O Inferno de Gabriel - Sylvain Reynard
O Inferno de Gabriel - Sylvain Reynard
O Inferno de Gabriel - Sylvain Reynard
Resurgam.
Florença, 1283
–M enina Mitchell?
A voz do professor Gabriel Emerson atravessou a sala de
seminário até alcançar a atraente jovem de olhos castanhos sentada ao
fundo. Perdida em pensamentos, ou perdida na tradução, estava de cabeça
baixa a escrever furiosamente no seu caderno.
Dez pares de olhos viraram-se para ela, para o rosto pálido de longas
pestanas, os finos dedos brancos agarrados à caneta. Depois, dez pares de
olhos regressaram ao professor, que ficara perfeitamente imóvel e começara
a franzir o sobrolho. A sua pose contundente contrastava fortemente com a
simetria geral das suas feições, com os olhos grandes e expressivos, a boca
cheia. Era rudemente atraente, mas, naquele momento, a azeda severidade
estampada no rosto arruinava o efeito, de um modo geral, agradável da sua
aparência.
— Cof, cof. — Uma tosse modesta à direita da rapariga captou a sua
atenção. Surpreendida, ergueu o olhar para o homem de ombros largos
sentado ao seu lado. Ele sorriu e fez sinal com os olhos para a frente da
sala, onde estava o professor.
Ela seguiu o seu olhar, lentamente, e viu um par de olhos azuis
perfurantes e zangados. Engoliu ruidosamente em seco.
— Estou à espera de uma resposta à minha pergunta, menina Mitchell. Se
quiser fazer o favor de se juntar a nós. — A voz era glacial, tal como os
olhos.
Os outros estudantes remexeram-se nas cadeiras e olharam furtivamente
uns para os outros. As suas expressões diziam o que foi que lhe deu? Mas
não disseram nada. (Pois é do conhecimento comum que os alunos de pós-
graduação são avessos a confrontar os seus professores com respeito a
qualquer assunto, quanto mais a um comportamento indelicado.)
A jovem abriu a boca ligeiramente e depois fechou-a, presa por aqueles
olhos azuis que não pestanejavam, e os seus próprios olhos pareciam os de
uma coelha assustada.
— A sua língua materna é o inglês? — troçou ele.
Uma mulher de cabelo preto sentada à direita do professor tentou abafar
uma gargalhada, disfarçando-a com um acesso de tosse muito pouco
convincente. Todos os olhos se voltaram para a coelha assustada, cuja pele
explodiu em carmesim quando ela baixou a cabeça, escapando finalmente
ao olhar fixo do professor.
— Uma vez que a menina Mitchell parece estar a frequentar um
seminário paralelo numa língua diferente, talvez alguém possa ter a
gentileza de responder à minha pergunta?
A beldade à sua direita estava ansiosa por isso. Voltou-se de frente para
ele e fez um sorriso radiante enquanto respondia à pergunta com grandes
pormenores, exibindo-se com largos gestos enquanto citava Dante no seu
italiano original. Quando terminou, sorriu acidamente para o fundo da sala,
depois ergueu de novo o olhar para o professor e suspirou. A única coisa
que faltou à sua atuação foi saltar rapidamente para o chão e esfregar as
costas à perna dele, para lhe mostrar que seria o seu animal de estimação
para sempre. (Não que ele tivesse apreciado um tal gesto.)
O professor franziu ligeiramente o sobrolho para ninguém em particular e
virou as costas para escrever no quadro. A coelha assustada pestanejou para
ocultar as lágrimas enquanto continuava a escrever, mas, felizmente, não
chorou.
Alguns minutos mais tarde, enquanto o professor continuava a arengar
sobre o conflito entre os guelfos e os gibelinos, um pequeno quadrado de
papel dobrado apareceu em cima do dicionário de italiano da coelha
assustada. Ao princípio, ela não reparou, mas, mais uma vez, um tossicar
suave atraiu a sua atenção para o homem atraente ao seu lado. Ele sorriu
mais abertamente, desta vez, quase com ansiedade, e o seu olhar indicou o
papel.
Ela viu-o e pestanejou. Olhando cuidadosamente para as costas do
professor, que desenhava círculos intermináveis em volta de intermináveis
palavras italianas, baixou o papel para o colo enquanto o desdobrava em
silêncio.
O Emerson é um imbecil.
Ninguém poderia ter reparado porque ninguém estava a olhar para ela,
exceto o homem ao seu lado. Assim que leu aquelas palavras, um tipo
diferente de rubor surgiu-lhe no rosto, duas nuvens rosadas na curva das
faces, e ela sorriu. Não o suficiente para mostrar os dentes, ou a sugestão de
umas covinhas, ou mesmo uma ou duas rugas de expressão, mas um sorriso,
de qualquer maneira.
Ergueu os grandes olhos para o homem ao seu lado e encarou-o
timidamente. Um enorme sorriso amigável espalhou-se pelo rosto dele.
— Achou graça a alguma coisa, menina Mitchell?
Os olhos castanhos dilataram-se de terror. O sorriso do seu novo amigo
desapareceu rapidamente, enquanto ele se voltava para olhar para o
professor.
A jovem sabia que era melhor não voltar a fixar aqueles frios olhos azuis.
Em vez disso, baixou a cabeça e começou a atormentar o lábio inferior
entre os dentes, para a frente e para trás, para a frente e para trás.
— A culpa foi minha, professor. Estava só a perguntar em que página
íamos — intercedeu o homem simpático a seu favor.
— Não propriamente uma pergunta adequada para um estudante de
doutoramento, Paul. Mas, uma vez que pergunta, começámos com o
primeiro canto. Creio que o conseguirá encontrar sem a ajuda da menina
Mitchell. Ah, e, menina Mitchell?
O rabo-de-cavalo da coelha assustada tremia ligeiramente quando ela
ergueu o olhar.
— Venha ao meu gabinete depois da aula.
Capítulo Dois
Depois, sem saber muito bem o que fazer, colocou o papel contra a
ombreira, prendendo-o ali quando fechou silenciosamente a porta do
gabinete.
Dia de Lágrimas,
Aquele em que, das cinzas, se erguerá o réu para o julgamento.
Tende piedade, Senhor, deste homem.
Piedoso Senhor Jesus,
Concedei-lhe o descanso.
Ámen.
O que se passa com o Gabriel para ouvir isto repetidamente? E o que diz
a meu respeito o facto de não conseguir deixar de me sentir perto dele
sempre que o ouço? A única coisa que consegui foi substituir a fotografia
pelo CD — só não durmo com ele debaixo da almofada.
Sou um cachorrinho doentio.
Julia abanou a cabeça e tentou concentrar-se na sua proposta de tese,
distraindo-se do som das lágrimas clássicas com pensamentos sobre Paul e
as atividades do dia anterior.
Ele fora muito útil. Para além de lhe dar a chave da sala de leitura d’O
Professor, oferecera-lhe conselhos sobre a melhor maneira de estruturar a
proposta de tese, e fizera-a rir mais do que uma vez — mais do que ela se
rira em muito, muito tempo. Era um cavalheiro; abria as portas e carregava-
lhe a feia e pesada mochila. Era delicado, e Julia não conseguia deixar de
gostar dele. Era bom estar perto de uma pessoa que era ao mesmo tempo
atraente e querida — uma combinação muitas vezes rara e subvalorizada.
Estava também grata pela sua orientação. Pois, verdadeiramente, quem
melhor do que Virgílio, que guiara Dante pelo Inferno, para a orientar pela
sua proposta de tese?
Ela queria que a sua proposta impressionasse o professor Emerson, que o
fizesse perceber que era uma aluna capaz e algo inteligente. Mesmo nesse
momento, soube que o mais provável seria ele discordar com ela em ambos
os pontos, independentemente do que o professor Greg Matthews de
Harvard pudesse dizer a seu respeito. E estaria a mentir se dissesse que não
estava subliminarmente a tentar forçar Emerson a recordar-se dela.
Perguntou-se o que seria pior — que Gabriel a tivesse esquecido? Ou que
Gabriel se tivesse transformado no professor Emerson? Julia estava
agoniada com a segunda hipótese, e por isso recusou-se sequer a considerá-
la — muito. Preferia de longe que Gabriel a tivesse esquecido mas
permanecesse o homem terno e doce que a beijara no velho pomar a vê-lo
transformado no professor Emerson, com todos os seus defeitos, mesmo
que continuasse a recordá-la.
A proposta de tese de Julia era simples. Estava interessada numa
comparação entre o amor cortês manifestado no relacionamento casto entre
Dante e Beatriz e a luxúria apaixonada manifestada na relação adúltera
entre Paolo e Francesca, duas personagens que Dante colocou no círculo
dos libidinosos no Inferno. Julia queria discutir as virtudes e inconvenientes
da castidade, um assunto em que tinha um interesse mais do que passageiro,
e compará-lo com o erotismo subliminar d’A Divina Comédia.
Enquanto trabalhava na sua proposta, deu por si a olhar alternadamente
para a pintura de Holiday, pendurada por cima da sua cama, e um postal
com a imagem da escultura de Rodin “O Beijo”. Rodin esculpira Paolo e
Francesca de forma que os seus lábios não se tocassem; no entanto, a
escultura era sensual e erótica, e Julia não comprara uma réplica quando
visitara o musée Rodin em Paris porque o achara demasiado excitante. E
demasiado desolador.
Contentara-se com um postal e colara-o à parede.
Para além de palavras como boulangerie e fromagerie, sabia francês
suficiente para perceber que o título da escultura de Rodin, Le Baiser, fazia
parte da sua subversão. Pois baiser, em francês, tanto pode significar a
inocência de um beijo como a qualidade animalesca de uma foda. Pode-se
dizer le baiser referindo um beijo, mas, se se diz Baise-moi, é uma súplica
para se ser fodido. Inocência e súplica estão igualmente envolvidas no
abraço destes dois amantes cujos lábios nunca se tocaram: imobilizados
juntos, mas separados para toda a eternidade. Julia queria libertá-los
daquele abraço imóvel e esperava secretamente que a sua tese lhe
permitisse fazê-lo.
De tempos a tempos, ao longo dos anos, Julia permitira-se pensar no
velho pomar atrás da casa dos Clarks, reviver o seu primeiro beijo com
Gabriel e um pouco do que viera a seguir, mas, acima de tudo, fizera-o em
sonhos. Raramente, se é que alguma vez, pensava na manhã seguinte e nas
suas lágrimas e histeria. Era uma memória demasiado dolorosa. Era uma
recordação de traição que revisitava apenas nos seus pesadelos… e,
infelizmente, esses eram demasiado frequentes. Razão por que nunca o
procurara.
Nesse mesmo momento, o seu telefone tocou, interrompendo-lhe o
trabalho de casa.
— Olá, Julia. Tens planos para esta noite? — Era Rachel. Julia conseguia
ouvir Gabriel a resmungar ao fundo.
Carregou de imediato no botão de mute do seu computador para ele não
ouvir Mozart ao telefone. Esperou, contendo a respiração, para ver se ele
ouvira.
— Julia? Ainda estás aí?
— Sim, estou.
Pelos sons de Gabriel, Julia não percebia se ele estava zangado ou apenas
a queixar-se. Não que algum dos comportamentos a pudesse surpreender.
— O que se passa? Está tudo bem?
— Sim, tudo bem. Eeh, não tenho planos. Esta noite. — Julia mordeu o
lábio quando foi invadida por uma onda de alívio. Ele não ouvira o CD. Ou
assim parecia.
— Ótimo. Quero ir a uma discoteca.
— Oh, por favor. Sabes que detesto esses sítios. Não sei dançar, e é
sempre demasiado barulho.
Rachel riu-se com vontade.
— Tem graça que digas isso. O Gabriel disse quase exatamente o mesmo.
Menos a parte da dança. Ele acha que sabe dançar… só se recusa a fazê-lo.
Julia sentou-se muito direita na cama.
— O Gabriel também vinha connosco?
— Tenho de voltar para casa daqui a dois dias. Ele vai levar-me a um
sítio bonito qualquer para jantar e depois eu quero ir a uma discoteca. Ele
não está contente com a ideia, mas não disse que não. Pensei que podia ser
divertido se viesses ter connosco depois do jantar. Que te parece?
Julia fechou os olhos.
— Eu adorava, Rachel. Mas não tenho nada para vestir.
Rachel riu-se.
— Veste um vestido preto. Qualquer coisa simples. Tenho a certeza que
tens alguma coisa que sirva.
Nesse instante, a campainha tocou, interrompendo a chamada.
— Espera aí, Rachel, tenho alguém à porta. — Julia dirigiu-se para a
entrada, reparando numa carrinha de entregas parada à frente do edifício.
Abriu a porta.
— Sim?
— Entrega para Julia Mitchell. É a menina?
Ela anuiu e assinou para receber o enorme pacote retangular que lhe
apareceu na frente.
— Obrigada — balbuciou, enfiando o pacote debaixo do braço e levando
o telemóvel ao ouvido. — Rachel, ainda estás aí?
Rachel soava como se estivesse a rir.
— Sim. Quem era?
— Uma entrega qualquer. Para mim.
— Bem, e o que é?
— Não sei. É uma caixa grande.
— Abre.
Julia trancou a porta do apartamento atrás de si e pôs a caixa em cima da
cama. Prendeu o telefone entre a orelha e o ombro para conseguir falar
enquanto abria o embrulho.
— A caixa tem uma etiqueta… Holt Renfrew. Não sei porque é que
alguém me enviaria um presente… Rachel, não foste tu!
Julia ouvia as gargalhadas pelo telefone.
Abriu a caixa e encontrou um lindo vestido de cocktail violeta, de decote
cruzado e uma só alça. Julia não reconheceu o nome na etiqueta, Badgley
Mischka, mas provavelmente era um dos vestidos mais femininos que
alguma vez vira.
Aninhado numa caixa de sapatos ao lado do vestido, descobriu um par de
Christian Louboutins pretos, de pele envernizada. Olhou, incrédula, para as
solas vermelhas e os saltos muito altos. Os sapatos tinham um bonito laço
de veludo em cada ponta, e Julia sabia que custavam provavelmente um
mês de renda, no mínimo. A um canto da caixa, quase como acrescentada
no último minuto, estava uma pequena carteira.
Julia sentiu-se momentaneamente como a Cinderela.
— Gostas de tudo? Foi a empregada que combinou as coisas. Eu só pedi
para ver vestidos cor de púrpura. — Julia ouvia a hesitação de Rachel ao
telefone.
— É lindo, Rachel. Tudo isto. Espera um minuto, como sabias que
tamanho comprar?
— Não sabia. Parecias estar do mesmo tamanho que tinhas na escola,
mas tive de arriscar. Por isso, vais ter de experimentar o vestido e ver se te
serve.
— Mas é demasiado. Só os sapatos… Eu não posso…
— Julia, por favor. Estou tão feliz por sermos outra vez amigas. Tirando
voltar a encontrar-te e ter-me reaproximado do Gabriel, não me aconteceu
nada de bom desde que a minha mãe adoeceu. Por favor, não me tires isto
também.
Rachel sabe mesmo como fazer uma pessoa sentir-se culpada.
Julia inspirou lentamente.
— Não sei…
— Não foi com dinheiro meu. É dinheiro da família. Desde que a mãe
morreu… — Rachel interrompeu-se, na esperança de que a amiga retirasse
a sua própria (errónea) conclusão.
E foi exatamente isso que Julia fez.
— A tua mãe teria querido que gastasses o dinheiro contigo.
— Ela queria que toda a gente que amava fosse feliz, e isso incluía-te a ti.
E ela não teve muito tempo para te mimar depois… depois do que
aconteceu. Tenho a certeza que ela sabe que nos falamos de novo e que está
lá em cima a sorrir para nós. Fá-la feliz por mim, Julia.
Agora ela sentia lágrimas a surgirem ao fundo dos olhos. E Rachel
sentiu-se culpada por ser tão manipuladora. Gabriel não sentiu lágrimas
nem culpa, e só desejava que as duas raparigas se despachassem para ele
poder usar o raio do telefone para fazer uma chamada.
— Posso pagar uma parte disto? Posso pagar os sapatos… aos poucos?
Gabriel devia ter ouvido Julia, pois ela ouviu as suas pragas e protestos
ao fundo. Ele estava a rabujar qualquer coisa sobre um rato e uma igreja. O
que quer que isso quisesse dizer.
— Gabriel! Deixa-me tratar deste assunto — disse Rachel.
Julia conseguiu ouvir breves fragmentos de uma discussão que estava a
fermentar entre os dois irmãos.
— Se é isso que queres, tudo bem. Gabriel, para. Mas é a nossa última
noite juntos e quero que venhas connosco. Por isso, usa-os, e diverte-te, e
vamos falando do dinheiro mais tarde. Muito mais tarde. Quando eu
regressar a Filadélfia. E estiver a viver da segurança social.
Julia suspirou profundamente e ofereceu uma silenciosa oração de
agradecimentos a Grace, que sempre fora boa para ela.
— Obrigada, Rachel. Fico em dívida contigo. Outra vez.
Rachel guinchou.
— Gabriel! A Julia vem connosco!
Julia desviou o telefone do ouvido para não ouvir os gritos da amiga.
— Está pronta por volta das nove… vamos buscar-te a casa. O Gabriel
diz que sabe aí chegar.
— Isso é muito tarde, tens a certeza?
— Por favor! Foi o Gabriel que escolheu a discoteca, e ele diz que nem
sequer abre antes das nove. Ainda vamos chegar lá cedo. Podes gastar mais
tempo a preparar-te e vemo-nos logo à noite. Vais ficar o máximo!
E, depois disto, a chamada terminou e Julia ficou a admirar o seu lindo
vestido novo. Rachel partilhava o espírito generoso e caridoso da mãe. Era
uma pena que nenhum desse espírito se tivesse colado a Gabriel…
Perguntou-se como conseguiria alguma vez dançar em cima daqueles
sapatos sensuais e perigosos. Contemplou a perspetiva excitante e
ligeiramente assustadora de dançar com um certo professor.
Mas Rachel disse que ele não dança. Claro.
Num rasgo de inspiração, Julia dirigiu-se à sua cómoda e abriu a gaveta
da roupa interior. Sem olhar para a fotografia escondida ao fundo, retirou
rapidamente um pequeno e sexy fio de tecido a que caridosamente se
poderia chamar roupa interior se se pudesse considerar que qualquer coisa
usada debaixo das roupas contava como roupa interior.
Julia segurou o fio na palma da mão (pois era assim tão minúsculo como
isso) e meditou sobre ele como se fosse uma imagem de Buda. E, numa
decisão brusca, pensou que o ia usar, com esperança de que, como um
talismã, lhe desse a coragem e a confiança para fazer o que precisava de
fazer. O que queria fazer. E o que queria fazer era recordar Dante do que
tinha perdido quando a abandonara.
Não haveria mais lacrimosa para a Beatriz.
1 Livro infantil, da autoria de Margery Williams, sobre um coelho de peluche que quer tornar-se real
através do amor do seu dono. (N. da T.)
Capítulo Nove
Virou o cartão e leu as palavras que estavam escritas com uma letra
muito confiante:
Julia
Foi uma pena termos começado com o pé esquerdo.
O chocolate lembra-me os seus olhos lindos.
Brad.
Por favor, telefone-me: 416-555-1491
N a manhã seguinte, Julia ainda não tinha decidido o que havia de fazer
a respeito da bolsa. Não tinha pressa de fazer nada que pudesse expor
a generosidade de Gabriel às mentes desconfiadas da administração da
universidade, pois sabia como isso seria perigoso para ele.
E não tinha pressa de fazer nada que a expusesse como outra coisa que
não uma aluna séria, por isso sentia reticências em dirigir-se ao diretor do
departamento e explicar que não estava interessada na bolsa. Pois a bolsa
seria um impressionante contributo no seu currículo, e as alunas sérias,
supostamente, importavam-se mais com coisas como essa do que com
coisinhas parvas como o orgulho pessoal.
Em termos clássicos, a menina Mitchell dava por si presa entre a Cila de
proteger Gabriel e se proteger a si mesma e a Caríbdis de se agarrar ao seu
orgulho. Infelizmente para o seu orgulho, o verdadeiro risco estava alinhado
com a sua rejeição da bolsa; o risco podia ser evitado se se limitasse a
aceitar o dinheiro. Não gostava disso. Nem um pouco. Especialmente tendo
como pano de fundo a generosidade de Rachel, que lhe comprara o vestido
e os sapatos, e a tentativa não muito secreta de Gabriel de lhe substituir o
saco dos livros.
Não mencionara que devolvera a sua mochila à L.L. Bean e que
aguardava ansiosamente a sua substituição. E tencionava inteiramente usá-
la quando chegasse, só para reafirmar a sua independência.
Na sexta-feira à noite, impaciente por respostas, Julia enviou uma curta
mensagem a Rachel, a contar-lhe a história da bolsa e a perguntar-lhe se
sabia quem era M. P. Emerson.
Rachel respondeu-lhe imediatamente:
J: G fez o quê? Nunca ouvi falar da fundação. Nunca ouvi MPE.
MP = mãe bio de G? Avó? Bj, R.
P.S. A. manda bjs e obrigado
Julia encostou a nota ao copo de vinho que usara para o sumo de laranja.
Não querendo ainda acordá-lo, instalou o tabuleiro inteiro, cocktail e tudo,
no grande frigorífico quase vazio. Depois fechou a porta e encostou-se a ela
com satisfação.
Toc. Toc. Toc.
A rotina de deusa doméstica de Julia foi subitamente interrompida por
alguém a bater à porta da entrada.
Merda, pensou. Será…?
Ao princípio, ficou sem saber o que fazer. Deveria esperar para ver se
Paulina entrava com uma chave? Ou era melhor correr para os braços de
Gabriel e esconder-se? Depois de esperar um ou dois minutos, foi vencida
pela curiosidade, e deu por si a dirigir-se em bicos de pés para a porta.
Oh, deuses de todos os estudantes-de-mestrado-acabados-de-reunir-com-
as-suas-almas-gémeas-depois-de-uns-muito-dolorosos-seis-anos, por favor,
não deixem a (futura) ex-amante da minha alma gémea estragar tudo. Por
favor.
Julia respirou fundo e espreitou pelo óculo da porta. O patamar estava
vazio. Pelo canto do olho, viu qualquer coisa no chão. Hesitantemente,
abriu a porta apenas uma nesga e lançou uma mão nervosa na direção da
coisa, expirando profundamente de alívio quando a sua mão se fechou sobre
o Globe and Mail de sábado de manhã.
Novamente a sorrir, e com o alívio de saber que o abençoado reencontro
com Gabriel não fora estragado pela sua antiga amante, Julia pegou no
jornal e trancou a porta à pressa. Ainda a sorrir, serviu-se de um copo de
sumo e enroscou-se na poltrona de veludo vermelho ao lado da lareira, com
os pés nus pousados na otomana a condizer. Suspirou de felicidade.
Se lhe tivessem perguntado, duas semanas antes, quando estava a visitar
o apartamento de Gabriel com Rachel, se alguma vez pensara que estaria
sentada na sua preciosa poltrona num domingo de manhã, teria respondido
que não. Nunca o julgara possível, nem mesmo com a santa intercessão de
Grace. Mas, agora que ali estava, sentia-se muito, muito feliz.
Preparou-se para uma ociosa manhã de sumo de laranja e o jornal de
sábado, e decidiu que a sua felicidade merecia música cubana, mais
especificamente um pouco de Buena Vista Social Club. Enquanto ouvia
Pueblo Nuevo no seu iPod, foi lendo a secção de arte do jornal de Gabriel.
Uma exposição de arte florentina estaria patente no Museu Real de Ontário
sob empréstimo à Galeria Uffizi. Talvez Gabriel não se importasse de a
levar. Num encontro.
Sim, tinham perdido o baile de finalistas e todas as festas da universidade
Saint Joseph. Mas Julia tinha a certeza que todo o tempo desperdiçado e as
oportunidades perdidas seriam agora compensados dez vezes mais. Feliz,
levantou-se de um pulo quando o trompetista nos seus ouvidos começou a
tocar uns compassos de Stormy Weather como contraponto para a melodia
cubana. Julia cantou alto, demasiado alto, enquanto dançava com o seu
sumo de laranja, vestida com a pretensiosa roupa interior de Gabriel,
ditosamente alheia ao homem seminu que aparecia atrás dela.
— Mas que raio pensa que está a fazer?
— Aaaagggghhhhhh!
Julia gritou e saltou no ar em reação à voz áspera e zangada. Retirou
rapidamente os auriculares dos ouvidos e virou-se. O que viu despedaçou-a.
— Fiz-lhe uma pergunta! — bradou Gabriel, os seus olhos transformados
em charcos azuis-negros. — Que raio está a fazer com a minha roupa
interior, aos saltos na minha sala?
Crack.
Seria o som do coração de Julia a partir-se em dois? Ou apenas o último
prego no caixão em que o seu amor morto jazia, mas não em paz?
Talvez fosse o tom de voz dele, zangado e autoritário. Talvez o facto de,
naquela pergunta, ela ter percebido que Gabriel já não a via como Beatriz, e
que todas as suas esperanças e sonhos realizados tinham acabado de morrer
na sua infância. Mas fosse qual fosse a verdadeira explicação, o iPod e o
sumo de laranja de Julia escaparam-se-lhe por entre dedos. O corpo
estilhaçou-se prontamente, fazendo com que o velho iPod patinasse por
uma crescente piscina de sol líquido aos seus pés.
Julia ficou a olhar para o desastre no chão por uns segundos, a tentar pôr
em ordem a sua mente. Era como se não compreendesse como podia o
vidro estilhaçar-se e causar uma tal confusão, qualquer coisa com a forma
de uma cintilante estrela a explodir. Finalmente, ajoelhou-se para apanhar
os vidros e começou a repetir duas perguntas vez após vez na sua cabeça.
Porque é que ele está tão zangado comigo? Porque é que não se lembra?
Um Gabriel alto e sem camisa olhava-a de cima. Estava vestido apenas
com a roupa interior, o que o tornava ligeiramente sensual e ligeiramente
ridículo. Tinha os punhos cerrados, e Julia viu os tendões salientes nos seus
magníficos braços.
— Não te lembras do que aconteceu ontem à noite, Gabriel?
— Não, felizmente não me lembro. E levante-se! Passa mais tempo de
joelhos do que a maioria das putas! — Ele falava por entre os dentes
cerrados, a olhar para a sua forma servil.
A cabeça de Julia ergueu-se. Procurou-lhe os olhos, notou a sua completa
e pura falta de memória e a sua irritação. Foi como se a tivesse trespassado
com uma espada. Sentiu a lâmina perfurar e penetrar-lhe o coração, e sentiu
a lenta hemorragia que ali se iniciava.
Tal como a tatuagem, pensou. Ele é o dragão; eu sou o coração a
sangrar.
Naquele instante de silenciosa compreensão, aconteceu a coisa mais
notável. Alguma coisa dentro de si, seis anos em evolução, finalmente,
finalmente, estalou.
— Vou ter de acreditar na tua palavra no que diz respeito ao
comportamento das putas. Deves saber melhor do que eu — grunhiu.
Depois, quando aquela observação trocista não sarou a dor da fissura em
expansão no seu coração, esqueceu ousadamente a limpeza do lixo que
fizera e levantou-se de um pulo. E perdeu prontamente a cabeça.
— E não te atrevas a falar comigo dessa maneira, bêbado de um raio! —
rosnou. — Quem julgas tu que és, merda! Depois de tudo o que fiz por ti
ontem à noite. Devia ter deixado a Gollum apanhar-te! Devia ter-te deixado
comê-la na frente de toda a gente em cima do bar do Lobby!
— De que é que está a falar?
Ela aproximou-se dele, de olhos a chamejar, as faces afogueadas e os
lábios a tremer. Tremia de fúria, enquanto a adrenalina lhe corria pelas
veias. Queria bater-lhe. Queria arrancar-lhe aquela expressão da cara com
os punhos. Queria arrancar-lhe os cabelos às mãos-cheias e deixá-lo careca.
Para sempre.
Gabriel inalou o odor dela, erótico e convidativo, e lambeu
involuntariamente os lábios. Mas essa era a coisa errada para fazer na frente
de uma mulher tão zangada como Julia.
Ela endireitou a cabeça de fúria e atravessou o corredor, a bater com os
pés e a resmonear vários e exóticos expletivos tanto em inglês como em
italiano. E quando os esgotou, passou para o alemão, um seguro sinal de
que a sua raiva era crescente.
— Hau ab! Verpiss dich! — bradou da entrada da lavandaria.
Gabriel começou a esfregar lentamente os olhos, pois, para além de
sofrer uma das piores ressacas da sua vida, estava a gostar ligeiramente da
visão da menina Mitchell com a sua t-shirt e boxers, apaixonadamente
zangada e a gritar-lhe numa multiplicidade de línguas da Europa ocidental.
Era a segunda coisa mais erótica que alguma vez testemunhara. E era
inteiramente irrelevante.
— Como aprendeu a dizer palavrões em alemão? — Seguiu o som das
suas pragas auf Deutsch até à lavandaria, onde ela estava agora a remover
as roupas meio secas da máquina de secar.
— Vai-te lixar, Gabriel.
Ele foi distraído naquele momento por um sutiã de renda preta que estava
provocadora mas algo casualmente reclinado em cima da máquina. Olhou
para ele e percebeu que o número e tamanho de copa que lhe passara pela
cabeça na noite em que a levara a jantar ao Harbour Sixty eram
absolutamente corretos. Gabriel congratulou-se mudamente.
Arrancou dali os olhos para encarar os dela. Viu-os faiscar, o caramelo
luminescente sobre o chocolate negro, como um cintilante sundae.
— O que está a fazer?
— O que é que lhe parece que estou a fazer? Vou sair daqui antes que
pegue num dos seus estúpidos lacinhos e o estrangule com ele!
Gabriel franziu o sobrolho, pois sempre achara que aqueles laços eram
fixes.
— Quem é a Gollum?
— A Christa-Puta-son.
As sobrancelhas de Gabriel ergueram-se. Christa? Sim, é mesmo tipo
Gollum.
— Esqueça a Christa. Não me interessa nada. Foi para a cama comigo?
— Cruzou os braços e a sua voz ficou séria.
— En sonhos, Gabriel!
— Isso não é uma negativa, menina Mitchell. — Ele segurou-lhe no
braço e obrigou-a a parar o que estava a fazer. — E não me diga que isso
não tem feito parte dos seus sonhos também.
— Tire a mãos de cima de mim, seu sacana arrogante! — Julia desviou-
se com tanta força que quase caiu de costas. — Claro, já você teria de estar
bêbado para me querer foder a mim.
Gabriel ficou vermelho.
— Pare com isso. Quem falou em foder?
— Que mais haveria de fazer? Eu sou a puta maluca que se põe de
joelhos a cada cinco segundos. Seja o que for que tenha acontecido,
considere-se um homem de sorte por não se lembrar! Tenho a certeza que
foi mais do que desinteressante.
A mão de Gabriel segurou-lhe o queixo e prendeu-o firmemente,
erguendo-o de forma a fazer o rosto dela ficar a centímetros do seu.
— Eu disse para parar. — Os olhos dele agora também faiscavam, e
neles Julia leu um sério aviso. — Não é uma puta. E nunca mais fale de si
dessa maneira. — O tom de voz de Gabriel deslizou pela pele dela como
um cubo de gelo.
Ele soltou-a e deu um grande passo atrás, o peito a subir e a descer
rapidamente e os olhos a arder. Fechou os olhos com força e começou a
respirar profundamente, muito profundamente. Mesmo na sua mente turva e
embriagada, sabia que as coisas tinham escalado bem mais do que era
necessário. Precisava de se acalmar antes que Julia fizesse alguma coisa
precipitada.
O ar nos olhos dela dizia tudo; ele encurralara-a como um animal. Ela
estava zangada, magoada, assustada, e triste — um gatinho ferido e furioso
com as garras de fora e as lágrimas a brilhar ao canto dos olhos. Fora ele
que o provocara. Fora ele que lho fizera, a um anjo de olhos castanhos,
quando a comparara a uma puta e não se conseguia recordar do que tinha
acontecido na noite anterior.
Deves tê-la seduzido, se se está a comportar desta maneira…. Emerson,
és um idiota de primeira classe. Acabaste de dizer adeus à tua carreira.
Enquanto Gabriel pensava, e pensava devagar, Julia viu uma
oportunidade e aproveitou-a. Com uma audível praga, agarrou nas roupas,
correu para o quarto de hóspedes, fechou a porta com força e trancou-a
atrás de si.
Despiu os boxers dele, deixando-os desdenhosamente no chão, e
apressou-se a enfiar as meias e as calças de ganga húmidas. Quando
percebeu que deixara o sutiã em cima da máquina de secar decidiu que se
iria embora sem ele. Ele que o junte à sua coleção. Filho da mãe. Decidiu
não despir a t-shirt, uma vez que era menos reveladora do que a sua. E, se
ele a exigisse de volta, ela arrancava-lhe os olhos.
Julia parou para encostar o ouvido à porta, a tentar ouvir algum som de
movimento no corredor. A sua falta lucidez naquele ponto deu-lhe uns
momentos preciosos para pensar.
Perdera a cabeça e fora estúpida. Sabia como Gabriel era; vira a mesa de
centro despedaçada e o sangue salpicado na carpete de Grace. Embora
tivesse a certeza que Gabriel nunca lhe bateria, não fazia ideia do que o
professor Emerson lhe faria quando provocado.
Mas ele deixara-a tão furiosa. E nunca tivera oportunidade de deitar para
fora a sua fúria. Era como se toda a raiva acumulada gritasse por liberdade.
Tinha de contra-atacar; tinha de o tirar do seu organismo, de uma vez por
todas. Desperdiçara a sua vida a definhar por causa de alguém que não era
real, uma temporária aparição alcoólica, e isso ia acabar finalmente, nesse
mesmo dia.
Gritaste-lhe e chamaste-lhe nomes. Sai já daqui antes que ele parta para
a violência.
Enquanto Julia se vestia, Gabriel cambaleou até à cozinha para arranjar
qualquer coisa que removesse da sua cabeça as teias de aranha tecidas de
uísque. Abriu a porta do frigorífico e encostou-se a ela, banhado pela sua
brilhante fluorescência.
Os seus olhos azuis investigaram o conteúdo do frigorífico até
encontrarem um grande tabuleiro branco. Um muito bonito e grande
tabuleiro branco. Um muito bonito, muito feminino e grande tabuleiro
branco, com comida, sumo de laranja, e o que parecia ser um cocktail.
E aquilo seria…? Ela até guarnecera o prato, pelo amor de Deus.
Gabriel ficou a olhar. A menina Mitchell parecia ser uma pessoa querida,
mas quais seriam as hipóteses de ela lhe ter preparado um pequeno-almoço
por outra razão que não fosse o facto de ele a ter levado para a cama? O
tabuleiro, em toda a sua glória guarnecida, parecia-lhe uma prova da sua
sedução e, por essa razão, deixou-o maldisposto.
De qualquer maneira, sentiu-se grato por ela lhe ter preparado um
cocktail, enquanto o bebeu avidamente. Era precisamente o antídoto que a
sua cabeça a martelar necessitava e, em poucos momentos, sentiu alguma
medida de alívio.
Ociosamente, os seus olhos viraram-se para o bilhete que estava
encostado ao sumo de laranja. Examinou o texto muito devagar, sem
compreender porque a menina Mitchell teria optado por se lhe dirigir
daquela maneira. Leu o papel outra vez, e outra, e a sua concentração veio
finalmente a deter-se naquelas palavras:
Apparuit iam beatitudo vestra.
Agora aparece a tua bem-aventurança.
A tua Beatriz
O velho Sr. Krangel espreitou pelo óculo da porta para o patamar e não
viu nada fora do normal. Ouvira vozes, um homem e uma mulher a
discutir, mas não conseguia ver ninguém. Até ouvira um nome — Beatriz.
Mas não conhecia nenhuma moradora com esse nome no andar. E agora o
patamar parecia estar vazio.
Já se aventurara a sair naquela manhã, tivera de devolver o jornal de
sábado ao seu vizinho anónimo, que fora deixado à sua porta por engano.
Os Krangels não recebiam o jornal de sábado, mas a Sr.ª Krangel sofria de
demência e apanhara-o e escondera-o no apartamento no dia anterior.
Um pouco aborrecido por ter a sua manhã de domingo assim
interrompida por um kemfn no patamar, o Sr. Krangel abriu a porta e meteu
a cabeça envelhecida de fora. A alguma distância, viu um homem encostado
à porta fechada do elevador. Tinha os ombros a tremer.
O Sr. Krangel ficou de imediato embaraçado pela visão patética na sua
frente, mas estava, ao mesmo tempo, fascinado.
Não reconheceu o homem, e também não ia apresentar-se. Decerto que
um homem adulto que era capaz de andar pelo décimo terceiro andar de um
prédio descalço e vestido daquela maneira e… e fazer o que quer que
estivesse a fazer não era o tipo de pessoa que desejava conhecer. Os homens
da sua geração nunca choravam. Claro, também nunca tiravam as meias em
patamares de escadas. A não ser que fossem — esquisitos. Ou vivessem na
Califórnia.
O Sr. Krangel recuou rapidamente, fechou e trancou a porta e ligou ao
porteiro em baixo para dar conta de um descalço a chorar no meio do
patamar que tivera uma gritante kemfn com uma mulher chamada Beatriz.
Levou cinco esgotantes minutos a explicar ao porteiro o que era uma
kemfn. O Sr. Krangel lamentou vocalmente este facto, optando por atribuir
as culpas ao Conselho Escolar do Distrito de Toronto e ao seu currículo
estreito e superficial.
ra o final de outubro, e o tempo em Toronto já estava frio. Julia não tinha
nada quente debaixo do casaco enquanto, lenta e miseravelmente,
P.S. Vou devolver a bolsa M. P. Emerson na próxima semana. Parabéns, professor Abelardo.
Nunca ninguém me fez sentir tão reles como o senhor no domingo de manhã.
P.S. Perdoa a minha ousadia, mas tu a dormires nos meus braços esta manhã foi, de longe,
a coisa mais bonita que alguma vez vi.
Uau. Como é que ele faz isto?, pensou ela, a ficar escarlate. O Professor
tinha jeito para as palavras… e flores, e música, e bolo de chocolate.
Colocou uma mão na testa enquanto tentava recompor-se. Bolo de
chocolate era agora a sua sobremesa preferida. E a memória das suas pontas
dos dedos na boca quente dele, e a maneira como a língua hábil…
Concentra-te, Julia. Precisas de tomar um duche. De preferência, frio.
Bebeu rapidamente a água que ele lhe deixara e prendeu o bilhete entre
os dentes. Na última vez que dormira na cama dele tivera um rude despertar
na sua sala. Embora ele tivesse sido terno na noite anterior, tinha medo do
que podia acontecer de manhã.
Abriu a porta do quarto de hóspedes e espreitou para fora, ansiosa por
discernir quaisquer sinais de vida. Quando confirmou que estava sozinha,
dirigiu-se depressa para o quarto principal e fechou a porta atrás de si.
Pegou nas suas roupas e entrou na grande casa de banho, tendo o cuidado
de trancar a porta.
Gabriel deixara outro bilhete com uma taça cheia de sumo de laranja.
Estava guarnecida com uma rodela de laranja. Claramente, Gabriel tem
queda para as guarnições, pensou.
No papel, leu:
Julianne,
Espero que encontres aqui tudo o que necessitas.
Caso contrário, a Rachel encheu o armário da casa de banho de hóspedes com uma série
de artigos diferentes. Serve-te, por favor.
As minhas roupas estão à tua disposição.
Por favor, escolhe uma camisola, porque hoje ficou frio.
O teu,
Gabriel
Julia ouviu a música mais duas vezes, aturdida tanto com a letra como
com a música. Sabia há muito que Gabriel era intenso; Grace dizia-o. E
Julia experimentara essa intensidade durante o seu primeiro encontro,
quando ele a olhara nos olhos como se ela fosse a primeira mulher que
alguma vez vira.
— Julianne?
Soltou um pequeno grito e levou uma mão à boca. Gabriel estava à sua
frente com três pequenos sacos numa mão e um ramo de íris cor de púrpura
na outra. De olhos muito abertos, removeu os auriculares das orelhas. Ele
olhou para o iPod com curiosidade e sorriu.
Julia devolveu o sorriso. Em resposta, ele inclinou-se para ela, de olhos
nos seus, e pressionou-lhe ligeiramente os lábios na face esquerda e depois
na direita. Ela julgou que ele a ia beijar na boca, por isso quando o beijo lhe
tocou o rosto sentiu-se desapontada. No entanto, uma faísca soltou-se dos
lábios dele, fazendo o seu coração acelerar. Ela corou e baixou o olhar para
as mãos.
— Bom-dia, Julianne. Ainda bem que ficaste. Dormiste bem? — A voz
de Gabriel era suave.
— Dormi bem… depois.
Ele passou a mão por trás dela para pousar os sacos e as flores em cima
do balcão de pequeno-almoço.
— Como eu. — Não fez nenhum movimento para lhe tocar, mas seguiu o
olhar dela para os seus dedos.
Julia estremeceu ligeiramente quando pensou no que ele lhe fizera aos
dedos na noite anterior.
— Tens frio?
— Não.
— Estás a tremer. — As sobrancelhas de Gabriel juntaram-se, criando
uma ruga no meio. — Estou a deixar-te nervosa?
— Um pouco.
Ele recuou para a cozinha e começou a arrumar as compras.
— O que compraste? — perguntou ela, com um gesto para os sacos.
— Bolos e uma baguete. Há uma padaria francesa à esquina que faz o
melhor pain au chocolat da cidade. E também um queijo da queijaria em
baixo, fruta e uma surpresa.
— Uma surpresa?
— Sim. — Ele sorriu e aguardou.
Ela franziu o nariz.
— Vais dizer-me o que é a surpresa?
— Se te disser, vai deixar de ser surpresa.
Ela revirou os olhos e ele riu-se.
— Baci — disse ele.
Julia fez uma pausa. Beijos?
Gabriel viu a reação dela e percebeu que o double entendre não fora
compreendido. Retirou uma coisa dos sacos e colocou-a no centro da sua
palma direita, erguendo-a como se estivesse a estender uma maçã para
tentar um cavalo.
A similaridade não foi despercebida por Julia, que olhou com o nariz
torcido para o pequeno chocolate embrulhado em papel de prata.
— Pensei que gostavas — disse ele, com uma cambiante de mágoa a
colorir-lhe a voz. — Quando o Antonio te deu um, disseste que eram os teus
preferidos.
— E são. Mas, supostamente, não devo aceitar chocolates de homens,
lembras-te? Acho que me deste uma ordem nesse sentido quando estávamos
no Lobby com a Rachel. — Julia pegou no chocolate oferecido e
desembrulhou-o avidamente, enfiando-o depois na boca.
— Eu não te dou ordens.
Ela ficou a olhar para ele enquanto mastigava e engolia o chocolate.
— Estás a brincar?
— Não.
— De que planeta saíste? Olá, o meu nome é Gabriel e venho do planeta
da não-consciência-de-ser-mandão.
Ele franziu o sobrolho.
— Muito divertido, Julianne. — Ele pigarreou e procurou-lhe os olhos.
— Fala a sério por um momento. Achas que te dou muitas ordens?
— Gabriel, é a única coisa que sabes fazer. Só tens uma forma de
discurso, que é o imperativo: faz isto, faz aquilo, anda cá. Ainda por cima,
tal como o Paul, pareces pensar que eu pertenço a um jardim zoológico. Ou
a um livro infantil.
À mera menção do nome de Paul, Gabriel ficou carrancudo.
— Alguém tinha de tratar da nossa situação de ontem. Estava a tentar
proteger-nos a ambos. E pedi-te que falasses comigo, Julianne. Tentei falar
contigo vários dias, mas tu deste-me com os pés.
— Que querias que fizesse? És uma montanha-russa emocional, e eu
queria sair dela. Nunca sei se vais ser querido e sussurrar-me qualquer coisa
que me tirará o fôlego ou dizer qualquer coisa tão maldosa que me parte…
— Ela interrompeu-se.
Gabriel pigarreou.
— Perdoa-me por ter sido mau. Não há desculpa para isso.
Ela balbuciou qualquer coisa entre dentes enquanto ele a fitava.
— Eu acho que é… difícil falar contigo, algumas vezes. Nunca sei o que
estás a pensar, e só és direta quando estás furiosa. Como agora.
Ela soltou um som de desdém.
— Não estou furiosa.
— Então preciso que fales comigo um bocadinho. — A voz dele era
novamente suave.
Gabriel arriscou e começou a passar os dedos pelos seus longos caracóis
húmidos.
— Cheiras a baunilha — sussurrou.
— É o teu champô.
— Então, achas que sou mandão?
— Sim.
Gabriel suspirou.
— É o hábito, suponho eu. Anos passados a viver sozinho tornaram-me
desajeitado, e perdi a prática de ser delicado. Mas vou tentar ter cuidado
com a maneira como falo contigo, no futuro. Quanto ao Paul e aos seus
nomezinhos, acho insultuoso que te chame coelha. Os coelhos acabam
como refeições, por isso tens de pôr um ponto final nessa história. Mas que
me dizes de gatinha? Achei que era… querido.
— Não para uma mulher de vinte e três anos, que é baixinha e quer ser
levada a sério no mundo académico.
— E se fores uma mulher de vinte e três anos, e linda, e um homem de
trinta e três anos que é profissional académico to quiser chamar porque, na
verdade, te acha verdadeiramente sexy?
Julia desviou-se.
— Não gozes comigo, Gabriel. Isso é maldoso.
— Eu nunca gozaria contigo. — Ele fez-lhe um olhar sério. — Julianne,
olha para mim.
Julia manteve os olhos no chão.
Ele esperou com alguma impaciência até ela voltar a erguer o olhar.
— Eu nunca gozaria contigo. E muito menos com uma coisa dessas.
Ela fez uma careta e desviou o olhar.
— Mas talvez gatinha seja uma alcunha de amante.
Julia corou enquanto ele continuava a arrumar as compras. Pouco depois,
Gabriel virou-se para ela.
— Foi muito importante para mim adormecer contigo nos meus braços,
ontem à noite. Obrigado.
Ela evitou-lhe os olhos.
— Olha para mim, por favor — murmurou ele.
Os olhos de ambos encontraram-se e Julia ficou surpreendida com a
expressão de Gabriel. Ele parecia preocupado.
— Tens vergonha de ir para a minha cama?
Ela abanou a cabeça.
— Lembrou-me a nossa primeira noite juntos.
— A mim também — sussurrou ela.
— Desculpa não estar cá quando acordaste esta manhã. Acordei de
madrugada. Ver-te dormir tão profundamente lembrou-me a La Scapigliata
de Da Vinci. Parecias tão serena, com a cabeça pousada no meu ombro. E
muito, muito bonita. — Debruçou-se sobre o balcão e deu-lhe um beijo
terno na testa. — Então, dormiste bem?
— Demasiado. Porque é que acendeste velas no teu quarto?
Ele passou-lhe o polegar por uma pálpebra.
— Já me tinhas dito o que pensavas da escuridão. Queria que visses o
quadro de Holiday e que me visses a mim. Não sabia o que sentirias de
passar a noite aqui. Tive medo que fugisses.
— Foi… hmm… atencioso da tua parte. Obrigada.
A mão dele deteve-se contra a sua face, enquanto os olhos penetravam os
dela, como um ferro em brasa.
— Eu sou um bom amante, Julianne, em todos os sentidos da palavra.
Quando a sua mão recuou, Julia tentou, quase em vão, recuperar fôlego.
— Diz-me porque me detestavas tanto.
— Eu não te detestava. Estava distraído e irritado durante aquele
primeiro seminário. Tu parecias-me familiar. Fiz-te uma pergunta para que
me mostrasses a cara. Quando me ignoraste, perdi a cabeça. Não estou
acostumado a ser ignorado.
Ela mordeu ligeiramente o lábio.
— Percebo que isso não seja desculpa… estou só a dar-te uma
explicação. Olhar para ti suscitou sentimentos muito fortes. Não sabia de
onde vinham, mas ressenti-me deles. Este ressentimento cresceu
rapidamente noutra coisa mais perversa. Mas a minha grosseria contigo foi
absolutamente indesculpável. — Gabriel estendeu a mão para lhe libertar o
lábio de entre os dentes. — Fui castigado por isso mais tarde. O Scott
telefonou-me para dizer que a Grace tinha morrido, e que morreu a
murmurar o meu nome, porque eu não estava presente. Disse-me que a sua
perturbação no leito da morte foi por minha culpa…
Julia tomou-lhe a mão entre as suas e, sem pensar, beijou-a.
— Tenho muita pena.
Ele levou os lábios aos dela e pressionou-os fortemente. Ficaram quietos
por uns momentos até ele começar a passar o seu peso de um pé para o
outro.
— Tenho fome — murmurou ela, interpretando o seu sinal.
— Posso dar-te de comer?
Julia anuiu, e começou a aquecer demasiado quando se lembrou de como
ele lhe dera de comer na noite anterior.
— Café com leite ou expresso? — Virou-se para a máquina de café.
— Café com leite, por favor.
Ficou parada por um momento, a olhá-lo, antes de ir observar mais de
perto as íris que ele comprara.
— Podias pô-las em água, por favor? Há uma jarra de cristal em cima do
aparador na sala de jantar. Podes retirar os jacintos de ontem à noite ou
deixá-los onde estão.
Ela dirigiu-se para o buffet, admirando novamente a sua beleza de ébano,
e pegou na jarra vazia.
— Ouvi a tua música ontem à noite. Era linda.
— Acho a música clássica tranquilizadora. Espero que não te tenha
incomodado.
— Não. Porque escolheste íris?
— Fleur-de-lis — disse ele simplesmente, apresentando-lhe o seu café
com leite, que servira numa tigela ao estilo parisiense. — E sei que a tua cor
preferida é a púrpura.
— São as minhas flores preferidas — observou ela timidamente, mais
para si mesma do que para ele.
— As minhas também, provavelmente porque simbolizam Florença.
Mas, para ti, penso que a associação tem um significado mais profundo. —
Piscou-lhe o olho impertinentemente e começou a preparar o pequeno-
almoço.
Julia bufou ligeiramente. Sabia a que ele se referia: a íris era um símbolo
de Maria na Idade Média, por isso ficara associada à virgindade. Ao
oferecer-lhe íris, Gabriel estava a saudar a sua pureza. O que era uma coisa
estranha para um aspirante a amante fazer, ela tinha de o admitir.
Talvez ele esteja a falar a sério sobre sermos amigos, afinal de contas.
Levando as flores e o café consigo, ela foi para a sala de jantar. Sentou-se
a bebericar da sua tigela enquanto tentava planear o que lhe diria.
Ele juntou-se a ela brevemente, trazendo o pequeno-almoço e sentando-
se na cadeira ao seu lado à cabeceira da mesa.
— Buon appetito.
Julia concluiu brevemente que estava a comer melhor na casa de Gabriel
do que alguma vez comera fora de Itália. À sua frente estava um prato de
fruta fresca, pain au chocolat e fatias de baguete, queijo, nomeadamente
Brie, Mimolette e Gorgonzola. Ele até decorara os pratos com salsa e gomos
de laranja.
Gabriel ergueu a sua flûte de champanhe e esperou que ela fizesse o
mesmo.
— Estes são Bellinis, não Mimosas. Espero que gostes.
Tocaram os copos e Julia provou. Sabe a pêssego efervescente, pensou
ela. Era tão melhor do que sumo de laranja. Mas depois perguntou-se
porque decidira ele beber outra vez.
— És muito bom nisto — comentou.
— Bom em quê?
— Jogos sedutores com a comida. De certeza que as tuas convidadas
noturnas não se querem ir embora.
Gabriel pousou o garfo com alguma rudeza no prato e limpou os lábios
com o seu guardanapo de linho.
— Não tenho o hábito de oferecer refeições a convidadas noturnas. E
muito menos desta maneira. — Olhou-a carrancudo. — Pensei que era
óbvio que tu és diferente… que te estou a tratar de maneira diferente. —
Abanou a cabeça. — Talvez não.
— Disseste que tínhamos de conversar — injetou ela, para mudar de
assunto.
— Sim. — Ele olhou-a por um momento. — Tenho algumas coisas para
te perguntar e tenho algumas coisas para te dizer.
— Não concordei com uma inquisição.
— Não é propriamente uma inquisição. Algumas perguntas,
primariamente porque quando te conheci, não estava inteiramente lúcido.
Por isso perdoa-me se desejo ter uma ideia mais clara do que realmente
aconteceu. — O tom de Gabriel era um pouco sarcástico.
Ela espetou um morango com o garfo e levou-o à boca. Muito bem. Ele
que faça as perguntas. Também tenho algumas para lhe fazer, e não vão ser
bonitas.
— Antes de começarmos, penso que devias concordar com algumas
regras básicas. Eu queria falar contigo sobre o passado antes de discutirmos
o presente ou o futuro. Pode ser?
— Concordo.
— E prometo que o que me disseres será considerado estritamente
confidencial. Espero que tenhas essa mesma cortesia comigo.
— Claro.
— Há alguma regra que queiras estabelecer?
— Hmm, só que digamos a verdade um ao outro.
— Absolutamente. Agora, que idade tinhas quando nos conhecemos?
— Sou da mesma idade que a Rachel — começou ela, evasivamente, e
quando ele a olhou com severidade, acrescentou: — Dezassete.
— Dezassete?
Gabriel praguejou várias vezes e bebeu um longo gole do seu Bellini.
Estava claramente abalado com aquela revelação, o que a surpreendeu
bastante.
— Porque me foste visitar naquela noite?
— Não fui. Tinha sido convidada para jantar, mas, quando cheguei, a
Rachel e o Aaron estavam a fugir pela porta. Ouvi um barulho e encontrei-
te no alpendre.
Gabriel pareceu pensar nisto por um momento.
— Sabias quem eu era?
— Eles falavam de ti a toda a hora.
— Sabias como eu era fodido?
— Não. Nunca ninguém disse nada mau a teu respeito, pelo menos na
minha frente. Mesmo depois. Só diziam coisas boas.
— O que aconteceu na manhã a seguir?
Aquela era a parte de que Julia não queria falar. Ignorou a pergunta dele e
começou a comer o seu bolo, sabendo que ele não esperaria que
respondesse enquanto tivesse a boca cheia.
— Isto é importante, Julianne. Quero saber o que aconteceu. A minha
memória da manhã seguinte é um pouco confusa.
Os olhos dela dardejaram, e ela engoliu em seco.
— A sério? Bem, deixa-me esclarecer-te. Acordei antes do nascer do Sol,
sozinha, no meio do bosque. Abandonaste-me ali. Fiquei aterrada, por isso
peguei no cobertor e fugi. Mas não me lembrava do caminho por onde
tínhamos vindo, e ainda estava escuro. Andei perdida histericamente
durante duas horas até encontrar finalmente o caminho de volta para a casa
dos teus pais. — Julia começou a tremer. — Pensei que nunca encontraria o
caminho de volta.
— Então foi aí que tu foste — sussurrou ele.
— De que é que estás a falar?
— Eu não te abandonei.
— Então chamas-lhe o quê?
— Devo ter acordado um pouco antes de ti. Estavas a dormir nos meus
braços, e eu não quis acordar-te, mas tinha de… aliviar-me. Por isso afastei-
me. Depois parei para fumar um cigarro e apanhar umas maçãs para o nosso
pequeno-almoço. Quando voltei, tinhas desaparecido. Voltei para casa, mas
não estavas lá. Assumi que tinhas ido embora e subi as escadas e adormeci
no meu antigo quarto.
— Assumiste que me tinha ido embora?
— Sim. — Ele olhou-a firmemente.
— Chamei o teu nome, Gabriel! Gritei por ti.
— Não te ouvi. Estava de ressaca, e talvez me tenha afastado um pouco
de mais.
— Não fumaste quando estavas comigo. — Ela parecia cética.
— Pois não. E parei de fumar pouco depois.
— Porque é que não tentaste encontrar-me?
A culpa enevoou-lhe os olhos, e ele virou a cara.
— A minha família acordou-me e exigiu que eu lidasse com as
consequências da noite anterior. Quando perguntei quem era a Beatriz, o
Richard disse-me que estava a imaginar coisas.
— E a Rachel?
— Fui-me embora antes de ela regressar. E recusou-se a falar comigo
durante meses.
— Não me mintas, Gabriel. Eu trouxe o teu casaco de volta. Dobrei-o e
deixei-to em cima do cobertor no alpendre. Era uma pista. E ninguém viu a
minha bicicleta?
— Eu não sei o que viram. A Grace deu-me o meu casaco e ninguém te
mencionou a ti nem ao teu nome, não que eu o tivesse reconhecido. Era
como se fosses um fantasma.
— Como podias ter julgado que se tratara de um sonho? Não estavas
assim tão bêbado.
Ele fechou os olhos e cerrou os punhos. Julia viu os tendões do braço
dele tornarem-se salientes.
Gabriel abriu os olhos mas manteve-os fixos na mesa.
— Porque estava de ressaca e confuso, e era viciado em cocaína.
Bonc.
Foi o som do conto de fadas de Julia a bater contra a impiedosa parede da
realidade. Os seus olhos cresceram, e ela inalou bruscamente.
— A Rachel nunca te contou o que precipitou aquela discussão? Quando
o Richard me foi buscar ao aeroporto em Harrisburg, percebeu que eu
estava metido nalguma coisa. Revistou-me o quarto antes do jantar e
descobriu o meu material. Quando me confrontou, eu explodi.
Julia fechou os olhos e pôs a cabeça entre as mãos.
Ele ficou sentado muito quieto, à espera de a ouvir.
— Cocaína — murmurou ela.
Gabriel estremeceu na sua cadeira.
— Sim.
— Passei a noite no bosque, sozinha, com um viciado em cocaína de
vinte e sete anos que estava pedrado e bêbado. Que rapariga estúpida,
estúpida que eu sou.
Ele cerrou os dentes.
— Julianne, tu não és estúpida. Eu é que lixei tudo. Nunca te devia ter
levado para ali na minha condição.
Ela expirou lentamente e os seus ombros começaram a tremer.
— Olha para mim, Julianne.
Ela abanou a cabeça.
— Vi o teu pai naquela manhã.
Julia olhou para ele.
— Viste?
— Sabes como é a vida numa terra pequena. Os mexericos começaram
quando o Richard levou o Scott ao hospital e nenhum deles quis dizer como
foi que ele se feriu. O teu pai ouviu falar do assunto e apareceu para saber
se podia ajudar nalguma coisa.
— Ele nunca mencionou o assunto.
— O Richard e a Grace estavam embaraçados. De certeza que o teu pai
queria protegê-los do falatório da terra. Uma vez que ninguém senão eu e tu
sabíamos o que tinha acontecido entre nós… — Interrompeu-se, depois
abanou a cabeça. — Porque é que não contaste à Rachel?
— Estava traumatizada. E humilhada.
Gabriel estremeceu. Estendeu-lhe a mão, os seus olhos a queimar os dela.
— Não te lembras do que aconteceu entre nós?
Julia retirou a mão.
— Claro que me lembro! É por essa razão que tenho estado tão lixada.
Às vezes recordava essa noite e acreditava no que disseste. Tentava
convencer-me que devias ter tido uma razão para te ires embora.
»Outras vezes, só conseguia pensar na maneira como me abandonaste, e
tenho pesadelos em que ando perdida no bosque. Mas sabes o que é mais
doentio nisto tudo? É que eu tinha esperança que regressasses. Durante
anos, esperei que aparecesses à minha porta e me dissesses que querias ficar
comigo. Que falavas a sério quando me disseste que estavas feliz por me ter
encontrado. Não é patético?
— Isso não é patético. Concordo que possa parecer que te abandonei,
mas juro que não foi o que aconteceu. E, acredita em mim, se tivesse
pensado por um momento que eras real e vivias em Selinsgrove, eu teria
aparecido à tua porta. — Ele pigarreou e Julia sentiu a reverberação do
joelho dele a subir e a descer debaixo da mesa. — Sou um viciado. É isto
que eu sou. Tenho uma necessidade de controlar as coisas e as pessoas, e
essa necessidade nunca vai desaparecer.
— Estás metido nalguma coisa agora?
— Claro que não! Achas que te faria isso?
— Se és viciado, és viciado. Se eu estou aqui ou não, não faz qualquer
diferença.
— Faz-me diferença a mim.
— As personalidades dependentes conseguem agarrar-se a qualquer
coisa: drogas, álcool, sexo, pessoas… e se ficares viciado em mim?
— Já estou viciado em ti, Beatriz. Só que tu és bem mais perigosa do que
cocaína.
As sobrancelhas de Julia ergueram-se de surpresa.
Ele voltou a agarrar-lhe a mão e acariciou as veias que se destacavam
contra a pele pálida do seu pulso.
— Estou a confessar-me perante ti. Eu sou destrutivo. Sou
temperamental. Tenho mau feitio. Algumas destas coisas têm a ver com o
meu vício e algumas delas têm a ver com o meu… passado.
»O que é que há de errado comigo para pensar tão bem de ti que a minha
única explicação para a tua existência foi que ou eras o produto de uma
mente desesperada ou a coroa da criação de Deus?
As palavras e o rosto de Gabriel eram tão intensos que Julia teve de
recuar. A combinação da voz dele com a sensação dos seus longos dedos
frescos a acariciarem as suas veias… Receou que a sua pele se incendiasse
e toda ela se desintegrasse numa pilha de cinzas.
— Ainda tomas drogas?
— Não.
— Socialmente?
— Não. Depois do meu comportamento nojento em Selinsgrove, a Grace
convenceu-me a procurar ajuda. Eu estava a planear matar-me… só
precisava de dinheiro para deixar os meus assuntos resolvidos. A minha
noite contigo mudou tudo. Quando me disseram que não havia ninguém de
nome Beatriz, assumi que eras uma alucinação ou um anjo. Fosse como
fosse, pensei que alguém, Deus, talvez, tivesse mostrado misericórdia por
mim, enviando-te para me salvar. Lo seme di felicità messo de Dio nell’
anima ben posta.
Julia fechou os olhos com o som das palavras de Dante no Convivio. A
semente da felicidade colocada por Deus numa alma bem disposta.
Gabriel pigarreou.
— Scott concordou em não apresentar queixa se eu entrasse de imediato
em tratamento. Por isso, o Richard levou-me para Filadélfia nesse mesmo
dia e eu dei entrada num hospital. Depois de fazer a minha desintoxicação
inicial, ele levou-me de volta para Boston e pôs-me em reabilitação, para
poder ficar mais perto do meu… trabalho. — Ele agitava-se na sua cadeira.
Julia abriu os olhos, com um ar perturbado no rosto.
— Porque é que te querias matar, Gabriel?
— Não te posso dizer.
— Porque não?
— Não sei o que aconteceria se trouxesse aqueles velhos demónios de
volta, Beatriz.
— Ainda tens instintos suicidas?
Ele pigarreou.
— Não. Parte da minha depressão era causada pelas drogas. A outra parte
era causada por… outros fatores na minha vida com que tenho tentado lidar.
Mas sabes tão bem como eu que uma pessoa com instintos suicidas é uma
pessoa que perdeu a esperança. Eu encontrei a minha esperança quando te
encontrei.
Os olhos dele ardiam intensamente, e Julia decidiu mudar de assunto.
— A tua mãe era alcoólica?
— Sim.
— E o teu pai?
— Eu não falo dele.
— A Rachel falou-me do dinheiro.
— É a única coisa boa que alguma vez veio daquele lado — grunhiu
Gabriel.
— Isso não é verdade — disse Julia em voz baixa.
— Porquê?
— Porque ele te fez, claro.
O rosto de Gabriel suavizou-se de imediato, e ele pressionou os lábios
contra as costas da mão dela.
— O teu pai era alcoólico? — perguntou ela.
— Não sei. Ele era administrador de uma empresa em Nova Iorque e
morreu de ataque de coração. Não quis descobrir mais nada acerca dele.
— Tu és alcoólico?
— Não.
Julia dobrou cuidadosamente o seu guardanapo de linho com dedos a
tremer e afastou a cadeira da mesa.
— Ainda bem que não tomas drogas e ainda bem que estás em
recuperação. Mas eu não me envolverei com um alcoólico. A vida é
demasiado curta para ficar presa a esse tipo de miséria.
Ele olhou-a firmemente, procurando-lhe os olhos.
— Concordo. Mas se viesses a passar tempo comigo, perceberias que não
sou alcoólico. E eu juro não voltar a embebedar-me. É uma infelicidade que
apenas me tenha embebedado uma vez nos últimos seis meses e que o
tenhas testemunhado por acaso.
— A minha mãe entrava e saía da recuperação várias vezes, e nunca
conseguia aguentar-se. O que é que acontece se voltares a consumir drogas?
Para não mencionar o facto de teres esta visão ilusória de Beatriz. Eu não
sou Beatriz, Gabriel. Tu queres um ideal, uma imagem mental induzida
pelas drogas, não a mim.
— Estou limpo há seis anos. Não acabei propriamente de sair da
recuperação. No entanto, eu sei que sou profundamente, profundamente
problemático. Mas quero conhecer-te, apenas a ti, tal como és. Quero que
sejas tu própria, e, sim, Julianne, eu sei que és mais do que um sonho. A tua
realidade é bem mais bonita e sedutora do que qualquer sonho. Eu preferir-
te-ia acima de qualquer sonho.
Uma lágrima correu pelo rosto dela, e Julia limpou-a à pressa.
— Tu não me conheces. Nunca me conheceste. Dormiste com a Beatriz
de Dante nos braços, naquela noite, a imagem dos seus escritos e da pintura
de Holiday, não comigo.
Gabriel abanou a cabeça.
— O que senti era real. O que fiz era real.
— Pensaste que era real, mas isso faz parte da ilusão.
— Era real, Julia. Era tudo. Assim que te toquei, percebi… e quando te
voltei a tocar… Recordei-me de ti. O meu corpo recordou-se de ti. Foi
apenas a minha mente consciente que se esqueceu.
— Já não sou aquela rapariga. E a mulher que sou tu desprezaste de
imediato.
— Isso não é verdade. Transformaste-te numa mulher maravilhosa.
— Tu queres uma gatinha de estimação.
— Não, Beatriz.
Ela falou por entre os dentes cerrados.
— Para de me chamar isso.
— Desculpa, Julianne, eu sei que te magoei. Sei que tenho um lado
sombrio. Deixas-me mostrar que consigo ser bom? Muito, muito bom?
— É demasiado tarde. Não consigo. — Embora a magoasse, dirigiu-se
para a porta principal, agarrando na sua mochila e no casaco pelo caminho.
— E a noite passada? — perguntou ele, seguindo-a. — Significou
alguma coisa para ti?
— O que é que devia ter significado? Diz-me! — Ela encostou a mochila
ao peito e recuou contra a parede.
Ele colocou-lhe as mãos de cada lado dos seus ombros e aproximou-se
mais.
— Tenho de te explicar? Não sentiste?
Levou o rosto ao dela, os lábios a centímetros da sua boca. Ela sentiu-lhe
o hálito quente na pele. Estremeceu.
— Senti o quê?
— O teu corpo e o meu juntos. Vieste ter comigo ontem à noite, Julianne.
Vieste para a minha cama. Porque é que fizeste isso? Porque é que me
disseste que não tinhas conseguido ficar longe de mim? Porque somos
almas gémeas, tal como Aristófanes descreveu… uma alma em dois corpos.
Falta-te a minha parte. Tu és o meu bashert.
— Bashert? Sabes sequer o que isso significa? Bashert é bashert,
Gabriel; destino é destino. Pode significar tudo o que quiseres, e não tem de
me significar a mim.
Ele sorriu-lhe abertamente.
— O teu conhecimento linguístico surpreende-me constantemente.
— Conheço essa palavra.
— Claro, minha querida. Porque és inteligente. — Ele levou as pontas
dos dedos ao pescoço dela e acariciou-o suavemente.
— Gabriel… para. — Desviou-o de si para conseguir pensar com clareza.
— Estás limpo, mas não deixas de ser um viciado. Eu sou filha de uma
alcoólica. Não vou deixar que isto aconteça.
— Eu não te mereço. Sei isso. Conosco i segni dell’antica fiamma. Senti-
o na primeira vez que te peguei na mão. Na primeira vez que te beijei. E
estava tudo presente ontem à noite… cada sentimento, cada memória, cada
sensação que experimentei antes estava presente. Era real. Olha para mim e
diz que não significou nada para ti, e eu deixo-te ir embora.
Julia fechou os olhos para bloquear os rogos dele, a sua asserção de que
conhecia os sinais da antiga chama.
— Não consegues, pois não? A tua pele lembra-se de mim, tal como o
teu coração. Mandaste-os esquecer, mas eles não conseguem. Lembra-te de
mim, Beatriz. Lembra-te do teu primeiro.
Os lábios dele encontraram o seu pescoço, e ela sentiu a pulsação
acelerar sob a sensação. O seu corpo era traidor; não mentia. Não queria
ouvir a razão. Ele podia ter-lhe pedido qualquer coisa naquela posição, e ela
teria concordado. A ideia deixou-a desesperada.
— Por favor, Gabriel.
— Por favor, o quê? — sussurrou ele, percorrendo-lhe o pescoço com
beijos suaves e parando finalmente para poder sentir o seu sangue vital fluir
debaixo dos seus lábios.
— Por favor, deixa-me ir.
— Não consigo. — Arrancou-lhe a mochila e o casaco das mãos e
deixou-os cair no chão.
— Não confio em ti.
— Eu sei.
— Vais destroçar-me, Gabriel, e isso vai ser o meu fim.
— Nunca.
Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos e, no momento em que ela fechou os
olhos, parou. Julia esperou, aguardando que a suave humidade dos lábios
dele se ligasse aos seus, mas isso não aconteceu. Esperou. Depois abriu os
olhos.
Os olhos de Gabriel eram enormes, suaves e calorosos, e estavam fixos
nos seus. Ele sorria. Começou por acariciar-lhe a cara, pequenas carícias
aqui e ali, a explorar cada curva, cada linha, como se as estivesse a
memorizar. Depois moveu-se para o pescoço dela, usando a ponta de um só
dedo da mão direita para viajar para cima e para baixo. Julia estremeceu.
Gabriel levou-lhe os lábios ao ouvido.
— Descontrai-te, minha querida. — Mordiscou-lhe o lóbulo da orelha e
roçou o rosto no seu pescoço, provocadoramente. — Deixa-me mostrar-te o
que consigo fazer quando vou com calma.
A segurar-lhe o rosto entre as mãos, roçou os lábios pela testa dela, pelo
nariz, pelas maçãs do rosto, pelo queixo. Só quando a viu fechar os olhos
pela segunda vez, é que lhe cobriu a boca com os lábios. Mas, então, Julia
estava já sem fôlego.
Assim que os seus lábios se uniram, deu-se uma descarga de sangue,
calor e energia. Mas Gabriel teve cuidado e não acelerou. Os seus lábios
roçavam os dela, para a frente e para trás, a pele de ambos a gemer com a
suave fricção. Mas ele não abriu a boca. As mãos subiram ao cabelo dela,
agarraram-no suavemente, massajaram-lhe o couro cabeludo e flutuaram
para baixo.
Julia foi menos branda quando lhe agarrou a nuca, puxando-o e
entrelaçando os dedos no seu cabelo. As suas bocas continuaram coladas, a
saborear cada milímetro. A língua dele assomou, e ele passou-a
langorosamente sobre o lábio superior dela, saboreando-a pouco e pouco
antes de lhe sugar o lábio inferior entre os seus.
Era tentador. Era excitante. Era o beijo mais lento que alguma vez dera. E
fez com que o seu coração batesse rapidamente. Quando a ouviu voltar a
gemer contra a boca dele, ele inclinou-lhe a cabeça para cima para que ela
se abrisse. Mas não teve pressa. Esperou que o seu queixo abrandasse, e
quando ela não conseguiu aguentar mais e a sua própria língua foi
hesitantemente ao encontro da dele, só então se permitiu aceitar o seu
convite.
Ela teria respondido com um ritmo fervilhante, mas Gabriel controlou o
beijo, e desejava beijá-la suavemente. Mansamente. Ociosamente. Levou
meio século a fazer as suas mãos viajarem do rosto dela até aos lados do seu
pescoço, deixando-os a tocar-lhe os ombros. E mais meio século para essas
mesmas mãos deslizarem ao lado da sua coluna, e para debaixo das suas
roupas, para procurarem pele nua. Durante todo este tempo, ia explorando
lentamente a boca dela como se nunca voltasse a ter uma segunda
oportunidade.
Conteve a respiração e gemeu quando as suas mãos encontraram a pele
de galinha que descobrira na noite anterior. Já pensara nela como em
território virgem, encontrado pelas suas explorações, embora não tivesse
direito, qualquer direito a reclamá-lo.
Os seus dedos deslizaram-lhe pela pele enquanto Julia gemia e se
agarrava a ele. Os seus sons de impotência eram mais eróticos do que
qualquer gemido libertino que alguma vez lhe enchera os ouvidos.
Penetravam-no e inflamavam-no. Depois estava a pressionar-se contra ela, a
responder às curvas suaves e delicadas com tendão e aço, e trocou de lugar
subtilmente para serem as suas costas a encostar-se contra a parede, pois
não queria encurralá-la, fazê-la sentir-se presa. Em vez disso, deixou que
ela o prendesse.
Julia respirava a respiração dele, quente e húmida no interior da sua boca.
Ele era o seu oxigénio. Não conseguia parar de o beijar o tempo suficiente
para inspirar verdadeiramente, e a sua cabeça começou a flutuar. Isso
tornava a sensação dos lábios dele ainda mais intensa, por isso não o
combateu. Limitou-se a deixar-se ir, a lamber, a sugar, a mover-se…
Gabriel recuou um pouco, interrompendo o beijo.
Deixou os seus polegares percorrerem-lhe a curva de pele nua na cintura.
Julia inalou rapidamente, e ele abraçou-a com força, envolvendo-a com os
braços e sentindo os seios dela pressionados contra si.
— Precisas de te acostumar aos meus lábios, Julia, porque eu tenciono
beijar-te muito. — Ele beijou-lhe os cabelos e sorriu-lhe, com um ar
verdadeiramente feliz.
Quando ela conseguiu reencontrar a voz, ouviu-a tremer.
— Gabriel, não fiz nenhuma promessa. Não fiz nenhum acordo. Um
beijo não muda isso.
O sorriso desapareceu, mas ele continuou a abraçá-la com força. Ergueu
um dedo e afastou-lhe uma madeixa de cabelo da cara.
— Dá-me só uma oportunidade. Podemos ir devagar e tentar curar-nos
um ao outro.
— Ontem à noite falámos de ser amigos. Os amigos não se beijam assim.
Ele riu-se.
— Podemos ser amigos. Podemos seguir o modelo do amor cortês, se
quiseres. Só vou ter de me lembrar disso na próxima vez que te beijar. E tu
também.
Julia desviou o olhar.
— Não confio em ti o suficiente para ser qualquer outra coisa. E, mesmo
que confiasse, estás com a rapariga errada. Vais ficar amargamente
desapontado comigo.
— De que é que estás a falar?
— Nunca ficarás satisfeito apenas comigo, e vais deixar-me assim que
compreenderes isso mesmo. Por isso, tem pena de mim e escolhe alguém
mais sexualmente compatível, antes que um de nós acabe magoado.
Ela viu quando a cor no rosto dele se aprofundou e os seus olhos
começaram a arder. Esperou vê-lo explodir.
— O que foi que ele te fez?
Não era a pergunta de que estava à espera.
— Não sei de que estás a falar.
Gabriel olhou-a cuidadosamente, para medir a sua expressão. Desviou-se
da parede e endireitou os ombros, erguendo-se a toda a sua altura.
— Não sei o que ele te fez para te fazer sentir tão mal contigo própria,
mas eu não sou ele. A nossa noite no pomar não te demonstrou que a nossa
ligação não é baseada em sexo? — Acariciou-lhe o cabelo por um momento
com uma suavidade que desmentia a ferocidade do seu tom de voz. — Era
capaz de o matar por ter feito isto contigo — sussurrou-lhe. — Por ter
esmagado o teu espírito.
»Não vou negar que tenho estado longe de ser monógamo. Mas quero
algo mais, quero qualquer coisa real. E sei que tu queres o mesmo. Quais
são as hipóteses de o teu próximo namorado ser virgem? Quase nulas. A tua
autoestima será um problema com qualquer pessoa com quem andes, não
apenas comigo. E qualquer homem capaz de te deixar por seres
sexualmente inexperiente não merece a tua tristeza. Tens de ter fé, Julia, e
tens de ter esperança. Mesmo que não tenhas qualquer esperança para nós
os dois, tens de ter esperança para ti. Senão, nunca deixarás que alguém te
ame.
— Nem sequer me conheces.
— Sei mais a teu respeito do que julgas, e o resto quero aprender. Ensina-
me, Beatriz. Candidato-me como teu aluno na tua universidade. Ensina-me
a cuidar de ti.
— Por favor, Gabriel. Fala a sério!
— Eu estou a falar a sério. Há muitas coisas que não sabemos a respeito
um do outro. Coisas que quero muito descobrir e explorar.
— Não quero ser partilhada.
Ele rosnou.
— Não tenho o hábito de partilhar o que me é precioso. Não vou permitir
que mais nenhum homem ponha as mãos em cima de ti, e isso inclui o Paul
e qualquer outro Fornicador-de-Anjos por aí.
— E também não te vou partilhar.
— A mim?
— Sim.
— Bem, isso nem é preciso dizer.
— É, sim.
— O que é que queres dizer com isso? — bufou ele.
— Eu esperaria que não dormisses com ninguém, mesmo enquanto eu
estou… a decidir. Como demonstração de boa-fé.
— Combinado.
Julia riu-se.
— Dizes isso como se fosse fácil! Estás disposto a desistir de toda a tua
companhia feminina só pela possibilidade de alguma coisa comigo? Não
acredito em ti.
— Ganho muito, muito mais do que perco, acredita. E tenciono fazer-te
ver isso mesmo, vez após vez, após vez. — Aproximou-se e beijou-lhe o
rosto.
— A Paulina… — murmurou ela.
Gabriel continuou a beijá-la, foi descendo até ao ponto onde o pescoço
dela se curvava até ao ombro.
— Não te preocupes com isso.
— Não te vou partilhar com ela.
— Não vais ter de o fazer. — Ele soava impaciente.
— A Paulina é tua mulher?
Ele recuou e fixou-a com um olhar de pedra.
— Claro que não. Por quem me tomas?
— Ex-mulher?
— Julianne, para com isso. Não, não é minha ex-mulher. Fim de
conversa.
— Quero saber quem é.
— Não.
— Porquê?
— Por razões que prefiro não discutir. Já te disse que não durmo com ela
nem vou dormir. Isso deve ser suficiente para ti.
— E a m-a-i-a?
O rosto dele endureceu.
— Não.
— Eu vi a tatuagem no teu peito, Gabriel. Vi as letras.
Ele cruzou os braços.
— Não posso.
— Então, eu também não posso. — Ela baixou-se para pegar na mochila
e casaco.
Ele deteve-a.
— Julianne, diz-me quem te fez sentir tão insegura contigo mesma e as
tuas capacidades sexuais. Foi o Simon?
Ela retraiu-se.
— Diz-me.
— Não digas o nome dele perto de mim.
— Foste tu que o disseste. Disseste o nome dele enquanto estavas a
dormir. Parecias perturbada. Conta-me.
— Não.
— Porque não?
— Porque me faz sentir mal — sussurrou ela, rogando-lhe em silêncio
que mudasse de assunto.
Uma visão, negra e perturbadora, começou lentamente a invadir a mente
de Gabriel. E, uma vez lá dentro, Gabriel não a conseguiu expulsar.
— Julianne, ele não… não te forçou, pois não?
Ela inclinou a cabeça.
— Não, Gabriel. Eu sou virgem.
Ele parou por um momento e expirou lentamente.
— Continuarias a ser virgem mesmo que ele te tivesse forçado. Serias
virgem para mim.
A voz dele era tão dorida e sincera que o coração dela quase se quebrou
sob o seu peso.
— Isso é muito nobre da tua parte. Mas não fui violada.
Ele fechou os olhos por um segundo e respirou fundo.
— Ambos temos segredos que não queremos revelar. Não te mentirei,
mas não te posso dizer tudo. Hoje não. E, com base no que vejo nos teus
olhos, sei que também me escondes alguns segredos muito dolorosos. Mas
eu aceito isso. Não te vou pressionar a falar sobre eles. — Pôs-lhe o braço
em volta da cintura e puxou-a contra si.
— Então, vamos ter segredos um do outro? — Ela soava espantada.
— Por enquanto, sim.
— Ainda há o facto de eu ser tua aluna.
Ele beijou-a de novo para a impedir de dizer mais alguma coisa.
— Esse é outro segredo que teremos de manter. Mas, querida, não quero
ter o resto da nossa conversa neste maldito corredor. Por favor, volta para a
mesa e termina o teu pequeno-almoço. Podemos conversar enquanto
bebemos o café ou podemos simplesmente comer em silêncio. Mas, por
favor, não te vás embora. Por favor.
Os olhos de Julia dardejaram para a porta.
— Preciso de saber o que sentes por mim, Gabriel — começou ela,
hesitantemente. — Preciso de saber que isto não é uma brincadeira para ti.
Gostas de mim, pelo menos? Do meu eu real?
Ele fez-lhe um olhar atónito.
— Claro que gosto de ti. E quero conquistar o teu afeto. Onde iremos
depois depende de ti.
Ela ergueu os dedos hesitantes para lhe acariciar o cabelo. Ele fechou os
olhos e descontraiu sob aquele toque, inspirando e expirando
profundamente. Quando a sentiu baixar a mão, voltou a abrir os olhos, e
Julia viu a fome dentro deles.
Gabriel sorriu, e a fome foi substituída por uma outra coisa.
Esperança. A visão de esperança no rosto de Gabriel fez com que as
lágrimas chegassem.
— Não foi assim que o imaginei — chorou ela, e limpou a face com as
costas da mão. — Encontrar-te é tão diferente do que sonhei. E tu nem
sequer és quem eu julguei.
— Eu sei. — Ele envolveu-a nos braços e beijou-lhe suavemente a testa.
— Tinha uma pancada por ti, quando tinha dezassete anos, Gabriel. A
minha primeira verdadeira paixão. E nem sequer eras tu. Desperdicei a
minha vida toda numa ilusão.
— Desculpa por te ter desapontado. Quem me dera ser o cavaleiro, em
vez do dragão. Mas não sou. — Recuou para a poder olhar profundamente
nos olhos. — Depende tudo de ti. Podes salvar-me ou banir-me com uma
única palavra.
Julia escondeu o rosto contra o peito dele e perguntou-se se alguma vez
tivera escolha.
Capítulo Dezoito
Paul, olá. Desculpa. Não ouvi a campainha. Avariada? Emerson ralhou comigo mas não vou
ter de desistir do seminário (ufa). Tenho de arranjar novo orientador. Estou a tratar disso.
Falamos depois & obrigada, Julia
Julia ficou de olhos fixos no monitor, até Paul lhe tocar ao de leve no
cotovelo.
— Queres uma bebida?
— Hum, acho que estamos fora de época para sangria, mas tomo um
pouco, se tiverem.
— A nossa sangria é excelente — disse o empregado, partindo em
seguida para ir buscar as suas bebidas.
Julia olhou para Paul em jeito de desculpa.
— Tenho uma mensagem do Owen, mas não quero ser mal-educada.
— Não há problema — disse Paul, pondo-se a ler o menu enquanto Julia
escrevia uma resposta rápida.
Tinha o telefone desligado. É demasiado tarde, já cá estou.
Não tens razão nenhuma para ciúmes — vou para casa contigo.
Vais ter-me na tua cama até de manhã. — J.
D ois quase amantes enlaçados, as suas pernas nuas enredadas numa cama
larga, sob um edredão azul-gelo e lençóis brancos Frette. A mulher
murmurava no seu sono, movendo-se de tempos a tempos, enquanto o homem
permanecia imóvel, desfrutando do prazer da sua companhia.
Podia tê-la perdido. Deitado ao lado de Julia, Gabriel estava ciente de que
aquela noite poderia ter terminado de modo bem diferente. Ela não tinha de o
perdoar. Não tinha de o aceitar. Mas perdoara e aceitara. Talvez ele pudesse
atrever-se a esperar…
— Gabriel?
Não respondeu, pois julgava-a a dormir. Eram três da madrugada, e o quarto
estava envolto em escuridão, uma escuridão atenuada apenas pelas luzes da
cidade que atravessavam as persianas.
Julia virou-se para o olhar.
— Gabriel? — sussurrou. — Estás acordado?
— Sim. Está tudo bem, querida, volta a dormir. — Beijou-a ao de leve e
afagou-lhe o cabelo.
Julia ergueu-se, ficando apoiada num cotovelo.
— Estou bem acordada, agora.
— Eu também.
— Podemos… falar?
Gabriel copiou rapidamente a posição dela.
— Claro. Há algum problema?
— És mais feliz agora do que eras antes?
Gabriel fitou-a por um momento e tocou-lhe delicadamente no nariz com a
ponta de um dedo.
— Porquê uma pergunta tão profunda, a meio da noite?
— Disseste que não estavas feliz no ano passado. Perguntava-me se estarias
feliz agora.
— A felicidade é algo de que sei muito pouco. E tu?
Julia revirava a ponta do lençol na mão.
— Tento ser feliz. Tento concentrar-me nas pequenas coisas e encontrar
prazer nelas. A tua tarte deixou-me feliz.
— Se soubesse que a tarte te ia deixar feliz, tinha-ta dado mais cedo.
— Porque não estás feliz agora?
— Troquei o meu direito de primogenitura por um prato de guisado.
— Estás a citar as Escrituras? — Julia mal podia acreditar.
Gabriel irritou-se.
— Não sou pagão, Julianne. Fui criado na Igreja Episcopal. O Richard e a
Grace eram muito devotos. Não sabias?
Julia anuiu. Tinha-se esquecido.
O rosto de Gabriel assumiu uma expressão invulgarmente séria.
— Ainda acredito, embora não viva de acordo com essas ideias. Sei que isso
faz de mim um hipócrita.
— Todos os crentes são hipócritas, porque nenhum de nós está a altura das
suas crenças. Eu também acredito, mas não me porto muito bem. Só vou à
missa quando estou triste, ou por altura do Natal e da Páscoa. — Procurou a
mão dele e apertou-a na sua. — Se ainda acreditas, deves ter esperança. Tens de
acreditar que a felicidade também é possível para ti.
Gabriel largou-lhe a mão e deitou-se de costas, olhando para o teto.
— Perdi a minha alma, Julianne.
— Que queres dizer com isso?
— Estás a olhar para um dos poucos que cometeram o pecado que conduz à
morte.
— Como?
Gabriel suspirou.
— O meu nome é de uma terrível ironia. Tenho mais de demónio que de
anjo, e não tenho redenção, porque fiz coisas imperdoáveis.
— Queres dizer… com a professora Singer?
Gabriel riu com azedume.
— Fossem esses todos os meus pecados. Mas não, Julianne, já fiz pior. Por
favor, limita-te a aceitar o que te digo.
Ela aproximou-se um pouco mais. Os seus traços delicados enrugaram-se
com preocupação, as suas sobrancelhas uniram-se. Levou algum tempo a
considerar as palavras que Gabriel não dissera, enquanto ele lhe acariciava o
braço com dedos arrependidos.
— Sei que ao esconder-te segredos, estou a magoar-te. Sei que não vou poder
esconder-tos para sempre. Mas, por favor, dá-me algum tempo. — Expirou
devagar e baixou a voz. — Prometo que não farei amor contigo antes de te
dizer quem realmente sou.
— É um pouco cedo para falarmos disso, não achas?
Enrugando a testa, Gabriel procurou os olhos dela.
— É?
— Gabriel, ainda agora estamos a conhecer-nos, e já houve algumas
surpresas.
Gabriel afastou-se.
— Tens de saber quais são as minhas intenções. Não tenciono seduzir-te e
desaparecer. Não tenciono guardar uns quantos dos meus segredos até que sejas
completamente minha. Estou a tentar portar-me como deve ser.
O voto de Gabriel fora feito de boa-fé. Queria Julia, queria-a toda para si,
mas compreendera nessa noite, deitado ao seu lado, que não poderia fazer amor
com ela sem lhe revelar quem era verdadeiramente. Embora a reação de Julia
ao seu passado com Ann lhe tivesse dado alguma esperança, Gabriel temia que
outras revelações pudessem afastá-la. Julia podia arranjar melhor. Ainda assim,
a ideia de a ver com outra pessoa causava-lhe um nó no peito.
— Tens uma consciência?
— Que pergunta vem a ser essa? — resmungou Gabriel.
— Acreditas que há uma diferença entre o certo e o errado?
— Claro que sim!
— Sabes encontrar essa diferença?
Gabriel esfregou a cara com ambas as mãos.
— Julianne, não sou um sociopata. Saber não é o problema. O problema é
fazer.
— Então não perdeste a tua alma. Só uma criatura com alma sabe a diferença
entre o certo e o errado. Cometeste erros, sim, mas sentes culpa. Sentes
remorsos. E se ainda não perdeste a tua alma, ainda tens a possibilidade de
redenção.
Gabriel sorriu tristemente e beijou-a.
— Falas como a Grace.
— A Grace era muito sensata.
— E a menina Mitchell também. Ao que parece — troçou Gabriel.
— Sou mesmo. Com uma pequena ajuda de São Tomás de Aquino, professor.
Gabriel puxou-lhe ligeiramente a t-shirt para cima, de modo a conseguir
fazer-lhe cócegas.
— Ah! Gabriel! Para com isso! — Rindo, Julia contorceu-se, tentando
escapar-lhe.
Gabriel insistiu por alguns momentos, só pelo prazer de ouvir o seu riso
vibrar na escuridão. Depois libertou-a.
— Obrigado, Julianne. — Acariciou-lhe a cara. — Quase me fazes acreditar.
Ela pousou-lhe um braço em redor da cintura, aninhando-se ao seu lado e
inalando com ar satisfeito o seu perfume.
— Cheiras sempre bem.
— Agradece à Rachel e à Grace. Começaram a oferecer-me Aramis há muito
tempo. Continuo a comprá-lo por hábito. — Sorriu. — Achas que devia
experimentar outra coisa?
— Se a Grace o escolheu, não.
O sorriso de Gabriel esmoreceu, mas ainda assim ele beijou-a na testa.
— Ainda bem que ela não me oferecia Brut.
Julia riu-se.
Permaneceram muito quietos por alguns minutos, até que ela lhe murmurou
ao ouvido.
— Há algo que gostava de te contar.
Gabriel franziu ligeiramente os lábios e anuiu.
Apesar da escuridão, Julia desviou timidamente o olhar.
— Podias ter feito amor comigo no pomar. Eu teria deixado.
Gabriel fez um dedo deslizar pelo rosto dela.
— Eu sei.
— Sabes?
— Tenho alguma prática quando se trata de ler o corpo de uma mulher,
Julianne. Naquela noite, estavas muito recetiva.
A sua resposta apanhou Julia de surpresa.
— Então… soubeste logo naquela altura que eu…?
— Sim.
— Mas não quiseste…
— Não.
— Queres explicar-me porquê?
Gabriel refletiu por instantes.
— Não achei que fosse correto. E estava tão feliz por te ter encontrado, por te
ter nos meus braços… Foi o suficiente. Foi tudo.
Julia inclinou-se para ele e beijou-o no pescoço.
— Foi perfeito.
— Quando formos a casa pelo Dia de Ação de Graças, gostava de te levar de
novo ao pomar. Irás comigo?
— Claro. — Julia depositou-lhe um beijo mesmo ao lado da tatuagem, pois
sabia que ele se encolhia sempre que ela lhe tocava naquele lugar.
— Beija-me — murmurou Gabriel.
Julia obedeceu, pousando os seus lábios entreabertos sobre os dele, abrindo a
boca, querendo saboreá-lo durante todo o tempo que ele permitisse. Até que
Gabriel suspirou e se afastou. A súbita quebra de contacto entristeceu Julia, e
uma velha preocupação ressurgiu.
Gabriel sentiu-a tensa.
— Não confundas a minha reserva com falta de desejo, Julianne. Desejo-te
ardentemente. — Voltou-a delicadamente de lado e aninhou-se atrás dela,
mergulhando a cara no seu cabelo. — Que bom estares aqui — disse num
sussurro.
Julia queria dizer-lhe que dormia melhor quando estava com ele. Queria
dizer-lhe que gostaria de partilhar uma cama com ele todas as noites e que o
desejava com todas as suas forças.
Mas nada disse.
Querida,
Estavas a dormir profundamente, por isso não quis acordar-te.
Fui fazer umas compras.
Telefona-me quando acordares.
Sinto-me grato por te ter tido nos meus braços toda a noite, e pelas tuas palavras...
Se tenho uma alma, é a tua.
Gabriel
O fim de semana com Gabriel foi, talvez, o mais feliz da vida de Julia.
As memórias daqueles dias foram para ela como talismãs durante a
semana — durante o seminário de quarta-feira e as persistentes tentativas de
Christa para a diminuir e a embaraçar, e perante a insistência, bem-
intencionada mas inconveniente, de Paul para que apresentasse queixa
contra a professora Singer.
A semana de Gabriel foi um verdadeiro inferno. Foi-lhe difícil tirar os
olhos de Julianne durante o seu seminário, e a necessidade de o fazer
deixou-o irritável e mal-humorado. Christa quase o levara aos limites da sua
paciência, implorando reuniões à parte para (alegadamente) discutirem a
sua proposta de tese. Gabriel rejeitou todos os seus pedidos com um
desinteressado aceno de mão, o que só a fez redobrar esforços.
Quanto à professora Singer… enviara-lhe um e-mail.
Gabriel
Foi bom voltar a ver-te. Senti falta das nossas pequenas conversas.
A tua palestra foi um êxito do ponto de vista técnico, mas fiquei desapontada por
apresentares algo tão estreito de espírito.
Costumavas ser aventureiro. E livre.
Talvez o professor proteste demasiado…
Precisas de abraçar a tua verdadeira natureza
e submeteres-te a um pequeno treino.
Posso dar-te exatamente aquilo por que anseias,
Sr.ª Ann
S imon sentia a vitória tão perto que quase conseguia saboreá-la. Sabia
que Julia não era uma pessoa forte, e estava acostumado a retirar
partido da sua fraqueza. Quando ela o olhou nos olhos e lhe implorou que
acreditasse que não tinha as fotografias, Simon acreditou. Era muito mais
provável que Natalie estivesse a tramá-la, tentando desviar as atenções do
seu próprio jogo de vingança. Tomando novamente Julia nos braços,
desistiu da sua busca pelas fotografias. Encontrava-se agora numa missão
completamente diferente.
Sem se deixar demover pelo telefone que tocava na cozinha, ou pelos
acordes de “Message in a Bottle” que vinham de tempos a tempos do
iPhone de Julia, Simon continuou a beijá-la, mantendo-a sentada ao seu
colo no sofá da sala.
Continuava frígida. Tolerava os avanços dele, mas na realidade mal os
sentia, mantendo os braços e o corpo moles. Julia nunca gostara de sentir a
língua de Simon na sua boca. Nunca gostara de sentir nada dele na sua
boca. Agora, contorcia-se entre os seus braços, mas o seu desconforto
estimulava-o. Movendo a língua pela boca dela, Simon sentia-se cada vez
mais excitado, o sexo duro contra o fecho das calças.
Beijou-a até ela reunir coragem para cerrar os punhos e lhe esmurrar o
peito, e então Simon decidiu que estava na altura de recorrer a outros
métodos. Quando começou a desabotoar-lhe a camisa, Julia debateu-se.
— Por favor, não faças isto — gemeu. — Por favor, larga-me.
— Vais gostar — disse Simon, com uma risadinha, apertando-lhe as
nádegas e apalpando-a enquanto ela tentava escapar-lhe do colo. — Vou
fazer tudo para que gostes. Depois, largo-te.
A sua boca percorreu o maxilar de Julia e desceu-lhe pelo lado esquerdo
do pescoço, chupando-lhe a pele junto à garganta, sobre as pérolas.
— Julgo que não queres uma repetição da nossa última briga, pois não,
Julia?
Ela tremeu.
— Julia?
— Não, Simon.
— Ainda bem. — Tendo os olhos fechados, Simon não viu a marca do
beijo de Gabriel, no lado direito do pescoço de Julia. Pouco lhe teria
importado. Simon já estava decidido a deixar a sua marca. Uma boa
mordedura para o namorado lá no Canadá ver o que a sua rapariga andara a
fazer. Uma marca que os deixasse quites. Sugando, puxou-lhe o sangue até
à superfície da pele, e depois cravou-lhe os dentes na carne.
Julia deu um grito de dor.
Simon começou a lamber-lhe a pele, saboreando-a, sangue e salgado e
doce e Julia. Quando terminou, recuou para admirar a sua obra. Ela teria de
usar uma camisola de gola alta para esconder aquela marca, e Simon sabia
que Julia não gostava de golas altas. Era uma marca monstruosa, vermelha
e zangada. Mostrava o seu grande anel de dentes. Era perfeita.
Julia olhou-o através das suas enormes pestanas, e Simon viu algo
mudar-lhe nos olhos. Debruçou-se para ela em expectativa, lambendo os
lábios. De repente, a palma da mão dela abateu-se-lhe na cara com uma
pancada cruel. Num relâmpago, Julia correu para as escadas, procurando
chegar ao andar de cima.
— Maldita cabra! — rugiu Simon, seguindo-a e alcançando-a facilmente.
Quando Julia estava mesmo a chegar ao último degrau, ele apanhou-a pelo
tornozelo com ambas as mãos e torceu-lhe o pé. Julia caiu de joelhos,
gritando de dor.
— Vou dar-te uma lição que nunca hás de esquecer — ameaçou,
agarrando-a pelo cabelo.
Julia gritou novamente quando ele lhe puxou a cabeça para trás.
Debatendo-se, em desespero, pontapeou-o furiosamente com o pé que
não estava magoado e atingiu-o milagrosamente entre as pernas. Simon
largou-lhe o cabelo e caiu escada abaixo. Então, Julia coxeou até ao seu
quarto e trancou a porta, enquanto o ouvia contorcer-se de dor.
— Espera até te pôr as mãos em cima, cabra! — gritava Simon, com as
mãos entre as pernas.
Julia encostou uma cadeira à porta e começou a arrastar a cómoda.
Molduras com fotografias antigas tiniram umas contra as outras sobre a
cómoda enquanto Julia a empurrava, e uma boneca de porcelana caiu ao
chão. Ignorando a dor no tornozelo, Julia coxeou até ao outro lado da
cómoda, e começou a empurrá-la freneticamente com breves tentativas
desesperadas. Simon gritava-lhe ofensas, lutando contra a maçaneta da
porta.
Finalmente, Julia conseguiu encostar a cómoda à porta. Só esperava
conseguir ganhar tempo suficiente para fazer um telefonema antes de
Simon irromper pelo quarto. Coxeou até ao telefone que estava na sua mesa
de cabeceira, mas, com a pressa, atirou-o ao chão.
— Merda!
Pegou no telefone e os seus dedos trémulos marcaram o número do
telemóvel de Gabriel. A chamada foi imediatamente para o voice mail.
Enquanto esperava pelo sinal, o seu perseguidor lançou-se contra a porta.
Horrorizada, Julia viu como a velha porta dava de si, começando a soltar-se
das dobradiças.
— Gabriel, por favor vem já para casa do meu pai. O Simon apareceu
aqui e está a tentar arrombar a porta do meu quarto!
Simon praguejava e roncava, investindo repetidamente contra a porta.
Mal a porta cedesse, bastar-lhe-ia virar a cómoda, e estaria no quarto.
Acabou-se. Estou morta, pensou Julia.
Não conseguia imaginar um cenário em que pudesse escapar sem sofrer
danos físicos sérios ou pior. Compreendendo que não podia esperar nem
mais um segundo, largou o telefone e abriu a janela, preparando-se para
rastejar para o telhado, de onde teria, possivelmente, de saltar. Quando
estava a tentar trepar para o parapeito, o jipe de Gabriel entrou na rampa a
chiar. Julia viu-o sair do carro e atravessar o relvado a correr. Gabriel
chamava-a, gritando, e Simon praguejava. Passos rápidos, ligeiros
reverberavam da escada, e seguiram-se sons de uma luta corpo a corpo e
uma torrente de insultos. Algo pesado caiu no chão. Alguém rolou pela
escada.
Julia arrastou-se até à sua porta quase destruída, esforçando-se por ouvir.
Os ruídos pareciam vir agora do exterior. Coxeou novamente para a janela,
e viu Simon deitado na relva. Continuava a praguejar e tinha uma mão a
cobrir o nariz. Arquejando, Julia viu-o levantar-se, cambaleando, sangue
escorrendo-lhe da cara. Num piscar de olhos, o sangue do nariz de Simon
misturou-se com sangue da sua boca, quando o gancho direito de Gabriel
lhe rebentou o lábio, fazendo saltar alguns dentes.
— Imbecil! — Simon cuspiu os dentes e lançou-se contra Gabriel.
Embora em desvantagem, conseguiu atingir Gabriel com um murro no
peito.
Gabriel desequilibrou-se, vacilou. Simon deu mais um passo à frente,
tentando aproveitar o momento de fraqueza do seu adversário. Recuperando
depressa, Gabriel atingiu o estômago de Simon com um murro da mão
direita e outro da esquerda. Contorcendo-se de dor, Simon caiu de joelhos.
Gabriel endireitou os ombros devagar e fez o pescoço estalar, virando-o
para o lado. Parecia bastante descontraído, com o seu casaco de tweed e a
sua camisa Oxford. Dir-se-ia que estava a caminho de uma reunião na
faculdade, e não a dar uma sova ao filho de um senador de Filadélfia.
— Levanta-te — ordenou Gabriel, numa voz que arrepiou Julia.
Simon gemeu.
— Eu disse levanta-te! — Gabriel estava de pé ao lado de Simon, como
um anjo de vingança, lindo e terrível e sem misericórdia.
Como Simon não se moveu, Gabriel agarrou-o pelo cabelo, puxando-lhe
a cabeça para trás.
— Se pensares sequer em voltar a aproximar-te dela, mato-te. Só estás
vivo, neste momento, porque a Julianne ficaria perturbada se me visse ir
para a prisão. E não vou deixá-la sozinha depois do que lhe fizeste, seu
cabrão tarado. Se uma fotografia ou um vídeo de uma mulher parecida com
ela acabar na internet ou num jornal, vou à tua procura. Já tive contas a
ajustar com uns quantos sulistas de Boston e posso gabar-me de ter
sobrevivido. Por isso, não penses que hesitarei em esmagar-te o crânio da
próxima vez.
Gabriel endireitou-se e, com um golpe da mão esquerda, desfez o queixo
do seu adversário. Simon tombou para o chão, onde permaneceu
absolutamente imóvel. Tirando um lenço do bolso das suas calças de lã,
Gabriel limpou calmamente o sangue que tinha nas mãos. Nesse momento,
Julia apareceu à porta da frente, e coxeou ao seu encontro.
— Julia! — Segurou-a nos braços quando ela estava prestes a cair das
escadas. — Estás bem?
Fê-la sentar-se no chão, encostando-a ao seu peito.
— Julia! — Puxou-lhe o cabelo para trás, para poder examiná-la. Tinha
os lábios vermelhos e inchados, arranhões no pescoço, um olhar
transtornado, e seria aquilo… uma enorme mordedura?
Aquele maldito animal mordeu-a!
— Estás bem? Ele…? — Gabriel inspecionou-lhe a roupa, receando o
que poderia encontrar. Mas não, as roupas não estavam rasgadas, e Julia
estava, graças a Deus, vestida, embora tivesse a camisa desabotoada.
Fechando os olhos, Gabriel agradeceu a Deus por não ter chegado nem
um minuto mais tarde. Nem queria pensar no que poderia ter encontrado.
— Vem comigo — disse com firmeza, despindo o casaco e colocando-o
sobre os ombros de Julia. Abotoou-lhe rapidamente a camisa e carregou-a
até ao carro, sentando-a e fechando a porta.
— Que aconteceu? — perguntou, ao sentar-se junto dela. Julia agarrava o
tornozelo magoado e balbuciava para consigo.
— Julia? — Não obtendo resposta, Gabriel estendeu a mão para lhe
afastar o cabelo dos olhos.
Julia encolheu-se e chegou-se para a porta.
Ele ficou paralisado.
— Julia, sou eu. O Gabriel. Vou levar-te para o hospital, está bem?
Julia não deu sinal de o ter ouvido. E não tremia nem chorava. Está em
choque, pensou Gabriel, pegando no telefone.
— Richard? A Julia não está bem. — Fez uma pausa e olhou para ela. —
O ex-namorado dela apareceu e atacou-a. Vou levá-la para o hospital de
Sunbury. Sim, podes ir lá ter connosco, se quiseres. Até já.
Olhou-a novamente, tentando estabelecer contacto visual.
— O Richard vai encontrar-se connosco no hospital de Sunbury. Vai
telefonar a um amigo seu que é médico.
Não conseguindo uma reação de Julia, procurou o número da Estação dos
Bombeiros de Selinsgrove. Deixou uma mensagem urgente para Tom,
explicando o que sucedera e dizendo que ia levar Julia para o hospital.
A culpa é do maldito do pai dela. Por que raio foi deixá-la sozinha?
— Esbofeteei-o. — A voz de Julia, aguda e estranha, interrompeu-lhe os
pensamentos.
— Fizeste o quê?
— Ele beijou-me… eu esbofeteei-o. Peço desculpa. Peço muita desculpa.
Não volto a fazê-lo. Não queria beijá-lo.
Naquele momento terrível, Gabriel sentiu-se grato por ter de levar Julia
ao hospital. Se não precisasse de cuidar dela, teria dado meia-volta para ir
acabar com Simon. Para acabar com ele de vez.
Ela começou a dizer as coisas mais estranhas. Murmurava a respeito de
ele a beijar e falava em Natalie, e depois algo sobre Gabriel já não a querer
porque ela fora marcada e porque seria uma porcaria de queca…
Que lhe fez ele?
— Chhhh, Beatriz. Olha para mim. Beatriz?
Foram precisos alguns instantes para que o nome de outros tempos
ganhasse sentido para ela, mas quando isso aconteceu, Julia encarou-o, e o
seu olhar aturdido focou-se, aos poucos, no rosto de Gabriel.
— Não tens culpa de nada disto. Está bem? Não tens culpa que ele te
tenha beijado.
— Não queria trair-te. Desculpa — murmurou.
O tom em que ela falava, o pânico nos seus olhos… Gabriel engoliu bílis
amarga.
— Julia, não me traíste. Está bem? E fico contente por lhe teres batido.
Ele merecia isso e muito, muito pior. — Gabriel abanou a cabeça,
perguntando-se, horrorizado, o que de facto acontecera antes da sua
chegada.
Quando chegou ao hospital, Richard encontrou o seu filho e Julia na sala
de espera. Gabriel afagava-lhe o cabelo e falava-lhe em voz baixa. Era uma
cena terna, mas o nível de intimidade entre os dois surpreendeu-o.
Surpreendeu-o muito.
Enquanto esperavam que o seu amigo chegasse, Richard examinou
cuidadosamente o tornozelo de Julia. Ela deixou escapar um grito. Richard
olhou de viés para o filho, que mordia os nós dos dedos para controlar as
suas reações.
— Penso que o teu tornozelo não está partido, mas não há dúvida de que
sofreu uma lesão. Gabriel, porque não vais buscar umas chávenas de chá
para tomarmos, e uns biscoitos, talvez?
Gabriel tirou os dedos da boca.
— Não vou deixá-la.
— É só por um minuto. Quero falar com a Julia.
Gabriel anuiu com relutância e desapareceu na direção da cafetaria.
Richard não pôde deixar de reparar no pescoço de Julia. A marca da
dentada era evidente, a marca do beijo não tanto. Os seus olhos pousaram
no lugar onde o filho estivera pouco antes. A marca do beijo não era
recente; teria um dia ou dois. A relação entre Gabriel e Julia era,
obviamente, mais íntima do que Richard supusera.
— A Grace fazia voluntariado neste hospital, sabias?
Julia anuiu.
— Ao longo dos anos, passou por muitas unidades, mas a maior parte do
seu trabalho foi com vítimas de maus-tratos. — Richard suspirou. —
Testemunhou muitas situações tristes, algumas das quais envolvendo
crianças. Alguns desses casos terminaram com fatalidades.
Olhou Julia nos olhos.
— Vou dizer-te o que a Grace costumava dizer aos seus pacientes. Não
tens culpa do que aconteceu. Não importa o que fizeste ou não fizeste, não
merecias isto. E neste momento, não consigo lembrar-me de outra altura em
que tenha sentido mais orgulho do meu filho.
Julia olhou para o seu tornozelo magoado, permanecendo calada.
Passados instantes, um homem asiático de aspeto simpático veio ter com
eles.
— Richard — disse, estendendo a mão.
Richard pôs-se imediatamente de pé para cumprimentar o amigo.
— Stephen, quero apresentar-te a Julia Mitchell. É uma amiga da família.
Julia, este é o doutor Ling.
Stephen anuiu e deu instruções a uma enfermeira para que acompanhasse
Julia até uma sala de observação. Seguiu-as pouco depois, tendo garantido a
Richard que trataria dela como se fosse sua própria filha.
Sabendo que Julia se encontrava em boas mãos, Richard decidiu ir ter
com o filho à cafetaria. Mal saiu para o corredor, ouviu Gabriel a discutir
com Tom Mitchell. Em voz alta.
— Acho que sei melhor do que tu avaliar o caráter de uma pessoa. —
Tom falava junto à cara de Gabriel, tentando intimidá-lo fisicamente, mas
Gabriel fazia-lhe frente.
— Bem, obviamente não sabe, senhor Mitchell, ou eu não teria precisado
de arrastar aquele animal da sua casa antes que ele violasse a sua filha na
porra do seu próprio quarto.
— Meus senhores, estamos num hospital. Vão falar lá para fora. —
Richard aproximou-se, olhando-os severamente.
Tom cumprimentou brevemente o seu amigo, depois voltou-se para
Gabriel.
— Fico contente por a Julia estar bem. E se foste tu que a salvaste, estou
em dívida para contigo. Mas acabei de receber um telefonema de um agente
da polícia a dizer-me que deste uma sova ao filho do senador Talbot. Como
hei de saber se não foste tu a começar isto tudo? Tu é que és o drogado!
— Faço um teste de drogas. — Os olhos de Gabriel faiscavam. — Não
tenho nada a esconder. Em vez de se preocupar com o filho do senador, não
acha que devia estar um bocadinho mais preocupado com a sua filha?
Proteger a Julianne era tarefa sua. A sua tarefa como pai. E tem feito uma
bela merda de trabalho ao longo da vida dela. Valha-me Deus, Tom. Como
pôde deixá-la voltar para casa da mãe, quando ela era criança?
Tom cerrava os punhos com uma tal força que parecia prestes a rebentar
os vasos sanguíneos das suas mãos.
— Não sabes do que estás a falar, por isso o melhor é fechares o bico. É
preciso teres lata para me dares lições a respeito da minha filha. Não passas
de um viciado em coca com uma história de violência. Não te aproximes
dela, ou mando-te para a prisão.
— Não sei do que estou a falar? Ora, Tom, deixe de enfiar a cabeça na
sua merda! Estou a falar de todos os tipos que entravam e saíam a toda a
hora do apartamento em St. Louis, a comerem a sua ex-mulher à frente da
sua filha. E não fez absolutamente nada. Foi buscá-la antes de ela entrar
para as estatísticas dos maus-tratos infantis, e depois entregou-a outra vez à
mãe. Porquê? Era uma delinquente de nove anos de idade? Demasiado
carente, talvez? Ou você é que estava muito ocupado a ser comandante dos
bombeiros?
Tom lançou a Gabriel um olhar de puro ódio. Teve de apelar a todo o seu
autocontrolo para se impedir de o esmurrar ou de ir buscar a caçadeira à
carrinha para lhe dar um tiro. Mas não ia fazer nem uma coisa nem outra
junto a uma sala de espera cheia de testemunhas. Em vez disso, dirigiu mais
alguns insultos a Gabriel e caminhou pesadamente até à receção, para tratar
do pagamento da conta do hospital.
Quando Julia regressou, de muletas, Tom já estava mais calmo. Deixou-
se ficar à porta do serviço de urgências, consumido pela culpa.
Gabriel foi imediatamente ter com Julia, franzindo o sobrolho ao ver o
seu tornozelo ligado.
— Estás bem?
— Não está partido. Obrigada, Gabriel. Não sei o que teria… — Engoliu
as palavras, lágrimas rolando-lhe dos olhos pela primeira vez nessa noite.
Gabriel pôs-lhe um braço em redor dos ombros e beijou-a
carinhosamente na testa.
Tom assistiu àquele momento partilhado entre a sua filha e o violento
mas valente marginal, e foi ter com Richard. Os dois amigos conversaram
brevemente antes de apertarem as mãos.
— Jules? Queres vir para casa? O Richard diz que tem muito gosto em
receber-te em sua casa, se preferires. — Tom arrastou os pés, sentindo-se
desconfortável.
— Não posso ir para casa. — Julia deixou Gabriel e abraçou o pai. Com
os olhos rasos de água, Tom sussurrou-lhe um pedido de desculpas ao
ouvido, e foi-se embora.
Richard despediu-se do casal, deixando Julia a enxugar as lágrimas.
Gabriel voltou-se imediatamente para ela.
— Passamos pela farmácia a caminho da casa do Richard. De certeza que
a Rachel tem roupa para te emprestar, ou posso emprestar-te algumas coisas
minhas. A não ser que queiras passar por casa para ires buscar a tua mala.
— Não consigo lá voltar — disse Julia, num fio de voz, encolhendo-se.
— E não terás de voltar.
— E ele?
— Já não tens de te preocupar com ele. A polícia já foi buscá-lo.
Julia olhou-o nos olhos e quase se perdeu na ternura e na preocupação
que viu neles.
— Amo-te, Gabriel.
A princípio, Gabriel não reagiu às suas palavras, limitando-se a olhá-la
como se não a tivesse ouvido. Depois, a sua expressão suavizou-se. Puxou-
a para si, muletas e tudo, e beijou-a na cara, sem dizer uma palavra.
Capítulo Vinte e Oito
H oras mais tarde, com a casa às escuras e depois de todos estarem nos
seus quartos, Julia esgueirou-se para o quarto de Gabriel levando
apenas uma camisa de noite azul vestida. Gabriel encontrava-se sentado na
cama, a ler. Estava em tronco nu e tinha os óculos postos, os joelhos
descontraidamente fletidos.
— Olá. — Sorriu, pousando Fim de Caso na mesa de cabeceira. — Estás
encantadora.
Julia segurou ambas as muletas com uma mão e puxou uma ponta da
camisa de noite, agradecida.
— Obrigada por teres ido buscar as minhas coisas a casa do meu pai.
— Não tens de quê. — Estendeu-lhe a mão, e Julia enfiou-se na cama ao
seu lado.
Começou a beijá-la e só depois se apercebeu de que ela ainda tinha a
écharpe de Grace ao pescoço. Agarrou uma ponta do tecido.
— Porque é que ainda trazes isto?
Julia baixou os olhos.
— Não quero que tenhas de olhar para a marca.
Gabriel ergueu-lhe o queixo.
— Não precisas de te esconder de mim.
— É feia. Não quero que te lembres.
Gabriel olhou-a nos olhos, como se procurasse algo. Depois, lentamente,
desenrolou-lhe a écharpe, fazendo-a deslizar-lhe suavemente pela nuca e
apanhando-a com uma mão. Julia arrepiou-se ao sentir o toque da seda
combinado com o olhar intenso de Gabriel. Pousando a écharpe na mesa de
cabeceira, Gabriel inclinou-se para beijar repetidamente a marca no pescoço
de Julia.
— Ambos temos cicatrizes, Julia. As minhas só não estão na pele.
— Quem me dera que não fosse assim — murmurou ela. — Quem me
dera ser perfeita.
Gabriel abanou tristemente a cabeça.
— Gostas de Caravaggio?
— Muito. O Sacrifício de Isaac é o meu quadro favorito.
Gabriel anuiu.
— Sempre preferi A Incredulidade de São Tomé. O Richard tem uma
reprodução no seu escritório. Estive a vê-la hoje.
— Sempre achei essa pintura… estranha.
— E é estranha. Jesus aparece a São Tomé após a ressurreição, e Tomé
pousa o dedo no ferimento de lança que Jesus tem no corpo. É bastante
profundo.
Julia não estava a perceber a profundidade da ideia, mas ficou calada.
— Se queres esperar até a tua cicatriz desaparecer, Julianne, vais esperar
para sempre. As marcas não desaparecem. O quadro de Caravaggio
mostrou-mo claramente. As feridas podem sarar e podemos esquecê-las
com o passar do tempo, mas são permanentes. Nem Jesus perdeu as suas
cicatrizes. — Gabriel esfregou o queixo, pensativo.
— Se me tivesse dado ao incómodo de deixar de ser egoísta, teria
percebido isso. E teria tratado melhor a Grace e o resto da minha família.
Teria sido melhor para ti em setembro e em outubro. — Clareou a voz. —
Espero que me perdoes pelas marcas que te deixei. Devem ser muitas.
Julia rastejou para o colo dele e beijou-o com determinação.
— Foste perdoado há muito tempo e por muito mais do que deixar
marcas. Por favor, não vamos voltar a falar sobre isto.
Os dois quase-amantes partilharam um momento de silêncio, e só depois
Gabriel perguntou a Julia como correra o jantar.
Julia fez um sorriso presumido.
— Ele chorou.
Gabriel arqueou as sobrancelhas. O Tom Mitchell chorou? Não acredito.
— Descreveu-me o estado em que encontrou a casa. E quando lhe contei
o que aconteceu antes de me salvares, chorou. Contei-lhe algumas das
brigas que tive com ele, e alguns dos insultos que ouvi. E o meu pai chorou,
no meio de um restaurante chique. — Julia abanou a cabeça. — Chorámos
os dois. Foi uma confusão.
Gabriel afastou-lhe o cabelo da cara, para poder vê-la melhor.
— Lamento que tenha sido assim.
— Havia coisas que precisava de lhe dizer, e ele escutou-me… talvez
pela primeira vez na minha vida. Pelo menos, está a esforçar-se, o que já é
um grande passo. E depois de tudo isso estar dito, falámos sobre ti. Quis
saber há quanto tempo estamos juntos.
— E que lhe disseste?
— Disse-lhe que não estamos juntos há muito tempo, mas que… gosto de
ti. Disse-lhe que me tens ajudado muito e que és importante para mim.
— Disseste-lhe o que eu sinto por ti?
Julia fez um ar tímido.
— Bem, deixei de fora a parte de quereres fazer amor comigo em
Florença, mas disse-lhe que gostas de mim.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Gosto de ti? Ora, Julianne, não conseguiste fazer melhor?
Ela encolheu os ombros.
— É meu pai. Não quer os pormenores sentimentais. Quer saber se ainda
te drogas e se te metes em brigas. E se te tornaste monógamo.
Gabriel fez uma careta.
Julia abraçou-o.
— Disse-lhe que és um cidadão exemplar, claro, que me tratas como a
uma princesa, e que não te mereço.
— Bem, aí está uma mentira. — Beijou-a na testa. — Eu é que não te
mereço.
— Disparate.
Beijaram-se calmamente por alguns momentos, depois Gabriel tirou os
óculos e pousou-os sobre o livro. Apagou a luz e aninhou-se deliciosamente
junto dela.
Mesmo quando estavam a adormecer, Julia murmurou-lhe.
— Amo-te.
Como Gabriel não respondeu, Julia calculou que já estivesse a dormir.
Suspirou baixinho e fechou os olhos, encostando-se um pouco mais ao seu
peito. Um braço forte rodeou-lhe a cintura, estreitando-a ainda mais.
Julia ouviu-o respirar fundo.
— Também te amo, Julianne Mitchell.
Capítulo Trinta
Julia sorriu para o ecrã do seu iPhone de tal modo que até o iPhone
corou. Depois teclou a sua mensagem.
G, também sinto a tua falta. Estou a terminar um ensaio para um seminário sobre Dante que
é de doidos. Provavelmente vou passar a noite acordada. O professor é uma brasa, mas
muito exigente. Amo-te, Julia
O ÊXTASE DE GABRIEL
Julia riu baixinho, aliviada por Gabriel estar a tomar duche e não a
espreitar por cima do seu ombro. Não havia de gostar que a irmã estivesse a
fazer perguntas tão pessoais. Julia compôs mentalmente o e-mail para a sua
amiga antes de premir “responder”.
Olá, Rachel.
O hotel é lindo. O Gabriel tem sido encantador e ofereceu-me os brincos de diamante da tua
mãe. Sabias disto? Sinto-me um pouco culpada, por isso gostava de saber se não te
importas.
Quanto à tua outra pergunta, SIM. O teu irmão trata-me bem, e estou MUITO feliz.
Dá um beijinho meu ao Aaron. Estou ansiosa pelo Natal.
Adoro-te, Julia.
PS: Espero que a namorada do Scott seja mesmo professora. O Gabriel nunca mais se vai
calar.
O segundo e-mail era de Paul. Paul lamentava não ter Julia para si, mas
estava grato por ter conservado a sua amizade. Preferia guardar os seus
sentimentos para si do que perdê-la por completo. E tinha de admitir que
desde que ela tinha aquele namorado, o tal de Owen, até a sua pele reluzia.
(Não que Paul mencionasse tal coisa.)
Olá, Julia.
Desculpa não ter conseguido despedir-me antes de ires para casa. Espero que tenhas um
feliz Natal. Tenho um presente para ti. Importas-te de me dar a tua morada na Pensilvânia,
para to enviar?
Já estou na quinta, a tentar arranjar tempo para trabalhar na dissertação entre grandes
encontros de família e o levantar-me cedo para dar uma ajuda ao meu pai. Digamos que a
minha rotina diária aqui envolve muito estrume…
Queres que te leve alguma coisa de Vermont?
Uma Holstein só para ti?
Feliz Natal,
Paul.
PS: Soubeste que o Emerson aceitou a proposta de tese da Christa Peterson? Parece que o
Advento é mesmo a época dos milagres.
SHERRILYN KENYON
Uma celebridade generosa que tudo oferecia e nada pedia em troca… até
ser enganado pelos que o rodeavam. Agora Aidan nada quer do mundo ou
sequer fazer parte dele.
Quando uma estranha mulher aparece à sua porta, Aidan sabe que já a viu
antes… nos seus sonhos.
Uma deusa nascida no Olimpo, Leta nada sabe do mundo dos humanos.
Mas um inimigo implacável expulsou-a do mundo dos sonhos e para os
braços do único homem capaz de a ajudar: Aidan. Os poderes imortais da
deusa derivam de emoções humanas, e a raiva de Aidan é todo o
combustível que precisa para se defender…
Uma fria noite de inverno irá mudar as suas vidas para sempre…