Dayse Stoklos Malucelli Cotard Tese Doutorado

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DAYSE STOKLOS MALUCELLI

SÍNDROME DE COTARD:
UMA INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA

LABORATÓRIO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA – PUC-SP

SÃO PAULO
2007
DAYSE STOKLOS MALUCELLI

SÍNDROME DE COTARD:
UMA INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Psicologia Clínica, sob a orientação do
Prof. Doutor Manoel Tosta Berlinck.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA – PUC-SP

SÃO PAULO
2007

ii
Dissertação defendida e aprovada em 22 de agosto de 2007, pela banca
examinadora constituída pelos professores:

__________________________________________
Manoel Tosta Berlink (Ph.D pela Cornell University)
Orientador

_____________________________________________
Leda Mariza Fischer Bernardino (Doutora pela USP-SP)
Examinadora

_____________________________________________________________
Luís Eduardo Prado Oliveira (Doutor pela Universidade Paris VII
Examinador

________________________________________________
Nelson da Silva Junior (Doutor pela Universidade Paris VII)
Examinador

_________________________________________
Paulo José Carvalho da Silva (Doutor pela PUC-SP)
Examinador

iii
Dedicatória

À minha avó Maria que, nos seus graves impasses psíquicos e catatonia aproximou-
me dos limites do estranho familiar, e de quem, no fio tênue do que foi possível
construir, apropriei-me dos instrumentos para tecer minha vida.

À minha neta Isabela, que nasceu no trepidar desta pesquisa e que me trouxe a boa
nova da renovação da vida, sobretudo, por fazer um elo forte e saudável entre
gerações.

iv
AGRADECIMENTOS

Ao Marcos, pela presença tranqüilizadora e disponível nas fases de maiores


atribulações.

Aos meus filhos Mariana e Eduardo, que continuam me impedindo dos recuos na
vida.

Ao professor Manoel T. Berlinck, pela confiança e fidalguia com que me distinguiu


nestes quatro anos de trabalho, no Laboratório de Psicopatologia Fundamental.

Aos colegas e amigos do Laboratório de Psicopatologia Fundamental pelas


sugestões, colaborações que, muito mais do que acréscimos acadêmicos, foram da
ordem de um reconhecimento que me permitiram seguir.

À professora Jeanne Marie Gagnebin, pela orientação afetiva no Mestrado e que se


estendeu nos impasses intelectuais do doutorado, como restos profícuos de uma
etapa já atravessada.

Aos meus irmãos, presentes, acolhedores e compreensivos, sempre.

Aos professores Paulo José Carvalho Silva e Nelson Silva Júnior, por todas as
observações atenciosas, valorosas e, sobretudo, singulares, que me foram
sugeridas no exame de qualificação.

Ao Ricardo Goldenberg, que testemunhou e encorajou a minha autoria.

Ao Sr. R. que, na sua generosidade, recebeu-me e me ensinou da psicose muito


mais que as bibliotecas.

Aos meus colegas e amigos da Associação Psicanalítica de Curitiba, pelas


significativas interlocuções.

Ao amigo José Waldemar T. Turna e a Casa de Saúde São João de Deus, pela
receptividade e oportunidade para desenvolver este trabalho.

À editora Marlise de Cássia Bassfeld e à jornalista Daniela Licht, pelas contribuições


na organização metodológica e revisão técnica da tese, pelo carinho e paciência.

v
SUMÁRIO

QUADRO 1 ............................................................................................ 21
RESUMO ............................................................................................... viii
ABSTRACT ........................................................................................... ix

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................... 1
1.1 JUSTIFICATIVA DO TEMA ................................................................... 1
1.2 OBJETIVOS DA PESQUISA ................................................................. 7
1.3 CONTEÚDOS DO TRABALHO ............................................................. 8

2 O CASO CLÍNICO EM QUESTÃO: A TRISTEZA DO SR. R. .............. 9


2.1 SINGULARIDADES DO SR. R. ............................................................. 12
2.2 PRIMEIRA ENTREVISTA COM O SR. R. ............................................. 13
2.3 CONTEXTO DE TRABALHO CLÍNICO NO CASO DO SR. R. ............. 14
2.3.1 As primeiras interlocuções ..................................................................... 15

3 DELÍRIO DAS NEGAÇÕES – SÍNDROME DE COTARD E


MELANCOLIA ....................................................................................... 20
3.1 JULES COTARD – ASPECTOS DE SUA OBRA CLÍNICA ................... 20
3.2 MACROMANIA E MICROMANIA NA SÍNDROME DE COTARD .......... 22
3.3 DANIEL PAUL SCHREBER – UM ESTUDO FREUDIANO ................... 24
3.4 DUAS MORTES – O PÊNDULO DO MELANCÓLICO EM COTARD ... 28
3.5 O PATRONÍMICO EM COTARD .......................................................... 30
3.6 A ESFERA DE COTARD ....................................................................... 31
3.7 FASE DO ESPELHO – UM CONCEITO LACANIANO .......................... 33
3.8 COTARD POR RAIMUNDO NINA-RODRIGUES .................................. 34

4 O CONGRESSO DE BLOIS (1892) ...................................................... 36


4.1 A INTERVENÇÃO DO MÉDICO PSIQUIATRA DR. CAMUSET ........... 36
4.2 A INTERVENÇÃO DO MÉDICO EMMANUEL RÉGIS .......................... 39

5 UMA ABORDAGEM SOBRE A HIPOCONDRIA .................................. 44


5.1 ETIMOLOGIA ........................................................................................ 46
5.2 A HIPOCONDRIA EM JULES COTARD ............................................... 46
5.3 A HIPOCONDRIA EM LACAN E CZERMACK ...................................... 47
5.4 HIPOCONDRIA E SÍNDROME DE COTARD ....................................... 49
5.5 HIPOCONDRIA MORAL ........................................................................ 50
5.6 PARALELISMO ESPINOZISTA ............................................................. 52

6 A NEGATIVA EM FREUD E COTARD – BARTLEBY, KAFKA,


PESSOA ................................................................................................ 55
6.1 A NEGATIVA EM FREUD ..................................................................... 55
6.2 A NEGATIVA EM COTARD ................................................................... 58
6.3 BARTLEBY – “I WOULD PREFER NOT TO” …………………………… 59
6.4 KAFKA E O “ARTISTA DA FOME” ........................................................ 62
6.5 A NEGAÇÃO EM FERNANDO PESSOA .............................................. 64

vi
7 A TRISTEZA EM COTARD ................................................................... 65
7.1 OS SERMÕES DE PADRE VIEIRA ...................................................... 65
7.2 O NIILISMO NA SÍNDROME DE COTARD ........................................... 66
7.3 ARTAUD E SUA TRISTEZA – UMA APROXIMAÇÃO A COTARD ...... 69

8 O PSICANALISTA E A CRONICIDADE ............................................... 71


8.1 A CRONICIDADE EM ALTO GRAU ...................................................... 71
8.2 O PSICANALISTA E O ENFERMO DE COTARD ................................. 73
8.3 PAUL CLAUDEL, O POETA DA DESTITUIÇÃO SUBJETIVA .............. 75
8.4 “NÃO RETROCEDER FRENTE À PSICOSE” ....................................... 78

9 CONCLUSÃO ........................................................................................ 79
9.1 RECOMENDAÇÕES PARA FUTUROS TRABALHOS ......................... 83

REFERÊNCIAS ..................................................................................... 86

ANEXOS ................................................................................................ 88

vii
RESUMO

Esta tese, constituída no Núcleo de Psicanálise do Laboratório de


Psicopatologia Fundamental da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tem por
objeto de pesquisa a retomada de um tipo de delírio, o de negações, também
conhecido como Síndrome de Cotard, e destaca a sintomatologia presente na
maioria das melancolias e esquizofrenias. Por sua complexidade, nesse vasto
campo o qual apenas se roça de leve, as referências existentes podem levar a
caminhos sinuosos. Para não se afastar da bússola da Universidade, recorta-se
então alguns aspectos, segundo a teoria que sustenta este percurso. Relata-se um
caso clínico compatível com a Síndrome de Cotard, assim nomeada em homenagem
ao médico francês Jules Cotard, do século 19. Dos relatos de Cotard, acerca de
seus pacientes no Hospital Salpetriére, faz-se uma aproximação com o que ainda
ocorre, visto que apesar de tantos medicamentos de ponta, ainda não se alcança
que logrem ultrapassar a doença e o doente. O delírio das negações tem uma
história na Psiquiatria, especialmente a francesa do século 19, e inclui do trabalho
de Jules Cotard seus cinco breves, densos e carregados casos clínicos ilustrativos e
pontuais. Isto se repete nos alienistas contemporâneos do mesmo porte, como
Seglas, Camuset, Régis, Nina-Rodrigues. Descreve-se as principais manifestações
da síndrome como a micromania, macromania, a esferecidade sem aderências do
seu corpo, a fase do espelho e suas peculiaridades em Cotard. Também se aborda o
conceito de hipocondria, por ser manifestação recorrente e pano de fundo para
outras manifestações que se superpõem. A tristeza que se observa no melancólico
de Cotard faz pertinentes e significativas as observações de Dante, do padre
Antonio Vieira, porque a melancolia não exclui nem se mistura à tristeza. Alguns
exemplos da literatura confirmam o pensamento de Freud, de que os poetas e
escritores sabem mais dos males da alma do que os psicanalistas. Neste trabalho,
também se percorre autores clássicos até Freud e Lacan e alguns seus sucedâneos.
Finalmente, tenta-se dizer da cronicidade deste tipo de síndrome e o que se coloca
como possível na escuta clínica da psicanálise, e que derruba o ideal do furor
curandis porque o tempo todo o cotardizado dirá que não é isto. Sua negação,
porém, poderia ensejar uma outra negação: a de que o assunto esteja encerrado.

viii
Como ocorre em outras áreas, em que se buscam alternativas para os grandes
males da humanidade, talvez reste como desafio um horizonte com novos pontos de
vista a serem constituídos por parte dos que se interessam por esta difícil e, tanto
quanto, instigante clínica.

Palavras-chave: Síndrome de Cotard; delírio das negações; psicose;


melancolia; psicanálise.

ix
ABSTRACT

The scope of this study developed at the Núcleo de Psicanálise do Laboratório


de Psicopatologia Fundamental da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(Psychoanalysis Center of the Psychopathology Laboratory at the Catholic University of
São Paulo) is the review of a certain type of delirium, the negation delirium, also known
as Syndrome of Cotard and it emphasizes the symptomatology that is present in most
melancholies and schizophrenias. The references found in this field may lead to sinuous
ways, because of its only slightly approached complexity. In order not to withdraw from
the University compass, some aspects were trimmed according to the theory sustaining
this process. There is a clinical case reported that is compatible to the Syndrome of
Cotard - this name given in honor of the nineteen century French doctor Jules Cotard.
From Cotard’s reports on his patients at the Hôpital Salpêtrière, it is possible to approach
the current events, once in spite of the latter numerous medications, the patients’
recovering and the outreaching of the disease are not yet achieved. The negation deliria
have a history in Psychiatry, in particular the XIX century French history and include the
work of Jules Cotard, his five short, dense and heavy clinical cases that are illustrative
and punctual. This situation is repeated for his contemporary alienists of the same level,
such as Seglas, Camuset, Régis, and Nina-Rodrigues. This work describes the main
manifestations of the syndrome, such as micromania, macromania, no adherence
body sphericity, the mirror stage and their peculiarities in Cotard. It also approaches
the concept of hypochondria, a recurring manifestation and background to other
superposed manifestations. The sadness observed in Cotard’s melancholic
individuals shows to be pertinent and significant the reports by Dante and father
Antonio Vieira, for melancholia does not include nor mixes with sadness. Some of
literature examples confirm Freud’s thought on poets and writers, who know more
about the soul’s pains than psychoanalysts do. In this work, classical authors like
Freud and Lacan and some of their successors are examined. Furthermore, the
chronicity of this type of syndrome is analyzed that makes it possible to the clinical
hearing in psychoanalysis, and overthrows the ideal of furor curandis, once the
individual who is analyzed under Cotard will always say this is not the case. His
denial, however, would allow another negation: the closure of the issue. As in other

x
areas where the alternatives for the great evils in humanity are searched, a new
horizon may leave a challenge with new points of view to be established by those
who are interested in this difficult but instigating clinical issue.

Key-words: Syndrome of Cotard; negations delirium; melancholy; psychoanalysis,


hypocondria

xi
1 INTRODUÇÃO
“Eis a diferença entre se dispor a alcançar um ponto
preciso ou aproximar-se dele de modo assintótico, sem
esperar chegar, mas também sem perdê-lo de vista”.

Ricardo Goldenberg

O objeto desta tese é resultado do trabalho com um grupo de estudos que se


mantém há três anos, na Associação Psicanalítica de Curitiba, sobre o Seminário 3,
(1955-1956) As psicoses, de Jacques Lacan.
Durante o transcurso das leituras, uma colega1 mencionara a Síndrome de
Cotard como uma manifestação importante da melancolia e referira os trabalhos do
psicanalista e psiquiatra do Centre Hospitalier Sainte Anne-Paris, Frederic Péllion,
cujo serviço eu viria a acompanhar por trinta dias, em 2003.
Tratou-se de pacientes cotardianos cronificados, os quais me instigaram o
desejo de iniciar uma pesquisa movida também por lembranças singulares da
infância. Além disso, reconheci que, muito antes de me aproximar da Filosofia e,
mais tarde, da Psicanálise, sentira-me interpelada pelo enigma que a psicose
enseja, pela cronificação de uma posição subjetiva e o conseqüente sofrimento que
permeia a vida do psicótico e dos que o rodeiam.

1.1 JUSTIFICATIVA DO TEMA

Desde sempre, a estética goyesca2 da psicose provocou no meu imaginário


infantil muito menos horror do que algumas interrogações que não paravam de se
inscrever. O mal-estar instalado produzia efeitos vagos, como a busca de
organização de um palimpsesto confuso, que produzia questões muito mais tarde
traduzidas em perguntas, felizmente, jamais respondidas e, por isso mesmo,
mantiveram-se vivas e provocaram outra forma de investigação. A clínica

1
Telma Rocha de Morais, psicanalista e membro da Associação Psicanalítica de Curitiba.
2
Goyesco: relativo ao pintor espanhol Goya, mencionado pelo professor Manoel Berlinck, em aula no
dia 25 de junho de 2006, ao se referir à estética dos psicóticos de dialogar com as figuras de Goya.

1
psicanalítica e o interesse pelas psicopatologias foram as conseqüências imediatas
e definitivas.
Naquele distante contexto, estavam os loucos das ruas da minha infância, os
delirantes nos seus solilóquios e uma avó emigrante, portanto, sem o acesso a
minha língua-mãe, catatônica, o que a tornava verdadeiramente estrangeira na
própria família. No estupor da sua expressão, na imobilidade física, as poucas
palavras totalmente incompreensíveis e poucas vezes pronunciadas mostravam um
outro lugar, uma clausura onde eu não conseguia entrar. Era um lugar interditado e,
por isso mesmo, pronto para ser explorado pela criança e neta hipnotizada pelos
estereótipos e gestos tão incompreensíveis quanto um murmúrio no idioma
ucraniano.
Como ressalta Jeanne Marie Gagnebin (1994, p. 102),

a criança vê aquilo que o adulto não vê jamais, os pobres que moram nos porões
cujas janelas beiram a calçada, ou as figuras menores na base das estátuas erigidas
para os vencedores. A incapacidade infantil de entender certas cenas, palavras, ou
de manusear direito certas palavras, está aí somente à disposição para nos
obedecer, mas que nos escapa, os questionamentos podem ser outra coisa que
nossos instrumentos dóceis. Lembranças as quais não se distinguem sempre quem
enunciou e a quem se dirige, como no processo de uma psicanálise.

Torna-se impossível fazer uma reconstrução, uma narrativa a la Benjamin,


como em Infância Berlinense (BENJAMIN [1892-1940] 1900), mas que retém a
extensão do tempo na intensidade de uma vibração, de um relâmpago, do Kairós
benjaminiano.
A infância, como diz incisivamente Lyotard, é in-humana. Por não implicar
humanidade acabada e completa, talvez indique o que há de mais verdadeiro no
pensamento, a saber, a incompletude ou a invenção humana.
Lembranças labirínticas me levaram a Freud inicialmente como um escritor-
romancista e, depois, como o revelador do inconsciente e suas vicissitudes e, ainda,
aquele que viria a terminar com as ilusões que ainda insistiam em se manter. Tais
lembranças eram fundadas nesses tão ingênuos “olhar e escuta”, por não lhes ser
atribuído significação senão uma curiosidade exagerada e produtiva. O que se
passava com essas criaturas tão diferentes das outras do cotidiano coincidia de

2
maneira inesperada com a letra freudiana. O estranhamento começava a tomar ares
familiares e, portanto, permitia uma aproximação mais temerária.
Numa passagem pela mitologia grega, tem-se Ariadne, a filha de Minos e
Pasifae. No momento em que Teseu chega a Creta para enfrentar o Minotauro, com
os jovens entregues como tributo pelos atenienses, Ariadne se apaixona
intensamente por ele. Para que ele encontre a saída do labirinto, ela lhe entrega um
novelo de fios, fornecido por Dédalo, ou uma coroa luminosa, obra de Hefesto, e
foge com ele para evitar a cólera de Minos (BRUNEL, 1988, p. 82).
Desse modo, usa-se a expressão "procurando o fio de Ariadne " para dizer da
tentativa de encontrar um caminho quando se está em momentos de indecisão ou
de perdição. Trata-se de um fio que daria o rumo para uma saída feminina, marcada
pela sutileza como o fio de Ariadne.
O fio da Ariadne, que fez função de guia no labirinto até a definição deste
trabalho, foi também o fio da linguagem, entrecortado, balbuciado. Entretanto, ao
tateá-lo às escuras, o fio da história me levou até o interesse acadêmico e clínico do
estudo das psicoses.
Talvez, ainda como numa licença poética e nostálgica, possa ser dito que
esta tese tem sua medida de restos infantis, retalhos de recalques e franjas de
lembranças encobridoras. Mas, sobretudo, deve ser entendida como uma tentativa
de tecer uma trama que sustente uma clínica e uma história.
A clínica psicanalítica não se origina como uma clínica das psicoses, embora
Freud já fizesse menções importantes em sua correspondência com Fliess,
especialmente na Carta 22, Analogia entre um sonho e a psicose onírica (FREUD,
1895), e na Carta 55, Determinantes da psicose (FREUD, 1897). Freud se referiu às
psicoses no sentido lato, e, mais demoradamente, em Notas psicanalíticas sobre um
relato autobiográfico de um caso de paranóia (FREUD, 1911), bem como quando
publicou Neurose e Psicose (FREUD, 1924) e A perda da realidade na neurose e na
psicose (FREUD, 1924).
Lacan (1932) começou sua produção e clínica com a paranóia na tese de
Medicina Da psicose paranóica em suas relações com a Personalidade, em que já
anunciava seu interesse pelas psicoses, marcadamente psiquiátrico. Seus Escritos e
Seminários, especialmente o de 1955, Seminário 3, As psicoses, tratam à exaustão

3
a etiologia, a metapsicologia, a sintomatologia das psicoses e oferecem uma
interpretação topológica de Freud. Seu “re-torno a Freud é um re-tornar, uma
segunda volta obedecendo ao trajeto de uma dupla volta sobre a banda unilátera –
em que se regressa ao ponto de partida depois de duas voltas”, afirma Eric Porge
(2006, p. 16). Especialmente nesta pesquisa, isso fica patente sobre a leitura do
Presidente Schreber, em que se observa a literalidade do texto presente por todo
lado em Lacan, mas com um forte tom de suas interlocuções com filósofos,
religiosos, lingüistas, matemáticos e artistas.
A Psicopatologia Fundamental se beneficia das pesquisas sobre as psicoses
porque essa clínica se ocupa da constituição do sujeito nas suas relações mais
iniciais, arcaicas, primitivas, do pathos e suas implicações na clínica cotidiana, seja
com os bebês, com as crianças, com os mais crescidos e as diferentes estruturas
clínicas que considerarmos.
A escolha da Síndrome de Cotard, o recorte desta manifestação psicótica
como tema de uma tese, deve-se a várias razões que se considera importante
explicitar.
Evidencia-se, conforme afirma Berlinck (2000, p. 7), que “quando pathos
ocorre, algo da ordem do excesso, da desmesura se põe em marcha, sem que o eu
possa se assenhorar desse acontecimento”. O delírio de negação esbarra nesse
excesso pático de forma hiperbólica, massiva de que se ocupa a Psicopatologia
Fundamental, no sentido do pathos como paixão e passividade.
Outra razão mobilizadora da pesquisa se deu pela rara literatura disponível
acerca desta grave afecção. O silêncio sobre a pesquisa de Jules Cotard e outros
psiquiatras contemporâneos, que ecoa nos escritos atuais sobre psicose, denuncia
um abandono desta nosografia, de modo que se verifica uma solene ignorância
sobre a importância, no século XIX, desta síndrome nos hospitais psiquiátricos,
especialmente os franceses.
Como lembra Czermak (1993), a Síndrome de Cotard foi vista naquele século
como um objeto entomológico, peça do anedotário do Grande Museu de Psiquiatria.
Portanto, torna-se da maior importância para o psicopatólogo reler as descrições
atentas, minuciosas de Jules Cotard, as quais pela precisão do olhar e da escuta
destacam inumeráveis elementos esquecidos pela psiquiatria moderna, o cuidado da

4
narrativa de Jules Cotard com seus pacientes. De fato, as reflexões densas e
perturbadoras de seus escritos são importantes para promover um incremento nas
pasteurizadas referências nosográficas.
Verifica-se que o delírio das negações é freqüentemente confundido com
melancolia e/ou esquizofrenia no sentido stricto, o que destitui todo o trabalho de
psiquiatras como Jules Séglas, Jules Cotard e Camuset.
Pretende-se também recuperar a história no sentido grego, conforme Jeanne
Marie Gagnebin (apud BERLINCK, 2000. p. 14 ): “aquele que viu, testemunhou”. Os
psiquiatras que se ocupam desses delirantes são testemunhas da exuberante
manifestação da dor e do sofrimento deles, ultimamente muitas vezes mascarados
pelos medicamentos. A convocação da escuta do analista diante desse grave
quadro talvez desvele o que é ainda pior, ou seja, a insuportabilidade da escuta das
cantilenas tristes niilistas sobre a morte.
O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) também fez isso, contudo
autorizado pela literatura e a intelectualidade. Os delirantes de Cotard e seus
contemporâneos têm uma estética embutida na psicose, aquela que por excesso de
lucidez se torna insuportável. Tal restrição também limita o interesse por estes
quadros cronificados e repetitivos na sua queixa cotidiana.
Outra questão mobilizadora para esta tese são as variáveis da Síndrome de
Cotard, que se apresentam em seus estados incompletos e cujos traços, entretanto,
são comumente encontrados no delírio de ruína. Deve-se à pesada
polimedicalização, que mascara os estados mais agudos da doença na tentativa de
impedir a cronificação, a raridade de manifestações no estado puro. Todavia, com
alguma freqüência são ouvidos neuróticos com um discurso muito próximo ao da
Síndrome de Cotard, no sentido do horror a falências, da paúra de perder seus
objetos em alguma situação sinistra, de morar na rua, de sofrer por doenças,
abandonos, solidão. Esses discursos se aproximam do Cotard pela forma muito
dramática com que são enunciados e sugerem sempre um desamparo parental, sem
chegar no paroxismo do delírio de negação dos órgãos. Estes, são em pequeno
número pois, mesmo guardados os traços característicos da síndrome, aparecem
associados a outras patologias.

5
Mario Eduardo Pereira (1998) observa que o termo Síndrome de Cotard
praticamente desapareceu dos Manuais de Psiquiatria, de modo que deu lugar a
expressões do tipo Delírio niilista. Pereira analisa, porém, que a mudança de
nomenclatura não afasta um interesse clínico da maior importância para o
psicanalista.
Nesta tese, o interesse clínico se torna o vetor de aproximação desses
doentes, cujo paroxismo mostra o excesso sintomático, a hipocondria, a melancolia,
por exemplo, e corrobora vigorosamente para desmantelar as “novas patologias” da
chamada contemporaneidade, posto que as descrições do século XIX são
coincidentes com o caso clínico que sustenta esta pesquisa.
Ressalta-se que este trabalho não tem outro interesse senão clínico e que
passa ao largo da história da psiquiatria. Enfatiza-se, também, que o percurso na
pesquisa de uma doença sobretudo psiquiátrica, e encontrada apenas em hospitais
psiquiátricos, faz um desenho aferente. Ou seja, não se sai da clínica do hospital
psiquiátrico para colocar a pesquisa em outras searas; mas, ao contrário, sai-se da
clínica em consultório privado e do ensino acadêmico para o hospital psiquiátrico.
Esta direção evidencia um ineditismo impressionante, mesmo que a própria clínica
(da autora da tese) tenha um número considerável de pacientes psicóticos, egressos
de hospitais, ou fora ou pré-surto e sendo acompanhados pela psiquiatria, mesmo
assim, o doente internado e cronificado enfatiza sobremaneira o sofrimento e a dor
das doenças mentais, de forma mais nua, crua e dura.
Entende-se também que nenhum lugar no sentido topológico e simbólico seria
mais apropriado para inscrever esta pesquisa do que no Laboratório de
Psicopatologia Fundamental, em que o que se propõe explícita e especialmente é
tratar do pathos, porque o Cotard é, par excellence, um sujeito trágico, sofrente.
Corresponde ao Fundamental da Psicopatologia porque o doente vai fundo, ele
resiste, vivo em um corpo quase morto. Como na Divina Comédia3, são eternos, vão
sofrer eternamente e parecem terem cruzado a porta com o terrível aviso: “Perdei, ó
vós que entrais, toda a Esperança”. Os pacientes afetados pelo delírio das negações
não têm esperança, ali a esperança não é a última que morre.

3
A Divina Comédia é a obra-prima de Dante Alighieri, iniciada por volta de 1307 e concluída pouco
antes de sua morte, em 1321. Trata-se de um poema épico, escrito em italiano, que narra
metaforicamente uma odisséia pelo inferno, purgatório e paraíso.

6
Ao lembrar Berlinck mais uma vez e ao justificar a inscrição desta tese no
Laboratório de Psicopatologia Fundamental, sobretudo porque na clínica
testemunha-se o mergulho no nada destes pacientes, a frase (de trabalho ainda não
publicado) em seguida cabe nas interrogações desta pesquisa: “Fundamental,
então, ao contrário de geral, que se refere ao superficial, ao amplo, aos contornos
horizontais e verticais que tudo incluem, refere-se ao ancorar, ir ao fundo”
(BERLINCK, 2005, p. 3).
Cabe considerar, ainda, que por meio da psicose, mostra-se a céu aberto a
possibilidade de se fazer uma aproximação às outras estruturas psíquicas, muito
menos parasitantes e cronificadas do que graves e sofridas. Parafraseando Freud :
“o psicótico não tem o pudor neurótico de mascarar o âmago da dor de existir e
apresenta uma persistência rara em denunciar, via seu maltratado corpo, os farrapos
do psiquismo”.

1.2 OBJETIVOS DA PESQUISA

Constituem objetivos desta tese:

a) pesquisar os sintomas que compõem a síndrome de Cotard e observar os


pacientes com quadros diagnosticados ou não, desse sintoma, em um Hospital
psiquiátrico, levando em conta os indicadores da revisão bibliográfica;
b) considerar os limites e as possibilidades da psicanálise com os pacientes cuja
gravidade exija internamento hospitalar;
c) verificar a eficácia da psicanálise em pacientes com síndrome de Cotard;
d) responder à questão proposta de início nesta pesquisa, se é possível falar de
fantasma na melancolia;
e) identificar particularidades da melancolia, especialmente a síndrome de Cotard,
em clássicos da literatura universal.

Ainda, buscar-se-á situar os delírios das negações como a estrutura psíquica


mais pura daquilo que é um corpo psicótico, submetido ao infinito no tempo e
ilimitado no espaço; marcado por uma hipocondria maior e extremada, diferente da

7
hipocondria presente em outras psicoses. Nessa posição, o indivíduo não conhece
nada que não seja o presente petrificado e sem mobilidade, e como não tem hiância,
buraco, nada se modifica.
A Síndrome de Cotard remete também às catatonias, ao estupor melancólico,
às psicoses agudas e a todos aqueles sofrimentos psíquicos do humano que vêm
aliviar o ideal do psicanalista e aniquilar o furor curandis. Implica uma constatação
triste para uma prática que se quer antes de tudo instrumentalizada pela linguagem
O sujeito cotardiano é um inconsolável trancado, não há uma janela pulsional
a que se possa assaltar; ele remete ao desamparo inicial, sem o menor pudor.
Fica-se autorizado a pensar que a Síndrome de Cotard oferece elementos
para pensar a clinica com mais ousadia e menos pretensão; ousadia porque se pode
ir muito longe, se a própria análise permitir e despretensiosamente porque tais
doentes dizem que não são suscetíveis à prática psicanalítica. E isto não costuma
ser muito divertido na clinica. Se por um lado tal constatação traz um desalento; por
outro, derruba posturas narcísicas infantis que possam estar presentes na condição
de um tratamento.
Escutar um melancólico de Cotard exige que se esteja muito além das
guerras de prestigio, das fogueiras das vaidades ou dos narcisismos intocáveis.
Entretanto, pode ser significativa aventura a que nenhum analista deveria se
privar, porque a clinica com psicóticos leva longe demais e se há uma teia simbólica
tecida na análise, sem muitos buracos, pode-se imiscuir, especular mais daquilo que
é do humano, por demais humano, essas experiências-limite do estranho-familiar
que doente de Cotard promove. Trata-se de viagem transplanetária, em que as
referências são outras e o analista se vê na injunção de abandonar dogmas e
cânones até então muito navegados.

1.3 CONTEÚDOS DO TRABALHO

O desenvolvimento desta tese está sustentado numa ordem de abordagem


metodológica, dividida em capítulos, conforme se explicita a seguir.

8
No primeiro capítulo, é apresentada uma breve história do delírio das
negações, situando-se cronologicamente a clínica de Jules Cotard, o Congresso de
Blois (1892) e as contribuições de Jules Séglas.
As características fenomenológicas descritas por J. Cotard, seus argumentos
e considerações serão comentados e discutidos, assim como também será feita uma
tentativa de traduzir o espanto e a estupefação que os relatos dos doentes
provocam; a escuta e a coragem de Cotard de isolar esta síndrome como algo,
então, inédito. Nos Anexos, estarão alguns textos de Jules Cotard, Jules Séglas e as
mais importantes discussões do Congresso de Blois.
Por ser uma manifestação-mór do Cotard, a hipocondria será o foco do
segundo capítulo, que se inicia com os escritos, assim chamados, de pré-
psicanalíticos de Freud, suas cartas a Fliess. Marcel Czermak, Frédéric Péllion,
entre outros, será tomado como eixo que balizará o trabalho.
No terceiro e quarto capítulos, a melancolia e a paranóia serão descritas no
delírio das negações, manifestações importantes e recorrentes nesta clínica.
No quinto capítulo, será abordado o caso clínico norteador desta pesquisa, a
fim de que sejam demonstradas as hipóteses apontadas e a atualidade do delírio
das negações. No mesmo capítulo, constarão aspectos da história do paciente,
relatos de entrevistas, excertos de falas, observações, articulados com a teoria que
pretendemos desenvolver. Certamente não teremos resolvido a questão inicial, mas,
talvez, formulando uma hipótese otimista, consigamos atenuar os enigmas deste
quadro psicótico tão instigante e sofrido.
Finalmente, na bibliografia, indica-se em que fontes se bebeu, onde jorraram
mais generosamente elementos, questões, interpelações para fazer esta cesura
entre o delírio das negações e os delírios, as negações, as neuroses e os
sofrimentos.
Esta tese é uma metáfora que tem como base o rastro de um percurso que se
desenvolve há quatro anos, que bascula entre adormecimentos e sonhos,
despertares e devaneios, de conflitos e tensões, porque o convívio com a psicose
permite uma contra-transferência sui generis, em que as loucuras recalcadas se
cruzam com lucidez, sem trégua e sem guarida.

9
2 O CASO CLÍNICO EM QUESTÃO: A TRISTEZA DO SR. R.

“Eu penso que o futuro analista corre um perigo [...]


quando lhe parece que exista uma coincidência
exata entre as particularidades do caso e a teoria. É
o que eu gostaria de qualificar de fuga na mais vã
terminologia, a mais afastada da realidade.

Theodor Reik

Inicia-se este relato clínico com uma observação considerada de


incomensurável valor, feita pelo professor Manoel T. Berlinck, em 2007, a seus
alunos do Laboratório de Psicopatologia Fundamental, na Pontifícia Universidade de
São Paulo (PUC-SP). Entende-se que sua abordagem relativa à transferência deve
se tornar pública no âmbito das escritas de casos clínicos porque traz uma
advertência rara e valorosa, de modo que pode evitar muitas angústias
desnecessárias, equívocos e, seguramente, pode instigar a uma produção teórico-
clínica mais genuína. Afirma Berlinck (2007):

“Enquanto vocês forem concretistas e realistas, vai ser muito difícil entender
o relato de um caso clínico. Somente quando vocês perceberem que o relato
do caso clínico não é o caso, mas um relato que produz um autor, aí vocês
começarão a entender do que se trata .”

Em complementaridade à elucidativa epígrafe deste capítulo, em sua


comunicação verbal, Berlinck (2007) assinala que o relato do caso clínico refere-se
a um paciente. Mas não é o paciente. Quem escreve o relato é um autor. Por
analogia, Dora não é quem Freud (1905)4 descreve. Freud é o autor do caso Dora.
A Dora descrita por Freud nunca existiu, ainda que tenha existido alguém que Freud
chamou de Dora. Berlinck (2007) também considera que

Enquanto vocês acreditarem que o paciente descrito é quem vocês


descrevem, estarão irremediavelmente identificados com o paciente e não
estabeleceram uma distância clínica necessária para refletir sobre o caso.
Em outras palavras, o paciente ainda não é um caso clínico e vocês ainda
não são autores. [...] Um relato de caso é sempre verossímil. Mas não é

4
Embora o Caso Dora tenha sido publicado por Freud em setembro e outubro de 1905, os estudos e
escritos respectivos foram feitos por ele em 1901.

10
verdadeiro. O relato de caso deve ser escrito, segundo Freud, como se
escreve um romance, uma novela, um conto (livre anotação da autora em
aula).

O caso clínico que sustenta esta pesquisa apresenta sinais evidentes do


delírio das negações, conforme conceito estabelecido por Cotard, como uma doença
distinta, isolada, ou Síndrome de Cotard, de acordo com o que propôs o psiquiatra
francês Emmanuel Régis, durante o Congresso de Blois, em 1892, em homenagem
ao grande responsável pela sua descrição.
Conversar sobre um paciente com colegas, supervisores, professores,
orientador de tese não é uma tarefa fácil. Assim mesmo, esta travessia enseja uma
aprendizagem tal que incrementa a clínica e amplia o referencial teórico. Quando,
contudo, trata-se de escrever para fundamentar com rigor necessário o
estabelecimento de uma tese de doutorado, digna deste nome, a tarefa muda de
status.
Para tornar possível esta difícil empreitada, foram considerados alguns
recursos da semiologia, que ensejam pensar: quais os signos que o paciente
apresenta? Ainda, adotou-se como critério a abordagem das classificações: qual o
diagnóstico, pelo menos aproximado, que se possa aproximar neste caso? Além
disso, as nosografias contribuíram para responder à seguinte questão: quais outros
sintomas são mais ou menos verdadeiros, mesmo que não tenham sido observados,
ou qual é a evolução que se vislumbra?
A clínica não pode ser vista ou pensada pela via da ingênua intuição, pois é
necessário que haja uma fundamentação teórica consistente para que se efetive.
Tanto quanto, não se trata de pura questão de saber; trata-se de savoir-faire. A
clínica de Radmila Zygouris ilustra esta afirmação. As irreverências desta
psicanalista eslava, a coragem, sua posição não-dogmática apontam uma saída
para a apresentação de um caso.
Conforme afirma Caterina Koltai (1995), na apresentação do livro Belas
lições, “Por meio de seus textos, a experiência analítica volta a ser uma bela
aventura vivida a dois, razão pela qual é importante o analista poder falar sobre o
que faz”.

11
O embaraço se apresenta, entretanto, onde aparece a urgência de discernir o
que parece sinalizar um elemento significativo da questão clínica ou o que não
passa de uma impressão subjetiva. O impasse continua porque não se pode pensar
em uma clínica viva, que o tempo todo enquadre pacientes no mesmo diagnóstico
por apresentarem algo em comum ou, ao contrário, como manter uma clínica viva
fazendo tábula rasa do passado?
O fato é que jamais estaremos tão distantes para ter a objetividade de um
DSM4, ou a posição de pura exterioridade, porque estamos, pela via contra-
transferencial, mergulhados no “caso”.
Ao ocupar esse lugar, e apenas este, o psicanalista se autoriza a falar da
clínica com as chaves da Psicopatologia Fundamental, em que reconhece que o
sujeito no seu sofrimento encontra sua mais sublime representação na tragédia
grega, conforme aponta Berlinck (2000).

2.1 SINGULARIDADES DO SR. R.

A escolha pelo não-uso do discurso acadêmico na escrita a seguir, assim


como ocorreu e pode ocorrer ainda em alguns trechos desta tese, deve-se à
implicação pessoal com que deve ser descrita a experiência clínica, o que enseja,
portanto, a preocupação em simbolizar um trabalho que se consolida na práxis.
Há tres anos, com periodicidade quinzenal, encontro o Sr. R., 74 anos, em um
hospital psiquiátrico em São Paulo, e sempre me surpreendo e me alegro por
encontrá-lo vivo, ou “não-morto”, o que é diferente.
Esse paciente me foi indicado por um colega do Laboratório de Psicopatologia
Fundamental que trabalha no referido hospital e que, durante a discussão do meu
projeto de pesquisa, relatou brevemente o caso de um paciente que apresenta,
segundo ele, as características da Síndrome de Cotard.
A partir dessa observação do colega, com a anuência do paciente, da esposa
e da equipe do hospital, fiz o primeiro contato em um consultório, nas dependências
do hospital.
O Sr. R. foi desenhista da Prefeitura de São Paulo e está aposentado desde
1972, quando tinha 40 anos, por insanidade mental.

12
Os pais tiveram quatro filhos, sendo ele o mais novo; é capaz de lembrar o
nome dos pais e dos irmãos e localiza-se facilmente na constelação familiar, mas
não consegue dizer das peculiaridades, das idiossincrasias de cada um, fica em uma
repetição decorada dos nomes e funções.
Casou-se, teve um filho, e logo a esposa adoeceu e morreu. A partir deste
ponto, a narrativa encalhou, ele não conseguiu historicizar quem cuidava da criança
órfã, não lembrava de quase nada, de modo que começaram a surgir os buracos da
sua biografia, os quais apareceriam em todas as entrevistas em que tentei
acrescentar pontos nessa trama familiar.
Passados alguns anos, ele foi apresentado por uma sobrinha à ascensorista
do prédio onde ela trabalhava e que estava separada do marido. Começaram um
namoro e em poucos meses se casaram. O casal foi morar na casa de onde ele
nunca saiu desde que se casara pela primeira vez. Nasceu um outro filho, cuja idade
atual é 23 anos. Na ocasião do segundo casamento, ele já estivera internado várias
vezes e estava aposentado por invalidez.

2.2 PRIMEIRA ENTREVISTA NO CASO DO SR. R.

O Sr. R. apareceu diante de mim com uma expressão crispada, a fácies5


triste, o sofrimento estampado na figura desanimada, no sentido literal de ausência
de ânima. Tinha o andar muito lento, arrastava os pés, de maneira que, na
sinuosidade da marcha, seus braços e pernas pareciam se descolar do corpo. Com
um corpo mole, magro, pálido e sem higidez, conserva traços de um homem bonito,
seus gestos e atitudes são cordiais. Recebeu-me um pouco reticente, mas logo
conseguiu responder ao que eu perguntava, e apenas respondia sem emitir nenhum
comentário além daquilo que eu enunciava. A voz era monocórdia, sem
expressividade, o tom era muito baixo, às vezes parecia ser de uma pessoa muito
mais velha, ou de alguém muito fragilizado por uma doença física. O niilismo, o tédio
e o desamparo eram tão absurdamente exuberantes que me afetaram de maneira
brutal.

5
Conforme o Dicionário Aurélio, fácies significa o aspecto de um corpo, tal como se apresenta à
primeira vista. Significa também a modificação de aspecto imprimida à face por estados mórbidos
(Aurélio Século XXI, Versão 3.0 - Digital).

13
Com alguma dificuldade, expliquei-lhe em detalhes a razão de minha visita,
falei da pesquisa que desenvolvo, da indicação do colega, e lhe propus encontros
regulares no hospital para que ele pudesse me contar um pouco da sua história.
Respondeu-me que não tinha nada para contar. Insisti que mesmo assim gostaria de
vê-lo quinzenalmente para conversarmos sobre o que ele quisesse e quanto
pudesse.

2.3 CONTEXTO DE TRABALHO CLÍNICO NO CASO DO SR. R.

A partir de então, ficaram instituídas minhas idas a um consultório do hospital,


onde eu o receberia sempre em determinado horário, com aviso de um dia de
antecedência, feito por intermédio do meu colega que fez a indicação. Como nunca
houve um horário fixo, tive a oportunidade de encontrá-lo em várias situações: com a
visita da esposa, na hora do lanche, uma vez à noite na hora da medicação, em
atividades recreativas do hospital; outras vezes ele dormia e eu precisava esperar
um tempo para que ele acordasse. Outras ocasiões, ainda, ele não quis me ver,
recusou-se a sair do quarto.
Outra vez, e foi apenas uma, veio até o consultório e disse que não tinha
nada a dizer e voltou para a cama. Das manifestações típicas cotardianas, uma
delas é o sujeito manter-se debaixo das cobertas e interpor entre ele e o que vem do
Outro uma barreira que o impede de levantar da cama.
Esses diferentes comportamentos não são aleatórios. Todas as vezes que ele
não quis ir até o consultório eu tinha notícias pela enfermagem de que ele estava
doente, acometido de pneumonia, crises de diabete ou hipertensão, e aí ele não
saía do quarto. O Sr. R. teve dois internamentos em hospital geral por complicações
relativas a estas doenças, ao longo desses anos em que o acompanhei.
Aconteceram também algumas quedas, por tontura, conforme relatou, e teve ligeiras
escoriações, acerca das quais ele afirmava: “foi um interno que me agrediu”.
Testemunha-se um corpo que cai, como no filme de Hitchcock, e um psiquismo que
se esfacela junto com este corpo, sob uma fala desvitalizada.
Nessas ocasiões de maior suscetibilidade física, seu aspecto era mais
empobrecido, suas roupas estavam mais desleixadas, apresentava uma postura

14
mais arcada e um olhar ainda mais triste. O Sr. R. parecia um quadro vivo das
descrições de Esquirol no seu clássico Des maladies Mentales (1838).
Ao mesmo tempo em que aconteceram essas situações de maior risco físico,
testemunhei outras em que ele havia engordado, estava mais corado, asseado, com
roupas que lhe caíam bem e com passos mais decididos, sem precisar do apoio da
enfermagem. Parcialmente, tal oscilação é possível ser atribuída aos efeitos
colaterais dos medicamentos antipsicóticos, antidepressivos de que ele faz uso.
Entretanto, há nesse paciente, mesmo que muito sutil, nas filigranas do seu andar e
falar, uma mudança inusitada de humor.
Quando há uma tentativa de reconhecimento de seu estado de ânimo – “o
senhor está mais triste hoje” –, ele afirma: “o meu sofrimento é o maior do universo”.
Mas quando a observação se encaminha para algo mais salutar como “o senhor está
mais bonito e bem disposto hoje”, de modo recorrente, ele responde com uma frase
feita: “as aparências enganam”.
Esta pequena oscilação de humor não é nenhuma fase cíclica como ocorre na
psicose maníaco-depressiva.

2.3.1 As primeiras interlocuções

Na primeira entrevista, perguntou-se ao Sr. R. a razão de estar internado. A


questão aparentemente objetiva desencadeou-lhe uma narrativa desesperada. Suas
falas advieram litânicas, sintéticas, cruas, repetitivas, com claros sinais de
cronificação. “Foi a pior coisa que aconteceu na minha vida, o maior erro da minha
existência. Isto aqui, hospital, é igual a uma prisão” – desabafou.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), em sua consagrada
obra O mundo como vontade e representação, diz aforisticamente que a pessoa que
ainda acredita na felicidade do humano precisaria visitar um hospital psiquiátrico ou
uma prisão (SCHOPENHAUER, 1819). Talvez o excesso de lucidez do Sr. R., nítido
e recorrente em muitas ocasiões, faça sentido com o que Freud diz, em Luto e
Melancolia ([1915] 1969), que o sujeito precisa adoecer para chegar mais perto da
verdade.

15
O Sr. R. relatou que foi a esposa a interná-lo, “porque não me agüentava mais
em casa. Eu dizia sempre as mesmas coisas e rezava alto andando pela sala,
enquanto ela queria ver TV”. Como acréscimo, falou que está no hospital esperando
a morte, que não tem nenhuma esperança de melhorar.
Ao perguntar-lhe e insistir para falar sobre o que seria possível melhorar,
desencadeou uma queixa monotemática que nunca mais parou, às vezes se
expressava com muita resignação e passividade; outras, com desespero e
melancolia ansiosa. Mudaria o tom, as palavras, a forma de adjetivar, mas a
colocação dos advérbios seria sempre a mesma. Diria: “estou numa situação
desesperadora, meu cérebro desintegrou-se, tenho um buraco aqui atrás – mostra a
parte inferior/posterior da cabeça, com as mãos – por onde escapa tudo, está
vazando. Um sofrimento terrível, não tenho sossego, minha memória é zero. Meu
caminho é a morte, não raciocino mais”.
Ao perguntar-lhe sobre a rotina do hospital, do que ele se ocupa, com quem
conversa, se tem amigos, se recebe visitas dos familiares, sua resposta é feita em
bloco, sem fazer muita diferença das variáveis da interrogação:

Não entendo nada do que eles falam, minha cabeça está oca, vou morrer, não tenho
nenhum interesse em nada, só espero o caixão. Vejo a morte perto de mim, não
tenho sossego, meus olhos estão repuxados para dentro, ardem como se tivessem
ácido, não tenho nada em mente e não sinto meu corpo. Alguns internos falam
comigo, mas eu não tenho o que dizer para eles, é uma tragédia. Está tudo destruído.
Não quero ir nos passeios, só atrapalho, não acho graça em nada (Livre anotação da
autora).

Em uma das primeiras entrevistas, o Sr. R. perguntou se a psicanalista é


casada, se tem filhos. Foi a única vez que ele quis saber algo, que se mostrou
curioso. Justificou-se: “eu queria contar para a senhora que meu pênis virou uma
pasta e meu saco sumiu”. Então, foi-lhe perguntado chistosamente se ele tinha
contado isso para a mulher, o que já respondeu de forma escorregadia: “ela quase
não vem aqui, o sexo não existe mais para mim”6. O Sr. R. foi então provocado na
interlocução: “mas existiu!”. Ele escaparia:

6
Ao escrever, em torno de 1893, o intitulado Rascunho F, Freud (1894) relacionava a melancolia ao
desfalecimento da libido sexual, o que o levou a acrescentar novos elementos sobre a etiologia da
melancolia, no ano seguinte, no Rascunho G.

16
Só tive mulheres de muitos princípios. Estou conversando com a senhora, mas sinto
que os ossos do meu crânio estão se desmanchando. Não posso falar para a senhora
nada, não adianta a senhora vir de longe, não há nada para se fazer, eu não existo
(Livre anotação da Autora).

O Senhor R. nunca sorri, sua expressão facial é tensa, de dor, e mesmo nos
momentos de maior afabilidade, o discurso se repete, com uma riqueza de
linguagem impressionante porque no aprisionamento da melancolia ansiosa
consegue dizer do sofrimento, do desespero de forma prolixa, mesmo que repetitiva,
e convincente.
Em uma das últimas visitas, ele recebeu a autora desta pesquisa com a
afirmação de que tinha enlouquecido; disse isto como um solo, sem que nada lhe
fosse perguntado, antes mesmo de sentar-se na cadeira do consultório.
Foi-lhe então pedido que dissesse como é enlouquecer. Eis o relato do Sr. R.:

Acordei com dor nas têmporas, percebi que todo meu sistema nervoso está
destruído, comecei a gritar e a chamar os mentores de um centro espírita. Desde este
dia meus olhos não fecham mais, não pisco, minha massa encefálica está destruída,
as células nervosas estão esgotadas. O meu sofrimento é o maior do universo, não
tem ninguém na face da terra que possa fazer alguma coisa por mim (Livre anotação
da Autora).

Ao Sr. R. é dito que não se discorda do que ele afirma; e insiste-se que
“mesmo sendo ‘o maior sofrimento do universo’, podemos falar disso sempre um
pouco mais”.
A expressão “é o maior sofrimento do universo” é recorrente. Entendida, na
escuta, como se somente lhe restasse o mais puro sofrimento por aquilo que foi
perdido, sua manifestação, entretanto, não se organiza como um luto. Conforme
relata Charles Melman (1993, p. 37), Lacan, nas apresentações de doentes no
Hospital Sainte Anne, lembrava insistentemente que é preciso dar crédito ao que
dizem os psicóticos, porque o que eles dizem é fundado sobre uma percepção da
realidade psíquica, e é por isso que eles têm a generosidade de nos comunicar o
que é a realidade psíquica. Quando resistimos a escutar as informações, mesmo
delirantes, nós nos recusamos a escutar todas as informações que eles transmitem
sobre o que seja a realidade psíquica.
À medida que as entrevistas aconteciam, o Sr. R. tecia sua ladainha de
queixas e sofrimento. A cada tentativa feita de desdobramento de algumas dessas

17
queixas – e não foram poucas vezes que se tentou – ele voltava para o jargão
constitutivo da Síndrome de Cotard. “Não, não e não”. E assim descrevia sua
condição subjetiva:

Minhas idéias não têm continuidade, não consigo compreender o Jornal Nacional,
minha cabeça está vazia, meu cérebro não funciona. Minha cabeça parece um ovo,
meus olhos são dois buracos, minhas pernas estão bambas, tenho uma pressão
constante na cabeça. Parece que tem alguém puxando meus olhos para dentro.
Quando vou tomar banho sinto que a água vai me derreter. Pressinto a morte muito
próxima. Meu estômago está salgado. Não paro de tremer, não quero mais sair da
cama (Ano,2007-Livre anotação da Autora).

A fala do Sr. R. é uma variação sobre o mesmo tema, presente em cada uma
das frases colhidas em anotações. Contudo, há uma polidez na enunciação de seu
discurso que lembra muito a de Bartleby, personagem de legendária obra do escritor
nova-iorquino Herman Melville ([1819-1891] 1853). Trata-se de um homem educado,
embora desesperado.
A última entrevista, no dia 8 de fevereiro 2007, foi logo que ele saiu da UTI
depois de ter passado muitos dias, acometido de uma pneumonia. A equipe do
hospital pensava que ele iria morrer em razão dos comprometimentos de suas
doenças físicas crônicas e pela entrega e desejo de morte enunciado. O Sr. R. não
morre, bordeja, dá umas voltas em torno e volta para o hospital psiquiátrico, mais
enfraquecido, mas vivo, ou morto-vivo, como me corrigia ele.
Na mesma data, foi-lhe perguntado do internamento, da evolução da
pneumonia. Respondeu de uma forma tão prosaica, a ponto de causar riso: “Aqui no
hospital também é uma UTI, não tem diferença”.
O melancólico de Cotard não tem modéstia; porta um desejo de comunicar
aos de seu entorno seus defeitos, suas dores, auto-acusações, culpas, no
paraxismo agoniado que constitui sua estrutura psíquica. Suas queixas são
solilóquios porque a cada tentativa de solidariedade ou proposta de algum projeto
que pudesse representar-lhe um alento a estas dores, ele diz que é impossível
ajudá-lo. Várias vezes, o Sr. R. recomendava que eu não viesse de tão longe para
ouvi-lo – sabe que eu moro em Curitiba – e insistia que não havia nada para ser
feito.

18
Vale situar que o discurso desse paciente evoca, ainda que de modo frágil,
um antes e um depois. Consegue dizer um pouco do que fazia antes de ser
internado, por exemplo, que torcia por um time de futebol. E afirma que agora não se
interessa mais porque não entende, não compreende um jogo.
O Sr. R. consegue fazer uma discreta báscula do antes e do depois, mas é
tão empobrecida que o intervalo que estabelece é muito estreito para se pensar que
haveria uma janela pulsional onde se pudesse dar uma espiada. O melancólico de
Cotard tenta mostrar que quem se ocupa dele não passa de um fio de cabelo em um
pente.
Por sua vez, o suicídio é mencionado algumas vezes muito discretamente.
Falta um eu mais decidido para impulsionar a ação do suicídio, porque precisaria de
uma quantidade de força pra realizar o ato. O Sr. R. não tem esta energia maníaca
que o suicida precisa. Na literatura, o Cotard vai sempre aparecer como um
desajeitado nas tentativas de suicídio, raramente tentadas e quando tenta é
malogrado. Contudo, não se pode deixar de considerar que ele já esteja de algum
modo morto.

19
3 DELÍRIO DAS NEGAÇÕES – SÍNDROME DE COTARD E MELANCOLIA

“Não tenho nenhuma esperança, nenhuma força, nenhum poder,


nenhum interesse, nada, não tenho nada, nem tempo, nem
pensamentos, nem esperanças, nem emoções, nem desejo, nem
necessidades, nem opiniões, nem planos para o futuro, nem
reivindicações, queixas, não tenho. Não possuo nada.

Nada a dizer, nada com o que me excitar, nada a explicar, nada a


provar, nada a pedir, nada a defender, nada a vender, nada a espiar,
nada a imaginar, nada a conservar, nada a guardar, nada a liberar,
nada a antecipar, nada a perder e nada a ganhar. Nada para ser
enigmático, bancar a misteriosa, a santa de pau oco, a namorada
secreta”.

Louise Bourgeois (1995)

3.1 JULES COTARD – ASPECTOS DE SUA OBRA CLÍNICA

O objetivo de Cotard quando publicou, em 1882, seu artigo princeps, Do


delírio das negações, era individualizar uma nova entidade. Cotard considerava,
como seus colegas contemporâneos, que sua tarefa seria de reagrupar numerosos
sintomas estreitamente associados entre si de maneira a constituir uma verdadeira
doença, distinta por suas características e sua evolução (COTARD, 1882).
Em referência ao alienista francês Ernest-Charles Lasègue (1816-1883), do
grupo da Salpetrière, que destacou o delírio das perseguições na melancolia, em
1852, Cotard construiu o delírio das negações melancólico, sem esquecer as
contribuições do psiquiatra e neurologista alemão Wilhelm Griesinger(1817-1868).
Esse médico já estudava o humor negativo do melancólico e considerava que, sob a
influência do mal-estar moral profundo que constitui o distúrbio psíquico essencial da
melancolia, o humor ganha um caráter absolutamente negativo.
Apoiado nesses autores, Cotard estabeleceu um quadro sinóptico
comparando os elementos clínicos do delírio das negações a seu correspondente no
delírio de perseguição. Trata-se de uma decomposição que obedece a três eixos:

a) a diferença semiológica;
b) a analogia das modalidades evolutivas particulares; e
c) a reflexão etiológica.

20
A partir de então, Cotard indicou para cada elemento da série persecutória seu
correspondente na série melancólica, conforme se observa no Quadro 1

Delírio de perseguição Delírio das negações

O doente não apresenta o fácies Ansiedade, gemidos, angústia pré-


melancólico cordial, melancolia ansiosa
Hipocondria física, sobretudo no Alguns caem no estupor, outros
início da afecção apresentam agitação melancólica
O doente atribui culpa ao mundo Hipocondria sobretudo moral no
exterior, às influências nocivas início. O doente se auto-acusa: é
vindas de diversos meios e, incapaz, indigno, culpado, danado.
sobretudo, do social. Ele não faz Se a polícia ou os guardas o
auto-acusação, ele se vangloria de prenderem, é porque ele merece o
sua força física e moral e da castigo por seus crimes.
excelência de sua constituição que
lhe permite suportar os males.
Suicídio relativamente raro. Suicídio e mutilações freqüentes.
Homicídio mais freqüente. Ocorrência rara de homicídio.
Perturbações da sensibilidade Perturbações da sensibilidade
raras. muito freqüentes. Anestesia.
Alucinações auditivas constantes e Não há alucinações, ou raramente.
apresentando evolução.
Quando existem são confirmações Quando os doentes falam
das idéias delirantes. sozinhos, é para repetir as litânias,
as mesmas palavras endereçadas
às pessoas próximas.
Alucinações visuais muito raras. Alucinações visuais freqüentes.
Hipocondria moral consecutiva, Os Hipocondria física consecutiva. Os
perseguidores atacam as doentes não têm mais cérebro,
faculdades morais, os doentes nem estômago nem coração. Ou
dizem que os deixam idiotas. estão mortos ou não morrerão
jamais. Falam de si mesmos na
terceira pessoa.
Delírio de grandeza. Delírio de negação. Os doentes
negam tudo, eles não têm parentes
nem família, tudo está destruído
não existe mais nada, eles não têm
mais alma. Deus não existe mais.
Loucura de oposição.
Recusa dos alimentos parcial, por Recusa total de alimentos, porque
acreditar estarem envenenados. são indignos ou não podem pagar,
porque não têm estômago etc.
Evolução da doença, remitente ou Evolução francamente intermitente,

21
continua, com paroxismos. depois contínua.

A distinção entre melancolia e paranóia passa pela oposição entre fenômenos


psicomotores, representada simbolicamente como num movimento centrífugo da
vontade e uma alteração centrípeta do conhecimento. Conforme diz Séglas, “A
organização subjetiva deve ser redefinida a partir do senso orgânico [...]que
depende da sensibilidade cinestésica dos diferentes órgãos e onde vêm igualmente
se enraizar os fenômenos afetivos” (PÉLLION, (2000, p. 245). A propósito desta
questão, Séglas cita Maudsley,psiquiatra inglês (1835-1907): “Os efeitos orgânicos
do non sense fisiológico dos órgãos determinam nossa natureza afetiva” (PÉLLION,
(2000), p. 246).
Ao isolar o delírio das negações como entidade clínica, Jules Cotard destaca
os delírios de grandeza e os delírios melancólicos. Também sublinha a raridade das
alucinações e a recorrência da recusa dos alimentos, a oposição, o mutismo, as
tentativas de suicídio e as mutilações.

3.2 MACROMANIA E MICROMANIA NA SÍNDROME DE COTARD

Outra característica da Síndrome de Cotard é o delírio de enormidade que


mais uma vez remete à antológica personagem Alice, da obra Alice no país da
maravilhas, do escritor inglês Lewis Caroll ([1832-1898] 1865), quando vai
aumentando, crescendo e todo o entorno muda de perspectiva e proporção.
As sensações vivenciadas e sentidas pelo doente são as de que sua imagem,
seu corpo, torna-se imenso, ilimitado, fusionado com o universo.
É o caso de Mme. X, descrito por Cotard, que, por momentos, acredita-se
mais alta que o Mont Blanc e vê-se como um trovão, um raio e os relâmpagos. Ou
então, há um outro caso em que a paciente se acredita imortal: “Ele imagina que sua
cabeça tomou proporções monstruosas, que ela transpõe as paredes e vai como um
carneiro demolir os muros das casas” (CACHO, 1993, p. 129).
A micromania e a passagem, às vezes súbita, à macromania, ou vice-versa, aliam-
se a idéias mórbidas nesses pacientes que também se tomam por imortais. Para

22
eles, a morte como mudança é inacessível; distinguem-se pelo fato de que não se
interessam pelo tempo cronológico porque, uma vez privados da morte, para eles o
tempo não conta. Ao contrário, o espaço, a infinitude do espaço onde seus corpos
se expandem, projetam-se ao exterior sem limite, é um fator de muito mais “delírios”,
que provoca mais descrições desesperadas desta mudança das formas do corpo.
Assim como o corpo aumenta, engorda, não cabe mais na cama, ele também
diminui, emagrece, pode quebrar se o doente fizer qualquer flexão. Cotard parece
estar deitado no leito de Procrusto, o malfeitor normalizador. Na lenda grega, o
bandido oferecia sua hospitalidade aos viajantes perdidos. Deitava-os sobre uma
cama de ferro, de modo que se fossem mais longos do que a cama, ele cortava o
que sobrava. Se fossem mais curtos, esticava-os a força. Era, por assim dizer, um
normalizador.
A lenda é citada para demonstrar que o melancólico de Cotard ora é muito
grande para a cama – delírio de enormidade – ora é muito pequeno.
Czermak (1991, p. 151) descreve um surto desse corpo pouco configurado,
não submetido às leis, e com esta plasticidade e elasticidade delirantes.

A paciente avaliava freqüentemente que seus problemas estavam ligados ao


cosmos, sob a influência e dependente dos movimentos dos astros e do
ritmo nictemeral. Indicava, aliás, de que maneira estava, ao mesmo tempo,
identificada e suspensa ao que escandia o mundo, tal qual resíduo simbólico
e salvaguarda última. A este propósito, Séglas e outros autores
mencionaram casos que vão até a negação das alternâncias do mundo, do
cosmos, o que acontecia às vezes com nossa paciente.
Através de uma inversão, o sujeito passa à certeza de uma compactação
petrificada à sua expansão universal. Por exemplo: “Tinha a sensação súbita
de ficar imensa, que devia medir no mínimo três metros ou mais, depois, de
repente, em outro momento, tinha a sensação de ficar bem pequena,
redondinha. Sentia que estava crescendo imensamente, depois encurtava,
depois tudo passava. Mas ficava incapaz de colocar um pé na frente do outro
para andar, as pernas que eu tinha eram pedaços de fio de ferro movidos por
molas e eu ia me arrebentar a cada passo dado. E depois tudo passou.

A evolução das doenças autoriza a estabelecer o prognóstico de seu delírio.


Os negadores melancólicos representam o grau mais excessivo e avançado da
cronicidade. Fazem aparecer concepções que se aproximam de delírios ambiciosos,
sob a forma de infinitude, de eternidade e de enormidade, conforme descrito acima.

23
A manifestação do delírio de enormidade pode acontecer por acessos em
alternância com o delírio melancólico e o delírio das negações e paranóicos, como
será visto em uma importante citação de Schreber.
Cotard lembra várias vezes que o delírio de enormidade não é de fato delírio de
grandeza, porque a enormidade está ligada às características de monstruosidade e
de horror. No mais alto grau de sua morbidade melancólica, eles se tornam mais do
que nunca “lamentadores, gemedores e desesperados; sua atitude e sua fisionomia
são diferentes dos verdadeiros megalômanos” (COTARD, CAMUSET E SÉGLAS,
1888, p. 61).
O repleto do que está – de nada –, suscita pensar que acarreta o vazio
desesperador, onde se instala o estupor. Desse modo, a expansão centrifuga do eu
tende a englobar o universo inteiro, tanto concreto como abstrato. Tudo se passa
como se fosse o extremo das dissoluções das referências simbólicas que assinalam
as “negações metafísicas”.

3.3 DANIEL PAUL SCHREBER – UM ESTUDO FREUDIANO

Daniel Paul Schreber, referência maior da paranóia na Psicanálise, é


estudado por Freud e Lacan, por meio do magnífico relato Memórias de um doente
dos nervos (SCHREBER, 1903), em que o “analisado” faz uma descrição primorosa
de um surto Cotard. O relato se torna interessante porque de alguma forma
demonstra que, mesmo em um delírio de perseguição ou em uma paranóia, pode-se
instalar, e com muita virulência, o delírio das negações.
No capitulo XI do livro citado, Danos à integridade física através dos milagres,
ele narra detalhadamente, como de resto em todo o livro, situações, experiências no
seu corpo, mortais para qualquer mortal, mas que apesar das putrefações e
mutilações, ele se mantém vivo.

Desde os primórdios da minha ligação com Deus até o dia de hoje, meu
corpo vem sendo ininterruptamente objeto de milagres. Se eu quisesse
descrever em minúcias todos esses milagres, poderia encher um livro inteiro.
Posso afirmar que não há um único membro ou órgão do meu corpo que não
tenha sido durante um tempo prejudicado por milagres, nem um único

24
músculo que não tenha sido distendido por milagre, para pô-lo em
movimento ou paralisá-lo, conforme o objeto visado. Até hoje, os milagres
que experimento a toda hora são de tal natureza que deixariam qualquer
pessoa em estado de pavor mortal; só que eu, devido ao hábito adquirido em
muitos anos, consegui encarar como coisas sem importância a maior parte
do que ainda acontece. Mas nos primeiros anos da minha estada no
Sorenstein, os milagres eram de uma natureza tão ameaçadora que eu
acreditava poder temer quase continuamente por minha vida, por minha
saúde ou pelo meu entendimento.
Em si mesma, naturalmente, deve ser considerada como contrária à Ordem
do Mundo toda situação em que os raios, essencialmente, só se prestam a
infligir danos ao corpo de um individuo ou a pregar alguma peça nos objetos
de que ele se ocupa – aliás, estes milagres mais inofensivos também se
tornaram bastante freqüentes nos últimos tempos. Pois os raios têm por
dever criar algo e não apenas perturbar ou fazer brincadeiras infantis. É por
esta razão que todos os milagres dirigidos contra mim, com o tempo,
acabam por não cumprir seu objetivo; o que foi prejudicado ou perturbado
por raios impuros precisa depois ser reconstruído ou curado por raios puros.
Com isto, não se quer dizer que, pelo menos temporariamente, não
pudessem daí resultar danos muito graves, que reavivavam uma impressão
de extremo perigo ou provocavam situações bastante dolorosas.
Os milagres que mais de perto evocavam uma situação em acordo com a
Ordem do Mundo pareciam ser aqueles que tinham alguma relação com uma
emasculação a ser efetuada no meu corpo. A este contexto pertencem em
particular todo tipo de modificações nas minhas partes sexuais, que algumas
vezes (particularmente na cama) surgiam como fortes indícios de uma
efetiva retração do membro viril, mas freqüentemente, quando prevaleciam
os raios impuros, como um amolecimento do membro, que se aproximava
quase completa dissolução; além disso, a extração, por milagre, dos pelos
da barba, em particular do bigode, e finalmente, uma modificação de toda a
estatura (diminuição do tamanho do corpo) – provavelmente baseada numa
contração da espinha dorsal e talvez também da substancia óssea das
coxas. Este último milagre, proveniente do deus inferior, era regularmente
anunciado com as palavras: “E se eu diminuísse um pouco? Eu próprio tinha
a impressão de que meu corpo tinha se tornado de seis a oito centímetros
mais baixo, aproximando-se, portanto, da estatura feminina. [...] Muitas
vezes, durante períodos mais ou menos longos, vivi sem estômago, e
algumas vezes declarei expressamente ao enfermeiro M., que talvez ainda
se lembre disso, que eu não podia comer porque não tinha estômago.
Algumas vezes, imediatamente antes da refeição, me era fornecido por
milagre um estômago, por assim dizer, ad hoc. [...] Quanto aos demais
órgãos internos, quero recordar ainda apenas o esôfago e os intestinos, que
muitas vezes foram dilacerados ou desapareceram; a laringe, que mais de
uma vez degluti junto com o alimento e, finalmente, o cordão espermático, no
qual algumas vezes se operaram milagres bastante dolorosos,
principalmente com o objetivo de reprimir a sensação de volúpia que surgia
no meu corpo. Além destes, devo ainda mencionar um outro milagre, que
atingia todo o baixo ventre.
Todos estes distúrbios – de memória, do sono, de compreensão e físicos – indicam
igualmente dificuldades em relação à concatenação significante. Se para toda e
qualquer retroação da reflexão, bem como toda a antecipação, toda possibilidade de
antecipação, instala-se gradualmente no presente cada vez mais reduzido, com a
perda gradual da temporalidade e a conseqüente angústia da vida eterna, da

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imortalidade, que funda, por assim dizer, a súplica para as eliminadas, para que haja
um fim como também uma fome, um movimento, um ciclo de desejo (SCHREBER,
1903).

Séglas chama à atenção sobre a morte do sujeito da enunciação, que pode


ser formulada na terceira pessoa, designando-se por um pronome demonstrativo
impessoal ou marcado pelo desprezo, do tipo “esta”, ou por perífrase
despersonalizante. Assim, observa-se claramente como alguém que manifesta ter
perdido seu nome vê esta perda acompanhada de um estreitamento temporal, com
sua exclusão fora do tempo.
Então, sem referências, torna-se um, como lembra Czermak (1991, p. 157).
Quando um sujeito perde seu nome, isto que o ancora no tempo e na cadeia das
gerações, quando o psicótico perde o nome que o identifica, torna-se imortal. O
nome próprio pode ser o tempo do sujeito e também seu espaço, seu elo e lugar na
cadeia das gerações.
Os psiquiatras franceses clássicos já haviam dito que a Síndrome de Cotard é
encontrada na melancolia, nas mais antigas e crônicas, mas também em outras
psicoses. Schreber teve seu momento de Cotard. Torna-se interessante notar que
na literatura desse período, muito de Cotard oscila entre a melancolia e a paranóia,
ou depois de uma fase paranóica o paciente volta para a melancolia. Mas o mais
recorrente são os melancólicos Cotard.
Verifica-se um esvaziamento das significações, de modo que o idioma, até
então familiar, torna-se exterior, uma cascata de vivências xenopáticas. O que há de
mais terrível para o humano do que a identificação a um Real ao qual não falta nada,
a um Real sem buraco?
O paciente da Síndrome de Cotard evidencia o que Freud (1915) considera
em As pulsões e suas vicissitudes, que a fisiologia dita normal não funciona senão
do fato de que o sujeito esteja cativado em um discurso. Quando o sujeito perde seu
discurso, há distúrbios da fisiologia, seus órgãos não estão mais ligados em função
de um discurso; discordam.
No Cotard, a estrutura destes objetos impróprios para a constituição do eu,
para uma integração, torna-se ameaçadora. Eis de onde advêm os fenômenos de
despersonalização e o não-reconhecimento da imagem especular. A relação com a

26
mãe deveria permitir à criança, pelo olhar e pela palavra, que o infans se aproprie de
uma imagem ideal e familiar, interna e externa.
Lacan é explícito ao falar do estádio do espelho como fundante dessa
imagem que no Cotard fica não somente despedaçada, mas tomada pela analgesia
psíquica e física:

O que se trata no estádio do espelho é do estabelecimento de uma imagem, o que


eterniza sob o aspecto de uma forma, um tipo imaginário onde algo transcende ao
mutável da vida, onde a imagem sobrevive ao vivo. Para Lacan, quando esta
imagem chega a ser percebida, não é apenas uma imagem que é proposta, já está
sendo apresentada um urbild ideal, algo que subsiste por si, e diante da qual as
fissuras de prematuro são ressaltadas e se apresenta uma insuficiência para
responder à totalidade desta imagem .

O Cotard é estrangeiro a si mesmo; seu negativismo denuncia uma não-


construção do urbilt ideal o qual faz o sujeito errar pela vida e insistir em um discurso
nonsense absoluto. Tal como entende Séglas, no Cotard, a angústia da idéia da
imortalidade, a angústia da vida eterna; a morte do sujeito, o desaparecimento de
sua enunciação, coloca-o face a essa segunda morte da qual Lacan fala muitas
vezes. Não é tanto a morte o temível, diz ele, mas a idéia de que a vida possa
continuar indifinitamente, nessa zona qualificada de “entre-duas-mortes”, termo que
Lacan toma de Sade. Por sua vez, em Kant com Sade (1963, p. 777), afirma que a
“dor em estado puro modela a canção dos melancólicos”. Entre os inúmeros
desdobramentos da Síndrome de Cotard, um deles tem lugar entre o antes e o
depois: “eu era, eu me chamava, eu ia, eu amava”. E prossegue, o cotardiano:
“agora eu não tenho mais, não tenho mais nome, não tenho mais pais, eu nunca
nasci”. Não diz: “antes não ter nascido”; diz: “eu não sou, nunca nasci”. Não faz um
lamento; faz uma afirmação.
A imortalidade cotardiana se inscreve no interior da negatividade que faz
trama de seu discurso ao mesmo tempo em que esgota como testemunha o
mutismo na qual sua existência se fecha e se cristaliza. Esta negatividade pode ser
lida como o efeito mais radical da pulsão de morte quando dissociada da pulsão de
vida.
Radmila Zygouris (1999, p. 11-12) considera que,

27
Freud se dera perfeitamente conta no que diz respeito à descarga da pulsão
de morte, quando afirmava que sua conversão em pulsão de vida se dava
através da motricidade. Aqui é preciso mais uma vez lembrar que para Freud
a pulsão de morte visa, antes de mais nada, o próprio individuo e não pode
sobrepor-se ao desejo de destruição do outro. A questão que se coloca na
clínica é a seguinte: será possível desviar esta pulsão destruidora para outros
objetos que não o próprio indivíduo ?Em outras palavras: se ela se investe
contra objetos internos, se ela investe contra o individuo, o que fazer no
tratamento para que ela se desvie sobre objetos externos ? Ou, ainda, como
fazer no plano clínico para passar da autodestruição à heterodestruição e da
heterodestriução para à sublimação?

Esta possibilidade aventada por Zygouris também é impossível para o Cotard.


Tais passagens que ela propõe como o caminho da sublimação estão interditadas
por barreiras intransponíveis para este um que, por estrutura, é tão inábil para
qualquer escalada na existência.

3.4 DUAS MORTES – O PÊNDULO DO MELANCÓLICO EM COTARD

Cacho (1993 p. 250) cita Séglas que, em um artigo sobre o Mutismo


melancólico” (1891), chama à atenção de uma característica recorrente na fala
desses pacientes, quando se referem a si próprios na terceira pessoa: “ele” ou “ela”,
ou se designando por um pronome demonstrativo impessoal ou, ainda, por um auto-
desprezo ou uma perífrase despersonalizada, como por exemplo: “A pessoa que sou
não é uma mulher, não tem nome, não tem idade”. A morte do sujeito da enunciação
ao se referir a si próprio na terceira pessoa, conforme o exemplo mencionado,
coloca-o em uma posição de entre morte como a Antígona de Sófocles. A separação
entre a morte simbólica e a morte real é o lugar onde se constitui o objeto perdido
em torno do qual o melancólico de Cotard se organiza. A análise de Lacan (1960, p.
339), sobre Antígona estar entre a vida e a morte, faz ressonância com o que se
ouve desses pacientes, conforme se verifica:

Quando começa esta queixa? A partir do momento em que ela transpõe a entrada
da zona entre a vida e a morte, onde o que ela já tinha dito ser toma forma do lado
de fora. Com efeito, há muito tempo que ela nos dissera que já estava no reino dos
mortos, mas desta vez a coisa é consagrada no fato. Seu suplicio vai consistir em
ser trancada, suspensa, na zona entre a vida e a morte. Sem estar ainda morta, ela
já está riscada do mundo dos vivos. E é somente a partir daí que se desenvolve sua

28
queixa, ou seja, a lamentação da vida. [...] Estou morta e quero a morte. Assim que
Antígona se descreve como Níobe se petrificando, com o que ela se identifica?
Senão com esse inanimado no qual Freud nos ensina a reconhecer a forma na qual
o instinto de morte se manifesta. Trata-se justamente de uma ilustração do instinto
de morte.

O delírio de já estar morto e que muitas vezes vem acompanhado de pedidos


mórbidos e desesperados, no estilo “enterrem-me, vocês não percebem que eu
estou apodrecendo?”, é uma maneira de levar a negação até as últimas
conseqüências porque o “morto” não tem mais possibilidades de informar seu nome,
sua idade, dados de sua família e mesmo assim, esta morte, que é a segunda, não o
impede de continuar vivo.
A crença de estar morto de uma maneira radical porta em si a negação da
existência, porque esta negação não concerne somente à existência em sua
determinação efetiva, mas à possibilidade mesmo de existir ou ainda o ato pelo qual
alguma coisa é convocada a existir. Desta negação absoluta, resta ao doente um
isolamento absoluto, rodeado de cadáveres em um mundo transformado e inerte.
Frente a essa posição, resta a injunção de uma construção delirante ao se dirigir ao
seu médico e às pessoas da equipe demandando a morte. Esta demanda patética
deixa aparecer a posição que o negador ocupa neste universo desértico, posição
idêntica ao objeto que deve ser expulso da vida e aniquilado.
As várias observações dos surtos desses delírios mostram como os pacientes
experimentam esse sentimento tão difícil de encarnar a vergonha e o desprezo que
causam à família, de serem nocivos, responsáveis por uma culpa, uma falta, que
ninguém pode perdoar. Sua própria morte, que os priva dos laços do tempo, do
nome, dos outros, expõe-nos e possibilita uma vida fora do tempo, ainda assim,
mesmo assim, torna-os imortais.
Cotard sempre insistiu sobre o fato de que esse delírio não corresponde à
forma megalomaníaca no sentido comum, ou seja, a grandeza.
A imortalidade está associada a um discurso místico religioso ou a uma busca
desesperada e impossível de evitar o fenecimento traduzido em alguns truques de
como manter-se incólume à ação do tempo. A literatura oferece grandiosos
exemplos como Fausto (1776), de Goethe (1749-1832), e Dorian Gray (1891), de
Oscar Wilde (1856-1900).

29
A imortalidade em Cotard, como visto acima, não é desta ordem; ao contrário,
é a submissão a uma condenação sem fim, longe de ser um privilégio como
imaginariamente se atribui ao manter-se vivo ad eterna, é o horror. O sujeito morto
na enunciação demanda a morte real.
Cotard entra em uma zona onde não se ousa pensar que se possa ir. Ele
encontra o que todos temem, o desaparecimento do desejo, a insuportável dor, a
maior de todas as dores, aquela de que nada falta, senão uma falta.

3.5 O PATRONÍMICO EM COTARD

Como significante primordial, o nome próprio, o prenome, o nome patronímico


devem ser considerados, na Síndrome de Cotard, porque ali eles também inscrevem
um lugar de chamada, de marca, de pertença.
Conforme detalha Souza (1989, p. 9),

O nome próprio, inicialmente, em relação ao lugar que marca, devemos considerá-lo


em função de letra e de traço unário, de unaridade. Isso, sem, no entanto,
considerá-lo genericamente, pois o que vai marcá-lo desde o princípio é o equívoco
significante, sobretudo fônico. E quando dizemos letra e traço unário, devemos
considerar as dimensões fônicas, sêmicas e gráficas que o nome próprio agencia,
privilegiando ora um ora outro, sem, no entanto, subsumir-se num ou noutro. Temos
uma situação homóloga, a do Real (letra/gráfico) Imaginário
(semia/significação/sentido) e Simbólico (fônico/equívoco) Essa distribuição, em si
arbitrária, terá sua importância no que vai se constituir como panorâmica própria do
nome próprio, e veremos que ela funciona de maneira composta.

O nome próprio é a inscrição pela qual o sujeito entra efetivamente na cadeia


simbólica, tornando-se o nome então assertivo para o sujeito, o que vai juntar-se
com sua constituição subjetiva.
O bebê se autodenomina no percurso de sua constituição de nenê, ele, eu e
mesmo quando já tem uma certa possibilidade linguageira, é ele antes do eu que
indiretamente domina a cena.

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Quando um sujeito perde seu nome, isto que o ancora no tempo e na cadeia
das gerações; quando perde o nome que o identifica, torna-se imortal, o destino do
Cotard. O nome próprio pode ser o tempo do sujeito e também seu espaço, seu elo
e lugar na cadeia das gerações desaparece, quando ele diz “ não tenho nome”. O
tênue fio dos elos geracionais que o sustentavam como a banqueta de três pés de
Lacan, conforme associa no artigo “O nome próprio na cura analítica” (1989)
rompem com um sopro.
Há um esvaziamento das significações, o idioma até então familiar torna-se
exterior, uma cascata de vivências xenopáticas.
O paciente da Síndrome de Cotard evidencia aquilo que Freud trabalha em As
pulsões e suas vicissitudes (1915), ao abordar que a fisiologia dita normal não
funciona senão do fato de que o sujeito esteja cativado em um discurso. Quando o
sujeito perde seu discurso, há distúrbios da fisiologia, seus órgãos não estão mais
ligados em função de um discurso, discordam.
Eis o melancólico de Cotard, sem nome, sem documento, uma história sem
fim – irrelevante se tivesse final feliz ou infeliz – o trágico é que seja sem fim.

3.6 A ESFERA DE COTARD

Desde a Antigüidade, basta lembrar Platão em Timeu ou o Banquete, a esfera


é a forma mais pura e perfeita, ou o Deus aristotélico imóvel e eterno que coloca em
movimento as esferas celestes. Ao mesmo tempo, é limite último do universo e
infinito no tempo. A esfera de Cotard é a imagem do ser. O laço entre a esfera e o
cosmo poder-se-ia dizer dele natural; o delírio de enormidade de Cotard confirma
esta idéia.
O paciente vivencia seu corpo como a esfera de Aristófanes, do Banquete de
Platão, onde nada falta, nada excede, nada engata porque não tem arestas que
permitam uma cadeia; é a própria esfericidade de Cotard, sem hiâncias. Esta
metáfora emprestada da topologia, esta esfera lisa, repleta, faz pensar em uma das

31
formas mais radicais da foraclusão7 do Nome do Pai8. Para o melancólico
cotardiano, não há possibilidade de “buraco”, de referências. Como ocorre com uma
esfera, o enfermo de Cotard rola sem engate e sem Lei.
Conforme afirma a psicanalista Leda Bernardino (2004), a estrutura psíquica
na psicose está severamente comprometida porque nela não ocorre a constituição
de um sujeito.

A constituição de um sujeito vai ser inaugurada por uma escrita, marca da


antecipação deste sujeito, ligada ao seu traço – unário – de reconhecimento.

Há um primeiro tempo que, recalcado, funda o inconsciente. O segundo


tempo, da letra que barra e apaga a marca, é justamente a inscrição do
Nome do Pai, que permite o acesso ao terceiro tempo; a dedução de que
havia aí um sujeito, a interpretação é sua antecipação fundante.

Ainda, é preciso que este significante do Nome do Pai seja validado, na


particular versão que o sujeito vai lhe dar ao final da trajetória edípica – sua
metáfora paterna. Esta vai lhe permitir constituir, ao pô-lo à prova, o quarto
nó, com que vai enodar de uma maneira singular, os três registro do Real,
Simbólico e do Imaginário – para que o sujeito assuma esta estrutura, isto é
seu sinthoma.

Percebe-se que, de um processo a outro o sujeito muda de posição – passa da


relação com o Outro todo poderoso, ao qual se submete, para uma relação com um
Outro que é barrado pela falta – S(A).
Diante do que já vimos, podemos considerar, portanto três variantes:
1. Há um tempo de estabelecimento da estrutura, o que implica uma
inscrição (ou não) do significante do Nome do Pai.
2. Este tempo não é o tempo do desenvolvimento genético, é um tempo
lógico, que depende das condições peculiares da relação com a
linguagem em cada sujeito.
3. Em relação à linguagem, o tempo do desenvolvimento conta e faz\
diferença. Seria improvável que isto pudesse se dar sem que,
entrecruzando-se com estas operações lógicas, estivesse um
organismo submetido às contingências reais de um crescimento,
dando suporte imaginário ao sujeito em surgimento (BERNARDINO,
2004, p. 75-76).

O sujeito que desenvolve a Síndrome de Cotard está privado desde o inicio


desta construção subjetiva citada acima; ele não tem a mãe propiciadora desta

7
Foraclusão: conceito psicanalítico de Jacques Lacan, relativo à estrutura psíquica na psicose. Estar
“incluído fora” da inscrição da metáfora paterna, do Nome do Pai. Falta que dá à psicose sua
condição de essencial, como estrutura que a separa da neurose.
8
Nome do Pai: conceito psicanalítico de Jacques Lacan para designar o significante constitutivo de
uma estrutura psíquica, a consagração do reconhecimento de privação – da falta, quando
efetivamente inscrito. Marcas de linguagem que permitem a um sujeito portar a Lei, ou seja, uma
condição ética, uma subjetivação que leva em conta a alteridade.

32
ascese. O Cotard é órfão no sentido de um abandono e de uma deserotização do
seu corpo, que o conduzem incontornavelmente para a melancolia do delírio das
negações.
O Cotard se ejeta, não há mais história quando não se tem mais nome
próprio; é colocado para fora do discurso, fora do laço social. Portanto, a grande
diferença está entre “querem me matar” do automatismo mental e da paranóia que
indicam a anulação do sujeito da enunciação como lembra Czermak (1991), e o
“matem-me” do Cotard, em que o sujeito, já morto na enunciação, demanda a morte
real, o ejetar–se.
Identificado que está com uma imagem que falta qualquer hiância, aspiração,
há um vazio do desejo. Na medida em que se perde a identificação do ser à sua
imagem pura e simples, não há lugar para a morte.

3.7 FASE DO ESPELHO – UM CONCEITO LACANIANO

Em 1949, Lacan trabalha "O estádio do espelho como formador da função do


eu". A fase do espelho é uma experiência que a criança vivencia entre seus seis e
dezoito meses, período em que encontra a sua própria imagem em um espelho.
Trata-se de momento de júbilo – o que não se observa nos animais –, que reproduz
uma identificação primária da criança em relação a seus semelhantes. A imagem
antecipa a unidade e o controle da motricidade do corpo até então vivido como
despedaçado – em francês, denominado morcelée. "No homem, a discordância
primordial, de origem biológica, e a deiscência do organismo em seu seio, que revela
a prematuração do nascimento, são "o ponto de impacto da intrusão simbólica"
(LACAN, 1957, p. 13). A prematuração no nascimento introduz o simbólico no
imaginário, na medida em que constitui o animal humano como "sujeito para a

33
morte, capaz de imaginar-se mortal”. Desta forma, considera-se que o maior legado
original do texto de Lacan, o estádio do espelho, é a matriz simbólica do Je – eu .
Antes da fase do espelho, antes do i(a), os vários a, estão em desordem, em
anarquia, os quais ainda não estão em questão se os tem ou não. “E a isso que
responde o verdadeiro sentido, o sentido mais profundo a dar ao termo de auto-
erotismo, é que a gente sente falta de si, se assim posso dizer, completamente. Não
é do mundo exterior que a gente sente falta, como se exprime impropriamente, é de
si mesmo” (LACAN, 1963, p. 127).
Lacan lembra ainda que, ao observar a articulação da mãe do esquizofrênico,
sobre o que para ela tinha sido seu filho quando estava em seu ventre, havia nada
além de um corpo diversamente cômodo ou embaraçante, a saber, a subjetivação
de a como puro real.
A relação com a mãe que deveria permitir à criança, por meio do olhar, e da
palavra que o infans se apropriasse de uma imagem ideal e familiar, interna e
externa, no Cotard falha. Marie Christine Lasnik (1993) propõe como condição
propiciadora do autismo pode ajudar a pensar naquele que se cotardiza:

O não olhar entre uma mãe e seu filho e o fato que a mãe não possa se dar
conta disso, constitui um dos principais signos que permitem atribuir, durante
os primeiros meses da vida, a hipótese de um autismo - esteriotipias e auto-
mutilações aparecem somente no segundo ano de vida. Se esse não olhar
não desemboca, mais tarde, necessariamente numa síndrome autística
caracterizada, isso assinala em todo caso uma grande dificuldade ao nível
da relação especular com o Outro. Se não se intervêm, essas crianças nas
quais o estágio do espelho não se constituirá convenientemente” (LASNIK,
1993, p. 31).

3.8 COTARD POR RAIMUNDO NINA-RODRIGUES

O médico brasileiro Raimundo Nina-Rodrigues (1862-1906), contemporâneo


de Jules Cotard, como se observa pelas evidências cronológicas, descreve um caso
de delírio das negações, em 1901, no Asilo São João de Deus, na Bahia.
Como lucidamente observam Oda e Dalgalarrondo (2004, p. 147), a qualidade
científica e literária desse ensaio centenário é tal que a simples leitura dos casos

34
apresentados dispensa explicações adicionais e poderia ser bem proveitosa aos
estudiosos da psicopatologia.
O médico narra a observação que fez com a paciente Umbelina Maria do
Bonfim, negra, baiana, 60 anos, internada no Asilo São João de Deus, situado na
cidade de Salvador, capital do estado da Bahia. Nina-Rodrigues considera que
desde a primeira vez que foi chamado para atendê-la observou nela elementos do
delírio das negações do tipo Cotard:

Ela se queixava de não ter mais nem cabeça nem mãos nem pés nem estômago:
mostramos sucessivamente a ela seu nariz, seus olhos etc, colocando-lhe a
questão: o que é isso? Ela sempre invariavelmente responde: “isto não é um nariz,
isto não são olhos” etc, sempre em contra-senso. Renovamos nossa questão
mostrando-lhe nossa mão ou nosso braço, e então ela responde: “ah! Isto é uma
mão, isto é um braço”. Ela nos declara que não enxerga mais, que está morta e que
só está esperando o caixão para dar o último suspiro [...] Não tem mais mãos, não
tem mais rosto etc, porque a chama devorou tudo, e com os olhos cheios de
lágrimas ela mostra a cabeça embranquecida, suas pernas descarnadas, dizendo:
“Diga senhor, por acaso isto é uma perna? É uma cabeça? Veja como tudo está
consumido e destruído”. O fogo destruiu completamente seu estômago, que não
existe mais; ela come por comer, pois os alimentos passam sem proveito e caem no
vazio, já que as chamas nada deixaram em seu corpo ([RODRIGUES, 1901] 2004,
p. 173-176).

Esta descrição é significativa porque foi feita em 1901. Hoje, 2007, com todos
os recursos da psicofarmacologia à disposição, e usados abusivamente, nada
mudou no teor do delírio. O caso clínico que sustenta esta pesquisa mostra que o
melancólico de Cotard é resistente, que atravessa infinitos tempos – lógicos tempos
– com a mesma eloqüência delirante. Como observou Fédida em algum momento da
sua longa obra, “existem antidepressivos, mas não existem antimelancólicos”.
Entre outras, uma observação de Nina-Rodrigues, também interessante, é
que a paciente Umbelina, tivera antes uma vida ativa e laboriosa, sem qualquer
manifestação de desequilíbrio mental. Isso implica dizer que as psicoses ensinam
também que uma ruptura pode surgir sem ser anunciada, como em Umbelina. Sua
doença foi interrompida com a morte, mas poderia “ter se prolongado
indefinidamente” (NINA-RODRIGUES, p. 177).
Ele também observa algo atípico neste caso em que não há traços de
melancolia nem de humildade passividade resignação auto-acusação, nenhum
sentido centrífugo do delírio que quase sempre acompanham os delírios das
negações.

35
SILVA (2006, p. 702) afirma que pensar um relato de caso sob o ponto de
vista histórico pode ser esclarecedor, como entende-se que seja o caso registrado
por Nina-Rodrigues, na Bahia, em 1901. SILVA afirma: “O quão importante é
investigar a história de vida ao se tratar os males da alma. [...] Afinal, como querer
encaixar a experiência humana em categorias estanques e perenes?”
As psicoses se constituem e se encontram na origem da impossibilidade do
simbólico recobrir o real, o que nos alerta para o quanto nos são íntimas. Tão mais
íntimas e ameaçadoras quanto mais se evitam imperfeições, as incoordenações, os
erros e os acidentes.

36
4 O CONGRESSO DE BLOIS (1892)

“É preciso estar a uma distância razoável da cura da loucura”.

Paulo Leminski

A morte prematura de Jules Cotard, aos 49 anos, deixou interminado o seu


trabalho sobre o delírio das negações, com muitas interrogações clínicas e/ou
teóricas para serem pensadas no trabalho de seus sucedâneos. Estas
manifestações não tinham escapado aos observadores atentos às doenças mentais,
mas, antes da primeira publicação de Cotard, tampouco tinha se dado ênfase a
estas manifestações e a exuberância sintomática, ilustrada posteriormente por
muitos relatos clínicos. A interrupção desta pesquisa e a oportunidade de ir mais
fundo que a morte de Cotard impediu, suscitaram por outro lado, a organização do
famoso Congresso de Blois, que foi o terceiro Congresso de Medicina Mental, aberto
em 1 de agosto de 1892, pelo Presidente M. Théophile Roussel.

4.1 A INTERVENÇÃO DO MÉDICO PSIQUIATRA DOUTOR CAMUSET

A primeira jornada foi consagrada ao exame e à discussão do delírio das


negações, cujo relator foi o Doutor Camuset, médico psiquiatra e diretor do Asilo dos
Alienados de Bonneval, (Eure e Loire). Sua palestra teve por título: Delírio das
negações – seu valor diagnóstico e prognóstico, importante comunicação sobre o
artigo de Cotard, Delírio das Negações ressaltando o artigo de Jules Séglas (1884),
Notas sobre um caso de melancolia ansiosa, que era uma observação detalhada do
delírio das negações, acompanhado de uma interessante análise psicológica.
Naquele mesmo ano, 1884, Cotard procurava uma explicação fisiológica para
essas manifestações, ao levantar a hipótese da perda da visão mental e ao se
perguntar se não seria legítimo relacionar a perda progressiva da visão mental na
melancolia ansiosa à alteração e prejuízo dos sentimentos afetivos, sintomas que se
observam na melancolia e no delírio das negações, mas aí ele esbarraria em uma
questão não resolvida, satisfatoriamente, pela anatomia e fisiologia, o que o impeliu
ainda mais fortemente a continuar a pesquisa.

37
Em sua conferência, Camuset fizera um longo inventário dos psiquiatras que
se ocuparam da nosografia isolada por Cotard. Citara o Dr. M. Journiac (1888), que,
em sua tese Recherche cliniques sur le Delire hypocondriaque (1888) mencionava
apenas as idéias de negação de Cotard, na hipocondria.
Em seguida, Camuset lembraria que M. Cullerre, no Tratado prático das
doenças mentais, consagrava algumas linhas ao delírio das negações, muito
resumidamente, sem colocar em discussão (1997, p. 78). Eis o que se encontrou
relativamente ao assunto. Em nenhum outro escrito psiquiátrico está descrito de
forma mais completa, além de citações, quase pé de página, os elementos
constitutivos de estados psicopáticos diversos.
Naquele congresso, Camuset diria que a pesquisa sobre o delírio das
negações estava exatamente no ponto em que Cotard a deixou, havia então doze
anos. Por isso, ele insistia em resgatar o que Cotard entendia como delírio das
negações, e indicava o lugar que lhe era atribuído no quadro nosológico,
reafirmando a dedicação de Cotard quando observava doentes em diferentes
estados melancólicos e mostrava sua erudição de clínico hábil e pesquisador
incansável.
Para Camuset (1997, p. 114), no que diz respeito às melancolias, a obra de
Cotard é impecável, “mas cabe”, diz ele, “uma crítica no sentido de que Cotard é
muito generalista, porque ele dá exemplos perfeitos, cuidadosamente analisados,
ele expõe, segundo os dados da fisiologia cerebral, a gênese de certos estados
mentais mórbidos e insiste sobre os processos psíquicos que os determinam. Tudo o
que ele diz é exato e justo, mas para os casos particulares apenas e não para toda
uma classe nosológica”, observa rigorosamente.
Camuset se afasta um pouco das idéias de Cotard ao considerar que o delírio
de negação se aproxima muito do delírio de perseguição de Lasègue.
Desde sua primeira comunicação, Delírio hipocondríaco em uma forma grave
de melancolia, Cotard (1880) conclui que “A melancolia ansiosa comum é uma forma
sintomática freqüente nas vesânias súbitas ou intermitentes; elas curam-se
rapidamente. Não é assim com o delírio hipocondríaco, neste caso, o prognóstico é
muito mais grave. Desde os primeiros ‘ataques’, o delírio hipocondríaco passa para
um estado crônico”, cujas características podem ser assim reconhecidas:

38
a) ansiedade melancólica;
b) idéia de danação ou de possessão;
c) propensão ao suicídio e às mutilações voluntárias;
d) analgesia;
e) idéias hipocondríacas de não existência ou de destruição de diversos órgãos,
do corpo inteiro, da alma, de Deus;
f) idéia de não poder jamais morrer.

No segundo texto de Cotard, O Delírio das Negações (1882), que é um


estudo mais completo dessa lipemania, ele reafirma sua legitimidade para poder
isolá-la, como uma entidade independente.
Cotard insiste nas diferenças entre a evolução do delírio de perseguição de
uma parte e a evolução do delírio das negações (1997, p. 51-53). Os perseguidos
não são negadores, enquanto que os melancólicos são sempre acompanhados por
idéias de disposições negativas.
Nessa exposição acadêmica, porque ser um congresso sobre o Delírio das
Negações, Camuset aponta a importância de ler nos textos notáveis do autor a
análise do estado mental dos melancólicos desde os primeiros períodos da sua
afecção. Ele segue passo a passo as modificações psíquicas do sujeito: o doente se
mostra tímido, sem confiança em si mesmo, mais severo consigo do que com os
outros. Mesmo os melancólicos sem delírio apresentam uma forma negativa
evidente. Têm vergonha de si mesmos, desesperam-se por não poderem encontrar
suas faculdades perdidas, “eles não têm coração, eles não amam seus pais nem a
Deus” (CAMUSET, 1997, p. 83).
A partir dessa hipocondria moral, chega-se à idéia de ruína, culpa, danação.
Cotard também entende, e Camuset destaca com veemência, que os verdadeiros
delirantes têm na sua origem psiquica, seja na melancolia com estupor ou na
melancolia ansiosa, apesar de suas diferentes manifestações exteriores, mas que no
fundo são análogas, porque ambas são marcadas pelo niilismo e sentimento de
negação.

39
Camuset insiste que o delírio das negações não é uma entidade. Demonstra
que há outros quadros clínicos que apresentam idéias de negação ou alguns outros
sintomas isolados. Reforça a idéia de que a melancolia não tem características tão
específicas sempre, para que seja legítimo reunir em uma espécie de nova
nosografia. Nem sempre os casos de melancolia onde se encontram idéias de
negação são superpostos como no tipo padrão da nosografia, de modo que se torna
pertinente rever suas variações. Por outro lado, e por muitas circunstâncias, o delírio
das negações se apresenta também em quadros não-melancólicos, como será visto
em outro capítulo, no caso Schreber.
Os exemplos clínicos de Cotard são consistentes. De fato, Cotard não é
superficial em seus aportes teóricos, de maneira que os analisa também, mas não
exclusivamente, segundo os dados da fisiologia cerebral. As afirmações de Cotard
são relativas a casos particulares, o que implica considerar que não faça afirmações
por toda uma classe de doentes, por ele designada de melancólicos ansiosos.
Finalmente, em sua exposição, Camuset afirma que o delírio das negações
evolui às vezes sobre um fundo de histeria, e pede desculpas por ter cometido
algum esquecimento ou erro de interpretação, mas esperava que a discussão
posterior pudesse trazer reparações relativas a esses aspectos.
Após a conferência de Camuset, houve treze intervenções importantes,
especialmente a de Emmanuel Régis e de Jules Séglas.

4.2 UMA INTERVENÇÃO DE EMMANUEL RÉGIS

Emmanuel Régis, médico psiquiatra francês e contemporâneo de Jules


Cotard, destaca especialmente a condenação dos doentes melancólicos afetados
pelo delírio das negações, a uma sorte de agonia permanente. Por isso, Jules
Cotard sustenta que a noção de imortalidade nestes doentes é uma idéia
hipocondríaca, um delírio triste relativo ao organismo, uma interpretação delirante
das sensações desagradáveis. Régis entende que “Pela sua extrema angústia, as
queixas destes doentes se aproximam muito dos melancólicos e se diferenciam dos
perseguidos, onde a idéia de imortalidade faz parte do seu delírio de grandeza”
(CACHO, 1993, p. 165).

40
Ao finalizar sua exposição, Régis afirma o seguinte:

Este estado psicopatológico chamado por Cotard “delírio das negações” e que foi
considerado pelo seu autor como um estado psíquico complexo e próprio aos
ansiosos crônicos, quer dizer, como uma síndrome. Poderíamos talvez, para evitar
qualquer confusão, designar o conjunto, sob o nome de Síndrome de Cotard
(CACHO, 1993, p. 169).

O manifesto de Régis foi plenamente aceito pela comunidade científica, que


passou denominar o delírio das negações como Síndrome de Cotard.
A segunda intervenção considerada importante foi feita por Jules Séglas, ao
tentar responder à objeção mais séria que o relator do Congresso havia feito, ou
seja, a observação da ausência, na quase totalidade das observações examinadas,
dos temas delirantes que Cotard considerava essenciais à constituição do delírio,
precisamente a danação, a possessão e a imortalidade. Séglas considera
secundário o problema da ausência de determinados temas delirantes e afirma que
para o diagnóstico do delírio das negações não seria indispensável que se
estabelecesse a existência de perturbações psíquicas da mesma ordem, porém
menos acentuadas.
Transformada em síndrome por Régis, como já visto, alargando-se ao quadro
melancólico que o afeta, o delírio das negações quase desapareceu da clínica
patológica, mas Régis ainda faz as seguintes reflexões: a) o delírio das negações
aparece muito tempo depois do início da doença e quando passa para o estado
crônico, b) não se encontra nem a idéia de danação ou de possessão, nem
sobretudo a idéia de imortalidade. Enfim, a doença não se apresenta sob a forma de
acesso intermitente.
Camuset entende, por sua vez, que as idéias de negação podem se estender
pelo organismo inteiro. Os sujeitos não têm corpo, eles não existem mais, ou, ainda,
seu corpo é de pedra, então são inquebrantáveis. Ou, ao contrário, em outro
extremo, são de vidro, então de uma fragilidade extrema. O corpo não é de carne e
osso, resilente e pulsional, soa de pedra e vidro materiais “resistentes” às pulsões.
Concorrentemente, existem idéias de negação de ordem psíquica, pois esses
mesmos pacientes não têm mais espírito nem pensamento, porque seu cérebro está
comprimido ou porque está inerte. Há uma diferença entre estas idéias de negação
de ordem psíquica e as idéias de negação que se estendem à esfera dos

41
sentimentos, e que se destacam na melancolia, então os doentes não têm mais
coração, afetos, sentimentos; não podem mais amar quem sempre amaram, por
exemplo.
Há ainda as idéias de negação exteriorizadas: os doentes negam a realidade
em sua volta. Isto que está sobre seus olhos não é o objeto real que se faz ver; é a
aparência desse objeto. Mostra-se uma rosa e não é a rosa da Gertrude Stein, uma
rosa não é uma rosa, é apenas a aparência de uma rosa. Esses delírios também se
voltam para pessoas que estão a sua volta, por exemplo, o médico e os familiares. O
paciente afirma: “vocês não são médicos, não são meus parentes”, e assim vai, em
um mutatis mutandis, estendendo a negação para todos os objetos e pessoas que,
em definitivo, são estranhos e familiares simultânea e confusamente. O discurso
desses pacientes frente a esses momentos de estranheza tem um tom onírico forte,
e traz muito sofrimento, porque não há um despertar em que a fugacidade do sonho
costuma trazer alívio ao sofrimento.
Há também as idéias de negação de ordem psíquica e metafísica, em que os
pacientes negam suas características físicas e psíquicas. Afirmam não mais existir, e
costumeiramente falam na terceira pessoa. A alma, deus e diabo são elementos
que, mesmo presentes na vida do paciente por razões do sincretismo religioso, ou
que façam parte do seu inventário fantasístico imaginário, no momento delirante são
negados e se apresentam também como estranhos.
Na combinatória de idéias hipocondríacas, de negação e de imortalidade; as
idéias de danação, descobertas por Cotard, foram o ponto de partida das pesquisas
que se organizam em um sistema que será chamado desde o Congresso de Blois
(1892) de Síndrome de Cotard.
Mas não foi somente no delírio das negações que Cotard encontrou as
negações; ele demonstrou que o melancólico é negador desde o início de sua
doença, e que continua ao longo da doença. Na melancolia há, em essência, a
negação. O paciente não tem mais inteligência nem sua energia de outrora, ele não
é capaz de erotizar e libidinizar os objetos e pessoas. A negação sempre se
manifesta nos quadros melancólicos; é uma das características da melancolia
severa ou não e, à medida que a afecção progride e se acentua, na mesma
proporção se instala e cronifica o estado de negação. Camuset comenta, na

42
conferência do Congresso mencionado, que Cotard não se inibe em dizer que todos
os sintomas da melancolia são de natureza negativa.
Essas idéias de negação indicam uma perturbação ainda mais profunda que
aquelas acusadas pelas idéias de ruína, de impotência e culpabilidade ordinária.
Deve-se dizer, aliás, que nada na melancolia é de natureza ordinária, sobretudo
quando vem acoplada com a complexidade dos outros elementos da síndrome.
Os relatos clínicos de Cotard citados no Congresso mostram uma
impressionante maioria de mulheres afetadas pela síndrome e, não bastassem os
termos estatísticos, os sintomas são ainda mais clássicos e gritantes conforme
Cotard os inventariou.
Por sua vez, Falret afirma – ainda no Congresso de Blois – que Cotard fez
grande progresso nos estudos da melancolia, como já tinha feito Charles Lasègue
(1816-1883) descrevendo o delírio de perseguição. A “imortalidade” de Cotard não
se deve apenas porque Régis denominou a síndrome pelo seu patronímico, senão
também porque Marcel Proust (1871-1922) criou uma personagem que, com uma
letra a mais – Cottard – garantiu também sua imortalidade literária. Por suposto, o
“Cottard” de Proust é fruto de uma condensação de muitos Cotard e muitos modelos
serviram a sua elaboração, como observa o seu biógrafo.
Muitos amigos de Adrien Proust, pai de Marcel, freqüentavam as soirées que
aconteciam na sua casa. A referência de uma passagem em um dos volumes de A
procura do tempo perdido mostra como a descrição está longe de refletir o homem
Cotard, mesmo que alguns traços lhe tenham sido emprestados.
O memorável Congresso de Blois termina com a observação da evidência
que separa o delírio de perseguição dos outros delírios melancólicos e justifica por
isso mesmo a obra de Lasègue. Mesmo que o delírio de perseguição e o de
negação tenham nascido na mesma fonte, as idéias de perseguição não tardam a se
diferenciar claramente daqueles da negação, e isto Cotard explicita muito bem.
Mesmo assim, há uma intervenção de Charpentier, médico psiquiatra que diz
jamais ter encontrado, em dez anos de trabalho, um só negador que respondesse ao
tipo criado por Cotard. “Não encontramos em Cotard uma doença nova, mas apenas
uma palavra nova” (CACHO, 1993, p. 187). Entretanto, esta observação não terá a
menor ressonância entre os participantes do Congresso.

43
Da mesma maneira, ao homenagear sua memória, seus colegas não
deixaram de lembrar que o delírio das negações, depois do Congresso intitulado
Síndrome de Cotard, constitui um grupo à parte daquilo que os manuais de
psiquiatria tinham por pronto e terminado.

44
5 UMA ABORDAGEM SOBRE A HIPOCONDRIA

“De que temos medo? Isso não quer dizer


simplesmente: a partir de que temos medo? De que
temos medo? De nosso corpo. É o que manifesta esse
fenômeno curioso sobre o qual fiz um seminário um ano
todo e que denominei angústia. A angústia é justamente
alguma coisa que se situa alhures em nosso corpo, é o
sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de
nos reduzirmos ao nosso corpo”.

Jacques Lacan – A Terceira (1974)

O conceito de hipocondria é fundamental no estudo das psicoses, porque


nenhuma escapa dos fenômenos hipocondríacos, seja de forma mais branda, seja
com a exuberância e o exagero dos sintomas da Síndrome de Cotard.
Paulo José Carvalho da Silva (2006, p. 703) apresenta um caso do médico
romano Paulo Zacchia (1584-1659) e faz algumas considerações sobre hipocondria
no trabalho dos males hipocondríacos, cuja primeira edição data de 1639.

De modo geral, segundo Zacchia, desde a Antigüidade, relacionava-se esta


enfermidade ao mau funcionamento dos órgãos localizados na parte superior do
abdome, conhecida como hipocôndrio, em particular do estômago, com a
conseqüente produção excessiva de bile negra e exalação de vapores escuros que
perturbam as funções cerebrais.
Entretanto, esta seria apenas uma das suas causas. O modo de viver também
poderia causar a hipocondria. Por modo de viver, entende-se a alimentação e as
condições da digestão, as atividades físicas, o regime do sono e os afetos ou
paixões da alma. Todos estes fatores poderiam originar um desornamento dos
líquidos corporais (bile negra ou melancolia, bile amarela ou cólera, fleuma e
sangue) e corromper o corpo e o intelecto, perpetuando um clico vicioso.
No caso específico da melancolia hipocondríaca, os afetos predominantes seriam a
tristeza e o temor. Além disso, Zacchia identifica como sinais evidentes, fantasias e
sonhos desesperantes hábitos solitários, um estado de ânimo choroso e taciturno,
timidez e desgosto.

Psiquiatras clássicos novecentistas, do porte de Falret, Séglas, Cotard


inclusive Freud, mencionam, sublinham e destacam a hipocondria como uma
manifestação importante nos quadros psiquiátricos.
No Rascunho B, Freud (1893) trata da neurastenia ao dizer que a neurose de
angústia surge sob duas formas: “O estado crônico é como um ataque de
ansiedade” (FREUD, 1893 (1977) p. 252). Como sintomas crônicos, ele ressalta a

45
ansiedade e a hipocondria relacionadas ao funcionamento do corpo, como por
exemplo as fobias e, ainda, a ansiedade relacionada às decisões e à memória, isto
é, à idéia particular de alguém a respeito do seu funcionamento psíquico, dúvidas e
ruminações obsessivas.

Em Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular


intitulada Neurose de Angústia, Freud (1895,-1977, p. 110) diz que

para uma das formas de expectativa ansiosa – relacionada ao tema da saúde


própria –, reservamos o velho termo hipocondria. O nível alcançado pela
hipocondria nem sempre é paralelo à expectativa ansiosa em geral; requer
como precondição à existência de parestesias e aflitivas sensações corporais.
[...] [Assim], a hipocondria é a forma preferida pelos neurastênicos genuínos,
quando estes caem presas de neurose de angústia, como ocorre com
freqüência.

No Rascunho H, pouco a pouco, Freud (1895) situa a hipocondria, o delírio de


ciúme e o delírio da erotomania na paranóia, ao lado da psicose.
Por sua vez, Laplanche e Pontalis definem a neurose de angústia como
acumulação de uma excitação sexual que se transforma diretamente em sintoma,
sem mediação psíquica.
No Rascunho B, intitulado Etiologia das neuroses, em uma das centenas de
cartas endereçadas a Fliess, Freud (1893) faz uma interessante observação inicial,
datada, ao recomendar a Fliess “manter esta carta longe de sua jovem esposa”
(FREUD, (1977), p. 247), porque pode tomar-se como reconhecido que a
neurastenia é sempre e tão-somente uma neurose sexual.
Antonio Quinet (2006) lembra que, a partir de 1912, Freud passou a
considerar a hipocondria como a terceira neurose atual; antes disso, era uma
doença autônoma – ou ainda um sintoma, que poderia ser encontrado nas neuroses,
inclusive, como um dos destinos do afeto.

5.1 ETIMOLOGIA

46
A palavra hipocondria apresenta diversos deslizamentos de sentido antes de
chegar à definição de Dictionnaire Littré 9, de 1860, e que permanece atual: tipo de
doença nervosa que perturba a inteligência, de modo que os doentes passam por
enfermos imaginários, sofrem muito e estão mergulhados em uma tristeza habitual.
Hipócrates e Galiano definiram como uma entidade mórbida que alia uma
lesão visceral específica a uma psíquica, causada pela tristeza e pelo temor
permanente.
O primeiro registro do termo médico, em latim, remonta a 1398, segundo o
Dictionnaire de la langue française10. Entre 1398 e 1560, passou da nomenclatura
técnica médica ao francês corrente e perdeu o h central (hypochondria), afastando-
se, assim, de sua etimologia original: “Sob falsas costelas”, ou um órgão escondido
entre o ventre e o peito, sítio dos humores, já insinuando um invisível corporal com
exigência de representação.
O adjetivo hipocôndrio apareceu em 1560, como significado de triste,
caprichoso, relativamente a um sujeito sempre inquieto com sua saúde. Hipocondria
apareceu somente 1781 e sua definição é: “Afecção nervosa que antigamente se
acreditava de origem abdominal e que deixa o doente sempre angustiado com sua
saúde. Hipocondríaco tem dois sentidos mais metafóricos: o sujeito extravagante e
de humor sombrio, mas não menos importantes”.

5.2 A HIPOCONDRIA EM JULES COTARD

O primeiro artigo de Jules Cotard é intitulado Do delírio do hipocondríaco em


uma forma grave da melancolia ansiosa. Na sua clínica primorosa, nas filigranas de
suas descrições, Cotard começa a observar a diferença da manifestação da
hipocondria na paranóia e no delírio de negação, em que há a idéia de destruição

9
Foi apresentada na Société médico-psychologique em 28 de junho de 1880 e publicada nos Annales
médico psychologiques em setembro do mesmo ano. É a singularidade de um delírio hipocondríaco
observado durante muitos anos por aquele que foi o diretor do hospital Vanves, J. Falret, que atraiu a
atenção do clínico. A paciente queixava-se de estalos nas costas que repercutiam na cabeça, o que
evidenciava tratar-se de queixas hipocondríacas. Jules Cotard cita alguns autores que, mesmo ao
observar delírios análogos aos da negação, não relevaram a sua singularidade.Inicia coma descrição
minuciosa do delírio hipocondríaco da Sra X (Anexos).
10
M. Czermak reserva o termo hipocondríaco à psicose e descarta deliberadamente as diversas
preocupações corporais evocadas sob tal título nas diferentes neuroses. Não se ganha nada

47
dos órgãos, além da idéia de imortalidade que aparece imbricada com um estado
que não é de vida nem de morte; são mortos-vivos, ocupam uma posição singular, e
enunciam esta vivência com intensamente. Eis aí um dos aspectos fulgurantes
desse delírio que, mais tarde fora nosografada como Síndrome de Cotard.
O corpo está podre, o cérebro amolecido, não tem estômago, coração,
sangue, alma. Tais relatos são recorrentes nos pacientes afetados pelo delírio das
negações e são o acme da manifestação hipocondríaca porque embora os órgãos
sejam negados, tratados como não-existentes, eles sustentam uma queixa de dor,
mal-estar, desconforto.
Jules Cotard assinala explicitamente e antecede aos grandes teóricos, já em
1889, em um verbete Sobre a hipocondria (1889, 379-415), em que afirma que “há
provavelmente uma origem verbal em certas idéias hipocondríacas, assim como há
uma origem alucinatória em certos delírios”.
O médico francês dá importância à linguagem na hipocondria, no sentido de
que os que sofrem desta afecção e os alucinados atribuem a determinadas palavras
a tendência em transformar abstrações em entidades substanciais e ativas.
Nesse mesmo artigo, há uma insistência de que a hipocondria é do campo da
psicose e uma interessante distinção entre a hipocondria anestésica pré-melancólica
e a hipocondria corporal hiperestésica, prelúdio do delírio de perseguição.
Brilhantemente, pelas antecipações que faz, já detalhava como a hipocondria pode
se transformar em melancolia ou em paranóia.

5.3 A HIPOCONDRIA EM LACAN E CZERMAK

Lacan afirma que o psicótico privilegia o corpo mais do que o neurótico; este é
interpelado por sua relação ao Outro, e o perverso pela questão do falo. A
hipocondria é, portanto, muito mais assídua nas psicoses, mesmo nas consideradas
menos severas, ou nos sujeitos que apresentam apenas traços psicóticos, sem
delírios ou surtos.
M. Czermak reserva o termo hipocondríaco à psicose e descarta as diversas
preocupações corporais evocadas sob tal título nas diferentes neuroses. Defende a

estendendo a acepção de tais termos. É melhor, para começar, desfazê-los e fazê-los especificar, é

48
idéia de que é melhor não utilizar um mesmo qualificativo para as obsessões,
conversões, fobias e idéias delirantes.
Tirania do objeto a é uma expressão de Czermak para falar da onipresença
do objeto a na cadeia significante do hipocondríaco. Objeto que não cai não é
destacável, fica encarcerado. Há uma presença totalizante, daí o paciente
hipocondríaco mostrar-se tão obcecado por sua saúde, tão preso em sua
problemática, tão agressivo em sua busca de encontrar uma resposta médica
adaptada e absoluta. Essa característica permite diferenciar clinicamente a queixa
neurótica histérica de uma manifestação hipocondríaca na psicose.
Para Czermak (1991) pag 162

O objeto a induz um imperativo que submete o sujeito que padece dele a uma
série de constatações, de falas sobre o corpo – de um corpo não
metaforizado, de um corpo que escapa àquilo que poderíamos supor da
representação enquanto neuróticos – que a língua do Outro desfila de um
modo direto e automático.

O indivíduo está impossibilitado de existir à cadeia significante; ele aparece


como não-barrado, sem desejo. Está embaraçado no seu corpo por algo que impede
o livre jogo das pulsões, de que o sangue, o ar e os alimentos circulem em um corpo
suficientemente erogenizado para se manter hígido. O morto-vivo habita um corpo
hesitante, cambaleante. As pulsões se organizam em torno dos furos do corpo,
ensina Lacan; contornam o objeto a antes de retornar ao corpo. Com o
hipocondríaco o trajeto é diferente; é como se o objeto a tivesse vindo encarcerar-se
no corpo e arrolhar os furos. O corpo do hipocondríaco é paralisado pelas
impossibilidades de respiros pelos furos. Um corpo tamponado dói, incha, adoece.
Pode-se avançar sob a hipótese de que as demandas médicas são o
testemunho também das demandas insistentes dos objetos reais que o martiriza.
Assim, o hipocondríaco submetido à loucura do corpo não tem demanda senão a de
ser intoxicado por medicamentos, cortado pelo bisturi, tornado transparentes pelas
imagens de alta resolução dessas máquinas fantásticas que estão, também, a
serviço das fantasias hipocondríacas.

melhor não utilizar um mesmo qualificativo para as obsessões, conversões, fobias e idéias delirantes.

49
Trata-se de um corpo que perde os mistérios e as frágeis marcas pulsionais, o
indivíduo pede para descrevê-lo em cada tomo, cada vez mais e liputianamente e
por fim encontrar a peça que sobra ou que falta, por exemplo, a demanda de um
exame para confirmar que o cérebro se esvaziou, ficou sem consistência, a “caixa
craniana está cheia de algodão”, como recentemente ouviu-se de um paciente.

5.4 HIPOCONDRIA E SÍNDROME DE COTARD

Diante da impossibilidade da descoberta de uma lesão anatômica que


explique sua dor ou, ao contrário, sua anestesia, seus órgãos desaparecidos, o
paciente continua incrédulo e desesperado. Erra em busca de uma teoria que lhe
convenha; alguns doentes se amoldam a um delírio que lhes serve de medicação.
Os dois imaginários – o do médico e o do hipocondríaco – se chocam muitas
vezes quando o médico aferra-se a seus conceitos positivistas e o paciente a sua
teoria pessoal.
Empobrecido em seu limite interno, o eu não trata mais a excitação somática
para torná-la pulsional; as ligações são pouco confiáveis, de modo que remetem à
antiga “estase narcísica” de Freud, anterior a 1924. “A hipocondria atinge, pois, não
o corpo, mas sua representação como dentro, o que [está como] a regressão do
sujeito a um momento precedente à diferenciação entre o eu e o objeto no qual se
efetuou a instalação dos limites” (PRAGIER, 2002).
Tal consideração remete ao início da vida, quando a mãe escuta e interpreta
os sinais do corpo do bebê e esse trabalho de escuta e interpretação somente é
possível se existe, da parte dela, um investimento libidinal nesse corpo. O papel da
mãe não é simplesmente assegurar a conservação da vida, mas, de modo
simultâneo, permitir o acesso ao prazer por meio da promoção da sexualidade. A
constituição do auto-erotismo supõe originalmente a existência de um objeto
maternal que assegure a satisfação das primeiras necessidades: o auto-erotismo
vem apenas em resposta à perda desse objeto.
Quem é a mãe daquele que evolui para o delírio das negações? Ao corpo que
se torna “infinito” no tempo e no espaço com os delírios de enormidade, que laço
faltou para delimitá-lo e barrar-lhe o gozo?

50
Com Freud (1915), desde Luto e melancolia, sabemos ser o eu do
melancólico suporte da introjeção do objeto perdido. No delírio das negações, há
uma implicação entre o eu e o corpo; ou seja, há uma imbricação entre estas duas
afecções: melancolia e hipocondria. Pode-se dizer, numa licença kleiniana, que o
objeto mau é introjetado ao mesmo tempo no psiquismo e no corpo.

Freud sugere que o analista escute o delírio hipocondríaco como escuta


sonhos em análise, nem mais nem menos.
Vale destacar que, no início da psicanálise, Freud atribuíra aos orifícios do
corpo o estatuto de zonas erógenas; ao afirmar, em 1914, que a erogeneidade é
uma propriedade de todos os órgãos. Essa segunda versão da erogeneidade é
descrita como generalizada a todo o corpo e, por isso mesmo, suscetível a
aumentos, diminuições e dilatações em cada parte desse corpo erógeno. Tal como
Lewis Caroll mostra sua Alice num crescer e diminuir, numa confusão entre ela e os
objetos que a rodeiam, tal como em Cotard os delírios de enormidade basculam com
os de diminuição, pode-se pensar que a hipocondria muda a erogeneidade de
alguns órgãos porque há uma alteração no investimento da libido no delírio das
negações.
A hipocondria dos melancólicos tem sempre uma marca moral de humilhação;
dizem-se repugnantes, ignóbeis, apodrecidos. Os paranóicos, ao contrário; têm
geralmente uma forte opinião sobre si mesmos, se toma influências exteriores dos
sofrimentos, das doenças. O ansioso encontra nele mesmo a causa dessas
influências nocivas. No início, é sempre de uma hipocondria moral que se trata: os
doentes se tornam incapazes, perdem suas faculdades, suas capacidades, sua
inteligência. Na evolução do delírio, a hipocondria psíquica se instala e eles não
conseguem pensar, não compreendem nada do que se diz, não conseguem ler,
tornam-se débeis.
A hipocondria física se manifesta por idéias de ausência e destruição dos
órgãos e das vísceras, e, como conseqüência, pelas idéias de imortalidade, por esta
característica ser tão definida, Pierre Fédida a chama de melancolia anatômica.

5.5 HIPOCONDRIA MORAL

51
Jules Cotard toma emprestado do psiquiatra francês J. Falret a expressão
hipocondria moral, com o objetivo de distinguir do quadro das hipocondrias gerais,
que se caracteriza predominantemente por profunda depressão, ansiedade queixosa
e um estado grave de distúrbio da sensibilidade moral.
No artigo já mencionado, Do delírio hipocondríaco em uma forma grave de
melancolia ansiosa, Cotard (1880 p. 19) afirma:

Nestas formas predominam a ansiedade, os temores, os terrores imaginários,


as idéias de culpa, de perdição e de danação, os doentes acusam a si
mesmos, eles são incapazes, indignos, fazem a infelicidade e a vergonha de
suas famílias, irão prendê-los, condená-los à morte, irão queimá-los ou cortá-
los em pedaços.

Os doentes tomados por estas manifestações não acreditam naquilo que o


outro possa vir a afirmar de positivo a seu respeito, muito menos nas manifestações
afetivas e amorosas que lhe são dirigidas.
Cotard acentua que “Muitas vezes, essas manifestações são acompanhadas
por idéias de ruína, tornam-se empobrecidos e se apresentam desta maneira para
quem deles se aproximar, suplicando a confirmação deste desmoronamento”
(COTARD, 1880, p. 81).
Por sua vez, na década de 1860, Jules Gabriel Baillinger, então aluno de
Esquirol, foi o primeiro alienista a chamar à atenção sobre o delírio hipocondríaco
dos paralíticos. Em um artigo, Baillinger (1860) assinala a relação estreita entre a
melancolia hipocondríaca e a paralisia geral e destaca as características específicas
das concepções delirantes nos hipocondríacos paralíticos. O trabalho de Baillinger
sobre o delírio hipocondríaco moral, como um prelúdio da paralisia geral, responde
também à preocupação de reintroduzir o dualismo na teoria das doenças mentais na
medida em que este autor se apóia sobre a dissociação dos signos psíquicos e
físicos que já tinham sido trabalhados por A. L. J. Bayle ,

Jules Séglas também se ocupa da hipocondria moral; a dor moral, os


distúrbios cinestésicos e os distúrbios intelectuais, também chamados de parada
psíquica, mas com uma diferença: Séglas, ao contrário dos seus contemporâneos,
“afirma que a dor moral é secundária, é conseqüência da derivação da consciência

52
das modificações advindas no exercício das faculdades intelectuais” (FERREIRA,
2006, p. 20).
Na “Dixième Leçon: De la mélancolie sans delire” Séglas (1887) descreve de
forma impressionante, detalhada, como era o estilo dos alienistas franceses
novecentistas, aquilo que Freud (1915) afirma em Luto e melancolia, quando
descreve o processo de melancolia como barrado em relação ao trabalho interno
entre as instâncias psíquicas, quando, por exemplo, o sujeito sofre uma grande
perda. A aproximação que Freud fará da melancolia e da esquizofrenia está neste
texto mor sobre a melancolia e a esquizofrenia
Séglas (1887, p. 287. diz algo muito próximo da dicção freudiana nos textos
da Metapsicologia.

As imagens interiores não são mais adequadas às suas excitações normais; e as


sensações, mesmo regularmente transmitidas, não chegam à consciência, senão
como um tanto de impressões alarmantes por sua estranheza” (Dixième leçon: De la
mélancolie sans delire).

Também vale mencionar que Séglas já lembrara que o psiquiatra alemão


Griesinger (1817-1868) afirmara que o humor melancólico é negativo, ou seja, trata-
se da hipocondria moral; entretanto, quem vai chegou ao delírio das negações, a
partir destas constatações, foi Cotard.

5.6 O PARALELISMO ESPINOZISTA

Todas as observações acerca da hipocondria moral e hipocondria ordinária,


como diz Cotard, levam quase que inevitavelmente a pensar sobre o paralelismo
espinozista, mesmo que seja para uma breve aproximação, a vôo de pássaro, para
não perder as produções da filosofia no século XVII, que podem contribuir para o
aprofundamento desta pesquisa.
A pergunta do filósofo holandês Baruch Espinoza (1632-1677), na Ética, cuja
publicação ocorreu postumamente, em Amsterdam, “O que pode um corpo?”
(ESPINOZA, 1677), tem como primeira resposta “o que ele pode é exercer a

53
potência deste corpo”. Para Espinoza, o corpo humano finito existente na natureza é
pensado como um modo de um dos atributos de Deus.
O paralelismo espinozista afirma a identidade de conexão entre as coisas
extensas, este mesmo paralelismo nega a superioridade da alma ou a inferioridade
do corpo e qualquer relação causal entre o corpo e a alma. Trata-se de uma ruptura
em relação à tradição religiosa que dava à alma uma eminência e colocava o corpo
qualitativamente pior do que a alma, desqualificando assim o corpo, como fonte de
todo mal, do padecimento, o corpo como realidade inferior, e a alma como entidade
superior. Espinoza entende que tudo o que afeta a alma afeta o corpo e o que o
corpo sofre, expressa-se na alma. O paralelismo alma e corpo compõe a mesma
realidade, portanto, não há como compreender a alma sem compreender o corpo.
Para Espinoza, alma e corpo constituem um mesmo ser, o que marca
inexoravelmente sua posição anti-religiosa.
O paralelismo de que se trata nega a superioridade da alma em relação ao
corpo, o que reforça a posição de Cotard e também de Séglas, ao mostrarem a
impossibilidade desta dicotomia nos delírios hipocondríacos.
Espinoza diz que tudo o que o corpo sofre a alma também é afetada; não há
superioridade nem inferioridade, portanto, entre corpo e alma.

O corpo humano é uma unidade estruturada: não é um agregado de partes


nem uma máquina de movimentos, mas um organismo ou unidade de
conjunto, e equilíbrio de ações internas interligadas de órgão. [...] Ora,
demonstra Espinoza, o primeiro objeto que constitui a atividade pensante da
mente humana é o seu corpo e, por isso, a mente não é senão idéia do
corpo (CHAUÍ, 2006, p. 52).

Tais considerações acerca de Espinoza são mencionadas para demonstrar as


alusões à hipocondria não no sentido patológico, mas na intersubjetividade do corpo
e da mente – a se pensar no século XX – que justificou o sofrimento do sujeito
afetado pelo delírio das negações, em que corpo e espírito – ou alma, ou mente –
sofrem em uma simultaneidade e indiferenciação que derrubam também a idéia da
psicossomática, como fosse possível pensar a psyché e a soma de maneiras
separadas e com critérios e pressupostos distintos.
Pode-se associar Espinoza ao se estudar Cotard, quando se pensa na idéia
de conatus – todas as afecções do humano: a alegria, tristeza, amor, ódio, medo,

54
esperança, cólera, indignação, ciúme, glória. Sob tal perspectiva, os afetos ou
desejos não possuem a mesma força ou intensidade; alguns são fracos ou
enfraquecedores do conatus, enquanto outros são fortes e fortalecedores
respectivamente. São fracos todos os afetos nascidos na tristeza, pois esta é
definida por Espinoza como o sentimento de que nossa potência de existir e agir
diminui em decorrência de uma causa externa; são fortes os afetos nascidos da
alegria, isto é, do sentimento de que nossa potência de existir e agir aumenta em
decorrência de uma causa externa.
Aí estamos mergulhados na causa de Cotard, do delírio das negações dos
melancólicos, em que a alegria desaparece e, portanto, impede que o fortalecimento
do conatus ocorra quando passa de paixões tristes e paixões alegres. É no interior
das paixões alegres que, fortalecido, ele pode passar à ação, isto é, ao sentimento
de que o aumento da potência de existir e agir depende apenas de si mesmo.
Assim, o doente afetado pela Síndrome de Cotard não é espinoziano, a
alegria como força propulsora da ação, nos melancólicos negadores, fica soterrada
sob os escombros da desilusão e do excesso de lucidez.

55
6 A NEGATIVA EM FREUD E EM COTARD – BARTLEBY, KAFKA, PESSOA

“Não se trata, diz-nos, de um recalque


(verdrängung), pois o recalque não pode ser
distinguido do retorno do recalcado pelo qual aquilo
de que o sujeito não pode falar, ele o grita por
todos os poros de seu ser”.

Jacques Lacan (1954)

6.1 A NEGATIVA EM FREUD

O texto A negação (FREUD, 1925) é a passagem obrigatória para


compreender a estrutura das negações melancólicas, e muito especialmente, o
delírio das negações, de Cotard. Trata-se de artigo que segue o Bloco Mágico e
aparece primeiramente na renomada revista Imago.
É considerado muito importante que o artigo de Freud sobre a negação parta
de um efeito de linguagem, por sua ligação com o recalque, ou seja, a negação
como substituto intelectual do recalque, e que termina pela referência às moções
pulsionais sob a forma de engolir e de cuspir; elementos da oralidade considerados
como as raízes da afirmação e da negação.
O negativo nos delírios das negações, e Freud também evoca o negativismo
na esquizofrenia, é considerado inverso do positivo, mas como direção ao nada.
O complexo mecanismo que Freud desenvolve neste texto, que foi traduzido
17 vezes, define a negação como um fenômeno que ocorre quando a repressão de
um conteúdo inconsciente inaceitável é ameaçada, ou seja, uma determinada
enunciação da tomada de consciência do recalcamento, sem que o sujeito aceite
seu conteúdo. Freud estabelece nesse texto a tese de que um conteúdo de
representação ou de pensamento recalcado pode aceder à consciência desde que
seja negado, uma vez que o refinamento da clínica freudiana permite esta
construção tão revolucionária. Esta maneira de tomar conhecimento do recalcado
permite ao sujeito “apresentar seu ser sobre o modo de não ser”, escreve Hyppolite
(1954 p.374)
A negação tem para Freud o valor de um índice que assinala o momento em
que uma idéia ou desejo inconsciente começa a ressurgir, e isto tanto no tratamento
quanto fora dele.

56
As observações de Freud sobre a ausência de “não” no inconsciente foram
discutidas também em seus trabalhos: Projeto de uma psicologia científica (1895), a
Interpretação dos sonhos (1900), o Caso Dora (1905) e O homem dos ratos (1909).
Algumas idéias sobre a natureza e função de um julgamento negativo
aparecem em seu trabalho Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Em
todos esses textos/referência, a sua tese principal aparece ipsis litteris: negar algo
em um enunciado, em um julgamento é, na realidade, dizer “isto é algo que eu
preferia não saber”. Sabemos desde então que um “não”, absolutamente, não anula
o recalque. A função do “não” é permitir a emergência de algo “escondido”, que se
torna então disponível via interpretação do analista, para a elaboração de um
processo secundário; logo a negação, como Freud mostrou, é um precursor da
afirmação.
Ilustram esta idéia os vários exemplos recolhidos da clínica, tais como: “Não
pensei nisto”, “Não tinha esta intenção” e “Não é minha mãe”.
Weinshel (1977) (apud CARONS, 1963, p. 182-187), entende que a negação
“não pode ser vista como um simples processo psicológico, que pode ser
engavetado como uma recusa, um isolamento, ou até mesmo um mecanismo de
defesa”. Weinshel considera que um julgamento negativo representa uma atividade
complexa e intrincada do ego.
Anna Freud (1951), em um trabalho não publicado, mas nem por isso menos
conhecido, Negativism and emotional surrender (Negativismo e rendição emocional),
descreve um estágio negativista em desenvolvimento inicial, caracterizado pela
criança que se opõe a pedidos e recusa assistência do outro, baseada no desejo de
independência. Anna Freud indicou que este comportamento negativista ocorre
durante a pré-adolescência. Quando se apresenta mais tarde, pode-se pensar em
uma psicose ou em uma esquizofrenia. Neste interessante artigo, Anna Freud
argumenta que todas as explicações habituais sobre o comportamento negativista
são insuficientes, não chegam ao âmago da questão, e postulou que o sujeito
negador ressente a aproximação de outra pessoa como uma exigência ou um
ataque hostil.
Sterba (1957) apud Carons discutiu as idéias de Anna Freud sobre o
negativismo de forma detalhada e, mais tarde, desenvolveu o tema da passividade e

57
oralidade. Argumenta que os traços de caráter negativista servem “como uma defesa
contra a rendição masoquista ou um nível passivo oral com um perigo consecutivo
de invasão e perda do eu” (STERBA, 1957, p ).
Para este fenômeno, Freud apresentou uma explicação metapsicológica, que
desenvolve em três afirmações estreitamente próximas:

a) a negação é um meio de tomar consciência do recalcado;


b) o que é suprimido é apenas uma das conseqüências do processo de
recalcamento, isto é, o fato de o conteúdo representativo não atingir a
consciência. Resulta daí uma espécie de admissão intelectual do recalcado,
enquanto persiste o essencial do recalcamento;
c) por meio do símbolo da negação, o pensamento se liberta das limitações do
recalcamento e é possível elaborar um discurso.

A negação melancólica não faz parte do par de opostos simbólicos


(Bejahung/Verneinung) e se enuncia fora da lógica da dialética. Na psicose,
qualquer coisa de primordial quanto ao ser do sujeito não entra na simbolização. No
trabalho De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (LACAN,
1958), a foraclusão do Nome do Pai, que falta a ser, jamais vindo no lugar do Outro,
é para Lacan um acidente do registro da Bejahung.
Assim, foracluído é algo de excluído da realidade; tudo se declina em termos
de existência ou de não-existência e reenvia invariavelmente à constituição da
realidade subjetiva. A negação de Cotard mostra uma evolução formal desde a
negação da atribuição, negação de ter, até a negação da existência, negação de
ser. Pode-se afirmar que se trata do ponto da negação da realidade que ele
desnuda. Com efeito, a Verneinung tem assim eliminado toda manifestação da
ordem simbólica.
No texto Resposta ao comentário de Jean Hypollite sobre a Verneinung, está
posto que

a Bejahung que Freud anuncia como o processo primário em que o juízo


atributivo se enraíza, e que não é outra coisa senão a condição primordial
para que, do real, alguma coisa venha se oferecer à revelação do ser, ou,

58
para empregar a linguagem de Heidegger, seja deixado-ser (LACAN, 1953, p.
388).

A negação da realidade do órgão, do mundo exterior, do universo ou das


abstrações ensina como a percepção deve seu caráter de realidade às articulações
simbólicas

que o ligam a todo um mundo. Não há, então, realidade psíquica, de onde
esta diluição do universo simbólico no desenvolvimento os mais acabados do
delírio das negações. Acreditar na existência do objeto que se fala e ignorar
que se fala do que não existe, é precisamente esta ficção significante que o
negador rejeita. Desde então, nenhum semblante, nenhum substituto da
realidade vem significar o real, concebido por Lacan como heterogêneo à
realidade – e barrar sua irrupção .

No texto Die verneinung, Freud analisa o prazer generalizado da negação, o


negativismo dos psicóticos como indicativo da separação das pulsões por contração
dos componentes libidinais. A negação melancólica é a conseqüência de uma
desintricação das pulsões de unificação, a afirmação como o substituto; e de
destruição, cuja denegação constitui o sucessor.

6.3 A NEGATIVA EM COTARD

Cotard considerou casos mistos, em que se referia ao delírio das negações


em uma evolução entre melancolia e paranóia, mas foi sobretudo Séglas que
demonstrou que o delírio das negações é o paradigma da melancolia ansiosa,
encontrado também em outras afecções, como a paranóia. Ao inverso da
melancolia, as negações são referidas a uma vontade de destruição exteriorizada, e
iniciam sempre por negações físicas que podem evoluir para negações de ordem
moral e de idéias de destruição, de vôo dos pensamentos ou das faculdades
intelectuais.
Conforme ficou evidente no Congresso de Blois (1892), os melancólicos são
negadores por excelência, e as negações podem ser encontradas nas diferentes
formas da psicose. A especificidade da melancolia tem o agravante de que esta
negação não passa pelo outro, mas se desenrola sobre o sujeito mesmo, daí a

59
importância do corpo que polariza estes fenômenos de mortificação que se identifica
nesta negação sistematizada.
Kaufmann (1993, p. 97-98) escreve o verbete Síndrome de Cotard da
seguinte maneira:

Delírio parcial quanto ao objeto, se enuncia de uma maneira negativa – sem


boca, sem estômago, sem cabeça, e se estende progressivamente a todo o
corpo, até a própria existência do paciente que se afirma já morto, e ao
conjunto do universo, aí incluído o criador. Em sua evolução, ele sofre uma
inversão completa sob a forma da infinitude no tempo, o delírio de
imortalidade, e no espaço – delírio de enormidade – que representa para
Cotard o ponto final a que chegam os negadores... O delírio de Cotard pode
ser visto como uma forma extrema de loucura, habitada pelas paixões mais
obscuras e com freqüência as mais ferozes.

“O melancólico cai sob o golpe da negatividade da linguagem, da instância da


única perda que se desata e se absolutiza”, explica Colete Soler , que considera
estes fenômenos de mortificação como “um retorno no real do pedaço mortal da
linguagem” (SOLER,)
Assim, tona-se essencial tomar a sério os pensamentos negativos, mesmo
que sutis, ainda sem serem desdobrados em delírio verdadeiro, os quais podem
denotar o índice discreto dessa experiência da psicose identificada por Cotard, e que
a psicanálise lacaniana conceitua a partir da foraclusão do Nome do Pai.

6.3 BARTLEBY – “I WOULD PREFER NOT TO”

A novela Bartleby the Scrivener: A Story of Wall Street11, escrita em 1853 por
Herman Melville, é um relato sobre um advogado que emprega no seu escritório um
insólito copista, Bartleby, que constrói uma situação inextricável: ele não cumpre e
não completa mais as tarefas que lhe são confiadas. Cada vez que seu patrão lhe
pede alguma coisa, ele não diz não, mas usa sua célebre frase ou fórmula: “I would
prefer not to” – “eu preferiria não”. Esta inexplicável resistência passiva trava a
máquina/escritório, até então bem-azeitada, de um advogado zeloso do seu
trabalho.

11
Bartleby - o lunático do não: Título de um artigo de Enrique Vila-Matas, in Le Magazine
littéraire n. 456, septembre, 2006.

60
O filósofo italiano George Agamben escreveu “Bartleby ou a criação” (1995),
em que sugere que o enigma que ele suscita tem por fim os mesmos pontos da
questão constituinte que Aristóteles preconiza na filosofia, ao fazer a distinção
constituinte da potência e do ato.

O espírito não é uma coisa, mas um ser de pura potência e a imagem sobre
a tábua branca a ser escrita sobre a qual nada está ainda precisamente
representado. Toda potência de ser ou de fazer alguma coisa é, para
Aristóteles, sempre também potência de não ser ou de não fazer [...] sem o
que a potência passaria sempre para o ato e se confundiria com ele [...] Esta
“potência de não ser” é o segredo principal da doutrina aristotélica sobre a
potência (AGAMBEM, 1995, p. 15-16).

Péllion (2000, p. 257) entende que a perturbação melancólica da relação da


linguagem não pode passar dessa velha distinção da potência e do ato: está patente
que a melancólico se cala mesmo tendo potência para falar.
Séglas, em 1891, dedica uma sessão na Société médico-psychologique sobre
o mutismo melancólico. Como contribuição pessoal, uma vez mais importante,
admite que a origem do mutismo melancólico é em conseqüência um pouco
contraditória; por uma parte a noção de enfraquecimento do poder de síntese
descreve uma falha geral da função de significação, podendo ir até a perda da
significação das palavras; por outro lado, o acento colocado “sobre a presença de
alucinação verbal psicomotora, privilégio de impedimento ao diálogo causado pela
superabundância de speech-acts incontroláveis” (PÉLLION,2000 p 264). De um
lado, está uma doença da potência; do outro, uma patologia do ato.
Peter Pal Perlbart (2000, p. 83), em seu artigo Solidão de Bartleby, considera
importante manter a estranheza da fórmula de Bartleby, “Eu preferiria não”, do que
adotar uma das traduções disponíveis em português: “Prefiro não fazer” ou apenas,
“Preferiria não”.
Pelbart (2000, p. 83) comenta que “o advogado é tomado de perplexidade;
chega a dizer que nada irrita mais alguém do que a resistência passiva. Mas
também pondera que quando se está diante de algo inusitado e extremamente
irracional, parece que tudo se inverte, e começa-se a duvidar da própria razão”.

61
Esta indiferença cadavérica que Melville descreve à perfeição, mas que está
acoplada a uma suavidade, a uma polidez e um desleixo próprio do desespero é o
que encontramos no doente, no sujeito afetado pela Síndrome de Cotard.
A fórmula que ficou a marca indelével de Bartleby – “I would prefer not to” –, e
não por acaso se reproduz no original, porque soa mais estridentemente, não
permite recalcar o niilismo que o paciente transmite de maneira inexorável e
impiedosa. A expressão no original tem esta força que se destaca justamente por
não ser negativa nem afirmativa. O advogado da novela ficaria aliviado se Bartleby
não quisesse, mas ele não recusa nem aceita, nem afirma que ele preferiria fazer
em vez de cumprir a ordem de seu patrão.
Pelbart (2000, p. 86) cita Deleuze:

a fórmula é arrasadora porque elimina de forma igualmente impiedosa o que


se prefere e o que se prefere não. Ela torna indistintas as alternativas binárias
entre o preferível e o não-preferido, ela cava uma zona de indiscernibilidade,
uma faixa de indeterminação, que não cessa de crescer. É como se Bartleby
dissesse: “Eu preferiria nada a algo; não a vontade de nada, mas o
crescimento de um nada de vontade”.

É este tipo esquisito de passividade que se encontra nos pacientes, é a


posição de suspense, nessa passividade neutra, nesse entre-morte. Pelbart (2000,
p. 84) ainda comenta:

Nessa recusa de toda formulação, em que se abandona a firmeza de um dizer


porque se abandona a autoridade de um eu, de uma identificação, há uma
recusa de si que justamente não se crispa na recusa, mas abre para um
desfalecimento, uma espécie de perda do eu... O nem/nem, nem isto nem
aquilo, esvazia a mola do sentido, é produzir sentido. O neutro é exatamente
uma estratégia para escapar ao jogo do sentido, às suas oposições dadas, às
suas capturas, às suas combinatórias prefiguradas.

O Cotard é um “neutro” que, como o herói de Melville, não tem nada de


neutro. Ambos, Bartleby e o doente de Cotard têm uma característica instigante: são
pessoas cinzentas, imóveis, petrificadas, caladas, repetitivas, litânicas, sem
preferências, arrastam todos a um beco sem saída. Porque é este desconforto que o
discurso destes pacientes coloca: tal como Bartleby que recusa o pai que o
advogado quis ser, o analista também é colocado em posição constante de

62
destituição, uma situação que se estabelece quase de tédio, pela impermeabilidade,
como se fossem de concreto, no sentido da falta da permeabilidade neurótica, por
exemplo, em que os pacientes parecem ter a textura de um tecido. Como a água
atravessa o tecido, mas não o concreto, as palavras passam, às vezes a duras
penas, mas atravessam o sujeito. O melancólico de Cotard resiste, como Bartleby.
Trata-se de resistência feroz, muito mais do que desobediência ou teimosia
do funcionário e patrão, ou do filho e pai, ou ainda caso se queira ir mais longe, do
analisante e o analista. Já não há cópia em Bartleby; nem cópia para o advogado
nem copia o advogado, mas algo da própria operação de cópia se corrompeu na
relação em ter o patrão e o empregado. Diz Pelbart (2000, p. 86) em uma
observação arguta: “A fórmula destitui o pai de qualquer palavra exemplar, e o filho
de qualquer possibilidade de copiar”.
Está aí a forma de negativismo muito próxima da psicose.
A propósito, Jacques Hassoun (1995, p. 102) comenta que o refrão “I would
prefer not do”, presente antes mesmo da ocorrência do encontro, não decorre de
uma recusa da ação, mas de um ato que precede a conclusão e põe o sujeito fora
do alcance da agressividade ou da violência do outro. Tudo já está consumado,
antes mesmo que a intrincação das pulsões de vida e das pulsões de morte venham
inscrever o que faz do vivente um ser desejante, ou seja: prefere alguma coisa,
qualquer coisa.
Melville, o inventor de Bartleby, que em Moby Dick (1851) considera
desprezíveis os portos por serem seguros, porque para ele a verdade é encontrada
quando não há nem terra nem rios, em um estado de indefinição como a baleia
branca chamada Moby Dick. Melville, como Bartleby, é um homem do não aos
raciocínios fáceis, construídos pelos homens que vivem em segurança, nos portos,
porque ele se interessa pelos homens que são levados como uma folha ao léu, pelo
vento. “O negativismo na sua vida privada era muito presente”, diz seu amigo
Nataniel Hawthorne, “ele faz o elogio do não como um centro vazio, mas sempre
potente, autônomo e útil”, conforme publica a Revista Magazine Litteraire, n. 456
(2006, p. 45).
Bartleby morreu na prisão, solitário, exilado, marginal, fadado ao fracasso
contra uma sociedade cujas regras ele recusa e coloca em risco a ideologia.

63
6.4 KAFKA E O “ARTISTA DA FOME”

O escritor austro-húngaro Franz Kafka (1883-1924) também apresenta um


“personagem-Cotard”. Em O Artista da fome (1924), o personagem é descrito como
um homem pálido, corpo esvaziado, um feixe de ossos, a cabecinha excessivamente
pesada para o pescoço fraco e que, antes de morrer, diz que não pode encontrar
nenhum alimento que o agrade.
O corpo frágil do melancólico de Cotard e estes pacientes que são descritos
literariamente sem pretensão clínica, senão o incansável testemunho da fragilidade
do homem, lembram com precisão, por exemplo, as descrições de Esquirol (1883):
sobre as doenças mentais, consideradas sob as perspectivas mental, higiênica e
médico-legal.

Se ele anda, é com lentidão e cautela, como se houvesse algum perigo a


evitar, ou então com a precipitação e sempre na mesma direção como se seu
espírito estivesse profundamente ocupado [...] atormentado pela tristeza ou
temor. O olhar e a escuta sempre vigilantes [...] para o lipemaníaco, o dia não
tem repouso, à noite o sono não vem [...]. Por vezes, a sensibilidade
concentrada em um único objeto. Parece ter abandonado todos os órgãos; o
corpo é impassível a qualquer impressão, enquanto o espírito se atém a um
tema único, que absorve toda a atenção e suspense o exercício de todas as
funções intelectuais. A imobilidade do corpo, a fixidez dos traços da face, o
silêncio obstinado revelam a concentração dolorosa da inteligência e das
afeições. Não é mais uma dor que se agita, se queixa grita e chora, é uma dor
que se cala, que não tem lágrimas, que é impossível [...] a lentidão, a
repetição monótona dos movimentos, as ações e falas do lipemaníaco, o
abatimento no qual se encontra mergulhado pareceriam soberanos, se
julgássemos que seu espírito está inativo como o corpo. A atenção do
melancólico é de grande atividade, dirigida para um objeto particular, com
uma força de tensão quase insuperável; inteiramente concentrado no objeto
que o afeta, o doente não consegue desviar sua atenção, nem dirigi-la a
outros objetos alheios à sua afecção (Esquirol ).

Os textos clássicos que se ocupam deste pathos dos sujeitos que tangenciam
a morte e que, contudo, manifestam uma estranha e incompreensível obstinação,
uma recusa inabalável frente a qualquer mudança, principalmente a mais definitiva
de todas: a morte.

64
David Lapoujade (2002, p. 82), em O corpo que não agüenta mais, descreve
o estado de quem não agüenta mais tudo aquilo que o coage por dentro e por fora,
um corpo afetado pelas forças do mundo, sua dor no encontro com a exterioridade,
que coincide com o melancólico de Cotard. Deleuze lembra, por meio da mesma
abordagem, que um corpo não cessa de ser submetido aos encontros com a luz,
com o oxigênio, alimentos, sono e palavras cortantes, ou seja, um corpo é
primeiramente o encontro com outros corpos.
Para o doente de Cotard, este encontro é impossível, o escotoma – do grego,
escuridão – do espelho arcaico não dá esta licença, impede a possibilidade de
reencontros nostálgicos. Então, tudo fica negado, até aquilo que não é visível, como
as entranhas, ossos, cérebro.

6.5 A NEGAÇÃO EM FERNANDO PESSOA

A negação do poeta português Fernando Pessoa, especialmente no poema


Tabacaria, de 1928, publicado em O eu profundo e os outros eus, traz os elementos
do ser, do nada, da totalidade, da tristeza, do impossível que Cotard lembra todo o
tempo com seu discurso fundado na negação, inclusive dos órgãos, como já se viu
nos capítulos anteriores.

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada,
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(PESSOA, 1980, p. 257)

Luicia Serrano Pereira (2002, p. 110) considera ser impossível “não sofrer o
impacto dessas palavras que nos introduzem em Tabacaria. São fortes, categóricas,
e nos põem em contato direto com uma de suas questões mais contundentes:
totalidade e negatividade”. Nada há mais próximo da Síndrome de Cotard.
No texto Floresta do alheamento (1929), publicado também em O Eu e os
outros profundos Eus, (PESSOA, 1980, p. 107), o negativismo é tão explícito que
parece o discurso poético de um Cotard:

65
E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono
esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de
não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser
nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor
dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais [...].

66
7 A TRISTEZA EM COTARD

“A enfermidade mais universal que padece neste


mundo a fraqueza humana e não só a mais
contrária à saúde dos corpos, senão também a
mais perigosa para a salvação das almas, qual
cuidais que será? É a tristeza”.

Padre Antonio Vieira

7.1 OS SERMÕES DE PADRE VIEIRA

Antonio Vieira nasceu em Lisboa em 1608, mas foi educado no Colégio dos
Jesuítas da Bahia. Completou estudos de filosofia e teologia e tornou-se célebre por
suas pregações. De volta à Europa, após a aclamação de D. João IV, foi nomeado
pregador régio e diplomata em missões na França, Holanda, Inglaterra e Roma
(SILVA, 2006).
Conforme analisa Silva (2006, p. 533), poucas expressões da história da
cultura brasileira foram tão eloqüentes ao abordar o tema da tristeza, como o
“Sermão da quarta dominga depois da Páschoa”, pregado por Padre Antonio Vieira,
no Maranhão, em data desconhecida (apud Carvalho da Silva, 2000).
Neste longo, belo e comovente texto, Vieira não desvincula em nenhuma
passagem o comprometimento idêntico do corpo e da alma na tristeza. Há uma
relação sistêmica, a tristeza do coração (tristitia cordis) se estende, alastra-se para a
cabeça, perturba o cérebro e confunde o juízo.
Na Revista de Psicopatologia Fundamental, Silva transcreve (2006, p. 541) de
Padre Vieira:

A tristeza fere os olhos, a língua, os braços, as mãos, os pés. A tristeza faz o


sujeito considerar-se um cadáver vivo, morto e insensível para o gosto; vivo e
sensitivo para a dor, sem alívio, sem consolação, sem remédio e sem
esperança de o ter, nem ânimo para desejar.

Em descrições detalhadas que aparecem duzentos anos antes dos


psiquiatras franceses se ocuparem desta sintomatologia como doença, Vieira reforça
esta condição do mal de existir. Afirma ele: “Estes são os efeitos da tristeza (doença

67
de que ninguém escapa nesta vida, e muito mais os mais entendidos), e este, que
ultimamente declarei, é o modo com que a mesma tristeza não só chega a matar os
corpos, senão também as almas” (SILVA, 2006, p. 544).
Padre Antonio Vieira concorda com Aristóteles ao explicitar que “os mais
entendidos são os homens mais suscetíveis à tristeza”, porque Aristóteles no
Problema XXX (Metafísica de Aristóteles), faz uma exegese aos homens
excepcionais, no que

concerne à filosofia, à política, à poesia ou às artes e que aparecem como


sendo melancólicos, ao ponto de serem tomados pelas enfermidades
oriundas da bílis negra, como o que diz Hércules nos mitos heróicos. Pois
aquele parecia ser desta natureza e é por este motivo que os antigos
designaram doença sagrada as enfermidades dos epiléticos.

Neste sermão, o interesse de Vieira era ensinar a não ficar triste. Se ele é
coerente com o sistema hipocrático galênico ou com a psicologia aristotélica-tomista,
é magnífica a atualidade que Carvalho (2006, p. 536) lembra no final do artigo citado
e que merece ser literalmente reproduzido porque traz uma articulação digna dos
postulados da Psicopatologia Fundamental:

De qualquer forma, o orador afirma que a tristeza é filha da culpa, mas que a
causa de se adoecer de tristeza é o silencio: as tristezas interiores, ocultas ou
disfarçadas, são as mais virulentas. Além disso, a tristeza é um movimento da
alma: já ser triste é uma disposição de caráter que perpetua o afeto em
estado d’alma. O seu remédio consiste, portanto, em perguntar-se pelo
destino ou rumo a ser trilhado, pondo em movimento a palavra e o desejo e
modificando a si mesmo (SILVA, 2006, p. 536).

7.2 O NIILISMO NA SÍNDROME DE COTARD

O sujeito afetado pela Síndrome de Cotard parece repetir de uma maneira


esquisita, troncha, o terrível voto de Mefistófeles, personagem da obra Fausto
(GOETHE, 1832): “Seria melhor que nada existisse porque tudo que existe é digno
de ser destruído”.

68
Tourgueniev, escritor russo (1818-1883) toma para si a autoria do conceito
niilismo12, no sentido literário, pois acredita tê-lo forjado no seu romance Pais e filhos
(1862), enquanto de fato já havia sido utilizado por Santo Agostinho e, mais
recentemente, na teologia alemã, como pensamento esvaziado, vazio, do desejo de
fazer tabula rasa.
Depois de Novalis, Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger, atualmente o termo
niilismo designa toda atitude de negação, de recusa, de revolta. Por sua vez, no
Rascunho G, em Grand Robert (Freud, 1895 [1969] p. 226), o termo designa, sem
mais, toda a espécie de negação das religiões, crenças, valores, autoridades
estabelecidas. Indica também o vazio que se perfila no horizonte do homem
ocidental depois do declínio do Deus da tradição metafísica-teológica cristã, com
todas as certezas que esta comportava e, ainda, a conseqüente e dramática
problematização da fé no sentido do existir e no valor do agir.
O surgimento das religiões de todos os matizes do fundamentalismo atual
neopentecostal, e tão presente nos discursos dos psicóticos, poderia ser tomado
como uma vã tentativa das restaurações dos valores considerados superiores à vida,
uma resposta ao vazio decorrente da morte de Deus? Ou ao vazio do
“empobrecimento pulsional e o respectivo sofrimento”, que Freud designou no
Rascunho G como “hemorragia da libido”, por onde escoa toda a libido represada.
Este escoamento da libido, no melancólico, que repercute em um eu sem
possibilidade de investimento objetal, pode ser lido como um desespero niilista, que
se encontra nos delírios das negações, no sentido de que nenhuma experiência o
afeta suficientemente. O sentimento de tedium vitae, ou o spleen, do poeta e teórico
francês Charles Baudelaire (1821-1867), implica que a vida não acena mais, não
engana mais com nenhum divertimento; o sujeito se torna como espectador blasé de
uma vida sem surpresa. Entretanto, Baudelaire faz disso uma arte, uma inspiração
poética, mas não são todos os melancólicos que fazem o atravessamento da
tristeza, da melancolia para a poesia. Aristóteles também insinua esta possibilidade
no já mencionado Problema XXX13, embora se saiba que esta não é a regra dos
afetados sofrentes, desta ferida.

12
A etimologia da palavra nihil, que é literalmente “nada”, não diz praticamente nada sobre o que seja
niilismo na literatura e mesmo na psicopatologia.
13
ARISTÓTELES. Metafísica. Ed. Trilíngue por V.G. Yebra. Madrid, Gredos, 1990.

69
Peter Pál Pelbart, em seu texto Travessias do niilismo (2003)14, afirma que o
niilismo é sintoma de decadência e aversão pela existência, por outro e, ao mesmo
tempo, é expressão de um aumento de força, condição para um novo começo, até
mesmo uma promessa.
O doente afetado pelo delírio das negações apresenta a primeira
característica que Pelbart aponta. A segunda fica escotomizada pela impossibilidade
de recorrência à função paterna e, como conseqüência, a construção da
subjetividade manca, as relações libidinais linguageiras empobrecem. A recorrência
às frases monotemáticas e litânicas em todos os relatos clínicos de Jules Cotard e
mesmo o que sustenta esta pesquisa confirmam esta idéia.
O niilismo começa com um deslocamento do centro da gravidade da vida – o
Simbólico amarrado ao Imaginário e ao Real – em direção a uma outra esfera que
não ela mesma.
Nietzsche descreve o niilismo na Modernidade: “Desde Copérnico, o homem
parece ter caído em um plano inclinado, ele rola cada vez mais velozmente para
longe do centro, para onde? Rumo ao nada? Ao lancinante sentimento de
desamparo” (PÉLBART, 2003, p. 3). O mesmo autor pontua que o texto em que tal
perplexidade encontra sua formulação poética mais acabada e dramática é o
conhecido fragmento de 1882, em que o insensato procura Deus com uma lanterna
em plena luz da manhã, para depois anunciar que Deus está morto.
O enfermo de Cotard é um inconformado das leis que Copérnico estabelece o
seu sofrimento niilista, o seu delírio de negação é como fizesse a pergunta
incessante: “Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde ela se move
agora? Para onde nos movemos? Caímos para frente, em todas as direções,
existem em cima e embaixo? Não vago, mas como que através do nada infinito? O
doente de Cotard vive uma experiência nitzschiana no sentido de não ter mais onde
agarrar-se porque chegou muito perto do real, como Freud bem lembra em Luto e
melancolia (1915) nada mais parece conduzi-lo ou motivá-lo. Como se reproduzisse
a situação copernicana, que também Freud bem lembre no mesmo texto, nada mais
parece conduzi-lo ou motivá-lo.

14
Curso Vetores da Cultura e Políticas de Subjetivação, no programa Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Clínica, tema Leituras de Nietzche, primeiro semestre de 2003.

70
Reproduz a situação copernicana que também Freud lembra como uma das
revoluções que precedem a dele, da descoberta do inconsciente, em que passamos
de uma experiência extrema da crença, em que orbitávamos em torno de um centro,
de um sol, de uma luz, de uma verdade, para o extremo oposto da descrença, em
que erramos sem rumo na escuridão. Já não subsistem as coordenadas do alto e do
baixo, do sagrado e do profano, do centro, da periferia, nesta topografia aplainada,
sem baliza nem referências; o Cotard vaga à deriva.
O afetado pelo delírio das negações parece criticar toda a interpretação
moralista do mundo que vigorou por milênios, que o preencheu da finalidade e
sentido e bem por isso se presencia o seu desmoronamento. O Cotard enxerga este
desmoronamento com uma poderosa lupa.
O Cotard é um sujeito cansado, quando já não encontra apoio nessas
crenças, torna-se niilista em um sentido que Nietzsche denomina de passivo, ou
seja, aquele que fica paralisado ao perceber o mundo tal como ele é e não “deveria
ser”, e que por isso mesmo não faz sentido agir, sofrer, querer, sentir. Em suma:
tudo é em vão. Ele sofre de um niilismo passivo, do grande cansaço, em que
predomina a sensação de que “tudo é igual, nada vale a pena” – mesmo que alma
não seja pequena.15
Também ilustram este quadro o horror e a existência repetitiva e sem sentido,
simbolizada pela horripilante imagem do pastor com a cobra negra pendendo na
boca, de Zaratustra, ou ainda, a Melancolia de Durer. São cenas que se aproximam
da dor e do horror de Cotard.

7.3 ARTAUD E SUA TRISTEZA – UMA APROXIMAÇÃO A COTARD

Como Freud já alertava, os poetas conhecem muito mais da alma do que os


psicanalistas. Antonin Artaud16 é o poeta francês contemporâneo que talvez mais
bem consiga dizer da dor psíquica.

15
Livre associação que remete ao antológico verso do poeta português Fernando Pessoa (1888-
1935), “Na vida tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.
16
Antonin Artaud sofreu distúrbios psíquicos desde a idade de cinco anos. Ficou internado no hospital
psiquátrico entre os 19 e 24 anos e foi isento do serviço militar. Escreveu sobre teatro, pesquisou
desenhos e escrita. Ficou internado durante toda a guerra, de 1937 a 1946, e morreu dois anos mais
tarde, com 52 anos, com câncer diagnosticado demasiadamente tarde.

71
Sandrine Malem (2001) cita Antonin Artaud (1968,) “errando no umbigo dos
limbos, mas sempre lutando contra o abismo que ameaça engolir sua palavra e seu
pensamento e procurando convencer seu editor da imperiosa necessidade de
publicar seus escritos”. Fica-se surpreendido, nessa descrição, quase clínica, do que
Artaud nomeia com pudor “um estado físico”, com homogeneidade entre o vivido
psíquico e o vivido corporal.

Músculos torcidos e em carne viva, o sentimento de ser de vidro e quebrável,


um medo, uma retração diante do movimento e do barulho. Uma desordem
consciente do andar, dos gestos, dos movimentos. Uma vontade
eternamente estendida para os gestos mais simples. Um cansaço
transtornante e central, uma espécie de cansaço aspirante. Os movimentos a
serem recompostos, uma espécie de cansaço de morte, de cansaço de
espírito para uma aplicação da mais simples tensão muscular, o gesto de
tomar, de agarrar-se inconscientemente a alguma coisa, a sustentar por uma
vontade aplicada. Um cansaço de começo do mundo, a sensação do seu
corpo a carregar, um sentimento de fragilidade incrível, e que se torna uma
dor que quebra [...]. As coisas não têm mais odor, mais sexo. Mas sua ordem
lógica também é algumas vezes rompida por causa, justamente, da falta de
fetidez afetiva. As palavras apodrecem no apelo inconsciente ao cérebro,
todas as palavras para qualquer operação mental (ARTAUD, (1968).

Corpo e espírito aparecem tão estreitamente ligados que não há mais lugar
para a mínima metáfora: a dor psíquica é a dor corporal. Não se está muito longe da
síndrome de Cotard, da melancolia no estado puro.

72
8 O PSICANALISTA E A CRONICIDADE EM COTARD

“Se há algo que todas as correntes de pensamento,


de quem efetivamente põe a mão na massa dessa
clínica, estariam de acordo é que tratar psicóticos é
quase como tirar leite de pedra. Nem por isso um
clima de salutar humildade frente a essa realidade
tão complexa instalou-se, como também não se tem
conseguido um debate mais fraterno e franco junto
à comunidade de profissionais para pensar a sua
prática. Há um comportamento como se o saber
sobre a psicose fosse acabado, como se ninguém
tivesse mais nada a acrescentar”.

Mario Corso

8.1 A CRONICIDADE EM ALTO GRAU

O psicanalista que se propõe a tratar do sujeito afetado pela Síndrome de


Cotard sabe, ou deveria saber, que o prognóstico de cura é deplorável, que a
complexidade deste quadro é ímpar, tanto por suas características frente a outros
quadros psicóticos quanto pela presença da melancolia virulenta, pela perda da
libido que paralisa todo o movimento narcísico.
Jules Cotard descreve o delírio de negações como um estado de “cronicidade
especial”, porque a disposição negativa alcançou o mais alto grau, um reducionismo
absoluto, em que o discurso encosta no absurdo.

Perguntamos seu nome? Ele não tem nome. Sua idade? Não tem idade. Onde
nasceram? Não nasceram. Quem era seu pai e sua mãe? Não têm pai nem mãe
nem mulher nem filhos. Perguntamos se estão com dor de cabeça, no estômago ou
em alguma parte do corpo. Não têm cabeça nem estômago; alguns até não têm
corpo, se lhes mostramos um objeto qualquer, uma flor, uma rosa, eles respondem:
“não é uma flor, não é uma rosa”. Para alguns a negação é universal, nada existe
mais, eles mesmo não são mais nada.

Estes mesmos doentes que negam tudo, opõem-se a tudo, resistem a tudo o
que queremos que façam. “Alguns loucos”, diz Gueslain, “manifestam uma
oposição inimaginável para quem nunca os viu de perto”. Os maiores
esforços são necessários para convencê-los a trocar de roupa, ele se
recusam a deitar em suas camas, não querem levantar opõem-se a tudo que
se lhes peça para fazerem. Trata-se da loucura de oposição (COTARD,
1882, p. 6 - Anexos).

73
Cotard apresenta várias entrevistas de pacientes com este mesmo teor, com
a recusa generalizada indisfarçável, com o delírio hipocondríaco bem acentuado, e
manifestações do negativismo e da oposição despudorada.
O trajeto clínico dos negadores segue quase sempre este roteiro:

a) desengajamento afetivo;
b) perda da possibilidade de diálogo;
c) abolição do pensamento;
d) evolução para uma pseudo-demência.

O corpo torna-se uma esfera compacta, repleta, sem ablação significante.


Seus orifícios são obturados pelo objeto que não caiu, preso nas teias do desejo
materno. Czermack (1992) afirma que se o traço central de toda psicose, a
identificação do sujeito ao objeto, no delírio das negações, isto é muito mais severo.
Não há ali um sujeito – cindido, dividido. Há um indivíduo, pleno, equivalente a seu
objeto. Então, pode-se afirmar – mais uma vez – de uma condição em que se
verifica a foraclusão do Nome do Pai. Ora, se o sujeito é equivalente ao objeto, a
fórmula da fantasia está desfeita, então Czermack propõe outra maneira de escrever
a fórmula, na horizontal: S=a=/, acrescentando que na equivalência de sujeito e
objeto, acrescenta-se também a equivalência também ao corte. “Quando o sujeito se
joga pela janela, ele faz um verdadeiro corte; isto é, ele elimina verdadeiramente, ou
também nos casos de auto-mutilação, essa divisão” (CZERMACK, 1991, p. 164).
No Seminário X, Lacan (1963-1964, p. 364) formula a hipótese de que o
melancólico, ao se precipitar no ato suicida, atravessa a sua própria imagem para
poder atingir dentro de si mesmo o objeto a, ao qual ele está narcisicamente
identificado.
A autora Maria de Fátima Ferreira (2006, p. 135) faz um interessante
comentário sobre o suicídio na melancolia, a considerar a cronicidade em Cotard e
as respectivas tentativas de suicídio que são quase sempre malogradas nos
cotardianos. Há um fracasso nas tentativas de morte, como se tem noticias pela
literatura de tais enfermos: “A esse respeito, cabe ainda uma consideração
importante que encontrei ao ler Jorge Chimorro: ‘No melancólico, os parênteses

74
do(a) se levantam, a imagem se atravessa e aparece a identificação com o objeto’”
(FERREIRA, 2006, p. 135, apud CHAMORRO,(2004) p. 196).
Ferreira (2006, p. 136) continua:

Mas para atingi-lo é preciso que o sujeito se deixe morrer, sem sentido
algum que o faça pensar ou flexibilizar sua certeza em relação à morte. Ao
se jogar pela janela o melancólico se realiza como expulso do Simbólico.
Nesse ato ele se realiza como o objeto perdido que cai, ele mata o objeto
nele mesmo. É o tornar-se objeto, designado por Lacan como aificação. Para
além da identificação narcísica, o eu reencontra o objeto de puro gozo, do
gozo absoluto onde o melancólico sacrifica a si mesmo. Nessas condições,
ele não faz apelo ao Outro do castigo nem ao juiz nem ao psiquiatra nem a
ninguém.

Há um caráter de analgesia psicofísica paralela à analgesia psíquica, que


instaura um corpo sem sensações, em que o esquema corporal fundado nos
primórdios se desmantela sem as amarrações pulsionais necessárias. Esta
analgesia permite automutilações, dizem Cotard e Séglas, porque instaura um corpo
sem sensações, um corpo anatomicamente íntegro, mas mecânico e que se pode
desmembrar de acordo com o delírio estabelecido. Esta analgesia psicofísica
impede a entrada da palavra, faz um paredão impermeável ao Simbólico.

8.2 O PSICANALISTA E O ENFERMO DE COTARD

A introdução acima deverá servir de pressupostos para se pensar na idéia da


incurabilidade que Freud também aponta como prognóstico importante que funda a
entidade melancólica.
A cura, no sentido do tratamento analítico, visa sempre a uma realização
subjetiva; esta é uma visão concreta que Lacan anuncia desde os seus primeiros
seminários. O paciente neurótico busca uma realização daquilo que seus devaneios
constroem; é a questão-mor para obter uma realização fantasmática, mas como é
impossível e suas tentativas podem ser perigosas porque a realização fantasmática
seria a saída para o desejo e se essa saída se realizasse então não haveria mais
desejo possível, o que seria a mola propulsora (literal) para a passagem ao ato.

75
A cura, no sentido analítico, que é muito diferente das considerações médicas,
busca três tipos de realização:

a) uma realização pelo lado significante, a que Freud chamava de “levantamento


do recalque” da qual o sonho é a via régia;
b) a busca da realização do lado do fantasma, no que Lacan chama de
“travessia do fantasma”, é algo ativo, é ato necessário, e que o sujeito embora
vá sozinho e seja da sua competência, o analista há de ser solidário para
possibilitar que isto aconteça;
c) o terceiro tipo é aquela que do lado do sujeito, onde intervém o grande
paradoxo da psicanálise, para realizar o sujeito e mudá-lo é necessário fazê-
lo ascender ao seguinte: ser castrado. O que Lacan chama de assunção à
castração é a destituição do sujeito, e o paradoxo constitui em se propor o
acesso ao ser, ao mesmo tempo em que uma destituição se estabelece.

Tais considerações ensejam pensar que o tratamento, a cura com o neurótico


se apresenta de maneira substancialmente diferente da cronificação do Cotard, que
em um primeiro momento parece óbvio, mas está longe disto. Mario Corso (1993, p.
48), afirma que

para atender psicóticos é preciso ter alma de antropólogo no sentido de


suportar relativizar os nossos valores para entrar numa particular outra escala
de referências e valores [...] o fato é que o psicótico tem um uma aparência
simpática, um jeito anti-capitalista que na verdade é anti-sistema qualquer que
seja, de quem faz pouco da sociedade de consumo e da exaltação do objeto.

A citação acima serve de pressupostos para pensar na idéia da


incurabilidade, que desde Freud é um dos critérios diagnósticos que fundam a
entidade melancólica.
Ao longo de sua obra, Freud distingue dois tipos de entidades nosográficas,
as neuroses de transferência: a histeria, a fobia e a obsessão francamente
acessíveis à análise e as neuroses refratárias ao tratamento analítico, às neuroses
narcísicas, tais como a melancolia e a esquizofrenia.

76
Mesmo com esta advertência freudiana, alguns importantes analistas anglo-
saxões, como por exemplo Harold Searles (1986), nunca se preocuparam em tratar
pacientes psicóticos em consultório privado, particular e em afirmar que eles fossem
passíveis de análise.
Juan David Nasio (1999, p. 32) afirma: “Minha tendência é inscrever-me
nessa corrente, digamos ao contrário de Freud – e não sou o único a pensar isso –
para dizer que as neuroses narcísicas podem, apesar de tudo, ser capazes de
transferência”.
Com a finalidade de continuar trabalhando a cronicidade de Cotard,
considera-se que ser “capazes de transferência”, conforme menciona Nasio, não é
da mesma transferência que os neuróticos estabelecem, visto que é de outra ordem,
constituída de outros paradigmas.
A cura analítica visa sempre a uma realização subjetiva esta é uma visão
concreta que Lacan anuncia desde o seu primeiro seminário. O paciente neurótico
busca uma realização daquilo que seus devaneios constroem. Trata-se da questão-
mor, obter uma realização fantasmática. Mas como é impossível e perigosa esta
pretensão porque a realização fantasmática seria a saída para o desejo, se essa
saída se realizasse então não haveria mais desejo possível, é o que acontece em
algumas passagens ao ato.

8.3 PAUL CLAUDEL, O POETA DA DESTITUIÇÃO SUBJETIVA

Pode-se referir ao poeta que Lacan citava, Paul Claudel (1858-1965), como o
poeta da destituição subjetiva. Ele fala da operação orquestral pela qual o ser
humano é reduzido a nada. Trata-se de revelar a nadificação, ou a redução ao nada.
Lacan se serve do termo “segundo nascimento”, termo inventado por Claudel.
A destituição subjetiva é um traumatismo, como todos aqueles que
atravessam uma análise não a desconhecem. A diferença entre a cura psicanalítica
e a cura psicoterápica é que a psicoterapia promete uma cura enquanto a
psicanálise promete o traumatismo.
O que se pretende é que o traumatismo “não seja muito traumático” a ponto
de paralisar o sujeito. A cura analítica consiste em preparar lenta e prudentemente,

77
se for possível para o estilo de transferência estabelecido, no sentido de fazer cair,
um por um, os significantes mestres, de modo que o sujeito creia cada vez menos no
Outro, e que no final das contas ele não hesite demais em ver-se livre do Outro,
servir-se dele, perceber que este Outro também era um fantasma.
No começo de um tratamento, o sujeito fala, insistentemente, de seu sintoma
para manter melhor seu fantasma resguardado. Cotard também insiste em falar,
recordar, repetir e não elaborar, com a diferença que este não sai desse ponto de
partida, não abandona essa posição do queixume litânico, não acredita em nenhuma
promessa.
Quando Lacan diz que a psicanálise não cura senão por acréscimo, está
dizendo sucintamente o que desenvolverá em outras oportunidades, de que o
analista não é responsável pela cura de seu analisando, mas pela nova posição
subjetiva que passará a ocupar se a análise foi digna desse nome e foi tão longe
quanto possível naquele momento, para aquele analisante e com aquele analista.
A psicanálise, portanto, não tem nada de socrático. O imperativo “Conhece-te
a ti mesmo” é impossível desde que se reconhece que o ti não é nada. Ninguém
melhor do que Cotard sabe deste impossível.
Lacan usa um termo apropriado, o qual enuncia no Seminário O Ato Analítico
(1967), ao dizer que, ao final da análise, o analista não tem interesse em “produzir”
alguém que conheça sua castração, mas alguém que fique advertido de sua divisão.
Advertido, não é outra coisa, senão o sujeito saber que isso o compromete, que ele
seja advertido deste efeito e possa saber se vale a pena ou não se engajar nesta
outra posição na existência.
Lacan brinca: “Um homem advertido está cortado em dois”, quase como um
homem advertido vale por dois... No artigo Apertura de la Sección Clínica, publicado
em Cuadernos de Psicoanálisis, n. 1, Lacan (1977, p. 2) dirá que “A psicoterapia
conduz ao pior”, que acaba se transformando em um aforismo e, como tal, cai em
uma repetição esvaziada, muitas vezes.
É argumentado que a psicoterapia tende à desimplicação com o inconsciente
estruturado como uma linguagem, mas mesmo assim Lacan considera que a
psicoterapia pode trazer algum alento. O “pior”, entretanto, é o fato de estar fundada
na lógica da sugestão, “onde ocorre a supremacia do significante sobre o

78
significado, mediante o qual o ser faz anteparo ao inconsciente” (HISGAL, 1994, p.
116). Apesar desta afirmação categórica de Lacan, Freud (1932), em Novas
conferências introdutórias sobre a psicanálise, acentua que “a psicanálise é a mais
poderosa de todas as terapias”. Supõe-se que a implicação do sujeito, sua
transferência, traga efeitos curativos, diminuição do sofrimento, estabilidade que
permitam ao sujeito amar e trabalhar como já preconizava Freud.
Em Televisión (1973, p. 17), Lacan afirma que “A cura é uma demanda que
parte da voz do sofredor, de alguém que sofre por seu próprio corpo ou por seu
pensamento”.
Esta demanda de cura, indispensável para que o sujeito comece um processo
analítico – que se queixe, deseje se curar e que suas expectativas estejam
carregadas de transferência –, no melancólico de Cotard não aparece.
Na atualidade, o trabalho de um psicanalista com paciente cronificado e
persistente, como os que se encontram em delírio das negações, não pode seguir os
preceitos psicanalíticos da clínica privada, como ocorre com pacientes no divã, em
trabalho de associação livre e outros dispositivos psicanalíticos.
Um trabalho psicanalítico, merecedor deste nome, pode se engajar com força,
mesmo que esteja privado deste setting. Havendo demanda, enviesada, sutil, que se
confirma pela presença do paciente no consultório do hospital, onde haja um pedido
incessante, desesperado para que seu sofrimento seja interrompido mesmo que pela
morte, há uma singularidade importante. Esse encontro com o psicanalista não é
exigência da equipe como, por exemplo, as prescrições de medicamentos, ingeridos
sem qualquer tipo de questionamento ou resistência, o que dá um outro status ao
tratamento.
Desse modo, torna-se muito difícil nomear o trabalho desenvolvido com o
paciente cronificado relativo a esta pesquisa, confinado em um hospital psiquiátrico.
Não seria possível avaliar a importância de uma nomenclatura para esse trabalho
clínico; de fato, a produção deste paciente é tão livre, ainda que marcada por uma
grave monotonia; suas vivências, experiências, convivências no hospital são
relatadas com seriedade e comprometimento. Entretanto, muitas vezes a analista
saiu do hospital a interrogar-se sobre se era aquele trabalho uma sessão de análise
efetiva. Isso porque os dispositivos fundamentais, como relato de sonhos, mal-estar

79
pelo escape de um ato falho, angústias transferências, por exemplo, estivessem
ausentes. Muitas vezes, houve a sensação de estar outra vez como Alice, de Lewis
Carrol, com medo de cair no abismo desconhecido, até que ela pensa que se a
queda não acabar, pelo menos vai levá-la para o outro lado do mundo, para o
Japão, e aí Alice se deixa levar ao sabor do turbilhão, começa a mexer nos objetos
das prateleiras na queda livre e, em seguida, percebe que a queda já não é
vertiginosa assim e terá fim, enfim, em algum lugar.
Freud nunca disse claramente que não dever-se-ia analisar psicóticos, mas
que é preciso um plano terapêutico muito particular, que é necessário ter muita
prudência.

8.4 “NÃO RETROCEDER FRENTE À PSICOSE”

A premissa lacaniana que nomeia este item foi pronunciada em 1977, na


Abertura da Sessão Clínica de Vincennes, e publicada no n. 9 da Revista Ornicar?,
depois de uma intervenção do psicanalista francês Jacques Alain Miller, que
perguntara se a clinica das neuroses e das psicoses requereriam as mesmas
categorias, os mesmos signos.
Enfaticamente, Lacan (1977) afirma que “A paranóia – quero dizer as
psicoses – é para Freud absolutamente fundamental. A psicose é aquilo frente ao
qual um analista não deve retroceder em nenhum caso”.
O que significa exatamente isto? No mesmo artigo, Lacan faz uma afirmação
definitiva, aparentemente simples e tautológica: “O que é a clínica psicanalítica? Não
é algo complicado. Tem uma base: é o que se diz em uma psicanálise” (LACAN,
1977, p. 2).

80
9 CONCLUSÃO

Na Síndrome de Cotard, uma extrema fragilidade desvela um corpo que fica


além e aquém das leis, um corpo que se quebra, espatifa-se como vidro, aumenta e
diminui como elemento suscetível se exposto a dilatação e retração. Trata-se de um
quadro que enseja inúmeras considerações clínicas e amplia consideravelmente a
possibilidade clínica com a psicose que, como não se ignora, tende a ficar reclusa.
Trata-se da falta de sustentação, coesão, estenia e, sobretudo, da ausência
do olhar do outro, que o deixa perdido, esmagado feito uma chapa, sem intervalos
como entre a árvore e a casca.
Ainda, é da falta de suporte à imagem do corpo próprio, o espelho opaco que
impede a experiência de alteridade e, portanto, da possibilidade de fazer falta ao
outro, e ser causador de luto na sua ausência. Ausência e presença se anulam, não
fazem diferença no melancólico cotardizado.
Essa experiência constante de fragmentação em Cotard, da dispersão
oscilante, passando de uma “compactação petrificada a uma expansão cósmica”
(CZERMACK, 1991, p. 151) advém de um eu que não nasceu morto mas sua vida é
natimorta.
Trata-se de um vazio no qual não cabe a falta redentora que instauraria o
desejo afastando, pela via da palavra, o sujeito da morte. O indivíduo está completo,
como a esfera de Aristófanes.
O interesse da Psicanálise por esta síndrome tão desreguladora e que vem
ao encontro do esforço neurótico de manter distância ao que é desorganizador de
uma ordem, esta síndrome, ou o delírio das negações, não é passível de ser
silenciado rápida e eficazmente pelos significantes do discurso da ciência; é
persistente, como se viu ao longo desta pesquisa.
Sabe-se que a cada situação-limite que um sujeito vive por contingências de
sua existência, ele se torna um Cotard provisório. De fato, os golpes, os reveses, os
fracassos fazem o sujeito bascular no desabamento psicótico. Tais experiências
costumam nos jogar no tempo remoto e arcaico, e que se atualiza rapidamente e à
perfeição. A angústia do estado do espelho e tudo aquilo que atenta contra a
identidade imaginária são atualizados nos episódios-Cotard a que se está sujeito.

81
Tanto é plausível a afirmação que, não raramente, até pela literatura
disponível se vê o estranhamento com o corpo próprio por ocasião das cirurgias,
ablações e traumas que vão da constituição da imagem à possibilidade de
experimentar o corpo como inexistente. Os surtos pós-cirúrgicos, pós-perdas e
rebaixamentos narcísicos reeditam o desamparo inicial.
Três aspectos devem ser destacados:

a) Não é um delírio de negação. Czermack (1991, p. 150) afirma que a


Síndrome de Cotard não é absolutamente um delírio das negações, senão um
delírio de afirmação – porque segundo ele, dizer que “não tenho boca, não
tenho ânus”, é afirmar não ter mais orifícios, que todos os tubos e esfíncteres
estão desorganizados. Então se trata de afirmação e não negação. É uma
idéia que Czermack não desenvolve, mencionada rapidamente em um artigo
mas não tem ressonâncias entre seus pares que se ocupam desta síndrome.
b) Não é um delírio. Melman (1993, p. 37) entende que não se trata de um
delírio. Afirma que o fenômeno da negação sistemática nesses doentes não é
um delírio porque eles se contentam em manifestar o que lhes falta; ou seja,
esta instância que determina o que Freud (1925) chama de Bejahung – artigo
sobre a negação. Para dizer “sim” é preciso uma instância que reconheça
cada um dos termos aos quais se diz como bom para o gozo. E é por isso que
Freud escreve nesse artigo que o julgamento de atribuição precede o
julgamento de existência. Pois bem, quando esta instância falta, pode não
haver mais nada em uma pessoa que lhe permita dizer “sim” ao que quer que
seja. Dessa maneira, tais doentes dizem não a tudo o que pode advir.
Melman coloca a falha de Cotard na Bejahung fundamental, mas isto não
impede que se construam delírios, no sentido lato do conceito, como se vê,
por exemplo, no paciente apresentado como paradigma.
c) O Cotard é um triste. Esta afirmação è do professor Berlinck, após uma
apresentação clinica no hospital onde o paciente em estudo se encontra
internado. Concorda-se que seja um triste, tal como Padre Vieira o descreve,
com a sensação de um vazio instalado no imo de toda a existência, vazio
vindo de um corpo que se pensa morto e que, paradoxalmente, devora o

82
pensamento e suas possíveis articulações. Trata-se de um paciente do qual
nunca foi possível testemunhar um sorriso, porque está tomado de tristeza
aniquilante, aquela a que Dante se refere, la tristitia – que corresponde a
todas as descrições medievais da melancolia. O Cotard é um triste por
excelência e sua figura estampa inexoravelmente aquela da acedia, do tédio,
do inacessível.

O escrito inglês Robert Burton ([1557-1640], 1621) passou a vida a revisar e


ampliar sua obra máxima, A anatomia da melancolia, um pantagruélico livro de 2110
páginas, até chegar a mais de 1300 páginas na quinta edição, a última publicada na
vida do autor. Inúmeras outras edições se seguiram até que o livro ficasse quase um
século sem ser reeditado, até voltar a sê-lo em 2001.
Conforme se diz historicamente, Burton escreveu-o também como forma de
lidar com sua tristeza, ou distimia, para usar uma terminologia da época de Burton.
Trata-se de um livro que exige um tour de force para sua leitura: prolixo, carregado
de citações de Homero, Virgílio, Santo Agostinho e Shakespeare, além de centenas
de outros autores, todos tristes, mas capazes de rir da sua própria desgraça, o que
às vezes torna o livro engraçado. Ou seja: um triste que ri de si mesmo. Não seria
este o possível em um final de análise? Não seria plausível que um sujeito, mesmo
triste, possa rir de si mesmo?
A capa do livro de Burton é uma ilustração feita por Lê Blon, cuja primeira
página desse catatau é um capítulo intitulado O argumento do frontispício, em que o
autor descreve em versos, de modo muito interessante, o significado dos vários
personagens separados em dez quadros, ao contrário da Melancolia I, de Durer, que
tudo se concentra apenas uma figura.
Os personagens de Burton merecem ser citados porque representam as
características do melancólico de uma forma plástica; isto é, cuja estética anuncia o
que virá nas centenas de páginas seguintes. A figura central é Demócrito que está
sentado com um livro sobre os joelhos, procurando a origem da anatomia, da bile
negra. Acima da sua cabeça vê-se o signo de Saturno, o Senhor da Melancolia.

83
À esquerda, o Ciúme está ilustrado com uma garça e dois galos de briga; não
há figura humana e o autor comenta que, sobre estes símbolos, ele não dirá nada,
“imagine o resto frente a esta cena” (BURTON, 2001, p. 3).
O quadro seguinte é a Solidão, figura expressiva, um cachorro e um gato
dormem, um cervo, uma lebre, ratos, corujas, tudo em uma paisagem
tenebrosamente melancólica. Na parte inferior da página está retratada a Paixão; um
homem torce as mãos, cabeça baixa, o chapéu enterrado, amassado, impede o
olhar que o deixa cego às solicitações do mundo.
À direita, está a Hipocondria que segura a cabeça com numerosos potes e
vidros que “ele comprou no boticário” (BURTON, 2001, p. 2), acima estão as
insígnias do astro melancólico, Saturno.
Um pouco mais abaixo está a Superstição, há um homem ajoelhado, que reza
com os olhos fixos em algum deus, está dividido entre a esperança e o medo.
Ao lado, está a Mania, com um ar demente, horrível em farrapos, acorrentada.
Abaixo, há plantas soberanas que purgam as veias da melancolia, liberam o
coração de fumaças negras e limpam o cérebro de nuvens que expandem os
sentidos, adormecem a alma, e supostamente remédios supremos que Deus criou
para curar esta doença.
E para terminar, o autor que se audenomina Demócrito Júnior, em alusão ao
filósofo Demócrito, que disseca animais em seu jardim para descobrir o
funcionamento do humor negro. É o primeiro melancólico que busca saber da
melancolia, assim como Sócrates, que sugere o “conhece-te a si mesmo”.
O interesse em descrever esta capa é pela capacidade de síntese que Burton,
por intermédio de seu ilustrador, consegue dizer das características da melancolia
em contraste com as centenas de páginas da obra Anatomia da Melancolia. Há,
como já se disse, um tom de humor e sarcasmo em cada texto que se refere às
ilustrações. Como Demócrito, conta que ri enquanto chora de suas desgraças, ao
contrário de Heráclito que simplesmente chora.
Eis por que se considerou pertinente incluir na conclusão deste trabalho as
primeiras páginas da antológica obra de Burton: a Síndrome de Cotard é atual, o que
torna importante tomar conhecimento do trabalho de seu pesquisador. Tal
possibilidade de “revival” da teoria psiquiátrica de Jules Cotard ensejou um tour de

84
force estimulante na produção desta tese, durante a qual a pesquisadora sofreu
mais do que transformações, mas passou por metamorfoses subjetivas que
provavelmente ressoaram em sua clínica e na própria existência.

9.1 RECOMENDAÇÕES PARA FUTUROS TRABALHOS

Em uma operação de aprés coup17, revê-se alguns aportes que poderiam ter
sido mais desenvolvidos na pesquisa e que, por algumas razões, claras ou
obscuras, não se tornaram possíveis.
Aristóteles, no Problema XXX, indaga: “Por que todos os homens
excepcionais na atividade filosófica, política, artística e literária possuem
temperamento melancólico, alguns em tal medida que são afetados pelos estados
patológicos que nele derivam?” De fato, muitos filósofos e artistas vivem sob o signo
da melancolia, que seria um estado de tensão formal que possibilita a criação e a
inventiva.
Talvez a confrontação com o vazio, já que a sua relação de objeto é frágil e a
sustentação de seu desejo vacilante impele à criação, à arte, os melancólicos, afirma
também Aristóteles “são sábios, fortes e culpados”. Inevitavelmente, ao se ler Freud,
tem-se notícia de como eles se sentem atraídos pelo eu ideal, como estado de
onipotência, suporte de identificação primária, ponto inaugural da alienação.
Todavia, apesar da atração, há aí mesmo também uma fragilidade operante, a
exigência e o rigor do ideal do eu – auto-observação, julgamento e censura.
Não se pode parar, no entanto, e satisfazer-se com a romântica constatação
de Aristóteles,porque muitos melancólicos não são escritores nem poetas nem
criativos, porque a melancolia produz inércia, paralisia intelectual, cognitiva, psíquica
e afetiva.
Martine Lerude (1990) considera que a depressão é uma espécie de relação
com o mundo, um gozo infinito, sem fim senão a morte, sempre lá, sempre
antecipada. Cioran, ensaísta romeno(1911) escreve que “o orgasmo é um
paroxismo; o desespero também, um dura um instante, o outro a vida inteira”. A

17
Aprés coup: em tradução literal do francês significa “depois do golpe”. Termo usado pelo
psicanalista e teórico francês Jacques Lacan para denotar que uma conclusão, ainda que provisória –
uma metáfora – somente é possível após uma travessia – depois do trauma.

85
melancolia é uma experiência por demasiado dolorosa, insinua-se profundamente
até as raízes da existência humana e, por isso, não se pode, como lembra o
professor Ernildo Steins, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRG),
abandoná-la aos psiquiatras.
Dante afirma, no clássico da literatura, Divina Comédia – Inferno que, como o
peso da condição humana, a grande tristeza impõe limites. Deste peso, alimenta-se
a melancolia, nele se apóia e dele extrai seu dinamismo criador. A melancolia pode
ser traduzida, também, em termos de uma conflitiva no cerne da estruturação
narcísica, que se manifesta na forma de uma fissura estrutural que coloca o sujeito
na posição de desvalorização fundamental e originária.
São colocações importantes de uma psicanalista, de um filósofo, de dois
escritores, um clássico e outro contemporâneo, que poderiam tomar outras
vertentes, mais aprofundadas nesta pesquisa.
Embora não tenha dito muita coisa e escrito menos ainda sobre a melancolia,
em As formações do inconsciente, Lacan (1957) menciona a “dor de existir” como a
dor de estar submetido à determinação do significante, da repetição e, até mesmo,
do destino. “E essa excentricidade do desejo em relação a toda satisfação é que nos
permite compreender a sua profunda afinidade com a dor. Isso significa que,
finalmente, aquilo com que o desejo confina, pura e simplesmente, é com essa dor
de existir”.
Outra questão surgida ao final deste trabalho e que precisaria ser
rigorosamente inspecionada é quanto ao uso da palavra “sujeito”. Em razão de que
na psicose a constituição do sujeito é o que falha, então nem por inocência esta
palavra deve aparecer quando se referir a um paciente dessa estrutura psíquica, e
provavelmente, houve algum escorregão neste equívoco, ao longo do trabalho.
Conforme se afirmou, neste aprés coup da pesquisa, percebe-se que se
poderia ter desenvolvido mais o que estaria no traço unário, de que modo operou o
desejo materno, de que modo na mãe e/ou pai a metáfora materna, a ponto de se
produzir tão cabalmente um melancólico como Cotard. Esta é um questão que
merece ser desenvolvida, porque é fundamental naquilo que diz respeito a
articulação entre a visão patológica /psiquiátrica e a visão psicanalítica.

86
Esta tese também resulta como motivação para verificar de que modo seria
possível, no movimento psicanalítico, a contribuição de alguns visionários tal como a
presença ativa de médicos que foram atrás da cura da tuberculose, da poliomelite,
da Aids, do câncer, sujeitos necessariamente movidos desde uma posição subjetiva
histérica, em busca de solução e mais solução, alguma saída para a cura dos
grandes males de cada tempo.
Será possível que nada seja possível a este paciente em questão, o que
delira em torno do “não”? Não poder-se-ia pensar, assim como se faz hoje na
Psicanálise com crianças, em inscrições tardias que pudessem provocar algum tipo
de mobilização para as coisas da vida?
Que tipo de coisa poderia estar num devir, num vir a ser, para que não
tenhamos de ficar para sempre no registro da absoluta impossibilidade de
intervenção? Sabemos que para a psicanálise as palavras “sempre” e “absoluta “
não têm chão por onde caminhar porque nossa intimidade é com a falta. Talvez por
isso, também, seja necessário que continuemos a sonhar...

87
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91
ANEXOS

Do delírio do hipocondríaco em uma forma grave da melancolia ansiosa


(1) – 1880 (2)
Jules Cotard

O Dr. Jules Falret e eu estamos acompanhando, há vários anos, uma


paciente que apresenta um delírio hipocondríaco bastante singular.
A Srta. X. afirma não ter mais cérebro, nem nervos, nem seios, nem
estômago, nem intestinos; restam-lhe apenas a pele e os ossos em um corpo
desorganizado (segundo suas próprias palavras). Esse delírio de negação estende-
se às idéias metafísicas que, outrora, fundamentavam suas crenças mais
arraigadas; ela não tem alma, Deus não existe, nem o diabo tampouco. Como não
passa de um corpo desorganizado, a Srta. X. não precisa comer para viver, não
poderá morrer de morte natural e existirá eternamente a não ser que seja queimada,
pois o fogo representa seu único fim possível.
Assim, ela não cessa de suplicar para que sejam queimados (a pele e os
ossos) e já fez várias tentativas de queimar a si própria.
Na época em que foi internada (em 1874, com 43 anos), havia mais de dois
anos que a Srta. X. se encontrava nesse estado; tudo teria começado com uma
espécie de estalo interior em suas costas que repercutiu em sua cabeça.
A partir daquele momento começou a sofrer de tédio, de angústias que não
lhe davam trégua; errava como uma alma penada, pedindo socorro a padres e
médicos.
Fizera várias tentativas de suicídio, em decorrência das quais chegou em
Vanves. Acreditava-se então danada; seus escrúpulos religiosos a levavam a se
acusar de todo tipo de culpa, mais particularmente de não ter feito sua primeira
comunhão de modo correio. Deus, dizia, a tinha condenado à eternidade e ela sofria
todas as penas do inferno, merecidamente, pois sua vida toda não passara de uma
série de mentiras, de hipocrisias e de crimes.
Pouco depois de sua internação, ela guardou essa data, percebeu a verdade -
é assim que chama as concepções delirantes negativas que menciono acima – e

92
entregou-se, para que essa verdade fosse entendida, a vários tipos de atos de
violência, que chamava de seus atos de verdade, mordendo, arranhando, batendo
nas pessoas à sua volta.
Há alguns meses, a Srta. X. encontra-se mais calma; a ansiedade
melancólica diminuiu de modo sensível; ela ri, brinca, é irônica, malévola e
implicante, embora seu delírio não apresente qualquer melhora; a Srta. X. continua
sustentando com a mesma energia não ter cérebro, nem nervos, nem intestinos; que
comer não passa de um vão suplício e que não há, para ela, outro fim que não o
fogo.
A sensibilidade à dor está diminuída na maior parte do corpo, tanto do lado
esquerdo quanto do lado direito; poder-se-ia enfiar alfinetes profundamente em sua
carne sem que manifeste qualquer sensação de dor. A sensibilidade ao contato e as
diversas sensibilidades especiais parecem ter conservado sua integridade.
Quando, há uns vinte anos, o Sr. Baillarger chamou a atenção para o delírio
hipocondríaco dos paralíticos, suas afirmações foram objeto de vivas controvérsias;
hoje, justiça seja feita a seus trabalhos, temos de reconhecer que um delírio análogo
– não disse idêntico – ao delírio hipocondríaco dos paralíticos acomete certos
lipemaníacos como a doente cujo caso acabo de expor.
Resta determinar quem são esses lipemaníacos e se formam uma categoria à
parte.
Os cinco casos de demonomania mencionados por Esquirol (3) são notáveis
por sua analogia com a paciente acima referida.
A primeira dessas demoniomaníacas teve dois surtos de lipemania. O
demônio está em seu corpo e a tortura de mil maneiras diferentes; nunca morrerá.
O diabo levou o corpo da segunda; ela é uma visão; viverá milhares de anos e
o espírito maligno, na forma de uma cobra, tomou posse de seu útero apesar de ela
não ter órgãos de geração iguais aos das outras mulheres.
O espírito maligno também levou o corpo da terceira, e deixou um simples
simulacro que permanecerá eternamente na Terra. Ela não tem sangue e é
insensível (analgesia).
A quarta não evacua há vinte anos, seu corpo é um saco feito com a pele do
diabo, cheio de sapos. Não acredita mais em Deus; tem sido a mulher do grande

93
diabo por um milhão de anos. Trata-se de uma espécie de imortalidade
retrospectiva.
A quinta tem o coração deslocado, nunca morrerá.
Leuret relata dois casos análogos:
Uma mulher acredita estar danada, seu coração nada mais sente, virou uma
estátua de carne imortal; fora possuída pelo demônio e devia ter sido queimada na
mesma hora; o passar do tempo tornou isso impossível.
A outra tem a região epigástrica vazia; é danada e não tem mais alma. Mais
tarde, ocorreu-lhe o pensamento de que era imortal.
Nenhuma observação feita pelo Sr. Petit, em Maréville (4). J. acredita estar
danada; não tem mais sangue; há de viver eternamente e, para livrá-la da vida, seria
preciso cortar-lhe os braços e as pernas. Ela suplica o favor de ser despedaçada.
Poderia citar mais um caso na monografia do Dr. Macário (5), dois do Dr.
Morei (6) e mais dois em Krafft-Ebing (7).
Em todos esses doentes, o delírio hipocondríaco apresenta uma analogia
muito grande; não têm cérebro, nem estômago, nem coração, nem sangue, nem
alma; às vezes nem têm mais corpo.
Alguns se imaginam podres, com cérebro amolecido. É o caso de dois
pacientes que estou acompanhando no momento: um acredita ser danado; é o
homem danado, o demônio, o Anticristo. Queimará eternamente; não tem mais
sangue; seu corpo inteiro está podre; o outro também acredita estar danado; é
infame, ignóbil, culpado de todos os crimes; seu cérebro amoleceu, sua cabeça é
como uma avelã oca; não tem mais sexo, nem alma e Deus não existe, etc; ele
busca se mutilar e se matar por todos os meios possíveis, suplica para ser morto.
O delírio hipocondríaco é muito diferente daquele que precede ou acompanha
o delírio de persecução.
Nos perseguidos, os diferentes órgãos são atacados de mil maneiras, quer
por descargas elétricas, por processos misteriosos, ou ainda por influências
perniciosas que emanam do ar, da água ou dos alimentos. Mas não há destruição
dos órgãos, os quais parecem renascer à medida que os ataques ocorrem.
Nos danados, a obra de destruição é completa; os órgãos não existem mais,
o corpo inteiro é reduzido a uma aparência, a um simulacro; além do mais, as

94
negações metafísicas, tão freqüentes nestes últimos, raramente ocorrem nos
verdadeiros perseguidos que são, em sua maioria, grandes ontologistas.
Não raro acrescenta-se às idéias hipocondríacas a de imortalidade que, em
alguns casos e segundo uma certa lógica, parece decorrer dessas.
Certos doentes afirmam não poder morrer por seu corpo não se encontrar em
condições comuns de organização e que se lhes fosse facultado morrer, já teriam
morrido há muito; seu estado não é de vida nem de morte; são mortos vivos. Nestes,
a idéia de imortalidade é realmente, por mais paradoxal que possa parecer, uma
idéia hipocondríaca; trata-se de um delírio triste ligado ao organismo; gemem por
causa de sua imortalidade e pedem para ser livrado dela. A idéia de imortalidade às
vezes encontrada como delírio de grandeza nos perseguidos crônicos megalômanos
é muito diferente.
Conheço um que pretende que a natureza de sua organização se deve a
privilégios a ele concedidos por Napoleão I, em 1804 (26 anos antes do nascimento
do paciente), e que tem certeza de não morrer nunca.
Outro está convencido de que será levado para o céu como o profeta Elias e
de que nunca morrerá.
Se os doentes cujo caso estou mencionando diferem de modo tão patente
dos perseguidos (8), aproximam-se muito, em compensação, dos melancólicos
ansiosos; estão num estado de angústia e de ansiedade intenso; gemem, não param
de falar, repetem incessantemente as mesmas queixas e imploram por socorro: suas
idéias hipocondríacas não parecem senão uma interpretação delirante das
sensações doentias que experimentam os doentes acometidos por melancolia
ansiosa comum. Estes se queixam de sentir suas cabeças vazias, de um embaraço
na região precordial, de não terem mais sentimentos, de não amarem mais nada, de
não conseguirem mais rezar, de duvidarem da bondade de Deus; alguns até se
queixam de não conseguir mais sofrer; por fim, estão convencidos de que nunca se
curarão. Os doentes aos quais me refiro não têm mais cérebro; seu coração
estourou (numa observação de Krafft-Ebing), não têm mais alma; Deus não existe
mais; sofrerão eternamente sem nunca conseguir morrer; enfim, são, na sua maioria,
analgésicos. Poder-se-ia espetá-los, beliscá-los sem que demonstrem a menor
sensação de dor e é comum eles se mutilarem de modo assustador.

95
A melancolia ansiosa comum é uma sintomatologia freqüente nas vesânias de
surto ou intermitentes que, geralmente, acaba curando.
O mesmo não acontece quando o delírio hipocondríaco se acrescenta a esse
quadro; nesse caso, o prognóstico é muito mais grave. Às vezes, isso ocorre já no
primeiro surto, mas, via de regra, o delírio hipocondríaco só se desenvolve no
segundo ou terceiro surto e o estado do doente torna-se, em geral, crônico.
Krafft-Ebing, contudo, cita dois casos de cura; encontrei outro também em
Leuret.
Vale salientar que todos os doentes acometidos por um delírio hipocondríaco
com idéias de imortalidade eram tomados por idéias de danação, de possessão
diabólica, enfim, apresentavam os sinais de demonomania ou de loucura religiosa.
Não encontrei casos rigorosamente semelhantes nas poucas demoniografias
que pude consultar; talvez devêssemos relacionar esta doença antes aos alienados
vagabundos que parecem estar à origem da lenda do judeu errante (Cartaphilus,
circa 1228, Ahasverus, 1547; Isaac Laquedem, 1640), que se sentiam culpados de
uma ofensa contra Jesus Cristo e condenados a vagarem na terra até o dia do juízo
final (9).
Nos últimos séculos, vários tipos de loucura têm sido designados com o termo
de possessão demoníaca; a maior parte dos casos que chegaram até nós
pertencem à histeromania epidêmica ou ao delírio de perseguição. Será preciso
estabelecer uma nova categoria de loucura religiosa que se desenvolve no que
estou propenso a chamar de melancolia ansiosa grave?
Caso essa espécie de lipemania mereça destaque, seria reconhecida pelos
seguintes sinais:
1º) Ansiedade melancólica;
2º) idéia de danação ou de possessão;
3º) propensão ao suicídio e às mutilações voluntárias;
4º) analgesia;
5º) idéias hipocondríacas de não-existência ou de destruição de vários órgãos, do
corpo inteiro, da alma, de Deus etc.;
6º) idéia de nunca conseguir morrer.

96
Do delírio das negações (10) – 1882 (11)
Jules Cotard

A importante monografia de 1852 em que, entre as diversas formas de


melancolia, Lasègue destacou o delírio de perseguição, foi o ponto de partida de
trabalhos complementares que colocaram esta forma de vesânia entre aquelas cujos
sintomas, curso e desfechos melhor conhecemos. Basta-nos evocar os nomes de
Lasègue, Morei, Foville e Legrand du Saulle e, mais particularmente, o do Sr. J.
Falret que exibiu diante da Société médico-psychologique um quadro tão completo
quanto possível das fases sucessivas de evolução dessa doença (12).
No tocante a outras formas de delírio melancólico, nossos conhecimentos
estão bem longe dessa perfeição relativa. A melancolia simples, a melancolia com
estupor, a melancolia ansiosa, foram descritas com esmero; sabe-se que estas
formas são muitas vezes intermitentes; que algumas vezes se tornam contínuas e
então crônicas, mas as características e fases sucessivas do delírio que se torna
crônico não foram, que eu saiba, objeto de qualquer trabalho equivalente àquele
realizado com o delírio persecutório.
Nessa monografia, proponho-me a expor uma evolução delirante especial,
que me parece ocorrer num expressivo número desses melancólicos não-
persecutórios, mais particularmente os ansiosos, e fundamentar-se essencialmente
nas disposições negativas mais comuns desses doentes.
Os alienados são geralmente negadores; as demonstrações mais claras, as
afirmações mais autorizadas, os testemunhos mais afetuosos deixam-nos incrédulos
ou irônicos. Sua realidade tornou-se alheia ou hostil. Mas esta disposição negativa é
especialmente acentuada em certos melancólicos, como observou Griesinger.

“Sob a influência do mal-estar moral profundo, o qual constitui


o distúrbio psíquico essencial da melancolia, diz este autor, o
humor adota um caráter inteiramente negativo... Esta
confusão, diz ele mais adiante, que o doente faz entre a
mudança subjetiva das coisas exteriores que ocorre nele, e
sua mudança objetiva ou real, marca o início de um estado de
fantasia em que, caso alcance um grau de intensidade maior,
o paciente passa a acreditar que o mundo real se esvaeceu
por completo, acabou ou está morto, e que não lhe restou
senão esse mundo imaginário em meio ao qual se encontra e
que o atormenta”.

97
Arrisco o nome de delírio das negações para designar o estado dos doentes,
referidos por Griesinger nas linhas acima, nos quais a disposição negativa alcançou
o mais alto grau. Perguntamos seu nome? Eles não têm nome. Sua idade? Não têm
idade. Onde nasceram? Não nasceram. Quem eram seu pai e sua mãe? Não têm
pai, nem mãe, nem mulher, nem filhos. Perguntamos se estão com dor de cabeça,
no estômago ou em alguma outra parte do corpo. Não têm cabeça, nem estômago;
alguns até não têm corpo; se lhes mostrarmos um objeto qualquer, uma flor, uma
rosa, eles respondem: não é uma flor, não é uma rosa. Para alguns a negação é
universal, nada existe mais, eles mesmos não são mais nada.
Estes mesmos doentes, que negam tudo e se opõem a tudo, resistem a tudo
o que queremos que façam. Alguns loucos, diz Guislain, manifestam uma oposição
inimaginável para quem nunca viu um de perto. Os maiores esforços são
necessários para convencê-los a trocar de roupa; eles se recusam a deitar em suas
camas, não querem levantar, opõem-se a tudo que se lhes peça para fazerem.
Trata-se da loucura de oposição.
Guislain relaciona esta loucura de oposição com o mutismo, a recusa de
alimentos e es&a singular disposição de certos alienados que se esforçam para reter
urina e excrementos. Ele não menciona, entretanto, o delírio de negação, do qual a
loucura de oposição constitui apenas, por assim dizer, o lado moral. O mesmo
ocorre com a maioria dos autores, e chega a parecer estranho que uma perda
intelectual tão caracterizada não tenha recebido atenção maior. Raros são os casos
em que o fato sequer ó mencionado. A forma hipocondríaca do delírio de negação
isolada tomou-se uma observação comum a partir dos trabalhos do Sr. Bailiarger.
Encontrei em Leuret (13) a observação mais característica: Resumo o
interrogatório:
— Como tem passado, minha senhora?
— A pessoa de mim mesma não é uma senhora, me chame de senhorita, por favor.
— Eu não conheço seu nome, gostaria de me dizer?
— A pessoa de mim mesma não tem nome: ela deseja que o senhor não escreva.
— Eu gostaria, mesmo assim, de saber como a senhora se chama, ou melhor, como
a chamavam antigamente.

98
— Entendi o que o senhor quer dizer. Era Catherine X., não se deve mais falar do
que ocorria. A pessoa de mim mesma perdeu seu nome, ela o deu ao entrar na
Saipêtrière.
— Qual é sua idade?
— A pessoa de mim mesma não tem idade.
— Seus pais ainda estão vivos?
— A pessoa de mim mesma é só, muito só; ela não tem pais, nunca teve.
— O que a Sra. tem feito, o que tem lhe acontecido desde que a Sra. é a pessoa de
si mesma?
— A pessoa de mim mesma permaneceu na Casa de Saúde de... Fizeram e ainda
estão fazendo nela experiências físicas e metafísicas. Ela não sabia desse trabalho
até 1827. Aí uma invisível desceu para misturar sua voz à minha.
A doente de Leuret apresentava, além do delírio de negação muito
caracterizado, numerosas alucinações. Era atormentada pelo invisível, pela física e
metafísica; numa palavra, deixava transparecer sintomas de delírio de perseguição.
Casos complexos, como este, em que convivem os dois delírios, não são raros.
Mencionarei exemplos mais adiante. Via de regra, contudo, essas duas formas de
delírio se observam isoladamente c em doentes diferentes.
O verdadeiro perseguido passa por todas as diferentes fases de seu delírio
desde a hipocondria, no início, até a megalomania, sem que suas disposições
negativas ultrapassem as geralmente observadas nos alienados; ele nega por
desconfiança, por medo de ser enganado ou ainda porque está inteiramente tomado
por concepções delirantes e alucinações, e já passou a viver num mundo imaginário;
suas disposições negativas, no entanto, são bem diferentes da negação
sistematizada a que estou me referindo aqui.
Em geral os doentes persecutórios não apresentam profunda depressão nem
a ansiedade lamentosa dos verdadeiros melancólicos; não parece existir neles esse
distúrbio profundo da sensibilidade moral que Griesinger considera o elemento
fundamental da melancolia. Parece ser nesse quadro, em compensação, que se
desenvolve mais ou menos tardiamente, e depois de uma evolução delirante
especial, a negação sistematizada. Nos estados crônicos avançados, entretanto, é
freqüente ver o delírio de negação sobreviver de algum modo aos distúrbios gerais

99
do início e os doentes, como a de Leuret, deixarem de manifestar a depressão e a
agitação ansiosa.
Acabo de afirmar a melancolia com depressão ou estupor e a melancolia
agitada ou ansiosa como a dupla origem do delírio de negação. Por mais diferentes
que essas duas formas de melancolia sejam em suas manifestações externas, não
se pode deixar de reconhecer suas analogias delirantes, analogias impressionantes,
principalmente nos casos em que a depressão e a agitação ansiosa se sucedem ou
alternam nesses mesmos doentes, sem que o delírio apresente modificações
sensíveis.
Nessas formas predominam a ansiedade (uma ansiedade interior pavorosa
constitui o estado fundamental da melancolia com estupor, segundo Griesinger), os
temores, os terrores imaginários, as idéias de culpa, de perdição e de danação; os
doentes acusam a si mesmos, são incapazes, indignos, promovem a desgraça e a
vergonha de seus familiares; serão presos, condenados à morte; serão queimados
ou esquartejados. Esses temores de serem presos, condenados e supliciados não
devem, como o Sr. J. Falret salientou várias vezes, ser confundidos com o
verdadeiro delírio persecutório que é relativamente raro nesses doentes. Em
contraste com os perseguidos, esses acusam a si próprios. Nada mais justo
quererem entregá-los ao suplício máximo: fizeram por merecer, com seus crimes.
Neste ponto de vista, pode-se distinguir duas grandes classes de
melancólicos: os que recriminam a si próprios e os que acusam o mundo exterior e o
meio social em particular. São esses últimos que Guislain chamou de alienados
acusadores.
Esta divisão dos melancólicos corresponde aproximadamente à divisão em
melancolia com distúrbio geral de inteligência e monomania triste (Baillarger) e à
divisão em lipemania geral e lipemania parcial (Foville); pode-se dizer, de modo
geral, que os verdadeiros melancólicos acusam a si mesmos, ao passo que os
monomaníacos tristes acusam os outros.
É comum observar, por um lado, os perseguidos apresentarem, durante um
paroxismo, as características da melancolia geral, depressiva ou ansiosa, e, por
outro, os melancólicos com idéias de culpa, num período mais ou menos avançado
de sua doença, exibirem a fisionomia dos monomaníacos tristes.

100
Por trás dessas manifestações exteriores, que variam do estupor à agitação
ansiosa, quase maníaca, há, sem dúvida, disposições doentias mais profundas que
guardam em si a diferença essencial entre os perseguidos e os outros melancólicos.
Talvez devêssemos procurar a manifestação mais imediata dessas disposições
íntimas que constituem o verdadeiro fundo da doença nas tendências acima
referidas, que levam os doentes quer a acusar a si mesmos, quer a acusar os
outros.
Essas tendências, muitas vezes, existem vários anos antes da evidência do
delírio aparecer; encontram-se, em grau muito atenuado, em muitos homens sãos de
espírito, entre os quais estabelecem duas categorias absolutamente distintas.
Muito antes de se tornarem realmente alienados, os perseguidos são
receosos e desconfiados, mais severos com os outros do que consigo mesmos;
durante muito tempo também, antes de sofrerem um surto francamente vesânico,
certos ansiosos são escrupulosos, tímidos, desejosos de não aparecer, mais
severos consigo mesmos do que com os outros.
Insisto nesta divisão dos delírios melancólicos, que a maior parte dos autores
confunde. Marcé parece admiti-la implicitamente, ao elencar apenas, para a
verdadeira melancolia, as idéias de ruína, de culpa etc., ao mencionar o delírio
hipocondríaco consecutivo e ao relacionar as idéias de perseguição com a
monomania; ele não insiste, porém, sobre esta distinção, que, por sinal, parece
absoluta demais, uma vez que certos perseguidos apresentam as características da
melancolia verdadeira e que outros doentes com idéias de ruína e de culpa lembram
monomaníacos.
Examinemos agora a evolução delirante que leva os melancólicos que
acusam a si mesmos ao delírio de negação; resumamos primeiro as principais
características de seu estado mental. Em sua forma mais atenuada, essas
características são as da forma de melancolia designada com os nomes de
melancolia simples ou sem delírio e, de maneira mais precisa, com o nome de
hipocondria moral, pelo Sr. J. Falret, que a descreveu com minuciosa exatidão.
Os melancólicos ditos sem delírio são, de fato, acometidos por um delírio
triste que afeta o estado de suas faculdades morais e intelectuais, e já apresentam
uma forma negativa evidente. “Sentem vergonha ou mesmo horror por sua própria

101
pessoa e se desesperam ao pensar que nunca conseguirão reencontrar suas
faculdades perdidas... Sentem falta da inteligência esvaecida, dos sentimentos
apagados, da energia desaparecida. Julgam não ter mais coração, nem afeição por
seus parentes e amigos, nem mesmo por seus filhos”.
Idéias de ruína surgem com freqüência, e parecem ser um delírio negativo da
mesma natureza: junto com as riquezas intelectuais e morais, o doente acredita ter
perdido sua fortuna material; não lhe resta mais nada do que faz o orgulho de um
homem, nem inteligência, nem energia, nem fortuna.
É o avesso do delírio de grandeza em que os doentes se atribuem imensas
riquezas, bem como todos os talentos e habilidades. Esta hipocondria moral
fundamenta-se sobre o fundo comum da melancolia e sobre um estado de
ansiedade vaga e indeterminada, “se os doentes sentem que tudo mudou dentro e
fora deles e se afligem por não mais perceber as coisas através do mesmo prisma
de antigamente”. (J. Falret)
Nesses casos menos graves, já existe uma espécie de véu através do qual o
doente não percebe mais a realidade senão de maneira confusa; tudo lhe parece
transformado. À medida que seu estado doentio se torna mais intenso, esse véu
ganha espessura, e, nos casos de estupor, acaba ocultando o mundo real por
inteiro. O doente encontra-se então, como o Sr. Bailiarger observou justamente, num
estado próximo ao sonho.
Não apenas nesse ponto de vista, mas sob todos os aspectos, parece não ter
senão uma diferença de grau entre esses estados de hipocondria moral e as
afecções melancólicas com idéias de culpa, de ruína, de danação e negação
sistematizada. A hipocondria moral é um esboço e bastaria acentuar os traços e
caprichar nas sombras para completarmos o quadro dessas últimas formas de
melancolia.
A repugnância por si mesmo chega ao delírio de culpa e de danação, os
temores viram terrores; a realidade exterior transformada e percebida de modo
confuso acaba por ser negada. Certas negações surgem muito cedo nos
hipocondríacos morais. Eles negam a possibilidade de cura, de um alívio qualquer
para seu estado de sofrimento. Esta é uma das primeiras negações nesses doentes

102
entre os quais alguns chegarão, mais tarde, à negação do mundo exterior e da
própria existência.
É importante deixar clara a distinção entre esse estado de hipocondria moral
e a hipocondria comum.
Embora tenhamos, segundo o Sr. Bailiarger, de admitir casos de melancolia
sem delírio, é importante desconfiar de certos hipocondríacos que oferecem,
aparentemente, muita semelhança com os melancólicos referidos aqui. O verdadeiro
melancólico apresenta um estado de depressão geral: nada disso ocorre com o
hipocondríaco, que uma disposição pode tirar momentaneamente de sua pretensa
prostração, incompetência, impotência etc.
A hipocondria comum, à qual o Sr. Baillarger se refere aqui, tem muitas
características em comum com o delírio de perseguição do qual constitui geralmente
o primeiro período, mas é essencialmente a evolução diversa das duas hipocondrias
que justifica a distinção do Sr. Bailiarger. De modo geral, pode-se dizer que a
hipocondria moral está para o delírio de ruína, de culpa, de perdição e de negação,
assim como a hipocondria comum está para o delírio de perseguição.
Constituído o delírio de negação, ele incide quer sobre a personalidade
mesma do doente, quer sobre o mundo exterior. No primeiro caso, ele reveste uma
forma hipocondríaca análoga ao delírio especial que o Sr Baillarger descreve nos
paralíticos: os doentes não têm mais estômago, nem cérebro, nem cabeça, não se
alimentam mais, não digerem mais, não trocam mais de roupa e, de fato, recusam
energicamente os alimentos e algumas vezes retêm as matérias fecais. Alguns,
como indiquei em nota apresentada à Société médico-pshychologique, imaginam
que não irão morrer nunca. Esta idéia de imortalidade encontra-se sobretudo nos
casos em que a agitação ansiosa predomina; no estupor, os doentes imaginam
antes estar mortos. Já pudemos observar quem apresentasse em alternância a idéia
de estar morto e a idéia de não poder morrer, segundo seus estados alternativos de
agitação ansiosa ou de depressão estúpida.
O delírio hipocondríaco, essencialmente moral no início, torna-se, num
estágio mais avançado, e particularmente quando a doença passa ao estado
crônico, ao mesmo tempo moral e físico. Doentes que começam por não ter mais
coração, nem inteligência, acabam por não ter mais corpo. Alguns, como a doente

103
de Leuret, só falam de si mesmos na terceira pessoa. Os perseguidos trilham o
caminho inverso. No início, a hipocondria é essencialmente física; num período mais
avançado, entretanto, os doentes preocupam-se com suas faculdades intelectuais:
estão sendo embrutecidos, impedidos de pensar, dizem-lhes asneiras, tiram-lhes a
inteligência, etc.
Essas duas hipocondrias não diferem apenas pelo seu curso; a hipocondria
dos ansiosos traz o selo da humildade; eles não têm nada, não são nada que valha;
são podres, acometidos por um mal desprezível; alguns crêem ter sífilis, e Fodéré já
havia evidenciado a conexão entre esta última idéia delirante e o que chama de
danomania.
Os outros são todos hipocondríacos perseguidos. Têm, via de regra, uma
opinião muito boa de si mesmos e de sua organização resistente o bastante para
suportar tantos males; culpam as influências exteriores, o ar, a umidade, o frio, o
calor, os alimentos e, mais ainda, os remédios. Se sofrem de sífilis, não é na sífilis,
mas no mercúrio que encontram a causa de todo o seu sofrimento. Acabam por
acusar o médico e chegam ao delírio de perseguição confirmado (14).
Dessas influências prejudiciais, pelas quais o perseguido se sente ameaçado
e que, de fora, convergem em sua pessoa, o angustiado imagina, ao contrário, ser a
fonte que as espalha ao seu redor; na sua fantasia, ele dá azar às pessoas de quem
se aproxima; ao médico que o trata, aos empregados que o servem vai transmitir
doenças mortais, comprometê-los ou desonrá-los; a casa onde mora será uma casa
amaldiçoada; ao passear pelo jardim, faz perecer árvores e flores.
O delírio hipocondríaco de negação está freqüentemente relacionado às
alterações da sensibilidade. A anestesia é menção freqüente em todos os autores, e
encontra-se também em alguns melancólicos ansiosos; outros, pelo contrário,
parecem apresentar hiperestesia, e não permitem aproximação; gritam assim que
encostamos a mão neles e não param de repetir: “Não me façam mal”!
Em que medida essas alterações da sensibilidade contribuem para o
desenvolvimento do delírio hipocondríaco de negação? É uma questão de patogenia
que não quero me propor a elucidar. Limito-me a mencioná-las enquanto
característica diferencial dos dois delírios hipocondríacos; são freqüentes nos
negadores, raríssimas nos perseguidos.

104
Quando o delírio incide sobre o mundo exterior, os doentes imaginam não ter
mais família, nem país, que Paris foi destruída, que o mundo não existe mais etc. As
crenças religiosas, e em particular a crença em Deus, desaparecem com freqüência,
algumas vezes desde cedo. Griesinger assinalou as idéias lúgubres, negativas pela
quais se sentem tomados os doentes cuja agitação irrequieta deixa incapazes de
recolhimento e de preces.
Uma descrição rápida do delírio de negação e de suas diversas formas não
seria suficiente para fazer deste delírio uma espécie particular de melancolia. Eu
gostaria de mostrar que junto com este delírio existem numerosos sintomas
estreitamente associados entre si, de tal forma a constituir uma verdadeira doença,
diferenciada por suas características e sua evolução.
O delírio de perseguição pode nos servir de modelo. Procuro essencialmente
retratar o negador pêlos contrastes e diferenças que apresenta em relação ao
perseguido.
Já comecei a traçar esse paralelo ao marcar a diferença entre a hipocondria
moral e a hipocondria comum, entre o melancólico ansioso que acusa a si próprio e
o perseguido que põe a culpa no mundo exterior. Quando a doença se toma mais
intensa, ou apresenta desde o início uma forma mais grave, acrescentam-se aos
sintomas delineados na hipocondria moral e ao delírio trivial de ruína e de culpa,
alguns fenômenos novos que merecem atenção especial em razão de suas
características especiais: as alucinações.
Essas alucinações são freqüentes, sobretudo nos estados de estupor, mas
igualmente na forma ansiosa. Os doentes acreditam estar envolvidos em chamas,
vêem precipícios a seus pés, imaginam que a terra vai engoli-los ou que a casa vai
desabar, vêem as paredes cambalear e pensam que a casa está minada. Escutam
os preparativos de seu suplício: arma-se a guilhotina, escutam o rufar de tambores,
tiros - serão fuzilados. Vêem a corda destinada a enforcá-los, escutam vozes que os
censuram por seus crimes, lhes comunicam sua sentença de morte ou lhes repetem
que foram danados. Alguns têm alucinações gustativas ou olfativas e imaginam-se
podres, pensam que seus alimentos são transformados, que lhes apresentam lixo,
matérias fecais, carne humana etc.

105
Via de regra, as alucinações nos doentes com idéias de culpa pertencem à
categoria de alucinações, definida pelo Sr. Baillarger, que reproduzem as
preocupações atuais dos doentes. Uma melancólica, diz esse autor, que se acusava
de crimes imaginários, estava obcecada dia e noite por uma voz que lhe comunicava
sua sentença de morte e descrevia os suplícios a ela reservados. Outra, cuja história
é relatada por Michéa, acredita-se culpada, perseguida pela polícia e ameaçada de
morte. Internada numa casa de saúde, alguns dias depois, a lipemania alcança seu
auge, e ela vislumbra quase que constantemente a seus pés, a corda destinada a
estrangula-la e o caixão preparado para receber seu cadáver.
Alguns doentes acreditam-se danados e vêem as chamas do inferno, escutam
tiros de fuzil, acreditam que serão fuzilados. Guislain ressaltou a estreita conexão
que existe entre a demoniofobia, o suicídio e esse tipo de alucinações em que os
doentes vêem chamas e incêndios por todos os lados.
O estado alucinatório dos melancólicos ansiosos, estúpidos ou agitados difere
fundamentalmente daquele dos perseguidos, primeiro pelas alucinações visuais, que
são raras nos perseguidos, mas também pelas características das alucinações
auditivas. Assim como as alucinações visuais, não passam de confirmações das
idéias delirantes, sendo, às vezes, bastante difícil distinguir umas das outras. Nos
ansiosos, o fenômeno alucinatório não apresenta essa independência que, nos
perseguidos, confere muita nitidez bem como uma evolução toda especial.
Aos poucos, o perseguido chega a um diálogo; ele passa a escutar, a
responder a seus interlocutores imaginários com impaciência ou cólera. Não se
observa nada parecido nos ansiosos: só falam para repetir incessantemente as
mesmas palavras, as mesmas frases, as mesmas lamentações; sua loquacidade
tem um caráter de monólogo, de ladainha, ao passo que a do perseguido é dialogal.
A repercussão do pensamento, o eco e o vocabulário característico que
permitem identificar os perseguidos crônicos após poucos instantes de conversa,
também não são observados no ansioso.
No início deste trabalho, apontei a oposição e a resistência sistemáticas nos
doentes acometidos por delírios de negação; neles, encontramos freqüentemente
uma rigidez e uma tensão musculares, sinais de que sua inércia é apenas aparente
e sua resistência não é simplesmente passiva. Assim que quisermos mudar sua

106
atitude, imprimir algum movimento a seus membros, eles contraem energicamente
os músculos para resistir e manter sua posição habitual.
Não me deterei nos tremores relatados em alguns ansiosos, nem nos
acidentes cataleptiformes dos estúpidos, mas não posso deixar de falar nos
impulsos suicidas e nas mutilações tão freqüentes nos ansiosos, sobretudo quando
são dominados por idéias religiosas, pois esses constituem mais uma diferença para
com os perseguidos nos quais o suicídio é muito menos freqüente e as mutilações
raríssimas.
Os ansiosos com idéias de danação são os doentes mais propensos ao
suicídio; o fato de acreditarem já ter morrido, ou na impossibilidade de morrer, não
os impede de tentarem se destruir. Alguns vêem no fogo a única solução e tentam
se queimar; outros querem ser cortados em pedaços e procuram por todos os meios
possíveis satisfazer essa necessidade doentia de mutilação, de destruição e de
aniquilamento total. Alguns se mostram violentos para com as pessoas ao seu redor;
parecem querer demonstrar que são realmente os seres mais perversos e mais
desprovidos de sentimentos morais; não raro, xingam, blasfemam: os danados e
diabos não têm outra alternativa.
A recusa de alimentos, tão estreitamente ligada à loucura de oposição,
apresenta também algumas características especiais nos negadores. Via de regra,
essa recusa abrange indistintamente todos os alimentos; os doentes recusam-se a
comer por não terem mais estômago e porque “a carne e outros alimentos caem na
pele da barriga”, porque danados nada comem, ou por não terem como pagar.
Alguns, entretanto, tomados por um delírio de culpa ou de ruína menos intenso,
escolhem seus alimentos: como penitência, comem apenas pão seco, ou se privam
de sobremesa.
O perseguido, pelo contrário, examina cuidadosamente seus alimentos,
procura o que lhe parece bom e rejeita o que lhe parece suspeito; quando encontra,
por acaso, alimentos que supõe isentos de qualquer veneno, come com voracidade.
Geralmente, a recusa de alimentos é parcial nos perseguidos.
Terminarei este paralelo pelo estudo do curso da doença. O delírio de
perseguição é essencialmente remissório ou, antes, contínuo com paroxismos:
geralmente a doença começa muito cedo, desenvolve-se lenta e progressivamente e

107
dura a vida inteira. Na hipocondria, esse curso remissório já é patente desde o início,
inclusive nos casos em que o mal não parece evoluir além dessa forma esboçada.
A doença tem uma aparência bem diferente nos negadores: ela irrompe
bruscamente, geralmente na meia idade, em pessoas cuja saúde moral sempre
parecera boa até então; nos casos com cura, esta é tão brusca quanto o início da
crise. Rompe-se o véu e o doente desperta, como se fosse de um sonho.
Não preciso dizer que as formas mais brandas são também as mais curáveis.
A melancolia dita sem delírio, a hipocondria moral, os estados ansiosos com idéias
de ruína são habitualmente curáveis. Mas a doença está sujeita a recaídas, em
intervalos mais ou menos distantes, e adquire um caráter de vesânia intermitente.
Essa característica intermitente manifesta-se, às vezes, nos casos incuráveis
inclusive, por um despertar de curta duração quando o doente parece ter
reencontrado toda sua lucidez.
Já vi, diz Griesinger, numa doente acometida por melancolia profunda
(imaginava ter perdido toda a fortuna e se sentia ameaçada de morrer de fome), um
intervalo perfeitamente lúcido, de cerca de quinze minutos, que surgiu sem motivo
aparente e desapareceu da mesma forma brusca.
Nas formas em que o estupor predomina de saída, a cura é bastante comum,
apesar da intensidade e do absurdo do delírio. Não raro, entretanto, observamos os
doentes, após uma agitação ansiosa intensa e prolongada, com alucinações, delírio
panofóbico etc., caírem numa espécie de estupidez, muitas vezes confundida com a
demência, que se prolonga indefinidamente. Esses doentes apresentam geralmente
uma loucura de oposição no mais alto grau; ficam mudos e alguns repetem apenas a
palavra “Não”.
O prognóstico é igualmente desfavorável quando se vê diminuir a intensidade
do distúrbio melancólico geral, enquanto as idéias delirantes e as negações
permanecem no mesmo grau. Os doentes chegam ao delírio negativo sistematizado,
raramente curável; apresentam inclusive, na maioria dos casos, uma loucura de
oposição cujo prognóstico desfavorável foi indicado por Guislain.
Por seu curso, início e término brusco, quando há cura, a loucura de negação
relaciona-se ao grupo das vesânias de surto ou intermitentes e à loucura cíclica.
Mesmo se reservarmos o nome de delírio de negações aos casos em que esse

108
delírio alcança o grau que indiquei no inicio deste trabalho, pode-se dizer que o
delírio de negações é um estado de cronicidade especial de certos melancólicos
intermitentes cuja doença se tornou contínua.
Quero salientar mais um ponto que me parece estabelecer uma diferença
entre os negadores e outros intermitentes que se aproximam dos cíclicos.
Informações sobre os antecedentes, o caráter dos doentes, revelam, em geral, que
sempre foram um pouco melancólicos, taciturnos, escrupulosos, devotados,
caridosos, sempre muito prestativos; alguns são dotados das mais destacadas
qualidades morais. Seu estado doentio, seu delírio de humildade não oferece um
contraste marcado com sua maneira anterior de ser; parece apenas exagerá-la de
maneira mórbida. Em resumo, esses doentes não são francamente alternantes como
os cíclicos e alguns intermitentes, cujo estado considerado como sadio contrasta de
maneira absoluta com os acessos melancólicos.
Essa característica dos negadores permite ainda distingui-los nitidamente da
maior parte dos hereditários, entre os quais formam uma categoria especial; de fato,
diferem por um desenvolvimento exagerado, por assim dizer, dessas mesmas
qualidades morais que, nos outros hereditários, foram abortadas e explicam a vida
desregrada, o profundo egoísmo, o orgulho, o caráter indisciplinável, os delitos e os
crimes desses últimos.
Se o delírio de negação parece estar ligado, em muitos casos, às vesânias
intermitentes, devo acrescentar que não é raro vê-lo desenvolver-se sobre um fundo
histérico; também não é raro encontrá-lo como sintoma da periencefalite difusa. O
delírio de pequenez, que o Dr. Materno observou nessa doença, parece muito
próximo do delírio de negação e pode conviver com ele. Veremos um exemplo nas
observações abaixo.
Divido essas observações em três categorias: na primeira, coloco os casos
em que o delírio de negação se apresenta no estado simples; na segunda, um caso
em que o delírio é sintomático de paralisia geral; na terceira, os casos em que,
associado ao delírio de perseguição, constitui essas formas de alienação complexas
que explicam porque quase tantos autores confundiram na mesma descrição do
delírio melancólico as idéias de ruína, de culpa, de desconfiança e de perseguição.

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Esses casos mistos mereceriam um estudo especial; creio que apresentam,
além de duas ordens de sintomas, algumas características particulares. Mais do que
danados, os doentes acreditam estar possuídos e imaginam ter animais ou diabos
no corpo. Esquiro (15) relatou casos desse gênero; Fodéré diferenciava o delírio de
culpa e de danação, ou danomania, da demonomania, ou possessão demoníaca.
Esta última forma parece-me estabelecer uma espécie de transição entre delírio de
culpa e delírio de perseguição.

Primeira categoria. Delírio de negação em estado simples


Primeira observação - A Sra. E., de cinqüenta e quatro anos, casada, mãe
de família, é internada na Casa de Saúde de Vanves em 15 de junho de 1863, após
várias tentativas de suicídio.
Ela se encontra num estado de agitação ansiosa com idéias de culpa e delírio
hipocondríaco; imagina ter a garganta estreitada e o coração deslocado. Durante os
paroxismos de agitação, grita e se lamenta em voz alta, repetindo sempre as
mesmas palavras. Todos os seus órgãos estão deslocados, ela nada pode fazer,
está perdida, danada.
1864 - Mesmo delírio, mesmos paroxismos ansiosos com repetição contínua
das mesmas frases estereotipadas. A Sra. E. está perdida, não tem mais cabeça,
não tem mais corpo; está morta. Ela emite gritos agudos, repete, furiosa, as mesmas
palavras e diz ter, ela própria, contraído raiva; agarra com as mãos, como que de
modo convulsivo, os objetos exteriores e, uma vez que os segura, não quer mais
largá-los.
Ela vê fantasmas nas paredes, resiste a suas necessidades naturais, sob o
pretexto de que satisfazê-las seria sua morte, grita e se entrega a atos violentos para
lutar contra a fatalidade de sua situação, da qual ninguém pode tirá-la; as idéias de
suicídio ainda persistem.
O delírio de negação acentua-se cada vez mais. Ela não tem braços nem
pernas, todas as partes de seu corpo se metamorfosearam; repete que tudo está
perdido, que não consegue mais se mexer sem se expor ao risco de cair em
pedaços e se retesa de modo convulsivo na posição sentada em que se encontra
habitualmente.

110
A loucura de oposição está no auge, a Sra. E. recusa-se a comer por não
conseguir engolir, recusa-se a andar por não ter pernas; não quer se levantar, nem
se deitar, nem se vestir, nem comer, nem andar, nem trocar de roupas; ela se retesa
como uma barra de ferro para resistir a todos os atos que querem que realize, ela
solta gritos quando se quer tocá-la e afirma que vão estilhaçá-la como vidro.
Os anos passam sem trazer mudança alguma nesse delírio. Ela chegou a um
estado de demência com grunhidos, gritos inarticulados e paroxismos de agitação;
conserva sempre o mesmo retesamento muscular e opõe igual resistência a tudo
que se quer que ela faça.
Ela sofre uma queda do útero e do reto, que não podem ser mantidos por
causa dos violentos esforços de expulsão que ela faz desde que se procedeu à
correção.
A Sra. E. sucumbe em 1878 num estado de caquexia geral.
Segunda observação - A Sra. E., de sessenta e três anos, internada em
Vanves em maio de 1868, está num estado de grande agitação ansiosa; imagina
não ter mais nada, ter arruinada a família e que vão prendê-la. Está constantemente
em movimento, não consegue parar no lugar; não pára de gemer repetindo estar
perdida, arruinada e que, por sua causa, seus filhos vão morrer de fome.
Ela recusa os alimentos sob o pretexto de não poder pagá-los, acredita ser
portadora de uma doença contagiosa e imagina exalar um odor infecto; não quer
que se aproximem dela e acha que seu contato é mortal; imagina ainda haver
veneno e sujeiras em seus alimentos. Diz não conseguir comer nem andar, que seu
caso é absolutamente incurável; resiste a todos os cuidados necessários à sua
pessoa; é preciso lutar para vesti-la, levantá-la, levá-la para passear, alimentá-la. Em
geral, ela permanece encolhida num canto, ora muda, ora emitindo um gemido
monótono e repetindo ser um monstro.
Por humildade, aceita apenas comer na mesa dos empregados.
A Sra. E. morre em 1879, sem qualquer modificação do delírio.
Terceira observação - A Sra. S., de cinqüenta e três anos, já teve um surto
de melancolia na forma depressiva, que não necessitou internação. Após uma
recaída de delírio melancólico, foi trazida para Vanves no fim do ano de 1876.

111
Está num estado extremo de agitação ansiosa; acredita ser culpada e estar
perdida; vão levá-la para a prisão e ela tenta, por todos os meios possíveis, suicidar-
se. Escuta vozes que lhe dizem ser culpada, que será danada e levada à prisão;
acredita escutar a voz do marido e da filha, que estão presos por causa dela; ela se
lamenta sem parar e recusa alimentos.
1880 – Ela continua tomada pelas mesmas idéias melancólicas; passa a
maior parte do tempo muda e imóvel e não responde quando lhe dirigem a palavra;
por vezes, exprime concepções negativas completamente absurdas. Afirma que
ninguém pode mais nada, que ninguém casa mais, que ninguém nasce mais. Não
existem mais médicos, prefeitos, escrivãos, nem mesmo tribunais; ela costumava
rezar, mas agora é inútil, já que Deus não existe mais. Resiste a todos os cuidados
que precisamos lhe dispensar re continua propensa a recusar alimentos, afirmando
ainda haver cal e potássio em tudo que lhe é apresentado.
A Sra. S. passa seus dias muda e imóvel. Atualmente, maio de 1882, seu
estado permanece absolutamente estacionário.
Quarta observação – A Sra. M de cinqüenta e um anos, casada, mãe de
família, parece sempre ter gozado de boa saúde até o ano de 1878. Sofreu então
um surto ansioso com terrores; via fogo, incêndios, acreditava estar arruinada e
imaginava que iriam torturá-la. Depois de dois meses, curou-se subitamente, mas
após umas semanas voltou a sofrer dos mesmos distúrbios e foi trazida para Vanves
num estado de agitação ansiosa intenso, com gemidos e terrores contínuos relativos
sobretudo ao fogo e aos incêndios.
Ela imagina estar arruinada, que vão torturá-la, que seus alimentos estão
envenenados, que foi enfeitiçada. Parece ter alucinações auditivas e visuais, afirma
que todas as noites acontecem coisas pavorosas em seu quarto, onde surgem
personagens que ela não conhece. Ela não quer reconhecer o marido nem os filhos
que vêm visitá-la; afirma nunca ter casado, não ter pai, nem mãe, nem marido, nem
filhos. A..., sua cidade natal, não existe mais, Paris não existe mais, nada mais
existe, sua filha é um diabo disfarçado. Ela não deixa ninguém se aproximar, recua
com terror quando se quer toca-la ou pegar sua mão e repete sem parar: “Não me
façam mal”. Nega-se a tudo, resiste a tudo; é preciso lutar para vesti-la, despi-la,
alimentá-la, etc. e ela dispõe de uma força de resistência espantosa.

112
Em agosto de 1881, a Sra. M. é repentinamente acometida por uma
hemiplegia esquerda; o delírio em nada se modificou. O membro inferior retoma
suas funções de forma incompleta, mas o membro superior permanece e, contração.
Ela fica repetindo as mesmas negações, não pára de dizer: “Não me façam mal”, e
resiste obstinadamente a tudo o que se quer que ela faça.
Atualmente, maior de 1882, sua situação permanece idêntica em todos os
aspectos.
Quinta observação – A Sra. J., de cinqüenta e oito anos, internada em
Vanves em agosto de 1879, está num estado de melancolia ansiosa que já data
vários meses.
Imagina que vão lhe cortar os nervos, deixá-la surda, muda e cega e
submetê-la a todo tipo de torturas; passa dias inteiros gemendo e implorando à
Virgem e aos santos.
Paroxismos de agitação muito intensos com tentativas de suicídio. Ela recusa
os alimentos; está perdida, danada; está “cheia de petróleo”, vão submetê-la aos
mais atrozes suplícios, entretanto, nunca poderá morrer.
Paroxismos freqüentes, durante os quais ela rola pelo chão e faz todo tipo de
caretas e contorções. Vive repetindo as mesmas frases, muitas vezes totalmente
absurdas e ininteligíveis, mas que se referem a idéias de transformação e de
aniquilamento de sua pessoa e de tudo o que está ao seu redor. Vive repetindo:
"Não há mais nada, nada mais existe, tudo é de ferro etc."; ela própria se
transformou, virou um galeto, uma mosca, um trapo de lã falante, não é mais nada,
não come jamais, não tem mais corpo; as pessoas que a rodeiam não passam de
sombras.
A Sra. J. resiste a tudo, retém as matérias fecais e urinas; é preciso lutar para
vesti-la, despi-la etc. e, nessas lutas, ela revela uma energia e um vigor muscular
surpreendentes. Atualmente, maio de 1882, sua situação continua idêntica, seu
delírio absolutamente não se modificou.
Sexta observação - A Sra. C., de quarenta e três anos, casada, mãe de
família, foi internada em Vanves em novembro de 1880. Em 1875, em conseqüência
da morte súbita do pai e da operação de estrabismo do filho, ela sofrera um ligeiro
acesso ansioso com insônia e bocejos contínuos e ficou obcecada pelo temor do

113
seu pai ter sido enterrado vivo e de seu filho ficar cego em decorrência da operação
de estrabismo.
Esse estado ansioso dissipou-se após um mês. No fim de março de 1880,
novo acesso, início bastante rápido, preocupações relativas a questões financeiras,
perplexidade e indecisão contínuas, insônia. Ela se acusa e pensa ser culpada.
Alguns meses depois, delírio hipocondríaco.
Acredita não ter mais estômago, que seus órgãos foram destruídos e atribui
essa destruição a um vomitivo que, de fato, lhe foi administrado.
Por ocasião de sua chegada à casa de saúde, a Sra. C. apresentava um
estado de melancolia ansiosa com paroxismos de agitação maníaca, durante os
quais fazia contorções, caretas, rolava pelo chão e gemia. Estes paroxismos
alternam com períodos de imobilidade e de mutismo. Ela afirma ter tido a goela
extraída, não ter mais estômago, não ter mais sangue; nunca vai morrer, não é
morta nem viva, é uma pessoa sobrenatural, seu lugar não está entre os vivos nem
entre os mortos; não é mais nada, suplica que lhe abram as veias, que lhe cortem os
braços e as pernas, que lhe abram o corpo para confirmar que ela não tem mais
sangue e que seus órgãos não existem mais.
Essa doente deixou a casa de saúde após dois meses de internação, e sem
melhora; ignoro o que pode ter acontecido com ela depois.
Sétima observação - O Sr. A., de cinqüenta e três anos, internado na casa
de saúde de Vanves, em julho de 1877, foi acometido por melancolia depois de ter
passado por grandes dores morais: perdeu quase ao mesmo tempo a mulher e um
filho.
Ele se acusa de ser a causa da morte da mulher e do filho; está podre, tem
sífilis, está perdido, danado, é o maior criminoso que já existiu, o Anticristo, há de ser
queimado em praça pública; permanece mergulhado numa profunda tristeza, chora e
geme; queria ter morrido e faz tentativas de suicídio.
1880 - O Sr. A. ainda exprime as mesmas idéias melancólicas de culpa, é um
homem danado e destinado a queimar eternamente. Diz ter o corpo inteiro podre, a
cabeça vazia, não ter sangue, nem rosto humano. Espera o fim do mundo, que está
próximo.

114
Atualmente, maio de 1882, a situação continua idêntica, o delírio não se
modificou em nada.
Oitava observação - O Sr. A., de quarenta e oito anos, internado na casa de
saúde de Vanves em março de 1879, após uma tentativa de suicídio, está num
estado de agitação ansiosa intenso. Tenta por todos os meios bater em si mesmo,
mutilar-se, furar os próprios olhos, chegar à morte; não quer comer, nem tomar
remédios, nem receber qualquer cuidado, por considerar-se indigno. Só pensa em
expiar seus crimes imaginários; por esse motivo, ele quer se bater e se matar; diz ter
caído num abismo de infâmia no qual está se afundando cada dia mais; suplica para
que lhes dêem uma corda para se enforcar ou uma dose forte de veneno.
Ele não parece ter alucinações auditivas, mas tem numerosas ilusões de
ótica, confere um sentido místico às formas dos objetos exteriores, acredita ver
figuras de animais nas formas das árvores etc.
1880 - O Sr. A. imagina que vão torturá-lo, mergulhá-lo em água gelada,
alimentá-lo com lixo e excrementos, suplica que se acabe com isso dando-lhe ácido
prússico. Seu cérebro está amolecido, sua cabeça, como uma avelã oca; ele não
tem sexo, nem testículos, não tem mais nada, não passa de uma “carniça” e pede
que se cave um buraco para enterrá-lo como um cachorro; não tem alma; Deus não
existe. Por momentos, ele diz não ter mulher nem filhos; em outros, quer vê-los e
voltar para junto deles. Repete sempre as mesmas frases e súplicas: “Matem-me,
matem-me; não me dêem banho frio etc.” durante horas a fio. Tenta, por todos os
meios possíveis, matar-se e mutilar-se; quer furar os próprios olhos, arrancar os
testículos etc. Mostra-se igualmente violento e injurioso para com as pessoas que o
rodeiam. Por vezes, consegue falar com lucidez; tem prazer em contar diferentes
acontecimentos de sua vida passada.
Em maio de 1882, sua situação continua idêntica, o Sr. A. repete
incessantemente ser indigno, ignóbil, quer se tornar engraxate, não tem testículos, é
preciso matá-lo.

Segunda categoria - Delírio de negações sintomáticas de paralisia geral


Nona observação - O Sr. C., de quarenta e cinco anos, constituição robusta,
casado, pai de família, sempre levou uma vida regular e laboriosa, nunca cometeu

115
outros excessos, dizem, que não de trabalho. Permanecia todas as noites no
escritório até às duas horas da manhã e às sete horas estava em pé.
Há vários anos, sofria de enxaquecas violentas com vômitos. Em 1879,
queixou-se de distúrbios da vista, de visão turva; foi consultar um oculista que, após
um exame de fundo de olho, teria lhe pedido para se equilibrar num pé só, o que não
conseguiu fazer.
Por volta dessa época, começou a sofrer quedas freqüentes; muitas vezes,
chegava em casa contando à mulher ter quase morrido, ter caído e precisado de
ajuda para se levantar. Ao mesmo tempo, seu caráter sofreu alterações: tornou-se
sombrio, irritável e pareceu mergulhar numa profunda tristeza. Expressava
pressentimentos fúnebres, dava conselhos à mulher e lhe fazia recomendações
minuciosas a respeito dos filhos, como se se sentisse ameaçado de uma morte
próxima.
No início de dezembro de 1879, tornou a cair na rua, chegou em casa gelado
e foi acometido por um tremor intenso com batimento de dentes. O médico chamado
não constatou, dizem, nenhum movimento febril decorrente desse calafrio. Outros
calafrios análogos teriam se reproduzido de forma irregular, todos os dias durante
cinco ou seis horas. O Sr. C. permanecia na cama, coberto com enormes cobertores
e bastava descobri-lo um pouco para que fosse novamente tomado pelos tremores
com batimento de dentes; o sono desaparecera completamente.
Após algumas semanas, ele saiu da cama, mas não conseguiu retomar suas
atividades. Permanecia no escritório, mudo, sem ocupação, imóvel, sem receber
ninguém e despachava bruscamente sua mulher quando esta vinha visitá-lo. Às
vezes, ficava repetindo: “Sou um cretino”, dizia à mulher. “Então você não quer me
devolver minha vida de antigamente”? Ou, ainda: “Eu devia me dar um tiro. Gostaria
de pedir a Deus que me fizesse morrer, mas Deus não existe”. Uma noite, repetiu
uma mesma série de sílabas incompreensíveis, durante horas afio.
Por volta do mês de março de 1880, começou a manifestar idéias negativas
completamente absurdas: dizia não haver mais noite e recusava-se a deitar;
passava noites inteiras no escritório e dizia à mulher que não podia se deitar pois
ainda era dia. Dizia não comer mais e por mais abundante que fosse a refeição,
ficava furioso dizendo nada haver na mesa.

116
Internado em Vanves em abril de 1880, foi contatado no Sr. C. um distúrbio
mental profundo. Ele não tem consciência do lugar onde se encontra, nem do tempo
que passou desde que deixou sua residência.
Em geral, encontra-se calmo, silencioso; às vezes, afirma que as pessoas que
o rodeiam são assassinos que querem degolá-lo e é tomado de paroxismos
ansiosos durante os quais repete continuamente as mesmas palavras numa voz
lamentável. Declara não saber onde está, nem, quem é; garante não ser casado,
não ter filhos, nem pai, nem mãe, nem nome. Afirma não comer nunca, embora
coma com fartura. Está num deserto onde não existe ninguém e de onde não se
pode sair, pois não existem ais carros nem cavalos. Se lhe mostram um cavalo, ele
diz: “Isso não é um cavalo, isso não pé absolutamente nada”. Resiste a todos os
cuidados que devem lhe ser dispensados; recusa-se a deixar que o vistam, pois seu
corpo não é maior do que uma avelã; recua-se a comer por não ter boca, a andar
por não ter pernas. Puxa as próprias orelhas e diz não ter orelhas, puxa o nariz e diz
não ter nariz. Afirma com freqüência estar morto, mas durante os paroxismos
ansiosos, diz estar meio morto e nunca poder terminar de morrer; segura o braço, a
perna, a barriga da perna e diz: “Isso nunca vai se desprender”.
Em certos momentos, parece ter alucinações visuais; vê personagens,
mulheres vestidas de branco descerem do teto do quarto; outras vezes, vê
pequenos cavaleiros com alguns centímetros de altura atravessarem seu quarto em
regimentos.
Distúrbio da palavra, incerteza no andar, desigualdade pupilar.
Esses sintomas de paralisia geral vêm se acentuando durante o ano de 1881.
A esse quadro somam-se idéias de grandeza que o doente reporta ao passado.
Afirma ter sido imensamente rico, ter sido o primeiro advogado de Paris,
membro da Academia Francesa, presidente da República; hoje não passa de um
pequeno cretino que, além do mais, vai morrer.
Em maio de 1882, está reduzido a um estado de demência paralítica;
caminha com dificuldade e sua fala é quase ininteligível.

Terceira categoria. Delírio de negação associado ao delírio de perseguição

117
Décima observação – A Sra. G., de quarenta e dois anos, casada, mãe de
família, sofreu, há vários anos, violentos ataques de histeria.
Foi internada uma primeira vez em Vanves no final do ano de 1875, à época,
vítima de um delírio melancólico com idéias de culpa, idéias místicas e paroxismos
de agitação furiosa. Acredita estar possuída pelo diabo, danada; pensa estar grávida
de sua empregada, que imagina ser um homem disfarçado.
Ela imagina precisar se transformar num animal imundo, um escorpião, e em
seus paroxismos, coloca-se de bruços e realiza todo tipo de contorções para imitar
os movimentos do escorpião. Recusa os alimentos, entrega-se a todo tipo de ações
desordenadas e de violência para consigo mesma e contra as pessoas ao seu redor:
ouve o diabo lhe falar e há de obedecer.
No ano de 1876, ocorreu uma melhora notável em seu estado. A Sra. G. está
calma, entrega-se com prazer a trabalhos com agulhas, embora continue dominada
por idéias de culpa; diz-se adúltera, indigna de voltar para junto do marido e dos
filhos e quer fazer uma confissão pública de seus pecados. Sai desse estado de
remissão no fim do ano de 1876.
No ano seguinte uma nova internação se tornou necessária, pois ela insiste
em fazer uma confissão pública de seus pecados e crimes, nas ruas e nas igrejas;
continua julgando-se culpada, indigna; deseja trabalhar de doméstica e ganhar a
vida, pois não merece que gastem dinheiro com ela; mas novas idéias delirantes
vêm complicar esse delírio de culpabilidade.
Acredita estar magnetizada, imagina ser possível lerem seus pensamentos e
estes poderem ser a causa de desgraças maiores; atribui à empregada um poder
sobrenatural: essa moça, por meio de poderes mágicos e de malefícios, fará seu
filho entrar na casa de saúde onde sofrerá torturas e mutilações genitais. Ela deixa
mais uma vez a casa de saúde em junho de 1879, sendo novamente internada em
agosto de 1880; imagina ser perseguida por pessoas com o poder de ler
pensamentos, que chama de “carigrafieiros”; essas pessoas se obstinam
implacavelmente contra ela e os filhos, e não param de repetir as mais pavorosas
calúnias. Chegam ao ponto de fazer com que ela diga besteiras, que são em
seguida espalhadas por Paris e pelo mundo inteiro, podendo causar prejuízos
enormes à própria família.

118
Ao mesmo tempo em que acusa seus perseguidores e as pessoas que a
rodeiam, acusa a si própria; ela é um monstro, é danada, tem três lacraias dentro do
corpo e acabará se transformando em escorpião; já não tem mais nada de humano e
parece um animal imundo. Gostaria de estar morta, geme e faz tentativas de
suicídio, mas é tarde demais: agora é imortal, poderiam moê-la em pedacinhos que
não morreria.
Em maio de 1882, a situação continua idêntica; entretanto, as idéias de
perseguição parecem predominar cada vez mais; a Sra. G. acusa os empregados
que vociferam e caluniam sem parar; foi danada, é verdade, mas por causa dos
médicos.
Décima-primeira observação - A Sra. H., de cinqüenta e um anos, é
internada em agosto de 1880.
Há cerca de quinze anos, após uma disenteria grave, sentiu uma sensação de
estalo nas costas, “suas costas desprenderam-se”. A partir dessa época, por quatro
ou cinco vezes pelo menos, ficou acamada durante nove ou dez meses, e uma vez
até mais de ano. Afirmava não poder se levantar, que suas costas desciam para a
barriga. Por volta do início do ano de 1880, começou a queixar-se de que todo
mundo tinha algo contra ela, e essas idéias de perseguição concentraram-se na
pessoa de seu genro; repetia horas a fio: “Por que será que minha filha casou-se
com X.”? Internada em Vanves em agosto de 1880, conta que rogaram uma praga
contra ela; está danada, tem animais na barriga, macacos, cães etc.; escuta vozes
que a incitam, contra a própria vontade, a atos violentos; pede a morte e, no entanto,
sabe que jamais poderá morrer. Em setembro do mesmo ano, deixa a casa de
saúde, no mesmo estado de alienação crônica, transferida para outro hospício.
Além desses poucos casos, eu podia ter citado, em segunda mão, um número
bastante expressivo de observações esparsas aqui e acolá, que trazem menção do
delírio de negação, ao menos em sua forma hipocondríaca.

119
Termino este trabalho com um quadro sinóptico resumindo o paralelo entre
delírio de negação e delírio de perseguição.

Delírio de perseguição
O doente não apresenta, via de regra, fácies melancólica.
Hipocondria, sobretudo física, no início.
O doente culpa o mundo exterior, influências nocivas vindas de diversos meios, e
especialmente do meio social. Não acusa a si próprio; ao contrário, gaba-se da
própria força física e moral e da excelência de sua constituição que lhe permitem
suportar tantos males.
Suicídio relativamente raro.
Homicídio mais freqüente.

Delírio de negação
Ansiedade, gemidos, angústia precordial etc.; os doentes são do tipo melancólico
ansioso.
Outros caem no estupor. Alguns apresentam alternâncias de estupor e agitação
melancólica.
Hipocondria, sobretudo moral, no início.
O doente acusa a si próprio; é incapaz, indigno, culpado, danado. A polícia ou os
guardas virão prendê-lo e levá-lo ao cadafalso; fez, contudo, por merecer, com seus
crimes.
Suicídios e mutilações muito freqüentes.
Homicídio mais raro.

Delírio de perseguição
Distúrbios da sensibilidade muito raros.
Alucinações auditivas constantes, com a evolução especial já conhecida.
Alucinações visuais muito raras.
Hipocondria moral consecutiva: seus perseguidores atacam suas faculdades
morais, os doentes, dizem estar sendo embrutecidos.

120
Delírio de grandeza
Recusa parcial de alimentos por medo de veneno. Os doentes escolhem alguns
alimentos que acreditam não conter veneno e os comem com voracidade. Curso da
doença: remitente ou contínuo, com paroxismos.

Delírio de negação
Distúrbios da sensibilidade.
Anestesia.
Ausência freqüente de alucinações. Quando existem, não passam de confirmações
das idéias delirantes.
Conseqüentemente, não há antagonismo entre o doente e as vozes que lhe falam,
não há diálogo. Quando os doentes falam sozinhos, é para repetir as mesmas
palavras ou frases em forma de ladainha, que dirigem às pessoas ao seu redor.
Alucinações visuais bastante freqüentes.
Hipocondria física consecutiva. Os doentes não têm mais cérebro, estômago,
coração etc. Estão mortos, ou então nunca morrerão. Transformação da
personalidade. Alguns falam de si mesmos na terceira pessoa.

Delírio de negação e de aniquilamento


Os doentes negam tudo; não têm nem parentes, nem família, tudo está destruído,
nada mais existe, eles não são mais nada, não têm alma. Deus não existe mais.

Loucura de oposição
Recusa total de alimentos. Os negadores recusam porque são indignos, porque não
podem pagar, porque não tem estômago etc.
Curso, de início francamente intermitente, a seguir contínuo.
Notas
1. Texto lido na Société médico-psychologique, em 28 de junho de 1880 e publicado
nos Annales Médico-Psychologiques, set. 1880, tomo IV.

121
2. Tradução de Alain François. Revisão técnica pelo Prof. Dr. Mário Eduardo Costa
Pereira (Laboratório de Psicopatologia Fundamental/ UNICAMP).
3. Esquirol. Des maladies mentales. Paris, 1838.
4. Petit. Archives cliniques, p. 59.
5. Macario. Ann. médico-psychologiques, t. I.
6. Morel. Etudes cliniques, t. II, pp. 47 e 118.
7. Krafft-Ebing. Traité de psychiatrie (Obs. II e VIl).
8. Para maior clareza omiti a menção a casos mistos que, aqui também,
estabelecem transições graduais entre as diferentes formas vesânicas. Tais casos
são bastante freqüentes.
9. Encyclopédie des sciences religieuses, art. Juif Eerrant. “Pode-se considerar esse
destino (a imortalidade), diz o Sr. Gaston Paris, quer como uma recompensa, quer
como um castigo...” Essa mesma diferença se repete entre a imortalidade dos
megalômanos e a dos hipocondríacos ansiosos, como indiquei acima.
10. Extraído dos Archives de Neurolosie, n II e 12, 1882.
11. Tradução de Neusa Silva Ribeiro e Maria Vera Pompeo de Camargo Pacheco.
Revisão de Alain François. Revisão técnica pelo Prof. Dr. Mário Eduardo Costa
Pereira (Laboratório de Psicopatologia Fundamental / UNICAMP).
12. Falret. Annales médico-psychologiques, e Études cliniques sur les maladies
mentales et nerveuses. Paris, 1889.
13. Leuret. Fragments psychologiques. Paris, 1831.
14. Legrand du Saulle. Gazette des hôpitaux, décembre 1881.
15. Esquirol. Des maladies mentales, capítulo da Demonomania. Paris, 1838.
Bibliografia
Archambault, Annales médico-psychologiques, 1852, t. IV, p. 146 Petit, Archives
cliniques, p. 59.
Bailiarger, De l'état désigné sous le nom de stupidité, 1843.
Cotard, “Du délire hypochondriaque dans une forme grave de mélancolie anxieuse”.
Annales médico-psychologiques, 1880.
Esquirol, Des maladies Mentales, chap. "Démonomanie", Paris, 1838.
Fodéré, Traité du delire, t. I, p. 345.
Krafft Ebing, Lehrbuch der Psychiatrie, obs. 11 e VII.

122
Leuret, Fragments psychologiques. Paris, 1831, pp. 121, 407 e segs.
Traitement moral de la folie. Paris, 1840, pp. 274, 281.
Macario, Annales médico-psychologiques, t. I.
Materne, Th. de Paris, 1869.
“La théorie de 1'automatisme” (Annales médico-psychologiques, 1855).
Note sur le délire hypochondriaque (Académie dês Scienoes, 1860).
Michéa, “Du delire hypochondriaque”, Annales médico-psychologiques, 1864.
Morei, Eludes cliniques sur les maladies mentales, t. n, pp. 37 e 118.

123
Perda da visão mental na melancolia ansiosa (1) - (1884)
Jules Cotard

Chamei a atenção (2) sobre um estado psíquico, próprio aos ansiosos


crônicos, e caracterizado principalmente pela negação da existência dos objetos
exteriores ou mesmo da personalidade do doente.
Limitei-me a uma simples exposição dos fatos, sem outra finalidade a não ser
de determinar o valor clínico do sintoma e de seu lugar na patologia mental. Deixei
de lado, de propósito, qualquer interpretação dos fenômenos, qualquer pesquisa de
fisiologia ou de psicologia patológicas, por medo de me deixar levar a hipóteses, ou
muito arriscadas, ou muito banais.
Se volto a escrever hoje sobre o mesmo assunto, se me sinto mais
audacioso, é porque acho um ponto de apoio na observação notável do nosso sábio
e mestre, Sr. Professor Charcot, publicada por Sr. Bernard. (3)
Neste fato tão curioso e tão finamente analisado, trata-se de um homem
instruído e inteligente que, por causa de preocupações, de insônia e de perda de
apetite, se deu conta de uma profunda mudança nas suas faculdades mentais.
Havia perdido a memória visual dos objetos; para ele era impossível
representar mentalmente as cidades, os monumentos, as paisagens, os objetos que
lhe eram familiares; até os rostos de seus pais e de seus amigos não podiam mais
voltar a sua lembrança... Enfim, havia perdido o poder, antes muito desenvolvido
nele, de ver mentalmente os objetos ausentes.
Bem recentemente, um paciente que eu e Sr. Farlet observávamos havia dez
anos, atualmente internado na Casa de Saúde de V..., disse-nos confidencialmente
que tinha certos sintomas bem próximos, me pareceu, daqueles que acabei de
lembrar.
Eis resumidamente a história deste paciente:
M.P., 68 anos, diabético, foi internado a primeira vez em 1872, naquela época
em um estado de melancolia caracterizado por temores, sustos e uma hesitação
contínua que o levavam à inação e à recusa de alimentos. Pensava que estava
arruinado, incapaz e não queria mais viver. Ou então ficava de pé, imóvel, ou
passeava de um lado ao outro no seu quarto, repetindo que era o mais miserável

124
dos homens, que estava perdido e que nunca iria sarar. M.P. era muito difícil de ser
alimentado, de vestir-se para ir passear; era preciso ameaçá-lo para conseguir que
executasse atos os mais indispensáveis à vida.
Em torno de fevereiro de 1873, este estado melhorou consideravelmente, e
M.P. pode retornar à sua família.
Um novo acesso necessitou de novo internamento em 1881. Os mesmos
sintomas de melancolia ansiosa, as mesmas concepções delirantes se
reproduziram, mas juntaram-se logo ideais hipocondríacos que, sobretudo durante
um paroxismo muito intenso, acontecido em novembro 1882, tornaram-se
predominantes.
M.P. pretendia não haver mais sangue, que todo seu corpo estava podre e
que iria morrer, que estava morto. O mesmo delírio hipocondríaco persistia ainda
hoje, ao mesmo tempo em que as idéias de incapacidade, de indignação e de
perdição. M.P. acusa-se sempre, mas também acusa os outros; ele é extremamente
difícil de satisfazer, queixa-se do frio, do calor, dos alimentos – uma janela aberta
que deveria estar fechada, ou fechada quando deveria estar aberta, bastam para
provocar uma crise de desespero. M.P. reconhece que não é capaz de nada, que
não tem mais nem energia, nem inteligência, mas são todos os maus
procedimentos, todas as contrariedades, todas as misérias que lhe foram infligidas
que o levaram a este estado.
M.P. queixa-se que, há alguns meses, é muito difícil para ele representar
mentalmente os objetos que lhe são mais familiares. M.P. morou muito tempo em B.,
conhecia perfeitamente a cidade e, após ter ido embora, havia guardado uma
lembrança tão precisa que bastava fechar os olhos e fazer um leve esforço de
reminiscência que parecia ver o porto, as ruas, as lojas e a casa onde morava. Hoje,
esta operação mental é completamente impossível.
M.P. não consegue mais se lembrar da cidade V., nem da rua, nem da casa
onde morava desde que havia saído de B. O rosto de sua esposa lhe aparece às
vezes, mas muito confusamente. Ou M.P. nos diz que lembrava de alguns traços, ou
nos assegurava que a imagem havia apagado totalmente.
Posso ainda citar outro fato: fui chamado, há algumas semanas, para o caso
de um homem de 40 anos, cujo estado mental preocupava seus próximos.

125
Este paciente – M. – queixava-se de uma diminuição de suas faculdades
mentais; ele dizia estar perdido, incapaz de fazer seus deveres profissionais e não
queria mais viver. Um primeiro acesso, com sintomas bastante parecidos, havia
ocorrido há quatro anos e, dizem, foi perfeitamente restabelecido após um ano de
enfermidade. O acesso atual vinha então há seis meses. O doente quase não
dorme, passeia à noite em seu quarto, lamentando-se. Pretende ter a maior
dificuldade de representar mentalmente os objetos.
Tendo ido ultimamente passar alguns dias no interior com sua família, nos
conta que, de volta, no vagão do trem, mesmo com muitos esforços, não lhe foi
possível representar os traços de seus filhos, de sua mãe nem de suas irmãs, que
acabara de deixar.
M. está na chefia de um escritório de contencioso. Seu trabalho, que exige
muita atenção, está atualmente acima de suas possibilidades. M. atribuía sua
incapacidade ao fato de não mais poder representar mentalmente e ter em mente os
documentos relativos aos seus negócios.
Os dois pacientes, cujas histórias acabei de resumir, podem ser vistos como
tipos de melancólicos ansiosos, o primeiro evoluindo para o que chamei de delírio
das negações.
Me pareceu interessante notar a coexistência com esta forma vesânica da
parte da visão mental. Não se pode impedir de supor que há lá, de fato, outra coisa
que uma coincidência fortuita. Se a perda da visão mental fosse um fato ordinário
nos ansiosos crônicos, seríamos invencivelmente levados a considerar a negação
sistematizada, como um delírio implantado sobre a perturbação psico-sensorial,
como uma interpretação doentia do fenômeno. Infelizmente, as pesquisas clínicas
capazes de elucidar este problema são muito difíceis. Os ansiosos crônicos são, em
sua maioria, incapazes de responder a perguntas que exigem certa dificuldade de
analise psicológica.
Não se pode pedir a estes doentes que eles representem mentalmente
objetos que negam nunca ter existido; a maioria deles não responde às perguntas
que lhes são feitas.

126
É preciso aproveitar o momento, provavelmente muito fugaz, exceção feita
em alguns casos excepcionais, como aqueles que acabei de citar, onde a perda da
visão mental sendo efetivada, o delírio correlativo ainda não se organizou.
É preciso estudar se não há alguma coisa análoga à perda de visão mental,
um diminutivo deste sintoma nos melancólicos simples que se queixam de não ver
mais os objetos senão confusamente, de não mais os reconhecer, e que se sentem
separados como que por um véu da realidade objetiva.
Não seria menos interessante de aproximar da perda da visão mental à
alteração dos sentimentos afetivos.
A influência das imagens sobre os sentimentos e a inteligência é
suficientemente estabelecida pelo seu uso pelas principais religiões e pelo socorro
que acharam aí os místicos.
Entre os filósofos, Augusto Comte (4) deu a maior importância ao exercício da
visão interior, ao culto das imagens subjetivas como meio de aperfeiçoamento moral.
Um outro filósofo, que tenho grande prazer em citar, Pierre Prevost, avô de nosso
amigo Dr. Prevost (de Genebra) não deixou de indicar essas relações entre os
sentimentos morais e a representação mental: “O que geralmente se entende por
sensibilidade”, disse este excelente psicólogo, “depende em grande parte da
faculdade de imaginar” (5). Esses dados empíricos e teóricos achariam, quem
sabe, uma confirmação na patologia.

Aqui vai o que escrevia o paciente de Charcot:

“Parece-me que uma mudança completa aconteceu na minha


existência, e naturalmente meu caráter modificou-se de jeito notável.
Antes era impressionável, entusiasta, e tinha uma fantasia fecunda.
Hoje estou calmo, frio, e não consigo mais me perder em fantasia...
Estou muito menos acessível a uma tristeza e a uma dor moral. Direi
que, tendo perdido um de meus parentes ultimamente, ao qual
dedicava uma amizade sincera, senti uma dor bem menor do que eu
sentiria se tivesse ainda o poder de representar, pela visão interna a
fisionomia deste parente, as fases da sua doença e, sobretudo, se
pudesse ver interiormente o efeito produzido, por esta morte
prematura, sobre os membros de minha família”.

Os melancólicos, conscientes de seu estado, ao mesmo tempo queixando-se


de não mais enxergar nitidamente a realidade objetiva, se acusam de não amar mais
nada. Se não se restabelecerem, ou se acessos ulteriores mais graves acabam em

127
cronicidade, nota-se que seus sentimentos afetivos são gravemente atingidos e que
chegam a merecer as acusações que eles mesmos se faziam.
Alguns se tornam acusadores e perseguidores e se identificam com muitos
traços de loucura dos outros, cujo delírio é mais caracterizado, chegam em
negações e na mais absoluta indiferença, quando não em ódio, por tudo que era
antes para eles o mais caro.
Esta alteração afetiva está em relação com o apagamento mais ou menos
completo da exposição das representações afetivas? Me limito a fazer a pergunta:

128
O delírio da enormidade (6) - (1880)

Meus senhores, nosso distinto colega Sr. Dr. Séglas chamou recentemente a
atenção sobre as formas vesânicas combinadas; publicou (7) uma observação muito
interessante, na qual vejam-se os sintomas da melancolia ansiosa misturar-se
àqueles do delírio de persecução; numa outra observação (8), Sr. Dr. Séglas
assinalou a aparição de idéias de grandeza num período avançado da melancolia
ansiosa.
Mesmo que a análise de fatos patológicos semelhantes seja delicada e o
diagnóstico muitas vezes espinhoso, parece que a dificuldade não deve ser levada
sobre a apreciação das idéias delirantes elas mesmas. É difícil conceber que, em
frente de uma fórmula delirante, o clínico fique embaraçado e tenha dúvidas se deve
qualificar a idéia de persecução, de idéia melancólica ou de idéia de grandeza.
Parece, repito, que a idéia claramente expressa pelo paciente deve se caracterizar
bastante nitidamente por ela mesma.
A este respeito não é sempre assim. Certos ansiosos apreensivos, que
temem ser queimados, torturados ou cortados em pedaços, chegam freqüentemente
a um falso delírio de persecução no qual as concepções mesmas apresentam
caracteres mistos e indecisos que as tornam sem classificação em nossas
categorias comuns. Nos casos de outros ansiosos, a idéia de ser um grande
culpado, de ter cometido todos os crimes, de ser o diabo, de ter um poder infernal,
entre outros, acabam em uma espécie de megalomania.
Peço a vocês a permissão para apresentar algumas considerações deste
falso delírio de grandeza.
Se for verdadeiro, como tentei estabelecer numa comunicação anterior (9),
que as idéias ambiciosas germinam sobre um estado de eretismo psicomotor, temos
o direito de nos perguntar por que na melancolia ansiosa onde este motor é
evidente, o delírio toma a forma melancólica e negativa. Aí existe uma dificuldade
que não dissimulo de jeito algum, mas que parecerá talvez menos insolúvel se
analisarmos com atenção o estado mental dos ansiosos.

129
Nota-se primeiramente que o seu eretismo motor apresenta um caráter bem
particular, ele é automático, violento, impulsivo e acompanhado de fenômenos
inibitórios. A excitação franca dos excitados maníacos é absolutamente diferente.
Nos dois estados, tanto nos casos de mania quanto nos de ansiedade, o
doente tem o sentimento de uma potência interior, mas nesses últimos casos, é uma
má potência, infernal e diabólica. Impotentes para o bem, eles são onipotentes para
o mal.
Ora o doente atribui para ele mesmo esta potência, ora recusando de
reconhecer os impulsos horríveis que se produzem nele, e dos quais ele tem
consciência – então os explica pela teoria da possessão diabólica.
Há somente uma nuança entre os delírios de culpabilidade e de possessão:
na confusão mental que leva à agitação ansiosa, os doentes consideram-se ora
como criminais, ora como danados, ora como possuídos.
Quando este sentimento de potência interior adquire uma intensidade
suficiente, ele dá uma espécie de grandeza às concepções mórbidas.
O doente acredita que ele é a causa do mal todo que existe no mundo; ele é
satanás, ele é o anticristo. Alguns imaginam que seus menores atos têm efeitos
incomensuráveis; se comer o mundo inteiro está perdido, se urinar a terra será
inundada por um novo dilúvio. Serão neste caso idéias de grandeza? Será um delírio
ambicioso acreditar que ele é o homem mais infame que jamais existiu e que jamais
existirá?
Mesmo que melancólicas no fundo, essas concepções se aproximam por
alguns lados da megalomania verdadeira. Os doentes consideram-se seres
excepcionais, únicos no mundo e se atribuem uma espécie de onipotência.
Se seguirmos esses doentes na longa evolução de seu delírio, vemos
aparecer, num período mais avançado na cronicidade, concepções que se
aproximam ainda mais do delírio ambicioso. O tipo dessas concepções nos é
fornecido pelas idéias de imortalidade.
Já chamei a atenção da sociedade, há alguns anos, sobre as idéias de
imortalidade dos ansiosos crônicos, e tentei demonstrar que elas se ligavam ao
delírio hipocondríaco e às disposições negativas que observamos geralmente
nesses doentes.

130
Mas existem outras concepções mórbidas que aparecem com as idéias de
imortalidade e que me parecem congêneres.
Se examinarmos com um pouco de atenção os imortais, percebemos que
alguns deles não são somente infinitos no tempo, mas que o são também no
espaço. Eles são imensos, seu tamanho é gigantesco, sua cabeça vai tocar as
estrelas. Uma demonópata imortal imaginava que sua cabeça atingiu proporções tão
monstruosas que ela atravessa os muros da casa de saúde e vai até o vilarejo
demolir, como um carneiro, os muros da igreja. Algumas vezes, o corpo não tem
mais limites, se estende ao infinito e se fusiona com o universo. Estes doentes, que
não eram nada, chegam a ser tudo.
Repito a questão que eu fiz agora há pouco; são estas idéias de grandeza?
As analogias com a megalomania verdadeira se acentuam mais e é difícil de
responder.
Os doentes são no infinito, nos milhões e milhares, na enormidade e o super-
humano. No seu exagero e sua enormidade, as concepções guardam sua
característica de mostrar idade e horror. Longe desta enormidade, vejo uma
compensação no delírio melancólico, ela marca, ao contrário, o xxx mais excessivo.
Também os delirantes por enormidade, eles são sempre aqueles que
lamentam, gemem e se desesperam; sua atitude e sua fisionomia são também
diferentes dos verdadeiros megalômanos.
Mas precisaria ser um psicólogo bem ingênuo para não adivinhar que até o
amor próprio acaba por encontrar vantagem. O hiperbolismo da linguagem, as idéias
de enormidade e o sentimento de uma potência maléfica são verdades, mas super-
humana concordam mal entre si.
Uma doente que já mencionei (10) e que, em 1882, era um verdadeiro tipo de
delírio, chegou hoje a acreditar-se imensa. Ela é tudo, de uma vez, Deus e o diabo,
toda poderosa tanto para o mal quanto para o bem, ela é a santa virgem, é a rainha
do céu e da terra. Este delírio se manifesta sobretudo por momentos como por
acessos e alterna com o antigo delírio melancólico e de negação. Acontece até que
os dois delírios coexistem ao mesmo instante e se associam da maneira mais
incoerente: ora Sra. X. é precipitada no nada, nos abismos, a mais de 100 mil pés
sob a terra, ora ela é mais alta que o Mont Blanc, ela é o Mont Blanc, ela é o trovão,

131
o raio e os relâmpagos; ora ela não existe mais, ora ela é e está ao mesmo tempo
na Índia, na América e em todas as partes do mundo.
Resumo as conclusões seguintes:
1) Em um período mais ou menos avançado do delírio ansioso produz-se
freqüentemente uma pseudo-megalomania caracterizada principalmente por idéias
de imortalidade, de imensidão, entre outros, pseudo-megalomania que eu proponho
de designar sob o nome de delírio de enormidade, para distinguí-la do verdadeiro
delírio de grandeza.
2) Este delírio de enormidade pode acabar, nos casos muito crônicos, em
verdadeiras idéias de grandeza.
3) A aparição de idéias de grandeza em um período avançado de um delírio crônico
não é só do delírio de perseguições.

132
Da origem psicomotora do delírio (11)
Jules Cotard
Meus senhores, os admiráveis trabalhos de análise nos quais a afasia foi o
objeto, nos familiarizaram com os termos de imagens sensoriais, imagens motoras e
com a divisão correspondente das faculdades intelectuais relativas à palavra ou à
escritura. Mas a linguagem constitui somente uma parte restrita, por mais importante
que seja de atividade psíquica. Às imagens das palavras é preciso acrescentar as
imagens das coisas e a analogia nos leva a supor que, quando se trata de
percepções outras que aquelas da palavra ouvida ou lida, de atos outros que
aqueles da palavra articulada ou escrita, o mecanismo cerebral não deve ser
absolutamente diferente.
Se esta indução é legítima, nós somos autorizados a atribuir os distúrbios da
inteligência como aqueles da linguagem às lesões sensoriais e às lesões motoras: é
o caso de procurar no delírio os caracteres que respondem a esta dupla origem.
A ação dos distúrbios da sensibilidade, das alterações das imagens sensíveis
sobre o funcionamento cerebral, não pode ser seriamente contestada. As doutrinas
sensualistas têm somente exagerado, querendo torná-la exclusiva. Se fosse
verdadeiro que não existe nada no entendimento que não provenha dos sentidos, é
claro que precisaria procurar nesses a origem das perturbações da inteligência como
também de sua atividade normal. Mas o aparelho psíquico não é somente sentindo,
ele age sua atividade, mesmo que intimamente ligada às impressões que ele recebe,
não é inteiramente desprovida de espontaneidade.
Cada centro nervoso vive sua própria vida e, de um certo modo,
independente. Os centros motores podem a esse respeito ser considerados como
criadores de uma energia psíquica que pega suas raízes na vida orgânica destes
centros e que não é absolutamente subordinada às influências provenientes dos
outros centros corticais.
O determinismo puramente psicológico da vontade encontra-se
conseqüentemente limitado, contrariado ou aniquilado pela autonomia dos centros
motores, desconhecida pelos sensualistas e que é a condição fisiológica do
sentimento que nós temos de nossa liberdade interior (12).

133
A independência relativa dos centros motores e sensoriais se manifesta bem
particularmente nos estados patológicos. Os fatos de afasia demonstram que cada
um deles pode ser afetado em suas funções sem que as outras o sejam ao mesmo
grau.
O estudo das doenças mentais permitiu constatar distúrbios sensoriais,
anestésicos ou alucinatórios dos distúrbios motores, inibidores ou espasmódicos,
reagindo somente fracamente sobre o conjunto das faculdades psíquicas, ou
levando a delírios limitados.
Já em uma época onde ninguém suspeitava da existência dos centros
motores corticais, os clínicos tinham sido surpreendidos pela coincidência dos
distúrbios da inteligência com aqueles do movimento. Segundo Falret, estes últimos
existiriam na maioria dos alienados. “A lesão fundamental da mania”, disse
Griesinger, “consiste numa perturbação da força motora da alma. As relações entre
as neuroses convulsivas, a histeria, a epilepsia, as coréias, a doença dos tiques
convulsivos e certos distúrbios psíquicos correspondentes, relações tais que aqueles
puderam ser considerados como o equivalente da convulsão, ligaram mais perto os
distúrbios da inteligência com aqueles dos movimentos”.
As expressões convulsão mental, idéia espasmódica e impulsão intelectual
(13) são usadas correntemente em nossa ciência.
Numa comunicação à Sociedade Médica-Psicológica (14), procurei
apresentar de forma sintética esses apanhados isolados e fragmentários. Tentei
determinar os caracteres distintos do delírio, de como ele se implanta sobre lesões
psico-sensoriais ou sobre lesões psicomotoras e, conforme a opinião de Destutt de
Tracy et de Maine de Biran, de ligar a essas últimas alterações da personalidade.
Gostaria de acrescentar alguma precisão a este ponto de vista do conjunto e,
se for possível, determinar mais exatamente o papel dos elementos motores na
gênese do delírio.
É preciso, por isso, especificar direito o que se entende por imagens
sensoriais e imagens motoras. A priori e se referindo ao esquema da afasia, nada
parece mais fácil. Na realidade, a questão é das mais árduas.
Do mesmo modo que, com sua independência relativa, as diferentes imagens
verbais estão conectadas entre si, e se evocam reciprocamente, o mesmo acontece

134
com as representações mentais dos objetos do mundo externo e nas imagens
motoras de nossos atos. O motor e o sensorial são tão misturados que é
extremamente difícil definir a parte que pertence a cada uma dessas duas
categorias.
A percepção supõe fenômenos motores cujos resíduos ficam ligados à
imagem sensível, e as imagens motoras combinam-se intimamente com a
representação dos objetos que esses atos concernem.
Outro elemento de confusão provém do poder motor que exercemos sobre as
próprias imagens sensíveis. Nós podemos evocá-las, movê-las, agrupá-las, dispô-
las do jeito que quisermos, podemos ampliá-las, diminuí-las e deformá-las, à
vontade.
Há, além do mais, uma motilidade automática dessas mesmas imagens, que,
independente de qualquer esforço voluntário, aparecem, combinando-se, impondo-
se, agem sobre nós e sem nossa vontade, como se fossem dotadas elas mesmas de
atividade motora.
Maine de Biran cita uma passagem de Hume, relativa a este poder que a
mente instável exerce sobre os pensamentos e sobre o corpo, e ele próprio insiste
sobre essas duas forças às quais é submissa a reprodução das idéias, uma, cega e
espontânea, a outra, voluntária e livre.
A maioria dos psicólogos – Charles de Bonnet, Ampère, Dugald Stewart – não
se expressa menos formalmente a respeito desses movimentos internos do
pensamento.
É a esta atividade motora, voluntária ou automática, que devemos as criações
brilhantes da imaginação, e graças à mesma faculdade podemos executar essas
diversas construções mentais que designamos sob o nome de raciocínios. É ainda a
mesma faculdade que estabelece uma relação entre o eu e o mundo externo: por ela
nos apoderamos do mundo e para ela o mundo externo reage sobre nós.
O sentido ativo e motor dos termos que se aplicam a este exercício do
pensamento, visível nas palavras conceber, entender, apanhar, entre outras, indica
um sentimento instintivo e espontâneo desta atividade motora que preside as
opressões mentais. Dizem da inteligência que ela está viva, ativa, pronta, ou que ela
é lenta e preguiçosa; usam dos mesmos termos que qualificam os movimentos de

135
nosso corpo e de nosso corpo. Dugald-Stewart comparava as idéias brilhantes da
mente a manobras de destreza bem executadas. Gratiolet cita uma passagem
notável de Engel, na qual os movimentos da marcha, a lentidão embaraçada deles e
a parada repentina são colocadas paralelamente com as lentidões e as hesitações
do pensamento.
Mais que uma analogia, tem relações tais que as duas ordens de atividade se
influenciam reciprocamente; o movimento muscular é um excitante intelectual e o
exercício do pensamento reage sobre o exercício muscular.
As experiências do Sr. Féré confirmaram o que a observação empírica havia
aprendido a este respeito.
Transportadas na patologia, as considerações que precedem vão ajudar-nos
a conceber a natureza de certos distúrbios psíquicos.
Do mesmo jeito que, na ordem dos movimentos aparentes, existem as
paralisias, as convulsões, as contraturas, entre outras, pode também produzir-se
distúrbios análogos no nosso interior pelos quais nós mexemos nos elementos de
nossos pensamentos e que são verdadeiramente os órgãos da inteligência.
Já dissemos anteriormente, o que estabeleceram empiricamente os clínicos.
Sabemos qual importância Esquirol dava às lesões da atenção voluntária. Sr.
Baillarger não insistiu menos sobre o papel do automatismo mental na loucura. A
atividade, que no estado normal preside no movimento do pensamento, é alterada,
diminuída ou substituída pelos estados espasmódicos. Ora as imagens se destacam
do eu que não pode mais as recuperar. Ora após um automatismo mórbido, elas se
apresentam sobre forma de obsessões e extraem um valor objetivo dos elementos
espasmódicos pelos quais elas se impõem.
As expressões paralisia psíquica, convulsão intelectual, idéia espasmódica e
reflexo psíquico não são mais simples metáforas, mas a expressão exata dos fatos.
Eu não quero procurar por quais procedimentos nossa atividade psicomotora
age sobre as imagens psico-sensoriais, se é pelos movimentos dos órgãos dos
sentidos análogos àqueles que se produzem quando nos percebemos objetos em
movimento, ou se é por representações motoras dos atos pelos quais poderíamos
pôr em movimento os objetos correspondendo às imagens sensíveis.

136
Eu queria somente fazer sentir a influência considerável dos distúrbios
motores num grande número de fatos patológicos ligados aparentemente a uma
origem sensorial.
Se há alguma verdade nas considerações que acabei de expor, deve-se
concluir que a impossibilidade de evocar as imagens e a perda da visão mental,
sintomas tão freqüentes na melancolia, se explicam pela paralisia psíquica como
também pela anestesia à qual somos levados primeiramente a pensar.
Neste caso, como em muitos outros, as duas categorias de distúrbios se
confundem de uma maneira inextricável.
Uma conexão mais estreita ainda entre o motor e o sensorial é gerada pelas
próprias imagens sensíveis de elementos motores que entram em sua constituição
íntima. Indiquei anteriormente como, em certos casos de idéias obsessivas, o
impulso automático se fusionava com a imagem e lhe dava uma espécie de vida
externa ao eu. Alguma coisa análoga se produz no estado normal. O exame das
imagens sensíveis que se aproximam das imagens motoras, o exame das imagens
sensíveis dos corpos em movimento, me ajudará, espero, a fazer entender ao que
eu faço alusão.
Todos os filósofos estão de acordo em reconhecer a inclinação que nos leva a
reproduzir, a imitar os movimentos, os sons, os atos que os nossos sentidos foram
atingidos (15). O fenômeno se manifesta com a regularidade de um reflexo nos
doentes afetados pela ecolalia ou pela ecokinesia (16). Os exemplos mais evidentes
se relacionam aos movimentos ou aos atos executados por nossos semelhantes;
mas os fenômenos análogos à imitação se produzem para todos os objetos mesmo
inanimados, cujo movimento é percebido por nossos sentidos. Estas reações
motoras, fracamente aderentes ao eu, em razão do seu caráter automático (até
mesmo algumas vezes inconscientes), se relacionam ao contrário pela associação
mais estreita com as sensações que se originam delas e as imagens sensoriais que
podem renová-las. Elas tendem a objetivar-se ao mesmo tempo que estas últimas.
O pêndulo de Chevreul, as mesas giratórias, os efeitos bem conhecidos de
certas formas de vertigem e, sobretudo, um grande número de fatos de patologia
mental, demonstram com que facilidade nós somos levados a atribuir aos objetos ou
aos seres exteriores os movimentos involuntários que se produzem em nós (17). O

137
sentimento de potência que acompanha estes movimentos se transporta no mundo
externo e assim se realizam fora de nós as idéias de força de causa, de substância e
mesmo de existência.
Seria lá a origem das idéias metafísicas. Kant havia bem penetrado o caráter
subjetivo delas; Schopenhauer fazia-as derivar da vontade; nós veremos daqui a
pouco que elas parecem de fato subordinadas à energia psicomotora e às
alterações desta energia, se exaltando ou se apagando na mesma proporção.
Examinemos os mais comuns sintomas das afeições mentais e vejamos se as
considerações nas quais acabei de entrar, sobre a natureza essencialmente motora
da atividade intelectual, podem nos fornecer alguns socorros para a interpretação
dos fenômenos mórbidos.
Não há nenhuma forma de doença mental onde os distúrbios da atividade
motora se manifestam com tanta evidência quanto na mania.
Todos os autores descreveram esta sensação patológica relacionada ao
mesmo tempo sobre os movimentos exteriores, sobre a palavra e sobre o
movimento interior do pensamento. O desenvolvimento consecutivo das idéias de
força, de talento, de potência e de grandeza, como também sentimentos de alegria e
de felicidade, foram claramente indicados por Pinel e pela maioria dos observadores.
O mais freqüente, na franca excitação maníaca, quando não há elementos
melancólicos, a hiperkinesia é relacionada ao eu como também a atividade voletiva
normal. É o eu que quer, é o eu que assume a responsabilidade dos atos e se
glorifica daquilo; o sentimento da personalidade se exalta na mesma proporção que
a atividade motora.
Do exagero do poder motor pelo qual nós agimos sobre as imagens do
mundo externo, pelo qual nós as tornamos nossas e pelo qual nós nos apoderamos
do que está em nossa volta, nascem as idéias de riqueza nas quais Destutt de Tracy
já colocava a origem da vontade.
O maníaco conhece tudo, possui tudo e pode tudo. Ele vive num milagre
perpétuo. Reside aí o absurdo de seu delírio: não há nem razão nem lógica para um
ser todo poderoso capaz de manter em equilíbrio e sem esforço aparente as mais
estáveis construções mentais.

138
Ao lado desta exaltação do poder pessoal desenvolve-se aquela dos
elementos automáticos de atividade mental, dos elementos motores aderentes às
imagens sensíveis.
Nos estados de excitação moderada, naqueles compatíveis com a saúde, que
fazem nascer os sentimentos vivos, as paixões expansivas, o amor, a piedade
exaltada, ou certas influências tóxicas, o mundo exterior fica singular, a natureza
inteira se anima e se veste com as mais sedutoras cores. Tudo é lindo, tudo é bom;
o eu não somente se beneficia de sua superatividade própria, mas ele se enriquece
de todas as influências dinamogênicas que recebe do automatismo. Ele se deixa
levar por essas influências que se fundem em uma espécie de coalescência.
É a inspiração, é o entusiasmo, é o deus que agita e esquenta a alma do
poeta, é a graça que enche aquela do cristão por um mecanismo análogo, apesar do
contraste aparente àquele da possessão demoníaca. As surpreendentes convicções
impostas ao espírito por esta aliança irresistível do automatismo e da vontade
justificam, por uma origem toda poderosa, sua consistência sobrenatural. “Credo
quia absurdum”, dizia Tetullien. Parece de fato que somente Deus pudesse fazer
este milagre, que uma idéia contraria à razão se imponha com toda a força da
verdade.
Assim, a idéia de grande potência, que o eu se atribui quando a hiperkinesia é
voluntária, se exterioriza quando torna-se automática. Mas muitas vezes há
confusão entre o eu e o não eu. Os inspirados, os místicos, os profetas, os messias
em comunhão direta com deus pela convergência da volição e do automatismo,
chegam bem facilmente a acreditar que eles são o próprio Deus.
As formas da exaltação maníaca nas quais os diversos elementos psíquicos
se associam no mesmo dinamismo sinérgico e onde se produzem, pelo menos
momentaneamente, uma harmonia e uma felicidade perfeitas, são todas diferentes
de outras formas de mania, nas quais predomina a irritabilidade, as implicâncias, as
disposições agressivas, a necessidade de destruição e o furor.
Para designar estes estados tão diferentes, nós usamos indistintamente do
mesmo termo unívoco e banal de excitação. Categorizar sob os títulos excitação e
depressão todas as lesões da atividade motora, é um procedimento de observação
muito sumário. Todas as nuances de caráter correspondem a nuanças equivalentes

139
aos elementos motores que o constituem. As disposições à benevolência, à
ruindade, à malignidade, às idéias brilhantes, entre outras, às quais Gall queria
designar de órgãos distintos, derivam, bem na verdade, de modificações de nossos
centros motores, desconhecidas na sua natureza íntima, mas que se manifestam no
conflito entre nossa personalidade e os seres subjetivos que constituem as imagens
sensíveis animadas elas próprias pelos elementos motores que lhes são anexados.
Há, poderíamos dizer, tantas variedades na mania quanto na maneira de agir
das diferentes formas de caráter.
Notamos somente que as formas irritáveis e violentas da mania supõem, no
conflito entre os diversos elementos psíquicos, o antagonismo que aproxima essas
formas da mania, aos estados impulsivos e alucinatórios, sobre os quais retornarei
logo e também da melancolia agitada com a qual elas se confundem por nuances
insensíveis.
Os distúrbios da energia motora na melancolia depressiva não são menos
evidentes que na exaltação maníaca e foram assinalados pelos melhores
observadores. Os próprios doentes se queixam de não ter mais vontade e de ter
perdido o poder de dirigir seus pensamentos. Uma diminuição de energia afetando
ao mesmo tempo a reação do eu sobre o mundo exterior e a influência do mundo
exterior sobre o eu, parecem constituir essencialmente a melancolia depressiva na
sua mais simples forma, e o mais constante distúrbio. Estes fenômenos dolorosos
aos quais somos tentados a colocar em primeiro lugar, às vezes fazem falta, e nunca
foi provado, quando existem, que a depressão psicomotora lhes seja subordinada. A
alegria, a jovialidade, a felicidade do maníaco, parecem derivar diretamente da
exaltação psicomotora; dos estados inversos de depressão não derivam diretamente
de uma disposição moral penosa, um aborrecimento, um abatimento, um desespero
que se explica, ao meu entender, pela perda de energia motora, pelo isolamento,
pelo empobrecimento que resultam para o eu mais que pelos distúrbios da
sensibilidade. Nos casos da melancolia com reação dolorosa intensa, a contribuição
dos distúrbios motores é talvez a mais considerável.
Não é pela depressão da energia psicomotora que o doente se sente
separado das imagens do mundo exterior, que ele não pode mais evocar porque lhe
escapa, do qual ele não é mais o mestre. Ele acredita que nada mais lhe pertence,

140
que está arruinado e que perdeu tudo o que tinha de mais precioso de mais caro.
Sua dor é comparável àquela de um homem são de espírito que teria realmente a
infelicidade a que o melancólico se atribui. Para serem subjetivas, as portas deste
último não são menos dolorosas e mesmo que, muitas vezes, admitamos que é a
dor que gera a idéia delirante, a opinião inversa me parece, em muitos casos, mais
verdadeira.
A diminuição da energia psicomotora não se manifesta somente pela
depressão do eu e pelas idéias de ruína e de perdição que nascem imediatamente.
Os elementos motores, anexados às imagens sensíveis, sofrem, pelo fato da
sinergia cerebral, uma alteração análoga. Os doentes não somente são incapazes,
perdidos, arruinados, são abandonados por Deus e pelos homens, não são mais
amados, os objetos externos não agem mais sobre eles da mesma forma e perdem
até sua realidade substancial (devido aos elementos motores). O delírio das
negações, no qual acabam as formas graves, se explica também por distúrbios
motores como as formas vesânicas de onde ele provém. “Quando a melancolia”,
disse Guislain, “é acompanhada de ansiedade, de gemidos, de uma inclinação ao
suicídio ou de qualquer outra determinação, ela não é mais ao seu grau de maior
simplicidade. Neste caso, um princípio de ação relaxa sua energia, há atividade,
anomalia nos impulsos”.
A excitação motora que se manifesta visivelmente no costume exterior dos
ansiosos agitados, se traduz freqüentemente, na sua consciência, pelo sentimento
de uma força invencível que empurra ou que para, de um espasmo doloroso que
paralisa como o fazem as contrações e as cãibras musculares, o também sentimento
convulsivo que eles não podem dominar. É então que se desenvolvem as idéias de
potência infernal, de possessão e de danação. Nós devemos a Sr. Dr. Séglas ter
demonstrado as influências das impulsões verbais, chamadas alucinações
psíquicas, sobre essa forma de delírio. Os outros fenômenos impulsivos se
comportam da mesma forma; doentes, com impulsões violentas, acreditam ser
criminais, possuídos, danados ou transformados em diabos, outros, levados a urrar
ou a morder, acreditam ser lobos. As reações inibitórias que exercem as impulsões
doentias, sobre as diferentes regiões da esfera psíquica, se traduzem pela idéia de
uma influência destrutiva sobre os objetos externos sobre o universo inteiro.

141
Assim, enquanto os estados de depressão motora simples conduzem à
duvida e às negações filosóficas e religiosas, os estados de exaltação sugerem a
crença em seres sobrenaturais.
As alucinações – é preciso dizer – agem no mesmo sentido. Os perseguidos
alucinados enxergam, em todo lugar em volta deles, influências misteriosas e
potências sobrenaturais. Mas é preciso ter cuidado ao atribuir uma influência
preponderante aos fenômenos sensoriais da alucinação. As idéias de potência
provêm sempre de um fenômeno motor. E pelo automatismo que se constituem,
perto do eu, de potências ou até personalidades ativas objetivadas no mundo
externo. O fenômeno não difere da possessão se não por uma exteriorização mais
completa. Os possuídos objetivam o automatismo fora da sua personalidade moral,
mas não fora de sua personalidade física. Freqüentemente até o eu deles
psicológico está invadido e transformado. Os perseguidos objetivam o automatismo
no mundo externo, sua personalidade física e moral é atacada, mas resiste mais
tempo.
Como é produzido esse automatismo objetivado? Qual é a parte dos
elementos sensoriais e motores que o constituem? Está aí o ultimo ponto que eu
queria abordar.
No estado normal, vimos agora há pouco, as imagens mentais são compostas
de elementos sensoriais e de elementos motores formando pelo seu conjunto um
todo coordenado. Segundo as opiniões dos psicólogos e também dos fatos clínicos,
tentamos estabelecer que as idéias de força, de causa, de potência e até de
existência eram ligadas aos elementos motores.
Pelo automatismo desses elementos motores incorporados às imagens
sensíveis ou às idéias abstratas, às palavras, se constituem seres, personalidades,
vivendo de certo modo uma vida limpa no cérebro, como o eu, mas ao lado dele. É
aqui a condição e o mecanismo desta existência subjetiva, sobre a qual Auguste
Comte fundou um dos mais poéticos e comoventes dogmas de seu sistema filosófico
religioso.
Mas essas existências que se desenvolvem no cérebro perto de mim são
submissas, como ele, aos distúrbios funcionais do órgão. Elas se prostram e

142
desmaiam nos estados depressivos; elas se animam, nos estados de excitação de
irritabilidade moral, de uma atividade congênere.
Seu automatismo nocivo caracteriza muito particularmente o delírio das
perseguições. Daí a interpretação dos doentes que vêem, em toda a sua volta,
intenções irônicas e malvadas, das potências empenhadas contra a sua pessoa.
As verdadeiras alucinações, como ensina a clínica, aparecem somente em
segundo lugar e são verdadeiramente subordinadas ao automatismo motor, ao
exercício involuntário da imaginação, assim como os sustentaram os melhores
observadores. As alucinações sugeridas se explicam somente por uma reação
intelectual. A mesma influência ativa está manifestada nos casos de alucinações
provocadas pela vontade (18). O que pode a vontade, se produz sem dúvida bem
mais facilmente pelo automatismo já destacado do eu e aderente às imagens.
Assim, continua até nos seus elementos alucinatórios o caráter automático do
delírio, das perseguições. Nas fases avançadas da doença pela extensão e a
generalização do distúrbio doentio, o eu é atingido na sua vez. “Vão acabar por me
enlouquecer”, dizem os doentes. As idéias de grandeza se produzem pela invasão
da esfera do eu, do mesmo dinamismo que gera as idéias de força e de potência
externa, quando fica limitado à esfera do automatismo. A luta e o conflito não
demoram menos até os períodos avançados da doença. O delírio das perseguições
se desenvolve raramente sobre um fundo de benevolência e somente a
benevolência universal pode estabelecer em nós a harmonia mental e a paz interior.

Notas
(1) Extraído dos Archives de neurologie, 1884.
(2) Cotard. “Délires de négations”, Archives de neurologie, 1882.
(3) BERNARD, Progrès medical, de 21 julho 1883.
(4) Auguste Comte, Politique positive, passim. Ver o sumário analítico de Henri
D’Olier.
(5) Pierre Prévots, Essai de philosophie ou Étude de l’espirit humain, Genève, ano
XII I, pp. 298, 301.
(6) Leitura feita na Societé médico-psicológica, na cessão do 26 de março 1888.
(7) Séglas, Annales médico-psychologiques, janvier 1888.
(8) Séglas, Le progrès médical, 12 novembre 1887.

143
(9) Cotard, Societé Médico-psychologiques, sessão do 28 de março 1887.
(10) Séglas, Les Négations (obs. V.).
(11) Congresso Internacional de Medicina Mental, 1888.
(12) Monouvrier, Revue philosophique, 1884, t. XVII, pp. 519 et 520.
(13) Guinon, Article Tic convulsif du dic, Encyclopédique des sciences.
(14) Ball, Encéphale, 1888.
(15) Cotard, Ann. Médico psicológico.
(16) Féré “Introduction psychomotrice”, in Sensation et mouvement, p 13.
(17) Gilles de la Tourette, Arch. De neurologie, 1885.
(18) Pierre Janet, L’automatisme psychologique, p 431.
(19) Maudsley, Pathologie da mente, p. 395. Annales médico-psychologiques. 1882
VII p. 378.

144
O Delírio das Negações na melancolia
Jules Séglas

Lição de 25 de fevereiro de 1894 (lição quinze), resumida pelo Sr. H. Meige.


Journal des connaissances médicales, nºs 30/31/32, 1894.

Sumário. - Resumo histórico. - Opiniões diversas: necessidade de estabelecer


divisões nosográficas e uma terminologia precisa.

O Delírio das Negações melancólico no período de estabilização. - A


síndrome de Cotard: 1°. idéias de negação, suas variedades; - 2°. idéia de
imortalidade; análise desta idéia, seu caráter hipocondríaco; - delírio de enormidade,
idéias de grandeza, de satisfação; - 3°. delírio melancólico, idéias de danação e de
possessão, sua importância; - 4°. distúrbios da sensibilidade, da percepção pessoal,
analgesia, perda da visão mental; alucinações; - 5°. reações gerais e especiais:
ansiedade, loucura de oposição, mutismo, recusa de alimentos, suicídio, mutilações,
linguagem.
Evolução: desenvolvimento psicológico e curso clínico.
Freqüência; etiologia.
Objeções relativas às variações da sintomatologia e da evolução. - Exame
crítico. - Necessidade de distinguir diferentes variedades de Delírio das Negações
melancólico. -Importância para o prognóstico.
Algumas indicações de diagnóstico.
Exemplos clínicos.
Senhores.
Vamos nos ocupar hoje de uma questão que se liga estreitamente ao estudo
da melancolia. Quero falar desse estado psicopático descrito por Cotard, há alguns
anos, sob o nome de Delírio das Negações (1).
Em 1861, Bailiarger (2) chamou a atenção para uma forma especial de delírio
hipocondríaco, com idéias de destruição e de não-existência dos órgãos, encontrado
na paralisia geral, que ele via como característico, quase exclusivo, dessa doença,
podendo ser considerado como um sinal precursor e servir por si só como elemento
diagnóstico.

145
Nos trabalhos de Bailiarger, é preciso, então, distinguir dois pontos: 1°. a
existência do delírio hipocondríaco de negação na paralisia geral; 2°. seu valor
diagnóstico. Ora, se o primeiro é verdadeiro, o segundo é exclusivo demais.
Muitos autores, desde o início, se empenharam em demonstrar o exagero do
alcance assim atribuído a esse sintoma. E o tempo fez justiça, definitivamente, ao
que essa asserção tinha de absoluto demais.
Em 1880, Cotard apresentou à Sociedade Médico-Psicológica um relato em
que demonstrava a existência desse delírio hipocondríaco particular numa forma
grave de melancolia ansiosa e evidenciava o complexo sintomático que se observa
em tal circunstância. (3) Algum tempo depois (1882), fez um estudo completo sob o
nome de Delírio das Negações e, em seguida, publicou diversos trabalhos sobre
pontos particulares da questão.
Nesse meio-tempo, o Sr. Paris publicou um caso, e eu mesmo comuniquei (4)
alguns quadros análogos aos de Cotard, ao mesmo tempo que tentei fixar o valor
semiológico e a patogenia desse delírio particular. O Sr. Dagonet Filho (5)
apresentou, por sua vez, uma nova observação; o Sr. Régis, (6) um estudo
diagnóstico. Depois veio a discussão do Congresso de Blois (1892), (7) e, quando
eu tiver citado uma nova observação do Sr. Arnaud, (8) uma que publiquei em
colaboração com o Sr. Sourdille, (9) duas observações e uma revisão crítica do Sr.
Toulouse, (10) uma nova observação do Sr. Paris (11) e uma tese recente do Sr. de
Cool, (12) terei esgotado a lista dos documentos no que diz respeito à literatura
francesa.
No exterior, há apenas poucas publicações relativas especialmente a esse
assunto; assinalarei, contudo, as de João Barreira, (13) Cristiani, (14) Serbsky. (15)
Senhores, a maioria dos autores concorda em reconhecer a existência de
casos de melancolia com Delírio das Negações, com o aspecto clínico evidenciado
por Cotard; mas há algumas variantes em suas interpretações.
Alguns consideram que o Delírio das Negações constitui, de algum modo,
uma forma distinta de melancolia. Outros -a grande maioria - pensam que ele marca
apenas um período da doença; trata-se para eles de um estado delirante especial
em certas formas graves de melancolia ansiosa que chegam à cronicidade.

146
Ao lado desses partidários, encontram-se alguns adversários, como se pôde
ver no Congresso de Blois.
Alguns reconhecem de bom grado que existem quadros relacionados com a
descrição de Cotard; mas, diante de outros casos que diferem, pela sintomatologia
ou pela evolução, pensam que o Delírio das Negações deve ser considerado apenas
como um episódio, um simples acidente na doença, e que não merece uma
descrição à parte.
Outros negam a existência do Delírio das Negações por um motivo algo
singular. Ele não existe alegam, porque nunca o observaram. Certamente a coisa é
possível, pois os exemplos não são muito numerosos. Mas será que vocês teriam a
idéia de negar, suponho, a existência do tifo exantemático, com o pretexto de que
nunca encontraram um caso?
Não me dedicarei, senhores, a fazer, agora, a crítica dessas opiniões
diversas.
Mas insisto em dizer-lhes que, na minha opinião, as discussões provêm,
sobretudo, do fato de não nos entendermos muito bem sobre a significação do termo
Delírio das Negações.
O termo, na verdade, é inadequado. Cotard, em seu primeiro relato, limita-se
a constatar a existência, em certos melancólicos, de um conjunto de sintomas
bastante particular. Mais tarde, estuda sua evolução com relação à melancolia, e
propõe para esses casos, encarados em seu conjunto sintomático e evolutivo, a
denominação de Delírio das Negações, pelo nome do sintoma que mais sobressai.
Essa denominação, é preciso reconhecer, carece de precisão. Em seus
trabalhos, Cotard ora a utiliza apenas para o sintoma delírio, ora para o conjunto da
doença. A confusão é lamentável, e aí está, em grande parte, a origem das
discussões que ainda separam os alienistas, os que querem ver no Delírio das
Negações apenas um sintoma e os que o consideram uma forma vesânica à parte.
A palavra delírio, na verdade (repito de novo hoje), não pode e não deve
jamais designar senão um conjunto de idéias delirantes. O Delírio das Negações, da
mesma forma que os de auto-acusação, de perseguição, de grandeza, não pode ser
suficiente para constituir uma forma mental determinada.

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Por isso, para evitar os mal-entendidos, convém definir bem o valor do termo
Delírio das Negações.
Quanto a nós, entenderemos como tal apenas um conjunto de idéias
delirantes de negação.
Essas idéias de negação podem, por outro lado, ser distinguidas em várias
categorias, conforme seu aspecto clínico.
Podem, primeiramente, se apresentar sob a forma de delírio assistemático.
Não se ligam a outras idéias delirantes e também têm pouca coesão entre si.
É assim que as observamos na paralisia geral em que todos os delírios, salvo raras
exceções, são assistemáticos.
Foram igualmente assinaladas na senilidade, por Krafft-Ebing, Kraepelin,
Schuele, na qual eu mesmo as estudei várias vezes do ponto de vista semiológico.
São encontradas também nas formas delirantes da confusão mental primitiva, ao
lado de idéias de humildade e de auto-acusação, no delírio febril ou alcoólico, na
própria mania. Mas, ainda aí, permanecem assistemáticas.
Nos fracos de espírito, nas formas ditas de delírio abrupto ou polimorfo
(paranóia primitiva), encontram-se também às vezes, ao lado de idéias de grandeza
ou de perseguição, idéias de negação que, sem serem absolutamente
assistemáticas, são, contudo, devido ao próprio fundo de debilidade mental, mal
coordenadas entre si e com as precedentes, muitas vezes até contraditórias.
Chega-se a outros casos, em que o Delírio das Negações é sistematizado.
Assim, nós o observamos sobretudo em certas formas de paranóia primitiva, aguda
ou crônica. Pode ser encontrado, por exemplo, no delírio sistematizado depressivo
(depressiver Wahnsinn de Kraepelin), na hipocondria sistemática primitiva, que às
vezes chega a tomar o aspecto do Delírio das Negações. Alguns perseguidos
sistemáticos também evoluem para a negação, em vez de se tornarem
megalômanos.
Enfim, e sobretudo na melancolia, observamos esse Delírio das Negações no
estado de fixidez e até de sistematização. Esta é a forma especialmente focalizada
por Cotard.
É dela, senhores, que vamos nos ocupar hoje. Vejam como foi bom precisá-
lo. Para usar uma denominação que não possa mais se prestar a equívocos, creio

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ser útil, em tal caso, não empregar mais o termo simples Delírio das Negações, mas
dizer, mais exatamente, Delírio das Negações melancólico, ou melancolia com
Delírio das Negações ou Delírio das Negações (tipo Cotard).
Para compreender bem os quadros de que se trata, vamos examiná-los
primeiro no período de estabilização, escolhendo como exemplo um caso muito
completo.
Em seu primeiro trabalho, Cotard realçou um certo número de sintomas cujo
agrupamento constituiria a característica do seu Delírio das Negações. Esses
sintomas, em número de seis, eram os seguintes:
1. Ansiedade melancólica.
2. Idéia de danação, de possessão.
3. Propensão ao suicídio e às mutilações voluntárias.
4. Analgesia.
5. Idéias hipocondríacas de não-existência ou de destruição de diversos órgãos, do
corpo todo, da alma, de Deus etc.
6. Idéia de nunca poder morrer.
Designaremos, se concordarem, esse simples agrupamento de sintomas pelo
nome de síndrome de Cotard, proposto pelo Sr. Régis. Vamos passar em revista
cada um deles, procedendo por ordem de importância, e com as modificações que a
descrição primitiva me parece comportar.
l° O elemento fundamental da síndrome de Cotard, aquele que de algum
modo lhe dá sua característica e delírio, as idéias de negação.
Essa denominação geral se aplica a duas ordens de manifestações
intelectuais um pouco diferentes.
Às vezes, na verdade, a fórmula negativa da linguagem empregada pelo
doente responde simplesmente a uma tendência mórbida à oposição, à contradição
sistemática.
Às vezes, e mais freqüentemente, encontramos nessa fórmula uma convicção
particular, que corresponde à idéia de mudança, de destruição, de ausência, de
inexistência. É isso, falando propriamente, que se pretende designar pelo vocábulo
idéias delirantes de negação.

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Tomadas isoladamente, podem se apresentar sob quatro aspectos diferentes,
conforme seu objeto.
a. Interessam somente à personalidade moral ou intelectual do sujeito. Ele diz, por
exemplo: “que não tem mais coração, que não tem mais sentimentos, que não tem
mais inteligência, que não raciocina mais”.
b. Ou então as idéias de negação incidem sobre a personalidade física: é o delírio
hipocondríaco de negação. O doente diz: “Não tenho mais sangue, veias, cérebro,
órgãos genitais. Estou vazio como um armário”.
c. Em outros casos, os objetos do mundo exterior é que são negados pelo doente.
Mostra-se a ele uma flor e ele nega que seja uma flor. Não há nada ao redor dele,
nem coisas, nem pessoas. Ele está no nada.
d. A negação, enfim, pode se aplicar a abstrações: não há mais virtude, não há mais
Deus etc.
Se apenas uma dessas variedades existe, a negação é parcial.
Mas elas podem ser encontradas todas juntas, e aí se trata da negação
universal: nada mais existe, nem o mundo nem o próprio sujeito.
2º Da idéia de negação nasce, às vezes, por uma espécie de dedução lógica,
a idéia de imortalidade. Não estando mais nas condições ordinárias de organização
e de existência normais, o alienado se crê fora das leis da fatalidade. A negação da
morte é para ele apenas o corolário da negação da vida.
Essa idéia de imortalidade é no fundo muito complexa. Quando o negador diz
não existir mais, estar morto, isso não deve ser entendido no sentido materialista da
palavra. Esses doentes dizem que estão mortos assim como dizem que não têm
mais órgãos. Ora, como veremos numa outra lição, essas idéias hipocondríacas de
negação traduzem apenas uma mudança no estado dos órgãos, na cinestesia: da
mesma forma, os negadores não se acreditam realmente mortos. Eles se crêem fora
do mundo, numa existência indefinível, que não é mais a vida real, mas sem o
repouso da morte física, numa espécie de sobrevida dolorosa, que para eles não é
senão um tipo de morte.
Ao mesmo tempo, suas tendências pessimistas os levam a crer que essa
sobrevida se prolongará indefinidamente, por toda a eternidade.

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Do acordo estabelecido entre essas duas concepções é que nasce a idéia de
imortalidade.
É muito importante conhecer essa idéia; efetivamente, por paradoxal que isso
possa parecer, não se, trata aqui de uma verdadeira idéia de grandeza, mas
exatamente de uma idéia hipocondríaca.
Os doentes são imortais apenas para suportarem eternamente seus males.
Cotard agrupou, ao lado da idéia de imortalidade, um certo número de
concepções delirantes às quais deu o nome de delírio de enormidade.
Os doentes que se dizem imortais não são apenas infinitos no tempo, são
também infinitos no espaço. Eles são imensos, gigantescos. Sua cabeça atinge o
céu. Seu corpo é colossal.
Eles só contam aos milhões ou bilhões. Vivem no enorme e no sobre-
humano.
E, ainda aí, apesar das aparências, trata-se de concepções hipocondríacas
que poderíamos chamar de delírio de grandeza pelo avesso; pois, inversamente ao
que se observa na megalomania, essas idéias de enormidade expõem sempre um
mesmo caráter de horror e de sofrimento.
Se o delírio de grandeza é uma compensação às torturas sofridas pelo
perseguido, o delírio de enormidade não o é para o melancólico negador. Trata-se,
ao contrário, do grau mais extremo de sua infelicidade, ou do castigo por suas faltas.
Por isso, vocês verão a tristeza dos doentes aumentar à medida que forem
crescendo as idéias de enormidade; enquanto o megalomaníaco parece se inflar de
orgulho progressivamente, traduzindo, por sua atitude altiva, a alta opinião que tem
de sua superioridade, ao contrário, a ansiedade e a aflição aumentam no
melancólico ao mesmo tempo que ele se imagina aproximando-se do infinito: quanto
mais enorme ele se crê, mais ele é “lamentável, gemedor e desesperado”, conforme
a expressão de Cotard.
É preciso conhecer bem essas idéias pseudomegalomaníacas, pois são muito
importantes para o diagnóstico.
Além do mais, é preciso evitar confundi-las com as verdadeiras idéias de
grandeza, que também podemos encontrar nesses casos.

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Eu mesmo chamei a atenção para esse fato e, desde então, Cotard o
verificou em vários de seus doentes.
Ele indicou, aliás, que, antes de chegarem a se formular nitidamente, as
idéias de grandeza são, de alguma maneira, latentes nesses melancólicos, que se
consideram seres excepcionais, únicos no mundo, e se atribuem, para o mal, é
verdade, uma espécie de onipotência.
Ao lado das idéias de grandeza, notamos também idéias de satisfação, de
aspecto bem especial no sentido de estarem ligadas, em geral, ao passado,
relacionadas com a antiga personalidade do doente.
Trata-se de uma forma de delírio retrospectivo. Agora que não é mais nada, o
negador sente falta do que era outrora e lembra o tempo todo a excelência de seu
ser desaparecido.
O Sr. Dagonet relatou uma observação muito nítida de uma doente desse
tipo; ela se tornara menos que nada, um quarto de criatura, um manequim; mas não
parava de elogiar a Sra. B., que é graciosa, encantadora, de inteligência superior.
3º Delírio melancólico. Senhores, as diferentes idéias que acabamos de
examinar não são as únicas concepções delirantes que esses alienados formulam.
Cotard, que de início realçou neles a presença de idéias de danação ou de
possessão, insistiu em seguida, sobretudo, no caráter geral de auto-acusação do
delírio. Mas vimos em nossas reuniões precedentes que o delírio de auto-acusação
podia ser encontrado em formas vesânicas muito variadas. Devemos, portanto, ser
mais precisos. Por isso, diremos que o delírio de auto-acusação de nossos
negadores reais assume não somente as fórmulas habituais do delírio da
melancolia, mas também as diferentes características gerais que reconhecemos
nele.
Todavia, convém observar que, então, esse delírio melancólico oferece
muitas vezes um matiz místico, traduzindo-se por idéias de danação e de
possessão. Os doentes merecem todos os suplícios do inferno; devem sofrê-los por
toda a eternidade; estão possuídos pelo demônio, são Satã, o Anticristo, a mulher do
Apocalipse etc.
Mas, por outro lado, como creio ter demonstrado no Congresso de Blois, não
seria preciso, como certos autores, chegar ao ponto de considerar a presença

152
dessas idéias como indispensável. Essa maneira de ver é certamente excessiva; o
que importa constatar não é tanto a fórmula, a cor da idéia, quanto as características
gerais do delírio.
Um melancólico perseguido acha que vão supliciá-lo, guilhotiná-lo, porque ele
cometeu crimes abomináveis. No delírio melancólico com idéias de danação, o
doente se acusa de ter cometido todo tipo de faltas contra Deus. Trata-se, no fundo,
da mesma idéia: a culpa associada ao temor de um castigo. Se, no último caso, ela
toma um matiz místico que falta no primeiro, conserva sempre as características
fundamentais do delírio melancólico, que nos empenhamos em bem definir e às
quais acho inútil voltarmos hoje.
4°. Distúrbios da sensibilidade. Quanto a esse aspecto, Cotard só realçou os
distúrbios da sensibilidade à dor, sobretudo a analgesia. Mas eles não são os únicos
que podem ser encontrados no campo da sensibilidade.
Vejamos primeiro a sensibilidade geral.
Em primeiro lugar, muitas vezes, como acabei de lhes dizer, há distúrbios da
sensibilidade à dor, que pode estar comprometida por falta ou por excesso.
No primeiro caso, os doentes, analgesiados, se mutilam sem motivo; no
segundo, o mais leve toque parece provocar o mais vivo sofrimento, e os pacientes
apresentam reações vasomotoras ou pupilares indubitáveis; às vezes fazem até
movimentos de defesa.
Em outras circunstâncias, é preciso se referir à apreciação totalmente
subjetiva das respostas dadas: os doentes experimentam sensações de frio, de
calor; têm os ossos partidos, as costas quebradas. Freqüentemente, a pressão na
coluna é dolorosa. Queixam-se de dores nos membros, vagas ou localizadas, de
cãimbras musculares, de formigamentos etc.
Quando a sensibilidade ou a sensação muscular são atingidas, o que não é
raro, os sujeitos contam que seus membros estão mais leves ou pesados, flácidos
ou endurecidos, crescidos ou encurtados. Uma senhora me repetia sempre que “não
era mais de carne do mundo, de tão dura que estava”.
É preciso igualmente procurar com muito cuidado os distúrbios da
sensibilidade interna, visceral, que constituem muitas vezes o ponto de partida das
idéias de negação hipocondríacas: sensações anormais de vazio na cabeça, ou de

153
inchação do cérebro; de palpitações, de sufocamentos, de angústia; de
estrangulamento do tubo digestivo; sensações de hipertrofia ou de vacuidade do
abdômen, dos órgãos genitais etc.
O sentimento das necessidades gerais do organismo está muitas vezes
alterado: sentimento da fome ou da sede perdido ou exagerado; diminuição do
sentimento da fadiga, que se traduz pela perda de sono, pela mobilidade incessante;
sentimento da necessidade de movimento, diminuído nos estados apáticos,
exagerado nos ansiosos etc.
Do lado da sensibilidade especial, as desordens são menos manifestas.
Realmente encontramos, às vezes, distúrbios, sobretudo uma diminuição, da
sensibilidade tátil. Mas muitas vezes é difícil precisá-los e determinar se não
interessam mais à percepção pessoal.
Na verdade, a sensação elementar às vezes existe em si, mas o doente não a
percebe, não a liga a sua personalidade consciente, por causa do estado de
distração em que se encontra, da concentração de seu espírito em suas idéias
delirantes, que o torna inacessível às impressões do exterior.
Por outro lado, podemos constatar aqui, na pesquisa dos distúrbios
sensitivos, esse mesmo quadro que o Sr. P. Janet evidenciou bem no exame da
anestesia histérica.
Quando, por exemplo, examinamos a sensibilidade de uma histérica e
pedimos que responda, com sim ou não, se ela sente quando a espetamos, notamos
que responde sempre não a cada espetada e que não diz nada se não a espetamos.
Isso prova bem que a sensação elementar foi percebida e que os distúrbios
da sensibilidade, na realidade, provêm apenas de um defeito de percepção
consciente. Ora, essa é uma constatação que também pude fazer, várias vezes, em
nega-dores melancólicos.
Acrescentarei, contudo, que, por seu próprio delírio, esses doentes são
levados a negar tudo. Eles podem sentir e perceber a espetada; mas,
invariavelmente, afirmarão que nada perceberam. Esse é um ponto que não se deve
perder de vista quando procedemos a um exame desse tipo.
Todavia, parece mesmo que na maior parte das vezes os distúrbios da
sensibilidade, no negador melancólico, não interessam à sensação elementar, mas

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dependem da percepção pessoal. Existe um outro sintoma que endossa essa
maneira de ver: trata-se da perda da visão mental, assinalada por Cotard em caso
semelhante.
Certos negadores não podem mais representar mentalmente, pela visão, os
objetos ou as pessoas que outrora lhes eram familiares. Poder-se-ia supor que se
trate aqui de uma espécie de amnésia que incide sobre as imagens visuais. Creio
que não é nada disso; muito mais do que as próprias imagens, é a faculdade de
evocá-las que está atingida, o poder de assimilá-las a esse conjunto de fenômenos
psicológicos que constitui a consciência pessoal.
E o fenômeno que se observa de modo muito mais decisivo a propósito das
sensações visuais, na medida em que os doentes declaram “ver, tocar os objetos,
mas não mais compreendê-los, não mais reconhecê-los”, prova exatamente que,
neles, as desordens que interessam às diversas sensações ou às imagens mentais
dependem, sobretudo, de uma falha de síntese psicológica, de um distúrbio da
percepção pessoal.
Antes de deixar o campo dos sentidos especiais, quero lhes falar das
alucinações.
A síndrome de Cotard estando ligada à melancolia, resulta daí que os doentes
podem nunca apresentar alucinações sensoriais, ou tê-las apenas em pequeno
número, na maioria das vezes tardias e confirmativas das idéias delirantes.
Mas, se as alucinações sensoriais são raras, o mesmo não acontece com as
alucinações motoras comuns ou verbais. Podemos encontrá-las em todos os graus
que examinamos, até seu limite extremo, a impulsão verbal, freqüente nos
negadores que têm idéias de possessão. Nestes, observam-se também, muitas
vezes, alucinações genitais do tipo que encontramos descritas nos antigos relatos
sobre a demonomania.
5º Senhores, sob a denominação de reações do doente, já podemos incluir a
propensão ao suicídio e as mutilações involuntárias assinaladas por Cotard. Mas
essas reações são mais numerosas.
De um ponto de vista geral, direi logo de saída que a síndrome de Cotard
evolui sempre - e essa é mesmo uma de suas características - sobre um fundo de
ansiedade, que pode aumentar pela própria presença das idéias de negação, mas

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que também sempre preexiste a elas. Esse quadro, que está ligado à natureza
melancólica do fundo mórbido sobre o qual repousa o delírio, é importante de se
notar porque, se em outras doenças as idéias de negação podem se acompanhar de
ansiedade, ela não é mais, então, senão puramente reacional.
Essa ansiedade toma aspectos diversos. Às vezes, e mais comumente, ela se
traduz por queixas, choros, gemidos, e por uma mímica movimentada que pode
chegar à agitação automática, como na doente que verão daqui a pouco.
Outras vezes, ao contrário, a ansiedade assume a máscara do estupor, bem
diferente da inércia que se encontra na estupidez ou na confusão mental. Sob essas
aparências de indiferença, se esconde sempre um delírio bem manifesto, uma
ansiedade interior tão intensa que paralisa qualquer esforço de reação ativa.
Nos casos crônicos, a ansiedade pode desaparecer. Esse é mesmo um
elemento de prognóstico que deve ser levado em conta, por sua significação
desfavorável.
Por outro lado, existem também reações especiais. Não digo com isso que
elas sejam específicas, patognomônicas; mas simplesmente que se trata de reações
determinadas, em íntima relação com os sintomas que acabamos de passar em
revista.
Dentre elas, a mais notável é o que Guislain já chamara de loucura de
oposição, que representa, por assim dizer, o lado moral do delírio de negação. Os
negadores são, efetivamente, resistentes sistemáticos no mais alto grau.
Uma das manifestações mais freqüentes dessa tendência à oposição é a
recusa dos alimentos. Ás vezes os doentes buscam justificá-la dizendo, por
exemplo, que não têm mais língua, que não têm mais estômago, ou então que
querem expiar as faltas de que são culpados ou, enfim, que a comida lhes é inútil,
pois são imortais. Muitas vezes, também, é por puro espírito de contradição, de
oposição, que eles recusam a comida. Querem fazê-los comer? Não! Eles não
comerão. E nada poderá vencer sua teimosia.
Observem, aliás, que assim que vocês tiverem ido embora, eles se porão a
devorar sua refeição, ou então, se recusam os alimentos que lhes dão, roubarão os
de seus vizinhos.

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Na maioria das vezes, a recusa de alimentos é total, mas às vezes também
eletiva. Esses doentes aceitarão certos pratos e nunca outros; mas, fato bem
característico, relacionado às características de seu delírio melancólico, só tomarão
os alimentos piores.
Pelos mesmos motivos que recusam os alimentos, alguns se recusam a urinar
ou a ir à privada: oposição simples ou convicção de que, não sendo mais feitos da
mesma essência que os outros homens, não estão submetidos às mesmas
exigências. Outros, ao contrário, se sujam constantemente, e às vezes alegam essa
deterioração como prova de que seus órgãos estão destruídos, que estão ocos;
outras vezes se espantam e se perguntam como é que, não tendo mais órgãos,
podem produzir excrementos. Por isso não querem aceitar que estão sujos.
Podemos ainda aproximar dessa categoria de reações o mutismo, que, fora
de todas as causas habituais do mutismo melancólico, pode então ter mais
especialmente como origem idéias de negação, de destruição dos órgãos da
fonação, ou ser simplesmente apenas uma manifestação da oposição sistemática,
como em uma de nossas alienadas, que nunca respondia quando se dirigiam a ela,
ao passo que começava a falar assim que se encontrava sozinha.
Entre as outras reações especiais, é preciso incluir as tentativas de suicídio.
São muitas vezes numerosas, resultantes de um impulso súbito, ou provocadas
pelas idéias delirantes. Neste último caso, é de se notar que os negadores, como
todos os melancólicos, são muito desajeitados em seus atentados; no máximo
conseguem se ferir, e sua habilidade não aumenta com a experiência. Esses
insucessos entram muitas vezes, em grande parte, na gênese de suas idéias de
imortalidade. Eles vêem aí a prova de uma organização particular. Como a morte
parece fugir deles tantas vezes, logo acreditam que ela nunca poderá vir.
O mesmo acontece com as mutilações voluntárias. Os negadores, que, ainda
por cima, são analgesiados, se machucam sem motivo. Aliás, são levados a isso
igualmente por seu delírio melancólico; essas mutilações são muitas vezes um tipo
de expiação dos crimes de que se crêem culpados. E, por outro lado, como sofrem
pouco com isso, a descoberta dessa analgesia ainda os conserva em suas idéias de
constituição especial.

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Devo também, senhores, chamar sua atenção para certas fórmulas da
linguagem. Como podem prever, a fórmula negativa ocupa toda a conversa: “Não
tenho mais nome. Não tenho mais amigos. Não existo mais”. Muitas vezes esses
doentes falam de si mesmos na terceira pessoa: “ele” ou “ela”, ou se designam por
um pronome indefinido: “Isso (eles) está vazio, etc.”, uma longa perífrase: “A pessoa
de mim mesmo”. Ou, ainda, só empregam o passado: “Eu outrora me chamava X”.
Registremos, enfim, os insultos e as blasfêmias, muitas vezes relacionados a idéias
de possessão.
Esse é, senhores, o conjunto sintomático pelo qual se traduz o Delírio das
Negações melancólico, no período de estabilização. Vejamos agora seu curso e sua
evolução.
Para isso, é útil estabelecer uma distinção entre a evolução no espaço, ou
desenvolvimento psicológico, e a evolução no tempo, ou curso clínico. Creio, com
efeito, que foi por terem feito confusões nesse aspecto que compreenderam mal o
pensamento de Cotard e levantaram contra ele certas objeções.
Cotard insistiu, sobretudo, e magistralmente, na evolução psicológica. Ele
ressaltou bem as tendências negativas primeiras, já assinaladas por Griesinger nos
melancólicos, e mostrou a gradação progressiva que une essas tendências
negativas da hipocondria moral, da melancolia simples, ao delírio melancólico
ordinário, para chegar, em última instância, ao Delírio das Negações confirmado.
Por isso, concluiu, o estado inicial de hipocondria moral é apenas um esboço
em que basta acentuar os traços e forçar as sombras para completar o quadro
dessas formas últimas de melancolia.
Foi desse ponto de vista que Cotard propôs, para todo o conjunto desses
fenômenos, o termo loucura das negações.
Justificada do ponto de vista psicológico, essa denominação só tem sua razão
de ser, do ponto de vista clínico, se for aplicada apenas aos fenômenos do Delírio
das Negações melancólico confirmado, e em oposição àqueles nos quais o Delírio
das Negações é encontrado no curso de outras formas mentais que não apresentam
desde o início as mesmas tendências negativas.
Seria ir longe demais, na minha opinião, basear-se nas disposições negativas
de todos os melancólicos para agrupá-las sob a etiqueta de loucura das negações,

158
considerando como formas atenuadas os casos em que o delírio de negações não
chega a se formular. Não se deve dizer que os diferentes delírios melancólicos
sejam formas da loucura das negações, mas, no máximo, que a loucura das
negações (Delírio das Negações melancólico) é apenas uma forma da melancolia.
As considerações precedentes, sobre a evolução psicológica, se justificam às
vezes pela própria clínica. Determinado doente que, de início, era apenas um
melancólico consciente, se tornou pouco a pouco um delirante melancólico ordinário,
e mais tarde apresentou todos os sinais da síndrome de Cotard.
Todavia, o curso clínico não é, em todos os casos, tão regularmente
progressivo, e nem sempre é possível - assim como fizeram certos autores,
exagerando posteriormente as idéias de Cotard - colocá-lo em paralelo com a
progressão análoga que se encontra no delírio das perseguições sistemático e
progressivo.
É muito mais justo dizer que o conjunto dos sintomas que Cotard descreveu
constitui apenas uma síndrome, na qual vários elementos nada têm de
característico, e que, na medida em que existam separados, a doença, que começa
sob as aparências da melancolia ordinária, assume seu curso habitual, ou seja, é
muitas vezes intermitente.
O Delírio das Negações e de enormidade, que dá à síndrome de Cotard seu
selo particular, sobrevêm ora no primeiro acesso, ora no segundo. E, quando a
síndrome de Cotard está constituída, de intermitente que era, a afecção tende a se
tomar contínua, crônica.
Esse Delírio das Negações melancólico não constitui, portanto, uma afecção
especial, mas caracteriza somente uma variedade de melancolia na qual ele tem, em
geral, uma vez instalado, a significação de uma passagem ao estado crônico. Ele
pode, portanto, assimilar-se assim a essas formas de delírio sistematizado que
aparecem no período crônico das psiconeuroses e que designamos com o nome de
Verrucktheit, ou paranóia secundária.
Podemos acrescentar que o delírio de enormidade e as concepções de
imortalidade muitas vezes só se manifestam depois das de negação, pelo menos
nos casos típicos.

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As idéias de grandeza verdadeiras nunca se observam senão nos casos
muito crônicos.
Enfim, do ponto de vista do desfecho último, nosso Delírio das Negações se
conduz como os delírios sistematizados. Ele pode culminar num estado de demência
que apenas sobrevêm, então, após um tempo bastante longo.
Senhores, o Delírio das Negações, tal como Cotard o considerou, parece ser
bastante raro. Todavia, sua descrição é recente; e, desde o dia em que a atenção foi
despertada para esse ponto, os exemplos já são numerosos o bastante para
deixarem de ter o caráter de exceções.
Do ponto de vista etiológico, Cotard ressaltou a importância da
hereditariedade. Na maioria dos casos, ela é muito pesada. Além disso, observamos
muitas vezes nos futuros negadores, antes da eclosão declarada de seu delírio,
tendências especiais que são como o embrião da doença. Do mesmo modo que os
perseguidos megalômanos, antes da confirmação de suas idéias delirantes, se
mostram sempre desconfiados e orgulhosos, os negadores são tristes,
escrupulosos, meticulosos.
É na idade adulta, e próximo à época mediana da vida, que aparece seu
delírio.
Ainda é difícil pronunciar-se de modo seguro sobre a influência do sexo.
Todavia, a maioria das observações publicadas até agora se refere a mulheres.
A educação, o meio social, parecem desempenhar um certo papel.
Raramente observamos os negadores em asilos públicos; são bem mais freqüentes
os que encontramos na cidade ou em estabelecimentos particulares.
Senhores, falei, no início, das objeções que foram feitas à concepção de
Cotard. As únicas que se prestam a discussão referem-se a dois pontos principais.
Os quadros de Delírio das Negações de Cotard não merecem, dizem,
descrição particular, porque, nos casos em que se observam idéias de negação em
melancólicos, faltam muitas vezes certos elementos à síndrome característica que
acabamos de estudar, particularmente as idéias de danação, de possessão, de
imortalidade.
Essa não é, vocês concordarão, uma razão muito peremptória. Ao lado dos
casos típicos, em todos os ramos da patologia existem casos frustres ou atenuados

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que nem por isso infirmam a existência dos primeiros. Quando vocês têm que
diagnosticar um bócio exoiftálmico. não exigem que o doente apresente todos os
sinais da série de Basedow.
Será que é preciso, então, recusar-se a reconhecer um caso de Delírio das
Negações melancólico, sob o pretexto de que a síndrome de Cotard nem sempre
está representada por inteiro?
Aliás, será que os sintomas em litígio devem ser considerados como típicos, e
sua presença como indispensável?
Que pensar, por exemplo, da idéia de imortalidade? Sem dúvida alguma,
quando ela existe, o tipo está completo. Mas, na verdade, sua importância é
secundária.
Ela não cala as outras idéias delirantes, em particular as de negação; ela
apenas se acrescenta a elas. Poderíamos, desse ponto de vista, assimilá-la à idéia
de grandeza do perseguido sistemático. O megalômano perseguido continua sempre
sendo um perseguido, e o negador imortal é sempre, e antes de tudo, um negador.
Já que a idéia de grandeza não nos parece necessária para fazer o diagnóstico de
delírio sistemático das perseguições, será que devemos atrelar à idéia de
imortalidade uma tal importância que, em sua ausência, afastemos a idéia de um
Delírio das Negações melancólico? Ela pode não existir no momento da observação
e se mostrar na seqüência. Com efeito, a idéia de imortalidade, assim como o delírio
de enormidade, representava para Cotard uma etapa avançada da evolução que ele
tentava descrever. Do mesmo modo, nos perseguidos sistemáticos, se algumas
vezes a idéia de grandeza surge muito rapidamente, outras vezes ela pode só
aparecer ao final de um longo período delirante.
Enfim, como vimos, da própria análise dessa idéia de imortalidade, resulta
que, na realidade, ela é pouco mais do que um equivalente, uma forma, a mais
excessiva, da idéia de negação.
Muitas vezes são as idéias de danação ou de possessão que faltam.
Ora, eu já lhes disse, senhores, essas idéias são apenas sintomas de
importância totalmente relativa. Elas refletem apenas, com matiz místico, o fundo
melancólico da doença e, se há uma idéia de humildade ou de culpa com as
mesmas características gerais, a natureza do delírio é por isso mesmo

161
suficientemente evidente para que não haja necessidade de exigir a presença de
uma idéia de danação.
Por um outro lado, não é suficiente firmar um diagnóstico com base nos
dizeres do doente. Tanto melhor se ele próprio lhes declara: “Estou danado, tenho o
diabo no corpo”, pois lhes evita o trabalho de levar mais adiante as suas
investigações. Mas os sintomas nem sempre são tão manifestos que ele próprio os
traduza para o exterior, e cabe a vocês pesquisá-los cuidadosamente, por mais
dissimulados que possam estar.
Em breve, faremos o estudo das idéias de possessão. Vocês verão então que
a origem dessas idéias repousa sempre num desdobramento da personalidade. Ora,
esse fenômeno existe freqüentemente sem que o doente formule a palavra
possesso. Que ele diga: “O diabo fala por minha boca”, ou então: “Há coisas que
digo contra minha vontade, sem saber de onde vêm”, é sempre um desdobramento
da personalidade que ele exprime, no primeiro caso por uma imagem mística e
antiga, no segundo, por uma frase banal, mas não menos decisiva, pois reflete a
presença de um impulso verbal, sintoma muito nítido de automatismo psicológico.
A constatação de alucinações motoras diversas, idênticas em natureza, senão
em intensidade, aos impulsos, terá a mesma significação. Assim como, também, a
simples conversa mental, essa contradição interior, essas impressões sempre
contrárias de que os doentes se queixam e que representam apenas a luta de duas
sínteses mentais antagônicas, em oposição constante e se organizando pouco a
pouco. Pouco importa a fórmula; a existência do fenômeno em si, de onde ela se
origina, deve bastar para confirmar o diagnóstico.
Podemos então, em resumo, descartar a objeção que recrimina a
sintomatologia por ser às vezes incompleta.
O segundo ponto em litígio se relaciona com a evolução.
Cotard disse que o Delírio das Negações aparecia em geral depois de vários
acessos de melancolia, por vezes até no primeiro acesso. Essas diferenças de
evolução são também julgadas incompatíveis, contraditórias em sua descrição.
Observou-se também que as idéias de negação nem sempre aparecem tão
tardiamente quanto ele indicou e que, além disso, as idéias de imortalidade muitas
vezes as precediam.

162
Essas objeções não me parecem muito mais graves do que as precedentes.
Depois que Lasègue descreveu em bloco os delírios das perseguições,
percebeu-se que a idéia de grandeza, que muitas vezes faz parte do quadro,
aparecia às vezes depois, às vezes ao mesmo tempo, às vezes até antes da idéia
de perseguição. Mas nem por isso acreditou-se que se devia rejeitar da psiquiatria
seu delírio das perseguições; o empenho foi, ao contrário, e com razão, em localizar
suas diversas variedades.
Por que não julgar assim o Delírio das Negações? Será que porque existem
efetivamente certos casos aparentemente díspares, é preciso vê-los como
contraditórios e não levar em conta as primeiras tentativas de análise que foram
feitas a esse respeito?
Não o creio, senhores. Em lugar de ver aí um motivo para recusar de saída
qualquer valor ao Delírio das Negações melancólico, é melhor analisar com cuidado
os casos publicados até hoje, tentar fazer sua classificação racional e (sem
pretender de modo algum identificar os delírios das negações aos delírios das
perseguições), ao lado dos casos completos do tipo Cotard, agrupar as formas
atípicas cujo valor o futuro dará a conhecer.
No presente, devo confessar que uma classificação dessa espécie não é fácil
de fazer. Submeto-lhes, contudo, até sabermos mais a respeito, uma moldura
provisória que me parece capaz de facilitar a compreensão do Delírio das Negações
na melancolia. Ela incluiria seis divisões nas quais poderiam caber todos os casos
conhecidos até hoje.
1°. Os casos típicos;
2°. Os casos frustros, nos quais faltam um ou vários sintomas (idéia de danação, de
possessão ou de imortalidade);
3°. Os casos de evolução regular, mas rápida, contínua ou intermitente, e com
sintomatologia completa;
4°. Os casos cuja evolução é idêntica, mas com sintomatologia frustra (combinação
dos casos 2 e 3);
5°. Os casos de evolução irregular, ainda mal definidos;
6°. Enfim, os casos em que se observam idéias de negação em melancólicos, mas
de modo episódico.

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Nessa moldura, senhores, vocês podem enquadrar todos os casos até aqui
conhecidos de Delírio das Negações melancólico, quaisquer que sejam sua
sintomatologia ou sua evolução e, depois do que lhes disse, poderão, espero,
diferenciá-los com facilidade.
O estudo dessas variedades poderá talvez, no futuro, nos mostrar a razão das
diferenças de prognóstico nos melancólicos negadores. Com efeito, se nos casos
típicos, como lhes disse, o Delírio das Negações marca a passagem da intermitência
ao curso contínuo e à cronicidade, há outros casos que se mantêm ainda
intermitentes e mesmo alguns que se curam.
Qualquer que seja, aliás, sua variedade, o Delírio das Negações melancólico
deve ser sempre distinguido das outras formas de idéias de negação que
encontramos no curso da paralisia geral, da senilidade etc., assim como da
hipocondria sistemática com delírio de negação, e de certos delírios de perseguições
sistemáticos. Teremos a ocasião, em nossas próximas reuniões, de estudar alguns
pontos desse diagnóstico diferencial, ao mesmo tempo que tentaremos determinar o
mecanismo psicológico, a patogenia do delírio de negação melancólico.
Senhores, para fixar bem em seu espírito os diferentes traços da descrição
que acabei de delinear muito rapidamente, vou lhes apresentar uma doente do
Serviço vítima de melancolia com Delírio das Negações, na qual vocês vão constatar
a existência de todos os elementos da síndrome de Cotard.
Poderão encontrar, nos Annales médico-psychologiques (março-abril de
1893), todos os detalhes de sua observação, que publiquei com o Sr. Sourdille.
Assim, sem insistir nisso, me contentarei de início em fazê-los notar que,
evidentemente, essa doente é verdadeiramente uma melancólica ansiosa. Por outro
lado, ela se distingue dos melancólicos comuns por um certo número de
particularidades clínicas.
É assim que, do ponto de vista sintomático, encontramos hoje na Sra. M.,
completa e com todos os caracteres clínicos que lhes assinalei, essa associação de
sintomas realçada por Cotard e que, como o Sr. Régis, chamamos de síndrome de
Cotard: ansiedade, idéias de danação, idéias de negação, idéias de imortalidade e
delírio de enormidade, tendência ao suicídio, distúrbios da sensibilidade geral,
ausência de alucinações sensoriais, oposição, mutismo a intervalos, desmazelo etc.

164
Por outro lado, esse caso é um daqueles que nos mostram, às vezes
justificada pela observação clínica, essa concepção psicológica que reconhece na
evolução do delírio uma gradação contínua, indo da hipocondria moral, da
melancolia simples, sem delírio, até o delírio de negação mais excessivo, na qual
Cotard tanto insistiu.
Com efeito, nessa doente, os distúrbios intelectuais começaram em setembro
de 1891, na forma de melancolia simples, sem delírio. Depois o delírio melancólico
habitual de culpa, de ruína etc. apareceu, quase um ano mais tarde, em agosto de
1892. Três meses depois, em outubro, surgiram as idéias especiais que constituem,
propriamente falando, o delírio de negação, que, assim, só se revelou tardiamente,
num período já avançado da doença. Quando publicamos sua observação (março
de 1893), essa mulher tinha chegado a formular as concepções
pseudomegalomaníacas agrupadas sob o nome de delírio de enormidade.
Hoje, a afecção não se modificou em nada; o estado mental persiste idêntico,
quase estereotipado, e podemos nos crer autorizados a ver a doente como tendo
entrado na via da cronicidade. Como traços novos, eu teria a assinalar apenas a
acentuação dessas modificações da linguagem, já indicadas na observação. Essa
alienada não fala mais de si mesma senão na terceira pessoa, designando-se por
seu prenome; ela expressa suas auto-acusações sob a forma de injúrias que
endereça a si mesma, entrecorta suas lamentações com insultos e blasfêmias, o que
não é a coisa menos curiosa numa melancólica atormentada por idéias de culpa e
de danação.
Nela, a síndrome se instalou no curso do primeiro acesso de melancolia. O
próprio Cotard disse que esse delírio de negação “às vezes acontece desde o
primeiro acesso, muitas vezes é no segundo, no terceiro acesso que se desenvolve
o delírio hipocondríaco, e então a doença passa para o estado crônico”. Sem ver
uma contradição, como fazem certos adversários das idéias de Cotard, nessas
diferenças do começo da afecção, me parece que isso prova simplesmente que, ao
lado de casos de curso intermitente, depois contínuo, há outros de curso contínuo
desde o início.
Aliás, a significação do Delírio das Negações aqui nos aparece bem como
lhes expus.

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Enfim, a presença de taras psicopáticas nos ascendentes, o início com a
idade de cinqüenta anos, o sexo ainda vêm confirmar as observações que fizemos
do ponto de vista da etiologia.
Senhores, agora que estão de posse de um caso que corresponde, tanto
quanto possível, ao tipo completo, permitam-me que lhes relate as observações
inéditas de duas de minhas antigas doentes. Elas os colocarão na presença de
algumas dessas variações que lhes indiquei.
A primeira é relativa à senhora N., com 45 anos, internada, em fevereiro de
1888, por delírio melancólico com ansiedade.
Não pude recolher nenhuma informação sobre os antecedentes hereditários
ou pessoais dessa alienada.
Ela tinha adoecido cerca de cinco meses antes, em seguida à perda de um de
seus filhos, levado por uma meningite. No começo, dizia apenas que estava muito
fraca, que tinha muita dor de cabeça, que sentia como que um grande mal-estar
geral. Ao mesmo tempo, estava desanimada, triste e por vezes inquieta; depois
apareceram as idéias delirantes que motivaram sua internação.
Em fevereiro de 1888, na admissão, está muito ansiosa; é uma criatura
indigna, acusa-se de ser a causa da morte de seu filho. Crê numa influência
misteriosa e nefasta que a empurra para o mal; tem escrúpulos imaginários, idéias
de culpa incessantes; está desgostosa da vida. Recusa total de alimentos a
intervalos; tendência ao suicídio; é preciso que ela morra, e um dia, em sua própria
casa, pegara uma faca para executar essas tendências.
Esse estado dura, quase sem mudança, até agosto de 1888. Nesse momento
se mostram novas idéias delirantes.
A Sra. N. continua ansiosa, a sobrancelha franzida, a cabeça inclinada,
permanece imóvel, gemendo incessantemente, de vez em quando tomada por uma
ansiedade terrível.
Cianose das extremidades, cheiro de rato, respiração superficial, pulso fraco,
menstruação suprimida, flores-brancas.

“Ela fez o mal sem compreender; mas nunca teve apoio. Ao contrário, há
como que uma influência funesta, misteriosa, que a leva a entrar no mal.
Entrou bem jovem na via do crime, sua primeira comunhão foi sacrílega.
Mas, antes do mês de setembro, dormia nos seus crimes; é uma prova

166
de que não tem consciência. Acreditava, antes dessa época, que seus
filhos tinham morrido de doenças, ao passo que na verdade foi ela quem
os matou, quem os queimou na febre por seus crimes. Testemunhou
contra o Mestre dos Mestres. Não deveria ter vindo ao mundo. Sua pele
deveria ter apodrecido há cinqüenta anos, então não teria feito
desgraças. É apenas uma culpada; matou seus filhos, seus irmãos, suas
cunhadas. Não era capaz de ganhar sua própria vida; roubava sua
comida, desonra o governo.
Para puni-la, vão colocá-la no gelo, nas fossas sanitárias, e seus
sofrimentos durarão para sempre, para sempre. Não terminarão mais;
uma hora durará bilhões de anos e isso não vai passar.
Ela não tem mais coração, não tem mais pulmões, não respira mais, e,
com tudo isso, é imortal. Uma existência assim é o impossível. Este é o
seu suplício: não respirar, não viver, não morrer! Ficaria feliz demais se
pudesse morrer; mas não pode, está condenada ao impossível: a sentir
sempre um sofrimento impossível. Ah! Se pudesse ter caído num fosso
quando tinha três anos! Não devia ter se casado; enganou seu marido ao
se casar; queimou seu último filho por seus pecados.”

A ansiedade é das mais acentuadas, com gemidos, gritos incessantes.

Analgesia e tentativas de mutilações: ela bate com a cabeça nas paredes,


arranca os cabelos aos punhados, é insensível às excitações dolorosas.
Recusa total de alimentos, mas somente em uma ou duas refeições seguidas.
Tenta o tempo todo respirar apertando o nariz e fechando a boca: “Não se
pode ficar um segundo sem respirar, geme, e eu estou condenada a ficar assim toda
a eternidade. Seria melhor poder morrer do que ser assim imortal. Estou condenada
ao impossível.”
Alucinações a intervalos; ela diz ouvir seus filhos pedindo socorro; ela os vê
queimarem e procura água para ir em sua ajuda.
Mesmo estado ansioso durante todo um ano.
Em março de 1889, o delírio continua o mesmo. A Sra. N. está ainda mais no
impossível; o mundo todo está perdido; tudo está acabado; ela é culpada pela ruína
do universo. E preciso que morra, e ela é imortal; é preciso tentar queimá-la. O
menor de seus atos é causa de desgraças. Quando ela anda, tudo cai em ruínas à
sua volta; não há mais nada.
Recusa total de alimentos; alimentação por sonda esofagiana. A doente deve
ser vigiada de perto, pois arranca os cabelos, tenta rasgar a pele, bater com a
cabeça nas paredes.

167
Em agosto de 1889, mesmo estado; ainda alimentada por sonda, sem
interrupção. Emagrecimento considerável. Ansiedade incessante. Não tem mais
nenhuma alucinação. Repetição monótona das mesmas lamentações.
Levada por sua família em novembro de 1889, sempre no mesmo estado de
delírio ansioso, é re-internada em janeiro de 1890, sem que o delírio tenha se
modificado em nada. No intervalo, tentou se suicidar por afogamento. Os distúrbios
intelectuais conservam sempre o mesmo aspecto; a doente continua sendo
alimentada por sonda. Morre de peritonite em fevereiro de 1890.
Senhores, vocês vêem que essa observação quase não difere do caso-típico.
Do ponto de vista sintomático, encontramos todos os elementos da síndrome de
Cotard: ansiedade, analgesia, tendência ao suicídio e às mutilações voluntárias;
recusa de alimentos; idéias de negação, idéias de imortalidade com sua estampa
hipocondríaca especial em associação com outras idéias delirantes que têm, não só
a fórmula, mas ainda as características gerais do delírio melancólico.
Podem julgar também, por esse exemplo, as equivalências que assinalei
acerca dessas idéias melancólicas, às quais alguns autores são tentados a atribuir
uma importância grande demais.
Assim, as idéias de possessão estão aqui representadas pela crença numa
influência nefasta que empurra a doente para o mal, e o temor da danação é
substituído pelo temor de suplícios, idéia equivalente, como vimos.
Do ponto de vista do curso, vemos bem aqui a síndrome se constituir ainda
durante o primeiro acesso melancólico; mas, assim como o precedente, esse caso
nos mostra justificada, até clinicamente, a gradação estabelecida por Cotard. Com
efeito, a afecção se instala primeiro sob o aspecto da melancolia simples e dura
assim cinco meses; depois aparece o delírio melancólico sob sua forma habitual e é
somente ao cabo de um ano de doença que se acha constituída a síndrome de
Cotard, assumindo assim, por outro lado, a significação que acreditamos dever lhe
atribuir.
A segunda observação é a da senhora L., com 48 anos, admitida em 31 de
julho de 1888.

168
Como antecedentes hereditários, soubemos que o pai era muito nervoso (?) e
que a mãe foi acometida de um delírio melancólico com ansiedade; imaginava que
iam matá-la.
Um irmão, muito original, ficava “feito louco” de vez em quando.
Nos antecedentes pessoais, notei que o desenvolvimento físico teria sido
regular, a inteligência sempre fraca; a doente aprendia com muita dificuldade na
escola. Teve suas regras com cerca de catorze anos. Nunca teve ataques de
nervos, mas sempre foi emotiva e escrupulosa ao exagero. Teve vários partos muito
difíceis, sem acidentes.
O começo da afecção datava de seis meses antes da admissão, isto é, do
início do ano de 1888. A doente se queixava então de um mal-estar geral, de não
poder cuidar de seus negócios. Estava triste, preocupada, atormentava-se
enormemente a propósito de tudo, temia que seus negócios fossem mal. Quando via
uma firma fechada, dizia: “Vamos ficar assim”.
As idéias verdadeiramente delirantes só apareceram mais tarde, por volta do
fim de junho, cinco a seis semanas antes da internação. Seu marido tinha saído;
muito inquieta, essa senhora tinha ido vagar pelo cais para procurá-lo, imaginando
que ele queria se jogar n’água. Emitia idéias de culpa: acusava-se de ter feito mal
suas contas, mas não era para enganar ninguém; vão entretanto puni-la, fazê-la
passar por suplícios, esquartejá-la, arrastá-la na cauda de cavalos. Nessa época, ela
tinha perdido completamente o sono.
Na admissão, em 1° de agosto de 1888, o fácies é dos mais ansiosos;
gemidos, súplicas; agitação, terrores panofóbicos. Tem medo de tudo, até de um
gato. Tem medo dos carros que vão levá-la ao suplício ou esquartejá-la. Os
telhadores que estão nos telhados vão estrangulá-la com suas cordas; vão supliciá-
la, arrancar suas unhas. “Que infeliz eu sou! Meu Deus! Meus Deus!” Tudo isso
porque tinha feito mal as contas, mas sem intenção de prejudicar. Acusa-se também
de ter envenenado seu pai, de quem cuidava.
Grande confusão nas idéias, secundária aos distúrbios emocionais. Diz que
se passa nela algo “estranho” que não pode explicar, que está muito fraca; não sabe
nem o dia, nem o mês, nem o ano; não pode dizer aonde foi quando saiu à procura
de seu marido. Sem idéias de suicídio. Sem alucinações.

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Sem tremor nem hesitação da fala; pupilas normais.
Em 10 de agosto, ela conta que vão arrancar suas unhas, cortar seus pés,
matá-la, queimá-la viva. Interpretações delirantes contínuas. Comportou-se mal, é
culpada, mas não a ponto de merecer a morte. Alucinações; chamam-na de
envenenadora, mulher suja.
Ansiedade, soluços, lágrimas.
A inteligência parece muito fraca; a cabeça é muito pequena, há deformações
auriculares.
A partir dessa época, sobreveio um período de melhora progressiva, e a
doente saiu em 30 de setembro, muito melhorada, calma, sem nenhuma idéia
delirante, mas sempre impressionável.
Quatro meses depois sobreveio um segundo acesso, que provocou uma
segunda internação, em 2 de fevereiro de 1889.
O estado delirante é o mesmo que na primeira admissão: ansiedade muito
pronunciada, temores de suplícios imaginários, idéias de culpa, interpretações
delirantes, terrores panofóbicos. Recusa de alimentos a intervalos.
A doente saiu em 10 de maio de 1889, muito melhorada, sem delírio, mas
menos bem, contudo, do que na primeira saída.
Cinco meses depois, terceiro acesso e internação em 1° de outubro de 1890.
Mesmo estado de ansiedade, mesmas idéias de culpa, mesmos temores de
suplícios. Mas, além disso, há idéias hipocondríacas e de negação. “Não sou mais”,
diz a doente, “de modo algum como antes; meu ventre está oco e sinto dentro algo
que se mexe. Não tenho mais carne, não tenho mais sangue, não tenho mais pulso.
Meu coração se abalou, não bate mais. Não tenho mais vigor, não tenho mais
estômago, não tenho mais garganta; meus ossos mudaram de forma, minhas
orelhas também; não tenho mais sangue nas mãos; meu pescoço está demolido”.
Hiperestesia notável; assim que a tocam, a doente solta gritos assustadores.
Recusa total de alimentos. Alimentação por sonda. Resistência e oposição
sistemáticas.
Caquexia progressiva; morte por tuberculose pulmonar em 28 de novembro
de 1891, sem que o estado mental tenha se modificado em nada.

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Neste caso, senhores, vemos inicialmente dois acessos de melancolia
ansiosa comum, depois um terceiro acesso, no curso do qual aparecem idéias
hipocondríacas de negação, acompanhadas por idéias de culpa, temores de
suplícios, recusa de alimentos. Os distúrbios da sensibilidade assumem a forma
hiperestésica, quadro assinalado aliás por Cotard como passível de substituir a
analgesia. A síndrome de Cotard está doravante constituída.
Faltam os temores da danação; são substituídos pêlos temores equivalentes
de suplícios, pela culpa imaginária. Não há idéias de imortalidade, mas é preciso
notar que a doente morreu no curso do acesso em que apareceram as idéias de
negação, de modo que essas idéias de imortalidade talvez não tenham tido tempo
de se desenvolver.

Bibliografia
1 COTARD, J. Etudes sur les maladies cérébrales et mentales, 1 vol., Baillière
éditeur, 1891.
2 BAILLARGER. Recherches sur les mafadies mentales, 2 vol., Masson éditeur,
1890.
3 N.E. - Publicado acima, pp. 205-211.
4 SÉGLAS, J., Archives de neurologie, n° 22, 1884; Progrès medical, n" 46, 1887;
ibid., n° 43, 1888; Annales médico-psychologiques, julho de 1889;
Congresso de Blois, 1892.
5 DAGONET, J. Bulletin de la Société de médecine mentale de Belgique, 1891.
6 RÉGIS. Congres international de médecine mentale, Paris, 1889.
7 Resumo ao Congresso de Blois, 1893.
8 AMAUD. Annales médico-psychologiques, novembro de 1892.
9 SÉGLAS, J. e SOURDILLE, G. Annales médico-psychologiques, março de 1893.
10 TOULOUSE. Annales médico-psychologiques, 1893;
Bulletin de la Société de médecine mentale de Belgique, 1893;
Gazette des hôpitaux, 1892.
11 PARIS. Annales médico-psychologiques, 1884; Congresso de la Rochelle.1893.
12 DE COOL. Tese de Paris, 1893.
13 JOÃO BARREIRA. O delírio de negações, Porto, 1892.

171
14 CRISTIANI. Nuova rivista di psichiatria, n° 8, 9, 10, 1892;
Gazetta del manicomio di Macerata. n° 6, 1893.
15 SERBSKY. “Analyse”. Em Arch. neurol., novembro de 1893. - Acrescentar como
trabalhos publicados desde então sobre o assunto: SÉGLAS, J. Le delire des
négations, l vol., 234 páginas, Masson Editor, 1894;
FRANCOTTE, X. Bulletin de Ia Société de médicine mentale de Belgique, 1894;
VAURIOT. Tese de Nancy, 1894.

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