O Inferno de Gabriel - Sylvain Reynard

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Ficha Técnica

TÍTULO: O Inferno de Gabriel


AUTORIA: Sylvain Reynard
EDITOR: Luís Corte-Real
Esta edição © 2013 Edições Saída de Emergência
Título original Gabriel’s Inferno © 2011 Sylvain Reynard.
Publicado originalmente nos E.U.A.
por Omnific Publishing, 2011.
TRADUÇÃO: Ester Cortegano e Patrícia Xavier
REVISÃO: Saída de Emergência
DESIGN DA CAPA: Saída de Emergência
ILUSTRAÇÃO DA CAPA: Saída de Emergência
DATA DE EDIÇÃO E-BOOK: Setembro, 2013
ISBN: 978-989-637-577-5
EDIÇÕES SAÍDA DE EMERGÊNCIA
R. Adelino Mendes n.º 152, Quinta do Choupal, 2765-082
S. Pedro do Estoril, Portugal
TEL E FAX: 214 583 770
WWW.SAIDADEEMERGENCIA.COM
In memoriam Maiae.

Resurgam.

Dante e Virgílio atravessam o rio Estige.


Gravura de 1870 por Gustave Dore.
Prólogo

Florença, 1283

O poeta parou logo a seguir à ponte e ficou a observar a jovem que se


aproximava. Todo o movimento no mundo quase cessou quando ele
viu aqueles grandes olhos escuros e o cabelo castanho, elegantemente
encaracolado.
Ao princípio, não a reconheceu. A sua beleza era de cortar a respiração, o
seu movimento, seguro e gracioso. E, no entanto, houve alguma coisa
naquele rosto e silhueta que lhe fez lembrar a rapariga por quem se
apaixonara tanto tempo antes. As vidas de ambos tinham tomado caminhos
diferentes, e ele sempre pranteara a sua ausência, a ausência do seu anjo, da
sua musa, da sua amada Beatriz. Sem ela, a vida fora solitária e pequenina.
Agora aparecia a sua bem-aventurança.
Quando a jovem se aproximou com as companheiras, ele curvou cabeça e
tronco numa saudação cavalheiresca. Não tinha esperança de que a sua
presença fosse reconhecida. Ela era, ao mesmo tempo, perfeita e intocável,
um anjo de olhos castanhos com um vestido de um branco resplandecente,
enquanto ele era mais velho, gasto e destituído de virtudes.
A mulher estava quase a ultrapassá-lo quando os olhos dele, lançados ao
chão, captaram uma das suas chinelas — uma chinela que hesitou mesmo
na sua frente. Com o coração a bater furiosamente, o poeta aguardou, sem
fôlego. Uma voz suave e gentil penetrou as suas recordações, quando ela
lhe falou gentilmente. Os seus olhos atemorizados voaram para os dela.
Durante anos e anos, ansiara por aquele momento, sonhara, até, com ele,
mas nunca tinha imaginado encontrá-la daquela forma tão inesperada. E
nunca ousara esperar ser cumprimentado com tanta doçura.
Apanhado desprevenido, balbuciou as suas graças e permitiu-se a
indulgência de um sorriso — um sorriso que lhe foi retribuído dez vezes
mais pela sua musa. Sentiu o coração inchar dentro de si quando o amor que
por ela sentia se multiplicou e o queimou, como um inferno, no seu peito.
Infelizmente, a conversa foi demasiado breve, antes de ela declarar que
precisava de partir. O poeta fez-lhe uma vénia antes de a ver partir
apressadamente, e depois endireitou-se para olhar para a sua figura em
retirada. A alegria experimentada pelo encontro foi temperada por uma
emergente tristeza, ao perguntar-se se alguma vez a voltaria a ver…
Capítulo Um

–M enina Mitchell?
A voz do professor Gabriel Emerson atravessou a sala de
seminário até alcançar a atraente jovem de olhos castanhos sentada ao
fundo. Perdida em pensamentos, ou perdida na tradução, estava de cabeça
baixa a escrever furiosamente no seu caderno.
Dez pares de olhos viraram-se para ela, para o rosto pálido de longas
pestanas, os finos dedos brancos agarrados à caneta. Depois, dez pares de
olhos regressaram ao professor, que ficara perfeitamente imóvel e começara
a franzir o sobrolho. A sua pose contundente contrastava fortemente com a
simetria geral das suas feições, com os olhos grandes e expressivos, a boca
cheia. Era rudemente atraente, mas, naquele momento, a azeda severidade
estampada no rosto arruinava o efeito, de um modo geral, agradável da sua
aparência.
— Cof, cof. — Uma tosse modesta à direita da rapariga captou a sua
atenção. Surpreendida, ergueu o olhar para o homem de ombros largos
sentado ao seu lado. Ele sorriu e fez sinal com os olhos para a frente da
sala, onde estava o professor.
Ela seguiu o seu olhar, lentamente, e viu um par de olhos azuis
perfurantes e zangados. Engoliu ruidosamente em seco.
— Estou à espera de uma resposta à minha pergunta, menina Mitchell. Se
quiser fazer o favor de se juntar a nós. — A voz era glacial, tal como os
olhos.
Os outros estudantes remexeram-se nas cadeiras e olharam furtivamente
uns para os outros. As suas expressões diziam o que foi que lhe deu? Mas
não disseram nada. (Pois é do conhecimento comum que os alunos de pós-
graduação são avessos a confrontar os seus professores com respeito a
qualquer assunto, quanto mais a um comportamento indelicado.)
A jovem abriu a boca ligeiramente e depois fechou-a, presa por aqueles
olhos azuis que não pestanejavam, e os seus próprios olhos pareciam os de
uma coelha assustada.
— A sua língua materna é o inglês? — troçou ele.
Uma mulher de cabelo preto sentada à direita do professor tentou abafar
uma gargalhada, disfarçando-a com um acesso de tosse muito pouco
convincente. Todos os olhos se voltaram para a coelha assustada, cuja pele
explodiu em carmesim quando ela baixou a cabeça, escapando finalmente
ao olhar fixo do professor.
— Uma vez que a menina Mitchell parece estar a frequentar um
seminário paralelo numa língua diferente, talvez alguém possa ter a
gentileza de responder à minha pergunta?
A beldade à sua direita estava ansiosa por isso. Voltou-se de frente para
ele e fez um sorriso radiante enquanto respondia à pergunta com grandes
pormenores, exibindo-se com largos gestos enquanto citava Dante no seu
italiano original. Quando terminou, sorriu acidamente para o fundo da sala,
depois ergueu de novo o olhar para o professor e suspirou. A única coisa
que faltou à sua atuação foi saltar rapidamente para o chão e esfregar as
costas à perna dele, para lhe mostrar que seria o seu animal de estimação
para sempre. (Não que ele tivesse apreciado um tal gesto.)
O professor franziu ligeiramente o sobrolho para ninguém em particular e
virou as costas para escrever no quadro. A coelha assustada pestanejou para
ocultar as lágrimas enquanto continuava a escrever, mas, felizmente, não
chorou.
Alguns minutos mais tarde, enquanto o professor continuava a arengar
sobre o conflito entre os guelfos e os gibelinos, um pequeno quadrado de
papel dobrado apareceu em cima do dicionário de italiano da coelha
assustada. Ao princípio, ela não reparou, mas, mais uma vez, um tossicar
suave atraiu a sua atenção para o homem atraente ao seu lado. Ele sorriu
mais abertamente, desta vez, quase com ansiedade, e o seu olhar indicou o
papel.
Ela viu-o e pestanejou. Olhando cuidadosamente para as costas do
professor, que desenhava círculos intermináveis em volta de intermináveis
palavras italianas, baixou o papel para o colo enquanto o desdobrava em
silêncio.
O Emerson é um imbecil.
Ninguém poderia ter reparado porque ninguém estava a olhar para ela,
exceto o homem ao seu lado. Assim que leu aquelas palavras, um tipo
diferente de rubor surgiu-lhe no rosto, duas nuvens rosadas na curva das
faces, e ela sorriu. Não o suficiente para mostrar os dentes, ou a sugestão de
umas covinhas, ou mesmo uma ou duas rugas de expressão, mas um sorriso,
de qualquer maneira.
Ergueu os grandes olhos para o homem ao seu lado e encarou-o
timidamente. Um enorme sorriso amigável espalhou-se pelo rosto dele.
— Achou graça a alguma coisa, menina Mitchell?
Os olhos castanhos dilataram-se de terror. O sorriso do seu novo amigo
desapareceu rapidamente, enquanto ele se voltava para olhar para o
professor.
A jovem sabia que era melhor não voltar a fixar aqueles frios olhos azuis.
Em vez disso, baixou a cabeça e começou a atormentar o lábio inferior
entre os dentes, para a frente e para trás, para a frente e para trás.
— A culpa foi minha, professor. Estava só a perguntar em que página
íamos — intercedeu o homem simpático a seu favor.
— Não propriamente uma pergunta adequada para um estudante de
doutoramento, Paul. Mas, uma vez que pergunta, começámos com o
primeiro canto. Creio que o conseguirá encontrar sem a ajuda da menina
Mitchell. Ah, e, menina Mitchell?
O rabo-de-cavalo da coelha assustada tremia ligeiramente quando ela
ergueu o olhar.
— Venha ao meu gabinete depois da aula.
Capítulo Dois

N o final do seminário, Julia Mitchell enfiou à pressa o pedaço de papel


dobrado que deixara no colo dentro do dicionário de italiano, debaixo
da entrada asino.
— Peço desculpa pelo que aconteceu. Chamo-me Paul Norris. — O
homem simpático estendeu a grande mão sobre a mesa. Julia apertou-lha
suavemente, e ele maravilhou-se com a pequenez da mão dela em
comparação com a sua. Poderia magoá-la só por fechar a mão.
— Olá, Paul. Sou a Julia. Julia Mitchell.
— Prazer em conhecer-te, Julia. Lamento que tenha sido tão estúpido, “O
Professor”. Não sei o que foi que lhe deu. — Paul atribuiu a Emerson o seu
título preferido com uma boa dose de sarcasmo.
Ela corou ligeiramente e voltou-se para os seus livros.
— És nova aqui? — persistiu Paul, inclinando um pouco a cabeça, como
se estivesse a tentar captar o olhar dela.
— Acabei de chegar. Da universidade Saint Joseph.
Ele anuiu, como se isso lhe dissesse alguma coisa.
— E estás aqui a fazer o mestrado?
— Sim. — Ela fez um aceno com a cabeça na direção da sala de
seminário agora vazia. — Não deve ter parecido, mas, supostamente, estou
a fazer uma especialização em Dante.
Paul assobiou entre os dentes.
— Então estás aqui por causa do Emerson?
Julia anuiu e ele reparou que as veias no seu pescoço começavam a
pulsar ligeiramente, à medida que o seu coração se acelerava. Uma vez que
não conseguia encontrar uma explicação para esta reação, ignorou-a. Mas
lembrar-se-ia dela mais tarde.
— É difícil trabalhar com ele, por isso não tem muitos alunos. Eu estou a
escrever a minha dissertação com ele, e há também a Christa Peterson, que
já conheces.
— Christa? — Ela fez-lhe um olhar interrogativo.
— A cabra ali da frente. Também está a fazer o doutoramento, mas o seu
objetivo é ser a futura senhora Emerson. Só agora começou o programa e já
lhe anda a fazer bolinhos, a passar pelo gabinete dele, a deixar-lhe
mensagens telefónicas. É inacreditável.
Julia anuiu de novo, mas não disse nada.
— A Christa parece não se ter apercebido da política estritamente não-
confraternização estabelecida pela universidade de Toronto. — Paul revirou
os olhos e foi recompensado com um sorriso muito bonito. Disse a si
mesmo que teria de fazer com que Julia Mitchell sorrisse mais vezes. Mas
isso teria de ser adiado, por enquanto.
— É melhor ires embora. Ele queria falar contigo depois da aula, e já
deve estar à espera.
Julia enfiou rapidamente as suas coisas numa velha mochila L.L. Bean
que usava desde os tempos de caloira na faculdade.
— Humm, não sei onde é o gabinete dele.
— Vira à esquerda à saída da sala de seminário, depois outra vez à
esquerda. Ele tem o gabinete de canto ao fundo do corredor. Boa sorte, e
vejo-te na próxima aula, se não antes.
Ela fez-lhe um sorriso agradecido e saiu da sala de seminário.
Ao dobrar a esquina, viu que a porta do gabinete d’O Professor estava
entreaberta. Parou nervosamente à entrada e ficou a pensar se deveria bater
primeiro ou enfiar a cabeça pela abertura. Depois de um momento de
deliberação, optou pela primeira hipótese. Endireitando os ombros, respirou
fundo e encostou os nós dos dedos à porta de madeira. Foi nesse momento
que o ouviu.
— Desculpa lá por não te ter ligado. Estava no meu seminário! — bradou
uma voz zangada que lhe era agora demasiado familiar. Fez-se um breve
silêncio antes de ele continuar. — Porque é o primeiro seminário do ano,
idiota, e porque na última vez que falei com ela disse-me que estava bem!
Julia recuou de imediato. Ele parecia estar ao telefone, a gritar. Não
queria ouvi-lo gritar com ela, por isso decidiu fugir e lidar com as
consequências mais tarde. Mas um soluço estarrecedor soltou-se da
garganta dele e assaltou-lhe os ouvidos. E disso não conseguiu fugir.
— Claro que eu queria lá estar! Eu amava-a. Claro que queria lá estar. —
Outro soluço emergiu do outro lado da porta. — Não sei a que horas chego.
Diz-lhes que vou a caminho. Vou diretamente para o aeroporto e apanho um
avião, mas não sei que voo vou conseguir apanhar mesmo em cima da hora.
Uma pausa.
— Eu sei. Diz-lhes que lamento. Lamento muito… — A voz dele
desvaneceu-se num suave grito trémulo, e Julia ouviu-o desligar o telefone.
Sem ponderar as suas ações, Julia espreitou cuidadosamente pela porta.
O homem de trinta e poucos anos segurava a cabeça entre as mãos de
dedos longos, com os cotovelos sobre a secretária, e chorava. Ela viu os
seus ombros largos tremerem. Ouviu a angústia e a dor que lhe rasgavam o
peito. E sentiu compaixão.
Queria ir ao seu encontro, oferecer-lhe condolências e conforto, e pôr os
braços em volta do seu pescoço. Queria afagar-lhe o cabelo e dizer-lhe que
lamentava. Imaginou brevemente como seria limpar lágrimas daqueles
expressivos olhos cor de safira e vê-los olhá-la com bondade. Pensou dar-
lhe um suave beijo no rosto, só para lhe demonstrar a sua simpatia.
Mas vê-lo chorar como se tivesse o coração destroçado fê-la gelar
momentaneamente, por isso não fez nenhuma dessas coisas. Quando,
finalmente, percebeu onde estava, desapareceu num ápice pela porta, puxou
às cegas um pedaço de papel da sua mochila e escreveu:
Lamento muito.
– Julia Mitchell.

Depois, sem saber muito bem o que fazer, colocou o papel contra a
ombreira, prendendo-o ali quando fechou silenciosamente a porta do
gabinete.

A timidez de Julia não era a sua principal característica. A sua melhor


qualidade, aquela que a definia, era a compaixão, um traço que não
herdara de nenhum dos progenitores. O pai, que era um homem decente,
tendia a ser rígido e inflexível. A mãe, já falecida, não fora compassiva em
nenhum sentido, nem sequer para a sua única filha.
Tom Mitchell era um homem de poucas palavras, mas era bem conhecido
e genericamente apreciado. Era guarda na universidade de Susquehanna e
comandante dos bombeiros de Selinsgrove, na Pensilvânia. Uma vez que o
quartel era inteiramente constituído por voluntários, todos os bombeiros
estavam de serviço a toda a hora. Ele desempenhava este papel com orgulho
e muita dedicação, o que significava que raramente estava em casa, mesmo
quando não estava a responder a nenhuma emergência. Na noite do
primeiro seminário de Julia, ligou-lhe do quartel dos bombeiros, satisfeito
por ela ter finalmente decidido atender o telemóvel.
— Como estão as coisas por aí, Jules? — A sua voz, desprovida de
sentimentalismo mas reconfortante, de qualquer maneira, aqueceu-a como
um cobertor.
Ela suspirou.
— Tudo bem. O primeiro dia foi… interessante, mas tudo bem.
— Esses canadianos tratam-te bem?
— Ah, sim. São todos muito simpáticos. — Os americanos é que são
filhos da mãe. Bem, um americano.
Tom pigarreou uma ou duas vezes, e Julia conteve a respiração. Sabia,
pelos anos de experiência, que ele se preparava para lhe dizer alguma coisa
séria. Perguntou-se o que seria.
— Querida, a Grace Clark faleceu hoje.
Julia endireitou-se na sua cama e olhou em frente.
— Ouviste o que eu disse?
— Sim. Sim, ouvi.
— O cancro regressou. Eles pensavam que ela estava melhor. Mas o
cancro regressou e, quando descobriram, já lhe tinha apanhado os ossos e o
fígado. O Richard e os miúdos estão muito abalados.
Julia mordeu o lábio e conteve um soluço.
— Eu sabia que ia ser difícil para ti. Ela foi como uma mãe, e a Rachel
era muito tua amiga na escola secundária. Tens falado com ela?
— Eeh, não. Não, não tenho. Porque é que ela não me disse nada?
— Não sei bem quando foi que descobriram que a Grace estava outra vez
doente. Passei há pouco pela casa para ver como estava toda a gente, e o
Gabriel nem sequer lá estava. Isso tem criado um grande problema. Não sei
o que ele vai encontrar quando chegar. Há muito ressentimento naquela
família. — Tom praguejou suavemente.
— Estás a pensar enviar flores?
— Acho que sim. Não sou lá muito bom nesse tipo de coisas, mas posso
pedir ajuda à Deb.
Deb Lundy era namorada de Tom. Julia revirou os olhos à menção do
nome dela, mas guardou para si a reação negativa.
— Por favor, pede-lhe para enviar qualquer coisa em meu nome. A Grace
adorava gardénias. E pede à Deb para assinar o cartão por mim.
— Não me esqueço. Precisas de alguma coisa?
— Não, está tudo bem.
— Precisas de dinheiro?
— Não, papá. Com a bolsa de estudo, tenho o suficiente para viver, se for
cuidadosa.
Tom fez uma pausa e, mesmo antes de abrir a boca, ela soube o que o pai
ia dizer.
— Tenho muita pena. A história de Harvard. Talvez para o ano.
Julia endireitou os ombros e obrigou-se a sorrir, mesmo que o pai não a
pudesse ver.
— Talvez. Depois falo contigo.
— Adeus, querida.
Na manhã seguinte, Julia caminhou um pouco mais devagar no seu
percurso para a universidade, usando o iPod como ruído de fundo. Na sua
cabeça, compôs um e-mail de condolências e desculpas a Rachel, e ia
escrevendo e rescrevendo enquanto andava.
A brisa de setembro era quente, em Toronto, tal como preferia. Ela
gostava de estar perto do lago. Gostava da luz do Sol e da simpatia das
pessoas. Gostava das ruas limpas, sem lixo no chão. Gostava do facto de
estar em Toronto e não em Selinsgrove ou Filadélfia — de estar a centenas
de quilómetros dele. Só esperava poder continuar assim.
Estava ainda a escrever mentalmente o e-mail a Rachel quando entrou no
Departamento de Estudos Italianos para ver a sua caixa de correio. Alguém
tocou-lhe no cotovelo e desviou-se da sua periferia.
Ela removeu os auriculares.
— Paul… olá.
Ele sorriu-lhe, do alto da sua estatura. Julia era baixinha, especialmente
de ténis, e o topo da cabeça dela mal chegava à parte inferior dos seus
peitorais.
— Como correu a tua reunião com o Emerson? — O sorriso dele
desvaneceu-se, enquanto a olhava com preocupação.
A jovem mordeu o lábio, um hábito nervoso que queria deixar mas não
conseguia, principalmente porque não era consciente.
— Mm, não correu.
Ele fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Soltou um pequeno
gemido.
— Isso… não é bom.
Julia tentou explicitar a situação.
— Ele tinha a porta do gabinete fechada. Acho que estava ao telefone…
Não tenho a certeza. Por isso deixei-lhe um bilhete.
Paul reparou no nervosismo dela e na maneira como as suas sobrancelhas
delicadamente arqueadas se uniram. Teve pena dela e amaldiçoou
mentalmente O Professor por ter sido tão cáustico. Ela parecia magoar-se
facilmente, e Emerson era indiferente à forma como a sua atitude afetava os
alunos. Por isso, Paul resolveu ajudá-la.
— Se estava ao telefone, não devia querer ser interrompido. Vamos
esperar que tenha sido isso que se passou. Se não, eu diria que puseste a tua
vida em risco. — Endireitou-se e fletiu os braços descontraidamente. — Se
houver alguma repercussão, avisa-me, que eu vejo o que posso fazer. Se ele
gritar comigo, eu aguento. Prefiro que não grite contigo. — Porque, pelo
teu aspeto, eras capaz de morrer com o choque, Coelha Assustada.
Julia parecia querer dizer alguma coisa, mas permaneceu em silêncio.
Sorriu vagamente e fez um gesto de anuência, como que a agradecer.
Depois dirigiu-se para as caixas de correio e esvaziou a sua.
Lixo, principalmente. Alguns anúncios do departamento, incluindo um
relativo a uma conferência pública a ser feita pelo professor Gabriel O.
Emerson intitulada Luxúria no Inferno de Dante: O Pecado Mortal contra o
Eu. Julia leu o título várias vezes antes de o conseguir absorver no seu
cérebro. Mas, uma vez absorvido, começou a cantarolar suavemente para si
mesma.
Cantarolou quando reparou no segundo anúncio, que mencionava que a
conferência do professor Emerson fora cancelada e adiada para data
posterior. E cantarolou quando reparou num terceiro anúncio, que declarava
que todos os seminários, compromissos e reuniões do professor Emerson
tinham sido cancelados até nova informação.
E continuou a cantarolar enquanto retirava do fundo da sua caixa um
pequeno quadrado de papel. Desdobrou-o e leu:
Lamento muito.
– Julia Mitchell.

Continuou a cantarolar enquanto pensava no significado de encontrar o


seu bilhete na caixa de correio um dia depois de o deixar à porta do
professor Emerson. Mas o seu canto finalmente parou, tal como o seu
coração, quando virou o papel e leu o seguinte:
O Emerson é um imbecil.
Capítulo Três

T empos houvera em que, em reação a um evento tão embaraçoso, Julia


teria caído no chão, em posição fetal, possivelmente ficado ali para
sempre. Mas, aos vinte e três anos, já era feita de um material mais forte.
Por isso, em vez de ficar na frente das caixas do correio a pensar como a
sua curta carreira académica acabara de ser reduzida a uma pilha de cinzas
aos seus pés, terminou rapidamente o que tinha a fazer na universidade e
voltou para casa. Pondo de lado todos os pensamentos a respeito da
carreira, Julia fez quatro coisas.
Primeiro, foi buscar algum dinheiro do seu fundo para emergências, que
estava convenientemente localizado numa caixa Tupperware debaixo da
cama.
Segundo, dirigiu-se para a loja de bebidas alcoólicas mais próxima e
comprou uma garrafa muito grande de uma tequila muito barata.
Terceiro, foi para casa e escreveu um longo e apologético e-mail de
condolências a Rachel. Propositadamente, escusou-se a mencionar onde
vivia e o que estava a fazer, e enviou o e-mail da sua conta no Gmail, não
da da universidade.
Quarto, foi às compras. A quarta atividade tinha apenas como intenção
prestar um tributo, um tributo piegas e algo pesaroso, tanto a Rachel como a
Grace, já que ambas adoravam coisas luxuosas, enquanto Julia era, na
realidade, demasiado pobre para compras.
Julia não tinha dinheiro para compras quando fora viver para Selinsgrove
e conhecera Rachel, no penúltimo ano na secundária. Julia mal tinha
dinheiro para compras agora, quando vivia de uma magra bolsa de
mestrado, sem a elegibilidade para trabalhar fora da universidade para
complementar o seu rendimento. Como americana com um visto de
estudante, a sua empregabilidade era limitada.
Enquanto passeava lentamente pelas lindas montras na Bloor Street,
pensou na velha amiga e na mãe emprestada. Parou à frente da loja da
Prada, recordando a primeira e única vez que Rachel a levara às compras a
sapatarias couture. Julia ainda tinha aqueles sapatos de salto alto da Prada
enfiados numa caixa de sapatos ao fundo do seu roupeiro. Só tinham sido
usados uma vez, na noite em que descobrira que fora traída, e, embora
tivesse adorado destruí-los como destruíra o seu vestido, não conseguira.
Rachel comprara-lhos como presente de regresso a casa, embora não tivesse
feito ideia daquilo para o que Julia estava realmente a regressar.
Depois Julia parou, pelo que lhe pareceu uma eternidade, em frente da
loja Chanel e chorou ao recordar Grace. A forma como recebia Julia com
um sorriso e um abraço sempre que ela ia lá a casa. A forma como, quando
a mãe de Julia morrera em circunstâncias trágicas, Grace lhe dissera que a
adorava e que adoraria ser sua mãe, se ela deixasse. Como Grace fora para
ela uma melhor mãe do que Sharon alguma vez fora, para vergonha de
Sharon e embaraço de Julia.
E quando todas as lágrimas se acabaram e as lojas tinham fechado para a
noite, Julia regressou lentamente para o seu apartamento e começou a
castigar-se por ter sido tão má filha emprestada, uma péssima amiga e uma
fedelha insensível, que não pensava em verificar um papel para ver se
estava em branco antes de o deixar, com a sua assinatura, a alguém cuja
mãe adorada acabara de morrer.
O que lhe teria passado pela cabeça quando encontrou o bilhete?
Encorajada por um, ou dois, ou três shots de tequila, Julia permitiu-se fazer
algumas perguntas simples. E o que deve pensar ele agora de mim?
Considerou a hipótese de arrumar todos os seus pertences e apanhar uma
camioneta Greyhound para Selinsgrove, só para não ter de o encarar.
Envergonhava-se de não ter percebido que era de Grace que o professor
Emerson estava a falar ao telefone naquele terrível dia. Mas nem sequer
contemplara a possibilidade de o cancro de Grace ter regressado, quanto
mais que tivesse morrido. E Julia ficara tão perturbada por ter começado da
pior maneira com O Professor. A sua hostilidade era chocante. Mas mais
chocante ainda era o seu rosto enquanto chorava. A única coisa em que
pensara naquele terrível momento fora reconfortá-lo, e esse pensamento
distraíra-a, não a deixara pensar na fonte daquela dor.
Não lhe bastara ficar de coração dilacerado por saber da morte de Grace,
sem ter tido oportunidade de se despedir ou de lhe dizer que a amava. Não
lhe bastara que alguém, provavelmente o seu irmão Scott, o tivesse
massacrado por não ter ido a casa. Não, depois de ter sido destruído pela
dor e de chorar como uma criança, tivera a maravilhosa experiência de abrir
a porta do gabinete para se escapar para o aeroporto e encontrar o seu
bilhete de consolação. Com o que Paul escrevera do outro lado.
Maravilhoso.
Julia estava surpreendida por O Professor não a ter posto fora do
programa de imediato. Talvez se lembre de mim. Mais um shot de tequila
permitiu que Julia formulasse aquele pensamento e depois não formulasse
mais nenhum, pois desmaiou no chão.

D uas semanas mais tarde, Julia já se sentia ligeiramente melhor, quando


foi ver a sua caixa do correio no departamento. Sim, era como se
estivesse a aguardar no corredor da morte, sem esperança de comutação.
Não, não desistira do curso nem fora para casa.
Era verdade que corava como uma menina de escola e era dolorosamente
tímida. Mas Julia era teimosa. Era obstinada. E queria muito estudar Dante,
e se isso significasse invocar um coconspirador para poder escapar à pena
de morte, estava disposta a fazê-lo.
Só não revelara esse facto a Paul. Ainda.
— Julianne? Pode vir aqui por um minuto? — chamou a senhora Jenkins,
a velha e amorosa assistente administrativa, da sua secretária.
Julia aproximou-se obedientemente.
— Teve alguma espécie de problema com o professor Emerson?
— Eu… mmm… não sei. — Corou e começou a morder ferozmente o
interior da bochecha.
— Recebi, esta manhã, dois e-mails urgentes a pedir-me para marcar uma
reunião consigo assim que ele regresse. Nunca faço isto para os professores.
Eles preferem marcar as suas próprias reuniões. Mas, por alguma razão, ele
insistiu que eu marcasse uma reunião consigo e documentasse a marcação
no seu processo.
Julia fez um aceno com a cabeça e removeu a agenda da sua mochila,
tendo de fazer um esforço para não se pôr a imaginar as coisas que ele teria
dito a seu respeito nos e-mails.
A senhora Jenkins olhou-a, à espera.
— Então, pode ser amanhã?
Julia sentiu cair-lhe o coração aos pés.
— Amanhã?
— Ele chega esta noite e quer encontrar-se consigo amanhã, às quatro da
tarde, no seu gabinete. Pode ir lá ter? Tenho de lhe responder ao e-mail a
confirmar.
Julia fez um aceno de assentimento e anotou a reunião na sua agenda,
fingindo que essa notação era necessária.
— Não disse de que se tratava, mas mencionou que era um assunto sério.
O que quererá dizer com isso… — A senhora Jenkins calou-se, com um ar
ausente.
Julia concluiu o que tinha a fazer na universidade e voltou para casa para
fazer as malas, com a ajuda da Señorita Tequila.

N a manhã seguinte, a maior parte das roupas de Julia estava já


arrumada em duas grandes malas. Não disposta a admitir a derrota
para si mesma (nem para a tequila), decidiu não arrumar tudo, e, por
conseguinte, deu por si a brincar ansiosamente com os próprios polegares e
a precisar grandemente de uma distração. Por isso fez a única coisa que
qualquer estudante de mestrado com autoestima e tendência para a
procrastinação faria numa tal situação, para além de beber e ir para a borga
com outros estudantes com tendência para a procrastinação — limpou o seu
apartamento.
Não precisou de muito tempo. Quando terminou, estava tudo na mais
perfeita ordem, com um ligeiro perfume a limão e escrupulosamente limpo.
Julia ficou mais do que um pouco orgulhosa do seu feito, e arrumou a
mochila, de cabeça bem erguida.
Entretanto, o professor Emerson andava furibundo pelos corredores do
departamento, a deixar tanto alunos como os colegas da faculdade em
parafuso, na sua esteira. Estava com um péssimo feitio, e ninguém tinha
coragem para gracejar com ele.
Já tinha andado de mau humor nos últimos dias, mas a sua disposição
intratável fora exacerbada pela tensão e a falta de sono. Fora amaldiçoado
pelos deuses da Air Canada e, consequentemente, ficara sentado ao lado de
um pai e o seu filho de dois anos no seu voo de regresso de Filadélfia. A
criança gritara, e urinara-se (e ao professor Emerson), enquanto o pai
dormia pesadamente. Na penumbra do avião, o professor Emerson refletira
na justiça de o governo instituir a esterilização compulsiva de pais
negligentes, enquanto limpava a urina das suas calças Armani.
Julia chegou atempadamente para a sua reunião das quatro horas com o
professor Emerson e ficou encantada ao descobrir que a porta estava
fechada. O encanto abandonou-a rapidamente quando percebeu que O
Professor estava lá dentro a rosnar com Paul.
Quando este emergiu, dez minutos mais tarde, ainda no alto do seu metro
e noventa mas visivelmente abalado, os olhos de Julia dardejaram para a
saída de emergência. Cinco passos e estaria livre, do outro lado da porta, a
correr para escapar à polícia por ter ativado ilegalmente um alarme de
incêndio. Parecia uma proposta tentadora.
O seu olhar cruzou-se com o de Paul, que abanou a cabeça, desenhou
com a boca alguns expletivos escolhidos acerca d’O Professor, antes de
sorrir.
— Queres vir beber um café comigo um dia destes?
Julia olhou-o, surpreendida. Já estava a funcionar mal por causa da
reunião, por isso, sem pensar muito no assunto, concordou.
Ele sorriu e aproximou-se mais.
— Seria mais fácil se eu tivesse o teu número.
Ela corou e retirou rapidamente um pedaço de papel da mochila,
verificou se estava em branco e escrevinhou à pressa o seu número de
telemóvel.
Ele pegou no papel, olhou-o de relance, e deu-lhe uma palmadinha no
braço.
— Dá-lhe com força, Coelha.
Julia não teve tempo de lhe perguntar porque acharia ele que a sua
alcunha era ou deveria ser Coelha, porque uma voz atraente mas impaciente
estava já a chamá-la.
— Já, menina Mitchell.
Entrou no gabinete e parou, indecisa, mesmo junto à porta.
O professor Emerson parecia cansado. Tinha olheiras púrpura debaixo
dos olhos e parecia muito pálido, o que, por alguma razão, o fazia parecer
mais magro. Enquanto lia, concentrado, um documento, a ponta da sua
língua percorreu lentamente o lábio inferior.
Julia ficou a olhar, hipnotizada por aquela boca sensual. Passado um
momento, com um grande esforço, arrancou o olhar dos lábios dele para o
fixar nos seus óculos. Não os tinha visto antes; talvez só os usasse quando
sentia a vista cansada. Mas, nesse dia, os seus penetrantes olhos cor de
safira estavam parcialmente encobertos por um par de óculos Prada. A
armação preta contrastava vivamente com o castanho quente do seu cabelo
e o azul dos seus olhos, tornando-os um ponto focal no seu rosto. Percebeu
de imediato que não só nunca tinha visto um professor tão atraente como
aquele, como também nunca encontrara um professor tão
conscienciosamente bem vestido. Poderia figurar numa campanha
publicitária da Prada, coisa que nenhum professor alguma vez fizera.
(Pois é preciso ser notado que os professores universitários não são
geralmente admirados pelo seu sentido de estilo.)
Conhecia-o o suficiente para saber que ele era mercurial. Conhecia-o o
suficiente para saber que era, pelo menos recentemente, um fanático da
delicadeza e do decoro. Sabia que provavelmente não faria mal se se
sentasse numa das suas confortáveis poltronas de pele sem ser convidada,
em especial se o professor se recordasse dela. Mas, dada a forma como ele
se lhe dirigira, ficou de pé.
— Sente-se, por favor, menina Mitchell. — A voz era fria e impiedosa, e
o professor apontou, em vez disso, para uma cadeira de metal com ar
desconfortável.
Julia suspirou e dirigiu-se para a rígida cadeira do Ikea mesmo na frente
de uma das gigantescas estantes de livros encastradas. Preferia ter recebido
permissão para se sentar noutro sítio qualquer, mas optou por não discutir.
— Puxe a cadeira para a frente da minha secretária. Não quero ter de
inclinar o pescoço para a ver.
Ela levantou-se e fez o que lhe fora ordenado, deixando cair
nervosamente a mochila no chão. Estremeceu e corou dos pés à cabeça
quando vários dos artigos mais pequenos que trazia no saco se espalharam
pelo chão, incluindo um tampão que rebolou para debaixo da secretária do
professor Emerson e parou a um centímetro da sua pasta de pele.
Talvez ele só repare depois de me ir embora.
Embaraçada, Julia agachou-se e começou a apanhar os outros artigos da
sua mochila. Tinha acabado de o fazer quando a presilha do seu saco muito
velho rebentou e tudo o que ela trazia consigo caiu ao chão com um sonoro
estrondo. Ajoelhou-se rapidamente quando papéis, canetas, o seu iPod,
telemóvel, e uma maçã verde se espalharam pelo chão e em cima do belo
tapete persa d’O Professor.
Oh, deuses de todos os estudantes universitários e eternos trapalhões,
matem-me já. Por favor.
— É alguma espécie de comediante, menina Mitchell?
A coluna de Julia endireitou-se com o sarcasmo, e ela ergueu
rapidamente o olhar para o rosto do professor. O que viu quase a fez
irromper em lágrimas.
Como podia alguém com um nome tão angelical ser tão cruel? Como
podia uma voz tão melodiosa ser tão agreste? Ficou momentaneamente
perdida nas geladas profundezas dos olhos dele, saudosa do tempo em que a
tinham olhado com bondade. Mas, em vez de ceder ao desespero, respirou
fundo e decidiu que era melhor habituar-se ao feitio que ele tinha agora,
mesmo que se tratasse de um grave e doloroso desapontamento.
Em silêncio, abanou a cabeça e voltou a encher a sua mochila agora
desmanchada.
— Quando faço uma pergunta, estou à espera de receber uma resposta. Já
devia ter aprendido a sua lição, não acha? — Ele estudou-a rapidamente e
depois voltou a olhar para o processo nas suas mãos. — Talvez não seja
assim tão esperta.
— Peço desculpa, Dr. Emerson. — O som da voz de Julia surpreendeu-a
até a si mesma. Era suave mas de aço. Não sabia bem de onde viera a sua
coragem, mas agradeceu mudamente aos deuses dos estudantes
universitários por terem vindo em seu auxílio… pelo sim, pelo não.
— Professor Emerson — corrigiu ele secamente. — Doutores há aos
pontapés. Até os quiropráticos e quiropodistas se apelidam de “doutores”.
Suficientemente castigada, Julia tentou puxar o fecho da mochila
rasgada. Infelizmente, o fecho agora também estava estragado. Conteve a
respiração enquanto o puxava, tentando convencê-lo com mudas pragas a
voltar à vida.
— Quer parar de mexer nessa ridícula abominação de saco e sentar-se
numa cadeira, como um ser humano?
Julia percebeu que ele estava agora para além da fúria, por isso deixou a
sua ridícula abominação no chão e sentou-se na cadeira desconfortável.
Cruzou as mãos, só para as impedir de se contorcerem, e esperou.
— Deve julgar-se uma comediante. Tenho a certeza que acha isto
engraçado. — Atirou um pedaço de papel que aterrou mesmo junto dos
ténis da aluna.
Baixando-se para o apanhar, ela percebeu que era uma fotocópia da
terrível nota que lhe deixara no dia em que Grace morrera.
— Eu posso explicar. Foi um engano. Não fui eu que escrevi os dois…
— Não estou interessado nas suas desculpas! Pedi-lhe que viesse à outra
reunião e não veio, pois não?
— Mas estava ao telefone. A porta estava fechada e…
— A porta não estava fechada! — Ele atirou-lhe qualquer coisa que
parecia um cartão de visita. — Suponho que isto também era para ter
piada…
Julia pegou no objeto atirado e conteve a respiração. Era um pequeno
cartão de condolências, do tipo que se envia com flores:
Lamento muito a sua perda.
Aceite, por favor, os meus sentimentos.
Afetuosamente,
Julia Mitchell
Ela ergueu o olhar e viu que ele estava praticamente a cuspir, de tão
zangado. Pestanejou rapidamente, enquanto tentava encontrar as palavras
para se explicar.
— Não é o que está a pensar. Eu queria dizer que lamentava e…
— Não o tinha já feito, com o bilhete que deixou?
— Mas este era para a sua família, que…
— Deixe a minha família fora disto! — Emerson virou o corpo para o
outro lado, fechou os olhos e removeu os óculos para poder esfregar a cara
com as duas mãos.
Julia fora arrancada do reino da surpresa e transportada diretamente para
a terra dos atónitos. Ninguém lhe explicara. Ele entendera o seu cartão de
uma forma completamente errada, e ninguém o esclarecera. Com uma
sensação de náusea ao fundo do estômago, começou a pensar no que isso
significava.
Alheio às suas cogitações, O Professor pareceu acalmar-se através de um
esforço hercúleo, depois fechou o processo e deixou-o cair com desprezo
em cima da sua secretária. Olhou-a ferozmente.
— Estou a ver que veio para cá com uma bolsa de estudo para estudar
Dante. Atualmente sou o único professor neste departamento a orientar
teses nesse campo. Uma vez que isto — fez um gesto entre os dois — não
vai funcionar, terá de mudar o tópico da sua tese e encontrar outro
orientador. Ou pedir transferência para outro departamento ou, melhor
ainda, para outra universidade. Informarei o diretor do seu programa da
minha decisão, com efeitos imediatos. Agora, se me dá licença.
Virou-se na cadeira para o seu portátil e começou a escrever
furiosamente.
Julia estava estupefacta. Deixou-se ficar ali sentada, em silêncio, a
absorver não apenas a tirada dele mas também a sua conclusão, até ele
voltar a falar, sem sequer se dar ao incómodo de erguer os olhos na sua
direção.
— É tudo, menina Mitchell.
Ela não discutiu porque, na verdade, não valia a pena. Levantou-se com
esforço, ainda atordoada, e pegou na mochila ofensiva. Ergueu-a ao peito,
algo indecisa, e saiu lentamente do gabinete, parecendo um zombie.
Ao sair do edifício e atravessar para o outro lado da Bloor Street, Julia
percebeu que escolhera o dia errado para sair de casa sem casaco. A
temperatura descera e os céus tinham-se aberto. A sua fina t-shirt de manga
comprida ficou ensopada ao fim de cinco passos. Não tinha levado guarda-
chuva, por isso enfrentou a perspetiva de caminhar três longos quarteirões
ao vento, ao frio e à chuva para chegar ao seu apartamento.
Oh, deuses do mau karma e das tempestades, tende piedade de mim.
Enquanto caminhava, Julia recebeu algum conforto da perceção de que a
sua ridícula abominação de mochila estava agora a servir o muito adequado
propósito de lhe cobrir a t-shirt e o sutiã de algodão, ensopados e
possivelmente transparentes. Ora toma, professor Emerson.
Enquanto andava, pensou no que acabara de acontecer naquele gabinete.
Preparara-se antecipadamente e fizera as duas malas na noite anterior, pelo
sim pelo não. Mas acreditara sinceramente que ele se lembraria. Acreditara
que ele seria amável. Mas não fora.
Não lhe permitira explicar a colossal confusão que fora o bilhete.
Interpretara mal as suas flores e cartão. E expulsara-a efetivamente do
programa. Estava tudo acabado. Agora teria de regressar à casinha de Tom,
em Selinsgrove, coberta de vergonha… e ele ia descobrir que voltara e ia
rir-se dela. Eles rir-se-iam dela juntos. Estúpida da Julia. Pensava que ia sair
de Selinsgrove e ser alguém. Pensava que podia fazer um mestrado e tornar-
se professora universitária… Quem é que ela queria enganar? Agora estava
tudo acabado, pelo menos naquele ano académico.
Julia baixou o olhar para a mochila destruída e agora encharcada como se
fosse uma criança, e abraçou-a fortemente contra o peito. Depois da sua
horrível mostra de deselegância e imbecilidade, nem sequer tinha já a sua
dignidade. E perder tudo isso na frente dele, passados tantos anos, bem, era
realmente demasiado.
Pensou no tampão solitário debaixo da secretária e soube que, quando ele
se baixasse para pegar na sua pasta, às cinco da tarde, a sua humilhação
seria completa. Pelo menos ela não estaria lá para testemunhar a reação,
chocada e enojada. Imaginou-o a ter um ataque com a descoberta,
literalmente — atirando-se para o lindo tapete persa que embelezava o seu
gabinete.
A cerca de dois blocos do seu apartamento, Julia já tinha o longo cabelo
castanho colado à cabeça. Os ténis guinchavam a cada passo. A chuva
escorria pelo seu corpo como se estivesse debaixo de uma caleira. Os carros
e autocarros passavam por ela com estardalhaço, e Julia nem se dava ao
trabalho de se desviar dos tsunamis de água suja que lhe caíam em cima
vindos da estrada movimentada. Como os desapontamentos da vida,
limitava-se a aceitá-los.
Naquele momento, outro carro aproximou-se, mas este abrandou
apropriadamente para não a ensopar com os seus salpicos. Era um Jaguar
preto, de aspeto novo.
O Jaguar abrandou ainda mais e parou. Quando Julia ia a passar por ele,
viu a porta do passageiro abrir-se e uma voz masculina chamar:
— Entre.
Hesitou; de certeza que o condutor não estava a falar com ela. Olhou em
volta, mas era a única pessoa suficientemente tola para andar a pé com um
dilúvio torrencial. Curiosa, deu um passo em frente.
Sabia que não devia entrar no carro de um desconhecido, mesmo numa
cidade canadiana. Mas, ao olhar para o lugar e ver os dois olhos penetrantes
que a fixavam, aproximou-se lentamente.
— Vai apanhar uma pneumonia e morrer. Eu levo-a a casa. — A voz dele
era agora mais suave, terminada a fúria. Era quase a voz que ela recordava.
Assim, apenas em nome das memórias, subiu para o lugar do passageiro
e fechou a porta, pedindo silenciosamente desculpa aos deuses dos
Jaguares por lhe estar a sujar o impecável interior de pele preta e
imaculados tapetes.
Deteve-se quando os acordes do Noturno, Op. 9. n. 2 de Chopin lhe
encheram os ouvidos, e sorriu para si mesma. Sempre gostara daquela
música.
Voltou o rosto para o condutor.
— Muito obrigada, professor Emerson.
Capítulo Quatro

O professor Emerson virara no sítio errado. A sua vida talvez pudesse


ser descrita como uma série de viragens nos sítios errados, mas aquela
fora inteiramente acidental. Vinha a ler o seu iPhone — um e-mail zangado
do seu irmão — enquanto conduzia o Jaguar com uma tempestade, a meio
da hora de ponta, na baixa de Toronto. Consequentemente, em vez de virar
à direita, virara à esquerda para a Bloor Street desde Queen’s Park. Isto
significava seguir na direção oposta do seu prédio.
Não havia possibilidade de fazer inversão de marcha na Bloor durante a
hora de ponta, e havia tanto trânsito que teve até dificuldade em encostar
para poder virar à direita e voltar para trás. Foi assim que deu com uma
muito molhada e patética menina Mitchell, a caminhar com um ar abatido
pela rua como se fosse uma sem-abrigo, e foi assim que um acesso de culpa
o fez convidá-la a entrar no seu carro, o seu orgulho e alegria.
— Desculpe estar a estragar-lhe os estofos — ofereceu ela, hesitante.
Os dedos do professor Emerson contraíram-se em volta do volante.
— Tenho alguém que os limpa quando estão sujos.
Julia baixou a cabeça, pois a resposta magoara-a. Implicitamente, o seu
professor comparara-a a lixo, mas, claro, era o que ele a considerava,
naquele momento. Lixo debaixo dos seus pés.
— Onde vive? — perguntou ele, procurando envolvê-la numa conversa
educada e segura durante aquele que esperava ser um breve tempo juntos.
— Na Madison. É mesmo aqui à direita. — Apontou a alguma distância à
frente deles.
— Eu sei onde é a Madison — cortou ele.
Observando-o pelo canto do olho, Julia encolheu-se contra a janela do
lado do passageiro. Baixou lentamente a cabeça para olhar para fora e
prendeu o lábio inferior com força entre os dentes.
O professor Emerson soltou uma praga em voz baixa. Mesmo por baixo
do emaranhado de cabelo molhado e escuro, ela era bonita — um anjo de
olhos castanhos, vestido de calças de ganga e ténis. A sua mente deteve-se
perante o som interior desta descrição. O termo anjo de olhos castanhos
parecia-lhe estranhamente familiar, mas, uma vez que não se conseguia
lembrar da fonte dessa referência, pôs o pensamento de lado.
— Em que número da Madison? — Suavizou a voz, tanto que Julia mal o
conseguiu ouvir.
— Quarenta e cinco.
Ele fez um sinal de assentimento e, pouco depois, encostou o carro na
frente da casa de tijolo de três andares que fora convertida em vários
apartamentos.
— Obrigada — murmurou ela, e, como um relâmpago, estendeu a mão
para o manípulo da porta para se escapar.
— Espere — ordenou ele, virando-se para o banco de trás para pegar
num grande guarda-chuva preto.
Ela esperou e ficou atónita ao ver O Professor contornar o automóvel
para lhe abrir a porta, aguardar com o guarda-chuva aberto enquanto ela e a
sua abominação saíam do Jaguar e acompanhá-la pelo passeio até às
escadas do seu prédio.
— Obrigada — repetiu ela, enquanto puxava o fecho do seu saco de
livros, tentando abri-lo para procurar as chaves.
Ele tentou ocultar a sua aversão ao ver a abominação, mas não disse
nada. Viu-a lutar com o fecho, depois viu a sua cara ficar vermelha e
aborrecida por o fecho não abrir. Lembrou-se da expressão dela quando se
ajoelhara no seu tapete persa e ocorreu-lhe que aquele atual problema era
provavelmente por culpa sua.
Sem dizer uma palavra, tirou-lhe o saco das mãos e entregou-lhe a
sombrinha já fechada. Abriu o fecho com força e estendeu-lhe o saco,
convidando-a a enfiar a mão lá dentro para retirar as chaves.
Ela encontrou-as, mas estava nervosa, por isso deixou-as cair. Quando as
apanhou, tinha as mãos a tremer tanto que teve dificuldade em localizar a
chave correta no seu porta-chaves.
Tendo perdido toda a paciência, O Professor arrancou-lhe o porta-chaves
e começou a experimentar as chaves na fechadura. Quando conseguiu abrir
a porta, deixou-a entrar antes de lhe devolver as chaves.
Ela pegou no saco repelente e murmurou os seus agradecimentos.
— Eu acompanho-a ao seu apartamento — anunciou ele, seguindo-a pelo
átrio. — Uma vez, fui abordado por um sem-abrigo no átrio do meu prédio.
É preciso ter cuidado.
Julia fez uma muda oração aos deuses dos apartamentos, suplicando-lhes
que a ajudassem a localizar rapidamente a chave do apartamento. Eles
responderam à sua oração. Quando estava quase a entrar em casa e a fechar
a porta, firme mas não rudemente, na cara dele, parou. Depois, como se o
conhecesse há anos, sorriu e perguntou-lhe delicadamente se aceitava uma
chávena de chá.
Apesar de surpreendido com o convite, o professor Emerson deu por si a
entrar no apartamento antes de ter oportunidade de ponderar se seria uma
boa ideia. Quando olhou em volta do pequeno espaço esquálido, concluiu
que não era.
— Quer dar-me o seu casaco, professor? — A vozinha alegre de Julia
distraiu-o.
— E ia pô-lo onde? — perguntou ele, fazendo notar pedantemente que
ela não parecia ter um roupeiro ou bengaleiro perto da porta.
Ela baixou os olhos. Ele viu-a morder o lábio nervosamente e, num
instante, lamentou a sua grosseria.
— Peço desculpa — disse ele, entregando-lhe o impermeável Burberry,
do qual se orgulhava excessivamente. — E obrigado.
Julia pendurou o casaco com cuidado num gancho que estava preso à
porta e deixou a mochila no chão.
— Entre e fique à vontade. Vou fazer o chá.
O professor Emerson dirigiu-se para uma das duas únicas cadeiras no
apartamento e sentou-se, tentando ocultar a sua aversão. O apartamento era
mais pequeno do que a sua casa de banho de hóspedes e incluía uma
pequena cama, que estava encostada à parede, uma mesa articulada e duas
cadeiras, uma pequena estante do Ikea e uma cómoda. Havia um pequeno
roupeiro e uma casa de banho, mas não havia cozinha.
Os seus olhos vaguearam pelo quarto em busca de vestígios de algum
tipo de atividade culinária, até finalmente se deterem num micro-ondas e
numa chapa elétrica que estavam precariamente equilibrados em cima de
um aparador. Um pequeno frigorífico fora colocado no chão ao lado.
— Tenho uma chaleira elétrica — disse Julia alegremente, como se
estivesse a anunciar o facto de possuir um diamante da Tiffany’s.
Emerson reparou na água que continuava a escorrer dela, depois
começou a reparar nas roupas que estavam debaixo da água, e depois
começou a reparar no que estava debaixo das roupas, porque estava frio… e
sugeriu numa voz apressada e um pouco rouca que ela adiasse o chá para se
ir secar.
Ela voltou a baixar a cabeça e corou, antes de se escapar para a casa de
banho e pegar numa toalha. Emergiu uns segundos mais tarde com uma
toalha púrpura enrolada em volta da parte superior do corpo por cima das
roupas molhadas e uma segunda toalha na mão. Ia baixar-se e começar a
gatinhar pelo chão para limpar o rasto de água que espalhara desde a porta
até ao centro da sala, mas O Professor levantou-se e deteve-a.
— Deixe que eu faço isso — disse ele. — É melhor ir vestir roupa seca
antes que apanhe uma pneumonia.
— E morra — acrescentou ela, mais para si mesma do que para ele,
enquanto desaparecia no roupeiro, tentando não tropeçar nas duas grandes
malas.
Ele perguntou-se brevemente porque é que a rapariga ainda não desfizera
as malas, mas esqueceu o assunto, considerando-o pouco importante.
Franziu o sobrolho enquanto limpava a água do soalho gasto e riscado.
Quando terminou, olhou para as paredes e reparou que provavelmente já
tinham sido brancas, mas eram agora de um sujo creme e estavam a
descascar. Inspecionou o teto e encontrou várias manchas de água
consideráveis e o que lhe pareceu poder ser um bolor incipiente num dos
cantos. Estremeceu, perguntando-se por que raio uma rapariga bonita como
Mitchell podia viver num lugar tão terrível. Embora tivesse de admitir que o
apartamento estava muito limpo e bastante arrumado. Invulgarmente
arrumado.
— Quanto paga de renda? — perguntou, retraindo-se ligeiramente
enquanto encolhia a sua estrutura de um metro e oitenta e sete para se
conseguir sentar outra vez na coisa perversa que se fazia passar por cadeira
articulada.
— Oitocentos por mês, incluindo as contas de água e luz — respondeu
ela mesmo antes de entrar para a casa de banho.
O professor Emerson pensou com algum arrependimento nas calças
Armani que deitara fora depois do voo de regresso da Pensilvânia. Não
suportava a ideia de usar uma peça que ficara ensopada de urina, mesmo
depois de limpa, por isso limitara-se a deitá-las fora. Mas o dinheiro que
Paulina gastara naquelas calças teria pago a renda da menina Mitchell
durante um mês inteiro. E ainda sobraria.
Olhou em volta do pequeno estúdio, e tornou-se dolorosa e pateticamente
claro que ela tentara fazer dele a sua casa, apesar de tudo. Uma grande
reprodução do quadro de Henry Holiday, Dante encontra Beatriz na Ponte
Santa Trinità, estava pendurada ao lado da cama. Ele imaginou-a reclinada
na sua almofada, o longo cabelo brilhante caído em volta do rosto, a olhar
para Dante antes de adormecer. Afastou respeitosamente esse pensamento e
refletiu em como era estranho possuírem ambos a mesma pintura. Olhou
para ela e reparou com surpresa que Julia era notavelmente parecida com
Beatriz — uma parecença que lhe passara despercebida. A ideia andou às
voltas na sua mente como um saca-rolhas, mas recusou-se a continuar a
alimentá-la.
Reparou noutros quadros mais pequenos, de vários cenários italianos, nas
paredes descascadas do apartamento: um desenho do Duomo de Florença,
um esboço de São Marcos em Veneza, uma fotografia a preto e branco da
cúpula de São Pedro em Roma. Viu uma fileira de ervas envasadas a
enfeitar o peitoril da janela, juntamente com uma única estaca de um
filodendro que ela parecia estar a tentar fazer desenvolver numa planta
formada. Observou que as cortinas eram bonitas — um puro lilás que
combinava com a colcha e as almofadas. E a estante de livros exibia muitos
volumes, tanto em inglês como em italiano. Leu num relance os títulos e
ficou apenas razoavelmente impressionado com a sua coleção amadora.
Mas, em resumo, o estúdio era velho, minúsculo, em mau estado de
manutenção e não tinha cozinha, e o professor Emerson não permitiria que
o seu cão vivesse num sítio daqueles, se tivesse cão.
Julia reapareceu no que parecia ser um uniforme de ginástica — camisola
preta com capuz e calças de ioga. Torcera o lindo cabelo e prendera-o quase
no alto da cabeça com alguma espécie de gancho. Mesmo numa roupa tão
casual, era muito atraente — extremamente atraente e, atrevia-se a dizer,
sílfide.
— Tenho English Breakfast ou Lady Grey. — Ela falou por cima do
ombro, pondo-se de gatas para ligar a ficha da chaleira elétrica na tomada
que estava atrás da cómoda.
Ele viu-a ajoelhada, tal como a vira no gabinete, e abanou mudamente a
cabeça. A aluna parecia destituída de qualquer arrogância ou orgulho
egoísta, o que sabia ser uma coisa boa, mas doía-lhe vê-la constantemente
de joelhos, embora não soubesse dizer exatamente por que razão.
— English Breakfast. Porque é que vive aqui?
Julia levantou-se rapidamente em reação à aspereza do tom dele.
Manteve-se de costas enquanto localizava um grande bule de chá castanho e
duas chávenas de porcelana, surpreendentemente bonitas, com pires a
condizer.
— É uma rua sossegada, num bairro simpático. Não tenho carro, e
precisava de ir para a universidade a pé. — Fez uma pausa enquanto punha
uma pequena colher de prata em cada um dos pires. — Este foi um dos
melhores apartamentos que vi dentro do meu orçamento. — Pousou as
chávenas elegantes na mesa articulada sem olhar para ele e regressou à
cómoda.
— Porque é que não se instalou na residência para alunos de pós-
graduação, na Charles Street?
Julia deixou cair qualquer coisa. Ele não conseguiu ver o que era.
— Estava a contar ir para outra universidade, mas não resultou. Na altura
em que decidi vir para aqui, a residência já estava cheia.
— Para que universidade ia?
Ela começou a maltratar o lábio inferior entre os dentes, para trás e para a
frente.
— Menina Mitchell?
— Harvard.
O professor Emerson quase caiu da sua cadeira muito desconfortável.
— Harvard? Que raio está aqui a fazer?
Julia ocultou um sorriso secreto, como se soubesse a razão por detrás da
fúria dele.
— Toronto é a Harvard do Norte.
— Não se faça de envergonhada, menina Mitchell. Fiz-lhe uma pergunta.
— Sim, professor. E eu sei que espera sempre uma resposta às suas
perguntas. — Ergueu uma sobrancelha, e ele desviou o olhar. — O meu pai
não podia pagar a contribuição que tinha de fazer pela minha educação, por
isso a bolsa que me ofereceram não era suficiente, e as despesas de
alojamento eram muito mais elevadas em Cambridge do que em Toronto. Já
tenho milhares de dólares de dívida pelo curso na universidade de Saint
Joseph, por isso decidi não a aumentar. É por isso que aqui estou.
Voltou a pôr-se de gatas para desligar a chaleira agora a ferver, enquanto
ele abanava a cabeça, chocado.
— Isso não estava no processo que a senhora Jenkins me deu —
protestou ele. — Devia ter dito alguma coisa.
Julia ignorou-o e começou a medir o chá para o bule.
Ele inclinou-se para a frente na sua cadeira, a gesticular freneticamente.
— Isto é um sítio terrível para se viver… nem sequer tem uma cozinha.
O que é que come aqui?
Ela pousou o bule e um pequeno passador prateado na mesa articulada e
sentou-se na outra cadeira articulada. Começou a torcer as mãos.
— Como muitos legumes. Consigo fazer sopa e cuscuz na placa elétrica.
Os cuscuz são muito nutritivos. — A sua voz tremia um pouco, mas ela
tentou parecer animada.
— Não pode viver desse tipo de porcaria… um cão alimenta-se melhor!
Julia baixou a cabeça e corou profundamente, e, de súbito, teve de conter
as lágrimas.
Ele olhou para ela por um momento, e depois, finalmente, viu-a.
Enquanto fitava a expressão torturada que maculava as suas belas feições,
começou lentamente a perceber que ele, o professor Gabriel O. Emerson,
era um egocêntrico filho da mãe. Envergonhara-a por ser pobre. Mas não
havia nenhuma vergonha em ser-se pobre. Ele também fora pobre, em
tempos, muito pobre. Ela era uma mulher inteligente e bonita, que também
era estudante. Não havia nenhuma vergonha nisso. Mas, ao entrar na sua
pequena casa, que ela tentara tornar confortável porque não tinha outro sítio
onde ficar, ele dissera-lhe que não era digna de um cão. Fizera-a sentir sem
valor e estúpida, quando ela não era nenhuma dessas coisas. O que diria
Grace se o pudesse ouvir naquele momento?
O professor Emerson era um imbecil. Mas, ao menos, agora sabia-o.
— Perdoe-me — começou ele, titubeante. — Não sei o que me deu. —
Fechou os olhos e começou a esfregá-los.
— Acabou de perder a sua mãe. — A voz suave de Julia era
espantosamente indulgente.
Foi como se um interruptor tivesse sido carregado dentro de si.
— Não devia estar aqui. — Ele levantou-se rapidamente. — Tenho de ir.
Julia seguiu-o até à porta. Pegou no guarda-chuva e entregou-lho
juntamente com a gabardina. Depois ficou de olhos baixos e faces em fogo,
à espera de o ver partir. Arrependia-se de lhe ter mostrado a sua casa, uma
vez que era tão claramente abaixo dele. Enquanto, umas horas antes, se
orgulhara do seu pequeno mas limpo buraco de hobbit, estava agora
mortificada. Para não mencionar o facto de que ser novamente humilhada
na frente dele tornava as coisas muito piores.
Ele fez um aceno com a cabeça, para ela ou para qualquer outra coisa,
balbuciou umas palavras em surdina e saiu do apartamento.
Julia encostou-se à porta fechada e permitiu-se finalmente chorar.
Truz. Truz.
Ela sabia quem era. Não queria, simplesmente, abrir a porta.
Por favor, deuses dos buracos-de-hobbits-demasiado-caros-e-não-
dignos-de-um-cão, façam com que ele me deixe em paz. A oração muda e
espontânea não foi ouvida.
Truz. Truz. Truz.
Limpou rapidamente a cara e abriu a porta, mas apenas uma nesga.
Ele ficou a pestanejar como uma árvore de Natal quando a viu, tendo
dificuldade em registar o facto de ela ter estado claramente a chorar entre a
sua partida e o seu regresso.
Julia pigarreou e baixou o olhar para os sapatos italianos que ele remexia
ligeiramente.
— Quando foi a última vez que comeu um bife?
Julia riu-se e abanou a cabeça. Não se conseguia lembrar.
— Bem, vai comer um esta noite. Estou esfomeado e vai jantar comigo.
Ela permitiu-se o luxo de um pequeno mas perverso sorriso.
— Tem a certeza, professor? Pensei que isto — imitou o gesto dele de
umas horas antes — não ia funcionar.
Ele ruborizou-se ligeiramente.
— Não se preocupe com isso. Exceto… — Os olhos dele vaguearam-lhe
pela roupa, demorando-se, talvez, um pouco de tempo de mais nas curvas
dos lindos seios.
Julia baixou o olhar.
— Eu podia mudar de roupa.
— Isso seria melhor. Tente vestir-se de forma apropriada.
Ela olhou-o com uma expressão muito magoada.
— Posso ser pobre, mas tenho algumas coisas boas. Nenhuma delas é
imodesta, se está com medo que eu o embarace com alguma coisa ordinária.
Ele voltou a ficar vermelho, enquanto se pontapeava mentalmente.
— Só queria dizer… de forma apropriada para um restaurante onde tenho
de ir de fato e gravata. — Arriscou um pequeno sorriso como forma de
desculpa.
Os olhos de Julia viajaram-lhe pela camisa e camisola, demorando-se,
talvez, um pouco de tempo de mais nos planos dos seus lindos peitorais.
— Aceito com uma condição.
— Não está propriamente em posição de discutir.
— Então, adeus, professor.
— Espere. — Enfiou o caro sapato italiano entre a porta e a ombreira,
para a manter aberta. E nem se preocupou com os riscos que isso causaria.
— Vamos ouvi-la.
Ela inclinou a cabeça para um lado e olhou-o em silêncio antes de falar.
— Diga-me, depois de tudo o que me disse, porque é que devo ir jantar
consigo?
Ele olhou-a, perdido. Depois corou até à raiz dos cabelos e começou a
gaguejar.
— Eu… hum… quero dizer, eu acho… podemos dizer que…
Julia elevou uma única sobrancelha e começou lentamente a fechar a
porta, entalando-lhe o pé.
— Espere. — A mão dele segurou a porta num ápice, dando algum alívio
ao pé direito magoado. — Porque o que o Paul escreveu estava correto: O
Emerson é um imbecil. Mas, ao menos, agora ele sabe-o.
Naquele instante, Julia sorriu-lhe, e ele deu por si a sorrir também, contra
vontade. Ela era realmente muito bonita, quando sorria. Teria de fazê-la
sorrir mais vezes, por razões puramente estéticas.
— Espero por si aqui. — Não desejando dar-lhe oportunidade para
recusar, puxou a porta do apartamento e fechou-a.
Lá dentro, Julia fechou os olhos e soltou um gemido.
Capítulo Cinco

O professor Emerson andou de um lado para o outro no patamar durante


alguns minutos, depois encostou-se à parede e esfregou a cara com as
mãos. Não sabia como se metera naquilo nem o que o fizera comportar-se
daquela maneira, mas estava prestes a ver-se apanhado numa embrulhada
de proporções épicas. Fora pouco profissional com a menina Mitchell no
seu gabinete, chegando perigosamente perto de a molestar verbalmente.
Dera-lhe boleia no seu carro, sem acompanhante, e entrara no seu
apartamento. Todos esses procedimentos eram altamente irregulares.
Se tivesse dado boleia à menina Peterson, ela provavelmente ter-se-ia
dobrado no assento para lhe abrir o fecho das calças com os dentes
enquanto ele conduzia. Estremeceu com esse pensamento. Agora estava
prestes a levar a menina Mitchell para jantar, para comer bife, ainda por
cima. Se isso não violava a política de não-confraternização estabelecida
pela universidade, não sabia o que a violaria.
Respirou fundo para se acalmar. A menina Mitchell era uma Calamity
Jane, um vórtice de vexame. Sofrera uma notável corrente de infortúnios, a
começar pela sua impossibilidade de ir para Harvard, e as coisas pareciam
desmoronar-se na sua esteira — incluindo a disposição calma e refletida do
próprio Emerson. Embora lamentasse que ela vivesse em circunstâncias
deploráveis, não ia arriscar a sua carreira para a ajudar. Ela poderia bem ir
ao diretor do seu departamento no dia seguinte e apresentar uma queixa de
assédio contra ele. Não podia deixar que isso acontecesse.
Atravessou o corredor em duas longas passadas e levantou a mão para
lhe bater à porta. Ia dar-lhe uma desculpa esfarrapada qualquer, o que seria
melhor do que limitar-se a desaparecer. Mas deteve-se assim que ouviu
passos no interior.
A menina Mitchell abriu a porta e parou, de olhos baixos, num simples
mas elegante vestido preto com decote em V que lhe descia até aos joelhos.
Os olhos dele percorreram-lhe as curvas suaves e desceram para as suas
pernas longas e muito bem formadas. E os sapatos… ela não o podia saber,
mas o professor Emerson tinha uma queda por mulheres com requintados
sapatos de salto alto. Engoliu em seco quando olhou para os sapatos de
salto alto pretos, obviamente de designer. O Professor tinha vontade de lhes
tocar…
— Cof. — Julia tossicou baixinho, e ele arrancou relutantemente os olhos
dos sapatos para o seu rosto. Ela olhava-o com uma expressão divertida.
Tinha apanhado o cabelo, mas vários caracóis tinham-se escapado e
caíam-lhe delicadamente em volta do rosto. Pusera um pouco de
maquilhagem, e a sua pele de porcelana era pálida mas luminosa, com dois
deliciosos toques de rosa nas maçãs do rosto. E as suas pestanas pareciam
ainda mais escuras e compridas do que as recordava.
A menina Julianne Mitchell era atraente.
Ela vestiu uma gabardina azul-marinho e trancou rapidamente a porta do
apartamento. Ele fez-lhe sinal que fosse à frente e seguiu-a mudamente pelo
corredor. À porta do prédio, abriu o guarda-chuva e ficou parado com um ar
algo desconfortável.
Julia olhou para ele, confusa.
— Seria mais fácil cobrir-nos aos dois se me segurasse no braço. —
Ofereceu-lhe o braço esquerdo, que segurava o guarda-chuva. — Se não se
importar — acrescentou.
Julia pegou-lhe no braço e olhou para ele com uma expressão suave.
Fizeram em silêncio a viagem até ao porto, um lugar de que Julia ouvira
falar mas ainda não explorara. O Professor entregou as chaves ao valet do
restaurante e pediu a Julia que lhe passasse a gravata que tinha no porta-
luvas. Ela obedeceu, sorrindo para si mesma perante o facto de ele manter
uma imaculada gravata de seda numa caixa no seu carro.
Quando ela se virou, ele captou um sopro do seu perfume e fechou os
olhos, só por um segundo.
— Baunilha — murmurou.
— O quê? — perguntou ela, não o tendo percebido.
— Nada.
Viu-o despir a camisola e foi momentaneamente recompensada pela
visão do peito dele e alguns caracóis de pelo escuro por entre os botões
abertos no seu pescoço. O professor Emerson era sexy. Tinha um rosto
atraente, e Julia acreditava que, por baixo das roupas, seria igualmente
atraente. Tentou com muita força não pensar demasiado no assunto, para
seu próprio bem.
Mas isso não a impediu de o observar com muda mas extasiada
admiração enquanto ele fazia o nó sem um espelho. Infelizmente, a gravata
ficou torta.
— Não estou a conseguir… não vejo nada. — Ele debatia-se para tentar
endireitar a gravata, mas sem o conseguir.
— Posso? — ofereceu ela timidamente, sem querer tocar-lhe sem o seu
consentimento.
— Obrigado.
Os dedos ágeis de Julia endireitaram-lhe rapidamente a gravata e depois
percorreram ao de leve o topo do seu colarinho até à zona da nuca, onde o
baixou de forma a cobrir a gravata atrás. Quando retirou a mão, estava a
respirar rapidamente e muito corada.
O Professor não se apercebeu dessa reação porque estava demasiado
ocupado a pensar na estranha familiaridade das pontas dos seus dedos e a
perguntar-se porque os dedos de Paulina nunca lhe pareciam familiares.
Retirou o casaco do gancho atrás do seu assento e vestiu-o rapidamente.
Depois, com um sorriso e um aceno com a cabeça, saíram do carro.
O Harbour Sixty Steakhouse era um ponto de referência em Toronto, um
restaurante famoso e muito caro, popular entre os executivos, políticos e
várias outras personagens impressionantes. O professor Emerson costumava
lá comer porque o seu bife era superior a qualquer outro que tivesse
experimentado, e ele impacientava-se com a mediocridade. Por isso, nunca
lhe ocorrera levar a menina Mitchell a qualquer outro lado.
Antonio, o maître d’, cumprimentou-o calorosamente com um firme
aperto de mão e uma torrente em italiano.
O professor respondeu-lhe com igual simpatia e também em italiano.
— E quem é a beldade? — Antonio beijou as costas da mão de Julia
enquanto lhe falava, no seu muito descritivo italiano, sobre os seus olhos, o
seu cabelo, a sua pele.
Julia corou e agradeceu-lhe, timidamente, mas respondendo-lhe com
segurança na sua própria língua.
A menina Mitchell tinha uma linda voz, era verdade, mas a menina
Mitchell a falar italiano era quase celestial. A sua boca rubi a abrir e a
fechar, a forma delicada como quase cantava as palavras, a língua a
assomar-lhe aos lábios húmidos de vez em quando… O professor Emerson
teve de se lembrar de fechar a boca, quando deu por si com ela caída.
Antonio ficou tão surpreendido e agradado com a resposta dela que lhe
beijou as faces, não apenas uma vez mas duas, e conduziu-os rapidamente
para o fundo do restaurante, onde lhes ofereceu a sua melhor e mais
romântica mesa para dois. O Professor hesitou em frente da sua cadeira,
relutantemente, quando percebeu o que Antonio estava a fazer. Já se sentara
naquela mesa anteriormente, não há muito tempo, mas com outra pessoa.
Aquele era um engano que precisava de corrigir, mas, no momento em que
pigarreava para oferecer uma clarificação, Antonio perguntou a Julia se
aceitaria uma garrafa de um vintage muito especial da vinha da sua família
na Toscana.
Julia agradeceu-lhe profusamente, mas explicou que Il Professore podia
ter outras preferências. Ele sentou-se rapidamente e, não querendo ofender,
disse que teria todo o prazer em beber o que Antonio oferecesse. Antonio
ficou exultante e retirou-se de imediato.
— Uma vez que estamos em público, penso que seria melhor não me
tratar por professor Emerson.
Julia fez um sorriso luminoso e anuiu.
— Por isso pode tratar-me apenas por Sr. Emerson.
O Sr. Emerson estava demasiado ocupado a olhar para a ementa para ver
a maneira como os olhos de Julia se alargaram antes de se virarem para a
mesa.
— Tem uma pronúncia toscana — observou ele distraidamente,
continuando sem a fitar.
— Sim.
— Como é que a adquiriu?
— Passei o meu primeiro ano de faculdade em Florença.
— O seu italiano é bastante avançado, para um único ano fora.
— Comecei a estudá-lo na secundária.
O professor ergueu o olhar sobre a pequena mesa íntima e viu que ela lhe
evitava ativamente os olhos. Estava a estudar a ementa como se fosse um
exame, massacrando o lindo lábio inferior entre os dentes.
— É minha convidada, menina Mitchell.
Os olhos de Julia prenderam-se nos dele com um ar interrogador.
— É minha convidada. Peça o que quiser, mas, por favor, tem de incluir
alguma carne. — Sentiu a necessidade de acrescentar aquele requisito, uma
vez que o propósito expresso do jantar era fornecer-lhe algo mais
fortificante do que cuscuz.
— Não sei o que hei de escolher.
— Eu posso pedir por si, se preferir.
Ela anuiu e fechou a ementa, continuando a morder o lábio para a frente e
para trás.
Antonio regressou naquele momento e exibiu orgulhosamente uma
garrafa de Chianti com um rótulo escrito à mão. Julia sorriu enquanto ele
abria a garrafa e lhe servia um pouco no seu copo.
O senhor Emerson observou, quase sem respirar, quando ela fez rodar o
vinho no copo com perícia, depois ergueu-o para o poder examinar melhor
à luz da vela. Levou o copo ao nariz, fechou os olhos e cheirou. Depois
levou o copo aos lábios cheios e provou o vinho, mantendo-o na boca por
um momento antes de engolir. Abriu os olhos, sorriu ainda mais e
agradeceu a Antonio pelo seu precioso presente.
Antonio ficou radiante, cumprimentou o senhor Emerson pela sua
escolha de companheira de jantar com um pouco de entusiasmo de mais e
encheu ambos os copos com o seu vinho favorito.
Entretanto, o senhor Emerson estivera a ajustar-se debaixo da mesa
porque a visão da menina Mitchell a provar o vinho era a coisa mais erótica
que alguma vez tinha testemunhado. Ela não era meramente atraente; era
bela, como um anjo, ou uma musa. E não era meramente bela; era sensual e
hipnótica, mas também inocente. Os seus bonitos olhos refletiam uma
profundidade de sentimento e uma radiante pureza em que nunca tinha
reparado.
Teve de arrancar os olhos de cima dela e ajustar-se de novo, sentindo-se
subitamente um porco, sentindo-se envergonhado da reação que a aluna
estava a suscitar em si. Uma reação a que teria de atender mais tarde.
Quando estivesse sozinho. E rodeado pelo aroma a baunilha.
Pediu as refeições, tendo o cuidado de pedir as maiores porções de filet
mignon possíveis. Quando a menina Mitchell protestou, ignorou a sua
preocupação com um aceno de mão, observando que ela poderia levar as
sobras para casa. Por vontade do senhor Emerson, aquela refeição iria
alimentá-la por um par de dias.
Perguntou-se o que comeria ela quando as sobras se esgotassem, mas não
quis demorar-se muito com essa questão. Aquele era um evento único e
apenas tinha lugar porque ele lhe gritara e a envergonhara. Depois daquilo,
as coisas entre os dois seriam estritamente profissionais. E ela teria de
enfrentar futuras calamidades sozinha.
Pela sua parte, Julia sentia-se feliz por estar com ele. Queria poder
conversar com ele, conversar a sério, perguntar-lhe pela sua família e pelo
funeral. Queria consolá-lo pela morte da mãe. Queria dizer-lhe segredos e
que ele lhe sussurrasse segredos em troca. Mas, ao vê-lo com os olhos
determinadamente fixos nos seus mas de forma algo ausente, ela sabia que
não teria o que desejava. Por isso limitava-se a sorrir e a concentrar-se nos
seus talheres, esperando que ele não considerasse o seu nervosismo
irritante.
— Porque é que começou a estudar italiano na escola secundária?
Julia conteve bruscamente a respiração. Os seus olhos dilataram-se, a sua
bonita boca vermelha ficou aberta.
O Sr. Emerson franziu as sobrancelhas ao ver aquela reação. Era
completamente desproporcionada em relação à sua pergunta; ele não lhe
perguntara o tamanho do sutiã. Os seus olhos desviaram-se
involuntariamente para o volume dos seios dela e depois regressaram-lhe ao
rosto. Sentiu-se corar quando um número e um tamanho de copa entraram
miraculosamente na sua mente.
— Hum, desenvolvi interesse pela literatura italiana. Por Dante e Beatriz.
— Ela dobrava e desdobrava o guardanapo de linho no seu colo, alguns
caracóis soltos em volta do seu rosto oval.
Ele pensou na pintura que vira no seu apartamento e na sua
extraordinária parecença com Beatriz. Mais uma vez, o pensamento andou-
lhe às voltas pela mente, perturbador, mas mais uma vez pô-lo de lado.
— Isso são interesses notáveis, para uma rapariga nova — sugeriu ele,
permitindo-se memorizar a sua beleza.
— Eu tinha… um amigo que mos apresentou. — Julia parecia magoada,
e um pouco triste.
Ele percebeu que estava a aproximar-se demasiado de uma velha ferida, e
por isso recuou, tentando procurar um terreno mais confortável por onde se
aventurar.
— O Antonio ficou fascinado consigo.
Julia ergueu o olhar e sorriu.
— Ele é muito amável.
— A menina parece desabrochar quando a tratam com bondade. Como
uma rosa. — As palavras escaparam-se-lhe dos lábios antes de ter tempo de
as pesar, e quando foram pronunciadas e Julia o olhou com uma não
pequena dose de calor, era demasiado tarde para as retirar.
Aquilo foi decisivo. O professor Emerson começou a concentrar a sua
atenção no copo de vinho; as suas feições fecharam-se, a sua atitude tornou-
se muito fria. Julia observou a mudança, mas aceitou-a e não fez qualquer
tentativa de conversação.
Ao longo da refeição, o claramente encantado Antonio passou mais
tempo do que o necessário à mesa deles, a tagarelar em italiano com a bela
Julianne e a convidá-la para se juntar à sua família no Clube Italo-
Canadiano para o jantar no domingo seguinte. Ela aceitou o convite
graciosamente e foi recompensada mais tarde com tiramisu, café expresso,
biscotti, grappa, e, finalmente, um pequeno chocolate Baci, em ociosa
sucessão. O professor Emerson não foi recompensado com tais delícias, por
isso limitou-se a ficar ali sentado, amuado, enquanto via a menina Mitchell
divertir-se.
Pelo final da noite, Antonio tinha enfiado o que parecia ser um grande
cesto de comida nas mãos dela e não lhe permitiu recusar. Beijou-lhe as
faces várias vezes antes de a ajudar a vestir o casaco, depois rogou a’O
Professor que a voltasse a levar ali em breve e muito mais vezes.
O professor Emerson endireitou os ombros e fixou Antonio com um
olhar de gelo.
— Isso não é possível. — Deu meia-volta sobre os calcanhares e saiu do
restaurante, deixando Julia a segui-lo desanimadamente com o seu pesado
cesto de comida.
Enquanto via partir o casal tão dissonante, Antonio perguntou-se porque
levaria O Professor uma criatura deliciosa a um lugar romântico para depois
ficar sentado estoicamente sem falar com ela, parecendo estar em
permanente sofrimento.
Quando chegaram ao apartamento de Mitchell, o professor Emerson
abriu-lhe delicadamente a porta e removeu o cesto do banco de trás do
Jaguar. Espreitou lá para dentro com curiosidade, movendo algumas coisas
para poder analisar o seu conteúdo.
— Vinho, azeite, vinagre balsâmico, biscotti, um frasco de marinara
caseira feita pela mulher do Antonio, sobras. Vai ficar muito bem
alimentada, nos próximos tempos.
— Graças a si. — Julia sorriu, estendendo a mão para o cesto.
— Isto é pesado. Eu levo-lho. — Escoltou-a até ao alpendre do edifício e
esperou enquanto ela destrancava a porta. Depois entregou-lhe a comida.
Ela começou a olhar para os sapatos, e as suas faces ruborizaram-se
enquanto pensava no que precisava de dizer.
— Obrigada, professor Emerson, pelo agradável serão. Foi muito
generoso da sua parte…
— Menina Mitchell — interrompeu ele —, não vamos tornar esta
situação ainda mais desconfortável do que já é. Peço desculpa pela minha…
anterior má educação. A minha única desculpa é… eeh, razões de natureza
privada. Vamos simplesmente dar um aperto de mão e seguir em frente.
Estendeu-lhe a mão e ela aceitou-a. Ele apertou-lhe a mão, tentando não
a magoar e ignorando absolutamente o frémito que lhe percorreu as veias ao
sentir a pele suave e delicada contra a sua.
— Boa-noite, menina Mitchell.
— Boa-noite, professor Emerson.
E, com isto, ela desapareceu no interior do edifício, deixando O Professor
em melhor disposição do que deixara naquela tarde.
Cerca de uma hora mais tarde, Julia estava sentada na sua cama a olhar
para a fotografia que mantinha sempre debaixo da almofada. Olhou para ela
durante muito tempo, a tentar decidir se a deveria destruir, ou deixá-la onde
sempre estava, ou guardá-la numa gaveta. Sempre adorara aquela
fotografia. Adorava o sorriso no rosto dele. Era a fotografia mais bonita que
alguma vez vira, mas também a magoava terrivelmente olhar para ela.
Ergueu o olhar para a linda pintura por cima da sua cama e tentou conter
as lágrimas. Não sabia o que esperara do seu Dante, mas, definitivamente,
não o recebera. Por isso, com a sabedoria que apenas se adquire com a
experiência de um coração partido, resolveu esquecê-lo de uma vez por
todas.
Pensou na sua despensa cheia e na bondade que Antonio lhe
demonstrara. Pensou nas mensagens que recebera de Paul, como ele
revelara preocupação por tê-la deixado sozinha com O Professor e lhe
pedira que lhe ligasse a qualquer hora para lhe dizer se estava bem.
Dirigiu-se para a sua cómoda, abriu a gaveta de cima e, de forma
reverente mas determinada, guardou a fotografia mesmo ao fundo, debaixo
da roupa interior sexy que nunca usava. E, com o contraste entre os três
homens bem fixo na sua mente, voltou para a cama, fechou os olhos e
sonhou com um pomar de maçãs abandonado.
Capítulo Seis

N a sexta-feira, Julia recebeu na sua caixa de correio um formulário


oficial a indicar que o professor Emerson aceitara ser seu orientador
de tese. Estava a olhar para o formulário, estupefacta, a perguntar-se porque
teria ele recuado na sua decisão, quando Paul apareceu atrás dela.
— Pronta para ir?
Ela cumprimentou-o com um sorriso enquanto guardava o formulário na
mochila grosseiramente remendada. Saíram do edifício e começaram a
caminhar ao longo de Bloor Street até ao Starbucks mais próximo, que
ficava apenas a meio quarteirão de distância.
— Quero saber como correu a tua reunião com o Emerson, mas, antes
disso, há uma coisa que preciso de te dizer. — Paul parecia muito sério.
Julia olhou para ele com uma expressão que se aproximava da ansiedade.
— Não te assustes, Coelha. Não vai doer. — Deu-lhe uma palmadinha no
braço. O coração de Paul era quase tão grande como ele, e, por isso,
mostrava-se muito sensível à dor dos outros.
— Sei o que aconteceu com o nosso bilhete.
Julia fechou os olhos e soltou uma praga.
— Paul, peço muita desculpa. Eu ia contar-te que fiz um disparate e
escrevi no teu papel, mas ainda não tive oportunidade. Não lhe disse que a
letra era tua.
Paul pressionou a mão contra o seu antebraço para a calar.
— Eu sei. Fui eu que lhe disse.
Ela olhou-o, atónita.
— Porque é que fizeste isso?
Enquanto sondava as profundezas dos grandes olhos castanhos da
Coelha, ele soube, sem qualquer dúvida, que faria qualquer coisa para
impedir que alguém a magoasse. Nem que isso significasse arriscar a sua
carreira académica. Nem que isso significasse arrancar Emerson do
Departamento de Estudos Italianos e dar-lhe o pontapé que ele e o seu
pretensioso traseiro tão profusamente mereciam.
— A senhora Jenkins disse-me que o Emerson andava a tentar apanhar-te
e percebi que ia dar cabo de ti. Encontrei uma cópia do nosso papel numa
pilha de fotocópias que ele me deixou. — Encolheu os ombros. — São os
perigos da profissão de assistente de investigação de um verdadeiro idiota.
Paul acotovelou ligeiramente Julia para a persuadir a continuar a andar,
mas esperou para continuar a conversa depois de lhe comprar um vanilla
latté muito grande sem açúcar. Depois de a ver instalar-se numa poltrona de
veludo vermelho, como um gato, e de lhe perguntar se estava quente e
confortável, virou-se para ela com uma expressão de compreensão.
— Eu sei que foi um acidente. Ficaste tão abalada depois daquele
primeiro seminário. Devia ter-te acompanhado ao gabinete dele.
Honestamente, Julia, nunca o tinha visto comportar-se daquela maneira.
Pode ser um bocado arrogante e suscetível, mas nunca foi tão agressivo
com uma aluna antes. Foi doloroso de assistir.
Julia provou o seu café e esperou que ele continuasse.
— Por isso, quando encontrei uma cópia do nosso bilhete com a tralha
que ele me deixou, percebi que ele te ia arrasar. Descobri a que horas era a
vossa reunião e marquei um encontro com ele antes. Depois confessei que
fui eu que escrevi o papel. Até menti e tentei dizer que tinha forjado a tua
assinatura, na brincadeira, mas ele não acreditou.
— Fizeste isso tudo por mim?
Paul sorriu e fletiu casualmente os seus braços substanciais.
— Estava a tentar ser um escudo humano. Pensei que, se gritasse comigo
e tirasse tudo para fora, já não restaria nada para ti. — Estudou a expressão
dela, pensativamente. — Mas não resultou, pois não?
Ela olhou-o com gratidão.
— Nunca ninguém fez uma coisa dessas por mim. Estou mesmo em
dívida contigo.
— Não te preocupes. Só gostava que ele tivesse descarregado tudo em
cima de mim. O que foi que ele te disse?
Julia concentrou toda a sua atenção no café e agiu como se não tivesse
ouvido a pergunta.
— Assim tão mau? — Paul esfregou o queixo, absorto. — Bem, já lhe
deve ter passado, porque ele foi educado contigo no último seminário.
Julia fez um riso de troça.
— Pois. Mas não me deixou responder a nenhuma pergunta, mesmo
quando pus a mão no ar. Estava demasiado ocupado a deixar a Christa
Peterson falar a toda a hora.
Paul observou o seu súbito olhar de indignação, divertido.
— Não te preocupes com ela. Já está em sarilhos com o Emerson por
causa da sua proposta de dissertação. Ele não gosta da direção que está a
tomar. Foi mesmo O Professor que me disse.
— Que horror. Ela já sabe?
Ele encolheu os ombros.
— Deve ser capaz de perceber. Mas, quem sabe? Está tão concentrada
em seduzi-lo que começa a deixar o trabalho ir por água abaixo. Chega a ser
embaraçoso.
Julia anotou tudo isto e guardou-o na sua memória para referência futura.
Recostou-se na sua cadeira, descontraiu-se e aproveitou o resto da sua tarde
com Paul, que era encantador, e delicado, e a fazia sentir-se feliz por estar
em Toronto. Às cinco horas, o seu estômago trovejou, e ela agarrou-se a ele,
embaraçada.
Paul riu-se e sorriu-lhe para aliviar o seu embaraço. Ela era tão engraçada
em tudo, até na maneira como a sua barriga trovejava.
— Gostas de comida tailandesa?
— Gosto. Havia um sítio ótimo em Filadélfia onde costumava ir com…
— interrompeu-se antes de dizer o nome em voz alta. Aquele era o
restaurante onde sempre fora com ele. Perguntou-se em silêncio se eles iam
lá agora, se comeriam à sua mesa, se se ririam, de ementas na mão, a gozar
com ela…
Paul pigarreou para a trazer suavemente de volta ao presente.
— Desculpa. — Baixou a cabeça e começou a procurar na sua mochila
por nada em particular.
— Há um tailandês ótimo aqui perto. Fica a alguns quarteirões de
distância, por isso temos de andar um pouco. Mas a comida é mesmo boa.
Se não tiveres outros planos, deixa-me levar-te a jantar.
O seu nervosismo apenas era telegrafado pelo lento e subtil bater do seu
pé direito debaixo da mesa, que Julia detetou pelo canto do olho. Ela olhou
para os seus calorosos olhos escuros e pensou brevemente em como a
bondade valia muito mais no mundo do que a paixão, e disse sim antes de
poder sequer contemplar a possibilidade de dizer não.
Ele sorriu, como se a sua concordância lhe desse mais do que um prazer
secreto, e pegou na mochila dela, pendurando-a sem esforço ao ombro.
— Isto é muito pesado para ti — disse, olhando-a nos olhos e escolhendo
as palavras cuidadosamente. — Deixa-me levá-la um bocado.
Julia sorriu, de olhos nos pés, e seguiu-o para o exterior.

O professor Emerson voltou a pé para casa do trabalho. Era uma


caminhada curta, embora, em dias inclementes ou quando tinha
compromissos para a noite, levasse o carro.
Enquanto caminhava, pensou na conferência que ia apresentar na
universidade, acerca da luxúria em Dante. A luxúria era um pecado em que
tinha a noção de pensar com frequência e muito prazer. De facto, a ideia da
luxúria e da miríade de satisfações que proporcionava era tão provocadora
que o professor Emerson teve de apertar a gabardina, para que a visão algo
espetacular da frente das suas calças não atraísse atenção indesejada.
Foi então que a viu. Parou, a olhar para a atraente morena do outro lado
da rua.
Calamity Julianne.
Só que não estava sozinha. Paul carregava-lhe aquela abominação de
saco e caminhava ao seu lado. Conversavam tranquilamente e riam-se,
enquanto passeavam perigosamente perto um do outro.
Agora carregas-lhe os livros, é? Que coisa tão adolescente, Paul.
O professor Emerson viu quando as mãos do casal se tocaram,
provocando um pequeno sorriso quente da menina Mitchell. Um grunhido
soltou-se da garganta de Emerson, e os seus lábios arreganharam-se sobre
os dentes.
Que raio foi isto?, pensou.
O professor Emerson precisou de um momento para se recompor e,
enquanto se encostava à montra da Louis Vuitton, tentou perceber que raio
acabara de acontecer. Ele era um agente racional. Usava roupas para cobrir
a sua nudez, conduzia um automóvel, comia com faca e garfo e um
guardanapo de pano. Tinha uma profissão que exigia capacidade intelectual
e acuidade. Controlava os seus impulsos sexuais através de várias formas
civilizadas e nunca tomaria uma mulher contra vontade dela.
No entanto, enquanto olhava para a menina Mitchell a passar com Paul,
percebeu que era um animal. Uma coisa primitiva. Uma coisa bestial. E
algo dentro de si queria atravessar a rua, e arrancar as mãos de Paul do
corpo da menina Mitchell, e depois levá-la consigo. Beijá-la até a deixar
sem sentidos, mover os lábios pelo seu pescoço e possuí-la.
Foda-se!
A ideia deixou O Professor assustado como o raio. Já não lhe bastava ser
um imbecil e um idiota pomposo, era também um bronco Neandertal com
um sentimento de propriedade sobre uma jovem que mal conhecia e o
odiava. Para não mencionar o facto de essa jovem ser sua aluna.
Precisava de ir para a casa, deitar-se e respirar fundo até se acalmar.
Depois precisaria de outra coisa, qualquer coisa mais forte para acalmar os
seus impulsos. Enquanto continuava o caminho para casa, arrancando-se
dolorosamente à visão dos dois jovens juntos, pegou no seu iPhone e
carregou rapidamente nalguns botões.
Uma mulher atendeu ao terceiro toque.
— Estou?
— Sim, sou eu. Posso ver-te esta noite?

N a quarta-feira seguinte, Julia ia a sair do edifício do departamento,


depois do seminário de Emerson, quando ouviu uma voz familiar a
chamá-la.
— Julia? Julia Mitchell, és tu?
Deu meia-volta e foi envolvida num abraço tão apertado que pensou que
ia sufocar.
— Rachel — conseguiu dizer, enquanto tentava respirar.
A magra rapariga loura soltou um enorme guincho de alegria e abraçou
Julia novamente.
— Tinha tantas saudades tuas. Há quanto tempo, nem acredito! O que é
que estás aqui a fazer?
— Rachel, lamento muito. Por tudo, e pela tua mãe, e… tudo.
As duas amigas ficaram caladas na sua dor partilhada e abraçaram-se por
um longo momento.
— Desculpa ter faltado ao funeral. Como está o teu pai? — perguntou
Julia, a limpar as lágrimas.
— Está perdido, sem ela. Estamos todos. Está de licença de
Susquehanna, neste momento, a tentar resolver algumas coisas. Eu também
estou de licença, mas tive de me afastar. Porque não me disseste que estavas
aqui? — censurou-a Rachel, lacrimosa.
Os olhos de Julia desviaram-se, embaraçados, da sua amiga para o
professor Emerson, que acabara de sair do edifício e estava a olhar para ela
de boca aberta como um bacalhau.
— Não sabia bem se ia aqui ficar. As primeiras semanas têm sido
mesmo… eeh, difíceis.
Rachel, que era muito inteligente, reparou na energia estranha e algo
conflituosa que irradiava entre o irmão adotado e a sua amiga, mas, naquele
momento, ignorou-a.
— Vim dizer ao Gabriel que esta noite lhe faço o jantar. Vem jantar
connosco.
Os olhos de Julia ficaram enormes e redondos, e ela pareceu ligeiramente
em pânico.
Gabriel pigarreou.
— Hmm, Rachel, de certeza que a menina Mitchell está ocupada e tem
outros planos.
O olhar de Julia cruzou-se com o dele, grávido de significado, e começou
a anuir obedientemente.
Rachel deu meia-volta.
— Menina Mitchell? Ela era a minha melhor amiga na escola secundária,
e somos amigas desde então. Não sabias? — Rachel estudou os olhos do
irmão e não viu nada, nem sequer uma centelha de recordação. — Esqueci-
me que nunca se tinham conhecido. De qualquer maneira, a tua atitude é um
bocadinho de mais. Faz-me um favor, tira-me lá esse pau que tens enfiado
no rabo.
Deu novamente meia-volta para ver Julia a engolir a própria língua. Ou,
pelo menos, era o que parecia que ela estava a fazer, já que ficara azul e
começara a tossir.
— Devíamos encontrar-nos antes para o almoço. Tenho a certeza que o
profess… o teu irmão prefere ter-te só para si. — Julia forçou um sorriso,
consciente do facto de Gabriel estar a fulminá-la com o olhar por cima da
cabeça da irmã.
Rachel semicerrou os olhos.
— É o Gabriel, Julia. O que é que vos deu?
— Ela é minha aluna. Existem regras. — O tom de Gabriel começava a
tornar-se cada vez mais frio e antipático.
— Ela é minha amiga, Gabriel. E eu quero que as regras se lixem! —
Rachel olhou do irmão para a amiga e viu Julia de cabeça baixa a olhar para
os sapatos e Gabriel carrancudo a olhar para as duas. — Alguém me diz,
por favor, o que é que se passa?
Quando nem Julia nem Gabriel responderam, Rachel cruzou os braços à
frente do peito e semicerrou os olhos. Pensou brevemente na observação de
Julia sobre as primeiras semanas na universidade terem sido difíceis e
chegou a uma pronta conclusão.
— Gabriel Owen Emerson, foste um imbecil para a Julia?
Julia conteve uma gargalhada, e Gabriel franziu o sobrolho. Apesar do
silêncio de ambos, a reação de qualquer um dos dois foi suficiente para
dizer a Rachel que a suspeita estava correta.
— Bem, eu não tenho tempo para este disparate. Vocês os dois vão ter de
dar um beijinho e fazer as pazes. Só cá estou durante uma semana e espero
passar montes de tempo com ambos. — Rachel agarrou cada um deles pelo
braço e empurrou-os para o Jaguar.
Rachel Clark não era nada como o seu irmão adotado. Trabalhava como
assistente do assessor de imprensa do presidente da Câmara de Filadélfia, o
que parecia importante mas na realidade não era. De facto, a maioria dos
seus dias eram passados ou a revistar os jornais locais em busca de menções
ao presidente ou a fotocopiar comunicados de imprensa. Em dias
especialmente auspiciosos, era autorizada a atualizar o blogue do
presidente. Em aparência, Rachel tinha feições finas e graciosas, com
cabelo liso comprido, sardas, e olhos cinzentos. Era também muito
comunicativa, o que, por vezes, exasperava o seu muito mais velho e
introvertido irmão.
Gabriel manteve os lábios firmemente comprimidos durante a viagem até
ao seu apartamento, enquanto as duas mulheres tagarelavam no banco de
trás como um par de adolescentes, cheias de risinhos e reminiscências. Não
lhe apetecia passar um serão com aquelas duas, mas a irmã estava a sofrer,
naquele momento, e não queria fazer nada que aumentasse o seu
sofrimento.
Pouco depois, o trio dois-terços-feliz estava a subir no elevador do
Edifício Manulife, um impressionante prédio de luxo na Bloor Street.
Quando saíram do elevador no último andar, Julia reparou que havia apenas
quatro portas no patamar.
Uau. Estes apartamentos devem ser enormes.
Quando Julia entrou no apartamento e seguiu Gabriel pelo pequeno átrio
para depois entrar na área central e conceito-open-space, percebeu porque a
sensibilidade dele tinha ficado tão ofendida com o seu estúdio. O espaçoso
apartamento tinha janelas do chão ao teto, veladas por dramáticas cortinas
de seda azul-gelo, viradas a sul para a Torre CN e sobre o lago Ontário. O
soalho era de uma luxuosa madeira escura, com tapetes persas a adorná-lo,
e as paredes eram de um cinzento-claro.
A mobília da sala de estar parecia ter sido escolhida na Restoration
Hardware, e abrangia um grande sofá de pele cor de chocolate com
guarnições de ferro, dois cadeirões de pele a condizer e uma poltrona de
orelhas de veludo vermelho que estava posicionada ao lado da lareira.
Julia olhou para a linda poltrona de orelhas com a otomana a condizer
com uma boa dose de inveja. Seria o sítio perfeito para se sentar num dia de
chuva enquanto bebericava uma chávena de chá e lia um livro preferido.
Não que alguma vez fosse ter essa oportunidade.
A lareira era a gás e Gabriel suspendera um plasma por cima, como se
fosse uma pintura. Várias peças de arte, pinturas a óleo e esculturas
adornavam as paredes e alguma da mobília. Havia peças de vidro romano e
cerâmica grega com a qualidade de um museu intercaladas com
reproduções de esculturas famosas, incluindo a Vénus de Milo e o Apolo e
Dafne de Bernini. De facto, pensou Julia, ele tinha até demasiadas
esculturas, todas elas com mulheres nuas.
Mas não havia nenhumas fotografias pessoais. Considerava muito
estranho que houvesse fotografias a preto e branco de Paris, Roma,
Londres, Florença, Veneza e Oxford mas nenhuma dos Clarks, nem sequer
de Grace.
No espaço ao lado, perto da mesa de jantar, grande e formal, erguia-se
um aparador de ébano. Julia apreciou a sua opulência e extensão. Estava
despido, excetuando um grande jarro de cristal e um ornado tabuleiro de
prata onde se viam vários decantadores com líquidos cor de âmbar, um
balde de gelo e copos de cristal antiquados. O quadro era complementado
com uma pinça de gelo de prata, encostada a uma pilha de pequenos
guardanapos de linho branco com as iniciais G. O. E. bordadas. Julia riu
para si mesma quando imaginou como ficariam aqueles guardanapos se o
último nome de Gabriel fosse, por exemplo, Davidson.
Em suma, o apartamento do professor Emerson era esteticamente
agradável, decorado com bom gosto, escrupulosamente limpo,
intencionalmente masculino e muito, muito frio. Julia pensou brevemente se
ele alguma vez traria mulheres àquele espaço glacial, depois tentou com
muita força não imaginar o que faria com elas. Talvez tivesse um quarto
para tais propósitos, para que elas não conspurcassem as suas coisas
preciosas… Passou uma mão pela fria bancada de granito preto da cozinha
e estremeceu.
Rachel pôs de imediato o forno a aquecer e lavou as mãos.
— Gabriel, porque não fazes uma visita guiada à Julia, enquanto começo
a fazer o jantar?
Julia tinha a mochila bem agarrada contra o peito, não querendo pôr um
objeto tão ofensivo em cima da mobília dele. Gabriel tirou-lha das mãos e
colocou-a no chão debaixo de uma mesinha. Ela sorriu-lhe em
agradecimento e ele deu por si a sorrir também.
Não queria fazer uma visita guiada pelo seu apartamento à menina
Mitchell. E não havia dúvida de que não lhe ia mostrar o seu quarto e as
fotografias a preto e branco que adornavam aquelas paredes. Mas como
Rachel estava ali a lembrar-lhe as suas obrigações de (relutante) amável
anfitrião, não viu como escapar à visita aos outros aposentos.
Foi assim que chegou à porta do seu escritório, originalmente um terceiro
quarto de dormir que ele convertera numa confortável biblioteca de
trabalho, instalando prateleiras de madeira escura desde o chão até ao teto.
Julia ficou de boca aberta a olhar para todos aqueles livros — títulos novos,
e raros, e quase todos de capa dura, em italiano, latim, francês, inglês e
alemão. A divisão, como o resto do apartamento, era intencionalmente
masculina. As mesmas cortinas azul-gelo, o mesmo soalho escuro, com um
tapete persa antigo centrado no chão.
Gabriel foi para trás da sua enorme secretária de carvalho trabalhado.
— Gosta? — Indicou o espaço da biblioteca com um gesto.
— Muito — disse Julia. — É linda.
Estendeu a mão para acariciar o veludo da poltrona de orelhas, a gémea
da outra que admirara junto à lareira. Mas pensou que ele não deveria
gostar. O professor Emerson seria bem capaz de objetar a que se tocasse nas
suas coisas, por isso deteve-se mesmo a tempo. Provavelmente ele dar-lhe-
ia uma palmada, por lhe conspurcar a cadeira com os seus dedinhos sujos.
— Essa é a minha poltrona favorita. É bastante confortável, se a quiser
experimentar.
Julia sorriu como se ele lhe tivesse dado um presente e sentou-se
avidamente, puxando as pernas para debaixo do corpo e enroscando-se
como uma gatinha.
Gabriel quase podia jurar que a ouviu ronronar. Sorriu com a visão dela
ali, momentaneamente descontraída e quase feliz com um evento tão trivial.
Levado por um capricho, decidiu mostrar-lhe uma das suas coisas mais
valiosas.
— Tenho aqui uma coisa para lhe mostrar. — Fez-lhe sinal para se
aproximar e ela foi colocar-se em frente da secretária.
Ele abriu uma gaveta e retirou dois pares de luvas de algodão branco.
— Calce-as. — Entregou-lhe um par, que ela aceitou mudamente,
copiando os seus movimentos enquanto ele as ajustava aos dedos longos.
— Este é um dos meus bens mais preciosos — explicou, retirando uma
grande caixa de madeira de uma gaveta que destrancou. Pousou a caixa na
secretária e, por um horrível segundo, Julia teve medo do que poderia
encontrar lá dentro.
Uma cabeça reduzida? Talvez de um antigo aluno de mestrado?
Ele abriu a caixa e retirou o que parecia ser um livro. Quando o abriu,
tornou-se evidente que se tratava de uma série de rígidos envelopes de
papel presos em acordeão, cada um legendado em italiano. Percorreu-os
cuidadosamente até encontrar o envelope que queria, depois removeu
qualquer coisa, segurando-a entre as duas mãos.
Julia abriu a boca ao ver o que era.
Gabriel sorriu com orgulho.
— Reconhece?
— Claro! Mas isto… isto não pode ser o original?
Ele riu-se baixinho.
— Infelizmente, não. Não estaria ao alcance da minha pequena fortuna.
Os originais datam do século quinze. Estas são reproduções do século
dezasseis.
Tinha na sua mão uma cópia da famosa ilustração de Dante e Beatriz e as
estrelas fixas do Paraíso, cujo original fora pintado a caneta e tinta por
Sandro Botticelli. A ilustração era de quarenta por cinquenta centímetros,
mais ou menos, e, embora fosse apenas a tinta sobre pergaminho, o
pormenor era arrebatador.
— Como conseguiu isto? Não sabia que havia cópias.
— Não só há cópias como provavelmente foram feitas por um antigo
aluno de Botticelli. Mas este conjunto está completo. Botticelli preparou
uma centena de ilustrações d’A Divina Comédia, mas apenas noventa e
duas delas sobreviveram. Eu tenho o grupo completo.
Os olhos de Julia ficaram enormes, brilhantes de excitação.
— Está a gozar.
Gabriel riu-se.
— Não, não estou.
— Fui ver os originais quando estavam emprestados à Galeria Uffizi em
Florença. O Vaticano tem oito, acho eu, e o resto pertence a um museu de
Berlim.
— Exato. Pensei que devia gostar.
— Mas nunca vi os outros oito.
— Ninguém viu. Deixe-me mostrar-lhe.
O tempo voou enquanto Gabriel mostrava a Julia os seus tesouros, e ela
manteve-se muito calada na sua admiração até a voz de Rachel os chamar
do corredor.
— Gabriel, arranja uma bebida à Julia, arranjas? E para de a aborrecer
com as tuas porcarias antigas!
Ele revirou os olhos e Julia riu-se.
— Como é que os arranjou? Porque é que não estão num museu? —
perguntou ela, enquanto o via a arrumar as suas ilustrações nos seus
respetivos envelopes.
Gabriel comprimiu os lábios.
— Não estão num museu porque me recuso a cedê-los. E ninguém sabe
que os tenho exceto o meu advogado, o meu agente de seguros e agora a
menina.
A determinação no seu queixo indicava que ele queria encerrar a
discussão sobre o assunto, por isso Julia decidiu não insistir.
Era provável que as ilustrações tivessem sido roubadas de um museu e
que Gabriel as tivesse adquirido no mercado negro. Isso explicaria a sua
reticência em revelar a sua existência ao mundo. Julia estremeceu quando
percebeu que acabara de ver o que menos de meia dúzia de pessoas no
mundo tinham visto. E eram tão maravilhosamente belas — verdadeiras
obras de arte.
— Gabriel… — Rachel estava à porta, a olhá-lo com um ar reprovador.
— Está bem, está bem. O que deseja beber, menina Mitchell? — Saíram
do escritório e ele dirigiu-se para o refrigerador de vinho na cozinha.
— Gabriel!
— Julianne?
Ela sobressaltou-se quando o nome saiu dos lábios dele. Rachel reparou
naquela estranha reação e desapareceu num armário à procura das panelas e
caçarolas do irmão.
— Aceito qualquer coisa, obrigada, prof… Gabriel. — Julia fechou os
olhos com o prazer de poder finalmente pronunciar o nome dele. Depois
instalou-se num dos elegantes bancos altos junto ao balcão de pequeno-
almoço.
Gabriel escolheu uma garrafa de Chianti e pousou-a no balcão.
— Vou deixá-lo aquecer até à temperatura ambiente — explicou para
ninguém em particular. Pediu licença e desapareceu, presumivelmente para
ir vestir alguma roupa mais informal.
— Julia — sibilou Rachel, enquanto punha um monte de vegetais num
dos lados do lavatório duplo. — O que é que se passa entre ti e o Gabriel?
— É melhor fazeres-lhe essa pergunta a ele.
— Estou a planear fazer. Mas porque é que ele se está a portar desta
maneira tão esquisita? E porque não lhe disseste quem eras?
Julia parecia estar prestes a desatar a chorar.
— Pensei que ele se lembraria de mim. Mas não se lembra. — A sua voz
tremia, e ela baixou o olhar para o colo.
Rachel estava confusa com as palavras da amiga e a sua reação
exageradamente emotiva e voou de imediato para o seu lado para a
envolver num abraço.
— Não te preocupes. Agora estou aqui e vou pô-lo na ordem. Ele tem
coração, algures, debaixo de tudo o resto. Eu sei, que já o vi uma vez.
Agora, ajuda-me a lavar os legumes. O borrego já está no forno.
Quando Gabriel regressou, abriu avidamente o vinho, com um sorriso
malicioso. Estava em vias de receber um presente, e sabia-o. Sabia como
era Julianne quando provava vinho e agora teria uma repetição da sua
exibição erótica da outra noite. Sentiu-se estremecer mais do que uma vez
com a expectativa, e desejou ter uma câmara de vídeo secretamente
colocada no seu apartamento, algures. Provavelmente seria demasiado
óbvio puxar da máquina fotográfica e começar a tirar fotografias.
Mostrou-lhe primeiro a garrafa, notando com aprovação a expressão
impressionada que lhe passou pelo rosto quando ela leu o rótulo. Trouxera
aquele vintage especial da Toscana e seria doloroso desperdiçá-lo num
palato sem discernimento. Serviu um pouco no copo dela e recuou, a
observar, tendo de se esforçar muito para não sorrir.
Como anteriormente, Julia fez girar o vinho muito devagar. Examinou-o
à luz de halogéneo. Fechou os olhos e cheirou. Depois, fechou os lábios
beijáveis na borda do copo e provou-o lentamente, mantendo o vinho na
boca por um ou dois segundos antes de engolir.
Gabriel suspirou, ao ver o vinho viajar ao longo da sua longa e elegante
garganta.
Quando Julia abriu os olhos, viu Gabriel a oscilar ligeiramente na sua
frente, os olhos azuis mais escuros, a respiração algo afetada, e a frente das
suas calças cor de cinza… Olhou-o de sobrolho franzido. Com força.
— Sente-se bem?
Ele passou uma mão pelos olhos e obrigou-se à submissão.
— Sim. Desculpe. — Serviu-lhe um grande copo, depois outro para si, e
começou a bebê-lo sensualmente, observando-a com intensidade sobre a
borda do seu copo.
— Deves estar esfomeado, Gabriel. Eu sei como te transformas num
animal quando tens fome. — Rachel falava por cima do ombro enquanto
mexia alguma espécie de molho ao fogão.
— O que vamos comer com o borrego? — Ele estava a observar Julia
como um falcão, enquanto ela levava o copo de vinho à boca suculenta
mais uma vez e bebia um grande gole.
Rachel pousou uma caixa no balcão do pequeno-almoço.
— Cuscuz!
Julia cuspiu o vinho que tinha na boca, ensopando Gabriel e a sua camisa
branca. Com o choque perante a súbita expetoração, deixou cair o copo de
vinho, banhando-se a si mesma e ao soalho no processo. O copo de cristal
desfez-se com o impacto aos pés do seu banco.
Gabriel começou a sacudir as gotas de vinho da dispendiosa camisa e
praguejou. Alto. Julia caiu de joelhos e tentou rapidamente apanhar os
estilhaços de vidro com as mãos nuas.
— Pare — disse ele em voz baixa, olhando-a do outro lado do balcão.
Julia continuou a sua missão desesperada, com as lágrimas a escaparem-
se dos olhos.
— Pare — disse ele mais alto, dando a volta ao balcão.
Julia transferiu alguns dos estilhaços de vidro para a outra mão e tentou
apanhar o resto, pedaço a pedaço, gatinhando pateticamente pelo chão
como um cachorrinho ferido a arrastar uma pata partida.
— Pare! Pelo amor de Deus, mulher, pare com isso. Vai ficar toda
cortada. — Gabriel aproximou-se ameaçadoramente, fazendo a sua fúria
descer sobre ela desde o alto como a ira de Deus.
Puxou-a para cima pelos ombros e forçou-a a largar o vidro das mãos
para uma tigela no balcão, antes de a guiar pelo corredor para o lavabo
social.
— Sente-se — ordenou.
Julia sentou-se em cima da sanita fechada e soltou um soluço reprimido,
com os ombros a tremer.
— Estenda as mãos.
Ela tinha as mãos manchadas de vinho tinto e com pequenos vestígios de
sangue. Cristais de vidro cintilavam nos cortes na sua palma. Gabriel
praguejou várias vezes e abanou a cabeça enquanto abria o armário dos
medicamentos.
— Não ouve lá muito bem, pois não?
Julia pestanejou para reprimir as lágrimas, lamentando não as poder
limpar com as mãos.
— E também não faz o que lhe dizem. — Ele olhou para ela e parou
abruptamente.
Não sabia porque tinha parado e, se alguém lho perguntasse mais tarde,
teria encolhido os ombros sem dar nenhuma explicação. Mas quando parou
o que estava a fazer e viu aquela pobre criaturinha encolhida a um canto a
chorar, sentiu… qualquer coisa. Qualquer coisa que não aborrecimento, ou
fúria, ou culpa, ou excitação sexual. Sentiu compaixão por ela. E
arrependimento por a ter feito chorar.
Baixou-se e começou a limpar-lhe as lágrimas muito ternamente com as
pontas dos dedos. Reparou no pequeno som que saiu da boca dela assim
que lhe tocou, e reparou novamente que a pele dela lhe parecia muito
familiar. E, depois de lhe limpar as lágrimas, tomou-lhe o rosto pálido entre
as mãos, inclinando-lhe o queixo para cima… e recuou rapidamente,
começando a limpar-lhe os ferimentos.
— Obrigada — murmurou Julia, reparando no cuidado com que ele lhe
removia o vidro das mãos. Usava uma pinça, procurando meticulosamente
até os mais pequenos fragmentos na sua pele.
— De nada.
Quando todo o vidro tinha sido removido, verteu tintura de ido numas
bolas de algodão.
— Isto vai arder.
Viu-a preparar-se para o seu toque, e retraiu-se um pouco. Não gostava
da perspetiva de a magoar. E ela era tão suave e tão frágil. Levou um
minuto e meio a ganhar coragem para lhe pôr a tintura nos cortes e, durante
todo esse tempo, ela ficou ali sentada, de olhos muito abertos e a morder o
lábio, à espera que ele avançasse.
— Pronto — disse ele com a voz rouca, enquanto limpava o último
sangue. — Agora está melhor.
— Desculpe ter-lhe partido o copo. Eu sei que era de cristal. — A voz
suave da aluna interrompeu-lhe os devaneios enquanto ele devolvia os
artigos de primeiros socorros ao armário dos medicamentos.
Ele acenou-lhe com uma mão.
— Tenho dúzias deles. Há uma loja de cristal lá em baixo. Vou buscar
outro quando precisar.
— Eu gostaria de o substituir.
— Não conseguia. — As palavras escaparam-se-lhe da boca sem o
perceber. Observou com horror quando a cara de Julia se ruborizou
primeiro, e depois ficou pálida. A sua cabeça baixou-se, claro, e ela
começou a mastigar o interior da bochecha.
— Menina Mitchell, eu nem sequer sonharia em aceitar o seu dinheiro.
Isso violaria as regras da hospitalidade.
E isso nunca poderia acontecer, pensou Julia.
— Mas sujei-lhe a camisa. Por favor, deixe-me pagar a limpeza.
Gabriel baixou o olhar para a sua linda camisa branca, obviamente
arruinada, e proferiu uma praga dentro da sua cabeça. Gostava daquela
camisa. Fora Paulina que lha comprara em Londres. E o cuspo de Julia
misturado com o Chianti nunca haveria de sair.
— Também tenho várias iguais a esta — mentiu ele suavemente. — E
tenho a certeza que as manchas vão sair. A Rachel ajuda-me.
Julia varria o lábio inferior com os dentes para a frente e para trás, para a
frente e para trás.
Gabriel viu o movimento, e este deixou-o algo tonto, como uma espécie
de náusea causada pelo balouçar de um navio, mas os lábios dela eram tão
vermelhos e convidativos que não conseguia desviar o olhar. Era um pouco
como ver um acidente de carro enquanto se estava ao convés de uma
embarcação.
Baixou-se e deu-lhe uma palmadinha nas costas da mão.
— Os acidentes acontecem. Ninguém teve culpa. — Sorriu e foi
recompensado com um sorriso muito bonito, quando ela soltou o lábio
inferior.
Olhem para ela. Desabrocha mesmo com a simpatia. Como uma rosa a
abrir as pétalas.
— Ela está bem? — perguntou Rachel, aparecendo de súbito ao seu lado.
Gabriel retirou a mão rapidamente e suspirou.
— Sim. Mas parece que a Julianne odeia cuscuz. — Piscou-lhe o olho às
escondidas e viu o rubor espalhar-se das bochechas para toda a superfície da
sua pele de porcelana. Era mesmo um anjo de olhos castanhos.
— Tudo bem. Então eu faço antes arroz pilaf. — Rachel desapareceu e
Gabriel seguiu-a, deixando Julia a tentar impedir que o coração lhe
escapasse do peito.
Enquanto Rachel voltava a guardar os cereais recusados no frigorífico,
Gabriel voltou ao seu quarto para mudar a camisa suja, depositando-a com
não pouca pena no lixo. Depois juntou-se à irmã na cozinha para limpar o
vidro partido e o vinho do chão.
— Há umas coisas que preciso de te contar sobre a Julia — começou ela,
falando por cima do ombro.
Gabriel levou os estilhaços de vidro para o caixote do lixo.
— Prefiro não ouvir.
— O que é que se passa contigo? Ela é minha amiga, pelo amor de Deus!
— E é minha aluna. Eu não devia saber nada sobre a sua vida pessoal. O
facto de ser tua amiga já apresenta um conflito de interesses de cuja
existência não estava consciente.
Rachel encolheu os ombros e abanou a cabeça teimosamente, e os seus
olhos cinzentos escureceram.
— Sabes que mais? Não me interessa! Eu adoro-a e a mamã também. Só
tens de te lembrar disso na próxima vez que te sentires tentado a gritar com
ela.
»Ela foi esmagada, seu idiota. Foi por isso que não se manteve em
contacto comigo neste último ano. E agora que, finalmente, saiu do seu
casulo, um casulo, posso acrescentar, do qual pensei que nunca sairia, tu
queres forçá-la a voltar lá para dentro com a tua… a tua arrogância e
condescendência! Por isso, para com essa treta de inglês emproado, essa
atitude de Rochester-Mr. Darcy-Heathcliff, e trata-a como o tesouro que ela
é!
Gabriel endireitou a coluna e lançou-lhe um olhar fulminante.
Ela não recuou. Nem se encolheu. De facto, até cresceu ainda mais para
ele. Quase ameaçadora.
— Tudo bem, Rachel.
— Ótimo. Até me custa acreditar que não reconheceste o seu nome,
depois de todas as vezes que te contei como ela adorava Dante. Quero dizer,
quantos entusiastas de Dante de Selinsgrove é que tu conheces?
Ele aproximou-se da irmã e depositou-lhe um beijo na testa franzida.
— Tem lá calma comigo, Rach. Sabes que tento não pensar em nada que
esteja relacionado com Selinsgrove, enquanto o puder evitar.
A fúria de Rachel derreteu-se com estas palavras, e ela abraçou o irmão
com força.
— Eu sei.
Algumas horas e outra garrafa de Chianti depois, Julia levantou-se para
partir.
— Obrigada pelo jantar. Tenho de voltar para casa.
— Nós levamos-te — ofereceu Rachel, desaparecendo para ir buscar o
seu casaco.
Gabriel franziu o sobrolho e pediu licença, para ir atrás dela.
— Tudo bem. Eu posso ir a pé. Não é longe — tentou Julia chamar os
irmãos.
— Nem penses. Está escuro lá fora, e não me interessa que Toronto seja
seguro. Além disso, está a chover — gritou-lhe Rachel, antes de se ver
envolvida numa acesa discussão com Gabriel.
Julia dirigiu-se para a porta para não ter de o ouvir dizer que não queria
levá-la a casa. Mas os irmãos reapareceram pouco depois, e os três
dirigiram-se para o elevador. Mesmo quando este estava a chegar, o
telemóvel de Rachel tocou.
— É o Aaron. — Abraçou fortemente Julia. — Tenho estado a tentar
falar com ele todo o dia, e ele tem estado em reuniões. Vamos combinar um
almoço. Não precisas de te preocupar, mano, tenho a tua chave suplente!
Rachel voltou para o apartamento, deixando um carrancudo Gabriel e
uma Julia pouco à vontade para apanharem o elevador para a garagem.
— Alguma vez me ia dizer quem era? — A voz dele era ligeiramente
acusadora.
Julia abanou a cabeça e abraçou a sua ridícula mochila com mais força.
Ele olhou para o saco dos livros e decidiu naquele preciso momento que
aquilo tinha de desaparecer. Se tivesse de ver aquela coisa odiosa uma vez
mais que fosse, ia enlouquecer. E Paul tocara-lhe, o que significava que
estava poluída. Ela tinha de a deitar fora.
Gabriel conduziu-a até ao seu lugar na garagem e Julia dirigiu-se de
imediato para o banco do passageiro do Jaguar.
Ele pressionou um botão e o Range Rover ao lado do Jaguar destrancou-
se.
— Hum, vamos levar antes este. A tração às quatro rodas é melhor com a
chuva. Não gosto de sair com o Jaguar com este tempo, se não for obrigado
a isso.
Julia tentou ocultar o seu olhar de surpresa perante o embaraço de
Gabriel com os seus bens, especialmente quando ele lhe abriu a porta e a
ajudou a entrar. Quando se instalou no assento, perguntou-se se ele sentira a
conexão que passara entre ambos quando lhe tocara no braço. Sentira, claro.
— Deixou-me fazer figura de imbecil. — Ele fez o carro sair da garagem,
carrancudo.
Foste tu que a fizeste sozinho, obrigada. O pensamento não pronunciado
de Julia pairou no ar entre os dois, e ela perguntou-se brevemente se O
Professor seria bom a ler deixas não-verbais.
— Eu tê-la-ia tratado de outra maneira. Tê-la-ia tratado melhor, se
soubesse.
— Teria? A sério? E iria à procura de outro aluno para maltratar? Se for
esse o caso, fico contente por ter dirigido a sua raiva para cima de mim.
Assim, não precisou de a atirar para cima de mais ninguém.
Gabriel fez-lhe um olhar frio.
— Isso não muda nada. Fico contente por ser amiga da Rachel, mas não
deixa de ser minha aluna, o que significa que precisamos de ser
profissionais, menina Mitchell. E terá cuidado com a maneira como fala
comigo, agora e no futuro.
— Sim, professor Emerson.
Ele estudou-lhe a face em busca de qualquer sinal de sarcasmo, mas não
encontrou nenhum. Viu-a de ombros encolhidos e a cabeça baixa. Fizera a
sua pequena rosa murchar.
A sua pequena rosa? Mas que raio, Emerson!
— A Rachel está feliz por a ter encontrado aqui. Sabia que ela estava
comprometida?
Julia abanou a cabeça.
— Estava? Já não está?
— O Aaron Webster pediu-a em casamento, e ela aceitou, mas isso foi
antes de a Grace… — Ele suspirou lentamente. — A Rachel não está com
vontade de planear um casamento, por isso cancelou tudo. É por essa razão
que aqui está.
— Oh, não, tenho tanta pena. Pobre Rachel. — Suspirou. — Pobre
Aaron! Eu adoro-o.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Eles continuam juntos. O Aaron adora-a, obviamente, e concordou
que ela precisava de se afastar por um tempo. Houve muita… discussão na
casa dos meus pais, quando eu lá estive. Ela veio visitar-me para se escapar.
O que dá vontade de rir, na realidade, uma vez que sou a ovelha negra da
família e ela é a preferida.
Julia anuiu, como se compreendesse.
— Eu tenho um problema com a fúria, menina Mitchell. Tenho mau
génio. Tenho dificuldade em controlá-lo e, quando perco a cabeça, consigo
ser muito destrutivo.
Os olhos de Julia cresceram ao ouvir esta declaração, e a sua boca abriu-
se ligeiramente, mas ela não disse nada.
— Seria… pouco aconselhável perder a cabeça perto de alguém como a
menina Mitchell. Seria muito prejudicial, para ambos. — A declaração era
tão honesta e tão assustadora que as palavras arderam dentro dela como
fogo.
— A ira é um dos sete pecados mortais — observou ela, enquanto se
virava para olhar pela janela, a tentar aliviar a sensação de ardor no seu
íntimo.
Ele riu-se amargamente.
— Na verdade, eu tenho os sete; não se dê ao trabalho de contar.
Orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza, gula, luxúria.
Ela ergueu uma sobrancelha, mas não se virou.
— Não sei porquê, duvido.
— Não estou à espera que compreenda. A menina é só um íman para o
acidente, menina Mitchell, enquanto eu sou um íman para o pecado.
Ela voltou-se finalmente para ele. Viu-o sorrir com um ar de resignação,
e ofereceu-lhe um sorriso de compreensão em resposta.
— O pecado não é algo que possa ser atraído para um ser humano,
professor. É ao contrário.
— Pela minha experiência, não concordo. O pecado parece conseguir
encontrar-me mesmo quando não o procuro. E eu não sou muito bom a
resistir à tentação.
Olhou-a de relance, depois voltou a olhar para a estrada.
— A sua amizade com a Rachel explica porque enviou as gardénias. E
porque assinou o cartão como assinou.
— Fiquei muito triste com a morte da Grace. Também a adorava.
Ele olhou para os olhos dela. Eram bondosos e transparentes, e, no
entanto, continham vestígios de tristeza e incalculável perda.
— Agora percebo isso — admitiu.
— Tem rádio por satélite? — Julia indicou a consola enquanto ele ligava
o rádio e carregava num dos botões das rádios programadas.
— Sim. Normalmente ouço uma das estações de jazz, mas depende da
minha disposição.
Julia estendeu um dedo hesitante para o rádio, mas retirou a mão.
Gabriel sorriu com a sua reticência, lembrando-se da maneira como a
ouvira ronronar quando lhe dera permissão para se enroscar na sua cadeira
favorita. Queria fazê-la ronronar outra vez.
— Tudo bem. Pode escolher qualquer coisa.
Ela foi percorrendo as rádios, sorrindo com as escolhas dele, que
incluíam a estação francesa CBC e a BBC News, até chegar à última, que
dizia Nine Inch Nails.
— Há uma estação inteira dedicada aos Nine Inch Nails? — Julia parecia
incrédula.
— Há. — Gabriel retesou-se um pouco, como se ela tivesse revelado um
segredo embaraçoso.
— E gosta deles?
— Quando estou numa determinada disposição.
Julia carregou no botão da estação de jazz.
Gabriel sentiu, mais do que observou, a reação visceral da mulher ao seu
lado. Não a compreendeu, mas decidiu não investigar.
Julia odiava Nine Inch Nails. Mudava de estação sempre que apareciam
na rádio. Se uma música deles estava a tocar em qualquer lado, saía da sala
ou do edifício. Os sons da sua música, e especialmente a voz de Trent
Reznor, horrorizavam-na, embora nunca tivesse contado a ninguém a razão.
Ouvira-os pela primeira vez numa discoteca em Filadélfia. Estava a
dançar com ele, e ele estava a roçar-se todo contra ela. Não se importara ao
princípio; ele era sempre assim, mas depois viera aquela música, e, assim
que a música começara, Julia sentira-se ligeiramente enjoada. Era a
estranha sequência nos primeiros acordes, depois era a voz, depois era a
letra sobre foder como um animal, e o ar na sua cara quando ele encostara a
testa à dela e lhe sussurrara, olhando-a diretamente na sua alma.
Independentemente das crenças religiosas de Julia e as suas pouco
convincentes tentativas para rezar a deuses e deidades menores, acreditara
naquele momento que ouvira a voz do Diabo. Lúcifer em pessoa tinha-a
entre os braços e estava a falar-lhe baixinho. E essa ideia, juntamente com
as palavras dele, assustaram-na.
Julia arrancara-se dos seus braços e fugira para a casa de banho; olhara
para a rapariga pálida e a tremer ao espelho e perguntara-se que raio
acabara de acontecer. Não sabia porque ele lhe falara daquela maneira nem
porque escolhera aquele momento para confessar. Porém, conhecia-o o
suficiente para saber que a letra repetida era uma confissão das suas mais
profundas e talvez mais negras intenções, e não apenas uma repetição
desatenta.
Mas Julia não queria ser fodida como um animal; queria ser amada. Teria
jurado sexo para sempre se pensasse que isso lhe asseguraria o tipo de amor
que era a matéria-prima da poesia e do mito. Era esse tipo de afeição por
que ansiava desesperadamente mas não acreditava merecer. Queria ser a
musa de alguém — ser adorada e venerada, de corpo e alma. Queria ser a
Beatriz de algum fogoso e nobre Dante, e habitar o Paraíso com ele para
sempre. Viver uma vida que rivalizaria em beleza com as ilustrações de
Botticelli.
E era por isso que, aos vinte e três anos, Julia Mitchell continuava virgem
e mantinha a fotografia do homem que a estragara para os outros ao fundo
da gaveta da roupa interior. Durante os últimos seis anos, dormira com a
fotografia debaixo da almofada. Nenhum homem chegara a comparar-se
com ele; nenhum sentimento de afeição alguma vez se aproximara do amor
e devoção que ele lhe inspirara. Todo o seu relacionamento se baseava
numa única noite, uma noite que ela revivia nas suas recordações vez após
vez…
Capítulo Sete

J ulia arrumou a bicicleta ao lado da grande casa branca dos Clarks e


dirigiu-se para o alpendre da frente. Nunca batia à porta quando os
visitava, por isso esquivou-se às escadas e abriu a porta de correr. O que
encontrou lá dentro deixou-a chocada.
A mesa de centro de vidro da sala estava partida, e havia salpicos de
sangue na carpete. As cadeiras e almofadas estavam todas espalhadas, e
Rachel e Aaron estavam sentados no sofá da sala, abraçados. Rachel estava
a chorar.
Julia parou ali de boca aberta, horrorizada.
— O que aconteceu?
— O Gabriel — disse Aaron.
— O Gabriel? Está ferido?
— Ele está bem! — Rachel riu-se quase histericamente. — Está em casa
há menos de vinte e quatro horas e já se meteu num concurso de empurrões
com o meu pai, fez a minha mãe chorar duas vezes e mandou o Scott para o
hospital.
Aaron continuava a esfregar as costas da namorada para a confortar, com
uma expressão sombria no rosto.
Julia conteve a respiração.
— Porquê?
— Quem sabe? Nunca ninguém sabe o que se passa com ele. Armou uma
discussão com o meu pai, a minha mãe meteu-se entre os dois e o Gabriel
empurrou-a. O Scott disse que o matava se voltasse a tocar-lhe. Por isso o
Gabriel deu-lhe um soco e partiu-lhe o nariz.
Julia olhou para os pedaços de vidro que pareciam agora encastrados com
sangue na carpete. Cerca de uma dúzia de bolachas, agora esmagadas,
estavam espalhadas em cima e em volta do vidro, juntamente com o que
restava do que parecia ser um par de chávenas de café.
— E isto? — Apontou a macabra confusão.
— O Gabriel empurrou o Scott para cima da mesa de centro. O Scott e o
pai estão no hospital, a minha mãe trancou-se no quarto e eu vou passar a
noite com o Aaron.
Rachel começou a puxar o namorado para a porta principal.
Julia ficou no mesmo sítio, sem se conseguir mexer.
— Se calhar, vou tentar falar com a tua mãe.
— Não posso ficar nesta casa nem mais um minuto. A minha família
acabou de ser destruída. — Com isto, Rachel saiu acompanhada de Aaron.
Julia tencionava subir as escadas para ir em busca de Grace, mas ouviu
um barulho que vinha da direção da cozinha, por isso dirigiu-se
silenciosamente para as traseiras da casa. Pela porta aberta, viu alguém
sentado no alpendre a levar uma garrafa de cerveja aos lábios. Um maciço
de cabelos castanhos cintilava à luz do entardecer. Julia reconheceu-o das
fotografias de Rachel.
Antes de ter tempo de pensar, os seus pés encaminharam-na para a porta
das traseiras e ela deu por si a sentar-se numa espreguiçadeira a alguma
distância, com os joelhos puxados para debaixo do queixo. Abraçou as
pernas e olhou para ele.
Ele ignorou-a.
Julia percorreu-o com os olhos, esperando gravar a visão na sua
memória. Era bem mais bonito em pessoa. Observou os olhos azuis raiados
de sangue, que eram intensos debaixo das suas sobrancelhas castanhas.
Seguiu o ângulo das suas maçãs do rosto altas, o nariz direito e nobre e a
lisura do queixo, notando a barba de dois ou três dias que lhe ensombrecia a
pele e o vestígio de uma covinha. Os seus olhos detiveram-se nos lábios
cheios, reparando na curva e voluptuosidade do inferior antes de conseguir
desviar relutantemente o olhar para as nódoas negras.
Gabriel tinha nódoas negras e sangue na mão direita e qualquer coisa
púrpura na face esquerda. O punho de Scott atingira o alvo, mas,
surpreendentemente, Gabriel continuava consciente.
— Chegaste um bocado atrasada para o espetáculo das seis horas.
Acabou há trinta minutos. — A voz dele era suave, e quase tão agradável
como as suas feições. Julia pensou momentaneamente em como seria ouvir
aquela voz pronunciar o seu nome.
Arrepiou-se.
— Está aqui um cobertor. — Ele apontou para um grande cobertor de lã
aos quadrados que estava amarfanhado ao lado da sua anca. Sem a olhar,
deu uma palmadinha no tecido.
Julia olhou-o cautelosamente. Parecendo-lhe que a sua fúria arrefecera,
aproximou-se e sentou-se num banco próximo, mantendo ainda uma
distância saudável entre ambos. Perguntou-se se ele seria rápido a correr. E
se ela seria rápida a correr, se o rapaz a tentasse apanhar.
Ele estendeu-lhe o cobertor.
— Obrigada — murmurou ela, puxando-o para cima dos ombros.
Pelo canto do olho, observou como ele encaixara descontraidamente o
seu tamanho considerável na cadeira Adirondack. Os seus ombros pareciam
mais largos com o casaco de pele preta, os seus peitorais eram visíveis sob
o tecido da t-shirt preta justa. As suas longas pernas enchiam-lhe bem as
calças de ganga pretas, e Julia reparou que ele parecia mais alto e mais
pesado do que nas velhas fotografias da irmã.
Queria dizer alguma coisa. Queria perguntar-lhe porque se passara com a
família mais simpática que ela alguma vez conhecera. Mas era demasiado
tímida e tinha demasiado medo dele para o fazer. Por isso, perguntou-lhe
antes se tinha um abre-garrafas.
Ele franziu o sobrolho antes de retirar um do bolso de trás e lho passar.
Julia agradeceu e continuou ali sentada em silêncio. Ele virou-se para o
pack de cerveja meio vazio atrás de si, escolheu uma garrafa e estendeu-lha.
— Com licença — disse ele, agora a olhá-la e a sorrir. Voltou a pegar no
abre-garrafas, retirou a cápsula num movimento ágil e fez tocar as duas
garrafas. — À nossa.
Julia provou a bebida educadamente, tentando não se engasgar quando o
estranho sabor fermentado lhe entrou na boca. Soltou um pequeno som
inconscientemente e ficou à espera.
— Já tinhas bebido alguma cerveja? — Gabriel sorria de esguelha.
Ela abanou a cabeça.
— Então fico feliz por ser o teu primeiro.
Ela corou e escondeu o rosto atrás do longo cabelo cor de mogno.
— O que estás aqui a fazer? — Gabriel tinha uma expressão de
curiosidade.
Julia fez uma pausa, a pensar como deveria responder àquilo.
— Fui convidada para jantar. — Estava com esperança de te conhecer,
finalmente.
Gabriel riu-se.
— Acho que o jantar é coisa que também consegui estragar. Bem,
menina Olhos Castanhos, pode juntar isso à minha conta.
— Vais dizer-me o que aconteceu? — Ela mantinha a voz baixa e tentava
não a deixar tremer.
— Vais dizer-me porque é que ainda não fugiste? — Os seus olhos azuis
encontraram os dela, e eram severos.
Ela voltou a baixar a cabeça, esperando que o ato de submissão esfriasse
aquele súbito assomo de raiva. Ficar ali sentada com Gabriel depois do que
acontecera era uma estupidez. Ele estava bêbado, e não havia ninguém que
a salvasse, se viesse a tornar-se violento. Aquela era a sua hipótese de se ir
embora.
Inexplicavelmente, porém, o braço de Gabriel ergueu-se para fechar a
distância entre ambos. Puxou-lhe o cabelo para trás dos ombros, os seus
dedos a percorrerem-lhe as ondas suavemente, muito suavemente, antes de
se retirarem. Uma espécie de conexão voou dos dedos dele para o seu
cabelo. Julia absorveu esta sensação e gemeu de novo baixinho,
esquecendo-se inteiramente da pergunta dele.
— Cheiras a baunilha — observou ele, virando o corpo de lado para a
poder olhar como devia ser.
— É o meu champô.
Gabriel terminou a sua cerveja e abriu outra, bebendo um longo trago da
garrafa antes de se voltar novamente para ela.
— Não devia ter sido assim.
— Eles amam-te, sabes? Só falam em ti.
— O filho pródigo. Ou talvez um demónio. O demónio Gabriel. — Riu
amargamente e terminou a cerveja em quase um único gole. Abriu outra.
— Estavam tão felizes por estares de volta. Foi por isso que a tua mãe me
convidou para jantar.
— Ela não é minha mãe. E talvez a Grace te tenha convidado porque
sabia que eu precisava de um anjo de olhos castanhos para me guardar.
Debruçou-se para a frente para lhe poder segurar o rosto entre as mãos.
Julia inspirou bruscamente quando o toque dele a surpreendeu, quando viu
os seus grandes olhos azuis a olhá-la com inebriada surpresa. Gabriel
passou o polegar pela sua pele ruborizada e hesitou, quase como se
estivesse a absorver o calor da sua pele. Quando retirou a mão, Julia quase
gritou com a sensação de perda.
Ele pousou a garrafa no chão do alpendre e levantou-se rapidamente.
— O Sol está a pôr-se. Queres vir dar um passeio?
Ela mordeu o lábio. Sabia que não devia. Mas aquele era o Gabriel da
fotografia, e possivelmente era a sua única oportunidade de o ver e de
passar tempo na sua presença. Depois do que acontecera previamente,
duvidava que ele voltasse a casa. Pelo menos, durante muito, muito tempo.
Pôs o cobertor de lado e levantou-se.
— Traz o cobertor — disse ele. Ela instalou-o debaixo do braço e ele
tomou-lhe a mão pequena na sua.
Julia conteve a respiração. Uma sensação de formigueiro começou a
formar-se nas pontas dos seus dedos e viajou-lhe lentamente pelo braço
acima até atingir o ombro e deslizar para o seu coração, fazendo-o bater
muito mais depressa.
Ele aproximou a cabeça da dela.
— Alguma vez deste a mão a um rapaz? — Ela abanou a cabeça e ele
riu-se suavemente. — Então ainda bem que sou o teu primeiro.
Caminharam lentamente para o bosque, desaparecendo de vista da casa
dos Clarks. Julia gostava da forma como a sua mão cabia na dele e como os
dedos longos de Gabriel se fechavam nos seus. Ele segurava-a suavemente
mas com firmeza, apertando-lhe a mão de tempos a tempos, talvez para a
assegurar da sua presença. Julia começou a pensar que andar de mão dada
com alguém devia ser sempre assim. Não que tivesse qualquer experiência.
Só se aventurara naquele bosque uma ou duas vezes anteriormente, e
sempre com Rachel. Sabia que, se alguma coisa corresse mal, o mais
provável seria perder-se a tentar encontrar o caminho de regresso a casa.
Afastou esses pensamentos para o fundo da mente e concentrou
inteiramente a atenção na sensação de agarrar a mão forte e quente do
enigmático Gabriel.
— Costumava passar aqui muito tempo. É tão pacífico. Ali à frente há
um velho pomar de macieiras. A Rachel alguma vez to mostrou?
Julia abanou a cabeça.
Gabriel baixou o olhar para ela com o que parecia ser uma expressão
séria.
— És horrivelmente calada. Podes falar comigo. Prometo que não mordo.
— Mostrou-lhe um dos seus sorrisos conquistadores, um que Julia
reconheceu das fotografias de Rachel.
— Porque é que vieste a casa?
Ele ignorou a pergunta de Julia e continuou a andar, mas ela reparou que
a mão que segurava a sua a apertava com mais força. Ela fez o mesmo,
como sinal de que não tinha medo. Embora tivesse.
— Não queria vir a casa, não desta maneira. Perdi uma coisa, e tenho
andado bêbado há semanas.
A honestidade de Gabriel surpreendeu-a.
— Mas, se perdeste alguma coisa, talvez a possas tentar encontrar.
Ele semicerrou os olhos.
— O que perdi está perdido para sempre.
Começou a andar mais depressa, e Julia teve de apressar o passo só para
o acompanhar.
— Vim pedir dinheiro. Podes ver o tipo de pessoa desesperada e
absolutamente fodida que eu sou. — A voz de Gabriel suavizou-se e Julia
sentiu-o estremecer. — Era fodido mesmo antes de destruir tudo e todos.
Antes de chegares.
— Lamento.
Ele encolheu os ombros e começou a arrastá-la para a esquerda.
— Estamos quase a chegar.
Por uma abertura nas árvores, entraram numa pequena clareira com um
denso tapete de erva. Flores silvestres, trepadeiras e velhos cepos de árvores
apodrecidos juncavam a extensão de verde. O ar era silencioso e vibrava de
paz. E ao fundo da clareira erguiam-se várias macieiras antigas, de aspeto
penoso e extenuado.
— É aqui. — Fez um gesto largo. — Isto é o Paraíso.
Puxou Julia para uma grande rocha que se erguia inexplicavelmente ao
fundo da clareira e ergueu-a pela cintura para a sentar em cima. Depois
subiu para o seu lado. Julia estremeceu. A rocha estava gelada à sombra do
Sol descendente e fazia-a arrepiar-se por entre as finas calças de ganga.
Gabriel despiu o casaco e colocou-lho em volta dos ombros.
— Vais apanhar uma pneumonia e morrer — disse ele distraidamente,
pondo-lhe um braço em volta e puxando-a contra si. O seu calor corporal
irradiava-lhe dos braços nus e da t-shirt, aquecendo-a de imediato.
Ela inspirou profundamente e suspirou de contentamento, maravilhando-
se com a forma como se encaixava debaixo do seu braço. Como se tivesse
sido feita para ele.
— Tu és a Beatriz.
— Beatriz?
— A Beatriz de Dante.
Julia corou.
— Não sei quem é.
Gabriel riu para si mesmo, o seu hálito quente contra o rosto dela
enquanto lhe roçava a orelha com o nariz.
— Não te contaram? Não te contaram que o filho pródigo está a escrever
um livro sobre Dante e Beatriz?
Quando Julia não respondeu, ele levou os lábios ao alto da sua cabeça e
depositou-lhe um beijo suave contra os cabelos.
— Dante era poeta. Beatriz, a sua musa. Quando a conheceu, ela era
muito nova, mas amou-a de longe durante toda a vida. Beatriz foi a sua guia
pelo Paraíso.
Julia tinha os olhos fechados enquanto ouvia a voz dele e inalava o
perfume colado na sua pele. Ele cheirava a almíscar e a suor e cerveja, mas
Julia ignorou essas distrações e concentrou-se no odor que era Gabriel, algo
muito masculino e potencialmente perigoso.
— Há um quadro de um artista chamado Holiday. És parecida com a sua
Beatriz. — Gabriel levou-lhe os dedos pálidos aos lábios, beijando-lhe a
pele com reverência.
— A tua família adora-te. Devias fazer as pazes com eles. — As palavras
de Julia surpreenderam-na a ela própria, mas ele apenas a puxou mais
contra si.
— Não são a minha família. Não realmente. E é tarde de mais, de
qualquer maneira, Beatriz.
Julia sobressaltou-se com o nome e percebeu que a cerveja,
definitivamente, lhe fizera mal. Mas não retirou a cabeça do ombro dele.
Um pouco mais tarde, sentiu-o passar-lhe a mão pelo braço, a tentar atrair a
sua atenção.
— Não tiveste o teu jantar.
Ela abanou a cabeça.
— Não.
— Posso dar-te de comer?
Embora isso lhe provocasse tristeza, ergueu a cabeça do ombro dele.
Gabriel sorriu-lhe e dirigiu-se para uma das macieiras remanescentes.
Estudou os galhos com frutos e escolheu a mação maior e mais madura
antes de apanhar outra mais pequena. Pôs a maçã mais pequena no bolso
enquanto se dirigia para ela.
— Beatriz. — Sorriu e ofereceu-lhe a maçã.
Julia olhou para ela, hipnotizada, como se fosse um tesouro.
Gabriel riu-se e estendeu-lhe o fruto na sua palma direita, da maneira
como uma criança ofereceria um cubo de açúcar a um pónei. Julia pegou na
maçã e levou-a de imediato aos lábios, dando uma firme dentada.
Ele viu-a mastigar; viu-a engolir. Depois, com silenciosa satisfação,
retomou a sua posição inicial, com o braço firmemente em volta da cintura
dela. Pressionou-lhe suavemente a cabeça contra o seu ombro e começou a
comer a maçã mais pequena que escondera no bolso.
Ficaram sentados muito quietos enquanto o sol se punha, e, mesmo antes
de o pomar ficar coberto pela escuridão, Gabriel tirou o cobertor de debaixo
do braço de Julia e estendeu-o como uma cama na erva.
— Vem, Beatriz. — Estendeu-lhe a mão.
Julia sabia que seria uma tolice pegar-lhe na mão e sentar-se com ele no
cobertor. Mas não se importou. Desenvolvera uma paixão por ele desde a
primeira vez que Rachel lhe mostrara a sua fotografia, que depois roubara.
Agora que ele estava ali, real, a respirar, vivo, em corpo, a única coisa que
podia fazer era aceitar a sua mão.
— Alguma vez te deitaste ao lado de um rapaz para observar as estrelas?
— Ele puxou-a sobre o cobertor e observou-a enquanto se deitavam de
costas.
— Não.
Gabriel entrelaçou os dedos nos dela e pousou aquela conexão que era só
deles em cima do seu coração. Julia sentiu-o bater lentamente debaixo da
sua mão e tranquilizou-se com o seu ritmo compassado.
— És linda, Beatriz. Como um anjo de olhos castanhos.
Julia virou a cabeça para o poder olhar e sorriu.
— Eu acho que és lindo. — Começou timidamente a percorrer-lhe o
queixo com os dedos, maravilhando-se com a sensação da barba por fazer
sob a sua mão.
Ele sorriu com o toque dos seus dedos e fechou os olhos. Ela delineou-
lhe suavemente as feições durante um longo momento, até sentir o braço
cansado.
Gabriel abriu os olhos.
— Obrigado.
Julia sorriu e apertou-lhe a mão, e sentiu o coração dele saltar com o seu
movimento.
— Alguma vez foste beijada por um rapaz?
Ela corou profundamente e abanou a cabeça.
— Então, fico feliz por ser o teu primeiro. — Gabriel ergueu-se sobre o
cotovelo e inclinou-se para a frente. Os seus olhos brilhavam suavemente, e
os seus lábios sorriam-lhe.
Julia conseguiu fechar os olhos antes de aquela boca perfeita se encontrar
com a sua. Começou a flutuar.
Os lábios de Gabriel eram quentes e convidativos, e ele abriu-os
cuidadosamente sobre a boca dela, como se tivesse medo de a magoar. Não
sabendo beijar, e ligeiramente assustada, Julia manteve a boca fechada.
Gabriel ergueu a mão à curva do rosto dela, acariciando-lhe a pele com o
polegar enquanto os seus lábios se moviam suavemente sobre os dela.
O beijo não foi o que ela esperara.
Esperara que Gabriel fosse desatento, ligeiramente agreste. Esperara que
o seu beijo fosse desesperado e urgente, e talvez que as pontas dos seus
dedos lhe vagueassem ao longo da pele e descessem pelo seu corpo a sítios
que não estava preparada para deixar tocar. Mas ele manteve as mãos onde
estavam, uma a acariciar-lhe o fundo das costas, a outra na sua face. O beijo
foi terno e doce — o tipo de beijo que ela imaginava um apaixonado a dar à
sua amada após uma longa ausência.
Gabriel beijou Julia como se a conhecesse, como se ela lhe pertencesse.
O seu beijo era apaixonado e cheio de emoção, como se cada fibra do seu
ser se tivesse derretido e se espalhasse nos seus lábios apenas para lhe ser
oferecido. O coração dela resvalou-lhe no peito com este pensamento.
Nunca ousara esperar um tal primeiro beijo. Quando a pressão dos lábios
dele diminuiu, sentiu que ia desfazer-se em lágrimas, sabendo que nunca
mais seria beijada daquela maneira. Ele arruinara-a para qualquer outra
pessoa. Para sempre.
Gabriel deu um profundo suspiro quando a soltou, e pressionou os lábios
suavemente contra a sua testa.
— Abre os olhos.
Julia fitou um par de órbitas azuis que eram ofuscantemente límpidas e
cheias de emoção, mas não conseguiu decifrar essas emoções. Ele sorriu e
levou-lhe novamente os lábios à testa antes de voltar a deitar-se de costas a
olhar para as estrelas.
— Em que é que estás a pensar? — Ela virou-se de forma a ficar
enroscada ao seu lado, muito perto mas sem lhe tocar com o corpo.
— Estava a pensar em como esperei por ti. Esperei e esperei, e nunca
vieste. — Ele sorriu-lhe tristemente.
— Lamento, Gabriel.
— Agora estás aqui. Apparuit iam beatitudo vestra.
— Não sei o que isso significa. — A voz dela era envergonhada.
— Significa agora aparece a tua bem-aventurança. Mas, na verdade,
devia ser agora aparece a minha bem-aventurança. Agora que chegaste. —
Puxou-a para mais perto de si, passando o braço debaixo do seu pescoço e
fazendo-o descer até à cintura, onde abriu os dedos ao fundo das suas
costas. — Para o resto da minha vida, vou sonhar com a tua voz a sussurrar
o meu nome.
Julia sorriu para si mesma na escuridão.
— Alguma vez adormeceste nos braços de um rapaz, Beatriz?
Ela abanou a cabeça.
— Então, fico feliz por ser o teu primeiro. — Puxou-a contra si de forma
que a cabeça dela pousasse sobre o seu peito, perto do coração, e aquele
corpo delicado moldou-se perfeitamente ao seu lado. — Como a costela de
Adão — murmurou-lhe para o cabelo.
— Tens de te ir embora? — sussurrou-lhe ela em resposta, enquanto
passava as mãos hesitantemente sobre o peito dele, para cima e para baixo e
para a frente e para trás.
— Sim, mas não esta noite.
— Vais voltar? — A voz dela era quase um lamento.
Gabriel suspirou profundamente.
— Amanhã serei expulso do Paraíso, Beatriz. A nossa única esperança é
que tu me voltes a encontrar. Procura por mim no Inferno.
Fê-la deitar suavemente de costas e pousou as mãos de cada lado das suas
ancas, ficando a pairar por cima dela — de olhos enormes — a olhá-la
longa e intensamente, até ao fundo da sua alma.
E depois levou os lábios aos dela…
Capítulo Oito

R achel estava sentada ao balcão de pequeno-almoço de Gabriel, na


manhã de quinta-feira, a beber um café com leite e a ler a Vogue
francesa. Não era o seu habitual material de leitura. A mesa de cabeceira de
Rachel em Filadélfia estava coberta de livros sobre política, relações
públicas, economia e sociologia, tudo na esperança de que algum dia um
dos seus superiores lhe pedisse a sua opinião, em vez de lhe pedir que
fotocopiasse a opinião de outros. Agora que estava de licença do seu
trabalho, tinha tempo de ler outras coisas que não política municipal.
Sentia-se melhor nessa manhã. Muito melhor. A sua conversa com Aaron
na noite anterior correra bem. Embora ele continuasse desapontado por o
casamento ter sido cancelado, dizia-lhe repetidamente que preferia tê-la a
ter um casamento.
«Não temos de casar já. Podemos adiar o casamento até terminares o
luto. Mas ainda quero ficar contigo, Rachel. Vou querer-te sempre. Como
minha mulher, como minha amante… Neste momento, aceito tudo o que me
puderes dar, porque eu amo-te. Volta para mim.»
As palavras de Aaron tinham-na queimado, por entre a névoa de
depressão e dor que toldava a mente de Rachel. E, de súbito, tudo ficou
claro. Pensara que estava a fugir de Scott, e do seu pai, e do fantasma da sua
mãe. Mas talvez estivesse também a fugir de Aaron, e ouvi-lo dizer aquelas
palavras… como se fosse possível deixá-lo. Como se pudesse sequer pensar
em manter-se longe dele.
Aquelas declarações quase partiram o coração de Rachel, e fizeram-na
perceber como queria verdadeiramente ser sua mulher. E como estava
decidida a não o deixar esperar demasiado para ser seu marido, enquanto
ela tentava reencontrar-se. A vida era demasiado curta para se ser infeliz.
Fora a mãe que lhe ensinara isso mesmo.
Gabriel entrou na cozinha de óculos postos, deu-lhe um beijo no alto da
cabeça e pôs-lhe um maço de notas na frente. Ela olhou para o dinheiro com
um ar desconfiado e pegou-lhe, e os seus olhos abriram-se mais.
— Para que é isto?
Ele pigarreou e sentou-se ao seu lado.
— Não vais às compras com a Julianne?
Ela revirou os olhos.
— É Julia, Gabriel. E, não, não vamos. Ela está todo o dia a trabalhar
num projeto com um tipo chamado Paul. Depois ele vai levá-la a jantar.
Fornicador-de-Anjos, pensou Gabriel. O expletivo veio-lhe à mente,
espontâneo e livre de censura, e ele contraiu-se, com o peito a fumegar.
Rachel devolveu-lhe o dinheiro e voltou para a sua revista.
Ele voltou a colocar-lho na frente.
— Fica com ele.
— Porquê?
— Compra qualquer coisa para a tua amiga.
Os olhos de Rachel semicerraram-se.
— Porquê? Isto é muito dinheiro.
— Eu sei — disse ele em voz baixa.
— Estão aqui quinhentos dólares. Eu sei que tens dinheiro de sobra, mas,
bolas, Gabriel, isto é um bocado exagerado.
— Já viste o apartamento dela?
— Não. Tu já?
Ele mudou de posição no banco.
— Só por um momento. Ela foi apanhada pela chuva, dei-lhe boleia para
casa e…
— E? — Rachel passou-lhe o braço sobre o ombro e inclinou-se para ele
com um sorriso delicioso. — Conta-me tudo.
Gabriel afastou-lhe o braço do ombro e fez-lhe um olhar carrancudo.
— Não foi nada disso. Mas vi brevemente a casa dela quando a fui
deixar, e é horrível. Ela nem sequer tem cozinha, pelo amor de Deus.
— Não tem cozinha? Que raio!
— A rapariga é mais pobre que um rato de igreja. Para não mencionar o
facto de andar com aquela odiosa coisa que se faz passar por saco de livros.
Gasta o dinheiro todo numa pasta decente, não quero saber. Mas faz
qualquer coisa. Porque se eu vejo aquela mochila mais uma vez, vou
queimá-la.
Gabriel passou as mãos pelo cabelo castanho e depois manteve-as ali,
apoiando a sua alta estrutura sobre o balcão de pequeno-almoço. Com o
poder de perceção apenas possuído por uma irmã, Rachel olhou-o
cuidadosamente. Gabriel parecia ser o jogador de póquer ideal: impassível,
fleumático, frio. Oh, tão frio. Não apenas fresco, como uma brisa, ou água
de um regato no outono, mas frio. Frio como uma rocha contra a pele, à
sombra de um pôr-do-sol. Rachel acreditava que aquela frieza era a pior
falha no seu caráter — a sua capacidade de dizer e fazer coisas sem
consideração pelos sentimentos dos outros, incluindo a própria família.
Apesar dos seus defeitos, Gabriel era o seu preferido. E, como a bebé da
família e dez anos mais nova do que ele, também ela era a sua preferida.
Nunca discutira com ela da maneira como discutira com Scott ou o pai.
Sempre a protegera — amara-a, até. Mesmo nos seus piores momentos,
Gabriel não conseguia magoar Rachel intencionalmente. Ela apenas ficava
magoada ao vê-lo magoar os outros. E especialmente a si mesmo.
E ela sabia que, observado mais atentamente, Gabriel daria um péssimo
jogador de póquer. Tinha demasiadas coisas a denunciá-lo, demasiadas
formas de revelar o seu tumulto interior. Fechava os olhos quando estava
perto de perder a cabeça. Esfregava o rosto quando estava frustrado.
Andava de um lado para o outro quando estava perturbado ou com medo.
Rachel viu-o começar a andar de um lado para o outro, e perguntou-se de
que teria ele tanto medo.
— Porque é que estás tão preocupado com ela? Não foste assim tão
simpático quando a trouxe cá para jantar. Nem lhe queres chamar Julia.
— É minha aluna. Tenho de ser profissional.
— Profissionalmente mau?
Gabriel ficou calado e franziu o sobrolho.
— Tudo bem. Levo o dinheiro para a Julia e compro-lhe uma pasta. Mas
preferia comprar-lhe sapatos.
Gabriel voltou a sentar-se no banco do bar.
— Sapatos?
— Sim. E se lhe comprássemos qualquer coisa para vestir? Ela gosta de
coisas bonitas, só não tem dinheiro para as comprar. E é gira, não achas?
Gabriel moveu-se por baixo das calças de lã cinzenta. Apertou as coxas
para ocultar o facto perturbador da sua irmã.
— Gasta o dinheiro como quiseres, mas tens de substituir o saco dos
livros.
— Tudo bem! Vou comprar-lhe qualquer coisa fabulosa. Mas,
provavelmente, vou precisar de mais dinheiro… e devíamos levá-la a algum
sítio especial onde ela possa exibir as suas roupas novas. — Rachel
pestanejou na brincadeira para o irmão mais velho.
Sem discussão ou negociação, ele retirou um cartão de visita da carteira,
pegou na sua caneta de tinta permanente Montblanc e desenroscou
lentamente a tampa.
— As pessoas normais ainda usam esse tipo de canetas ou só os
medievalistas? — Ela aproximou-se mais com um ar inquisidor. —
Surpreende-me que não uses uma pena.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Isto é uma Meisterstück 149 — disse ele, como se isso devesse ter
algum significado.
Rachel revirou os olhos enquanto ele usava a sua cintilante caneta de
ouro de dezoito quilates para escrever uma breve nota nas costas do cartão,
com uma letra confiante mas antiquada. O irmão era mais do que
pretensioso.
— Pronto. — Ele fez deslizar o cartão para o outro lado do balcão. —
Tenho uma conta na Holt Renfrew. Mostra isto ao concierge, e ele vai levar-
te diretamente à Hilary, a minha personal shopper. Ela põe tudo na minha
conta. Não enlouqueças completamente, Rachel, e podes ficar com o
dinheiro para ti. Feliz aniversário, com seis meses de antecedência.
Ela deu-lhe um beijo ligeiro na face.
— Obrigada. O que é a Holt Renfrew?
— A Saks Fifth Avenue canadiana… eles têm tudo. Mas tens de
substituir o saco de livros, é a única coisa que me interessa. O resto é só…
um pormenor inconsequente. — A sua voz parecia rouca, de repente.
— Está bem. Mas queres explicar-me porque estás tão agitado por causa
de uma mochila L.L. Bean? Todos os estudantes universitários têm uma. Eu
tive uma, pelo amor de Deus. Antes de crescer e descobrir a Longchamp.
— Não sei. — Gabriel removeu os óculos e começou a esfregar os olhos.
— Hmmm. Devo acrescentar lingerie à minha lista de compras? Gostas
dela? — Rachel sorria-lhe irritantemente.
Ele soltou um ronco de desdém.
— Que idade temos, Rachel? Lembra-te, ela é minha aluna. Não se trata
de romance… trata-se de uma penitência.
— Penitência?
— Penitência. Pelo pecado. O meu pecado.
Rachel riu-se.
— És mesmo medieval. Que pecado cometeste contra a Julia? Para além
de seres um idiota! Nem sequer a conheces…
Ele voltou a colocar os óculos e mudou de posição no banco. Estava a
sentir-se crescer com a mera ideia de pecado e a menina Mitchell. Juntos.
Na mesma sala. Com ele. E nada mais… exceto, talvez, um par de sapatos
couture de salto agulha …. Que ele poderia finalmente tocar…
— Gabriel? Estou à espera.
— Não preciso de te confessar os meus pecados, Rachel. Só preciso de os
expiar. — Arrancou-lhe a revista da mão.
Ela rangeu os dentes.
— O teu francês é assim tão bom? E o teu conhecimento de moda
feminina?
Gabriel baixou o olhar rapidamente para ver a revista aberta numa
fotografia de uma modelo retocada e de pernas abertas com um biquíni
branco très petit. Os seus olhos aumentaram de tamanho.
Rachel cruzou os braços de aborrecimento e olhou-o carrancuda.
— Não venhas rosnar para cima de mim. Não sou uma das tuas alunas e
não vou aturar as tuas merdas.
Ele suspirou e começou a esfregar novamente os olhos, ajustando
minuciosamente os óculos para o fazer.
— Desculpa — balbuciou, devolvendo-lhe a revista, mas não antes de
lançar à modelo um olhar mais sério, puramente por propósitos de estudo,
bien sûr.
— Porque é que estás tão tenso? Andas a ter problemas com mulheres?
Tens, ao menos, alguma mulher, neste momento? Quando foi a última vez
que tiveste? E, a propósito, que fotografias são aquelas no teu…
Ele interrompeu-a rapidamente.
— Não vou ter esta conversa contigo. Não te pergunto quem é que andas
a foder.
Rachel conteve a resposta furiosa e respirou fundo.
— Vou desculpar-te essa frase, embora tenha sido insensível e grosseira.
Quando vieres de joelhos fazer a tua penitência, inclui o pecado da inveja,
está bem?
»Sabes que nunca estive com outra pessoa senão o Aaron. E acho que
sabes bem que o que fazemos juntos vai muito para além do que tu disseste.
O que é que se passa contigo?
Gabriel balbuciou um pedido de desculpa e recusou-se a olhá-la nos
olhos. Mas o seu tiro de aviso acertara no alvo, que era distrair a atenção da
irmã de uma das suas perguntas. Por isso não sentiu qualquer remorso. Não
verdadeiramente.
Rachel ficou a brincar com o cartão do irmão por um momento, enquanto
tentava acalmar-se.
— Se não gostas da Julia, então deves ter pena dela. Porquê? É por ser
pobre?
— Não sei. — Ele suspirou e abanou a cabeça.
— A Julia faz trazer ao de cima o lado protetor das pessoas. Foi sempre
um pouco triste e um pouco perdida. Embora, não faças confusão, ela tem
força nos ossos. Sobreviveu a uma mãe alcoólica e a um namorado que…
Os olhos azuis de Gabriel desviaram-se para ela com interesse.
— Que? — incitou.
— Disseste que não querias saber da vida pessoal dela. É demasiado
mau, na verdade. Se não tivessem uma relação profissional, poderias ter
gostado dela. Podiam ter sido amigos.
Ela sorriu-lhe, para testar as águas, mas Gabriel manteve-se de olhos
fixos no balcão e começou a esfregar o queixo distraidamente.
Rachel tamborilou com os dedos sobre a bancada.
— Queres que lhe diga que foste tu que lhe deste a mala e os sapatos?
— Claro que não! Podia ser despedido por causa disso. Alguém ia tirar
conclusões erradas e eu era arrastado perante a comissão judicial.
— Pensei que eras do quadro.
— Não interessa — murmurou ele.
— Então, queres gastar este dinheiro todo com a Julia e não queres que
ela saiba que os presentes são teus? Isto é um bocado como o Cyrano de
Bergerac, não achas? Estou a ver que o teu francês é melhor do que eu
julgava.
Ele levantou-se, ignorando-a ostensivamente, e dirigiu-se para a grande
máquina de café expresso num dos balcões. Começou o processo algo
laborioso de fazer o expresso perfeito, mantendo-se de costas para a
irritante irmã.
Ela suspirou.
— Está bem. Queres que faça qualquer coisa simpática pela Julia. Podes
chamar-lhe penitência, se quiseres, mas talvez seja apenas bondade. E é
bondade dupla, porque queres que seja feito em segredo e sem a embaraçar,
ou deixá-la a sentir que está em dívida contigo. Estou impressionada. Mais
ou menos.
— Quero que as suas pétalas se abram — sussurrou Gabriel suavemente.
Rachel ignorou aquela admissão como um murmúrio incoerente, porque
não podia acreditar que ele dissera aquilo que de facto ouvira. Era
demasiado bizarro.
— Não achas que devias tratar a Julia como uma adulta e dizer-lhe que os
presentes são teus? Deixá-la tomar as suas próprias decisões e escolher se
os aceita ou não?
— Não os aceita, se souber que fui que lhos dei. Ela odeia-me.
Rachel riu-se.
— A Julia não é pessoa para odiar ninguém. Perdoa demasiado para isso.
Embora, se te odiasse, provavelmente seria merecido. Mas tens razão, ela
não aceita caridade. Nunca me deixava comprar-lhe coisas senão em
ocasiões muito especiais.
— Então diz-lhe que é um presente de Natal atrasado. Ou diz-lhe que é
da Grace. — Um olhar carregado de significado passou entre os irmãos.
Os olhos de Rachel encheram-se de lágrimas.
— A mãe era a única pessoa de quem a Julia aceitava presentes, porque
pensava nela como sua mãe.
Gabriel foi de imediato para o seu lado e envolveu-a nos braços, tentando
reconfortá-la o melhor que podia.
No seu coração, sabia exatamente o que estava a fazer ao persuadir a
irmã a comprar coisas bonitas e femininas para a menina Mitchell. Estava a
comprar uma indulgência, o perdão pelo pecado. Nunca reagira a uma
mulher daquela maneira. Mas, não, Gabriel não cederia a essa linha de
pensamento. Isso não serviria para nada, para absolutamente nada.
Sabia que vivia no inferno. Aceitava-o. Raramente se queixava. Mas,
para dizer a verdade, desejava desesperadamente poder fugir. Infelizmente,
não tinha nenhum Virgílio nem nenhuma Beatriz para virem em seu auxílio.
As suas orações não eram atendidas, e os seus planos de regeneração eram
quase sempre frustrados por uma ou outra coisa. Normalmente, uma mulher
de saltos de dez centímetros e longo cabelo louro a rasgar-lhe as costas com
as longas unhas, enquanto gritava o nome dele, vez após vez, após vez…
Dado o atual estado de coisas, o melhor que podia fazer para se regenerar
seria pegar na porcaria do dinheiro do velho e gastá-lo num anjo de olhos
castanhos. Um anjo que não tinha dinheiro para pagar um apartamento com
cozinha, e que desabrocharia um pouco quando a melhor amiga lhe
oferecesse um vestido bonito e um par de sapatos novos.
Gabriel queria fazer mais do que comprar-lhe uma pasta para os livros,
embora nunca pudesse admitir o que desejava realmente; ele desejava fazer
Julianne sorrir.
Enquanto os irmãos discutiam penitência, perdão e ridículas abominações
de sacos de livros, Paul esperava por Julia à entrada da biblioteca Robarts, a
maior do campus da universidade de Toronto. Julia não o poderia saber,
mas, embora a conhecesse há pouco tempo, Paul viera a afeiçoar-se-lhe
grandemente.
Estava habituado a ter muitos amigos, homens e mulheres. E saíra com a
sua dose de raparigas, tanto bem ajustadas como perturbadas. A sua relação
mais recente esgotara-se com o tempo. Allison quisera ficar em Vermont e
trabalhar como professora de uma escola secundária. Ele preferira mudar-se
para Toronto e estudar para se tornar professor universitário. Depois de dois
anos de um relacionamento de longa distância, deixara de fazer sentido.
Mas não houvera qualquer rancor — nada de pneus rasgados nem
fotografias queimadas. Eram amigos, até, e Paul orgulhava-se desse facto.
Mas, agora que Paul conhecera a Coelha, começara a ponderar que um
relacionamento com alguém com quem partilhava interesses e objetivos de
carreira comuns podia ser muito excitante e muito satisfatório.
Paul era antiquado. Acreditava em cortejar uma mulher. Acreditava em
avançar com calma. E, por isso, contentava-se perfeitamente em construir
apenas uma amizade com a linda e tímida Coelha, até a conhecer o
suficiente para expressar os seus sentimentos. E até estar confiante na
estima que ela nutria por ele. Estava decidido a passar tempo com ela, e a
tratá-la adequadamente, e a prestar-lhe muita atenção, para que, se
aparecesse outra pessoa, entretanto, e lha tentasse arrancar, ele estivesse
suficientemente por perto para dizer a esse indivíduo que se pisgasse.
Julia tinha pena de perder a saída de compras com Rachel, mas já
prometera a Paul que passaria o dia com ele na biblioteca. Precisava de
começar a sua proposta de tese, agora que o professor Emerson concordara
ser seu orientador. Sentia mais do que uma forte motivação para ter um bom
desempenho na sua turma e ofuscá-lo com a sua proposta, embora soubesse
que, com base no seu comportamento prévio, o mais provável seria não
conseguir nenhuma das coisas.
— Olá. — Paul cumprimentou-a calorosamente, retirou-lhe de imediato a
pesada mochila do ombro e transferiu-a para o seu. Mal lhe sentia o peso
sobre o ombro maciço.
Julia sorriu-lhe, consolada pelo alívio daquele fardo.
— Obrigada por concordares em ser meu guia. Na última vez que aqui
estive, perdi-me. Acabei no quarto andar, numa secção obscura que era
inteiramente dedicada a mapas. — Estremeceu.
Paul riu-se.
— A biblioteca é gigantesca. Eu mostro-te a coleção sobre Dante no
nono andar e levo-te ao meu gabinete.
Abriu-lhe a porta, e Julia entrou como que a flutuar, sentindo-se uma
princesa. Paul tinha umas maneiras excelentes, e não as usava como arma.
Julia pensou em como certas pessoas que-não-seriam-mencionadas usavam
as maneiras para intimidar e controlar, enquanto outras, como Paul, as
usavam para honrar e fazer com que os outros se sentissem especiais. Muito
especiais, de facto.
— Tens um gabinete? — perguntou ela, enquanto mostravam os cartões
de estudante ao segurança sentado junto dos elevadores.
— Mais ou menos. — Abriu-lhe a porta do elevador e esperou que Julia
entrasse antes de se lhe juntar. — A minha sala de leitura fica ao lado da
secção de Dante.
— Posso candidatar-me a uma sala de leitura?
Paul fez uma careta.
— São como ouro. É quase impossível conseguir uma, especialmente
como estudante de mestrado.
Leu a pergunta nos olhos dela e apressou-se a acrescentar:
— Acho que os alunos de mestrado são tão importantes como os de
doutoramento. Mas não há salas suficientes para todos. A que tenho nem
sequer é minha… é do Emerson.
Se Paul não tivesse deixado Julia carregar no botão do nono andar, teria
visto a sua pele ficar ligeiramente esverdeada e ouvido quando ela conteve
asperamente a respiração. Mas não viu nem ouviu.
Quando chegaram ao nono andar, conduziu-a pacientemente pela coleção
de Dante, mostrando-lhe tanto as fontes primárias como as secundárias. E
observou com encanto enquanto ela passava afetuosamente a mão pelas
lombadas dos livros, como se cumprimentasse velhos amigos.
— Julia, importavas-te se te fizesse uma pergunta pessoal?
Ela ficou muito quieta, a acariciar um volume quarto que tinha uma
desgastada encadernação a pele. Inalou profundamente o seu odor para se
acalmar e anuiu.
— O Emerson pediu-me que fosse buscar o teu processo à Sr.ª Jenkins
e…
Ela virou-se para o olhar, os olhos enormes e sem pestanejar. Oh, não,
pensou.
Ele ergueu a mão para a tranquilizar.
— Não o li. Não te preocupes. — Ele riu-se suavemente. — De qualquer
maneira, não há nada de muito pessoal naqueles processos. Parece que ele
queria tirar qualquer coisa que lá tinha posto. Mas o que ele fez a seguir
surpreendeu-me.
Julia ergueu as sobrancelhas, à espera que Paul despejasse tudo.
— Telefonou ao Greg Matthews, o diretor do Departamento de Línguas e
Literaturas Românicas em Harvard.
Ela pestanejou lentamente, como se estivesse a refletir no que ele tinha
dito.
— Como é que sabes?
— Eu tinha lá ido deixar umas fotocópias e ouvi o Emerson ao telefone.
Estava a fazer perguntas ao Matthews a teu respeito.
— Porquê?
— Era isso que te queria perguntar. Ele queria saber porque é que não
tinham fundos suficientemente generosos para os seus estudantes de
mestrado. O Emerson é ex-aluno daquele departamento, sabes? O Matthews
era diretor quando ele terminou o seu doutoramento.
Merda. Ele andou a verificar o que eu lhe disse? Claro. Não ia acreditar
que tinha entrado para Harvard, tal como ele. Julia fechou os olhos, os
seus dedos agarrados à prateleira para manter o equilíbrio.
— Não ouvi tudo o que o Matthews disse. Mas ouvi o Emerson.
Ela ficou de olhos fechados e esperou pelo resto. Só esperava que Paul o
despejasse depressa e não fosse demasiado doloroso.
— Não sabia que tinhas entrado em Harvard, Julia. Isso é fantástico. O
Emerson perguntou se tinhas mesmo sido aceite no programa deles e em
que posição tinhas ficado na tabela de admissão.
— Claro — balbuciou ela. — Venho de uma cidade pequena da
Pensilvânia. Andei numa universidade jesuíta com cerca de setecentos
estudantes. Como é que podia entrar em Harvard?
Paul franziu o sobrolho. Pobre Coelha. Aquele cabrão doentio portou-se
mesmo mal com ela. Devia dar-lhe um grande pontapé no cu. E depois
devia tratar da saúde do resto…
— Que mal têm as escolas católicas? Eu estudei em St. Mike, no
Vermont, e tive uma ótima educação. Tinham um especialista em Dante no
Departamento de Inglês e um especialista florentino em História.
Julia anuiu como se o tivesse ouvido. Mas não ouvira, de facto.
— Ouve, ainda não sabes a história toda. O ponto é que o Matthews
tentou convencê-lo a mandar-te de volta para lá para o teu doutoramento.
Disse que tinhas ficado muito bem pontuada. Isso é bastante bom, tendo em
conta a fonte. Eu candidatei-me a esse departamento e fui rejeitado de
imediato. — Sorriu, algo contrafeito, sem saber como ela reagiria àquela
informação. — Por isso, se não for demasiado pessoal, porque é que não
quiseste ir para Harvard?
— Eu não queria vir para aqui — sussurrou ela, com a voz baixa e
culpada. — Eu sabia que ele estava cá. Mas não tinha outra opção. Tenho
milhares de dólares em empréstimos para estudantes de Saint Joseph… Não
tinha dinheiro para ir para Harvard. Tinha esperança de terminar o mestrado
rapidamente e ir para Harvard para o ano. Se ganhar uma bolsa maior, não
vou ter de pedir dinheiro emprestado para o doutoramento.
Paul anuiu e, enquanto Julia se distraía virando-se para examinar os
livros com mais atenção, ficou a observá-la, inteiramente esquecido do
pormenor que ela revelara inadvertidamente. A informação que lhe dizia
muito mais do que a razão por que Julia não fora para Harvard.
Enquanto a via abrir e fechar os volumes empoeirados, com os olhos
muito abertos e um sorriso a brincar-lhe nos lindos lábios, percebeu que a
alcunha de “Coelha” era ainda mais adequada do que julgara inicialmente.
Pois, sim, era muito parecida com uma coelha que se poderia encontrar num
prado, ou num lugar como esse. Mas era também muito parecida com The
Velveteen Rabbit.1
Paul nunca teria pronunciado estas palavras em voz alta e, se lhe
perguntassem se conhecia o livro, ele teria mentido sem pestanejar. Mas
Allison adorava aquele livro e, no início do seu relacionamento, exigira-lhe
que o lesse, para a poder entender melhor. E Paul, com todos os seus
noventa quilos de miúdo de quinta do Vermont, lera o raio do livro sub-
repticiamente, porque a amava.
Embora não o admitisse, também adorara a história.
Quando olhava para a Coelha, tinha a sensação de que também ela
esperava desesperadamente pelo momento em que se tornaria Real. Em que
seria amada, até. E a espera tivera os seus custos sobre ela. Não no seu
aspeto exterior, que era muito atraente (embora Paul pudesse pensar que ela
era claramente demasiado magra e demasiado pálida, algo que uma boa
dose de leite e produtos láteos do Vermont poderiam melhorar). Não aí, mas
na sua alma, que considerava muito bela mas triste.
Paul nem tinha sequer a certeza de acreditar em almas até conhecer a
Coelha. E, agora que a conhecia, tinha de acreditar. Esperava secretamente
que, algum dia, ela se tornasse o que queria ser, que alguém a amasse e
transformasse a coelhinha assustada noutra coisa. Em qualquer coisa mais
ousada. Qualquer coisa feliz.
Sem querer permitir-se demasiados arroubos literários, Paul decidiu
rapidamente que precisava de distrair a Coelha das suas mágoas, e por isso
sorriu-lhe de novo. Depois conduziu-a a uma porta identificada com uma
placa de bronze onde dizia, num muito elegante manuscrito: Professor
Gabriel O. Emerson, Departamento de Estudos Italianos.
Julia reparou com interesse que nenhuma das outras portas tinha placas
de bronze. Também reparou que Paul tinha colado um cartão de arquivo
com o seu próprio nome por baixo da placa. Imaginou o professor Emerson
a aparecer e a arrancar o cartão por despeito. Depois reparou no nome
completo de Paul: Mestre Paul V. Norris.
— O que significa o V? — Apontou com um dedo a placa identificadora
improvisada.
Paul pareceu desconfortável.
— Não gosto de usar o meu nome do meio.
— Eu também não uso o meu. E compreendo se não mo quiseres dizer.
— Sorriu, virando o seu olhar expectante para a porta fechada.
— Vais-te rir.
— Duvido. O meu apelido é Mitchell. Nada de que me orgulhar
grandemente.
— Eu acho bonito.
Julia corou, mas apenas ligeiramente.
Paul suspirou.
— Prometes não contar a ninguém?
— Claro. E eu digo-te o meu nome do meio: Helen.
— Também é bonito. — Ele inspirou fundo e fechou os olhos. Depois
esperou. Quando não conseguiu aguentar o fôlego mais tempo, e os seus
pulmões clamavam por oxigénio, expirou rapidamente. — Virgil.
Ela olhou-o, incrédula.
— Virgil?
— Sim. — Ele abriu os olhos e estudou-a por um minuto, com medo que
Julia se fosse rir.
— Estás a fazer a especialização em Dante e o teu nome do meio é
Virgil? Estás a brincar?
— É um nome de família. O meu bisavô chamava-se Virgil… Ele nunca
leu Dante, acredita em mim. Tinha uma quinta de produção leiteira em
Essex, no Vermont.
Julia sorriu a sua admiração.
— Eu acho que Virgil é um nome bonito. E é uma grande honra ter o
nome de um nobre poeta.
— Tal como é uma grande honra ter o nome de Helena de Troia, Julia
Helen. E muito apropriado, também. — Os seus olhos cinzentos tornaram-
se mais suaves, e ele olhou-a com admiração.
Ela desviou o olhar, embaraçada.
Paul pigarreou, como forma de atenuar a súbita tensão entre os dois.
— O Emerson nunca usa esta sala… a não ser para me deixar coisas. Mas
ela pertence-lhe e ele paga-a.
— Não são de graça?
Paul abanou a cabeça e destrancou a porta.
— Não. Mas valem totalmente a pena, porque têm ar condicionado, e são
aquecidas, têm acesso à internet e podes guardar aqui livros sem teres de os
fazer passar pelo balcão de circulação. Por isso, se houver alguma coisa de
que precises… mesmo que seja material de referência que não possa sair da
biblioteca… podes guardá-lo aqui.
Julia olhou para o espaço pequeno mas confortável como se fosse a Terra
Prometida, e os seus olhos eram enormes enquanto se perdiam pela
secretária grande, as cadeiras confortáveis e as estantes de livros do chão ao
teto. Uma pequena janela oferecia uma boa vista dos edifícios da baixa e da
torre CN. Perguntou-se quanto custaria viver numa sala de leitura, em vez
do seu buraco-de-hobbit-não-digno-de-um-cão.
— Já agora — disse Paul, retirando alguns papéis de uma das estantes —
vou dar-te esta prateleira. E podes ficar com a minha chave suplente.
Procurou a chave e encontrou-a, e escreveu um número num pedaço de
papel.
— Este é o número da porta, para o caso de teres dificuldade em voltar a
encontrá-la, e aqui tens a chave.
Julia ficou hirta, de boca aberta.
— Não posso. Ele detesta-me, e não vai gostar disto.
— Ele que se foda.
Os olhos dela cresceram com a surpresa.
— Desculpa. Não costumo dizer asneiras… assim tanto. Pelo menos, na
frente de raparigas. Quero dizer, mulheres.
Ela anuiu, mas não era exatamente por isso que estava surpreendida.
— O Emerson nunca cá está. Podes guardar os teus livros, e ele vai
pensar que são meus. Se não queres que te apanhe, nem tens de trabalhar
aqui. Passa só quando eu cá estou… passo aqui muito tempo. Depois, se ele
te vir, vai pensar que estamos a trabalhar juntos. Ou qualquer coisa.
Sorriu timidamente. Queria mesmo dar-lhe a chave — saber que ela
podia lá passar a qualquer altura. Ver as coisas dela na sua estante… estudar
e trabalhar ao seu lado.
Mas Julia não queria ter a chave.
— Por favor. — Ele pegou-lhe na mão pálida e abriu-lhe suavemente os
dedos. Sentiu-a hesitar, e por isso passou o polegar pelas costas da sua mão,
só para a tranquilizar. Pressionou-lhe a chave e o papel contra a palma e
fechou-lhe os dedos, tendo muito cuidado para não pressionar demasiado,
não a fosse magoar. Sabia que Emerson já a magoara o suficiente.
— O real não é o que tu és; é algo que acontece. E, neste momento,
precisas que te aconteça alguma coisa boa.
Julia espantou-se com aquelas palavras, pois ele nem fazia ideia de como
eram verdadeiras.
Ele está a parafrasear do…? Impossível.
Fitou os olhos dele. Eram calorosos e amigáveis. Não via ali nenhum
cálculo, nenhuma grosseria. Não via nada que fosse dissimulado ou cruel.
Talvez ele gostasse mesmo dela. Ou talvez sentisse simplesmente pena dela.
Independentemente das suas misteriosas motivações, naquele instante, Julia
escolheu acreditar que o universo não era inteiramente sombrio e
desanimador e que havia ainda vestígios de bondade e virtude, e por isso
aceitou a chave de cabeça baixa.
— Não chores, Coelhinha.
Paul ergueu a mão para limpar uma lágrima que ainda não tinha caído.
Mas mudou de ideias e baixou-a de novo.
Julia virou-se, envergonhada pela súbita e intensa vaga de emoções, pela
chave, e por ouvi-lo citar-lhe adorada literatura infantil. Enquanto
procurava freneticamente por qualquer coisa, o que quer que fosse, que a
distraísse, os seus olhos pousaram num CD solitário numa das prateleiras.
Pegou nele. Requiem de Mozart.
— Gostas de Mozart? — perguntou, virando a caixa na sua mão.
Paul desviou o olhar.
Ela estava surpreendida. Fez um movimento para pôr o CD no lugar, com
medo de o ter embaraçado ao mexer nos seus objetos pessoais, mas ele
deteve-a.
— Tudo bem, podes ver. Mas não é meu. É do Emerson.
Mais uma vez, Julia sentiu um frio invadi-la, e uma ligeira náusea.
Paul viu a sua reação, desta vez, e começou a falar muito depressa.
— Não digas a ninguém, mas roubei-o.
As sobrancelhas dela elevaram-se.
— Eu sei… é terrível. Mas ele estava a passar uma faixa do raio do disco
vez após vez, após vez no gabinete dele, enquanto eu catalogava parte da
sua biblioteca pessoal. Lacrimosa, lacrimosa, raios partissem a lacrimosa.
Eu já não aguentava mais! É tão deprimente. Por isso roubei-lho do
escritório dele e escondi-o aqui. Problema resolvido.
Julia riu-se. Fechou os olhos e riu-se.
Ele sorriu com alívio ao ver a sua reação.
— Não o escondeste lá muito bem. Eu encontrei-o em… o quê? Trinta
segundos? — Ela riu-se e tentou entregar-lhe o CD.
Com cuidado, ele puxou-lhe o longo cabelo para trás dos ombros para
poder ter uma visão aberta do seu rosto.
— Então, porque não o escondes antes na tua casa?
Instintivamente, ela ficou hirta e deu um passo atrás.
Paul viu a cabeça dela baixar-se e os dentes fecharem-se sobre o lábio
inferior. Perguntou-se o que teria feito… não deveria ter-lhe tocado? Estaria
com medo que Emerson descobrisse que ela tinha o seu CD?
— Julia? — A sua voz era baixa, e ele não fez nenhum movimento na
sua direção. — Desculpa. Fiz alguma coisa errada?
— Não. Não é nada. — Ela olhou-o nervosamente e colocou o CD na
prateleira. — Eu adoro o Requiem de Mozart, e a Lacrimosa é a minha
parte preferida. Não sabia que ele também gostava. Estou só… humm…
surpreendida.
— Leva-o emprestado. — Ele pôs-lho outra vez na mão. — Se o
Emerson perguntar, eu digo que o tenho. Mas assim, se o levares, podes
carregá-lo no teu iPod e devolver-mo na segunda-feira.
Julia olhou para o CD.
— Não sei…
— Já o tenho há uma semana e ele não deu pela falta. Talvez a sua
disposição tenha mudado. Começou a ouvi-lo depois de regressar de
Filadélfia. Não sei bem porquê…
Julia enfiou impulsivamente o CD na sua mochila decrépita.
— Obrigada.
Ele sorriu.
— Qualquer coisa por ti, Julia.
Paul queria dar-lhe a mão. Ou, pelo menos, apertá-la por um instante.
Mas percebia que ela estava assustadiça, por isso manteve-se afastado
enquanto a conduzia para o corredor para poder continuar a visita da
biblioteca.
— Eeh, o Festival de Cinema de Toronto é este fim de semana. Tenho
alguns bilhetes para filmes no sábado. Queres vir comigo? — Tentava
parecer casual, enquanto a levava para os elevadores.
— Que filmes?
— Um é francês e o outro alemão. Eu prefiro filmes europeus. — Sorriu,
hesitante. — Podia trocar os bilhetes por qualquer coisa mais local…
Julia abanou a cabeça.
— Também gosto de filmes europeus. Desde que tenham legendas. O
meu francês é quase nulo, e em alemão só sei palavrões.
Paul pressionou o botão do elevador e, voltando-se, olhou-a longa e
atentamente. Depois fez um sorriso malicioso.
— Sabes palavrões em alemão? Porquê?
— Vivi numa residência internacional em Saint Joseph. Uma das alunas
estrangeiras era de Frankfurt e gostava mesmo de dizer palavrões… muitos.
No final do semestre, todas dizíamos palavrões em alemão. — Ficou de um
ligeiro tom rosado e remexeu os pés.
Julia sabia que Paul era aluno de doutoramento, o que significava que,
provavelmente, já fizera vários cursos de Francês e Alemão. Sem dúvida
que ia gozar dos seus amadores conhecimentos linguísticos, como fizera
Christa após um seminário. Esperou por uma observação ou um acenar com
a mão a fingir que não tinha importância.
Mas ele limitou-se a sorrir e a abrir-lhe a porta do elevador.
— O meu alemão é terrível. Talvez me possas ensinar os palavrões…
sempre seria uma melhoria.
Julia virou-se para ele e sorriu-lhe em resposta. Desta vez abertamente.
— Talvez. E eu gostava de ir ao cinema contigo no sábado. Obrigada
pelo convite.
— De nada.
Paul estava satisfeito consigo mesmo. A deliciosa Julia ia ao Festival de
Cinema com ele, e depois haveria o jantar. Teria de a levar ao seu
restaurante indiano preferido. Ou talvez devesse fazer isso naquela mesma
noite e levá-la a Chinatown depois da sessão dupla. Depois levá-la-ia ao
Greg para comerem um gelado artesanal… e convidá-la-ia para o
acompanhar à Galeria de Arte de Ontário para ver a renovação arquitetural
de Frank Gehry, no fim de semana seguinte.
Enquanto continuavam a visita, Paul resolveu no seu coração ser
paciente. Muito, muito paciente. E cauteloso, sempre que estendesse a mão
para lhe oferecer uma cenoura ou acariciar-lhe suavemente o pelo macio
entre os dedos. Senão, ele sabia que afugentaria a Coelha, e que perderia a
oportunidade de a ajudar a tornar-se Real.

N a manhã seguinte, Julia estava sentada na cama estreita com o seu


velho computador portátil, a trabalhar na proposta de tese e a ouvir
Mozart. A escolha de música do professor Emerson surpreendia-a. Como
podia ele passar dos Nine Inch Nails para aquilo? Estaria apenas a ouvi-lo
por causa de Grace? Ou haveria alguma outra razão para se estar a torturar
ouvindo a mesma faixa deprimente vez após vez?
Julia fechou os olhos e concentrou-se nas palavras da Lacrimosa,
cantadas de forma sonora e perturbadora pelo coro em latim…

Dia de Lágrimas,
Aquele em que, das cinzas, se erguerá o réu para o julgamento.
Tende piedade, Senhor, deste homem.
Piedoso Senhor Jesus,
Concedei-lhe o descanso.
Ámen.

O que se passa com o Gabriel para ouvir isto repetidamente? E o que diz
a meu respeito o facto de não conseguir deixar de me sentir perto dele
sempre que o ouço? A única coisa que consegui foi substituir a fotografia
pelo CD — só não durmo com ele debaixo da almofada.
Sou um cachorrinho doentio.
Julia abanou a cabeça e tentou concentrar-se na sua proposta de tese,
distraindo-se do som das lágrimas clássicas com pensamentos sobre Paul e
as atividades do dia anterior.
Ele fora muito útil. Para além de lhe dar a chave da sala de leitura d’O
Professor, oferecera-lhe conselhos sobre a melhor maneira de estruturar a
proposta de tese, e fizera-a rir mais do que uma vez — mais do que ela se
rira em muito, muito tempo. Era um cavalheiro; abria as portas e carregava-
lhe a feia e pesada mochila. Era delicado, e Julia não conseguia deixar de
gostar dele. Era bom estar perto de uma pessoa que era ao mesmo tempo
atraente e querida — uma combinação muitas vezes rara e subvalorizada.
Estava também grata pela sua orientação. Pois, verdadeiramente, quem
melhor do que Virgílio, que guiara Dante pelo Inferno, para a orientar pela
sua proposta de tese?
Ela queria que a sua proposta impressionasse o professor Emerson, que o
fizesse perceber que era uma aluna capaz e algo inteligente. Mesmo nesse
momento, soube que o mais provável seria ele discordar com ela em ambos
os pontos, independentemente do que o professor Greg Matthews de
Harvard pudesse dizer a seu respeito. E estaria a mentir se dissesse que não
estava subliminarmente a tentar forçar Emerson a recordar-se dela.
Perguntou-se o que seria pior — que Gabriel a tivesse esquecido? Ou que
Gabriel se tivesse transformado no professor Emerson? Julia estava
agoniada com a segunda hipótese, e por isso recusou-se sequer a considerá-
la — muito. Preferia de longe que Gabriel a tivesse esquecido mas
permanecesse o homem terno e doce que a beijara no velho pomar a vê-lo
transformado no professor Emerson, com todos os seus defeitos, mesmo
que continuasse a recordá-la.
A proposta de tese de Julia era simples. Estava interessada numa
comparação entre o amor cortês manifestado no relacionamento casto entre
Dante e Beatriz e a luxúria apaixonada manifestada na relação adúltera
entre Paolo e Francesca, duas personagens que Dante colocou no círculo
dos libidinosos no Inferno. Julia queria discutir as virtudes e inconvenientes
da castidade, um assunto em que tinha um interesse mais do que passageiro,
e compará-lo com o erotismo subliminar d’A Divina Comédia.
Enquanto trabalhava na sua proposta, deu por si a olhar alternadamente
para a pintura de Holiday, pendurada por cima da sua cama, e um postal
com a imagem da escultura de Rodin “O Beijo”. Rodin esculpira Paolo e
Francesca de forma que os seus lábios não se tocassem; no entanto, a
escultura era sensual e erótica, e Julia não comprara uma réplica quando
visitara o musée Rodin em Paris porque o achara demasiado excitante. E
demasiado desolador.
Contentara-se com um postal e colara-o à parede.
Para além de palavras como boulangerie e fromagerie, sabia francês
suficiente para perceber que o título da escultura de Rodin, Le Baiser, fazia
parte da sua subversão. Pois baiser, em francês, tanto pode significar a
inocência de um beijo como a qualidade animalesca de uma foda. Pode-se
dizer le baiser referindo um beijo, mas, se se diz Baise-moi, é uma súplica
para se ser fodido. Inocência e súplica estão igualmente envolvidas no
abraço destes dois amantes cujos lábios nunca se tocaram: imobilizados
juntos, mas separados para toda a eternidade. Julia queria libertá-los
daquele abraço imóvel e esperava secretamente que a sua tese lhe
permitisse fazê-lo.
De tempos a tempos, ao longo dos anos, Julia permitira-se pensar no
velho pomar atrás da casa dos Clarks, reviver o seu primeiro beijo com
Gabriel e um pouco do que viera a seguir, mas, acima de tudo, fizera-o em
sonhos. Raramente, se é que alguma vez, pensava na manhã seguinte e nas
suas lágrimas e histeria. Era uma memória demasiado dolorosa. Era uma
recordação de traição que revisitava apenas nos seus pesadelos… e,
infelizmente, esses eram demasiado frequentes. Razão por que nunca o
procurara.
Nesse mesmo momento, o seu telefone tocou, interrompendo-lhe o
trabalho de casa.
— Olá, Julia. Tens planos para esta noite? — Era Rachel. Julia conseguia
ouvir Gabriel a resmungar ao fundo.
Carregou de imediato no botão de mute do seu computador para ele não
ouvir Mozart ao telefone. Esperou, contendo a respiração, para ver se ele
ouvira.
— Julia? Ainda estás aí?
— Sim, estou.
Pelos sons de Gabriel, Julia não percebia se ele estava zangado ou apenas
a queixar-se. Não que algum dos comportamentos a pudesse surpreender.
— O que se passa? Está tudo bem?
— Sim, tudo bem. Eeh, não tenho planos. Esta noite. — Julia mordeu o
lábio quando foi invadida por uma onda de alívio. Ele não ouvira o CD. Ou
assim parecia.
— Ótimo. Quero ir a uma discoteca.
— Oh, por favor. Sabes que detesto esses sítios. Não sei dançar, e é
sempre demasiado barulho.
Rachel riu-se com vontade.
— Tem graça que digas isso. O Gabriel disse quase exatamente o mesmo.
Menos a parte da dança. Ele acha que sabe dançar… só se recusa a fazê-lo.
Julia sentou-se muito direita na cama.
— O Gabriel também vinha connosco?
— Tenho de voltar para casa daqui a dois dias. Ele vai levar-me a um
sítio bonito qualquer para jantar e depois eu quero ir a uma discoteca. Ele
não está contente com a ideia, mas não disse que não. Pensei que podia ser
divertido se viesses ter connosco depois do jantar. Que te parece?
Julia fechou os olhos.
— Eu adorava, Rachel. Mas não tenho nada para vestir.
Rachel riu-se.
— Veste um vestido preto. Qualquer coisa simples. Tenho a certeza que
tens alguma coisa que sirva.
Nesse instante, a campainha tocou, interrompendo a chamada.
— Espera aí, Rachel, tenho alguém à porta. — Julia dirigiu-se para a
entrada, reparando numa carrinha de entregas parada à frente do edifício.
Abriu a porta.
— Sim?
— Entrega para Julia Mitchell. É a menina?
Ela anuiu e assinou para receber o enorme pacote retangular que lhe
apareceu na frente.
— Obrigada — balbuciou, enfiando o pacote debaixo do braço e levando
o telemóvel ao ouvido. — Rachel, ainda estás aí?
Rachel soava como se estivesse a rir.
— Sim. Quem era?
— Uma entrega qualquer. Para mim.
— Bem, e o que é?
— Não sei. É uma caixa grande.
— Abre.
Julia trancou a porta do apartamento atrás de si e pôs a caixa em cima da
cama. Prendeu o telefone entre a orelha e o ombro para conseguir falar
enquanto abria o embrulho.
— A caixa tem uma etiqueta… Holt Renfrew. Não sei porque é que
alguém me enviaria um presente… Rachel, não foste tu!
Julia ouvia as gargalhadas pelo telefone.
Abriu a caixa e encontrou um lindo vestido de cocktail violeta, de decote
cruzado e uma só alça. Julia não reconheceu o nome na etiqueta, Badgley
Mischka, mas provavelmente era um dos vestidos mais femininos que
alguma vez vira.
Aninhado numa caixa de sapatos ao lado do vestido, descobriu um par de
Christian Louboutins pretos, de pele envernizada. Olhou, incrédula, para as
solas vermelhas e os saltos muito altos. Os sapatos tinham um bonito laço
de veludo em cada ponta, e Julia sabia que custavam provavelmente um
mês de renda, no mínimo. A um canto da caixa, quase como acrescentada
no último minuto, estava uma pequena carteira.
Julia sentiu-se momentaneamente como a Cinderela.
— Gostas de tudo? Foi a empregada que combinou as coisas. Eu só pedi
para ver vestidos cor de púrpura. — Julia ouvia a hesitação de Rachel ao
telefone.
— É lindo, Rachel. Tudo isto. Espera um minuto, como sabias que
tamanho comprar?
— Não sabia. Parecias estar do mesmo tamanho que tinhas na escola,
mas tive de arriscar. Por isso, vais ter de experimentar o vestido e ver se te
serve.
— Mas é demasiado. Só os sapatos… Eu não posso…
— Julia, por favor. Estou tão feliz por sermos outra vez amigas. Tirando
voltar a encontrar-te e ter-me reaproximado do Gabriel, não me aconteceu
nada de bom desde que a minha mãe adoeceu. Por favor, não me tires isto
também.
Rachel sabe mesmo como fazer uma pessoa sentir-se culpada.
Julia inspirou lentamente.
— Não sei…
— Não foi com dinheiro meu. É dinheiro da família. Desde que a mãe
morreu… — Rachel interrompeu-se, na esperança de que a amiga retirasse
a sua própria (errónea) conclusão.
E foi exatamente isso que Julia fez.
— A tua mãe teria querido que gastasses o dinheiro contigo.
— Ela queria que toda a gente que amava fosse feliz, e isso incluía-te a ti.
E ela não teve muito tempo para te mimar depois… depois do que
aconteceu. Tenho a certeza que ela sabe que nos falamos de novo e que está
lá em cima a sorrir para nós. Fá-la feliz por mim, Julia.
Agora ela sentia lágrimas a surgirem ao fundo dos olhos. E Rachel
sentiu-se culpada por ser tão manipuladora. Gabriel não sentiu lágrimas
nem culpa, e só desejava que as duas raparigas se despachassem para ele
poder usar o raio do telefone para fazer uma chamada.
— Posso pagar uma parte disto? Posso pagar os sapatos… aos poucos?
Gabriel devia ter ouvido Julia, pois ela ouviu as suas pragas e protestos
ao fundo. Ele estava a rabujar qualquer coisa sobre um rato e uma igreja. O
que quer que isso quisesse dizer.
— Gabriel! Deixa-me tratar deste assunto — disse Rachel.
Julia conseguiu ouvir breves fragmentos de uma discussão que estava a
fermentar entre os dois irmãos.
— Se é isso que queres, tudo bem. Gabriel, para. Mas é a nossa última
noite juntos e quero que venhas connosco. Por isso, usa-os, e diverte-te, e
vamos falando do dinheiro mais tarde. Muito mais tarde. Quando eu
regressar a Filadélfia. E estiver a viver da segurança social.
Julia suspirou profundamente e ofereceu uma silenciosa oração de
agradecimentos a Grace, que sempre fora boa para ela.
— Obrigada, Rachel. Fico em dívida contigo. Outra vez.
Rachel guinchou.
— Gabriel! A Julia vem connosco!
Julia desviou o telefone do ouvido para não ouvir os gritos da amiga.
— Está pronta por volta das nove… vamos buscar-te a casa. O Gabriel
diz que sabe aí chegar.
— Isso é muito tarde, tens a certeza?
— Por favor! Foi o Gabriel que escolheu a discoteca, e ele diz que nem
sequer abre antes das nove. Ainda vamos chegar lá cedo. Podes gastar mais
tempo a preparar-te e vemo-nos logo à noite. Vais ficar o máximo!
E, depois disto, a chamada terminou e Julia ficou a admirar o seu lindo
vestido novo. Rachel partilhava o espírito generoso e caridoso da mãe. Era
uma pena que nenhum desse espírito se tivesse colado a Gabriel…
Perguntou-se como conseguiria alguma vez dançar em cima daqueles
sapatos sensuais e perigosos. Contemplou a perspetiva excitante e
ligeiramente assustadora de dançar com um certo professor.
Mas Rachel disse que ele não dança. Claro.
Num rasgo de inspiração, Julia dirigiu-se à sua cómoda e abriu a gaveta
da roupa interior. Sem olhar para a fotografia escondida ao fundo, retirou
rapidamente um pequeno e sexy fio de tecido a que caridosamente se
poderia chamar roupa interior se se pudesse considerar que qualquer coisa
usada debaixo das roupas contava como roupa interior.
Julia segurou o fio na palma da mão (pois era assim tão minúsculo como
isso) e meditou sobre ele como se fosse uma imagem de Buda. E, numa
decisão brusca, pensou que o ia usar, com esperança de que, como um
talismã, lhe desse a coragem e a confiança para fazer o que precisava de
fazer. O que queria fazer. E o que queria fazer era recordar Dante do que
tinha perdido quando a abandonara.
Não haveria mais lacrimosa para a Beatriz.
1 Livro infantil, da autoria de Margery Williams, sobre um coelho de peluche que quer tornar-se real
através do amor do seu dono. (N. da T.)
Capítulo Nove

O Lobby era um bar de luxo na Bloor Street. Gabriel, o eterno


especialista em Dante, referia-se-lhe sempre como “O Vestíbulo”,
porque dizia que os seus habitantes lembravam os pagãos virtuosos que
passavam a eternidade na visão de Dante do Limbo. Na realidade, porém, o
Lobby e os seus clientes habituais tinham muito mais em comum com os
vários círculos do Inferno.
Gabriel não queria levar ali Julianne, e muito menos Rachel, porque o
Lobby era o seu terreno de caça, o sítio onde ia sempre para alimentar as
suas fomes. Havia ali demasiadas pessoas que o conheciam ou tinham
ouvido falar dele, e receava o que poderiam dizer — ou o que poderia
escapar de uns espontâneos lábios vermelho-sangue.
Mas sentia-se à vontade no Lobby, confiante de que controlava o
ambiente. Nunca na vida levaria Rachel e Julianne a um ambiente que não
pudesse controlar. Por uma noite, seria Beowulf em vez de Dante, guerreiro
em vez de poeta. Levaria a espada desembainhada na mão, e perfuraria
Grendel e todos os seus parentes se ousassem sequer olhar na direção das
suas preciosas protegidas. Embora visse a pura hipocrisia da coisa, engoliu
tudo para fazer Rachel feliz.
Quando Rachel e Julia saíram do táxi e o seguiram fielmente até à porta
do Lobby, depararam com uma longa fila de pessoas à espera para entrar no
clube. Gabriel ignorou a fila e abordou o porteiro, um enorme afro-
canadiano careca que usava diamantes nas orelhas. Ele apertou a mão de
Gabriel e cumprimentou-o formalmente. «Sr. Emerson.»
— Ethan, quero apresentar-lhe a minha irmã, Rachel, e a amiga dela,
Julianne. — Gabriel indicou as jovens mulheres e Ethan sorriu e anuiu,
desviando-se para os deixar entrar.
— O que foi aquilo? — sussurrou Julia para Rachel, enquanto entravam
num espaço moderno e decorado com bom gosto a preto e branco.
— O Gabriel deve estar na lista VIP. Não perguntes. — Rachel franziu o
nariz.
Gabriel conduziu-as para o fundo do clube, uma área exclusiva que
reservara, conhecida como o White Lounge, imaginativamente nomeada a
partir da sua decoração monocromática. As duas amigas sentaram-se num
assento baixo e branco, encostando-se confortavelmente nas almofadas
forradas de arminho. Do seu lugar, conseguiam ver a pista de dança, que se
localizava como num eixo às entradas dos lounges reservados. Naquele
momento, ninguém estava a dançar.
Rachel fez um olhar admirador à sua protegida.
— A Julia está linda, não está, Gabriel? Absolutamente fabulosa.
Julia ficou de um anormal tom carmesim e começou a repuxar a bainha
do vestido.
— Rachel, por favor — sussurrou.
— O quê? Está linda ou não está? — Rachel franziu o sobrolho para o
irmão, que lhe estava a lançar um olhar de aviso.
— Estão as duas muito bem — disse ele, sem admitir nada e remexendo
as pernas, como se estivesse em sofrimento.
Julia abanou a cabeça lentamente e praguejou em surdina, a perguntar-se
porque se importava tanto com as opiniões dele e porque lhe era tão difícil
ser simpático. Ao seu lado, Rachel encolheu os ombros. O dinheiro era de
Gabriel. E se o irmão não se importava de desperdiçar quase dois mil
dólares para Julia ficar bem, quem era ela para objetar? Só que aquela óbvia
falta de entusiasmo era uma acusação contra a sua capacidade de suscitar
uma reação da parte dele. Por isso, ela aceitou o desafio.
— Ei, Julia… — começou, verificando se Gabriel estava à escuta e
olhando-o pelo canto dos olhos cinzentos — como correu o teu encontro
com o Paul?
A pele de Julia manteve o seu atual tom de vermelho.
— Foi muito agradável. Ele é um verdadeiro cavalheiro. Muito
antiquado.
Resistiu à vontade de se virar para ver se Gabriel estava a ouvir. Não
precisava de se ter dado a esse trabalho. Rachel olhava pelas duas.
— E levou-te a jantar?
— Sim. Ao Nataraj, é o restaurante indiano que ele mais gosta. Amanhã
vamos ver uma sessão dupla no Festival de Cinema e depois vamos a
Chinatown.
— Ele é giro?
Julia mostrou-se embaraçada.
— Se um jogador de râguebi pode ser caracterizado como giro. Mas é
atraente e amável. Trata-me como uma princesa.
— Fornicador-de-Anjos.
Rachel e Julia viraram-se para Gabriel, sem saber se tinham ouvido bem
o que julgavam ter ouvido. As sobrancelhas de Julia ergueram-se e, de testa
franzida, ela desviou o olhar.
Contente por ter provocado no irmão uma reação à medida da sua mais
recente infração, Rachel virou-se no assento para verificar a maquilhagem
no espelho atrás de si. Estava a retocar os lábios com bâton rosa da Chanel
quando parou de súbito, a olhar para alguém que vinha na sua direção.
— Gabriel, aquela mulher está a comer-te totalmente com os olhos! Que
raio?
Como que em resposta à exclamação de Rachel, uma empregada
artificialmente loura aproximou-se deles de imediato.
— Sr. Emerson! Que bom vê-lo de novo. — A empregada baixou-se,
expondo o alto dos seios moderadamente dotados e pousando uma mão
finamente tratada em cima do ombro dele, com as unhas cor de coral a
cintilar à meia-luz.
Julia ficou carrancuda, contra sua vontade, e perguntou-se se a
empregada planeava fazer alguma coisa com aquelas unhas a Gabriel ou se
estava só a mostrá-las para afugentar outras mulheres.
A mulher cumprimentou-as com um aceno de cabeça.
— O meu nome é Alicia, e vou servi-los esta noite.
— Abra-me uma conta, por favor. Bebidas para os três e outra para si e
para o Ethan, claro. — Gabriel pôs uma nota dobrada na mão dela,
libertando efetivamente o ombro.
Ela fez um sorriso desmaiado e guardou-a.
— Senhoras? — perguntou, mantendo os olhos fixos em Gabriel e
fazendo um sorriso provocador, com a ponta da língua a passar entre os
lábios cor de coral.
— Um Cosmo para mim — pediu Rachel.
Julia estacou.
— O que bebes? — Rachel deu-lhe um toque com o cotovelo.
— Eu… não sei — gaguejou Julia, a perguntar-se o que poderia pedir
sem ficar envergonhada. Num lugar como o Lobby, não podia propriamente
pedir uma cerveja ou começar a beber shots de tequila, que eram o seu
veneno habitual.
— Então, são dois Cosmos. — Rachel virou-se para a amiga. — Vais
adorar… são ótimos.
— Um Laphroaig de vinte e cinco anos, duplo, por favor. E peça no bar
um pequeno copo de água mineral sem gás — instruiu Gabriel, sem
estabelecer contacto visual com a empregada.
Esta foi-se embora e Rachel começou a rir.
— Meu irmão, só tu consegues fazer com que um pedido de bebida
pareça tão pretensioso.
Julia riu-se baixinho, nem que fosse por ter gostado da visão da irritação
de Gabriel com a caracterização da irmã.
— O que é Laphroaig? — perguntou.
— Um uísque escocês single malt.
— E para que é a água mineral?
— Só uma gota ou duas para abrir o paladar. Deixo-a experimentar,
quando chegar. — Arriscou um pequeno sorriso na sua direção, e ela
desviou o olhar para os seus lindos sapatos.
Ele seguiu-lhe o olhar e deu por si hipnotizado pela beleza dos saltos
altos. Rachel não fazia ideia da boa compra que fizera. Valia cada cêntimo,
só para ver as belas pernas da menina Mitchell arqueadas e alongadas por
aqueles sapatos maravilhosos. Remexeu-se desconfortavelmente no seu
assento, esperando que o movimento conseguisse deslocar a sua crescente
ereção da prisão em que se encontrava.
Não conseguiu.
— Acho que podes ficar tu à espera das bebidas, Gabriel. Eu e a Julia
vamos dançar.
Antes que Julia pudesse protestar, Rachel puxou-a para a pista de dança,
fez sinal ao DJ para aumentar o volume da música e começou a dançar com
entusiasmo.
Julia, por outro lado, sentia-se desconfortável. Conseguia ver que Gabriel
se desviara no assento para a poder observar, recostando-se, de olhos
intensos e fixos. Perguntou-se se ele reparara no facto de que ela não estava
a usar as cuequinhas tradicionais por baixo do vestido.
Será uma coisa em que os homens reparam? As costuras das
cuequinhas?
Não conseguiu desviar o olhar enquanto os olhos dele percorriam o seu
corpo, desde a cabeça até aos pés, demorando-se mais do que o tempo
necessário nas bem formadas pernas nuas e nos sapatos de solas vermelhas.
— Não consigo dançar com estes sapatos — protestou Julia ao ouvido da
amiga.
— Tretas. Só tens de mexer o corpo e deixar os pés quietos. E estás linda,
a propósito. O meu irmão é um idiota.
Julia virou as costas ao seu professor e começou a dançar, fechando os
olhos e deixando-se possuir pela música. Era uma sensação fantástica.
Assim que se esqueceu dele e dos seus penetrantes olhos azuis, conseguiu
começar efetivamente a divertir-se. Marginalmente.
Será que ele consegue ver o contorno da minha tanga através do tecido
do vestido? Que se lixe. Espero que consiga. Aprecie a vista, professor,
porque é a única coisa que alguma vez apanhará.
Quando a canção acabou, Rachel aproximou-se do DJ com um sorriso e
perguntou-se quais eram os seus planos para as músicas seguintes. Fosse
qual fosse a resposta, devia ter-lhe agradado, porque ela ergueu um punho
no ar de uma maneira muito pouco senhoril e quase soltou um berro.
— Fantástico! — exclamou, atravessando a pista para regressar para
junto de Julia. Agarrou-lhe as mãos e fê-la andar à volta.
Agora que Julia e Rachel estavam a dançar (e obviamente a divertir-se),
uma série de pessoas de vários lounges em volta decidiram juntar-se a elas,
incluindo um louro muito interessante.
— Olá — ofereceu, aproximando-se mais de Julia e movendo-se ao
mesmo tempo que ela com a música.
— Olá — disse ela, a sentir-se algo conspícua.
Pensou na velha história de que as mulheres associavam dança e sexo.
Aquele homem, quem quer que ele fosse, era, sem dúvida, excelente no
segundo, porque era, sem dúvida, heterossexualmente excelente no
primeiro.
— Nunca a tinha visto por aqui antes. — Ele sorriu.
Julia reparou nos seus dentes muito brancos e nos olhos de um azul vivo,
tão azuis como centáureas. Esqueceu-se momentaneamente de lhe
responder, enquanto se concentrava na cor sensacional dos seus olhos.
— O meu nome é Brad. Como se chama? — Inclinou-se para a frente,
com o ouvido quase a roçar nos lábios dela para ouvir a sua resposta por
cima do pulsar da música.
Ela pestanejou um pouco perante aquela proximidade.
— Julia.
— Prazer em conhecer, Julia. É um lindo nome.
Ela acenou em sinal de que o ouvira e lançou um olhar desesperado a
Rachel, na esperança de que a amiga viesse em seu auxílio. Mas Rachel
estava demasiado ocupada a dançar de olhos fechados, porque,
aparentemente, adorava a canção que estava a tocar.
— Posso pagar-lhe uma bebida? Eu e os meus amigos temos uma mesa
mesmo aqui em frente. — Fez um gesto vago, mas Julia não seguiu a
direção.
— Obrigada, mas estou com a minha amiga.
Ele sorriu, sem desistir, e aproximou-se mais.
— Traga a sua amiga. Tem os olhos mais bonitos que já vi. Não ia ser
capaz de viver comigo mesmo se a deixasse ir embora sem lhe pedir o seu
número.
— Mmm… não sei…
— Ao menos deixe-me dar-lhe o meu.
Os olhos de Julia dardejaram na direção de Rachel, o que foi uma má
decisão, porque a impediu de ver Brad mover-se na sua direção. Acabou por
pisá-lo mesmo nos dedos do pé, o que o fez encolher-se de dor e a fez
perder o equilíbrio.
Ele apanhou-a antes de ela cair no chão e agarrou-a com força contra o
peito, enquanto ela recuperava o equilíbrio. Tinha de admitir, Brad tinha um
peito musculado e braços surpreendentemente fortes, para alguém vestido
de fato.
— Pronto, linda. Desculpe. Está tudo bem? — Manteve a mão esquerda
no braço dela e ergueu a direita para poder desviar-lhe os caracóis da frente
dos olhos. Olhou-a e sorriu.
— Estou bem. Obrigada por não me deixar cair.
— Eu seria idiota se a largasse, Julia.
Julia reparou obliquamente que o sorriso dele não era sinistro. O homem
parecia até simpático. O fato dizia-lhe que ele fora ao clube depois do
trabalho e que provavelmente trabalhava na baixa para uma grande empresa
— um sítio onde ainda se exigia que os jovens andassem de fato e gravata.
E sapatos pretos muito reluzentes.
Era confiante, pensou ela, mas não arrogante. E as palavras dele, ainda
que cuidadosamente escolhidas, não pareciam calculadas. Seria, talvez, o
tipo de pessoa com que se imaginava a sair algumas vezes, mas duvidava
que tivessem muito em comum. Dançar não era, certamente, coisa que
quisesse fazer no futuro mais próximo. Embora dançar com ele…
Era demasiado tímida para prolongar mais a conversa. Abriu a boca para
pedir desculpa, mas depois alguém lhe agarrou o outro braço e afastou
efetivamente Brad da frente. Ela sentiu um choque a percorrer-lhe a
superfície da pele e soube imediatamente de quem eram aqueles longos
dedos frios em volta do seu antebraço nu.
— Está tudo bem? — perguntou Gabriel, a falar e a olhar apenas para
Julia. A sua calma e tom preocupado contrastavam com a inexplicável fúria
nos seus olhos.
A zanga confundiu-a, por isso ela não respondeu. Parecia estupefacta, o
que Brad reparou de imediato.
— Este idiota está a magoá-la? — perguntou, a endireitar os ombros
enquanto olhava de sobrolho franzido para Gabriel. Ele fez um movimento
em frente, parecendo algo ameaçador.
Julia abanou a cabeça, ainda um pouco chocada.
— Ela está comigo — rosnou Gabriel, sem se dar ao trabalho de virar a
cabeça na direção de Brad.
Ele recuou ligeiramente, pois o olhar de Gabriel era muito feroz.
— Venha — ordenou ele, puxando-a para fora da pista de dança e de
volta aos seus lugares.
Julia lançou a Brad um olhar de desculpa por cima do ombro e foi-se
embora de boa vontade.
Gabriel entregou-lhe uma bebida enquanto tentava acalmar a respiração.
Estava surpreendido consigo próprio e com a sua ansiedade em ir em
auxílio de Julia antes de considerar sequer as repercussões.
Enquanto ela bebia o seu Cosmopolitan e tentava processar o que acabara
de acontecer, Gabriel voltou-se para ela, agarrado ao seu copo agora meio
vazio.
— Tem de ter mais cuidado. Estes sítios podem ser muito perigosos para
raparigas assim, e a Julianne, minha cara, é uma calamidade à espera de
acontecer.
Ela cerrou os dentes.
— Eu estava bem. E ele era simpático!
— Pôs as mãos em cima de si.
— E então? Estávamos a dançar, e ele impediu-me de cair no chão,
quando tropecei! Não o ouvi convidar-me para dançar.
Gabriel reclinou-se contra o sofá e olhou-a com um sorriso lento e
sinuoso.
— Isso iria contrariar o objetivo de olhar, não acha?
Julia atirou o cabelo para trás e virou a cara à safira daqueles olhos
avivados pelo uísque. Viu Brad a tentar chamar a sua atenção da pista de
dança e tentou indicar com o corpo que ela e Gabriel não estavam juntos.
Uma centelha de compreensão iluminou os olhos de Brad e ele anuiu, antes
de desaparecer.
— Prometi que a deixava provar. — Gabriel deslizou no banco para mais
perto de Julia e ergueu-lhe o copo aos lábios.
— Não. — Ela cheirou e recuou.
— Eu insisto. — A voz dele tornou-se mais perentória.
Julia suspirou e tentou retirar-lhe o copo da mão, mas ele afastou-o.
— Deixe-me dar-lhe — sussurrou ele, num tom subitamente rouco.
Ele soava a sexo. Ou, pelo menos, o que Julia imaginava que seria o sexo
se estivesse sentado num sofá branco com brilhantes olhos azuis e um
queixo arrogante, a tentar colocar-lhe um copo junto à boca.
Oh céus, Gabriel. Oh céus, Gabriel. Oh, céus, Gabriel. Oh… céus…
Gabriel.
— Eu consigo sozinha — sussurrou ela, hesitante.
— Claro que sim. Mas porque haveria de o fazer, quando eu estou aqui
para lho dar? — ripostou ele, a sorrir de uma maneira que mostrava a
perfeição dos seus dentes.
Julia não queria entornar o seu precioso uísque por acidente, por isso
deixou-o pressionar a bebida contra a curva do seu lábio inferior, o que ele
fez de forma lenta e sensual. Fechou os olhos e concentrou-se
momentaneamente na sensação do vidro frio e macio contra a pele. Ele
inclinou o copo suavemente, até o líquido fumado lhe penetrar os lábios
entreabertos e fluir para a sua boca aberta e expectante.
Julia estava surpreendida por ele se mostrar tão aberto com ela, tão
sensual. Mas ficou ainda mais surpreendida quando o uísque lhe deixou a
boca em fogo, e a incendiou.
Engoliu rapidamente.
— Isso é horrível! — exclamou. — Sabe a uma fogueira!
Ele recuou e analisou-lhe o rosto. Estava afogueado e animado.
— Isso é da turfa. É um gosto que se adquire. Poderá decidir se é um
gosto que quer adquirir depois de o experimentar algumas vezes. — Fez-lhe
um sorriso trocista, com apenas metade da boca a curvar-se.
Ela abanou a cabeça enquanto tossia.
— Duvido. E, a propósito, já sou uma rapariga crescida, e consigo tomar
conta de mim mesma. Por isso, a não ser que eu lhe peça ajuda, agradeço
que me deixe em paz.
— Disparates. — Acenou vagamente para a pista de dança. — Grendel e
os seus parentes devoravam-na, se tivessem hipótese, e nem se dê ao
trabalho de discutir comigo.
— Desculpe! Mas quem é que pensa que é?
— Alguém que reconhece a ingenuidade e a inocência quando a vê.
Agora beba lá a sua bebida devagarinho, como uma boa menina, e pare de
se comportar como se pertencesse a um sítio destes. — Gabriel fez-lhe um
olhar sombrio e terminou o seu uísque de um trago. — Calamity Julianne.
— O que é que quer dizer com isso, “ingenuidade e inocência”? O que é
que está a tentar dizer exatamente, Gabriel?
— Tenho de soletrar tudo?
Fez uma careta e baixou a voz, inclinando-se para ela. Os olhos de Julia
reviraram-se para cima instintivamente quando o seu hálito quente lhe
nadou pelo pescoço nu.
— A Julianne cora como uma adolescente. E consigo sentir a sua
inocência. É mais do que óbvio que ainda é virgem. Por isso, pare de fingir
ser outra coisa qualquer.
— Seu…! Seu…! — Julia desviou a orelha de perto dele enquanto
tentava pensar numa palavra suficientemente má em inglês. Tristemente,
caiu no italiano. — Stronzo!
Ao princípio, Gabriel pareceu furioso, depois a sua face suavizou-se e ele
riu-se — uma gargalhada que o fez atirar a cabeça para trás, fechar os olhos
e agarrar a barriga.
Julia estava furiosa. Ali sentada, a ferver, enquanto bebia o seu Cosmo
muito depressa, pensou como saberia Gabriel a verdade a seu respeito,
conhecendo-a há tão pouco tempo. Decerto que Rachel não… Abanou a
cabeça. Rachel não o faria. Essa informação era demasiado pessoal, e ela
não a teria dito em voz alta a mais ninguém senão a Aaron. E Aaron era
demasiado cavalheiro para repetir uma coisa dessas.
Enquanto Gabriel sorria, Julia lamentava o facto de ele ter efetivamente
estragado uma oportunidade de conhecer uma pessoa que parecia simpática.
Julia provavelmente não teria dado o seu número a Brad, porque não fazia
esse tipo de coisa, mas queria ter sido ela a decidir, e não o seu professor.
Era mesmo um idiota. E estava na altura de mudar.
Alguns minutos mais tarde, a empregada artificialmente loura regressou e
entregou a Julia uma pequena caixa dourada.
— É para si.
— Desculpe, deve ser um engano. Não pedi isto.
— Obviamente, querida. Foi um dos tipos na mesa dos banqueiros que
lho mandou. E pediu-me que lhe dissesse que vai ficar de coração partido,
se lho devolver. — Fez um sorriso sedutor a Gabriel. — Posso servir-lhe
outra bebida, Sr. Emerson?
— Acho que estamos bem servidos por aqui, obrigado. — Mantinha os
olhos fixos em Julia, a vê-la revirar a pequena caixa entre as mãos. Lá
dentro encontrou um cartão profissional e uma única trufa embrulhada em
papel dourado. No cartão profissional, ela leu:
Brad Curtis
Vice-Presidente, Mercado de Capitais
Banco de Montreal
Bloor Street, 55, Quinto Andar
Toronto, Ontário
Tel. 416-555-2525

Virou o cartão e leu as palavras que estavam escritas com uma letra
muito confiante:
Julia
Foi uma pena termos começado com o pé esquerdo.
O chocolate lembra-me os seus olhos lindos.
Brad.
Por favor, telefone-me: 416-555-1491

Julia virou novamente o cartão, com um sorriso espalhado no rosto oval.


Ele fizera uma piada. Não pensara que a sua tremenda falta de jeito era
razão para a rejeitar. E não lhe chamara virgem, como se fosse um nome
feio. Admirara os seus olhos e achava-a atraente.
Desembrulhou cuidadosamente a trufa e enfiou-a na boca. Céus. Como
saberia ele que adorava chocolates caros? Tinha de ser o destino. Fechou os
olhos e degustou o sabor intenso e negro, lambendo os lábios para garantir
que não lhe escapava nada. Um gemido involuntário escapou-se-lhe dos
lábios.
Porque não conheci uma pessoa como ele no meu primeiro ano em Saint
Joseph?
Entretanto, Gabriel estava a roer os nós dos dedos da mão direita como
um animal enlouquecido. Mais uma vez, a visão da menina Mitchell a
apreciar os pequenos prazeres da vida era uma das coisas mais eróticas que
alguma vez testemunhara. A maneira como os seus olhos cresciam com a
visão da trufa, o rubor que lhe pintara as bonitas faces em antecipação do
sabor, a forma como gemia com uma boca semiaberta, e a maneira como a
sua língua assomava num relâmpago para recolher os vestígios de cacau
colados aos seus lábios de rubi… era, realmente, demasiado.
Por isso, claro, teve de estragar tudo.
— Não comeu mesmo isso, pois não?
Julia virou a cabeça. Esquecera-se da presença de Gabriel, arrebatada
como estava na sua névoa de êxtase pseudo-orgásmico induzido pelo
chocolate.
— Era delicioso.
— Ele pode tê-la drogado. Não sabe que não deve aceitar doces de
desconhecidos, minha menina?
— Suponho que não faz mal aceitar maçãs, pois não, Gabriel?
Ele semicerrou os olhos com aquele non sequitur. Estava a escapar-lhe
qualquer coisa.
— E não sou uma menina — bufou ela.
— Então pare de se comportar como se fosse. Não vai ficar com isso,
pois não? — Apontou a caixa que estava agora a espreitar da minúscula
carteira de Julia.
— Porque não? Ele pareceu-me simpático.
— E costuma fazer isso? Engatar um homem num bar?
As sobrancelhas dela colaram-se, e o seu lábio inferior começou a tremer.
— Eu não estava a engatá-lo! E de certeza que o Gabriel nunca engatou
uma mulher num bar… e depois a levou para casa, coisa que, posso
acrescentar, eu nunca fiz. Não que isso seja da sua conta, professor.
A cara de Gabriel ficou muito vermelha. Não ia contradizê-la; não seria
tão hipócrita. Mas alguma coisa no que acabara de transpirar entre a menina
Mitchell e o Grendel-banqueiro-louro inflamara-o verdadeiramente, embora
não soubesse porquê. Acenou num instante à empregada para lhe trazer
outro uísque.
Pelo seu lado, Julia pediu outro Cosmopolitan, desejando que a mistura
frutada mas potente a ajudasse a esquecer o homem cruel mas cativante que
estava sentado dolorosamente ao seu lado mas nunca seria seu.
Quando Rachel regressou, deixando-se cair de exaustão no assento, Julia
levantou-se e pediu licença. Entrou no corredor escuro à procura da casa de
banho. A arrogância e condescendência de Gabriel enfureciam-na. Ele não
a queria, mas também não queria que mais ninguém a tivesse. Qual era o
problema dele?
Estava tão concentrada em Gabriel que não viu um homem parado no
corredor. Foi contra ele, desequilibrou-se para trás e inclinou-se
perigosamente. Por sorte, o homem agarrou-a.
— Obrigada — murmurou ela, e ergueu o olhar para o rosto divertido de
Ethan, o porteiro.
— De nada. — Ele soltou-a de imediato.
— Estava à procura da casa de banho das senhoras.
Ele apontou com o seu telemóvel.
— Na outra direção. — Regressou à mensagem que estava a compor
antes de ela ter chocado com ele e soltou uma praga. — Raios.
— Parti alguma coisa?
Ethan abanou a cabeça.
— Não. Estou só a ter… dificuldades com uma mensagem.
Julia fez um sorriso de compreensão.
— Lamento.
— Eu também. — Olhou-a com interesse. — Estou impressionado. O
Emerson não costuma chegar com uma senhora.
— Porque não?
Ethan soltou um ronco de troça.
— Está a falar a sério? Olhe à sua volta. Quantos casais pensa que
chegaram juntos?
— Ah — disse ela. — Ele vem cá muito?
Ethan olhou-a com cuidado, a pensar quanto deveria revelar.
— Provavelmente é melhor fazer-lhe essa pergunta a ele.
Ela parecia nauseada.
Quando viu a sua expressão, Ethan tentou tranquilizá-la.
— Ei, ele hoje está aqui consigo. Isso diz alguma coisa, não diz?
Julia baixou o olhar para as mãos e brincou com as unhas.
— Hum, ele não está aqui comigo. Sou só uma velha amiga da irmã.
Parecia tão triste, com aqueles grandes olhos castanhos e o lábio inferior
a tremer, que Ethan tentou pensar em alguma coisa que a distraísse.
— Julianne, por acaso não sabe italiano, pois não?
Ela sorriu.
— Hum, chame-me Julia, por favor. E, sim, sei. Estou a estudar italiano
na universidade.
A expressão de Ethan iluminou-se num instante.
— Podia ajudar-me a enviar uma mensagem à minha namorada? Ela é
italiana. Gostava de a impressionar.
— O italiano do Gabriel é melhor do que o meu. Devia pedir-lhe a ele.
Ethan lançou-lhe um olhar.
— Está a brincar? Não o quero por perto da minha mulher. Eu vejo como
as mulheres reagem aqui. Ficam todas em cima dele.
Julia sentiu-se novamente agoniada, mas pôs de lado a sua náusea.
— Claro, eu traduzo o que quiser.
Ethan passou-lhe o telefone e ela começou a inserir as suas palavras em
italiano. Riu-se ligeiramente com algumas das frases de tom mais íntimo,
mas, de um modo geral, ficou impressionada com Ethan; com toda a sua
dureza, preocupava-se o suficiente com a namorada para lhe dizer como a
amava e para a tranquilizar dizendo-lhe que mantinha as mulheres do
Lobby à distância. Estava mesmo a terminar a mensagem quando apareceu
alguém atrás deles.
— Cof-cof.
Julia olhou para cima para ver um já conhecido par de olhos azuis
zangados.
— Sr. Emerson — disse Ethan.
— Ethan — rosnou Gabriel.
Julia não tinha a certeza se os seus ouvidos estavam a funcionar. Parecia
que Gabriel rugira como um animal, mas isso era impossível.
Carregou no enviar no telefone e devolveu-o a Ethan.
— Pronto. Tudo resolvido.
— Obrigado, Julia. Vou pedir que lhe levem uma bebida. — Ethan
acenou a Gabriel com a cabeça e desapareceu numa esquina.
Julia começou a dirigir-se aos lavabos.
— Onde é que pensa que vai? — Gabriel seguiu-a.
— À casa de banho. O que é que isso lhe interessa?
Ele estendeu a mão como um relâmpago e agarrou-a pelo pulso,
pressionando a almofada do polegar contra as veias que palpitavam debaixo
da sua pele pálida. Ela conteve a respiração.
Puxou-a até ficarem escondidos num longo corredor escuro e empurrou-a
contra uma parede. Continuou a segurar-lhe o pulso, a beber a sensação do
seu pulso acelerado debaixo dos dedos, e colocou a outra mão na parede ao
lado do ombro dela. Julia estava presa.
Gabriel levou um momento a inalar o seu aroma a baunilha e lambeu os
lábios, mas os seus olhos não estavam felizes, longe disso.
— Porque é que lhe deu o seu número? Ele vive com uma mulher, sabe?
E agora está a pagar-lhe bebidas e a chamar-lhe Julia?
— Esse é o meu nome, professor! O senhor é o único que não o usa. E,
neste momento, mesmo que o quisesse usar, eu não o permitiria. Acho que
me deve chamar menina Mitchell para sempre. E eu não lhe dei o meu
número.
— Estava a inserir o seu número no telemóvel dele. Costuma mesmo
oferecer-se a múltiplos homens ao mesmo tempo?
Julia abanou a cabeça, demasiado zangada para responder, e tentou
esquivar-se debaixo do cotovelo dele, mas Gabriel agarrou-a pela cintura.
— Dance comigo.
Ela soltou um sopro.
— Nunca na vida.
— Não seja tão difícil.
— Estou só a começar a ser difícil, professor.
— Cuidado. — Ele soava ameaçador.
Julia esperou um momento para que o arrepio que aquele tom de voz lhe
provocava desaparecesse da sua espinha.
— Porque é que não me enfia uma faca no coração e acaba logo com
isto? — sussurrou, olhando-o diretamente nos olhos. — Não me magoou já
o suficiente?
Gabriel soltou-a de imediato e recuou.
— Julianne. — O nome dela soltou-se da sua boca como algo entre uma
censura e uma pergunta. As suas sobrancelhas franziram-se, e ele pareceu
muito perturbado. Não zangado, mas perturbado. Magoado, talvez.
— Sou assim tão mau? — A voz dele era baixa, apenas acima de um
murmúrio.
Julia abanou a cabeça numa negativa, e os seus ombros descaíram.
— Não tenho qualquer desejo de a magoar. Longe disso. — Olhou-a na
sua postura intencionalmente submissa, e os seus olhos procuraram de
imediato a boca dela. Viu o seu lábio inferior ligeiramente saliente e a
tremer. Os olhos dela olhavam ansiosamente em volta.
Ela está assustada, idiota. Acalma-te.
— Mencionou há pouco que não a tinha convidado para dançar. Bem,
agora estou a convidá-la. — A voz dele suavizara consideravelmente. —
Julianne, quer dar-me a honra de dançar comigo? Por favor?
Fez-lhe um sorriso luminoso e inclinou um pouco a cabeça… um
movimento sedutor de marca. Mas não teve o efeito desejado, pois Julia não
erguia a cabeça. Ele passou-lhe os dedos suavemente pelo pulso, como se
tentasse pedir desculpa à sua pele. (Não que a sua pele fosse aceitar o
pedido de desculpas.)
Julia levou instintivamente a mão ao pescoço, sentindo-se de súbito como
se estivesse a experimentar uma chicotada física, que era o capricho
emocional daquele homem. Gabriel olhou para a mão que tremia contra a
sua garganta cor de leite e, mais uma vez, viu as suas veias azuis
estremecerem a cada pulsação.
Como um colibri, pensou. Tão pequena. Tão frágil. Tem cuidado…
Ela engoliu ruidosamente em seco e, frenética, procurou uma saída.
— Por favor — repetiu ele, com os olhos a brilhar na escuridão.
— Não sei dançar.
— Estava a dançar.
— Não sei dançar com outra pessoa. Vou pisar-lhe os pés e magoá-lo
com estes saltos. Ou vou tropeçar e acabar no chão, e deixá-lo humilhado.
Já está zangado comigo… — O seu lábio inferior começou a tremer mais
visivelmente.
Gabriel deu um passo em frente e ela encostou-se mais à parede, quase
como se estivesse a tentar atravessá-la para lhe escapar. Ele pegou-lhe na
mão e levou-a regiamente aos lábios. Depois, com um firme sorriso no
rosto, aproximou-se mais, baixou-se e levou a boca ao seu ouvido. A pele
de Julia vibrou com a sua proximidade e a sensação do seu hálito contra a
pele.
— Julianne, como poderia ficar zangado com uma pessoa tão doce?
Prometo não ficar zangado nem humilhado. Vai poder dançar comigo. — O
seu sussurro era estimulante e suave, sexual e sedutor, uísque e menta. —
Venha.
Tomou-lhe a mão e a mesma centelha familiar percorreu-lhe a pele.
Enquanto esperava que ela respondesse, sentiu-a ficar hirta sob os seus
dedos e questionou-se a respeito daquela estranha reação. Parecia que o seu
encanto estava a funcionar, embora ela estivesse a tremer um momento
antes.
— Por favor, professor — sussurrou ela, a fixar a frente da camisa dele,
não querendo encontrar o seu olhar.
— Pensei que, esta noite, supostamente, nos tratávamos por Gabriel e
Julianne.
— Não quer mesmo dançar comigo. É só o uísque a falar.
As sobrancelhas dele elevaram-se e ele teve de conter uma resposta torta.
Julia estava a provocá-lo, quase como se soubesse exatamente em que
botões carregar e quando.
— Uma dança. É a única coisa que lhe peço.
— Porque é que quer dançar com uma virgem? — murmurou ela, de
súbito fascinada pelos laços nos seus sapatos.
Ele endireitou as costas.
— Não é uma virgem qualquer, é a Julianne. Pensei que talvez quisesse
dançar com alguém que não se preparasse para a molestar na pista de dança
e tomar liberdades consigo na frente de uma discoteca cheia de homens
sexualmente agressivos.
Ela parecia cética, mas não disse nada.
— Estou a tentar manter os lobos à distância — disse ele em voz baixa.
Um leão a tomar conta de lobos, pensou. Que conveniente.
Gabriel não fizera uma piada; estava a olhar para ela seriamente, os seus
intensos olhos azuis mergulhados nos dela.
— Uma dança comigo e eles vão perceber o suficiente para a deixarem
em paz. Isso deve ser uma melhoria, dado o atual estado das coisas. —
Sorriu vagamente. — Se tiver sorte, mais ninguém a incomodará o resto da
noite, e não vou ter de guardar a minha protegida com tanto cuidado.
Ela ressentiu-se com aquela caracterização, mas depois desconsiderou-a,
percebendo que, naquela fase da vida dele, estava habituado a levar a sua
avante — sempre.
Mas não foi sempre assim, pois não, Gabriel?
— O que vamos dançar? — Persuadiu-a a reentrar no lounge, pousando
uma mão ao fundo das suas costas. — Vou pedir o que quiser. Que tal Nine
Inch Nails? Talvez um pouco de Closer?
Sorriu para indicar que estava a brincar. Mas Julia não estava a olhar para
a sua cara, estava de olhos no chão para não tropeçar e embaraçar-se a si
mesma e O Professor. No entanto, assim que o nome daquela canção lhe
saiu dos lábios, ela estacou.
Gabriel quase chocou com as suas costas, tão bruscamente ela parara.
Pelas pontas dos dedos, sentiu o gelo no corpo dela e lamentou imediata e
ferozmente ter sugerido aquela música. Deu um passo para lhe olhar o
rosto, e o que viu perturbou-o profundamente.
— Julianne, olhe para mim.
A respiração dela parara.
— Por favor — acrescentou.
Obedientemente, Julia ergueu os grandes olhos castanhos e olhou-o por
entre as longas pestanas. Ele viu medo e um radical desassossego no rosto
dela, e alguma coisa dentro de si se revirou.
— Era uma piada. Uma piada de mau gosto. Desculpe. Nunca pediria
essa música para dançar consigo. Seria a pior forma de blasfémia, expor
alguém assim a palavras daquelas.
As pestanas de Julia palpitavam de confusão.
— Eu sei que fui um pouco… stronzo esta noite. Mas vou escolher uma
coisa bonita. Prometo.
Não querendo soltá-la com medo que fugisse, Gabriel levou-a até à
cabine do DJ e passou-lhe uma nota, sussurrando-lhe o pedido ao ouvido. O
DJ anuiu e sorriu, e fez uma saudação a Julia antes de procurar a canção
pedida.
Gabriel conduziu-a para a pista de dança e puxou-a para perto de si —
mas não demasiado perto. Reparou que as mãos dela, que eram tão mais
pequenas do que as suas, tinham começado a suar. Não lhe ocorreu que
talvez estivesse a ter aquela reação por causa da música que mencionara.
Não, o seu único pensamento foi que ela lhe era completamente hostil e que
ele tornara as coisas piores ao mostrar-se insultuoso e ditatorial com ela,
quando a única coisa que realmente queria era salvá-la dos lobos que
tinham descido para lhe farejar as saias.
Por que raio é que me importo? Ela não é nenhuma criança. Nem sequer
é minha amiga.
Sentiu-a estremecer e, mais uma vez, lamentou ter sido duro com ela. Era
uma coisinha delicada e claramente bastante sensível. Não devia ter
mencionado o facto de ter observado que ela era virgem. Era uma coisa
grosseira de se fazer. Grace teria ficado consternada com a sua falta de
cavalheirismo, e com toda a razão.
Talvez pudesse compensar a linda Julianne se dançasse calmamente com
ela e lhe mostrasse que sabia comportar-se como um cavalheiro, afinal de
contas. Gabriel pousou a mão ao fundo das suas costas e fletiu-a. Sentiu de
imediato a respiração dela acelerar.
— Descontraia-se — sussurrou-lhe, e os seus lábios roçaram
acidentalmente a pele da face dela.
Fê-la encostar-se a si, tendo o cuidado de fazer com que ela sentisse o
peito dele contra o seu. Forte e duro contra suave e macio, assim se
tocavam através das roupas. Gabriel estava agora com o seu melhor
comportamento.
Julia não reconheceu a música que ele pedira. O vocalista cantava em
espanhol e as palavras eram desconhecidas, embora ela reconhecesse a frase
besame mucho e soubesse que significava beija-me muito. O arranjo em si
era um lento jazz latino, e eles moviam-se suavemente, enquanto Gabriel a
conduzia pela pista de dança como um perito. O facto de ter escolhido uma
música abertamente romântica fê-la corar.
Beijei-te muito, Gabriel, por uma noite gloriosa. Mas tu não te lembras.
Será que te lembrarias se te beijasse…
Sentiu-lhe o dedo mindinho roçar o topo das suas cuequinhas minúsculas
por baixo do vestido, e perguntou-se se ele saberia o que tinha debaixo do
dedo. A ideia de que talvez soubesse fez a sua pele explodir em calor.
Escondeu os olhos, mantendo-os determinadamente fixos nos botões da
camisa dele.
— Seria melhor se olhasse para mim. Seria mais fácil para seguir a
minha orientação.
Ela viu-o sorrir-lhe, um sorriso aberto e genuíno que não via há anos. O
seu coração palpitou, e ela sorriu-lhe em resposta, baixando a guarda (mas
não as cuequinhas especiais) por um instante.
O sorriso de Gabriel desvaneceu-se.
— A sua cara é-me familiar. Tem a certeza que a Rachel nunca nos
apresentou, durante uma das minhas visitas a casa?
Os olhos de Julia iluminaram-se com o que parecia ser uma esperança.
— Ela não nos apresentou, não mas nós…
— Poderia jurar que já a tinha visto antes. — Franziu a testa, confuso.
— Gabriel? — instigou ela, a tentar revelar a verdade com os olhos.
Ele suspirou lentamente, a abanar a cabeça.
— Não, suponho que não. Mas faz-me lembrar a Beatriz do quadro de
Holiday. Não é engraçado que também tenha esse quadro?
Se Gabriel soubesse o que procurar, ou se fosse melhor a ler o seu rosto,
teria visto que ela parecia ligeiramente nauseada, e que qualquer esperança
nos seus olhos desaparecera.
Ela mordeu o lábio com um ar ausente.
— Um… amigo falou-me desse quadro. Foi por isso que o comprei.
— O seu amigo tem bom gosto.
Alguma coisa na resposta dela desagradara-lhe, mas ele pôs de lado esse
desprazer como um derivado do facto de a sentir tão tensa nos seus braços.
Suspirou e juntou a testa à dela, o seu hálito quente contra o rosto de Julia.
Cheirava a Laphroaig e a qualquer coisa distintamente gabrieliana e
potencialmente perigosa.
— Julianne, eu prometo que não mordo. Não tem de estar tão ansiosa.
Ela ficou mais rígida, embora soubesse que ele estava a tentar pô-la à
vontade. Mas já a magoara vezes incontáveis, e estava cansada disso. Não
era uma marioneta num fio que ele podia controlar para seu próprio
divertimento mercurial, só porque um banqueiro louro lhe tinha enviado
uma trufa. Parecia-lhe que aquela dança era simplesmente uma
oportunidade para ele declarar a sua superioridade.
— Não me parece que isto seja muito profissional — começou ela, com
os olhos subitamente em fogo.
O sorriso dele desvaneceu-se da sua face, e os seus olhos chisparam.
— Não, não é, menina Mitchell. Não estou a ser profissional consigo, de
todo. Suponho que não é desculpa dizer-lhe que queria dançar com a
rapariga mais bonita no clube?
A deliciosa boca vermelha abriu-se ligeiramente, depois ele viu-a
pressionar os lábios.
— Não acredito em si.
— O quê, não acredita que é facilmente a mulher mais bonita daqui?
Com todo o respeito pela minha irmã? Ou não acredita que eu, um sacana
frio, queira dançar consigo uma música suave?
— Não goze comigo — ripostou ela.
— Não estou a gozar, Julianne.
Ele fletiu o braço ao fundo das suas costas, e Julia conteve a respiração,
porque isso lhe provocou qualquer coisa por dentro. Ele sabia-o, claro, e
esperara uma reação. O que não sabia era que já lhe tocara ali
anteriormente, que fora o primeiro homem a alguma vez lhe tocar ali. E que
a pele dela nunca recuperara da sua ausência.
Gabriel observou a subsequente irritação dela, divertido.
— Quando não me franze a testa dessa maneira, e tem os olhos grandes e
suaves, é muito bonita. É sempre atraente, mas, nesses momentos, parece
um anjo. É quase como se fosse… parece…
Uma súbita centelha de reconhecimento passou-lhe pelo rosto, e Julia
parou de dançar.
Apertou-lhe a mão e olhou-o nos olhos, querendo que ele recordasse.
— O quê, Gabriel? Recordo-o de alguém?
A expressão no rosto dele desvaneceu-se tão depressa quanto aparecera, e
Gabriel abanou a cabeça, sorrindo-lhe indulgentemente.
— Só uma fantasia passageira. Não se preocupe, menina Mitchell, a
dança está quase a acabar. Depois ficará livre de mim.
— Era bom que assim fosse — murmurou ela.
— O quê? — Ele voltou a colar a testa à dela.
Sem pensar em como seria íntima tal ação, ele soltou a mão e desviou-lhe
lentamente um caracol do cabelo, as pontas dos dedos a roçarem a pele do
seu pescoço durante muito mais tempo do que o necessário.
— É linda — sussurrou ele.
— Estou a sentir-me como a Cinderela. Foi a Rachel que me comprou o
vestido e os sapatos. — Julia mudou de assunto rapidamente.
Ele retirou a mão.
— Sente-se mesmo como a Cinderela?
Ela anuiu.
— É preciso tão pouco para a fazer feliz — disse ele, mais para si mesmo
do que para ela. — O seu vestido é lindo. A Rachel devia saber qual é a sua
cor preferida.
— Como é que sabe que a minha cor preferida é púrpura?
— O seu apartamento está coberto dessa cor.
Julia fez uma careta quando se recordou da primeira e única visita d’O
Professor ao seu buraco de hobbit.
Gabriel queria fazê-la olhar para ele — só para ele.
— Os sapatos são maravilhosos. — Os olhos dele viajaram desde o alto
da cabeça dela até aos seus pés.
Ela encolheu os ombros.
— Estou com medo de cair.
— Eu não deixo.
— A Rachel é muito generosa.
— Sim. Tal como a Grace.
Julia anuiu.
— Mas eu não. — A observação saiu quase como uma pergunta, e os
seus olhos procuraram os dela.
— Nunca disse isso. De facto, acho que consegue ser muito generoso,
quando quer.
— Quando quero?
— Sim. Eu tinha fome, e deu-me de comer. — Duas vezes, pensou Julia.
— Tinha fome? — A voz de Gabriel era rouca, horrorizada, e ele parou
de dançar imediatamente. — Está a passar fome? — Os seus olhos
endureceram como duas geladas joias azuis, e a voz arrefeceu à temperatura
da água a deslizar sobre um glaciar.
— Não estou esfomeada, professor, só um pouco de fome… de bife. E
maçãs. — Ergueu o olhar para ele timidamente, esperando acalmar a sua
súbita mostra de irritação.
Gabriel estava demasiado aborrecido para reparar na frase sobre maçãs.
Sentia o próprio estômago entalado na garganta enquanto contemplava a
realidade da pobreza dos estudantes de mestrado — uma realidade que
conhecia demasiado bem — e da pobre e faminta menina Mitchell. Não
admirava que ela fosse tão pálida e magra.
— Diga-me a verdade. Tem dinheiro suficiente para viver ou não? Eu
vou à direção do meu departamento na segunda-feira e obrigo-os a
aumentar a sua bolsa, se me disser que precisa. Dou-lhe o meu cartão da
American Express já esta noite, pelo amor de Deus. Não vou tolerar que
passe fome. Não vou.
Julia ficou momentaneamente em silêncio, porque aquela reação deixara-
a atónita.
— Eu estou bem, professor. Tenho dinheiro que chegue, se for cuidadosa.
O meu apartamento torna as refeições um problema, mas, prometo-lhe, não
estou a passar fome.
Ele baixou o olhar para os lindos sapatos.
— Vai vendê-los para comprar coisas na mercearia? Ou pagar a renda?
— Claro que não! São um presente da Grace… mais ou menos. Eu
nunca, nunca, me separaria deles. Aconteça o que acontecer.
— Promete-me que, se alguma vez ficar desesperada por dinheiro, vem
ter comigo? Pelo amor de Grace?
Julia desviou os olhos, optando por ficar em silêncio.
Ele suspirou e baixou a voz.
— Eu sei que não mereço a sua confiança, mas estou a pedir-lhe que ma
conceda apenas a este respeito. Promete?
Ela inspirou profundamente e reteve o ar.
— É muito importante para si?
— Ao máximo. Sim.
Ela expirou ruidosamente.
— Então, está bem, prometo.
— Obrigado. — Ele respirou de alívio.
— A Rachel e a Grace sempre foram muito boas para mim,
especialmente depois de a minha mãe morrer.
— Quando morreu a sua mãe?
— No meu último ano na secundária. Já estava a viver com o meu pai em
Selinsgrove, por essa altura. Ela estava em St. Louis.
— Lamento.
— Obrigada. — Ela abriu a boca como se fosse dizer mais alguma coisa,
mas deteve-se.
— Tudo bem — sussurrou ele. — Pode dizer. — Olhou-a nos olhos para
a encorajar, e, por um momento, Julia esqueceu-se do que queria dizer. Mas
recompôs-se.
— Mm, ia só dizer que, se alguma vez precisar de alguém com quem
falar… sobre a Grace, quero eu dizer. Eu sei que a Rachel vai voltar para
Filadélfia. Mas eu estou cá, hum, obviamente. Não que isso fosse muito
profissional, mas eu estou aqui. Eeh. Sim. É isto.
Julia evitava-lhe os olhos, e Gabriel sentiu o corpo dela ficar tenso, como
se se preparasse para qualquer coisa muito horrível que pudesse acontecer.
O que foi que eu fiz a esta pobre rapariga? Ela está aterrorizada com a
possibilidade de eu lhe gritar por qualquer coisa.
Gabriel sabia que merecia aquela cautela, e por isso resolveu inundá-la
de bondade… pelo menos até a música terminar e eles voltarem a habitar os
seus papéis profissionais. Então seria distante, mas gentil.
— Julianne, olhe para mim. Sabe, não há nada que proíba que as pessoas
me olhem nos olhos.
Ela olhou-o hesitantemente.
— É muito simpática, a sua oferta. Obrigado. Não gosto de falar sobre
certas coisas, mas não me vou esquecer de si. — Sorriu-lhe novamente, e
desta vez o sorriso permaneceu. — Possui caridade e bondade, duas das
mais importantes virtudes celestiais. De facto, tenho a certeza que possui
todas as sete.
Especialmente castidade, pensaram ambos para si mesmos,
independentemente. E ele julga que a castidade é algo a ridicularizar,
pensou Julia.
— Nunca tinha dançado assim antes — disse ela, pensativa.
— Então fico contente por ser o seu primeiro. — Ele apertou-lhe a mão
calorosamente.
Julia estacou.
— Julianne? O que se passa?
Os olhos dela tornaram-se vítreos, e a sua pele muito fria. Gabriel viu
quando o rubor virulento que se lhe espalhara pelas faces dois minutos
antes se desvaneceu completamente e a sua pele tornou-se de um branco
translúcido, como papel-arroz. Ela recusava-se a olhá-lo, e quando ele fletiu
a mão contra as suas costas, foi como se nem o sentisse.
Quando Julia saiu do seu transe, ou choque, ou o que quer que fosse,
Gabriel tentou fazê-la falar, mas ela estava demasiado abalada para o fazer.
Não fazia ideia do que se passava, por isso acenou a Rachel e pediu-lhe que
levasse Julia à casa de banho. Depois voltou para o bar e pediu um duplo,
engolindo-o rapidamente antes que as duas regressassem.
Gabriel tomou uma decisão executiva e decidiu que estava na altura de
voltarem para casa. A menina Mitchell estava claramente indisposta e O
Vestíbulo não era sítio para ela, mesmo em circunstâncias normais. Sabia
que, a certa altura da noite, os homens ficariam bêbados, e a agarrar tudo o
que podiam, e as mulheres ficariam bêbadas e cheias de tesão. Ele não
queria a irmãzinha mais nova e a linda e virginal menina Mitchell expostas
a qualquer um destes tipos de comportamento. Por isso pagou a conta e
pediu a Ethan que lhes arranjasse dois táxis, tencionando pagar ao condutor
do táxi da menina Mitchell e dar-lhe instruções para esperar à porta da sua
residência para garantir que ela entrava em segurança.
Infelizmente para o pobre Gabriel, Rachel tinha o seu próprio plano.
— Boa-noite, Julia! Vejo-te em casa, Gabriel. Obrigada por a
acompanhares a casa pessoalmente! — Rachel enfiou-se num dos táxis,
batendo com a porta atrás de si, e atirou ao taxista uma nota de vinte para
ele arrancar antes que Gabriel desse um único passo.
Ele estava agora lixado num outro sentido, uma vez que era óbvio o que
irmã estava a tentar fazer. No entanto, era muito menos provável que ela
desse com algum malfeitor à entrada do edifício Manulife, com segurança
de serviço, do que a menina Mitchell na Madison Avenue. Por isso, não
podia censurar a decisão da irmã.
Gabriel abriu a porta do táxi a Julia e entrou atrás dela. Quando pararam
na frente do edifício onde ela morava, rejeitou o dinheiro dela e instruiu o
motorista a esperar. Escoltou Julia até à entrada do edifício e parou à luz
suave do alpendre enquanto ela procurava as chaves.
Deixou-as cair, claro, porque ainda estava abalada depois do que
acontecera na discoteca. Gabriel apanhou-as e experimentou as chaves na
fechadura até conseguir abrir a porta. Devolveu o porta-chaves e passou-lhe
um dedo pelas costas da mão. Depois parou a olhar para ela com um ar
estranho no rosto.
Julia inalou bruscamente e começou a falar com os seus sapatos pretos
pontiagudos (que eram um tudo-nada demasiado modernos, até para
Gabriel), porque não conseguia dizer o que precisava de ser dito e olhar
para os seus olhos lindos mas frios.
— Professor Emerson, quero agradecer-lhe por me abrir portas e me
convidar para dançar. De certeza que foi aviltante ter de se comportar assim
com uma aluna. Sei que apenas me tolera porque Rachel está cá, e que
quando ela se for embora, vai tudo voltar ao normal. E prometo não contar
nada… a ninguém. Sou muito boa a guardar segredos.
»Vou requerer outro orientador de tese. Sei que não me acha muito
inteligente e que só mudou de ideias porque teve pena de mim por causa do
meu apartamento. É óbvio, pelo que disse esta noite, que me julga indigna
de si e que lhe é doloroso ter de falar com uma virgem estúpida. Adeus.
De coração pesado, Julia virou-se para entrar no edifício.
Gabriel pôs-se na sua frente.
— Já terminou? — A voz dele tornara-se muito áspera.
Ela virou-se para ele, de olhos muito abertos e a tremer.
— Já fez o seu discurso; creio que a cortesia exige que me seja dada uma
oportunidade de responder às suas acusações. Por isso, se não se importa…
— Ele desviou-se da porta e parou a olhá-la com uma expressão de mal
oculta fúria.
— Eu abro-lhe as portas porque é assim que uma senhora deve ser
tratada, e a menina Mitchell, afinal, é uma senhora. Nem sempre me
comportei como um cavalheiro, mas Grace fez os possíveis por isso.
»Quanto a Rachel, é uma rapariga querida mas sentimental. Era capaz de
me obrigar a recitar sonetos debaixo da sua janela como um adolescente.
Por isso, vamos deixar a minha irmã fora disto, sim?
»Quanto a si, se Grace a adotou como me adotou a mim, isso diz-me que
viu alguma coisa de especial em si. Ela tinha o dom de curar as pessoas
através do amor. Infelizmente, no seu caso, como no meu, provavelmente
chegou um pouco tarde de mais.
Julia ergueu as sobrancelhas com esta última declaração, a perguntar-se
intimamente o que significava, mas não teve coragem para lhe perguntar.
— Pedi-lhe para dançar comigo porque queria a sua companhia. A sua
mente é boa, e a sua personalidade encantadora. Se quiser outro orientador,
tem esse direito. Mas, francamente, fico desapontado. Nunca pensei em si
como alguém capaz de desistir.
»Se acha que faço coisas por si por pena, é porque não me conhece muito
bem. Sou um sacana egoísta e egocêntrico que mal repara nas preocupações
dos outros seres humanos. Que se lixe o seu pequeno discurso, que se lixe a
sua baixa autoestima, e que se lixe o programa. — Bufou de frustração,
esforçando-se ao máximo para não erguer a voz. — A sua virgindade não é
nada de que se deva envergonhar e de certeza que não é da minha conta. Só
queria fazê-la sorrir e…
A voz de Gabriel desvaneceu-se quando a sua mão encontrou o queixo de
Julia. Ergueu-lhe o rosto suavemente e os olhos de ambos encontraram-se.
Deu por si a dar um passo em frente, o seu rosto a aproximar-se do dela,
os seus lábios a centímetros de distância. Tão perto que ela sentiu o seu
hálito morno no rosto.
Uísque e menta…
Ambos inalaram profundamente, a beber do cheiro um do outro. Ela
fechou os olhos, e a sua língua dardejou rapidamente para humedecer o
lábio inferior. Aguardou.
— Facilis descensus Averni — sussurrou ele, as suas palavras ominosas e
preternaturais a atingi-la no fundo da alma. — A descida ao Inferno é fácil.
Gabriel endireitou-se, soltou-lhe o queixo e voltou a passos largos para o
táxi, batendo com a porta do carro atrás de si.
Julia abriu os olhos para ver o táxi partir. Encostou-se contra a porta para
se apoiar, as pernas feitas de gelatina.
Capítulo Dez

E nquanto estava no Lobby, houvera momentos em que Julia se


convencera de que Gabriel se recordava dela. Mas aqueles momentos
eram fugidios e etéreos, e desapareciam como teias de aranha sopradas pelo
vento. E Julia, porque era uma jovem honesta, começava a duvidar de si
mesma.
Talvez o seu primeiro encontro com Gabriel tivesse sido um sonho.
Talvez se tivesse apaixonado pela fotografia e imaginado os eventos que
tinham ocorrido após a partida de Rachel e Aaron. Talvez tivesse
adormecido no pomar sozinha, a triste recipiente da ilusão desesperada e
solitária de uma jovem rapariga oriunda de um lar despedaçado que nunca
antes se apaixonara.
Era possível.
Quando toda a gente no mundo inteiro acredita numa coisa e se é a única
pessoa a acreditar noutra diferente, é muito tentador assimilar. A única coisa
que Julia tinha de fazer era esquecer, negar, suprimir. Depois seria
exatamente como toda a gente.
Mas Julia era mais forte do que isso. Não, não estava preparada para
denunciar Gabriel publicamente por expor a sua virgindade, pois isso seria
atrair demasiada atenção para um facto de que em parte se envergonhava. E
não, não estava disposta a forçá-lo a reconhecê-la da noite que tinham
partilhado juntos, pois Julia tinha um coração puro, e não gostava de forçar
ninguém a fazer fosse o que fosse.
Quando vira a confusão no rosto de Gabriel enquanto dançavam e
percebera que a sua mente não lhe permitiria recordar, preferira recuar.
Temia o que uma súbita iluminação poderia fazer a Gabriel e, com medo
que a sua mente se pudesse despedaçar como a mesa de vidro de Grace,
optara por não fazer nada.
Julia era uma pessoa boa. E por vezes a bondade não diz tudo o que sabe.
Por vezes a bondade espera pelo tempo apropriado e faz o melhor que pode
com o que tem.
O professor Emerson não era o homem por quem se apaixonara no
pomar. De facto, Julia concluíra que havia alguma coisa seriamente errada
n’O Professor. Ele não era apenas sombrio ou deprimido, mas perturbado. E
receava que tivesse tendências alcoólicas, conhecendo como conhecera o
alcoolismo da sua mãe. Mas, porque era boa, não lhe faria o mal que lhe
fora feito a ela, forçando-o a olhar para algo que ele não queria ver.
Teria feito qualquer coisa por Gabriel, o homem com quem passara a
noite no bosque, se ele lhe tivesse dado uma única indicação de que a
queria. Teria descido ao Inferno em busca dele, procurando-o até o
encontrar. Teria arrombado os portões e tê-lo-ia arrastado de volta. Teria
sido o Sam para o seu Frodo, seguindo-o até às entranhas do Monte da
Condenação.
Mas ele não era o seu Gabriel. O seu Gabriel morrera. Fora-se. Deixando
apenas vestígios dele no corpo de um clone duro e torturado. Gabriel quase
partira o coração de Julia uma vez. Ela estava decidida a não o deixar parti-
lo pela segunda.
Antes de Rachel partir de Toronto para regressar para Aaron e para a
distopia que era a sua família, insistiu em ir ter com Julia ao seu
apartamento. Julia andara a adiar durante vários dias, e o próprio Gabriel
desencorajara a irmã de aparecer simplesmente sem se fazer anunciar. Ele
sabia que, assim que ela visse onde a amiga vivia, faria pessoalmente as
malas de Julia e obrigá-la-ia a mudar-se para um sítio melhor, de
preferência para o quarto de hóspedes de Gabriel.
(Só se pode imaginar a reação de Gabriel a essa sugestão, mas seria
qualquer coisa na ordem de um foda-se, nem penses.)
Por isso, na tarde de domingo, Rachel chegou à porta de Julia para
beberem um chá e fazerem as suas despedidas, antes de Gabriel a levar ao
aeroporto.
Julia estava nervosa. Possuía a virtude cardeal da fortaleza, como uma
obstinada santa medieval, e por isso não se importava com o desconforto ou
incómodo. Consequentemente, quando assinara o contrato de arrendamento,
não pensara que o seu pequeno buraco de hobbit era assim tão mau. Era
seguro e limpo, e conseguia pagá-lo. Mas acreditar nisso e mostrar o seu
apartamento a Rachel eram duas coisas muito diferentes.
— Tenho de te avisar, é muito pequeno. Mas, lembra-te, vivo com a
minha bolsa. Não posso arranjar trabalho aqui porque não tenho visto de
trabalho. E não posso viver no edifício de Gabriel, ou em qualquer outro
sítio mesmo com metade da qualidade — explicou Julia enquanto fazia a
amiga entrar no apartamento. Rachel anuiu e pousou uma grande caixa
quadrada em cima da cama.
Gabriel avisara-a de que o apartamento era minúsculo. Dissera-lhe para
não fazer uma cena, pois ainda alimentava um secreto arrependimento do
seu comportamento atroz durante a primeira e única visita ao apartamento
de Julia.
Mas, ainda assim, nada do que o irmão ou a amiga lhe tinham dito a
prepararam para o que viu por detrás da porta fechada de Julia. O espaço
era pequeno, velho, e todas as coisas eram em segunda mão ou baratas,
tirando as cortinas simples, a roupa de cama e tudo o que Julia levara
consigo de casa. Para seu crédito, primeiro Rachel entrou no estúdio,
precisando apenas de cinco passos, olhou para o roupeiro, inspecionou a
casa de banho e parou na área de cozinha a fitar a patética placa elétrica e
um velho micro-ondas decrépito. Depois levou as mãos ao rosto e desatou a
chorar.
Julia ficou colada ao chão, sem saber o que fazer. Rachel perturbava-se
com a feiura, como ela sabia, mas Julia tentara tornar o seu estúdio bonito e
usara os seus tons de púrpura preferidos para o fazer. Decerto que Rachel
conseguia perceber isso.
Rachel recompôs-se uns momentos depois, limpou as lágrimas e soltou
um risinho.
— Desculpa. São as hormonas e a falta de sono, e tenho andado muito
emotiva por causa da mãe. Depois houve aquilo tudo com o meu pai, e o
Aaron, e o casamento. Oh, Julia, quem me dera poder levar-te de volta
comigo e que viesses viver connosco em Filadélfia. Temos tanto espaço. E a
nossa cozinha é maior do que o teu apartamento inteiro!
Julia abraçou a amiga com força até esta fazer um sorriso.
— O Gabriel disse que eras muito cuidadosa com o chá. Ficou
impressionado com a maneira como o fizeste. E sabes que nunca nada o
impressiona. Por isso vou-me instalar na tua linda cama lilás e aprender
como o fazes. — Rachel deixou-se cair em cima do edredão de Julia, pôs a
caixa quadrada no colo e tentou mostrar-se alegre, pela sua amiga.
Julia estava surpreendida por Gabriel se recordar do chá, uma vez que se
mostrara tão ocupado a criticar os seus hábitos alimentares durante a visita.
Mas pôs esses pensamentos de lado e concentrou a sua atenção em fazer
com que Rachel se sentisse em casa e ajudá-la a esquecer os seus
problemas. Em breve estavam as duas sentadas na cama, de chávenas de
chá na mão e a mordiscar as trufas de chocolate que Julia comprara como
guloseima de celebração com parte do seu fundo de emergência.
Rachel contornou a borda da chávena com um único dedo.
— Há uma coisa que preciso de te contar sobre o Gabriel.
— Não quero ouvir.
Rachel olhou para Julia e franziu o sobrolho.
— Porque não?
— Porque ele é meu professor. É… mais seguro se fingirmos não nos
conhecermos. Acredita.
Rachel abanou a cabeça.
— Ele disse-me uma coisa parecida, sabes? Mas vou dizer-te o mesmo
que lhe disse a ele, não quero saber. Ele é meu irmão, e eu amo-o. E há
algumas coisas que devias saber.
Julia suspirou e aquiesceu.
— Ele matava-me se soubesse que te estou a contar isto, mas acho que
vai tornar mais fácil de compreender a sua atitude. A mamã alguma vez te
contou como foi que o adotou?
— Ela só falava das coisas felizes: como se orgulhava dele, como se saía
bem em Princeton e Oxford. Nunca falava da sua infância.
— A mãe encontrou-o quando tinha nove anos a vaguear pelo hospital de
Sunbury. Tinha andado a viajar com a mãe, que era uma louca alcoólica, e
ela tinha adoecido. Acabaram em Sunbury e a mãe morreu, de pneumonia,
acho eu. Seja como for, a minha mãe encontrou o Gabriel, e ele não tinha
um dólar consigo. Nem sequer podia comprar uma bebida na máquina. Ela
ficou ainda mais preocupada quando localizou a família da mãe e eles lhe
disseram que ficasse com ele. Gabriel sabia que a família não o queria. E,
apesar de tudo o que os meus pais fizeram, acho que nunca se sentiu em
casa connosco. Nunca se tornou um Clark.
Julia pensou em Gabriel como um menino assustado e com fome e teve
de se esforçar para conter as lágrimas. Imaginou os seus grandes olhos azuis
numa face pálida mas angelical. Os seus cabelos castanhos espetados e
despenteados. Roupas sujas e uma mãe enlouquecida. Julia sabia o que era
ter uma mãe alcoólica. Sabia o que era chorar à noite até adormecer, a
desejar que alguém, qualquer pessoa, a amasse. Ela e Gabriel tinham mais
em comum do que queria admitir. Muito, muito mais.
— Lamento, Rachel. Não sabia.
— Não estou a desculpar a sua grosseria. Estou só a dizer-te quem ele é.
Sabias que, depois da discussão horrível que ele teve com o Scott, a minha
mãe acendia uma vela todas as noites e a colocava numa das janelas?
Pensava que, se o Gabriel estivesse em Selinsgrove e visse a vela, saberia
que ela o esperava, que o amava, e que queria que ele abrisse a porta e
entrasse.
Julia abanou a cabeça. Não sabia aquilo, mas acreditava. Grace era assim
— a caridade em pessoa.
— Ele finge ser uma pessoa inteira, mas a verdade é que foi destroçado.
E, no fundo, odeia-se. Eu disse-lhe para te tratar bem, por isso acho que o
seu comportamento vai melhorar. Caso contrário, avisa-me, que eu trato do
assunto.
Julia soltou um ronco de troça.
— Ele ignora-me, principalmente. Sou uma reles aluna de mestrado, e ele
não deixa que me esqueça disso.
— Acho difícil de acreditar. Duvido muito que ficasse a olhar tão
intensamente para uma “reles” aluna de mestrado.
Julia concentrou-se no seu chocolate.
— Ele olhou para mim?
Estava a fazer o máximo esforço para parecer descontraída, mas a sua
voz não parecia natural, quase tremia.
— Ele está sempre a olhar para ti. Não reparaste? Apanhei-o a olhar para
ti durante todo o jantar na outra noite, e quando estávamos na discoteca.
Sempre que bebias qualquer coisa. E quando eu lhe piscava o olho, ficava
todo carrancudo. — Rachel olhou para a amiga com um ar pensativo. — Eu
vejo os dois juntos e sinto-me como se me estivesse a escapar alguma
coisa… Ele sabia que ia às compras esta semana e não só me encorajou
como me deu dinheiro.
— E então? Isso é simpático. É para isso que servem os irmãos mais
velhos. O que foi que compraste?
— O dinheiro era para ti, não para mim.
Julia franziu o sobrolho e virou-se de lado na cama, de pernas cruzadas,
para poder olhar de frente para a amiga.
— Por que raio é que fez isso?
— Diz-me tu. — Rachel inclinou a cabeça para um lado.
— Não sei. Tem sido ríspido comigo desde que cheguei.
— Bem, ele deu-me dinheiro e disse-me para te comprar um presente.
Foi muito específico. Por isso, aqui o tens. — Rachel pôs a caixa no colo de
Julia.
— Eu não quero. — Tentou devolvê-la, mas Rachel recusou.
— Ao menos abre e vê o que é.
Julia abanou a cabeça, mas Rachel insistiu. Por isso abriu a caixa. Lá
dentro encontrou uma boa mala à tiracolo em pele italiana, de um lindo
castanho-chocolate. Ergueu a mala pela alça e olhou-a. A etiqueta dizia
Fendi.
Caramba, pensou Julia.
— Então? O que achas?
— Eu… não sei — gaguejou, a fitar a bela mala clássica, atónita.
Rachel tirou-lha e começou a abri-la, a falar das suas costuras internas,
dos numerosos compartimentos e da qualidade de fabrico em geral.
— Vês como é perfeita? É funcional e feminina, já que é uma mala a
tiracolo e não uma pasta, e é italiana. E ambas sabemos que tu e o Gabriel
têm uma pancada… por Itália — acrescentou depois de uma pausa que era
concebida para suscitar qualquer espécie de reação.
O comprometedor rubor e o imediato nervosismo de Julia disseram a
Rachel tudo o que precisava de saber, mas ela optou por não embaraçar
ainda mais a amiga.
— Não estou autorizada a dizer-te quem ta deu. Ele foi muito explícito.
Claro que eu o ignorei. — Riu-se.
— O teu irmão quer que eu fique com isto porque não gosta de olhar para
a minha velha mochila esburacada. Só a sua existência ofende-lhe as
sensibilidades patrícias, por isso acha que te pode usar para me convencer a
livrar-me dela. Mas não vou nessa. É uma L.L. Bean, raios, e eles oferecem
garantia vitalícia. Vou mandá-la de volta para o Maine e eles substituem-na.
Ele que fique com a sua mala e a enfie no seu cu de sou-bom-de-mais-para-
artigos-nacionais.
Rachel ficou momentaneamente estupefacta.
— Não é propriamente como se o dinheiro lhe fizesse falta. Ele tem
pilhas dele.
— Os professores não ganham assim tanto.
— Pois não. Ele herdou-o.
— Da Grace?
— Não, do pai biológico. Há uns anos, um advogado localizou o Gabriel
e disse-lhe que o pai tinha morrido e lhe deixara uma data de dinheiro. Nem
sequer sei se ele sabia o nome do pai antes disso. Ao princípio, o Gabriel
recusou a herança, mas mais tarde mudou de ideias.
— Porquê?
— Não sei. Foi depois da discussão com o Scott. Depois disso, não falei
com o Gabriel durante muito tempo. Mas, no que diz respeito ao dinheiro,
acho que está a tentar gastá-lo mais depressa do que os juros acumulam. Por
isso não penses nisto como um presente do Gabriel… pensa que é só ele a
fazer o pai pagar. Ele quer distribuir o dinheiro. E quer que tenhas uma
coisa bonita. Foi o que ele me disse.
Julia abanou a cabeça.
— Não posso aceitar. E não me interessa de onde vem nem porquê.
Rachel fez um olhar magoado à amiga.
— Por favor, Julia. O Gabriel tem andado às avessas connosco durante
tanto tempo. Finalmente deixou-me voltar a entrar na sua vida. Não me
parece que o possa perder agora, depois de tudo… — O rosto de Rachel
enrugou-se, e ela pareceu muito aborrecida.
— Desculpa, mas é demasiado. Ele é meu professor… vai ficar em
problemas!
Rachel agarrou a mão de Julia.
— E vais dizer-lhe?
— Claro que não.
— Ótimo, porque, supostamente, devias ficar a pensar que era um
presente de aniversário adiantado, meu ou da minha mãe. — Os olhos de
Rachel aumentaram de tamanho quando percebeu o seu erro. — Oh, céus,
Julia, o teu aniversário. Esqueci-me. Desculpa.
Julia cerrou os dentes um pouco.
— Já não o costumo celebrar. É muito difícil… Não consigo…
— Tens sabido alguma coisa dele?
Julia sentiu-se imediatamente agoniada.
— Só quando está bêbado ou lixado com qualquer coisa. Mas troquei de
número de telemóvel quando me mudei para cá, para não me poder ligar.
— Filho da mãe — disse Rachel. — Bem, eu não estava autorizada a
dizer-te que a mala foi oferecida pelo Gabriel, mas não te podia mentir. Sei
como te magoa quando as pessoas mentem, e não ia fazer-te isso.
As duas amigas trocaram um olhar eloquente. Julia ponderou naquele
presente de Gabriel e em todas as suas implicações, ditas e não ditas. Não
queria uma prenda dele. Ele rejeitara-a, pura e simplesmente. Conseguiria
ficar com aquela mala no seu pequeno buraco de hobbit? Conseguiria usá-
la, levá-la para a faculdade, sabendo, o tempo todo, que fora ele que lha
dera? Sabendo que ele a ia olhar com um ar presunçoso, a pensar que lhe
fizera alguma espécie de favor? Não o faria por Gabriel. Não o faria por
todo o chá da China.
Rachel viu o que Julia se preparava para fazer mesmo antes de as
palavras se terem formado ao fundo da sua mente.
— Se não aceitares a mala, ele vai saber que alguma coisa correu mal.
Vai culpar-me a mim.
Julia amaldiçoou-o em silêncio. Oh, deuses de todos os pretensiosos e
emproados especialistas de Dante, manda-lhe uma urticária no seu il pene.
Por favor. Qualquer coisa com muita comichão.
Mas, por Rachel, Julia faria qualquer coisa.
— Está bem. Faço isto por ti. Mas podes fazer o favor de dizer ao Gabriel
para não me comprar mais coisas? Começo a sentir-me como um daqueles
miúdos da caixa da UNICEF na noite das Bruxas.
Rachel anuiu e sorriu para a amiga, e depois mordeu um chocolate.
Lambeu o cacau dos lábios e fechou os olhos. Era bom.
Julia abraçou a mala contra o peito, como um escudo, e inalou o
maravilhoso perfume da pele. O Gabriel quis dar-me um presente. Deve
sentir alguma coisa por mim, mesmo que seja só pena. E agora tenho uma
coisa dele para além da fotografia… uma coisa que será minha para
sempre.
Esperou um momento antes de mudar delicadamente de assunto.
— Podes contar-me o que se passou no funeral? Enviei um cartão com
umas flores e o Gabriel viu-as, mas não fazia ideia da razão por que as tinha
mandado.
— Ouvi falar do assunto. Vi as gardénias, e o Scott disse que as tinhas
mandado, mas o cartão desapareceu antes de eu ter tempo de o explicar ao
Gabriel. Eu estava desfeita. Os meus irmãos não paravam de discutir e eu
tentava mantê-los afastados antes que alguém atravessasse uma janela. Ou
uma mesa de café.
Julia pensou em vidro partido e sangue numa carpete branca, e arrepiou-
se.
— Porque é que estão sempre a discutir?
Rachel suspirou.
— Não costumava ser assim. O Gabriel mudou quando foi para
Harvard… — A voz dela desvaneceu-se misteriosamente.
Julia não se sentiu à vontade para insistir, por isso ficou em silêncio.
— Como sabes, o Gabriel não voltou a casa durante anos, depois da sua
briga com o Scott, e quando voltou, só ficou uns dias. Insistiu em dormir
num hotel e isso partiu o coração da mãe. O Scott não deixa que o Gabriel
se esqueça disso… de todas as coisas que fez a minha mãe passar. —
Rachel mastigou outra trufa, pensativa.
— O Scott admirava o Gabriel. Ficou muito magoado quando as coisas
ficaram feias. Agora mal se falam, e quando falam… — Rachel estremeceu.
— Não sei o que teria feito se não fosse o Aaron. Provavelmente teria
fugido de casa, para nunca mais voltar.
— Até uma família disfuncional é melhor do que não ter qualquer família
— disse Julia suavemente.
Rachel pareceu triste.
— Bem, é isso que somos agora. Éramos os Clarks… agora somos uma
família disfuncional. Uma mãe morta, um pai despedaçado pela dor, uma
ovelha negra de mau génio e um irmão cabeça dura chamado Scott.
Suponho que sou a única que escapa.
— O Scott tem namorada?
— Andava com uma colega, mas acabaram mesmo antes de a mãe
adoecer.
— Que pena.
Rachel suspirou.
— A minha família é como um romance de Dickens, Julia. Não, é pior. É
uma mistura de Arthur Miller e John Steinbeck, com um pouco de
Dostoievski e Tolstoi pelo meio.
— É assim tão má?
— Sim, porque tenho a sensação de que há também uns elementos de
Thomas Hardy escondidos debaixo da superfície. E sabes como o detesto.
Julia pensou nisso e esperou, a bem da amiga, que o romance que se
aproximava da experiência de Rachel Clark fosse mais o Mayor de
Casterbridge do que Tess D’Urbervilles ou, Deus a livrasse, Judas, O
Obscuro.
(Infelizmente, Julia não parou para considerar qual dos romances de
Hardy melhor descrevia as suas próprias experiências…)
— Quando a mamã morreu, ficou tudo em rebuliço. O pai anda a falar de
se reformar e vender a casa. Quer mudar-se para Filadélfia para ficar mais
perto de mim e do Scott. Quando perguntou ao Gabriel se se importava que
vendesse a casa, o Gabriel passou-se e fugiu para o bosque. Não o vimos
durante horas.
Julia inalou bruscamente e começou a remexer na mala.
Rachel estava demasiado ocupada a pousar a chávena de chá na mesa
articulada e a dirigir-se à casa de banho para reparar, mas alguma coisa nas
suas palavras tinha perturbado Julia profundamente. Quando Rachel
regressou, Julia já fizera um esforço para se acalmar e estava a juntar água
quente ao bule de chá.
Rachel observou a amiga com um olhar preocupado.
— O que foi que o Gabriel disse que te incomodou tanto, quando
estavam a dançar? E, a propósito, o meu espanhol está enferrujado, mas o
Besame Mucho é uma canção bem escaldante! Ouviste sequer a letra?
Julia concentrou a sua atenção no chá e esforçou-se ao máximo para não
hiperventilar. Sabia que ia ter de mentir a Rachel, e não era uma decisão
que conseguia tomar com ligeireza.
— Só falámos do facto de ele saber que sou virgem.
— Filho da mãe! Por que raio é que ele faz coisas dessas? — Rachel
abanou a cabeça. — Espera só, vai levar comigo em cima. Ele tem umas
fotografias no quarto e eu vou…
— Não te preocupes. É verdade. Não vale a pena tentar escondê-lo. —
Mordeu o lábio. — Só não consigo perceber como é que ele soube. Não é
propriamente como se eu fosse abordar o assunto numa conversa formal:
Boa-tarde, professor Emerson. Sou a menina Mitchell e sou uma virgem de
Selinsgrove, na Pensilvânia. Prazer em conhecê-lo.
Rachel fez um aceno com a mão, a relativizar o assunto.
— Pensa no seguinte. Ele nunca teve propriamente falta de companhia
feminina. Tenho a certeza que tu lhe pareces diferente; provavelmente
éramos as únicas raparigas na discoteca que não estavam com o cio.
Julia pareceu enojada, e com razão, mas não comentou.
— Quando saíste da pista de dança, parecia teres visto um fantasma.
Como imagino que deves ter ficado na noite em que viste o Si…
— Por favor, Rachel. Não. Não consigo falar sobre essa noite. Nem
sequer consigo pensar nela.
— Era capaz de lhe passar por cima com o carro, depois do que ele te
fez. Ainda é possível que o faça. Ele está em Filadélfia? Dá-me a morada.
— Por favor — rogou Julia, fechando os braços no peito num gesto de
proteção.
Rachel enlaçou a amiga num caloroso abraço.
— Não te preocupes. Um dia vais ser feliz. Vais apaixonar-te por um
rapaz lindo, e ele vai amar-te tanto que há de doer. E vais casar, e ter uma
menina, e viver feliz para sempre. Na Nova Inglaterra, acho eu. Pelo menos,
é a história que escreveria para ti, se pudesse.
— Espero que a tua história se torne realidade. Gostaria de acreditar que
uma coisa dessas é possível, mesmo para mim. Se não, não sei…
Rachel sorriu.
— Tu, mais do que qualquer pessoa, mereces um final feliz. Apesar de
tudo o que te aconteceu, não és uma pessoa amarga. Não és fria. Só te
encolheste um pouco, e és tímida, mas tudo bem. Se eu fosse uma fada
madrinha, concedia-te o desejo do teu coração num instante. E limpava-te
as lágrimas e dizia-te para não chorares. Quem me dera que o Gabriel
tivesse tirado uma página do teu livro, menina Julia. Teria aprendido uma
ou duas coisas acerca de como se lidar com um desgosto de coração.
Rachel soltou a amiga, olhando-a de perto antes de voltar a falar.
— Eu sei que é pedir muito, mas olhas pelo Gabriel?
Julia debruçou-se propositadamente sobre o bule, enchendo novamente
as chávenas para Rachel não poder ver o seu rosto.
— O Gabriel não tem nada senão desdém por mim. Só me tolera por tua
causa.
— Isso não é verdade. Acredita em mim, não é verdade. Eu vi como ele
olha para ti. Pode ser… frio. Mas, para além dos pais biológicos, não me
parece que alguma vez tenha odiado outra pessoa que não a si mesmo. Nem
sequer o Scott, durante a pior briga que tiveram.
Julia encolheu os ombros.
— Não há nada que eu possa fazer.
— Não te estou a pedir que faças nada, na verdade. Só que fiques de
olhos abertos. Se o vires… a comportar-se de maneira estranha, ou se o
vires em problemas, quero que me ligues. De dia ou de noite.
Julia tinha uma expressão incrédula no rosto.
— Estou a falar a sério, Julia. Com a mãe morta, tenho medo que a sua
escuridão retorne. E não o posso perder outra vez. Por vezes sinto que ele
está parado na berma de um penhasco muito alto e que um pequeno
movimento, o mais pequeno sopro de vento, o vai empurrar para o abismo.
Não posso deixar que isso aconteça.
As sobrancelhas de Julia uniram-se, e ela anuiu.
— Faço o que puder.
Rachel fechou os olhos e suspirou.
— Sinto-me muito melhor por saber que estás por perto. Podes ser o seu
anjo da guarda. — Riu-se suavemente. — Talvez um pouco da tua boa sorte
o contagie.
— Não tenho senão azar, e tu, acima de qualquer outra pessoa, devias
sabê-lo.
— Conheceste o Paul. Ele parece simpático.
Julia sorriu.
Rachel ficou contente com o sorriso da amiga.
— O Paul não me parece ser pessoa para se importar que sejas… tu
sabes. Não que isso tenha alguma coisa de mal.
Julia riu-se.
— Podes dizer, Rachel… não é um palavrão. E, não, não me parece que o
Paul se importe que eu seja virgem. Mas não falamos dessas coisas.
Pouco depois, Rachel despediu-se de Julia com um abraço e meteu-se
num táxi para poder regressar ao apartamento do irmão.
— Quando acabar finalmente de resolver a monumental pilha de assuntos
que tenho na minha frente, vou planear um casamento. E espero que sejas
minha dama de honor.
Julia sentiu as lágrimas assomarem-lhe aos olhos.
— Claro. Só tens de dizer a data. E ajudo-te a fazer os planos, também,
se precisares de ajuda.
Rachel soprou-lhe um beijo pela janela aberta.
— Tinha algum receio de fazer esta viagem, mas estou muito feliz por ter
vindo. Pelo menos, duas peças quebradas da minha vida estão a voltar a
reunir-se. E se o Gabriel te vier com merdas, qualquer tipo de merdas,
telefona-me, que eu meto-me num avião!
Com a partida de Rachel, Julia e Gabriel foram obrigados a separar-se da
sua Santa Lúcia. Mas, à verdadeira maneira de um santo, ela cumprira todas
as suas tarefas antes de regressar a casa, e plantara sementes que em breve
germinariam, de formas inesperadas.
Capítulo Onze

A o final da tarde de terça-feira, Julia e Paul estavam sentados no


Starbucks de Bloor Street a beberem os seus respetivos cafés,
instalados num banco de veludo cor de púrpura e a conversar. Estavam
sentados juntos, mas não demasiado. Suficientemente perto para Paul poder
admirar a beleza dela, suficientemente distantes para Julia poder observar
os olhos dele, grandes e bondosos, sem se sentir demasiado nervosa. Ou
acossada.
— Gostas de Nine Inch Nails? — perguntou ela, a segurar o café entre as
duas mãos.
Paul foi apanhado de surpresa pela pergunta.
— Eeh, não. Não, não gosto. — Encolheu os ombros. — O Trent Reznor
põe-me a cabeça a andar à roda. A não ser que esteja a cantar o backup para
a Tori Amos. Porquê, tu gostas?
Julia arrepiou-se.
— Absolutamente nada.
Ele retirou um CD do seu saco e passou-lho.
— Gosto deste tipo de música. É a música que acompanha a escrita da
minha dissertação.
— Hem — leu ela, a virar a caixa na mão. — Nunca ouvi.
— Têm uma canção de que acho que vais gostar. Chama-se Half Acre.
Costumavam tocar num anúncio de seguros na televisão, por isso já deves
ter ouvido antes. É lindo. E ninguém grita contigo, nem berra, nem te diz
que te quer fo… — Paul parou de súbito e corou. Estava a tentar fortemente
ter cuidado com a linguagem quando se encontrava perto dela, mas apenas
com um sucesso marginal.
Julia tentou devolver-lhe o CD, mas ele recusou.
— Comprei-o para ti. Rabbit Songs para a Coelhinha.
— Obrigada, mas não posso.
Ele pareceu ofendido. E magoado.
— Porque não?
— Não posso. Mas obrigada na mesma.
Paul baixou o olhar para a mala nova de Julia, que estava pousada aos
seus pés. Olhou-a de lado.
— Aceitaste uma bela mala de alguém. Um presente de Natal adiantado
de um namorado?
— Eu não tenho namorado — admitiu ela, pouco à vontade. — A mãe da
minha melhor amiga quis que eu ficasse com a mala. Ela faleceu
recentemente.
— Desculpa, Coelha. Não sabia.
Paul deu uma palmadinha na mão de Julia, colocando o CD no assento
entre eles. Reparou que ela não recuava. De facto, ela procurou na sua mala
até encontrar o CD do professor Emerson e devolveu-o a Paul com a outra
mão, enquanto o deixava segurar-lhe os dedos entre os dele.
— O que é que posso fazer para te convencer a aceitar o meu presente?
— Paul escondeu o rosto do dela enquanto arrumava o Mozart de Emerson
no seu saco.
— Nada. Tenho recebido demasiados presentes, nos últimos tempos.
Estou de reservas cheias.
Paul endireitou-se e sorriu.
— Então, deixa-me tentar convencer-te. Tens umas mãos tão pequenas.
Mais pequenas que as da chuva. — Moveu as mãos de ambos juntas, para a
frente e para trás, erguendo a dela à luz de halogéneo. Parecia diminuta,
encaixada na dele.
Julia olhou-o com curiosidade.
— Isso é bonito. Acabaste de inventar?
Paul recostou a cabeça para trás no banco, apertou-lhe mais a mão e
começou a percorrer-lhe a linha da vida com o polegar, como se tentasse
ler-lhe a palma com as pontas dos dedos.
— Não. Estou a parafrasear de somewhere I have never travelled, de E.E.
Cummings. Nunca ouviste?
— Não, mas gostaria. — Julia parecia de súbito muito tímida.
— Então vou ter de to ler, um dia. — Paul olhou para os seus olhos
escuros com um sorriso esperançoso.
— Eu gostaria.
— Não é Dante, mas é lindo. — O seu polegar encontrou-lhe o centro da
linha da vida e pressionou-o muito ligeiramente. — O poema faz-me
lembrar de ti. Tu estás onde eu nunca viajei: a tua fragilidade e as tuas mãos
tão, tão pequenas.
Julia inclinou-se para a frente para esconder o seu súbito rubor e bebeu
um pouco de café. Mas permitiu-lhe que continuasse a acariciar-lhe a palma
da mão, docemente. O movimento de levar o café aos lábios fez com que a
sua velha camisola púrpura lhe descaísse do ombro como que numa
provocação, revelando uns centímetros de uma alça de sutiã de algodão
branco e uma curva arredondada de pele de alabastro.
Paul soltou a mão de imediato e puxou-lhe gentilmente a camisola para
cima para cobrir a alça de aspeto inocente, desviando os olhos ao fazê-lo e
pressionando a mão no seu ombro para fixar a camisola.
— Pronto — disse ele suavemente. — Assim está melhor. — Depois
recuou rapidamente para não exagerar no gesto e fechou outra vez os dedos
hesitantes sobre os dela, com medo de a ver retirá-los a qualquer momento.
Julia ficou sem respirar enquanto observava o que ele fazia, como se
ocorresse em câmara lenta. Alguma coisa naquele movimento tocara-a
profundamente. Era um ato íntimo, mas muito casto; ele cobrira-a. Cobrira
a mais pequena, mais inocente parte de si, protegera-a de olhos indiscretos e
possivelmente lúbricos, e, ao fazê-lo, telegrafara o seu cuidado e o seu
respeito. Virgil estava a honrá-la.
Naquele único ato, aquele único ato galante e cavalheiresco, Paul abriu
caminho para o seu coração. Não o caminho todo, mas até ao Vestíbulo, por
assim dizer. Se o movimento representava o conteúdo da sua alma, então
Julia acreditava que ele não se importaria com o facto de ela ser virgem, e
que, ao sabê-lo, a sua aceitação cobri-la-ia gentilmente.
Paul não a ridicularizaria, não a denunciaria. Guardaria todos os seus
segredos apenas entre os dois. Não a trataria como um animal a ser fodido e
violado. Não desejaria partilhá-la.
Por isso, ela fez uma coisa impetuosa — inclinou-se para a frente e
beijou-o, mas tímida e castamente. O seu sangue não acelerou, não houve
qualquer gemido, nenhuma explosão de fogo pela sua pele. Os lábios de
Paul eram macios, e ele respondeu com hesitação. Julia sentiu a sua
surpresa na rápida tensão do seu queixo. Ele ficou tenso entre os lábios
dela, sem dúvida em choque com a sua ousadia. Teve pena disso.
Teve pena que os seus lábios não fossem os de Gabriel. E que o beijo não
fosse como os dele.
Em quase meio segundo, foi invadida por uma grande onda de tristeza,
enquanto se amaldiçoava por ter provado há tanto tempo algo que nunca
mais poderia voltar a ter. Pois ao provar aquela primeira vez, ficara
absolutamente arruinada. O provar da maçã era o conhecimento em si, e
agora sabia-o.
Julia recuou antes de Paul ter oportunidade de a rejeitar, enquanto se
perguntava como conseguira ser tão atrevida. Enquanto se perguntava o que
pensaria ele dela agora. Acabei de dar um beijo de despedida ao meu único
amigo em Toronto, pensou. Raios.
— Coelhinha. — Paul fez-lhe um olhar terno e ergueu de imediato as
pontas dos dedos para lhe acariciar a face. O seu toque não era elétrico, mas
era leve e tranquilizador. Até a sua pele era bondosa.
Pôs os braços em volta dela e puxou-a contra o peito para lhe poder
acariciar o cabelo e sussurrar-lhe qualquer coisa doce ao ouvido… algo que
a tranquilizasse… algo que removesse a mistura de confusão e dor que lhe
lera no rosto. Os seus murmúrios suaves foram interrompidos pela chegada
de uma grande harpia alada, de saltos de dez centímetros e batom carmim
com dois copos de papel na mão.
— Oh, não é tão querido? — Uma voz, fria e de aço, interrompeu o
suave momento do par, e Julia levantou a cabeça para deparar com os duros
olhos castanhos de Christa Peterson.
Julia endireitou-se rapidamente e tentou desviar-se de Paul, mas ele
segurou-a logo.
— Christa — cumprimentou, com indiferença.
— A confraternizar com os alunos de mestrado, Paul? Que democrático
da tua parte — disse ela, a ignorar ostensivamente Julia.
— Cuidado, Christa. — O tom dele continha uma nota de aviso. — Dois
cafés, hoje? Isso é um bocado exagerado. Vais fazer uma direta? —
Apontou os copos que ela levava, um em cada mão.
— Nem fazes ideia — ronronou ela. — Um é para mim e o outro para o
Gabriel, claro. Oh, desculpa, não tinha visto que estavas aí, Julianne.
Suponho que para ti ele ainda seja professor Emerson. — Christa riu-se
como uma galinha velha.
Julia ergueu uma sobrancelha, mas resistiu à vontade de esclarecer
Christa ou de lhe arrancar o sorriso presunçoso da cara com uma bofetada.
Porque Julia era uma senhora. E gostava da sensação do braço de Paul em
volta dos seus ombros e não estava disposta a mover-se. Por enquanto.
— Nunca lhe chamaste Gabriel na cara, Christa. Desafio-te a fazê-lo na
próxima vez que o vires.
Os olhos de Christa endureceram, e ela olhou para Paul com um ar
carrancudo. Depois sorriu.
— Tu desafias-me? Que engraçado. Isso é uma coisa do Vermont? Uma
coisa que os lavradores dizem uns aos outros enquanto amontoam estrume?
Depois da minha reunião com o Gabriel, provavelmente vamos diretamente
para o Lobby beber uns copos. Ele gosta de lá ir depois do trabalho. Tenho
a certeza que vamos trocar mais do que, eeh… nomes, esta noite. — A
língua dela apareceu-lhe entre os lábios e ela começou a lamber a curva de
um langorosamente.
Julia hiperventilava.
— Ele vai levar-te ao Lobby? — Paul parecia cético.
— Vai. Oh, se vai.
Julia engasgou-se e voltou a engolir em silêncio o conteúdo do seu
estômago. Pois a ideia de Gabriel com aquela… vadia era nauseante ao
máximo. Até a empregada do Lobby seria melhor para ele do que Christa.
— Não fazes o seu tipo — balbuciou Julia.
— Perdão?
Julia olhou para os olhos semicerrados e desconfiados da colega e pesou
as suas opções por uma fração de segundo. Depois decidiu que a cautela era
o melhor caminho.
— Eu disse… não é assim tão fixe.
— O quê?
— O Lobby. Não é assim tão bom.
Christa dardejou Julia com um sorriso enregelado.
— Como se o porteiro te deixasse entrar. O Lobby é um clube exclusivo.
Olhou para Julia de alto a baixo como se ela fosse um animal de segunda
categoria. Como se fosse um velho pónei meio cego e esquecido numa
quinta pedagógica. Julia sentiu-se de súbito muito envergonhada e feia. As
lágrimas formigaram nos seus olhos, mas conseguiu contê-las
corajosamente.
Paul reparou exatamente no que Peterson estava a fazer, ao tirar as
medidas a Julia e considerá-la inferior. Sentiu-a estremecer em reação às
felinas garras afiadas de Christa. Por isso, embora lhe doesse fazê-lo,
libertou os ombros de Julia e inclinou-se para a frente no banco, de braços
fletidos.
Não me faças levantar, cabra, pensou.
— Porque é que não haviam de deixar a Julia entrar, Christa? Agora só
admitem mulheres da vida?
Christa ficou muito vermelha.
— E tu é que havias de saber, Paul? És praticamente um monge! Ou
então talvez seja isso que os monges fazem… pagam. — Lançou um olhar
expressivo à preciosa mala nova de Julia.
— Christa, vais calar essa boca neste momento, ou eu tenho de me
levantar. E depois toda a educação vai sair pela janela. — Paul olhou-a
furioso e lembrou-se mudamente a si mesmo que não podia bater numa
mulher. E que Christa era, de facto, uma mulher, e não uma porca anorética
com o cio. Paul nunca teria comparado Christa com uma vaca, pois
considerava as vacas criaturas nobres. (Especialmente as Holsteins.)
— Não precisas de ficar assim — retorquiu ela. — De certeza que há
múltiplas explicações. Talvez o Lobby não a deixe entrar por causa do seu
QI. O Gabriel disse-me que não és assim tão esperta, Julianne.
Christa sorriu com um ar triunfante enquanto Julia baixava a cabeça, a
sentir-se efetivamente muito pequena. Paul transferiu todo o seu peso para
as solas dos pés. Não ia bater em Christa. Ia simplesmente fazê-la calar. E
talvez arrastá-la para a saída, ou coisa do género.
Não precisava de se ter incomodado.
— Ah, a sério? E que mais disse o Gabriel?
Os três estudantes voltaram-se lentamente en masse para depararem com
os olhos azuis do especialista em Dante que se aproximara sem fazer ruído.
Nenhum deles sabia exatamente quanto teria ele ouvido ou há quanto tempo
ali estava. Mas os seus olhos lançavam faíscas, e Julia sentiu a sua fúria
irradiar na direção de Christa. Inchava como uma nuvem. Mas, felizmente,
não inchava na sua direção. Daquela vez.
Pela comichão que tenho nos meus dedos, alguma coisa má aí vem,
pensou Paul.
— Paul — cumprimentou Gabriel friamente com um aceno de cabeça, os
olhos a dardejar para o espaço agora visível entre Julianne e o seu assistente
de investigação. O Fornicador-de-Anjos. Isso mesmo: tira as patas, idiota.
— Menina Mitchell, prazer em vê-la de novo. — Gabriel sorriu, algo
rigidamente. — Está com um ar esperto, como sempre.
Sim, anjo de olhos castanhos, ouvi o que ela lhe disse. Não se preocupe,
vou tratar dela.
— Menina Peterson. — A voz de Gabriel era agora gelada, e fez-lhe sinal
que o seguisse como se fosse um cão. Olhaste para a Julianne como se
fosse lixo. Não vais voltar a fazê-lo. Eu garanto-te.
Julia viu quando ele recusou o café que Christa lhe comprara e se dirigiu
ao balcão para pedir outra coisa qualquer. Viu os ombros de Christa
tremerem de raiva.
Paul virou-se para Julia e suspirou.
— Pronto, onde é que nós íamos?
Ela inalou profundamente e levou um minuto a concentrar-se antes de
fazer o que sabia que precisava de fazer.
— Não te devia ter beijado. Lamento. — Baixou o olhar para a sua mala,
a sentir-se muito desconfortável.
— Eu não lamento. Só lamento que o lamentes. — Paul aproximou a cara
da dela e sorriu. — Mas tudo bem. Não estou zangado, nem nada.
— Não sei o que aconteceu. Não costumo ser assim… beijar uma pessoa
sem mais nem menos.
— Eu não sou uma pessoa qualquer, pois não? — Olhou-a com um ar
inquisidor. — Há muito tempo que tenho vontade de te beijar. Desde aquele
primeiro seminário, acho eu. Mas isso teria sido demasiado cedo.
Tentou persuadi-la a virar-se para ele, mas Julia desviou o olhar. Olhou
para outra mesa e viu os seus dois ocupantes a discutir. Suspirou.
— Julia, o beijo não tem de mudar nada. Pensa nele como um momento
entre amigos. Não tem de voltar a acontecer, a não ser que tu o queiras. —
Estudou-lhe o rosto, preocupado. — Isso melhoraria as coisas? Se
deixássemos tudo como está?
Ela anuiu e remexeu-se no assento, pouco à vontade.
— Desculpa, Paul. Tens sido sempre simpático comigo.
— Não me deves nada. Não estou aqui à espera de uma recompensa. Sou
simpático contigo porque quero. Foi por isso que te comprei o CD. É por
isso que o poema me lembra de ti. Tu inspiras-me. — Aproximou-se mais
para poder sussurrar-lhe ao ouvido, intensamente consciente do facto de
dois zangados olhos de safira estarem agora de súbito focados nele. — Por
favor, não te sintas obrigada a fazer qualquer coisa que não queiras. Vou ser
teu amigo, independentemente do que aconteça. — Fez uma pausa. — Foi
só um pequeno beijo amigável, em vez de um abraço. Mas, a partir de
agora, podemos limitar-nos a abraços, se quiseres. E, um dia, se quiseres
mais…
— Não estou preparada — sussurrou ela, de certo modo surpreendida por
ter encontrado palavras honestas para dizer e as ter encontrado tão depressa.
— Eu sei. Foi por isso que não retribuí muito o beijo, embora o quisesse
fazer. Mas foi muito bom. Obrigado. Eu sei que és cuidadosa quanto a
quem deixas aproximar-se de ti. Sinto-me honrado por me teres beijado.
Deu-lhe uma palmadinha na mão e sorriu novamente. Ela abriu a boca
para dizer qualquer coisa, mas ele falou primeiro.
— Era capaz de partir o pescoço à Christa pelo que ela te disse. Nem me
vou dar ao trabalho de lhe falar, da próxima vez. — Os olhos dele
dardejaram para a mesa d’O Professor, onde reparou, com algum alívio, que
os zangados olhos de safira estavam agora fixos em Christa, de cabeça
baixa e perto das lágrimas.
Julia encolheu os ombros.
— Não me importo.
— Eu importo-me. Eu vi como ela olhou para ti. E senti a tua reação: tu
encolheste-te. Bolas, encolheste-te, Julia. Porque é que não a mandaste para
o inferno?
— Não faço coisas dessas, se o puder evitar. Tento não me rebaixar ao
seu nível. Às vezes, sinto-me tão… tão surpreendida por alguém ser tão
mau para mim que nem consigo pensar. Não consigo falar.
— As pessoas são… más para ti? — Paul começava a ficar zangado.
— Às vezes.
— O Emerson? — murmurou.
— Está a melhorar. Viste-o agora mesmo… foi simpático.
Paul anuiu relutantemente. Professor Imb-erson.
Julia contorcia as mãos.
— Eu não quero armar-me em… São Francisco de Assis, ou coisa do
género, mas qualquer pessoa consegue gritar obscenidades. Porque é que eu
havia de ser como ela? Porque não pensar que, por vezes, apenas por vezes,
se pode superar o mal com o silêncio? E deixar que as pessoas ouçam o seu
ódio com os próprios ouvidos, sem distração. Talvez a bondade seja
suficiente para expor o mal pelo que realmente é. Em vez de tentar deter o
mal com mais mal. Não que eu seja boa. Não julgo que seja boa. — Fez
uma pausa e olhou para Paul. — Não faz sentido, o que estou a dizer.
Ele sorriu, simplesmente.
— Claro que faz sentido. Falámos disto no meu seminário sobre
Aquino… o mal é o seu próprio castigo. Olha para a Christa. Achas que ela
é feliz? Como é que o pode ser, com um comportamento daqueles?
Algumas pessoas são tão egocêntricas e iludidas que nem todos os gritos do
mundo são suficientes para as convencer das suas próprias deficiências.
— Ou para lhes espicaçar a memória — balbuciou Julia, a olhar para a
outra mesa e a abanar a cabeça.
No dia seguinte, deu por si no Departamento de Estudos Italianos a ver a
sua caixa de correio antes do seminário sobre Dante. Estava a ouvir o CD
que Paul lhe dera, que concordara finalmente em aceitar e carregara no seu
iPod. Ele tinha razão; apaixonara-se pelo álbum de imediato. E descobrira
que conseguia escrever a sua proposta de tese enquanto escutava aquela
música, muito melhor do que a ouvir Mozart. A Lacrimosa era demasiado
deprimente.
Depois de passar dias sem ter nada na sua caixa, recebera finalmente
algum correio. Três artigos, na verdade.
O primeiro era um anúncio da nova data da conferência do professor
Emerson, Luxúria no Inferno de Dante: O Pecado Mortal contra o Eu. Julia
tomou nota da data e planeou pedir a Paul para a acompanhar à conferência.
O segundo artigo de correio era um pequeno envelope cor de creme. Julia
abriu-o e ficou surpreendida ao descobrir que continha um talão de presente
do Starbucks. Viu que tinha sido personalizado e que a imagem no cartão
era uma enorme lâmpada. O texto gravado em baixo dizia: É muito
inteligente, Julianne.
Julia olhou para a parte de trás do cartão e viu que o valor era de cem
dólares. Caramba, pensou. Isso é muito café. Era óbvio quem lho enviara e
porquê. No entanto, ficou muito, muito surpreendida. Até retirar o terceiro
artigo no correio.
O terceiro artigo era um longo envelope elegante, que ela abriu
rapidamente. Vinha do diretor do Departamento de Estudos Italianos e
congratulava-a pela bolsa recebida. Não leu mais do que a quantia, que era
de cinco mil dólares por semestre, pagáveis acima do seu estipêndio de
estudante regular.
Oh, deuses dos estudantes de mestrado mesmo muito pobres com
pequeníssimos apartamentos-buraco-de-hobbit-não-dignos-de-um-cão,
obrigada, obrigada, obrigada!
— Julianne, sente-se bem? — A voz da Sr.ª Jenkins, reconfortante e
amável, pairou sobre o seu corpo chocado.
Cambaleou até à secretária da Sr.ª Jenkins e entregou-lhe mudamente a
carta do prémio.
— Ah, sim, ouvi falar disto. — Sorriu-lhe amavelmente. — É fantástico,
não é? Estas bolsas são raras e muito espaçadas, e de repente, na segunda-
feira de manhã, recebemos uma chamada a dizer que uma fundação
qualquer tinha doado milhares de dólares para este prémio.
Julia anuiu, ainda em choque.
A Sr.ª Jenkins olhou de relance para a carta.
— Quem será ele?
— Ele quem?
— A pessoa que instituiu a bolsa.
— Não li até aí.
A Sr.ª Jenkins ergueu a carta e apontou um bloco impresso a negrito.
— Diz aqui que a Julianne é a vencedora da Bolsa M. P. Emerson. Estava
só a pensar quem seria esse M. P. Emerson. Será que é parente do professor
Emerson? Mas Emerson é um nome muito vulgar. Provavelmente é apenas
uma coincidência.
Capítulo Doze

O professor Emerson viu a luz que transbordava de debaixo da porta da


sua sala de leitura da biblioteca, mas, uma vez que Paul colara papel
pardo na janela estreita da porta, não conseguiu espreitar lá para dentro.
Estava surpreendido por Paul ficar a trabalhar até tão tarde numa quinta à
noite. Eram vinte e duas e trinta, e a biblioteca fecharia dentro de trinta
minutos.
Gabriel procurou a sua chave no bolso e abriu a porta sem bater. O que
viu lá dentro abalou-o completamente. Enroscada numa cadeira estava a
menina Mitchell, com a cabeça apoiada nos braços cruzados que estavam
elegantemente pousados na secretária. Tinha os olhos fechados, a boca
entreaberta, mas não exatamente a sorrir. As suas faces estavam afogueadas
de sono, o peito erguia e descia lentamente, tranquilamente, como as ondas
do oceano contra uma praia serena. Parou à entrada, hipnotizado, a pensar
que o simples som da respiração dela daria um excelente CD de
relaxamento. Podia imaginar qualquer pessoa a adormecer com aquele som,
vez após vez.
O portátil dela estava aberto, e Gabriel viu o screen saver, que mostrava
ilustrações desenhadas à mão do que parecia ser uma história para crianças
— qualquer coisa com animais — incluindo um coelhinho branco de aspeto
engraçado com longas orelhas que lhe caíam até aos pés. Os acordes de
uma música enchiam o ar, e Gabriel percebeu que o som vinha do
computador. Viu um CD com um coelho. Gabriel começou a pensar porque
seria a menina Mitchell tão obcecada por coelhinhos.
Talvez seja um fetiche com a Páscoa? Gabriel estava já a meio de uma
muito elaborada fantasia do que poderia incluir um fetiche com a Páscoa
antes de recuperar a razão. Entrou rapidamente na sala de leitura e fechou a
porta atrás de si, tendo o cuidado de a trancar. Não seria bom para nenhum
deles serem apanhados juntos daquela maneira.
Olhou para a sua forma pacífica, não desejando perturbar nem
intrometer-se no que parecia ser um sonho muito agradável. Agora ela
sorria. Gabriel localizou o livro que procurava e preparou-se para sair em
paz, quando os seus olhos desceram sobre um pequeno bloco que jazia
mesmo ao alcance dos dedos dela.
Gabriel, leu. Meu Gabriel.
A visão do seu nome escrito amorosa mas impensadamente, várias vezes,
no caderno, atraiu-o como um suave canto de sereia, e provocou-lhe um
arrepio na espinha. Ficou momentaneamente especado, a mão parada a
meio de um gesto.
Claro, era impossível que ela estivesse a escrever sobre outro Gabriel.
Mas parecia demasiado incrível que estivesse a escrever sobre ele, e a
chamar-lhe seu.
Quando a olhou, soube que, se ficasse ali, tudo mudaria. Soube que, se
lhe tocasse, seria incapaz de resistir ao impulso — o impulso inegável e
primário — de tomar a linda e pura menina Mitchell. Ela estava ali, à sua
espera, a chamá-lo, o seu odor a baunilha pesado no espaço pequeno e
demasiado quente.
Meu Gabriel. Imaginou a voz dela a deliciar-se com o seu nome como a
língua de um amante a mover-se pela pele… A sua mente viajou à
velocidade da luz enquanto se imaginava a puxá-la para os seus braços. A
beijá-la, a abraçá-la. A erguê-la para cima da secretária e a pressionar-se
entre os seus joelhos, as mãos dela a puxarem-lhe o cabelo, a camisola, a
camisa, a soltar-lhe a gravata e a atirá-la para o chão.
Faria os seus dedos explorarem-lhe o cabelo ondulado e desenharem
suaves linhas no seu pescoço, fazendo com que cada espaço, cada poro,
explodisse em escarlate — enquanto o nariz lhe roçaria a face, a orelha, a
sua perfeita garganta branca como leite. Sentiria a pulsação no pescoço dela
e daria por si estranhamente acalmado pelo ritmo suave, e sentir-se-ia
conectado com o bater do coração dela, especialmente quando começasse a
acelerar sob as suas carícias. Perguntar-se-ia se estavam suficientemente
próximos, se os seus corações bateriam em uníssono… ou se essa era
apenas uma fantasia de poeta.
Ela seria tímida, ao princípio. Mas ele seria suavemente insistente,
sussurrar-lhe-ia palavras de doce sedução contra o cabelo. Dir-lhe-ia tudo o
que ela quisesse ouvir, e ela acreditaria. As suas mãos desceriam dos
ombros dela e percorreriam as suas curvas doces e inocentes, maravilhando-
se com a recetividade da rapariga que desabrochava sob o seu toque.
Pois nunca nenhum homem a tocara daquela maneira. Com o tempo, ela
mostrar-se-ia ávida, e começaria a responder. Oh, a responder tanto. Beijar-
se-iam, e seria elétrico — intenso — explosivo. As suas línguas cruzar-se-
iam, e dançariam um tango desesperado, como se nunca tivessem sido
beijadas.
Ela teria demasiadas roupas. Ele quereria libertá-la delas e salpicar beijos
leves como penas sobre cada centímetro de perfeita pele de porcelana.
Especialmente na sua linda garganta com as veias azuladas. Ela coraria
como Eva, mas ele dissipar-lhe-ia o nervosismo com beijos. Em breve, ela
estaria nua e aberta na sua frente, a pensar apenas nele e na sua extasiada
admiração, e não na sensação do ar da sala contra a pele pálida e rosada.
Louvá-la-ia com juras, e odes, e suaves murmúrios de doces nomes
carinhosos, e ela não sentiria vergonha. Querida, menina doce, fofinha,
minha linda… Fá-la-ia acreditar na sua adoração, e a crença não seria
inteiramente falsa.
Com o tempo, as carícias seriam de mais, e ele deitá-la-ia gentilmente
para trás, apoiando-lhe a parte de trás da cabeça com a mão. Manteria ali a
mão o tempo todo, pois teria medo de a magoar. Não quereria que ela
ficasse a bater com a cabeça contra a secretária como um brinquedo
indesejado.
Não era um amante cruel. Não seria violento nem indiferente. Seria
erótico, apaixonado mas cuidadoso. Porque sabia o que ela era. E desejaria
que ela ficasse tão satisfeita quanto ele, na sua primeira vez. Mas desejava-a
aberta debaixo dele, ofegante e convidativa, os seus olhos enormes e sem
pestanejar, a arder de desejo.
Levaria a outra mão ao fundo das costas dela, à doce expansão de pele
esticada, e observaria os seus olhos grandes e líquidos enquanto ela
continha a respiração e gemia. Fá-la-ia gemer. Apenas ele.
Ela morderia o lábio, de olhos semicerrados, quando deslizasse para ela,
reconfortando-a com palavras sussurradas de relaxa enquanto ela cedia. Iria
com calma, na primeira vez. Faria pausas, sem se apressar. Esperaria e não
rasgaria. Pararia, talvez?
O seu lindo, perfeito, anjo de olhos castanhos… com o peito a subir e a
descer rapidamente, o rubor das faces a desabrochar por todo o corpo. Ela
seria uma rosa aos seus olhos, e floriria debaixo dele. Pois seria bondoso, e
ela abrir-se-ia. Poderia observar, como que em transe, quase como se
acontecesse em câmara lenta… visão, perfume, som, gosto, toque…
enquanto ela se transformava de donzela em matrona através da perda do
hímen, tudo por sua causa. Tudo por sua causa.
Hímen? Haveria sangue. Havia sempre sangue, pelo preço do pecado. E
uma pequena morte.
O coração de Gabriel parou. Ficou silencioso por meia batida e depois
bateu duas vezes quando uma nova consciência se abateu sobre ele. Poesia
metafísica, há tanto tempo esquecida, dos seus tempos no Magdalen
College, veio-lhe aos lábios. Pois, naquele instante, viu claramente que ele,
o professor Gabriel O. Emerson, prospetivo sedutor da deliciosa e inocente
Julianne, era uma pulga.
As palavras de John Donne ecoaram nos seus ouvidos:
Repara nesta pulga, e repara bem
Como é pequeno aquilo que me negas;
Suga-me a mim, depois suga-te a ti,
E nela o sangue de ambos se confunde
Embora ninguém a isto chame
Pecado, vergonha, ou perda de virgindade;
Mas ela goza antes de cortejar,
Intumesce do sangue feito dos dois:
E isto, ai de nós!, é mais do que podemos fazer.

Gabriel sabia a razão por que o seu subconsciente escolhera aquele


momento para lhe impingir a poesia de Donne; o poema era uma defesa da
sedução. Donne falava para a sua prospetiva amante, uma virgem, e alegava
que a sua perda da virgindade tinha menos consequências do que a picada
de uma pulga. Ela entregar-se-ia rapidamente, sem pensar duas vezes. Sem
hesitação. Sem arrependimento.
Assim que as palavras se lhe apresentaram, Gabriel soube que eram
perfeitas para ele. Perfeitas para o que estava a ponderar fazer-lhe. Perfeitas
para a sua própria autojustificação.
Provar. Agarrar. Sugar. Pecar. Esgotar. Abandonar.
Ela era pura. Era inocente. Desejava-a.
Facilis descensus Averni.
Mas não seria ele que a faria sangrar. Não queria, não conseguiria, nunca
faria outra rapariga sangrar durante o resto da sua vida. Todas as ideias de
sedução e loucas e apaixonadas quecas em cadeiras e secretárias, contra
paredes e estantes de livros e janelas, dissiparam-se imediatamente. Ele não
a tomaria. Não a marcaria, não reclamaria aquilo que não tinha qualquer
direito a reclamar.
Gabriel Emerson era um pecador contrito, mas apenas em parte.
Obcecado com o belo sexo e com o seu próprio prazer físico, sabia-se
governado pela luxúria. Nunca deixara que essa sede desse lugar a algo
mais, algo que se aproximasse do amor. No entanto, apesar destas e de
outras fraquezas morais, apesar da sua constante incapacidade de resistir à
tentação, Gabriel possuía ainda um último princípio moral que governava o
seu comportamento. Uma linha que não ultrapassaria.
O professor Emerson não seduzia virgens. Não tirava a virgindade a
ninguém, nunca, mesmo que fosse livremente oferecida. Não saciava a sua
sede com a inocência; apenas se alimentava daquelas que já tinham provado
e que, ao provar, queriam mais. Não seria ele a violar aquele último e único
princípio moral por uma ou duas horas de devassa satisfação com uma
deleitável aluna de mestrado na sua sala de leitura. Até um anjo caído tinha
os seus princípios.
Gabriel deixaria intacta a sua virtude. Deixá-la-ia tal como a encontrara,
o ruborizado anjo de olhos castanhos, rodeada de coelhinhos, enroscada
como uma gatinha na sua pequena cadeira. Ela dormiria sem ser perturbada,
sem ser beijada, sem ser tocada, sem ser molestada. Levou a mão à
maçaneta da porta e, quando estava prestes a destrancá-la, ouviu os sons de
movimentos atrás de si.
Suspirou e virou a cabeça. Não ia renunciar a uma noite de prazer com
ela por aversão, mas por amor — pela bondade que desejara para a sua
vida. E talvez por amor à memória do seu eu anterior, antes de todo o
pecado e vício se enraizarem e crescerem como um maciço de espinhos que
se enrolam, e contorcem, e sufocam as virtudes. A mão esquerda de Gabriel
abandonou a maçaneta da porta e ele respirou fundo. Endireitou os ombros
e fechou os olhos, a pensar no que lhe havia de dizer.
Virou-se devagar e viu a menina Mitchell a gemer ligeiramente e a
espreguiçar-se. As suas pestanas palpitaram e ela abafou um bocejo com a
mão aberta.
Mas os seus olhos abriram-se de chofre quando viu o professor Emerson
parado junto à porta. Assustada, soltou um gritinho e voou da sua cadeira
contra a parede. Encolheu-se de confusão, e quase partiu o coração de
Gabriel. (O que, pelo menos, provava que ele tinha coração.)
— Chhhh. Julianne, sou só eu. — Ele ergueu as mãos num gesto de
completa rendição. Tentou fazer um sorriso tranquilizador.
Julia estava estupefacta. Apenas momentos antes estava a sonhar com O
Professor. E agora encontrava-o ali. Esfregou os olhos. Ele ainda ali estava,
a olhá-la. Beliscou a pele do braço entre os dedos. Ele continuava à sua
frente.
Merda. Apanhou-me.
— Sou eu, Julianne. Está tudo bem?
Ela pestanejou rapidamente e começou de novo a esfregar os olhos.
— Eu… não sei.
— Há quanto tempo aqui está? — Gabriel baixou as mãos.
— Humm… não sei. — Ela estava a tentar acordar e recordar-se de tudo
ao mesmo tempo.
— O Paul está consigo?
— Não.
De alguma forma, Gabriel sentiu-se aliviado.
— Como é que entrou aqui? Esta é a minha sala de leitura.
Os olhos de Julia voaram para os dele, para lhe medir a reação. Estou
mesmo em sarilhos. E o Paul também. Agora o Emerson vai expulsá-lo.
Deu rapidamente um passo em frente, derrubando a cadeira no processo e
deixando cair uma pilha de livros que tinha estado pousada perto das suas
mãos. Uma resma de papel foi atirada ao ar pela confusão geral e começou
a cair em cima dela como enormes flocos de neve às riscas. Gabriel pensou
que ela parecia um anjo — um anjo num globo de neve infantil, com toda
aquela brancura a flutuar à sua volta.
Linda, pensou.
Ela fez-se atabalhoadamente ao trabalho, a tentar pôr tudo em ordem.
Repetia as suas desculpas vez após vez, como se rezasse um terço, enquanto
balbuciava qualquer coisa sobre Paul lhe ter emprestado a chave. Pedia
desculpa. Pedia muita, muita desculpa.
Com um só passo, Gabriel ficou ao lado dela e pôs a mão suave mas
firmemente em cima do seu ombro.
— Está tudo bem. É bem-vinda aqui. Fique quieta.
Julia fechou os olhos e obrigou-se, e ao seu coração, a abrandar. Era uma
coisa muito difícil de fazer; tinha tanto medo que ele perdesse a cabeça e
banisse Paul da sua preciosa sala de leitura. Para sempre.
Gabriel inalou bruscamente, e os olhos dela abriram-se muito, tornando-
se vítreos sob o toque da sua mão.
Ele aproximou a cabeça do rosto dela e olhou-a.
— Julianne? Está muito pálida. Sente-se indisposta?
Não sabia o que fazer. Porque estava ela a agir de forma tão estranha?
Talvez estivesse fraca da fome, e não completamente acordada. A sala
estava muito quente. Demasiado quente. Ela deixara o aquecedor ligado.
Viu-a cambalear a amparou-a, agarrou-a com força e puxou-a contra o
peito. Ela não estava inconsciente. Por enquanto, pelo menos.
— Julianne? — Desviou-lhe o cabelo da frente dos olhos e passou-lhe as
costas da mão pela face.
Ela murmurou qualquer coisa, e Gabriel percebeu que não tinha
desmaiado, mas encostava-se a ele como se não tivesse forças para se
manter de pé. Ele abraçou-a para a impedir de cair sobre a cadeira virada no
chão.
— Sente-se bem?
Começou a conduzi-la para a cadeira, mas Julia agarrou-se ao seu
pescoço sem hesitação. Ele gostava da sensação de a ter pressionada contra
si, por isso abraçou-a com mais força e baixou a cabeça para lhe cheirar o
cabelo, algo sub-repticiamente. Baunilha. Aquele pequeno corpo encaixava-
se no seu perfeitamente, como se as suas formas fossem complementos
ideais. Era espantoso.
— O que aconteceu? — balbuciou ela contra a camisola dele, que era de
um verde brilhante, calculado para contrastar com o azul dos seus olhos.
— Não tenho a certeza. Acho que sofreu uma tontura porque se levantou
demasiado depressa. E aqui está calor.
Ela fez um sorriso fraco, um sorriso que lhe derreteu o coração.
Julia queria desesperadamente beijá-lo. Sentia-o perto. Tão, tão perto.
Cinco centímetros e aqueles lábios seriam seus… outra vez. E os olhos dele
eram tão suaves e calorosos… e ele estava a ser querido com ela…
Gabriel recuou cuidadosamente para testar o seu equilíbrio, para ver se
ela ainda corria o risco de cair. Quando isso não aconteceu, sentou-a
suavemente em cima da secretária antes de endireitar a cadeira. Depois
recuou para a porta da sala de leitura e endireitou a gravata.
— Não me importo que use a sala de leitura. De todo. Só fiquei
surpreendido por a encontrar aqui. De facto, até estou contente por o Paul o
ter sugerido. Não há problema nenhum. — Sorriu para a deixar à vontade e
viu-a agarrar-se à secretária para se apoiar. — Estava à procura de um livro
que emprestei ao Paul. — Ergueu o volume e voltou-se para fitar Julia
novamente.
Movendo-se lenta mas cuidadosamente, ela levantou-se e começou a
empilhar livros na secretária e a apanhar as folhas de papel branco que se
tinham espalhado pelo chão.
— Ia encontrar-se com o Paul esta noite?
— Ele foi a uma conferência em Princeton. Vai apresentar um artigo
amanhã. — Olhou-o prudentemente e, quando o viu de cabeça inclinada
para um lado e ainda a sorrir, relaxou. Ligeiramente.
— Princeton. Sim, claro. Esqueci-me. Tem aí uma bela mala. — Sorriu-
lhe e acenou para a mala encostada à parede.
Julia corou e esforçou-se ao máximo por manter o seu conhecimento
secreto em segredo.
— Mas parece haver alguma coisa viva lá dentro. Estou a ver um par de
orelhas a espreitar de um dos fechos.
Ela deu meia-volta. Gabriel tinha razão; duas pequenas orelhas castanhas
saíam da mala, quase como se ela tivesse tentado introduzir um animal de
estimação na biblioteca clandestinamente. Julia corou ainda mais.
— Posso? — Ele acenou para a mala, mas não fez mais nenhum
movimento, como se esperasse pela permissão dela.
Julia hesitou, depois puxou o brinquedo de peluche da mala e passou-lho,
a morder o lábio de embaraço.
Claramente, a menina Mitchell tem um fetiche por coelhinhos.
Gabriel ergueu o coelho de brincar entre o polegar e o indicador e olhou-
o com curiosidade, como se não soubesse o que era. Ou como se, num
ataque de mau génio, pudesse decidir imitar o comportamento do famoso
coelho de Monty Python e o Santo Graal e ir-lhe diretamente à garganta.
Gabriel levou uma mão ao pescoço como precaução e resistiu ao súbito e
avassalador impulso de dizer Ni.
O boneco era castanho, claro, e macio, feito de veludo, ou coisa parecida.
Tinha orelhas compridas e membros curtos e uns bonitos bigodes. Ficava
direito, parecendo algo teso. Parecia-lhe familiar, estranhamente. Algo que
Grace poderia ter possuído e amado. Algo de uma infância que nunca
tivera.
Em volta do pescoço, alguém atara um laço muito mal feito de fita cor-
de-rosa. Gabriel mediu o laço com os olhos e chegou à conclusão que fora
ou alguém que era ligeiramente deficiente (sem querer desrespeitar
ninguém) ou alguém com mãos muito grandes e falta de motricidade fina
(como ele próprio) que atara o laço. E havia um cartão.
Sem desejar envergonhá-la ainda mais, sorriu e deixou que os seus olhos
se desviassem momentaneamente para o cartão, por isso conseguiu lê-lo
num instante:
C,
Alguém para te fazer companhia enquanto estou fora.
Vejo-te quando regressar.
Beijo,
Paul.

O Fornicador-de-Anjos ataca de novo, grunhiu Gabriel para si mesmo.


Devolveu o coelho a Julia.
— É muito… eeh… giro.
— Obrigada.
— Mas quem é este C?
Julia virou-se enquanto guardava o último presente de Paul na sua mala,
tendo muito cuidado para não prender as orelhas do coelho entre os dentes
do fecho.
— É uma das minhas alcunhas.
— Mas porquê essa letra? Porque não qualquer coisa que comece por B?
Julia olhou-o de sobrolho franzido. Como o quê? Bruxa? Bosta? Bovina?
— Bela — disse Gabriel. Depois corou, pois a palavra escapara-se por
engano. — Então, está aqui a dormir há horas, com Rabbit Songs e um
coelhinho de brincar para lhe fazer companhia? Não tinha percebido que era
uma amante de coelhos.
Julia parecia embaraçada. Ele não conseguia evitar; a caracterização era
óbvia, ainda que um pouco atiradiça.
— Gosto da sua escolha de música.
— Obrigada. — Ela desligou rapidamente o seu idoso portátil e colocou-
o com cuidado na mala com o CD.
— A biblioteca está quase a fechar. O que é que fazia se eu não tivesse
chegado?
Ela olhou em volta, ligeiramente confusa.
— Não sei.
— Se ninguém reparasse que a luz da sala de leitura estava acesa quando
viessem verificar este andar, podia ficar trancada na biblioteca toda a noite.
Sem comida. — O sorriso desapareceu-lhe da cara com a mera ideia. — O
que vai fazer para garantir que isso não aconteça no futuro?
Ela olhou em volta rapidamente.
— Ligar o alarme do relógio do Paul?
Ele anuiu, como se esta resposta o satisfizesse. Mas não satisfazia.
— Tem fome?
— Tenho de ir, professor. Peço desculpa por me ter intrometido no seu
espaço privado.
Se soubesses como essas palavras são verdadeiras, Julianne.
— Menina Mitchell, pare. — Ele deu um passo em frente enquanto ela
pegava na mala nova com uma mão e limpava o lixo da secretária com a
outra. — Já jantou?
— Não.
As sobrancelhas de Gabriel uniram-se como nuvens de tempestade.
— A que horas almoçou?
— Ao meio-dia.
Ele ficou com um ar zangado.
— Isso foi quase há onze horas. Comeu o quê?
— Um cachorro-quente, da carrinha em frente à biblioteca.
Gabriel soltou uma praga.
— Não pode viver desse tipo de porcaria. E eu nunca comeria carne da
rua. Prometeu dizer-me se tivesse fome… e agora desmaia na minha frente.
Olhou para o seu Rolex Day-Date de ouro.
— É tarde de mais para a levar aos bifes… o Harbour Sixty está fechado.
Porque é que não vem jantar comigo a outro sítio qualquer? Fiquei a
trabalhar até tarde na minha conferência, e também ainda não comi.
Julia ficou a olhar para ele.
— Tem a certeza?
A expressão dele endureceu.
— Menina Mitchell, não sou o tipo de pessoa que faz convites por fazer.
Se a convido para jantar, é porque tenho a certeza. Vem comigo ou não?
— Muito obrigada, não estou vestida para jantar. — A sua voz era cetim
sobre aço, e ela arqueara uma sobrancelha. Já ultrapassara o seu choque
inicial por ter sido surpreendida na sala de leitura dele, e estava agora
completamente acordada e completamente irritada com o tom de voz d’O
Professor.
Os olhos de Gabriel percorreram-na lentamente, parando para observar as
suas lindas formas e demorando-se depois nos seus ténis. Ele desprezava
ténis em mulheres, pois eram um desperdício de perfeitas oportunidades
quiropódicas. Pigarreou.
— Está ótima. Acho que a cor da sua blusa destaca o rosa da sua pele e
as pintas cor de caramelo nos seus olhos. Está muito bem, na verdade. —
Sorriu-lhe, com um pouco de calor a mais, e desviou o olhar.
Tenho caramelo nos meus olhos? Desde quando? E desde quando é que
ele os olhou durante tempo suficiente para reparar?
— Há um sítio perto da minha casa que frequento durante a semana,
especialmente quando é mais tarde. Pago-lhe o jantar e podemos conversar
sobre a sua proposta de tese, informalmente, claro. Que lhe parece?
— Obrigada, professor.
Os olhos de ambos não se cruzaram durante muito tempo, mas cruzaram-
se, e sorrisos algo hesitantes foram trocados de ambos os lados.
Ele esperou pacientemente que ela pusesse tudo em ordem antes de se
desviar e lhe acenar com a mão na direção do corredor.
— Atrás de si.
Ela agradeceu-lhe e, quando ia a passar, Gabriel estendeu a mão para a
alça da sua mala, roçando contra um dos seus dedos. Julia recuou
instintivamente e deixou cair o saco.
Felizmente, ele apanhou-o.
— É uma mala ótima, esta. Acho que até a vou carregar por algum
tempo. Se não se importar. — Fez-lhe um sorriso afetado, e ela corou.
— Obrigada — murmurou ela. — Gosto muito dela. É perfeita.
Gabriel não fez qualquer tentativa para a envolver numa conversa até
chegarem ao restaurante, o Caffé Volo, na Yonge Street. O Caffé era um
estabelecimento sossegado mas amigável que se gabava de ter talvez a mais
longa e melhor lista de cervejas em Toronto. Tinha também um ótimo chefe
italiano, por isso a comida era da melhor simples comida italiana na zona. O
restaurante em si era pequeno, com apenas dez mesas que eram
complementadas no verão por um pátio. A decoração era rústica e incluía
antiguidades, como bancos de igreja e velhas mesas de lavrador. Deu a Julia
a impressão de algo como uma weinkeller alemã, como o restaurante
Vinum, que visitara com amigos quando estava em Frankfurt.
Gabriel gostava daquele sítio porque vendiam um certo tipo de Trappist
Ale de que gostava especialmente, Chimay Première, e agradava-lhe ter
piza de estilo napolitano para acompanhar a cerveja. (Como sempre,
impacientava-o a mediocridade.) Uma vez que Gabriel era um patrono
frequente no Caffé Volo e mais do que um pouco picuinhas, foi-lhe
oferecida a melhor mesa, instalada a um canto sossegado perto da grande
janela que dava para a loucura que era a Yonge Street à noite.
Travestis, estudantes universitários, membros das fraternidades, polícias,
felizes casais de homossexuais, felizes casais heterossexuais, celebridades,
yuppies a passear os seus pretensiosos animais de estimação, ativistas
ecológicos, pessoas da rua, artistas de rua, possíveis membros de gangues,
máfia russa, um ou outro professor universitário ou membro do parlamento
provincial, etc. Era uma miríade de fascinante comportamento humano, ao
vivo, e de graça.
Julia instalou-se cautelosamente no seu assento, que era um banco de
igreja convertido, e puxou o tapete de lã de ovelha que o empregado
dobrara sobre as costas do banco para cima dos ombros.
— Tem frio? Vou pedir ao Christopher que nos sente perto da lareira. —
Gabriel fez tenção de fazer sinal ao empregado, mas Julia deteve-o.
— Eu gosto de observar as pessoas — disse timidamente.
— Eu também — admitiu ele. — Mas assim parece um Yeti.
Julia corou.
— Perdoe-me — apressou-se a acrescentar. — Mas decerto que podemos
fazer melhor do que um tapete de pele de ovelha que esteve sabe Deus
onde. Provavelmente costumava enfeitar o chão do apartamento do
Christopher. E quem sabe que tipo de parlapatices foi feito em cima.
Ele acabara mesmo de usar a palavra parlapatices numa frase?
E, com isto, o professor Emerson puxou delicadamente a sua camisola de
caxemira verde por cima do pretensioso laço de borboleta e da cabeça e
passou-lha. Julia aceitou-a e retirou a censurável pele de ovelha para um
lado. Vestiu a camisola de tamanho generoso.
— Melhor? — Ele sorriu, enquanto tentava alisar o cabelo agora
despenteado.
— Melhor. — Ela sorriu, a sentir-se muito mais quente e confortável,
coberta com o calor e perfume que era Gabriel. Teve de dobrar
consideravelmente as mangas, porque os braços dele eram muito mais
compridos que os seus.
— Foi ao Lobby na terça? — perguntou ela.
— Não. Agora, porque é que não me fala da sua proposta? — O tom dele
tornou-se de imediato oficial e professoral.
Por sorte, Christopher interrompeu-os naquele momento para anotar os
pedidos, o que deu a Julia uns preciosos minutos para reordenar as ideias.
— A salada Caesar aqui é muito boa, tal como a piza Napolitana. Mas
são ambas um pouco grandes para uma só pessoa. É do tipo que não se
importa de partilhar? — perguntou Gabriel.
A boca de Julia abriu-se de espanto.
— Quero dizer, importa-se de partilhar comigo, por favor? Ou então pode
pedir o que lhe apetecer. Talvez não queira salada e piza. — Gabriel franziu
o sobrolho, a esforçar-se grandemente para não ser o professor autoritário e
dominador durante pelo menos cinco minutos.
Christopher batia com o pé silenciosamente, pois não queria que O
Professor reparasse na sua impaciência. Já vira O Professor quando estava
irritado e não desejava testemunhar uma repetição dessa atuação. Embora
talvez ele se comportasse de maneira diferente, agora que tinha companhia
feminina (o que era a prescrição profissional de Christopher para qualquer
tipo de distúrbio de personalidade, grande ou pequena).
— Tenho todo o gosto em partilhar consigo uma piza e salada. Obrigada.
— A voz baixa de Julia pôs um fim nas deliberações.
Gabriel fez o pedido e, pouco depois, Christopher apareceu com as suas
Chimays, que Gabriel insistiu que Julia devia experimentar.
— Saúde — disse ele, tocando com o seu copo no dela.
— Prost — replicou ela.
Julia provou a cerveja lentamente, sem conseguir esquecer a sua primeira
cerveja e com quem a bebera. Aquela fora uma cerveja nacional. A que
tinha agora em frente era de um castanho-avermelhado, e doce, e com travo
a malte, tudo ao mesmo tempo. Gostou bastante e gemeu a sua aprovação.
— Custa mais de dez dólares a garrafa — sussurrou ela, não desejando
envergonhar Gabriel nem a si mesma com a audível incredulidade.
— Mas é a melhor. E não prefere beber uma garrafa disto do que duas de
Budweiser, que na verdade é como beber horrível água do banho?
Só posso assumir que qualquer água do banho seja horrível de beber,
professor Emerson, mas aceito que seja verdade. Tarado.
— Bem? Estou a ouvir — instou ele. — O que é que está a pensar? Estou
mesmo a ver as rodas a girarem nessa sua cabecinha. Por isso, diga lá. —
Cruzou os braços na frente do peito e sorriu, como se a cabecinha dela fosse
para ele uma fonte de secreta, condescendente diversão.
Julia eriçou-se. Não gostara do facto de ele usar um diminutivo para se
referir à sua cabeça, pois isso parecia-lhe significar um desprezo pela sua
capacidade intelectual. Assim, decidiu contra-atacar.
— Ainda bem que tivemos uma oportunidade de conversar em privado
— começou, e retirou dois envelopes da mala a tiracolo. — Não posso
aceitar isto. — Fez deslizar por cima da mesa o cartão de oferta do
Starbucks e a carta da bolsa.
Gabriel olhou para ambos os papéis de relance, reconhecendo-os de
imediato, e franziu o sobrolho.
— O que é que a fez pensar que fui que fiz isso? — Voltou a fazê-los
passar para o outro lado da mesa.
— Os poderes de dedução. É a única pessoa que me chama Julianne. É a
única com uma conta bancária suficiente para suportar uma bolsa. — Ela
devolveu os envelopes.
Ele fez uma pausa. Seria mesmo o único a chamar Julianne pelo seu
verdadeiro nome? Como é que todos os outros lhe chamavam?
Julia.
— Tem de os aceitar. — Fez deslizar novamente os papéis na direção
dela.
— Não, não tenho. Os presentes deixam-me bastante desconfortável, e o
cartão do Starbucks é demasiado. Para nem falar da bolsa. Nunca serei
capaz de lhe pagar, e já devo demasiado à sua família. Não posso aceitar. —
Voltou a empurrá-los.
— Pode e vai aceitá-los. O cartão de oferta não tem importância
nenhuma: gasto mais do que isso em café num mês. Preciso de lhe mostrar,
de alguma forma tangível, que respeito a sua inteligência. Disse uma coisa,
num momento de precipitação, que a menina Peterson retorceu. Por isso,
nem sequer é um presente… é mais uma restituição. Disse mal de si; agora
estou a louvá-la. Tem de aceitar, senão esta injustiça ficará por resolver
entre nós, e não acreditarei que me perdoou pela minha indiscrição verbal
na frente de um dos seus pares. — Fez deslizar os envelopes para o outro
lado da mesa e olhou-a de sobrolho franzido para reforçar a ação.
Julia começou a concentrar-se no chique laço que ele trazia ao pescoço
para se distrair do azul ardente dos seus olhos. Perguntou-se como
conseguiria ele manter o laço tão direito. Talvez tenha contratado um
atador de laços profissional, só para esse efeito. Alguém com cabelo
artificialmente louro e saltos altos. E unhas muito compridas.
Voltou a empurrar o cartão do Starbucks para a frente dele com um ar de
desafio. E, para sua grande surpresa, o rosto de Gabriel endureceu e ele
enfiou-o no bolso.
— Não vou ficar a jogar pingue-pongue com o cartão-oferta consigo a
noite toda — disse ele bruscamente. — Mas a bolsa não pode ser devolvida.
O dinheiro não é meu. Limitei-me a alertar o Sr. Randall, o diretor da
organização filantrópica, dos seus feitos.
— E pobreza — balbuciou Julia.
— Se tem alguma coisa a dizer-me, menina Mitchell, agradeço que tenha
a cortesia de falar num nível com que a possa ouvir. — Os olhos dele
faiscavam.
Os dela devolveram as faíscas.
— Não me parece que isto seja muito profissional, professor Emerson.
Está a passar-me milhares de dólares através de uma bolsa, seja lá como a
conseguiu. Parece que está a tentar comprar-me.
Gabriel inalou bruscamente e contou até dez só para evitar uma explosão
verbal.
— Comprá-la? Acredite em mim, menina Mitchell, nada poderia estar
mais longe da minha mente! Fico profundamente ofendido com essa
calúnia. Se a quisesse, de certeza que não teria de a comprar.
As sobrancelhas de Julia elevaram-se de chofre, e ela fez-lhe um olhar
furioso.
— Cuidado.
Gabriel estremeceu sob o seu olhar, o que era nele uma experiência rara.
Ela ficou encantada.
— Não era isso que eu queria dizer. Eu queria dizer que nunca quereria
tratá-la como uma mercadoria. E não é o tipo de rapariga que pode ser
comprada, pois não?
Julia olhou-o glacialmente antes de desviar o olhar. Abanou a cabeça e
começou a olhar para a porta, perguntando-se se conseguiria escapar.
— Porque é que faz isso? — sussurrou ele, passados uns minutos.
— Faço o quê?
— Provocar-me.
— Eu não… eu… eu não estou a provocá-lo. Estou a constatar um facto.
— Seja como for, é extremamente provocante. Sempre que tento ter uma
conversa consigo como uma pessoa normal, tem de me provocar.
— É meu professor.
— Sim, e o irmão mais velho da sua melhor amiga. Não podemos ser
apenas o Gabriel e a Julianne por uma noite? Não podemos ter uma
conversa agradável e um jantar ainda mais agradável e tudo o resto? Pode
não lhe parecer óbvio, mas estou só a tentar ser humano. — Ele fechou os
olhos de frustração.
— Está? — Era uma pergunta inocente feita de boa-fé. Julia levou a mão
à boca quando percebeu como soava, dita em voz alta.
Os olhos azuis-escuros de Gabriel abriram-se lentamente, como o dragão
na história de Tolkien, mas ele não mordeu o isco da impertinência dela. E
não soltou fogo pela boca. Por enquanto.
— Se deseja ser profissional, comporte-se como tal. Uma aluna de
mestrado normal receberia uma carta de oferta de bolsa, ficaria
profundamente agradecida pela sua boa sorte e aceitaria o dinheiro. Por
isso, comporte-se de maneira profissional, menina Mitchell. Podia ter-lhe
escondido a minha ligação à bolsa, mas optei por tratá-la como adulta.
Optei por respeitar a sua inteligência e não tomar parte numa fraude. No
entanto, tive o cuidado de ocultar a minha ligação à bolsa do nosso
departamento. A organização filantrópica não tem o meu nome ligado
publicamente, por isso não posso ser descoberto. E Emerson é um nome
extremamente vulgar. Por isso ninguém acreditará se revelar que estou por
detrás da bolsa.
Ele retirou o seu iPhone do bolso, abriu a aplicação das notas e começou
a escrever com o dedo.
— Eu não ia queixar-me… — começou Julia.
— Podia ter dito obrigada.
— Obrigada, professor Emerson. Mas veja isto pelo meu ponto de
vista… não quero fazer de Heloísa do seu Abelardo. — Ela baixou o olhar
para os seus talheres e começou a ajustar as peças até ficarem
simetricamente alinhadas.
Gabriel recordou-se rapidamente de que já a vira fazer aquilo uma vez,
quando estavam a jantar no Harbour Sixty. Pousou o telemóvel na mesa e
olhou para ela com uma expressão dolorosa, tornada duplamente dolorosa
pela culpa que sentia pelo que quase acontecera na sua sala de leitura. Sim,
estivera muito perto de sucumbir aos consideráveis encantos da menina
Mitchell e a arriscar-se ao destino de Abelardo, pois não havia dúvida de
que Rachel o castraria se descobrisse que ele seduzira a sua amiga.
Miraculosamente, porém, o seu autodomínio provara-se superior ao de
Abelardo.
— Eu nunca seduziria uma aluna.
— Então, obrigada — murmurou ela. — E obrigada pelo gesto da bolsa,
embora não possa prometer aceitá-la. Eu sei que para si é apenas uma
pequena quantia, mas para mim significaria bilhetes de avião para casa por
altura das Ações de Graças, no Natal e na Páscoa. E dinheiro para muito
mais extras que não posso comprar agora. Incluindo bife, de vez em
quando.
— Porque é que o usaria para comprar bilhetes de avião? Eu imaginava
que preferiria gastá-lo num apartamento melhor.
— Não creio que me consiga libertar do meu contrato. E, de qualquer
maneira, ir a casa ver o meu pai é importante para mim. É a única família
que tenho. E gostava de ver o Richard antes de ele vender a casa e se mudar
para Filadélfia.
Na verdade, valia a pena aceitar a bolsa só para poder visitar Richard e
o pomar. Será que a minha macieira favorita ainda lá está? Será que
alguém repararia se gravasse as minhas iniciais no tronco?
Gabriel franziu o sobrolho, por várias razões.
— Não poderia ir a casa de outra maneira?
Ela abanou a cabeça.
— O meu pai queria que apanhasse o avião para casa no Natal, em vez de
ir no Greyhound. Mas os preços na Air Canada são um balúrdio. Eu teria
vergonha de aceitar um bilhete dele.
— Nunca tenha vergonha de aceitar um presente quando não há nada por
trás.
— Está a falar como a Grace. Ela costumava dizer o mesmo.
Ele remexeu-se no seu assento e coçou involuntariamente a nuca.
— Onde é que acha que aprendi o que é a generosidade? Não foi com a
minha mãe biológica.
Julia olhou para Gabriel, encarando o seu olhar sem corar nem pestanejar.
Depois suspirou e voltou a guardar a carta da bolsa na mala, resolvendo
gastar mais tempo a pensar na melhor maneira de lidar com o assunto
quando já não estivesse na presença magnética d’O Professor. Pois via que
discutir com ele não a levaria a lado nenhum. E, nesse respeito, tal como em
tantos outros, ele era exatamente como Pedro Abelardo, sensual, inteligente
e sedutor.
Ele olhou-a.
— Mas, apesar de tudo o que tentei fazer, que não é muito, admito, vai
continuar a passar fome?
— Gabriel, eu tenho um relacionamento ténue com o meu estômago.
Esqueço-me de comer quando estou ocupada, ou preocupada, ou… ou
triste. Não tem a ver com dinheiro… as coisas são mesmo assim. Por favor,
não se preocupe. — Ela reajustou de novo os seus talheres.
— Então… está triste?
Ela bebericou lentamente a sua cerveja e ignorou a pergunta.
— É Dante que a torna infeliz?
— Por vezes — sussurrou ela.
— E nas outras vezes?
Ela olhou-o e um sorriso doce espalhou-se pelo seu rosto.
— Não consigo evitar… nas outras, ele torna-me delirantemente feliz.
Por vezes, quando estudo A Divina Comédia, sinto que estou a fazer o que
sempre fui destinada a fazer. Como se tivesse encontrado a minha paixão, a
minha vocação. Já não sou aquela menina tímida de Selinsgrove. Consigo
fazer isto, sou boa, e isso faz-me sentir… importante.
Era demasiado. Demasiada informação. A cerveja bebida rapidamente, o
afluxo de sangue à cabeça, o perfume dele, que se erguia da camisola e era
pesado no seu nariz. Nunca devia ter-lhe dito aquelas palavras, a ele, logo a
ele.
Mas viu-o olhá-la calorosamente, o que a surpreendeu.
— É tímida, é verdade — murmurou Gabriel. — Mas isso não é nenhum
vício. — Pigarreou. — Invejo o seu entusiasmo por Dante. Costumava
sentir-me dessa maneira. Mas, para mim, foi há muito tempo. Demasiado
tempo. — Sorriu-lhe de novo e desviou o olhar.
Julia inclinou-se sobre a mesa e baixou a voz.
— Quem é M. P. Emerson?
Uns sobressaltados olhos azuis voaram para os dela, a arder com a
intensidade de um laser.
— Preferia não falar sobre isso.
O tom não era áspero, mas era muito, muito frio, e Julia percebeu que
tocara algum nervo tão magoado, tão em carne viva, que ainda vibrava de
dor. Levou um momento a recompor-se e, antes de ter considerado
plenamente a prudência da sua pergunta, falou novamente.
— Está a tentar ser meu amigo? É isso que estava a tentar comunicar
comigo com a bolsa?
Gabriel franziu o sobrolho.
— Foi a Rachel que lhe disse isso?
— Não. Porquê?
— Ela acha que devíamos ser amigos. Mas eu digo-lhe o que lhe disse a
ela… é impossível.
Julia sentiu um aperto na garganta, e engoliu ruidosamente.
— Porquê?
— Nós existimos sob a bandeira vermelha do profissionalismo. Os
professores não podem ser amigos dos seus alunos. E mesmo que fôssemos
apenas a Julianne e o Gabriel a comer uma piza juntos, não quereria ser
minha amiga. Sou um íman para o pecado, e a Julianne não é. — Sorriu
tristemente. — Por isso, como vê, é inútil. «Abandonai toda a esperança,
vós que aqui entrais.»
— Não gosto de pensar em nada como inútil — sussurrou ela para os
seus talheres.
— Aristóteles dizia que a amizade só é possível entre duas pessoas
virtuosas. Por conseguinte, a amizade entre nós é impossível.
— Ninguém é verdadeiramente virtuoso.
— A Julianne é. — Os olhos azuis de Gabriel arderam nos dela com algo
próximo da paixão e admiração.
— A Rachel disse-me que estava na lista VIP do Lobby. — Julia voltou a
mudou de assunto habilmente, continuando a não pensar no que dizia.
— É verdade.
— Pediu segredo sobre o assunto. Porquê?
Gabriel ficou carrancudo.
— O que é que acha?
— Não sei. Foi por isso que perguntei.
Ele fixou-a com o olhar e baixou o tom de voz.
— Frequento-o regularmente, daí o estatuto de VIP. Embora não tenha lá
ido muito, ultimamente.
— Porque é que vai? Não gosta de dançar. É só para beber? — Julia
olhou em volta do interior simples mas confortável do Caffé. — Aqui
também se pode beber. Acho isto muito mais simpático. É gemütlich…
acolhedor. — E não parece haver nenhuma rameira emersoniana à vista.
— Não, menina Mitchell, normalmente não vou ao Vestíbulo para beber.
— Então porque é que vai?
— Não é óbvio? — Franziu o sobrolho. Depois abanou a cabeça. —
Talvez não seja para alguém assim.
— O que é que isso quer dizer? Alguém assim?
— Quer dizer que não percebe o que me está a perguntar — bradou ele,
zangado. — Caso contrário, não me obrigaria a dizê-lo! Quer saber porque
é que lá vou? Eu digo-lhe porque lá vou. Vou para encontrar mulheres para
foder, menina Mitchell. — Agora estava mesmo lixado e com um olhar
furioso. — Está mais feliz agora? — grunhiu.
Julia inalou profundamente e conteve o ar. Quando não conseguiu
aguentar mais, abanou a cabeça e expirou.
— Não — disse em voz baixa, de olhos nas mãos. — Porque é que isso
me deixaria feliz? Deixa-me nauseada, na verdade. Mesmo, mesmo
nauseada. Nem faz ideia.
Gabriel suspirou profundamente e colocou as duas mãos atrás da nuca.
Não estava zangado com ela. Estava zangado consigo mesmo. E sentia-se
envergonhado. Uma parte de si queria repeli-la intencionalmente —
mostrar-se nu na frente dela, sem esconder nada — para a deixar vê-lo
como realmente era, uma criatura negra, sinistra, exposta pela sua virtude.
Depois ela afastar-se-ia.
Talvez fosse isso mesmo que o seu subconsciente estava já a tentar fazer
com aquelas explosões ridículas e pouco profissionais. Pois nunca na vida
deveria ter dito o que acabara de dizer a um aluno, muito menos a uma
aluna, mesmo que fosse verdade. Julia estava a desarmá-lo lentamente,
pouco a pouco, e ele não conseguia perceber como.
Os olhos azuis de Gabriel encontraram os dela. E no rosto pálido e
atraente, Julia leu remorsos.
— Peço desculpa. Eu sei que a enojei. — Falava muito baixo. — Mas
acredite em mim quando lhe digo que essa é uma reação muito boa para se
ter pela minha pessoa. Deve mesmo sentir repulsa por mim. Sempre que
estou perto de si, eu só a corrompo.
— Não me sinto corrompida.
Ele olhou-a tristemente.
— Só porque não sabe o que isso significa. E, quando perceber, será
demasiado tarde. Adão e Eva não perceberam o que tinham perdido até
serem expulsos do Paraíso.
— Sei alguma coisa acerca disso — balbuciou Julia. — E não aprendi
com a leitura de Milton.
Nesse momento, Christopher levou-lhes a piza, terminando efetivamente
aquela conversa desconfortável. Gabriel fez o papel de anfitrião, servindo
primeiro a salada e a piza de Julia e garantindo que ela recebia mais lascas
de parmesão e croutons do que ele. E não foi porque não gostasse desses
ingredientes; gostava bastante de ambos.
Enquanto comiam e Julia recordava a primeira refeição silenciosa que
tinham tido juntos, começou a tocar no sistema de som uma música que era
tão doce que ela pousou o garfo para escutar.
Gabriel também ouvia a música, e começou a cantarolar baixinho para si
mesmo, quase um sussurro, qualquer coisa sobre céu e inferno e virtude e
vício.
Julia ficou espantada com a arrepiante relevância das palavras. Mas
depois Gabriel parou, subitamente inseguro, e começou a concentrar a sua
atenção na piza. Ela olhou-o de relance, de queixo caído. Não sabia que ele
cantava assim. E ouvir aquela boca perfeita, aquela voz perfeita, a cantar
aquelas palavras…
— Que linda música. De quem é?
— Chama-se You and Me, de Matthew Barber, um músico local.
Apanhou aquela parte… aquela sobre virtude e vício? Acho que ambos
sabemos qual dos termos se aplica a cada um de nós.
— É bonito mas triste.
— Sempre tive uma terrível fraqueza por coisas bonitas mas tristes. —
Ele encarou-a cuidadosamente antes de desviar o olhar. — Suponho que
agora devemos começar a discutir a sua proposta de tese, menina Mitchell.
Julia viu que a máscara profissional que ele usava estava agora
firmemente instalada. Respirou fundo e começou a descrever o seu projeto,
invocando os nomes de Paolo e Francesca, e Dante e Beatriz, quando foi
interrompida pelo telefone de Gabriel.
O tom do toque soava como o Big Ben. Ele ergueu um dedo para indicar
a Julia que fizesse uma pausa enquanto olhava para o ecrã do iPhone. Algo
perturbador lhe percorreu brevemente o rosto.
— Tenho de atender. Peço desculpa. — Gabriel levantou-se e atendeu o
telefone num movimento breve. — Paulina?
Dirigiu-se para a sala ao lado, mas Julia continuava a ouvi-lo.
— O que é que se passa? Onde estás? — A voz dele ficou abafada.
Julia ocupou-se com a sua cerveja e o jantar, a perguntar-se quem seria
Paulina. Nunca ouvira aquele nome. Gabriel parecera profundamente
perturbado quando vira o que quer que vira no ecrã do telefone.
Será M. P. Emerson — Paulina? Será a ex-mulher? Ou M. P. será um
código para outra coisa qualquer e ele está só a brincar comigo?
Gabriel regressou cerca de quinze minutos mais tarde. Não se sentou.
Estava agitado ao máximo, de rosto pálido e quase a tremer.
— Tenho de ir. Lamento muito. Já paguei o jantar e pedi ao Christopher
para lhe arranjar um táxi quando terminar.
— Eu posso ir a pé. — Julia inclinou-se para pegar na sua mala.
Ele ergueu a mão para a deter.
— De maneira nenhuma. Não vai andar a esta hora da noite na Yonge
Street sozinha. Tome. — Passou uma nota dobrada para o outro lado da
mesa. — Para o táxi e para o caso de querer comer ou beber mais alguma
coisa. Por favor, fique e termine o seu jantar. E leve as sobras para casa, está
bem?
— Não posso aceitar o seu dinheiro. — Ela fez um movimento para lhe
devolver a nota e ele fez-lhe um olhar trémulo.
— Por favor, Julianne. Agora não. — Ele estava a esfregar os olhos com
uma mão.
Ela sentiu pena dele e decidiu não discutir.
— Desculpe ter de a deixar. Eu…
Ele parecia pesaroso, muito pesaroso com alguma coisa. Estava
angustiado, gemia involuntariamente. Sem pensar, Julia enfiou a mão na
dele, um movimento de compaixão e solidariedade. Ficou surpreendida por
ele não recuar nem lhe retirar a mão.
Apertou-lhe os dedos imediatamente, como se estivesse agradecido pelo
contacto. Abriu os olhos e olhou para ela, e, lentamente, começou a mover
os dedos pelas costas da mão dela, acariciando-a levemente. Era tão
confortável e doce. Como se o tivesse feito um milhar de vezes. Como se
ela lhe pertencesse. Ergueu-lhe a mão, junto à boca, e ficou a olhar para ela.
— Eis ainda o cheiro do sangue; nem todos os perfumes da Arábia
apagarão o cheiro desta pequena mão — sussurrou. Gabriel beijou-lhe a
mão reverentemente, mas era para a sua própria que olhava fixamente. —
Boa-noite, Julianne. Vejo-a na quarta-feira… se eu ainda cá estiver.
Julia anuiu e viu-o sair e desatar a correr assim que os seus pés atingiram
o passeio. Foi só quando ele desapareceu que se apercebeu de que ainda
tinha vestida a sua preciosa camisola de caxemira e que, enfiada na nota de
cinquenta dólares que ele lhe deixara, estava o cartão de oferta do
Starbucks, com uma nota escrita no envelope:
J,
Não pensou mesmo que eu ia desistir tão facilmente, pois não? Nunca se envergonhe de
aceitar um presente quando não tem nada por trás.
Não há aqui nada por trás.
Adeus
Gabriel
Capítulo Treze

N a manhã seguinte, Julia ainda não tinha decidido o que havia de fazer
a respeito da bolsa. Não tinha pressa de fazer nada que pudesse expor
a generosidade de Gabriel às mentes desconfiadas da administração da
universidade, pois sabia como isso seria perigoso para ele.
E não tinha pressa de fazer nada que a expusesse como outra coisa que
não uma aluna séria, por isso sentia reticências em dirigir-se ao diretor do
departamento e explicar que não estava interessada na bolsa. Pois a bolsa
seria um impressionante contributo no seu currículo, e as alunas sérias,
supostamente, importavam-se mais com coisas como essa do que com
coisinhas parvas como o orgulho pessoal.
Em termos clássicos, a menina Mitchell dava por si presa entre a Cila de
proteger Gabriel e se proteger a si mesma e a Caríbdis de se agarrar ao seu
orgulho. Infelizmente para o seu orgulho, o verdadeiro risco estava alinhado
com a sua rejeição da bolsa; o risco podia ser evitado se se limitasse a
aceitar o dinheiro. Não gostava disso. Nem um pouco. Especialmente tendo
como pano de fundo a generosidade de Rachel, que lhe comprara o vestido
e os sapatos, e a tentativa não muito secreta de Gabriel de lhe substituir o
saco dos livros.
Não mencionara que devolvera a sua mochila à L.L. Bean e que
aguardava ansiosamente a sua substituição. E tencionava inteiramente usá-
la quando chegasse, só para reafirmar a sua independência.
Na sexta-feira à noite, impaciente por respostas, Julia enviou uma curta
mensagem a Rachel, a contar-lhe a história da bolsa e a perguntar-lhe se
sabia quem era M. P. Emerson.
Rachel respondeu-lhe imediatamente:
J: G fez o quê? Nunca ouvi falar da fundação. Nunca ouvi MPE.
MP = mãe bio de G? Avó? Bj, R.
P.S. A. manda bjs e obrigado

Julia pensou por um bocado na mensagem de Rachel, mas ficou


convencida pela sua sugestão. M. P. devia ser a avó de Gabriel, pois não
conseguia imaginá-lo a dar a uma bolsa o nome de alguém que odiava. E
tinha a certeza que Gabriel abrigava ódio pela sua mãe biológica.
Embora fosse possível, pensou Julia, que, se Gabriel era reservado até
com Rachel, houvesse muitas coisas que escondia dela. Por isso, num rasgo
de ousadia gerado por um ou dois shots de tequila, Julia enviou outra
mensagem a perguntar se Gabriel tinha namorada em Toronto a quem
pudesse perguntar a respeito da bolsa. E recebeu de imediato a seguinte
resposta na sua caixa de entrada de e-mail:
Julia!
Okay, que se lixe o telemóvel — os botões são demasiado pequenos.
O Gabriel NUNCA teve uma namorada, tanto quanto eu saiba. Nunca levou nenhuma lá a
casa para conhecer o pai e a mãe, mesmo quando andava na secundária. O Scott, uma vez,
acusou-o de ser gay. Mas o Scott não era propriamente um bom radar de gays.
Viste como o apartamento do Gabriel estava decorado? E as fotos que ele tem no quarto?
Espera. Viste as fotos? Nenhuma namorada localmente — de certeza. Acho que só umas
quecas casuais. Embora ele tivesse ficado esquisito quando lhe perguntei. Tem 33 anos, pelo
amor de Deus — andar a brincar já não tem muita graça.
Tens a certeza que ele não inventou M. P. Emerson? Vou perguntar ao Scott e já falo
contigo. Não quero inquietar o meu pai perguntando-lhe a ele — tem estado mal e… tu
sabes.
Eu e o Aaron vamos a caminho das Queen Charlotte Islands para ficar numa cabana de
madeira duas semanas. Sem internet. Sem telemóveis. Só nós — paz, sossego e jacuzzi ao
ar livre.
Por favor, impede o Gabriel de cair no precipício antes de eu voltar.
Adoro-te, R.

P.S. O Aaron quer cumprimentar-te pessoalmente.

Olá, Julia. É o Aaron.


Obrigado por cuidares tão bem da minha noiva enquanto ela esteve no Canadá. Voltou uma
pessoa diferente, e sei que não foi por causa do Gabriel.
Sentimos a tua falta no funeral — queríamos muito ver-te nas Ações de Graças. Se não
estavas a planear vir a casa, podes reconsiderar? Vai ser difícil sem a Grace. O Richard (e a
Rachel) precisam da família à sua volta, e isso implica-te a ti também.
Tenho milhas de passageiro frequente — posso mandar-te um bilhete.
Pensa nisso.
Adoro-te, miúda,
Aaron.
Julia limpou uma lágrima perante a doçura que era Aaron, sentindo-se
feliz e aliviada por ele e a sua noiva continuarem muito apaixonados. O que
Julia não daria para ser amada daquela forma…
Perguntou-se porque é que a oferta de milhas de passageiro frequente de
Aaron se salientara no monitor do seu computador como outra coisa que
não caridade, e porque estava a ponderar a sua amável oferta. Depois
ocorreu-lhe — Grace tinha razão. Quando não havia nada por trás, e um
presente era dado por amor, ou amizade, que era uma espécie de amor, não
havia vergonha em aceitá-lo. Se Julia aceitasse o presente de Aaron, poderia
fazer parte da primeira festividade de Ações de Graças de Richard sem
Grace e devolver a bolsa Emerson na mesma.
Ao pensar em Grace, Julia perguntou-se se seria eficaz rezar uma
pequena oração a Grace tanto por si como por Gabriel, pois Grace era uma
verdadeira santa, uma mãe celestial, e sem dúvida que ela enviaria ajuda
aos seus filhos. Por isso, enquanto Santa Lúcia ia de férias com o amado
Aaron, Julia virou a sua atenção aos céus e pediu pela intercessão da sua
mãe celestial nas vidas de todos eles, acendendo uma vela à janela do seu
pequeno estúdio numa solitária noite de sexta-feira em memória de Grace.
E, antes de se arrastar para a cama de solteiro com o seu coelho de
veludilho, resolveu aceitar graciosamente a oferta de Aaron, como prova da
sua própria recém-descoberta abertura à caridade e da sua capacidade de
engolir o orgulho quando isso era apropriado. O que significava, não
surpreendentemente, que o seu pecado mortal não era assim tão mortal.

N a ausência de Paul, Julia decidiu passar um longo sábado na


biblioteca, a trabalhar na sua proposta de tese na sala de leitura do
professor Emerson. Uma parte de si desejava secretamente que O Professor
a surpreendesse outra vez, mas isso não aconteceu. E as palavras dele
vinham-lhe à mente: «Vemo-nos na quarta-feira… se ainda cá estiver.»
Julia percebeu que, apesar do que Rachel lhe dissera, era mais do que
possível que Gabriel tivesse uma namorada chamada Paulina. Lembrava-se
que Gabriel atribuíra os sinos do Big Ben ao toque de chamada de Paulina.
Estaria Paulina em Londres? Seria inglesa? Ou haveria alguma coisa no Big
Ben que Gabriel julgava importante? Julia foi pesquisar Big Ben na
Wikipédia, mas não encontrou nada particularmente esclarecedor.
(A Wikipédia pode ser assim.)
Não era ingénua, apesar do que Gabriel pensava a seu respeito. Sabia que
ele não era virgem, e que já não o era quando o conhecera. Ainda assim,
sabê-lo e tê-lo atirado à sua cara eram duas coisas muito diferentes.
Os seus pensamentos foram levados para Gabriel e Paulina ou alguma
outra rapariga sem nome nem rosto, pele contra pele, os corpos
entrelaçados. Viu Gabriel a beijar os lábios da rapariga e a explorar-lhe o
corpo com a boca, as mãos, os olhos. Viu Gabriel a dar e a receber prazer
físico de uma loura alta e perfeita. Imaginou Gabriel em êxtase, a gritar o
nome da rapariga, a olhá-la profundamente nos olhos enquanto o seu corpo
atingia o clímax. Pensou em Gabriel a tornar-se um só com alguma outra
alma, a pertencer, desta maneira, a alguma outra rapariga. Será que ela o
amava? Seria ela bondosa com ele? Quereria que ele fosse um homem
melhor, ou desejá-lo-ia apenas pelo seu corpo, a sua paixão, a sua natureza
animalesca? Interessar-se-ia ela por saber que, por detrás daqueles olhos
lindos, estava a alma de um homem há muito desaparecido, ferido e a
necessitar tanto de redenção como de cura? Ou quereria arrastá-lo ainda
mais para o fundo, enredando-o com o corpo e com as suas unhas?
A ideia de Gabriel a levar outra rapariga, qualquer rapariga, para a cama,
talvez para a alma, feria-a profundamente. Mas, de alguma forma, a ideia de
haver outra rapariga que lhe aquecia a cama por mais do que apenas uma
noite era absolutamente devastadora — porque ela queria ser essa rapariga,
para sempre.
Por mais tristes e sórdidas que fossem aquelas imagens, não a impediram
de, algo pateticamente, levar vestida a camisola de caxemira verde para a
biblioteca e de fechar os braços contra o peito, só para se envolver a si
mesma contra a sua suavidade e o seu perfume. Pois aquilo parecia ser o
mais perto que alguma vez estaria de ter o corpo dele contra o seu.
Na sala de leitura do professor Emerson, Julia pôs de lado o CD de Paul,
preferindo ouvir Yael Naim. Julia adorava a música Far Far, embora não
fizesse ideia de como eram apropriadas as palavras de Yael. Julia passara a
maior parte da sua vida à espera que as coisas boas lhe acontecessem,
mantendo as esperanças e sonhos para si própria. Mas em breve viria o dia
em que teria de fazer com que alguma coisa acontecesse.
A música tranquila permitiu-lhe fazer muito progresso na sua proposta de
tese, à medida que trabalhava até a biblioteca fechar.
Ao sair, colocou os auriculares firmemente nos ouvidos e desdenhou a
carrinha dos cachorros-quentes a favor de um jantar líquido. Comprou um
enorme batido de manga e começou o caminho de regresso a casa, a beber a
sua refeição e a pensar. Como estava embrenhada nos seus pensamentos, a
perguntar-se onde estaria Gabriel e o que andaria a fazer, quase não viu
Ethan, que lhe acenou quando passou a longa fila em frente ao Lobby.
— Olá, Ethan. — Sorriu-lhe enquanto retirava os auscultadores dos
ouvidos.
Ele fez-lhe sinal para se aproximar.
— Olá, Julia. Queria agradecer-lhe novamente por me ter ajudado na
mensagem para a Raphaela. Ela adorou mesmo. — Se Ethan pudesse corar,
isso teria acontecido; os seus olhos negros cintilavam, e o seu sorriso era
enorme. — Ela agora está a ensinar-me italiano.
Julia sorriu, feliz por Ethan e a namorada estarem felizes.
— Então, como estão as coisas esta noite? Muita gente? — Ela olhou de
relance para a longa fila.
— Vou agora deixar entrar algumas pessoas, mas primeiro vou ter de pôr
uma fora.
— A sério? Isso parece horrível.
Ele abanou a cabeça.
— O seu amigo está lá dentro a beber como o raio. O empregado do bar
recusa-se a dar-lhe mais álcool, o que significa que tenho de o pôr num táxi
e mandá-lo para casa.
As sobrancelhas de Julia ergueram-se de chofre, com a surpresa. Gabriel
está aqui? Então e a Paulina?
— Na última vez que o expulsei, ele deu-me um murro. Neste momento,
estou só à espera que um dos outros seguranças me venha substituir à porta.
Tenho de ir lá dentro buscá-lo, e provavelmente terei de levar reforços. —
Olhou para Julia com um ar pensativo. — A não ser que a Julia consiga
convencê-lo a sair pacificamente.
Julia abanou a cabeça violentamente.
— Está a brincar? Ele não me vai ligar nenhuma. Nem sequer sou amiga
dele.
— Não foi a impressão com que fiquei quando cá esteve, mas
compreendo. Tudo bem. — Ele encolheu os ombros despreocupadamente e
olhou para o seu relógio.
Julia bebeu um pouco do seu batido e começou a pensar na promessa a
Rachel. Perguntou-se se aquele constituiria um caso em que estava
moralmente obrigada a olhar por Gabriel. E se eu me for embora e o homem
acabar na cadeia? Ele tentou ser simpático comigo esta semana. Não posso
ignorar isto — seria um mau karma.
— Mmm, posso tentar falar com ele. Ver se ele sai por vontade própria
— sugeriu, algo hesitantemente. — Não quero que seja preso.
— Nem eu. Gostamos que os nossos VIP estejam sempre felizes. Mas ele
tem estado a despachar duplos desde que aqui chegou, e não lhe podemos
servir mais. Talvez ouça a voz da razão e concorde em ir para casa dormir
até lhe passar a bebedeira. — Ethan desviou a corda de veludo para lhe dar
passagem.
— Não estou propriamente vestida para isto. — Julia baixou o olhar para
os seus ténis, calças de ganga rasgadas e a camisola de Gabriel,
pesadamente perfumada mas demasiado larga.
— Está ótima. Mas, ouça, se o achar demasiado passado, ou se não
estiver para o aturar, saia logo cá para fora. Ele pode ser uma carga de
trabalhos, quando está bêbado.
Julia sabia exatamente como Gabriel podia ser quando estava bêbado,
mas lembrou a si mesma como ele fora doce, naquela noite, há tanto tempo.
Entrou na discoteca, esperando que ninguém a reconhecesse. Soltou
rapidamente o cabelo do rabo-de-cavalo e deixou-o cair em volta do rosto,
usando-o para ocultar o rosto de olhos curiosos. Rezou desesperadamente a
todos os deuses dos bares estilo-Manhattan que mantivessem Brad Curtis
bem longe, naquela noite. Não queria cruzar-se com ele com aquele aspeto.
Vestiu o jaquetão azul-marinho e abotoou-o até ao pescoço, porque não
queria que Gabriel visse que trazia a sua camisola vestida — ainda.
Não levou muito tempo a localizá-lo. Estava sentado no bar, a conversar
com uma mulher atraente que estava de costas voltadas para Julia. Ele não
olhava para a morena, que tinha a mão enredada no cabelo dele e o puxava
contra si pela gravata, mas para o copo de uísque vazio. Não parecia feliz,
mas provavelmente tinha mais a ver com a sua companhia de bebida do que
com outra coisa qualquer.
Do seu ponto de observação, a uns metros de distância, Julia percebeu
que a rameira emersoniana que estava praticamente sentada ao seu colo,
com o peito a pairar na frente da boca dele, era nada menos do que Christa
Peterson. Merda. Estará a pensar ir para casa com ela?
Julia soube sem sombra de dúvida que aquele era um momento em que
teria de olhar por Gabriel. Se ele dormisse com Christa, não só estaria a
violar a política de não-confraternização e a pôr a sua carreira académica
em risco, como acabaria embrulhado numa pérfida situação pessoal com a
aspirante-a-futura-senhora-Emerson. Era mais do que possível que Christa
estivesse a tentar seduzi-lo para poder vingar-se do que transpirara no
Starbucks no princípio daquela semana — as ações de Gabriel a favor de
Julia.
Em qualquer caso, Julia não ia permitir que a sedução fosse para diante.
Nem por mais um minuto.
Tira as mãos de cima do Precioso, Gollum.
Deu meia-volta e saiu novamente, aparecendo atrás de Ethan e
sussurrando-lhe ao ouvido.
— Preciso da sua ajuda. Ele está com uma rapariga com quem não pode
mesmo ir para casa. É uma das suas alunas, por isso preciso de os separar
antes de o Ethan o meter num táxi.
Ethan encolheu os ombros.
— Não sei muito bem o que é que eu posso fazer. Isso é assunto dele.
— E se uma das empregadas entornasse uma bebida em cima dela e a
mandasse para a casa de banho? Depois talvez eu pudesse convencer o
Gabriel a ir para casa.
— Acha que o consegue convencer?
Julia pestanejou enquanto parava um momento para pensar.
— Não sei. Se os separarmos, terei mais hipóteses. Duvido que ele
consiga formar um pensamento coerente se tiver umas mamas plásticas na
cara.
Oh, deuses de todos os alunos-de-mestrado-que-se-esforçam-por-fazer-
uma-coisa-boa-por-velhas-amigas, ajudem-me a arrancar aquela rameira
emersoniana de cima da pila dele. Por favor.
Ethan riu-se.
— Um bocado capa e espada, não acha? Mas, tudo bem, de certeza que o
empregado do bar nos pode ajudar. Ele tem sentido de humor. Se o Emerson
lhe causar algum problema, peça-lhe que me mande chamar. Está bem?
— Está bem.
Ethan fez uma chamada no seu telemóvel e, dois minutos depois, estava a
fazer sinal a Julia para ir atrás de Gabriel. Ela respirou fundo, endireitou os
ombros e voltou a entrar no clube. Gabriel estava a rir-se. Alguma coisa o
divertira, e Julia viu-o a uivar, de cabeça atirada para trás, as mãos
agarradas à barriga.
Julia teve de admitir que ele era ainda mais atraente quando sorria. Tinha
uma camisa verde-pálido, com os dois botões de cima desabotoados a
revelar os pelos do peito que sobressaíam, como uns poucos pés de relva,
sobre a brancura de neve da sua t-shirt. Felizmente, já saíra dos anos
cinquenta e livrara-se do laço; a gravata de seda que usava era riscada preto
sobre preto e pendia, solta, em volta do seu pescoço. Usava calças formais e
sapatos pretos muito brilhantes e demasiado bicudos.
Em resumo, estava embriagado, mas era perfeito.
— Professor?
Ele parou de rir e virou-se para Julia, um enorme sorriso abrindo-se no
seu rosto. Parecia muito feliz por vê-la. Demasiado feliz.
— Menina Mitchell! A que devemos este prazer inesperado? — Pegou-
lhe na mão e levou-a aos lábios, deixando-a ali por alguns segundos.
Julia não conseguiu deixar de franzir o sobrolho. Ele não parecia
embriagado, mas estava a mostrar-se amigável, até algo atiradiço, por isso
tinha de o estar.
(Ou então recebera um transplante de personalidade de alguém
encantador como, por exemplo, Daniel Craig.)
— Podia ajudar-me a chamar um táxi? Preciso de ir para casa. — Julia
retirou a mão, enquanto estremecia com a pobreza do seu próprio
estratagema.
— Por si, qualquer coisa, menina Mitchell. Qualquer coisa mesmo. Posso
primeiro pagar-lhe uma bebida? — Sorriu enquanto pegava numas notas e
as entregava ao empregado do bar.
— Hum, não, já tenho uma. — Ergueu o seu batido e acenou-lho debaixo
do nariz.
O empregado olhou com desdém para o seu colorido copo de take-out,
mas acertou a conta de Gabriel e depois continuou o seu trabalho.
— Porque é que está a beber isso? Combina bem com cuscuz? — Gabriel
riu-se.
Julia mordeu o lábio.
Ele parou de rir imediatamente, franziu o sobrolho e puxou com alguma
rudeza o lábio dela com o polegar até lho libertar de entre os dentes.
— Não faça isso. Vai deixá-lo a sangrar. — Retirou o polegar e
aproximou o rosto do dela. Demasiado perto, na verdade. — Era uma piada,
aquilo dos cuscuz.
Julia ainda estava a tentar recuperar o fôlego, depois da vaga de calor que
experimentara por ter o polegar dele entre os seus lábios.
— Não teve graça, pois não? É feio gozar com a pobreza de uma pessoa.
E é uma menina tão querida.
Julia cerrou os dentes, a pensar quanta atitude condescendente daquela
conseguiria aguentar antes de decidir largá-lo (e à sua pila) nas garras de
Christa.
— Professor, eu…
— Estava mesmo agora a conversar com uma pessoa. A menina
conhece… é uma verdadeira megera. — O olhar ébrio de Gabriel varreu
ociosamente a sala antes de se depositar novamente sobre Julia. — Já se foi
embora. Ainda bem. É uma cabra perversa.
Julia anuiu. E sorriu.
— Ela olhou para si como se fosse lixo, mas tratei de tudo. Se voltar a
incomodá-la, deixa de ser minha aluna. Vai ficar tudo bem.
Aproximou de novo o rosto do dela e, lentamente, muito lentamente,
lambeu os lábios vermelhos e perfeitos.
— Não devia estar num lugar destes. Já passou da sua hora de deitar, não
passou? Devia estar a dormir na sua caminha cor de púrpura, enroscada
como uma gatinha. Uma linda gatinha com grandes olhos castanhos.
Gostava de lhe fazer festinhas.
Julia arqueou as sobrancelhas. Onde raio ia ele buscar aquelas coisas?
— Mm, eu preciso mesmo de ir para casa. Já. Importa-se de vir comigo
lá fora e ajudar-me a arranjar um táxi? Por favor, professor? — Julia fez um
gesto vago na direção da saída, ao mesmo tempo que tentava distanciar-se
um pouco dele.
Gabriel agarrou de imediato a sua gabardina.
— Desculpe. Deixei-a abandonada na quinta-feira. Não voltarei a fazê-lo.
Vou levá-la para casa, gatinha.
Ofereceu o braço de uma maneira muito apropriada e antiquada e ela
aceitou-o, a perguntar-se quem estaria exatamente a conduzir quem.
Quando chegaram à rua, Ethan estava parado ao lado de um táxi, a abrir-
lhes a porta.
— Menina Mitchell — sussurrou Gabriel, pousando-lhe a mão ao fundo
das costas, a encaminhá-la suavemente na direção da porta aberta do táxi.
— Pensando bem, posso ir a pé — protestou ela, e tentou desviar-se.
Mas Gabriel foi insistente, e Ethan também, provavelmente porque
estava a tentar livrar-se daqueles dois antes que O Professor decidisse que
não se queria ir embora e o deixasse entalado. Por isso, a bem dele e para
evitar Christa, o Gollum que poderia reaparecer a qualquer momento para
tentar arrancar-lhe de novo o Precioso, Julia enfiou-se no táxi e deslizou
para o outro lado.
Gabriel entrou atrás dela. Julia mantinha o nariz levemente elevado para
não apanhar uma bebedeira inalante com todo o uísque que ele absorvera.
Ethan passou umas notas ao condutor e fechou a porta atrás deles, acenando
a Julia quando o táxi arrancou.
— Edifício Manulife — disse Gabriel para o taxista.
Julia ia corrigir O Professor e dar a sua morada quando Gabriel a
interrompeu.
— Não veio ao Vestíbulo tomar uma bebida. — Ele estava a olhar para as
roupas dela, e os seus olhos demoraram-se com alguma avidez na carne dos
seus joelhos, exposta debaixo das calças rasgadas.
— Foi um azar. Estava no sítio errado no momento errado.
— Nada disso — sussurrou ele, com um sorriso a brincar-lhe ao canto
dos lábios. — Diria que teve uma sorte incrível. E, agora que a vi, eu
também.
Ela suspirou. Era demasiado tarde para pedir ao taxista para dar meia-
volta; viajavam agora na direção oposta. Teria de garantir que O Professor
chegava a casa são e salvo antes de regressar a pé para casa. Abanou a
cabeça e bebeu um longo trago do seu batido.
— Estava a espiar-me? — Os olhos de Gabriel fixaram os dela
desconfiadamente. — A mando da Rachel?
— Claro que não. Vinha da biblioteca para casa quando o vi pela janela.
— Viu-me e decidiu entrar para falar comigo? — Ele parecia
surpreendido.
— Sim — mentiu Julia.
— Porquê?
— Só conheço duas pessoas em Toronto. O professor é uma delas.
— É uma pena. Suponho que o Paul seja a segunda.
Julia olhou-o cautelosamente mas não disse nada.
— Fornicador-de-Anjos.
Ela franziu o sobrolho.
— Porque é que está sempre a chamar-lhe esse nome?
— Porque é o que ele é, menina Mitchell. Ou antes, o que ele deseja ser.
Por cima do meu cadáver. Pode dizer-lhe isso mesmo… diga-lhe que se
fornicar o anjo, está em grandes sarilhos.
Julia arqueou uma sobrancelha perante aquela irreverência excêntrica e
obviamente medieval e a sua concomitante explicação. Já o vira bêbado
anteriormente, claro, e sabia que a sua embriaguez vacilava entre momentos
de absoluta lucidez e total loucura.
Como é que alguém fornica um anjo, exatamente? Os anjos são criaturas
imateriais, espirituais. Não têm genitais. Gabriel, é mesmo um especialista
de Dante doentio.
Chegaram em pouco tempo ao prédio dele e saíram ambos do táxi. Não
era muito longe para Julia fazer o caminho a pé para casa — apenas uns
quatro quarteirões. E não tinha dinheiro para um táxi, de qualquer maneira.
Por isso, sorriu a Gabriel, desejou-lhe boa-noite e deu a si mesma uma
palmadinha nas costas mental por ter feito a Rachel um favor. Depois,
acompanhada com o seu batido, começou a sua longa e solitária caminhada
de volta a casa.
— Perdi a chave — gritou ele, a apalpar os bolsos das calças e
precariamente encostado a uma falsa palmeira envasada. — Mas encontrei
os meus óculos! — Ergueu as armações pretas da Prada.
Julia fechou os olhos e respirou fundo. Queria deixá-lo ali mesmo.
Queria transferir a responsabilidade pelo bem-estar dele a qualquer outro
Bom Samaritano, de preferência um qualquer sem-abrigo de passagem. Mas
quando olhou para o rosto confuso de Gabriel e o viu a começar a
cambalear para um lado como se fosse cair e arrastar consigo a pobre
palmeira (uma palmeira envasada que nunca fizera mal a ninguém), soube
que ele precisava da sua ajuda. Fora, em tempos, o menino de Grace, e não
podia abandoná-lo. E sabia, no fundo do seu coração, que a bondade, por
mais pequena que fosse, valia sempre a pena.
Nem sequer consegue encontrar as chaves, pelo amor de Dante.
Depositou o copo de batido meio vazio numa lata de lixo com um suspiro.
— Vamos. — Enlaçou-lhe a cintura, estremecendo ligeiramente quando o
sentiu fechar o braço em volta dos seus ombros e apertá-la de uma forma
que era quase demasiado amigável.
Chegaram ao prédio de rompante e acenaram ao porteiro, que reconheceu
Gabriel e lhes abriu a porta. Quando entraram no elevador, o uísque pareceu
bater ainda com mais força. Ele ficou parado de olhos fechados, a cabeça a
inclinar-se para trás, e gemeu de tempos a tempos. Julia aproveitou a
oportunidade para lhe revistar os bolsos em busca das chaves, que
encontrou rápida e facilmente, depois de lhe retirar a estimada gabardina
Burberry.
— Conseguiste engatar-me, gatinha marota. Pensei que não ias para casa
com homens que conhecias pelos bares.
Mesmo bêbado, o professor Emerson era um imbecil.
— Não estou a engatá-lo, professor. Estou a deixá-lo em casa. E, se
continua com isso, vou deixá-lo cair ao chão — murmurou Julia num
acesso de irritação.
Foram precisas várias tentativas para ela descobrir a chave do
apartamento e, quando o conseguiu, ajudou-o a entrar e retirou a chave da
fechadura. O seu objetivo era deixá-lo ali, assumindo que ele ficaria bem
sozinho, mas ouviu-o balbuciar qualquer coisa sobre estar a sentir-se
maldisposto. Imaginou-o a engasgar-se no próprio vómito e a morrer no
chão da casa de banho, sozinho e sem um amigo, como uma decadente
estrela do rock, por isso decidiu ficar tempo suficiente para o levar para o
quarto e verificar se não vomitava (e morria). Deixou as chaves e o casaco
dele na mesa da entrada. E despiu o próprio casaco e pousou-o em cima da
sua mala.
Gabriel estava encostado à parede de olhos fechados, o que significava
que não ia reparar que ela ainda trazia vestida a sua camisola, como uma
miúda adolescente com uma paixoneta.
— Venha, professor. — Julia pôs o braço em volta do ombro dele e
agarrou-o novamente pela cintura, a tentar conduzi-lo pelo corredor.
— Para onde me vai levar? — Ele abriu os olhos e olhou em volta.
— Para a cama.
Gabriel começou a rir. Firmou os pés e encostou-se à parede, a olhar para
ela.
— Qual é a graça?
— A menina — sussurrou ele, com a voz subitamente rouca. — Está a
levar-me para a cama, mas ainda nem sequer me beijou. Não acha que
devíamos começar com uns beijos e talvez umas carícias no sofá por
algumas noites? E depois chegar à cama? Ainda nem sequer tive
oportunidade de lhe fazer umas festinhas, gatinha marota. E é virgem, não
é?
Julia irritou-se, especialmente com a última observação.
— Nunca deve ter trocado umas carícias nem um dia na sua vida. E não
estou a levá-lo para a cama, idiota. Estou só a levá-lo para o seu quarto para
ver se cura essa bebedeira. Agora venha. E acabe já com o paleio.
— Beije-me, Julianne. Dê-me um beijo de boa-noite. — Os olhos de
Gabriel cresceram à medida que se fixavam nos dela. Ele baixou a voz, que
se tornou um murmúrio de cetim. — Depois vou para a cama como um
menino bonito. E talvez, se for uma gatinha muito boa, a deixe juntar-se a
mim.
Julia conteve a respiração. Ele já não parecia embriagado. Parecia
notavelmente lúcido, e os seus olhos acariciavam-na, tocavam-na,
demorando-se mais do que era apropriado na extensão dos seus seios. Ele
começou a lamber os lábios.
Aí vem o sorriso sedutor… em cinco, quatro, três, dois, um… desmaio.
(Ainda bem que, na sua disposição atual, ela era à prova de desmaios.)
Julia soltou-o de imediato e recuou, virando a cara, pois, na verdade,
olhar para o esplendor daquele sorriso era como olhar para o Sol. Ele
desencostou-se da parede e deu um passo em frente. Agora ela estava
encurralada. Tinha as costas contra a outra parede, e ele continuava a
aproximar-se.
Os olhos de Julia ficaram maiores. Ele estava a atacá-la. E parecia
faminto.
— Por favor, não. Por favor, não… me faça mal — gemeu.
Apareceu uma ruga entre as sobrancelhas de Gabriel. As suas mãos
suaves rodearam-lhe a face ligeiramente, inclinando-a para cima para a
fazer encarar os seus olhos ousados e cintilantes.
— Nunca. — E, com isto, levou os lábios aos dela.
Assim que se tocaram, pele contra pele, Julia perdeu toda a capacidade
de pensar, e deixou-se simplesmente afundar em sentimento. Nunca se
sentira mais corporizada do que naquele momento, nunca se sentira como
se existisse tão pouco na sua mente. A boca dele mal se movia sobre a dela.
Era quente, e os seus lábios eram húmidos e surpreendentemente macios.
Não sabia se ele a estava a beijar porque estava bêbado ou por qualquer
outra razão, mas era como se os lábios de ambos estivessem colados. Como
se aquela conexão, tão intensa e real, não pudesse ser quebrada por um
único segundo. Julia não se atrevia a mover a boca, com medo que ele a
soltasse, que ele nunca mais voltasse a beijá-la.
Sentiu-o encostar-se a ela, firme mas gentilmente, enquanto as mãos
flutuavam com ternura pela sua face. Ele não abriu a boca. Mas a sensação
que se agitou entre ambos era mais poderosa do que nunca. O sangue de
Julia cantava-lhe nos ouvidos, e ela sentiu-se afoguear e aquecer quando se
encostou ao peito dele, fechando o espaço entre ambos e enlaçando-lhe as
costas. Sentia os músculos dele por baixo da camisa. Quase lhe sentia o
coração a bater contra o seu próprio peito. Mas ele era tão suave, tão terno.
A sua boca deixava-a a querer mais — muito, muito mais.
Não sabia bem por quanto tempo se beijaram, mas, quando ele a libertou,
Julia tinha a cabeça a andar à roda. Era transcendental. Era emocional. A
momentânea satisfação do mais profundo anseio do seu coração. As
memórias de sonhos do pomar regressavam como num dilúvio. Não eram
produto da sua imaginação — a centelha, a atração, eram reais, e tão
perturbadoras para a sua alma. Não as imaginara, mas perguntava-se se ele
sentira o mesmo. Ou se, talvez, ele seria agora imune a esse tipo de
sentimentos.
— Linda Julianne — murmurou Gabriel, enquanto cambaleava para trás.
— Doce como uma guloseima.
Gabriel lambeu os lábios como se estivesse a saborear o sabor dela, e
qualquer lucidez que pudesse ter mostrado desapareceu subitamente.
Fechou os olhos e caiu contra a parede, quase a desmaiar.
Quando ela recuperou finalmente o sangue-frio, o que levou mais de um
minuto, conseguiu arrastá-lo para o quarto. E tudo poderia ter acabado bem.
Tudo poderia ter acabado bem se ele não tivesse aberto a boca naquele
momento e vomitado em cima dela. Em cima da sua linda e cara camisola
de caxemira verde, que já não era verde quando ele acabou.
Julia arfou e conteve a náusea com a visão e o cheiro, pois tinha um
estômago muito sensível. Até me acertou no cabelo. Oh, deuses de todos os
Bons Samaritanos, apressem-se em meu socorro!
— Desculpa, Julianne. Peço desculpa por ter sido um menino feio. — A
voz de Gabriel era como a de uma criança.
Ela conteve a respiração e abanou a cabeça.
— Tudo bem. Venha. — Puxou-o para a casa de banho da suite e
conseguiu posicioná-lo de joelhos sobre a sanita antes da erupção vulcânica
seguinte.
Enquanto ele vomitava, Julia apertava o nariz e tentava distrair-se a
observar a elegante e espaçosa casa de banho. Grande banheira para duas
pessoas ou mais? Confirmado. Grande zona de duche com decadente
chuveiro de teto para duas ou mais pessoas? Confirmado, confirmado.
Grandes e fofas toalhas brancas, perfeitas para limpar gregório?
Confirmado, confirmado, confirmado.
Quando Gabriel terminou, ela passou-lhe uma pequena mas absorvente
toalha de mãos para limpar a boca. Ele gemeu audivelmente e ignorou a
oferta. Por isso, Julia baixou-se e passou-lhe suavemente a toalha pelo rosto
antes de lhe dar um pouco de água para enxaguar a boca.
Olhou para ele. Apesar do desastre que era a sua própria família e a sua
geral desconfiança do casamento, pensara, de tempos a tempos, como seria
ter um bebé — um pequeno menino ou menina que se parecesse com ela e o
seu marido. Enquanto olhava para Gabriel doente no chão, imaginou qual
seria a sensação de ser mãe e ter de tratar de um filho doente. A
vulnerabilidade de Gabriel tocou-lhe o coração, pois nunca tivera
oportunidade de a ver exceto uma vez, quando ele chorara no seu gabinete
por causa de Grace.
Grace ficaria feliz por eu tomar conta do seu filho.
— Fica bem sozinho por um minuto? — perguntou Julia, enquanto lhe
desviava o cabelo macio dos olhos.
Ele gemeu outra vez, de olhos fechados, e ela assumiu que era indicação
de que ficaria bem. Mas Julia teve dificuldade em deixá-lo. Por isso,
enquanto ele estava ali sentado, a gemer, ficou a fazer-lhe umas festas,
acariciou-lhe o cabelo, enquanto lhe ia falando como se fosse um bebé.
— Está tudo bem, Gabriel. Está tudo bem. Só queria ser boa para si,
cuidar de si… mesmo que nunca se tenha preocupado comigo.
Quando sentiu que o podia deixar sozinho por uns minutos, saiu para o
quarto dele e começou rapidamente à procura de qualquer coisa, fosse o que
fosse, que pudesse vestir. Resistiu ao impulso de procurar entre a sua roupa
interior por qualquer coisa que pudesse levar para casa (ou vender no eBay)
e agarrou no primeiro par de boxers que encontrou. Eram pretos e
decorados com o brasão do Magdalen College, e pareciam demasiado
pequenos para o bem formado derrière de Gabriel.
Até a roupa interior é pretensiosa, pensou Julia enquanto procurava uma
t-shirt.
Dirigiu-se para a casa de banho de hóspedes, despiu num ápice as roupas
sujas, saltou para dentro do chuveiro para lavar o vómito do cabelo e o
fedor da pele e depois vestiu as roupas dele.
A seguir, tentou tratar do desastre que era a camisola de caxemira de
Gabriel. Lavou-a o melhor que conseguiu, deixando-a um pouco de molho
no lavatório. Finalmente, estendeu-a na bancada de mármore a secar. Ele
teria de a mandar limpar (ou queimar). Julia pegou no resto das suas roupas,
enfiou-as na máquina, e regressou à casa de banho principal.
Gabriel estava sentado de costas contra a parede, de joelhos puxados para
o peito e o rosto entre as mãos. Continuava a gemer.
Julia limpou rapidamente a sanita e ajoelhou-se ao seu lado. Não gostava
da ideia de o deixar com as roupas ensopadas de vómito, mas também não
gostava da ideia de o despir. Provavelmente ainda acabava a ser acusada de
assédio sexual, ou coisa do género, e não queria ter de lidar com um
professor Emerson embriagado e furioso. Nem com um professor Emerson
sóbrio e furioso. Pois, como um dragão, ele podia virar-se contra ela num
segundo, se achasse que a aluna se estava a atirar.
— Gabriel, está todo vomitado. Compreende? Quer ficar assim ou… —
A sua voz desvaneceu-se.
Ele abanou a cabeça, com uma pequena centelha de compreensão, e
tentou remover a gravata. Claro, com os olhos fechados, teve muito pouco
sucesso. Por isso, Julia soltou-lhe cuidadosamente a gravata e puxou-lha
devagar sobre a cabeça. Enxaguou-a com água o melhor que conseguiu e
deixou-a na bancada. Teria também de ir para limpar.
Enquanto ela estava de costas, Gabriel começou a desabotoar os botões
da camisa. Contudo, era muito mais difícil do que previra, por isso
praguejou enquanto puxava os botões, quase os arrancando naquele
processo.
Julia suspirou.
— Pronto, eu ajudo. — Ajoelhou-se de novo ao seu lado, desviou-lhe os
dedos longos e desabotoou-lhe rapidamente a camisa.
Ele despiu-a e puxou de imediato a t-shirt por cima da cabeça. Porque
estava desorientado, não conseguiu libertar a cabeça, por isso ficou ali
sentado com a peça de roupa a embrulhar-lhe a cabeça, como um turbante.
Era, na realidade, muito engraçado. Julia abafou uma gargalhada e
desejou ter o telemóvel à mão, para lhe poder tirar uma fotografia. Teria
adorado usar essa fotografia como protetor de ecrã. Ou como avatar, se
alguma vez precisasse de um. Libertou-lhe a cara da camisola e recuou
sobre os calcanhares, contendo a respiração.
O peito nu de Gabriel era esplêndido. De facto, toda a parte superior do
seu corpo era um estudo sobre a perfeição. Tinha braços grandes e
musculados, ombros largos e peitorais excelentemente tonificados. Ele
sempre lhe parecera ter um corpo magro, pensou Julia, especialmente
quando mascarado com camisolas e casacos. Mas não havia nada de magro
em Gabriel. Absolutamente nada.
E Gabriel tinha uma tatuagem. Aquilo surpreendeu-a grandemente. Já
tinha visto fotografias de Gabriel e Scott sem camisa — fotos de férias de
verão tiradas antes de ela se mudar para Selinsgrove. Mas podia jurar que
Gabriel não tinha tatuagens nessas fotografias. Por isso, aquela era recente,
feita nos últimos seis ou sete anos.
A tatuagem ficava por cima do peitoral esquerdo, sobre o mamilo e
espalhando-se pelo esterno. A imagem era a de um dragão alado medieval
que se enrolava em volta de um coração gigante, esmagando-o entre as
patas dianteiras. O coração era real, não estilizado, e as garras do dragão
enterravam-se tão profundamente na sua carne que o sangue escorria dos
seus ferimentos.
Julia ficou de boca aberta perante aquela imagem sombria e perturbadora.
O dragão era verde e preto, com uma cauda enrolada e farpada e grandes
asas palpitantes. A sua boca estava aberta e cuspia fogo. Mas o que captou a
atenção dela foram as letras pretas sobre a superfície do coração. Conseguia
ler as letras m a i a. Maia. Ou seria m.a.i.a. — um acrónimo?
Julia não fazia ideia de quem seria Maia ou o que seria m.a.i.a. Nunca
ouvira esse nome de Rachel nem de nenhum dos Clarks. Parecia-lhe
completamente desfasado do caráter de Gabriel, o Gabriel que mal
conhecera em tempos e o que começava agora a conhecer outra vez, que ele
tivesse uma tatuagem, quanto mais uma tão grande e perturbadora.
Ele tem uma tatuagem destas debaixo das roupas e anda de lacinho?
Com camisola de malha?
Julia perguntou-se que outras surpresas se esconderiam debaixo da
superfície da sua pele, e os seus olhos desviaram-se um pouco mais para
baixo. Mesmo com ele sentado, não podia deixar de notar os bem definidos
músculos abdominais e o profundo V que se estendia desde as suas ancas
até abaixo da cintura das calças de lã.
Caramba. O professor Emerson deve ir ao ginásio — bastante. Será que
eu podia tirar-lhe uma fotografia aos abdominais — e ao V — para o meu
protetor de ecrã?
Julia corou e desviou o olhar. Estava a portar-se mal, a comer O
Professor com os olhos. Não ia querer que ninguém lhe fizesse aquilo,
especialmente num momento de vulnerabilidade. Por isso, a sentir-se mais
do que ligeiramente culpada, reuniu as roupas sujas d’O Professor e a toalha
que usara para limpar o vómito que caíra para o tapete persa do quarto e
levou-as para a lavandaria. Enfiou tudo rapidamente na máquina, encheu-a
de detergente e deu início ao ciclo. Depois passou pela cozinha para ir
buscar um copo e um jarro de água filtrada do frigorífico.
Na sua ausência, Gabriel conseguira cambalear até à cama de lençóis de
seda que estava ao centro do quarto. Estava agora sentado na berma,
descalço e vestido apenas com um par de boxers pretos, com o cabelo a
espetar-se em todas as direções.
Caramba.
Embora, provavelmente, não houvesse nada no universo mais escaldante
do que a imagem de um Gabriel seminu sentado na sua cama (exceto,
talvez, a superfície do Sol), Julia desviou o olhar e colocou-lhe a água sobre
a mesa de cabeceira. Queria perguntar-lhe como estava, mas pensou que
talvez lhe devesse dar algum tempo. Por isso recuou e deixou que os seus
olhos passeassem pelo quarto. E o que viu deixou-a atónita.
A inclinação de Gabriel por fotografias a preto e branco era ali mais
evidente, pois cada parede, exceto uma, estava adornada com pares delas,
todas enormes e penduradas em imponentes molduras pretas. Contudo, era
o conteúdo das fotografias que Julia achou surpreendente.
As fotografias eram eróticas. Imagens de formas nuas, principalmente
femininas, embora houvesse por vezes homem e mulher juntos, com as
faces e genitais ausentes ou na sombra. Em poses de bom gosto, eram muito
belas, e Julia não as consideraria porcas. Mas eram altamente sensuais e
amativas, muito mais sofisticadas do que a normal pornografia, e bem mais
estimulantes.
Uma mostrava um casal de lado, frente e frente e montados numa espécie
de banco. Os seus troncos estavam colados, as mãos dele no longo cabelo
louro dela. Julia corou quando pensou se a fotografia fora tirada antes,
durante ou depois de o belo casal fazer amor, pois não se conseguia
perceber.
Outra mostrava as costas de uma mulher e um par de mãos de homem,
uma ao fundo das costas dela e a outra no seu traseiro. Uma tatuagem
percorria-lhe a anca direita, mas a escrita era árabe, supôs Julia, por isso
não a conseguiu ler.
Mas foram as duas fotografias maiores, penduradas por cima da cama,
que mais lhe captaram a atenção.
Uma delas mostrava uma mulher deitada de barriga para baixo. Uma
forma masculina pairava por cima, quase como um anjo negro, a depositar-
lhe um beijo numa espádua e uma mão aberta sobre o fundo das costas. Fez
lembrar a Julia a escultura de Rodin, O Beijo do Anjo, e ficou a pensar se a
fotografia se teria inspirado naquela obra.
A outra fotografia tirou-lhe o fôlego, pois era a mais abertamente erótica,
e sentiu-se instantaneamente repelida pela sua crueza e violência. Era a
visão lateral de uma mulher deitada de barriga para baixo; apenas a
extensão desde metade do tronco até ao joelho era visível. A pairar acima
dela estava parte de uma forma masculina. A mão dele estava plantada
fortemente sobre a anca esquerda e nádega da mulher. As ancas
pressionavam-se contra a curva do seu traseiro. O homem tinha um atraente
glúteo máximo de perfil e dedos longos e elegantes. Julia sentiu-se
perturbada com a fotografia e desviou imediatamente o olhar, embaraçada.
Porque é que uma pessoa tem uma fotografia daquilo pendurada na
parede? Abanou a cabeça. Com a observação das fotografias, um ponto era
abundantemente evidente: O professor Emerson é homem de rabos.
Dada a decoração e a escolha de peças artísticas, o quarto de Gabriel
parecia ter um único propósito, que era servir de caldeirão de fervente
luxúria. Ela sabia, com base no que tinha observado, que ele devia tê-lo
concebido com essa intenção, apesar da óbvia e palpável frieza — uma
frieza que combinava com a generalizada atmosfera glacial de todo o
apartamento. Naquele espaço de paredes cinzentas-acastanhadas, o frio
emanava das fotografias, das cobertas e cortinas de seda azul-gelo e da
escassez da mobília preta do quarto, dominado por uma cama gigantesca de
cabeceira alta e minuciosamente entalhada e pés baixos e igualmente
intrincados.
Medieval, pensou Julia. Muito apropriado.
Mas as fotografias foram em breve suplantadas na sua atenção por outra
coisa, algo ainda mais surpreendente. Olhou, chocada, para a pintura na
parede oposta, e o seu queixo caiu.
Na parede em frente à enorme cama medieval de Gabriel, e
estranhamente deslocada entre as fotografias eróticas a preto e branco,
estava uma pintura a óleo pré-rafaelita, em cores brilhantes e gloriosas. Era
uma reprodução em tamanho real da pintura de Dante e Beatriz de Henry
Holiday, a mesma pintura que tinha pendurada por cima da sua própria
cama.
Os olhos de Julia dardejaram da pintura para Gabriel, e de novo para a
pintura. Ele via o quadro da sua cama. Imaginou-o a adormecer à noite,
todas as noites, a olhar para o rosto de Beatriz. Era a última coisa que veria
à noite e a primeira que veria de manhã. Julia não sabia que ele tinha a
pintura. Ela tinha-a por causa dele; tê-la-ia ele, por acaso, por causa dela?
Começou a tremer com a ideia. Não importava quem entrava naquele
quarto, não importava qual a rapariga que Gabriel levava para casa para lhe
aquecer a cama. Beatriz estava sempre ali. Beatriz estava sempre presente.
Mas ele não se lembrava que ela era Beatriz.
Julia abanou a cabeça para suprimir aqueles pensamentos e persuadiu
gentilmente Gabriel a deitar-se. Cobriu-o com o lençol e a colcha de seda,
aconchegando-lhe as pontas debaixo dos braços e por cima do peito.
Sentou-se na cama ao seu lado, olhou-o, viu-o a olhar para ela.
— Estive a ouvir música — sussurrou ele, como se estivesse a continuar
uma conversa.
Ela franziu a testa, confusa.
— Que espécie de música?
— Hurt. Johnny Cash. Vez após vez.
— Porque é que esteve a ouvir isso?
— Para recordar.
— Oh, Gabriel. Porquê? — Julia pestanejou para conter as lágrimas, pois
aquela era a única canção de Trent Reznor que conseguia ouvir sem ficar
nauseada, mas fazia-a sempre chorar.
Ele não respondeu.
Julia debruçou-se sobre Gabriel.
— Gabriel? Querido, não ouça mais esse tipo de música, está bem?
Chega de Lacrimosa, ou de Nine Inch Nails. Saia da escuridão para a luz.
— Onde está a luz? — balbuciou ele.
Julia expirou profundamente.
— Porque é que bebe tanto?
— Para esquecer — disse ele, fechando os olhos e recostando-se na
almofada.
Com os olhos fechados, ela pôde admirá-lo. Pensou que ele devia ter tido
um ar doce, em adolescente — com aqueles grandes olhos de safira, e os
lábios beijáveis, e o sexy cabelo castanho. Talvez fosse tímido, em vez de
zangado ou triste. Talvez fosse nobre e bom. Se tivessem sido de idades
mais próximas, talvez ele a tivesse beijado no alpendre do pai dela, levado
ao baile de finalistas, feito amor com ela pela primeira vez num cobertor
sob as estrelas, no velho pomar atrás da casa dos pais dele. Ela podia ter
sido a sua primeira, nalgum universo perfeito.
Julia contemplou quanta dor uma alma humana, a sua alma, podia
aguentar sem encolher completamente, e voltou-se para partir. Uma mão
quente saltou da cama para a agarrar.
— Não me deixes — sussurrou ele. Os seus olhos estavam apenas
semiabertos, e eram suplicantes. — Por favor, Julianne.
Gabriel sabia quem ela era, mas, por qualquer razão, queria que ficasse.
E a forma como os seus olhos e voz se tornaram desesperados… não
conseguia recusar quando ele estava assim.
Deu-lhe a mão e sentou-se ao seu lado.
— Não o vou deixar. Agora durma. Tem luz à sua volta. Muita luz.
Um sorriso brincou nos lábios perfeitos de Gabriel, e ela ouviu-o
suspirar; a mão que segurava a sua afrouxou. Inspirou profundamente,
conteve o ar, e passou um dedo muito ao de leve sobre as suas pálpebras.
Quando ele não estremeceu nem abriu os olhos, ela acariciou-os
suavemente, um por um. A mãe fazia-lhe isto quando não conseguia dormir,
em criança. Mas fora há muito tempo, muito antes de a mãe a negligenciar
para seguir outros interesses muito mais importantes.
Gabriel continuava a sorrir, por isso Julia passou corajosamente a mão
para o seu cabelo. Ao sentir as madeixas rebeldes que lhe passavam pelos
dedos, recordou-se de um dia que passara numa quinta na Toscana, durante
o seu ano no estrangeiro. Um rapaz italiano levara-o ao campo, e tinham
caminhado juntos, e a mão dela flutuara sobre o topo da vegetação. O
cabelo de Gabriel era leve como uma pena, e macio contra a sua mão, como
a sussurrante erva italiana.
Começou a acariciar-lhe o cabelo, da maneira como Grace lhe devia ter
feito em tempos. Ele deixou que as pontas dos dedos dela lhe descessem
pelo lado do rosto, desenhando-lhe o queixo angular e roçando suavemente
a barba por fazer. Depois ela tocou a breve sugestão de uma cova no queixo
e começou a subir com as costas da mão contra as maçãs do rosto altas e
nobres. Nunca mais voltaria a estar tão perto dele; se Gabriel estivesse
acordado, não o permitiria. Ter-lhe-ia mordido a mão, tinha a certeza disso,
e depois saltado à sua garganta.
O seu peito perfeito subia e descia com a respiração agora regular. Ele
parecia ter adormecido.
Observou-lhe o pescoço, os músculos dos ombros e os antebraços, a
clavícula e o alto dos peitorais. Se fosse pálido, ele pareceria uma estátua
romana esculpida em frio mármore branco. Mas a mais leve sugestão de um
bronzeado remanescente do verão fazia com que a sua pele quase tivesse
um brilho dourado à luz do candeeiro.
Julia pressionou um beijo contra dois dos seus dedos e levou-lhos
ternamente aos lábios ligeiramente entreabertos.
— Ti amo, Dante. Eccomi Beatrice. Amo-te, Dante. Aqui estou eu, a
Beatriz.
Nesse momento, o telefone de Gabriel tocou.
Ela saltou de surpresa. O telefone tocava muito alto. Gabriel começava a
mover-se, o barulho horrível a penetrar o seu descanso. Por isso Julia
atendeu.
— Estou?
— Quem diabo está a falar? — perguntou, autoritária, uma voz feminina,
chocada e estridente.
— Fala da residência de Gabriel Emerson. Quem fala?
— Aqui fala Paulina. Passe o telefone ao Gabriel.
O coração de Julia bateu fortemente duas vezes e deteve-se um momento
antes de recomeçar numa corrida. Ela levantou-se, levou consigo o recetor
sem fios e dirigiu-se para a casa de banho, fechando a porta.
— Ele não pode vir ao telefone, neste momento. É urgente?
— Não pode como? Diga-lhe que é a Paulina e que quero falar com ele.
— Humm, ele está indisposto.
— Indisposto? Ouça, sua vadia, acorde o Gabriel e ponha-lhe o telefone
na mão. Estou a ligar de…
— Ele não pode falar consigo neste momento. Por favor, volte a ligar
amanhã. — Julia carregou no botão de desligar, interrompendo a corrente
de palavras furiosas de Paulina, a sentir-se totalmente enojada.
É mais exigente do que uma amante casual. Deve ser a namorada — e
vai ficar lixada por eu ter atendido o telefone. Talvez fique tão lixada que
acabe com ele.
Julia estremeceu ao pensar na sua contínua pouca sorte e removeu a
toalha do cabelo, pendurando-a para secar. Regressou ao quarto e colocou o
telefone no descanso. Tencionava deixar Gabriel entregue aos seus sonhos e
dormir no quarto de hóspedes, porque prometera que não o abandonava.
De súbito, dois olhos azuis abriram-se completamente e começaram a
olhar na sua direção.
— Beatriz — murmurou ele, e estendeu a mão.
Julia estremeceu convulsivamente.
— Beatriz — murmurou ele outra vez, olhando-a nos olhos com uma
centelha de reconhecimento.
— Gabriel? — Julia abafou um soluço.
Capítulo Catorze

G abriel fechou os olhos, mas apenas por um segundo, e um lento


sorriso doce espalhou-se pelo seu rosto. Os olhos dele tornaram-se
suaves e muito calorosos.
— Encontraste-me.
Julia mordeu o interior da bochecha, forçando-se a não romper em
lágrimas com o som da voz dele. Aquela era a voz que recordava. E
esperara tanto tempo para a voltar a ouvir. Esperara pelo seu regresso, por
tanto, tanto tempo.
— Beatriz. — Ele apertou-lhe o pulso e puxou-a para si. Desviou-se um
pouco na cama para a acomodar, envolvendo-a nos braços enquanto ela
pousava a cabeça sobre o seu peito nu. — Pensei que me tinhas esquecido.
— Nunca. — Ela sentiu-se sufocar quando as lágrimas começaram a
correr incontrolavelmente. — Pensei em ti todos os dias.
— Não chores. Encontraste-me.
Gabriel fechou os olhos e virou a cabeça, e a sua respiração começou a
regularizar novamente. Julia ficou deitada muito quieta, não querendo que
os seus soluços o perturbassem, e esforçou-se desesperadamente para não
abanar a cama enquanto se deixava inundar pela dor e pelo alívio. As
lágrimas viajavam em pequenos rios pelas suas faces pálidas abaixo e
escorriam para a extensão de pele bronzeada e tatuada onde pousara a
cabeça.
O seu Gabriel lembrara-se dela. O seu Gabriel regressara, finalmente.
— Beatriz. — Sentiu-o apertar o braço em volta da sua cintura, enquanto
ele se desviava para lhe sussurrar contra o cabelo, ainda húmido do duche.
— Não chores. — Com os brilhantes olhos azuis fechados, Gabriel colou os
lábios à sua testa, uma vez, duas, três.
— Tive saudades tuas. Tantas — murmurou ela, com os lábios a
moverem-se contra a tatuagem.
— Encontraste-me — murmurou ele. — Eu devia ter esperado. Eu amo-
te.
Agora Julia chorava com mais força, agarrando-se a ele como se se
estivesse a afogar e Gabriel fosse o seu salvador. Beijou-lhe a pele do peito
ligeiramente e passou os dedos para cima e para baixo sobre o seu
abdómen.
Em resposta, as pontas dos dedos de Gabriel percorreram-lhe a pele
arrepiada dos braços, antes de deslizarem sob o tecido largo da sua t-shirt.
Os dedos dele escorregavam como penas sobre a sua pele até a mão se deter
finalmente contra o fundo das suas costas. Suspirou profundamente e
pareceu cair de novo no seu mundo dos sonhos.
— Eu amo-te, Gabriel. Tanto que até dói — disse Julia, e a sua mão foi
pousar suavemente sobre o coração dele. Sussurrou-lhe as palavras de
Dante, algo alteradas:
Há tanto tempo me possui Amor
E fez seu poderio acostumado
Que, se ao princípio me foi aborrecido,
Cresceu no meu coração como um segredo.
E quando tanto me priva da bravura
Que todos os espíritos me abandonam,
Sente minha frágil alma tal doçura
Que meu rosto empalidece num instante.
Tem então Amor um poder tanto
Que faz que os meus espíritos partam
E falem e chamem
Pelo meu Gabriel, a dar-me saúde.
Isto é o que ocorre sempre que ele me olha,
O que é mais doce do que qualquer palavra.

Quando todas as suas lágrimas secaram, Julia depositou alguns beijos


hesitantes contra os imóveis lábios macios de Gabriel e caiu num sono
profundo e isento de sonhos, nos braços do seu amado.

Q uando acordou, pouco passava das sete da manhã. Gabriel ainda


dormia profundamente. De facto, estava a ressonar, e parecia que
nenhum dos dois se movera durante toda a noite. Era, provavelmente, o
sono mais pacífico que alguma vez dormira, exceto um outro.
Julia não queria mover-se. Não queria separar-se dele, nem um
centímetro. Queria ficar deitada nos seus braços para sempre e fingir que
nunca se tinham separado.
Ele reconheceu-me. Ele ama-me. Finalmente.
Nunca antes se sentira amada. Não verdadeiramente. Oh, ele balbuciara-
lhe as palavras, e a sua mãe gritara-lhas, mas apenas quando estava
embriagada, por isso elas nunca tinham entrado na consciência de Julia.
Nem no coração. Nunca acreditara nelas porque as ações de ambos tinham
mostrado que as palavras eram falsas. Mas acreditava em Gabriel.
Por isso, naquela manhã, a primeira manhã de sempre, Julia sentiu-se
amada. Sorriu tão abertamente que pensou que o seu rosto se ia quebrar.
Encostou os lábios ao pescoço de Gabriel e roçou a pele contra a barba por
fazer do rosto dele. Ouviu-o gemer suavemente e sentiu o seu braço apertá-
la mais, mas a sua respiração regular e profunda disse-lhe que ele
continuava profundamente adormecido.
Julia tinha experiência suficiente com alcoólicos para saber que Gabriel
ficaria de ressaca e provavelmente rabugento, quando acordasse. Por isso
não tinha pressa de o despertar. Sentia-se silenciosamente grata por, pelo
menos, Gabriel ter sido um bêbado sedutor mas inofensivo, na noite
anterior. Aquele tipo de bebedeira podia aguentar. Era o outro tipo que a
assustava.
Passou cerca de uma hora a beber do seu odor e da sua força, a deliciar-se
com a sua proximidade, a navegar experimentalmente com as mãos sobre a
parte superior do seu corpo. Para além da noite que passara com ele no
bosque, aqueles momentos eram os mais felizes da sua vida. Mas,
finalmente, teve de se levantar.
Arrancou-se sub-repticiamente ao peso do seu braço e dirigiu-se para a
casa de banho da suite, fechando a porta atrás de si. Reparou num frasco de
colónia Aramis na bancada. Pegou nele, abriu-o e cheirou. Não era o aroma
de que se lembrava do pomar. O seu odor na altura era mais natural,
selvagem, até.
Este é o novo aroma de Gabriel. E, tal como ele — é de retirar o fôlego.
E agora ele é meu…
Escovou os dentes, enrolou o cabelo agora encaracolado num nó
desajeitado e foi à cozinha procurar um elástico ou um lápis com que o
prender. Com o cabelo assim preso, entrou na lavandaria e transferiu as
roupas limpas mas molhadas para a máquina de secar. Não podia ir para
casa enquanto não tivesse as roupas secas. Mas não tinha qualquer intenção
de o deixar, agora que ele se recordara.
E a Paulina? Ou m.a.i.a.? Julia pôs essas questões de parte,
simplesmente porque eram irrelevantes. Gabriel amava-a. Claro, teria de
deixar a Paulina.
E o facto de ser meu professor? E se ele for um alcoólico?
Prometera-se, há muito tempo, que nunca se envolveria com um
alcoólico. Mas, em vez de encarar essa possibilidade, suprimiu ativamente
todas as pequenas e irritantes dúvidas que vinham a borbulhar à superfície,
pois queria verdadeiramente acreditar que o amor de ambos conquistaria
tudo.
Que eu não admita impedimentos ao casamento de mentes verdadeiras,
pensou, citando Shakespeare como talismã contra os seus receios.
Acreditava que os vícios de Gabriel eram fruto da solidão e do desespero.
Mas, agora que tinham voltado a encontrar-se um ao outro, o seu amor seria
suficiente para os resgatar aos dois das suas respetivas escuridões. Juntos,
seriam bem mais fortes e bem mais saudáveis do que tinham sido
separadamente.
Enquanto Julia ponderava estas coisas no seu coração, investigou os
armários na cozinha excelentemente equipada de Gabriel. Não tinha a
certeza se ele quereria pequeno-almoço, dada a sua ressaca. Sharon sempre
renunciara à comida a favor de uma libação de pequeno-almoço com um
Seabreeze, que Julia (tristemente) aprendera a fazer com aprumo aos oito
anos. No entanto, depois de terminar o seu próprio pequeno-almoço de ovos
mexidos, bacon e café, preparou o mesmo para Gabriel.
Sem saber se ele precisaria do pelo do cão que lhe mordera, mas
querendo dar-lhe essa opção, preparou-lhe um Walters. Encontrou a receita
no seu guia de bebidas, e escolheu (esperava que corretamente) a garrafa de
cristal em cima do aparador que continha o seu uísque menos apreciado,
não querendo profanar o seu melhor single malt com sumo.
Em resumo, Julia estava extática por ter a oportunidade de mimar um
pouco Gabriel, e por isso teve extremo cuidado na preparação do seu
tabuleiro de pequeno-almoço. Cortou uns pequenos pés de salsa do jardim
de ervas aromáticas no aparador para usar como guarnição, colocando-as
sobre os gomos de laranja que cortara e dispusera em leque ao lado do
bacon. Até embrulhou os talheres num guardanapo de linho, que dobrou
algo desajeitadamente na forma de um bolso. Desejava ser suficientemente
inteligente para fazer qualquer coisa mais substancial do que um bolso, um
cisne, talvez, ou um leque, e decidiu investigar essas opções na próxima vez
que estivesse ao computador. A Martha Stewart devia saber. A Martha
Stewart sabia sempre.
Depois Julia dirigiu-se corajosamente ao escritório de Gabriel e
encontrou um bloco e uma caneta de tinta permanente em cima da sua
grande secretária de madeira. Escreveu uma nota:
Outubro de 2009
Querido Gabriel
Já tinha perdido a esperança,
Até teres olhado nos meus olhos, ontem à noite, e visto, finalmente, quem sou.
Apparuit iam beatitudo vestra.
Agora aparece a tua bem-aventurança.
A tua Beatriz

Julia encostou a nota ao copo de vinho que usara para o sumo de laranja.
Não querendo ainda acordá-lo, instalou o tabuleiro inteiro, cocktail e tudo,
no grande frigorífico quase vazio. Depois fechou a porta e encostou-se a ela
com satisfação.
Toc. Toc. Toc.
A rotina de deusa doméstica de Julia foi subitamente interrompida por
alguém a bater à porta da entrada.
Merda, pensou. Será…?
Ao princípio, ficou sem saber o que fazer. Deveria esperar para ver se
Paulina entrava com uma chave? Ou era melhor correr para os braços de
Gabriel e esconder-se? Depois de esperar um ou dois minutos, foi vencida
pela curiosidade, e deu por si a dirigir-se em bicos de pés para a porta.
Oh, deuses de todos os estudantes-de-mestrado-acabados-de-reunir-com-
as-suas-almas-gémeas-depois-de-uns-muito-dolorosos-seis-anos, por favor,
não deixem a (futura) ex-amante da minha alma gémea estragar tudo. Por
favor.
Julia respirou fundo e espreitou pelo óculo da porta. O patamar estava
vazio. Pelo canto do olho, viu qualquer coisa no chão. Hesitantemente,
abriu a porta apenas uma nesga e lançou uma mão nervosa na direção da
coisa, expirando profundamente de alívio quando a sua mão se fechou sobre
o Globe and Mail de sábado de manhã.
Novamente a sorrir, e com o alívio de saber que o abençoado reencontro
com Gabriel não fora estragado pela sua antiga amante, Julia pegou no
jornal e trancou a porta à pressa. Ainda a sorrir, serviu-se de um copo de
sumo e enroscou-se na poltrona de veludo vermelho ao lado da lareira, com
os pés nus pousados na otomana a condizer. Suspirou de felicidade.
Se lhe tivessem perguntado, duas semanas antes, quando estava a visitar
o apartamento de Gabriel com Rachel, se alguma vez pensara que estaria
sentada na sua preciosa poltrona num domingo de manhã, teria respondido
que não. Nunca o julgara possível, nem mesmo com a santa intercessão de
Grace. Mas, agora que ali estava, sentia-se muito, muito feliz.
Preparou-se para uma ociosa manhã de sumo de laranja e o jornal de
sábado, e decidiu que a sua felicidade merecia música cubana, mais
especificamente um pouco de Buena Vista Social Club. Enquanto ouvia
Pueblo Nuevo no seu iPod, foi lendo a secção de arte do jornal de Gabriel.
Uma exposição de arte florentina estaria patente no Museu Real de Ontário
sob empréstimo à Galeria Uffizi. Talvez Gabriel não se importasse de a
levar. Num encontro.
Sim, tinham perdido o baile de finalistas e todas as festas da universidade
Saint Joseph. Mas Julia tinha a certeza que todo o tempo desperdiçado e as
oportunidades perdidas seriam agora compensados dez vezes mais. Feliz,
levantou-se de um pulo quando o trompetista nos seus ouvidos começou a
tocar uns compassos de Stormy Weather como contraponto para a melodia
cubana. Julia cantou alto, demasiado alto, enquanto dançava com o seu
sumo de laranja, vestida com a pretensiosa roupa interior de Gabriel,
ditosamente alheia ao homem seminu que aparecia atrás dela.
— Mas que raio pensa que está a fazer?
— Aaaagggghhhhhh!
Julia gritou e saltou no ar em reação à voz áspera e zangada. Retirou
rapidamente os auriculares dos ouvidos e virou-se. O que viu despedaçou-a.
— Fiz-lhe uma pergunta! — bradou Gabriel, os seus olhos transformados
em charcos azuis-negros. — Que raio está a fazer com a minha roupa
interior, aos saltos na minha sala?
Crack.
Seria o som do coração de Julia a partir-se em dois? Ou apenas o último
prego no caixão em que o seu amor morto jazia, mas não em paz?
Talvez fosse o tom de voz dele, zangado e autoritário. Talvez o facto de,
naquela pergunta, ela ter percebido que Gabriel já não a via como Beatriz, e
que todas as suas esperanças e sonhos realizados tinham acabado de morrer
na sua infância. Mas fosse qual fosse a verdadeira explicação, o iPod e o
sumo de laranja de Julia escaparam-se-lhe por entre dedos. O corpo
estilhaçou-se prontamente, fazendo com que o velho iPod patinasse por
uma crescente piscina de sol líquido aos seus pés.
Julia ficou a olhar para o desastre no chão por uns segundos, a tentar pôr
em ordem a sua mente. Era como se não compreendesse como podia o
vidro estilhaçar-se e causar uma tal confusão, qualquer coisa com a forma
de uma cintilante estrela a explodir. Finalmente, ajoelhou-se para apanhar
os vidros e começou a repetir duas perguntas vez após vez na sua cabeça.
Porque é que ele está tão zangado comigo? Porque é que não se lembra?
Um Gabriel alto e sem camisa olhava-a de cima. Estava vestido apenas
com a roupa interior, o que o tornava ligeiramente sensual e ligeiramente
ridículo. Tinha os punhos cerrados, e Julia viu os tendões salientes nos seus
magníficos braços.
— Não te lembras do que aconteceu ontem à noite, Gabriel?
— Não, felizmente não me lembro. E levante-se! Passa mais tempo de
joelhos do que a maioria das putas! — Ele falava por entre os dentes
cerrados, a olhar para a sua forma servil.
A cabeça de Julia ergueu-se. Procurou-lhe os olhos, notou a sua completa
e pura falta de memória e a sua irritação. Foi como se a tivesse trespassado
com uma espada. Sentiu a lâmina perfurar e penetrar-lhe o coração, e sentiu
a lenta hemorragia que ali se iniciava.
Tal como a tatuagem, pensou. Ele é o dragão; eu sou o coração a
sangrar.
Naquele instante de silenciosa compreensão, aconteceu a coisa mais
notável. Alguma coisa dentro de si, seis anos em evolução, finalmente,
finalmente, estalou.
— Vou ter de acreditar na tua palavra no que diz respeito ao
comportamento das putas. Deves saber melhor do que eu — grunhiu.
Depois, quando aquela observação trocista não sarou a dor da fissura em
expansão no seu coração, esqueceu ousadamente a limpeza do lixo que
fizera e levantou-se de um pulo. E perdeu prontamente a cabeça.
— E não te atrevas a falar comigo dessa maneira, bêbado de um raio! —
rosnou. — Quem julgas tu que és, merda! Depois de tudo o que fiz por ti
ontem à noite. Devia ter deixado a Gollum apanhar-te! Devia ter-te deixado
comê-la na frente de toda a gente em cima do bar do Lobby!
— De que é que está a falar?
Ela aproximou-se dele, de olhos a chamejar, as faces afogueadas e os
lábios a tremer. Tremia de fúria, enquanto a adrenalina lhe corria pelas
veias. Queria bater-lhe. Queria arrancar-lhe aquela expressão da cara com
os punhos. Queria arrancar-lhe os cabelos às mãos-cheias e deixá-lo careca.
Para sempre.
Gabriel inalou o odor dela, erótico e convidativo, e lambeu
involuntariamente os lábios. Mas essa era a coisa errada para fazer na frente
de uma mulher tão zangada como Julia.
Ela endireitou a cabeça de fúria e atravessou o corredor, a bater com os
pés e a resmonear vários e exóticos expletivos tanto em inglês como em
italiano. E quando os esgotou, passou para o alemão, um seguro sinal de
que a sua raiva era crescente.
— Hau ab! Verpiss dich! — bradou da entrada da lavandaria.
Gabriel começou a esfregar lentamente os olhos, pois, para além de
sofrer uma das piores ressacas da sua vida, estava a gostar ligeiramente da
visão da menina Mitchell com a sua t-shirt e boxers, apaixonadamente
zangada e a gritar-lhe numa multiplicidade de línguas da Europa ocidental.
Era a segunda coisa mais erótica que alguma vez testemunhara. E era
inteiramente irrelevante.
— Como aprendeu a dizer palavrões em alemão? — Seguiu o som das
suas pragas auf Deutsch até à lavandaria, onde ela estava agora a remover
as roupas meio secas da máquina de secar.
— Vai-te lixar, Gabriel.
Ele foi distraído naquele momento por um sutiã de renda preta que estava
provocadora mas algo casualmente reclinado em cima da máquina. Olhou
para ele e percebeu que o número e tamanho de copa que lhe passara pela
cabeça na noite em que a levara a jantar ao Harbour Sixty eram
absolutamente corretos. Gabriel congratulou-se mudamente.
Arrancou dali os olhos para encarar os dela. Viu-os faiscar, o caramelo
luminescente sobre o chocolate negro, como um cintilante sundae.
— O que está a fazer?
— O que é que lhe parece que estou a fazer? Vou sair daqui antes que
pegue num dos seus estúpidos lacinhos e o estrangule com ele!
Gabriel franziu o sobrolho, pois sempre achara que aqueles laços eram
fixes.
— Quem é a Gollum?
— A Christa-Puta-son.
As sobrancelhas de Gabriel ergueram-se. Christa? Sim, é mesmo tipo
Gollum.
— Esqueça a Christa. Não me interessa nada. Foi para a cama comigo?
— Cruzou os braços e a sua voz ficou séria.
— En sonhos, Gabriel!
— Isso não é uma negativa, menina Mitchell. — Ele segurou-lhe no
braço e obrigou-a a parar o que estava a fazer. — E não me diga que isso
não tem feito parte dos seus sonhos também.
— Tire a mãos de cima de mim, seu sacana arrogante! — Julia desviou-
se com tanta força que quase caiu de costas. — Claro, já você teria de estar
bêbado para me querer foder a mim.
Gabriel ficou vermelho.
— Pare com isso. Quem falou em foder?
— Que mais haveria de fazer? Eu sou a puta maluca que se põe de
joelhos a cada cinco segundos. Seja o que for que tenha acontecido,
considere-se um homem de sorte por não se lembrar! Tenho a certeza que
foi mais do que desinteressante.
A mão de Gabriel segurou-lhe o queixo e prendeu-o firmemente,
erguendo-o de forma a fazer o rosto dela ficar a centímetros do seu.
— Eu disse para parar. — Os olhos dele agora também faiscavam, e
neles Julia leu um sério aviso. — Não é uma puta. E nunca mais fale de si
dessa maneira. — O tom de voz de Gabriel deslizou pela pele dela como
um cubo de gelo.
Ele soltou-a e deu um grande passo atrás, o peito a subir e a descer
rapidamente e os olhos a arder. Fechou os olhos com força e começou a
respirar profundamente, muito profundamente. Mesmo na sua mente turva e
embriagada, sabia que as coisas tinham escalado bem mais do que era
necessário. Precisava de se acalmar antes que Julia fizesse alguma coisa
precipitada.
O ar nos olhos dela dizia tudo; ele encurralara-a como um animal. Ela
estava zangada, magoada, assustada, e triste — um gatinho ferido e furioso
com as garras de fora e as lágrimas a brilhar ao canto dos olhos. Fora ele
que o provocara. Fora ele que lho fizera, a um anjo de olhos castanhos,
quando a comparara a uma puta e não se conseguia recordar do que tinha
acontecido na noite anterior.
Deves tê-la seduzido, se se está a comportar desta maneira…. Emerson,
és um idiota de primeira classe. Acabaste de dizer adeus à tua carreira.
Enquanto Gabriel pensava, e pensava devagar, Julia viu uma
oportunidade e aproveitou-a. Com uma audível praga, agarrou nas roupas,
correu para o quarto de hóspedes, fechou a porta com força e trancou-a
atrás de si.
Despiu os boxers dele, deixando-os desdenhosamente no chão, e
apressou-se a enfiar as meias e as calças de ganga húmidas. Quando
percebeu que deixara o sutiã em cima da máquina de secar decidiu que se
iria embora sem ele. Ele que o junte à sua coleção. Filho da mãe. Decidiu
não despir a t-shirt, uma vez que era menos reveladora do que a sua. E, se
ele a exigisse de volta, ela arrancava-lhe os olhos.
Julia parou para encostar o ouvido à porta, a tentar ouvir algum som de
movimento no corredor. A sua falta lucidez naquele ponto deu-lhe uns
momentos preciosos para pensar.
Perdera a cabeça e fora estúpida. Sabia como Gabriel era; vira a mesa de
centro despedaçada e o sangue salpicado na carpete de Grace. Embora
tivesse a certeza que Gabriel nunca lhe bateria, não fazia ideia do que o
professor Emerson lhe faria quando provocado.
Mas ele deixara-a tão furiosa. E nunca tivera oportunidade de deitar para
fora a sua fúria. Era como se toda a raiva acumulada gritasse por liberdade.
Tinha de contra-atacar; tinha de o tirar do seu organismo, de uma vez por
todas. Desperdiçara a sua vida a definhar por causa de alguém que não era
real, uma temporária aparição alcoólica, e isso ia acabar finalmente, nesse
mesmo dia.
Gritaste-lhe e chamaste-lhe nomes. Sai já daqui antes que ele parta para
a violência.
Enquanto Julia se vestia, Gabriel cambaleou até à cozinha para arranjar
qualquer coisa que removesse da sua cabeça as teias de aranha tecidas de
uísque. Abriu a porta do frigorífico e encostou-se a ela, banhado pela sua
brilhante fluorescência.
Os seus olhos azuis investigaram o conteúdo do frigorífico até
encontrarem um grande tabuleiro branco. Um muito bonito e grande
tabuleiro branco. Um muito bonito, muito feminino e grande tabuleiro
branco, com comida, sumo de laranja, e o que parecia ser um cocktail.
E aquilo seria…? Ela até guarnecera o prato, pelo amor de Deus.
Gabriel ficou a olhar. A menina Mitchell parecia ser uma pessoa querida,
mas quais seriam as hipóteses de ela lhe ter preparado um pequeno-almoço
por outra razão que não fosse o facto de ele a ter levado para a cama? O
tabuleiro, em toda a sua glória guarnecida, parecia-lhe uma prova da sua
sedução e, por essa razão, deixou-o maldisposto.
De qualquer maneira, sentiu-se grato por ela lhe ter preparado um
cocktail, enquanto o bebeu avidamente. Era precisamente o antídoto que a
sua cabeça a martelar necessitava e, em poucos momentos, sentiu alguma
medida de alívio.
Ociosamente, os seus olhos viraram-se para o bilhete que estava
encostado ao sumo de laranja. Examinou o texto muito devagar, sem
compreender porque a menina Mitchell teria optado por se lhe dirigir
daquela maneira. Leu o papel outra vez, e outra, e a sua concentração veio
finalmente a deter-se naquelas palavras:
Apparuit iam beatitudo vestra.
Agora aparece a tua bem-aventurança.
A tua Beatriz

Pôs o bilhete de lado, irritado. Se aquilo não confirmava o seu encontro,


era prova de uma paixoneta. Não admirava que tivesse sido tão fácil
convencê-la a oferecer a sua virgindade. As estudantes ficavam fascinadas
pelas figuras de autoridade e desenvolviam sentimentos desadequados por
elas. No caso de Julianne, ela via-o por intermédio das personagens da sua
investigação, ou seja, ela era a Beatriz para o seu Dante. Uma paixão
simples mas proibida. Uma paixoneta a que ele cedera num egoísta
momento de embriaguez. Agora perdera o apetite. O que vai dizer a Rachel
quando descobrir?
A praguejar contra a sua própria falta de autodomínio, passou pela porta
fechada do quarto de hóspedes a caminho dos seus próprios aposentos.
Breves imagens da noite anterior dançavam-lhe perante os olhos.
Recordava-se de beijar Julianne naquele corredor e da sensação da pele dela
debaixo das suas mãos. Lembrava-se de a desejar ardentemente, da doçura
dos seus lábios, do seu hálito quente contra o seu rosto, da maneira como
ela tremia sob o seu toque. Embora não se conseguisse lembrar do ato em
si, ou do prazer da sua nudez, recordava-se de olhar para o rosto dela
enquanto estava deitado na cama. Sentira a mão dela contra a sua face,
ouvira-a pedir-lhe que caminhasse na direção da luz. Tinha a cara de um
anjo. Um lindo anjo de olhos castanhos.
Ela veio salvar-me, e olha como a tratei. Tirei-lhe a virgindade, e nem
sequer me lembro. Ela merecia melhor. Muito, muito melhor.
Emitiu o grunhido de uma alma torturada enquanto enfiava um par de
calças de ganga e uma velha t-shirt e procurava os óculos. Quando estava
prestes a sair do quarto, parou, o seu olhar inexplicavelmente atraído para a
pintura a óleo na parede em frente.
Beatriz.
Avançou até ficar a uns meros centímetros do seu lindo rosto, a sua forma
branca familiar e reconfortante. O seu anjo de olhos castanhos. Uma fugidia
visão do impossível perpassou-lhe perante os olhos, mas, como uma farripa
de fumo, dissipou-se. Ele estava de ressaca e não conseguia pensar
claramente.
Julia destrancou a porta em silêncio e espreitou para o corredor. Estava
deserto. Foi em bicos de pés para a cozinha, calçou os ténis, pegou nas suas
coisas e correu para a porta principal. Gabriel estava à sua espera.
Scheisse.
— Não se pode ir embora sem eu ter as respostas.
Julia engoliu em seco.
— Deixe-me ir embora. Senão chamo a polícia.
— Se chamar a polícia, digo-lhes que me assaltou a casa.
— Se lhes disser isso, eu digo-lhes que me manteve aqui contra a minha
vontade e que me magoou. — Estava de novo a falar sem pensar, o que não
era inteligente. E agora estava a ameaçá-lo com uma falsidade. Tudo o que
tinham feito juntos fora consensual e casto e doce… e não se estragara
absolutamente nada. Mas Gabriel não sabia isso.
— Por favor, Julianne. Diga-me que eu não… — Os olhos dele tornaram-
se maiores e mais redondos, e o seu rosto contorceu-se de dor. — Por favor,
diga-me que não fui… bruto consigo. — Gabriel quase ficou verde, e levou
uma mão a tremer aos óculos. — Tratei-a muito mal?
Julia debateu quanto tempo o deveria deixar no proverbial arame, mas
decidiu rapidamente esclarecê-lo.
— Não me fez mal nenhum. Fisicamente, pelo menos. Só quis ter alguém
para o pôr na cama e fazer-lhe companhia. Suplicou-me que ficasse aqui, na
verdade, mas só como amiga. Foi mais cavalheiro comigo ontem à noite do
que foi esta manhã, o que diz alguma coisa. Acho que gosto mais de si
quando está bêbado.
— Nunca pense assim, Julianne. — Ele abanou a cabeça e suspirou. — E
ainda estou bêbado. Estou simplesmente aliviado por não ter sido o seu
primeiro.
Ela inalou bruscamente, e Gabriel viu quando uma expressão dolorosa
lhe maculou as lindas feições.
— Mas as suas roupas… — O professor baixou o olhar para o peito dela,
para os mamilos que se espetavam deliciosamente por baixo da sua t-shirt
preta. Tentou não a comer com os olhos, mas falhou.
— Isto é alguma brincadeira? — ripostou ela. — Está a dizer-me
honestamente que não se lembra?
— Tenho brancas na minha memória… quando bebo, por vezes não
consigo dizer… — Ele começou a balbuciar incoerentemente.
Julia atingira o limite da paciência.
— Vomitou para cima de mim. Foi por isso que tive de vestir as suas
roupas. E por nenhuma outra razão, acredite em mim.
Um olhar de alívio e magoado reconhecimento perpassou-lhe na face.
— Desculpe — disse ele. — E peço desculpa por a ter insultado. Não
queria dizer o que disse há pouco, não queria mesmo. Fiquei chocado
quando a encontrei aqui, e pela maneira como estava vestida, pensei que
nós… — Fez um gesto vago com a mão.
— Tretas.
Gabriel ficou carrancudo, e forçou-se a manter a calma.
— Se alguém ligado à universidade descobrir que passou aqui a noite,
posso ter um grande problema. Podemos ter os dois.
— Eu não conto a ninguém, Gabriel. Não sou estúpida, apesar do que
pensa a meu respeito.
Ele franziu o sobrolho.
— Eu sei que não é estúpida. Mas se o Paul ou a Christa descobrirem,
eu…
— É a única coisa com que se preocupa? Em cobrir a sua retaguarda?
Bem, não se preocupe. Eu cobri-lha por si. Afugentei a Christa de cima de
si ontem à noite antes que ela tivesse oportunidade de consumar a vossa
relação professor-aluna. Devia estar a agradecer-me!
O rosto de Gabriel endureceu, e ele comprimiu os lábios.
— Obrigado, menina Mitchell. Mas se alguém a vê sair daqui…
Julia ergueu as mãos no ar, frustrada. Ele era mesmo incrivelmente
estúpido.
— Se alguém me vir, eu digo que estava de joelhos na casa do seu
vizinho do lado, a fazer dinheiro para comprar cuscuz. Tenho a certeza que
será verosímil.
Num relâmpago, a mão de Gabriel estava de novo no queixo dela, agora
com mais força.
— Pare. Já a avisei para não dizer coisas dessas.
Julia estacou, mas apenas por um segundo, antes de se soltar bruscamente
da mão dele.
— Não me toque — sibilou. Tentou passar por ele, a rezar para que O
Professor não decidisse retaliar e lhe batesse, mas ele levou a mão à
maçaneta e encostou-se à porta.
— Raios! Pode parar? — Ergueu a mão, com esperança de a imobilizar.
Instintivamente, ela agachou-se e recuou. Gabriel viu o movimento pelo
que era e sentiu-se, de repente, nauseado.
— Julianne, por favor. — Ele baixou a voz para o mais suave murmúrio e
rogou-lhe com os olhos. — Eu não lhe vou bater. Só quero falar consigo.
Colocou uma mão na cabeça e fez uma careta.
— Já fiz coisas terríveis quando não estava no meu juízo perfeito.
Receava tê-la tratado mal ontem à noite. Perdi a cabeça, mas só estou
zangado comigo mesmo.
»Penso o melhor de si. O melhor. Como seria possível o contrário? A
Julianne é… linda e inocente e doce. Não gosto de a ver rastejar pelo chão
como se fosse um animal ou uma escrava. Deixe a porcaria do copo onde
está… não me interessa. Lembra-se das palavras autodepreciativas que me
disse quando a levei a casa depois do Vestíbulo? Aquelas palavras têm-me
perseguido. Por isso, tenha piedade de mim e pare de se denegrir. Não o
suporto.
Ele pigarreou, duas vezes.
— Não me lembro de tudo o que aconteceu com a menina Peterson, mas
peço desculpa. Fui estúpido, e veio em meu socorro. Obrigado.
Ajustou lentamente os óculos.
— O que aconteceu ontem à noite não pode voltar a acontecer. Peço
desculpa por tê-la beijado. De certeza que foi uma experiência revoltante,
ter um bêbado baboso a pôr a boca em cima de si. Perdoe-me.
O ar saiu de Julia num sobressalto audível. O pedido de desculpas de
Gabriel magoava-a. Pois, pela maneira como soava, ele não se lembrava do
beijo da mesma maneira que ela. E isso perturbou-a, grandemente.
— Oh, isso — disse ela friamente. — Já esqueci completamente. Não foi
nada.
Gabriel ergueu as sobrancelhas. Por alguma razão, a sua expressão
endureceu, e ele franziu o sobrolho.
— Nada? Foi bem mais do que nada. — Ficou a olhá-la por um ou dois
segundos, a perguntar-se se deveria mencionar o bilhete que ela deixara no
tabuleiro. — Está zangada. Eu ainda estou embriagado. Vamos acabar com
isto antes que ainda piore. — A sua voz era seca e subitamente fria. —
Adeus, menina Mitchell.
Destrancou a porta e abriu-a.
— Gabriel? — Ela parou assim que pisou o corredor, voltando-se para o
olhar.
— Sim?
— Preciso de lhe dizer uma coisa.
— Faça favor. — A voz dele era sombria.
— A Paulina ligou ontem à noite, quando estava… indisponível. E eu
atendi o telefone.
Ele removeu os óculos e começou a esfregar os olhos.
— Merda. O que foi que ela disse?
— Chamou-me vadia e disse-me que o acordasse e lhe pusesse o telefone
na mão. Eu disse que estava indisposto.
— Ela disse porque estava a ligar?
— Não.
— Disse-lhe quem era? O seu nome?
Julia abanou a cabeça.
— Graças a Deus — balbuciou ele.
Ela franziu o sobrolho. Esperara que ele se desculpasse por Paulina. Mas
isso não acontecera. De facto, ele parecia inteiramente imperturbável pelo
comportamento daquela mulher, como se estivesse com mais receio que
Julia a incomodasse a ela do que o contrário.
Tem de ser a amante.
Julia fixou-o com um olhar de pedra, e o seu corpo começou a vibrar de
fúria.
— Suplicaste-me que viesse atrás de ti… que procurasse por ti no
Inferno. E foi exatamente onde te encontrei. Podes ficar lá para sempre, que
não quero saber.
Ele recuou, voltou a pôr os óculos, e os seus olhos tornaram-se fendas.
— De que é que está a falar?
— De nada. Estou farta, professor Emerson. — Ela deu meia-volta e
dirigiu-se para o elevador.
Confuso, Gabriel ficou a vê-la afastar-se, com os pensamentos confusos e
dispersos. Passado um momento, correu atrás dela.
— Porque é que escreveu aquele bilhete ridículo?
Ela sentiu-se como se tivesse sido apunhalada no coração. Endireitou os
ombros e tentou fazer uma voz firme.
— Qual bilhete?
— Sabe perfeitamente qual bilhete, raios! O que me deixou no
frigorífico.
Julia encolheu os ombros dramaticamente.
Ele agarrou-a pelo cotovelo e fê-la dar meia-volta.
— Isto é alguma brincadeira para si?
— Claro que não! Deixe-me! — Ela arrancou o braço da mão dele e
começou a carregar no botão de chamada do elevador, a rezar por que ele
viesse em seu socorro. Sentia-se humilhada e zangada, sentia-se parva e, oh,
tão pequenina. Não conseguia afastar-se dele suficientemente rápido,
mesmo que corresse pelas escadas abaixo.
Gabriel deu um passo em frente.
— Porque é que assinou o papel daquela maneira?
— O que é que lhe interessa?
Ele ouviu o elevador aproximar-se e soube que tinha uns meros segundos
para obter respostas às suas perguntas. Fechou os olhos, as palavras dela
ainda a trovejar nos seus ouvidos. Ela procurara-o no Inferno. Ele suplicara
ao anjo de olhos castanhos que fosse à procura dele. Claro, ela não o fizera.
Alucinações não respondem a súplicas.
E se a Beatriz não foi uma alucinação? E se… Sentiu algo parecido com
medo a começar a percorrer-lhe a pele. Mais uma vez, o impossível flutuou-
lhe à frente dos olhos. Se se concentrasse, conseguia vê-la na sua memória,
mas o rosto mantinha-se desfocado.
O toque de um sino assinalou a chegada do elevador.
Os olhos dele abriram-se de rompante.
Ela deu um passo para a porta aberta e abanou a cabeça, vendo a
confusão e a embriaguez que ainda lhe nadava nos olhos. Tudo dependia
daquele momento. Podia dizer-lhe ou podia guardar em segredo o que
acontecera entre eles, tal como sempre fizera. Tal como fizera durante a
merda de seis anos.
Quando a porta começou a fechar-se lentamente, ela viu uma vaga de
lucidez inundá-lo.
— Beatriz? — sussurrou ele.
— Sim — disse ela, desviando-se para poder continuar a manter contacto
visual com ele até ao último segundo possível. — Sou a Beatriz. Foste o
meu primeiro beijo. Adormeci nos teus braços no teu precioso pomar.
Gabriel precipitou-se para a frente para impedir a porta do elevador de se
fechar.
— Beatriz! Espera!
Era demasiado tarde. A porta fechou-se com o som do nome dela. Ele
pressionou o botão furiosamente, na esperança de reabrir as portas.
— Já não sou a Beatriz. — Quando o elevador começou a sua lenta mas
imparável descida, Julia rompeu em lágrimas.
Gabriel encostou a testa e as palmas das mãos contra o aço frio da porta
do elevador.
O que foi que eu fiz?
Capítulo Quinze

O velho Sr. Krangel espreitou pelo óculo da porta para o patamar e não
viu nada fora do normal. Ouvira vozes, um homem e uma mulher a
discutir, mas não conseguia ver ninguém. Até ouvira um nome — Beatriz.
Mas não conhecia nenhuma moradora com esse nome no andar. E agora o
patamar parecia estar vazio.
Já se aventurara a sair naquela manhã, tivera de devolver o jornal de
sábado ao seu vizinho anónimo, que fora deixado à sua porta por engano.
Os Krangels não recebiam o jornal de sábado, mas a Sr.ª Krangel sofria de
demência e apanhara-o e escondera-o no apartamento no dia anterior.
Um pouco aborrecido por ter a sua manhã de domingo assim
interrompida por um kemfn no patamar, o Sr. Krangel abriu a porta e meteu
a cabeça envelhecida de fora. A alguma distância, viu um homem encostado
à porta fechada do elevador. Tinha os ombros a tremer.
O Sr. Krangel ficou de imediato embaraçado pela visão patética na sua
frente, mas estava, ao mesmo tempo, fascinado.
Não reconheceu o homem, e também não ia apresentar-se. Decerto que
um homem adulto que era capaz de andar pelo décimo terceiro andar de um
prédio descalço e vestido daquela maneira e… e fazer o que quer que
estivesse a fazer não era o tipo de pessoa que desejava conhecer. Os homens
da sua geração nunca choravam. Claro, também nunca tiravam as meias em
patamares de escadas. A não ser que fossem — esquisitos. Ou vivessem na
Califórnia.
O Sr. Krangel recuou rapidamente, fechou e trancou a porta e ligou ao
porteiro em baixo para dar conta de um descalço a chorar no meio do
patamar que tivera uma gritante kemfn com uma mulher chamada Beatriz.
Levou cinco esgotantes minutos a explicar ao porteiro o que era uma
kemfn. O Sr. Krangel lamentou vocalmente este facto, optando por atribuir
as culpas ao Conselho Escolar do Distrito de Toronto e ao seu currículo
estreito e superficial.
ra o final de outubro, e o tempo em Toronto já estava frio. Julia não tinha
nada quente debaixo do casaco enquanto, lenta e miseravelmente,

E caminhava para casa, porque deixara a camisola suja do professor para


trás. Apertava fortemente os braços contra o peito, e ia limpando
lágrimas zangadas e resignadas.
As pessoas passavam por ela na rua e lançavam-lhe olhares de
compaixão. Os Canadianos conseguiam ser assim — mudamente
simpáticos mas educadamente distantes. Julia sentia-se grata pela sua
simpatia e ainda mais grata por nenhum deles parar para lhe perguntar
porque estava a chorar. Pois a sua história era, ao mesmo tempo, demasiado
comprida e demasiado lixada para contar.
Julia nunca se perguntava porque aconteciam coisas más a pessoas boas,
pois já sabia a resposta: as coisas más aconteciam a toda a gente. Não que
isso fosse desculpa ou justificação para se fazer mal a outro ser humano.
Ainda assim, todos os humanos tinham esta experiência partilhada — a do
sofrimento. Nenhum humano saía deste mundo sem ter derramado uma
lágrima, ou sentir dor, ou palmilhar o mar do desgosto. Porque haveria a sua
vida de ser diferente? Porque deveria esperar qualquer tratamento especial,
qualquer favorecimento? Até a Madre Teresa sofrera, e era santa.
Julia não se arrependia de ter olhado pel’O Professor quando ele estava
embriagado, embora a sua boa ação tivesse sido castigada. Pois quando se
acredita que uma boa ação nunca é desperdiçada, há que manter essa crença
mesmo quando a bondade é atirada à cara do seu praticante.
Envergonhava-se de ter sido tão estúpida, tão idiota, tão ingénua, a ponto
de pensar que ele se recordaria dela depois de uma bebedeira e que
poderiam regressar a como as coisas eram (mas nunca tinham sido, na
realidade) naquela noite no pomar. Julia sabia que fora levada pela fantasia
romântica de um conto de fadas, sem ter em conta como o mundo real, e o
Gabriel real, eram na verdade.
Mas era real — a velha centelha estava lá. Quando ele me beijou,
quando me tocou, a eletricidade continuava lá. Ele teve de a sentir — não
foi tudo produto da minha cabeça. Julia pôs rapidamente de parte estes
pensamentos; queria cingir-se à sua nova dieta zero-por-cento-Emerson.
Está na altura de crescer. Chega de contos de fadas. Ele não gostava o
suficiente para se lembrar em setembro, e agora tem a Paulina.
Quando entrou no seu pequeno buraco de hobbit, tomou um longo duche
e vestiu o seu pijama de flanela mais velho e mais macio — um pijama que
era rosa-pálido e tinha imagens de patinhos de borracha. Atirou a t-shirt de
Gabriel para o fundo do seu roupeiro, onde, com sorte, seria esquecida.
Enroscou-se na sua cama, agarrada ao coelho de peluche, e adormeceu,
física e emocionalmente esgotada.
Enquanto Julia dormia, Gabriel batalhava com a sua ressaca e combatia a
vontade de mergulhar numa garrafa de uísque para nunca mais regressar à
superfície. Não fora atrás dela. Não correra para as escadas nem descera aos
saltos trinta lanços de escadas para a encontrar no átrio da entrada. Não
apanhara o elevador seguinte e correra para a rua para a apanhar.
Não, voltara a cambalear para o seu apartamento e deixara-se cair numa
cadeira, para poder chafurdar na náusea e na autoaversão. Amaldiçoou a
dureza com que a tratara, não apenas naquela manhã, mas desde o primeiro
seminário em setembro. Uma dureza tornada pior pelo facto de ela a ter
sofrido num silêncio de santa, enquanto sabia exatamente quem era e o que
representava para ele.
Como posso ter sido tão cego?
Pensou na primeira vez que a vira. Regressara a Selinsgrove em
depressão e desespero. Mas Deus interviera, um genuíno deus ex machina.
Deus enviara-lhe um anjo para o salvar do Inferno — um delicado anjo de
olhos castanhos, vestido de calças de ganga e ténis, com uma cara linda e
uma alma pura. O anjo reconfortara-o na sua escuridão, e dera-lhe
esperança. Parecia nutrir uma sincera afeição por ele, apesar dos seus
pecados.
Ela salvou-me.
Como se essa salvação não tivesse sido suficiente, o anjo aparecera-lhe
uma segunda vez, o mesmo dia em que perdera cruelmente a outra firme
força de bondade na sua vida, Grace. O anjo sentara-se no seu seminário de
Dante, para o lembrar da verdade, beleza e bondade. E ele reagira ralhando-
lhe e ameaçando-a de expulsão do programa. Depois, naquela manhã, fora
cruel e comparara-a a uma puta.
Agora sou eu o Fornicador-de-Anjos. Fodi completamente o anjo de
olhos castanhos. Gabriel amaldiçoou a ironia do seu nome enquanto se
dirigia para a cozinha para ir buscar o bilhete dela.
Quando olhou para a bonita e frágil mensagem na sua mão, viu a sua
própria fealdade — não uma fealdade de corpo mas de alma. O bilhete de
Julianne, e até o seu tabuleiro de pequeno-almoço, punham a nu o pecado
de Gabriel de uma maneira que era resoluta, condenatória e absolutamente
impiedosa.
Ela não o poderia saber, mas, naquele momento, as suas palavras da
semana anterior tornavam-se verdadeiras. Por vezes, as pessoas, quando
deixadas sozinhas, conseguem ouvir o seu ódio por si próprias. Por vezes, a
bondade era suficiente para expor o mal pelo que realmente era.

Q uando Julia finalmente acordou, eram dez da noite. Bocejou e


espreguiçou-se, e, depois de fazer uma muito triste tigela de papas de
aveia instantâneas e mal ser capaz de engolir um terço delas, decidiu ir
verificar se tinha mensagens.
Desligara o telemóvel quando chegara a casa de Gabriel na noite anterior,
porque estava à espera de uma chamada de Paul. Não estava com vontade
de falar com ele, nem naquela altura nem agora, embora soubesse que,
provavelmente, Paul seria capaz de a animar. Só queria ficar sozinha e
lamber as próprias feridas, como um cachorrinho que fora repetidamente
maltratado.
Por isso, foi de coração pesado que consultou as mensagens, começando
pelas mais antigas, e franziu o sobrolho quando percebeu que tinha a caixa
de entrada cheia. A caixa de mensagens de Julia nunca estava cheia, pois as
únicas pessoas que lhe ligavam eram o pai, Rachel e Paul, e as suas
mensagens eram sempre curtas.
«Olá, Julia, sou eu. É sábado à noite e a conferência correu bem. Vou
levar-te uma coisa aqui de Princeton. É pequena, por isso não te
preocupes. Deves estar na biblioteca, a trabalhar. Liga-me. [Pausa
significativa…] Tenho saudades tuas.»
Julia suspirou, apagou a primeira mensagem de Paul e passou para a
seguinte.
«Olá, Julia. Sou eu outra vez. É domingo de manhã, e devo estar em casa
à noite. Queres encontrar-te comigo para jantar? Há um restaurante perto
do teu apartamento que tem um sushi ótimo. Liga-me. Tenho saudades tuas,
Coelhinha.»
Julia apagou a segunda mensagem de Paul e respondeu rapidamente por
escrito, dizendo que apanhara uma gripe e que estava a pôr o sono em dia.
Voltaria a ligar-lhe quando se sentisse melhor, e esperava que ele tivesse
chegado bem a casa. Não lhe disse que tinha saudades.
A mensagem seguinte era de um número local que não reconhecia.
«Juliannne… eeh… Julia. É o Gabriel. Eu… por favor, não desligues. Eu
sei que sou a última pessoa no mundo com quem queres falar, mas estou a
prostrar-me na tua frente. De facto, estou à porta do teu prédio à chuva.
Estava preocupado contigo, e queria ter a certeza que chegaste bem a casa.
»Quem me dera poder voltar atrás e poder dizer-te que nunca vi nada
mais bonito do que tu na minha sala, feliz e a dançar. Que tenho uma sorte
incrível por me teres socorrido e ficado comigo a noite toda. Que sou um
idiota e um estúpido, e que não mereço a tua bondade. Não mereço nada.
Eu sei que te magoei, Julia, e peço desculpa.
[Profunda inspiração e expiração.] »Nunca devia ter-te deixado ir
embora esta manhã — daquela maneira. Devia ter corrido atrás de ti,
devia ter-te suplicado que ficasses. Fiz merda, Julia. Fiz merda.
»Devia ter-me humilhado em pessoa, que é o que estou a tentar fazer
agora. Por favor, vem cá fora para me poder desculpar. Ou antes, não
venhas cá fora — ainda apanhas uma pneumonia. Vem só à porta e ouve-
me através do vidro. Vou ficar aqui fora à tua espera. O meu número de
telemóvel é…»
Julia ficou carrancuda e apagou a mensagem, sem se dar ao trabalho de
guardar o número. Ainda com o seu pijama de patos de borracha, abriu a
porta do apartamento e dirigiu-se para o átrio. Não tinha qualquer intenção
de ouvir Gabriel; só queria verificar se ele continuava à espera ao frio e à
chuva no escuro.
Encostou o nariz contra o vidro da porta, embaciando-o, e espreitou a
escuridão cerrada. Já não chovia. E não havia Professor à vista. Perguntou-
se quanto tempo teria ele esperado. Perguntou-se se ele teria vindo ao seu
apartamento sem um guarda-chuva. Depois endireitou-se e disse a si mesma
que não queria saber.
Ele que apanhe uma pneumonia. É bem feito.
Antes de se virar para voltar para casa, reparou num grande ramo de
jacintos cor de púrpura encostados a um dos pilares do alpendre. Tinha um
grande laço cor-de-rosa a prendê-lo e algo que parecia um cartão do
Hallmark preso no meio. O envelope dizia Julia.
Oh, por favor, professor Emerson. Não sabia que os cartões do
Hallmark’s incluíam o «qualquer coisa para a rapariga/aluna de mestrado
que tratei mal depois de lhe dizer que lhe queria fazer festas e de vomitar
para cima dela». Julia deu meia-volta e voltou para o apartamento, a abanar
a cabeça e a resmungar.
Instalou-se na sua cama com o portátil e decidiu fazer uma busca na
internet sobre jacintos púrpura, só para o caso de Gabriel (ou a sua florista)
lhe estar a tentar enviar alguma mensagem subliminar. Num website de
horticultura, leu o seguinte: Jacintos púrpura simbolizam arrependimento, o
pedido de perdão, ou uma desculpa.
Bem, se não tivesses sido tão filho da mãe comigo, Gabriel, não terias de
comprar jacintos para suplicar o meu perdão. Idiota. Ainda a abanar a
cabeça de irritação, Julia pôs o portátil de lado e abriu a sua última
mensagem de voz. Era de Gabriel, e ele deixara-a uns minutos antes.
«Julia, queria dizer-te isto em pessoa, mas não posso esperar. Não posso
esperar.
»Não te estava a chamar puta esta manhã. Juro. Foi uma comparação
terrível, e nunca o devia ter dito, mas não te estava a comparar com uma
puta. Estava a objetar contra ver-te de joelhos. É uma coisa que… me
perturba. Sempre. Tu devias ser venerada e adorada e tratada com
dignidade. Nunca estar de joelhos. Nunca de joelhos, Julia, por ninguém.
Não importa o que possas pensar de mim, essa é a verdade.
»Devia ter-te pedido desculpa imediatamente pelo que a Paulina te disse.
Acabei de falar com ela, e quero transmitir-te as suas desculpas. Ela está
arrependida. Eu e ela temos um… eehh… (tosse) … é complicado.
Provavelmente podes imaginar porque é que ela chegou àquela conclusão,
e isso só tem a ver comigo e o meu… eeh… comportamento prévio, e não
tem nada a ver contigo. Lamento muito, mesmo, que ela te tenha insultado.
Não voltará a acontecer, prometo.
»Obrigado por me fazeres o pequeno-almoço esta manhã. Hum… [pausa
muito longa] ver o tabuleiro que me preparaste causou qualquer coisa
dentro de mim. Não consigo encontrar palavras. Julia, nunca ninguém fez
nada como isto por mim. Ninguém. Nem a Grace, nem um amigo, nem uma
amante, ninguém. Eu… tu tens sido sempre boa, amável e generosa. E eu
não tenho sido senão egoísta e cruel. [Pigarrear…]
[Voz agora rouca.] »Por favor, Julia, precisamos de conversar sobre o
teu bilhete. Tenho-o aqui na palma da minha mão, e não o vou deixar. Mas
há algumas coisas que preciso de te explicar, coisas importantes, e não me
sinto muito à vontade a fazer isso ao telefone. Desculpa pelo que aconteceu
esta manhã. A culpa é toda minha, e quero resolver as coisas. Por favor,
diz-me como resolver as coisas. Liga-me.»
Mais uma vez, Julia apagou a mensagem, e, mais uma vez, não fez
nenhuma tentativa de guardar o número dele. Desligou o telefone, deixou-o
com o portátil em cima da mesa articulada e voltou para a cama, para tentar
expulsar a voz triste e torturada de Gabriel da sua mente.
No dia seguinte, e no outro, Julia não saiu do seu apartamento. De facto,
passou todo o tempo com vários conjuntos de pijamas de flanela, a tentar
distrair-se com música alta e uma série de livros de bolso muito usados de
Alexander McCall Smith. As histórias de Edinburgh eram as suas favoritas,
por causa do seu caráter alegre, ligeiramente misterioso e espirituoso.
Achava a escrita dele reconfortante e mais do que tranquilizadora para a sua
alma. As histórias tendiam a deixá-la com apetite por coisas escocesas,
como papas de aveia e biscoitos Walker’s, e cheddar da ilha de Mull (não
necessariamente por esta ordem).
Embora tivesse tido uma experiência verdadeiramente traumatizante com
Gabriel, logo depois de passar a noite nos seus braços, estava mais decidida
do que nunca a não o deixar destruí-la. Já fora destruída antes; ele destruíra-
a. E Julia jurara no seu coração nunca mais deixar que o seu espírito fosse
quebrado de novo. Por ninguém.
Por isso, tomou as três decisões seguintes:
Primeiro, não iria desistir da turma de Emerson, porque precisava de um
seminário de Dante para demonstrar a sua competência.
Segundo, não desistiria do curso nem regressaria a Selinsgrove como
uma cobarde.
Terceiro, ia procurar outro orientador de tese e preencheria a papelada
necessária nas costas de Emerson, o mais depressa possível.
Perto da meia-noite de terça-feira, ligou finalmente o seu telemóvel para
verificar as mensagens. Mais uma vez, tinha a caixa de entrada cheia.
Revirou os olhos quando descobriu, não surpreendentemente, que a
primeira mensagem era de Gabriel. Chegara no domingo de manhã.
«Julianne… deixei uma coisa para ti ontem à noite no alpendre. Viste?
Leste o cartão? Lê, por favor.
»A propósito, tive de ligar ao Paul Norris para arranjar o teu número de
telemóvel. Inventei uma desculpa sobre precisar de falar contigo sobre a
tese, para o caso de ele perguntar alguma coisa.
»Sabias que te esqueceste do teu iPod? Tenho estado a ouvi-lo. Fiquei
surpreendido quando descobri que és fã dos Arcade Fire. Estive a ouvir o
Intervention, embora me surpreenda que alguém tão bem ajustado e feliz
como tu ouça uma canção tão trágica. Gostava de te poder devolver o iPod
pessoalmente.
»Gostava que falasses comigo. Gritasses comigo. Me chamasses nomes.
Me atirasses coisas à cara. Qualquer coisa menos o silêncio, Julianne. Por
favor. [Grande suspiro…] Só uns momentos do teu tempo, é a única coisa
que te peço. Liga-me.»
Julia apagou a mensagem e dirigiu-se prontamente com o seu pijama de
flanela escocês para o alpendre. Pegou no cartão preso ao ramo, rasgou-o
em centenas de pedaços e atirou os pedaços por cima do parapeito para a
relva. Pegou nos jacintos já murchos e atirou-os também sobre o parapeito.
Depois inalou profundamente o ar frio da noite e correu de volta para casa,
batendo com força com a porta atrás de si.
Depois de se acalmar, ouviu a mensagem seguinte, que também era de
Gabriel. Ele ligara-lhe naquela tarde.
«Julianne, sabias que a Rachel está numa ilha canadiana remota
qualquer? Sem acesso a telemóvel e ao e-mail? Pelo amor de Deus,
precisei de ligar ao Richard, que ela nunca mais me atendia o telefone.
Estava a tentar contactá-la para ela te contactar, já que te recusas a
responder às minhas mensagens.
»Estou preocupado contigo. Fiz umas perguntas e ninguém, nem sequer
o Paul, te vê há dias. Vou mandar-te um e-mail, mas terá de ser formal,
porque a universidade tem acesso à minha conta de e-mail. Espero que
recebas esta mensagem antes de o leres, se não vais pensar que estou a ser
um imbecil outra vez. Mas não estou. Só tenho de o fazer soar como uma
comunicação oficial. Se me responderes, não te esqueças que qualquer
pessoa da administração pode ler aqueles e-mails. Por isso tem cuidado
com o que dizes.
»Vejo-te no meu seminário amanhã. Se não estiveres presente, vou ligar
ao teu pai e pedir-lhe que te encontre. Até já podes estar numa camioneta a
caminho de Selinsgrove, neste momento. Liga-me, por favor. Tive de me
conter para não aparecer aí todos os dias, desde domingo.
[Longa pausa…] »Só queria saber se estás bem. Duas palavras, Julia.
Manda-me só duas palavras… diz-me que estás bem. É a única coisa que
eu te peço.»
Julia ligou de imediato o seu computador e abriu a sua conta de e-mail da
universidade. Ali, pousada na sua caixa de entrada como uma bomba,
estava a seguinte mensagem do professor Gabriel O. Emerson:
Cara menina Mitchell,
Preciso de conversar consigo sobre um assunto de alguma urgência.
Por favor, entre em contacto comigo assim que for possível. Pode telefonar para o número
seguinte: 416-555-0739 (móvel).
Cumprimentos,
Prof. Gabriel O. Emerson,
Professor associado
Departamento de Estudos Italianos
Centro de Estudos Medievais
Universidade de Toronto

Julia apagou o e-mail e a mensagem de voz sem pensar duas vezes, e


enviou uma curta mensagem de e-mail a Paul a explicar que estava
demasiado doente para comparecer no próximo seminário do professor
Emerson na tarde seguinte e a pedir que passasse essa informação ao
Professor. Agradeceu a Paul pelos seus vários e-mails, pediu desculpa por
não ter respondido mais cedo e perguntou-lhe se gostaria de a acompanhar
ao Museu Real de Ontário para ver a exposição de arte florentina, quando
ela recuperasse a saúde.
No dia seguinte, passou a maior parte da tarde a compor um e-mail
exploratório à professora Jennifer Leaming, do Departamento de Filosofia.
A professora Leaming era especialista em Aquino e tinha também interesse
em Dante. Embora Julia não a conhecesse pessoalmente, Paul tivera uma
cadeira com ela e gostara imenso da experiência. Era jovem, divertida e
muito popular entre os estudantes — o total oposto do professor Emerson.
Julia esperava que a professora Leaming considerasse a hipótese de a
orientar na sua tese de mestrado e declarou esta esperança como uma mera
possibilidade no seu e-mail.
Julia queria consultar Paul a respeito da troca e pedir o seu conselho, mas
não conseguiu. Sabia que ele assumiria que Emerson a abandonara e que
provavelmente quereria confrontá-lo sobre o assunto. Por isso enviou o e-
mail à professora Leaming e esperou que esta o recebesse
benevolentemente e respondesse depressa.
Mais tarde, foi ouvir as mensagens de voz e, mais uma vez, havia à sua
espera uma de Gabriel.
«Julianne, é quarta à noite. Senti a tua falta no seminário. Tu iluminas
uma sala, sabes, só com a tua presença. Desculpa nunca te ter dito isto
antes.
»O Paul disse que estás doente. Queres que leve um pouco de canja?
Gelado? Sumo de laranja? Posso mandar entregar-te essas coisas. Não
deves querer ver-me. Por favor, deixa-me ajudar-te. Sinto-me terrivelmente
por saber que estás no teu apartamento, sozinha e doente, e que não posso
fazer nada.
»Pelo menos sei que estás a salvo, e não num Greyhound algures.
[Pausa… pigarrear.]
»Lembro-me de quando te beijei. Tu retribuíste o beijo. Retribuíste o
beijo, Julia. Eu sei que o fizeste. Não sentiste? Há qualquer coisa entre nós.
Ou, pelo menos, havia.
»Por favor, precisamos de falar. Não podes esperar que eu descubra a
tua verdadeira identidade e não tenha a oportunidade de falar contigo
sobre o assunto. Preciso de explicar algumas coisas. Mais do que algumas
coisas, está bem? Liga-me. A única coisa que te peço é uma conversa. Acho
que me deves isso.»
O tom de voz nas mensagens de Gabriel crescia em desespero. Julia
desligou o telefone, suprimindo deliberadamente a sua própria simpatia
inata. Sabia que a universidade tinha acesso ao e-mail de Gabriel, mas não
se importou. As mensagens tinham de parar; nunca poderia seguir em frente
se ele continuasse a incomodá-la. E ele não parecia estar prestes a desistir.
Por isso, Julia escreveu um e-mail e enviou-lho para o seu endereço da
universidade, derramando toda a sua dor e fúria em cada uma das palavras:
Dr. Emerson
Pare de me assediar.
Já não o quero. Nem sequer quero conhecê-lo. Se não me deixar em paz, serei forçada a
apresentar uma queixa de assédio contra si. E, se ligar ao meu pai, é o que farei.
Imediatamente.
Se julga que deixarei que uma coisa insignificante como esta me vá retirar do programa,
então está muito enganado. Preciso de um novo orientador de tese, não de um bilhete para
casa.
Cumprimentos,
Menina Julia. H. Mitchell
Mera Aluna de Mestrado,
Mais-Tempo-De-Joelhos-Do-Que-A-Maioria-Das-Putas

P.S. Vou devolver a bolsa M. P. Emerson na próxima semana. Parabéns, professor Abelardo.
Nunca ninguém me fez sentir tão reles como o senhor no domingo de manhã.

Julia carregou em enviar sem reler a sua mensagem, e, num ataque de


rebelião, bebeu dois shots de tequila e começou a ouvir a música All the
Pretty Faces dos The Killers. No volume máximo. Em repeat.
Era um verdadeiro momento Bridget Jones.
Foi buscar uma escova de cabelo à casa de banho, e começou a cantar
para ele como se fosse um microfone, e a dançar pelo quarto no seu pijama
de flanela decorado com pinguins, parecendo mais do que um pouco
ridícula. E sentiu-se estranhamente… perigosa, ousada, e desafiadora.
Nos dias que se seguiram ao envio do furioso e-mail de Julia, todos os
contactos do professor Emerson cessaram. A cada dia, esperava, de alguma
forma, ouvir alguma coisa dele, mas cada dia trazia o silêncio. Até à terça-
feira seguinte, quando recebeu outra mensagem.
«Julianne, estás zangada e magoada — eu compreendo. Mas não deixes
que a tua zanga te impeça de manter uma coisa que mereceste por seres a
melhor estudante de mestrado na lista de admissão deste ano.
»Por favor, não te prives de dinheiro que podes usar para ir a casa e
visitar o teu pai só porque eu fui um imbecil.
»Desculpa ter-te feito sentir reles. Tenho a certeza que quando me
chamaste Abelardo, não o fizeste como um elogio. Mas Abelardo gostava
verdadeiramente de Heloísa, e eu gosto de ti. Por isso, nesse sentido, há
uma semelhança. Ele também a magoou, como eu te magoei. Mas
arrependeu-se profundamente por lhe ter feito mal. Leste as cartas que ele
lhe escreveu? Lê a sexta carta e vê se altera a tua perceção a seu respeito…
e a meu respeito.
»A bolsa nunca foi atribuída porque jamais tinha encontrado alguém
suficientemente especial para a receber, até te conhecer. Se a devolveres, o
dinheiro vai ficar parado na conta bancária da Fundação sem beneficiar
ninguém. Não permitirei que mais alguém receba esse dinheiro porque é
teu.
»Estava a tentar fazer o bem a partir do mal. Mas falhei nisso como
falhei em tudo o resto. Tudo o que toco fica contaminado ou destruído…
[Longa pausa…]
»Há uma coisa que posso fazer por ti, que é encontrar-te outro
orientador de tese. A professora Katherine Picton é minha amiga e, embora
esteja reformada, concordou em encontrar-se contigo para discutir a
possibilidade de orientar o teu projeto. Esta é uma tremenda oportunidade,
em mais do que um sentido. Pediu-me que a contactasses diretamente via e-
mail, o mais depressa possível, para K Picton arroba U Toronto ponto C A.
»Sei que, oficialmente, é demasiado tarde para desistires do meu
seminário, mas tenho a certeza que é isso que queres. Abordarei uma das
minhas colegas e verei se ela pode supervisionar as tuas leituras, o que te
permitirá ter créditos suficientes para obteres o grau académico, mesmo
que desistas da minha turma. Assinarei o impresso de desistência e eu
resolvo as coisas com a Escola de Estudos Graduados. Diz só ao Paul o
que queres fazer e pede-lhe que me passe a mensagem. Sei que não queres
falar comigo.
[Pigarreou.]»O Paul é um bom homem.
[Balbuciou qualquer coisa…] »Audentes fortuna iuvat.
[Pausa — a voz quase se torna um murmúrio.] »Lamento que já não me
queiras conhecer. Vou passar o resto da vida a arrepender-me do facto de
ter desperdiçado a minha segunda hipótese de te conhecer. E ficarei sempre
consciente da tua ausência.
»Mas não voltarei a incomodar-te. [Pigarreou duas vezes.]
»Adeus, Julianne.» [Longa, longa pausa antes de Gabriel finalmente
desligar.]
Julia estava atónita. Sentou-se, de boca aberta, com o telefone na mão, a
tentar fazer com que a sua mente assimilasse a mensagem. Ouviu-a outra
vez, e outra, confusa com as palavras, mas a única parte em que acreditou
prontamente foi a citação de Virgílio, A sorte protege os audazes.
Apenas O Professor usaria uma mensagem de desculpas como ocasião
para reafirmar a sua mestria académica e dar a Julia uma lição improvisada
acerca de Pedro Abelardo. Julia pôs de lado o seu aborrecimento e decidiu
não seguir a sugestão dele de ler as cartas de Abelardo. Em vez disso, virou
a sua atenção para a parte mais interessante da sua mensagem, a menção a
Katherine Picton.
A professora Picton era uma especialista em Dante de setenta anos,
formada em Oxford, que ensinara em Cambridge e Yale antes de ser atraída
para a Universidade de Toronto por uma cátedra em Estudos Italianos. Era
conhecida como severa, exigente e brilhante, e a sua erudição rivalizava
com a de Mark Musa. A carreira de Julia seria grandemente beneficiada se
viesse a escrever uma tese de sucesso sob a orientação da professora Picton,
e sabia-o. A professora Picton podia enviar Julia para qualquer lado para o
seu doutoramento, Oxford, Cambridge, Harvard…
Gabriel estava simplesmente a oferecer a Julia a melhor oportunidade de
carreira da sua vida, embrulhada num brilhante laço — uma oportunidade
bem mais valiosa do que a mala de pele ou a bolsa M. P. Emerson. Mas o
que haveria por detrás desse presente?
Expiação, pensou Julia. Ele está a tentar compensar todo o mal que me
tem feito.
Gabriel estava a pedir a Katherine Picton que lhe fizesse um favor, por
Julia. Os professores eméritos raramente, se é que alguma vez, orientavam
dissertações de doutoramento, quanto mais de mestrado. Aquele era um
tremendo favor, que teria exigido a Gabriel toda a sua influência junto de
Katherine.
Tudo por mim.
Depois de contemplar esta nova informação por todos os ângulos, Julia
pôs de lado o resto para se concentrar na única pergunta que lhe enchia o
coração com vergonhoso temor.
O Gabriel está a dizer-me adeus?
Ouviu a mensagem três vezes, e, com mais do que um pouco de
autocrítica, foi a chorar que adormeceu. Pois, apesar de todo o seu desafio,
havia nela uma chama que reconhecia em Gabriel a sua gémea. E essa
chama não podia ser extinta, a não ser que Julia estivesse disposta a
extinguir uma parte de si mesma.
Na manhã seguinte, ligou a Paul sob o pretexto de se encontrar com ele
antes do seminário de Emerson. Esperava que ele lhe dissesse que Emerson
adoecera, ou partira misteriosamente para Inglaterra, ou apanhara peste
suína e cancelara o seu seminário para o resto do semestre. Tristemente, o
professor não fizera nenhuma daquelas coisas.
Julia decidiu que continuaria a frequentar o seminário de Dante, só para o
caso de Gabriel ter dificuldade em arranjar-lhe uma turma de leituras para o
substituir. Aliás, se a professora Picton se tornasse sua orientadora, Julia
estava certa de que conseguiria tolerar estar no seminário de Emerson
durante as cinco semanas que restavam do semestre. Por isso, nessa tarde,
entrou no gabinete do departamento para ver a sua caixa de correio antes de
se ir encontrar com Paul.
Ficou intrigada ao descobrir um grande envelope almofadado na sua
caixa. Ao removê-lo, reparou que não tinha nome. Não lhe estava
endereçado, nem tinha morada de devolução ou qualquer outra indicação no
envelope.
Enfiou o dedo pelo adesivo e abriu-o rapidamente. O que viu lá dentro
chocou-a. Aninhado no interior do envelope de papel pardo, como as penas
de um corvo, estava um sutiã de renda preta. O seu sutiã de renda preta. O
seu sutiã de renda preta que deixara, desafortunadamente, em cima da
máquina de secar de Gabriel.
Aquele filho da mãe.
Julia estava tão zangada que o seu corpo começou a tremer. Como se
atrevia ele a devolvê-lo na sua caixa de correio? Qualquer pessoa, qualquer
pessoa podia estar ao seu lado quando a abrisse. Estará a tentar humilhar-
me? Ou achará isto engraçado? (Julia não reparou que o seu iPod também
estava lá dentro.)
— Olá, linda.
Deu um salto e gritou.
— Ei, não te queria assustar.
Ergueu o rosto para os olhos escuros e bondosos de Paul e viu-o a olhá-la
com uma expressão surpreendida.
— Hoje estás assustadiça. O que é isso? — Ele apontou para o envelope,
ainda de mãos erguidas.
— Lixo. — Enfiou o envelope na sua nova mochila L.L. Bean e forçou-
se a sorrir. — Pronto para o seminário do Emerson? Acho que vai ser bom.
— Não me parece. Ele anda outra vez com um péssimo humor. Tenho de
te avisar, não te metas com ele hoje… tem andado lixado nestas duas
últimas semanas. — A cara de Paul ficou muito séria. — Não quero uma
repetição do que aconteceu da última vez que ele esteve assim.
Julia atirou o cabelo para trás e sorriu. Na verdade, eu acho que tens de
dizer ao Emerson para não se meter comigo. Tenho uma grande dose de
raiva, um sutiã preto, e trago uma tanga vestida. Ele é que está em sarilhos,
não eu.
— Estou tão contente por te sentires melhor. Fiquei mesmo preocupado
contigo. — Paul pegou-lhe na mão, abriu-lhe a palma e depositou nela
qualquer coisa fria. Fechou-lhe os dedos de novo e apertou-lhos
suavemente. Julia retirou a mão e abriu os dedos. Na sua palma estava um
bonito porta-chaves de prata, com um P listrado que balouçava como um
pêndulo do aro em si.
— Olha, por favor, não digas que não aceitas. Eu sei que não tens um
bom porta-chaves, e queria que soubesses que estava a pensar em ti
enquanto estive fora. Por isso, por favor, não o devolvas.
As faces de Julia amadureceram num tom rosado.
— Não o vou devolver — disse ela. — Não quero ser o tipo de pessoa
que despreza a bondade que lhe mostramos. Sei qual é a sensação. — Olhou
em volta rapidamente, para verificar se estavam sozinhos. — Obrigada,
Paul. Também senti a tua falta.
Aproximou-se mais e, hesitantemente, pôs-lhe os braços em volta do
peito volumoso, prendendo o porta-chaves entre os dedos. Pressionou a face
contra os botões da camisa dele e abraçou-o.
— Obrigada — suspirou, enquanto os longos braços musculosos dele a
envolviam.
Paul levou os lábios ao alto da cabeça dela e pressionou-lhos
cautelosamente contra o cabelo.
— De nada, Coelhinha.
Sem se aperceberem, um temperamental especialista de Dante de olhos
azuis entrara pela porta, ansioso por descobrir se um certo artigo fora
recebido pela sua proprietária. Estacou quando deparou com os jovens na
sua frente a murmurarem um para o outro e unidos num abraço.
E o Fornicador-de-Anjos faz a sua jogada.
— Mas quem é que tem andado a desprezar a tua bondade? — perguntou
Paul, alheio ao dragão que parara atrás dele, silenciosamente a cuspir fogo.
Julia ficou muda e, inconscientemente, abraçou-o com mais força.
— Diz-me, Coelhinha, que eu trato dele. Ou dela. Seja quem for. — Os
lábios de Paul moviam-se contra o cabelo de Julia. — Sabes que és especial
para mim, não sabes? Se alguma vez precisares de alguma coisa, só tens de
pedir. Seja o que for. Está bem?
Ela suspirou contra o peito dele.
— Eu sei.
O dragão de olhos azuis deu meia-volta e partiu abruptamente, a
praguejar contra um Fornicador-de-Coelhas enquanto desaparecia pelo
corredor abaixo.
Julia foi a primeira a quebrar o abraço.
— Obrigada, Paul. E obrigada por isto. — Ergueu o porta-chaves e
sorriu.
Podia ficar a olhar para este sorriso para sempre, pensou ele.
— De nada. O prazer é todo meu.
Pouco depois, entraram na sala de seminário. Julia evitou diligentemente
estabelecer contacto visual com Gabriel, e riu-se baixinho de uma das
piadas de Paul. A mão dele pressionou-se com familiaridade nas costas dela
enquanto a conduzia para os seus lugares. À frente da sala de seminário,
Gabriel fervilhava, com os longos dedos agarrados à borda da estante de
leitura, sem a soltar.
Tira as mãos de cima dela, Fornicador-de-Coelhas.
O professor olhou para Paul com hostilidade até se distrair subitamente
com a mochila de Julia. Perguntou-se como conseguira ela transformá-la
tão bem do seu anterior estado pútrido e porque não estava antes a usar o
seu presente. Esse pensamento torturou-o.
Será que a Rachel lhe disse que fui eu que lhe ofereci a mala?
Remexeu um pouco no seu laço, chamando propositadamente a atenção
para ele. Usava-o como um sinal da sua própria automortificação. Usava-o
para atrair a atenção dela. Mas Julia parecia não reparar, e não estava sequer
a olhar para ele. Em vez disso, sussurrava e ria com Paul, o seu longo
cabelo escuro a flutuar, as faces ligeiramente coradas e a boca… Julia era
ainda mais bonita do que na sua memória.
— Menina Mitchell, preciso de falar consigo depois da aula, por favor.
— Gabriel sorriu na sua direção e baixou o olhar para os seus sapatos
brilhantes, enquanto remexia os pés. Estava prestes a dar início ao
seminário quando uma voz pequena mas determinada do fundo da sala o
interrompeu.
— Desculpe, professor, não posso. Tenho um compromisso urgente a
seguir que não pode ser adiado. — Julia olhou na direção de Paul e piscou o
olho.
Gabriel ergueu lentamente a cabeça e olhou para ela. Dez alunos
contiveram a respiração em uníssono e recuaram nas suas cadeiras, com
medo que ele pudesse explodir ou que uma adaga pudesse voar dos olhos
dele e esventrá-los. Julia estava a provocá-lo. E ele sabia-o. O seu tom, a
sua proximidade física de Paul, a forma como atirava o cabelo para trás do
ombro com uma mão…
Gabriel foi momentaneamente distraído pela curva do seu pescoço, a sua
pele delicada, o aroma a baunilha que ou voava até à frente da sala ou vinha
apenas da sua memória. Queria dizer alguma coisa, exigir que ela fosse
falar com ele, mas sabia que não podia. Se perdesse a cabeça naquele
momento, só conseguiria distanciá-la ainda mais, e acabaria por perdê-la.
Não podia deixar que isso acontecesse.
Gabriel pestanejou. Rapidamente.
— Claro, menina Mitchell. Essas coisas acontecem. Por favor, mande-me
um e-mail para combinarmos uma reunião. — Tentou sorrir, mas percebeu
que não conseguia; apenas metade da sua boca se curvaria, fazendo parecer
que fora atingido por uma paralisia.
Julia olhou para ele de olhos vazios. Não corou. Não pestanejou. Parecia
apenas… vazia.
Gabriel reparou na expressão, que ele nunca tinha visto, e começou a
entrar em pânico. Estou a tentar ser simpático, e ela olha-me como se eu
não estivesse aqui. Será assim tão surpreendente que possa ser cordial?
Que consiga controlar-me?
Paul baixou a mão sob a mesa e, rápida mas suavemente, apertou o
cotovelo de Julia. O toque distraiu-a e fê-la olhar para ele, que abanou a
cabeça, os seus olhos dardejando para a frente da sala e de novo para ela.
Julia pareceu ser acordada do seu devaneio.
— Claro, professor. Noutra altura. — Depois desviou os olhos e esperou
inexpressivamente que a aula começasse.
A mente de Gabriel corria desenfreadamente. Se não conseguisse falar-
lhe naquele dia, teria de esperar dias, talvez semanas, sem se explicar. Não
podia esperar tanto tempo. A separação entre ambos estava a corroê-lo.
Quanto mais esperasse, menos recetiva ela seria às suas explicações. Tinha
de fazer alguma coisa. Tinha de descobrir alguma maneira de comunicar
com ela. Imediatamente.
— Hum, decidi que, em vez de termos hoje um seminário normal, vou
apresentar uma espécie de conferência. Irei examinar a relação entre Dante
e Beatriz. Em particular, o que transpirou quando Dante encontrou Beatriz
pela segunda vez e ela o rejeitou.
Julia conteve um ruído de sobressalto e olhou-o, horrorizada.
— Peço desculpa por ter de fazer isto — a voz dele assumiu um tom
conciliatório — mas não me resta outra hipótese. Emergiu um mal-
entendido que tem de ser resolvido antes que seja demasiado tarde. — Os
olhos dele cruzaram-se com os dela por meros segundos, e depois Gabriel
olhou para as suas notas. Claro, as notas não teriam qualquer utilidade,
naquela conferência em particular.
O coração de Julia acelerou. Oh, não. Ele não vai…
Gabriel inalou profundamente e começou.
— Beatriz representa muitas coisas para Dante. Mais importante que
tudo, um ideal de feminilidade. Beatriz é bela. É inteligente e encantadora.
Tem todas as qualidades de caráter que Dante acredita serem essenciais ao
ideal feminino.
»Quando a encontra pela primeira vez, são ambos muito novos,
demasiado novos para qualquer tipo de relacionamento. Em vez de macular
o seu amor com qualquer espécie de ligação trivial ou de mau gosto, opta
por adorá-la reverentemente mas à distância, em deferência para com a
idade e experiência dela.
»O tempo passa. Volta a encontrar Beatriz. Ela cresceu para se tornar
uma jovem talentosa; é ainda mais dotada e bela. Agora, os sentimentos
dele são muito mais poderosos, embora esteja casado com outra pessoa.
Verte essa afeição para a escrita de poesia, e compõe vários sonetos a
Beatriz, mas nenhum à sua esposa.
»Dante não conhece Beatriz. Tem pouco contacto com ela. Mesmo assim,
adora-a de longe. Depois de ela morrer, aos vinte e quatro anos, ele celebra-
a nos seus escritos.
»Em A Divina Comédia, a obra mais famosa de Dante, Beatriz ajuda a
persuadir Virgílio a guiar Dante através do Inferno porque, vivendo no
Paraíso, não pode descer ao Inferno para o salvar. Quando Virgílio faz
Dante sair em segurança do Inferno, ela junta-se a ele e guia-o pelo
Purgatório e até ao Paraíso.
»Na minha conferência de hoje, desejo propor a seguinte questão: onde
estava Beatriz e o que fez ela entre os seus dois encontros com Dante?
»Ele esperara-a durante anos. Ela sabia onde ele vivia. Conhecia a sua
família; era amiga, muito amiga deles. Se o amava, porque não lhe
escrevia? Porque não fez qualquer tentativa para o contactar? Acho que a
resposta é óbvia: o relacionamento era inteiramente unilateral. Dante amava
Beatriz, mas Beatriz não queria saber de Dante.
Julia quase caiu da cadeira.
Todos os alunos seguiam a aula diligentemente e tomavam notas
copiosas, embora Paul, Julia e Christa, que estavam familiarizados com
Dante, não vissem nada de novo naquela preleção. Com exceção do último
parágrafo, que não tinha absolutamente nada a ver com Dante Alighieri e
Beatriz Portinari.
Os olhos de Gabriel voltaram-se para Julia e permaneceram ali quase um
segundo a mais, antes de se concentrarem em Christa, sorrindo
sedutoramente. Julia fumegava. Ele estava a fazer aquilo de propósito — a
olhar para ela e depois a concentrar toda a sua atenção na Christa-a-Gollum,
só para ela ver com que facilidade podia ser substituída.
Muito bem. Se ele quer jogar o jogo do ciúme, vamos a jogo.
Julia começou a matraquear com a caneta no seu caderno de forma
suficientemente audível para causar distração. Quando os olhos
semicerrados de Gabriel olharam em volta para procurar a fonte do ruído e
aterraram sobre a sua mão esquerda, ela aproximou mais a direita de Paul e
pegou na dele. Paul olhou-a com um sorriso de derreter corações, e ela
olhou-o por entre as pestanas. Abriu ligeiramente os lábios, expondo os
dentes, e fez a Paul o mais lindo e mais doce sorriso que conseguia fazer.
Um misto de gemido e tosse, vindo da frente da sala, fez com que Paul
desviasse dela o olhar e se virasse em frente para ver a cara muito zangada
do professor Emerson. Paul retirou a mão da de Julia imediatamente.
Agora com um sorriso arrogante, e a continuar a sua aula, Gabriel
começou a escrever no quadro. Vários alunos reagiram com choque quando
viram o que ele escrevera.
Na vida real, Beatriz não teve qualquer problema em deixar Dante no Inferno porque não
se quis dar ao trabalho de cumprir a sua promessa.

Julia foi a última pessoa a erguer o olhar porque estava ainda


encolerizada com o que acabara de acontecer. Quando viu o quadro, Gabriel
estava encostado a ele, de braços cruzados e com uma expressão muito
presunçosa na face. Julia decidiu naquele preciso momento que, mesmo que
O Professor a mandasse expulsar, aquela expressão tinha de desaparecer da
sua cara. Imediatamente.
Pôs a mão no ar e esperou que ele a mandasse falar.
— Isso é arrogante e egocêntrico, professor.
Paul apertou os dedos no braço dela, abanando-a ligeiramente.
— Estás maluca? — sussurrou-lhe.
Julia ignorou-o e continuou.
— Porquê culpar Beatriz? Ela é a vítima em tudo isto. Dante conheceu-a
quando ela era menor. Não seria possível ficarem juntos, a não ser que ele
fosse pedófilo. Está a dizer-nos que Dante era pedófilo, professor?
Uma das alunas arfou.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Claro que não! Ele tem uma verdadeira afeição por ela, e esta afeição
não diminuiu, mesmo durante a separação. Se Beatriz tivesse tido coragem
de lhe perguntar, ele ter-lhe-ia dito isto mesmo. Inequivocamente.
Julia moveu a cabeça para um lado e semicerrou os olhos.
— Isso é um pouco difícil de acreditar. Tudo na vida posterior de Dante
parece girar em volta de sexo. Ele não consegue relacionar-se com as
mulheres de qualquer outra maneira. E não ficou propriamente sentado em
casa sozinho nas noites de sexta e sábado à espera de Beatriz. Por isso, não
devia querer saber dela.
A cara de Gabriel ficou muito vermelha, e ele descruzou os braços e deu
um passo na sua direção. Paul levantou imediatamente a mão, para tentar
distrair O Professor, mas Gabriel ignorou-o e deu mais um passo em frente.
— Ele é um homem, afinal de contas, e precisa… hmm… de companhia.
E se isso torna as coisas mais agradáveis ao espírito, aquelas mulheres eram
apenas amigas úteis. Nada mais. A sua atração por Beatriz não diminuiu.
Dante simplesmente desistiu de esperar por ela, uma vez que era óbvio que
não a voltaria a encontrar. E isso por culpa dela, não dele.
Ela sorriu-lhe docemente enquanto preparava a sua faca.
— Se isso é afeição, eu preferiria ódio. E em que foram aquelas amigas
tão úteis, professor? Hummm? Não são amigas… são associadas pélvicas.
Um amigo não quereria que a outra pessoa tivesse uma vida boa? Uma vida
feliz? E não que andasse atrás de prazer fugidio como um velho lúbrico
viciado em sexo?
Julia viu Gabriel estremecer, mas ignorou a reação e continuou a sua
investida.
— É do conhecimento comum que as relações de Dante eram anónimas e
turbulentas. Ele costumava ir buscar mulheres ao mercado de carne, creio
eu, e, quando terminava, limitava-se a pô-las fora. Não me parece que uma
pessoa assim pudesse interessar a Beatriz. Para não mencionar o facto de
ele ter uma amante chamada Paulina.
Imediatamente, dez pares de olhos viraram-se interrogativamente para
Julia. Ela corou num profundo tom de vermelho, mas continuou, algo
agitada.
— Eu… eu descobri em tempos uma coisa escrita por uma mulher de
Filadélfia que encontrou provas do seu relacionamento. Se Beatriz não tinha
afeição por Dante e o rejeitou mais tarde na sua vida, isso era
completamente justificado. Dante era um egocêntrico, cruel e arrogante
mulherengo que tratava as mulheres como brinquedos para seu divertimento
pessoal.
A partir daquele ponto, tanto Christa como Paul perguntavam-se que raio
acabara de acontecer no seu seminário de Dante, pois nenhum deles sabia
nada sobre uma especialista de Dante natural de Filadélfia ou uma amante
chamada Paulina. Juraram mentalmente passar mais tempo na biblioteca,
doravante.
Gabriel fixou o olhar zangado no fundo da sala.
— Creio conhecer essa mulher de que está a falar, mas ela não é de
Filadélfia. É duma aldeola qualquer na Pensilvânia rural. E ela não sabe de
que está a falar, por isso devia refrear-se de pronunciar julgamentos.
As faces de Julia flamejavam.
— Essa é uma objeção ad hominem. O seu lugar de origem não diminui a
sua credibilidade. E Dante e a família dele também vinham de uma aldeola
qualquer. Ainda que Dante nunca o admitisse.
Os ombros de Gabriel tremeram ligeiramente, enquanto ele se tentava
controlar.
— Eu não chamaria propriamente à Florença do século catorze uma
aldeola. E, no que diz respeito à amante, isso não passa de uma
investigação da treta. De facto, vou até mais longe. A cabeça dessa mulher
está cheia de lixo, nada mais, e ela não tem a mais pequena prova das suas
conjeturas.
— Eu não rejeitaria as suas provas tão facilmente, professor, a não ser
que esteja preparado para as discutir em pormenor. E não nos deu nenhum
argumento, apenas um ataque abusivo — replicou ela, arqueando uma
sobrancelha e a tremer ligeiramente.
Paul pegou-lhe na mão debaixo da mesa e apertou-a.
— Para — sussurrou-lhe, tão baixo que apenas ela o podia ouvir. —
Imediatamente.
A cara de Gabriel ruborizou-se novamente e ele começou a respirar pela
boca.
— Se essa mulher quisesse saber o que Dante sentia realmente por
Beatriz, saberia onde encontrar a resposta. Dessa maneira, não andaria a
falar de coisas da qual não sabia absolutamente nada. E a fazer com que
tanto ela como Dante fizessem figuras ridículas. Em público.
Christa olhou para o professor Emerson, depois para Julia, e de novo para
O Professor. Havia ali alguma coisa errada. Alguma coisa definitivamente
errada, mas não conseguia perceber o quê. Estava decidida a descobrir.
Gabriel virou-se para o quadro e começou a escrever, enquanto se tentava
acalmar:
Dante pensava que fora um sonho.

— A linguagem que Dante usa a respeito do seu primeiro encontro com


Beatriz tem uma qualidade onírica. Por várias… eehh… razões pessoais, ele
não confia nos próprios sentidos. Não sabe bem quem ela é. De facto, há
uma teoria que explica que Dante pode ter pensado que Beatriz era um anjo.
»Por isso, mais tarde na vida, Beatriz está completamente errada ao
assumir que ele se lembrava de tudo do seu primeiro encontro e ao usar esse
facto contra ele, não lhe dando oportunidade de se explicar. Claramente, se
ele julgava que Beatriz era um anjo, não teria esperança que ela regressasse.
»Dante poderia ter-lhe explicado isto mesmo se ela não o tivesse
rejeitado antes de ter essa hipótese. Por isso, uma vez mais, a falta de
clarificação, neste ponto, foi por culpa dela. Não dele.
A mão de Christa levantou-se de imediato, e Gabriel, relutantemente, fez-
lhe sinal de que podia falar, ficando muito tenso enquanto esperava que a
aluna começasse.
Mas Julia falou primeiro.
— A discussão do seu primeiro encontro é patentemente irrelevante, já
que Dante a deve ter reconhecido quando a voltou a ver pela segunda vez,
fosse sonho ou não. Então porque fingiu não a conhecer?
— Ele não estava a fingir. Ela era-lhe familiar, mas tinha-se tornado
adulta; ele estava confuso, e perturbado com outras coisas na vida. — A voz
de Gabriel tornou-se dolorida.
— Tenho a certeza que isso foi o que ele disse a si mesmo para conseguir
dormir à noite, quando não estava numa orgia alcoólica nos lobbies da
baixa de Florença.
— Julia, já chega. — A voz de Paul ergueu-se acima do murmúrio.
Christa estava prestes a dizer qualquer coisa quando Gabriel ergueu a
mão para a silenciar.
— Isso não tem nada a ver! — Ele inspirou e expirou rapidamente,
enquanto tentava em vão controlar as suas emoções. Baixou a voz e olhou
apenas para ela, ignorando a maneira como Paul deslocara o corpo para
poder colocar-se entre O Professor e Julia, se fosse necessário.
— Nunca se sentiu sozinha, menina Mitchell? Nunca ansiou por
companhia, nem que fosse apenas carnal e temporária? Por vezes, é a única
coisa que se consegue obter. E, por isso, aceita-se e sente-se gratidão por
ela, ao mesmo tempo que se reconhece por aquilo que é, porque não se tem
outra escolha. Em vez de ser tão superior e sobranceira na sua avaliação do
estilo de vida de Dante, devia tentar ter um pouco de compaixão. — Gabriel
fechou a boca quando percebeu que tinha revelado bem mais do que alguma
vez tencionara. Julia olhava para ele friamente, à espera que continuasse.
— Dante era perseguido pela sua memória de Beatriz. E isso tornava as
coisas piores, não melhores, pois nunca ninguém se comparava com ela.
Ninguém era suficientemente belo, ninguém era suficientemente puro,
ninguém o fazia sentir como ela fizera. Ele queria-a sempre… apenas
julgava que nunca mais a encontraria. Acredite em mim, se ela se lhe
tivesse apresentado anteriormente e dito quem era, ele teria largado tudo e
todos por ela. Imediatamente. — Os olhos de Gabriel tornaram-se
desesperados enquanto se fixavam nos olhos castanhos de Julia. — O que
queria que ele fizesse, menina Mitchell? Hmm? Esclareça-nos. Beatriz
rejeitou-o. Restava-lhe apenas uma coisa de valor, que era a sua carreira.
Quando ela lhe ameaçou a carreira, que mais podia ele fazer? Tinha de
desistir, mas isso era por opção dela, não dele.
Julia sorriu docemente com esta tirada, e Gabriel soube que não ficaria
calada.
— A sua aula foi muito esclarecedora, professor. Mas eu tenho ainda
mais uma pergunta. Está então a dizer que Paulina não é amante de Dante?
Que é só uma parceira de quecas?
Um sonoro pop ecoou pela sala de seminário. Todos os alunos ficaram a
olhar em completo e puro choque quando perceberam que o professor
Emerson partira o marcador do quadro branco em dois. A tinta preta
espalhava-se pelos seus dedos como uma noite sem estrelas, e os seus olhos
incendiaram-se num furioso fogo azul.
Chega. Chega, foda-se, pensou ele.
Paul puxou Julia para o seu lado num gesto protetor e curvou o corpo em
volta dela enquanto via os ombros d’O Professor começarem a tremer de
raiva.
— A aula terminou. No meu gabinete, menina Mitchell. Já! — O
professor Emerson enfiou furiosamente as suas notas e livros na pasta e saiu
da sala de seminário, batendo com a porta atrás de si.
Capítulo Dezasseis

O s estudantes ficaram sentados na sala de seminário agora em silêncio,


estupefactos. Uma vez que a maioria deles não estava a fazer
especialização em Dante, rapidamente interpretaram a altercação como um
debate divertido (ainda que aberrante). Os académicos conseguiam ser
apaixonados pelos seus temas de estudo; toda a gente o sabia. Alguns, como
Julia e O Professor, eram mais apaixonados do que outros. O seminário
daquele dia fora um desastre, claro, mas não inteiramente surpreendente.
Não, pensou Paul, tão bizarro como algumas das coisas que tinham
acontecido em semestres anteriores no seminário de Métodos de Tortura
Medieval da professora Singer… que se tinha revelado surpreendentemente
prático…
À medida que os estudantes foram lentamente percebendo que o combate
mortal que tinham acabado de testemunhar chegara ao fim e que não
haveria segundo round (nem pipocas), começaram a sair, com exceção de
Christa, Paul e Julia.
Christa fixou Julia de olhos semicerrados e foi atrás d’O Professor como
um patinho dependente.
Paul fechou os olhos e gemeu.
— Estás com instintos suicidas?
Julia pareceu acordar a tremer de um sonho.
— O quê?
— Porque é que o provocaste daquela maneira? Ele anda à procura de
uma razão para se livrar de ti!
Só agora ela conseguia abarcar a gravidade da sua situação. Era como se
tivesse estado dentro de outra pessoa, a cuspir veneno e fúria, sem qualquer
pensamento na audiência. E agora que libertara tudo, sentia-se exausta,
como um balão solitário e vazio esquecido após a festa de aniversário de
uma criança. Começou lentamente a guardar as suas coisas e tentou
preparar-se para aquela que sabia ser uma muito, muito desagradável
conversa no gabinete d’O Professor.
— Acho que não devias ir — disse Paul.
— Eu não quero ir.
— Então, não vás. Manda-lhe um e-mail. Diz-lhe que estás doente… e
arrependida.
Julia ponderou nisso por um momento. Era muito, muito tentador. Mas
sabia que a única hipótese que tinha de salvar a sua carreira seria fazer-se
mulherzinha e aceitar o seu castigo; tentaria resolver a vida pessoal depois.
Se isso fosse possível.
— Se não for ao gabinete dele, vai ficar ainda mais zangado. Pode
expulsar-me. E preciso desta aula, se não não vou poder graduar-me em
maio.
— Então, vou contigo. Melhor ainda, falo com ele primeiro. — Paul
endireitou-se em toda a sua altura e fletiu os braços.
— Não, tens de ficar de fora deste assunto. Eu vou lá, e peço desculpa, e
deixo-o gritar comigo. E, quando ele tiver acabado de me esfolar, há de me
deixar vir embora.
— A qualidade da misericórdia não se força — balbuciou Paul. — Não
que ele saiba alguma coisa acerca disso. O que é que vocês estavam a
discutir, já agora? Dante não tinha nenhuma amante chamada Paulina.
Julia pestanejou rapidamente.
— Encontrei um artigo sobre Pia de’ Tolomei. Paulina era uma das suas
alcunhas.
— Pia de’Tolomei não era amante de Dante. Havia boatos acerca de
amantes e filhos ilegítimos, por isso não estavas inteiramente errada. Mas,
lamento, Julia, Emerson tem razão… ninguém acredita que Pia fosse
amante de Dante. Ninguém.
Julia mordeu o interior da bochecha pensativamente.
— Mas ele não me queria deixar explicar. E eu… explodi.
— Explodiste, bem o podes dizer. Se fosse outra pessoa qualquer, eu até
aplaudia, a pensar que ele estava a ouvir das boas. O convencido arrogante.
Mas, no teu caso, já sabia que ele ia reagir com exagero. — Paul abanou a
cabeça. — Deixa-me ir falar com ele.
— Estás a escrever a tua dissertação com ele, não podes deixar que fique
zangado contigo. Se for demasiado, venho-me embora. E apresento uma
queixa de assédio.
Paul olhou-a com uma expressão muito preocupada.
— Não me sinto bem com isto. Ele está furioso.
— O que é que ele pode fazer? Ele é o Grande Professor Mau, eu sou a
pobre aluna de mestrado. É ele que tem o poder todo.
— O poder faz coisas estranhas às pessoas.
— O que queres dizer com isso?
Paul enfiou a cabeça pela porta da sala do seminário, para verificar o
corredor.
— O Emerson é um gajo marado. Esteve envolvido com a professora
Singer, e isso significa que ele… — Paul parou de repente e abanou a
cabeça.
— Isso significa que ele… o quê?
— Se ele te tem andado a assediar, ou a tentar obrigar-te a fazer coisas,
diz-me e eu ajudo-te. Podemos apresentar uma queixa.
Julia olhou-o com uma expressão ausente.
— Não há nada de sinistro a passar-se aqui. É só um professor irascível
que não gosta de ser contrariado. Vou humilhar-me aos seus pés no gabinete
dele e, com sorte, não me há de expulsar da turma.
— Espero que tenhas razão. Ele sempre foi profissional com os alunos.
Mas, contigo, as coisas são diferentes.
Paul acompanhou Julia ao gabinete d’O Professor e, sem aviso, bateu à
porta.
O professor Emerson abriu rapidamente, os olhos ainda um zangado
lápis-lazúli a faiscar.
— O que é que deseja? — bradou, a disparar faíscas contra Julia.
— Só um minuto do seu tempo — disse Paul calmamente.
— Agora não. Amanhã.
— Mas, professor, eu…
— Amanhã, Sr. Norris. Não me faça perder a paciência.
Paul fez um olhar muito preocupado para Julia e fez com a boca a
palavra «Desculpa».
O professor esperou até Paul desaparecer na esquina do corredor antes de
se desviar para o lado para deixar Julia entrar. Fechou a porta atrás dela e
dirigiu-se para a janela.
Abandonai toda a esperança, vós que aqui entrais…
O gabinete estava escuro, iluminado apenas pelo candeeiro na sua
secretária. Ele correra as persianas e estava agora encurvado, o mais
distante dela possível, a esfregar os olhos com os dedos sujos de tinta.
Julia colocou a mochila à sua frente, como um escudo, agarrando-a com
as duas mãos. Quando ele não disse nada, entreteve-se a olhar em volta da
sala. Os seus olhos foram atraídos para uma cadeira — a muito
desconfortável cadeira do Ikea onde se sentara em setembro, durante a sua
primeira azarada reunião com O Professor. A cadeira fora desfeita e jazia
em pequenos pedaços dobrados, espalhados pelo tapete persa.
Os olhos de Julia moveram-se lentamente entre os pedaços e O Professor.
Ele partiu uma cadeira. Partiu uma cadeira de metal.
Gabriel abriu os olhos, e ela viu uma estranha e perigosa calma na sua
imensidão azul. Eis, ali, o dragão no seu covil. E ela estava desarmada.
— Se fosses outra pessoa, eu mandava-te expulsar.
Julia tremeu assim que ouviu o tom de voz dele. Era enganadoramente
calmo e suave, como seda a roçar sobre pele nua. Mas, por baixo, havia aço
e gelo.
— Aquela foi a mais nojenta exibição de comportamento infantil que
alguma vez testemunhei. A tua atitude desrespeitosa é absolutamente
inaceitável. Em cima de tudo isso, nem consigo começar a expressar a
minha fúria pelo que disseste sobre a Paulina. Tu nunca mais voltas a falar
a seu respeito. Fui suficientemente claro?
Julia engoliu em seco, mas estava demasiado zangada para responder.
— Eu perguntei se fui suficientemente claro? — rosnou ele.
— Sim.
— O meu autodomínio é ténue, na melhor das hipóteses. É bom que não
o testes. E espero que lutes as tuas próprias batalhas e não manipules o Paul
para te salvar da tua estupidez. Ele já tem os seus problemas.
Julia olhou para a carpete, evitando os olhos dele, que pareciam cintilar
na penumbra.
— Eu acho que quiseste fazer-me perder a cabeça. Acho que quiseste que
me zangasse e fizesse uma cena, para poderes ter justificação para fugir.
Quiseste que me comportasse como todos os outros idiotas abusivos que te
têm maltratado. Bem, eu não sou um idiota abusivo e não te vou fazer isso.
Ela olhou para os destroços da cadeira — (uma boa cadeira sueca que
não tinha feito nada na sua curta vida para merecer aquilo) — e de novo
para O Professor. Mas não discutiu.
Ele lambeu rapidamente os lábios.
— Isto é alguma espécie de jogo para ti? Hmmm? Brincares connosco
como qualquer coisa saída de Prokofiev? Ele é Pedro; eu sou o Lobo. Isso
faz de ti o quê… o pato?
Julia abanou a cabeça.
— O que aconteceu no meu seminário hoje nunca mais voltará a
acontecer. Compreendeste?
— Sim, professor.
Ela agarrou-se à maçaneta da porta atrás de si. Estava trancada.
— Vou pedir desculpa à turma.
— E expor-nos a ainda mais especulações? Não vais fazer nada disso.
Porque é que não falaste comigo? Um telefonema. Um encontro. Eu podia
ter falado contigo com a porta fechada, pelo amor de Deus. E, em vez disso,
finalmente escolheste falar comigo no meio da porra do meu seminário!
— Puseste um sutiã na minha caixa de correio… Eu pensei…
— Usa a cabeça! — interrompeu ele. — Se to tivesse mandado pelo
correio, haveria registos. Isso teria sido bem mais incriminatório. E não ia
deixar o teu iPod no meio de um dilúvio.
Julia ficou confusa por aquele aparente non sequitur, mas decidiu não o
questionar.
— Fui eu que comecei esta borrada quando alterei a minha aula, mas tu
acabaste-a, Julianne, e acabaste-a com o equivalente a uma bomba de
hidrogénio. Não vais sair da minha aula. Entendido? Não vais sair do
programa. E vamos fingir que este terramoto nunca aconteceu e esperar que
os outros alunos estejam demasiado envolvidos nas suas próprias vidas para
repararem em alguma coisa.
Gabriel fixou-a com um olhar impassível.
— Vem cá. — Apontou para um espaço na carpete.
Ela deu uns passos em frente.
— Devolveste a bolsa?
— Ainda não. O diretor de Estudos Italianos está com gripe suína.
— Mas marcaste uma reunião?
— Sim.
— Então, marcaste uma reunião com ele mas não tiveste a cortesia de me
mandar uma mensagem de duas palavras quando eu estava desesperado por
saber como estavas — grunhiu ele.
Julia pestanejou.
— Vais cancelar essa reunião.
— Mas eu não quero o dinheiro, e…
— Vais cancelar essa reunião, vais aceitar o dinheiro e vais ficar de boca
fechada. Causaste esta confusão; eu tenho de a resolver. — Ele olhou-a
sombriamente. — Compreendido?
Julia conteve a respiração e anuiu, algo relutantemente.
— O e-mail que me enviaste foi uma vergonha, uma verdadeira bofetada
na cara, depois de todas as mensagens que te deixei. Ouviste sequer as
minhas mensagens? Ou limitaste-te a apagá-las?
— Ouvi-as.
— Ouviste-as, mas não acreditaste nelas. Porque não respondeste. Usaste
a palavra assédio no teu e-mail. Que raio estavas à espera de conseguir com
isso?
— Hmm… não sei.
Gabriel fechou a distância entre eles, ficando apenas a centímetros dela.
— É muito possível que o teu e-mail já tenha sido sinalizado por alguém.
Mesmo que eu o apague, e eu apaguei-o, alguém pode continuar a encontrá-
lo. Os e-mails são para sempre, Julianne. Nunca mais me envies um e-mail.
Compreendido?
— Sim.
— Pareces ser a única pessoa capaz de me alterar em todos os sentidos,
todos mesmo.
Julia olhou para a porta, a desejar que esta se abrisse de rompante para
poder escapar.
— Olha para mim — sussurrou ele.
Quando ela o olhou nos olhos, ele continuou.
— Vou ter de fazer algum controlo de danos. Já tratei da Christa, e agora
vou ter de lidar com o Paul, graças a ti. A Christa é uma ameaça, mas o
Paul era um bom assistente de investigação.
Era um bom assistente de investigação?
— Por favor, não despeças o Paul. Foi por minha culpa que ele veio aqui.
Eu garanto que ele não diz nada — suplicou ela.
— É a ele que tu queres? — O tom de Gabriel tornou-se glacial.
Julia remexeu na sua mochila.
— Responde-me.
— Eu tentei.
— E?
— E nada.
— Não pareceu que fosse nada, quando te vi nos braços dele em frente
do correio. Não parece nada quando ele me vem bater à porta, como um
cavaleiro, pronto para lutar comigo para te proteger. Porque é que não me
dizes o que queres, Julianne? Ou só respondes quando te chamam
Coelhinha? — A voz de Gabriel tornou-se sarcástica.
Os olhos de Julia cresceram de surpresa, mas ela não disse nada. Não
sabia o que dizer.
— Tudo bem. Desisto. — Ele acenou com a mão desdenhosamente para
a porta. — O Paul pode ficar contigo.
Demorou algum tempo para o cérebro de Julia dar a ordem aos pés para
andarem na direção da porta, mas, finalmente, ele fê-lo. Ela caminhou de
cabeça baixa e ombros descaídos, parecendo notavelmente uma borboleta
com as asas arrancadas. Mas mantivera o seu lugar na turma dele, e não
fora expulsa. Pequena consolação para algumas das outras perdas que
acabara de sofrer.
Gabriel ficou imóvel enquanto Julia se debatia com a porta. Um pequeno
lamento escapou-se-lhe dos lábios enquanto ela lutava com a fechadura.
Aproximou-se por trás e estendeu um braço em volta da cintura dela para
destrancar a porta, roçando contra a sua anca esquerda. Quando ela não se
retraiu, ele aproximou-se mais, e levou os lábios ao seu ouvido.
— Então, toda esta agonia foi para nada?
Julia sentia-lhe o calor do corpo atrás de si. Irradiava do peito dele para
as suas espáduas. A seda da gravata dele roçava contra o seu cabelo,
penetrando-o, até roçar a superfície do seu pescoço, fazendo-o explodir em
pele de galinha.
— Expuseste-nos a conversas maliciosas para nada?
— Tu foste cruel.
— Tu também.
— Magoaste-me.
— E tu magoaste-me. A vingança está a ser como sonhaste? — Gabriel
continuava a sussurrar, o seu hálito quente a formigar-lhe pela face. —
Transformaste-te de uma coelhinha numa gata furiosa. Bem, hoje
arranhaste-me profundamente, minha gatinha. Deixaste-me em sangue com
cada palavra. Estás feliz agora? Agora que me humilhaste na frente dos
meus alunos recitando todos os meus pecados secretos? Foi uma verdadeira
fogueira de vaidades, contigo a acender a chama.
Aproximou os lábios ainda mais do seu ouvido, e o ar da boca dele fê-la
arrepiar-se.
— És uma cobarde.
— Não sou cobarde.
— És tu que te vais embora.
— Estás a mandar-me para ele.
— Um raio é que estou! Tu fazes tudo o que as pessoas te dizem? Onde é
que está agora a minha gatinha furiosa?
— Sou só uma estudante, professor Emerson. Tu é que tens o poder todo.
Podes… destruir-me.
— Tretas. É isso que pensas? Que isto é uma febre de poder? — Gabriel
arrancou-lhe a mochila dos dedos tensos e encurvados e atirou-a para o
lado. Fê-la dar meia-volta e agarrou-lhe no rosto, movendo as mãos pelas
curvas das suas faces. — Achas que era capaz de te destruir? Depois da
nossa história?
— Não sou eu que tenho problemas de memória. Achas que estou feliz?
Achas que era isto que eu queria? Estou infelicíssima. Encontrar-te
finalmente depois de todos estes anos e ver-te desta maneira? Nem sequer te
reconheço!
— Nunca me deste uma oportunidade. Como raio havia de saber o que tu
queres, Julianne, quando não falas comigo? Não me dizes nada!
— Gritar comigo não me vai persuadir a falar contigo!
A boca dele colidiu com a dela, apaixonada mas brevemente, até Gabriel
se arrancar aos lábios dela para lhe murmurar ao ouvido.
— Fala comigo. — O seu lábio inferior roçou tentadoramente ao longo
do lóbulo da orelha dela.
Julia ficou em silêncio ao sentir a energia a transferir-se entre eles, como
uma serpente a circular em volta de si mesma, a engolir-se a si mesma, fúria
e paixão a alimentarem-se uma da outra.
— Diz-me que me queres, ou sai daqui.
Quando ela não respondeu, Gabriel recuou lentamente. Ela sentiu-se
doente com a perda do contacto e nem sequer pensou nas palavras quando
elas saíram impetuosamente dos seus lábios.
— Nunca quis mais ninguém.
Ele olhou-a nos olhos antes de iniciar o beijo. Lábios encontraram-se
fortemente, hálito quente contra hálito quente, bocas húmidas e
escorregadias. A mão direita de Gabriel acariciou a face de Julia e passou-
lhe lentamente pela orelha, antes de se mover para a sua nuca. Enquanto a
sua boca envolvia a dela, começou a passar os polegares pela superfície da
sua pele, incitando-a a relaxar. Os lábios de ambos flutuavam juntos,
sedosos e macios. Passado um momento ou dois, ele inclinou-lhe
ligeiramente a cabeça para trás — uma súplica silenciosa.
Abre-te para mim.
Julia não estava a respirar. Como poderia fazê-lo, quando a sensação era
tão intensa? O sabor a menta, o odor a Aramis, a forma como o hálito dele a
consumia. Quando ela não respondeu ao seu apelo, a língua de Gabriel
emergiu lentamente, a explorar-lhe hesitantemente o lábio inferior, antes de
se curvar sobre ele e o atrair habilmente para a sua boca. Julia inalou
bruscamente com aquela sensação estranha mas tão íntima.
Ele puxou-lhe o lábio entre os seus, a mordiscar, a provocar. Era tudo tão
novo, e, no entanto, tão estranhamente familiar. Lábios, dentes, o suave
jogo de língua. A paixão permanecia, mas a fúria dava lugar a uma
tonificante eletricidade que ardia e crepitava em volta deles, enquanto Julia
respondia ao seu convite e se abria para ele.
O queixo de Julia estava tenso. Ele sentia-o. Gabriel fez deslizar a mão
esquerda da face dela para a curva do seu queixo e começou a acariciá-lo,
querendo que se soltasse. Quando a sentiu descontrair sob os seus dedos,
tornou-se mais ousado. A ponta da sua língua rolou sobre o lábio inferior
dela enquanto ele a puxava com a sua boca, e, lentamente, a língua tocou a
dela. Eram tímidas apresentações, à medida que as suas línguas se
encontravam primeiro como amigas, tímidas e suaves, depois como
amantes, sensuais e eróticas, e o calor explodia nas suas bocas e a dança de
dois se transformava num tango de um.
Era melhor do que Gabriel imaginara — muito melhor do que nos seus
sonhos ou imaginação. Ela era real. Beatriz era real. Enquanto pressionava
os lábios contra os dela e explorava a sua boca, podia dizer, naqueles
momentos, que ela lhe pertencia, de corpo e alma. Nem que fosse apenas
naquele momento.
Tão doce, pensou Julia. Tão quente.
Apertou Gabriel com mais força, as suas mãos hesitantes a prenderem-se
no seu cabelo, a puxá-lo até ficar ensanduichada fortemente entre ele e a
porta, a sua pequena estrutura pressionada contra a estrutura alta e
musculada dele. Gabriel moveu a mão direita para lhe cobrir a parte de trás
da cabeça, a protegê-la com os nós dos dedos enquanto gemia audivelmente
contra a sua boca.
Ele gemeu por minha causa.
O gemido era alto, feral, e erótico. Julia recordaria aquele som e a forma
como vibrara contra os seus lábios, ecoara na sua boca, para o resto da sua
vida. Sentiu o sangue acelerar-lhe nas veias, quente e espesso, enquanto a
sua pele desabrochava sob as mãos dele. Nunca desejara tanto uma coisa
como sentir os braços dele à sua volta, e os lábios dele contra os seus.
Não havia Paul. Não havia Christa. Não havia universidade. Apenas eles.
Os lábios de Gabriel envolviam-na, possuíam-na. Um fogo ardia por
dentro à medida que os corpos de ambos se moviam em uníssono, suaves
curvas contra aço inexpugnável. Julia inalava freneticamente, mas não era
suficiente. Sentiu uma tontura.
Gabriel podia jurar que sentia o coração dela bater através da camisa, tão
juntos estavam um do outro. A sua mão esquerda deslizou por baixo da
bainha da blusa dela para lhe tocar a pele nua das costas. Gemeu novamente
quando os seus dedos se abriram sobre esse vale, e o reclamaram. Não
precisava de o ver para saber que era belo e precioso.
Até… Julia começar a arfar, com a respiração difícil e irregular. Gabriel
não queria parar. Queria continuar, levá-la para a sua secretária e deitá-la de
costas para poderem terminar o que tinham começado. Queria explorar cada
centímetro dela e olhá-la no fundo dos seus olhos escuros, enquanto o seu
corpo revelava os seus segredos. Mas a prudência tomou o controlo, e ele
abrandou os movimentos mesmo enquanto o seu corpo doía com a mera
ideia da separação.
Apertou-a com força, ainda a proteger-lhe a cabeça, e depositou três
beijos castos contra a sua boca aberta. Roçou-lhe os lábios, com a
suavidade de um anjo, pelo pescoço abaixo até ao ponto onde começava o
ombro. Mais um beijo debaixo da orelha, com um toque da língua, mais
uma promessa do que uma despedida, e Gabriel parou.
Passou-lhe as mãos ao longo dos braços e baixou-lhos para os pousar ao
lado das ancas. Desenhou padrões intrincados com os polegares, querendo
vê-la abrir os olhos. Podia jurar que conseguia ouvir os corações de ambos
a ecoar num ritmo frenético mas quase sincronizado no silêncio do seu
gabinete. Fora ela que lhe fizera aquilo. Enfeitiçara-o, no sangue e na carne.
Olhou-a, maravilhado, e roçou de novo os lábios pela sua boca entreaberta.
Ela não reagiu. Gabriel olhou-a com atenção, ligeiramente em pânico.
— Julia? Querida? Estás bem?
O seu coração deteve-se quando ela desfaleceu nos seus braços.
Não tinha desmaiado. Não propriamente. Fora simplesmente esmagada
pela sensação, e os sentidos, e a falta de comida adequada. Mas sabia que
ele a apertava fortemente nos braços. E sabia que ele lhe estava a sussurrar
suavemente ao ouvido.
Gabriel acariciou-lhe o rosto com as pontas dos dedos. Quando isto não
suscitou qualquer reação, pressionou os lábios à sua testa.
— Beatriz?
Os olhos de Julia abriram-se de rompante.
— Porque me estás a chamar isso?
— Porque é o teu nome — murmurou ele, agora a acariciar-lhe o cabelo.
— Estás bem?
Ela respirou fundo.
— Acho que sim.
Ele beijou-lhe a testa de novo.
Julia recordou-se de súbito da fúria de Gabriel e dos seus olhos azuis a
cintilar estranhamente.
— Isto é errado. És meu professor. Estou num enorme sarilho. — Tentou
libertar-se dos braços dele, mas Gabriel não a soltou. Ela encostou-se à
porta. — O que foi que eu fiz? — Ergueu uma mão a tremer à testa.
Gabriel franziu a testa, com um ar sombrio, e soltou-a.
— Estás a desapontar-me, Julianne. Não sou pessoa para ir contar a
ninguém. Eu vou proteger-te. Prometo. — Pegou na mochila dela, colocou-
a ao ombro, agarrou na sua pasta com uma mão e pôs a outra em volta da
cintura dela, puxando-a contra si. — Vem comigo.
— O Paul está à minha espera.
— Que se foda o Paul.
As pálpebras de Julia palpitaram.
— Não passas de um animalzinho de estimação para ele.
— Não sou um animal de estimação… sou amiga dele. Ele é o meu único
amigo em Toronto.
— Eu gostava de ser teu amigo — disse Gabriel, a olhá-la. — E vou
manter a minha amiguinha bem por perto, para garantir que ela não volta a
fugir.
— Isto é… complicado. E perigoso. — Julia forçou-se a esquecer a
sensação dos lábios dele sobre os dela e em concentrar-se nos seus
problemas intransponíveis. Mas era impossível, especialmente porque a
memória dos sons que ele fizera ao beijá-la ainda ecoavam nos seus
ouvidos.
Gemidos.
— Não parecias pensar que era complicado e perigoso quando andaste
aos pulos pelo meu apartamento com a minha roupa interior vestida. Não
pensaste que era complicado quando deixaste um tabuleiro com o pequeno-
almoço no meu frigorífico com uma coisa que apenas podia ser descrita
como uma carta de amor. Porque é que tudo é mais complicado agora que te
beijei?
— Porque fomos… expostos.
A expressão de Gabriel endureceu.
— Não, não fomos. Tirando o e-mail, a única prova pública é uma
discussão, que é aberta a interpretações. O ónus da prova está nos nossos
antagonistas. Negaremos tudo.
— É isso que queres fazer?
— Qual é a alternativa? Além disso, no tempo do seminário não havia
relacionamento.
Baixou-se para apanhar um porta-chaves do chão.
— Isto é teu?
Ela estendeu a mão.
— É.
— P de Princeton? Ou P de Paul? — troçou Gabriel, enquanto fazia
balouçar as chaves na frente dela.
Julia tirou-lhe as chaves da mão com uma careta e atirou-as para dentro
da mochila que ele segurava.
Gabriel sorriu com aquela reação.
— Espera aqui enquanto vou ver se o Paul está de arma em riste, à espera
para matar o lobo e salvar o pato.
Espreitou rapidamente para o corredor vazio.
— Despacha-te. Vamos pelas escadas. — Puxou Julia velozmente pela
porta e trancou-a.
— Estás bem para caminhar? Podemos apanhar o atalho pelo Victoria
College e ir a pé pela Charles Street. Ou posso chamar um táxi —
sussurrou, enquanto lhe abria a porta das escadas.
— Para onde me levas?
— Para casa.
Ela relaxou visivelmente.
— Para casa… comigo — clarificou ele, aproximando a cara da dela.
— Pensei que te alterava em todos os sentidos.
Gabriel recuou e endireitou-se em toda a sua altura.
— E alteras. Completamente. Mas são seis horas e estás a desmaiar de
fome. Não há a mínima hipótese de te levar a um sítio público depois do
que aconteceu. E não te posso cozinhar um jantar como deve ser na tua
casa.
— Mas ainda estás zangado. Consigo vê-lo nos teus olhos.
— E de certeza que ainda estás zangada comigo. Mas espero que o
consigamos ultrapassar. Neste momento, sempre que olho para ti, só
consigo pensar em beijar-te. — Gabriel soltou-a e começou a conduzi-la
pelas escadas abaixo.
— O Paul pode levar-me a casa.
— Já te disse, que se foda o Paul. Tu és a minha Beatriz. Tu pertences-
me.
— Gabriel, não sou a Beatriz de ninguém. As ilusões têm de parar.
Ele pousou-lhe a mão no braço para a deter.
— Nenhum de nós tem o monopólio das ilusões. A nossa única esperança
é termos tempo para descobrirmos quem somos realmente e decidirmos se é
uma realidade com que ambos podemos viver. Já tive contrariedades
contigo suficientes para uma vida inteira, e esta noite vou pôr um ponto
final nisso. Vamos sentar-nos e ter a conversa que queria ter tido contigo há
dez dias. E não te deixo sair da minha vista enquanto isso não acontecer.
Fim de discussão.
Com um olhar à determinação no rosto dele, Julia percebeu que não valia
a pena discutir. Enquanto ele a levava por uma porta secundária para as
traseiras do edifício, ela pegou no telemóvel e enviou, com um sentimento
de culpa, uma mensagem a Paul. Disse-lhe que estava tudo bem, mas que
estava demasiado envergonhada para falar sobre o assunto, e ia já a
caminho de casa.
Paul andara a rondar à volta dos elevadores, mantendo-se fora de vista
enquanto esperava que Julia saísse. Aproximara-se da porta d’O Professor
uma ou duas vezes, mas não ouvira nada. Não queria antagonizar Emerson
esperando à porta.
Assim que recebeu a mensagem, correu de imediato para o gabinete.
Bateu à porta de Emerson, mas ninguém atendeu. Paul começou a correr e
voou pelas escadas abaixo na esperança de ainda a apanhar.

G abriel entrou atrás de Julia no seu apartamento.


— Almoçaste?
— Não me lembro.
— Julianne! E pequeno-almoço?
— Tomei café…
Ele praguejou baixinho.
— Tens de cuidar mais de ti. Não admira que estejas tão pálida. Anda.
Levou-a para a poltrona de veludo vermelho na sala e fê-la sentar;
ergueu-lhe cuidadosamente os pés e pousou-os em cima da otomana.
— Não preciso de me sentar aqui. Posso sentar-me na cozinha, contigo.
Gabriel fez-lhe um olhar de branda severidade enquanto acendia a lareira
a gás. Passou-lhe a mão pela cabeça, puxando-lhe o cabelo para trás.
— As gatinhas devem enroscar-se numa poltrona à lareira, num dia como
este. Ficas mais segura aqui do que nos bancos de bar. Vou fazer o jantar,
mas primeiro preciso de sair para comprar algumas coisas. Ficas bem
sozinha?
— Claro, Gabriel. Não sou uma inválida.
— Se te sentires a estorricar, gira o botão e o inferno desaparece.
Baixou-se e depositou-lhe um beijo no cabelo antes de se dirigir para a
porta.
— Promete-me que não te vais embora antes de eu voltar — pediu.
— Prometo. — Julia perguntou-se se ele estaria mesmo com tanto medo
de a perder.
Recordou o que tinha acontecido na aula e os eventos no gabinete dele.
Pensou se o que provocara a sua tontura fora a falta de comida ou o beijo de
Gabriel. Não seria a primeira vez que ele a afetava daquela maneira…
Julia fechou os olhos só por um momento enquanto o rugido baixo do
fogo lhe murmurava aos ouvidos, e adormeceu.
O som de uma voz de mulher, apaixonada e sentida, flutuava no ar. Julia
reconheceu a canção antes de abrir os olhos. Gabriel pusera a tocar Edith
Piaf, Non, je ne regrette rien. Era uma escolha extraordinária.
Abriu os olhos para encontrar Gabriel a sorrir-lhe, parecendo bastante um
anjo perturbado — um anjo de cabelo escuro, um boca feita para o pecado e
penetrantes olhos azuis. Vestira uma camisa preta e calças pretas, as mangas
da camisa arregaçadas para expor os braços musculados.
— Julianne? — Ele sorriu e ofereceu-lhe a mão.
Ela aceitou e ele conduziu-a para a sala de jantar. Gabriel pusera a sua
mesa formal com uma toalha de linho branco e acendera as velas num
candelabro de prata trabalhada. Viu dois lugares à mesa, porcelana, cristal e
prata, e uma garrafa do que parecia ser champanhe.
Veuve Clicquot Ponsardin vintage 2002, leu no rótulo.
— Estás contente? — Ele colocou-se atrás dela e esfregou-lhe os braços
com as mãos.
— É lindo — conseguiu ela dizer, a olhar para o caro champanhe com
desconfiança.
— Então, permite-me. — Puxou-lhe uma cadeira e estendeu-lhe um
guardanapo de linho branco. — Faço uma segunda tentativa com as flores.
Por favor, não as destruas como destruíste as últimas.
Gabriel fez um sorriso de esguelha enquanto indicava uma moderna jarra
alta que continha um arranjo de jacintos cor de púrpura.
— Se fores boazinha, deixo-te ler o cartão — sussurrou ele, enquanto lhe
servia uma taça de champanhe. Sem esperar para a ver prová-lo,
desapareceu no interior da cozinha.
Com um rápido olhar por cima do ombro para verificar se não estava a
ser observada, Julia retirou o cartão que estava aninhado entre as flores. Ali
leu:
Minha Querida Julianne,
Se desejas saber o que sinto por ti,
Só tens de me perguntar.
O teu
Gabriel

Filho da mãe convencido, pensou Julia antes de voltar rapidamente a pôr


o cartão no mesmo sítio.
Enquanto estava ali sentada, aborrecida, um número de coisas diferentes
captou a sua atenção. Gabriel escolhera Edith Piaf como música ambiente;
ela estava agora a cantar La Vie en Rose. A toalha de mesa, a loiça, o
champanhe, as flores… ele não se dera a tais trabalhos por causa de Rachel.
Toda a discussão e paixão no escritório dele tinham deixado os corpos de
ambos em fogo. E a maneira como ele a beijara… Julia nunca fora beijada
daquela maneira, nem mesmo por ele. Estremeceu ao recordar-se,
puramente de prazer. Era uma sensação nova, mas não uma sensação
desagradável.
Preliminares.
Ela sabia que ele tivera de se esforçar para parar de a beijar, como se
estivesse em guerra consigo mesmo. A tensão entre eles fora palpável,
quase concreta. Sabia que ele era um homem muito sexual a quem nunca
faltava companhia feminina, como ele próprio admitira. Agora que a
provara enquanto sóbrio, desejava-a. E era irresistível ser desejada por uma
criatura tão tentadora, tão sensual. Sentia-se como Psique a ser desejada por
Cupido. E não podia negar a atração que sentia por Gabriel, nem a forma
como tremia de desejo quando ele a beijava.
Mas Julia não queria partilhar, o que tornava todas as outras
considerações românticas ou sexuais discutíveis. Decidiu esperar até depois
da salada para lhe dizer isso mesmo.
Quando Gabriel se sentou ao seu lado à cabeceira da mesa, pegou no seu
copo de água e brindou àquela noite. Enquanto tocavam os copos, Julia
percebeu que ele não estava a beber champanhe.
— E o Veuve Clicquot? — perguntou ela, incrédula.
Ele sorriu-lhe e abanou a cabeça.
— Non, seulement de l’eau ce soir. Mon ange.
Julia revirou os olhos ao ouvir o francês de Gabriel, mas não era por a
sua pronúncia ser defeituosa.
— Provavelmente vais ter dificuldade em acreditar, mas não estou
sempre a beber. Também não estou à espera que termines esta garrafa
sozinha. Vamos guardá-la para as Mimosas para o pequeno-almoço.
As sobrancelhas de Julia arquearam-se. Pequeno-almoço? Estás mesmo
muito confiante, Casanova.
— Procurei na minha coleção por um vintage de 2003, mas tive de me
contentar com um de 2002.
Julia levou um momento para perceber o significado do ano, e, quando
percebeu, corou e baixou o olhar para as suas mãos. Gabriel observou-a por
cima da sua salada, mas não disse nada. Esperara por uma reação mais
vocal, mas calculou rapidamente que ela se sentia esmagada pelo tumulto
do dia.
Está nervosa; está a tremer, e tem o rosto afogueado.
Gabriel acariciava-lhe a pele do pulso de tempos a tempos, só para a
acalmar. Sempre que os olhares de ambos se cruzavam, ele parava o que
estava a fazer e sorria-lhe para a encorajar, esperando que ela conversasse
um pouco. Mas Julia limitava-se a baixar a cabeça e a concentrar-se no seu
prato — até os acordes de certa música lhe encherem os ouvidos.
Besame, besame mucho…
Gabriel observou Julia cuidadosamente. Quando a viu reagir à musica e
ganhar um mais forte tom de rosa, piscou-lhe o olho.
— Lembras-te desta música?
— Sim.
— Como é o teu espanhol? — Olhou-a com um ar de expectativa.
— Não existente.
— É uma pena. As palavras são tão bonitas. — Sorriu-lhe algo
tristemente, e ela desviou o olhar.
Quando Gabriel não estava a cantar, estava a observá-la, o movimento
dos olhos dela, o retorcer das mãos, o rubor da pele. E quando a música
terminou, ele sorriu e deu-lhe um longo beijo no alto da cabeça.
Levou os pratos, voltou a encher-lhe a flûte de champanhe e serviu o
prato principal, spaghetti com limone, com alcaparras e camarão tigre. Era
um dos pratos preferidos de Julia e um que raramente comia, por isso
surpreendeu-a que ele o tivesse feito. Talvez Rachel tivesse…
Abanou a cabeça. Aquilo era entre ela e Gabriel. Ponto final. Tirando o
espetro de Paulina, que os perseguia aos dois.
— Não és o mesmo homem que conheci no pomar — anunciou Julia
terminantemente, mais ousada pelo efeito do champanhe.
Gabriel pousou o garfo no prato, as sobrancelhas uniram-se.
— Tens razão… sou muito melhor.
Julia riu-se amargamente.
— Impossível! Ele foi bondoso comigo, e muito, muito querido. Nunca
teria sido tão frio e indiferente como tens sido.
— Tu não sabes do que estás a falar. — Os olhos dele dardejaram para os
dela. — Nunca te menti. Porque é que havia de começar agora?
Um rubor de fúria nasceu nas maçãs do rosto de Julia e espalharam-se
por todo o seu rosto.
— Não vou deixar que a tua escuridão me consuma.
Gabriel estava confuso pela súbita hostilidade dela e ficou severamente
tentado a responder-lhe à letra. Surpreendentemente, porém, inclinou a
cabeça para um lado. Ela viu-o molhar o dedo em Perrier e começar a
passá-lo em volta da borda do copo de água, de forma suave e sensual. Em
breve, o copo de cristal estava a cantar aos ouvidos deles.
De súbito, Gabriel parou.
— Pensas que a escuridão consegue consumir a luz? Essa é uma teoria
interessante. Vamos ver se funciona. — Acenou a mão na direção do
candelabro. — Pronto. Atirei um pouco da minha escuridão para aquelas
velas. Vês o sucesso que tive?
Fez-lhe um sorriso arrogante e regressou à sua refeição.
— Tu sabes do que eu estou a falar! Não sejas condescendente.
Os olhos de Gabriel escureceram.
— Não tenho qualquer desejo de te consumir, mas não vou mentir e dizer
que não me sinto atraído pela tua luminosidade. Se eu sou a escuridão,
então tu és as estrelas. De facto, sou bastante atraído por la luce della tua
umilitate.
— Não te vou deixar foder-me.
Nessa altura, ele recostou-se na cadeira com um olhar de choque e
aversão no rosto. Decidiu silenciosamente que ela bebera a sua última taça
de champanhe.
— Desculpa, mas pedi-te que o fizesses? — A voz dele era suave e
imperturbável, o que deixou Julia ainda mais aborrecida.
Mentiroso. Mentiroso. Lindos olhos azuis em chamas.
Ele fez-lhe um sorriso impertinente enquanto observava a cara dela sobre
a borda do seu copo. Limpou os lábios ao guardanapo e aproximou mais o
rosto.
— Se lhe quisesse pedir para fazer alguma coisa, menina Mitchell, não
seria isso. — Ele sorriu, recostou-se de novo e, quase alegremente,
terminou o seu prato sem outra palavra.
Julia fervilhava. Sabia que ele a estava a olhar; sentia-lhe os olhos no
rosto, na boca, nos ombros, que estavam a tremer. Nada escapava àqueles
perfurantes olhos azuis. Sentia-se como se ele lhe conseguisse ler a alma, e
continuasse sempre a olhar.
— Julia — disse ele por fim. Moveu a mão por baixo da mesa para lhe
agarrar o pulso e lho retirar do colo, roçando o alto da sua coxa, ao fazê-lo.
A voz dele era suava e terna, e Julia sentiu o calor do seu toque viajar-lhe
até às pontas dos dedos dos pés.
— Olha para mim.
Ela tentou retirar as mãos, mas ele agarrou-a com força.
— Olha para mim quando estou a falar contigo.
Julia ergueu lentamente os olhos para os dele. Eram mais suaves e menos
ameaçadores do que o seu tom de voz, mas extraordinariamente intensos.
— Eu nunca, nunca seria capaz de te foder. Entendido? Não se pode
foder um anjo.
— Então o que é que uma pessoa como tu faz a um anjo? — A voz dela
tremia ligeiramente.
— Uma pessoa como eu dá-lhe valor. Tenta conhecê-lo e surpreendê-lo.
Começa por… fazer amizade, talvez.
Ela retesou-se sob a mão dele.
— Amizade colorida?
— Julianne… — A voz de Gabriel continha uma nota de aviso. Soltou-
lhe a mão e olhou-a momentaneamente. — Custa-te muito acreditar que te
quero conhecer? Que quero ir com calma?
— Custa.
Ele conteve um palavrão.
— Isto é novo para mim, Julianne. O teu preconceito é justificado, até
certo ponto, mas não queiras deliberadamente testar a minha paciência.
— Ambos sabemos que os professores nunca são amigos dos seus
alunos.
— Nós podemos ser — murmurou ele, puxando-lhe suavemente o cabelo
para trás do ombro e permitindo que as pontas dos seus dedos lhe roçassem
a curva exposta do pescoço. — Se for isso que tu queres.
Ela não sabia como reagir àquela espantosa declaração, por isso desviou-
se dele.
— Eu não seduzo virgens, Julia. A tua virtude está em segurança ao pé de
mim. — E, com isto, pegou nos pratos do jantar e desapareceu na cozinha.
Julia terminou o seu champanhe em dois goles rápidos.
É um mentiroso. Se não tivesse dito que não, ele tinha-me mostrado o seu
sorriso de marca e deixava-me nua e de pernas abertas ainda antes de as
minhas cuequinhas caírem no chão. E provavelmente ainda exigia que
reproduzíssemos uma das posições das suas fotografias a preto e branco. E
depois a Paulina havia de telefonar a meio.
Gabriel regressou e removeu rapidamente o copo dela e a garrafa de
champanhe da mesa. Uns minutos depois, trouxe um café expresso servido
com uma pequena casca de limão. Julia ficou surpreendida. Era difícil
imaginá-lo a cortar a casca aos limões, e no entanto ali estava — casca de
limão perfeita e acabada de cortar.
— Obrigada, Gabriel. Espresso Roma é o meu preferido.
Ele fez-lhe um olhar presunçoso.
— Pensei que estava na altura de passares para qualquer coisa não
alcoólica, antes que vomitasses em cima de mim.
Julia franziu o sobrolho. Sentia-se bem. Sentia-se ligeiramente menos
inibida, mas ainda no controlo das suas faculdades. Pensava ela.
— O que foi que escreveste no teu cartão? O que me deixaste no
alpendre?
Gabriel endireitou-se.
— Então não o leste?
— Estava zangada.
Ele encolheu os ombros.
— Então ainda bem que não leste. — Deu meia-volta e desapareceu.
Julia bebeu o seu café lentamente, a tentar adivinhar o que Gabriel
escrevera. Devia ter sido alguma coisa suficientemente íntima, para ele
estar tão aborrecido. Perguntou-se se os pedaços do cartão ainda estariam
no canteiro em frente ao seu edifício e se seria capaz de o reconstituir.
Uns minutos mais tarde, Gabriel regressou com uma única fatia de bolo
de chocolate e um garfo.
— Sobremesa? — Aproximou a cadeira de forma a ficar mais perto dela.
Demasiado perto, na verdade.
— Julianne — a voz dele cantou no seu ouvido —, eu sei que gostas de
chocolate. Comprei isto para te agradar.
Ergueu o garfo ao nariz dela, para que lhe pudesse captar o perfume. Ela
lambeu os lábios involuntariamente. O cheiro era divinal. Estendeu a mão
para o garfo, mas ele desviou-o.
— Não. Tens de me deixar dar-te de comer.
— Não sou uma criança.
— Então para de te comportar como se fosses. Confia em mim. Por
favor.
Julia desviou a cara e abanou a cabeça, resistindo à vontade de olhar
quando ele levou o garfo à própria boca e a língua assomou rapidamente
para apanhar um pouco da cobertura.
— Mmmmmm. Sabes, o ato de dar de comer a alguém é o maior ato de
cuidado e afeição… partilhas de ti com outra pessoa através da comida. —
Ergueu-lhe outro pedaço de bolo ao nariz. — Pensa nisso. Somos
alimentados na Eucaristia, pelas nossas mães quando somos bebés, pelos
nossos pais em crianças, por amigos em festas, por um amante quando nos
banqueteamos dos corpos um do outro… e, por vezes, das almas um do
outro. Não queres que te alimente? Não queres banquetear-te do meu corpo,
mas ao menos banqueteia-te do meu bolo.
Gabriel soltou uma pequena risada. Quando Julia não respondeu, ele
voltou toda a atenção para a sua sobremesa. Ela ficou carrancuda. Se ele
julgava que aquela nojenta exibição de pornografia alimentar ia atrair a sua
atenção e deixá-la um bocado excitada e incomodada até ficar derretida nas
suas mãos…
… tinha razão.
A visão de Gabriel a comer bolo de chocolate era talvez a coisa mais
erótica que alguma vez testemunhara. Ele saboreava cada pedaço, lambendo
os lábios e passando sugestivamente a língua pelo garfo após cada dentada.
Fechava os olhos e gemia de tempos a tempos, fazendo sons roucos e ferais
que lhe eram dolorosamente familiares. Foi avançando lenta e sinuosamente
pelo prato, os tendões dos braços claramente visíveis a mover-se para trás e
para a frente, os olhos a queimar os dela com cada ritmo lento e óbvio.
Antes de ele chegar à última dentada, Julia sentiu a sala começar a
aquecer, sufocante. Tinha as faces afogueadas, a respiração irregular, e
sentia pequenas gotas de suor começarem a formar-se na testa. E mais em
baixo…
O que é que ele está a fazer comigo? É como se…
— Última oportunidade, Julia. — Gabriel fez o garfo dançar à frente dos
seus olhos.
Ela tentou resistir. Tentou virar a cara, mas, de algum modo, quando
abriu a boca para recusar, ele fez o garfo deslizar pelos seus lábios.
— Mmmmmm — cantarolou ele, a sorrir abertamente e a mostrar todos
os seus dentes perfeitos e brancos. — Gatinha linda.
Julia corou mais profundamente e passou os dedos pelos lábios, para
recolher as últimas migalhas. Ele tinha razão, o bolo era delicioso.
— Então, não foi assim tão mau, pois não? Vês como é bom seres
cuidada por alguém? — sussurrou ele. — Vês como é bom seres cuidada…
por mim?
Ela começava a perguntar-se se tinha alguma hipótese de resistir à
sedução. Todos os pensamentos sobre o que o ouvira dizer acerca da sua
virtude voaram miraculosamente da sua cabeça.
Gabriel pegou-lhe no pulso e levou-lhe os dedos à boca.
— Deixaste um pouco de chocolate — ronronou, a olhar para ela de
olhos semicerrados. — Posso?
Julia inalou bruscamente. Não sabia bem o que ia ele fazer, por isso não
disse nada.
Ele sorriu maliciosamente perante a sua muda aquiescência antes de levar
os dedos dela à boca, um por um, sugando-os lentamente e passando a
língua desapressadamente em volta das pontas.
Julia mordeu o lábio para suprimir um gemido quando a sua pele
explodiu em chamas. Porra, Gabriel. Quando ele terminou, ela fechou os
olhos e limpou o suor da testa.
Gabriel olhou-a em silêncio pelo que pareceu um século.
— Estás exausta — anunciou de súbito, e soprou as velas para as apagar.
— Hora de ir para a cama.
Julia abriu os olhos quando o sentiu inclinar-se sobre ela.
— E a nossa conversa?
— Já falámos o suficiente por hoje. A nossa conversa vai ser comprida, e
devemos tê-la quando estivermos ambos de cabeça lúcida.
— Por favor, Gabriel. Não faças isto. — A voz dela foi-se tornando mais
baixa e desesperada.
— Uma noite. Passa a noite comigo e, se quiseres ir embora amanhã, eu
não te impedirei.
Pegou nela com cuidado e puxou-a fortemente contra o peito.
Julia não disse nada, sentindo fugir o que restava do seu autodomínio.
Estava exausta. Ele esgotara-a, e a sua resistência estava dizimada. Talvez
fosse o champanhe. Talvez fosse o dramatismo do dia e o seu explosivo
encontro no gabinete dele. Independentemente da explicação, ela não
conseguia resistir-lhe. O seu coração batia já a um ritmo fervilhante, as suas
entranhas derretiam com o calor que flutuava pelo seu corpo. E, mais em
baixo, perto do seu útero, vinha o não muito subtil palpitar do desejo.
Ele vai consumir-me, de corpo e alma.
Nos seus sonhos, era sempre a Gabriel que oferecia a sua virgindade.
Mas não daquela maneira. Não com aquele sentimento de impotência ao
fundo do estômago e aquela emoção ilegível que cintilava nos olhos dele.
Ele transportou-a pelo corredor até ao seu quarto e pousou-a ternamente
ao centro da sua grande cama medieval. Acendeu algumas velas e espalhou-
as em volta pelo quarto, na mesa de cabeceira, na cómoda e no aparador
debaixo da pintura de Dante e Beatriz. Depois apagou todas as luzes e
desapareceu na casa de banho.
Julia aproveitou a oportunidade para examinar as suas fotografias a preto
e branco. Mas tinham desaparecido. As paredes estavam nuas, com exceção
da reprodução de Holiday e seis ganchos e pedaços de arame que
testemunhavam a prévia presença das seis fotografias agora ausentes.
Porque foi que as removeu? E quando?
Julia estava contente por terem desaparecido. Tinha medo de as ver à
tremeluzente luz das velas, as imagens a cintilar, cruas e satânicas, na
penumbra, a representar o seu destino quase a ser selado. Nua, sem nome,
sem rosto, sem alma. Só esperava que a mais agressiva de todas, a sexta
fotografia, não fosse o que ele tinha em mente para a sua primeira vez.
Seria isso que ele queria? Seria isso que exigiria? Arrancar-lhe as roupas,
deitá-la de barriga para baixo, pegar nela por trás… sem sequer a olhar nos
olhos enquanto lhe tirava a virgindade, sem a beijar, sem fazer amor, nada
senão agressão e dominação? Julia só sabia das suas predileções sexuais
pelas fotografias, e pelo facto de ele ter descrito o que fazia às mulheres
como foder.
A sua respiração começou a acelerar quando foi inundada pelo pânico.
Ouviu uma velha voz na sua cabeça a assombrá-la acerca de foder como
animais.
Gabriel regressou vestido com uma t-shirt caqui e um par de calças de
pijama de escocês Black Watch. Pousou um copo de água na mesa de
cabeceira ao lado das velas, puxou as cobertas para trás e ergueu Julia para
a poder colocar debaixo dos lençóis.
Ela estremeceu, mas ele fingiu não reparar e reclinou-se de lado junto às
pernas dela, puxando-lhas para junto do peito. Desapertou-lhe os ténis e
retirou-lhe as meias, acariciando-lhe ternamente as solas e dedos dos pés,
fazendo-a gemer contra vontade.
— Descontrai-te, Julianne. Não fiques tensa. Isto é para ser agradável. —
Ia murmurando de tempos a tempos, mais para si mesmo do que para ela, e
a certa altura Julia pensou ouvi-lo dizer la sua imaginne. Mas não tinha a
certeza. A voz era baixa, como um sussurro ou uma oração.
Perguntou-se mudamente se ele se referia a ela ou a Beatriz, e a que
deuses debochados se estaria a dirigir. Também mudamente, suplicou-lhes
que viessem antes em seu socorro.
Por favor, não deixem que ele me consuma.
— Lembro-me que gostaste dos meus boxers do Magdalen College.
Estão na gaveta de cima, se os quiseres vestir. Já não me servem.
Julia fungou.
— As tuas fotografias… as que tinhas na parede. É aquilo que tu queres?
As mãos de Gabriel detiveram-se nos pés dela.
— De que é que estás a falar?
Os olhos dela dardejaram nervosamente para onde tinham estado as seis
fotografias e depois de novo para Gabriel. O rosto dele passou rapidamente
da surpresa ao horror.
— Claro que não! Por quem me tomas? — A voz dele era um trágico,
ofendido, sussurro. — Tu estás aqui, estás cansada. Não quero correr o risco
de te perder outra vez antes de podermos conversar. — Ele sorriu. — Quero
preparar-te um tabuleiro de pequeno-almoço com salsa e gomos de laranja,
não tirar-te a virgindade. E não, certamente, dessa maneira. — Ele parecia
enojado. — Não sou nenhum bárbaro.
Quando ela não respondeu, ele enfiou-lhe os pés debaixo das cobertas.
Aconchegou-a como se fosse uma criança e deu-lhe um beijo ligeiro na
testa, retirando-lhe suavemente o cabelo da frente da cara.
— Vamos tentar perdoar-nos mutuamente, sim? Fomos ambos magoados,
e perdemos tantos anos. Não vamos perder mais tempo a tirar conclusões
precipitadas.
Ele levantou-se e esfregou os olhos.
— É muito possível que não me queiras amanhã, de qualquer maneira —
balbuciou. Depois endireitou-se e fez-lhe um pequeno sorriso. — Se
precisares de alguma coisa, chama-me.
Enquanto Julia se virava na cama sozinha, ouviu Gabriel pôr música a
tocar, baixinho mas fluidamente. Não reconheceu a música mas, com os
sons de arpejos a imitar quedas de água, acabou por cair num sono ligeiro.
Mais tarde nessa noite, Gabriel estava deitado de costas na cama do
quarto de hóspedes, com o braço caído sobre o rosto. Pairava entre a vigília
e o sonho quando sentiu um ligeiro movimento à sua esquerda. Um corpo
quente aproximou-se, puxando suavemente a roupa da cama.
O corpo rastejou para o seu lado e moldou-se ao seu corpo. Sentiu longos
caracóis macios a roçarem o seu peito nu. Ouviu um pequeno suspiro de
satisfação quando um braço deslizou pelas vertentes dos seus músculos
abdominais e parou em cima deles. Gabriel pressionou um beijo suave na
testa pousada sobre a sua tatuagem e fez o braço deslizar pelos ombros dela,
descendo-lhe até ao fundo das costas, passando hesitantemente os dedos por
baixo da t-shirt até entrarem em contacto com a pele nua macia. E com a
pele de galinha acima da cintura de um par de boxers que eram demasiado
largos.
O corpo quente suspirou de novo e pressionou os lábios suaves contra a
barba crescida no seu pescoço.
— Tentei não vir… — a voz de Julia era hesitante — … mas não
consegui.
— Eu tentei não lamber o chocolate dos teus dedos. Mas não consegui.
— A voz de Gabriel era brincalhona, mas tinha uma nota subjacente de
tristeza.
Ela gemeu inconscientemente com esta observação.
— Porque tiraste aquelas fotografias do teu quarto?
Ele estremeceu nos seus braços.
— Porque tive vergonha.
— Antes não tinhas.
— Isso foi antes de decidir levar um anjo para a minha cama.
Mãos preguiçosas mas curiosas acariciaram pele nua, a explorar, suave
mas castamente. Suspiros fundiram-se no escuro enquanto duas almas
respiravam como se fossem uma. Dois corações sincronizaram-se quando
se reconheceram. E duas mentes perturbadas, aflitas, conseguiram
finalmente descansar.
Quando Gabriel adormeceu, julgou ouvi-la falar no sono; não palavras,
mas breves sons que foram crescendo em pânico, culminando na esbaforida
libertação de um nome que ele nunca antes ouvira.
— Simon.
Capítulo Dezassete

Q uando Julia acordou, bocejou e espreguiçou-se, estendeu a mão e…


nada. Gabriel desaparecera e o seu lado da cama estava frio. Uma
sensação de desconforto inundou-a. A sensação era antiga; já a
experimentara anteriormente. Deixou-a momentaneamente nauseada.
Girou as pernas para o chão e viu um pequeno papel na mesa de
cabeceira, encostado a uma taça que estava cheia de água com rodelas de
limão a flutuar. O papel estava escrito com caneta de tinta permanente:
Linda Julianne,
Fui buscar uma coisa especial para o pequeno-almoço.
Por favor, usa a casa de banho do quarto principal; é melhor.
Deixei lá uns artigos pessoais para ti.
Podes também escolher o que precisares da minha cómoda e roupeiro.
Por favor, fica.
O teu
Gabriel.

P.S. Perdoa a minha ousadia, mas tu a dormires nos meus braços esta manhã foi, de longe,
a coisa mais bonita que alguma vez vi.

Uau. Como é que ele faz isto?, pensou ela, a ficar escarlate. O Professor
tinha jeito para as palavras… e flores, e música, e bolo de chocolate.
Colocou uma mão na testa enquanto tentava recompor-se. Bolo de
chocolate era agora a sua sobremesa preferida. E a memória das suas pontas
dos dedos na boca quente dele, e a maneira como a língua hábil…
Concentra-te, Julia. Precisas de tomar um duche. De preferência, frio.
Bebeu rapidamente a água que ele lhe deixara e prendeu o bilhete entre
os dentes. Na última vez que dormira na cama dele tivera um rude despertar
na sua sala. Embora ele tivesse sido terno na noite anterior, tinha medo do
que podia acontecer de manhã.
Abriu a porta do quarto de hóspedes e espreitou para fora, ansiosa por
discernir quaisquer sinais de vida. Quando confirmou que estava sozinha,
dirigiu-se depressa para o quarto principal e fechou a porta atrás de si.
Pegou nas suas roupas e entrou na grande casa de banho, tendo o cuidado
de trancar a porta.
Gabriel deixara outro bilhete com uma taça cheia de sumo de laranja.
Estava guarnecida com uma rodela de laranja. Claramente, Gabriel tem
queda para as guarnições, pensou.
No papel, leu:
Julianne,
Espero que encontres aqui tudo o que necessitas.
Caso contrário, a Rachel encheu o armário da casa de banho de hóspedes com uma série
de artigos diferentes. Serve-te, por favor.
As minhas roupas estão à tua disposição.
Por favor, escolhe uma camisola, porque hoje ficou frio.
O teu,
Gabriel

Julia bebericou o sumo de laranja enquanto examinava os artigos à sua


frente. Dispostos no armário com precisão militar, estava uma escova de
dentes nova no seu pacote, pasta de dentes, uma lâmina de barbear nova
(que ela examinou com uma sobrancelha erguida), vários produtos de
toilette de aspeto feminino de uma empresa chamada Bliss, todos com
perfume de baunilha e bergamota, e uma esponja de malha lavanda a que
vulgarmente se chama poof.
Teria Gabriel pedido a Rachel que comprasse aqueles artigos para as suas
convidadas? Ou seria o tipo de homem que tem em casa poofs novos
sortidos à mão para ocasiões como aquela? Talvez ele seguisse um código
de cor: lavanda para virgens, vermelho para Paulina, preto para a professora
Singer, verde para as rameiras emersonianas… Julia duvidava que o
lavanda alguma vez tivesse sido usado.
Um poof virgem para uma virgem… que apropriado.
Julia obrigou-se a parar. Gabriel pedira perdão e tentara, gentilmente,
sugerir que ela se refreasse de tirar conclusões precipitadas a seu respeito. E
ali estava ela, a tirar conclusões precipitadas por causa de um poof.
Olhou em volta e viu um roupão de banho de turco branco pendurado na
parte de trás da porta e um par de chinelos de quarto junto à banheira. Eram
demasiado grandes para ela e teriam sido demasiado grandes também para
os pés de Rachel. Desta vez, Julia limitou a sua reação negativa a um
revirar de olhos.
Precisou de mais do que uns minutos para perceber como operar o
chuveiro muito sofisticado, pois tinha múltiplos manípulos para sprays,
pressões de água e temperaturas, e era extremamente complicado. Julia
estava apenas interessada no chuveiro de teto central, que era, claro,
controlado pela última alavanca que puxou.
Enquanto se rodeava de baunilha e bergamota e tentava não pensar em
chá Cream Earl Grey, Julia colocou-se várias questões muito sérias.
Suspeitava que Gabriel quereria ter a sua conversa o mais cedo possível.
Seria doloroso. E o que faria depois? Tentaria ser amiga dele? Com que
objetivo?
Percebeu que, se se concentrasse no futuro, nunca seria capaz de abordar
o passado, pelo menos de forma adequada. Por isso decidiu concentrar-se
apenas nas suas interações passadas, incluindo a grosseira condescendência
que ele lhe ministrara durante o semestre. Ele precisava de se explicar, e ela
precisava de o ouvir sem tirar conclusões precipitadas. Depois dir-lhe-ia
exatamente o que pensava a seu respeito.
Sim, seria doloroso para ambos. Entristecia-a o facto de nunca ter tido
um relacionamento romântico saudável, quando uma das coisas que mais
queria na vida era experimentar afeição e amor. E Gabriel, apesar de vir de
uma família boa, ainda que adotada, e de ser inteligente, atraente e rico, era
provavelmente incapaz de ter uma relação romântica saudável de todo.
Os relacionamentos da sua mãe tinham estado longe de ser saudáveis ou
normais, e Julia vira demasiados deles desde muito pequena, um
interminável desfile de miríades de disfunções. Em contraste, a relação do
pai com Deb Lundy era bastante normal, ainda que um pouco para o casual.
Gostavam um do outro, pensava Julia, mas o seu amor era morno e
pequeno, como uma estrela distante.
O amor de Gabriel nunca será quente como o Sol, se é que é mesmo
capaz de amar alguém. É óbvio que ele prefere sexo ao amor, ou talvez
apenas funda os dois. O que é pior — pensar que sexo é amor ou pensar
que as duas coisas podem ser separadas e preferir o sexo?
Julia deixou que a água morna do chuveiro jorrasse em cima dela e
tentou afastar da mente a inexplicável atração que sentia por ele. O que eu
não daria para ter uma fração da felicidade de Grace e Richard. Eles
tinham o casamento ideal. Falavam sempre com gentileza um com o outro.
E estavam tão apaixonados…
Julia saiu do duche e em breve estava envolvida no robe de Gabriel e
com uma espessa toalha branca enrolada em volta do cabelo. Calçou os
chinelos e foi à procura de roupas no quarto. Encontrou um par de meias,
uma camisola interior branca e um par de boxers de Princeton na cómoda
dele, coisas que lhe pareciam servir mais ou menos. Entrou no enorme e
imaculado roupeiro de Gabriel e acendeu a luz. Fileira após fileira de
roupas meticulosamente organizadas.
Dirigiu-se para o fundo e começou a ver uma pilha de camisolas e
casacos de malha, quase todos de caxemira e da Loro Piana, muito bem
dobrados entre divisórias de madeira numa prateleira. Encontrou
rapidamente a camisola verde que usara e reparou com satisfação que
regressara aparentemente à sua anterior condição impecável. Levou
audaciosamente a camisola ao nariz e inalou, sorrindo com prazer quando
percebeu que cheirava a Aramis e a Gabriel. Ele já a devia ter usado depois
de a trazer da lavandaria.
Nesse momento, viu qualquer coisa a brilhar pelo canto do olho.
Encostadas à parede e meio ocultas atrás dos cabides de casacos desportivos
e fatos, estavam as molduras de fotografias a preto e branco de Gabriel.
Reconheceu a de cima como a quinta, aquela que estivera por cima da
cama. Era moderadamente erótica e quase terna.
Ele não devia ter vergonha desta. Julia desejaria que as suas costas
fossem tão bonitas. Uma parte de si desejava que Gabriel olhasse para ela
da maneira como o homem na fotografia olhava para a mulher. Só uma vez.
Regressou rapidamente à casa de banho e olhou para o seu rosto ao
espelho. Estava com um ar cansado. Estava pálida, como de costume, com
olheiras. Os seus olhos estavam baços, e as veias viam-se no pescoço. Tinha
um aspeto doente, na verdade, depois de umas semanas de dramatismo e
falta de sono, e o contraste entre a sua pele pálida e o cabelo escuro não
ajudava. Nem o facto de Rachel não ter pensado em deixar cosméticos no
quarto de hóspedes de Gabriel. Claramente, fora um descuido da sua parte.
Depois de se vestir, Julia aventurou-se na cozinha. Gabriel ainda não
chegara. Enfiou as roupas sujas na sua mochila e pegou no telefone e no
envelope almofadado. Sentando-se num dos bancos de bar, viu rapidamente
as suas mensagens. Tinha cinco mensagens de Paul à sua espera, cada uma
mais urgente que a última, a culminar com uma em que dizia que estava à
sua porta na Madison Avenue e a tocar à campainha.
Scheisse. Nunca poderia explicar o que acontecera. Mas também não
podia ignorar Paul, por isso elaborou rapidamente uma desculpa e escreveu-
a:
Paul, olá. Desculpa. Não ouvi a campainha. Avariada? Emerson ralhou
comigo mas não vou ter de desistir do seminário (ufa). Tenho de arranjar
novo orientador. Estou a tratar disso. Falamos depois & obrigada, Julia

E sperou que a mensagem fosse suficiente para o ocupar até conseguir


produzir uma explicação melhor. Calculou que teria de falar com
Gabriel sobre o assunto, para poderem acertar as suas histórias.
Qualquer coisa que Gabriel dissera na véspera deixara-a curiosa a
respeito do conteúdo do envelope que ele lhe deixara na caixa de correio.
Ao abri-lo, encontrou, para além do sutiã de renda preta, o seu iPod. Tirou-
o para fora, colocou os auriculares nos ouvidos e percorreu a lista de
músicas até à secção de Músicas Recentemente Adicionadas, onde
descobriu que Gabriel fizera duas adições.
A primeira era Prospero’s Speech, de Loreena McKennitt. Com surpresa,
Julia ouviu a assombrosa voz feminina cantar as palavras de Shakespeare
em A Tempestade:
But release me from my bands
With the help of your good hands:
Gentle breath of yours my sails
Must fill, or else my project fails,
Which was to please. Now I want
Spirits to enforce, art to enchant,
And my ending is despair,
Unless I be relieved by prayer,
Which pierces so that it assaults
Mercy itself and frees all faults.
As you from your crimes would pardon’d be,
Let your indulgence set me free.

Julia ouviu a música mais duas vezes, aturdida tanto com a letra como
com a música. Sabia há muito que Gabriel era intenso; Grace dizia-o. E
Julia experimentara essa intensidade durante o seu primeiro encontro,
quando ele a olhara nos olhos como se ela fosse a primeira mulher que
alguma vez vira.
— Julianne?
Soltou um pequeno grito e levou uma mão à boca. Gabriel estava à sua
frente com três pequenos sacos numa mão e um ramo de íris cor de púrpura
na outra. De olhos muito abertos, removeu os auriculares das orelhas. Ele
olhou para o iPod com curiosidade e sorriu.
Julia devolveu o sorriso. Em resposta, ele inclinou-se para ela, de olhos
nos seus, e pressionou-lhe ligeiramente os lábios na face esquerda e depois
na direita. Ela julgou que ele a ia beijar na boca, por isso quando o beijo lhe
tocou o rosto sentiu-se desapontada. No entanto, uma faísca soltou-se dos
lábios dele, fazendo o seu coração acelerar. Ela corou e baixou o olhar para
as mãos.
— Bom-dia, Julianne. Ainda bem que ficaste. Dormiste bem? — A voz
de Gabriel era suave.
— Dormi bem… depois.
Ele passou a mão por trás dela para pousar os sacos e as flores em cima
do balcão de pequeno-almoço.
— Como eu. — Não fez nenhum movimento para lhe tocar, mas seguiu o
olhar dela para os seus dedos.
Julia estremeceu ligeiramente quando pensou no que ele lhe fizera aos
dedos na noite anterior.
— Tens frio?
— Não.
— Estás a tremer. — As sobrancelhas de Gabriel juntaram-se, criando
uma ruga no meio. — Estou a deixar-te nervosa?
— Um pouco.
Ele recuou para a cozinha e começou a arrumar as compras.
— O que compraste? — perguntou ela, com um gesto para os sacos.
— Bolos e uma baguete. Há uma padaria francesa à esquina que faz o
melhor pain au chocolat da cidade. E também um queijo da queijaria em
baixo, fruta e uma surpresa.
— Uma surpresa?
— Sim. — Ele sorriu e aguardou.
Ela franziu o nariz.
— Vais dizer-me o que é a surpresa?
— Se te disser, vai deixar de ser surpresa.
Ela revirou os olhos e ele riu-se.
— Baci — disse ele.
Julia fez uma pausa. Beijos?
Gabriel viu a reação dela e percebeu que o double entendre não fora
compreendido. Retirou uma coisa dos sacos e colocou-a no centro da sua
palma direita, erguendo-a como se estivesse a estender uma maçã para
tentar um cavalo.
A similaridade não foi despercebida por Julia, que olhou com o nariz
torcido para o pequeno chocolate embrulhado em papel de prata.
— Pensei que gostavas — disse ele, com uma cambiante de mágoa a
colorir-lhe a voz. — Quando o Antonio te deu um, disseste que eram os teus
preferidos.
— E são. Mas, supostamente, não devo aceitar chocolates de homens,
lembras-te? Acho que me deste uma ordem nesse sentido quando estávamos
no Lobby com a Rachel. — Julia pegou no chocolate oferecido e
desembrulhou-o avidamente, enfiando-o depois na boca.
— Eu não te dou ordens.
Ela ficou a olhar para ele enquanto mastigava e engolia o chocolate.
— Estás a brincar?
— Não.
— De que planeta saíste? Olá, o meu nome é Gabriel e venho do planeta
da não-consciência-de-ser-mandão.
Ele franziu o sobrolho.
— Muito divertido, Julianne. — Ele pigarreou e procurou-lhe os olhos.
— Fala a sério por um momento. Achas que te dou muitas ordens?
— Gabriel, é a única coisa que sabes fazer. Só tens uma forma de
discurso, que é o imperativo: faz isto, faz aquilo, anda cá. Ainda por cima,
tal como o Paul, pareces pensar que eu pertenço a um jardim zoológico. Ou
a um livro infantil.
À mera menção do nome de Paul, Gabriel ficou carrancudo.
— Alguém tinha de tratar da nossa situação de ontem. Estava a tentar
proteger-nos a ambos. E pedi-te que falasses comigo, Julianne. Tentei falar
contigo vários dias, mas tu deste-me com os pés.
— Que querias que fizesse? És uma montanha-russa emocional, e eu
queria sair dela. Nunca sei se vais ser querido e sussurrar-me qualquer coisa
que me tirará o fôlego ou dizer qualquer coisa tão maldosa que me parte…
— Ela interrompeu-se.
Gabriel pigarreou.
— Perdoa-me por ter sido mau. Não há desculpa para isso.
Ela balbuciou qualquer coisa entre dentes enquanto ele a fitava.
— Eu acho que é… difícil falar contigo, algumas vezes. Nunca sei o que
estás a pensar, e só és direta quando estás furiosa. Como agora.
Ela soltou um som de desdém.
— Não estou furiosa.
— Então preciso que fales comigo um bocadinho. — A voz dele era
novamente suave.
Gabriel arriscou e começou a passar os dedos pelos seus longos caracóis
húmidos.
— Cheiras a baunilha — sussurrou.
— É o teu champô.
— Então, achas que sou mandão?
— Sim.
Gabriel suspirou.
— É o hábito, suponho eu. Anos passados a viver sozinho tornaram-me
desajeitado, e perdi a prática de ser delicado. Mas vou tentar ter cuidado
com a maneira como falo contigo, no futuro. Quanto ao Paul e aos seus
nomezinhos, acho insultuoso que te chame coelha. Os coelhos acabam
como refeições, por isso tens de pôr um ponto final nessa história. Mas que
me dizes de gatinha? Achei que era… querido.
— Não para uma mulher de vinte e três anos, que é baixinha e quer ser
levada a sério no mundo académico.
— E se fores uma mulher de vinte e três anos, e linda, e um homem de
trinta e três anos que é profissional académico to quiser chamar porque, na
verdade, te acha verdadeiramente sexy?
Julia desviou-se.
— Não gozes comigo, Gabriel. Isso é maldoso.
— Eu nunca gozaria contigo. — Ele fez-lhe um olhar sério. — Julianne,
olha para mim.
Julia manteve os olhos no chão.
Ele esperou com alguma impaciência até ela voltar a erguer o olhar.
— Eu nunca gozaria contigo. E muito menos com uma coisa dessas.
Ela fez uma careta e desviou o olhar.
— Mas talvez gatinha seja uma alcunha de amante.
Julia corou enquanto ele continuava a arrumar as compras. Pouco depois,
Gabriel virou-se para ela.
— Foi muito importante para mim adormecer contigo nos meus braços,
ontem à noite. Obrigado.
Ela evitou-lhe os olhos.
— Olha para mim, por favor — murmurou ele.
Os olhos de ambos encontraram-se e Julia ficou surpreendida com a
expressão de Gabriel. Ele parecia preocupado.
— Tens vergonha de ir para a minha cama?
Ela abanou a cabeça.
— Lembrou-me a nossa primeira noite juntos.
— A mim também — sussurrou ela.
— Desculpa não estar cá quando acordaste esta manhã. Acordei de
madrugada. Ver-te dormir tão profundamente lembrou-me a La Scapigliata
de Da Vinci. Parecias tão serena, com a cabeça pousada no meu ombro. E
muito, muito bonita. — Debruçou-se sobre o balcão e deu-lhe um beijo
terno na testa. — Então, dormiste bem?
— Demasiado. Porque é que acendeste velas no teu quarto?
Ele passou-lhe o polegar por uma pálpebra.
— Já me tinhas dito o que pensavas da escuridão. Queria que visses o
quadro de Holiday e que me visses a mim. Não sabia o que sentirias de
passar a noite aqui. Tive medo que fugisses.
— Foi… hmm… atencioso da tua parte. Obrigada.
A mão dele deteve-se contra a sua face, enquanto os olhos penetravam os
dela, como um ferro em brasa.
— Eu sou um bom amante, Julianne, em todos os sentidos da palavra.
Quando a sua mão recuou, Julia tentou, quase em vão, recuperar fôlego.
— Diz-me porque me detestavas tanto.
— Eu não te detestava. Estava distraído e irritado durante aquele
primeiro seminário. Tu parecias-me familiar. Fiz-te uma pergunta para que
me mostrasses a cara. Quando me ignoraste, perdi a cabeça. Não estou
acostumado a ser ignorado.
Ela mordeu ligeiramente o lábio.
— Percebo que isso não seja desculpa… estou só a dar-te uma
explicação. Olhar para ti suscitou sentimentos muito fortes. Não sabia de
onde vinham, mas ressenti-me deles. Este ressentimento cresceu
rapidamente noutra coisa mais perversa. Mas a minha grosseria contigo foi
absolutamente indesculpável. — Gabriel estendeu a mão para lhe libertar o
lábio de entre os dentes. — Fui castigado por isso mais tarde. O Scott
telefonou-me para dizer que a Grace tinha morrido, e que morreu a
murmurar o meu nome, porque eu não estava presente. Disse-me que a sua
perturbação no leito da morte foi por minha culpa…
Julia tomou-lhe a mão entre as suas e, sem pensar, beijou-a.
— Tenho muita pena.
Ele levou os lábios aos dela e pressionou-os fortemente. Ficaram quietos
por uns momentos até ele começar a passar o seu peso de um pé para o
outro.
— Tenho fome — murmurou ela, interpretando o seu sinal.
— Posso dar-te de comer?
Julia anuiu, e começou a aquecer demasiado quando se lembrou de como
ele lhe dera de comer na noite anterior.
— Café com leite ou expresso? — Virou-se para a máquina de café.
— Café com leite, por favor.
Ficou parada por um momento, a olhá-lo, antes de ir observar mais de
perto as íris que ele comprara.
— Podias pô-las em água, por favor? Há uma jarra de cristal em cima do
aparador na sala de jantar. Podes retirar os jacintos de ontem à noite ou
deixá-los onde estão.
Ela dirigiu-se para o buffet, admirando novamente a sua beleza de ébano,
e pegou na jarra vazia.
— Ouvi a tua música ontem à noite. Era linda.
— Acho a música clássica tranquilizadora. Espero que não te tenha
incomodado.
— Não. Porque escolheste íris?
— Fleur-de-lis — disse ele simplesmente, apresentando-lhe o seu café
com leite, que servira numa tigela ao estilo parisiense. — E sei que a tua cor
preferida é a púrpura.
— São as minhas flores preferidas — observou ela timidamente, mais
para si mesma do que para ele.
— As minhas também, provavelmente porque simbolizam Florença.
Mas, para ti, penso que a associação tem um significado mais profundo. —
Piscou-lhe o olho impertinentemente e começou a preparar o pequeno-
almoço.
Julia bufou ligeiramente. Sabia a que ele se referia: a íris era um símbolo
de Maria na Idade Média, por isso ficara associada à virgindade. Ao
oferecer-lhe íris, Gabriel estava a saudar a sua pureza. O que era uma coisa
estranha para um aspirante a amante fazer, ela tinha de o admitir.
Talvez ele esteja a falar a sério sobre sermos amigos, afinal de contas.
Levando as flores e o café consigo, ela foi para a sala de jantar. Sentou-se
a bebericar da sua tigela enquanto tentava planear o que lhe diria.
Ele juntou-se a ela brevemente, trazendo o pequeno-almoço e sentando-
se na cadeira ao seu lado à cabeceira da mesa.
— Buon appetito.
Julia concluiu brevemente que estava a comer melhor na casa de Gabriel
do que alguma vez comera fora de Itália. À sua frente estava um prato de
fruta fresca, pain au chocolat e fatias de baguete, queijo, nomeadamente
Brie, Mimolette e Gorgonzola. Ele até decorara os pratos com salsa e gomos
de laranja.
Gabriel ergueu a sua flûte de champanhe e esperou que ela fizesse o
mesmo.
— Estes são Bellinis, não Mimosas. Espero que gostes.
Tocaram os copos e Julia provou. Sabe a pêssego efervescente, pensou
ela. Era tão melhor do que sumo de laranja. Mas depois perguntou-se
porque decidira ele beber outra vez.
— És muito bom nisto — comentou.
— Bom em quê?
— Jogos sedutores com a comida. De certeza que as tuas convidadas
noturnas não se querem ir embora.
Gabriel pousou o garfo com alguma rudeza no prato e limpou os lábios
com o seu guardanapo de linho.
— Não tenho o hábito de oferecer refeições a convidadas noturnas. E
muito menos desta maneira. — Olhou-a carrancudo. — Pensei que era
óbvio que tu és diferente… que te estou a tratar de maneira diferente. —
Abanou a cabeça. — Talvez não.
— Disseste que tínhamos de conversar — injetou ela, para mudar de
assunto.
— Sim. — Ele olhou-a por um momento. — Tenho algumas coisas para
te perguntar e tenho algumas coisas para te dizer.
— Não concordei com uma inquisição.
— Não é propriamente uma inquisição. Algumas perguntas,
primariamente porque quando te conheci, não estava inteiramente lúcido.
Por isso perdoa-me se desejo ter uma ideia mais clara do que realmente
aconteceu. — O tom de Gabriel era um pouco sarcástico.
Ela espetou um morango com o garfo e levou-o à boca. Muito bem. Ele
que faça as perguntas. Também tenho algumas para lhe fazer, e não vão ser
bonitas.
— Antes de começarmos, penso que devias concordar com algumas
regras básicas. Eu queria falar contigo sobre o passado antes de discutirmos
o presente ou o futuro. Pode ser?
— Concordo.
— E prometo que o que me disseres será considerado estritamente
confidencial. Espero que tenhas essa mesma cortesia comigo.
— Claro.
— Há alguma regra que queiras estabelecer?
— Hmm, só que digamos a verdade um ao outro.
— Absolutamente. Agora, que idade tinhas quando nos conhecemos?
— Sou da mesma idade que a Rachel — começou ela, evasivamente, e
quando ele a olhou com severidade, acrescentou: — Dezassete.
— Dezassete?
Gabriel praguejou várias vezes e bebeu um longo gole do seu Bellini.
Estava claramente abalado com aquela revelação, o que a surpreendeu
bastante.
— Porque me foste visitar naquela noite?
— Não fui. Tinha sido convidada para jantar, mas, quando cheguei, a
Rachel e o Aaron estavam a fugir pela porta. Ouvi um barulho e encontrei-
te no alpendre.
Gabriel pareceu pensar nisto por um momento.
— Sabias quem eu era?
— Eles falavam de ti a toda a hora.
— Sabias como eu era fodido?
— Não. Nunca ninguém disse nada mau a teu respeito, pelo menos na
minha frente. Mesmo depois. Só diziam coisas boas.
— O que aconteceu na manhã a seguir?
Aquela era a parte de que Julia não queria falar. Ignorou a pergunta dele e
começou a comer o seu bolo, sabendo que ele não esperaria que
respondesse enquanto tivesse a boca cheia.
— Isto é importante, Julianne. Quero saber o que aconteceu. A minha
memória da manhã seguinte é um pouco confusa.
Os olhos dela dardejaram, e ela engoliu em seco.
— A sério? Bem, deixa-me esclarecer-te. Acordei antes do nascer do Sol,
sozinha, no meio do bosque. Abandonaste-me ali. Fiquei aterrada, por isso
peguei no cobertor e fugi. Mas não me lembrava do caminho por onde
tínhamos vindo, e ainda estava escuro. Andei perdida histericamente
durante duas horas até encontrar finalmente o caminho de volta para a casa
dos teus pais. — Julia começou a tremer. — Pensei que nunca encontraria o
caminho de volta.
— Então foi aí que tu foste — sussurrou ele.
— De que é que estás a falar?
— Eu não te abandonei.
— Então chamas-lhe o quê?
— Devo ter acordado um pouco antes de ti. Estavas a dormir nos meus
braços, e eu não quis acordar-te, mas tinha de… aliviar-me. Por isso afastei-
me. Depois parei para fumar um cigarro e apanhar umas maçãs para o nosso
pequeno-almoço. Quando voltei, tinhas desaparecido. Voltei para casa, mas
não estavas lá. Assumi que tinhas ido embora e subi as escadas e adormeci
no meu antigo quarto.
— Assumiste que me tinha ido embora?
— Sim. — Ele olhou-a firmemente.
— Chamei o teu nome, Gabriel! Gritei por ti.
— Não te ouvi. Estava de ressaca, e talvez me tenha afastado um pouco
de mais.
— Não fumaste quando estavas comigo. — Ela parecia cética.
— Pois não. E parei de fumar pouco depois.
— Porque é que não tentaste encontrar-me?
A culpa enevoou-lhe os olhos, e ele virou a cara.
— A minha família acordou-me e exigiu que eu lidasse com as
consequências da noite anterior. Quando perguntei quem era a Beatriz, o
Richard disse-me que estava a imaginar coisas.
— E a Rachel?
— Fui-me embora antes de ela regressar. E recusou-se a falar comigo
durante meses.
— Não me mintas, Gabriel. Eu trouxe o teu casaco de volta. Dobrei-o e
deixei-to em cima do cobertor no alpendre. Era uma pista. E ninguém viu a
minha bicicleta?
— Eu não sei o que viram. A Grace deu-me o meu casaco e ninguém te
mencionou a ti nem ao teu nome, não que eu o tivesse reconhecido. Era
como se fosses um fantasma.
— Como podias ter julgado que se tratara de um sonho? Não estavas
assim tão bêbado.
Ele fechou os olhos e cerrou os punhos. Julia viu os tendões do braço
dele tornarem-se salientes.
Gabriel abriu os olhos mas manteve-os fixos na mesa.
— Porque estava de ressaca e confuso, e era viciado em cocaína.
Bonc.
Foi o som do conto de fadas de Julia a bater contra a impiedosa parede da
realidade. Os seus olhos cresceram, e ela inalou bruscamente.
— A Rachel nunca te contou o que precipitou aquela discussão? Quando
o Richard me foi buscar ao aeroporto em Harrisburg, percebeu que eu
estava metido nalguma coisa. Revistou-me o quarto antes do jantar e
descobriu o meu material. Quando me confrontou, eu explodi.
Julia fechou os olhos e pôs a cabeça entre as mãos.
Ele ficou sentado muito quieto, à espera de a ouvir.
— Cocaína — murmurou ela.
Gabriel estremeceu na sua cadeira.
— Sim.
— Passei a noite no bosque, sozinha, com um viciado em cocaína de
vinte e sete anos que estava pedrado e bêbado. Que rapariga estúpida,
estúpida que eu sou.
Ele cerrou os dentes.
— Julianne, tu não és estúpida. Eu é que lixei tudo. Nunca te devia ter
levado para ali na minha condição.
Ela expirou lentamente e os seus ombros começaram a tremer.
— Olha para mim, Julianne.
Ela abanou a cabeça.
— Vi o teu pai naquela manhã.
Julia olhou para ele.
— Viste?
— Sabes como é a vida numa terra pequena. Os mexericos começaram
quando o Richard levou o Scott ao hospital e nenhum deles quis dizer como
foi que ele se feriu. O teu pai ouviu falar do assunto e apareceu para saber
se podia ajudar nalguma coisa.
— Ele nunca mencionou o assunto.
— O Richard e a Grace estavam embaraçados. De certeza que o teu pai
queria protegê-los do falatório da terra. Uma vez que ninguém senão eu e tu
sabíamos o que tinha acontecido entre nós… — Interrompeu-se, depois
abanou a cabeça. — Porque é que não contaste à Rachel?
— Estava traumatizada. E humilhada.
Gabriel estremeceu. Estendeu-lhe a mão, os seus olhos a queimar os dela.
— Não te lembras do que aconteceu entre nós?
Julia retirou a mão.
— Claro que me lembro! É por essa razão que tenho estado tão lixada.
Às vezes recordava essa noite e acreditava no que disseste. Tentava
convencer-me que devias ter tido uma razão para te ires embora.
»Outras vezes, só conseguia pensar na maneira como me abandonaste, e
tenho pesadelos em que ando perdida no bosque. Mas sabes o que é mais
doentio nisto tudo? É que eu tinha esperança que regressasses. Durante
anos, esperei que aparecesses à minha porta e me dissesses que querias ficar
comigo. Que falavas a sério quando me disseste que estavas feliz por me ter
encontrado. Não é patético?
— Isso não é patético. Concordo que possa parecer que te abandonei,
mas juro que não foi o que aconteceu. E, acredita em mim, se tivesse
pensado por um momento que eras real e vivias em Selinsgrove, eu teria
aparecido à tua porta. — Ele pigarreou e Julia sentiu a reverberação do
joelho dele a subir e a descer debaixo da mesa. — Sou um viciado. É isto
que eu sou. Tenho uma necessidade de controlar as coisas e as pessoas, e
essa necessidade nunca vai desaparecer.
— Estás metido nalguma coisa agora?
— Claro que não! Achas que te faria isso?
— Se és viciado, és viciado. Se eu estou aqui ou não, não faz qualquer
diferença.
— Faz-me diferença a mim.
— As personalidades dependentes conseguem agarrar-se a qualquer
coisa: drogas, álcool, sexo, pessoas… e se ficares viciado em mim?
— Já estou viciado em ti, Beatriz. Só que tu és bem mais perigosa do que
cocaína.
As sobrancelhas de Julia ergueram-se de surpresa.
Ele voltou a agarrar-lhe a mão e acariciou as veias que se destacavam
contra a pele pálida do seu pulso.
— Estou a confessar-me perante ti. Eu sou destrutivo. Sou
temperamental. Tenho mau feitio. Algumas destas coisas têm a ver com o
meu vício e algumas delas têm a ver com o meu… passado.
»O que é que há de errado comigo para pensar tão bem de ti que a minha
única explicação para a tua existência foi que ou eras o produto de uma
mente desesperada ou a coroa da criação de Deus?
As palavras e o rosto de Gabriel eram tão intensos que Julia teve de
recuar. A combinação da voz dele com a sensação dos seus longos dedos
frescos a acariciarem as suas veias… Receou que a sua pele se incendiasse
e toda ela se desintegrasse numa pilha de cinzas.
— Ainda tomas drogas?
— Não.
— Socialmente?
— Não. Depois do meu comportamento nojento em Selinsgrove, a Grace
convenceu-me a procurar ajuda. Eu estava a planear matar-me… só
precisava de dinheiro para deixar os meus assuntos resolvidos. A minha
noite contigo mudou tudo. Quando me disseram que não havia ninguém de
nome Beatriz, assumi que eras uma alucinação ou um anjo. Fosse como
fosse, pensei que alguém, Deus, talvez, tivesse mostrado misericórdia por
mim, enviando-te para me salvar. Lo seme di felicità messo de Dio nell’
anima ben posta.
Julia fechou os olhos com o som das palavras de Dante no Convivio. A
semente da felicidade colocada por Deus numa alma bem disposta.
Gabriel pigarreou.
— Scott concordou em não apresentar queixa se eu entrasse de imediato
em tratamento. Por isso, o Richard levou-me para Filadélfia nesse mesmo
dia e eu dei entrada num hospital. Depois de fazer a minha desintoxicação
inicial, ele levou-me de volta para Boston e pôs-me em reabilitação, para
poder ficar mais perto do meu… trabalho. — Ele agitava-se na sua cadeira.
Julia abriu os olhos, com um ar perturbado no rosto.
— Porque é que te querias matar, Gabriel?
— Não te posso dizer.
— Porque não?
— Não sei o que aconteceria se trouxesse aqueles velhos demónios de
volta, Beatriz.
— Ainda tens instintos suicidas?
Ele pigarreou.
— Não. Parte da minha depressão era causada pelas drogas. A outra parte
era causada por… outros fatores na minha vida com que tenho tentado lidar.
Mas sabes tão bem como eu que uma pessoa com instintos suicidas é uma
pessoa que perdeu a esperança. Eu encontrei a minha esperança quando te
encontrei.
Os olhos dele ardiam intensamente, e Julia decidiu mudar de assunto.
— A tua mãe era alcoólica?
— Sim.
— E o teu pai?
— Eu não falo dele.
— A Rachel falou-me do dinheiro.
— É a única coisa boa que alguma vez veio daquele lado — grunhiu
Gabriel.
— Isso não é verdade — disse Julia em voz baixa.
— Porquê?
— Porque ele te fez, claro.
O rosto de Gabriel suavizou-se de imediato, e ele pressionou os lábios
contra as costas da mão dela.
— O teu pai era alcoólico? — perguntou ela.
— Não sei. Ele era administrador de uma empresa em Nova Iorque e
morreu de ataque de coração. Não quis descobrir mais nada acerca dele.
— Tu és alcoólico?
— Não.
Julia dobrou cuidadosamente o seu guardanapo de linho com dedos a
tremer e afastou a cadeira da mesa.
— Ainda bem que não tomas drogas e ainda bem que estás em
recuperação. Mas eu não me envolverei com um alcoólico. A vida é
demasiado curta para ficar presa a esse tipo de miséria.
Ele olhou-a firmemente, procurando-lhe os olhos.
— Concordo. Mas se viesses a passar tempo comigo, perceberias que não
sou alcoólico. E eu juro não voltar a embebedar-me. É uma infelicidade que
apenas me tenha embebedado uma vez nos últimos seis meses e que o
tenhas testemunhado por acaso.
— A minha mãe entrava e saía da recuperação várias vezes, e nunca
conseguia aguentar-se. O que é que acontece se voltares a consumir drogas?
Para não mencionar o facto de teres esta visão ilusória de Beatriz. Eu não
sou Beatriz, Gabriel. Tu queres um ideal, uma imagem mental induzida
pelas drogas, não a mim.
— Estou limpo há seis anos. Não acabei propriamente de sair da
recuperação. No entanto, eu sei que sou profundamente, profundamente
problemático. Mas quero conhecer-te, apenas a ti, tal como és. Quero que
sejas tu própria, e, sim, Julianne, eu sei que és mais do que um sonho. A tua
realidade é bem mais bonita e sedutora do que qualquer sonho. Eu preferir-
te-ia acima de qualquer sonho.
Uma lágrima correu pelo rosto dela, e Julia limpou-a à pressa.
— Tu não me conheces. Nunca me conheceste. Dormiste com a Beatriz
de Dante nos braços, naquela noite, a imagem dos seus escritos e da pintura
de Holiday, não comigo.
Gabriel abanou a cabeça.
— O que senti era real. O que fiz era real.
— Pensaste que era real, mas isso faz parte da ilusão.
— Era real, Julia. Era tudo. Assim que te toquei, percebi… e quando te
voltei a tocar… Recordei-me de ti. O meu corpo recordou-se de ti. Foi
apenas a minha mente consciente que se esqueceu.
— Já não sou aquela rapariga. E a mulher que sou tu desprezaste de
imediato.
— Isso não é verdade. Transformaste-te numa mulher maravilhosa.
— Tu queres uma gatinha de estimação.
— Não, Beatriz.
Ela falou por entre os dentes cerrados.
— Para de me chamar isso.
— Desculpa, Julianne, eu sei que te magoei. Sei que tenho um lado
sombrio. Deixas-me mostrar que consigo ser bom? Muito, muito bom?
— É demasiado tarde. Não consigo. — Embora a magoasse, dirigiu-se
para a porta principal, agarrando na sua mochila e no casaco pelo caminho.
— E a noite passada? — perguntou ele, seguindo-a. — Significou
alguma coisa para ti?
— O que é que devia ter significado? Diz-me! — Ela encostou a mochila
ao peito e recuou contra a parede.
Ele colocou-lhe as mãos de cada lado dos seus ombros e aproximou-se
mais.
— Tenho de te explicar? Não sentiste?
Levou o rosto ao dela, os lábios a centímetros da sua boca. Ela sentiu-lhe
o hálito quente na pele. Estremeceu.
— Senti o quê?
— O teu corpo e o meu juntos. Vieste ter comigo ontem à noite, Julianne.
Vieste para a minha cama. Porque é que fizeste isso? Porque é que me
disseste que não tinhas conseguido ficar longe de mim? Porque somos
almas gémeas, tal como Aristófanes descreveu… uma alma em dois corpos.
Falta-te a minha parte. Tu és o meu bashert.
— Bashert? Sabes sequer o que isso significa? Bashert é bashert,
Gabriel; destino é destino. Pode significar tudo o que quiseres, e não tem de
me significar a mim.
Ele sorriu-lhe abertamente.
— O teu conhecimento linguístico surpreende-me constantemente.
— Conheço essa palavra.
— Claro, minha querida. Porque és inteligente. — Ele levou as pontas
dos dedos ao pescoço dela e acariciou-o suavemente.
— Gabriel… para. — Desviou-o de si para conseguir pensar com clareza.
— Estás limpo, mas não deixas de ser um viciado. Eu sou filha de uma
alcoólica. Não vou deixar que isto aconteça.
— Eu não te mereço. Sei isso. Conosco i segni dell’antica fiamma. Senti-
o na primeira vez que te peguei na mão. Na primeira vez que te beijei. E
estava tudo presente ontem à noite… cada sentimento, cada memória, cada
sensação que experimentei antes estava presente. Era real. Olha para mim e
diz que não significou nada para ti, e eu deixo-te ir embora.
Julia fechou os olhos para bloquear os rogos dele, a sua asserção de que
conhecia os sinais da antiga chama.
— Não consegues, pois não? A tua pele lembra-se de mim, tal como o
teu coração. Mandaste-os esquecer, mas eles não conseguem. Lembra-te de
mim, Beatriz. Lembra-te do teu primeiro.
Os lábios dele encontraram o seu pescoço, e ela sentiu a pulsação
acelerar sob a sensação. O seu corpo era traidor; não mentia. Não queria
ouvir a razão. Ele podia ter-lhe pedido qualquer coisa naquela posição, e ela
teria concordado. A ideia deixou-a desesperada.
— Por favor, Gabriel.
— Por favor, o quê? — sussurrou ele, percorrendo-lhe o pescoço com
beijos suaves e parando finalmente para poder sentir o seu sangue vital fluir
debaixo dos seus lábios.
— Por favor, deixa-me ir.
— Não consigo. — Arrancou-lhe a mochila e o casaco das mãos e
deixou-os cair no chão.
— Não confio em ti.
— Eu sei.
— Vais destroçar-me, Gabriel, e isso vai ser o meu fim.
— Nunca.
Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos e, no momento em que ela fechou os
olhos, parou. Julia esperou, aguardando que a suave humidade dos lábios
dele se ligasse aos seus, mas isso não aconteceu. Esperou. Depois abriu os
olhos.
Os olhos de Gabriel eram enormes, suaves e calorosos, e estavam fixos
nos seus. Ele sorria. Começou por acariciar-lhe a cara, pequenas carícias
aqui e ali, a explorar cada curva, cada linha, como se as estivesse a
memorizar. Depois moveu-se para o pescoço dela, usando a ponta de um só
dedo da mão direita para viajar para cima e para baixo. Julia estremeceu.
Gabriel levou-lhe os lábios ao ouvido.
— Descontrai-te, minha querida. — Mordiscou-lhe o lóbulo da orelha e
roçou o rosto no seu pescoço, provocadoramente. — Deixa-me mostrar-te o
que consigo fazer quando vou com calma.
A segurar-lhe o rosto entre as mãos, roçou os lábios pela testa dela, pelo
nariz, pelas maçãs do rosto, pelo queixo. Só quando a viu fechar os olhos
pela segunda vez, é que lhe cobriu a boca com os lábios. Mas, então, Julia
estava já sem fôlego.
Assim que os seus lábios se uniram, deu-se uma descarga de sangue,
calor e energia. Mas Gabriel teve cuidado e não acelerou. Os seus lábios
roçavam os dela, para a frente e para trás, a pele de ambos a gemer com a
suave fricção. Mas ele não abriu a boca. As mãos subiram ao cabelo dela,
agarraram-no suavemente, massajaram-lhe o couro cabeludo e flutuaram
para baixo.
Julia foi menos branda quando lhe agarrou a nuca, puxando-o e
entrelaçando os dedos no seu cabelo. As suas bocas continuaram coladas, a
saborear cada milímetro. A língua dele assomou, e ele passou-a
langorosamente sobre o lábio superior dela, saboreando-a pouco e pouco
antes de lhe sugar o lábio inferior entre os seus.
Era tentador. Era excitante. Era o beijo mais lento que alguma vez dera. E
fez com que o seu coração batesse rapidamente. Quando a ouviu voltar a
gemer contra a boca dele, ele inclinou-lhe a cabeça para cima para que ela
se abrisse. Mas não teve pressa. Esperou que o seu queixo abrandasse, e
quando ela não conseguiu aguentar mais e a sua própria língua foi
hesitantemente ao encontro da dele, só então se permitiu aceitar o seu
convite.
Ela teria respondido com um ritmo fervilhante, mas Gabriel controlou o
beijo, e desejava beijá-la suavemente. Mansamente. Ociosamente. Levou
meio século a fazer as suas mãos viajarem do rosto dela até aos lados do seu
pescoço, deixando-os a tocar-lhe os ombros. E mais meio século para essas
mesmas mãos deslizarem ao lado da sua coluna, e para debaixo das suas
roupas, para procurarem pele nua. Durante todo este tempo, ia explorando
lentamente a boca dela como se nunca voltasse a ter uma segunda
oportunidade.
Conteve a respiração e gemeu quando as suas mãos encontraram a pele
de galinha que descobrira na noite anterior. Já pensara nela como em
território virgem, encontrado pelas suas explorações, embora não tivesse
direito, qualquer direito a reclamá-lo.
Os seus dedos deslizaram-lhe pela pele enquanto Julia gemia e se
agarrava a ele. Os seus sons de impotência eram mais eróticos do que
qualquer gemido libertino que alguma vez lhe enchera os ouvidos.
Penetravam-no e inflamavam-no. Depois estava a pressionar-se contra ela, a
responder às curvas suaves e delicadas com tendão e aço, e trocou de lugar
subtilmente para serem as suas costas a encostar-se contra a parede, pois
não queria encurralá-la, fazê-la sentir-se presa. Em vez disso, deixou que
ela o prendesse.
Julia respirava a respiração dele, quente e húmida no interior da sua boca.
Ele era o seu oxigénio. Não conseguia parar de o beijar o tempo suficiente
para inspirar verdadeiramente, e a sua cabeça começou a flutuar. Isso
tornava a sensação dos lábios dele ainda mais intensa, por isso não o
combateu. Limitou-se a deixar-se ir, a lamber, a sugar, a mover-se…
Gabriel recuou um pouco, interrompendo o beijo.
Deixou os seus polegares percorrerem-lhe a curva de pele nua na cintura.
Julia inalou rapidamente, e ele abraçou-a com força, envolvendo-a com os
braços e sentindo os seios dela pressionados contra si.
— Precisas de te acostumar aos meus lábios, Julia, porque eu tenciono
beijar-te muito. — Ele beijou-lhe os cabelos e sorriu-lhe, com um ar
verdadeiramente feliz.
Quando ela conseguiu reencontrar a voz, ouviu-a tremer.
— Gabriel, não fiz nenhuma promessa. Não fiz nenhum acordo. Um
beijo não muda isso.
O sorriso desapareceu, mas ele continuou a abraçá-la com força. Ergueu
um dedo e afastou-lhe uma madeixa de cabelo da cara.
— Dá-me só uma oportunidade. Podemos ir devagar e tentar curar-nos
um ao outro.
— Ontem à noite falámos de ser amigos. Os amigos não se beijam assim.
Ele riu-se.
— Podemos ser amigos. Podemos seguir o modelo do amor cortês, se
quiseres. Só vou ter de me lembrar disso na próxima vez que te beijar. E tu
também.
Julia desviou o olhar.
— Não confio em ti o suficiente para ser qualquer outra coisa. E, mesmo
que confiasse, estás com a rapariga errada. Vais ficar amargamente
desapontado comigo.
— De que é que estás a falar?
— Nunca ficarás satisfeito apenas comigo, e vais deixar-me assim que
compreenderes isso mesmo. Por isso, tem pena de mim e escolhe alguém
mais sexualmente compatível, antes que um de nós acabe magoado.
Ela viu quando a cor no rosto dele se aprofundou e os seus olhos
começaram a arder. Esperou vê-lo explodir.
— O que foi que ele te fez?
Não era a pergunta de que estava à espera.
— Não sei de que estás a falar.
Gabriel olhou-a cuidadosamente, para medir a sua expressão. Desviou-se
da parede e endireitou os ombros, erguendo-se a toda a sua altura.
— Não sei o que ele te fez para te fazer sentir tão mal contigo própria,
mas eu não sou ele. A nossa noite no pomar não te demonstrou que a nossa
ligação não é baseada em sexo? — Acariciou-lhe o cabelo por um momento
com uma suavidade que desmentia a ferocidade do seu tom de voz. — Era
capaz de o matar por ter feito isto contigo — sussurrou-lhe. — Por ter
esmagado o teu espírito.
»Não vou negar que tenho estado longe de ser monógamo. Mas quero
algo mais, quero qualquer coisa real. E sei que tu queres o mesmo. Quais
são as hipóteses de o teu próximo namorado ser virgem? Quase nulas. A tua
autoestima será um problema com qualquer pessoa com quem andes, não
apenas comigo. E qualquer homem capaz de te deixar por seres
sexualmente inexperiente não merece a tua tristeza. Tens de ter fé, Julia, e
tens de ter esperança. Mesmo que não tenhas qualquer esperança para nós
os dois, tens de ter esperança para ti. Senão, nunca deixarás que alguém te
ame.
— Nem sequer me conheces.
— Sei mais a teu respeito do que julgas, e o resto quero aprender. Ensina-
me, Beatriz. Candidato-me como teu aluno na tua universidade. Ensina-me
a cuidar de ti.
— Por favor, Gabriel. Fala a sério!
— Eu estou a falar a sério. Há muitas coisas que não sabemos a respeito
um do outro. Coisas que quero muito descobrir e explorar.
— Não quero ser partilhada.
Ele rosnou.
— Não tenho o hábito de partilhar o que me é precioso. Não vou permitir
que mais nenhum homem ponha as mãos em cima de ti, e isso inclui o Paul
e qualquer outro Fornicador-de-Anjos por aí.
— E também não te vou partilhar.
— A mim?
— Sim.
— Bem, isso nem é preciso dizer.
— É, sim.
— O que é que queres dizer com isso? — bufou ele.
— Eu esperaria que não dormisses com ninguém, mesmo enquanto eu
estou… a decidir. Como demonstração de boa-fé.
— Combinado.
Julia riu-se.
— Dizes isso como se fosse fácil! Estás disposto a desistir de toda a tua
companhia feminina só pela possibilidade de alguma coisa comigo? Não
acredito em ti.
— Ganho muito, muito mais do que perco, acredita. E tenciono fazer-te
ver isso mesmo, vez após vez, após vez. — Aproximou-se e beijou-lhe o
rosto.
— A Paulina… — murmurou ela.
Gabriel continuou a beijá-la, foi descendo até ao ponto onde o pescoço
dela se curvava até ao ombro.
— Não te preocupes com isso.
— Não te vou partilhar com ela.
— Não vais ter de o fazer. — Ele soava impaciente.
— A Paulina é tua mulher?
Ele recuou e fixou-a com um olhar de pedra.
— Claro que não. Por quem me tomas?
— Ex-mulher?
— Julianne, para com isso. Não, não é minha ex-mulher. Fim de
conversa.
— Quero saber quem é.
— Não.
— Porquê?
— Por razões que prefiro não discutir. Já te disse que não durmo com ela
nem vou dormir. Isso deve ser suficiente para ti.
— E a m-a-i-a?
O rosto dele endureceu.
— Não.
— Eu vi a tatuagem no teu peito, Gabriel. Vi as letras.
Ele cruzou os braços.
— Não posso.
— Então, eu também não posso. — Ela baixou-se para pegar na mochila
e casaco.
Ele deteve-a.
— Julianne, diz-me quem te fez sentir tão insegura contigo mesma e as
tuas capacidades sexuais. Foi o Simon?
Ela retraiu-se.
— Diz-me.
— Não digas o nome dele perto de mim.
— Foste tu que o disseste. Disseste o nome dele enquanto estavas a
dormir. Parecias perturbada. Conta-me.
— Não.
— Porque não?
— Porque me faz sentir mal — sussurrou ela, rogando-lhe em silêncio
que mudasse de assunto.
Uma visão, negra e perturbadora, começou lentamente a invadir a mente
de Gabriel. E, uma vez lá dentro, Gabriel não a conseguiu expulsar.
— Julianne, ele não… não te forçou, pois não?
Ela inclinou a cabeça.
— Não, Gabriel. Eu sou virgem.
Ele parou por um momento e expirou lentamente.
— Continuarias a ser virgem mesmo que ele te tivesse forçado. Serias
virgem para mim.
A voz dele era tão dorida e sincera que o coração dela quase se quebrou
sob o seu peso.
— Isso é muito nobre da tua parte. Mas não fui violada.
Ele fechou os olhos por um segundo e respirou fundo.
— Ambos temos segredos que não queremos revelar. Não te mentirei,
mas não te posso dizer tudo. Hoje não. E, com base no que vejo nos teus
olhos, sei que também me escondes alguns segredos muito dolorosos. Mas
eu aceito isso. Não te vou pressionar a falar sobre eles. — Pôs-lhe o braço
em volta da cintura e puxou-a contra si.
— Então, vamos ter segredos um do outro? — Ela soava espantada.
— Por enquanto, sim.
— Ainda há o facto de eu ser tua aluna.
Ele beijou-a de novo para a impedir de dizer mais alguma coisa.
— Esse é outro segredo que teremos de manter. Mas, querida, não quero
ter o resto da nossa conversa neste maldito corredor. Por favor, volta para a
mesa e termina o teu pequeno-almoço. Podemos conversar enquanto
bebemos o café ou podemos simplesmente comer em silêncio. Mas, por
favor, não te vás embora. Por favor.
Os olhos de Julia dardejaram para a porta.
— Preciso de saber o que sentes por mim, Gabriel — começou ela,
hesitantemente. — Preciso de saber que isto não é uma brincadeira para ti.
Gostas de mim, pelo menos? Do meu eu real?
Ele fez-lhe um olhar atónito.
— Claro que gosto de ti. E quero conquistar o teu afeto. Onde iremos
depois depende de ti.
Ela ergueu os dedos hesitantes para lhe acariciar o cabelo. Ele fechou os
olhos e descontraiu sob aquele toque, inspirando e expirando
profundamente. Quando a sentiu baixar a mão, voltou a abrir os olhos, e
Julia viu a fome dentro deles.
Gabriel sorriu, e a fome foi substituída por uma outra coisa.
Esperança. A visão de esperança no rosto de Gabriel fez com que as
lágrimas chegassem.
— Não foi assim que o imaginei — chorou ela, e limpou a face com as
costas da mão. — Encontrar-te é tão diferente do que sonhei. E tu nem
sequer és quem eu julguei.
— Eu sei. — Ele envolveu-a nos braços e beijou-lhe suavemente a testa.
— Tinha uma pancada por ti, quando tinha dezassete anos, Gabriel. A
minha primeira verdadeira paixão. E nem sequer eras tu. Desperdicei a
minha vida toda numa ilusão.
— Desculpa por te ter desapontado. Quem me dera ser o cavaleiro, em
vez do dragão. Mas não sou. — Recuou para a poder olhar profundamente
nos olhos. — Depende tudo de ti. Podes salvar-me ou banir-me com uma
única palavra.
Julia escondeu o rosto contra o peito dele e perguntou-se se alguma vez
tivera escolha.
Capítulo Dezoito

Paul, olá. Desculpa. Não ouvi a campainha. Avariada? Emerson ralhou comigo mas não vou
ter de desistir do seminário (ufa). Tenho de arranjar novo orientador. Estou a tratar disso.
Falamos depois & obrigada, Julia

P aul releu, confuso, a mensagem de texto que acabara de receber de


Julia. Uma campainha avariada? Parecia conveniente. Não sabia se ela
o estava a despachar por se sentir constrangida, depois do que se passara
com Emerson, ou por alguma outra razão. Em qualquer dos casos, não tinha
tempo para a procurar e descobrir o que se passava; Emerson enviara-lhe
por e-mail uma lista de livros que queria que fossem requisitados da
biblioteca e entregues no seu escritório até à uma da tarde.
Enviou a Julia uma resposta breve, dizendo que ficava contente por saber
que ela estava bem, e caminhou rapidamente do seu apartamento até
Robarts Library, abanando a cabeça.

J ulia sentara-se voltada para as costas do sofá de pele, o queixo


repousando sobre os braços cruzados. As janelas de Gabriel iam do chão
ao teto, e a vista que ofereciam era impressionante. Da posição em que se
encontrava, Julia via a baixa da cidade e parte do lago Ontário. As árvores
tinham mudado de cor e estavam agora matizadas de dourado e amarelo e
brilhos laranja e vermelhos. Lembravam a Julia algumas das paisagens
canadianas que Paul a levara a ver à Galeria de Arte de Ontário.
Oferecera-se para ajudar Gabriel a lavar a louça do pequeno-almoço, mas
ele nem quisera ouvi-la. Beijara-a na testa e pedira-lhe que relaxasse, como
se relaxar fosse uma opção. O horizonte de Toronto era algo de belo onde
pousar a vista, enquanto recordava uma e outra vez a conversa que tivera
com Gabriel, tentando ligá-la aos encontros anteriores.
Como pudera ter sido tão cega? E porque lhe tinham os Clarks escondido
a dependência de Gabriel? Sempre a haviam tratado como um membro da
família. Mas nem mesmo Rachel tivera uma palavra sobre o assunto, a não
ser que se referisse a isso quando mencionara a escuridão de Gabriel.
Falariam os Clarks sempre em metáforas, como os poetas metafísicos? Julia
teria precisado de umas aulas de crítica literária para interpretar as suas
alusões.
Gabriel encostou-se à lareira, observando-a. Parecia extraordinariamente
à vontade, empoleirada no seu sofá, olhando pela janela como um gato. Mas
os seus ombros tensos telegrafavam preocupação. Sentou-se ao lado dela,
deixando propositadamente um espaço salutar entre ambos. Vendo que ela
não se movia um centímetro para se aproximar, nem sequer para o olhar,
estendeu-lhe a mão.
— Por favor. — Sorriu.
Julia estendeu-lhe uma mão relutante e viu-se puxada para junto dele.
Gabriel rodeou-a com ambos os braços, beijou-lhe o cabelo.
— Assim está melhor.
Ela suspirou e fechou os olhos.
— Confortável? — perguntou-lhe.
— Sim.
Gabriel sentiu o corpo dela relaxar. Depois da conversa que tinham tido,
admirava-o que Julia conseguisse relaxar com ele.
— Quando foi a última vez que alguém te abraçou assim? — Começou a
afagar-lhe o cabelo distraidamente, quando, na verdade, estava tudo menos
distraído.
— Na noite passada.
— Acho que me lembro — murmurou Gabriel, com uma risadinha. — E
antes disso?
— Não me lembro. — O tom de Julia era defensivo, e ele optou por não
insistir.
Provavelmente é ávida de afeto físico. As mães alcoólicas não
conseguem cuidar devidamente dos filhos. E aquele tipo, o Simon, não
devia abraçá-la… a não ser quando estivesse a tentar despi-la.
Só a ideia deixou-o furioso. A ideia de que alguém pudesse tratá-la com
tão pouco carinho. Sabia que a ligação física que tinham a acalmava, tal
como o acalmava a ele. E isso levava-o a crer que Julia não tinha grande
experiência de contacto físico positivo.
— Sabe bem? Eu abraçar-te assim? — sussurrou entre o cabelo dela.
— Sim.
— Ótimo. — E, para acentuar o efeito, afastou-lhe o cabelo da cara,
puxando para trás alguns fios que lhe caíam sobre a face.
— És tão linda — segredou-lhe. — Tão encantadora.
Permaneceram assim sentados durante algum tempo, até que Julia
decidiu fazer uma pergunta a respeito de algo que a estava a intrigar.
— A fotografia que tinhas sobre a cama, aquela em que o homem está a
beijar o ombro da mulher… Onde é que a arranjaste?
Os lábios de Gabriel apertaram-se.
— Não arranjei.
— Então, onde…?
— É importante?
— Se não queres dizer-me, tudo bem. Vi-a no roupeiro, quando andava à
procura de uma camisola. É muito bonita. — Tentou afastar-se, mas ele não
a libertou.
— Achas mesmo que é bonita? — perguntou Gabriel, já com uma voz
mais suave, erguendo-lhe o queixo para a olhar nos olhos.
— Sim — murmurou Julia.
— E as outras?
— Não tanto.
Gabriel fez um ar presumido.
— Fui eu que as fiz.
— Tu é que as fizeste? — Julia recuou, surpresa.
— Sim.
— Mas são…
— Eróticas? Sim. — Gabriel sorriu secamente. — É-lhe difícil acreditar
que eu possa tirar uma fotografia bonita e erótica, menina Mitchell?
— Não sabia que fazias fotografia. E aquelas fotografias não são comuns.
— Não sou grande fotógrafo, na verdade. Mas aquelas fotografias
ficaram bem, parece-me. Tenho outras.
Julia deixou cair o queixo. Outras?
— E as mulheres?
Gabriel aproximou-se dela.
— As mulheres são, ou melhor, eram amigas minhas.
— Modelos?
— Não.
Julia franziu a cara, perplexa, até a resposta finalmente lhe ocorrer. E, de
sobrancelhas erguidas, lançou um olhar surpreso a Gabriel.
Ele suspirou e pôs-se a esfregar os olhos.
— Sim, reconheço que foi de mau gosto ter aquelas imagens em
exposição. E não há dúvida de que foi de mau gosto sujeitar-te a elas
quando são tão pessoais. Foi por isso que as guardei antes de te levar para o
meu quarto. Mas as fotografias foram tiradas com o consentimento delas.
Em alguns casos, até me imploraram, para te dizer a verdade. E hás de
reparar que apareço em várias, por isso estava longe de ser um observador
lascivo.
Julia esqueceu-se de perguntar em que fotografia estava Paulina e recuou,
estupefacta.
— És tu?
— Sim.
— Na fotografia de que te falei, és tu?
As sobrancelhas de Gabriel uniram-se.
— Não fiques tão admirada. Pensei que me achavas bem-parecido.
— Mas, naquela fotografia, estás nu! — Perturbada, Julia começou a
sacudir furiosamente uma mão diante da cara, como se quisesse arrefecer a
sua pele afogueada.
Gabriel riu com vontade e puxou-a para si.
— Estou nu em todas aquelas fotografias — segredou-lhe ao ouvido,
numa voz que transpirava sexo. — Aquela fotografia também era a minha
preferida, embora eu não gostasse particularmente da mulher. — Fez um
sorriso lento, contido, e beijou-a no cimo da cabeça. — Gostava de te
fotografar.
— Não me parece.
— És linda, Julianne. Uma fotografia tua, com o teu sorriso ou o teu
perfil ou o teu pescoço elegante, seria muito mais encantadora do que
qualquer das obras de arte que possuo, incluindo o quadro de Holiday.
Ela abanou a cabeça.
— Volto a perguntar-te um dia destes. Agora, que tal fazermos uma
reserva para jantar esta noite no Scaramouche? É um dos meus restaurantes
preferidos.
— Acho que jantar fora não é uma boa ideia. — Julia ainda estava a
tentar recuperar o fôlego.
— Porque não?
— Não disseste que não devíamos ser vistos em público?
Gabriel franziu o sobrolho.
— Mas conheço o dono. Posso reservar a mesa do chef, onde estaríamos
a salvo de olhares curiosos. A não ser que prefiras ir ao Harbour Sixty para
veres o Antonio. Tem andado a perseguir-me para eu te levar lá outra vez.
— A sério?
— A sério. Contou-me daquela vez que almoçaste com ele e com a sua
família no Clube Italo-Canadiano.
— O Antonio foi muito amável comigo.
Gabriel anuiu e aproximou-se, como que para a beijar, mas Julia pousou-
lhe a mão no peito.
— Não posso ir jantar contigo esta noite. Tenho uma reunião com a
Katherine Picton amanhã, e ainda não estou preparada.
— Amanhã?
— Convidou-me para tomar chá em sua casa. Ela assusta-me um bocado.
— Espera até a conheceres. Parece uma avó, mas não te deixes enganar:
é brilhante e, definitivamente, não está para brincadeiras. Espera que a
trates por professora Picton, e não perde tempo com conversa de
circunstância nem fala de nada pessoal.
— Só os pedantes de Oxford querem ser tratados assim — murmurou
Julia.
Ele franziu o sobrolho até ela pestanejar.
— A Katherine é uma mulher muito formal, mas é uma académica e
peras, e será muito bom para ti se conseguires trabalhar com ela. Porta-te o
melhor possível, e tenho a certeza que te aceitará. Na medida dos possíveis.
Julia estremeceu, e Gabriel apertou um pouco mais os braços em seu
redor.
— Não te preocupes, vai ficar interessada na tua proposta. De certeza que
vai querer mudá-la, mas, se fosse a ti, aceitava as suas correções sem
argumentar. Ela sabe o que faz.
— Deve ter coisas mais importantes para fazer na reforma do que
supervisionar alunos de pós-graduação.
— Devia-me um favor. Disse-lhe que tinha uma aluna brilhante que não
me sentia confortável a orientar porque era uma amiga da minha família, e a
Katherine concordou em conhecer-te. É bastante cética quanto aos jovens
de hoje; acha que não são nem tão talentosos nem tão trabalhadores como
quando ela era aluna de pós-graduação. Por isso não me prometeu nada.
— Não precisavas de ter feito isso por mim.
Gabriel enrolou no dedo uma madeixa do cabelo dela.
— Queria ter um gesto simpático. Tenho pena que não tenhas podido ir
para Harvard.
Julia baixou os olhos para as mãos.
— Mas reencontrei-te, não foi?
Ele sorriu, até com os olhos.
— Foi, sim.
Depois de um momento intenso, Gabriel espreitou o seu Rolex. Suspirou.
— Que foi? — perguntou Julia.
— Preciso de sair. Tenho uma reunião.
— Eu também vou andando.
Ela levantou-se do sofá e caminhou rapidamente até à sua mochila,
pendurando-a ao ombro e procurando o casaco.
Gabriel atravessou a sala em três passos largos e pousou as mãos sobre os
ombros dela.
— Fica. Vai ser uma reunião rápida, e volto assim que terminar.
Julia apertou o lábio entre os dentes e mordiscou-o ao de leve,
pensativamente.
Gabriel enfiou o polegar entre os dentes e o lábio dela, libertando a carne
mordiscada.
— Para. Fico nervoso quando fazes isso.
Tirou-lhe rapidamente o polegar da boca, não fosse ela ver ali outra
intenção, mas não sem antes lhe tocar acidentalmente a língua. Era difícil
perceber quem provocara o acidente.
— Que reunião é essa?
Gabriel esfregou os olhos.
— É com a Christa. Vai ser desagradável. Mas correria muito melhor se
soubesse que estavas aqui à minha espera.
— Tenho tanto trabalho para fazer, e não posso deixar de telefonar ao
Paul. Parece que ele ontem à noite passou por minha casa para ver como eu
estava. — Julia começou a falar mais depressa. — Enviei-lhe uma
mensagem a dizer que estava bem. Disse-lhe que não teria de desistir do teu
seminário, mas que precisava de arranjar outro orientador. Não sei como
vou explicar o facto de ter a Katherine Picton a orientar-me.
Gabriel ficou furioso.
— Não lhe deves explicação nenhuma. Diz-lhe que não tem nada com
isso.
— Somos amigos.
— Então fala-lhe numa ligação entre a tua candidatura a Harvard e a
Katherine. Ela é amiga do Greg Matthews.
Julia anuiu e começou a abotoar o casaco.
— Espera. — Gabriel foi até ao escritório, desaparecendo por alguns
minutos. Quando regressou, pôs uma velha edição de capa dura entre as
mãos dela.
Julia leu o título, The Figure of Beatrice: A Study in Dante, de Charles
Williams.
— Quero que fiques com este livro.
— Gabriel, tens de parar de me oferecer coisas. — Estendeu-lhe o
volume.
— Vais impressionar a Katherine se estiveres familiarizada com este
livro. Ela é fã da Dorothy L. Sayers, e a Sayers foi buscar muitas das suas
ideias sobre A Divina Comédia ao Williams. — Pigarreou. — Não estou a
puxar cordelinhos, Julianne. Não há aqui nada de embaraçoso.
Julia olhou para o livro, passando a mão sobre a lombada.
— Pelo menos fica com ele até a Katherine aceitar ser tua orientadora.
— Obrigada.
— Não tens de quê. Agora temos de falar sobre outro assunto.
Ela lançou-lhe um olhar inquieto.
— Seria tudo muito mais fácil se não fosses minha aluna, mas és. Pelo
menos por agora.
Julia inspirou com força.
Gabriel esfregou os olhos.
— Desculpa. Isto não soou como eu queria. O que quero dizer é que não
posso, obviamente, orientar a tua tese. Mas ainda temos o problema do meu
seminário sobre Dante.
— Se desistir do teu seminário, não consigo terminar o curso em maio.
Nas mensagens que me deixaste no voice mail dizias que me arranjavas um
seminário para substituir este, mas isso não me serve de nada. Preciso de
um seminário sobre Dante para a especialização e para a tese.
— No regulamento aplicado aos professores, a política de não-
confraternização abrange os estudantes que frequentem as nossas aulas, e
não apenas os que estivermos a orientar na escrita da tese. Isto significa que
não posso ter uma relação contigo enquanto fores minha aluna. Claro que
no próximo semestre a situação será totalmente diferente. Já não serás
minha aluna.
Julia sabia disto. A Declaração dos Direitos e Responsabilidades do
Aluno de Pós-Graduação dizia exatamente o mesmo. Os docentes não
estavam autorizados a dormir com os alunos inscritos nas suas cadeiras,
quanto a isso não havia dúvidas. E os alunos de pós-graduação não podiam
dormir com os professores dos respetivos cursos. Ou então…
Claro que Julia não tencionava dormir com Gabriel. Perguntou-se se ele
estaria lembrado disso.
— Não vou perder-te outra vez — disse ele num sussurro. — E não vou
impedir-te de fazeres o que para aqui vieste fazer. Por isso, vamos ter de
encontrar uma saída. Entretanto, vou ter uma conversa com o meu
advogado.
— Com o teu advogado?
— Uma conversa informativa, confidencial, sobre o que posso esperar da
universidade caso tencione andar com uma das minhas alunas enquanto ela
frequenta as minhas aulas.
Julia pousou uma mão trémula sobre a manga dele.
— Queres perder o emprego?
— Claro que não — respondeu Gabriel, bruscamente.
— Já pus a tua carreira em risco uma vez. Não vou fazê-lo novamente.
Teremos de nos manter afastados um do outro, e quando o semestre
terminar, podemos voltar a falar sobre isto. Talvez mudes de ideias e
chegues à conclusão de que não me queres. — Baixou os olhos para os
ténis, contorcendo nervosamente os dedos dos pés.
— Isso não vai acontecer, Julianne.
— Ainda estamos a começar a conhecer-nos. Talvez cinco semanas de
amizade seja mesmo aquilo de que precisamos.
— Os amigos vão jantar fora. Que tal amanhã à noite?
Julia abanou a cabeça com determinação.
— Porque não me telefonas? Prometo atender.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Quando volto a ver-te, então?
— No teu seminário, quarta-feira que vem.
— É demasiado tempo.
— As coisas são como são, professor. — Julia brindou-o com um meio-
sorriso e dirigiu-se para a porta.
— Não te esqueces de nada?
Ela remexeu rapidamente na mochila, certificando-se de que tinha as suas
chaves.
— Penso que não.
Gabriel caminhou rapidamente até junto dela, os seus olhos
momentaneamente sombrios.
— Nem um beijo de despedida para o pobrezinho e solitário Gabriel? —
murmurou, numa voz intencionalmente sedutora.
Julia engoliu em seco.
— Os amigos não se beijam da maneira que tu queres.
Gabriel aproximou-se um pouco mais, encostando-a à porta.
— Só um chocho amigável. Palavra de escuteiro.
— Alguma vez foste escuteiro?
— Não.
Ergueu a mão lentamente, para não a assustar, e acariciou-lhe
delicadamente a face. Desarmou-a com um sorriso, e Julia deu por si a
sorrir também. Gabriel encostou os lábios aos dela, com firmeza mas ao de
leve, e assim permaneceu.
Julia esperou que ele fizesse algo, que abrisse a boca, que se movesse,
qualquer coisa, mas Gabriel nada fez. Continuou imóvel, exercendo-lhe
uma pressão ligeira sobre os lábios, até que recuou, com um pequeno
sorriso.
— Não foi assim tão mau, pois não? — perguntou, rindo um pouco, e
fazendo um dedo deslizar por baixo do queixo dela.
Julia abanou a cabeça.
— Adeus, Gabriel — disse, antes de sair.
Quando a porta se fechou, Gabriel apoiou-se na parede e esfregou os
olhos, resmungando para ninguém em particular.

A o regressar a casa, depois de um encontro muito desagradável e algo


intenso com Christa, Gabriel tirou uma Perrier do frigorífico e
marcou o número de John Green, o seu advogado. Havia algum tempo que
não precisava dos serviços de John, e preferia continuar assim. John tinha
alguns clientes duvidosos, mas era o melhor, especialmente no que se
referia ao direito penal canadiano. Não era, no entanto, especialista em
direito do trabalho, facto que por mais de uma vez referiu a Gabriel, durante
a conversa de trinta minutos que tiveram ao telefone.
— Devo avisar-te que, se o teu contrato de trabalho refere a política de
não-confraternização, ao violares essa cláusula estás a arriscar-te e a
arriscar o teu emprego. Por isso, deixa-me fazer-te uma pergunta: andas a
dormir com ela?
— Não — disse Gabriel prontamente.
— Ainda bem. Não comeces agora. Na verdade, o meu conselho, como
profissional, é que te mantenhas longe dessa rapariga até voltares a ter
notícias minhas. Que idade tem ela?
— Desculpa?
— A rapariga, Gabriel, a galdéria.
— Chamas-lhe isso outra vez e vou falar com outro advogado.
John fez uma pausa. Gabriel era um filho da mãe difícil, sabia-o, e tinha
o seu lado arruaceiro. E John não se sentia com energia para uma altercação
ao telefone.
— Deixa-me refrasear. A jovem em questão, que idade tem?
— Vinte e três.
John suspirou de alívio.
— Ótimo. Pelo menos não é menor.
— Mais uma vez, vou fingir que não ouvi.
— Escuta, Emerson, sou teu advogado. Deixa-me fazer o meu trabalho.
Não posso dar-te uma opinião profissional sem conhecer todos os dados.
Uma das minhas sócias processou a Universidade de Toronto no ano
passado; vou consultá-la. Por agora, o meu conselho é que te afastes dessa
rapariga, mas, o que quer que faças, não durmas com ela. Entendido?
— Sim.
— E deixa-me ser ainda mais explícito. Não tenhas qualquer tipo de
atividade sexual com ela, nada. Não queremos ver-nos num debate
clintoniano sobre o que constitui relações sexuais. Não faças nada com ela;
não importa se o ato é consensual.
— E se o nosso envolvimento for romântico, mas não sexual?
John hesitou por um instante e começou a limpar o ouvido com a ponta
do dedo mindinho.
— Não apanhei o que acabaste de dizer.
— Perguntei-te, e se estivermos juntos socialmente, mas não tivermos
contacto sexual?
John deu uma gargalhada.
— Estás a brincar comigo, Emerson? Eu não acredito em ti, e pagas-me
para isso. Ninguém vai acreditar numa história dessas.
— Não é aí que quero chegar. O que pergunto é, se não tiver qualquer
atividade sexual com a minha aluna, a nossa relação viola o regulamento?
— Ninguém vai acreditar que tens uma relação com uma aluna que não
envolve sexo, sobretudo dada a tua reputação. Claro que cabe à entidade
empregadora apresentar provas da relação, a não ser que a miúda apresente
queixa contra ti ou que alguém os apanhe numa situação comprometedora.
Ou que ela fique grávida.
— Isso não vai acontecer.
— Toda a gente diz isso, Emerson.
Gabriel pigarreou.
— Sim, mas, neste caso, seria uma impossibilidade. E não apenas por
uma razão.
John revirou os olhos e decidiu não lhe dar uma lição de biologia.
— Seja como for, se fossem apanhados, e não houvesse contacto sexual,
terias provavelmente apenas uma reprimenda por relação imprópria. Mas
não posso dar-te certezas sem ler o regulamento, e preciso que a minha
sócia me informe a respeito dos precedentes que a universidade estabeleceu.
— Obrigado.
— Se a coisa der para o torto, és tu que te lixas, e não eu. Por isso, tem
cuidado. Eu ganho o meu de qualquer maneira. — John tossicou. — E…
Gabriel?
— Sim?
— Se fosse a ti, não arranjava sarilhos nos próximos tempos. Nada de
raparigas, nada de brigas, nada de bebedeiras em público ou algo parecido.
Qualquer processo movido pela universidade irá expor o teu passado,
lembra-te disso. Vamos tentar manter o passado no passado, está bem?
— Está bem, John.
Dito isto, Gabriel desligou o telefone e agarrou nas chaves, decidido a ir
descarregar a frustração que sentia no clube de esgrima.

D e volta ao seu apartamento, Julia debruçou-se sobre o canteiro, agora


em hibernação, e procurou ansiosamente quaisquer fragmentos do
cartão de Gabriel. Infelizmente, tudo o que encontrou foram alguns pedaços
rasgados, que de modo algum lhe permitiriam reconstruir o bilhete.
Passou a maior parte do dia a ler o livro de Charles Williams, tomando
notas que esperava que fossem úteis para o seu encontro com Katherine.
Tinha de admitir que o gesto de Gabriel ao oferecer-lhe o livro fora quase
providencial. O trabalho de Williams sobre Dante oferecia-lhe muitas
sugestões para a sua tese.
Antes de dormir, sentou-se na cama a ouvir o seu iPod e a pensar em
Gabriel. Ele gravara-lhe duas canções; a segunda era Dante’s Prayer,
também de Loreena McKennitt. Era um tema profundamente tocante, e
Julia chorou ao ouvi-lo. Nessa noite, voltou a ir buscar a fotografia à gaveta
da roupa interior e adormeceu mais uma vez com ela debaixo da almofada,
enquanto refletia.
Gabriel era um toxicodependente. Julia sabia, sem sombra de dúvida, que
se a sua dependência o vencesse, também ela seria vencida, e ver-se-ia
arrastada para profundezas que não desejava habitar.
Além disso, qualquer relação com Gabriel poderia manchar as carreiras
de ambos. Uma vez descoberta a sua ligação, ele seria o jovem professor
talentoso que se metera com um rabo de saia de um dos seus seminários, e
tornar-se-ia alvo de irresistíveis insinuações nas festas da faculdade. Ela
seria a jovem vadia que abria as pernas para conseguir o seu grau porque
não era suficientemente esperta para lá chegar de outro modo. Pouco
importava se esperavam até o semestre terminar ou não; os mexericos
conspurcariam a imagem de ambos.
Por fim, ela apaixonara-se por Gabriel Emerson quando tinha dezassete
anos. Talvez a explicação para isso fosse a intensa empatia que os unia, ou a
forma como ele a olhava, ou os sentimentos que ele invocava quando a
tinha nos seus braços. Qualquer que fosse a verdadeira origem da atração,
Julia apaixonara-se por ele, e apaixonara-se a sério. Tentara eliminar esses
sentimentos quando ele não voltara para casa; tentara matá-los
desenvolvendo sentimentos por outra pessoa. No entanto, aninhada nos
braços de Gabriel na noite anterior, uma onda de emoção viera esmagá-la, e
todas as suas pequenas defesas tinham sido arrastadas para o mar, como um
castelo de areia em ruínas. O amor que sentia por Gabriel ainda lá estava,
uma pequena chama que ardia intensamente e que nem a água de um
oceano inteiro poderia apagar.
Assim, talvez Julia não tivesse escolha agora, porque fizera a sua escolha
naquela altura. Fizera a sua escolha quando ele lhe estendera a mão e ela a
segurara sem se questionar. Quando ele a tocara, Julia compreendera que
lhe pertencia. Depois, Gabriel permanecera junto de si, nas sombras, como
um fantasma que se recusasse a partir. E agora o fantasma decidira que a
queria.
Simplesmente, Julia acreditava que ele nunca, nunca viria a amá-la.

N a manhã seguinte, pegou no seu telemóvel e ficou surpreendida ao


encontrar uma mensagem de Gabriel. Telefonara-lhe quando ela já
estava a dormir.
«Julianne, prometeste que atendias o telefone. [Suspiro.] Vou partir do
princípio de que está tudo bem e que estás a tomar duche ou algo parecido.
Telefona-me quando ouvires esta mensagem.
»Fiquei com pena de não ter podido levar-te a jantar esta noite, mas
gostava que fôssemos amanhã. Podemos pelo menos falar sobre isso?
[pausa] Liga-me, principessa. Por favor.»
Julia gravou imediatamente o número dele no seu telemóvel, mas
registou-o com o nome de “Dante Alighieri”. Quando lhe ligou de volta, a
chamada foi ter ao voice mail.
«Olá, sou eu. Hum... desculpa não ter ouvido a tua mensagem na noite
passada. Adormeci. Claro que gostava de te ver, mas penso que um jantar
seria demasiado arriscado. Quero voltar a conhecer-te, Gabriel, e espero
que arranjemos uma forma segura de o fazer. Desculpa não ter atendido o
telefone. Falamos mais tarde.»
Passou quase toda a sexta-feira a trabalhar na sua proposta de tese.
Manteve o telemóvel ligado, pelo sim pelo não. Mas Gabriel não lhe
telefonou. Julia recebeu, no entanto, uma chamada de Paul. A conversa
acabou por ser breve, porque ele foi interrompido, no seu cubículo na
biblioteca, pelo professor Emerson. Visto que Emerson parecia de muito
melhor humor, Paul mostrou-se apenas ligeiramente relutante em acreditar
que ele tivesse sido brando com Julia. E Julia fez o seu melhor para
eliminar essa relutância. Crise evitada.
Depois do seu muito interessante encontro com Katherine, Julia voltou
para casa e preparou uma refeição simples de sopa de tomate. Depois de
jantar, tomou um duche e enrolou-se numa toalha roxa que mal a cobria dos
seios às coxas, e deambulou até ao roupeiro para escolher um pijama de
flanela com que se deitar. Tendo em conta o ar frio de finais de outubro e a
proximidade do Dia das Bruxas, concluiu que o pijama com jack-o’-
lanterns vinha mesmo a calhar.
Tap, tap, tap.
Sobressaltada, Julia deu um grito. Do lado de fora da janela, uma voz
abafada começou a falar alto, enquanto as batidas prosseguiam com
veemência. Julia correu até à janela, afastou as cortinas, e deparou-se com a
cara preocupada de Gabriel.
— Pregaste-me um susto tremendo! — guinchou, destrancando a velha
janela e tentando levantá-la com uma mão, ao mesmo tempo que a sua outra
mão segurava nervosamente a toalha.
— Não atendias o telefone. Nem ouvias a campainha. Achei que havia
algum problema. Fui até ao pátio das traseiras e vi que tinhas as luzes
acesas.
Gabriel reparou nos seus movimentos atabalhoados e enfiou os dedos por
baixo da janela.
— Deixa-me fazer isto. — De uma só vez, ergueu a janela e depositou
nas mãos de Julia dois sacos de papel.
— Que é isto?
— Jantar. Agora, afasta-te, está frio aqui. — Gabriel pôs as mãos no
parapeito, preparando-se para saltar.
— Que estás a fazer?
— Estou a entrar pela janela. Que havia de ser?
— Podia abrir-te a porta, e entravas como um ser humano normal —
protestou Julia, pousando os sacos sobre a mesa articulada.
Gabriel olhou-a com uma certa avidez, enquanto balouçava as pernas por
sobre o parapeito.
— Não podias, despida como estás. — Fechou a janela com firmeza,
trancou-a e puxou as cortinas. — Devias ir vestir qualquer coisa.
Julia estremeceu quando ele lhe passou um dedo sobre o ombro nu.
Macia, suave, molhada, e quente, pensou Gabriel.
Julia apertou um pouco mais a toalha em redor do corpo, e ele desviou o
olhar. Ela pouco tinha a cobri-la, estava molhada do duche, e a imagem dos
dois juntos… Gabriel sentiu um arrepio. Mais do que um.
— Por favor, vai vestir-te, agora, Julianne — disse, numa voz baixa e
rouca.
Julia reagiu ao que interpretou como embaraço da parte dele, e começou
imediatamente a recuar.
— Vou vestir-me na casa de banho — balbuciou, procurando
apressadamente um fato de ioga e as suas velhas pantufas de pele.
— Porque não tens o aquecimento ligado? — perguntou Gabriel, quando
ela entrava na casa de banho.
— Está ligado.
— Duvido. Está quase tão frio aqui como lá fora. E a andares pela casa
enrolada numa toalha vais ficar doente.
Julia fechou a porta, pondo fim à conversa.
Gabriel recompôs-se e olhou em redor, procurando um termostato, mas,
claro, não encontrou nenhum. Não tardou a pôr-se de joelhos para lutar com
o velho radiador que era a única fonte de calor na principal divisão do
apartamento. Como pode ela viver assim? Está um gelo aqui.
Quando Julia saiu da casa de banho, encontrou Gabriel ainda de casaco
vestido, ajoelhado em frente do radiador como se este fosse um altar. Deu
uma risadinha.
— Passas mais tempo de joelhos do que a maioria dos professores.
Ele lançou-lhe um olhar.
— Muito engraçada, Julianne. Este radiador é inútil. Não tens um
aquecedor?
— Há um fixo na casa de banho. Mas não o uso.
Gabriel abanou a cabeça, levantando-se e dirigindo-se para a casa de
banho. Ligou o aparelho e certificou-se de que a porta ficava bem aberta.
— Deixa-me aquecer um pouco a casa. Tens o cabelo molhado, ainda te
constipas. É melhor fazer-te um chá — sugeriu, pendurando o casaco na
parte de trás da porta.
— Eu podia tratar disso — disse ela em voz baixa.
— Dá-me esse prazer. — Beijou-a na testa e foi buscar a chaleira elétrica,
encheu-a de água na torneira da casa de banho, e ajoelhou-se para a ligar à
tomada que havia sob a cómoda.
Julia esforçou-se por não ficar a olhá-lo, apercebendo-se de como as
calças de fazenda preta se lhe colavam ao traseiro muitíssimo bem feito,
enquanto ele ligava a chaleira. Para se distrair, comparou o modo como
Gabriel se comportava agora com a atitude que ele adotara da primeira vez
que estivera no seu pequeno buraco de hobbit. Era como se existissem dois
Gabriéis e Julia estivesse agora a ser visitada pelo Gabriel simpático. Este
modelo mais recente é tão bonito como o outro, mas infinitamente mais
atraente.
— Ora bem — disse ele, olhando em volta. — É preciso aquecer-te.
Olhou-a fixamente e puxou-a para si, abraçando-a e esfregando-lhe as
costas.
— Estás bem? — perguntou.
— Sim.
— Porque não atendes o telemóvel?
— Atendo. Mas não quando estou a dormir ou a tomar duche.
— Estava preocupado. Não atendeste ontem à noite, nem há cerca de
uma hora.
— Estava a lavar o cabelo.
Gabriel encostou a cara ao pescoço dela, sentindo o seu perfume.
Baunilha.
— Julianne — murmurou, erguendo a mão esquerda para lhe tocar a cara.
Julia pestanejou rapidamente.
— Sim?
Ele não continuou.
Julia encarou-o, surpreendida. Os olhos de Gabriel estavam sombrios e
fitavam-na intensamente.
Inclinando-se, Gabriel fez os seus lábios deslizarem, para cima e para
baixo, pelo lado esquerdo do pescoço dela, começando mesmo por baixo do
lóbulo da orelha e indo até à zona da clavícula. Um assomo de desejo
incendiou o estômago de Julia e desceu. Os lábios de Gabriel mal lhe
afloravam a pele e faziam cada gota de sangue do seu corpo correr para esse
espaço. O toque dele nunca lhe parecera tão erótico, tão afetuoso.
Subindo e descendo e subindo e descendo, ele venerava-lhe a curva do
pescoço, e a sua língua vinha de quando em vez provar-lhe a pele. A
intervalos de instantes, Gabriel desviava os lábios para roçar nela,
delicadamente, o nariz ou o queixo, e Julia sentia o leve arranhar da sua
barba por fazer. A boca dele ondulava com beijos suaves, descendo-lhe até
à cavidade no centro da garganta, e os seus lábios detinham-se aí com
firmeza, antes de reiniciarem a sua viagem pelo lado direito do pescoço.
Julia gemeu e fechou os olhos, deixando as mãos deslizarem pelas costas
de Gabriel e depois arrastarem-se-lhe pelo cabelo. Os seus dedos moviam-
se de forma inconsciente, parando sobre o colarinho da camisa dele, para
lhe afagarem a nuca.
— Mmmmmmm — fez Julia.
— Sabe-te bem? — perguntou Gabriel num murmúrio, prosseguindo com
os seus beijos suaves.
Ela murmurou o seu apreço.
— Quero dar-te prazer, Julianne. Mais do que imaginas.
Gabriel dava especial atenção à pele em torno da sua orelha e à zona sob
o queixo, provocando-a ligeiramente com a língua.
— Diz-me se te sabe bem o que estou a fazer.
Julia mal ouviu a pergunta, concentrada como estava na miríade de
sensações que lhe percorriam o corpo e no calor que lhe invadia a carne. Já
não sentia frio. Já não sentia nada, a não ser ele.
— Tu sabes-me bem, Gabriel — disse, aturdida.
— Isso é uma declaração de desejo — sussurrou-lhe ele junto à orelha,
fazendo-a estremecer. — Se fôssemos amantes, beijava-te assim para
saberes que te ia levar para a cama. E podes imaginar as delícias que lá te
esperam. Mas agora posso apenas declarar que ardo de desejo. Não me
atrevo a tocar-te os lábios com receio de não conseguir parar.
Julia gemeu um pouco mais alto, e Gabriel continuou, afastando-lhe o
cabelo dos ombros para alargar a sua área de exploração. Derramou nela os
beijos mais leves, cobrindo-lhe o pescoço, até finalmente encontrar o lóbulo
da orelha e o segurar na boca, chupando-o ao de leve, tocando
delicadamente a extremidade com a língua.
— Se provasse a tua boca agora, não poderia responder pelas
consequências. Assim, tudo o que posso fazer é adorar este pescoço lindo.
Sei que daqui a segundos terei de me afastar, antes que a tentação se torne
demasiado forte. Já é demasiado forte. Não fazes ideia de como te quero. —
A voz de Gabriel era rouca, e a sua respiração parecia bastante rápida.
Julia sentiu que as pernas lhe fraquejavam, foi tomada por uma
vertigem… E foi então que a chaleira começou a apitar. Gabriel deu-lhe um
beijo casto na cara e foi preparar o chá, enquanto Julia se sentava, a tremer,
numa cadeira. O seu coração batia com tanta força que ela julgou estar a ter
um ataque cardíaco. Inclinou a cabeça para a frente, segurando-a entre as
mãos.
Se fico derretida desta maneira quando ele me beija, como é que ficarei
quando ele…
— Que chá queres, querida? — perguntou Gabriel, uma ligeira nota de
divertimento na voz, apercebendo-se de que Julia tentava recuperar o
fôlego.
Claro que ele só conseguira acalmar-se tão depressa porque se afastara. E
era muito mais hábil do que ela no que tocava a esconder sentimentos,
exceto sob inspeção visual.
— Lady Grey. Está na lata junto do bule. — A voz de Julia soou trémula.
— Não tenho o hábito de beber chá, por isso não ficará tão bom como o
teu. Mas espero que esteja potável.
Julia arqueou uma sobrancelha perante aquela escolha de adjetivos, mas
agradeceu-lhe educadamente quando ele lhe pousou à frente bule, chávena e
pires.
— Comprei algumas coisas para o jantar. Já comeste?
— Comi uma sopa.
— Julianne. — Sentou-se ao seu lado, com um ar de censura. — Sopa
não é uma refeição.
— Sim, penso que já ouvi isso antes.
Revirou os olhos, e Gabriel riu-se.
O que ele começou por colocar na mesa foi uma garrafa de vinho e um
saca-rolhas.
— Tens copos de vinho?
— Sim. — Julia dirigiu-se tropegamente à sua pequena área de cozinha
para os ir buscar. Ainda não percebera como era a relação de Gabriel com o
álcool, especialmente tendo em conta o seu passado. Mas decidira dar-lhe,
por agora, o benefício da dúvida.
Quando voltou para a mesa, leu o rótulo da garrafa: Serego Alighieri Vaio
Armaron Amarone 2000.
— Isso é o que estou a pensar? — Estendeu um dedo para a garrafa.
Gabriel pegou-lhe na mão e beijou-a na palma.
— Sim. O filho de Dante comprou o vinhedo no século catorze, e a
família Masi continua a produzir vinho de lá. — Recostou-se na cadeira
articulada e olhou-a em silêncio. Parecia abismada.
— Não sabia que a família de Dante tinha vinhas.
— É um vinho muito bom. Mas, por causa do nosso passado, talvez
aches a escolha demasiado sentimental?
Ela abanou a cabeça.
— Não. Não acho.
— Tenho de fazer serão a trabalhar, mas queria jantar contigo, por isso
fui ao Pusateri’s e encomendei comida. Temos aqui manicotti, salada
Caesar e um rolo de pão. Que te parece?
Julia olhou para toda aquela comida à sua frente e sentiu imediatamente
fome.
— Que é isto? — Apontou um embrulho de papel celofane que tinha o
desenho de uma rena no rótulo.
Gabriel sorriu de orelha a orelha.
— Biscoitos de lima da Dancing Deer Baking Company. Os meus
favoritos. Porque não me deixas encarregar disto enquanto secas o cabelo e
bebes o teu chá?
Estendeu a mão e passou os dedos pelo caracóis longos e molhados de
Julia.
— Porque é que estás sempre a querer alimentar-me?
A mão de Gabriel deteve-se.
— Já te disse, gosto de te dar prazer. — Retirou a mão, com uma
expressão perplexa. — É assim que um homem procede quando está
interessado numa mulher, Julianne. É atencioso, procura adivinhar os seus
desejos. — Lançou-lhe um sorriso perverso. — Talvez esteja a tentar dizer-
te que se sou assim tão atencioso no que toca a saciar os teus desejos
culinários, serei ainda mais empenhado quando se tratar de satisfazer
outros… eh… apetites.
Julia corou imediatamente, e Gabriel passou-lhe uma mão pela cara.
— Tens uma pele linda — murmurou. — Como um botão de rosa. —
Olhou-a com admiração. — A Rachel deixou de corar quando começou a
dormir com o Aaron.
— Como sabes?
— Tanto quanto me lembro, todos nos apercebemos. Num dia estava a ler
O Principezinho, no dia seguinte andava a comprar lingerie.
Julia mordiscou o lábio, pensativa.
— Adorei esse livro.
— Temos de ver com os corações, e não com os olhos — disse Gabriel.
— Precisamente — murmurou ela. — Gosto daquela parte em que a
raposa explica ao príncipe o processo de cativar. E a raposa decide que quer
ser cativada, embora isso a torne vulnerável.
— Julianne, acho que é melhor ires secar o teu cabelo.
Tirou-lhe a mão da cara e pôs-se rapidamente de pé, virando-lhe as costas
e alegando que tinha de preparar o jantar, e deixando Julia a perguntar-se o
que fora que o perturbara tanto.
epois do jantar, deram por si sentados na cama como se fosse um sofá.
Gabriel amontoou algumas almofadas contra a parede e recostou-se,

D pondo o braço em redor da cintura de Julia.


— Lamento que seja tão desconfortável — desculpou-se ela, num
tom submisso.
— Não é desconfortável.
— Sei que odeias este apartamento. É pequeno e frio e… — Indicou o
quarto com um aceno de mão.
— Nunca deixarei de sentir remorsos pelo que te disse quando tiveste a
gentileza de me convidar a entrar. Não odeio este lugar. Como poderia? —
Entrelaçou os dedos nos dela. — É aqui que tu estás.
— Obrigada.
— Obrigado por tornares tudo tão bonito só por existires.
Julia sorriu, enquanto ele levava as mãos de ambos à boca e começava a
beijar-lhe os dedos, ternamente, um a um.
— Agora, conta-me como foi o teu encontro com a Katherine.
Julia teve de esperar um momento até que os seus dedos parassem de
vibrar.
— Ela é exatamente como a descreveste — começou. — Mas ficou
muito satisfeita por eu ter lido o Charles Williams. Penso que isso a
amoleceu um pouco. Aceitou ser minha orientadora.
— E que achou da tua proposta?
— Eh… Achou que era pouco original, e então sugeriu-me que, em vez
de comparar amor cortês e luxúria, comparasse aspetos da amizade entre
Virgílio e Dante com o tema do amor cortês. Assim, em vez de explorar a
luxúria e o amor, vou falar de amor e amizade.
— Estás contente com a ideia?
— Acho que sim. Decidimos que eu devia frequentar o seminário da
professora Leaming sobre Aquinas, no próximo semestre, porque será sobre
o tema que vou tratar.
Gabriel anuiu.
— Conheço a Jennifer Leaming. É bastante competente.
Julia remexia no edredão.
Gabriel pousou uma mão sobre a dela.
— Que é?
— Nada.
— Nada de segredos, Julianne. Que se passa?
— Enviei um e-mail à professora Leaming, há uma semana, a perguntar-
lhe se aceitava orientar-me a tese. Foi antes de eu e tu termos a nossa…
eh… conversa.
Os olhos de Gabriel arrefeceram por um instante.
— E que disse ela?
— Não disse nada.
— A Jennifer está muito ocupada. Não é professora titular, e duvido que
tenha tempo para supervisionar alunos de pós-graduação que não pertençam
ao Departamento de Filosofia. — Fez uma pausa. — Quando te disse que te
arranjava outro orientador, não acreditaste em mim?
Julia sentiu-se constrangida.
— Acreditei, sim.
— Então porque sentiste a necessidade de agir por trás das minhas
costas?
— Queria ver se conseguia resolver o problema sozinha.
Os lábios de Gabriel contraíram-se numa linha dura.
— E como correu?
— Não correu.
— Mais cedo ou mais tarde, vais ter de confiar em mim. Sobretudo no
que tiver a ver com a universidade. Senão, isto não vai dar certo.
Julia anuiu, mordiscando o interior da sua boca.
— Fala-me da tua reunião com a Christa — pediu.
— Preferia não falar — disse Gabriel. — A rapariga é uma peste.
Julia tentou, em vão, conter um sorriso.
— Está demasiado ocupada a tentar salvar a sua proposta de tese para nos
incomodar. Não vou aceitar o projeto dela tal como está, o que significa que
terá de encontrar outro orientador. E, como sabes, neste momento sou o
único professor a supervisionar teses sobre Dante.
— Então a Christa fica de fora?
— Disse-lhe que lhe dava até dia 18 de dezembro para apresentar uma
proposta aceitável. E é um favor que lhe faço. Por isso, não te preocupes
mais com ela. Tem o seu futuro académico preso por um fio, e a ponta desse
fio está na minha mão.
Ótimo, pensou Julia.
— Hoje tive uma conversa interessante com o meu advogado.
Julia bebeu mais um gole de vinho, esperando que ele continuasse.
— Disse-me que iria informar-se sobre a política de não-
confraternização, mas desaconselhou-me vivamente qualquer relação
romântica contigo enquanto fores minha aluna.
Julia ruborizou-se.
— Isso inclui os beijos?
— Certamente, mas, segundo me disse, a universidade preocupa-se
sobretudo com relações de natureza sexual. Por isso, desde que
continuemos castos e discretos este semestre, penso que não teremos
problemas.
Julia corou ainda mais e baixou os olhos para o seu copo de vinho.
— O que quer dizer que terá de ter cuidado com as suas mãozinhas,
menina Mitchell, até eu entregar a sua nota. Depois disso, bem… — Fez-
lhe um sorriso insinuante.
— Não podes estar a beijar-me num minuto e a corrigir o meu ensaio no
minuto seguinte.
— Nesta altura, já não conseguiria ser imparcial relativamente ao teu
trabalho nem que me esforçasse por isso. Vou pedir à Katherine que te dê a
nota.
— Ela não vai achar estranho?
Gabriel sorriu.
— Arranjo uma desculpa. E ofereço-lhe uma garrafa de Lagavulin de
dezasseis anos. Até ressuscitava os mortos.
— Mas o que se passa entre nós continua a ser confraternização… uma
espécie de confraternização.
Gabriel segurou a cara de Julia entre as suas mãos.
— Mas é menos sério do que uma aventura, pelo que reduz
consideravelmente os riscos com a direção. O meu advogado vai procurar
as malhas soltas do regulamento.
— Não quero ser uma malha solta.
— Não é assim que te vejo. Queres que me afaste durante cinco semanas
e não te veja de todo? Sem poder segurar a tua mão ou abraçar-te? É isso
que queres?
Julia refletiu por um segundo, e a ideia causou-lhe uma náusea. Abanou a
cabeça.
— Gostava de continuar a ver-te, como amigos, é claro. Ainda estás a
tentar perceber se podes ou não confiar em mim, e ainda estamos a
conhecer-nos. O que a universidade não souber não pode prejudicar-nos. —
Gabriel pegou no copo de vinho de Julia e foi pousá-lo junto do seu, sobre a
mesa articulada. Quando regressou, puxou-a para si de tal modo que ela
ficou praticamente sentada ao seu colo.
— Podemos fingir que estamos ambos no liceu e a viver em Selinsgrove.
Começámos agora a namorar, e como somos dois adolescentes ajuizados e
ligeiramente antiquados, fizemos um voto de castidade.
— Já pensaste bastante sobre o assunto.
— No que te diz respeito, tenho uma imaginação fértil e pormenorizada
— murmurou Gabriel. — E se calhar gostava que tivéssemos sido
adolescentes juntos.
— Então, aquilo para que nos encaminhamos é uma aventura?
Gabriel ficou calado por um instante.
— Tinha em mente algo menos vulgar. Mas, Julianne, muito do que a
nossa relação vier, ou não, a ser depende inteiramente de ti.
Julia anuiu para indicar que o ouvira, e ficaram ambos em silêncio. Ela
acabou por fechar os olhos, inalando o perfume de Gabriel e apercebendo-
se da estranha sensação de calma que os batimentos regulares do coração
dele lhe inspiravam. Gabriel afagava-lhe o cabelo e murmurava-lhe em
italiano.
— Julianne?
Silêncio.
— Julia? — Curvando-se, Gabriel descobriu que ela adormecera. Não
queria acordá-la. Mas também não queria ir-se embora sem se despedir, e
queria que ela trancasse a porta após a sua saída.
Ergueu-a cuidadosamente e deitou-a sob os lençóis e o edredão,
esperando que ela acordasse. Mas Julia não acordou. Gabriel olhou para a
sua pequena forma, o modo como o seu peito subia e descia ao ritmo suave
da respiração, os lábios ligeiramente afastados. Era bonita. Era encantadora.
Gabriel não se lembrava da última vez que passara uma noite casta com
uma mulher bela que não fosse sua parente. Uma noite casta que estava
carregada de desejo e paixão e de uma necessidade esmagadora…
Desejava-a.
Mas o velho conflito interior agigantava-se-lhe no pensamento. Não
queria corrompê-la, torná-la igual a si. Não queria torná-la vulnerável, ou
fazê-la sangrar, em qualquer dos sentidos. Duvidava da sua capacidade de
se envolver com ela fisicamente sem perder o controlo, pois bastara vê-la
enrolada numa toalha para que a sua determinação fosse abalada.
É este o resultado de anos de luxúria desenfreada — agora já nem és
capaz de a cortejar como um cavalheiro. Queres fazer amor com esta
rapariga sem acabares por fodê-la, mas será que consegues? Conseguirás
estar sexualmente envolvido com ela sem a tratares como um brinquedo
maravilhoso, construído apenas para a tua satisfação carnal? Conseguirás
amar sem pecado?
Os pensamentos de Gabriel inquietavam-no, enquanto olhava para a
inocente de faces rosadas que confiava nele o suficiente para adormecer nos
seus braços, ignorando a paixão que lhe fervia nas veias. Esvaziou os bolsos
e desligou o seu iPhone antes de se dirigir para a casa de banho. Reduziu a
intensidade do aquecedor, como prometido, e despiu-se rapidamente,
ficando de t-shirt e boxers. Demorou-se ainda alguns segundos a inventariar
o champô e os produtos de higiene de Julia, obrigando-se a memorizá-los
para os ter na sua casa de banho quando ela voltasse a visitá-lo. Gabriel
preferia, definitivamente, baunilha a qualquer outra fragrância. Se bem que
baunilha e chocolate…
Apagou as luzes e deitou-se na cama de solteiro onde Julia dormia. Era
demasiado pequena para duas pessoas; na verdade, Gabriel deu por si a
recordar as camas das residências de Princeton ou do Magdalen College
quase com saudade. Quase. Aquelas camas mal serviam para dormir e
estavam longe de ser ideais para qualquer ato sexual. Felizmente,
semelhante atividade não constava da ementa para essa noite.
Ao virar-se na cama, Gabriel pôs a mão sobre um pequeno pedaço de
papel macio que se encontrava debaixo da almofada. Ergueu-o e olhou-o
sob a luz prateada do luar que vinha de trás dos cortinados. O que viu
deixou-o estupefacto, pois tratava-se de uma velha fotografia sua, dos seus
tempos em Princeton. Reconheceu a camisola da equipa de remo que tinha
vestida.
Como terá ela arranjado esta fotografia? Há quanto tempo a tem?
Voltou a pôr a fotografia debaixo da almofada, os cantos da sua boca
erguendo-se de espanto. Algo que se parecia com esperança começava a
aquecê-lo por dentro.
Nunca fora fã de dormir aninhado noutra pessoa; era um ato demasiado
íntimo para ele. Mas naquela noite era isso mesmo que queria. Curvou o seu
corpo em redor dela e rodeou-lhe a cintura com o braço esquerdo,
pousando-lhe a mão ao de leve sobre a barriga. Encaixavam perfeitamente
um no outro. Gabriel suspirou de contentamento ao sentir o calor suave da
jovem mulher que tinha nos braços, e enterrou o nariz num cabelo longo,
macio, com aromas de baunilha.

P or volta das três da madrugada, Julia abriu os olhos. Um braço forte


apertou-a um pouco mais, e o cheiro que era de Gabriel invadiu-lhe a
cabeça. Estava enroscada nos seus braços, o peito dele nas suas costas.
Embora ele tivesse reagido à sua ansiedade, o som da sua respiração
indicava que continuava a dormir.
Julia olhou-o no escuro. Quantos anos esperara para dormir ao seu lado
mais uma vez? Moveu-se lentamente, ficando de costas. De olhos fechados
e com uma expressão tranquila, parecia muito mais jovem. Quase um
rapaz… um rapaz meigo de cabelo castanho e lábios rosados, que sorria
docemente a dormir. Julia suspirou a sua aprovação estética.
Os olhos dele pestanejaram e abriram-se. Gabriel precisou de um instante
para focar o rosto de Julia na escuridão, mas logo em seguida inclinou-se
para encostar os lábios aos seus.
— Estás bem? — sussurrou junto à sua boca.
— Ainda cá estás.
— Não volto a deixar-te sem me despedir. Não consegues dormir?
— Pensei que era um sonho.
Gabriel sorriu-lhe na escuridão.
— Só para mim.
— És lindo, Gabriel. Sempre foste, sabes?
— Assim se vê a crueldade da natureza… O anjo caído conserva a sua
beleza. Mas sou feio no íntimo.
Julia devolveu-lhe o beijo com firmeza, tentando mostrar a verdade das
palavras que estava prestes a dizer antes de estas se tornarem audíveis.
— Alguém que é feio no íntimo não me teria comprado uma mala de
tiracolo e feito segredo da sua generosidade.
Gabriel fitou-a.
— Há quanto tempo sabes disso?
— A Rachel contou-me.
— E isso deixou-te com mais vontade de a aceitares, ou com menos
vontade?
— Na altura, as duas coisas em partes iguais.
— Reparei que já não a usas — murmurou Gabriel, afastando-lhe o
cabelo da cara.
— Vou voltar a usá-la.
— Então, gostaste?
— Gostei muito. Obrigada.
Gabriel roçou o nariz ao de leve no dela e sorriu.
— Aos dezassete anos eras apenas linda, Julianne. Agora és
deslumbrante.
— Qualquer pessoa é razoavelmente bonita no escuro — sussurrou ela.
— Não, não é verdade. — Beijou-a, e depois deteve-se abruptamente,
obrigando-se a parar.
Julia pousou a cabeça sobre o peito dele e fechou os olhos, escutando o
bater regular do seu coração e tentando não beber em excesso da energia
que se gerava entre os dois.
— Acaba de me ocorrer, Julia, que só consigo arrancar-te respostas
sinceras quando estamos a partilhar uma cama.
Ela corou, e embora estivessem no escuro, Gabriel sabia-o.
— Porque será? — perguntou, rindo baixinho.
— Quando estamos na cama, és gentil comigo. Sinto-me… segura.
— Não sei se é muito seguro estares comigo, Julianne, mas prometo que
tentarei ser sempre gentil contigo. Especialmente na cama.
Julia abraçou-o com força e anuiu contra o seu peito, como se
compreendesse todas as implicações do que ele acabava de dizer. Mas não
era assim. Como poderia compreender?
— Vais a casa passar o Dia de Ação de Graças? — perguntou Gabriel.
— Sim. Tenho de ligar ao meu pai a dar-lhe a boa notícia.
— Prometi ao Richard que iria a casa. Poderias… considerar ir no
mesmo voo que eu?
— É boa ideia, sim.
— Ótimo. — Gabriel suspirou e esfregou os olhos. — Não vão ser uns
dias fáceis.
— Não gosto do Dia de Ação de Graças. Mas a Grace sempre o tornou
agradável.
— Não era agradável com a tua família?
Julia contorceu-se.
— Não o celebrávamos propriamente.
— Porque não?
— Era eu que cozinhava, a não ser quando a minha mãe estava em
recuperação. E sempre que tentava fazer algo especial… — Abanou a
cabeça.
Gabriel apertou-a um pouco mais.
— Conta-me — pediu, num sussurro.
— Não queres ouvir isto.
Tentou voltar-se para o outro lado, mas ele segurou-a junto a si.
— Não quis aborrecer-te. Estou apenas a tentar conhecer-te.
O tom da voz de Gabriel prendia-a, era mais poderoso ainda do que as
suas palavras ou os seus braços. Julia respirou fundo.
— No meu último Dia de Ação de Graças em St. Louis, a Sharon estava
a apanhar uma bebedeira com um dos seus namorados. Mas eu, estúpida
que era, resolvi cozinhar uma receita da Martha Stewart… Frango recheado
no forno com puré de batata e vegetais. — Interrompeu-se.
— Tenho a certeza de que estava delicioso — disse Gabriel, incitando-a a
continuar.
— Nunca cheguei a saber.
— Porquê?
— Tive uma espécie de acidente.
— Julianne? — Gabriel tentou erguer-lhe o queixo para a olhar nos
olhos, mas Julia recusava-se a encará-lo. — Que aconteceu?
— Não tínhamos uma mesa de cozinha. Então, levei uma mesa articulada
para a sala e preparei três lugares. Foi uma estupidez, realmente. Não devia
ter-me dado ao trabalho. Pus toda a comida num tabuleiro para a levar para
a mesa, e o namorado da minha mãe pregou-me uma rasteira.
— De propósito?
— Viu que eu ia a passar.
Gabriel foi tomado por uma raiva instantânea, os seus punhos fecharam-
se.
— Estatelei-me no chão. Pratos partidos, comida por todo o lado.
— Magoaste-te muito? — perguntou Gabriel, entre dentes cerrados.
— Não me lembro. — A voz de Julia acalmou-se instantaneamente.
— A tua mãe ajudou-te?
Julia abanou a cabeça.
Gabriel fez um som gutural.
— Riram-se. Eu devia estar mesmo ridícula, de mãos e joelhos no chão, a
chorar, coberta de molho de carne. O frango deslizou pelos mosaicos e
parou debaixo de uma cadeira. — Fez uma pausa, pensativa. — Fiquei de
joelhos ainda um bom bocado. Tinhas tido um ataque se me tivesses visto.
Gabriel reprimiu o impulso de esmurrar a parede atrás da sua cabeça.
— Não teria tido um ataque. Teria espancado o tipo e ter-me-ia sentido
bastante tentado a chicoteá-la a ela.
Julia passou um dedo por sobre o punho dele.
— Acabaram por se aborrecer e foram para o quarto dela dar uma queca.
Nem se deram ao trabalho de fechar a porta. Foi o meu último dia de Ação
de Graças com a Sharon.
— A tua mãe lembra a Anne Sexton.
— A Sharon nunca escreveu poesia.
— Valha-me Deus, Julia. — Gabriel descerrou os punhos e apertou-a
contra o peito.
— Limpei tudo para não se enfurecerem comigo, depois meti-me num
autocarro. Vagueei até encontrar uma missão do Exército de Salvação.
Estavam a anunciar uma refeição de Ação de Graças para os sem-abrigo.
Ofereci-me como voluntária para a cozinha, e puseram-me a trabalhar.
— Foi assim que passaste o feriado?
Julia encolheu os ombros.
— Não podia ir para casa, e as pessoas foram amáveis. Depois de os
convidados terem sido servidos, jantei peru com os voluntários. Até me
deram restos para levar. E tarte. — Interrompeu-se, refletindo. — Nunca
ninguém me tinha feito uma tarte.
Gabriel tossicou.
— Julianne, porque não te levou o teu pai para longe dela?
— Não era sempre mau. — Julia começou a mexer-lhe na t-shirt,
apanhando algodão macio entre os dedos e puxando suavemente.
— Au. Cuidado — disse Gabriel, rindo. — Vais arrancar-me os poucos
pelos que me restam.
— Desculpa. — Julia alisou nervosamente o algodão. — O meu pai
viveu connosco até aos meus quatro anos, altura em que a minha mãe o pôs
fora. Foi morar para Selinsgrove, onde tinha crescido. Costumava telefonar-
me aos domingos. Um dia, estava a falar com ele e deixei escapar que um
dos namorados da minha mãe entrara no meu quarto na noite anterior, nu,
julgando que o meu quarto era a casa de banho. — Julia pigarreou e
começou a falar muito depressa, para que Gabriel não tivesse a
oportunidade de fazer aquela pergunta.
— O meu pai passou-se, queria saber se o tipo me tinha tocado. Não
tinha. Mandou-me chamar a minha mãe, e como lhe expliquei que não
podia ir incomodá-la quando um dos namorados lá estava, ele disse-me que
fosse para o meu quarto e que trancasse a porta. Claro que eu não tinha uma
chave para a porta. De manhã, bem cedo, o meu pai apareceu para me levar
para Selinsgrove. Creio que foi uma sorte o namorado já lá não estar
quando ele chegou. Acho que o meu pai o teria matado.
— Então, foste-te embora?
— Sim. O meu pai disse à Sharon que se ela não se livrasse dos
namorados e do álcool, ele me levaria de uma vez por todas. Ela aceitou
fazer uma cura de desintoxicação, e eu fui viver com ele.
— Que idade tinhas?
— Oito anos.
— Porque não ficaste com ele?
— Ele nunca estava em casa. Tinha um emprego muito exigente e por
vezes precisava de trabalhar ao fim de semana. Além disso, era voluntário
no Corpo de Bombeiros. Quando o ano letivo chegou ao fim, levou-me de
volta para St. Louis. A Sharon tinha acabado o tratamento e estava a
trabalhar como manicura. O meu pai pensou que eu ficaria bem.
— Mas voltaste para casa dele, não foi?
Julia hesitou.
— Podes contar-me, Julianne. — Gabriel estreitou os braços em seu
redor e esperou, afagando-lhe o cabelo. — Está tudo bem.
Julia engoliu em seco. A custo.
— No verão antes de eu fazer dezassete anos, o meu pai foi buscar-me
outra vez.
— Porquê?
— Eh… A Sharon bateu-me. Caí e bati com a cabeça na esquina do
balcão da cozinha. Telefonei ao meu pai do hospital, e disse-lhe que se ele
não fosse buscar-me, eu fugia. E foi assim. Não voltei a ver a minha mãe.
— Ficaste com alguma cicatriz?
Julia pegou-lhe na mão e levou-a até à sua nuca, deixando que Gabriel
tocasse numa linha de carne saliente onde o cabelo já não crescia.
— Custa-me muito que tenhas passado por tudo isso. Se pudesse, dava-
lhes uma tareia valente a todos… a começar pelo filho da mãe que é o teu
pai.
— Tive muita sorte, na verdade. A Sharon só me bateu uma vez.
— Nada do que me contaste se parece, nem remotamente, com sorte.
— Tenho sorte agora. Aqui, ninguém me bate. E tenho um amigo que me
alimenta.
Gabriel abanou a cabeça e praguejou.
— Devias ter sido mimada e adorada e tratada como uma princesa. Foi
isso que a Rachel teve.
— Não acredito em contos de fadas — sussurrou Julia.
— Gostava de te fazer acreditar. — Inclinou-se para ela e beijou-a na
testa.
— A realidade é melhor do que a fantasia, Gabriel.
— Não se a realidade for a fantasia.
Julia abanou a cabeça, mas sorriu.
— Posso fazer-te uma pergunta?
— Claro?
O sorriso dela esvaneceu-se.
— Tens alguma cicatriz?
O rosto de Gabriel permaneceu inalterado.
— Não se pode bater em algo que não se sabe que lá está.
Elevando-se um pouco, Julia encostou-lhe a cara à curva do pescoço.
— Lamento.
— É difícil dizer o que é pior: baterem-nos ou ignorarem-nos. Acho que
depende do tipo de dor que se prefere.
— Lamento muito, Gabriel. Não sabia.
Julia segurou-lhe na mão, entrelaçando os seus dedos nos dele, e respirou
fundo.
— Vais para casa agora? — perguntou.
— Só se quiseres que vá — respondeu Gabriel, e acariciou-lhe mais uma
vez o cabelo, tendo o cuidado de evitar o locar da cicatriz.
Julia pousou-lhe a cabeça no ombro e suspirou.
— Quero que fiques comigo.
— Então, fico.
Julia adormeceu, mas Gabriel permaneceu acordado, contemplando as
cicatrizes que ela lhe mostrara, interrogando-se com náusea e com raiva a
respeito das cicatrizes que ela não lhe revelara.
— Julia? — chamou baixinho. A respiração regular ao seu lado e a
ausência de resposta indicaram-lhe que ela estava a dormir.
— Não deixarei que ninguém te magoe.
Beijou-lhe a cara ao de leve.
— Muito menos eu próprio.
Capítulo Dezanove

N a manhã seguinte, Julia foi acordada pelos sons do chuveiro. Estava a


tentar perceber como podia outra pessoa que não ela estar a usar a sua
casa de banho, quando os sons se interromperam, e um homem alto, de
cabelo castanho, embrulhado numa pequena toalha roxa, apareceu à porta.
Julia esbugalhou os olhos de surpresa e arquejou, pondo uma mão sobre a
sua boca aberta.
— Bom-dia — disse Gabriel, agarrando com uma mão a toalha que
trazia, descaída, à cintura, enquanto pegava nas roupas com a mão que tinha
livre.
Julia não conseguia desviar os olhos dele. E não era para a sua cara que
estava a olhar.
Independentemente de onde o olhar de Julia pousara, o cabelo de Gabriel
estava molhado e em desalinho e cheio de pontas rebeldes. Gotas de água
escorriam dos seus ombros e do peito, e brilhavam-lhe na superfície da
tatuagem. Os contornos de tendões, músculos e veias, simetria e equilíbrio,
proporções ideais e linhas clássicas espantariam até a observadora casual.
Mas Julia era tudo menos uma observadora casual, pois passara a noite
inteira na cama com aquele mesmo corpo, que a estreitara nos seus braços
enquanto lhe afagava o cabelo. E aquele corpo estava associado a um belo
cérebro e a uma alma profunda e apaixonada.
Porém, o que Julia estava a contemplar era a sua forma física, pelo que o
termo semideus aquático lhe aflorou o pensamento.
Gabriel sorriu de orelha a orelha.
— Eu disse bom-dia, Julianne.
Ela fechou a boca.
— Eh… bom-dia.
Gabriel caminhou até junto dela, curvou-se e depositou-lhe nos lábios um
beijo de boca aberta, firme mas delicado. Salpicos de água caíram sobre os
lençóis.
— Dormiste bem?
Julia anuiu devagar, sentindo-se demasiado quente.
— Não estás muito conversadora. — Gabriel endireitou-se e sorriu
maliciosamente.
— Estás meio nu.
— É verdade. Preferias que estivesse completamente nu? — Em jeito de
provocação, deslocou a toalha junto às ancas, sorrindo.
Julia quase caiu para o lado, em choque.
— Estou a brincar, querida. — Beijou-a novamente, agora de sobrolho
franzido.
Ocorrera-lhe algo de inquietante. Recuou, uma expressão muito séria no
rosto.
— Estava a esquecer-me do que te aconteceu em St. Louis. Quando eras
pequena — clarificou. — Desculpa aparecer-te assim. Não pensei bem.
Julia olhava-o com uma admiração muda. Sorriu timidamente.
— Não faz mal. Estás apenas a desanuviar o ambiente. Pareces feliz, esta
manhã.
Gabriel voltou a sorrir.
— Partilhar uma cama contigo combina comigo. Posso fazer-te o
pequeno-almoço?
— Eh, claro. Mas já sabes que não tenho cozinha.
— Sou um homem cheio de recursos. — Gabriel fez um sorriso genuíno,
tão afetuoso que venceu o embaraço de Julia relativamente às suas
instalações.
Mesmo antes de ele fechar a porta da casa de banho atrás de si, Julia foi
brindada com um vislumbre dos mais belos músculos glúteos máximos,
quando Gabriel deixou cair a sua toalha roxa.
Julia ficou de boca aberta como um bacalhau.

N a noite seguinte, Rachel regressou a Filadélfia, terminadas as suas


férias românticas com Aaron, e foi imediatamente ouvir as mensagens
deixadas na sua ausência. Depois de uma chamada em grande excitação
para o pai, telefonou imediatamente a Gabriel, deixando-lhe uma
mensagem.
«Que raio se passa por aí, Gabriel? Que fizeste à Julia? Ela só
desapareceu uma vez na vida dela, e isso quando foi completamente
humilhada pelo ex-namorado! Por isso, que merda lhe fizeste? Juro-te que
apanho um avião. Telefona-me…
»A propósito, o pai manda dizer olá e que está contente por lhe teres
telefonado. Dava-te muito trabalho fazeres-lhe uma chamada todas as
semanas? Ele decidiu voltar a trabalhar porque não aguenta estar em casa
sozinho. Ah, a propósito, pôs a casa à venda.»
Depois, bastante preocupada com a sua melhor amiga, Rachel telefonou a
Julia e também deixou uma mensagem.
«Julia, que fez o Gabriel? Estava a disparatar como um louco no meu
voice mail. Não me atende o telefone, por isso não consigo ouvir o seu lado
da história. Também não tenho esperança de que ele me conte a verdade.
Seja como for, espero que estejas bem, e lamento muito tudo isto. O que
quer que ele tenha feito, por favor não me desapareças outras vez. Não
quando este é o nosso último Dia de Ação de Graças lá em casa. O meu pai
pôs a casa à venda. O Aaron continua a querer comprar-te um bilhete, por
isso telefona-me, está bem? Adoro-te.»
Depois, Rachel regressou à sua vida normal em Filadélfia, esperando
ansiosamente notícias do seu irmão e da sua melhor amiga. E planeando
tranquilamente um casamento.
Tendo convencido a irmã a não apanhar um avião para Toronto para lhe
dar uma tareia, e depois de falar com Richard para que ele tirasse a casa do
mercado, Gabriel deixou uma mensagem no voice mail de Julia, já que
nesse momento ela estava a falar com o seu pai.
«Parece que nunca atendes o telefone. [Ligeira irritação…] Não tens
aviso de chamada em espera? Queres fazer o favor de encomendar esse
serviço? Não quero saber quanto custa. Eu pago. Mas estou cansado de te
deixar mensagens. [Inspiração profunda.] Parto do princípio de que já
tiveste notícias da Rachel. Está furiosa comigo, mas acho que consegui
convencê-la de que eu e tu tivemos uma divergência académica e já nos
beijámos e fizemos as pazes. [Risadinha.] Bem, deixei de fora a parte dos
beijos.
»Talvez possas ligar-lhe e acalmá-la, antes que ela cumpra a sua ameaça
de se enfiar num avião. [Suspiro… Inspiração profunda.] Julianne, ontem
gostei muito de acordar ao teu lado. Mais do que consigo dizer a um
atendedor de chamadas. Diz-me que poderei voltar a acordar junto a ti em
breve. [Voz mais baixa, contida…] Estou sentado à frente da lareira,
desejando que estivesses aqui, nos meus braços. Telefona-me, principessa.»

E ntretanto, Julia falava com o pai.


— Fico contente por vires a casa, Jules. Vou estar de serviço, mas
havemos de conseguir passar algum tempo juntos… — As palavras de Tom
sumiram-se num ataque de tosse, quando ele tentava clarear a voz.
— Ótimo. A Rachel também quer que eu vá visitá-la. Vai casar-se, e acho
que precisa de ajuda com os preparativos, agora que não tem a Grace.
— A Deb convidou-me para jantar com ela e com os miúdos. De certeza
que não se importa que vás também.
— Valha-me Deus, não! — balbuciou Julia.
— Que foi isso?
— Desculpa, pai. Gostava de ver a Deb, mas nem pensar que vou lá a
casa. Nem pensar.
Tom calou-se por um instante, sentindo-se desconfortável.
— Também não preciso de ir. Eu, eh… estou sempre a ver a Deb.
Julia revirou os olhos.
— A que horas queres que te vá buscar ao aeroporto?
— Bem… O Gabriel Emerson está a viver em Toronto. Ele disse-me
qualquer coisa a respeito de ir a casa nesse fim de semana. Talvez eu tenha
boleia dos Clarks de Filadélfia para aí, se apanharmos o mesmo voo.
Tom ficou em silêncio por um ou dois segundos.
— O Gabriel está a viver aí?
— Dá aulas na universidade. Tenho um seminário com ele.
— Não me tinhas falado disso. Jules, tens de te manter afastada dele.
— Porquê?
— Porque ele só se mete em sarilhos.
— Porque dizes isso?
Tom pigarreou de novo.
— Não veio ver a mãe quando ela estava a morrer. Não passa tempo
nenhum com a família. Não confio nele, e não o quero perto da minha filha.
— Pai, ele é irmão da Rachel. Ela sabe que vou a casa nesse fim de
semana. E provavelmente é ela que vai buscar-nos ao aeroporto.
— Seja como for, não leves nada que lhe pertença contigo no avião, e
não aceites nada das suas mãos que tenha um aspeto suspeito. Vais passar
pela alfândega.
— Que queres dizer com isso?
— Quero dizer que estou a zelar por ti. Será que não posso fazer isso pela
minha única filha?
Julia reprimiu o impulso de dizer algo cruel ou mal-educado em resposta.
— Vou comprar o bilhete e depois volto a ligar-te.
— Ótimo. Falamos mais tarde.
E assim terminou a conversa pouco informativa de Julia com Thomas
Mitchell de Selinsgrove.
Passou a hora seguinte a tentar convencer Rachel de que sim, estava bem,
e não, Gabriel (por incrível que parecesse) não estava a portar-se como um
idiota. Também convenceu Aaron de que lhe sobrava dinheiro suficiente da
sua bolsa para comprar o bilhete de avião. Mencionou o convite que o pai
tivera para o Dia de Ação de Graças e prometeu que nessa noite jantaria
com os Clarks.
Já praticamente exausta, passou mais uma hora a convencer Gabriel de
que não era boa ideia partilharem uma cama todas as noites, sobretudo
porque alguém ligado à universidade podia vê-los a entrar ou a sair do
apartamento de um ou de outro. Gabriel aquiescera, não sem resmungar,
obrigando-a a prometer que voltaria a dormir em sua casa antes de
passarem sete dias.
Julia não queria que Gabriel perdesse o emprego por sua causa, pelo que
estava determinada a limitar as possibilidades de serem vistos juntos.
Estava também decidida a não passar todas as noites na cama dele, pois
sabia onde isso os levaria. Continuava a lutar por confiar em Gabriel, sendo
as suas reticências mais do que razoáveis, uma vez que ele só recentemente
mudara de atitude para consigo. Além do mais, Gabriel praticamente
admitira que a paixão estava a deixá-lo à beira de perder o controlo.
Julia não queria ser persuadida a fazer algo que não se sentia preparada
para fazer. Não queria dar-lhe uma parte de si e depois regressar a casa
sentindo-se só e usada, como tantas vezes acontecera com ele. Não, Gabriel
não era ele. Mas esse facto não a tornava menos cautelosa, embora quisesse
confiar no homem por quem estava apaixonada.
Apesar das suas defesas, Julia dormia muito mais tranquila com Gabriel
do que sem ele, e a cada dia que passava sem o ver, o seu coração sofria um
pouco mais.

Segunda-feira à tarde, a campainha da porta tocou. Lá fora estava um


funcionário de um serviço de entregas, segurando uma grande caixa branca.
Julia assinou e, ao voltar para dentro, abriu o cartão que vinha preso à caixa.
O cartão tinha as iniciais G. O. E. em relevo, no cimo, e vinha escrito à
mão:
Querida Julianne,
Obrigado por te teres partilhado comigo na noite de sexta-feira.
Tens um coração de leão.
Gostaria muito de te cativar, aos poucos,
mas sem as lágrimas ou o adeus.
Teu,
Gabriel

P.S. Tenho uma nova conta de e-mail, privada, ao teu dispor:


goe717@gmail.com

Julia abriu a caixa e foi imediatamente envolvida por uma fragrância


maravilhosa. No interior, para seu espanto, encontrava-se uma grande jarra
de vidro cheia de água e, suspensas à tona de água, sete gardénias. Julia
retirou cuidadosamente a jarra do seu embrulho e colocou-a sobre a mesa
articulada, inalando o perfume que se espalhava pela sala.
Releu o bilhete de Gabriel e abriu ansiosamente o seu portátil, para lhe
enviar uma mensagem rápida da sua conta de Gmail.
Querido Gabriel,
Obrigada pelas gardénias; são lindas.
Obrigada pelo teu cartão.
Obrigada por me escutares.
Anseio por te ver em breve,
Julia
Beijos

Na tarde de quarta-feira, Julia encontrou-se com Paul junto das caixas de


correio antes do seminário do professor Emerson. Trocaram piadas e
conversaram um pouco antes de serem rudemente interrompidos pelo
telemóvel de Julia. A chamada era (milagrosamente) de Dante Alighieri, e
por isso ela não ia deixar de atender.
— Tenho de atender esta chamada — murmurou a Paul, como que a
pedir desculpa, antes de sair para o corredor.
— Sim?
— Julianne.
Sorriu ao ouvir a voz dele.
— Olá.
— Jantas comigo?
Julia olhou em redor, certificando-se de que estava sozinha.
— Hum… que sugeres?
— Jantar em minha casa. Não te vejo desde sábado. Começo a pensar
que só estás interessada em correspondência eletrónica, agora que tens o
meu novo endereço. — Deu uma risadinha.
Julia respirou fundo, aliviada por ele não estar irritado com ela.
— Tenho andado a preparar-me para a minha próxima reunião com a
Katherine. Tu tens andado a trabalhar na tua palestra, por isso…
— Preciso de te ver.
— Também quero ver-te. Mas vamos ver-nos daqui a minutos.
— Preciso de falar contigo a esse respeito. Vamos ter de agir como se
nada se tivesse passado no meu último seminário. Vou ignorar-te, para ser
convincente. Queria dizer-te isto em antecipação, para que não ficasses
aborrecida. — Fez uma pausa. — Claro que tudo o que quero é tocar-te,
mas precisamos de manter as aparências.
— Compreendo.
— Julianne… — começou Gabriel, falando mais baixo. — A situação
desagrada-me tanto quanto a ti. Mas gostava que jantasses comigo esta
noite, para poder compensar-te. Depois podemos passar uma noite tranquila
em frente à lareira, e aproveitar a companhia um do outro. Antes de irmos
para a cama.
As faces de Julia ficaram imediatamente a arder.
— Também gostaria desse programa, mas estava a pensar trabalhar todo
o serão. Não acabei as revisões que a Katherine me pediu para fazer, e vou
encontrar-me com ela amanhã à tarde. Ela é muito exigente.
Gabriel começou a resmungar por entre dentes.
— Desculpa, Gabriel, mas quero deixá-la satisfeita.
— E que tal deixares-me a mim satisfeito?
— Eu… — Julia não sabia o que dizer.
Gabriel parecia ligeiramente irritado.
— Nesse caso, prometes encontrar-te comigo sexta à noite?
— Depois da tua palestra?
— Tenho um jantar. Gostava que fosses ter a minha casa depois disso.
— Não será demasiado tarde?
— Não para o que tenho em mente. Prometeste, lembras-te?
Julia sorriu ao pensar naquele novo, maduro, conceito de dormir fora que
só recentemente descobrira.
— Então, vemo-nos na sexta à noite? — A voz de Gabriel não passava
agora de um murmúrio sedutor.
— Sim. Tenho de arranjar uma desculpa para dar ao Paul. Vamos juntos à
palestra.
Do outro lado da linha, o silêncio encrespou-se.
— Está lá? — Julia mudou de lugar no corredor, esperando encontrar
rede. — Consegues ouvir-me?
— Sim. — O tom de Gabriel tornara-se subitamente glacial.
Scheisse, pensou ela.
Gabriel ficou calado ainda um instante, antes de voltar a falar.
— Tínhamos ou não tínhamos um acordo que excluía a partilha?
Duas vezes Scheisse.
— Eh… claro.
— Tenho cumprido a minha parte desse acordo.
— Gabriel, por favor…
Ele interrompeu-a.
— Diz-me que percebi mal o que acabaste de dizer.
— Eu e o Paul somos amigos. Ele pediu-me para ir com ele assistir à tua
palestra. Não vi mal nenhum nisso.
— Queres ver-me a sair com outras mulheres, como amigos? Que vá
acompanhado a acontecimentos públicos?
— Não — sussurrou Julia.
— Então trata-me com a mesma cortesia.
— Por favor, não fiques zangado comigo.
O seu pedido teve silêncio como resposta.
— O Paul é o único amigo que tenho. Estudar numa cidade estranha é
muito… solitário.
— Pensei que eu era teu amigo.
— Claro que és. Mas preciso de alguém com quem falar sobre as aulas e
o resto.
— Qualquer assunto relacionado com a universidade deve ser discutido
comigo.
— Por favor, não me obrigues a abdicar do único amigo que tenho, para
além de ti. Ficaria realmente isolada, já que não posso estar contigo a toda a
hora.
Gabriel vacilou.
— Disseste-lhe que estás envolvida com alguém?
Julia engoliu em seco.
— Não. Achei que era segredo.
— Ora, Julianne. És mais esperta do que isso. — Gabriel suspirou
audivelmente. — Está bem. Reconheço que precisas de um amigo, mas ele
tem de perceber que já não estás disponível. Já está demasiado empenhado,
tal como estão as coisas, e isso pode criar-nos um problema.
— Vou dizer-lhe que tenho um namorado novo. Combinámos ir ao
museu daqui a duas semanas para vermos…
Gabriel resmungou para o telefone.
— Não, não vão. Sou eu que te levo.
— Em público? Como?
— Deixa que seja eu a preocupar-me com isso. Bem, suponho que ele
levará os teus livros para a aula, daqui a pouco? — O tom era agora
sarcástico.
— Por favor, Gabriel.
Julia ouviu-o respirar fundo.
— Está bem. Vamos esquecer este assunto. Mas vou ficar de olho nele.
Quanto a sexta-feira, vou dar-te uma chave, ou telefono ao porteiro para ele
te deixar entrar.
— Combinado.
— Vejo-te daqui a minutos.

Q uando Julia e Paul chegaram à sala do seminário, O Professor já lá se


encontrava. Lançou-lhes uma olhadela, fulminou Paul, e concentrou-
se nos seus apontamentos. No entanto, Gabriel reparou, com satisfação, que
Julia trazia a sua mala à tiracolo. O gesto agradou-lhe profundamente.
Os restantes alunos, incluindo Christa, olharam de Julia para O Professor
e d’O Professor para Julia umas três ou quatro vezes. Era quase como
assistir a uma partida de ténis em Wimbledon.
Julia sentou-se na sua cadeira habitual, ao lado de Paul, e adotou de
imediato uma atitude deferente.
— Não estejas nervosa. Ele tem andado bem-disposto toda a semana.
Acho que hoje não vai aborrecer-te. — Paul aproximou-se, muito mais do
que seria desejável, para lhe sussurrar ao ouvido. — Deve ter dormido
acompanhado no fim de semana que passou.
O professor Emerson tossiu ruidosamente na frente da sala até Paul se
afastar de Julia.
Quanto a Julia, ficou desconcertada com o comentário de Paul. Manteve
a cabeça baixa, tomando abundantes notas no seu caderno. Era uma boa
distração, pois impedia-a de pensar na manhã de sábado e em como Gabriel
ficava sem roupa, molhado do duche, largando uma pequena toalha roxa…
O professor mal olhou para ela e nunca a chamou a comentar ou a
responder a qualquer questão. Em suma, o seminário foi uma colossal
deceção no que tinha a ver com entretenimento e deixou vários alunos
desiludidos. Christa, todavia, estava feliz por o curso do universo se ter
finalmente corrigido e estar (quase) como devia ser.
— Estão todos convidados para a palestra que vou dar sobre a luxúria no
Inferno de Dante, no Victoria College, sexta-feira às quinze horas. Vemo-
nos na próxima semana. Podem sair. — O Professor arrumou rapidamente
as suas coisas e abandonou a sala sem sequer olhar para trás.
Paul inclinou-se para Julia.
— E se te acompanhasse até casa? Podíamos comprar comida tailandesa
de caminho.
— Seria boa ideia fazeres-me companhia até casa. Mas provavelmente
vou trabalhar enquanto janto. E tenho uma coisa para te dizer…

N a manhã de sexta-feira, Julia pôs-se diante do seu pequeno roupeiro


perguntando-se o que havia de vestir. Sabia que Gabriel não ficaria
satisfeito de a ver sentada junto de Paul. Sabia que se encontraria com ele
mais tarde, no seu apartamento, e que passariam a noite juntos. Já tinha a
sua mala de tiracolo preparada para a visita.
Queria causar boa impressão. Queria que Gabriel reparasse nela entre
todas as outras mulheres e que a achasse bonita. Assim, pela primeira vez
naquele semestre, Julia decidiu vestir-se com elegância para ir para as aulas.
Escolheu um vestido preto com collants pretos opacos e umas botas altas de
pele também pretas, de salto alto, que Rachel a convencera a comprar anos
antes. Pôs joias simples — uns brincos de pérolas que tinham pertencido à
sua avó Mitchell — e uma écharpe roxa em volta do pescoço, pois receava
que o seu decote modesto acabasse por ser excessivo para uma palestra em
pleno dia.
Julia e Paul foram dos primeiros a chegar ao grande anfiteatro.
Escolheram rapidamente lugares ao fundo da sala, junto ao corredor, de
modo a não se tornarem notados. Os membros da faculdade ocupavam
geralmente os melhores lugares, nas primeiras filas, e os alunos de pós-
gaduação não se atreviam a desrespeitar essa norma.
Assim que entrou na sala, Julia sentiu a presença de Gabriel. Uma
estranha tensão vibrou entre ambos, mesmo à distância. Julia sentiu os
olhos dele postos em si, e sabia que ele a observava. Sabia que o seu olhar
depressa se tornaria zangado. Ao espreitar discretamente para a frente da
sala, confirmou as suas suspeitas. Paul pousara-lhe uma mão ao fundo das
costas, conduzindo-a para o seu lugar, e Gabriel olhava-o furiosamente.
Gabriel esboçou um sorriso para Julia, o seu olhar percorrendo-lhe o
corpo e demorando-se um pouco de mais nas suas botas de salto alto.
Depois voltou-se, e prosseguiu a sua conversa com um dos outros
professores.
Julia admirou a figura de Gabriel durante alguns minutos. Como sempre,
ele estava de cortar a respiração. Vestia um fato preto Armani muito
distinto, com uma camisa de punho duplo e uma gravata de seda preta.
Tinha os óculos postos, e usava um elegante par de sapatos pretos, que,
felizmente, não eram pontiagudos. Ao contrário, porém, do que seria de
esperar, trazia um colete por baixo do casaco, e como o casaco estava
desabotoado, Julia pôde ver a corrente de um relógio de ouro que lhe pendia
entre um dos botões do colete e um dos bolsos.
— Olha para ele. Colete e relógio de bolso? — segredou-lhe Paul,
abanando a cabeça. — Mas que idade tem este tipo? Aposto que tem um
retrato seu no sótão, a envelhecer rapidamente.
Julia reprimiu um sorriso, mas nada disse.
— Sabes o que me mandou fazer ontem?
Ela abanou a cabeça em resposta.
— Mandou-me guardar algumas das suas preciosas canetas numa caixa,
fazer-lhes um seguro, e enviá-las para uma oficina. Dá para acreditar nisto?
— Para uma oficina?
— Sim, uma oficina de canetas de tinta permanente, onde reparam as
canetas de tarados que têm muito mais dinheiro do que deviam. E
demasiado tempo nas mãos. Ou nos bolsos.
Julia abafou o riso e desligou o seu telemóvel.

T endo recuperado da gripe suína, o professor Jeremy H. Martin,


professor catedrático de Estudos Italianos, deu as boas-vindas a uma
multidão de cerca de cem pessoas e apresentou-lhes uma descrição
empolgada da investigação e do trabalho realizado pelo professor Emerson.
Julia via como Gabriel se remexia na sua cadeira, como se todos aqueles
elogios e as palavras elegantes lhe desagradassem. Os olhos dele
encontraram os seus, e Julia sorriu-lhe encorajadoramente, apercebendo-se
logo em seguida de como os seus ombros relaxavam.
O professor Martin estava orgulhoso do professor Emerson, e não tinha
escrúpulos em demonstrá-lo. No seu entender, Gabriel fora um dos
contratados mais promissores do departamento e confirmara todo o seu
potencial. Não tardara a tornar-se professor titular, na sequência da
publicação do seu primeiro livro pela Oxford University Press, e estava
bem encaminhado para vir um dia a ser tão conceituado como Katherine
Picton. Pelo menos, o professor Martin assim o esperava.
Depois de um aplauso tímido, Gabriel dirigiu-se para o centro do palco,
espalhando as suas notas sobre a estante de leitura e verificando a sua
apresentação em PowerPoint. O seu olhar deslizou pela plateia — o
professor Martin sorria de expectativa, a menina Peterson esgueirara-se
para um dos lugares da frente e passava maliciosamente os dedos pelo
decote, enquanto os seus colegas estavam sentados em silêncio,
aparentemente interessados no tema da palestra.
Uma exceção flagrante encontrava-se logo na primeira fila. Tratava-se de
uma professora que não tinha interesse na sua investigação nem nos seus
méritos académicos. Não, os seus interesses eram muito mais libertinos, e
parecia a Gabriel que ela queria evidenciá-los naquele preciso momento, a
sua língua rosada humedecendo os lábios carmim. Era perversa. Predatória.
E Gabriel sentiu-se desconfortável ao perceber que ela o fitava com o seu
olhar sinuoso, sentada na mesma sala onde estava Julia. Sabia que o seu
passado o ameaçava a cada esquina, mas Deus o ajudasse se as duas
mulheres alguma vez se conhecessem.
Desviando os olhos da professora loura, fez um sorriso forçado para a
assistência. Procurou rapidamente o rosto bonito de Julia, indo buscar
forças à sua expressão doce, e então começou.
— O título da minha palestra é “A Luxúria no Inferno de Dante: O
Pecado Mortal Contra o Eu”. A uma primeira análise, perguntar-nos-emos,
talvez, como poderá a luxúria ser um pecado contra o eu, uma vez que é
dirigida ao outro, tratando-se do uso de outro ser humano para satisfação
sexual pessoal.
Chegou aos ouvidos de Gabriel um gemido abafado, vindo da primeira
fila, mas ele ignorou-o, limitando-se a endurecer a sua expressão.
— As noções de Dante sobre o amor inspiraram-se, em larga medida, nos
escritos de São Tomás de Aquino. Na sua famosa obra Summa Theologiae,
Aquino defende que qualquer má ação ou pecado é uma forma de
autodestruição. Parte do princípio de que ser racional e bom é algo que está
na própria natureza do ser humano. Aquino concebe esta natureza, a do
animal racional, como tendo sido criada por Deus para praticar a bondade,
mais especificamente, as virtudes.
»Quando um ser humano se afasta deste propósito natural, fere-se a si
próprio, pois faz aquilo que não é suposto fazer. Está a lutar contra si,
contra a sua própria natureza.
Christa Peterson inclinou-se para a frente, como que prestando uma
atenção enlevada.
— A que deve Aquino esta sua visão peculiar do pecado?
»Em primeiro lugar, aceita a afirmação de Boethius de que a bondade e o
ser são conversíveis. Por outras palavras, tudo o que existe possui alguma
bondade, porque foi feito por Deus. E por muito defeituoso ou destruído ou
pecaminoso, esse ser retém algo de bom enquanto existir.
Gabriel premiu um botão, e a primeira imagem surgiu no ecrã à sua
esquerda. Julia reconheceu a ilustração de Lúcifer da autoria de Botticelli.
— Segundo esta perspetiva, ninguém, nem mesmo Lúcifer, envolvido em
gelo no fundo do Inferno de Dante, é absolutamente mau. O mal só pode
alimentar-se do bem, como um parasita; se toda a bondade de uma criatura
fosse eliminada, a criatura em questão deixaria de existir.
Gabriel sentiu um par de olhos astutos fixados em si, troçando da sua tola
argumentação baseada em conceitos tão burgueses como o bem e o mal.
Pigarreou.
— É uma forma de pensar estranha para muitos de nós: a ideia de que até
um anjo caído, condenado a viver no Inferno, tenha ainda um resquício de
bondade. — Os seus olhos vaguearam até Julia, onde se demoraram breves
instantes, para que ela os visse suplicar. — A bondade que implora por ser
reconhecida, apesar da triste e desesperada atração do anjo caído pelo
pecado.
Surgiu no ecrã mais uma ilustração de Botticelli, desta vez Dante e
Beatriz e as estrelas fixas do Paraíso. Era a cena do quadro que Gabriel
mostrara a Julia, da sua coleção privada.
— Neste fundo de bem e de mal, consideremos agora as personagens de
Dante e de Beatriz. Têm uma relação que tipifica o amor cortês. No
contexto d’A Divina Comédia, Beatriz está associada a Virgílio. Ela recorre
a Virgílio para que guie o seu amado Dante através do Inferno, pois não
pode viajar até lá, uma vez que reside em permanência no Paraíso. Ao
estabelecer esta ligação entre Beatriz e Virgílio, Dante revela-nos a sua
noção de que o amor cortês está ligado à razão, e não à paixão.
Ao escutar a referência a Beatriz, Julia remexeu-se na cadeira, mantendo
a cabeça curvada, não fosse deixar transparecer algo na sua expressão. Paul
reparou naquela inquietação e, interpretando-a erradamente, segurou a mão
de Julia na sua, apertando-a gentilmente. Gabriel estava demasiado longe
para se aperceber, mas, ao ver que Paul se voltara para Julia e que a mão
dele desaparecera junto ao colo dela, o professor distraiu-se
momentaneamente.
Tossiu, e os olhos de Julia voaram apressadamente na direção dos seus,
ao mesmo tempo que ela libertava a sua mão da de Paul.
— Mas que dizer da luxúria? — continuou. — Se o amor é o coelho, a
luxúria é o lobo. Dante di-lo explicitamente quando identifica a luxúria
como um pecado de uma voracidade própria do lobo, um pecado em que a
paixão se sobrepõe à razão.
Ao ouvir isto, Christa deslizou para a beira do seu assento, inclinando-se
para a frente de modo a que Gabriel, no púlpito, pudesse espreitar-lhe o
decote. Infelizmente para ela, O Professor nem reparou, pois estava
demasiado ocupado a projetar a imagem seguinte, a escultura de Rodin, Le
Baiser.
— Dante coloca Paolo e Francesca no Círculo dos Libidinosos. Por
estranho que pareça, a história da queda deste par está ligada à tradição do
amor cortês. No momento do seu abandono lascivo, estavam a ler sobre o
adultério de Lancelote e da rainha Guinevere. — Gabriel sorriu
maliciosamente. — Talvez fosse o equivalente medieval de preliminares
induzidos por pornografia.
Uma onda de riso educado percorreu o anfiteatro.
— No caso de Paolo e Francesca, a paixão levou a melhor sobre a razão,
que os devia ter mantido afastados, já que um deles pertencia a outra
pessoa.
Gabriel lançou a Paul um olhar furioso e sugestivo. Mas Paul julgou que
o olhar fosse dirigido a outra pessoa, talvez a Julia ou a alguma das
mulheres sentadas à sua frente, pelo que não reagiu. Perante a indiferença
de Paul, os olhos azuis de Gabriel tornaram-se verdes como os de um
dragão. Só lhe faltava cuspir fogo.
— Talvez esta situação tenha um paralelo na relação de posse que existe
entre um casal enamorado. Se um elemento estranho tentar aceder aos
prazeres que devem estar reservados ao casal, sem dúvida que tal será
motivo de raiva e ciúme. — A voz de Gabriel tornara-se acutilante.
Julia encolheu-se e desviou-se um pouco para a sua esquerda, afastando-
se de Paul.
— Mas o facto de Dante ver em Paolo e Francesca, como em Lancelote e
Guinevere, uma corrupção da tradição do amor cortês mostra que está
ciente dos perigos que envolvem os seus sentimentos por Beatriz. Se a
paixão de Dante viesse a sobrepor-se à sua razão, arruinaria as vidas de
ambos e expô-los-ia ao escândalo. Assim, o destino de Paolo e Francesca é
um aviso muito pessoal para Dante, que sabe que terá de manter o seu afeto
por Beatriz casto. Tal não é tarefa fácil, tendo em conta a beleza e os
encantos de Beatriz, e o profundo desejo que o poeta sente por ela.
Julia corou.
— Que este ponto fique claro: apesar de estarem separados durante anos,
Dante sofre por Beatriz. Quer tê-la, em todos os sentidos. E a sua castidade
é tão virtuosa precisamente pela força e pelo desespero do seu desejo.
Gabriel fez uma pausa, e os olhos sinuosos da primeira fila seguiram o
seu olhar até Julia, voltando depois a fixar-se nele. Gabriel respondeu com
uma expressão colérica, e prosseguiu.
— Na filosofia de Dante, a luxúria é um amor destorcido, mas amor
ainda assim. Por essa razão, é o menor dos sete pecados mortais, e é por
isso que Dante situa o Círculo dos Libidinosos logo abaixo do Limbo. A
luxúria está ligada ao maior dos prazeres terrenos…
Os olhos de Gabriel dispararam na direção de Julia, e ela fitou-o também,
petrificada.
— O sexo, na sua plenitude, é visto como algo não meramente físico,
mas espiritual: uma união extática de dois corpos e duas almas, uma
reprodução da alegria e do arrebatamento da união com o Divino no
Paraíso. Dois corpos unidos no prazer. Duas almas unidas através da ligação
entre dois corpos, e a entrega plena, entusiástica e abnegada do ser.
Julia tentou não estremecer ao recordar como se sentira naquela noite,
quando Gabriel lhe lambera os dedos um a um, limpando-os do bolo de
chocolate. A sala começou a parecer quente de mais, e várias pessoas se
remexiam nos seus lugares.
— Será, talvez, pedante referir que se uma pessoa se retrai e não se
entrega totalmente durante a relação sexual, o orgasmo não acontecerá. O
resultado é tensão, frustração, e um parceiro insatisfeito. O momento do
orgasmo é um antegosto da absoluta transcendência e de um prazer pleno,
arrebatador. O tipo de prazer em que todos os nossos impulsos e desejos
mais profundos são totalmente satisfeitos.
Vendo Julia cruzar e descruzar as pernas, Gabriel sorriu para consigo,
deleitando-se com aquela reação enquanto se interrompia para beber um
pouco de água.
— A ideia de orgasmos simultâneos, o êxtase do de um parceiro coincidir
com o do outro, sublinha a intimidade partilhada de uma união física e
espiritual. Uma sequência em que os parceiros arquejam, se contorcem, se
tocam, anseiam, se entregam e, por fim, num momento glorioso, se vêm.
Gabriel fez uma pausa, impedindo-se de olhar para Julia, pois não queria
chamar a atenção para a sua cabeça curvada e para o seu rosto ruborizado.
Tossicou e fez um sorriso forçado.
— Alguém se sente a desfalecer?
Um riso bem-disposto mas contido ecoou pelo anfiteatro. Christa ergueu
o cabelo do pescoço e começou a abanar-se com um exemplar do livro de
Gabriel.
— Creio que as minhas palavras ilustraram a tese de Dante,
nomeadamente, que a luxúria é suficientemente poderosa para distrair a
mente, a faculdade da razão, e para a levar a centrar-se em preocupações
terrenas, carnais, em vez de se elevar para contemplar as preocupações
celestiais, isto é, Deus. Não duvido que muitos de entre vós preferissem
correr para casa ao encontro do amante, ou da amante, em vez de aqui
continuarem a ouvir a minha palestra árida.
Riu-se, ignorando completamente a professora na fila da frente que tirara
da mala um objeto obsceno com o intuito de o provocar.
— A luxúria, que é um pecado mortal, tem o seu oposto no amor. Aquino
defende que um amante se relaciona com o objeto do seu amor como se este
fosse uma parte de si próprio.
Ao dizer estas palavras, Gabriel sorriu docemente e a sua expressão
suavizou-se.
— As alegrias e a beleza da intimidade sexual, expressas num ato sexual
de comunhão, são o resultado natural do amor. Neste caso, como
certamente ficará claro, o sexo não pode ser identificado com luxúria. Daí a
distinção moderna feita na linguagem corrente entre, perdoem-me a
vulgaridade, foder e fazer amor. Mas o sexo também não é idêntico ao
amor, como a tradição do amor cortês demonstra. Podemos amar casta e
apaixonadamente uma amiga sem termos relações sexuais com ela.
»No Paraíso de Dante, a luxúria transforma-se em caridade, a mais
verdadeira e mais pura manifestação do amor. No Paraíso, a alma liberta-se
do desejo, pois todas as suas vontades foram satisfeitas, e é tomada pela
alegria. Já não sente culpa pelos seus pecados anteriores, mas goza de uma
liberdade e de uma realização plenas. O tempo que me resta não me
permite, no entanto, proceder a uma análise mais completa do Paraíso.
»Em A Divina Comédia, encontramos a dicotomia de luxúria e caridade,
bem como uma poderosa manifestação da castidade do amor cortês,
representada pela relação entre Dante e Beatriz. Este ideal de amor cortês
tem, possivelmente, a sua melhor expressão nas palavras da própria Beatriz,
Apparuit iam beatitudo vestra. Ou seja, “Agora aparece a tua bem-
aventurança”. Nenhumas palavras foram mais verdadeiras. Obrigado.
A assistência irrompeu num aplauso educado e ouviram-se murmúrios de
aprovação. O Professor começou então a responder às questões do seu
público. Como era tradição, os docentes efetivos da faculdade foram os
primeiros a ter a palavra, enquanto os estudantes de pós-graduação
aguardavam pacientemente a sua vez.
(Isto porque a Academia, à semelhança da Europa na Idade Média,
encontrava-se organizada segundo um sistema de classes.)
Julia permanecia imóvel, tentando absorver o que achava que ouvira
durante a palestra de Gabriel. Repetia para consigo algumas das afirmações
mais profundas, quando Paul se aproximou para lhe falar ao ouvido.
— Não podemos perder isto. O Emerson vai ignorar a Christa.
De onde estavam sentados, não conseguiam ver o decote ousado da
colega (o que era uma bênção). Christa continuava inclinada para a frente, e
agora tinha uma mão no ar, tentando chamar a atenção d’O Professor. Ele
parecia evitá-la deliberadamente, indicando outras pessoas e apresentando
respostas ponderadas. Finalmente, o professor Martin levantou-se para
anunciar que o tempo reservado às perguntas tinha terminado. Só então
Christa baixou o braço, um olhar zangado ensombrando-lhe o belo rosto.
Houve mais uma vaga de aplauso, e Gabriel desceu do púlpito. Foi
imediatamente felicitado por uma morena de estatura média, uma
professora que aparentava uns trinta e cinco anos ou pouco mais. Apertaram
as mãos.
— Viste aquilo? — disse Paul, soprando. — Claro que ele não ia deixar a
Christa fazer uma pergunta numa ocasião como esta. Tem medo que ela se
ponha de pé e lhe atire um sutiã, ou que levante um cartaz a dizer “Amo
Emerson”.
Julia riu-se, observando a professora morena que conversava com
Gabriel e vendo-a depois afastar-se para falar com outra pessoa.
— Admira-me que ninguém tenha corrigido o erro do Emerson. — Paul
coçava as patilhas, refletindo.
— Que erro?
— Ele atribuiu a citação Apparuit iam beatitudo vestra a Beatriz, mas
todos sabemos que pertence a Dante. Ele diz estas palavras na segunda
secção de La Vita Nuova, quando encontra Beatriz pela primeira vez.
Claro que Julia sabia que assim era, mas nunca faria tal comentário, pelo
que ficou calada.
Paul encolheu os ombros.
— Só pode ter sido um lapso. O homem consegue recitar aqueles textos
de cor, em italiano e em inglês. Só achei piada que o Professor Perfeito
tenha cometido um erro bastante evidente e que ninguém o tenha corrigido.
— Riu para consigo. — Se calhar foi por isso que a Christa levantou o
braço.
Julia anuiu. Sabia que o erro de Gabriel fora intencional. Mas não o diria
a ninguém. Muito menos a Paul.
Ele olhou-a com admiração.
— Estás bonita, hoje. Quero dizer, estás sempre bonita, mas hoje
pareces… radiosa. — A expressão de Paul tornou-se séria. — Espero não
estar a desrespeitar o teu namorado por dizer isto. Como é que disseste que
ele se chamava?
— Owen.
— Bem, lê-se nos teus olhos. É óbvio que estás feliz por terem voltado.
Depois de semanas a ver-te triste, fico contente de te ver feliz.
— Obrigada — murmurou Julia.
— Mas porquê o vestido?
Julia olhou em redor.
— Não sabia se as pessoas vinham bem vestidas para estas ocasiões.
Sabia que os professores cá estariam todos, e quis causar boa impressão.
Paul deu uma gargalhada.
— As mulheres do meio académico não costumam preocupar-se com a
moda — disse, abanando a cabeça, tocando-lhe delicadamente na mão. —
Espero que desta vez o teu namorado te trate bem. Senão, vou a Filadélfia
dar-lhe uma sova.
Julia já não estava muito atenta ao que Paul dizia, pois vira uma loura
baixinha cumprimentar Gabriel com dois beijos na cara.
Ergueu as sobrancelhas, surpreendida.
E andava O Professor a dar-me sermões por causa do Paul. Achei que
não íamos partilhar-nos.
Paul sussurrou qualquer coisa.
— Que foi? — perguntou-lhe Julia.
— Bem, a palestra foi excelente. Já percebes porque vim trabalhar com o
Emerson. — Paul olhou para Gabriel de relance. — Mas olha só para eles.
Como se os tivesse escutado, a loura atirou a cabeça para trás, rindo alto,
enquanto Emerson esboçava um sorriso tenso. Tinha pouco mais de metro e
meio, e trazia o cabelo louro muito esticado e preso num carrapito severo.
Usava uns óculos Armani, vermelhos e de aros quadrados, e um fato preto
de aspeto caro, com uma saia muito justa que mal lhe chegava aos joelhos.
Julia também reparou que a mulher usava uns sapatos clássicos, com saltos
muito altos, e umas meias de rede que só teriam apanhado os peixes
maiores…
Era uma mulher bonita, mas parecia deslocada no meio de todos aqueles
académicos. E havia na sua presença algo de inequivocamente agressivo.
— É a professora Singer — disse Paul, com uma careta.
— A loura?
— Sim, a mulher de cabelo escuro à sua esquerda é a professora
Leaming. É fantástica, tens de a conhecer. Mas fica longe da Singer. É uma
dragoa.
Julia sentiu o seu estômago dar uma volta, ao ver a professora Singer
agarrar no braço de Gabriel com demasiada familiaridade, enterrando as
unhas no seu casaco e pondo-se em bicos de pés para lhe segredar ao
ouvido. A expressão de Gabriel manteve-se inalterada.
— Porque dizes isso? — perguntou Julia.
— Já viste a página dela na internet?
— Não.
— Ainda bem para ti. Ficavas chocada se visses aquilo. Chamam-lhe
Professora Tortura.
Contorcendo as mãos, Julia desviou com relutância o olhar da triste cena
representada pelos professores Emerson e Tortura. Perguntou-se se o nome
próprio da professora seria Paulina.
Desagradada com o que via, pegou no casaco e levantou-se.
— Acho que está na hora de irmos embora.
— Acompanho-te até casa. — Sempre atencioso, Paul segurou-lhe no
casaco.
Tinham deixado os seus lugares e encaminhavam-se para a saída quando
o professor Martin, o catedrático de Estudos Italianos, fez sinal a Paul para
que se aproximasse.
— É só um minuto. Espera por mim.
Julia voltou a sentar-se, e pôs-se a rodar os botões do casaco como forma
de distração.
Gabriel não voltara a olhar para ela e, pela sua linguagem corporal, Julia
suspeitava que ele estava a evitá-la. Paul trocou algumas palavras com o
professor Martin, depois do que se voltou para trás e apontou na direção de
Julia. O professor anuiu e deu uma palmadinha nas costas de Paul, que
voltou para junto de Julia, visivelmente satisfeito.
— Bem, nem vais acreditar.
Julia ergueu as sobrancelhas.
— Fomos convidados para o jantar da faculdade em honra da palestra do
Emerson.
— Estás a brincar.
— Não. Ao que parece, o orçamento cobre o jantar de uns quantos alunos
de pós-graduação, e o professor Martin decidiu convidar-me. Quando lhe
disse que estava contigo, ele convidou-te também — explicou Paul,
piscando-lhe o olho. — Pobre Christa, não está na lista de convidados.
Parece que este é o teu dia de sorte.
Nesse instante, os olhos de Gabriel encontraram os de Julia. Gabriel
estava aborrecido, zangado até, e abanava-lhe a cabeça.
Julia apertou os lábios teimosamente. Como pode ele estar com ciúmes
do Paul, quando tem a professora Tortura a atirar-se a ele daquela
maneira? Parece que temos aqui duas medidas.
— Não precisamos de ir, se não quiseres. — Paul pigarreou. — O
Emerson foi um idiota contigo. Não deves querer celebrar o seu último
sucesso com um jantar de paelha.
— Seria falta de educação recusar um convite do catedrático —
murmurou Julia.
— Acho que tens razão. Vamos, prometo que vai ser divertido. O jantar é
no Segovia, que é um ótimo restaurante. Mas só está marcado para as sete.
Queres ir ao Starbucks, entretanto? Ou a outro lugar? — Paul estendeu-lhe
a mão, ajudando-a a levantar-se.
— O Starbucks parece-me bem.
Minutos depois de terem saído do edifício, Julia arranjou finalmente
coragem para fazer uma pergunta que estava a perturbá-la.
— Conheces bem a professora Singer? — Tentou falar num tom
descontraído.
— Não. Mantenho-me à distância. — Paul praguejou. — Quem me dera
esquecer os e-mails que ela enviou ao Emerson. Ficaram-me gravados na
mente.
— Qual é o primeiro nome dela?
— Ann.
Capítulo Vinte

J ulia quis oferecer um café a Paul, e pagou-o sub-repticiamente com um


cartão do Starbucks — um cartão com a imagem de uma lâmpada.
Quando, mais tarde, entraram pela porta do Segovia, foram recebidos por
um simpático hispânico que se identificou como o dono do restaurante. Para
sua satisfação, Paul dirigiu-se-lhe em espanhol.
As paredes do Segovia estavam pintadas de um amarelo soalheiro e
exibiam imagens do desenho de Picasso de Dom Quixote e Sancho Panza.
Um guitarrista clássico, sentado a um canto, tocava composições do
maestro Segovia. E no centro da sala encontravam-se longas mesas
dispostas num quadrado, o espaço reservado para o jantar da faculdade.
Dada aquela configuração geométrica, todos os convidados ficariam,
inevitavelmente, de frente uns para os outros. Julia não estava satisfeita com
a perspetiva de encarar a professora Tortura, e se tivesse encontrado uma
forma de se escapulir sem insultar o professor Martin e sem chamar uma
atenção indesejada, teria certamente saído.
Paul escolheu lugares num dos cantos mais afastados da mesa, pois, mais
uma vez, estando ciente do sistema de classes, sabia que não lhe cabia um
lugar de honra. Enquanto ele discutia o menu com o empregado en español,
Julia, que refletia em silêncio sobre o ciúme de Gabriel, ligou discretamente
o telemóvel para lhe enviar uma mensagem. Mas já tinha uma mensagem
não lida à sua espera.
Não vás ao jantar. Arranja uma desculpa para o Paul.
Espera-me em minha casa; o porteiro entrega-te a chave.
Explico mais tarde. Por favor, faz o que te peço. — G.

Julia ficou de olhos fixos no monitor, até Paul lhe tocar ao de leve no
cotovelo.
— Queres uma bebida?
— Hum, acho que estamos fora de época para sangria, mas tomo um
pouco, se tiverem.
— A nossa sangria é excelente — disse o empregado, partindo em
seguida para ir buscar as suas bebidas.
Julia olhou para Paul em jeito de desculpa.
— Tenho uma mensagem do Owen, mas não quero ser mal-educada.
— Não há problema — disse Paul, pondo-se a ler o menu enquanto Julia
escrevia uma resposta rápida.
Tinha o telefone desligado. É demasiado tarde, já cá estou.
Não tens razão nenhuma para ciúmes — vou para casa contigo.
Vais ter-me na tua cama até de manhã. — J.

Enfiou o telemóvel na mala, rezando em pensamento para que Gabriel


não estivesse muito zangado. Ó deuses de todos os (completar com a
descrição adequada de Gabriel e da nossa relação) superprotetores e
ciumentos, por favor não o deixem fazer uma cena. Não diante dos seus
colegas.
Infelizmente para Julia e para quem quer que estivesse a escrever-lhe, a
sua mala abafou o som de aviso de uma nova mensagem, que chegou pouco
depois.
Passados vinte minutos, os restantes convidados começaram a chegar. A
professora Leaming e alguns dos outros professores ficaram sentados ao
lado de Paul. No lado oposto, Gabriel ficou ensanduichado entre o professor
Martin e a professora Singer.
Ao ver Gabriel e os seus vizinhos, Julia começou a beber a sangria um
pouco depressa de mais, esperando que lhe enchessem de novo o copo, para
aliviar a tensão que crepitava no ar. A sangria estava deliciosa e repleta de
citrinos, o que lhe agradava particularmente.
— Tens frio? — Paul apontou a écharpe roxa que lhe envolvia
elegantemente o pescoço.
— Nem por isso. — Retirou lentamente a écharpe e colocou-a sobre a
mala.
Quando o decote de Julia e a pele branca do seu pescoço se tornaram
visíveis, Paul desviou educadamente os olhos. Achava Julia linda, e o seu
corpo, embora pequeno, fora abençoado com seios generosos, que lhe
davam uma forma muito elegante e bem proporcionada.
Mal Julia tirou a sua écharpe, um par de olhos azuis ciumentos
dispararam por sobre a mesa, apoderando-se avidamente da sua pele recém-
exposta, antes de procederem a uma retirada apressada.
— Paul, que sabes da professora Singer? — Julia falava baixo, por detrás
do seu copo de sangria.
Paul reparou que Singer estava sentada muito perto de Emerson, e viu
este último afastar subtilmente a sua cadeira. Em resposta, ela aproximou-se
mais ainda. Mas Julia não se apercebeu de nada disto.
— Ela e o Emerson tiveram um caso. Parece que voltaram — disse Paul,
abafando o riso. — Acho que descobrimos a razão do bom humor dele esta
semana.
Julia abriu muito os olhos, sentindo uma náusea.
— Então ela era… namorada dele?
Paul aproximou-se um pouco mais, para que a professora Leaming não
pudesse ouvi-los. Claro que a entrada em cena de uma bailarina de
flamenco, que agora dançava ao som das notas altas da guitarra, tornava a
sua tarefa bastante mais fácil.
— Dá-me um segundo. — Passou a Julia um prato de tapas. —
Experimenta isto. É chouriço e queijo Manchego, e tostas com Cabrales,
um queijo azul espanhol.
Julia serviu-se, provando os aperitivos enquanto aguardava ansiosamente
uma resposta.
— A Singer não tem namorados. Gosta de dor. E de controlo. Estás a
perceber…? — Paul interrompeu-se, sugestivamente.
Julia pestanejou, incrédula.
— Viste o Pulp Fiction? — perguntou-lhe Paul.
Julia abanou a cabeça.
— Não gosto do Quentin Tarantino. É demasiado sombrio.
— Nesse caso, digamos que a Singer gosta de ser medieval… na sua vida
privada… no que toca aos traseiros dos outros. E não tem problemas em
que toda a gente o saiba. Pesquisa esse tipo de coisa e publica as suas
descobertas online.
Julia engoliu rapidamente um pedaço de chouriço.
— Então, isso quer dizer que ele…
— É um sacana tarado como ela. Mas é um investigador e peras, como
viste esta tarde. Tento não pensar no que se passa na sua vida privada. Acho
que os amantes devem tratar-se com carinho. Não que o que eles fazem
tenha alguma coisa a ver com sentimentos.
Paul olhou cautelosamente em redor antes de sussurrar ao ouvido de
Julia.
— Acho que quando se gosta de alguém o suficiente para se ter sexo,
então deve-se gostar dessa pessoa o suficiente para a respeitar e para não a
tratar como um objeto. Deve-se ser responsável e carinhoso e nunca, nunca
a magoar. Mesmo que a outra pessoa seja tarada ao ponto de o implorar.
Julia estremeceu e bebeu um grande gole do seu segundo copo de
sangria.
Paul recostou-se na sua cadeira.
— Não consigo, de todo, envolver-me com alguém que procure dor,
muito menos no sexo. É suposto o sexo ter a ver com prazer e com afeto.
Achas que Dante teria atado Beatriz e usado um chicote?
Julia hesitou, depois abanou a cabeça.
— Quando estava a tirar a licenciatura em St. Mike, fiz uma cadeira de
Filosofia do Sexo, do Amor e da Amizade. Falámos sobre consentimento.
Sabes o que toda a gente diz, não é verdade? Que desde que se trate de um
ato consentido entre adultos, está tudo bem. Mas o nosso professor
perguntou-nos se achávamos que um ser humano devia consentir uma
injustiça, como vender-se para escravatura.
— Ninguém quer ser escravo.
— Querem, no mundo da professora Tortura. Algumas pessoas vendem-
se para escravatura sexual, voluntariamente. Nesse caso, não há problema
com a escravatura, se o escravo quiser ser escravo? Pode alguém, no seu
perfeito juízo, consentir tal coisa, ou essa pessoa é, simplesmente,
irracional, uma vez que quer escravizar-se?
Julia começou a sentir-se profundamente desconfortável por estar a ter
aquela conversa tão perto de Gabriel e da professora Tortura, por isso
engoliu o resto da sua sangria e apressou-se a mudar de assunto.
— Qual é o tema da tua dissertação, Paul? Acho que não chegaste a
dizer-me.
Paul deu uma risadinha.
— O prazer e a visão beatífica. É uma comparação entre os pecados
mortais associados ao prazer (luxúria, gula e avareza) e o prazer da visão
beatífica no Paraíso. O Emerson é um orientador extraordinário, mas, como
disse, mantenho-me longe da sua vida privada. Embora ele desse um
excelente estudo de caso para o Segundo Círculo do Inferno.
— Não consigo compreender porque não quer toda a gente apenas
bondade — disse Julia, pensativa, mais para consigo do que para o seu
amigo.
— É o mundo em que vivemos — disse-lhe Paul, com um sorriso
genuíno. — Espero que o teu namorado seja bom para ti. Ainda bem que
encontraste alguém que não se mete nessas merdas doentias.
Nesse instante, foram interrompidos pelo empregado, e por isso Paul não
se apercebeu de como os lábios e as faces de Julia empalideciam.
Involuntariamente, ela olhou para Gabriel, e viu Singer a sussurrar-lhe
novamente ao ouvido.
Gabriel permanecia obstinadamente de olhos fixos na mesa, dentes
cerrados e expressão tensa. Ergueu o seu copo de vinho, bebeu e voltou a
pousar o copo, enquanto Julia continuava a olhá-lo.
Olha para mim, Gabriel. Revira os olhos, esfrega a cara, franze o
sobrolho… alguma coisa, qualquer coisa. Mostra-me que tudo isto não
passa de um mal-entendido. Mostra-me que o Paul não tem razão.
— Julia? — A voz de Paul interrompeu-lhe os pensamentos. — Queres
comer uma paelha Valenciana a meias comigo? Só servem para duas
pessoas. É muito boa. — Só então ele se deu conta da palidez de Julia e de
como os seus dedos tremiam. — Que foi? Sentes-te bem?
Julia esfregou a testa.
— Sim, claro. A paelha é boa ideia.
— Talvez devesses abrandar com a sangria. Não comeste praticamente
nada, e pareces indisposta.
Paul receou tê-la chocado com as suas revelações lascivas, revelações
que não tinha o direito de partilhar com uma colega. Então, mudou
rapidamente de assunto, começando a contar-lhe histórias da sua última
viagem a Espanha e a falar do seu fascínio pela arquitetura de Gaudí. Julia
foi anuindo como se lhe prestasse atenção, e até fez perguntas de tempos a
tempos, mas o seu pensamento estava longe, tentando perceber com quem
partilhara ela uma noite na semana anterior, o anjo caído que ainda tinha
bondade dentro de si ou alguém muito, muito mais sombrio.
Reparou que a mão esquerda da professora Singer desaparecera
subitamente. Não conseguia encontrar os olhos de Gabriel. Mas tal não
impediu que a professora Singer reparasse em Julia. Os seus olhares
cruzaram-se no preciso instante em que Gabriel pareceu afastar a mão de
Singer, debaixo da mesa. Embaraçada, Julia voltou-se para Paul. A
professora Tortura parecia intrigada e divertida, mas a sua expressão
converteu-se aos poucos num olhar penetrante e fascinado.
Ansiosa por escapar ao espetáculo sórdido que julgava ter observado,
Julia disse a Paul que não se sentia bem e levantou-se da mesa. Subiu a
escada até ao segundo andar e localizou rapidamente a casa de banho.
Olhando-se ao espelho, tentou processar o que Gabriel lhe dissera. Os
pensamentos de Julia eram uma confusão sórdida de palavras e imagens
negras, e o seu coração sangrava.
Porque havia alguém de querer ser magoado? Gabriel… Ann… dor…
controlo… Os dedos dela no colo dele… Ann a bater em Gabriel… Gabriel
a bater em Ann.
Julia apoiou-se na bancada, tentando reprimir uma onda de náusea. Não
sabia ao certo quanto tempo estivera ali, de olhos fechados, até alguém
empurrar a porta.
— Olá. — A professora Singer fez um sorriso rasgado, exibindo duas
filas de dentes brilhantes.
Julia espantou-se ao ver como a luz que incidia sobre os óculos da
professora criava a ilusão de os seus olhos verdes produzirem um brilho
vermelho.
— Sou a professora Singer. Prazer em conhecê-la. — Estendeu-lhe uma
mão, que Julia aceitou com relutância, balbuciando uma resposta.
A mão da professora era fria mas estava longe de parecer morta. Agarrou
com firmeza a mão de Julia e segurou-a durante muito mais tempo do que o
necessário. Depois, passou um dedo pela linha da vida de Julia, como se
estivesse a medi-la. O gesto fez Julia estremecer.
Ann pôs a cabeça de lado e estreitou os olhos.
— Achei que estaria à minha espera. Estou a pô-la nervosa?
Julia franziu a testa.
— Não, vim lavar as mãos. Acho que estou a ficar com uma gripe.
— Que pena. — A professora sorriu ainda mais e deu um passo na
direção de Julia. — Parece-me bastante saudável. Tem uma pele
maravilhosa.
— Obrigada. — Julia olhou ansiosamente para a porta, querendo fugir.
— Não tem de quê. Não tem de quê. Pôs batom ou essa é a cor natural
dos seus lábios? — Inclinou-se para a frente e perscrutou a boca aberta,
perfeita, de Julia, ficando as caras das duas mulheres a centímetros uma da
outra.
Julia deu um passo atrás.
— Eh… é a minha cor natural.
Ann deu mais um passo à frente.
— Extraordinário. Sabe, evidentemente, que a cor natural dos lábios de
uma mulher se repete no seu corpo em zonas mais íntimas. A sua boca tem
uma cor encantadora. De certeza que outros lugares serão de cortar a
respiração.
O queixo de Julia caiu.
— Veja-se ao espelho. Como poderia ter-me passado despercebida lá em
baixo? E, felizmente, também reparou em mim. — Ann aproximou-se ainda
mais e começou a falar baixo. — Gosta de ver? — segredou-lhe. — Gostou
de ver o que eu estava a fazer ao Emerson por baixo da mesa?
Julia corou.
— Não sei do que está a falar.
— A pele muda de cor, sabe? Em resposta a um aumento do fluxo
sanguíneo. Como agora. — Sorriu, revelando os dentes. — Não sei se a
embaracei ou se a excitei, mas a sua cara ficou ruborizada, e os seus lábios
também. Mas também está ruborizada noutro lugar, não é assim? — Baixou
ainda mais a voz. — E tenho a certeza que está ansiosa por ser tocada,
provocada… lá em baixo. — Lambeu os lábios e sorriu. — Minha pequena
pérola cor-de-rosa. Acho que quer que eu a provoque. Dava um belo
bichinho de estimação.
Julia lançou-lhe um olhar de desafio.
— Não estou interessada em ser um animal de estimação.
A professora Singer recuou. A súbita presença de espírito de Julia era
totalmente inesperada.
— Sou um ser humano, não um animal. Deixe-me em paz. — Julia não
sabia onde arranjara coragem para enfrentar a professora Singer, mas
arranjara.
Ann deu uma gargalhada.
— O seres humanos são animais, minha cara. Partilhamos a mesma
fisiologia, as mesmas reações a estímulos, as mesmas necessidades de
comida, bebida e sexo. Alguns de nós são, simplesmente, mais inteligentes.
Julia olhou-a de cima, furiosa.
— Sou suficientemente inteligente para saber o que é um animal. E não
estou interessada em que me saltem para cima como se eu fosse um. Com
licença.
Desviou-se da professora e dirigiu-se rapidamente para a porta.
— Se mudar de ideias, procure-me — ronronou Ann.
— Espere sentada — cuspiu Julia. Correu, respirando muito depressa à
medida que avançava pelo corredor.
Passos rápidos seguiam-na de perto. Alguém a puxou para uma divisão
às escuras, fechando e trancando a porta logo em seguida. Julia deu um
grito, empurrando com força um peito forte, até lhe agarrarem os pulsos.
— Julianne.
Estava demasiado escuro para lhe ver a cara, mas reconheceu-lhe a voz e
a estranha sensação que lhe vibrava pelos braços em reação ao seu toque.
Parou de se debater.
— Acende a luz, por favor. Sou… sou claustrofóbica. — A sua voz soou
aos ouvidos de Gabriel como a de uma criança assustada.
Gabriel libertou-a e tirou do bolso o seu iPhone, erguendo-o como a uma
lanterna.
— Está melhor assim? — Reprimiu o impulso de perguntar que tinha a
luz a ver com claustrofobia, e em vez disso pôs-lhe um braço sobre os
ombros trémulos e beijou-a na testa.
— Julianne?
Olhando em volta, Julia verificou que se encontravam numa pequena
divisão para equipamento de limpeza.
— Julianne? — repetiu Gabriel, tentando captar-lhe a atenção. — Vi que
a Ann te seguiu. Estás bem?
— Não.
— Que te fez ela?
— Disse que eu daria um bom animal de estimação — murmurou Julia,
baixando os olhos.
Gabriel enfureceu-se.
— Tocou-te?
Julia fechou os olhos e limpou algumas gotas de suor da testa.
— Só na mão.
Gabriel apressou-se a diminuir a luz do seu telefone, de modo a que
ficassem apenas parcialmente iluminados, pois receava que Ann visse luz
sob a porta.
— Era isto que eu temia que acontecesse. Porque não fizeste o que te
disse?
— Já te expliquei; quando li a tua mensagem, era demasiado tarde.
Nunca pensei que alguém, sem seres tu, se fosse atirar a mim num jantar da
faculdade.
Gabriel resmungou.
— Ela estava a observar-te do outro lado da mesa e provavelmente ficou
excitada com a tua timidez, e com a tua beleza. Pôr-te numa sala com ela é
o mesmo que balouçar um cordeiro diante dum lobo. — Abanou a cabeça e
praguejou. — Tentei manter-te afastada dela.
Julia procurou o olhar de Gabriel.
— Não estavas a manter-me afastada por teres ciúmes?
Gabriel expirou com força.
— Claro que tenho ciúmes. O ciúme é uma emoção nova para mim,
Julianne. Não estou treinado na arte de lidar com ela. Mas teria implorado
ao Paul que te levasse a jantar a outro lugar, a qualquer lugar, para que
ficasses longe daquela mulher.
— Estiveste envolvido com a professora Singer?
A expressão de Gabriel tornou-se sombria, os seus lábios comprimiram-
se numa linha estreita.
— Este não é um bom lugar para falarmos sobre isso.
Julia abanou a cabeça, sentindo-se novamente nauseada. Esperara que
Paul estivesse errado. Mas a reação de Gabriel dizia-lhe o contrário.
— Como pudeste?
— Estás a tremer. Vais vomitar?
— Porque não me respondes?
Gabriel falou por entre dentes.
— Julianne, o teu conforto e o teu bem-estar são a minha única
preocupação neste momento. Não vou responder a qualquer pergunta até ter
a certeza de que estás bem. Mas se vomitares, prometo que te seguro no
cabelo. — Forçou um pequeno sorriso.
— Não vou vomitar — murmurou Julia. — Infelizmente, não é a
primeira mulher que se atira a mim. Estou mais preocupada com o facto de
me estares a esconder alguma coisa.
Perante a confissão de Julia, Gabriel franziu as sobrancelhas, mas afastou
rapidamente a ideia do seu pensamento.
— Julianne, confia em mim quando te digo que não queres saber mais
sobre ela. Não deves poluir a tua mente.
— Mas não faz mal ela molestar-te por baixo da mesa, não é? Foi por
isso que ela reparou em mim, Gabriel. Apanhou-me a olhar para vocês.
Um músculo saltou junto ao maxilar de Gabriel, e Julia viu que os seus
olhos faiscavam.
— Está a provocar-me. E, por razões óbvias, não posso reagir e fazer
uma cena. Estava com esperança de que ela te ignorasse e concentrasse toda
a sua atenção pervertida em mim. Parece que me enganei.
— Porque tive de saber pelo Paul que estiveste envolvido com ela?
— O Paul disse isso?
Julia anuiu.
Gabriel praguejou e começou a esfregar os olhos com força, como se
quisesse apagar uma imagem repulsiva.
— Não esperava que ela viesse assistir à minha palestra. Não partilhamos
os mesmos valores nem os mesmos interesses na investigação. Há meses
que não a via. Pertence ao meu passado… um passado que não vou repetir.
Nem que viva para sempre.
— O Paul diz que ela gosta de dor. Vocês foram… violentos um com o
outro?
Gabriel cerrou os punhos junto ao tronco, e os tendões dos seus braços
contraíram-se.
— Sim. Gostaria de te dizer que a Ann foi a tentadora perversa e que eu
fui seduzido e arrastado para um envolvimento com ela, mas não foi assim.
De qualquer modo, não vou explicar-te os contornos negros do seu mundo.
Nada disso deve estar no teu pensamento. Mas posso dizer-te que durante
um dos nossos… encontros, ela fez uma coisa que me levou a perder a
cabeça. E dei-lhe a provar do seu próprio veneno. Esse ato pôs fim à nossa
interação, e fui expulso da sua casa.
— Ela bateu-te?
— Mais de uma vez — retorquiu Gabriel, numa voz áspera. — Era esse o
objetivo.
— Gabriel. — Ao escutar o seu nome numa espécie de soluço, Gabriel
sentiu instantaneamente uma pontada no coração. — Como pudeste
permiti-lo? Como pudeste deixá-la tocar-te, e ainda por cima magoar-te?
Gabriel rodeou Julia com os seus braços, estreitou-a contra si.
— Julianne, acredita, não queres ouvir isto. Por favor, esquece o que o
Paul te contou. Esquece aquela mulher.
— Não consigo. E não consigo esquecer o que disseste na tua palestra
esta tarde. A tua descrição do ato de fazer amor foi realmente bela, mas não
é isso que queres. Ou talvez julgues impossível os amantes serem assim.
— Claro que é isso que quero — disse Gabriel, os seus olhos
mergulhando nos de Julia. — Claro que acho que é possível. Simplesmente,
nunca tive essa experiência. — Pigarreou. — Não és só tu que és virgem
nesta relação.
Julia olhou-o, surpresa.
— Então porque havias de querer que alguém te magoasse? Não sofreste
já o suficiente?
Uma expressão de mágoa tomou o rosto de Gabriel.
— A tua vida é uma série de quartos secretos, trancados. Não faço ideia
do que há por trás dessas portas. E tu não me dizes, Gabriel. Fico a saber da
tua ex-namorada pelo teu assistente!
— Ela nunca foi minha namorada. E também te perguntei a respeito do
Simon, e não me contaste nada. Para já, estamos quites.
Julia afastou-se.
— Contei-te da minha mãe.
Gabriel suspirou.
— Sim, é verdade. E saber aquilo por que passaste em St. Louis magoou-
me mais do que consigo dizer-te. Muito mais do que a Ann e os seus
truques baratos. — Abanou a cabeça. — Tens razão. Devia ter-te contado a
respeito dela.
Gabriel transferiu o seu peso de um pé para o outro, e Julia ouviu-o enfiar
as mãos nos bolsos das calças.
— Achei que, se te contasse, ficarias repugnada ao ponto de fugires.
Verias o demónio que sou.
— Não és demónio nenhum. És um anjo caído que ainda tem bondade
dentro de si. Um anjo caído que aspira a fazer amor com uma mulher e a
tratá-la com carinho — sussurrou Julia. Fechou os olhos. — Ter sabido da
professora Singer por ti teria sido muito melhor do que descobri-lo assim.
Ou do que tê-lo visto, quando tu nem sequer olhavas na minha direção.
— Tenho uma vergonha imensa, Julianne, mas tu nem sabes o que isso é.
— Não és o único pecador nesta arrecadação, Gabriel! — Julia abriu os
olhos, inspirando devagar. — E por isso não vou ressentir-me dos teus
pecados passados. Ainda a queres?
— Claro que não! — A expressão de Gabriel era agora de ultraje. — Não
tivemos uma relação, Julianne. Apenas alguns encontros. Terminou tudo há
um ano, e não voltei a envolver-me com ela. — Respirou fundo. — Se
fizeres questão, conto-te mais, mas agora não posso. Podes dar-me até
depois do jantar para te explicar? Por favor?
Julia mordeu o lábio, refletindo.
Gabriel encostou delicadamente a sua boca à de Julia, libertando o lábio
dela com os seus e afastando-se, depois, devagar.
— Por favor, não te magoes. Isso deixa-me nervoso.
— Podia dizer-te o mesmo.
Gabriel curvou os ombros e suspirou novamente.
— Dou-te até depois do jantar, se prometeres não deixar que ela volte a
tocar-te.
— De boa vontade.
Julia expirou com força.
— Obrigada.
— Então, vais ficar?
Ela abanou a cabeça.
— Não consigo ficar sentada em frente da professora Singer e comer
paelha. Ela causa-me náuseas.
— Vou levar-te a casa.
— És o convidado de honra. Não podes sair.
Gabriel passou os dedos pelo cabelo, tentando pensar.
— Deixa-me, pelo menos, chamar-te um táxi. Vou tentar escapar-me
daqui o mais cedo possível. O meu porteiro acompanha-te ao apartamento.
— Levou a mão ao bolso e tirou um maço de notas.
Julia afastou-lhe a mão.
— Tenho o meu dinheiro.
— Leva o meu cartão de crédito, para encomendares o jantar.
— Não sou capaz de comer.
Gabriel suspirou mais uma vez e esfregou os olhos.
Julia voltou-se para sair, mas Gabriel pousou-lhe uma mão no ombro.
— Espera — disse, numa voz suplicante. Olhou-a. — Quando te vi entrar
no anfiteatro, o meu coração disparou. O meu coração disparou, Julianne.
Estavas mais linda do que nunca. Parecias… feliz. — Engoliu
ruidosamente. — Desculpa-me por te ter tirado aquele ar feliz. Desculpa-
me por não te ter dito a verdade… Achas… que conseguirás perdoar-me?
— Não pecaste contra mim, Gabriel. — Os olhos de Julia encheram-se
de lágrimas. — Estou a tentar perceber quão profundo é o teu gosto pela dor
e o que poderá isso significar para nós. Sinto que não te conheço, e isso dói.
Julia empurrou a porta e saiu.

O s Fados favoreceram Julia no seu regresso à sala de jantar. Enquanto


foi buscar a sua mala e se desculpava por ter de sair tão cedo, Ann
continuou escondida na casa de banho. Uma segunda professora
desaparecera da mesa.
Ao ver o rosto pálido e os olhos chorosos de Julia, Paul decidiu nem
tentar convencê-la a ficar. E quando ela lhe deu uma explicação,
obviamente fictícia, a respeito de uma dor de cabeça, Paul também não a
questionou, esperando até se encontrarem ambos à porta do restaurante.
— A Singer seguiu-te até à casa de banho, não foi?
Julia mordeu o lábio e anuiu.
Paul abanou a cabeça.
— É uma predadora. Uma mulher perigosa. Devia ter-te avisado. Estás
bem?
— Sim. Mas preciso de ir para casa. Desculpa não ficar para a paelha.
— Que se lixe a paelha. És tudo o que me importa — disse Paul, e logo
em seguida sentiu-se ligeiramente embaraçado. — Se quiseres apresentar
queixa contra ela, acompanho-te ao gabinete da comissão judicial na
segunda-feira.
— O que é isso?
— É o gabinete que lida com alegados casos de conduta imprópria por
parte de docentes e pessoal da faculdade. Se quiseres contar à comissão
judicial o que aconteceu com a Singer, posso ajudar-te.
Julia abanou a cabeça.
— Não tenho testemunhas. Seria a minha palavra contra a dela. Vou
tentar esquecer o que se passou, a não ser que ela volte a aproximar-se de
mim.
— É a ti que cabe decidir, mas devo dizer-te que apresentei uma queixa
contra ela no ano passado. Embora tenha sido a minha palavra contra a sua,
a minha queixa de assédio ficou no processo. E ela agora mantém-se longe
de mim. Foi a melhor decisão que alguma vez tomei.
O sorriso de Julia esvaneceu-se.
— Acho que não quero fazer isso, mas vou pensar melhor sobre o
assunto. E lamento o que se passou contigo.
— Não te preocupes comigo. Passa um bom fim de semana e tenta
esquecer isto. Se precisares de falar, tens o meu número. Vemo-nos na
semana que vem. — Paul ofereceu-lhe um olhar de encorajamento e
acenou-lhe, enquanto o táxi arrancava.
Com as palavras de Virgílio ecoando-lhe ainda nos ouvidos, Julia tirou o
telemóvel da mala. Encontrou uma mensagem de texto que fora enviada
pouco antes de os professores chegarem ao Segovia:
Afasta-te da Prof.ª Singer.
Fica perto do Paul — ela despreza-o.
Tem cuidado. — G

Tarde de mais, pensou Julia, tristemente.


Mal entrou no apartamento de Gabriel, apressou-se a acender a lareira,
esperando dissipar as trevas que tentavam rodear-lhe o coração. Mas a
lareira não foi grande ajuda. Na verdade, tudo o que Julia queria era ir para
casa e esconder a cabeça debaixo das mantas. Sabia, no entanto, que não
podia fugir da realidade agora.
Não era sua intenção bisbilhotar, mas deu por si no quarto de Gabriel,
ajoelhada no chão do seu roupeiro. Procurava as fotografias a preto e
branco, perguntando-se se a professora Singer estaria em alguma delas. Não
havia dúvida de que a cor de cabelo batia certo. Mas as imagens tinham
desaparecido. Julia examinou o roupeiro centímetro a centímetro, procurou
por todo o quarto, e até debaixo da cama. As fotografias não estavam em
parte alguma.
Nos seus lugares, na parede, encontravam-se seis obras de arte, algumas
abstratas, outras renascentistas, uma de Tom Thomson, mas todas belas e
evocando uma estranha… serenidade. Gabriel redecorara o quarto.
Estava a admirar a reprodução da Primavera de Botticelli, que se
encontrava sobre a cómoda, quando o seu olhar se deteve numa fotografia
de vinte centímetros por vinte e cinco, com uma moldura escura. Na
imagem viam-se um homem e uma mulher a dançar. O homem era alto,
atraente e elegante; tinha um aspeto autoritário, e olhava para a mulher com
uma expressão intensa, quase zangada. A mulher era de pequena estatura,
parecia corada, e fitava os botões da camisa do seu par. Usava um vestido
roxo tão vibrante que se sobrepunha a todas as cores na fotografia.
Como foi que ele arranjou uma fotografia de nós dois a dançarmos no
Lobby?
Rachel, pensou.
Julia apressou-se a pousar a fotografia na cómoda, certificando-se de que
deixava o quarto exatamente como o encontrara.
Capítulo Vinte e Um

E nquanto Julia o esperava no apartamento, Gabriel vestia a pele de um


camaleão, diluindo-se no seu ambiente. Mostrava-se amável e
divertido para com os colegas, mas, no seu íntimo, fervilhava, e o seu
pensamento corria. Teve de se obrigar a comer e a recusar bebida após
bebida. Estava convencido de que regressaria a um apartamento vazio.
Julianne certamente fugira.
Não seria uma surpresa — Gabriel sabia que era o que aconteceria mais
cedo ou mais tarde. Só não pensara que fosse aquele segredo a separá-los.
Eram muitas as razões que o tornavam indigno de Julia, razões que
escondera como um covarde. Não era uma questão de amor, pois Gabriel
não acreditava que ela pudesse alguma vez vir a amá-lo. Era impossível que
alguém o amasse. Ainda assim, esperara poder cortejá-la o tempo suficiente
para que o afeto e a amizade os unissem, mesmo que ela visse parte da
escuridão em que ele vivia. Agora era demasiado tarde.
Quando finalmente chegou a casa, ficou surpreendido ao encontrá-la
adormecida no sofá, uma expressão de completa paz no rosto. Tentou
corajosamente manter-se imóvel, resistir ao impulso de lhe tocar, mas não
foi capaz. Afagou-lhe ao de leve o longo cabelo de seda, murmurando-lhe
palavras tristes em italiano.
Precisava de música. Naquele momento, sentia a necessidade de melodia
para acalmar a sua angústia. Mas a única canção de que se lembrava para
combinar com aquele momento era a versão de Mad World de Gary Jules. E
Gabriel não queria estar a escutar essa canção quando Julia o deixasse.
Subitamente, os olhos dela pestanejaram e abriram-se. Julia viu que
Gabriel já não trazia o casaco nem a gravata, e que tinha a camisa
desabotoada no peito. Também tirara os botões de punho e enrolara as
mangas.
Gabriel sorriu, mas a sua expressão era cautelosa.
— Não queria acordar-te.
— Não faz mal. Estava só a dormitar. — Julia bocejou e sentou-se,
devagar.
— Podes continuar a dormir.
— Acho que não é boa ideia.
— Comeste alguma coisa?
Julia abanou a cabeça.
— Aceitas comer agora? Posso fazer-te uma omeleta.
— Tenho o estômago às voltas.
Gabriel ficou irritado, mas decidiu não discutir, pois pressentia uma
discussão bem maior no horizonte.
— Tenho um presente para ti.
— Gabriel, um presente é a última coisa de que preciso neste momento.
— Discordo. Mas pode esperar. — Gabriel moveu-se
desconfortavelmente no sofá, sem desviar os olhos dela. — Tens um
cachecol e estás mesmo junto à lareira, mas continuas pálida. Tens frio?
— Não. — Julia retirou a sua écharpe, mas os dedos longos e esguios de
Gabriel seguraram-lhe a mão.
— Posso?
Ela baixou a mão e anuiu, hesitante.
Gabriel aproximou-se um pouco mais, e Julia fechou os olhos, sentindo o
perfume dele envolvê-la. Gabriel desenrolou-lhe a écharpe com ambas as
mãos, delicadamente, e pousou-a no sofá, no meio deles. Depois fez uma
das suas mãos deslizar pelo pescoço de Julia, tocando-a com os nós dos
dedos.
— És encantadora — murmurou. — Não admira que todos os olhos
estivessem pousados em ti, esta noite.
Ao ouvi-lo, Julia ficou tensa, e Gabriel recuou, reprimindo um gemido.
Julia baixou os olhos para os pés, e só então se apercebeu de que nem se
dera ao trabalho de se descalçar. Mas Gabriel não se queixara.
— Desculpa-me por ter posto as botas no teu sofá. Vou tirá-las. — Levou
a mão a um dos fechos, mas Gabriel ajoelhou-se rapidamente no tapete.
— Que estás a fazer? — Julia esbugalhou os olhos, confusa.
— Tenho estado a admirar as tuas botas. Gosto muito de te ver com elas.
— Passou as mãos ao de leve pelos saltos.
— Foi a Rachel que me ajudou a escolhê-las. A tua irmã tem muito bom
gosto, mas os saltos são sempre muito altos.
Ele olhou-a sedutoramente.
— Nenhuns saltos são demasiado altos para ti. Mas deixa-me libertar-te.
— Ao ouvir a voz de Gabriel, rouca e calorosa, o coração de Julia disparou.
As mãos dele pairavam-lhe sobre os joelhos, onde ficavam as
extremidades dos fechos.
— Posso?
Julia aquiesceu, sustendo a respiração.
Reverentemente, Gabriel desapertou-lhe a bota e os seus dedos
deslizaram-lhe pela barriga da perna até ao tornozelo, deixando-lhe o pé
livre. Gabriel repetiu o procedimento com a outra perna, pousando as botas
ao lado do sofá. Em seguida, ergueu o pé direito de Julia e começou a
massajá-lo cuidadosamente com ambas as mãos. Julia não conseguiu abafar
um gemido e mordeu o lábio, embaraçada.
— Não há mal nenhum em dares voz ao prazer que sentes, Julianne —
encorajou-a Gabriel. — É uma forma de me dizeres que não me rejeitas por
completo.
— Não te rejeito. Mas não gosto de te ver de joelhos — sussurrou.
A expressão satisfeita de Gabriel esvaneceu-se.
— Quando um homem se ajoelha perante uma mulher, trata-se de um
gesto de cavalheirismo. Quando uma mulher se ajoelha perante um homem,
é que é indecoroso.
Julia gemeu de novo, involuntariamente.
— Como aprendeste a fazer isto?
Gabriel lançou-lhe um olhar perplexo.
— Como aprendeste a massajar pés? — clarificou Julia, ficando ainda
mais ruborizada.
— Aprendi com uma amiga. — Gabriel suspirou.
Provavelmente uma amiga que já vi numa fotografia a preto e branco,
pensou Julia.
— Sim — disse Gabriel, como se tivesse adivinhado a pergunta. —
Gostava de estender a minha atenção ao resto do teu corpo, mas penso que
uma massagem completa não seria possível para nós, pelo menos por agora.
— Os seus olhos ensombraram-se ligeiramente ao encontrar os dela.
Gabriel pegou no outro pé de Julia e baixou o olhar.
— Anseio pelo teu corpo, Julianne. Não sou suficientemente forte para te
tocar castamente se estiveres deitada numa cama, à minha frente, apenas
com um lençol a cobrir-te.
Ficaram em silêncio por alguns momentos, continuando Gabriel a
massajar os pés de Julia. A certa altura, ele sentou-se nos calcanhares e
começou a percorrer-lhe os collants com as pontas dos dedos.
— Posso levar-te a casa, se quiseres, e conversamos amanhã. Ou podes
ficar aqui, e dormir no meu quarto. Eu fico no quarto de hóspedes. —
Olhou-a, inseguro.
— Não quero prolongar a situação — disse Julia. — Por isso gostava que
falássemos agora, se concordares.
— Está bem. Queres beber alguma coisa? — Gabriel indicou a cozinha.
— Posso abrir uma garrafa de vinho. Ou preparar-te um cocktail. — Olhou-
a intensamente. — Por favor, deixa-me fazer alguma coisa por ti.
Julia sentiu uma chama dentro de si, uma chama que cresceu e que
depois a cobriu. Mas extinguiu-a.
— Bebo água, por favor. Tenho de conseguir pensar.
Ele levantou-se e foi até à cozinha. Julia ouviu-o lavar as mãos, depois os
sons das portas do frigorífico e do congelador a abrir e a fechar. Gabriel
regressou, trazendo um copo alto com Perrier, gelo e pedaços de lima.
— Hum, Gabriel, dás-me licença, por um minuto?
Julia desapareceu com a sua bebida, e Gabriel calculou que ela quisesse
preparar-se para a revelação seguinte da sua existência miserável e maldita.
Ou talvez fosse trancar-se na casa de banho e exigir que falassem através da
porta trancada. Não que ele lhe levasse a mal.
O pensamento de Julia corria à velocidade da luz. Não sabia o que iria
Gabriel contar-lhe. Não sabia como reagiria. Era bem possível que estivesse
prestes a descobrir coisas que a impedissem de continuar com ele, e essa
ideia partia-lhe o coração. Pois, independentemente do que ele tivesse feito
ou de com quem o tivesse feito, Julia amava-o. A ideia de voltar a perdê-lo,
depois da alegria de o ter reencontrado, era-lhe insuportável.
Gabriel estava sentado no seu cadeirão de veludo vermelho, fixando a
lareira com um olhar vazio. Com a roupa que trazia e aquele ar meditativo,
parecia um personagem saído de um dos romances das Brontës.
Aproximando-se, Julia rezou silenciosamente a Charlotte para que Gabriel
fosse um dos seus, e não um personagem da sua irmã Emily.
Perdoe-me, menina Charlotte, mas o Heathcliff aterroriza-me. Por favor
não deixe que o Gabriel seja um Heathcliff. (Sem ofensa, menina Emily.)
Por favor.
De onde se encontrava sentado, Gabriel não conseguia vê-la. Julia
pigarreou, para o alertar da sua presença.
Ele apontou para a lareira.
— Vem aquecer-te.
Julia preparava-se para se sentar no tapete, junto à lareira, mas um gesto
determinado da mão dele impediu-a. Gabriel forçou um sorriso.
— Por favor. Senta-te ao meu colo. Ou no sofá ou na otomana.
Continua a não gostar de me ver no chão, pensou Julia. Ela não via mal
em sentar-se no chão diante da lareira, mas só a ideia parecia ofendê-lo.
Não querendo discutir por algo tão trivial, Julia escolheu a otomana, em
detrimento do colo dele, e sentou-se em silêncio, olhando para as chamas
laranja e azuis. Para Julia, ele já não era O Professor; era Gabriel, o seu
professor, o seu amado.
Gabriel remexeu-se no seu cadeirão, perguntando-se porque quereria ela
sentar-se tão longe dele. Porque agora sabe aquilo que és, e tem medo.
— Porque não gostas de me ver de joelhos? — perguntou Julia,
quebrando o silêncio.
— Tendo em conta a conversa de hoje, talvez possas imaginar. Razão
essa que é multiplicada e reforçada por aquilo que me contaste em tua casa.
— Fez uma pausa e olhou-a nos olhos. — És demasiado humilde, e as
pessoas abusam da tua natureza amável.
— Os alunos devem ter uma atitude submissa. Toda a gente sabe isso.
— Seres minha aluna não tem nada a ver com isto.
— Vais ser sempre o professor talentoso, e eu serei sempre tua aluna —
observou Julia, calmamente.
— Esqueces-te de que te conheci muito antes de sermos aluna e
professor. E não vais ser uma estudante para sempre. Hei de estar sentado
na fila da frente quando deres a tua primeira palestra. Quanto ao teu
preconceito em relação aos professores, se nos picarem, não sangramos?
— E se nos ofenderem, não devemos vingar-nos? — contrapôs Julia.
Gabriel recostou-se, permitindo-se um sorriso de admiração.
— Estás a ver? Quem é que está a dar aulas agora, professora Mitchell?
Só tenho vantagem na idade e na experiência.
— A idade não nos torna necessariamente mais sábios.
— Claro que não. És jovem, mas és trabalhadora e brilhante e estás no
começo daquilo que promete ser uma longa e brilhante carreira. Talvez eu
não tenha demonstrado devidamente como aprecio a tua inteligência.
Julia ficou calada, fingindo-se hipnotizada pela dança das chamas.
Gabriel pigarreou.
— A Ann não me magoou, Julianne. Raramente penso nela, e quando
penso, sinto apenas remorsos. Não me deixou marcas.
Julia pousou os seus olhos confusos nos olhos de Gabriel, que eram agora
de um azul-marinho vivo, sincero.
— Nem todas as cicatrizes marcam a pele — disse-lhe. — Porque foi que
a escolheste logo a ela?
Gabriel encolheu os ombros, desviando o olhar para a lareira.
— Porque fazem os seres humanos o que quer que seja? Porque
procuram a felicidade. Ela prometia um prazer intenso, primitivo, e eu
precisava da distração.
— Deixaste-a magoar-te para escapares ao tédio? — Instantaneamente,
Julia sentiu uma náusea.
A expressão de Gabriel endureceu-se.
— Não espero que compreendas. Mas, na altura, eu precisava de uma
distração. Era dor ou álcool, e não queria fazer nada que tivesse
consequências para o Richard e para a Grace. Tentei… interagir com
mulheres, mas esses envolvimentos perdiam rapidamente o interesse.
Orgasmos sempre disponíveis mas sem sentimento acabam por cansar uma
pessoa, Julianne.
Vou tentar não me esquecer disso, pensou Julianne.
— O modo como a professora Singer se comportou contigo na palestra…
e depois no jantar… não parecia de uma mulher rejeitada.
— Ela despreza a fraqueza. E não aceita o fracasso. Foi um duro golpe
para a sua reputação e para o seu ego gigantesco o facto de ter tentado
controlar-me e não ter conseguido.
— Ela tinha alguma importância para ti?
— Não posso dizer que tivesse. É um súcubo cruel e sem alma.
Julia olhou para as chamas e franziu os lábios.
— Não ia saltar para uma relação com a Ann sem a testar primeiro. E
nunca fomos além do teste. Por outras palavras, apesar de termos…
interagido, não estive envolvido com ela no sentido mais restrito.
— Vais desculpar-me por não dominar o vocabulário específico que me
permitiria compreender o que estás a dizer.
— Estou a tentar explicar-te isto sem manchar a tua inocência mais do
que o estritamente necessário. Não me peças que seja explícito. — O tom
de Gabriel tornara-se subitamente frio.
— Ainda queres o que ela te oferece?
— Não. Foi um desastre.
— Com outra pessoa?
— Não.
— E da próxima vez que a escuridão vier? Que farás?
Gabriel fitou-a.
— Achei que me tinha feito entender. Tu dissipas a escuridão, Beatriz. —
Clareou a voz. — Julianne.
— Diz-me que ela não está numa das tuas fotografias.
— Claro que não. Aquelas são fotografias de mulheres de quem eu
gostava.
— Porque te expulsou a professora Singer da sua casa?
Gabriel rangeu os dentes.
— Fiz algo que, no seu mundo, é totalmente inaceitável. E não vou
mentir e dizer que não gostei de ver a cara dela quando lhe dei a provar do
seu próprio veneno. Embora tenha quebrado uma das minhas regras mais
sagradas ao fazê-lo.
Julia estremeceu.
— Então, porque continua ela atrás de ti?
— Represento o seu fracasso, a sua incapacidade de controlar. E domino
algumas técnicas.
Julia corou, sentindo-se desconfortável.
— A Ann também estava interessada nas minhas técnicas de pugilismo.
Quando soube que eu praticava pugilismo e que sou membro do Oxford’s
Fencing Club, nunca mais me deixou em paz. São hobbies que partilhamos,
infelizmente.
Julia passou os dedos pela cicatriz que tinha sob o cabelo.
— Não posso estar com alguém que bate, Gabriel. Nem por raiva, nem
por prazer ou por qualquer outra razão.
— E não deves. Não está na minha natureza ser violento com mulheres,
mas antes sedutor. A Ann foi uma exceção. E se estivesses a par das
circunstâncias, penso que me perdoarias.
— Também não posso estar com alguém que quer que lhe batam. A
violência assusta-me, Gabriel. Entende isso, por favor.
— E entendo. Entendo mesmo. Achei que aquilo que a Ann me propunha
me ajudaria a lidar com os meus problemas. — Abanou a cabeça,
angustiado. — Nada foi tão doloroso para mim como o momento em que
tive de te olhar nos olhos e admitir a minha ligação sórdida com ela. Quem
me dera não ter passado, Julianne, para teu bem. Gostava de ser tão bom
como tu.
Julia pôs-se a fitar as mãos, que se contorciam no seu colo.
— A ideia de alguém te magoar… de alguém te tratar como a um
animal… — A sua voz tremeu enquanto as lágrimas lhe vinham aos olhos.
— Não me importa que tenhas tido sexo com ela. Não me importa que ela
não tenha deixado marcas. O que não suporto é a ideia de alguém te
magoar, especialmente por tu o desejares.
Gabriel apertou os lábios, mas não respondeu.
— A simples ideia de alguém te bater causa-me náuseas.
Gabriel cerrou os dentes, vendo duas lágrimas solitárias que rolavam pela
cara de Julia.
— Devias estar com alguém que te tratasse com carinho — continuou
Julia, limpando a cara com as costas da mão. — Promete-me que nunca
voltarás para ela. Nem para alguém como ela.
Gabriel fitou-a.
— Prometi que não terias de me partilhar. Costumo cumprir as minhas
promessas.
Ela abanou a cabeça.
— Quero dizer… nunca. Depois de mim. Por favor.
— Falas como se fosse uma conclusão óbvia que haverá alguém depois
de ti — disse Gabriel, rispidamente.
Julia enxugou mais uma lágrima.
— Promete-me que não vais deixar mais ninguém maltratar-te para te
castigares a ti próprio. Aconteça o que acontecer.
Gabriel rangeu os dentes.
— Promete-me, Gabriel. Nunca te pedirei mais nada, mas promete-me
isto.
Gabriel estreitou os olhos, examinando-a. Depois, parecendo elucidado,
anuiu.
— Prometo.
O corpo de Julia relaxou, e ela deixou cair a cabeça, física e
emocionalmente exausta.
Gabriel observara-a atentamente, a alternância entre rubor e palidez, o
modo como os seus dedos se remexiam e puxavam o vestido. Feria-o mais
do que julgara possível vê-la tão perturbada. E aquelas lágrimas…
O anjo de olhos castanhos chorava pelo demónio. O anjo chorava
porque sofria só de imaginar que alguém pudesse magoar o demónio.
Sem uma palavra, sentou-a ao seu colo. Encostou a cabeça dela ao seu
peito, envolveu-a nos seus braços.
— Basta de chorar. Já vi lágrimas tuas que cheguem para uma vida
inteira — murmurou-lhe ao ouvido. — E não mereço uma sequer.
Suspirou tristemente.
— Fui muito egoísta ao ir atrás de ti, Julianne. Devias estar com alguém
da tua idade e tão bom como tu. Não com um Caliban pervertido como eu.
— Há momentos em que és tão inocente como eu.
— Quando?
— Quando me abraças. Quando me afagas o cabelo — sussurrou Julia.
— Quando estamos na cama.
Gabriel tinha agora uma expressão de dor.
— Se não me quiseres, tens apenas de o dizer, e desapareço da tua vida
para sempre. Não quero que temas pelo que poderá acontecer se me
rejeitares. Prometo que te deixo ir, se for essa a tua vontade.
Julia permaneceu calada, pois não sabia o que dizer.
— Sei que sou controlador e, como dizes, dominador. — A voz de
Gabriel era grave e tensa. — Mas nunca te faria aquilo que ela faz. Não vou
magoar-te, Julianne. Nunca seria capaz de te magoar. — Os seus dedos
deslizavam sobre o braço nu de Julia, sentindo-lhe a pele arrepiada, tanto
por causa do seu toque como pelas suas palavras.
— Estava mais preocupada com o que a Ann te fez a ti.
— Já há algum tempo que ninguém se preocupa comigo.
— A tua família preocupa-se. E eu também me preocupei, sabes, mesmo
antes de vir para Toronto. Não houve um dia em que não pensasse em ti.
Gabriel beijou-a suavemente nos lábios, e ela retribuiu o beijo.
— Indiscrições passadas à parte, os meus gostos vão mais no sentido de
proporcionar um prazer louco, apaixonado, às minhas amantes, e não dor,
garanto-te. Um dia, gostaria de te mostrar esse meu outro lado. Aos poucos,
é claro.
Julia mordiscou a bochecha, tentando encontrar as palavras adequadas
para o que queria dizer.
— Há algo que preciso de te contar.
— Sim?
— Não sou… não sou tão inocente como pensas.
— Que queres dizer com isso? — ripostou ele.
Julia cravou os dentes no lábio superior, nervosamente.
— Desculpa. Apanhaste-me de surpresa. — Gabriel esfregou os olhos.
— Tive um namorado.
Ele franziu o sobrolho.
— Eu sei.
— E… eh… fazíamos coisas.
Gabriel arqueou as sobrancelhas
— Que coisas? — A pergunta surgira antes que ele pudesse refletir, mas
não tardou a corrigir-se. — Não respondas. Não quero saber.
— Não sou tão inocente como era quando me conheceste, o que significa
que tens uma… uma perceção falsa de mim, uma perceção idealizada.
Gabriel considerou aquela declaração por um instante. Queria
pormenores, mas receava o que ela pudesse dizer. A ideia de alguém, de ele,
a dar prazer a Julia, ou apenas a tocar-lhe, enfurecia-o. Gabriel temia não
conseguir lidar com a confissão que ela parecia ansiosa por fazer.
— Foste o primeiro a beijar-me. O primeiro a segurar-me a mão —
admitiu Julia.
— Fico contente com isso. — Pegou na mão dela e beijou-a. — Gostava
de ter sido o primeiro em tudo.
— Bem, ele não me tirou tudo. — Julia fechou rapidamente a boca. Não
fora sua intenção falar assim.
O facto de ela ter usado o verbo tirar suscitou em Gabriel pensamentos
assassinos. Se algum dia se cruzasse com ele, havia de lhe rasgar a garganta
com as suas próprias mãos.
— Como não voltaste, comecei a namorar com outra pessoa. Em
Filadélfia. E as coisas, hum, aconteceram.
— Querias que essas coisas acontecessem?
Julia agitou-se.
— Era meu namorado. Às vezes ele ficava… impaciente.
— Foi o que pensei. Um filho da mãe manipulador que te seduziu.
— Tenho vontade própria. Não sou obrigada a ceder.
Gabriel ficou pensativo. Ciúme… a ideia das mãos e dos lábios dela
noutra pessoa… ou a boca de outra pessoa na dela. O seu corpo…
— Não tenho o direito de perguntar, mas vou fazê-lo. Amava-lo?
— Não.
Tentando disfarçar o seu alívio ao ouvir esta resposta, Gabriel ergueu-lhe
o queixo.
— Nunca me toques, nem me deixes tocar-te, se não me desejares
realmente. É uma promessa que tens de me fazer agora mesmo.
Julia pestanejou, surpresa.
— Sei como às vezes me comporto. Até agora, consegui controlar-me.
Mas sei que já fui demasiado longe contigo, e que por mais de uma vez te
deixei desconfortável. Não gostaria de descobrir que as coisas progrediram
entre nós só porque te sentias pressionada.
— Prometo, Gabriel.
Anuindo, Gabriel beijou-lhe a testa.
— Julianne, porque não me deixas chamar-te Beatriz?
— Entristeceu-me que não tivesses querido saber o meu nome.
Ele olhou-a intensamente.
— Quero mais do que isso. Quero saber quem és realmente.
Julia sorriu.
— Então, ainda me queres? Ou preferes que te deixe ir? — perguntou
Gabriel, tentando que a sua voz não tremesse.
— Claro que ainda te quero.
Ele beijou-a suavemente, depois pô-la de pé e conduziu-a até à cozinha.
Estando Julia confortavelmente instalada num dos bancos, Gabriel foi até
ao balcão e pegou num grande prato com uma tampa de prata. Sorriu-lhe, os
seus olhos brilhando maliciosamente ao pousar o prato diante dela.
— Tarte de maçã caseira — anunciou, destapando o prato com um
floreado.
— Tarte?
— Disseste que nunca ninguém te tinha feito uma tarte. Agora, alguém o
fez.
Julia olhava para a sobremesa, incrédula.
— Fizeste esta tarte?
— Não exatamente. Foi a minha empregada. Estás contente?
— Mandaste fazer uma tarte para mim?
— Bem, tinha esperança de que a partilhasses. Mas se insistires em
comê-la toda sozinha… — Riu-se.
Julia cobriu a boca com uma mão e fechou os olhos.
— Julianne?
Não obtendo resposta, Gabriel pôs-se a falar muito depressa.
— Disseste que gostavas de tarte. Quando me falaste da tua infância em
St. Louis, disseste que nunca te tinham feito uma tarte. Achei que… —
Interrompeu-se, subitamente inseguro.
Julia chorava em silêncio, e os seus ombros tremiam.
— Julia? Que foi? — perguntou Gabriel, quase a gritar, vendo-a chorar
de novo. Contornou o balcão e rodeou com os seus braços a figura trémula.
— Que foi que eu fiz?
— Desculpa — disse Julia, conseguindo finalmente articular uma
palavra.
— Não peças desculpa, querida. Diz-me o que fiz, para eu o poder
emendar.
— Não fizeste nada de errado. — Enxugou as lágrimas. — Nunca
ninguém me tinha feito nada assim. — Esboçou um sorriso. — Não sabia
que tinhas um presente à minha espera.
— Não queria aborrecer-te. Estava a tentar agradar-te.
— São lágrimas de alegria. Qualquer coisa como isso. — Julia riu-se, um
pouco a medo.
Ele abraçou-a mais uma vez e depois libertou-a, puxando-lhe o cabelo
para trás dos ombros.
— Alguém está a precisar de uma sobremesa.
Gabriel cortou uma fatia larga e ergueu um garfo diante de Julia.
— Gostava de te dar à boca. Mas compreendo se preferires que não o
faça.
Julia abriu imediatamente a boca, e Gabriel ofereceu-lhe um pequeno
pedaço de tarde.
— Mmmm. Está mesmo boa — disse Julia, de boca ainda cheia, e sorriu,
limpando as migalhas dos lábios.
— Fico contente.
— Não sabia que tinhas uma empregada.
— Só cá vem duas vezes por semana.
— E cozinha?
— Às vezes. Tenho fases. Obsessões, na verdade, mas isso já sabias. —
Tocou-lhe com a ponta de um dedo no nariz. — Esta receita era da avó dela.
Não te vou dizer o que ela pôs na camada de cima para a deixar estaladiça.
— Piscou-lhe o olho.
— E tu? Não comes tarte? — perguntou Julia.
— Prefiro ver-te a saboreá-la. Mas isto não se pode chamar de jantar.
Gostava que me deixasses cozinhar-te mais alguma coisa.
— O meu pai come sempre uma fatia de queijo com a tarte de maçã.
Como um pouco de queijo, se tiveres.
Gabriel ficou algo perplexo com o pedido, mas foi imediatamente
procurar no frigorífico e não tardou a trazer-lhe um pedaço substancial de
cheddar branco de Vermont.
— Perfeito — murmurou Julia.
Depois de comer, Julia ficou um pouco calada, perguntando-se se deveria
voltar para casa. Não queria realmente ir, mas depois de tantas lágrimas e
tanto drama, talvez Gabriel não quisesse que ela ficasse.
— Não respondeste ao meu bilhete — disse Gabriel, depois de um longo
silêncio. — O bilhete que enviei com as gardénias.
— Escrevi-te um e-mail.
— Mas deixaste algo de fora.
Julia hesitou.
— Não sabia o que dizer em relação ao cativar.
— Disseste-me que o diálogo com a raposa era o teu preferido. Achei
que seria claro.
— Sei o que a raposa queria dizer. Mas tu… — Abanou a cabeça.
— Nesse caso, vou dizer-to. Não espero que confies em mim, mas
gostava de ganhar a tua confiança. Depois de me confiares a tua mente,
talvez queiras confiar-me o teu corpo. É isto que entendo por cativar. Quero
dar-te toda a minha atenção… estar atento aos teus apetites, às tuas
necessidades e aos teus desejos… e levar o tempo que for preciso para os
satisfazer.
— Como vais cativar-me?
— Mostrando-te, através das minhas ações, que sou digno de confiança.
E fazendo isto.
Gabriel aproximou-se e segurou-lhe a cara entre as mãos, pondo a sua
boca a poucos centímetros da de Julia. Ela fechou os olhos e susteve a
respiração, esperando que os lábios de ambos se encontrassem.
Mas tal não aconteceu.
Julia sentia na boca o ar quente que flutuava dos lábios entreabertos de
Gabriel. Passou a língua pelo lábio inferior, molhando-o, expectante. O
hálito dele sobre o seu lábio molhado causou-lhe um arrepio que lhe
percorreu a coluna.
— Estás a tremer — murmurou Gabriel, fazendo-a sentir de novo na
boca o calor da sua respiração.
Julia sentiu-se ruborizar entre as mãos dele, e o calor tomou conta da sua
cara, desceu-lhe para o pescoço.
— Sinto o teu rubor, a tua pele a desabrochar, quente, rosada.
Passou-lhe os dedos pelas sobrancelhas, e ela abriu os olhos e mergulhou
em dois grandes lagos azuis.
— Tens as pupilas dilatadas — continuou Gabriel, sorrindo-lhe junto da
boca, mal lhe tocando os lábios. — E sinto a tua respiração acelerada. Sabes
o que isso significa.
Julia procurou os seus olhos.
— Ele dizia que eu era frígida. — Soava envergonhada. — Fria como
neve. Deixava-o zangado.
— Só um rapaz que não sabia nada sobre mulheres podia ser tão cego e
tão ridículo. Nunca penses isso de ti, Julianne. Sei, com toda a certeza, que
está longe de ser verdade. — Os lábios de Gabriel curvaram-se num sorriso
sedutor. — Percebo quando estás excitada, como agora. Vejo-o nos teus
olhos. Noto-o na tua pele. Consigo… senti-lo.
Gabriel passou-lhe um único dedo pelas sobrancelhas, fazendo-a relaxar.
— Por favor, não te sintas constrangida. Eu não estou. É tentador, e
muito erótico.
Julia fechou os olhos e inalou o odor que ele emanava: Aramis e hortelã-
pimenta e o abençoado Gabriel.
Ele deu uma risadinha.
— Acho que estás a dizer-me que aprecias a minha água de colónia. —
Curvou-se de modo a que o nariz de Julia lhe tocasse o pescoço, onde o
aroma era mais forte.
— Que estás a fazer?
— Estou a criar desejo, Julianne. Agora, diz-me o que queres. Estás
corada, o teu coração bate depressa, e ouço a tua respiração a acelerar-se.
Que desejas? — Voltou a segurar-lhe a cara entre as mãos e aproximou-se,
de modo a que as suas bocas quase se tocassem.
— Quero beijar-te — sussurrou Julia.
Gabriel sorriu.
— Também quero beijar-te.
Julia esperou. E ele continuava a não se mover.
— Julianne — suspirou junto aos seus lábios.
Ela abriu os olhos.
— Vem buscar o que queres.
Julia respirou fundo.
— Se não tomares a iniciativa de vez em quando, vou pensar que não me
queres. Que estou a ser exigente. Depois de uma noite como esta, a única
pessoa a fazer exigências deves ser tu. — Os olhos de Gabriel estavam bem
abertos e escuros, e cravados nela.
Julia não precisou de outro convite. Surpreendendo-os a ambos, pôs os
braços em redor do pescoço dele e puxou-o para si. Quando os seus lábios
se encontraram, as mãos de Gabriel deslizaram até ao fundo das costas de
Julia, e ele imaginou-se a acariciar-lhe a pele nua. Ela mordiscou-lhe o lábio
inferior e puxou-o para a sua boca, como Gabriel já lhe fizera. Julia não
tinha a mesma prática, mas nem por isso ele ficou menos satisfeito.
Aquele ardor sem pressa seduzia-o, e Gabriel sentiu que a sua pele
aquecia, que o seu pulso se acelerava. Enquanto explorava a boca dela com
a sua língua, tudo o que desejava era afastar-lhe os joelhos com um dos
seus, e unir o seu corpo ao dela. E arrastá-la para o seu quarto para
confraternizarem…
Afastou-se, pousando as mãos sobre os braços nus de Julia.
— Tenho de parar. — Encostou a testa à dela e expirou longamente.
— Desculpa.
Gabriel beijou-lhe a testa.
— Nunca peças desculpa por agires de acordo com os teus desejos. És
linda, sensual. E muito, muito estimulante. Posso desfrutar de ti sem nos
tornarmos mais íntimos, mas não posso beijar-te assim. Não agora.
Ficaram imóveis, abraçados, durante vários minutos, até que Gabriel
abriu os olhos e lhe acariciou a cara.
— O que quiseres, Julianne. Esta noite, sou teu. Queres que te leve a
casa? Queres ficar?
Julia roçou o nariz no queixo dele.
— Gostava de ficar.
— Nesse caso, são horas de ir para a cama. — Estendeu-lhe a mão,
ajudando-a a descer do banco.
— Não te parece estranho? Partilhares uma cama comigo?
— Quero-te nos meus braços e na minha cama todas as noites — disse
Gabriel.
Julia calou-se por um instante, enquanto ia buscar a sua mala.
— Incomoda-te que seja assim? — Gabriel franziu o sobrolho.
— Não. Talvez devesse incomodar-me.
— Senti a tua falta, esta semana.
— Também senti a tua falta.
— Durmo melhor quando te tenho nos meus braços. — Gabriel sorriu-
lhe ternamente. — Mas és tu que decides onde dormes esta noite.
— Gostava de dormir na tua cama — disse Julia, timidamente. — Se me
deixares.
— Nunca te negaria isso. — Conduziu-a pelo corredor até ao seu quarto.
Julia sentou-se na cama, e Gabriel foi buscar a fotografia emoldurada que
tinha sobre a cómoda.
— Tens uma fotografia minha debaixo da tua almofada. Achei que devia
retribuir o gesto. — Com um sorriso convencido, pôs-lhe a moldura nas
mãos.
Julia deu voltas à cabeça, tentando lembrar-se de quando poderia ele ter
encontrado a velha fotografia que ela tinha.
— Como conseguiste isto?
— Também devia perguntar-te onde arranjaste uma fotografia dos meus
tempos na equipa de remo de Princeton. — Gabriel soltou e desabotoou a
camisa, expondo a t-shirt justa que trazia junto ao tronco.
Embaraçada, Julia desviou o olhar, lamentando em silêncio o dia em que
os homens tinham decidido usar camisolas interiores. Vê-lo despir-se era
ainda mais sensual do que vê-lo enrolado numa toalha roxa demasiado
pequena.
— Eh… A Rachel tinha-a no seu placard de recados. Da primeira vez
que a vi, tirei-a.
Gabriel inclinou-se para ela e ergueu-lhe a cara para lhe examinar a
expressão.
— Tiraste-a? Queres dizer, roubaste-a.
— Não devia. Mas este teu sorriso encantador… Eu tinha dezassete anos
e era parva, Gabriel.
— Eras parva ou ficaste apaixonada?
Julia baixou os olhos.
— Acho que sabes a resposta.
— A Rachel tirou fotografias com o telemóvel enquanto cá esteve. Esta é
a minha favorita, por isso a emoldurei. — Examinou Julia de perto. — Não
gostas?
Ela parecia aturdida.
— Ficaste muito bem.
Gabriel tirou-lhe a fotografia da mão e colocou-a cuidadosamente sobre a
cómoda.
— Em que estás a pensar? Conta-me.
— O modo como olhaste para mim enquanto estávamos a dançar… Não
compreendo.
— És uma mulher linda. Porque não havia de olhar para ti?
— Foi o modo como olhaste.
— Olho para ti assim a toda a hora. — Gabriel beijou-a suavemente. —
Estou a olhar para ti dessa maneira agora mesmo. — Afastou-lhe o cabelo
da cara. — Já volto.
Depois de vestir aquilo que lhe serviria de pijama, Julia saiu da casa de
banho, rodeada de luz branca.
— Para — disse Gabriel, que regressara ao quarto na sua ausência.
Estava deitado na cama, e olhava-a fixamente.
Julia passou os olhos pelas suas roupas, ansiosa. Não lhe fora fácil
decidir o que vestir. A maioria dos seus pijamas eram demasiado juvenis
para usar diante de Gabriel, e não tinha lingerie para dormir. Não que fosse
corajosa o bastante para usar lingerie na cama com ele. Acabara por
escolher uma t-shirt azul-escura, suficientemente larga para lhe esconder o
peito, e um par de calções desportivos com o logótipo da Saint Joseph’s
University à frente.
— Estás encantadora.
Ela fez uma careta e estendeu o braço para apagar a luz.
— Espera. Aí de pé, sob a luz, pareces um anjo.
Julia anuiu para lhe indicar que o ouvira, e em seguida foi ter com ele.
Gabriel recebeu-a imediatamente com um abraço caloroso, e Julia
apercebeu-se de que ele também estava de calções e t-shirt. Que belo par!
Mas agora as suas pernas nuas podiam tocar-se agradavelmente sob os
lençóis. Gabriel beijou-a com ternura e recostou-se na almofada, suspirando
de prazer quando ela lhe pousou a cabeça no peito e lhe passou um braço
em redor da cintura.
— Tenho pena que te sintas sozinha, Julianne.
Ela parecia confusa com aquele non sequitur.
— Esta semana, quando estávamos a falar ao telefone, disseste que te
sentes isolada, que não tens amigos.
Julia encolheu-se um pouco ao lembrar-se.
— E se eu te comprasse um gato ou um coelho? Para te fazer companhia,
no teu apartamento.
— Gabriel, agradeço a ideia, mas não podes resolver os meus problemas
com dinheiro.
— Sei disso. Mas posso gastar dinheiro para tentar fazer-te sorrir. —
Beijou-a de novo.
— A bondade vale mais do que todo o dinheiro do mundo.
— E é o que terás. Isso e muito mais.
— É só o que quero.
— Fica para o fim de semana. Aqui. Comigo.
Julia hesitou apenas por um instante.
— Está bem — murmurou.
Gabriel parecia aliviado.
— E que tal um peixe? São o novo animal de companhia.
Julia riu-se.
— Não me parece boa ideia. Mal consigo tomar conta de mim, quanto
mais de outra pobre criatura.
Ele ergueu-lhe o queixo, para que pudessem olhar-se.
— Então deixa-me cuidar de ti — disse num sussurro, os olhos intensos e
sem pestanejar.
— Podias ter qualquer mulher que quisesses, Gabriel.
— Só te quero a ti — retorquiu Gabriel, franzindo o sobrolho.
Ela deitou a cabeça sobre o peito dele e sorriu.
— Estar sem ti, Julianne, é suportar uma noite interminável sem estrelas.
Capítulo Vinte e Dois

D ois quase amantes enlaçados, as suas pernas nuas enredadas numa cama
larga, sob um edredão azul-gelo e lençóis brancos Frette. A mulher
murmurava no seu sono, movendo-se de tempos a tempos, enquanto o homem
permanecia imóvel, desfrutando do prazer da sua companhia.
Podia tê-la perdido. Deitado ao lado de Julia, Gabriel estava ciente de que
aquela noite poderia ter terminado de modo bem diferente. Ela não tinha de o
perdoar. Não tinha de o aceitar. Mas perdoara e aceitara. Talvez ele pudesse
atrever-se a esperar…
— Gabriel?
Não respondeu, pois julgava-a a dormir. Eram três da madrugada, e o quarto
estava envolto em escuridão, uma escuridão atenuada apenas pelas luzes da
cidade que atravessavam as persianas.
Julia virou-se para o olhar.
— Gabriel? — sussurrou. — Estás acordado?
— Sim. Está tudo bem, querida, volta a dormir. — Beijou-a ao de leve e
afagou-lhe o cabelo.
Julia ergueu-se, ficando apoiada num cotovelo.
— Estou bem acordada, agora.
— Eu também.
— Podemos… falar?
Gabriel copiou rapidamente a posição dela.
— Claro. Há algum problema?
— És mais feliz agora do que eras antes?
Gabriel fitou-a por um momento e tocou-lhe delicadamente no nariz com a
ponta de um dedo.
— Porquê uma pergunta tão profunda, a meio da noite?
— Disseste que não estavas feliz no ano passado. Perguntava-me se estarias
feliz agora.
— A felicidade é algo de que sei muito pouco. E tu?
Julia revirava a ponta do lençol na mão.
— Tento ser feliz. Tento concentrar-me nas pequenas coisas e encontrar
prazer nelas. A tua tarte deixou-me feliz.
— Se soubesse que a tarte te ia deixar feliz, tinha-ta dado mais cedo.
— Porque não estás feliz agora?
— Troquei o meu direito de primogenitura por um prato de guisado.
— Estás a citar as Escrituras? — Julia mal podia acreditar.
Gabriel irritou-se.
— Não sou pagão, Julianne. Fui criado na Igreja Episcopal. O Richard e a
Grace eram muito devotos. Não sabias?
Julia anuiu. Tinha-se esquecido.
O rosto de Gabriel assumiu uma expressão invulgarmente séria.
— Ainda acredito, embora não viva de acordo com essas ideias. Sei que isso
faz de mim um hipócrita.
— Todos os crentes são hipócritas, porque nenhum de nós está a altura das
suas crenças. Eu também acredito, mas não me porto muito bem. Só vou à
missa quando estou triste, ou por altura do Natal e da Páscoa. — Procurou a
mão dele e apertou-a na sua. — Se ainda acreditas, deves ter esperança. Tens de
acreditar que a felicidade também é possível para ti.
Gabriel largou-lhe a mão e deitou-se de costas, olhando para o teto.
— Perdi a minha alma, Julianne.
— Que queres dizer com isso?
— Estás a olhar para um dos poucos que cometeram o pecado que conduz à
morte.
— Como?
Gabriel suspirou.
— O meu nome é de uma terrível ironia. Tenho mais de demónio que de
anjo, e não tenho redenção, porque fiz coisas imperdoáveis.
— Queres dizer… com a professora Singer?
Gabriel riu com azedume.
— Fossem esses todos os meus pecados. Mas não, Julianne, já fiz pior. Por
favor, limita-te a aceitar o que te digo.
Ela aproximou-se um pouco mais. Os seus traços delicados enrugaram-se
com preocupação, as suas sobrancelhas uniram-se. Levou algum tempo a
considerar as palavras que Gabriel não dissera, enquanto ele lhe acariciava o
braço com dedos arrependidos.
— Sei que ao esconder-te segredos, estou a magoar-te. Sei que não vou poder
esconder-tos para sempre. Mas, por favor, dá-me algum tempo. — Expirou
devagar e baixou a voz. — Prometo que não farei amor contigo antes de te
dizer quem realmente sou.
— É um pouco cedo para falarmos disso, não achas?
Enrugando a testa, Gabriel procurou os olhos dela.
— É?
— Gabriel, ainda agora estamos a conhecer-nos, e já houve algumas
surpresas.
Gabriel afastou-se.
— Tens de saber quais são as minhas intenções. Não tenciono seduzir-te e
desaparecer. Não tenciono guardar uns quantos dos meus segredos até que sejas
completamente minha. Estou a tentar portar-me como deve ser.
O voto de Gabriel fora feito de boa-fé. Queria Julia, queria-a toda para si,
mas compreendera nessa noite, deitado ao seu lado, que não poderia fazer amor
com ela sem lhe revelar quem era verdadeiramente. Embora a reação de Julia
ao seu passado com Ann lhe tivesse dado alguma esperança, Gabriel temia que
outras revelações pudessem afastá-la. Julia podia arranjar melhor. Ainda assim,
a ideia de a ver com outra pessoa causava-lhe um nó no peito.
— Tens uma consciência?
— Que pergunta vem a ser essa? — resmungou Gabriel.
— Acreditas que há uma diferença entre o certo e o errado?
— Claro que sim!
— Sabes encontrar essa diferença?
Gabriel esfregou a cara com ambas as mãos.
— Julianne, não sou um sociopata. Saber não é o problema. O problema é
fazer.
— Então não perdeste a tua alma. Só uma criatura com alma sabe a diferença
entre o certo e o errado. Cometeste erros, sim, mas sentes culpa. Sentes
remorsos. E se ainda não perdeste a tua alma, ainda tens a possibilidade de
redenção.
Gabriel sorriu tristemente e beijou-a.
— Falas como a Grace.
— A Grace era muito sensata.
— E a menina Mitchell também. Ao que parece — troçou Gabriel.
— Sou mesmo. Com uma pequena ajuda de São Tomás de Aquino, professor.
Gabriel puxou-lhe ligeiramente a t-shirt para cima, de modo a conseguir
fazer-lhe cócegas.
— Ah! Gabriel! Para com isso! — Rindo, Julia contorceu-se, tentando
escapar-lhe.
Gabriel insistiu por alguns momentos, só pelo prazer de ouvir o seu riso
vibrar na escuridão. Depois libertou-a.
— Obrigado, Julianne. — Acariciou-lhe a cara. — Quase me fazes acreditar.
Ela pousou-lhe um braço em redor da cintura, aninhando-se ao seu lado e
inalando com ar satisfeito o seu perfume.
— Cheiras sempre bem.
— Agradece à Rachel e à Grace. Começaram a oferecer-me Aramis há muito
tempo. Continuo a comprá-lo por hábito. — Sorriu. — Achas que devia
experimentar outra coisa?
— Se a Grace o escolheu, não.
O sorriso de Gabriel esmoreceu, mas ainda assim ele beijou-a na testa.
— Ainda bem que ela não me oferecia Brut.
Julia riu-se.
Permaneceram muito quietos por alguns minutos, até que ela lhe murmurou
ao ouvido.
— Há algo que gostava de te contar.
Gabriel franziu ligeiramente os lábios e anuiu.
Apesar da escuridão, Julia desviou timidamente o olhar.
— Podias ter feito amor comigo no pomar. Eu teria deixado.
Gabriel fez um dedo deslizar pelo rosto dela.
— Eu sei.
— Sabes?
— Tenho alguma prática quando se trata de ler o corpo de uma mulher,
Julianne. Naquela noite, estavas muito recetiva.
A sua resposta apanhou Julia de surpresa.
— Então… soubeste logo naquela altura que eu…?
— Sim.
— Mas não quiseste…
— Não.
— Queres explicar-me porquê?
Gabriel refletiu por instantes.
— Não achei que fosse correto. E estava tão feliz por te ter encontrado, por te
ter nos meus braços… Foi o suficiente. Foi tudo.
Julia inclinou-se para ele e beijou-o no pescoço.
— Foi perfeito.
— Quando formos a casa pelo Dia de Ação de Graças, gostava de te levar de
novo ao pomar. Irás comigo?
— Claro. — Julia depositou-lhe um beijo mesmo ao lado da tatuagem, pois
sabia que ele se encolhia sempre que ela lhe tocava naquele lugar.
— Beija-me — murmurou Gabriel.
Julia obedeceu, pousando os seus lábios entreabertos sobre os dele, abrindo a
boca, querendo saboreá-lo durante todo o tempo que ele permitisse. Até que
Gabriel suspirou e se afastou. A súbita quebra de contacto entristeceu Julia, e
uma velha preocupação ressurgiu.
Gabriel sentiu-a tensa.
— Não confundas a minha reserva com falta de desejo, Julianne. Desejo-te
ardentemente. — Voltou-a delicadamente de lado e aninhou-se atrás dela,
mergulhando a cara no seu cabelo. — Que bom estares aqui — disse num
sussurro.
Julia queria dizer-lhe que dormia melhor quando estava com ele. Queria
dizer-lhe que gostaria de partilhar uma cama com ele todas as noites e que o
desejava com todas as suas forças.
Mas nada disse.

E stava só, na manhã seguinte, quando acordou. Espreitou o relógio


antiquado que Gabriel tinha sobre a mesa de cabeceira e admirou-se ao ver
que já era meio-dia. Dormira demasiado.
Gabriel deixara-lhe o pequeno-almoço preparado, com um bilhete apoiado
num copo cheio de sumo de laranja. Julia começou a comer o pain au chocolat
enquanto lia o bilhete.
DO GABINETE DO PROFESSOR GABRIEL O. EMERSON

Querida,
Estavas a dormir profundamente, por isso não quis acordar-te.
Fui fazer umas compras.
Telefona-me quando acordares.
Sinto-me grato por te ter tido nos meus braços toda a noite, e pelas tuas palavras...
Se tenho uma alma, é a tua.

Gabriel

Julia sorriu de orelha a orelha e tomou o pequeno-almoço com toda a calma.


Gabriel parecia feliz, e isso deixava-a feliz também. Serviu-se da casa de
banho, e estava prestes a sair do quarto quanto tropeçou em algo. Endireitou-se,
praguejando, e só então viu que o obstáculo no seu caminho eram, na realidade,
três sacos de compras com as palavras Holt Renfrew estampadas. Empurrou os
sacos para o lado, com um gesto irritado, e dirigiu-se para a cozinha.
Ficou surpreendida ao encontrar Gabriel sentado ao balcão, a beber café e a
ler um jornal. Usava uma camisa de um azul-claro que lhe realçava os olhos
azuis, e umas calças pretas de fim de semana. Tinha os óculos postos, e estava
muito atraente, como de costume. Julia, ainda de calções e t-shirt, sentiu-se
pouco à vontade.
— Ora, aí estás tu. — Gabriel dobrou o jornal e pousou a chávena, depois
abriu os braços para a receber.
Julia pôs-se entre os seus joelhos afastados, e ele abraçou-a calorosamente.
— Como dormiste? — murmurou-lhe Gabriel, escondendo a cara no seu
cabelo.
— Muito bem.
Ele beijou-a suavemente.
— Devias estar mesmo cansada. Como te sentes? — Olhou-a com
preocupação.
— Ótima.
— Posso preparar-te o almoço, se quiseres.
— Já comeste?
— Comi qualquer coisa com o café, de manhã. Estava à tua espera para
almoçar.
Beijou-a de novo, desta vez mais demoradamente. Os braços de Julia
deslizaram-lhe timidamente pelas costas até ao cabelo. Gabriel correspondeu
mordiscando-lhe o lábio inferior, depois do que se afastou com um sorriso
orgulhoso.
— Tinha algum receio de não te encontrar quando acordasse.
— Não vou a lado nenhum, Gabriel. Ainda me doem os pés por ter andado
tanto com aqueles saltos, ontem. Acho que não conseguia chegar a casa, mesmo
que quisesse.
— Posso resolver isso. Com a ajuda de um banho quente. — Moveu as
sobrancelhas sugestivamente.
Julia corou e resolveu mudar de assunto.
— Quanto tempo queres que fique?
— Para sempre.
— A sério, Gabriel. — Abanou a cabeça, sorrindo.
— Até segunda de manhã.
— Só trouxe roupa para hoje. Tenho de ir a casa buscar algumas coisas.
Gabriel sorriu, com um ar tolerante.
— Levo-te a casa, se fizeres questão de ir. Ou empresto-te o Land Rover.
Mas, antes disso, tens algumas coisas à tua espera no quarto. Talvez não
precises de ir a casa.
— Que coisas?
— Coisas que podem dar jeito quando se fica em casa de um amigo —
respondeu Gabriel, acenando com as mãos.
— E donde vieram essas coisas?
— Da loja onde a Rachel comprou a tua mala.
— Nesse caso, foram caras. — Julia franziu o sobrolho e cruzou os braços
junto ao peito.
— És minha convidada. As regras da hospitalidade exigem-me que satisfaça
todas as tuas necessidades. — Gabriel falara numa voz rouca, a língua
percorrendo-lhe o lábio inferior.
Com um esforço imenso, Julia ignorou a boca dele.
— Parece-me… ilícito estares a comprar-me roupa.
— De que estás a falar? — Agora soava zangado.
— Como se eu fosse uma…
— Para. — Largou-a imediatamente, os olhos subitamente sombrios.
Julia enfrentou-o com o olhar, reunindo forças para o dilúvio.
— Julianne, porque tens essa aversão à generosidade?
— Não tenho.
— Tens, sim. Achas que estou a subornar-te para teres sexo comigo?
— Claro que não — respondeu, muito vermelha.
— Achas que estou a dar-te prendas porque espero que me pagues com sexo?
— Não.
— Então, qual é o problema?
— Não quero ficar a dever-te nada.
— Ficares a dever-me? Agora sou um usurário medieval e, se não me
pagares a tempo, tiro um quilo da tua carne.
— Não me parece — disse Julia num murmúrio.
— Que pensas, então?
— Penso que devo bastar-me a mim própria. Tu és professor, eu sou uma
aluna, e…
— Falámos sobre isso na noite passada — cortou Gabriel, furioso. — Um
presente de um amigo não inibe, de modo algum, a tua vontade própria ou a tua
autonomia. Não quis que tivesses de ir a casa. Já assim temos pouco tempo para
estarmos juntos. Atravessei a rua, entrei na loja e pedi à minha assistente de
compras que me ajudasse a escolher algumas coisas. Estava a tentar ser
simpático. Mas uma vez que não as queres, vou mandar devolvê-las.
Gabriel levantou-se e pousou a sua chávena de café no balcão. Depois passou
ao lado de Julia sem dizer uma palavra e desapareceu no escritório.
Podia ter corrido melhor, pensou Julia.
Pôs-se a mordiscar as unhas, sem saber o que fazer. Por um lado, queria ser
independente e não assumir o papel do pequeno pássaro de asa quebrada. Por
outro lado, tinha um bom coração e não queria fazer os outros sofrer. Vira os
olhos de Gabriel. Por detrás daquele súbito acesso de mau humor, estava
magoado. Profundamente.
Não quis magoá-lo…
Sendo Gabriel tão enérgico, tão forte, Julia não se apercebera de como ele
podia ser sensível. E em relação a algo tão inconsequente como uns quantos
presentes. Talvez ela fosse a única pessoa a testemunhar aquela sensibilidade.
Isso tornava o facto de o ter magoado ainda mais doloroso.
Serviu-se de um copo de água e bebeu-o devagar, tentando dar a ambos
algum espaço e alguns minutos para pensarem. Quando se dirigia para o
escritório, o telefone tocou. Julia espreitou pela porta.
Gabriel estava sentado à secretária, remexendo em papéis enquanto falava.
Ergueu os olhos para ela, apontou o telefone e moveu os lábios em silêncio para
dizer Richard.
Julia anuiu e aproximou-se da secretária, escolheu uma caneta que não
parecia cara, e escreveu numa folha de papel: Desculpa. Mostrou-lhe o papel e
os seus olhos encontraram-se. Gabriel anuiu rigidamente.
Vou tomar um duche. Podemos falar depois?

Ele leu o recado e anuiu novamente.


Obrigada por seres tão atencioso. Desculpa.

Então, Gabriel agarrou-lhe o pulso, e encostou-lhe os lábios à palma da mão,


apertando-a ligeiramente.
Julia regressou ao quarto e fechou a porta. Pousou os sacos sobre a cama e,
com uma certa relutância, começou a abrir os embrulhos.
No primeiro saco encontrou roupas de mulher, todas do seu tamanho. Gabriel
comprara uma saia preta de corte clássico, umas calças Theory justas, também
pretas, uma elegante camisa branca de algodão com punhos franceses, e uma
blusa de seda azul Santorini. Um par de collants aos losangos, meias para usar
com calças e um par de botas bicudas pelo tornozelo completavam o conjunto.
Era como uma coleção pequena, básica, de um único estilista. Não querendo ser
ingrata, Julia teria ficado contente com um par de calças de ganga, uma
camisola de manga comprida e uns ténis.
Abriu o segundo saco, e ficou chocada ao encontrar lingerie. Gabriel
comprara-lhe um elegante roupão roxo, obviamente caro, e, a combinar, uma
camisa de noite comprida com um decote em bico, franzido. Julia ficou
simultaneamente admirada e satisfeita com o modelo discreto e sofisticado da
camisa, pois era uma peça com que se sentiria confortável para dormir com ele,
mesmo naquela fase da sua relação. No fundo do saco encontrou um par de
mules de cetim com saltos agulha baixos. Julia calculou que eram um autêntico
perigo disfarçado de chinelos sensuais.
Não há dúvida de que o Gabriel tem uma pancada por saltos… em todo o
tipo de calçado feminino.
O terceiro e último saco continha roupa interior. Julia ficou ruborizada mal
desembrulhou três sutiãs de meia taça em renda, cada um com um par de cuecas
a condizer, todos de um estilista francês. Um conjunto era cor de champanhe,
outro era de um azul-gelo, e o terceiro de um rosa-pálido. As cuecas eram todas
boxers de renda. Julia corou ainda mais quando imaginou Gabriel a passar as
mãos por expositores de roupa interior cara e elegante, decidindo-se por peças
sensuais e requintadas, escolhendo exatamente os tamanhos certos.
Ó deuses de todos os muito generosos (namorados? amigos?), obrigada por
o terem afastado das peças realmente provocantes… por agora.
Julia estava emocionada. Sentia algum embaraço. Mas os presentes de
Gabriel eram todos tão bonitos, tão delicados, tão perfeitos. Ele pode não me
amar, mas preocupa-se em deixar-me feliz, pensou.
Pegando no conjunto cor de champanhe, na camisa branca e nas calças
pretas, foi para a casa de banho e tomou um duche. Para além de uma esponja
roxa, encontrou também, milagrosamente, a sua marca de champô, amaciador e
gel de banho. Gabriel, à sua maneira obsessiva, pensara em tudo.
Julia estava orgulhosamente vestida com o seu roupão novo, a secar o cabelo
com uma toalha, quando ouviu bater à porta.
— Entra.
Gabriel espreitou pela porta.
— Tens a certeza? — Vendo-a de cabelo molhado, os seus olhos deslizaram-
lhe pelo esvoaçante roupão roxo até aos pés descalços, subindo depois,
novamente, para lhe pousarem na pele nua do pescoço.
— Estou decente. Não há problema.
Gabriel foi ter com ela, olhos sombrios e ávidos.
— Tu podes estar decente, mas eu não estou.
Julia sorriu-lhe apreciativamente, e ele retribuiu o sorriso, de algum modo
mais controlado.
Encostou-se ao balcão da casa de banho e enfiou as mãos nos bolsos.
— Desculpa.
— Também peço desculpa.
— Exagerei.
— Eu também.
— Vamos fazer as pazes.
— Sim, por favor — disse Julia.
— Não custou muito. — Gabriel riu-se e tirou-lhe a toalha das mãos,
atirando-a para o lado. Puxou Julia para si e estreitou-a nos seus braços.
— Gostas do teu roupão? — Passou os dedos pela seda, hesitante.
— É lindo.
— Vou devolver o resto.
— Não. Gosto de tudo. E gosto ainda mais porque foste tu a escolher.
Obrigada.
Os beijos de Gabriel podiam ser suaves e ternos, como os beijos de um rapaz
ao seu primeiro amor. Mas não naquele momento. Encostou os seus lábios aos
de Julia até que estes se abrissem, e beijou-a demorada e apaixonadamente.
Quando finalmente terminou, as costas da sua mão deslizaram, para cima e para
baixo, pela cara dela.
— Teria optado por umas calças de ganga, mas a Hilary, a minha assistente,
convenceu-me de que é muito difícil comprar calças de ganga para outra
pessoa. Se preferires roupa mais desportiva, vamos comprar outra coisa.
— Não preciso de mais um par de calças de ganga.
— Quero que saibas que escolhi tudo, à exceção da roupa interior. A Hilary
encarregou-se dessa parte. — Vendo-a surpreendida, apressou-se a explicar. —
Não queria que te sentisses constrangida.
— Tarde de mais — balbuciou Julia, um pouco desapontada com aquela
revelação.
— Julianne, há algo que preciso de te explicar. — A sua expressão tornou-se
séria, e Julia sentiu uma espécie de arrepio correndo a superfície da pele dele.
Gabriel parecia agitado, procurando as palavras certas. — O meu pai era um
homem casado, com uma família, quando se envolveu com a minha mãe.
Seduziu-a, usou-a como a uma prostituta, e abandonou-a. Magoa-me
profundamente que penses que estou a tratar-te da mesma maneira. Claro que,
dado o meu historial, a tua reação não me surpreende, mas…
— Gabriel, não penso nada disso. Só não gosto de sentir que preciso que
cuidem de mim.
Ele olhou-a atentamente.
— Quero cuidar de ti, mas não porque precises. Claro que sabes cuidar de ti.
E tens feito um excelente trabalho desde que eras uma rapariguinha. Mas já não
tens de estar sozinha. Agora, tens-me a mim.
Fez uma pausa.
— Quero mimar-te e ter gestos extravagantes porque me preocupo contigo.
— Moveu-se desconfortavelmente. — Não sou capaz de dizer tudo o que sinto.
Só consigo mostrá-lo. E então, quando não deixas que o faça… — Encolheu os
ombros, uma expressão de dor no rosto.
— Não tinha visto as coisas assim — disse Julia baixinho.
— De cada vez que tenho um gesto para contigo, estou a tentar demonstrar
aquilo que não consigo dizer-te por palavras. — Passou-lhe os polegares pelas
maçãs do rosto. — Não me prives disso. Por favor.
Julia respondeu-lhe pondo-se em bicos de pés e encostando o seu peito ao
dele, rodeando-lhe o pescoço com os braços e tomando a boca dele na sua. Era
desejo, promessa, entrega e urgência.
Gabriel abandonou-se, a tensão nos seus maxilares palpável enquanto ele
concentrava todo o seu ser naquela boca perfeita, única. Quando se separaram,
estavam ambos sem fôlego.
— Obrigado — murmurou Gabriel, pousando o queixo no ombro de Julia.
— É-me difícil contar com outra pessoa.
— Eu sei.
— Seria mais fácil se me incluísses nos teus planos, em vez de tomares
decisões por mim. Penso que dessa forma me sentiria mais como tua…
parceira. Não que sejamos parceiros. — Corou, mais uma vez.
Ele beijou-a de novo.
— Mas eu quero que sejamos parceiros, Julianne. O que pedes é justo. Só
que às vezes entusiasmo-me, especialmente contigo.
Julia anuiu novamente, ainda encostada ao peito dele, e quando Gabriel
pigarreou, ela recuou um pouco, para o olhar nos olhos.
— Cerca de um ano antes de morrer, o meu pai teve um ataque de
consciência e incluiu-me no seu testamento. Deve ter achado que ao dar-me
uma parte da herança igual à dos seus filhos legítimos, conseguiria expiar os
seus pecados. Estás a olhar para uma indulgência de carne e osso.
— Lamento muito, Gabriel.
— Eu não queria o dinheiro. Mas por causa dos investimentos que ele me
deixou, tenho mais dinheiro agora do que quando ele morreu. Por muito
rapidamente que o gaste, nunca conseguirei livrar-me dele. Por isso, não deves
pensar nos preços das coisas. O custo não tem importância.
— Porque aceitaste a herança?
Gabriel libertou-a, para poder esfregar os olhos sem tirar os óculos.
— O Richard e a Grace hipotecaram a casa para pagarem pelos meus erros.
Eu tinha dívidas por causa da droga, o que queria dizer que corria perigo, e
houve outros problemas…
— Não sabia.
— O teu pai sabia.
— O meu pai? Como?
— O Richard estava determinado a salvar-me. Quando lhe confessei todos os
sarilhos em que me tinha metido, ele decidiu ir ter com todas as pessoas a quem
eu devia dinheiro e pagar-lhes. Felizmente, primeiro falou com o teu pai.
— Porquê?
— Porque o teu pai conhecia um detetive com contactos em Boston.
Julia abriu muito os olhos, compreendendo.
— O meu tio Jack.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Não sabia que era teu tio. O Richard era tão ingénuo… Não se tinha
apercebido de que eu devia dinheiro a alguns personagens muito duvidosos, que
podiam tê-lo matado depois de ele lhes pagar. O Tom arranjou maneira de o teu
tio e alguns dos seus amigos pagarem as minhas dívidas, em segurança, com o
dinheiro do Richard. Quando saí da clínica de desintoxicação, telefonei ao
advogado do meu pai, para Nova Iorque, e disse-lhe que aceitava a minha
herança. Paguei a hipoteca da casa, mas nunca me livrei da vergonha. O
Richard podia ter sido morto por minha causa.
Julia encostou a cara ao peito de Gabriel.
— És filho dele. Claro que queria salvar-te. O Richard adora-te.
— O filho pródigo — balbuciou Gabriel.
Deixou que as suas mãos deslizassem para a cintura de Julia e mudou de
assunto.
— Quero que te sintas confortável aqui. Esvaziei uma das gavetas da cómoda
e arranjei espaço no roupeiro para as tuas roupas. Gostava que aqui deixasses
algumas coisas, para ires e vires conforme te apetecer. E vou dar-te uma chave
do apartamento.
— Queres que deixe roupas aqui?
— Bem, preferia que te deixasses a ti, mas vou contentar-me com as tuas
roupas — disse, meio a sorrir, meio amuado.
Julia esticou-se para lhe dar um beijo penitente nos lábios.
— Vou deixar alguns dos teus presentes; da próxima vez que cá ficar, estarão
à minha espera.
Gabriel sorriu, e o seu sorriso transformou-se numa expressão provocadora.
— Já que estamos a falar de deixares coisas aqui, talvez possas deixar
algumas fotografias.
— Queres fotografar-me… assim?
— Porque não? És linda, Julianne.
Ela sentiu a cara a arder.
— Acho que não estou preparada para te deixar tirares-me fotografias
eróticas.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Estava a pensar em algo mais na linha de fotografias a preto e branco do
teu perfil, do teu pescoço, da tua cara… — Começou a desenhar-lhe formas
curvas nas costas, um gesto delicado para lhe demonstrar o seu afeto.
— Porquê?
— Porque gostava de poder ver-te quando não estás comigo. O apartamento
fica muito vazio sem ti.
Julia franziu os lábios, ponderando.
— A ideia perturba-te? — Passou-lhe a mão pela zona do queixo, devagar.
— Não. Podes fotografar-me. Mas preferia estar completamente vestida.
— Acho que o meu coração não aguentaria se te visse despida.
Ela sorriu-lhe, e Gabriel riu-se.
— Posso fazer-te uma pergunta, Gabriel?
— Claro.
— Quando fores a Selinsgrove para o Dia de Ação de Graças, vais ficar em
casa do Richard ou num hotel?
— Vou ficar em casa, com toda a gente. Porquê?
— A Rachel disse que costumavas ficar num hotel.
— É verdade.
— Porquê?
Gabriel encolheu os ombros.
— Porque eu era a ovelha negra da família e o Scott nunca me deixava
esquecer isso. Era um alívio ter a opção de me ir embora se o clima ficasse
desagradável.
— Alguma vez levaste uma rapariga contigo?
— Nunca.
— Alguma vez quiseste levar alguém contigo?
— Não antes de ti. — Gabriel inclinou-se para a frente, para a beijar de novo.
— E se pudesse fazer as coisas à minha maneira, serias a primeira rapariga a
partilhar a minha cama em casa dos meus pais. Infelizmente, acho que isso não
vai ser possível, a não ser que te leve para o meu quarto a coberto da noite.
Julia deu uma risadinha, mas, secretamente, sentiu-se muito, muito feliz.
— O Richard lembrou-me que tenho de reservar os nossos bilhetes de avião.
E se me deixasses tratar de tudo? Resolvíamos a questão do dinheiro mais
tarde.
— Posso reservar o meu bilhete.
— Claro que podes. Mas quero que vamos sentados juntos. Teremos de ir
para o aeroporto depois do meu seminário, o que quer dizer que vamos no
último voo de Toronto, por volta das nove horas.
— É tarde.
— Pensei reservar um quarto de hotel em Filadélfia para a noite de quarta-
feira, uma vez que vamos chegar perto das onze. A não ser que queiras ir de
carro para Selinsgrove logo em seguida.
Julia abanou a cabeça.
— Porque não voamos para Harrisburg?
— O último avião para Harrisburg parte a meio do meu seminário. Claro que
podemos ir só no dia seguinte, se preferires. Nesse caso, não precisaríamos de
ficar num hotel. — Gabriel fitou-a, avaliando-a.
— Não quero perder um dia. E seria agradável ficar num hotel contigo. —
Sorriu-lhe.
— Ótimo. Vou fazer a reserva e alugar um carro.
— E a Rachel e o Aaron? Não devíamos ir de carro com eles?
— Vão logo na quarta-feira, depois do trabalho. A Rachel disse-me que era
minha responsabilidade pôr-te em casa em segurança. Quer que eu seja o teu
chauffeur e o teu moço da bagagem. — Piscou-lhe o olho e sorriu.
— Ela sabe, não achas?
— A Rachel pensa que sabe tudo. — O sorriso dele tornou-se tenso. — Não
te preocupes. Eu encarrego-me dela.
— Não é a Rachel que me preocupa.
— Não precisas de te preocupar com nada. Somos apenas dois amigos que se
encontraram numa cidade longe de casa. Vai ser mais difícil para mim do que
para ti.
— Porque dizes isso?
— Porque vou estar na mesma sala que tu sem poder tocar-te.
Julia olhou para os seus pés descalços e sorriu timidamente.
Gabriel segurou-lhe na mão e começou a acariciá-la.
— Quando é o teu aniversário?
— Não o celebro.
— Porquê?
— Não celebro, simplesmente. — O seu tom fora agora defensivo.
— Bem, mas eu gostava de o comemorar contigo. Não me prives disso,
Julianne.
Os olhos azuis de Gabriel transmitiam mais frustração do que aborrecimento.
Julia pensou na discussão por causa das roupas e decidiu que não iam voltar
a discutir tão cedo.
— Foi no dia 1 de setembro. Perdeste a ocasião.
— Não, não perdi. — Pôs-lhe os braços em redor e encostou a sua cara à
dela.
— Estás livre no próximo sábado? Podemos comemorar nessa altura.
— E como vamos comemorar?
— Tenho de fazer uns preparativos, mas vamos sair.
— Não me parece que seja boa ideia estarmos juntos… em público.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Deixa que seja eu a preocupar-me com isso. Agora, aceitas o meu convite
ou não? — Fez a sua mão deslizar para um dos locais onde sabia que ela tinha
cócegas.
— Aceito, e fico muito grata. Por favor, não me faças cócegas.
Gabriel ignorou o pedido e começou a fazer-lhe cócegas até ela guinchar a
rir. Adorava ouvi-la rir. E Julia adorava os raros momentos em que ele se
mostrava alegre.
Quando finalmente recuperou o fôlego, começou a pedir desculpas.
— Desculpa ter-te magoado há pouco. Não serve como justificação, mas a
verdade é que ontem foi um dia difícil e, além disso, estou hormonal.
Hormonal?, interrogou-se Gabriel. Ahhh… Olhou-a com preocupação.
— Estás doente?
— Estou bem, só que fico assim alguns dias antes. Mas não deves querer
falar sobre isto.
— Se te deixa indisposta ou aborrecida, claro que quero falar. Preocupo-me
contigo.
— Talvez queiras tomar nota na tua agenda, para saberes quando evitar-me.
Quero dizer, se continuarmos… — Julia interrompeu-se.
— Não faria tal coisa — disse Gabriel, num tom severo. — Quero-te, quero
tudo o que te diz respeito… não apenas as coisas boas. E claro que vamos
continuar juntos. Assim espero.
A revelação de Julia confrontou Gabriel com uma situação interessante. Não
que ele tivesse esquecido todas as noções de biologia. Simplesmente, dado o
seu estilo de vida, a questão nunca surgira. As mulheres hormonais, ou as
mulheres naquela altura do seu ciclo, não frequentavam O Vestíbulo à procura
de sexo.
Raramente Gabriel tivera a mesma mulher na sua cama por mais de uma vez.
E nem nessas ocasiões tinham falado de assuntos tão íntimos. Gabriel não se
importaria de discutir temas íntimos com Julianne. Queria conseguir ler os seus
estados de espírito, perceber quando ela estava chorosa ou irritável. A ideia
deixou-o perplexo e, ao mesmo tempo, agradou-lhe.
— Vou deixar-te vestires-te. Mas há mais uma coisa de que precisamos de
falar. — Pela expressão séria com que a olhou, Julia percebeu que o assunto
não era agradável.
— Voltei a falar com o meu advogado.
— E?
— Aconselhou-me a manter-me longe de ti. Disse-me que a universidade tem
uma política de tolerância zero no que se refere ao envolvimento entre
professores e alunos.
— Que significa isso?
— Significa que ambos estaríamos em risco se nos envolvêssemos enquanto
és minha aluna. Poderiam expulsar-te, em determinadas circunstâncias.
Julia fechou os olhos, um gemido escapando-lhe por entre os lábios. Porque
há de o universo estar sempre a conspirar contra nós?
— Conhecíamos o regulamento, e sabíamos que era levado a sério. Só
precisamos de continuar como até agora, e sermos discretos durante mais
algumas semanas. Assim que a Katherine entregar a tua nota, seremos livres de
nos encontrar onde quisermos.
— Tenho medo.
Gabriel passou-lhe a mão pela cara.
— De quê?
— Se alguém nos vir juntos ou suspeitar de alguma coisa, pode apresentar
queixa. A Christa quer-te para ela, e odeia-me. O Paul não gostou do modo
como me trataste, por isso não hesitaria em afirmar que me assediaste. E a
professora Singer… — Julia estremeceu. Nem queria imaginar o que a
professora Singer pensava.
— Não vou deixá-los expulsarem-te. Aconteça o que acontecer. Nunca
chegaria a tanto.
Julia tentou protestar, mas Gabriel silenciou-a com os seus lábios,
tranquilizando-a com murmúrios, enquanto tentava mostrar-lhe o que sentia
sem a ajuda de palavras.

P assaram um dia maravilhoso juntos. Riram e beijaram-se e passaram horas


a conversar. Gabriel fotografou Julia em várias poses descontraídas, até ela
finalmente ceder à timidez e ele se ver obrigado a largar a câmara. Decidiu
tirar-lhe uma ou duas fotografias nessa noite, quando ela estivesse a dormir,
pois Julianne tinha a cara de um anjo quando estava em paz. E Gabriel sabia
que uma Julianne adormecida daria uma fotografia encantadora.
Depois do jantar, dançaram junto à lareira. Gabriel preparara uma
compilação de várias canções sensuais de Sting, mas Julia não conseguia
concentrar-se na música. Sentia-se atordoada, como acontecia sempre que
Gabriel a beijava. As sensações físicas e as emoções eram de tal modo intensas
que quase lhe causavam vertigens.
Os dedos de Gabriel enrodilharam-se-lhe no cabelo, acariciaram-lhe a nuca.
Deslizaram-lhe depois pelos ombros, seguindo lentamente a curva das suas
costas. Escorregando-lhe até à cintura, as mãos de Gabriel subiram devagar,
provocando-a, e detiveram-se junto ao seu peito. Duas mãos fortes envolveram-
lhe delicadamente os seios, movendo-se e massajando-os suavemente.
Julia recuou.
Gabriel manteve as mãos onde estavam e abriu os olhos. A princípio, ficou
confuso. Julia afastara-se, e ele sentia-lhe o coração a bater muito depressa
contra os seus dedos.
— Julianne? — murmurou.
Ela abanou a cabeça, a pele rosada e a boca aberta. Não deixou de o olhar
nos olhos quando se aproximou um pouco mais. Gabriel moveu ligeiramente as
mãos, avaliando a reação dela. Julia fechou os olhos, e quando voltou a abri-los,
Gabriel viu algo completamente novo nas suas profundezas castanhas. Paixão.
A súbita e intensa excitação de Julia teve um efeito tremendo sobre ele, não
apenas pelo seu próprio estado de profunda excitação, mas também
emocionalmente. Ela nunca o olhara assim, tão ansiosa e arrebatada, como se
nunca ninguém a tivesse tocado.
Ao pensar nisso, Gabriel sentiu o seu peito estremecer. Incitou-a com o olhar
a aproximar-se para um beijo, e encostou os lábios aos dela, acariciando-lhe os
seios com mais determinação e pressionando-lhe os mamilos que endureciam
sob a camisa. Julia gemeu de prazer junto à sua boca, o que o encorajou a ir
mais longe. Em breve gemia entre os seus lábios, pressionando o seu corpo
contra o dela.
Mais!, reclamava o seu corpo. Mais perto. Mais depressa. Mais próximo.
Mais. Mais. Mais.
— Ugghhhh — gemeu, libertando-se dos lábios dela e pondo as mãos no
espaço seguro dos seus ombros.
Num turbilhão de emoções, Julia encostou a cara à superfície plana do peito
dele. De olhos fechados, sentiu-se vacilar, mas Gabriel amparou-a, segurando-a
pela cintura.
— Como te sentes?
— Feliz.
— É o que a paixão te faz — disse-lhe, com um meio-sorriso.
— E o que fazem os teus dedos.
Sentou-a no seu cadeirão vermelho, junto à lareira.
— Preciso de tomar um duche.
Julia tentou recompor-se. As técnicas de sedução de Gabriel deixavam-na
impulsiva e desejosa, desejosa de coisas para as quais não estava preparada.
Ainda.
O professor Emerson é um apreciador de seios, pensou para consigo,
afetuosamente.
Como ele se demorava, Julia perguntou-se o que lhe teria acontecido.
Perguntou-se porque sentira ele, de repente, necessidade de tomar um segundo
duche. Quando a resposta àquela pergunta silenciosa lhe tomou forma no
pensamento, Julia sorriu para consigo.
Capítulo Vinte e Três

O fim de semana com Gabriel foi, talvez, o mais feliz da vida de Julia.
As memórias daqueles dias foram para ela como talismãs durante a
semana — durante o seminário de quarta-feira e as persistentes tentativas de
Christa para a diminuir e a embaraçar, e perante a insistência, bem-
intencionada mas inconveniente, de Paul para que apresentasse queixa
contra a professora Singer.
A semana de Gabriel foi um verdadeiro inferno. Foi-lhe difícil tirar os
olhos de Julianne durante o seu seminário, e a necessidade de o fazer
deixou-o irritável e mal-humorado. Christa quase o levara aos limites da sua
paciência, implorando reuniões à parte para (alegadamente) discutirem a
sua proposta de tese. Gabriel rejeitou todos os seus pedidos com um
desinteressado aceno de mão, o que só a fez redobrar esforços.
Quanto à professora Singer… enviara-lhe um e-mail.
Gabriel
Foi bom voltar a ver-te. Senti falta das nossas pequenas conversas.
A tua palestra foi um êxito do ponto de vista técnico, mas fiquei desapontada por
apresentares algo tão estreito de espírito.
Costumavas ser aventureiro. E livre.
Talvez o professor proteste demasiado…
Precisas de abraçar a tua verdadeira natureza
e submeteres-te a um pequeno treino.
Posso dar-te exatamente aquilo por que anseias,
Sr.ª Ann

Gabriel enfureceu-se ao ler aquela provocação à dominatrix, evidente até


na ausência de maiúscula no seu nome. A repulsa que sentia pela pessoa e
pelas palavras da professora Singer eram a prova de como ele mudara.
Talvez Gabriel tivesse começado a caminhar para a luz ainda antes de Julia
ter voltado para ele, uma viagem inspirada e encorajada pela presença do
anjo de olhos castanhos. A ideia agradava-lhe.
Teve o cuidado de não responder nem apagar o e-mail de Ann. Em vez
disso, fez exatamente o que fizera com a sua anterior correspondência —
imprimiu-o e colocou-o numa pasta no seu gabinete. Não tinha vontade de
apresentar queixa contra ela, uma vez que o início da relação fora
consensual. Mas não punha de parte a ideia de a ameaçar com as suas
próprias palavras, caso tal viesse a ser necessário. Só esperava que Ann
continuasse fascinada por ele e deixasse Julianne em paz.
Num esforço para se distrair, ao longo da semana, Gabriel dedicou a
maior parte do seu tempo livre aos preparativos para o aniversário de Julia,
e praticou várias horas de esgrima, no clube da universidade. Qualquer das
opções se revelou mais saudável do que os seus anteriores métodos para
descomprimir.
Todas as noites ficou acordado na cama, a olhar para o teto, pensando em
Julianne e desejando poder tocar o seu corpo quente e macio. Começava a
ser-lhe difícil adormecer sem ela, e por mais que tentasse aliviar a tensão
(através de diferentes formas possíveis), não conseguia resolver o problema.
Ou atenuar o desejo.
Passara-se muito tempo desde que tivera um compromisso com uma
mulher — desde Harvard, pelo menos. Amaldiçoou-se pela sua tolice ao
pensar que aqueles atos predatórios no Vestíbulo eram um substituto
adequado ou preferível a algo real. A algo de puro.
Sentia falta de sexo, era verdade. Por vezes, perguntava-se como seria
capaz de manter aquele regime de castidade, perguntava-se se não se
deixaria vencer pelo desejo e se não acabaria por subjugar a doçura de
Julianne com as suas técnicas de sedução. Não tinha intenção de se afastar
dela. Não sentia falta da alienação que antes sentia ao regressar a casa do
apartamento de uma amante, e ao lavar do seu corpo os vestígios dela,
como se fossem algo de contagioso. Não sentia falta do desprezo que sentia
por si próprio ao lembrar-se de casos passados, conquistas de mulheres que
nunca teria sido capaz de apresentar a Grace.
Com Julianne era diferente. Com ela, Gabriel queria paixão e
arrebatamento, mas também ternura e companheirismo. E essa noção,
embora nova, excitava-o tanto quanto o assustava.
ábado à tarde, Julia leu e releu ansiosamente o e-mail que lhe dava
pormenores sobre a comemoração do seu aniversário.

S Feliz aniversário, Querida.


Dá-me, por favor, a honra da tua presença no Royal Ontario Museum hoje, às seis da tarde.
Vai ter comigo à entrada de Bloor Street.
Estarei de fato e gravata, com um sorriso incrivelmente rasgado ao ver-te entrar pela
porta.
Espero, impaciente, pelo prazer da tua companhia.
Com todo o meu afeto e uma saudade imensa,
Gabriel

Julia correspondeu ansiosamente, usando o vestido roxo-íris que Rachel


lhe comprara, com uns collants pretos e os sapatos de salto alto Christian
Louboutin. Era demasiado longe (e demasiado penoso) para ir a pé, com
aqueles sapatos, de sua casa até ao museu, por isso apanhou um táxi.
Chegou às seis em ponto, os olhos brilhantes e as faces rosadas de
expectativa.
Tenho um encontro com o Gabriel. O nosso primeiro encontro a sério.
Pouco importava que ele tivesse insistido em celebrar o seu aniversário; a
ideia de ter Gabriel só para si, numa noite romântica, fê-la pôr toda a
apreensão para trás das costas. Sentira a falta dele, apesar das mensagens
furtivas dos e-mails e das ocasionais conversas menos apressadas ao
telefone.
O museu sofrera uma remodelação considerável, e uma escultura de
cristal com a forma de um casco de navio projetava-se da parede de pedra
original. Julia não gostava da justaposição do moderno e do vitoriano;
preferia um ou outro. Mas talvez estivesse em minoria.
Ao aproximar-se da entrada, deu-se conta de que o museu estava
fechado; o horário afixado indicava que as portas tinham encerrado meia
hora antes. Ainda assim, avançou até à porta e, para sua surpresa, foi
imediatamente saudada por um segurança.
— Menina Mitchell? — perguntou-lhe.
— Sim.
— O seu anfitrião espera-a na loja de presentes.
Julia agradeceu e caminhou por entre prateleiras de artefactos,
brinquedos e pequenas peças decorativas. Um homem alto, impecavelmente
vestido com um fato listrado azul-marinho com lapelas, estava de costas
para ela. Mal avistou a sua figura, os ombros largos e o cabelo castanho,
Julia sentiu o seu coração disparar. Vai ser sempre assim? Vou sentir-me
sempre enlevada e sem força nas pernas de cada vez que o vir?
Soube a resposta ainda antes de chegar junto de Gabriel. Como ele não se
voltava, Julia pigarreou.
— Professor Emerson, presumo.
Gabriel virou-se rapidamente.
— Olá, miúda linda — disse, ofegando, mal a viu. Encostou os lábios aos
seus com mais entusiasmo do que seria de esperar, e ajudou-a a despir o
casaco.
— Dá uma volta — disse-lhe numa voz rouca.
Julia girou lentamente.
— Estás deslumbrante. — Envolveu-a nos seus braços e beijou-a mais
vigorosamente, apertando o lábio de Julia entre os seus e começando a
explorar-lhe a boca delicadamente.
Julia recuou, embaraçada.
— Gabriel.
Ele olhou-a intensamente.
— Vamos fazer mais do mesmo ao longo da noite. Temos o museu inteiro
só para nós. Mas antes disso… — Pegou numa caixa que se encontrava
pousada numa mesa baixa ali perto. No interior da caixa estava uma grande
orquídea branca.
— Para mim?
Gabriel fez um sorriso convencido.
— Estou a compensar-te por ter perdido o teu baile de finalistas. Posso?
Julia olhou-o, radiante.
Gabriel retirou a flor da caixa e prendeu-a ao pulso de Julia demasiado
habilmente, rodeando-lhe o braço com a fita de cetim numa trança
elaborada.
— É linda, Gabriel. Obrigada — disse, beijando-o docemente.
— Vem.
Julia foi de boa vontade, mas ele apercebeu-se imediatamente do seu erro
e deteve-se.
— Quero dizer, por favor.
Julia sorriu e deu-lhe a mão, entrelaçando os seus dedos nos dele.
Caminharam até um espaço amplo onde fora improvisado um pequeno
bar, Gabriel conduzindo-a, a sua mão pousada ao fundo das costas de Julia.
— Como conseguiste tudo isto? — murmurou ela.
— Fui um dos patrocinadores da exposição florentina. Pedi uma visita
privada, e eles aceitaram de boa vontade. — Esboçou-lhe um sorriso que
quase a fez derreter-se numa poça no chão, como no filme Amélie.
O empregado de bar cumprimentou-os acolhedoramente.
— Para a senhora? — perguntou.
— Sabe fazer um Flirtini?
— Claro, minha senhora. É para já.
Gabriel ergueu as sobrancelhas e inclinou-se para Julia, para lhe segredar
ao ouvido.
— É um nome interessante para uma bebida. Um prenúncio de atrações
seguintes?
Julia riu-se.
— Vodka de framboesa, sumo de arando e ananás. Nunca experimentei,
mas encontrei a descrição na internet, e achei que devia ser delicioso.
Gabriel riu-se, abanando a cabeça.
— Para o senhor? — perguntou o empregado, entregando a Julia a sua
bebida, guarnecida com uma rodela de ananás.
— Água tónica com lima, por favor.
Julia admirou-se.
— Não vais beber?
— Temos uma garrafa de vinho especial em casa. Vou esperar. — Sorriu-
lhe.
Julia esperou até que Gabriel tivesse a sua bebida, para poderem fazer um
brinde.
— Podes trazer o teu… como se chama isso…? Flirtini contigo. Somos
os únicos visitantes.
— Um destes chega-me para a noite inteira. São bastante fortes.
— Temos todo o tempo do mundo, Julianne. A noite gira em teu redor…
em redor dos teus apetites, dos teus desejos, das tuas vontades. — Piscou-
lhe o olho e conduziu-a até um elevador. — A exposição fica no piso
inferior.
Quando entraram no elevador, Gabriel voltou-se para a olhar.
— Já te disse como senti a tua falta esta semana? Os dias e as noites
pareciam durar uma eternidade.
— Também senti a tua falta — disse Julia, timidamente.
— Estás encantadora. — Lançou um olhar de aprovação aos sapatos de
salto alto. — És uma miragem.
— Obrigada.
— Vou precisar de todo o meu autocontrolo, senão ainda acabo a raptar-
te para a exposição de mobiliário vitoriano e a fazer amor contigo numa
cama de dossel.
Julia ergueu as sobrancelhas e, dando uma risadinha, perguntou-se que
tipo de reações suscitaria semelhante exibição.
Ele suspirou de alívio ao ver que o seu comentário impensado não
perturbara Julia. Teria de ser mais cauteloso.
Gabriel estivera ativamente envolvido não apenas no financiamento da
exposição de muitos tesouros florentinos, mas também na sua seleção.
Enquanto deambulavam pelas várias salas, comentou brevemente algumas
das peças mais interessantes. Mas na maior parte do tempo limitaram-se a
caminhar de mão dada, como qualquer casal enamorado, parando de vez em
quando para se abraçarem ou trocarem um beijo, quando a vontade surgia.
E a vontade surgia muitas vezes.
Julia terminou a sua bebida um pouco mais cedo do que previsto, e
Gabriel procurou atenciosamente um lugar onde deixarem os copos. Ficou
contente por ter as mãos livres, finalmente. Para ele, Julia era uma Sereia,
uma voz irresistível. Acariciava-lhe o pescoço, o rosto, os ombros. Beijava-
lhe as mãos, os lábios, a garganta. Ela derretia-o pouco a pouco, e quando
lhe via um sorriso ou a fazia rir, Gabriel sentia o seu corpo a arder.
Passaram bastante tempo a admirar o quadro A Virgem Com o Menino e
Dois Anjos, de Fra Filippo Lippi, pois era uma obra que ambos apreciavam.
Gabriel ficou de pé atrás de Julia, os seus braços envolvendo-lhe a cintura.
— Gostas? — sussurrou-lhe ao ouvido, pousando-lhe o queixo no ombro.
— Muito. Sempre gostei da expressão de serenidade da Virgem.
— Eu também — disse Gabriel, arrastando os lábios entre a garganta
dela e o lóbulo da orelha, roçando-lhe o nariz ao de leve na pele. — A tua
serenidade é muito sedutora.
Julia rolou os olhos para trás.
— Mmmmmm — gemeu em voz alta.
Rindo baixinho, Gabriel repetiu o que acabara de fazer, desta vez
deixando a língua aflorar-lhe a pele. Só um sussurro, uma promessa, um
toque tão ligeiro que ela julgou ter sido dos lábios dele.
— Sabe-te bem?
Julia respondeu enfiando-lhe os dedos entre o cabelo. Foi todo o
encorajamento de que ele necessitava. Voltou-a para si e apertou-a junto ao
seu corpo, pousando-lhe as mãos ao fundo das costas.
— Tu és a verdadeira obra de arte — murmurou-lhe junto à garganta. —
Tu és a obra-prima. Feliz aniversário, Julianne.
Ela apertou-lhe delicadamente a orelha com os lábios, terminando com
um beijo suave.
— Obrigada.
Gabriel beijou-a resolutamente, implorando-lhe sem palavras que abrisse
os lábios para ele. As suas língua moveram-se juntas, devagar. Ele não tinha
pressa. Estavam sozinhos num museu quase deserto. Beijou Julia nos lábios
e nas faces, conduziu-a para um canto da sala e, hesitando um pouco,
encostou-a a uma parede.
Olhou-a, receoso.
— Estás bem?
Julia anuiu, sem fôlego.
— Se quiseres parar, diz-me. Não vou deixar as coisas irem longe de
mais… mas preciso de ti.
Julia pôs-lhe os braços em volta do pescoço, puxando-o para si.
Encostando-a delicadamente à parede, Gabriel pressionou o seu corpo
contra o dela. Cada músculo, cada zona plana do seu corpo encontrou em
Julia curvas maleáveis que correspondiam ao seu toque. As mãos de
Gabriel deslizaram pelos lados do corpo de Julia e detiveram-se-lhe nas
ancas, hesitando. Em resposta, ela estreitou-o ainda mais. E durante todo
aquele tempo, as suas línguas e os seus lábios exploravam-se, nunca
satisfeitos. Os dedos finos e compridos de Gabriel deslizaram pelas costas
dela, até encontrarem e envolverem duas colinas deliciosas. Quando a ouviu
gemer, Gabriel sorriu contra a sua boca.
— És perfeita. Cada parte de ti é perfeita. Mas isto… — Apertou-a um
pouco mais e começou a beijá-la com vigor renovado.
— Está a dizer-me que aprecia o meu rabo, professor?
Gabriel recuou de modo a poder olhá-la nos olhos.
— Não me chames isso — resmungou.
— Porquê?
— Não quero pensar em todas as regras da universidade que estou a
infringir neste momento.
O sorriso de Julia desapareceu, e Gabriel arrependeu-se imediatamente
do que dissera.
— Além disso, nunca chamaria rabo a essa maravilha que é o teu
traseiro… é demasiado elegante para isso. Teria de criar uma palavra
completamente nova para o descrever em toda a sua glória.
Agora Julia ria, e ele apertou-a com ambas as mãos, mais até do que seria
necessário.
O professor Emerson é um apreciador de rabos.
Os dedos de Julia preferiam sentir o cabelo dele, afagando-o e
revolvendo-o, puxando a cara dele contra a sua. Sentia o coração de Gabriel
batendo-lhe contra o peito. Arquejava, mas já não queria saber. Amava-o.
Amava-o desde os seus dezassete anos. E Gabriel era tão terno com ela.
Naquele instante, teria sido capaz de lhe dar tudo, sem se importar com as
consequências. Quais consequências? Já nem conseguia nomeá-las.
Os dedos de Gabriel moviam-se, acariciando-lhe as nádegas e
massajando-as. A sua mão direita deslizou-lhe para a coxa, depois ergueu-
lhe a perna. Gabriel pôs a perna de Julia em torno da sua anca, e ela
pressionou-o com o seu corpo, como num tango erótico. Agora ele podia
mover-se. Pressionando-a com as ancas, Gabriel desceu a mão um pouco
mais, para lhe segurar a perna. Julia sentiu-o duro, uma pressão deliciosa,
uma fricção hesitante.
Não conseguia parar de o beijar o tempo suficiente para perceber como
dominara a arte do equilíbrio ou como aprendera a respirar através da boca
de Gabriel. Ganhou coragem para lhe tirar as mãos do cabelo, e acariciou-
lhe os ombros e a cintura, passando depois a explorar-lhe o traseiro. Já o
admirara em mais do que uma ocasião, e agora sentia-o tenso e musculoso
sob os seus dedos. Puxou Gabriel um pouco mais para si, pressionando-o
para o encorajar.
Ele não precisava de encorajamento. As suas mãos deslizavam pelas
meias transparentes de Julia, acariciando-lhe a coxa. Era o paraíso.
Respirar, arquejar, pressionar, beijar, sentir. Não encontrava resistência. Não
encontrava hesitação.
Ela aceitava-o. Desejava-o. E o seu corpo era macio e quente e, oh, tão
recetivo.
— Julia, tenho… temos… de parar. — Recuou.
Ela tinha os olhos fechados, os lábios vermelhos e entreabertos. E agora
Gabriel desejava ainda mais a sua boca.
Afastando-lhe o cabelo da cara, falou-lhe suavemente.
— Querida?
As pálpebras de Julia estremeceram e abriram-se.
Gabriel encostou a sua testa à dela e sentiu-lhe a respiração, perfumada e
doce. Com uma última carícia, empurrou-lhe a coxa para trás e ajudou-a a
baixar a perna. Relutantemente, Julia tirou-lhe as mãos do traseiro. Depois,
com um enorme esforço, Gabriel pôs algum espaço entre os seus corpos,
segurando as mãos dela entre as suas.
— Não devia ter-te encurralado assim. Nem ter deixado as coisas irem
tão longe. — Abanou a cabeça, impedindo-se de praguejar. — Assustei-te?
— Não me ouviste dizer não, Gabriel. — A voz suave de Julia ecoou no
grande corredor. — E não estou assustada.
— Já tiveste medo de mim antes. Lembras-te daquela noite em que me
perguntaste sobre uma das minhas fotografias… aquela mais agressiva… —
Os lábios de Gabriel apertaram-se.
— Agora conheço-te melhor.
— Julianne, nunca te tiraria nada nem te manipularia para fazeres algo
que não queres. Por favor, acredita.
— Acredito, Gabriel. — Pegou numa das mãos dele e encorajou-o a
pousá-la sobre o seu coração, a palma junto ao peito, entre os seus seios. —
Sente como o meu coração bate.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Demasiado depressa. Como as asas de um beija-flor.
— É o que acontece sempre que estou perto de ti. Quando me tocas. Mal
aguento a emoção, Gabriel. Não sabes isso?
Ele roçou o polegar na pele nua do peito dela e depois transferiu a
atenção para o seu lábio inchado.
— Olha o que te fiz. Dói? — murmurou-lhe.
— Só dói na tua ausência.
Encostou os lábios aos dela, reverentemente.
— Estás a matar-me.
Julia sacudiu o cabelo para trás e sorriu.
— Mas será uma morte deliciosa.
Gabriel riu-se, abraçando-a.
— Vamos continuar a nossa visita, antes que o meu contacto decida
expulsar-nos por indecência. Tenho de lhe pedir que me entregue as
filmagens das câmaras de vigilância.
Filmagens? Câmaras de vigilância? Scheisse, pensou Julianne
Hum. Por outro lado…
uando chegaram ao apartamento de Gabriel, riam, divertidos. O desespero
que sentiam um pelo outro arrefecera um pouco, mas continuavam

Q afetuosos e trocavam carinhos. Julia sentia-se plenamente feliz. E


teriam a noite inteira juntos…
Já na cozinha, Gabriel beijou-a, insistindo para que o deixasse tratar de
tudo.
— Mas quero ajudar.
— Cozinhamos juntos amanhã à noite.
Julia refletiu por um segundo.
— Não sei que achas da ideia, mas tenho a receita de frango à Kiev da
Grace. Podíamos prepará-la juntos. — Olhou-o, um pouco insegura.
— O Scott chamava-lhe frango à bisnaga. — Gabriel sorriu tristemente e
beijou-a de novo. — Há anos que não o como. Gostava muito que me
ensinasses.
Será, provavelmente, a única coisa que te conseguirei ensinar, Gabriel.
És um deus do amor, entre outras coisas. Beijou-o ao de leve e instalou-se
confortavelmente num banco.
— O jantar de hoje vem do Scaramouche. Já que Maomé não pode ir à
montanha, a montanha vem ter com Maomé.
— A sério?
— Está tudo aqui, incluindo um delicioso bolo de chocolate Grand
Marnier da Patisserie La Cigogne. E tenho uma garrafa de um vinho
extraordinário que guardei para uma ocasião especial, e que vou deixar
respirar antes de começarmos a beber. — Piscou-lhe o olho. — Nem faltam
as velas para o bolo.
— Obrigada por esta noite maravilhosa. Foi… o melhor aniversário que
já tive.
— Ainda não terminou — disse, numa voz ligeiramente rouca, os seus
olhos azuis cintilando. — Ainda não te dei o teu presente.
Julia corou violentamente e baixou os olhos, perguntando-se se aquele
tom tão sensual fora propositado. Gostava de saber que “presente” quer ele
dar-me. Sei que presente eu queria. É oficial. Estou a imaginar-me a fazer
amor com o Gabriel…
As fantasias eróticas de Julia foram interrompidas pelo toque do seu
telemóvel. Foi buscar a mala e pegou no telefone com relutância.
— Não conheço este número — disse para consigo. — Mas é de
Filadélfia.
Atendeu.
— Sim?
— Olá, Jules.
Julia inspirou devagar, um som tenso e aspirado saindo-lhe dos pulmões.
Toda a cor lhe desapareceu das faces, e Gabriel dirigiu-se imediatamente
para junto dela, sabendo que algo de muito, muito errado se passava.
— Como arranjaste este número? — conseguiu Julia perguntar, antes de
as suas pernas fraquejarem. Caminhou tropegamente até uma cadeira e
deixou-se cair.
— Não estás a ser muito simpática, Julia. Vais ter de fazer melhor do que
isso.
Julia arranhou o lábio inferior com os dentes, não sabendo como
responder.
O seu interlocutor suspirou dramaticamente,
— Foi o teu pai que me deu este número. É sempre um prazer falar com
ele. Mostra-se sempre afável comigo. O mesmo já não se pode dizer de ti.
Portaste-te como uma fedelha mimada.
Julia fechou os olhos e começou a respirar muito depressa. Gabriel
segurou-lhe na mão, tentando ajudá-la a levantar-se, mas ela não se movia.
— Que queres?
— Vou ignorar que estás a ser uma cabra, porque já não falávamos há
algum tempo. Mas não abuses da sorte. — Baixou a voz e falou quase num
sussurro. — Telefonei-te porque queria saber como te estás a dar em
Toronto. Ainda vives em Madison Avenue?
Do outro lado da linha, o homem deu uma gargalhada, e Julia levou uma
mão à garganta.
— Fica longe de mim. Não quero falar contigo, e quero que pares de
telefonar ao meu pai.
— Não me teria visto obrigado a falar com o teu pai se tivesses
respondido aos meus e-mails. Em vez disso, fechaste a tua conta.
— Que queres? — repetiu Julia.
Gabriel franziu o sobrolho, preocupado, e fez-lhe sinal para que lhe
passasse o telefone. Julia abanou a cabeça.
— Tive uma conversa interessante com a Natalie, no outro dia — disse a
voz.
— E?
— Ela disse-me que talvez tivesses algumas fotografias que me
pertencem.
— Não tenho nada teu. Deixei tudo para trás. Devias saber isso.
— Talvez. Talvez não. Só queria dizer-te que seria uma infelicidade se
essas fotografias acabassem nas mãos da imprensa. — A voz fez uma
pausa. — Tenho um vídeo ou dois que posso pôr a circular. Pergunto-me o
que pensaria o teu pai se te visse num filme, de joelhos e com o meu…
Ao ouvir aquela descrição obscena, Julia sentiu falta de ar e deixou cair o
telefone, que caiu no chão de madeira e deslizou até aos pés de Gabriel.
Julia já corria para a casa de banho. Os sons dos seus vómitos secos
ecoaram pelo corredor.
Infelizmente para quem estava do outro lado da linha, Gabriel conseguira
ouvir aquela última ameaça. Pegou no telefone e encostou-o ao ouvido.
— Quem fala?
— Fala Simon. Quero saber que porra se está a passar e quem está ao
telefone.
Gabriel assobiou involuntariamente, e os seus olhos semicerraram-se.
— Sou o namorado da Julianne. Que quer?
Simon ficou em silêncio por um instante.
— A Jules não tem namorado nenhum. E ninguém lhe chama Julianne,
imbecil. Passe-lhe o telefone!
Do peito de Gabriel veio um ruído cavernoso.
— Se tiver juízo, vai fazer o que ela disse e deixá-la em paz.
Simon deu uma gargalhada sinistra.
— Não faz ideia de com quem está a lidar. A Julia é instável. É uma
rapariga muito perturbada, e precisa de ajuda profissional.
— Nesse caso, ainda bem que agora namora com um profissional.
— Um profissional de quê, imbecil? Por acaso sabe com quem está a
falar? O meu pai é…
— Ouve-me, cabrão de merda, tens sorte em não estares à minha frente,
porque se estivesses, ias passar a noite num bloco operatório para te
voltarem a pôr a cabeça entre os ombros. Se descubro que a contactaste de
novo, seja de que forma for, vou à tua procura, e nem o teu pai, quem quer
que ele seja, vai conseguir que recuperes os sentidos. Compreendes? Nunca
mais a contactes. — Gabriel fechou o telefone com um gesto colérico e
atirou-o contra a parede, desfazendo-o em vários pedaços que se
espalharam pelo chão.
Fechando os olhos, contou até cinquenta antes de se permitir ir ter com
ela. Nunca se sentira tão furioso. Nunca tivera pensamentos tão assassinos.
Ainda bem que Julia precisava dele ali. Caso contrário, tinha quase a
certeza de que teria ido atrás daquele rapaz para acabar com ele.
Gabriel encheu um copo de água e levou-o a Julia. Encontrou-a na casa
de banho, sentada na borda da fria banheira de cerâmica. Tinha a cabeça
caída, os braços em redor do peito, e a orquídea tremia-lhe no pulso.
Que raio lhe fez aquele tipo?
Julia curvou-se para cobrir os joelhos com a bainha do vestido, e Gabriel
sentiu um aperto no peito ao ver aquela tentativa instintiva de manter o
recato.
— Julia? — Estendeu-lhe o copo de água.
Julia bebeu devagar, mas não respondeu.
Gabriel sentou-se também na borda da banheira e puxou-a para junto de
si.
— Ele falou-te de quando eu estava com ele, não falou? — perguntou
numa voz baixa, entorpecida.
Gabriel estreitou-a um pouco mais sob o seu braço.
— Exigiu falar contigo, mas eu disse-lhe que não voltasse a ligar.
Julia encarou-o, uma lágrima escorrendo-lhe pela cara.
— Ele não disse… coisas a meu respeito?
— Falou incoerentemente até eu o ameaçar — disse Gabriel, com uma
careta de desdém. — E não o ameacei em vão.
— Ele não presta mesmo — sussurrou Julia.
— Deixa que seja eu a preocupar-me com ele. Se for preciso ir a
Filadélfia para falar com ele pessoalmente, é o que farei. E garanto-te que
não vai ser bom para ele se eu tiver de fazer essa viagem.
Julia ouvia-o apenas ao longe. Simon fazia-a sentir-se usada. Suja.
Ridícula. E não queria que Gabriel a visse assim. Não queria que Gabriel
soubesse o que acontecera. Nunca.
— Querida, diz-me, que queria ele?
— Pensa que eu tenho fotografias dele, e quer que lhas devolva.
— Que tipo de fotografias?
Julia fungou.
— Não sei. Devem ser bastante más, para ele estar tão preocupado.
— Tens alguma coisa desse tipo?
— Não! Mas ele diz que tem vídeos meus. Vídeos pessoais. —
Estremeceu. — Acho que não é verdade, mas posso estar enganada. E se ele
fabrica imagens e envia um filme ao meu pai? Ou se publica alguma coisa
na internet?
Gabriel engoliu a sua repulsa, passando uma mão pela cara de Julia, para
lhe enxugar as lágrimas.
— Não fará tal coisa, a não ser que seja estúpido. Enquanto pensar que
tens alguma coisa que o possa prejudicar, não agirá. Eu podia falar com o
teu pai, e contar-lhe que ouvi este patife ameaçar-te. Assim, ele poderia pôr
o que quisesse na internet, e só terias de dizer que era uma montagem feita
para te atacar.
Julia lançou-lhe um olhar desvairado.
— Não podes fazer isso. O meu pai já está aborrecido por irmos viajar
juntos até Selinsgrove. Não pode saber do que se passa entre nós.
Gabriel passou-lhe os dedos pelo cabelo antes de lhe limpar rapidamente
outra lágrima.
— Não me tinhas contado isso. Não que eu lhe leve a mal. Mas tens de
lhe contar o que aconteceu esta noite, para ele não dar mais informações ao
Simon.
Julia anuiu.
— Amanhã falo com o meu advogado — acrescentou Gabriel. — Podes
apresentar queixa contra ele, e podemos tentar obter uma medida cautelar
de afastamento. Também podemos tentar descobrir se ele tem mesmo
vídeos teus ou se está a fazer bluff.
— Não quero provocá-lo. Não compreendes… ele é uma pessoa
influente.
Gabriel apertou os lábios. Queria levá-la a tomar uma atitude ou agir em
seu lugar, mas era evidente que Julia estava traumatizada. E Gabriel não
queria afligi-la ainda mais.
— Se ele voltar a contactar-te, falo com o meu advogado, e aquele rapaz
vai conhecer todo um novo conceito de desconforto. Amanhã vamos
comprar um telemóvel novo, com um número de Toronto. E vais dizer ao
teu pai que guarde esse número só para si.
Ergueu-lhe o queixo para poder olhá-la nos olhos.
— Ele não vai tocar-te. Prometo-te. — Gabriel fez um sorriso rasgado.
— Não te deixes enganar pelos óculos e pelo laço. Sei tomar conta de mim.
E não deixarei que ninguém te faça mal. — Beijou-a castamente nos lábios
e deu-lhe mais um beijo rápido na testa. — Quando formos a casa, pelo Dia
de Ação de Graças, vais passar comigo todo o tempo em que não estiveres
com o teu pai. E estarei sempre a um simples telefonema de distância. Está
bem?
Julia murmurou em resposta, só para ele saber que fora ouvido.
— Julia?
— Sim?
Gabriel apertou-a um pouco mais nos seus braços.
— Isto foi culpa minha.
Ela olhou-o, sem compreender.
— Se não te tivesse deixado naquela manhã… se tivesse voltado a
Selinsgrove para te procurar…
Julia abanou a cabeça.
— Eu tinha dezassete anos, Gabriel. O meu pai tinha corrido contigo de
arma em punho.
— Eu devia ter esperado.
Julia suspirou, uma expressão de dor no rosto.
— Não sabes como me arrependo de não ter esperado por ti. É por causa
dele que não festejo o meu aniversário. E conseguiu arruinar-mo de novo.
— Começou a chorar baixinho.
Gabriel beijou-a, enxugando-lhe as lágrimas.
— Esquece-o. Agora somos só nós dois. Mais ninguém.
Julia queria acreditar no que Gabriel lhe dizia. Mas, infelizmente, sabia
que o seu passado estava apenas a começar a persegui-la. Estremeceu ao
pensar no que poderia acontecer nas férias.
O Dia de Ação de Graças sempre lhe trouxera má sorte.
Capítulo Vinte e Quatro

T erça-feira à noite, Julia teve uma conversa bastante tensa, embora


previamente preparada, com o seu pai, a respeito do que sucedera no
fim de semana. Ligou-lhe do seu novo iPhone, explicando-lhe porque tivera
de mudar de número. Havia três dias que o pai estava a tentar contactá-la,
em vão, pois as chamadas iam repetidamente para o voice mail. Tom estava
irritado.
— Tive de mudar de número, pai, porque recebi uma chamada do Simon.
— Ah, a sério? — A voz de Tom soava hesitante, o que deixou Julia
desconfiada.
— Sim, a sério. Ele disse-me que foste tu que lhe deste o número. Depois
telefonou-me para me atormentar!
— Filho da mãe — sussurrou Tom.
— Vou dar-te o meu número novo, mas não quero que o dês à Deb,
porque ela vai de seguida passá-lo à Natalie.
Tom continuava a falar para consigo, como era seu hábito. Até que se
lembrou de que estava alguém do outro lado da linha.
— Não te preocupes com a Deb.
— Claro que me preocupo, pai! A filha dela continua a falar com o
Simon. E se ela lhe diz que vou a casa em breve? Ele pode aparecer por aí!
— Estás a exagerar. Ele não vai meter-se à estrada e fazer todo o
caminho até aqui. Tivemos uma conversa cordial na semana passada. Foi
muito educado, e disse apenas que tinhas algumas coisas que lhe
pertenciam. Não queria incomodar-te, mas eu dei-lhe o teu número e disse-
lhe que podia ligar-te.
— Não tenho nada que lhe pertença! E mesmo que tivesse, sabes que não
quero falar com ele. Não é um tipo como deve ser, pai. Contigo, comporta-
se de uma certa forma. Mas comigo… — Julia estremeceu ligeiramente.
— Não terá havido algum mal-entendido?
— Não tenho dificuldade em entender o que é uma ameaça e o que é
assédio, pai. Ele nunca chega a conversar comigo. Não somos amigos. E
nenhum pedido de desculpas poderia apagar o que ele fez.
Tom suspirou.
— Está bem, Jules. Desculpa. Não vou dar o teu número a ninguém. Mas
tens a certeza que não queres dar-lhe uma segunda oportunidade? Ele vem
de uma família importante. E toda a gente comete erros.
Julia revirou os olhos com tanta força que eles quase lhe rodopiaram para
fora da cabeça. Naquele instante, queria ser vingativa. Queria perguntar ao
pai se ele teria aceitado a mãe de volta depois de ver o que Julia vira aos
doze anos de idade: Sharon dobrada sobre a mesa da cozinha com um dos
namorados atrás. Mas Julia não era vingativa, pelo que nada disse.
— Pai, ele pode ser filho de um senador, mas é um filho da mãe. E o que
foi destruído nunca poderá ser reparado. Acredita em mim.
Tom expirou ruidosamente.
— Está bem. Quando chegas a casa?
— Quinta-feira.
— E vens de carro com a Rachel e o Aaron?
— Foi o que combinámos. O Gabriel também vai. — Julia tentou mentir
de modo convincente.
— Quero-te perto do Aaron e o mais longe possível do Gabriel.
— Porquê?
— Porque ele é uma maçã estragada. Admira-me que não tenha ido parar
à prisão. Ainda bem para ele que se mudou para o Canadá.
Julia abanou a cabeça.
— Se fosse algum criminoso, os Canadianos não lhe tinham dado um
visto de trabalho.
— Os Canadianos recebem toda a gente. Incluindo terroristas.
Julia deitou a língua de fora aos preconceitos anticanadianos do pai e
mudou de assunto, começando a planear a visita com ele, e esperando,
contra todas as probabilidades, que ele cumprisse as suas promessas.

D epois de mais um seminário em que Christa se atirara com despudor a


Gabriel, Julia pôs-se a caminho de casa, acompanhada por Paul, que
continuava a mostrar-se encantador e amável. Lamentaram o novo guarda-
roupa mais sexy não há de Christa e as suas botas de salto alto modelo por
favor deixe-me seduzi-lo antes de me chumbar, e depois Julia despediu-se e
entrou em casa. Preparou um jantar simples de canja, que acompanhou com
um chá Lady Grey, e pôs-se a admirar os seus presentes.
Depois de o seu aniversário ter sido tão rudemente interrompido por
Simon, Gabriel servira-lhe um copo de vinho e obrigara-a a relaxar junto à
lareira enquanto ele cozinhava. O jantar incluíra um bolo com velas de
aniversário, e, quando terminaram, Gabriel dera-lhe os presentes, antes de a
levar para a cama.
Gabriel ficara acordado quase toda a noite, acariciando as costas e os
braços de Julia, as pernas de ambos entrelaçadas. Ela acordara várias vezes
num atordoamento induzido por pesadelos, e de todas essas vezes Gabriel a
reconfortara, apertando-a ainda mais contra si. Julia sentia-se segura nos
braços dele, mas receava a sua reação quando descobrisse a verdade. Se ela
alguma vez conseguisse arranjar coragem para pronunciar as palavras
necessárias.
O seu iPhone fora um presente — uma espécie de presente. Na manhã de
domingo, quando Gabriel, cabisbaixo, lhe mostrara os pedaços do
telemóvel antigo, Julia desatara a rir, pelo que ele se sentira grato. Quando
Gabriel explicou que se sentira tão zangado por Simon vir incomodá-la que
não resistira a despedaçar-lhe o telefone, Julia sorriu. Aceitara de boa
vontade aquele substituto mais sofisticado, bem como as pacientes lições de
Gabriel para a ensinar a mexer no maldito aparelho.
Ele pusera-lhe no telefone as fotografias que Rachel tirara no Lobby,
gesto que muito agradara a Julia. E ajudara-a a inserir todos os seus
contactos e números, embora tivesse arqueado uma sobrancelha quando ela
lhe explicara que teria de introduzir o seu número com o nome de “Dante
Alighieri”. Gabriel também insistira teimosamente em escolher o toque para
as suas chamadas.
O principal presente de anos de Julia fora uma série de cópias digitais das
impressões de Botticelli que Gabriel possuía. Compilara-as num livro
especial, com o nome dela gravado a ouro na capa. Embora fossem apenas
cópias, a coleção não tinha preço. E Gabriel escrevera-lhe uma dedicatória
na sua letra elegante:
Para a minha querida Julianne,
Feliz Aniversário.
Que cada ano seja melhor que o anterior
e que possas ser sempre feliz.
Com um afeto duradouro,
Gabriel

Julia passou os dedos sobre a inscrição, seguindo o ondular da inicial G.


As ilustrações eram, sem dúvida, o melhor presente que ela alguma vez
recebera.
Gabriel oferecera-lhe ainda um pequeno álbum de fotografias a preto e
branco. Em algumas das imagens, Julia estava reconhecível. Noutras, via-se
apenas um pormenor de um rosto, ou um caracol de cabelo sobre um
pescoço alto branco, ou uma rapariga a rir de olhos fechados. Sentia-se bela
sempre que Gabriel a tocava e a beijava. Mas ao ver aquelas fotografias,
tinha a sensação de que Gabriel via a sua beleza. Vira-a e captara-a,
registando-a para sempre.
Algumas daquelas fotografias eram sensuais, outras eram inocentes, e
outras ternas. Nenhuma era embaraçosa, nenhuma a humilharia se fosse
enviada ao seu pai ou publicada na internet. A sua favorita era aquela em
que aparecia de perfil, com uma mão de dedos brancos e compridos
erguendo-lhe o cabelo, e um rosto de homem na sombra, beijando-lhe a
nuca. Seria capaz de fazer um cartaz daquela fotografia e de pendurá-la na
parede, sobre a sua cama, e já nem queria saber do quadro de Holiday.
Toma lá, Simon simplório.

–P orque me estás a ligar? Que se passa? Que fizeste à Julia? Juro-te,


Gabriel, se tu…
Gabriel afastou o seu iPhone do ouvido enquanto a irmã o repreendia
como só ela sabia fazer.
— Não fiz nada à Julia — interrompeu-a. — O ex-namorado dela
telefonou-lhe no sábado, e ela ficou desfeita. Preciso de algumas respostas.
— Grande merda. Ela está bem?
— Ficou muito transtornada. Mas não me contou grande coisa.
— Claro que não. Não é conversa que se tenha com um professor.
Gabriel começou a sentir-se irritado.
— Estávamos a discutir o Dia de Ação de Graças, e a fazer planos para a
viagem, quando o cabrão nos interrompeu.
— Pareces-me um nadinha chateado, Gabriel. Que tens tu com isso?
— Porque o filho da mãe, seja ele quem for, convenceu o pai da Julia a
dar-lhe o seu número não registado, e depois veio ameaçá-la.
— Que merda — disse Rachel.
— Podes dizê-lo — retorquiu Gabriel. — Por isso, antes de eu a levar
para Selinsgrove, onde o tipo até pode resolver ir visitá-la, gostava de saber
com quem estou a lidar.
A irmã calou-se por instantes.
— Rachel? Estou à espera.
— Não sei que queres que te diga. É o passado da Julia. Tens de lhe
perguntar a ela.
— Já te disse, ela não quer falar sobre isso.
— E levas-lhe a mal? Se sabes que ele é um cabrão, sabes porque é que
ela não quer falar sobre ele. A Julia nem diz o nome do tipo em voz alta…
Já podes ver como ele a põe nervosa. — Rachel fez uma pausa e respirou
fundo. — O Simon é filho do senador John Talbot.
Gabriel piscou os olhos, reconhecendo o nome.
— E?
— O Simon e a Julia conheceram-se quando eram caloiros. No início, ele
deslumbrou-a, mas fiquei com a sensação de que ele podia ser difícil. No
penúltimo ano do curso, a Julia foi para Florença, e quando voltou,
terminaram. Não voltei a vê-la até ter ido visitar-te. O Aaron odiava o
Simon, por isso não passávamos muito tempo com eles.
Gabriel espumava de raiva.
— Não respondeste à minha pergunta. De que tipo de dificuldades
estamos a falar? Agressão? Infidelidade? Maus-tratos psicológicos?
— Para ser sincera, não sei tudo. Tentei compor a história a partir de uma
conversa que tive com a Natalie, que era a colega de quarto da Julia. O
Simon era um imbecil arrogante que gostava de exibir a Julia. Claro que
estava sempre a rebaixá-la. Deves conseguir imaginar o resto.
— Ele disse que a Julia é instável. Que ela precisa de ajuda profissional.
— O tipo é um sacana mentiroso, Gabriel. Que esperavas que ele
dissesse? — Rachel soprou a sua frustração. — O maior problema da Julia
é ele. Se queres ajudá-la, devias tentar facilitar-lhe a vida, e não arranjar-lhe
mais complicações. Espero que não estejas a intimidá-la ainda mais com a
tua conversa pretensiosa. Disso, ela já teve que chegue.
— Na verdade, estamos a dar-nos muito bem — disse Gabriel, com uma
fungadela.
— Tão bem como nas fotografias que te enviei? — perguntou Rachel,
dando uma risadinha maliciosa.
— Temos uma relação profissional.
— Podes enganar quem tu quiseres, mas a mim não me enganas. A Julia
deixou escapar que tinha um encontro no sábado à noite e, coincidência das
coincidências, tu estás com ela no sábado quando o Simon telefona. Por
isso, diz-me lá, Gabriel, estiveste com a Julia antes ou depois do encontro
que ela tinha? E já agora, como é que correu?
— Chegamos a Selinsgrove na quinta-feira. Levo a Julia para casa —
disse Gabriel, numa voz fria.
— Ótimo. Acho que a Julia devia dizer ao pai dela que quer ficar
connosco. Se o Simon aparecer na cidade, não vai procurá-la em nossa casa.
Ah, e… Gabriel? Obrigada pelo que fizeste em relação à casa. O pai está
tão aliviado… Estamos todos, o Scott também.
— Era o mínimo que eu podia fazer. Adeus, Rachel.
— Se a magoares, mato-te. Agora, vai animá-la, e sê gentil. Ou nunca
conseguirás que ela confie em ti. Adoro-te.
— Eu… adeus. — Gabriel terminou o telefonema sentindo-se um pouco
desconfortável, e voltou à preparação do seminário de quarta-feira.

À medida que o final do período letivo se aproximava, o trabalho de


Julia aumentava exponencialmente. Para além de escrever a tese,
tinha de acabar os ensaios para os seminários, os quais deviam ser entregues
até 4 de dezembro. A somar a tudo o resto, estava a preparar as
candidaturas a programas de doutoramento.
Uma noite, já tarde, ela e Gabriel tinham conversado vagamente a
respeito do futuro de Julia. Gabriel sabia que ela queria ir para Harvard e
que estava a concentrar-se muito nessa candidatura. O que ele não sabia era
que a ideia de deixar Toronto, de o deixar a ele, era quase insuportável para
Julia, pelo que, sem lhe dizer, ela estava também a candidatar-se à
Universidade de Toronto.
Enquanto Julia passava a maior parte dos seus dias e das suas noites a
trabalhar, Gabriel atravessava a custo um oceano de trabalhos para
classificar, e entregava-se à escrita do seu segundo livro. Preferia passar os
serões com Julia, mesmo que estivessem ambos ocupados, e por vezes
conseguia convencê-la a trabalhar no seu apartamento. Ele instalava-se no
escritório, e ela espalhava os seus papéis sobre a mesa da sala. Mas Julia
raramente ali ficava por muito tempo; acabava sempre no cadeirão forrado a
veludo vermelho, junto da lareira, mordiscando a extremidade de um lápis e
rabiscando num bloco de notas.
Depois daquele período em que raramente se tinham encontrado, foi com
grande alívio que o casal arrastou a bagagem do apartamento de Gabriel
para um táxi que os aguardava na rua, no dia em que partiram para o fim de
semana de Ação de Graças. Enquanto esperavam que o motorista arrumasse
as malas na bagageira, Julia ergueu os olhos e reparou em como o vento de
outono soprava o cabelo de Gabriel, deixando-o em desalinho, a cobrir-lhe
os olhos. Sem pensar, estendeu a mão, afastou-lhe o cabelo da cara e beijou-
o nos lábios. Acariciou-lhe ternamente a cara, tentando dizer-lhe com os
olhos aquilo que temia dizer por palavras.
Gabriel fitou-a com um olhar ardente, e agarrou-a pela cintura. Puxou-a
de encontro ao peito, aprofundando o beijo e tocando-lhe as costas através
do sobretudo. Ela recuou, a princípio, rindo como uma colegial, enquanto
ele lhe passava sub-repticiamente a mão pelo traseiro, com um sorriso
satisfeito.
— Continuo à procura do tal adjetivo — brincou, dando-lhe uma última
palmadinha. — Embora espevitado seja uma boa hipótese.
— Porta-te bem — admoestou-o Julia, ajeitando-lhe novamente o cabelo.
— Tenho de parar de pensar nisto — retorquiu Gabriel, subindo e
descendo as sobrancelhas várias vezes. — Vou passar por três dias de
privação.

A o chegarem ao aeroporto de Pearson, Julia foi apanhada de surpresa


quando Gabriel a puxou para a fila exclusiva para passageiros de
executiva e primeira classe, no balcão da Air Canada.
— Que estamos a fazer?
— O check in — segredou-lhe Gabriel, com um sorriso afetado.
— Mas eu só tinha dinheiro para um voo em turística.
— Quero que estejas confortável — disse Gabriel, acariciando-lhe a cara
com um polegar. — Além disso, da última vez que voei em turística, acabei
sentado em urina, e a brincadeira custou-me um par de calças caras.
Julia arqueou uma sobrancelha.
— Tinha milhas suficientes, por isso comprei bilhetes em turística e fiz
um upgrade. Tecnicamente, só me deves o bilhete de turística. Não que eu
queira que me pagues.
Julia olhou-o, intrigada.
— Urina, Gabriel? Não sabia que a Air Canada tinha uma secção para
incontinentes.
— Nem me perguntes — retorquiu Gabriel, com um aceno de mão. —
Mas não me apanham noutra. Além disso, assim temos bebidas e alguma
coisa mais substancial do que pretzels para comer. — Beijou-a suavemente,
e Julia sorriu.
O voo para Filadélfia decorreu quase sem incidentes. Tendo desligado a
função de chamadas, Gabriel prosseguiu com as suas lições sobre o iPhone
101, mostrando a Julia as várias aplicações do seu telefone e perguntando-
lhe se queria as mesmas. Ao percorrer os programas de Gabriel, Julia deu
uma vista de olhos pelos seus ficheiros de música: Mozart, Chopin, Berlioz,
Rachmaninoff, Beethoven, Matthew Barber, Sting, Diana Krall, Loreena
McKennitt, Coldplay, U2, Miles Davis, Arcade Fire, Nine Inch Nails…
Julia carregou acidentalmente num botão e deu por si a ver a conta de e-
mail da universidade de Gabriel. Deu uma olhadela rápida, antes de mudar
para a aplicação de álbum de fotografias, e ficou em choque ao ver que
tanto a professora Singer como uma Paulina Grushcheva o tinham
contactado por e-mail na semana anterior. Resistindo à tentação de ler os e-
mails, Julia fechou a aplicação. Gabriel, de óculos postos, lia um artigo de
jornal, alheio ao que se passara.
Porque estão elas a enviar-lhe mails? A resposta era óbvia, mas tal não a
impedia de formular a pergunta. Mordiscou uma unha, distraidamente.
Gabriel carregara no seu iPhone várias fotografias a preto e branco de
Julia, incluindo algumas que ela nunca vira. Quando ela percorria as
imagens, Gabriel apercebeu-se. Embaraçado, tentou tirar-lhe o telefone da
mão, mas ela segurou-o com força e começou a rir. Não querendo dar
espetáculo diante dos outros passageiros, Gabriel sussurrou-lhe ao ouvido,
ameaçando beijá-la até a fazer perder os sentidos.
Julia devolveu-lhe o telefone, e aninhou-se ao seu lado, enquanto Gabriel
abandonava o jornal e tirava um livro da pasta.
— Que é isso? — A voz suave de Julia interrompeu-lhe os pensamentos.
Mostrou-lhe a capa. Fim de Caso, de Graham Greene.
— É bom?
— Estou mesmo no início. Ele é considerado um excelente escritor.
Escreveu o guião para O Terceiro Homem, que é um dos meus filmes
preferidos.
— O título é deprimente.
— Não é o que pensas. — Remexeu-se na cadeira. — Bem, é e não é.
Tem a ver com fé e Deus e luxúria… Empresto-te, quando terminar. —
Sorriu-lhe maliciosamente e encostou-lhe os lábios à orelha. — Talvez to
leia em voz alta quando estivermos na cama.
Julia corou em resposta ao comentário, mas sorriu.
— Parece-me boa ideia.
Gabriel beijou-a ao de leve na testa. Julia voltou a aninhar-se junto a ele e
relaxou. Gabriel deu por si a espreitá-la de tempos a tempos, por cima dos
óculos.
Era-lhe difícil pôr em palavras o que sentia quando a tinha por perto. O
contentamento que o invadia sempre que ela lhe tocava, ou quando
desfrutavam de prazeres simples como música ou literatura ou comida ou
vinho. Julia inspirava-lhe os mais estranhos desejos e emoções, como
querer ler para ela, querer partilhar castamente uma cama com ela, enchê-la
de presentes tão decadentes quanto simples, protegê-la de todos os males, e
certificar-se de que ela ria diariamente.
Talvez a felicidade seja isto, pensou. Talvez isto seja quase o que o
Richard e a Grace tinham. O pensamento deixou-o intrigado.
Ama-la.
Gabriel sobressaltou-se. De onde veio esta voz? Alguém falou em voz
alta? Olhou rapidamente em redor, mas os restantes passageiros de primeira
classe estavam a dormir ou ocupados de outro modo. Ninguém prestava
atenção ao professor nervoso ou à bela mulher que dormitava ao seu lado.
É demasiado cedo. Não é possível. Não posso amá-la. Gabriel abanou a
cabeça à voz, de onde quer que esta tivesse vindo, e voltou ao seu livro,
bastante perturbado.
Depois de aterrarem em Filadélfia, Gabriel sentou-se ao volante do Jeep
Grand Cherokee que alugara, e saíram do parque de estacionamento do
aeroporto.
— Que hotel escolheste? — perguntou Julia, olhando através da janela
para a noite.
— O Four Seasons. Conheces?
— Sei onde fica, mas nunca lá estive hospedada.
— É muito agradável. Vais gostar.
O que Gabriel não mencionou foi que reservara uma suite com vista
panorâmica de Logan Circle. Também se absteve de referir que o seu quarto
teria uma bela casa de banho de mármore com uma banheira requintada.
Julia reparou na banheira antes de se aperceber da vista. Já para não falar do
cesto de frutos com que o gerente costumava brindar os seus hóspedes mais
importantes.
— Gabriel — suspirou Julia, olhando para a banheira. — É tentadora.
Adorava tomar um banho de imersão, mas…
Gabriel sorriu-lhe e puxou-a delicadamente pelo cotovelo, conduzindo-a
para o interior da casa de banho.
— Terás toda a privacidade, e o teu companheiro de quarto vai
comportar-se como um cavalheiro. — Interrompeu-se, um brilho malicioso
no olhar. — A não ser que precises que te lave as costas. Mas nesse caso,
terás de me pôr uma venda nos olhos.
Julia fez um sorriso rasgado.
— Podíamos usar um dos teus laços — murmurou, deixando-o de boca
aberta. Julia começou a rir, e Gabriel percebeu que ela estava apenas a
brincar. Atrevida.
Vendo-a tirar da mala o seu roupão roxo e os chinelos de quarto, Gabriel
compreendeu rapidamente que não podia ficar sentado na sala da suite
enquanto Julianne tomava um banho de espuma. Era demasiado rei David
para ele. Assim, balbuciou uma desculpa sobre procurar um jornal e dirigiu-
se para o átrio. Resolveu não ir sentar-se no bar, que estava povoado por
várias mulheres à procura de sexo, e em vez disso desfrutou de um copo de
vinho e de uma sanduíche instalado num cadeirão num canto sossegado.
Pegou numa cópia do The Philadelphia Inquirer e passou cerca de uma
hora a ignorar as ditas mulheres, tentando heroicamente não pensar no belo
corpo da Betsabé que se banhava lá em cima.
Quando regressou ao quarto, o aroma de baunilha pairava no ar, e Julia
encontrava-se sobre a cama, enroscada como um gato. O seu peito elevava-
se e descia a um ritmo suave, o cabelo escuro e longo espalhado sobre o
edredão verde-salva. Tinha ainda vestido o seu roupão roxo e os chinelos de
salto baixo, e dormia.
Gabriel olhou-a por um momento e sentiu uma onda de emoção invadi-
lo. Ao tentar perceber o que sentia, ocorreu-lhe que o desenvolvimento
daquela relação não estava a ser limitado apenas pela universidade. Estava
também a ser limitado por ele, pelos seus segredos.
E também pelos segredos de Julia.
Gabriel decidira que não faria amor com ela até lhe revelar tudo. Embora
lhe custasse pensar nisso, sabia que seria melhor esperar até que ela fizesse
o mesmo. Tal implicava que Julianne se sentisse confortável e segura o
suficiente para lhe contar o que acontecera com Simon. Caso contrário,
ficaria a conhecer apenas uma parte dela, e não o todo. E precisavam de
saber tudo a respeito um do outro.
No que se referia à universidade, era importante para Gabriel não
infringirem a política de não-confraternização, embora estivessem a
infringir o seu espírito. Além disso, embora tivesse fantasiado a respeito de
levar a sua relação física mais longe, a natureza das ameaças de Simon
pusera fim a essas fantasias.
Com base na recetividade que Julia vinha demonstrando, Gabriel sabia
que ela estaria disposta a avançar para um contacto manual ou oral antes do
fim do semestre. Tal permitiria, sem dúvida, acalmar a sua paixão e
satisfazer alguns dos seus desejos, temporariamente. Mas tendo descoberto
que Simon poderia ter filmado uma situação particularmente íntima,
Gabriel não iria persuadi-la a praticar semelhante ato. Estava determinado a
tratá-la com gentileza e respeito, e a não apressar as coisas para sua própria
satisfação. Embora não tivesse usado o termo, Gabriel ansiava por
intimidade, a par do contacto sexual, e em virtude do que supunha ter
acontecido no passado de Julia, queria que o primeiro contacto entre ambos
fosse tudo menos uma simples relação sexual.
Estava consciente de que ao tomar semelhante decisão, assim como ao
insistir na ideia de não fazer amor com ela sem primeiro lhe revelar os seus
segredos, estava a reduzir cada vez mais as probabilidades de tal intimidade
vir alguma vez a acontecer. Mas, com Julia, Gabriel queria mais, e não
menos. E não queria, certamente, o que o seu ex-namorado a levara a fazer,
um tatear atrapalhado no escuro para simular a verdadeira ligação
alcançável no sexo. Um tatear que sempre deixara Gabriel algo insatisfeito.
Julianne merecia um homem que estivesse disposto a dar tudo, de um
modo terno e paciente e centrado na união, e não apenas alguém que a
usasse para satisfazer os seus desejos físicos. Ela merecia ser adorada,
venerada até, especialmente na sua primeira vez. Gabriel não se contentaria
em dar-lhe menos do que isso.
Soltou um suspiro profundo e olhou para o relógio. Eram quase duas
horas da manhã. Precisavam ambos de dormir. Descalçou-a cuidadosamente
e, erguendo-a nos braços, tentou afastar o edredão. O robe dela abriu-se,
expondo-lhe o pescoço elegante, um ombro, e um dos seios. Era perfeito.
Um mamilo rosado sobre pele branca e macia. Tão delicado. Tão redondo.
Não era, de todo, o que ele precisava de ver naquele momento.
A custo, Gabriel colocou-a sob os lençóis, tentando não a expor mais, e
depois aconchegou-lhe o robe junto ao corpo, cobrindo-a, resistindo à
tentação de lhe segurar o botão rosado entre os dedos. Ou entre os lábios.
Era uma visão que nunca esqueceria. Julianne era espantosa com roupa
vestida, mas Julianne sem roupa era como a Vénus de Botticelli.
Foi até à janela que dava para Logan Circle e começou a remexer no
cesto de fruta. Serviu-se de um copo de Perrier, comeu uma maçã, e
quando sentiu que seria capaz de se controlar, vestiu uma t-shirt e umas
calças de pijama e enfiou-se silenciosamente na cama.
Julia suspirou ao sentir movimento e, instintivamente, voltou-se para ele.
Aquele ato tão simples e aparentemente insignificante encheu-o de alegria.
Mesmo enquanto dormia, Julia reconhecia-o e desejava-o. Puxou-a,
completamente coberta, para os seus braços e deu-lhe um beijo de boas-
noites.
Ao adormecer, agradeceu a Deus por estarem a apenas uma semana do
final do semestre.

Q uando chegaram a Selinsgrove, na tarde seguinte, dirigiram-se


imediatamente para a casa de Richard. Julia telefonou ao pai assim
que estacionaram.
— Jules! Bem-vinda a casa. Como foi o voo?
— Correu tudo bem. Tivemos de sair muito cedo, mas é bom estar de
volta.
Tom respirou pesadamente para o telefone.
— Escuta, Jules… Já disse ao Richard que não posso ir ter convosco. A
Deb ficou um bocado chateada por eu querer deixá-la, por isso disse-lhe
que jantava com ela e com os miúdos. A Rachel sugeriu que ficasses aí,
para não estares em casa sozinha.
— Ah. — Julia olhou para Gabriel, desconcertada.
— A Deb diz que tem todo o gosto em que jantes connosco e que
adorava que viesses.
— Nem pensar.
Tom suspirou.
— Então, talvez possamos encontrar-nos no Kinfolks amanhã, para o
pequeno-almoço.
Julia pôs-se a tamborilar, perguntando-se por que razão estaria sempre
em segundo ou terceiro lugar na vida do pai.
— Está bem. Vou pedir à Rachel que me leve. Por volta das nove?
— Parece-me bem. Ah e, Jules, dá cumprimentos meus à Rachel e ao
Aaron. E fica longe do Gabriel.
Julia corou furiosamente.
— Adeus, pai.
Julia desligou e olhou para Gabriel de relance.
— Ouviste-o, não foi?
— Ouvi. — Segurou a mão dela na sua e acariciou-lhe a palma com o
seu polegar. — Temos alguns minutos antes de repararem que já chegámos.
Posso perguntar-te como reagiu o Tom quando lhe falaste do Simon? Não
quiseste contar-me antes.
Julia olhou para as mãos de ambos juntas, Gabriel acariciando-lhe a
palma da mão.
— Julianne?
— Desculpa. Hum, disse que não daria o meu número.
Gabriel tinha uma expressão carregada.
— Falaste-lhe do vídeo?
— Não. Nem vou falar.
— É teu pai, Julianne. Não devia saber o que se passa, para poder
proteger-te?
Julia encolheu os ombros e olhou pela janela.
— Que pode o meu pai fazer? É a palavra dele contra a minha.
Gabriel parou de lhe acariciar a mão.
— Foi isso que o Tom disse?
— Não exatamente.
— Mas ele vai levar este assunto a sério?
— O Simon enganou-o, como engana toda a gente. O meu pai pensa que
isto não passa de um mal-entendido.
— E porque havia ele de pensar que se trata de um mal-entendido?
Valha-me Deus, és a filha dele!
— O meu pai gostava do Simon. E não sabe praticamente nada do que
aconteceu entre nós.
— Porque é que não lhe contaste?
Julia encarou Gabriel com um olhar desesperado.
— Porque não quero que ele saiba. Não ia acreditar em mim, de qualquer
forma, e não posso perdê-lo.
— Julia, o teu pai não ia repudiar-te porque deixaste o teu namorado.
— Tem passado toda a minha vida a observar-me para ver se me vou
tornar como a minha mãe. Não quero que me veja assim. É a única família
que me resta.
Gabriel fechou os olhos e encostou a cabeça às costas do banco.
— Se aquele rapaz te levou a fazer coisas que não querias fazer, se te
agrediu ou se abusou de ti, então tens de contar ao teu pai. Ele precisa de
saber.
Julia expirou devagar.
— É demasiado tarde.
Gabriel abriu os olhos.
— Julia, escuta-me. — Segurou-lhe a cara entre as suas mãos. — Um dia
vais ter de contar a alguém.
Julia pestanejou, contendo as lágrimas.
— Eu sei.
— Gostava de ser eu essa pessoa.
Julia anuiu para lhe dizer que compreendia, mas não fez promessas.
Gabriel deu-lhe um beijo casto nos lábios.
— Vamos. Estão todos à nossa espera.
Mal entraram pela porta da frente, Julia sentiu… estranheza. A mobília
encontrava-se onde sempre estivera. A decoração era a mesma, à exceção
das flores naturais que Grace costumava pôr numa grande jarra sobre uma
mesa de apoio. Mas mal passou o vestíbulo e olhou em redor, apercebeu-se
de como a casa estava vazia, fria, solitária, embora repleta de pessoas.
Grace fora o coração da família, e agora todos sentiam a sua ausência.
Julia estremeceu, sem se dar conta, e, sem aviso, a mão direita de Gabriel
pousou-lhe ao fundo das costas; uma pressão ligeira, um conforto
momentâneo, e depois desapareceu. Nem tinham trocado olhares. Sentiu o
toque de Gabriel abandonar-lhe o corpo, e perguntou-se que significaria
tudo aquilo.
— Julia! — Rachel veio praticamente a correr da cozinha. — Que bom
estares aqui!
As duas amigas abraçaram-se, e depois Rachel abraçou o irmão. Scott,
Aaron e Richard levantaram-se das suas cadeiras para cumprimentarem, à
vez, os recém-chegados.
Julia tentou, com um certo nervosismo, encontrar palavras para dizer a
Richard como lamentava não ter estado presente no funeral, mas Rachel
interrompeu-a.
— Vamos pendurar o teu casaco. Estou a preparar Flirtinis. Gabriel,
serve-te. A cerveja está no frigorífico.
Julia murmurou algo que Gabriel não conseguiu ouvir, e as duas
mulheres desapareceram na cozinha, deixando os homens regressarem ao
jogo de futebol.
— Espero que o Gabriel tenha sido educado contigo durante a viagem —
disse Rachel, enquanto colocava uma série de ingredientes num martini
shaker.
— Foi, sim. Tive sorte em vir com ele, ou teria de vir à boleia. O meu pai
decidiu jantar com a Deb e os filhos dela. Acho que vou ficar aqui esta
noite — disse Julia, revirando os olhos, ainda desapontada por o pai ter
escolhido ficar com a namorada e não com ela.
Rachel sorriu-lhe, solidária, e pôs-lhe um Flirtini na mão.
— Precisas de uma bebida. E podes cá passar o fim de semana inteiro, se
quiseres. Porquê ficares em casa sozinha quando podes estar aqui a beber
cocktails comigo?
Julia riu-se e tomou a sua bebida um pouco depressa de mais, enquanto
ela e Rachel se punham a par das novidades. Quando estavam na segunda
rodada de Flirtinis e a conversa começava a tornar-se algo maliciosa, o jogo
de futebol acabou, libertando os homens da grande televisão de plasma da
sala. Grace banira aquele ecrã hediondo para a cave, mas Richard trouxera-
o de volta.
Os homens juntaram-se às senhoras na cozinha, passando em redor
aperitivos e garrafas de cerveja, e dando a Rachel conselhos relativamente
ao seu peru orgânico, embora ela não tivesse pedido opiniões a ninguém.
— Já o deixaste cozinhar tempo de mais. Vai ficar seco, como aquele
peru do National Lampoon’s Christmas Vacation — declarou Scott,
piscando o olho a Julia nas costas de Rachel.
— Cala-te, Scott, ou vou ter de te cortar. — Rachel abriu a porta do forno
e começou a picar o peru, observando ansiosamente o termómetro para
carne.
— Está com ótimo aspeto, querida. — Aaron deu-lhe um beijo na cara e
tirou-lhe a faca da mão, receando que ela a usasse para apunhalar o chato do
irmão.
Scott era o mais velho dos filhos biológicos de Grace e de Richard, pelo
que tinha mais cinco anos do que Rachel. Era divertido, jovial e, muitas
vezes, inconveniente. Com o seu metro e noventa, era poucos centímetros
mais alto do que Gabriel, e um pouco mais pesado. Como Rachel, tinha o
cabelo e os olhos do pai, e um grande coração, exceto no que se referia ao
seu irmão adotivo.
— Que bom ver-te de novo, Julia — disse Richard, vindo ocupar um
lugar vago ao lado dela. — A Rachel contou-me que te tens dado bem na
pós-graduação.
Julia sorriu. Richard era de uma elegância clássica. Tinha um cabelo
claro, que começava a ficar grisalho, e olhos bondosos. Era professor de
biologia na Universidade de Susquehanna, e a sua especialidade era a
anatomia humana, mais especificamente, os neurónios humanos. Apesar da
inteligência e do charme que o caracterizavam, era muitas vezes o último a
falar; o seu silêncio fora compensado por Grace, que era conversadora. Sem
ela, Richard parecia… à deriva. Julia conseguia sentir a sua solidão, via-a
nas rugas nos cantos dos seus olhos. Parecia mais magro e mais velho.
— Estou muito contente por estar de volta, Richard. Lamento não ter cá
estado em setembro. — Olhou-o com uma expressão culpada, ao que ele
respondeu dando-lhe uma palmadinha na mão. — Os seminários são bons.
Estou a gostar.
Julia tentou manter os dedos quietos, especialmente ao sentir uns olhos
azuis intensos pousados em si.
— O Gabriel disse-me que és aluna dele.
— Pois, como tem corrido? — perguntou Scott. — Consegues perceber
uma palavra do que ele diz? Não precisas de um tradutor?
Scott estava apenas a brincar, e Julia sabia-o, mas viu pelo canto do olho
como Gabriel ficara tenso.
— É a minha cadeira preferida — disse, calmamente. — O seminário de
pós-graduação do professor Emerson é considerado o melhor da sua área na
universidade. Ele deu uma palestra em outubro que teve mais de cem
pessoas a assistir. A sua fotografia veio no jornal da universidade.
Rachel arqueou as sobrancelhas e semicerrou os olhos, fitando a amiga,
depois Gabriel e novamente Julia.
— Professor Emerson? Isso é que te deve dar a volta à cabeça, Gabe. As
tuas mulheres também te tratam assim? Imagino que seja muito excitante,
no quarto. — Scott deu uma gargalhada ruidosa.
— Em primeiro lugar, Scott, não tenho mulheres — ripostou Gabriel,
numa voz fria e hostil. — E não, a senhora extraordinária com quem estou
não me trata assim. — Dizendo isto, Gabriel saiu da cozinha.
— Scott, pedi-te que te portasses como deve ser. — Richard falou baixo,
mas num tom reprovador.
— Estava só a brincar, pai. Ele leva tudo tão a sério… Alguém tem de o
ajudar a descontrair. E sempre foi mulherengo, por isso, qual é o problema?
— Parece que o Gabriel tem uma namorada. Vamos deixá-lo estar feliz.
— A voz de Aaron era calma e surpreendentemente compreensiva.
Uma expressão peculiar surgiu no rosto de Richard.
— Ouçam todos — interveio Rachel, a sua voz sobrepondo-se às dos
outros. — Estes dias já vão ser suficientemente difíceis sem as vossas
merdas passivo-agressivas. — Pôs as mãos na ancas e lançou um olhar
irritado a Scott. — Desculpa lá a linguagem, pai.
— Porque é que tem de girar sempre tudo em torno dele? Tanto quanto
sei, é só um entre quatro. — Scott já não estava a brincar.
— Porque ele está a tentar! — disse Rachel — E o mesmo se pode dizer
de ti. Agora vem cá e escorre estas malditas batatas, para começares a fazer
o puré. Aaron, tira o peru do forno, e Julia, importavas-te de ir buscar o
Gabriel? Queria que ele fosse à adega escolher umas garrafas de vinho.
— Eu posso tratar disso — protestou Richard. — Talvez seja melhor dar
um minuto ao Gabriel.
— Ele já teve o seu minuto. Basta o Scott não o provocar. — Olhou para
o irmão até o ver anuir. — Além disso, pai, tens de trinchar o peru. Julia.
Rachel indicou-lhe as escadas com o queixo, e Julia anuiu, esgueirando-
se da cozinha. Subiu rapidamente a escada e caminhou pelo corredor,
detendo-se junto à porta entreaberta do antigo quarto de Gabriel. Bateu
suavemente.
— Entra — ouviu-o dizer numa voz irritada.
O quarto de Gabriel conservava a mesma decoração desde o seu décimo
sétimo aniversário; apenas tinham desaparecido os seus velhos cartazes de
bandas e as fotografias de mulheres escassamente vestidas. No centro do
quarto encontrava-se uma cama de casal, sob a grande janela que dava para
a floresta. Um grande roupeiro de estilo antigo ocupava uma das paredes, e
três pesadas estantes e uma velha aparelhagem cobriam a parede oposta.
Uma tonalidade masculina de azul-escuro dominava todo o quarto, e era
também essa a cor do tapete.
Julia observou Gabriel, que estava a desfazer a mala, colocando
metodicamente as roupas dobradas sobre a cama. Ao vê-la, endireitou-se e
sorriu.
— Compreendes agora porque prefiro ficar num hotel?
— Desculpa, Gabriel. Eu devia ter feito alguma coisa. Devia ter dito
alguma coisa.
— Tens de fazer o que eu habitualmente faço: calar e aguentar. — Largou
o que tinha na mão e estava junto dela no instante seguinte. — Ainda bem
que decidimos não lhes dizer que estamos juntos. O Scott não me tem em
grande conta, e a tua reputação ficaria manchada por associação.
— Não me importo. Ele que me veja manchada.
Gabriel sorriu, acariciando-lhe o rosto.
— Eu importo-me. Importo-me muito. — Clareou a voz. — Esta noite,
depois de terem ido todos para a cama, gostava de te levar a dar um passeio.
— Adorava.
— Pelo menos assim tenho algo por que esperar. — Gabriel puxou-a para
si, beijando-a intensamente. A sua língua entrou imediatamente na boca
dela, as suas mãos deslizando-lhe para o traseiro e apertando-o sem pudor.
Julia permitiu-se esquecer, por um minuto, que estava na casa do pai
dele, e só passado um pouco lutou para se afastar.
— Não… não podemos.
Gabriel tinha um brilho desvairado nos olhos.
— Preciso de ti. — Agarrou-a, revolvendo-lhe o cabelo. — Preciso de ti,
Julianne. Agora.
Julia sentiu-se derreter ao ouvir o desespero nas palavras dele. Os lábios
de Gabriel desceram-lhe pela curva do pescoço e pararam junto ao seu
decote, onde ele roçou o nariz, antes de lhe mordiscar o ombro. Com o pé,
Gabriel empurrou a porta do quarto, e desapertou apressadamente dois
botões da camisa de Julia, afastando o tecido para lhe expor a pele mesmo
por cima do sutiã. Apertando-lhe as nádegas, ergueu-a e encostou-a à porta,
pondo as pernas dela em redor das suas ancas. Julia gemeu ao sentir a
proximidade, o contacto direto entre os seus corpos.
Gabriel percorreu o peito de Julia com os lábios, detendo-se para lhe
passar a língua junto à renda de um rosa-pálido. Julia atirou a cabeça para
trás e gemeu, as suas mãos procurando o cabelo dele, incitando-o a
continuar. Gabriel respondeu passando-lhe um dedo em redor do sutiã, e
permitindo que a sua mão deslizasse suavemente para o interior, enquanto a
outra mão lhe segurava a coxa direita.
Julia abriu de repente os olhos, sentindo a mão de Gabriel envolver-lhe o
seio nu, a boca dele junto à sua garganta, chupando-lhe ligeiramente a pele.
Reunindo todas as suas forças, afastou a mão dele e desviou-se, obrigando-
o a largar-lhe o pescoço.
— Gabriel, desculpa. Não podemos. — Apressou-se a endireitar o sutiã.
Contorceu-se um pouco, mas ele não a pousava no chão. Violentamente
ruborizada, evitou o brilho intenso dos olhos dele. — Sei que estás
aborrecido. E gostava de te reconfortar, mas estão à nossa espera lá em
baixo. A Rachel quer que vás escolher o vinho para o jantar.
Gabriel fitou-a com outros olhos, depois pousou-a cuidadosamente no
chão. Julia abotoou rapidamente a camisa e tentou alisar as calças.
— Não mereço a boa conta em que me tens.
Julia fez o bico da sua boa deslizar pelo contorno do tapete.
— Eu acho que mereces.
— O que acabei de fazer não foi apropriado, nem decente. Desculpa. —
Passou um dedo pela marca vermelha que a sua boca deixara na pele dela e
apertou-lhe o último botão da camisa. Agora, Julia parecia uma menonista.
Encarando-o, viu que os seus olhos estavam turvos, perturbados.
— Gabriel, ainda estás cansado por causa de ontem, e estas férias já estão
a ser tensas. Sei que não querias fazer isto. Sentes-te melhor quando me
tocas. E para ser sincera, eu também. — Julia baixou de novo os olhos para
o chão.
— Vem cá — sussurrou Gabriel, estendendo-lhe os braços e abraçando-a
calorosamente. — Estás enganada, sabes? Eu queria mesmo fazer o que fiz.
Claro que me sinto melhor quando te toco. Mas peço desculpa por te ter
atacado desta maneira. Não sei o que me passou pela cabeça… — Gabriel
parecia repugnado consigo próprio.
— Não me magoaste.
Ele sorriu, a cara mergulhada no seu cabelo, depois beijou-a na testa.
— Vou esforçar-me por te merecer. Se não estivesses aqui, já me tinha
ido embora.
— Não, não tinhas. O Richard precisa de ti. E nunca o deixarias, sabendo
disso.
Uma expressão de dor ensombrou o rosto de Gabriel. Beijou-a de novo,
mais como um amigo do que como um amante, e voltou-se para a sua mala.
Julia saiu do quarto e desceu as escadas, perguntado-se como correria o
jantar. Deteve-se no patamar para se olhar ao espelho, esperando que o seu
aspeto não denunciasse aquele momento sensual que tivera com o seu
professor.
Capítulo Vinte e Cinco

R achel tinha os lugares à mesa destinados. Sentou-se no lugar de Grace,


numa ponta da mesa, para ficar perto da cozinha, enquanto Richard se
sentava à cabeceira. Scott e Aaron estavam de um lado, Julia e Gabriel no
lado oposto. Julia conseguia sentir o olhar dele pousado em si, mas, para
sua grande deceção, Gabriel não tomou a iniciativa de lhe tocar por baixo
da mesa.
Rachel estranhou o novo visual menonista de Julia e lançou um olhar a
Gabriel. Por sua vez, Gabriel ignorou o olhar da irmã, concentrando-se no
seu guardanapo de linho.
Antes de começarem a comer, Richard pediu à sua família que desse as
mãos para a oração. Um choque passou entre as mãos de Gabriel e de Julia,
fazendo-a recuar apressadamente. Os olhos de águia de Rachel viram o
movimento de Julia, mas ela nada disse, até porque a sua amiga não tardou
a dar a mão a Gabriel.
— Pai Nosso, obrigado por este dia e pelas muitas dádivas com que
fomos abençoados. Obrigado pelo nosso país, pela nossa casa, pela nossa
comida. Obrigado pela minha família maravilhosa e por podermos estar
juntos, pela minha mulher encantadora, o amor da minha vida…
Seis pares de olhos abriram-se imediatamente. Cinco pares voltaram-se
para a cabeceira da mesa. Um par de olhos cinzentos fechou-se
imediatamente, com as mãos a cobri-lo.
Fora um engano. A descrição de Grace saíra-lhe da boca, como tantas
vezes acontecera ao longo dos anos. Mas o efeito foi dramático e imediato.
Os ombros de Richard começaram a tremer.
— Oh, meu Deus — balbuciou Julia.
Rachel saltou da sua cadeira para ir abraçar o pai, lutando contra as suas
próprias lágrimas. Aaron concluiu rapidamente a oração de Richard, como
se nada tivesse acontecido, e, no momento em que disseram Amém, todos
enxugaram uma lágrima ou duas. Começaram a fazer circular vegetais e
peru e o puré de batata de Scott.
Mas não Gabriel. Continuou sentado, punhos cerrados ao lado do prato, a
ver o seu pai adotivo chorar. Por baixo da mesa, Julia pousou-lhe uma mão
hesitante no joelho. E vendo que ele não se afastava nem lhe empurrava a
mão, deixou-a ficar ali. Gabriel acabou por lhe segurar na mão e por apertá-
la.
Julia sentiu o corpo de Gabriel começar a relaxar antes de as suas mãos
se separarem. Durante a maior parte da refeição, ele manteve o seu pé
esquerdo enlaçado no pé direito dela, mantendo a ligação entre ambos
secreta.
Quando desfrutavam de uma tarte de abóbora de compra, Richard contou
a Julia que iria mudar-se para Filadélfia em janeiro, onde teria um novo
emprego como investigador no Centro de Neurociências do Temple
University Hospital.
— Vendeu a casa?
Os olhos de Richard fixaram Gabriel e regressaram a Julia.
— Sim. Comprei um apartamento perto da Rachel e do Aaron. Vou poder
concentrar-me na minha investigação em Filadélfia, e não terei de continuar
a dar aulas. Ainda não estou preparado para me reformar, mas quero fazer
algo de diferente.
Julia entristeceu-se ao saber que a casa ia ser vendida, mas elogiou os
planos de Richard. Deve ser por isso que o Gabriel quer visitar o pomar
esta noite.
— E agora, Gabriel, porque não falas a toda a gente da viagem que em
breve farás a Itália? — Richard sorriu na direção do seu filho adotivo.
Muitas coisas aconteceram ao mesmo tempo. Rachel e Aaron olharam
para Julia. Julia continuou a comer a sua tarte de abóbora como se nada
fosse, esperando não parecer rude. E Gabriel, dentes cerrados, procurou a
sua mão por baixo da mesa. Julia quase lhe ouvira os maxilares fecharem-se
com um estalo.
— Vais a Itália? Meu, quem me dera ter uma conta confortável que me
permitisse fazer o mesmo. Adorava ir a Itália — disse Scott, piscando o
olho a Julia.
Richard olhava para Gabriel gentilmente, mas em expectativa. Julia viu
uma centelha de raiva atravessar o olhar de Gabriel e desaparecer em
seguida.
— Fui convidado para dar uma palestra na Galeria Uffizi, em Florença
— anunciou, com uma voz tensa.
— Quando partes? — perguntou Rachel.
— No início de dezembro.
— Quanto tempo vais estar fora? — inquiriu Aaron.
— Uma semana ou duas, talvez mais. Os meus anfitriões têm vários
acontecimentos programados, e espero fazer alguma pesquisa para o meu
livro enquanto lá estou. Por isso, não sei ainda ao certo.
Gabriel apertou a mão de Julia por baixo da mesa, mas ela não
correspondeu. Manteve-se concentrada na sua tarte, mastigando
pensativamente. Ninguém reparou que os seus olhos estavam rasos de água.
Não se atreveu a olhar para Gabriel.
Depois do jantar, a cozinha ficou numa azáfama, com toda a gente a
limpar e a arrumar. Gabriel tentou falar com Julia a sós, mas eram
constantemente interrompidos. Por fim, ele desistiu, e acompanhou Richard
até ao alpendre das traseiras, enquanto o resto da família se instalava nos
sofás da sala para ouvir música muito má dos anos 80.
Fora Scott a escolher os temas. E quando ele se levantou para dançar ao
som de Tainted Love, dos Soft Cell, Rachel e Julia fizeram troça sem
piedade. Aaron não percebia a atração pela música dos anos 80, nem o
humor da rotina de dança ligeiramente eclética de Scott, mas sorria
amavelmente, enquanto bebericava a sua cerveja.
Quando a canção deu lugar a Don’t you (Forget About Me), Julia
percebeu que estava na altura de tomar mais uma bebida. Foi até à cozinha
e deu por si a olhar pela janela para Gabriel e Richard, que tinham vestido
os seus casacos de inverno e estavam sentados em duas cadeiras
Adirondack no alpendre das traseiras.
— Então, Julia? — Aaron apareceu atrás dela, e foi buscar mais uma
cerveja ao frigorífico. — Vai uma Corona?
— Obrigada. — Julia aceitou a garrafa de boa vontade.
— Lima? — perguntou Aaron, apontando os gomos de lima numa taça
sobre o balcão.
Vendo o esforço com que ela tentava enfiar a lima pela abertura estreita
da garrafa, teve dó.
— Queres que faça isso?
— Por favor.
Aaron era um especialista em Corona. Empurrou a lima para dentro da
garrafa e, tapando a abertura com o polegar, virou a garrafa ao contrário, de
modo a que a lima chegasse ao fundo. Quando endireitou a garrafa, libertou
a pressão muito lentamente, com todo o cuidado, e passou a bebida a Julia
com um ar satisfeito.
— É assim que se faz — disse-lhe, sorrindo de orelha a orelha.
Julia bebeu um gole rápido e sorriu também. Aaron tinha razão. Estava
ótima.
— És um bom homem, Aaron. — Julia surpreendeu-se ao dizer aquelas
palavras em voz alta
Ele corou, mas retribuiu o sorriso.
— Como estás?
Julia encolheu os ombros.
— A pós-graduação é muito trabalho, mas acho que está a correr bem.
Estou a candidatar-me a vários programas de doutoramento para o próximo
ano. Espero entrar em algum deles.
Aaron anuiu, fitando-a com uma expressão séria mas solidária.
— A Rachel disse-me que o Simon te tinha telefonado. Não quero
aborrecer-te, mas ficámos ambos preocupados. Estás bem?
Julia piscou os olhos, processando o que acabara de ouvir, e concluindo
que Gabriel devia ter falado sobre o telefonema com Rachel.
— Fiquei assustada. Apesar de estar tão longe, ele encontrou-me. Não
ficou propriamente contente com a nossa conversa.
Aaron deu-lhe uma palmadinha no braço.
— Estás connosco. És parte da família, e vamos manter-nos juntos. Se
ele aparecer, encarrego-me dele. Raios, estou a precisar de uma boa briga.
A melhor maneira de uma pessoa se livrar das suas frustrações é dar uma
lição a um tipo daqueles. — Riu-se e bebeu um grande gole de cerveja.
Julia anuiu, mas tinha uma expressão séria.
— Que se passa com o casamento? A Rachel disse que tinham marcado
uma data, mas quando esta noite lhe perguntei quando seria, fechou-se em
copas.
Aaron abanou a cabeça.
— Não digas nada a ninguém, mas tínhamos planeado casar-nos em
julho. Isto é, até a Rachel ter visto o pai ir-se abaixo hoje, à mesa. Depois
do jantar, chamou-me à parte e disse-me que não podia falar num
casamento agora. Por isso, voltámos ao ponto de partida: noivos sem data
definida para casar. — Aaron deixou cair a cabeça e enxugou os olhos com
as costas de uma mão.
Julia sentiu pena dele.
— Ela ama-te. E vai casar contigo. Só quer uma família feliz e um
casamento grande e feliz. Hão de lá chegar.
— E que tal um Aaron feliz? — retorquiu ele, o seu olhar
momentaneamente duro. Suspirou e abanou a cabeça. — Não era isto que
queria dizer. Mas amo-a. Amo-a há anos. Eu nunca quis que fôssemos
morar juntos… Queria que tivéssemos casado mal acabámos o liceu. Mas
ela quis sempre esperar. A espera está a dar cabo de mim, Jules.
— Há quem pense que o casamento é só um papel. A Rachel tem sorte
por não pensares assim.
— Não é só um papel. Quero olhá-la diante de Deus, e de todos os nossos
amigos, e fazer-lhe promessas. Quero que ela seja minha. Não como
namorada, mas como minha mulher. Quero o que o Richard e a Grace
tinham, mas já me pergunto se isso alguma vez chegará a acontecer.
Estando ao lado de Aaron, Julia pousou-lhe timidamente o braço sobre os
ombros, e abraçou-o com um braço apenas.
— Vai acontecer, mais cedo ou mais tarde — disse-lhe. — Não desistas.
Depois de o Richard deixar esta casa e começar uma nova vida, a Rachel
vai ver que vocês já podem voltar a ser felizes. Estar nesta casa sem a Grace
está a ser difícil para toda a gente. Parece tão vazia, sem ela.
Aaron anuiu e bebeu o que restava da sua cerveja.
— O Scott decidiu passar uma música lenta. A Rachel deve querer
dançar. Até já. — Voltou para a sala, deixando Julia sozinha com a sua
Corona perfeita e os seus pensamentos imperfeitos.
Entretanto, Richard e o seu filho mais velho estavam sentados no exterior
a apreciar os presentes que Gabriel trouxera: charutos cubanos que
transportara como contrabando do Canadá e uma garrafa do uísque favorito
de Richard, The Glenrothes.
— A Grace nunca teria permitido isto dentro de casa — disse Richard,
pensativo, soprando anéis de fumo para o céu negro de novembro.
— Tenho a certeza que agora ninguém se importaria.
Richard sorriu tristemente ao filho.
— Mas eu não seria capaz. Por ela. Obrigado, a propósito, são
provavelmente os melhores que já tive.
— Não tens de quê.
Bateram os copos e desejaram saúde um ao outro, ficando depois a
contemplar, em silêncio, o bosque por detrás da casa e os delicados fios de
estrelas no céu.
— A Julia parece-me estar bem — começou Richard. — Veem-se muito?
Gabriel sacudiu a cinza do seu charuto para o cinzeiro que tinham entre
ambos.
— É minha aluna.
— Tem um ar adulto. Parece mais confiante. — Richard deu uma passa
no charuto, refletindo. — A tua universidade deve estar a fazer-lhe bem.
Gabriel encolheu os ombros.
— A Grace adorava-a. — Richard viu que a cara do filho não acusava
qualquer reação. — Agora que me vou mudar, precisamos de ter uma
reunião de família para decidirmos o que fazer da mobília e… outras coisas.
Sei que vai ser constrangedor, mas acho melhor termos essa conversa agora
do que esperar pelo Natal. Vens a casa pelo Natal, não vens?
— Sim, só não sei quando. Em relação à mobília, a Rachel e o Scott
podem ficar com tudo.
Richard contraiu os lábios.
— Também fazes parte desta família. Não há nada com que gostasses de
ficar? E o roupeiro que a Grace herdou da sua avó? Sempre esteve no teu
quarto. Não gostarias de o ter?
Gabriel fitou o pai por um instante.
— Achei que ficarias com tudo o que era da Grace.
— Não posso. Há algumas coisas de que não consigo separar-me. Mas
quanto ao resto… — Suspirou. — Na verdade, isto é o mais importante
para mim. — Ergueu a mão, exibindo a aliança de casamento.
Gabriel ficou surpreendido por Richard ainda a trazer, mas só por um
instante. Algo lhe dizia que o pai usaria a aliança para o resto da sua vida.
— A Grace queria que as suas joias fossem divididas. A Rachel esteve a
vê-las ontem. Deixámos algumas coisas na cómoda do teu quarto.
— E a Rachel?
— Está contente com o que a mãe queria que ela tivesse, e o Scott
também. Querem que a Julia fique com alguma lembrança, se não te
opuseres.
Gabriel esfregou os olhos.
— Não, não me oponho. Que têm em mente?
— A Grace tinha dois conjuntos de pérolas. Um que eu lhe ofereci, e um
outro que veio dos pais ou que ela comprou quando andava na faculdade.
Não sei ao certo. É o que a Rachel gostava de dar à Julia.
— Por mim, está bem.
— Ótimo. Antes de te ires embora, gostava que falasses com a tua irmã a
respeito do resto. E levas as coisas contigo.
Gabriel anuiu, pouco à vontade, centrando a sua atenção no charuto.
— A Grace amava-te. Não tinha favoritos, como sabes. Mas tu eras…
especial. Acreditava que Deus te tinha trazido até ela. Queria muito que
fosses feliz.
Gabriel anuiu.
— Eu sei.
— Na verdade, o que ela queria era que encontrasses uma rapariga como
deve ser e que assentasses, que tivesses filhos, e depois, que fosses feliz.
— Isso não vai acontecer, Richard.
— Não sabes. — Estendeu a mão e segurou afetuosamente o braço do
filho. — A Grace nunca desistiu. Não desistas tu também. Sei que ela ainda
te ama, e que continua a acender velas e a rezar por ti. Só está mais perto da
fonte.
Por um momento, os seus olhos encontraram-se. Por um momento, safira
e cinzento humedeceram-se de lágrimas.
Reza por mim, Grace. Como conseguirei viver sem ti?, pensou Richard.
Os dois homens lançaram argolas de fumo no alpendre, saboreando o
uísque e as memórias. Mas não falaram mais.
Quando todos finalmente decidiram que eram horas de deitar, subiram a
escada quase a dois degraus de cada vez, como animais caminhando
pesadamente para a Arca de Noé.
Gabriel fez Julia ficar para trás, para serem os últimos a subir. Depois de
todos terem desaparecido nos seus respetivos quartos, Gabriel deteve-se à
porta do quarto de Julia, olhando-a ansiosamente. Julia sentiu-se
subitamente nervosa e ficou fascinada pelos seus pés.
Estendendo uma mão, Gabriel desapertou-lhe o último botão da camisa, e
os seus dedos deslizaram-lhe pelo pescoço.
— Desculpa por isto. — Tocou a marca que lhe fizera horas antes.
Julia continuou a olhar para o chão.
— Julianne, olha para mim. — Ergueu-lhe o queixo com um dedo
apenas, fixando-o com um olhar perturbado. — Não quis marcar-te. Sei que
não me pertences, mas se fosses minha, arranjaria melhor maneira de o
mostrar ao mundo do que pondo a tua linda pele vermelha ou roxa.
Os olhos de Julia encheram-se de lágrimas. Claro que lhe pertencia.
Pertencia-lhe havia tanto tempo… desde que lhe segurara na mão e o
seguira pelos bosques.
— Espera aqui. — Ele desapareceu no seu quarto, regressando com uma
camisola verde, desportiva e britânica de aspeto familiar. — Para vestires.
— Pôs-lhe a camisola nas mãos.
Julia aceitou-a, mas olhou-o com um ar perplexo.
— Receei que não tivesses roupa bem quente. Achei que podias vestir
isto durante o nosso passeio pelo bosque.
— Obrigada. Mas não vai fazer-te falta?
— Tenho outras — respondeu, com um sorriso insinuante. — E gosto de
pensar que uma coisa minha vai estar tão perto de ti. Por mim, andavas com
essa camisola vestida o fim de semana inteiro. — Endireitou os ombros e
deu um passo na direção dela. — Talvez seja uma forma mais humana de te
marcar.
Os olhos de Gabriel brilhavam sob a luz fraca do corredor. Deu mais um
passo, prestes a beijá-la, quando Scott saiu ruidosamente do seu quarto, de
tronco nu e vestindo apenas uns boxers estampados com caras sorridentes.
Ao ver o irmão, mas antes que ele pudesse dizer o que quer que fosse,
Gabriel estendeu abruptamente a mão.
— Boa-noite, Julia — disse num tom formal, apertando-lhe a mão.
Scott grunhiu qualquer coisa e coçou o rabo enquanto se dirigia para a
casa de banho. Mal a porta da casa de banho se fechou, Gabriel puxou Julia
para si e beijou-a com firmeza nos lábios.
— Venho buscar-te daqui a uma hora. Agasalha-te bem e calça sapatos
confortáveis. — Espreitou as botas de salto alto de Julia e suspirou.
Custava-lhe pedir-lhe que as descalçasse, mas não podia ser de outro modo.
— Boa-noite, minha… — Interrompeu-se abruptamente e desapareceu
no seu quarto, deixando-a sozinha.
Julia perguntou-se o que fora que ele não dissera. Perguntou-se se deveria
dizer-lhe que era sua.
Fechou a porta do quarto e trocou de roupa, deixando-se envolver pelo
perfume de Gabriel e pela sua confortável camisola de caxemira, que a
aconchegava como os braços de um amante.
Capítulo Vinte e Seis

A escuridão envolvera a casa e parecia que todos dormiam


profundamente. Gabriel e Julia olhavam um para o outro na cozinha.
— Não sei se estás suficientemente agasalhada — disse Gabriel,
apontando o casaco dela. — Está um gelo, lá fora.
— Não faz tanto frio como em Toronto. — Julia riu.
— Não vou fazer-te ficar lá fora muito tempo. Olha o que encontrei. —
Gabriel mostrou-lhe um cachecol largo e comprido feito de espessas riscas
pretas e brancas. Enrolou-o no pescoço de Julia, dando uma hábil laçada à
frente. — É dos meus tempos em Oxford.
Julia sorriu.
— Gosto dele.
— Fica-te bem. E encontrei ainda outra coisa. — Desta vez ergueu um
velho cobertor, que pareceu estranhamente familiar a Julia.
Julia tocou o rebordo.
— É o mesmo cobertor?
— Creio que sim. Mas não bastará para nos aquecermos, por isso trouxe
mais dois. — Pegando-lhe na mão, conduziu-a para o alpendre.
Agora estava ainda mais escuro e fazia mais frio, mas parecia, de algum
modo, que nenhum tempo passara desde que Julia segurara a mão de
Gabriel e o seguira para o bosque. Julia inspirou com força ao recordar esse
momento, e quando atravessaram o pátio das traseiras, na noite cerrada,
sentiu que o coração lhe batia violentamente no peito.
Gabriel apertou-lhe a mão.
— Que se passa?
— Nada.
— Estás nervosa, eu sei. Fala comigo.
Largou-lhe a mão e pôs-lhe o braço em redor da cintura, estreitando-a
contra si.
Ela abraçou-o também pela cintura.
— Da última vez que estive nestes bosques, perdi-me. Tens de me
prometer que não me deixas.
— Julianne, não vou deixar-te. Não compreendes quão importante és
para mim. Nem consigo imaginar como seria perder-te. — O tom da voz de
Gabriel mudara; era grave, tenso.
Aquela declaração apanhou Julia de surpresa.
— Se, por alguma razão, nos separarmos, quero que esperes por mim.
Hei de encontrar-te, prometo. — Gabriel tirou uma lanterna do bolso,
acendeu-a, e um clarão brilhante iluminou o caminho bem trilhado que se
estendia à sua frente, desaparecendo por entre as árvores.
De noite, a floresta era assustadora, uma mistura de pinheiros frondosos e
árvores despidas esperando pela primavera. Julia apertou um pouco mais a
cintura de Gabriel, receando tropeçar numa raiz, ou algo parecido, e cair.
Quando chegaram à orla do pomar, Gabriel parou.
Parecia mais pequeno do que Julia se recordava. O espaço coberto de
erva parecia igual, tal como a rocha e as macieiras, mas não tão imponentes
como na sua memória. E tudo parecia mais triste, como se esquecido.
Gabriel conduziu-a até ao lugar que lhes pertencera tanto tempo antes, e
estendeu meticulosamente o velho cobertor no chão.
— Quem comprou a casa do Richard? — perguntou Julia.
— Porque perguntas?
— Gostava de saber quem a comprou. Diz-me que não foi a senhora
Roberts. Ela sempre quis esta casa.
Gabriel fê-la sentar-se no chão, junto a si, e cobriu ambos com as mantas.
Esperou que Julia se aninhasse ao seu lado e depois abraçou-a.
— Fui eu que a comprei.
— A sério? Porquê?
— Não podia permitir que a senhora Roberts viesse viver para aqui e
mandasse cortar todas as árvores.
— Então, compraste a casa por causa do pomar?
— Não suportava a ideia de alguém comprar este lugar e depois o
destruir. Nem a ideia de não poder voltar aqui.
— E que tencionas fazer?
Gabriel encolheu os ombros.
— O meu agente imobiliário vai alugar a casa. Gostava de a manter
como uma casa de férias. Não sei ao certo. Só não podia deixar que o
Richard a vendesse a um estranho.
— Foi muito generoso da tua parte.
— O dinheiro não significa nada. Nunca poderei pagar-lhe o que lhe
devo.
Julia deu-lhe um beijo na cara.
Ele sorriu-lhe.
— Estás confortável?
— Sim?
— Não tens frio?
Julia deu uma risadinha.
— Com o calor que vem de ti, não, não tenho frio.
— Estás demasiado longe.
Mesmo à luz do luar, Julia podia ver que os olhos dele se ensombravam.
Aproximou-se um pouco mais, estremecendo ligeiramente quando ele a
sentou ao colo, de lado.
— Assim está melhor — ouviu-o murmurar, levantando-lhe o casaco
apenas o suficiente para lhe tocar a pela nua das costas.
— Posso fazer-te uma pergunta?
— Claro.
— Porque é que o teu último nome não é Clark?
Gabriel suspirou.
— Emerson era o apelido da minha mãe. Achei que se o mudasse, estaria
a negá-la. E não sou um Clark. Não de verdade.
Ficaram em silêncio durante alguns minutos, tentando ambos confrontar
memórias e realidade. Gabriel continuava a acariciar as costas de Julia, e
ela roçou-lhe o nariz no pescoço. Vendo que ele não tinha pressa de iniciar
uma conversa, Julia decidiu falar primeiro.
— Fiquei meio apaixonada por ti desde o momento em que vi a tua
fotografia. Fiquei tão admirada por teres reparado em mim na noite em que
nos conhecemos… por teres querido que viesse contigo.
Gabriel tocou-lhe os lábios, por um instante apenas, ateando as chamas
que tremeluziam sob a superfície.
— Apareceste na minha escuridão. Já me perguntaste uma vez porque
não dormi contigo naquela noite. É muito claro para mim, agora; bebi da
tua bondade, e isso satisfez o meu desejo.
Julia teria desviado os olhos, constrangida, mas a vulnerabilidade de
Gabriel reteve o seu olhar, levando-a a explorar as profundezas de duas
lagoas turvas.
— Não me recordo de tudo, mas lembro-me de pensar que eras linda. O
teu cabelo, a tua cara, a tua boca. A tua boca podia inspirar sonetos,
Julianne. Tive vontade de a beijar no primeiro instante em que te vi.
Julia pressionou o seu peito contra o dele, e segurou-lhe o pescoço com
ambas as mãos, puxando-o para si e começando a beijá-lo. Beijou-o suave
mas apaixonadamente, mordiscando-lhe o lábio inferior, explorando-lhe a
boca com a língua.
Gabriel segurou-lhe as costas com as mãos bem abertas, quase a
levantando, e Julia virou-se para ele, ficando sentada com uma perna de
cada lado do seu tronco. Perante o contacto súbito, intenso, Gabriel gemeu
na boca dela, apertando-a ainda mais contra si. As suas mãos friccionaram-
lhe a pele, deslizando-lhe até à alça do sutiã de renda e depois de novo até à
cintura das calças de ganga, puxando e perseguindo os obstáculos que lhe
cobriam a pele. Tão macia, tão suave. Desejou poder vê-la ao luar. Desejou
poder ver todo o corpo de Julianne.
Gabriel parou de a beijar quando a sentiu tremer.
— Estás bem, amor?
Julia sobressaltou-se ao ouvir aquele termo novo, mas começou,
lentamente, a sorrir.
— Mais do que bem. Eu… — Interrompeu-se, abanando a cabeça.
— Que é?
— És muito… intenso.
Sem pensar, Gabriel atirou a cabeça para trás e começou a rir. O seu peito
vibrava de divertimento, e Julia deu por si quase a rir também. Mas achou
que ele se estava a rir dela. Com o polegar, Gabriel libertou o lábio inferior
de Julia, que ela prendera entre os dentes.
— Se achas que sou intenso, é bom não saberes o que estou a pensar
neste momento.
Moveu-se debaixo dela e, se Julia ainda não se apercebera, apercebeu-se
naquele momento. Onde os seus corpos estavam juntos, havia solidez e
calor, a promessa de algo misterioso e gratificante.
Corou ao sentir como o corpo de Gabriel reagia ao seu, mas não desviou
o olhar.
— Diz-me.
— Quero fazer amor contigo porque gosto de ti. Quero adorar o teu
corpo nu com o meu e saber todos os teus segredos. Quero agradar-te, não
durante minutos, mas durante horas, dias até. Quero ver-te arquear as costas
em êxtase e olhar-te nos olhos quando te fizer vir. — Suspirou a abanou a
cabeça, o olhar ardente embora resoluto. — Mas não aqui. Está demasiado
frio e é a tua primeira vez e há algumas coisas que precisamos de discutir
primeiro. — Beijou-a ternamente na testa, receando que ela interpretasse as
suas palavras como uma rejeição.
— Quero que te sintas segura e confortável. Quero adorar cada parte de
ti. E isso levará o seu tempo. Ah, e precisaremos de condições que este
campo não pode oferecer. — Sorriu-lhe sedutoramente, arqueando uma
sobrancelha. — Claro que aquilo que eu quero é pouco importante. O que
está em questão é o que tu queres.
— Penso que os meus sentimentos estão bastante claros.
— Estão? — A voz de Gabriel parecia insegura.
Ela ergueu a cara para o beijar, mas apanhou-lhe o queixo em vez dos
lábios.
— Não estaria aqui contigo, ao frio, se não quisesse estar.
— Ainda assim, é bom ouvi-lo.
— Gabriel Emerson, quero-te — murmurou Julia. — Na verdade, eu…
— Mordeu o lábio com força para se impedir de dizer que o amava.
— Podes dizê-lo — segredou-lhe Gabriel. — Não faz mal. Diz o que
sentes.
— Eu… quero que sejas o meu primeiro. Sou tua, Gabriel. Se me
quiseres.
— É tudo o que quero.
Desta vez, ele capturou-lhe a boca. Era um beijo cheio de promessa e
determinação. A intensidade deixou Julianne em chamas, ateando e
revolvendo os seus desejos.
Gabriel queria-a. Era algo que sempre estivera nos seus beijos, mas a
linha entre desejo e afeto era esbatida. Julia já não queria saber dessa linha,
era apenas o corpo dele contra o seu, as suas duas bocas unidas, as mãos
com que exploravam o corpo um do outro. No seu pomar, que era o Paraíso,
havia apenas dois quase-amantes, e mais ninguém nem mais nada.
Como os beijos se tornavam mais apaixonados, Gabriel deitou-se,
lentamente, de costas no cobertor, e puxou-a para si, de modo a que ela
ficasse de joelhos, uma perna de cada lado do seu corpo. Julia encostou o
seu peito ao de Gabriel, sentindo a agradável fricção entre as ancas de
ambos. Continuou a mover-se, ousadamente, pressionando contra ele o seu
corpo macio e sinuoso. Nunca antes sentira nada assim.
Gabriel permitiu-lhe que continuasse, mas apenas por alguns momentos.
Libertou-lhe os lábios e acariciou-lhe as maçãs do rosto com os polegares,
com movimentos leves, para a frente e para trás, olhando-a intensamente.
— Desejo-te, Julianne, mas é mais do que desejo físico. Quero ter-te por
inteiro. — Suspirou, abanando novamente a cabeça. — Odeio fazer isto,
mas há algumas coisas de que precisamos falar.
Julia suspirou em resposta.
— Tais como?
— Como a minha viagem a Itália. Devia ter falado contigo primeiro.
Julia sentou-se, devagar.
— Os professores viajam em trabalho. Sei isso. — Baixou os olhos para
o cobertor onde estavam sentados.
Gabriel também se sentou.
— Julianne. — Com um só dedo, levantou-lhe o queixo. — Não te
escondas de mim. Diz-me em que estás a pensar.
Julia contorceu as mãos uma na outra.
— Sei que não tenho o direito de ser… exigente, mas magoou-me que o
Richard tenha sabido da viagem antes de mim.
— Tens todo o direito de ser exigente. Sou teu namorado. Devia ter-te
dito primeiro.
— És meu namorado?
— Mais do que isso. Sou teu amante.
As palavras de Gabriel e a sua voz, grave e sensual, causaram-lhe um
arrepio na espinha.
— Apesar de não termos feito sexo?
— Os amantes podem ser íntimos um com o outro de muitas formas
diferentes. Mas quero que saibas que desejo ter toda a intimidade contigo, e
só contigo. Por isso, o termo namorado é inadequado. E peço desculpa por
te ter magoado. Tive de falar da viagem ao Richard quando discutimos a
questão da casa, porque interferia no que estávamos a combinar.
»Recebi o convite da Uffizi há meses, muito antes de vires para Toronto.
Queria falar sobre o assunto contigo, mas estava a adiá-lo até nos sentirmos
mais… confortáveis um com o outro.
Julia fitou-o com curiosidade.
— Queria que o teu presente de Natal fosse uma viagem a Florença.
Claro que não quero ir sozinho. A ideia de te deixar, de estar separado de
ti… — A sua voz tornou-se áspera. — Tinha medo que recusasses, que
encarasses o convite como um instrumento de sedução.
Julia franziu o sobrolho.
— Queres mesmo que eu vá contigo?
— Se não me acompanhares, prefiro não ir.
Julia sorriu, radiante, e beijou-o.
— Nesse caso, obrigada pelo convite. Aceito.
Gabriel sorriu também, aliviado, e escondeu a cara no cabelo dela.
— Depois do que aconteceu com as roupas, estava convencido de que ias
dizer que não. Posso reservar quartos separados, se preferires. E reservo-te
um bilhete de avião sem data, para poderes vir-te embora se decidires…
— Gabriel, eu disse que sim. Com todo o meu coração. Não há ninguém
com quem eu preferisse visitar Florença, e, por favor, deixa-me ficar
contigo. — Olhou-o timidamente. — O semestre já terá terminado. Não
estaríamos a infringir as regras se… se decidisses levar-me para a tua cama
e fazeres-me tua…
Gabriel interrompeu-a com um beijo impetuoso.
— Tens a certeza? Tens a certeza de que queres que a tua primeira vez
seja comigo?
Julia olhou-o com uma expressão séria.
— Foste sempre tu, Gabriel. Nunca quis mais ninguém. És o homem por
quem esperei.
Julia iniciou um beijo suave que rapidamente se tornou intenso. Não
tardou a que estivesse deitada sobre ele, os seus corpos movendo-se juntos.
Sentia-se tão perto dele, de cada parte do seu corpo. E nunca quisera estar
mais perto, nem sequer durante o tango no museu.
Gabriel afastou-se, arquejando, arrastando os lábios pelo pescoço dela.
Tendo o cuidado de evitar a marca que lhe fizera horas antes, beijou-lhe o
cabelo. Julia gemeu, enrodilhando os dedos no cabelo dele.
— É demasiado perigoso, amor. Não posso beijar-te como gostaria e
depois conseguir parar.
Gabriel protestava, mas as suas mãos continuavam a deslizar
tentadoramente entre as nádegas e as ancas de Julia, provocando,
pressionando. Julia tentou beijá-lo de novo, mas ele segurou-lhe a cara entre
as mãos, acariciando-a delicadamente.
— Mais do mesmo e faço amor contigo aqui mesmo — sussurrou-lhe. —
Mereces melhor. Mereces tudo, e é isso que vou dar-te.
Julia encostou a cabeça a uma das suas mãos.
— Dada a tua decisão, há mais algumas coisas de que precisamos de
falar. — A voz dele já não era divertida ou sensual. Gabriel pigarreou e
respirou fundo várias vezes, deliberadamente. — Se decidires começar a
tomar a pílula ou se já estás a tomá-la, tudo bem. Mas tenho de te dizer que
a contraceção é desnecessária.
— Não compreendo.
— Não posso ter filhos, Julianne.
Julia pestanejou.
— Ter filhos é muito importante para ti? Talvez devesse ter falado nisto
mais cedo. — Gabriel mudou de posição, parecendo algo ansioso.
Julia ficou calada por instantes, refletindo sobre o que ele acabara de
dizer.
— Não nasci propriamente numa família feliz. Houve momentos em que
achei que seria bom ter um marido e um bebé. Mas nunca pensei realmente
que isso fosse acontecer comigo.
— Porque não?
Julia encolheu os ombros e desviou os olhos.
— Nunca achei que encontraria alguém que pudesse amar-me. Não sou
propriamente sensual. Sou tímida. E fraca.
— Oh, Julia. — Gabriel abraçou-a e beijou-a em ambas as faces. —
Estás enganada. És incrivelmente sensual. E de modo algum és fraca.
Julia pôs-se a mexer na lapela do casaco de cabedal dele.
— Tenho pena que não possas ter filhos. Muitos casais têm dificuldade
em conceber.
Gabriel retesou-se.
— Essas situações são completamente diferentes.
— Como?
— A infertilidade desses casais é natural.
Julia reparou em como os olhos de Gabriel se estreitavam, observando-a
com uma expressão muito preocupada.
Erguendo uma mão, tocou-lhe na cara.
— Ficaste muito desapontado quando descobriste?
Agarrando-lhe o pulso, Gabriel afastou a mão de Julia da sua cara.
— Fiquei aliviado, Julianne. E não descobri.
— Então, como…?
— Tomei a decisão de me esterilizar quando saí da desintoxicação.
Julia engoliu em seco, com força.
— Oh, Gabriel, porquê?
— Porque alguém como eu não deve reproduzir-se. Falei-te do meu pai.
Contei-te como eu era quando me drogava. Achei que seria irresponsável da
minha parte dar azo a qualquer tipo de paternidade. Por isso, decidi tratar do
problema, e não vou voltar atrás. Decidi que não teria filhos. Nunca.
Pousou nela o seu olhar penetrante.
— A verdade é que não contei contigo. E agora quase lamento a minha
decisão. Mas é melhor assim, Julianne, acredita. — O corpo de Gabriel
ficou subitamente tenso, como se ele se preparasse para um massacre. —
Talvez agora decidas que será melhor não te envolveres comigo
— Gabriel, por favor. Eu só… preciso de um minuto. — Julia sentou-se
ao lado dele, tentando processar toda a informação que acabara de receber.
Gabriel sentou-se também, ajeitando uma das mantas para que Julia
ficasse inteiramente coberta. Julia compreendeu que ele lhe fizera uma
meia-confissão, que o verdadeiro segredo era o acontecimento ou os
acontecimentos que o haviam levado ao desespero. Esses acontecimentos
não podiam ser apenas os seus traumas de infância ou a dependência de
drogas.
Mas será que importa realmente? Haverá algum segredo que ele possa
contar que mate o teu amor por ele?
Gabriel continuava imóvel como uma estátua, sob a cascata do luar,
esperando pela resposta. Os minutos pareciam-lhe horas.
Amo-o. Nada que ele pudesse dizer seria capaz de matar este amor.
Nada.
— Lamento muito, Gabriel. — Pôs-lhe os braços em redor do pescoço.
— Mas continuo a querer-te. Sei que pode chegar o dia em que
precisaremos de voltar a ter esta conversa, mas, por agora, aceito o que
disseste.
Gabriel foi apanhado de surpresa por aquela resposta. Tendo refletido um
pouco, a aceitação de Julia emocionou-o profundamente. Não conseguia
encontrar as palavras certas para dizer.
— Julia, preciso de te dizer quem sou. O que sou. — De repente, parecia
obstinado.
— Escutarei o que quer que tenhas a dizer, mas quero-te. Foste sempre
tu, Gabriel.
Segurando-lhe novamente a cara entre as mãos, Gabriel beijou-a devagar,
como se a sua alma suplicasse por se unir à alma de Julia.
— Foste sempre tu, Julianne. Só tu.
Abraçou-a, respirando o conforto que ela lhe oferecia. Subitamente,
Gabriel conseguia ver o futuro. Tinha esperança. Tinha esperança de que
talvez, talvez, quando soubesse tudo, Julia pudesse olhá-lo com aqueles
seus grandes olhos castanhos e dizer-lhe que ainda o queria.
Ama-la. De novo aquela voz, vinda não sabia de onde, mas desta vez
Gabriel reconheceu-a. E agradeceu-lhe em silêncio.
— Pareces tão longe, amor. — Ao usar aquele novo termo, Julia sorriu.
Ele beijou-a suavemente.
— Estou mesmo aqui, onde quero estar. Talvez esta não seja a melhor
noite para partilharmos todos os nossos segredos. Mas não posso levar-te
para Itália sem te ter contado tudo. E também gostava que me contasses
tudo. — Olhou-a nos olhos com uma expressão muito séria. — Não posso
pedir-te que me exponhas o teu corpo sem te pedir que me exponhas a tua
alma. Quero fazer o mesmo contigo. Espero que compreendas. — Tentou
expressar o que sentia com o olhar, dizer-lhe que era somente para bem dela
que acrescentava aquele pré-requisito.
Julia anuiu lentamente, concordando. Gabriel beijou-a, e ela suspirou,
encostando a cabeça ao peito dele e escutando o bater ritmado e feliz do seu
coração. O tempo passava ou mantinha-se imóvel. Dois quase-amantes
enlaçados sob um céu escuro de novembro, vendo as estrelas e o luar.

N a manhã seguinte, Julia acordou cedo e dirigiu-se para a casa de


banho, ao fundo do corredor, para tomar um duche. Vestiu-se e fez a
mala, batendo à porta de Gabriel às oito horas. Mas não obteve resposta.
Encostou o ouvido à porta e pôs-se à escuta. Não se apercebeu de qualquer
movimento, de qualquer som.
Arrastou a sua mala com rodas pelo corredor e desceu as escadas. Ao
aproximar-se da sala, viu Richard e Rachel sentados num dos sofás. Rachel
chorava e o pai tentava consolá-la.
Os olhos de ambos pousaram em Julia, quando, acidentalmente, ela
deixou cair a mala. Desculpou-se profusamente.
— Não há problema, Julia. — Richard cumprimentou-a. — Dormiste
bem?
— Muito bem, obrigada. Rachel, passa-se alguma coisa?
A sua amiga enxugou os olhos.
— Isto já passa.
— Porque não conversam enquanto eu preparo o pequeno-almoço? A
Rachel gosta de panquecas de mirtilo. E tu, Julia? — perguntou Richard,
pondo-se de pé e apontando para a cozinha.
— Obrigada, mas o meu pai pediu-me que me encontrasse com ele no
Kinfolks, às nove, para tomarmos o pequeno-almoço.
— Eu levo-te. Deixa-me só preparar as panquecas primeiro.
Richard desapareceu, e Julia sentou-se no sofá ao lado de Rachel, pondo
um braço sobre os ombros da amiga.
— Que aconteceu?
— Eu e o Aaron discutimos. Ele acordou mal-humorado, e então
perguntei-lhe o que se passava. Começou a falar sobre o casamento, e a
perguntar se eu iria alguma vez marcar uma data. Quando lhe disse que era
preciso esperar, quis saber quanto tempo. — Rachel ergueu as mãos num
gesto de frustração. — Repeti o que já lhe disse antes, não sei. Então,
perguntou-me se eu queria terminar o noivado!
Julia inspirou com força, surpreendida.
— Não costumamos discutir. Mas ele estava tão zangado que nem
conseguia olhar para mim. De repente, a meio da conversa, saiu porta fora,
meteu-se no carro e arrancou. Não faço ideia de onde foi, nem sequer se vai
voltar — soluçou Rachel.
Julia abraçou a amiga.
— Claro que vai voltar. Tenho a certeza que se arrependeu de ter
discutido contigo e foi dar uma volta de carro para se acalmar.
— O meu pai ouviu-nos a discutir, e claro que quis saber porque é que eu
estava a adiar o casamento. — Enxugou os olhos com as mãos. — Disse
que o Aaron tinha razão, que eu tinha de seguir com a minha vida. Disse
que a minha mãe odiaria que eu adiasse o casamento por causa dela. — A
cara de Rachel enrugou-se e os seus olhos encheram-se novamente de
lágrimas.
— O teu pai tem razão… Vocês merecem ser felizes. O Aaron ama-te
tanto. Ele só quer que se casem. Pensa que estás a hesitar.
— Não estou a hesitar. Amo-o desde sempre.
— Diz-lhe isso. Ele levou-te para uma ilha para se reaproximarem,
depois do funeral. Tem tido toda a paciência. De certeza que não se importa
de esperar mais um pouco, só quer marcar uma data.
Rachel fungou tristemente.
— Não fazia ideia de que isto estava a aborrecê-lo tanto.
— É melhor tomares o pequeno-almoço, depois telefonas-lhe. Entretanto,
ele acalma-se, e vão para qualquer lado conversar. Não podem resolver as
coisas aqui, com tanta gente à volta.
Rachel estremeceu.
— Graças a Deus que o Scott não nos apanhou a discutir. Havia de se pôr
do meu lado e chatear o Aaron ainda mais.
Nesse momento, a porta da frente abriu-se e fechou-se, e um homem alto,
moreno, suado por ter ido correr, entrou na sala a passos largos. Tinha o
cabelo despenteado e húmido, e vestia um fato de treino preto Nike. Ao
aproximar-se das duas mulheres, tirou um par de fones dos ouvidos e
carregou num botão do seu iPhone.
Olhou para Rachel e para Julia, franzindo o sobrolho.
— Que aconteceu?
— Eu e o Aaron tivemos uma discussão. — Mais lágrimas rolaram pelas
faces de Rachel, deixando Gabriel incomodado.
Foi até junto da irmã e beijou-a no alto da cabeça.
— Lamento, Rach. Onde está ele?
— Saiu.
Gabriel abanou ligeiramente a cabeça, sentindo-se impotente. Custava-
lhe ver a irmã chorar.
Antes que pudesse pedir pormenores, Richard veio da cozinha,
anunciando que o pequeno-almoço estava servido.
— Julia, se me deres alguns minutos, levo-te ao Kinfolks.
Gabriel deixou Rachel.
— Que se passa?
— A Julia tem de se encontrar com o pai dela às nove.
Gabriel olhou para o relógio.
— Ainda nem são oito e meia.
— Não há problema. Tomo um café no restaurante enquanto espero por
ele. — Julia evitou o olhar de Gabriel. Não queria atrapalhar ninguém.
— Deixa-me tomar um duche e levo-te lá. Tenho de passar pela casa do
meu agente imobiliário, de qualquer modo.
Julia anuiu e dirigiu-se para a cozinha na companhia de Richard e de
Rachel, enquanto Gabriel subia as escadas. Enquanto comia as panquecas
de mirtilo, Rachel tirou da sua mala algo que prendeu ao pescoço de Julia.
— Que é isto? — Julia tocou o colar de pérolas, surpreendida.
— Era da minha mãe. Queremos que fiques com uma coisa dela.
— Não posso, Rachel. Tu é que deves ficar com ele.
— Tenho outras coisas — disse-lhe a amiga, sorrindo.
— E o Scott?
Rachel deu uma risadinha.
— O Scott diz que não faz o seu estilo.
— Queremos que fiques com o colar — interveio Richard, olhando-a
afetuosamente.
— Têm a certeza?
— Claro! — Rachel abraçou a amiga, grata pela oportunidade de
retribuir a sua amabilidade de alguma forma palpável.
Julia sentiu-se emocionada, mas conteve as lágrimas, pois não queria
perturbar Richard.
— Obrigada. Obrigada aos dois.
Richard deu-lhe um beijo paternal na cabeça.
— A Grace ficaria muito contente de te ver a usar algo que lhe pertenceu.
— Também tenho de agradecer ao Scott.
Rachel revirou os olhos e reprimiu um resmungo.
— Esse só acorda lá para o meio-dia. Esta noite, eu e o Aaron tivemos de
ligar a aparelhagem para não o ouvirmos ressonar. Nem as paredes abafam
um ruído daqueles! — Encarou o pai, que a fitava com uma vaga expressão
de censura. — Desculpa, pai, mas é a verdade. Mudando de assunto, Julia,
traz o teu pai a jantar cá amanhã à noite, e nessa altura agradeces ao Scott.
Julia anuiu, tocando pensativamente as pérolas, maravilhando-se com a
sua forma esférica.

G abriel e Julia praticamente não falaram durante a viagem até ao


restaurante. Quase tudo o que tinham a dizer já fora dito. Seguraram a
mão um do outro, no carro. Julia ficou radiante quando ele lhe deu o seu
cachecol do Magdalen College, dizendo-lhe que era um presente. Quando
chegaram ao restaurante, não viram a carrinha de Tom.
— Parece que estamos com sorte. — Julia parecia aliviada.
— O teu pai vai ter de saber. Eu conto-lhe, se quiseres.
Julia olhou-o para ver se ele estaria a falar a sério. E estava.
— Disse-me para ficar longe de ti. Pensa que és um criminoso.
— Então é mesmo melhor ser eu a falar com ele. Já te maltrataram o
suficiente para uma vida inteira.
— Gabriel, o meu pai nunca me tratou mal. Não é um homem mau. Só
está… enganado.
Gabriel esfregou a sua boca, mas não disse mais nada.
— Não vou contar-lhe nada até estarmos de volta a Toronto e o semestre
ter terminado — disse Julia. — Será mais fácil explicar-lhe ao telefone.
Mas é melhor ir andando, que ele deve estar a chegar.
Gabriel deu-lhe um beijo nos lábios, acariciando-lhe a cara com as costas
da mão.
— Telefona-me mais tarde.
— Telefono, sim — prometeu, beijando-o mais uma vez e saindo do jipe.
Gabriel foi buscar a mala à bagageira e colocou-a aos pés de Julia,
curvando-se em seguida para lhe segredar ao ouvido.
— Tenho fantasiado a respeito da nossa primeira vez.
— Eu também — murmurou Julia, corando.
Tom Mitchell era um homem de poucas palavras. Tinha uma aparência
incrivelmente comum: estatura média, um cabelo castanho nem claro nem
escuro, e olhos castanhos absolutamente vulgares. Apesar do seu fracasso
como pai e de quaisquer falhas de que pudesse ter sido acusado enquanto
marido, Tom era um bombeiro voluntário dedicado e um membro ativo da
comunidade. Com efeito, gozava de uma excelente reputação entre os
habitantes de Selinsgrove, e a sua opinião era frequentemente auscultada
nas questões municipais.
Para crédito de Tom, ele e Julia passaram um dia agradável juntos. Os
clientes habituais do restaurante Kinfolks receberam Julia calorosamente, e
o pai pôde gabar-se de como ela estava a sair-se bem na pós-graduação e de
como ia candidatar-se a Harvard para o doutoramento.
Tom levou a filha a dar uma volta pela cidade, para verem os novos
projetos de construção, mostrando-lhe como Selinsgrove crescera mesmo
na sua breve ausência. E levou-a a uma sessão de treino de primeiros
socorros que estava a decorrer no quartel dos bombeiros, para que os seus
colegas dissessem a Julia que o seu velhote passava a vida a falar nela.
Depois, foram às compras, uma vez que, por várias razões, Tom nunca tinha
muita comida em casa. De tarde, Tom desistiu de ver o jogo de futebol na
televisão para ver um filme antigo com Julia. Sim, tratava-se da versão
original de Blade Runner, mas era um filme que ambos queriam ver, e
apreciaram-no bastante.
Quando o filme terminou, Julia foi buscar uma cerveja para o pai,
encorajando-o assim a ver o jogo de futebol enquanto ela cozinhava o
famoso prato de Grace para o jantar. Encontrando-se finalmente sozinha,
enviou uma breve mensagem a Gabriel.
G, estou a cozinhar o frango à Kiev da Grace e uma tarte de limão com merengue para o
meu pai.
Ele está a ver futebol. Espero que estejas a passar um excelente dia. Telefono-te por volta
das 18:30. Tua Julia. Bjs

Minutos depois, quando estava a preparar duas caçarolas de frango, uma


para comerem nessa noite e outra para Tom congelar, o seu iPhone deu o
sinal de chegada de mensagem.
Minha Julia, tenho sentido a tua falta. Também estamos a ver futebol.
A R e o A beijaram-se e fizeram as pazes e já marcaram uma data.
O Richard consegue fazer milagres, acho eu, ou será que foste tu?
Não sabes o que significa para mim dizeres-me que és minha.
Espero ansiosamente o teu telefonema. Sou teu, Gabriel. Bjs

Julia sentia-se a voar pela cozinha, enlevada com as palavras de Gabriel e


com os momentos que tinham partilhado na noite anterior. O seu sonho
estava prestes a realizar-se. Depois de anos a sonhar, Gabriel seria o seu
primeiro amante.
Todas as lágrimas, os problemas e a humilhação que sofrera com Simon,
tudo isso estava esquecido. Julia esperara pelo homem que amava, e agora
teria a primeira vez que sempre desejara. E em Florença, nem dava para
acreditar! Tinha muito por que se sentir grata, incluindo o colar de pérolas
que lhe rodeava o pescoço. Acreditava que Grace tivera uma mão em tudo o
que estava a acontecer, e agradeceu-lhe em pensamento.
Tendo acabado de preparar o frango, Julia colocou uma das caçarolas no
frigorífico e levou a outra para a cave. Abriu o congelador, e ficou
surpreendida ao encontrar muitas refeições já prontas, acondicionadas em
caixas Tupperware ou embrulhadas em papel de alumínio, muitas das quais
com pequenas notas assinadas Com amor, Deb.
Julia quase teve um vómito ao ver os recados. Deb Lundy era uma
senhora simpática, e parecia cuidar bem de Tom. Mas com a sua filha
Natalie, era outra história, e Julia nem suportava pensar na possibilidade de
Deb e Tom decidirem ir viver juntos ou, pior ainda, casarem-se. Era uma
ideia que perturbava Julia por vários motivos.
Esforçando-se por tirar Deb e Natalie do pensamento, Julia concentrou-se
na confeção da sobremesa favorita do pai, a tarte de limão com merengue.
Tom gostava especialmente da tarte do restaurante Kinfolks, mas tal não
impediu Julia de fazer a sua.
Estava a colocar a tarte no forno quando o telefone de casa tocou. Tom
foi atender e, passados segundos, estava a praguejar em voz alta. Depois de
algumas frase breves que pareciam relacionadas com trabalho, Julia ouviu-o
bater com o telefone na base e correr escada acima. Quando voltou, trazia o
uniforme vestido.
— Jules, tenho de ir.
— Que aconteceu?
— Há um incêndio no salão de bowling. O rapazes já lá estão, mas
acham que pode ter sido fogo posto.
— No Best Bowl? Como?
— É isso que vou ter de descobrir. Não sei quando volto.
Já perto da porta, deteve-se e curvou os ombros.
— Desculpa ter estragado o jantar. Estava ansioso por jantar contigo. Até
logo.
Julia viu a carrinha do pai recuar na rampa e partir. Gabriel já devia estar
a jantar com a sua família, pelo que decidiu não lhe enviar uma mensagem.
Esperaria pelas seis e meia para lhe telefonar à hora marcada.
Quando o temporizador deu sinal, retirou a tarte do forno e inspirou o
aroma doce a limão. Enquanto esperava que a sobremesa arrefecesse,
guardou o frango à Kiev no frigorífico; ficaria para o dia seguinte, e Julia
comeria uma sanduíche ao jantar.
Cerca de um quarto de hora mais tarde, ouviu a porta da frente abrir e
fechar. Apressou-se a ir buscar um prato, para servir uma fatia de tarte ao
pai.
— Como conseguiste escapar tão cedo? — gritou para o corredor. — A
tarte saiu agora mesmo do forno.
— Fico contente por sabê-lo, Jules.
Ao ouvir aquela voz, Julia deixou cair o prato, que se quebrou contra o
velho chão de linóleo.
Capítulo Vinte e Sete

S imon apareceu na cozinha e encostou-se à ombreira da porta, braços


cruzados sobre o peito. Julia olhou, em choque, para o atraente rosto de
olhos azuis, emoldurado por cabelo louro.
Deu um grito e correu para a porta, tentando rodeá-lo. Simon estendeu a
sua mão grande e barrou-lhe a passagem, e Julia agarrou-se-lhe ao braço
para evitar a queda.
— Por favor — implorou. — Deixa-me sair.
— Isso é maneira de me cumprimentares? Passado tanto tempo? —
Sorriu, baixando o braço e endireitando-se, exibindo o seu metro e oitenta
de altura. Julia encolheu-se junto à porta, olhando em redor com crescente
nervosismo.
Simon obrigou-a a recuar. Era um homem de estatura média, mas ainda
assim intimidante. Encurralando Julia a um canto, pôs-lhe os braços em
redor da cintura, erguendo-a num apertado abraço de urso.
— Põe-me no chão, Simon. — Julia arfava e contorcia-se.
Com um sorriso malicioso, ele apertou-a ainda mais.
— Ora, Jules, descontrai.
— Tenho um namorado — disse Julia, debatendo-se. — Larga-me!
— Quero lá saber se tens namorado.
Aproximou a cara da dela, e Julia receou que ele fosse beijá-la. Mas
Simon não o fez. Começou a percorrer-lhe o corpo com as mãos,
regozijando-se com o seu desconforto. Por fim, recuou.
— Uau, continuas um pedaço de gelo. Achava que o teu namorado te
tinha resolvido o problema. — Olhou-a de alto a baixo, lascivamente. —
Pelo menos, fico a saber que não perdi nada. Apesar de me sentir ofendido
por lhe teres dado a ele o que não me deste a mim.
Julia correu para a porta da frente, abrindo-a e apontando para fora.
— Vai-te embora. Não quero falar contigo. E o meu pai deve voltar a
qualquer momento.
Simon seguiu-a, caminhando devagar, como um lobo seguindo um
cordeiro.
— Não me mintas. Sei que ele acabou de sair. Parece que estão a ter um
problemazito no Best Bowl. Alguém pôs o edifício a arder. O teu pai só
voltará daqui a horas.
Julia pestanejou nervosamente.
— Como sabes?
— Ouvi a notícia na rádio. Já estava perto, por isso achei que era o
momento perfeito para te fazer uma visita.
Julia tentou parecer calma enquanto avaliava as suas opções. Sabia que
não conseguiria fugir para a rua, e mais valia não o irritar com semelhante
tentativa. Se ficasse ali, poderia, pelo menos, tentar alcançar o telemóvel,
que estava na cozinha.
Obrigou-se a sorrir e tentou falar num tom afável.
— Foste simpático em passar por cá. Mas ambos sabemos que está tudo
terminado. Encontraste outra pessoa, estás feliz com ela. Vamos deixar o
passado para trás, está bem?
Julia tentou esconder a sua ansiedade, e fez um bom trabalho.
Até ele se aproximar e começar a passar-lhe as mãos pelo cabelo,
encostando os fios à sua cara, para os cheirar.
— Não estava feliz com ela. Não tinha nada a ver com felicidade. Tinha a
ver com sexo. E não era o tipo de rapariga que pudesse apresentar aos meus
pais. Tu, pelo contrário, eras apresentável. Embora tenhas sido uma
deceção.
— Não quero falar sobre isto.
Simon tirou a porta do alcance de Julia e fechou-a com um estrondo.
— Ainda não acabei. E não gosto de ser interrompido.
Julia deu um passo cauteloso atrás.
— Desculpa, Simon.
— Vamos deixar-nos de conversas. Sabes o que me traz aqui. Quero as
fotografias.
— Já te disse, não tenho fotografias nenhumas.
— Não acredito. — Pôs-lhe uma mão em redor do pescoço e puxou-a
para si, agarrando-a pelo colar. — Queres mesmo entrar neste jogo comigo?
Já vi o que a Natalie tem. Sei que as fotografias existem. Se mas deres
agora, continuamos amigos. Mas não me faças perder a paciência. Não fiz
três horas de carro para aturar as tuas merdas. Não quero saber quantos
colares de pérolas usas, não vales nada. — Começou a puxar o colar,
forçando os nós entre cada pérola.
Julia ergueu as mãos para o impedir.
— Por favor, não faças isso. Este colar era da Grace.
— Oh, era da Grace. Peço desculpa. Isto não custou tanto como eu
gastava contigo numa semana. — Puxou novamente o colar, em jeito de
desafio.
Julia engoliu em seco, e ele pôde sentir a sua garganta estremecendo-lhe
sob os dedos.
— A Natalie está a mentir. Não sei por que motivo, mas dou-te a minha
palavra em como deixei para trás todas as fotografias em que aparecias.
Não tenho razão para te mentir. Por favor, Simon.
Ele deu uma gargalhada.
— Representas muito bem o teu papel, mas é só isso. Um papel. Sei que
ficaste furiosa com o que se passou, e que guardaste algo para te vingares.
— Se é assim, então porque é que não as usei? Porque não as enviei para
um jornal nem te pedi dinheiro por elas? Porque havia de ter guardado essas
fotografias durante mais de um ano? Não faz sentido!
Ele puxou-a violentamente, encostando-lhe os lábios ao ouvido.
— No que toca a senso comum, não és propriamente esperta, Jules. Não
me custa nada acreditar que tens uma coisa e que não sabes usá-la. Porque
não continuamos esta conversa lá em cima? Posso procurar as fotografias, e
tu podes tentar deixar-me mais bem-disposto. — Enfiou o lóbulo da orelha
de Julia na boca, mordendo-o ligeiramente.
Julia inspirou e expirou algumas vezes, tentando reunir coragem.
Enfrentou os olhos azuis e frios de Simon.
— Não vou fazer nada até tirares as mãos de cima de mim. Porque não
consegues ser amável?
Os olhos de Simon ensombraram-se momentaneamente. Libertou-a.
— Oh, mas vou ser amável contigo. — Começou a fazer-lhe festas na
cara. — Mas espero algo em troca. Se não levar as fotografias comigo,
então terei de levar outra coisa. Por isso, é melhor começares a pensar numa
maneira de me pores um sorriso na cara.
Julia encolheu-se.
— Como as coisas mudaram, não é verdade? Vou adorar isto. —
Apertou-a nos braços e encostou a sua boca aberta, ávida, à boca de Julia.

À s seis e meia em ponto, Gabriel pediu licença, levantou-se da mesa e


dirigiu-se para a sala, esperando o telefonema de Julia. O telemóvel
nunca tocou.
Verificou o voice mail. Não recebera qualquer recado de Julia. Nem
mensagens escritas novas. Nem e-mails. Eram dez para as sete quando
marcou o número dela. Depois de alguns toques, a chamada foi para o voice
mail.
— Julianne? Estás aí? Telefona-me.
Desligou e consultou as Páginas Amarelas no seu iPhone para encontrar
o número da casa de Tom. O telefone tocou e tocou, até que o atendedor de
chamadas disparou. Gabriel desligou sem deixar mensagem.
Porque não atende o telefone? Onde estará? E por onde anda o Tom?
Uma suspeita terrível apoderou-se da sua mente. Não querendo perder
um único segundo, Gabriel correu porta fora sem dizer nada a ninguém.
Ligou o jipe e pôs-se a toda a velocidade a caminho da casa de Tom,
continuando a tentar ligar para Julia e para Tom. E se um polícia o fizesse
parar por excesso de velocidade, tanto melhor.

S imon sentia a vitória tão perto que quase conseguia saboreá-la. Sabia
que Julia não era uma pessoa forte, e estava acostumado a retirar
partido da sua fraqueza. Quando ela o olhou nos olhos e lhe implorou que
acreditasse que não tinha as fotografias, Simon acreditou. Era muito mais
provável que Natalie estivesse a tramá-la, tentando desviar as atenções do
seu próprio jogo de vingança. Tomando novamente Julia nos braços,
desistiu da sua busca pelas fotografias. Encontrava-se agora numa missão
completamente diferente.
Sem se deixar demover pelo telefone que tocava na cozinha, ou pelos
acordes de “Message in a Bottle” que vinham de tempos a tempos do
iPhone de Julia, Simon continuou a beijá-la, mantendo-a sentada ao seu
colo no sofá da sala.
Continuava frígida. Tolerava os avanços dele, mas na realidade mal os
sentia, mantendo os braços e o corpo moles. Julia nunca gostara de sentir a
língua de Simon na sua boca. Nunca gostara de sentir nada dele na sua
boca. Agora, contorcia-se entre os seus braços, mas o seu desconforto
estimulava-o. Movendo a língua pela boca dela, Simon sentia-se cada vez
mais excitado, o sexo duro contra o fecho das calças.
Beijou-a até ela reunir coragem para cerrar os punhos e lhe esmurrar o
peito, e então Simon decidiu que estava na altura de recorrer a outros
métodos. Quando começou a desabotoar-lhe a camisa, Julia debateu-se.
— Por favor, não faças isto — gemeu. — Por favor, larga-me.
— Vais gostar — disse Simon, com uma risadinha, apertando-lhe as
nádegas e apalpando-a enquanto ela tentava escapar-lhe do colo. — Vou
fazer tudo para que gostes. Depois, largo-te.
A sua boca percorreu o maxilar de Julia e desceu-lhe pelo lado esquerdo
do pescoço, chupando-lhe a pele junto à garganta, sobre as pérolas.
— Julgo que não queres uma repetição da nossa última briga, pois não,
Julia?
Ela tremeu.
— Julia?
— Não, Simon.
— Ainda bem. — Tendo os olhos fechados, Simon não viu a marca do
beijo de Gabriel, no lado direito do pescoço de Julia. Pouco lhe teria
importado. Simon já estava decidido a deixar a sua marca. Uma boa
mordedura para o namorado lá no Canadá ver o que a sua rapariga andara a
fazer. Uma marca que os deixasse quites. Sugando, puxou-lhe o sangue até
à superfície da pele, e depois cravou-lhe os dentes na carne.
Julia deu um grito de dor.
Simon começou a lamber-lhe a pele, saboreando-a, sangue e salgado e
doce e Julia. Quando terminou, recuou para admirar a sua obra. Ela teria de
usar uma camisola de gola alta para esconder aquela marca, e Simon sabia
que Julia não gostava de golas altas. Era uma marca monstruosa, vermelha
e zangada. Mostrava o seu grande anel de dentes. Era perfeita.
Julia olhou-o através das suas enormes pestanas, e Simon viu algo
mudar-lhe nos olhos. Debruçou-se para ela em expectativa, lambendo os
lábios. De repente, a palma da mão dela abateu-se-lhe na cara com uma
pancada cruel. Num relâmpago, Julia correu para as escadas, procurando
chegar ao andar de cima.
— Maldita cabra! — rugiu Simon, seguindo-a e alcançando-a facilmente.
Quando Julia estava mesmo a chegar ao último degrau, ele apanhou-a pelo
tornozelo com ambas as mãos e torceu-lhe o pé. Julia caiu de joelhos,
gritando de dor.
— Vou dar-te uma lição que nunca hás de esquecer — ameaçou,
agarrando-a pelo cabelo.
Julia gritou novamente quando ele lhe puxou a cabeça para trás.
Debatendo-se, em desespero, pontapeou-o furiosamente com o pé que
não estava magoado e atingiu-o milagrosamente entre as pernas. Simon
largou-lhe o cabelo e caiu escada abaixo. Então, Julia coxeou até ao seu
quarto e trancou a porta, enquanto o ouvia contorcer-se de dor.
— Espera até te pôr as mãos em cima, cabra! — gritava Simon, com as
mãos entre as pernas.
Julia encostou uma cadeira à porta e começou a arrastar a cómoda.
Molduras com fotografias antigas tiniram umas contra as outras sobre a
cómoda enquanto Julia a empurrava, e uma boneca de porcelana caiu ao
chão. Ignorando a dor no tornozelo, Julia coxeou até ao outro lado da
cómoda, e começou a empurrá-la freneticamente com breves tentativas
desesperadas. Simon gritava-lhe ofensas, lutando contra a maçaneta da
porta.
Finalmente, Julia conseguiu encostar a cómoda à porta. Só esperava
conseguir ganhar tempo suficiente para fazer um telefonema antes de
Simon irromper pelo quarto. Coxeou até ao telefone que estava na sua mesa
de cabeceira, mas, com a pressa, atirou-o ao chão.
— Merda!
Pegou no telefone e os seus dedos trémulos marcaram o número do
telemóvel de Gabriel. A chamada foi imediatamente para o voice mail.
Enquanto esperava pelo sinal, o seu perseguidor lançou-se contra a porta.
Horrorizada, Julia viu como a velha porta dava de si, começando a soltar-se
das dobradiças.
— Gabriel, por favor vem já para casa do meu pai. O Simon apareceu
aqui e está a tentar arrombar a porta do meu quarto!
Simon praguejava e roncava, investindo repetidamente contra a porta.
Mal a porta cedesse, bastar-lhe-ia virar a cómoda, e estaria no quarto.
Acabou-se. Estou morta, pensou Julia.
Não conseguia imaginar um cenário em que pudesse escapar sem sofrer
danos físicos sérios ou pior. Compreendendo que não podia esperar nem
mais um segundo, largou o telefone e abriu a janela, preparando-se para
rastejar para o telhado, de onde teria, possivelmente, de saltar. Quando
estava a tentar trepar para o parapeito, o jipe de Gabriel entrou na rampa a
chiar. Julia viu-o sair do carro e atravessar o relvado a correr. Gabriel
chamava-a, gritando, e Simon praguejava. Passos rápidos, ligeiros
reverberavam da escada, e seguiram-se sons de uma luta corpo a corpo e
uma torrente de insultos. Algo pesado caiu no chão. Alguém rolou pela
escada.
Julia arrastou-se até à sua porta quase destruída, esforçando-se por ouvir.
Os ruídos pareciam vir agora do exterior. Coxeou novamente para a janela,
e viu Simon deitado na relva. Continuava a praguejar e tinha uma mão a
cobrir o nariz. Arquejando, Julia viu-o levantar-se, cambaleando, sangue
escorrendo-lhe da cara. Num piscar de olhos, o sangue do nariz de Simon
misturou-se com sangue da sua boca, quando o gancho direito de Gabriel
lhe rebentou o lábio, fazendo saltar alguns dentes.
— Imbecil! — Simon cuspiu os dentes e lançou-se contra Gabriel.
Embora em desvantagem, conseguiu atingir Gabriel com um murro no
peito.
Gabriel desequilibrou-se, vacilou. Simon deu mais um passo à frente,
tentando aproveitar o momento de fraqueza do seu adversário. Recuperando
depressa, Gabriel atingiu o estômago de Simon com um murro da mão
direita e outro da esquerda. Contorcendo-se de dor, Simon caiu de joelhos.
Gabriel endireitou os ombros devagar e fez o pescoço estalar, virando-o
para o lado. Parecia bastante descontraído, com o seu casaco de tweed e a
sua camisa Oxford. Dir-se-ia que estava a caminho de uma reunião na
faculdade, e não a dar uma sova ao filho de um senador de Filadélfia.
— Levanta-te — ordenou Gabriel, numa voz que arrepiou Julia.
Simon gemeu.
— Eu disse levanta-te! — Gabriel estava de pé ao lado de Simon, como
um anjo de vingança, lindo e terrível e sem misericórdia.
Como Simon não se moveu, Gabriel agarrou-o pelo cabelo, puxando-lhe
a cabeça para trás.
— Se pensares sequer em voltar a aproximar-te dela, mato-te. Só estás
vivo, neste momento, porque a Julianne ficaria perturbada se me visse ir
para a prisão. E não vou deixá-la sozinha depois do que lhe fizeste, seu
cabrão tarado. Se uma fotografia ou um vídeo de uma mulher parecida com
ela acabar na internet ou num jornal, vou à tua procura. Já tive contas a
ajustar com uns quantos sulistas de Boston e posso gabar-me de ter
sobrevivido. Por isso, não penses que hesitarei em esmagar-te o crânio da
próxima vez.
Gabriel endireitou-se e, com um golpe da mão esquerda, desfez o queixo
do seu adversário. Simon tombou para o chão, onde permaneceu
absolutamente imóvel. Tirando um lenço do bolso das suas calças de lã,
Gabriel limpou calmamente o sangue que tinha nas mãos. Nesse momento,
Julia apareceu à porta da frente, e coxeou ao seu encontro.
— Julia! — Segurou-a nos braços quando ela estava prestes a cair das
escadas. — Estás bem?
Fê-la sentar-se no chão, encostando-a ao seu peito.
— Julia! — Puxou-lhe o cabelo para trás, para poder examiná-la. Tinha
os lábios vermelhos e inchados, arranhões no pescoço, um olhar
transtornado, e seria aquilo… uma enorme mordedura?
Aquele maldito animal mordeu-a!
— Estás bem? Ele…? — Gabriel inspecionou-lhe a roupa, receando o
que poderia encontrar. Mas não, as roupas não estavam rasgadas, e Julia
estava, graças a Deus, vestida, embora tivesse a camisa desabotoada.
Fechando os olhos, Gabriel agradeceu a Deus por não ter chegado nem
um minuto mais tarde. Nem queria pensar no que poderia ter encontrado.
— Vem comigo — disse com firmeza, despindo o casaco e colocando-o
sobre os ombros de Julia. Abotoou-lhe rapidamente a camisa e carregou-a
até ao carro, sentando-a e fechando a porta.
— Que aconteceu? — perguntou, ao sentar-se junto dela. Julia agarrava o
tornozelo magoado e balbuciava para consigo.
— Julia? — Não obtendo resposta, Gabriel estendeu a mão para lhe
afastar o cabelo dos olhos.
Julia encolheu-se e chegou-se para a porta.
Ele ficou paralisado.
— Julia, sou eu. O Gabriel. Vou levar-te para o hospital, está bem?
Julia não deu sinal de o ter ouvido. E não tremia nem chorava. Está em
choque, pensou Gabriel, pegando no telefone.
— Richard? A Julia não está bem. — Fez uma pausa e olhou para ela. —
O ex-namorado dela apareceu e atacou-a. Vou levá-la para o hospital de
Sunbury. Sim, podes ir lá ter connosco, se quiseres. Até já.
Olhou-a novamente, tentando estabelecer contacto visual.
— O Richard vai encontrar-se connosco no hospital de Sunbury. Vai
telefonar a um amigo seu que é médico.
Não conseguindo uma reação de Julia, procurou o número da Estação dos
Bombeiros de Selinsgrove. Deixou uma mensagem urgente para Tom,
explicando o que sucedera e dizendo que ia levar Julia para o hospital.
A culpa é do maldito do pai dela. Por que raio foi deixá-la sozinha?
— Esbofeteei-o. — A voz de Julia, aguda e estranha, interrompeu-lhe os
pensamentos.
— Fizeste o quê?
— Ele beijou-me… eu esbofeteei-o. Peço desculpa. Peço muita desculpa.
Não volto a fazê-lo. Não queria beijá-lo.
Naquele momento terrível, Gabriel sentiu-se grato por ter de levar Julia
ao hospital. Se não precisasse de cuidar dela, teria dado meia-volta para ir
acabar com Simon. Para acabar com ele de vez.
Ela começou a dizer as coisas mais estranhas. Murmurava a respeito de
ele a beijar e falava em Natalie, e depois algo sobre Gabriel já não a querer
porque ela fora marcada e porque seria uma porcaria de queca…
Que lhe fez ele?
— Chhhh, Beatriz. Olha para mim. Beatriz?
Foram precisos alguns instantes para que o nome de outros tempos
ganhasse sentido para ela, mas quando isso aconteceu, Julia encarou-o, e o
seu olhar aturdido focou-se, aos poucos, no rosto de Gabriel.
— Não tens culpa de nada disto. Está bem? Não tens culpa que ele te
tenha beijado.
— Não queria trair-te. Desculpa — murmurou.
O tom em que ela falava, o pânico nos seus olhos… Gabriel engoliu bílis
amarga.
— Julia, não me traíste. Está bem? E fico contente por lhe teres batido.
Ele merecia isso e muito, muito pior. — Gabriel abanou a cabeça,
perguntando-se, horrorizado, o que de facto acontecera antes da sua
chegada.
Quando chegou ao hospital, Richard encontrou o seu filho e Julia na sala
de espera. Gabriel afagava-lhe o cabelo e falava-lhe em voz baixa. Era uma
cena terna, mas o nível de intimidade entre os dois surpreendeu-o.
Surpreendeu-o muito.
Enquanto esperavam que o seu amigo chegasse, Richard examinou
cuidadosamente o tornozelo de Julia. Ela deixou escapar um grito. Richard
olhou de viés para o filho, que mordia os nós dos dedos para controlar as
suas reações.
— Penso que o teu tornozelo não está partido, mas não há dúvida de que
sofreu uma lesão. Gabriel, porque não vais buscar umas chávenas de chá
para tomarmos, e uns biscoitos, talvez?
Gabriel tirou os dedos da boca.
— Não vou deixá-la.
— É só por um minuto. Quero falar com a Julia.
Gabriel anuiu com relutância e desapareceu na direção da cafetaria.
Richard não pôde deixar de reparar no pescoço de Julia. A marca da
dentada era evidente, a marca do beijo não tanto. Os seus olhos pousaram
no lugar onde o filho estivera pouco antes. A marca do beijo não era
recente; teria um dia ou dois. A relação entre Gabriel e Julia era,
obviamente, mais íntima do que Richard supusera.
— A Grace fazia voluntariado neste hospital, sabias?
Julia anuiu.
— Ao longo dos anos, passou por muitas unidades, mas a maior parte do
seu trabalho foi com vítimas de maus-tratos. — Richard suspirou. —
Testemunhou muitas situações tristes, algumas das quais envolvendo
crianças. Alguns desses casos terminaram com fatalidades.
Olhou Julia nos olhos.
— Vou dizer-te o que a Grace costumava dizer aos seus pacientes. Não
tens culpa do que aconteceu. Não importa o que fizeste ou não fizeste, não
merecias isto. E neste momento, não consigo lembrar-me de outra altura em
que tenha sentido mais orgulho do meu filho.
Julia olhou para o seu tornozelo magoado, permanecendo calada.
Passados instantes, um homem asiático de aspeto simpático veio ter com
eles.
— Richard — disse, estendendo a mão.
Richard pôs-se imediatamente de pé para cumprimentar o amigo.
— Stephen, quero apresentar-te a Julia Mitchell. É uma amiga da família.
Julia, este é o doutor Ling.
Stephen anuiu e deu instruções a uma enfermeira para que acompanhasse
Julia até uma sala de observação. Seguiu-as pouco depois, tendo garantido a
Richard que trataria dela como se fosse sua própria filha.
Sabendo que Julia se encontrava em boas mãos, Richard decidiu ir ter
com o filho à cafetaria. Mal saiu para o corredor, ouviu Gabriel a discutir
com Tom Mitchell. Em voz alta.
— Acho que sei melhor do que tu avaliar o caráter de uma pessoa. —
Tom falava junto à cara de Gabriel, tentando intimidá-lo fisicamente, mas
Gabriel fazia-lhe frente.
— Bem, obviamente não sabe, senhor Mitchell, ou eu não teria precisado
de arrastar aquele animal da sua casa antes que ele violasse a sua filha na
porra do seu próprio quarto.
— Meus senhores, estamos num hospital. Vão falar lá para fora. —
Richard aproximou-se, olhando-os severamente.
Tom cumprimentou brevemente o seu amigo, depois voltou-se para
Gabriel.
— Fico contente por a Julia estar bem. E se foste tu que a salvaste, estou
em dívida para contigo. Mas acabei de receber um telefonema de um agente
da polícia a dizer-me que deste uma sova ao filho do senador Talbot. Como
hei de saber se não foste tu a começar isto tudo? Tu é que és o drogado!
— Faço um teste de drogas. — Os olhos de Gabriel faiscavam. — Não
tenho nada a esconder. Em vez de se preocupar com o filho do senador, não
acha que devia estar um bocadinho mais preocupado com a sua filha?
Proteger a Julianne era tarefa sua. A sua tarefa como pai. E tem feito uma
bela merda de trabalho ao longo da vida dela. Valha-me Deus, Tom. Como
pôde deixá-la voltar para casa da mãe, quando ela era criança?
Tom cerrava os punhos com uma tal força que parecia prestes a rebentar
os vasos sanguíneos das suas mãos.
— Não sabes do que estás a falar, por isso o melhor é fechares o bico. É
preciso teres lata para me dares lições a respeito da minha filha. Não passas
de um viciado em coca com uma história de violência. Não te aproximes
dela, ou mando-te para a prisão.
— Não sei do que estou a falar? Ora, Tom, deixe de enfiar a cabeça na
sua merda! Estou a falar de todos os tipos que entravam e saíam a toda a
hora do apartamento em St. Louis, a comerem a sua ex-mulher à frente da
sua filha. E não fez absolutamente nada. Foi buscá-la antes de ela entrar
para as estatísticas dos maus-tratos infantis, e depois entregou-a outra vez à
mãe. Porquê? Era uma delinquente de nove anos de idade? Demasiado
carente, talvez? Ou você é que estava muito ocupado a ser comandante dos
bombeiros?
Tom lançou a Gabriel um olhar de puro ódio. Teve de apelar a todo o seu
autocontrolo para se impedir de o esmurrar ou de ir buscar a caçadeira à
carrinha para lhe dar um tiro. Mas não ia fazer nem uma coisa nem outra
junto a uma sala de espera cheia de testemunhas. Em vez disso, dirigiu mais
alguns insultos a Gabriel e caminhou pesadamente até à receção, para tratar
do pagamento da conta do hospital.
Quando Julia regressou, de muletas, Tom já estava mais calmo. Deixou-
se ficar à porta do serviço de urgências, consumido pela culpa.
Gabriel foi imediatamente ter com Julia, franzindo o sobrolho ao ver o
seu tornozelo ligado.
— Estás bem?
— Não está partido. Obrigada, Gabriel. Não sei o que teria… — Engoliu
as palavras, lágrimas rolando-lhe dos olhos pela primeira vez nessa noite.
Gabriel pôs-lhe um braço em redor dos ombros e beijou-a
carinhosamente na testa.
Tom assistiu àquele momento partilhado entre a sua filha e o violento
mas valente marginal, e foi ter com Richard. Os dois amigos conversaram
brevemente antes de apertarem as mãos.
— Jules? Queres vir para casa? O Richard diz que tem muito gosto em
receber-te em sua casa, se preferires. — Tom arrastou os pés, sentindo-se
desconfortável.
— Não posso ir para casa. — Julia deixou Gabriel e abraçou o pai. Com
os olhos rasos de água, Tom sussurrou-lhe um pedido de desculpas ao
ouvido, e foi-se embora.
Richard despediu-se do casal, deixando Julia a enxugar as lágrimas.
Gabriel voltou-se imediatamente para ela.
— Passamos pela farmácia a caminho da casa do Richard. De certeza que
a Rachel tem roupa para te emprestar, ou posso emprestar-te algumas coisas
minhas. A não ser que queiras passar por casa para ires buscar a tua mala.
— Não consigo lá voltar — disse Julia, num fio de voz, encolhendo-se.
— E não terás de voltar.
— E ele?
— Já não tens de te preocupar com ele. A polícia já foi buscá-lo.
Julia olhou-o nos olhos e quase se perdeu na ternura e na preocupação
que viu neles.
— Amo-te, Gabriel.
A princípio, Gabriel não reagiu às suas palavras, limitando-se a olhá-la
como se não a tivesse ouvido. Depois, a sua expressão suavizou-se. Puxou-
a para si, muletas e tudo, e beijou-a na cara, sem dizer uma palavra.
Capítulo Vinte e Oito

D epois do jantar, Scott fora visitar um amigo. De regresso a casa, ficou


chocado ao encontrar dois carros de polícia na rampa. A agente Jamie
Roberts estava a interrogar Julia na sala de estar, enquanto o agente Ron
Quinn interrogava Gabriel na sala de jantar. Richard já prestara o seu
depoimento.
— Alguém me faz o favor de explicar o que fazem estes polícias cá em
casa? Que foi que o Gabriel fez agora? — perguntou Scott, ao entrar na
cozinha, olhando para a irmã e o pai.
Aaron foi ao frigorífico buscar uma Samuel Adams. Abriu-a e passou-a a
Scott, que a aceitou de boa vontade.
— O Simon Talbot agrediu a Julia.
Scott quase cuspiu a cerveja.
— O quê? E ela está bem?
— O filho da mãe mordeu-a — disse Rachel. — E quase lhe partiu o
tornozelo.
— Mas ele… — Scott queria ir direito ao assunto, mas não conseguia
articular as palavras.
Rachel abanou a cabeça.
— Perguntei à Julia. Talvez tenha feito mal, mas perguntei. E ela disse
que não.
Todos suspiraram de alívio.
Scott pousou a cerveja no balcão com uma forte pancada.
— Bem, onde está ele? Vamos lá, Aaron. Alguém tem de lhe dar uma
lição.
— O Gabriel já tratou disso. O Ron disse-me que tiveram de levar o
Simon para o hospital para lhe coserem a boca. O Gabriel desfez-lhe a cara
— contou Aaron.
As sobrancelhas de Scott arquearam-se.
— O Professor? Porque havia ele de fazer isso?
Aaron e Rachel trocaram um olhar entendido.
— Mesmo assim, gostava de fazer uma visita ao parvalhão. — Scott
estalou os nós dos dedos da sua mão direita. — Só para lhe dar uma
palavrinha.
Aaron abanou a cabeça.
— Dás-te conta do que estás a dizer? Tu és promotor público; ele é filho
de um senador. Não podes deitar a mão a este tipo. Além disso, o Gabriel
deu conta de tudo. O Simon vai ser detido mal tenha alta do hospital.
— Ainda não me explicaram por que havia o Gabriel de sujar as suas
lindas mãozinhas por causa da Julia. Mal a conhece.
Rachel debruçou-se sobre a ilha da cozinha, aproximando-se do irmão.
— Estão juntos.
Scott piscou os olhos como um semáforo preguiçoso.
— Diz lá outra vez.
— Exatamente o que ouviste. Estão… juntos.
— Merda do caraças. Que raio faz a Julia com ele?
Antes que alguém pudesse oferecer uma hipótese, Gabriel entrou na
cozinha. Olhou para as caras preocupadas em redor e franziu o sobrolho.
— Onde está a Julianne?
— Ainda a ser interrogada. — Richard sorriu ao seu filho mais velho,
dando-lhe uma palmadinha no ombro.
— Estou muito orgulhoso de ti, pelo que fizeste pela Julia. Estamos todos
muitos gratos por teres chegado a tempo.
Gabriel contraiu os lábios e anuiu desconfortavelmente.
— Mereces uma medalha por teres partido a cara ao Simon Talbot. Mas
mereces uma sova por andares metido com a Julia. Não serves para ela.
Nem de longe. — Scott pousou a cerveja e voltou a estalar os dedos.
Gabriel olhou para o irmão com frieza.
— A minha vida pessoal não é da tua conta.
— Agora, é. Que tipo de professor anda a comer as alunas? Não tens já
mulheres que te cheguem?
Rachel respirou fundo e caminhou devagar para a porta, não querendo
assistir ao iminente choque de titãs.
Gabriel cerrou os punhos junto ao tronco, deu um passo na direção do
seu irmão maior mas mais novo.
— Voltas a falar assim da Julianne, e nós dois vamos trocar mais do que
palavras.
— Vamos lá, rapazes, chega desta treta de Caim e Abel — interveio
Aaron. — Temos polícias na sala, e estão a assustar a vossa irmã. — Pôs-se
entre os dois homens exaltados, colocando ao de leve uma mão sobre o
peito de Scott.
— A Julia não é o tipo de rapariga para te divertires e depois largares. É
o tipo de rapariga com quem um homem se casa — disse Scott, por sobre o
ombro de Aaron.
— E achas que não sei isso? — ripostou Gabriel, com uma hostilidade
evidente.
— Não te parece que já teve a sua quota-parte de patifes?
Richard ergueu uma mão.
— Scott, basta.
Scott olhou para o pai, perplexo.
— O Gabriel salvou a Julia do seu agressor — disse Richard, anuindo
ligeiramente.
Scott fitou o pai como se ele lhe tivesse dito que a terra era plana, e que
todos, à exceção dele, já o sabiam.
Rachel aproveitou a oportunidade, ansiosa por mudar de assunto.
— A propósito, Gabriel, não sabia que conhecias a Jamie Roberts.
Andaste com ela na escola?
— Sim.
— Eram amigos?
— Vagamente.
Todos os olhos se voltaram para Gabriel, que girou sobre os calcanhares
e desapareceu.
Richard esperou alguns minutos para que a tensão se dissipasse, e depois
concentrou a sua atenção em Scott.
— Quero dar-te uma palavra, por favor. — A sua voz era calma, mas
firme.
Os dois homens subiram a escada para o piso superior e entraram no
escritório de Richard. O pai fechou a porta.
— Senta-te. — Apontou uma cadeira junto à secretária. — Quero falar
contigo a respeito da tua atitude para com o teu irmão.
Scott sentou-se diante do pai, preparando-se para o que havia de vir.
Richard só chamava os filhos ao escritório para as conversas mais graves.
Richard apontou para uma reprodução de O Regresso do Filho Pródigo,
de Rembrandt, orgulhosamente exibida numa parede.
— Lembras-te da parábola por detrás deste quadro?
Scott anuiu lentamente. Estava metido em sarilhos.

J ulia acordou em sobressalto, arquejando.


Foi só um pesadelo. Foi só um pesadelo. Escapaste.
Precisou de alguns segundos para conseguir controlar a respiração. Mas
ao compreender que estava no quarto de hóspedes dos Clarks, e não
debaixo de Simon, no chão do seu antigo quarto, conseguiu relaxar. Um
pouco.
Acendeu o candeeiro. A luz expulsou a escuridão do quarto, mas não a
animou. Pegou no copo de água e nos analgésicos que Gabriel lhe deixara
quando a ajudara a deitar-se, horas antes. Aninhara-se ao seu lado,
completamente vestido, e abraçara-a até ela adormecer. Mas já não estava
ali.
Preciso dele.
Mais do que dos analgésicos ou da luz ou do ar, Julia precisava de
Gabriel, precisava de sentir o corpo dele junto ao seu, precisava de ouvir a
sua voz profunda murmurar-lhe palavras de conforto. Era a única pessoa
que podia fazê-la esquecer o que acontecera. Precisava de lhe tocar.
Precisava de o beijar para apagar o pesadelo.
Tomou os comprimidos para aliviar a dor no tornozelo. Coxeou até ao
quarto de Gabriel para aliviar a dor que tinha no coração. Silenciosa como
um rato, certificou-se de que não vinha qualquer ruído dos outros quartos.
Quando teve a certeza que não seria surpreendida, abriu cuidadosamente a
porta e fechou-a atrás de si.
Precisou de alguns instantes para que os seus olhos se adaptassem à
semiescuridão. Gabriel não fechara as persianas e estava deitado naquele
que era habitualmente o lado de Julia na cama. Julia perguntou-se se faria
sentido dizer que aquele era o seu lado da cama. Coxeou até ao outro lado,
puxou os cobertores para trás e pôs um joelho sobre o colchão.
— Julianne. — O sussurro de Gabriel sobressaltou-a, e ela tapou a boca
com uma mão para se impedir de gritar. — Para.
Ficou paralisada. Quando finalmente conseguiu pensar, baixou a cabeça.
— Eh… Desculpa. Não devia ter vindo incomodar-te. — Uma onda de
vergonha invadiu-a. Virou-se lentamente para a porta, pestanejando para
conter as lágrimas.
— Não é isso. Espera.
Julia viu-o sair de entre os lençóis e pôr-se de pé, de costas voltadas para
ela. Estava nu, e a luz que atravessava as persianas espalhava-se-lhe pelas
costas. Era uma espécie de ilusão ótica, os delicados pontos de luz
dançando sobre a sua forma atlética. Julia podia distinguir-lhe as omoplatas
e a coluna, e os músculos ao fundo das costas, onde a pele se esticou
quando ele levou uma mão ao chão para apanhar as calças de pijama.
E claro, umas pernas e um traseiro terrivelmente atraentes…
Depois de vestir as calças, voltou-se para Julia, o peito maravilhosamente
esculpido e os ombros perfeitos na penumbra, o dragão tatuado ligeiramente
apagado mas ainda assim presente.
— Agora podes enfiar-te na cama ao meu lado. — Deu uma risadinha. —
Achei que te ia pôr nervosa se me encontrasses nu.
Julia revirou os olhos. Não gostava quando ele se ria dela, mas podia ver
aonde ele queria chegar.
(Ou melhor, não via exatamente, mas compreendia o que ele queria
dizer.)
— Vem cá — murmurou Gabriel, estendendo-lhe um braço e puxando-a
para si, de tal modo que, ao deitarem-se, ela pousou naturalmente a cabeça
no peito dele.
— Tencionava ir ver como estavas. O despertador teria tocado daqui a
uns quinzes minutos. Como está o tornozelo?
— Dói-me.
— Tomaste os comprimidos que te deixei?
— Sim, mas ainda não fizeram efeito.
Gabriel virou-se cuidadosamente, para conseguir alcançar-lhe a mão e
beijar-lhe os dedos.
— A minha pequena guerreira. — Afagou-lhe o cabelo, acariciando-lhe
as ondas. — Não estavas a conseguir dormir?
— Tive um pesadelo.
— Queres falar sobre isso?
— Não.
Estreitou-a um pouco mais, só para lhe indicar que percebera e que, se
ela mudasse de ideias, estava pronto a escutá-la.
— Beija-me — pediu Julia.
— Depois do que aconteceu, pensei que não ias querer que te tocasse.
Julia virou a cara de modo a que os seus lábios tocassem os dele, pondo
fim à conversa.
Gabriel beijou-a suave e delicadamente, mal movendo os lábios. Sabia
que a boca de Julia ainda estava magoada, e amaldiçoou Simon em
pensamento por a ter posto naquele estado. Mas Julia não estava satisfeita.
Queria bebê-lo, queria que o fogo dele a envolvesse, para conseguir não
pensar nem sentir mais nada.
Abrindo a boca, Julia procurou com a língua o lábio inferior de Gabriel,
saboreando a sua doçura. Depois, a sua língua encontrou a dele, dançando e
vibrando e tropeçando nela. Os dedos de Gabriel retesaram-se entre o seu
cabelo, puxando-lhe delicadamente a cabeça para trás. Agora, a língua dele
empurrava a sua, entrando-lhe na boca e acariciando-a.
Aquele afeto sem pressa fez Julia gemer de prazer. Enquanto o beijava,
não pensava em mais nada. Protegendo o tornozelo magoado, enfiou as
mãos no cabelo de Gabriel, puxando-o e revolvendo-o.
Gabriel gemeu, mas não parou. Julia sentiu o corpo dele endurecer junto
ao seu, empurrando-lhe a coxa nua. Gabriel fez a sua mão deslizar pelo lado
do corpo de Julia, pairando sobre um seio antes de lhe tocar as costelas e a
anca. Gostava de a ver com o top de alças e os calções de ioga de Rachel,
que lhe realçavam as formas e lhe expunham a pele pálida dos ombros e do
peito. Era linda, mesmo naquela meia-luz. De repente, Julia estava de costas
e ele encontrava-se debruçado sobre ela, apoiado nos antebraços. Pôs-lhe
um joelho entre as pernas e ela abriu-as sem hesitar.
Julia queria mais. Precisava de mais. Arquejava, recusando-se a soltar-lhe
o cabelo, mantendo as suas bocas juntas.
Ele respondeu acariciando-lhe os seios por sobre o top, os seus longos
dedos pressionando-a apenas o suficiente para a excitarem e a provocarem,
mas não o bastante para a satisfazerem. A certa altura, Gabriel recuou,
apoiando-se num antebraço e fechando os olhos. Era a oportunidade de
Julia. Sem sequer pensar, agarrou a parte de baixo do top e tentou despi-lo.
Gabriel segurou-lhe uma das mãos, impedindo-a. Recomeçou a beijá-la,
e pouco depois já as suas línguas se provocavam mutuamente, os hálitos
quentes e húmidos. Julia libertou as mãos quando Gabriel começou a
acariciar-lhe a coxa, pondo a perna dela em redor da sua anca e
pressionando-a um pouco mais. Agora que tinha as mãos livres, nada
impedia Julia de se desembaraçar do seu top. Levou novamente as mãos à
bainha e tentou despir-se, contorcendo-se sob o corpo de Gabriel.
As mãos dele seguraram as suas.
— Julia — arquejou, quase sem fôlego. — Importas-te… de parar… por
favor? — Sentou-se nos calcanhares, ajoelhando-se ao lado dela, tentando
acalmar a respiração.
— Não queres? — Julia falara-lhe com a voz suave da inocência, e o
coração de Gabriel apertou-se.
Ele abanou a cabeça e fechou os olhos. À medida que assimilava o que
acabara de se passar, Julia sentia-se cada vez mais perturbada. Todas as
frases cruéis que Simon lhe dissera um dia ecoaram-lhe nos ouvidos.
És uma cabra estúpida. Vais ser uma porcaria de queca. És frígida. Mais
nenhum homem te vai querer.
Julia rolou para o lado, esquivando-se a Gabriel, e pousou
cuidadosamente os pés no chão. Queria chegar à porta antes que um soluço
lhe escapasse da garganta. Mas antes que conseguisse apoiar todo o seu
peso no pé saudável, dois braços fortes e compridos rodearam-lhe a cintura,
pelo que se viu retida.
Puxando-a para trás, Gabriel sentou-se, ficando Julia entre os seus
joelhos, as pernas de ambos pendendo juntas da beira da cama. De costas
coladas ao peito nu de Gabriel, Julia sentia-lhe o coração a bater depressa, a
respiração ofegante junto aos seus ombros. Era uma sensação estranha mas
especialmente erótica.
— Não vás — sussurrou ele, beijando-a ao de leve na orelha. Inclinou-se
para a frente e pousou a boca no lado direito do pescoço de Julia, roçando-
lhe o nariz na pele.
Julia fungou.
— Não queria aborrecer-te. Estás muito magoada? — Como ela não
respondia, beijou-lhe novamente a orelha e estreitou-a um pouco mais nos
seus braços.
— Não fisicamente — conseguiu Julia articular, abafando um soluço.
— Diz-me — murmurou Gabriel. — Diz-me como te magoei.
Julia sacudiu as mãos, num gesto de frustração.
— Disseste que me desejavas, mas quando eu finalmente ganho coragem
e me atiro para os teus braços, rejeitas-me!
Gabriel inspirou com força, a sua respiração produzindo um assobio
junto ao ouvido de Julia. Ela sentiu os braços dele contraindo-se em redor
do seu corpo, os seus tendões pressionando-lhe a pele. E apercebeu-se de
algo que, mais abaixo, se lhe colava às nádegas.
— Acredita, Julianne, não estou a rejeitar-te. Claro que te desejo. És
linda. Tão encantadora.
Curvou-se para a beijar na cara.
— Já falámos sobre isto. Em breve teremos o nosso momento. Queres
mesmo que a nossa primeira vez seja esta noite?
Julia hesitou, e essa resposta bastou para Gabriel.
— Querida, mesmo que estivesses preparada, eu não ia fazer amor
contigo esta noite. Estás ferida, o que significa que vais estar incapacitada
para certas atividades durante algum tempo. Preciso de ter a certeza que
estás totalmente recuperada antes de explorarmos… eh… várias posições.
Julia podia ouvir o sorriso que lhe coloria as palavras. Ele estava a tentar
fazê-la rir.
— Mas a principal razão é isto. — Inclinou-se para o lado esquerdo,
passando delicadamente um dedo por sobre a ferida da mordedura.
Julia encolheu-se, e uma chama de raiva reacendeu-se no peito de
Gabriel. Depois de respirar fundo várias vezes para controlar as suas
emoções, começou a beijá-la em redor da marca, uma e outra vez, até Julia
suspirar e relaxar a cabeça sobre o seu ombro.
— Estiveste em estado de choque ainda há poucas horas. Eu não seria um
bom amante se retirasse partido da tua vulnerabilidade. Faz sentido?
Julia refletiu por um instante, e anuiu lentamente.
— Esta noite, passaste por uma situação assustadora. Claro que queres
sentir-te segura e acarinhada. Não é nenhum crime, Julianne. E quero
ajudar-te, meu amor, quero muito. Mas há diferentes formas de conseguir
isso. Não precisas de te despir para teres a minha atenção. Já a tens. Toda.
Não tens de fazer sexo comigo para te sentires desejada.
— Como, então? — A voz de Julia era um sussurro hesitante.
— Assim. — Gabriel beijou-a no pescoço e fê-la voltar-se, de modo a
que ficasse deitada de costas.
Deitou-se ao seu lado, apoiado num cotovelo, mergulhando o olhar nos
grandes olhos tristes de Julia. Levando-lhe a mão ao cabelo, começou a
tocar-lhe, acariciando-a gentilmente, sem pressa. Afagou-lhe a cara, para
lhe enxugar as lágrimas. Percorreu-lhe a linha do maxilar, o queixo, as
sobrancelhas, descendo em seguida para o pescoço e avançando até ao
ombro.
Os seus dedos deslizaram-lhe por entre os seios, fazendo-a arquejar, e
progrediram até ao abdómen, onde lhe desenharam formas sobre a pele nua.
Pousando, depois, a palma da mão sobre o ventre de Julia, Gabriel
debruçou-se e começou a beijar-lhe o cimo dos seios.
Quando parou, ela tinha os olhos fechados.
— Querida?
Julia pestanejou e abriu os olhos.
— Nesta cama, só estamos nós. Tu e eu. Nada mais me importa para
além de ti. — A sua mão deslizou por sobre a curva da cintura de Julia e
desceu até à anca esquerda, onde a segurou delicadamente. — Se quiseres
voltar para o teu quarto, acompanho-te até lá. Se quiseres dormir sozinha,
deixo-te tranquila. Só preciso que me digas o que queres, e desde que esteja
ao meu alcance, é o que farei. Mas por favor, querida, não me peças que
faça amor contigo. Não esta noite.
Julia ponderou por instantes e engoliu ruidosamente em seco.
— Quero ficar. Não durmo muito bem sem ti.
— Eu quase não durmo sem ti. Fico contente por o sentimento ser mútuo.
— Beijou-a nos lábios e a sua mão deslizou-lhe ao de leve por sobre a coxa
e até à curva da nádega. — Sabes que te adoro, não sabes?
Julia anuiu e tocou-lhe o peito, enquanto ele se inclinava para a frente,
roçando-lhe os lábios no pescoço, tendo o cuidado de evitar as marcas.
— Desculpa-me por te ter feito isto. — Gabriel rodeou a marca esbatida
do beijo.
Julia leu culpa nos olhos dele.
— Não fales assim, Gabriel. Isto foi diferente.
— Tenho de ser mais cuidadoso contigo.
Ela suspirou.
— Tu és muito cuidadoso comigo.
— Volta-te, querida.
Julia fitou-o, intrigada, mas deitou-se de bruços, e pôs a cabeça de lado
para poder olhá-lo, confiando inteiramente nele.
Gabriel ajoelhou-se ao seu lado e afastou-lhe o cabelo da cara.
— Tenta relaxar. Quero que te sintas tão linda como és.
Começou devagar, massajando-a suavemente com ambas as mãos,
explorando cada centímetro do seu corpo, da cabeça aos pés. Depois deitou-
se aos pés dela e ergueu-os, prestando especial atenção às curvas e aos
calcanhares.
Julia gemeu baixinho.
Gabriel riu-se.
— Lembras-te de quando ficaste comigo depois daquele seminário
desastroso?
Julia anuiu, mordendo o lábio.
As sobrancelhas de Gabriel uniram-se.
— Estavas muito desconfiada de mim. Claro que tinhas razão para
estares desconfiada, mas já nessa altura eu tinha decidido que… que estás
em segurança comigo. Prometo-te.
Depois de lhe massajar os pés, Gabriel percorreu-lhe o corpo em sentido
contrário, permitindo que os seus lábios explorassem os locais onde as
mãos tinham estado, beijando, mordiscando, roçando o nariz.
Procurando os olhos dele, Julia viu o afeto que lhe devolviam, e quando
Gabriel se deitou na cama ao seu lado, beijou-o profundamente.
— Obrigada, Gabriel — sussurrou-lhe.
Ele sorriu de satisfação, enrolando-lhe os dedos no cabelo longo.
Foi naquele espaço de paz e segurança que Julia sentiu que o seu
momento chegara. Já haviam acordado em partilhar as suas almas antes de
partilharem os seus corpos. E uma parte de Julia estava cansada de guardar
segredos. De guardar os segredos dele.
Gabriel já lhe revelara partes do seu passado. Porque se retraíra ela até
então? Seria doloroso dizer as palavras em voz alta, mas talvez fosse mais
doloroso ter aquilo por explicar entre eles. Respirou fundo, fechou os olhos
e, sem preâmbulo, começou a falar.
— Conheci-o numa festa, no meu ano de caloira… — Pigarreou e
prosseguiu, num sussurro. — Ele estudava na Universidade da Pensilvânia.
Sabia quem era o seu pai, mas não era isso que me interessava nele.
Gostava dele porque o achava divertido e simpático e porque nos
divertíamos sempre juntos. Naquele primeiro Natal, apareceu em minha
casa, para me fazer uma surpresa. Sabia que eu gostava de coisas italianas,
e então ofereceu-me uma Vespa vermelha pelo Natal. Julia vermelha, foi
assim que lhe chamou.
Gabriel arqueou as sobrancelhas.
— Claro que a minha paixão por coisas italianas vinha de ti. Mas eu já
não tinha esperança de voltar a ver-te. Achava que não te importavas
comigo, e tentei seguir em frente. Os pais dele aprovaram a nossa relação, e
estávamos sempre a ser convidados para ir a Washington visitá-los, ou para
eventos políticos em Filadélfia. Saímos juntos durante alguns meses, mais
como amigos, na verdade, e depois ele disse que queria mais. Concordei.
»Foi a partir daí que as coisas começaram a mudar. Ele queria mais de
tudo, e tornou-se exigente. — Julia corou violentamente na escuridão.
Sentindo-lhe a pele mais quente, Gabriel começou a acariciar-lhe os
ombros.
— Disse que sexo era um direito seu, como meu namorado. Quando eu
disse que não estava preparada, chamou-me frígida. A sua atitude só
reforçou a minha determinação em esperar. Não estava propriamente à tua
espera, mas não queria ser pressionada. Sei que parece um pouco infantil.
— Julianne, de maneira nenhuma se pode considerar infantil que
quisesses ser tu a decidir com quem dormias ou não.
Julia esboçou um sorriso.
— Quanto mais ele insistia, mas eu tentava compensá-lo, cedendo de
outras formas. Era extremamente possessivo. Não gostava de me ver com a
Rachel, provavelmente porque ela não gostava dele. Fiz tudo o que pude
para evitar conflitos com ele. E… hum… ele nem sempre foi amável.
Interrompeu-se, tentando pensar numa forma de contar a parte seguinte.
— Bateu-te? — Gabriel obrigou-se a manter a calma.
— Não exatamente.
— Isso não é resposta, Julianne. Bateu-te?
Sentiu o corpo de Gabriel começar a tremer de raiva. Não ia mentir-lhe,
mas receava o que ele pudesse dizer quando lhe contasse. Assim, escolheu
cuidadosamente as palavras seguintes.
— Deu-me alguns encontrões. Uma vez, a Natalie, a minha companheira
de quarto, teve de o tirar de cima de mim.
— Deves saber que empurrarem-te continua a ser agressão.
Julia desviou o olhar.
— Quero voltar a este assunto — acrescentou Gabriel. — Noutra altura.
— Para te ser sincera, as coisas que ele me dizia eram muito piores do
que qualquer gesto físico que tenha tido. — Riu baixinho. — Na maior
parte do tempo, tratava-me melhor do que a minha mãe. Mas houve
momentos em que teria preferido que ele me batesse. Se me tivesse dado
um murro, tudo teria terminado numa questão de segundos. Foi pior ter
passado tanto tempo a ouvi-lo chamar-me de frígida e de inútil. —
Estremeceu. — Se me tivesse batido, eu podia, pelo menos, ter contado ao
meu pai. Tinha-lhe mostrado a nódoa negra e ele tinha acreditado em mim.
Gabriel sentiu náuseas ao ouvir aquela confissão, e sentiu crescer a sua
raiva contra Simon e contra o pai dela. Apesar do silêncio paciente com que
a escutava, Julia sentia a agitação que o invadia.
— Nunca senti que fosse suficientemente boa para ele. E não tenho
dúvidas de que ele pensava o mesmo. Como eu me recusava a ter sexo, ele
exigia… hum… outras coisas. Mas eu não tinha muito jeito. Ele dizia-me
que se aquilo era uma amostra de como eu seria na cama, então daria uma
péssima queca. — Julia deu mais uma risadinha, brincando novamente com
o cabelo. — Não queria contar-te isto, mas acho que tens o direito de saber,
antes que tenhas uma deceção. Para além de ser frígida, porque havias de
me querer, se nem sequer consigo satisfazer um homem de outras formas?
Gabriel deixou escapar um chorrilho de grosserias que teria chocado as
línguas mais ousadas.
Julia ficou muito quieta, o nariz estremecendo ligeiramente, como um
rato. Ou um coelho.
— Julianne, olha para mim. — Tocou-lhe a cara ao de leve, esperando
que os seus olhares se encontrassem. — Tudo o que ele te disse era mentira.
Tens de acreditar em mim. O seu objetivo era controlar-te.
»Claro que te quero. Olha só para ti! És linda e meiga e inteligente. Sabes
perdoar e és generosa. Talvez não o saibas, mas despertas essas qualidades
em mim. Fazes-me querer ser amável e carinhoso. E quando fizermos amor,
é assim que serei contigo.
Pigarreou, pois a sua voz tornara-se rouca.
— Alguém tão abnegado e apaixonado como tu nunca poderia ser terrível
em qualquer ato sexual. Só precisas de alguém que te faça sentir segura o
suficiente para te expressares. E então tudo virá à superfície. Ele não
merecia ver esse teu lado, e fizeste bem em não lho mostrar. Mas nós somos
diferentes. Na noite passada, daquela vez no museu, e mesmo esta noite,
ainda há pouco, vi a tua paixão. Senti-a. E é de cortar a respiração. Tu és de
cortar a respiração.
Julia encontrou o olhar sincero de Gabriel num enlevo silencioso.
— Disseste-me que acreditavas na redenção — continuou ele. — Então,
prova-o. Perdoa-te a ti própria, seja lá o que for que te envergonha, e
permite-te ser feliz. Porque, na verdade, Julianne, é tudo o que quero para
ti. Quero que sejas feliz.
Ela sorriu e beijou-o, deleitando-se momentaneamente com o seu toque e
as suas palavras. Passado um momento, retraiu-se, sabendo que a pior parte
da sua história ainda estava por contar.
— Eu queria ir estudar para fora, no penúltimo ano do curso. Ele não
queria que eu fosse. Então, candidatei-me sem lhe dizer nada, e só lhe
contei no início do verão. Ficou furioso, mas pareceu-me que acabara por
aceitar.
»Enquanto estive em Itália, escrevia-me uns e-mails impressionantes e
enviava-me fotografias. Dizia-me que me amava. — Engoliu em seco. —
Nunca ninguém me tinha amado.
Respirou fundo.
— Não vim a casa pelo Natal nem no verão, porque estava a frequentar
algumas cadeiras extracurriculares e a viajar um pouco. Quando regressei,
em finais de agosto, a Rachel levou-me às compras, como um presente de
boas-vindas. A Grace tinha-lhe dado algum dinheiro e, entre as duas,
ofereceram-me um vestido lindíssimo e uns sapatos Prada.
Julia corou.
— Hum… Já os viste. Usei-os no nosso primeiro encon… Eh, quero
dizer, daquela vez em que me levaste a comer bife.
Gabriel acariciou-lhe a cara.
— Podes chamar-lhe o nosso primeiro encontro, Julianne. É assim que
penso nessa noite. Embora me tenha portado como um imbecil.
Julia encheu novamente o peito de ar.
— Ele tinha planos elaborados para celebrar o meu aniversário. A Rachel
fez questão de me ajudar a arranjar-me no seu apartamento, antes de me
encontrar com ele no Ritz-Carlton. Mas esqueci-me da minha máquina
fotográfica, por isso resolvi passar pelo meu quarto na residência.
Julia começou a tremer. Cada músculo, cada parte do seu corpo tremia
como se ela estivesse cheia de frio.
Gabriel envolveu-a nos seus braços.
— Não precisas de me contar mais nada. Já ouvi o suficiente.
— Não — disse, numa voz trémula, mas determinada a continuar. —
Preciso de contar a alguém. Nem a Rachel sabe tudo. — Respirou fundo
algumas vezes.
— Abri a porta, e o quarto estava às escuras, à exceção do candeeiro na
secretária da minha colega. Mas a aparelhagem da Natalie estava a tocar.
Closer, dos Nine Inch Nails. Estupidamente, achei que ela se esquecera da
aparelhagem ligada. Ia desligá-la, e foi então que os vi. — Julia parecia
petrificada. Imóvel como uma estátua.
Gabriel esperou.
— O Simon estava a comer a Natalie na minha cama. Fiquei tão chocada
que não consegui dar um passo. A princípio, achei que não podia ser ele. E
depois pensei que não podia ser ela. Mas era mesmo. E…
A voz de Julia não passava agora de um murmúrio.
— A Natalie era minha colega de quarto desde o primeiro ano. Éramos
amigas no liceu. Viram-me ali parada, a olhar para eles como uma idiota. E
ele riu-se, e disse que desde o segundo ano que davam umas quecas. Fiquei
ali porque, para dizer a verdade, não conseguia perceber nada do que ele
estava a dizer. A Natalie veio ter comigo, nua, e perguntou-me porque não
me juntava a eles.
A boca de Julia fechou-se de repente. Mas era tarde de mais. Pronunciara
as palavras. Dissera-as em voz alta. E toda a aflição e o horror que sentira
naquele dia invadiram-na de novo. Ajoelhou-se e encostou a cara ao peito
de Gabriel. Mas não chorou.
Gabriel apertou-a contra si, beijou-lhe a cabeça. Devia ter acabado com
ele quando tive a oportunidade.
Ficou satisfeito por não ter sabido mais cedo, ou teria matado aquele
Simon, quase de certeza. É ele o fornicador de anjos. Queria comer a
minha Julianne como se ela fosse um animal. Só que resolveu praticar
primeiro com a sua colega de quarto.
Ficaram nos braços um do outro enquanto ela tentava libertar-se da
vergonha que sentia, e enquanto ele procurava pôr de lado os seus
pensamentos homicidas. Quando sentiu a pulsação de Julia abrandar,
Gabriel começou a murmurar-lhe ao ouvido. Disse-lhe como a adorava.
Disse-lhe que podia sentir-se segura com ele. Depois perguntou-lhe se
podia falar um pouco mais.
Julia anuiu.
— Querida, lamento muito que tenhas passado por tudo isso. — Abanou
a cabeça. — Também lamento que não tenhas crescido numa casa com um
homem e uma mulher que partilhassem uma cama e que se amassem. Eu
tive essa sorte.
»Sabes como eram o Richard e a Grace, sempre carinhosos um com o
outro, sempre a rirem. Nunca ouvi o Richard levantar a voz à Grace. Nunca
a ouvi fazer-lhe algum comentário mesquinho ou desagradável. Eram o
casal perfeito. E por muito constrangedor que seja pensarmos que os nossos
pais têm uma vida sexual, era óbvio que o Richard e a Grace eram muito
apaixonados.
»Quando o Richard me veio com aquela conversa infame sobre os factos
da vida, citou uma frase do Livro de Oração Comum, um voto que ele fizera
na cerimónia de casamento. «Com este anel te desposo, com o meu corpo te
venero, e com todos os meus bens terrenos te presenteio.»
— Já o ouvi antes. É lindo.
— É mesmo. E no contexto daquela nossa conversa bastante
desconfortável, o Richard explicou-me que este voto significa que o marido
deve fazer amor com a sua mulher, e não apenas usá-la para sexo. Disse que
a ideia expressa no voto é a de que fazer amor é um ato de adoração. O
marido venera a mulher com o seu corpo, amando-a e oferecendo-se e
caminhando com ela para o êxtase.
Gabriel clareou a voz, que enrouquecera.
— Penso que não me engano se disser que o que viste naquele dia foi um
ato predatório e desprezível. Sei que viste coisas semelhantes durante a tua
infância em St. Louis, coisas que nenhuma rapariguinha devia ver. É
possível que tenhas pensado que uma relação sexual é apenas isso… e
talvez tenhas pensado que todos os homens eram como ele, predadores mal-
intencionados que usam e abusam.
»A descrição do Richard era completamente diferente. Disse-me que
fazer amor é um prazer tão apaixonado como os outros, porque o contexto
nos providencia a liberdade e a aceitação para explorarmos os nossos
desejos em todas as suas diferentes formas, desesperados e urgentes, ou
calmos e ternos. O que importa é que seja um ato de respeito e entrega, não
de apropriação ou uso.
Gabriel encostou a boca ao ouvido de Julia, para lhe falar num sussurro.
— Afastei-me muito do estilo de vida do Richard, mas sempre quis o que
ele e a Grace tinham. Quando te disse que tencionava adorar-te com o meu
corpo, falava a sério. Do fundo do coração. Nunca te tirarei nada. E dar-te-
ei tudo o que puder. Na cama e fora dela.
Encostada ao seu peito, Julia sorriu.
— Estamos os dois a começar, e «eis que surgirão coisas novas».
Julia beijou-o suavemente nos lábios, e murmurou-lhe palavras gratas
junto à boca. Aquela declaração reconfortara-a. Não pusera fim à dor nem
apagara as memórias, mas era um alívio saber que Gabriel não a
recriminaria pelas suas fraquezas passadas. Pois, na verdade, do que Julia
mais se envergonhava era de ter permitido que a tratassem tão mal. Por isso
carregara sozinha aquele segredo. Por isso receara expor-se.
— Agora sinto-me ainda mais imbecil por ter brincado a respeito dos
Nine Inch Nails, quando fomos ao Lobby. Não admira que tenhas ficado tão
perturbada quando mencionei aquela canção.
Julia anuiu ligeiramente.
— Assim que chegarmos a Toronto, vou alterar a programação do meu
rádio. Não vou voltar a ouvir aquela música. — Pigarreou. — Amor, não
precisas de falar mais sobre o assunto, se não quiseres. Mas gostava de
saber o que disseste ao teu pai. Devo-te um pedido de desculpas… Desatei
aos gritos com ele no hospital. Disse-lhe coisas que não devia ter dito.
Julia olhou-o, intrigada.
— Disse-lhe que ele não devia ter-te levado de volta para casa da tua
mãe. Que a sua obrigação como pai era proteger-te, e que aí ele falhou.
Julia ficou surpreendida. Ninguém, nem sequer Rachel ou Grace, tinham
confrontado Tom com as suas opções. Ninguém. Uma expressão feliz
desenhou-se no rosto bonito de Julia.
— Não estás zangada comigo? — Agora era Gabriel que parecia
surpreso.
— Não posso estar. Obrigada, Gabriel, por me defenderes. Nunca
ninguém tinha feito isso antes.
Segurou a mão dele entre as suas e beijou-lhe os nós dos dedos
ligeiramente inchados, e os pontos onde a pele ficara esfolada. Aqueles
ferimentos de guerra eram quase tão caros a Julia como os olhos lindos e
expressivos que a olhavam.
— Não contei tudo ao meu pai. Só que apanhara o Simon com a Natalie,
e que já não podia continuar a viver com ela. Arranjei-lhe um problema,
porque o meu pai namora com a mãe dela. Mas ele nunca se queixou.
— Que nobre da sua parte — disse Gabriel, sarcasticamente.
— Passei alguns dias em Selinsgrove, para tentar acalmar-me, e depois o
meu pai levou-me de volta à faculdade. Tirou-me da residência da
universidade e alugou-me um estúdio. Havias de te ter rido, Gabriel. Era
ainda mais pequeno que o apartamento onde moro agora.
— Não me teria rido — retorquiu, como que magoado.
— É que és um bocadinho complicado. Havias de ter odiado aquele
estúdio ainda mais do que odeias o meu apartamento de agora.
— Julianne, não o odeio. Como já disse antes, odeio o facto de lá viveres.
Que aconteceu depois, quando voltaste para a faculdade?
— Escondi-me. Eles começaram a andar juntos, depois daquilo, e eu
tinha medo de os encontrar, por isso evitava todos os lugares onde
pudessem ver-me. Ia às aulas, trabalhava no meu italiano e nas minhas
candidaturas para a pós-graduação, e mantinha-me em casa. Acho que…
me fechei em mim.
— A Rachel disse-me algo parecido.
— Não me portei bem com a Rachel. Depois daquela noite, deixei de
atender as suas chamadas. Nem sequer falei com a Grace, apesar de ela me
ter escrito uma carta linda. Pelo Natal, enviei um postal à tua família, mas
sentia-me demasiado humilhada para explicar o que tinha acontecido. A
Rachel sabe que os apanhei juntos, porque a Natalie acabou por lhe contar.
Mas não sabe que foi tão terrível. E não quero que venha a saber.
— Tudo o que me disseste fica só entre nós.
— Não queria admitir que tinha sido estúpida ao ponto de me pôr
naquela situação. Não queria admitir que tinha cedido ao Simon durante
tanto tempo. Que nem me apercebera de que eles andavam juntos. Queria
fingir que tudo aquilo se passara com outra pessoa. — Olhou para o rosto
de Gabriel, que assumira uma expressão notavelmente compreensiva.
— Por favor, não voltes a dizer que és estúpida. Malditos sejam pelo que
te fizeram. Eles são os vilões desta história, não tu. — Deu-lhe dois beijos
na testa e escondeu a cara no cabelo dela. — Acho que precisas de dormir,
querida. Foi um dia longo, e queremos que recuperes.
— A tua família não vai ficar aborrecida por ver que dormimos juntos?
— Já perceberam o que se passa entre nós. E, na maioria, penso que
aprovam.
— Na maioria?
Gabriel suspirou.
— O Richard não se opõe à nossa relação, mas tem uma visão
conservadora do sexo. Por isso, apesar de eu lhe ter prometido que nada se
passaria debaixo do seu teto, ele gostaria mais de nos ver em quartos
separados. Mas acho que esta noite e a próxima não se importará de fazer
vista grossa, por causa do que te aconteceu.
— Mas a Rachel e o Aaron partilham o mesmo quarto.
— O Richard também não o aprova, mas pensa que eles, pelo menos, vão
casar. A Rachel sempre me apoiou, e acho que fica contente por estarmos
juntos.
— E o Scott?
— O Scott tem uma atitude muito protetora em relação a ti, e como sabe
do meu comportamento libertino no passado…
— Não eras libertino. Só te sentias sozinho.
Gabriel beijou-a suavemente.
— É muito generoso da tua parte, mas ambos sabemos que isso não é
verdade.
Deitaram-se, Julia com a cabeça sobre o peito dele, acariciando-lhe a
pele. Murmurou para consigo, relembrando o que ele dissera, que a adorava
e que queria venerá-la. Eram, provavelmente, as palavras mais importantes
que Julia alguma vez ouvira. Passou-lhe um dedo hesitante por sobre o
peito, contornando-lhe a tatuagem.
A mão de Gabriel veio rapidamente cobrir a sua.
— Não — disse por entre dentes, desviando-lhe a mão.
— Desculpa. Que significa m-a-i-a?
Julia ouviu-o ganhar fôlego.
— Não queria falar nisso. Mas temos estado a contar segredos… Pensei
que…
Gabriel começou a esfregar os olhos com a mão que tinha livre, mas não
libertou Julia.
— Maia é um nome. — A sua voz tornara-se áspera.
— Amava-la?
— Claro que a amava.
— Estiveram juntos muito tempo?
Gabriel tossiu.
— Não foi nada disso.
Julia apertou-o com força e fechou os olhos.
Mas Gabriel ficou acordado, olhando para o teto ainda durante muito
tempo.
Capítulo Vinte e Nove

A o acordar, na manhã seguinte, Julia encontrou Gabriel sentado na


beira da cama, já vestido e a olhá-la. Julia deu um pequeno bocejo e
espreguiçou-se sob os raios de Sol que atravessavam as persianas.
— Bom-dia — disse, sorrindo.
Gabriel inclinou-se para ela e abraçou-a calorosamente.
— Já me levantei e já andei por aí, mas voltei há pouco, para ver se
estavas bem. Tens um ar tão tranquilo, quando dormes. — Beijou-a
docemente, depois foi ao roupeiro buscar uma camisola.
Julia deitou-se de barriga para baixo e pôs-se a observá-lo com todo o
atrevimento, admirando a forma como a camisa lhe assentava nos ombros.
Da posição em que se encontrava, podia também apreciar-lhe o traseiro,
realçado pelas calças pretas justas.
Ora aí está um belo rabo, pensou.
Gabriel espreitou-a por cima do ombro.
— Que foi isso?
— Não disse nada.
Gabriel apertou os lábios, como se quisesse conter um sorriso.
— Ah não?
Foi ter com ela para lhe segredar ao ouvido.
— Não sabia que era uma apreciadora de rabos, menina Mitchell.
— Gabriel! — Ligeiramente embaraçada por ter sido apanhada, deu-lhe
uma palmadinha no braço, e começaram ambos a rir.
Ele enlaçou-a pela cintura e sentou-a ao seu colo.
— Para que não haja equívocos, devo dizer que o meu traseiro se sente
bastante lisonjeado.
— Ah sim? — Julia arqueou uma sobrancelha.
— Profundamente. E deseja que eu apresente, em seu nome, os melhores
cumprimentos, e… eh… deseja conhecê-la de um modo mais pessoal
quando estivermos em Florença.
Julia abanou a cabeça e inclinou-se para a frente, esperando que os lábios
dele viessem ao encontro dos seus.
Foi recompensada com um beijo breve mas terno, e depois Gabriel
recuou.
De repente, ficara muito sério.
— Tenho algumas coisas para te contar.
Julia mordeu o lábio e aguardou.
— O Simon foi preso e vai responder por múltiplas queixas. O pai dele
enviou o advogado da família para o salvar, e correm rumores de uma
transação penal.
— A sério?
— Parece que o senador não quer a história sórdida nos noticiários. O
Scott falou com o promotor de justiça e ele garantiu-lhe que o teu caso será
uma prioridade. O Scott salientou que todos nós esperamos que o resultado
seja uma pena de prisão e não uma clínica de reabilitação ou um programa
de tratamento qualquer. Mas dadas as ligações do Simon, penso que a
prisão será pouco provável.
Julia não se esqueceria de agradecer a Scott por ter falado em seu nome.
— E tu? Estás em perigo?
Gabriel sorriu de orelha a orelha.
— O advogado da família Talbot falou em apresentar queixa. Felizmente,
o meu irmão teve uma conversa breve mas esclarecedora com ele, dizendo-
lhe que a imprensa teria todo o interesse em ouvir a nossa versão dos
acontecimentos. Não vou ser acusado. Escusado será dizer que todos os
envolvidos já estão bem fartos de ouvir o Scott.
Julia fechou os olhos e expirou devagar. A ideia de Gabriel vir a ter
problemas era terrível, especialmente porque fora ela a envolvê-lo em toda
aquela situação.
— Preciso de tomar um duche e de me vestir — disse, abrindo os olhos.
Gabriel lançou-lhe um olhar intenso, fazendo um dedo deslizar ao longo
de todo o seu braço.
— Gostaria muito de te fazer companhia, mas receio que semelhante ato
escandalizasse as minhas relações.
Julia estremeceu.
— Bem, não queremos as suas relações escandalizadas, professor
Emerson.
— Com efeito, menina Mitchell. Seria tremendamente chocante.
Tremendamente chocante. Por isso, em nome do decoro, eu e o meu muito
lisonjeado traseiro vamos abstermo-nos de tomar banho consigo. —
Curvou-se para ela, com um brilho nos olhos. — Por agora.
Julia riu-se, e Gabriel deixou-a partir para a sua ablução diária.
Quando regressava ao quarto, depois de tomar duche, Julia encontrou
Gabriel a passear-se pelo corredor.
— Passa-se alguma coisa?
Ele abanou a cabeça.
— Queria ter a certeza que não tropeçavas. Onde estão as tuas muletas?
— No meu quarto. Está tudo bem, Gabriel. — Passou por ele a coxear.
Quando encontrou a sua escova, começou a passá-la desajeitadamente pelos
seus longos cachos emaranhados.
— Deixa-me fazer isso. — Gabriel aproximou-se e tirou-lhe a escova da
mão.
— Vais escovar-me o cabelo?
— E porque não? — Puxou uma cadeira e fê-la sentar-se. Pondo-se atrás
dela, começou a passar-lhe os dedos pelo cabelo, lentamente, da cabeça até
às pontas, desembaraçando-o manualmente.
Julia fechou os olhos.
Gabriel prosseguiu com a sua tarefa por alguns momentos, antes de lhe
encostar os lábios ao ouvido.
— Sabe-te bem?
Julia gemeu em resposta, os olhos ainda fechados.
Gabriel deu uma risadinha, abanando a cabeça. Julia era tão doce e era
tão fácil agradar-lhe. E Gabriel queria agradar-lhe, desesperadamente.
Estando todos os nós desfeitos, começou a passar-lhe delicadamente a
escova pelo cabelo, devagar, secção a secção.
Nunca, nem nos seus sonhos mais ousados, Julia imaginara Gabriel como
cabeleireiro. Mas havia algo de instintivo no modo como ele lhe tocava, e a
sensação dos seus dedos compridos afagando-lhe o cabelo provocava-lhe
calor. Só podia imaginar os prazeres que a aguardavam em Florença,
quando pudesse desfrutar inteiramente de Gabriel. Nu. Cruzou rapidamente
as pernas.
— Estarei a seduzi-la, menina Mitchell? — murmurou-lhe, numa voz de
mel.
— Não.
— Nesse caso, não devo estar a fazer isto como deve ser. — Reprimiu
uma risadinha e abrandou os movimentos dos seus dedos, aflorando-lhe a
orelha com os lábios. — Embora o meu verdadeiro objetivo seja fazê-la
sorrir.
— Porque és tão amável comigo?
Os dedos de Gabriel ficaram imóveis.
— É uma pergunta extraordinária para se fazer a um amante.
— Estou a falar a sério, Gabriel. Porquê?
Ele recomeçou a mexer-lhe no cabelo.
— Foste amável comigo desde a primeira vez que te vi. Porque não havia
eu de ser também? Não achas que mereces ser tratada com gentileza?
Julia optou por não fazer a pergunta que tinha em mente. Embora
estivesse destroçada na noite anterior, lembrava-se de lhe ter confessado o
seu amor no hospital. Mas Gabriel não correspondera à declaração.
Isto basta, pensou Julia. As suas ações, a sua gentileza, a sua proteção. É
mais do que suficiente. Não preciso das palavras.
Julia amava-o tanto que até doía; sempre o amara, e o brilho desse amor
fora tão intenso que a iluminara mesmo nos seus dias mais negros. Mas
Gabriel parecia não corresponder ao seu amor.
Quando acabou de a pentear, insistiu em preparar-lhe o almoço. Depois,
deixaram-se ficar sentados à mesa da cozinha, a fazerem planos para essa
noite, até que o telefone tocou e Richard apareceu, trazendo um telefone
sem fios.
— É o teu pai — disse, estendendo o telefone a Julia.
Gabriel intercetou-o e cobriu-o com a mão.
— Não precisas de falar com ele. Eu trato disto.
— Em alguma altura teremos de falar. — Deslizou do banco e coxeou,
apoiada nas muletas, até à sala de jantar.
Richard olhou para o filho e abanou a cabeça.
— Não podes meter-te entre a Julia e o pai dela.
— Ele não tem sido grande coisa como pai.
— É o único que a Julia tem. E ela é a luz da vida dele.
Os olhos de Gabriel estreitaram-se.
— Se se importasse minimamente com a filha, tinha-a protegido.
Richard pousou uma mão no ombro de Gabriel.
— Os pais cometem erros. E às vezes é mais fácil enfiarmos a cara na
areia do que admitirmos que um filho nosso tem problemas. E que a culpa é
nossa. Sei isto por experiência própria.
Gabriel contraiu os lábios, mas não respondeu.
Passados dez minutos, Julia regressou. Embora Richard ainda estivesse
na cozinha, Gabriel abraçou-a e deu-lhe um beijo na cara.
— Está tudo bem?
— O meu pai quer levar-me a jantar fora esta noite — disse Julia,
prontamente.
Richard pareceu ouvir naquelas palavras a sua deixa para sair, e subiu as
escadas para recolher ao seu escritório.
— Queres estar com ele?
— Vai ser constrangedor. Mas disse-lhe que sim.
— Julianne, não tens de fazer nada que não queiras. Eu posso levar-te a
jantar.
Julia abanou a cabeça.
— Ele está a tentar, Gabriel. É meu pai. Tenho de lhe dar uma
oportunidade.
Gabriel abanou a cabeça, sentindo-se impotente, mas decidiu não
argumentar.
Às seis da tarde em ponto, Tom Mitchell tocou à porta dos Clarks de fato
e gravata. Ajeitou nervosamente a gravata. Não estava habituado a usar
roupa elegante, mas queria fazê-lo por Julia…
Richard levou-o imediatamente para a sala e fez-lhe companhia enquanto
esperavam que Julia descesse.
— Tens a certeza que queres ir? — Gabriel estava reclinado sobre a
cama, observando Julia enquanto ela punha batom.
— Não vou deixar o meu próprio pai pendurado. Além disso, a Rachel
vai arrastar o Richard para um filme de miúdas, e tu vais sair com os
rapazes. Eu ia acabar aqui sentada sozinha.
Gabriel levantou-se e foi ter com ela, pondo-lhe os braços em redor da
cintura.
— Não estarias sozinha. Estarias comigo. E eu sei como entreter uma
senhora. — Começou a dar-lhe beijos molhados atrás da orelha, tentando
persuadi-la. — Estás deslumbrante — sussurrou-lhe.
Julia corou.
— Obrigada.
— Estou a ver que a Rachel te arranjou uma écharpe. — Passou os dedos
pela peça de seda azul Hermès que Rachel enrolara habilmente ao pescoço
de Julia, de modo a ocultar a mordedura.
— Era da Grace — disse Julia em voz baixa. — Um presente do Richard.
— O Richard gostava de a mimar. Especialmente em Paris.
— És muito parecido com ele. — Pôs-se em bicos de pés para o beijar na
face.
— Espera até chegarmos a Florença. — Puxou-a para si e beijou-a
apaixonadamente.
— Agora conta-me o que vais fazer com os rapazes. Não estão a pensar
num… clube de strip-tease, não? — Olhou-o através das suas pestanas,
parecendo excessivamente encantadora.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Achas mesmo que eu iria a um sítio desses?
— Não é aonde os rapazes vão quando saem à noite?
Gabriel fez-lhe uma festa na cara com as costas da mão.
— Achas que a Rachel aprovaria uma excursão desse tipo?
— Acho que não.
— Então e eu, achas que é isso que quero?
Julia desviou o olhar, sem responder.
— Porque iria eu olhar para outras mulheres quando a mulher mais linda
do mundo dorme todas as noites na minha cama? — protestou, beijando-a
ao de leve. — És a única mulher que quero ver nua.
Julia riu-se.
— Qual era a minha pergunta? Já não me lembro do que te estava a
perguntar.
— Ainda bem — disse Gabriel, com um sorriso satisfeito. — Vem cá.

H oras mais tarde, com a casa às escuras e depois de todos estarem nos
seus quartos, Julia esgueirou-se para o quarto de Gabriel levando
apenas uma camisa de noite azul vestida. Gabriel encontrava-se sentado na
cama, a ler. Estava em tronco nu e tinha os óculos postos, os joelhos
descontraidamente fletidos.
— Olá. — Sorriu, pousando Fim de Caso na mesa de cabeceira. — Estás
encantadora.
Julia segurou ambas as muletas com uma mão e puxou uma ponta da
camisa de noite, agradecida.
— Obrigada por teres ido buscar as minhas coisas a casa do meu pai.
— Não tens de quê. — Estendeu-lhe a mão, e Julia enfiou-se na cama ao
seu lado.
Começou a beijá-la e só depois se apercebeu de que ela ainda tinha a
écharpe de Grace ao pescoço. Agarrou uma ponta do tecido.
— Porque é que ainda trazes isto?
Julia baixou os olhos.
— Não quero que tenhas de olhar para a marca.
Gabriel ergueu-lhe o queixo.
— Não precisas de te esconder de mim.
— É feia. Não quero que te lembres.
Gabriel olhou-a nos olhos, como se procurasse algo. Depois, lentamente,
desenrolou-lhe a écharpe, fazendo-a deslizar-lhe suavemente pela nuca e
apanhando-a com uma mão. Julia arrepiou-se ao sentir o toque da seda
combinado com o olhar intenso de Gabriel. Pousando a écharpe na mesa de
cabeceira, Gabriel inclinou-se para beijar repetidamente a marca no pescoço
de Julia.
— Ambos temos cicatrizes, Julia. As minhas só não estão na pele.
— Quem me dera que não fosse assim — murmurou ela. — Quem me
dera ser perfeita.
Gabriel abanou tristemente a cabeça.
— Gostas de Caravaggio?
— Muito. O Sacrifício de Isaac é o meu quadro favorito.
Gabriel anuiu.
— Sempre preferi A Incredulidade de São Tomé. O Richard tem uma
reprodução no seu escritório. Estive a vê-la hoje.
— Sempre achei essa pintura… estranha.
— E é estranha. Jesus aparece a São Tomé após a ressurreição, e Tomé
pousa o dedo no ferimento de lança que Jesus tem no corpo. É bastante
profundo.
Julia não estava a perceber a profundidade da ideia, mas ficou calada.
— Se queres esperar até a tua cicatriz desaparecer, Julianne, vais esperar
para sempre. As marcas não desaparecem. O quadro de Caravaggio
mostrou-mo claramente. As feridas podem sarar e podemos esquecê-las
com o passar do tempo, mas são permanentes. Nem Jesus perdeu as suas
cicatrizes. — Gabriel esfregou o queixo, pensativo.
— Se me tivesse dado ao incómodo de deixar de ser egoísta, teria
percebido isso. E teria tratado melhor a Grace e o resto da minha família.
Teria sido melhor para ti em setembro e em outubro. — Clareou a voz. —
Espero que me perdoes pelas marcas que te deixei. Devem ser muitas.
Julia rastejou para o colo dele e beijou-o com determinação.
— Foste perdoado há muito tempo e por muito mais do que deixar
marcas. Por favor, não vamos voltar a falar sobre isto.
Os dois quase-amantes partilharam um momento de silêncio, e só depois
Gabriel perguntou a Julia como correra o jantar.
Julia fez um sorriso presumido.
— Ele chorou.
Gabriel arqueou as sobrancelhas. O Tom Mitchell chorou? Não acredito.
— Descreveu-me o estado em que encontrou a casa. E quando lhe contei
o que aconteceu antes de me salvares, chorou. Contei-lhe algumas das
brigas que tive com ele, e alguns dos insultos que ouvi. E o meu pai chorou,
no meio de um restaurante chique. — Julia abanou a cabeça. — Chorámos
os dois. Foi uma confusão.
Gabriel afastou-lhe o cabelo da cara, para poder vê-la melhor.
— Lamento que tenha sido assim.
— Havia coisas que precisava de lhe dizer, e ele escutou-me… talvez
pela primeira vez na minha vida. Pelo menos, está a esforçar-se, o que já é
um grande passo. E depois de tudo isso estar dito, falámos sobre ti. Quis
saber há quanto tempo estamos juntos.
— E que lhe disseste?
— Disse-lhe que não estamos juntos há muito tempo, mas que… gosto de
ti. Disse-lhe que me tens ajudado muito e que és importante para mim.
— Disseste-lhe o que eu sinto por ti?
Julia fez um ar tímido.
— Bem, deixei de fora a parte de quereres fazer amor comigo em
Florença, mas disse-lhe que gostas de mim.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Gosto de ti? Ora, Julianne, não conseguiste fazer melhor?
Ela encolheu os ombros.
— É meu pai. Não quer os pormenores sentimentais. Quer saber se ainda
te drogas e se te metes em brigas. E se te tornaste monógamo.
Gabriel fez uma careta.
Julia abraçou-o.
— Disse-lhe que és um cidadão exemplar, claro, que me tratas como a
uma princesa, e que não te mereço.
— Bem, aí está uma mentira. — Beijou-a na testa. — Eu é que não te
mereço.
— Disparate.
Beijaram-se calmamente por alguns momentos, depois Gabriel tirou os
óculos e pousou-os sobre o livro. Apagou a luz e aninhou-se deliciosamente
junto dela.
Mesmo quando estavam a adormecer, Julia murmurou-lhe.
— Amo-te.
Como Gabriel não respondeu, Julia calculou que já estivesse a dormir.
Suspirou baixinho e fechou os olhos, encostando-se um pouco mais ao seu
peito. Um braço forte rodeou-lhe a cintura, estreitando-a ainda mais.
Julia ouviu-o respirar fundo.
— Também te amo, Julianne Mitchell.
Capítulo Trinta

N a manhã seguinte, Julia acordou com uma sensação de calor perto do


coração e com uma brisa suave de respiração sobre o seu pescoço.
Após uma observação mais atenta, apercebeu-se de que a mão de Gabriel
lhe envolvia um dos seios, enquanto dormiam aninhados. Deixando escapar
uma risadinha, moveu-se entre os braços dele.
Gabriel resmungou ao sentir o seu movimento súbito.
— Bom-dia, Gabriel.
— Bom-dia, miúda linda. — Os seus lábios procuraram a face de Julia e
beijaram-na.
— Presumo que tenhas… dormido bem.
— Muito bem. E tu?
— Também, obrigada.
— Isto incomoda-te? — Acariciou-lhe o seio através da camisa de noite.
— Não. Sabe bem — disse Julia, voltando-se para ele.
Gabriel fez a sua mão deslizar até ao fundo das costas dela, puxando-a
para um beijo intenso.
— Julianne. — Afastou-lhe alguns fios de cabelo dos olhos. — Há algo
que quero dizer-te.
Julia franziu o sobrolho.
Ele passou-lhe um dedo pelas sobrancelhas, alisando as linhas de
preocupação.
— Não faças essa cara. É uma coisa boa. Acho eu.
Julia fitou-o, em expectativa.
Os olhos dele estavam grandes, sombrios e sérios.
— Amo-te.
Ela pestanejou duas vezes, um sorriso desenhando-se-lhe lentamente no
rosto.
— Também te amo. Achei que estava a ouvir coisas, quando o disseste
ontem à noite.
Gabriel beijou-a ternamente.
— Não tinha a certeza que me tivesses ouvido.
— Já o tinhas dito antes, sabes?
— Quando?
— Na noite em que te salvei da Christa. Ajudei-te a deitar, e chamaste-
me Beatriz. Disseste que me amavas.
Ele engoliu em seco.
— Julianne, desculpa ter demorado tanto a dizê-lo como deve ser.
Ela pôs-lhe os braços em redor do pescoço, encostando a testa ao queixo
dele, sentindo o toque áspero da sua barba por fazer.
— Obrigada.
— Não, querida, eu é que tenho de te agradecer. Nunca… nunca me tinha
sentido assim. Só agora me apercebo do tempo que desperdicei. — Os
olhos de Gabriel entristeceram.
Julia beijou-o suavemente.
— Precisávamos ambos de crescer. É melhor assim.
— Arrependo-me da forma como tratei aquelas mulheres. E arrependo-
me de ter perdido tempo com elas. Sabes isso, não sabes?
— Eu arrependo-me de ter estado com ele. Mas nenhum de nós pode
fazer nada a esse respeito. Só podemos estar felizes por nos termos
encontrado um ao outro.
— Quem me dera que pudéssemos passar o dia na cama — disse Gabriel,
num tom subitamente ansioso.
Julia riu-se.
— Acho que isso iria chocar e escandalizar as tuas relações.
— É provável. Malditos sejam.
Riram ambos, até as suas gargalhadas se transformarem em beijos
apaixonados.
Julia foi a primeira a parar.
— Posso fazer-te uma pergunta?
Gabriel pôs um ar grave.
— Claro. — Não faças muitas perguntas esta manhã, Julianne. Não
posso contar-te tudo na casa do Richard.
— Que tipo de lingerie gostas de ver numa mulher?
A expressão de Gabriel suavizou-se imediatamente, os seus lábios
curvando-se num sorriso malicioso.
— E perguntas porque… estás a fazer uma sondagem? — Riu-se,
segurando-lhe a mão e beijando-lhe os nós dos dedos.
Julia olhou para as suas mãos juntas.
— Queria fazer umas compras para a nossa viagem. Gostava que me
dissesses do que… gostas.
Gabriel lançou-lhe um olhar intenso, carregado de desejo
— Julianne, sou um homem. Se te dissesse que lingerie prefiro, diria
lingerie nenhuma. — Ergueu-lhe o queixo, encontrando o seu olhar. — És
uma mulher linda. Quando penso em estar contigo, imagino-me a admirar a
tua beleza, demoradamente… a admirar a tua cara, os teus ombros, os teus
seios, cada parte do teu corpo. Creme e rosa e curvas delicadas para o meu
corpo adorar.
Fê-la rolar para a deitar de costas, e ajoelhou-se, uma perna de cada lado
das suas ancas.
— Quero que uses algo com que te sintas confortável e bonita, porque é
assim que quero que te sintas quando estamos juntos. — Foi ao encontro da
boca de Julia e beijou-a minuciosamente.
Quando recuou, ela fitou-o com um ar travesso.
— Algo confortável como um equipamento de ioga Lululemon?
Gabriel parecia perplexo.
— Não sei o que são lou lemons, mas se te deixarem confortável, não
terei objeções.
Julia arqueou o pescoço, de modo a que as pontas dos seus narizes se
tocassem.
— És querido, sabes? Mas eu estava a falar a sério quando fiz a pergunta.
Quero escolher uma coisa que te agrade.
— Qualquer coisa me vai agradar, desde que sejas tu a usá-la.
Beijou-a novamente, desta vez dando-se ao luxo de baixar o peito nu até
quase tocar o peito de Julia. Uma onda de calor e eletricidade envolveu-os,
e Julia não tardou a ficar sem fôlego.
— Cor? — Arquejava. — Preferência por estilo?
Agora Gabriel ria, acariciando-lhe a cara que se ruborizava sob os seus
dedos.
— Bem, nem preto nem vermelho.
— Pensei que essas eram as cores geralmente aceites. É suposto serem
sedutoras.
Gabriel deitou-se ao seu lado, para lhe sussurrar ao ouvido.
— Já me seduziste. Sinto-me atraído e tentado e muito, muito excitado.
O quarto aqueceu, e Julia esqueceu-se do que ia perguntar a seguir. Por
fim, lembrou-se.
— Muito bem, nem preto nem vermelho. Tens cores preferidas?
— És teimosa, não és? Acho que ficarias bem com cores claras… branco,
rosa, azul. Acho que te imaginei com algo clássico, o cabelo a cair-te sobre
os ombros. Mas isto não tem a ver comigo, tem a ver contigo. E acho que
deves ser tu a escolher. — Sorriu. — Claro que sou capaz de te comprar
uma peça ou outra enquanto lá estivermos. Mas para a nossa primeira vez, o
que importa é o que tu queres. O que te faz sentir especial, sensual e
apreciada. É isso que eu quero, porque te amo.
— Também te amo.
Ela sorriu-lhe, e Gabriel sentiu o seu coração derreter. Julia segurou-lhe a
cara entre as mãos, percorrendo com um polegar o seu maxilar anguloso, e
ele fechou os olhos, abandonando-se àquele toque. Quando voltou a abrir os
olhos, Julia viu que estavam límpidos, brilhantes, repletos de desejo, e teve
de desviar o olhar.
— Vou vestir-me. A que horas temos de partir para Filadélfia?
Gabriel começou a beijá-la junto ao pescoço, de um ombro ao outro.
— Depois… (beijo) … do pequeno-almoço… (beijo) … O nosso voo é
por volta da hora do jantar… (beijo) … e temos de chegar cedo ao
aeroporto… (duplo beijo).
Julia beijou-o mais uma vez e desapareceu no corredor com as suas
muletas.
Lá em baixo, Richard andava numa azáfama, a preparar e a servir o
pequeno-almoço de domingo para a sua família faminta. Scott comia tudo o
que não estava nas mãos ou no prato dos outros, e Rachel e Aaron estavam
debruçados sobre o BlackBerry de Aaron, a ver fotografias de espaços para
festas de casamento.
— Cá estão eles. — Rachel cumprimentou o seu irmão e a sua melhor
amiga quando entraram na cozinha.
— Deixa-me devolver-te isto — sussurrou-lhe Julia, desenrolando a
écharpe que trazia ao pescoço.
— Fica com ela. A minha mãe havia de gostar que a tivesses.
Julia abraçou a amiga, agradecida. Mais uma vez, sentia-se grata pela
generosidade de Rachel, e também pela de Grace, que parecia continuar
presente.
— Pareces feliz — disse Scott a Julia, servindo-lhe um copo de sumo
enquanto ela se sentava.
— E estou feliz. Estou mesmo.
— Obriga-o a tratar-te bem — segredou-lhe, com um ar sério.
— Ele mudou, Scott. Ele… ama-me — confessou, em voz baixa, para
que mais ninguém ouvisse.
Scott olhou-a, espantado.
— Macacos me mordam — balbuciou. Remexeu-se no seu banco, pouco
à vontade, e resolveu mudar de assunto.
— O Simon ia ter uma audiência para fiança ontem. O seu advogado
estava a tentar que o libertassem. — Lançou um olhar cauteloso a Julia. —
Ainda não sei o que se passou.
Julia refletiu por instantes, mas quando compreendeu todo o alcance das
palavras de Scott, uma onda de ansiedade submergiu-a. Derrubou,
acidentalmente, o copo de sumo de laranja, transformando o seu pequeno-
almoço num desastre pegajoso.
Pestanejou rapidamente ao tentar recompor-se, procurando remediar a
sua última trapalhada, censurando-se por ser uma pilha de nervos.
O Gabriel só pode estar farto de me ver deixar cair coisas. Sou uma
idiota.
Antes que conseguisse pôr-se de pé, uma mão apareceu-lhe à frente da
cara. Um par de olhos cor de safira fitavam-na com preocupação. Gabriel
moveu ligeiramente a mão, encorajando Julia a segurá-la. Puxou-a para si e
sentou-a noutro banco, dando-lhe um beijo rápido na testa.
— Agora estás segura — segredou-lhe. — Não deixo que ele se
aproxime de ti. — Esfregou-lhe os braços, para cima e para baixo, num
gesto reconfortante.
Enquanto Richard preparava outra waffle, Gabriel pegou no pequeno-
almoço ensopado e dirigiu-se para o lava-louça.
— Eu trato disso. Vai sentar-te ao pé da tua miúda. — A voz de Scott
soou grave e rouca, junto ao cotovelo de Gabriel. — E desculpa.
Ninguém se apercebeu da subtil troca de palavras entre os dois irmãos, o
filho pródigo e o filho constante. Um olhar de compreensão, talvez até de
perdão, passou entre eles. Gabriel anuiu, agradecido, e sentou-se ao lado de
Julia, pondo-lhe um braço em redor da cintura e murmurando-lhe ao ouvido
palavras de conforto, até ela parar de tremer.
Tinha de a levar para longe de Selinsgrove.
Quando finalmente partiram, Julia fechou os olhos e deu um suspiro de
alívio. Fora uma manhã cheia de emoções. Despedir-se da sua família
adotiva era sempre difícil. E despedir-se do seu pai, depois dos
acontecimentos do fim de semana, deixara-a exausta.
— Tens pena de nos irmos embora? — perguntou Gabriel, acariciando-
lhe a cara.
Julia abriu os olhos.
— Parte de mim queria ficar. Parte de mim mal podia esperar por deixar
tudo para trás.
— É também o que eu sinto.
— Que te disse o meu pai, quando te apertou a mão?
Gabriel remexeu-se no assento.
— Agradeceu-me. Disse que sabia que podias ter-te magoado muito
mais. — Gabriel entrelaçou os seus dedos compridos nos de Julia, levando
a mão dela aos lábios e beijando-a. — Pediu-me que olhasse pela sua
menina. Disse que eras tudo para ele.
Uma lágrima rolou pela face de Julia. Ela enxugou-a e olhou pela janela.
Parecia estar tudo bem diferente entre ela e o pai.
No voo de regresso a Toronto, Julia aninhou-se junto de Gabriel, pondo
de lado os trabalhos da faculdade para encostar a cabeça ao ombro dele.
— Tenho de planear a nossa viagem — disse Gabriel, beijando-a no alto
da cabeça.
— Quando partimos?
— Tinha pensado partir mal as aulas terminassem, na sexta-feira. Mas
uma vez que vens comigo, terei de esperar que a Katherine entregue a tua
nota. A minha palestra é no dia 10 de dezembro. Achas que podemos ir no
dia oito?
— Acho que sim. Tenho ensaios para entregar na sexta, e a Katherine
está a contar com uma primeira versão de parte da minha tese também para
essa altura. Penso que não vai demorar a dar-me a nota, por isso devo estar
livre no dia oito. Quando tencionavas voltar?
Gabriel pôs-lhe um braço por trás do pescoço, de modo a que ela lhe
pousasse a cabeça no ombro.
— A Rachel faz questão de ter toda a gente em casa para o Natal. O que
te inclui a ti, naturalmente. Isso significa que teríamos de partir de Itália a
vinte e três ou a vinte e quatro, e vir diretamente para Filadélfia. A não ser
que prefiras passar o Natal em Itália, comigo.
Julia riu-se.
— Não quero arriscar-me a incorrer na fúria da Rachel. E o meu pai está
à espera que eu venha, apesar de saber que não vou ficar em sua casa. —
Estremeceu involuntariamente.
Gabriel apertou-a contra si.
— Então podes ficar comigo. Reservamos um quarto num hotel. Não
volto a dormir separado de ti.
Aquele comentário fez Julia corar, e sorrir.
— Teremos duas semanas para desfrutar de Florença. Ou podemos viajar
até Veneza e Roma, se quiseres. Podíamos alugar uma villa na Úmbria.
Conheço um lugar muito bonito perto de Todi. Gostava de lá ir contigo.
— Desde que esteja contigo, meu amor, não me importa onde estamos.
Os lábios de Gabriel contraíram-se momentaneamente.
— Fico-te grato por isso — murmurou.
— A Rachel está a planear o casamento para finais de agosto, se o espaço
que eles querem estiver disponível. Pergunto-me porque quererá ela esperar
tanto tempo. — Julia estava a tentar perceber se Gabriel teria alguma
informação.
Ele encolheu os ombros.
— Conhecendo a Rachel, diria que ela precisa de meses para garantir que
todas as pessoas indicadas estão devidamente notificadas e que o casamento
vai ser transmitido na CNN.
Riram ambos.
— Acho que a tua irmã vai querer ter uma família em breve — disse
Julia. — Gostava de saber o que pensa o Aaron a esse respeito.
— O Aaron ama-a. Quer casar com ela. Deve estar entusiasmado com a
ideia de o amor da sua vida lhe dar um filho.
Interrompeu-se por um instante, voltando-se para a encarar.
— Julianne, perturba-te que eu não possa…?
— Nem por isso. Pelo menos, não por agora. Quero acabar o mestrado,
depois fazer o doutoramento. Gostava de dar aulas. — Encolheu os ombros.
— Talvez seja uma vantagem estares com uma mulher mais nova.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Fazes-me parecer uma antiguidade. Mas sabes que quando tiveres
trinta anos, és capaz de mudar de ideias… se não for mais cedo. E quando
isso acontecer…
Foi a vez de Julia franzir o sobrolho e abanar a cabeça.
— Que esperas que eu te diga? Que não te quero? Não vou dizer isso.
Amo-te, Gabriel, tal como és. Por favor, não me afastes agora que estamos
finalmente juntos. — Fechou os olhos. — Magoas-me.
— Desculpa — murmurou Gabriel, beijando-lhe as costas da mão.
Julia aceitou o pedido de desculpas e tentou relaxar, cansada das emoções
do dia.
Gabriel esfregou os olhos, tentando pensar. Mas depressa concluiu que
precisava de algum tempo afastado de Julia para conseguir fazê-lo.
Não vou ter de te afastar quando te contar da Paulina…
primeira semana de dezembro foi a última semana de aulas. Foi uma

A semana tranquila, na sua maior parte. Gabriel e Julia mantiveram-se


responsavelmente longe um do outro. Ele dedicava-se todas as noites
à preparação da sua palestra para a Galeria Uffizi no seu apartamento
espaçoso, enquanto Julia trabalhava incansavelmente nos ensaios e na tese,
recolhida no seu buraco de hobbit.
Trocavam constantemente mensagens:
Querida, sinto a tua falta. Vens até cá? Beijos, G

Julia sorriu para o ecrã do seu iPhone de tal modo que até o iPhone
corou. Depois teclou a sua mensagem.
G, também sinto a tua falta. Estou a terminar um ensaio para um seminário sobre Dante que
é de doidos. Provavelmente vou passar a noite acordada. O professor é uma brasa, mas
muito exigente. Amo-te, Julia

Voltou a concentrar-se no seu portátil, revendo o ensaio que tinha de


entregar a Katherine. Passados minutos, o iPhone voltou a dar sinal:
Querida, estás com sorte — Dante é a minha especialidade.
Porque não trazes o ensaio, que eu dou-te uma ajuda… durante toda a noite… Beijos, G
P.S. Quão brasa?

Julia deu uma risadinha ao ler a mensagem e premiu responder:


Caro especialista em Dante, o meu professor-brasa é quente como fogo, como malaguetas,
como frango de caril. Sei como acabaria a nossa noite — e sei que eu não acabaria o meu
ensaio.
Combinamos para sexta-feira? Tua Julia. Bjs

Julia ficou a olhar para o iPhone, esperando uma nova mensagem de


texto. Mas a resposta só chegou quando ela estava na casa de banho:
Querida Julia, o tipo é mesmo uma brasa. A rejeição do meu convite deixou-me reduzido a
um mar de solidão, que vou tentar afugentar com um copo de uísque e dois capítulos de
Graham Greene. Os beijos que me envias quase servem de compensação. Amo-te, G.
P.S. Tu és uma brasa como o Sol, mas muito mais encantadora.
Julia sorriu para consigo e teclou uma resposta breve, dizendo-lhe o
quanto o amava. Depois passou o resto da noite a trabalhar.
Encontraram-se pessoalmente no último seminário de Gabriel, na quarta-
feira, que foi ainda mais interessante dado o estranho comportamento de
Christa Peterson. Christa manteve-se calada. Estava bem vestida, como
sempre, com um vestido de caxemira beringela que se lhe colava
tentadoramente ao peito e ao traseiro. A maquilhagem perfeita, o cabelo
comprido impecavelmente penteado. Mas Christa estava com uma
expressão amarga, e não tomava notas, mantendo os braços defensivamente
cruzados sobre o peito volumoso.
Quando o professor Emerson fez uma pergunta à qual ela sabia
responder, recusou-se a erguer o braço. Quando ele a espreitou por cima dos
óculos, incitando-a a participar, Christa fez uma expressão carrancuda e
desviou o olhar.
Não estivesse Gabriel embrenhado no Paradiso de Dante, talvez se
tivesse sentido constrangido. Mas não sentiu.
Christa evidenciou-se não apenas pelo seu silêncio mas também pela sua
hostilidade para com Julia, a quem lançou um olhar de puro ódio.
— Que bicho lhe mordeu? — sussurrou Julia a Paul, assim que terminou
a aula.
Ele deu uma risadinha.
— Deve ter finalmente percebido que o Emerson nunca lhe vai aprovar a
proposta de tese, e está a considerar uma mudança de carreira. Há um clube
de strip em Yonge Street que está a contratar novas funcionárias. Talvez ela
tenha o que é preciso para lá trabalhar. Ou talvez não.
Foi a vez de Julia rir.
— Gosto da tua écharpe. Muito francesa. — Paul sorriu de orelha a
orelha, bem-humorado. — Um presente do namorado?
— Não, da minha melhor amiga.
— Fica-te bem.
Julia sorriu-lhe, e ambos arrumaram os livros, pondo-se a caminho de
casa sob a neve que caía, contando um ao outro histórias (ligeiramente
alteradas) sobre aqueles dias de férias em que não se tinham visto.
Capítulo Trinta e Um

Q uando chegou sexta-feira, o professor Emerson estava de péssimo


humor. Passara quase uma semana inteira sem Julianne, e tivera de a
ver sair com Paul do seu seminário, sem que ela olhasse, sequer, na sua
direção. Fora obrigado a manter-se à distância, quando tudo o que queria
era tocar-lhe e dizer a toda a gente que ela lhe pertencia. Dormindo nu na
escuridão, vira os demónios regressarem, e fora perseguido e oprimido por
pesadelos — pesadelos normalmente afugentados pela simples presença de
Julia, uma luminescência com que nem a estrela mais brilhante podia
rivalizar. Uma luz sem a qual ele teria de viver.
Gabriel sabia que tinha de contar os seus segredos a Julia antes de
embarcarem no avião. E lamentava que a sua (possivelmente) última
semana com Julia tivesse sido passada longe dela. Trocara o seu bilhete e
fizera todas as reservas necessárias para que Julia o acompanhasse a
Florença, mas fizera-o pouco convicto, e até subscrevera um seguro de
cancelamento de viagem, pois acreditava que ela o abandonaria. Temia o
momento em que aqueles grandes olhos inocentes se tornassem sombrios e
em que ela o rejeitasse, considerando-o indigno de si. Mas não permitiria
que Julia oferecesse a sua inocência a um tal demónio sem o saber. Não
seria Cupido para a sua Psique.
Pois isso seria realmente demoníaco.
Assim, foi com uma frieza ostensiva que a cumprimentou na sexta-feira,
quando ela chegou a sua casa à hora do jantar. Deu-lhe um beijo fraternal na
testa e afastou-se, indicando-lhe que entrasse.
Abandona a esperança, pensou para consigo.
Julia percebeu que algo de errado se passava, e não só por causa dos
acordes de Madama Butterfly de Puccini que vinham da sala. Gabriel
costumava recebê-la com um abraço e com beijos apaixonados, antes de a
ajudar a despir o casaco. Em vez disso, deixou-se ficar onde estava, sem
sequer a olhar nos olhos, à espera que ela falasse.
— Gabriel? — Julia pôs-lhe uma mão na face. — Que se passa?
— Nada — mentiu, desviando a cara. — Tomas alguma coisa?
Julia resistiu ao impulso de lhe arrancar a informação, aceitando, em vez
disso, um copo de vinho. Esperava que ele se abrisse durante o jantar.
Não foi o que aconteceu. Gabriel serviu o jantar em silêncio, e quando
Julia tentou fazer conversa de circunstância, respondeu-lhe com
monossílabos. Ela contou-lhe que entregara todos os trabalhos do semestre
e que Katherine Picton concordara em entregar a sua nota antes do dia oito
de dezembro, mas Gabriel limitou-se a anuir, sem tirar os olhos do seu copo
de vinho quase vazio.
Julia nunca o vira beber tanto. Na noite em que o tirara do Lobby, já o
encontrara embriagado. Mas agora achava-o diferente. Não estava atiradiço
e bem-disposto, mas atormentado. A cada copo que o via beber, ficava mais
preocupada, mas de todas as vezes que abrira a boca para dizer algo, vira-
lhe nos olhos um lampejo de tristeza que a fizera calar-se. Cada copo
deixava-o mais frio e mais distante, de tal modo que quando ele serviu a
tarte de maçã feita pela sua empregada, Julia recusou a sobremesa e pediu-
lhe que silenciasse Maria Callas, para poderem falar.
Isto chamou a atenção de Gabriel, pois a tarte (e Madama Butterfly)
representavam o fim da sua ceia. A sua Última Ceia.
— Não se passa nada — disse rispidamente, aproximando-se da
aparelhagem para pôr fim à interpretação lírica.
— Não me mintas, Gabriel. É óbvio que estás perturbado. Diz-me o que
se passa. Por favor.
Ao olhar para Julianne, a inocente Julianne, com os seus grandes olhos
castanhos e a sua testa agora enrugada, Gabriel quase abandonou a sua
resolução.
Porque é que ela tinha de ser tão doce? Tão abnegada? Tinha de ser
assim tão complacente? Com uma alma linda?
A culpa invadiu-o. Talvez tivesse sido um gesto misericordioso não a ter
seduzido. Não tendo existido envolvimento sexual, o coração de Julia
recuperar-se-ia mais facilmente. Tinham passado juntos apenas algumas
semanas. Ela secaria rapidamente as lágrimas e encontraria, talvez, uma
relação estável, tranquila e afetuosa com um homem bom e constante, como
Paul.
O pensamento causou-lhe uma violenta náusea.
Sem dizer uma palavra, foi até ao bar e pegou numa garrafa e num copo
de cristal. Voltou a sentar-se e serviu-se de dois dedos de uísque. Bebeu
metade de uma só vez, pousando o copo com brusquidão. Esperou que a
sensação de ardor na garganta se atenuasse. Esperou que a coragem líquida
lhe corresse pelas entranhas, fortalecendo-o.
Respirou fundo.
— Tenho algumas… coisas desagradáveis para te contar. E sei que depois
de estar tudo dito, te vou perder.
— Gabriel, por favor. Eu…
— Por favor, deixa-me falar. — Passou uma mão desvairada pelo cabelo.
— Antes que perca a coragem.
Inspirando novamente, fechou os olhos. E quando voltou a abri-los, fitou-
a como um dragão ferido.
— Tens à tua frente um assassino.
Os sons chegaram aos ouvidos de Julia, mas não lhe penetraram na
consciência. Julgou ter percebido mal.
— Não só sou um assassino, como pus fim a uma vida inocente.
»Se conseguires ficar na mesma sala que eu por mais alguns minutos,
explico-te como tudo aconteceu. — Esperou que Julia reagisse, mas ela
continuava sentada, em silêncio, pelo que Gabriel continuou. — Fui para o
Magdalen College, em Oxford, para fazer o mestrado. Já sabias isso. O que
não sabes é que enquanto lá estive, conheci uma rapariga americana
chamada Paulina.
Julia inspirou com força, e Gabriel fez uma pausa. De todas as vezes que
ela lhe perguntara a respeito de Paulina, ele recusara-se sempre a falar.
Tentara convencê-la de que Paulina não era uma ameaça, mas Julia não
acreditara. Claro que era uma ameaça para a proximidade que sentia crescer
entre si e Gabriel. Fizera-o deixá-la a meio de um jantar, em outubro. E
antes de sair, Gabriel citara Lady Macbeth, profundamente transtornado.
Julia estremeceu, aguardando o que estava por vir.
— A Paulina era aluna da licenciatura. Era atraente, alta e loura, tinha um
ar majestoso. Gostava de dizer às pessoas que tinha relações de parentesco
com a aristocracia russa, que era uma espécie de Anastásia. Tornámo-nos
amigos e por vezes saíamos juntos, mas não era nada de físico. Eu andava
com outras raparigas, e ela estava a sofrer por alguém…
Tossicou nervosamente.
— Acabei o mestrado e mudei-me para Harvard. Mantivemos contacto
por e-mail durante um ano, mais ou menos, e depois ela disse-me que tinha
sido aceite em Harvard, para o mestrado. Queria especializar-se em
Dostoiévski. Precisava de ajuda para encontrar um sítio onde viver, por isso
falei-lhe de um apartamento livre no meu prédio. Mudou-se para lá em
agosto desse ano.
Olhou ansiosamente para Julia. Ela anuiu, tentando que a sua cara não
denunciasse os tremores que lhe sacudiam o corpo.
— O ano em que ela chegou foi o mais difícil para mim. Estava a
trabalhar na dissertação e era assistente de um professor particularmente
exigente. Passava noites inteiras a escrever e dormia muito pouco. Foi nessa
altura que comecei a tomar cocaína. — Baixou o olhar, contorcendo as
mãos, e pôs-se a tamborilar sobre a mesa.
— Aos fins de semana, ia muitas vezes para os copos com colegas.
Metíamo-nos em brigas, ocasionalmente. — Deu uma gargalhada. — Nem
sempre fui bem-comportado, e muitas vezes íamos mesmo à procura de
sarilhos. Acabou por dar jeito, quando tive de me ver com o Simon.
Inclinou-se para a frente, apoiando os antebraços nos joelhos. Julia via-o
abanar as pernas com nervosismo. A cada frase que dizia, Gabriel ficava
mais inquieto, o que significava que se estava a aproximar da beira do
abismo onde escondera o seu segredo.
— Uma noite, alguém levou coca. Pensei que talvez ajudasse a manter-
me acordado, para conseguir trabalhar. Foi assim que comecei. Usava a
coca como estimulante, e compensava-a com álcool. Achava que o facto de
estudar em Harvard fazia de mim um respeitável consumidor recreativo.
Achei que conseguia controlar-me. — Deu um suspiro profundo e baixou o
seu tom de voz. — Estava enganado.
»A Paulina estava sempre por perto. Vinha bater-me à porta a toda a hora
porque eu estava sempre acordado. Eu escrevia, e ela sentava-se no meu
sofá, a ler, ou fazia chá russo. Começou a cozinhar para mim. Acabei por
lhe dar uma chave, visto que ela estava sempre lá em casa. Quando tomava
coca, não tinha muita fome. Só por causa dela é que me alimentava
minimamente.
A voz de Gabriel era agora mais sombria, como se a culpa que tinha
dentro de si o arranhasse para conseguir sair. Leu a pergunta no olhar de
Julia e contraiu os maxilares.
— Ela sabia da coca. A princípio, tentei esconder-lhe o meu vício, mas
ela estava lá sempre. Acabei por desistir e comecei a drogar-me mesmo à
frente dela. Não se importou.
Gabriel evitou o olhar de Julia. Sentia vergonha.
— Ela tinha tido sempre uma vida confortável. Era completamente
inocente no que se referia a drogas e a muitas outras coisas. Fui uma má
influência. Uma noite, despiu-se e sugeriu que snifássemos umas linhas no
corpo um do outro. Eu não tinha a cabeça no sítio, obviamente, e ela estava
nua…
Gabriel expirou devagar e abanou a cabeça, sem tirar os olhos das suas
mãos inquietas.
— Não vou inventar desculpas. A culpa foi minha. Ela era uma rapariga
decente que estava habituada a ter o que queria. E queria-me a mim… o
drogado que vivia no seu prédio. — Esfregou o queixo com as costas da
mão, e Julia reparou que ele não fizera a barba nessa manhã.
Contorceu-se na cadeira.
— Na manhã seguinte, disse-lhe que fora um erro. Não estava
interessado em prender-me a uma rapariga. A coca deixava-me ansioso por
sexo, embora tenha acabado por tornar o ato menos satisfatório. Karma,
acho eu. Tinha-me habituado a estar com mulheres diferentes todos os fins
de semana. Mas quando lhe contei tudo isso, a Paulina disse que não se
importava. Por mais que lhe dissesse ou fizesse, por muito estúpido que
fosse com ela, estava sempre a aparecer-me à porta. Era assim a nossa
relação. Ela portava-se como se fosse minha namorada, e eu tratava-a como
uma queca à disposição. Não queria saber dela, só queria saber de mim e da
coca e da maldita dissertação.
Julia sentiu um aperto no peito. Sabia que Gabriel nunca sentira a falta de
companhia feminina. Era um homem atraente e extraordinariamente
sensual. As mulheres atropelavam-se para lhe chamar a atenção. O passado
de Gabriel não agradava a Julia, mas ela aceitara-o, dizendo para consigo
que não tinha importância.
Mas Paulina fora diferente. Julia percebera-o logo da primeira vez que
ouvira aquele nome. Embora acreditasse que Gabriel já não estava
envolvido com ela, aquilo que ele começara a contar parecia muito mais
sério do que uma aventura passageira. O espetro verde do ciúme enredou-
lhe o coração, apertando-o.
Gabriel levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro.
— Senti a minha vida desabar quando ela me disse que estava grávida.
Acusei-a de estar a tentar prender-me e disse-lhe que interrompesse a
gravidez. — A cara de Gabriel contorcia-se de emoção, e ele parecia
tomado pela dor.
— Ela chorou. Ajoelhou-se e disse que estava apaixonada por mim desde
Oxford e que queria o bebé. Eu nem queria ouvir. Atirei-lhe dinheiro para
um aborto e pu-la fora do apartamento como se ela fosse lixo. — Gabriel
soltou um ronco, um grito distorcido que parecia vindo das profundezas da
sua alma. Esfregou os olhos com os dedos.
Julia cobriu a boca com uma mão a tremer. Não estava preparada para o
que ouvira. Mas à medida que o seu pensamento corria, várias peças do
puzzle que era o professor Emerson começavam a encaixar umas nas outras.
— Passou-se bastante tempo sem que voltasse a vê-la. Parti do princípio
de que ela tinha abortado. Nem me dei ao trabalho de procurar saber, por aí
se vê como andava passado. Uns dois meses mais tarde, arrastei-me até à
cozinha, uma manhã, e encontrei uma impressão de uma ecografia colada
no frigorífico. Com um bilhete.
Recostou-se na cadeira e pousou a cabeça entre as mãos.
— A Paulina tinha escrito: Esta é a tua filha, a Maia. Não é linda? — As
palavras de Gabriel foram semiabafadas pelo soluço que lhe escapou do
peito.
— Dava para ver o contorno da cabecinha e o nariz, os braços e as pernas
minúsculos. Mãos pequeninas e pés pequeninos. Era linda. Uma bebé linda,
frágil. A minha menina. Maia. — Engoliu outro soluço. — Eu não sabia.
Não era real. Ela só se tornou real quando vi a fotografia e… — Gabriel
chorava.
Julia viu as lágrimas que lhe corriam pela cara, e o seu coração
estremeceu. Sentindo os seus próprios olhos rasos de água, levantou-se para
ir ter com ele, mas Gabriel ergueu uma mão para a impedir.
— Disse à Paulina que a ajudaria com a bebé. Claro que estava sem
dinheiro nenhum. Tinha gasto todo o meu dinheiro em droga e já estava a
dever ao meu traficante. A Paulina sabia disso e, por estranho que pareça,
queria continuar comigo. Voltámos a ficar juntos, e ela lia no meu sofá
enquanto eu escrevia a dissertação. Manteve-se afastada da droga e tentou
cuidar de si e da bebé. Eu tentei parar, mas não consegui.
Levantou a cabeça e olhou para Julia.
— Queres ouvir o resto? Ou preferes ir-te já embora?
Julia não hesitou. Foi ter com ele e pôs-lhe os braços em volta dos
ombros.
— Claro que quero ouvir o resto.
Gabriel estreitou-a nos seus braços, mas só por um instante, e depois
empurrou-a e limpou as faces com as costas da mão. Julia afastou-se
tropegamente, enquanto ele prosseguia com a sua confissão.
— Os pais da Paulina viviam no Minnesota. Não eram ricos, mas
enviavam-lhe dinheiro. A Grace também me enviava dinheiro, sempre que
eu lhe telefonava. De alguma maneira, dava para sobrevivermos. Ou, pelo
menos, para adiarmos o inevitável. Mas eu gastava a maior parte do
dinheiro em coca. — Deu uma gargalhada sinistra. — Que tipo de homem
tira dinheiro a uma mulher grávida e o gasta em droga?
Apressou-se a continuar.
— Numa noite de setembro, saí para tomar copos. Fiquei fora dois dias, e
quando finalmente voltei para casa, atirei-me para o sofá. Nem consegui
chegar ao quarto. Na manhã seguinte, acordei com uma ressaca tremenda.
Caminhava aos tropeções pelo corredor, quando vi sangue no chão.
Gabriel cobriu os olhos com as palmas das mãos, como se estivesse a
tentar apagar a imagem. Julia deu por si a suster a respiração, enquanto
esperava pela revelação seguinte.
— Segui o rasto e encontrei a Paulina caída no chão da casa de banho
numa poça de sangue. Tentei encontrar-lhe o pulso, mas não consegui.
Achei que ela estava morta. — Ficou em silêncio por alguns minutos. — Se
tivesse ido vê-la quando cheguei a casa, podia ter chamado uma
ambulância. Mas nem a procurei. Estava pedrado, e aterrei no sofá, e não
me importei com mais ninguém para além de mim. Quando me disseram
que ela tinha perdido a bebé, não tive dúvidas de que era eu o culpado. Era
uma morte perfeitamente evitável. Foi o mesmo que tê-la matado com as
minhas próprias mãos.
Ergueu as mãos à frente da cara e voltou-as devagar, como se nunca as
tivesse visto antes.
— Sou um assassino, Julianne. Um drogado assassino.
Julia abriu a boca para o contradizer, mas ele nem a deixou falar.
— A Paulina passou semanas no hospital, primeiro com problemas
físicos, depois com uma depressão. Tive de pedir uma licença sem
vencimento de Harvard, porque estava demasiado pedrado ou demasiado
bêbado para trabalhar. Devia milhares de dólares a pessoas perigosas e não
tinha como arranjar o dinheiro. A Paulina tentou matar-se no hospital, por
isso queria pô-la numa clínica privada para doenças mentais, um sítio onde
fossem amáveis com ela. Quando telefonei aos pais dela a implorar-lhes que
nos ajudassem, disseram-me que eu era uma desgraça. Que tinha de casar
com ela, e só depois ajudariam.
Fez uma pausa.
— Eu tê-lo-ia feito. Mas a Paulina estava demasiado instável para sequer
falar disso. Decidi que ia cumprir o meu dever para com ela e que depois
me suicidaria. Isso poria fim a todos os nossos problemas.
Gabriel fitou-a com olhos frios, mortiços.
— Como vês, Julianne, sou um dos danados. Através da minha
indiferença depravada, causei a morte de uma criança e a destruição
permanente de uma mulher que poderia ter tido um futuro brilhante. Mais
valia ter pendurado uma pedra ao pescoço e ter-me atirado ao mar.
— Foi um acidente — disse Julia, calmamente. — Não foi por culpa tua.
— Não foi culpa minha ter dormido com a Paulina e tê-la engravidado?
Não foi culpa minha tê-la tratado como a uma prostituta, tê-la viciado em
drogas e tê-la pressionado para fazer um aborto? Não foi culpa minha ter
entrado em casa, pedrado, e nem sequer ter ido ver se ela estava no
apartamento?
Julia segurou as mãos dele entre as suas, apertando-as com força.
— Gabriel, escuta-me. Contribuíste para a situação, sim, mas foi um
acidente. Se havia assim tanto sangue, a bebé devia ter algum problema. Se
não tivesses chamado a ambulância quando chamaste, a Paulina teria
morrido. Salvaste-a.
Gabriel não erguia os olhos, mas Julia pôs-lhe uma mão no queixo e
obrigou-o a encará-la.
— Salvaste-a. Tu próprio disseste que querias a tua filha. Que não
querias que a bebé morresse.
Gabriel tentou escapar ao toque dela, mas Julia não o libertou.
— Não és um assassino. Foi apenas um acidente trágico.
— Não compreendes. — A voz de Gabriel era fria, indiferente. — Eu sou
exatamente como ele. Ele usou-te, e eu usei a Paulina. Fiz mais do que usá-
la. Tratei-a como se ela fosse um brinquedo e dei-lhe droga, quando devia
tê-la protegido. Que espécie de demónio sou?
— Não és nada como ele — gritou Julia, dominada pela emoção. — Ele
não tem remorsos pelo que me fez, e se tivesse oportunidade, voltava a
fazê-lo. Ou pior.
Inspirou fundo e reteve o ar no peito.
— Gabriel, cometeste alguns erros. Fizeste coisas terríveis. Mas
arrependeste-te. Há anos que tentas compensar o que fizeste. Não achas que
isso deve contar para alguma coisa?
— Todo o dinheiro do mundo não basta para pagar uma vida.
— Não tiraste a vida a ninguém — contrapôs Julia, olhos cintilando.
Gabriel escondeu a cara entre as mãos. Nunca imaginara que a conversa
pudesse seguir aquele rumo.
Porque é que ela ainda está aqui? Porque não me deixou?
Julia deu um passo atrás e olhou-o por instantes. Podia sentir as ondas de
desespero que o submergiam, enquanto ela vasculhava o seu cérebro à
procura de uma forma de o alcançar.
— Já leste Les Misérables, de Victor Hugo?
— Claro — balbuciou Gabriel. — Que tem isso a ver para o caso?
— O herói abandona o seu pecado e leva a cabo uma penitência; toma
conta de uma menina como se ela fosse sua filha. Mas durante todo esse
tempo, um polícia persegue-o, convencido de que ele não mudou. Não
preferias ser o homem que se penitencia do que o polícia?
Gabriel não respondeu.
— Consideras que tens de sofrer pelo teu pecado para sempre?
Julia continuou a não obter resposta.
— Porque parece que é isso que estás a dizer: que não vais permitir-te ser
feliz. Não vais permitir-te ter filhos. Achas que perdeste a tua alma. Mas,
então e a redenção, Gabriel? E o perdão?
— Não o mereço.
— Que pecador o merece? — Julia abanou a cabeça. — Quando te contei
o que aconteceu com ele, disseste-me para me perdoar e para me permitir
ser feliz. Será que não podes fazer o mesmo?
Gabriel baixou os olhos para o chão.
— Tu foste a vítima. Eu sou o assassino.
— Digamos que isso é verdade. Que penitência seria adequada, Gabriel?
Como poderias fazer justiça?
— Olho por olho — murmurou ele.
— Está bem. Olho por olho significa que terias de salvar a vida de uma
criança. És responsável pela morte de uma criança, por isso, em nome da
justiça, tens de salvar uma criança. Não dinheiro, não presentes, mas uma
vida.
Gabriel permanecia imóvel, mas agora Julia sabia que ele estava a ouvi-
la.
— Salvaste a vida à Paulina, mas sei que não contarás com esse ato.
Então, precisas de salvar a vida de um filho de outra pessoa. Isso não
pagaria o teu pecado? Ou não seria, pelo menos, alguma espécie de
restituição?
— Não traria a Maia de volta. Mas já seria alguma coisa. Tornar-me-ia
menos… malévolo. — Gabriel deixou pender a cabeça, e os seus ombros
curvaram-se.
A dor na sua voz quase rasgou o coração de Julia, mas ela prosseguiu,
corajosamente.
— Terias de encontrar uma criança em perigo de morrer, e salvá-la. Essa
seria a tua expiação.
Gabriel anuiu ligeiramente, abafando um queixume.
Julia ajoelhou-se, segurando a mão dele entre as suas.
— Não compreendes, Gabriel? Eu sou essa criança.
Ele ergueu a cabeça e olhou-a como se a achasse louca, os seus olhos
rasos de lágrimas demorando-se nos dela.
— O Simon podia ter-me matado. Ficou furioso quando o esbofeteei… Ia
arrombar a porta do meu quarto e matar-me. Mesmo que eu tivesse ligado
para o 112, nunca teriam chegado a tempo.
»Mas tu salvaste-me. Tiraste-o da minha porta. Impediste-o de voltar a
entrar em casa. Estou viva, agora, graças a ti. Sou a filha do Tom, e tu
salvaste-me a vida.
Gabriel permaneceu imóvel, sem palavras.
— Uma vida por uma vida, foi o que disseste. Pensas que puseste fim a
uma vida, e agora salvaste outra.
»Tens de perdoar a ti próprio. Pede à Paulina que te perdoe, pede a Deus
que te perdoe, mas também tens de perdoar a ti próprio.
— Não chega — murmurou Gabriel, os seus grandes olhos tristes ainda
marejados de lágrimas
— Não trará a tua filha de volta, isso é certo. Mas pensa na tua dádiva
para o meu pai… Salvaste a sua única filha. Converter a dívida em
penitência. Não és um demónio, és um anjo. O meu anjo.
Gabriel olhou-a em silêncio, tentando ler-lhe os olhos, os lábios, a
expressão. Depois, estendeu-lhe a mão e puxou-a para si, sentando-a ao seu
colo. Abraçou-a durante o que pareceu uma eternidade, derramando-lhe
lágrimas nos ombros.
— Desculpa — segredou-lhe. — Desculpa por ter esperado tanto tempo
para te contar. Desculpa por a minha história ser verdadeira. Destruí a fé
que tinhas em mim, eu sei.
— Continuo a amar-te.
Julia tentou reconfortá-lo sussurrando-lhe ao ouvido, deixando-o libertar-
se da dor através das lágrimas. E quando as lágrimas começaram a secar,
Julia começou rapidamente a desabotoar-lhe a camisa branca, antes que ele
pudesse perguntar-lhe o que estava a fazer. Afastou-lhe a camisa do peito nu
e passou-lhe os dedos em redor da tatuagem. Em seguida, devagar, muito
devagar, pousou os lábios sobre a boca do dragão e beijou-a.
Quando terminou, Gabriel olhava-a, num encantamento silencioso.
Julia tirou a sua écharpe e pousou a mão de Gabriel sobre a mordedura,
uma marca agora mais ténue mas ainda visível. E pousou a sua mão sobre a
tatuagem dele. Gabriel encolheu-se e fechou os olhos.
— Ambos temos cicatrizes. E talvez tenhas razão, não vão desaparecer.
Mas eu sou a tua expiação, Gabriel. A minha vida é a tua dádiva para um
pai que podia ter perdido a filha para sempre. Obrigada.
— Sou um hipócrita — disse Gabriel numa voz áspera. — Disse ao Tom
que ele era um mau pai. Que tipo de pai fui eu?
— Um pai jovem. Inexperiente. Não devias andar a tomar droga. Mas
querias a Maia. Tu mesmo o disseste.
Gabriel estremeceu nos braços de Julia.
— Nada que eu possa dizer a trará de volta. Mas talvez te reconforte se
disser que acredito que a tua filha canta com os abençoados no Paraíso. Ao
lado de Grace. — Enxugou-lhe as lágrimas. — Tenho a certeza que a Grace
e a Maia quereriam que encontrasses amor e perdão. Rezariam para que te
redimisses. Não te julgariam malévolo.
— Como podes ter a certeza? — perguntou num sussurro.
— Aprendi-o contigo. O canto trinta e dois do Paradiso de Dante
descreve o lugar especial que Deus reserva para as crianças. A elas pertence
o reino dos Céus. E no Paraíso, só há amor e perdão. Não há ódio. Nem
malícia. Só paz.
Gabriel estreitou-a contra o peito, e demoraram-se num abraço apertado.
Julia não podia ter imaginado aquele segredo. E embora a perturbasse ver
como a dor de Gabriel fora moldada pelo seu temperamento melancólico, a
dor propriamente dita era algo que Julia não podia negar.
Julia não amara uma criança para depois a ver morrer. Sentiu uma
compaixão imensa pelo homem que amava e uma vontade determinada de o
ajudar a reconhecer o seu valor e a aceitar que era digno de ser amado,
apesar dos seus pecados passados. Sentada ao seu colo, a blusa que trazia
humedecida com as lágrimas dele, Julia viu claramente quem era Gabriel
Emerson. Sob muitos aspetos, era um rapazinho assustado, receoso de que
ninguém perdoasse os seus erros. Ou de que ninguém o amasse apesar
desses erros.
Mas Julia amá-lo-ia.
— Gabriel, não podes sentir-te confortável nesta cadeira.
Sentiu-o anuir contra o seu ombro.
— Vem. — Pôs-se de pé e segurou-lhe na mão, ajudando-o a levantar-se.
Conduziu-o até ao sofá, fazendo-o sentar-se, enquanto ela acendia a lareira.
Gabriel descalçou-se, e Julia encorajou-o a deitar-se ao comprido,
repousando a cabeça no seu colo. Alisou-lhe as sobrancelhas e começou a
passar-lhe os dedos pelo cabelo despenteado. Ele fechou os olhos.
— Onde está a Paulina agora?
— Em Boston. Quando recebi a minha herança, abri-lhe um fundo
fiduciário e comprei-lhe um apartamento. Já entrou e saiu várias vezes da
clínica de reabilitação. Mas tem sido bem tratada, e voltou a trabalhar em
Harvard, a tempo parcial, há um ano ou dois.
— Que aconteceu na noite em que ela telefonou, quando estávamos a
jantar?
Gabriel olhou-a, confuso, e só depois se recordou.
— Esqueci-me que tinhas ouvido essa conversa. Ela estava embriagada e
teve um acidente de carro. Estava histérica, ao telefone, e achei que teria de
me meter num avião e ir até lá. Só me telefona quando está metida em
sarilhos. Ou quando quer alguma coisa.
— Que aconteceu?
— Fui a correr para casa, mas antes de sair para o aeroporto, liguei para
Boston, para o meu advogado. Ele foi ter com ela ao hospital e garantiu-me
que ela não estava em tão mau estado como me tinha feito crer. Mas foi
incriminada, passado um dia ou dois. Tudo o que eu podia fazer era
contratar alguém que a defendesse. Ela até tem andado bastante bem,
ultimamente, mas coisas destas acontecem de tempos a tempos.
Talvez fosse do brilho trémulo da lareira. Ou da tensão de ter revelado o
seu segredo mais terrível. Mas, naquele momento, Gabriel parecia
demasiado envelhecido e cansado para os seus trinta e poucos anos.
— Amas a Paulina?
Gabriel abanou a cabeça.
— Acho que os meu sentimentos não contam como amor, embora sinta
alguma coisa por ela. Nunca me foi familiar, por mais que me custe admiti-
lo. Mas não podia abandoná-la, estando a sua família tão longe e recusando-
se a ajudar. Era eu a causa dos seus problemas, e é por minha causa que ela
poderá nunca vir a ter filhos. — A sua voz fraquejou, e Gabriel estremeceu.
— Foi por isso que decidiste não ter filhos?
— Olho por olho… Quando ela chorou nos meus braços e me contou,
tomei essa decisão. Não foi nada fácil convencer um médico a fazer a
intervenção; todos diziam que eu era demasiado novo e que mais tarde
mudaria de ideias. Mas acabei por encontrar um que aceitou. Por estranho
que pareça, foi reconfortante, na altura.
Gabriel levou uma mão à cara de Julia, acariciando-lhe uma face.
— Falei de ti à Paulina. Sempre teve ciúmes, mas sabe que não consigo
dar-lhe o que ela quer. A nossa relação é… complicada. Ela vai fazer
sempre parte da minha vida, Julianne. Preciso que compreendas isso. Isto é,
se ainda…
Julia beijou-o nos lábios.
— Claro que ainda te amo. Estás a sustentá-la e a ajudá-la sempre que
tem problemas. É a atitude honrada a tomar.
— Acredita, Julianne, estou longe de ser honrado.
— Queres… contar-me a respeito da tua tatuagem?
Gabriel sentou-se e despiu a camisa, que deixou cair sem cerimónias
sobre o tapete persa. Voltou a pousar a cabeça no colo de Julia e olhou-a nos
olhos. Sabia agora que ela o aceitava, e no seu olhar via apenas
preocupação.
— Fi-la em Boston, quando saí da reabilitação.
Julia beijou uma vez mais o dragão, muito docemente.
Gabriel respirou com força ao sentir a boca dela tocar-lhe a pele.
— Que representa o dragão? — perguntou Julia, começando a afagar-lhe
o cabelo, e procurando reconfortá-lo.
— O dragão sou eu, ou as drogas, ou ambos. O coração é meu, e está
partido, obviamente. A Maia estará sempre no meu coração. Deves achar
horrível… ter uma coisa tão mórbida e feia no meu coração.
Permanentemente.
— Não, Gabriel, não acho nada disso. É como… um memorial.
— A Paulina estava grávida de uns cinco meses quando perdeu a bebé.
Nenhum de nós estava no seu juízo perfeito, por isso não fizemos um
funeral. Há uns anos mandei erguer uma lápide para a Maia em Boston. —
Pegou na mão de Julia e beijou-a. — Ela não está sepultada lá —
confessou, numa voz atormentada.
— Não estaria lá, de qualquer forma, Gabriel. Está com a Grace.
Gabriel olhou-a fixamente, os olhos novamente rasos de água.
— Obrigado por dizeres isso — murmurou, beijando-lhe uma vez mais a
mão. — Há um anjo de pedra de cada lado da lápide. Queria que fosse
bonito.
— De certeza que é encantador.
— Já recebeste parte do memorial.
Julia olhou-o, perplexa.
— A tua bolsa. Dei-lhe o nome dela: Maia Paulina Emerson.
Julia enxugou uma lágrima que lhe escapou subitamente de um olho.
— Desculpa ter tentado devolver-ta. Não fazia ideia.
Gabriel puxou-a para si e beijou-a no nariz.
— Eu sei, meu amor. Na altura, não estava preparado para te explicar o
significado que a bolsa tinha. Só queria que a tivesses. Mais ninguém a
merecia. — Beijou-a de novo, suavemente.
— Perguntei à Rachel de quem seriam as iniciais. Ela não sabia.
— Ninguém sabe da Maia e da Paulina, só o Richard. E a Grace. A
minha vergonha era tanta… Eles acharam que bastava o Scott e a Rachel
terem conhecimento da droga. Mas, para além de ti, ninguém sabe da
tatuagem.
Julia enrolou os dedos no cabelo de Gabriel.
— Assustaste-me com o Puccini — sussurrou-lhe. Ansiava por vê-lo
encontrar a paz.
— Pareceu-me… adequado.
Ela abanou a cabeça.
— A forma como tratei a Paulina. Ela amou-me durante anos, e eu não
conseguia amá-la. — Encolheu desajeitadamente os ombros, e olhou para
Julia intensamente. — Nunca te trataria como a uma borboleta, como uma
coisa que eu tivesse capturado para meu divertimento. Nunca te prenderia a
um cartão nem te arrancaria as asas.
Julia abanou a cabeça, uma expressão magoada desenhando-se-lhe no
rosto.
— Gabriel, por favor. Eu confio em ti. Não és o Pinkerton do Puccini. Eu
sei isso.
Como prova do que acabara de dizer, beijou-o, movendo a boca ao ritmo
da sua, até ter de recuar para recuperar o fôlego.
— Não te mereço — sussurrou Gabriel.
— Se calhar, não nos merecemos um ao outro, mas posso escolher quem
amo. E escolho-te a ti.
Gabriel franziu o sobrolho, como se não acreditasse.
— Por favor, deixa-me amar-te. — A voz de Julia fraquejou na última
palavra, e uma lágrima isolada rolou-lhe pela face.
— Como se eu pudesse sequer imaginar-me a viver sem ti. — Puxou-a
para si, e o desespero e a paixão da sua alma atormentada uniu-os.
Julia seguiu-o a cada movimento, recebendo e dando tudo de uma só vez,
curvando-se sobre o homem lindo que repousava a cabeça cansada no seu
colo. Gabriel segurou-lhe nos pulsos e beijou-os, com beijos molhados, a
boca aberta, chupando ao de leve o lugar onde veias pálidas se cobriam de
uma pele como papel de arroz.
— Perdoa-me, Julianne, mas preciso de ti. Minha doce Julianne. Preciso
tanto de ti. — Os olhos de Gabriel eram um fogo azul, a sua voz tornara-se
granulosa.
Antes que Julia se apercebesse do que estava a acontecer, Gabriel mudara
de posição, sentando-se no sofá e puxando-a para o seu colo, voltada para
ele, com uma perna de cada lado. Os seus corpos estreitaram-se, e Julia
sentiu as mãos dele deslizando-lhe até ao fundo das costas, acariciando-a,
tocando-lhe as nádegas através das calças de fazenda.
No atordoamento daquele instante, ela lembrou-se de uma das fotografias
a preto e branco que estavam no quarto de Gabriel. E reconheceu a beleza e
a paixão da imagem na perspetiva de uma primeira pessoa. Era desejo,
urgência, desespero e um amor profundo, incondicional, agora libertado
através da revelação de segredos obscuros.
Gabriel sentia o amor de Julia nos seus beijos, nos seus abraços, no modo
como os seus dedos lhe roçavam a nuca e a superfície da tatuagem,
beijando-o de lábios abertos no peito, uma e outra vez. Julia queria dar-lhe
tudo. Faria qualquer coisa para o libertar da dor, incluindo oferecer-se.
O Sacrifício de Isaac.
Então, com dedos trémulos, Julia desabotoou a camisa, deixando-a
escorregar-lhe dos ombros. Um suspiro quase inaudível de Gabriel ecoou o
toque da seda no tapete.
Julia era a sua expiação.
Capítulo Trinta e Dois

N a manhã seguinte, Julia acordou completamente nua.


Ou assim julgou.
Estava na cama de Gabriel, os seus corpos enlaçados. Tinha a cabeça
sobre o ombro dele, enquanto ele lhe rodeava a anca direita com o braço
esquerdo, e tinham ambos as pernas afastadas e as suas ancas estavam
juntas.
Julia fez a sua mão deslizar pelas costas de Gabriel até encontrar o
algodão macio que lhe cobria as curvas mais deliciosas, curvas que ela
explorou sub-repticiamente. Só depois reparou que tinha o sutiã e as cuecas
cor-de-rosa vestidos.
No seu sonho, tinham caído na cama nus e feito amor durante horas.
Gabriel deitara-se sobre ela e segurara-lhe o olhar como um íman, e entrara
nela devagar, até os dois se tornarem um só. Um círculo eterno sem começo
nem fim. Gabriel adorara-a com o seu corpo e com as suas palavras, e fora
tudo muito mais emocional e maravilhoso do que Julia se atrevera a
imaginar.
Mas não passara de um sonho. Suspirou e fechou os olhos, recordando os
acontecimentos da véspera. Tristeza e alívio misturaram-se e invadiram-lhe
o coração; tristeza pela perda que Gabriel sofrera e pelo desespero que o
torturava, e alívio por todos os seus segredos terem finalmente sido
revelados.
Ouviu Gabriel murmurar o seu nome. Estava tão cansado, na noite
anterior. Tão destroçado. Julia beijou-o na cara e libertou-se em silêncio dos
seus braços, dirigindo-se em seguida para a casa de banho.
Quando se olhou ao espelho, viu cabelo rebelde, sombra de olhos
esborratada, e lábios inchados de tanto beijar. Várias marcas de beijos, de
cor esbatida e praticamente indolores, sarapintavam-lhe o pescoço e o peito.
Gabriel fora um amante carinhoso mas entusiástico.
Lavou a cara e escovou o cabelo, prendendo-o num rabo-de-cavalo alto, e
pôs de lado o seu roupão roxo, optando, provocadoramente, por uma das
camisas de Gabriel. Foi buscar o Globe and Mail à porta, e acenou
timidamente a um vizinho, um rapaz tímido mas não propriamente mal
parecido, que espreitou para as suas pernas bem feitas através dos óculos
sem aros. Não estava habituado a ver uma mulher bonita logo pela manhã, e
trazia apenas umas calças de pijama do Super-Homem de origem duvidosa,
pelo que recuou para o seu apartamento como um rato assustado.
Ao entrar na cozinha, Julia deparou-se com uma confusão, pois não
tinham sequer levantado a mesa do jantar, as mãos e as mentes demasiado
ocupadas para tarefas tão rotineiras. Depois de se deliciar com uma fatia de
tarte de maçã com queijo cheddar, Julia arregaçou as mangas para repor a
ordem no apartamento de Gabriel. A tarefa demorou mais do que supusera.
Estando a cozinha imaculada e Gabriel ainda a dormir, Julia serviu-se de
uma grande chávena de café e sentou-se no cadeirão favorito dele, junto à
lareira, com o jornal. Ao ver a camisa Oxford de Gabriel e a sua blusa de
seda juntas, no chão, Julia sorriu e corou.
«E isto, ai de nós!, é mais do que podemos fazer.»
Gabriel impedira-a. Julia ter-se-ia entregado de boa vontade. Amava-o.
Para Julia, a questão não era saber se faria amor com ele, mas quando. Mas
Gabriel balbuciara algo contra o seu seio nu, e parara.
Gabriel receara que ela o abandonasse quando soubesse da sua relação
com Paulina e da trágica perda da filha de ambos. Mas a sua confissão
apenas os deixara mais unidos. Pelo menos, Julia conseguira mostrar-lhe
isso.
E daqui a três dias, talvez, estaremos tão próximos quanto um casal pode
estar. Dentro de dois dias, partiriam para Itália, e Julia acompanhá-lo-ia à
palestra como sua namorada. E depois daqueles dias em Florença, talvez
viajassem até Veneza ou à Úmbria, já como amantes.
Apesar de tudo aquilo por que tinham passado, Julia sentia-se em paz
com a camisa dele vestida e sentada no seu cadeirão. Acreditava que
pertenciam um ao outro. E desde que o Destino não conspirasse contra eles,
encontrariam a felicidade. Julia assim esperava. No entanto, o facto de
saber que Paulina conseguia deixar Gabriel de rastos com um simples
telefonema perturbava-a consideravelmente.
Nada menos do que uma hora mais tarde, Gabriel apareceu na sala, a
coçar a cabeça e a bocejar. Tinha o cabelo em completo desalinho, à
exceção de um único, perfeito, caracol errante que se lhe colara à testa.
Trazia um par de calças de ganga desbotadas, os óculos, e nada mais. Nem
tinha meias calçadas. (Parenteticamente, acrescente-se que até os pés de
Gabriel eram atraentes.)
— Boa-tarde, meu amor. — Acariciou a face de Julia e curvou-se para a
beijar com firmeza. — Gosto da tua… indumentária. — Os seus olhos
fixaram-se na pele nua das coxas de Julia.
— Também gosto da sua indumentária. Está tremendamente casual, esta
manhã, professor.
— Menina Mitchell — retorquiu, olhando-a sedutoramente —, já tem
muita sorte em eu ter vestido o que quer que fosse. — Riu-se ao vê-la corar
violentamente e desapareceu na cozinha.
Ó deuses de todas as virgens que tencionam ter sexo com os seus
namorados-deuses-do-sexo (perdoem-me a blasfémia), por favor não me
deixem entrar em combustão espontânea quando ele finalmente me levar
para a cama. Preciso mesmo de um orgasmo induzido pelo Gabriel,
especialmente depois da noite passada. Por favor. Por favor. Por
obséquio…
Minutos depois, Gabriel regressou e afundou-se no sofá com a sua
chávena de café, passando uma mão pela barba por fazer. Olhou para Julia e
franziu o sobrolho.
— Estás demasiado longe. — Deu uma palmadinha convidativa no
joelho.
Com um largo sorriso, Julia foi ter com ele, permitindo-lhe que a guiasse
para a sentar confortavelmente ao seu colo. Gabriel rodeou-lhe as ancas
com um braço apreciativo, levantando-lhe a camisa para pousar a mão
sobre os boxers arrendados.
— E como se sente a menina Mitchell esta manhã?
— Cansada — suspirou. — Mas feliz. — Os seus olhos pousaram
ansiosamente nos de Gabriel. — Se é que não faz mal dizê-lo.
— Não faz mal nenhum. Eu também estou feliz. E, valha-me Deus, tão
aliviado. — Fechou os olhos, deixando a cabeça pender para trás e
respirando fundo. — Julguei que te ia perder.
— Porquê?
— Julianne, se fôssemos fazer uma análise de custo-benefício, eu seria
um investimento de alto custo, elevado risco e fraco retorno.
— Que disparate. Não te vejo de todo assim.
Gabriel fez um meio-sorriso.
— Porque és uma alma de perdão e compaixão. Se bem que, devo
admitir, os meus melhores talentos e qualidades permanecem, até agora, por
revelar. — A sua voz era agora rouca, e a familiar centelha da sensualidade
iluminava-lhe os olhos azuis. — Mas estou ansioso por os colocar
inteiramente ao teu dispor, uma e outra vez e outra vez ainda, ad infinitum,
até estares cansada deles e de mim. E totalmente saciada.
Julia engoliu em seco. Com força.
Ele beijou-lhe a testa, pousando a chávena na mesa de apoio para poder
envolvê-la nos seus braços.
— Obrigado por teres ficado.
— Eu amo-te, Gabriel. Tens de aceitar o facto de que não vou a lado
nenhum.
Ele abraçou-a em resposta, mas ficou calado.
— E não tens de me conquistar sexualmente. Já me conquistaste —
murmurou Julia. — A tua melhor qualidade é o teu coração, Gabriel, não as
tuas proezas sexuais. Foi pelo teu coração que me apaixonei.
Gabriel permaneceu tanto tempo em silêncio que Julia julgou tê-lo
aborrecido. Ou tê-lo insultado.
Talvez não seja muito sensato ofender as competências sexuais de um
futuro amante sem ter tido a oportunidade de as testar. Ainda abriu a boca
para pedir desculpa, mas ele impediu-a.
Beijou-a com firmeza, um beijo de boca fechada que rapidamente deu
lugar ao puxar de lábios, ao jogo de línguas e às carícias.
Quando terminou o beijo, Gabriel apertou-a contra o seu peito e
segredou-lhe ao ouvido.
— Deixas-me nu. Lês dentro de mim. És a única pessoa que soube de
tudo e que ainda assim me quis. Só tu, meu amor.
Julia percebera intuitivamente que Gabriel usava a sua sexualidade como
um escudo para manter a verdadeira intimidade e o amor à distância. Mas
ao ouvir aquela declaração, compreendeu quão dolorosa e solitária devia ter
sido a sua existência ao longo de todos aqueles anos, já para não falar do
trauma de ter sido invisível para a sua mãe e do processo difícil de se tornar
um filho adotivo. Tendo reconhecido tudo aquilo em Gabriel, para além do
sofrimento por causa de Maia, Julia tentou reprimir as lágrimas, pois não
queria vê-lo triste, mas não conseguiu impedir-se de chorar.
— Chhhh, não chores — sussurrou Gabriel, limpando-lhe as lágrimas e
beijando-a na testa. — Amo-te. Por favor, não chores. Não por minha causa.
Ela aninhou-se-lhe nos braços e procurou conter as lágrimas. Ele
esfregou-lhe as costas, acariciando-a repetidamente. E quando se sentiu
mais calma, Julia falou finalmente.
— Amo-te, Gabriel. E não consigo deixar de pensar que a Grace estaria
muito orgulhosa de ti.
Ele franziu o sobrolho.
— Não tenho a certeza disso. Mas estaria sem dúvida orgulhosa de ti e de
tudo o que conseguiste.
Julia sorriu.
— A Grace tinha o dom da misericórdia.
— É verdade. A tua escolha de palavras é muito interessante. Um dos
seus livros preferidos era precisamente A Severe Mercy. Andou anos a
tentar que eu o lesse. Tenho um exemplar algures no escritório. Talvez
devesse procurá-lo.
— É sobre quê?
— Sobre um casal jovem. O homem vai estudar para Oxford, e penso que
se torna um protegido de C.S. Lewis. É uma história verdadeira.
— Gostava tanto de ir a Oxford, para ver onde os Inklings bebiam
cerveja e escreviam as suas histórias. A Katherine Picton fala muito sobre
Oxford.
Gabriel beijou-a na testa.
— Adorava levar-te lá, e mostrar-te as estátuas no Magdelen College que
inspiraram Lewis a escrever sobre os animais de pedra em O Leão, a
Feiticeira e o Guarda-roupa. Podemos ir em junho, se quiseres.
Julia sorriu e beijou-o também.
— Se me emprestares o livro da Grace, levo-o para Itália. Gostava de ler
alguma coisa durante as nossas férias.
— Que te leva a pensar que te vou dar muito tempo para ler? —
perguntou Gabriel, com um sorriso presumido e tocando-lhe com um dedo
na ponta do nariz.
Com um ligeiro rubor, Julia balbuciou uma resposta vaga, mas Gabriel
continuou, subitamente sério.
— Desculpa termos tido de parar, na noite passada. Não está certo
provocar-te daquela maneira e depois… — Olhou-a, procurando uma
reação.
Ela pôs-lhe os braços em redor do pescoço e abraçou-o ternamente.
— Foi uma noite cheia de emoções. Fiquei feliz por estar perto de ti e por
adormecer nos teus braços. Só queria consolar-te de todas as formas
possíveis. Não precisas de pedir desculpa.
Gabriel segurou-lhe a cara entre as mãos.
— Julianne, a tua mera presença é um consolo. Mas estava exausto, e
tinha estado a beber… uma receita para o desastre. — Abanou a cabeça,
parecendo envergonhado. — Não quis que a nossa primeira vez tivesse
tanta bagagem, com todos os fantasmas do meu passado a girar em redor.
Quero que vamos para um sítio só nosso e que façamos novas memórias.
Memórias felizes.
— Claro. Mas devo dizer-te que fiquei bastante satisfeita com as nossas
interações na noite passada. — Riu-se e beijou-o.
Ele retribuiu avidamente o beijo.
— Então, não ficaste aborrecida?
— Gabriel, és um cavalheiro por quem vale a pena esperar. Que tipo de
pessoa seria eu se tivesse um acesso de mau humor só por tu dizeres que
queres parar? Se eu te pedisse para parares, gostaria que aceitasses sem
ficares zangado.
A testa de Gabriel enrugou-se.
— Claro, Julianne. Podes sempre dizer-me para parar.
— E mais vale parares porque eu te peço, do que parares porque já não
chegas para mim… — disse Julia, provocando-o.
— Ah, não. — Gabriel apertou-a com força. — Nada de piadas dessas. Já
me sinto bastante sensível em relação à nossa diferença de idade.
Ela sacudiu o cabelo.
— As nossas almas têm de ser mais ou menos da mesma idade. Por isso,
que importa?
Ele puxou-lhe o rabo-de-cavalo.
— És incrível, sabes? És inteligente e divertida e, raios me partam!, és
linda. Ontem à noite, quando beijei os teus seios… — Pousou-lhe uma mão
reverente sobre o peito. — Rivalizas com a musa de Botticelli.
— De Botticelli?
— Não reparaste que é a mesma mulher que aparece em vários dos
quadros dele? É sobre ela que vou falar na minha palestra na Galeria Uffizi:
a musa de Botticelli.
Julia sorriu-lhe docemente, pousando também a mão sobre o seu peito.
— Mal posso esperar.
— Digo o mesmo.
Depois de um duche solitário, Julia demorou o seu tempo a convencer
Gabriel a deixá-la sair sozinha para ir às compras. Ele insistia em
acompanhá-la. Mas quando finalmente lhe explicou que queria ir escolher
lingerie, sozinha, ele cedeu.
— Promete-me que ficas comigo até partirmos para Itália. — Olhou-a
através das sobrancelhas.
— Preciso de fazer a mala. Tenho tudo no meu apartamento.
— Quando terminares as compras, apanha um táxi e vai a casa fazer a
mala antes de o condutor te trazer para cá. Também tenho umas voltas a dar,
mas tens a tua chave e o cartão de segurança para entrares mesmo que eu
não esteja.
— E que tipo de voltas vai o professor Emerson dar hoje?
Ele sorriu-lhe sedutoramente, e Julia teve a sensação de que os seus
boxers lhe escorregavam das ancas como se fossem cair ao chão.
— Talvez eu também precise de comprar… eh… alguns artigos pessoais.
— Inclinando-se para a frente, encostou-lhe os lábios ao ouvido, falando-
lhe num sussurro. — Disse-te que seria um bom amante, Julianne. Confia
em mim. Pensarei em todas as tuas necessidades.
Julia estremeceu ao sentir a respiração dele no seu pescoço, quase
agitando a omnipresente écharpe que ela continuava a usar para esconder a
sua marca. Não podia adivinhar ao que estaria ele a referir-se, mas as
palavras de Gabriel tinham bastado para lhe despertar desejo.
Julia pertencia-lhe, de corpo e alma.

E nquanto Julia tirava das prateleiras da loja várias peças para


acrescentar à sua cada vez maior pilha de lingerie para experimentar, o
seu iPhone tocou. Tirou-o imediatamente da mala e encontrou uma
mensagem de texto:
Que estás a ver? — G

Ela deu uma risadinha e teclou uma resposta breve.


Coisas bastante pequenas. — Julia

Gabriel respondeu de seguida.


Quão pequenas? — G
P.S. Envia fotografias.

Julia revirou os olhos e premiu responder:


Demasiado pequenas. Nada de fotografias — estragariam a surpresa. Beijos, Julia.

A mensagem seguinte de Gabriel demorou um pouco mais a chegar:


Querida, linda como és, nenhuma fotografia poderia arruinar a experiência de te ver em
toda a tua glória pela primeira vez… Beijos, G

Os dedos de Julia não conseguiam teclar suficientemente depressa:


Obrigada, Gabriel. Amo-te.

A mensagem final de Gabriel chegou quando Julia ia a entrar no


provador:
Também te amo, querida. Diverte-te… E vem depressa ter comigo. — G

Os dois dias que se seguiram foram cheios de afazeres, com Gabriel a


terminar as suas tarefas administrativas para a universidade, certificando-se
de que todas as notas estavam entregues. O semestre tinha finalmente
chegado ao fim.
Julia fez uma marcação especial num spa, para se mimar um pouco antes
da viagem a Itália. Dada a sua reduzida tolerância à dor, e para ir ao
encontro da sensibilidade mediterrânica, recusou gentilmente a sugestão da
esteticista de uma depilação total.
Gabriel fizera segredo de quase todos os seus planos para a viagem,
desejando surpreendê-la. Assim, a chegada do feliz casal a Florença, num
dia de dezembro mais quente do que o habitual, culminou, para deslumbre
de Julia, com a entrada no Gallery Hotel Art. O hotel era luxuoso, moderno,
e ficava situado muito perto da Ponte Santa Trinità, que aparecia na pintura
de Holiday de Dante e Beatriz.
O concierge, Paolo, veio imediatamente ao seu encontro. Embora Gabriel
nunca tivesse ficado hospedado naquele hotel, Paolo recebera instruções do
dotore Massimo Vitali, o diretor-executivo da Galeria Uffizi, para receber
com toda a cortesia o professor Emerson e a sua fidanzata. Com efeito, o
próprio Paolo acompanhou o funcionário encarregado das malas e o casal à
sua suite no décimo sétimo andar, a qual tinha o nome de Palazzo Vecchio
Penthouse.
Julia susteve a respiração quando os homens se afastaram, como o Mar
Vermelho, à sua frente, para que fosse ela a primeira a entrar. Era, talvez, o
espaço mais encantador que Julia alguma vez vira. O chão de madeira
escura tinha o seu contraponto nas paredes de cores claras. A sala estava
decorada com mobília de uma elegância moderna e era separada do quarto
por uma parede de vidro deslizante.
O quarto propriamente dito era espaçoso e dominado por uma cama
grande, coberta de almofadas e tecidos brancos convidativos. A alguns
passos da cama ficava uma porta de vidro que dava para a terrazza no topo
do edifício, e por ali entrava a luz brilhante do Sol, derramando-se sobre a
cama e iluminando-a. Uma das casas de banho exibia uma enorme banheira
com pedestal, semelhante àquela de que Julia desfrutara no hotel em
Filadélfia, enquanto uma segunda casa de banho tinha um chuveiro e
armários a combinar. Gabriel espreitou a banheira e decidiu que tinha de a
partilhar com Julianne nessa mesma noite.
Mas o espaço mais impressionante da suite era a própria terrazza, que
oferecia vistas deslumbrantes do Duomo, do Palazzo, e das colinas
circundantes. Julia imaginou-se enroscada com Gabriel no confortável divã
do terraço, tomando um copo de Chianti e fitando as estrelas. Ou, talvez (e
sentiu-se ruborizar), a fazer amor com ele à luz de velas, sob essas mesmas
estrelas.
Orgasmos com Gabriel sob um céu estrelado…
Quando ficaram sozinhos, Julia abraçou-o e agradeceu-lhe repetidas
vezes por ter escolhido um quarto tão bonito.
— É tudo por ti, meu amor. — Beijou-a suavemente. — Tudo por ti.
Na verdade, o que Gabriel mais queria era estender Julia na cama para
fazerem amor imediatamente, mas sabia que ela não dormira bem no avião
e que estava cansada. Julia bocejou duas vezes de seguida e deu uma
risadinha quando ele tentou beijá-la de novo.
— É melhor trocar de roupa para ir até à Uffizi. Não te importas que te
deixe sozinha algum tempo? Podes fazer uma sesta, ou posso pedir ao
concierge que te marque uma massagem no spa.
Os olhos de Julia iluminaram-se quando ela considerou aquela última
sugestão, mas sabia que estava demasiado cansada para desfrutar da
massagem.
— Uma sesta parece-me uma boa ideia. Sei que não é a melhor estratégia
para lidar com um jet lag, mas acho que vou ser muito melhor companhia
ao jantar e… depois do jantar, se dormir um pouco antes. — Corou.
Gabriel passou-lhe um dedo pela linha do maxilar.
— Só vou dizer isto uma vez, Julianne. Não há pressa. Podemos passar
uma noite calma e, simplesmente, relaxar. Embora ache que seria agradável
experimentarmos a banheira. Juntos. — Os seus lábios arquearam-se num
meio-sorriso muito sensual.
Beijou-a no nariz, dando uma risadinha.
— Pedi que trouxessem alguns produtos especiais da Farmacia di Santa
Maria Novella. Vê se gostas de algumas das essências, e experimentamo-las
mais tarde. Entretanto, vou reservar mesa para jantarmos por volta das
nove, nove e meia.
— Claro. Aonde vamos?
O rosto de Gabriel iluminou-se com um sorriso rasgado.
— Ao Palazzo dell’Arte dei Giudici. Conheces?
— Já passei à porta, mas não, nem sabia que tinham restaurante.
— Mal posso esperar por te levar lá. — Pegou-lhe na mão e, levando-a
aos lábios, beijou-a docemente. — Pedi que trouxessem um cesto de fruta e
algumas garrafas de água com gás. Se quiseres mais alguma coisa, é só
pedires. — Sorriu de orelha a orelha. — Mas deixa o champanhe para
partilhares comigo. Na banheira.
Julia olhou para os pés.
— Estás a estragar-me com mimos.
Gabriel levantou-lhe o queixo.
— Não estou a estragar-te, meu amor. Estou só a tratar-te como devias ter
sido sempre tratada. Tens estado toda a tua vida rodeada de tolos. Tendo eu
sido o mais tolo de todos.
— Gabriel, és muitas coisas, mas tolo não és de certeza. — Pôs-se em
bicos de pés para lhe dar um último beijo, antes de ir tomar um duche.
Horas mais tarde, Gabriel regressou de uma reunião cordial com o seu
amigo Massimo Vitali. Enquanto tomavam um café, os dois homens
falaram sobre a palestra de Gabriel na noite seguinte e discutiram os planos
para um requintado banquete que teria lugar na Uffizi, em sua homenagem.
Gabriel ficou grato pelo gesto, mas mais por Julianne do que por si próprio,
pois só pensava em como ela ficaria feliz por participar num tal
acontecimento festivo. E logo na sua galeria de arte favorita.
Ao entrar na suite, Gabriel atravessou a sala e dirigiu-se para o quarto,
onde encontrou Julianne a dormir, no centro geográfico da cama, sobre a
colcha. Tinha vestido um pijama de cetim cor de champanhe, e o cabelo
longo rodeava-lhe a cabeça como um halo quente de mogno. Parecia uma
Bela Adormecida morena.
Ficou a olhá-la durante alguns instantes e beijou-lhe uma das faces.
Como ela nem se moveu, decidiu ir tomar uma bebida sentado no terraço,
até serem horas de a acordar. Na verdade, agradava-lhe ter algum tempo só
para si, para planear e sonhar com os dias que se seguiriam. Sentia que lhe
tinham tirado o mundo dos ombros. Não só Julia sabia de Paulina e de
Maia, como ainda o amava. Por outro lado, tinham escapado à ira da
comissão judicial e sobrevivido, juntos, ao semestre académico. Gabriel
tinha muitas razões para se sentir grato. E, acima de tudo, teria a sua
Julianne só para si durante duas semanas inteiras.
A Julia não é o tipo de rapariga para te divertires e depois largares. É o
tipo de rapariga com quem um homem se casa. As palavras do irmão
ressoavam-lhe nos ouvidos.
Scott tinha razão. Julianne era especial: uma mulher linda, inteligente e
abnegada, com sentimentos profundos e generosa. Merecia muito mais do
que uma mera aventura, embora Gabriel se recusasse a pensar na relação
que tinham como uma aventura, independentemente do que as pessoas
pudessem dizer. Tocou fugazmente a pequena caixa revestida a veludo que
trazia no bolso do casaco. A ideia de estar numa relação de longo prazo
sempre se lhe afigurara remota. Julianne mudara tudo isso.
O seu plano para essa noite consistia em mostrar-lhe o quanto a amava.
Adorá-la e ajudá-la a relaxar. Um banho de espuma, uma massagem… tudo
o que pudesse fazer para que Julianne se sentisse confortável ao deixá-lo
ver o seu corpo. Ela ainda era tímida com ele, e Gabriel queria fazê-la
sentir-se sensual e desejada. Simon deixara fissuras profundas na sua
autoconfiança. Julianne achava-se frígida. Julgava-se desajeitada e
sexualmente desinteressante. Receava desapontar Gabriel quando
finalmente fizessem amor.
Gabriel sabia que precisaria de muito tempo para dissipar todas aquelas
mentiras e para curar tamanhas feridas. Estava decidido a torná-la uma
mulher confiante, procedendo por etapas; queria ajudá-la a ver-se como ele
a via — sensual, atraente e apaixonada.
A única forma de alcançar esse objetivo era levar o tempo que fosse
preciso e ser paciente e determinado. Estava ansioso por lhe demonstrar o
seu amor e por colocar todos os seus talentos eróticos ao seu serviço. Ela
nunca exigiria tais demonstrações, uma tal atenção, o que tornava a ideia de
lhe oferecer tudo isso ainda mais apelativa.
Se a relação física que tinham estivesse mais avançada, e se Julianne
fosse menos tímida, talvez ele lhe sugerisse que fizessem amor no terraço.
Ao imaginar como a pele branca e rosada de Julianne brilharia sob a luz das
estrelas, sentiu o seu coração levantar voo e as suas calças remexerem-se.
Mas fazer sexo no exterior deixá-la-ia, provavelmente, demasiado enervada,
e Gabriel nunca lhe pediria nada que a deixasse sequer remotamente
desconfortável.
Teremos de cá voltar mais tarde…
Capítulo Trinta e Três

À s oito horas da noite, Julianne Mitchell deu os últimos retoques no seu


cabelo, enquanto o seu amado a olhava, deslumbrado, da porta da
casa de banho. Gabriel adorava-a. Era evidente em cada olhar seu, em cada
toque, e na forma como observava, sem pestanejar, as suas ações mais
simples.
Julianne enrolara o cabelo e prendera-o no alto da cabeça, soltando
alguns canudos junto da cara, canudos onde Gabriel ansiava por enlear os
seus dedos. A esteticista de Julia, em Toronto, dera-lhe uma pequena
bisnaga de base de potência industrial, destinada a ocultar até as piores
cicatrizes. Era tão eficaz que Julia já não precisava de usar écharpes para
esconder a dentada de Simon. Só o facto de poder esquecer-se da cicatriz
bastava para Julia se sentir animada, especialmente porque a linda peça
Hermès de Grace não combinava com o seu vestido novo.
O vestido era de um verde-esmeralda sedoso, de manga comprida e
decote em V, como ela preferia, e dava-lhe por cima dos joelhos. Julia
escolhera umas meias pretas transparentes que traziam uma surpresa, e
estava prestes a calçar os seus sapatos de salto alto Prada. Vendo-a inclinar-
se para calçar os sapatos, Gabriel jurou a si próprio que compraria mais
modelos daqueles. Favoreciam-lhe extraordinariamente as pernas, e
também o peito, quando ela se curvava.
— Permite-me — disse-lhe, agachando-se à frente dela com o seu fato
azul-marinho acabado de engomar. Segurou-lhe na mão e pousou-a sobre o
seu ombro, para a ajudar a equilibrar-se, enquanto lhe levantava um pé de
cada vez para lhe calçar os sapatos.
— Obrigada — murmurou Julia.
Gabriel ergueu os olhos e sorriu-lhe, beijando-lhe depois a mão.
— Qualquer coisa por ti, Cinderela.
Julia tirou do roupeiro o seu casaco a três quartos, e estava prestes a
contorcer-se para se enfiar dentro dele quando Gabriel lho tirou da mão.
— Por favor — protestou ele. — Quero cuidar de ti.
— É só um casaco, Gabriel. Não há problema.
— Sim, eu sei que é um casaco. Mas também é uma oportunidade para
me comportar como um cavalheiro e te honrar. Por favor, não me prives
disso, Julianne.
Julia corou de embaraço e anuiu devagar. Não estava habituada a
semelhantes atenções, a não ser da parte de Gabriel, claro. Queria mostrar-
se amável e deixá-lo ocupar-se dela, mas era muito mais do que alguma vez
esperara ou julgara merecer. Deu-lhe um beijo, murmurando-lhe uma
palavra de agradecimento junto aos lábios. Gabriel segurou-lhe o braço,
conduzindo-a até ao átrio, e puseram-se a caminho do restaurante.
Caminharam pelas ruas empedradas desde o Palazzo Vecchio até ao
Palazzo dell’Arte dei Giudici e Notai, rindo e recordando visitas anteriores
a Florença. Caminhavam devagar, pois percorrer Florença de saltos altos
era um desafio. Felizmente, Gabriel levava Julia pelo braço, permitindo-lhe
assim caminhar direita e também evitar os assobios dos jovens florentinos.
A cidade não mudara assim tanto desde os dias de Dante.
O restaurante escolhido por Gabriel chamava-se Alle Murate. Ficava
localizado no edifício de uma guilda do século CATORZE, a uma curta
distância do Duomo, e como parte da decoração exibia uns lindíssimos
frescos daquele período, incluindo um retrato do próprio Dante. Fascinada
pela beleza de tais obras de arte, Julia deu por si a desviar-se um pouco do
caminho, enquanto o maître d’ os acompanhava até à mesa.
Gabriel reservara um espaço tranquilo no piso superior, com vista
panorâmica da sala principal, mesmo sob o teto abobadado. Era a melhor
mesa do restaurante, a que permitia ver melhor e de mais perto as
ilustrações medievais. Quatro anjos cristalizados em frescos pairavam sobre
o casal, enquanto Julia segurava a mão de Gabriel e a apertava,
maravilhada.
— É um lugar lindo. Obrigada. Nem fazia ideia de que estes frescos
estavam aqui.
Perante o seu entusiasmo, Gabriel sorriu.
— Amanhã à noite será ainda melhor. O Massimo disse-me que a minha
palestra está marcada para depois do encerramento do museu, e que vai
haver uma receção com personalidades locais e académicos. Mais tarde,
teremos um banquete no interior da Galeria. É um acontecimento
semiformal, e nós seremos os convidados de honra.
Julia esboçou um sorriso tenso.
— Não trouxe nada suficientemente elegante para usar num jantar
semiformal.
— Tenho a certeza que qualquer roupa que tenhas trazido serviria
lindamente. Mas percebo que não queiras usar o mesmo vestido duas vezes.
Por isso, acho que vou ter de te levar às compras.
— De certeza que não preferes ir sozinho? O banquete é uma celebração
da tua palestra, por isso vais estar muito ocupado. Talvez te sentisses mais
confortável se pudesses… dar toda a tua atenção aos convidados.
Gabriel estendeu a mão para lhe afastar um canudo da cara.
— Julianne, a tua presença não é apenas bem-vinda, é exigida. Não gosto
de ir a acontecimentos sociais sozinho. Nunca gostei. Ter-te ao meu lado
será o único prazer da noite, garanto-te. Não queres fazer-me companhia?
— Gabriel fez um ar preocupado.
— Gosto sempre da tua companhia. Mas as pessoas vão perguntar-me
quem sou e o que faço… Não vais sentir-te constrangido?
O rosto de Gabriel ensombrou-se imediatamente.
— Claro que não! Estava ansioso pelo fim do semestre para poder estar
contigo em público e apresentar-te a toda a gente como minha namorada. E
não é vergonha nenhuma ser-se estudante de pós-graduação. Metade das
pessoas que estarão no banquete já o foram em alguma altura das suas
vidas. És uma mulher adulta, és inteligente e linda…
Sorriu-lhe maliciosamente.
— Terei de ficar bem perto de ti, para manter os meus rivais à distância.
Vão andar à tua volta como lobos etruscos, disputando a atenção da mulher
mais bonita na festa.
Julia sorriu, grata, inclinando-se para o beijar.
Em resposta, Gabriel beijou-lhe as costas da mão, depois a palma, e o
pulso, fazendo os seus lábios deslizarem até à manga do vestido. Puxou a
manga para cima, desnudando o antebraço de Julia, e começou a cobrir-lhe
a pele delicada de beijos húmidos, demorados. Quando os seus lábios se
detiveram no lugar sensível entre o antebraço e o braço, chupando
ligeiramente, ela pestanejou. Pois Gabriel sabia algo que Julia ignorava: que
aquela era uma zona particularmente erógena no corpo de uma mulher.
O facto de o empregado pigarrear junto à mesa apenas fez com que
Gabriel abrandasse as suas carícias. Porém, o violento rubor de Julia por ter
sido apanhada fê-lo libertar-lhe o braço, com relutância.
Enquanto bebiam uma garrafa de vinho toscano e comiam antipasti,
Gabriel pediu a Julia que lhe falasse do ano em que estudara em Itália, quis
saber onde ela vivera e o que fizera. Quando ela lhe contou que visitava a
Galeria Uffizi quase diariamente para admirar as obras-primas de Botticelli,
Gabriel perguntou-se se não existiria mesmo algo como o destino. E pensou
na sorte que tivera em encontrar Julia, não uma, mas duas vezes.
Depois de terminarem os pratos principais, quando ficaram sentados, em
silêncio, olhando-se nos olhos e trocando beijos castos, Gabriel deixou a
mão de Julia e procurou no bolso do seu casaco.
— Tenho uma coisa para te dar.
— Gabriel, a viagem já é um presente, e agora queres comprar-me um
vestido. Não posso aceitar.
Ele abanou a cabeça.
— Isto é diferente. E quero que prometas que não o vais recusar.
Julia fitou um par de olhos azuis muito sérios. Gabriel não estava a
brincar; na verdade, a sua expressão tornara-se bastante solene. Julia
perguntou-se o que teria ele escondido na palma da sua mão direita.
— Não posso prometer nada com tão pouca informação.
Ele fez uma careta.
— Promete que vais manter o espírito aberto.
— Claro.
— Estende a mão.
Julia fez o que ele lhe pedia, e Gabriel pousou uma pequena caixa de
veludo na palma da sua mão. Ela encheu o peito de ar.
— Não é um anel de noivado, podes voltar a respirar. — Gabriel sorria,
mas os seus olhos estavam tensos.
Ao abrir a caixa, Julia mal podia acreditar no que via. Aninhado na seda
preta, encontrava-se um par de brincos, cada um deles com um grande
diamante solitário, redondo e perfeito, de cerca de um quilate.
— Gabriel, eu… — Julia procurava as palavras, mas não conseguia
encontrá-las.
— Antes de os recusares, preciso de te contar a sua história.. Queres
ouvir-me? Por favor?
Julia anuiu, hipnotizada pelo brilho das pedras.
— Eram da Grace. O Richard ofereceu-lhos da primeira vez que lhe disse
que a amava. Não estavam juntos há muito tempo quando ele percebeu que
estava completamente apaixonado por ela. Reza a lenda que vendeu o carro
para lhe comprar estes brincos.
Julia estava boquiaberta. Reconhecia-os, agora. A Grace usava-os quase
sempre.
— Quero que fiques com eles.
Julia abanou a cabeça e, com uma expressão reverente, fechou
delicadamente a caixa, estendendo-a a Gabriel.
— Não posso aceitar. Eram da tua mãe. Deves guardá-los.
— Não.
— Gabriel, por favor. Dá-os à Rachel ou ao Scott.
— A Rachel e o Scott ficaram com outras joias. O Richard deu-me estes
brincos a mim. — Começando a entrar em pânico, Gabriel não conseguia
desviar os olhos da pequena forma de veludo na mão de porcelana de Julia.
Os seus olhos estreitaram-se um pouco. — Se os rejeitares, estarás a ferir-
me. — As suas palavras não eram mais que um sussurro, mas para Julia foi
como se ele gritasse.
Ela engoliu em seco e tentou pôr as ideias em ordem.
— Desculpa. São lindos. E nem consigo dizer-te como fico feliz por
quereres dar-mos, mas acho que não está certo.
Sentiu o humor de Gabriel mudar; ele já não estava só magoado,
começava a ficar aborrecido. Então, Julia pôs-se a olhar para a toalha à sua
frente, escondendo os olhos.
— Não estás a compreender, Julianne. Não estou a dar-te estes brincos
porque quero que fiques com algo da Grace. Não são o equivalente a uma
écharpe ou a um colar de pérolas.
Julia mordiscou a bochecha, esperando que ele continuasse.
Gabriel debruçou-se sobre a mesa e encostou a palma da mão a uma das
faces de Julia.
— Estou a oferecer-tos para comemorar o facto de já te ter dado o meu
coração. — Engoliu com força, enquanto os seus olhos procuravam os dela.
— É a forma que arranjei para te dizer que és o amor da minha vida,
Julianne, e que quero que tenhas sempre algo meu contigo. Não
compreendes? Estes diamantes representam o meu coração. Não podes
recusá-los.
Julia viu nos seus olhos que ele estava a falar muito a sério. Se Gabriel
lhe tivesse oferecido um anel de noivado, ela teria ficado em choque, mas
teria aceitado. Não havia mais ninguém no mundo para Julia, só ele. Então,
porque hesitava?
De um lado, estava o seu orgulho, e do outro lado estava a ideia, a ideia
inaceitável e dolorosa, de magoar Gabriel ao rejeitar um tal presente. Julia
não queria magoá-lo. Amava-o, pelo que a sua decisão já estava, na
verdade, tomada.
— São lindos. O presente mais lindo que alguma vez recebi, a seguir ao
teu amor. Obrigada.
Gabriel beijou-lhe os dedos, com uma profunda gratidão.
— A Grace ficaria feliz por nos termos encontrado um ao outro. Acredito
nisso, Julianne. E acredito que ela nos está a ver e que nos dá a sua bênção.
E sentiria uma imensa alegria por eu poder oferecer os seus brincos à
mulher que amo.
Gabriel sorriu, estendendo-lhe a mão e abraçando-a apaixonadamente.
— Obrigado — murmurou.
Beijou-a e tirou-lhe a caixa da mão, ajudando-a a pôr os brincos. Por fim,
beijou-lhe carinhosamente cada lóbulo da orelha.
— Meravigliosa.
Julia deu uma risadinha nervosa.
— Temos toda a gente lá de baixo a olhar para nós.
— Nem toda a gente. O empregado está na cozinha. — Sorriu, divertido,
e riram ambos.
Olhando-a nos olhos, Gabriel inclinou-se para lhe segredar ao ouvido:
— Vê, sois bela, minha amada.
Ao ouvi-lo recitar poesia erótica hebraica, Julia corou imediatamente, e
murmurou a sua resposta junto ao pescoço dele:
— De noite procurei no leito aquele que a minha alma ama; procurei-o,
mas não o encontrei. Agora me vou erguer, e percorrer as ruas da cidade, e
buscá-lo nas avenidas largas.
Um sorriso lento, surpreso, desenhou-se no rosto de Gabriel, e beijaram-
se até o empregado voltar.
Quando Julia recusou a sobremesa e a garrafa de vinho estava vazia,
iniciaram, felizes, o caminho de regresso ao hotel.
— Como estão os teus pés? — Gabriel lançou um olhar de desejo aos
elegantes sapatos de Julia.
Ela apertou-lhe a mão.
— Nem sinto os pés. Neste momento não consigo sentir nada, a não ser
felicidade.
— Minha doce Julianne — murmurou Gabriel, sorrindo-lhe ternamente e
enrolando um dos canudos de Julia no seu dedo. — Achas que aguentas um
desvio? O Duomo é sensacional à noite, e nunca te beijei na sua sombra.
Ela anuiu, e ele conduziu-a até à igreja, para admirarem a cúpula de
Brunelleschi. Era um incrível feito da arquitetura renascentista, uma grande
cúpula de tijolo em forma de ovo pairando sobre uma bela igreja.
Caminharam até à frente da estrutura, perto do lado oposto ao Batistério, e
admiraram a fachada e o telhado. Era impressionante, mesmo de noite.
Gabriel encostou Julia ao seu peito e beijou-a ternamente, enleando os
dedos nos canudos soltos do cabelo dela.
Julia soltou um pequeno gemido quando ele lhe beijou o lóbulo da
orelha, enfiando-o delicadamente na boca.
— Não fazes ideia de como me sinto por saber que te dei estes brincos.
— Roçou o nariz no diamante. — Saber que trazes o meu amor contigo,
para toda a gente ver.
Julia respondeu beijando-o apaixonadamente.
Com os dedos entrelaçados, deram por si a caminho da Ponte Santa
Trinità, o lugar onde Dante viu Beatriz. Já na ponte, olharam para o Arno,
que brilhava na noite, refletindo as luzes dos edifícios nas margens.
— Julianne — murmurou Gabriel, envolvendo-a nos seus braços
enquanto viam o rio correr.
— Gabriel. — Julia sorriu-lhe e virou ligeiramente a cabeça, esperando
um beijo.
Ele beijou-a suavemente, a princípio, mas os beijos foram-se tornando
cada vez mais intensos. A certa altura, Gabriel afastou-se, consciente de que
estavam a ser observados pelos transeuntes.
— Que bom ter voltado a encontrar-te. Nunca tinha sido tão feliz. —
Acariciou-lhe preguiçosamente a cara e beijou-a na testa.
Num impulso, Julia agarrou-lhe a gravata de seda e puxou-o para si, de
tal modo que as suas caras ficaram a escassos centímetros uma da outra.
— Quero-te — suspirou Julia. E dizendo isto, puxou-o ainda mais para
si, dando-lhe um beijo.
E que beijo. Ali estava o tigre a emergir por detrás do gato. A paixão de
Julia, inflamada pelo afeto de Gabriel, derramava-se na boca dele, à medida
que ela tentava mostrar-lhe o que sentia. As suas mãos, que normalmente
procuravam os ombros ou o cabelo dele, largaram-lhe a gravata para lhe
explorarem o peito e as costas, sentindo os seus músculos através das
roupas, puxando-o contra si.
Aquela intensidade deleitou Gabriel, que correspondeu dentro dos limites
do razoável, ciente da beira da ponta atrás de si e dos grupos de jovens
insolentes que continuavam a passar.
Quando estavam ambos ofegantes, ela encostou-lhe os lábios ao ouvido.
— Quero ser tua. Agora.
— Tens a certeza? — perguntou Gabriel, a voz rouca, acariciando-lhe as
ancas e as nádegas.
— De todo o coração.
Ele passou-lhe um polegar sobre o lábio inferior agora inchado.
— Só se estiveres preparada.
— Há tanto tempo que te quero, Gabriel. Por favor, não me faças esperar
mais.
— Nesse caso — disse ele, rindo baixinho —, é melhor sairmos desta
ponte.
Beijou-a uma vez mais e disse que precisava de fazer um telefonema. Foi
uma conversa rápida em italiano; parecia que Gabriel estava a confirmar
algo com o concierge, mas Julia pouco conseguiu ouvir. Gabriel voltou-lhe
as costas deliberadamente e falou em voz baixa.
Quando Julia lhe perguntou de que se tratava, ele fez um sorriso
satisfeito.
— Já vais ver.
Levaram mais tempo do que seria necessário para chegar ao hotel, pois a
cada meia dúzia de passos um deles puxava o outro para mais um beijo.
Houve gargalhadas e carícias delicadas; abraços ternos e palavras de
sedução murmuradas, e um ou dois tangos contra a parede numa ruela
sombria.
Mas, na verdade, a sedução acontecera muito tempo antes, num velho
pomar.
Quando entraram na suite e Gabriel conduziu Julia até ao terraço,
vibravam com uma eletricidade partilhada, e estavam ambos muito, muito
ansiosos. Por essa razão, Julia demorou um pouco a aperceber-se da
transformação que ali ocorrera. Havia velas espalhadas em redor, uma
luminosidade trémula e quente que se acrescentava ao brilho das estrelas. O
ar estava perfumado de jasmim. Almofadas e um cobertor de caxemira
convidavam-nos a deitarem-se no divã.
Uma garrafa de champanhe repousava num balde de gelo e, ao lado, Julia
viu um prato com morangos cobertos de chocolate e um doce que parecia
tiramisu. Por fim, apercebeu-se da música de Diana Krall.
Gabriel apareceu atrás dela e pôs-lhe os braços em redor da cintura,
roçando o nariz na sua orelha esquerda.
— Gostas?
— Está lindo.
— Esta noite, tenho planos para ti, meu amor. Receio bem que esses
planos não incluam dormir senão muito, muito mais tarde.
O tom da voz de Gabriel, grave e sensual, fez Julia estremecer.
Apertou-a um pouco mais nos seus braços.
— Estou a deixar-te nervosa?
Ela abanou a cabeça.
Gabriel começou a beijar-lhe o pescoço, os seus lábios deslizando-lhe ao
de leve sobre a pele.
— É uma declaração de desejo — murmurou ele. — Mas, esta noite, não
vou ficar-me só pela declaração, quando te levar para a cama e fizer de ti
minha amante.
Julia estremeceu novamente, e desta vez ele pôs-lhe um braço pela frente
do pescoço, apertando-a bem junto de si.
— Relaxa, querida. Tudo o que se vai passar tem a ver com prazer. Com
o teu prazer. E é isso que tenciono dar-te ao longo de toda a noite.
Beijou-a na face, depois fê-la voltar-se lentamente para si.
— Os preliminares são essenciais. E como esta é uma situação nova para
nós os dois, há algumas coisas que gostaria de fazer primeiro. — Procurou
uma reação nos olhos dela.
— Sou tua, Gabriel.
Ele sorriu e abraçou-a delicadamente.
— Quero explorar os teus sentidos… audição, paladar, visão, tato. Quero
levar o tempo que for preciso para te estimular, para te excitar. — Baixou a
voz. — Mas, acima de tudo, quero ensinar o teu corpo a reconhecer só pelo
toque o homem que te adora.
— Já te reconheço, Gabriel. Não há mais ninguém.
Gabriel beijou-a intensamente, parando no momento em que Besame
Mucho começou a tocar.
— Danças comigo?
— Claro. — Como se eu fosse alguma vez recusar uma oportunidade
para te ter nos meus braços…
Gabriel segurou-a bem junto ao seu corpo, e Julia encostou os seus lábios
gratos ao pescoço dele.
— Esta é a nossa música? — perguntou, acariciando-lhe o lábio inferior
com um dedo.
— Talvez deva ser — respondeu Gabriel. — Lembro-me tão bem
daquela noite… Do teu cabelo, do teu vestido. Eras uma miragem. E eu fui
um imbecil. As coisas que te disse. — Abanou a cabeça. — Nem acredito
que me tenhas perdoado.
Julia lançou-lhe um olhar de censura.
— Gabriel, estás a dar-me o conto de fadas que eu nunca imaginei vir a
ter. Por favor, não o estragues.
Ele beijou-a nos lábios como que para se redimir e estreitou-a um pouco
mais, passando-lhe uma mão pela zona das costelas. Porque, ao contrário de
Julia, Gabriel sabia que aquela era outra zona erógena do corpo de uma
mulher.
Enquanto flutuavam ao som da música, ele cantava-lhe baixinho, pondo
toda a sua alma nas palavras em espanhol, mas mudando-as ligeiramente,
para que ela soubesse que ele nunca a deixaria partir. Dar-lhe-ia nada menos
do que para sempre, e nem os infernos o impediriam de cumprir o seu voto.
Gabriel só não tinha dito as palavras em voz alta.
Ainda.
Julia levantou a cabeça e fitou a boca dele, querendo registar na memória
os seus lábios carnudos e as suas curvas, a forma como o lábio inferior se
arqueava para baixo. Beijou-o sem pressa, envolvendo os dedos no seu
cabelo. Gabriel era ternura e calor molhado, paixão e anseio, amor e
devoção. E quando beijava Julia, tocava-a bem na sua alma, de tal modo
que até nos dedos dos pés ela sentia como ele a adorava e a desejava.
Dois corpos estreitando-se numa dança de amantes, repletos de
expectativa.
Capítulo Trinta e Quatro

J ulia deitou-se de costas no divã do terraço, fitando, enlevada, os olhos


brilhantes de Gabriel. Ele despira o casaco e soltara a gravata, mas
recusara-se a tirá-la, lembrando-se daquele momento sensual na Ponte de
Santa Trinità.
Tudo nele agradava a Julia — o seu nariz, as faces, o maxilar anguloso,
os seus magníficos olhos azuis e as sobrancelhas escuras, e o pelo do peito
por cima da t-shirt branca, sob o colarinho aberto.
Estava de lado, voltado para ela, com a cabeça apoiada num braço e a
perna direita dobrada pelo joelho, a servir o champanhe. Brindaram ao seu
amor e beberam um pouco daquela que era a colheita favorita de Gabriel de
Dom Pérignon, e depois ele começou a beijá-la.
— Gostava de te dar comida — murmurou-lhe junto aos lábios.
— Sim, por favor.
— Fecha os olhos — pediu-lhe. — Saboreia, apenas.
Julia confiava nele, e por isso fechou os olhos e sentiu algo tocar-lhe o
lábio inferior; depois estava na sua boca, chocolate e morango doce,
sumarento, e o polegar de Gabriel aflorando a sua boca quente. Julia abriu
os olhos, e agarrou-o pelo pulso, enfiando o polegar dele na sua boca.
Gabriel abriu muito os olhos, soltando um gemido. Julia roçou-lhe a
língua no polegar, ao de leve, e chupou-o com determinação, antes de lhe
envolver a ponta do dedo para tirar o chocolate que restava. Erguendo o
olhar, fitou Gabriel através das suas pestanas, e ele gemeu uma segunda
vez, olhando-a com uma mistura de paixão e surpresa.
Julia libertou-o e desviou o olhar.
— Não queria deixar-te muito esperançado. Com os polegares não tenho
problemas, mas sou péssima a…
Gabriel interrompeu aquela autocensura com os seus lábios, beijando-a
quase rudemente. Com um único dedo, percorreu-lhe o pescoço, para cima
e para baixo, enquanto lhe explorava a boca com a língua. Quando recuou,
os seus olhos ardiam.
— Não quero que voltes a diminuir-te. Recuso-me a ouvir palavras deste
tipo. O que temos é só nosso. Não julgues antecipadamente aquilo de que és
capaz ou o que podemos ser juntos. — Fez-lhe uma carícia na face, como
que para atenuar o tom severo em que falara, e encostou-lhe os lábios à
orelha.
— E não tenho dúvidas nenhumas de que serás excelente nisso. Uma
boca tão dotada como a tua nunca poderia desiludir-me. — Piscou-lhe
maliciosamente o olho.
Julia ficou vermelha como um morango, mas não respondeu.
Gabriel continuou a dar-lhe morangos cobertos de chocolate, entre
pequenos goles de champanhe, até ela se recusar a comer mais, para
retribuir o favor.
Pegando num garfo, tirou um pouco de tiramisu, e arqueou uma
sobrancelha para Gabriel.
— Fecha os olhos.
Gabriel assim fez, e Julia introduziu-lhe delicadamente o garfo entre os
lábios. Gabriel murmurou de satisfação, pois a sobremesa era deliciosa.
Mais delicioso ainda era ter a sua amada a dar-lhe comida. Julia preparava-
se para lhe dar outra garfada de doce, quando ele a interrompeu.
— Penso que se está a esquecer de qualquer coisa, menina Mitchell —
disse Gabriel, e fez a sua língua deslizar pelo lábio inferior.
Segurou a mão de Julia e mergulhou dois dos seus dedos numa pequena
porção de tiramisu, levando-os depois, languidamente, à boca. Como
sempre, Gabriel levou o seu tempo, chupando delicadamente cada dedo,
percorrendo-os com a língua, antes de os chupar de uma ponta à outra.
Enquanto Gabriel lhe acariciava os dedos com a boca, Julia reclamava-o
com todo o seu corpo. Não pôde evitar imaginar aquela língua tão talentosa
mergulhando no seu umbigo, e continuando a descer, até onde nenhuma
língua estivera ainda…
— Estás feliz, meu amor?
Julia abriu os olhos e pestanejou.
— Sim — disse, a voz trémula.
— Então, beija-me.
Julia puxou-o pela gravata, tal como ele esperara, e Gabriel acedeu de
boa vontade, inclinando-se de modo a ficar quase sobre ela, o joelho entre
as suas coxas. Todo ele era calor e beijos molhados e dedos compridos que
lhe acariciavam as costas e lhe desciam até às nádegas, envolvendo-as com
firmeza. Julia sentia o calor que ele emanava do peito através da camisa,
pressionando os seus seios, e sentia-o duro junto da sua coxa, e queria mais,
mais… por cima, no meio, dentro de si…
Gabriel recuou e segurou a mão dela na sua, beijando-a.
— Vem para a cama.
— Podes ter-me aqui.
A princípio, a testa dele enrugou-se, e depois, já a sorrir, Gabriel beijou-a
no nariz.
— Nem pensar. Quero-te na cama. Além disso, está frio aqui, e não quero
que apanhes uma pneumonia.
Julia parecia algo desapontada.
Ele apressou-se a consolá-la.
— Se não mudares de ideias, voltamos aqui amanhã. Mas esta noite, é
melhor estarmos atrás de portas fechadas. Encontramo-nos lá dentro. Tens o
tempo todo de que precisares.
Beijou-a com contenção e ficou a observar o seu belo traseiro, enquanto
ela atravessava o terraço e entrava no quarto. Recostou-se no divã e cobriu
a cara com um braço, ajeitando-se por mais de uma vez através das suas
calças de fazenda. A expectativa estava a dar cabo dele. Nunca se sentira
tão excitado, tão pronto a estendê-la na cama e a possuí-la com abandono.
Mas isso era precisamente o que não se permitiria fazer.
Não nessa noite.
Como pudera pensar que foder uma desconhecida numa das casas de
banho do Lobby era excitante? Como pudera acreditar que aqueles
orgasmos sem nome e sem rosto viriam alguma vez a satisfazê-lo? Passara a
sua vida a adorar o altar de um deus silencioso e ausente, que prometia tudo
mas dava apenas algo fugaz, deixando-o sempre insatisfeito. Traficara
luxúria sob a capa de eros. Mas nada poderia estar tão longe da realidade.
Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade.
Tudo mudara desde que reencontrara Julia, e especialmente desde que se
apaixonara por ela. Julia abrira-lhe o coração e tirara-lhe a virgindade
emocional, mas fizera-o com toda a paciência, com toda a gentileza.
Gabriel dar-lhe-ia nada menos do que isso.
Enquanto Gabriel ponderava sobre as diferentes formas de a adorar, Julia,
apoiada na bancada da casa de banho, tentava acalmar a respiração. Os
sensuais preliminares de Gabriel eram como uma queima de terra na
sedução: não havia como voltar atrás. Já não era possível abrandar a atração
tremenda, irresistível, que sentiam um pelo outro.
Oh, Deus, quero-o tanto.
Olhou-se ao espelho, enquanto arranjava o cabelo e retocava a
maquilhagem e escovava os dentes. Refrescada e com o sabor de hortelã-
pimenta na boca, preparou-se para vestir a camisa de noite e o roupão, e só
então se deu conta de que, na confusão daqueles momentos apaixonados,
entrara na casa de banho errada. Tinha deixado a lingerie na outra casa de
banho.
Merda.
Podia despir-se e usar um dos roupões de algodão turco que estavam
pendurados atrás da porta. Simplesmente, isso arruinaria o propósito que a
levara a comprar lingerie. Podia tentar esgueirar-se até à outra casa de
banho, mas tal implicaria atravessar o quarto, e Gabriel já teria certamente
regressado do terraço. Devia estar reclinado sobre a cama, como o rei
Salomão em toda a sua glória.
Julia tremeu de expectativa só de pensar nisso. Deverei tomar um duche e
aparecer no quarto enrolada numa toalha? Ou despir-me e ficar só de
cuecas?
Enquanto Julia tentava pensar na melhor entrada, Gabriel arrumou o
terraço e levou tudo para o interior. Espalhou as velas pelo quarto,
agrupando algumas junto à cama. Preparou a música, pondo a tocar uma
lista que criara especificamente para aquela noite; chamara-lhe Amar Julia,
e estava bastante orgulhoso das suas escolhas. Pousou alguns artigos
pessoais na sua mesa de cabeceira a apagou as luzes.
Ficou à espera.
Esperou, e esperou. Mas Julia não aparecia. Gabriel começou a ficar
preocupado.
Foi até à casa de banho e encostou um ouvido à porta. Não conseguiu
ouvir nada, nem água a correr, nem um roçagar. Sentiu um aperto no peito.
E se ela estivesse assustada? Ou aborrecida?
E se não quiser abrir a porta?
Respirando fundo, bateu.
— Entra.
O convite surpreendeu-o. Abriu cuidadosamente a porta e espreitou. Julia
estava de pé diante do espelho, e olhou-o timidamente.
— Estás bem?
— Sim.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Que se passa?
— Nada. Eu só… Gabriel, importas-te de me abraçar? Tinha feito tantos
planos, e depois vim para aqui e fiquei bloqueada e… — Correu para os
braços dele.
Gabriel olhava-a com preocupação.
— Sou só eu, amor. Talvez tenha exagerado.
Julia abanou a cabeça, encostando-lhe a cara ao peito.
— Não, eu é que estou a pensar demasiado, como sempre.
— Então pensa em como és amada, minha doce Julianne. Esta noite vou
mostrar-te o quanto te amo.
Beijou-a ternamente, e quando ela lhe sorriu também, anuindo, Gabriel
pegou-lhe ao colo para a levar para a cama.
Julia não tinha medo. Pensou que talvez fosse ter, mas Gabriel segurava-a
nos braços, parando a cada passo para a beijar, e ela começou a relaxar.
Amava-o. Desejava-o. E sabia que ele também a desejava.
Pousando-a na beira da cama, Gabriel olhou-a ternamente. A respiração
de Julia acalmou-se; fora assim que ele a olhara no pomar. No pomar que
era deles. Agora, Julia desejava-o ainda mais.
— Apagaste as luzes — disse-lhe.
— Tens uma pele linda. Será ainda mais encantadora à luz das velas. —
Beijou-a na testa. — Uma figura como a tua teria inspirado os homens pré-
históricos a esculpirem as paredes das cavernas. — Ajoelhou-se à sua frente
e descalçou-a, devagar.
— Tens a certeza? — sussurrou ela.
Gabriel sentou-se e olhou-a, afastando-lhe um canudo da cara.
— Só se tu tiveres, amor.
Ela sorriu.
— Queria dizer… em relação aos sapatos. Posso ficar com eles calçados.
A ideia entusiasmava-o. Não podia negar que assim era. Mas queria que
ela se sentisse confortável, e teriam muito tempo para jogos desse tipo.
— Não te devia ter deixado andar nestas ruas empedradas com saltos tão
altos. Já sofreste que chegue. Basta de sapatos por hoje.
Acariciou-lhe os pés devagar, passando-lhe várias vezes um polegar pela
curva do pé, uma carícia destinada tanto a relaxá-la como a excitá-la. Julia
começou a gemer; a sensação era tão agradável. Perguntou-se por um breve
instante que sensação lhe causaria aquele polegar noutras partes do corpo, e
sentiu um arrepio na espinha.
Gabriel parou.
— Estás a tremer. Não precisamos de fazer isto.
— É um tremor agradável — retorquiu Julia.
Gabriel continuou a acariciar-lhe os pés durante mais alguns minutos,
depois as suas mãos subiram-lhe pela parte de trás das pernas até lhe
pousarem atrás dos joelhos. Os dedos mágicos de Gabriel estimularam
aquele ponto erógeno escondido, quase a fazendo gritar. A sua respiração
acelerou-se, e Julia teve de fechar os olhos.
Ele conhece o corpo de uma mulher como… alguém conhece alguma
coisa. Que estava eu a pensar?
Na verdade, Gabriel conhecia o corpo de Julia melhor do que Julia
conhecia o seu próprio corpo, o que era um estado de coisas lamentável.
Ainda assim, ela estremeceu ao imaginar os prazeres que a esperavam
quando as mãos dele subissem um pouco mais.
Como se lhe lesse o pensamento, Gabriel desviou a sua atenção dos
joelhos e concentrou-se nas coxas, massajando-as e afastando-as
ligeiramente, de modo a que os seus dedos pudessem deslizar para cima e
para baixo, e detendo-se antes de chegar ao cimo das meias. Estava a fazer
todos os possíveis por avançar lentamente, certificando-se de que ela
apreciava cada momento, procurando não esquecer nada.
— Gabriel, por favor não fiques no chão. — Estendeu-lhe a mão e ele
beijou-a.
— Toda esta noite é um presente. Aceita-o, simplesmente. — Um sorriso
desenhou-se-lhe nos lábios oh-tão-perfeitos. — São Francisco de Assis
daria a sua aprovação.
— Mas eu também quero fazer-te feliz.
— Já me fizeste feliz, Julia. Mais do que podes imaginar. Será que ajuda
se te confessar que também estou nervoso?
— Porque havias tu de estar nervoso?
— Quero agradar-te. Não estou com uma virgem desde que eu próprio
perdi a virgindade, e isso foi há muito, muito tempo. Vamos avançar aos
poucos. Quero que te descontraias e que fiques tão confortável quanto
possível. E se em algum momento te sentires… desconfortável, quero que
mo digas. Imediatamente. Fazes isso por mim?
— Claro.
— És preciosa para mim. E uma das coisas mais preciosas para mim é a
tua voz. Por favor, diz-me o que queres, do que precisas, o que desejas… —
A voz de Gabriel tornou-se rouca ao dizer aquelas três últimas palavras, e
um tremor involuntário percorreu o corpo de Julia.
Ela debruçou-se da cama para encostar os lábios aos dele.
— O que desejo é que deixes de estar ajoelhado, Gabriel. Por isso,
levanta-te do chão. — Tentou parecer severa, mas ele limitou-se a sorrir.
Olá, Tigre…
— Dá-me um minuto. Volto já. — Gabriel desapareceu na casa de banho
mais próxima, e Julia pôde ouvir o som da água a correr no lavatório.
Ao regressar, pouco depois, Gabriel encontrou-a de pé, tentando chegar
com os braços à parte de trás do vestido. As mãos dele foram
imediatamente ao encontro das de Julia.
— Deixa-me fazer isso — pediu, numa voz sedutora.
Correu o fecho lentamente, olhando-a nos olhos. Depois, deixou que a
seda verde lhe escorregasse dos ombros. O vestido caiu ao chão com um
suspiro, como se também estivesse seduzido por Gabriel.
Por baixo, Julia trazia uma combinação acetinada cor de marfim, cuja
bainha quase tocava o cimo da suas meias de liga pretas. Gabriel ofegou ao
vê-la, pois ela lembrou-lhe um anjo. Um anjo de olhos castanhos, com
cabelo escuro preso ao alto e uma pele branca. Uma peça cor de marfim
sobre renda preta: a justaposição de virtude e possibilidade de eros.
Com um dedo exploratório, Gabriel tocou uma das ligas.
— Não estava à espera disto.
Julia corou.
— Já sei que não gostas de preto, mas, na verdade, não estava à espera
que me visses assim. Tinha pensado trocar de roupa interior.
— Olha para mim. — Ergueu-lhe delicadamente o queixo e acariciou-lhe
a face ruborizada. — Estás deslumbrante. E eu nunca disse que não gostava
de preto. Mas se quiseres trocar, espero.
Olhou-a, expectante, mas Julia abanou a cabeça. Já esperara tempo
suficiente. Passou-lhe as mãos pelo peito musculoso, depois puxou-o uma
vez mais pela gravata. Beijou-o profundamente e começou a desmanchar o
nó, tentando que os seus movimentos fossem tão sinuosos quanto possível.
Fez a gravata deslizar-lhe pela nuca e atirou-a, sem cerimónia, ao chão. Em
seguida, concentrou-se nos botões da camisa, desapertando-os rapidamente,
e deixou a camisa e a t-shirt caírem sobre a gravata. Estando Gabriel meio
nu à sua frente, Julia começou a beijar-lhe o peito, rodeando-lhe a parte de
cima das costas com ambas as mãos, para lhe sentir os músculos nos
ombros e mais abaixo.
— Consigo sentir o teu coração a bater — murmurou.
— Por ti — disse Gabriel, uma expressão ardente no rosto.
Julia sorriu, passando-lhe as mãos pelos abdominais e pela cintura. A
pele de Gabriel era quente, muito mais quente que a dela e, oh, tão
convidativa. Desapertar-lhe o cinto e as calças foi ligeiramente enervante,
mas ele pousou a sua mão calma sobre as dela e ajudou-a. Estando Gabriel
de boxers, e já livre de sapatos e meias, Julia respirou fundo, esperou que
ele anuísse, e puxou-lhe os boxers para baixo.
Deu um passo atrás para o admirar. Molhou os lábios e sorriu. De orelha
a orelha. Gabriel era lindo.
Aquele corpo devia ser obra da genética, ou talvez fosse uma dádiva dos
deuses, ou uma combinação das duas coisas favorecida por uma boa dieta e
pelo exercício físico que ele praticava. Mas enquanto os olhos de Julia
deambulavam pelo corpo musculado e pelos abdominais bem definidos do
homem que tinha à sua frente, algo dentro dela aqueceu, liquefazendo-se.
Julia sentiu uma onda de calor invadir-lhe o ventre e descer um pouco mais,
especialmente ao reparar no V que se desenhava abaixo das ancas de
Gabriel. Ele era uma versão moderna do David de Miguel Ângelo, mas com
muito melhores proporções e com umas mãos indescritivelmente belas.
Talvez fosse de mau gosto, mas Julia ficou satisfeita ao verificar que
Gabriel era bastante maior do que ele.
Karma… pensou, radiante. Reprimiu uma risadinha, mordendo o lábio
com força, para não parecer uma colegial fascinada com a sua grande
descoberta.
A estranha reação de Julia não passou despercebida a Gabriel, que fez um
esforço para não se rir, dizendo para consigo que talvez não fosse a melhor
altura para fazer piadas acerca do seu tamanho. Não queria intimidá-la, e
sabia bem que era um homem atraente, especialmente agora que captara a
atenção de Julia.
Tudo por causa dela.
— Posso? — Aproximando-se, tocou-lhe o cabelo, esperando que ela lhe
desse permissão.
Julia assentiu, e ele começou a tirar-lhe os ganchos, um a um, vendo o
cabelo encaracolado cair-lhe sobre os ombros. Julia fechou os olhos e bebeu
a sensação de ter os dedos de Gabriel no seu cabelo. Recordou aquele dia na
casa de Richard, quando ele fizera de seu cabeleireiro.
Desembaraçou cada caracol com adoração, da cabeça às pontas do
cabelo, até os cachos de Julia lhe rodearem a cara como uma cortina escura.
Gabriel acariciou-lhe a curva do pescoço, e só depois os seus dedos
procuraram as alças da combinação, fazendo-as deslizar dos ombros.
Agora, Julia vestia apenas um sutiã de renda preto, boxers de renda pretos,
ligas e meias transparentes também pretas.
Perfeição erótica combinada com o rubor da inocência.
Julia era verdadeiramente encantadora. Mas o olhar atento de Gabriel
estava a deixá-la nervosa. Não gostava que a olhassem demoradamente,
fazia-a sentir-se insegura. Então, Gabriel puxou-a para si e beijou-a até
sentir os ombros dela relaxarem.
— Julia, quero ver-te toda — disse-lhe num sussurro.
Ela anuiu. Gabriel levou o seu tempo a desatar as ligas, puxando depois
as meias e enrolando-as à medida que desciam, lentamente, pelas pernas de
Julia, detendo-se por instantes para a acariciar por baixo do joelho. A
respiração ofegante de Julia indicou-lhe que estava a fazer tudo
corretamente. Pondo-se de pé atrás dela, beijou-a repetidamente nos
ombros, antes de lhe desapertar o sutiã. Julia removeu-o do peito e atirou-o
para o chão, pensando para consigo que as roupas de ambos, amontoadas
aos seus pés, faziam um quadro bem sensual.
Ainda atrás de Julia, Gabriel envolveu-lhe os seios, colando o seu corpo
ao dela. Acariciou-a delicadamente, roçando-lhe os polegares nos mamilos,
enquanto a beijava por baixo da orelha. Depois as suas mãos deslizaram
pela zona das costelas, para cima e para baixo, antes de se deterem no
tecido que lhe cobria as ancas. Continuando a passar-lhe a língua por baixo
da orelha, puxou as cuecas para baixo.
Julia estava finalmente nua, e era gloriosa.
Abraçou-a pela cintura e virou-a para si, reparando que ela tinha os olhos
no chão e o lábio inferior preso entre os dentes. Julia começou a remexer os
dedos, e Gabriel sabia que ela estava a um segundo de se cobrir.
— És uma deusa. — Libertou-lhe o lábio, introduzindo-lhe suavemente o
polegar no canto da boca, e levantou-lhe o queixo. O seu olhar mirou-a
deliberadamente da cabeça aos pés e no sentido inverso, para que ela
sentisse a sua admiração.
— Quando for velhote e não conseguir lembrar-me de mais nada, ainda
recordarei este momento. A primeira vez que os meus olhos contemplaram
um anjo de carne e osso. Vou recordar o teu corpo e os teus olhos, o teu
rosto lindo e os teus seios, as tuas nádegas e isto. — Os seus dedos
rodearam o umbigo de Julia, antes de descerem para tocar, ao de leve, os
pelos. — Vou recordar o teu perfume e o teu toque, e vou lembrar-me da
sensação de te amar. Mas, acima de tudo, vou lembrar-me do que senti ao
contemplar a verdadeira beleza, por dentro e por fora. Porque és linda, meu
amor, de alma e de corpo, generosa de espírito e de coração. E nunca hei de
ver na Terra nada mais belo do que tu.
Envolveu-a nos seus braços, beijando-a uma e outra vez, tentando
mostrar-lhe com os lábios o quanto a amava. Tocou os diamantes e
encostou a boca ao lóbulo da orelha de Julia.
— Agora que te vi nua, exijo que de hoje em diante não uses, na minha
presença, mais nada para além destes brincos. Tudo o resto é supérfluo.
Julia deu-lhe um beijo rápido nos lábios e deitou-se na cama, olhando-o
timidamente. Gabriel teve de respirar fundo, pois a visão de Julia nua e
convidativa quase o deixava de rastos.
— Porque não te deitas de barriga para baixo, querida? Gostava de te
admirar de costas.
Julia sorriu e voltou-se, dobrando os braços e repousando a cabeça de
lado sobre eles, para poder continuar a ver Gabriel. Sobre ela, um sorriso
deliciado na cara, Gabriel beijou-lhe um ombro de cada vez.
Como na minha fotografia a preto e branco preferida, pensou Julia.
— És de cortar a respiração, Julia, vista de qualquer ângulo. Uma
verdadeira obra de arte. — Fez um dedo deslizar-lhe pela espinha, detendo-
se quando ela estremeceu sob o seu toque, e pousou-lhe a mão numa das
nádegas.
— Mudaste a música — sussurrou Julia, reconhecendo a canção
romântica de Matthew Barber, And You Give.
— Foste tu que me inspiraste.
Gabriel pegou num pequeno frasco de óleo de massagem com perfume
de sândalo e tangerina, e deitou um pouco na palma da mão, para o aquecer.
Quando começou a massajar-lhe os ombros, Julia fechou os olhos e
suspirou.
— Sente. — Gabriel beijou-a na face e prosseguiu com os movimentos
delicados, as suas mãos viajando pelas costas de Julia até começarem a
explorar as duas pequenas covinhas sobre o seu magnífico traseiro.
— São deliciosas — declarou, beijando cada uma delas.
Julia encolheu-se, por isso Gabriel parou. Quando recomeçou a massajá-
la, sentiu-a relaxar. Ao fim do que pareceu uma hora, Gabriel murmurava-
lhe ao ouvido, incitando-a a voltar-se. Julia sentia-se como se flutuasse
numa nuvem. Pestanejou, um sorriso preguiçoso tomando conta do seu
rosto.
Roçando o nariz no de Julia, Gabriel pôs uma perna entre as dela e
deixou a outra de fora, apoiando-se nos cotovelos.
— És linda — murmurou-lhe, baixando-se, de modo a que os seus
troncos se tocassem. Depois, lentamente, começou a beijá-la muito ao de
leve no pescoço e no ombro, continuando a massajar-lhe a parte da frente
do corpo com uma mão.
Julia adorava a forma como os seus seios roçavam no peito duro de
Gabriel, e adorava a sensação daquele abdómen musculoso sobre o seu
corpo macio, e o modo como a mão forte de Gabriel lhe deslizava por baixo
das nádegas, puxando-a contra as suas ancas.
— Não fazes ideia de como te desejo — murmurou-lhe ele junto ao
pescoço. — Nem de como és sensual. — Esfregou-lhe o nariz na covinha
sob a garganta, depois molhou-a com a língua.
Sem aviso, Julia arqueou as costas e gemeu de prazer. As suas mãos
procuraram as nádegas de Gabriel, e sentiram os seus músculos, pousando-
lhe depois nas ancas e puxando-o para si.
— Ainda não, amor.
Gabriel venerou-a com a sua boca, com os lábios, beijando, mordiscando,
adorando sem pressa o corpo da sua amada. Julia contraiu-se quando ele a
beijou na anca, lambendo-lhe a pele antes de a puxar com a boca.
— Que foi? — murmurou, o seu nariz deslizando sobre o baixo-ventre de
Julia, de uma anca à outra.
— Nunca ninguém… — Calou-se, constrangida.
Gabriel sorriu maliciosamente junto à anca dela, enchendo-a de beijos e
passando-lhe a língua sobre a pele. Claro que nunca fez nada disto. Para
além de ser um patife, também era estúpido.
— Querida, afasta as pernas.
Os olhos de Julia estavam sombrios e ligeiramente receosos, mas ela
obedeceu. Gabriel contemplou-a com admiração, depois os seus olhos
fixaram-se nos dela. Sorriu e começou a acariciá-la com os dedos, fazendo-
a gemer.
Tocou-a superficialmente, a princípio, testando-a com um dedo,
movendo-se com todo o cuidado. Depois passou a dois dedos, introduzindo-
os, ao mesmo tempo que descrevia pequenos círculos com o polegar. Não
tirava os olhos da cara de Julia, atento a qualquer sinal de desconforto e ao
ritmo da sua respiração, enquanto os seus dedos procuravam o local lá
dentro. Baixou a cabeça para a contemplar, levando depois os lábios à parte
de dentro da coxa, acariciando-a, antes de lhe chupar a pele com todo o
desejo que sentia, continuando sempre a mover os dedos. Era uma
combinação extraordinária.
Julia arqueou o corpo, erguendo as costas da cama, e ao mesmo tempo
soltou um queixume tão alto que foi quase um grito. Gabriel continuou a
tocar-lhe, mas diminuiu a força de sucção, até ela se agitar e tentar fechar as
pernas. Unindo a sua boca à dela, beijou-a ternamente.
— Obrigada — murmurou Julia, sentindo-se leve como uma pena. Devia
ser proibido ter uns dedos tão hábeis… e uma boca assim…
— Gostaste?
Julia anuiu, arquejando, um pouco desnorteada.
Gabriel duvidava que o filho do senador tivesse alguma vez encontrado
aquele lugar no corpo dela, e ao pensar nisso o seu peito inchou de orgulho.
Estava ansioso por mostrar a Julia, um a um, todos os sítios do seu corpo a
que tencionava dar prazer. Arrastou um dedo pelo pescoço dela, rodeou-lhe
um seio e desceu até ao lugar na coxa onde havia agora uma marca.
Pressionou ligeiramente a pele que mudara de cor.
— Dói-te?
— Não, mas como…?
— Esta parte da tua coxa é muito sensível. Uma pessoa egoísta ou
apressada tenderia a ignorá-la e a tocar imediatamente aqui. — Com o
dedo, acariciou-a entre as pernas.
Julia estava ainda sensível por causa do orgasmo, e por isso retraiu-se.
Gabriel tirou a mão e voltou a tocar-lhe a coxa.
— Julia, a única forma de me redimir das minhas experiências anteriores
é pôr aquilo que aprendi ao teu serviço. De agora em diante, a única mulher
a quem quero agradar és tu.
Julia ergueu uma mão para lhe tocar no rosto, e Gabriel encostou a cara à
sua mão, fechando os olhos. Passando um polegar sobre a boca dele, Julia
sentiu o seu lábio inferior carnudo, e puxou-o para um beijo apaixonado.
Gabriel respondeu deitando-se sobre ela, e o coração de Julia começou a
bater mais depressa, julgando que o momento de se unirem estava iminente.
Mais uma vez, as suas mãos deslizaram para as nádegas dele,
encorajando-o a vir ao seu encontro. Gabriel sorriu pacientemente e recuou,
apoiando-se num braço.
— Esta não é uma boa posição. Precisamos de trocar.
— Achei que… eu debaixo de ti, certo?
— Essa é a pior posição possível para se perder a virgindade — explicou
Gabriel, dando-lhe pequenos beijos no ombro.
— Acho que vou gostar.
Gabriel afastou-se.
— Não para uma primeira vez; seria fácil eu magoar-te sem me
aperceber.
Magoar?, perguntou-se Julia.
Gabriel sentiu o seu coração fraquejar ao ver o receio no olhar de Julia.
Segurou-lhe a cara entre as mãos.
— Não vou magoar-te, Julianne. Não sou um adolescente. Não sou ele.
Vou ser muito, muito meigo. É por isso que não podemos ficar nesta
posição.
— Porquê?
— Por causa dos ângulos. O meu peso sobre ti, mesmo apoiando-me nos
joelhos. A força da gravidade. Se estiveres em cima, podes controlar os
movimentos, a profundidade de penetração. Estou a dar-te o controlo.
Confia em mim — suspirou, beijando-lhe a orelha.
Continuou a acariciá-la, segredando-lhe palavras doces sobre a pele
suave e quase translúcida. Depois, tomou-a nos braços, levantou-a da cama
e trocou de lugar com ela, ficando ele deitado de costas e Julia deitada sobre
ele.
Quando ela lhe pousou a cabeça no peito, Gabriel murmurou-lhe palavras
de Dante em italiano:
Color di perle ha quasi in forma, quale
convene a donna aver, non for misura;
ella è quanto de ben pò far natura;
per essemplo di lei bieltà si prova.
De li occhi suoi, come ch’ella li mova,
escono spirti d’amore inflammati,
che feron li occhi a qual che allor la guati,
e passan sì che ‘l or ciascun retrova:
voi le vedete Amor pinto nel viso,
là ‘ve non pote alcun mirarla fiso.

Gabriel louvava a sua beleza e a sua bondade, comparando-a a uma


pérola e declarando que o próprio Amor estava representado no seu rosto.
Julia agradeceu as suas belas palavras, e depois deixou-se ficar em silêncio,
para poder escutar o coração dele bater junto ao seu ouvido. Causava-lhe
uma emoção tremenda pensar que tinha aquela pessoa, aquele homem que
amara durante tanto tempo, nos seus braços. Não conseguia parar de lhe
tocar, sentindo cada músculo, cada tendão daquele corpo perfeito. Os seus
dedos deslizaram pelas sobrancelhas dele, pela concavidade sobre o seu
lábio superior, pelas patilhas, pelas orelhas…
Gabriel ergueu a cabeça e beijou-a, passando a língua sobre os seus
lábios e chupando-lhe o lábio inferior. Por instantes, estiveram pele sobre
pele, dois corpos nus quentes e ansiosos. As mãos de Julia continuavam a
explorar a forma de Gabriel, a sua cara, o peito, as ancas. Hesitando, tocou-
lhe o sexo ereto, devagar, continuando a beijá-lo no pescoço e na garganta,
enquanto a sua mão se movia.
Ele gemeu-lhe ao ouvido, exprimindo o prazer que sentia. Uma onda de
confiança levou-a a acariciá-lo com mais determinação, acelerando o ritmo,
enquanto os seus lábios desciam para o peito, beijando-lhe os peitorais e a
tatuagem. A respiração de Gabriel tornara-se ofegante.
— Deixa-me adorar-te com o meu corpo, Julia — disse, numa voz rouca,
não querendo que o prazer acontecesse na mão dela.
Julia libertou-o, e ele segurou-lhe as coxas, afastando-as delicadamente
de modo a ficarem de cada lado das suas ancas estreitas. Julia sentiu-o
debaixo de si, erguendo-se entre as suas pernas. Moveu-se ligeiramente, e
uma expressão preocupada ensombrou o seu rosto encantador.
Gabriel pousou-lhe uma mão no peito, e sentiu o seu coração palpitar
freneticamente, cada vez mais depressa.
— Estás bem? — perguntou.
Julia baixou a cabeça, deixando que o cabelo lhe cobrisse a cara como
uma viseira.
Gabriel puxou-lhe o cabelo para trás dos ombros, para a ver melhor.
Julia mordeu o lábio inferior, desviando o olhar.
— Que foi?
Ela abanou a cabeça.
— Querida, não é altura para te sentires tímida. Diz-me.
Julia olhou para o peito dele, esforçando-se por não ver o dragão, que
troçava dela com a sua permanência.
— Não foi assim que imaginei — sussurrou, tão baixo que ele teve
dificuldade em ouvi-la.
— Então, diz-me como imaginaste.
— Pensei que estarias… em cima de mim. A sua bandeira sobre mim é
amor.
— Eu gosto de estar por cima, não vou negá-lo, mas és muito pequena,
querida, muito delicada. Tenho medo de…
— Eu sei que te fiz esperar muito tempo, Gabriel. — A voz de Julia era
pouco mais que um sussurro. — Compreendo se não conseguires ter
cuidado. Se tiveres de ser… agressivo.
O comentário de Julia perturbou-o profundamente, pois Gabriel
reconheceu ali não as palavras dela, mas as de Simon. Claro que é isso que
ela pensa. Os homens são cães sem autocontrolo, e ela é um brinquedo
destinado à satisfação sexual deles. A ideia causou-lhe náuseas, mas
Gabriel esforçou-se por disfarçar a sua indignação. Pousando-lhe uma mão
na cara, acariciou-a gentilmente.
— Julia, eu amo-te. Se fosse o tipo de homem que precisasse de ser
agressivo porque me fizeste esperar, não devias vir para a cama comigo. És
uma pessoa, não um brinquedo.
»Não quero usar-te. Quero dar-te prazer. Quero tanto dar-te prazer. —
Fitou-a com uns olhos grandes, turvos, e a sua voz tornou-se um murmúrio.
— Quero-te para sempre, não apenas por esta noite. Por isso, por favor,
deixa-me fazer isto à minha maneira.
Suplicou-lhe com o olhar que confiasse nele. Não queria ter de explicar o
motivo da sua preocupação e aquilo que estava deliberadamente a evitar.
Teriam tempo para isso de manhã.
— Tudo o que sempre quis foi que alguém me amasse — disse Julia,
baixinho.
— É isso que tens agora.
Aproximou a boca dos seios dela, segurando um cuidadosamente na mão
enquanto roçava o nariz no outro. Eram perfeitos. Perfeitos em peso e em
tamanho, naturais e bonitos. Botões de rosa sobre pele branca. Recordou a
primeira vez em que vira um deles, quando o roupão roxo dela se abrira no
quarto de hotel em Filadélfia. Como ansiara por senti-los na boca. Começou
a mover a língua, lambendo suavemente, e depois chupou o mamilo,
sentindo-o endurecer mais ainda dentro da sua boca.
Julia deixou a cabeça cair para trás, balbuciando. Gabriel avaliava
cuidadosamente a sua reação. Queria que ela estivesse excitada, e se aquilo
bastasse para lhe provocar um orgasmo, pois que assim fosse. Tornaria a
fase seguinte muito, muito mais fácil.
— Deixa-te ir, amor. Não há razão para lutar — murmurou junto ao outro
seio, que tinha agora a sua atenção.
Julia estremeceu ao ouvi-lo, e começou a mover-se sobre ele, deslizando
para a frente e para trás. Passados minutos, Gabriel sentiu-a contrair-se e
soltar-se, abandonando o corpo ao terminar. Quando abriu os olhos, sorriu
languidamente para ele.
E muito obrigada pelo orgasmo número dois…
Julia tomou a iniciativa de o beijar, murmurando-lhe o seu amor através
dos lábios entumecidos. Quando recuou, Gabriel estendeu o braço para ir
buscar algo à mesa de cabeceira. Julia sentiu-o afastar-se um pouco e deitar
uma substância transparente sobre a palma da mão direita, aplicando-a
rapidamente no sexo.
Apercebendo-se da inquietação de Julia, apressou-se a explicar.
— Isto vai tornar as coisas mais fáceis para ti.
Julia corou. Sabia da existência de tais coisas, evidentemente, embora
nunca tivesse precisado de as usar. Sentiu-se envergonhada por não se ter
lembrado de comprar algo para aquele efeito. Não se preparara.
— És muito atencioso.
A boca de Gabriel curvou-se naquele meio-sorriso confiante que lhe era
característico.
— Disse-te que pensaria em todas as tuas necessidades. — Beijou-a e
voltou a recostar-se na almofada. — Posso usar um preservativo, caso
tenhas mudado de ideias.
— Com todos os testes que fizeste, penso que não temos nada com que
nos preocupar — disse Julia.
— Continua a ser uma decisão tua.
— Acredito que me contaste a verdade em relação a tudo.
— Fico feliz por ser o teu primeiro.
A estas palavras, um sorriso rasgado invadiu o rosto de Julia.
— Quero que sejas o meu último, Gabriel. — Beijou-o intensamente, o
coração batendo rápido e feliz por causa das palavras de Gabriel. Por causa
das suas ações. — Mas agora tenho um pedido a fazer-te.
— Tudo o que quiseres.
— Quero que fiques por cima.
Quando a testa de Gabriel se enrugou e ele estava perigosamente perto de
franzir o sobrolho, Julia debruçou-se apaixonadamente sobre ele.
— Já demonstraste que és um amante generoso. Mas não é boa ideia
deixares-me a controlar o que se vai passar, quando não faço ideia do que
estou a fazer. Vou ficar nervosa. Não vou conseguir relaxar e concentrar-me
no que estou a sentir. Por favor… — Acrescentou aquela última palavra
como uma adenda pouco convicta, pois não queria ter de implorar. Gabriel
pedira-lhe que expressasse os seus desejos, e era isso que ela estava a fazer.
Só então ele se apercebeu de como seria enervante para Julia estar
sentada sobre ele, nua e exposta, sentindo-se responsável pelo que fosse
acontecer. Talvez mais tarde, mas não da primeira vez. Embora estivesse
receoso, não podia negar-lhe aquele desejo. Gabriel anuiu, o maxilar
ligeiramente tenso, e num movimento fluido Julia ficou deitada de costas,
estando ele ajoelhado entre as suas pernas.
O sorriso dela foi como o nascer do Sol. Pois era assim que ela imaginara
aquele momento.
— Obrigada — murmurou na boca de Gabriel, quando ele a beijou
ternamente.
— O mais pequeno gesto basta para te deixar feliz.
— Bem, eu não lhe chamaria pequeno… — brincou Julia, rindo.
Ele fez um sorriso presumido, deleitando-se com o momento frívolo.
A música mudou, e Julia olhou-o, curiosa.
— Como se chama esta canção?
— Lying in the Hands of God, Dave Matthews Band.
— Gosto.
— Eu também.
— Porque é que a escolheste? — perguntou ela, parecendo intrigada.
— A letra, a música… — Sorriu, os olhos muito brilhantes. — O ritmo.
— Ah sim?
— Sente a música. Concentra-te no ritmo. É perfeito para fazer amor. —
Agarrando-a pelas ancas, pressionou o corpo dela, movendo-se para cima e
para baixo ao sabor da música, sabendo que ela apreciaria o contacto tanto
quanto ele.
Julia já não ria, e começou a gemer, puxando-o para si.
— Respira fundo, amor — murmurou Gabriel.
Quando Julia encheu o peito de ar, ele entrou um pouco nela. Julia fechou
os olhos e gozou a sensação.
Agora que podia fazer uma ideia do que seria estar dentro dela, Gabriel
sentia o seu corpo a tentá-lo para avançar depressa e com força. Mas sabia
que qualquer movimento repentino da sua parte a rasgaria. Desejava-a.
Desejava estar dentro dela. Mas esqueceu os seus desejos por um instante e
manteve-se completamente imóvel, suportando o seu peso com os
cotovelos, um de cada lado dos ombros de Julia, e continuando a lamber e a
chupar-lhe os seios.
Agora que podia fazer uma ideia de como seria estar ligada a ele, estar
preenchida por ele, Julia queria mais. Muito, muito mais. Queria tudo.
— Cuidado — avisou Gabriel, quando ela ergueu as ancas, incitando-o a
avançar. — A parte seguinte vai ser desconfortável.
Como ela não abria os olhos, Gabriel tocou-lhe a cara, o seu polegar
deslizando-lhe por uma das faces.
— Olha para mim. Olha-me nos olhos. — Julia pestanejou e abriu os
olhos, e Gabriel mergulhou neles. — Quero dar-te tudo. O meu corpo, a
minha alma… São teus. Fica com tudo.
Olharam-se fixamente enquanto ele pressionava um pouco mais,
avançando devagar, devagar…
Os olhos de Julia abriram-se muito, e ela inspirou com força, sentindo-o
entrar.
Gabriel parou imediatamente, e imobilizou-a pousando-lhe uma mão na
anca, para garantir que nenhum dos dois se movia.
— Desculpa, querida — murmurou, acariciando-lhe a cara. — Esta foi a
parte pior, juro-te. Estás bem? — Olhou-a ansiosamente, à procura de
lágrimas.
Mas não havia lágrimas. Não fora tão doloroso como Julia imaginara.
Também não fora completamente agradável, mas a sensação de o ter dentro
de si, as emoções que lhe lia no rosto, nos olhos, distraíam-na da dor… era
demasiado intenso.
Julia queria mais. Mais dele. Mais daquilo e de ambos… Queria vê-lo
abandonar-se sobre o seu corpo e queria saber que tinham feito aquilo
juntos. Queria que encontrassem o seu próprio ritmo. A música remoinhava
sobre a cama, envolvendo-os, um ritmo tentador que Julia queria
acompanhar. Sorriu. E o seu sorriso chegou ao coração de Gabriel,
atenuando os seus receios. Sem desviar os olhos dos dela, começou a
mover-se, para dentro e para fora, a um ritmo desesperantemente lento.
A sensação de ter Gabriel dentro de si fez Julia pestanejar. As suas mãos
deslizaram-lhe pelos músculos contraídos das costas, pelas nádegas,
enquanto ele se movia a um ritmo regular sob o seu toque. Gabriel
continuava apoiado num cotovelo, desenhando padrões sensuais sobre as
costelas e o ombro de Julia. Era magnífica: o cabelo longo, escuro
espalhado sobre a almofada branca, os olhos castanhos, cheios e profundos,
presos aos seus, e a boca, vermelha e aberta, de onde escapavam gemidos a
cada impulso seu.
Gabriel pousou uma mão sobre o traseiro dela, os dedos abertos,
guiando-a e ajudando-a a mover-se, mas muito devagar. Esperara tanto
tempo. Julia viu as sobrancelhas dele unindo-se, os seus dentes cravando-se
no lábio inferior. Moviam-se juntos, não depressa, mas com determinação, a
ligação sincronizada de amantes que se fitavam mutuamente.
Eram tantas as emoções que Julia lia nos olhos dele: amor, preocupação,
arrebatamento, adoração, carinho, desejo erótico… Gabriel olhava-a como
se ela fosse a única mulher na Terra, como se no seu universo privado nada
mais existisse para além deles e da música sensual que pairava no ar,
pontuada pelos seus gemidos, enquanto faziam amor.
Julia deu por si a gemer, ofegante, e os sons de sexo que lhe saíam
involuntariamente da garganta já não a constrangiam. Gabriel adorava
aqueles gemidos, incitavam-no, e excitavam-no ainda mais, como se tal
fosse possível. Pôs uma mão entre eles e, sentindo a sua velocidade
aumentar, começou a tocar Julia, alternando as carícias com os seus
impulsos. Julia lutava por manter os olhos abertos, e o modo como lhe
afundava os dedos nas nádegas era indício do seu prazer.
— Olha para mim. Quero ver os teus olhos quando te vieres — disse
Gabriel, a intensidade da sua voz combinando com a expressão que lhe
tomava conta do rosto.
Os olhos de Julia abriram-se muito, e ela gritou, sentindo os dedos dele
movendo-se agora mais depressa. Julia contraiu-se como um nó que
estivesse um pouco apertado de mais e, subitamente, sentiu-se cair.
Murmúrios eróticos e sussurros de adoração vieram ao encontro dos seus
ouvidos. Gabriel não praguejara. Julia estava demasiado absorta para se
deter nesse facto impressionante. Não podia adivinhar que ele era um
amante vocal que gemia e gritava para exprimir desejo e prazer. Mas
naquele espaço, sagrado ou não, as suas frases espontâneas tinham sido
limpas e puras.
— Amo-te. Amo-te. Amo-te — declamava sobre ela, ao ritmo dos seus
movimentos.
Julia desfrutava da sensação intensa, sem paralelo, de ser preenchida,
uma sensação que percorria todo o seu corpo. Era diferente de tudo o que
sentira até então. E ainda perdida no seu orgasmo, sentiu Gabriel avançar
um pouco mais e gritar o seu nome.
Gabriel abandonou-se, tendo o cuidado de distribuir o seu peso pelos
cotovelos, uma onda de emoção invadindo-lhe o corpo à medida que descia
do seu clímax. Estreitou-a nos seus braços, murmurando-lhe docemente em
italiano, esperando que ela abrisse os olhos.
Amo esta mulher. Mais do que amo a própria vida…
A sua linda Beatriz já não era virgem. Gabriel tivera — e dera — o que
Dante nunca pudera ter. Rezou em pensamento para que ela nunca viesse a
arrepender-se da decisão que a levara àquela cama, ou da escolha que fizera
do seu primeiro amante.
Deitou-se ao lado de Julia e pousou-lhe um dedo no queixo. Só então se
apercebeu da vermelhidão no pescoço e no peito dela, e mais abaixo. A pele
no interior das coxas revestira-se de um tom vermelho rosado, e Gabriel
abafou um remorso em forma de náusea.
Oh, Deus, magoei-a.
— Julia?
As pestanas de Julia abriram-se. A princípio, o seu olhar parecia confuso
e desfocado. Depois, num instante, mudou. Ao vê-lo, um encantador sorriso
lento esboçou-se nos seus lábios, revelando-lhe os dentes brancos. Julia
sentia-se como uma pena soprada por uma brisa de verão. Era tão melhor
do que qualquer outra coisa… vê-lo e ouvi-lo, tocá-lo e saboreá-lo e depois,
por fim, o clímax glorioso, puro, raro.
Gabriel respirou fundo e beijou-a profundamente.
— Estás bem?
— Sim — ronronou Julia.
— Amo-te. Só quero fazer-te feliz, ver-te sorrir. Para sempre.
— Vais fazer-me chorar. — Julia não conseguia dizer mais nada; estava
para lá das palavras. Beijou-o, de olhos fechados, deleitada nos braços do
seu amante. O primeiro. O último.
— Não chores, minha doce Julianne. — Gabriel beijou-lhe as pestanas,
acariciando-a.
Subitamente, desapareceu, e Julia viu-se sozinha na grande cama, maior
ainda, e mais fria, na ausência dele. A sensação de perda foi imediata, mas
o seu pensamento ainda estava lento, entorpecido pela sua descoberta do
êxtase. Antes que pudesse estender o braço sobre o lençol para o procurar,
Gabriel estava de novo ao seu lado.
— Deixa-me dar uma vista de olhos, querida — sussurrou, hesitante.
Julia não fazia ideia do que estaria ele a pedir, por isso limitou-se a
murmurar em jeito de consentimento. Dedos hesitantes afastaram-lhe os
joelhos e uma mão delicada ergueu um deles, afastando-lhe as pernas,
embora não muito. Agora, os olhos de Julia estavam bem abertos.
Quando os seus olhares se encontraram, Gabriel ficou imóvel.
— É só uma olhadela rápida, para ter a certeza que estás bem.
Quando se examinara na casa de banho, Gabriel não vira sangue, o que
fora um enorme alívio. Baixou os olhos, e não tardou a suspirar, os ombros
relaxando. Colocou algo quente e macio entre as pernas de Julia.
Ela retraiu-se.
— Desculpa. — Voltou a pressionar o pano húmido sobre a zona
sensível. Viu algumas manchas rosadas, mas nada de alarmante. Na
verdade, Gabriel gostaria de não ter visto sequer cor-de-rosa, mas cor-de-
rosa era bem melhor do que vermelho.
— Estou bem. Apanhaste-me de surpresa, só isso. — A voz de Julia
estava trémula, mas apenas porque ainda se sentia a pairar, e o toque dele
naquele lugar intensificara as sensações.
Gabriel pegou num copo de água que estava na mesa de cabeceira e
pousou-o numa das mãos dela, deitando dois comprimidos de um frasco na
outra.
— Ibuprofeno — apressou-se a explicar. — Para as dores.
— Não é assim tão mau, Gabriel. Não lhe chamaria dor.
— Por favor — suplicou ele.
Julia achou que ele estava a exagerar, mas resolveu não ser teimosa,
pondo rapidamente os comprimidos na língua e bebendo toda a água que
estava no copo. Tinha sede.
Depois de a limpar, Gabriel ergueu-a nos seus braços, beijando-lhe a testa
uma e outra vez, e levou-a para a casa de banho.
Julia ouviu o som de água a correr antes de passarem a porta.
— Que está a acontecer? — perguntou, levantando a cabeça.
— Deixa-me cuidar de ti, querida. — Beijou-lhe uma vez mais a testa e
pousou-a na banheira grande e convidativa.
A água quente e a espuma com perfume de rosa eram confortantes. Julia
abriu os olhos. Ainda se sentia nas nuvens, mas tudo começava a tornar-se
nítido em seu redor. Viu Gabriel de pé ao seu lado, ainda nu, ainda
magnífico, verificando a temperatura da água com os dedos e ajustando as
torneiras.
— Ainda tens sede?
Julia anuiu.
Ele desapareceu por um minuto e regressou com um líquido avermelhado
num copo de vinho.
— Arando com gasosa — disse. — Vai fazer-te bem.
Julia arqueou uma sobrancelha, perguntando-se como se tornara ele um
especialista na prevenção de problemas de mulheres, mas, mais uma vez,
decidiu não levar a questão por diante. Bebeu avidamente e passou-lhe o
copo vazio.
— Mudaste a música. Que canção é esta?
— Sogno, de Andrea Bocelli.
— É bonita.
— Não tanto como tu.
Gabriel fechou as torneiras e sentou-se na banheira, atrás de Julia, uma
perna de cada lado do seu corpo. Puxou-a para si, e suspiraram ambos de
contentamento. Ela encostou-lhe a cabeça ao ombro e ele afagou-lhe o
cabelo, leve e delicadamente.
— Foi… bom para ti? — perguntou Julia num murmúrio.
Isso é dizer pouco, pensou Gabriel.
— Nunca tinha sentido nada assim. Foste perfeita. És perfeita. — Beijou-
a no alto da cabeça, e Julia aninhou-se nos seus braços. — E muito, muito
sensual. E para ti?
— Foi ainda melhor do que tinha imaginado. Obrigada.
As mãos de Gabriel começaram a deslizar pelos lados do tronco de Julia,
acariciando-lhe a pele molhada e escorregadia.
— Porquê o banho? — perguntou, movendo-se ligeiramente contra o
corpo dele, sentindo-o de novo duro contra as suas nádegas.
Os lábios dele tocaram-lhe a orelha.
— Queria cuidar de ti.
— Obrigada, Gabriel, por toda a tua gentileza. Sei que não teria sido tão
agradável se estivesse com outra pessoa.
Ele beijou-lhe o cabelo.
— Mereces muito mais e muito melhor do que eu, Beatriz — sussurrou-
lhe. — La gloriosa donna della mia mente. A gloriosa senhora da minha
mente.
— O meu Dante — disse Julia, voltando-se para lhe beijar o peito. —
Quando podemos fazer aquilo outra vez?
Gabriel sorriu.
— Só amanhã. Primeiro tens de recuperar.
Ela contorceu ligeiramente o corpo.
— Mas não estou assim tão mal. Tiveste muito cuidado.
— Depois de tudo o que partilhámos, só quero abraçar-te e ficar perto de
ti. Descansa nos meus braços e sente como te amo. Vamos voltar a fazer
amor muito, muito em breve.
Consolada, Julia relaxou completamente, reclinada sobre o corpo dele.
Agradeceu em silêncio aos deuses das banheiras grandes, dos amantes
atraentes e sedutores e dos banhos de espuma com fragrância de rosa. (Não
necessariamente por esta ordem.) E agradeceu aos deuses das virgens que
estavam prestes a ter sexo com os seus namorados-deuses-do-sexo (sem
intenção de blasfémia) para terem o orgasmo dos orgasmos. Três vezes de
seguida.
Nas primeiras horas da madrugada, os amantes edénicos enlaçaram-se,
sonolentos e saciados, numa imensa cama branca. Luz e escuridão,
inocência e experiência, beijaram-se e acariciaram-se no calor e na
aceitação criados pelo seu amor. O anjo da escuridão falou em italiano ao
ouvido da sua musa até ela adormecer nos seus braços, mais feliz do que
alguma vez fora. Era amada.
Agradecimentos

Estou em dívida para com a falecida Dorothy L. Sayers, para com o


falecido Charles Williams, para com a minha amiga Katherine Picton, e
para com The Dante Society of America, pelos seus estudos sobre A Divina
Comédia, de Dante Alighieri, que serviram de base ao meu trabalho. Neste
romance, utilizei as normas da Dante Society no que se refere ao uso de
maiúscula em termos como Inferno e Paraíso.
Inspirei-me nas ilustrações de Sandro Botticelli da Comédia, que
apresentam Dante e Beatriz como sempre os imaginei.
Enquanto escrevi esta história, encontrei vários arquivos eletrónicos que
se revelaram bastante úteis, especialmente o Digital Dante Project da
Universidade de Columbia, Danteworlds da Universidade do Texas em
Austin, e o World of Dante da Universidade da Virgínia. Estes arquivos
serão preciosos para os leitores que desejem aprofundar conhecimentos
sobre a vida e a obra de Dante. Também consultei o sítio Internet Archive
pela sua versão da tradução de Dante Gabriel Rossetti de La Vita Nuova e
do original italiano, que é citado nesta obra.
Estou também em dívida, embora de modo diferente, para com a
Universidade de Toronto e a sua cidade, tendo ambas servido como pano de
fundo para esta história.
Gostaria de agradecer à Jennifer, que leu o primeiro rascunho desta
história e que ofereceu críticas construtivas em todas as fases do projeto. O
seu apoio e o seu encorajamento tiveram um valor inestimável, tal como a
sua perspicácia. Estou também grato à Nina pelo seu apoio técnico, pelo seu
contributo criativo e pela sua sabedoria.
Aqui fica também o meu obrigado à excelente equipa da Omnific,
especialmente Elizabeth, Lynette, CJ, Kim, Coreen e Amy. Foi um prazer
trabalhar convosco.
Gostaria ainda de agradecer àqueles que leram uma versão anterior do
meu manuscrito e que contribuíram com críticas, sugestões e apoio,
especialmente às Musas, Tori, Kris e Erika.
Por fim, gostaria de agradecer à minha família. Oferecer encorajamento
constante a um escritor estreante não é tarefa fácil, especialmente quando
há outras coisas importantes a fazer. Sem o seu apoio, este projeto não teria
sido realizado.
SR
– Lent 2011
Leia nas próximas páginas um excerto do 2º Volume de A Saga de
Gabriel

O ÊXTASE DE GABRIEL

Venha mergulhar num mundo de obsessões, segredos e prazer sem limites,


acompanhando a história de dois amantes ligados por desejos obscuros...
que os podem destruir.

O professor Gabriel Emerson envolveu-se numa paixão escaldante e


clandestina com a sua ex-estudante, Julia Mitchell. Ao levá-la para umas
férias românticas em Itália, inicia-a nos deleites sensuais do corpo e os
êxtases do sexo. Mas ao regressarem, veem a sua felicidade ameaçada por
uma conspiração de estudantes, pela instituição académica e por um antigo
amante ciumento.
Quando Gabriel for finalmente confrontado pela administração da
Universidade, irá sucumbir ao destino de Dante? Ou irá lutar para manter
Julia, a sua Beatriz, para sempre?
Nesta brilhante sequela, O Êxtase de Gabriel, Sylvain Reynard tece uma
sofisticada história de amor que irá tocar para sempre a alma, o corpo e a
mente do leitor.

Um livro obsessivo e viciante como As Cinquenta Sombras de Grey.


Mais informações em
WWW.SAIDADEEMERGENCIA.COM
Capítulo Um

O professor Gabriel Emerson estava sentado na cama, nu, a ler La


Nazione, o jornal florentino. Acordara cedo no Palazzo Vecchio
Penthouse do Gallery Hotel Art e pedira que lhe servissem o pequeno-
almoço no quarto, mas não resistira a voltar para a cama, para observar
Julia, que ainda dormia. Estava deitada de lado, voltada para ele, respirando
tranquilamente, um diamante reluzindo-lhe na orelha. Tinha as faces
rosadas do calor do quarto, pois o sol que entrava pelas portas envidraçadas
incidia sobre a cama.
Os lençóis estavam deliciosamente amarrotados, cheirando a sexo e a
sândalo. Os olhos de Gabriel brilhavam, contemplando preguiçosamente a
pele nua e os longos cabelos escuros de Julia. Quando Gabriel retomava a
sua leitura, ela moveu-se ligeiramente e gemeu. Preocupado, pôs o jornal de
lado.
Julia encostou os joelhos ao peito, enroscando-se. Murmúrios
escapavam-se-lhe por entre os lábios, e Gabriel aproximou-se, tentando,
sem êxito, decifrar o que ela dizia.
Subitamente, o corpo dela contorceu-se, e Julia soltou um grito cortante,
debatendo-se contra o lençol que a envolvia.
— Julianne? — Gabriel pousou-lhe uma mão sobre o ombro nu, mas ela
afastou-se.
Julia começou a murmurar o nome dele, uma e outra vez, num pânico
crescente.
— Julia, estou aqui — disse Gabriel, falando alto. Quando estendeu de
novo a mão para lhe tocar, ela ergueu-se em sobressalto, arquejando.
— Estás bem? — Gabriel aproximou-se, resistindo ao impulso de lhe
tocar. Sob o seu olhar cauteloso, Julia continuava ofegante, agitando uma
mão diante da cara.
— Julia?
Ao fim de um minuto longo, tenso, ela encarou-o, abrindo muito os
olhos.
Gabriel franziu o sobrolho.
— Que aconteceu?
Julia engoliu ruidosamente.
— Tive um pesadelo.
— Sobre quê?
— Estava no bosque junto à casa dos teus pais, em Selinsgrove.
As sobrancelhas de Gabriel uniram-se por detrás dos seus óculos de aros
escuros.
— Porque havias de sonhar com isso?
Julia respirou fundo e cobriu os seios, puxando o lençol até ao queixo. O
tecido espesso e branco envolveu toda a sua figura pequena antes de se
encapelar, como uma nuvem, sobre o colchão. Fez lembrar a Gabriel uma
estátua ateniense.
— Fala comigo, Julianne — disse, passando-lhe suavemente os dedos
sobre a pele.
Ela contorceu-se sob o seu olhar azul penetrante, mas Gabriel insistiu.
— O sonho começou maravilhosamente. Fizemos amor à luz das estrelas
e adormeci nos teus braços. Quando acordei, tinhas desaparecido.
— Sonhaste que eu fazia amor contigo e depois te abandonava? —
perguntou Gabriel, num tom mais frio, tentando mascarar o seu
desconforto.
— Já uma vez acordei sem ti no pomar — censurou-o Julia, calmamente.
O fogo que Gabriel sentira no ventre extinguiu-se instantaneamente.
Recordou aquela noite mágica, seis anos antes, em que se tinham
conhecido, uma noite em que tinham apenas conversado e dormido
abraçados. Gabriel acordara, de manhã, e afastara-se, deixando uma
adolescente adormecida completamente sozinha. A ansiedade de Julia era
compreensível, e até comovente.
Gabriel soltou os dedos apertados de Julia, um a um, beijando-os com
remorso.
— Amo-te, Beatriz. Não vou deixar-te. Sabes isso, não sabes?
— Magoar-me-ia muito mais perder-te agora.
De sobrolho franzido, Gabriel rodeou-lhe o ombro com um braço,
puxando-a para si e fazendo-a pousar a cara no seu peito. Pensou na noite
anterior, e uma miríade de memórias invadiu-lhe a mente. Vira-a nua pela
primeira vez e iniciara-a na intimidade do amor. Julia partilhara a sua
inocência com ele, e Gabriel julgava tê-la feito feliz. Não havia dúvida de
que fora uma das melhores noites da vida dele. Ponderou esse facto por um
instante.
— Arrependes-te do que aconteceu esta noite?
— Não. Estou feliz por teres sido o meu primeiro. Era o que queria desde
que nos conhecemos.
Gabriel acariciou-lhe a cara, percorrendo-lhe a face com o polegar.
— É uma honra ter sido o teu primeiro. — Inclinou-se para ela, sem
pestanejar. — Mas quero ser o último.
Julia sorriu e aproximou os lábios dos dele. Antes que Gabriel pudesse
beijá-la, o som telefónico das badaladas do Big Ben soaram no quarto.
— Ignora — sussurrou Gabriel impetuosamente, estendendo-lhe um
braço sobre o corpo e fazendo-a deitar-se debaixo de si.
Julia espreitou por sobre o ombro dele para o iPhone na mesa de
cabeceira.
— Pensei que ela não ia continuar a telefonar-te.
— Não vou atender, por isso tanto faz. — Ajoelhando-se entre as pernas
de Julia, Gabriel puxou o lençol que a envolvia. — Na minha cama, só
estamos nós.
Julia olhou-o nos olhos, sentindo que os seus corpos nus se
aproximavam.
Gabriel debruçou-se para a beijar, mas ela virou a cara.
— Ainda não lavei os dentes.
— Não me importa. — Começou a beijar-lhe o pescoço, apercebendo-se
de como a pulsação dela se acelerava.
— Gostava de ir à casa de banho primeiro.
Gabriel soprou de frustração, apoiando-se num cotovelo.
— Não deixes a Paulina estragar o que temos.
— Não estou a deixar. — Tentou sair de baixo dele e levar o lençol
consigo, mas Gabriel segurou-o. Fitou-a por sobre os aros dos óculos, um
brilho travesso nos olhos.
— Preciso do lençol para fazer a cama.
Julia olhou para o tecido branco preso entre os seus dedos, e depois
encarou Gabriel, que lhe lembrou uma pantera pronta a atacar. Olhou para
as roupas amontoadas no chão, ao lado da cama. Estavam fora do seu
alcance.
— Qual é o problema? — perguntou ele, reprimindo um sorriso.
Julia corou e agarrou o lençol com mais firmeza. Rindo, Gabriel largou a
ponta do tecido e puxou Julia para si.
— Não precisas de te sentir envergonhada. És linda. Por mim, nunca
mais andavas vestida.
Beijou-lhe o lóbulo da orelha, tocando ao de leve o diamante. Tinha a
certeza que a sua mãe adotiva, Grace, teria ficado feliz por os seus brincos
terem acabado nas mãos de Julia. Depois de mais um beijo rápido, libertou-
a e foi sentar-se na beira da cama.
Julia esgueirou-se para a casa de banho, mas Gabriel ainda pôde vê-la
nua, de costas, quando ela deixou o lençol cair no chão junto à porta.
Enquanto escovava os dentes, Julia pensava em tudo o que acontecera.
Fazer amor com Gabriel fora uma experiência muito emocional, e as
réplicas ainda agora se faziam sentir no seu coração. Não era de espantar
que assim fosse, tendo em conta a história que vivera com ele. Desejara-o
desde uma noite casta que haviam passado juntos, num pomar, tinha ela
dezassete anos, mas na manhã seguinte acordara sem ele. Num
atordoamento provocado por álcool e drogas, Gabriel esquecera-a. Julia só
voltara a vê-lo passados seis anos, e nessa altura ele não a reconhecera.
Quando o encontrara de novo, no primeiro dia do seu seminário de pós-
graduação na Universidade de Toronto, achara-o atraente mas frio, como
uma estrela distante. Não imaginara que pudesse vir a tornar-se sua amante.
Não julgara possível que o professor temperamental e arrogante
correspondesse ao seu afeto.
Havia tanto que ela desconhecia. O sexo era uma espécie de
conhecimento, e agora Julia sentia a ferroada do ciúme de uma forma que
nunca antes experimentara. A simples ideia de Gabriel fazer o que tinham
feito, na noite anterior, com outra mulher, e, no caso dele, com muitas
outras mulheres, causava-lhe sofrimento.
Sabia que as aventuras de Gabriel nada tinham a ver com o que os unia
— tinham sido encontros furtivos, sem amor ou afeto. Mas Gabriel despira
aquelas mulheres, vira-as nuas, entrara nos seus corpos. Depois de terem
estado com ele, quantas delas tinham desejado mais? Paulina quisera mais.
Mantivera o contacto com Gabriel ao longo dos anos, desde que tinham
concebido e perdido uma criança.
O novo conhecimento que tinha do sexo levou Julia a encarar o passado
de Gabriel de um modo diferente e tornava-a mais solidária com o
infortúnio de Paulina. Para além de ter intensificado o seu receio de perder
Gabriel, para Paulina ou para qualquer outra mulher.
Julia amparou-se na beira do lavatório, uma onda de insegurança a
submergi-la. Gabriel amava-a; acreditava que assim era. Por outro lado, era
um cavalheiro, e nunca revelaria que o ato o dececionara. E quanto ao
comportamento de Julia? Fizera perguntas e falara quando supunha que a
maioria das amantes teria ficado em silêncio. Pouco fizera para o satisfazer
e, quando tentara, ele impedira-a.
As palavras do seu ex-namorado giraram-lhe no pensamento em forma
de gritos, condenando-a.
És frígida.
Vais ser uma porcaria de queca.
Voltou-se de costas para o espelho, contemplando o que poderia
acontecer se Gabriel se sentisse insatisfeito com ela. O espectro maligno da
traição sexual pairou diante de si, fazendo-a recordar imagens de Simon na
cama com a sua colega de quarto.
Endireitou os ombros. Se persuadisse Gabriel a ser paciente e a ensiná-la,
acreditava que seria capaz de lhe agradar. Ele amava-a. Dar-lhe-ia uma
oportunidade. Julia pertencia-lhe, como se tivesse o nome dele marcado a
ferro quente na sua pele.
Quando voltou para o quarto, viu-o através da porta aberta do terraço. Só
depois reparou numa jarra pousada sobre a mesa, com um ramo de lindas
íris, umas roxas e outras mais pálidas, variegadas. A maioria dos amantes
teria comprado rosas vermelhas de pé alto, mas não Gabriel.
Abriu o cartão aconchegado entre as flores.
Minha querida Julianne,
Obrigado pelo presente inestimável que me ofereceste.
De valor, só possuo o meu coração.
É teu.
Gabriel

Julia releu o cartão duas vezes, o peito cheio de amor e alívio. As


palavras de Gabriel não pareciam as de um homem insatisfeito ou frustrado.
Quaisquer que fossem as preocupações de Julia, Gabriel não parecia
partilhar delas.
Estava deitado no divã a apanhar sol, sem óculos e de tronco nu. Com a
sua figura musculosa de metro e oitenta e cinco, era como se o próprio
Apolo tivesse condescendido a visitá-la. Apercebendo-se da sua presença
no terraço, Gabriel abriu os olhos e deu uma palmadinha no colo. Julia foi
ter com ele, e Gabriel rodeou-a com os seus braços, beijando-a
apaixonadamente.
— Olá — segredou-lhe, afastando-lhe um canudo da cara. Observou-a
atentamente. — Que se passa?
— Nada. Obrigada pelas flores. São lindas.
Ele beijou-a nos lábios.
— Não tens de quê. Mas pareces perturbada. É por causa da Paulina?
— Aborrece-me que ela esteja a telefonar-te, mas não é isso. — O rosto
de Julia alegrou-se. — Obrigada pelo teu cartão. Dizia o que eu precisava
desesperadamente de ouvir.
— Fico contente por sabê-lo. — Apertou-a um pouco mais nos seus
braços. — Mas diz-me o que te preocupa.
Julia começou a remexer no cinto do roupão de banho, até que Gabriel
lhe segurou na mão. Olhou para ele.
— A noite passada foi como esperavas que fosse?
Gabriel expirou com força, pois a pergunta apanhara-o de surpresa.
— Essa é uma pergunta estranha.
— Sei que tinha de ser diferente para ti. Não fui muito… ativa.
— Ativa? Que queres dizer com isso?
— Não fiz muito para te dar prazer — acabou Julia por dizer, corando.
Gabriel tocou-lhe a pele ruborizada com a ponta do dedo.
— Deste-me muito prazer. Sei que estavas nervosa, mas foi uma noite
extraordinária para mim. Agora pertencemos um ao outro. De todas as
maneiras. Que mais te preocupa?
— Exigi que trocássemos de posições, quando terias preferido que eu
ficasse por cima.
— Não exigiste nada, pediste. E para ser sincero, Julianne, gostava que
me fizesses exigências. Quero saber que me queres tão desesperadamente
como eu te quero a ti. — A sua expressão suavizou-se, enquanto os seus
dedos descreviam um círculo ou dois em redor do seio de Julia. — Sonhaste
que a tua primeira vez seria de determinada forma. Eu queria dar-te isso,
mas tinha receio. E se te sentisses desconfortável? E se eu não fosse
suficientemente cuidadoso? A noite passada também foi uma primeira vez
para mim.
Gabriel deitou café e leite de duas cafeteiras para uma chávena e pousou
o tabuleiro no meio dos dois, sobre o divã. Havia bolos e frutos, torradas e
Nutella, ovos cozidos e queijo, e vários Baci Perugina que um empregado
do hotel, subornado por Gabriel, fora comprar à rua, juntamente com o
extravagante ramo de flores do Giardino dell’Iris.
Julia desembrulhou um dos Baci e comeu-o, de olhos fechados, deleitada.
— Pediste um banquete.
— Esta manhã acordei faminto. Teria esperado por ti, mas… — Abanou
a cabeça, pegando numa uva e fitando Julia com os olhos a brilhar. — Abre
a boca.
Julia assim fez, e Gabriel pôs-lhe a uva dentro da boca, passando-lhe
tentadoramente o dedo pelo lábio inferior.
— E tens de beber isto, por favor. — Estendeu-lhe um copo cheio de
sumo de arando com gasosa.
Julia revirou os olhos.
— És superprotetor.
Ele abanou a cabeça.
— É assim que um homem se comporta quando está apaixonado e quer a
sua namorada saudável para tudo o que planeia fazer com ela na cama. —
Piscou-lhe o olho com um ar presumido.
— Nem vou perguntar como descobriste essas coisas. Dá cá isso. — Julia
tirou-lhe o copo das mãos e esvaziou-o de uma só vez, olhando-o nos olhos
e fazendo-o rir.
— És encantadora.
Ela deitou-lhe a língua de fora e depois preparou um prato com o seu
pequeno-almoço.
— Como te sentes? — perguntou Gabriel, agora sério.
Julia engoliu um pedaço de queijo Fontina.
— Bem.
Ele contraiu os lábios, como se a resposta lhe desagradasse.
— Fazer amor muda as coisas entre um homem e uma mulher — disse,
incitando-a a falar.
— Hum… Não estás satisfeito com… eh… com o que fizemos? — As
faces rosadas de Julia ficaram subitamente pálidas.
— Claro que sim. Estou a tentar perceber se tu estás satisfeita. E pelo que
disseste até agora, receio que não estejas.
Julia começou a puxar uma ponta do roupão, evitando o olhar
perscrutante dele.
— Quando andava na faculdade, as raparigas do dormitório costumavam
falar sobre os namorados. Uma noite, cada uma contou a história da sua
primeira vez. — Mordiscou a ponta de um dedo. — Poucas tinham coisas
boas para dizer. As outras histórias eram terríveis. Uma rapariga tinha sido
molestada em criança. Algumas tinham sido pressionadas por um namorado
ou por um rapaz com quem tinham saído. Foram várias as que disseram que
a sua primeira vez tinha sido complicada e insatisfatória… um namorado a
soltar um grunhido e a acabar rapidamente. Pensei que, se era isso que me
esperava, mais valia continuar virgem.
— O que me estás a contar é terrível.
Julia baixou os olhos para o tabuleiro.
— Eu queria ser amada. Decidi que mais valia ter uma relação
sentimental casta através de cartas do que ter uma relação sexual. Duvidava
de que alguma vez encontrasse alguém que me desse ambas as coisas. O
Simon não me amava, isso é certo. E agora que estou com um deus do sexo,
não consigo dar-lhe nada parecido com o prazer que ele me dá a mim.
A sobrancelhas de Gabriel arquearam-se.
— Deus do sexo? Já disseste isso antes, mas, acredita, não sou…
— Ensina-me — interrompeu-o Julia, olhando-o bem nos olhos. —
Tenho a certeza que a noite passada não foi tão… hum… satisfatória como
costumava ser para ti, mas posso aprender, se fores paciente e me ensinares.
Gabriel praguejou por entre dentes.
— Vem cá. — Afastou o tabuleiro e sentou-a de novo ao seu colo,
abraçando-a. Ficou calado por um instante, depois suspirou profundamente.
— Partes do princípio de que as relações que tive no passado eram
gratificantes, mas enganas-te. Tu deste-me aquilo que eu nunca tinha tido:
sexo com amor. És a única amante que tive até hoje, no verdadeiro sentido
da palavra.
Beijou-a delicadamente, uma confirmação solene do que acabara de
dizer.
— A expectativa e a sedução de uma mulher são cruciais para a
experiência. Posso dizer, com toda a certeza, que o teu poder de sedução e a
minha expectativa foram muito além do que eu alguma vez experimentara.
E acrescentando a isso o facto de fazer amor pela primeira vez… Nem
tenho palavras para descrever o que se passou.
Julia anuiu, mas algo no seu movimento inquietou Gabriel.
— Garanto-te que não estou a lisonjear-te. — Fez uma pausa, como se
ponderasse cuidadosamente o que ia dizer a seguir. — Correndo o risco de
parecer neandertal, devo dizer que a tua inocência é tremendamente erótica.
A ideia de ser eu a ensinar-te a respeito de sexo… a ideia de uma mulher
tão recatada ser também tão apaixonada… — Interrompeu-se, olhando-a
intensamente. — Podes tornar-te mais hábil na arte do amor, aprendendo
novos truques e novas posições, mas não podes ser mais atraente ou
sexualmente mais estimulante do que já és. Não para mim.
Julia inclinou-se para o beijar.
— Obrigada por teres cuidado tão bem de mim ontem à noite —
murmurou-lhe, corando.
— Quanto à Paulina, eu lido com ela. Por favor, esquece-a.
Julia voltou a concentrar-se no seu pequeno-almoço por comer, resistindo
à tentação de argumentar.
— Queres contar-me como foi a tua primeira vez?
— Preferia não falar sobre isso.
Julia começou a comer um bolo, tentando pensar num assunto mais
seguro. As preocupações financeiras da Europa eram uma possibilidade.
Gabriel esfregou os olhos com ambas as mãos, cobrindo-os
momentaneamente. Seria muito fácil mentir, mas, depois de tudo o que lhe
dera, Julia merecia saber os seus segredos.
— Lembras-te da Jamie Roberts.
— Claro.
Gabriel baixou as mãos.
— Foi com ela que perdi a virgindade.
Julia arqueou as sobrancelhas. Jamie e a sua mãe dominadora nunca
tinham sido muito simpáticas com Julia, e ela sempre as achara
desagradáveis. Não fazia ideia de que a agente Roberts, que investigara a
agressão de Simon no mês anterior, tivera semelhante ligação a Gabriel.
— Não foi das minhas melhores experiências. Para dizer a verdade, foi
assustador. Eu não a amava. Havia uma certa atração, claro, mas não um
verdadeiro afeto. Estudávamos ambos no liceu de Selinsgrove. Houve um
ano em que ela foi minha colega de carteira em História. — Encolheu os
ombros. — Começámos a enrolar-nos à saída da escola, e acabámos por…
»A Jamie era virgem, mas mentiu-me e disse que não era. Não tive
qualquer preocupação com ela. Fui egoísta e estúpido. — Praguejou. — Ela
disse que não tinha doído muito, mas houve sangue. Senti-me como um
animal e sempre me arrependi do que aconteceu. — Gabriel encolheu-se e
Julia percebeu como ele se sentia culpado. Aquela descrição quase a deixou
nauseada, mas explicava muita coisa.
— Que horror. Lamento que tenha sido assim. — Apertou-lhe a mão. —
Foi por essa razão que estavas tão preocupado, na noite passada?
Ele anuiu.
— Ela não foi honesta.
— Isso não desculpa o meu comportamento, antes ou depois. —
Pigarreou. — A Jamie partiu do princípio de que tínhamos uma relação,
mas eu não estava interessado. Fui promovido de mero animal a animal e
imbecil. Quando a vi no fim de semana de Ação de Graças, não falava com
ela há anos. Pedi-lhe desculpa. Mostrou-se muito amável.
»Sempre me senti culpado por a ter tratado daquela maneira. Desde
então, mantive-me afastado de virgens. — Engoliu em seco. — Até à noite
passada.
»É suposto a primeira vez ser um momento mágico, mas isso raramente
acontece. Enquanto te preocupavas em dar-me prazer, eu preocupava-me
em dar-te prazer a ti. Talvez tenha sido demasiado cuidadoso, demasiado
protetor, mas não teria suportado magoar-te.
Julia pôs o pequeno-almoço de lado e afagou-lhe a cara.
— Foste muito meigo e muito generoso. Nunca me senti tão feliz, e isso
só aconteceu porque me amaste com mais do que o teu corpo. Obrigada.
Como para lhe mostrar que ela estava certa, Gabriel beijou-a
profundamente. Julia suspirou ao sentir as mãos dele no seu cabelo e pôs-
lhe os braços em redor do pescoço. As mãos de Gabriel deslizaram até à
frente do seu roupão, abrindo-o hesitantemente. Olhou-a nos olhos, em jeito
de pergunta.
Ela anuiu.
Então, Gabriel começou a sussurrar-lhe beijos no pescoço. Os seus lábios
detiveram-se no lóbulo da orelha dela, chupando-o suavemente.
— Como te sentes?
— Ótima — murmurou Julia, sentindo os lábios descerem para a
beijarem na garganta.
Gabriel posicionou-se de modo a ver-lhe a cara, enquanto as suas mãos
lhe deslizavam para a zona inferior do abdómen.
— Sentes-te dorida?
— Um pouco.
— Então é melhor esperarmos.
— Não!
Gabriel riu-se, os seus lábios curvando-se naquele sorriso sedutor que lhe
era tão característico.
— Estavas a falar a sério, ontem à noite, quando disseste que gostavas de
fazer amor aqui fora?
Julia estremeceu, inflamada pelo modo como ele lhe falara, mas retribuiu
o sorriso, entrelaçando-lhe os dedos no cabelo e puxando-o para si.
Abrindo-lhe o roupão, Gabriel começou a explorar-lhe o corpo com as
mãos, curvando-se em seguida para lhe beijar os seios.
— Estavas envergonhada comigo, quando acordaste. — Beijou-a
reverentemente sobre o coração. — Que foi que mudou?
Julia roçou a cara na covinha que ele tinha no queixo.
— Acho que vou sempre ser um pouco tímida em relação a estar nua.
Mas desejo-te. Quero que me olhes nos olhos e que digas que me amas
quando te moveres dentro de mim. Vou lembrar-me disso enquanto viver.
— Hei de continuar a lembrar-te. — Gabriel suspirou.
Despiu-lhe o roupão e deitou-a de costas.
— Tens frio?
— Não quando me estás a abraçar — murmurou Julia, sorrindo. — Não
preferes que fique eu por cima? Gostava de experimentar.
Gabriel despiu rapidamente o roupão e os boxers, e cobriu o corpo de
Julia com o seu, segurando-lhe a cara entre as mãos.
— Aqui fora, alguém poderia ver-te, querida. E nem quero pensar nisso.
Ninguém vê esse corpo lindo, para além de mim. Embora os vizinhos
possam ouvir-te… durante a próxima hora, mais coisa menos coisa… —
Riu baixinho, apercebendo-se do tremor de prazer que percorreu Julia da
cabeça aos pés.
Beijou-a, afastando-lhe o cabelo da cara.
— O meu objetivo é ver quantas vezes consigo dar-te prazer até já não
poder esperar mais.
Julia sorriu.
— Parece-me bem.
— Também a mim.
O céu azul corou ao ver a paixão com que se amavam, enquanto o Sol
florentino sorria aos amantes, aquecendo-os apesar da brisa suave. O café
com leite de Julia ficou frio como pedra, ressentido por se ver ignorado.

D epois de dormitar um pouco, Julia usou o MacBook de Gabriel para


enviar um e-mail ao pai. Encontrou duas mensagens importantes na
sua caixa de correio. A primeira era de Rachel.
Jules!
Como estás? O meu irmão tem-se portado bem? Já dormiste com ele? Sim, é uma pergunta
COMPLETAMENTE inconveniente, mas se tivesses andado com mais alguém, já me terias
dito, por isso…
Não vou dar-te conselhos por minha iniciativa. Estou a tentar não pensar muito no assunto.
Diz-me só se estás feliz e se ele te trata como deve ser.
O Aaron manda-te um beijinho.
Adoro-te,
Rachel.
PS: O Scott tem uma namorada nova. Anda cheio de segredinhos, por isso não sei há quanto
tempo estão juntos. Não paro de o chatear para nos apresentar, mas ele não me faz a
vontade.
Se calhar, ela é professora.

Julia riu baixinho, aliviada por Gabriel estar a tomar duche e não a
espreitar por cima do seu ombro. Não havia de gostar que a irmã estivesse a
fazer perguntas tão pessoais. Julia compôs mentalmente o e-mail para a sua
amiga antes de premir “responder”.
Olá, Rachel.
O hotel é lindo. O Gabriel tem sido encantador e ofereceu-me os brincos de diamante da tua
mãe. Sabias disto? Sinto-me um pouco culpada, por isso gostava de saber se não te
importas.
Quanto à tua outra pergunta, SIM. O teu irmão trata-me bem, e estou MUITO feliz.
Dá um beijinho meu ao Aaron. Estou ansiosa pelo Natal.
Adoro-te, Julia.
PS: Espero que a namorada do Scott seja mesmo professora. O Gabriel nunca mais se vai
calar.

O segundo e-mail era de Paul. Paul lamentava não ter Julia para si, mas
estava grato por ter conservado a sua amizade. Preferia guardar os seus
sentimentos para si do que perdê-la por completo. E tinha de admitir que
desde que ela tinha aquele namorado, o tal de Owen, até a sua pele reluzia.
(Não que Paul mencionasse tal coisa.)
Olá, Julia.
Desculpa não ter conseguido despedir-me antes de ires para casa. Espero que tenhas um
feliz Natal. Tenho um presente para ti. Importas-te de me dar a tua morada na Pensilvânia,
para to enviar?
Já estou na quinta, a tentar arranjar tempo para trabalhar na dissertação entre grandes
encontros de família e o levantar-me cedo para dar uma ajuda ao meu pai. Digamos que a
minha rotina diária aqui envolve muito estrume…
Queres que te leve alguma coisa de Vermont?
Uma Holstein só para ti?
Feliz Natal,
Paul.
PS: Soubeste que o Emerson aceitou a proposta de tese da Christa Peterson? Parece que o
Advento é mesmo a época dos milagres.

Julia olhava para o ecrã, estupefacta, lendo e relendo o post scriptum de


Paul. Não sabia ao certo como interpretá-lo. Era possível, pensou, que
Gabriel tivesse aceitado a proposta de tese de Christa por ela o ter
ameaçado.
Julia não queria falar num assunto tão desagradável durante as férias,
mas a notícia perturbou-a. Escreveu uma resposta breve a Paul, enviando-
lhe a sua morada, depois enviou o e-mail ao pai, garantindo-lhe que Gabriel
a tratava como a uma princesa. Fechou o portátil e suspirou.
— Isso não parece de uma Julianne feliz — ouviu a voz de Gabriel atrás
de si.
— Acho que vou ignorar o meu e-mail até ao fim das nossas férias.
— Boa ideia.
Ao voltar-se, encontrou-o de pé à sua frente, ainda molhado do duche,
cabelo em desalinho, uma toalha branca enrolada à cintura.
— És lindo — disse, antes de ter tempo de pensar.
Com uma risadinha, Gabriel fê-la levantar-se para poder abraçá-la.
— Será que tem um fraco por homens enrolados em toalhas, menina
Mitchell?
— Talvez por um homem em particular.
— Sentes-te bem? — Ergueu as sobrancelhas, uma expressão de desejo
no rosto.
— Tenho um ligeiro desconforto. Mas valeu a pena.
Gabriel estreitou os olhos.
— Tens de me dizer se estou a magoar-te, Julianne. Não me escondas
nada.
Julia revirou os olhos.
— Gabriel, não me dói nada; é um pequeno desconforto. Nem me
apercebi durante porque tinha mais em que pensar… várias coisas em que
pensar. Consegues deixar-me muito distraída.
Gabriel sorriu e beijou-lhe o pescoço ruidosamente.
— Tens de começar a deixar-me distrair-te no duche. Estou farto de
tomar duche sozinho.
— Parece-me uma ótima ideia. E como te sentes tu?
Gabriel fingiu ponderar a questão.
— Ora vejamos… sexo apaixonado e bem sonoro com o meu amor no
quarto e no terraço… Sim, diria que me sinto muito bem.
Estreitou-a nos seus braços, e o algodão do roupão dela absorveu
algumas das gostas de água que lhe escorriam do tronco.
— Prometo que não vai ser sempre desconfortável. Com o tempo, o teu
corpo vai aprender a reconhecer-me.
— Já te reconhece. E já sente a tua falta — sussurrou-lhe Julia.
Gabriel abriu a parte de cima do roupão para lhe beijar o ombro. Depois
de a apertar um pouco mais contra si, foi até à cama e pegou num frasco de
ibuprofeno, que lhe pôs na mão.
— Tenho uma reunião na Uffizi, depois preciso de ir buscar o meu fato
novo ao alfaiate. — Parecia preocupado. — Importas-te de ir sozinha
comprar um vestido? Gostava de ir contigo, mas a reunião não vai deixar-
me muito tempo livre.
— Não me importo nada.
— Se conseguires arranjar-te em meia hora, podemos sair juntos.
Julia seguiu-o para a casa de banho, tendo esquecido Paul e Christa por
completo.
Depois de tomar duche, pôs-se diante de uma das bancadas, a secar o
cabelo, enquanto Gabriel ocupou a outra. Deu por si a observá-lo nos seus
preparativos para fazer a barba, tarefa a que se entregava com uma precisão
militar. Por fim, Julia desistiu de pôr batom, encostando-se, simplesmente, à
bancada, a olhá-lo.
Gabriel continuava de tronco nu, a toalha um pouco mais descaída nas
ancas, e barbeava-se meticulosamente à maneira tradicional. Os olhos azuis
brilhantes estreitando-se, de tão concentrados, por detrás dos óculos de aros
pretos, o cabelo húmido impecavelmente penteado.
Julia abafou o riso ao ver até que ponto ele levava a sua busca de
perfeição. Usou um pincel de barbear com um cabo preto de madeira para
misturar o creme até obter uma espuma espessa. Tendo espalhado a espuma
na cara com a ajuda do pincel, começou a barbear-se com uma gilete
antiquada.
(Para alguns professores, as giletes descartáveis não são suficientemente
boas.)
— Que foi? — perguntou Gabriel, apercebendo-se de que ela estava
perigosamente perto de o comer com os olhos.
— Amo-te.
A expressão dele suavizou-se.
— Também te amo, querida.
— Nunca ouvi ninguém dizer “querida” no tom cavalheiresco em que tu
o dizes.
— Isso não é verdade.
— Não?
— O Richard dizia-o exatamente do mesmo modo à Grace — disse
Gabriel, com um olhar triste.
— O Richard é antiquado, no melhor sentido possível — retorquiu Julia,
sorrindo. — E adoro que sejas antiquado como ele.
Com um resmungo, Gabriel retomou a sua tarefa.
— Se fosse assim tão antiquado, não teríamos tido aquelas cenas
escaldantes no terraço. E não andaria a fantasiar a respeito de te mostrar as
minhas posições favoritas do Kama Sutra. — Piscou-lhe o olho. — Mas
sou, sem dúvida nenhuma, um filho da mãe pretensioso e com mau feitio.
Vais ter de me domar.
— E como hei de fazê-lo, professor Emerson?
— Nunca me deixes — respondeu Gabriel num fio de voz, encarando-a.
— Preocupa-me mais que tu me deixes a mim.
Ele inclinou-se para a beijar.
— Nesse caso, não tens nada com que te preocupar.
Capítulo Dois

J ulia saiu do quarto, um pouco nervosa. Gabriel tomara providências para


ela fazer compras na loja Prada local, e Julia escolhera um vestido sem
mangas azul-santorini de tafetá, com o decote em bico. De saia plissada,
lembrava o tipo de vestido usado por Grace Kelly nos anos 50. Assentava
na perfeição a Julia.
A gerente da loja sugerira, no entanto, acessórios que modernizassem o
vestido, pelo que Julia escolhera uma bolsa prateada e uns sapatos cor de
tangerina com saltos perigosamente altos. Uma capa preta de caxemira
completava o conjunto.
Avançou, hesitante, pela sala da suite, o cabelo encaracolado caído, os
olhos muito brilhantes. Trazia os brincos de diamantes e o colar de pérolas
de Grace.
Gabriel estava sentado no sofá da sala, a fazer alterações de última hora
nos seus apontamentos. Quando a viu, tirou os óculos e levantou-se.
— Estás deslumbrante. — Deu-lhe um beijo na cara e fê-la girar,
admirando o vestido. — Sentes-te bem com ele?
— Muito bem — disse Julia. — Obrigada, Gabriel. Sei que custou uma
fortuna.
O olhar de Gabriel deslizou para os sapatos.
— Não gostas?
Gabriel pigarreou, sem desviar os olhos dos pés dela.
— Hum… os teus sapatos… são… eh…
— Bonitos. Não achas? — Julia riu-se.
— São muito mais do que bonitos. — A voz de Gabriel tornou-se rouca.
— Bem, professor Emerson, se a sua palestra me agradar, talvez não os
descalce quando voltarmos para o seu quarto…
Gabriel endireitou a gravata e fitou-a, com um sorriso presumido.
— Oh, pode ter a certeza que a minha palestra lhe vai agradar, menina
Mitchell. Nem que tenha de lha dar pessoalmente, entre lençóis. E não é o
meu quarto, é o nosso quarto.
Vendo-a corar, abraçou-a.
— Temos de ir — disse, dando-lhe um beijo no cabelo.
— Espera. Tenho um presente para ti. — Julia desapareceu e regressou
com uma pequena caixa onde se lia Prada.
Gabriel parecia surpreso.
— Não era preciso.
— Eu sei.
Gabriel sorriu e levantou cuidadosamente a tampa da caixa. Ao remover
o papel, encontrou uma gravata de seda azul-santorini com um padrão
discreto.
— Gosto muito. Obrigado. — Deu-lhe um beijo na cara.
— Combina com o meu vestido.
— Assim, todos vão saber que pertencemos um ao outro. — Apressou-se
a tirar a sua gravata verde, atirando-a para cima da mesa de café e trocando-
a pela gravata que Julia lhe oferecera.
O fato novo de Gabriel fora feito por medida pelo seu alfaiate local
preferido. Era preto e assertoado, com rachas laterais. Julia admirou o fato,
mas admirou mais ainda a figura atraente dentro dele.
Não há nada mais sensual do que ver um homem a pôr uma gravata,
pensou.
— Posso? — ofereceu-se, vendo Gabriel atrapalhado, na ausência de um
espelho.
Ele anuiu e inclinou-se para a frente, pousando-lhe as mãos na cintura.
Julia ajustou a gravata e endireitou-lhe o colarinho, depois as suas mãos
deslizaram-lhe pelas mangas, detendo-se nos botões de punho.
Ele olhava-a com um ar curioso.
— Ajeitaste-me a gravata quando te levei ao Antonio’s. Estávamos
sentados no carro.
— Sim, eu lembro-me.
— Não há nada mais sensual do que ter a mulher que se ama a pôr-nos a
gravata. — Tomou as mãos dela entre as suas. — Percorremos um longo
caminho desde aquela primeira noite.
Julia pôs-se em bicos de pés para o beijar, tendo o cuidado de não
manchar a sua boca masculina de batom.
Gabriel encostou-lhe os lábios ao ouvido.
— Não sei como vou manter os homens florentinos longe de ti, esta noite
— segredou-lhe. — Vais ter de ficar bem perto de mim.
Julia soltou um guincho quando Gabriel a rodeou com os braços,
erguendo-a para a beijar devidamente, o que a obrigou a aplicar novamente
batom. Ambos tiveram de se olhar atentamente ao espelho antes de saírem
do quarto.
Gabriel segurou-lhe na mão durante o curto trajeto até à Galeria Uffizi e
enquanto eram conduzidos ao primeiro andar por um cavalheiro algo
anafado que usava um laço com um padrão de cornucópias e que se
apresentou como Lorenzo, o assistente do dottore Vitali.
— Professore, precisamos da sua ajuda. — Lorenzo olhou fixamente para
as mãos entrelaçadas de Gabriel e de Julia.
Gabriel apertou ainda mais a mão dela.
— É por causa do… como se diz… no ecrã? O PowerPoint? — Lorenzo
apontou para a sala onde os convidados começavam a reunir-se.
— A menina Mitchell tem um lugar reservado — disse Gabriel
bruscamente, irritado por o assistente estar a ignorá-la.
— Sim, professore. — Lorenzo voltou-se para Julia, anuindo
respeitosamente. — Acompanharei a sua fidanzata pessoalmente.
Ela ia corrigir o modo como Lorenzo se lhe referira, mas Gabriel beijou-
lhe as costas da mão, murmurando-lhe uma promessa e desaparecendo em
seguida, e Julia foi conduzida ao seu lugar de honra.
Olhou em redor, apercebendo-se de que deviam estar ali membros dos
glitterati de Florença, para além de académicos e dignitários locais. Alisou
a saia do vestido, apreciando o roçagar do tafetá sob os seus dedos. Ao ver
como os outros convidados se apresentavam, e dando-se conta da presença
de um grupo de fotógrafos, ficou satisfeita por estar bem vestida. Não
queria embaraçar Gabriel naquela ocasião tão importante.
A palestra teria lugar na sala Botticelli, onde se encontravam as mais
belas obras. Com efeito, o púlpito situava-se entre Nascimento de Vénus e
Nossa Senhora da Romã, estando o quadro Primavera exposto à direita do
público. Já as obras na parede à esquerda da assistência tinham sido
retiradas para darem lugar a um amplo ecrã, que Gabriel utilizaria para as
suas projeções.
Julia sabia como era invulgar a realização de uma palestra num espaço
tão importante, e disse, em pensamento, uma oração para agradecer
tamanha bênção. No ano em que estudara em Florença, Julia visitara a sala
Botticelli pelo menos uma vez por semana, e por vezes com maior
frequência. Achava a arte do pintor tão tranquilizante como inspiradora.
Sendo então uma tímida estudante universitária americana, nunca poderia
ter imaginado que dois anos mais tarde estaria a acompanhar um famoso
especialista em Dante quando ele desse uma palestra naquela mesma sala.
Julia sentia-se como se tivesse ganho a lotaria mil vezes de seguida.
Estavam ali mais de uma centena de pessoas, algumas das quais tiveram
de permanecer de pé ao fundo da sala. Julia viu Gabriel ser apresentado a
vários convidados de aspeto importante. Era um homem atraente, alto e de
uma elegância rude. Julia gostava de o ver de óculos e com aquele fato
preto lustroso que lhe assentava na perfeição.
Quando algumas pessoas lho ocultaram da vista, Julia concentrou-se em
distinguir a sua voz. Ouvia-o conversar num tom cordial, passando
descontraidamente do italiano ao francês e depois ao alemão, e regressando
de novo ao italiano.
(Até o seu alemão era sensual.)
Julia sentiu uma onda de calor ao recordar como Gabriel era por debaixo
do fato, o seu corpo nu e musculoso sobre o dela. Perguntou-se se ele teria
pensamentos semelhantes de cada vez que a olhava. Nesse instante, os seus
olhares encontraram-se e Gabriel piscou-lhe o olho. A sua fugaz expressão
divertida fê-la lembrar-se dos momentos que tinham tido no terraço, de
manhã, e um agradável tremor percorreu-lhe a espinha.
Gabriel escutou educadamente a introdução do doutor Vittali, que levou
nada menos do que quinze minutos a elogiar o trabalho do seu convidado.
Ao observador ocasional, Gabriel pareceria descontraído, ou até
ligeiramente entediado. O seu nervosismo transparecia no modo como
remexia, mal se dando conta, nos seus apontamentos, os quais serviriam
apenas de suporte para os comentários que lhe viriam do coração. Procedera
a algumas alterações de última hora às suas notas. Não conseguiria falar de
musas, de amor e de beleza sem se referir ao anjo de olhos castanhos que se
lhe entregara na noite anterior. Julia era a sua inspiração desde que a
conhecera, tinha ela dezassete anos. A sua beleza, a bondade e a
generosidade que a caracterizavam tinham tocado o coração de Gabriel, e
ele guardara-a na sua memória como um talismã contra os demónios negros
da dependência. Julia era tudo para ele, e Gabriel não deixaria de o dizer
publicamente.
Depois de muitos louvores e muitos aplausos, ocupou o seu lugar no
púlpito e dirigiu-se à plateia em italiano.
— A minha palestra, esta noite, será algo invulgar. Não sou historiador
de arte, porém tenciono falar-lhes da musa de Sandro Botticelli, La Bella
Simonetta. — Os seus olhos procuraram os de Julia.
Ela sorriu, esforçando-se por não corar. Conhecia a história de Botticelli
e Simonetta Vespucci. Na corte de Florença, Simonetta fora conhecida
como a Rainha da Beleza, até à sua morte prematura aos vinte e dois anos
de idade. Ser comparada a Simonetta por Gabriel era, sem dúvida, um
tremendo elogio.
— Abordo este tema controverso enquanto professor de Literatura,
escolhendo os trabalhos de Botticelli como representações de vários
arquétipos femininos. De um ponto de vista histórico, tem-se debatido
sobejamente a relação entre Simonetta e Botticelli e até que ponto ela serviu
de inspiração para os seus quadros. Procurarei contornar algumas destas
divergências e chamar a vossa atenção para uma comparação visual objetiva
de algumas figuras.
»Vou começar com a projeção de três imagens, onde reconhecerão
ilustrações a tinta de Dante e Beatriz no Paraíso.
Gabriel não pôde deixar de admirar ele próprio as imagens, recordando a
primeira vez que recebera Julianne na sua casa. Fora nessa noite que se
apercebera de como queria agradar-lhe, de como ela era linda quando estava
feliz.
Ao contemplar a expressão serena de Beatriz, encontrou novamente as
semelhanças entre o seu rosto e o de Julianne. Com a sua encantadora
cabeça de perfil, Julia admirava, enlevada, os desenhos de Botticelli.
Gabriel queria que ela se voltasse para ele.
— Reparem no rosto de Beatriz — disse, numa voz suave, quando os
seus olhos finalmente se encontraram. — Um rosto tão belo…
»Comecemos pela musa de Dante, pela figura de Beatriz. Estou certo de
que ela não carece de apresentação, mas permitam-me que vos relembre
que Beatriz representa o amor cortês, a inspiração poética, a fé, a esperança
e a caridade. É o ideal de perfeição feminino: uma mulher inteligente e
capaz de compaixão, e com o amor abnegado que só pode vir de Deus. Ela
inspira Dante a ser um homem melhor.
Gabriel fez uma breve pausa para tocar na gravata; sabia que não
precisava de ser endireitada, mas os seus dedos demoraram-se alguns
instantes sobre a seda azul. Julia pestanejou ao ver aquele gesto, e Gabriel
teve a certeza que ela o compreendera.
— Observemos agora o rosto da deusa Vénus.
Todos os olhos na sala, à exceção dos do orador, se voltaram para o
Nascimento de Vénus. Gabriel consultou ansiosamente as suas notas,
enquanto o público admirava aquela que era uma das maiores e mais belas
obras de Botticelli.
— O rosto de Vénus parece ser o de Beatriz. Não estou, repito,
interessado numa análise histórica dos modelos que posaram para o quadro.
Estou apenas a chamar a vossa atenção para as visíveis semelhanças entre
as duas figuras. Representam duas musas, dois tipos ideais, um teológico e
um secular. Beatriz é a amante da alma; Vénus é a amante do corpo. La
Bella de Botticelli tem ambas as faces — uma de amor sacrificial ou agape,
e outra de amor sexual ou eros.
A voz de Gabriel tornou-se mais intensa, e Julia sentiu a sua pele
aquecer.
— No retrato de Vénus, a ênfase situa-se na beleza física. Embora
represente o amor sexual, a figura revela recato, segurando o cabelo de
modo a cobrir-se. Reparem na expressão modesta, na mão que lhe repousa
sobre o peito. A sua timidez não diminui o erotismo do retrato: acentua-o.
— Tirando os óculos para criar um efeito dramático, Gabriel fitou Julia sem
pestanejar. — Muitas pessoas ignoram como a modéstia e a brandura de
temperamento contribuem para a atração erótica.
Julia contorcia o fecho da sua mala, resistindo à tentação de se remexer
na cadeira. Gabriel voltou a pôr os óculos.
— Eros não é luxúria. Segundo Dante, a luxúria é um dos sete pecados
mortais. O amor erótico pode incluir sexo mas não é limitado por este
último. Eros é o fogo que tudo consome, a paixão e o afeto que se
exprimem na emoção de estar apaixonado. E acreditem quando vos digo
que vence todos os seus rivais, sob todos os aspetos.
Julia não pôde deixar de reparar no desdém com que Gabriel pronunciou
a palavra “rivais”, pontuando a frase com um gesto da mão. Era como se
pusesse de lado todas as amantes anteriores com um simples gesto,
enquanto os seus ardentes olhos azuis se fixavam nela.
— Qualquer pessoa que já tenha estado apaixonada reconhece a
diferença entre eros e luxúria. Não há comparação possível. A luxúria é a
sombra vazia e frustrante de eros.
»Poder-se-á, claro, contrapor que é impossível uma pessoa, uma mulher,
representar simultaneamente o ideal de agape e de eros. Se me permitem a
liberdade, gostaria de dizer que vejo um tal ceticismo como uma forma de
misoginia. Pois só um misógino defenderia que as mulheres ou são santas
ou sedutoras, virgens ou meretrizes. Claro que uma mulher (ou um homem,
já agora) pode ser ambas as coisas: a musa pode ser amante da alma e do
corpo.
»Considerem agora o quadro atrás de mim, Nossa Senhora da Romã.
Mais uma vez, os olhos do público voltaram-se para a pintura de
Botticelli. Gabriel reparou com satisfação que Julia tocava intencionalmente
num dos seus brincos de diamante, como para lhe dizer que compreendera
as suas revelações e que as apreciara. Como se soubesse que ele estava a
servir-se da arte para expressar o seu amor por ela. Gabriel exultou.
— Aqui vemos a mesma cara repetida na figura de Nossa Senhora.
Beatriz, Vénus e Maria: uma trindade de mulheres ideais, todas com o
mesmo rosto. Agape, eros e a castidade, uma combinação arrebatadora que
faria até o homem mais forte cair de joelhos, se tivesse a sorte de encontrar
uma pessoa que reunisse estas três facetas.
Nesse instante, alguém tossiu na sala, como que a disfarçar um
comentário depreciativo. Irritado por ser interrompido, Gabriel lançou um
olhar zangado na direção da segunda fila, por sobre o ombro de Julia. A
tosse repetiu-se, acentuando o efeito dramático, e seguiu-se um duelo
alimentado a testosterona entre Gabriel e um italiano claramente exaltado.
Consciente do microfone que tinha diante de si, Gabriel resistiu ao
impulso de praguejar e, com um olhar severo ao seu detrator, continuou.
— Há quem defenda que foi uma romã, e não uma maçã, que tentou Eva
no Jardim do Éden. Relativamente ao quadro de Botticelli, muitos
consideraram que a romã simboliza o sangue de Cristo na sua agonia e a
sua nova vida através da ressurreição.
»Na minha leitura, a romã representa o fruto edénico, a Virgem como
segunda Eva e Cristo como o segundo Adão. Com a Virgem, Botticelli
visita a primeira Eva, o arquétipo da feminilidade, da beleza e do
companheirismo feminino. Irei ainda mais longe ao afirmar que Eva é
também o ideal da amizade feminina, sendo amiga de Adão, e que por isso
corresponde ao ideal de philia, o amor que emerge da amizade. A amizade
entre Maria e José é igualmente uma manifestação deste ideal.
Sentindo a voz presa, Gabriel interrompeu-se por um instante para beber
um pouco de água. Algo na comparação entre Julia e Eva o deixara
vulnerável, despido, fazendo-o regressar à noite em que lhe oferecera uma
maçã e a segurara nos seus braços sob as estrelas.
Começaram a ouvir-se murmúrios na assistência; o público perguntava-se
por que razão uma pausa para beber água se transformara num intervalo.
Ruborizado, Gabriel ergueu a cabeça para olhar uma vez mais para a sua
amada, ansioso pela sua compreensão.
Os lábios rubi de Julia abriram-se num sorriso encorajador, e Gabriel
respirou fundo.
— A musa de Botticelli é uma santa, uma amante, e uma amiga, não uma
mulher de cartaz ou uma fantasia adolescente. É real, é complexa, e
eternamente fascinante. Uma mulher para adorar.
»Como certamente estarão cientes, a precisão da língua grega permite
que se fale com maior clareza a respeito dos diferentes tipos de amor.
Poderão encontrar uma abordagem moderna desta questão na obra The
Four Loves, de C.S. Lewis, caso estejam interessados.
Pigarreou e sorriu, triunfante, ao público.
— Peço-lhes, finalmente, que se detenham no quadro à minha esquerda,
Primavera. Seria de esperar que encontrássemos o rosto da musa de
Botticelli refletido na figura central do quadro. Mas reparem no rosto de
Flora, à direita. Mais uma vez, encontramos a semelhança com Beatriz,
Vénus e a Virgem.
»Por estranho que pareça, Flora surge duas vezes na pintura. Avançando
do centro para a direita, vemos Flora grávida, o filho de Zéfiro no ventre.
Zéfiro encontra-se no extremo direito, pairando entre as laranjeiras com a
segunda representação de Flora, desta vez enquanto ninfa virgem. A sua
expressão é de medo; ela tenta escapar dos braços do seu futuro amante e
olha-o em pânico. Porém, quando está grávida, tem um ar sereno. O medo
deu lugar ao contentamento.
Julia corou ao recordar quão gentil Gabriel fora na noite anterior. Fora
um amante terno e generoso, e Julia sentira-se adorada nos seus braços.
Estremeceu ao lembrar-se do mito de Flora e de Zéfiro, pensando que todos
os amantes deviam ser tão ternos com as suas parceiras virgens como
Gabriel fora consigo.
— Flora representa a consumação do amor físico e a maternidade. É o
ideal de storge, ou amor familiar, o tipo de amor de uma mãe pelo filho, e o
tipo de amor que existe entre amantes unidos por um compromisso que não
se baseia apenas no sexo ou no prazer, o compromisso de parceiros casados.
Ninguém, a não ser Julia, se apercebeu de como os nós dos dedos de
Gabriel ficaram brancos quando ele agarrou o atril com ambas as mãos. E
só Julia se deu conta do ligeiro tremor na sua voz ao pronunciar as palavras
grávida e maternidade.
A testa de Gabriel enrugou-se enquanto ele se recompunha, remexendo
nos seus papéis por alguns instantes. Julia apercebeu-se daquela
vulnerabilidade, e lutou contra o impulso de correr para ele e de o abraçar.
Pôs-se, então, a bater um dos seus sapatos cor de tangerina, expectante.
Vendo o seu movimento súbito, Gabriel engoliu em seco e prosseguiu.
— Nos primeiros escritos sobre Primavera, foi dito que Flora tinha o
rosto de La Bella Simonetta, a musa de Botticelli. Se assim for, com base
numa mera análise visual, podemos afirmar que Simonetta serviu de
inspiração para Beatriz, para Vénus e para a Virgem, pois todas as quatro
senhoras partilham o mesmo rosto
»Temos, assim, os ícones de agape, eros, philia e storge representados
por um único rosto, por uma única mulher: Simonetta. Por outras palavras,
Botticelli parece encontrar na sua adorada musa todos os quatro tipos de
amor e todos os quatro ideais de mulher: santa, amante, amiga e esposa.
»Devo, por fim, regressar ao ponto em que começámos, e deter-me
novamente em Beatriz. Não é por acaso que a inspiração por detrás de uma
das principais obras literárias italianas mereceu o rosto de Simonetta.
Perante uma tal beleza, uma tal bondade, que homem não quereria tê-la ao
seu lado não apenas por algum tempo, mas por toda a vida?
Olhou em redor da sala com uma expressão grave.
— Para citar o Poeta, agora aparece a tua bem-aventurança. Obrigado.
Quando Gabriel terminou e um entusiástico aplauso tomou conta da sala,
Julia pestanejou, emocionada, tentando conter as lágrimas.
O dottore Vitali regressou ao púlpito para agradecer ao professor
Emerson a sua inspiradora palestra. Um pequeno grupo de políticos locais
agraciou-o com vários presentes, entre os quais um medalhão com uma
imagem da cidade de Florença.
Julia permaneceu no seu lugar tanto tempo quanto lhe foi possível,
esperando que Gabriel viesse ao seu encontro. No entanto, ele viu-se
rodeado de pessoas, incluindo vários historiadores de arte impertinentes.
(Pois era considerado ousado, senão arrogante, da parte de um mero
professor de Literatura analisar as joias da coroa da coleção Uffizi.)
Com relutância, Julia aproximou-se, enquanto um grupo de repórteres o
cercava de perguntas. Os seus olhares encontraram-se, e Gabriel esboçou-
lhe um sorriso tenso, em jeito de desculpa, antes de posar para as
fotografias.
Contrariada, Julia deambulou pelas salas adjacentes, contemplando os
quadros expostos até se deter num dos seus favoritos, A Anunciação de
Leonardo da Vinci. Estava diante do quadro, demasiado perto, na verdade,
atentando no pormenor do pilar de mármore, quando alguém se lhe dirigiu
em italiano.
— Gosta deste quadro?
Julia ergueu o olhar e deparou-se com um homem de cabelo preto e pele
muito bronzeada. Era mais alto do que ela, mas não muito, e tinha uma
constituição musculosa. Trazia um fato preto de aspeto muito caro, com
uma rosa vermelha presa à lapela. Julia reconheceu-o como um dos
convidados que tinham assistido à palestra na segunda fila.
— Gosto muito — respondeu, em italiano.
— Sempre admirei a profundidade que Da Vinci confere às suas pinturas.
Acho particularmente interessante o sombreado e o pormenor no pilar.
— Era exatamente o que eu estava a apreciar, juntamente com as penas
nas asas do anjo. São incríveis.
O cavalheiro fez uma pequena vénia.
— Permita-me que me apresente. O meu nome é Giuseppe Pacciani.
Julia hesitou, pois reconheceu o apelido. Era o mesmo apelido do homem
que se suspeitava ser o serial killer mais famoso de Florença.
Giuseppe parecia estar à espera que ela se apresentasse, pelo que Julia
resistiu à tentação de fugir.
— Julia Mitchell. — Estendeu-lhe polidamente a mão, mas o homem
surpreendeu-a agarrando-lhe a mão e levando-a aos lábios, olhando Julia
nos olhos enquanto a beijava.
— Muito prazer. E não posso deixar de dizer que a sua beleza rivaliza
com a de La Bella Simonetta. Especialmente à luz da palestra desta noite.
Julia desviou o olhar e apressou-se a libertar a mão.
— Permita-me que lhe peça uma bebida — disse o homem, acenando
imediatamente a um empregado e tirando da bandeja duas flûtes de
champanhe. Tocou a taça de Julia com a sua e brindou à saúde de ambos.
Julia bebeu um pequeno gole do seu espumante Ferrari, satisfeita por
poder distrair-se daquele olhar intenso. Parecia ser um cavalheiro, mas Julia
sentia-se receosa, sobretudo por causa do seu nome.
Ele sorria-lhe avidamente.
— Sou professor de Literatura na universidade. E a Julia?
— Estou a tirar o mestrado em Dante.
— Ah, il Poeta. Também sou especialista em Dante. Onde está a estudar?
Aqui não é de certeza. — O seu olhar percorreu todo o corpo de Julia,
deslizando-lhe do rosto até aos sapatos e voltando a pousar-lhe no rosto.
— Na Universidade de Toronto — disse ela, dando um amplo passo
atrás.
— Ah! É canadiana. Uma antiga aluna minha também está neste
momento a estudar em Toronto. Talvez se conheçam. — Deu um passo à
frente.
Julia decidiu não o corrigir a respeito da sua nacionalidade e recuou
novamente.
— Não é muito provável. A Universidade de Toronto é um mundo.
Giuseppe sorriu, exibindo uma linha muito direita de dentes brancos que
brilhavam estranhamente sob a luz do museu.
— Já viu A Libertação de Andrómeda, de Piero di Cosimo? — Apontou
para um quadro próximo.
— Sim.
— Existem elementos flamengos nesta obra, está a ver? E repare nas
figuras de pé na multidão. — Apontou um grupo no lado direito da pintura.
Julia deu um passo ao lado para conseguir ver melhor. Giuseppe pôs-se
ao seu lado, demasiado perto, olhando-a.
— Gosta?
— Sim, mas prefiro Botticelli — respondeu Julia, mantendo os olhos
obstinadamente no quadro, esperando que ele se cansasse de a olhar e se
afastasse.
(De preferência para o outro lado do Arno.)
— É aluna do professor Emerson?
Julia engoliu em seco.
— Não, eu… Estudo com outra pessoa.
— Ele é considerado bom segundo os padrões norte-americanos, e por
isso foi convidado a cá vir. Esta palestra revelou-se, todavia, uma deceção.
Como foi que a Julia descobriu Dante?
Julia ia rebater aquele comentário quando Giuseppe lhe tocou o cabelo.
Desviando-se, Julia deu um passo atrás, mas Giuseppe tinha os braços
compridos e a sua mão alcançou-a ainda assim. No instante em que ela
abria a boca para o censurar, um som gutural ecoou pela sala.
Giuseppe e Julia voltaram-se lentamente e depararam-se com Gabriel,
olhos safira flamejando e as mãos nas ancas, abrindo o casaco como um
leque de pavão.
Gabriel deu um ameaçador passo em frente.
— Vejo que teve a oportunidade de conhecer a minha fidanzata. Sugiro-
lhe que tire as mãos de cima dela, a não ser que esteja preparado para as
perder.
Giuseppe fez um ar furioso, e depois a sua expressão suavizou-se com
um sorriso educado.
— Estamos a conversar há minutos. Ela não me disse que estava consigo.
Julia resolveu não esperar que Gabriel arrancasse os braços de Giuseppe
e manchasse de sangue o prístino chão da galeria. Assim, pôs-se entre os
dois homens e pousou uma mão no peito de Gabriel.
— Gabriel, deixa-me apresentar-te o professor Pacciani, que também é
especialista em Dante.
Os dois homens trocaram um olhar, e só então Julia se deu conta de que
Pacianni era o homem que tão rudemente interrompera a palestra a tossir e a
sussurrar.
O italiano ergueu as mãos como se se rendesse, num gesto trocista.
— Mil desculpas. Devia ter percebido pelo modo como a olhou durante o
seu… discurso… que ela era sua. Perdoe-me, Simonetta. — O seu olhar
demorou-se em Julia, enquanto os seus lábios se entreabriam numa
expressão de desdém.
Irritado pelo tom sarcástico, Gabriel deu um passo à frente, punhos
cerrados.
— Querido, preciso de encontrar onde largar a taça — interveio Julia,
abanando a sua flûte vazia, na esperança de distrair os dois homens.
Gabriel pegou na taça e pô-la na mão de Pacciani.
— De certeza saberá onde pôr isto.
Agarrou a mão de Julia e levou-a dali. Atravessaram a sala Botticelli, os
convidados abrindo alas para os deixar passar. Julia viu os rostos surpresos
que se voltavam para eles e corou ainda mais.
— Aonde vamos?
Gabriel levou-a para o corredor com chão de mosaicos e dirigiu-se para o
extremo oposto, até estarem suficientemente longe para que os outros
convidados não os ouvissem. Puxando Julia para um canto escuro, colocou-
a entre duas grandes estátuas de mármore sobre colunas. Entre as
esculturas, Julia parecia muito pequena.
Gabriel tirou-lhe a bolsa da mão e atirou-a para o lado. O som da pele a
bater no chão ecoou pelo corredor.
— Que estavas a fazer com aquele homem? — Gabriel tinha o olhar
irado e as faces ligeiramente afogueadas, o que era raro nele.
— Estávamos só a fazer conversa de circunstância, até que ele…
Gabriel puxou-a para um beijo ardente, enfiando-lhe uma mão no cabelo
enquanto a sua outra mão lhe deslizava pelo vestido abaixo. A força do
contacto obrigou-a a recuar, até que Julia sentiu a parede fria da galeria na
pele nua dos seus ombros. Num movimento brusco, o corpo duro de Gabriel
colou-se ao dela.
— Não quero voltar a ver as mãos de outro homem em ti.
Gabriel abriu-lhe a boca de um modo rude, penetrando-a com a língua, e
a sua mão deslizou-lhe até ao fundo das costas, começando a massajar-lhe
as nádegas.
Julia apercebeu-se instantaneamente de que ele fora cuidadoso de todas
as vezes em que a tocara até então. Agora não estava a ser cuidadoso. Parte
dela estava ansiosa, desesperada por ele. Outra parte perguntava-se o que
faria Gabriel se ela lhe dissesse que parasse…
Levantando-lhe a perna esquerda, Gabriel colou a coxa dela à sua anca e
pressionou-a contra a parede.
Julia sentia-o através do vestido, e ouvia o tafetá roçagar como uma
mulher ofegante. Era óbvio que o vestido queria mais.
— Que tenho de fazer para seres minha? — gemeu Gabriel, sem parar de
a beijar.
— Eu sou tua.
— Esta noite, parece que não és — balbuciou, puxando o lábio inferior
de Julia para a sua boca e mordiscando-o ao de leve. — Não percebeste
nada do que eu disse durante a palestra? Era tudo para ti, cada palavra, cada
quadro. — A sua mão deslizou pelo vestido de Julia, acariciando-lhe a coxa
até se deter no fio que lhe rodeava a anca.
Recuou para a olhar.
— Hoje não trazes meias de liga?
Ela abanou a cabeça.
— Então, o que é isto? — Puxou o fio.
— Cuecas — disse Julia, arquejando.
Os olhos dele brilharam na semiescuridão.
— Que tipo de cuecas?
— Uma tanga.
Gabriel sorriu perigosamente, encostando em seguida os lábios à orelha
dela.
— Devo partir do princípio de que vestiste isto para mim?
— Só para ti. Sempre.
Sem aviso, Gabriel ergueu-a nos braços, encostando-a à parede fria.
Beijando-lhe o pescoço, uniu as suas ancas às dela. Os sapatos de salto alto
tangerina apoiaram-se no seu traseiro. Os seus olhos azuis desvairados
fitaram Julia.
— Quero-te. Agora.
Com uma mão, puxou o fio das cuecas até as romper. Enfiou a tanga no
bolso do casaco e os saltos dela moveram-se, fincando-se-lhe nas nádegas
até o fazerem estremecer.
— Fazes ideia de como me foi difícil controlar-me depois de discursar?
De como queria apertar-te nos meus braços? Toda aquela conversa foi um
suplício, quando o que eu queria era isto.
»Quem me dera que visses como estás sensual… As costas contra a
parede, as pernas à minha volta. Quero ter-te assim, mas a arquejares o meu
nome.
Sentindo a língua dele na cavidade sob a sua garganta, Julia fechou os
olhos. Lutando contra o desejo, a sua mente incitava-a a afastar-se e a
refletir um pouco. Naquele estado de espírito, Gabriel era perigoso.
Subitamente, ouviram-se vozes no corredor. Julia abriu os olhos.
O som de passos e risos aproximava-se. Gabriel levantou a cabeça,
encostando a boca ao ouvido dela.
— Nem um ruído — sussurrou-lhe. Julia sentiu os lábios dele arquearem-
se num sorriso rente à sua pele.
Os passos detiveram-se a poucos metros do sítio onde estavam, e Julia
ouviu duas vozes de homem falando italiano. Com o coração a bater cada
vez mais depressa, esforçou-se por detetar quaisquer sinais de movimento.
Gabriel continuava a acariciá-la delicadamente, engolindo os seus sons. De
tempos a tempos, murmurava-lhe palavras sensuais, que a faziam corar.
Um dos homens deu uma gargalhada bem audível. Julia ergueu a cabeça,
em sobressalto, e Gabriel aproveitou para lhe beijar a garganta,
mordiscando-lhe a pele macia.
— Por favor, nada de mordedelas.
As vozes ecoavam em redor deles. Gabriel precisou de alguns segundos,
mas as palavras de Julia acabaram por alcançá-lo, mesmo no estado de
desatino em que se encontrava. Afastou a cara do pescoço dela.
Sentia o coração dela bater contra o seu peito. Fechou os olhos, como que
hipnotizado por aquele ritmo staccato. Quando voltou a abrir os olhos, o
fogo quase se extinguira.
Julia ocultara cuidadosamente a mordedura de Simon com base, mas
Gabriel encontrou a marca com um dedo, tocando-lhe ao de leve antes de a
beijar. Respirou fundo, devagar, muito devagar, e abanou a cabeça.
— És a única mulher que alguma vez me disse “não”.
— Não estou a dizer “não”.
Espreitando por sobre o ombro, Gabriel viu dois cavalheiros de uma certa
idade a conversar animadamente. Estavam suficientemente perto para o
verem, se olhassem na sua direção.
Voltou-se para Julia, com um sorriso triste.
— Mereces melhor do que um amante ciumento a possuir-te contra uma
parede. E não acho boa ideia sermos apanhados pelo nosso anfitrião.
Desculpa-me.
Beijou-a e passou-lhe o polegar pelo lábio inferior ligeiramente inchado,
limpando a mancha de batom da sua pele branca.
— Não vou destruir a confiança que vi nos teus olhos na noite passada.
Quando tiver a cabeça no sítio e o museu estiver por nossa conta… — A
fantasia deixou-lhe o olhar sombrio. — Numa outra vez, quem sabe.
Descalçou-lhe os sapatos e pousou-a no chão, curvando-se para lhe
endireitar o vestido. O tafetá roçagou, um suspiro sob as suas mãos, e
depois silenciou-se, com tristeza.
Felizmente, o dottore Vitali e o seu companheiro decidiram nesse
momento regressar à festa, e o ruído dos seus passos foi-se tornando mais
distante, à medida que avançavam pelo corredor.
— O banquete começa daqui a pouco. Não posso insultá-los indo-me
embora. Mas quando chegarmos ao hotel… — Os seus olhos fixaram Julia.
— A parede ao lado da porta do quarto vai ser a nossa primeira paragem.
Julia anuiu, aliviada por ele já não estar zangado. Na verdade, a ideia de
sexo contra a parede deixara-a um pouco nervosa, mas bastante
entusiasmada.
Gabriel ajeitou as calças e abotoou o fato do casaco, forçando o seu
corpo a acalmar-se. Tentou alinhar o cabelo, mas apenas conseguiu ficar
ainda mais com o aspeto de quem arrastara a namorada até um canto escuro
para fazer sexo de museu.
Sexo de museu é algo de que se arrependem certos académicos. (Mas não
deve ser criticado antes de ser experimentado.)
Julia alisou-lhe o cabelo e endireitou-lhe a gravata, certificando-se de que
ele não tinha marcas de batom na cara ou no colarinho. Depois, Gabriel
apanhou a bolsa e a capa do chão, entregando-as a Julia com um beijo.
Sorrindo maliciosamente, empurrou as cuecas para o fundo do bolso do
casaco, de modo a que não se vissem.
Julia deu um passo à frente, apercebendo-se, para sua surpresa, de que a
ausência de cuecas era uma experiência bastante libertadora.
— Era capaz de te beber como se fosses champanhe — murmurou-lhe
Gabriel.
Julia pôs-se em bicos de pés e deu-lhe um beijo na cara.
— Gostava que me ensinasses essas tuas técnicas de sedução.
— Só se me ensinares a amar como tu amas.
Gabriel conduziu-a ao longo do corredor deserto e desceram a escada
para o primeiro andar, onde o banquete estava a ter início.

E ra de madrugada quando o professor Pacciani caminhou tropegamente


até ao seu apartamento junto ao Palácio Pitti. Era algo que acontecia
com frequência.
Tateou à procura das chaves, praguejou ao deixá-las cair, e entrou
finalmente em casa, fechando a porta. Encaminhou-se para o pequeno
quarto onde os seus filhos gémeos, de quatro anos, dormiam, e beijou-os.
Depois, arrastou-se até ao escritório.
Fumou calmamente um cigarro, enquanto esperava que o computador se
ligasse, e foi diretamente para o seu e-mail. Ignorou a caixa de entrada e
redigiu uma mensagem breve para uma antiga aluna e amante. Não tinham
mantido contacto desde que ela acabara o curso.
Referiu que conhecera o professor Emerson e a sua muito jovem
fidanzata canadiana. Comentou que embora tivesse ficado impressionado
com o livro de Emerson publicado na Oxford University Press, a palestra do
professor tresandara a pseudointelectualidade e não era digna do meio
académico. Ou se era um intelectual e um académico, ou se era um orador e
um entertainer, mas não ambas as coisas. Num tom grosseiro, Pacciani
perguntava se era aquilo que passava por excelência nas universidades
norte-americanas.
Concluiu o seu e-mail com a sugestão pormenorizada de um encontro
sexual futuro, perto do verão, possivelmente. Depois, terminou o seu
cigarro no escuro e foi ter com a mulher à cama matrimonial…
Biografia

SYLVAIN REYNARD interessa-se pelo modo como a literatura pode


ajudar a explorar os aspetos da condição humana – o sofrimento, o sexo, o
amor, a fé e a redenção. As suas histórias favoritas são aquelas cujas
personagens fazem um caminho, seja físico seja espiritual, onde descobrem
novos aspetos sobre si próprios. O modo como a arte, a arquitetura e a
música podem ser usados para contar uma história ou para iluminar os
traços de uma personagem também são foco da sua atenção.
Sylvain Reynard costuma usar o seu estatuto para divulgar algumas
instituições de caridade como a Now I Lay Me Down To Sleep Foundation,
WorldVision, Alex’s Lemonade Stand e Covenant House. Em 2011 foi
semifinalista para Melhor Autor do Goodreads Choice Awards e, com o seu
romance, semifinalista para Best Romance.
Mais informações em
WWW.SAIDADEEMERGENCIA.COM
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À Luz da Meia-Noite

SHERRILYN KENYON

Conheçam Aidan O’ Conner.

Uma celebridade generosa que tudo oferecia e nada pedia em troca… até
ser enganado pelos que o rodeavam. Agora Aidan nada quer do mundo ou
sequer fazer parte dele.

Quando uma estranha mulher aparece à sua porta, Aidan sabe que já a viu
antes… nos seus sonhos.

Uma deusa nascida no Olimpo, Leta nada sabe do mundo dos humanos.
Mas um inimigo implacável expulsou-a do mundo dos sonhos e para os
braços do único homem capaz de a ajudar: Aidan. Os poderes imortais da
deusa derivam de emoções humanas, e a raiva de Aidan é todo o
combustível que precisa para se defender…

Uma fria noite de inverno irá mudar as suas vidas para sempre…

Aprisionados durante uma tempestade de inverno brutal, Aidan e Leta terão


que conquistar a única coisa que os poderá salvar a ambos – ou destruí-los –
a confiança. Conseguirão triunfar sobre todos os obstáculos?
Mais informações em
WWW.SAIDADEEMERGENCIA.COM

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