Transcrição - Doutor Fausto
Transcrição - Doutor Fausto
Transcrição - Doutor Fausto
Thomas Mann
Nós temos sobre este livro informações muito exatas, porque Thomas
escreveu um outro livro, chamado “Romance de um romance”, em
que ele faz a crônica de como escreveu o Doutor Fausto. Por isso, nós
sabemos, por exemplo, que ele foi escrito entre 23 de Maio de 1943 e
29 de Janeiro de 1946. Sabemos também que, nesse intervalo, Mann
teve um problema pulmonar seriíssimo, sofreu uma intervenção
cirúrgica (na época considerada de alto risco) e quase morreu. Esse
livro foi escrito nos Estados Unidos, tendo Mann, logo após concluir a
obra, ido para a Suíça, onde terminou seus dias (em 1955).
O Otto Maria Carpeaux, que não gostava muito do Thomas Mann, diz
que esse livro tem características épicas e que, nesse livro, Mann
chegou a alturas inigualadas por qualquer de seus contemporâneos.
Vindo de quem vem, é muito elogio.
Por que esses dois são duplos um do outro? Eles têm, em princípio,
nomes complementares. Enquanto um representa a serenidade, a
espera do amadurecimento, o outro representa uma espécie de
impetuosidade. Não é assim? Mas eles têm quase a mesma idade (o
Zeitblom é dois anos mais velhos que o Leverkühn) e o mesmo
histórico. E se vocês lembrarem da história, verão que o Zeitblom não
sai do pé do Adrian. Ele passa a vida inteira indo morar perto dele,
fazendo as mesmas coisas que ele, freqüentando a mesma escola.
Ele só não é músico; é filósofo. Também não sei se vocês repararam
que um é católico e o outro é protestante. Isso não dá para vocês a
sensação de que esses dois são uma espécie de herança da
Alemanha. É como se a Alemanha fosse o conjunto dessas duas
coisas. Eles são duplos na medida em que dentro da mesma pessoa
há a potência da serenidade e da impetuosidade. É como se esses
dois fossem dois aspectos complementares da mesma pessoa. Vocês
não têm essa sensação?
O Thomas Mann, na verdade, não lida muito com duplos. Quem mais
faz isso é o Kafka. Na obra de Kafka temos duplos o tempo todo.
Mann não costuma fazer isso. Mas aqui temos um duplo, claramente.
E o que há dentro do Adrian que nos permite dizer ser ele uma
potência específica de uma mesma pessoa? Veja que todo mundo
tem isso. Mesmo na pessoa mais civilizada, com todas as condições
de ser uma pessoa calma e controlada, há uma potência à rebelião
contra alguma outra coisa.
Você estão percebendo que o que Thomas Mann está dizendo é que
tomar o poder enlouquece? Agora, por que é que tomar o poder
enlouquece? Porque o louco é o sujeito que perdeu tudo menos a
razão – diz G.K. Chesterton, no “Ortodoxia”. Louco é o sujeito que
perdeu tudo menos a razão. O que faz o louco ser louco é uma
racionalidade estúpida, incrivelmente forte. Para o louco tudo tem
sentido, tudo pode ser compreendido. Por exemplo: o louco sai na
rua achando que todos o estão perseguindo. Se você diz para ele:
“pergunte, então, para aquele sujeito se ele está te perseguindo”, o
louco retrucará: “não, mas ele nunca me dirá que está me
perseguindo; um perseguidor normal jamais diria que está
perseguindo alguém”. Portanto, a vida de um louco é uma vida de tão
férrea racionalidade, que nada pode ser compreendido fora de um
determinado círculo sem saída, uma espécie de looping, que você
inventou para você mesmo. Adrian, também, tornou-se prisioneiro da
própria mente. E quem é prisioneiro da própria mente é louco, porque
a única maneira de se obter saúde mental nessa vida é você
compreender que tudo em volta de você está coberto de mistérios;
que a nossa existência flutua num oceano de enigmas. A única
maneira de a gente ser saudável é aprender a lidar com essa
situação, o que se faz compreendendo que, embora tudo em nosso
redor esteja envolto em mistério, Deus não nos pôs à toa nisso,
portanto, há algo que nos protege nesse percurso tempestuoso,
nesse mundo de incertezas. Assim, podemos nos sentir um pouco
confortáveis. Há uma mão que nos ajuda.
Esse é o único jeito de lidar com isso. Não tem outro. É preciso
aceitar os mistérios do mundo em torno e aceitar o fato de que,
apesar deles, nós vivemos confortavelmente dentro disso. O louco
não é assim. O louco é aquele que tem certeza absoluta de como as
coisas são. Adrian Leverkühn é louco. Ele é louco desde o início,
quando ele acha que vê no pai dele (o ocultista) a possibilidade de
captar os mistérios da natureza. E ele é louco quando ele acha que
compete ao ser humano produzir a própria história humana (no
sentido de valores humanos). Na hora em que ele tenta colocar a
música no lugar da religião, ele “sataniza-se” de alguma maneira.
Essa satanização é apenas confirmada pela sua contaminação – mas
vejam que os tais bichinhos que se dirigem para o cérebro não são
necessariamente os treponemas. Haveria melhor metáfora para a
contaminação das idéias? Os bichinhos de que o Diabo fala não são
exatamente os treponemas, mas sim as idéias que funcionam como
uma sífilis sistemática na mente humana.