Eleanor e As Cores Do Amor Degustacao 2
Eleanor e As Cores Do Amor Degustacao 2
Eleanor e As Cores Do Amor Degustacao 2
Bonatti, Amanda
Eleanor e as cores do amor / Amanda Bonatti. – 1ª edição – São Paulo: Coerência, 2020
DADOS
INTERNACIONAIS
ISBN: 978-65-87068-34-3
DE CATALOGAÇÃO
NA PUBLICAÇÃO
(CIP)
Ficção brasileira 2. Romance I. Título
CDD: 869.3
São Paulo
Avenida Paulista, 326,
cj 84 - Bela Vista
São Paulo | SP – 01.310-902
www.editoracoerencia.com.br
O essencial é invisível aos olhos.
Antoine de Saint-Exupéry, O pequeno príncipe
6
Para todos aqueles que desejam ver além
do que os olhos conseguem mostrar.
7
8
PRÓLOGO
França, XIX
Seria mais fácil andar se não houvesse escolhido tantos livros, percebeu
Eleanor. Era impossível caminhar com aquela pilha imensa para equi-
librar nos braços. Perguntava-se por que não havia permanecido no
aconchego de sua cama, em vez de ter se aventurado no meio da noite
na biblioteca, como se não pudesse esperar pela manhã seguinte. Teria
de esperar pela manhã de qualquer forma. Então por que toda aquela
ansiedade, afinal? Concentrou-se, deu alguns passos, mas quando pre-
cisava apenas fechar a porta… Todos os livros despencaram.
Eleanor sentiu-se frustrada ao ouvir o barulho dos livros se cho-
cando contra o chão. Ao agachar-se para recolhê-los, percebeu que
alguém estava próximo.
— Eu a assustei? Perdoe-me, não foi minha intenção. Estava a ca-
minho do meu aposento, mas a vi e… — A voz familiar se interrompeu
no meio da frase.
Thierry sabia que não estava sendo completamente sincero. Mas o
que diria? Que andava pela mansão no meio da noite, em vez de estar
no seu aposento de hóspedes, e que ao vê-la não suportou a curiosi-
dade de espiá-la? Nas noites anteriores ainda contara com a presença
do Sr. Périer até mais tarde, ou de suas filhas, que tocavam piano e
conversavam com ele até que o sono estivesse próximo, mas naquela
noite em especial, todos se recolheram cedo demais, de forma que não
podia imaginar que Eleanor ainda estivesse acordada.
9
— Oh, não me assustou, não se preocupe — Eleanor respondeu
prontamente, tateando o chão e recolhendo os livros. — Mas creio que
está perdido, senhor, pois tenho certeza que todos os aposentos ficam
na direção oposta de onde estamos.
— Ah, tem razão! Eu não deveria vagar pela casa a esta hora…
— Tem liberdade para ir aonde desejar, Sr. Beaumont. É nosso
hóspede e queremos que se sinta bem. Se estava sem sono e agoniado
demais para ficar trancado em um aposento, saiba que o compreendo.
Acontece comigo todas as manhãs. — Ela sorriu.
— Ah, que bom que compreende. — Ele olhou para os livros que
Eleanor recolhera e novamente tentava equilibrar nos braços. — Deixe-me
ajudá-la. Foi por minha culpa que a senhorita os derrubou.
Thierry diminuiu a distância entre eles e ergueu as mãos na direção
das dela, tocando-a sutilmente sem que fosse sua intenção. O pequeno
gesto fez Eleanor emitir um discreto suspiro de surpresa. Lembrou-se,
para seu assombro, que estava sem luvas e em trajes de dormir.
— Não foi sua culpa, de forma alguma. Eu só estava carregando
mais livros do que meus braços podiam suportar — falou, apressada.
— Mas só os deixou cair quando me aproximei — alegou ele.
— Tudo bem. Obrigada.
Eleanor aceitou a gentileza e dividiu com Thierry a porção de li-
vros que escolhera. Depois sentiu vontade de rir só de imaginar quão
intrigado ele estaria por vê-la com vários livros nas mãos.
— Então a senhorita aprecia poesia? — perguntou ele em retórica
ao ver um exemplar de Alphonse de Lamartine.
Thierry sabia que ela apreciava, mas perguntou mesmo assim. Dias
antes a ouvira conversar com a irmã e ambas comentavam justamente
sobre um livro de poemas que há pouco fora lançado e o senhor Périer
dissera que procuraria por ele na próxima vez que fosse a Paris.
— Oh, aprecio muito! — respondeu animada. — Veja, por favor, se
Alphonse de Lamartine está entre os que selecionei — pediu, passando os
dedos sobre as lombadas e capas dos livros. — Algumas vezes me confundo.
10
— Não desta vez, pois ele está bem aqui. “Méditations Poétiques”
— leu em voz alta, aproximando o castiçal que trazia consigo. — É meu
poeta francês favorito.
— O meu também! — exclamou Eleanor com mais entusiasmo na
voz do que imaginava, encantada ao saber do gosto em comum.
— A senhorita se importa se eu perguntar algo?
— Só poderei responder isso depois de ouvir sua pergunta. — Ela sorriu.
— Deixou-me receoso agora. Não quero que minha curiosidade
seja considerada, talvez, uma indelicadeza.
— Pergunte e veremos. Ou melhor, deixe-me adivinhar. Quer saber
por que tenho tantos livros em minhas mãos se não posso lê-los?
— Minha curiosidade a ofende? — perguntou ele com expectativa.
— De modo algum! Minha irmã Anne os lê para mim. Fazemos
isso desde crianças, quando ela aprendeu a ler — esclareceu, sorrindo.
Jamais se ofenderia com uma curiosidade tão ingênua.
— E como a senhorita sabe quais títulos escolher? — arriscou outra per-
gunta e, mais uma vez, torceu para que não estivesse sendo impertinente.
— Primeiro eu os conheço. Anne me diz qual é a obra, depois sinto
com meus dedos e os memorizo. Veja este — disse, segurando um dos
livros. — Ele tem a capa mais espessa que os outros da minha biblioteca.
O relevo do título e este contorno ao redor da capa o tornam único.
— A senhorita disse sua biblioteca? Quer dizer que tem uma bi-
blioteca particular? — questionou, admirado e ainda mais curioso.
Se havia algo que ele adorava, eram bibliotecas, e ele ainda não tinha
visitado a daquela mansão.
O entusiasmo e o tom de curiosidade na voz de Thierry eram per-
ceptíveis e Eleanor gostou que ele estava interessado em saber alguma
coisa sobre ela. Bem, talvez o interesse não fosse propriamente ela,
lembrou a si mesma com prudência, mas os livros dela. Entretanto,
apreciou da mesma forma, pois sem contar Anne, raramente encontra-
va alguém disposto a conversar sobre coisas do seu interesse.
— Venha ver — convidou-o, voltando-se para a porta de onde saíra.
11
Eleanor andou na frente e Thierry a seguiu. Juntos entraram em
uma biblioteca pequena e aconchegante.
Do lado direito da sala, duas paredes eram revestidas com um belo
móvel escuro repleto de livros. Do lado esquerdo, havia uma lareira,
duas belas poltronas, uma mesinha e outra estante. Era aquela a estante
da biblioteca particular de Eleanor.
— Há títulos em inglês — Thierry observou fascinado, erguendo o
castiçal e iluminando parcamente o ambiente.
— Meus irmãos e eu estudamos inglês desde pequenos, além de
outras línguas. Todos falamos com fluência. Anne e eu temos prefe-
rência por ler no idioma do autor do livro, então lemos Shakespeare
em inglês e os livros do Visconde de Chateaubriand em francês.
— Espero que meu francês seja ao menos aceitável.
— Seu francês é perfeito! — elogiou Eleanor com sinceridade. —
Parece que nasceu aqui.
— Não nasci, mas meu pai é francês, então conto com essa van-
tagem. Mesmo assim, me sinto lisonjeado ao ouvir isto dos lábios de
uma francesa legítima.
Thierry sorriu para si mesmo, depois se voltou para a estante. Men-
cionar os lábios de uma dama não era muito cavalheiresco, ainda mais
estando a sós com ela.
— Percebo que seus livros estão muito bem organizados. A senho-
rita os separa por autor?
— Sim. Os da primeira prateleira são os que já li. Entenda como
os que Anne ditou para mim. Na segunda prateleira estão os clássicos,
livros antigos que tenho como coleção e estão separados por autor. Nas
outras prateleiras, encontram-se os livros recentemente publicados,
como o de Alphonse de Lamartine. Reconheço quase todos através do
toque, da textura do papel, tamanho, peso, material da capa, espessura,
ou um defeito, como uma folha rasgada ou capa amassada. Cada livro
tem sua particularidade.
Ela arquejou, quase sem ar por falar tão rápido.
— Incrível. — Ele ficou sem mais palavras para dizer.
12
— Não acho que seja incrível. Qualquer um aprenderia a fazer o
mesmo se não pudesse ver — disse ela sem rodeios, mas com gentileza.
— Talvez — disse ele, sabendo que alguns apenas se conformariam
com a escuridão, mas achou melhor não dizer aquilo a ela. — E estas
telas? A senhorita as pintou? — indagou quando a luz do castiçal as
iluminou na parede.
— Oh, não! Que horror! Se eu me lembrasse dessas telas, não o
teria trazido aqui. Disse para papai retirá-las. São apenas borrões de
tinta e decerto são horríveis. Eu estaria cometendo um grande pecado
se desejasse agora mesmo que o senhor também não pudesse ver? —
indagou, séria, antes de rir.
Estava subitamente nervosa por estar a sós com ele naquela bi-
blioteca, no meio da noite, sem que ninguém mais além deles soubesse
onde estavam. Aquilo não era exatamente correto, isso sem mencionar
seus trajes!
— Com certeza estaria — replicou ele, também rindo. — Especial-
mente porque adorei as pinturas. Não me privaria disso, não é?
— Ah, eu o privaria sim! E o senhor não precisa dizer isso apenas
por piedade — retrucou, impulsivamente.
Era para ser outro gracejo, mas Thierry não riu e Eleanor logo se
arrependeu de ter dito aquilo.
— Piedade? Por que eu deveria sentir piedade? O que há de errado
com a senhorita?
Thierry amava arte e estava cada vez mais curioso. Nunca tinha
visto quadros tão delicados e expressivos, que mesmo sem retratar
paisagens ou rostos, ainda assim pareciam fazer todo sentido e davam
a ele uma agradável sensação.
Observou Eleanor ao seu lado e viu que ela estava verdadeiramente
constrangida.
Olhar para ela, iluminada apenas pelo brilho de uma única vela que
ardia no castiçal, também lhe dava uma agradável sensação. Era graciosa
e sincera, mas parecia um pouco insegura naquele momento, diferente
da imagem que ele tivera dela desde que se hospedara em sua casa.
13
— O que há de errado comigo? — Ela puxou o ar com força. — Sr.
Beaumont, por favor, não fale como se não tivesse notado, ou como
se ignorasse o fato de eu não enxergar. Estas telas são, sem dúvida, um
horror para seus olhos.
— Então é isso? Acha que sentirei pena da senhorita por não en-
xergar? Pois saiba que não sinto nenhuma. Se eu a visse tropeçar nas
coisas, usar uma vestimenta do lado avesso, derrubar comida no chão
enquanto se alimenta, quem sabe eu teria alguma compaixão. Mas ao
contrário disso, a senhorita anda com uma graça e leveza como pou-
cas damas. E, perdoe-me dizer, mas a observei durante essa semana e
vi que toca piano, anda a cavalo, borda, reconhece livros apenas pelo
toque, fala vários idiomas e ainda pinta belas telas. Tenha a senhorita
pena de mim!
— Do senhor? Por quê? — inquiriu atordoada.
Eleanor estava espantada por ele ter notado todas aquelas coisas
que, claro, podiam ser incomuns para quem não a conhecia bem, mas
para ela já eram corriqueiras. Ele estivera reparando nela o tempo todo
desde que se hospedara ali?
— Porque eu não faço tão bem quanto a senhorita nem a metade
das coisas que acabo de citar, mesmo enxergando. — Ele riu ao vê-la
ruborizar. — Vamos, deixe-me guiá-la — falou se aproximando a fim
de oferecer seu braço para ela segurar.
Thierry hesitou ao dar-se conta de que segurava os livros em seu
braço esquerdo e o castiçal na mão direita.
— Algum problema? — perguntou Eleanor, percebendo a hesitação dele.
— Não, mas a senhorita é que precisará me guiar — avisou, sopran-
do as chamas da vela do castiçal e o deixando sobre uma mesinha. A
escuridão tomou imediatamente o ambiente e Thierry segurou com
leveza a mão de Eleanor. — Precisei abandonar o castiçal, pois terei
minhas duas mãos ocupadas neste momento.
Eleanor ofegou. Nunca sentira seu coração bater tão forte como
quando sentiu sua mão sendo tocada pela dele, mesmo que suavemen-
te. A mão dele era grande, quente e agasalhava a sua com facilidade. Em
14
pensamento, ela agradeceu por estarem no escuro, porque certamente
sua expressão de arroubo traria mais cor ao seu rosto do que gostaria.
Pensou novamente no fato de estar sem luvas e, por Deus, aquilo sim
parecia não ser correto. Sempre ouvira as mães casamenteiras falando
que moças solteiras de boa posição, ou noivas, não casadas, jamais deve-
riam segurar na mão de um cavalheiro se não estivessem usando luvas.
Tarde demais. Naquele instante, era mais eficaz fingir que havia
se esquecido de tal regra.
Conhecia a casa muito bem para guiá-lo sem nenhum inconve-
niente e foi o que fez, de certa forma até mais rápido do que desejava,
levando-o pelo corredor até as escadarias.
No andar superior, ao final do corredor, havia um castiçal de pa-
rede aceso, como Thierry pôde perceber, mas ele não soltou a mão de
Eleanor. A sensação de ter sua mão junto à dela era tão agradável que,
ele não sabia a razão, mas apenas quis prolongar o momento.
Quando chegaram à porta do aposento de Eleanor, ela recolheu
os livros que ele gentilmente carregara para ela.
— Obrigada pela ajuda, Sr. Beaumont — sussurrou para ele. — Tenha
uma boa noite.
— Foi um prazer, senhorita. Boa noite. — Ele se despediu.
Ao fechar a porta, foi impossível conter um suspiro, deixando escapar
o ar que sem perceber prendia em seus pulmões.
Recriminou-se em pensamento. Até onde sabia, nada tinha a ver
consigo as circunstâncias de Thierry estar na França, hospedado em
sua casa, mas sim com sua irmã mais nova. Tudo o que lhe disseram
era que Thierry viera para conhecer e cortejar Genevieve, algo esperado
com ansiedade pela mais jovem, que crescera ouvindo a mãe falar da
importância e garbosidade do seu futuro noivo, a quem era prometida
desde que nascera.
Ainda que, na verdade, a história fosse um pouco diferente…
15
1
16
E podia dizer que vivia muito bem, que a visão não lhe fazia falta,
pois todas as sensações táteis, o olfato e a apurada audição eram mais
que suficientes para ela fazer e experimentar o que desejasse — ou qua-
se tudo. No essencial, contava com o auxílio de sua irmã Annemarie
e de alguns criados. Entretanto, isso não era muito diferente com os
demais de sua casa. Todos pareciam necessitar dos empregados para
tudo, desde encher suas banheiras com água quente, até fechar os laços
de vestidos e acender as lareiras.
Eleanor, porém, esforçava-se ao máximo para ser independente e
cobrava de si a autonomia para fazer tudo o que pudesse sem auxílio.
Dessa forma, se conseguia ir à despensa e se servir, assim o fazia. Se
podia ela mesma decidir o que vestir e vestir-se sozinha, assim o fazia,
recorrendo às criadas apenas para fechar os botões e amarrar as fitas
impossíveis de alcançar.
Todavia, naquele instante, sentada em sua poltrona favorita, não
estava pensando naquelas coisas. Sua mente viajava por outros caminhos,
muito mais tortuosos e conflitantes, quase desesperadores.
Logo amanheceu. Eleanor soube apenas ouvindo o som dos pássaros
e sentindo a mudança da temperatura. Diferentemente do alvoroço de
piados e gorjeios estridentes, o canto das aves tornou-se suave e bonito
e a brisa que entrava pela janela era morna e aconchegante.
Era o primeiro dia de primavera e tudo parecia perfeitamente har-
monizado. Os pequeninos botões de flores abriam-se para o céu e ofe-
reciam suas cores, perfumes e formas para quem estivesse disposto a
contemplá-los.
Eleanor não podia ver a transformação da paisagem, ainda assim
percebia como naquele ano a primavera nascia de uma forma completa-
mente diferente em seu coração, pois um sentimento novo brotava em
seu peito, como uma árvore de raízes muito fortes, determinada a florir.
Ao mesmo tempo em que isso parecia absurdo, dado o pouco tem-
po que o conhecia, não conseguia negar a si mesma que estava, sim,
sentindo algo. Era errado, mas não conseguia evitar.
Estava, sob seu julgamento, fora de si e completamente encrencada.
Sabia que não deveria ter a audácia de tentar nomear aquilo que sentia.
Precisava esquecer. Mas qual seria o nome daquela sensação esmagado-
ra que mexia deliciosamente com o ritmo com que batia seu coração?
17
Eleanor se recordou do dia anterior, quando o encontrara no cor-
redor da mansão Soleil du matin, no meio da noite, e de como aquela
conversa mexera com seus sentimentos. Àquela hora da noite, todos
já haviam se recolhido para dormir, mas Eleanor decidira que preci-
sava ir à biblioteca selecionar alguns livros para mostrar à Anne no
dia seguinte e juntas escolherem a leitura da próxima semana. Jamais
suporia que o encontraria, que ficariam sozinhos e teriam uma pro-
longada conversa.
Pensou em Genevieve e seu coração se contraiu. Sua irmã muito
desejava ser esposa de Thierry. Todos naquela casa sabiam que um dia
ele viria e cumpriria o acordo. Genevieve esperara muitos anos por ele.
E agora ele estava ali! Ele estava ali e Eleanor não conseguia parar de
pensar nele.
Genevieve também estava agitada, sempre ficava em aflição quando
o assunto era Thierry Beaumont. Ouvia falar dele desde que era uma
mocinha. Um dia seria sua noiva, essa era sua verdade absoluta, como
lhe assegurara a mãe, repetidas vezes, durante toda sua juventude.
“Você é praticamente noiva do Sr. Beaumont. E ser noiva de Thier-
ry Beaumont tem muito mais importância do que ser cortejada por
qualquer outro moço”, dizia Madame Blanche, e então Genevieve se
resignava à longa espera.
“Um dia o conhecerá e o Sr. Beaumont se arrependerá por não ter
vindo antes” garantia a mãe e Genevieve aceitava aquelas palavras e
confiava em um futuro promissor.
Muitos anos se passaram sem que ele escrevesse a ela uma única
linha. Nunca houve uma visita, ou convite para que ela passasse uma
temporada ao lado de sua família em Oxfordshire ou Londres e assim
pudessem se conhecer. Nada. Thierry até então ignorara por completo
o acordo que seus pais fizeram antes mesmo de eles nascerem.
“Seu pai recebeu uma carta dos Beaumont garantindo que em pouco
tempo o Sr. Thierry Beaumont passará uma temporada aqui conosco”,
Blanche anunciou um dia e o coração de Genevieve se encheu de esperanças.
Aquela carta afetara o rumo da situação. Ele escrevera e agora es-
tava ali, finalmente, com toda sua beleza, solteiro e exalando o poder
que só homens ricos exerciam sobre as mães casamenteiras.
18
Thierry Beaumont, o abastado inglês herdeiro dos campos Beau-
mont, na França, e de muitas propriedades e terras por toda a Inglaterra,
surgira como a última centelha de esperança para a solteirona Genevieve.
Naquela manhã, depois de se vestir e tomar chá com Anne, Eleanor
e a irmã foram para o campo, o grande prado que pertencia à família
de Thierry e onde Annemarie recebera autorização para plantar e cul-
tivar um canteiro de flores. Uma curta caminhada por uma bucólica
e poeirenta estradinha de terra contornada por graciosas flores e logo
ultrapassavam a porteira de madeira que dava início àquelas terras.
Faziam aquilo todas as manhãs.
— E ela também é uma órfã que mora com a tia, assim como a
personagem do livro do mês passado — dizia Eleanor a Anne, sobre a
personagem do livro que estavam lendo naquela semana. Ela tateava as
flores em busca de galhinhos secos para retirar, enquanto Anne as regava.
— Ser órfã parece algo muito atrativo para se colocar em um li-
vro — concordou Anne rindo. — De certa forma me identifico, já que
também sou órfã.
— Você não é órfã, Anne — alegou Eleanor no mesmo instante. — É
minha irmã. E tem o papai…
Eleanor queria dizer que Anne tinha também Genevieve e Madame
Blanche, mas sabia que isso era uma inverdade, pois sua mãe e irmã
mais nova não gostavam de Anne, algo nítido.
— Eu sei que tenho vocês. No entanto, fui adotada. Não conheci
meus pais verdadeiros, então, em teoria, sou órfã. Mas isso não im-
porta agora! Fui agraciada no dia em que fui acolhida por nosso pai.
E pelos últimos dois romances que lemos, tenho grandes chances de
ter um final feliz.
Eleanor sorriu e pensou em contar sobre os livros que pegara na
biblioteca na noite anterior. Pensou até mesmo em falar sobre o en-
contro que tivera com Thierry. Contudo, enquanto pensava sobre isso,
Thierry surgiu, caminhando sozinho e vagarosamente. Observou-as
em seu momento de descontração e sorriu diante da leveza e cumpli-
cidade das irmãs.
— Srta. Anne, Srta. Eleanor — cumprimentou-as ao se aproximar.
— Alegra-me vê-las tão cedo ao ar livre.
19
— Sr. Beaumont! — Anne sorriu com doçura. — Asseguro-lhe que
Eleanor é a culpada disso. Ela nunca me deixa dormir algumas horas
a mais pela manhã.
— Bem… O dia só inicia quando começamos a vivê-lo — rebateu
Eleanor, sorrindo.
— Tem toda razão, senhorita. — Ele se voltou para Eleanor. — A meu
ver, o início da manhã é um presente que não devemos desperdiçar.
Especialmente uma manhã em um prado como este.
— Especialmente — repetiu Eleanor, concordando.
— Pretendo aproveitar o sol para conhecer um pouco mais deste
lugar. Apreciaria muito que cavalgasse comigo, Srta. Eleanor — acres-
centou depois de hesitantes segundos.
Eleanor emudeceu, pensando se ele realmente se dirigira a ela com
aquele convite. Um convite para cavalgar! Thierry sabia que Eleanor po-
dia fazer aquilo muito bem. Dias antes tivera oportunidade de vê-la sobre
seu cavalo treinado quando, assim que chegara, fizera a primeira visita
aos campos de sua família. Eleanor, por sua vez, podia jurar que ele ficara
surpreso por ela conseguir a façanha de cavalgar mesmo sem enxergar.
— Eleanor? — Anne a chamou, retirando-a da inércia.
Precisava dar alguma resposta e rápido. Precisava controlar aquela
agitação dentro do seu peito.
— Claro, eu o acompanho. Quer vir conosco, Anne? — indagou
prontamente, torcendo para o convite ser aceito.
Não sabia se ficar a sós com Thierry era apropriado, embora sou-
besse que não seria nada penoso, pois sua companhia se revelava sem-
pre muito agradável.
— Não, desculpem, mas hoje dedicarei todo meu tempo apenas às
flores. Ainda há tanto a fazer aqui! — respondeu Anne, agachada sobre
o canteiro perfumado, deixando escapar um leve sorriso.
Apenas pelo tom de voz, Eleanor soube que Anne ria por dentro.
Era aquela típica voz de traquinagem que ela conhecia muito bem. Era
óbvio que Anne desejava que eles ficassem a sós.
— O senhor se importa de esperar eu chamar Genevieve? — ques-
tionou Eleanor, referindo-se à irmã mais nova.
20
Anne desejou revirar os olhos para a irmã, mas não o fez. De nada
adiantaria e apenas Thierry veria sua indignação. Mesmo assim, deixou
escapar uma lufada de ar dos pulmões. Eleanor estava tão acostumada
com o fato de as atenções serem sempre para Genevieve que não se
permitia a chance de estar em destaque. Além disso — por Deus! —,
teve vontade de gritar com Eleanor, não era todo dia que um homem
bonito assim a chamava para cavalgar! Por que não podia apenas, e
sem rodeios, responder que sim?
Para Eleanor, não era tão simples e em nada ajudava o fato de ele
ser sempre tão atencioso com ela. Ao contrário, sua cortesia a fazia
estimá-lo ainda mais. Entretanto, sabia que era Genevieve que deveria
receber atenção de Thierry. Era por ela que ele estava ali, não era?
— Por que não vamos somente nós dois? Voltaremos rápido. — A
voz de Thierry a arrancou de seus pensamentos aflitivos.
Ele não julgou inadequado o seu pedido, mas também não parara
para refletir no porquê, mesmo inconscientemente, desejava que aque-
le momento fosse particular, sem as outras irmãs para interferirem.
Talvez fosse a necessidade de ter com Eleanor mais alguns momentos
de boa prosa, como na noite anterior.
Eleanor, por sua vez, decidiu concentrar-se no presente e aceitou
o convite para cavalgarem juntos. Sabia que Genevieve enlouqueceria
quando soubesse, mas ainda era muito cedo e a irmã não tinha o hábito
de acordar àquela hora da manhã, então não veria quando partisse com
Thierry rumo às pastagens das terras Beaumont.
— Tudo bem… Se não demorarmos muito, creio que podemos ir.
— E aquiesceu, vencida.
Anne viu surgir um sorriso discreto no canto dos lábios de Thierry.
Ele buscou o cavalo treinado de Eleanor e a ajudou a subir, sem se dar
conta de como o coração dela bateu forte com o contato de suas mãos
quando segurou levemente em sua cintura para auxiliá-la a montar.
Juntos seguiram pelo campo. O dia era um dos dias mais belos em
muitos meses. No céu não se via nenhuma nuvem, somente uma tela
anil e o Sol que nascera há menos de uma hora.
Então Thierry, pela primeira vez desde que chegara à França e se
instalara na casa do Sr. Périer, sentiu-se atormentado ao se dar conta de
21
que Eleanor não podia ver aquela esplêndida beleza: o céu, a cerejeira
e a amendoeira floridas e toda a natureza ao seu redor. Ele olhou para
aquela porção de florezinhas brancas e percebeu que Eleanor nunca
veria um espetáculo como aquele. Sentiu uma estranha necessidade
de dizer a ela o que via, de contar como estava o dia. Começou falan-
do da cerejeira, dizendo que havia florido recentemente e que estava
admirado com a paisagem. Um sorriso brotou dos lábios de Eleanor
quando ele lhe falou sobre as flores.
— Anne sempre descreve as coisas para mim. Gosto disso, então
obrigada por compartilhar comigo sua visão.
Thierry olhou para ela mais que encantado, admirando-a, sorrindo
ao notar o belo contorno dos seus lábios e a cor vívida de seus olhos de
um castanho-dourado. E Eleanor, que não conseguia ver a forma ou
as cores das flores da cerejeira, naquele instante soube que eram lindas
o suficiente para fazer Thierry sentir a necessidade de dividir com ela
o que seus olhos viam.
— Posso descrever mais, se a senhorita desejar — disse enquanto
os cavalos de ambos se movimentavam lado a lado. — Eu gostaria de
lhe dizer como o céu está azul e os prados verdes como jamais vi em
outro lugar — continuou ele com grande satisfação.
— Se fará isso — interrompeu-o delicadamente —, preciso dizer que
não gosto que me descrevam cores. Na verdade, não é necessário, pois
não posso nem sequer imaginar como são. Jamais enxerguei, então não
sei como imaginar o azul, o verde ou o amarelo. Entende?
Thierry se calou. Não havia pensado sobre tal realidade. Pois, claro,
como ela poderia saber como eram as cores, se nunca as tinha visto?
— Posso tentar ajudá-la a imaginar — disse ele quando uma ideia
lhe veio à mente.
— Imaginar… as cores? — perguntou ela, mais a si mesma, enru-
gando levemente a testa.
O que ele pretendia?
22