Texto 5 - ORLANDI, E. O Conhecimento Sobre A Linguagem

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CONHECIMENTO LINGUÍSTICO, FILOLOGIA E GRAMÁTICA 203

O R L A N D I , E. O conhecimento sobre a linguagem:


mercado e interesse. In: _ . Língua e conhecimento
linguístico: para uma história das ideias no Brasil. São Capítulo 5
Paulo: Cortez, 2002, p. 203-214.
O Conhecimento sobre a Linguagem:
Mercado e Interesse

A Disciplinarização dos Estudos da Linguagem no Brasil

Se tomamos a história da disciplinarização dos estudos da l i n -


guagem no Brasil, também o século XIX mostra-se como u m momen-
to importante desta história. Como dissemos, momento da gramati-
zação das línguas no Brasil, o século XIX, com suas transformações,
ligadas à transformação maior que é a do Brasil tomar-se u m país
independente, vai organizar a sociedade brasileira com suas institui-
ções, seus programas de ensino, entre os quais sobressai o ensino da
língua. N o século XIX, e com nossa independência, a relação com a
língua deixa de ser uma questão da relação com os portugueses para
ser de brasileiro para brasileiro. Começamos, então, a p r o d u z i r os
nossos instrumentos linguísticos (gramáticas, dicionários, antologias),
nossos programas de ensino (Fausto Barreto), nossas instituições (Co-
légio Pedro I I , Academia de Letras, Biblioteca) o que muda sobrema-
neira a relação do brasileiro com sua língua. A o mesmo tempo criam-
se normas de estabilização de uma escrita nossa (acordos ortográfi-
cos) e uma escritura (literatura) legitimamente nacional para nossa
língua. Começam-se a praticar nossos modelos de língua não mais
diretamente ligados aos de Portugal. A administração da vida intelec-
tual, mais diretamente, e, mais geralmente, a da vida social rege e
conforma também o modo de produção e de circulação do conheci-
mento. No caso que nos interessa, o da língua e de sua importância,
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LÍNGUA E CONHECIMENTO LINGUÍSTICO

do v a l o r atribuído a ela socialmente — base da prática dos profissio- supõe ter u m a cultura geral capaz de acolher, entre outros, este saber.
nais d a linguagem. Ao contrário, pelo argumento da cientificidade, de u m lado, e da pro-
dução de grande massa de analfabetizados, de outro, o pressuposto é
Essa organização, por assim dizer, de nossa relação c o m a língua
de que há enorme distância. Esse é o imaginário que rege as relações
nacional, que se institucionaliza, traz consequências importantes para
atuais. Todos estão "incluídos", mas uns têm competência, outros, co-
a constituição de nossa sociedade e a formação profissional do cida-
dão brasileiro não só na área de linguagem. Ver a gramática como u m nhecimento sofrível.
objeto histórico — e não apenas normativo — permite considerá-la Como estamos dizendo, o século XIX é marcante na instituciona-
parte d a organização da sociedade e da população. lização dos estudos da linguagem e em sua profissionalização: criam-
se escolas, programas e materiais de ensino, assim como u m modo de
Neste passo de minha reflexão, v o u tratar do modo como a pro-
ensiná-la. O u melhor, a própria maneira como se constroem as gra-
dução d o conhecimento linguístico resulta em uma organização so-
máticas e os programas são indicações de como se deve praticar o
cial do trabalho sobre a língua com efeitos para a organização do pró-
ensino da língua, ainda mais porque os mesmos intelectuais que fa-
prio conhecimento social.
zem as gramáticas são os que ensinam a língua: no Colégio Pedro I I ,
Se chamo a atenção para a nossa história, situando o século XIX, no Colégio Culto à Ciência, no Caraça, no Liceu Cuiabano, no Colégio
é porque nesse momento há iniciativas políticas e intelectuais que se de São Paulo etc.
mostram mais claramente como iniciativas que organizam uma for-
Começa-se assim a se profissionalizar o professor de letras — a
ma de conhecimento ao mesmo tempo em que se constituem formas
gramática é seu centro de organização e os autores literários brasilei-
sociais e institucionais de sua configuração e, em consequência, u m
ros e portugueses são seus modelos. Pode-se aprender a língua lendo-
interesse particularizado e u m mercado de trabalho administrado. A
se bons autores, diz Júlio Ribeiro, e acrescenta: mas é mais rápido se
sociedade brasileira se forma ao mesmo tempo em que o conhecimen-
temos boas gramáticas. Por outro lado, esta profissionalização encon-
to toma parte dessa formação. Se, na relação com o Estado, estabelece-
tra suporte na criação de instituições próprias ao ensino. Conhecer a
se o sujeito de direito, também faz parte dessa relação o sujeito do
língua, dominar o b o m uso da língua é condição para a profissionali-
conhecimento. E isto se dá por intermédio: da produção de instru-
zação não só em letras, mas para os profissionais liberais em geral. As
mentos que explicitam nossa relação com a língua, da fundação de
Faculdades de Direito, por exemplo, são u m dos lugares de exercício
programas de ensino, da criação de instituições próprias para seu en-
da língua culta, ou da cultura da boa língua de muito destaque. Mes-
sino, de uma produção linguística e literária que configura uma u n i -
tres da oratória. Bons falantes. Exemplares. Inteligência (cultura) e
dade da língua nacional. Antes do século XIX, muitos brasileiros ou
domínio da oratória estão ligados.
estudavam com preceptores que utilizavam gramáticas portuguesas
ou eram alunos de instituições portuguesas, em geral de Lisboa ou Há então, no início do século XX, uma produção profusa de gra-
Coimbra. Os autores de nossa produção linguística e literária são u m máticas; cada professor escreve a sua. Até que, nos anos 50 (1958), é
grupo de intelectuais nem sempre formados em Letras. São historia- criada a NGB e, como tenho mostrado (cf. E. O r l a n d i , 1996), há uma
dores, médicos, engenheiros, e letrados que se dedicam ao estudo e mudança de autoria, ficando o gramático regido por uma nomencla-
ao ensino da língua, assim como à produção de instrumentos linguís- tura uniforme e o conhecimento da língua passando a ser caucionado
ticos e da literatura, produções que legitimam nossa escrita ("escre- pelo linguista.
ver como se fala no Brasil e n ã o como se escreve em Portugal"). Todos Uma ciência, uma profissão. Já havia linguistas no Brasil — e u m
esses intelectuais são, em geral, capazes de uma escrita jornalística, dos maiores é, sem dúvida, Mattoso Câmara — assim como o ensino
que constitui, por assim d i z e r , o lado de divulgação desse conheci- médio e o superior (desde o final dos anos 30), o que organizava de
mento e dessa prática erudita, do saber a língua. Divulgação aqui ad- maneira diferente o conhecimento sobre a língua e mudava o merca-
quire sentido particular em relação ao atual, pois hoje a divulgação é do de trabalho. Contudo, a profissionalização do lingúista se explicita
tarefa de especialistas acentuadamente de caráter técnico. Não se tra- à medida que, na instituição, a disciplina Lingúística ganha estatuto
ta, atualmente, de estabelecer uma relação com a sociedade que se oficial específico e, no ensino da língua, lugar especial: o de quem
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conhece a língua cientificamente e por isso pode ensinar como se pra- o sentido estabelecido pelas ciências da linguagem para as H u m a n i -
tica esse saber. Papel este nas mãos dos gramáticos, fundadores, no dades. Se, n o século XIX, as Humanidades é que estabelecem u m qua-
Brasil, dessa autoria no século XIX até meados do XX. dro para o estudo da linguagem, como gramática, na definição da es-
pecificidade de u m país com sua sociedade e suas instituições, no sé-
A Escola, como mostramos, mantém em relação ao ensino da lín-
culo XX, sobretudo em seus albores, o Estado brasileiro já constituído
gua o funcionamento de duas discursividades: a do gramático e a do
linguista, este apresentando-se como u m superego às vezes desejado, demanda uma relação definida com a ciência, e os estudos de lingua-
outras detestado. Mas presente. Na unidade da língua nacional, o gem ganham seu lugar particular no quadro científico e na formação
gramático cria o imaginário de U M A língua regida para todos os brasi- de quadros especializados para seu ensino.
leiros e mostra os desvios, as diferenças (variedades), na uniformida- Uma modificação nesse estado de coisa se produz nos anos 70,
de (nacional), enquanto o linguista também concorre para esse efeito em que essa configuração muda. Agora são os estudos da linguagem
de u n i d a d e , por um discurso que se apresenta como discurso da ciên- que ganham realce no conhecimento das Humanidades. Não mais a
cia e não da norma (como o gramático), elaborando u m a metalingua- linguagem vista como gramática, porém em sua relação com o pensa-
gem que dá objetividade científica à representação da unidade. mento (fundamentos biológicos, cognição) e com o m u n d o (instru-
mento de comunicação) em variadas facetas que correspondem a d i -
Profissionalmente, isto tem aberto o mercado a alunos de letras,
ferentes modos de construir suas relações com outras ciências huma-
seja pelo conhecimento da gramática seja pelo conhecimento linguís-
nas, biológicas, matemáticas.
tico. A s s i m como criou u m mercado de trabalho parasitário — o mer-
cado destinado a "quem sabe a língua" — nas editoras, nas comuni- N o século XIX, as Humanidades " f o r m a t a m " o conhecimento da
cações, nas empresas etc. linguagem; a partir dos anos 70 do século XX, é o estudo da lingua-
gem que " f o r m a t a " as Humanidades.
A o constituir seu objeto, o estudo da linguagem cria também o
profissional e o mercado de trabalho. Diria que, pensando esse qua- São várias as maneiras de mostrar essa transformação. Podemos
dro, há uma variação no modo como a questão da língua — e das lembrar, historicamente, a importância do estruturalismo na Lingúís-
línguas — significa as Humanidades. Desde u m sentido erudito de tica. Esse método deu à Lingúística a posição privilegiada de ciência
Belas Letras até outro mais técnico e imediato do escrever correta- piloto das ciências humanas, uma vez que conseguiu, sendo u m a dis-
mente, passando por uma gama variada de saberes específicos, relati- ciplina das humanidades, formalizar o tratamento de seu objeto. No
vamente eruditos. Porque, sem dúvida, o conhecimento de língua entanto, essa formalização se deu ao preço de "esquecimentos" vo-
durante muito tempo se resumiu, no discurso social, a "falar e escre- luntários — do sujeito e da situação etc. — que não permitiram a mera
ver corretamente". Mesmo com o desenvolvimento da Linguística, transferência de resultados dessa disciplina para as outras ciências
mantém-se esse traço da ideologia sobre a língua nacional. Isso se mos- humanas, o que se transformou mais em distância e incompreensão
tra na discussão equivocada de que o linguista estaria de acordo com do que em real contribuição, no sentido de se prestar como instru-
o que é considerado u m escândalo social: aceitar que se fale ou escre- mento para as demais.
va errado. Para o linguista tudo valeria. O que demonstra também o São, portanto, várias as particularidades dessa conjuntura. Des-
imaginário (eficaz) da onipotência da ciência e do cientista, no caso, o tacarei, dela, e e m sentido inverso, a que mais me toca: a da inclusão
linguista: este, p o r conhecer a língua, teria o poder de administrar a produzida pela análise de discurso. Isto porque, sem dúvida, a consti-
sua prática na sociedade, de modo a reger os seus destinos. tuição do objeto "discurso" representa u m corte, uma re-organização
Pois bem, na Linguística, e no final dos anos 70, há uma movi- no conjunto das ciências humanas — e de sua presença na sociedade.
mentação nesse q u a d r o que produzirá deslocamentos substanciais. É preciso ainda mencionar u m elemento que faz parte dessa v i -
Uma virada nos estudos de linguagem — compatível com deslo- rada: o modo de presença da linguagem na sociedade. N o século XIX,
camentos ocorridos na sociedade e seus movimentos, assim como na a imprensa está ainda engatinhando no Brasil e os meios de comuni-
relação dos sujeitos c o m o conhecimento — trará nova configuração cação parcos eram praticados de m o d o ilustrado e erudito (conferir o
da relação com o trabalho na área da linguagem, deslocando também que dissemos d o jornalista e de sua relação com o conhecimento da
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língua). N o século XX, há abundante produção de linguagem, assim nas ciências humanas e sociais) —, a análise de discurso mostrará a
como grande produção sobre a língua e a linguagem. impossibilidade da redução dos conhecimentos da área das H u m a n i -
dades, dado o contorno de limites de seus objetos. Há diferenças
A mídia e as novas tecnologias da linguagem certamente trazem
incontornáveis já que a noção de sujeito, a de história e a de língua
nova percepção da linguagem e de sua importância. Isso mexe com o
sobre as quais elas se assentam em sua formação no século XIX, já não
saber sobre a língua, o mercado e o interesse. E sobre o profissional de
são mais vigentes. Esse novo desenho de que falo acima, e que tem o
linguagem, cujo perfil vai-se tornando, de u m lado, mais abrangente,
discurso, enquanto forma material, como pedra de toque, nos indica
e, de outro, mais especializado, n u m movimento contraditório que
que é sobretudo por uma articulação contraditória que podemos tran-
mostra a relação produtiva da formação de disciplinas concorrentes
sitar no domínio das Humanidades. Não na ilusão de u m objeto total,
nos estudos da linguagem: a gramática, a filologia, a lingúística, com
em uma forma de conhecimento integral, resultado de acúmulo. Aí
seus diferentes "ramos". E as Comunicações.
tanto a linguagem como o sujeito "font defaut", fazem a diferença.
Falham, produzem o equívoco, prerrogativa da ideologia. Desse modo,
Sujeito, Discurso, História, Sociedade: uma prerrogativa da ideologia nos e pelo que chamo de efeito de antiinterdisciplinaridade, a análise de
estudos da linguagem discurso aponta para outra territorialização do saber, uma nova orga-
nização das ciências humanas, com novos recortes, não se pensando
O marxismo, a psicanálise, a lingúística trazem uma necessária mais essas regiões disciplinares — com seus conteúdos —, mas u m
mexida nos estudos das ciências humanas, no alcance de seus produ- novo jogo de relações do saber sem os centros que o determinavam.
tos e na organização social do conhecimento assim produzido e, em Há nessa perspectiva uma dispersão necessária do conhecimento nas
conseqúência, no mercado de trabalho. ciências humanas que corresponde à forma histórica de nossa socie-
A análise de discurso, no campo das ciências da linguagem, é a dade — d i v i d i d a —, de nosso sujeito — disperso —, de nosso modo
disciplina que se constituirá nesse lugar que tenho chamado de entre- de produção de sentidos pelas formas de linguagem — em quantida-
meio, catalisando as contradições que se formam a partir dos desloca- de e insignificante.
mentos produzidos pela articulação entre marxismo (a história não é Assim é que tenho afirmado que há duas posições quanto à
transparente), psicanálise (o sujeito não é origem de si) e lingúística (a multidisciplinaridade — que cria, em relação ao mercado de traba-
linguagem não é transparente, tem sua própria ordem). Ao se situar lho, a idéia da onipotência do sujeito em face de uma necessidade
nesse lugar, a análise de discurso, com seu objeto, o discurso, produz "empresarial" de quantidade e variedade, o sujeito multiespeciali-
u m re-desenho das ciências humanas e sociais. A o mesmo tempo des- zado — em nosso contexto histórico atual: a) a dos que reconhecem
faz a ilusão de que a linguagem é u m instrumento neutro, o suporte a necessidade de pensar os recortes como não-estanques e praticam
do pensamento, ou apenas u m meio de comunicação. Isso afeta a a transformação d o desenho das disciplinas aprofundando as con-
maneira como se passa a considerar a forma material da linguagem tradições que d e r i v a m desses seus recortes e b) a dos que se i l u d e m
nas práticas sociais e a necessidade de conhecer seu frmcionamento com o objeto total como se o discurso da interdisciplinaridade p u -
no exercício de várias profissões. Mais do que isso, no século em que desse por si ultrapassar a história e não fosse, ao contrário, parte
se afinam as novas tecnologias da linguagem e em que a mídia se dela (E. Orlandi,1996).
apresenta e m sua onipresença, a análise de discurso é a disciplina que
pode compreender como os sentidos, e os sujeitos, se constituem, se
formulam e circulam. A Ciência do lado de fora
Desse m o d o , ao invés de tentar responder o irrespondível — em
relação à posição de ciência-piloto que a lingúística o c u p o u com o Nesse percurso que estamos traçando, acompanhei o movimen-
estruturalismo, nos anos 70, na ilusão de poder formalizar as ciências to do conhecimento da linguagem, c m sua produção material históri-
humanas c o m o se faz nas ciências "duras", tendo no entanto para isso ca e socialmente determinada, em sua relação com as Humanidades
que esquecer as determinações históricas concretas de seu objeto (como sem me demorar em sua relação com as ciências naturais e exatas.
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LÍNGUA E CONHECIMENTO LINGUÍSTICO

É inegável a necessidade crescente, que se inicia já no século XIX saber social da linguagem, como parte da cultura geral (bem social
mas se aguça no XX, da ciência como constitutiva da sociedade e da geral), que é mobilizado pelo jornalista quando este fala dela, em
relação do Estado com as Instituições via conhecimento. Nessa con- âmbito nacional. A língua se apresentava assim em outro lugar, assim
juntura há um privilégio marcante das ciências exatas e da natureza como a presença e a forma dos profissionais da linguagem era outra.
em relação às Humanidades. Basta observar a mídia (o que aparece, E há algo que se mantém e atravessa essa história modulando o
por exemplo, nos cadernos de Ciência) e as políticas científicas e de modo como é significado: é o saber (corretamente) a língua. Em u m
indução de projetos nas áreas técnicas. momento como u m bem social, em outro como uma norma que ex-
O Jornalismo de Divulgação Científica (JC) — já uma forma da clui, em outro como u m conhecimento m u i t o especializado (formali-
mídia especializada, bastante distinta do jornalismo do século XIX e zado) etc.
do começo do XX — desenvolve-se na direção da passagem do erudi- O saber a língua e o saber sobre a língua se conjugam no precon-
to ao técnico. ceito social do "saber ler e escrever bem a (nossa) língua" que atraves-
Em relação ao modo de existência da linguagem na sociedade e sa toda essa história, mas adquire, como fomos vendo, sentidos dife-
do conhecimento sobre ela, forma-se de um lado, o profissional com a rentes graças, de u m lado, à língua e à constituição das ciências da
marca do especialista que tem como figura emblemática o gramático linguagem c o m suas especificidades e, de outro, ao próprio modo de
de mídia (de plantão) que faz sua frmção como informação do conteú- existência da linguagem na sociedade. Essa articulação é que deter-
do da gramática, de cunho normativo. De outro, o especialista acadé- mina a variação do interesse e das diversas configurações que toma o
mico (técnico, formalista) que se resguarda da mídia atrás de sua com- profissional da linguagem em seu mercado de trabalho 1 .
petência de especialista, cientista e não-gramático. Neles, ciência (lin- Atualmente, tanto pela forma de existência da linguagem em suas
guista) e saber (gramático) se separam. Por outro lado, e produzido práticas sociais, configuradas pelas novas tecnologias e pela presença
nessa conjuntura da linguagem em suas manifestações (e não apenas da mídia (o cientista da computação e o especialista da comunicação),
na concepção da língua como conjunto de regras), há o especialista há uma diversificação do perfil profissional de Letras que se coloca
que é referência não para a escrita correta mas como o que sabe como em sua relação com outras formas de conhecimento (conferir acima)
funciona a escrita. Neste profissional a tekhne (conhecimento) e a sustentando o estudo da língua (e não só da gramática) como forma
empeiria (o saber) se articulam. E há ainda os profissionais da comu- de compreensão da própria sociedade em que vivemos e da história
nicação, que reduzem a relação à empeiria, o saber a língua (instru- que nos confere sentido, politicamente significados.
mento).
O retorno desse movimento sobre as Humanidades é o de fazê-
Se, antes, o intelectual sabia escrever no jornal (sem ser jornalis- las voltarem-se sobre as noções que lhes dão sustentação: o sujeito, a
ta), como Mattoso Câmara, Eduardo Carlos Pereira, Antonio Candido língua, a história. E m uma palavra, as Humanidades não podem igno-
entre outros, hoje não sahe mais. O JC é portanto, nessa conjuntura, rar, ao contrário, têm de tomar contato, ter conhecimento do que é
parte da dispersão das ciências humanas. discurso e de que não há ciência que não seja discurso. Esse re-conhe-
Mas há u m aspecto d o JC para o qual quero chamar a atenção. cimento tem p e r m i t i d o às Humanidades situarem-se com mais legiti-
Trata-se do aspecto que tenho chamado de "efeito de exterioridade da midade na história da ciência, no conjunto das diferentes ordens de
ciência", o q u a l promove a presença do conhecimento na sociedade. E discurso científico. O que é u m ponto fundamental para uma tomada
o JC é constitutivo desse efeito que pode ser resumido n o transporte de posição em que podemos mostrar que, tanto quanto as outras ciên-
da metalinguagem para a terminologia. Explico-me. O leitor do JC cias, também produzimos nossas tecnologias (os dicionários e as gra-
não é u m especialista que pretende se tornar u m cientista, mas al- máticas são tecnologias) necessárias ao avanço social.
guém que precisa dessa relação com o conhecimento na representa- O que procuro dizer com isso é que, com a inclusão da reflexão
ção de suas práticas sociais (as coisas a saber que lhe são necessárias sobre a linguagem não apenas como instrumento neutro, as H u m a n i -
para ser u m sujeito social). Ora, muito diferente é a situação no século dades, nessa mudança de perspectiva, impõem-se como forma de co-
XIX e início d o XX. Há, neste caso, como dissemos, u m presumido nhecimento não somente refletindo o social, mas capazes de produzir
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u m saber sobre ele, podendo assim tomar parte consequente nos pro-
jetos da própria sociedade 2 .
Assim, se no século XIX, o conhecimento da língua, das letras, da
linguagem, era uma parte das Humanidades, com as transformações
produzidas pela constituição do campo de conhecimento que tem
como objeto o discurso há u m giro fundamental pelo qual, atualmen-
te, são as Humanidades que se organizam em torno de ou a partir do
conhecimento da linguagem.
Se pensamos a história longa de desenvolvimento de estudos da
linguagem na relação entre gramática/retórica/dialética, em que, de
maneiras diferentes e em épocas distintas, cada uma delas tomou a
frente das outras, tendo finalmente a gramática (reduzida quase à idéia
de correção) se sobreposto às demais nos estudos linguísticos, não é
talvez descabido pensar que se trata de mais uma das voltas nessa
intrincada história que não deixa de se tramar, sustentada pela rela-
ção entre empeiria e tekhné. Em que conhecimento e arte, ciência e sa-
ber, se entrelimitam, dispondo sobre as relações que os sujeitos têm
com a língua, consigo mesmos e com seus outros.

Notas

1 . Nesse conhecimento que não pode ser indiferente aos diversos modos de rela-
ção c o m a l i n g u a g e m , tenho proposto um a reflexão sobre a tatuagem, a picha-
ção, o grafite, o piercing co m o m o d o s de o sujeito relacionar escrita/escritura/
grafismo e que a escola não p o d e desconhecer e m seu projeto de conhecimento
da língua e da escrita (E. O r l a n d i , 2001).
2. U m exemplo disso são projetos que temos desenvolvido no domínio dos estu-
dos urbanos, i m p l e m e n t a n d o u m a reflexão discursiva sobre a cidade, que i n a u -
guramos c o m o tema "Saber U r b a n o e L i n g u a g e m " , no q u a l , ao invés de r e d u -
z i r m o s nossa reflexão aos p r o d u t o s urbanos e / o u a seu planejamento p r o c u r a -
mos, tomando a l i n g u a g e m co m o observatório do u r b a no , compreender os p r o -
cessos de produção dos sentidos da cidade. Para tal temos sido levados a p r o d u -
zir tecnologias de conhecimento sobre a cidade, a p a r t i r de nosso domínio de
conhecimento discursivo. E isso fica à disposição não só dos cientistas v o l t a d o s
para a questão urbana, mas t a m b é m dos interessados na administração dessa
questão, de forma refletida.

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