Literatura Marginal Periferica e Educacao Literaria

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LITERATURA MARGINAL-PERIFÉRICA E EDUCAÇÃO

LITERÁRIA – A LEITURA E A ESCRITA PARA ALÉM DO


CÂNONE

MARGINAL-PERIPHERAL LITERATURE AND THE LITERARY


EDUCATION – READING AND WRITING BEYOND THE
CANON

Mei Hua Soares1


Neide Luzia de Rezende2

Resumo: Discutir a pertinência da literatura marginal-periférica na esfera educacional


como contribuição para uma educação literária que envolva os processos de leitura e escri-
ta sob um viés crítico e reflexivo.
Palavras-chave: literatura, educação, jovem.

Abstract: This study discusses the pertinency of the literature “marginal-periférica” in


educational sphere as contribution to literary education that involves the reading and
writing processes below a politic and reflexive view.
Keywords: literature, education, young.

1
Doutoranda e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - FEUSP/ meihu-
a@usp.br
2
Prof ª Drª. da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP/ neirez@usp.br

Interdisciplinar Ano VI, V.13, jan-jun de 2011 - ISSN 1980-8879 | p. 109-119


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Ao estudar o papel da literatura na escola faz-se necessário pensar qual a for-


mação pretendida nas instituições de ensino3. Segundo Cyana Leahy-Dios (2004), tanto
o surgimento da escola, quanto a democratização do ensino estiveram atrelados a inte-
resses externos à esfera educacional propriamente. Em épocas mais recentes, aquela
que se seguiu ao período ditatorial brasileiro iniciado em 1960, por exemplo, para me-
lhorar os índices – falhos – de escolarização com vistas à valorização de governos e
para sustentar o processo industrial acelerado pelo qual o país passava, suprindo a
necessidade de mão-de-obra qualificada para o mercado, as intervenções no sistema
escolar foram de grande porte e com consequências que até hoje são visíveis – e polê-
micas. Isso nos leva a questionar qual seria o verdadeiro papel do ensino público, em
especial o destinado às populações de baixa renda.
É facilmente constatável pelos sites dos estabelecimentos particulares de ensi-
no e pelos discursos de seus responsáveis, que essas instituições estão fundamentadas
em um modelo educacional que privilegia a formação propedêutica do educando, vi-
sando inseri-lo no ensino superior de qualidade com o intuito de garantir a seu egresso
uma formação profissional mais bem remunerada e prestigiada aos olhos da sociedade.
Quanto às instituições públicas de ensino, o que se observa na prática (a des-
peito das orientações oficiais e suas burocratizadas propostas curriculares e projetos
político-pedagógicas) é que devem atender às camadas mais empobrecidas – “popula-
ção carente”, “excluída” – com um ensino de “formação geral” e para inserção no mer-
cado de trabalho. À exceção das escolas técnicas, não se trata de ensino profissionali-
zante, mas de uma formação mínima, tanto que o governo de São Paulo hoje investe no
domínio dos conteúdos de português e matemática para, ao menos, garantir uma for-
mação básica. Desse modo, é de se crer – assim mostram as estatísticas da universidade
pública, cujos egressos da escola pública, apesar das políticas de incentivo ao vestibu-
lar, ainda não alcançaram o índice de 30% – que aos alunos da rede pública resta muito
pouca possibilidade de ascensão sócio-econômica em campos profissionais mais valo-
rizados pelo ingresso em instituições de ensino superior prestigiadas. Assim, formação
voltada para o mercado de trabalho tampouco quer dizer capacitação efetiva, mas tão-
só comprovação de escolaridade. Nessa perspectiva, parece não haver muito espaço
para a leitura, fruição, reflexão ou questionamento político que a literatura pudesse
proporcionar, pois conforme Leahy-Dios: “o status da literatura na escola expõe a contradi-
ção entre as coisas como são e como poderiam ser. Mais que intelectual ou estilística, essa é uma
questão política” (LEAHY-DIOS, 2004).
Os bens simbólicos (BOURDIEU, 1990) cedem espaço na esfera pública esco-
lar para uma diversidade de situações que vai desde alunos que precisam trabalhar
para ajudar na renda familiar, quando não são eles próprios o arrimo da família, até a
necessidade de preencher um tempo vazio entre alunos em situação de maior exclusão
social.. Nos projetos realizados fora do horário escolar, poucos podem comparecer,
uma vez que mantêm dupla jornada (trabalho e estudo) ou não veem nisso interesse.
Atividades literárias que por seu traço característico poderiam ocupar um ou-
tro tempo e espaço dentro da escola, só podem ocorrer estritamente no interior da gra-
de curricular. Desse modo se apresenta o grande problema que tem a ver justamente
com a natureza da atividade: o tempo necessário da leitura, que transgrediria em muito

3
Aqui faremos referência mais específica as de ensino básico da rede pública do estado de São Paulo.

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aquele que lhe é habitualmente reservado (ou seja, praticamente nenhum). Isso, se li-
darmos com a perspectiva de que cabe à escola, no contexto no qual a situamos, a fun-
ção de proporcionar ao aluno a possibilidade de uma leitura mais literária que propicie
fruição e conhecimento.
As aulas de literatura4 apresentam chances de constituírem dispositivos de
questionamento do próprio modelo educacional que pauta a vida escolar desses alu-
nos.

(...) embora o sistema educacional e cultural seja excepcionalmente


importante para a manutenção das relações de dominação e explora-
ção existentes nestas sociedades, em vez de “internalizadores passivos
de mensagens sociais preestabelecidas”, os alunos realmente contri-
buem com suas visões pessoais para a complexidade da transação pe-
dagógica. Assim, a lacuna maior a ser preenchida nas aulas de litera-
tura seria a descoberta de possibilidades através do exercício de capa-
cidades críticas na leitura literária. (LEAHY-DIOS, 2004, p.33)

Não parece ser possível, portanto, realizar a educação literária, nesse contexto
educacional, sem passar necessariamente por questões políticas5 referentes às relações
de poder, uma vez que os próprios textos são detentores de discursos que envolvem
estes entre outros elementos.
Sem perder de vista essa questão, consideremos ainda outros aspectos envol-
vidos no ato de leitura em sala de aula. A leitura literária idealmente exige que o aluno
seja letrado, que consiga transitar pelos conteúdos e pela linguagem, que possa refletir
sobre o que está lendo e que despenda um esforço de concentração, o que se torna cada
vez mais difícil em nossa sociedade tecnológica e imediata. Haveria a possibilidade de
iniciar essa fruição e essa postura mais reflexiva durante a leitura mediante a escolha
de textos mais próximos da vida cultural e da condição sócio-econômica do educando?
É difícil estabelecer um parâmetro seguro de quais textos poderiam despertar
o interesse dos alunos em uma leitura mediada pela escola, seja aquela realizada em
sala de aula (com a presença do professor, lida em voz alta ou individualmente), seja a
realizada em casa pelo aluno sob a orientação prévia do professor, uma leitura dirigi-
da. No primeiro caso, existe a possibilidade de se observar se há interesse por parte dos
leitores (ou ouvintes) por meio de sinais como o silêncio, o acompanhamento do olhar,
as reações diante de determinadas passagens do texto, risos, emoção, indignação, co-
mentários que escapam ao longo da leitura ou posteriores a ela – são manifestações do
leitor-ouvinte em geral não observadas formalmente pelo professor, mais habituado a
respostas por escrito de avaliações da leitura; no segundo caso, esses dados subjetivos
escapam à mediação e a dependência do comprometimento individual do aluno com a
leitura é maior.

4
Concebendo-se o ensino de literatura na trajetória que inicia neste século XXI, a de deslocamento da formação de um
especialista do texto para a de um sujeito leitor (o que aparece sem sistematização teórica nos últimos documentos do
MEC e nos ensaios que começaram a circular no meio acadêmico vindos, sobretudo, da França).
5
“(...) toda a metodologia de ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria de compreensão e interpreta-
ção da realidade – com os mecanismos utilizados na sala de aula”. (FISCHER apud GERALDI, 2002, p.80-81).

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Quando há atenção e envolvimento por parte de alunos e professores é mais


fácil existir uma leitura que faça sentido para ambos. Isso geralmente ocorre quando o
interesse pelo texto é mútuo e vai além dos objetivos curriculares, quando há mais va-
lores envolvidos do que uma mera obediência à necessidade de se ler na escola. As
leituras realizadas mediante textos escolhidos pelos docentes, por vezes, respondem
somente às intenções didáticas do mediador sem considerar, contudo, anseios do estu-
dante, o que pode ocasionar o desinteresse pelo texto indicado. Detectar as possibilida-
des literárias que encontrem ressonância entre os alunos passa pela observação do que
poderia interessá-los em consonância com o que se pretende enquanto formação.
Deslocar o foco da metaleitura para leitura literária, sair da análise do texto e
ir em direção ao leitor é uma possibilidade para a escola que tem sido bastante aventa-
da desde a inserção nos estudos sobre literatura e ensino das discussões sobre estética
da recepção, a partir de Hans Robert Jauss e de Wolfang Iser, expoentes da Escola de
Constança. Para tudo o que se faz com a literatura na escola, é preciso que ela seja lida;
a obra não existe sem o leitor, e a escola só conseguirá ter esse leitor se ele for capaz de
alguma fruição na leitura, do contrário o aluno resistirá a ela. Segundo Stanley Fish, o
leitor está sempre interpretando com base em um repertório e em um modo de perce-
ber que foi em parte estruturado pelo meio no qual vive, ao que denomina de comuni-
dade interpretativa. Para ele, a leitura pode ser inter-subjetiva e desse modo comparti-
lhada (FISH, 1980). Com base no conceito de Fish de que uma comunidade interpreta-
tiva concebe e interpreta os textos literários segundo procedimentos próprios, tendo
em vista essa necessidade de “capturar” o leitor, e considerando também que diretrizes
e propostas curriculares orientam para a introdução de outras modalidades culturais
no currículo (persiste, no entanto, em alguns concursos vestibulares a exigência exclu-
siva da modalidade canônica), é de se perguntar se textos mais próximos da vida de
um aluno da periferia (a literatura denominada “marginal” ou “periférica” por seus
próprios autores) seja um caminho a ser tentado, como meio de alcançar o jovem que já
se encontra alheio e excluído da cultura literária dominante em decorrência de seu ca-
pital cultural.
É possível supor, diante do que afirma Barthes – “texto de prazer: aquele que con-
tenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma práti-
ca confortável de leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que descon-
forta (talvez até com um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do
leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua
relação com a linguagem” (BARTHES, 1993) – que os alunos da escola de periferia, ao ler
os textos marginal-periféricos, vivenciariam inicialmente “uma prática confortável”, o
que garantiria a continuidade da leitura. A passagem do prazer para a fruição na escola
deverá então ser pensada como a continuidade de um processo que envolve dois mo-
vimentos distintos, mas não contrários. O primeiro (prazer) provavelmente seria fruto
de uma identificação primeira com o texto; o segundo (fruição) estaria relacionado a
um diálogo mais profundo com a obra e incluiria uma transformação, ainda que não
mensurável.
Para o aluno imerso na periferia, em princípio, o texto que reflete a sua cultu-
ra poderia ser recebido como um texto de prazer, já que não romperia com aquilo que
lhe é habitual e o situa em meio a um repertório de certo modo também por ele cons-
truído (perspectiva parcial, contudo, uma vez que teríamos de considerar que todo
jovem da escola de periferia convive com a violência e outros aspectos abordados nas

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obras cotidianamente, o que não é verdade). E para outras comunidades interpretati-


vas, para o público acadêmico ou o crítico literário6 por exemplo, seria possível afirmar
o inverso, ou seja, que o texto periférico ou marginal atual poderia ser fruído, uma vez
que causa desconforto pela temática ali expressa, pela linguagem, pela bandeira da
violência?
Em debate ocorrido no TUSP Maria Antônia, intitulado “Crítica de interven-
ção: a dimensão pública do debate sobre a literatura brasileira contemporânea”, Iná
Camargo Costa diz o seguinte, em resposta à pergunta sobre o rebaixamento da exi-
gência crítica em relação a obras rotuladas como marginais:

(...) Cidade de Deus é uma história de violência. A história de como,


num ambiente daqueles, a prática de pequenos crimes, de crimes arte-
sanais, evolui para uma escala industrial, vinculada ao tráfico de dro-
gas. Acho que em nenhum desses casos se pode dizer que a violência
serve de pretexto para exercícios estéticos. Penso que é o oposto do
que acontece em filme de publicidade e em muito cinema de Holly-
wood, aqueles repletos de “defeitos especiais”. Filme com defeito es-
pecial é que usa a violência como objeto de consumo. (...) Quando é
que a crítica vai se mancar e reconhecer que ela não dispõe de referên-
cias e muito menos de aparato crítico para dialogar com essa produ-
ção? (...) Em vez de ficar insistindo nisso, por que não acolher o pesso-
al do rap, do hip hop, toda essa produção lírica que está aí? São as vo-
zes da experiência social brasileira para as quais a crítica volta as cos-
tas. Ou, se não volta, não dispõe de meios para dela se aproximar.
(COSTA apud SCHWARZ, 2004, p.26)

Não há como não reconhecer a dificuldade que existe em se analisar e criticar


obras contemporâneas, periféricas no interior do campo literário dominante, por não
termos distanciamento temporal e por estarmos vinculados, enquanto universitários,
pesquisadores, professores ou críticos literários, a uma outra vertente, a uma outra he-
rança cultural7.
É difícil delimitar a valoração da leitura entre os alunos quando há empatia ou
identificação, mas podemos supor que numa experiência literária há elementos que
podem operar transformações nos envolvidos, como afirma umberto eco:

(...) não esqueçamos que os jovens que enviam mensagens nesta nova
estenografia8 são, pelo menos em parte, os mesmos que enchem essas
novas catedrais do livro que são as grandes livrarias de muito andares
e que, mesmo que folheiem sem comprar, entram em contato com esti-
los literários cultos e elaborados, aos quais seus pais, e certamente
seus avós, sequer foram expostos. Podemos por certo dizer que, maio-
ria em relação aos leitores das gerações precedentes, estes jovens são
minoria em relação aos seis bilhões de habitantes do planeta; nem eu
seria idealista a ponto de pensar que às imensas multidões, às quais
faltam pão e remédios, a literatura poderia trazer alívio. Mas uma ob-

6
Ou ainda para as instâncias legitimadoras do que adentra a esfera escolar no tocante aos livros.
7
“Discutir obras literárias historicamente próximas de nós (...) exige uma recriação dos próprios instrumentos críticos.
Mirar o presente (não somente o literário) parece ser um exercício particular do olhar míope: distanciar-se de si mesmo
sem perder de vista, no momento da análise, as contradições que o animam e o angustiam”. (SCHWARZ, 2004, p.8)
8
Eco referia-se à linguagem utilizada pelos jovens desta geração nas mensagens enviadas através da internet.

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servação eu gostaria de fazer: aqueles desgraçados que, reunidos em


bandos sem objetivos, matam jogando pedras dos viadutos ou atean-
do fogo a uma menina, sejam eles quem forem afinal, não se trans-
formaram no que são porque foram corrompidos pelo newspeak do
computador (nem ao computador eles têm acesso), mas porque res-
tam excluídos do universo do livro e dos lugares onde, através da e-
ducação e da discussão, poderiam chegar até eles os ecos de um mun-
do de valores que chega de e remete a livros. (ECO, 2003, p.12-13)

Voltando nosso olhar à escrita literária, ela só é considerada de fato literária e


legítima quando provém de determinado(s) grupos(s) dominante(s) dentro do campo
literário. Segundo Pierre Bourdieu, consiste em um poder social relacionado direta-
mente ao capital cultural (bens simbólicos) que atua nas relações sociais como força
que dita regras e que mantém a dominação por parte de grupos que estruturam, por
sua vez, os modos de pensar, de analisar e de atribuir valor primeiramente às obras de
arte, e, num segundo momento, à própria vida. Uma obra literária não adentra esse
círculo se não for aprovada por aqueles que têm esse poder de legitimação, assim como
os textos produzidos em sala de aula pelos alunos não são considerados adequados se
não obedecerem a regras de redação e de gêneros. Na tentativa de entender o que ocor-
re na sala de aula – parte ativa do “campo educacional”, transpondo o conceito de
campo de Bourdieu – o que se constata é uma exclusão do que é considerado desvio, ou
seja, o que não passa pelo crivo dos mediadores (respectivamente crítica literária e pro-
fessor), não tem lugar.
Considerando algumas experiências vivenciadas em sala de aula, foi possível
perceber, primeiramente, que a literatura marginal-periférica pode desempenhar um
papel relevante – independente do valor literário – no ensino de literatura e na produ-
ção textual escolar que é o da apropriação da escrita por parte dos grupos historicamente
excluídos da cultura erudita, de que a escrita é o maior emblema.
A escrita resulta, por vezes, no produto final das aulas de português. Se o alu-
no escreve bem, se consegue se expressar mediante diferentes gêneros textuais – ge-
ralmente os mais “escolarizados”, como carta, artigo de opinião, conto –, pressupõe-se
que ele já deva ter superado outras etapas com sucesso (alfabetização, apreensão das
regras da norma padrão da língua, proficiência em leitura, capacidade de organizar,
selecionar, encadear e abstrair idéias). A escrita surge, portanto, como o supra-sumo
das aulas de língua portuguesa, uma espécie de constatação9 de que o aluno está tri-
lhando o caminho esperado para se tornar portador de um domínio legítimo da língua
materna. Mas esse domínio legítimo está diretamente relacionado com regras que re-
gem a norma padrão da língua e com determinadas estruturas que fundamentam as
tipologias e gêneros textuais. A ruptura dessas normas, fato que ocorre em manifesta-
ções literárias não-canônicas ou em textos onde a heterogeneidade cultural está presen-
te, implica uma não-obediência que pode não ser bem-vinda nos bancos escolares.
Com relação à heterogeneidade cultural em seu aspecto amplo, ela tem sido
citada e defendida enquanto elemento sócio-educacional nas propostas curriculares.
No Caderno do Professor de Língua Portuguesa e Literatura da área de Linguagem, Có-

9
Há que se considerar que a leitura, pelo seu caráter internalizado, não consiste em boa ferramenta para a avaliação
por parte do professor do que foi absorvido pelo aluno durante a aprendizagem. A escrita, mais palpável e externa
revela mais facilmente os “erros e acertos” dos alunos, segundo o ensino padrão.

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digos e suas Tecnologias (2008), do currículo do estado de São Paulo, aparece entre as
cinco competências fundamentais a serem desenvolvidas pelos alunos do 3º ano do
Ensino Médio durante o 2º bimestre a seguinte: “recorrer aos conhecimentos desenvolvidos
na escola para a elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os
valores humanos e considerando a diversidade sócio-cultural” (SEE, 2008). Tal afirmativa
como diretriz curricular poderia ser o indício de uma transformação lingüística que
abrangeria não só o estudo das variantes lingüísticas, mas também a leitura de textos
não-canônicos e produções textuais mais abertas e experimentais dentro da sala de
aula. Sabemos, no entanto, que as produções textuais mais “elásticas”, ou seja, aquelas
que permitem afastar-se dos padrões vigentes, estão, quase sempre, relacionadas à lin-
guagem poética. Os textos dissertativos e argumentativos são os menos passíveis de
transgressões criativas de qualquer ordem. Por outro lado, os “limites do texto” apre-
sentados nesse mesmo material de orientação para o professor:“Desejamos assim que o
processo escolar sirva para que nossos alunos e alunas consigam expor com suficiência suas
opiniões, respeitando os limites de alteridade do texto. Ou seja, o texto impõe limites para a in-
terpretação de nossas opiniões e tais limites devem ser respeitados a fim de que nossa argumen-
tação tenha credibilidade”(SEE, 2008).
Mas quais seriam esses limites? O que um texto precisaria fundamentalmente
conter para obter essa credibilidade? Seria possível atender a essa recomendação de
considerar a diversidade sócio-cultural durante a produção de um texto padrão? A
norma culta da língua poderia ser subvertida sem o texto perder essa credibilidade? As
diversas produções artísticas populares adentrariam o universo literário escolar com o
mesmo prestígio das produções já legitimadas?
Tais perguntas permitem pontuar os conflitos que aparecem, quando o assun-
to é a heterogeneidade cultural no contexto escolar, e potencializados pelas orientações
existentes em um currículo a ser seguido pelos docentes da educação básica paulista.
Pressupõe-se que a diversidade cultural deva ser considerada na escola por meio das
manifestações artísticas, que deva ser incorporada nas aulas de leitura e de escrita. No
entanto, o mesmo material traz orientações que deixam clara a necessidade de se “de-
limitar”, de “impor limites” a tais manifestações, mais especificamente às produções
textuais dos alunos, ou seja, a leitura e a escrita não estão livres de regras previamente
elaboradas mesmo em meio a essa inserção do diverso, tampouco se encontram des-
vencilhadas das forças atuantes tanto no campo literário quanto no educacional.
Por outro lado, existe o aluno com os seus referenciais próprios, seus anseios e
seus conhecimentos de mundo que interferirão em toda e qualquer produção que se
queira realizar em sala de aula, fator não menos complexo a ser considerado. Convive,
inclusive, entre os alunos uma concepção equivocada do que consistiria o ato da escri-
ta. “Professora, eu até gosto de escrever, escrevo tudo o que é colocado na lousa, mas de redação
eu não gosto não”. Essa é uma afirmação recorrente nas aulas de português da rede pú-
blica por alunos e alunas de diferentes faixas etárias. O “gostar de escrever”, nesses
casos, refere-se ao gosto pelo ato mecânico da escrita – a cópia – e a “redação” como
toda e qualquer produção textual requerida no âmbito escolar.
A escrita “copista”, livre do pensar e da reflexão, aparece comumente no coti-
diano escolar do ensino fundamental e médio como algo inerente à atividade educa-
cional, uma transcrição dos saberes que são postulados na lousa pelo professor – que,
por sua vez, também “copia” de autores, livros didáticos, apostilas e outros materiais
pedagógicos, trechos por ele considerados importantes – e que devem ser incorporados

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pelo aluno ou, como é mais comum, apenas ficarem registrados em seu caderno. Essa
atividade copista10 parece surtir um efeito “calmante” nos alunos e alunas – alguns até
fazem questão de caprichar na caligrafia, outros enfeitam o caderno com cores e dese-
nhos durante toda a cópia dos textos. Até mesmo os mais “desajustados” aproveitam
essa atividade manual para mostrar que acatam de vez em quando as propostas de
aprendizagem impostas11 pelos professores: desde que não haja exercícios ou ativida-
des que exijam reflexão, organização e seleção de tópicos e idéias, a inércia da cópia é
aceita de bom grado pelos alunos. Para boa parte deles, a capacidade de realizar uma
cópia já consiste em um domínio da escrita. Ao transcrever os pensamentos, idéias,
teorias, resumos, poemas de outrem que são expostos no quadro-negro, muitos acredi-
tam já estar realizando plenamente o ato de escrever. O ato de apenas copiar um saber
que já está dado – e, que muitas vezes, está longe de ser um saber que lhes interessa –
sem incorporá-lo de fato, está, a nosso ver, no cerne dessa questão. O que deve ser res-
saltado é o fato de o aluno estar acostumado a receber o saber na esfera educacional co-
mo algo pronto, intocável, favorecendo um não-pensar que poderia ser considerado tão
nocivo quanto o fato de não saber ler ou escrever12. A aceitação passiva dos conteúdos
escolares, a realização mecânica dos exercícios (e da leitura e da escrita) transmitidos
(também mecanicamente) pelo professor, termina por encerrar esse aluno em uma ali-
enação receptora que se reproduzirá no ato da escrita. E a veiculação exclusiva de tex-
tos canônicos pela escola reforça um não-saber-escrever por parte do aluno quando ele
não domina a escrita, ou seja, ele acha que não sabe escrever quando não reproduz o que é
considerado bom enquanto escrita padrão.
O caráter elitista da literatura certamente favoreceu sua disseminação como
arte para poucos, inalcançável à maior parte dos indivíduos, estando tanto a leitura de
obras canônicas como também, e ainda mais, a escrita, relegada àqueles que possuís-
sem dons e acumulassem saberes, ou seja, aos considerados intelectuais e pessoas cul-
tas. Entre os escritores da vertente literária dita periférica ou marginal, a questão tam-
pouco é ignorada. Nas contracapas de suas obras, além do envolvimento social com as
comunidades, ressalta-se nas biografias dos autores sua origem humilde, os subempre-
gos a que foram submetidos ao longo de suas trajetórias, a falta de escolarização e de
condições sócio-econômicas. Uma das finalidades dessa explicitação de vicissitudes é
mostrar que o biografado foi capaz de escrever, apesar de tudo o que lhe pesava con-
tra, e que, portanto, se ele pôde, seus semelhantes desfavorecidos econômica e social-
mente também podem – e devem. Isso pode ser observado nas informações sobre três
autores em três obras:

(Ferréz) Compositor de hip-hop, envolvido em trabalhos sociais no bairro


de periferia onde mora, ele costuma afirmar que não consegue desvincular realidade de
literatura e acha que o escritor tem de estar presente na comunidade. Trabalhou em pa-

10
Registra-se aqui experiência de uma das autoras, professora da rede pública de São Paulo, ocorrida em sala de
aula, lembrando também alguns relatos informais de professores que se referem à cópia como um artifício capaz de
fazer os alunos se acalmarem na volta do intervalo ou da educação física, por exemplo. Outros professores admitem
utilizar tal recurso como o último possível com determinadas turmas refratárias à explicação oral ou resistentes à aula
expositiva.
11
Alguns alunos fazem questão de copiar a matéria da lousa para usar como prova de que, apesar da bagunça e da
indisciplina em sala de aula das quais são protagonistas, possuem o “caderno em ordem”. Alguns pais de alunos tam-
bém utilizam a quantidade de páginas escritas no caderno como parâmetro para medir a dedicação dos filhos, e dos
professores, durante as aulas.
12
Questões discutidas por Jean Foucambert em palestra apresentada na FEUSP em outubro de 2008.

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daria, vendeu camisa, vassoura, foi pedreiro, mas sempre freqüentou bibliotecas.
(FERREZ,2006)

Allan Santos da Rosa trabalhou como feirante, office-boy, operário de in-


dústria plástica, vendedor de incensos, livros, churros, seguros e jazigo de cemitério.
Em 1998 estudou no cursinho do Núcleo de Consciência Negra e passou no vestibular
para cursar graduação em História. Ganhou um troco também como professor, pesqui-
sador, alfabetizador de adultos, dançarino, ator de rua e produzindo e montando expo-
sições rádio-comunitárias. (ROSA, 2005)

(Alessandro Buzo) Sobre o fato de não ter concluído o ensino fundamental


e ter escrito quatro obras, costuma dizer: “Pensavam que não sabíamos nem ler, e esta-
mos escrevendo livros”. BUZO, 2007)

Essa última afirmação, feita pelo escritor Alessandro Buzo e citada em seu li-
vro, sintetiza o sentimento de orgulho dos autores periféricos ao se apropriarem de um
instrumento quase sempre negado às populações de periferia. A produção literária – e,
por conseguinte, a expressão de idéias e sentimentos – passa a ser realizada por quem,
até então, só se via descrito literariamente a partir de outrem. Essa autoria consiste em
um dos elementos de maior valor entre leitores e escritores da literatura marginal-
periférica, pois significa o domínio de uma força expressiva por parte de quem sempre
esteve às margens da escrita.
A vida periférica desses autores (e efetivamente marginal de outros13), junto a
outros fatores, parece despertar a identificação dos alunos de periferia. Muitas vezes
imersos em um cotidiano próximo do descrito nas obras, com empregos parecidos pe-
los executados anteriormente pelos autores, com um linguajar repleto de gírias e códi-
gos que também estão presentes ao longo das narrativas e poemas dessa vertente lite-
rária, esse jovem aluno de escola pública de periferia passa a perceber, a partir das lei-
turas literárias experimentadas em sala de aula, uma representatividade social até en-
tão não vista nas demais obras canônicas. Não só isso; esse mesmo aluno percebe que,
para além das drogas e da violência, como fuga ou vazão da opressão a que constan-
temente é submetido, a expressão literária de seus medos, anseios e angústias é uma
alternativa possível e, com a leitura dessas obras, sente-se lido pelo outro. Ele não está
mais só: existe um grupo que fez e faz dessa mesma opressão material literário, de de-
núncia, de registro, cultura. Ou seja, ele passa a vislumbrar outros caminhos, outras
possibilidades:

(...) se a identificação é mais fácil entre pessoas que têm um mesmo


sistema de valores, é, em primeiro lugar, porque a analogia desses va-
lores, ao inspirar condutas comuns, e também, ao permitir uma lin-
guagem comum, amplia as possibilidades de comunicação e de com-
preensão. É também em razão de um mecanismo de tranqüilização e de
defesa do eu: se meus valores são rejeitados, arrisco sê-lo também; se, ao
contrário, são divididos, estou tranqüilizado, protegido, forte.
(MAISONNEUVE, apud JOUVE, 2002, p.130)

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Alguns textos publicados na coletânea Caros Amigos Literatura Marginal são de detentos ou ex-detentos.

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Mei Hua Soares
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Neide Luzia de Rezende

Transpor a artificialidade que permeia o que adentra a esfera escolar, ampliar


a noção do que pode vir a ser a leitura e a escrita literária, incorporar outras vertentes
mais populares seja na literatura ou em outras manifestações culturais, passa por uma
re-visão do que é considerado legítimo dentro do campo educacional, ou seja, por um
alargamento do campo. Não se trata de permissividade, mas de um esforço de reflexão
no sentido de compreender as relações de força dos campos literário, cultural e educa-
cional que, muitas vezes, terminam por banir culturas que poderiam ampliar o univer-
so das leituras escolares. Paralelamente, a recepção desses textos, a apropriação da es-
crita por parte dos alunos passa indubitavelmente pelo comprometimento em propici-
ar posturas críticas e reflexivas frente às leituras, bem como por uma educação literária
que abarque tanto os aspectos intrínsecos à literatura quanto os fatores externos imbri-
cados em seu ensino.

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Literatura Marginal-Periférica e Educação Literária – A Leitura
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e A Escrita Para Além do Cânone

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Recebido: 30/04/2011
Aprovado: 20/07/2011

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