Psicologia para A Evolução Possível Do Homem
Psicologia para A Evolução Possível Do Homem
Psicologia para A Evolução Possível Do Homem
Rwg
P. D. OUSPENSKY
Ano
-91-92-93
SUMÁRIO
Introdução 1
PRIMEIRA CONFERÊNCIA 3
SEGUNDA CONFERÊNCIA 23
TERCEIRA CONFERÊNCIA 41
QUARTA CONFERENCIA 53
QUINTA CONFERÊNCIA 67
INTRODUÇÃO
Durante anos recebi numerosas cartas de meus leitores. Todos perguntavam-me o que
tinha feito depois de escrever meus livros, publicados em inglês em 1920 e 1931, mas
redigidos desde 1910 e 1912.
Nunca podia responder a essas cartas. Só para tentar fazê-lo, necessitaria de livros
inteiros. Porém, quando meus correspondentes moravam em Londres, onde me instalara
em 1921, organizava, em sua intenção, ciclos de conferências, nas quais tentava responder
às suas perguntas. Explicava-lhes o que descobrira depois de haver escrito meus dois
livros e em que direção se engajara o meu trabalho.
Em 1934 escrevi cinco conferências preliminares que davam uma idéia geral do objeto de
meus estudos, bem como das linhas de trabalho que seguia comigo determinado número
de pessoas. Reunir tudo isso numa única conferência e mesmo em duas ou três era
totalmente impossível; por isso, advertia sempre ser inútil assistir a uma ou duas
conferências, mas serem necessárias no mínimo cinco, ou talvez dez, para se ter uma
idéia da orientação do meu trabalho. Essas conferências continuaram desde então e,
durante todo esse período, corrigi-as e reescrevi-as várias vezes.
No conjunto, achei essa organização geral satisfatória. Liam
-se cinco conferências, estando eu presente, ou então ausente. Os ouvintes podiam fazer
perguntas e, se tentavam seguir
os conselhos e indicações que lhes eram dados — e que diziam respeito sobretudo à
observação de si e a certa disciplina interior —, adquiriam rapidamente, pela prática, uma
compreensão mais do que suficiente do que eu fazia.
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É claro que sempre reconheci não serem cinco conferências o bastante e. nas
conversações seguintes, retomava os dados preliminares para desenvolvê-los, tentando
fazer ver aos ouvintes sua própria posição diante do novo conhecimento.
Tornou-se evidente para mim que, para muitos dentre eles, a principal dificuldade era
dar-se conta de que tinham realmente ouvido coisas novas, quero dizer, coisas que nunca
tinham ouvido antes.
Sem confessá-lo a si mesmos, tentavam sempre negar em pensamento a novidade do que
tinham ouvido e esforçavam-se, qualquer que fosse o assunto, em retraduzir tudo em sua
linguagem habitual. Naturalmente, não podia levar isso em conta.
Sei que não é fácil reconhecer que estamos ouvindo coisas novas. Estamos de tal maneira
habituados às velhas cantigas, aos velhos refrões, que há muito deixamos de esperar,
deixamos até de crer que possa existir alguma coisa nova.
E, quando ouvimos formular idéias novas, tomamo-las por velhas idéias ou pensamos que
podem ser explicadas ou interpretadas com o auxílio de velhas idéias. De fato, é tarefa
árdua compreender a possibilidade e a necessidade de idéias realmente novas; isso
requer tempo e revisão de todos os valores correntes.
Não posso assegurar que, desde o início, encontrarão aqui idéias novas, isto é, idéias das
quais nunca tenham ouvido falar. Mas, se tiverem paciência, não tardarão a notá-las, e
desejo-lhes, então, que não as deixem escapar e cuidem para não interpretá-las da velha
maneira.
PRIMEIRA CONFERÊNCIA
Vou falar do estudo da psicologia, mas devo preveni-los de que a psicologia a que me
refiro é muito diferente do que possam conhecer por esse nome.
Antes de tudo, devo dizer que nunca, no curso da história, a psicologia se encontrou em
nível tão baixo. Perdeu todo contato com sua origem e todo o seu sentido, a tal ponto que
hoje é difícil definir o termo “psicologia”, isto é, precisar o que é a psicologia e o que ela
estuda. E isto, apesar de, no curso da história, jamais se ter visto tantas teorias
psicológicas nem tantos livros sobre psicologia.
A psicologia é, às vezes, chamada uma ciência nova. Nada mais falso. Ela é, talvez, a
ciência mais antiga; infelizmente, em seus aspectos essenciais, é uma ciência esquecida.
Como definir a psicologia? Para compreender isso, é preciso dar-se conta de que, exceto
nos tempos modernos, a psicologia jamais existiu com seu próprio nome. Por vários
motivos, sempre foi suspeita de apresentar tendências falsas e subversivas, de caráter
religioso, político ou moral, e sempre teve que se ocultar sob diferentes disfarces.
Durante milênios, a psicologia existiu com o nome de filosofia. Na Índia, todas as formas
de Ioga, que são essencialmente psicologia, são descritas como um dos seis sistemas de
filosofia. Os ensinamentos sufis, que são, antes de tudo, de ordem psicológica, são
considerados em parte religiosos, em parte metafísicos. Na Europa, até pouco tempo
atrás, nos últimos anos do século XIX, muitas obras de psicologia eram citadas como
obras de “filosofia”. E embora quase todas as subdivisões da filosofia, tais como a lógica,
a teoria do conhecimento, a ética e a
mente, como aqueles que permaneceram ocultos ou disfarçados, podem dividir-se em duas
categorias principais.
Primeira: as doutrinas que estudam o homem tal como o encontram ou tal como o supõem
ou imaginam. A “psicologia científica” moderna, ou o que se conhece por esse nome, per-
tence a essa categoria.
Segunda: as doutrinas que estudam o homem não do ponto de vista do que ele é ou parece
ser, mas do ponto de vista do que ele pode chegar a ser, ou seja, do ponto de vista de sua
evolução possível.
Estas últimas são, na realidade, as doutrinas originais ou, em todo caso, as mais antigas e
as únicas que podem fazer compreender a origem esquecida da psicologia e sua
significação.
Quando tivermos reconhecido como é importante, no estudo do homem, o ponto de vista
de sua evolução possível, compreenderemos que a primeira resposta à pergunta: o que é
psicologia? deveria ser: psicologia é o estudo dos princípios, leis e fatos relativos à
evolução possível do homem.
Nestas conferências, colocar-me-ei exclusivamente em tal ponto de vista. Nossa primeira
pergunta será: o que significa a evolução do homem? E a segunda: ela exige condições es-
peciais?
Devo dizer, antes de tudo, que não poderíamos aceitar as concepções modernas sobre a
origem do homem e sua evolução passada. Devemos dar-nos conta de que nada sabemos
sobre essa origem e de que carecemos de qualquer prova de uma evolução física ou
mental do homem.
Muito ao contrário, se tomarmos a humanidade histórica, isto é, a dos dez ou quinze mil
últimos anos, podemos encontrar sinais inconfundíveis de um tipo superior de humanidade,
cuja presença pode ser demonstrada por múltiplos testemunhos e monumentos da
antiguidade, os quais os homens atuais seriam incapazes de recriar ou imitar.
Quanto ao “homem pré-histórico” ou a essas criaturas de aspecto semelhante ao homem
e, todavia, tão diferentes dele, cujos ossos se encontram, às vezes, em depósitos do
período
glacial ou pré-glacial, podemos aceitar a idéia muito plausível de que essas ossadas
pertenciam a um ser bem distinto do homem, desaparecido há muito tempo.
Ao negar a evolução passada do homem, devemos recusar-
-lhe toda possibilidade de uma evolução mecânica futura, isto é, de uma evolução que se
operaria por si só, segundo as leis da hereditariedade e da seleção, sem esforços
conscientes por parte do homem e sem que este tenha compreendido sequer a
possibilidade de sua evolução.
Nossa idéia fundamental é a de que o homem, tal qual o conhecemos, não é um ser
acabado. A natureza o desenvolve até certo ponto e logo o abandona, deixando-o
prosseguir em seu desenvolvimento por seus próprios esforços e sua própria iniciativa, ou
viver e morrer tal como nasceu, ou, ainda, degenerar e perder a capacidade de
desenvolvimento.
No primeiro caso, a evolução do homem significará o desenvolvimento de certas
qualidades e características interiores que habitualmente permanecem embrionárias e
que não podem se desenvolver por si mesmas.
A experiência e a observação mostram que esse desenvolvimento só é possível em
condições bem definidas, que exige esforços especiais por parte do próprio homem, e
uma ajuda suficiente por parte daqueles que, antes dele, empreenderam um trabalho da
mesma ordem e chegaram a um certo grau de desenvolvimento ou, pelo menos, a um certo
conhecimento dos métodos.
Devemos partir da idéia de que sem esforços a evolução é impossível e de que, sem ajuda,
é igualmente impossível.
Depois disso, devemos compreender que, no caminho do desenvolvimento, o homem deve
tornar-se um ser diferente e devemos estudar e conceber de que modo e em que direção
deve o homem converter-se num ser diferente, isto é, o que significa um ser diferente.
Depois, devemos compreender que nem todos os homens podem desenvolver-se e tornar-
se seres diferentes. A evolução é questão de esforços pessoais e, em relação à massa da
humanidade, continua a ser exceção rara. Isso talvez possa parecer
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estranho, mas devemos dar-nos conta não só de que a evolução é rara, mas também que se
torna cada vez mais rara.
Isso, naturalmente, provoca numerosas perguntas:
Que significa esta frase: “No caminho da evolução o homem deve tornar-se um ser
diferente”?
O que quer dizer “um ser diferente”?
Quais são essas qualidades e características interiores que podem ser desenvolvidas no
homem e como chegar até elas?
Por que nem todos os homens podem desenvolver-se e tornar-se seres diferentes? Por
que semelhante injustiça?
Tentarei responder a essas perguntas, começando pela última.
Por que nem todos os homens podem desenvolver-se e tomar-se seres diferentes?
A resposta é muito simples. Porque não o desejam. Porque nada sabem a respeito e ainda
que se lhes diga, não o compreenderão antes de uma longa preparação.
A idéia essencial é que, para tornar-se um ser diferente, o homem deve desejá-lo
intensamente e por muito tempo. Um desejo passageiro ou vago, nascido de uma
insatisfação no que diz respeito às condições exteriores, não criará um impulso
suficiente.
A evolução do homem depende de sua compreensão do que pode adquirir e do que deve
dar para isso.
Se o homem não o desejar, ou não o desejar com bastante intensidade e não fizer os
esforços necessários, jamais se desenvolverá. Não há, pois, injustiça alguma nisso. Por
que haveria de ter o homem o que não deseja? Se o homem fosse forçado a tomar-se um
ser diferente, quando está satisfeito com o que é, aí sim, haveria injustiça.
Perguntemo-nos, agora, o que significa um ser diferente. Se examinarmos todos os dados
que podemos reunir sobre essa questão, encontraremos sempre a afirmação de que, ao
tornar-se um ser diferente, o homem adquire numerosas qualidades novas
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e poderes que antes não possuía. Essa afirmação é comum a todas as doutrinas que
admitem a idéia de um crescimento interior do homem.
Isso, porém, não basta. As descrições, ainda que as mais detalhadas, desses novos
poderes não nos ajudarão de modo algum a compreender como aparecem nem de onde
vem.
Falta um elo nas teorias geralmente admitidas, mesmo naquelas de que acabo de falar e
que têm por base a idéia da possibilidade de uma evolução do homem.
A verdade é que antes de adquirir novas faculdades ou novos poderes, que não conhece e
ainda não possui, o homem deve adquirir faculdades e poderes que tampouco possui, mas
que se atribui, isto é, que crê conhecer e crê ser capaz de usar e de usar até com
maestria.
Esse é o “elo que falta”, e aí está o ponto de maior importância.
No caminho da evolução, definido como um caminho baseado no esforço e na ajuda, o
homem deve adquirir qualidades que crê já possuir, mas sobre as quais se ilude.
Para compreender isso melhor, para saber que faculdades novas, que poderes
insuspeitados pode o homem adquirir e quais são aqueles que imagina possuir, devemos
partir da idéia geral que o homem tem de si mesmo.
E encontramo-nos, de imediato, ante um fato importante.
guinte outra, pouco depois uma terceira e sempre assim, quase indefinidamente.
O que cria no homem a ilusão da própria unidade ou da própria integralidade é, por
um lado, a sensação que ele tem de seu corpo físico; por outro, seu nome, que em geral
não muda e, por último, certo número de hábitos mecânicos implantados nele pela
educação ou adquiridos por imitação. Tendo sempre as mesmas sensações físicas, ouvindo
sempre ser chamado pelo mesmo nome e, encontrando em si hábitos e inclinações que
sempre conheceu, imagina permanecer o mesmo.
Na realidade não existe unidade no homem, não existe um centro único de comando, nem
um “Eu’, ou ego, permanente
Eis aqui um esquema geral do homem:
EU
EUEUEU
EUEUEUEU
EUEUE
EU
Nota do digitador: No esquema original
Leia-se a palavra EU escrita em vários quadrados inscritos em círculos
Cada pensamento, cada sentimento, cada sensação, cada desejo, cada “eu gosto” ou “eu
não gosto”, é um “eu”. Esses eus” não estão ligados entre si, nem coordenados de modo
algum. Cada um deles depende das mudanças de circunstâncias exteriores e das mudanças
de impressões.
Tal “eu” desencadeia mecanicamente toda uma série de outros eus”. Alguns andam sempre
em companhia de outros. Não existe aí, porém, nem ordem nem sistema.
Alguns grupos de “eus” têm vínculos naturais entre si. Falaremos desses grupos mais
adiante. Por enquanto, devemos tratar de compreender que as ligações de certos grupos
de “eus”
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constituem-se unicamente de associações acidentais, recordações fortuitas ou
semelhanças completamente imaginárias.
Cada um desses “eus” não representa, em dado momento, mais que uma ínfima parte de
nossas funções, porém cada um deles crê representar o todo. Quando o homem diz “eu”,
tem-se a impressão de que fala de si em sua totalidade, mas, na realidade, mesmo quando
crê que isso é assim, é só um pensamento passageiro, um humor passageiro ou um desejo
passageiro. Uma hora mais tarde, pode tê-lo esquecido completamente e expressar, com a
mesma convicção, opinião, ponto de vista ou interesses opostos. O pior é que o homem não
se lembra disso. Na maioria dos casos, dá crédito ao último “eu” que falou, enquanto este
permanece, ou seja, enquanto um novo “eu” — às vezes sem conexão alguma com o
precedente — ainda não tenha expressado com mais força sua opinião ou seu desejo.
E agora, voltemos às outras perguntas.
O que se deve entender por “desenvolvimento”? E o que quer dizer tornar-se um ser
diferente? Em outras palavras, qual é a espécie de mudança possível ao homem? Quando e
como se inicia essa mudança?
Já dissemos que a mudança deve começar pela aquisição desses poderes e capacidades
que o homem se atribui, mas que, na realidade, não possui.
Isso significa que, antes de adquirir qualquer poder novo ou qualquer capacidade nova, o
homem deve desenvolver nele as qualidades que crê possuir e sobre as quais ele cria para
si as maiores ilusões.
O desenvolvimento não pode se basear na mentira a si mesmo, nem no enganar-se a si
mesmo. O homem deve saber
o que é seu e o que não é seu. Deve dar-se conta de que não possui as qualidades que se
atribui: a capacidade de fazer, a
individualidade ou a unidade, o Ego permanente, bem como a consciência e a vontade.
E é necessário que o homem saiba disso, pois enquanto imaginar possuir essas qualidades,
não fará os esforços necessários para adquiri-las, da mesma maneira que um homem não
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comprará objetos preciosos, nem estará disposto a pagar um preço elevado por eles, se
acreditar que já os possui.
A mais importante e a mais enganosa dessas qualidades é a consciência. E a mudança no
homem começa por uma mudança em sua maneira de compreender a significação da cons-
ciência e continua com a aquisição gradual de um domínio da consciência.
Que é a consciência?
Na linguagem comum, a palavra “consciência” é quase sempre empregada como equivalente
da palavra “inteligência”, no sentido de atividade mental.
Na realidade, a consciência no homem é uma espécie muito particular de “tomada de
conhecimento interior” independente de sua atividade mental — é, antes de tudo, uma
tomada de conhecimento de si mesmo, conhecimento de quem ele é, de onde está e, a
seguir, conhecimento do que sabe, do que não sabe, e assim por diante.
Só a própria pessoa é capaz de saber se está consciente ou não em dado momento. Certa
corrente de pensamento da psicologia européia provou, aliás, há muito tempo, que só o
próprio homem pode conhecer certas coisas sobre si mesmo.
Só o próprio homem, pois, é capaz de saber se a sua consciência existe ou não, em dado
momento. Assim, a presença ou a ausência de consciência no homem não pode ser provada
pela observação de seus atos exteriores. Como acabo de dizer, esse fato foi estabelecido
há muito, mas nunca se compreendeu realmente sua importância, porque essa idéia
sempre esteve ligada a uma compreensão da consciência como atividade ou processo
mental.
O homem pode dar-se conta, por um instante, de que, antes desse mesmo instante, não
estava consciente; depois, esquecera essa experiência e, ainda que a recorde, isso não
será a consciência. Será apenas a lembrança de uma forte experiência.
Quero, agora, chamar-lhes a atenção para outro fato perdido de vista por todas as
escolas modernas de psicologia.
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É o fato de que a consciência no homem jamais é permanente, seja qual for o modo como
é encarada. Ela está presente ou está ausente. Os momentos de consciência mais
elevados criam a memória. Os outros momentos, o homem simplesmente os esquece. L~
justamente isso que lhe dá, mais que qualquer outra coisa, a ilusão de consciência contínua
ou de “percepção de si” contínua.
Algumas modernas escolas de psicologia negam inteiramente a consciência, negam até a
utilidade de tal termo; isso, porém, não passa de paroxismo de incompreensão.
Outras escolas, se é possível chamá-las assim, falam de “estados de consciência”, quando
se referem a pensamentos, sentimentos, impulsos motores e sensações. Tudo isso tem
como base o erro fundamental de se confundir consciência com funções psíquicas.
Falaremos disso mais adiante.
Na realidade, o pensamento moderno, na maioria dos casos, continua a crer que a
consciência não possui graus. A aceitação geral, ainda que tácita, dessa idéia, embora em
contradição com numerosas descobertas recentes, tornou impossível muitas observações
sobre as variações da consciência.
O fato é que a consciência tem graus bem visíveis e observáveis, em todo caso visíveis e
observáveis por cada um em si mesmo.
Primeiro, há o critério da duração: quanto tempo se permaneceu consciente?
Segundo, o da freqüência: quantas vezes se tornou consciente?
Terceiro, o da amplitude e da penetração: do que se estava consciente? Pois isso pode
variar muito com o crescimento interior do homem.
Se considerarmos apenas os dois primeiros desses três pontos, poderemos compreender
a idéia de uma evolução possível da consciência. Essa idéia está ligada a um fato essencial,
perfeitamente conhecido pelas antigas escolas psicológicas, tais como a dos autores da
Philokalia, porém completamente ignorado pela filosofia e pela psicologia européias dos
dois ou três últimos séculos.
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É o fato de que, por meio de esforços especiais e de um estudo especial, a pessoa pode
tornar a consciência contínua e controlável.
Tentarei explicar como a consciência pode ser estudada. Tome um relógio e olhe o
ponteiro grande, tentando manter a percepção de si mesmo e concentrar-se no
pensamento “eu sou Pedro Ouspensky”, por exemplo, “eu estou aqui neste momento”.
Tente pensar apenas nisso, siga simplesmente o movimento do ponteiro grande,
permanecendo consciente de si mesmo, de seu nome, de sua existência e do lugar em que
você está. Afaste qualquer outro pensamento.
Se for perseverante, poderá fazer isso durante dois minutos. Tal é o limite da sua
consciência. E se tentar repetir a experiência logo a seguir, irá achá-la mais difícil que da
primeira vez.
Essa experiência mostra que um homem, em seu estado normal, pode, mediante grande
esforço, ser consciente de uma coisa (ele mesmo) no máximo durante dois minutos.
A dedução mais importante que se pode tirar dessa experiência, se realizada
corretamente, é que o homem não é consciente de si mesmo. Sua ilusão de ser consciente
de si mesmo é criada pela memória e pelos processos do pensamento.
Por exemplo, um homem vai ao teatro. Se tem esse hábito, não tem consciência especial
de estar ali enquanto ali está. E, não obstante, pode ver e observar; o espetáculo pode
interessá-lo ou aborrecer-lhe; pode lembrar-se do espetáculo, lembrar-se das pessoas
com quem se encontrou, e assim por diante.
De volta à casa, lembra-se de haver estado no teatro e, naturalmente, pensa ter estado
consciente enquanto lá se encontrava.
De forma que não tem dúvida alguma quanto à sua consciência e não se dá conta de que
sua consciência pode estar totalmente ausente, mesmo quando ele ainda age de modo
razoável, pensa e observa.
De maneira geral, o homem pode conhecer quatro estados de consciência, que são: o sono,
o estado de vigília, a consciência de si e a consciência objetiva
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.
Mesmo tendo a possibilidade de conhecer esses quatro estados de consciência, o homem
só vive, de fato, em dois desses estados: uma parte de sua vida transcorre no sono e a
outra, no que se chama “estado de vigília”, embora, na realidade, esse último difira muito
pouco do sono.
Na vida comum o homem nada sabe da “consciência objetiva” e não pode ter nenhuma
experiência dessa ordem. O homem se atribui o terceiro estado de consciência, ou
“consciência de si”, e crê possuí-lo, embora, na realidade, só seja consciente de si mesmo
por lampejos, aliás muito raros; e, mesmo nesses momentos, é pouco provável que
reconheça esse estado, dado que ignora o que implicaria o fato de realmente possuí-lo.
Esses vislumbres de consciência ocorrem em momentos excepcionais, em momentos de
perigo, em estados de intensa emoção, em circunstâncias e situações novas e inesperadas;
ou também, às vezes, em momentos bem simples onde nada de particular ocorre. Em seu
estado ordinário ou “normal”, porém, o homem não tem qualquer controle sobre tais
momentos de consciência.
Quanto à nossa memória ordinária ou aos nossos momentos de memória, na realidade, nós
só nos recordamos de nossos momentos de consciência, embora não saibamos que isso é
assim.
O que significa a memória no sentido técnico da palavra
— todas as diferentes espécies de memória que possuímos —explicá-lo-ei mais adiante.
Hoje, só desejo atrair sua atenção para as observações que tenham podido fazer a
respeito de sua memória. Notarão que não se recordam das coisas sempre da mesma
maneira. Algumas coisas são recordadas de forma muito viva, outras permanecem vagas e
existem aquelas de que não se recordam em absoluto. Sabem apenas que aconteceram.
Ficarão muito surpresos quando constatarem como se recordam de pouca coisa. E é
assim, porque só se recordam dos momentos em que estiveram conscientes.
Assim, para voltar a esse terceiro estado de consciência, podemos dizer que o homem
tem momentos fortuitos de consciência de si, que deixam viva lembrança das
circunstâncias em que eles ocorreram. O homem, entretanto, não tem nenhum poder
sobre tais momentos. Aparecem e desaparecem por si
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Ao contrário do que afirmam certas teorias modernas, a função sexual vem realmente
depois das outras, quer dizer, aparece mais tarde na vida, quando as quatro primeiras
funções já se tiverem manifestado plenamente: está condicionada por elas. Por
conseguinte, o estudo da função sexual será útil, apenas quando as quatro primeiras
funções forem conhecidas em todas as suas manifestações. Ao mesmo tempo, é preciso
compreender bem que qualquer irregularidade ou anomalia séria na função sexual torna
impossível o desenvolvimento de si e, até, o estudo de si.
Tratemos, agora , de compreender as quatro primeiras funções.
O que entendo por “função intelectual” ou “função do pensamento”, suponho que seja
claro para vocês. Nela estão compreendidos todos os processos mentais: percepção de
impressões, formação de representações e conceitos, raciocínio, comparação, afirmação,
negação, formação de palavras, linguagem, imaginação, e assim por diante.
A segunda função é o sentimento ou as emoções: alegria, tristeza, medo, surpresa, etc.
Ainda que estejam seguros de bem compreender como e em que as emoções diferem dos
pensamentos, aconselhá-los-ia a rever todas as suas idéias a esse respeito. Confundimos
pensamentos e sentimentos em nossas maneiras habituais de ver e de falar. Entretanto,
para começar a estudar-se a si mesmo, é necessário estabelecer claramente a diferença
entre eles.
As duas funções seguintes, instintiva e motora, reter-nos-ão por mais tempo, pois nenhum
sistema de psicologia comum distingue nem descreve corretamente essas duas funções.
As palavras “instinto” e “instintivo” são empregadas geralmente num sentido errôneo e,
freqüentemente, sem sentido algum. Em particular, atribui-se ao instinto manifestações
exteriores que são, na realidade, de ordem motora e, às vezes, emocional.
A Junção instintiva, no homem, compreende quatro espécies de funções:
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1 a) Todo o trabalho interno do organismo, toda a fisiologia por assim dizer: a digestão e
a assimilação do alimento, a respiração e a circulação do sangue, todo o trabalho dos
órgãos internos, a construção de novas células, a eliminação de detritos, o trabalho das
glândulas endócrinas, e assim por diante.
2 a) Os “cinco sentidos”, como são chamados: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o
tato; e todos os demais, como o sentido de peso, de temperatura, de secura ou de
umidade, etc., ou seja, todas as sensações indiferentes, sensações que não são, por si
mesmas, nem agradáveis nem desagradáveis.
3 a) Todas as emoções físicas, quer dizer, todas as sensações físicas que são agradáveis
ou desagradáveis; todas as espécies de dor ou de sensações desagradáveis, por exemplo,
um sabor ou um odor desagradável, e todas as espécies de prazer físico, como os sabores
e os odores agradáveis, e assim por diante.
4 a) Todos os reflexos, até os mais complicados, tais como o riso e o bocejo; todas as
espécies de memória física, tais como a memória do gosto, do olfato, da dor, que são, na
realidade, reflexos internos.
A Junção motora compreende todos os movimentos exteriores, tais como caminhar,
escrever, falar, comer, e as lembranças que disso restam. À função motora pertencem
também movimentos que a linguagem corrente qualifica de “instintivos”, como o de aparar
um objeto que cai, sem pensar nisso.
A diferença entre a função instintiva e a função motora é muito clara e fácil de
compreender; basta recordar que todas as funções instintivas, sem exceção, são inatas e
não é necessário aprendê-las para utilizá-las; ao passo que nenhuma das funções de
movimento é inata e é necessário aprendê-las todas; assim, a criança aprende a nadar,
aprendemos a escrever ou a desenhar.
Além dessas funções motoras normais, existem ainda estranhas funções de movimento,
que representam o trabalho inútil da máquina humana, trabalho não previsto pela
natureza, mas que ocupa um vasto lugar na vida do homem e consome grande quantidade
de sua energia. São: a formação dos sonhos, a ima-
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ginação, o devaneio, o falar consigo mesmo, o falar por falar e, de maneira geral, as
manifestações incontroladas e incontroláveis.
As quatro funções — intelectual, emocional, instintiva e motora — devem, antes de tudo,
ser compreendidas em todas as suas manifestações; depois, é preciso observá-las em si
mesmo. Essa observação de si, que deve ser feita a partir de dados corretos, com prévia
compreensão dos estados de consciência e das diferentes funções, constitui a base do
estudo de si, isto é, o início da psicologia.
Ë muito importante recordar que, enquanto observamos as
diferentes funções, cumpre observar ao mesmo tempo sua relação com os diferentes
estados de consciência.
Tomemos os três estados de consciência — sono, estado de
vigília, lampejos de consciência de si — e as quatro funções:
pensamento, sentimento, instinto e movimento.
Quando aprendermos a observar esses resultados e a diferença entre eles,
compreenderemos a relação correta entre as
funções e os estados de consciência.
Mas, antes de considerar as diferenças que apresenta uma função segundo o estado de
consciência, é preciso compreender que a consciência de um homem e as funções de um
homem são dois fenômenos de ordem completamente diferente, de natureza totalmente
diferente, dependentes de causas diferentes, e que um pode existir Sem o outro.
As Junções podem existir sem a consciência e a consciência
pode existir sem as Junções.
Essas quatro funções podem manifestar-se no sono, mas suas manifestações são então
desconexas e destituídas de qualquer fundamento. Não podem ser utilizadas de maneira
alguma; funcionam automaticamente.
No estado de consciência de vigília ou de consciência relativa, elas podem, até certo
ponto, servir para nossa orientação. Seus resultados podem ser comparados, verificados,
retificados e, embora possam criar numerosas ilusões, só contamos no entanto com elas
em nosso estado ordinário e devemos usá-las na medida em que podemos. Se
conhecêssemos a quantidade de observações falsas, de falsas teorias, de falsas deduções
e conclusões feitas nesse estado, cessaríamos completamente de crer em nós mesmos.
Entretanto, os homens não se dão conta de quanto as suas observações e teorias podem
ser enganadoras e continuam a crer nelas. E é isso o que impede os homens de
observarem os raros momentos em que suas funções se manifestam sob o efeito dos
lampejos do terceiro estado de consciência, ou seja, da consciência de si.
Tudo isso significa que cada uma das quatro funções pode manifestar-se em cada um dos
três estados de consciência. Os resultados, todavia, diferem inteiramente.
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Quando aprendemos a observar estes resultados e a diferença entre eles,
compreenderemos a relação correta entre as funções e os estados de consciência.
Mas, antes de considerar as diferenças que apresenta uma função segundo o estado de
consciência, é preciso compreender que a consciência de um homem e as funções de um
homem são dois fenômenos de ordem completamente diferente ,de natureza totalmente
diferente, dependentes de causas diferentes, e que um pode existir sem o outro.
As funções podem existir sem a consciência e a consciência pode existir sem as funções.
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SEGUNDA CONFERÊNCIA
Continuamos nosso estudo do homem por um exame mais detalhado dos diferentes
estados de consciência.
Como já disse, existem quatro estados de consciência possíveis para o homem: o “sono”, a
“consciência de vigília”, a ‘‘consciência de si e a ‘‘consciência objetiva’’; mas o homem vive
apenas em dois desses estados, em parte no sono e em parte no que às vezes se denomina
“consciência de vigília”. ~ como se possuísse uma casa de quatro andares, mas só vivesse
nos dois andares inferiores.
O primeiro dos estados de consciência, o mais baixo, é o sono. um estado puramente
subjetivo e passivo. O homem está rodeado de sonhos. Todas as suas funções psíquicas
trabalham sem direção alguma. Não há lógica, não há continuidade, não há causa nem
resultado nos sonhos. Imagens puramente subjetivas, ecos de experiências passadas ou
ecos de vagas percepções do momento, ruídos que chegam ao adormecido, sensações
corporais tais como ligeiras dores, sensação de tensão muscular, atravessam o espírito
sem deixar mais que um tênue vestígio na memória e quase sempre sem deixar sinal
algum.
O segundo grau de consciência aparece quando o homem desperta. Este segundo estado, o
estado no qual nos encontramos neste momento, quer dizer, no qual trabalhamos, falamos,
imaginamos que somos seres conscientes, denominamo-lo freqüentemente “consciência
lúcida” ou “consciência desperta”, quando na realidade deveria ser chamado “sono
desperto” ou “consciência relativa”. Este último termo será explicado mais adiante.
Aqui é preciso compreender que o primeiro estado de consciência, o sono, não se dissipa
quando aparece o segundo estado,
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isto é, quando o homem desperta. O sono permanece, com todos os seus sonhos e
impressões; só que, para a pessoa, ao sono se acrescenta uma atitude crítica para com
suas próprias impressões, pensamentos mais bem coordenados e ações mais disciplinadas.
E, em decorrência da vivacidade das impressões sensoriais, dos desejos e dos
sentimentos — em particular do sentimento de contradição ou de impossibilidade, cuja
ausência é total no sono —‘ os sonhos tornam-se invisíveis, tal como a lua e as estrelas
tornam-se invisíveis à claridade do sol. Porém, todos estão presentes e freqüentemente
exercem sobre o conjunto de nossos pensamentos, sentimentos e ações, uma influência
cuja força supera, às vezes, a das percepções reais do momento.
A esse respeito devo dizer que não me refiro aqui ao que, na psicologia moderna, se
chama “subconsciente” ou “pensamento subconsciente”. São simplesmente expressões
errôneas, termos equivocados que não significam nada e não se referem a nenhum fato
real. Em nós, nada é subconsciente de maneira permanente, já que nada em nós é
consciente de modo permanente, e não existe “pensamento subconsciente” pela simples
razão de que não há “pensamento consciente”. Mais tarde verão como este erro se
produziu, como esta falsa terminologia pôde aparecer e ser admitida quase em toda
parte.
Voltemos, todavia, aos estados de consciência que existem de fato. O primeiro é o sono.
O segundo é o “sono desperto” ou consciência relativa
O primeiro, como disse, é um estado puramente subjetivo. O segundo é menos subjetivo;
o homem já distingue entre o “eu" e o “não-eu", ou seja, entre seu corpo e os objetos que
diferem de seu corpo, e pode conhecer a posição e as qualidades deles. Mas não se
poderia dizer que, nesse estado, o homem esteja desperto, visto que permanece
poderosamente influenciado pelos sonhos e, de fato, vive mais nos sonhos que na reali-
dade. Todos os absurdos e todas as contradições dos homens e da vida humana em geral
se explicam, se compreendermos que os homens vivem no sono, agem no sono e não sabem
que estão dormindo.
É útil lembrar que tal é realmente a significação interior de numerosos ensinamentos
antigos. O mais bem conhecido de
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nós é o Cristianismo, ou o ensinamento dos Evangelhos, onde todas as explicações da vida
humana se baseiam na idéia de que os homens vivem no sono e devem, antes de tudo,
despertar-se; no entanto, quase nunca essa idéia é compreendida como deveria ser, ou
seja, no presente caso, ao pé da letra.
Entretanto, toda a questão é saber como um homem pode despertar.
O ensinamento dos Evangelhos exige o despertar, mas não diz como despertar.
O estudo psicológico da consciência mostra que é somente a partir do momento em que o
homem vê que está adormecido que se pode dizer dele que está a caminho do despertar.
Jamais poderá despertar-se antes de ter visto que está adormecido.
Esses dois estados, sono e sono desperto, são os dois únicos estados em que vive o
homem. Além deles, o homem poderá conhecer dois outros estados de consciência, mas
estes só lhe são acessíveis depois de dura e prolongada luta.
Esses dois estados superiores de consciência são denominados consciência de si” e
“consciência objetiva
Admite-se geralmente que possuimos a consciência de si, que somos conscientes de nós
mesmos ou, pelo menos, que podemos ser conscientes de nós mesmos no instante em que
desejarmos; mas, na realidade, a “consciência de si” é um estado que nós nos atribuímos
sem o menor direito. Quanto à “consciência objetiva”, é um estado do qual nada sabemos.
A consciência de si é um estado no qual o homem se torna objetivo em relação a si mesmo
e a consciência objetiva é um estado no qual ele entra em contato com o mundo real ou
objetivo, do qual está atualmente separado pelos sentidos, pelos sonhos e pelos estados
subjetivos de consciência.
Outra definição dos quatro estados de consciência pode ser estabelecida de acordo com
as possibilidades que eles oferecem de se conhecer a verdade.
No primeiro estado de consciência, o sono, nada podemos saber da verdade. Ainda que
cheguem até nós percepções OU sentimentos reais, estes se mesclam aos sonhos; e,
nesse estado de sono, não podemos distinguir os sonhos da realidade.
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pre desembaraçar-se da segunda ilusão, a de poder obter algo por si mesmo, pois por si
mesmo nada se pode obter.
Estas conferências não são uma escola, nem sequer o começo de uma escola. Uma escola
exige uma pressão de trabalho muito mais forte. Nestas conferências, porém, posso dar a
meus ouvintes algumas idéias sobre a maneira como as escolas trabalham e dizer-lhes de
que modo se pode descobri-las.
Já dei duas definições de psicologia.
Primeiro, disse que psicologia era o estudo das possibilidades de evolução do homem e,
depois, que psicologia era o estudo de si.
Queria dizer que só a psicologia cujo objeto é a evolução do homem é digna de ser
estudada e que a psicologia que se ocupa de uma única fase do homem, sem nada conhecer
das demais, é, evidentemente, incompleta e não pode ter valor algum, nem sequer de um
ponto de vista puramente científico, isto é, do ponto de vista da experiência e da
observação. Com efeito, a fase atual , tal como a estuda a psicologia comum, não existe
separadamente como tal e comporta numerosas subdivisões que vão desde as fases
inferiores até as superiores. Além do mais, a própria experiência e a observação mostram
que não se pode estudar a psicologia como se estuda qualquer outra ciência, sem relação
direta alguma consigo mesmo. Cumpre começar o estudo da psicologia partindo de si.
Se confrontarmos, por um lado, o que podemos saber sobre a fase seguinte da evolução
do homem — no curso da qual adquirirá a consciência, a unidade interior, um Eu
permanente e a vontade — e, por outro, certos dados da observação de si que nos
permitam reconhecer que não possuímos nenhum destes poderes e faculdades que nos
atribuímos, tropeçaremos em nova dificuldade em nosso esforço para compreender a
significação da psicologia. E sentiremos a necessidade de nova definição.
As duas definições dadas na conferência anterior não são suficientes, porque o homem
não sabe qual evolução lhe é permitida, não vê em que ponto se encontra atualmente e se
atribui características que pertencem a fases superiores da evolução. De fato, ele não
pode estudar-se, sendo incapaz de distinguir entre o imaginário e o real nele.
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O que é mentir?
Em linguagem corrente, mentir quer, dizer deformar ou, em certos casos, dissimular a
verdade ou o que se acredita ser a verdade. Tal espécie de mentira desempenha um papel
muito importante na vida. Há, porém, formas muito piores de mentira, as que o homem diz
sem saber que mente. Já lhes disse que, em nosso estado atual, não podemos conhecer a
verdade e que somente nos é dado conhecê-la no estado de consciência objetiva. Como
podemos então mentir? Parece haver aí uma contradição, mas na realidade não existe
nenhuma. Não podemos conhecer a verdade, mas podemos fingir conhecê-la. E mentir é
isso. A mentira preenche nossa vida toda. As pessoas aparentam saber tudo sobre Deus,
a vida futura, o universo, as origens do homem, a evolução, sobre todas as coisas, mas, na
realidade, nada sabem, nem sequer sobre si mesmas. E, cada vez que falam de algo que
não conhecem, como se o conhecessem, elas mentem. Por conseguinte, o estudo da
mentira torna-se de importância primordial em psicologia.
Isso poderia até conduzir a esta terceira definição da psicologia: a psicologia é o estudo
da mentira.
A psicologia dá particular atenção às mentiras que o homem conta sobre si mesmo. Essas
mentiras tornam muito difícil o estudo do homem. Tal como é, o homem não é um artigo
autêntico. Ë a imitação de algo e até mesmo uma péssima imitação.
Imaginem que um sábio de um planeta distante receba da Terra amostras de flores
artificiais, sem nada saber sobre as flores verdadeiras. Ser-lhe-á extremamente difícil
defini-las, explicar sua forma, suas cores, os materiais de que são feitas — algodão,
arame, papel colorido — e classificá-las de um modo qualquer.
Com relação ao homem, a psicologia encontra-se em situação totalmente análoga. Ë
obrigada a estudar um homem artificial, sem conhecer o homem real.
Ë evidente que não é fácil estudar um ser como o homem, que não sabe, ele próprio, o que
é real e o que é imaginário nele mesmo. De modo que, a psicologia deve começar por esta-
belecer distinção entre o real e o imaginário do homem.
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É impossível estudar o homem como um todo, porquanto ele está dividido em duas partes:
uma que, em certos casos, pode ser quase inteiramente real e outra que, em certos casos,
pode ser quase inteiramente imaginária. Na maioria dos homens comuns, essas duas
partes estão entremescladas e não é fácil distingui-las, se bem que cada uma delas esteja
presente e cada uma possua significação e efeitos particulares.
No sistema que estudamos, essas duas partes são chamadas essência e personalidade.
A essência é o que é inato no homem.
A personalidade é o que é adquirido.
A essência é seu bem próprio, o que é dele. A personalidade é o que não é dele. A essência
não pode perder-se, não pode ser modificada nem degradada tão rapidamente como a
personalidade. A personalidade pode ser modificada quase por completo com uma
mudança de circunstâncias; pode perder-se ou deteriorar-se facilmente.
Se tento descrever o que é a essência, devo dizer, antes de tudo, que é a base da
estrutura física e psíquica do homem. Por exemplo, um homem é por natureza o que se
chama de bom marinheiro, outro não é; um tem ouvido musical, outro não tem; um tem o
dom das línguas, outro carece dele. Eis aí a essência.
A personalidade é tudo o que pôde ser aprendido de um modo ou de outro — em
linguagem corrente, “consciente” ou “inconscientemente”.
Na maioria dos casos, “inconscientemente” significa por imitação, desempenhando a
imitação, de fato, um papel muito importante na construção da personalidade. Mesmo nas
funções instintivas que, por natureza, deveriam ser isentas de personalidade, existem
geralmente muitos “gostos adquiridos”, isto é, toda espécie de “eu gosto” e “eu não gosto”
artificiais, adquiridos todos por imitação ou imaginação. Esses “gosto” e “não gosto”
artificiais desempenham um papel muito importante e desastroso na vida do homem. Por
natureza, o homem deveria gostar do que é bom para ele e detestar o que é mau para ele.
E assim é, enquanto a essência domina a personalidade, como deveria fazê-lo ou, dito de
outro modo, enquanto o homem é são e normal. Mas, quando a personalidade começa a
dominar a essên-
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cia e o homem já é menos são, começa a gostar do que é mau para ele e a detestar o que
lhe é bom.
E aqui tocamos no que pode correr o risco de ser falseado, em primeiro lugar, nas
relações entre a essência e a personalidade.
Normalmente, a essência deve dominar a personalidade e a personalidade pode ser então
muito útil. Mas, quando a personalidade domina a essência, isso acarreta os piores
resultados.
Deve-se compreender que a personalidade é também necessária ao homem; não podemos
viver sem personalidade, apenas com a essência. Mas a essência e a personalidade devem
crescer paralelamente e jamais uma deve prevalecer sobre a outra.
Casos em que a essência prevalece sobre a personalidade encontram-se entre as pessoas
incultas; esses homens “simples”, como se diz, podem ser boníssimos e até inteligentes,
mas são incapazes de desenvolver-se como aqueles cuja personalidade é mais
desenvolvida.
Casos em que a personalidade prevalece sobre a essência encontram-se freqüentemente
entre as pessoas cultas, e a essência permanece então num estado de semicrescimento ou
de desenvolvimento incompleto.
Desse modo, quando há desenvolvimento rápido e prematuro da personalidade, o
crescimento da essência pode praticamente deter-se em idade muito tenra, e o resultado
é que vemos homens e mulheres de aparência adulta, cuja essência, porém, permaneceu na
idade de dez ou doze anos.
Inúmeras condições da vida moderna favorecem esse subdesenvolvimento da essência.
Por exemplo, o empolgamento pelo esporte e, sobretudo, pela competição desportiva,
pode muito bem deter o desenvolvimento da essência e às vezes até em idade tão tenra,
que a essência nunca mais é capaz de erguer-se novamente.
Isso mostra que a essência não pode ser encarada unicamente com relação à constituição
física, no sentido simples desta noção. A fim de explicar mais claramente o que significa a
essência, é necessário, uma vez mais, que eu volte ao estudo das funções.
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Disse, na primeira conferência, que o estudo do homem começa pelo estudo de quatro
funções: intelectual, emocional, motora e instintiva. Segundo a psicologia comum e o
pensamento comum, sabemos que as funções intelectuais são assumidas e controladas por
determinado centro, que se chama “mente” ou “intelecto” ou “cérebro”. E isso é muito
justo; entretanto, para que seja realmente justo, devemos compreender que as outras
funções também são controladas por um cérebro, ou centro, particular a cada uma delas.
Por conseguinte, do ponto de vista deste ensinamento, há quatro cérebros ou centros que
controlam nossas ações ordinárias: o cérebro ou centro intelectual, o centro emocional, o
centro motor e o centro instintivo. Quando os mencionarmos a seguir, chamá-los-emos
sempre centros. Cada centro é completamente independente dos outros, possui sua
esfera de ação particular, seus próprios poderes e suas próprias modalidades de
desenvolvimento.
Os centros, isto é, sua estrutura, suas capacidades, seus lados fortes e seus pontos
débeis pertencem à essência. Seu conteúdo, isto é, tudo o que cada um deles adquire,
pertence à personalidade. O conteúdo dos centros será explicado mais adiante.
Como já disse, para o desenvolvimento do homem, a personalidade é tão necessária quanto
a essência, mas deve manter-se em seu lugar. Isso é quase impossível de se efetuar
porque a personalidade está cheia de idéias falsas sobre si mesma. Não quer nunca
permanecer em seu lugar, porque seu verdadeiro lugar é secundário e subordinado; não
quer conhecer a verdade sobre si mesma, porque conhecer a verdade significaria aban-
donar a situação usurpada e ocupar a situação inferior que, na realidade, lhe compete.
A falsa situação na qual se encontram a essência e a personalidade, uma em relação à
outra, determina a falta de harmonia no estado atual do homem e o único meio de sair
desse estado de desarmonia é o conhecimento de si.
Conhece-te a ti mesmo — este era o primeiro princípio e a primeira exigência de todas as
antigas escolas de psicologia. Lembramo-nos ainda dessas palavras, mas perdemos sua
significação. Pensamos que conhecermo-nos a nós mesmos quer dizer
32
conhecermos nossas particularidades, nossos desejos, nossos gostos, nossas capacidades
e nossas intenções, quando na realidade isso significa conhecermo-nos como máquinas,
isto é, conhecermos a estrutura da nossa máquina, suas partes, as funções das diferentes
partes, as condições que regem seu trabalho, e assim por diante. Compreendemos, em
geral, que não podemos conhecer máquina alguma sem havê-la estudado. Devemos nos
lembrar disso quando se trata de nós mesmos e devemos estudar nossa própria máquina
como máquina que é. O meio de estudá-la é a observação de si. Não existe outro meio e
ninguém pode fazer esse trabalho por nós. Devemos fazê-lo nós mesmos. Antes, contudo,
devemos aprender como observar. Quero dizer que devemos compreender o lado técnico
da observação, devemos saber que é necessário observar diferentes funções e distingui-
las entre si, recordando ao mesmo tempo o que sabemos dos diferentes estados de
consciência, do nosso sono e dos numerosos “eus” que existem em nós.
Tais observações darão resultado prontamente. Em primeiro lugar, o homem notará que
não pode observar imparcialmente nada do que encontra em si mesmo. Certos traços lhe
agradarão, outros lhe desagradarão, o irritarão ou mesmo lhe causarão horror. E não
pode ser de outro modo. O homem não pode estudar-se como se fosse uma estrela
longínqua ou curiosa espécie de fóssil. Naturalmente, gostará nele daquilo que favorece o
seu desenvolvimento e detestará aquilo que torna esse desenvolvimento mais difícil ou
até impossível. Isso quer dizer que muito pouco tempo depois de haver começado a
observar-se, distinguirá em si os traços úteis e os traços prejudiciais, isto é, úteis ou
prejudiciais do ponto de vista de um conhecimento possível de si mesmo, de um despertar
possível, de um desenvolvimento possível. Discernirá nele o que pode tornar-se consciente
e o que não pode e deve ser eliminado. Ao se observar, nunca deverá esquecer que o
estudo de si é o primeiro passo no caminho de sua evolução possível.
Devemos, agora , examinar quais são esses traços prejudiciais que o homem encontra em
si mesmo.
De modo geral, são todas as manifestações mecânicas. Como já dissemos, a primeira é
mentir. A mentira é inevitável na vida
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mecânica. Ninguém pode escapar dela e, quanto mais cremos estar livres da mentira, mais
ela nos tem em seu poder. A vida tal qual é hoje não poderia continuar sem a mentira.
Mas, do ponto de vista psicológico, a mentira tem outro sentido. Significa falar de coisas
que não conhecemos e que nem sequer podemos conhecer, como se as conhecêssemos e
como se pudéssemos conhecê-las.
Devem compreender bem que não me coloco num ponto de vista moral, seja qual for. Não
chegamos ainda à questão do que é bom e do que é mau em si. Coloco-me no simples ponto
de vista prático, falo só do que é util ou prejudicial ao estudo de si e ao desenvolvimento
de si.
Começando desse modo, o homem aprende muito depressa
a descobrir os sinais pelos quais pode reconhecer em si mesmo
as manifestações prejudiciais. Descobre que quanto mais controla uma manifestação,
menos prejudicial ela é e que quanto menos a controla — por conseguinte, quanto mais
mecânica ela é — mais prejudicial pode se tornar.
Ao compreender isso, o homem tem medo de mentir, não por razões morais, repito, mas
porque não pode controlar sua mentira e porque a mentira o controla, isto é, controla suas
outras funções.
O segundo traço perigoso que encontra em si mesmo é a imaginação. Depois de ter
começado a observar-se, chega bem depressa à conclusão de que o principal obstáculo à
observação é a imaginação. Quer observar alguma coisa, mas em lugar disso é tomado pela
imaginação e se esquece de observar. Não tarda a dar-se conta de que à palavra
“imaginação” é dado um sentido fictício e de modo algum justificado: o de faculdade
criadora ou seletiva. Percebe que a imaginação é uma faculdade destrutiva, que ele nunca
pode controlá-la e que ela sempre o arrasta para longe de suas decisões mais,
conscientes, numa direção aonde não tinha intenção de ir. A imaginação é quase tão
perniciosa quanto a mentira; de fato, imaginar é mentir-se a si mesmo. O homem começa a
imaginar algo para dar prazer a si mesmo e rapidamente começa a acreditar no que
imagina, pelo menos em parte.
34
Descobre-se ainda, às vezes até no início, quantas conseqüências perigosas pode ter a
expressão das emoções negativas. Por “emoções negativas” designam-se todas as emoções
de violência ou depressão: compaixão de si mesmo, cólera, suspeita, medo, contrariedade,
aborrecimento, desconfiança, ciúme, etc. Comumente, aceita-se a expressão das emoções
negativas como coisa inteiramente natural e até necessária. Freqüentemente as pessoas
chamam-na “sinceridade”. Ë claro que isso nada tem a ver com sinceridade; é
simplesmente sinal de debilidade no homem, sinal de mau caráter e de impotência de
guardar para si seus próprios agravos. O homem compreende isso quando se esforça em
opor-se a suas emoções negativas. E isso é uma lição nova para ele. Vê que não basta
observar as manifestações mecânicas; é preciso resistir a elas, porque sem resistir-lhes,
não pode observá-las. Sua aparição é tão rápida, tão familiar e tão imperceptível, que é
impossível notá-las, se não fizermos esforços suficientes para criar-lhes obstáculos.
Depois da expressão das emoções negativas, cada um pode descobrir em si mesmo e nos
outros um traço mecânico curioso. Ë o fato de falar. Não há mal algum no próprio fato de
falar. Mas, em certas pessoas, e muito particularmente nas que menos se dão conta disso,
falar converte-se realmente num vício. Falam o tempo todo, onde se encontrem, no
trabalho, viajando, até dormindo. Não param nunca de falar, quando podem falar a alguém
e, se não há ninguém, falam consigo mesmas.
Também aí é necessário não só observar, mas resistir o mais possível. Se alguém se
permite falar sem resistir, nada pode observar e os resultados das observações que faz
evaporam-se imediatamente em tagarelice.
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Essa queda perpétua no sono apresenta certos aspectos bem determinados, de que a
psicologia comum nada sabe ou, pelo menos, que ela não pode nem classificar, nem definir.
Esses aspectos necessitam de um estudo especial.
São em número de dois: o primeiro denomina-se identificação.
A “identificação” é um estado curioso, no qual o homem passa mais da metade de sua vida.
O homem “identifica-se” com tudo: com o que diz, com o que sabe, com o que crê, com o
que não crê, com o que deseja, com o que não deseja, com o que o atrai ou com o que o
repele. Tudo o absorve. E é incapaz de separar-se da idéia, do sentimento ou do objeto
que o absorve. Isso quer dizer que no estado de identificação o homem é incapaz de
considerar imparcialmente o objeto de sua identificação.
Ë difícil encontrar uma coisa, por pequena que seja, com a qual o homem não possa
identificar-se. Ao mesmo tempo, no estado de identificação, o homem tem menos
controle que nunca sobre suas reações mecânicas. Manifestações tais como a mentira, a
imaginação, a expressão das emoções negativas e a tagarelice constante exigem a
identificação. Não podem existir sem identificação. Se o homem pudesse libertar-se da
identificação, libertar-se-ia de muitas manifestações inúteis e tolas.
A identificação, seu verdadeiro sentido, suas causas e resultados são admiravelmente
descritos na Philokalia, da qual falamos na primeira conferência. Mas, não se poderia
encontrar na psicologia moderna o menor sinal de compreensão a esse respeito. Ë uma
“descoberta psicológica” completamente esquecida.
O segundo fator de sono é um estado muito próximo da identificação, chamado
“consideração”. De fato, “considerar” é identificar-se com as pessoas. Ë um estado no
qual o homem se preocupa constantemente com o que as pessoas pensam dele:
tratam-no de acordo com seus méritos? Admiram-no o bastante? E assim até o infinito. A
“consideração” desempenha um papel muito importante na vida de cada um, mas para
certas pessoas converte-se em obsessão. Sua vida inteira está tecida de “consideração”,
quer dizer, de preocupação, de dúvida e de suspeita. a ponto de não deixar lugar para
mais nada.
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O mito do “complexo de inferioridade” e dos outros “complexos” nasceu desses
fenômenos vagamente percebidos, mas não compreendidos, de “identificação” e de
“consideração”.
A “identificação” e a “consideração” devem ambas ser observadas de maneira muito séria.
Só o pleno conhecimento que delas se possa ter permite enfraquecê-las. Se não se pode
vê-las em si mesmo, pode-se facilmente observá-las nos outros. Mas é preciso que nos
lembremos de que nós próprios não somos em nada diferentes dos outros. A esse
respeito, todos os homens são iguais.
Voltando ao que dizíamos há pouco, devemos esforçar-nos em ter uma idéia mais clara da
maneira pela qual o desenvolvimento do homem deve começar. E devemos compreender em
que o estudo de si pode ajudar-nos nisso.
Desde o início, encontramos uma dificuldade em nossa linguagem. Por exemplo, queremos
falar do homem do ponto de vista da evolução. Mas a palavra “homem”, na linguagem co-
mum, não admite variação alguma, gradação alguma. O homem que nunca está consciente e
nem sequer suspeita disso, o homem que luta para tornar-se consciente, o homem que é
plenamente consciente, tudo é a mesma coisa para a nossa linguagem. Num caso como no
outro é sempre o “homem”. Para evitar essa dificuldade e para facilitar a classificação
das novas idéias que apresenta, este ensinamento divide o homem em sete categorias.
As três primeiras categorias estão praticamente no mesmo nível.
O homem n.0 1 é um homem no qual o centro instintivo ou o centro motor prevalece sobre
os centros intelectual e emocional; dito de outro modo: é o homem físico.
O homem n.0 2 é um homem no qual o centro emocional prevalece sobre os centros
intelectual, motor e instintivo: e o homem emocional.
O homem n.0 3 é um homem no qual o centro intelectual prevalece sobre os centros
emocional, motor e instintivo: é o homem intelectual.
Na vida comum, só encontramos essas três categorias de homens. Cada um de nós, cada
um daqueles que conhecemos é
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TERCEIRA CONFERÊNCIA
A idéia de que o homem é uma máquina não é nova. E realmente o único ponto de vista
científico possível, pois é baseado na experiência e na observação. Durante a segunda me-
tade do século XIX, o que se chamava “psicofisiologia” dava uma definição muito boa da
mecanicidade do homem. O homem era considerado incapaz de fazer qualquer movimento
se não recebesse impressões exteriores. Os sábios dessa época sustentavam que, se
fosse possível privar o homem, desde o nascimento, de qualquer impressão exterior ou
interior, mas mantendo-o vivo, ele seria incapaz de fazer o menor movimento.
Tal experiência, evidentemente, é impossível, mesmo com um animal, pois o próprio
processo de manutenção da vida - respiração, alimentação, etc. — produziria toda sorte
de impressões, que desencadeariam diferentes movimentos reflexos, despertando depois
o centro motor.
Essa idéia, entretanto, é interessante, pois mostra claramente que a atividade da máquina
depende de impressões externas e começa com reações a essas impressões.
Na máquina, cada centro está perfeitamente adaptado para receber a espécie de
impressões que lhe é própria e para responder a elas da maneira desejada. E, quando os
centros trabalham corretamente, é possível calcular o trabalho da máquina. Pode-se
prever e predizer muitos incidentes e reações que se produzirão na máquina. Pode-se
estudá-los e até dirigi-los.
Infelizmente, os centros rarissimamente trabalham como deveriam, mesmo num homem
considerado são e normal. Isso porque os centros estão feitos de tal modo que podem,
até certo ponto, substituir-se mutuamente. No plano original da
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natureza, a finalidade era, sem dúvida alguma, assegurar desse modo a continuidade do
funcionamento dos centros e criar uma salvaguarda contra possíveis interrupções do
trabalho da máquina, porquanto em certos casos uma interrupção poderia ser fatal.
Mas, nessas máquinas indisciplinadas que somos todos nós, a capacidade que têm os
centros de trabalhar um pelo outro torna-se tão excessiva, que cada um deles raramente
faz seu próprio trabalho. Quase a cada minuto, um ou outro centro abandona seu próprio
trabalho e procura fazer o do outro, o qual, por sua vez, procura fazer o de um terceiro.
Os centros, como já disse, podem substituir-se um ao outro até certo ponto, mas não
completamente; e, nesse caso, trabalham, evidentemente, de maneira muito menos eficaz.
Por exemplo, o centro motor pode, dentro de certos limites, imitar o trabalho do centro
intelectual, mas só produzirá pensamentos muito vagos, muito desconexos, como nos
sonhos e devaneios. Por sua vez, o centro intelectual pode trabalhar em lugar do centro
motor. Tente, por exemplo, escrever pensando em cada uma das letras e como formá-las.
Você pode tentar experiências semelhantes, tratando de servir-se do pensamento para
fazer qualquer coisa que as mãos ou as pernas podem realizar sem a ajuda dele. Tente,
por exemplo, descer uma escada observando cada movimento, ou executar um trabalho
manual que lhe seja familiar, calculando e preparando em pensamento cada pequeno gesto;
verá logo quão mais difícil se torna o trabalho e até que ponto o centro intelectual é mais
lento e mais desajeitado que o centro motor.
Pode ainda constatá-lo quando aprende um novo tipo de movimento. Suponha que você
aprenda a escrever à máquina ou empreenda qualquer tipo de trabalho físico que seja
novo ou, então, tome o exemplo do soldado que se exercita no manejo do fuzil. Durante
algum tempo, todos os seus movimentos dependerão do centro intelectual e só mais tarde
passarão ao centro motor.
Todos conhecemos o alívio que se experimenta quando os movimentos já se tornaram
automáticos, quando os ajustes foram feitos e quando não há mais necessidade de pensar
nem calcular incessantemente cada movimento. Isso significa que os movi-
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mentos passaram para o centro motor, ao qual normalmente pertencem.
O centro instintivo pode trabalhar pelo centro emocional e este pode, ocasionalmente,
trabalhar por todos os outros centros. Em certos casos, o centro intelectual pode
trabalhar em lugar do centro instintivo, embora sé possa fazer uma parte muito reduzida
desse trabalho, a que se relaciona com os movimentos visíveis, os movimentos do tórax
durante a respiração, por exemplo. E muito perigoso intervir nas funções normais do
centro instintivo; é o caso da respiração artificial, descrita às vezes como “respiração
dos iogues” e que sé deve ser empreendida sob a vigilância de um mestre competente e
experimentado.
Voltando ao trabalho incorreto dos centros, devo dizer que preenche praticamente toda
a nossa vida. Nossas impressões esmaecidas, nossas vagas impressões, nossa falta de
impressões, nossa lentidão em compreender muitas coisas, freqüentemente a nossa
identificação e consideração, mesmo a nossa mentira, tudo isso depende do trabalho
incorreto dos centros.
A idéia do trabalho incorreto dos centros não entra em nossa maneira de pensar, nem em
nossa compreensão comum; não vemos todo o mal que nos faz este trabalho incorreto,
toda a energia que consome sem necessidade, todas as dificuldades que nos cria.
Esse desconhecimento do trabalho incorreto de nossa máquina está habitualmente ligado
à noção ilusória que temos de nossa unidade. Quando compreendemos até que ponto
estamos divididos dentro de nós mesmos, começamos a dar-nos conta do perigo que
representa este fato de uma parte de nós mesmos trabalhar em lugar de outra, sem que
o saibamos.
O homem que deseja estudar-se e observar-se deverá, pois, estudar e observar não só o
trabalho correto de seus centros, mas também o trabalho incorreto deles. E necessário
conhecer todos os tipos de trabalho incorreto e seus traços característicos em
determinados indivíduos. Sem conhecer as próprias imperfeições e defeitos, é impossível
conhecer-se. E, além dos defeitos comuns a todos, cada um de nós tem seus defeitos
particulares, próprios só de si mesmos, que devem ser estudados no momento oportuno.
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Como já fiz notar no início, a idéia de que o homem é uma máquina posta em ação por
influências exteriores é uma idéia realmente científica.
O que a ciência não sabe é que:
Primeiro: a máquina humana não atinge seu nível normal de atividade e trabalha muito
abaixo desse nível, isto é, não dá toda a sua capacidade e não funciona com todas as suas
partes.
Segundo: Apesar de numerosos obstáculos, a máquina humana é capaz de desenvolver-se
e criar para si mesma níveis muito diferentes de receptividade e de ação.
Cumpre-nos falar agora das condições necessárias ao desenvolvimento, pois deve-se
recordar que, se o desenvolvimento é possível, é também muito raro e requer muitas
condições exteriores e interiores.
Quais são essas condições?
A primeira é que o homem deve compreender sua situação, suas dificuldades e suas
possibilidades; deve ter um desejo muito forte de sair de seu estado presente ou um
interesse muito grande pelo novo estado desconhecido que a mudança deve trazer. Em
suma, deve experimentar unia violenta repugnância por seu estado presente ou uma viva
atração pelo estado futuro que ele poderá alcançar.
Depois, é preciso ter uma certa preparação. O homem deve ser capaz de compreender o
que se lhe diz.
Deve, além disso, encontrar-se em boas condições exteriores, deve ter tempo bastante
para estudar e deve viver num ambiente que torne tal estudo possível.
Não podemos enumerar todas as condições necessárias. Mas, antes de tudo, elas
comportam uma escola. E uma escola implica, no país onde existe, certas condições sociais
e políticas, porque uma escola não pode existir em condições quaisquer; uma vida mais ou
menos ordenada, um certo grau de cultura e de liberdade individual lhe são necessários.
A esse respeito, nossa época não é particularmente favorável. No oriente, as escolas
estão desaparecendo rapidamente. E parece que, em muitos países, sua existência se
torna impossível.
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Citei a esse respeito, no Novo Modelo do Universo, alguns versículos das Leis de Manu.
61. Que não resida em país governado por súdras, nem em país habitado por homens
ímpios, nem em país conquistado pelos hereges, nem em país onde abundem os homens das
castas mais baixas.
79. Que não permaneça, sequer à sombra de uma árvore, em companhia de pessoas
degradadas, nem de Tchândalas, os mais baixos dos homens, nem de Pukkasas, nem de
idiotas, nem de homens arrogantes, nem de homens de baixa classe, nem de Antyâvasâyis
(coveiros).
CAPITULO VIII
22. Um reino povoado sobretudo por sudras, cheio de homens ímpios e privado de
habitantes duas vezes nascidos, rapidamente perecerá por completo, atacado pela fome e
pela doença.”
Essas idéias das Leis de Manu são muito interessantes, porque dão ao homem uma base
que lhe permitiria compreender. as diferentes condições políticas e sociais do ponto de
vista do trabalho de escola, distinguir as condições de um progresso real daquelas que só
trazem a destruição de todos os verdadeiros valores, mesmo que seus partidários
pretendam que estas condições sejam progressistas e, deste modo, cheguem a enganar
um grande número de pobres de espírito.
No entanto, as condições exteriores não dependem de nós. Dentro de um certo limite e,
às vezes com grandes dificuldades, podemos escolher o país onde preferimos viver, mas
não podemos escolher nossa época. E no século onde o destino nos colocou que devemos
nos esforçar para encontrar o que queremos.
Assim, devemos compreender que a própria preparação para o desenvolvimento de si
exige um conjunto de condições exteriores e interiores raramente reunidas.
45
47
empreenda, ele perde rapidamente todo o interesse por esse trabalho e o prossegue
mecanicamente. São necessárias três linhas, principalmente porque o trabalho em uma
linha desperta o homem que adormece em outra. Se trabalharmos realmente em três
linhas, jamais poderemos cair totalmente no sono; em todo caso, não poderemos dormir
tão tranqüilamente quanto antes; seremos constantemente despertados e veremos que
nosso trabalho se deteve.
Posso ainda indicar-lhes uma diferença bem característica entre as três linhas de
trabalho.
Na primeira linha, o trabalho essencial é o estudo do ensinamento, o estudo de si, a
observação de si e deve-se demonstrar, em seu trabalho, certa iniciativa em relação a si
mesmo.
Na segunda linha, participa-se de um trabalho organizado, onde cada um só deve fazer o
que lhe é pedido. Nenhuma iniciativa é exigida, nem mesmo admitida na segunda linha. Aí,
o essencial é a disciplina; trata-se de conformar-se exatamente com o que lhe é dito, sem
deixar intervir a menor idéia pessoal, mesmo que esta pareça melhor que as que foram
dadas.
Na terceira linha, pode-se novamente manifestar certa iniciativa, mas deve-se sempre
exercer um controle sobre si e não se permitir tomar decisões contrárias às regras e
princípios ou contrárias ao que foi pedido.
Disse que o trabalho começa pelo estudo da linguagem. A esse respeito, ser-lhes-á muito
útil ver que já conhecem certo número de palavras desta nova linguagem e ser-lhes-á
igualmente útil reuni-las e listá-las. Devem, porém, escrevê-las sem nenhum comentário,
isto é, sem interpretá-las; os comentários, interpretações ou explicações devem estar em
sua compreensão. Não podem transcrevê-los. Se isso fosse possível, o estudo dos ensi-
namentos psicológicos seria muito simples. Bastaria publicar uma espécie de dicionário ou
glossário e cada um saberia tudo aquilo que é necessário saber. Infeliz, ou felizmente,
isso é impossível, e os homens devem aprender a trabalhar cada um por si mesmo.
Voltemos aos centros e tratemos de descobrir por que não podemos desenvolver-nos mais
rapidamente, sem passar por um longo trabalho de escola.
50
sabemos que, quando aprendemos alguma coisa, acumulamos novos materiais em nossa
memória. Mas o que é nossa memória? Para compreendê-lo, devemos aprender a
considerar os centros como máquinas distintas e independentes, que comportam rolos de
matéria sensível que podem ser comparados com as matrizes de fonógrafo. Tudo o que
nos acontece, tudo o que vemos, tudo o que ouvimos, tudo o que sentimos, tudo o que
aprendemos, é registrado nesses rolos. Em outros termos, todos os acontecimentos
interiores e exteriores deixam certas “impressões” nesses rolos. “Impressões” é uma
palavra muito boa, porque aí se trata realmente de uma impressão, de uma pegada. Uma
impressão pode ser profunda, pode ser superficial ou simplesmente pode ser uma
impressão fugaz, que desaparece rapidamente, sem deixar vestígio. Mas, profundas ou
superficiais, são sempre impressões. E essas impressões nos rolos são tudo o que
possuímos. Tudo o que conhecemos, tudo o que aprendemos, tudo o que experimentamos,
tudo está aí, em nossos rolos. Igualmente, todos os nossos processos de pensamento,
nossos cálculos, nossas especulações limitam-se a comparar as inscrições dos rolos, a
relê-las ainda e sempre, a tentar relacioná-las para compreendê-las, e assim por diante.
Não podemos pensar nada de novo, nada que não se encontre escrito nos rolos. Nada
podemos dizer nem fazer que não corresponda a uma inscrição nos rolos. Não podemos
inventar um pensamento novo, assim como não podemos inventar um novo animal, visto que
todas as nossas idéias de animais se baseiam na observação de animais já existentes.
As inscrições ou impressões gravadas nos rolos são postas em relação pelas associações.
As associações põem em relação impressões que são recebidas simultaneamente ou que
têm entre si uma certa similitude.
Disse, na primeira conferência, que a memória depende da consciência e que só
recordamos efetivamente os momentos em que tivemos vislumbres de consciência. E bem
evidente que impressões diferentes, recebidas simultaneamente e, portanto, ligadas
entre si, permanecerão por mais tempo na memória do que impressões desconexas. No
clarão de consciência de si, ou mesmo à sua aproximação, todas as impressões do
momento
51
encontram-se ligadas e permanecem ligadas na memória. Ocorre o mesmo com as
impressões que apresentam uma similitude interior. Se o homem for mais consciente no
momento em que receber impressões, ele estabelecerá melhor ligação entre as im-
pressões novas e as impressões antigas que se lhes assemelhem, e elas permanecerão
associadas na memória.
Ao contrário, se o homem receber impressões num estado de identificação, sequer as
notará e os vestígios delas desaparecerão, antes mesmo de terem sido examinadas ou
associadas.
No estado de identificação, o homem não vê nem ouve. Fica completamente imerso nos
seus agravos, nos seus desejos ou na sua imaginação. O homem não pode se separar das
coisas, dos sentimentos ou das lembranças; fica apartado de todo o resto do mundo.
52
QUARTA CONFERÊNCIA
Começaremos hoje por um exame mais detalhado dos centros. Eis o diagrama dos quatro
centros:
Centro intelectual
Centro emocional
Centros
motor e instintivo
Cabeça
Tórax
ção, principalmente porque cada centro possui numerosas propriedades que permanecem
ignoradas pela ciência moderna, mesmo no plano anatômico. Isso pode parecer estranho,
mas o fato é que a anatomia do corpo humano está longe de ser uma ciência completa.
De modo que, como os centros nos são inacessíveis, o estudo deles deve começar pela
observação de suas funções, que se oferecem inteiramente a nossas pesquisas.
Trata-se aí de uma maneira de proceder de todo usual. Nas diferentes ciências — física,
química, astronomia, fisiologia —quando não podemos alcançar os fatos, objetos ou
matérias que queremos estudar, devemos começar pelo estudo de seus resultados ou de
seus vestígios. No caso presente ocupar-nos-emos das próprias funções dos centros, de
modo que tudo que estabelecermos a propósito das funções poderá aplicar-se aos
centros.
Os centros têm muitos pontos comuns, mas, ao mesmo tempo, cada centro possui
características particulares que nunca devemos perder de vista.
Um dos princípios mais importantes a compreender é a grande diferença que existe entre
as velocidades dos centros, isto é, entre as velocidades respectivas de suas funções.
O mais lento é o centro intelectual. A seguir, embora muito mais rápidos, vêm os
centros instintivo e motor, que têm mais ou menos a mesma velocidade. O mais rápido de
todos é o centro emocional e, no entanto, no estado de “sono desperto”, só muito
raramente trabalha com uma velocidade próxima de sua velocidade real; em geral,
trabalha com a velocidade dos centros instintivo e motor.
A observação pode ajudar-nos a constatar uma grande diferença na velocidade das
funções, mas não nos pode dar números exatos. Na realidade, a diferença entre as
funções de um mesmo organismo é muito grande, maior do que se pode imaginar. Como
acabo de dizer, não podemos, com nossos meios ordinários, calcular a diferença de
velocidade dos centros, mas se nos disserem qual é, poderemos encontrar muitos fatos
que confirmarão, senão os números exatos, pelo menos a existência de uma enorme
diferença.
54
Antes de citar números, desejo falar-lhes das observações ordinárias que se podem
fazer sem nenhum conhecimento especial.
Tentem, por exemplo, comparar a velocidade dos processos mentais com a das funções
motoras. Tentem observar-se quando tiverem de fazer simultaneamente numerosos
movimentos rápidos: dirigir um carro numa rua muito congestionada, galopar por um mau
caminho ou fazer qualquer outro trabalho que exija um pronto julgamento e reflexos
instantâneos. Verão, de imediato, que não podem observar todos os seus movimentos.
Terão de diminuir sua velocidade ou, então, deixar escapar a maior parte de suas
observações, senão correrão o risco de um acidente e, provavelmente, isso acontecerá, se
persistirem em observar-se a si mesmos. Poderíamos multiplicar tais constatações, em
particular sobre o centro emocional, que é ainda mais rápido. Todos temos feito tais
observações sobre a diferença de velocidade das funções, mas é muito raro que saibamos
reconhecer o valor de nossas próprias observações e experiências. Somente quando
conhecemos o princípio é que começamos a compreender nossas observações anteriores.
Não obstante, vocês devem saber que todos os números relativos a essas velocidades
diferentes são conhecidos pelas escolas e demonstrados por seu ensinamento. Como
verão mais adiante, a relação de velocidade dos centros expressa-se por um número
surpreendente, que tem sentido cósmico, isto é, que entra em numerosos processos
cósmicos, ou melhor, que divide um pelo outro numerosos processos cósmicos. Esse
número é30 000. O que equivale a dizer que os centros motor e instintivo são 30 000
vezes mais rápidos que o centro intelectual. E que o centro emocional, quando trabalha
com a velocidade que lhe é própria, é 30 000 vezes mais rápido que os centros motor e
instintivo.
E difícil crer que haja tal diferença entre as velocidades das funções de um mesmo
organismo. Na realidade, isso quer dizer que cada um dos diversos centros tem um tempo
completamente diferente.
Os centros motor e instintivo têm um tempo 30 000 vezes mais longo que o centro
intelectual e o centro emocional tem
55
negativas não desempenham nenhum papel útil em nossas vidas. Não servem para nos
orientar, não nos trazem conhecimento algum, não nos guiam de nenhuma maneira sensata.
Ao contrário, estragam todos os nossos prazeres, fazem de nossa vida um fardo e opõem
obstáculos muito reais ao nosso desenvolvimento possível, porque nada é mais mecânico
em nossa vida do que as emoções negativas.
O homem, em seu estado ordinário, nunca pode dominar suas emoções negativas. Aqueles
que crêem poder dominar suas emoções negativas e manifestá-las, quando melhor lhes
parecer, simplesmente se iludem. As emoções negativas dependem da identificação. Cada
vez que a identificação é destruída, desaparecem. O que há de mais estranho e
fantástico no caso das emoções negativas é que as pessoas as adoram. Parece-me que,
para um homem mecânico comum, a coisa mais difícil de admitir é que nem suas próprias
emoções negativas nem as dos outros têm o menor valor e que não contêm nada de nobre,
nada de belo, nada de forte. Na realidade, as emoções negativas só contêm fraqueza e,
freqüentemente mesmo, são o início da histeria, da loucura ou do crime. Seu único lado
bom é que, sendo perfeitamente inúteis e totalmente criadas pela imaginação e pela iden-
tificação, podem ser destruídas sem prejuízo algum. E aí está a única oportunidade que o
homem tem de escapar delas.
Se as emoções negativas fossem úteis ou necessárias para o menor objetivo e se
constituíssem uma função de uma parte do centro emocional, cuja existência fosse real, o
homem não teria chance alguma de desenvolvimento, porque nenhum desenvolvimento é
possível, enquanto o homem fica com suas emoções negativas.
Na linguagem das escolas, existe um preceito relativo à luta contra as emoções negativas:
O homem deve sacrificar seu sofrimento.
Dir-se-á: “Haverá algo mais fácil a sacrificar”? Mas, na realidade, as pessoas
sacrificariam tudo, exceto suas emoções negativas. Não há prazer nem gozo que o homem
não esteja pronto a sacrificar por razões fúteis, mas jamais sacrificará seu sofrimento.
E, em certo sentido, isso se explica.
Obnubilado por velha superstição, o homem espera sempre algo do sacrifício de seus
prazeres, mas nada espera do sacrifí-
60
cio de seu sofrimento. Está cheio de idéias falsas sobre o sofrimento. Continua pensando
que o sofrimento lhe é enviado por Deus ou por deuses, para seu castigo ou sua
edificação, e sentirá até medo de saber que é possível desembaraçar-se tão simples-
mente de seu sofrimento. O que torna essa idéia ainda mais difícil de compreender é a
existência de numerosos sofrimentos, dos quais o homem não pode realmente libertar-se,
sem contar todos os sofrimentos baseados na imaginação e aos quais não pode nem quer
renunciar, tais como a idéia de injustiça e a crença na possibilidade de suprimi-la.
Além disso, muitas pessoas só têm emoções negativas. Todos os seus “eus” são negativos.
Se se tirassem delas suas emoções negativas, simplesmente desabariam e se desfariam
em fumaça.
Que seria de toda a nossa vida sem as emoções negativas? Que sucederia com o que
chamamos “arte”, com o teatro, o drama, a maioria dos romances?
Infelizmente não há chance alguma de que as emoções negativas desapareçam por si
mesmas. As emoções negativas só podem ser dominadas e só podem desaparecer com a
ajuda das escolas, de sua ciência e de seus métodos. A luta contra as emoções negativas
faz parte da disciplina das escolas, está estreitamente ligada a todo o trabalho das
escolas.
Qual é, pois, a origem das emoções negativas, dado que são artificiais, anormais e inúteis?
Como não conhecemos a origem do homem, não estamos em condições de discutir essa
questão; só podemos falar das emoções negativas e de sua origem com relação a nós
mesmos e a nossas vidas. Por exemplo, observando as crianças, podemos ver como as
emoções negativas lhes são ensinadas e como as aprendem sozinhas imitando os adultos e
as crianças mais velhas.
Se, desde os primeiros dias de vida, uma criança pudesse ser rodeada de pessoas que não
tivessem emoções negativas, provavelmente não teria nenhuma ou teria tão poucas que
poderiam ser facilmente dominadas por meio de uma educação correta. Mas, na vida
atual, é bem diferente e, graças a todos os exemplos que pode ver e ouvir, graças às
leituras, ao cinema, etc., uma criança de dez anos já conhece toda a gama de emo
ções negativas e pode imaginá-las, reproduzi-las e identificar-se com elas tão bem quanto
um adulto.
Nos adultos; as emoções negativas são mantidas pela literatura e pela arte que, sem
cessar, as justificam e as glorificam, bem como pela justificação pessoal e pela
indulgência que têm por si mesmos. Até quando estamos fartos dessas emoções negativas,
não cremos que nos seja possível livrar-nos completamente delas.
Na realidade, temos muito mais poder do que pensamos sobre as emoções negativas,
sobretudo a partir do momento em que sabemos o quanto são perigosas e como é urgente
lutar contra elas. Mas encontramos demasiadas desculpas para elas e nadamos no oceano
do egoísmo ou da autocompaixão, segundo o caso, descobrindo faltas em toda parte, salvo
em nós.
O que acaba de ser dito mostra que nos encontramos numa estranha situação quanto ao
nosso centro emocional. Ele não tem parte positiva nem parte negativa. Na maioria dos
casos, suas funções negativas são inventadas e há muitas pessoas que nem sequer uma vez
em sua vida experimentaram uma emoção real, tão ocupada está sua existência com
emoções imaginárias.
De modo que não podemos dizer que nosso centro emocional está dividido em duas partes,
positiva e negativa. Podemos dizer apenas que temos emoções agradáveis e emoções
desagradáveis e que todas as emoções que não são negativas no momento podem tornar-
se negativas à menor provocação ou até sem provocação alguma.
Assim é o verdadeiro quadro de nossa vida emocional e, se nos olharmos sinceramente,
deveremos dar-nos conta de que, enquanto cultivarmos e admirarmos em nós mesmos
todas essas emoções envenenadas, não poderemos esperar ser capazes de desenvolver a
unidade, a consciência ou a vontade. Se tal desenvolvimento fosse possível, todas essas
emoções negativas se integrariam em nosso novo ser e tornar-se-iam permanentes em
nós, O que significaria para nós a impossibilidade de algum dia nos desembaraçarmos
delas. Felizmente para nós tal eventualidade está excluída.
62
Em nosso estado atual, o único lado bom é que nada é permanente em nós; se a menor
coisa se tornar permanente, será sinal de loucura. Somente os alienados podem ter um
ego permanente.
Diga-se, de passagem, que esse fato reduz a nada certo termo errôneo que também se
insinuou na linguagem psicológica atual sob a influência da “psicanálise”: refiro-me à
palavra ‘‘complexo’’.
Não há nada que corresponda à idéia de “complexo”, em nossa estrutura psicológica. O
que hoje se denomina “complexo” era chamado “idéia fixa” pelos psiquiatras do século
XIX e as “idéias fixas” eram consideradas sinal de loucura, o que continua sendo
perfeitamente correto.
Um homem normal não pode ter “idéias fixas”, “complexos” nem “fixações”. ~ útil
lembrar-se disso, no caso de alguém tentar encontrar complexos em vocês. Como somos,
já temos bastantes traços maus e nossas chances são muito pequenas, mesmo sem
complexos.
Voltemos agora à questão do trabalho sobre si e perguntemo-nos quais são realmente
nossas chances. Devemos descobrir em nós mesmos funções e manifestações que
podemos mais ou menos dominar e devemos exercer esse poder, tratando de aumentá-lo o
mais possível. Por exemplo, temos um certo controle sobre nossos movimentos e, em
certas escolas, particular-mente no Oriente, o trabalho sobre si começa pela aquisição de
um domínio, tão completo quanto possível, dos movimentos. Isso, porém, requer muito
tempo; para tanto é necessário um treinamento especial, que supõe o estudo de
exercícios muito complexos. Nas condições de vida moderna, temos mais controle sobre
nossos pensamentos; existe, aliás, um método especial segundo o qual podemos trabalhar
no desenvolvimento de nossa consciência, fazendo uso do instrumento que melhor
obedece à nossa vontade, isto é, nossa mente ou nosso centro intelectual.
Para compreender melhor o que vou dizer, tratem de recordar que não temos nenhum
controle sobre nossa consciência. Quando disse que nos podemos tornar mais conscientes
ou que um homem pode conhecer um instante de consciência, simples-
63
QUINTA CONFERÊNCIA
ou de um animal. Do ponto de vista comum, uma pedra, uma planta ou um animal são ou
existem, exatamente como um homem é ou existe. Na realidade, existem de maneira
totalmente diferente. Mas a divisão que Solovieff faz não é suficiente. Não há nada que
corresponda ao ser de um homem, porque há demasiadas diferenças entre os homens. Já
disse que, do ponto de vista deste ensinamento, o conceito “homem” está dividido em sete
conceitos: o homem n 1, o homem n.0 2, o homem n.0 3 o homem n.0 4, o homem n.0 5, o
homem n.0 6 e o homem n 7 O que equivale a sete graus ou categorias de seres: o ser n.0 1,
ser n.0 2, o ser n.0 3, e assim por diante. Conhecemos, ademais, divisões mais sutis.
Sabemos que os homens n 1 podem ser muito diferentes uns dos outros e o mesmo pode-
se dizer dos homens n.0 2 e n.0 3. Podem viver inteiramente sob as influências A. Podem
sofrer a ação tanto das influências B como das influências A. Podem estar mais
submetidos às influências B do que às influências A. Podem ter um centro magnético.
Podem ter entrado em contato com a influência de uma escola ou influência C. Podem
estar a caminho de se tornarem homens n.0 4. Todas essas categorias representam
diferentes níveis de ser.
A idéia do ser estava no próprio âmago da concepção religiosa do homem e todas as
demais classificações do homem eram consideradas de pouca importância em comparação
com essa. Os homens eram divididos, de um lado, em descrentes, infiéis ou heréticos e,
de outro, em verdadeiros crentes, justos, santos, profetas, e assim por diante. Todas
essas definições visavam não a diferenças de pontos de vista e de convicções, isto é, não
ao saber, mas ao ser.
No pensamento moderno, ignora-se tudo sobre a idéia do ser e dos diferentes níveis de
ser. Ao contrário, imagina-se que, quanto mais divergências e contradições houver no ser
de um homem, mais brilhante e interessante ele poderá ser. Admite-se, em geral, embora
tácita — e às vezes até abertamente — que um homem pode viver na mentira, que pode
ser egoísta, covarde, extravagante, perverso, sem que isso o impeça de ser um grande
sábio, um grande filósofo ou um grande artista. Evidentemente, isso é impossível. Com
efeito, embora essa incompatibilidade dos diferentes traços de um único e mesmo ser
seja geralmente considerada originalidade, é apenas uma fraqueza. Não é possível ser
68
um grande pensador ou um grande artista, com um espírito perverso ou incoerente, como
também não se pode ser um boxeador profissional ou um atleta de circo sendo
tuberculoso. A difusão dessa idéia de que a incoerência e a amoralidade seriam sinais de
originalidade é responsável por numerosas charlatanices científicas, artísticas ou
religiosas de nosso tempo e, possivelmente, de todos os tempos.
Ë necessário compreender claramente o que significa o ser e por que deve crescer e
desenvolver-se paralelamente ao saber, embora permaneça independente.
Se o saber prevalece sobre o ser ou o ser sobre o saber, disso sempre resultará um
desenvolvimento unilateral e esse desenvolvimento não poderá ir muito longe. Deve
fatalmente conduzir a uma grave contradição interior e deter-se aí.
Um dia, talvez, falaremos das diferentes espécies de desenvolvimento unilateral e de
seus resultados. Na vida corrente, o único caso que encontramos é aquele em que o saber
prevalece sobre o ser. O resultado toma a forma de uma dogmatização de certas idéias; a
partir daí, qualquer desenvolvimento ulterior do saber torna-se impossível, devido à perda
da compreensão.
Agora falarei da compreensão.
Mas o que é a compreensão?
Tratem de fazer-se essa pergunta e verão que não podem respondê-la. Até agora, sempre
confundiram compreender com saber ou possuir informações. Mas, saber e compreender
são duas coisas completamente diferentes e vocês devem aprender a distingui-las.
Para compreender uma coisa, vocês devem ver a sua relação com qualquer objeto mais
vasto ou com um conjunto maior, bem como as conseqüências dessa relação. A
compreensão é sempre a compreensão de um problema restrito em sua relação com um
problema mais vasto.
Suponham, por exemplo, que eu lhes mostre um antigo rublo russo de prata. Essa era uma
moeda antiga do tamanho de uma moeda atual inglesa de meia coroa, valendo entretanto
cerca de dois shillings. Podem olhá-la, estudá-la, ver em que ano
69
foi cunhada, descobrir tudo o que se refere ao tzar cuja efígie aparece numa das faces,
podem pesá-la, podem até fazer-lhe a análise química e calcular o teor exato de prata que
contém. Podem aprender o que quer dizer a palavra “rublo” e como seu uso se generalizou;
podem, sem dúvida, aprender tudo isso e muitas outras coisas, mas não compreenderão
jamais este rublo, nem sua significação, enquanto ignorarem que, antes da primeira
guerra mundial, seu poder aquisitivo correspondia a mais ou menos uma libra inglesa de
hoje e que o poder aquisitivo do rublo, dinheiro da Rússia bolchevista, antes do seu
desaparecimento, era apenas de um shilling e meio. Se fizerem essa descoberta, talvez
compreendam algo deste rublo, e talvez de outras coisas mais, pois a compreensão de uma
coisa leva, em seguida, à compreensão de muitas outras.
Crê-se, com freqüência, que compreender quer dizer encontrar um nome, uma expressão,
um título ou um rótulo para um fenômeno novo ou inesperado. O fato de achar ou de
inventar palavras para coisas incompreensíveis nada tem a ver com compreensão. Ao
contrário, se pudéssemos nos desembaraçar da metade de nossas palavras, talvez
tivéssemos mais chances de adquirir certa compreensão.
Se nos perguntarmos o que significa compreender ou não compreender um homem, ser-
nos-á necessário, primeiramente, considerar o caso em que nos encontramos na
impossibilidade de falar-lhe em sua própria língua. Ë óbvio que dois homens que não falam
a mesma língua não se compreenderão um ao outro. Devem ter uma linguagem comum ou
entender-se com relação a certos sinais ou símbolos pelos quais designarão as coisas.
Suponham, agora, que no decurso de uma conversação, não estejam de acordo com seu
interlocutor quanto ao sentido de certas palavras, sinais ou símbolos; cessarão novamente
de se compreender.
De onde decorre o seguinte princípio: não se pode compreender sem estar de acordo. Na
conversação corrente, dizemos freqüentemente: compreendo-o, mas não estou de acordo
com ele. Sob o ponto de vista do ensinamento que estudamos, isso é impossível. Se
compreendem um homem, estão de acordo com ele; se não estão de acordo com ele, não o
compreendem.
70
Ë difícil aceitar essa idéia; isso significa que é difícil compreendê-la.
Como acabo de dizer, há dois lados do homem que devem ser desenvolvidos durante o
curso normal de sua evolução: o saber e o ser. Mas nem o saber nem o ser podem
imobilizar-se ou permanecer no mesmo estado. Se um deles não cresce e não se
fortalece, diminui e se enfraquece.
A compreensão é, de certo modo, a média aritmética entre
o saber e o ser. E isso mostra a necessidade de um crescimento
simultâneo do saber e do ser. Se um dos dois diminui enquanto
o outro aumenta, isso não altera a média aritmética.
Essa idéia permite ainda explicar por que “compreender” significa “estar de acordo”. Para
que se compreendam, dois homens devem não só possuir um saber igual, mas é-lhes,
também, necessário um ser igual. Só então é que será possível uma compreensão mútua.
Outra idéia falsa, particularmente difundida em nossa época, é a de que a compreensão
pode ser diferente, a de que qualquer um de nós pode compreender, isto é, tem o direito
de compreender uma única e mesma coisa de maneira diferente.
Do ponto de vista deste ensinamento, nada é mais falso. Não pode haver diferentes
compreensões. Só pode haver uma única compreensão; o resto é incompreensão ou
compreensão incompleta.
Entretanto, as pessoas pensam comumente que compreendem as coisas de maneira
diferente. Podemos ver exemplos disso todos os dias. Como explicar essa aparente
contradição?
Na realidade, não há aí contradição alguma. Compreender uma coisa significa
compreendê-la enquanto parte, em sua relação com o todo. Mas a idéia de todo pode ser
muito diferente para as pessoas, segundo seu saber e seu ser. Eis por que também, nesse
ponto, o ensinamento é necessário. Aprende-se a compreender, compreendendo este
ensinamento e todas as coisas que com ele se relacionam.
Mas, para falar no plano ordinário, pondo de lado toda idéia de escola ou de ensinamento,
temos que admitir que há tantas maneiras de compreender quantos são os homens. Cada
um compreende cada coisa à sua maneira, segundo suas rotinas
71
75
sobretudo entre os homens n.0 1, ou seja, a grande maioria, passam toda a sua vida
somente com seu aparelho formatório , sem jamais recorrer às outras partes de seu
centro intelectual. Para todas as necessidades imediatas da vida, para receber as
influências A e responder a elas e para deformar ou rejeitar as influências C, o aparelho
formatório é mais do que suficiente.
Ë sempre possível reconhecer o pensamento do “centro formatório”. Por exemplo, o
centro formatório parece poder contar apenas até 2 - .. De fato, ele divide todas as
coisas em dois: “bolchevismo e fascismo”, “operários e burgueses”, “proletários e
capitalistas”, e assim por diante. Devemos a maioria de nossos “clichês” modernos ao
pensamento do centro formatório — e não somente a maioria de nossos “clichês”, mas
todas as teorias populares modernas. Talvez seja possível dizer que, em todas as épocas,
todas as teorias populares provêm do aparelho formatório.
A parte emocional do centro intelectual é constituída principalmente pelas emoções
intelectuais, ou seja, o desejo de saber, de compreender, a satisfação de saber, o
descontentamento por não saber, o prazer da descoberta, e assim por diante, embora
todas essas emoções também possam manifestar-se em níveis muito diferentes.
O trabalho da parte emocional exige atenção plena, mas nesta parte do centro, a atenção
não exige es/orço algum. ~ atraída e retida pelo próprio assunto, freqüentemente sob o
efeito de uma identificação que se designa habitualmente pelo nome de “interesse”,
“entusiasmo”, “paixão" ou “devoção”.
A parte intelectual do centro intelectual comporta a faculdade de criar, construir,
inventar, descobrir. Não pode trabalhar sem atenção, mas a atenção, nessa parte do
centro, deve ser controlada e mantida pela vontade e pelo es/orço.
Este será nosso critério principal no estudo das diferentes partes dos centros. Se as
considerarmos do ponto de vista da atenção, saberemos imediatamente em que parte dos
centros nos encontramos. Sem atenção ou com uma atenção errante, estamos na parte
mecânica; cem uma atenção atraída e retida pelo assunto da observação ou da reflexão,
estamos na parte emocio-
76
nal; com uma atenção controlada e mantida sobre um assunto por meio da vontade,
estamos na parte intelectual.
Ao mesmo tempo, esse método mostra como fazer trabalhar as partes intelectuais dos
centros. Observando a atenção e tentando controlá-la, obrigamo-nos a trabalhar nas
partes intelectuais dos centros, pois o mesmo princípio se aplica igualmente a todos os
centros, embora talvez não nos seja fácil distinguir as partes intelectuais nos outros
centros — e especialmente no centro instintivo, cuja parte intelectual não exige, para seu
trabalho, nenhuma atenção que possamos perceber ou controlar.
Tomemos o centro emocional. Deixarei de lado, por enquanto, as emoções negativas. Só
nos ocuparemos da divisão do centro em três partes: mecânica, emocional e intelectual.
A parte mecânica compreende o humorismo barato, os gracejos estereotipados, o sentido
de comicidade mais grosseiro, o gosto da excitação, o amor aos espetáculos
“sensacionais”, aos desfiles, ao sentimentalismo, o prazer de encontrar-se numa multidão,
de fazer parte de uma multidão, a atração pelas emoções coletivas de todas as espécies,
a tendência a afundar por completo nas emoções mais baixas, meio animais: crueldade,
egoísmo, covardia, inveja, ciúme, etc.
A parte emocional pode ser muito diferente segundo as pessoas. Pode comportar o senso
do humor ou o senso do cômico, bem como a emoção religiosa, a emoção estética, a emo-
ção moral, e, nesse caso, pode levar ao despertar da consciência moral. Mas, com a
identificação, pode converter-se em algo muito diferente; pode ser muito irônica,
zombeteira, sarcástica, pode ser má, obstinada, cruel e ciumenta, embora de maneira
menos primitiva que a parte mecânica.
A parte intelectual do centro emocional (com a ajuda das partes intelectuais dos centros
motor e instintivo), detém o poder de criação artística. No caso das partes intelectuais
dos centros motor e instintivo, necessárias à manifestação da faculdade criadora, não
estarem bastante educadas ou não lhe corresponderem em seu desenvolvimento, esta
faculdade pode manifestar-se nos sonhos. Isso explica a beleza, às vezes maravilhosa,
dos
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sonhos de certas pessoas que, por outro lado, não são nada artistas.
A parte intelectual do centro emocional é também a sede principal do centro magnético.
Quero dizer que, se o centro magnético só existir no centro intelectual ou na parte
emocional do centro emocional, não será bastante forte para que sua ação seja efetiva e
será sempre suscetível de cometer erros ou de fracassar. Mas a parte intelectual do
centro emocional, quando está plenamente desenvolvida e trabalha com toda a sua potên-
cia, é um caminho para os centros superiores.
No centro motor, a parte mecânica é automática. Todos os movimentos automáticos que,
na linguagem corrente são chamados “instintivos”, lhe pertencem, assim como a imitação e
a capacidade de imitação, que tão grande papel desempenha na vida.
A parte emocional do centro motor corresponde, sobretudo, ao prazer do movimento. A
paixão pelos jogos e pelos esportes normalmente deveria depender desta parte do centro
motor, mas, quando a identificação ou outras emoções se mesclam com ela, é raro que
ocorra assim e, na maioria dos casos, a paixão pelos esportes encontra-se na parte
motora do centro intelectual ou do centro emocional.
A parte intelectual do centro motor é um instrumento muito importante e muito
interessante. Quem tenha tido ocasião de fazer bem um trabalho físico, não importa qual,
sabe que cada espécie de trabalho exige muita invenção. Devemos inventar nossos
pequenos métodos próprios para tudo o que fazemos. Tais inventos são o trabalho da
parte intelectual do centro motor, como o são muitas outras invenções do homem. O
poder que os atores possuem de imitar “à vontade” a voz, as entonações e os gestos dos
outros, provém também da parte intelectual do centro motor; mas, quando esse poder de
imitação atinge um grau superior, exige ao mesmo tempo o trabalho da parte intelectual
do centro emocional.
O trabalho do centro instintivo permanece, para nós, muito obscuro. Realmente, só
conhecemos — quero dizer: só sentimos e só podemos observar — sua parte sensorial e
emocional.
Sua parte mecânica compreende as sensações habituais que, com freqüência, não notamos
em absoluto, mas que servem de
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base às outras sensações; compreende, também, os movimentos instintivos, no sentido
correto da expressão, isto é, todos os movimentos internos, tais como os da circulação do
sangue, da digestão, e os reflexos internos e externos.
A. parte intelectual ocupa um lugar muito grande e muito importante. No estado de
consciência de si ou quando dele se está próximo, pode-se entrar em contato com a parte
intelectual do centro instintivo e colher, assim, muitos dados sobre o funcionamento da
máquina e sobre suas possibilidades. A parte intelectual do centro instintivo aparece
como um cérebro por trás de todo o trabalho do organismo, um cérebro que nada tem em
comum com o do centro intelectual.
O estudo das partes dos centros e de suas funções específicas exige um certo grau de
lembrança de si. Sem se lembrar de si mesmo, não se pode observar durante tempo
bastante longo ou com bastante clareza para sentir e compreender a diferença entre as
funções provenientes das diversas partes dos diferentes centros.
O estudo da atenção, melhor que qualquer outra coisa, revela as partes dos centros, mas
o estudo da atenção exige, por seu turno,, um certo grau de lembrança de si.
Cedo, compreenderão que todo o seu trabalho sobre si mesmos depende da lembrança de
si e que, sem ela, ele não pode fazer nenhum progresso. E a lembrança de si é um
despertar parcial ou o começo de um despertar. Naturalmente — e isso deve ficar muito
claro — nenhum trabalho pode ser leito no sono
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Grudei era um mestre. Este novo livro ilumina aspectos desconhecidos de sua vida de
“Buscador da Verdade” em regiões remotas do Oriente. Gurdjieff mostra, também, a
quem tenta compreendê-la, a relação íntima que existe entre a pessoa de um Mestre
cumprindo a sua missão e as condições de vida que ele cria para poder levar aos homens
as idéias de uma maneira viva e apoiar a busca dos alunos num contexto prático.
Em ENCONTROS COM HOMENS NOTÁVEIS, uma vez mais, Gurdjieff chama o homem
moderno para o despertar a si mesmo, a fim de que se pergunte por que e para que ele
está aqui na Terra, e para que busque uma resposta à pergunta fundamental: “Quem sou
eu?” Ele nos convida a estudar as leis que regem as diferentes partes do homem e a vida
do Universo, em busca de um verdadeiro conhecimento que só pode ser adquirido através
da evolução da nossa consciência e dentro de um ensinamento autêntico.
A INFLUENCIA À DISTÂNCIA
(Curso prático de telepsiquia)
Paul-Clément Jagot
Existe um meio seguro de se exercer influência sobre outrem, tanto de perto quanto de
longe; um meio tão sutil que passa despercebido, por mais profundamente que seja
sentida a ação invisível, à qual, aliás, ninguém pode fugir. Esse meio não é senão a
propriedade comunicativa, dominadora e atrativa de todo pensamento emitido com
intensidade. Algumas pessoas utilizam tal propriedade inconscientemente. Outras a
contestam, sem se dar conta de que devem a ascendência de sua personalidade a essa
força de grande poder irradiante que é reflexo de uma vigorosa organização psíquica.
Outras pessoas, finalmente, gostariam de aprender a usar, de modo deliberado,
semelhante influência. É a estas últimas que se destina A INFLUÊNCIA À DISTÂNCIA,
de Paul-Clément Iagot, obra de carácter prático, realmente única no gênero, e que expõe,
de maneira clara, os procedimentos com os quais podemos exercer influência, de perto ou
de longe, sobre quem quer que seja, e independentemente da vontade alheia.
O TRABALHO DE GURDJIEFF
Kathleen Riordan Speeth