Os cantopoemas dentro do
Congado: uma oralitura de identidade e resistência negra. Revista Identidades. São Leopol-
do, v. 21 n. 2, p. 210-217, jul.-dez. 2016. Disponível em:
http://periodicos.est.edu.br/index.php/identidade/article/view/2929/2773. Acesso em:
05/nov.2020.
SILVA, Joselina. O Negro Baiano Pai Joãozinho da Goméia: o candomblé de Duque de Caxi-
as na mídia dos anos cinquenta. Revista Magistro - Revista do Programa de Pós-Graduação
em Letras e Ciências Humanas – UNIGRANRIO, v.1, nº 1, 2010.
SILVA, Pedro Henrique Souza da. Entre a mensagem e a comunicação: A “oralitura” de Mãe
Beata de Yemonjá. Literafro: O portal da literatura Afro-Brasileira. Belo Horizonte, 2018.
Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/29-critica-de-autores-
feminios/590-entre-a-mensagem-e-a-comunicacao-a-oralitura-de-mae-beata-de-yemonja-
pedro-henrique-souza-da-silva. Acesso em: 05/nov/2020.
SILVA, Salomão Jovino. Memórias sonoras da noite: musicalidades africanas no brasil oi-
tocentista. 2005. 431 f. Tese de doutorado em História, Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2005.
SILVEIRA, Leandro Manhães. Nas trilhas de sambistas e “povo de santo”: memórias, cul-
tura e territórios negros no Rio de Janeiro (1905-1950). 2012. 184 f. Dissertação de Mestrado
em História Social. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes von. Carnaval em Branco e Negro: carnaval popular
paulistano 1914-1988. São Paulo: Editora da Unicamp, 2007.
SODRÉ, Muniz. Samba: o dono do corpo. Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1979.
_______. Representations of Musical Scrapers: The disjuncture between simple and com-
plex in the study of a percussion instrument. Tese de doutorado em Música. University of
Natal, Durban, 1998.
TIBÉRIO JÚNIOR, Armando; MARCONI, Fernando Carlos; SAMPAIO, Luís Roberto. Per-
cussão Brasileira. São Paulo: Livre Percussão, 1987.
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora
34, 1991.
_______. Os sons dos negros no Brasil: cantos, danças, folguedos e origens. São Paulo: Edi-
tora 34, 2008.
_______. Os sons que vêm da rua. São Paulo: Editora 34, 2005.
256
_______. Pequena história da música popular: segundo seus gêneros. São Paulo: Editora
34, 2013.
ULLOA, Alejandro. Pagode: A festa do samba no Rio de Janeiro e nas Américas. Rio de
Janeiro: Editora Multi Mais, 1998.
URBANO, Maria Aparecida. Carnaval & Samba em Evolução na cidade de São Paulo.
São Paulo: Editora Plêiade, 2005.
_______. Sampa, samba, Sambista: Osvaldinho da Cuíca. São Paulo: Edição do autor,
2004.
VERGER, Pierre. Orixás, deuses iorubas na África e no Novo Mundo. Salvador: Fundação
Pierre Verger. 2a edição, 2018.
_______. Fluxo e Refluxo: do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de todos
os santos, dos séculos XVII a XIX. Salvador: Ed. Corrupio, 1987.
WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. Lepzig: Editora Veit&Co, 1906.
WOOD, Charles. The True (?) Nature of Percussion. Percussive Notes, v.30, n.2, p.45-47,
1991.
257
ZERBO, Joseph Ki. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2 ed.
rev. Brasília: UNESCO, 2010.
258
GLOSSÁRIO
Ashogun: ogã com a função do sacrifício de animais na roça, também substitui ou reveza com
o Pai de santo as ações nos ritos estruturais como o Xirê.
Barracão: salão aonde acontecem os rituais como o Xirê no Camdomblé, também utilizado
como nome referencial de uma quadra de Escola de samba.
Ekédi: filha de santo com a função de apoio ao zelador e realização de todos os outros cuida-
dos domésticos em uma roça. Zeladora dos orixás.
Kota/Makota: Anciões mais velhos, com mais de sete anos de iniciação no Candomblé Ango-
la.
Maionga: banho.
Marafo: bebida específica destilada do Orixá Exu. Termo utilizado nos terreiros e nas baterias
por alguns indivíduos que circulam em ambos os ambientes.
Nkise: a própria natureza em sua força máxima no Candomblé da nação Angola. Diferente de
orixá, mas reverenciados com o mesmo ou maior grau de importância espiritual para os filhos
da Casa.
Odé: Oxóssi.
259
Ogã: percussionista e filho de santo com diversas funções estruturais nas roças ou terreiros,
como o da proteção e guarda dos rodantes e do zelador.
Ori: Cabeça.
Oyá: Iansã.
Roncó: local de iniciação dos filhos de santo, entendido como o útero da Mãe Iansã, exata-
mente por que será ali que os filhos de santo renascerão dentro da religião.
260
MAMETO
Vanda Pereira dos Santos (Bandadeloyo) – fundadora do Inzo Kyloatala (in memorian)
TATA NKISI
Kylonderu (Rodofo Santos dos Reis)
KOTA
Ramsés Reis (Kamuanga)
MAKOTAS
Carolina Doin (Manzele)
Rosângela Santos (Mazakyssy)
Roseli Pereira (Danssejy)
MUZENZAS
Cristiane Dias (Gundery)
Ester Caparelli (Dandassaley)
TATAKAMBANDOS
Cristiano Nardis (Dymewazamby)
Jorge Ceruto (Gangazonybe)
José Paulo Rodrigues (Obadarubenym)
Júlio Mesquita (Gunbewango)
Kauan de Oliveira (Taringanga)
Luan Borges (Mutaru)
Marcos Menezes (Mukambila)
Rafael Y Castro (Bewalaja)
Ricardo Valverde (Ymberekwe)
ZAMBAS
Andréia Elias (Kwanzademy)
Beatriz Góes (Mussambazuyla)
Danielle Lima (Ojufarany)
Dayra Reis (Kyanlecy)
Débora Oliveira (Kalymazy)
261
262
263
APÊNDICE C - ENTREVISTADOS
265
Perguntas:
1) Você acredita em alguma influência do candomblé nas baterias? Caso seja sim, fale sobre.
2) Alguém que você conhece já falou sobre algum acontecimento disso nas escolas de samba?
3) Quando você ouve ou toca uma levada de algum instrumento da bateria, você identifica
algum toque do candomblé? Explique.
4) Caso você tenha informações sobre estas relações, teria alguma ideia do motivo delas não
serem faladas abertamente?
5) Você tem alguma iniciação na religiosidade do candomblé?
6) Você acha relevante discutir essas relações?
7) Historicamente já ouviu algo sobre o que pode sair do terreiro e ir para a avenida?
1) Sim, com certeza, isso é mais do que a realidade, apesar de muitos não falarem por diver-
sos motivos. O principal acredito que seja o preconceito de quem é de fora e também a falta
de segurança de quem é de dentro e pratica a religião mas prefere deixar no silencia. Dessa
forma, evita se aborrecer com gente que já tem estabelecido padrões de dominação.
2) Sim, conheço bem o Andrezinho, filho do finado Mestre André da Mocidade. Lá sempre
falaram que a batida de caixa tinha origem no aguerê. Na verdade nem sei de qual aguerê que
seria a origem e se é Ketu ou Angola mas muito se falou da escolha do toque para ser utiliza-
do nas caixas.
3) Sim, eu adoro tocar congas em gravação de samba enredo. Pode ver o dvd do Leandro Le-
art quando eu toco é macumba pura. Tem até um solo meu lá. Outra coisa, os toques dos repi-
ques também são idênticos aos toques dos atabaques, é só você ouvir o lé do cabula por
exemple e a levada básica no repique, é igual.
4) Como disse anteriormente, penso que seria uma estratégia para evitar certa falta de enten-
dimento da importância do terreiro para as escolas, assim cada um faz o seu e não se aborrece.
5) Sim, toda minha família sempre foi da macumba e do samba, somos do Engenho da Rainha
no Rio e tenho passagens pelo Salgueiro e afinidade pela Mangueira. Em São Paulo, já não
frequento mas simpatizo com o Mocidade Alegre e Império de Casa Verde. Gosto das pessoas
de lá. Hoje tá difícil frequentar por motivos pessoais e profissionais.
266
6) Eu acho mais do que essencial, isso é a nossa história. O negro, o branco, todos precisam
compreender a importância disso culturalmente e politicamente para a identidade do brasilei-
ro. Não é interessante deixar isso esquecido. É uma história de muita sabedoria, apesar das
diversas dificuldades que todos nós já sabemos né.
1) Olha, são tantas, por exemplo, uma das que mais conheço é do alujá de xangô com a levada
de caixa em cima do Salgueiro. Pode perceber que a transição da tercina para semicolcheia é
uma coisa que também ocorre nos terreiros. Dependendo da Casa isso ocorre sempre. Outra
coisa, muitos ogãs também são ritmistas porque se identificam com ambos os significados.
2) Sempre ouvi curiosidades, mas de fato pouca profundidade vem quando o povo fala disso.
De fato precisaria fazer um levantamento maior sobre isso.
3) Sim, muita coisa vem dos atabaques, pandeiro, tamborim, repique, surdo, caixa. Acredito
que as levadas de referencia destes instrumentos foram construídas a partir do que temos na
Memória coletiva das sonoridades dos terreiros. De maneira consciente e inconsciente. São
nossas referencias desde pequenos.
5) Sim, sou feito no Ketu. Minha mãe já era de um terreiro e eu sempre frequentei. Há 3 anos
fui iniciado como alabê.
6) Acho fundamental mas para os ritmistas talvez passe batido. Muitos querem tocar e mos-
trar qualidades técnicas e nem tanto a consciência do que está sendo feito. Acho que alguns
mais velhos sabem mais destas influências e procuram mesmo com algumas dificuldades en-
tender melhor para passar as informações corretas, quando forem abordados.
7) Tudo praticamente que é construído já possui embasamento nestas relações. Até há algu-
mas críticas quando o povo exagera e utilizada algumas simbologias de maneira equivocada
ou não faz o preceito de maneira correta. Assim ocorrem diversos problemas como fogo e
quebra de carro alegórico, atrasos e muito mais. Penso que os orixás só ajudam mas também
cobram disciplina e respeito.
André Silva
1) Sim, isso sempre teve, não dá para separar, a única diferença é o lugar e os procedimentos
mas os objetivos se encontram. Valorizar a identidade do povo negro.
2) Meu pai, você sabe quem foi né. Sempre me contou e me mostrou como as batidas surgi-
ram dos couros. Também vejo que isso é mais forte em algumas escolas como a Mocidade e
Mangueira.
267
3) Sim, percebo isso bem claro nas levadas de caixa em cima derivadas do Salgueiro e essas
que já te falei.
4) Há, isso sempre foi um mistério né, é muito difícil. No Brasil é mais fácil um preto falar
que é branco para se proteger do que trazer seus costumes como realidade. Historicamente
isso sempre foi difícil.
5) Eu não sou iniciado mas sempre frequentei, já me interessava desde pequeno por fazer par-
te de uma tradição da família. Muitos tios são de Casas de santo.
6) Eu acho interessante desde que a pessoa consiga ter uma vivência para se familiarizar com
o assunto. É importante assumir isso como um conhecimento de nossos antepassados.
1) É difícil falar disso porque o povo faz muita bagunça, não consegue separar o sagrado do
profano e assim ocorre o desrespeito.
2) Eu mesmo preciso me controlar pois quando toco ripa mor como tenho mediunidade de-
senvolvida posso incorporar enquanto toco, o que não é indicado no ambiente das escolas. No
meu terreiro tudo bem, faz parte.
3) Sim, o toque que te passei, eu criei ele aqui em São Paulo. Peguei do rumpi do cabula e
passeis para o ripa mor. Só eu toco desse jeito.
4) É preciso cuidar da religião de maneira cuidadosa, sem expor ao ridículo o que serve para a
formação das pessoas e não para o entretenimento.
5) Sou pai de santo e com muito orgulho represento o que aprendi com meus mais velhos.
6) É importante desde que as pessoas tenham cuidado e intimidade para falar com responsabi-
lidade.
7) Sim, todo o saber do negro é representado pelas manifestações populares. O carnaval das
escolas de samba é uma porta de entrada para tratar disso com sabedoria e não ao contrário.
1) Sempre ouvi falar mas como sou de outra religião não tenho conhecimento para te passar.
2) Sim, meus tios e toda a tradição da Nenê de Vila Matilde. Seu Nenê já ia pro Rio e trazia
essas coisas de lá.
3) As funções dos surdos pra mim são pensadas como os atabaques, cada um faz a sua parte
no conjunto.
268
4) Muitas pessoas preferem tocar e cada um fica com as suas crenças. Musicalmente dá pra
resolver tudo sem questionar muito.
5) Eu até teria mas como parte da família acabou indo pra outro segmento então perdemos um
pouco essa raíz.
6) Eu acho sim mas na prática ficamos com diversas obrigações para resolver e isso fica mais
pra quem gosta de conversar.
7) Praticamente desde o início isso ocorreu porque o terreiro conseguiu uma espécie de exten-
são do ritual na avenida.
1) Olha eu prefiro fazer música e pensar no bem das pessoas. Reconheço que isso seja parte
da tradição e deve ser respeitado porém no meu caso fico tranquilo com o samba em si.
2) Sim, ouvi muito principalmente do pessoal do Rio né, isso por lá é mais forte do que aqui.
4) Acho que é porque as pessoas se preocupam em acreditar cada um na sua fé, assim seria
uma forma de evitar problemas.
5) Não tenho mas também é como se tivéssemos. Todos nós do samba acreditamos na ances-
tralidade do povo negro que condiz com a mesma base, os orixás.
6) Acho sim, penso que seria uma forma de desmistificar e assim falar melhor disso tudo,
compreendendo de fato esta importância.
7) Todos os anos as escolas representam isso basta ver a quantidade e o domínio dos enredos
com a temática afro sempre.
Douglas Germano
1) Sinceramente não, penso que isso virou uma história de moda, apesar de identificar tais
relações vejo um certo exagero nisso.
2) Muitos falam mas é difícil ter de fato algo comprovado, então prefiro não entrar nesses
detalhes.
4) Acho que cada um prefere acreditar no significado das coisas de maneira individual.
5) Tenho, sou atuante desde sempre e toco atabaques e outros instrumentos do samba tam-
bém.
269
7) Sempre as escolas trazem isso mas é preciso cuidar com a qualidade e competência de todo
o desfile.
Koka Pereira
2) Sim, lembra do Jorge Gomes que te falei, ele me contou que antigamente era mais forte e
hoje muitas levadas ficaram para trás. Isso representou com o passar do tempo a perda de
identidade das baterias. Hoje é tudo muito igual, uma pena mesmo.
3) Os repiques e as caixas.
4) Acho que é preconceito. Algumas pessoas conversam de boa sobre isso e pensam na histó-
ria mas nem sempre foi assim.
5) Tive quando criança mas com o passar do tempo fui ficando distante por motivos diversos.
6) É sempre bom, essas coisas mostram como isso é um complexo de conhecimento precioso.
Dennys Silva
4) Penso que o povo prefere não se comprometer quando não sabe de fato os detalhes disso.
5) Não tenho.
6) Com certeza, ainda é difícil entender isso de fato. Algumas pessoas falam mas não expli-
cam.
7) Muitas ideias nos arranjos dos sambas enredo que a bateria faz todos os anos apresentam
parte dos toques dos atabaques.
270
5) Não.
7) Não.
1) Sim, sempre foi assim. Os antigos traziam essa concepção. As pessoas que frequentavam
os terreiros também saiam nas baterias. Assim este conhecimento ficou em comum.
2) Há, isso com certeza, meu pai você sabe né quem foi para carnaval de São Paulo e para
mim, então ele mesmo já me falou muita coisa.
4) Isso sempre foi uma realidade e ao mesmo tempo um mistério. Seria importante discutir
mais sobre isso.
5) Tenho.
6) Com certeza.
7) Culturalmente não haveria tanta informação no carnaval sem essa origem. A cultura do
povo negro vem do terreiro.
2) Sempre ouvi falar, mais forte em escolas mais tradicionais, Nenê, Camisa, Vai-Vai.
4) Perseguição religiosa com certeza. As pessoas seguem com o preconceito inicial que apaga
nossa história.
5) Não tenho mas frequento. Gosto muito também de ir na missa congo da igreja da Penha
uma vez por mes.
6) Claro, acredito que isto deveria fazer parte do currículo das escolas de ensino para formar o
povo com a história verdadeira e não aquele que foi inventada por estratégia de dominação.
271
Francisco Santana
1) Com certeza, sabemos que isso é uma incógnita mas identifico e acredito nessas coisas.
3) Sim, sei que tem origem nos toques mas como não sou ogã não consigo de te falar com
precisão.
4) Falta de conhecimento.
7) A própria origem da Tia Ciata por exemplo e o surgimento da Pequena África no Rio re-
presentam a influência do candomblé nas escolas.
Hugo Santana
6) Sim, é importante para entendermos melhor o que de fato aconteceu desde o surgimento
das escolas.
7) Penso que muitas coisas que são construídas trazem esta origem, os enredos, as alas, a ba-
teria e por aí vai.
Jeferson Magno
1) Isso seria bom você falar com os carnavalescos daquelas escolas com maior diversidade
no Rio.
3) Não percebo.
272
5) Não mas respeito todas as formas de crenças. O importante é a atitude e o respeito com as
pessoas.
6) Acho sim mas sinceramente até hoje fiz sempre o meu tocando pandeiro e fazendo malaba-
rismo com as mulatas.
7) Acho que os temas dos enredos trazem isso claramente todos os anos. Não é possível falar
ao contrário né.
1) Tudo que temos aqui no Brasil, do ritmo veio da África e Cuba. É uma mesma abordagem
dos conceitos polirrítmicos e melódicos.
2) Sim, sabemos que tudo que é produzido nas escolas possui forte influência, fantasias, ale-
gorias, enredos e ritmo.
3) Eu sempre escutei o Pérola Negra por ser do lado de casa e ouço direto os tambores, como
se tivesse num terreiro. É muito forte. A sonoridade é bem presente e as improvisações tam-
bém demonstram a liberdade e a utilização da música como expressão da vida.
4) Em Cuba o candomblé é feito na rua em lugar aberto. Aqui no Brasil tudo é muito separa-
do. Há um tendência em deixar no mistério e isso enfraquece a própria sabedoria ancestral.
5) Sim, somos feitos no mesmo barco né. Somos irmãos de santo e temos ligação espiritual
forte.
6) Vejo como uma necessidade, abordar isso nas escolas para que as futuras gerações com-
preendam o que veio e permanece como marca e identidade cultural do povo negro.
7) Tudo que começou nas escolas, roupas, ala das baianas, ritmo, instrumentos, sempre veio
da macumba.
1) No Rio isso é muito forte, aqui também temos nossos padroeiros e a sonoridade da bateria
é ligada sim. Surdos, repiques, caixas e outros instrumentos mostram isso claramente.
2) Eu mesmo falo pelo que sempre ouvi dos meus mais velhos. Isso mostra identificação da
nossa comunidade com essas coisas.
3) Pra mim, isso é mais forte nos surdos e repiques. As levadas de caixa do Rio tem isso tam-
bém.
4) Ainda o preconceito é o que impera. No Brasil temos que brigar muito para não morrer na
rua. Sempre tem alguém desconfiando e achando que você é ladrão Sua cor representa des-
confiança. Algo irreal que foi plantado por muitos anos na cabeça das pessoas para dominar e
explorar o próximo.
273
5) Sou filho de santo e frequento desde criança. Pra mim o terreiro, o Império e os Gaviões
são a minha casa.
6) É sempre importante. Os mais novos precisam ter essas informações para entenderem nos-
so conhecimento. O samba representa muito do que queremos dizer a partir da macumba.
7) Tudo, atualmente são coisas inseparáveis. Mesmo com outras religiões que crescem inclu-
sive nas escolas de samba, ainda há um forte número de filhos de santo que participam.
1) Eu identifico nas levadas de caixa e repinique parte dos toques que reconheço por ouvir,
mesmo sem frequentar os terreiros.
2) Meu pai sempre falou. Tem um vídeo dele com o Wilson das Neves falando disso. Eles
explicam a diferença do Rio para São Paulo. Segundo eles por ser mais horizontal a arquitetu-
ra daqui os terreiros ficaram mais afastados enquanto no Rio, os morros (vertical), sempre
forma mais próximos das escolas. Na verdade tudo está muito ligado independente disso. Os
significados em comum são para todos.
4) Acredito que não deve ser fácil explicar isso pois teria que ter bastante vivencia tanto de
samba quanto do candomblé. Mesmo assim ainda teria que saber descrever os detalhes.
5) Não.
6) É importante, visto que comentam sobre mas ainda não concluem o que realmente há em
comum.
7) Meu pai sempre falou dos enredos, inclusive compôs alguns conhecidos para o Vai-Vai.
Isso é coisa antiga que sempre existiu e as escolas apresentam isso cotidianamente.
3) Não penso nisso porque não conheço muito bem os toques mas no repique tem o ijexá e o
cabula né.
4) Pode ser o medo das pessoas em falar do que não sabem direito.
6) Acho que pode ser necessário para uma melhor compreensão deste mundo em comum dos
terreiros e do samba.
274
7) Vejo isso muito nas letras de sambistas como o Zeca, Alcione e muitos intérpretes do Rio e
São Paulo.
1) Todas. A mumunha que veio pelo atlântico está presente naquilo que chamo da gramática
dos tambores. O surdo de terceira demonstra o drible, a malandragem, a contradição. A pos-
sibilidade da síncope representa o trejeito de exu que comunica através do inesperado.
2) Todos nossos ancestrais viveram destes encontros. É nas quadras das escolas que o terreiro
chega na chamada urbanização das comunidades. Assim o grande xirê ocorre na descontração
e profunda organização de um ensaio.
3) A batida de caixa da Mocidade, Mangueira e Portela pra mim são as mais representativas.
4) É perigoso falar disso. Você não está vendo nossos representantes políticos. Eles tem medo
disso. O povo negro chegou nas universidades e viaja de avião. Agora eles (os brancos) tem
medo de dividir o que nos é de direito.
5) Sim, sou filho de santo. Nasci e fui criado em terreiro. Sempre participei e me fez sentido.
6) É mais do que necessário, muitos pontos precisam ser esclarecidos e discutidos como en-
tendimento de um saber afro diaspórico.
7) Basta você ver os desfiles. Lembra da Grande Rio em 2019. Tata Londirá, nosso Joãozinho
da Gomeia um dos pais de santo mais importantes do candomblé foi enredo e proporcionou
um belíssimo desfile.
2) Em todos os ensaios isso é uma realidade. Basta você ouvir as batidas e os arranjos de bate-
ria.
4) As vezes as pessoas preferem não entrar em detalhes para não se comprometer. Fica menos
trabalhoso. Faz sentido para alguns mas sem abrir.
5) Tenho sim, sou filho de santo desde pequeno. Toda a minha família sempre foi e continua.
6) Ao meu ver pode ser interessante mas não para todos. Penso que cada um se preocupa com
alguma coisa diferente.
7) Já ouvi de todas as batidas porque elas são parecidas, apesar de cada escola ter a sua.
275
2) Meus mais velhos também frequentavam as escolas e são filhos e pais de santo.
7) O meu Tata Nkisi por exemplo que é o mesmo do que o seu sempre falou dessas trocas. Ele
mesmo trabalhou e ainda recebe o povo das escolas para fazer algum trabalho espiritual de
proteção. Eles acreditam que assim poderá ajudar para o sucesso do trabalho de toda a escola.
2) Meu tio trazia várias histórias dos desfiles anteriores que aconteciam coisas inacreditáveis.
3) O repique que é o meu instrumento é bem parecido com o que se faz nos atabaques. Muitas
levadas parecidas.
4) O povo prefere deixar no gelo. Fica menos complicado explicar. Isso quando o cara conhe-
ce né.
5) Não tenho.
6) É sempre complicado, pode ser que você arranje algumas inimizades mas cada um no seu
interesse.
7) Participo há muitos anos dos desfiles, você sabe porque conhece toda a minha família.
Sempre vimos as coisas juntas.
1) Isso mais no Rio e em São Paulo depois de 68 quando o modelo carioca foi adotado. Antes
tínhamos o samba rural mas o modelo do carnaval das escolas hoje é tudo igual.
2) Sempre teve o povo de santo presente nas escolas, basta ver a ala das baianas formado ini-
cialmente por mães de santo.
4) O povo não quer falar porque quer tocar e participar de qualquer forma. As vezes é mais
simples.
5) Não tenho.
6) Acho desde que não exagere. Também há uma tendência em aumentar um pouco a história.
7) São coisas que andam juntas então tudo que é produzido como espetáculo tem boa parte
dos terreiros.
3) Toco repinique e percebo como é parecido com o que a gente escuta nos atabaques e con-
gas. Dentro e fora dos terreiros.
6) Talvez seja bom para entender o que representa nos detalhes nessas transições ainda miste-
riosas.
7) No Vai-Vai temos uma comunidade bastante forte negra. Ë um quilombo urbanizado. As-
sim todos os anos mostramos isso através dos enredos e da identidade da nossa bateria. Pode
ver que em São Paulo é a única onde os surdos de terceira são livres, não são padronizados e
isso mostra a liberdade, a mesma do alabê no rum.
Pedro Moita
1) Há isso é coisa antiga né. As batidas de caixa por exemplo da Portela, Mangueira e Moci-
dade. Sempre falaram sobre isso.
2) Sim, conheço alguns mestre, diretores e ritmistas e conversamos de vez em quando sobre
isso.
3) Quando fiz a transcrição dos breques de uma escola a pedido de um mestre conhecido per-
cebi melhor como tudo é muito parecido com o que é feito na umbanda e no candomblé.
4) Apesar de ser um fato histórico e em comum entre os terreiros e as escolas, acredito ser
algo polêmico também por não termos maiores informações em especificidades.
5) Não tenho.
277
7) Sim, sei que nas levadas de caixa por exemplo percebo que tudo que é feito com flam nos
atabaques passa para toque múltiplo. Tecnicamente é uma adaptação e esse recurso é utiliza-
do, a substituição da apojatura pelo rebote.
1) Toda, lembra do caso que fui consultar Seu exu Kumimbara para saber qual bossa fazer na
parte do opanijé que colocamos no enredo né.
2) Mestres mais antigos sempre me falaram e quando eu precisei fui direto no pai de santo
que conheço.
3) Na verdade eu mesmo não tenho muita informação sobre os toques mas a sonoridade da
bateria tem isso fortemente.
4) Há muito medo e preconceito ao mesmo tempo. Como isso vem de religião de negro, mui-
tas pessoas erroneamente desconfiam. Pura discriminação. É uma pena mesmo.
5) Não tenho mas já fui convidado algumas vezes e quando posso frequento como simpatizan-
te.
6) Seria mais acessível caso as pessoas pudessem trocar informações de maneira livres sobre
isso e qualquer assunto. Coisa natural de um país e povo evoluído.
7) Como disse, muitas vezes ouvi diversas histórias e inclusive cobranças pelo motivo de fa-
zer apresentar isso sempre com respeito como fiz quando precisei definir a bossa no opanijé.
1) Claro que sim, isso é mais do que parte da história. Não há separação e nunca haverá.
2) Meus antepassados e toda a minha família de santo e carnal. Sempre tivemos contato e
participação frequente.
3) Eu não toco mas reconheço também a semelhança nas melodias, principalmente naquelas
da umbanda. Outra coisa a pergunta e resposta das cantigas no xirê são características dos
partidos e enredos por exemplo.
4) Perseguição talvez mas acho que quem conhece mesmo discute isso tranquilamente sem
problemas.
5) Sim, você sabe do meu Vô Tata Mona Guiamazê e tudo que o Redandá representa para o
Kyloatala.
6) Com certeza isso sempre trás clareza e conexão com a sabedoria popular da tradição oral
que herdamos da África. O canto, o ritmo e a dança que praticamos aqui veio de lá.
278
1) Muitos ogãs participam das baterias. Dessa forma já é um ponto de atenção desta circulari-
dade.
2) Ouvi bastante coisa dos meus amigos ogãs que frequentam as Escolas. Para eles é tudo o
mesmo significado. A expressão e o grito da cultura própria de suas comunidades.
3) Na verdade toco poucos instrumentos das baterias mas analiso como muitas levadas são
parecidas. Também é utilizado no Kyloatala o surdo do samba no candomblé de caboclo,
lembra? Penso que também é uma via de mão dupla. Assim si do terreiro para as baterias e de
alguma forma retorna.
4) Muitas vezes as pessoas procuram apenas executar e dar conta da parte técnica e sonorida-
de. Nem sempre ocorrem os momentos de reflexão, a não ser em momentos informais nos
intervalos dos ensaios de bateria e também na roça de candomblé. Pelo menos é assim que
aprendemos muito na nossa Casa, conversando e ouvindo os mais velhos.
5) Tenho sim e acredito muito nos nkisis e orixás. São eles que movem o nosso caminho.
6) Cada vez mais me parece ser uma necessidade e nem uma vontade. Isso é importante para a
formação das pessoas.
7) Aquelas coisas mais características como comissão de frente, bateria e ala das baianas.
1) Olha eu prefiro não me envolver com isso porque trabalho com ritmistas de todas as religi-
ões. Penso em resolver os problemas musicais e apresentar o melhor com nosso trabalho.
2) Muitos mestres do Rio tem essas informações. É algo mais forte para o povo de lá. Até
exagerado.
3) Sim, com certeza. Tudo tem ligação. É uma sonoridade que está na nossa Memória ances-
tral.
4) Vejo que precisamos dos ritmistas por exemplo tocando bem. Se não tocar nem falamos
nada sobre essas coisas.
5) Não tenho mas respeito todas as formas. Acredito nas pessoas pelo bem e pelo empenho.
6) Acho sim desde que as pessoas que estão para tocar em uma bateria consigam dar conta do
recado. Caso contrário fica estranho.
279
7) Aquilo que as Escolas trazem para os desfiles e a própria origem das Escolas juntamente
com os terreiros.
1) Sempre teve isso né filhão. Você sabe. Lembra o que te falei dos ritmistas que levavam
seus instrumentos para serem preparados no candomblé e assim proteger toda a bateria. En-
tão, é só um caso. São muitos.
2) Muitos dirigentes das Escolas procuram os pais de santo para fazerem trabalhos de prote-
ção.
3) Muitos são praticamente idênticos. Veja o cabula e o próprio arrebate como se parecem
com aquilo que você tocou na caixa.
4) São assuntos que devem ser tratados dentro dos preceitos do candomblé para termos os
cuidados e não reproduzir erros.
6) Relevante para as pessoas que possuem interesse e precisam ter a informação correta. Au-
tomaticamente isso chega para o povo em geral.
7) O grande ritual do candomblé é representado no desfile. Mesmo que esteja dentro de uma
festa e possa ser confundido apenas como entretenimento as Escolas apresentam nossa cultura
com sabedoria.
Rodrigo Santos
2) Normalmente os mais velhos gostam de lembrar das histórias e mitos que envolvem essa
relação.
3) Sim, você sabe que saio de tamborim e a levada por exemplo do telecoteco é igual do gã no
cabula, o toque utilizado na nação Angola.
6) Para alguns sim e para outros não, depende muito do interesse de cada um. Não é um tema
que você escuta constantemente no dia a dia das Escolas.
7) A dança, o ritmo e as cores como o branco por exemplo mostram similaridades fortes.
280
1) Tenho vários amigos que falam sobre essas coisas mas prefiro tocar.
3) Pra mim o repique é um tambor que trás os fundamentos dos atabaques. Basta você ver as
levadas, das básicas até as mais avançadas e variações.
5) Não.
6) Sim, sempre.
7) As ideias de nossos antepassados são transmitidas pelas Escolas através do canto, do ritmo
e da dança.
4) Pouco se fala porque ainda as coisas não se apresentam abertamente. Trago a necessidade
de discutirmos isso no meu livro.
6) Como formação de pessoas isso deveria ser conteúdo da grade curricular das Escolas de
ensino regular.
7) Para nós negros, o terreiro é uma ferramenta existencial que pode ser apresentada através
de um desfile por exemplo. Toda a sua força e raíz da sabedoria ancestral se encontram nesses
lugares.
1) Com certeza, você viu o logo da minha bateria do Zé Pilintra. É uma amostra pequena dis-
so. O próprio malandro sambista apresenta os trejeitos do orixá exu pela comunicação e pro-
vocações.
281
6) De acordo com o interesse de cada um. Também não é um assunto que deve ser falado na
marra.
7) Pra mim, nos desfiles encontramos os amplos significados da sabedoria ancestral que her-
damos.
282