Literatura Marginal Periferica e Educacao Literaria
Literatura Marginal Periferica e Educacao Literaria
Literatura Marginal Periferica e Educacao Literaria
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Doutoranda e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - FEUSP/ meihu-
a@usp.br
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Prof ª Drª. da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP/ neirez@usp.br
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Aqui faremos referência mais específica as de ensino básico da rede pública do estado de São Paulo.
aquele que lhe é habitualmente reservado (ou seja, praticamente nenhum). Isso, se li-
darmos com a perspectiva de que cabe à escola, no contexto no qual a situamos, a fun-
ção de proporcionar ao aluno a possibilidade de uma leitura mais literária que propicie
fruição e conhecimento.
As aulas de literatura4 apresentam chances de constituírem dispositivos de
questionamento do próprio modelo educacional que pauta a vida escolar desses alu-
nos.
Não parece ser possível, portanto, realizar a educação literária, nesse contexto
educacional, sem passar necessariamente por questões políticas5 referentes às relações
de poder, uma vez que os próprios textos são detentores de discursos que envolvem
estes entre outros elementos.
Sem perder de vista essa questão, consideremos ainda outros aspectos envol-
vidos no ato de leitura em sala de aula. A leitura literária idealmente exige que o aluno
seja letrado, que consiga transitar pelos conteúdos e pela linguagem, que possa refletir
sobre o que está lendo e que despenda um esforço de concentração, o que se torna cada
vez mais difícil em nossa sociedade tecnológica e imediata. Haveria a possibilidade de
iniciar essa fruição e essa postura mais reflexiva durante a leitura mediante a escolha
de textos mais próximos da vida cultural e da condição sócio-econômica do educando?
É difícil estabelecer um parâmetro seguro de quais textos poderiam despertar
o interesse dos alunos em uma leitura mediada pela escola, seja aquela realizada em
sala de aula (com a presença do professor, lida em voz alta ou individualmente), seja a
realizada em casa pelo aluno sob a orientação prévia do professor, uma leitura dirigi-
da. No primeiro caso, existe a possibilidade de se observar se há interesse por parte dos
leitores (ou ouvintes) por meio de sinais como o silêncio, o acompanhamento do olhar,
as reações diante de determinadas passagens do texto, risos, emoção, indignação, co-
mentários que escapam ao longo da leitura ou posteriores a ela – são manifestações do
leitor-ouvinte em geral não observadas formalmente pelo professor, mais habituado a
respostas por escrito de avaliações da leitura; no segundo caso, esses dados subjetivos
escapam à mediação e a dependência do comprometimento individual do aluno com a
leitura é maior.
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Concebendo-se o ensino de literatura na trajetória que inicia neste século XXI, a de deslocamento da formação de um
especialista do texto para a de um sujeito leitor (o que aparece sem sistematização teórica nos últimos documentos do
MEC e nos ensaios que começaram a circular no meio acadêmico vindos, sobretudo, da França).
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“(...) toda a metodologia de ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria de compreensão e interpreta-
ção da realidade – com os mecanismos utilizados na sala de aula”. (FISCHER apud GERALDI, 2002, p.80-81).
(...) não esqueçamos que os jovens que enviam mensagens nesta nova
estenografia8 são, pelo menos em parte, os mesmos que enchem essas
novas catedrais do livro que são as grandes livrarias de muito andares
e que, mesmo que folheiem sem comprar, entram em contato com esti-
los literários cultos e elaborados, aos quais seus pais, e certamente
seus avós, sequer foram expostos. Podemos por certo dizer que, maio-
ria em relação aos leitores das gerações precedentes, estes jovens são
minoria em relação aos seis bilhões de habitantes do planeta; nem eu
seria idealista a ponto de pensar que às imensas multidões, às quais
faltam pão e remédios, a literatura poderia trazer alívio. Mas uma ob-
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Ou ainda para as instâncias legitimadoras do que adentra a esfera escolar no tocante aos livros.
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“Discutir obras literárias historicamente próximas de nós (...) exige uma recriação dos próprios instrumentos críticos.
Mirar o presente (não somente o literário) parece ser um exercício particular do olhar míope: distanciar-se de si mesmo
sem perder de vista, no momento da análise, as contradições que o animam e o angustiam”. (SCHWARZ, 2004, p.8)
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Eco referia-se à linguagem utilizada pelos jovens desta geração nas mensagens enviadas através da internet.
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Há que se considerar que a leitura, pelo seu caráter internalizado, não consiste em boa ferramenta para a avaliação
por parte do professor do que foi absorvido pelo aluno durante a aprendizagem. A escrita, mais palpável e externa
revela mais facilmente os “erros e acertos” dos alunos, segundo o ensino padrão.
digos e suas Tecnologias (2008), do currículo do estado de São Paulo, aparece entre as
cinco competências fundamentais a serem desenvolvidas pelos alunos do 3º ano do
Ensino Médio durante o 2º bimestre a seguinte: “recorrer aos conhecimentos desenvolvidos
na escola para a elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os
valores humanos e considerando a diversidade sócio-cultural” (SEE, 2008). Tal afirmativa
como diretriz curricular poderia ser o indício de uma transformação lingüística que
abrangeria não só o estudo das variantes lingüísticas, mas também a leitura de textos
não-canônicos e produções textuais mais abertas e experimentais dentro da sala de
aula. Sabemos, no entanto, que as produções textuais mais “elásticas”, ou seja, aquelas
que permitem afastar-se dos padrões vigentes, estão, quase sempre, relacionadas à lin-
guagem poética. Os textos dissertativos e argumentativos são os menos passíveis de
transgressões criativas de qualquer ordem. Por outro lado, os “limites do texto” apre-
sentados nesse mesmo material de orientação para o professor:“Desejamos assim que o
processo escolar sirva para que nossos alunos e alunas consigam expor com suficiência suas
opiniões, respeitando os limites de alteridade do texto. Ou seja, o texto impõe limites para a in-
terpretação de nossas opiniões e tais limites devem ser respeitados a fim de que nossa argumen-
tação tenha credibilidade”(SEE, 2008).
Mas quais seriam esses limites? O que um texto precisaria fundamentalmente
conter para obter essa credibilidade? Seria possível atender a essa recomendação de
considerar a diversidade sócio-cultural durante a produção de um texto padrão? A
norma culta da língua poderia ser subvertida sem o texto perder essa credibilidade? As
diversas produções artísticas populares adentrariam o universo literário escolar com o
mesmo prestígio das produções já legitimadas?
Tais perguntas permitem pontuar os conflitos que aparecem, quando o assun-
to é a heterogeneidade cultural no contexto escolar, e potencializados pelas orientações
existentes em um currículo a ser seguido pelos docentes da educação básica paulista.
Pressupõe-se que a diversidade cultural deva ser considerada na escola por meio das
manifestações artísticas, que deva ser incorporada nas aulas de leitura e de escrita. No
entanto, o mesmo material traz orientações que deixam clara a necessidade de se “de-
limitar”, de “impor limites” a tais manifestações, mais especificamente às produções
textuais dos alunos, ou seja, a leitura e a escrita não estão livres de regras previamente
elaboradas mesmo em meio a essa inserção do diverso, tampouco se encontram des-
vencilhadas das forças atuantes tanto no campo literário quanto no educacional.
Por outro lado, existe o aluno com os seus referenciais próprios, seus anseios e
seus conhecimentos de mundo que interferirão em toda e qualquer produção que se
queira realizar em sala de aula, fator não menos complexo a ser considerado. Convive,
inclusive, entre os alunos uma concepção equivocada do que consistiria o ato da escri-
ta. “Professora, eu até gosto de escrever, escrevo tudo o que é colocado na lousa, mas de redação
eu não gosto não”. Essa é uma afirmação recorrente nas aulas de português da rede pú-
blica por alunos e alunas de diferentes faixas etárias. O “gostar de escrever”, nesses
casos, refere-se ao gosto pelo ato mecânico da escrita – a cópia – e a “redação” como
toda e qualquer produção textual requerida no âmbito escolar.
A escrita “copista”, livre do pensar e da reflexão, aparece comumente no coti-
diano escolar do ensino fundamental e médio como algo inerente à atividade educa-
cional, uma transcrição dos saberes que são postulados na lousa pelo professor – que,
por sua vez, também “copia” de autores, livros didáticos, apostilas e outros materiais
pedagógicos, trechos por ele considerados importantes – e que devem ser incorporados
pelo aluno ou, como é mais comum, apenas ficarem registrados em seu caderno. Essa
atividade copista10 parece surtir um efeito “calmante” nos alunos e alunas – alguns até
fazem questão de caprichar na caligrafia, outros enfeitam o caderno com cores e dese-
nhos durante toda a cópia dos textos. Até mesmo os mais “desajustados” aproveitam
essa atividade manual para mostrar que acatam de vez em quando as propostas de
aprendizagem impostas11 pelos professores: desde que não haja exercícios ou ativida-
des que exijam reflexão, organização e seleção de tópicos e idéias, a inércia da cópia é
aceita de bom grado pelos alunos. Para boa parte deles, a capacidade de realizar uma
cópia já consiste em um domínio da escrita. Ao transcrever os pensamentos, idéias,
teorias, resumos, poemas de outrem que são expostos no quadro-negro, muitos acredi-
tam já estar realizando plenamente o ato de escrever. O ato de apenas copiar um saber
que já está dado – e, que muitas vezes, está longe de ser um saber que lhes interessa –
sem incorporá-lo de fato, está, a nosso ver, no cerne dessa questão. O que deve ser res-
saltado é o fato de o aluno estar acostumado a receber o saber na esfera educacional co-
mo algo pronto, intocável, favorecendo um não-pensar que poderia ser considerado tão
nocivo quanto o fato de não saber ler ou escrever12. A aceitação passiva dos conteúdos
escolares, a realização mecânica dos exercícios (e da leitura e da escrita) transmitidos
(também mecanicamente) pelo professor, termina por encerrar esse aluno em uma ali-
enação receptora que se reproduzirá no ato da escrita. E a veiculação exclusiva de tex-
tos canônicos pela escola reforça um não-saber-escrever por parte do aluno quando ele
não domina a escrita, ou seja, ele acha que não sabe escrever quando não reproduz o que é
considerado bom enquanto escrita padrão.
O caráter elitista da literatura certamente favoreceu sua disseminação como
arte para poucos, inalcançável à maior parte dos indivíduos, estando tanto a leitura de
obras canônicas como também, e ainda mais, a escrita, relegada àqueles que possuís-
sem dons e acumulassem saberes, ou seja, aos considerados intelectuais e pessoas cul-
tas. Entre os escritores da vertente literária dita periférica ou marginal, a questão tam-
pouco é ignorada. Nas contracapas de suas obras, além do envolvimento social com as
comunidades, ressalta-se nas biografias dos autores sua origem humilde, os subempre-
gos a que foram submetidos ao longo de suas trajetórias, a falta de escolarização e de
condições sócio-econômicas. Uma das finalidades dessa explicitação de vicissitudes é
mostrar que o biografado foi capaz de escrever, apesar de tudo o que lhe pesava con-
tra, e que, portanto, se ele pôde, seus semelhantes desfavorecidos econômica e social-
mente também podem – e devem. Isso pode ser observado nas informações sobre três
autores em três obras:
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Registra-se aqui experiência de uma das autoras, professora da rede pública de São Paulo, ocorrida em sala de
aula, lembrando também alguns relatos informais de professores que se referem à cópia como um artifício capaz de
fazer os alunos se acalmarem na volta do intervalo ou da educação física, por exemplo. Outros professores admitem
utilizar tal recurso como o último possível com determinadas turmas refratárias à explicação oral ou resistentes à aula
expositiva.
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Alguns alunos fazem questão de copiar a matéria da lousa para usar como prova de que, apesar da bagunça e da
indisciplina em sala de aula das quais são protagonistas, possuem o “caderno em ordem”. Alguns pais de alunos tam-
bém utilizam a quantidade de páginas escritas no caderno como parâmetro para medir a dedicação dos filhos, e dos
professores, durante as aulas.
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Questões discutidas por Jean Foucambert em palestra apresentada na FEUSP em outubro de 2008.
daria, vendeu camisa, vassoura, foi pedreiro, mas sempre freqüentou bibliotecas.
(FERREZ,2006)
Essa última afirmação, feita pelo escritor Alessandro Buzo e citada em seu li-
vro, sintetiza o sentimento de orgulho dos autores periféricos ao se apropriarem de um
instrumento quase sempre negado às populações de periferia. A produção literária – e,
por conseguinte, a expressão de idéias e sentimentos – passa a ser realizada por quem,
até então, só se via descrito literariamente a partir de outrem. Essa autoria consiste em
um dos elementos de maior valor entre leitores e escritores da literatura marginal-
periférica, pois significa o domínio de uma força expressiva por parte de quem sempre
esteve às margens da escrita.
A vida periférica desses autores (e efetivamente marginal de outros13), junto a
outros fatores, parece despertar a identificação dos alunos de periferia. Muitas vezes
imersos em um cotidiano próximo do descrito nas obras, com empregos parecidos pe-
los executados anteriormente pelos autores, com um linguajar repleto de gírias e códi-
gos que também estão presentes ao longo das narrativas e poemas dessa vertente lite-
rária, esse jovem aluno de escola pública de periferia passa a perceber, a partir das lei-
turas literárias experimentadas em sala de aula, uma representatividade social até en-
tão não vista nas demais obras canônicas. Não só isso; esse mesmo aluno percebe que,
para além das drogas e da violência, como fuga ou vazão da opressão a que constan-
temente é submetido, a expressão literária de seus medos, anseios e angústias é uma
alternativa possível e, com a leitura dessas obras, sente-se lido pelo outro. Ele não está
mais só: existe um grupo que fez e faz dessa mesma opressão material literário, de de-
núncia, de registro, cultura. Ou seja, ele passa a vislumbrar outros caminhos, outras
possibilidades:
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Alguns textos publicados na coletânea Caros Amigos Literatura Marginal são de detentos ou ex-detentos.
Referências
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Paulo: Brasiliense, 1990.
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Recebido: 30/04/2011
Aprovado: 20/07/2011