8611-Texto Do Trabalho-24315-1-10-20160224

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Apresentação

Memórias coloniais: práticas políticas e culturais entre a Europa e a África*

No início de 2006, no seio do Africa-Europe Group of Interdisciplinnn; Studies


(AEGIS), que agrega vários centros de investigação europeus de estudos africanos,
surge a ideia de promover uma maior ligação e cooperação entre as respectivas
revistas, nomeadamente através da publicação de números temáticos afins, que
pernútam uma leitura comparada de fenómenos homólogos. A revista Politique
Africaine (do Centre d'etude d' Afrique noire - Institut d'etudes politiques de
Bordeaux) sugere o questionamento comum sobre as reconfigurações das memórias
do passado colonial, aproveitando o contexto de intenso debate púbüco sobre aquela
problemática na sociedade francesa1 . Aquela revista tinha já publicado duas
contribuições iniciais para o tema (BoiLLEY, 2005; CHR.511.EN, 2005). Um dos textos
examinava os debates que se desenrolaram em França a propósito do artigo 4.0 da lei
de 23 de Fevereiro de 2005, que estabelece que os programas escolares devem
reconhecer o papel positivo da presença francesa além-mar, nomeadamente na
África do Norte. O outro analisava o passado colonial através da lente do «dever
histórico», com alusões ao debate belga sobre a colonização e as su as manifestações
recentes (por exemplo, a exposição do Museu de Tervuren, «Mémoires du Congo au
temps colonial», 2005).
Em Junho de 2006, a Politique Africaine publica o dossiê <<Passés coloniaux
recomposés: mémoires grises en Europe et en Afrique», coordenado por Christine
Deslaurier e Aurélie Roger, com o objectivo de apreender as implicações políticas dos
fenómenos de rememoração relativos à situação colonial na Europa e em África.
Trata-se de focar não apenas os usos políticos da memória, do ponto de vista
instrumental, mas também as visões parcelares concorrentes no interior das
comunidades nacionais e, ,para além destas, à escala intemacional. Inclui artigos
sobre as «memórias cinzentas»2 do passado colonial em diferentes contextos pós-
coloniais europeus e africanos.

Agradeço ao Pedro Aires Oliveira as crfticas e sugestões que fez a este texto.
Desde finais dos anos 1990, o debate sobre o pass.1do colonial da França vinha irrompendo no espaço público
daquela antiga metrópole, mas terá sido a promulgaç~o da le.J de 23 de Fevereu'O de 2005 que mais contribu-
iu para a visibilidade e para o impacto da dl<;eussJo sobre as representações colectivas das memórias coloni-
ais. Desta vez, mobilizaram-se simultaneamente grupos muito diversos: as~ociações oque reprei;entam actores
ligados à história colonial (repatriados, descendentes de antigos colonizados, antigos combatentes da guerra
da Algéria, etc.); o Estado, através da edificação de «lugares de memória" e de disposições legislativas que
estabelecem a «memória oficial»; o campo tntelectual e o universitário, mediante a publicação de numerosos
ensaios e trabalhos dentfficos; e os meios de comunicação social que dão conta com frequência de questões
contemporâneas ligadas, directa ou indirectamente, ao período colonial (vd. BANCEl.., BALNCHARD & LAMAIRE,
2006: 9-10).
1 Os coordenadores do dossii! não quiseram cunhar um conceito, antes sugerir uma metáfora capaz de poten-
ciar a reflexão. Segundo eles, ela permite, antel. de mais, insi!>lir no carácter fundamentalmente compósito dos
fenómenos de rememoração (d. DESLAURlER & ROC.ER. 2006: 8).
lO LI \GOLA CN.,TI IO

Romain Bertrand procw·a compreender o regresso da controvérsia pública em


França sobre o «facto colonial», à luz das lutas ideológicas entre dois campos
distintos: as associações de repatriados da Argélia e de defesa da memória da OAS
(Organisation armée secrete), capa7..es de influenciar a agenda parlamentar devido ao
seu peso eleitoral; e uma nova geração de associações de defesa dos imigrantes que
questionam a «integração republicana» dos jovens filhos da imigração. Segundo o
autor, a mediatização dos debates sobre a «lei do véu» e, concomitantemente, sobre
o Islão c;m França, ampliados pela dramatização da ameaça terrorista após o 11 de
Setembro de 2001, potenciou uma renovada polémica sobre a pedagogia da
<<integração>> e o fracasso da República francesa no ultramar.
Partindo da conexão estreita entre naoonalismo alemão c aventura colonial,
Reinhart Kõssler dtscute a amnésia da Alemanha relativamente ao seu breve mas
brutal passado de dominação em África. Essa amnésia, que remonta ao fim da ll
Guerra Mundial, foi posta em causa em 2004, pela celebração do centenário do
extermínio de 80% dos Herero da Narrubia pelo exército imperial alemão. As
desculpas semi-oficiais apresentadas pela ministra alemã do Oe,envolvimento e da
Cooperação Económica colocaram na ordem do dia o reconhecimento da
responsabilidade e a questão da reparação. No mundo académico e na opinião
pública, a discussão sobre a utiliú!ção do termo «genocídio» para designar os
acontecimentos na Nanúbia, enquadrou-se num debate mais geral sobre o
significado do colonialismo germânico na hi'>tória da Alemanha no século XX, muito
marcada pela ideia da singularidade do Holocausto.
Do outro lado do espeU1o, Vicent Bertoul disseca as estratégias políticas de
manipulação das memórias do genocídio dos I lcrero na Namíbia, evocado desde
1924 por organizações culturais locais. A conjuntura da campanha eleitoral de 2004 e
do centenário do massacre colocou na ordem do dia questões como a expropriação
de terras comunitárias pelo Estado colonial ou as reparações do genoódio
reclamadas à Alemanha e, surpreendentemente, permitiu uma aproximação entre o
governo da Narrubia e os representantes dos I Ierero. A instrumentalização da
memória não se destinou a obter compensações financeiras, como o governo alemão
parece julgar, ma!> faz parte integrante do jogo político daquele país africano.
Marie-Emrnanuelle Pommerollc analisa o intenso debate suscitado pela
publicação de dois estudos históricos sobre a repressão da insurreição Mau Mau, no
Quénia1. Os dois estudos coincidem na revelação da extrema violência cometida pelo
Estado colonial britânico nos últimos anos de presença no Quénia. Neste país
africano, a recuperação da memória da violência sobre os guerrilheiros Mau Mau,
serviu para legitimar a coligação que derrotou o partido único em 2002 e as
exigências de ••justiça>> e de «verdade» a propósito dos crimes ~loniais. No

Caroline ELKINS (2005), Brilam's Gulng: Tire Brutnl End of fmpm• in Ktnycr, Londrc,, Jonathan CaJW; \' David
ANDERSON (2005), Hrstcm~ ofthe Hanged Tlrt D~tly U'flr m 1\mya and the End o( E.mp~rt, Nova lorqu~. Londres.
W.W. Norton.
APRESENTAÇÃO ll

mundo anglo-saxónico, o levantamento das memórias deste perfodo mal conhecido


da história do Império britânico veio sobretudo contestar o suposto pacifismo
colonial e a imagem civilizadora do Reino Unido. Ora, a classe politica britânica
recusa ou prefere deliberadamente ignorar essas memórias. E na academia surgiram
críticas à abordagem subjectiva e militante de Caroline Elkins e ao uso intensivo que
fez dos testemunhos orais dos Kikuyu4 •
Achille Mbembe começa por reflectir sobre as funções do terror, a «parte
maldita» da colonização, e sobre as funções fantasmagóricas, a «parte secreta» do
potentado colonial. Argumenta que o disposjtjvo fan tasmagórico assenta em dois
eixos: o cálculo das necessidades e os fluxos do desejo; entre esses eixos encontra-se
a mercadoria. A parte final do artigo inclui uma análise sobre as atitudes dos
nacionalismos africanos pós-coloniais em relação às estátuas, aos monumentos e à
arquitectura coloniais que ocupavam o espaço público e as ambiguidades em torno
da questão do <<nome próprio» dos países, das cidades, das ruas e praças. O autor
conclui que o trabalho de memória sobre o passado colonial passa pelo
reconhecimento da verdade do que se passou e não pela destruição da sua
materialidade e considera que a África do Sul foi o país africano onde essa reflexão
foi mais profícua.
O dossiê da revista Politique Africaine termina com a transcrição e a análise por
Kalala Ngalamulele do falso discurso do rei Leopoldo ll da Bélgica aos primeiros
missionários do Congo, que circula por vários países africanos há dezenas de anos
(nomeadamente através da Internet) e tem legitimado uma releitura do confronto
entre missionários cristãos e colonizadores, no momento em que as Igrejas recrutam
em nome da sua «africanidade».

Portugal e África: memórias coloniais ou luso-tropicais?


Com o presente dossiê dos Cadernos de Eshtdos Africmws procuramos responder
ao desafio lançado às revistas científicas europeias de estudos africanos, contribuindo
para o alargamento e aprofundamento do debate, numa perspectiva cruzadas.
Abordamos o mesmo objecto genérico- a reconfiguração das memórias coloniais na
Europa e na África - e partilhan1os os mesmos pressupostos teóricos, isto é, o
reconhecimento do carácter social e dinâmico da memória 6. Queremos reflectir sobre
as representações coloniais sob o ângulo das suas permanências na actualidade pós-
colonial. Mais do que as imagens do passado colonial e a recordação dessas imagens,
interessam-nos os modos e as lógicas de reconfiguração dessas imagens no presente,

O livro de Carolme Elkins também foi recenseado em jornais e reVibtaS anglo-saxóni<:as (vd.
http: // www.metacritic.com /books/ authors/ elki:nscarolineI imperial.reckoning# critics). Na l..ondon Ret11ew of
&oks, 11 recensAo favorável de Bernard Porter (http:// www.lrb.eo.uk / v27/ nOS/ portOl_.html) seguiu-se um
ontenso debate (http: // www.lrb.eo.uk/ v27/ n U / letters.html; http: /I www.lrb.oo.uk/ v27/ nl4 / letters.html).
s O mesmo se preparam para fazer as revistas AfnciU! ~ Orirnti (Bolonha) e Afrikn spectrum (Hamburgo).
6 A memória colectiva opera dentro de quadros sociais (comUilS aOl. indivíduos de um mesmo grupo) e é
reconstruida em ÍUilçãO dos seus quadros sociais actuais, isto é, da acç,'io do presente sobre o passado (vd.
H albwachs, 1994 [ 1925)).
12 CLÁUDIA CASTELO

em função de considerações do nosso tempo, de preocupações contemporâneas de


grupos sociais concretos. Assumimos a noção de memória colectiva como construção
e processo social (consciencializada, verbalizada ou incorporada?) e não como mera
recordação individual do vivido.
O objectivo deste dossiê é reunir contribuições que clarifiquem, de forma
original e plural, a reconstrução da memória do passado colonial na Europa e em
África, dando particular destaque a espaços ffsicos e humanos que integraram o
chamado terceiro império colonial português. Os artigos agora apresentados foram
elaborados por investigadores de diferentes áreas disciplinares (História, Estudos
African~, Antropologia, Estudos Literários), recorrendo a metodologias distintas e
partindo de pontos de observação geográfica c tematicamente diferenciados:
Portugal, Bélgica, Angola e Moçambique; a identidade nacional, a política
museológica, o trabalho forçado, as relações inter-raciais e inter-étnicas, a criação
literária e a cultura popular (o futebol).
As interrogações dos colegas da Politique Africaiue serviram-nos de guia e
ajudaram-nos a formular novas questões. Se em França houve quem diagnosticasse
uma «fractura colonial» (BANCEL, BLANCHARD & LEMAJRE, 2006), em Portugal tal não
será evidente. No campo político e na opinião pública portuguesa continua a
registar-se uma escas..<;& de debate, mormente nos meios de comunicação social,
sobre o pa..,sado colonial. A colonização não é um assunto discutido na sociedade.
Regra geral, faz-se uma avaliação positiva da expansão, dos «Descobrimentos» e do
colonialismo português (do Oriente a África, passando pelo Brasil), para a qual
concorre uma certa retórica luso-tropicalista muito vulgarizada8, a que não escapa a
generalidade do espectro político. As ideias de urna especial capacidade dos
portugueses para lidar com outros povos e de uma relação particularmente afectiva
com a África e o Brasil, bem como a interiorização da norma anti-racista9, contribuem
para a ausência de um questionamento crítico "'bre o colonialismo.

7 Paul Connerton chama a atenção para a import3ncia da memória como f~culdade cultural de lran."Jnis..;)o de
prática.~ corpora•~ na~ e como tradiçõe<. [)o>fende que ih tmagen." do pa~«ado e o conh=mt"flto recordado do
pii5Sildo -.\o convocados e ~u-tentado!. por pt·rfonnann.-s ntudi~ e que e"sa memória é corporal . A memónd
'OCial mcorporada é um a~pecto essencial da memória o;o,;Jal, embora sc1a um a~pccto mu•to descurado, em
favor dat; tran'imís<>ões escrito' ou inscntas de memória!. (vd CON,ERTON, 1999).
Em traços gerai,, o lu<;o-tropicali~mo (doutrina desenvolvida pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, 1900-
1987) p<><>tuiJ uma capacidade ~pecial do-. purtugueses p.tra ~ uni.n!m aos trópico:. por uma ligação de amor
e nAo de mt•'n,..<e. e ai con.,tituírem socit.-dades multrrraa<us marcadd!. JX'Ia me>tiçagem e pela mterpenctra·
ção de cultura, E.'i...a pt\'d•'f'O"'ção resultava do <eu pa,<;ado étmco e cultural. mdefirudo dl'Sde <empre entre
a Europa c a Áfnca, e SUJeito a um longo contilcto com O!> ,\rabc!.. O E.~tado Novo soube Df'"'l"inr-st• das m.!>.i ·
mas luso-tropkalistas para 'c dclender daq prcs.<ães da romunidade internacional, sobretudo no quadro da
O~. ma.' tamb<'m em campanhas de propaganda mtema. Se o Brasil era o exemplo maJor do génio colon.·
zador portugul;,. em Angola e Moçambtque preparavam-se •novos Bra,i<•. Ora esta doutrina foi de grandl'
utilidade para o fortalecimt'nto da ideia dt' •unidade da na\:\ó plurironbnental portuguesa• e para o progra·
ma de 6~aç~o dl• metropohtanos no ultramar lntemamentl', uma versão nactonalllilil do lu...o-tropicali~mo fo•
entrando no imagmário nactonal, contnbutndo parn o fortalecimento da tmagem l!m que os portttguc'>t.>s
melhor o;e rcv~·m: um povo plástico, frah:mo e tolerante (vd . CA~IELO. 19'18· %-101).
• Só muito n."<Xntemente um ~'<{Ueno parttdo de extrema-dtretta de fora do ~pectro parlamentar, o Partido
Naaonal Renovador CP:"~. R). ousou expre>sar tdcia:. explicitamente xenófob.3s, uo;ando para o efcito um c.trta.t
colocado numa das pnnopa•• praças de Li'<boa, instando tl:'ô im•grante:. a voltarem para o• >eu• paíse. de ori-
gem (•Façam boa viagem•, consta no sloga/J).
APRESE.'\CTAÇAO 13

De facto, o Estado português tem preferido evocar o período colonial mais


exaltante: a expansão, os «Descobrimentos» e o Império Português do Oriente. Em
1986 criou a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses (CNCDP), com o propósito de assinalar oficialmente o ciclo de
«descobertaS>> marítimas portuguesas. Nesse quadro comemorativo, que
programaticamente se deveria extinguir em 2000 (passados SOO anos sobre a chegada
de Pedro Álvares Cabral ao Brasil), não havia lugar para revisitar o colonialismo
português tardio. Embora a CNCDP tenha patrocinado algumas (escassas)
iniciativas que extravasavam o período áureo dos «DescobrimentoS>> portugueses, fê-
lo sem qualquer visão integrada e apenas respondendo a solicitações pontuais de
investigadores10• Dentro da mesma lógica de enaltecimento dos feitos marítimos dos
portugueses, em 1998, organizou~se em Lisboa a última exposição universal do
século, sob o signo dos Oceanos, e coincidindo o quinto centenário da d1egada de
Vasco da Gama à Índia.
Depois do 25 de Abril de 1974, da descolonização e da instauração da
democracia em Portugal, a política externa portuguesa orientou~se para a Europa,
sem esquecer o Atlântico. As relações politicas, diplomáticas, económicas e culturais
de PortugaJ com as suas antigas colónias (do continente africarto e com o Brasil) são
sempre remíveis a uma suposta irmandade lusófona, assente numa herança histórica
e num idioma comum (onde ressoa, entre outras, a ideia de uma comunidade de
sentimento e de cultura, teorizada por FREYRE, 1951 [19401: 39). Nessa óptica, cm 17
de Julho de 1996, foi criada a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que
congrega Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São
Tomé e Príncipe e, desde 20 de Maio de 2002, Ttmor-Leste.
No espaço público português, a memória do «fim do império» é que, de tempos
a tempos, irrompe como um problema mal resolvido. O partido mais à direita no
parlamento português (CDS-PP) foi porta-voz de algumas reivindicações dos antigos
combatente, da guerra colonial c dos chamados «e:ipoliados do Ultramar». Além
disso, entre uma parte significativa da população portuguesa, sobretudo a que
regressou à antiga metrópole após a independência das ex-colónias, faz-se um juízo
muito negativo sobre o modo como se procedeu à descolonização, não obstante a
rápida e bem sucedida integração de meio milhão de retomados na sociedade
portuguesa (sobre este tópico vd. PIRES, 1987). Com o descaso da esquerda 11, a direita
portuguesa conseguiu impedir que se fizesse um exame crítico do colonialismo
tardio, centrando as atenções na descolonização, apresentada como desastrosa, e

IQ Refira--e, a totulu dc t•xemplo, Orlando RISFIRO (1999), Coa 1CI56: Rt•lntMul ú<l Cot't'mo, Usbo.l, CNCl)l', publica-
do por inicratlva dl' Suzanne Oaveau, o.1m prl'fácio de Fernando Ro<..1'
11 Durante o Estado Novo, até ao infdo da gul•rra colonial, houve uma ~rt., bintonia entre o regtmc c a ~<oposi·
çào dcmocr.íltca• em tomo do naciorwH., mo p<>rtuguês, da tntegrid,l\lc da •nação pluriconhnl'ntal portugue-
sa• e da voc.1ção hi-tónca do pai!.. Só o:. arwrqut~t.l• do JOrnal A Blllollul -.e demarcaram dl"<lll os anO"> 20 do
naoonah,mo colonial Mesmo o PCP tt've um.1 po-;iç.'lo amblguJ a<> longo do tempo e só no '<'U V Congre,o.o
(1957) ddcndl'U e'>.phcitarnente o diretto doo; povos das colónta'l portugul'-.a' i\ autodt'termtna\"âo. Sobre a
po»iç.1o do PCP ~labvaml'flte :1 que-.t3o colomal. vd . Judith M~~lA (2004), u Par/i Commtmístt P11rlu!o:ars ti /JJ
que;tion wlmualt, 1921-1974, Bordeaux, Univcr-.itl" Montesqwl'U 1 - de doutorammto em GO:ncia Política.
14 Cl.AUL>li\ CASJLLO

culpabilizando o Partido Socialio;ta pelos aspectos mais dramáticos do retorno dos


portugueses que viviam nas antigas colónias. O êxodo forçado da esmagadora
maioria da população branca, as guerras civis cm Angola e Moçambique, a falta de
democraticidadc do regime angolano, os inúmeros golpes militares na Guiné-Bissau
são, directa ou indirectamente, assacados à forma como Portugal descolonizou.
Em Portugal não existe uma política oficial de memória relativa ao d1amado
terceiro império português: não foi promulgada legislação específica sobre a
preservação da memória do colonialismo ou sobre o seu tratamento nos programas
escolares, não estão em preparação museus, centros de pesquisa ou outros espaços
de ev<X<Jç.1o e reflexão relativos à nossa presença colonial em África 17 No entanto,
desde a d('\.<tda de 1980, por iniciativa de associações de antigo~ combatentes da
guerra colonial. foram erguidos, um pouco por todo o país, monumentos aos
combatentes e aos mortos do ultramar. Também <..c lhes prestou homenagem na
toponímia. Por iniciativa da Liga dos CombatentC!-;, cm 1994, foi inaugurado pelo
Presidente da República Mário Soares um monumento aos combatentl>s do ultramar,
junto à Torre de Belém (Lisboa). Nesse monumento, em 2000, o Presidente da
República Jorge Sampaio dt.>seerrou as lápidt.>s com os nomes dos cerca de 9.000
portugue.o,es mortos na guerra. Ent:retanto, em 1998, fora criado o Museu da Guerra
Colonial, na delegação de Famalicão da Associação de Deficientes das Forças
Armadas, mediante um protocolo de colaboração com a Câmara Municipal e o
Externato Infante D. Henrique, de Rw1he (Braga). Cm 2001, esse Museu organizou a
exposição itinerante «Guerra colonjal - uma história por contar•·, que percorreu
diversos municípios do país. A lei n.0 9/2002, muito ansiada pel<k> ex-combatentes,
reconhece o seu esforço de guerra para efeitos de aposentação e reforma.
0.. chamados «retomados•• (portugueses e seus descendentes onundos das ex-
colónias ou que vieran1 viver para Portugal após a descolonização) c os antigos
combatentl>s encontram-se entre os grupos que, de urna forma mais sistemática,
promovem a construção e reelaboração das memórias do passado colonial. Às vezes,
em contexto clínico ou de ajuda especializada, como é o caso dos vetcran<k> vítimas
da desordem de stress pós-tráumático13. Porém, apenas os segundos quiseran1 e
conseguiram colocar algumas das suas reivindicações na agenda política. Os
primeiros parecen1 sobretudo apostados numa rememoração privada ou semi-

u Em Lasboa,. por pte>-.3o de antigos klde>!O da ea,a do. E'tud.Jnt•'S d•• Império. que funcionou para mwt~
)0\'l'ft<da' rolónaa' como espaço de et>nc;dl•nualizaç~ polfti<a antamlomal, e por onde p.1SSM.lm muillh d~
lldl'fl'S dos movim..onto-. de libertaçJ<~ afncana. a Cãmara \tunka~'<~l dl' La'boa ool<X<'u uma placa na calçada
em frentl' ~ antiga~" da a<.o;ociaç;lo (no cruzamento da Av.:nal.l Duque d" Ávíla .:om a Rud Dona E~tefãnaa).
Não~ nmhl'<:<'m outras mobtliza(Õl"' da SO<tcdade aval l'm dl•il-s.a da pn."iervaçllo da m~mória do pas.,ado
colonial. Rl•fira ·~.... no entanto, qlU.' o moviml'nto dvlco NIT<> llf'<IRIIrm a Mm11lria!, cri.adu l'm 2005, pretende con-
tribuir p.tr,J a pn>moç:'io de uma memória colN:Liva e pubhca do qui.' for a luta contra o n·gtnw fa..ct~ta e colo-
ruali.~ta do f•tado Novo, pela li~rdadl• e pel.1 democrao.1 •·m Portugal, !'mpi'"h.;mdu·~oe na 'alvaguarda di.'
lugan... de mL'tnória Apre"entou urna pehçllo na A'~bll'ta da Rt·publica. que l'llln'tanto h>l alvo de um rela-
tório d<> deputado Marque<; junr~>r, e aguarda votação.
O Sobre a retnvl'nç3o da histórra da~ gut:rras coloniaí• e a pn><:ura de uma «>lução terapt!utiC'll.. moral e politíc.t
ebcaz. atravb do v<>cabulàrio p<->quJ.!Inco, vd, lt1b QuL''TAIS (2000), Jh ~n'TIJS a>Tonuzis portugursas t' a inwn-
Çifu lh HIStória. L•~bc..... lmpreru.a Gl'ncía.q S<Xiru~.
APRESENTAÇÃO 15

pública dos aspectos positivos das suas vivências africanas no período colonial (o
espaço, o clima, a paisagem, o exótico, a abundância, o nível de vida, o prestígio
sociaL o poder, a infância e a juventude, as sociabilidades, o convívio multirracial,
etc.), a que se associa uma condenação implicita da descolonização. Recordam as
últimas décadas da colonização, de intenso desenvolvimento económico de Angola
e Moçambique, de constituição de (<sociedades multiraciais» progressivas no
ultramar, lamentam (entre a mágoa e a revolta) a destruição dessas sociedades, a
violência, a guerra e o drama do ext1io ...
De facto, pouco tempo depois do «regresso das caravelas», grupos de
«retomados» (portugueses que viveram ou nasceram numa mesma localidade de
Angola ou Moçambique, estudaram na mesma escola ou que trabalharam numa
mesma empresa colonial) e de antigos i11fermediários do império (membros das elites
cabo-verdiana, goesa ou timorense do período colonial) começaram a reunir-se
anualmente (em almoços, convívios, piqueniques), numa lógica de cíclico «retomo»
a um tempo/local de saudade. Nos últimos anos, verifica-se uma apetência crescente
por tudo o que tem a ver com as antigas colónias portuguesas. Parece haver uma
urgência de convocar essas memórias, mesmo da parte das gerações mais novas que
já nasceram depois das independências. Paralelamente, temos assistido a um
florescimento de memórias sobre África (que extravasam o tópico da guerra colonial)
na imprensa, na produção editorial e audiovisuaJ14. No campo literário, a excelente
recepção e o êxito comercial do romance Equador são, como assinala Giorgio de
Marchis neste dossíê, um expressivo sinal da ~~u rgênda de recondliação» da
«comunidade mnemónica portuguesa» com o seu passado colonial. A Internet já se
afirmou como um espaço privilegiado e pulsante de encontro, partilha e
apaziguamento, de repositório e de reconstrução de memórias coloniais15.
No campo das memórias colectivas e das emoções partilhadas pelos
portugueses que viveram nas colónias, África é, invariavelmente, o parafso perdido. A
criação de lugares de memória (físicos, simbólicos ou virtuais), a multiplicação de
recolhas de testemunhos, a publicação de álbuns de fotografias e de relatos

" Um exemplo recente foi o programa Sooedade Civil (RTP2) de 24 de Abril de 2007, dedicado ao tema
·Descolonização: o meu coração ficou em África». •Na v6peril do 25 de Abril~ o Sociedade Civil quis •tlvuli-
nr a presmçn dos p<>rtugueses no corrtin.-ntt• nfriamo, que ct:o"<lU rom a descolimizaçtTo. Mmt()S trouxeram villlrrrias dífr-
mrtes,laços fortes, remurrscências de outras cultrmlS, e umo ligação nos PALOP que mi além do snudode. Dep01s destes
anos todos, o que rC$ta de África no coração dos porlltgueses?• (http: // sodedade-civil.blogspot.rom /2007 I 04 Ides-
coloni.7.acao-o-meu-corac:ao-fíc:ou-em-africa.htm). OutTQ, e~empll)h dl)h últimos anos: o álbum África 30 <mos
dq>oi.<, publicado pela revista Visão, em 2005; álbuns de postais e de fotografias das prmopaLS cidades de
Angola e Moçambique; romances, memórias e biografias que dec:orrem em África no período colonial, a tele-
novela A ]6in dr África, cuja trama ~e pal>Sava em Moçambique no;. anos 50 (TVI, 2003); docurncntoirios televi-
SI\'OS sobre antigos colonos e o retomo dos nacioruus após a descolonização.
r; Na rede global há uma miríade de siles, fóruns de discu«sào e blogues <;obre as ex-colónia'> portuguesas no
continente africano (www.sanzalangola.com, wvvw.diamang.com, www.moçambique.blogs.sapo.pt,
www.macua.blogs.com/ moçambique_para_todos, www.ma-schamba.blogspot.com, www.retornados.net,
www.postaisullramar.com, etc.). Refira -<;e que o sitr SanzaiAngola cumpriu em Dezembro de 2006 quatro anos
de existência e conta com nove mil inscritos de vários cantos do mundo. Ali se têm reencontrado amigo> e
familiares que tiveram relação com Angola no pl'ríodo colonial. Além de um fórum, o sitl' tem uma galeria de
foh.>grafias, postais e estampas, informação sobre a história, a geografia, a etnografia e a literatura de Angola
e aloja textos literários e memorial(sticos.
16 CLÃ.UDIA CASTELO

autobiográficos de antigos colonos não é apenas uma manifestação de nostalgia da


felicidade pretérita e do império, tem também a ver com a inexorabilidade do tempo:
os meios de memória são perecíveis (sobre os conceitos cm itálico, vd. NoRA, 1984: XVll-
XLU); é agora ou nunca.
Nas ex-colónias portuguesas do continente africano, por seu turno, não parece
haver uma forte tensão e/ ou oposição às memórias veiculadas pela antiga potência
colonial. Os governos dos países independentes não terão pejo de u~ em função de
agendas próprias, o discurso da irmandade linguística, cultural e histórica. Acresce
que cm Angola e Moçambique, devido à guerra civil c à vigência de regimes de
partido único após a independência, as memórias dos conflitos mais recentes, das
dificuldades materiais e da insegurança ontológica sobrepõem-se às memórias do
período tardo-coloniaJI 6. De forma perversa, e em aspectos concretos, como o
desenvolvimento e o dinamjsmo da economia, a segurança física e material, as infra-
estruturas disponíveis, o acesso ao mercado, a comparação pode até «beneficiar» o
balanço que é feito do domínio colonial17• Como mostra Jcremy Ball no presente
dossiê, a recolha de testemunhos orais sobre vivências do quotidiano tem a
virtualidade de perscrutar com mais pormenor os meandros desses processos de
reconstrução da memória do colonialismo e revelar como são recordados alguns dos
seus aspectos mais gravosos. No caso vertente, o trabalho forçado, mas também se
poderiam levantar memórias sobre o esbulho de terras, as culturas obrigatórias, a
discriminação de estatuto jurídico, os entraves no acesso à educação, ao emprego e à
promoção social, as prepotências, as arbitrariedades e outras manifestações de
racismo.
Sobre esta problemática, subsistem aliás muitos lugares-comuns que importa
questionar. A ideia muito disseminada de uma especificidade - positiva - da
colonização portuguesa, em comparação com as re.tante; colonizações europeias,
sobretudo em oposição ao sistema do apartlteid sul-africano, tem raízes antigas e uma
credibilidade que poderá radicar no discurso de cientistas sociais relativamente
insuspeitos, como Orlando Ribeiro e Jorge Dias. Sobre as perplexidades e
contradições em que se envolve Jorge Dias na análise comparada da realidade do
16 Sobl'l! o caso moçambicano, vd. <..abriel Mithá RIBEIRO {2000), As n•prt•>mlaç/J<'s S<Jcitris dos moçambrcmros: do fiiiS·
qjtfo colonial à d~mocralrzaçdo: •·,l~>ço r/e uma cultura política, U~boa, ln~tltuto d.1 Cooperação Portugues~ . Trata·
se de um dos raiO!> trabalhos o,obre a~ memónas coloniais e pó~columa•~ no contexto do terceiro império por·
tugu~.
17 Em contextos rurai.~ moçambtcano-.. entre 1994 e 2002. Jo'>é Ptmentel Tt•txetra deparou~ com discuro,os que
valorizam a tecnologia ~onómtca dos portugueses no período wlontal, '"'ummdo •particular relevo a
m...mória da imporUnóa da l'l!de de comerciahzação rur..l. (TID.EJRA, 2003: 105). Na última fase do coloni,lli8-
mo (que cotncidiU com um grande aumento do tnv.,timento capitah•ta). n.1" cantinas maioritariamente deli·
da~ por CODli.'J'Ciantes portugul'lk."', a populaçAo rural podia wnder os M'Ui e~.:roent.:. agrícola, e comprar
uma variedade de bcru. de con~umo e de pre:.tígio. A exbt~nua da rede comcroal fomentava o aumento da
produção e a circulaç.io relahva de moeda na economra rural O canhnt"tl'\l portuguh é retroo.pectivamenh.•
a.<,ociado a uma Cl'rta pro,pcndadl' e •recordado pelo nome e caractt·rf•tica~ f"-'SS<lais, o !bico, a ramOta, o,ua
tral>Cibilidade ou placidez, talento' de caçador, alcoolismo, grau do.' hone~hdade, etc., ou sqa como pcr..ona-
gem integrado na ordem social .. {TflXfiRA. 2003: 107). A denúncia d~ vtolimt.h relações de exploração dtrigem-
se ao portugu~ condutor di>tantc do $istema relacional (a Admim~traçJo) e n~o tanto ao português cantinl!i·
ro, integrável nas rela~'Õ<'s ;ociJi~ loca1s, •potencial inimtgo pt!lo~ suas onjusta~ acções comerciais e cumpliei·
dades com o Estado, mas tamb.!m ahado po.>lao, razõei (ou ~J.l, pt!las práti.:.h) rnvel"'\3~• (TEJXEIRA, 2003: 112).
APRESTh'TAÇÃO 17

Planalto Maconde (Norte de Moçambique), do Tanganhica e da União Sul-Africana,


no que se refere à discriminação e às relações raciais, fala-nos Rui M. Pereira no
último texto deste dossiê. Perante testemunhos vivos da iniquidade difusa e
arbitrária do colonialismo luso no Norte do Moçambique e da !benignidade da
«indirect rule» britânica no Tanganhica, é com um certo alívio que Jorge Dias assinala
as <Wantagens comparativas» do sistema colonial português relativamente ao
racismo institucionalizado e explícito do vizinho sul-africano (cf. p. 140).
A suposta imurudade dos portugueses ao racismo ou aquilo que poderíamos
denominar um racismo de baixa intensidade eivado de paternalismo, por
contraposição a um modelo de racismo institucionalizado, o Apartlzeid sul-africano, é
um argumento usado não apenas pelos ex-colonizadores, mas também por outros
grupos étnicos do antigo império português. Mais à frente, Susana Pereira Bastos
indica-nos que a reprodução de alguns mitos sobre a especificidade do colonialismo
português entre hindus de origem indiana que viveram em Moçambique nas últimas
décadas da administração colonial portuguesa pode servir estratégias identitárias de
afirmação local e na diáspora portuguesa e britânica, face a outros grupos raciais e
étnicos.
No meio académico português, até grosso modo ao 25 de Abril de 1974, privilegiou-
se o estudo do império português do Oriente e do segundo império- das plantações
e minas do Brasil-, em detrimento do terceiro império português (1825-1975). A
longevidade da ditadura explica a debilidade de uma historiografia anticolonial e a
abundância relativa de uma historiografia hagiográfica sobre o império português.
Apenas nas últimas três décadas o colonialismo dos séculos XIX e XX se transformou
em objecto de pesquisa para a historiografia portuguesa. Surgem estudos apostados
em desfazer mitos cuja construção recua ao final de oitocentos e que foram
reelaborados pelo nacionalismo imperial da I República e do Estado Novo. Também
aparecem trabalhos académicos e de divulgação científica sobre as guerras coloniais.
Mais recentemente, o estudo do coloniaJismo tardio extravasou o campo da
História, sendo apropriado por outras Ciências Sociais (como a Antropologia e a
Sociologia) e pelos chamadós estudos pós-coloniais. O colonialismo e o pós-
colonialismo entraram nos curricula universitários, seja nas disciplinas de graduação
seja como tema de cursos de mestrado. Têm sido organizados colóquios, cursos
livres, seminários e exposições sobre o período colonial, ainda que maior incidência
nas guerras coloniais e nos movimentos de libertação. Apesar de continuarem a
aparecer alguns textos que rei ficam a nostalgia do passado colonial, surgem cada vez
mais trabalhos de investigação apostados em problematizar, comparar e
contextualizar para iluminar processos de tensão e negociação, momentos de ruptura
e longas persistências. É esse o papel da História: contrariar a tendência da memória
para simplificar a complexidade do vivido, para reduzir as lembranças a essências,
para exaJtar aquilo que convém ao grupo que recorda e esquecer os aspectos mais
negativos da sua acção.
18 CLÁUDIA CASTELO

Porém, como afinna Valentim Alexandre neste dossiê, as conclusões deste labor
historiográfico «transitam dificilmente para a história geral de Portugal, e dai para o
ensino- passos essenciais para o exercício de qualquer influência na reformulação do
discurso identitário nacional, tão necessária à adaptação do pais a um sistema que se
globaliza» (p. 41).

Contributo para uma leitura comparada


Uma leitura cruzada do dossjê «Mémoires grises» da Politiq11e Africnine e do
dossiê que agora se publica nos Cader11os de Estudos Africanos permite-nos constatar
que a «nostalgia colonial», como nostalgia da grandeza pretérita do pais (BLANCEL,
BLANCHARD & LEMAIRE, 2006: 23), não é uma singularidade francesa ou portuguesa.
O balanço globalmente positivo do passado colonial- enfatizando as vantagens que
a «missão civilizadora» ou o encontro de culturas trouxeram aos colonizados- é
comum a várias antigas metrópoles. O esquecimento institucionalizado sobre os
aspectos mais brutais do colonialismo tardio (o trabalho forçado, as culturas
obrigatórias, o esbulho de terras, a violência da administração colo1úal e a repressão
dos movimentos independentistas, etc.) afectou a França, mas também a Alemanha,
a Bélgica, a Grã-Bretanha e Portugal.
No caso português, os agentes da ruptura revolucionária do 25 de Abril de 1974
-os militares- foram, simultaneamente, os principais agentes da repressão colonial.
Este facto conduziu a um silenciamento ou, pelo menos, a uma ocultação das
circunstâncias em que ocorreram alguns dos episódios mais cruéis da guerra
colonial. Os massacres de Moçambique (Wuyamu e Mocumbura, distrito de Tete,
Dezembro de 1972) são um exemplo paradigmático dessa amnésia deliberada:
apesar da denúncia do padre Adrian Hastings no jornal londrino Times (10 de Julho
de 1973) e das conclusões mais moderadas do inquérito das Nações Unidas, depois
da instauração da democracia nunca se procedeu a uma investigação exaustiva do
sucedido e houve até manobras de intimidação contra jornalistas que tentaram
aprofundar o caso18. Do lado moçambicano não surgiram iniciativas reclamando
uma reparação das vítimas, provavelmente porque a Frelimo não quis antagonizar
os militares portugueses no período da transição para a independência19.
A enorme visibilidade do debate público em França nos últimos dois anos em
tomo desta problemática não tem comparação em nenhuma das outras antigas
metrópoles europeias e não resulta de dinâmicas espontâneas. Fica a dever-se à
grande capacidade de intervenção politica das associações dos repatriados da

1" Refira-se que o JOrnalista ]osé Amaro, organizador do livro Mnssarr~> 1111 g11r"a colomal: Tetr, um <':remplo, publí·
cado em Li'iboa, pela Ulme.iro, em 1976, foi ~Ivo de um processo por abuso de liberdade de 1mprensa, mstau·
rado pelo Estado-Maior do Exército. Cf. reportagem de Felfda Cabrit.1 aluhiva aos 20 anos do' massacre de
Moçambique, Exprrsw, 5 de Dezembro de 1992.
1o Sobre o inquérito da Comis:<ão das Naç~ Unida<~ aos massacres de MOÇilmblque e as pressões internacionais
para m1tigar o impacto das suas audiçõe' a ..cguir :à qu~'<la do regime de Cat>lano, d. a te5e de doutoramento
de Pedro Aires Oliveira, indicada na bibliografia final.
APRESENTAÇÃO 19

Argéüa (pieds-noir) e das emergentes assodações de imigrantes. Assiste-se à


convocação de memórias coloniais concorrentes em função de estratégias políticas e
partidárias locais. Em Portugal, os «retomados» das antigas colónias cedo desistiram
de se constituir como um Lobby, optando antes por se integrar na sodedade
portuguesa. Por sua vez, as associações de imigrantes não têm peso suficiente para
influenciar a agenda política.
A persistência em museus das antigas metrópoles de narrativas produzidas em
contexto colonial (como no caso do antigo Museu do Congo belga, de Bruxelas, até
2005, tratado neste dossiê por Aurélie Roger) denota que algumas antigas potências
coloniais europeias têm revelado maior dificuldade em adequar os seus quadros
sociais da memória ao contexto pós-colonial. As narrativas veiculadas pelos novos
museus criados ou em preparação em várias cidades da França correspondem à
vontade de valorizar a presença colonial francesa, em resposta a exigências de
associações de repatriados da Argélia (BANCEL, BLAND-IARD & LEMAIRE, 2006: 18). Por
seu tumo, a inauguração em 2006 da Cidade nacional de história da imigração, nas
instalações do antigo Museu das Colónias (Paris), inviabiliza a reutilização daquele
lugar emblemático como um lugar da memória da colonização. Em Portugal, o
Ministério da Cultura anunciou que tem em preparação um Museu do Mar e da
Língua Portuguesa para o edilicio do antigo Museu de Arte Popular, em Belém (que
por sua vez funcionava nw11 pavilhão da Exposição do Mundo Português, de 1940),
cujo conceito associa a língua às navegações portuguesas20. Pouco se conhece do
projecto, mas nada faz supor que inclua uma abordagem critica e plural do que foi o
colonialismo português em África. O Reino Unido parece ser o país que mais
rapidamente e como maior eficácia reactualizou a sua política museológica em
relação ao império, adaptando-a ao seu discurso oficial, o multiculturalismo (veja-se
o caso do British Empire and Commonwealth Museum, em Bristol).
Nos países que estiveram sob o domínio colonial, as narrativas identitárias
nacionais tiveram de fazer uso da memória da dominação colonial e da luta contra o
colonialismo. As relações que estabeleceram com o passado colonial não foram
unívocas nem lineares. Hoje, ·em África, as memórias coloniais não servem apenas
para revelar episódios de opressão, violência e sofrimento que tiveram lugar no
passado, legitimar os movimentos independentistas e afirmar a nação; são utilizadas,
de forma deliberada, em jogos políticos locais; e estão impregnadas em aspectos da
cultura política e da cultura popular, que adquiriram larga autonomia em relação ao
legado colonial, como nos revela Nuno Domingos a propósito do futebol em
Moçambique.
Na historiografia europeia é recente o desenvolvimento da investigação
científica sobre a história dos impérios, numa perspectiva que vise ultrapassar o
duplo simplismo do anticolonialismo e da hagiografia, convocando e confrontando

2u A notícia foi divulgada na imprensa, nomeadamente por Alexandra CARJTA, «Museu da língua nasce em
Belém», Expresso, n.n 1772, 14.10.2006.
20 C LA U I>IA CASTELO

diferentes fontes (incluindo as fontes orais, particularmente relevantes no trabalho de


campo em África), revisitando acontecimentos pouco estudados, questionando
rep~ntaç~ concorrendais. Tal reflexão está mais avançada no Reino Unido e em
França do que em Portugal21 • Nas ex-<:Olónias o panorama historiográfico também
não obedece a um nível uniforme de desenvolvimento. Porém, até há pouco tempo,
na maioria dos países africanos, a história do colonialismo esteve ao serviço da
criação de uma narrativa nacional.
À margem da produção institudonal de memória, em África e na Europa,
emergem na cena pública e no quotidiano outras formas de reprodução de memória
sobre o pas~do colonial que tanto podem operar por contaminação, emulação ou
oposição, e têm obrigado a algumas reconfigurações da memória oficial do
coloniali'>mo. Para as antigas metrópoles coloniai'> continua a ser conveniente
esquecer os aspectos brutais c desumanos da dominação colonial c exaltar os seus
benefícios materiais e «dviliL.acionais»; para as ex-colónias é importante lembrar a
exploração colonial de matérias-primas c mão-de-obra e esquecer algumas
ambiguidades da luta de libertação (animosidades étnicas, lutas intestinas pelo
poder, dependênda relativamente a patronos externos, etc.) e alguns compro-
metimentos estratégicos neo-coloniais. Mas no interior destes dois grandes pólos de
produção das memórias coloniais, convivem memórias contraditórias e concorrentes
entre si, pots a lembrança c o olvido são processos em rt.'COmpo!>içau pc•manenle, em
função das estratégias e das agendas de cada grupo social, situado hi'itoricamente.

Oáudia Castelo
CEA/ISCfE

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2t Só no final dos an<b 80, um COnJunto dl' historiado~., l' antropólogo:. começa a procurar novóll> fronteirill> e
t.m1as no e-tudo do roloniali<mo, qu~ rompe-...-em com a dKotomia redutora en~ rolonaadores e roloni.Z<J-
dO» (COOPER & STOI..ER. 1989). Pda pnml."tra vez, a propo!>ta vi'Nlva colocar metrópole e colónia num me--mo
campo analilico (mesmo o;e intt.>maml."nlt> dtferenciado) l' dtngtr a pe"qUJ.Sa para as múlhpla' tcn._-.õe. no inte-
rior do império, nomeadamenll' entre os a:lon<>:> e a> populJçre. indfgenas e os colon<"' e o poder colonial.
APRESENTAÇÃO 21

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