Revista Teologia Brasileira

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Teologia Brasileira Nº 102 | 2024 ISSN 2238-0388

Iniciação cristã na igreja antiga e o


desenvolvimento do catecumenato
Juan de Paula 4

Por uma ética cristã em um mundo líquido


Thiago Rafael Vieira 12

A hermenêutica de Jerônimo: reflexões


para a exegese e hermenêutica atual a partir
de um pai da igreja
Marcelo Luiz Tavares 23

O papel da meditação na formação do imaginário


puritano: uma análise em O Peregrino
Emanuel Malinoski 38

Lançamentos 54
Teologia brasileira, uma produção
de Edições Vida Nova

A
Revista Teologia Brasileira tem o objetivo de
proporcionar um espaço para discussão e produção
de teologia que seja bíblica, confessional, relevante,
sensível e aberta ao diálogo sobre temas que contemplem a
realidade de nosso país. Para isso, contamos com o apoio de
uma equipe que, em contato com pesquisadores, pastores,
mestres e escritores, torna possível a veiculação de conteúdo
que estimule a reflexão bíblica e teológica.

Editor:
Franklin Ferreira

Revisão:
Eliel Vieira

Produção editorial:
Sérgio Siqueira Moura

Diagramação:
Sandra Reis Oliveira

Contato:
teologiabrasileira@vidanova.com.br
Editorial

N
esta edição, Juan de Paula aborda o desenvolvimento
da catequese na Igreja Antiga.

Thiago Vieira destaca a fluidez do mundo contemporâ-


neo e contrasta-a com a sólida ética cristã que moldou nossa
trajetória até aqui.

Marcelo Luiz explora a contribuição de Jerônimo na de-


fesa da unidade da revelação contra as heresias, além de sua
aplicação de textos antigos a leitores modernos por meio da
alegoria.

Por fim, Emanuel Malinoski analisa o papel da meditação


na formação do imaginário puritano, com uma análise de O
Peregrino de John Bunyan.

Além disso, disponibilizamos uma apresentação realiza-


da durante a Semana Teológica no Projeto Água da Vida, em
Niterói. No vídeo, Franklin Ferreira fala sobre a justificação de
pecadores.

Assista ao vídeo!
Iniciação cristã na igreja antiga e o
desenvolvimento do catecumenato
Juan de Paula

F
ranklin Ferreira salienta em uma palestra que a catequese é uma arte per-
dida e necessita ser recuperada no ministério pastoral. Em sua fala, afir-
mou que a catequese era muito usada pelos pais da igreja1 para proteger a
integridade doutrinária e a disciplina da igreja.2
Em seu texto, Flávio de Paula diz: “desde os primórdios, a igreja cristã faz uso
do ensino catequético, ocasiões em que os convertidos eram instruídos nas doutri-
nas fundamentais da fé cristã antes mesmo do batismo.”3 Na mesma perspectiva do
tempo, porém aplicado a educação cristã, Matos escreve:

1
“Nos primórdios da igreja cristã, os responsáveis por conduzi-la na ortodoxia fi-
caram conhecidos como pais da igreja.” Franklin Ferreira, A igreja cristã na história: das
origens aos dias atuais [publicado por Vida Nova], p. 33.
2
Veja a palestra de Franklin Ferreira: O exemplo dos heróis da fé — vocação, forma-
ção e serviço. A palestra foi ministrada na Semana Teológica Água da Vida em Niterói
(RJ) entre os dias 25 a 30 de maio de 2015. Veja em: https://www.youtube.com/watch?-
v=wUe4XLiXboQ. Acesso em: 02/07/2018.
3
Flávio de Paula Oliveira, Catequese: o uso de catecismos na instrução da igreja (Curiti-
ba: Faculdade Batista do Paraná, 2016), p. 12. Trabalho não publicado.

4
Desde o início os cristãos valorizavam a educação como meio de preservar e
transmitir com fidelidade a herança cristã. Como ocorria entre os judeus, os
principais recursos para esse fim eram os lares e as comunidades de fé. Com o
passar do tempo, surgiram novas formas educacionais, a começar da catequese
para os aspirantes ao batismo.4

O escopo deste trabalho visa o desenvolvimento da prática da catequese na


Igreja Antiga, e, para tal, é necessária a definição dos conceitos antes da disserta-
ção do fenômeno. Grenz, Guretzki e Nordling definem a catequese como “pro-
cesso de ensino das crenças cristãs básicas e do conteúdo das Escrituras tanto para
a criança criada na igreja como para o novo convertido ao cristianismo.”5
Erickson define o verbete “catecúmeno” como “aquele que recebe a instrução
sobre a fé cristã antes do batismo.”6 E em outro verbete, “catequista” como “aquele
que dá instruções sobre a fé cristã.”7 Quanto à origem do termo e sua relação com
as Escrituras Sagradas, Siqueira escreve:

Os termos “catequese”, “catecumenato”, “catequista” e correlatos são derivados


etimologicamente do verbo grego katechein, que significa “soar de cima”. Refe-
ria-se originalmente à voz do ator no teatro. Assumiu depois o significado de
“dar notícia”, “informar”, “instruir”.8

No Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs, a catequese é definida:

Depois da proclamação do kerigma, a tarefa das comunidades cristãs foi a de pre-


parar os futuros crentes através de uma instrução completa e essencial, visando
ampliar e aprofundar ao mesmo tempo os elementos da Boa-Nova propriamente

4
Alderi Souza de Matos, Breve história da educação cristã. Fides Reformata XIII, 2
(2008): 9-24.
5
Stanley J. Grenz, David Guretzki, Cherith Fee Nordling, Dicionário de teologia:
mais de 300 conceitos teológicos definidos de forma clara e concisa [publicado por Vida], p. 23.
6
Millard Erickson, Dicionário popular de teologia [publicado por Mundo Cristão],
p. 31.
7
Ibidem.
8
Juan de Paula Santos Siqueira, O ministério pastoral e a catequese nas igrejas confessio-
nais. In. A glória da graça de Deus: ensaios em honra a J. Richard Denham Jr. por ocasião dos 58
anos de ministério no Brasil [publicado por Fiel], p. 452. Cf. Lc 1.4 e Gl 6.6.

5
dita. Tais instruções foram denominadas “catequese” (Egéria, Peregr.) do verbo
katecheo = ensinar a viva voz, onde, no entanto, o ensinamento não é outra coisa
senão o eco de uma palavra que já foi pronunciada: A Palavra de Deus.9

Nessa perspectiva, pode-se considerar que a catequese ou o ato de catequizar


é uma forma de transmissão das boas novas do evangelho do Senhor Jesus Cristo,
como também o ensino da Escritura Sagrada: “Neste sentido, a catequese é em
primeiro lugar o eco da Palavra de Deus através da voz do catequista.”10
Tendo vários mestres como expoentes e sendo registrada nos livros e ma-
nuais de história da igreja, o exercício da catequese é, por excelência, o meio pelo
qual os iniciantes do cristianismo, neófitos, eram inseridos na igreja, a comunidade
da fé cristã. “Hipólito fala de uma instrução que era ministrada aos catecúmenos
por um mestre durante três anos (Trad. Ap. 17-18). Enquanto isso, Eusébio (HE
V, 9) nos informa a respeito da atividade catequética que era desenvolvida em
Alexandria.”11
Packer e Garrett chamam o catecumenato em desenvolvimento de “um tipo
de escola da fé”12 que acontecia “por vezes mais formal, por vezes menos — em
que, durante os primeiros séculos do cristianismo novos crentes eram preparados
para o batismo e, então, recebidos na vida plena da igreja.”13
Fazia-se necessário uma longa jornada de preparação para o batismo, com
um tempo demorado de instrução. Esse fenômeno era contrário ao que é lido na
narrativa inspirada do livro de Atos dos Apóstolos, pois “muitos dos convertidos
que, na maioria dos casos, foram batizados quase que imediatamente após a sua
profissão pública de fé.”14
O fenômeno de batismo rápido para uma instrução mais extensa ocorreu
porque:

9
Angelo Di Berardino, org., Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs [publicado
por Vozes], p. 273.
10
Ibidem.
11
Ibidem, p. 274.
12
J.I. Packer, Gary A. Parrett, Firmados no evangelho [publicado por Cultura Cristã],
p. 58.
13
Ibidem.
14
Ibidem.

6
tornou-se cada vez mais comum que aqueles que vinham a crer em Jesus Cris-
to tivessem pouco conhecimento do Deus de Israel ou das Escrituras hebrai-
cas e cristãs. Essas conversões eram jornadas verdadeiramente radicais que
transformavam a vida e visão do mundo. Eram, portanto, experiências bem
diferentes da maioria das conversões e dos batismos documentados pelo Novo
Testamento.15

Para o novo convertido, o acolhimento das boas-novas era algo radicalmente


diferente em sua vida e cosmovisão passada.

Ao passo que o evangelho se espalhava primariamente entre os povos gentios e


pagãos, a igreja veio a considerar a conversão a Cristo como algo tão revolucio-
nário que exigia um período significante de instrução e treinamento em outras
atividades espirituais antes da concessão ao batismo a um novo convertido. O
desenvolvimento do catecumenato refletia essa visão.16

O tempo de preparação para o batismo e a formatação da catequese variava


e se desenvolvia com o passar dos séculos. No segundo século, início da catequese,
as práticas não eram iguais em todos os lugares; diferente no quarto século que
cessou a perseguição e oficializou o cristianismo como religião do Império Roma-
no. Neste período, a estrutura e a formalização do ministério eram mais evidentes
e a catequese foi influenciada.
Sobre este tema Matos escreve:

Em vários lugares surgiram classes para catecúmenos, cuja instrução podia se


estender até por três anos. Era um período de treinamento e de teste antes
da aceitação plena na igreja. Os candidatos deviam passar por três estágios:
“ouvintes” (interessados), “ajoelhados” (aqueles que permaneciam para as ora-
ções depois que os ouvintes se retiravam) e “escolhidos” (candidatos efetivos ao
batismo)”. Após o batismo, havia instrução adicional sobre os sacramentos e
outros tópicos.17

15
Ibidem.
16
Ibidem, p. 59.
17
Alderi Souza de Matos, Breve história da educação cristã. Fides Reformata XIII,
2 (2008): 14.

7
Já no final do período da igreja antiga, conforme escrito anteriormente, com
a organização e hierarquização do ministério pastoral e sua influência na cateque-
se, a catequese era feita por um bispo ou pastor (presbítero), o que anteriormente
acontecia com menos rigidez e mais informalidade.
“O líder [...] então entrevistava os ‘buscadores’ para conhecer a sua condição
espiritual e os seus motivos para juntarem-se à igreja. Os padrinhos davam teste-
munho sobre a sinceridade e convicção dos buscadores.”18 Esses buscadores rece-
biam instruções sobre as doutrinas da fé, provavelmente também algum resumo
das histórias redentoras da Bíblia, para posteriormente se tornarem catecúmenos.
Eram os ouvintes da Palavra.19
Após a fase do aprendizado, o catecúmeno passava de ouvinte para agente da
Palavra, crendo e vivenciando a fé cristã em todos os aspectos de sua peregrinação
espiritual.

Nessa fase final da catequese, os candidatos ao batismo podiam ser chamados


por vários nomes — electi, illuminati, competentes (“os qualificados”: nome co-
mum no Ocidente) ou photizomenoi (“os iluminados”: nome comum no Orien-
te). Essa fase final era programada para corresponder ao período da Quaresma,
uma época do ano marcada por reflexão e arrependimento em que os crentes
se preparavam para as celebrações da Semana Santa [...] os competentes muitas
vezes eram separados da congregação.20

Antes do batismo e da Santa Ceia, os competentes recebiam instruções do


Credo Apostólico e do Pai-Nosso para serem decorados em silêncio, recebendo o
nome de disciplina arcani (disciplina do sigilo).
Entre a meditação “e o batismo, normalmente acontecia na ultima fase da
catequese. Nesta, era incluída alguma instrução sobre os elementos do ritual do
batismo que acontecia em poucos dias.”21 Havia divergência entre os expoentes
da catequese e os pais da igreja sobre o ensino em relação ao batismo antes ou
depois do ritual. Crisóstomos e Agostinho preferiam a catequese sobre o batismo

18
J.I. Packer, Gary A. Parrett, Firmados no evangelho, p. 59.
19
Ibidem.
20
Ibidem, p. 60.
21
Ibidem, p. 62.

8
antecedendo ao rito, enquanto Cirilo de Jerusalém já optava pela catequese pós-
-batismo em perspectiva experimental do rito do sacramento (mistagogia).22
Porém, havia um consenso entre eles:

O batismo era o sacramento da iniciação da igreja. Os batizados, que na época,


naturalmente, tinham sido adultos pagãos, confessavam a decisão de aceitar as
implicações deste batismo. Eram, então, batizados em nome de Cristo. Mais
tarde foram acrescentados os nomes de Deus Pai e do Espírito Santo. Como
não havia ainda explicações paralelas, estava-se no domínio da fé e da liturgia e
não da teologia.23

Naturalmente, o autor citado acerta quanto ao consenso sobre o batismo


como sacramento de iniciação e o desenvolvimento da percepção trinitária para
o ritual, porém equivocadamente exclui a teologia do chamado domínio litúrgico,
contrariando o fenômeno exposto neste trabalho de catequese como exposição
teológica paralela ao rito.
O conceito de iniciação, usado neste trabalho como sinônimo de catequese,
vem do latim initiare, sendo um termo que não aparece em registro antes do sécu-
lo 2.24 “Nos séculos 2 e 3, os apologistas cristãos criticam os interlocutores pagãos
que comparam os ritos cristãos aos das religiões misteriosas.”25
“O vocábulo da iniciação entra na comunidade cristã com a catequese, a
começar do catecumenato organizado, em que os catecúmenos são separados dos
fiéis, não conhecem tudo o que sabem sobre os batizados, e observam a disciplina
do arcano.”26 Portanto, é registrado que o verbete “iniciação cristã” coaduna com
o desenvolvimento do catecumenato, por meio da catequese, na inserção dos ne-
ófitos nas comunidades cristãs.

22
Ibidem.
23
Paul Tillich, História do pensamento cristão [publicado por ASTE], p. 39.
24
Antonio Francisco Lelo, A iniciação cristã: catecumenato, dinâmica sacramental e tes-
temunho [publicado por Paulinas], p. 28.
25
Ibidem, p. 29.
26
Ibidem.

9
Referências bibliográficas
Berardino, Angelo Di, org. Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs (Pe-
trópolis: Vozes, 2002). Tradução de: Cristina Andrade.
Erickson, Millard. Dicionário popular de teologia (São Paulo: Mundo Cristão,
2011). Tradução de: Emirson Justino.
Ferreira, Franklin, org. A glória da graça de Deus: ensaios em honra a J. Richard
Denham Jr. por ocasião dos 58 anos de ministério no Brasil (São José dos
Campos: Fiel, 2010).
_________. A igreja cristã na história: das origens aos dias atuais (São Paulo: Vida
Nova, 2013).
_________. O exemplo dos heróis da fé — vocação, formação e serviço. Palestra
ministrada na Semana Teológica Água da Vida em Niterói (RJ) entre
os dias 25 a 30 de maio de 2015. Veja em: https://www.youtube.com/
watch?v=wUe4XLiXboQ
Grenz, Stanley J; Guretzki, David; Nordling, Cherith Fee. Dicionário de
teologia: mais de 300 conceitos teológicos definidos de forma clara e concisa
(São Paulo: Vida, 2000). Tradução de: Josué Ribeiro.
Lelo, Antonio Francisco. A iniciação cristã: catecumenato, dinâmica sacramental
e testemunho (São Paulo: Paulinas, 2005).
Matos, Alderi Souza de. Breve história da educação cristã. Fides Reformata
XIII, 2 (2008): 9-24.
Oliveira, Flávio de Paula. Catequese: o uso de catecismos na instrução da igreja
(Curitiba: Faculdade Batista do Paraná, 2016). Trabalho não publicado.
Packer, J.I.; Parrett, Gary A. Firmados no evangelho (São Paulo: Cultura
Cristã, 2012).
Tillich, Paul. História do pensamento cristão (São Paulo: ASTE, 2007).

10
Sobre o autor
Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico
Batista do Sul do Brasil (STBSB) com convalidação
pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-
Graduado especialização em Teologia e Ministério
Juan de Paula
Pastoral pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
Coordenador de Teologia na Faculdade Legacy
Internacional. Professor de Teologia no Seminário do
Sul, no Seminário Martin Bucer e na Uniatitude. Pastor
na Igreja Batista do Redentor no Rio de Janeiro. Casado
com Eulina Seda.

11
Por uma ética cristã em um mundo líquido
Thiago Rafael Vieira

Introdução

O
que é ética? Segundo o Dicionário Oxford, ética é o conjunto de regras
e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo
social ou de uma sociedade. O ser humano, por mais que reconheça em si
sua intrínseca individualidade decorrente de sua dignidade, a qual emana do imago
Dei, é um ser social que se relaciona com os outros e vive em comunidade. Nessa
perspectiva, sua ordem valorativa e moral é fundamental para a qualidade desses re-
lacionamentos e, consequentemente, da própria comunidade na qual está inserido.
Por outro lado, há um movimento valorativo de um individualismo isento de
qualquer valor moral. O que é valorizado (por esse movimento) é a ação huma-
na intuitiva, divorciada de qualquer racionalidade ou moralidade que de alguma
forma sirva de freio aos instintos. Destaca-se a aparência de um conhecimento
libertador, também denominado progressismo, que alcança apenas os “ilumina-
dos”. Estes têm o papel de difundir essa iluminação aos demais. Logo, não se
trata simplesmente de uma bestialidade em que o ser humano é conduzido pelos
seus impulsos naturais mais primitivos. A concepção é outra: a intuição não se
12
origina desses impulsos. O ser intuitivo acessa um conhecimento esotérico, visto
que não é comprovado pela razão e pela ciência, mas possui uma aura que o torna
verdade por si só. É a nova alquimia em contraste com a química, ou a astrologia
em contraste com a astronomia. A astronomia (razão) apenas vislumbra a sombra
do universo, pois está confinada em seus métodos racionais. Da mesma forma, a
ação humana precisa ser liberada de qualquer valor moral para que possa acessar
a iluminação e, assim, alcançar esse tal “progresso”.
É possível perceber isso em todos os aspectos do século atual: desde o “poli-
ticamente correto”, que critica qualquer ato ou ação humana que não se ajuste ao
espírito intuitivo iluminado, até os movimentos de grupos minoritários que utili-
zam todos os recursos possíveis, inclusive a ordem jurídica estabelecida, para “li-
bertar” o ser humano de suas restrições morais, em todas as suas dimensões. Um
olhar mais atento nos remete ao Éden, quando Satanás ofereceu a iluminação e a
elevação ao homem, por meio do acesso ao conhecimento do bem e do mal. Ou
ainda ao próprio gnosticismo, agora com uma roupagem moderna. Por isso, é tão
importante falar sobre ética, especialmente a ética cristã, que moldou o Ocidente.
Nesse sentido, é necessário refletir sobre os aspectos práticos da ética cristã
e, assim, compreender que seu elemento moral formativo alcança todas as áreas
de nossa vida, seja ela particular ou social. O dualismo sagrado/secular é próprio
do gnosticismo e é utilizado como ferramenta para o novo gnosticismo. Ou seja:
“viva sua vida moral e religiosa em casa (no privado); fora dela, seja um cidadão do
mundo, um cidadão iluminado”. Essa divisão visa destruir a ética, que é o elo que
une a sociedade. Sem a ética cristã, o ser humano perde o contato com o outro e,
por fim, torna-se um mero autômato, controlado pelos “iluminados”, detentores
de um conhecimento secreto e progressista no qual o indivíduo, no final das con-
tas, perde sua identidade nacional, cultural, vocacional e/ou de gênero.
No entanto, todas as ações humanas realizadas ao longo da vida estarão de
acordo ou em desacordo com a vontade de Deus, revelada pessoalmente nas Es-
crituras e testada ao longo dos últimos três mil anos, como a matéria-prima que
moldou a atual estrutura social, de forma direta ou indireta. A ética cristã não é
dualista e compreende a importância do sagrado e do material, pois o homem é
um cidadão de duas cidades, nas palavras de Agostinho de Hipona. A separação
entre o sagrado e o secular, além de essencialmente gnóstica e “progressista” no
sentido gnóstico do termo, se traduz em uma afirmação clara de que existem áreas
13
sobre as quais os valores morais cristãos não exercem impacto ou relevância, ou
seja, que a ética a ser seguida é intuitiva, irracional e fundamentada em um conhe-
cimento iluminado, para não dizer esotérico.
O objetivo geral deste texto é destacar o mundo fluido em que vivemos, con-
trastando-o com uma ética sólida que nos trouxe até aqui: a ética do cristianismo.
Como objetivos específicos, abordaremos questões específicas, como música e se-
xualidade, com base nos insights de Walter C. Kaiser Júnior em sua obra O cristão
e as questões éticas da atualidade, considerando-os como fatores que promovem a
liquidez da sociedade atual e, consequentemente, o enfraquecimento de qualquer
tipo de ética. Aqui, vale ressaltar o termo “liquidez” utilizado no título deste texto:
seguindo a linha do clássico de Zygmunt Bauman, podemos dizer que estamos
descrevendo uma sociedade marcada pela liquidez, volatilidade e fluidez em suas
relações.1 Essa volatilidade e fluidez têm o poder de fazer desaparecer entre nos-
sos dedos tudo aquilo que construiu o Ocidente e está diretamente relacionado
aos valores e à ética cristã.
O problema que se apresenta é: “como recuperar os valores que nos trouxe-
ram até aqui em um mundo cada vez mais volátil ou líquido?” Nossa resposta é
cristã. É possível viver o cristianismo em um mundo plural e até mesmo usá-lo
como base para este mundo. Em poucas palavras, tentaremos desenvolver este
argumento.

1. A (falta da) Bíblia na vida humana


Kaiser demonstra como a Bíblia responde a cada área da vida humana e dos re-
lacionamentos, selecionando questões importantes da sociedade contemporânea:
“A ética bíblica começa com a iluminação das Escrituras: ‘Tua palavra é lâmpada
para os meus pés e luz para o meu caminho’ (Sl 119.105). Desse modo, para os
cristãos, a ética bíblica é uma reflexão sobre a conduta e as ações humanas com base
na perspectiva do nosso Senhor apresentada nas Escrituras Sagradas”.2 Os valores
constantes da Bíblia orientam a vida em comunidade a partir da liberdade indi-
vidual exercida com solidariedade ao próximo, afastando-se de um pragmatismo

1
Zygmunt Bauman, Modernidade líquida [publicado por Zahar].
2
Walter C. Kaiser, O cristão e as questões éticas da atualidade: um guia bíblico para pre-
gação e ensino [publicado por Vida Nova], p. 10.

14
utilitarista ou do individualismo exacerbado, conforme afirmado por Alexis de
Tocqueville em A democracia na América.
Ao tratar dos meios de comunicação, entretenimento e pornografia,3 Kaiser
disserta sobre uma geração que nasce com as tecnologias desenvolvidas e com
um pensamento filosófico muitas vezes adverso à cosmovisão cristã e aos valores
morais que moldaram o ethos em que vivem. Esse ethos foi cultivado ao longo dos
últimos três mil anos e pode ser facilmente verificado como condição essencial
para o florescimento humano, como muito bem desenvolvido por Christopher
Dawson em suas obras: Dinâmicas da história do mundo, Progresso e religião: uma
investigação histórica e Criação do Ocidente: a religião e a civilização medieval: “Foi
essa consciência sobre seu caráter único e sua missão que o cristianismo deveu
seus poderes extraordinários de expansão e conquista que revolucionaram todo o
desenvolvimento da civilização ocidental”,4
Em contrapartida, quando a influência cristã é refreada ou rechaçada, os
efeitos são percebidos em larga escala: nas escolhas, comportamentos, saúde men-
tal, relacionamentos, taxas de suicídio, qualidade de governos e no crédito atribu-
ído às instituições.
Retornando ao tema da tecnologia, percebe-se que a plataforma digital é
parte integrante do cotidiano das crianças desde os primeiros anos de vida. Na
maioria dos casos, essa exposição aos eletrônicos é desenfreada, ausente de qual-
quer filtragem e supervisão por parte dos pais, que preferem a tranquilidade de
uma criança hipnotizada à responsabilidade de ensinar valores morais aos filhos.
Além disso, temos crianças e adolescentes submetidos a uma cultura de revolução
afetiva, na qual os sentimentos são mais valorizados do que a razão. Destaca-se
também a imensidão de conteúdo preparado para diminuir a capacidade intelec-
tual dos telespectadores, além de afastá-los da ética cristã.
Diferentemente do legado luterano, por exemplo, presente nas músicas de
Bach (fruto da redefinição que Lutero promoveu no cântico congregacional), as
músicas mais tocadas nas rádios são carentes de variações, com um volume altís-
simo produzido artificialmente e que exaltam a sensualidade, promovendo nada
mais, nada menos que a degradação intelectual dos ouvintes, com melodias e

3
Ibidem, p. 71-86.
4
Christopher Dawson, Progresso e religião: uma investigação histórica [publicado por É
realizações], p. 195.

15
letras permeadas de gemidos, ruídos e outras cacofonias. Sendo a música um ele-
mento fundamental para a formação do imaginário, percebe-se que grande parte
da música pop, por exemplo, promove uma descambação na mente dos ouvintes,
tornando-os incapazes de contemplar aquilo que é verdadeiramente belo, insen-
síveis à primazia da criação e conformados com músicas de quatro frases e dois
gemidos que são repetidos “trocentas” vezes ao longo da playlist.
Na Bíblia Sagrada, a principal menção que encontramos sobre música está
nos louvores como demonstração de gratidão a Deus pela salvação. Conforme
Efésios 5.19, os louvores e cânticos são um fruto da luz, que não se confunde com
as obras das trevas. Portanto, é possível assimilar que o conteúdo da música será
bom de fato apenas quando refletir um bom desenvolvimento aos que escutam.
No entanto, a música é apenas um dos componentes do deleite humano que está
em decadência. Outro ponto destacado por Kaiser em sua obra — e com o qual
concordamos — é o declínio do jornalismo.5 Muitas vezes, o jornalismo tem sido
utilizado como meio de manipulação das massas, empregado como estratagema
pelas elites de poder, que também são adeptas do humanismo deísta (a crença de
que o homem é Deus sobre si mesmo) ou da iluminação esotérica mencionada
na introdução.
Nesse sentido, o objetivo das fake news é moldar a opinião pública contra
qualquer valor moral que remeta à ética cristã. A perseguição religiosa é omiti-
da, a influência cristã — na política, educação e alcance dos Direitos Humanos
— é tratada como algo prejudicial, sempre acompanhada de alguma notícia que
induza o leitor a compartilhar da mesma aversão, anticristã e anticulto em sua
natureza. A exposição excessiva a esse tipo de noticiário influencia a opinião dos
telespectadores e leitores de tal forma que consolidem, em suas mentes e corações,
a mesma aversão que a mídia destila sobre conteúdo digital e impresso.
Em Provérbios 12.22, encontramos a afirmação do amor de Deus sobre
aqueles que falam a verdade e, inversamente, sua ira sobre aqueles que cultivam a
mentira, a manipulação e, claro, as notícias falsas. A ética cristã abrange toda nos-
sa maneira de viver, portanto, possui diretrizes específicas quanto à propagação de
notícias: a verdade dos fatos é um compromisso ético que devemos buscar e ensi-
nar aos nossos filhos. Além disso, é importante lembrar do ensinamento sobre o

Walter Kaiser, op. cit., p. 74-6.


5

16
discernimento, conforme registrado no Evangelho de Mateus 10.16: devemos sa-
ber distinguir a verdade da mentira, buscar informações confiáveis e, então, emitir
um juízo de valor, com equilíbrio e mansidão.
Além das crianças e adolescentes em desenvolvimento, os adultos também
estão sujeitos à influência de notícias tendenciosas e músicas degradantes. Dessa
forma, é crucial estabelecer um paradoxo entre: a) as práticas que corrompem a
sociedade, com b) as virtudes que estão sendo continuamente perdidas diante de
costumes que não apenas contradizem a noção básica de dignidade da pessoa
humana, mas também a perspectiva cristã da vida humana.
Se não formos capazes de definir o que é bom para nós mesmos, não pode-
remos oferecer algo bom para os outros; é por isso que, ao nos expormos a certos
vícios, prejudicamos não apenas a nós mesmos, mas também aos outros, sejam
eles nossos próximos ou aqueles que não conhecemos. Podemos tratar as pessoas
como se fossem objetos e alimentar uma sede pecaminosa.6 Nessa linha de pen-
samento, além da música e do jornalismo, a pornografia (e tudo relacionado a ela
e influenciado por ela) traz consigo os perigos da violência sexual. Esses são ele-
mentos de mercado que promovem a objetificação do corpo e são fontes de uma
indústria perversa que afeta mulheres, crianças e homens, desestabilizando ou até
mesmo derrubando os pilares de uma sociedade.
Quando falamos em ética cristã, naturalmente entramos no campo da ética
sexual. Evidentemente, por se tratar de algo relacionado ao nosso corpo, a ética
sexual cristã visa a dignidade da pessoa humana. Além disso, essa ética reflete os
padrões benevolentes de Deus e, portanto, deve ser observada e nunca mitigada.
Como ensina P. Andrew Sandlin:

Rescindir a ética sexual cristã equivale a rescindir a Bíblia e sua cosmovisão [...].
Se um dos nossos princípios hermenêuticos é que só a Bíblia pode rescindir
seus ensinos específicos (p. ex., o sistema sacrificial da antiga aliança), então a
resposta à pergunta “A ética sexual cristã é obsoleta?” consiste em um sonoro

6
Um exemplo dessa sede pecaminosa é explicado por Rushdoony, por meio do sado-
masoquismo. Ele explica como o pensamento sadomasoquista ganhou influência direta
e indireta nos hábitos sexuais das pessoas, mesmo se tratando de uma tese absurda, que
envolve defesas como a validade da violência sexual. Para mais detalhes: Rousas John
Rushdoony, A política da pornografia [publicado por Monergismo], p. 104-5.

17
não — essa ética, que nunca foi rescindida, não é antiquada, e devemos encarar
o incontestável e claro ensino bíblico.7

Em Hebreus 13.14 encontramos a lição bíblica preliminar acerca da ética


sexual, limitando o intercurso sexual ao casamento exclusivamente, sem exceção.
Além dos benefícios sociais que a postura monogâmica promove — como civi-
lizações mais fortes, redução no número de divórcios e melhor qualidade de vida
para as crianças e adolescentes, conforme visto em Efésios 6.1-3 —, as Escrituras
Sagradas demonstram que a relação familiar é essencial para orientar nossas es-
colhas ao longo da adolescência e juventude.
O padrão bíblico para a sexualidade condena a imoralidade sexual, que ocor-
re de várias maneiras, tanto no âmbito privado — através do consumo de material
pornográfico, práticas sexuais fora do casamento e casos extraconjugais — quanto
no âmbito público, quando somos negligentes na pregação do Evangelho, espe-
cialmente quando permitimos que a revolução sexual influencie o ensino bíblico e
resulte em uma subsequente negligência ou subversão das determinações bíblicas.
A resposta cristã ainda é a melhor alternativa para a construção de um mundo
melhor, e devemos nos apegar a ela.

2. A resposta cristã
Deus nos oferece um modelo de comportamento que é objetivamente bom
por duas razões: em primeiro lugar, por atender a determinação; e em segundo,
por promover a valorização da pessoa humana. Ao condenar a sensualidade em
1Coríntios 6 através da escrita do apóstolo Paulo, percebemos um conjunto de
padrões que compõem o arcabouço da santificação do corpo. Ali está a chave da
ética sexual cristã, ou seja, qual a vontade de Deus na pauta da sexualidade para
homens e mulheres.
Deus intervém nas relações humanas, condenando as práticas e ações que
violem a dignidade sexual. A passagem da primeira carta paulina aos Coríntios é
tão completa que ensina até sobre a reciprocidade no ato sexual, mostrando que
quando o ato sexual está de acordo com o padrão bíblico, é um presente de Deus

7
Andrew Sandlin, A cosmovisão sexual cristã: a ordem de Deus na era do caos
sexual [publicado por Monergismo], p. 32-3.

18
para homens e mulheres. Trata-se da doutrina da união do cristão com Cristo,
mostrando que tal união se estende para o nosso corpo físico, e que nossas práti-
cas sexuais são um reflexo da nossa comunhão com Deus, não sendo um assunto
que pode ser tratado separadamente da doutrina primária da santificação.
No mesmo sentido, a passagem de Efésios 6.1-3 trata sobre a necessidade
dos filhos honrarem seus pais. As primeiras figuras de autoridade com as quais
lidamos são nossos pais. Bons pais saberão orientar corretamente seus filhos sobre
as músicas que escutam, o cônjuge com o qual vão se casar e o afastamento de
práticas imorais. A Bíblia aponta responsabilidades para duas gerações: aos ascen-
dentes, na correta orientação de seus filhos, e aos descendentes, na observância
dos mandamentos de Deus sobre a cosmovisão sexual cristã. Aqui percebemos
que as questões sexuais e comportamentais são uma pauta comunitária, que deve
ser mediada por todos na comunidade de sangue — a família — e na comunidade
de fé, a Igreja.
A Bíblia Sagrada não é negligente quanto às lutas sexuais que o homem
pós-queda enfrenta, e por isso lista as principais dificuldades que enfrentamos, a
fim de nos dar uma resposta. A Bíblia trata de problemas reais e oferece soluções.
Nesse contexto, a lei e o evangelho de Cristo são essenciais. A lei para demonstrar
aquilo que não devemos fazer, e o evangelho para promover o perdão dos pecados,
inclusive dos sexuais, por meio do sacrifício salvífico de Jesus Cristo.
Além disso, o casamento, como a única forma válida do ato sexual, é o meio
pelo qual a intimidade entre homem e mulher foi restaurada. As determinações pre-
sentes em Levítico 18 mostram qual é a essência das práticas sexuais proibidas pela
vontade de Deus: são de corrupção, confusão e promoção de desordem. Deus preser-
va o seu povo por meio de seus desígnios consolidados nas Escrituras, que oferecem
orientação e sabedoria para vivermos uma vida de acordo com a sua vontade.

Conclusão
A ética cristã tem como ponto de partida a lei moral de Deus, entregue a Moisés no
Monte Sinai. Conhecida também como a lei das duas tábuas, possui na segunda
tábua os mandamentos que guardam vinculação com o relacionamento entre as
pessoas, ou seja, o relacionamento horizontal entre os seres humanos. Já a primei-
ra tábua trata do relacionamento vertical do homem com Deus. Assim, a ética
cristã alerta que esse deve ser o norte para todas as outras pautas de nossa vida: o
19
relacionamento vertical com o criador do universo, pai das luzes, redentor e santi-
ficador, e o relacionamento horizontal, de forma solidária (amor ao próximo) com
os outros, visando sempre o bem comum, ou como diria Aristóteles: a eudaimonia.
O bom exemplo de cada um em ajudar o próximo é o que podemos chamar
de melhor da ética cristã, que construiu o mundo em que vivemos. Lembrando
sempre que apenas o esforço humano não é capaz de nos conduzir para uma
vida sólida. Assim, retornamos para os conceitos base, na pregação da lei e do
evangelho: uma prática que deve ser mantida e estruturada para descrentes e para
os convertidos, já que a natureza humana decaída sempre buscará o desvio da
vontade de Deus. Lembrando daquilo que está disposto no artigo 5 da Fórmula
de Concórdia: “a distinção entre lei e evangelho, como luz especialmente gloriosa,
deve ser mantida com grande diligência na igreja”.
A tentativa de muitos grupos de alienar a sociedade de qualquer valor moral
e da ética construída a partir daí promoverá o caos e uma sociedade de zumbis.
Lembrando do famoso seriado The Walking Dead, os zumbis viviam apenas pelo
seu instinto primitivo e básico de se alimentar, em detrimento até mesmo de seu
corpo. Uma pessoa totalmente alienada de uma ética mínima tende a dar vazão
apenas aos seus impulsos do momento, em detrimento dos outros e de si mesma.
Infelizmente, ela se aproxima dos zumbis de The Walking Dead.
Quando a sociedade perde qualquer senso ético fundamentado em valo-
res mínimos, seguindo cegamente teorias esotéricas sem qualquer comprovação
científica, mas construídas por processos de iluminação que não se sustentam
socialmente em uma análise de duas ou três gerações, está à beira de ruir. Os si-
nais são claros: violência em níveis alarmantes, individualismo exacerbado, níveis
de traição, corrupção e engano na família, nos negócios e na política cada vez
maiores. A cultura acaba por se deteriorar: músicas sem criatividade e sem poesia,
fundamentadas apenas no ritmo, e ainda um ritmo descompassado e repetitivo. A
arte de maneira geral não retrata mais o belo e a verdade, mas sentimentos ego-
ístas ou ideologias de grupos que buscam o poder. Um jornalismo dirigido pelo
lucro, poder e pautas iluminadas, e, por fim, uma total corrupção do corpo e do
sexo. O sexo deixa de ser uma parte integrante do ser humano para ser objeto de
deificação, o que acaba resultando em traições, ódio, corrupção e individualismo,
completando o ciclo da falência humana.
Apenas uma ética amarrada em valores morais mínimos de certo e errado
20
pode trazer e manter o vínculo de solidariedade que une os diferentes em uma so-
ciedade política. Como diria Jacques Maritain, apenas o fermento do evangelho8
pode fazer uma sociedade política crescer em direção ao bem comum. Se quiser-
mos que os fundamentos da República brasileira não se percam (I — a soberania;
II — a cidadania; III — a dignidade da pessoa humana; V — os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa e V — o pluralismo político), precisamos lembrar
de nossas origens.

Referências Bibliográficas:
Agostinho de Hipona. A cidade de Deus (Petrópolis: Vozes, São Paulo: Fede-
ração Agostiniana Brasileira, Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2014).
Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida (Rio de Janeiro: Zahar, 2000).
Dawson, Christopher. Criação do Ocidente: a religião e a civilização medieval (São
Paulo: É Realizações, 2016).
________. Dinâmicas da história do mundo ( São Paulo: É realizações, 2010).
________. Progresso e religião: uma investigação histórica (São Paulo: É realizações,
2012).
Kaiser, Walter C. O cristão e as questões éticas da atualidade: um guia bíblico para
pregação e ensino (São Paulo: Vida Nova, 2016).
Maritain, Jacques. O cristianismo e a democracia (Rio de Janeiro: Editora Agir,
1945).
Rushdoony, Rousas John. A política da pornografia (Brasília: Editora Monergis-
mo, 2018).
Sandlin, P. Andrew. A cosmovisão sexual cristã: a ordem de Deus na era do caos
sexual [Brasília: Editora Monergismo, 2017].
Tocqueville, Alexis de. A democracia na América (São Paulo: Folha de São Paulo,
2010).
Vieira, Thiago Rafael; Regina, Jean Marques. A contribuição do cristianismo para
a liberdade (São Paulo: Zelo Editora, 2023).

8
Jacques Maritain, O cristianismo e a democracia [publicado por Agir].

21
Sobre o autor
Advogado; especialista em Direito do Estado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS;
especialista em Estado Constitucional e Liberdade
Religiosa pela Universidade Presbiteriana Mackenzie,
Thiago Rafael Vieira
com estudos pela Universidade de Oxford (Regent’s
Park College) e pela Universidade de Coimbra;
especialista em Teologia e Bíblia pela Universidade
Luterana do Brasil (ULBRA); mestrando em Direito
Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Professor visitante da ULBRA. Membro do
Conselho Editorial da Dignitas - Revista Internacional
do Instituto Brasileiro de Direito e Religião. Presidente
do Instituto Brasileiro de Direito e Religião - IBDR.
Colunista da Gazeta do Povo e outras revistas e
sites. Presidente do sub-comitê da rede de apoio
das entidades temáticas em Defesa e Promoção da
Liberdade Religiosa da ALESP. Em 2019, foi um dos
delegados do Brasil na Universidade de Brigham
Young (Utah/EUA) no 26º Simpósio Anual de Direito
Internacional e Religião, evento com mais de 60
países representados.

22
A hermenêutica de Jerônimo: reflexões
para a exegese e hermenêutica atual a
partir de um pai da igreja
Marcelo Luiz Tavares

Introdução

O
s pais da igreja são normalmente associados com o uso da alegoria e
apresentados como um exemplo histórico de como não se fazer exegese
e hermenêutica hoje em dia. No entanto, é possível ter outra atitude ao
se compreender o porquê da alegoria ter sido usada. Além disso, a alegoria vin-
cula-se a outras práticas e atitudes que motivam sua utilização. Com isso, embora
o intérprete atual possa não se utilizar das mesmas práticas, ainda assim, pode se
valer das posturas subjacentes. Estas podem ser associadas a uma metodologia
mais atual, desde que esta pressuponha valores semelhantes e congruentes com a
postura dos pais, e que sejam atemporais e necessários. Para tal, Jerônimo é apre-
sentado como um estudo de caso. Ele se utilizou principalmente da alegoria e
chegou a ser até mesmo radical em sua abordagem. No entanto, o fez como parte
de um conjunto de outras posturas e como consequência de outras, fato este que
costuma ser desprezado ao se considerar este autor.
23
Breve histórico exegético
Jerônimo (c. 347-419 d.C.) é comumente situado entre os ocidentais, e pertencente
à escola de Alexandria. É muito conhecido por sua tradução da Bíblia para o latim,
a Vulgata. Esta foi produzida com base no texto hebraico do AT, da Hexapla de
Orígenes, e com a inserção dos livros deuterocanônicos (BRAY, 2017, p. 91).
Além disso, ele também veio a traduzir as homilias de Orígenes sobre os
profetas e o Cântico dos Cânticos. Posteriormente, veio a rejeitar a tradição ale-
górica (BRAY, 2017, p. 91). Por isso, seus comentários de Eclesiastes e Salmos
refletem um momento em que ele apreciava Orígenes, enquanto o de Gênesis
já se situa no momento de seu afastamento. Finalmente, o seu trabalho sobre
os profetas menores e sobre o NT já refletem sua última posição (BRAY, 2017,
p. 91-2). Ainda assim, sua rejeição ao alegorismo pode ter sido mais teórica do
que prática (BRAY, 2017, p. 92). Talvez por isso Childs o considere como ecléti-
co em sua abordagem hermenêutica (CHILDS, 2004, p. 91). Jerônimo também
comentou Mateus, as cartas paulinas e o Apocalipse (BRAY, 2017, p. 92), percor-
rendo diversos gêneros literários.
Além de Orígenes, ele também foi influenciado por classicistas romanos,
como Donatus, tanto na filologia latina, quanto em estilo e retórica. Outras in-
fluências foram a escola alexandrina e de Antioquia (respectivamente Dídimo,
Apolinário e os pais capadócios) (CHILDS, 2004, p. 91). E o próprio Jerônimo
atesta ter sido educado por Gregório de Nazianzo ( JERÔNIMO, 2015, p. 150).

Análise da prática interpretativa

And I beg you, Eustochium, Christ’s virgin, that you help me by your prayers
in the exposition of the very difficult vision in which God almighty is seen in
his majesty [cf. Isa 6:1–2], and there are two seraphim standing around him
and shouting, “Holy, holy, holy, Lord Sabaoth, all the earth is full of his glory”
[Isa 6:3]; and the lintel of the temple was shaken and struck [cf. Isa 6:4]; and
the house of the Jews was filled with the darkness of error; and in comparison
with the divine glory, the prophet says that he has unclean lips and dwells in the
midst of a blaspheming people [cf. Isa 6:5], who shouted in their impious uni-
son, “Crucify him, crucify him” [ John 19:6]; and, “We have no king but Caesar”
[ John 19:15] ( JERÔNIMO, 2015, p. 149).

24
Jerônimo pede que Eustochium o ajude por meio de orações, para que ele possa
expor a passagem seguinte (Is 6). Assim, ele não concebe a interpretação bíblica
como mero exercício intelectual, em que o ser humano pode compreender a re-
velação divina por suas próprias capacidades. Ao contrário, ele precisa do auxílio
divino, buscado por meio da oração.
Ele também parece contrapor “glória” à “escuridão” do erro. Assim, a glória
estaria de alguma forma ligada à verdade. E, se o erro levaria à impureza e blasfê-
mia associadas à rejeição de Cristo, a verdade levaria à santidade e reconhecimen-
to a Cristo. Além disso, ele traça uma relação direta e alegórica entre a impureza
de Isaías e seu povo com o clamor pela crucificação de Cristo e sua rejeição como
rei, em prol de César. Logo, a revelação da verdade bíblica implica em conversão
e santificação; já o escurecimento, em oposição. Neste caso, a exegese e a herme-
nêutica não dependem apenas de compreensões filosóficas, literárias, gramaticais
e históricas. Contudo, eles dependem de questões espirituais que aparecem de
modo determinante.
Estas questões espirituais parecem implicar para Jerônimo na alegoria como
uma estratégia necessária para se alcançar um sentido espiritual. Certamente,
Jerônimo se afasta do sentido literal, de modo por vezes indevido. Pois este é
contraposto erroneamente ao espiritual.
Portanto, embora Jerônimo se mostre radical quanto ao uso da razão na
exegese, ainda assim, ele contribui para a importância de se considerar a mesma
como um ato espiritual, não meramente acadêmico. Ao se considerar que a exe-
gese deveria servir à exposição das Escrituras e à edificação da igreja, não se pode
negar a essência espiritual deste ato. Pois ela começa pela análise de um texto
inspirado e fornece elementos que serão utilizados na santificação ou conversão
promovidas pelo Espírito Santo, no momento do ensino ou da pregação. Logo, se
o primeiro momento (revelação) e o último (santificação) são espirituais, então é
de se esperar que os momentos intermediários também o sejam. Parece que não
ter este entendimento poderia levar ao desprezo pela busca deste auxílio divino e,
finalmente, à perda da compreensão mais acurada do texto bíblico.
No que se refere à tradução escolhida, Jerônimo se utiliza de diversas tra-
duções existentes, especialmente a LXX (hoje conhecida como Old Greek, com
exceção da tradução grega do Pentateuco): ‘And the things that were under him
filled the temple, or as Theodotion and Symmachus translated it, “And the things
25
that were under his feet filled the temple.” The Septuagint translated this as, “And
the house was full of his glory.”’ ( JERÔNIMO, 2015, p. 150). Assim, ele não
apenas manteve vivas tais traduções, mas mostrou a importância de se comparar
traduções, a fim de se chegar à que melhor se ajusta ao sentido da passagem.
Mas como Jerônimo seleciona entre as diversas traduções e testemunhas
textuais? Tratando sobre Isaías 6.9-10, ele começa por apresentar a leitura do OG
que, nas suas palavras, afirma: “at God’s command the prophet Isaiah simply pre-
dicted what the people would do” ( JERÔNIMO; WILKEN; CHRISTMAN;
HOLLERICH, 2007, p. 85). No entanto, Jerônimo percebe que o texto hebraico

poses a difficult problem in the way that God directly commands the people to
hear with their hearing, and not understand, and seeing, to see, but not perceive.
And after the prophet is induced to speak and to beseech the Lord, God also
instructs, “Make the heart of this people blind, and their ears heavy, and shut
their eyes, lest they see with their eyes, and hear with their ears, and under-
stand with their hearts, and turn and be healed.” ( JERÔNIMO; WILKEN;
CHRISTMAN; HOLLERICH, 2007, p. 85).

A seguir, ele reconhece que o OG tem testemunhas que seguem a mesma


forma do texto hebraico e, escolhendo o texto hebraico, procura então interpretar
a passagem alegoricamente. Após citar o texto de Romanos 11 (sobretudo os v.
25-32), ele defende que Isaías 6.9-10 anuncia “that one people should perish so
that all might be saved—for part of the Jews not to see, so that the whole world
might perceive” ( JERÔNIMO; WILKEN; CHRISTMAN; HOLLERICH,
2007, p. 85-6).
Portanto, não parece ser simplesmente que o TM seja mais reconhecido que
o OG, mas que a unidade das Escrituras ajuda a selecionar não só o sentido
da passagem, mas também a testemunha textual a ser utilizada. De fato, não há
nenhuma tentativa de explicar as diferenças entre estas testemunhas, nem outro
critério utilizado neste caso. Embora as abordagens críticas mais atuais tenham
desenvolvido critérios sólidos para as mesmas, ainda parece salutar considerar a
unidade da revelação na crítica textual. Pois o mesmo Espírito inspirou a “toda a
Escritura” (2Tm 3.16, ARA). Logo, há de se considerar o desafio de interpretar as
Escrituras sem apelar para contradições aparentes e simplistas. Talvez isso possa
ser feito sem o uso de alegoria, mas sim com as outras “ferramentas” exegéticas

26
atualmente existentes. Por trás desta tentativa, o mesmo princípio de Jerônimo
pode nortear a hermenêutica atual: de que as contradições nas Escrituras são
apenas aparentes ( JERÔNIMO; WILKEN; CHRISTMAN; HOLLERICH,
2007, p. 85).
Além disso, Jerônimo revela que ele valoriza mais o sentido da passagem do
que a tradução literal: “For I myself not only admit but freely proclaim that in
translating from the Greek (except in the case of the holy scriptures where even
the order of the words is a mystery) I render sense for sense and not word for
word” ( JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 113). Assim, Jerônimo parece
dar mais importância ao significado geral que possa ser compreendido pelo leitor
do que a exatidão literal.
No que se refere ao contexto histórico da passagem, Jerônimo não o despreza.
Mas ele também se utiliza do mesmo alegoricamente. Por exemplo, ao comparar
Isaías 6 com outra porção das Escrituras, a fim de estabelecer seu contexto his-
tórico, ele registra: “Sacred history relates that Uzziah was struck with leprosy,
because he laid claim to an unlawful priesthood for himself [cf. 2 Chr 26:16–21]”
( JERÔNIMO, 2015, p. 150). Mas logo a seguir, ele aplica o próprio contexto aos
seus leitores, por meio da alegoria: “From this we observe that while a leprous
king is reigning within us, we are not able to see the Lord reigning in his majesty,
nor are we able to recognize the mysteries of the Holy Trinity” ( JERÔNIMO,
2015, p. 150). Logo, não só a passagem em questão pode ter um sentido espiritual,
mas o próprio fato histórico à que ela alude também pode tê-lo. Nisso se vê que o
sentido espiritual parece não concorrer com a realidade factual, mas se encontrar
justamente nela. Apesar de recorrer ao contexto histórico — expõe Childs — Je-
rônimo acredita que o contexto pleno depende do Novo Testamento (CHILDS,
2004, p. 96).
Portanto, uma mesma atitude parece se repetir nos vários passos exegéticos.
Pois tanto no que se refere à tradução, quanto à contextualização e interpretação,
o significado literal é preterido em favor de um sentido que seja mais compreen-
sível e aplicável ao interlocutor, com vistas a conduzir o mesmo a Deus e à vida
com ele.
Certamente, esta atitude possa ser extrema em alguns casos, o que levaria a
exegetas atuais a terem cautela para não cair nos mesmos excessos. No entanto,
Jerônimo contribui com a consideração de que a exegese e a hermenêutica não
27
têm como finalidade a extração bruta de um conhecimento. Ao contrário, a fina-
lidade seria a exposição daquilo que seja aplicável à vida dos interlocutores, com
base na plenitude da revelação. Além disso, tal aplicação seria determinada pelo
aspecto espiritual do processo: levar à verdade salvífica e, portanto, transforma-
dora. Não que a salvação e santificação sejam adendos ao processo. Mas, antes,
partes inerentes dele, uma vez que o fundamentam, perpassam e são a finalidade
do Espírito Santo, no momento em que os resultados deste processo são apresen-
tados publicamente.
No entanto, Jerônimo não parece usar alegorias de modo arbitrário. Antes,
ele procura se apoiar no seu entendimento da revelação bíblica, como também ao
dizer:

Now in John the Evangelist and in the Acts of the Apostles we learn more fully
who is this Lord who is seen. John says of this, “Isaiah said this when he saw his
glory and spoke about him” [ John 12:41], doubtless signifying Christ ( JERÔ-
NIMO, 2015, p. 150).

Assim, o reconhecimento da unidade das Escrituras se daria por meio do


sentido espiritual. Essa abordagem é especialmente útil para se tentar superar
aparentes contradições bíblicas:

Someone may ask how the prophet can say now that he has seen the Lord, not
the Lord without qualification, but the Lord Sabaoth [cf. Isa 6:5], as he himself
testifies in what follows, although John the Evangelist has said, “No one has
ever seen God” [ John 1:18; 1 John 4:12], and God says to Moses, “You cannot
see my face, for no man will see my face and live” [Exod 33:20]. We will respond
to this that fleshly eyes are not able to see not merely the divinity of the Father,
but not even that of the Son and the Holy Spirit, since the nature in the Trinity
is one. But the eyes of the mind [can see him], of which the Savior himself says,
“Blessed are the pure in heart, for they will see God” [Matt 5:8]. We read that
the Lord of Abraham was seen under the figure of a man [cf. Gen 18:1–3], and
a man, as it were, who was God, wrestled with Jacob. This is why the place itself
was called Penuel, that is, face of God [cf. Gen 32:24–30]. He says: “For I have
seen God face to face and my soul was saved” [Gen 32:30]. Ezekiel too saw the
Lord in the form of a man sitting over the cherubim; from his loins and below

28
he was like fire and the upper parts had the appearance of amber [cf. Ezek
1:26–27]. Therefore, the nature of God is not discerned, but he is seen by men
as he wills ( JERÔNIMO, 2015, p. 151).

Portanto, ele não apela para as possíveis diferenças de contextos literários e


históricos, ou para as diversas motivações dos diferentes autores bíblicos, como
outros autores de hoje poderiam fazê-lo. Mas Jerônimo apela para uma mesma
realidade espiritual que estaria perpassando todos eles. Ele então contrasta os
olhares da carne e da mente, sendo aqueles os da vontade humana, e os últimos
guiados segundo o arbítrio divino.
Ironicamente, nesta abordagem se encontram, ao mesmo tempo, tanto uma
contribuição, quanto uma limitação de Jerônimo. Sua contribuição é ver a uni-
dade na revelação. Pois, para ele, não parece haver quaisquer divisões de épocas,
dispensações ou alianças. Ou se elas existem, não são tão importantes a ponto de
diminuir esta unidade. No entanto, aqui também se encontra a limitação de ter
as diferenças e especificidades de diversas passagens bíblicas e seus respectivos
contextos apagadas ou, ao menos, diminuídas.
Porém, a alegoria não é sempre utilizada da mesma maneira. Em outra seção
de seu comentário sobre Isaías 6, Jerônimo demonstra se colocar em debate com
outros autores:

Therefore a certain individual impiously understands the two seraphim to be


the Son and the Holy Spirit,6 since we teach according to John the Evangelist
and the Apostle Paul that the Son of God was seen in the majesty of one reig-
ning, and that the Holy Spirit spoke. Some of the Latins understand the two
seraphim to be the Old and New Testaments (instrumentum), which speak only
of the present age ( JERÔNIMO, 2015, p. 153).

Inicialmente, ele está confrontando Orígenes. Pois se refere à mesma “here-


sia” em uma de suas cartas:

Origen is a heretic, true; but what does that take from me who do not deny that
on very many points he is heretical? He has erred concerning the resurrection
of the body, he has erred concerning the condition of souls, he has erred by
supposing it possible that the devil may repent, and—an error more important

29
than these—he has declared in his commentary upon Isaiah that the Seraphim
mentioned by the prophet are the divine Son and the Holy Ghost Ghost ( JE-
RÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 131-132).

A seguir, ele talvez esteja se inserindo no grupo dos latinos. Pois ele mesmo
defende em uma de suas cartas que ‘the two seraphim thus stand for the Old
and New Testaments’ ( JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 22), unindo
mais uma vez os Testamentos. Desta forma, Jerônimo não se coloca como um
autor isolado, mas parte de uma comunidade maior. Por sua vez, esta comunidade
também se insere num corpo maior. Logo, Jerônimo também contribui à herme-
nêutica e exegese contemporâneas ao revelar a importância de se ver o expositor
bíblico como parte de uma comunidade e discussões maiores, não apenas alguém
que emite impressões individualistas num vácuo contextual. Neste sentido, há um
dever pastoral no intérprete: ajudar seus interlocutores a superar heresias e erros
teológicos.
Seguindo a postura de Jerônimo, os intérpretes atuais deveriam ajudar seus
leitores a se afastar dos falsos ensinos mais do que procurar por inovações teológi-
cas e exegéticas. Além disso, devem aceitar que fazem parte de uma comunidade
em meio a outras comunidades, sem banalizar sua tradição. Isso não quer dizer
necessariamente que a tradição da comunidade em questão deva ser absoluta. No
caso acima, a discussão é sobre o Filho ser Deus ou uma criatura. Embora esta
discussão tenha perdurado na história, ainda assim, ela contava com inúmeras
comunidades que sustentavam a primeira alternativa. Sendo assim, Jerônimo dis-
cute com base em uma tradição bem estabelecida. Portanto, a exegese não é um
exercício solitário, mas serve à comunidade do povo de Deus. Ela não é soberana
sobre a doutrina, nem é acriticamente submissa a ela. Mas a questiona e é ques-
tionada por ela.
Percebe-se também que uma alegoria “herética” não torna, aos olhos de
Jerônimo, a abordagem alegórica deficiente ou digna de ser descartada. Pois ele
combate o que crê ser uma alegoria herética com outra alegoria. O que parece
distinguir uma de outra seria a doutrina cristã. Assim, a exegese não seria um pro-
cesso puramente indutivo, mas também dedutivo. Novamente, é fundamentando-
-se na unidade das Escrituras que a medida para se escolher uma tendência mais
indutiva ou dedutiva seria encontrada. Portanto, seria estranho ao pensamento de
30
Jerônimo contentar-se com um achado indutivo que contraria a sã doutrina. Ao
seu ver, parece que tal situação se daria num erro do processo indutivo em questão.
No entanto, pode-se afirmar que a dedução não pode também ser pura, uma vez
que cada passagem teria suas particularidades e usos próprios. E a dedução pura
acabaria por sufocar tais particularidades e usos.
Assim, o processo exegético não é soberano, apesar de ser de extrema im-
portância, mas se relaciona com a sã doutrina. Se, por um lado, isso possa parecer
impedir o progresso teológico, por outro, previne que um desvio absurdo possa
ser aclamado. Embora a comunidade cristã ainda debata muitos tópicos, ela con-
ta com um corpus fundamental, que perpassa diferentes comunidades e as torna
parte de um mesmo corpo.
Contudo, não são apenas questões mais teóricas que são lidadas com o uso
da alegoria. Jerônimo também aplica o sentido não literal para questões de ordem
mais prática. Assim, ele incentiva Eustochium a permanecer virgem comparando
a virgindade de uma mulher com a situação de Israel. Embora não se trate de um
sentido voltado à pessoa de Cristo, trata-se de uma aplicação que não parece ser
o sentido literal de Amós 5.2 em vista:

See to it that God say not some day of you: “The virgin of Israel is fallen and
there is none to raise her up.” I will say it boldly, though God can do all things
He cannot raise up a virgin when once she has fallen. He may indeed relieve
one who is defiled from the penalty of her sin, but He will not give her a crown
( JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 24).

Portanto, Jerônimo traz a contribuição de estabelecer aplicações práticas e


doutrinárias com base em passagens que talvez não fossem utilizadas por outros
autores. Isso possibilita imaginar a aplicabilidade de uma passagem além do
óbvio.
Certamente, o teólogo atual deve tomar cuidado para não fazer aplicações
que sejam claramente incoerentes com a passagem utilizada. No entanto, a pos-
tura de Jerônimo pode fornecer um estímulo que favoreça a busca de implicações
de uma passagem para questões não diretamente ligadas a um texto. Quando se
considera o fato dos interlocutores atuais viverem em outra época e em outro
contexto, em relação ao do texto bíblico original, percebe-se esta necessidade.
31
Se a Escritura é a Palavra universal dada à Igreja e esta perpassa muitas
épocas e contextos, então toda a Escritura terá algo a dizer a todos os contextos e
épocas. Isso não quer dizer que o modo por vezes indiscriminado que Jerônimo
usa certas passagens possa ser adotado. Mas que as implicações de uma passagem
tem tanto valor para o povo de Deus quanto as aplicações mais óbvias e diretas.
No entanto, é preciso reconhecer que o método de Jerônimo não pode ser
acatado de maneira acrítica. Pois ele muitas vezes abandona quaisquer possibi-
lidades de interpretações que discutam o sentido de uma passagem para os seus
primeiros leitores. Por exemplo, ele recorre a Eclesiastes em suas discussões con-
tra os pelagianos:

They, therefore, who say that a man can be without sin if he chooses, will not
be able to prove the truth of the assertion, unless they show that it will come to
pass. But whereas the whole future is uncertain, and especially such things as
have never occurred, it is clear that they say something will be which will not
be. And Ecclesiastes supports this decision: “All that shall be, has already been
in former ages.” ( JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 452).

Logo, para comprovar que uma pessoa pode viver sem pecar, os pelagianos
deveriam provar que será deste modo. Mas Jerônimo recorre ao livro de Eclesias-
tes numa passagem que, em seu contexto, não parece se referir ao pecado. Para
tanto, o sentido literal é deixado de lado em favor de um sentido mais apropriado
para a discussão ( JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 452).
Contrapondo a alegação pelagiana de que somos governados por nosso li-
vre-arbítrio, Jerônimo também recorre a João 3.27. Nessa resposta, ele isola o
versículo de seu contexto literário, em que João Batista afirma que Jesus é superior
a ele, pois isso lhe foi dado por Deus. Mas Jerônimo usa esta frase para falar do
auxílio divino nas ações humanas em geral:

In another place you maintain that “All are governed by their own free choice.”
What Christian can bear to hear this? For if not one, nor a few, nor many, but
all of us are governed by our own free choice, what becomes of the help of God?
And how do you explain the text […] “No one can receive anything, unless it be
given him from above”; […] Elsewhere, you make a vain attempt to append the
words “not without the grace of God”; but in what sense you would have them

32
understood is clear from this passage, for you do not admit His grace in separate
actions, but connect it with our creation, the gift of the law, and the power of
free will ( JERÔNIMO; SCHAFF; WACE, 1893, p. 462).

Novamente, Jerônimo chega a desprezar o sentido literal, quando comenta


sobre Eclesiastes 3.5. Em seu lugar, ele aplica a passagem ao evangelho sendo
pregado aos gentios. Para tal, ele relaciona a passagem com Mateus 3.9. Assim,
ele usa o NT como uma lente interpretativa do AT:

I am surprised at a scholar’s ridiculous comment on this passage that Solomon


is talking about house-building and demolition, on the grounds that people
do sometimes demolish and sometimes build; some collect stones together to
construct buildings, others demolish those that have been built […] As for us,
let us follow the earlier line of explanation, saying that the time to scatter and
to collect stones is in the sense recorded in the Gospel: “God is able from the-
se stones to raise up children to Abraham”; that is, that there was the time to
scatter the Gentile population, and a time to gather them back into the church
( JERÔNIMO, 2012, p. 57).

Contudo, ao fazer isso, ele acaba por esvaziar algumas passagens de um sig-
nificado próprio. Isso fica ainda mais patente, quando se percebe que Jerônimo
lê a mesma passagem logo em seguida, atribuindo um novo sentido. Um sentido
que provavelmente não estivesse patente aos leitores de Eclesiastes antes da dis-
cussão paulina entre lei e graça:

In one book (but using the Septuagint version: “A time to throw stones and a
time to pick them up”) I read that the severity of the old law was tempered by
the grace of the Gospel: that is, the law, stiff, unkind, and unmerciful, kills the
sinner, but the grace of the Gospel has pity and summons him to repentance;
and that is what the time for throwing stones or picking them up means, as they
are thrown in the law, but picked up in the Gospel ( JERÔNIMO, 2012, p. 57).

No entanto, há momentos em que ele usa o próprio AT para buscar o sen-


tido espiritual. Assim, o tempo de abraçar ou não (Ec 3.5) é interpretado a partir
de Provérbios 4.8:
33
However, if we wish to rise to the higher sense, we shall see that wisdom em-
braces those who love it—“Honor her,” he says, “and she shall embrace you” […]
Further, the human mind cannot always be aiming at the sublime and thinking
of higher, divine things, nor be constantly in contemplation of the heavenly, but
must sometimes allow for physical needs; that is why there is a time to embrace
wisdom and to hold her more tightly, and a time to relax the mind from the
contemplation and embrace of wisdom, so that we may attend to the care of our
bodies and to the necessities of our life, short of sin ( JERÔNIMO, 2012, p. 58).

Curiosamente, Jerônimo não relaciona a sabedoria à Cristo, com base em


Provérbios 8 (o que seria comum à época), ou mesmo de 1Coríntios 1.24. Ou
ainda como fez em seguida: “the greater help is that of Wisdom—that is, of
our Lord Jesus Christ” ( JERÔNIMO, 2012, p. 59). Ainda assim, não parece
que Jerônimo faça um uso indiscriminado da alegoria. Voltando para Eclesias-
tes 3.5, poderia mesmo ser indevido dizer que há momentos em que se deve
deixar a pessoa de Cristo e outros em que se deva se voltar a ele, como parte
da rotina cristã. Então, Jerônimo aplica Eclesiastes 3.5 a vida devocional e sua
contradição (na perspectiva de Jerônimo) das demandas da vida física.
Desta forma, Jerônimo parece muitas vezes ignorar completamente o senti-
do que a passagem teria para os primeiros leitores, utilizando-se dela de maneira
contraditória em relação à leitura mais óbvia de uma passagem. Assim, parece
que os leitores originais de Isaías 6 deveriam esperar até o advento de Cristo, para
poderem compreender a perícope. Pois o único sentido espiritual, e, portanto,
proveitoso, seria esse. Da mesma forma, é de se perguntar: como Jerônimo inter-
pretaria a citação de Eclesiastes, caso os pelagianos nunca tivessem surgido? Ou o
texto de Amós, se Eustochium fosse uma mulher casada? Embora questões como
estas fiquem sem resposta, é claro que o sentido literal de outra perícope poderia
ser usada, caso o sentido literal fosse visto como tão válido quanto o espiritual.
No entanto, seria impróprio não considerar a revelação plena das Escrituras
como uma referência mesmo ao sentido literal. Pois uma vez que se considere o
sentido literal, ou mesmo o “claro” (como na Reforma), este sempre será coerente
com o todo da Escritura. Assim, a exegese é enriquecida, quando uma passagem
é interpretada e confrontada tendo em vista outras que contenham contextos ou
temas semelhantes.
34
Conclusão
Podemos concluir que Jerônimo contribui com um propósito para a alegoria:
tanto defender a unidade da revelação contra as heresias que a deturpam, quanto
aplicar textos antigos a leitores recentes. Nisso, ele se coloca como parte de uma
comunidade hermenêutica. No entanto, sua limitação maior é a de diminuir as
possibilidades de interpretação e aplicação do sentido literal, sobretudo aos pri-
meiros leitores do AT.
Certamente, o uso da alegoria por Jerônimo leva a um esvaziamento do sen-
tido literal. Isto mostra que na abordagem alegórica um aspecto desvantajoso em
comparação às abordagens mais atuais como o método histórico-gramatical e às
abordagens críticas. No entanto, há alguns princípios subjacentes à abordagem
de Jerônimo que ainda devem ser considerados hoje: a unidade das Escrituras, a
progressão da revelação, a sã doutrina e a importância de se procurar aplicações e
implicações de uma passagem para as necessidades dos interlocutores.
De fato, a alegoria não é a melhor abordagem hermenêutica na maioria das
passagens, devido, sobretudo, ao gênero literário das mesmas. Contudo ler uma
perícope a partir de uma revelação plena e respeitando seu progresso ao longo das
Escrituras foi uma postura utilizada tanto para se defender a sã doutrina, quanto
para se aplicar as Escrituras interlocutores “contemporâneos”. Certamente, esse
mesmo cuidado deveria nortear o estudo e a exposição bíblica em todas as épocas.
Pois “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreen-
são, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus
seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17, ARA).
Por isso, se a alegoria não for a abordagem mais adequada ao texto em ques-
tão, ainda assim a unidade das Escrituras, a sã doutrina, a progressão da revelação
e a finalidade das Escrituras na vida do cristão devem ser princípios hermenêuti-
cos subjacentes a toda prática exegética em quaisquer épocas e contextos.
Finalmente, seria interessante analisar outras práticas hermenêuticas dos
Ocidentais. Nem todos eles recorreram à alegoria. De modo que alguns como
Pelágio a evitaram completamente. Enquanto outros seguiram a tipologia ou
trabalharam com a alegoria de modo diferente (como Ticônio e Ambrosiastro).
E ainda houve aqueles que associaram a alegoria a outras abordagens que valo-
rizavam mais o uso da razão e o sentido literal, como foi o caso de Agostinho.
Certamente, essa riqueza de proposições pode tanto mostras as tendências da

35
época, como também trazer mais elementos para moldar a hermenêutica e exe-
gese contemporâneas.

Referências bibliográficas
Bray, G. História da interpretação bíblica (São Paulo: Vida Nova, 2017).
Childs; B.S. The struggle to understand Isaiah as Christian Scripture (Grand
Rapids: Eerdmans, 2004).
Jerônimo. Commentary on Ecclesiastes (Mahwah: The Newman Press, 2012), An-
cient Christian Writers, p. 57
______. Commentary on Isaiah: Including St. Jerome’s Translation of Origen’s
Homilies 1–9 on Isaiah. Tradução Thomas P. Scheck (Mahwah: The New-
man Press, 2015), Ancient Christian Writers.
Schaff, P.; Wace, H., orgs. St. Jerome: Letters and select works. Tradução W. H.
Fremantle; G. Lewis; W. G. Martley (Nova Iorque: Christian Literature
Company, 1893), A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers
of the Christian Church, Segunda Série, v. VI.
Wilken, R.L.; Christman, A.R., Hollerich, M.J., orgs. Isaiah: Interpreted by
Early Christian and Medieval Commentators. Tradução R.L. Wilken, A.R.
Christman, e M.J. Hollerich (Grand Rapids; Cambridge: William B. Eerd-
mans Publishing Company, 2007), The Church’s Bible.

36
Sobre o autor
Psicólogo pela USP de Ribeirão Preto (2004-2008),
bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do
Sul (2011-2014). Atuou na Aliança Bíblica Universitária
do Brasil,  foi professor de Teologia Bíblica e de
Marcelo Luiz Tavares
Cosmovisão Cristã no Instituto Bíblico de Itapeva
(2023) e atualmente pastoreia a Igreja Presbiteriana
de Angatuba, em Angatuba-SP, conselheiro bíblico e é
mestrando no STM do Centro Presbiteriano de
Pós-graduação Andrew Jumper.

37
O papel da meditação na formação do
imaginário puritano: uma análise em
O Peregrino
Emanuel Malinoski

1. Introdução

N
o cenário literário e teológico do século 17, uma obra singular emer-
gia, destilando os ideais e os anseios de um movimento religioso que
se enraizava na Inglaterra: O Peregrino de John Bunyan. Este épico
alegórico cujas páginas são entrelaçadas com as vicissitudes de Cristão em bus-
ca da redenção divina, transcendendo sua narrativa como uma janela para o
imaginário puritano. Este imaginário, fortemente influenciado por um contexto
religioso que demandava uma busca incessante pela santidade, encontrou na
prática da meditação um caminho bíblico para a comunhão com Deus e um
meio para desvendar as profundezas do divino.
O presente artigo se propõe a explorar e analisar o papel da meditação na
construção desse imaginário puritano, revelando como a contemplação espiritual
não apenas permeia as páginas de O Peregrino, como também molda a cosmo-
visão e o caráter dos protagonistas, consolidando-se como uma peça-chave na
construção da identidade puritana.
38
1.1 Contextualização histórica e teológica da era puritana

A era puritana foi um período histórico que abrangeu aproximadamente o


século 16 ao 17, marcado por um movimento religioso, social e político dentro
do contexto da Reforma Protestante na Inglaterra e suas colônias na América
do Norte. Os puritanos bus- cavam purificar a Igreja Anglicana das influências
católicas remanescentes, desejando uma espiritualidade mais simples e austera,
baseada na Bíblia. Eles enfatizaram a autoridade das Escrituras e uma vida
piedosa centrada na relação direta com Deus.
Teologicamente, os puritanos eram calvinistas e por consequência en-
fatizavam a predestinação, a soberania de Deus e a total depravação huma-
na. Eles acreditavam que a salvação era concedida apenas pela graça divina
e essa crença influenciava profundamente suas práticas religiosas e o seu estilo
de vida. A moralidade e a ética do trabalho eram características marcantes da
sociedade puritana, que entendia que toda a vida deveria ser vivida diante
de Deus.
Na Inglaterra, o período puritano foi marcado por conflitos entre os purita-
nos e os monarcas da dinastia Stuart, que tentavam impor formas de culto mais
ritualísticas e hierárquicas. Essa tensão culminou na Guerra Civil Inglesa e na as-
censão temporária do regime puritano liderada por Oliver Cromwell. Enquanto
isso, na América do Norte, os puritanos estabeleceram colônias como na Baía de
Massachusetts, onde buscaram criar uma sociedade baseada em seus princípios
religiosos.
A era puritana também trouxe contribuições valiosas para a sociedade. Seu
foco na educação levou à fundação de diversas instituições de ensino que ainda
existem hoje, como as universidades de Harvard e Yale nos Estados Unidos.
Além disso, sua ética de trabalho e busca pela excelência moldaram atitudes em-
preendedoras e a dedicação ao progresso. Foi J. I. Packer quem disse que:

Puritanos típicos não eram homens selvagens ou ferozes, monstruosos fanáticos


religiosos ou extremistas sociais, mas pessoas sóbrias e conscienciosas, além de
cidadãos cultos, pessoas de princípio, decididas e disciplinadas, excepcionais nas
virtudes domésticas e desprovidas de grandes defeitos, exceto a tendência de usar
muitas palavras ao dizer qualquer coisa importante, a Deus ou ao homem (PA-
CKER, 2016).

39
A ênfase puritana na responsabilidade individual diante de Deus e da comu-
nidade contribuiu para o desenvolvimento de uma ética de serviço e cuidado pelos
necessitados.
Na literatura, os puritanos deixaram um legado notável, produzindo obras
de profunda reflexão teológica e espiritual, além de narrativas que exploravam
dilemas morais e a luta entre o bem e o mal. Autores como John Bunyan e Anne
Bradstreet influenciaram a literatura posterior com suas obras que exploraram
questões de fé, esperança e resiliência.
Portanto, a influência puritana, ajudou a moldar uma base de valores que
ainda hoje são relevantes. Afinal, os puritanos eram:

Grandes almas servindo a um grande Deus. Neles, a paixão sóbria e a terna


compaixão se combinavam. Visionários e práticos, idealistas e também realistas,
dirigidos por objetivos e metódicos, eram grandes crentes, grandes esperançosos,
grandes realizadores e grandes sofredores (PACKER, 2016).

Sua busca por uma vida piedosa, moral e compromissada com a comu-
nidade deixou um legado remanescente que impactou não apenas a religião,
mas também a edu- cação, a ética profissional e a literatura, contribuindo para a
riqueza cultural das sociedades que seguiram seus passos.

1.2 Apresentação da obra O Peregrino de John Bunyan

O Peregrino é uma obra clássica escrita pelo puritano John Bunyan e publicada
pela primeira vez em 1678. A obra é uma alegoria espiritual que narra a jornada
de um personagem chamado Cristão por meio da Cidade da Destruição até a Ci-
dade Celestial. O livro é uma metáfora poderosa e inspirada na jornada da alma em
busca da salvação e da transformação espiritual.
No início da história, o protagonista Cristão, após uma revelação de sua con-
dição espiritual perdida, inicia uma jornada para escapar da Cidade da Destruição
e encontrar o caminho para a Cidade Celestial, representando a busca da redenção
e da paz interior. É reveladora a passagem em que Cristão diz preferir qualquer
perigo: “Porque, senhor, este peso que carrego é mais terrível do que qualquer um
desses horrores que mencionou. Eu não me importaria de enfrentá-los se conse-
guisse livrar-me deste fardo” (BUNYAN, 2014). Ao longo de sua jornada, Cris-
40
tão encontra uma série de personagens e obstáculos, cada um com seus próprios
significados simbólicos, que representam os desafios e tentações que os crentes
enfrentam ao longo de suas vidas.
Enquanto avança em sua jornada, Cristão passa por diversos lugares,
como o Palácio Bonito, o Vale da Sombra da Morte e o Castelo da Dúvida,
cada um com suas lições e ensinamentos espirituais. Ele também encontra
companheiros de viagem, como o Fiel e o Esperançoso, que compartilham sua
busca pela salvação. Ao longo da história, os personagens enfrentam adver-
sidades, dúvidas e momentos de fraqueza, mas também experimentam mo-
mentos de graça e socorro.1
Através de uma linguagem ricamente simbólica e uma narrativa envol-
vente, O Peregrino explora temas universais de fé, saber: a perseverança, o ar-
rependimento e a esperança. A jornada de cristão e seus companheiros ressoa a
leitores de todas as épocas, oferecendo percepções profundas sobre a natureza
da espiritualidade e a busca pela verdadeira conversão. A obra continua sendo
uma fonte de inspiração para os crentes e para qualquer pessoa interessada em
explorar os desafios e triunfos da jornada de peregrinação cristã.

1.3 Objetivos e relevância da pesquisa

Uma pesquisa sobre o papel da meditação na formação do imaginário purita-


no em O Peregrino, de John Bunyan, visa aprofundar nossa compreensão das
influências bíblicas e teológicas que moldaram a mentalidade dos puritanos
do século 17. O estudo desse clássico literário permite desvelar como a prática
da meditação, tão valorizada pelos puritanos, contribui para a construção de sua
visão de mundo definida pela busca da pureza espiritual e pela intensa piedade
pessoal. Ao investigar os trechos em que a meditação é retratada, podemos tra-
çar paralelos entre as experiências contemplativas dos personagens e a retidão
moral que os puritanos buscavam alcançar.
Além disso, a pesquisa busca explorar como a meditação representada na
obra influenciou a percepção da jornada espiritual. Ao analisar os momentos
em que os personagens se envolvem na meditação, podemos identificar como
essa prática contribuiu para o desenvolvimento de sua espiritualidade e forta-

1
Bunyan retrata a batalha da peregrinação cristã com vívida realidade de quem está
passando também por estas lutas.

41
lecimento sua determinação em enfrentar os desafios que surgem ao longo da
narrativa. A pesquisa também visa destacar como a meditação, ao fomentar a
introspecção e a comunhão com Deus, serviu como uma ferramenta essencial na
construção da narrativa e na caracterização dos personagens.
Por fim, a investigação do papel da meditação na formação do imaginário
puritano em O Peregrino lança luz sobre as interseções entre a teologia, a literatura
e a piedade da época. Ao entender como a meditação era considerada uma prá-
tica espiritual crucial para os puritanos e como isso se reflete na obra de Bunyan,
podemos enriquecer nossa análise da influência da fé e da mentalidade puritana na
produção literária do período. Isso fornece uma visão mais profunda das motivações
e valores que contribuíram tanto para os personagens da história quanto para a
prática da piedade na era puritana.

2. Meditação na teologia puritana.


A meditação ocupa um espaço importante na teologia prática puritana. Pu-
ritanos eram homens graves e reverentes em sua relação com Deus e a me-
ditação era o modo pelo qual adentravam as profundas grandezas de Deus
e de sua Palavra. David Saxton lembra que “os reformadores e puritanos re-
gularmente escreviam, ensinavam e exortavam o povo de Deus a uma vida de
meditação (SAXTON, 2022)

2.1 Definição de meditação no contexto puritano

No contexto puritano, a prática da meditação ocupava um lugar central na vida


espiritual dos crentes. Os puritanos buscavam uma conexão profunda com Deus
e acreditavam que a meditação era um caminho para alcançar essa comunhão. Por
meio da reflexão e da contemplação, eles se aproximavam das verdades espirituais
e buscavam o aprofundamento de sua relação com o divino. Como afirma Da-
vid. W. Saxton para os puritanos:

A meditação divina tem um valor multifacetado. Ela fornece discernimento


espiri- tual; melhora nossa leitura da bíblica e vida de oração; aplica verdades
gerais da bíblia pessoal e especificamente; fortalece nossos corações focando em
verdades espirituais; e fornece o benefício duradouro de ficar refletindo sobre as
verdades que conhecemos (SAXTON, 2022).

42
A meditação puritana era baseada na Palavra de Deus, na leitura e no es-
tudo das Escrituras. Os puritanos dedicavam tempo diário para meditar sobre
os ensinamentos bíblicos, buscando compreendê-los e aplicá-los em suas vidas.
Por meio dessa prática, eles esperavam obter discernimento espiritual, revelação
divina e fortalecimento da fé. Saxton lembra que “o primeiro ingrediente na
meditação puritana era o uso sério da mente. Eles ensinaram que um crente
deve pensar profundamente sobre um assunto bíblico” (SAXTON, 2022).
Essa forma de meditação também envolve uma autorreflexão profunda sobre
os próprios pecados e a necessidade de redenção. Os puritanos encorajaram a in-
trospec- ção e a análise crítica de seus pensamentos, palavras e ações, em busca de
um maior autoconhecimento e de uma vida mais alinhada com a glória de Deus.
Apesar de um chamado a introspecção, em certo sentido, Saxton enfatiza que:

A meditação puritana nunca encorajou uma vida de contemplação inativa ou es-


peculação teológica inútil. Pensar assim seria um sério mal-entendido da espiri-
tualidade puritana. Para levar uma pessoa ao ponto de aplicação pessoal, prática
e resolução, os puritanos ensinaram que a mente deve considerar corretamente as
verdades da Palavra de Deus. Esclarecendo o uso da mente na meditação, Oli-
ver Heywood escreveu: “Não é um mero exercício da mente e da memória sobre
coisas boas, mas um operá-las sobre o coração, a impressão dessas coisas sobre a
vontade e afetos; não é meramente especulativo, mas prático”. Bates advertiu: “Se
nossa meditação for meramente especulativa, é apenas como um sol de inverno,
que brilha, mas não aquece”. Essa crença na natureza prática da meditação bíblica
é entrelaçada na própria tapeçaria do entendimento puritano (SAXTON, 2022).

Em resumo, a prática da meditação no contexto puritano tinha como obje-


tivo promo- ver a comunhão com Deus, aprofundar a compreensão dos ensina-
mentos bíblicos e buscar uma vida de piedade e retidão moral. Era vista como
uma disciplina espiritual essencial para fortalecer a fé, obter sabedoria divina e
moldar o caráter consoante aos valores bíblicos, para uma vida inteira reflete a
glória de Deus.

2.2. Importância e propósitos da meditação para os puritanos.

A meditação bíblica ocupou um papel central na vida espiritual dos puritanos.


Para os puritanos, a Bíblia era a fonte primordial de orientação divina e a medita-
43
ção constituía uma prática essencial para aprofundar o entendimento das Escri-
turas e cultivar uma comunhão mais profunda com Deus. Eles acreditavam que
a meditação bíblica não apenas fortalecia sua fé, como também nutria a virtude
e a piedade, fundamentando suas vidas em princípios teológicos, morais e éticos
extraídos das Escrituras.
Foi David Saxton quem lembrou:

Uma grande parte de glorificar o Senhor e desfrutar dele é pensar pensamentos


dignos de sua excelência e louvor [...] Oliver Heywood comentou: “Pensamen-
tos santos formam grande parte da devoção de um cristão [...] Este exercício de
pensamentos é, de fato, o caminhar de um cristão com Deus. É uma comunhão
com Deus, um passeio no paraíso e desfrutar de Deus”. Willian Bridge pregou
que era dever de crente meditar sobre o Senhor, e “quanto mais o coração de
qualquer homem está cheio de meditação, mais recheadas suas palavras estarão
dos louvores a Deus” (SAXTON, 2022).

O propósito da meditação bíblica para os puritanos é além do simples co-


nhecimento intelectual. Eles buscavam uma aplicação prática das verdades bíbli-
cas em sua vida cotidi- ana, acreditando que a Palavra de Deus tinha o poder de
transformar não apenas a mente, como também o coração e o comportamento.
Joel Beeke ressalta que “um obstáculo ao crescimento entre os cristãos de hoje é
nosso fracasso em cultivar o conhecimento espiritual. Deixamos de dar tempo
suficiente à oração e à leitura bíblica e temos abandonado a prática da meditação”
( JONES, 2016).
A meditação era vista como um meio de internalizar os ensinamentos bíbli-
cos, permitindo que eles moldassem a consciência e as ações dos indivíduos. Essa
prática constante de reflexão sobre as Escrituras contribuiu para a formação
de uma comunidade puritana fundamentada em princípios cristãos sólidos. A
meditação bíblica também desempenhou um papel crucial na busca da san-
tidade pessoal pelos puritanos. Eles consideraram a introspecção baseada na
Palavra como uma ferramenta vital para a purificação espiritual e o combate
contra as tentações do mundo.

Para os puritanos a tentação e pecado, sem vigilância e oração, andam juntos. Um


leva ao outro. “Que nenhum homem, então, finja temer o pecado o qual não

44
teme a tentação a ele”, escreve Owen. “Eles são aliados muito próximos para
serem separados”. Mas se pudermos diari- amente manter vivos em nossos co-
rações uma consciência de grande perigo do pecado para nossas almas, se, como
Owen diz, “o coração for feito terno e vigilante aqui, metado do trabalho foi
feito” (HEDGES, 2023).

Por este motivo a meditação ocupava uma posição tão importante nas práti-
cas espirituais puritanas. Por meio da meditação, os puritanos procuram discernir
a vontade de Deus para suas vidas e cultivar uma consciência sensível ao pecado. A
prática constante da meditação alimentava a devoção individual e contribuía para
uma comunidade coesa, no qual os membros experimentavam valores espirituais
e se apoiavam mutuamente na jornada da fé.

2.3 Práticas e métodos de meditação na era puritana

Na era puritana, inúmeros pastores pregaram e escreveram sobre como meditar


( Jones, 2016). Todo esse esforço visava à edificação de uma comunidade cristã
piedosa, forte que nutria uma profunda comunhão com Deus. A essência da medi-
tação puritana é a busca pela comunhão profunda com Deus por meio da intros-
pecção e da reflexão sobre as Escrituras. Essa prática envolve métodos específicos
que se alinham com os princípios bíblicos.
David Saxton ressalta que:

Os puritanos ensinaram que havia dois tipos de meditação — ocasinal e deli-


berada. Ambos têm o propósito de elevar os pensamentos à verdade de Deus. A
principal diferença entre as duas sendo que a meditação ocasional era espontâ-
nea enquanto a meditação deliberada era planejada (SAXTON, 2022).

A meditação ocasional era uma meditação curta, que ocorria de forma re-
pentina e espontânea, em alguma ocasião do cotidiano quando se voltavam os
pensamentos para Deus, de modo a contemplar sua dignidade e grandeza, bem
como sua graça e bondade. Assim, diz Saxton: “a meditação ocasional usa qual-
quer experiência na vida para colher frutos espirituais — convertendo as atividades
mundanas da vida em joias de pensamentos divinos” (SAXTON, 2022). Esse tipo
de meditação é relativamente simples, e ocorre quando o crente se volta para a criação
e contempla nela as marcas de seu Criador e, por isso, tem suas afeições afetadas.

45
Saxton ainda nos lembra que:

Os puritanos entenderam que Deus concedeu à humanidade três livros diferen-


tes sobre os quais meditar — a Escritura, a consciência e a criação. Swinnock
explicou: “Deus nos deu três livros, que deveríamos estar estudando enquanto
estivermos vivos: o livro da consciência, o livro das Escrituras e o livro da cria-
ção; no livro da consciência podemos ler sobre nós mesmos, no livro da criação
podemos ler sobre Deus, no livro das Escrituras podemos ler tanto sobre Deus
quanto sobre nós mesmos (SAXTON, 2022).

Os puritanos, no entanto, consideravam a meditação deliberada mais impor-


tante do que a meditação ocasional. Esse tipo de meditação é planejado, tem hora
marcada e um caminho específico a ser trilhado, tirando sempre seu conteúdo das
páginas da Escritura Sagrada. As fontes da meditação intencional são basicamen-
te quatro: as Escrituras, verda- des práticas do cristianismo, sermões e as ocasi-
ões providenciais ( JONES, 2016). A meditação deliberada visava uma espécie de
sequestro da alma, onde o crente fosse submerso nas re- alidades espirituais do
evangelho, chegando a um estado de maravilhamento, que atingiria sua mente e
coração, seu intelecto e volições.
A meditação deliberada era dividida em duas partes: a meditação direta e
a meditação reflexiva. David Saxton ressalta que:

A meditação direta é usada para obter uma melhor compreensão bíblica sobre
um tema, enquanto a meditação reflexiva é empregada para convencer o coração
sobre a aplicação de um entendimento recém-encontrado. Como explicou Hen-
ry Scudder: “A primeira [meditação direta] é um ato da parte contemplativa do
enten- dimento; a segunda [meditação reflexiva] é um ato da consciência. O
propósito do primeiro é iluminar a mente com conhecimento; o fim do segundo
é encher o coração de bondade” (SAXTON, 2022).

3. Imaginário puritano em O Peregrino


A obra de John Bunyan é uma rica fonte pela qual jorram os efeitos da medita-
ção na formação do imaginário puritano. Ao percorrer junto de Cristão o caminho
do peregrino, pode-se perceber como a meditação bíblica forma as impressões e
46
os afetos religiosos do autor. Desde sua saída da Cidade da Destruição, até sua
chegada a Cidade Celestial, o que encontramos na jornada do Peregrino é o re-
sultado do transbordar de uma mente saturada com a realidade divina por meio
da meditação.

3.1 Descrição e análise

O Peregrino é uma obra literária escrita por John Bunyan, publicada e origi-
nalmente em 1678. A narrativa é uma alegoria cristã que segue a jornada es-
piritual de um personagem chamado Cristão, que empreende uma viagem épica
em busca da Cidade Celestial. Bunyan nos introduz a história de um homem,
sobre quem ele diz:

Vestido com trapos imundos, de pé em certo lugar, e o seu rosto estava voltado em
direção à sua casa; ele tinha um livro em suas mãos e um grande fardo estava preso
às suas costas. Eu olhei e o vi abrindo o livro, e lendo o que estava escrito nele.
Ele começou a chorar e a tremer, e não foi capaz de se conter por muito tempo,
iniciando um grande clamor, e dizendo: “O que devo fazer?” (BUNYAN, 2014).

Pinta-se a vívida imagem de um pecador que se tornou consciente de seu


pecado. Um homem vestido de seus deméritos, carregando consigo o pesado far-
do de seus pecados, lamentando profunda e dolorosamente a sua condição. Ele
carrega um livro, o melhor de todos os livros, e ao ler seu conteúdo tem sua alma
desnuda diante de si, não podendo se conter. A sua condição rompe-se diante
dele. Este é o tom dado por toda a obra de Bunyan.
Em sua obra, os quadros fruto de sua profunda meditação nas Escrituras
e nas doutrinas centrais da fé, são pintados de forma magnífica. Cada passo
do Cristão é um novo elemento de sua caminhada cristã. Sua jornada é uma
descrição vívida da jornada de todos os eleitos, que vai do grito de dor, quando
se percebem na Cidade da Destruição, à expressão de louvor, quando finalmente
vislumbram a Cidade Celestial.
Bunyan relata como o Espírito Santo conduz seu povo em segurança até a
Cidade Celestial. O contraste claro é estabelecido no fim da obra quando Cristão
é recebido nos portões da Cidade Celestial, não mais desesperado por seu estado
de miséria, mas sim, transformado pela profunda obra do Espírito:
47
O Rei ordenou, então, que abrissem os portões, “Abram as portas para que entre
a nação justa, a nação que se mantém fiel”. E eu vi em meu sonho que aqueles
dois homens seguiram até o portão e de repente, à medida que entraram pelos
portões, foram transfigurados; tiveram suas roupas transformadas e elas come-
çaram a brilhar como ouro. Também receberam coroas em suas cabeças e harpas
em suas mãos. As harpas foram dadas para a adoração e as coroas em sinal de
honra. Ouvi todos os sinos da cidade tocando em sinal de alegria e era isto que
a música deles dizia, “Venha e participe da alegria do seu Senhor. Também ouvi
que os dois homens cantavam com grande voz, ”Ao que está assentado no trono
e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra e a glória, e o domínio pelos séculos dos
séculos, amém” (BUNYAN, 2014).

3.2 Elementos do imaginário puritano presentes na obra.

O puritanismo era essencialmente “calvinista” em sua forma de pensar. Es-


tavam profundamente comprometidos com as doutrinas sobre a depravação
do homem, a graça eletiva de Deus, o poder preservador do Espírito Santo, a
necessidade da igreja e da comunhão cristã, bem como o anseio constante pela
glória futura. Estes aspectos e muitos outros podem ser claramente vistos na
construção narrativa da obra de John Bunyan.
Pode-se ver os elementos do imaginário religioso puritano praticamente
em cada nova linha escrita. O retrato inicial do homem vestido de trapos imun-
dos, e se desesperando ao ler o conteúdo do livro, revelam a doutrina da depra-
vação total, que apresenta a realidade da pecaminosidade humana. Bunyan pinta
vividamente o quadro de alguém que se deparou com a realidade da ira vindoura
e do juízo sobre os pecadores. Unindo-se a isso, pode ser percebido a clara
relação do trabalho de Evangelista com a doutrina do Chamado Eficaz, que
afirma que Deus chama para si pecadores eficazmente por meio da pregação
do evangelho.
Os desdobramentos imaginativos da obra são fascinantes por serem fruto
de pro- funda meditação nas verdades da Escritura. Outro elemento do imagi-
nário puritano que pode ser visto na obra é o contínuo poder do Espírito Santo
preservando seu povo. Essa realidade fica especialmente visível quando Cristão é
deixado sozinho para afundar no Pântano da Desconfiança, até que acaba por ser
resgatado por um homem cujo nome era Auxílio. Bunyan descreve incrivelmente a
48
obra do Espírito estendo sua graça onipotente para socorrer aqueles que estão em
aliança com Deus por causa de Cristo. Até mesmo quando Cristão encontra com
Intérprete, a imagem proposta é do Espírito Santo guiando seu povo ao revelar a
verdade da Escritura Sagrada.
A importância dos oficiais da igreja e o que os puritanos acreditavam so-
bre o ministério pastoral pode ser vividamente percebido, quando Intérprete
faz questão de mostrar a Cristão o quadro de um homem solene e majestoso.
O retrato que se apresenta é o seguinte:

O quadro o mostrava assim: olhos erguidos aos céus, o melhor dos livros em
sua mão, e a lei da verdade escrita em seus lábios; dando as costas ao mundo e
ele em pé, como se argumentasse com os homens e com uma coroa de ouro que
pendia de sua cabeça [...] O homem do quadro é um dos milhares. Ele pode,
como disse o apóstolo Paulo, gerar filhos espirituais, entrar em trabalho de par-
to por eles e cuidar deles quando nascem. Esta é a razão de estar com os olhos
levantados para os céus. O melhor dos livros em suas mãos, e a lei da verdade
em seus lábios, é para mostrar que o trabalho dele é conhecer e revelar as coisas
obscuras aos pecadores, e por isso está em pé como se falasse com os homens
para convencê-los. O mundo atrás de si e a coroa pendente de sua cabeça sig-
nificam que, desprezando as coisas deste mundo por amor daquele que é o seu
Mestre, com certeza receberá sua recompensa em glória no mundo vindouro
(BUNYAN, 2014).

Pode-se destacar ainda a primazia das Escrituras para a firmeza da fé,


quando Cristão e seu companheiro de peregrinação Esperançoso acabam presos
no Castelo da Dúvida, e estão sendo castigados pelo Gigante Desespero. O que os
liberta é a Chave da Promessa. Essa imagem reflete a crença puritana na suficiência
das Escrituras para tratar as feridas da alma de crentes em dúvida e desespero.
Puritanos eram conhecidos como médicos da alma e sua ferramenta principal era
a Escritura Sagrada.
A importância da igreja e da comunhão cristã pode ser vista na obra pela
presença constante de companheiros na caminhada de Cristão. Fiel, seu amigo
martirizado na Feira das Vaidades, Esperançoso, Boa Vontade e os Pastores da
Montanha das Delícias, todos figuram de alguma maneira a realidade bíblica de
que a vida cristã é uma vida em comunidade, não individualista.
49
3.3 Relação entre a meditação e a construção do imaginário puritano

A relação intrincada entre meditação e a formação do imaginário puritano no


contexto da história religiosa e cultural da Europa e da América do Norte no
século 17 é digna de profunda análise. Os puritanos, com sua abordagem aus-
tera e devota à religião, valorizavam a introspecção e a reflexão espiritual como
meio de comunhão com o Deus Trino. A vigilância e a meditação desempe-
nharam um papel essencial na vida cotidiana dos puritanos, permitindo-lhes
explorar sua relação com Deus e com o mundo que os rodeava de maneira
profunda e pessoal.
Por meio da meditação, os puritanos buscavam purificar suas almas, conso-
lidando afeições religiosas e uma forte comunhão com Deus. A prática da me-
ditação os conduzia a um estado de consciência contemplativa, onde pudessem
refletir sobre questões morais e espirituais. Essa experiência de interiorização
contribuiu para a formação de um imaginário puritano marcado pela noção de
que toda a sua vida era vivida diante de Deus.
O imaginário puritano, enraizado na meditação e na introspecção, influen-
ciou não apenas a esfera religiosa, mas também teve repercussões significativas na
construção da sociedade e da cultura das colônias puritanas na América do Nor-
te. Por levarem sua vida diante de Deus a sério, e perceberem pela profunda
meditação bíblica que tudo deveria redundar em glória para Deus, o impacto
da meditação no imaginário puritano resultou em um impacto social. A visão
do mundo puritana, moldada por sua prática meditativa, permeou a ética de
trabalho, a educação, a literatura e as relações sociais. Em última análise, a
meditação desempenhou um papel fundamental na formação do imaginário
puritano, tornando-se um pilar da experiência espiritual e cultural que moldou o
desenvolvimento das colônias puritanas e, por extensão, a história dos Estados
Unidos. Beeke lembra que “para os puritanos, a meditação exercitava tanto a
mente quanto o coração; aquele que medita aborda um tema com seu intelec-
to, bem como com suas emoções” ( JONES, 2016).
Por investirem tempo meditando em sua vida diante da realidade transcen-
dente de Deus, absolutamente tudo que os puritanos faziam eram fruto de uma
imaginação permeada pelas Escrituras. Isso necessariamente os levou a pensar
sobre família, política, educação, cuidado aos necessitados e trabalho de maneira
mais ampla. David Saxton ressalta:

50
Não admira que seja assim! As Escrituras são de autoria do Deus eterno, aquele
que criou bilhões de galáxias. Devemos esperar encontrar esse tipo de amplitude
em sua Palavra Escrita. Há uma qualidade na Bíblia que pode afogar um estudioso
em suas profundezas do conhecimento; ainda, ao mesmo tempo, as Escrituras
permitem que uma criança caminhe ao longo de seus litorais e entenda sua sim-
ples verdade (SAXTON, 2022).

Nota-se que a perspectiva puritana de família é notável por suas virtudes


arraigadas em princípios religiosos e morais. Para os puritanos, a família era con-
siderada uma instituição sagrada, onde a devoção a Deus e a obediência aos
preceitos divinos eram valores inabaláveis. O casamento, nessa visão, era visto
como um compromisso divinamente abençoado, cuja fidelidade conjugal era
um testemunho da força dos laços familiares. O cultivo da educação religiosa e
ética dos filhos era prioridade máxima, com os pais desempenhando o papel de
mentores zelosos, transmitindo sabedoria espiritual e ensinamentos morais de
geração em geração.
Leland Ryken lembra que o propósito último da família para os puritanos é
glorificar a Deus para os puritanos:

O que há de importante em enxergar o propósito da família como a glória de Deus?


A longo prazo, ele determina o que acontece com a família. Fixa as prioridades
numa direção espiritual em vez de material. Isso determina o que uma família faz
com o seu tempo e como gasta seu dinheiro (RYKEN, 2013).

Além disso, a família puritana era um alicerce sólido da comunidade, onde so-
lidariedade, apoio mútuo e coesão social eram incentivados. O ambiente familiar
proporcionava um senso de segurança, estabilidade e valores compartilhados. Em
resumo, a família puritana era notável por sua profunda devoção à fé, pela ênfase
na educação moral e religiosa e por ser um pilar inabalável da coesão e morali-
dade na comunidade. Essas qualidades sustentavam o tecido social e moral das co-
munidades puritanas, servindo como um exemplo de compromisso e integridade.

4. Conclusão
Em síntese, a análise profunda de O Peregrino, de John Bunyan, revela o
papel preponderante da meditação no forjamento do imaginário puritano, elu-

51
cidando os meandros de uma fé intrinsecamente ligada à reflexão espiri-
tual. Neste épico alegórico, a prática da meditação emerge como um fa-
rol que ilumina o caminho que construiu os protagonistas em sua busca
pela santidade e redenção. Ela transcende meros devaneios introspectivos,
constituindo-se como uma ponte que liga os crentes ao divino, conferindo
discernimento espiritual e fortalecendo os laços que os puritanos ansiavam
estabelecer com seu Criador.
Ademais, a influência da meditação sobre o imaginário puritano se tra-
duz na re- presentação de personagens que são retratados como mais virtu-
osos e alinhados aos princípios divinos. Este fenômeno não apenas moldou a
visão dos puritanos sobre si mes- mos, mas também serviu como um espelho
moral para a sociedade da época. A meditação personificou o ideal puritano, re-
fletindo a busca constante pela pureza, retidão e comunhão com o divino, valores
que ecoaram não somente na literatura de Bunyan, como também na forma
como os puritanos moldaram a sociedade e sua ética religiosa.
Portanto, é inegável que a meditação desempenhou um papel fundamen-
tal na formação do imaginário puritano, alçando-se como um instrumento
de transcendência espiritual, uma força motriz que impulsionou os puritanos
em direção à santidade e à busca incessante por uma comunhão mais profun-
da com Deus. Em O Peregrino, John Bunyan não apenas capturou a essência
dessa prática espiritual, mas a cristalizou como um pilar central na construção
da identidade puritana. Por meio da meditação, os puritanos encontraram um
refúgio para suas almas inquietas e, assim, legaram a posteridade não apenas
uma obra literária memorável, mas um testemunho vívido de sua devoção à fé e
à contemplação espiritual.

Referências bibliográficas
Bunyan, J. O Peregrino (Rio de Janeiro: BV Books, 2014).
Hedges, B. G. Vigilância: recuperando a disciplina espiritual perdida (Brasília: Éden
Publicações, 2023).
Jones, J. B. e M. Teologia Puritana: uma doutrina para a vida (São Paulo: Vida
Nova, 2016).

52
Packer, J. I. Entre os gigantes de Deus: uma visão puritana da vida Cristã (São José
dos Campos: Fiel, 2016).
Ryken, L. Santos no mundo: os puritanos como realmente eram (São José dos Campos:
Fiel, 2013).
Saxton, D. W. O plano de Deus para a batalha da mente: a prática puritana da me-
ditação bíblica (Brasília: Éden Publicações, 2022).

Sobre o autor
É pastor fundador da igreja Em Reforma Igreja Cristã.
Ele é casado com Lara, pai de Timóteo e Maria. É
formado em Teologia pelo Seminário Martin Bucer.
Pós-graduado em Educação Cristã Clássica pela
Emanuel Malinoski
Faculdade Cidade Viva. Fez especialização em Educação
Clássica pelo Instituto Hugo de São Vitor. Atualmente
mestrando em divindade pelo Seminário Martin Bucer.

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Lançamentos
Pecado original
Jonathan Edwards | 16x23 cm | 304 p.

Edwards, com base em extensa pesquisa bíblica e


raciocínio filosófico, refutou todos os argumentos de
seus críticos, sobretudo no tratado de John Taylor. A obra
fornece uma defesa convincente da doutrina do pecado
original, que é central para a teologia cristã, além de
iluminar seu significado e importância aos cristãos.
O público de língua portuguesa tem agora à sua
disposição um grande livro, fundamental à saúde da
teologia da igreja.

Gálatas: a carta da liberdade cristã


Merrill C. Tenney | 14x21 cm | 208 p.

Um comentário de um livro específico da Bíblia normalmente


emprega um dos vários métodos possíveis de estudo. Mas
nesse envolvente estudo da Carta aos Gálatas, Merrill C.
Tenney fornece ao leitor uma análise concisa e compreensiva
ao dedicar para cada capítulo um dos dez métodos do
estudo bíblico:
Sintético, crítico, biográfico, histórico, teológico, retórico,
tópico, analítico, comparativo e devocional.

C. S. Lewis: uma introdução


Manfred Svensson | 14x21cm | 272 p.
Esta introdução apresenta o intelectual multifacetado,
empenhado de maneira franca nos debates
contemporâneos. Ao recorrer a uma vasta gama de
fontes, incluindo cartas e artigos de jornal, bem como
textos famosos como Os quatro amores e Cristianismo
puro e simples, ela nos mostra o pensador moral e
político na tentativa de “recuperar o encanto do mundo”.
O resultado é um perfil lúcido que permitirá ao leitor não
só se aproximar de uma das principais figuras do mundo
literário do século 20, mas também descobrir o quanto
Lewis tem a dizer à sociedade atual.
Teologia natural - Vos
Geerhardus Vos | 14x21 cm | 192 p.

Reunidas a partir de fontes encontradas nos arquivos do


Heritage Hall no Calvin Theological Seminary, essas são as
notas de aula mais antigas de Vos sobre teologia natural.
Elas demonstram seu entendimento de abordagens
ortodoxas reformadas, bem como um conhecimento
extenso de desenvolvimentos contemporâneos no tema.
A presente obra poderia ser considerada, e talvez tenha
constituído, uma introdução parcial a Reformed dogmatics,
uma vez que esta não possui prolegômenos, além de
ser uma análise da religião e das provas da existência
de Deus.

A morte da morte na morte de Cristo


Tratado sobre a redenção e a reconciliação presentes no
sangue de Cristo

John Owen | 16x23 cm | 416 p.


Nesse clássico puritano, John Owen examina a expiação de
Cristo de uma forma abrangente e clara. É considerado por
muitos como o melhor livro já escrito sobre a expiação de
Cristo. Owen vai além da compreensão calvinista muitas
vezes polêmica acerca da expiação limitada. Ele destaca que
a obra de Cristo na cruz foi perfeita e que o propósito do
Deus triúno é glorificar a si mesmo e salvar os pecadores.

Poderes das trevas


Principados e potestades nas cartas de Paulo
Clinton E. Arnold | 14x21 cm | 352 p.
Esse é um livro raro que desenvolve uma teologia bíblica
equilibrada sobre demônios, principados e potestades.
Clinton Arnold procura focar nas cartas de Paulo,
especificamente no que elas ensinam sobre esse tema.
Ademais, visando ampliar o quadro sobre esse assunto,
ele investiga as crenças gregas, romanas e judaicas do
século 1 e também a perspectiva de Jesus sobre magia,
feitiçaria e adivinhação.

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