Direitos Reais para Eva
Direitos Reais para Eva
Direitos Reais para Eva
Direito das Coisas → Conjunto de normas que regulam a disposição plena dos bens e a sua
apropriação. Daí que as suas normas se prendam essencialmente com o domínio e a utilização dos
bens, regulando o autêntico e autónomo poder das pessoas sobre as coisas.
O direito das coisas tem assim uma disciplina específica e directa da utilização do bem, o poder
que determinado sujeito possui sobre um bem, numa perspectiva de estática patrimonial, numa
perspectiva de domínio.
Nessa medida, conferem maior segurança sobre os bens ao seu titular. É neste sentido que se pode
afirmar que o direito das coisas regula as infra-estruturas sócio-económicas de uma sociedade.
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O detentor de um direito real sobre um bem goza, por isso, de uma maior proteção do que
aquela que é conferida pelo direito das obrigações e daí que se possa dizer que os direitos reais, pela
maior segurança que conferem aos seus titulares, são o alicerce de toda a ordem jurídica no que se
refere ao controlo de bens económicos.
Os direitos reais permitem a disponibilização plena dos bens e conferem vantagens ao seu
titular de natureza não económica. Ex: posições de poder, prestígio e autoridade.
De facto, a situação ideal é que a cada coisa pertença um titular. Quando é assim, o domínio
não tem lacunas e não há conflitos de interesse.
Todavia, nem sempre assim acontece. Há situações em que se abrem lacunas. Ex: pessoa que
perde um bem; alguém que faz um contrato não sendo sujeito a forma escrita (contrato nulo); pessoa
que utiliza um bem sem ser seu titular; alguém que furta o bem; alguém que morre sem herdeiros; etc.
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Distinção entre Direito das Obrigações e Direitos Reais
Âmbito do Direito Real: poder direto e imediato sobre uma coisa, impondo-se à generalidade dos
membros da comunidade jurídica e constituindo uma aproximação, derivação ou expressão da forma
plena de domínio sobre os bens, com vista a organização sólida das infraestruturas socioeconómicas
existentes. Esta forma plena e absoluta é o Direito de Propriedade.
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O direito real visa a organização das infraestruturas económicas de um país, sendo que se destaca o
direito de propriedade como único instrumento jurídico que realiza no plano do aproveitamento o
pleno gozo sobre uma coisa. Este é o direito principal, do qual todos os outros dependem ou ao qual se
reconduzem. Assim, qualquer noção de direito real tem obrigatoriamente que partir da noção de
direito de propriedade.
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O direito das coisas/reais regula o domínio dos bens em sentido estrito, dos bens considerados
em si mesmo, regula a direta e imediata relação das pessoas com as coisas, o que significa que entre o
titular e a coisa não há qualquer intermediário, há sim uma relação linear entre a pessoa e a
coisa.
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Noção jurídica de coisa → art.202º CC: “Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de
relações jurídicas.”
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Esta noção de coisa é muito ampla e até tecnicamente errada. Enquanto objecto de um direito real,
coisa é todo o bem externo e escasso, desprovido de personalidade jurídica, de carácter estático,
corpóreo ou incorpóreo, com existência jurídica autónoma, susceptível de apropriação individual e
apto a satisfazer interesses ou necessidades humanas.
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a) Obrigações reais → encargos que recaem sobre quem é titular de um direito real, pelo
que a causa da obrigação é determinada pela titularidade do direito real. Desse modo, o
titular da obrigação e o titular do direito real são a mesma pessoa. Há, assim, uma relação
estrutural genética, funcional e instrumental entre a titularidade da obrigação e o
aproveitamento do direito real.
Ex. Art.1375º CC – reparação e reconstrução do muro; na compropriedade, as despesas
feitas na manutenção da coisa comum; as despesas de condomínio na propriedade
horizontal; as despesas de conservação de uma coisa que incidem sobre o administrador
dessa coisa.
Obrigação real ≠ Obrigação em geral:
− transmissão – a obrigação real transmite-se com a transferência do direito
real, isto é, as obrigações acompanham necessariamente a transmissão do
direito real, apesar do adquirente só responder pelas obrigações futuras. As
obrigações anteriores à transmissão continuam a ser do titular anterior do
direito. Por sua vez, nas obrigações em geral, a obrigação só se transmite se o
adquirente assim consentir. Por exemplo, A deve a B €50 e por essa dívida
convencionaram um juro de 5%. Se A transmitir a dívida a C, o juro não se
transmite automaticamente, mas só se C aceitar.
− exoneração/extinção – nas obrigações reais o titular do direito fica exonerado
quando transmite o direito. O devedor liberta-se do vínculo, desde que
renuncie ao direito real. Na obrigação em geral, o devedor não pode,
unilateralmente, exonerar-se do débito, já que precisa de autorização do
adquirente.
b) Ónus reais → de acordo com Henrique Mesquita, não existe no direito português um
conceito unívoco de ónus real, sendo a noção empregue pelo legislador em diferentes
contextos jurídicos. Há todavia um elemento comum: a existência de gravames, isto é,
encargos sobre determinadas coisas que constituem objecto dos ónus.
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Ónus real será então um encargo imposto a quem é titular de um direito real, em benefício
de outra pessoa a favor da qual o ónus é constituído. Estes encargos têm eficácia “erga
omnes” e recaem directamente sobre o próprio bem, o que não acontece nas obrigações
reais.
Ex. Art.2018º CC – falecendo um cônjuge, o sobrevivo tem direito a ser alimentado pelos
rendimentos dos bens deixados pelo falecido. Assim, são obrigados à prestação de
alimentos os herdeiros ou legatários a quem tenham sido transmitidos bens.
Características que aproximam os ónus reais a direitos reais e outras que os aproximam das
obrigações em geral:
elementos obrigacionais:
existência de um direito a uma prestação que envolve a
colaboração do titular do direito real, ou seja, o titular do direito
real está obrigado a uma prestação face ao credor. O que distingue
o ónus real da obrigação é a relação com a titularidade do direito
real.
elementos realistas:
há elementos reais presentes na ligação da prestação com a coisa. É
a coisa que é objecto da transmissão que responde pelo pagamento
pelo cumprimento do ónus, ou seja, a coisa serve como garantia.
o ónus possui uma eficácia “erga omnes” ou absoluta, porque face
aos bens sobre os quais recaem os ónus, o adquirente é
responsável tanto pelos ónus anteriores como posteriores.
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o titular do ónus, em caso de transmissão dos bens, goza do direito
de preferência nessa transmissão, o que permite que se concentre
na mesma pessoa a titularidade e os encargos, o que faz com que os
encargos desapareçam.
Toda a relação jurídica tem por objecto um bem, mas bem não é necessariamente uma coisa. De
facto, há bens coisificáveis e bens não coisificáveis.
Não nos interessa, como é evidente, a noção vulgar de coisa, quer ampla – “tudo o que pode ser
pensado, suposto, afirmado ou negado” (Lalande) –, quer restrita – o objecto material delimitado no
espaço. Interessa-nos, pois, o sentido jurídico.
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2. existência autónoma ou separada;
3. possibilidade de apropriação exclusiva por alguém;
4. aptidão para satisfazer interesses ou necessidades humanas.
O art.202º nº2 CC especifica, dentro das coisas, as que estão fora do comércio, por não poderem
ser objecto de direitos privados (só podem ser objecto de relações jurídicas públicas ou internacionais
– direito público), exemplificando as coisas de domínio público e as que são, por natureza,
insusceptíveis de apropriação individual.
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Situações económicas não autónomas: posições com valor económico, sem autonomia
jurídica.
Dois grandes grupos:
1) Situações económicas não autónomas ligadas incindivelmente a outros bens → situações
económicas que se ligam a outras situações, designadamente a estabelecimentos comerciais. São
situações ligadas à titularidade do estabelecimento. À volta do estabelecimento comercial geram-se
determinadas situações que, muito embora mereçam tutela jurídica (dado o seu valor económico),
não são coisas, por não se tratarem de entidades com autonomia jurídica. Exs. Clientela, fama, relações
fácticas, fornecedores, honra, nome, bom acreditamento na banca.
A clientela enquanto bem jurídico, só existe incindivelmente ligada ao próprio estabelecimento.
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Hipoteca de superfície (art.688º nº1 c) CC)
Hipoteca dos direitos resultantes dos bens de domínio público (art.688º nº1 d) CC)
Hipoteca do usufruto das coisas e direitos (art.688º nº1 a) a d) CC)
Usufruto de direitos (art.688º nº1 e) e art.1439º CC)
A vantagem não se tira do crédito que se tem (do conteúdo do direito), mas da vantagem de se
ser titular de um crédito/direito.
Art.203º CC: “As coisas são imóveis ou móveis, simples ou compostas, fungíveis ou não
fungíveis, consumíveis ou não consumíveis, divisíveis ou indivisíveis, principais ou acessórias,
presentes ou futuras.”
Coisas móveis (art.205º CC) → tudo aquilo que não é classificado pela lei (no art.204º CC) como
coisa imóvel.
b) As águas;
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apesar de estarem em constante deslocação, são consideradas como imóveis,
porque a sua imobilidade advém da integração no solo. Daí que um rio e as suas
margens e leito devam ser considerados, no seu todo, como um imóvel.
Porém, a água ganha carácter móvel quando retirada de um lençol e colocada num
conservatório, parecendo dever ser qualificada como um fruto, dada a sua
renovação constante.
A propriedade das águas encontra-se regulada nos arts. 1385º e seguintes CC.
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Para Oliveira Ascensão, a enumeração do art.204º CC é meramente exemplificativa, porque
existem várias coisas integradas em terrenos, como monumentos, minas, estradas, que apesar de não
constarem do artigo são consideradas coisas imóveis.
A lei determina com clareza a necessidade das coisas imóveis estarem ligadas materialmente
ao solo. Assim, a terra é um imóvel, bem como todos os elementos nela incorporada com carácter de
permanência.
Partes integrantes → art.204º nº3 CC: “toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com
carácter de permanência.” Apesar de estarem ligadas a um prédio com carácter de permanência,
mantêm a sua individualidade material, não se funde com a estrutura do prédio a que está ligada, nem
a sua falta torna esta imperfeita. Podem aumentar a utilidade da coisa a que estão ligadas, mas não são
indispensáveis à sua função normal (ex. antena de um prédio; quadro de uma sala).
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A distinção não consta do CC, mas ela assenta na possibilidade de percepção das coisas pelos
sentidos.
Assim,
Coisas corpóreas → aquelas que podem ser apreendidas pelos sentidos, possuem complexão
física e são materialmente palpáveis (res quae tangi possunt).
Coisas incorpóreas → não são perceptíveis pelos sentidos, não têm existência física, são meras
construções de espírito (res quae tangi non possunt).
Há 3 espécies de coisas incorpóreas:
a) ideias ou bens ideais (integram a propriedade industrial ou intelectual)
b) valores de organização (ligadas ao estabelecimento comercial)
c) direitos sobre direitos (direitos enquanto objecto de outros direitos)
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Ora a ideia inventiva só adquire o estatuto de coisa incorpórea e, com isso, autonomia e relevo
jurídico na medida em que for corporizada ou materializada ou, ainda, exteriorizada e, portanto, se
torna susceptível de exploração económica pelo seu autor. É a potencialidade de conferirem lucro que
lhes atribui especificidade para efeitos de direito patrimonial.
Com vista a garantir a sua exclusividade existe o direito de propriedade, enquanto direito de
pleno uso, gozo e fruição da coisa.
Contudo, apesar da ideação se tornar independente, ela mantém-se intrinsecamente ligada ao
seu criador e, uma vez que ela é um prolongamento da personalidade do seu criador, o direito protege
de várias formas a obra em si. Por exemplo, não se pode comprar um quadro e mudar o nome do
autor, sob pena de violar um direito de personalidade – o direito de criação artística. Outro exemplo, o
autor tem direito a não querer publicar um livro ou tem o direito a não permitir que a sua obra não
seja transporta para o teatro.
Daqui decorre, segundo Orlando de Carvalho, que relativamente à coisa incorpórea surgem
dois direitos germinados, que visam a tutela da coisa incorpórea e que são reflexo da autonomia e da
ligação ao criador:
− Direito patrimonial de autor → direito real que permite ao autor da obra inventiva
explorá-la economicamente, ou melhor, é um direito de exclusividade económica.
− Direito moral de autor → é um direito de personalidade, que garante o respeito pela
criação.
Todavia, Oliveira Ascensão discorda desta posição, pois o direito sobre a obra intelectual não é
um direito real, na medida em que não abrange a totalidade de poderes sobre a coisa, por exemplo,
não abrange a possibilidade de gozo estético da coisa, somente a exploração da coisa. Este direito não
protege a obra, apenas permite que ela seja economicamente explorada. Após a criação da obra, esta
separar-se-ia dos bens intelectuais e do seu autor, transformando-se em entidades que podem ser
usufruídas por outrem, sem qualquer espécie de mediação.
Em suma, a ideia inventiva tem de ser corporizada para adquirir o estatuto de coisa incorpórea,
mantendo-se todavia distinta e independente, embora incindivelmente ligada, quer ao autor quer ao
“corpus mechanicum” que a corporiza.
A nível de tutela real, a ideação só releva se for explorada economicamente, o que constitui uma
limitação funcional. Assim, uma coisa será o bem susceptível de exploração económica, outra coisa
será o bem na sua dimensão da personalidade do seu autor. A protecção da ideação através do direito
real não visa regular o gozo cognitivo ou estético do bem, mas só aquela possibilidade de exploração
económica do bem e fá-lo através do direito de propriedade, enquanto direito pleno e exclusivo.
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b) Valores de organização
Correspondem ao estabelecimento comercial. É uma coisa incorpórea “sui generis”, porque tem
no seu núcleo a ideia de organização, a combinação de factores produtivos utilizados naquela empresa
(pessoas e coisas), mas esta ideia organizatória não subsiste sem os factores produtivos que a
concretizam e que corporizam o estabelecimento. Trata-se de uma ideia organizatória plasmada nos
próprios factores de produção organizados de determinada maneira e que só têm existência jurídica
concretizada no “corpus mechanicum”.
O estabelecimento comercial é então uma organização de factores de produção, como as
pessoas e as coisas, não se reduzindo às coisas corpóreas, mas compreendendo também bens
incorpóreos e valores como a firma, nome do estabelecimento e insígnia (sinais distintivos do
estabelecimento) e, ainda, situações patrimoniais não autónomas, como a clientela.
Este conjunto de bens materiais/corpóreos, bens incorpóreos e situações patrimoniais não
autónomas conferem ao estabelecimento a sua capacidade lucrativa (capacidade de gerar lucro),
capacidade essa que lhe confere relevância no âmbito do direito patrimonial. Sendo um bem com
especial capacidade lucrativa está associado à ideia de mercado e daí que seja entendido como uma
coisa composta funcional.
Orlando de Carvalho definiu estabelecimento comercial como uma organização concreta de
factores de produção com valor de posição de mercado.
É uma coisa composta, porque é integrada por elementos de natureza variada e é uma coisa
funcional, porque tem em vista a ideia de capacidade lucrativa. Daí que o valor do estabelecimento
comercial não se afira pelos bens materiais que o incorporam, mas pelo seu valor de posição de
mercado, isto é, pela capacidade lucrativa e pela clientela a ele ligada, valores esses que não
dependem, pelo menos directamente, dos factores produtivos que integra.
Como a capacidade organizativa visa gerar lucro, isso confere ao estabelecimento um valor
diferente da soma do valor das unidades que a integram, ou seja, o valor do estabelecimento é
diferente do valor dos elementos que a compõem, porque a organização tem uma função de lucro, que
deriva da sua posição de mercado, que lhe dá valor acrescido.
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propriedade que incide sobre o estabelecimento comercial recai sobre a sua organização, enquanto
bem único e simultaneamente sobre cada um dos elementos que integra o estabelecimento.
Sendo o estabelecimento comercial uma coisa incorpórea, tem-se entendido que é mais
adequado classificá-lo como um bem móvel, não sujeito a registo, mas um bem móvel anómalo,
porque relativamente a alguns efeitos é-lhe aplicado o regime dos bens imóveis (por exemplo, para
efeitos de alienação). Esta posição é sustentada pelo facto de para o trespasse se exigir escritura
pública, típico dos negócios que envolvam coisas móveis. Já para efeitos de garantia, é objecto de
penhor e não de hipoteca, apesar de alguns dos seus elementos poderem ser objecto de hipoteca.
Art.211º CC: “São coisas futuras as que não estão em poder do disponente ou a que este não
tem direito ao tempo da declaração negocial.”
A noção dada pela lei de coisa futura não é a mais correcta em termos técnicos. De facto, uma
coisa que não está em poder do disponente é uma coisa alheia e uma coisa que ele não tem ao tempo
da declaração ou não existe ou, se existe, é alheia.
Coisa futura → é uma coisa esperada, uma coisa que se espera vir a adquirir para integrar o
património do disponente (“res speratas”), em contraposição à coisa presente que o disponente já
possui.
Distinguem-se:
− Coisas relativamente futuras → já estão na disponibilidade de alguém, mas que não é
o disponente, que espera, ao momento da declaração negocial vir a adquiri-las.
− Coisas absolutamente futuras → ainda não existem ao momento da declaração, mas
esperam-se vir a ter.
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Universalidade de facto → complexo de coisas móveis, corpóreas, objecto de uma única relação
jurídica, ou seja, é uma unificação sobre a qual recai um único direito.
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Orlando de Carvalho → conjunto de coisas unificadas por interesses económicos, em que
existe um valor de agregação. Por exemplo, rebanho, conjunto de selos, colecção de moedas.
Este conjunto não é uma coisa una, porque o seu conjunto não é alvo de um direito real. Só cada
coisa isoladamente o será.
A universalidade de facto é então uma coisa que existe apenas enquanto conjunto de bens
ligados por um valor de reunião, bens esses que, entre si, se encontram numa posição de paridade,
tendo o mesmo valor quer agrupados, quer individualizados.
Por isso, para Orlando de Carvalho, universalidades de facto não se confundem com as coisas
compostas funcionais, porque nas primeiras, o valor do conjunto é igual ao somatório das coisas
individuais, ao passo que nas segundas, o valor do conjunto é superior ao somatório.
A universalidade de facto é objecto de uma única relação jurídica ou objecto de várias relações
jurídicas?
→ Tese unitária → A universalidade de facto é alvo de uma única relação jurídica. Sobre ela há
um único direito que abrange todo o conjunto de coisas que compõem a universalidade.
Vantagem: facilidade de prova da propriedade e, consequentemente, de reivindicação da
propriedade sobre a universalidade de facto. Basta provar a propriedade sobre o conjunto e não é
necessário provar a propriedade de cada elemento da universalidade.
Esta tese é defendida por Henrique Mesquita com base no disposto no art.206º CC.
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Orlando de Carvalho entende que desta norma não se pode retirar a unificação do
objecto, embora haja duas situações em que a lei trata a universalidade como uma coisa única:
art.942º CC – doação de universalidades – e art.1462º CC – usufruto de animais.
→ Tese atomista → o domínio incide sobre cada uma das coisas individualmente consideradas,
coisas essas que constituem a universalidade de facto e, portanto, há tantos direitos quanto as coisas
que constituam a universalidade.
Desvantagem: por esta tese, teria que se provar o domínio sobre cada elemento individual da
universalidade.
Porém, os defensores desta tese admitem que, numa acção de reivindicação, é possível invocar
apenas o domínio sobre a maioria dos bens, não sendo necessário provar o domínio o domínio sobre a
totalidade.
f) Frutos e produtos
Art.212º CC: “Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente, sem prejuízo da
sua substância.”
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− Carácter periódico
− Tem que estar em condições de, per si, sobreviver
Frutos → Civis
→ Naturais
Frutos naturais:
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− Pendentes → ainda não se fez a separação (art.215º nº2 CC)
− Percebidos → já se fez a separação (art.213º nº1 e 215º nº1 CC)
− Percipiendos → podiam ter sido colhidos, mas não o foram por culpa do detentor da coisa
− Maduros → aptos para a colheita (art.214º CC)
O momento da separação é o momento decisivo para saber se quem tinha o gozo ou desfrute da
coisa-mãe adquire ou não a propriedade dos frutos.
Frutos ≠ Produtos
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Utilidades que das coisas derivam com carácter eventual (ao contrário dos frutos que
tem um carácter periódico). O produto é o rendimento que não tem carácter periódico ou, tendo-o, a
sua produção causa prejuízo ao carácter da coisa.
Por outras palavras, produtos são, tal como os frutos, derivações das coisas, mas que esgotam a
sua substância, enquanto os frutos, sendo colhidos periodicamente, não prejudicam a sua substância.
Ex. A pedra extraída de uma pedreira não é um fruto, mas um produto, uma vez que a sua
extracção implica, como é óbvio, o esgotamento do terreno.
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g) Benfeitorias
Art.216º CC → Despesas feitas para conservar, melhorar ou aumentar o valor de uma coisa.
Encargos → despesas periódicas feitas por causa da coisa (ex. pagamento de rendas, impostos,
amortizações, juros); despesas que decorrem de relações jurídicas que o titular
tem com a coisa.
Capítulo I – A posse
A ordenação dominial tem duas facetas: a ordenação dominial definitiva, levada a cabo através
dos direitos reais; e a ordenação dominial provisória, estabelecida mediante a posse.
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De acordo com o art.1251º CC, a posse é um poder de facto, que alguém exerce sobre uma coisa
de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real e que está na
origem de todo o domínio.
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Daqui decorre que a posse é admissível em relação a qualquer outro direito real que não o
direito de propriedade: pode haver uma posse traduzida na prática de actos correspondentes ao
conteúdo, não do direito de propriedade, mas de um outro direito real. Ex. Posse de uma servidão;
posse de um usufruto; etc.
Porém, mesmo quando nos referimos à posse traduzida na prática de actos correspondentes ao
direito de propriedade (caso mais comum), ainda aqui posse e propriedade distinguem-se.
As mais das vezes, a posse coincide com a titularidade do direito de propriedade ou de outro
direito real (servidão, usufruto, etc.) a que corresponde. Ex. Um proprietário que habita o seu prédio é
simultaneamente proprietário e possuidor. Aqui a posse, por força desta coincidência, não tem
autonomia em relação ao direito real (no caso, o direito de propriedade). Nestes casos, assiste-se a
uma reunião, na mesma pessoa, das qualidades de proprietário e possuidor.
Pode, contudo, não acontecer assim.
Exemplos:
Um agricultor começa a cultivar o terreno vizinho, fazendo-o de forma reiterada, sem
autorização e afirmando o seu intento de se comportar como proprietário, recolhendo os frutos, etc.
Nesta hipótese, este agricultor torna-se possuidor deste terreno. Tem a posse, mas não tem a sua
propriedade. O proprietário é o dono do prédio, que, por sua vez, não tem a posse correspondente,
que pertence ao agricultor.
Um indivíduo acha uma coisa perdida ou furta um objecto e o guarda, passando a fruí-lo. Surge
aqui também uma dissociação entre a qualidade de possuidor e de proprietário. O proprietário é o
lesado; este continua a ser proprietário da coisa, apesar de já não ser seu possuidor.
Um indivíduo compra um objecto a quem não era o seu proprietário, seja porque o alienante
não proprietário vende conscientemente uma coisa alheia, seja porque o alienante não proprietário a
tinha adquirido por acto nulo. Nesta situação, o adquirente não se torna proprietário, dado o princípio
“nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet”. O comprador nada adquire, visto o
alienante não possuir nenhum direito sobre a coisa alheia. Não obstante, se a coisa lhe foi entregue, o
adquirente torna-se possuidor dela. Não é o seu proprietário. Proprietário é aquele cuja coisa foi
vendida por outrem. O adquirente, uma vez que a coisa lhe foi entregue, é apenas o seu possuidor.
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Apontamentos Direitos Reais
Em todos estes casos, a posse não coincide com a titularidade do direito real correspondente,
uma vez que, neles, há um indivíduo que detém a coisa em seu poder e que, embora se comporte como
seu proprietário, não tem essa qualidade.
Assim, o regime da posse baseia-se numa mera situação de facto reconhecida pela ordem
jurídica e que se traduz na possibilidade de alguém utilizar e fruir de um bem, embora não possa
invocar o direito real correspondente para legitimar o seu uso, como sucede nos casos abrangidos
pela ordenação dominial definitiva, que assentam sempre num direito real.
Como acabou de ser dito, normalmente, o direito de propriedade e a posse surgem juntos.
Quem tem a posse é o proprietário. Há, então, uma coincidência normal entre a propriedade (poder
jurídico) e a posse (poder de facto).
Pode, todavia, acontecer que quem tenha o domínio factual ou empírico sobre uma coisa, não
tenha o domínio jurídico sobre essa mesma coisa. Ex. Caso de furto da coisa; caso de perda da coisa;
etc.
A posse pode, assim, ser exercida directamente ou indirectamente (no caso de a coisa se
encontrar na disposição de outra pessoa). A posse pode ser exercida através da utilização directa e
imediata do bem ou através da colocação do bem à disposição de outra pessoa (mediante, por
exemplo, o comodato – emprestando a coisa a alguém). Ainda aqui, o possuidor estará a exercer um
poder de facto sobre a coisa, embora de modo indirecto. Considera-se que conferir o uso de um bem a
um terceiro é ainda uma manifestação do exercício do poder de facto sobre o bem.
Nestes termos, existe posse logo que a coisa entre na disponibilidade fáctica de alguém e
permita exercer sobre ela um poder empírico, ou seja, há posse sempre que o bem se mantenha na
reserva de disponibilidade fáctica do sujeito.
Daí que Heck defina posse como “a entrada factual de uma coisa na órbita de um senhorio ou
de interesses”.
A posse implica, então, que haja uma voluntariedade ou uma intencionalidade no seu exercício
por parte do sujeito (que a exerce). Por exemplo, ninguém pode exercer a posse se estiver a ser sujeito
a coacção.
Sendo a posse um poder de facto e não um poder jurídico, ela surge como um mecanismo de
preenchimento das lacunas da ordenação dominial definitiva.
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Nessa medida, a posse é o objectivo a que aspira toda a dominialidade, porque o que
verdadeiramente se pretende com a ordenação dos bens é o seu exercício através de um poder de
facto, directo ou indirecto.
Ora, a posse, não obstante constituir uma ameaça ao direito real, na medida em que se apoia
numa dominialidade empírica com a qual se atinge o suprimento de lacunas da ordenação dominial
definitiva, é alvo de uma tutela/protecção jurídica, por parte do ordenamento jurídico.
O fundamento desta tutela jurídica assenta na promoção da paz social, que com ela se alcança,
na medida em que através dela se evitam conflitos de interesses que decorrem das lacunas da
ordenação dominial definitiva (tanto mais que o direito presume a titularidade do direito do
possuidor – a posse indica a aparência do direito – art.1268º nº1 CC).
Além disso, a posse é um valor de organização, que permite o aproveitamento dos bens e a
continuidade da sua exploração, uso e fruição.
Deste modo, ela permite uma reintegração do domínio dos bens, pois esta continuidade de
exploração, uso e fruição forma e consolida os interesses de facto que têm de ser protegidos,
nomeadamente quando o proprietário do bem não tenha, durante certo tempo, reagido nem
reivindicado o bem.
A posse é, nesta medida, uma via para a dominialidade e é-o mediante o instituto da usucapião,
enquanto efeito possessório.
A posse pretende-se como uma situação provisória, exercida durante determinado período de
tempo limitado. Porém, ela pode e deve transformar-se e passar de poder de facto para um novo
poder jurídico que se substitui ao anterior. Com isto, dá-se a transformação do domínio provisório em
domínio definitivo, mediante o instituto da usucapião, que funciona como mecanismo de sucessão na
dominialidade.
A possibilidade desta transformação justifica-se, desde logo, pela necessidade de tutela dos
valores de organização e de continuidade que a posse permite, não obstante o facto da tutela da posse
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poder vir a proteger um ladrão. Esses casos são, acima de tudo, excepcionais e têm que ser assumidos
pelo sistema.
3. Os sistemas possessórios
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Fala-se assim num animus possidendi, que não se identifica, necessariamente, com um animus
domini (intenção de se comportar como proprietário da coisa), mas abrangendo ainda situações em
que há intenção de se comportar como, por exemplo no caso de usufruto, usufrutuário. Trata-se, na
verdade, do intuito de se comportar como o titular do direito correspondente aos actos que se
praticam.
Assim, por exemplo, uma pessoa que se senta numa cadeira em casa de outrem, não é
possuidor dessa cadeira pois falta-lhe o animus, a intenção de se comportar como proprietário dela.
Situação idêntica se verifica nos casos de locatário ou comodatário. Estes não são possuidores
por lhes faltar o animus correspondente à propriedade, embora pratiquem em relação à coisa actos
equivalentes ao conteúdo da propriedade (ou, pelo menos, do usufruto).
Ora, aqui, levanta-se a questão de saber se para existir posse é necessário que concorram estes
dois elementos.
Surgem, então, duas concepções de posse: uma objectiva e outra subjectiva.
→ Sistema objectivo:
Para a concepção objectiva da posse, à qual se associa o nome de Ihering, para que haja posse é
necessário que exista um poder de facto sobre determinado bem, bastando, portanto, que se verifique
o corpus. Dispensam-se especiais intencionalidades nesse exercício (o animus).
→ Sistema subjectivo:
Para a concepção subjectiva, defendida por Savigny, para haver posse é necessário que se
verifiquem os dois elementos: o elemento externo/fáctico (o corpus), enquanto poder de facto sobre o
bem; e o elemento interno/intencional (o animus), enquanto intenção de exercer o poder de facto
como se fosse titular do direito real correspondente.
Mas, tal como a posse se adquire quando se reúnem os dois elementos, a posse também se
perde se se perdem os dois elementos ou, do mesmo modo, se se perde só um deles (pode acontecer
que se perca só o elemento psicológico ou só o elemento material). Por exemplo: perde-se o elemento
material, quando a coisa fosse é perdida, furtada ou usurpada por terceiro; por outro lado, perde-se o
elemento psicológico nos casos de constituto possessório (o proprietário de um prédio vende-o, mas
convenciona com o adquirente que continua no prédio como locatário).
Assim, havendo o corpus, mas não havendo o animus, estamos perante um direito de crédito,
não havendo consequentemente tutela possessória.
23
Apontamentos Direitos Reais
Havendo corpus e animus, mas sendo um animus detinendi (e não um animus possidendi), não
há tutela possessória, porque estamos perante uma mera detenção (que corresponde, portanto, ao
exercício de um direito de crédito).
Da comparação dos dois sistemas resulta que o sistema objectivo confere uma tutela mais
ampla, porque abrange quer os casos em que o poder de facto se faz ao abrigo de um direito real, quer
os casos em que o poder de facto se faz ao abrigo de um direito de crédito.
Por exemplo, A empresta a B um bem móvel. Para o sistema subjectivo, A é possuidor, mas B é
um mero detentor. Já para o sistema objectivo, tanto A como B são possuidores: A é possuidor
mediato e B é possuidor imediato. Ambos gozam, nessa medida, de tutela possessória.
A verdade é que estas duas concepções da posse se explicam, porque cada uma delas parte de
diferentes justificações que atribuem à tutela possessória.
Para Savigny, o fim e a causa da protecção jurídica da posse é a defesa da paz pública. A posse é
protegida, porque, se os possuidores não pudessem recorrer ao tribunal quando fossem perturbados
ou esbulhados da coisa, os possuidores teriam que recorrer à auto-tutela dos seus direitos e à justiça
privada, o que geraria a desordem, além de que esta auto-tutela é rejeitada pelo ordenamento jurídico
(art.1º CPC), salvo os casos contados de acção directa (art.336º CC), legítima defesa (art.337º CC),
estado de necessidade, etc.
Já para Ihering, a razão pela qual se protege a posse não é a defesa da paz pública, mas o facto
de a posse ser o sinal visível ou exterior do direito real correspondente. É certo que se protegem
alguns não proprietários (ladrões e usurpadores), mas esta protecção também é uma protecção
provisória. Depois discutir-se-á a propriedade da coisa, mas, imediatamente, tem protecção como
possuidor. Além disso, estatisticamente, a maioria dos possuidores são os proprietários das coisas
possuídas. Se não se protegesse a simples posse, as pessoas teriam que provar o seu direito, o que
exigiria, muitas vezes, a prova ininterrupta de uma cadeia de transmissões, o que se consubstancia
numa prova dificilíssima ou mesmo impossível. Facilita-se, portanto, aos autênticos proprietários
(maioria estatística dos possuidores) a defesa da sua posse só com base na prova da posse, sem que
tenham que provar a propriedade com os vários títulos.
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Apontamentos Direitos Reais
Da conjugação do art.1251º CC com o art.1253º CC resulta, que entre nós está acolhida a
posição subjectiva. Se faltar o animus possidendi, estamos perante uma mera detenção ou posse
precária.
Porém, a nossa lei admitiu quatro excepções ao consagrar resultados que se aproximam da
concepção objectiva, uma vez que, por disposições “ad hoc”, a nossa lei concedeu tutela possessória,
permitindo o recurso aos meios de defesa da posse, a meros detentores ou possuidores precários:
1) Art.1037º nº2 CC – locatário;
2) Art.1125º nº2 CC – parceiro pensador;
3) Art.1133º nº2 CC – comodatário;
4) Art.1188º nº2 CC – depositário.
Embora estes não sejam autênticos possuidores, a lei, por norma avulsa, vem dizer que eles
podem valer-se dos meios de defesa da posse.
Todavia, não estão equiparados aos possuidores para todos os efeitos, nomeadamente para
efeitos de usucapião.
O nosso sistema, de cariz subjectivo, concebe, então, a posse como uma relação entre o corpus e
o animus.
Corpus → poder de facto sobre um bem, que se encontra na zona de disponibilidade empírica
do sujeito. Implica a ideia de estabilidade. Não tem forçosamente que implicar um poder físico.
Animus → consciência e intenção de exercer um domínio factual sobre um determinado bem.
↓
O facto de a lei exigir o corpus e o animus para efeito de haver posse implica que o possuidor
tenha de provar a existência dos dois elementos, o material e o psicológico – para poder, por exemplo,
adquirir por usucapião ou lançar mão das acções possessórias.
Ora como a prova do animus poderá ser muito difícil, para facilitar as coisas, a lei estabelece
uma presunção. Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto.
Daqui decorre que, sendo necessário o corpus e o animus, o exercício daquele faz presumir a
existência deste.
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Apontamentos Direitos Reais
direito real a que a intenção subjacente ao exercício dos poderes de facto sobre uma coisa
corresponda (animus de propriedade; animus de usufruto; animus de superfície; etc.).
↓
Se surgirem dúvidas acerca do direito real em
termos do qual o poder de facto é exercido, deverá entender-se, atendendo à ideia de “plena in re
potestas” que integra a dominialidade, que estamos na presença de uma posse “uti dominus”, isto é que
os poderes de facto são exercidos como se existisse titularidade de um direito real de propriedade.
Posse formal → posse autónoma; posse que não é suportada por nenhum direito real; opera
desligada do direito real; não tem atrás de si um verdadeiro direito real a legitimá-la; ela surge de um
conflito com esse direito real.
“Dá-se a posse formal quando alguém exerce aparentemente um direito sobre uma coisa,
estando a sua situação dissociada da titularidade substantiva” (Oliveira Ascensão).
Posse causal → tem causa no direito real; o possuidor causal exerce o poder de facto (a posse)
não apenas em termos de um direito real, mas na medida em que é efectivamente o titular de um
direito real; a posse é suportada por um efectivo direito real (no caso de estar em causa um direito de
propriedade, o possuidor coincide com o proprietário).
“Posse causal é aquela que tem a justificá-la a titularidade do direito a que se refere” (Oliveira
Ascensão).
O possuidor formal apenas pode invocar a posse para se defender; o possuidor causal pode
invocar não só a posse, mas também o próprio direito real, consoante o que lhe for mais conveniente.
Posse ≠ Detenção
↓
Art.1253º CC → corresponde ao exercício de um poder de facto (corpus), sem que lhe
corresponda um direito real, mas sim um direito de crédito. Há um corpus e um animus detinendi. O
simples possuidor ou o possuidor precário não tem o animus possidendi.
Art.1253º CC:
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Apontamentos Direitos Reais
a) Engloba os actos facultativos, em que os poderes de facto são exercidos pelo
detentor em consequência da inércia do titular do direito ou da inércia do possuidor.
Nestes casos, quem exerce o poder de facto não tem intenção de agir como
beneficiário do direito.
c) Abrangem os detentores por título jurídico, que dizem respeito a detenções que têm
atrás de si a existência de um título jurídico, nomeadamente um direito de crédito.
Será a posse uma simples aparência do direito, um “fumus boni iuris” ou será ela um verdadeiro
direito?
De acordo com as prelecções de Mota Pinto, uma análise do seu regime revela ser a posse um
verdadeiro direito, mas um direito real provisório. A posse não é, então, um mero facto. Ela tem mais
relevo do que um simples facto aparente do direito.
É um direito, porque a posse é uma situação jurídica subjectiva que confere um poder sobre
uma coisa em face de todos os outros e daí que seja um direito real. É uma situação negociável,
hereditável, susceptível de registo e que pode ser defendida por meios jurídicos. Está, portanto,
dotada de garantia jurídica.
É um direito real provisório, porque esta protecção só se mantém, ou melhor, cessa perante a
acção de reivindicação (meio de defesa do direito de propriedade – art.1311º CC), salvo se entretanto
operar a usucapião.
Disse-se que podem existir vários tipos de animus, consoante as intenções de exercer os
poderes de facto correspondentes aos variados direitos reais.
Por esse motivo, cumpre delimitar o conjunto de direitos em termos dos quais se pode possuir,
em termos dos quais pode existir um animus possessório. Para tal, é necessário ter presente que o
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Apontamentos Direitos Reais
corpus exercido não tem que ser necessariamente um poder físico. A posse é sim um poder de facto
que se encontra na esfera de disponibilidade empírica do seu titular.
São passíveis de posse todos os bens passíveis de domínio, ou seja, genericamente, todas as
coisas.
→ Coisas corpóreas → não levantam dúvidas de que podem ser objecto de posse.
→ Coisas incorpóreas:
− Estabelecimento comercial → pode ser objecto de posse, porque o estabelecimento
não existe sem um lastro material. Ele assenta em valores ostensivos, com relevo jurídico-económico
fora do próprio estabelecimento, valores esses, grande parte das vezes, materiais. Além disso, o poder
de facto da posse não tem que ser um poder físico, pelo que basta que o estabelecimento, enquanto
organização de factores produtivos, se encontre na reserva de disponibilidade empírica do sujeito. A
posse pretende garantir a exclusividade da disponibilidade destes bens ao seu titular. Logo, parece
não haver nada contra o facto de estes bens incorpóreos serem passíveis de posse, desde que visem
28
Apontamentos Direitos Reais
preservar a exploração económica do estabelecimento comercial (o que constitui um verdadeiro
requisito para a sua classificação como coisa incorpórea).
− Ideias inventivas → também pode haver posse, já que através desta é possível
salvaguardar a exploração económica e a exclusividade económica do bem, até porque a posse tem
que ser entendida como um poder empírico e não como um poder físico, de reserva de exclusiva
disponibilidade do bem.
↓
Grande parte da doutrina levanta problemas quanto à
admissão da usucapião destes bens.
Para Orlando de Carvalho pode haver posse sobre estes bens, defendendo, quanto à usucapião,
que esta possui natureza diferente, até porque ela não é um efeito necessário da posse, podendo ser
excluída pelo CC para certas situações possessórias.
Assim, para as invenções e obras de engenho, sendo eles bens protegidos pelo direito
patrimonial de autor, não é de admitir a usucapião, pelo menos quando for exercida contra o titular do
direito patrimonial de autor (já se levantam sérias dúvidas quando ela for exercida contra os
sucessores do titular daquele direito).
Quanto aos sinais distintivos do comércio, por via da sua ligação à personalidade e, não
obstante a necessidade da aquisição do estabelecimento, também parece não ser correcto admitir a
usucapião.
− Direitos sobre direitos → pode haver posse sempre que o direito sotoposto (direito sobre o
direito) confira poderes de facto sobre o direito sobreposto (direito objecto do direito real; direito
coisificado).
Art.1266º CC: “Podem adquirir posse todos os que têm uso da razão e ainda os que o não têm,
relativamente às coisas susceptíveis de ocupação.”
↓
A lei basta-se com o uso da razão. Com o discernimento que apenas requer da pessoa a
capacidade natural de querer e entender os poderes de facto inerentes ao exercício da posse. Basta
que o sujeito tenha a capacidade natural de entender e de querer suficiente para exercer os poderes
de facto sobre a coisa.
A lei não exige a capacidade de exercício.
Nos termos do art.488º CC, presume-se que haja uso da razão a partir dos 7 anos.
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Apontamentos Direitos Reais
Os menores de 7 anos e os inimputáveis por anomalia psíquica não têm capacidade para
exercer posse, salvo quando a coisa é susceptível de ocupação. Trata-se de uma presunção ilidível.
Casos em que os menores de 7 anos e os inimputáveis por anomalia psíquica podem possuir:
2) Casos em que a coisa é susceptível de ocupação. Estes casos de ocupação constituem
meras operações materiais de apreensão física.
3) Quando a posse tenha sido adquirida por intermediário, desde que seja em nome e no
interesse do sujeito que não tem o uso da razão e desde que o intermediário tenha o uso
da razão. O intermediário, aqui, abrange todas as figuras da representação.
4) Casos do art.1890º nº3 CC: o suprimento da falta de aceitação ocorre por intervenção dos
pais ou representante legal. Se os pais nada declararem, a liberdade tem-se, em princípio,
por aceite. O menor adquire a posse dos bens, tendo ou não o uso da razão, o que se
justifica porque a lei constrói uma ficção de aceitação do intermediário.
Há características que são permanentes (fixadas em termos definitivos) e outras que são não
permanentes (a sua natureza varia ao longo do tempo).
Há características que são absolutas (valem face a qualquer interessado) e relativas (valem só
para alguns interessados, em princípio, o anterior possuidor).
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Apontamentos Direitos Reais
4) Posse pública ou posse oculta
Esta destrinça tem importância para efeito das presunções legais do art.1260º CC e para efeitos
de usucapião. Na verdade, a usucapião obedece a prazos diversos, consoante a posse que a
fundamenta é titulada ou não titulada.
Ela contende com o nexo de aproximação entre a aquisição da posse e o direito real em que se
funda.
“Modo legítimo de adquirir” → Adquirir o quê? O direito em termos do qual se exerce o poder
de facto, se exerce a posse.
“Legítimo” → Possibilidade abstracta de aquele título constituir aquele direito. Deve ler-se
título existente, pois a causa de aquisição prescinde de saber se há ou não o “direito na esfera do
transmitente” e da “validade substancial do negócio jurídico”, pelo que a aquisição nestes termos não
pode considerar-se legítima.
↓
Quando a lei diz “posse fundada em qualquer modo legítimo”
significa que a posse tem atrás de si, como causa legitimante da sua aquisição, um título adquirente
que, em abstracto, é idóneo a transmitir o direito real.
↓
“Fundada” → Significa que a posse não deriva de um negócio translativo do direito real,
mas é uma posse que tem como causa mediata, atrás de si, um título que, em abstracto, é apto a
transmitir um direito real, apesar de em concreto não se transmitir esse direito real.
31
Apontamentos Direitos Reais
“Independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio
jurídico” → Parece que se refere só aos negócios jurídicos como a única forma de aquisição da posse, o
que não é verdade, porque também existem outras formas de aquisição da posse que são simples
operação jurídicas (e não negócios jurídicos), como o são a ocupação, a acessão e a usurpação.
Todavia, o artigo quer mesmo referir-se somente aos negócios jurídicos, daí que ele só se
aplique às formas de aquisição derivada da posse, i.e., àqueles que implicam uma verdadeira traditio
do bem. Já não se aplicará às formas de aquisição da posse originárias.
↓
Assim, a posse é titulada se o título for, em abstracto, apto/idóneo à
transmissão do direito real em causa, independentemente de, em concreto, não o ser, ou porque o
direito não existia na esfera jurídica do transmitente (mas existia na esfera jurídica de outrem – o
transmitente não tinha legitimidade para transmitir a coisa) ou porque faltaram os requisitos
substanciais do negócio e, desse modo, ele padecia de um vício substancial (requisitos de validade
substancial do negócio jurídico).
Todavia, é importante fazer uma redução do alcance desta 2ª parte deste art.1259º CC. É que
há casos de invalidade substancial que não podem ser tratados como posse titulada:
1) Simulação absoluta → nos actos absolutamente simulados, o negócio é nulo (art.240º nº2
CC), porque, por acordo entre um declarante e um declaratário, no intuito de enganar
terceiros, há uma divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declaratário. As
partes fingem celebrar um negócio jurídico, embora não pretendam, na realidade, negócio
algum. Há somente o negócio simulado (não há nenhum negócio dissimulado). Ora, a posse
supõe um animus ou uma vontade de possuir, vontade essa que não existe nestes negócios.
Desse modo, não havendo vontade de adquirir, não há animus possidendi. O vício substancial
retira aqui o animus e, por isso, nestes casos, não há sequer posse. Se o declaratário ficar com
a coisa é em termos de detenção.
2) Simulação relativa → Há simulação, como se disse supra, quando por acordo entre declarante
e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, se verificam divergências entre a declaração
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Apontamentos Direitos Reais
negocial e a vontade real do declaratário (art.240º nº1 CC). Ora, na simulação relativa as
partes fingem celebrar um determinado negócio, mas, na realidade, elas pretendem um
outro negócio jurídico de sentido diferente. Nestas situações, por detrás do negócio
simulado, há um negócio dissimulado (que está oculto). Tal como no caso de simulação
absoluta, aqui, o negócio simulado também é nulo (art.240º nº2 CC). Porém, esta nulidade do
negócio simulado não prejudica a validade do negócio dissimulado (art.241º nº1 CC). Daí
que terá que se analisar este negócio dissimulado. Assim, se ele produzir somente efeitos
obrigacionais, também não haverá posse, uma vez que não há o animus possidendi, mas
somente o animus detinendi. O declaratário será, nestes termos, um mero detentor ou um
possuidor precário.
3) Reserva mental → O art.244º nº1 CC define a reserva mental como a emissão de uma
declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário. Quanto aos seus
efeitos, dispõe o nº2 daquele artigo, que a reserva mental se equipara à simulação e que,
portanto, a declaração deve considerar-se nula, sempre que ela seja conhecida do
declaratário. Neste sentido, o conhecimento efectivo, por parte do declaratário, da
divergência entre a declaração negocial e da vontade real retira-lhe o animus possidendi, pelo
que nestes casos de reserva mental também não haverá posse. Mais uma vez, o declaratário
será um mero detentor ou um possuidor precário.
Em suma, com excepção dos vícios formais, dos vícios que geram inexistência jurídica do
negócio e dos casos de simulação (à qual se equipara a reserva mental) que, sendo vícios substanciais
não configuram situações de posse, todos os outros vícios não afectam a titularidade da posse.
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Apontamentos Direitos Reais
Vimos que o art.1259º CC não é aplicável às formas de aquisição originária da posse (acessão,
ocupação e usurpação).
↓
→ No caso de direitos reais de garantia, o título aquisitivo deriva da lei. Logo, a posse é titulada.
→ No caso de ocupação:
Coisas que nunca tiveram dono → a posse é titulada.
Coisas perdidas:
o O achador sabe a quem pertence a coisa → configura um
caso de usurpação: a posse é não titulada e presume-se de
má-fé.
o O achador não sabe a quem pertence a coisa:
Não anuncia a coisa → configura um caso de
usurpação: a posse é não titulada.
Anuncia a coisa → o achador tem o direito de
retenção da coisa, ficando, desse modo, com o
direito de propriedade da coisa.
→ No caso de acessão:
Natural → a posse é titulada.
Industrial:
o O sujeito está de boa-fé → a posse é titulada.
o O sujeito está de má-fé → configura um caso de usurpação: a
posse é não titulada.
→ No caso de usurpação:
Por esbulho → a posse é não titulada.
Por inversão do título de posse → a posse é não titulada.
Nos termos do art.1259º nº2 CC, a posse titulada não se presume, pelo que tem que ser
provada por quem a invoca.
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Apontamentos Direitos Reais
Desta disposição ressalta a noção de posse de boa-fé, para a
qual releva a ignorância do adquirente. Trata-se de uma concepção puramente psicológica de
ignorância que se está a lesar um direito de outrem.
Daqui também se infere, a contrario sensu, a noção de posse de má-fé.
Porque se trata de uma prova difícil, a lei estabelece, no art.1260º nº2 CC, duas presunções
ilidíveis: “A posse titulada presume-se de boa-fé e a não titulada de má-fé.”
↓
A existência do título não é suficiente, per si, para fundamentar a boa-fé, mas
constitui um sério indício de que se julgou adquirir o direito.
O art.1260º nº3 CC presume sempre de má-fé a posse adquirida por violência, mesmo que seja
uma posse titulada. Esta presunção é uma presunção inilidível.
Esta classificação tem importância em matéria de prazos de usucapião – o prazo é mais curto,
quando a posse é de boa-fé e mais longo quando é de má-fé – e em matéria de frutos e benfeitorias –
os direitos do possuidor de boa-fé são diversos dos do possuidor de má-fé (arts.1270º, 1271º e 1275º
CC).
Art.1261º nº2 CC: “Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de
coacção física ou de coacção moral nos termos do art.255º CC.”
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Apontamentos Direitos Reais
Relativamente à coacção moral, o legislador remeteu para o regime geral do art.255º CC, pelo
que não constitui coacção o exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial.
Quanto à coacção física, o legislador não faz referência, mas considera-se que abrange situações
em que se coloca o coacto em situação de absoluto automatismo, retirando-lhe qualquer liberdade de
escolha.
A noção de violência traz ainda à colação o art.154º nº1 CP, que engloba a ameaça de violência
ou qualquer acto que constranja alguém a praticar uma acção ou omissão ou a supor uma actividade.
A violência, em princípio, é exercida sobre a pessoa, mas também pode ser exercida sobre a
coisa. Esta violência sobre a coisa releva se, dolosamente, se destinar a intimidar, directa ou
indirectamente, a pessoa, quando a conduta do agente constrangir o possuidor.
Esta é uma característica relativa (válida para o anterior adquirente) e não permanente (pode
variar ao longo do tempo). Ela afere-se no momento da aquisição da posse.
Esta classificação visa proteger quem é desapossado violentamente da posse e está diminuído
em termos de liberdade jurídica.
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Apontamentos Direitos Reais
Até este ponto analisámos a violência exercida pelo adquirente sobre o transmitente ou
alienante. Porém pode suceder, em casos mais remotos, que seja o próprio transmitente/alienante a
exercer violência sobre o adquirente. Por exemplo, A transmite a B, exercendo coacção sobre ele.
Como é que se caracteriza a posse deste adquirente?
O adquirente aqui é o coagido e, por isso, não há posse violenta, porque é o ex-possuidor (A)
que coage e é o actual possuidor (B) que é coagido.
Ora, nestes termos, ainda se torna necessário ver se estamos perante coacção física ou coação
moral:
→ Coacção física → O adquirente (B) não tem posse, porque, sendo ele reduzido a um mero
autómato, ele não tem animus possidendi. Nessa medida, ele é um mero detentor ou
possuidor precário. Ele não tem vontade aquisitiva.
→ Coacção moral → Consiste no “receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente
ameaçado com o fim de obter dele a declaração” (art.255º nº1 CC). É, portanto, a
perturbação da vontade, traduzida no medo resultante de ameaça ilícita de um mal ou de
um dano, cominada com o intuito de extorquir a declaração negocial. Porém, ela já não se
trata de um caso de divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante,
mas sim de um verdadeiro caso de vontade viciada. Isto porque, ao contrário do que se
passa com a coacção física ou absoluta, a liberdade do coacto não foi totalmente excluída.
Ainda lhe foram deixadas possibilidades de escolha, embora a submissão à ameaça fosse a
única escolha normal. Tendo havido, então, uma declaração negocial (ainda que viciada)
por parte do adquirente, já há aqui uma forma de aquisição da posse. O negócio é apto, em
abstracto, a transmitir um direito real. O coagido deve, assim, ser considerado possuidor.
Também para esta classificação releva o momento da aquisição, sendo que a posse pode ter
sido adquirida ocultamente e, posteriormente, se exerça publicamente. Não obstante, para efeitos de
usucapião releva é o modo como ela é exercida (art.1297º e 1300º CC). É a partir do momento em que
ela passa a ser pública, que se começa a contar o prazo para a usucapião. Por exemplo, um indivíduo
furta um objecto e guarda-o. Trata-se de uma posse clandestina, que não conta para a usucapião,
enquanto se não tornar pública. O indivíduo furtou o objecto e escondeu-o durante vinte anos. Ainda
37
Apontamentos Direitos Reais
assim não o adquire por usucapião e isto porque, como se disse, a usucapião exige que a posse se
torne pública, se torne conhecida dos interessados.
Se a posse é adquirida de modo público, mas depois passa a ser exercida de modo oculto, o
prazo para a usucapião começa a contar-se de imediato.
Ainda que, relativamente a determinadas coisas, a sua natureza móvel ou imóvel facilite ou
dificulte o conhecimento da posse, nem por isso ela deixa de ser pública se for exercida com a
exteriorização correspondente à normal utilização da coisa. O legislador entende que para o requisito
da cognoscibilidade estar preenchido, basta que o adquirente dê um uso normal ao bem, como se se
tratasse de um possuidor público ou como um normal titular do direito que corresponde à posse de
acordo com a natureza do bem.
Esta classificação releva para efeitos de tutela possessória e em matéria de contagem dos
prazos da usucapião.
↓
Enquanto a posse for oculta, os prazos para a usucapião não correm e,
sendo os bens duradouros, gera-se uma incerteza, pois a reintegração do domínio do bem não
acontece. Há um prejuízo da certeza e da segurança do comércio jurídico.
Enquanto o bem permanecer escondido, a posse permanece oculta. Contudo ainda não há um
critério exacto que nos permita saber se um bem está ou não escondido/clandestino. Daí que se
entenda que a posse sobre um bem passa a ser pública, quando o bem passa a ser usado de acordo
com a fruição normal desse bem.
À semelhança do que se passa na posse violenta, também na posse oculta, dado o seu carácter
não permanente, se pode verificar uma posse sob ocultação.
38
Apontamentos Direitos Reais
↓
Nestes casos, há um prolongamento da posse oculta.
A posse pode ser pública nas relações imediatas, mas ser oculta nas relações mediatas.
Assim, por exemplo, B adquire ocultamente uma posse de A e transmite publicamente a C. Se
quando C adquire a posse, esta se mantiver oculta face a A, a posse de C é pública face a B e oculta face
a A e está sob ocultação.
1) Aquisição Originária
A. Acessão
B. Ocupação
C. Usurpação
i. Por Prática Reiterada
ii. Por Inversão do Título de Posse
1. Por Oposição do Detentor
a. Explícita
b. Implícita
2. Por Acto de Terceiro
iii. Por Esbulho
A. Tradição Real
i. Tradição Explícita
1. Material
a. Tradição Directa
b. Tradição à Distância
2. Simbólica
a. Tradição das Chaves
b. Tradição documental
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Apontamentos Direitos Reais
3. Emissão na posse
2. Constituto Possessório
a. Bilateral
b. Trilateral
B. Tradição Ficta
1) Aquisição Originária
Na aquisição originária da posse, a posse do adquirente surge “ex novo” na esfera da
disponibilidade empírica do sujeito, porque não depende geneticamente de uma posse anterior, nem
quanto à existência, nem quanto ao âmbito ou conteúdo, nem quanto à extensão ou área de incidência.
A aquisição apenas depende do facto aquisitivo. A posse não tem causa em nenhuma posse anterior,
mas adquire-se contra ela ou apesar dela.
→ Natural → resulta exclusivamente das forças da natureza. Art.1327º CC: “Pertence ao dono da
coisa tudo o que a esta acrescer por efeito da natureza.” Dá origem a uma posse titulada. A lei faculta
um prazo para o anterior possuidor retirar os seus bens da coisa em causa. Enquanto não o fizer há
uma situação de mera detenção do proprietário enriquecido, ele é mero detentor. Se o objecto
enriquecido for propriedade do sujeito e estiver no seu âmbito de disponibilidade fáctica, haverá
posse.
→ Industrial → quando, por facto causado pelo homem, se confundem objectos ou coisas
pertencentes a diversos donos ou quando alguém aplica o trabalho próprio a uma coisa pertencente a
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Apontamentos Direitos Reais
outrem, confundindo o resultado desse trabalho com propriedade alheia. A acessão industrial pode
ser mobiliária ou imobiliária.
A acessão industrial dá origem a uma posse titulada nos casos em que exista boa-fé. Existindo
má-fé, a posse não será titulada, pois configura-se, nessa situação como um caso de usurpação.
Art.1340º CC: “Se alguém, de boa-fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira
ou plantação e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio
for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele,
pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações.”
↓
A lei prevê aqui o critério do valor trazido ao prédio, pelo que a
titularidade do prédio depende do valor anterior do prédio e do valor que a incorporação lhe trouxe.
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Apontamentos Direitos Reais
− O achador não sabe a quem pertence a coisa:
o Anuncia o achado (dá lugar a uma posse titulada).
o Não anuncia o achado (configura um caso de usurpação e dá
lugar a uma posse não titulada).
Capacidade de aquisição para a ocupação → não é necessário ter o uso da razão para as coisas
susceptíveis de ocupação (art.1266º CC).
As coisas imóveis não são susceptíveis de ocupação, já que revertem para o Estado (art.1345º
CC).
C.Usurpação
Conjunto de todas as formas originárias feitas sem ou contra a vontade do anterior
possuidor.
Reveste três modalidades: prática reiterada, inversão da titularidade da posse, esbulho.
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Apontamentos Direitos Reais
Quanto à frequência, pretende-se que desta prática não resultem dúvidas que é aquela
pessoa que exerce domínio sobre aquele bem. Visa tornar inequívoco que o bem, em
virtude da prática reiterada dos actos, tem estado na posse empírica daquela pessoa. Está
aqui patente a ideia de estabilidade.
→ Publicidade → a reiteração dos actos materiais praticados sobre o bem deve ser publicitada.
Os actos não podem ser clandestinos, pretendendo a lei que não haja dúvidas que o bem
tenha estado na zona de disponibilidade exclusiva daquela pessoa, o que pressupõe a não
interferência de outras pessoas, dentro do círculo social que rodeia a prática reiterada.
Há aquisição da posse pela prática reiterada quando, em consequência de um conjunto de
actos materiais reiteradamente praticados, se cria a convicção no círculo social que rodeia
a prática reiterada desses actos que se age como titular do direito real.
→ Os actos têm que corresponder ao exercício de um direito real → são pré-figurações do
animus. Os actos têm que corresponder ao conteúdo dos direitos reais.
Se do exercício do direito real em causa resultarem dúvidas acerca de qual o direito em
termos do qual se exercem os actos deve ser aplicada a ideia do “uti dominus”, pois todo o
poder jurídico tende na dúvida a ser exercido pelo direito de propriedade.
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Apontamentos Direitos Reais
A aquisição da posse é instantânea, porque se adquire no momento em que se verifica o
processo de inversão.
Para haver, então, inversão do título de posse têm que estar preenchidos dois pressupostos:
1. O inversor já está anteriormente numa situação de detenção, exercendo sobre a coisa um
poder empírico.
2. O inversor passa a agir em termos de um direito real ou de um direito real mais denso do
que o anterior.
A intenção psicológica de alterar a situação, para poder ser deduzida, tem de ser expressa em
termos de actos externos à própria pessoa, donde se possa deduzir a nova intenção de exercer o poder
de facto em termos de um direito real (o corpus tem que vir a coincidir com o animus).
a. Explícita
O detentor leva ao conhecimento do possuidor a
declaração de oposição. Por exemplo, o arrendatário deixa de pagar a renda e declara que não paga,
porque considera que o apartamento é seu.
O acto em si é levado ao conhecimento do anterior possuidor e é inequívoco quanto à inversão.
A declaração do detentor produz os seus efeitos de acordo com a teoria da recepção da
declaração (art.224º CC).
b. Implícita
Não há qualquer declaração, mas o acto do detentor é
inequívoco, em si mesmo, de que o detentor se arroga do direito real. Por exemplo, o arrendatário
decide vender o prédio em que está a morar, já que tem a convicção de que é seu possuidor.
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Apontamentos Direitos Reais
O terceiro é um sujeito estranho à relação possessória (entre
possuidor e detentor). É alguém que não tem posse, mas que se arroga da titularidade da coisa e, por
isso, transfere ou constitui um direito real em benefício do detentor, que ao participar em tal
transferência ou constituição, assume a posição de possuidor.
A inversão do título dá-se no momento em que o detentor participa no acto atributivo, pois só
nesse momento é que ele substitui o seu animus detinendi por um animus possidendi.
O terceiro não é possuidor nem detentor. Por isso, quando a lei fala em “acto de terceiro capaz
de transferir a posse”, estabelece uma formulação errónea, porque se o terceiro não tem posse, o seu
acto não é capaz de transferir a posse. A lei devia falar em “inversão do título da posse, por acto de
terceiro capaz, em abstracto, de atribuir o direito real”. Só desta maneira é que ele consegue a
mutação psicológica no detentor, isto é, só assim é que o terceiro cria no detentor a convicção de que
pela seriedade do acto se passou a arrogar da posição real sobre o bem. Em concreto, o acto do
terceiro não transfere posse nenhuma, já que ele não é possuidor nem detentor.
Porém, este acto do terceiro não pode padecer nem de um vício formal nem de um vício que
conduza à sua inexistência jurídica, uma vez que, nestes casos, o acto não cria a aparência abstracta de
possibilidade de transmissão e, assim, não gera a mutação psicológica no detentor, não gera a
convicção no detentor que ele é o novo possuidor.
Em suma, o acto do terceiro não funda a posse do inversor, apenas a desencadeia pela via da
mutação psicológica do animus detinendi em animus possidendi. O acto do terceiro é um acto que
apenas desencadeia e não funda a aquisição da posse e, por isso, o acto do terceiro nunca titula a
posse do inversor. A posse deste é sempre não titulada, porque a inversão não é um meio
abstractamente idóneo de aquisição do direito real.
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Apontamentos Direitos Reais
Não se exige uma especial intenção de esbulhar (animus spoliandi). Basta que alguém adquira
uma coisa, privando outrem da posse, sem ou contra a vontade desse outrem e querendo a posse para
si (animus possidendi).
É uma aquisição instantânea.
Art.1267º nº1 d) CC: “O possuidor perde a posse pela posse de outrem, mesmo contra a
vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano.”
↓
Sendo o esbulho um facto instantâneo, parece haver uma
contradição entre a lei e o facto.
Por exemplo, um indivíduo furta um bem a outrem. De acordo com este artigo, o desapossado,
durante aquele ano, não perde a posse. Todavia, o possuidor também tem a posse, porque é ele quem
tem o corpus e o animus. Estamos, então, perante duas situações possessórias antagónicas que se
excluem mutuamente.
O que este artigo, na verdade, quer dizer é que adquirida uma posse por esbulho, a posse
anterior extingue-se, mas durante um ano ela goza da tutela possessória e, se for restituída a posse ao
possuidor esbulhado, a restituição retroage ao momento da privação.
2) Aquisição Derivada
A posse transmite-se, no âmbito da aquisição derivada da posse, pela traditio da coisa, muito
embora ela acompanhe o negócio jurídico. Os negócios jurídicos não transferem a posse.
A aquisição derivada da posse é aquela em que a posse adquirida se funda ou filia na existência
de uma posse que se encontrava, anteriormente, na titularidade de outra pessoa. A posse depende
jurídico-geneticamente da posse anterior quanto ao conteúdo, amplitude e existência.
Há duas grandes modalidades:
1. Tradição real → tradição de um bem para a posse de outrem.
2. Tradição ficta → a tradição é uma ficção legal, já que a lei ficciona uma tradição da posse que
efectivamente não aconteceu.
A. Tradição Real
Trata-se de uma verdadeira tradição de um bem para outrem. É uma tradição efectiva.
i. Tradição Explícita
A aquisição derivada diz-se explícita, quando existe um acto exterior que
materializa ou simboliza a entrega ou transmissão da coisa que é objecto de posse.
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Apontamentos Direitos Reais
1. Tradição Material
Art.1263º b) CC: a posse transmite-se pela entrega da coisa, sendo
este acto de entrega, aquele em que se manifesta a intenção de transmitir e adquirir a posse.
A tradição material pode ser directa ou à distância.
a. Tradição Directa
Há tradição material directa, quando a coisa passa de
mão em mão (coisas móveis) ou quando o novo possuidor toma contacto directo com a coisa, como,
por exemplo, entrar no prédio (coisas imóveis).
b. Tradição à Distância
Designa-se tradição à distância ou traditio longa manu,
quando a tradição da coisa não é feita directamente, mas com a coisa à vista. Tem lugar, por regra, em
relação a coisas imóveis.
2. Tradição Simbólica
A tradição é simbólica, quando o objecto da posse não é transferido,
antes se transfere um bem que simboliza a entrega do objecto da posse. A tradição simbólica pode ser,
por exemplo:
b. Tradição Documental
Traduz-se na entrega dos documentos que simbolizam a
posse. A entrega dos documentos tem que conferir poderes empíricos sobre a coisa. Tem lugar em
relação a coisas corpóreas (móveis ou imóveis) e incorpóreas. Prevista, por exemplo, no art.937º CC.
3. Emissão na Posse
A tradição faz-se por emissão na posse, quando se realiza através de
um conjunto de actos destinados a colocar o adquirente em condições efectivas de exercer a posse, ou
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Apontamentos Direitos Reais
seja, de poder explorar ou fruir a coisa. Verifica-se relativamente à transmissão do estabelecimento
comercial, em que é necessário o adquirente tomar conhecimento dos segredos de fabrico, dos
clientes, dos fornecedores, etc.
O conhecimento do bem por parte do novo possuidor consubstancia-se num conjunto de actos
que concorram para o mesmo fim: a transmissão do domínio de facto sobre o estabelecimento.
2. Constituto possessório
É a aquisição da posse sem efectivo empossamento, isto é, sem
entrada na posse e na detenção material da coisa. Pode ser bilateral ou trilateral.
a. Bilateral
Art.1264º nº1 CC: “Se o titular do direito real, que está
na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse
para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa.”
↓
A lei, mais uma vez, confunde direito com posse, esquecendo que a posse é independente do
direito real, embora seja um exercício de poderes de facto em termos do direito real.
Por exemplo, A possuidor transmite a posse a B de uma coisa, convencionando as partes que A
continua a manter ou a dispor da coisa. B adquire a posse, apesar de não se verificar qualquer acto
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Apontamentos Direitos Reais
explícito que a materialize. A posse não deixa de considerar-se transferida, não obstante A continuar a
manter a coisa.
Aqui, há apenas uma relação entre duas pessoas (anterior e novo possuidor) em que o anterior
transmite a posse ao novo possuidor, mas este não exerce a posse, cabendo ao anterior possuidor a
posição de detentor da coisa.
O novo possuidor adquire a coisa sem empossamento (sem ter a detenção material da coisa),
porque, por acordo entre ele e o antigo possuidor, não exerce os poderes de facto sobre o bem.
Neste caso, a tradição é implícita, porque não há um acto que manifeste a tradição da posse,
porque o A continua a exercer poderes de facto sobre a coisa, apesar de ser a título de detentor e não
de possuidor.
b. Trilateral
O nº2 do art.1264º CC consagra o Constituto
Possessório Trilateral.
Há dois casos possíveis:
→ A é possuidor e B detentor. A transmite a posse a C (um terceiro), mas os dois acordam que a
detenção continua na disponibilidade de B (que já era o detentor). Ainda assim considera-se
transmitida a posse para C.
→ A é possuidor e B detentor. A transmite a posse a B (antigo detentor e novo possuidor), mas
os dois acordam que a detenção passa a ser de C (um terceiro). Ainda aqui a posse se considera
transmitida.
B. Tradição Ficta
Art.1255º CC: “Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o
momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa.”
↓
Trata-se de uma sucessão mortis causa.
A posse adquirida por sucessão mortis causa constitui uma posse ficta, porque a lei ficciona que
há um corpus e um animus. Com a morte do possuidor, a posse só é adquirida no momento em que o
herdeiro aceita a herança (art.2050º nº1 CC).
Anteriormente, a herança permanece jacente, pelo que não há qualquer apreensão material da
coisa, logo não há corpus. De igual modo, como o herdeiro não tinha manifestado vontade de adquirir,
não há animus.
A existência e a reunião destes dois elementos apenas se verificam no momento em que o
herdeiro aceita a herança. Logo, entre a abertura da herança (o momento da morte – art.2031º CC) e a
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Apontamentos Direitos Reais
aceitação não há posse. No entanto, a lei considera que, uma vez aceite, a posse se adquire desde o
momento da abertura da sucessão, ficcionando assim a posse entre aqueles dois momentos, isto é,
uma vez aceite a posse, ela retroage ao momento da abertura da sucessão (art.2050º nº2 CC).
A posse adquirida por via sucessória tem as mesmas características da posse do de cujus. Está
aqui em causa uma sucessão legal.
Ora, Orlando de Carvalho questionava a continuação das mesmas características do de cujus no
caso da sucessão (em geral). É que na sucessão contratual e testamentária há um título pelo qual o
herdeiro adquire a posse, enquanto que na sucessão legal ele adquire a posse por força da lei.
Como na sucessão contratual e testamentária há um título autónomo, Orlando de Carvalho
defendia que, nestes casos, se o herdeiro tivesse nisso vantagens (se a sua posse fosse melhor que a
posse do de cujus), a posse se define em função do título aquisitivo e não em função das características
anteriores.
Ou seja, ao invés do que se passa nos casos de sucessão legal, na sucessão contratual e
testamentária, há um título intercorrente, dirigido à transmissão da posse, autónomo daquele que
fundamenta a posse do de cujus. Neste caso, pode o sucessor, se isso lhe convier, invocar esse título e
arrogar-se uma posse autónoma relativamente à posse do de cujus.
Trata-se da existência de várias posses no mesmo plano temporal ou de várias posses situadas
em planos temporais diferentes.
Distinguem-se as posses sincrónicas e as posses diacrónicas.
a) Conjunção sincrónica
Trata-se da existência de várias posses no mesmo plano temporal.
→ Posse simultânea → sobre a mesma coisa existem duas ou mais posses em termos de
direitos reais diferentes. Por exemplo, posse em termos de propriedade e posse em termos
de usufruto sobre um mesmo bem.
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Apontamentos Direitos Reais
→ Posse in solidum → é a figura que corresponde à comunhão de direitos. Consiste numa
contitularidade na posse, mas o conjunto dos contitulares que encabeça a única posse que
incide sobre o objecto indiviso. Aqui há uma única posse, mas vários titulares, ou seja, os
contitulares só têm uma posse que incide sobre o bem.
b) Conjunção diacrónica
Aqui existe uma junção de várias posses situadas em planos temporais diferentes.
→ Sucessão na posse → prevista no art.1255º CC. No caso de sucessão legal, o sucessor mortis
causa da posse adquire a mesma posse do de cujus. Ou seja, uma posse, por via sucessória,
junta-se/continua uma posse anterior. É um efeito “ex legem”. Por exemplo, na sucessão na
posse, o herdeiro adquire uma posse que é a mesma do de cujus.
(Tenha-se em atenção que no caso de sucessão contratual ou testamentária não pode haver
sucessão na posse, se o sucessor fundar a sua posse no título aquisitivo – cfr. Tradição
ficta.)
→ Acessão na posse → art.1256º nº1 CC: “Aquele que houver sucedido na posse de outrem por
título diverso da sucessão por morte pode juntar, à sua, a posse do antecessor.”
↓
O adquirente da posse junta à sua posse a posse do
anterior possuidor, desde que ligadas por um nexo de derivação. A acessão serve, nestes
termos, para facilitar a aquisição do direito real por usucapião, permitindo ao actual
possuidor interessado em usucapir encurtar o respectivo prazo, através da junção do
tempo de posse do anterior possuidor à sua posse. O adquirente que adquire a posse acede
ao direito real de forma mais expedita.
Requisitos da acessão:
− Existência de um nexo de derivação entre as duas posses (a aquisição originária quebra
a acessão), desde que essa derivação seja por título diferente da sucessão mortis causa.
Ou seja, a acessão não se verifica na sucessão mortis causa, à qual se aplica a sucessão
na posse do art.1255º CC. Além disso, só acontece nas formas de aquisição derivada da
posse (“…sucedido…”). Só nestes casos faz sentido.
− Só opera entre posses consecutivas, isto é, em relação ao anterior possuidor (nas
relações imediatas).
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Apontamentos Direitos Reais
− A posse do acessor terá de ser pública e pacífica, ou melhor, não pode ser exercida ou
mantida com violência ou ocultamente, nem estar sob violência ou sob ocultação.
Enquanto a posse do adquirente for violenta ou oculta, o prazo de posse violenta ou
oculta não é junto. A duração do prazo da posse violenta ou oculta do anterior
possuidor não pode ser aproveitado pelo novo possuidor.
− A acessão é facultativa e voluntária.
− Tratando-se de posses diferentes, a acessão tem lugar dentro da posse de menor
âmbito.
↓
1256º nº2 CC: “Se, porém, a posse do antecessor for de
natureza diferente da posse do sucessor, a sucessão só se dará dentro dos limites
daquela que tem menor âmbito.”
↓
Por exemplo, se o anterior possuidor era proprietário e o actual era
usufrutuário, a acessão só ocorre em termos da posse de usufruto, porque o usufruto é
um direito de âmbito menor que a propriedade.
Há, todavia, que ter em atenção um outro aspecto. Os prazos da usucapião variam conforme a
posse seja de boa ou de má-fé, pelo que a posse do ex-possuidor pode adiar o início da contagem do
prazo para usucapião do actual possuidor. A lei não resolve os problemas da junção atendendo à boa
ou má-fé, pelo que Orlando de Carvalho sugere uma solução:
→ quando as posses têm a mesma natureza (ambas de boa ou má-fé) → os prazos juntam-se.
→ quando a posse do antecessor é de boa-fé e a do sucessor é de má-fé → os prazos juntam-se.
→ quando a posse do antecessor é de má-fé e a do sucessor é de boa-fé → é preciso estabelecer
uma proporção, convertendo a duração da posse do antecessor de má-fé em posse de boa-
fé do sucessor.
↓
Esta conversão faz-se em razão do tempo necessário para adquirir a usucapião em
função da boa ou da má-fé:
15 anos de boa-fé equivalem a 20 anos de má-fé.
Por exemplo, se alguém adquire um bem de boa-fé depois de este ter estado 4 anos de má-fé,
através da conversão, só adquire 3 anos de boa-fé.
15 = x
20 4
X=3
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Apontamentos Direitos Reais
Neste ponto, questiona-se qual o fundamento da tutela jurídica da posse. A resposta já foi algo
avançada nas considerações anteriores, mas fica aqui melhor sistematizada.
Pode parecer estranho que, às vezes, a lei proteja o possuidor contra o próprio proprietário,
nomeadamente nos casos de usurpação ou nos casos em que o indivíduo adquiriu a posse sem se ter
verificado sequer a transferência da propriedade por a coisa lhe ter sido vendida por quem não era
seu proprietário ou até por quem furtou. A verdade é que a tutela da posse pode conduzir a que este
indivíduo seja efectivamente protegido.
Não obstante, é necessário ter presente que a tutela possessória é sempre uma tutela
provisória, visto que os meios de tutela possessória – o chamado contencioso possessório – só
resolvem de imediato o litígio, mas não definitivamente.
Mota Pinto aponta, então, três razões que justificam a tutela da posse:
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Apontamentos Direitos Reais
Nesta medida, até o autor do furto pode obter uma acção de manutenção/restituição ou até
de prevenção, desde que prove que está na posse da coisa. E se estiver há mais de um ano na
posse dela, basta que prove esse facto para que continue na posse da coisa (art.1267º nº1 d)
CC).
O proprietário pode depois socorrer-se da acção de reivindicação (art.1311º CC) para reaver
a coisa de forma definitiva, demonstrando que a coisa (que era sua propriedade) lhe foi
furtada. Mas isto implica uma investigação mais demorada. Provisoriamente, mediante a
simples prova da posse, o indivíduo que tinha a coisa em seu poder (o autor do furto)
consegue que ela seja mantida em seu poder, até contra o verdadeiro proprietário.
Meios Extra-Judiciais:
Recorde-se que, por definição, só se pode recorrer a estes meios extra-judiciais, no caso de não
ser possível o recurso, em tempo útil, aos meios judiciais.
Tanto no caso de acção directa como no caso de legítima defesa se exige o requisito da
actualidade da perturbação ou do esbulho. Além disso, como se faz notar a seguir, o legislador
disponibilizou uma acção judicial preventiva (acção de prevenção), para o momento prévio à
perturbação ou ao esbulho; uma acção de manutenção, para o momento simultâneo à perturbação ou
ao esbulho; e uma acção de restituição, para o momento posterior à perturbação ou ao esbulho.
Os meios extra-judiciais só serão, então, admitidos no momento intermédio, naquele em que já
se verifica a perturbação ou o esbulho, mas em que o possuidor ainda não se encontra destituído da
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Apontamentos Direitos Reais
posse da coisa e desde que não possa recorrer, a tempo de evitar a perturbação ou o esbulho, ao
tribunal através da acção de manutenção.
Meios Judiciais:
Estão aqui em causa as chamadas acções possessórias.
De facto, a posse confere a possibilidade de vir a juízo requerer determinadas providências,
mediante as chamadas acções possessórias. Nessa medida, pode-se falar aqui de um contencioso
possessório para designar o conjunto destas acções, por oposição ao contencioso petitório,
representado fundamentalmente pelas acções destinadas a defender a propriedade.
Recorrem-se a estas acções possessórias sempre que há um facto jurídico-empírico que viola
ou ameaça violar a posse, isto é, quando o facto visa perturbar (“animus turbandi”) ou privar o
possuidor da posse (“animus spoliandi”).
As acções possessórias seguem a forma de processo comum.
Os meios judiciais são:
→ Acção de Manutenção (art.1278º CC) → aqui há uma perturbação da posse. Esta acção visa
reagir contra actos materiais de perturbação ou agressão da posse.
Alguém só é perturbado se sobre a pessoa forem praticados actos materiais, que traduzam uma
pretensão possessória contrária à do possuidor.
É o que acontece quando um indivíduo está na posse de uma coisa e alguém vem perturbar
essa posse, porque se considera a si próprio legitimado para ter a posse da coisa.
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Apontamentos Direitos Reais
Atente-se que esta acção pressupõe que o requerente conserva a posse da coisa. Só se pode
manter algo que se tem. Se já foi esbulhado, não há lugar a uma acção de manutenção, mas de
restituição.
A legitimidade para intentar a acção de manutenção cabe ao perturbado ou aos seus herdeiros
(legitimidade activa) contra o perturbador (legitimidade passiva) – art.1281º nº1 CC.
Posto o que foi dito, retenha-se, todavia, que só é plenamente protegido por estas duas acções,
o possuidor cuja posse é superior a um ano, ou seja, que detém a “posse suficiente”. Este possuidor
pode sempre, provada que fique a sua posse superior a um ano, obter a manutenção ou restituição da
posse, não sendo admitido à contraparte provar que tem melhor posse (art.1278º nº2 CC).
Esta “posse suficiente” confere, por isso, plenamente o direito a estas acções.
Já se a posse actual durar há menos de um ano, então ela pode soçobrar perante a prova de
melhor posse aduzida pela outra parte.
Melhor posse, segundo o art.1278º nº3 CC, é “…a que for titulada; na falta de título, a mais
antiga; e, se tiverem igual antiguidade, a posse actual”.
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Apontamentos Direitos Reais
Oliveira Ascensão falava ainda na posse judicial avulsa, que estava prevista no art.1044º CPC,
actualmente revogado. Note-se que, embora o nome possa sugerir o contrário, o facto é que este
processo especial não é um meio de defesa da posse. Apesar de sugerir uma conexão com a tutela
possessória, a posse judicial avulsa nada tem a ver com ela.
Trata-se de um processo especial, pelo qual o adquirente de um bem, por força de um acto
translativo, pode requerer que ele lhe seja entregue. Assim, por exemplo, o comprador a quem não foi
entregue a coisa, exibindo o título, pode requerer a entrega do objecto comprado.
É este um processo destinado a permitir com mais facilidade conseguir esse resultado do que
se tivesse que recorrer ao processo comum.
Daí que esta “entrega judicial” não é um meio de defesa da posse, mas, pelo contrário, um meio
destinado a obter a chamada investidura da posse por parte de alguém que já a devia ter, mas não a
tem.
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Antes de enunciar os efeitos da posse, tenha-se presente que estes efeitos favoráveis da posse
resultam das três razões justificativas ou dos três fundamentos apontados supra para a tutela
possessória.
Havendo colisão de presunções, tem prioridade a posse que for registada; sendo ambas as
posses registadas, prevalece a primeira (art.1268º nº2 CC).
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Apontamentos Direitos Reais
Posto isto, compreende-se que esta é uma presunção muito importante, especialmente, face aos
bens móveis e aos bens consumíveis, já que é através da posse e posterior usucapião que se defende a
respectiva titularidade. Além disso, tome-se em linha de conta que os bens móveis sujeitos a registo
são poucos.
Contudo, isto não significa que ela não releve face aos bens imóveis.
Comprovou-se deste modo que a posse continua a ser o grande fundamento do direito de
propriedade.
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Apontamentos Direitos Reais
possuidor de boa-fé tem direito a levantá-las, desde que o seu levantamento não cause o detrimento
da coisa (se causar, o possuidor de boa-fé não pode levantá-las, nem tem direito ao valor delas), o
possuidor de má-fé perde, em qualquer caso, as benfeitorias voluptuárias que haja feito.
NOÇÃO:
Art.1287º CC: “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida
por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a
cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.”
↓
Desta definição legal da usucapião ressalta a faculdade da posse de reintegrar a coisa/o bem no
seio da ordenação dominial definitiva, através do instituto da usucapião, pelo qual a posse se
transforma no direito real em termos do qual a posse foi exercida. Há, portanto, uma correspondência
entre a posse exercida e o direito real adquirido.
A posse faz, então, adquirir o direito, desde que ela se mantenha durante um certo período de
tempo. Ela é uma forma originária de aquisição de direitos reais, que decorre do exercício
ininterrupto da posse com determinadas características.
A posse que se prolongue por um certo período de tempo, com determinadas características,
conduz à aquisição de um direito real correspondente à posse que se exerceu.
Atente-se, porém, que a usucapião é um efeito da posse de natureza facultativa, pelo que,
verificados os pressupostos exigidos por lei, o possuidor tem a faculdade de beneficiar do seu regime,
não sendo, todavia, obrigado a fazê-lo.
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Apontamentos Direitos Reais
ligados à pessoa relativamente à qual diz respeito. Abranger estes direitos no objecto da
usucapião era por em causa o seu carácter intuitus personae).
REQUISITOS DA USUCAPIÃO:
a) Decurso do tempo → Varia consoante os bens em causa. Faz-se a distinção entre bens
imóveis e bens móveis. Dentro dos imóveis temos que considerar as características de boa
e má-fé da posse e a existência ou não de título de registo aquisitivo ou de registo da posse.
Dentro dos bens móveis, há a considerar se os bens estão ou não sujeitos a registo.
A lei fixa taxativamente o prazo.
b) Posse pacífica e posse pública → Art.1297º CC: “Se a posse tiver sido constituída com
violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde
que cesse a violência ou a posse se torne pública.”
Enquanto a posse for mantida ou exercida com violência ou ocultação, o prazo não corre.
Recorde-se que para efeitos de usucapião, as características da posse aferem-se no
momento do exercício da posse e não no momento da sua aquisição.
A ratio desta disposição que tutela os interesses do anterior possuidor compreende-se,
porque o titular do direito contra quem a posse vai ser exercida não poderá reagir se a
posse for oculta ou se ela for violenta. Se for oculta, o titular do direito não sabe da sua
existência, não podendo, por isso, fazer uso dos seus direitos. Se for exercida com violência,
o titular, apesar de ter conhecimento do facto, possui a sua liberdade jurídica suprimida,
não se encontrando em situação de estabilidade que lhe permita exercer o seu direito em
termos plenos.
Este mecanismo de tutela não é afastado no caso de um terceiro de boa-fé adquirir a posse
antes da cessação da violência ou da ocultação. Por isso, o tempo que o terceiro possui o
bem não conta para efeitos de usucapião enquanto em relação ao titular do direito não
cessar a violência ou a posse não se tornar pública.
↓
Porém, a lei reconhece que, nestes casos, o terceiro de boa-fé carece
de alguma tutela jurídica, pelo que, excepcionalmente, estabeleceu o art.1300º nº2 CC, que tutela os
casos em que terceiros adquirem a posse sob violência ou sob ocultação, permitindo-lhes que, caso
estejam de boa-fé, o prazo da usucapião comece a correr a partir do momento da aquisição, prevendo-
se, contudo, prazos maiores do que os que são impostos no art.1299º CC.
Note-se que o art.1300º CC está enquadrado no regime de bens móveis indistintamente, isto é,
regula tanto os bens móveis sujeitos a registo, como os bens móveis não sujeitos a registo (móveis
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Apontamentos Direitos Reais
simples). Não obstante, deve entender-se que o nº2 deste artigo só deve valer face aos bens móveis
simples e já não relativamente aos bens móveis sujeitos a registo.
Isto é assim, porque, se se aplicasse o art.1300º nº2 CC ao art.1298º b) CC (coisas imóveis
sujeitas a registo e não registadas), o prazo de 10 anos previsto aqui seria encurtado para 7 anos. Ora,
tal solução redunda numa distorção do espírito do art.1300º nº2 CC, que pretende alargar os prazos
para aquisição por usucapião no caso da posse se encontrar sob violência ou sob ocultação.
Daí que o art.1300º nº2 CC não deva ser aplicado nos casos previstos pelo art.1298º b) CC.
EFEITOS DA USUCAPIÃO:
Referiu-se já que a posse tem como efeito a aquisição de um direito real.
O que ainda não se disse foi que “invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do
início da posse” (art.1288º CC).
A confirmação da retroactividade da usucapião ao momento do início da posse encontra-se, a
respeito do direito de propriedade, no art.1317º c) CC: “O momento da aquisição do direito de
propriedade é, no caso de usucapião, o do início da posse”.
Atente-se que, de acordo com o art.1290º CC, “os detentores ou possuidores precários não
podem adquirir para si, por usucapião, excepto achando-se invertido o título da posse”, caso em que
deixam de ser detentores e passam a ser verdadeiros possuidores. Porém, na 2ª parte deste artigo, a
lei ressalva imediatamente que “neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr
desde a inversão do título”.
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Apontamentos Direitos Reais
A usucapião apresenta, então, algumas semelhanças com a figura da prescrição, como aliás se
nota na realização de um estudo histórico daquela figura, no qual o primeiro aspecto particular a que
se poderia atender seria na própria designação: ela era conhecida como “prescrição aquisitiva”.
Regime da prescrição:
Art.300º CC → os prazos da usucapião são prazos imperativos, sendo nulos quaisquer actos
ou negócios que visam reduzir ou aumentar os prazos da usucapião.
Art.302º CC → os actos de renúncia à prescrição são nulos, a não ser que o prazo já tenha
decorrido.
Suspensão do prazo:
Verificada qualquer uma das causas que levam à suspensão do prazo para usucapir, esta dá
origem a uma paralisação do prazo e, por isso, se já tiver decorrido algum, este não fica inutilizado,
apenas não continua a correr.
Tipos de suspensão:
a) de início → as causas da suspensão verificam-se simultaneamente ao início da posse.
Exemplo: art.318º a) CC – “…não começa…” – se um cônjuge é titular do direito e o
outro é possuidor, o prazo suspende-se (não começa a correr) enquanto durar o
matrimónio. Daí que no momento em que um dos cônjuges adquire a posse de um
bem de que o outro era titular, o prazo suspende-se de início.
b) de curso → as causas da suspensão verificam-se durante o exercício da posse.
Exemplo: art.318º a) CC – “…nem corre…” – se A tem a posse e, posteriormente, se
casa com B, que é o titular do direito, o prazo suspende-se.
c) de termo → as causas da suspensão verificam-se quando o prazo de usucapião
terminou, mas não venceu por ainda não se encontrar cumprida determinada
exigência da lei. Exemplo, art.320º nº1 2ª parte CC – “…sem ter decorrido um ano…”.
63
Apontamentos Direitos Reais
Suspensão a favor de menores (art.320º nº1 CC):
Se o menor não tiver representante, ele está incapacitado de defender o seu direito real, pelo
que, nestas circunstâncias, o prazo da usucapião não começa a correr.
O prazo da usucapião só começará a correr quando o menor tiver representante legal.
Quando o menor tiver representante, a usucapião (mesmo que o prazo já se tenha vencido) não
produz efeitos enquanto não decorrer um ano após o termo da incapacidade, ou seja, até um ano
depois de o menor atingir a maioridade ou adquirir a sua emancipação. A lei estabelece este prazo
para permitir ao menor acautelar os seus direitos no caso do seu representante não ter sido zeloso na
defesa dos interesses do menor.
Trata-se de uma suspensão de termo, pois apesar de o prazo já ter terminado, a lei impõe ainda
uma última exigência: que a incapacidade esteja finda e que tenha decorrido um ano após o termo
dessa incapacidade.
O menor dispõe, por esta razão, de um prazo alargado para intentar a acção de reivindicação
para fazer valer o seu direito real sobre a coisa que está na posse de outrem.
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Apontamentos Direitos Reais
Interrupção do prazo:
Verificada qualquer uma das causas que leva à interrupção do prazo para usucapir, esta dá
origem à inutilização do prazo. Cessando o efeito interruptivo, começa a contar-se um novo prazo
(art.326º nº1 CC).
Título II – Ordenação dominial definitiva
Ao contrário do que é sugerido pela designação, os princípios expostos neste capítulo não têm
qualquer matriz jurídico-constitucional, nem sequer é possível encontrá-los na Constituição da
República Portuguesa.
Eles pretendem traduzir um conjunto de regras e princípios orientadores da constituição,
transmissão e extinção de direitos reais. Tratam-se dos princípios fundamentais que dominam a
constituição e a vida deste ramo do direito.
Estes princípios, estas ideias gerais, podem ter as mais diversas determinantes. Com efeito, eles
podem assentar em razões político-ideológicas, históricas ou económicas, em considerações racionais,
éticas ou morais ou, ainda, em razões de técnica jurídica.
Porém, estes princípios não são necessariamente infrangíveis. Eles também esbarram
nalgumas excepções. Tanto assim que alguns são de validade absoluta e outros limitam-se a exprimir
tendências.
Ora, como ramo do Direito Privado do nosso ordenamento jurídico, os direitos reais e os seus
princípios enformadores têm subjacentes a si alguns pressupostos. Destes, cite-se desde logo o do
reconhecimento da propriedade privada, autêntica trave-mestra do nosso ordenamento jurídico-
privado.
O reconhecimento da propriedade privada, a concessão aos particulares da propriedade é um
princípio de Direito Privado que assenta numa consideração ideológico-política. Trata-se de uma
opção político-ideológica correspondente a uma determinada concepção do mundo e da vida no que
toca à organização da sociedade (repare-se que este ponto marca a grande diferença entre os regimes
capitalistas e os regimes socialistas da ex-União Soviética).
Feita esta opção, em execução dela é lançado todo um sistema de direitos reais.
Edificado nesta base, concorrem na constituição e na vida deste sistema de direitos reais
determinados princípios que assentam nas razões já indicadas.
Quer isto dizer que, sendo os direitos reais um ramo do direito privado, por trás de todo esse
sistema de direitos reais (de todas as normas e princípios inerentes que se encontram plasmados no
65
Apontamentos Direitos Reais
Livro III do CC e que assentam em múltiplas razões) se encontram determinados pressupostos que
constituem autênticos princípios do direito privado, que ressaltam de opções político-ideológicas.
Destes princípios de direito privado, destaca-se para efeitos do direito das coisas o princípio da
autonomia privada, enquanto reconhecimento da propriedade particular.
1. Princípio da coisificação
O direito real versa sobre coisas corpóreas e coisas incorpóreas (cfr. Classificação das coisas).
Muito embora o art.1302º CC pareça restringir o objecto do direito de propriedade às coisas
corpóreas, também as coisas incorpóreas podem ser objecto de direitos reais. Aliás, o próprio CC
contém normas em que reconhece tal facto. Por exemplo:
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Apontamentos Direitos Reais
− Art.1303º → refere-se à propriedade intelectual que compreende os direitos de
autor e a propriedade industrial. Estatui o nº2 que as disposições do CC e, em
particular, as do direito de propriedade (que é onde se encontra sistematicamente o
artigo) são aplicáveis subsidiariamente a estes direitos, sempre que se harmonizem
com a sua natureza e não contrariem o seu regime especial.
− Arts.94º nº3, 1682º - A e 1938º → tratam o estabelecimento comercial como objecto
de negócios, de forma a que seja objecto de domínio.
− Os já falados casos dos direitos sobre direitos → penhor – art.679º; casos de
hipoteca – art.688º; usufruto – art.1439º.
2. Princípio da actualidade
Art.408º nº2 CC: “Se a transferência respeitar a coisa futura (…) o direito transmite-se quando
a coisa for adquirida pelo alienante (…)”.
↓
Ficou já definido supra, a respeito da
classificação das coisas, o que são coisas futuras.
Diz a lei que só há direitos reais sobre coisas presentes e que já existam e estejam no poder do
alienante e, por isso, não há direitos reais sobre coisas futuras.
Os negócios translativos ou constitutivos de direitos reais que tenham por objecto uma coisa
futura são válidos, mas apenas produzem efeitos obrigacionais (do lado passivo gera a obrigação do
alienante de realizar todos os esforços para adquirir o bem e do lado activo a expectativa jurídica do
adquirente de ter o bem).
Só quando a coisa se torna presente (entra no património do alienante) é que se transfere
automaticamente para a esfera jurídica do adquirente, tornando-se este imediatamente seu titular.
O mesmo negócio que só produzia efeitos obrigacionais passa a produzir efeitos reais,
transferindo-se o direito real para o adquirente.
O princípio da actualidade não admite derrogações face às coisas absolutamente futuras, mas já
as admite no caso de coisas relativamente futuras (por exemplo, nos termos do art.243º e 291º CC, no
caso de protecção de terceiros de boa-fé).
Note-se que não se deve confundir o regime da venda de coisas futuras com o regime da venda
de coisas alheias. Coisa futura e coisa alheia não se referem à mesma problemática.
3. Princípio da especialidade
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Art.408º nº2 CC: “Se a transferência respeitar a coisa (…) indeterminada, o direito transfere-se
quando a coisa for determinada com o conhecimento de ambas as partes, sem prejuízo do disposto em
matéria de obrigações genéricas e do contrato de empreitada; se, porém, respeitar a frutos naturais ou
a partes componentes ou integrantes, a transferência só se verifica no momento da colheita ou
separação.”
↓
Significa este princípio que só há direitos reais sobre coisas certas e determinadas, isto é, sobre
coisas individualizadas. É que só pode haver o direito de excluir todos (só há uma obrigação passiva
universal) em relação a uma coisa, se esta for certa e determinada. Não podem, por isso, constituir-se
direitos reais sobre coisas não individualizadas ou indeterminadas.
Dentro deste contexto também se acentua um outro aspecto que não constitui senão um outro
lado da mesma realidade: é que os direitos reais são únicos, no sentido de que o direito real que incide
sobre uma coisa não é o mesmo que incide sobre outra coisa. Será porventura igual, mas não será
certamente o mesmo. Ora, isto não é mais do que um corolário da ideia de que os direitos reais têm
por objecto coisas certas e determinadas, coisas individualizadas.
Esta é uma característica dos direitos reais que os distinguem dos direitos de crédito, na
medida em que, nestes, a prestação pode ter por objecto uma coisa determinada apenas pela sua
referência a um tipo ou a um género e por uma certa quantidade. Assim, por exemplo, a obrigação de
entregar x pipas de vinho, sem que se saiba se será esta ou aquela que será entregue (trata-se aqui de
uma obrigação genérica). O objecto da prestação não tem que se encontrar determinado ao momento
da constituição da obrigação.
Ao invés, o objecto de direitos reais tem que se encontrar individualizado quando aqueles se
constituem, dado que, de outra forma, não poderiam existir os direitos de sequela e de preferência.
Para que estes existam é, portanto, necessário que os direitos reais incidam sobre coisas certas e
determinadas.
Por outro lado, atente-se que este princípio da especialidade não exclui, todavia, a possibilidade
de se constituírem direitos reais sobre coisas colectivas, nomeadamente coisas compostas e
universalidades. O facto de os direitos reais terem como objecto coisas certas e determinadas, coisas
individualizadas, não é incompatível com a possibilidade de o seu objecto ser uma coisa composta ou
uma universalidade. Isto porque a universalidade (aceitando-se a teoria unitária – cfr. Introdução,
Cap. I, 7.e) Universalidades de facto e de direito) ou a coisa composta são, elas próprias, uma forma de
determinação ou de individualização. A coisa não deixa, assim, de ser certa e determinada ou
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Apontamentos Direitos Reais
individualizada pelo facto de ser constituída por uma pluralidade de coisas simples. Continua a ser na
mesma coisa determinada, cujos limites estão traçados em termos cognoscíveis.
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Apontamentos Direitos Reais
Acessão natural → o direito que recai sobre a coisa principal recai também sobre as coisas
que com ela se conexionam (arts.1327º, 1329º e 1331º CC).
Acessão industrial mobiliária → quando a acessão é feita de boa-fé, o legislador estabelece o
critério do maior valor – o proprietário do bem com maior valor é aquele que fica com o bem
final (art.1333º CC). Quando é de má-fé, vigora a regra da prevalência do direito sobre o
objecto enriquecido.
Acessão industrial imobiliária → vale a regra da primazia do solo. Em princípio, o titular do
prédio rústico passa a ter o domínio sobre os bens imóveis incorporados no solo (art.1339º
CC). Porém, quando alguém de boa-fé construir, plantar ou semear e trouxer ao prédio um
valor superior (mais do dobro) que aquele que ele tinha, o autor da incorporação pode
adquirir a totalidade do prédio, prevalecendo aqui a regra do maior valor (art.1340º nº1
CC). Se a incorporação for de má-fé, vigora o princípio da primazia do solo (art.1341º CC).
Quanto a hipóteses de prolongamento de edifício em terreno alheio subjaz o princípio do
maior valor (art.1343º CC).
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Apontamentos Direitos Reais
4. Princípio da compatibilidade
Só pode existir um direito real sobre um bem, na medida em que seja compatível ou não
conflituante com outro direito real que recaia sobre o mesmo bem. Se o direito real pressupõe uma
reserva, não pode existir um direito conflituante.
Porém, tal não impede que exista todo um conjunto de direitos reais sobre o bem, desde que
tenham conteúdo diferente ou tendo o mesmo conteúdo, pela especial natureza desses poderes,
possam coexistir.
Assim, conseguimos estabelecer várias configurações da coexistência de direitos reais sobre o
mesmo objecto:
Direitos reais de natureza diferente → podem coexistir direitos reais de gozo, direitos
reais de aquisição e direitos reais de garantia. Embora sejam abstractamente
incompatíveis, eles podem coexistir.
Direitos reais com a mesma natureza, mas com conteúdo diferente → por exemplo,
podem coexistir vários direitos reais de gozo sobre o mesmo objecto, desde que tenham
um conteúdo diferente: direito de propriedade e direito de usufruto.
Direitos reais com a mesma natureza e com o mesmo conteúdo → é possível coexistir
vários direitos reais de garantia ou vários direitos reais de aquisição, mesmo que
tenham o mesmo conteúdo, desde que haja entre eles uma graduação: um credor tem
um direito de preferência no pagamento de um crédito e, por isso, se o valor do bem
hipotecado se esgotar na liquidação da dívida do credor que tem a preferência, os
restantes credores perdem a sua garantia. Mas se o credor que tem a preferência ficar
completamente ressarcido e a coisa ainda tiver valor, esse valor restante satisfaz, de
acordo com a graduação, os restantes credores.
Pode também haver concurso entre direitos reais de aquisição e direitos reais de
garantia.
5. Princípio da elasticidade
O direito de propriedade, por excelência, tem uma estrutura elástica que lhe permite sofrer
contracções sem que tal gere uma mutação deste direito.
Isto implica que os direitos reais menores se constituam à custa de uma contracção do direito
de propriedade, não provocando, contudo, a sua extinção, mas apenas a sua limitação.
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Apontamentos Direitos Reais
Quer isto dizer que no que respeita a este princípio se entende que os direitos reais limitados,
os tradicionalmente chamados “jura in re aliena” – o usufruto, a servidão, o direito de superfície, o
direito de uso e habitação – oneram, restringem, limitam a propriedade. Sempre que estamos perante
um direito real limitado, concorrem dois direitos sobre o mesmo objecto: o direito de propriedade e o
direito real limitado a certas utilidades da coisa. Por exemplo, no usufruto, há um usufrutuário e há
um proprietário de raiz; na servidão, há um direito de servidão sobre o prédio e há a propriedade
sobre o prédio. Patenteia-se nestes casos uma concorrência de direitos.
Extinto o direito real menor, o direito de propriedade expande-se novamente, recuperando a
plenitude da sua compreensão e do seu conteúdo, reconstituindo-se desta forma a plena propriedade.
Todo o direito real tende a abranger o máximo das faculdades que o seu conteúdo permite, isto
é, tende a expandir-se ao máximo dessas faculdades. Há, então, como que uma força expansiva do
direito de propriedade, desencadeada pela extinção dos direitos reais que a limitavam, surgindo-nos
aí a figura da aquisição originária, derivada ou restitutiva.
Qualquer constituição de um direito real menor ocorre através da aquisição derivada
constitutiva, o que implica uma contracção do direito progenitor.
A aquisição derivada restitutiva permite que o direito real se expanda novamente.
Não admitem contracções ou onerações aqueles direitos cujo conteúdo permite a sua utilização
apenas pelo seu titular: direitos reais de garantia e direitos reais de aquisição. Há também alguns
direitos reais de gozo que não permitem estas contracções:
− Uso e habitação → tem um carácter intuitus personae, pelo que não pode ser alvo de
contracções ou onerações.
− Servidões → qualquer oneração podia levar a que, em caso de incumprimento, um
terceiro que não o titular do prédio dominante pudesse adquirir um direito que não
tenha por base a predialidade (art.1543º CC).
Art.1306 CC: os direitos reais apresentam-se em figuras pré-determinadas na lei. Este princípio
implica que não possam constituir-se direitos reais que se não enquadrem dentro de um daqueles
tipos de que a lei faz menção expressa e com um conteúdo que não seja aquele que a lei lhes atribui.
Nestes termos, a taxatividade abrange não só o tipo, mas também o conteúdo destes direitos
reais.
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Apontamentos Direitos Reais
Assim, apesar desta predefinição, os tipos não são forçosamente fechados, isto é, o facto de só
se poderem adoptar estes direitos reais não quer dizer que a lei fixe absolutamente o conteúdo desses
direitos. De facto, as partes têm alguma liberdade para modelar este conteúdo de acordo com o seu
livre alvedrio, desde que não violem os limites externos de cada tipo de direito real (por exemplo, as
servidões podem ter como objecto qualquer utilidade – art.1543º e 1544º CC).
Quanto aos negócios constitutivos de direitos reais não há princípio da taxatividade. Eles são
negócios obrigacionais (com eficácia real). Exceptuam-se os casos previstos no art.457º e segs. CC, que
respeitam aos negócios unilaterais.
Crítica:
A livre criação de direitos reais permite um melhor aproveitamento da riqueza dos bens.
73
Apontamentos Direitos Reais
que o princípio da tipicidade pode conduzir a um desfasamento entre os esquemas legais e a vida
prática.
Porém, a opinião mais consolidada e que encontra defensores em Mota Pinto e Orlando de
Carvalho, postula a vigência do princípio da tipicidade ou do numerus clausus neste domínio, com base
nas razões acima apontadas.
Esta divergência doutrinal reflecte-se na adopção pelos vários sistemas jurídicos de um
princípio ou de outro. É que se no nosso sistema se segue a doutrina maioritária e se adopta o
princípio do numerus clausus (art.1306º CC), na maior parte dos regimes não vigora este princípio,
mas um regime meramente indicativo (que se funda no princípio da atipicidade ou numerus abertus),
já que as partes podem adoptar ou não os direitos reais previstos expressamente na lei com o
conteúdo fixado pela lei ou não.
Não obstante, na prática, este sistema redunda sempre na aplicação do elenco tipificado e
fechado na lei, procedendo somente a algumas combinações das figuras que já previstas. Daí que esta
questão não seja muito pragmática, já que, na prática, há um sistema de taxatividade, pois os direitos
reais tipificados traduzem a lógica de domínio e de plena apropriação, pelo que num regime de livre
apropriação e tendo em conta esta lógica, a apropriação de um bem tende a excluir, na prática, outras
formas de domínio.
Se as partes adoptarem outros tipos de direitos reais não previstos na lei ou cujo conteúdo
extravase o limite externo dessa figura, impõe-se a sua nulidade, pois o art.1306º CC é uma lei
imperativa (art.294º CC).
É ainda possível a conversão do negócio nulo num negócio válido (art.293º CC), com vista o
aproveitamento desse negócio nulo. Exigem-se dois requisitos para que se possa verificar a conversão
(de acordo com o regime geral):
− O negócio inválido tem que conter os requisitos de forma e de substância do negócio
a converter (art.293º 1ª parte CC).
− A vontade hipotética das partes em converter o negócio nulo num negócio válido.
↓
O legislador presumiu esta vontade hipotética das partes na 2ª parte do
nº1 do art.1306º CC, facilitando-se assim a conversão. Assim, só é necessário provar que os requisitos
de forma e substância do negócio inválido são suficientes para converter o negócio nulo num negócio
válido. Visa-se com isto facilitar a constituição de um direito de natureza obrigacional, quando há
dificuldade de prova pelas partes. Como há uma analogia de interesses entre direitos reais e direitos
de crédito, a pessoa em nome da qual iria ser constituído um direito real, desde que usufrua da coisa
através de um direito obrigacional, está favorecido.
74
Apontamentos Direitos Reais
Contudo, esta presunção só é aplicável às restrições aos direitos reais e já não às figuras
parcelares:
− Restrições aos direitos reais → Verifica-se a contracção do direito real, surgindo na
sua sequência um direito real que desvirtua a natureza do direito de propriedade.
− Figuras parcelares → Com a revogação da figura da enfiteuse já não há nenhuma
figura parcelar na lei. Na enfiteuse previa-se um desmembramento do direito de
propriedade, criando-se com esse desmembramento dois direitos autónomos: o
direito do senhorio (domínio directo) e o direito do enfiteuta (domínio útil).
2. Princípio da causalidade
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Apontamentos Direitos Reais
Título → toda a causa ou fundamento jurídico que justifica a atribuição dos direitos reais. É o
acto em que se manifesta a vontade de adquirir e transmitir o direito real.
Modo → acto de execução do título; acto pelo qual se concretiza ou se realiza a constituição ou
transmissão do direito real. Há três espécies de modo: tradição; registo; notificação.
Excepções:
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Apontamentos Direitos Reais
1) Sistema do título:
− Há casos em que além da regularidade é necessário a transmissão, sendo nesses
casos um sistema de título e de modo (ex. transmissão de bens móveis sujeitos a
registo).
− No caso de usucapião é possível adquirir independentemente da boa-fé.
− É possível, em certos casos, adquirir quando o título não é válido (ex. casos de
protecção de terceiros de boa-fé e casos de terceiro para efeitos de registo).
2) Sistema do modo: quando o acto de atribuição do bem, que antecede a traditio (a entrega do
bem) ou o registo for inválido, gera-se a obrigação de restituição ao abrigo do
enriquecimento sem causa.
3) Sistema do título e do modo: há casos em que não se exige os dois requisitos da
regularidade do título e da indiscutibilidade do modo, uma vez que se admitem tradições
implícitas (tradição ficta; traditio brevi manu; constituto possessório).
Regularidade do título:
Tem que ter em conta os vícios que geram a nulidade e/ou anulação (invalidade).
Para o título ser regular a causa que lhe dá origem e, por inerência, o próprio título, tem que ser
existente, válido e procedente (art.408º nº1 CC). A transmissão e a aquisição do título dependem da
sua regularidade, isto é, da sua existência, validade e procedência (os negócios sobre coisas futuras ou
indeterminadas não procedem).
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Apontamentos Direitos Reais
− Terceiros para efeitos de registo.
O vício nestes casos traduz-se na falta de legitimidade do transmitente.
Além destes casos, há outros em que não prevalecendo um interesse sobre o outro, exige-se
quer a regularidade do título quer a indiscutibilidade do modo (por exemplo, transmissão de coisas
móveis sujeitas a registo).
3. Princípio da consensualidade
Porém este princípio pode ter outro sentido. Dizem-se consensuais os negócios que não
carecem, para a sua eficácia, de formalismo especial; aqueles negócios que podem realizar-se por
qualquer das formas que as declarações de vontade possam revestir.
Neste sentido, aos negócios consensuais opõem-se os negócios formais. Nesta perspectiva não
se poderia dizer que vigorasse no domínio dos direitos reais o princípio da consensualidade, pois pelo
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Apontamentos Direitos Reais
menos para os negócios sobre imóveis é exigido um formalismo especial (a lei exige escritura pública
para estes negócios).
Ou seja, com base neste princípio, o acordo entre as partes pode ser formalizado ou não, salvo
se for exigida forma escrita, caso em que tem que ser necessariamente formalizado.
Posto isto, não é esta acepção que tomamos em conta ao falar em princípio da consensualidade.
O sentido com que aqui utilizamos esta expressão visa pôr em relevo que se podem constituir ou
transferir direitos reais sobre coisa certa e determinada por mero efeito do contrato, sem necessidade
de um acto posterior que venha acrescer ao negócio jurídico.
4. Princípio da publicidade
Este princípio implica que a constituição ou transmissão de qualquer direito real deve revestir
notoriedade, ser acessível ao conhecimento geral.
Significa isto que o direito real tem que ser conhecido. É que a eficácia erga omnes dos direitos
reais exige que eles sejam conhecidos ou, pelo menos, que sejam cognoscíveis pelas pessoas que
afectam: os terceiros.
Entre as partes intervenientes não há qualquer regime que exija a publicidade, pois ela não se
justifica. O acto é, por definição, conhecido dos intervenientes (exceptuam-se os casos de hipoteca –
art.687º CC – em que o registo é sempre condição de eficácia, mesmo inter partes).
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Apontamentos Direitos Reais
Já face a terceiros exige-se a publicidade, pois sendo aqueles interessados no negócio (têm
interesses conflituantes com os interesses dos intervenientes do negócio), precisam de ser protegidos
de forma a conhecerem a situação jurídica dos bens. Ora, esta protecção faz-se através da publicidade.
O registo aponta para uma ideia de segurança e de tutela jurídica de terceiros. É isto que
justifica a publicidade. A publicidade garante-se através dos actos registados perante terceiros.
Ressalta desta ideia que por trás deste princípio da publicidade se encontra o interesse da
comunidade. É que se o tráfego jurídico tem de ser fluente, na medida em que não se compadece com
demoras excessivas no seu processamento, ele tem de ser, imperativamente, seguro e certo. As
pessoas não podem estar à mercê de surpresas. Não é conveniente que os actos mediante os quais
essas pessoas adquiriram direitos possam vir a ser destruídos por ilegitimidade de quem lhes fez a
alienação. Para tal, devem esses actos ser públicos, i.e., fornecer a possibilidade de um conhecimento
geral, para que seja conhecida a situação jurídica das coisas.
Este princípio tem, porém, de acordo com as prelecções de Mota Pinto, uma validade tendencial
no campo dos direitos reais. Não é um princípio absoluto que vigore para todos.
Nestes termos, os bens mais necessitados da tutela deste princípio da publicidade são os bens
imóveis e os bens móveis sujeitos a registo, porque são os mais transaccionados e os mais capazes de
gerar riqueza.
Assim, quanto aos:
→ Bens imóveis → para estes existe o instituto do registo predial, precisamente com a
finalidade de dar publicidade à situação jurídica destes bens.
Embora o formalismo a que a lei sujeite os actos sobre estes bens imóveis tenha um efeito de
dar publicidade a esses actos, não é esse o seu desiderato primário. Para tal fim existe, ex
professo, o registo predial, que se traduz num serviço público realizado em repartições
próprias onde existem livros que contêm a história jurídica dos imóveis.
Mediante este instituto introduz-se uma dose mais elevada de segurança na contratação.
Não uma segurança absoluta, pois o registo não dá direitos (por exemplo, pode suceder que
um determinado imóvel não pertença à pessoa em cujo nome estava registado). Todavia, o
registo garante, pelo menos, que se o imóvel alguma vez pertenceu à pessoa em cujo nome
está registado, então ainda continua a pertencer-lhe.
→ Bens móveis sujeitos a registo → esta exigência de publicidade para os bens imóveis,
consistente no registo, foi também transplantada para alguns móveis. Alguns destes, pelo
seu valor e mercê da possibilidade de individualização que oferecem, foram sujeitos a
registo. É o caso dos automóveis, dos navios, dos aviões, etc.
80
Apontamentos Direitos Reais
Quanto a outros móveis (por exemplo, uma jóia, um electrodoméstico, etc.) não vigora
qualquer necessidade de registo.
Diferentemente do que acontece entre nós, nalguns sistemas, já o sabemos (cfr. supra,
princípio da causalidade), há regimes que procuram alcançar esta mesma finalidade de
certeza sobre a situação dos bens móveis mediante princípios diferentes. É o caso dos
sistemas (v.g., o sistema alemão) em que a transferência da propriedade dos móveis exige a
tradição ou, ainda, o caso dos sistemas em que vigora o princípio de “posse vale título”, nos
termos do qual o adquirente de boa-fé de uma coisa que seja seu possuidor, vê a sua
situação jurídica de adquirente protegida em termos definitivos (nalguns países, isso vai
mesmo ao ponto de se considerar válida a aquisição daquele que de boa-fé adquiriu um
objecto furtado ou achado). Contudo, entre nós não vigora nenhum destes princípios.
Posto tudo o que acabou de ser dito, conclui-se que o registo é uma condição de eficácia do
facto registado perante terceiros, ou melhor, é uma condição de oponibilidade do acto constitutivo ou
translativo do direito real a terceiros. O registo é uma condição de eficácia perante terceiros, mas não
é condição de eficácia nem de validade do acto translativo do direito real (salvo nos casos, já
referenciados, da hipoteca). Ele visa somente a publicidade deste acto translativo.
Também não confere a eficácia erga omnes aos direitos reais. Esta resulta da própria lei.
Do mesmo modo, os factos jurídicos sujeitos a registo são inoponíveis face a terceiros enquanto
não forem registados.
No que respeita a aquisição de direitos reais sobre as coisas que estão sujeitas a registo, o
critério que prevalece em matéria de aquisição é o da prioridade cronológica. Quando duas pessoas
adquirem direitos reais conflituantes ou incompatíveis entre si e registam o bem, prevalece o direito
registado em primeiro lugar.
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Apontamentos Direitos Reais
adquirente. Isto é assim, porque quem regista tem a aparência do direito. O primeiro adquirente,
como não registou, vê o seu direito decair.
Efeitos do registo:
→ Efeito imediato → Presunção da titularidade do direito – O registo presume a existência de
um direito real e presume que ele pertence àquele cujo nome consta do registo. É uma
presunção ilidível, porque o registo subjaz com base no documento que regula a
transmissão. Por isso, o registo não garante que o direito existe, mas garante que se ele
existe tem como titular a pessoa que o registou.
→ Efeito lateral → Tutela de terceiros de boa-fé (art.291º CC) → visa proteger aqueles que,
encontrando-se numa mesma cadeia de transmissão, vêem a sua posição afectada por uma
invalidade anterior.
→ Efeito central → O registo não é condição de eficácia nem de validade, mas é uma condição de
oponibilidade do acto constitutivo ou translativo do direito real a terceiros.
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− Facultativo → o registo é um ónus; não há sanções para quem não registar.
− Obrigatório → o registo é um dever; há cominação de sanções para quem não proceder
ao registo.
Como prodrómo deste capítulo relativo às características dos direitos reais diga-se que
também para aqui vale a metodologia de decomposição anatómica dos direitos reais. Assim,
distinguem-se características que se ligam ao lado interno (ao conteúdo ou licere do direito real) e
características que se ligam ao lado externo do direito real (a protecção/garantia conferida ao titular
do direito real).
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Apontamentos Direitos Reais
O lado interno do direito real corresponde a um poder directo e imediato sobre a coisa:
exercício de um poder que não é mediatizado por outrem e que tem como corolário o facto de o
direito existir e ser independente das pretensões positivas a que possa dar origem.
É esta característica aqui referenciada uma das responsáveis pela distinção que se realizou no
prolegómeno deste curso entre direitos reais e direitos de crédito e direitos sobre as pessoas.
É que os direitos de crédito correspondem sempre a uma pretensão a um comportamento e
esgotam-se nessa pretensão, isto é, extinguem-se quando essa pretensão é cumprida.
No caso dos direitos sobre as pessoas, estes postulam uma obrigação de respeito, mas que vai
no sentido do desenvolvimento da pessoa e que incluem um conjunto de actos (pretensões) que têm
que ser realizados quer por parte do Estado, quer por parte dos particulares (diferentemente do que
se passa nos direitos reais em que a obrigação de respeito é uma obrigação de abstenção, logo, não é
uma pretensão).
Por seu turno, os direitos reais, quando dão origem a pretensões, são pretensões que resultam
da violação do direito e não do exercício do direito. São pretensões que o titular do direito tem, mas
que não identificam o direito real. O exercício dos direitos reais dispensa qualquer pretensão e esta,
quando surja, visa reintegrar o direito numa dominialidade definitiva e não exercê-lo.
É o poder directo e imediato sobre o bem que confere a autonomia do direito real face a
qualquer forma de reintegração a que o seu exercício possa dar origem.
A pretensão que lhe pode estar associada não se confunde, assim, com o seu conteúdo.
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Apontamentos Direitos Reais
pertença de um terceiro adquirente, manifestando-se desta maneira o poder directo e imediato sobre
o bem e a própria garantia.
É o poder que o titular de um direito real possui de fazer valer o seu direito real sobre a coisa,
onde quer que ela se encontre, ainda que seja no domínio material ou jurídico de outrem. O
proprietário pode reivindicar a sua coisa de um terceiro, isto é, chamar a si um determinado bem,
mesmo que ele seja reclamado por outrem que não o titular.
Por exemplo: um indivíduo comprou um prédio a A, mero locatário, julgando ser este o
proprietário respectivo. O proprietário pode reivindicar a coisa deste indivíduo que a adquiriu por um
título – compra e venda – normalmente idóneo para transferir a propriedade, mas que, não o é, no
caso em apreço, por o transmitente não possuir legitimidade para alienar uma coisa que lhe não
pertence. Não fica, por isso, o proprietário inibido de reivindicar a coisa, podendo fazê-lo, com
excepção dos casos em que se verifique alguma excepção ao direito de sequela.
O proprietário poderá exercer uma acção de reivindicação, constituindo esta o meio processual
pelo qual a sequela se manifesta neste exemplo em que se apresenta uma situação material
incompatível com o direito do proprietário. Porém, note-se que a acção de reivindicação não é o único
meio processual pelo qual a sequela se manifesta.
Nas hipóteses em que, não se verificando essa situação de incompatibilidade, mas apenas a
existência de uma situação jurídica susceptível de perturbar o direito real, não havendo lugar à acção
de reivindicação, não deixa, porém, também aí, de se manifestar a sequela.
Assim, por exemplo, tanto ao usufrutuário, como ao titular de um direito real de garantia (v.g., a
hipoteca) assiste o direito de sequela, se a coisa for alienada a terceiro pelo seu proprietário, na
medida em que esses direitos reais podem ser opostos ao terceiro adquirente para quem a coisa se
transmitiu. Não se justifica, porém, o exercício de uma acção de reivindicação, desde logo porque, por
exemplo, na hipótese do usufruto, o usufrutuário até está na posse da coisa, não tendo assim nada a
reivindicar.
O direito de sequela manifesta-se aqui na circunstância de o usufruto poder ser exercido em
relação ao novo adquirente da nua propriedade. Só que, agora, o exercício da sequela não se vai
traduzir numa acção de reivindicação, mas numa acção de simples apreciação.
O usufrutuário está na posse da coisa e, não obstante esta ter sido transmitida do proprietário
de raiz para outro, ele pode afirmar o seu direito de usufruto em face ao novo proprietário. É nesta
possibilidade que assiste ao usufrutuário de fazer valer o seu direito contra qualquer adquirente da
propriedade, limitada pelo usufruto, que reside a sequela. Só que aqui este direito de sequela não vai
manifestar-se através de uma acção de reivindicação, uma vez que nada há a reivindicar. O meio
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Apontamentos Direitos Reais
processual idóneo para o direito de sequela se manifestar aqui é a acção de simples apreciação que
deve ser intentada pelo usufrutuário.
As coisas passam-se de forma idêntica em relação ao outro exemplo citado – a hipoteca.
Também ao credor hipotecário, ao titular do direito real de garantia, assiste a possibilidade de
continuar a dar a coisa, objecto do seu direito, à execução, independentemente de esta pertencer
ainda ao proprietário que constitui a hipoteca ou já a um posterior adquirente. É precisamente nessa
possibilidade que o titular da hipoteca tem de fazer valer o seu direito, independentemente da
transmissão da propriedade, que reside esse direito de sequela.
Destas considerações arranca uma nota específica dos direitos reais em face dos direitos de
crédito. É que ao titular destes não assiste o direito de sequela. Este surge-nos, assim, como privativo
ou exclusivo dos direitos reais.
Os direitos de crédito não proporcionam um direito real sobre o património do devedor. Os
direitos de crédito esgotam a sua eficácia inter partes, uma vez que o titular destes direitos não pode
perseguir os bens que saem do património do devedor, excepto através da impugnação pauliana,
verificados os pressupostos deste instituto.
Porém, a sequela não se confunde com a impugnação pauliana, uma vez que esta implica,
diferentemente do que resulta do exercício do direito de sequela, a anulação do acto de transmissão
da coisa para um terceiro adquirente, exigindo ainda, para que possa ser exercida, a verificação de
certos e determinados requisitos. Não é, portanto, a impugnação pauliana uma manifestação do
direito de sequela.
Já nos direitos reais, em consequência da sua natureza erga omnes, o titular do direito pode
reivindicar a coisa, independentemente de onde se encontra, ou seja, mesmo que ela esteja no
património de terceiro.
Limites à sequela:
Há certos direitos reais que se extinguem pelo não uso (por exemplo, alguns direitos
reais menores de gozo).
Todos os direitos reais de gozo se podem extinguir pela usucapião (ao reconstruir a
dominialidade definitiva, faz perder o direito).
Para efeitos de terceiro de boa-fé também pode não haver direito de sequela, se os
pressupostos de boa-fé estiverem preenchidos.
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Apontamentos Direitos Reais
Para efeitos de registo predial também pode não haver direito de sequela. Exemplo,
A vende a B, que não regista e depois vende a C, que regista. É C quem adquire e B vê
a sua sequela paralisada.
Outra característica dos direitos reais é o direito de preferência ou de prevalência. Esta traduz-
se na circunstância de os direitos reais constituídos sobre uma coisa prevalecerem quer sobre outros
direitos reais posteriormente constituídos sobre a mesma coisa e que se revelem total ou
parcialmente incompatíveis com o anterior, quer sobre os direitos de crédito, posteriores ou
anteriores, relativos a essa coisa.
Desta sorte, verificando-se uma constituição sucessiva de direitos reais sobre a mesma coisa e
incompatíveis entre si, o conflito resultante dessa situação é dirimido de acordo com a regra “prior in
tempore, potior in jure”, ou seja, é a prioridade temporal da constituição do direito real que determina
a prioridade jurídica.
Constitui, também, esta característica uma emanação da eficácia absoluta dos direitos reais. De
facto, quem adquire um direito real pode opô-lo por força da sua eficácia absoluta, erga omnes, a todas
as pessoas que tenham adquirido posteriormente um direito real sobre a mesma coisa incompatível
com o anterior ou que sejam titulares de um direito de crédito, que lhes confere meramente uma
eficácia inter partes. O direito de preferência surge-nos, por isso, como um corolário da eficácia
absoluta dos direitos reais, encontrando algum apoio no art.408º nº1 CC, que estabelece a regra da
transmissão dos direitos por mero efeito do contrato.
Encontram-se, porém, na doutrina portuguesa, posições que defendem que este direito de
preferência não se estende a todos os direitos reais, mas apenas aos direitos reais de garantia.
De facto, Luís Pinto Coelho e ainda Oliveira Ascensão sustentam que se é verdade que quanto a
direitos reais de garantia constituídos sucessivamente e incompatíveis entre si se compreende que
seja necessário estabelecer uma prioridade, uma ordem de exercício, o que se consegue fazendo
prevalecer o direito primeiramente constituído (ou, no caso da hipoteca, primeiramente registado), já
no que respeita aos direitos reais de gozo tal necessidade não se verifica pois, nestes termos, a
transmissão sucessiva da propriedade sobre a mesma coisa a dois sujeitos diferentes não cria nenhum
direito de preferência. O que se verificaria nesta situação seria a existência de um direito e de um
“não-direito”, porque, tendo-se o transmitente despojado do seu direito na primeira transferência, não
pode agora, na segunda transferência, transmitir um direito que não possui. Daí que não se verifique,
segundo os autores mencionados, uma situação de conflito entre dois direitos que necessite de ser
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Apontamentos Direitos Reais
resolvida mediante a intervenção do direito de preferência, mas uma “colisão entre um direito e um
não-direito”.
Não obstante a virtude desta tese pôr em relevo a diferença que existe entre os termos da
preferência no domínio dos direitos reais de garantia e aqueles em que surge na esfera dos direitos
reais de gozo, ela não é acatada pela generalidade da doutrina. É que, enquanto que o princípio da
preferência estabelece nos direitos reais de garantia uma prioridade de exercício do direito, nos
direitos reais de gozo, esse direito de prevalência vai decidir da própria existência ou inexistência do
direito.
Assim, é o direito de preferência ou prevalência uma característica que, com toda a lógica, se
pode imputar aos direitos em reais.
Excepções:
→ Casos em que os direitos reais anteriormente constituídos não prevalecem sobre os direitos
reais posteriormente constituídos:
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Apontamentos Direitos Reais
Terceiros para efeitos de registo → no caso de venda de coisa sujeita a registo, se o
primeiro adquirente, muito embora adquira a propriedade, a não registou, não goza
do direito de preferência em face de um segundo adquirente que registou a sua
aquisição. Isto porque os actos sujeitos a registo, mas não registados, são inoponíveis
a terceiros (excepção apontado por Mota Pinto).
→ Casos em que os direitos reais não prevalecem sobre direitos de outro tipo, nomeadamente,
direitos de crédito:
Locação → art.1057º CC – o direito real, neste caso, não prevalece sobre o direito de
crédito. A, proprietário de um prédio, arrenda a B e depois vende a C. O B, se C o
exigisse, teria que devolver o prédio a C. Porém, de acordo com o art.1057º CC, o
direito real não prevalece, neste caso, sobre o direito de crédito.
Privilégios (creditórios) mobiliários gerais → art.736º CC – parecem ser um direito
real de garantia. Contudo, tal não acontece pois o privilégio não incide sobre coisa
certa e determinada, não observando o princípio da especialidade. Por isso, não são
direitos reais de garantia, mas sim garantias reais.
Alguns privilégios mobiliários gerais gozam de prioridade sobre privilégios
mobiliários especiais, que são verdadeiros direitos reais de garantia,
independentemente do momento da respectiva constituição. Assim, os privilégios
mobiliários gerais, enquanto direitos de crédito, prevalecem sobre os privilégios
mobiliários especiais que são verdadeiros direitos reais (art.739º e 747º CC).
Por exemplo, um crédito emergente do contrato de trabalho (o crédito a salários) é
um crédito privilegiado uma vez que o trabalhador (credor) pode pagar-se pelos
móveis do devedor com preferência sobre qualquer outro (art.737º nº1 d) CC). Os
privilégios mobiliários gerais dão, portanto, preferência em relação aos credores
comuns. Ora, este privilégio mobiliário geral que concede uma preferência não
constitui um direito real, mas uma garantia especial das obrigações. Isto porque o
privilégio mobiliário geral incide sobre todos os bens do devedor e, como se disse, os
direitos reais têm necessariamente de incidir sobre coisas certas e determinadas.
Aliás, isto infere-se claramente do art.749º CC, que ao estatuir que “o privilégio geral
não vale contra terceiros…”, lhe recusa a eficácia absoluta.
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Apontamentos Direitos Reais
Além disso, na hipótese de o privilégio geral ser um dos previstos no art.736º nº1 CC
(crédito do Estado ou das autarquias locais), ele prevalece sobre os seus congéneres
mobiliários especiais que constituem direitos reais, nos termos do art.747º nº1 a) CC.
Pactos de preferência → art.422º CC – os direitos legais de preferência prevalecem
sobre os direitos convencionais de preferência com eficácia real.
Tanto o direito de sequela como o direito de preferência emprestam ao direito real uma tutela
particularmente forte, o que justifica o interesse que certos credores manifestam dentro do mundo
económico, do mundo do crédito, em reservar ou adquirir o direito de propriedade sobre certos bens
até ao cumprimento dos contratos de onde emergem os créditos de que são titulares.
Surge então aqui, a figura da venda com reserva de propriedade, figura esta que se encontra
regulada no art.409º CC. Assim, por exemplo, A vende a B, a prestações, um determinado objecto,
reservando, porém, a propriedade deste até ao pagamento da última prestação. Pretende-se com isto
que o credor do preço fique numa posição privilegiada perante outros credores. É que se não
houvesse reserva de propriedade, no caso de não pagamento das prestações em falta, o
vendedor/credor podia apenas executar o património do comprador/devedor, tendo de suportar
nessa execução a concorrência de todos os outros credores, inclusive no que toca à execução da
própria coisa vendida.
No contexto do quadro classificatório dos direitos reais usa fazer-se a clássica distinção entre:
a. Direitos Reais de Gozo
b. Direitos Reais de Aquisição
c. Direitos Reais de Garantia
Dissemos já que o direito de propriedade constitui a matriz de todos os direitos reais, enquanto
poder de “gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe
pertencem”, ou seja, poder de pleno domínio (art.1305º CC).
Ora, os direitos reais são uma mera aproximação ao direito de propriedade, são uma forma de
expressar o pleno domínio (paradigma da “plena in re potestas” – supra Introdução, Cap. I, ponto 5).
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Apontamentos Direitos Reais
Daí que qualquer outro direito real (de gozo, de aquisição ou de garantia) pode ser apelidado de
direito real limitado, na medida em que não confere a plenitude dos poderes sobre uma coisa. Confere
apenas a possibilidade de exercer certos poderes sobre uma coisa, mas não a plenitude dos poderes
correspondentes à clássica tripartição romana “jus utendi, jus fruendi e jus abutendi”. São, portanto,
direitos sobre coisas que em propriedade pertencem a outrem. Eles pressupõem uma concorrência de
direitos, isto é, sobre uma coisa recai, além de um destes direitos reais limitados, um direito de
propriedade que é restringido por esse direito real limitado. Pode mesmo dizer-se, de acordo com os
ensinamentos de Mota Pinto, que são “jura in re aliena” (direitos sobre coisa alheia) ou, pelo menos,
direitos sobre coisa não própria.
Uma outra classificação parte, contudo, de um critério diverso, que contende com a natureza
teleológica do direito real. Assim, distinguem-se dois grandes grupos onde se encaixam os três tipos
de direitos reais acima apresentados:
2. Direitos Reais Acessórios ou Instrumentais → São direitos que versam sobre situações que
se constituem como uma aproximação ao pleno domínio do direito de propriedade. São
instrumentais, porque asseguram o exercício do domínio sobre outros direitos reais
(direitos reais de garantia) ou contribuem para a aquisição de outros direitos reais
(direitos reais de aquisição):
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Apontamentos Direitos Reais
→ Direitos Reais de Aquisição → Permitem ao seu titular adquirir direitos reais de gozo
ou de garantia, ou, excepcionalmente, um direito de crédito. Podem ter origem na lei
ou em convenção.
Os direitos reais de aquisição são os direitos potestativos de aquisição; os direitos
reais de preferência; e as promessas reais de alienação ou oneração.
→ Direitos Reais de Garantia → Conferem ao seu titular o poder de se fazer pagar à custa
dos rendimentos ou bens do devedor ou de terceiros e com preferência sobre os
demais credores do devedor que não tenham essa preferência. Visa proteger direitos
de crédito já que se destina a assegurar o cumprimento de obrigações. Há certos
direitos reais de garantia que conferem um poder sobre a coisa, mas não atribuem o
poder de utilizar a coisa, salvo quanto à consignação de rendimentos.
O critério que marca a distinção entre os direitos reais de gozo e direitos reais de
aquisição e os direitos reais de garantia é o da função económica do direito real.
Os direitos reais de garantia são o penhor; a hipoteca; os privilégios creditórios; o
direito de retenção e a consignação de rendimentos (esta era designada no nosso
antigo direito e ainda em alguns sistemas jurídicos estrangeiros de países de língua
latina por antícrese).
Já se sustentou que os direitos reais de garantia não são verdadeiros direitos reais,
mas meros direitos acessórios dos direitos de crédito. Porém, se é verdade que há
uma conexão funcional entre os direitos reais de garantia e os direitos de crédito,
uma vez que os primeiros estão ao serviço do pagamento ou da satisfação do
interesse do credor (são acessórios dos direitos de crédito), isso não significa que
eles não tenham uma natureza própria. Ora, a natureza jurídica destas figuras
parece ser a dos direitos reais, dado que apresentam as notas características destes,
designadamente o direito de sequela e o direito de preferência.
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Apontamentos Direitos Reais
Não nos ocuparemos aqui da discussão destas situações controvertidas, sistematicamente
autonomizadas, mas fixe-se que, no termo dessa discussão, nalgumas destas hipóteses, se não chega a
nenhuma conclusão segura, pelo que a sua qualificação continua a ser duvidosa.
A propriedade em geral
NOÇÃO:
O direito de propriedade é o poder pleno de uso e gozo de uma coisa, ou melhor, é o poder
pleno de uso, fruição e disposição de uma coisa. Estes poderes conferidos pelo art.1305º CC podem
não coexistir na sua totalidade.
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Apontamentos Direitos Reais
Apologistas duma apropriação colectiva das coisas, críticos da propriedade privada e
manifestantes a favor de formas comunitárias ou colectivas de apropriação encontramos, na
Antiguidade Clássica, Platão ou os Essénios; no Renascimento, Thomas More em “Utopia” ou
Campanella em “A cidade do sol”; os chamados socialistas utópicos como Proudhon e, em Portugal,
Oliveira Martins ou Antero de Quental; e também os socialistas científicos com Marx e Engels e seus
seguidores.
Contestam estes estudiosos a liberdade de apropriação, a anarquia económica (que se opõem à
planificação), a exploração do homem pelo homem, as desigualdades artificiais, etc.
A lista dos defensores da propriedade privada é composta por filósofos como Aristóteles e S.
Tomás de Aquino; por economistas liberais como Jean-Baptiste Say (que põe em relevo o papel da
propriedade individual como estimulante económico contra o desperdício e contra a preguiça) ou
Stuart Mill (não acentuando tanto o aspecto do estímulo económico, mas antes as vantagens morais da
propriedade, enquanto fonte de aperfeiçoamento moral); a Igreja Católica, nomeadamente Leão XIII,
Pio XI e Pio XII.
Como méritos da propriedade individual, argumenta-se com o estímulo económico por ela
representado e o seu valor como garantia de liberdade individual ou familiar.
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Apontamentos Direitos Reais
aqueles especificamente atribuídos pela lei. No direito de propriedade, o titular tem, em
princípio, todos os poderes.
→ Carácter elástico → o direito de propriedade é elástico, é dotado de uma força expansiva. Ou
seja, extinto o direito real que limita o direito de propriedade da coisa, reconstitui-se a
plenitude da propriedade. O proprietário limitado recupera a plenitude do seu direito de
propriedade. O direito de propriedade pode sofrer, então, contracções ou descompressões
com a constituição ou extinção de direitos reais.
→ Carácter perpétuo → o direito de propriedade é um direito perpétuo. Ele não se extingue
pelo não uso. A inércia também é uma manifestação do direito de propriedade. Não usar a
propriedade é ainda uma forma de a usar. O proprietário tem tais poderes que pode querer
estar inactivo e esta possibilidade cabe ainda dentro do conteúdo do seu direito.
Porém, a perpetuidade do direito de propriedade é limitado pela posse e consequente
usucapião. Estes limites são impostos pela função social da propriedade de incentivo à
exploração da coisa.
Corolário deste carácter perpétuo é a não existência da propriedade temporária que, nos
termos do art.1307º nº2 CC “só é admitida nos casos especialmente previstos na lei”.
Exemplos: de alguma forma na venda a retro ou num negócio translativo da propriedade sob
condição resolutiva e, também, na venda com reserva de propriedade.
DURAÇÃO:
− Perpétua (o direito de propriedade tem um carácter perpétuo)
Casos excepcionais:
− Temporária ou a termo:
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Apontamentos Direitos Reais
Art.1307º CC → propriedade temporária
Art.2286º CC → propriedade do fideicomissário
− Resolúvel:
Art.927º CC → venda a retro
Art.960º CC → cláusula de reversão nos contratos de doação
RESTRIÇÕES:
Art.1305º 2ª parte CC: “…dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela
impostas.”
Por exemplo:
Expropriações (art.1308º CC)
Requisições (art.1309º CC)
Restrições à vizinhança (art.1344º CC)
Propriedade de imóveis
CONTEÚDO:
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Apontamentos Direitos Reais
A propriedade de imóveis é regulada nos artigos 1344º e segs. CC.
Esta figura abrange o imóvel rústico ou urbano, o espaço aéreo correspondente à sua
superfície, bem como o subsolo ou tudo o que nele se contém e não desintegrado do domínio por lei
ou negócio jurídico. Esta ressalva entende-se porque há na CRP normas que integram o domínio
público certas riquezas subterrâneas (jazigos minerais, águas minero-medicinais, etc.). Esses bens não
pertencem ao proprietário do terreno, porque estão integrados no domínio público, embora o
proprietário tenha uma posição especial relativamente a esses bens, nomeadamente, preferência na
concessão ou um direito a receber uma prestação. Outras coisas que não estejam expressamente
integradas no domínio público, por exemplo, um tesouro, são já pertença do proprietário do subsolo
ou do espaço aéreo.
O art.1344º nº2 CC limita em certos termos os poderes do proprietário: “o proprietário não
pode, todavia, proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja
interesse em impedir”. É o caso exemplar das companhias de navegação aérea que, não fosse esta
norma, violariam todos os dias os limites dos prédios. Acontece que o proprietário não tem interesse
em impedir esses actos.
Refira-se que a propriedade dos imóveis é uma propriedade que existe sempre, ou melhor, não
é nunca “res nullius” (coisa de ninguém), pois corre-se o risco de se perder a propriedade sobre o
prédio por abandono. Ora, preceitua o art.1345º CC que “as coisas imóveis sem dono conhecido
consideram-se do património do Estado”.
A propriedade de imóveis confere certos direitos específicos gerados pela natureza desses bens
– direito de demarcação, de tapagem, de construção, de plantação de arbustos, etc. Porém estes
poderes indeterminados têm limitações.
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Apontamentos Direitos Reais
Reguladas no CC, elas decorrem das relações de vizinhança que se estabelecem por haver
proximidade ou contiguidade entre prédios. Daí que o direito de propriedade vê-se limitado por
restrições derivadas da coexistência.
Exemplos:
1. Art.1346º CC – Proíbe a emissão de fumos de fuligem, vapores, cheiros, calor, ruídos,
trepidações, que importem prejuízo substancial para uso do imóvel ou que não resultem de
uma utilização normal do prédio donde emanam. Atente-se que este preceito parece
aplicar-se a quaisquer vizinhos e não apenas ao vizinho contíguo.
2. Art.1347º CC – Prescreve as instalações prejudiciais.
3. Art.1348º CC – Preceitua que não se pode escavar no próprio terreno em termos de
provocar riscos de desmoronamento do terreno contíguo.
4. Art.1349º CC – Impõe a obrigação de dar passagem forçada momentânea. O proprietário de
um terreno é obrigado a conceder passagem momentânea, se um vizinho precisar, por
exemplo, para reparar um edifício; de colocar um andaime ou uma escada para reparar um
parede; de tolerar a passagem momentânea para que, como se diz no nº2, alguém possa ir
buscar uma coisa que acidentalmente nele se encontre. Note-se que não está aqui em causa
qualquer servidão. É somente uma passagem momentânea, embora forçada.
5. Art.1351º CC – Quando exista um terreno inclinado, o proprietário da parte inferior não
pode instalar um dique contra o qual a água de torrente natural ou da chuva fique retida.
Isso prejudicaria o proprietário do terreno superior.
6. Art.1357º e 1359º CC – Tratam do direito de tapagem. No caso de tapagem com valas ou
regueiros é necessário deixar uma “mota externa de largura igual à profundidade da vala”,
para que as águas não inundem. No caso de tapagem com sebes vivas impõe-se a colocação
de marcos divisórios.
7. Art.1360º CC – Sobre a abertura de janelas, portas ou obras semelhantes é necessário
deixar um intervalo de metro e meio em relação ao prédio vizinho. Quanto às varandas,
terraços e eirados, em princípio, têm de estar a mais de um metro e meio quando sejam
servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio, mas já podem estar na própria
linha divisória se tiverem um parapeito superior a essa altura.
As restrições impostas por estes artigos não se aplicam às situações previstas no art.1361º
e 1363º CC.
Este regime não impede que se possa constituir uma servidão de vistas por acordo ou por
usucapião (art.1362º CC).
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Apontamentos Direitos Reais
8. Art.1365º CC – Refere-se ao problema dos beirais. Dispões este artigo que se deve deixar,
na construção, um intervalo mínimo de cinco decímetros entre o prédio e a beira se do
outro modo não puder evitá-lo.
Pode também constituir-se aqui uma servidão de estilicídio por usucapião ou por acordo.
9. Art.1366º CC – Permite a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios,
sendo, no entanto, lícito ao dono do prédio vizinho cortar ou arrancar as raízes, os troncos
e os ramos que invadam o seu terreno, se o dono do prédio, rogado judicial ou
extrajudicialmente, o não fizer dentro de três dias.
10. Art.1370º e segs. CC – Relativo à comunhão forçada de paredes e muros de meação. Estas
construções podem ser feitas por acordo, pagando cada um dos proprietários metade do
muro e do terreno.
Pode suceder que, no exercício do direito de tapagem, o proprietário mure o seu terreno
sem acordo do vizinho, mas fá-lo no seu terreno e inteiramente à sua custa. Nesta hipótese,
o proprietário confinante, se quiser, pode adquirir metade do muro, pagando metade do
terreno e metade da construção. Há sempre a possibilidade de tornar comuns os muros ou
paredes feitos na divisória.
É um direito potestativo – o proprietário construtor como que é expropriado, há aqui uma
expropriação forçada de metade do muro no interesse do proprietário confinante.
Estas limitações podem extinguir-se por negócio jurídico, podendo designadamente constituir-
se uma servidão (de estilicídio, de vistas, uma servidão inominada, etc.).
Exemplo de uma servidão inominada: o caso de ramadas inclinadas sobre um terreno vizinho.
Em princípio não poderão estar assim, mas pode constituir-se “ex contractu” uma servidão e então o
dono do prédio adquire o direito de essas árvores poderem invadir o prédio vizinho com as suas
raízes ou os seus ramos, desaparecendo estas limitações pelo acordo constitutivo de uma servidão.
Esta matéria tem um regime especial em função das características do seu objecto (art.1385º e
segs. CC).
Há logo uma distinção fundamental entre águas públicas e privadas. Ao direito civil cabe
apenas estudar o regime das águas particulares e dos direitos adquiridos por particulares sobre águas
públicas.
Remete-se para bibliografia especial esta matéria.
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Apontamentos Direitos Reais
Direito de compropriedade
NOÇÃO:
A figura da compropriedade apresenta-se-nos “...quando duas ou mais posses são
simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”, noção esta que consta do
art.1403º nº1 CC. Ela consiste, então, em vários direitos de propriedade que incidem sobre quotas
ideais ou intelectuais do bem globalmente considerado.
Estes vários direitos de propriedade são qualitativamente iguais, mas podem ser
quantitativamente diferentes. Não obstante, na falta de indicação em contrário no título constitutivo,
as quotas presumem-se quantitativamente iguais (art.1403º nº2 CC).
100
Apontamentos Direitos Reais
NATUREZA JURÍDICA:
Este problema é passível de três soluções:
a) De acordo com a doutrina tradicional, perfilhada por Manuel Rodrigues entre outros, a
compropriedade resulta da coexistência dos direitos de cada um dos contitulares sobre
uma quota ideal ou intelectual do bem. Assim, cada um dos comproprietários tem direito a
uma quota ideal não especificada do objecto. (Vários direitos ↔ Vários objectos)
b) Segundo uma outra perspectiva apoiada por Luís Pinto Coelho, não se trata aqui da
coexistência de direitos incidindo cada um deles sobre uma quota ideal (doutrina
tradicional), mas sim da coexistência de vários direitos de propriedade sobre todo o
objecto, direitos esses que se limitam reciprocamente. Aqui, há várias propriedades sobre o
mesmo objecto, limitadas por outras propriedades com idêntico objecto. (Vários direitos ↔
Um objecto)
c) Uma terceira posição entende que estamos perante um único direito com vários titulares.
(Um direito ↔ Um Objecto)
A construção que parece traduzir com mais exactidão e de forma mais harmoniosa a realidade
em questão (embora não esteja isenta de dificuldades) e que é, aliás, suportada por uma generalizada
aceitação doutrinal é a tese tradicional, de acordo com a qual cada um dos comproprietários tem
direito a uma quota ideal ou intelectual do objecto da compropriedade.
Alerta-se para o facto de que a noção de compropriedade acima apresentada assume esta
perspectiva como um pressuposto.
Os fundamentos desta solução são de ordem teleológica e literal. Em primeiro lugar, a análise
da ratio e do espírito da lei, nomeadamente com a consagração da possibilidade que cada
comproprietário tem em alienar a sua quota ideal e da possibilidade de cada um deles requerer a
divisão da coisa comum assim faz entender. Em segundo lugar, porque se encontram pontos de apoio
literais ou formais desta doutrina em vários preceitos legais, designadamente nos arts.1403º, 1405º
ou 1408º, todos do CC.
Além destes, encontram-se outros argumentos pela negativa. Assim, a segunda posição não é de
aceitar, porque choca com a ideia de não se poder conceber mais do que um direito de propriedade
sobre a mesma coisa: a propriedade é, por definição, um direito absoluto que opõe o seu titular a
todos os outros. Há, nesta medida, um ilogismo na ideia da possibilidade de vários direitos de
propriedade sobre o mesmo objecto na sua totalidade.
Já em relação à terceira hipótese, que concebe a compropriedade como um só direito com
vários titulares, ela também não é de admitir, pois não dá expressão às diferenças entre o regime da
101
Apontamentos Direitos Reais
compropriedade e o regime da comunhão, onde, aí sim, há um só direito com vários titulares, até
porque não se pode aí pedir a divisão da coisa comum dada a afectação especial do património a um
fim específico, nem pode cada um dos contitulares alienar a sua quota do objecto. Ora, na
compropriedade não se passa assim. Aqui, cada um dos contitulares tem alguma liberdade para agir
isoladamente quanto à sua fracção ou quota ideal do objecto. E isto, porque estamos face a vários
direitos de propriedade, cada qual pertencente a um único titular, que incidirão sobre toda a coisa,
mas cada um deles versa somente sobre uma parte não especificada dela, isto é, sobre uma quota
ideal.
E nem por isso, se poderá dizer que esta solução viola o princípio da especialidade, segundo o
qual os direitos reais têm que incidir sobre coisa determinada. De facto, aqui a coisa está determinada:
é a quota ideal do objecto, que, potencialmente, incide sobre todo ele, mas que não é exactamente um
direito sobre todo o objecto, antes é um direito sobre uma fracção daquele objecto.
REGIME JURÍDICO:
O problema central que aqui se põe é o de saber quais são as possibilidades de ser praticado
um acto sobre a coisa comum, isoladamente, por um comproprietário ou por um grupo de contitulares
que não represente a totalidade dos contitulares dos direitos que recaem sobre o objecto.
Quanto à possibilidade que todos têm de, por unanimidade, praticar quaisquer actos sobre a
coisa, ela não suscita dúvidas. O art.1405º CC é claro quando estipula que os comproprietários
exercem em conjunto os poderes que pertencem ao proprietário singular, sendo que participarão nas
vantagens e encargos da coisa em proporção das suas quotas.
A questão está efectivamente em saber quais os poderes dos comproprietários, considerados
isoladamente ou em grupos parcelares.
Assim, há actos que podem ser praticados isoladamente por um comproprietário; outros que
exigem o acordo da maioria deles; e outros ainda que exigem a sua unanimidade.
102
Apontamentos Direitos Reais
objecto, mas apenas sobre uma quota ideal, pelo menos, até se proceder à divisão da coisa comum). Se
o fizer, o nº2 daquele art.1408º CC manda aplicar ao acto as normas relativas à disposição ou
oneração de coisa alheia (arts. 892º e segs. CC).
A disposição da sua quota ideal está sujeita à forma exigida para a disposição da coisa
(art.1408º nº3 CC). Por exemplo, a venda por um comproprietário de metade de um imóvel exige
escritura pública, tal como se exige para a venda do imóvel.
Pode, ainda isoladamente, nos termos do art.1405º nº2 CC, cada consorte reivindicar de
terceiro a coisa comum sem que se lhe possa opor o facto que ela lhe não pertence por inteiro. Ou seja,
cada comproprietário pode exercer a acção de reivindicação da coisa comum em relação a terceiro
que a possua indevidamente.
Conexionada com esta matéria (disposição e oneração da quota), atente-se que quando há uma
disposição da quota ideal por um dos comproprietários a um terceiro que não seja comproprietário,
há lugar ao exercício do direito de preferência. Nos termos do art.1409º CC, os restantes
comproprietários têm preferência e têm primazia face a outros preferentes legais no caso de venda ou
dação em cumprimento da quota ideal. Se este direito de preferência não for respeitado, os outros
comproprietário podem intentar uma acção de preferência, tendo o direito de haver para si a quota
alienada (art.1410º CC). Realce-se a circunstância de estes mecanismos só valerem no caso de venda
ou de dação em cumprimento.
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Apontamentos Direitos Reais
quota (trata-se de uma espécie de compensação pelo encargo acrescido que têm nas despesas de
conservação com as benfeitorias necessárias).
EXTINÇÃO DA COMPROPRIEDADE:
A compropriedade pode extinguir-se por via negocial: qualquer comproprietário pode adquirir
as quotas de quaisquer dos outros ou mesmo de todos os outros.
Além desta, importa ainda referir a forma de extinção prevista nos arts.1412º e 1413º CC, que
estipulam o direito dos comproprietários a exigir a divisão da coisa comum.
Pode, às vezes, clausular-se, durante um certo número de anos, a indivisão da coisa. A lei
admite essas cláusulas de indivisão, mas limita a sua validade a cinco anos, podendo depois renovar-
se esse prazo.
Se for pactuada um indivisão superior a 5 anos, a cláusula deve ser considerada nula, embora
se aceita uma redução do negócio jurídico nos termos gerais da teoria geral do negócio jurídico
(art.292º CC).
Para valer em relação a terceiros, esta cláusula de indivisão tem de ser registada (1412º nº3
CC).
A divisão pode ser feita judicial (em processo judicial) ou extra-judicialmente (divisão
amigável). Neste último caso, ela tem de ser feita obedecendo aos requisitos de forma que a lei exige
para a alienação onerosa da coisa. Quer dizer, só se pode dividir, por exemplo, um prédio rústico, por
escritura pública, tal como ela seria exigida para a alienação do prédio.
Direito de comunhão
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Apontamentos Direitos Reais
A propriedade horizontal é a propriedade que incide sobre as várias fracções componentes de
um edifício, fracções essas que devem estar em condições de constituírem unidades independentes.
É um regime de propriedade, não sobre um edifício na sua estrutura unitária, mas sobre
fracções do mesmo edifício que constituam unidades independentes.
A noção é dada no art.1414º CC e o seu objecto no art.1415º CC: “Só podem ser objecto de
propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes,
sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via
pública”.
É necessário portanto que se trate de fracções privativas, mas existindo instalações comuns ou
serviços de utilização comum.
A lei chama-lhe propriedade horizontal, mas o seccionamento pode ser numa linha vertical e
não segundo uma linha horizontal. O que é realmente necessário para podermos falar da figura da
propriedade horizontal é que as unidades obtidas por seccionamento vertical, tendo autonomia, são,
ao mesmo tempo, interdependentes.
A propriedade horizontal supõe que não haja autonomia estrutural das várias fracções, na
medida em que fazem parte do mesmo objecto unitário, e que funcionalmente haja utilização de coisas
comuns.
Se cada uma das partes for absolutamente autónoma, se não houver coisas comuns, então, não
há propriedade horizontal. O que existe são duas propriedades contíguas.
NATUREZA JURÍDICA:
A propriedade horizontal parece ter uma natureza dualista, ou seja, ela é integrada por um
concurso de dois direitos: direito de plena propriedade sobre as partes privativas (sobre cada fracção
autónoma) e comunhão sobre as partes comuns.
(Apesar do art.1420º nº1 CC dizer que cada condómino é “comproprietário das partes comuns
do edifício”, deve ler-se aí “contitulares”.)
Estes direitos estão ligados, de tal forma que na alienação do direito de propriedade horizontal
vão coenvolvidos a propriedade sobre a parte privada e o direito de comunhão sobre as partes
comuns (art.1420º nº2 CC).
A comunhão das partes comuns dum edifício em propriedade horizontal é uma comunhão
forçada, uma vez que não é possível sair da indivisão, ao contrário do que sucede no regime da
compropriedade em que é sempre lícito requerer a divisão da coisa comum. Nesta medida, ela é
forçosa e perpétua. Nenhum dos membros da colectividade pode pedir a divisão da coisa (art.1423º
CC), enquanto vigorar a causa que deu origem à comunhão. É esta uma exigência que decorre do facto
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Apontamentos Direitos Reais
de a lei impor uma relação jurídica de vizinhança e só quando esta relação cessar é que o bem pode
ser dividido, passando-se neste caso ao regime de compropriedade.
Este carácter forçoso e perpétuo deriva da natureza do direito de comunhão, que se traduz na
existência de um só direito com vários titulares, manifestação essa que resulta da afectação especial
do património a um fim específico.
Em suma, a figura da propriedade horizontal reveste uma natureza dualista, resultante do
concurso destes dois direitos: direito de propriedade e direito de comunhão.
MODOS DE CONSTITUIÇÃO:
A propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião ou decisão
judicial (art.1417º CC).
→ Por negócio jurídico:
Há várias modalidades negociais. Porém, em primeiro lugar, é necessário que seja lavrado um
título constitutivo de propriedade horizontal por escritura pública. A atribuição de cada uma das
unidades a vários proprietários é que poderá ter lugar por diversas vias negociais.
a) Pode um indivíduo, proprietário pleno e exclusivo de um bloco habitacional, recém
construído ou mesmo construído há já muito tempo, constituir o regime de propriedade horizontal
sobre esse bloco, para depois alienar separadamente as várias unidades a outros sujeitos.
b) O caso mais vulgar é o de uma entidade (por exemplo, uma empresa de construção) tomar a
iniciativa de reunir os fundos que lhe sejam entregues por determinadas pessoas interessadas em
adquirir uma fracção a título de propriedade horizontal e, com esses fundos e eventualmente com
outros provenientes de crédito bancário, iniciar a construção. À medida que as construções vão
atingindo determinadas fases, a entidade vai recebendo prestações e as fracções vão sendo atribuídas
a cada um dos indivíduos a quem foram prometidas e que foram adiantando importâncias para a
construção do edifício.
A via negocial normalmente utilizada para esta modalidade de constituição da propriedade
horizontal é o contrato-promessa, mas outras vias podiam ser seguidas, v.g., através de escritura de
venda de coisa futura e simultaneamente de venda do direito de comunhão sobre o solo que já existe.
c) Sobre um edifício já existente e pertencente a um só indivíduo ou a vários (em regime de
propriedade horizontal), podem vir a construir-se novos andares sendo que esse direito de construir
sobre edifício já existente pode pertencer a outrem. A esta situação refere-se o art.1526º CC e que
deve ser enquadrada no direito de superfície. Porém, levantado o edifício são aplicáveis à ampliação
efectuada as regras da propriedade horizontal, nos termos do mesmo preceito (art.1526º CC).
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Apontamentos Direitos Reais
d) Também pode acontecer que, não havendo um elemento que tenha a iniciativa de reunir
todos os outros, sejam os vários interessados que se unam, constituindo eles próprios uma sociedade
para efeitos de construírem um prédio em regime de propriedade horizontal.
→ Por usucapião:
Nos termos gerais da usucapião.
→ Por decisão judicial:
A decisão judicial pode ser proferida em processo de divisão de coisa comum ou em processo
de inventário.
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Apontamentos Direitos Reais
das partes comuns, etc.). A participação de cada um nestas despesas é estabelecida em função do valor
relativo das respectivas fracções, que está prefixado no título constitutivo da propriedade horizontal,
em percentagem ou permilagem, sempre que outro critério especial de repartição desses encargos
não for acordado (art.1424º CC).
Qualquer inovação ou ampliação do edifício também implica um encargo para os condóminos,
desde que tenham sido aprovadas por uma maioria qualificada de dois terços do valor total do prédio
(art.1425º nº1 CC).
Este ponto está, igualmente, sujeito a limites. É que a assembleia de condóminos não pode
aprovar inovações nas partes comuns, que prejudiquem a utilização por parte de algum dos
condóminos, tanto das suas coisas próprias, como das suas coisas comuns (art.1425º nº2 CC).
As despesas com as inovações são repartidas pelos condóminos nos termos do art.1424º CC,
mas os condóminos que não tenham aprovado as deliberações (que será a minoria) podem recusar-se
a contribuir para as despesas, a não ser que seja judicialmente declarada infundada a sua recusa. A
recusa será fundada quando a inovação seja de carácter voluptuário (art.216º nº3 CC) ou que não seja
proporcionada à importância do edifício (art.1426º nº 1, 2, 3 e 4 CC).
Uma outra obrigação importante que a lei impõe aos condóminos é a obrigação de segurar o
edifício contra o risco de incêndio (art.1429º CC).
108
Apontamentos Direitos Reais
O administrador é o órgão executivo, nomeado e exonerado pela assembleia de condóminos, a
quem tem de prestar contas da sua actividade. Procede, portanto, à execução das decisões daquela e à
adopção das medidas necessárias à conservação e vida do edifício (art.1436º). Assume especial
importância a legitimidade conferida pelo art.1437º para estar em juízo em representação dos
condóminos, quer como autor, quer como demandado.
NOÇÃO:
O usufruto é o direito de gozar – de usar e fruir – uma coisa ou um direito de outrem, sem,
todavia, afectar a substância do objecto usufruído (art.1439º CC).
Reportando-nos à clássica tripartição dos poderes do proprietário “jus utendi, jus fruendi e jus
abutendi”, constatamos que o usufrutuário detém apenas os dois poderes primeiramente referidos: o
“jus utendi” e o “jus fruendi”. O usufrutuário não detém, assim, o “jus abutendi”, o poder de dispor da
coisa.
Toda a situação de usufruto implica um concurso de direitos reais. Onde existe um usufruto,
coexiste uma propriedade esvaziada do “usus” e do “fructus”.
Por esse motivo é esta propriedade classicamente designada por “nua propriedade” ou
propriedade de raiz.
Porém, atente-se que neste concurso da nua propriedade e do usufruto, ninguém possui
plenamente o “abusus”, ou seja, a possibilidade de dispor da coisa.
É que este “jus abutendi” não abrange só a possibilidade de alienar a coisa. Isso ambos o podem
fazer na medida dos seus direitos: tanto o nu-proprietário pode alienar a nua propriedade, como o
usufrutuário o pode fazer no tocante ao seu direito de usufruto.
Contudo, nenhum deles pode destruir a coisa, muito embora o poder de destruição seja um dos
poderes contidos no “jus abutendi”. Aqui, na situação de concurso entre propriedade de raiz e
usufruto, ninguém tem o poder de destruir a coisa. Nem o pode fazer o usufrutuário, porque tem que
ressalvar aquele limite da substância da coisa, nem o pode fazer o nu-proprietário, porque assim
violava o usufruto.
De tudo isto se conclui que o somatório dos poderes do nu-proprietário e do usufrutuário não
integra os poderes da propriedade plena.
O que se pode dizer é que, se o nu-proprietário e o usufrutuário se encontrarem de acordo,
podem, os dois, exercitar todos e quaisquer poderes que caibam na propriedade plena.
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Apontamentos Direitos Reais
De tudo o que se disse até agora resulta que o usufruto é um “jus in re aliena”, i.e., um direito
real sobre coisa alheia, que consiste numa derivação do direito de propriedade e, ao mesmo tempo,
numa limitação deste direito. Ele decorre das relações de vizinhança ou das relações de natureza
familiar. O usufruto é o direito mais denso de todos os direitos reais menores. Ele confere o pleno gozo
do bem (art.1439º CC), podendo o usufrutuário aproveitar todas as disponibilidades do bem.
Pode ter por objecto uma coisa móvel ou imóvel, coisas corpóreas e incorpóreas e até um
direito.
CARACTERÍSTICAS:
Com base no art.1439º CC podemos alinhavar algumas características do direito de usufruto:
→ Temporariedade → O usufruto é um direito temporário e, no comum dos casos, vitalício.
Este carácter resulta da circunstância de o usufruto se extinguir pelo decurso do prazo, quando
no título constitutivo foi estabelecido um prazo, e da de o usufruto se extinguir igualmente pela morte
do usufrutuário (art.1476º nº1 a) CC).
Assim, desde que não haja prazo estipulado para duração do usufruto, este extingue-se pela
morte do titular desse direito.
Havendo prazo estipulado, o usufruto extingue-se no termo deste, excepto se, antes de
decorrido o lapso de tempo pelo qual foi constituído, se verificar a morte do usufrutuário. Neste caso,
o usufruto extingue-se antes do decurso do prazo.
É este o regime aplicável às pessoas físicas, regime este em que se encontra bem vincado o
carácter “intuitus personae”. É que, efectivamente, o usufruto é concedido a alguém durante um
determinado prazo, mas nunca para além da vida do beneficiário (art.1443º CC).
No que respeita às pessoas colectivas, quer de direito público, quer de direito privado, o
art.1443º CC estabelece que a duração máxima do usufruto é de trinta anos. Traduz-se aqui a
preocupação do legislador em limitar o usufruto. Se a lei utilizasse o mesmo critério para a
delimitação do prazo do usufruto para as pessoas colectivas o mesmo critério que utiliza para a
delimitação do prazo de usufruto para as pessoas singulares poderiam surgir usufrutos perpétuos a
favor de pessoas colectivas, dada a sua duração normalmente indeterminada ou natureza perpétua.
As razões que levaram a lei a negar o carácter perpétuo do usufruto (ao contrário do que
acontece no direito de propriedade) são várias:
o Graves inconvenientes de ordem económica geral (não há um estímulo para a exploração
dos bens);
o Prejuízos na circulação dos bens (qualquer adquirente do bem, não adquire a plena
propriedade; adquire-o limitadamente); etc.
110
Apontamentos Direitos Reais
Porém, a aquisição de um usufruto tem algumas vantagens:
o O usufruto permite realizar capital, isto é, mediante o usufruto, a pessoa pode
compatibilizar a sua necessidade de realizar capital com a continuação da fruição dos
rendimentos.
o Possibilita a certas pessoas o proverem à situação de necessidade de outrem, mas
conseguindo simultaneamente que os bens não saiam da família do disponente.
A lei, em face das vantagens e dos inconvenientes do usufruto, consagrou a figura do usufruto
com uma certa regulamentação em ordem ao melhor aproveitamento das suas vantagens e redução a
um mínimo dos seus inconvenientes.
→ Plenitude do gozo do objecto → Traduz-se no direito de gozar plenamente a coisa (art.1439º
CC). Com esta formulação pretende a lei explicitar que a posição do usufrutuário é mais sólida que a
de outras pessoas, não obstante deterem estas igualmente certos poderes de gozo sobre uma coisa,
como é o caso do locatário ou arrendatário.
As manifestações deste direito de gozo pleno sobre uma coisa são:
o Alienabilidade do usufruto: o usufrutuário pode alienar inter vivos o seu direito real, tal
como resulta do nº1 do art.1444º CC, ao estatuir que “o usufrutuário pode trespassar a
outrem o seu direito…”. É esta uma possibilidade que não assiste ao locatário.
Não há qualquer incompatibilidade entre este poder de trespasse ou de oneração do
usufruto e o seu carácter intuitus personae e isto porque o usufruto não exige a fruição
em espécie da coisa usufruída. Ele confere apenas uma maior maleabilidade e autonomia
ao usufrutuário ao permitir-lhe tomar as medidas mais adequadas à satisfação do seu
interesse.
Esta possibilidade de transferência do usufruto é, todavia, limitada por restrições, quer
de natureza voluntária, quer de natureza legal. Podem surgir, desde logo, restrições
resultantes do seu título constitutivo (se, por exemplo, um testador estipular no
testamento, que o usufrutuário não pode alienar o seu direito); as restrições podem
surgir também em resultado de disposições legais, por exemplo, do art.1893º nº1 e
1896º CC.
A transmissão do seu direito feita pelo usufrutuário, não o isenta de responsabilidade
pela coisa usufruída. O art.1444º nº2 CC impõe ao usufrutuário a obrigação de
responder perante o titular da nua propriedade pelos danos que a coisa sofrer por culpa
da pessoa que o substitui.
o Ausência de especial limitação pelo fim: o usufrutuário não sofre as mesmas limitações
que sofre o locatário, no que tange ao fim a que a coisa se destina.
111
Apontamentos Direitos Reais
O usufrutuário pode, com efeito, usá-la e fruí-la sem afectação teleológica, enquanto que
o locatário tem de usar a coisa para certos fins sob pena de fundar com a sua actuação a
resolução do contrato, como sucederá, v.g., na hipótese de o locatário afectar a fins
comerciais uma casa que arrendou para sua habitação.
→ Princípio da conservação da forma e substância → O usufrutuário pode gozar temporária e
plenamente a coisa fruída, mas sem alterar a sua forma e substância. Não é, portanto, possível que o
usufrutuário, nomeadamente por contrato ou testamento, seja legitimado para alterar a forma ou a
substância da coisa usufruída.
Contudo, há que ter alguma cautela na interpretação desta característica. É que, no caso de
usufruto de coisas consumíveis, as coisas podem ser alienadas ou destruídas (o que importa a
alteração da forma e da substância). Aqui, pela própria natureza das coisas, o seu uso implica
necessariamente o seu desaparecimento.
Estes casos de usufruto de coisas consumíveis são resolvidos pelo art.1451º CC. De facto, nas
coisas consumíveis (definido no art.208º CC), o usufruto regular implica a destruição ou alienação da
coisa.
Assim, atendendo à própria natureza dos bens (que se destinam à sua alienação ou consumo),
releva o valor dos bens e não os bens em si e, por isso, o legislador considera que devolver o valor dos
bens ou o próprio bem são situações com valor jurídico semelhante, uma vez que, em ambos os casos,
o interesse do proprietário fica satisfeito de forma equivalente.
→ Usufruto sobre direitos → O usufruto pode incidir, nos termos do art.1439º CC, não só sobre
coisas, mas também sobre direitos alheios, como seja o caso em que incide sobre créditos,
participações sociais, direitos de autor, etc.
LIMITES:
1.O usufruto tem que respeitar a forma ou substância da coisa (art.1439º 2ª parte CC).
2. Se o contrário não for estabelecido no título constitutivo, tem de obedecer ao destino
económico da coisa (art.1446º CC), de acordo com o critério do bom pai de família.
DURAÇÃO:
De acordo com o art.1443º CC, a duração do direito de usufruto não pode exceder a vida do
usufrutuário ou, tratando-se de pessoa colectiva, não pode exceder os 30 anos.
CONSTITUIÇÃO:
A constituição do direito de usufruto é regulada pelo art.1440º CC. Segundo ele, o usufruto
pode ser constituído por contrato, testamento, usucapião ou disposição da lei.
112
Apontamentos Direitos Reais
O elenco apresentado por este artigo é um elenco não taxativo.
→ Contrato → Pode operar-se por duas formas distintas:
a) Constituição “per translationem”, que ocorre quando o proprietário cria directamente ao
terceiro o usufruto, detendo ele a nua propriedade. Ex. A, pleno proprietário, passa para B o
usufruto, ficando com a nua propriedade.
b) Constituição “per deductionem”, que ocorre quando o proprietário aliena a nua propriedade,
ficando com o usufruto. Ex. A, pleno proprietário, aliena a nua propriedade a B, ficando com
o usufruto.
Esta dupla possibilidade revela-se, desde logo, no domínio da prestação de caução pelo
usufrutuário. É que, nos termos do nº1 do art.1469º CC, o usufrutuário está dispensado de prestar
caução no caso de o seu direito ter sido constituído mediante alienação com reserva de usufruto, ou
seja, no caso típico de constituição “per deductionem”. Daí que o proprietário, se continuar a usufruir a
coisa, limitando-se a transferir a nua propriedade, não tenha de prestar caução.
Esta só é, assim, exigida na constituição do usufruto “per translationem”, ou seja, quando o
proprietário cria um usufruto a favor de terceiro.
Admitindo a lei que o usufruto se possa constituir por contrato, poderá o proprietário do
prédio, em vez de o arrendar, constituir antes um usufruto.
Esta solução daria uma posição mais sólida ao adquirente e, por outro lado, sendo o usufruto
necessariamente de natureza temporária, apresenta vantagens de carácter pessoal para o
proprietário, na medida em que lhe permitiria fugir à aplicação das normas especiais que protegem o
arrendatário.
A generalidade das legislações modernas manifesta-se no sentido da protecção do
arrendatário, protecção que se manifesta, entre nós, por exemplo, naquela norma que impõe a
renovação obrigatória do contrato de arrendamento (art.1054º CC).
O arrendatário tem uma muito maior possibilidade de permanecer no prédio do que o
usufrutuário. Isto porque, enquanto o direito de usufruto caduca ao fim do prazo por que foi
constituído, o arrendamento pode ser renovado por vontade unilateral do arrendatário.
Esta situação é até paradoxal. De facto, é curioso que um direito de crédito como o é o
arrendamento, goze de uma protecção maior do que um direito real típico como o é o usufruto.
Ora, esta “fraude à lei” que resulta da constituição de um usufruto em vez da celebração do
arrendamento não pode ser admitida. Daí que, para prevenir hipóteses deste tipo, se devam sujeitar
obrigatoriamente ao regime do arrendamento todos os contratos que conferem o uso e fruição de uma
coisa, mediante uma contraprestação que afastará de todo aquela possibilidade.
Assim, por exemplo, se o senhorio A cede o usufruto de um prédio a B, pretendendo por esta
forma fugir às normas vinculativas do regime do arrendamento, este contrato vale como
113
Apontamentos Direitos Reais
arrendamento, dado que “o negócio celebrado com fraude à lei é nulo, como resulta logo dos
princípios gerais”.
→ Testamento → A situação de usufruto que se verifica com mais frequência é constituída por
testamento.
É este um ponto que não levanta particulares dificuldades.
→ Usucapião → O usufruto pode adquirir-se por usucapião.
Já se entendeu na nossa doutrina que o usufruto não podia ser adquirido por esta via. É que a
posse do usufruto é equívoca, uma vez que a posse do usufrutuário se analisa em termos idênticos à
do proprietário. Tanto a posse de um como a do outro se traduz afinal no uso da coisa e na recolha dos
seus frutos. Não sendo possível esta destrinça, optava-se pela impossibilidade da aquisição do
usufruto por usucapião.
Esta posição é, porém, de afastar, pois há um elemento que permite distinguir a posse do
usufrutuário da posse do proprietário e esse elemento é o elemento psicológico, o “animus possidendi”.
Assim, configure-se o seguinte exemplo: A constitui um usufruto por mero escrito particular,
passando o usufrutuário a gozar a coisa.
Como, porém, para a constituição de direitos reais sobre imóveis é exigida escritura pública, o
usufrutuário não adquiriu validamente o direito de usufruto, mas apenas a posse correspondente.
Neste caso, a sua intenção é nitidamente de usufrutuário, não podendo por isso adquirir a
propriedade.
Pode, porém, adquirir o usufruto, uma vez que, estando psicologicamente na posição do
usufrutuário, passou a fruir a coisa como tal. Isto não ocorrendo inversão do título da posse. Enquanto
não se verificar uma eventual inversão do título, há apenas uma posse de um usufruto.
→ Disposição da lei → Por último, o usufruto também pode constituir-se por disposição legal.
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Apontamentos Direitos Reais
existam ao tempo em que o direito do primeiro usufrutuário se torne efectivo”. Para se constituir o
usufruto, é necessário que o segundo usufrutuário já exista no momento em que esse direito se torna
efectivo.
O usufruto, ainda que sucessivo, não pode, pois, nunca ter uma duração maior do que aquele
que teria se tivesse sido directamente constituído a favor do último beneficiário. Ou melhor, qualquer
dos instituídos tem de estar, no momento da efectivação do usufruto, numa situação segundo a qual
pudessem ser imediatamente nomeados.
O usufruto simultâneo tem, por isso, uma duração tabelada pela vida do último usufrutuário,
excepto se, antes da morte deste, decorrer o prazo pelo qual foi constituído, no caso de o ter sido a
prazo (caso de decurso do prazo).
De tudo isto decorre que se encontra excluída a possibilidade de constituição de usufrutos
sucessivos a favor de concepturos.
Quanto a nascituros, rigorosamente, nos termos da lei, não é uma pessoa existente, não
podendo, por isso, ser beneficiário de um usufruto.
A “ratio” do preceito, porém, não exclui que os nascituros possam ser beneficiários desse
direito.
De facto, se se pode deixar um usufruto a uma pessoa que acabou de nascer, porque não a um
nascituro já concebido? Esta possibilidade não alarga incomportavelmente o prazo do usufruto.
Por outro lado, também a própria situação de pendência do usufruto não é muito dilatada, uma
vez que, no caso de nascituros já concebidos, o seu nascimento será questão de pouco tempo.
A “ratio” não exclui, portanto, que os nascituros já concebidos possam ser beneficiados com a
instituição de um usufruto simultâneo ou sucessivo.
De qualquer forma, é esta uma questão controversa.
Por último, diga-se que, no usufruto simultâneo, existe um direito de acrescer, não só quando
esse direito resulta de testamento, mas também quando seja constituído por contrato.
Assim, se alguém deixa um usufruto simultaneamente a duas pessoas e uma delas falece, a
outra adquire o usufruto de toda a coisa. O falecimento de um dos co-usufrutuários não atribui ao
outro apenas metade do usufruto. O outro adquire-o na totalidade.
O fundamento desta solução é uma presunção correspondente à vontade presumida das partes.
Presume-se, com efeito, que, constituindo-se por testamento ou contrato um usufruto simultâneo
sobre um prédio, pretendeu-se deixar aos instituídos a totalidade do usufruto. Como são vários os
instituídos, o direito de usufruto divide-se. Mas se fosse unicamente um instituído, este seria o
beneficiário da totalidade do direito de usufruto.
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Apontamentos Direitos Reais
É com este fundamento material que o art.1442º CC vem consagrar o direito de acrescer destes
usufrutuários simultâneos, quer o seu direito resulte da disposição testamentária, quer de um
contrato.
DIREITOS DO USUFRUTUÁRIO:
Relativamente aos poderes do usufrutuário sobre o próprio usufruto, dissemos já, que o
usufrutuário pode alienar ou hipotecar o seu direito de usufruto; pode defender esse seu direito,
exercitando acções possessórias ou acções do tipo da acção de reivindicação (a chamada acção
confessória do usufruto – “vindicatio usufrutus”).
Já no que toca aos direitos do usufrutuário sobre a coisa usufruída, cite-se, em primeiro lugar, o
art.1445º CC que apela para o título constitutivo: “os direitos e obrigações do usufrutuário são
regulados pelo título constitutivo do usufruto; na falta ou insuficiência deste, observar-se-ão as
disposições seguintes”.
Significa isto que há uma certa variabilidade do conteúdo do usufruto, uma vez que é possível
estipular-se uma dimensão de poderes e um conteúdo do usufruto varáveis de caso para caso.
Não existe, por isso, uma configuração rígida do usufruto. O que acontece, normalmente, é que
as partes abstêm-se de estipular, havendo então lugar à aplicação de normas dispositivas. Nessa altura
o usufruto vê o seu conteúdo delimitado e conformado pelas normas supletivas.
Esta liberdade de conformação interna do usufruto significa que, em princípio, o usufruto
incide sobre todas as utilidades da coisa, podendo, porém, excluir-se uma ou outra utilidade da coisa.
É nesta medida que pode dizer-se que o conteúdo do usufruto é variável.
116
Apontamentos Direitos Reais
Tudo isto significa que o usufrutuário tem de proceder como procederia um bom
administrador, sendo este o sentido que, em última análise, se deve atribuir ao padrão do “bonus pater
familias”.
Dentro destes poderes de usar, fruir e administrar que competem ao usufrutuário estão
abrangidas, nos termos do art.1449º CC, não só as coisas acessórias ou as acessões que vêm acrescer à
coisa, mas também todos os direitos inerentes à coisa usufruída. Será este o caso das servidões, por
exemplo.
Uma outra nota a que alude o princípio geral do art.1446º CC é a de que o usufrutuário tem de
respeitar o destino económico da coisa, ou seja, que o usufrutuário pode usar e fruir a coisa desde que
respeite o seu destino económico.
Daí decorre, “a contrario sensu”, que o usufrutuário não pode alterar o destino económico da
coisa usufruída. Não pode, por exemplo, transformar um pomar ou prédio rústico num campo de
jogos. O destino económico que a coisa tem deve ser conservado. É esta vinculação uma expressão da
falta do “jus abutendi”, ou seja, da falta do direito de dispor da coisa.
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Apontamentos Direitos Reais
Esta solução justifica-se pelo intuito de evitar um locupletamento do proprietário da raiz à
custa do usufrutuário, que se verificaria com outra solução que não a legal. Por outro lado, o regime da
lei afasta o inconveniente de, no último ano do usufruto, o usufrutuário se quedar numa atitude de
inércia.
O usufrutuário tem, pois, o direito de usufruir, uma vez que o usufruto abrange, além do direito
de uso, o direito aos frutos.
A noção de frutos, como se sabe, encontra-se na parte geral do CC, art.212º nº1 CC ao estatuir
que “diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente, sem prejuízo da sua substância”.
(Para mais desenvolvimentos a respeito dos frutos cfr. supra Introdução, Capítulo I, ponto 7,
alínea f))
Um ponto importante conexionado com esta matéria é o de que o usufrutuário tem direito aos
frutos, ma não tem direito aos produtos.
(Para saber os termos desta distinção cfr. supra Introdução, Capítulo I, ponto 7, alínea f))
Também quanto à forma como os frutos são recolhidos há uma importante distinção a fazer.
É que nos termos do art.213º nº1 CC, os frutos naturais são adquiridos ou até um momento
determinado ou a partir desse momento, pertencendo ao usufrutuário os frutos percebidos durante a
vigência do seu direito.
Segue-se, portanto, aqui, a doutrina da percepção.
Pertencem ao usufrutuário os frutos naturais que se percebem, que se colhem dentro dos
limites temporários do usufruto. O titular desse direito tem, assim, direito a todos os frutos que se
vencem durante o usufruto.
É, assim, o momento da colheita, o momento da percepção, que vigora, prevendo a lei, para
obstar a que esta disposição seja iludida, sanção para as colheitas prematuras.
Poderia pensar-se, para aqui, num critério de proporcionalidade, segundo o qual o indivíduo
que esteve na fruição do bem, por exemplo, por três meses, período correspondente a metade do ciclo
produtivo desse bem, receberia também apenas metade dos frutos.
Não é, porém, esta a solução da lei.
Segundo esta, se a colheita se verifica num momento anterior aos seis meses, o usufrutuário
recebe todos os frutos; se, posteriormente, não tem direito a quaisquer produtos, assiste-lhe apenas,
no caso de ter realizado despesas para a sua produção, o direito a ser indemnizado por essas
despesas.
Já no que toca aos frutos civis, a lei adoptou antes um critério de proporcionalidade. Os frutos
distribuem-se “pro rata temporis”, isto é, em proporção do tempo que dura o usufruto. Por exemplo,
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Apontamentos Direitos Reais
no caso de uma renda anual de um prédio, se o usufruto dura apenas meio ano, o usufrutuário recebe
apenas metade da renda.
Esta diferença de regimes justifica-se pelo facto de que, no toca aos frutos civis, se poder
estabelecer, com um grau suficiente de certeza, um critério de proporcionalidade, que não se
consegue obter para os frutos naturais. Daí que a lei tenha adoptado um sistema, embora mais
drástico, mais seguro e mais certo que é o de se atender ao momento da percepção dos frutos. Não é,
por isso, quem semeia que tem direito aos frutos, mas quem colhe. Se o usufruto vigora durante o
tempo da colheita, o usufrutuário é o dono dos frutos.
Aliás, doutro modo, poderia haver uma dificuldade, quanto aos frutos naturais, mormente
quanto a saber a que período se devia atender: ao ano civil ou ao ciclo produtivo do bem em questão,
tendo em conta que este ciclo pode variar consoante os usos locais e respectivos costumes e as
técnicas de produção utilizadas, etc., o que se traduz num elemento de incerteza.
Daí que a lei prefira seguir um critério mais seguro e mais claro que é o de atender ao momento
da percepção.
Pode também o usufrutuário realizar benfeitorias na coisa usufruída, quer úteis, quer
voluptuárias, desde que, nos termos do art.1450º CC, “não altere a sua forma ou substância, nem o seu
destino económico”.
Aplica-se, quanto às benfeitorias, o mesmo regime do possuidor de boa-fé.
Por último, no que toca à alienação dos frutos antes da colheita, importa atentar no art.1448º
CC.
Vimos já que o momento que releva é o momento da percepção. Mas, se o usufrutuário alienar
frutos antes da colheita e o usufruto se extinguir antes desta, a alienação subsiste, revertendo o seu
produto a favor do proprietário.
É esta uma regra que se destina a dar conteúdo prático ao princípio de que o que releva neste
domínio é o momento da colheita, ou seja, o momento da percepção dos frutos, reagindo, assim,
contra uma alienação prematura. O facto de o usufrutuário alienar antecipadamente os resultados da
colheita não lhe traz quaisquer benefícios, uma vez que, por força dessa disposição legal, o produto
recebido terá de ser integralmente entregue ao proprietário de raiz, deduzidas, porém, as despesas
realizadas com o cultivo, no caso de haver lugar a isso.
→ Casos especiais:
119
Apontamentos Direitos Reais
Referimo-nos até agora ao usufruto em geral. Porém, a lei regula, nos arts.1451º a 1467º CC, o
usufruto de certas coisas, de determinadas categorias de bens. Isto porque era necessária uma
previsão especial do usufruto que incida sobre certos objectos.
É que a natureza e a constituição destes objectos criam problemas específicos, maxime no que
se refere à individualização, à determinação dos frutos.
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Apontamentos Direitos Reais
Assim, em matéria de risco, se ele fosse proprietário, perecida a coisa, o risco corria por conta
dele e, uma vez extinto o usufruto, o proprietário de raiz poderia exigir-lhe a restituição do respectivo
valor.
É, portanto, esta solução que a lei teve em vista ao estatuir que o usufruto não importa, aqui, o
direito de propriedade, donde resulta suportarem os dois o risco. O proprietário de raiz porque,
perecendo a coisa, esta perece por sua conta e risco; o usufrutuário porque perde o usufruto, não
estando, porém, adstrito à restituição do valor correspondente, diversamente do que aconteceria se
ele fosse o proprietário das coisas. Neste caso, o risco seria, como já se disse, totalmente suportado
por ele. Logo, quando se extinguisse o usufruto, teria de restituir o seu valor ao proprietário de raiz
que, por seu turno, não suportaria risco nenhum.
Art.1453º a 1456º CC: usufruto de árvores e arbustos de matas, árvores de corte, plantas de
viveiro.
Sobre esta matéria ocorrem alguns problemas específicos, particularmente no que toca ao
usufruto de matas e árvores de corte.
Referindo-se-lhe, o nº1 do art.1455º CC dispõe que “o usufrutuário de matas ou quaisquer
árvores isoladas que se destinem à produção de madeira ou lenha deve observar, nos cortes, a ordem
e as praxes usadas pelo proprietário ou, na sua falta, o uso da terra”.
As árvores, qualificando-se, em princípio, como produtos, devem, porém, na hipótese prevista
no art.1455º CC, em que o usufruto incide sobre matas cuja utilização reside no corte periódico de
madeira, ser consideradas como frutos. Tem, então, o usufrutuário direito a fazer esses cortes,
segundo as praxes usadas pelo proprietário ou, na sua falta, segundo os usos da terra.
121
Apontamentos Direitos Reais
O usufrutuário pode, portanto, cortar árvores da mata sobre que incide o seu direito de
usufruto, enquanto se possam considerar frutos, mas já não quando essas árvores revistam a natureza
de capital.
Art.1463º a 1467º CC: usufruto sobre rendas, dinheiro, capitais levantados ou títulos de
crédito.
O usufrutuário tem direito aos juros correspondentes à duração do usufruto e à fruição dos
prémios ou outras utilidades aleatórias produzidas pelo título (por exemplo, um prémio atribuído por
sorteio aos titulares de títulos de crédito emitidos por uma instituição bancária). Também a lei é clara
quanto ao usufruto de títulos de participação (v.g., usufruto de um lote de acções).
OBRIGAÇÕES DO USUFRUTUÁRIO:
As obrigações do usufrutuário iniciam-se mesmo antes do começo do usufruto.
122
Apontamentos Direitos Reais
O usufrutuário deve, com efeito, nos termos do art.1468º nº1 a) CC, proceder a um inventário,
isto é, deve relacionar os bens, declarando o seu estado, bem como o valor dos móveis se os houver.
De seguida, de acordo com a alínea b) daquele artigo, deve o usufrutuário prestar caução, se
esta lhe for exigida.
Daí resulta que ao proprietário é tão lícito exigir a caução como adoptar conduta inversa, nada
exigindo.
A caução, porém, quando prestada, destina-se a cobrir a responsabilidade do usufrutuário pela
restituição da coisa no termo do usufruto ou por quaisquer deteriorações que venha a causar na coisa
usufruída.
Ocorrem, todavia, certas situações em que há dispensa de caução. São os casos previstos no
art.1469º CC.
Assim acontecerá, em primeiro lugar, na hipótese de constituição de usufruto “per
deductionem”, ou seja, nos casos de alienação de uma coisa com reserva de usufruto.
Depois, pode o usufrutuário ser dispensado de prestar caução no título constitutivo do
usufruto.
Como restantes obrigações salienta-se o prescrito nos arts.1472º e 1473º CC, versando sobre
matéria de reparações.
O art.1472º CC, relativo às reparações ordinárias, enuncia o princípio de que cabem ao
usufrutuário as reparações ordinárias indispensáveis para a conservação da coisa e as despesas de
administração.
123
Apontamentos Direitos Reais
A lei define, por outro lado, esse tipo de reparações de acordo com um critério teleológico.
Ordinárias são aquelas reparações necessárias à conservação da coisa.
A lei estabelece-lhes, porém, um limite baseado num critério de valor ao estatuir no nº2 da
disposição citada que “não se consideram ordinárias as reparações que, no ano em que forem
necessárias, excedam dois terços do rendimento líquido desse ano”.
Da conjugação destas duas disposições resulta que qualquer despesa realizada em vista à
conservação da coisa usufruída é qualificável como despesa de reparação ordinária, excepto se
comprometer mais de dois terços do rendimento líquido da coisa usufruída no ano em que são
necessárias.
Por último, tal como acontece com outras obrigações reais, pode o obrigado eximir-se do
encargo renunciando ao usufruto (art.1472º nº3 CC).
Quanto às reparações extraordinárias, essas cabem ao proprietário. O usufrutuário não tem,
assim, o dever de as realizar, cumprindo-lhe apenas avisar o proprietário para que este as efectue.
Porém, note-se, este não é obrigado a fazê-las directamente. Só que, uma vez notificado, se o
proprietário não realizar as reparações extraordinárias, se elas forem de utilidade real, o usufrutuário
pode, então, efectuá-las a expensas daquele. Melhor, a expensas suas, mas virá a ser reembolsado do
montante dispendido ou será pago, no fim do usufruto, do valor que as benfeitorias tiverem nesse
momento.
Não há, portanto, aqui propriamente uma obrigação que tenha de ser executada em espécie
pelo proprietário. O usufrutuário avisa-o, o proprietário não procede às reparações e, então, aquele
procede a elas a expensas suas, exigindo ao proprietário a sua importância ou exigindo, no termo do
usufruto, o valor das benfeitorias que resultaram dessas reparações para o bem usufruído.
EXTINÇÃO:
As causas de extinção do usufruto vêm referidas no art.1476º CC.
→ Morte ou decurso do tempo → Art.1476º nº1 a): “O usufruto extingue-se por morte do
usufrutuário, ou chegado o termo do prazo por que o direito foi conferido, quando não seja vitalício.”
É esta uma manifestação do carácter pessoal do usufruto. De facto, sendo este constituído
“intuitus personae” é lógico que, falecido o usufrutuário, se extinga esse seu direito.
Por outro lado, tratando-se de um usufruto constituído por tempo determinado, o decurso
desse prazo acarreta necessariamente o termo do usufruto.
→ Confusão → Art.1476 nº1 b): “O usufruto extingue-se pela reunião do usufruto e da
propriedade na mesma pessoa.”
Ocorre, aqui, uma situação semelhante à que, no âmbito dos direitos de crédito, se designa por
confusão. Assim, tal como as obrigações se extinguem pela reunião na mesma pessoa das qualidades
124
Apontamentos Direitos Reais
de devedor e credor, também no domínio do usufruto, a atribuição a um mesmo titular da
propriedade de um bem e de um direito de usufruto sobre esse bem acarreta, logicamente, a extinção
deste. Isto porque não pode haver encargos sobre coisa própria.
→ Não uso → Art.1476º nº1 c): “O usufruto extingue-se pelo seu não exercício durante vinte
anos, qualquer que seja o motivo.”
Assim, se o usufrutuário não exercer os poderes que lhe competem, durante esse lapso de
tempo, o usufruto extingue-se.
Uma nota importante a referir é a não aplicabilidade, neste domínio, do regime da usucapião, o
que implicaria serem aplicáveis as causas de interrupção ou suspensão que sabemos valerem no
campo daquele regime da usucapião.
Aqui, na hipótese do não uso, os vinte anos previstos na lei importam necessariamente a
extinção do usufruto, independentemente de quaisquer considerações sobre o motivo do não
exercício.
Se é verdade que os direitos reais correspondem ao reconhecimento de certas vantagens e,
nessa medida, são aceites tipificadamente, logo que não estejam a cumprir a sua função a lei põe-lhes
um termo.
É precisamente esse interesse em fazer caducar os direitos sobre coisa alheia (“jura in re
aliena”) que está patente na circunstância de o usufruto se extinguir pelo seu não exercício durante
vinte anos.
→ Perda → Art.1476º nº1 d): “O usufruto extingue-se pela perda total da coisa usufruída.”
Assim, se um indivíduo detém um direito de usufruto sobre um objecto e este desaparece
totalmente, o usufruto extingue-se.
Conexionado com esta hipótese, pode referir-se ainda o regime aplicável à perda parcial, que
está previsto no art.1478º CC.
Segundo o nº1 desta disposição, “se a coisa ou o direito usufruído se perder só em parte,
continua o usufruto na parte restante”. Ocorre, desta forma, aqui, uma redução do usufruto.
Por sua vez, o nº2 prevê uma hipótese da maior importância, como seja, a da chamada “rei
mutatio”, ou seja, a da transformação da coisa. Aqui, a coisa usufruída não se perdeu totalmente, nem
sequer parcialmente, mas antes foi objecto de uma mutação qualitativa.
A solução tradicional para estas situações, vigente no direito romano, apontava para a extinção
do usufruto, solução essa que resultava da ideia de predestinação económica da coisa usufruída. Só
havia manutenção do usufruto, quando, embora ocorrendo alteração, se mantinha o destino
económico da coisa. Sendo as coisas concedidas para serem usadas dentro de um certo destino
125
Apontamentos Direitos Reais
económico, destino que o usufrutuário devia ressalvar, então, quando ocorria uma alteração desse
elemento teleológico o usufruto tinha necessariamente de se extinguir.
Não obstante, o CC afastou-se desta orientação, consagrando uma outra mais aceitável. É que,
com efeito, não parece justo que o proprietário da raiz adquira imediatamente aqueles bens, quando
ainda tenham algum valor, nem que o usufrutuário os perca.
Daí que a lei estatua no nº2 daquele art.1478º CC, que o usufruto se mantém “…no caso de a
coisa se transformar noutra que ainda tenha valor, embora com finalidade económica distinta”.
Por exemplo, no caso de um automóvel, objecto de um usufruto, ser reduzido, por sua
destruição, a uma amálgama de sucata, o usufrutuário mantém o seu direito sobre a sucata, só que
agora incide sobre coisa consumível, uma vez que esses resíduos só poderão ser utilizados para
outros fins mediante a sua recuperação, aplicando-se-lhes, nessa altura, o regime previsto na lei para
o usufruto de coisas consumíveis.
O usufrutuário pode, por isso, consumir a coisa ou aliená-la, constituindo-se na obrigação de,
no termo do seu usufruto, restituir coisa do mesmo género e espécie ou o seu valor.
Resulta também de uma aplicação destes princípios o regime previsto para a destruição de
edifícios objecto do usufruto.
Nem outra coisa resulta, aliás, do nº1 do art.1479º CC.
→ Renúncia → Art.1476º nº1 e): “O usufruto extingue-se pela renúncia.”
Esta renúncia é um mero negócio jurídico unilateral, que não requer, nos termos do nº2 do
art.1476º CC, aceitação do proprietário.
→ Mau uso → Art.1482º CC: “O usufruto não se extingue, ainda que o usufrutuário faça mau uso
da coisa usufruída; mas, se o abuso se tornar consideravelmente prejudicial ao proprietário, pode este
exigir que a coisa lhe seja entregue … obrigando-se … a pagar anualmente ao usufrutuário o produto
líquido dela, depois de deduzidas as despesas e o prémio que pela sua administração lhe for
arbitrado.”
Este abuso considerável não extingue, portanto, o usufruto, mas pode extingui-lo em espécie,
uma vez que o proprietário pode exigir que a coisa lhe seja entregue, pagando, anualmente, a
importância do respectivo rendimento ao usufrutuário.
→ Restituição → Art.1483º CC: “Findo o usufruto, deve o usufrutuário restituir a coisa ao
proprietário, sem prejuízo do disposto para as coisas consumíveis e salvo o direito de retenção nos
casos em que possa ser invocado.”
Decorre desta disposição que o usufrutuário deve, findo o usufruto, restituir ao proprietário a
coisa usufruída. Exceptua-se a hipótese de ser uma coisa consumível, em que deve ser prestado o
valor. Igualmente se deve ressalvar o caso de haver lugar ao exercício do direito de retenção, como
126
Apontamentos Direitos Reais
garantia de reembolso do usufrutuário de, v.g., despesas extraordinárias que, nos termos do art.1473º
CC, tenha realizado.
O art.1484º nº1 CC apresenta a noção deste direito real. Ele consiste na “faculdade de se servir
de certa coisa alheia e de haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular,
quer da sua família”, continuando o nº2 dessa disposição que “quando este direito se refere a casas de
morada, chama-se direito de habitação”.
Este direito abrange não só o usus, mas também o fructus, embora a sua designação como
direito de uso pudesse sugerir uma limitação do seu âmbito, correspondente à terminologia
empregue.
Porém, ele abrange esses poderes de usus e fructus, mas apenas na medida das necessidades
pessoais do seu titular e da família.
Daí que, se o direito de uso incidir sobre uma casa (estando, portanto, em causa um direito de
habitação), esta não pode ser arrendada, dado que o direito não engloba os frutos civis dela,
traduzindo-se antes num mero direito de habitar a casa.
O art.1486º CC, procurando definir o critério das medidas de necessidade, parece ser
inconstitucional por violar o art.13º CRP.
Porém, dado que as necessidades da família constituem o elemento pelo qual se afere o âmbito
de exercício do direito de uso pelo seu titular, importa delimitar o agregado familiar. É esta a função
do art.1487º CC, ao estatuir que “na família do usuário ou do morador usuário compreendem-se
apenas o cônjuge, não separado judicialmente de pessoas e bens, os filhos solteiros, outros parentes a
quem sejam devidos alimentos e as pessoas que, convivendo com o respectivo titular, se encontrem ao
seu serviço ou ao serviço das pessoas designadas”. Uma nota fundamental do direito de uso e
habitação é, assim, o de se pautar pelas necessidades pessoais (carácter intuitus personae do direito
real de uso e habitação), diversamente do que se verifica no domínio do usufruto que concede uma
fruição e um uso global e, em princípio, ilimitado. Aqui, as necessidades de quem usa e da sua família
são limitativas do direito de uso e habitação.
Diversamente também do que se passa no usufruto em que este direito pode ser trespassado,
onerado, locado, etc., no direito de uso e habitação não existe idêntica possibilidade a favor dos
respectivos titulares, como resulta do art.1488º CC ao estatuir que “o usuário e o morador usuário não
podem trespassar ou locar o seu direito, nem onerá-lo por qualquer modo”.
127
Apontamentos Direitos Reais
Significa este art.1488º CC que o direito de uso e habitação não admite trespasse ou locação do
direito ou a sua oneração por qualquer modo.
A constituição do direito de uso e habitação e a sua limitação em função das suas necessidades
e da sua família confere-lhe um carácter intuitus personae ou carácter pessoal, pelo que só pode ser
utilizado por aquele titular e pela sua família. Daí que surjam as proibições do art.1488º CC, que se
aplicam quer à disposição directa do bem objecto de uso (arrendamento), quer à disposição indirecta
(por exemplo, hipoteca).
É que quando se constitui uma hipoteca, há um crédito que corre o risco de ser executado,
sendo o crédito pago de forma privilegiada e prevalecendo sobre o direito de habitação, que poderia,
em resultado do incumprimento da obrigação que levou à constituição da hipoteca, ser alienado em
hasta pública e, consequentemente, ser adquirido por terceiro, que poderia usufruir da casa como
morador usuário, mesmo que o proprietário da casa não lhe quisesse conferir o direito de habitação.
Pelas mesmas razões, os direitos de uso e habitação não podem ser adquiridos por usucapião
(art.1293º b) CC).
Todo este regime até agora exposto reforça a ideia de que os direitos de uso e habitação são
diminutivos do usufruto. É, aliás, em conexão com esta sua natureza que o art.1490º CC estatui que
“são aplicados aos direitos de uso e de habitação as disposições que regulam o usufruto, quando
conformes à natureza daqueles direitos”.
Exceptuam-se, como é óbvio, aquelas disposições específicas, especialmente previstas a
propósito do direito de uso e habitação, v.g., as disposições sobre o trespasse, a locação, a oneração da
coisa. Aplicam-se as regras do usufruto que não se revelem incompatíveis com a natureza do direito
real de uso e habitação.
Qual é essa natureza?
Aqui, a natureza do direito de uso e habitação parece ser, no fundo, a afectação destes direitos à
função satisfazer necessidades pessoais.
Daqui conclui-se que se tem que articular o art.1484º CC com o art.1439º CC: o direito de uso e
habitação é uma faculdade plena e temporária, na medida das necessidades da família, sem se poder
alterar a forma e a substância. Além disso, também está limitado às necessidades de quem usa e da
sua família.
NOÇÃO:
128
Apontamentos Direitos Reais
Direito de superfície (art.1524º CC) → Faculdade de construir ou manter, perpétua ou
temporariamente, uma obra em terreno ou prédio alheio ou de nele fazer ou manter plantações.
Não obstante o que acabou de ser dito, deverá ter-se ainda em conta um outro conceito que
corresponde a uma outra situação jurídica diferente do direito de superfície, mas que ainda se lhe
encontra associada. Trata-se do direito de propriedade superficiária.
A PROPRIEDADE DO SOLO:
Questão que importa colocar-se a respeito desta matéria é saber qual o sentido da propriedade
do solo. Um indivíduo autoriza outro a construir e fica com a propriedade do solo ou, ainda, vende a
construção e fica apenas com a propriedade do solo. O solo parece uma propriedade morta. Parece
não ter, em princípio, qualquer significado o ser-se proprietário do solo.
129
Apontamentos Direitos Reais
Porém, não é inteiramente assim. O direito de superfície com este desdobramento é mais uma
fórmula, dentro de um espírito de racionalização, que a lei excogitou e pôs à disposição dos
particulares, para eventualmente darem uma mais adequada satisfação aos seus interesses, se assim o
entenderem.
Os interesses que o proprietário do solo tem em permanecer com este e em vender só a
construção ou em autorizar outrem a construir, mas ficando com a propriedade sobre o solo para si
são distintos consoante o momento em que se encontra a construção.
→ Antes da construção:
Quando o proprietário faz a concessão continuar a ter interesse no solo antes da construção, na
medida em que o art.1532º CC diz que “enquanto não se iniciar a construção da obra ou não se fizer a
plantação das árvores, o uso e a fruição da superfície pertencem ao proprietário do solo...”, portanto,
enquanto não se iniciarem as obras ele continua a fruir o solo.
“...todavia, não pode impedir nem tornar mais onerosa a construção ou a plantação”, quer dizer,
continua a poder fruir e usar, mas não pode fazer modificações tais que depois torne mais onerosa a
construção ou a plantação. Ele é obrigado a uma abstenção: pode fruir, pode usar, mas não pode
tornar mais onerosa nem impedir a construção. Não é obrigado, porém, a facilitar a construção, isto é,
se vendeu um terreno que exige despesas de terraplanagens, nivelamentos, etc., não é ele quem tem
de as fazer, mas sim o superficiário, quando iniciar a construção. A ele é-lhe imposto apenas uma
obrigação de “pati”, ou melhor, uma abstenção, um ter de suportar a construção que o outro fez.
→ Durante a construção:
A terra que for escavada e separada do solo pertence-lhe, pelo que poderá dar-lhe o uso que
entender. Esta terra não pertence ao superficiário, mas sim ao proprietário do solo. O mesmo se diga
de quaisquer coisas valiosas, quaisquer achados que sejam encontrados no solo durante a construção.
→ Depois de feita a construção:
O proprietário continua a ter interesse depois da construção, v.g., o resultante do art.1533º CC,
que reserva para o proprietário do solo a fruição do subsolo, embora não possa causar prejuízos ao
superficiário. Quer isto dizer que o proprietário pode fazer no subsolo obras que não prejudiquem o
superficiário e isto pode ter um interesse económico, pois ele poderá aproveitar o subsolo e explorá-lo
(por exemplo, para explorar materiais, garagens, parques de estacionamento, etc.). Continua a
pertencer ao proprietário do solo a fruição do subsolo, embora limitado a fazê-lo em termos de não
prejudicar o superficiário.
Além disso, o direito de superfície pode caducar, quer porque o indivíduo não construiu (não
uso do direito), quer porque, construindo, a coisa é destruída e então o superficiário tem o poder de,
nos termos do art.1536º nº1 b) CC, reconstruir a obra ou renovar a plantação. Mas, se não o fizer
130
Apontamentos Direitos Reais
dentro do prazo estabelecido no contrato constitutivo da superfície ou, no máximo, dentro de dez
anos, reconstitui-se a plena propriedade do proprietário do solo.
O proprietário tem, desta forma, sempre uma expectativa de lhe vir a pertencer novamente a
plena propriedade.
CONSTITUIÇÃO:
Nos termos do art.1528º CC, o direito de superfície pode constituir-se por contrato, testamento
ou usucapião e pode resultar da alienação de obra ou árvores já existentes, separadamente da
propriedade do solo.
→ Por acto negocial “inter vivos”, gratuito ou oneroso, o dono do solo confere a outro indivíduo
o direito de construir sobre ele. Quando esse negócio seja oneroso, há uma contraprestação, que pode
ser efectuada de uma só vez ou por uma prestação anual, temporária ou perpétua, consoante o acordo
celebrado pelas partes (art.1530º CC).
→ Por negócio “mortis causa” pode este direito constituir-se sob a forma de legado. O testador
pode, v.g., deixar o seu terreno a um legatário e o direito de construir nele a outro legatário.
→ Por usucapião é necessário distinguir se se trata do direito de propriedade superficiária ou
do direito de superfície.
Uma usucapião do direito de propriedade superficiária é fácil de compreender. Um indivíduo
pode exercer actos de posse sobre uma casa que já está construída e exercê-los com um animus, não
131
Apontamentos Direitos Reais
de pleno proprietário, mas de superficiário, porque, por exemplo, lhe foi vendida por acto nulo a casa
separada do solo. Este indivíduo não adquiriu a propriedade superficiária, mas passou a possuir a casa
nesses termos e com o respectivo animus. Ao fim de um determinado número de anos adquire por
usucapião o direito de propriedade superficiária: adquiriu um direito sobre aquela casa separada da
propriedade do solo.
Uma usucapião do direito de superfície é mais complicada de entender. Como é que se possui o
direito de construir? Figuremos, porém, uma hipótese semelhante à anterior: um indivíduo, por acto
nulo por falta de forma, confere a outrem um direito de construir. Este outrem não adquire o direito
por falta de forma, mas ao fim de um determinado tempo pode adquiri-lo por usucapião, porque este
acto, nulo por aquele fundamento, se não lhe transferiu um verdadeiro direito, é todavia um título que
mostra ter-se transferido a posse desse direito. Numa situação deste tipo adquire-se por usucapião o
direito de propriedade superficiária.
→ O direito de superfície pode também constituir-se por alienação de obra ou árvore já
existente, separada da propriedade do solo.
132
Apontamentos Direitos Reais
Quanto aos direitos e encargos do superficiário e do proprietário, vimos já que pode haver um
contrato constitutivo do direito de superfície, no qual se convencione a obrigação, a cargo do
superficiário, de pagar uma prestação (art.1530º CC).
O proprietário do solo tem a fruição do solo antes de começar a obra (art.1532º CC), tem
sempre a fruição do subsolo (art.1533º CC), o direito de receber a contraprestação estipulada (no caso
de ela não ser paga pontualmente pode exigir o seu pagamento em triplo, conforme o art.1530º e
1531º CC) e o direito de preferência na alienação do direito de superfície nos termos do art.1535º CC.
EXTINÇÃO:
O direito de superfície extingue-se nos termos do art.1536º CC.
Há, desde logo, casos de caducidade. São as hipóteses das alíneas a), b) e c) do nº1 daquele
artigo:
a) → “Se o superficiário não concluir a obra ou não fizer a plantação dentro do prazo fixado ou,
na falta de fixação, dentro do prazo de 10 anos”, caduca o seu direito;
b) → “Se destruída a obra ou árvores, o superficiário não reconstruir a obra ou não renovar a
plantação dentro dos mesmos prazos a contar da destruição”;
133
Apontamentos Direitos Reais
c) → “Pelo decurso do prazo, sendo constituído por certo tempo”. Significa isto que quando há
uma constituição de um direito de superfície temporária, passado esse tempo ele caduca e a
consequência da caducidade é a reaquisição da plenitude da propriedade pelo proprietário do solo
(esta aquisição é restitutiva e reflecte a elasticidade do direito de propriedade).
Pode ainda extinguir-se, nos termos da alínea d), pela reunião na mesma pessoa do direito de
superfície e do direito de propriedade sobre o solo. Essa reunião pode dar-se por força de contrato
(venderam um ao outro o seu direito) ou por confusão (um é herdeiro do outro).
Nos termos da alínea e), pode extinguir-se por desaparecimento ou inutilização do solo ou, nos
termos da alínea f), por expropriação por utilidade pública.
NOÇÃO:
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Apontamentos Direitos Reais
Um direito de servidão é um direito real com o conteúdo de possibilitar o gozo de certas
utilidades de um prédio em benefício de outro prédio.
Quer isto dizer que as utilidades, cujo gozo o direito de servidão propicia, devem ser utilidades
susceptíveis de serem gozadas por intermédio de outro prédio – o prédio dominante.
Não basta, assim, verificar-se a mera existência de uma vantagem, benefício ou utilidade para o
titular da servidão individualmente determinado. É necessário que haja um proveito objectivamente
ligado a outro prédio.
O titular da servidão não tem o poder de colher utilidades, vantagens ou benefícios,
individualmente considerados, mas na qualidade de sujeito de outro prédio e na medida do
objectivamente postulado para o proveito do prédio.
Isto porque o nosso direito não acolhe as servidões pessoais.
A definição legal do direito de servidão predial, coincidente com o que acaba de ser dito, consta
do art.1543º CC: ”servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro
prédio pertencente a dono diferente, em função de uma utilidade; diz-se serviente o prédio sujeito à
servidão; dominante, o que dela beneficia”.
Desta definição legal pode inferir-se que tanto o sujeito activo como o passivo da relação
jurídico-real de servidão são os prédios – o dominante e o serviente – o que é obviamente absurdo.
Sujeitos são, sim, as pessoas.
Desta ideia – do dizer-se que há um encargo imposto a um prédio em benefício de um outro –
resulta vincar-se melhor a nota de as utilidades serem proporcionadas por um prédio (o serviente)
em proveito objectivo um outro prédio (o dominante). Elas traduzem-se, assim, numa vantagem
atribuída ao prédio dominante, numa ligação objectiva de proveito.
Esta ideia é reforçada pelo art.1544º CC ao estatuir que “podem ser objecto da servidão
quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de serem gozadas por intermédio
do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor”.
Neste sentido, a servidão predial consubstancia uma relação de serviço entre dois prédios,
pertencentes a dois donos diferentes. Não se trata de vantagens ou utilidades atribuídas ao titular
individualmente considerado, mas de um proveito objectivamente ligado ao prédio dominante.
De acordo com a noção apresentada, a servidão é um direito real sobre coisa alheia a que
acresce, ainda, o ser autónoma, sui generis e não resultar de um parcelamento da propriedade. É um
direito real sobre coisa alheia, sobre o prédio de outrem.
O titular da servidão não pode, por isso, ser considerado como parcial proprietário do prédio
serviente, mas, sendo este de outrem, deve ser tomado como detendo apenas um direito real sobre
coisa alheia.
135
Apontamentos Direitos Reais
Posto o que foi dito, realce-se que o que caracteriza este direito real é a predialidade. O nosso
direito não acolhe servidões pessoais.
↓
A servidão, enquanto aproveitamento das utilidades de um prédio serviente, pode ser
determinada em função das necessidades económico-subjectivas do prédio dominante e não tendo em
conta as necessidades pessoais dos titulares. Só as necessidades que o titular retira do prédio é que
relevam, só essas é que são obectivo-económicas. A medida da predialidade é fixada pelas
necessidades económicas decorrentes da exploração económica do prédio.
136
Apontamentos Direitos Reais
Por exemplo, se há um prédio que beneficia de uma servidão de passagem através de um outro
prédio e este é fraccionado, v.g., em duas metades, só a que é objecto da passagem permanece onerada
com a servidão. Não há, portanto, uma multiplicação da servidão. Ou seja, o facto de a outra metade
fazer parte do prédio globalmente onerado não implica que, após o fraccionamento deste, surjam duas
servidões. Isto porque cada fracção fica apenas sujeita à parte da servidão que lhe cabia. Logo, a
metade que não era objecto de passagem deixa, pela divisão do prédio, de ficar onerada.
Isto é, também, como facilmente se depreende, uma expressão da aderência da servidão ao
prédio.
→ Atipicidade → Pode ser constituída uma servidão em função de qualquer utilidade, ainda que
futura ou eventual.
Diga-se aqui não ser necessário, para surgir uma servidão, que esta venha atribuir vantagens
económicas ao prédio dominante. Pode tratar-se de vantagens de mera comodidade. Será o caso, por
exemplo, de uma servidão de vistas ou de não edificação, contratada com o fim exclusivo de tornar
mais ameno, mais aprazível o prédio dominante. A pessoa pode ter interesse numa vista para o mar
ou para uma outra paisagem, sem que isso corresponda a um valor económico e sem que a ausência
deste obste à constituição da servidão.
→ Ligação objectiva da servidão → Não há servidões pessoais. As servidões têm sempre que
incidir sobre um prédio em benefício de outro. Assim, se se estipular a constituição da fruição de
utilidades em benefício pessoal e não por intermédio de um prédio dominante, isto só pode ter
sentido obrigacional, como será o caso, em geral, de um direito de passear em prédio alheio.
Daí decorre que, se o indivíduo sobre cujo prédio se constitui o direito de passear o alienar, o
novo proprietário não se encontra adstrito à obrigação de tolerar sobre este seu prédio os passeios do
credor do direito de passear, visto que se trata de um direito de crédito. Isto sem prejuízo de este (o
credor) poder exigir depois ao alienante (devedor) uma indemnização pela não realização integral do
seu crédito, no caso de o prédio em questão ter sido alienado antes do termo do prazo pelo qual a
obrigação se constituíra.
CONSTITUIÇÃO:
Art.1547º nº1 CC: “As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento,
usucapião ou destinação do pai de família.” Nº2: “As servidões legais, na falta de constituição
voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os
casos.”
→ Contrato → As servidões podem constituir-se por acordo voluntário das partes.
→ Testamento → As servidões pode, também, constituir-se por testamento. Será o caso de um
indivíduo legar um prédio a alguém, mas onerando o imóvel com uma servidão a favor de outrem.
137
Apontamentos Direitos Reais
→ Usucapião → As servidões podem, também, constituir-se por usucapião, embora só sejam
susceptíveis deste modo de aquisição as chamadas servidões aparentes.
As servidões não aparentes não podem constituir-se por usucapião (arts.1548º nº1 e 1293º a)
CC). O art.1548º nº2 CC define-as ao estatuir que “consideram-se não aparentes as servidões que não
se revelam por sinais visíveis e permanentes”.
As razões de ser deste regime é que as servidões não aparentes, não se revelando por sinais
visíveis, confundem-se muitas vezes com actos de mera tolerância do proprietário do prédio
serviente.
Por outro lado, na medida em que não há sinais visíveis ou permanentes, podem as servidões
estar a ser exercidas na ignorância do dono do prédio serviente.
Daí que o legislador só admita a usucapião de servidões que se revelem por sinais visíveis e
permanentes. É o caso, v.g., da servidão de vistas: abriu-se uma janela numa parede que está no limite
de um prédio. Há aqui um sinal visível e permanente – a janela – podendo, portanto, adquirir-se uma
servidão por usucapião.
→ Destinação do pai de família → Estatui o art.1549º CC a este propósito que “se em dois
prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e
permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses
sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas
fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver
declarado no respectivo documento”.
Prevê-se, nesta disposição legal, a hipótese de um indivíduo ser proprietário de um só prédio
ou de dois prédios e aí haver marcas visíveis de que um deles fornecia serventia para o outro.
Ora, se esses dois prédios forem vendidos a donos diferentes e, no momento da transmissão se
constatar a existência desses sinais, sem que o contrário tenha sido declarado no documento de
transmissão, entende-se que se constituiu uma servidão por destinação do pai de família.
Na base desta figura encontra-se uma presunção de acordo tácito – uma presunção de
intenções imputáveis tanto ao alienante como ao adquirente.
Para ocorrer a constituição de uma servidão por destinação do pai de família é, assim,
necessária a existência de sinais visíveis e permanentes, não apresentando relevância o facto de estes
terem sido produzidos no prédio pelo proprietário antecedente ou por outro ainda anterior a este, ou
ainda por um usufrutuário ou locatário.
Releva, assim, a existência, no momento da transmissão, desses sinais, nada tendo sido dito em
contrário no documento de transmissão. Tanto basta para a lei presumir que tanto a pessoa que
comprou como a que alienou quiseram constituir uma servidão.
138
Apontamentos Direitos Reais
→ Sentença judicial → Diferentemente do que acontecia com os modos de constituição até
agora apontados, há certas hipóteses em que a lei prevê a possibilidade de um indivíduo, mediante o
exercício de um direito potestativo, contra a vontade do titular, impor a constituição de uma servidão,
falando-se, nestes casos, em servidão legal.
Servidão legal é o direito potestativo de constituir coercivamente uma servidão sobre prédio
alheio mediante o pagamento de uma indemnização.
Várias hipóteses são tipificadas na lei:
a) Servidões legais de passagem:
Servidão legal de passagem a favor de prédio encravado:
Pode constituir-se, como aliás já se viu, uma servidão de passagem de carácter
voluntário (resultante de acordo entre as partes). Porém, configurando-se a hipótese
de um prédio encravado, a lei concede ao titular deste o poder de constituir
coercivamente a servidão.
A esta servidão referem-se os arts.1550º e segs. CC, estatuindo a primeira disposição
no seu nº1 que “os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via
pública … têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre
os prédios rústicos vizinhos”, acrescentando o nº2 do mesmo preceito que “de igual
faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública,
por terreno seu ou alheio”.
Servidão legal de passagem para o aproveitamento de águas:
A esta servidão refere-se-lhe o art.1556º CC ao estatuir no seu nº1 que “quando para
seus gastos domésticos os proprietários não tenham acesso às fontes, poços e
reservatórios públicos destinados a esse uso, bem como às correntes de domínio
público, podem ser constituídas servidões de passagem nos termos aplicáveis dos
artigos anteriores”.
b) Servidões legais de água:
Art.1557º nº1 CC: aproveitamento de águas para gastos domésticos.
Art.1558º CC: aproveitamento de águas para fins agrícolas.
Art.1559º CC: servidão legal de presa → decorre daquela disposição que os
proprietários e os donos de estabelecimento industriais que tenham direito ao uso
de águas particulares existentes em prédio alheio podem represar, estancar as
águas, podendo impor ao prédio alheio que se encontra do outro lado da corrente
que nele se façam as obras necessárias à construção de uma represa, por forma ao
aproveitamento das águas.
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Apontamentos Direitos Reais
Art.1560º CC: servidão legal de presa, no caso particular do aproveitamento de
águas públicas.
Art.1561º CC: servidão legal de aqueduto → estatui o nº1 daquele artigo que “em
proveito da agricultura ou da indústria, ou para gastos domésticos, a todos é
permitido encarnar, subterraneamente ou a descoberto, as águas particulares a que
tenham direito, através de prédios rústicos alheios…”.
Art.1562º CC: servidão legal de aqueduto no caso específico de aproveitamento de
águas públicas.
Art.1563º CC: servidão legal de escoamento → traduz-se no direito que a lei atribui a
um indivíduo de, em certas circunstâncias, obter que, através de prédio alheio, se
possa fazer o escoamento das águas que sobejam do aproveitamento do seu prédio.
A estas servidões legais que acabaram de ser descritas opõem-se as servidões voluntárias, que
são aquelas que não correspondem às hipóteses às quais a lei atribui o poder de produzir
unilateralmente a sua constituição. São, pois, as servidões referidas inicialmente, como resultando da
vontade das partes, quer por efeito do contrato, quer do testamento, quer ainda por usucapião ou
destinação do pai de família, sem existir preceito legal que as imponha.
As servidões legais podem constituir-se, como se disse, por sentença judicial.
Assim, por exemplo, um indivíduo que pretenda adquirir a titularidade, v.g., de uma servidão
de aqueduto (art.1561º CC), pode chegar a acordo com o dono do prédio sobre o qual aquela virá a
incidir. Mas, se esta solução, que é preferível por evitar demandas, se não vier a verificar, então, pode
esse indivíduo obter sentença judicial que venha constituir a servidão pretendida.
Note-se, todavia, que alguns casos de servidões legais de águas, ligadas a concessões de águas
públicas, em vez de sentença judicial, podem ser constituídas por decisão administrativa. Neste caso, a
servidão é constituída não por força de uma sentença proferida pelos tribunais, mas por uma decisão
dos órgãos administrativos competentes.
MODALIDADES:
Quanto ao título constitutivo:
→ Legais → Art.1547º nº2 CC: direito potestativo de constituição coactiva de uma servidão
sobre prédio alheio, mediante pagamento de uma indemnização ao titular deste.
Encontram-se taxativamente previstas na lei. Podem ser constituídas contra a vontade do
titular, isto é, potestativamente, nomeadamente através de sentença judicial.
→ Voluntárias → Art.1547º nº1 CC: constituídas por contrato. Resulta da vontade das partes,
sem que exista preceito legal que a imponha.
140
Apontamentos Direitos Reais
Quanto à aparência:
→ Aparentes
→ Não aparentes
Quanto ao conteúdo:
→ Positivas → Traduzem-se na permissão da prática de actos sobre o prédio serviente. Por
exemplo, servidão de passagem.
→ Negativas → Impõem uma abstenção ao dono do prédio serviente. Por exemplo, servidão de
vistas ou servidão de estilicídio.
→ Desvinculativas → Propostas por Oliveira Ascensão. O conteúdo destas servidões é o de
libertarem o prédio dominante de uma restrição legal. Implicam para o dono do prédio
serviente a desvinculação da obrigação que recaia sobre esse prédio serviente. Por
exemplo: referimos a existência de certas restrições à propriedade, derivadas de relações
de vizinhança como é o caso, v.g., da proibição de emissão de fumos sobre prédio alheio.
Figure-se agora que, por acordo, o dono de um prédio onde se vai proceder a uma
determinada instalação, convenciona que o prédio vizinho tolera a emissão de fumos para
este, fumos provenientes do primeiro prédio. Estamos aqui em face de uma servidão
desvinculativa, isto porque o prédio dominante é, nesta hipótese, desvinculado de certas
restrições legais a que estava sujeito.
EXERCÍCIO:
O exercício das servidões vem regulado nos arts.1564º e segs. CC.
A regra geral sobre esta matéria pode enunciar-se dizendo que as servidões têm a actuação e o
modo de exercício definido no título constitutivo. É, portanto, o título constitutivo que determinará a
extensão e o exercício da servidão respectiva (art.1564º CC).
Se o título não for claro ou for insuficiente aplica-se o art.1565º CC, que estatui no seu nº1 que
“o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação”. No fundo,
verificando-se esta circunstância da falta de clareza do título, há uma ideia de realizar o equilíbrio de
interesses entre o dono do prédio dominante e do prédio serviente.
Configure-se agora, a título de exemplo, uma hipótese de constituição de uma servidão de
passagem, cujo título não é suficientemente claro.
A lei entende que este direito de servidão engloba tudo o que é necessário para o seu uso e
conservação, mas, não se encontrando a extensão e o modo de exercício deste direito real claramente
141
Apontamentos Direitos Reais
definido no título constitutivo, vem a lei regulá-los, por forma a prosseguir a satisfação do duplo
interesse em causa – o do dono do prédio dominante e o dono do prédio serviente.
Nem outra justificação sugere o nº2 do art.1565º CC ao estatuir que “no caso de dúvida quanto
à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as
necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio
serviente”.
Daí decorre que, por exemplo, sendo necessário fazerem-se obras no prédio serviente, para
possibilitar a passagem para o prédio dominante, essas possam realizar-se, nos termos do art.1565º
CC, mas limitadas pelo agravamento da onerosidade da servidão – as obras não podem tornar a
servidão mais gravosa (art.1566º nº1 CC).
Além disso, essas obras deverão ser realizadas no tempo e pela forma mais conveniente para o
prédio onerado (art.1566º nº2 CC).
Estas soluções traduzem, sem dúvida, essa preocupação de equilíbrio de interesses que a lei
pretende prosseguir nestas disposições legais.
Os encargos das obras realizadas recaem sobre o beneficiado, ou seja, o titular do prédio
dominante (art.1567º nº1 CC).
Sendo vários os prédios dominantes, os encargos serão repartidos por todos na proporção da
parte que tiverem nas vantagens da servidão, podendo, porém, qualquer um deles eximir-se, caso o
deseje, mediante a renúncia à servidão (art.1567º nº2 CC).
É esta uma solução justa, na medida em que a recusa de um dos titulares de um dos prédios
dominantes em comparticipar nas despesas necessárias à constituição da passagem vai repercutir-se
nos restantes titulares, onerando os seus encargos. Então é admissível a aquisição por estes da parte
da servidão que competia àquele titular, sem que isto, como se vê, agrave a posição do prédio
serviente.
Acrescente-se que, se o titular do prédio serviente auferir benefícios com a servidão, também
ele terá de contribuir para as despesas realizadas com as obras (art. 1567º nº3 e 4 CC).
MUDANÇA:
À mudança da servidão refere-se o art.1568º CC, que estatui no seu nº1 que “o proprietário do
prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, mas pode, a todo o tempo, exigir a mudança
dela para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, se a mudança lhe for
conveniente e não prejudicar os interesses do proprietário do prédio dominante, contanto que a faça à
sua custa”.
142
Apontamentos Direitos Reais
Há aqui a mesma ideia de conciliação de interesses, pois se o proprietário de um prédio
serviente tem conveniência em mudar uma servidão, v.g., de passagem, sem isso prejudicar os
interesses do proprietário do prédio dominante, é-lhe lícito fazê-lo, desde que o faça à sua custa.
Em obediência a esta ideia, a lei permite igualmente ao proprietário do prédio dominante que,
às suas custas, faça a mudança da servidão, se tal lhe for conveniente e não prejudicar o proprietário
do prédio serviente (art.1568º nº2 CC).
EXTINÇÃO:
Os casos de extinção das servidões vêm previstos no art.1569º CC.
→ Confusão → Art.1569º nº1 a) CC: “As servidões extinguem-se pela reunião dos dois prédios,
dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa”. É um caso de confusão, porque ambos os
prédios – dominante e serviente – passam a pertencer ao mesmo proprietário. Tal reunião implica,
necessariamente, a extinção da servidão. Isto porque não pode haver servidão fora da sua imposição a
um prédio a favor de outro, pertença de um proprietário diferente (uma coisa própria não pode estar
onerada a favor de outra coisa própria).
→ Não uso → Art.1569º nº1 b) CC: “As servidões extinguem-se pelo não uso durante vinte anos,
qualquer que seja o motivo”.
O fundamento desta causa extintiva é a atitude hostil com que se tratam os direitos reais
limitados que não estejam a desempenhar uma função socialmente útil. É esta uma expressão da ideia
de que só devem ser impostos encargos, se existirem necessidades que os justifiquem. Ora, o não uso
vem precisamente mostrar que a coisa não está a ser necessária, daí que seja mais conveniente pôr
termo à servidão. Não interessa manter um encargo num prédio, quando esse encargo não está a ser
gozado por outro.
Note-se que este não uso não coincide com a usucapião. Ele conserva a sua autonomia em face
desta. Sabe-se que a não exigência de um crédito por um certo lapso de tempo acarreta a extinção
deste. Aqui, na extinção das servidões por não uso, passa-se algo de semelhante, mas com uma
particularidade: é que a este fundamento de extinção não se aplica o regime da usucapião,
nomeadamente, as causas de suspensão e interrupção que a lei consagra nos arts.318º e 327º e segs.
CC para a usucapião.
O que interessa, em face do art.1569º nº1 b) CC, é o facto objectivo de não haver exercício da
servidão durante vinte anos.
Preste-se atenção também ao art.1572º CC. Significa esta disposição que, se a servidão for
exercida parcialmente, não deixa, apesar de o exercício ser apenas parcial, de se considerar exercida.
→ Usucapio libertatis → Art.1569º nº1 c) CC: “As servidões extinguem-se pela aquisição, por
usucapião, da liberdade do prédio”.
143
Apontamentos Direitos Reais
A esta hipótese refere-se igualmente o art.1574º CC, que, no seu nº1, estatui que “a aquisição,
por usucapião, da liberdade do prédio só pode dar-se quando haja, por parte do proprietário do
prédio serviente, oposição ao exercício da servidão”.
Assim, se o dono do prédio serviente se opôs ao exercício da servidão, v.g., impedindo, em dado
momento, uma servidão de passagem, com a colocação de uma cancela que obste à passagem. Se o
dono do prédio dominante durante vinte anos não força a passagem ou não a vem reclamar
judicialmente, a servidão extingue-se por usucapio libertatis.
Trata-se, grosso modo, de uma aquisição, por usucapião, por parte do proprietário da parte do
conteúdo do seu direito de que estava privado pelo facto de existir uma servidão. Em consequência
desta aquisição restitutiva, extingue-se a servidão.
→ Renúncia e decurso do prazo → Art.1569º nº1 d) e e) CC
→ Desnecessidade → As servidões constituídas por usucapião podem extinguir-se por
desnecessidade (art.1569º nº2 CC).
No caso, por exemplo, da constituição de uma servidão de passagem por usucapião, a
requerimento do proprietário do prédio serviente, esta servidão pode extinguir-se, desde que se
mostre desnecessária ao prédio dominante, designadamente, se o dono do prédio passar a dispor de
uma ligação com a via pública.
As servidões constituídas por usucapião extinguem-se, portanto, se forem desnecessárias, a
requerimento do onerado com elas, aplicando-se idêntico regime às servidões legais (art.1569º nº3
CC).
Pode parecer que a ratio desta norma é a de que não deve haver encargos sobre um prédio a
favor de outro, a não ser que sejam necessárias. Porém, a ser assim, teria que se abranger aqui não só
as servidões constituídas por usucapião e as servidões legais, mas também as servidões voluntárias.
Porém, as situações não são análogas. É que, resultando as servidões voluntárias de um acordo,
este deve ser respeitado, acrescendo ainda que será difícil determinar-se quais as necessidades
exactas que se pretenderam satisfazer com a constituição da servidão. Ora, se a lei permite que por
acordo se possam criar quaisquer servidões, seja qual for a sua necessidade/utilidade, não se
compreende que elas se extingam, por se tornarem desnecessárias. De outro modo, uma servidão que
não fosse necessária, não se poderia constituir, mesmo por acordo, pois poderia terminar logo no
momento seguinte. Daí que as servidões voluntárias não possam estar sujeitas a esse regime de
extinção. Esta só se compreende para as servidões legais, em que a lei sancionou a possibilidade de se
constituírem por haver necessidade nesse sentido, e para as servidões adquiridas por usucapião,
porque aí também não se verificou um facto voluntário na sua constituição.
144
Apontamentos Direitos Reais
Em suma, as servidões voluntárias que têm por base um facto voluntário, permitindo a lei que
se constituam mesmo quando não são estritamente necessárias, não podem extinguir-se por
desnecessidade, porque, então, nem se poderiam constituir.
→ Remição → Está em causa a remição judicial de algumas servidões de águas referida no
art.1569º nº4 CC. Esta disposição regula os termos em que as servidões de aproveitamento de águas
para gastos domésticos (art.1557º CC) e de aproveitamento de águas para fins agrícolas (art.1558º
CC) se podem extinguir por remição judicial, desde que o dono da água prove que quer fazer dela um
uso/aproveitamento justificado. Pode fazer esse aproveitamento, tendo, porém, de restituir, no todo
ou em parte, a indemnização recebida.
A remição não pode, todavia, ser exigida antes de decorridos dez anos sobre a constituição da
servidão.
NOÇÃO:
O direito real de habitação periódica aparece regulado no decreto-lei 275/93, de 5 de Agosto.
Ele, habitualmente também é designado de “time-sharing”.
Ele pretende responder a necessidades turísticas, que se traduzem no interesse de utilizar
locais de residência durante um curto período do ano.
É um direito real limitado de gozo que confere ao respectivo titular o poder de habitar uma
unidade de alojamento integrada num prédio alheio (art.1º), destinado a fins turísticos durante um
certo período de tempo.
O conteúdo deste direito real consta do art.21º, segundo o titular de um direito real de
habitação periódica tem o direito de habitar durante um certo período em cada ano civil uma unidade
de alojamento integrada num certo tipo de edifícios que tenha a definição legal do art.1.
De acordo com o art.4º nº1 a), a exploração de um empreendimento no regime do direito real
de habitação periódica requer que haja uma individualidade e autonomia de cada unidade de
alojamento.
145
Apontamentos Direitos Reais
DURAÇÃO (art.3º):
O direito real de habitação periódica é, na falta de indicação em contrário, perpétuo, mas pode
ser-lhe fixado um limite de duração (ele pode ser temporário), que não pode ser nunca inferior a 15
anos a contar da escritura pública que constitua o direito real (art.6º), excepto se o empreendimento
estiver ainda em construção, situação na qual o prazo começará a contar a partir da data de abertura
ao público do empreendimento turístico (art.3º nº1).
Sem prejuízo do que acaba de ser dito, o direito real de habitação periódica cumpre-se em
períodos de tempo, que são fixados em cada ano e que podem variar entre o mínimo de 7 dias
seguidos e o máximo de 30 dias seguidos (art.3º nº2). Relativamente a este aspecto, atente-se no nº3 e
no nº4 deste art.3º, que estabelecem que os períodos de tempo devem ter todos a mesma duração e
que o último período de tempo de cada ano pode terminar no ano civil subsequente ao seu início.
O título constitutivo deve mencionar o início e o termo de cada período de tempo dos direitos
(art.5º nº2 p)).
CONSTITUIÇÃO (art.6º):
O direito real de habitação periódica é constituído por escritura pública (art.6º nº1) e sujeito a
inscrição no registo predial (art.8º nº1 – este registo é constitutivo), que emite um título constitutivo
deste direito real.
Este título constitutivo que é emitido pelo registo predial é o certificado predial, que é regulado
nos arts.10º e segs.
Ora, diz logo o nº1 deste art.10º, que é o certificado predial que titula o direito real aqui em
causa e que legitima a sua transmissão ou oneração.
TRANSMISSÃO:
Como se disse supra, sobre a sua constituição, o direito real de habitação periódica está
incorporado num título constitutivo, o certificado predial.
O regime de transmissão deste título (do certificado predial) equipara-se ao regime de
transmissão dos títulos de crédito (ex. letras de câmbio, livranças, cheques, etc.). Isto significa que a
sua transmissão se faz por endosso bilateral, donde se conclui que, para efeitos de transmissão e
oneração, este direito real de habitação periódica é tratado como coisa móvel (art.12º). E isto é assim,
não obstante ele ser considerado uma coisa imóvel nos termos do art.204º nº1 d) CC.
A transmissão e a oneração do direito real de habitação periódica está sujeita a registo nos
termos gerais (art.12º nº1 in fine). O registo, para este efeito, não é constitutivo, mas somente
declarativo.
146
Apontamentos Direitos Reais
Art.656º/1 e 2 CC
A consignação de rendimentos é diferente dos outros direitos reais de garantia porque pode
visar o cumprimento da obrigação e não serve apenas de garantia, isto é, é uma forma de garantia e
cumprimento da obrigação – art.659º e 661º/2. Também se distingue dos outros direitos reais de
garantia porque pode usar o cumprimento da obrigação e dos juros, ou só o cumprimento da
obrigação ou só o cumprimento dos juros – art.656º/2. O que serve de garantia são os rendimentos
que ficam consignados ao credor e não os bens em si.
Forma
Art.660º/1 “…”;
Art.660º/2 “…” – registo meramente declarativo e não constitutivo;
Modalidades – art.658º
Voluntária ou judicial. O art.665º faz uma série de remissões sendo de salientar o art.694º –
Pacto Comissário.
3.2. Penhor
Art.666º CC
Art.666º nº1 – o penhor só pode incidir sobre coisas móveis ou créditos e outros direitos
insusceptíveis de hipoteca.
Excluem-se do penhor:
Móveis sujeitos a registo porque podem ser hipotecados;
Universalidade, porque a coisa tem de ser certa;
147
Apontamentos Direitos Reais
Coisas acessórias, porque o penhor da coisa principal não as abrange, salvo convenção em
contrário – art.210º/2.
O penhor só pode ser constituído por fonte convencional. O art.669º/1 estabelece que “…”. A
declaração que visa o penhor não é suficiente para a constituição do penhor, devendo ser
acompanhada da entrega da coisa ao credor ou terceiro ou da entrega de um documento que confira a
exclusiva disponibilidade da coisa ao credor ou terceiro.
O nº 2 estabelece que a atribuição da composse é suficiente, desde que o devedor fique privado
de dispor materialmente do bem, já que se visa garantir que o credor não fique privado do objecto.
Sem o desapossamento do devedor não há constituição válida do penhor. Há muitos diplomas que
admitem a constituição do penhor sem desapossamento, mas e só nesses casos específicos. Também
no penhor há uma remissão para o art.694º.
Art.679º “…” – penhor de direitos; o objecto do penhor é um direito; só é possível ser objecto
de penhor de direitos os direitos que tenham por objecto coisas móveis e sejam susceptíveis de
transmissão – art.680º.
3.3. Hipoteca
Art.686º CC
Incide sobre imóveis e coisas móveis sujeitas a registo e pode também incidir sobre direitos –
art.688º/1, c), d) e e) quanto aos direitos.
Não podem ser objecto de hipoteca:
As partes componentes ou integrantes porque já não gozam de autonomia
face à coisa principal – art.204º/1, e) e 691º/1, a) – isto é, não podem ser hipotecados separadamente
da coisa principal.
As coisas acessórias porque têm natureza de ciosa móvel – art.210º.
O art.691º/2 fala na hipoteca de fábricas “…”. Para além do edifício e respectivo logradouro
dever-se-ão considerar abrangidos os mecanismos e demais móveis inventariados, ainda que não
sejam partes integrantes. E, por isso, bens móveis simples podem ser objecto de hipoteca.
Alargamento por extensão do objecto da hipoteca.
148
Apontamentos Direitos Reais
O art.688º/2 estabelece que “…”. Relativamente à hipoteca de partes de um prédio apenas
podem ser hipotecadas as partes susceptíveis de propriedade autónoma, isto é, um prédio urbano
será abrangido pela hipoteca se se puder constituir uma fracção autónoma e nesse caso abrangerá não
só a fracção autónoma como as partes comuns.
Quanto aos prédios rústicos não pode ser hipotecada parte do prédio rústico desde que esta
seja inferior à unidade mínima.
Modalidades da hipoteca
1. Legais – art.704º;
2. Voluntária – art.712º;
3. Judiciais – art.710º;
Pacto Comissório
Ex. A é devedor de B em € 10 000. Como garantia B exige um automóvel que vale € 20 000.
Segundo as regras gerais a garantia só é executada se o devedor não pagar. E as partes
poderiam convencionar que se o devedor não pagar o credor faria sua a coisa objecto de garantia. Se
no acordo ficasse estabelecido que o A seria compensado da diferença de valor a situação patrimonial
do devedor não teria qualquer prejuízo. Mas se tal não ficasse acordado o credor iria enriquecer à
custa do devedor e, por isso, a lei proíbe estes pactos “mesmo que anterior à constituição da hipoteca”.
Art.733º
Tal como o direito de retenção deriva da lei e se os seus pressupostos se verificarem actuam de
imediato.
Relativamente aos direitos em geral, de fonte legal, são públicos e, por isso, cognoscíveis de
terceiros, e os privilégios creditórios não precisam de ser registados pelo facto de serem públicos.
O que distingue os privilégios dos outros direitos é o facto de serem garantias que se
caracterizam pela «causa do credor», isto é, visam acautelar os titulares de certos créditos.
ESPÉCIES
735º/1(PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS MOBILIÁRIOS) – abrangem coisas móveis. Podem ser
gerais ou especiais (nº 2).
Privilégios Creditórios imobiliários – abrangem coisas imóveis. São sempre especiais.
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Apontamentos Direitos Reais
Os privilégios mobiliários gerais são garantias reais e não direitos reais porque o objecto não se
encontra determinado. Constituem-se no momento em que se constitui a dívida mas como enuncia o
art.735º/2 eles não garantem o valor dos bens móveis à data da constituição do privilégio mas sim à
data da penhora ou acto equivalente. Desta feita, entre os dois momentos pode haver uma oscilação
do objecto sendo por isso um direito de garantia, sem objecto determinado, razão pela qual não
poderá ser um direito real mas uma garantia real.
Pressupostos
1. Aquele que detém a coisa a detém ilicitamente e esteja obrigado a entregá-la a outrem;
2. Simultaneamente seja credor da pessoa a quem está obrigado a entregar a coisa;
3. Entre o dever de entregar a coisa e o crédito do detentor haja uma relação de conexão e essa
conexão resulta do facto do devedor da coisa ter um crédito por despesas relacionadas com
a coisa;
No entanto há casos em que a lei faculta o acesso ao direito de retenção sem que os
pressupostos estejam preenchidos. Esta situação tem por base certas relações jurídicas e estão
previstas no art.755º.
Muitas vezes o direito de retenção assemelha-se à excepção de não cumprimento, por exemplo:
A acorda com B o transporte de uma mercadoria, sendo o pagamento feito no fim. Se A não cumpre B
pode reter. Se o pagamento for combinado antes do transporte o B pode também não transportar
enquanto A não pagar. Aqui não há direito de retenção mas sim excepção de não cumprimento porque
existe uma relação sinalagmática. O facto de reter é resultado da excepção de não cumprimento do
contrato e não do direito de retenção.
150
Apontamentos Direitos Reais
No direito de retenção não há bilateralidade porque há duas obrigações diferentes: há a
obrigação de entregar o bem retido e obrigação de pagamento das despesas relativas a esse bem. Há
duas obrigações sobre o mesmo bem mas que têm origem em relações jurídicas distintas.
Exemplos:
1. Art.1370º – comunhão forçada em paredes;
2. Art.1550º e ss. – servidões legais;
3. Art.1551º – direito potestativo que permite o afastamento da servidão;
151
Apontamentos Direitos Reais
confere um direito de preferência ao proprietário confinante, se o prédio cujo proprietário
tem direito de preferência tiver uma área inferior à da unidade de cultura; e quer isto dizer
que este artigo supõe que sejam definidas as unidades de cultura por região.
Art.1409º CC: atribui um direito de preferência ao comproprietário. O comproprietário tem,
nos termos desta disposição, preferência na alienação da quota ideal do seu
comproprietário, mas já não tem direito de preferência no domínio da propriedade
horizontal. Nesta não há, com efeito, por força do art.1423º CC, direito de preferência. Assim,
ao proprietário de uma unidade independente num prédio por andares – regime da
propriedade horizontal – não assiste nenhum direito de preferência na venda de qualquer
outra unidade do mesmo prédio.
Arts.1535º CC: atribui um direito de preferência ao proprietário do solo no direito de
superfície. Aqui há um desmembramento, uma vez que o prédio e o solo em que aquele se
encontra implantado pertencem a proprietários diferentes. Pois bem, o proprietário do solo
tem preferência na venda do prédio nele implantado.
Art.1555º CC: atribui um direito de preferência ao titular do prédio serviente na servidão de
passagem. Assim, ao indivíduo que está onerado com uma servidão de passagem sobre o seu
prédio, assiste um direito de preferência na venda do prédio dominante.
Art.2130º CC: atribui aos co-herdeiros um direito de preferência na alienação do quinhão
hereditário, estando indivisa a herança, por não terem ainda sido realizadas as partilhas. Ao
titular de uma fracção da herança assiste, assim, nos termos dessa disposição, um direito de
preferência na alienação dos outros quinhões hereditários.
Há quem defenda (Manuel de Andrade, por exemplo) que estes direitos de preferência são
direitos potestativos. Contudo, enquanto que os direitos de preferência podem ser violados os
potestativos não podem ser. A sua potestatividade aparente deriva do jogo da sequela.
Contudo, a sequela pode ser paralisada, algo que não acontece nos direitos potestativos. Os
direitos legais de preferência não carecem de registo para serem oponíveis a terceiro, a sua
publicidade decorre da publicidade da própria lei.
152
Apontamentos Direitos Reais
Todavia, as partes podem fazer um contrato-promessa de compra e venda e não lhe atribuir
eficácia real. Quais são, então, nestes casos os direitos do promissário?
Pois bem, são o de pedir a devolução do sinal em dobro ou, no caso de não ter havido sinal, o de
pedir a execução específica do contrato.
É esta – a possibilidade de execução específica do contrato-promessa – uma inovação do actual
CC, que, porém, só actua, nos termos do art.830º CC, no caso de não ter havido sinal. Se este tiver sido
prestado, então, como se disse, já aquela providência não pode ser utilizada, sendo apenas exigível
uma quantia equivalente ao dobro da que, como sinal, foi prestada pelo promissário. Porquê esta
relevância dada ao sinal?
É que a lei presume que, quando houve sinal, as partes sancionaram como garantia do negócio
a restituição do sinal em dobro; se não houve sinal, nos termos do art.830º CC, o promitente-
comprador pode exigir, pode provocar uma sentença que faz as vezes de escritura, ou seja, uma
execução específica.
É claro que a possibilidade de execução específica não significa, porém, eficácia real, pois não
tem lugar, se entretanto o promitente-vendedor já vendeu o prédio para terceiro. Então – se essa
transferência se tiver verificado – não se pode, por sentença judicial, provocar a aquisição da coisa, a
não ser que, no contrato-promessa, se tenha convencionado que ele tinha eficácia real e que essa
cláusula atributiva de eficácia real ao contrato-promessa tenha sido registada. Em apoio legal desta
ideia podem citar-se os arts.410º e segs. CC, maxime o art.413º CC.
No contrato-promessa podem, assim, pôr-se várias hipóteses práticas que vamos referir,
partindo do pressuposto de que o contrato-promessa não é cumprido.
Assim, figure-se que um indivíduo promete vender a outro certo prédio e, depois, se recusa a
fazer a escritura.
Quid juris? Vejamos:
− Houve sinal passado? Então, neste caso, o promitente-comprador pode exigir a
devolução do sinal em dobro (art.442º CC);
− Não houve sinal passado? Então, nos termos do art.830º CC referido, o promitente-
comprador pode vir a juízo, requerer a execução específica do contrato-promessa. É
proferida sentença que faz as vezes de escritura, passando, assim, por esse efeito, o
prédio para a propriedade do comprador;
− Se, para além de tudo isto, foi estipulada eficácia real, então o adquirente (promissário)
pode ir buscar o prédio a terceiro que o tenha adquirido do promitente-vendedor; isto,
desde que, como já se referiu, essa eficácia real do contrato-promessa tenha sido
registada.
153
Apontamentos Direitos Reais
Ora, esta posição do promissário, na hipótese do art.413º CC – contrato-promessa com eficácia
real registado – constitui, também, um direito real de aquisição.
Tendo em conta o art.413º CC, os requisitos exigidos pela lei para que os contratos-promessa
tenham eficácia real são:
1 – Bens imóveis ou móveis sujeitos a registo;
2 – Documento público;
3 – Registo do contrato.
Índice
Pág.
Introdução
Capítulo I – Dos direitos reais em geral -------------------------1
1. O direito patrimonial ----------------------------------------------1
2. As grandes formas de ordenação de domínio -------------------4
3. Direito das coisas e direitos da pessoa --------------------------5
4. Distinção entre direitos reais e direitos de crédito --------------7
a) Distinção no plano dos interesses e no plano
técnico-jurídico: a Teoria Realista e a Teoria
Personalista -------------------------------------------------7
b) Pertinência de cada uma das doutrinas ------------------10
c) Doutrina dominante ---------------------------------------12
5.Noção de direito das coisas e o paradigma da
“plena in re potestas” – ------------------------------------------14
6. Obrigações reais e ónus reais -----------------------------------14
154
Apontamentos Direitos Reais
7. Noção jurídica de coisa ------------------------------------------18
Classificação das coisas --------------------------------------21
a) Coisas móveis e imóveis ---------------------------------21
b) Coisas acessórias e partes integrantes ------------------24
c) Coisas corpóreas e coisas incorpóreas:
as obras de engenho e as invenções
industriais, o estabelecimento
comercial e os direitos sobre direitos -------------------25
d) Coisas presentes e futuras -------------------------------30
e) Universalidade de facto e universalidade
de direito --------------------------------------------------31
f) Frutos e produtos -----------------------------------------33
g) Benfeitorias -----------------------------------------------35
155
Apontamentos Direitos Reais
a) Conjunção sincrónica --------------------------------------84
b) Conjunção diacrónica --------------------------------------85
14. Tutela possessória: fundamento da tutela
jurídica da posse -----------------------------------------------88
15. Tutela possessória: meios extra-judiciais
e meios judiciais -----------------------------------------------90
16. Efeitos da posse ------------------------------------------------96
a) Presunção da titularidade do direito ----------------------96
b) Perda ou deterioração da coisa ---------------------------97
c) Direitos do possuidor em relação aos frutos -------------98
d) Direitos do possuidor em relação a benfeitorias ---------98
e) Usucapião – a posse como criadora de direitos ----------99
Noção ---------------------------------------------------99
Direitos objecto da usucapião ------------------------100
Requisitos da usucapião ------------------------------100
Efeitos da usucapião ----------------------------------102
Capacidade para usucapir ----------------------------102
Suspensão e interrupção do prazo
para a usucapião -------------------------------------103
156
Apontamentos Direitos Reais
Capítulo II – Características dos direitos reais -------------136
1. Características ligadas ao lado interno:
independência dos direitos reais das pretensões
a que dá origem -----------------------------------------136
2. Características ligadas ao lado externo -----------------------137
Direito de sequela (ou de seguimento) -----------------137
Direito de preferência (ou de prevalência) -------------141
157
Apontamentos Direitos Reais
Direito de comunhão -------------------------------168
−Propriedade horizontal --------------------------168
Noção e domínio de aplicação ---------168
Natureza jurídica -----------------------169
Modos de constituição ------------------170
Direitos e obrigações ou encargos dos
condóminos -----------------------------172
Administração das partes comuns do
edifício -----------------------------------174
2.2. Direitos reais menores --------------------------------175
2.2.1.Direito de usufruto ------------------------------175
Noção -----------------------------------------175
Características --------------------------------177
Limites ----------------------------------------180
Duração ---------------------------------------181
Constituição ----------------------------------181
Usufrutos sucessivos ou simultâneos -------184
Direitos do usufrutuário ---------------------186
Obrigações do usufrutuário ------------------196
Extinção --------------------------------------199
2.2.2.Direitos de uso e habitação --------------------202
2.2.3.Direito de superfície ----------------------------205
Noção -----------------------------------------205
A propriedade do solo ------------------------206
Objecto do direito de superfície e do
direito de propriedade superficiária ---------208
Constituição ----------------------------------209
Momento da aquisição da propriedade
superficiária ----------------------------------210
Direitos e deveres do superficiário e do
proprietário do solo --------------------------211
Extinção --------------------------------------212
Crítica ao regime do CC relativo ao direito
de superfície ----------------------------------214
2.2.4.Servidões prediais ------------------------------214
158
Apontamentos Direitos Reais
Noção -----------------------------------------214
Características das servidões ----------------216
Constituição ----------------------------------219
Modalidades ----------------------------------224
Exercício --------------------------------------225
Mudança --------------------------------------227
Extinção --------------------------------------227
2.2.5.Direito real de habitação periódica -------------231
Noção -----------------------------------------231
Duração ---------------------------------------232
Constituição ----------------------------------232
Transmissão ----------------------------------233
3. Direitos reais de garantia --------------------------------------233
3.1. Consignação de rendimentos -------------------------233
3.2. Penhor -------------------------------------------------234
3.3. Hipoteca -----------------------------------------------235
3.4. Privilégios creditórios ---------------------------------237
3.5. Direito de retenção ------------------------------------238
4. Direitos reais de aquisição -------------------------------------239
4.1. Direitos potestativos de aquisição --------------------240
4.2. Direitos reais de preferência -------------------------240
4.3. Promessas reais de alienação ou oneração ----------242
Índice ---------------------------------------------------------------245
159