O Conto Moçambicano
O Conto Moçambicano
O Conto Moçambicano
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ALÓS, Anselmo Peres. O conto moçambicano de autoria feminina: narrar o passado como estratégia de sobrevivência.
Revista Diadorim / Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro. Volume 9, Julho 2011. [http://www.revistadiadorim.letras.ufrj.br]
Resumo
Este artigo tem como objetivo uma reflexão geral em torno da questão do conto moçambicano ao lon-
go das últimas décadas do século XX. Após uma breve análise da situação do conto no contexto mo-
çambicano, realiza-se uma leitura da ausência de mulheres escritoras a praticar esse gênero literário,
dando especial atenção aos trabalhos de Lília Momplé, a escritora moçambicana que mais se destaca
na produção e publicação desse gênero literário.
Abstract
This paper aims to articulate a general reflection around the issue of Mozambican short story during
the last decades of the twentieth century. After a brief analysis about the situation of the short story in
the Mozambican context, it is made a reading of the absence of women writing short stories, focusing
the works of Lília Momplé, one of the most important women that have already written and published
this kind of literary gender in Mozambique.
Keywords: women’s writing and authorship, Mozambican short stories, Lília Momplé,
nation/narration
* anselmoperesalos@yahoo.com.br
Doutor em Literatura Comparada (UFRGS). Professor-leitor (Programa de Leitorados CAPES/MRE) no Institu-
to Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM), onde leciona Literatura e Cultura Brasileiras.
No campo dos estudos sobre a literatura brasileira, uma das linhas de pesquisa mais profícuas
atualmente é aquela dedicada ao revisionismo e à releitura dos cânones e da historiografia consagrados
pela crítica. Um exemplo pungente dessas atividades de investigação pode ser dado pela recente “ar-
queologia literária” realizada por pesquisadoras brasileiras ao questionarem a invisibilidade da litera-
tura de autoria feminina produzida no Brasil ao longo dos séculos XIX e XX. Ao reavaliar criticamente
os motivos que levaram à exclusão das escritoras brasileiras no século XIX, as pesquisas apontam para
o fato de que foi em função de interesses políticos, e não estéticos, que as vozes das mulheres escritoras
foram silenciadas e excluídas dos manuais, dos dicionários bibliográficos e das histórias literárias no
Brasil (Schmidt, 2005, pp. 86-110).
Todavia, há de se lembrar que outras nações de língua portuguesa (como o Timor Leste, por
exemplo) apenas recentemente obtiveram o reconhecimento de sua soberania nacional. O estabeleci-
mento do cânone literário de uma nação não é apenas um projeto estético, mas também um projeto
político, que está permeado de interesses relativos à construção de uma imagem mais ou menos de-
finida da identidade nacional. Fica evidente, assim, o fato de que as nações de recente independência
política (tais como Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo-Verde) ainda
se encontram em processo de estabelecimento de seus cânones nacionais. Isso pode ser atestado pelo
fato de que, fora desses países, a reflexão sobre as literaturas africanas em língua portuguesa se dá “em
bloco”, pensando-se na maioria das vezes em um conjunto de nações africanas cujas literaturas são
majoritariamente escritas em português. Esse gesto crítico muitas vezes termina por rasurar diferenças
irredutíveis entre diferentes literaturas nacionais africanas. Entre as obras que realizam essa reflexão
“em bloco”, cabe mencionar, a título de exemplo, livros reiteradamente citados, tais como Estudos sobre
literaturas africanas das nações de língua portuguesa (1980), de Alfredo Margarido, Literaturas africa-
nas de expressão portuguesa (1987), de Manuel Ferreira, e Literaturas africanas de expressão portuguesa
(1995), de Pires Laranjeira. As reflexões sobre as particularidades nacionais de cada uma dessas tra-
dições literárias vêm sendo trabalhadas em estudos monográficos, nos quais, na maioria das vezes, a
atenção central é dedicada a uma obra ou a um escritor em especial, e não ao corpus de obras de cada
uma dessas nações em particular.
Esse gesto crítico carrega em si a ameaça de um novo colonialismo, a partir do qual substan-
tivos como “angolanidade” e “moçambicanidade” passam a ser definidos a partir do olhar estrangeiro,
em particular da crítica literária brasileira e portuguesa. Laura Cavalcante Padilha, ao investigar a au-
sência de nomes femininos no rol das antologias de literatura africana, apercebe-se deste fato:
1. Neste trabalho, as citações são feitas tomando a segunda edição da obra, publicada em 2002.
em jornais e suplementos literários nunca chegou a ser publicado em livro. Tal como afirma Saúte, “as
páginas literárias, que desapareceram praticamente do nosso panorama mediático nos sombrios anos
90, tiveram uma importante função no surgimento e na publicação de poetas e contistas desde sempre.
Algumas das experiências mais curiosas neste campo advêm das publicações e dos suplementos cultu-
rais dos periódicos” (2002, p. 14). O próprio Saúte, no prefácio à antologia, assinala que foi necessário
remontar às esquecidas páginas do Itinerário, um importante periódico cultural moçambicano das
décadas de 40 e 50, com vistas a resgatar textos de Rui Knopfli, Ruy Guerra e Virgílio de Lemos. Cada
um desses contistas teve, em As mãos dos pretos, pelo menos um conto retirado das páginas do Itinerá-
rio. Pela primeira vez, depois de quase meio século, contos como “Zampungana”, de Virgílio de Lemos
(1954), “A Negra Rosa”, de Ruy Guerra (1949), e “Lumina”, de Rui Knopfli (1949), são publicados em
livro e colocados novamente à disposição do leitor.
A leitura dos contos que compõem As mãos dos pretos evidencia a marca da violência, da con-
testação e da denúncia como elementos constitutivos da imaginação literária moçambicana. Talvez,
nessa vocação para o “libelo acusatório” (expressão utilizada por Saúte para caracterizar a literatura
moçambicana pós-independência), resida uma das grandes forças da narrativa moçambicana. Her-
deiro das cicatrizes do colonialismo recente, é impossível para o escritor moçambicano da segunda
metade do século XX (ou mesmo dos primeiros anos do século XXI) não fazer referência à presença
constante da violência na imaginação coletiva dos seus compatriotas. A morte, o assassinato e o suicí-
dio são temas recorrentes a receber tratamento literário por parte dos contistas moçambicanos, parti-
cularmente nas décadas de 80 e 90, quando a luta pela independência deu lugar a conflitos internos que
findam apenas no final da década de 90. Vejam-se, por exemplo, contos como “Lukutúkuè” (publicado
pela primeira vez em 1979), de Ascêncio de Freitas, no qual o personagem-título, após ver seu filho
Zeca morto pela PIDE2, comete suicídio arrancando os próprios testículos com sua lâmina de barbear,
jogando-os aos pés dos milicianos colonialistas e gritando: “Toma pra vocês, toma... vocês pricisa, pra
matar todo Zeca Lukutúkuè” (2002, p. 92). Merece destaque também o conto “Caringana wa Caringa-
na” (1995), de Raul Honwana, no qual a cumplicidade dos chefes tradicionais moçambicanos com o
tráfico de escravos português é denunciado de maneira pungente e dolorosa, através do ponto de vista
de um pai que tem sua filha arrancada da família e entregue aos mercadores de escravos.
2. A PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) cumpria o papel de polícia política em Portugal, reali-
zando violenta repressão contra qualquer oposição ao regime salazarista. A PIDE teve uma participação violenta
na repressão dos movimentos independentistas nas ex-colônias portuguesas. Ainda que não se tenham evidên-
cias oficiais, a PIDE é considerada responsável pelo atentado que resultou na morte de Eduardo Mondlane (então
dirigente da FRELIMO), em 3 de fevereiro de 1969, e pela manipulação de alguns membros descontentes do
PAIGC, os quais levaram a cabo o assassinato de Amílcar Cabral, em 20 de janeiro de 1973.
Ao longo de suas mais de quinhentas páginas, a antologia As mãos dos pretos realiza uma mos-
tra representativa de trinta e quatro contistas moçambicanos. Saúte tenta, simultaneamente, conciliar
a presença de escritores consagrados, tais como Mia Couto, Paulina Chiziane e Ungulani Ba Ka Khosa,
com a de contistas, cuja obra foi publicada unicamente em jornais e suplementos literários, tais como
Heliodoro Baptista. Como afirma no prefácio à antologia, “também quis resgatar aqueles que teriam
deixado o seu testemunho ficcional nos jornais. É a antologia possível, que reflete, de certo modo, a fic-
ção que surge em Moçambique” (2002, p. 21). Todavia, há que fazer uma ressalva: ao contrário do que
se possa imaginar, os contos reunidos na antologia não possuem uniformidade no que diz respeito ao
requinte do trabalho realizado sobre a linguagem, ou mesmo na escolha dos temas a serem narrativi-
zados. Isso pode ser notado particularmente em alguns dos escritores contemporâneos antologizados,
os quais, ao tentarem fugir dos scripts narrativos tradicionais, em nome de uma ficção supostamente
urbana, não conseguem senão construir relatos prosaicos e superficiais, por vezes manchados com al-
guns respingos de crítica social. Tais contos podem, por vezes, parecer retratos realistas e socialmente
comprometidos do cotidiano maputense, em especial aos olhos do leitor brasileiro ou português; mas,
para o conhecedor da dinâmica social na capital moçambicana, esses escritos não passam de um in-
ventário de levianidades, já discutidas à exaustão dentro e fora das instituições literárias e – mais grave
ainda – descritas em uma linguagem que carece de status literário.
Mia Couto, talvez em função do reconhecimento internacional que vem recebendo, acabou por
tornar-se um modelo literário exaustivamente repetido por alguns escritores que, infelizmente, não con-
seguem alcançar o mesmo refinamento linguístico do autor de contos memoráveis como “Rosalinda, a
nenhuma” (1990), “As flores de Novidade” (1994) e “Ofélia e a eternidade” (2000), todos incluídos em
As mãos dos pretos. Alguns dos recursos estilísticos utilizados por Mia Couto, tais como a transcrição de
provérbios tradicionais em sua prosa, a reinvenção da língua através da subversão da sintaxe-padrão do
português culto, ou o hábil manejo na inovação lexical através de inusitadas combinações léxico-fonéticas
(como, por exemplo, o verbo “nenufarfalhar”, em seu Estórias abensonhadas, de 1994), não são maneja-
dos com tanta habilidade por alguns escritores que começam a publicar seus escritos a partir da segunda
metade dos anos 90, cujos nomes e textos estão incluídos na antologia de Saúte.
É o próprio organizador da antologia o primeiro a salientar a existência de alguns desníveis
entre os contos, no que diz respeito à sua “expressão inventiva”. Ainda no prefácio, Saúte afirma:
Ao reler alguns dos autores aqui reunidos, ao confrontar-me com tantos outros
que distraidamente não lera, fiquei dividido entre o espanto da descoberta de uma
literatura pujante e a necessidade de valorização de alguns outros autores que não
têm, provavelmente, a mesma expressão inventiva. Mas, sabe-se, uma literatura não
é feita só de grandes obras. Pelo que os outros também cabem no bojo desta viagem
(2002, p. 22).
Entretanto, isso não é demérito da antologia, mas sim uma de suas próprias condições de pos-
sibilidade. Em seus esforços por realizar o que chamou de “antologia possível”, cumpre destacar o tra-
balho de investigação e seleção realizado por Saúte, que obteve, como resultado, uma das mais repre-
sentativas antologias da prosa moçambicana até então publicadas. Nelson Saúte não apenas escava os
arquivos literários das bibliotecas maputenses, permitindo que contos de autores por vezes esquecidos
voltem a circular entre os leitores. Seu permanente diálogo com escritores contemporâneos ligados à
Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO) permitiu, inclusive, a incorporação de alguns textos
inéditos para a antologia, tais como os contos “A confissão de Tãobela”, de Mia Couto, “O contador dos
dias”, de Júlio Bicá, ou “O regresso do Vovô Siquice”, de Tomás Vieira Mário.
Salta aos olhos, entretanto, a escassez de vozes femininas marcando presença na antologia de
Saúte. Uma vez mais, essa escassez não implica uma postura machista do organizador, mas o reflexo
de uma das condições de possibilidade da antologia. A literatura moçambicana conta com algumas
expressivas vozes femininas na sua lírica, das quais se poderia destacar Sangue negro (2001), de Noé-
mia de Sousa. Não se pode deixar de mencionar, também a poesia de Glória de Santana, em especial
Livro da água (196?) e Um denso azul (1965), e Sónia Sultuane, que publicou Sonhos (2001), Imaginar
o poetizado (2006) e No colo da lua (2008). No romance, cabe mencionar a escrita vigorosa de Paulina
Chiziane, já bastante conhecida fora de seus país por seus romances Balada de amor ao vento (1990),
Ventos do apocalipse (1993), O sétimo juramento (2000), Niketche (2002) e O alegre canto da perdiz
(2008). Todavia, não há ainda, na literatura moçambicana, uma forte presença do conto de autoria
feminina. É nesse sentido que se revela a importância do trabalho de Lília Momplé, a primeira voz
feminina a se dedicar a esse gênero literário em Moçambique.
Lília Maria Clara Carrière Momplé nasceu em 19 de março de 1935, na mítica Ilha de Moçam-
bique, localizada ao norte do país, na província de Nampula. Concluiu seus estudos secundários na
capital da colônia, na cidade de Lourenço Marques (a antiga capital colonial que, após a independência
moçambicana, em 1975, passa a chamar-se Maputo e torna-se a capital do país). Na universidade,
frequentou durante dois anos o curso de Filologia Germânica, deixando-o para formar-se em Serviço
Social, no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa. Depois de uma temporada na Grã-Bretanha
(durante 1964) e de outra no Brasil (de 1968 a 1971), a escritora regressa definitivamente a Moçambi-
que no ano de 1972.
Encerrados os seus estudos em Lisboa, Lília Momplé trabalhou como funcionária da Secretaria de
Estado da Cultura, como diretora do Fundo para o Desenvolvimento Artístico e Cultural de Moçambi-
que e como secretária-geral da Associação de Escritores de Moçambique (AEMO), durante o período
de 1995 a 2001. De 1997 a 2001, acumulou, juntamente com a função de secretária-geral da AEMO, a
função de presidente da instituição. Durante o período em que esteve na presidência da associação, não
mediu esforços para aumentar a visibilidade das mulheres nas publicações da instituição. Foi também
representante do Conselho Executivo da UNESCO, no período compreendido entre 2001 e 2005.
Apesar de suas colaborações dispersas na imprensa, Lília Momplé destaca-se no cenário da
literatura moçambicana por seus três livros: Ninguém matou Suhura (contos, 1988), Neighbours (ro-
mance, 1996) e Os olhos da cobra verde (contos, 1997). Em 2001, foi agraciada com o Prêmio Caine para
Escritores de África, com o conto “O baile de Celina”. Além desse prêmio, recebeu também o 1º Prêmio
de Novelística no Concurso Literário do Centenário da Cidade de Maputo, com o conto “Caniço”. Es-
ses dois contos foram originalmente publicados em seu primeiro livro, Ninguém matou Suhura. Lília
Momplé tem livros traduzidos para o inglês e o alemão, por editoras de reconhecido prestígio, tal como
a Heinman.
Ninguém matou Suhura é um livro de contos composto de maneira singular. As cinco narra-
tivas que o compõem podem ser lidas de modo independente, mas, ao mesmo tempo, estão interco-
nectadas de maneira temática, através da representação e da denúncia da violenta experiência colonial
dos povos de Moçambique e Angola ao longo do século XX. Cada um dos contos retrata um aspecto
singular do colonialismo português em África, cobrindo uma linha temporal que se estende de 1935 a
1974. Cada um deles inicia com uma data precisa e, à exceção de “Aconteceu em Saua-Saua” (narrativa
que abre o livro), eles emergem do universo retratado pela escritora com uma demarcação geográfica
precisa, indicando-se a cidade na qual os eventos narrados desenrolam-se.
À exceção da última narrativa, intitulada “O último pesadelo”, que se passa em Luanda, todos
os outros contos estão ambientados em Lourenço Marques ou na Ilha de Moçambique. Em todos eles, a
autora adota um narrador em terceira pessoa, onisciente, e a focalização narrativa oscila entre a interna
(na qual a voz narrativa tem acesso aos pensamentos e ao universo interior das personagens) e o ponto
de vista externo (no qual, a partir de um locus exterior ao universo diegético instaurado pelos eventos
narrados, a voz narrativa emite seus juízos e comentários acerca dos eventos que vão sendo apresenta-
dos ao leitor). É mister ressaltar que essa técnica narrativa é uma constante ao longo de todas as obras
de Lília Momplé.
Em “Aconteceu em Saua-Saua”, relata-se a trágica experiência de Mussa Racua, um humilde
camponês recrutado para cultivar arroz pela administração colonial. Esta, arbitrariamente, demarcava
– Mas tu já viste, irmão, que vida é a nossa? – interrompe Mussa Racua – Vem essa
gente da Administração e marca-te um terreno. Dão-te sementes que não pediste e
dizem: tens que tirar daqui três ou seis ou sete sacos, conforme lhes dá na cabeça.
E se por qualquer razão adoecemos ou não cai chuva ou a semente é ruim, e não
conseguimos entregar o arroz que eles querem, lá vamos nós parar às plantações. E
os donos das plantações ficam contentes porque conseguem uma data de homens
para trabalhar de graça. E a gente da Administração fica contente porque recebe
dos donos das plantações um tanto por cabeça que entrega. E nós é que vamos re-
bentando de medo e de trabalho todos os anos. E mal podemos cuidar das nossas
machambas que nem dão para comer (2007, pp. 12-3).
A preocupação de Mussa Racua em cumprir com a cota estabelecida pela administração colo-
nial não surge em vão. Ele já experienciou na própria pele as agruras do trabalho nas plantações de si-
sal. Frente ao desespero, Mussa Racua divide com o amigo Abudo as amargas recordações do trabalho
nos campos:
– Escuta! – continua Mussa Racua, numa exaltação febril – eu nunca te falei da-
quele sofrimento. Todos os que experimentaram a plantação não querem mais falar
daquilo. A comida sabe a merda! E mesmo assim é só o suficiente para um homem
aguentar o trabalho. E aquele sisal que nunca mais acaba. Aquele sisal tem sangue,
irmão, está cheio de sangue! A trabalhar sempre doente. Doente e a apanhar por-
rada. E depois de tanto tempo, vir de lá sem nada... Sem nada, irmão! (2007, p. 13).
abandona, pois “não aguentara a longa ausência, sem notícias e sem dinheiro” (p. 17). Tais recordações
o deixam aflito, e o inevitável medo de perder a segunda esposa em uma nova temporada de trabalhos
forçados na plantação de sisal leva Mussa Racua a uma decisão desesperada: no meio da noite, aban-
dona sua palhota e suicida-se, enforcando-se com o auxílio de uma corda, em um dos galhos de uma
frondosa mangueira à beira da estrada. O administrador colonial da aldeia, após ouvir o relato, conta-
do em língua macua por um senhor transeunte ao língua (o tradutor local do administrador), expressa
sua raiva e impaciência: “– Estes cães, assim que lhes cheira a trabalho, arranjam sempre chatices. Ou
fogem ou suicidam-se. Maldita raça!” (p. 21).
A grande ironia do conto está no seu encerramento, que desvela a violência colonialista e o
racismo, a ela subjacente, através das palavras do administrador. Após o relato da trajetória de Mussa
Racua, a voz narrativa pode isentar-se de manifestar seu posicionamento frente à atitude desesperada
do protagonista. Desfralda-se assim, a partir do gesto suicida do protagonista, a denúncia da experiên-
cia colonial, e o leitor é conduzido a interpretar a autodestruição do protagonista como a única atitude
de resistência possível. As palavras do administrador, por sua vez, não marcam apenas a indiferença
do mesmo com as populações autóctones de Moçambique. O seu gesto de resistência anticolonialista
de Mussa Racua, ao ser lido e interpretado como preguiça e indolência por parte do administrador,
vilipendia o cadáver do protagonista, roubando o sentido de seu gesto desesperado: ao invés de marcar
o espaço simbólico como um germe de resistência, da única resistência possível às arbitrariedades da-
quele momento histórico, o gesto do protagonista é rasurado e apagado pela episteme colonialista.
O conto “Caniço” traz à memória do leitor, já em seu título, as reverberações dos “bairros de
caniço”, aglomerados de pequenas palhotas construídas com caniço e, por vezes, cobertas com folhas de
coqueiro ou de zinco, nas quais residiam as populações negras mais humildes, espoliadas pelo jugo colo-
nialista, e que se localizam, em grande quantidade, ainda hoje, nos arredores mais distantes de Maputo.
Cronologicamente situada no ano de 1945, a narrativa se inicia nos apresentando a história da
família do jovem Naftal, que ainda criança perde o pai, em função de uma tuberculose contraída nas
profundezas das minas da África do Sul, onde trabalhava. Com a morte do pai, a situação de pobreza
da família agrava-se, e Aidinha, a irmã mais velha de Naftal, cansada da vida miserável que leva com
a família no bairro de caniço, acaba entregando-se à prostituição. A mãe, ao descobrir o destino de
Aidinha, tenta resgatá-la:
pondeu com a fria serenidade de quem há muito tinha feito uma opção:
– Não, mãe, deixe-me viver assim. Para a palhota eu não volto mais. Nunca mais (p. 28).
Para ajudar a família, o jovem Naftal começa a trabalhar como empregado doméstico junto a
uma família de brancos, na parte rica da cidade. Tudo corre bem até o dia em que desaparece o relógio
de ouro de sua patroa: “Ouve lá, Naftal, não viste meu relógio de ouro?” (p. 34). Naftal entra em pânico,
pois sabe que tipo de acusação está subliminarmente presente nessas palavras. Ao fim do dia, quando
o patrão chega, ele e o cozinheiro da casa são levados à esquadra policial, e o patrão encarrega a polícia
de resolver a questão. Quando o patrão chega a casa, sua esposa já havia resolvido o mistério: sua filha,
Mila, havia encontrado o relógio no banheiro, e decidiu levá-lo à escola, para impressionar as colegas.
Todavia, mesmo com o mistério resolvido, o patrão se nega a ir até a esquadra para esclarecer o mal-
-entendido: “A queixa já está lá, não podemos voltar atrás. Deixa-os lá apanhar. É pelas vezes que nos
roubam e não são descobertos” (p. 35).
A partir de uma cena aparentemente banal, a voz narrativa explicita o clima de desconfiança
e bestialização da população negra frente ao racismo dos colonos portugueses. Naftal, por sua vez, é
retratado ao longo do conto de maneira a enfatizar sua angústia existencial: mesmo sendo um trabalha-
dor honesto e dedicado, o colonialismo racista coloca todos os autóctones sob a suspeita dos “instintos
roubadores” dos moçambicanos.
Já em “O baile de Celina”, conto que se passa em 1950, retrata-se a dolorosa experiência de
Celina, jovem aluna do Liceu Salazar, que está prestes a se formar. Embora filha de uma família de
poucas posses, Célia tem uma vantagem: sua mãe é modista, o que lhe permitiu não apenas estudar no
Liceu dos brancos, como também lhe possibilitou ter um vestido vaporoso e elegante para a celebração
do fim de seus estudos. Entretanto, chegadas as vésperas do baile, Celina é chamada pelo diretor da
instituição e proibida de participar do baile de finalistas, por ser negra. Indignada com o fato, retorna
a casa, senta-se em sua cama e, com uma tesoura, picota o vestido, em meio às lágrimas oriundas da
frustração de não poder participar do baile.
“Ninguém matou Suhura” – conto que dá título ao livro – é, talvez, o que mais explicitamente
denuncie as arbitrariedades do colonialismo português em terras moçambicanas. Na primeira parte do
conto, relata-se o dia do Senhor Administrador, que mantém uma garçonière em uma região afastada
da cidade, para a qual leva as garotas virgens que frequentemente encontra pelas ruas, no intuito de
violentá-las. Na segunda parte, conta-se o quotidiano de Suhura, uma jovem humilde que mora com a
avó e que termina sua vida sendo escolhida pelo Senhor Administrador, em um dos seus passeios pelas
ruas da Ilha de Moçambique, na província de Nampula, em uma tarde de 1970. Finalmente, na última
parte do conto, relata-se o estupro de Suhura, seguido de seu assassinato por parte do Senhor Admi-
nistrador e da entrega do corpo de Suhura à sua avó, que nada pode fazer senão sepultar, em silêncio,
o corpo da neta assassinada.
Finalmente, no último conto do livro, intitulado “O último pesadelo” e ambientado em Luan-
da, no ano de 1974, são apresentados os recorrentes pesadelos de Eugénio, um colono português que
viveu durante algum tempo no Hotel Guaraná, na zona da Gabela, onde se encontrava trabalhando
como designer para um rico agrimensor local. As tensões geradas pelos conflitos internos entre os colo-
nos portugueses e os militantes do MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola) fomentam
tal grau de desconfiança por parte dos portugueses residentes em Gabela, que, em uma dada noite, os
hóspedes do Hotel Guaraná reúnem todos os funcionários negros do estabelecimento e os assassinam
a pauladas, chutes e pontapés. Eugénio, que nunca escondeu sua simpatia pelo MPLA, é tomado pelos
outros hóspedes do Hotel e obrigado a assistir à carnificina, sendo, em seguida, expulso da Gabela com
toda a sua família, tendo de se refugiar em Luanda.
No projeto ficcional de Lília Momplé, torna-se evidente um esforço de vencer a amnésia social,
com vistas a, criticamente, manter vivas as recordações das violências e arbitrariedades colonialistas.
A beleza de seus contos é diametralmente proporcional à crueza da violência descrita ao longo das pá-
ginas de Ninguém matou Suhura. É recorrente, em suas narrativas, a presença de uma melancolia his-
tórica, provocada pelo apagamento das agruras da luta pela independência das ex-colônias africanas,
e um atento olhar para os desfavorecidos que mais sofreram durante a história moçambicana ao longo
do século XX. Por trás de personagens como Mussa Racua, Naftal, Aidinha, Celina, Suhura, Eugénio e
suas trágicas trajetórias, é possível para o leitor de hoje vislumbrar um pouco da experiência colonial
moçambicana através da perspectiva dos sujeitos silenciados ao longo da história recente.
Em As mil e uma noites, o rei Shariar, louco por haver sido traído por sua primeira esposa,
decide-se por deflorar uma virgem diferente todas as noites, assassinando-a na manhã seguinte. She-
eerazade consegue escapar a esse destino ao contar histórias fantásticas e imaginativas sobre diversos
temas que captam a curiosidade do rei. A cada amanhecer, Sheerazade interrompe seu conto para
continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites – as mil e uma noites, do
título da obra –, ao fim das quais o rei arrepende-se de seu comportamento e desiste da execução de
Sheerazade. Tal como no clássico da literatura árabe, as literaturas produzidas nas nações africanas de
língua oficial portuguesa que apenas recentemente alcançaram a independência política evidenciam a
importância da modalidade narrativa no seio dessas culturas: contar histórias (sejam as próprias, sejam
as alheias), muitas vezes, é a única alternativa para essas nações assegurarem a própria sobrevivência.
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