Transcrição - Doutor Fausto

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Doutor Fausto

Thomas Mann

A obra “Doutor Fausto” é uma retomada do velho mito medieval do


Dr. Fausto, que conta a história de um homem que vende a alma ao
Diabo (via de regra, apresentado como o tal do Mefistófeles, que é
um Diabo especialista nesse negócio; nesse livro, porém, Mann não
fala em Mefistófeles, mas em Diabo, genericamente falando).

Nós temos sobre este livro informações muito exatas, porque Thomas
escreveu um outro livro, chamado “Romance de um romance”, em
que ele faz a crônica de como escreveu o Doutor Fausto. Por isso, nós
sabemos, por exemplo, que ele foi escrito entre 23 de Maio de 1943 e
29 de Janeiro de 1946. Sabemos também que, nesse intervalo, Mann
teve um problema pulmonar seriíssimo, sofreu uma intervenção
cirúrgica (na época considerada de alto risco) e quase morreu. Esse
livro foi escrito nos Estados Unidos, tendo Mann, logo após concluir a
obra, ido para a Suíça, onde terminou seus dias (em 1955).

Esse é um livro maravilhoso e delicioso de ler. O único probleminha


técnico dele é que ele fica falando de música o tempo todo. Então, é
preciso ter um pouquinho de cultura musical para você não ficar
sentindo que foi convidado para a festa errada. Thomas Mann era
aficionado por música (erudita, bem entendido) e há, no livro,
inúmeras personagens tiradas do mundo real. Ele usa muito
vocabulário de música erudita e, para quem não tem o hábito, parece
um pouco chato, mas não é, não. É um livro muito bom de ler,
fascinante, e que conta a história de um maestro, chamado Adrian
Leverkühn. A vida desta personagem é contada por um amigo,
chamado Serenus Zeitblom; tanto que o livro chama-se “Doutor
Fausto: a história do compositor Adrian Leverkühn contada por um
amigo”. Esse é o subtítulo do livro. Esse Adrian Leverkühn é a
personagem central da obra e é ele quem vende a alma ao diabo. O
“Doutor Fausto” na verdade não aparece aqui. Ele é apenas uma das
obras do Adrian, que aparece lá no fim. Doutor Fausto é uma obra do
compositor.

Agora, olhem que interessante. O Serenus conta a história como


narrador no mesmo momento em que Thomas Mann escreve a
história como autor. O livro começa dizendo: “Eu, Serenus Zeitblom,
em 1943, vou contar para vocês a história de Adrian Leverkühn”.
Então, se vocês sugerirem que há algo de Thomas Mann no Serenus
Zeitblom vocês têm toda a razão. Só cuidem para não achar que é
uma espécie de relato autobiográfico geral, porque não é.

O Otto Maria Carpeaux, que não gostava muito do Thomas Mann, diz
que esse livro tem características épicas e que, nesse livro, Mann
chegou a alturas inigualadas por qualquer de seus contemporâneos.
Vindo de quem vem, é muito elogio.

O livro começa dois anos depois da morte do compositor Adrian


Leverkühn. Serenus começa a história dizendo que foi amigo de
infância de Adrian e teve a oportunidade de conviver longos anos com
este jovem precoce e brilhante, bem como de testemunhar sua
intensa solidão.

Adrian é retratado como um sujeito estranho: solitário, misantropo e


avesso a quaisquer contatos afetivos - embora muitíssimo talentoso.
Musicalmente falando, era (ou tornara-se) um dodecafônico (o que
levou algumas pessoas a suporem que Mann estaria fazendo um
“roman à clef” sobre a vida de Arnold Shöenberg, criador da
dodecafonia, o que, no entanto, não era o caso). Adrian nasceu em
1885, era luterano e dedicou-se a estudos teológicos antes de se
aprofundar na música. Seu pai dedicava-se a estudar biologia e livros
ligados ao misticismo, à alquimia e à magia.

Cumpre explicar, só para termos uma certa uniformidade lingüística,


o seguinte: toda magia é baseada na idéia de que, além do mundo
físico, existe um mundo sutil, que está em torno deste mundo, e que
produz fenômenos estranhos, de uma outra ordem, não facilmente
compreensíveis pelo mundo físico. A idéia da magia é que, por meio
de palavras e fórmulas, é possível produzir efeitos deste mundo sutil
no mundo material em que nós vivemos. Esta é a essência da magia
e de todo tipo de bruxaria. Todas elas têm esta mesma base.

Isso começa na época da construção do templo de Salomão.


Salomão, quando faz o primeiro templo, por volta do ano 600 ou 700
a.c., chama um arquiteto estrangeiro (chamado Hiran), o qual fez o
templo ficar em pé por meio de uma palavra mágica – que não era
“financiamento bancário”, “Bnh”, “Célula penhoratícia”, etc. Era uma
palavra mágica que ninguém mais conhecia. Um grupo de fulanos,
loucos para conhecer a palavra, mataram o sujeito com o fito de
descobrir o segredo. A mais antiga tradição dita maçônica seria um
esforço para descobrir qual é essa palavra. Na realidade, essa é uma
maneira pobre de olhar para a maçonaria, porque, afinal, montar um
negócio deste para procurar uma palavra cujo único cara que sabia
morreu, é estranho. Então, ela teve outras fontes e outros intuitos
também. De qualquer modo, toda magia é um processo de
intervenção no mundo sutil para que ele produza efeitos no mundo
material por meio de fórmula e palavras secretas. O mundo sutil é
que mexe no mundo material.

Portanto, na família de Adrian, havia um histórico de interesse por


esta espécie de assunto. Um dado importante da história é o
seguinte: quando jovem, Adrian ouviu uma palestra de um professor
de música em que o mesmo separava arte e religião - ao contrário do
que faz, por exemplo, T.S.Eliot, o qual, em seu ensaio “Notas para
um definição de cultura”, afirma que toda cultura, sem exceção, tem
base religiosa. Adrian, porém, comprou inteiramente a idéia daquele
seu professor (que divorciava estas duas esferas). É aí que surge a
primeira opinião, digamos, “perigosa” de Adrian. Na ocasião, ele tinha
14 anos.

Na seqüência, porém, Adrian, contrariamente a essa sua precoce


opinião, vai estudar teologia e não música, por achar, nesse
momento, ser a música, de algum modo, menos que a teologia.
Zeitblom, que é dois anos mais velhos que Leverkühn, vai estudar
filosofia. Na universidade, Adrian conhece e deixa-se influenciar por
professores com idéias maniqueístas – teoria segundo a qual Bem e
Mal são duas forças de algum modo equivalentes e que disputam a
primazia do mundo – as quais são a base de tudo quanto é idéia
satanista.

Adrian conclui o curso de teologia, mas opta por dedicar-se


integralmente à música, atentando, sempre, para os aspectos
iniciáticos da música. Ele, num dado momento, compara a música
com os experimentos dos alquimistas e nigromantes. A composição
musical, para Adrian, portanto, seria algo como uma bruxaria.

Depois, acontece um fato pitoresco e crucial: Adrian, de um modo


obsessivo, busca por várias cidades européias uma prostituta de
jaqueta espanhola, chamada Esmeralda, da qual fugira um ano antes
ao entrar num bordel por engano. Depois de intensa pesquisa,
encontra-a, finalmente, na Hungria. Ela a reconhece, mas o avisa de
que tem uma doença venérea. Adrian, mesmo assim, decide manter
relações sexuais com a mesma e acaba contraindo o “mal francês”
(que é a sífilis, mesma doença que Nietzsche tinha). Para tratá-la
procura um médico, o qual, no entanto, falece durante o tratamento.
Adrian, então, procura um substituto, mas o tratamento malogra
novamente em virtude da prisão do novo médico. Diante de dois
misteriosos insucessos seguidos, Adrian desiste de procurar
tratamento e a doença, enigmaticamente, retrocede.

Eventualmente, Adrian muda-se com um amigo para Palestrina, na


Itália, onde sucede um acontecimento terrível: Adrian tem um
encontro com o Diabo. Este lhe faz a seguinte proposta: oferece-lhe
24 anos de intensa e festejada produção artística em troca, é claro,
da alma de Adrian. Leverkühn aceita. O interessante é que esses 24
anos começariam a ser contados desde 5 anos e um dia antes, ou
seja, desde o episódio envolvendo Adrian e Esmeralda, a prostituta
de jaqueta espanhola. É como se, naquele momento, Adrian, ao
aceitar manter relações com Esmeralda, já tivesse celebrado o pacto
demoníaco.
Com o tempo, a saúde de Adrian piora (ele herdara de seu pai
enxaquecas terríveis). Zeitblom compara a piora da situação de
Adrian com a piora da situação da Alemanha na Primeira Guerra. Há,
de fato, aí, um paralelo claro sendo estabelecido por Thomas Mann
(discutiremos isso mais adiante).

Embora com a saúde cada vez mais precária, Adrian compõe


proficuamente. Suas duas últimas grandes obras são: uma peça
baseada no Apocalipse de São João e nas ilustrações de Albrecht
Dürer; e uma outra obra sinfônica chamada “A lamentação do Doutor
Fausto” (daí o título da obra).

Em 1930, Adrian, com o auxílio de Zetiblom, reúne cerca de 30


pessoas para dar-lhes uma prévia da sua última peça. Antes de
executá-la, Adrian conta toda sua história: seu pacto com o Diabo, o
caro preço que havia de pagar, seu desespero profundo e o inevitável
- e já próximo - desfecho de sua história. Algumas pessoas
abandonam a sala enquanto Adrian ainda fala. Depois da
apresentação, Leverkühn senta-se ao piano, toca um acorde
pungente e cai desacordado. Viverá, em demência, mais dez anos,
quando, então, morrerá. Ao seu enterro, compareceu uma misteriosa
senhora oculta por véu. Quando as primeiras pás de terra foram
deitadas sobre seu caixão, a senhora desapareceu.

Aqui termina a história.

Antes de analisarmos o livro, recuperemos os pontos principais da


trama. Adrian vem de uma família em que seu pai exerce práticas um
pouco misteriosas e ocultistas. Ele se muda de cidade e vai morar
com o tio (que era luthier e que, portanto, cria em torno do garoto
um ambiente musical, despertando nele o interesse por esta arte).
Nessa cidade, Adrian conhece Zeitblom. Mais tarde, decide estudar
teologia, acreditando dever a música estar subordinada a alguma
coisa maior – a ciência divina. No entanto, ele não persiste neste
caminho e mostra um claro desinteresse em continuar estudando
teologia, correndo o risco de largar a escola antes de concluir o curso.
Vai para Leipzig estudar música com um professor particular.
Chegando em Leipzig, ele é levado por um carregador de malas, sem
o saber, a um bordel, onde encontra Esmeralda, a prostituta de
jaqueta espanhola. Assustado, ele foge dela e escreve uma carta para
o amigo contando a história. Esse episódio, porém, não acaba aí.
Obcecado pela moça, Adrian volta ao bordel, não a encontra mais,
obtém informações e acaba procurando-a por várias cidades
européias, terminando por achá-la numa cidade húngara. Lá, ela lhe
diz que está contaminada com uma doença, mas ele, mesmo assim,
transa com ela e fica doente de sífilis. Quando tenta resolver o
problema, não consegue, porque os dois médicos que ele consulta
são desativados misteriosamente – um pela morte, outro pela justiça.
No entanto, aparentemente bom, ele desiste daquilo e vai morar em
Munique, onde freqüenta a casa de uma senadora e suas duas filhas,
Clarissa e Inês. Depois, coadjuvado por um amigo mais próximo, vai
para Palestrina, na Itália. Nessa estada, acontece um encontro muito
interessante com o demônio, quando Adrian compreende que sua
ampulheta já havia começado a correr desde cinco anos e um dia
antes (quando ele fora contaminado) e o Diabo propunha 24 anos
(incluído aí esses 5 anos) em que Adrian teria sua ajuda para
produzir uma notável e incrível obra musical, com a condição de que
ele não amasse ninguém e que aceitasse que seria levado embora no
final disso. Ele faz várias tentativas de negociar, mas acaba se dando
conta de que ele já havia de algum modo negociado isso antes, ou
seja, que sua própria auto-contaminação era uma espécie de
assinatura contratual. Ele volta com o amigo de Palestrina e se isola
completamente, produzindo obras que aos pouquinhos são lançadas
até que aparece um sujeito (provavelmente o Diabo em pessoa) que
lhe propõe torná-lo uma pessoa muito famosa. Adrian recusa. Torna-
se cada vez mais solitário, até que um dia aparece um menino de 5
anos, filho de sua irmã Ursula, extraordinariamente bonito, e que
misteriosamente começa a adoecer e sofre terrivelmente. Isso cria
uma situação de absoluto desespero e tristeza naquelas pessoas.
Adrian atribui aquilo à ação do Diabo, porque ele (Adrian) teria
rompido seu acordo de não amar ninguém – tendo se interessado por
uma moça e, também, por um spalla, o qual ele, engenhosamente,
envia para a morte. No final de tudo, ele reúne umas 30 pessoas,
para contar essa história. Depois que o fez, tem uma síncope, cai no
chão e torna-se um sujeito inválido pelos próximos anos de sua vida.
Dura mais dez anos em um estado vegetativo (ele aqui já não tinha
mais alma, a qual, de fato, tinha sido levada embora) e morre em
1940.

É isso? Pois bem: eu queria começar a análise dessa história


perguntando a vocês se você prestaram bem atenção na relação
entre o Zeitblom e o Leverkühn. O que um parece ser do outro? O
duplo, claramente. O Adrian e o Serenus são a mesma pessoa. É
claro que o Thomas Mann não faz isso de maneira simplista e
esquemática. Ele não faz, por exemplo, os dois morrerem no mesmo
dia. Porque isso seria facilitar muito as coisas. Esse duplo não é um
duplo real, mas apenas um duplo simbólico.

Por que esses dois são duplos um do outro? Eles têm, em princípio,
nomes complementares. Enquanto um representa a serenidade, a
espera do amadurecimento, o outro representa uma espécie de
impetuosidade. Não é assim? Mas eles têm quase a mesma idade (o
Zeitblom é dois anos mais velhos que o Leverkühn) e o mesmo
histórico. E se vocês lembrarem da história, verão que o Zeitblom não
sai do pé do Adrian. Ele passa a vida inteira indo morar perto dele,
fazendo as mesmas coisas que ele, freqüentando a mesma escola.
Ele só não é músico; é filósofo. Também não sei se vocês repararam
que um é católico e o outro é protestante. Isso não dá para vocês a
sensação de que esses dois são uma espécie de herança da
Alemanha. É como se a Alemanha fosse o conjunto dessas duas
coisas. Eles são duplos na medida em que dentro da mesma pessoa
há a potência da serenidade e da impetuosidade. É como se esses
dois fossem dois aspectos complementares da mesma pessoa. Vocês
não têm essa sensação?

O Thomas Mann, na verdade, não lida muito com duplos. Quem mais
faz isso é o Kafka. Na obra de Kafka temos duplos o tempo todo.
Mann não costuma fazer isso. Mas aqui temos um duplo, claramente.
E o que há dentro do Adrian que nos permite dizer ser ele uma
potência específica de uma mesma pessoa? Veja que todo mundo
tem isso. Mesmo na pessoa mais civilizada, com todas as condições
de ser uma pessoa calma e controlada, há uma potência à rebelião
contra alguma outra coisa.

Então, o primeiro passo é notar que há uma semelhança, uma


equivalência entre essas duas pessoas: Serenus Zeitblom e Adrian
Leverkühn.

Se estamos de acordo quanto a isso, avencemos: como essas duas


potências se manifestam ao longo da história? As duas o fazem, não?
Qual dos dois sobrevive? O Zeitblom. O que que acontece com
Adrian? Ele morre. Se você quiser comparar, alegoricamente, tais
personagens com a Alemanha – porque há, nessa obra, seguramente,
um potencial alegórico indiscutível, embora ela não se esgote nessa
ligação entre a vida de Adrian e a Alemanha; ela não é, apenas, uma
crônica de época – podemos concluir que a mesma alma nacional
pode ter a potência da vida e a potência da morte. A potência da vida
simbolizada pelo Zeitblom e a potência da morte simbolizada pelo
Leverkühn. Mas isso é apenas secundário e alegórico. Tentemos
continuar fazendo uma interpretação dessa obra que possa atingir
mais que o mundo alemão de 1943 e que, portanto, possa servir para
nós, agora, em 2008.

Qual é o grande erro de Adrian Leverkühn? Onde ele se perde? Adrian


quer uma porção de coisas, não? Ele quer ser importante, quer dar
certo, etc. Mas ele quer uma outra coisa maior que isso: ele quer
salvar a música. Ele, na verdade, achava que a música é um
subcapítulo da teologia (os luteranos também pensam assim). Ele vai
para a escola de teologia, descobre que não é isso e volta com o
objetivo de ficar apenas com a música. É como se o Adrian Leverkühn
achasse que a música pode substituir a religião. Vocês
compreenderam que é isso que ele pensa, no fundo? Ele achava que
aquela dedicação à música devia ser desvinculada de qualquer outro
interesse, porque a música e a religião seriam a mesma coisa. Como
a música e a religião são a mesma coisa, elas são substituíveis. Por
isso ele conclui não haver nenhuma necessidade de subordinar uma
coisa à outra. Essa idéia de que tem de haver uma necessária
subordinação da música à religião é uma idéia do Zeitblom. É ele que
acha isso, que a arte e a cultura são a civilização. Zeitblom fica de
cabelo em pé e perde 14 libras de peso quando freqüenta certas
reuniões de intelectuais muniquenses: ele percebe que o que está
acontecendo com a Alemanha naquele momento é a desvinculação
total e completa da cultura (no sentido de artes em geral) de
qualquer processo civilizatório; ou seja, estava acontecendo uma
explosão de atividades artísticas completamente desvinculada de
qualquer fonte maior – que é aquilo que iria produzir, em última
análise, os efeitos que Modris Eksteins diz serem a origem do
nazismo. Considerando-se a tensão natural que há dentro de
qualquer pessoa entre a ordem e a desordem, entre o sentido e a
irracionalidade, entre a possibilidade de submissão e a possibilidade
de rebelião, o autor nos diz que a Alemanha, naquela época, pendia
para o lado negativo.

Vejam: para os nazistas, a arte também era importante. Havia um


ditado nazista que dizia: o homem tem que ser sempre belo. O
problema dos nazistas não era o de ser contra a arte, era ter uma
perspectiva de arte e cultura desvinculada de qualquer aspecto
moral. A Alemanha, nessa época, tornou-se o maior centro mundial
de invencionices artísticas, todo mundo ia para lá. Surgiu o
expressionismo, uma nova arquitetura e tudo quanto é novidade
artística; no entanto, tudo isso só gerou a perspectiva nazista.

Ou seja, o erro fundamental de Adrian Leverkühn foi ter desvinculado


a arte dos valores humanos transcendentes à ela (representados pela
religião, de alguma maneira). É um erro fruto da vaidade. É dizer
assim: “olha, nós vamos nos encarregar de fazer a arte humana
agora, porque é ela que vai nos divinizar”. Não é isso que o Diabo diz
para Leverkühn depois de passados os 24 anos?

Dentro do artista – e, na verdade, de qualquer pessoa – existe uma


tensão entre essas duas possibilidades: ver-se como representando
algo maior que você ou ver-se como um criador demiurgo como se
você fosse Deus em pessoa. Pois o que faz Adrian Leverkühn é dar à
arte um status de autonomia existencial, independentemente dos
valores que ela deveria representar. Ele estava apenas preocupado
com a arte em si. E a arte em si não pode existir independentemente
dos seus aspectos transcendentes. Tem de ter alguma coisa que a
submeta. Quando você a torna autônoma, você produz uma arte que
tem aspectos diabólicos, podendo vir dela um incentivo para uma
enorme catástrofe política. A Alemanha nazista nasceu de uma
sociedade que era maximamente liberal quanto a novas idéias, novas
invenções, etc. Foi nesse período que floresceu o feminismo, a
identidade homossexual, a representação das minorias, o
relaxamento às censuras aos prazeres, em que se estabeleceram
aquelas boates escandalosas, os cabarés, etc. É nesse ambiente que
foi incubado o ovo da serpente do nazismo, do totalitarismo
econômico e político. Foi este clima de perda da relação entre a arte
e os valores superiores (ou seja, de independentização ou
desvinculação do Adrian em relação ao Zeitblom) que se cria a
possibilidade de a arte produzir o efeito paradoxal de permitir o
surgimento de um niilismo político. Do niilismo artístico nasce o
niilismo político. Com isso o governo do país mais culto do mundo foi
entregue na mão de uns bárbaros, gente ocultista, todos mágicos,
todos associados a entidades ocultistas.

Como você faz um império – o Terceiro Reich – com base na idéia de


que só os alemães têm direito à vida? Daí não vai sobrar ninguém no
seu império, poxa. Se você quer fazer um império, você tem que
chegar para o pessoal da periferia e dizer para eles: “olha, vocês vão
ser romanos também, viu?”. Se os americanos dessem passaportes
americanos, todo mundo virava americano em cinco minutos.
Entendeu? Os romanos faziam assim, eles produziram um império
dando uma expectativa de cidadania romana para a periferia do
império. É isso que tornava o império viável. O nazismo, então, é
inviável, porque você está dizendo que o seu império não inclui os
outros. Como funciona isso? Você não pode ter um império que está
baseado na exclusão de todo mundo. Porque isso é o império ao
contrário.

Então, o povo mais inteligente do mundo entrou nessa barbárie.


Dentro de cada pessoa individual, há a potência de fazer isso no seu
pequeno âmbito – quando escolhemos errado e nos deixamos levar
por nossa vaidade. No fundo, essa é uma enorme e fantástica história
sobre o narcisismo humano. Poucas coisas são tão capazes de
descrever o narcisismo humano quanto esta história que acabamos
de ler.

O artista narcisista – aquele que endeusa a si próprio; que olha no


espelho e se acha o máximo – este sujeito está o tempo todo
tentando assumir o papel de Deus. Quer dizer, ele acha que a sua
capacidade de fazer alguma coisa eleva o seu grau existencial. É o
contrário do que fazia Bach, por exemplo: quando fazia sua obra,
Bach achava que estava mais ou menos descrevendo como os anjos
falavam e cantavam. Então, uma coisa é você descrever o que os
anjos cantam e chamar isso de sua obra e outra coisa é você achar
que a sua obra substitui a religião. É isso que fez Adrian Leverkühn –
por isso seu nome significa “viver impetuosa ou agressivamente”. No
fundo, ele quer tomar o lugar de Deus. É isso que fez, também, a
Alemanha. O narcisismo alemão produz esse desvario chamado
nazismo, que achava ser capaz de arbitrar quem vai morrer ou viver
sobre a terra. É esse problema que, microcosmicamente, está
vivendo o Adrian Leverkühn. Ele quer salvar a cultura – e tem até
uma boa intenção, no início – mas ele não compreende o que é a
cultura verdadeiramente, porque acha que a cultura e a civilização
não são necessariamente coincidentes, que a cultura pode ter uma
existência autônoma, e que ela não precisa existir subordinada aos
valores transcendentes. E ele buscou apoio para isso nas idéias
maniqueístas de seus professores de faculdade. Na hora em que ele
aprende que o Bem e o Mal são entidades complementares (sem
subordinação do Mal ao Bem), ele passa achar que fazer mal é bom,
que o mal em si é bom e que ele não precisa mais da subordinação
ao bem para produzir uma obra artística. Haveria então uma
autonomia das artes e da música em relação a tudo o mais. Há, aí,
uma ilusão demiúrgica, que produz uma arte niilista, aquela arte dos
cabarés de Berlim nas vésperas do nazismo. (Há um filme, chamado
“O ovo da serpente”, de Ingmar Bergman, que conta muito bem essa
história – de um outro jeito, é claro; cinematograficamente).

Notem que o Nietzsche é uma das principais caricaturas desse


negócio. O que faz o Adrian Leverkühn? Ele faz o que Nietzsche
manda todo mundo fazer, que é ter “vontade de poder”. A filosofia de
Nietzsche é assim: o homem sempre foi um trouxa enganado por dois
vigaristas, um chamado Jesus Cristo, e o outro chamado Platão.
Esses dois ficaram contando que existe um mundo de idéias e valores
que não é esse aqui e nós, “burrões”, passamos a acreditar nisso e
nos subordinamos a essas duas ilusões, esses dois auto-enganos. O
jeito de o humano superar isso é exercer o papel que lhe cabe de
assumir e tomar e poder, ou seja, exercer a “vontade de poder” – o
homem que é capaz de fazer isso é o “übermensch” (o “super-
homem”). Como você faz isso? Criando os critérios morais que vão
orientar sua prática. Mas como se faz isso na prática? Começa assim:
já que nós estamos enganados por esses dois – Jesus Cristo e Platão
– vamos começar fazendo exatamente o contrário do que eles
mandaram. Por exemplo: mandaram-nos ser caridosos? Sejamos
egoístas. Mandaram-nos ser honestos? Sejamos vigaristas.
Mandaram-nos ser simpáticos? Sejamos antipáticos. Então, o que
Nietzsche achava era que pela rebelião contra essas duas ilusões
humanas – o Cristianismo e o idealismo platônico – o ser humano,
dialeticamente, iria construir sua própria existência moral. Esse seria
o único jeito de o ser humano ser um ser humano de verdade. Mas
não é isso que o Adrian Leverkühn está fazendo? É exatamente isso.
Adrian é um tipo nietzschiano.

Esse é mais um dos componentes genéticos do nazismo (e não é


estranho que ele tenha nascido na própria Alemanha). Nietzsche, por
outro lado, teve uma sífilis, cuja contaminação foi parecida com essa
do Adrian Leverkühn, e ele passou os últimos anos de sua vida
completamente louco – entre 1980 e 1900: os mesmos dez anos de
Adrian Leverkühn. Então, a doença de Nietzsche foi certamente o
modelo da doença de Adrian. Nietzsche também é o sujeito que, ao
tentar tomar o poder, enlouquece também.

Você estão percebendo que o que Thomas Mann está dizendo é que
tomar o poder enlouquece? Agora, por que é que tomar o poder
enlouquece? Porque o louco é o sujeito que perdeu tudo menos a
razão – diz G.K. Chesterton, no “Ortodoxia”. Louco é o sujeito que
perdeu tudo menos a razão. O que faz o louco ser louco é uma
racionalidade estúpida, incrivelmente forte. Para o louco tudo tem
sentido, tudo pode ser compreendido. Por exemplo: o louco sai na
rua achando que todos o estão perseguindo. Se você diz para ele:
“pergunte, então, para aquele sujeito se ele está te perseguindo”, o
louco retrucará: “não, mas ele nunca me dirá que está me
perseguindo; um perseguidor normal jamais diria que está
perseguindo alguém”. Portanto, a vida de um louco é uma vida de tão
férrea racionalidade, que nada pode ser compreendido fora de um
determinado círculo sem saída, uma espécie de looping, que você
inventou para você mesmo. Adrian, também, tornou-se prisioneiro da
própria mente. E quem é prisioneiro da própria mente é louco, porque
a única maneira de se obter saúde mental nessa vida é você
compreender que tudo em volta de você está coberto de mistérios;
que a nossa existência flutua num oceano de enigmas. A única
maneira de a gente ser saudável é aprender a lidar com essa
situação, o que se faz compreendendo que, embora tudo em nosso
redor esteja envolto em mistério, Deus não nos pôs à toa nisso,
portanto, há algo que nos protege nesse percurso tempestuoso,
nesse mundo de incertezas. Assim, podemos nos sentir um pouco
confortáveis. Há uma mão que nos ajuda.

Esse é o único jeito de lidar com isso. Não tem outro. É preciso
aceitar os mistérios do mundo em torno e aceitar o fato de que,
apesar deles, nós vivemos confortavelmente dentro disso. O louco
não é assim. O louco é aquele que tem certeza absoluta de como as
coisas são. Adrian Leverkühn é louco. Ele é louco desde o início,
quando ele acha que vê no pai dele (o ocultista) a possibilidade de
captar os mistérios da natureza. E ele é louco quando ele acha que
compete ao ser humano produzir a própria história humana (no
sentido de valores humanos). Na hora em que ele tenta colocar a
música no lugar da religião, ele “sataniza-se” de alguma maneira.
Essa satanização é apenas confirmada pela sua contaminação – mas
vejam que os tais bichinhos que se dirigem para o cérebro não são
necessariamente os treponemas. Haveria melhor metáfora para a
contaminação das idéias? Os bichinhos de que o Diabo fala não são
exatamente os treponemas, mas sim as idéias que funcionam como
uma sífilis sistemática na mente humana.

Foi a vaidade alemã, a enorme crise narcísica de um povo que fez


tudo (a melhor música, a melhor filosofia, a melhor máquina), que o
convenceu de que tinha virado algo como Deus. Associe isso a uma
crise econômica muito forte e a uma destruição das bases da cultura
(ou seja, à retirada da cultura das suas bases transcendentes), e o
que você tem? Uma sociedade enlouquecida e um apoio social ao
primeiro maluco que aparecer. Vejam: o povo alemão não queria
genocídio nenhum, mas o povo alemão queria alguém que pusesse
ordem naquele negócio. É preciso lembrar que nem sempre o povo
tem o governo que merece. Eu acho que no caso da Alemanha dessa
época isso é verdade mesmo. No caso do Brasil, isso é 100 por cento
falso. Nós temos o governo que temos porque merecemos mesmo.
Merecemos até pior. Vamos ver se a gente não põe o PSOL na
próxima. Para ficar justo mesmo tem que ser do PSOL para baixo –
tem que se o PSTU, o cara do cartão verde, etc. Mas no caso alemão,
há uma nítida injustiça. É um caso para o resto do mundo pensar,
porque, no fundo, não se trata de uma tragédia alemã, mas de uma
tragédia humana. Do mesmo modo que uma grande obra de arte
alemã é uma realização humana e interessa a todo mundo, essa
tragédia também poderia acontecer com qualquer um.

O que há, aqui, é a maior história sobre o narcisismo humano já


feita. Porque você acha que pode salvar a cultura, você vende a alma
ao Diabo. O que é isso? É colocar a cultura a favor das paixões
humanas mais baixas. É isso que é o Diabo, sob o ponto de vista da
terra, do mundo – já que ele tem diversos níveis existenciais. Do
ponto de vista mais baixo, o que ele é? A paixão pela matéria, pela
glória da terra, a falta de olhar para o céu, etc. É tudo isso que o
Adrian Leverkühn fez. Quer dizer, ele atirou-se dentro de um
precipício, de um abismo.

O que se pode dizer da obra de Thomas Mann (e este livro não é


exceção) é que ele está sempre retratando situações em que se está
a um passo de abismo. O que aconteceu, aqui, é que o Zeitblom não
pula e o Adrian pula no abismo da vaidade humana. Isso destruiu
Adrian. Ele não teve nenhuma Redenção. Ele foi completamente
destruído - do mesmo modo que a Alemanha foi completamente
destruída pela sua experiência narcisista.

Por fim, notem: toda vez que há um desastre civilizatório no mundo –


qualquer que seja ele – a responsabilidade, no fundo, sempre será
daqueles que fizeram a agenda da mente alheia. Ou seja, tudo cai na
primeira casta. É ela que tem a responsabilidade de cuidar para que a
sociedade não se “descivilize”, porque a civilização é uma coisa tão
frágil, que um povo com mil anos de história civilizatória (como os
alemães) joga toda sua cultura no lixo em três ou quatro anos. Ou
seja, a civilização é uma coisa tão frágil, que se você não cuidar dela
o dia inteiro ela vai embora em quinze minutos.

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