Sofrimento Social Das Populacoes Atingidas em MarianaMG

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artigos

Notas sobre o Real: expulsões e sofrimento social


das populações atingidas em Mariana/MG.
Notes on the Real: expulsions and social suffering
of the populations affected in Mariana/MG.
Monique Sanches Marques*

Resumo Abstract

No sistema econômico capitalista, no caso da indústria In the capitalist economic system, in the case of the
extrativo-minerária, o minério é recurso e capital e, nesse extractive-mining industry, ore is resource and commodity
sentido, o território é capital. O território como espaço and, in this sense, the territory is a commodity. The
territory as a space of interest of capital, in the specific
de interesse do capital, no caso específico do capital case of neoliberal mineral capital, creates any space in
mineral neoliberal, cria todo e qualquer espaço num a long-term process induced by the dynamics of capital
processo de longa duração induzido pela dinâmica de whose scale is the world. These mineral extraction
capitais cuja escala é o mundo. Essas atividades de activities based on macro-political agreements of
extração mineral pautadas em acordos macropolíticos great interest to international capital end up triggering
de grande interesse para o capital internacional acabam processes of expulsions of populations that occupy areas
por desencadear processos de expulsões de populações rich in mineral resources. As a consequence, processes of
que ocupam áreas ricas em recursos minerais. Como illness and social suffering are established. A situation
of “devastated land” is created where affected people
consequência, instauram-se processos de adoecimento wander through their symptoms and desires related
e sofrimento social. Cria-se uma situação de terra to struggle and/ or mourning, desiring processes,
arrasada onde pessoas atingidas e expulsas das suas metonymic processes of resistance and/or symptomatic
cotidianidades vagam por entre seus sintomas e desejos captures building metaphorical refuges surrounding their
relacionados à luta e/ ou ao luto, a processos desejantes, losses.The reflections developed in this text were built
processos metonímicos de resistência e/ou a capturas on the writings by Freud and Lacan taking the records
sintomáticas construindo refúgios metafóricos entorno of psychoanalysis, mainly the notion of “real”, relating
de suas perdas. As reflexões desenvolvidas neste texto it to the symptoms and illnesses of those affected by
Fundão Dam. The notions between knowledge, power and
foram construídas a partir dos escritos de Freud e Lacan subjectivity developed by Deleuze and Foucault support
tomando-se os registros da psicanálise, principalmente the analysis of asymmetric relationships and domination
a noção do Real, relacionando-o com os sintomas among the affected people, State and companies. The
e adoecimentos dos atingidos pelo rompimento da rupture of the Fundão dam in Mariana/MG on November
Barragem de Fundão em Mariana. As interseções 5, 2015, of the mining company “Samarco, Vale, BHP
entre saber, poder e subjetividade desenvolvidas por Billiton” brings to the debate the effects of expulsions
Deleuze e Foucault subsidiam as análises das relações and questions remain about the implications of capitalist
assimétricas e de dominação entre atingidos, Estado ties in subjects and territories.
e empresas. O rompimento da barragem de Fundão Keywords: Mineral extractive industry; Fundão dam;
em Mariana/MG, no dia 05 de novembro de 2015, da Mariana; rupture; expulsion of populations; social
mineradora Samarco, Vale, BHP Billiton traz para o suffering; psychoanalysis.
debate os efeitos das expulsões,ficam questionamentos
sobre as implicações do laço capitalista nos sujeitos e
nos territórios.

Palavras-chave: Indústria extrativo mineral;rompimento


da Barragem de Fundão/Mariana/MG; expulsão de
populações;sofrimento social;psicanálise.
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Sobre processos de expulsões e desterritorializações Figura 01: Paracatu de expulsão das populações que estiverem sobre essas áreas. Em
Baixo, Subdistrito de territórios ricos em recursos minerais, o que se observa, via de
Mariana, área atingida regra, é o confronto entre o corpo material em luta e o luto de quem
pelo rompimento da reivindica suas terras, além da presença imaterial de um capital
barragem de Fundão. transnacional que impera e captura forças. Os agenciamentos
Fonte: Acervo do
Projeto de Extensão
micropolíticos cotidianos das populações que reivindicam
“Narrativas Atingidas”, suas terras, seu direito de ocupar, morar, trabalhar e produzir
PROEX, DEARQ/UFOP. são colocados em posição contrária a uma presença imaterial
2018. de um capital transnacional. Mas o que o capital hegemônico
identifica e reconhece é que as terras, muitas vezes ocupadas
por povos rurais, negros e indígenas, são ricas em minério em
seu subsolo. Para essas comunidades, ocupar essas terras ricas
em recursos é definir involuntariamente sua desterritorialização,
seu nomadismo. O Direito Minerário brasileiro se sustenta por
Nas últimas décadas identificamos como um grande problema princípios básicos, sendo um deles, de matiz constitucional,
da economia política global o surgimento de novas lógicas de capaz de definir que as riquezas minerais existentes no subsolo
expulsão. Refugiados de Guerra, o aumento da população de são de propriedade da União Federal (CF, art. 20, inciso IX e art.
desempregados, de encarcerados, de sem-teto, de expropriados 176, § 1o). No Brasil, a exploração do subsolo possui primazia dos
de seus modos de vida, de desterritorializados, de corpos interesses da mineração, sejam eles as áreas a serem lavradas,
singularizados por desapropriação, de megaestruturas definindo as cavas, terrenos para construção de equipamentos, vias e
a ocupação e o esvaziamento dos territórios, o comprometimento depósitos de rejeitos, dentre desses, as barragens[1].
do meio ambiente e da biosfera acabam por gerar movimentos
de expulsões. A socióloga Saskia Sassen (2016) propõe o estudo
dessas expulsões como novos agenciamentos para compreender
a lógica sistêmica que vem se afirmando na economia política Considerações sobre o rompimento da Barragem de Fundão em
global a partir dos anos 1980. A busca por mais lucro ocupa o Mariana/MG
lugar do anseio neoliberal do welfare state e está conectada a No dia 5 de novembro de 2015, a Barragem de Fundão em Mariana/
uma rede de ações e agentes que provocam essas expulsões e MG, da mineradora Samarco, uma empresa joint venture da
as transformam em formações predatórias e processos, muitas Companhia Vale e da Anglo Australiana BHP Billiton se rompeu
vezes, irreversíveis. No sistema econômico capitalista, tendo liberando aproximadamente 60 milhões de metros cúbicos
por recorte a indústria extrativo-minerária, o minério é recurso de rejeitos de mineração que percorreram aproximadamente
e capital e, nesse sentido, o território é capital. O território 600km entre os rios Gualaxo do Norte, Rio do Carmo e a Bacia do
como espaço de interesse do capital, no caso específico do Rio Doce até chegar a foz do Rio Doce em Regência-ES.
capital mineral neoliberal, produz uma singularidade porque
cria todo e qualquer espaço em um processo de longa duração Este desastre-crime sociotecnológico afetou e afeta biomas e
induzido pela dinâmica de capitais cuja escala é o mundo. É comunidades da Bacia do Rio Doce. Nesse contexto, populações
nessa seara que as narrativas se inscrevem neste texto, para foram radicalmente desterritorializadas, o que provocou e vem
falar de territórios, populações e de suas expulsões de casa, provocando danos sócio-espaciais e ambientais muitas vezes
estando seus destinos engredrados em acordos geopolíticos irreversíveis, envolvendo questões relacionadas à perda de
transacionais macropolíticos, muito além da vida cotidiana das moradia, de tradição, de memória, alterações das atividades
comunidades que habitam esssas áeras de grande interesse econômicas e sociais, da saúde mental e física dessas
para o capital internacional. comunidades. Esse evento insere essas populações atingidas
em situações de sofrimento social. Essa atividade extrativista,
Sabe-se que o recurso mineral é localizacional e, por isso, no acompanhada de degradação, violência e precarização definem o
campo da mineração, defende-se a realocação ou mesmo a

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Brasil como um país minerador com suas particularidades e nos O distrito de Bento Rodrigues, com uma
faz questionar nosso modelo de sociedade e de desenvolvimento. população 85% negra, se encontrava a pouco
Após quatro anos e nove meses desse desastre, o que se vê mais de 6 Km da barragem de rejeito de
é o protagonismo da empresa e a conivência do Estado com Fundão e a 2 Km da barragem do Santarém;
o subdistrito de Paracatu de Baixo, com uma
relação à execução das reparações, dos reassentamentos ou população 80%, negra se situava a pouco mais
outras formas de ressarcimentos. O que se percebe é um jogo de 40 Km da barragem rompida; Gesteira,
assimétrico de forças entre atingidos, Estado e empresa. Este afastada 62 Km da barragem, apresenta 70,4%
desastre sócio-tecnológico mostra a emergência de se enxergar da população negra, Barra Longa, com 60,3%
as pessoas colocadas sob o julgo da manutenção e da expansão da população negra, dista 76 Km da barragem.
Foram, sobretudo, essas comunidades negras
da exploração mineral no Brasil. as que mais sofreram com as perdas humanas
e com os impactos materiais, simbólicos e
No caso do rompimento da barragem de Fundão, comunidades psicológicos do evento (WANDERLEY, 2015
que nunca tiveram contato com a mineração, hoje são apud ZONTA, M.; TROCATE. 2016. p.33).
dependentes dela, passaram a se orientar pelas intervenções das
empresas, alterando seu cotidiano e tendo que negociar dia a dia Flexibilização de legislação ambiental, sobrecarga das
seus direitos mais básicos. Essas pessoas perderam suas casas, estruturas de barragens, ausência de controle e fiscalização
seu trabalho, sua saúde e hoje vivem à deriva esperando por estatal, ausência de alertas sonoros e planos de emergência são
reparações ou outros processos de ressarcimentos. Suas relações alguns exemplos de violências e violação de direitos quando se
de autonomia foram substituídas pela relação de dependência, trata de terras ocupadas por essas etnias.
típica das localidades onde está presente a atividade minerária.
Os primeiros contatos de muitas das populações atingidas pela Associado a essa questão da brutalidade contra os mais
mineração ocorreram em razão da chegada da lama de rejeitos. pobres, há de se observar que a atividade mineradora, no caso
Antes desse evento, não mantinham nenhum vínculo com as brasileiro, remete-se a situações de trabalho degradante,
atividades minerárias. Hoje são dependentes das empresas mortes e mutilações. [...] Num universo de três milhões de
para morar, para comer, para viver. Com relação às casas, vilas trabalhadores da mineração no país, conforme menção da
inteiras foram extintas. Muitas dessas pessoas atingidas desde Frente Sindical Mineral (Ação Sindical Mineral, maio 2013),
o rompimento moram em imóveis alugados pela empresa, um milhão e meio são terceirizados e apenas quinhentos mil
casas essas que nem sempre estão próximas às localidades possuem carteira assinada. Para cada dez mortes na mineração,
de onde vieram e que não possibilitam a reprodução mínima de oito são terceirizados. (ZONTA, M.; TROCATE, 2016. p.10-11).
seus modos de vida. Estão em curso constantes processos de Inevitável não associar crimes como este a outros também
destereterritorialização que acabam por atualizar a dinâmica de naturalizados como desapropriações e remoções de populações
um crime que não termina. para a construção de megaempreendimentos imobiliários
ou associados à construção de grandes infraestruturas, ou
Essas populações de desalojados, de desterritorializados mesmo desertificações justificadas pelo agronegócio... a
estão em sua maioria associadas a corpos pobres, negros, natureza desses processos é estrutural para a manutenção do
marginalizados. No contexto da extração do minério no Brasil, é sistema. São saberes e poderes sedentários esquadrinhando
importante aprofundar acerca do conceito de racismo ambiental. e sobreedificando os territórios à sua exaustão. Genocídio,
Essa noção diz respeito à situação de risco que se encontram feminicídio, etnocídio, racismo, especismo...
populações majoritariamente negras, pardas, indígenas. Há de
se reconhecer um efeito desproporcional sobre alguns grupos
étnicos em situação de maior vulnerabilização social e/ou Entre macropolíticas e arranjos cotidianos
econômica. Essas questões estão associadas às injustiças
sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre Foucault, em As palavras e as coisas (1999), diz que “o poder
essas etnias e populações mais vulnerabilizadas, tenham elas não vê nem fala, mas faz ver e falar”. O poder não passa por
ou não intenção explicitamente racista. formas e sim apenas por forças. O poder não fala e não vê,

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mas faz falar e ver através de agenciamentos de enunciação e uma consequente adaptação ao estado do tempo e do espaço
(expressão) e agenciamentos maquínicos (conteúdo). A menção realizada de forma ordenada e repetitiva, estabelecida por
ao rompimento da barragem como acidente ou crime acaba por diretrizes que, por sua vez, seguem normas e regras previamente
definir um posicionamento quanto a quem, de onde, por que e o definidas por saberes, poderes e subjetividades já reconhecidas.
que se fala, definindo um posicionamento político nesse jogo de A racionalidade da padronização cria a civilidade, e o direito
forças. Ao fim, a guerra de narrativas ou a disputa pelos nomes permite a industrialização da produção e cria mais eficiência
atravessada por fluxos de poderes e subjetividades, passa a nos processos, o que, por sua vez, permite a contínua aceleração
constituir territórios políticos: na direção de erguer pousadas de desses mesmos processos. Racionalidade, cientificismo,
acúmulo ou de desbravar campos de luta. homogeneidade, padronização, serialização geram uma ética e
uma estética comum às situações de formalidade, centralidade
Esse crime não é fato isolado e o que se observa é uma repetição e de riqueza das subjetividades hegemônicas. O padrão cria
quanto ao tipo de negligência ou às estratégias praticadas pelas uma estética marcante nos espaços que são bem servidos pelas
empresas do setor da mineração, assim como se repete a inação do políticas públicas e privadas, pelas redes informacionais, pelas
Estado. Se relacionarmos o protagonismo da empresa e a inação infraestruturas.
do Estado identificamos que o financiamento de campanha tem
sido uma importante forma utilizada por empresas do grupo Vale A construção e exploração de territórios minerados na atualidade
para ter influência sobre os políticos eleitos. O setor de extração são fundamentadas a partir desses conceitos de racionalidade,
mineral possui uma relação estrutural com o Estado brasileiro. cientificismo, padronização e são produzidos segundo investidas
As empresas mineradoras têm por prática financiar diferentes de poderes e saberes de natureza macropolítica, produzidos
partidos. Isso quer dizer que, seja qual for o resultado de uma pela subjetividade dominante. Essas investidas criam terras
eleição, sabe-se que a Vale SA estará invariavelmente no poder. planificadas, modelizadas por saberes sedentários e foi nesses
Os processos de segregação e pobreza são meticulosamente mesmos territórios controlados que o jorro de rejeito de minério
pensados. As minorias são consideradas e devem continuar a se deu atingindo um percurso de mais de 600KM de terras e
ser mantidas como minorias para que o sistema continue em comprometendo a vida de mais de um milhão de pessoas.
funcionamento. Alguns precisam ter muito pouco, ou quase nada,
para que outros tenham em excesso. Dentro desse espectro, Foucault (1979), discute que a economia política e a história
é necessário que as condições de vulnerabilidades sejam econômica nos fornecem instrumentos para compreender as
aprofundadas e se ampliem. Desde o Brasil colônia, a extração relações de produção, a linguística e a semiótica, as relações
mineral molda e configura espaços a seu gosto, sustentando-se de sentido, mas quanto ao poder, só dispomos de instrumentos
em estruturas governamentais que promovem o capitalismo e para compreendê-lo de um ponto de vista jurídico (o que
que têm na exploração de recursos minerais uma de suas bases legitima o poder?) e institucional (o que é o Estado?), mas não
de reprodução. para compreendê-lo enquanto “técnica de subjetivação”. Essas
especulações estão calçadas no questionamento específico
Se o minério é capital, o território é capital. Essas associações das relações intrínsecas entre saber-poder-verdade. Foucault
circulam nas escalas macropolíticas assim como nas esferas insistirá que não há verdade fora do poder ou sem o poder, pois
dos arranjos cotidianos. Nas terras forjadas a minério de ferro, toda verdade gera efeitos de poder e todo poder se ampara e se
são registrados números crescentes dos chamados filhos das justifica em saberes considerados verdadeiros. O poder funciona
minas, crianças fruto de relações que duram o tempo do contrato na base da incitação, do reforço, do controle, da vigilância
dos trabalhadores que vivem nas cidades/vilas mineradoras e e visando à otimização das forças que submete. O poder é
que depois retornam as suas cidades de origem deixando essas destinado a produzir as forças que lhe interessa, ordenando-as
crianças órfãs de pai. e fazendo-as crescer.
A subjetividade macropolítica e o pensamento dominante Diante dos processos de expropriação dos atingidos, no caso de
criam regras e padrões. Constituem-se por processos de Fundão, interessa investigar frente a constituição e divulgação
construção de lugares que pressupõem a ação da racionalidade de saberes em discursos qualificados como verdadeiros e

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a correlata desqualificação de outros (o eixo da verdade), foi uma queda no preço do minério de ferro. Estudos e dados
bem como vinculação entre a dimensão discursiva e a esfera indicam uma associação entre rompimentos de barragens de
extradiscursiva ou as práticas sociais com a consequente rejeitos e os ciclos econômicos da mineração. Existem indícios,
conexão entre a ordem da verdade e os regimes de poder (o principalmente relacionados ao aumento significativo dos
eixo do poder). Entrelaçam-se na construção das formas de acidentes de trabalho, que a crescente pressão de investidores
pensar o exercício específico do saber, o exercício do poder que pela manutenção dos níveis de rentabilidade antes alcançados
permeia esse saber (na composição de diagramas de forças) e tenha causado uma intensificação no processo produtivo
os processos de subjetivação em jogo. Na visão foucaultiana, “o e, possivelmente, negligência com relação aos aspectos de
poder não vê nem fala, mas faz ver e falar”. Ver e falar encontram- segurança.
se vinculados às relações de poder que resultam de forças
móveis que se dissipam e que não se encontram do lado de fora Saber, poder e subjetividade são indissociáveis, mas interessa
dos saberes (estratos), mas são o seu lado de fora. Ver e falar são saber que tipo de poderes e subjetividades estão em jogo.
formas de exterioridade, o pensamento se orienta para um lado Se são poderes molares e macros que trabalham enquanto
de fora que não possui forma. Ver é pensar, falar é pensar, mas o hegemonia, no sentido de manter a reprodução de saberes em
pensar opera na disjunção, no interstício entre ver e falar. Entre zona de tranquilidade, ou se são forças moleculares na direção
o poder e o saber há uma diferença de natureza – são elementos de desestabilizá-los. Deleuze (1998) refere-se ao aparelho de
heterogêneos, mas mantêm uma pressuposição recíproca e estado como um agenciamento concreto que efetua a máquina
capturas mútuas. O poder não passa por formas, mas apenas de sobrecodificação de uma sociedade. Essa máquina, por
por forças. O poder não fala e não vê, mas faz falar e ver através sua vez, não é o próprio Estado; é a máquina abstrata que
de agenciamentos de enunciação (expressão) e agenciamentos organiza os enunciados dominantes e a ordem estabelecida
maquínicos (conteúdo). de uma sociedade, as línguas e os saberes dominantes, as
ações e sentimentos conformes, os segmentos que prevalecem
No desastre de Fundão, o sistema dos saberes e subjetividades sobre os outros. A máquina abstrata de sobrecodificação
macropolíticas estaria em questionamento se essa máquina assegura a homogeneização dos diferentes segmentos, sua
de produção de sentidos não estivesse tão bem equipada do convertibilidade, sua traduzibilidade, ela regula as passagens
ponto de vista do poder. A associação entre essa tríade faz com de uns nos outros, e sob que prevalência. Esta não depende
que um crime dessa amplitude seja minimizado pelo judiciário do Estado, mas sua eficácia depende do Estado como do
e naturalizado por um conjunto considerável da sociedade ou agenciamento que a efetua em um campo social. Deleuze (1998)
mesmo que a natureza seja responsabilizada pelo evento. Em continua dizendo que os indivíduos ou grupos são feitos de linhas,
nome de uma certa noção de desenvolvimento e progresso, e tais linhas são de natureza bem diversa. A primeira espécie
uma legião de desalojados vai se configurando: Mina Córrego de linhas que nos compõe é segmentária, de segmentaridade
do Feijão, Fundão, Santarém, Germano, Herculano, Rio Pomba, dura, molar (ou antes, família, profissão, trabalho, escola). Todas
Macacos, Fernandinho, Belo Monte, Tucuruí, Furnas, Itaipú... as espécies de segmentos são bem determinados, em todas
as espécies de direções e nos recortam em todos os sentidos,
Mas os saberes científicos atrelados aos macropoderes e a pacotes de linhas segmentarizadas. Ao mesmo tempo, temos
subjetividade molar teriam mesmo falhado? O rompimento da linhas de segmentaridade bem mais flexíveis, de certa maneira
barragem de Fundão marca, em nosso país, o fim do megaciclo moleculares. Não que sejam mais íntimas ou pessoais, pois elas
das commodities que ocorreu durante a primeira década dos atravessam tanto as sociedades e os grupos quanto os indivíduos.
anos 2000. Este megaciclo está associado ao período entre Estas traçam pequenas modificações, fazem desvios, delineiam
2003 e 2013, quando as importações globais de minério tiveram quedas ou impulsos: não são, entretanto, menos precisas; elas
um grande aumento – período no qual o Brasil ocupava o dirigem até mesmo processos irreversíveis. As máquinas de
segundo lugar como país exportador de minério no mundo. guerra seguem as linhas de fuga vindas do deserto, do fundo da
Nesse período aprofundou-se a dependência do Brasil com estepe e penetrando no Império.
relação ao setor minero-exportador. O mercado de minério, em
geral, possui um caráter cíclico e, a partir de 2011, o que se viu Nas terras arrasadas pela lama, vemos o jogo/jorro assimétrico

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de poderes. Em escalas diferentes ouvimos os ditos da empresa da barragem de Fundão em Mariana está extremamente
atreladas ao estado e nessa paisagem desértica, sem gente, vulnerabilizada quanto à saúde mental. O sentimento de angústia
sem planta, sem rio e sem bichos ouvimos os gemidos daqueles profunda é algo generalizado, com a perda de seus modos de
que perderam tudo. Existe em curso uma blindagem do Estado vida, território, conexões sociais, trabalhos. O momento da perda
Empresa com todos os mecanismos e aparelhamento que a é revivido cotidianamente, com a morosidade nos processos de
subjetividade molar oferece, bem como o lamento e a luta de reparações, que, associado às incertezas e violações de direitos,
um povo sem Estado ou com um Estado com particularidades pode aumentar os índices de transtornos da saúde mental.
que o desvia de sua função. As casas caíram e junto delas um
Às vezes, a gente vai na prefeitura e, na
projeto de Estado de Direito. O que vem à tona em Fundão, bem prefeitura, mandam a gente pra Renova,
como em outras terras atingidas é a assimetria de forças entre aí mandam na prefeitura de novo. Ficam
o aparelho de Estado e as Máquinas de Guerra. Essa situação empurrando. Eu tomava um remédio, agora,
de violência continuada cria, além de corpos desalojados e em eu tomo nove, e, se eu não tomar, não sou
espera, corpos adoecidos. ninguém. Minha família que me ajuda a
comprar, porque, aqui em casa, ou a gente
come ou toma remédio. A empresa chegou
a prometer os remédios pra mim, mas não
Notas sobre o Real deram. Entreguei meus documentos [para
Renova/Samarco], laudo médico, e os papéis
sumiram. (Rosana Aparecida Pinto, Sirene ed.
Estudos apontam que os impactos de desastres, como o
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de Fundão, afetam de forma distinta a saúde dos atingidos,
com efeitos que variam de curto a longo prazo, a depender Quase cinco anos após o desastre crime em Mariana quase nada
da vulnerabilidade socioeconômica e ambiental do território. foi feito no sentido de se reparar minimante os atingidos dos
(ALDERMAN,K, TURNER, R, TONG, S., 2012). A curto prazo, em danos a eles causados. Cria-se uma imagem de terra arrasada,
Mariana, configuram os dias que seguiram ao rompimento da expulsões, onde pessoas atingidas vagam por entre seus
Barragem e as missões de resgate que duraram aproximadamente sintomas e desejos relacionados à luta e/ ou ao luto, a processos
15 dias: além de oficializar as 19 mortes, registram-se ferimento desejantes, processos metonímicos de resistência ou a capturas
leves, graves e mortalidade. Em um segundo momento, observa- sintomáticas construindo refúgios metafóricos entorno de suas
se o surgimento de doenças transmissíveis e contagiosas pela perdas.
exposição dos atingidos a contaminação, como dengue, diarréia,
lesões de pele e doenças respiratórias, oriundas da contaminação O rompimento de Fundão pode ser entendido como a irrupção
pela lama tóxica e ocorre ainda a intensificação de doenças não do Real no sentido psicanalítico do termo. Tomando a passagem
transmissíveis, sendo a principal delas, a hipertensão. A longo de 60 milhões de metros cúbicos de lama de rejeito de minério
prazo, os impactos na saúde são relacionados a doenças não sobre pessoas, animais, rios, vilas inteiras a uma altura média de
transmissíveis como doenças crônicas e cardiovasculares e os 15 metros em fração de segundos, arriscamos tomar esse fato
transtornos mentais. (FREITAS, 2014). como um contato dessas populações atingidas com o Real para
depois tentar simbolizar das mais diferentes maneiras... pela via
No caso de Mariana, o diagnóstico do PRISMMA[2] (2018), do desejo e/ou pela via do sintoma.
indica que a prevalência de transtornos mentais relacionados
ao estresse, como a depressão aparece em 28,9% da população O Real, uma categoria estabelecida por Lacan, só pode ser
avaliada, o transtorno de ansiedade generalizada em 32%, o entendido em conexão com as categorias do Simbólico e do
transtorno de estresse pós- traumático em 12% e o risco de Imaginário. Lacan introduz esse ternário no campo analítico
suicídio em 16,4%. A prevalência de depressão encontrada, por durante sua conferência intitulada O simbólico, o imaginário, o
exemplo, é cinco vezes maior do que a descrita pela Organização real, pronunciada em 1953, durante a abertura das atividades
Mundial de Saúde (OMS) para a população brasileira. O relatório da Sociedade Francesa de Psicanálise (Société Française
do PRISMMA conclui que a população afetada pelo rompimento de Psychanalyse). Nessa conferência Lacan apresenta a

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confrontação destes três registros, que se trata dos registros que se furtam à simbolização significante vêm completar o
essenciais da realidade humana, registros bastante distintos. sujeito do corpo mortificado e acabam por atribuir singularidade
aos sujeitos. Em psicanálise diz-se que o resto, que não é
Nessa perspectiva, o Real é definido como o que escapa ao propriamente simbolizado, tem a ver com o desejo, ou seja, com
simbólico, o Real não pode ser nem falado nem escrito. Assim, o que é mais singular para um sujeito. O que se busca, por meio
está relacionado com o impossível, definido como “aquilo que do desejo, uma vez subjetivado pela falta a ser é um pouco mais
nunca deixa se escrever em si”. E porque não pode ser reduzido de ser. O desejo manifesta-se como vazio que tende para fora
ao significado, o Real não se presta facilmente à representação de si em busca de preenchimento, ou do restante, que falta. A
imaginária unívoca. O Real situa o simbólico e o imaginário em psicanálise refere-se ao desejo como que nascido de uma perda
suas respectivas posições. No Seminário III Lacan nomeia o Real irreparável do objeto proibido pela censura (ou pela Lei, instância
como o que volta sempre ao mesmo lugar, como os astros, as simbólica). Nesse sentido refere-se ao desejo como uma busca
estrelas. Aqui também, o Real vai ser por ele definido como o que indefinidamente repetida dessa perda que não cessa de ser
escapa à simbolização: “na relação do sujeito com o símbolo, há presentificada por outros objetos, sob aspectos aparentemente
a possibilidade de que alguma coisa não seja simbolizada, que irreconhecíveis.
vai se manifestar no Real” (LACAN, 1992). O simbólico estrutura
a realidade e, como consequência, o sujeito só tem acesso ao Nessa direção sob o signo da falta, o desejo tem seu objeto como
mundo na medida em que, além do imaginário, das significações, algo irrecuperavelmente perdido. Daí, a procura indefinidamente
ele faz uso do significante. Lacan define o Real como sendo da repetida e o encontro com a perda, que não cessa de manifestar-
ordem do impossível. O Real não é um contínuo opaco, ele é se por meio de objetos substitutivos. Por isso, diz-se que a
feito de cortes. Trata-se, então, da relação do sujeito entrando dimensão do desejo não se confunde com a das necessidades
no corte, num acontecimento denominado de Real, mas que não nem com os objetos da realidade, mas leva a um sistema de
é simbolizado por nada. Vê-se, aqui, que o Real é da ordem da signos que se referem à cadeia significante ou aos objetos
Coisa. Nesse campo, pode-se relacionar o momento da passagem alusivos ao objeto perdido. Com a psicanálise, observa-se que
da lama como o contato com esse Real que não é simbolizado, o processo de busca por satisfações substitutivas é entranhado
com esse corte. Os processos posteriores relacionados ao luto e no inconsciente e percorre a vida das pessoas. Freud considerava
à luta destas populações estariam associados aos processos de o desejo inexorável e indestrutivo. O caráter de repetição
simbolizações. representado pela busca indefinidamente repetida dessa perda
não cessa de ser presentificada por outros objetos, atribuindo
Segundo a formulação freudiana de 1924, é Real não o que é ao desejo o estatuto de um denominador comum e mostrando
encontrado, mas o que é reencontrado. Se é verdade que o Real que ele se depara sempre com faltas. O desejo se mantém, o
tem de ser reencontrado, e que, para um sujeito histórico, o objeto que passa por transformações é a forma pela qual um sujeito,
de desejo é por essência o objeto perdido, a “primeira” pessoa diferenciando-se dos outros, vê essa falta. Uma vez que o desejo
provedora, cuja repetição está consequentemente vedada, esse diz da busca por um objeto perdido, resta saber como se realiza
Real se definirá precisamente como o impossível. essa busca. Essa consiste em uma série de transfigurações
No campo da psicanálise, a relação do sujeito com a ordem pelo objeto perdido, estando associada a uma falta primordial.
simbólica ou com os processos de subjetivação é marcada O que parece ser a busca de um objeto é a busca por uma falta,
por uma falta a ser. O ser que os processos de subjetivação marcha prospectiva ao infinito do desejo. Trata-se da dimensão
conferem ao sujeito é marcado pela falta. Por isso, diz-se em metonímica do desejo, em que um significante se desloca para
psicanálise que se trata de um processo de mortificação, uma outro, em relações infinitas, mas entorno do vazio deixado pelo
vez que tudo que constitui o sujeito – marcas, nomes, registros – vazio do objeto perdido.
não vem dele, mas dos processos de subjetivação anteriores ao Ao abordar o desejo como a sobra ou o resto da ação
próprio nascimento desse sujeito. Nessa perspectiva, o sujeito simbolizadora, mas que se revela por meio da cadeia significante,
é mortificado pela falta a ser, uma vez que se constitui a partir pode-se dizer que não cabe entender o desejo como desarranjo
do campo do grande Outro, da cultura. Por outro lado, os restos do instinto, mas como uma particular subversão através de

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sua articulação simbólica, que é o que constitui a dimensão do em função de um sistema simbólico. Os movimentos de retroação
desejo como estando sempre em um outro nível com relação do desejo em relação à historicidade do sujeito articulam-se
ao plano da necessidade concernente ao instinto. O desejo, no à repetição característica da operação do desejo. Aquilo que
que diz respeito à subversão do instinto, em sua articulação insiste e retorna é mobilizado na tentativa do acesso ao objeto
com o registro simbólico, não se satisfaz, como a necessidade, perdido. As transformações sofridas pelo objeto sustentam-se
com a obtenção deste ou daquele objeto em particular. Sob na movimentação de significantes que se repetem, deslocam-
essa abordagem, pode-se abolir o ponto de vista naturalista ou se e substituem-se na movimentação de significantes que se
biológico, que trata o desejo como apetência de satisfação de repetem, deslocam-se e substituem-se, remetendo sempre aos
uma necessidade; ele é indestrutível e diferente de qualquer acontecimentos marcantes da história do sujeito. O movimento
satisfação de necessidade. Nessa direção, o desejo não se ininterrupto e atualizado da cadeia significante é responsável
satisfaz pelo consumo de algo, ele está articulado a uma busca pela força da atividade desejante. O movimento dessa cadeia
e se insere no discurso inconsciente do sujeito. acompanha, preserva e alimenta o desejo.
Na perspectiva psicanalítica, o desejo, vinculado à cadeia O sujeito predeterminado pela ordem simbólica pelo nome que
significante, emerge na vida das pessoas pela repetição. recebe ao nascer, pelo legado familiar e pelas heranças sócio-
Invariabilidade e variabilidade marcam as relações do sujeito culturais que o situam no mundo, é focalizado, com Lacan,
com o desejo: invariabilidade do objeto perdido, causa do desejo; enquanto falado antes de falar: ele é o que se diz dele e, até
e, variabilidade dos inúmeros objetos que circundam essa perda. mesmo antes de chegar ao mundo, já está predeterminado
O desejo caracteriza-se paradoxalmente, pela permanência, pelos atributos simbólicos que a cultura lhe confere. Com Lacan,
mas também é mobilizado metonimicamente pelos imprevistos. o sujeito é sempre determinado pelo Outro: é falado a partir
A permanência refere-se à imutabilidade do desejo. Afinal, o do lugar do Outro, a partir do campo da linguagem. O Outro de
objeto causa do desejo é permanente. O aspecto metonímico que se fala não é o próximo, o semelhante, mas o conjunto de
destaca-se pelas transfigurações que o objeto do desejo sofre referências simbólicas que dizem respeito ao sujeito, ou seja, à
nas tentativas de cada um se satisfazer. cultura. Dizemos que a ordem simbólica, a cultura, constitui o
registro do reconhecimento. O Outro simbólico diz respeito ao
A falta causada pelo objeto perdido é que, segundo a psicanálise, lugar que representa a ordem dos significantes que estão em
atrai o sujeito que, por sua vez, responderia a um momento relação de exterioridade com o sujeito. Já que o desejo diz do
miticamente passado. O desejo, então, se faz pela construção de mais particular do sujeito, e, uma vez que está metonimicamente
uma temporalidade, caracterizada pelo movimento de retroação, articulado à cadeia significante, ao manifestar-se, usa dos
e não simplesmente por um movimento de acoplamento do tempo significantes e revela as singularidades de cada um. Nessa
numa sucessão linear. O desejo constitui-se como temporalidade perspectiva, por meio da construção simbólica, da linguagem, o
e se associa à memória, desligando-se do dado presente e sujeito depara-se com a revelação e reconhecimento do desejo. O
encontrando mediações que o remetem ao ausente. Ligado ao desejo inscreve-se e é revelado por meio da linguagem da cadeia
traço da memória, o desejo busca realizar-se pela reprodução significante em que o sujeito, ao longo de sua história pessoal,
alucinatória das percepções antigas nas percepções presentes, manifesta relação com suas privações. Em psicanálise, diz-se
que se tornam, pela via da substituição, sinais precários de que a relação do desejo com a cadeia significante é marcada
sua satisfação. (CHAUÍ. In: NOVAES. (Org).1997. p.25.). A relação por manifestações inconscientes. Consequentemente, nessa
do passado não implica na reconstrução da história do sujeito, dinâmica inconsciente, o desejo corrompe a estrutura neutra da
mas se trata de recuperar aquilo que ficou inscrito no sistema cultura por meio do não idêntico, construindo singularidades.
simbólico e que conta eficazmente para o sujeito. A relação do
desejo com a historicidade do sujeito não remete ao passado A psicanálise, porém, diz que andar às voltas com o desejo pode
como totalidade ou dimensão factual, mas tem como objetivo ser, também, não sustentá-lo, ou seja, afastar-se dele ao dirigir-
recuperar um elemento que foi perdido no encadeamento da se para o lado oposto. Freud desenvolve a formulação, retomada
história simbólica do sujeito. A relação do desejo com o passado mais tarde por Lacan, de que o inconsciente tem duas maneiras
implica em recuperar o passado reprimido que está organizado de manifestar-se com relação as proibições que acometem a

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vida do sujeito: o deslocamento e a condensação. Tratam-se de é a patologia. Esse, para a psicanálise, só pode ser considerado
duas possibilidades de articulação entre os significantes que patológico por se referir ao pathos como padecimento do sujeito,
nos remetem, respectivamente, ao desejo e ao sintoma. já que ele padece da estrutura da linguagem. O sintoma revela
esse padecimento. (QUINET. 2000. p.120).
O movimento metonímico do desejo caracteriza-se pelo
deslizamento de significantes que se repetem e deslocam-se, O trauma, como o real vivido, está presente na teoria do sintoma
remetendo o sujeito aos acontecimentos marcantes de sua vida formulada por Freud. Se o sintoma não está na base da doença,
e do seu desejo. O que retorna e insiste, por meio da dinâmica como na medicina, nem por isso deixa de falar a verdade: o
metonímica ou do deslizamento de significantes, é a presença sintoma fala a verdade do sujeito. Ele faz sofrer, é o que faz que
do objeto perdido. É importante lembrar que o movimento as coisas não circulem, não funcionem. O sintoma, diz Lacan,
ininterruptoe atualizado da cadeia significante é responsável é o significante de um significado recalcado da consciência
pela atividade desejante. do sujeito. Símbolo escrito na areia da carne, ele participa
da linguagem pela ambiguidade semântica sublinhado em
O sintoma, por sua vez, caracteriza-se pela condensação de sua constituição. O sintoma-símbolo indica sua constituição
significantes, pela substituição de um significante por outro, metafórica.
numa operação que, no âmbito da linguagem, refere-se à
metáfora. Assim, no sintoma, o desejo acaba por se resvalar, em O sintoma é um símbolo da verdade do
função de satisfações substitutivas, que tentam escamotear sujeito que não é indelével, pois está escrito
na areia da carne, sendo, portanto movediço,
que o objeto do desejo é, fundamentalmente, um objeto perdido. para lê-lo é necessário saber ler na areia, pois
Por isso, pode-se conceber, no sintoma, um desejo que não se ele está à vista e não enterrado. O sintoma
sustenta. escrito na areia da carne está aparente, mas
sua verdade é escamoteada na medida que
Michel Foucault, em o Nascimento da Clínica (1979) refere-se ao sua constituição utiliza a propriedade da
sintoma a partir da linguagem. Ele parte de uma análise linguística equivocidade do significante. Podemos então
do sintoma, definindo-o como significante cujo significado é a dizer que o sintoma constitui um monumento
histórico, um marco da história do sujeito, ele
doença. O sintoma é a forma como se apresenta a doença, de é uma mensagem histórica da alienação do
tudo que é visível, ele é o que está mais próximo do essencial; sujeito aos significantes do Outro. (QUINET,
ele é a transcrição primeira da inacessível natureza da doença. 2000, p.120).
Os sintomas deixam transparecer a figura invariável, um pouco
em recato, visível e invisível da doença. A doença como algo da Uma questão importante a ser constatada é que o sintoma
órbita do invisível é tornada transparente pelo sintoma. Esses possui sentido. Ele vela e desvela algo que o sujeito considera
deixam transparecer algo inaparente que é necessariamente como uma mensagem endereçada a ele, fazendo parte de sua
um estado patológico determinado. O sintoma é, portanto, um verdade. A psicanálise refere-se ao sintoma como um semidizer
fenômeno que, por definição, opõe-se ao estado de saúde. porque participa do enigma da verdade, ou seja, mesmo quando
Para a medicina, o significado do sintoma como significante é decifrado contém algo que continua velado ao sujeito. Mas, a
sempre patológico (QUINET, 2000, p.118). O sintoma médico se que se refere um sintoma como um Real bem dito? Não seria
vincula a outros sintomas cujo conjunto define a doença. Na sua um paradoxo falar de um Real dito, se o Real se caracteriza pelo
articulação significante com outros sintomas acaba por fazer a impossível de ser dito? Segundo a psicanálise o bem dizer do
doença. Como para a medicina, também a psicanálise entende sintoma é um dizer de verdade que toca o Real, é um dizer sobre
o sintoma como um significante, porém não necessariamente o núcleo irredutível do real do sintoma. O sintoma é definido por
com o significado patológico. Para a psicanálise, o sintoma como Lacan nos anos 1950 a partir do simbólico e nos anos 1970, a
significante é um sinal do sujeito. O sintoma para a psicanálise partir do Real, quando ele afirma que é do Real que se trata o
não revela a verdade de uma doença orgânica, o que não quer sintoma.
dizer que não revele uma verdade, a verdade do sujeito do
Lacan aborda três faces do Real. O Real é o que retorna sempre
inconsciente. O significado de um sintoma para a psicanálise não
ao mesmo lugar; o Real é definido a partir da modalidade lógica

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do impossível, onde podem ser identificados dois tipos de


impossíveis: o impossível de representar pois, não há como se
atingir o Real pela representação, e o impossível do universal,
posto que, se é impossível universalizar o Real, universal e Real
se excluem. Do Real, somente o particular. Para Lacan, a terceira
face do Real é o sintoma, o Real na medida que se coloca em
cruz para impedir que as coisas funcionem, circulem, no sentido
em que elas dão conta por si mesmas de maneiras satisfatórias.
O sintoma, como impedimento ao andamento satisfatório
do sujeito. Lacan continua: o sintoma como singularidade do
sujeito, ou seja, é pela vertente do Real de seu sintoma que cada
um afirma sua particularidade. O Real é aquilo que no sintoma
resiste à interpretação, ou seja, o que não é do campo do sentido.
Lacan afirma que o sintoma tem significação real.
O neoliberalismo interage com a Psicanálise numa via de mão
dupla: as novas relações econômicas e sociais atuam sobre
o sujeito, provocando o aparecimento de novos sintomas. Mas
ficam questionamentos sobre os efeitos do laço capitalista no
sujeito e nos territórios.
O rompimento de Fundão cria novas relações entre sujeitos,
entre esses com seus corpos, com a produção de uma terra
morta e com corpos adoecidos.
O luto tem sido uma necessidade de ritualizar a perda ao longo da
bacia do Rio Doce. Essas marcações têm se dado na perspectiva
do sintoma manifestando-se como doença ou não, mas com
um dizer de verdade que toca o Real. Há de se reconhecer um
território em luto e adoecido desde o dia 05 de novembro de
2015, quando as ecologias mental, social e ambiental continuam
a passar por contínuos processos de violência e violação de seus
direitos de existir. Mas há também de se reconhecer que esses
mesmos povos expulsos são corpos desejantes e em luta. O
desejo enquanto positividade, o inconsciente enquanto máquina,
produzindo, conectando e ecoando resistências. O inconsciente
é uma substância a ser fabricada, a fazer circular, um espaço
social e político a ser conquistado. (PÁL PELBART, 2003, p.153-
154). Nessa perspectiva, os povos em guerra do Vale do Rio Doce
exercem suas possibilidades de desejar, lutar, resistir para mais
uma vez territorializar, reassentar seus modos de existência. O
desafio da sociedade brasileira diante do desastre da barragem
de Fundão seria, dentre outras pautas, contribuir para reverter
os processos de esquecimento e de naturalização dessas vias
de expulsões predatórias.

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Notas Referências
1. Uma barragem de rejeito é uma estrutura de terra construída ALDERMAN K, TURNER LR, TONG S. Floods and human health: A
para armazenar resíduos de mineração, os quais são definidos systematic review. Environment International, 2012: 37- 47.
como a fração estéril produzida pelo beneficiamento de
minérios, em um processo mecânico e/ou químico que divide o CHAUÍ, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org.). O
mineral bruto em concentrado e rejeito. O rejeito é um material desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990: 19-66.
que não possui maior valor econômico, mas para salvaguardas
ambientais, deve ser devidamente armazenado. Disponível em: DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos, São Paulo: Escuta,
< https://organicsnewsbrasil.com.br/meio-ambiente/o-que-e- 1998. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro.
barragem-de-rejeitos/>. Acessado em: 26 de novembro de 2018. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições
2. PRISMMA - Diagnóstico de Saúde das Famílias Atingidas pelo Graal, 1979. Trad. Roberto Machado.
Rompimento da Barragem de Fundão em Mariana desenvolvido
pelo Núcleo de Pesquisa Vulnerabilidades e Saúde – NaVeS FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins
UFMg e com o apoio da Faculdade de Medicina da UFMG, Fontes, 1999. Trad. Salma Tannus.
Departamento de Saúde Mental, a pedido da Cáritas Brasileira FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro:
Regional Minas Gerais. A Cáritas Regional MG é a responsável Forense-Universitária, 1979. Trad. Roberto Machado.
pela Assessoria Técnica dos Atingidos e Atingidas pelo
Rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana. FREITAS, Carlos Machado de et al. Desastres naturais e saúde:
uma análise da situação do Brasil. Ciênc. Saúde Coletiva. 2014.
MILANÊZ, Bruno. LOSEKANN, Cristiana. (Orgs). Desastre no Vale
do Rio Doce: antecedentes, impactos e ações sobre a destruição.
Rio de Janeiro: Folio Digital: Letra e Imagem, 2016.
PÁL PELBART, Peter. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São
Paulo: Iluminuras, 2003.
PRISMMA: Pesquisa sobre a saúde mental das famílias atingidas
pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana / Maila de
Castro Lourenço das Neves et al. organizadores. – Belo Horizonte:
Corpus, 2018
QUINET, Antônio. A descoberta do Inconsciente: do desejo ao
sintoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
SASSEN, Saskia. Expulsões: brutalidade e complexidade na
economia global. São Paulo: Terra e Paz, 2016.
ZONTA, M.; TROCATE, C. (Orgs.) Antes fosse mais leve a carga:
reflexões sobre o desastre da Samarco / Vale / BHP Billiton.
Marabá: Editorial Iguana, 2016.

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*Monique Sanches Marques é doutora em Urbanismo pela Universidade


Federal da Bahia/ PPG-AU/UFBA com período sanduíche em Paris,
França, alocada no LAIOS/ CNRS/ Centre National de la Recherche
Scientifique ( L’Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales/EHESS),
mestre em Teoria e Prática do Projeto de Arquitetura e Urbanismo pela
Universidade Federal de Minas Gerais EAUFMG/ NPGAU, graduação
em Arquitetura e Urbanismo. Professora Associada do Curso de
Arquitetura e Urbanismo da UFOP (Univeridade Federal de Ouro Preto).
E-mail: monique.marques@ufop.edu.br

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