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Criança Feliz - Um Balanço Crítico de Sua Implementação

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O Programa Criança Feliz

– um Balanço Crítico de
sua Implementação com
Ênfase nos Municípios
Alexandre Abdal1

Giz, merthiolate, band-aid, sabão


Tênis, cadarço, almofada, colchão
In Criança não trabalha, por Arnaldo Antunes e Paulo Tatit

Resumo
O presente artigo realiza uma reflexão crítica sobre a implementação do
Programa Criança Feliz (PCF) pelos municípios. Criado em 2017 pelo Governo
Federal, o PCF está presente em, aproximadamente, 2.800 municípios brasilei-
ros e visa a promoção do desenvolvimento integral da criança e de sua família
ao longo da primeira infância mediante visitas domiciliares e consideração do
contexto de vida das famílias atendidas. O seu público prioritário são famílias
com gestantes e/ou crianças até três anos atendidas pelo Programa Bolsa Família e
famílias com crianças até seis anos atendida pelo Programa de Prestação Continuada.
Metodologicamente, esta reflexão crítica foi construída a partir de metodologias
qualitativas de pesquisa (entrevistas e observação direta) realizadas em três
municípios de estados do Centro-Oeste brasileiro, a partir de minha participa-
ção como consultor do Projeto 914BRZ3002 – Apoio ao Programa Bolsa Família e
ao Plano para a Superação da Extrema Pobreza do, à época (2018-19), Ministério do
Desenvolvimento Social. Os aspectos do PCF discutidos são: (i) os seus traba-
lhadores (coordenadores, supervisores e visitadores); (ii) a sua implementação

1 Alexandre Abdal é sociólogo e professor do departamento de Gestão Pública (GEP) da Escola de


Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP), pesquisador
do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pós-doutorando do International Postdoctoral
Program desse mesmo Centro (IPP-Cebrap) e pesquisador da rede de pesquisa INCT Observatório
das Metrópoles: núcleo São Paulo. Contato: alexandre.abdal@fgv.br

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pelos municípios e estruturação interna; (iii) o seu funcionamento em termos de


visitas domiciliares; e (iv) o seu funcionamento em termos de intersetorialidade.
Termina com uma discussão de resultado a partir da percepção dos atores locais
e a elaboração de recomendações.

Palavras-chave: Programa Criança Feliz (PCF); primeira infância; análise de


políticas públicas; burocracia de nível de rua.

Introdução2
O presente artigo tem, por objetivo, produzir uma reflexão crítica sobre a
implementação do Programa Criança Feliz (PCF), criado em 2017 pelo Governo
Federal. O principal insumo para este artigo foi a minha colaboração, como
consultor, ao Projeto 914BRZ3002 – Apoio ao Programa Bolsa Família e ao Plano
para a Superação da Extrema Pobreza realizado por parceria entre o Ministério
do Desenvolvimento Social (MDS), atual Ministério da Cidadania (MCid), e a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A
minha participação no projeto ocorreu durante o segundo semestre de 2018 e
janeiro de 2019 e implicou no trabalho de campo em três municípios de um estado
do Centro-Oeste brasileiro3 nos meses de setembro e outubro de 2018.
Do ponto de vista metodológico, o trabalho de campo realizado esteve orien-
tado para a avaliação do processo de implementação do PCF pelos municípios,
estando majoritariamente baseado em métodos qualitativos de pesquisa. Foi dese-
nhado como um estudo de casos múltiplo e exploratório e empregou técnicas de
entrevistas semiestruturadas, observação direta e conversas informais individuais
ou em grupo com os agentes locais do PCF4. A unidade de análise foi o município
e as unidades de observação (informantes) foram os atores municipais relacionados
à implementação do PCF (coordenadores/gestores, supervisores e visitadores) por
um lado, e visitas domiciliares e famílias beneficiárias, por outro. Permaneci uma
semana em cada município, com pelo menos três dias de cada uma dedicada inte-
gralmente à observação direta do trabalho de visitação e interação visitador-família.

2 O presente artigo é parte integrante das atividades desenvolvidas no Curso de Extensão


Universitária “Poder Legislativo e Políticas Públicas: da Agenda à Avaliação” da Escola do
Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, por mim ministrado entre março e abril de 2021.
Aulas disponíveis em: https://youtu.be/ct9ooMyJx7s.
3 Por questões de sigilo e preservação das fontes não revelarei o nome dos municípios e estado.
4 Para uma introdução aos métodos qualitativos de pesquisa, ver Angela Alonso (2016). Sobre a
estratégia estudos de caso e sobre as técnicas de entrevistas, ver Robert Yin (2003), Márcia Lima
(2016) e Ronaldo de Almeida (2016).

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Destaco que as realidades locais dos três municípios observados são bas-
tante diferentes, sendo um de porte pequeno (menos de vinte mil habitantes), um
de porte médio (aproximadamente cem mil habitantes) e outro de grande porte
(quase um milhão de habitantes). Outras diferenças importantes, além do porte,
são estrutura produtiva e ocupacional, dimensão da área rural e incidência de
pobreza. Dentre as semelhanças, destaco patamar mínimo de estruturação da
Assistência Social, com os três municípios figurando entre os pioneiros na imple-
mentação do PCF. Em parte, as diferenças entre os municípios explicam-se pelo
método de seleção das unidades de observação: amostragem não probabilística
visando abarcar a maior variabilidade do fenômeno de interesse5.
O artigo está organizado em cinco seções, além desta introdução e uma
conclusão com recomendações ao final. A próxima e primeira seção apresenta o
PCF. As seções de dois a cinco discutem os seguintes aspectos do PCF: (i) traba-
lhadores e equipes; (ii) implementação e seus ciclos; (iii) funcionamento e dinâ-
mica, primeiro, com ênfase na visitação e, depois, na intersetorialidade.

O Programa Criança Feliz6


O PCF foi instituído em 2016 pelo Decreto nº 8.869 e regulado pelas
Portarias 442/2017 e 498/2017, ambas do MDS, e pelas Resoluções CNAS 19 e
20/2016 e 07/2017. Entre 2016 e 2019, pouco mais da metade dos municípios bra-
sileiros (cerca de 2.800) aderiram ao PCF7. Os primeiros municípios que iniciaram
visitas domiciliares o fizeram entre o final de 2017 e início de 2018, caso dos três
municípios que visitei.
O PCF tem por objetivo promover o desenvolvimento integral da criança
na primeira infância e de sua família, além de apoiar a gestante e a sua família
por meio de visitas domiciliares considerando o seu contexto de vida. Converge
com os pressupostos de matricialidade sociofamiliar (ênfase na família e nos
vínculos familiares e comunitários) e de territorialização e descentralização (pro-
ximidade entre oferta de serviços e contexto de vida das famílias e contextos
locais) do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O seu público prioritário
é constituído por crianças de zero a seis anos e gestantes em situação de vulne-
rabilidade e risco social e/ou crianças com deficiência: (i) gestantes e crianças de

5 Sobre vantagens e limites da amostragem não probabilísticas ver Howard Becker (2007).
6 Esta seção está baseada em Ministério do Desenvolvimento Social (2017a; 2017b; 2017c).
7 Conforme dados do próprio Ministério da Cidadania (MCid) disponíveis em sua página na inter-
net: http://mds.gov.br/assuntos/crianca-feliz/crianca-feliz/o-crianca-feliz.

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até três anos e as suas famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF); (ii)
crianças de até seis anos e as suas famílias beneficiárias do Benefício de Prestação
Continuada (BPC); e (iii) crianças de até seis anos afastadas do convívio familiar
por medidas de proteção.
Atualmente, o PCF é coordenado pelo MCid e possuí desenho interfedera-
tivo e intersetorial. A sua implementação depende de coordenação vertical (entre
diferentes níveis de governo) e horizontal (entre diferentes políticas setoriais).
Integra União, estados e municípios, por um lado, e assistência social e combate
à pobreza com saúde, educação, cultura e direitos humanos, por outro. Cada um
dos entes coordena, articula a intersetorialidade, planeja e acompanha o Programa
em seu âmbito e, também, coordena, respectivamente, um Comitê Gestor especí-
fico e o Grupo Técnico Interministerial, estadual ou municipal. União e estados
também fornecem orientações técnicas e metodológicas, apoio técnico e de capaci-
tação e informações sobre o público alvo para os municípios. Os municípios, entes
da ponta, são os responsáveis últimos pela sua execução, formam e capacitam as
equipes de visitadores e planejam e realizam os acompanhamentos por meio de
visitação domiciliares. A equipe municipal básica do PCF consiste em coordena-
dor, supervisores e visitadores8.
Os eixos centrais do PCF são intersetorialidade, territorialidade, e foco na
família mediante estratégias de visitação domiciliar. Enquanto Programa inter-
setorial, o PCF articula as ações de assistência social com saúde, educação, cul-
tura, direitos humanos e combate à pobreza, estando diretamente integrado aos
programas de enfrentamento da pobreza, como o PBF e o BPC, ao mesmo tempo
em que reforça e potencializa ações da política de Assistência Social voltadas
à primeira infância no âmbito do SUAS, como a Proteção Social Básica (PSB), a
Proteção Social Especial (PSE) e os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).
Enquanto Programa territorializado, o PCF tem os CRAS como unidades centrais
em seu arranjo institucional, uma vez que os Centros são os locais responsáveis
pela gestão do território da rede socioassistencial de PSB e pela oferta do Programa
de Atenção Básica à Família (PAIF). Em geral, é nos CRAS que as equipes do PCF
estão lotadas, sendo a partir deles e de seus territórios que as visitas do PCF são
planejadas e realizadas.

8 Pode-se afirmar que o PCF funciona em arranjo institucional específico, com União responsável
pela formulação, estabelecimento de metas e financiando o PCF e entes subnacionais, municípios
à frente, implementando-o. Ver Marta Arretche (2012) e Renata Bichir et al (2020).

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Enquanto estratégia de visitação domiciliar focada nas famílias, o PCF tem


o visitador como profissional basilar. É quem está na ponta e, nesse sentido, pla-
neja e realiza periódica e sistematicamente as visitas às famílias beneficiárias.
A visita familiar é ação planejada e sistemática que ocorre mediante o emprego
de metodologia específica: Cuidados para o Desenvolvimento da Criança (CDC)9.
Trata-se de metodologia orientada para o apoio e fortalecimento dos esforços
familiares voltados ao cuidado, proteção e desenvolvimento infantil, privile-
giando atividades comunicativas e lúdicas.
O PCF é um Programa recente e, por isso, ainda possui pouca literatura ao
seu respeito, com escassez de trabalhos que realizam investigação empírica a res-
peito da sua formulação, implementação ou impactos10. Boa parte da pouca litera-
tura disponível11 sobre o PCF tende a trazer uma condenação a priori do Programa,
de natureza majoritariamente ideológica, seja pela associação ao governo Temer,
seja pela associação ao retorno do fenômeno conhecido como primeiro-damismo
e/ou assistencialismo-higienista à política de assistência social brasileira.

Os trabalhadores: visitadores, supervisores e


coordenadores
As equipes básicas do PCF são formadas por um coordenador mais um
ou alguns supervisores e equipes de visitadores, dependendo do município e do
tamanho do Programa ofertado nele. Naqueles observados, as equipes variaram
entre um supervisor com três visitadores e quatro supervisores com 25 visitado-
res. Contudo, em nenhum dos casos as equipes estavam completas, principal-
mente em termos de visitadores. Verificou-se alta rotatividade, vagas não preen-
chidas e afastamentos por motivos de saúde, maternidade ou férias.
Em um dos municípios, para além da equipe básica do PCF, motoristas
foram incorporados. Embora não obrigatórios segundo as regras estabelecidas
pelo Ministério, os motoristas e os carros por eles dirigidos, foram apresentados
por coordenadores, supervisores e visitadores como essenciais para a viabiliza-
ção do PCF na cidade. Isso porque, esse município é territorialmente extenso,
populoso e detentor de urbanização horizontal. Ainda e mais importante, o seu

9 Ver Care for Children Development (Unicef, 2012) e a sua tradução feita pelo MDS: Cuidados para o
Desenvolvimento da Criança (CDC): notas do multiplicador (MDS, sem data).
10 Exemplos de trabalhos disponíveis que levam a cabo algum tipo de investigação empírica do PCF
são: Natália Montoya et al (2018) e Ronan Gaia et al (2019).
11 Exemplos: Aldaíza Sposati (2017), Carolina Capilheira (2018), Lisete Arelaro e Janaina Maudonnet
(2017), Jucemeri Silveira (2017) e Paula Fonseca (2017).

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contexto de implementação incorporou como base das equipes do PCF apenas


cerca de um quarto do total de mais de vinte CRAS do município. Resultado:
o território dos CRAS sem equipe do PCF é coberto por visitadores lotados em
CRAS vizinho. Um dos motoristas disse que em um único dia de trabalho chegou
a percorrer quase noventa quilômetros.

Figura 1. Equipes do PCF, municípios observados, 2018

Município pequeno Município médio Município grande


Equipe básica do PCF no município Sim Sim Sim
Local de trabalho do coordenador CRAS SAS SAS
Dedicação exclusiva do coordenador Não Não Sim
Sim. 6 motoristas para
Motorista Não Não
6 carros (1 por CRAS).
N° de vagas de supervisores 1 2 4
3 (1 com licença
N° de supervisores em atividade 1 2
médica)
N° de vagas de visitadores 3 23 25
01 (um visitador em 21 (um visitador em
14 (11 visitadores em
N° de vagas preenchidas de visitadores contratação e outro licença médica e outro
processo de seleção).
em treinamento) em férias)
Fonte: trabalho de campo. Elaboração: Alexandre Abdal

Se as equipes de visitadores estão lotadas no CRAS, equipamento perce-


bido como “natural” para a sua alocação, o mesmo não se pode dizer para o lugar
de trabalho dos supervisores e coordenadores. Eles transitam entre os CRAS sob
a sua supervisão e a Secretaria de Assistência Social (SAS), possuindo autonomia
relativa em relação ao seu lugar de trabalho. A tendência encontrada foi supervi-
sores transitando entre CRAS e SAS a partir de suas preferências e demandas diá-
rias e coordenadores lotados na SAS nos municípios multi-CRAS, mas lotados no
CRAS nos municípios menores e com um único CRAS. Nesse caso, coordenador
e supervisor estavam mais próximos do cotidiano do PCF implicando, sobretudo
no caso do coordenador, um conhecimento do cotidiano do Programa não verifi-
cado nos outros municípios.
A dimensão do conhecimento prévio do PCF foi um fator homogeneizante
dos profissionais envolvidos: ninguém, de motoristas e visitadores a coordena-
dores possuía conhecimento aprofundado a respeito do Programa. A maioria das
pessoas simplesmente não conhecia o PCF até a seleção ou convite para ingresso.
Uma quantidade menor, mas significativa de pessoas já tinha ouvido falar,
mas não sabia direito o que era. E poucos, basicamente pessoas já inseridas na

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assistência social, declaram que conheciam o Programa com maior profundidade.


Uma possível explicação para esse fato refere-se à juventude do PCF.
No caso de coordenadores e supervisores, foi comum encontrar uma tra-
jetória de experiência na Assistência Social. Tais profissionais, majoritariamente,
passaram pelo CRAS, seja como técnico relacionado a algum serviço oferecido,
técnico (assistente social, psicológico) do PAIF ou mesmo coordenador do Centro..
Mas, também, pela PSE e/ou gestão ou parte técnica de algum equipamento da
Assistência Social relacionado ao acolhimento de crianças, jovens ou idosos.
A experiência direta com a primeira infância não foi elemento geral iden-
tificado entre supervisores e coordenadores. Ao contrário, a experiência relatada
com esse público era mais indireta e mediada, ao nível do PAIF, um programa no
qual o seu público envolve também a primeira infância. Esse ponto, contudo, não
foi percebido necessariamente como um problema entre os atores locais, uma vez
que habilidades relacionadas à gestão, formação e motivação de equipes e plane-
jamento seriam mais relevantes que a experiência direta com políticas públicas
de primeira infância.
Já a trajetória dos visitadores, até pelo seu número muito maior, apare-
ceu como mais díspar. Foram verificados visitadores com formações e trajetórias
profissionais distintas. Dois grandes grupos foram traçados. Por um lado, há os
visitadores com formação média (médio completo ou equivalente). Por outro
lado, há aqueles com ensino superior, completo ou cursando. Embora os cur-
sos relacionados à Assistência Social predominem (assistência social, psicologia
e pedagogia), havia gente com formação em administração, geografia, história,
gestão ambiental, entre outros.
Segundo os coordenadores e supervisores, trabalhar com visitadores com
ensino superior é melhor porque eles possuem melhor formação, compreendendo
mais facilmente a sua atividade, o Programa e a Assistência Social. Ao mesmo
tempo, estava disseminado um receio sobre a continuidade dos visitadores com
ensino superior: dada a sua baixa remuneração12, poderia acontecer desse visita-
dor vislumbrar o PCF como um momento de transição no qual adquire experiên-
cia enquanto espera uma oportunidade melhor.
Do ponto de vista de suas trajetórias profissionais, foi possível, novamente,
identificar dois grandes grupos, não necessariamente correlacionados aos gru-
pos anteriores. Em um deles, há os visitadores com significativa experiência na

12 Nos municípios pesquisados, a renda mensal dos visitadores variava entre R$ 1.200,00 e R$
1.300,00.

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Assistência Social e/ou em políticas sociais e/ou em visitação. Tais visitadores já


foram, entre outras ocupações, agentes comunitários de saúde, técnicos do PAIF,
pessoal administrativo da SAS, professor da rede pública, etc. Independente da
formação escolar, visitadores com trajetórias desse tipo tendem a compreender
com maior facilidade os objetivos da Assistência Social, assim como valorizar e se
adequar mais facilmente ao trabalho de visitação. Para eles, a Assistência Social
não é apenas uma atividade profissional, mas possui, também, uma dimensão
normativa e ativismo.
Nesse primeiro grupo vale, também, incluir visitadores com atividade reli-
giosa forte, no sentido de membros da pastoral, obra social da religião ou igreja,
trabalho missionário ou afim, cuja atividade cotidiana forja-os para a lida com
famílias de realidade bastante diferente da deles. Para eles, apesar da visitação
não ser exatamente concebida como ativismo socioassistencial, é pensada em ana-
logia à atividade religiosa e, assim, como missão. A compreensão dos objetivos
da assistência social pode ser processo mais lento ou tortuoso para eles, mas a
atividade de visitação em si não é, necessariamente, um obstáculo.
Já no segundo grupo, há os visitadores cuja trajetória passou ao largo da
Assistência Social e/ou de políticas sociais e/ou visitação e/ou trabalho religioso.
Tais visitadores possuem as experiências profissionais mais variadas possíveis,
de ausência de experiência prévia (PCF como primeiro emprego) a sócio de ótica.
O que essas pessoas têm em comum, além de não poderem ser enquadradas no
grupo anterior, é o fato de estarem desempregadas no momento em que foram
chamadas para assumirem a visitação no PCF. Estavam em situação de desem-
prego e se viram impelidas a tentar algo novo. Essas pessoas tendem a estranhar
a visitação, sobretudo o fato de passarem a entrar cotidianamente na casa de
famílias que vivem de forma muito diferente que elas próprias.
O quadro abaixo sintetiza esquematicamente os perfis de visitadores em
termos de formação escolar e trajetória profissional. A compreensão dos objetivos
da Assistência Social, em termos gerais, e da posição da visitação no PCF e do
PCF na Assistência Social, especificamente, bem como a valorização do trabalho
de visitação, seja enquanto ativismo ou como missão, constituem as variáveis-
-chave para uma maior probabilidade de adequação e permanência à atividade
de visitação, um trabalho árduo por natureza. Parodiando Max Weber (1967), tais
visitadores não apenas vivem da visitação, mas, também, vivem para a visitação/
Assistência Social.

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Figura 2. Equipes do PCF, municípios observados, 2018

Ensino superior nas áreas relacionadas à Assistência Social


+/+ -/+
Experiência profissional na (com ensino superior e (sem ensino superior, mas
Assistência Social, em políticas com experiência profissional) com experiência profissional)
sociais, visitação domiciliar e/ou +/- -/-
trabalho religioso (pastoral/missão) (com ensino superior, mas (sem ensino superior e
sem experiência profissional) sem experiência profissional)
Fonte: trabalho de campo. Elaboração: Alexandre Abdal

Enquanto a compreensão dos objetivos da Assistência Social está rela-


cionada à experiência profissional prévia e à formação em áreas próximas à
Assistência Social, a valorização da atividade de visitação depende da sua com-
preensão como ativismo e/ou missão. Esses, são os visitadores vocacionados, mais
propensos a se adequar às dificuldades do cotidiano da visitação. Agora, os visi-
tadores portadores de diplomas superiores, sobretudo nas áreas mais distantes da
Assistência Social, e que não concebem a visitação como vocação constituem o grupo
de profissionais do PCF menos propensos a nele se adequar e/ou permanecer.

A implementação: desenho, instâncias e ciclo de


implementação
Nos municípios visitados, o PCF está funcionando, com as visitas aconte-
cendo e as famílias sendo acompanhadas. E os arranjos institucionais locais são
relativamente convergentes, com o PCF situado dentro da Assistência Social e o
CRAS sediando a sua execução. É a partir do CRAS que as equipes de visitadores
se organizam, planejam as suas atividades e saem para as visitas. Essa precedên-
cia do CRAS, percebida pelos atores locais como “óbvia”, é justificada pela sua
proximidade e enraizamento territorial.
Portanto, a infraestrutura física do CRAS é importante para o funcionamento
cotidiano do PCF. Ela inclui desde disponibilidade de sala com armário para equipe
de visitadores a computador com conexão de internet caso o supervisor opte por
trabalhar no CRAS. Contudo, a infraestrutura física dos CRAS é bastante heterogê-
nea, inclusive internamente a um mesmo município. Alguns Centros chegam a dis-
ponibilizar salas com ar condicionado para os visitadores e internet wifi, enquanto
outros nem ao menos possuem armários para guardar os brinquedos do Programa.
O arranjo local do PCF nos municípios visitados contava, ainda que pelo
menos nominalmente, com um Comitê Gestor, lugar no qual deveria ocorrer a

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integração do PCF com as demais políticas. Mas o grau de institucionalização


era baixo: não havia representantes da sociedade civil e nem agenda de reuniões
periódicas ou membros que o valorizassem. No município de pequeno porte, o
Comitê gestor funcionava ao largo de sua institucionalização, mais por volunta-
rismo e contatos pessoais e informais de seus membros. Nos municípios maiores,
não verifiquei nada que compensasse essa baixa institucionalização.
As equipes básicas do PCF são compostas por coordenador, supervisor(es)
e visitadores. Embora podendo variar em termos de modalidade de contratação
e jornada, os contratos típicos do PCF são por tempo determinado (um ano reno-
vável por mais um) e não implicam concurso público ou vínculo formal. Os três
municípios visitados faziam contratações diretas, não as tendo terceirizado para
organização social ou empresa de recursos humanos, e contrataram visitadores
em tempo integral, não utilizando estagiários.
Contudo, a composição dessas equipes básicas variou segundo municípios
e tipo de cargo, sendo o porte do município um fator de condicionamento dos
processos de seleção de supervisores e visitadores. Nos municípios de médio
e grande porte, os processos de formação das equipes tenderam a uma maior
formalização, implicando processos seletivos mais padronizados e mais impes-
soais. No município de pequeno porte, os processos de contratação e seleção dos
profissionais do PCF tenderam à informalidade, com predomínio de práticas de
indicação, inclusive para visitadores.

Figura 3. Contratação e seleção das equipes, municípios observados, 2018

Município pequeno Município médio Município grande


Informal, com
Contratação: coordenadores indicação e CV + Convite Convite
entrevista
Informal, com Informal: convite
Contratação: supervisores indicação e CV + a servidores da Formal: banco de CVs
entrevista Assistência Social
Informal: indicação, Formal: banco de CVs
Contratação: visitadores Formal: banco de CVs
CVs e entrevista e entrevista
Processo seletivo: motoristas **** **** Formal: banco de CVs
Carros **** **** Aluguel
Licitação (+ compra Licitação (+ compra Licitação (+ compra
Compra de material informal por informal por informal por
profissionais do PCF) profissionais do PCF) profissionais do PCF)
Fonte: trabalho de campo. Elaboração: Alexandre Abdal

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Mesmo nos municípios com práticas mais formalizadas de contratação há


importantes diferenças. Enquanto um município montou equipe de supervisores
a partir do quadro de servidores da Assistência Social e equipe de visitadores a
partir de processo seletivo com análise de currículo e entrevistas, o outro muni-
cípio recrutou supervisores e visitadores exclusivamente por análise de currículo
sem entrevistas e sem exigência de experiência prévia na Assistência Social.
Argumento que a forma como se estrutura o processo de recrutamento dos
profissionais do PCF influencia dinâmicas posteriores do Programa. O cargo de
coordenador, enquanto cargo que implica confiança do Secretário, dificilmente
não passará por algum tipo de indicação. Contudo, considerar currículo e experi-
ência prévia desse profissional na Assistência Social e aproveitar o quadro atual
de servidores da SAS ajuda a garantir capacidades técnicas e de gestão, conhe-
cimento das particularidades locais, continuidade das políticas da assistência e
integração com outras políticas.
Para os cargos de supervisão, o expediente de recrutar servidores da SAS
contribui para o aproveitamento de pessoal já conhecedor das dinâmicas da
Assistência Social, para a continuidade desse profissional após o vencimento do
contrato e para a economia dos recursos do PCF, uma vez que o PCF não vai arcar
com a integralidade dos salários dos supervisores. Inversamente, a contratação de
supervisores mediante banco de currículos em contratos temporários incentiva a
descontinuidade, com a troca periódica de supervisores desestimulando dinâmi-
cas de aprendizagem. Já para a contratação de visitadores, mesmo considerando
a alta rotatividade desse profissional em função dos baixos salários e a dureza do
trabalho de visitação, destaca-se o modelo que combina análise curricular com
entrevistas e valorização de experiência prévia como mais efetivo para a contra-
tação de visitadores vocacionados.
Um dos municípios incluiu, à equipe básica, motoristas (e carros alugados)
que foram admitidos com recursos do PCF, também por contratos temporários,
jornada completa e processo seletivo baseado em análise curricular. A incorpo-
ração de carros e motoristas sinaliza uma importante dimensão do PCF. Por ora,
chamo a atenção para o fato de que os deslocamentos cotidianos dos visitado-
res, entre uma visita e outra, é uma questão significativa do funcionamento do
Programa. Os visitadores percorrem longas distâncias, na maioria das vezes a pé,
e enfrentam o sol forte e outras intempéries. Relatam, inclusive, diminuir o tempo
das visitas por conta do tempo gasto com deslocamentos.
Oficialmente, pelas regras do PCF, nem os municípios podem comprar
carros para o PCF, nem o PCF pode usar carros da SAS ou do CRAS. Além do

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ignorar, duas formas de encaminhamento do problema foram observadas, ambas


envolvendo algum tipo de “burla”. O município grande alugou carros, dado a
vedação à compra. Recursos do PCF foram utilizados para o aluguel de carros
e contratação de motoristas, ao mesmo tempo viabilizando a execução do PCF
no município e aumentou o seu custo fixo. No município pequeno, a burla foi
informal: mediante necessidade e disponibilidade, usa-se o carro do CRAS para
“caronas” de visitadores.
Uma vez contratadas e formadas as equipes básicas, devia-se treiná-las.
Coordenadores e supervisores, nos três municípios, realizaram o treinamento
ofertado pelo governo do estado, na capital. Os visitadores nem sempre parti-
ciparam de tais treinamentos, seja por insuficiência de recursos ou de oferta do
treinamento oficial. Assim, foi prática recorrente a mobilização dos supervisores
para treinar visitadores. A percepção de coordenadores e supervisores foi de que,
embora não seja o ideal, o treinamento ofertado por eles é suficiente. Visitadores
tenderam a concordar, mas dizem que, ainda assim, preferem ou gostariam de
ter feito o treinamento na capital.
Nos três municípios o planejamento das visitas é feito semanalmente entre
supervisor e equipe de visitadores. A agenda de visitação é consolidada e as ati-
vidades são planejadas, assim como casos específicos e encaminhamentos são
discutidos com a supervisão. Esses momentos também são aproveitados para a
confecção de brinquedos e uma dificuldade relatada foi a insuficiência de mate-
riais para isso. Praticamente todos os visitadores e supervisores compraram tais
materiais com seu próprio dinheiro e/ou trouxeram de suas casas.
Com relação ao ciclo de implementação do PCF, a equipe básica do
Programa teve participação pequena: ela entrou, basicamente, para executar as
visitas. A exceção aqui é o coordenador, que foi integrado ao PCF um pouco
antes que supervisores e visitadores com as funções (i) de formar equipes; e (ii)
desenvolver plano inicial de visitação. Contudo, coordenadores não participaram
do processo de adesão do município ao PCF, incluindo pactuação da meta de
acompanhamentos. Todos coordenadores com quem conversei disseram já ter
encontrado a meta pactuada, cabendo a eles “bater a meta”13.
A meta de famílias acompanhadas, variável segundo municípios, é ele-
mento central do desenho do PCF e algo que chega de cima para baixo para o
cotidiano de trabalho das equipes básicas. Como o número de famílias acompa-
nhadas e, portanto, o cumprimento da meta, condiciona o montante dos repasses,

13 A meta era de 100 indivíduos no município pequeno, 700 no médio e 1.900 no grande.

Rev. Parlamento e Sociedade, São Paulo, v.10, n.19, p.97-121, jul.-dez.2022


O Programa Criança Feliz – um Balanço Crítico de
sua Implementação com Ênfase nos Municípios 109

o atingimento dela é dimensão fundamental das responsabilidades do coorde-


nador. A relação entre coordenador e meta é uma relação ambígua e paradoxal.
Duas posturas foram identificadas. Por um lado, há a preocupação com o atin-
gimento e manutenção do volume de atendimentos. “Bater a meta” pareceu ser
mais importante que qualquer outra coisa e fonte, simultaneamente, de angústia
e de orgulho para a coordenação, supervisores e visitadores. Contudo, o cumprir
a meta não necessariamente garante o atendimento integral à demanda efetiva
(famílias com perfil e que querem integrar o PCF) ou potencial (famílias com
perfil, mas que não querem integrar o PCF ou o desconhecem). Portanto, o mero
cumprir a meta pode ser pouco, pois famílias que querem, ou precisam ser aten-
didas podem estar ficando de fora.
Por outro lado, há uma postura de minimização da meta pactuada. No
grande município, o mesmo que alugou carros e contratou motoristas, a meta pac-
tuada foi caracterizada como inviável dado o montante de recursos repassados,
a infraestrutura e recursos humanos da SAS e dos CRAS e a elevação dos custos
fixos por conta da inclusão de carros e motoristas. A coordenação se mostrou
tranquila com a impossibilidade de atingimento da meta e contou trabalhar com
uma meta interna e informal inferior à pactuada. Tal redução, apesar de conferir
maior tranquilidade para as equipes básicas, amplifica a questão apontada acima
de hiato entre as famílias atendidas e a demanda efetiva ou potencial. Em ambos
os casos, o resultado é demanda não atendida e, assim, riscos de segmentação e
desigualdade internamente ao público-alvo do PCF.

Figura 4. Famílias atendidas vs. Demanda efetiva ou global pelo PFC

Público-alvo do PCF
(demanda potencial global)

Famílias que querem PCF


(demanda efetiva)

Famílias efetivamente
atendidas pelo PCF (meta)

Fonte: Elaboração própria

Rev. Parlamento e Sociedade, São Paulo, v.10, n.19, p.97-121, jul.-dez.2022


110 Alexandre Abdal

Funcionamento e dinâmica: visitas domiciliares


A atividade de visitação domiciliar é a atividade central do PCF e sobre
a qual o atingimento dos seus objetivos, em termos de desenvolvimento infan-
til, está assentado. É o profissional que está na ponta do Programa, responsável
último pela sua implementação e que goza de relativa discricionariedade (“mar-
gem de manobra”) em sua ação, podendo ser caracterizado enquanto burocrata
de nível de rua14. Além disso, como os estudos de implementação mostram15,
formulação e implementação não são separáveis e nem bem delimitadas, havendo
espaço para tomada de decisão e (re)formulação da política.
Ambos os elementos, discricionariedade ao nível do visitador e margem
decisória e (re)formulação na implementação ao nível dos municípios, são verificá-
veis no PCF. Apesar da institucionalidade do Programa imposta a partir do MDS
e do treinamento, ambos homogeneizantes, resta importante margem de mano-
bra para os profissionais do PCF e para os municípios. Isso implica capacidade
de adequação aos contextos locais mediante valorização do saber e da capacidade
decisória de visitadores e de supervisores, bem como do ente municipal. Contudo,
implica também, heterogeneidade no serviço prestado, verificável em três níveis: (i)
cidades; (ii) equipes de visitadores (ou CRAS); e (iii) visitadores individuais.

Figura 5. Exemplos de heterogeneidade no PCF, 2018

Lado A Lado B
Município médio e grande: continuidade do
Município pequeno: interrupção do
atendimento de famílias com recém-nascidos
atendimento de famílias com recém-nascidos
Heterogeneidade: independente de constar no sistema
até que conste no sistema
municípios Município pequeno e médio: não
Município grande: ajustamento do visitador à
ajustamento da jornada do visitador à
jornada de 6 horas, própria da SAS
jornada de 6 horas
Município médio, supervisor 1: lançamento Município médio, supervisor 2: lançamento
Heterogeneidade:
semanal das visitas no sistema, sempre a sem periodicidade definida das visitas no
supervisores
partir da SAS sistema, preferencialmente a partir do CRAS
Município médio, CRAS X, visitador 1
Município médio, CRAS X, visitador 2:
Heterogeneidade: (ex-agente comunitário de saúde):
valorização da capacitação da família para
visitadores valorização do acompanhamento da saúde
confecção de seus próprios brinquedos
durante a visita
Fonte: trabalho de campo. Elaboração: Alexandre Abdal

14 Para uma discussão aprofundada do burocrata de nível de rua ver Gabriela Lotta (2012).
15 Ver, por exemplo, Enrique Saravia e Elizabete Ferrarezi (2006), Celina Souza (2006), Michael
Howlett et al. (2013) e Gabriela Lotta (2019).

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O Programa Criança Feliz – um Balanço Crítico de
sua Implementação com Ênfase nos Municípios 111

Essa combinação entre valorização do saber do visitador e discricionaridade


com heterogeneidade ao nível do atendimento gera, em primeiro lugar, padrões
relativamente diferentes de visita. Embora todas as visitas acompanhadas tenham
lidado com a questão do desenvolvimento infantil mediante a aplicação do CDC,
diferenças foram identificadas. Destaco que, embora importantes, as diferenças
individuais entre visitadores (formação, trajetória, engajamento no PCF, visão de
mundo, etc.) são importantes para explicar os diferentes padrões de visita, mas não
os únicos. Observar também: (i) o papel e capacidade do supervisor em padronizar
e moldar comportamentos de visitadores; e (ii) arranjo institucional local do PCF.
Porque supervisores também treinam visitadores e estão em contato direto com
as equipes de visitação nos planejamentos, e a ação dos supervisores pode confor-
mar equipes de visitadores diferencialmente relacionadas com as dimensões acima.
Porque municípios e coordenadores estruturam diferencialmente fatores como a
meta de acompanhamentos e jornada de trabalho, supervisores e visitadores estão
mais ou menos pressionados para entregar uma agenda fixa de atendimentos.

Figura 6. Padrões de visitas do PCF, 2018

Dimensão Descritivo
Tempo de duração da visita não é uniforme. Por diferentes motivos (engajamento da
família, disposição e pressa ou pontualidade do visitador, número de visitas por dia, tempo
Tempo de visita de deslocamento entre uma família e outra etc.), visita varia entre 20 e 50 min. Não foi
detectada a percepção de que visitas menores de 40 min. interfiram nos resultados do
Programa em termos de desenvolvimento infantil (desde que a família esteja engajada).
Apesar de recomendações do CDC, visitadores adaptam o local de realização da visita às
Local de realização da
características do domicílio e do terreno, condições climáticas e disposição das famílias em
visita
seguir recomendações.
Preocupação com bem- Grau de preocupação com bem-estar de toda a família varia por visitador. Alguns chegam
estar geral da família a dedicar quase metade da visita sobre bem-estar de cada membro da família.
Sobretudo os visitadores que passaram pela área da saúde, por exemplo, como agentes
Preocupação com comunitários, conferem maior atenção a questões relativas à saúde da criança, do
saúde da família cuidador e/ou de toda a família. Nesses casos, visitador acompanha vacinação, peso e
altura, doenças em geral, idas ao posto, escovação dos dentes etc.
Preocupação com Há visitadores bastante preocupados com entorno da família atendida, buscando conhecer
família expandida condições dos agregados e vizinhos e dedicando parte da visita para isso. Alguns, utilizam
(agregados e vizinhos) isso para busca ativa.
Disposição de flexibilizar a aplicação do CDC varia entre visitadores. Alguns entendem
Disposição em a visita exclusivamente como aplicação do CDC e apresentam pouca disposição para
flexibilizar o CDC questões relativas a vizinhos, saúde ou bem-estar da família. Esses visitadores seguem o
CDC o mais próximo possível, ao passo em que estão menos atentos a encaminhamentos.
continua...

Rev. Parlamento e Sociedade, São Paulo, v.10, n.19, p.97-121, jul.-dez.2022


112 Alexandre Abdal

Dimensão Descritivo
Cada visitador lida de uma forma específica com os brinquedos. Há desde aqueles
que possuem “os seus” brinquedos e nunca os deixam com as famílias até aqueles que
Relação com
emprestam brinquedos às famílias. Há aqueles que valorizam a atividade (brincar)
brinquedos
durante a visita e há aqueles que valorizam as famílias confeccionarem os seus próprios
brinquedos.
O grau de engajamento das famílias e cuidadores no PCF condiciona as possibilidades de
Grau de envolvimento, realização das atividades da visita segundo o CDC. Famílias/cuidadores pouco engajados
mobilização e estão menos dispostos a realizar as atividades, implicando desde menor propensão
engajamento das à pontualidade e recepção do visitador nos dias e horários combinados, passando
famílias com o PCF por ausência de disposição em arrumar local da visita e a criança, chegando ao baixo
engajamento na atividade proposta. Nesses casos, a execução do CDC fica prejudicada.
Embora periodicidade do atendimento a gestantes seja mensal, alguns visitadores acabam
por fazer um acompanhamento semanal delas. Isso ocorre por algum tipo de voluntarismo
Gestantes
do visitador associado, por exemplo, à cobranças da própria gestante e/ou à gestante já ter
outro filho sob atendimento semanal.
Fonte: trabalho de campo. Elaboração: Alexandre Abdal

Externamente às visitas, a discricionariedade também influi em outros


aspectos do cotidiano do visitador. Um deles é a composição de sua carteira de
famílias e a busca por novas. Dependendo de suas preferências e do quanto está
pressionado pela meta, ele transita entre o atender mais famílias por semana do
que o estabelecido16, o montar um cadastro de reserva no qual a busca ativa está
feita e a família apenas espera a abertura da vaga, e o só fazer a busca ativa
para incorporação de uma nova família quando abrir uma nova vaga. E mesmo a
busca ativa assume estratégias diferentes, com visitadores indo de casa em casa,
recebendo indicações de famílias que já atendem, intercâmbio formal (listagem)
ou informal (indicação) com o pessoal do CadÚnico e contatos interpessoais com
saúde (UBS, maternidade, saúde da família) e outras políticas setoriais.
Com relação específica ao CDC, importa reconhecer a distância entre a sua
teoria e a sua prática, também interpretável ao âmbito do espaço de discricionarie-
dade. Embora possa haver, de fato, uma má flexibilização associada à negligência
de aspectos do CDC (por exemplo, relacionada a questões como interação visita-
dor-criança, local de realização das atividades e orientação dos cuidadores), existe
uma outra flexibilização, benigna e imposta pela realidade mas que gera dificulda-
des aos visitadores (e supervisores) menos dispostos a negociar com a realidade.

16 Em média, cada visitador com jornada de oito horas por dia deve acompanhar 30 famílias por
semana. Se a jornada cair para seis horas, a meta de atendimento semanal é de 24.

Rev. Parlamento e Sociedade, São Paulo, v.10, n.19, p.97-121, jul.-dez.2022


O Programa Criança Feliz – um Balanço Crítico de
sua Implementação com Ênfase nos Municípios 113

Tal flexibilização benigna é imposta pela realidade e a escolha posta ao visi-


tador é entre o não fazer a atividade e, no limite, desistir da família, e o fazer a
atividade, mesmo que limitada e com a aposta de que ainda gere algum resultado
em termos de desenvolvimento infantil e que possibilite construção de vínculo e
engajamento da família no médio prazo. As situações identificadas como flexibi-
lização benigna do CDC foram (i) ausência de engajamento das famílias e cuida-
dores, a qual gera, interrupção precoce da visita, abandono da atividade, desmo-
tivação e passividade, não arrumação do local da atividade etc.; (ii) resistência
dos cuidadores em por crianças no chão, por acreditar (às vezes com razão) que o
local é impróprio por apresentar riscos à criança ou sujeira; e (iii) incompreensão
do PCF e de seus objetivos por cuidadores e famílias.
Para além da discussão dos diferentes padrões de visita, compreender a
atuação do visitador requer compreender o seu contexto de atuação, expresso
na noção de dureza do trabalho de visitação. Basicamente todos os profissionais do
PCF convergiram na percepção segundo a qual fazer visitação não é fácil, cons-
tituindo um trabalho duro e desafiador. A visitação é caracterizada como um
trabalho áspero e que conversa diretamente com a hipótese da visitação como vocação.
A visitação é trabalho áspero por vários motivos. Primeiramente, “porque
entrar na casa das pessoas” não é fácil: o cotidiano da visitação implica lidar com
famílias na sua intimidade, experimentando e participando de seus dilemas e
questões. Tais famílias vivem e valorizam coisas muito diferentes das vivenciadas
e valorizadas pelo visitador, ao mesmo tempo em que lidar com essas famílias
é lidar com o universo da pobreza e da vulnerabilidade social. Aprender a lidar
com essas diferenças sem julgamentos de valores, é um enorme desafio.
Em segundo lugar, a visitação é um trabalho áspero porque nem todas as
famílias querem ou gostam de receber o visitador. Veem o visitador com descon-
fiança, como alguém de fora, “do governo” e nem sempre se engajam no Programa.
Muitas famílias desistem, mas outras ficam no PCF “só por ficar” ou porque acre-
ditam que o PCF está entre as condicionalidades do PBF e possuem medo de per-
der o benefício. Há famílias que não se engajam no Programa porque o cuidador
principal não compreende a importância do vínculo com a criança e/ou não está
em condições de estabelecê-lo. Em ambos os casos são famílias e cuidadores sem
envolvimento, pouco dispostas às atividades propostas, com pressa para acabar
a visita e sempre prontos a deixar o visitador sozinho com a criança para fazer
alguma atividade doméstica “urgente”. A não superação desse desengajamento é
fonte de angústia pessoal e de sentimento de fracasso para o visitador.

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114 Alexandre Abdal

Em terceiro lugar, o trabalho de visitação é um trabalho de ‘formiguinha’,


cujos resultados são incrementais e de longo prazo, construídos junto com as
famílias. Por isso, o primeiro desafio de todo e qualquer visitador, uma vez que
a família o recebeu, é estabelecer um elo com o cuidador e, a partir dele, uma
relação de confiança. Tal elo-confiança é a única forma pela qual visitador pode
engajar famílias e cuidadores ao PCF, sendo essa construção, em si mesma, pro-
cessual e não linear. Também é a partir desse elo-confiança entre visitador e cuida-
dor que resultados de desenvolvimento infantil vão começar a aparecer, levando,
comumente, meses. Embora tais resultados sejam perceptíveis, a sua ocorrência é
processual, não dependendo da ação exclusiva do visitador.
Em quarto lugar o trabalho de visitador é áspero porque as condições de
trabalho são adversas. Ganha-se pouco (salários médios não chegam a um salário
mínimo e meio) a partir de contratos temporários; vive-se os riscos de exposição
cotidiana a perigos, que, dependendo do município e território, vão desde ques-
tões relacionadas a criminalidade e tráfico de droga, violência contra a mulher
(maioria dos visitadores são mulheres) ou maridos ciumentos e assédios (no caso
dos visitadores homens); ataques de animas como cachorros, cobras, abelhas e
mosquitos; intempéries climáticas (chuvas torrenciais, sol tórrido) a enormes dis-
tâncias percorridas a pé ou por meios particulares (bicicletas, motos ou carros).
Considerando essas quatro dimensões, percebe-se como o visitador é,
sobretudo, um forte. O seu cotidiano de trabalho é difícil e realizado em condi-
ções adversas. A sua única certeza é que terá de lidar com as incertezas do dia a
dia sendo, nesse sentido, a margem de ação de que goza uma benesse. O CRAS,
lugar por excelência de lotação do visitador, pode vir a se constituir um local de
acolhida para o visitador. Contudo, tal constituição do CRAS não é algo imediato.
Nos municípios visitados e em seus diferentes CRAS, o acolhimento do PCF e de
seus visitadores foi processo às vezes longo e que correu por ritmos diferentes
em cada caso. Inicialmente, a tendência foi resistência, como se o PCF não fosse
Assistência Social, expressa em elementos como não disponibilização de sala ou
armários e resistência das equipes do CRAS.
Pelo que pude observar, a relação entre CRAS e PCF dependeu do grau de
compreensão do coordenador do CRAS a respeito do PCF, bem como da (i) atuação
do supervisor e de sua relação interpessoal com coordenador do CRAS; e (ii) da
existência de esforços mais institucionalizados, via coordenação do PCF, de sensibi-
lização do CRAS. Em geral, a relação com o CRAS deslanchou quando CRAS, e suas
equipes, perceberam que o PCF lida com o mesmo público do CRAS, sendo parceiro
e não competidor e cuja ação complementar pode ser fonte de benefícios mútuos.

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O Programa Criança Feliz – um Balanço Crítico de
sua Implementação com Ênfase nos Municípios 115

Funcionamento e dinâmica: intersetorialidade


A intersetorialidade é um dos fundamentos do PCF, a qual tem o CRAS
como um lugar central para a sua efetivação. No CRAS, a intersetorialidade ocorre
ao nível da Assistência Social, consistindo, sobretudo, sinergia entre PCF e PAIF,
por um lado, e entre PCF, CadÚnico e PBF, por outro. Um outro importante lugar
para a efetivação da intersetorialidade, dado o arranjo institucional do PCF, seria
o Comitê Gestor. Contudo, pelo menos nos municípios observados, o grau de ins-
titucionalização do Comitê Gestor era baixo, implicando baixa capacidade para
processamento e solução de casos.
A intersetorialidade depende, primeiramente, do vencimento das resis-
tências iniciais do CRAS. As fontes dessa resistência foram duas: (i) percepção
pelo CRAS (coordenador e equipes técnicas) do PCF como “corpo estranho”; e
(ii) resultados “não-previstos” do PCF e que implicaram efeitos no dia a dia dos
CRAS relacionados ao aumento da demanda pelos serviços na medida em que a
dinâmica de visitação sistemática do PCF contribuiu para a circulação de infor-
mação a respeito do CRAS e seus serviços no território.
Em que pese os diferenciais de ritmo, tais resistência tenderam a serem
vencidas no médio prazo, sobretudo, a partir (i) da integração entre profissionais
do PCF e equipes técnicas do CRAS, por exemplo, mediante construção conjunta
de eventos para a primeira infância ou divisão de sala com equipe do CadÚnico;
(ii) de atuação do supervisor do PCF junto ao coordenador e equipes técnicas do
CRAS, às vezes via mecanismos informais e contatos interpessoais; e (iii) de ações
mais institucionalizadas de sensibilização dos coordenadores do CRAS a partir
da coordenação do PCF.
Uma vez vencidas as resistências iniciais, a intersetorialidade pôde se efe-
tivar. Ela tomou três formas básicas: (i) pelo lado do CRAS, o PCF passou a ser
considerado os “olhos, braços e/ou pernas” do CRAS; (ii) pelo lado PAIF e bene-
fícios eventuais, o PCF foi importante fonte de encaminhamentos; e (iii) pelo lado
do PCF, informações formais e informais provindas das equipes do CRAS, do
CadÚnico e do PBF foram importantes fontes de famílias.

Rev. Parlamento e Sociedade, São Paulo, v.10, n.19, p.97-121, jul.-dez.2022


116 Alexandre Abdal

Figura 7. Padrões de intersetorialidade, PCF-CRAS, 2018

Dimensão Descritivo
Como o CRAS não possui recursos humanos para estar presente em todo o seu território
PCF como olhos, braços e, ao mesmo tempo, nem todas as suas atividades serem de visitação, o PCF, com as suas
e pernas do CRAS dinâmicas de visitação, permite ao CRAS chegar em um público que é seu, mas que, até
então, não conseguia atingir.
Dinâmica de Porque visitadores do PCF estão em contato permanente e sistemático com populações
encaminhamentos nos territórios do CRAS, condições propícias para a identificação e encaminhamento
(integração PCF e PAIF/ de casos para o acompanhamento ou apoio de outras políticas da assistência social
benefícios eventuais) (CadÚnico, PBF, BPC) e/ou serviços do CRAS (PAIF, benefícios eventuais).
Um desafio posto ao visitador é constituir e manter carteira de acompanhamentos
Informações para
suficiente para a meta de atendimentos. Portanto, o acesso a tais famílias é fundamental
inclusão de famílias no
e uma boa relação formal (compartilhamento de listagens) e informal (compartilhamento
PCF (integração PCF e
de informação em tempo real a respeito de famílias incluídas no PBF ou BPC) entre
CadÚnico/PBF)
visitadores e pessoal do CRAS, CadÚnico e PBF mostra ser de grande relevância.
Fonte: trabalho de campo. Elaboração: Alexandre Abdal

Um ponto ambíguo na relação institucional entre PCF e PBF diz respeito à


rigidez das regras de acesso ao PCF. Para ser beneficiário do PCF é condição ser,
também, beneficiário do PBF e, dependendo da forma como município interpreta
e lida com essa questão, bloqueio e/ou interrupção do PBF pode levar à exclu-
são do PCF. Esse ponto é importante porque condiciona o acompanhamento de
famílias pelo PCF ao PBF, programas com objetivos diferentes, um de promo-
ção do desenvolvimento infantil e, outro, de distribuição de renda e combate à
pobreza. Se o aumento da renda familiar para acima da linha de pobreza talvez
seja adequado para suspender o benefício do PBF, muito provavelmente não o
é para suspender o atendimento do PCF. Algumas dezenas de reais per capita
não geram, automaticamente, melhores capacidades nas famílias em termos de
promoção do desenvolvimento infantil e de cuidado e proteção.

Síntese e recomendações
Os atores locais do PCF possuem, basicamente, uma avaliação positiva do
Programa. Todos com os quais conversei, de visitadores a coordenadores, reco-
nhecem dificuldades, desafios e dilemas em relação a sua implementação, mas
nada que coloque em xeque a sua existência. Além disso, reconhecem pelo menos
duas ordens de resultados associados ao PCF, os quais são aqui caracterizados
como “resultados esperados em termos de desenvolvimento infantil” e “resulta-
dos não previstos”, esses últimos relacionados ao aumento de público do CRAS
vis-à-vis o espraiamento de sua presença no território.

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O Programa Criança Feliz – um Balanço Crítico de
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Independentemente das dificuldades, desafios e dilemas relacionados ao


dia a dia do PCF, os seus profissionais foram unânimes em reconhecer a necessi-
dade de programa como esse na Assistência Social. Ele não duplica com o PAIF,
mas o complementa. Além de possuir foco específico e metodologia própria,
o que por si só já o diferencia, o PCF aumenta o alcance do PAIF, permitindo
aos CRAS chegarem em um público que é seu, mas que não tinha capacidade
de alcançar.
Os resultados “esperados” situam-se no escopo dos objetivos do Programa
de desenvolvimento infantil. Atores locais e famílias foram enfáticos em identi-
ficar a dinâmica de visitação e atuação dos visitadores como fomentadores do
desenvolvimento infantil, com destaque para: (i) o desenvolvimento motor (sen-
tar, engatinhar e andar); e (ii) o desenvolvimento cognitivo (compreender e falar).
Tais resultados, apesar de perceptíveis, são desigualmente distribuídos entre as
famílias participantes do PCF. Linha de corte: (i) famílias engajadas; (ii) famílias
desengajam, mas que ficam no Programa; e (iii) famílias desengajam e que saem
do Programa.
Excluindo as últimas, consideradas como “perdidas”, é possível identifi-
car um diferencial de resultados entre as famílias engajadas e desengajadas. As
primeiras constroem um forte vínculo de confiança e de afeto com o visitador.
Tal elo-confiança entre cuidador e visitador é substrato fértil para a proposição e
realização das atividades, inclusive durante a semana, sem a presença do visita-
dor. Cuidadores engajados, que compreendem a importância do fortalecimento
de seu vínculo, dispendem tempo para ficar com a criança, desdobrando as ativi-
dades propostas pelo visitador. É em tais famílias engajadas que os resultados de
desenvolvimento infantil mais aparecem.
As segundas, embora de corpo presente no Programa, não dispõem de
motivação para fazer as atividades e/ou não compreendem a importância dessas
atividades. Comumente abandonam a criança-visitador durante a atividade, não
restando opção ao visitador encerrar a visita ou fazer ele próprio a atividade
com a criança. Nessas famílias, o vínculo cuidador-criança não é fortalecido e os
resultados de desenvolvimento infantil são minimizados. Os visitadores insistem
nessas famílias por dois motivos diferente, um nobre e outro plebeu: (i) esperança
de vencer resistência e conquistar confiança da família; e/ou (ii) necessidade de
manter carteira de famílias atendidas.
Os resultados “não previstos” não dialogam diretamente com os objeti-
vos do PCF, mas impactam o funcionamento da Assistência Social e, sobretudo,
do CRAS. Um “exército” cotidiano de visitadores circulando nos territórios do

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118 Alexandre Abdal

CRAS, conversando com as pessoas e atendendo as famílias promove uma inten-


sificação em termos de volume, qualidade e velocidade da circulação de informa-
ção a respeito do CRAS, dos serviços da assistência social e das demais políticas
sociais. Cidadãos com maior acesso à informação estão em melhores condições
para reclamarem os seus direitos e demandarem serviços a que têm direito. O
CRAS, enquanto equipamento na ponta da Assistência Social, é o principal recep-
tor desse aumento de demanda pelos serviços que oferece.
Em que pese a possibilidade de chegar a um público que é naturalmente
seu, mas que não chegava até então, no curto prazo, esse aumento de demanda
pode ser bastante desafiador aos CRAS. Mas em geral, eles estão estruturados e
com disponibilidade de recursos físicos e humanos para atender adequadamente
esse aumento de demanda. Já no médio e longo prazo, com os CRAS se estrutu-
rando para o atendimento dessa demanda reprimida, é cada vez mais provável
o PCF passar a funcionar como “olhos, braços e/ou pernas” do CRAS junto as
suas comunidades.

***

Assumindo o ponto de vista da melhoria e aperfeiçoamento do PCF, em


particular, e do avanço da proteção social, traço recomendações aos níveis do (i)
desenho e regras de acesso e permanência no PCF; (ii) arranjo institucional e ins-
tâncias do PCF; (iii) formação das equipes, contratações e compras; e (iv) dinâmica
de visitação. Estão sistematizadas no quadro a seguir.

Figura 8. Recomendações

Recomendações Descritivo
Problema 1: regras pouco flexíveis de acesso e permanência no PCF, atreladas ao corte de
renda do PBF. Recomendação: deslocar linha de corte do PBF para o CadÚnico. Desafio:
aumento imediato da população em codições de elegibilidade, eventual necessidade de
priorização no curto prazo.
I. Desenho, regras de
acesso e permanência Problema 2: regime de metas de atendimento insere elemento de heterogeneidade
no público-alvo. Recomendação: incorporação de metas de médio e longo prazo (por
exemplo: 4 e 8 anos), com meta efetiva convergindo para demanda efetiva e/ou potencial
+ elaboração de plano municipal para expansão do público atendido. Desafios: aumento
das necessidades de recuros financeiros, humanos e de estruturação à Assistência Social.
continua...

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O Programa Criança Feliz – um Balanço Crítico de
sua Implementação com Ênfase nos Municípios 119

Recomendações Descritivo
Problema 1: heterogeneidade na relação PCF-CRAS, com casos de falta de compreensão
e acolhimento mútuo. Recomendação: protocolo e ações institucionais de sensibilização,
compreensão e integração mútua entre trabalhadores do CRAS e PCF, incluindo ações das
coordenações. Desafio: Resistência e incompreensões de curto prazo do CRAS em relação
ao PCF e/ou desmotivação dos coordenação para promover integração.
Problema 2: Fraqueza institucional e inoperância do Comitê Gestor do PCF.
Recomendação: valorização institucional do Comitê Gestor, com sensibilização de seus
II. Arranjo institucional
membros, e ampliação da participação com inclusão de representantes da sociedade civil e
e instâncias
das familías beneficiadas. Desafios: resistências dos membros atuais do Comitê Gestor e/
ou da coordenação do PCF e/ou das SAS.
Problema 3: Rotatividade e desvalorização da visitação e precariedade do vínculo de
visitador. Recomendação: valorização do visitador mediante aumentos salariais e
formas mais perenes de contratação que incluam garantia dos direitos trabalhistas na sua
integralidade. Desafios: enrijecimento do quadro de visitadores e maiores necessidades
de recursos.
Problema 1: heterogeneidade nos processos de seleção e contratação de visitadores.
Recomendação: privilegiamento dos processos impessoais de seleção e contratação,
com valorização da experiência prévia em visitação e/ou políticas sociais e inclusão de
entrevistas. Desafio: baixa organização e estruturação da SAS / PCF e/ou persistência de
III. Formação das práticas pessoais de indicação.
equipes, contratações e Problema 2: heterogeneidade nos processos de contratação de supervisores e
compras coordenadores. Recomendação: privilegiamento de processos impessoais de seleção
e contratação, pelo menos no caso de supervisores, preferência pelo aproveitamento
de pessoal da própria SAS ou da área social e/ou com formação específica nas áreas
de serviços sociais, gestão de políticas públicas e afins. Desafios: ausência de pessoal
disponível com esse perfil e/ou persistência de práticas pessoais de indicação.
Problema 1: dificuldades cotidianas do trabalho de visitação, com destaque para
segurança e locomoção do visitador. Recomendação: desenvolvimento de protocolo
“de resgate do visitador” e disponibilização de linha direta com supervisor + liberação
do compartilhamento de carros/motoristas entrea SAS e CRAS com o PCF e/ou criação de
linha de financiamento para o aluguel de carros e contratação de motoristas. Desafio:
IV. Dinâmicas de necessidade de coordenação pelo MDcid e de disponibilização de mais recursos.
visitação
Problema 2: imposição, pela realidade, de limitações à aplicação do CDC.
Recomendação: incluir e prever possibilidade de flexibilização do CDC em casos
relacionados ao desengajamento do cuidador, espaços inadequados para as atvidades,
situações familiares específicas e que demandam cuidados adicionais etc. Desafio:
necessidade de discussão e formação permanente acerca dos limites dessa flexibilização.
Fonte: trabalho de campo. Elaboração: Alexandre Abdal

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