O Sr. Puntila e Seu Criado Matti

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O Sr.

Puntila e seu criado Matti

Herr Puntila und sein Knecht Matti


Escrita em 1940

Tradução: Millôr Fernandes

PERSONAGENS

PUNTILA, LATIFUNDIÁRIO
EVA, SUA FILHA
MATTI, SEU MOTORISTA
GARÇOM
JUIZ
ATTACHÉ
EMA
VETERINÁRIO
MANDA, FARMACÊUTICA
LISU, ORDENHADORA
GORDO
TRABALHADOR
TRABALHADOR RUIVO
TRABALHADOR MISERÁVEL
LAINA
SURKALA
FINA
ADVOGADO
SANDRA, TELEFONISTA
PADRE
MULHER DO PADRE
FILHA MAIS VELHA DE SURKALA

PRÓLOGO

Recitado pela Ordenhadora

Respeitável público, nossa época é triste.


Sábio é quem se atormenta, tolo é quem vive em paz.
Mas como não adianta deixar de rir,
Escrevemos esta comédia para vos divertir.
As piadas que ouvireis nesta representação
Não foram pesadas em balanças de precisão.
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Não somos usurários
Que buscam e rebuscam medidas exatas,
Damos é em sacos e toneladas como batatas.
Senhoras e senhores, apresentamos hoje
Um animal pré-histórico - o latifundiário.
Em linguagem mais simples: um proprietário agrário.
Conheceis bem o cidadão:
Um animal pau-d'água e comilão.
Onde ele se instala, é certo,
Instala-se um deserto.
Desta vez, porém, ele vem vindo,
No meio de matas magníficas,
Belos rios, lagos lindos.
Mas, no cenário, nada disso pintamos.
Prestai mais atenção no que falamos.
Vereis latas de leite tilintando nos bosques da Finlândia,
Aldeias avermelhadas por um verão sem noite,
Galos sempre acordados,
Rios que correm tépidos,
Fumaça azul subindo dos telhados.
Sentados aí,
Da primeira à última fila,
Isso tudo vereis, espero,
Na comédia do Sr. Puntila.

PUNTILA ENCONTRA UM HOMEM

Parque Hotel de Tavasto, Puntila, o Juiz e o Garçom. O Juiz cambaleia na cadeira, completamente
bêbado.

PUNTILA - Garçom, há quanto tempo estamos aqui?

GARÇOM - Há dois dias, Sr. Puntila.

PUNTILA ao Juiz, em tom de censura - Só dois dias, ouviu? E você já se dá por vencido e finge
que está cansado. E eu que pretendia falar um pouco a meu respeito, dizer como me
sinto só, discutir um pouco de política! Pois sim! Ao menor empurrão, vocês caem
todos como peras podres! É, o espírito está vivo, mas a carne é fraca! Onde é que anda
aquele médico que ainda ontem desafiava todo mundo pra beber com ele? O chefe da
estação viu quando arrastaram ele daqui, o pobre-diabo. Mas o chefe também, coitado,
depois de uma resistência heróica, entregou os pontos às sete da manhã. Naquela hora o
farmacêutico ainda estava de pé. Mas agora, por onde andará? E essas são - imaginem! -
as maiores autoridades da comarca! Para o Juiz que dorme - Bonito exemplo para o
povo de Tavasto, um juiz que não agüenta um copo bebido numa parada de caminho! Já
pensou nisso, Frederico? Um homem culto, ilustre como você, que toda a cidade olha
com admiração, que deveria ser um modelo para todos, um modelo de responsabilidade
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e sobretudo de resistência... Mas por que você não reage? Senta aqui firme, vamos, e
conversa um pouco comigo, lamentável criatura. Ao Garçom - Que dia é hoje?

GARÇOM – Sábado, Sr. Puntila.

PUNTILA – Como sábado? Devia ser sexta!

GARÇOM – Desculpe, mas é sábado.

PUNTILA – Ah, está me contradizendo? Bonito garçom! Já vi tudo: teu objetivo é espantar os
fregueses para que não voltem mais - daí essa insolência! Olha aqui, me traz outra
aguardente e limpa bem o ouvido pra não confundir tudo de novo: eu disse aguardente e
sexta-feira, compreendeu?

GARÇOM - Entendi, Sr. Puntila. Sai correndo.

PUNTILA ao Juiz - Acorda, ô, veadão! Não se deixe assim sozinho! Capitular dessa maneira diante
de duas garrafas de bebida! Se embriagou com o cheiro! Se escondeu no fundo do barco
enquanto eu remava neste mar de álcool, neste oceano - velhaco! - e mal se arrisca a
botar o nariz de fora. Que vergonha! Olha só: agora eu vou me aventurar no líquido
elemento. Sobe à mesa e "caminha sobre as águas". E caminho, caminho na
aguardente... e afundo, por acaso afundo? Descobre Matti, o chofer, que está parado na
entrada, já há algum tempo. Quem é você?

MATTI - Seu chofer, Sr. Puntila.

PUNTILA desconfiado - Você é o quê? Repete!

MATTI - O seu chofer, Sr. Puntila.

PUNTILA - Assim, sem mais nem menos? Isso qualquer um pode dizer. Eu não te conheço.

MATTI - Talvez porque o senhor não olhou bem para a minha cara. Estou com o senhor só há um
mês e meio.

PUNTILA - E agora, de onde é que você veio?

MATTI – Aí de fora. Há dois dias que estou esperando no carro.

PUNTILA – Que carro?

MATTI – O seu carro: o Studebaker.

PUNTILA - Engraçado! Você pode provar?

MATTI - Não. Só vim avisar que não tenho a intenção de esperar nem um minuto mais. Agüentei
até agora. Mas não se pode tratar um homem assim.

PUNTILA - Que coisa quer dizer um homem? Agora mesmo disse que era um chofer. Você tem de
admitir que eu te peguei numa contradição.
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MATTI - O senhor já vai ver se eu sou homem ou não. Ninguém vai me tratar como a um cachorro,
Sr. Puntila! E não pretendo ficar ali fora a vida inteira até que o senhor se digne sair.

PUNTILA - Você já disse antes que não ia agüentar. Está se repetindo. Pode ir.

MATTI - Já vou. É só me pagar os 175 marcos que me deve. A carteira eu vou apanhar lá em
Puntila.

PUNTILA - Eu conheço essa voz. Gira em volta de Matti, examinando-o como a um animal
estranho. É uma voz de homem! Senta e bebe um copo de aguardente aqui comigo! Nós
dois precisamos nos conhecer.

GARÇOM entrando com um tabuleiro cheio de copos - Aqui está a aguardente, Sr. Puntila, e hoje é
sexta-feira.

PUNTlLA - Agora sim! Indicando Matti - Um amigo meu.

GARÇOM - Amigo? É o seu chofer!

PUNTILA - Ah, é chofer? Eu sempre digo que é viajando que se conhecem as pessoas mais
interessantes. Põe dois copos nas mãos dele.

MATTI - Não sei se vou beber esse negócio, Sr. Puntila. Ainda não percebi hem quais são suas
intenções.

PUNTILA - Eu já vi tudo. Você é um homem desconfiado. Aliás, é razoável. A gente nunca deve
sentar numa mesa com estranhos. Imagina: é só você fechar um olho e te levam tudo, da
cabeça aos pés. Eu sou o grande proprietário Puntila de Lammi, um homem honrado
tenho noventa vacas. Comigo você pode beber tranqüilo, irmão.

MATTI – Eu sou Matti Altonen: muito prazer em conhecê-lo. Em dois tempos bebe os dois copos.

PUNTILA – O prazer é todo meu. Viu que bom coração eu tenho? Uma vez apanhei um caramujo
no meio da rua e tornei a colocá-lo no jardim para evitar que o esmagassem. Lembrando
bem, fui até mais exagerado. Coloquei-o no alto de um bambu para ele ficar bem
seguro. Você também tem bom coração, se vê logo. Olha, o que eu não suporto são
esses tipos que escrevem "eu" com e maiúsculo, Essa gente merece chicote. Conheço
uns proprietários que pesam cada prato de comida que dão aos empregados. Se
dependesse de mim, o meu pessoal comia carne assada o ano inteiro. Eles também são
seres humanos e gostam de comer bem, como… eu, estão no direito deles, você não
acha?

MATTI - Acho.

PUNTILA - Oh, Matti, é verdade mesmo que eu deixei você esperando lá fora tanto tempo? Isso
não se faz; você não sabe como essas coisas me deprimem. Olha, se eu fizer isso outra
vez, você pega a chave inglesa e me arrebenta a cabeça. Matti, você é meu amigo?

MATTI - Não.
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PUNTILA - Muito obrigado. Eu sabia. Matti, olhe bem pra mim: que é que você vê?

MATTI - Um pedaço de imbecil gordo e embriagado.

PUNTILA - Vê como as aparências enganam? Não sou nada disso, Matti: eu sou um homem
doente.

MATTI - Muito doente.

PUNTILA - Me agrada que você perceba. Nem todo mundo é capaz de perceber. Ao me ver assim,
ninguém diria. Trágico - Eu tenho uns ataques, sabe?

MATTI - É mesmo, Sr. Puntila?

PUNTILA - Acha que estou brincando? Tenho ataques, sim! Acordo e percebo, de repente, que
estou sóbrio! Fresco como um pé de alface. Que é que você acha: é grave?

MATTI - São muito comuns esses ataques de frescura?

PUNTILA - Uma vez por mês. O resto do tempo sou perfeitamente normal, como agora. Isto é, me
sinto completamente senhor de todas as minhas faculdades, com absoluto domínio de
mim mesmo. E, de repente, me vem o ataque. O primeiro sintoma é uma estranha
perturbação na vista. Pego dois garfos - pega um só - e só vejo um.

MATTI - Fica vesgo?

PUNTILA - Não, vejo só a metade do mundo; mas o pior é que, durante esses ataques de lucidez
total e desvairada, eu desço ao nível de um animal, não conheço mais nenhum freio. E
quando fico nesse estado, meu irmão, ninguém pode me acusar de nada do que eu faço,
pois me torno completamente responsável pelos meus atos. Não quando se tem um
coração no peito dizendo sempre que estamos doentes. Perturbado - Sabe, irmão, o que
significa ser responsável pelos próprios atos? Um indivíduo responsável é capaz de
tudo. Por exemplo, é capaz de esquecer o bem dos próprios filhos, não tem mais
amigos, fica mesmo disposto a caminhar sobre o próprio cadáver. Isso acontece
exatamente porque, como dizem os advogados, é responsável pelas próprias ações.

MATTI – E não faz nada contra esses ataques?

PUNTILA – Faço o que posso, irmão! O que é humanamente possível fazer! Bebe. Esse é o meu
único remédio. Eu engulo sem piscar, não em doses infantis, pode acreditar. Se eu posso
falar algo a meu respeito, é que eu enfrento esses ataques absurdos de lucidez como um
homem, Mas, que adianta? Voltam da mesma maneira! Veja, por exemplo, como fui
abjeto com você, que é, evidentemente, uma maravilha de homem. Taí, pega esse belo
pedaço de carne! Eu gostaria de saber que acaso admirável fez com que eu te
encontrasse, Como é que você veio parar no meu serviço?

MATTI - Perdi o emprego que tinha antes. Mas não foi por culpa minha.

PUNTILA - Como foi?


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MATTI - Eu via fantasmas!

PUNTILA - Verdadeiros?

MATTI dando de ombros - Foi na fazenda de um certo Dr, Peppman. Ninguém jamais tinha ouvido
falar que havia fantasmas lá. Antes da minha chegada, fantasma era coisa que não
existia na fazenda. Mas se o senhor me perguntar a razão, eu posso lhe dizer que os
fantasmas foram conseqüência da péssima comida, Pois todo mundo sabe que, quando a
massa de farinha vira um bolo no estomago, a gente começa a ter pesadelos e a atrair os
íncubos. E eu, então, que sou tão sensível a uma boa cozinha, sofro demais com uma
cozinha ruim. Pensei em ir embora logo, mas não tinha pra onde, e estava com o moral
muito baixo; então comecei a freqüentar a cozinha e a fazer uns comentários meio
enviesados. Não se passou muito tempo e as ajudantes da cozinheira começaram a ver
cabeças de meninos fincadas na cerca do quintal, e se mandaram. Logo depois, era uma
bola cinzenta que rolava da estrebaria; quando a gente pegava, tinha olhos e boca, como
um homem. Quando eu contei isso à governanta, ela teve uma coisa! E a arrumadeira
também foi embora quando eu disse a ela que às onze da noite, perto do banheiro, eu
tinha visto um homem andando com a cabeça embaixo do braço e até parou e me pediu
fogo pro cachimbo. Foi aí que o Dr. Peppman começou a ficar irritado, dizendo que a
culpa era minha, que eu é que fazia todo o pessoal ir embora, que na fazenda dele não
tinha nenhum fantasma. Ah, não tinha? Estava redondamente enganado, foi o que lhe
respondi. Durante duas noites seguidas, enquanto a mulher do Dr. Peppman estava na
maternidade esperando criança, eu tinha visto, com meus próprios olhos, um espectro
branco saindo da janela da governanta e entrando de mansinho no quarto dele! Aí, de
medo, o Dr. Peppman perdeu a respiração. Me despediu ali mesmo. Porém, na hora de ir
embora, eu disse o que queria: se ele pretendia que os espíritos o deixassem em paz,
devia tomar mais cuidado com a cozinha, porque os espíritos detestam fedor de carne
estragada.

PUNTILA - Compreendo. Você deixou o emprego porque eles eram miseráveis com tua comida.
Isso de você querer comer bem, em absoluto não te diminui a meus olhos, desde que
você guie bem o meu trator, não seja indisciplinado e saiba dar a Puntila o que é de
Puntila. Assim tudo irá bem entre nós. Qualquer um pode conviver com Puntila. Canta -
Você brigar comigo é um aperitivo,
Pra ir pra cama com aquele objetivo.
Com que prazer Puntila iria para a floresta derrubar bétulas, limpar os campos e guiar
trator! Mas me deixam, por acaso? Me botaram um colarinho duro que eu não posso
nem virar o queixo! Não fica bem o papai tratar da terra, não fica bem o papai bolinar as
moças, não fica bem o papai tomar café com os empregados! Mas agora acabou esse
"não fica bem". Viajo para Kurguela, dou minha filha como noiva ao Attaché, e aí posso
me sentar em mangas de camisa com quem quiser, sem dar satisfação a ninguém. Me
deito com Madame Klinckmann e pronto. E a vocês, aumento imediatamente a diária,
pois o mundo é grande e eu tenho terras e matas que chegam para vocês e chegam
também para Puntila.

MATTI ri forte e prolongadamente e depois se levanta - Muito bem, muito bem. Agora calma e
vamos acordar o Juiz. Mas, cuidado, pelo amor de Deus; se ele se assustar, nos dá pelo
menos cem anos de cadeia.

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PUNTILA – Quero estar certo de que não existe nenhum abismo entre nós dois. Diga, Matti: "Não
existe esse abismo".

MATTI – Se o senhor mandar, Sr. Puntila, não existe esse abismo.

PUNTILA - Agora me aconselha um pouco, irmão; precisamos falar de dinheiro.

MATTI - É claro!

PUNTILA - Mas é tão vulgar falar de dinheiro.

MATTI - Então não falamos de dinheiro.

PUNTILA - Engano seu, devemos falar. Por que, pergunto eu, não podemos ser vulgares? Somos
ou não somos homens livres?

MATTI - Não somos.

PUNTILA - Pois então! Como homens livres, podemos fazer o que bem entendemos. Portanto,
vamos falar de dinheiro. Tenho que arranjar um dote pra minha filha única, por isso é
que saí por aí. Nesse momento é preciso ser frio, calculista e bêbado como um corno.
Vejo duas possibilidades: ou vender um bosque ou vender-me a mim mesmo. O que é
que você me aconselha?

MATTI - Eu não me venderia, se tivesse um bosque.

PUNTILA - Que está dizendo? Você me decepciona profundamente, irmão. Sabe lá o que é um
bosque? Um bosque para você significa apenas cinqüenta mil alqueires de madeira ou é
também uma verde delícia para os olhos? E você quer vender uma verde delícia para os
olhos? Te envergonha!

MATTI - Então vendemos a outra coisa?

PUNTILA – Tu quoque, Brutus? Quer que eu me venda?

MATTI - Para começo de conversa, quem é que ia comprar?

PUNTILA – Madame Klinckmann.

MATTI – Quem? A tia do Attachê?

PUNTILA - Ela tem um fraco por mim.

MATTI - E pretende vender o seu corpo àquela dona? É espantoso, Sr. Puntila!

PUNTILA - Por que, espantoso? Mas então a liberdade, irmão? Eu me sacrifico. Que coisa sou eu?

MATTI - Boa pergunta. Que coisa é o senhor?

O juiz desperta e, com a mão, procura sobre a mesa uma campainha imaginária.
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JUIZ - Silêncio na sala!

PUNTILA - Dorme e por isso pensa que está no tribunal. Irmão, acho que agora você colocou o
dilema. Que vale mais: um bosque como o meu ou um homem como eu? Você é
magnífico! Tá, toma a minha carteira, paga a conta e guarda depois, senão eu perco.
Apontando o juiz - Tira ele daí, leva pra fora! Eu perco tudo, seria melhor não possuir
nada. Não se esqueça nunca: dinheiro fede. Matti carrega o juiz nas costas. Este é o
meu sonho: não possuir nada. Assim podíamos andar pela nossa bela Finlândia a pé, ou
usando um automovinho de dois lugares. Ninguém ia nos negar uma gota de gasolina; e,
quando estivéssemos cansados, entrávamos numa pousada como esta e metíamos um
copinho, depois que talvez nos tivessem obrigado a rachar alguma lenha... um trabalho
que você era capaz de fazer com a mão esquerda.

COZINHEIRA entra no proscênio com um balde e um vassourão, e canta –


Durante quase três dias
Puntila se embriagou,
E quando enfim foi embora
O garçom nem cumprimentou.
- "Ó, vagabundo e ladrão,
Não lhe deram educação?"
- "Já viu pessoa educada,
Depois de andar três dias
Com uma unha encravada?"

Pátio da propriedade em Kurguela. Eva espera o pai e, enquanto isso, come chocolate. O Attaché
Eino Silakka, de robe de chambre, aparece no alto da escada.

EVA – Madame Klinckmann deve estar muito aborrecida.

ATTACHÉ - Ah, titia não fica aborrecida muito tempo. Telefonei outra vez, tentando localizá-los.
Na praça da Igreja passou um carro com dois homens cacarejando.

EVA – São eles. O que tem de bom é que meu pai eu reconheço no vôo. Quando se fala dele, eu sei
logo que é dele que se fala. Quando alguém corre com um chicote atrás de um
empregado, ou dá um automóvel de presente a uma viúva, eu sei logo: é meu pai.

ATTACHÉ - Tenho horror de escândalo. Enfim, aqui, pelo menos, não estamos na fazenda. Não
tenho a menor inclinação por números, nem vontade alguma de saber quantos litros de
leite foram distribuídos na cidade. Aliás, leite eu nem bebo. Mas para escândalo eu
tenho uma sensibilidade única. Assim que o Attaché da Embaixada de Londres, depois
de engolir oito conhaques um atrás do outro, gritou para o outro lado da sala que a
duquesa de Catrumple era uma prostituta, eu o preveni imediatamente de que ia haver
um escândalo. E dito e feito. Acho que são eles. Sai rapidamente.

Entram Puntila, o Juiz e Matti.


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PUNTILA - Chegamos, filha. Nada de cerimônias, Eva, não vá acordar ninguém; bebemos ainda
uma garrafinha, aqui entre nós, e depois vamos dormir. Me diz: você se divertiu?

EVA - Esperávamos vocês já há três dias,

PUNTILA - Fomos parados no caminho, mas trouxemos tudo. Matti, pega a minha mala. Espero
que você tenha cuidado bem dela, que nada tenha quebrado. Senão vamos morrer de
sede aqui. Como vê, viemos a toda pressa porque eu sabia que você estava nos
esperando.

JUIZ - Posso cumprimentá-la, Eva?

EVA - Papai, você é um desastre. Eu morro de tédio aqui. Há uma semana que estou nesta casa
sozinha, com o Attaché, a tia dele e um romance sem capa.

PUNTILA - Nós nos apressamos, eu fiquei insistindo o tempo todo que não podíamos dar uma
mancada. Eu ainda tenho que acertar algumas coisas com o Attaché sobre o noivado, e
fiquei tranqüilo sabendo que o Attaché estava contigo. Pelo menos havia alguém te
fazendo companhia durante a minha ausência. Cuidado com a mala, Matti, não vá
acontecer um acidente. Com infinita precaução, pousa a mala e abre.

JUIZ - Puntila, me parece que Eva não demonstra o menor interesse pela situação. Com o Attaché,
diz que não consegue nem brigar! Isso me recorda um processo de divórcio, em que a
mulher se queixava do marido não lhe ter dado umas boas bofetadas quando ela atirou
um abajur na cabeça dele! Tinha ficado profundamente humilhada com a indiferença,
dizia ela.

PUNTILA - Está aí; mais uma vez tudo saiu bem. Quando Puntila se mete numa coisa, a coisa
sempre sai bem. O quê? Você não está contente? Deixa ele comigo, aquele ali. Sabe o
que te digo? Manda esse Attaché andar. Isso nem homem é.

Matti dá risadinhas cheias de maligna satisfação.

EVA - Eu disse apenas que ninguém pode se divertir sozinha com o Attaché.

PUNTILA - Mas é o que eu digo também! Pega o Matti, aí: com ele, todas se divertem.

EVA – Ah, papai, você é impossível! Para Matti – Apanha essa mala e leva para cima.

PUNTILA – Calma! Calma, por favor! Primeiro deixa eu tirar uma ou duas garrafas. Ainda quero
beber um gole enquanto discuto com você se esse Attaché embrulha ou não embrulha o
estômago. Você pelo menos, acertou o noivado com ele?

EVA – Não. Nem falamos nisso. A Matti – Não abra essa mala!

PUNTILA – Como? Não combinou o noivado? Em três dias? Mas que foi que voc~e fez? Eu te
disse que esse tipo não me agrada. Eu, pra noivar, preciso só três minutos. Olha, vai lá
em cima e chama ele; eu vou buscar uma das moças da cozinha, para ele ver como se

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faz um noivado relâmpago. E tira fora uma garrafa de Borgonha. Não, é melhor um
licor!

EVA – Não, acabou: você não bebe mais, papai. A Matti – Leva a mala pro meu quarto lá em cima,
o segundo à direita.

PUNTILA alarmado enquanto Matti levanta a mala - Ah, Eva, isso não é coisa que se faça. Não é
delicado. Você não pode deixar seu pai morrer de sede! Eu te prometo que vou esvaziar
só uma garrafa, com tranqüilidade e sabedoria; convido apenas a Arrumadeira ou a
Cozinheira. E Frederico, naturalmente, o pobrezinho também está morrendo de sede!
Seja humana, filhinha!

EVA – Estou em pé, até agora, exatamente apara impedir que você acorde os empregados.

PUNTILA – Eu estou convencido de que Madame Klinckmann… Por falar nisso, onde está ela?
Ficará um pouco aqui comigo, com muito prazer. Frederico está cansado, pode ir se
deitar, Eu vou trocar umas palavrinhas com Madame Klinckmann, o que, aliás, era
minha intenção desde que cheguei. Ah, sempre tivemos um fraco um pelo outro.

EVA – Eu o aconselho a esperar um pouco mais, Madame Klinckmann já está bem furiosa de ter
esperado três dias: acho que amanhã de manhã você não vai conseguir nem a honra de
vê-la.

PUNTILA - Vou lá bater no quarto dela e resolvo tudo. Sei como é que se trata uma mulher; essas
coisas, Eva, é natural, você não pode saber.

EVA - Sei, pelo menos, que nenhuma mulher vai querer ficar com você nesse estado. A Matti - Já
não lhe disse para levar a mala? Ainda acha pouco, três dias de atraso?

PUNTILA - Eva, seja razoável. Se não quer mesmo que eu suba pro quarto de Madame
Klinckmann, então me chame aquela gordinha engraçadinha, aquela pequenininha, eu
acho que é a governanta, não é não? Eu discuto a coisa com ela e dá no mesmo.

EVA - Papai, não exagera, ou eu mesma subo com a mala, e quando chegar lá em cima, deixo ela
rolar pela escada sem querer.

PUNTILA aterrorizado, ele pára; Matti leva a mala; Eva o segue lentamente. Com voz de rei Lear
- Vejam como uma filha trata o próprio pai! Torna a subir no automóvel. Frederico,
todos a bordo, vamos!

JUIZ - Que é que você quer?

PUNTILA - Quero ir-me embora daqui, isto não me agrada. Vê, sofro um acidente no terror da
noite, assim mesmo faço tudo pra chegar na hora, e olha como me tratam. Ah,
Frederico, isso me faz lembrar o filho pródigo: já imaginou o que seria da história se,
quando ele voltasse, em vez de um vitelo gordo e fumegante, a família lhe tivesse dado
uma esculhambação? Vou-me embora.

JUIZ – Pra onde?

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PUNTILA – Quanta pergunta! Que curiosidade! Você não viu que minha própria filha me proíbe
um cálice de álcool? Não compreende que agora eu tenho de me embrenhar na noite, em
busca de alguém que me faça a caridade de uma ou duas garrafas?

JUIZ – Raciocine um pouco, Puntila. Onde é que você vai encontrar bebida alcoólica às duas e meia
da manhã? A venda de álcool sem receita médica é proibida.

PUNTILA - Ah, você também me abandona? E ainda duvida do meu prestígio: não vou conseguir
bebida sem receita médica! Pois eu vou te ensinar como se consegue uma bebida legal a
qualquer hora do dia ou da noite.

EVA aparecendo no alto da escada - Papai, desce daí desse automóvel, imediatamente.

PUNTILA - Fica boazinha, Eva, e honra teu pai e tua mãe, se quer viver muito tempo nesta terra.
Que droga de casa! Têm o costume deixar as tripas dos convidados secando na corda. E
eu vou ficar sem mulher? Você vai ver se fico ou não fico! Pode ir dizer a essa
Klinckmann que desisto da companhia dela! Pra mim ela é como a virgem louca: não
tem óleo na lâmpada! E agora, pé na tábua: o chão vai tremer de pavor! Todas as curvas
do caminho vão ficar retas de medo! Sai violentamente em marcha a ré.

EVA descendo a escada, a Matti - Faz ele parar! Faz ele parar, eu disse!

MATTI aparecendo atrás dela - Agora é tarde. Corre como um louco!

JUIZ - Bem, acho que não vou esperar. Já não sou tão jovem quanto fui um dia. Fica em paz, Eva,
não vai acontecer nada: teu pai tem uma sorte sem-vergonha. Por favor, onde é o meu
quarto? Sobe.

EVA - O terceiro à direita, em cima. A Matti - Nós dois temos que ficar aqui montando guarda, para
evitar que ele beba com as empregadas ou caia noutras intimidades.

MATTI que procura uma posição cômoda – Ah, sim, intimidade demais é sempre um perigo. Uma
vez eu trabalhava numa fábrica de papel e o porteiro pediu demissão, porque o diretor
lhe perguntou como o filho ia passando.

EVA - Muita gente se aproveita dessas fraquezas de meu pai. Ele é bom demais.

MATTI - É verdade, os momentos em que se embriaga são a felicidade para quem trabalha com ele.
Vira um homem formidável, só vê no mundo camundongos brancos e fica com vontade
de fazer carinho neles, de tão bom que fica. Ah, é tão bom!

EVA - Não me agrada nada ouvir você falar assim de seu patrão. Espero que não tome ao pé da
letra tudo o que ele diz. Sobretudo com respeito ao Attaché. Não quero que ande por aí
repetindo as coisas que ele disse aqui de brincadeira.

MATTI - O quê? Que o Attaché não é homem? Quanto a isso, que coisa vem a ser um homem? As
opiniões divergem. Eu, por exemplo, uma vez trabalhava numa fábrica de cerveja. A
dona da fábrica tinha uma filha... Uma filha, sabe como é, que sempre me chamava para
levar o roupão dela no banheiro, porque essa filha era uma moça muito pudica. "Me traz

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o meu roupão, Matti" , gritava ela, e eu lá ia com o roupão, e encontrava ela
completamente nua. "Sabe, Matti, algum homem podia me ver tomando banho."

EVA - Não entendo o que quer dizer com isso.

MATTI - Não quero dizer nada, falo só pra matar o tempo, pra empurrar a conversa pra frente.
Quando falo com os patrões, nunca eu quero dizer nada, não tenho nenhuma opinião:
não se pode admitir uma coisa dessas nos empregados.

EVA depois de uma pausa - Gostaria que você soubesse que o Attaché é muito bem-visto nos altos
escalões do Ministério do Exterior e tem uma bela carreira diante de si. É uma das
cabeças mais brilhantes da nova geração.

MATTI - Compreendo.

EVA – O que eu quis dizer, quando disse o que disse a meu pai, na sua frente, é que não tinha me
divertido tanto quanto meu pai pensava. Além disso, o fato de um homem ser ou não
divertido, não tem a menor importância.

MATTI - Conheci um sujeito que ficou milionário vendendo margarina e artigos parecidos. E não
era um sujeito divertido.

EVA - Não sei por que estou lhe dando trela, falando do Attaché. Nós nos conhecemos desde
crianças. Acho que eu sou uma pessoa com energia demais, sabe, por isso me aborreço
com tanta facilidade.

MATTI - E então começam as dúvidas.

EVA - Eu não falei em dúvidas. Não sei por que não me entende. Acho que deve estar cansado. Por
que não vai dormir?

MATTI - Porque estou lhe fazendo companhia.

EVA - Não é preciso. O que eu tinha a lhe dizer, já disse: que o Attaché é um homem inteligente e
bem-educado, que não deve ser julgado pela aparência, nem pelo que diz nem pelo que
faz. É cheio de atenções, lê nos meus olhos todos os meus desejos. É incapaz da mais
leve grosseria, de abusar da minha confiança ou de fazer qualquer exibição de
virilidade. Eu gosto muito dele. Mas... você está com sono?

MATTI – Fala, fala, pode continuar falando, senhorita. Se eu fecho os olhos é pra me concentrar
melhor.

Cortina.

COZINHEIRA entra com um pano de limpeza e uma pazinha, e canta –


A filha do patrão leu um livro imoral
E agora diz que é intelectual.
Encontrando um empregado,
Olhou-o bem no rosto
E perguntou com enfado:
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"É verdade que, apesar de chofer,
Você também é homem quando quer?"

AS NOIVAS MATINAIS DO SR. PUNTILA

Alvorecer na vila. Casinhas de madeira. Numa está escrito: Correio. Noutra, Veterinário. Noutra,
Sementes e Ervas. No meio da praça, um poste telegráfico. Puntila bate com o Studebaker no poste
e põe-se a xingá-lo violentamente.

PUNTILA - Via livre! Esta não é a auto-estrada de Tavasto?! Sai da frente, porcaria de poste! Que
ousadia, interromper dessa maneira o caminho de Puntila! Quem é você? Você tem um
bosque? Tem noventa vacas? E então, como se permite?... Para trás! Se der mais um
passo, vai se arrepender amargamente: chamo a polícia e mando te prender como
subversivo. Desce do carro. Ah, insiste em não sair, hein? Vai até uma das casas e bate
à janela. Ema, a contrabandista, espreita medrosamente. Bom-dia, linda senhora, passou
bem a noite? Preciso que me faça um pequeno favor. Eu sou o grande proprietário
Puntila de Lammi, e me encontro numa situação verdadeiramente dolorosa: minhas
vacas estão com escarlatina, Por isso tenho necessidade absoluta de comprar álcool
legítimo. Poderia a bela jovem me dizer onde mora o Veterinário? Derrubo a pontapés a
merda desse barracão, se não me disser logo onde ele mora, tá ouvindo?

EMA - Meu Deus! O senhor está muito exaltado! A casa do Veterinário é aquela ali. Mas, se não o
entendi mal, o senhor está precisando de álcool. E álcool eu tenho: álcool do bom,
álcool forte. Eu mesma faço.

PUNTILA - Sai da minha frente, perdida! Você tem a audácia de me oferecer seu álcool ilegal? Não
sabe que eu só bebo álcool permitido pela lei? Que o outro nem me passa pela garganta?
Antes a morte, do que desrespeitar as leis de meu país. Sou um escravo da lei. Quando
preciso mandar espancar alguém, ou faço de acordo com o código penal ou não faço.

EMA – Meu caro senhor, quer saber de uma coisa? Vá para o diabo que o carregue, com suas leis!
Desaparece.

Puntila corre à casa do Veterinário e toca. O Veterinário surge.

PUNTILA - Veterinário, Veterinário, afinal te peguei! Eu sou o grande proprietário Puntila de


Lammi, tenho noventa vacas e todas as noventa estão com febre aftosa. Tenho, pois,
necessidade urgente de álcool autorizado.

VETERINÁRIO - Penso que o amigo errou de endereço. Acho melhor voltar pro lugar de onde
veio, com a graça de Deus.

PUNTILA - Veterinário, você me decepciona. Acho até que não é veterinário de verdade. Senão,
saberia o que todos dão a Puntila quando as vacas de Puntila estão com febre aftosa.
Não estou mentindo. Se eu dissesse que elas estavam com câncer, estaria mentindo, mas
quando digo que estão com febre aftosa, não é mentira: é uma senha secreta entre
homens de bem.
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VETERINÁRIO - E se eu não entender a senha?

PUNTILA - Bem, se não entender, eu me sentirei na obrigação de avisar que Puntila é o mais
terrível samurai de toda esta região. Já tem três veterinários na consciência. Sobre ele
existe até uma canção popular. Isso o ajuda a compreender minhas dificuldades?

VETERINÁRIO rindo- Ajuda, ajuda. Se o senhor é realmente um homem tão terrível, é justo que
eu lhe dê uma receita. Quero apenas ter certeza de que é febre aftosa.

PUNTILA - Olha, Veterinário, as minhas vacas estão com manchas vermelhas deste tamanho. Em
duas delas, as manchas já estão até ficando pretas; não é a doença em sua forma mais
violenta? E depois, a dor de cabeça que sofrem as pobrezinhas. Ficam a noite inteira
berrando e gemendo, se virando na cama, incapazes de pensar em outra coisa que não
nos próprios pecados.

VETERINÁRIO - Neste caso é meu dever fornecer-lhe o alívio imediatamente. Escreve a receita.

PUNTILA - A conta, manda pra Puntila, já sabe. Corre à farmácia e toca a campainha
violentamente. Enquanto espera, Ema, a contrabandista, sai do barracão.

EMA enquanto lava uma garrafa, canta –


Era no tempo de amora
O carro veio de fora
E entrou nesta cidade
Com um homem de verdade.

Torna a sair. Na janela aparece Manda, a empregada da farmácia.

MANDA - Hei, que é que você quer? Arrancar a campainha?

PUNTILA - É melhor ficar sem campainha, do que sem companhia como eu. Pissi pissi pissi pissu
sarará sururu. Preciso de álcool para noventa vacas, amor de minha vida. Depressa, meu
tesouro!

MANDA - Você precisa é que eu chame um guarda, isso sim.

PUNTILA - Ô, bonequinha. Um guarda prum homem como Puntila de Lammi? Que adianta um
guarda? Pra mim, precisa pelo menos dois. Mas pra que dois guardas? Eu quero bem
aos guardas, coitados, eles têm os pés maiores do mundo e cinco dedos em cada pé, por
quê? Porque também amam a ordem, como eu. Entrega a receita. Aqui está, lê aí, minha
pombinha: uma lei e uma ordem.

A empregada da farmácia vai buscar o álcool. Enquanto isso, Ema, a contrabandista, sempre
lavando a garrafa, aparece outra vez, cantando.

EMA -
E fomos colher amoras:
Ele se deitou na grama,
Cobiçando a todas nós
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Com o seu olhar em chama.

Torna a sair.
Manda traz o álcool.

MANDA rindo - Olha que garrafão! Espero que consiga também alguns arenques, para melhorar o
porre que essas vacas vão tomar. Entrega a garrafa.

PUNTILA – Glu glu glu glu glu... Ó, música finlandesa... a mais bela música do mundo... Meu
Deus, eu ia esquecendo. Agora tenho álcool, mas não tenho mulher. E você não tem
álcool nem tem homem. Linda farmacêutica, quer ser minha noiva?

MANDA - Muita agradecida, Sr. Puntila de Lammi, mas eu, sabe, só fico noiva de acordo com a
praxe: "anel direitinho e um gole de vinho".

PUNTILA - De acordo, não será isso que... O importante é você ficar noiva, e já não é sem tempo.
Que vida levou até agora? Me fala um pouco de você, me diz como é que vive: pra ser
seu noivo, eu preciso saber tudo.

MANDA - Eu? A minha vida é a seguinte: estudei quatro anos e meu patrão me paga menos que à
cozinheira. Metade do ordenado eu mando para minha mãe, que sofre do coração. Eu
também sofro, puxei a ela. Dia sim, dia não, pego o turno da noite. A farmacêutica vive
com ciúmes, porque o patrão dá em cima de mim. O doutor tem uma letra horrível e eu
uma vez troquei as receitas. Os remédios, caindo na roupa, queimam tudo, e o senhor
sabe o preço das fazendas. Eu não tenho amigos: o chefe de polícia, o gerente da
cooperativa e o diretor da biblioteca já são casados: portanto, eu não tenho muito com
quem me divertir. O senhor quer saber? Não acho a vida muito engraçada, não.

PUNTILA - Está vendo? Fica com Puntila! Toma, bebe um gole!

MANDA – E o anel? Se diz: "anel direitinho e um gole de vinho".

PUNTILA - Santo Deus! Não servem as argolas da cortina?

MANDA - Quantas argolas o senhor quer? Uma só, ou várias?

PUNTILA - Muitas, uma não chega. Puntila quer muito de tudo, sempre. Uma garota só não tem
sentido para Puntila, você entende?

Enquanto a empregada da farmácia vai buscar as argolas da cortina, Ema sai de casa outra vez,
cantando.

EMA -
E enquanto fermentávamos as amoras,
Conosco ele brincava alegremente,
E rindo ria e ria rindo,
Metendo o dedo no recipiente.

Torna a entrar em casa e fica espiando da janela.

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A empregada da farmácia dá as argolas a Puntila. Enquanto isso, repete a bocca chiusa o tema da
outra.

PUNTILA botando uma argola no dedo dela - Eu te espero em minha casa, domingo, em Puntila,
às oito horas. Vamos fazer uma grande festa de noivado. Ele vai andando. Passa Lisu, a
ordenhadora, com um balde na mão. Espera aí, minha pombinha! Eu te quero, menina.
Você me agrada. Onde vai a esta hora da manhã?

LISU - Tirar leite das vacas.

PUNTILA - Como, minha filha, então o balde é tudo o que você bota entre as pernas? Não quer um
homenzinho pra você? Ah, mas que vida a tua! Vem cá, me conta como é a tua vida,
menina. Você me interessa.

LISU - Minha vida é assim: me levanto às três e meia da manhã pra varrer o estábulo e limpar as
vacas. Depois tenho que ordenhar as vacas e lavar os baldes, com soda cáustica e outras
porcarias que queimam as mãos. Aí limpo o estábulo outra vez e tomo um café que me
dá dor de estômago, porque é daqueles, né? Como um pouco de pão com manteiga e tiro
uma pestana. Na hora do almoço, cozinho umas batatas com salsa. Carne, eu não vejo
nunca. De vez em quando a patroa me dá um ovo de presente ou eu acho algum no
mato. Depois eu torno a varrer o estábulo, tiro mais leite das vacas, torno a lavar os
baldes. Minha obrigação é ordenhar cento e vinte litros de leite por dia. De noite, como
pão com leite. Me dão dois litros de leite por dia, mas as outras coisas eu tenho que
comprar na fazenda. De cinco em cinco domingos eu tenho um dia inteiro livre, de noite
vou dançar; às vezes me dou mal e pego filho. Tenho dois vestidos. Tenho também uma
bicicleta.

PUNTILA - E eu tenho uma fábrica inteira, um moinho a vapor, uma serraria, e não tenho mulher.
Que é que você me diz, minha franguinha? Está aqui o anel, bebe um gole ali, e estamos
noivos de acordo com toda a praxe. Você também já sabe: domingo às oito, lá em casa,
em Puntila. Combinado?

LISU - Combinado.

PUNTILA continua a andar - Em frente, em frente, a caminho da cidade. Não agüento a


curiosidade de saber quem é que já está de pé a esta hora da manhã. As mulheres são
irresistíveis a esta hora: acabaram de sair da cama, ainda estão com os olhos brilhantes e
pecaminosos... e em volta, o mundo é tão jovem. Chega à Central Telefônica. Sandra, a
telefonista, está saindo. Bom-dia, deusa da vigília! Mulher onisciente, que sabe tudo
através dos fios mágicos da telefonia. Bom-dia a ti, minha pomba-rola.

SANDRA - Bom-dia, Sr. Puntila. O senhor, tão cedo? Que aconteceu?

PUNTILA - Então não sabe? Procuro esposa.

SANDRA - Ah, é o senhor? Eu procurei pelo senhor a noite inteira.

PUNTILA - Sim, você sabe tudo. E passa a noite inteira acordada, em vigília pela cidade. Me diz
aqui: que vida você leva?

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SANDRA - Já lhe digo. Minha vida é a seguinte: ganho cinqüenta marcos, mas há trinta anos que
não saio do escritório. Atrás do escritório, tenho um terreninho onde planto batatas.
Dava para viver, já não dá porque agora tenho que pagar meu almoço e o café está cada
vez mais caro. Sei de tudo que acontece na cidade e mesmo no estrangeiro. O senhor
ficaria espantado se soubesse o que sei. Por isso é que até agora não casei. Sou
secretária do Clube dos Trabalhadores, meu pai era sapateiro. Ligar e desligar linhas de
telefone, fazer purê de batatas e saber tudo, essa é a minha vida, Sr. Puntila.

PUNTILA - Pois é hora de mudarmos de vida! E depressa. Telefona imediatamente ao escritório


central e comunica ao diretor que você vai casar com Puntila de Lammi. Aqui está o
anel, aqui está a bebida, aqui está tudo de acordo com a praxe, e domingo às oito, já
sabe, lá em casa.

SANDRA rindo - Estarei lá sem falta. Já sei que domingo é a festa de noivado de sua filha.

PUNTILA para Ema, a contrabandista - Como vê; cara senhora, estou noivando aqui de forma
coletiva; espero que a senhora me dê o prazer de comparecer também. Ela estende o
dedo; Puntila coloca a argola.

AS QUATRO cantam -
Quando nós acabamos de comer
O homem já tinha ido embora
Mas até hoje estamos esperando
E ainda achamos que ele não demora.

PUNTILA - Tudo bem. Agora posso voltar a correr com meu carrinho, atravesso os pinhais,
atravesso a floresta, e ainda chego a tempo no Mercado dos Trabalhadores. Choc choc
choc choc choc choc chie chie chie chie. Um viva às filhas desta terra abençoada: a vós,
que, durante anos e anos vos levantastes em vão com a alvorada. Mas Puntila chegou
para vos fazer ditosas. Vinde a mim, vós todas que acendeis o fogo das matinas, fazendo
o fumo subir pelos telhados, brilhante à luz do dia! Vinde todas, de pés nus; a erva
fresca da manhã conhece os vossos pés: Puntila também vai conhecer!

Cortina.

COZINHEIRA como antes, mas agora com uma tigela de louça e uma mulher batendo massa -

Quando Puntila foi passear,


"Ó, Bela", disse, "do peito arfante!
Aonde levas, quero ajudar-te,
Tua beleza, que é tão tocante?
Será que acaso
Sais ainda escuro
De tua barraca
Para ordenhar minha vaca?
Por mim, ó bela,
Nunca te levantes do leito;
Eu deito".

4
17
O MERCADO DOS TRABALHADORES

Mercado dos trabalhadores, na praça do burgo de Lammi. Puntila e Matti e um Gordo escolhem
mão-de-obra. Música de feira, muitas vozes.

PUNTILA - Já achei demais você me deixar sair sozinho de casa; mas é ainda mais imperdoável
que não tenha ficado me esperando, me obrigando a te arrancar da cama pra me trazer
ao Mercado dos trabalhadores. Você faz como os Apóstolos, no monte das Oliveiras.
Agora eu sei que tenho de ficar de olho em você. Basta eu beber um copo a mais, que
você se aproveita pra tomar suas liberdades.

MATTI - É, Sr. Puntila.

PUNTILA - Eu não quero brigar com você, que isso me repugna. Falo pro seu bem; não me leve a
mal, me compreenda. A gente começa com um pequeno descuido e termina na cadeia.
Um empregado que espuma de inveja diante da comida do patrão é intolerável! Agora,
um empregado que trabalha é outra coisa. Se fica exigindo horas de repouso e pedaços
de carne assada do tamanho de tampas de privada, cai logo em nosso desagrado e temos
de lhes mostrar o olho da rua! Mas é evidente que você não vai se arriscar a isso.

MATTI - Não vou, não, Sr. Puntila. Eu li uma vez no Correio de Helsinque, no suplemento dos
domingos, que a humildade é uma prova de educação. Quando se é discreto, quando se
domina a paixão, se vai longe. Dizem que Kotilaine, o proprietário das três fábricas de
papel, é a modéstia em pessoa. E se nós começarmos a escolher, antes que nos levem os
melhores?

PUNTILA - Eu quero uns bem fortes. Examina um latagão. Esse não é mau, tem uns bons costados.
Mas os pés não me agradam: deve gostar muito de ficar sentado, hein? Tem os braços
do mesmo tamanho daquele ali, que é muito menor: olha o outro, como tem os braços
compridos! Ao baixinho - Você é bom trabalhador de campo?

GORDO - O senhor não vê que eu estou tratando com esse homem?

PUNTILA - Eu também estou tratando com ele, e peço-lhe o favor de não me incomodar!

GORDO - Eu incomodo?

PUNTILA - Não me venha com perguntas insolentes! Tenho horror disso! Ao Trabalhador - Em
Puntila eu pago meio marco por metro de turfa. Pode se apresentar segunda-feira. Como
é o seu nome?

GORDO - Mas que grosseria! Eu estou combinando a maneira de alojar esse homem com a família,
e o senhor vem pescar nas minhas águas. Há pessoas que não deviam ser admitidas no
Mercado.

PUNTILA - Ah, você tem família? Eu dou trabalho a todo mundo. Sua mulher é forte? Pode
trabalhar no campo? Quantos filhos você tem, e de que idade?

TRABALHADOR - Três. Oito, onze e doze anos. A mais velha é uma menina.
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PUNTILA - Vai trabalhar na cozinha. Dir-se-ia que vocês foram feitos pra mim. A Matti, de modo
que o Gordo ouça - Você vê como se comportam certas pessoas, hoje em dia?

MATTI – Isso me deixa irritadíssimo.

TRABALHADOR – E o alojamento?

PUNTILA - Principesco! Vou examinar sua carteira no café. Me espera lá no muro. A Matti -
Aquele outro lá, eu vou levar por causa dos costados, mas está com uma calça muito
boa; se fosse trabalhador já a teria rasgado. É preciso sempre prestar muita atenção nas
roupas deles. Muito boas, é que não querem estragá-las trabalhando; muito ruins, é que
são desleixados. Uma olhada e a gente julga um trabalhador. A idade, pra mim, não
importa; às vezes um velho até trabalha mais. Tem mais medo de ser despedido. O
principal, pra mim, é o homem. Basta que não seja totalmente burro. Os inteligentes, eu
não quero nem ver. Passam o dia contando as horas do trabalho, ah, eu não gosto disso;
quero manter relações amistosas com o meu pessoal. Ah, ia me esquecendo: precisava
arranjar também uma ordenhadora. Mas antes vê se encontra ainda um ou dois
trabalhadores pra eu escolher. Vou telefonar.

Dirige-se ao café. Matti fala a um trabalhador Ruivo.

MATTI - Estamos precisando de um homem pra trabalhar na turfa, na propriedade de Puntila. Mas
eu sou só o chofer, não sei mais o que dizer; o velho foi telefonar.

RUIVO - Como é a coisa lá?

MATTI - Mais ou menos. Quatro litros de leite por dia, não é mau. Dizem que dão também as
refeições. O quarto não é lá essas coisas.

RUIVO - E a escola fica longe? Eu tenho um guri.

MATTI - A uma hora e quinze.

RUIVO - Não é muito, com tempo bom.

MATTI- No verão não é muito.

RUIVO - Acho que vou gostar do lugar; não encontrei nada de bom até agora e esse troço já vai
fechar.

MATTI - Vou falar com ele. Vou dizer que você é humilde e não é teimoso; ele gosta disso. A essa
altura, já telefonou e deve estar mais tratável. Lá vem ele.

PUNTILA de bom humor saindo do café – Achou alguma coisa? Me lembrei também que tenho de
levar um pouquinho de leite, uns doze marcos.

MATTI - Esse aí não é mau. Me lembrei de tudo que o senhor disse e fiz umas perguntas a ele.
Sabe cuidar bem das próprias calças, mas não exagera, e não vive contando as horas de
trabalho.
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PUNTILA - Ele me agrada; é todo fogo, todo chama. Vou pro café, vamos discutir.

MATTI - É melhor resolver logo, Sr. Puntila, porque já vai fechar e a gente não encontra mais nada.

PUNTILA - Por que essa pressa? Entre amigos, tudo se arranja. Eu confio na sua escolha, Matti;
estou tranqüilo. Eu te conheço e te estimo. A um trabalhador miserável - Olha, esse daí
não me parece ruim; tem um bom aspecto. Eu preciso de gente na turfa, mas também
estou com falta de pessoal no campo. Vem, vamos conversar!

MATTI - Sr. Puntila, não quero me meter, mas esse daí não é bom para o senhor: não agüenta a
virada.

MISERÁVEL - Vê se te manca! Não agüento o quê?

MATTI - Onze horas e meia de trabalho no verão. Eu só quero evitar uma decepção, Sr. Puntila.
Depois ele não agüenta e o senhor vai ter que mandar embora...

PUNTILA - Vamos pro café. O primeiro Trabalhador, o Ruivo e o Miserável seguem Puntila e
Matti até a frente do café, sentam-se num banco. Olá, garçom! Antes de começar, tenho
que acertar um negócio com meu amigo aqui. Matti, você deve ter notado ainda agora
que eu ia tendo um daqueles ataques, você sabe, já falei.Eu teria compreendido
perfeitamente se você tivesse me dado uma boa surra, como eu recomendei que fizesse
sempre que me visse em tal estado. Matti, você me perdoa? É impossível eu tratar de
negócios, sabendo que existe alguma coisa entre nós dois.

MATTI – Já está tudo esquecido há muito tempo. Não pense mais nisso. Vamos resolver logo o
assunto dos contratos, para eles ficarem mais tranqüilos.

PUNTILA escreve na carteira do primeiro Trabalhador - Eu te compreendo, Matti, você me


despreza. Você me olha com asco, só admite o tom frio dos negócios. Ao primeiro
Trabalhador – Estou escrevendo o que combinamos; pra tua mulher também. Dou leite,
farinha e feijão, no inverno.

MATTI – E agora o adiantamento; sem isso não há contrato.

PUNTILA - Não precisa me empurrar. Deixa eu tomar meu café em paz! À moça que serve - Deixa
isso aí, ou melhor, traz uma cafeteira bem grande, nós nos servimos. A cara dessa gente!
Detesto esse Mercado de Trabalhadores. Quando quero comprar cavalos e vacas, está
bem, vou ao mercado com prazer. Mas vocês, vocês, que diabo, são homens! É assim
que se negociam vocês, no mercado? Isso não devia ser permitido, não é verdade?

MISERÁVEL - É evidente.

MATTI - Desculpe, Sr. Puntila, eu não concordo. Esses daí procuram trabalho, o senhor procura
trabalhadores: é preciso negociar. Isso pode acontecer no mercado ou na igreja, é
sempre negócio. Eu gostaria que o senhor acabasse logo.

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PUNTILA - Você hoje está no seu dia pior, hein? Pra me contradizer numa coisa assim tão clara.
Você acha direito ficar me examinando, pra ver se eu tenho pé chato, da mesma maneira
que se examina um cavalo abrindo a boca pra ver os dentes dele?

MATTI - Não, ao senhor eu levo em confiança. Falando do Ruivo - Ele tem mulher e a filhinha está
na escola.

PUNTILA - É menina ainda? Olha, lá vem o Gordo de novo. Basta o jeito dele andar, pra fazer
ferver o sangue dos trabalhadores: é um andar de patrão. Aposto como pertence à
Guarda Nacional e obriga os empregados a fazer ginástica todos os domingos, pra lutar
contra os russos quando for preciso. Você não acha?

RUIVO - Minha mulher lava: ela faz mais, em meio dia de trabalho, do que qualquer outra mulher
num dia inteiro.

PUNTILA - Matti, eu sei que nem tudo está enterrado e esquecido entre nós dois. Conta pra eles a
história dos fantasmas. Eles vão gostar.

MATTI - Depois. Primeiro os adiantamentos. Estou lhe avisando. Está ficando tarde. Está fazendo
eles perderem tempo.

PUNTILA bebe- Não, Matti, você não vai me obrigar a ser desumano. Eu quero me aproximar dos
meus homens do ponto de vista humano, antes de qualquer outra ligação. Primeiro
tenho que explicar a eles a espécie de homem que sou, pra que eles decidam se podem
conviver comigo. Diz a eles: que espécie de homem eu sou?

MATTI - Sr. Puntila, permita-me garantir que nenhum deles está interessado nisso; estão
interessados é num contrato. Eu recomendo que o senhor contrate esse daí - mostra o
Ruivo -, ele é capaz para o serviço, o senhor vai ver. Quanto aos outros, um conselho:
apanhando turfa, vocês não vão ganhar nem pro pão dormido.

PUNTILA - Aquele ali não é Surkala? O que é que ele está fazendo no Mercado?

MATTI - Está procurando emprego. O senhor prometeu ao padre botar de na rua porque disse que é
vermelho.

PUNTILA - Quem? Surkala! Meu único empregado inteligente? Toma, dá esses dez marcos a ele e
diz pra ele vir aqui. Vai voltar conosco no Studebaker. Amarramos a bicicleta dele na
mala, e não tem nada de ficar procurando não sei o que por aí. O coitado tem quatro
filhos. O que é que vão dizer de mim? Quero que o padre se lasque: é um cara
desumano, nunca mais vai botar os pés lá em casa. Surkala é um trabalhador de
primeira.

MATTI – Vou falar com ele agora mesmo. Não é preciso correr; com a reputação que tem, Surkala
não arranja nada. Eu só queria que o senhor terminasse com esse pessoal, mas estou
vendo que o senhor não quer nada: quer é passar o tempo.

PUNTILA sorrindo dolorosamente - Ah, é assim que você me julga, Matti? Sim senhor, você não
me entende nada, apesar de todas as oportunidades que lhe dei.

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RUIVO – O senhor podia assinar logo o meu contrato? Senão eu vou procurar outra coisa, enquanto
é tempo.

PUNTILA – Está vendo? Você faz essa gente fugir de mim, Matti. Com o seu temperamento
tirânico, você me obriga a me comportar contra minha natureza. Mas eu hei de te
convencer de que Puntila é outra coisa. Quando compro um homem, não faço isso de
coração frio. Quero que a minha propriedade seja um lar para ele. Não estou certo?

RUIVO - Bem, vou embora. O que eu quero é um emprego.

PUNTILA - Espera aí! Ele foi mesmo! Ele me servia! Eu não ia ligar pras calças dele: não julgo um
homem pelas calças. Não gosto é de fazer negócios quando bebo, nem que seja um
copo. Por que tratar de negócios, quando a gente sente é vontade de cantar? A vida é tão
bonita! Quando eu penso na volta, que beleza. Ao entardecer, então, eu adoro esta terra!
A gente vai correndo e as bétulas vão passando, Antes vamos beber mais um copinho.
Vamos, vocês têm de beber, fiquem alegres como Puntila, eu gosto de alegria e nunca
olho as despesas quando estou com gente amiga. Rapidamente distribui um marco a
cada um. Ao Miserável - Não se deixe impressionar, vou te dar um bom lugar, você vai
ficar no moinho a vapor, um trabalho fácil.

MATTI - Então por que não assina a carteira dele?

PUNTILA - Mas pra que isso? Agora é que nós nos conhecemos. Eu dou minha palavra de que tudo
vai ser feito da maneira mais correta. Então vocês não sabem o que significa a palavra
de um homem de Tavasto? O monte Hatelma pode desabar... Não é provável, hein?
Mas, enfim, pode... o palácio de Tavasto pode desmoronar, hein? Mas a palavra de um
cidadão de Tavasto é definitiva, todo mundo sabe. Podem vir comigo.

MISERÁVEL- Eu lhe agradeço. Pode contar comigo, Sr. Puntila. Eu vou.

MATTI - Em vez de dar o fora! Eu não tenho nada contra o senhor, Sr. Puntila, mas é por causa
deles.

PUNTILA num tom compenetrado - É uma atitude muito bonita, essa tua, Matti. Eu sei que você
não é rancoroso. Aprecio muito a sua boa-fé e a lealdade com que defende meus
interesses. Mas você não deve esquecer que Puntila pode se dar ao luxo de ir a todo o
vapor contra os próprios interesses, hein? Olha, Matti, quero que você me dê sempre a
sua opinião. Promete? Aos outros - Sabem por que ele perdeu o último emprego?
Porque o patrão guiava e quando fazia as mudanças arranhava a embreagem, e ele aí
disse que o patrão tinha alma de carrasco.

MATTI- Besteira minha.

PUNTILA gravemente- Eu gosto de você por causa dessas besteiras.

MATTI levanta-se - Vamos embora? E Surkala?

PUNTILA - Matti, Matti, homem sem fé. Eu não disse que ele ia voltar conosco, que é um
trabalhador de primeira e um espírito independente? Isso me faz lembrar o Gordo de

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ainda agora, o que queria roubar os meus trabalhadores: ainda tenho umas coisas pra
dizer a ele. É o capitalista perfeito.

ESCÂNDALO EM PUNTILA

Pátio da propriedade de Puntila, com uma cabina de banho, cujo interior é visível. Manhã. Na
porta do pátio, Laina, a Cozinheira, e a Arrumadeira, Fina, pintam um cartaz com os dizeres: Bem-
vindos ao noivado. Pelo portão entram Puntila e Matti com alguns trabalhadores, entre os quais
Surkala.

LAINA descendo da escada- Bem-vindo a Puntila! D. Eva, o Attaché e o Juiz já chegaram; estão
almoçando.

PUNTILA – O que eu quero é ser o primeiro a apresentar desculpas a você e sua família, Surkala.
Faz o seguinte: vai buscar teus filhos, os quatro: quero exprimir pessoalmente a eles o
meu remorso pela angústia e incerteza em que foram lançados por minha culpa.

SURKALA - Não é preciso, Sr.Puntila.

PUNTILA gravemente - É preciso, Surkala. Surkala sai. Estes cavalheiros vão ficar aqui: serve um
copo para cada um, Laina! Vão trabalhar na derrubada do bosque.

LAINA - O senhor não ia vender o bosque, pro noivado?

PUNTILA – Eu? Eu não vendo nada. O dote de minha filha é o que ela tem entre as pernas!

MATTI - Podíamos aproveitar agora pra dar o adiantamento, e o senhor ficava livre disso, Sr.
Puntila.

PUNTILA - Eu vou à sauna. Fina, me traz um café! Entra no banheiro e se despe.

MISERÁVEL - Você acha que ele me emprega?

MATTI – Não. Quando ficar bom, vê como você é e...

MISERÁVEL - Mas bêbado também ele não resolve.

MATTI - Eu avisei pra vocês não virem sem contrato.

Fina traz o álcool e os trabalhadores pegam um copo cada um.

TRABALHADOR - Fora isso, como é que ele é?

MATTI - Muito confiado! Pra vocês, isso não tem importância: vocês ficam na floresta. Mas pra
mim, no carro, estou nas mãos dele; mal dou uma respirada e ele já fica fraternal. Eu
vou-me embora. Surkala entra com os quatro filhos. A mais velha carrega o menor.
Pelo amor de Deus, dá o fora! Assim que ele sair do banho e tomar café, vai ficar mais
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fresco que um pé de alface! Azar o teu, se ainda te encontra na propriedade. Acho
melhor você sumir por alguns dias.

Surkala faz um gesto de concordância e desaparece com os filhos. Enquanto se despe, Puntila
ouviu alguma coisa mas não entendeu bem, lança um olhar para fora da cabina de banho e vê
Surkala com os meninos.

PUNTILA - Ah, Surkala, já já estou aí! Matti, vem cá, eu preciso que você me jogue água. Ao
Miserável - Você também pode entrar. Quero que me conheça mais intimamente. Matti
e o Miserável seguem Puntila na cabina de banho. Matti joga água em cima de Puntila.
Surkala sai furtivamente com os meninos. Um balde só, chega; detesto água.

MATTI - Não, não; precisa mais, agüenta. Depois o senhor toma café e vai cumprimentar as visitas.

PUNTILA - E não posso ir cumprimentar as visitas com um balde só? Quer me fazer de imbecil?

MISERÁVEL - Eu também acho que chega um balde só. Está se vendo que o Sr. Puntila detesta
água.

PUNTILA – Está ouvindo, Matti? Assim é que falam os que me querem bem. Conta pra ele como
eu coloquei no devido lugar aquele Gordo do Mercado! Fina entra. Ah, lá vem essa
deliciosa criatura trazendo o meu café. Está bem forte? Quero um licor também.

MATTI – Então, pra que o café? Nada de licor.

PUNTILA - Já sei, você agora está zangado comigo porque eu deixo as pessoas esperando. Tem
toda a razão. Mas então conta a história do Gordo, vai! Fina também pode escutar.
Conta – Olha, era um grandão, barrigudo e desagradável, um verdadeiro capitalista, que
tentava me roubar um trabalhador. Mas vai, Matti, conta você, enquanto eu tomo o café.

MATTI percebe que Fina tem os olhos grudados na tina onde está Puntila - Quando nós pegamos
o carro, a charrete dele estava lá junto. Assim que ele viu o Sr, Puntila, ficou furioso;
pegou no chicote e deu no cavalo com tanta força que o bicho empinou, relinchando de
dor.

PUNTILA - Eu não posso ver ninguém maltratar um animal.

MATTI - Aí o Sr. Puntila segurou a rédea do cavalo e acalmou o coitado. Enquanto isso, ia dizendo
ao Gordo alguns pensamentos. Eu achei até que o Gordo ia dar uma chicotada no Sr,
Puntila, mas ele viu que o nosso lado era mais forte e falou qualquer coisa a respeito de
gente sem educação, imbecis e coisas semelhantes. Na certa pensou que nós não íamos
entender. Mas o Sr. Puntila tem uma inteligência fina e perguntou a ele se, por acaso,
tinha instrução bastante para saber que os gordos morrem facilmente de um ataque
apoplético.

PUNTILA - Conta como ele ficou vermelho como um peru! Tinha tanta raiva que nem sabia o que
responder diante daquela gente.

MATTI - E1e ficou vermelho como um peru, e o Sr, Puntila gritou: "Você não deve se deixar
dominar pela raiva, porque pode morrer agora mesmo com toda essa gordura estragada
24
que tem no corpo". E que se ele ficava assim vermelho é porque o sangue lhe subia ao
cérebro, coisa que devia evitar para o bem de seus filhos.

PUNTILA - E quando eu disse de lado pra você: "Não devemos irritá-lo, percebe-se que é um
transtornado". Aí é que ele ficou irritado mesmo, você notou?

MATTI- Nós falávamos dele como se ele não estivesse ali, as pessoas em volta riam cada vez mais
e ele ficava cada vez mais vermelho. Aí é que ele começou a ficar parecido com um
peru. Antes, só com um tijolo descascado. Bem-feito pra ele. Quem mandou dar no
cavalo? Um dia, no vagão de um trem, eu vi um sujeito que sapateava de raiva em cima
do próprio chapéu, só porque tinha perdido a passagem. E a passagem estava justamente
na fita do chapéu.

PUNTILA - Agora você perdeu o fio. Eu disse a ele também que, prum homem gordo, qualquer
esforço físico, por exemplo, chicotear um cavalo, pode ser mortal. Que, por isso, ele não
devia maltratar os animais.

FINA - Ninguém deve fazer isso.

PUNTILA - Muito bem, Fina. Você merece um licor. Vai buscar, vai.

MATTI - Pra Fina tem aí o café. O senhor já está melhor, Sr. Puntila?

PUNTILA - Pior. Estou pior.

MATTI - O Sr. Puntila subiu muito na minha consideração, tratando assim aquele tipo. Bem podia
ter dito: "Não tenho nada com isso; não quero fazer inimigos entre os vizinhos".

PUNTILA que vai ficando melhor aos poucos - Eu não tenho medo de ninguém.

MATTI – É verdade. Mas quantos podem dizer isso? Só o senhor. Só o senhor pode arranjar outro
garanhão para as éguas.

FINA – O que é que têm as éguas com a história?

MATTI – Eu ouvi dizer que foi o Gordo que comprou a Fazenda Sumala: agora é proprietário do
único garanhão que nos serve nestes oitocentos quilômetros em volta.

FINA – Foi ele quem comprou? E vocês só souberam depois da briga? Puntila se levanta e passa
por trás, jogando um último balde d'água sobre si mesmo.

MATTI – Nós soubemos depois, mas o Sr. Puntila já sabia. Tanto sabia que gritou para o Gordo
que o garanhão dele não servia mais pras nossas éguas, porque estava todo cheio de
perebas. Como foi mesmo que o senhor disse?

PUNTILA - Isso mesmo: perebas... não interessa.

MATTI - Isso mesmo, perebas, não interessa! Foi engraçado.

FINA – Só faltava a gente mandar as mulas de trem para serem cobertas.


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PUNTILA sombrio - Outro café!

Servem-no.

MATTI forte - O amor aos animais é a maior qualidade dos habitantes de Tavasto, todo mundo
sabe. Por isso é que eu fiquei tão espantado com o comportamento do Gordo. Ouvi falar
também que ele é cunhado de Madame Klinckmann. Eu nem quis dizer nada, porque se
o Sr. Puntila soubesse disso, ia tratar o Gordo ainda pior.

Puntila lança-lhe um olhar.

FINA - O café estava bem forte?

PUNTILA - Não me faça perguntas imbecis. Eu não bebi? A Matti - Você aí: acha que vai ficar o
dia inteiro em pé, sem fazer nada? Vai engraxar as botas e lavar o carro, que está
imundo; é uma cloaca. E não responde! Se te apanho dizendo piadinhas ou falando mal
de mim nas minhas costas, anoto isso na tua carteira, fica avisado! Sai, sombrio,
envolvendo-se no roupão de banho.

FINA - Por que você deixou ele brigar com o dono da Sumala?

MATTI - Ué, eu sou o anjo da guarda dele? Vi que ele estava praticando um ato generoso e
honesto, isto é, estúpido porque ia contra os interesses dele. Eu ia impedir? Sempre que
está alto, ele é realmente possuído de um fogo sagrado. Teria desprezo por mim. E eu
não quero que ele tenha desprezo por mim. Quando está alto, eu digo.

PUNTILA gritando de fora - Fina! Ela aparece com as roupas. Presta bem atenção no que eu
decidi, senão vão deformar as minhas palavras, como sempre. Mostra um dos
trabalhadores. Eu gostaria de ficar com aquele ali, está vendo? Ele não procura se
mostrar, só cuida do trabalho. Mas refleti melhor; não fico com ninguém. Resolvi
vender o bosque de uma vez por todas. Vocês podem agradecer a esse aí. O canalha me
escondeu uma coisa que era fundamental. Ah, isso me faz lembrar... Grita - Ei, você aí!
Matti sai da cabina. É você mesmo. Me dá teu paletó! Eu disse me dá teu paletó, não
ouviu? Matti entrega o paletó. Agora eu te peguei, velhaco! Mostra a carteira. Sabe o
que é que eu achei no teu bolso? Eu nunca me engano. Logo vi que você tinha cara de
cadeia. Isto aqui é a minha carteira, é ou não é?

MATTI - É, Sr. Puntila.

PUNTILA - Acho que nesta você está perdido. De dez anos de prisão ninguém te livra. É só ligar
para a polícia.

MATTl - É, Sr. Puntila.

PUNTILA - Mas esse gosto eu não te dou. É o que você queria, hein? Coçar a barriga o dia inteiro
numa cela confortável e comer o pão dos contribuintes? Te caía bem, não? Ainda mais
agora, em plena colheita! Ao trabalho, patife! Vai ter que arrebentar os rins no trator. E
eu vou anotar tudo na tua carteira, tá ouvindo?

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MATTI - Estou, Sr. Puntila.

Puntila sai furioso em direção à casa principal. Na soleira, Eva, com um chapéu de palha na mão,
ouve o fim do diálogo.

PUNTILA - Não preciso de você, você não presta.

MISERÁVEL – Mas agora o Mercado de Trabalhadores já fechou.

PUNTILA – Devia ter visto isso mais cedo. Mas não, achou melhor explorar a minha generosidade.
Eu tomo nota dos aproveitadores como você, tomo nota de todos os que procuram
abusar da minha bondade. Entra na casa principal.

TRABALHADOR - É assim que eles são. Antes, te levam de automóvel. Depois te fazem voltar
nove quilômetros a pé, e trabalho, nada. É bom pra gente aprender a não ir nessa
conversa de amabilidades.

MISERÁVEL - Eu denuncio ele.

MATTI – A quem?

Os trabalhadores, desiludidos, vão saindo da propriedade.

EVA - Por que você não se defende? Todo mundo sabe que, quando está bêbado, ele dá a carteira
aos outros pra pagar as contas.

MATTI - Eu aqui não ganho pra me defender. Já notei que os patrões não vêem com bons olhos os
empregados que se defendem.

EVA – Ah, não banca o santo e o resignado. Hoje não estou com a menor disposição de achar graça
em nada.

MATTI - É mesmo. Hoje é dia do seu noivado com o Attaché.

EVA - Mais respeito, ouviu? O Attaché é um homem encantador. Apenas não é o marido ideal.

MATTI - Isso acontece, Mas uma mulher tem que escolher. Não pode casar com todos os homens
encantadores nem com todos os Attachés.

EVA - Meu pai me dá toda liberdade, você sabe. Me disse que eu posso casar com quem quiser, até
com você. Só que, como prometeu a minha mão ao Attaché, não quer que se diga que
não tem palavra. Por isso é que eu hesito tanto e vou acabar casando com ele.

MATTI - A senhorita está numa sinuca.

EVA - Não estou em nenhuma sinuca, para usar sua expressão grosseira. E até nem sei por que vim
discutir com você coisas tão delicadas.

MATTI - Discutir é humano, senhorita. É a vantagem que os homens têm sobre os animais. Se as
vacas pudessem discutir entre elas, a senhorita acha que continuariam a dar leite?
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EVA - Isso não tem nada a ver com o nosso assunto. Eu acho que, provavelmente, não vou ser feliz
com o Attaché, mas o rompimento deve partir dele. Como é que eu vou fazer para ele
compreender isso?

MATTI - É, uma pedrinha só não chega: precisa um paralelepípedo.

EVA - Que quer dizer com isso?

MATTI - Que eu é que devo resolver o caso: eu sou grosso.

EVA - Como é que você pode me ajudar, num assunto assim tão delicado?

MATTI - Digamos que eu me senti encorajado pelas palavras tão íntimas que o Sr. Puntila deixou
escapar durante a bebedeira, e segundo as quais a senhorita devia me agarrar para
marido. E que a senhorita... Posso tratá-la por você?... tinha se sentido atraída pela
minha força bruta, pense em Tarzan. Então o Attaché nos pega em flagrante e diz:
"Você não é digna de mim. Uma mulher que se degrada com um chofer não serve para
um Attaché". Funciona?

EVA – Eu não posso lhe pedir uma coisa dessas.

MATTI – Ora, pra mim é um serviço como outro qualquer. Em compensação, eu não lavo o carro.
Em meia hora nós resolvemos tudo. O importante é ele compreender que chegamos a
um grau de intimidade que não tem mais remédio.

EVA - Como?

MATTI - Eu chamo você de Eva na frente dele.

EVA - Por exemplo?

MATTI – “Eva, você esqueceu de abotoar o vestido nas costas."

EVA passa instintivamente a mão nas costas - Não esqueci não. Está abotoado. Ah, bom! Você já
estava ensaiando! Mas ele não vai se importar com isso. Não é tão sensível assim; tem
muitas dívidas.

MATTI - Então, distraído, eu posso puxar o lenço do bolso e deixo cair uma pecinha íntima sua. É
pouco sutil?

EVA - Já é melhor. Mas ele dirá que você tem uma paixão secreta por mim e que apanhou a...

MATTI - A meia.

EVA - ...a meia quando eu não estava. Pausa. Estou vendo que não lhe falta imaginação, nesse
sentido.

MATTI - Faço o melhor que posso, senhorita. Procuro imaginar todas as situações entre nós,
mesmo as mais embaraçosas, pra ver se encontro uma saída.
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EVA - É melhor deixar, sabe?

MATTI - Como quiser. Não servia, também.

EVA - O que é que não servia?

MATTI - Se as dívidas do Attaché são muito grandes, só há um jeito: sairmos juntos do banheiro.
Menos do que isso não adianta. Pra tudo mais, ele vai encontrar sempre uma
justificativa. Não conseguirá ver nada de mal no que fizermos. Por exemplo, se eu
começar a devorá-la de beijos na frente dele, ele compreenderá que isso é porque eu não
consigo mais resistir à sua beleza. E assim por diante.

EVA - Eu nunca sei quando você está brincando e quando está falando a sério. Está fazendo pouco
de mim, por acaso? Com você, eu nunca estou segura.

MATTI - E por que você quer estar segura? Não se trata de investir um capital. A incerteza é tão
humana, pra falar como seu pai. Eu adoro as mulheres, mas não tenho certeza delas.

EVA - Em você, isso não me surpreende.

MATTI - Vê? Você também tem boa fantasia.

EVA - Eu só quis dizer que nunca se sabe aonde você quer chegar.

MATTI - O dentista também, a gente nunca sabe aonde ele quer chegar, E, no entanto, a gente senta
lá e abre a boca...

EVA - Esse seu jeito de falar me mostra que a história do banheiro junto com você não vai dar. É
evidente que você ia se aproveitar da situação.

MATTI - Enfim, alguma coisa da qual você tem certeza. Sabe, a senhorita tem tantos escrúpulos
que eu até fico sem vontade de comprometê-la.

EVA - Acho melhor que você me comprometa sem muita vontade. Escuta: eu concordo com o
negócio do banheiro. Mas é melhor andar depressa. Daqui a pouco eles acabam de
comer e vêm pra cá discutir o noivado. Vamos logo.

MATTI - Entra você primeiro. Vou buscar o baralho.

EVA – Baralho pra quê?

MATTI – Como é que nós vamos passar o tempo no banheiro?

Entra em casa. Eva se dirige lentamente para o banheiro. A Cozinheira entra com um cesto.

LAINA – Bom dia, dona Eva. Eu vou apanhar pepinos. Quer ir comigo?

EVA – Não obrigada. Estou com dor de cabeça. Vou tomar um banho.

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Entra na cabina.
A Cozinheira abana a cabeça. Puntila e o Attaché entram, vindos da casa. Fumam charutos.

ATTACHE - Sabe, Puntila, estou com vontade de ir com Eva para a Côte d’Azur. O barão Vaurien
me empresta o Rolls-Royce. Quer me parecer que isso é uma excelente propaganda para
a Finlândia e para o Corpo Diplomático. Há tão poucas mulheres de classe em nosso
meio.

Laina entra com o cesto cheio de pepinos.

PUNTILA - Onde é que está minha filha? Saiu?

LAINA - Está aí dentro, Sr. Puntila. Disse que ia tomar um banho, porque estava com muita dor de
cabeça. Sai.

PUNTILA - Eva sempre com essas extravagâncias. Desde quando se toma banho pra dor de
cabeça?

ATTACHÉ - É realmente muito original. Mas quer saber de uma coisa, Puntila? Nós não
exploramos devidamente nossos banhos finlandeses. Eu até já conversei sobre isso com
o ministro, quando estávamos numa conferência tentando obter um empréstimo.
Precisamos de métodos mais agressivos para difundir a cultura finlandesa. Por exemplo:
por que não há banhos finlandeses no Piccadilly?

PUNTILA - Por falar nisso, o ministro vem ou não vem à nossa festa?

ATTACHÉ - Ele me prometeu solenemente. Está em débito comigo, depois que eu o apresentei ao
diretor do Banco Internacional de Comércio; ele anda muito interessado em estanho.

PUNTILA - Preciso falar com ele.

ATTACHÉ - Ele tem um fraco por mim, todo mundo sabe lá no Ministério. Me disse uma vez:
"Você é um homem que se pode enviar a qualquer lugar, você não comete indiscrições,
não se mete em política". Ele acha que eu represento muito bem.

PUNTILA - Será de espantar, se você não fizer uma carreira brilhante Mas o ministro tem que estar
aqui na festa de noivado, eu conto firme com ele. Aí é que eu vou ver o teu prestígio.

AITACHÉ - Fica tranqüilo, Puntila. Uma coisa já é proverbial no Ministério: eu não perco nada,
sempre acho.

Matti entra, um guardanapo no ombro, dirigindo-se ao banheiro.

PUNTILA - Onde vai, vagabundo? Eu teria vergonha de ficar assim zanzando sem fazer nada.
Como é que você justifica o dinheiro que tem pagam? Olha que eu não te dou a carteira
e você acaba como um bacalhau podre, daqueles que caem do barril e ninguém apanha.

MATTI - Sim, Sr. Puntila.

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Puntila se volta de novo para o Attaché. Matti, tranqüilamente, entra na cabina. Puntila, a
princípio, não vê nenhum mal nisso. Logo se lembra de que Eva está lá e olha estupefato para a
porta que Matti acabou de fechar.

PUNTILA - Como vão as tuas relações com Eva?

ATTACHÉ - Muito bem. Ela me trata com uma certa frieza, mas é temperamento dela. Eu comparo
isso à nossa situação com a Rússia. Em linguagem diplomática, diria que nossas
relações são corretas. Vem comigo, vamos colher um ramo de rosas brancas para ela.

PUNTILA saindo com ele, sempre de olhar fixo na porta - Vamos, sim, acho que é melhor.

MATTI dentro do banheiro - Vai tudo bem. Eles me viram entrar aqui.

EVA – Engraçado é meu pai não ter feito nada. A Cozinheira disse que eu estava aqui.

MATTI – Quando ele percebeu, já era tarde. Deve estar com a cabeça estourando da ressaca. Mas
foi sorte nossa ele ter visto, pois eu acho que só a intenção de te comprometer não
chega. É preciso que realmente aconteça alguma coisa entre nós dois.

EVA – Será que vão pensar mal de nós, apesar de tudo? Ninguém faz essas coisas assim de manhã
cedo.

MATTI – É bom: isso indica uma paixão fulminante, que não escolhe hora nem local. Um sete-e-
meio? Dá as cartas. Em Viburgo, tive um patrão que comia a qualquer hora do dia,
qualquer quantidade. Antes do café, às vezes até depois do almoço, se lhe dessem um
franguinho assado, ele não conversava. A paixão dele era comer. Fazia parte do
governo.

EVA – Como é que você pode comparar?

MATTI – Como? Em amor há também o mesmo tipo de apetite. É a tua vez de jogar. Você acha
que no estábulo esperam até que seja noite? É verão, estamos excitados. Lá fora, gente
demais em toda parte. Num quartinho como este se fica muito bem protegido. Mas está
quente, hein? Tira o paletó. Por que você não fica um pouco mais à vontade? Pode
deixar, que eu não olho. Quanto vale a partida: meio marco?

EVA - Eu me pergunto se não é tremendamente vulgar tudo isso que você está me dizendo. Não se
esqueça de que não está falando com uma empregadinha!

MATTI - Não tenho nada contra as empregadinhas.

EVA - O que você não tem mesmo é educação.

MATTI - Já ouvi dizer isso. Os choferes são conhecidos pela grosseria. E não sei por que, não têm o
menor respeito pela gente de bem. Dizem que é por causa da intimidade no automóvel:
a gente de bem fica sentada logo ali atrás, fala muito, os choferes ouvem tudo e vão
perdendo o respeito. Deve ser isso. Sete-e-meio, ganhei!

EVA - No Sacré-Coeur de Bruxelas só se falava de coisas limpas.


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MATTI - Eu não me referia a coisas limpas ou sujas; me referia à estupidez do que falam. É a sua
vez de dar. Mas embaralha bem, senão sai o mesmo jogo.

Entram Puntila e o Attaché, este com um ramo de rosas.

ATTACHÉ - Mas essa Madame Lehtine tem um espírito! Eu disse: "A senhora seria perfeita, se não
fosse tão rica!". E ela me respondeu: "Eu acho perfeito ser tão rica!". Ah! Ah! Ah! Sabe,
Puntila, que quando eu fui apresentado à filha de Rotschild, no palácio do barão de
Vaurien, ela me deu exatamente a mesma resposta? Uma mulher de espírito, também!

MATTI - Dá uma risadinha, como se eu estivesse te fazendo cócegas. Senão, eles passam sem nem
perceber nada. Eva ri um pouco, sem deixar de jogar cartas. Não está soando tão
divertido.

ATTACHÉ parando - Ué... não é Eva?

PUNTILA - Que nada! Impossível. Deve ser outra qualquer.

MATTI alto, jogando as cartas - Mas como você é cosquenta!

ATTACHÉ - Escuta!

MATTI baixo - Agora se defenda um pouco.

PUNTILA - É o chofer que está aí. Acho melhor você levar as rosas lá pra dentro.

EVA - Não! Não! Assim não!

MATTI - Ah, deixa!

ATTACHÉ - Mas você sabe, Puntila? É igualzinha à voz de Eva.

PUNTILA – Por favor, Eino, não me ofenda.

MATTI – Agora me trate com mais intimidade; você agora desistiu de uma resistência inútil.

EVA – Não! Não! Não! Baixo - O que é que eu digo mais?

MATTI – Diz que eu estou abusando, que não tenho esse direito... Pensa numa situação verdadeira!
Faz o teu papel: põe sensualidade nisso!

EVA – Você está abusando, Matti, não tem esse direito...

PUNTILA berra - Eva!

MATTI – Mais! Mais! Você está cega de paixão! Bota as cartas de lado, enquanto continuam a
representar a cena de amor. Se ele entrar, tem que nos pegar em flagrante. Senão, não
adianta.

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EVA – Ah, isso não!

MATTI virando um banco com um pontapé - Agora você vai sair daqui como uma cadelinha
molhada.

PUNTILA - Eva!

Matti despenteia cuidadosamente os cabelos de Eva. Ela arranca um botão da blusa e sai.

EVA - Chamou, papai? Eu estava mudando de roupa, para ir dar um mergulho.

PUNTILA - O que é que te deu? Que maluquice estava fazendo aí no banheiro? Pensa que nós
somos surdos?

ATTACHÉ - Não fica irritado, Puntila; que é que tem Eva estar no banheiro?

Matti sai do banheiro com ar de fingido embaraço, mas não tornou a se vestir. Pára, atrás de Eva.

EVA fazendo que não vê Matti, mas um pouco intimidada – Que foi que você ouviu, papai? Não
aconteceu nada.

PUNTILA - Ah, você acha que isso não é nada? Vira de costas!

MATTI fazendo o intimidado - Sr. Puntila, a Srta. Eva estava só jogando sete-e-meio comigo. Se o
senhor não acredita, estão aqui as cartas. Foi tudo um equívoco.

PUNTILA - Cala a boca, você! Está despedido. A Eva - E agora, o que é que o Eino vai pensar de
você?

ATTACHÉ - Quer saber de uma coisa, Puntila? Se eles estavam só jogando sete-e-meio, nós fomos
vítimas de um equívoco. Uma vez, a princesa Bibesco ficou tão excitada, jogando
bacará, que arrebentou um colar de pérolas. Eva, eu trouxe rosas brancas para você. Dá
as rosas a ela. Vem, Puntila, vamos jogar um pouco de bilhar. Puxa-o pela manga.

PUNTILA cheio de fúria concentrada - Eva, eu torno a falar contigo depois. Quanto a você, meu
sedutor, se se arriscar outra vez a dar um pio na frente de minha filha, em vez de fazer
como deve, que é tirar da cabeça esse boné fedorento e tratar de lavar essas orelhas
imundas como as de um porco, ah, teus dias estão contados, Teu dever é olhar para a
filha daquele que te dá trabalho como quem olha para uma criatura de essência superior
que se dignou descer entre os mortais. Me deixa, Eino: você acha que eu posso admitir
tanta impudência? A Matti - Repete: qual é o teu dever?

MATTI - Olhar para sua filha como quem olha para uma criatura de essência superior que se
dignou descer entre os mortais.

PUNTILA - E diante desse espetáculo sem par, você deve arregalar os olhos num estupor de
incredulidade, mal acreditando que possa existir uma criatura assim.

MATTI - Eu devo arregalar os olhos num estupor de incredulidade, mal acreditando que possa
existir uma criatura assim.
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PUNTILA – E, como, desde que ficou homem, você nunca pensou senão em porcarias com as
mulheres, diante de semelhante prodígio de inocência sentirá o sangue subir até as
orelhas, envergonhado de seus pensamentos impuros, e terá vontade de sumir terra
adentro. Compreendeu?

MATTI - Compreendi, sim senhor,

O Attaché arrasta Puntila para dentro da casa.

EVA – Estaca zero.

MATTI – Ele tem mais dívidas do que a gente pensava,

Cortina.

COZINHEIRA com um recipiente onde bate a nata com o espumador –


Nesta propriedade há um banheiro
Onde aconteceu coisas de manhã,
Nossa patroazinha tão cristã
Se tranca lá dentro com o motorista
Jogando sete-e-meio.
O noivo dela, o Attaché,
Não acha feio.
Puntila disse:
“ Esse Attaché
É um homem tolerante
Com tudo que vê.
Nada tem de plebeu.
Mas de tudo que compra
O devedor sou eu".

CONVERSA SOBRE CARANGUEJOS

Cozinha da propriedade de Puntila, Do exterior, de vez em quando, vem música de dança. Matti lê
o jornal, É noite.

FINA entra com um monte de roupa suja, vai à caldeira e joga dentro - D. Eva quer falar contigo.

MATTI - Está certo. Vou acabar o café.

FINA- Não precisa fingir que não acabou, só para bancar o importante. Esse negócio dela conversar
contigo parece que te subiu um pouco à cabeça. Aquela não tem ninguém com quem
falar, coitada.

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MATTI - Sabe que numa noite assim eu gosto de deixar que as coisas me subam um pouco à
cabeça? Por exemplo, Fina, se de repente te desse uma vontade de ir comigo até o rio,
eu esquecia esse chamado da patroa e ficava com você.

FINA - Não, obrigada. Não estou com vontade.

MATTI abre o jornal- Está pensando no professor?

FINA - Entre mim e o professor não existe nada. Ele só queria me instruir e me emprestou um livro.
É um homem muito gentil.

MATTI - Pena que ganhe tão pouco, com a instrução que tem. Eu ganho trezentos marcos, ele
duzentos. É bem verdade que eu devo saber mais que ele. Se um professor é ignorante,
o máximo que pode acontecer é alguém não aprender a ler os jornais. Antigamente isso
podia ser um mal. Mas, hoje, que adianta ler jornal? A censura não deixa sair nada. Eu
chego a pensar que, se não houvesse professores, não havia necessidade de censura e o
governo economizava o ordenado dos censores. Mas se eu enguiço na estrada, os
patrões, que andam sempre bêbados, acabam rolando pela ribanceira ou, o que é pior,
sujam a roupa na lama. Faz um gesto para que Fina se sente em seus joelhos.

Entram o Juiz e o Advogado com toalhas nos ombros. Estão saindo da sauna.

JUIZ - Você tem alguma coisa para nos oferecer? Aquele esplêndido leite do outro dia?

Matti, com a concha, enche dois copos. Fina sai com a roupa.

ADVOGADO - Hum, que maravilha!

JUIZ – Eu sempre que venho aqui tomo um copo de leite depois da sauna.

ADVOGADO – Ah, as noites de verão da Finlândia!

JUIZ – A mim me dão uma trabalheira infernal, as noites de verão da Finlândia. Os processos de
pensão de alimentos para os filhos ilegítimos são um verdadeiro hino às nossas noites de
verão. Para poder compreender o poder de sedução de nossas matas durante essa
estação, você precisa ir ao tribunal. Quanto aos nossos rios, então, nem se fala. Parece
que no verão as mulheres ficam excitadas, só de olharem os rios. Uma culpou o feno,
por causa do cheiro forte que exala com o calor. Colher amoras é outra atividade
perigosa, e ordenhar vacas, então... Ah, como me cansa essa gente toda ordenhando
vacas no verão! O governo também devia mandar cercar de arame farpado todas as
moitas do caminho. A tentação dos sentidos é tão reconhecida que não se permite banho
de sauna conjunto: é homens prum lado, mulheres pro outro. Mas que adianta? Quando
acaba o banho, eles entram juntos nos bosques! É impossível. Qualquer freio é
impossível no verão. Andam juntos de bicicleta, sobem juntos nos montes de feno, e
deitam juntos nos jardins, porque sopra um fresquinho delicioso. E nascem crianças
porque o verão é muito curto, e nascem crianças porque o inverno é muito longo.

ADVOGADO – O bonito é que os velhos também participam. Nos julgamentos, as testemunhas são
sempre os velhos. Vêem tudo: vêem o casal que some no mato, vêem os tamancos
esquecidos na porta da despensa, vêem o rosto da moça acalorado porque ela foi colher
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cerejas, ocupação aliás que não faz calor a ninguém, a não ser que a pessoa ponha nela
um ardor excessivo. E não vêem, só os velhos também ouvem: os latões de leite
tilintam, as camas rangem. E assim, com os olhos e as orelhas, eles também participam
da festa e também gozam um pouco do verão.

JUIZ ouvindo alguém tocar a campainha, a Matti - Quer fazer o favor de ir ver quem é que está
chamando? Ou melhor, deixa que nós vamos: seremos acusados de não respeitar as oito
horas de trabalho. Sai com o advogado.

EVA entra com andar provocante de estrela de cinema e com uma piteira na boca - Eu toquei,
chamando. Você está muito ocupado?

MATTI - Eu? Não! É que só vou pegar no trabalho às seis da manhã.

EVA - Eu vim lhe perguntar se você não quer ir de barco até a ilha. Podíamos pegar uns
caranguejos pro almoço de amanhã.

MATTI - Ah, remar a esta hora? Não acha que já é hora de dormir?

EVA - Eu não estou cansada. No verão durmo muito mal, não sei por quê. Se você fosse dormir
agora, dormia logo?

MATTI - Direto.

EVA - Que inveja! Bem, prepara as tarrafas. Papai quer caranguejos no almoço, de qualquer
maneira. Gira sobre si mesma e sai com o andar provocante que aprendeu no cinema.

MATTI impressionado - Então vamos, eu remo.

EVA - Mas não está muito cansado?

MATTI - De repente criei nova disposição. É melhor você mudar de roupa. Vamos andar no lodo.

EVA - Está bem. As tarrafas estão na despensa. Ela sai. Matti veste uma japona. Ela volta de short
bem curto e sandálias. Cadê as tarrafas? Você não apanhou?

MATTI - Vamos pegar com a mão, mesmo. É muito mais divertido.

EVA - Mas com as tarrafas é muito mais prático.

MATTI - Eu estive lá com a Arrumadeira e a Cozinheira, não faz quinze dias; pegamos tudo com a
mão e foi divertidíssimo, pode perguntar a elas. Eu tenho uma habilidade danada, você
sabia? A maior parte das pessoas parece que tem cinco polegares na mão. Eu não; tenho
dedos, Os caranguejos são espertos e as pedras escorregam muito, mas a noite está
muito clara, ajuda. Não tem uma nuvem no céu, olhei agora mesmo.

EVA hesitando – É melhor com a tarrafa. Se pega mais.

MATTI – Você quer muitos?

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EVA – Papai não come nada que não seja servido em abundância.

MATTI – Então é outra conversa. Pensei que bastava pegar uns três ou quatro, e depois a gente
ficava um pouco junto, assim, né? A noite está tão bonita!

EVA – Já sei que a noite está bonita. Você já disse isso antes. Vai buscar as tarrafas!

MATTI – Ah, não vai me dizer que você leva tão a sério esses caranguejos. Duas bolsas chegam?
Eu conheço um lugar onde tem caranguejo assim. Em cinco minutos pegamos o
bastante para salvar as aparências.

EVA – Que é que você está dizendo? Olha, fala claro: quer pegar caranguejos ou não quer?

MATTI depois de uma pausa - Pensando bem, já é um pouco tarde. Torna a sentar e a ler o jornal.
Amanhã de manhã, às seis em ponto, eu tenho que levar o Studebaker na estação, para
esperar o Attaché. Se a gente ficar pescando até as três ou quatro da manhã, não vai me
sobrar nem um tempinho pra dormir. Quer dizer, se você faz mesmo questão...

Sem uma palavra, Eva se vira e sai, Matti torna a tirar a japona e lê. Entra Laina, vinda da sauna.

LAINA - Fina e a Cozinheira mandam perguntar se você não quer ir lá embaixo, no rio. Estão lá até
agora, rindo muito.

MATTI – Vou assim que acabar de ler o jornal. Pausa. Estou muito cansado. Primeiro o Mercado
de Trabalhadores, depois tive que andar horas com o trator dentro do pântano, e as
correias ainda acharam de arrebentar.

LAINA - Também estou morta: o dia inteiro no forno, preparando os doces. Eu não fui feita pra
festas de noivado. Mas estou com pena de ir já pra cama, lá fora está tão bonito. É até
um pecado dormir com uma noite assim! Olha para fora pela janela. Acho que vou
descer um pouco. O cavalariço vai tocar sanfona, eu gosto tanto. Sai morta de cansaço,
mas com passo decidido.

Eva entra no momento em que Matti vai saindo pela outra porta. Está em trajes de viagem.

EVA - Preciso que você me leve à estação imediatamente.

MATTI - Pois não. Cinco minutos pra tirar o Studebaker. Espera no portão.

EVA - Vejo que nem se interessa em saber o que pretendo fazer na estação.

MATTI - Acho que pretende pegar o trem das onze para Helsinque.

EVA - Mas não demonstra a menor surpresa.

MATTI - Devia me surpreender por quê? A surpresa de um chofer não adianta nada. Não tem a
menor influência sobre o curso dos acontecimentos. Na verdade, em geral, nem sequer
percebem se ele ficou surpreendido.

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EVA - Decidi passar algumas semanas em casa de uma amiga em Bruxelas, e não quero incomodar
papai. Preciso que você me empreste duzentos marcos pra passagem. Naturalmente
papai lhe devolve, assim que eu escrever de lá.

MATTI sem entusiasmo - Está bem.

EVA – Não precisa ficar com pena do seu dinheiro. Meu pai pode não se importar com quem eu me
comprometo, mas dinheiro a você ele não vai querer ficar devendo.

MATTI cauteloso - Não sei se ele se sentirá meu devedor, eu dando a você esse dinheiro.

EVA depois de uma pausa - Já estou arrependida de ter pedido.

MATTI – Não sei se seu pai vai gostar muito de você partir assim na véspera do noivado, quando os
doces já estão todos prontos. Você não devia levar a mal ele ter dito que você podia se
interessar por mim. Foi uma distração dele: só pensa na sua felicidade. Ele mesmo me
disse. Quando está de porre, digamos, quando bebeu uma dose além da conta, às vezes
ele não sabe mais onde está a sua felicidade, e age segundo o sentimento da hora. Mas
quando não bebeu nada, e é de novo um homem inteligente, te compra logo um Attaché,
uma pessoa à altura dos seus milhões: você pode ser embaixatriz em Paris ou no Nepal,
e fazer tudo que lhe agradar. Por exemplo, numa noite assim bonita como esta, se não
tiver de fazer alguma coisa, você faz; se não tiver, não faz.

EVA - Quer dizer que você agora me aconselha a ficar com o Attaché?

MATTI – Srta. Eva: a sua situação econômica não lhe permite desagradar a seu pai.

EVA – Em suma, você já mudou de idéia. Sabe o que você é? Um cata-vento.

MATTI – De acordo. Mas não é justo falar assim dos cata-ventos. São feitos de ferro, não há nada
mais sólido. A única coisa que não têm é uma base forte, um apoio seguro, Eu também,
infelizmente, não tenho base nenhuma. Esfrega o indicador com o polegar.

EVA – Então eu tenho que aceitar o seu conselho com muita prudência, já que você não tem a base
necessária para me aconselhar com honestidade. Todas as suas belas palavras sobre o
amor de meu pai podem ter nascido apenas do medo de arriscar o dinheiro da passagem.

MATTI - E o meu emprego, que não é tão mau assim.

EVA - Sr. Altonen, o senhor é um miserável materialista, ou, como dizem no seu meio, o senhor só
cuida de sua barriga. Nunca vi ninguém mais agarrado ao dinheiro e ao bem-estar. Ah,
não são só os ricos que vivem pensando no dinheiro.

MATTI - Lamento ter desiludido a senhorita. Mas não foi culpa minha. O seu pedido foi tão
direto... Se tivesse apenas sugerido, se tivesse feito uma alusão, se tivesse deixado a
coisa nas entrelinhas, podíamos ter evitado falar de dinheiro tão grosseiramente.
Dinheiro provoca desarmonia em toda parte.

EVA senta - Não vou me casar com o Attaché.

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MATTI - Eu pensei bem, e não entendo por que você não quer se casar com ele. Ele ou outro
qualquer, dá no mesmo; eu conheço esses tipos. São todos iguais. Muito bem-educados,
não jogam um sapato na cabeça da gente nem quando estão bêbados, não discutem
questões de dinheiro, sobretudo quando não é deles, e são capazes de gostar de uma
pessoa como gostam de um vinho, só porque aprenderam.

EVA - É. Mas com o Attaché eu não me caso, não. Me caso com você.

MATTI - Como assim?

EVA - Papai podia nos dar uma serraria.

MATTI - Podia lhe dar uma serraria.

EVA - Nos dar, se nos casarmos.

MATTI - Olha, moça: uma vez, na Carélia, eu trabalhei numa fazenda onde o dono era um ex-
empregado. Toda vez que o vigário vinha visitar a fazenda, a mulher mandava o marido
ir pescar. Quando havia festa, ele era encarregado de abrir as garrafas, depois ia pra trás
da estufa e ficava jogando paciência. Já tinha filhos grandes e todos só o chamavam
pelo primeiro nome: "Vítor, me traz as botas! Depressa, Vítor". Sabe que eu não gosto
disso, senhorita?

EVA – Eu sei. Você quer ser o patrão. Posso imaginar como pretende tratar sua mulher.

MATTI – Já andou pensando nisso?

EVA – Nem em sonho! Acha que eu não tenho mais em que pensar, que passo o dia inteiro
pensando em você? O que é que levou você a achar isso? Além disso, estou farta de
ouvir você falar de você mesmo, do que quer, do que gosta, do que ouviu dizer. Sei
muito bem o que há por trás das suas historinhas inocentes, das suas insolências! Você é
insuportável! Quer saber de uma coisa ?! Tenho horror dos egoístas!

Sai. Matti torna a se sentar e lê o jornal.

Cortina.

COZINHEIRA canta, enquanto unta de manteiga uma fôrma de doce –


Bela e sozinha
A filha do patrão desceu à cozinha
A filha do patrão desceu à cozinha
De noite, com uma luz.
“Chofer, que músculos bonitos!
Viu a roupa que eu pus
Para pescar caranguejos?"
E o chofer, com um bocejo:
“Ah, suave donzela, seu desejo
De pescar caranguejo
No verão é natural.
Mas ainda não percebeu
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Que estou lendo o jornal?"

A ASSOCIAÇÃO DAS NOIVAS DO SR. PUNTILA

Pátio da casa de Puntila. Domingo de manhã. Na sacada, Puntila discute com Eva, que segura o
espelho para ele. De longe ouve-se o badalar dos sinos.

PUNTILA - Você casa com o Attaché, e pronto! Do contrário, não te dou um níquel. Sou
responsável pelo teu futuro.

EVA - Mas antes você me disse que eu não devia casar com ele, porque não é um homem. Que eu
devia casar com alguém que eu amasse.

PUNTILA - Acontece que eu falo um pouco demais quando bebo um copo além da sede. Mas não
me agrada nada essa tua mania de sofismar com minhas palavras. Estou te avisando,
Eva: se te pego outra vez com esse chofer, ai de você! Não pensou sequer no escândalo
que seria, se alguém te visse saindo da sauna com ele? Olha para o lado e vocifera -
Quem foi que soltou os cavalos no campo de trevos?

UMA VOZ - Foi uma ordem do cavalariço, Sr. Puntila!

PUNTILA - Tira os animais daí! A Eva - Basta que eu me ausente meio dia, e tudo aqui vira de
cabeça para baixo. Sabe por que é que os cavalos foram parar no campo de trevo?
Porque o senhor cavalariço faz amor com a jardineira. Sabe por que aquela potranca,
que tem só um ano e dois meses, já está prenhe e não vai mais crescer? Porque a
governanta vive aí se esfregando com o Veterinário. Também por isso, naturalmente,
ninguém tem tempo de impedir que o touro cubra minhas vaquinhas virgens; e ele faz o
que lhe apetece. Que porcaria! E se a jardineira - ah, com essa vou ter uma conversinha!
- não ficasse aí o tempo todo se abrindo para o cavalariço, este ano eu não tinha só cem
quilos de tomate para vender. Uma mina de ouro, esses tomates! Em suma, de uma vez
por todas, eu tenho que acabar com essas sujeiras na minha fazenda! Me custam muito
caro, compreende? E você também, com o seu chofer! Um basta nisso! Não vou
permitir que arruínem a minha propriedade.

EVA – Mas eu não estou arruinando nada!

PUNTILA – Eu avisei! Não pretendo tolerar nenhum escândalo. Te preparei um noivado de seis mil
marcos e estou fazendo tudo o que posso pra introduzir você na melhor sociedade. Sabe
o que isso custa? Isso me custa um bosque. E você sabe o que é um bosque? Então, se
não sabe, como é que se comporta assim, dessa maneira, andando com gato e cachorro,
até com meu chofer? Matti surgiu embaixo, no pátio. Escuta. Se gastei rios de dinheiro
na tua educação em Bruxelas, não foi pra você se atirar nos braços de um chofer! Se não
se mantém essa gente no devido lugar, eles se tornam insolentes e acabam querendo
dormir na nossa cama. Dez passos de distância, sempre, e nenhuma intimidade, senão é
o caos! Nesse ponto eu sou intransigente. Sai.

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No portão da propriedade aparecem as quatro mulheres de Kurguela, Elas se consultam, tiram os
lenços da cabeça, substituindo-os por adornos de palha. Cada uma traz um ramalhete de flores do
campo. Sandra, a telefonista, é mandada à frente.

SANDRA - Bom dia! Eu queria falar com o Sr. Puntila.

MATTI – Creio que hoje não vai ser possível. Ele está de mau humor.

SANDRA – Mas acho que não vai se recusar a ver a noiva.

MATTI - Você é noiva dele?

SANDRA – Acho que sim.

PUTILA fora de cena - E não quero mais ouvir palavras como essa! Pra mim, dizer amor é o
mesmo que dizer porcaria, e nesta casa eu não admito porcarias! A tua festa de noivado
já começou, já mandei matar um leitão e não posso mais dar marcha a ré na morte dele.
Você acha que o leitão vai me fazer a gentileza de voltar a roncar no chiqueiro só
porque você mudou de idéia? E depois, eu já decidi e está decidido. Quero viver em paz
nesta casa, de hoje em diante. Não me obedece e eu mando pôr um cadeado na porta do
teu quarto, entende?

Passos e logo uma batida na porta com violência. Matti pega uma vassoura comprida e se põe a
varrer o pátio.

SANDRA - Tenho a impressão de que conheço essa voz.

MATTI - É natural, é a voz do seu noivo.

SANDRA - É mesmo? Engraçado, em Kurguela a voz era diferente.

MATTI - Ah, vocês ficaram noivos em Kurguela? Quando o Sr. Puntila estava procurando álcool
de lei?

SANDRA - A voz era diferente, mas as circunstâncias também: acho que é por isso que estou
estranhando. E, além disso, eu via a cara dele enquanto falava, uma cara aberta, cordial:
estava sentado no automóvel e tinha o rosto iluminado pela luz da aurora.

MATTI - Eu conheço esse rosto e conheço essa aurora. Mas acho melhor você voltar pra casa. Você
é demais, aqu

Ema avança. Finge que não conhece a telefonista.

EMA - O Sr. Puntila está? Eu tenho urgência de falar com ele.

MATTI - Infelizmente é impossível. Mas pode falar aqui com a noiva dele.

SANDRA representando - Você não é Ema Takimainen, que faz contrabando de álcool?

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EMA - Eu, contrabando de álcool? Só porque uso um pouco de aguardente pra fazer massagens na
mulher do chefe de polícia? A mulher do chefe da estação também usa meu álcool pra
fazer licor de cereja. Por aí você vê que é álcool de lei. E que história de noiva é essa?
Estão vendo só? A telefonista diz que é noiva do meu noivo, o Sr. Puntila. Essa é muito
forte, ó, andrajosa!

SANDRA radiante - E o que é que eu tenho aqui no meu dedo, você não enxerga não, ó, bruxa?

EMA venenosa - Uma verruga. E aqui no meu, o que é que você vê? A noiva sou eu, não você.
Noiva direito, com anel e bebida.

MATTI – Um momentinho! As senhoritas são ambas de Kurguela? Parece que lá tem mais noivas
do que moscas no verão.

Avançam agora Lisu, a ordenhadora, e Manda, a empregada da farmácia.

AMBAS – É aqui que mora o Sr. Puntila?

MATTI – Vocês são de Kurguela? Então ele não mora aqui. Eu sei muito porque sou chofer dele.
Esse Sr. Puntila, de quem vocês ficaram noivas, é um outro senhor com o mesmo nome.

LISU – Mas eu sou Lisu Jackara! O Sr. Puntila é mesmo meu noivo, eu posso provar. Indicando a
telefonista - Ela também pode provar: ela também é noiva dele.

EMA e SANDRA - Sim, podemos provar. Nós quatro somos noivas do Sr. Puntila.

Todas começam a rir.

MATTI – Estou contente que possam provar. Vou falar claro: se a noiva fosse uma só, eu não me
interessava, mas reconheço a voz do povo onde quer que a ouça. Proponho que vocês
fundem uma Associação das Noivas do Sr. Puntila. E logo ajunto uma pergunta do
maior interesse: que pretendem fazer?

SANDRA - Contamos pra ele? Bom, nós temos um velho convite do Sr. Puntila pra virmos todas as
quatro à festa de noivado.

MATTI – Bem, um convite desses vale tanto quanto a neve do ano passado. Acho que vocês vão
fazer o efeito de quatro patos selvagens que chegam ao pântano quando o caçador já foi
embora.

EMA – Quer dizer que não somos bem-vindas.

MATTI - Não quero dizer isso. Estão é chegando muito cedo. Vou procurar apresentar vocês no
momento adequado, para que recebam o tratamento digno das noivas que são.

MANDA - É tudo brincadeira; nós só queremos nos divertir e dançar um pouco.

MATTI - Se esperarem o momento propício, isso se arranja. Quando eles bebem um pouco, ficam
mais animados e adoram o grotesco: esse é o momento pras quatro noivas fazerem sua
entrada triunfal. O Padre vai se escandalizar, e quando o Padre se escandaliza o Juiz é
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um homem feliz. Nós, a Associação das Noivas do Sr. Puntila, entraremos na sala
cantando o Hino Municipal e levando uma anágua como estandarte.

Gargalhadas gerais.

EMA - Você acha que ganhamos um café ou que nos deixam dançar alguma coisa?

MATTI - Vossas reivindicações são perfeitamente justas. Uma vez que falsas esperanças foram
levantadas e despesas foram feitas, a Liga tem todo o direito de tentar obter reembolso
ou compensação pelo dinheiro versado. Vocês vieram de trem, não?

EMA - De segunda!

Fina atravessa o pátio carregando uma bola de manteiga.

LISU - Que beleza!

EMA - Manteiga de primeira!

MANDA - Ei, por favor, não sei como se chama: nós acabamos de chegar de trem, você não podia
nos dar um copo de leite?

MATTI .- Um copo de leite antes do almoço? Estraga o apetite.

LISU - Não tenha medo.

MATTI – Para o sucesso de nossa missão, é preciso que eu faça o noivo beber alguma coisa que
não seja leite.

SANDRA – É verdade, senti que ele estava com a voz seca.

MATTI - Telefonista: você que sabe tudo e propaga o que sabe, já me entendeu. Ela sabe que o
álcool pra ele é mais importante que o leite pra vocês.

LISU – É verdade que Puntila tem noventa vacas? Ouvi dizer.

SANDRA – Você ouviu isso, mas não ouviu a voz dele.

MATTI – Acho que vocês todas são moças sensatas. Portanto, contentem-se, por enquanto, com o
cheiro da cozinha.

Atrás da cozinheira dois homens carregam o leitão morto.

MULHERES – Puxa! Isso dá prum batalhão! Tosta ele bem, hein?! Bota um pouco de manjerona!

EMA – Vocês acham que eu posso abrir um pouco a saia durante o almoço, quando ninguém estiver
olhando? Está meio apertada!

SANDRA – À mesa?

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MANDA – O Sr. Puntila podia ver.

MATTI – Já pensaram no almoço de que vão participar? Vocês estarão assim com o Juiz,
Presidente do Supremo Tribunal de Viburgo. Ouçam só o que eu vou falar. Crava a
vassoura no chão e se dirige ao Juiz - "Sr. Juiz, eis aqui quatro mulheres de condição
modesta, dominadas pela ansiedade, apavoradas com o fato de poderem ver rejeitadas
suas pretensões. Para virem até aqui, ao encontro do esposo prometido, percorreram a
pé os longos e esburacados caminhos das nossas estradas municipais. Uma bela manhã,
dez dias atrás, um senhor muito bem alimentado apareceu na aldeia delas, dirigindo um
Studebaker. Entregou a cada uma o anel sacramental e prometeu casar com elas. É
possível que agora negue tudo, que afirme nada disso ter acontecido. Sr. Presidente,
cumpra o seu dever dando uma sentença humana a favor dessas pobres mulheres, ou eu
o advirto de que um dia o Supremo Tribunal de Viburgo deixará de existir!".

SANDRA - Bravo!

MATTI - O Advogado também beberá à saúde de vocês, o que é que você vai dizer a ele, Ema
Takinainen?

EMA - Direi: "Estou encantada com a oportunidade de tê-lo conhecido", E depois: "O senhor, por
acaso, não podia fazer minha declaração de imposto e depois discutir com os fiscais?".
E depois: "O senhor, que fala tão bem, não pode dar um jeitinho de livrar meu marido
do serviço militar? O coronel vive infernando a vida dele, e eu, sozinha, não dou conta
da plantação de batatas. E também queria que alguém não deixasse mais o dono do
armazém me roubar quando bota no caderno os preços do sabão, do querosene e do
açúcar".

MATTI - Isso é o que se chama aproveitar a ocasião. Mas se o marido for o Sr. Puntila, você não
precisa se preocupar com os impostos. Quem casa com ele, pode pagar. O médico
também vai estar à mesa. O que é que vocês vão dizer a ele?

SANDRA - "Sr. doutor", eu vou dizer, "eu ainda sinto aquela dor na espinha, mas não precisa fazer
essa cara, porque pretendo pagar muito bem esta consulta, assim que me casar com o Sr.
Puntila. Também não precisa ter pressa, porque ainda estamos na sopa, a água pro café
nem está no fogo e o senhor é responsável pela saúde pública".

Dois trabalhadores rolam dois barris de cerveja pra dentro de casa.

EMA - Hum, cerveja!

MATTI - O Padre é outro que vai estar à mesa. O que é que você vai dizer a ele?

LISU - Vou dizer: "Agora vou ter tempo de ir à igreja aos domingos, se tiver vontade".

MATTI – Pra discurso de almoço, é muito curto. De modo que eu vou acrescentar: "Monsenhor,
hoje é o dia em que Lisu, a ordenhadora, se senta pela primeira vez diante de um prato
de porcelana. O senhor deve ficar muito contente com isso, porque está escrito que
todos são iguais diante de Deus; ora, por que também não serem iguais diante do Sr.
Puntila? E pode estar certo de que Lisu, como nova dona desta propriedade, haverá de
tratá-lo muito bem: sempre umas garrafinhas de vinho branco no dia de seu aniversário,
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e assim o senhor poderá continuar com a sua eloqüência em louvor das campinas
celestes, e ela não terá mais que conduzir as vacas pelas campinas da terra".

Enquanto Matti fala, Puntila aparece na sacada e escuta, o rosto sombrio.

PUNTILA – Quando acabar o discurso, me avisa! Quem é essa gente aí?

SANDRA rindo - São suas noivas, Sr. Puntila. O senhor não se lembra?

PUNTILA – Eu? Nunca vi nenhuma de vocês.

EMA – Como? Não me conhece? Não está vendo o anel?

MANDA – Anel feito com argolas de cortina da farmácia de Kurguela.

PUNTILA – O que é que vocês vieram fazer aqui? Arranjar encrenca?

MATTI – De maneira alguma. Agora mesmo estávamos discutindo como aumentar a alegria da
festa e fundamos a Associação das Noivas do Sr. Puntila.

PUNTILA – E por que não um Sindicato? Onde você se mete, as coisas acabam nisso. Eu te
conheço, eu sei o jornal que você lê.

EMA – É tudo brincadeira, Sr. Puntila: queríamos só ver se nos davam um café.

PUNTILA - Eu sei o que são essas brincadeiras! Vocês vieram foi fazer chantagem, querem ver se
me arrancam alguma coisa!

EMA – De modo algum, Sr. Puntila!

PUNTILA - Mas eu ensino vocês! Só porque fui amável, querem se aproveitar de mim, ganhar o
dia à minha custa, não é? Olha, se não saírem imediatamente eu chamo a polícia e
mando prender todas. Você aí, estou te conhecendo: não é a telefonista de Kurguela?
Vou telefonar à direção, para perguntar como é que eles admitem essas brincadeiras
num funcionário público. E quanto às outras, eu vou saber quem são, uma por uma.

EMA - Compreendemos. O senhor sabe, Sr. Puntila, o que mais gostaríamos de ter era alguma coisa
pra lembrar na velhice. Vou só me sentar um pouco, aqui no chão de sua casa, pra poder
dizer que me sentei um dia na propriedade do Sr. Puntila, convidada por ele. Senta-se no
chão. Assim, oh, ninguém saberá que eu me sentei no chão, ninguém poderá me chamar
de mentirosa. Não preciso dizer que não me deram uma cadeira e que tive de sentar no
solo de Tavasto, que os livros de escola dizem que paga todo o suor que a gente
emprega nele. O que os livros não dizem que quem emprega o suor é um e quem recebe
é outro. Esse cheirinho bom, não é vitelo assado? Aquilo que eu vi não era uma bola de
manteiga? O que passou rolando não era um barril de cerveja? Canta –
E o lago e o monte
E as nuvens no horizonte
São o amor do povo de Tavasto
Desde as quedas imensas do Aabo
Ao verde vergel virgíneo e vasto.
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Me digam, eu não tenho razão? E agora me levantem, não me deixem nesta posição
histórica.

PUNTILA - Fora! Fora daqui!

As quatro mulheres jogam no chão os adornos de palha. Matti varre os adornos.

COZINHEIRA enquanto enxágua os copos de vinho, canta –


As noivas da Associação chegaram todas
Para os festejos do noivado
E o Sr. Puntila gritou
Já irritado, àquela hora da manhã:
Mas desde quando, na tosquia,
As ovelhas têm direito a parte da lã?
Só porque vou pra cama com vocês
Uma vez na vida,
Sou obrigado a lhes dar comida?".

HISTÓRIAS FINLANDESAS

Entrada principal. Anoitece. As quatro mulheres voltam para casa.

EMA – Como é que a gente vai adivinhar quando um patrão está de ovo virado? Quando bebem,
brincam com a gente, beliscam a gente onde não devem, e, se não tomamos cuidado,
arrastam a gente pro mato. Cinco minutos depois já foram mordidos por um escorpião e
temos sorte se não chamam a polícia. Estou com um prego no sapato.

SANDRA – A sola furou.

LISU – Não foi feita para andar cinco horas na estrada.

EMA – Agora não presta mais. Podia ter durado um ano. Me arranja uma pedra! A Telefonista lhe
dá uma pedra, e, enquanto uma bate a sola, as outras se sentam em volta. Eu disse que
a gente não deve levar patrão a sério. Uma hora estão assim, outra hora estão assado,
outra cozido. A mulher do antigo chefe de polícia às vezes me chamava de madrugada
pra fazer massagem, quando os pés inchavam; pois, cada vez que eu chegava, ela me
tratava de um jeito diferente. Dependia dos negócios lá dela com o marido. Parece que
ele andava com a empregada. Um dia ela me ofereceu bombons, e eu compreendi que
ele tinha deixado a empregada. Mas deve ter voltado a andar com a garota, porque de
repente a madame não conseguia mais se convencer de que eu tinha feito dez massagens
durante o mês e não seis. Perdeu completamente a memória.

MANDA - É, mas às vezes têm uma memória de ferro. Como Pekka, o que ficou rico nos Estados
Unidos! Depois de vinte anos, voltou pra ver a família. Eles eram tão pobres que
pediam a minha mãe as cascas de batata, imaginem só. Mas quando Pekka voltou, eles
fizeram um carneiro assado pro americano ficar satisfeito. Ele comeu, ficou satisfeito, e
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depois lembrou que há muito tempo tinha emprestado vinte marcos ao avô. E balançava
a cabeça, cheio de pena, tanta dor ele tinha de se despedir pra sempre dos seus vinte
marcos.
SANDRA - Mas, se não fosse assim, como é que iam ficar ricos? Numa noite de inverno de 1908 o
lago estava gelado. Era uma noite horrível. Um proprietário, nosso conhecido, contratou
um cocheiro para atravessar o lago. Eles sabiam que havia um buraco no gelo em algum
lugar, mas não sabiam onde. Por isso o cocheiro teve que andar a pé, na frente do carro,
durante doze quilômetros. O proprietário estava com tanto medo que prometeu um
cavalo, se ele conseguisse chegar do outro lado. No meio do lago o homem disse ao
cocheiro que, se chegassem do outro lado, lhe daria um vitelo bem gordo. Depois,
quando começaram a avistar as luzes da aldeia ele disse: "Vamos, coragem, força ou
você não ganha o seu relógio!". A cinqüenta metros da margem ele ainda falava de um
saco de batatas. Quando chegaram ele deu ao cocheiro meio marco de gorjeta e disse:
"Puxa, como você demorou!". Nós somos muito estúpidos e eles, muito sabidos,
tapeiam sempre. O que atrapalha é que eles são iguaisinhos a nós. Se tivessem corpo de
urso ou de cobra, a gente tomava mais cuidado.

MANDA - Não se deve brincar com eles nunca. Não se deve aceitar nada deles, nunca.

EMA - É bonito de dizer: não aceitar nada deles. Eles têm tudo e nós nada. Não beber água do rio,
morrendo de sede?

MANDA - Por falar nisso, estou morrendo de sede.

LISU - Eu também. Em Kansala tinha uma moça que dormiu com o filho do patrão. Saiu um
filhinho, mas no Tribunal de Helsinque ele negou tudo pra não ter que pagar os
alimentos. Então ela arranjou um advogado e o advogado levou pro tribunal todas as
cartas que o rapaz tinha escrito pra ela quando estava no serviço militar. O que ele dizia
nas cartas era tão claro que ninguém lhe tirava cinco anos de cadeia por falso juramento.
Só que quando o juiz começou a ler a primeira carta em voz alta, bem devagar, palavra
por palavra, a moça berrou que queria suas cartas de volta e não ganhou os alimentos.
Dizem que chorava como uma cascata, quando saiu do Tribunal. A mãe dela estava
furiosa e o patife ria, satisfeito! Coitada, estava apaixonada!

SANDRA – Se comportou como uma idiota!

EMA – Calça o sapato! Depende... Podia até ter feito bem, agindo assim. Eu conheço um rapaz de
Viburgo que não quis receber nada deles. Tinha dezoito anos e, como andava metido
com os vermelhos, foi internado no campo de Tammerfors. Não lhe davam nada pra
comer. Pra não morrer de fome, ele comia capim. A mãe então foi visitar ele, levando
alguma coisa: teve que andar oitenta quilometros! A pé! Era lavradora numa plantação,
e a patroa deu a ela um peixe e meio quilo de manteiga. A maior parte do tempo ela ia a
pé, mas quando passava um carro de lavradores ela pedia carona por um pedaço de
caminho. E aí contava: "Vou ver meu filho Athi, no campo de concentração de
Tammerfors, e minha patroa me deu este peixe e meio quilo de manteiga pra levar pra
ele”. Logo que acabava de dizer isso, mandavam ela descer porque o filho era vermelho.
Aí ela passava pelas lavadeiras do rio e contava de novo: "Vou encontrar meu filho
Athi, no campo de concentração de Tammerfors, e minha patroa, que Deus a abençoe,
me deu um peixe e meio quilo de manteiga pra levar pra ele''. E quando ela chegou no
campo repetiu a mesma história, e repetiu para o próprio comandante, que caiu na
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gargalhada e deixou ela entrar, coisa que era absolutamente proibida. Na frente do
campo ainda havia capim, mas dentro dos cercados nada, nem um fio; nem uma casca
de árvore; eles tinham comido tudo. Isso acontecia sempre, vocês não sabiam? Entre
guerra e prisão, já tinha dois anos que ela não via o filho. Athi estava um espeto: "Ah,
você está aí, Athi, meu filho", ela disse. "Tome, olhe: trouxe um peixe e meio quilo de
manteiga. A patroa me deu, pra você." Athi disse bom-dia, perguntou como ia o
reumatismo dela, falou de alguns vizinhos, mas a manteiga e o peixe nem quis ver. Ou
melhor, ficou com raiva quando ela insistiu, e gritou: "Você foi pedir por caridade, à
patroa, essa porcaria? Devolve tudo a ela: eu não aceito nada dessa gente!" E assim ela
teve que embrulhar tudo de novo. Athi estava morto de fome. Ela se despediu dele e
voltou para casa, um pouco a pé e um pouco de carro, quando encontrava algum. Uma
vez disse a um camponês: "O meu filho Athi está no campo de concentração, morto de
fome, mas não quis aceitar nem o peixe nem a manteiga que eu levei, porque foi a
patroa que deu de caridade e dessa gente ele não aceita nada”. A viagem era muito
comprida e ela era muito velha, De tempos em tempos ela se sentava na beira da
estrada, comia um pouquinho do peixe e um pouquinho da manteiga. Não comia muito,
porque o peixe e a manteiga já não estavam mais frescos, e até fediam um pouco. Mas
repetia pras mulheres que lavavam no rio: "No campo de concentração, o meu filho Athi
não quis aceitar nem o peixe nem a manteiga, porque foi a patroa que de caridade e
dessa gente ele não aceita nada". Repetia isso pra todo mundo que encontrava, e deve
ter causado uma certa impressão nas pessoas, porque eram oitenta quilômetros de
estrada.

LISU - Ainda há homens como esse Athi.

EMA - Muito poucos.

Levantam-se e saem sem dizer mais nada.


Cortina.

COZINHEIRA com um moinho na mão, mói café e canta –


A festa das quatro noivas,
Que eram noivas de um velhaco,
Termina com as quatro noivas
Pondo a viola no saco.
Galo que crê nos senhores,
Chamando-os de protetores,
Passa a viver sem cautela
E é o primeiro na panela.

PUNTILA DÁ A FILHA A UM HOMEM

Sala de jantar com pequenas mesas e um enorme bufê. À esquerda, mesas com louça de café e
outros utensílios. O Padre, o juiz e o Advogado tomam café e fumam. Puntila está sentado num
canto e bebe em silêncio. Na sala ao lado, dança-se ao som de um gramofone.

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PADRE – É muito raro encontrar-se uma fé verdadeira. O que se encontra geralmente é dúvida e
indiferença. Dá para desesperar, o nosso povo. Eu não me canso de repetir que, se não
fosse pela vontade do Altíssimo, não nasceria nem um amendoim, e no entanto eles
encaram a natureza como uma coisa natural. Como se, dando frutos, ela não fizesse
mais que a obrigação. Para mim essa descrença toda vem do fato de não freqüentarem a
igreja aos domingos, deixando-me falar aos bancos vazios. Como se não tivessem
bastantes bicicletas: cada criado tem uma. O que acontece é que são umas almas
danadas: esta é a verdade verdadeira. Senão, como se explica o que aconteceu na
semana passada, à cabeceira de um agonizante? Eu estava explicando a ele as
maravilhas que aguardam um homem quando atravessa em paz as fronteiras da morte,
quando ele me perguntou: "O que é que o senhor acha, as batatas vão agüentar a
chuva?". Não dá uma vontade de largar tudo? Tanto trabalho posto fora.

JUIZ – Eu compreendo, monsenhor. Iluminar escuridão tão negra não é tarefa fácil.

ADVOGADO – Também pra nós, advogados, a vida anda difícil. Sempre vivemos das brigas dos
camponeses, homens de cabeça dura, que preferem pedir esmola do que renunciar a um
direito. Continuam com a mesma vontade de brigar, de se ofender, de se esfaquear, de
fazer uns aos outros todo o mal possível. Mas, assim que sabem que um advogado cobra
quatro marcos por uma consulta, ficam logo calminhos e abandonam o mais lindo
processo pelo deus do ouro.

JUIZ – São sinais dos tempos; tempos de comércio e cobiça. Um nivelamento geral. Acabaram-se
os bons tempos. A gente que lida com o povo muitas vezes se desespera, mas é preciso
paciência. Nós, da elite, temos que fazer tudo pra civilizá-los, um pouquinho que seja.

ADVOGADO - Puntila, por exemplo, pode não fazer nada; só fica olhando. A plantação não
precisa dele. Mas um processo, um processo é uma coisa extremamente complicada. A
gente fica de cabelos brancos pra fazer um processo atingir a maturidade. Quantas vezes
pensamos que um processo vai morrer jovem por falta de testemunhas, e de repente ele
recupera a saúde de novo, crescendo normalmente? Quando um processo começa,
quando é mocinho, é que precisa dos maiores cuidados. É enorme a taxa de mortalidade
dos processos jovens. Mas, uma vez bem alimentado de documentos, ele cresce sozinho.
Um processo que passou dos quatro ou cinco anos, tem toda possibilidade de atingir
uma idade avançada. Mas até a gente chegar lá, que luta de cão!

Entram o Attaché e a Mulher do Padre.

MULHER DO PADRE - Sr. Puntila, tem que cuidar um pouco mais dos seus convidados. O senhor
ministro está dançando com Eva, mas já perguntou várias vezes pelo senhor.

JUIZ - Também acho que você não está dando ao ministro a atenção devida.

Puntila não responde.

ATTACHÉ - Agora mesmo, monsenhor, sua esposa deu ao ministro uma resposta brilhante,
deliciosa! Ele perguntou se ela não gostava de jazz. Fiquei esperando a resposta com o
máximo de curiosidade. Ela refletiu um instante e respondeu: "Pra mim, todos os tipos
de dança são indiferentes. Eu só dançaria se pudesse dançar com a música de um órgão
de igreja". O ministro chorou de rir com a resposta. Que é que você acha, Puntila?
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PUNTILA - Não acho nada. Não costumo criticar meus convidados. Faz um sinal para o Juiz se
aproximar. Frederico, essa cara te agrada?

JUIZ – Que cara?

PUNTILA – A do Attaché. Fala a verdade, hein!?

JUIZ – Cuidado, Puntila, o ponche está muito forte.

ATTACHÉ repete a bocca chiusa a melodia da sala ao lado e ensaia passos de dança - É um ritmo
irresistível, não é?

PUNTILA faz novo gesto para o juiz se aproximar, e este procura não notar - Frederico, fala com
sinceridade! Diz a verdade: que é você acha dessa cara? Olha que essa cara vai me
custar um bosque.

Os outros convidados cantam em coro: “Eu procuro Titina…”

ATTACHÉ que não percebe nada - Eu não consigo guardar uma letra de música; já na escola era
um inferno eu decorar uns pontos. Agora, o ritmo eu tenho no sangue.

ADVOGADO vendo que os sinais de Puntila se tornam mais evidentes – Está um calor danado
aqui. Vamos pro salão? Tenta arrastar o Attaché.

ATTACHÉ – Mas há um verso que não me sai da cabeça: "We have no bananas”. Portanto, minha
falta de memória não é de desesperar.

PUNTILA – Frederico, olha e julga: olha bem, Frederico!

JUIZ – Vocês conhecem a piada do judeu que esqueceu o capote no café? Não conhecem? Pois é:
ele esqueceu o capote no café. O pessimista disse: "Ele vai encontrar o capote", O
otimista disse: "Ele não vai encontrar o capote".

Todos riem.

ATTACHÉ – Bem. E depois?

Novas risadas.

JUIZ – Meu caro Eino, parece que você não pegou bem o sentido da piada.

PUNTILA – Frederico!

ATTACHÉ - Então me explica, por favor! Tenho a impressão de que o senhor trocou as respostas.
O otimista devia dizer: "Ele vai encontrar o capote".

JUIZ - Não, não, o pessimista! Procura entender. A piada está justamente aí: o capote é tão velho
que é melhor não encontrá-lo.

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ATTACHÉ - Ah, o capote é muito velho! Mas isso o senhor não tinha dito. Ah! Ah! Ah! É a piada
mais formidável que eu já ouvi.

PUNTILA levanta-se, sombrio - Chegou o momento de intervir. Não sou obrigado a suportar um
homem assim! Frederico, você não quis responder a uma pergunta que eu fiz com a
máxima seriedade: acha que devo introduzir na minha família uma cara dessas? Você se
recusou a responder. Mas eu sou homem bastante decidido para resolver sozinho. Um
homem sem humor não é um homem. Com dignidade - Saia de minha casa! É, você
mesmo! Não adianta se voltar assim, como se eu estivesse falando com outra pessoa!

JUIZ - Puntila, você está exagerando.

ATTACHÉ - Senhores, eu peço que ignorem este incidente. Não podem imaginar como é delicada a
posição dos membros do Corpo Diplomático. Basta a mais insignificante mancha, do
ponto de vista moral, para que nos neguem certas credenciais. Em Paris, por exemplo, a
sogra do secretário da legação romena agrediu o amante com um guarda-chuva e o
escândalo foi imediato.

PUNTILA - Um gafanhoto de fraque! Um gafanhoto que pretende devorar um bosque inteiro!

ATTACHÉ nervoso - Compreendem? Que ela tivesse um amante, é normal; que ela o tivesse
agredido, é concebível; mas com um guarda-chuva é vulgar. Aí está a nuança.

ADVOGADO - Puntila, ele tem razão. A honra que está em jogo aqui é uma honra especialíssima.
Ele pertence ao Corpo Diplomático.

JUIZ - Esse ponche está forte demais para você, Puntila.

PUNTILA – Frederico, você ainda não percebeu a gravidade da situação.

ATTACHÉ – Enquanto não se disser explicitamente o nome de ninguém, tudo é reparável. A coisa
só se torna irreparável quando as injúrias são acompanhadas explicitamente dos nomes a
quem se dirigem.

PUNTILA com amargo sarcasmo- E como é que eu faço agora, Frederico? Não vou poder me
livrar dele? Esqueci o nome dele! Louvado seja Deus, já sei! Está aqui. Puxa do bolso.
Está aqui, na promissória que ele me deu para resgatar. Se chama Eino Silakka. Vocês
acham que agora ele vai embora?

ATTACHÉ - Atenção, senhores; um nome foi pronunciado. A partir deste momento, cada palavra
que não seja pesada até o último miligrama pode ter conseqüências funestas.

PUNTILA – Esse não tem jeito. Vocifera - Dá o fora daqui, eu já não disse? E nunca mais me
apareça em minha casa, está ouvindo? Acha que vou entregar minha filha a um
gafanhoto de fraque?

ATTACHÉ voltando-se para Puntila - Puntila, você está ficando agressivo. Se me põe para fora de
sua casa, atravessa a imperceptível e delicada fronteira que conduz ao escândalo.

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PUNTILA – Agora é demais. Agora eu perco a paciência. Eu não queria gritar. Queria te fazer
entender assim, discretamente, que a tua cara me revolta o estômago, e que é melhor
você sair da minha frente. Mas você me obriga a falar claro e direto. É só por isso que
eu te digo: “Dá o fora daqui, seu merda!".

ATTACHÉ – Puntila, isso eu não tolero. Senhores, os meus respeitos! Vai saindo.

PUNTILA – Sai mais depressa! Quero te ver correndo, seu patife! Vou te ensinar a me dar respostas
insolentes! Corre atrás dele.

Todos o seguem, com exceção da Mulher do Padre e do Juiz.

MULHER DO PADRE - Agora vai ser um escândalo!

EVA entra cantarolando - Que barulho é esse? Que foi que aconteceu?

MULHER DO PADRE correndo para Eva - Ah, querida, aconteceu uma desgraça! Seja forte,
minha filha, tenha ânimo!

EVA - Mas o que foi que aconteceu?

JUIZ - Toma antes um xerez, Eva. Teu pai bebeu uma garrafa inteira de ponche e botou o Eino para
fora de casa. De repente não agüentou mais a cara dele.

EVA - O xerez está com gosto de rolha, que pena! Que foi que papai disse?

MULHER DO PADRE - Você não está transtornada, Eva?

EVA - Estou, estou.

O Padre volta.

PADRE - Ih, foi terrível!

MULHER DO PADRE - Que aconteceu? Alguma coisa de novo?

PADRE - Uma cena horrível no pátio: Puntila atacou o Attaché a pedradas.

EVA - Acertou alguma?

PADRE - Não sei. O Advogado protegeu-o com o corpo. E o ministro aí na sala...

EVA - Tio Frederico, agora estou quase certa de que ele não volta. Felizmente o ministro estava
aqui. Senão, não haveria nem a metade de um escândalo.

MULHER DO PADRE - Eva!

Entra Puntila, seguido de Matti, Laina e Fina.

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PUNTILA - Amigos, acabo de dar uma olhada na abjeção do mundo. Entrei ali no salão com as
melhores intenções, para anunciar que tinha cometido um grave erro mas estava
disposto a repará-lo: que eu quase tinha deixado minha filha casar com um gafanhoto de
fraque, mas agora ia entregá-la a um homem, como sempre foi minha intenção. Eu
disse: "Esse homem, esse rapaz magnífico, é Matti Altonen, um ótimo chofer e
excelente amigo. Quero que todos brindem à felicidade de um casal jovem e ditoso".
Pois muito bem: querem saber qual foi a reação? O ministro, que eu pensava ser um
homem esclarecido, me olhou como se olha um cogumelo venenoso. E pediu o
automóvel. Naturalmente todos o imitaram: um bando de macacos! Que espetáculo! Me
senti um mártir cristão diante dos leões, mas a minha opinião eles souberam: consegui
pegar o ministro antes dele subir no automóvel e disse a ele que ele também era um
merda. Creio que exprimi bem o sentimento de todos, não é verdade?

MATTI – Sr. Puntila, acho que devíamos ir todos para a cozinha, discutir o assunto com uma
garrafinha de ponche.

PUNTILA – E por que na cozinha? O noivado de vocês ainda não foi festejado. Só festejamos o
outro, o falso. Uma despesa inútil. Vamos reunir as mesinhas todas e fazer uma mesa
grande. Recomecemos tudo. Fina; senta aqui do meu lado.

Os outros reúnem as mesinhas, como ele mandou, formando uma mesa grande. Eva e Matti pegam
cadeiras. Puntila se senta no meio da sala.

EVA a Matti – Não fica me olhando assim! Está com o olhar igualzinho ao de meu pai, ontem de
manhã, quando serviram a ele um ovo podre. Você já me olhou de outra maneira, outras
vezes.

MATTI - Estava olhando a forma do ovo.

EVA – Ontem de noite, quando você quis ir à ilha pescar caranguejos comigo, os caranguejos
entravam na conversa só como pretexto.

MATTI – Era de noite, e ninguém tinha falado em casamento ainda.

PUNTILA - Fina, senta aqui do meu lado! Laina, senta também! Monsenhor, senta o senhor
também aí perto da moça. Senhora, por favor, ali junto da Cozinheira. E você,
Frederico, escolhe um bom lugar pra você. Matti, Eva, alegria! Senhora, por favor, faça
as honras da casa! Todos se sentam com má vontade. Silêncio. Para a Cozinheira -
Laina, deixa essa garrafa em paz e bota as tuas quatro letras nessa cadeira. Quatro letras,
é: R-A-B-O.

MULHER DO PADRE à Cozinheira - Já pôs os cogumelos em conserva este ano?

LAINA - Não ponho em conserva. Deixo secar.

MULHER DO PADRE - Como?

LAINA - Corto em pedacinhos, furo com uma agulha, enfio num barbante e penduro ao sol.

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PUNTILA - Quero dizer algumas palavras sobre o noivo de minha filha. Matti, eu te observei em
segredo e formei uma opinião definitiva sobre o teu caráter. Não quero me referir ao
fato de que, depois que você veio trabalhar conosco, aqui não há mais nenhuma
máquina enguiçada. O que desejo ressaltar especialmente em você é o homem. Não
esqueci o que aconteceu hoje de manhã. Enquanto eu, como um Nero qualquer, gritava
lá em cima da sacada, expulsando minhas pobres noivas, pude observar bem o teu
comportamento. Você conhece bem esses meus ataques. Deve ter visto que, durante
todo o almoço, eu fiquei à parte, em profundo recolhimento, pensando nas pobres
mulheres que voltavam a pé pela estrada de Kurguela, sem uma gota de vinho depois de
tanta injustiça. Depois disso eu não me espantaria se elas perdessem a confiança em
mim. Agora eu te pergunto, Matti: você é capaz de esquecer o que aconteceu?

MATTI - Faz de conta que já esqueci, Sr. Puntila. Mas diga à sua filha com todo o peso da sua
autoridade de pai, que ela não pode se casar com um chofer.

PADRE - Muito bem!

EVA - Papai, ontem Matti e eu discutimos algumas idéias, enquanto você estava fora. Matti não
acredita que você dê a ele uma serraria, nem que eu consiga me adaptar à vida de um
chofer.

PUNTILA – O que é que você acha, Frederico?

JUIZ – Não me pergunta nada, João! Nem fica me olhando com esse olhar de boi morto. Pergunta a
Laina!

PUNTILA – Laina, pergunto a você: me acha capaz de economizar, quando se trata de minha
própria filha? Acha que eu não sou capaz de lhe dar uma serraria, um moinho e ainda
por cima um bosque?

LAINA interrompida enquanto explica seus cogumelos à Mulher do Padre, o que é visível pela
mímica - Vou fazer um café pro senhor, Sr. Puntila.

PUNTILA a Matti - Matti, você trepa bem?

MATTI – Dizem que sim.

PUNTILA – Não quero saber o que dizem, quero que você me diga: sabe fazer a coisa como se
deve? Não há nada mais importante na vida. Você não vai falar, eu sei, você não é
homem de contar vantagem. Mas me diz só: você trepou com Fina? Porque, nesse caso,
eu pergunto a ela. Ah, não? Não compreendo!

MATTI – Deixa isso pra lá, Sr. Puntila.

EVA que bebeu um pouco, se levanta e faz um discurso - Meu caro Matti, eu te peço que me aceite
como esposa, porque eu também preciso de homem, como todas as outras. Se você
quiser, podemos antes ir pescar caranguejos sem tarrafa. No mais, eu não me acho nada
de extraordinário, como talvez você pense, mas sei que poderemos viver juntos, mesmo
sem muito dinheiro.

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PUNTILA – Bravo!

EVA – Se, porém, você acha que ia pescar caranguejo não é uma coisa muito séria, eu pego
imediatamente a minha mala e vamos para a casa de sua mãe. Papai não tem nada em
contrário, tem?

PUNTILA - Nada, nada. De acordíssimo.

MATTI se levanta e bebe dois copos seguidos - Srta. Eva, estou disposto a fazer qualquer
animalidade com a senhorita, menos a de levá-la à casa de mamãe. A pobre velha teria
um ataque. Sabe que lá em casa só tem um sofá? Sr. cura, descreva para essa moça a
construção de uma cozinha de pobre, com cama de dormir e tudo.

PADRE sério - Um lugar assaz modesto.

EVA - Por que descrever? Eu vou ver pessoalmente.

MATTI - Está bem. Vai logo perguntar a minha mãe onde é o banheiro.

EVA - Ora, e eu não sei? Eu vou ao banho público.

MATTI - Só se for com o dinheiro do Sr. Puntila. Você continua com essa serraria na cabeça! Não
conta com isso, menina. Amanhã de manhã o Sr. Puntila fica bom, e vamos ter que
enfrentar de novo um homem sensato.

PUNTILA - Cala a boca, Matti! Não fala mais desse Puntila, que agora é nosso inimigo comum.
Esta noite nós já afogamos esse miserável numa garrafa de ponche. E agora quem está
aqui sou eu mesmo, um ser humano. Bebam vocês também, não tenham medo, fiquem
humanos!

MATTI - Repito que não posso apresentar você a minha mãe. Minha mãe me jogava os tamancos
na cabeça, se eu aparecesse lá em casa com uma mulher assim. Esta é a verdade.

EVA - Você não precisava dizer isso.

PUNTILA - Eva tem razão, Matti. Você agora passou dos limites. Ela tem seus defeitos, concordo,
é possível que engorde com a idade como a mãe, mas não antes dos trinta e cinco. Por
enquanto, ainda vale uma boa missa.

MATTI – Não falo de engordar, digo apenas que não tem senso prático, que não foi educada o
suficiente para ser mulher de um chofer.

PADRE – Sou da mesmíssima opinião.

MATTI – Não tem nada que rir, menina. Se minha mãe começasse a te examinar da cabeça aos pés,
você perdia toda essa alegria: ficava deste tamanho!

EVA – Então vamos, Matti, experimenta! Sou a mulher de um chofer. Me diz o que eu tenho de
fazer.

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PUNTILA – Bravo, Eva. Fina, traz uns sanduíches, vamos comer uma coisinha. Enquanto isso,
Matti, você examina Eva de lado a lado, de trás e de frente, por cima e por baixo.

MATTI – Fica sentada, Fina! Em minha casa não tem empregada. Quando chega uma visita
qualquer, a gente só pode oferecer o que come todo dia. Vai buscar o arenque, Eva!

EVA alegre - Correndo. Sai.

PUNTILA gritando - Não esquece a manteiga! A Matti - Estou sensibilizado com a tua decisão de
fazer tudo sozinho, sem depender do meu dinheiro. Muito poucos seriam capazes disso.

MULHER DO PADRE à Cozinheira - Eu não: eu nunca ponho os cogumelos no sal. Deixo


cozinhar no limão, com uma pitadinha de manteiga. Mas isso só é bom pros bem
pequenininhos, que parecem uns botões. Também ponho na conserva os lactários.

LAINA – Os lactários não são cogumelos muito finos, como qualidade, mas o gosto é bom. Os
cogumelos melhores são os boletos e os sépias.

EVA que volta com o arenque servido numa bandeja – Na cozinha não tem manteiga, tem?

MATTI - Aí está ele! Eu o reconheço, Pega na travessa. Ainda ontem vi teu irmão, e antes de
ontem comi alguém da tua família: tua família tem me alimentado sempre, desde que
me entendo. Quantas vezes por semana você vai comer arenque, Eva?

EVA - Três vezes, Matti, se for preciso.

LAINA - Três vezes? Vai ter que comer muito mais!

MATTI - Você vai ter muito que aprender. Minha mãe, que era cozinheira de uma fazenda, servia
arenque cinco vezes por semana. Laina serve oito. Segura o arenque pelo rabo e o
suspende no ar. Sê bendito, Ó, arenque, companheiro do pobre! Tu que nos sacias a
fome a qualquer hora do dia, e a qualquer hora do dia nos envenenas as tripas. Tu que
vens do mar e acabas na terra! Graças à tua força maravilhosa os pinheirais são
abatidos, os campos semeados! Tu que pões em movimento essa máquina chamada
criadagem, que infelizmente ainda não é moto-perpétuo. Ó, arenque maldito! Se tu não
existisses, começaríamos a exigir dos patrões carne de porco, e então que seria da nossa
Finlândia bem-amada? Deposita o prato, corta o arenque em pedaços e dá um pedaço a
cada um.

PUNTILA - Pra mim tem um gosto especial, delicioso. Eu como tão raramente... Essas diferenças
não deviam existir. Se dependesse de mim, eu botava numa caixa toda a renda da
propriedade e cada um se servia do dinheiro conforme precisasse. Afinal, esse dinheiro
pertence a quem trabalha. Sem o trabalho, a caixa estaria vazia. Não estou certo?

MATTI - Não o aconselho a fazer isso, Sr. Puntila. Em meia hora a caixa ficava vazia, e em pouco
tempo o banco tomava conta da propriedade.

PUNTILA - Isso é o que você diz. Eu não penso assim. Sou quase um comunista. Se eu fosse
empregado, transformaria num inferno a vida de Puntila. Vamos, continua o teu exame!
Me interessa.
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MATTI – Se penso no que uma mulher deve demonstrar que sabe fazer, antes que eu possa
apresentá-la à minha mãe, me vem logo à cabeça um par de meias. Tira o sapato, tira
uma meia e entrega-a a Eva. Por exemplo: Eva, você é capaz de cerzir uma meia?

JUIZ – Mas isso é exigência demais! O arenque ainda vai, mas eu acho que nem o amor de Julieta
por Romeu resistiria à prova de remendar uma meia suja. Um amor capaz de tal
sacrifício se tornaria fatalmente insuportável, depois de certo tempo. Demonstraria um
temperamento fogoso, passional, e os temperamentos assim, mais cedo ou mais tarde,
acabam no tribunal.

MATTI – Nas classes mais baixas, Sr. Juiz, as meias não são cerzidas por amor, mas por economia.

PADRE – Não creio que as Pias Irmãs de Caridade do Educandário de Bruxelas, onde Eva foi
criada, tenham pensado em tal eventualidade.

Eva volta com a agulha e linha e se põe a costurar.

MATTI - Pois agora ela tem que aprender o que as Pias Irmãs de Caridade do Educandário de
Bruxelas esqueceram de ensinar. A Eva – Eu não pretendo censurar as deficiências de
sua educação, desde que você dê provas de boa vontade. Você foi infeliz na escolha de
seus pais; não lhe ensinaram nada que preste. Já no arenque você demonstrou uma
espantosa ausência de conhecimentos básicos. Escolhi agora a questão das meias, para
aprofundar mais até onde vão tuas deficiências.

FINA – Eu ensino à senhorita como se faz.

PUNTILA – Coragem, Eva, você é muito esperta. Tem que conseguir.

Eva, hesitando, entrega a meia a Matti. Matti levanta-a, olhando-a com escárnio. O remendo é
horrível.

FINA – Sem o ovo, nem eu fazia melhor.

PUNTILA - Eva, por que não usou o ovo?

MATTI - Ignorância. Ao juiz, que ri - Não há nada pra rir; ficou uma porcaria. A Eva - E se você
fosse casada com um chofer e ele só tivesse essa meia? Seria uma tragédia! Mas vou te
dar mais uma oportunidade. Vê se sai melhor desta! Põe uma mesa de lado. Uma
cadeira, por favor.

EVA trazendo a cadeira - É, Matti, reconheço que a meia foi uma vergonha.

MATTI - Agora imagine que eu sou chofer, numa casa onde você também ajuda, lavando roupa e
conservando a estufa acesa no inverno. Estou voltando pra casa de noite: como é que
você me recebe?

EVA - Agora eu vou me sair melhor. Matti, você vai ver. Chega em casa! Matti se afasta alguns
passos e depois finge que chega em casa. Matti! Corre para ele e o beija.

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MATTI - Primeiro erro: intimidade e frivolidade quando eu chego em casa morto de cansaço. Finge
abrir uma bica e lavar-se; estende as mãos esperando uma toalha.

EVA não entende e continua a matraquear - Oh, pobre Matti, está muito cansado? O dia inteiro eu
fico pensando em você; trabalha tanto! Eu queria tanto poder te ajudar!

FINA sussurra - A toalha! Dá uma a Eva.

EVA deprimida - Perdão, eu não tinha entendido.

Matti grunhe grosseiramente e se senta numa cadeira perto da mesa.


Estira uma perna para que Eva lhe descalce a bota.

PUNTILA que se levantou e segue ansioso a cena - Tira! Tira!

Eva tira a bota de Matti, mas cai sentada no chão.

PADRE - Estou achando a lição extraordinária. Está se vendo que essa união não é uma coisa
natural.

MATTI – Nem sempre eu exijo que minha mulher faça isso; mas hoje trabalhei o dia inteiro no
trator, estou meio morto. De qualquer maneira precisamos considerar que isso possa
acontecer. Que foi que você fez hoje, Eva?

EVA sentada no chão - Lavei roupa.

MATTI – Quantos lençóis você lavou?

EVA – Quatro, Matti.

MATTI - Fina, diz a ela.

FINA – Você lavou no mínimo dezessete, sem contar as duas tinas de roupa menor.

MATTI – Tinha água na bica? Ou você teve que ir buscar de balde, como aqui, onde a bomba está
sempre enguiçada?

PUNTILA – Essa é comigo, Matti, entendi bem. Mas eu mereço. Sou um patife.

EVA – Fui buscar com o balde.

MATTI – E as unhas? Examina as mãos dela. Quebrou lavando a roupa ou atiçando fogo. Sabe o
que deve fazer? Põe sempre um pouco de gordura nas mãos. Depois de um certo tempo,
as mãos de minha mãe ficaram assim – mímica - inchadas e vermelhas. Eu sei que você
está muito cansada, Eva, mas ainda vai ter que lavar meu uniforme. Preciso dele bem
limpo amanhã de manhã.

EVA – Sim, Matti.

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MATTI - Assim já estará seco amanhã de manhã e você não precisa levantar muito cedo pra passar.
Bastar acordar às quatro e meia. Procura alguma coisa em cima da mesa.

EVA preocupada - O que é?

FINA - O jornal. Eva salta e entrega a Matti um jornal imaginário. Mas Matti não o pega e
continua a procura em cima da mesa. Em cima da mesa!

Eva joga o jornal em cima da mesa, mas ainda não tirou a segunda bota dele; ele bate com o pé,
impaciente. Depois de tirar a segunda bota, ela se levanta satisfeita, dá um suspiro e ajeita os
cabelos.

EVA - Eu mesma bordei este avental para dar mais colorido à minha roupa. Um pouco de cor alegra
a vida e vai bem em qualquer lugar. Depois, não custa muito. É só a gente ter bom
gosto. Você, gosta, Matti?

Matti, interrompido na leitura do jornal, deixa-o cair no chão. Fita Eva sem dizer nada, ela fica
apavorada.

FINA - Nunca falar coisa alguma, enquanto o marido lê o jornal!

MATTI levanta-se - Está vendo?

PUNTILA - Eva, você me decepcionou.

MATTI quase com compaixão - É preciso corrigir tudo. Quer comer arenque três vezes por semana,
se esquece do ovo de cerzir meias, e quando, à noite, eu volto pra casa esgotado do
trabalho, não tem nem o bom senso de ficar de boca fechada. Agora me diz: se me
chamarem de noite pra levar o velho à estação, o que é que acontece?

EVA - Você vai ver! Finge que abre a janela e grita para fora - O quê? A essa hora da noite? Mal
acabou de chegar! Não tem nem o direito de dormir? É o cúmulo! O senhor que vá curar
o seu pileque no diabo que o carregue! Meu marido não sai porque eu não quero! Vou
até esconder as calças dele!

PUNTILA -Magnífico! Você tem que reconhecer que foi magnífico, Matti!

MATTI rindo - Formidável, Eva! Vou ficar sem emprego, é verdade, mas se minha mãe estivesse
aqui ia adorar você. Dá-lhe uma palmada.

EVA primeiro muda de espanto, depois furiosa - Não me faça isso!

MATTI – Que foi?

EVA – Como se atreve a me bater aí?

JUIZ – Eva, querida, acho que o teu exame foi um fiasco do princípio ao fim.

PUNTILA – Mas o que é que você tem, Eva?

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MATTI – Se ofendeu? Eu não devia fazer isso?

EVA – Papai, pra falar a verdade, não sei mais se a coisa funciona.

PADRE – Eu acho que não.

PUNTILA – O que é que significam essas dúvidas?

EVA – Cheguei à conclusão de que minha educação foi toda errada. Acho melhor ir dormir.

PUNTILA - Agora eu sou obrigado a me meter. Senta aí, Eva!

EVA – Não, papai: deixa eu ir, é melhor. Infelizmente você não vai ter festa de noivado. Boa-noite.
Sai.

PUNTILA - Eva!

Também o Padre e o Juiz se preparam para sair. Mas a Mulher do Padre ainda fala dos cogumelos
com Laina.

MULHER DO PADRE - Você quase me convenceu. Mas, sabe, toda a minha vida eu salguei os
cogumelos; assim me sinto mais garantida. Antes, porém, eu tiro a pele deles.

LAINA – Não é preciso. Basta limpar bem.

PADRE – Vem, Ana! É tarde.

PUNTILA - Eva! Matti, não sei mais o que fazer com essa menina. Eu lhe arranjo um marido, uma
maravilha de homem, pensando que ela vai se levantar todas as manhãs cantando como
uma cotovia cheia de felicidade. E ela, não: faz a gostosa, não sabe, duvida… Corre até
a porta. Eu boto ela para fora de casa! Então pensa que eu não sei que você ia se casar
com o Attaché só pra me contentar? Você não tem caráter, é um boneco! Olha, você não
é mais minha filha!

PADRE - Sr. Puntila, o senhor não sabe o que está dizendo!

PUNTILA - E me deixa em paz, o senhor também: vá pregar na sua igreja, que ali nem os cachorros
entram pra ouvir o senhor.

PADRE - Sr. Puntila, os meus cumprimentos.

PUNTILA - Vai, vai! E abandona aqui este pobre pai, trespassado de tristeza! Pai de tal filha a
quem surpreendi em flagrante delito de sodomia com aquele gafanhoto camuflado de
diplomata. Santo Deus! Qualquer camponesa ignorante é capaz de ensinar a ela pra que
é que serve aquele traseiro que Deus fabricou com o suor do seu rosto; é para atrair um
homem pra cama! E pra ele lamber os beiços, cada vez que olha aquilo! Ao juiz - E
você, no momento exato, nem sequer abre a boca pra impedi-la de ser uma porcaria. Vai
embora também, vai!

JUIZ - Ora, chega, Puntila, me deixa em paz! Eu lavo as mãos desse negócio todo. Sai sorrindo.
60
PUNTILA - Há trinta anos que você lava as mãos. Já deviam estar bem limpas, a essa altura! Mas
não se esqueça, Frederico, que eram mãos de camponês, antes que você se tornasse juiz
e começasse a bancar o Pôncio Pilatos.

PADRE tentando arrancar a mulher da conversa com a Cozinheira - Vamos embora, Ana, já é
tarde!

MULHER DO PADRE – Não, primeiro eu ponho na água fria e, antes de cozinhar, tiro os talos. É
melhor. Você deixa quanto tempo cozinhando?

LAINA – Só até a primeira fervura.

PADRE – Ana, eu estou esperando! Sai.

PUNTILA – E isso são homens? Pra mim não são! Voltando à mesa.

MATTI – Mas é o que eles são. Um doutor meu amigo, sempre que via alguém batendo no cavalo,
dizia: "Não o trate assim com tanta humanidade!". Não podia dizer bestialidade.

PUNTILA - Homem de profunda sabedoria. Gostaria muito de beber com ele. Bebe um pouco
também, Matti! Gostei de teu exame.

MATTI – Sr. Puntila, desculpe se dei uma palmada no traseiro de sua filha. Não fazia parte do
exame. Só queria dar maior intimidade. Saiu… pela culatra. Serviu apenas pra mostrar o
abismo que nos separa. O senhor também notou, não notou?

PUNTILA – Não tem nada que pedir desculpas, Matti, ela não é mais minha filha. Vem, senta aqui
comigo; vamos beber ainda mais um copinho.

MATTI - Não seja tão definitivo, Sr. Puntila. À Mulher do Padre e à Cozinheira - Como é: as
senhoras pelo menos chegaram a um acordo sobre os cogumelos?

MULHER DO PADRE - E o sal, vai junto?

LAINA - Ali, sim, em primeiro lugar...

Saem.

PUNTILA – Ouve só: ainda estão dançando lá fora!

Do lado de fora vem a voz de Surkala, o vermelho.

SURKALA –
Entre os suecos vivia uma condessa
Pálida e bela condessinha.
"Guarda-floresta, pega esta meia minha!
A liga arrebentou: a liga, a liga...
Ajoelha aqui e ajuda tua amiga!"
"Condessa, não me olhe assim.
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Só pela fome aqui vim.
Os seus seios são tão brancos.
O aço do machado é frio, frio, frio.
O amor é cheio, a morte é um vazio."
Foge a cavalo o belo guarda-bosques,
Foge a cavalo até o mar:
"Ó canoeiro, me leva no teu barco, barco, barco
Me leva, canoeiro, no teu barco,
Até o fim do mar".

PUNTILA - É comigo, isso. Essas cantigas me fazem mal ao coração.

Nesse momento Matti abraça Fina e sai dançando com ela.


Cortina.

COZINHEIRA enxugando os pratos, canta -


A raposa apaixonou-se pelo galo.
"Paixão, tu tens paixão por mim, paixão?"
A noite foi doce, mas logo veio o dia,
E ao levantar do Sol, após tanta paixão,
Havia só penas de galo pelo chão.

10

NOTURNO

É noite. Puntila e Matti mijam.

PUNTILA - Eu não poderia viver na cidade. Gosto de sair ao ar livre e mijar tranqüilamente sob o
céu estrelado, no chão de Deus. Sem isso, a vida não vale nada. Dizem que quem faz
isso assim é um primitivo, mas eu acho muito mais primitivo mijar numa caneca de
louça.

MATTI – Compreendo, Sr. Puntila; esse é o seu esporte.

PUNTILA – Não gosto das pessoas que não sabem gozar a vida. Quero o meu pessoal sempre
contente. Quando vejo um empregado meu de cabeça baixa, fisionomia abatida, fico
irritado.

MATTI - Compreendo bem os seus sentimentos. Mas não sei por que essa gente tem um ar tão
infeliz, aqui na sua propriedade. São todos amarelos como limão, só pele e osso,
parecem vinte anos mais velhos do que são. Acho que fazem isso pra irritar o senhor.

PUNTILA - Como se aqui passassem fome!

MATTI – E se passassem? Já deviam estar acostumados, que diabo! Mas não querem entender. Não
têm boa vontade. Em 18, quando oitenta mil morreram na guerra, aí sim, tivemos um
belo período de paz! Parecia o Paraíso. Já imaginou? Oitenta mil bocas famintas a
menos?
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PUNTILA – Também não precisava tanto.

11

O SR. PUNTILA E SEU CRIADO MATTI ESCALAM O MONTE HATELMA

Gabinete da casa de Puntila. Sentado a uma mesinha, está Puntila, com um pano molhado em volta
da cabeça, examinando contas e suspirando. Laina, a Cozinheira, está perto, atenta, com outro
pano e uma bacia.

PUNTILA - Se o Attaché se permitir telefonar pra Helsinque outra vez eu rompo esse noivado. Que
ele me custe um bosque, ainda vai, mas esses pequenos roubos me deixam furioso. E
olha aí, que porcaria, esse livro com o registro da produção de ovos. Tem manchas em
todos os algarismos. Parece que as galinhas puseram diretamente em cima dele. O que é
que vocês querem: que eu vá pro galinheiro verificar diretamente no rabo de cada uma?

FINA entrando - O Sr. cura e o síndico da Cooperativa Central do Leite querem falar com o senhor.

PUNTILA - Não quero falar com ninguém, minha cabeça explode: você não vê? Manda entrar.

Entram o Advogado e o Padre. Fina sai.

ADVOGADO - Bom-dia, João.

PADRE - Bom-dia, Sr. Puntila. Espero que tenha dormido bem. Por acaso encontrei o Advogado na
rua, e resolvemos dar um pulinho até aqui pra ver como o senhor ia passando.

ADVOGADO - Foi uma noite cheia de mal-entendidos.

PUNTILA - Se está se referindo ao episódio com Eino, já falei com ele ao telefone: pediu desculpas
e está tudo resolvido.

ADVOGADO - Não, não é bem isso, meu caro João. Quero te dizer uma coisa mais importante;
tudo que se refere à tua propriedade, aos teus domínios, à tua família, às tuas relações
com a gente do governo, tudo isso é problema teu. Infelizmente há outras questões e
outras relações.

PUNTILA - Olha, Pekka, não me vem com os teus rodeios! Fala claro! Se eu arranjei outra
encrenca qualquer, eu pago, que diabo!

PADRE - Desgraçadamente existem encrencas que o dinheiro não pode pagar, prezado Sr. Puntila.
Em suma: viemos aqui pra resolver amigavelmente o problema de Surkala.

PUNTILA - Que problema?

PADRE - O senhor declarou, na nossa presença, que pretendia despedir Surkala porque ele é um
vermelho fichado, a expressão é sua, que exerce uma influência deletéria sobre a
comunidade.
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PUNTILA – Eu disse até que ia botá-lo daqui pra fora a pontapés.

PADRE – O prazo legal pra despedi-la terminou ontem, Sr. Puntila. E Surkala não foi despedido.
Do contrário, a filha dele não estaria na igreja hoje de manhã.

PUNTILA - Como, não foi despedido? Laina! Entra Laina gritando. Surkala não foi despedido?

LAINA - Não senhor.

PUNTILA - Como não foi?

LAINA – O senhor se encontrou com ele no mercado de trabalhadores e, em vez de mandá-lo


embora, trouxe ele no Studebaker e ainda deu a ele uma nota de dez marcos!

PUNTILA - Descarado! Sem-vergonha! Me tomar dez marcos, quando eu já lhe tinha dito mil
vezes que sumisse da minha frente no fim do contrato! Fina! Entra Fina. Chama
Surkala, depressa! Fina sai. A cabeça me estala.

Laina põe uma nova compressa na testa dele.

ADVOGADO - Não é melhor um café?

PUNTILA - Você tem razão, Pekka: eu devia estar bêbado. Quando bebo um copo a mais, sempre
faço coisas desse gênero. É de arrancar os cabelos! Surkala se aproveita. Mas esse aí eu
boto na cadeia!

PADRE - Sr. Puntila, estou certo de que o senhor foi realmente enganado. Nós todos conhecemos a
sua boa-fé. Naturalmente se aproveitaram do fato do senhor ter bebido, estar sob o
influxo do álcool.

PUNTILA - Terrível! Terrível! Desesperado - E agora, o que é que eu vou dizer à Guarda
Nacional? É uma questão de honra! Se sabem do fato, estou perdido. Não me compram
mais nem uma gota de leite. Mas a culpa é toda de Matti, o chofer. É quem estava
sentado perto dele, ainda vejo a cena diante dos meus olhos. Ele sabia muito bem que eu
não suporto Surkala. E ainda me fez dar dez marcos a esse canalha!

PADRE - Calma, Sr. Puntila, não precisa fazer disso uma tragédia. São coisas que acontecem.

PUNTILA - Não diga isso, o senhor mesmo não acredita no que está dizendo. Se eu continuo assim,
preciso ser interditado: ter um tutor. Me digam: o que é que eu faço com meu leite todo?
Bebo sozinho? Estou arruinado, Pekka! Não fica aí de braços cruzados, resolve alguma
coisa! Você tem que intervir, você é o síndico da Cooperativa. Ou não é? Farei uma
doação à Guarda Nacional. Foi o álcool, foi o maldito álcool. Laina, de hoje em diante
não quero ver mais uma gota de álcool nesta casa!

ADVOGADO - Já estamos entendidos: você manda o homem embora imediatamente, pronto! Esse
sujeito envenena qualquer ambiente.

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PADRE - E com isso nós nos despedimos, Sr. Puntila. Como vê, com boa vontade nada é
irreparável. O que é preciso nesta vida é ter boa vontade, Sr. Puntila.

PUNTILA aperta-lhe a mão - Eu lhe agradeço.

PADRE - Não tem nada que agradecer. Só cumprimos o nosso dever.

ADVOGADO saindo - A propósito, Puntila, seria bom você se informar dos antecedentes desse seu
chofer. Ele também tem uma cara meio sinistra.

Saem o Advogado e o Padre.

PUNTILA - Laina, eu nunca mais toco numa gota de álcool. Nunca mais! Hoje de manhã, assim
que acordei, tomei essa decisão. É uma maldição. Eu disse pra mim mesmo: agora eu
vou ao estábulo e tomo uma decisão. Eu sou um verdadeiro devoto das vacas, e o que eu
decido no estábulo é sagrado. Solene - Traz pra cá todas as garrafas que estão no
armário dos selos, todas! Todo o álcool que houver em casa! Quero destruir tudo,
quebrar todas as garrafas, eu mesmo, uma por uma! Não pensa no que custaram, Laina:
pensa na nossa propriedade!

LAINA . Sim, Sr. Puntila. Mas o senhor está decidido mesmo?

PUNTILA - O escândalo de Surkala, esse canalha que eu ainda vou botar daqui pra fora a pontapés,
me serviu de lição. E diz a Altonen que venha cá imediatamente, Esse espírito do mal.

LAINA - Ih! Surkala estava com as bagagens prontas pra ir embora e agora já desarrumou tudo de
novo. Sai correndo.

Entra Surkala com os filhos.

PUNTILA tirando o pano da cabeça – Não adianta me vir com essa demagogia: minhas contas são
com você.

SURKALA - Eu sei, Sr. Puntila. Trouxe as crianças de propósito. Elas podem escutar, não vai fazer
nenhum mal a elas.

Pausa. Entra Matti.

MATTI - Bom-dia, Sr. Puntila, Como vai a dor de cabeça?

PUNTILA - Ah, você está aí, canalha? O que foi mais que você arranjou, quietinho, quietinho, nas
minhas costas? Ahn? Eu ontem não avisei que te botava na rua? Boto na rua e não anoto
na sua carteira.

MATTI - Muito bem, Sr. Puntila.

PUNTILA - E cala a boca aí! Já estou cheio das suas insolências e sem-vergonhices. Já me abriram
os olhos. Me diz, quanto você levou de Surkala?

MATTI - Não entendo o que o senhor quer dizer, Sr. Puntila.


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PUNTILA - Vai me dizer que não tem uma combinação com Surkala? Que você também não é um
vermelho? E que não fez tudo que podia pra evitar que eu despedisse esse patife aí?
Vai?

MATTI - Desculpe, Sr, Puntila. Eu executo apenas o que o senhor manda.

Laina e Fina continuam trazendo garrafas pra dentro.

PUNTILA - Você tinha a obrigação de saber que minhas ordens eram idiotas.

MATTI - o senhor me desculpe, mas é muito difícil distinguir entre as suas ordens. Se eu for
executar só as inteligentes, é melhor me despedir logo: fico o dia inteiro sem fazer nada.

PUNTILA - É inútil fazer essa cara de inocente, assassino! Sabe muito bem que eu não tolero
indivíduos como esses que passam a vida cochichando e cochichando, até que um dia os
trabalhadores me chegam aqui pedindo mais dez minutos pro almoço. O que você é, é
um bolchevique! Se eu não botei esse daí pra fora na hora exata, e agora tenho que
pagar três meses pra ele tirar da minha frente essa cara imunda, a culpa foi do álcool.
Agora, você me levou a isso por puro cálculo! Mas desta vez é sério. Laina! Vocês estão
vendo: não vou só deixar de beber! Vou destruir até a última gota todo o álcool que haja
nesta casa. Até agora não tinha tomado essa decisão, sempre deixava uma garrafa à mão
pros momentos de fraqueza, e foi a minha desgraça! Uma vez eu li que o princípio do
alcoolismo é a compra do álcool. Pena que esse pensamento não seja mais divulgado.
De qualquer forma, se há álcool em casa, devemos destruí-lo. A Matti - Eu mandei te
chamar, porque queria que você assistisse a essa destruição: é uma lição que você
jamais vai esquecer.

MATTI - Muito obrigado, Sr. Puntila. O senhor quer que eu vá ao pátio e comece a quebrar tudo?

PUNTILA - Eu mesmo faço isso, gatuno. Bem que você gostaria - levanta uma garrafa e examina -
de destruir essa bebida magnífica, mandando-a goela abaixo, hein?

LAINA - O senhor não devia olhar tanto essa garrafa, Sr. Puntila. Joga pela janela e está acabado.

PUNTILA - Tem razão. Ameaça Matti com a garrafa. Agora você não vai poder mais me obrigar a
beber, canalha. Você goza, vendo as pessoas grunhindo como porcos diante de você; diz
a verdade. Você, olha, você não tem nenhum amor pelo trabalho, e se não fosse pelo
medo de morrer de fome, você nem movia um dedo! Parasita! Bem que gostaria de
continuar me seguindo como uma sombra, passando noites inteiras me contando
histórias porcas, e me instigando a ofender meus convidados! Porque você goza quando
tudo é imundo e sórdido, É natural, nasceu numa privada, É um criminoso, você mesmo
me confessou por que foi despedido tantas vezes, e eu não me esqueço. Te surpreendi
atiçando contra mim aquelas mulheres de Kurguela. Um elemento deletério, é o que
você é. Distraidamente começa a verter o conteúdo da garrafa num copo que Matti,
bem serviçal, lhe trouxe. A verdade é que você me odeia; mas não pense que vai me
amolecer mais uma vez com o teu "Perfeitamente, Sr. Puntila!".

LAINA - Sr. Puntila!

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PUNTILA - Deixa, não se preocupe, só quero verificar se o vendedor não me tapeou, e ao mesmo
tempo festejo a minha decisão irrevogável! Bebe. A Matti - Desde o primeiro instante eu
percebi quem você era e fiquei de olho, esperando apenas o momento em que se traísse.
E por isso me embriaguei com você: mas você nem desconfiou. Continua a beber.
Pensou que estava me arrastando a uma vida de dissipações e que podia me explorar
bebendo também à minha custa; mas meus amigos me abriram os olhos. Que Deus os
proteja, bebo à saúde deles. Bebe. Se começo a pensar em minha vida nestes últimos
tempos, me vêm calafrios: aqueles três dias no hotel do Parque, aquela corrida atrás do
álcool autorizado, as mulheres de Kurguela... Que vida, que vida! Sem sentido, sem
razão! E a moça do estábulo, se lembra dela? Naquela manhã... Ah, tinha os seios
quentes, brancos, e teria se aproveitado da minha bebedeira, se eu deixasse... Se
chamava Lisu, não era? E você sempre atrás! Temos que concordar: foram bons tempos,
hein? Mas a minha filha eu não te dou não, patife. Você é um patife... é, sim, tem que
admitir. Mas, também reconheço, não é um filho da puta. Bebe.

LAINA - Sr. Puntila, o senhor está bebendo de novo!

PUNTILA - Eu, bebendo? Você chama isso beber? Uma ou duas garrafas! Pega a segunda garrafa.
Dá a ela a garrafa vazia. Quebra isso e joga fora os cacos; já te disse, não quero ver
mais isso na minha frente. E não me olha como Nosso Senhor olhava Pedro. Detesto
gente que vem me cobrar até a última nuança do que eu digo. Indicando Matti - Esse daí
procura me arrastar pro abismo, mas você quer que eu coma as unhas dos pés de
chateação, que eu morra de tédio. Que vida eu levo aqui? Fico o dia inteiro martirizando
esses miseráveis ou calculando a forragem pras vacas, sai, criatura mesquinha! Laina e
Fina saem balançando a cabeça. Mesquinhas! Sem imaginação. Aos filhos de Surkala -
Assaltem, roubem, sejam comunistas, mas não sejam jamais criaturas mesquinhas! É
Puntila quem aconselha isso. A Surkala - Desculpe se me intrometo na educação dos
teus filhos. A Matti - Abre essa garrafa!

MATTI - Espero que o ponche esteja bom, não misturado como da outra vez. O senhor não pode
confiar nem um pouco nesse vendedor, Sr. Puntila.

PUNTILA - Eu sei, por isso estou sempre em guarda. Primeiro bebo um golinho, mas um golinho
bem pequeno, assim; posso cuspir logo, se percebo que não presta. Pelo amor de Deus,
Matti, sem essas precauções, quem sabe quanta porcaria eu já não tinha engolido? Pega
também uma garrafa, e festeja a minha decisão irrevogável: que calamidade! À tua,
Surkala

MATTI - Eles podem ficar, Sr. Puntila?

PUNTILA - Mas temos que falar agora dessas coisas? Agora que tudo está tão bem entre nós? Você
é um desastre. E depois, que adianta a Surkala continuar aqui? Nossa propriedade é
muito pequena pra ele. Não agrada a ele, ficar aqui: eu compreendo. Se eu fosse ele,
também não ficava. Pra mim, Puntila seria um capitalista reles, sujo. Sabe o que eu faria
com Puntila? Metia num trabalho violento, numa mina de sal, que assim ele aprendia o
que é trabalho duro, o sanguessuga. Tenho ou não tenho razão, Surkala? Fala, não fica
com cerimônia, não!

FILHA MAIS VELHA DE SURKALA - Mas nós não queremos ir embora, Sr. Puntila.

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PUNTILA - Não, não: Surkala vai embora. Eu sei que, quando ele decide ir, nem dez cavalos o
impedem. Vai até a mesinha. Tira o dinheiro da caixa e o entrega a Surkala, depois de
separar dez marcos. Menos dez. Aos meninos - Vocês devem ter orgulho desse pai, um
pai que, por ter fé nas próprias convicções, agüenta todas as conseqüências. Você,
Helle, que é a mais velha, deve ser sempre o amparo dele. E agora, adeus! Estende a
mão a Surkala. Mas Surkala não a aperta.

SURKALA - Vem, Helle, vamos embora! Aqui vocês já ouviram tudo que tinham pra ouvir. Sai
com os filhos.

PUNTILA aflito - Mas nem me apertou a mão! Você viu? Minha mão não é digna dele? Eu
esperava que me dissesse alguma coisa ao se despedir... Uma palavra! Nada. Pra ele,
nossa propriedade é uma merda. Eu já sabia: é um homem sem raízes. O lugar onde
nasceu não significa nada pra ele. Por isso achei melhor deixar que fosse embora, já que
insistia tanto. Ah, uma cena dolorosa. Bebe. Mas nós, Matti, você e eu, somos
diferentes. Você é um amigo, é quem me indica o caminho na minha árdua estrada. Só
de olhar tua cara, me vem sede. Quanto é que eu te pago por mês, Matti?

MATTI - Trezentos, Sr. Puntila.

PUNTILA - Te aumento pra trezentos e cinqüenta. Estou particularmente satisfeito com você.
Sonhando. Matti, um dia quero subir contigo ao monte Hatelma: a vista lá é fabulosa, de
lá é que você vai ver como é bonito o país em que nasceu. Vai se morder de raiva, por
não ter conhecido aquilo antes. Vamos ao monte Hatelma, agora mesmo, Matti? Você
vai ver que vale a pena. E nem precisamos ir lá: podemos ir apenas em espírito. Bastam
quatro cadeiras.

MATTI - Dentro do horário, eu faço o que o senhor quiser, Sr. Puntila!

PUNTILA - Talvez você não tenha a imaginação necessária. Matti não responde. Puntila, com
veemência - Vamos, Matti, me faz uma montanha. Não economiza nada, não recua
diante de coisa alguma, usa os maiores blocos de pedra que encontrar. Senão você não
consegue fazer o monte Hatelma e não vamos poder gozar o panorama.

MATTI - Faço tudo exatamente como o senhor manda, Sr. Puntila. Com um pontapé destrói um
precioso relógio de pêndulo e um armário enorme cheio de armas; com os fragmentos e
algumas cadeiras constrói furiosamente uma montanha em cima da mesa de bilhar. Sei
muito bem que não posso fazer questão da jornada de oito horas, quando o senhor me
pede uma boa montanha no meio de um vale.

PUNTILA - Pega aquela cadeira ali! Assim! Segue a minha orientação, Matti, e o monte Hatelma
ficará pronto num piscar de olhos. Eu sei o que precisa e o que não precisa, pruma
montanha dessas: a responsabilidade é minha. Você sozinho é capaz de construir um
monte que não vale a pena; um monte sem paisagem, que não me daria a menor
satisfação. Pra você, o que interessa é ter trabalho; pra mim, o que interessa é canalizar
esse trabalho para um fim útil. E agora eu preciso de dois caminhos; um pra atingir o
cume da montanha, outro pra levar até lá os meus cem quilos de banha! Ninguém jamais
poderá chegar lá em cima; está vendo? Você nem pensou nisso, hein? Você não pensa
em nada! Eu, sim, sei orientar as pessoas. Eu só queria ver o que você ia fazer sem
mim!
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MATTI tira algumas peças do monte, como quem faz dois caminhos - Pronto, Sr. Puntila, pronto,
os caminhos estão prontos. A montanha está pronta, é só subir. É uma montanha
perfeita, com um caminho perfeito, e não uma coisa inacabada e primitiva como essas
de Nosso Senhor. Também, ele teve que fazer tudo naquela correria: em seis dias
alguém pode fazer alguma coisa que preste? Resultado: teve que corrigir, botando no
mundo um montão de escravos. Senão, o mundo não funcionava.

PUNTILA começa a subir - Vou quebrar o chifre.

MATTI segurando-o - Isso também podia lhe acontecer aqui na planície, se eu não estivesse sempre
a seu lado.

PUNTILA - É por isso que eu te levo comigo, Matti. É por isso que eu quero que você tenha uma
visão da terra que te deu a vida e sem a qual você seria uma bosta. Reconhece, Matti!

MATTI - Até a morte, Será que basta? No Mensageiro de Helsinque diz que a gratidão pela pátria
deve ir além da morte.

PUNTILA - Olha, primeiro os campos c os prados, depois as flores com os pinheiros que brotam da
rocha nua, árida, e parecem se alimentar do nada; como será que conseguem viver em
semelhante miséria?

MATTI - Seriam empregados ideais, hein, Sr. Puntila.

PUNTILA - Avante, Matti, vamos subir mais! Deixamos lá embaixo os edifícios, obra do homem, e
entramos no reino puro e grandioso da natureza, A paisagem aqui é mais despojada,
mais austera. Matti, abandona agora todas as tuas mesquinhas preocupações cotidianas,
e te entrega à emocionante sensação que tem diante de você!

MATTI - Estou fazendo o melhor que posso, Sr. Puntila.

PUNTILA. - Ah, terra bendita! Me dá mais um copo, pra eu poder gozar com plenitude toda a
beleza desta paisagem esplêndida.

MATTI - Um momento: vou buscar no vale. Desce e torna a subir.

PUNTILA - Eu me pergunto se você tem capacidade de apreciar todo o esplendor desta terra, Você
nasceu aqui mesmo, em Tavasto?

MATTI – Nasci.

PUNTILA - Agora eu te pergunto: onde, no mundo, você encontra um céu igual ao nosso? Já ouvi
dizer que em outros lugares é mais azul. Mas aqui as nuvens são mais leves, o vento é
mais delicado. Mesmo que me dessem outro céu pra escolher, o azul que eu quero é
este. E quando um bando de gansos selvagens se levanta do pântano, batendo
violentamente as asas, isso não é nada? Não vai atrás da conversa dos outros, Matti: fica
em Tavasto! Quem te aconselha é Puntila!

MATTI - Muito bem, Sr. Puntila.


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PUNTILA - E os lagos? Sem falar nos bosques, lá embaixo, está vendo? São meus, aqueles lá, junto
da pedreira, e eu vou mandar derrubar; mas olha bem os lagos, Matti, fixa a vista só
nuns três ou quatro, e vê! Procura não pensar nem mesmo nos peixes dos quais eles
estão cheios. Pensa só na paisagem desses lagos quando o Sol se levanta, isso basta. Isso
basta pra você nunca mais querer sair daqui. Se você algum dia for embora, vai morrer
de saudade! Na Finlândia, Matti, nós temos oitenta mil lagos como esses!

MATTI - Sim senhor, penso apenas na paisagem desses lagos.

PUNTILA - Está vendo aquele pequeno rebocador, com cara de buldogue? E mais embaixo aqueles
troncos de árvores, já limpos e lisos, rolando dentro d'água na luz da manhã? Aquilo é
uma pequena mina de ouro, Matti. Eu sinto o cheiro da madeira fresca a quilômetros de
distância. E você? Ah, os odores da Finlândia são um capítulo à parte. Por exemplo, os
morangos e as amoras depois da chuva. E as folhas de bétula, quando você vai à sauna e
manda que te batam com vontade. De manhã, na cama, como cheiram! Onde é que você
encontra uma coisa assim, Matti? Onde você tem uma vista dessas?

MATTI - Em parte alguma, Sr. Puntila.

PUNTILA - Sabe quando essa vista me agrada mais? Quando os contornos começam a ficar
imprecisos, se dissolvendo na distância, como em certos momentos de amor: a gente
fecha os olhos e as coisas se esfumam... Acho que essa espécie de amor só existe entre
nós, aqui em Tavasto.

MATTI - Lá onde eu nasci, Sr. Puntila, tinha umas cavernas com uma porção de pedras enormes
redondas e lisas como bolas de bilhar...

PUNTILA - Ah, e você lá dentro, vendo as pedras, em vez de tomar conta das vacas. Oh, vacas lá
embaixo, está vendo? Atravessando o lago a nado.

MATTI - Estou vendo. Mais de cinqüenta.

PUNTILA - Sessenta, pelo menos. E, mais na frente, está vendo o trem? Limpando bem o ouvido,
você ouve até o ruído dos latões de leite tinindo lá dentro.

MATTI - É, limpando bem...

PUNTILA - Ah, tenho que te mostrar também a antiga Tavasto. Nós também temos cidades antigas.
Lá embaixo o hotel do Parque, um vinho excelente. Mais pra cá o castelo: mas ele me
desagrada, foi transformado numa prisão de mulheres, para criminosas políticas... O que
é que mulher tem que se meter em política? Mas os moinhos a vapor, vistos assim de
longe, fazem um belo deito, hein? Dão vida à paisagem. E ali à esquerda, que é que
você vê?

MATTI - Ah, sim: à esquerda, o que é que eu vejo?

PUNTILA - Campos! Campos até onde a vista alcança; aqueles mais perto são os de Puntila,
incluindo o pântano onde a terra é tão gorda que, se deixamos as vacas pastar ali, temos

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que ordenhá-las três vezes por dia, e o trigo cresce até aqui, duas vezes por ano. Canta
comigo:
As ondas do Roine, ondas delicadas
Beijando a areia branca como leite.

Entram Fina e Laina.

FINA - Jesus!

LAINA - Acabaram com a biblioteca!

MATTI - Subimos ao monte Hatelma e estamos gozando o panorama.

PUNTILA - Vamos, cantem! Não têm amor à pátria?


Todos, menos Matti -
As ondas do Roine, ondas delicadas
Beijando a areia branca como leite.

PUNTILA - Oh, terra de Tavasto, sê bendita! Sê bendita com teu céu, com teus lagos, teu povo e
teus bosques! A Matti - Diz a verdade, Matti: não sente o coração transbordar de
emoção diante disso tudo?

MATTI - Sim, Sr. Puntila: vejo seus bosques e sinto que meu coração transborda.

Cortina.

12

MATII VOLTA AS COSTAS AO SR. PUNTILA

Pátio da propriedade de Puntila. Matti sai da casa com uma mala. Laina o segue com um pacote. É
manhã cedo.

LAINA - Leva, Matti: embrulhei umas coisas pra você comer! Por que vai embora assim tão cedo?
Espera ao menos que o Sr. Puntila se levante.

MATTI - É o que eu quero evitar. Esta noite ele tomou um porre tão grande que, quando ia
amanhecendo, me prometeu metade de um bosque. E diante de testemunhas, imagina!
Desta vez, quando souber disso, chama a polícia mesmo!

LAINA - Mas se for embora assim, sem a carteira, você está perdido.

MATTI - Carteira? Pra que é que eu quero uma carteira onde estará escrito ou que eu sou um
bolchevique, ou que eu sou um homem? Em qualquer dos dois casos, eu não vou
conseguir nenhum emprego.

LAINA - Ele estava tão acostumado com você. Vai sentir tua falta.

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MATTI - É, mas eu já me enchi. Que se arranje! Depois do caso de Surkala, eu não agüento mais as
intimidades dele. Obrigado pelo embrulho, Laina. E adeus!

LAINA assoando o nariz, comovida, em soluços - Felicidade, Matti, felicidade. Sai.

MATTI anda alguns passos, depois se volta –


Antes, porém, a minha despedida:
Longa vida, Puntila, longa vida!
Que não é o pior, bem se percebe.
(Chega a ser quase um homem, quando bebe.)
Mas não pode durar, nossa amizade:
Passa o pileque, acaba-se a fraternidade.
De que vale chorar,
Se a luta cão e gato é milenar?
Não gastem à toa
Uma lágrima boa.
Quem vencerá?
Chegou a hora do criado dar as costas
Sem esperar respostas.
Só quando for o senhor de si mesmo,
Dono do seu suor,
Pra todos então poderá dizer:
"Não tem patrão melhor".

Sai rapidamente.

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