Narciso e Goldmund Hermann Hesse
Narciso e Goldmund Hermann Hesse
Narciso e Goldmund Hermann Hesse
Capa
Ficha Técnica
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
I
No entanto, muito embora se desse geralmente bem com todos, não foi
assim tão rapidamente que encontrou um verdadeiro amigo; entre os
colegas não havia nenhum do qual se sentisse especialmente próximo ou
por quem nutrisse uma afeição particular. Os outros, por seu lado, ficaram
admirados por encontrar no atrevido pugilista, que tinham tido em conta de
simpático brigão, um colega muito pacífico, que visivelmente se esforçava
por ser reconhecido como aluno exemplar.
Havia no convento duas pessoas por quem Goldmund se sentia atraído,
dois seres que lhe agradavam, que o ocupavam em pensamento, por quem
sentia admiração, afeto e respeito: o abade Daniel e o mestre auxiliar
Narciso. O abade parecia-
-lhe um santo; a sua simplicidade e a bondade, o seu olhar claro e solícito, o
modo humilde como desempenhava as funções de chefia e governação
como se de um serviço ao próximo se tratasse, a bondade e a serenidade dos
seus gestos, tudo isso o atraía fortemente. Bem gostaria ele de tornar-se o
fâmulo daquele santo homem para poder andar sempre perto dele,
obedecendo e servindo, oferecendo-lhe em permanente sacrifício todo o seu
juvenil anseio de devoção e dedicação e assim poder aprender com ele a
prática de uma vida pura, nobre e santa. Porque Goldmund tencionava não
só concluir ali os seus estudos mas também, se possível, permanecer para
sempre no convento e dedicar-se a Deus; era essa a sua vontade, era esse o
desejo e a ordem do pai e assim parecia ter sido também determinado e
exigido por Deus. Ninguém poderia aperceber-se disso, e, no entanto,
pesava sobre aquele adolescente belo e carismático um fardo, um peso
relacionado com a sua proveniência, uma secreta predisposição para a
penitência e o sacrifício. Nem o próprio abade o notara, apesar de o pai de
Goldmund ter feito certas alusões, manifestando com toda a clareza o
desejo de que o seu filho ficasse para sempre ali no convento. Uma
qualquer mácula secreta parecia estar ligada ao nascimento de Goldmund,
algo desde sempre silenciado parecia exigir constante expiação. O pai,
porém, pouco agradara ao abade – às suas palavras e à sua natureza algo
petulante ele opusera uma frieza cerimoniosa, acabando por não dar grande
importância às alusões.
A outra pessoa que tinha despertado o afeto de Goldmund soubera
observar melhor e intuíra mais, mas mantinha-se reservada. Narciso já se
tinha apercebido de que fora ali arribar uma bela avis rara. Solitário na sua
altivez, bem cedo pressentira em Goldmund um congénere, apesar de em
tudo parecer o seu contrário. Narciso era moreno e seco, enquanto
Goldmund se mostrava brilhante e pródigo. Enquanto Narciso era um
pensador e analítico, Goldmund parecia ser um sonhador com uma alma
infantil. Mas, apesar de todos os antagonismos, ligava-os um traço comum:
ambos eram seres distintos, diferenciando-se dos outros por percetíveis
talentos e atributos, e ambos tinham recebido do destino uma especial
premonição.
Narciso interessava-se ardentemente por aquela alma juvenil, cujo
carácter e o destino ele rapidamente reconhecera. Também Goldmund
admirava com todo o fervor aquele seu mestre, sempre belo, superior e
inteligente. Mas Goldmund era tímido e não encontrava outra maneira de
conquistar Narciso senão esforçando-se até à exaustão para se tornar um
discípulo atento e ávido de saber. E não era só a timidez que o mantinha na
reserva. Inibia-o também a sensação de que Narciso representava para si um
perigo. Ele não podia, ao mesmo tempo, ter como ideal e modelo o bom e
humilde abade e Narciso, o erudito inteligente e extraordinariamente
perspicaz. Não obstante, aspirava com todo o ímpeto da sua alma juvenil a
alcançar os dois ideais inconciliáveis. Frequentemente, isso fazia-o sofrer.
Por vezes, durante os primeiros meses que passou na escola, sentia-se tão
confuso e interiormente dilacerado que se viu tentado a fugir ou a procurar
no relacionamento com os seus colegas um escape para a sua aflição e
secreta fúria. Quantas vezes irrompia nele, em geral tão amigável, um furor
de tal modo intempestivo, devido apenas a uma qualquer garotice
insignificante, que só com grande esforço conseguia conter-
-se e voltar costas sem dizer palavra, pálido como um cadáver. Nessas
alturas ia visitar ao estábulo o cavalo Bless. Abraçava-lhe o pescoço,
beijava-o, chorava encostado a ele. E o seu sofrimento foi assim
aumentando pouco a pouco, até se tornar visível. As suas faces escavaram-
se, o brilho do olhar perdeu-se e o riso de que todos tanto gostavam tornou-
se cada vez mais raro.
Nem ele sabia o que se passava consigo próprio. Continuava
sinceramente disposto a ser um bom aluno para poder entrar em breve no
noviciado e tornar-se depois um monge piedoso e sereno; acreditava que
todas as suas forças e os talentos aspiravam àqueles objetivos piedosos e
suaves e desconhecia quaisquer outros impulsos. Sentia, por isso, como era
estranho e triste ter de constatar quanto aquele objetivo simples e belo era
difícil de alcançar. Como o surpreendia e desanimava verificar amiúde
tendências e estados repreensíveis dentro de si: distração e aversão ao
estudo, devaneios e fantasias ou sonolência durante as lições, rebelião e
aversão contra o professor de latim, irritabilidade e colérica impaciência
contra os colegas. Mas o que mais o confundia era o seu amor por Narciso
lhe parecer tão difícil de conciliar com o seu amor pelo abade Daniel.
Simultaneamente, por vezes julgava sentir com a mais íntima convicção que
também Narciso o amava, que de alguma maneira participava nos seus
conflitos e por ele esperava.
Também se ocupavam dele, bem mais do que supunha, os pensamentos
de Narciso. Quanto desejava ter como amigo aquele rapaz belo, brilhante e
gentil; adivinhando nele o seu polo oposto e complementar, queria
aproximá-lo de si, orientá-lo, esclarecê-lo e potenciá-lo, para que pudesse
desenvolver todas as suas faculdades. Mas preferiu conter-se. Fê-lo por
muitos e variados motivos, quase todos conscientes. Tolhia-o e inibia-o,
acima de tudo, o horror que lhe inspiravam aqueles não raros mestres e
monges que se apaixonavam pelos alunos e pelos noviços. Não raras vezes
sentira ele próprio com aversão os olhares lúbricos de homens mais velhos
pousados sobre si, e quantas vezes se vira obrigado a opor um bloqueio
mudo às amabilidades dos seus avanços. Agora podia compreendê-los
melhor – também ele se sentia tentado a enamorar-se do belo Goldmund, a
provocar a sua risada contagiante, a acariciar com mão carinhosa o seu
cabelo loiro e luminoso. Mas nunca o faria, jamais. Além disso, na sua
condição de mestre adjunto assumindo o papel de professor sem contudo ter
esse cargo e a autoridade, estava habituado a manter-se particularmente
atento e cauteloso. Acostumara-se a enfrentar os jovens pouco mais novos
do que ele como se fosse vinte anos mais velho, tal como se acostumara a
proibir-se severamente qualquer preferência por um aluno e a impor a si
mesmo especial equidade e solicitude para com aqueles com quem
antipatizava. O seu serviço era um serviço espiritual, fora a ele que dedicara
a sua vida disciplinada e só secretamente, nos raros momentos em que não
se observava a si próprio, se permitia o prazer do orgulho, da consciência da
própria superioridade e da sua inteligência. Não, por mais sedutora que
fosse a amizade para com Goldmund, representava também um perigo, e
não devia permitir que ela afetasse o âmago da sua vida. O núcleo e o
sentido da sua vida era aquele comprometimento para com o espírito, para
com a palavra, a orientação silenciosa, serena e consciente dos seus alunos
– e não só dos alunos –, que implicava sempre um prescindir dos próprios
interesses em proveito dos elevados objetivos espirituais.
Há mais de um ano que Goldmund estudava no convento de Mariabronn,
centenas de vezes tinha já jogado com os colegas, à sombra das tílias da
cerca e por baixo do belo castanheiro, os inúmeros jogos dos alunos:
corridas, jogos com bola, polícias e ladrões, batalhas com bolas de neve.
Mas tinha finalmente chegado a primavera. Goldmund, porém, sentia-se
cansado e adoentado, doía-lhe frequentemente a cabeça e na escola tinha
dificuldade em manter-se acordado e atento.
Foi então que, certo dia, ao fim da tarde, veio falar com ele Adolf, o
rapaz com quem lutara ainda antes de se conhecerem e com quem começara
a estudar Euclides nesse inverno. Foi na hora depois do jantar, uma hora
livre, em que era permitido jogar nos dormitórios, conversar nos quartos
dos alunos e mesmo passear na cerca exterior.
– Goldmund – disse-lhe, puxando-o para a escada que começaram a
descer. – Quero contar-te uma coisa, uma coisa divertida. Tu és um aluno
exemplar e de certeza que queres chegar a bispo; mas primeiro dá-me a tua
palavra de honra de que serás camarada e não vais denunciar-me aos
professores.
Goldmund não hesitou em dar a sua palavra. Havia a honra do convento
e havia a honra dos alunos, e ele não desconhecia que ambas, por vezes,
entravam em conflito; como em todo o lado, porém, as leis não escritas
eram mais fortes do que as prescritas, e nunca lhe teria passado pela cabeça,
enquanto fosse aluno, furtar-se às leis e aos códigos de honra dos discentes.
Sempre a falar baixo, Adolf levou-o, atravessando o portal, lá para fora,
para debaixo das árvores. Ali os esperavam, como lhe explicou, alguns
camaradas leais e corajosos como ele, que tinham herdado das gerações
anteriores o costume de recordarem a si mesmos, de vez em quando, que
não eram propriamente monges, e que por isso se permitiam sair uma vez
por outra do convento durante a noite, para irem até à aldeia. Era uma
diversão e uma aventura a que um bom camarada se não escusava;
voltariam a meio da noite.
– Mas nessa altura já o portão está fechado – objetou Goldmund.
Naturalmente, claro que o portão estava fechado, era precisamente isso
que dava gozo. Eles conheciam caminhos secretos para entrarem sem que
ninguém desse por isso. E não era a primeira vez.
Goldmund lembrou-se. Já ouvira falar num «ir à aldeia», o que
subentendia certas excursões noturnas dos alunos em busca de todo o tipo
de prazeres e aventuras secretas, algo que era rigorosamente proibido pelo
regulamento do convento, sob pena de severos castigos. Aquilo assustou-o.
«Ir à aldeia» significava pecado, era proibido. Mas também percebia muito
bem que, precisamente por isso, podia fazer parte do código de honra dos
«bons camaradas» correr esse risco e que significava uma certa distinção
ser desafiado para essa aventura.
No fundo, o que lhe apetecia era dizer não e voltar para a cama. Estava
cheio de sono e sentia-se miseravelmente; doera--lhe a cabeça o dia todo.
Mas teve um pouco de vergonha por causa de Adolf. E, quem sabe, talvez
surgisse lá fora, durante a aventura, algo de belo e novo, algo que o fizesse
esquecer as dores de cabeça, o desalento e toda aquela miséria. Era uma
expedição para o mundo, algo que, embora fosse clandestino e proibido e
não propriamente glorioso, talvez pudesse trazer--lhe uma libertação, uma
experiência. Ainda hesitou, enquanto Adolf tentava convencê-lo, mas,
subitamente, soltou uma gargalhada e disse sim.
Sem que ninguém os visse, esgueirou-se então com Adolf por entre as
tílias do vasto pátio já escurecido, cujo portão exterior, por essa altura, se
encontrava fechado. O companheiro levou-o para a azenha do convento,
onde, na penumbra e no meio do ruído das rodas, não era difícil passarem
despercebidos. Saltando por uma janela, numa total escuridão chegaram até
junto de um monte de barrotes de madeira húmidos e escorregadios, de
onde tiraram um para atravessar o ribeiro e passar para o outro lado.
Alcançaram assim a estrada real, que fulgia palidamente antes de
desaparecer na negrura da floresta. Tudo aquilo era excitante e misterioso e
agradou sobremaneira a Goldmund.
À beira da floresta já se encontrava um outro companheiro, Konrad, e,
depois de muito esperarem, apareceu ainda outro, o grandalhão Eberhard.
Puseram-se os quatro a caminho através da floresta; por cima deles
rumorejavam as aves noturnas e umas poucas estrelas cintilavam, claras e
húmidas por entre nuvens quietas. Konrad não parava de tagarelar e de
contar anedotas; os outros acompanhavam-no por vezes com risadas, e, no
entanto, pairava sobre eles uma emoção solene de aventura noturna e os
corações batiam-lhes mais acelerados.
Para lá da floresta, decorrida uma breve hora, chegaram à aldeia. Tudo
parecia dormir já, os telhados baixos resplandeciam, pálidos, interrompidos
pela estrutura escura dos travejamentos, não se via luz nenhuma. Adolf
tomou a dianteira; esgueirando-se sempre em silêncio, contornaram
algumas casas, treparam por cima de uma vedação, viram-se de repente
num quintal, pisaram a terra mole de canteiros, tropeçaram ao subir uns
degraus e pararam diante da parede de uma casa. Adolf bateu a um postigo,
esperou, bateu novamente, lá dentro ouviu-se barulho e, pouco depois,
acendeu-se uma luz. O postigo abriu-se e, um após outro, treparam para
dentro de uma cozinha com chaminé negra e chão térreo. Pousada na lareira
estava uma pequena lamparina de azeite, a chama débil ardia bruxuleante
no pavio fino. Encontrava-se ali uma rapariga magra, uma criadita de
camponeses que estendeu a mão aos recém-chegados. Atrás dela, vinda do
escuro, surgiu uma segunda jovem, ainda apenas uma menina, com longas
tranças escuras. Adolf trazia presentes, meia carcaça de pão branco do
convento e qualquer coisa embrulhada num saco de papel, que Goldmund
supôs ser um pedaço de incenso roubado, cera de velas ou algo semelhante.
A rapariguinha das tranças saiu de casa às apalpadelas, sem luz; demorou
bastante tempo até aparecer com um jarro de barro cinzento com uma flor
azul pintada, que entregou a Konrad. Ele serviu-se e passou depois aos
outros; todos beberam: era cidra, da forte.
Sentaram-se à luz da minúscula chama da lamparina, as duas raparigas
em pequenos escabelos e, à sua volta, sentados no chão, os estudantes.
Falaram em voz baixa, interrompendo-
-se para beberem a cidra; Adolf e Konrad eram quem tomava a iniciativa.
De vez em quando, um deles levantava-se e acariciava o cabelo e a nuca da
magricelas, segredando-lhe algo ao ouvido. Na mais jovem ninguém tocou.
Goldmund achou que, provavelmente, a mais velha era a criada, enquanto a
pequenita bonita devia ser a filha da casa. Mas no fundo era indiferente, ele
nada tinha a ver com aquilo, pois nunca mais iria voltar àquele sítio.
Agradara-lhe a escapadela noturna e o passeio pela floresta, tudo aquilo
tinha sido inesperado, emocionante e misterioso, embora não propriamente
perigoso. Apesar de proibida, a transgressão não lhe pesava na consciência.
Mas o que ali estava a acontecer agora, aquela visita noturna às raparigas,
aquilo era, no seu entender, mais que proibido, era pecado. Para os outros
talvez só significasse um pequeno desvio, mas não para ele; a ele, que se
sentia predestinado à vida monástica e à ascese, não eram permitidas
garotices com raparigas. Não, ele nunca mais voltaria. Mas o coração batia-
lhe descompassado e ansioso na penumbra escassamente iluminada daquela
modesta cozinha.
Os companheiros armavam-se em heróis perante as jovens, misturando
na conversa frases em latim com um ar importante. Todos os três pareciam
agradar à criadita, de quem se aproximavam à vez com as suas tímidas e
desajeitadas carícias, que não ultrapassavam a ousadia de um beijo fugaz.
Todos pareciam ter perfeita consciência do que lhes era ali permitido.
E como a conversa tinha de ser conduzida num tom sussurrado, toda aquela
cena não deixava de ser vagamente caricata. Para Goldmund, porém, não o
era. Sentado no chão, calado, fitava a chamazinha da lamparina, sem dizer
uma palavra. Por vezes apercebia-se, com um rápido olhar ansioso de
soslaio, das carícias que os outros trocavam entre si. Desviava
imediatamente o olhar. Por sua vontade, só teria olhado para a rapariguinha
das tranças, mas isso era precisamente o que não se permitia. Sempre que a
vontade fraquejava, porém, e o seu olhar se transviava para o rosto
silencioso e sereno da jovem, encontrava, infalivelmente, os seus olhos
escuros postos nele, fixando-o como que enfeitiçados.
Tinha talvez já decorrido uma hora – nunca Goldmund passara por uma
tão longa hora – quando, esgotadas as frases e as acanhadas investidas dos
estudantes, se fez silêncio e um certo constrangimento se apoderou deles.
Eberhard começou a bocejar. A criadita aconselhou-os então a partir. Todos
se levantaram, todos deram a mão à rapariga, Goldmund por último. Em
seguida, despediram-se todos da mais nova, e Goldmund foi o último a
estender-lhe a mão. Depois, Konrad desceu pela janela, seguido de
Eberhard e Adolf. Quando Goldmund se preparava também para descer,
sentiu uma mão agarrar-lhe o ombro. Não podia parar; só quando pôs os pés
no chão, lá fora, é que se voltou, hesitante. A rapariguinha das tranças
debruçava-se da janela.
– Goldmund! – murmurou. Ele parou. – Vens outra vez? – perguntou ela.
A sua voz tímida não passava de um
sopro.
Goldmund abanou a cabeça. Então, ela estendeu ambas as mãos,
agarrou-lhe a cabeça, ele sentiu as pequenas mãos quentes nas fontes. Ela
debruçou-se mais para baixo, até os seus olhos escuros se encontrarem
mesmo à frente dos dele.
– Volta outra vez! – sussurrou, e a pequena boca roçou a sua num beijo
infantil.
Goldmund apressou-se a correr para junto dos colegas, atravessou o
quintal, tropeçou nos canteiros, aspirou o cheiro da terra húmida e do
estrume, arranhou a mão numa roseira, trepou pela vedação e trotou atrás
dos outros para fora da aldeia, em direção à floresta. «Nunca mais!», dizia-
lhe imperiosa a vontade. «Já amanhã!», implorava-lhe o coração, a soluçar.
Ninguém encontrou os aventureiros noturnos, que puderam regressar
sem incidentes a Mariabronn, atravessando o ribeiro e passando pela
azenha, pelo pátio das tílias e, por trilhos furtivos que os levaram a trepar
alpendres e a passar por janelas divididas por colunatas, até ao interior do
convento e ao dormitório.
Na manhã seguinte, o matulão Eberhard teve de ser acordado com
safanões, tão pesado era o seu sono. Todos conseguiram chegar a tempo à
missa matinal, ao pequeno-almoço e à sala de aulas; mas Goldmund estava
com péssimo aspeto, tinha um ar tão mau que o padre Martin lhe perguntou
se estava doente. Adolf lançou-lhe um olhar de soslaio, e ele disse que não
tinha nada. Na aula de grego, contudo, por volta do meio-dia, Narciso não o
perdeu de vista. Também ele reparou que Goldmund estava doente, mas
calou-se e continuou a observá-lo com toda a atenção. No final da aula,
chamou-o. Para não suscitar a atenção dos outros alunos, mandou-o ir à
biblioteca buscar algo e seguiu-o.
– Goldmund – disse –, posso ajudar-te em alguma coisa? Vejo que estás
em dificuldades. Talvez estejas doente. Se assim for, metemos-te na cama
com uma canja e um copo de vinho. Hoje não estás com cabeça para o
grego.
Muito teve de esperar pela resposta. Pálido, com um olhar inquieto e
desorientado, o jovem olhou para ele, baixou a cabeça, voltou a erguê-la, os
lábios tremiam-lhe, tentou falar, mas não conseguiu. De repente, deixou-se
cair para o lado, encostou a cabeça a um atril, entre duas pequenas cabeças
de anjos esculpidas em madeira de carvalho, e desatou num tal pranto que
Narciso se sentiu embaraçado e desviou o olhar durante algum tempo, antes
de agarrar e levantar o rapaz, que não parava de soluçar.
– Bem, bem – disse no tom mais amigável que Goldmund jamais lhe
ouvira –, está bem, amice, chora lá tudo o que tens a chorar, vais ver que
isso te traz alívio. Senta-te aí, não precisas de falar. Vejo que por hoje já
chega; provavelmente, passaste toda a manhã a esforçar-te para te
aguentares de pé sem que ninguém reparasse no que se passava. Foste um
bravo. Mas agora chora à vontade, é o melhor que podes fazer. Não é? Já
não é preciso? Aguentas-te outra vez em pé? Pronto, então vamos até ali à
enfermaria; deitas-te na cama e hoje à noite vais sentir-te muito melhor.
Anda daí!
Levou-o para um dos quartos reservados aos doentes, evitando passar
pelos aposentos dos alunos, disse-lhe para se deitar numa das duas camas
vazias e, quando Goldmund, obediente, se começou a despir, saiu para ir
dar a baixa ao superintendente. Tal como prometera, também passou pelo
refeitório para lhe mandar vir uma canja e um copo do vinho para os
doentes; tradicionais no convento, estes dois benefícios eram extremamente
apreciados por todos aqueles que adoeciam sem gravidade.
Deitado na cama, Goldmund procurava orientar-se no meio de todo
aquele caos interior. Uma hora antes, talvez tivesse podido compreender o
que tanto lhe pesava hoje, todo aquele mortal esforço sobre-humano da
alma, que lhe deixava a cabeça vazia e os olhos a arder. Era a tentativa
violentíssima, a cada minuto renovada e a cada minuto frustrada, de
esquecer a noite anterior – ou melhor, não tanto a noite nem a leviana e
simpática aventura da expedição noturna para fora da cerca do convento,
nem a caminhada pela floresta, nem a prancha escorregadia lançada por
cima das margens do ribeiro escuro, nem o trepar pela vedação e os
postigos e o esgueirar-se pelos corredores, mas apenas e só aquele instante
às escuras junto à janela, a respiração e as palavras da rapariga, as mãos que
o agarraram, o beijo dos seus lábios.
Agora, porém, algo de novo surgira, um outro sobressalto, uma outra
experiência. Narciso tomara conta dele. Narciso amava-o, interessara-se por
ele – Narciso, o fino, o distinto, o inteligente, dos lábios estreitos, com
aquela expressão levemente trocista. E ele, ele deixara-se ir na sua
presença, mostrara-se envergonhado e balbuciante e, por fim, desatara a
chorar à sua frente! Em vez de ganhar as graças daquele ser superior com as
mais nobres armas, em vez de o conquistar com o grego, a filosofia, o
heroísmo espiritual e o digno estoicismo, mostrara-se fraco e sucumbira
miseravelmente à sua frente! Nunca se perdoaria a si próprio, nunca mais o
poderia olhar nos olhos sem sentir vergonha.
Contudo, o choro aliviara-lhe uma grande tensão. A solidão tranquila do
quarto e a boa cama faziam-lhe bem, o desespero perdera mais de metade
da sua virulência. Decorrida uma hora, veio ter com ele um irmão oblato,
que lhe trouxe um caldo de farinha, um pedacinho de pão branco e uma
tacinha de vinho tinto que os alunos só tinham direito de beber em dias de
festa. Goldmund comeu e bebeu, deixou o prato meio vazio, pô-lo de lado
para repensar tudo, mas não foi capaz; voltou a pegar no prato e comeu
mais umas colheradas. E quando, um pouco mais tarde, a porta se abriu
silenciosamente e Narciso entrou para ver como estava o doente, já ele
dormia com as faces novamente coradas. Narciso ficou ali muito tempo a
observá-lo, com afeto, com um curiosidade inquiridora e também com um
pouco de inveja. Percebeu que Goldmund não estava doente, no dia
seguinte já não precisaria de lhe mandar levar o vinho. Mas sabia que fora
quebrado o sortilégio, iriam tornar-se amigos. Podia ser que hoje Goldmund
tivesse precisado dele e ele o pudesse ter ajudado. Noutra ocasião seria
talvez ele o necessitado, o carente de ajuda e de amor. E daquele rapaz iria
poder aceitar isso, se algum dia chegassem a esse ponto.
III
Até então, Goldmund quase nada soubera da mãe, só o que outros lhe
tinham contado; já não se lembrava dela, e o pouco que julgava saber a seu
respeito não o contara a Narciso. A mãe era um tema sobre o qual não se
devia falar, algo que o envergonhava. Tinha sido bailarina, uma mulher bela
e indomável, de ascendência nobre mas pagã e dissoluta; o pai, segundo as
suas próprias palavras, admitira-a em sua casa para a livrar da miséria e da
vergonha; uma vez que não sabia se era ou não pagã, mandara-a batizar e
aprender os princípios religiosos; depois desposara-a, oferecendo-lhe um
estatuto respeitável. Ela, porém, após alguns anos de submissão e vida
regrada, voltara a lembrar-se das suas antigas artes e práticas, causara
escândalos e seduzira homens, ausentara-se de casa durante dias e semanas,
ganhara fama de feiticeira e, finalmente, depois de o marido a ter ido buscar
para junto dele, desaparecera para sempre.
A sua má fama perdurara ainda durante algum tempo, cintilante como a
cauda de um cometa, até que se extinguira. O marido recuperara lentamente
de todos aqueles anos de inquietação e de sustos, das vergonhas e das
constantes surpresas que ela lhe infligira; em lugar da mulher
desencaminhada, acabara por ser ele a educar o filhito, que na aparência e
no rosto muito se assemelhava à mãe; dominado pelo despeito e pela
beatice,
o pai incutira na criança a crença de que tinha de dedicar a vida a Deus para
expiar os pecados da sua mãe.
Era isto, de um modo geral, o que o pai de Goldmund costumava contar
sobre a mulher que perdera, embora preferisse evitar mencioná-la, e a algo
do género aludira também quando, ao entregar Goldmund no convento,
conversara com o abade. Toda essa lenda terrível era também do
conhecimento do filho, embora este tivesse aprendido a distanciar-se dela e
quase
a esquecê-la. Mas o que verdadeiramente esquecera e perdera tinha sido a
autêntica imagem da mãe, aqueloutra imagem completamente diferente, que
nada tinha a ver com as narrativas do pai e da criadagem e com os obscuros
e ferozes boatos que a rodeavam. A sua própria recordação genuína e vívida
da mãe, essa esquecera-a por completo. E agora surgira--lhe aqueloutra
imagem, a estrela dos seus primeiros anos despontara de novo.
– É inconcebível como pude esquecê-la – confessou ao amigo. – Nunca
na vida amei alguém como à minha mãe, nunca me entreguei de uma forma
tão incondicional e ardente; nunca adorei e admirei ninguém como a ela,
para mim ela era o Sol e a Lua. Sabe Deus como foi possível obscurecer na
minha alma esta imagem radiante, até transformá-la na bruxa maldosa,
pálida e sem contornos que ela foi, durante muitos anos, para o pai e para
mim.
Narciso terminara o noviciado há pouco e vestia já o hábito.
Estranhamente, o seu comportamento para com Goldmund alterara-se. Este,
que anteriormente tantas vezes rejeitara as indicações e as advertências do
amigo por as considerar empoladas e pretensiosas, ficara, desde o grande
evento, cheio de admiração e espanto pela clarividência do seu tutor.
Quantas das palavras de Narciso se tinham revelado profecias, até que
ponto
aquele ser inquietante conseguira percebê-lo, com que precisão detetara o
segredo da sua vida, adivinhara a sua ferida oculta, com que inteligência e
tato o conseguira curar!
Com efeito, o rapaz parecia estar curado: não só o desmaio fora
ultrapassado sem consequências; também aquele lado artificial, falsamente
precoce e inautêntico do seu carácter, todo aquele seu exaltamento
religioso, aquela sua autoimposta pseudodevoção e constante exigência
como que se esfumara. O rapaz parecia simultaneamente mais novo e mais
maduro desde que se encontrara. E tudo isso devia ao amigo!
Narciso, porém, comportava-se em relação a ele, desde há algum tempo,
com singular prudência; extremamente modesto, encarava-o já sem
qualquer sentimento de superioridade ou sentido pedagógico, apesar de toda
a admiração de que era alvo. Percebia que fontes secretas alimentavam
Goldmund com forças que lhe eram desconhecidas, e embora tivesse
podido fomentar o seu crescimento, não participava nelas. Alegrava-
-se ao ver o amigo libertar-se da sua tutela, mas por vezes isso entristecia-o.
Sentia-se como um patamar já ultrapassado, como um invólucro do qual ele
já se livrara; via assim aproximar-se o fim daquela amizade que tanto
representava para ele. Por enquanto, ainda sabia mais sobre Goldmund do
que ele próprio, pois, muito embora ele tivesse recuperado a sua alma e
estivesse disposto a seguir-lhe o apelo, ainda não podia prever onde este o
conduziria. Narciso intuía-o, e isso deixava-o desalentado; o percurso do
seu preferido conduzia-o a territórios que ele próprio nunca iria explorar.
O interesse de Goldmund pelas ciências diminuíra drasticamente.
Passara-lhe também o gosto pela contestação nas conversas com o amigo e
não era sem um certo pudor que recordava algumas dessas disputas.
Despontara entretanto em Narciso, nos últimos tempos, quer devido à
conclusão do próprio noviciado ou motivado pelas vivências com o amigo,
uma necessidade de recolhimento, de ascese e de prática de exercícios
espirituais, uma inclinação para o jejum, para as longas preces, confissões
frequentes e penitências voluntárias –
e Goldmund podia compreender e até quase partilhar essa tendência. Desde
a reconvalescença, o seu instinto tinha-se apurado extraordinariamente;
embora nada soubesse ainda sobre os seus futuros objetivos, sentia com
uma nitidez aguda e por vezes angustiante que o seu destino estava a ser
preparado, que uma certa trégua da inocência e da calma tinha passado e
tudo nele era agora tensão e disponibilidade. Frequentemente, esse
pressentimento enchia-o de felicidade, mantinha-o desperto parte da noite
como um doce encantamento; outras vezes, manifestava-se sob a forma de
uma obscura e profunda opressão. A mãe há muito perdida voltara
novamente para ele e a alegria era enorme. Mas onde o levaria o seu apelo
sedutor? À incerteza, a obscuros envolvimentos e perigos, talvez mesmo à
morte. Ao silêncio, à suave segurança de uma cela na comunidade
monástica vitalícia não conduziria certamente; o seu apelo nada tinha em
comum com aqueles imperativos paternos que durante tanto tempo
confundira com os próprios desejos. Era dessas impressões, que muitas
vezes se manifestavam com a intensidade ansiosa e ardente de uma estranha
sensação física, que se alimentava o fervor religioso de Goldmund. Na
repetição de longas preces à Santa Mãe de Deus canalizava e deixava fluir o
excesso emocional que o atraía para a sua própria mãe. Não raras vezes,
contudo, essas preces culminavam novamente naqueles sonhos
extraordinários e estranhos, que agora tão frequentemente o visitavam:
sonhos diurnos, em plena vigília, sonhos sobre ela, em que todos os seus
sentidos participavam. O mundo materno envolvia-o então, balsâmico,
contemplava-o do fundo de enigmáticos olhares amorosos, murmurava
profundo como o mar e o paraíso, balbuciava ternas palavras incoerentes,
ou antes prenhes de sentido, sabia a doce e salgado, roçava sedosos cabelos
por lábios e olhos sequiosos. Nem tudo era encanto na mãe e ela não se
resumia ao fascínio de um olhar amoroso de olhos azuis, a um encantador
sorriso que lhe prometia ditosa satisfação e terno consolo; encobertos sob
delicadas capas encontravam-se também nela todo o terror e toda a treva, a
vertigem da avidez e do medo, todos os pecados e toda a angústia, todos os
nascimentos e a inevitabilidade da morte.
O jovem afundava-se naqueles sonhos, deixava-se cair na teia de
múltiplos fios dos seus excitados sentidos. Neles não se manifestava apenas
o fascínio de um passado ditoso: infância e amor materno, o radioso e áureo
alvorecer da vida; neles vibrava também um futuro ameaçador, pleno de
promessas, seduções e perigos. Por vezes, esses sonhos, em que a mãe, a
madona e a amante se confundiam, pareciam-lhe, posteriormente,
tremendos crimes e blasfémias, como uma sucessão de pecados mortais
impossíveis de expiar; outras vezes, era neles que encontrava a redenção e a
harmonia. A vida fitava-o, plena de mistérios, um mundo sombrio e
insondável, uma floresta petrificada de espinhos, repleta de fantásticos
perigos – mas todos eles eram mistérios maternos, eram dela que vinham e
a ela conduziam, eles eram o pequeno círculo sombrio, o pequeno abismo
ameaçador no seu olhar claro.
Muito da infância esquecida ressurgia naqueles sonhos maternos, de
infinitas profundezas e perdições florescia um sem-fim de pequenas
recordações, despontavam, graciosas como flores, emanavam a sua ténue
fragrância de pressentimentos, lembranças de sensações da infância,
vivências talvez, ou talvez apenas sonhos. Por vezes sonhava com peixes,
as suas formas negras e prateadas a nadarem em direção a ele, frescas e
lisas, deslizando para dentro dele, atravessando-o, surgiam-lhe como
mensageiros, trazendo-lhe novas felizes de uma outra, mais bela realidade,
para logo desaparecerem, agitando sombrios as caudas, em vez de notícias
tinham nele depositado novos segredos. Frequentemente sonhava com
peixes a nadar e aves em voo, e cada um desses peixes e aves era uma
criatura sua, dele dependia e por ele era dirigido como a própria respiração,
irradiava como um olhar seu, como um pensamento seu, e a ele regressava.
Sonhava também insistentemente com um jardim, um jardim encantado de
árvores assombrosas, com flores imensas e fundas grutas azul-escuras; por
entre as ervas fitavam-no os olhos cintilantes de animais desconhecidos,
pelos ramos deslizavam serpentes musculadas e lisas; de vides e arbustos
pendiam, enormes, com o seu brilho húmido, gigantescas bagas, que ao
serem colhidas intumesciam nas suas mãos, derramando uma seiva quente
como sangue ou que, para seu espanto, lhe lançavam olhares cheios de
languidez e malícia; encostava-se ao tronco de uma árvore, tateando,
agarrava um ramo e via e sentia, entre o tronco e o ramo, um ninho de
espessos pelos emaranhados como os que cresciam na cova de uma axila.
Uma vez, sonhou consigo próprio ou com o seu patrono, sonhou com
Goldmund, Crisóstomo, de cuja boca de ouro brotavam palavras, e essas
palavras eram bandos de aves esvoaçantes que se afastavam a chilrear.
Outra vez, sonhou-se já homem adulto, mas sentado no chão como uma
criança, com barro à sua frente, e como uma criança usava o barro para
modelar figuras: um cavalinho, um touro, um homem, uma pequena mulher.
O amassar do barro divertia-o, e provia os animais e os homens de órgãos
sexuais ridiculamente exagerados, e no sonho achou imensa graça àquilo.
Depois, cansado da brincadeira, prosseguiu o seu caminho, quando sentiu
atrás de si algo vivo e silencioso, algo enorme aproximar-se, e quando
olhou para trás viu com profundo espanto e grande susto, não de todo isento
de regozijo, que as suas pequenas figuras de barro tinham crescido e
adquirido vida. Enormes, poderosas como gigantes taciturnos, as figuras
passaram por ele, marchando e crescendo ainda, continuamente, seguiam,
caladas, altas como torres, o seu caminho pelo mundo.
Mais do que no mundo real, vivia naquele mundo dos sonhos. O mundo
real, a sala de aulas, a cerca do convento, a biblioteca, o dormitório e a
capela eram só superfície, uma ténue membrana vibrando sobre um mundo
de imagens surreais alimentadas pelos sonhos. Um nada bastava para
perfurar essa fina membrana: algo sugestivo, intuído na sonoridade de um
vocábulo grego no decorrer de uma vulgar lição, uma fragrância saída do
herbário do padre Anselm, a visão de uma grinalda de folhas de pedra que
brotava do alto de uma coluna que sustentava o arco de uma janela –
pequenos estímulos que bastavam para rasgar a membrana da realidade e
desencadear, por detrás daquela amena e árida realidade, a erupção dos
abismos fragorosos, das caudalosas torrentes e vias lácteas do mundo
imagético da alma. Uma inicial latina transformava-se no rosto perfumado
da mãe, um som sustentado no Ave era a porta do paraíso, uma letra grega
um cavalo em pleno galope ou uma serpente erguendo-se e logo deslizando
em silêncio sob um tapete de flores, para logo de seguida dar lugar à página
rígida da gramática.
Raramente falava disso, poucas vezes fazia alusões a esse mundo onírico
nas conversas que tinha com Narciso.
– Creio – disse certa vez – que a pétala de uma flor, ou uma minhoca
encontrada no caminho, diz e contém muito mais do que todos os livros de
todas as bibliotecas. Com letras e palavras não se consegue dizer nada. Às
vezes, ponho-me a desenhar uma letra grega qualquer, um teta ou um
ómega, e, ao virar um pouco a pena, a letra parece torcer a cauda e
transforma-se num peixe, e por um segundo faz lembrar todos os ribeiros e
os caudais do mundo, tudo quanto é fresco e húmido, o oceano de Homero
e as águas sobre as quais São Pedro caminhou; ou então a palavra torna-se
um pássaro, levanta a cauda, eriça as penas, empola, solta um estridor,
esvoaça. Bem, Narciso, tu não ligas muito a essas palavras, não é? Mas
digo-te uma coisa: foi com elas que Deus escreveu o mundo.
– Tenho-as até em grande consideração – disse Narciso tristemente. –
São letras mágicas, com elas podem-se exorcizar todos os demónios. Só são
inadequadas para as disciplinas das ciências, claro. O espírito gosta do
consistente, da forma definida, ele precisa de confiar nos seus símbolos,
ama o ser, não o devir, o real, não o possível. Ele não permite que um
ómega se transforme numa serpente ou numa ave. O espírito não pode viver
na natureza, só consegue afirmar-se contra ela, como seu contraente.
Acreditas agora, Goldmund, que nunca serás um erudito?
Sem dúvida, Goldmund há muito que o sabia, e concordava.
– Já não estou tão obcecado como dantes por esse vosso espírito –
admitiu, meio a rir. – Acontece-me com o espírito e com a erudição o
mesmo que me aconteceu com o meu pai: julgava que o amava muito e que
era muito parecido com ele, acreditava cegamente em tudo o que dizia. Mas
bastou que a minha mãe aparecesse novamente para que eu voltasse a saber
o que é o amor, e, ao lado da sua imagem, a do pai definhou de repente e
tornou-se desagradável e quase repugnante. E agora tendo a associar o pai a
tudo o que tem a ver com o espírito e a achá-lo não materno ou mesmo
hostil ao princípio maternal, e a menosprezá-lo um pouco.
Disse aquilo em tom de gracejo, mas não conseguiu desanuviar o
semblante entristecido do amigo. Narciso contemplou-o em silêncio, o seu
olhar era como uma carícia. Finalmente, disse:
– Entendo-te perfeitamente. Agora já não precisamos de discutir;
acordaste, e também já reconheceste a diferença entre ti e mim, a diferença
entre as ascendências materna e paterna, entre a alma e o espírito. E em
breve irás também reconhecer que a tua vida no convento e os teus projetos
para uma vida monacal não passavam de um equívoco, de um projeto do
teu pai, que com isso terá pretendido expurgar a recordação da tua mãe, ou
apenas vingar-se dela. Ou será que ainda continuas a acreditar que o teu
destino é passar a vida inteira fechado no convento?
Goldmund ficou a olhar, pensativo, para as mãos do amigo, aquelas
mãos distintas, tão austeras quanto delicadas, magras e brancas. Ninguém
podia duvidar de que eram as mãos de um asceta e estudioso.
– Não sei – disse com aquela sua nova voz melodiosa, que parecia querer
demorar-se, hesitante, em cada tom. – A sério que não sei. Talvez estejas a
ser demasiado severo no julgamento que fazes do meu pai. A vida dele não
foi fácil. Mas talvez tenhas uma vez mais razão. Há mais de três anos que
aqui estou, na escola do convento, e ele nunca me veio visitar. Espera que
eu fique aqui para sempre. Talvez seja o melhor; afinal de contas, foi isso
mesmo que eu próprio desejei. Mas agora já não sei o que no fundo quero e
desejo. Antes era tudo fácil, tão fácil como as letras na cartilha. Agora já
nada é fácil, nem sequer as letras. Tudo adquiriu inúmeros significados e
semblantes. Não sei o que vai ser de mim, não consigo pensar nessas coisas
agora.
– Nem deves – achou Narciso. – Logo se verá onde te leva o teu
caminho. Ele já começou, conduziu-te de volta à tua mãe e irá aproximar-te
ainda mais dela. Mas no que ao teu pai diz respeito, não me parece que o
esteja a julgar com demasiada severidade. Gostarias de voltar para junto
dele?
– Não, Narciso, de certeza que não. De contrário, fá-lo-ia assim que
terminasse a escola, ou já agora. Para alguém que não tenciona ser um
doutor da Igreja, já aprendi, no fundo, suficiente latim, grego e matemática.
Não, não quero voltar para junto do pai…
Durante algum tempo ficou a olhar à sua volta, com um ar pensativo, até
que de repente exclamou:
– Mas como é que tu fazes para encontrares sempre as palavras e as
perguntas certas que me iluminam e esclarecem?! Ainda agora foi essa tua
pergunta sobre se queria voltar para junto do meu pai que me deu a ver, de
repente, que, no fundo, não quero. Como é que consegues isso? Pareces
saber tudo. Disseste-me já tanta coisa acerca de ti e de mim que na altura
não compreendi, mas que depois se tornou tão importante para mim! Foste
tu que me explicaste que a minha orientação é materna, e foste tu que
descobriste que um sortilégio me fez esquecer a infância! Como é que
podes conhecer tão bem as pessoas? Será algo que eu possa também
aprender?
Narciso abanou a cabeça, sorrindo.
– Não, meu caro, isso não podes. Há pessoas com uma grande
capacidade de aprender, mas não é esse o teu caso. Nunca serás um
estudioso. E para quê, afinal? Não precisas disso, os teus talentos são
outros. Tens mais dons do que eu, és mais rico do que eu, e também és mais
fraco, o teu percurso será mais belo e mais difícil do que o meu. Por vezes
não me quiseste compreender, ou revoltaste-te como um poldro; nem
sempre foi fácil e muitas vezes tive mesmo de te magoar. Precisava de te
acordar, já que estavas adormecido. Ao ter-te lembrado a tua mãe, magoei-
te muito, ao princípio, encontraram-te inanimado, como um morto, no
claustro. Teve de ser. Não, não me afagues o cabelo! Para lá com isso! Não
gosto disso!
– Então nunca hei de aprender nada? Hei de ser sempre ignorante e uma
criança?
– Hás de encontrar outros com quem possas aprender. O que tinhas a
aprender comigo, meu caro, já aprendeste.
– Não – exclamou Goldmund –, não foi para isso que nos tornámos
amigos! Que amizade seria essa, que após um breve percurso comum
atingisse o seu objetivo e simplesmente acabasse? Já estás farto de mim?
Deixaste de gostar de mim?
Narciso começou a andar de um lado para o outro, visivelmente agitado,
os olhos postos no chão, até que parou diante do amigo.
– Acaba com isso – disse com brandura. – Sabes perfeitamente que não
deixei de gostar de ti.
Hesitante, ficou a olhar para o amigo, depois recomeçou a andar de um
lado para o outro, voltou a parar e encarou Goldmund, o olhar decidido no
rosto severo e magro.
– Escuta bem, Goldmund! A nossa amizade foi uma boa amizade; teve
um objetivo e conseguiu atingi-lo, acordou-te. Da minha parte espero que
não tenha chegado ao fim; o meu desejo é que consiga renovar-se uma vez
mais, e continuamente, e que conduza a novos objetivos. De momento, não
vejo nenhum objetivo. O teu mantém-se incerto, não te posso conduzir nem
acompanhar. Pergunta à tua mãe, à sua imagem, ouve o que ela tem para te
dizer! Mas o meu objetivo não se encontra na incerteza, está aqui, no
convento, exige algo de mim a cada hora. Posso ser teu amigo, mas não
posso enamorar-me. Sou monge, fiz os meus votos. Antes de tomar as
ordens, pedirei dispensa do magistério e recolher-me-ei, durante algumas
semanas, para jejuns e exercícios. Durante todo esse período não tratarei de
assuntos profanos, nem mesmo contigo.
Goldmund compreendeu. Entristecido, disse:
– Queres então fazer o que eu teria também feito se decidisse entrar em
definitivo para a Ordem. E quando tiveres cumprido os teus exercícios,
depois de teres jejuado e orado e de te teres imposto todas as horas de
vigília, qual será então o teu objetivo?
– Já o conheces – respondeu Narciso.
– Pois, dentro de alguns anos serás mestre-principal, talvez mesmo o
superintendente da escola. Reformarás o ensino, aumentarás a biblioteca.
Talvez escrevas tu próprio livros. Não? Pois bem, então não. Mas qual será
então o teu objetivo?
Narciso esboçou um sorriso.
– O objetivo? Talvez morra como diretor da escola, ou como abade ou
bispo. Seja o que Deus quiser. O objetivo é este: colocar-me sempre à
disposição onde melhor possa servir, onde a minha maneira de ser, as
minhas capacidades e aptidões encontrem o solo mais fecundo, o campo de
ação mais vasto. Não tenho outro objetivo.
Goldmund:
– Não há outro objetivo para um monge?
Narciso:
– Oh, sim, metas não faltam. Para um monge pode constituir o objetivo
de vida aprender o hebreu, comentar Aristóteles, ou decorar a igreja do
convento, ou recolher-se para meditar, ou fazer centenas de outras coisas.
Para mim não têm interesse. Não pretendo aumentar o património do
convento, nem reformar a Ordem ou a Igreja. Quero servir o espírito dentro
do que me é possível, tal como o compreendo, e nada mais. Não crês que
isso constitua um objetivo?
Goldmund refletiu longamente na resposta.
– Tens razão – disse. – Achas que te estorvei muito no caminho para
alcançares os teus fins?
– Estorvar-me, tu? Oh, Goldmund, ninguém mais do que tu soube
incentivar-me. Causaste-me dificuldades, mas eu não sou inimigo das
dificuldades. Aprendi com elas, e em parte consegui superá-las.
Goldmund interrompeu-o e disse, meio a brincar:
– Superaste-as maravilhosamente! Mas diz-me lá: se me ajudaste,
orientando-me, libertando-me e restituindo a saúde à minha alma, será que
com isso serviste mesmo o espírito? Provavelmente, com isso tiraste ao
convento um noviço aplicado e cheio de boa vontade, enquanto educavas
talvez um adversário do espírito, alguém que talvez aspire a fazer, a crer e a
desejar precisamente o contrário daquilo que consideras bom!
– E porque não? – disse Narciso com profunda convicção. – Muito
pouco me conheces ainda, meu caro! Provavelmente, estraguei em ti uma
vida de monge, desbravando-te o caminho para um destino invulgar.
Mesmo se amanhã incendiasses todo o nosso lindo convento, ou se
desatasses a pregar por esse mundo fora uma qualquer louca heresia, em
momento algum me arrependeria de ter-te ajudado a encontrar o teu rumo.
Afetuosamente, pousou ambas as mãos nos ombros do amigo.
– Repara, meu pequeno Goldmund, dos meus objetivos faz também parte
o seguinte: quer venha a tornar-me mestre, abade, confessor ou o que quer
que seja, nunca quereria chegar a uma situação em que me depare com uma
pessoa forte, valiosa e especial e não a consiga compreender, interpretar e
apoiar.
E digo-te mais: tu e eu podemos tornar-nos no que quer que seja, a vida
poderá correr-nos bem ou mal, mas nunca, no momento em que me
chamares e achares que precisas verdadeiramente de mim, me encontrarás
fechado ao teu apelo. Nunca.
Aquilo parecia uma despedida, e era, na verdade, o prenúncio de um
adeus. Naquele momento, diante do amigo e ao olhar para o seu rosto
decidido, olhos postos nos objetivos, sentiu iniludivelmente que já não eram
irmãos, companheiros e iguais, e que os seus caminhos se tinham já
separado. Aquele que ali estava à sua frente nada tinha de sonhador, nem
esperava por uns quaisquer chamamentos do destino; era um monge,
comprometera-se, pertencia a uma ordem firme e a uma obrigação, era um
servidor e um soldado da Ordem, da Igreja, do espírito. Ele próprio, no
entanto, como acabara de reconhecer, já não pertencia àquele sítio, não
tinha pátria, um mundo desconhecido esperava por ele. O mesmo sucedera
outrora com a sua mãe. Tinha abandonado casa e lar, marido e filho,
comunidade e ordem, dever e honra, e assumira a incerteza do
desconhecido, onde por certo há muito se perdera. Também ela não tinha
metas traçadas, tal como ele as não tinha. Ter e traçar metas era para outros,
não para ele. Com que lucidez previra Narciso tudo isso há tanto tempo, e
como tivera razão!
Pouco tempo volvido após esse dia, Narciso parecia ter desaparecido; foi
como se, de repente, se tivesse tornado invisível. Um outro mestre passou a
dar as suas aulas, o seu atril na biblioteca permanecia vazio. Ele ainda lá
estava, não se tinha tornado completamente invisível, por vezes ainda podia
ser visto a atravessar o claustro, ou a murmurar algo numa das capelas,
ajoelhado nas lajes do chão; sabia-se que iniciara o grande período de
exercícios, que jejuava e se levantava três vezes durante a noite para
cumprir as penitências. Ainda lá estava e, no entanto, era como se tivesse
passado para um outro mundo; era possível vê-lo, muito raramente, mas não
era possível alcançá-lo, partilhar algo com ele, falar com ele. Goldmund
sabia que Narciso voltaria a aparecer, que iria ocupar de novo o seu local de
trabalho, a sua cadeira no refeitório, que voltaria a falar com os outros –
mas do passado nada retornaria. Narciso não voltaria a pertencer-lhe. Ao
aperceber-se disso, tornou-se-lhe também claro que fora apenas devido a
Narciso que o convento e a vida monacal, a gramática e a lógica, o estudo e
o espírito se tinham tornado tão importantes e queridos para ele. O seu
exemplo seduzira-o, tornar-se alguém como ele fora o seu ideal. É certo que
também havia o abade, também o venerara e o amara e nele vira um alto
exemplo a seguir. Mas os outros, os mestres, os companheiros, o
dormitório, o refeitório, a escola e os trabalhos escolares, o culto – no
fundo, todo o convento – sem Narciso nada lhe diziam. Que fazia ali ainda?
Aguardava, abrigava-se por baixo do telhado do convento como um
viajante indeciso se abriga sob um qualquer telhado ou uma árvore durante
um súbito aguaceiro, apenas para esperar, apenas como hóspede, apenas por
medo perante a hostilidade do desconhecido.
A vida de Goldmund durante esse período não foi mais que indecisão e
despedida. Visitou todos os sítios de que gostara ou que se tinham tornado
importantes para ele. Com uma sensação de indiferença e espanto constatou
quão poucas eram as pessoas e os rostos de quem lhe custaria separar-se.
Havia Narciso e o velho abade Daniel, e ainda o bom e querido padre
Anselm, e talvez ainda o amável porteiro e o vizinho moleiro, com a sua
vitalidade – mas também eles se tinham tornado já quase irreais. Mais do
que deles, iria custar-lhe despedir-se da grande madona de pedra da capela,
ou dos apóstolos do portal. Demorava-se então diante das figuras, tal como
diante dos belos entalhes das cadeiras do coro, da fonte no centro do
claustro ou das colunas com as três cabeças de animais; na cerca, deixava-
se ficar encostado ao tronco das tílias, do castanheiro. Tudo aquilo iria
tornar-se uma recordação para ele, uma pequena iluminura no seu coração.
Já agora, mesmo ainda lá estando, tudo começava a desvanecer-se, a perder
realidade, transformando-se fantasmagoricamente em algo pretérito. Com o
padre Anselm, que muito prezava a sua companhia, ia colher ervas; quando
visitava o moleiro, assistia aos trabalhos dos criados e aceitava, de quando
em quando, o vinho e o peixe assado no forno que lhe ofereciam; mas tudo
lhe era estranho e já quase metade lembrança. Tal como lá ao longe, na
penumbra da igreja e na cela da penitência, o seu amigo Narciso se
transformara, para ele, numa sombra; embora caminhasse e vivesse,
também tudo à sua volta perdera realidade, ressumava a outono e
transitoriedade.
Real e viva era já só a vida dentro dele, o palpitar ansioso do coração, o
espinho doloroso da nostalgia, as alegrias e os receios que sentia nos
sonhos. A eles pertencia e a eles se entregava. A meio de uma leitura ou
enquanto estudava entre os colegas da escola, acontecia-lhe começar a
devanear e esquecer tudo, entregue apenas e só às torrentes e às vozes da
sua vida interior, que o arrastavam para profundas fontes saturadas de
melodias escuras, para abismos coloridos de fantásticas vivências, cujos
sons declinavam todos a voz da sua mãe, cujos milhares de olhos refletiam
o olhar da sua mãe.
VI
De novo o gelo voltou a ser arrastado pelos caudais dos rios, de novo se
sentiu sob a folhagem decomposta o perfume das violetas, de novo voltou
Goldmund a percorrer as estações coloridas, absorvendo com olhos
insaciáveis as mutações nas florestas, nas montanhas e no trânsito das
nuvens, seguindo de quinta em quinta, de aldeia em aldeia, de mulher para
mulher; não poucas vezes se viu excluído em frios fins de tarde, angustiado
e de coração oprimido, debaixo de uma janela, por detrás da qual o fulgor
quente de uma luz lhe evocava, belo e intangível, toda a felicidade, todo o
sentimento de pertença e paz na Terra que imaginar podia. Tudo retornava,
uma e outra vez, tudo o que julgava já tão bem conhecer, tudo se repetia e
era sem deixar de ser sempre diferente: as longas caminhadas por campos e
charnecas ou por estradas pedregosas, o sono estival na floresta, o vaguear
pelas ruelas das aldeias, atrás dos ranchos de raparigas de mãos dadas que
vinham de virar o feno ou da apanha do lúpulo, o primeiro aguaceiro do
outono, as primeiras geadas agrestes – tudo se repetia, uma, duas vezes, no
constante desdobrar da infinita fita colorida.
Já muita chuva e muita neve caíra sobre Goldmund quando, certo dia,
depois de ter trepado por uma encosta ao longo de um esparso bosque de
faias onde começava a brotar o verde vivo da primeira folhagem, viu
espraiar-se à sua frente, assim que atingiu o cume, uma nova paisagem que
lhe alegrou os olhos e lhe despertou no coração uma vaga de
pressentimentos, desejos e esperanças. Há dias que se sabia já próximo
daquela região e a esperava ver surgir; agora, ao aparecer-lhe assim de
surpresa àquela hora do meio-dia, não deixou de se sentir surpreendido e o
que pôde abarcar com os olhos nesse primeiro encontro só veio confirmar e
reforçar as suas expectativas. Por entre os troncos cinzentos e o balouçar
brando da ramagem viu espraiar-se a seus pés um vale castanho e verde,
atravessado a meio por um grande rio, que brilhava em tons azuis e vítreos.
Sabia agora que tinham chegado ao fim as longas caminhadas por territórios
inóspitos e sem estradas, por charnecas e florestas solitárias, onde só muito
raramente deparara com um casal isolado ou uma pobre aldeola. Lá em
baixo corria o rio, e ao longo do rio seguia uma das mais belas e famosas
estradas do império; até onde a vista alcançava, estendia-se uma terra rica e
fértil, pelo rio navegavam barcos e jangadas e a estrada ligava belas aldeias,
castelos, conventos e cidades abastadas; quem quisesse podia viajar dias e
semanas por aquela estrada, sem receio de subitamente se perder numa
qualquer floresta ou num húmido pântano, como amiúde sucedia com os
míseros trilhos campestres. Algo de novo o esperava, e Goldmund alegrou-
se.
Ao fim da tarde desse dia chegou a uma bela aldeia situada à beira da
grande estrada, entre o rio e a encosta coberta pela mancha vermelha dos
vinhedos. Nas casas de altos frontões, os belos vigamentos estavam
pintados de vermelho; havia entradas abobadadas e vielas com escadinhas
empedradas; uma forja lançava sobre a rua um clarão avermelhado e ouvia-
se o claro retinir da bigorna. O recém-chegado vagueou, curioso, por todos
os becos e recantos, aspirou à entrada de caves e adegas o cheiro dos barris
e do mosto, e na margem do rio a aragem fresca e húmida que lhe trouxe o
cheiro dos peixes; visitou a igreja e o cemitério, sem se esquecer de
procurar um celeiro com localização favorável, onde eventualmente
pudesse passar a noite. Antes, porém, queria visitar a casa do pároco para
lhe pedir algo para comer. Encontrou um padre anafado e ruivo, que o
interrogou primeiro e ao qual expôs a sua história, omitindo alguns factos e
inventando outros; depois foi cordialmente acolhido e passou um serão com
boa comida e bom vinho, em amena cavaqueira com o anfitrião. No dia
seguinte retomou a viagem pela estrada ao longo do rio. Viu jangadas e
barcaças em trânsito, passou por carros e atrelados, alguns dos quais lhe
deram boleia; os dias primaveris passaram rápidos e saturados de imagens,
acolheram-no povoados e pequenas cidades, mulheres sorriam por detrás
das sebes dos jardins ou ajoelhadas na terra escura, plantando flores, ao
entardecer ouviam-se os cantares das moças nas ruelas das aldeias.
Num moinho, uma jovem criada agradou-lhe tanto que acabou por ficar
dois dias por perto, a rondá-la; ela gostava de rir e galhofar com ele, e
Goldmund achou que gostaria de tornar-se moço de moleiro e ficar ali para
sempre. Sentou-se à mesa dos pescadores, ajudou os cocheiros a dar de
comer e a limpar as bestas, recebeu em troca pão, carne e transporte. Após
longa solidão, encontrara então a jovial sociabilidade dos viajantes, após
prolongado ensimesmamento descobrira a alegria do convívio com aquelas
gentes faladoras e divertidas, depois de toda a carência e fome podia
finalmente saciar-se diariamente com manjares estupendos – tudo isso lhe
fazia bem, e foi de bom grado que se entregou àquela onda festiva. E ela
arrastou-o consigo: quanto mais se aproximava da cidade episcopal, mais
frequentada e divertida se tornava a estrada.
Numa aldeia decidiu ir passear, já ao cair da noite, por baixo de umas
árvores frondosas que cresciam na margem.
O rio corria calmo e caudaloso, sob as raízes das árvores marulhava e gemia
a torrente, sobre o cume da colina erguia-se a Lua, derramando cintilações
sobre a água e sombras sob o arvoredo. Encontrou então uma rapariga
sentada a chorar; zangara-se com o namorado, que se fora embora e a
deixara ali sozinha. Goldmund sentou-se ao seu lado, escutou as suas
queixas, afagou-lhe as mãos e falou-lhe da floresta e das corças; consolou-a
um pouco, fê-la rir um pouco, e ela permitiu que a beijasse. Nesse momento
apareceu o namorado, que vinha à sua procura; tinha-se acalmado e
arrependera-se da zanga. Quando a encontrou com Goldmund, atirou-se
imediatamente a ele aos murros; Goldmund defendeu-se com dificuldade,
mas por fim lá conseguiu dominá-lo e o rapaz foi-se embora a correr para a
aldeia, a praguejar, já a rapariga há muito desaparecera. Não confiando
naquelas tréguas, Goldmund abandonou o poiso noturno e prosseguiu a sua
caminhada ao luar durante metade da noite, através de uma paisagem
prateada e silenciosa, feliz e satisfeito e grato às suas pernas fortes, até que
o orvalho lhe lavou a poeira branca dos sapatos e ele, subitamente fatigado,
se deitou debaixo da árvore mais próxima e adormeceu. Já o dia clareara há
muito quando foi acordado por uma comichão na cara; ainda ébrio de sono,
tentou sacudi-la às apalpadelas, voltou a adormecer, para logo ser
novamente acordado pela mesma impressão. Uma jovem campónia
observava-o, tocando-lhe com a ponta de uma varinha de salgueiro para lhe
fazer cócegas. Levantou-se ainda estremunhado; cumprimentaram-se
sorridentes e ela levou-o para um barracão onde se podia dormir melhor. Aí
dormiram um com o outro durante mais algum tempo, até que ela
desapareceu e voltou com um baldezinho cheio de leite, ainda quente da
vaca. Goldmund ofereceu-lhe uma fita azul para o cabelo, que não há muito
encontrara numa viela e guardara; tornaram a beijar-se, antes de ele
prosseguir viagem. Chamava-se Franziska e deu-lhe pena deixá-la.
Ao fim da tarde desse mesmo dia encontrou abrigo num convento, onde,
na manhã seguinte, assistiu à missa; sentiu-
-se então estranhamente agitado por mil e uma recordações, tão
comovedoramente familiar lhe pareceu o cheiro fresco a pedra do ar sob a
abóbada, o ressoar dos passos das sandálias nas lajes da nave. Deixou-se
ficar ajoelhado, mesmo depois de terminada missa e o silêncio se ter
instalado de novo na igreja do convento; sentia-se profundamente
emocionado, sonhara durante toda a noite. Sentiu então o desejo de se
libertar do passado, de mudar de alguma forma a sua vida, porquê não
sabia, talvez fosse só a lembrança de Mariabronn e da sua juventude
piedosa. Sentia-se impelido a confessar-se e a purificar-se de inúmeros
pequenos pecados e muitos pequenos vícios; mais do que tudo o resto,
porém, pesava-lhe a morte de Viktor, que morrera às suas mãos. Encontrou
um padre a quem confessou as várias culpas, especialmente as punhaladas
desferidas no pescoço e nas costas do pobre vagabundo. Há quanto tempo
não se confessava! O número e a gravidade dos seus pecados pareciam-lhe
consideráveis e estava disposto a expiá-los com dura penitência. Mas o
padre confessor devia conhecer a vida dos vagantes, não se mostrou
horrorizado, escutou-o calmamente, repreendeu-o e admoestou-o de vez em
quando, sem pensar em condená-lo.
Goldmund levantou-se aliviado, dirigiu-se ao altar para rezar, conforme
o padre lhe ordenara, e já ia a sair da igreja quando um raio de sol que
entrava por uma das janelas lhe chamou a atenção; seguiu-o com o olhar e
viu então, numa das capelas laterais, uma imagem que de tal modo lhe falou
ao coração e o atraiu que ele se virou para ela com olhos comovidos e se
pôs a contemplá-la, cheio de devoção e profundamente emocionado. Era
uma Nossa Senhora de madeira e o modo como se inclinava sobre o altar, a
delicadeza e a suavidade do gesto e o movimento com que as pregas do
manto azul que lhe cobria os ombros estreitos caíam e lhe moldavam o
corpo, e a graça com que estendia a mão virginal, e a expressão dos olhos
sobre o ricto doloroso dos lábios, e a graciosidade com que a testa se
abaulava – tudo aquilo era tão cheio de vida e tão belo e tão profundo e
inspirado que Goldmund achou nunca ter visto beleza igual. Não se cansava
de contemplar aquela boca, o movimento orgânico e harmonioso daquele
pescoço. Parecia-lhe estar perante algo que já muitas vezes vira em sonhos
e pressentimentos, algo de que há muito sentia saudades. Várias vezes se
virou para se ir embora, mas parecia que não conseguia afastar-se dela.
Quando, finalmente, se resolveu a sair, viu atrás de si o padre a quem se
confessara.
– Acha-la bonita? – perguntou amavelmente.
– Indescritivelmente bela – disse Goldmund.
– Há quem seja da mesma opinião – disse o clérigo.
– E também há quem ache que não é uma verdadeira Nossa Senhora, que é
demasiado moderna e mundana e que tudo nela é exagerado e falso. Tem
sido muito discutida esta imagem. A ti agrada-te, fico contente com isso. Só
está na nossa igreja há cerca de um ano, foi-nos doada por um benemérito
amigo da nossa ordem. Foi esculpida pelo mestre Niklaus.
– Mestre Niklaus? Quem é ele e onde vive? Conhecei-lo? Falai-me dele,
peço-vos. Deve ser extraordinário e abençoado o homem capaz de criar tal
obra.
– Pouco sei a seu respeito. É mestre entalhador na nossa cidade
episcopal, que fica a um dia de viagem daqui, e tem grande fama como
artista. Os artistas não costumam ser uns santos, e ele também não deve
fugir à regra; mas é sem dúvida um homem talentoso e de espírito elevado.
De vez em quando vejo-o…
– Já o vistes? Oh, que aspeto tem ele então?
– Pareces estar completamente fascinado por ele, meu filho. O melhor
será ires mesmo ter com ele. Podes saudá-lo da parte do padre Bonifazius.
Goldmund agradeceu entusiasticamente. O padre afastou--se a sorrir,
mas ele deixou-se ficar ainda muito tempo diante daquela imagem
misteriosa, que dava a sensação de respirar e em cujo rosto coexistiam tanta
dor e tanta doçura que todo o seu coração se apertava.
Saiu da igreja transformado, os seus passos conduziram-no através de
um mundo completamente diferente. Desde aquele instante em que parara
para contemplar a doce imagem sagrada esculpida em madeira, Goldmund
possuía algo que até então nunca possuíra e de que tantas vezes troçara ou
invejara nos outros: um objetivo! Finalmente, tinha um objetivo, e talvez
toda aquela sua vida caótica pudesse adquirir um sentido elevado e um
valor. A consciência da própria mudança encheu-o de alegria e de medo,
sentiu-se como que a levitar. Aquela estrada bela e alegre por onde seguia já
não era, como ainda ontem, um lugar festivo para folguedos ou uma
qualquer agradável estadia; agora já só era uma estrada, o caminho para a
cidade, o atalho que o conduzia ao mestre. Percorreu-o cheio de
impaciência. Chegou à cidade ainda antes do cair da noite. Viu erguerem-se
torres por detrás das muralhas, viu brasões esculpidos e armas pintadas
sobre a porta da cidade e atravessou-a com o coração palpitante, mal
reparando no ruidoso e animado bulício das vielas, nos cavaleiros nas suas
montadas, nos carros e nas carroças. Para ele, o importante não eram os
cavaleiros nem as carruagens, nem a cidade nem o bispo. Logo ao primeiro
homem que encontrou ao transpor a porta da cidade perguntou onde morava
o mestre Niklaus e ficou extremamente desiludido quando ele lhe confessou
que não o conhecia.
Chegou a uma praça de casas imponentes, muitas delas com as fachadas
pintadas ou decoradas com esculturas e ornamentos. Por cima de um dos
portões erguia-se a grande figura de um lansquenete pintada com cores
fortes e garridas. Não era tão belo como a escultura que vira na igreja do
convento, mas impunha-se de uma tal maneira, de perna musculada e
queixo barbudo espetado e desafiante, que Goldmund acabou por achar que
podia ter sido obra do mesmo mestre. Entrou na casa, bateu a várias portas
e subiu escadas, até finalmente dar com um senhor que envergava um fato
de veludo orlado a pele, a quem perguntou onde poderia encontrar o mestre
Niklaus. O que desejava dele, retorquiu o cavalheiro, e Goldmund teve
dificuldade em dominar-se e dizer apenas que tinha um recado para o
mestre. O senhor disse-lhe então onde ficava a viela onde o mestre morava,
e quando finalmente lá chegou, depois de muito perguntar, já a noite tinha
caído. Com um misto de angústia e felicidade, deixou-se ficar em frente à
casa do mestre, olhou para as janelas e por pouco não foi bater à porta.
Lembrou-se, porém, de que já era tarde e que estava suado e cheio de poeira
da caminhada; conseguiu dominar-se e esperou, mas ainda ali ficou bastante
tempo em frente à casa. Viu uma janela iluminar-se, e no preciso momento
em que se virou para ir embora, um vulto assomou à janela, uma rapariga
loira muito formosa, através de cujas madeixas brilhava a luz suave do
candeeiro.
Na manhã seguinte, acordada já a cidade com toda a sua agitação,
Goldmund, que se tinha hospedado num convento, lavou o rosto e as mãos,
sacudiu o pó da roupa e dos sapatos, procurou o caminho de volta à viela e
foi bater à porta da casa do mestre. Veio abrir-lha uma criada, que não o
quis levar logo à presença do patrão. Goldmund, contudo, conseguiu
sensibilizá-la, e ela lá o deixou entrar. Foi encontrá-lo numa pequena sala
que lhe servia de oficina. Envergava um avental de trabalho e era um
homem alto, forte e de barbas, entre os quarenta e os cinquenta anos. Os
seus olhos azul-claros fixaram atentamente o visitante, antes de lhe
perguntar laconicamente o que desejava. Goldmund saudou-o da parte do
padre Bonifazius.
– Nada mais?
– Mestre – disse Goldmund, ofegante –, vi a vossa imagem da Virgem no
convento. Por favor, não olhais para mim dessa forma tão severa; o que aqui
me traz é puro apreço e admiração. Não sou medroso, há muito que levo
uma vida errante, conheço a floresta e provei os rigores da neve e da fome,
não temo ninguém, senão vós. Tenho apenas um único, grande desejo, que
me enche de tal modo o coração que ele me dói.
– E que desejo é esse?
– Quero ser vosso aprendiz e aprender convosco.
– Não és o único a ter esse desejo, jovem. Só que eu não gosto de
aprendizes e já tenho dois ajudantes. De onde vens, e quem são os teus
pais?
– Não tenho pais e não venho de parte alguma. Estudei num convento,
onde aprendi latim e grego. Depois fugi, há já alguns anos, e desde então
ando a correr mundo. Até hoje.
– E porque é que achas que tens de ser forçosamente entalhador? Já
aprendeste algo da arte? Tens alguns desenhos?
– Fiz muitos desenhos, mas já não os tenho comigo. O que posso, isso
sim, é explicar-vos porque quero aprender essa arte. Pensei muito ao longo
deste tempo, e vi muitos rostos e formas e refleti sobre elas, e alguns desses
pensamentos continuam a acossar-me e não me deixam em paz. Apercebi-
me do modo como em toda a parte, numa figura, uma determinada forma se
manifesta e repete, como uma testa corresponde ao joelho, um ombro à
anca, e como tudo isso é intimamente igual e idêntico à essência e à índole
da pessoa que tem precisamente esse joelho, esse ombro e essa testa. E em
algo mais reparei ainda: numa noite em que tive de ajudar uma parturiente
apercebi-me de que a maior dor e o maior gozo apresentam uma expressão
semelhante.
O mestre avaliou o estranho com um olhar penetrante.
– Sabes o que estás aí a dizer?
– Sim, mestre, é como digo. E foi precisamente isso que, para minha
máxima alegria e consternação, vi expresso na vossa madona; foi por isso
que vim ter convosco. Naquele rosto lindo e sereno pode-se encontrar tanta
dor, e ao mesmo tempo todo o sofrimento como que se transformou em
felicidade e aquietou num sorriso. Quando vi a vossa imagem, foi como se
uma chama me tivesse trespassado, todos os sonhos e os pensamentos que
fui tendo ao longo dos últimos anos pareciam ter-se confirmado e, de
repente, tinham deixado de ser inúteis. Soube então imediatamente o que
tinha a fazer e para onde deveria ir. Caríssimo mestre Niklaus, peço-vos do
fundo do coração, deixai-me aprender convosco!
Imperturbável, Niklaus não deixara de escutar o jovem com toda a
atenção.
– Ouve, meu rapaz – disse –, tu sabes falar admiravelmente sobre a arte
e, com a tua idade, surpreendeu-me também o que soubeste dizer acerca do
prazer e da dor. Para mim seria sem dúvida um prazer discutir contigo esses
assuntos à noite, com um
copo de vinho. Mas vê bem: conversar agradavelmente com alguém de uma
forma inteligente e culta não é a mesma coisa que viver e trabalhar com
alguém durante alguns anos. Isto aqui é uma oficina, e aqui trabalha-se, não
se conversa; e o que aqui importa não é aquilo que se pensou ou consegue
transmitir por palavras, mas apenas e só o que as nossas mãos conseguem
fazer. Parece que levaste tudo isto muito a peito, por isso não vou mandar-te
assim simplesmente embora. Vamos ver se sabes fazer qualquer coisa. Já
modelaste algo em barro ou cera?
Goldmund pensou logo num sonho que tinha tido há muitos anos, em
que moldara pequenas figuras de barro que depois se tinham levantado e
transformado em gigantes. Contudo, não falou nisso, limitando-se a
responder que nunca tentara tais trabalhos.
– Bem, então vais desenhar qualquer coisa. Vês ali uma mesa com papel
e carvão. Senta-te e desenha; não tenhas pressa, podes ficar até ao meio-dia
ou até ao fim da tarde. Talvez eu possa perceber então para que serves.
Agora basta de conversas; vou ao meu trabalho, vai tu ao teu.
Goldmund foi sentar-se à mesa de desenho, na cadeira que o mestre lhe
indicara. Não começou logo a trabalhar, deixou--se ficar primeiro quieto e à
espera, como um discípulo algo inseguro, espreitando de vez em quando,
cheio de curiosidade e carinho, para o mestre que, de costas meio viradas
para ele, retomara o trabalho numa pequena figura de barro. Deteve-se a
observar com atenção aquele homem, em cuja cabeça severa e já um pouco
grisalha e em cujas mãos de artífice calejadas mas nobres e expressivas
morava uma tão fascinante e mágica força. Tinha um aspeto diferente do
que ele imaginara: mais velho, mais humilde, mais sóbrio, muito menos
brilhante e sedutor, e nada feliz. A agudeza implacável do seu olhar
inquiridor focava-se agora no trabalho; liberto daquele olhar, Goldmund
pôde observar cuidadosamente e interiorizar toda a sua figura. Aquele
homem, pensou, podia, por exemplo, ser um erudito, um investigador calmo
e austero, que se dedicava a uma obra iniciada e cultivada já por muitos
outros sábios que lhe tinham antecedido e que também ele iria legar aos
seus sucessores, uma daquelas obras complexas, vastas e intermináveis,
onde se reúne o trabalho e a entrega de muitas gerações humanas. Foi pelo
menos isso que o observador conseguiu deduzir ao analisar a cabeça do
mestre; muita paciência, muita aprendizagem e reflexão, muita humildade e
conhecimento do duvidoso valor de todo o esforço humano pareciam-lhe ali
inscritos, mas também fé na sua missão. Bem diferente era já a linguagem
das suas mãos, entre elas e a cabeça havia uma contradição. Com dedos
firmes mas muito sensíveis, as mãos agarravam no barro que estavam a
moldar, movendo-se e tratando a matéria como as mãos de um amante com
a amada que se lhe entrega: apaixonadas, cheias de uma sensitividade
delicadamente vibrante, desejosas mas sem distinguir entre o receber e o
dar, simultaneamente voluptuosas e devotas, e ainda seguras e imbuídas de
uma mestria profunda, vinda toda ela da experiência. Goldmund
contemplou, deliciado e cheio de admiração, aquelas mãos abençoadas.
Teria gostado imenso de desenhar o mestre se não se sentisse inibido por
aquela contradição entre o rosto e as mãos.
Depois de ter estado uma boa hora a observar o artista a trabalhar,
tentando desvendar o segredo daquele homem, uma outra imagem começou
a ganhar forma dentro de si e a tornar-se visível perante a sua alma – a
imagem da pessoa que ele melhor conhecia e que muito amara e admirara
profundamente; e aquela imagem surgia-lhe sem quebra nem contradição,
apesar de a sua aparência apresentar também uma enorme complexidade de
traços e de evocar inúmeros combates travados. Era a imagem do seu amigo
Narciso, que se foi adensando e unificando cada vez mais perante os seus
olhos; de uma forma cada vez mais clara a coerência interna daquele ser
amado começou então a manifestar-se na sua imagem:
a nobre cabeça moldada pelo trabalho do espírito, enobrecida pela
dedicação ao princípio espiritual; a bela boca contida
e os olhos algo tristes, animados pela luta pela espiritualização; os ombros
magros, o longo pescoço, as mãos delicadas e elegantes. Nunca, desde a
despedida no convento, tinha visto o amigo com tanta clareza, nunca mais
possuíra tão inteiramente a sua imagem.
Involuntariamente, como num sonho, e não obstante inteiramente atento
e disponível para a urgência da tarefa, Goldmund começou então a desenhar
com todo o esmero, tentando evocar, traço após traço, a imagem que
habitava o seu coração. De tão concentrado, acabou por esquecer-se de si
próprio, do mestre e do sítio onde estava. Não se apercebeu da lenta
deslocação da luz do sol, nem viu o mestre olhar várias vezes para ele.
Cumpriu, como se de um sacrifício se tratasse, a tarefa que se lhe impusera,
que se colocara ao seu coração: erguer a imagem do amigo e guardá-la tal
como vivia atualmente na sua alma. Sem sequer refletir nisso, sentiu o
trabalho como a expiação de uma culpa, como um ato de gratidão.
Niklaus abeirou-se da mesa de desenho e disse:
– É hora de almoço; vou para a mesa; se quiseres, podes vir também.
Deixa lá ver; desenhaste alguma coisa?
Colocou-se atrás de Goldmund e olhou para a grande folha; depois
afastou-o e com as suas mãos hábeis pegou cuidadosamente no desenho.
Goldmund acordara do seu sonho e olhava agora com receosa expectativa
para o mestre. Este deixou-se ficar parado, segurando o desenho com ambas
as mãos, observando-o meticulosamente com aquele olhar penetrante dos
seus austeros olhos azul-claros.
– Quem é esta pessoa que aqui desenhaste? – quis saber o mestre,
decorrido algum tempo.
– É um amigo meu, um jovem monge e erudito.
– Bem, lava lá as mãos, ali no pátio há uma fonte. Depois vamos
almoçar. Os meus ajudantes não estão cá, trabalham fora.
Goldmund obedeceu, encontrou o pátio e a fonte, lavou as mãos, mas
muito teria dado para saber a opinião do mestre. Quando voltou, ele não
estava na oficina, ouviu-o fazer qualquer coisa num quarto ao lado; quando
surgiu à porta, já ele se tinha também lavado e envergava, em vez do
avental de trabalho, um casaco de belo tecido, que lhe dava uma aparência
imponente e formal. Seguiu à frente, subindo uma escada cujo corrimão de
nogueira ostentava um grupo de pequenas cabeças de anjos esculpidas na
madeira; atravessaram um vestíbulo repleto de estátuas, algumas mais
antigas, outras recentes, até chegarem a uma bonita sala com o chão, as
paredes e o teto forrados de madeira, onde, ao canto, em frente à janela, se
encontrava uma mesa posta. Surgiu então uma rapariga, que Goldmund
logo reconheceu como sendo a bela jovem da noite anterior.
– Lisbeth – disse o mestre –, tens de pôr mais um talher, trouxe um
convidado. É o… bem, afinal ainda nem sequer sei como ele se chama.
Goldmund apresentou-se.
– És então o Goldmund. Podemos ir comer?
– É só um instante, pai.
A jovem foi buscar um prato, saiu apressadamente e voltou com a criada
que trazia e serviu a comida: carne de porco, lentilhas e pão branco.
Durante a refeição, o pai conversou sobre vários assuntos com a filha,
Goldmund manteve-se calado, comeu um pouco e sentiu-se extremamente
inseguro e constrangido. Agradou-lhe muito a rapariga, que com o seu porte
imponente e gracioso era quase tão alta como o pai; mas ela manteve-se
reservada e inacessível, como por detrás de uma redoma, e nem uma
palavra nem um olhar dirigiu ao convidado enquanto esteve sentada à mesa.
Depois de terem comido, o mestre disse:
– Ainda quero descansar meia hora. Vai para a oficina ou passeia lá por
fora, depois falaremos sobre o assunto.
Goldmund cumprimentou e saiu. Já tinha passado uma hora ou mais
desde que o mestre vira o seu desenho e nem uma palavra ainda dissera.
Agora ia ter de esperar mais meia hora! Mas nada havia a fazer, ia ter
mesmo de esperar. Para a oficina não foi, não queria voltar a ver agora o
desenho. Preferiu ir para o pátio, sentou-se na beira da fonte e ficou a
observar o fio de água que continuamente escorria do cano para a funda
bacia de pedra e que, ao embater no espelho de água, provocava minúsculas
ondas, arrastando ininterruptamente consigo para o fundo um pouco de ar,
que depois ascendia para a superfície sob a forma de pequenas pérolas
brancas. Viu-se refletido no espelho escuro da fonte e achou que aquele
Goldmund que o olhava já há muito que não era o Goldmund do convento,
nem o Goldmund de Lydia, nem sequer o Goldmund da floresta. Pensou
que ele, como toda a gente, fluía, transformando-se continuamente, para
acabar, enfim, por se dissolver, enquanto a sua imagem criada por um
artista perdurava idêntica e imutável.
Talvez o medo da morte fosse a raiz de toda a arte, pensou, e até mesmo
de todo o espírito. Tememo-la, estremecemos perante a transitoriedade de
tudo, com pesar assistimos ao murchar das flores e ao cair das folhas,
sentindo no próprio coração a certeza de que também nós somos efémeros e
em breve murcharemos. Mas se criamos imagens, como os artistas, ou
elaboramos leis e formulamos pensamentos, como os pensadores, fazemo-
lo apenas para salvar algo do turbilhão da grande dança macabra, para
apresentar algo mais duradouro do que nós próprios. A mulher que serviu
de modelo ao mestre para a sua bela madona talvez já tenha murchado e
morrido,
e ele próprio não tardará a morrer também; outros hão de habitar a sua casa
e comer à sua mesa – mas a sua obra mantém-se, na quietude da igreja
conventual há de ainda brilhar, durante centenas de anos e mais, sempre
bela e sorrindo sempre com aquela expressão tão fresca quanto triste.
Ouviu o mestre descer a escada e correu para a oficina. Viu-o andar de
um lado para o outro, parando uma e outra vez para observar o seu desenho;
finalmente, parou junto à janela e disse naquele seu modo algo seco e como
que hesitante:
– Entre nós é costume o aprendiz cumprir, pelo menos, quatro anos de
aprendizagem, que é paga pelo pai.
Como se calou por um instante, Goldmund pensou que ele receava não
vir a receber os custos pela sua aprendizagem. Tirou então a navalha do
bolso e, rápido como um relâmpago, cortou a bainha, para retirar o ducado
escondido. O mestre ficou a olhar para ele, surpreendido, e soltou uma
gargalhada quando Goldmund lhe quis entregar a moeda de ouro.
– Ah, então era essa a tua ideia? – exclamou sorrindo.
– Não, jovem, fica lá com a tua moeda. Agora ouve. Contei-
-te o que é costume na nossa corporação, no que respeita aos aprendizes.
Mas nem eu sou um mestre vulgar, nem tu és um vulgar aprendiz. É que
esses começam a sua aprendizagem com treze, catorze ou quinze anos, o
mais tardar, e passam metade desse tempo a fazer fretes e a cometer erros.
Ora, tu és já um homem feito, com a idade que tens já podias ser oficial ou
mesmo mestre. Um aprendiz com barba seria coisa nunca vista na nossa
corporação. Depois também já te disse que na minha casa não quero
aprendizes, nem tu pareces pessoa que se sinta bem a fazer fretes.
A paciência de Goldmund atingira o limite, sentia cada uma das
ponderadas palavras do mestre como uma tortura e todos aqueles rodeios
pareciam-lhe horrivelmente enfadonhos e pedantes. Impetuosamente,
exclamou:
– Porque me dizeis tudo isso se não estais disposto a ensinar-me?
O mestre prosseguiu, imperturbável, no mesmo tom antiquado:
– Ponderei o teu pedido durante uma hora, agora vais tu ter paciência
para me ouvir. Estive a ver o teu desenho. Tem erros, mas não é por isso
que deixa de ser belo. Se o não fosse, oferecia-te meio florim, mandava-te
embora e não pensava mais em ti. Mais não quero dizer sobre o desenho.
Quero ajudar-te a tornares-te um artista, talvez seja esse o teu destino. Mas,
como disse, aprendiz não podes ser; e quem não foi aprendiz nem cumpriu
o período de aprendizagem não pode, segundo a regra da nossa corporação,
ser oficial nem mestre. Desde já ficas avisado. Mas podes fazer uma
tentativa. Se conseguires ficar cá na cidade durante um certo tempo, podes
vir ter comigo e aprender alguma coisa. Tudo isso acontece sem contrato
nem compromisso, a qualquer altura poderás desistir. Podes quebrar na
minha oficina uns quantos cinzéis e estragar uns toros de madeira; se depois
se revelar que não serves para entalhador, terás de procurar noutro lado.
Ficas satisfeito assim?
Goldmund ouvira-o, envergonhado e comovido.
– Agradeço-vos do fundo do coração – exclamou. – Não tenho lar nem
pátria e saberei cuidar de mim aqui na cidade como lá fora, na floresta.
Percebo que não queirais ter-me a vosso encargo e responsabilidade, como
se fosse um garoto aprendiz. Considero uma grande sorte e uma honra
poder aprender convosco. Do fundo do coração, agradeço-vos o que fazeis
por mim.
XI
Novas imagens rodeavam Goldmund e uma nova vida começou para ele
ali na cidade. Assim como aquela terra e aquela cidade o tinham recebido
de uma forma espontânea, sedutora e exuberante, também a vida que agora
iniciava o acolheu com alegria e inúmeras promessas. Se bem que o fundo
de tristeza e conhecimento se mantivesse inalterável na sua alma, o certo é
que à superfície a vida se lhe apresentou e o cativou com toda a sua colorida
diversidade. Teve então início o período mais alegre e despreocupado na
vida de Goldmund. No exterior recebeu-o a opulenta cidade episcopal com
todas as suas artes, mulheres e centenas de agradáveis jogos e imagens;
interiormente, a consciência da arte que nele despontava recompensou-o
com novas sensações e experiências. Com o apoio do mestre Niklaus,
encontrou alojamento na casa de um dourador, perto do mercado do peixe, e
aprendeu, tanto com ele como com o mestre, a arte de trabalhar a madeira e
o gesso e de utilizar as tintas, os vernizes e as folhas de ouro.
Goldmund não pertencia àquele tipo de artistas insatisfeitos, que, muito
embora possuindo notáveis talentos, nunca conseguem encontrar os meios
adequados para os expressar. Há pessoas assim, capazes de sentir a beleza
do mundo com profundidade e grandeza e de transportar na alma imagens
elevadas e nobres, mas que não encontram o caminho e os meios para delas
se libertarem, transmitindo-as e comunicando-as para satisfação dos outros.
Goldmund não sofria dessa carência. Não lhe custava servir-se das mãos e
dava-lhe prazer apropriar-se dos truques e técnicas do ofício, tal como
facilmente aprendia a tocar alaúde, à noite, com os colegas, ou a dançar, ao
domingo, nos bailes das aldeias. A aprendizagem era fácil, espontânea. É
certo que teve de se esforçar para aprender a trabalhar a madeira, que teve
de superar dificuldades e desilusões e que chegou mesmo a estragar
algumas belas peças de madeira e a cortar-se a sério nos dedos por mais de
uma vez. Mas não demorou a dominar os princípios da arte e a adquirir a
necessária destreza. Não obstante, muitos eram os dias em que o mestre se
mostrava insatisfeito com ele e lhe dizia, por exemplo:
– É bom que não sejas meu aprendiz ou oficial, Goldmund. É bom que
ambos saibamos que vens da vida errante e das florestas e que um dia para
lá voltarás novamente. Quem não soubesse que, no fundo, não és um
cidadão nem um artífice, mas um simples vagabundo e um estroina,
facilmente incorreria no erro de exigir de ti tarefas que qualquer mestre
exige do seu pessoal. Consegues ser um ótimo trabalhador quando te dá na
real gana. Mas na semana passada ninguém te pôs a vista em cima, porque
andaste a vadiar durante dois dias. E ontem, na oficina da corte, escondeste-
te para dormir durante meio dia, quando devias estar a polir os dois anjos.
As reprimendas eram justas e Goldmund aceitava-as calado, sem tentar
justificar-se. Ele próprio sabia que não era uma pessoa fiável e trabalhadora.
Desde que um trabalho o prendesse e o confrontasse com tarefas
complicadas, ou o entusiasmasse, tornando-o consciente das suas
capacidades, podia ser um artesão incansável. Mas esquivava-se ao trabalho
manual pesado e aquelas outras tarefas, que, sem serem difíceis, exigiam
tempo e aplicação e que, por fazerem parte do ofício, requeriam fiabilidade
e persistência, chegavam a parecer-lhe insuportáveis. Ele próprio se
admirava por vezes com isso. Teriam bastado aqueles dois anos de
vagabundagem para o tornarem preguiçoso e tão pouco fiável? Seria uma
herança materna, que agora crescia nele e se afirmava? Ou era porque lhe
faltaria? Lembrava-se perfeitamente dos seus primeiros anos no convento,
em que tinha sido um aluno tão bom e diligente. Porque conseguira ter na
altura toda aquela paciência que agora lhe faltava, como pudera dedicar-se
tão infatigavelmente ao estudo da sintaxe latina e de todos aqueles aoristos
gregos, que, no fundo, nada lhe diziam? Por vezes pensava nisso. No
passado fora o amor que sentia por Narciso que o fortalecera e lhe dera
asas; a vontade de aprender que demonstrara não tinha passado de um
constante esforço para ganhar o afeto do amigo, pois sabia que esse afeto só
seria conquistado através do respeito e do reconhecimento. Naquele tempo,
era capaz de se esforçar horas e dias a fio por um olhar de aprovação do
mestre querido. Depois, finalmente, conseguira atingir o seu objetivo,
Narciso tornara-se seu amigo e, estranhamente, acabara por ser
precisamente o sábio Narciso a revelar-lhe a falta de vocação para o estudo
e lhe conjurara a imagem da mãe desaparecida. Em vez de erudição,
ascetismo monástico e virtude, tinham-se apoderado do seu ser poderosos
instintos elementares: o sexo, o amor pelas mulheres, o impulso
independente, a vida errante. Agora, porém, depois de ter visto aquela
madona do mestre, descobrira um artista dentro de si, tomara um novo
rumo e voltara à vida sedentária. O que iria acontecer agora? Por onde
seguiria o seu caminho? De onde lhe vinham aquelas inibições?
Por enquanto, faltavam-lhe as respostas. Só uma coisa conseguia
perceber: embora sentisse pelo mestre Niklaus uma grande e genuína
admiração, não sentia por ele, de modo nenhum, o afeto que outrora o ligara
a Narciso. Por vezes, até lhe dava gozo desiludi-lo e arreliá-lo. Parecia-lhe
que isso tinha a ver com os conflitos e as contradições latentes na
personalidade do mestre. As figuras criadas pela mão de Niklaus, pelo
menos as melhores de entre elas, representavam para Goldmund modelos
venerados, mas o mestre não lhe parecia um exemplo a seguir.
A par do artista que esculpira aquela madona com a boca mais sofrida e
bela que ele jamais vira, a par do visionário e homem conhecedor, cujas
mãos sabiam transformar, como que por magia, experiências e intuições
profundas em figurações visíveis, coexistia ainda na personalidade do seu
mestre uma segunda pessoa: um patriarca e chefe de corporação algo
austero e receoso, um viúvo que com a filha e uma criada feia levava uma
vida sigilosa e vagamente tacanha no casarão silencioso, um homem que se
defendia ferozmente contra os mais imperiosos instintos de Goldmund, que
se acomodara a uma vida tranquila, comedida, ordenada e virtuosa.
Embora Goldmund respeitasse o seu mestre e nunca se tivesse permitido
indagar pormenores da sua vida ou julgá-lo diante dos outros, decorrido um
ano já sabia tudo o que era possível saber acerca de Niklaus. O mestre era-
lhe importante, amava-o e odiava-o, a confrontação com o que ele era e
representava não o deixava em paz, e assim, com apreço e desconfiança,
movido por uma constante curiosidade acerca das facetas mais ocultas da
sua personalidade, foi penetrando na sua vida. Viu como Niklaus recusava
albergar aprendizes e oficiais na sua casa, apesar de dispor de espaço mais
que suficiente. Viu que raramente saía e que quase nunca convidava
alguém. Apercebeu-se do amor tocante e ciumento que tinha pela sua linda
filha e de como tentava escondê-la dos outros. Sabia também que por detrás
da austera e precoce abstinência do viúvo pulsavam ainda fortes instintos, e
que quando, por vezes, uma qualquer encomenda de fora o obrigava a
viajar, podia transfigurar-se e rejuvenescer surpreendentemente durante
esses breves dias. E, uma vez, reparou também que, numa cidadezinha
estranha onde montavam um púlpito entalhado, Niklaus saiu certa noite às
escondidas para visitar uma prostituta, e que depois andou durante dias
inquieto e irritado.
Com o decorrer do tempo, outro motivo houve, para além dessa
constante curiosidade, que reteve Goldmund na casa do mestre e o começou
a inquietar cada vez mais. Era a bela filha, Lisbeth, que tanto lhe agradava.
Como ela nunca entrava na oficina, raramente a via, pelo que não conseguia
averiguar se a sua aspereza e timidez perante os homens lhe tinham sido
impostas pelo pai ou se eram devidas ao seu próprio carácter. De qualquer
forma, não lhe passou despercebido o facto de o mestre nunca mais o ter
convidado para a sua mesa e de lhe dificultar qualquer encontro com a filha.
Goldmund reconheceu que Lisbeth era uma donzela extremamente preciosa
e protegida, e que com ela nem valia a pena alimentar a esperança de um
amor sem casamento; quem quisesse desposá-la tinha de ser filho de boas
famílias, membro de uma das corporações superiores e, se possível, possuir
dinheiro e casa própria.
A beleza de Lisbeth, tão diferente daquela das ciganas ou das
camponesas, chamara-lhe a atenção desde o primeiro dia. Havia nela algo
que lhe era ainda desconhecido, algo estranho, que o atraía violentamente,
mas que, ao mesmo tempo, o deixava desconfiado e chegava mesmo a
irritar: uma grande calma e inocência, um recato e uma pureza onde
faltavam qualquer traço de infantilidade, pois por detrás de toda a
compostura e o decoro escondia-se uma frieza, uma arrogância, que faziam
com que a sua inocência não o comovesse e desarmasse – nunca ele teria
desejado seduzir uma criança –, mas que, pelo contrário,
o provocavam e desafiavam. Logo que começou a familiarizar-se com a sua
imagem, tal como ela lhe surgia nos seus devaneios, sentiu o desejo de a
reproduzir, um dia, numa figura; não como ela era agora, mas com outros
traços, despertos, sensuais e doridos; não como pequena donzela, mas como
uma madura Madalena. Na sua fantasia desejava muitas vezes ver aquele
rosto sereno, belo e inexpressivo distorcer-se e abrir-se, revelando o seu
segredo num excesso de gozo ou de dor.
Além desse, outro rosto havia ainda que habitava a sua alma sem lhe
pertencer por completo, um rosto cuja expressão ele ardentemente desejava
fixar e reproduzir algum dia como artista, mas que continuava a furtar-se-
lhe e a velar-se-lhe. Era o rosto da mãe. Há muito que esse rosto não era o
mesmo que lhe surgira recuperado do fundo das profundezas da memória,
depois das conversas que tivera com Narciso. Nos dias da errância, nas
noites de amor, nos tempos marcados pela nostalgia, pelo perigo de vida e
pela proximidade da morte, o rosto materno transformara-se e enriquecera
lentamente, tornando-
-se mais profundo e diversificado; deixara de ser a imagem da sua própria
mãe e os traços e as cores característicos tinham evoluído no sentido de
uma imagem maternal sem referência pessoal, a imagem de Eva, a mãe do
género humano. Tal como o mestre Niklaus lograra representar em algumas
das suas melhores madonas a imagem da mater dolorosa com uma tal
perfeição e intensidade expressiva, que a Goldmund parecia insuperável,
assim ele tinha também a esperança de, um dia, quando tivesse
amadurecido e se sentisse mais seguro das suas capacidades, poder
representar a imagem da mãe do mundo, de Eva, a mais remota e amada
relíquia que habitava o seu coração. Contudo, aquela imagem interior,
outrora apenas uma recordação da sua própria mãe e do seu amor por ela,
encontrava-se num processo de constante transformação e crescimento. As
feições e os traços singulares da cigana Lise, de Lydia, a filha do cavaleiro,
e de outros rostos de mulheres tinham-se integrado naquela imagem
original, contribuindo continuamente para a moldar; e não eram só os rostos
de todas as mulheres amadas que participavam na construção da imagem,
mas também todos os abalos, todas as experiências e as vivências profundas
por que passava contribuíam para a transfigurar, acrescentando-lhe traços
específicos. Porque ele sabia que, se alguma vez, mais tarde, conseguisse de
facto torná-la visível, ela não representaria uma mulher específica, mas
antes a imagem da própria vida enquanto mãe primordial. Frequentemente
julgava poder vê-la, por vezes surgia-lhe mesmo em sonhos, mas sobre esse
rosto de Eva e o que ele iria um dia manifestar não sabia dizer mais, para
além de que deveria revelar a volúpia da vida na sua mais íntima afinidade
com a dor e a morte.
Goldmund aprendera muito durante aquele ano. No desenho adquirira
rapidamente uma grande segurança, e, a par do trabalho com a madeira, o
mestre deixava-o também, por vezes, moldar o barro. Assim, a sua primeira
obra bem conseguida foi uma figura de barro de uns bons dois palmos de
altura, que representava a doce e sedutora imagem da pequena Julie, a irmã
de Lydia. O mestre louvou o trabalho mas não satisfez o seu desejo de a
fundir em metal; a figura pareceu-lhe demasiado lasciva e mundana para
que a pudesse apadrinhar. Seguiu-se o trabalho na figura de Narciso.
Goldmund executou-a em madeira, representando o apóstolo S. João, pois,
caso fosse bem--sucedido, o mestre queria aproveitá-la para um grupo sobre
a crucificação, que lhe tinha sido encomendado e no qual os seus dois
ajudantes trabalhavam exclusivamente há bastante tempo. No final, ele
próprio se encarregaria dos derradeiros detalhes.
Goldmund trabalhou a figura de Narciso com um amor profundo; nele se
reencontrava a si próprio, à sua arte e à sua alma sempre que descarrilava, o
que até nem sucedia assim tão raramente: namoricos, bailes, noitadas
boémias passadas com colegas a beber e a jogar aos dados e, não raras
vezes também, cenas de pancadaria deixavam-no esgotado, obrigando-o a
manter-se afastado da oficina por um ou mais dias ou a trabalhar sem
convicção, perturbado e mal-humorado. Mas ao
S. João apóstolo, cuja amada figura pensativa lhe ia surgindo da madeira,
cada vez mais nítida, só dedicava as melhores horas de disponibilidade.
Entregava-se então à tarefa com fervor e humildade. Durante essas horas
não se sentia nem contente nem triste, não pensava nos prazeres da vida
nem na sua fugacidade; nessas alturas, emergia de novo aquele sentimento
luminoso, reverente e puro com que outrora se entregara ao amigo e
aceitara, cheio de gratidão, a sua tutela. No fundo, não era ele que ali
estava, criando com vontade própria uma imagem. Era o outro, era o
próprio Narciso que se servia das suas mãos de artista para se libertar da
transitoriedade e da inconstância da vida e poder assim representar a pura
imagem do seu ser.
Era dessa maneira, sentia Goldmund às vezes com um calafrio, que
surgiam as verdadeiras obras de arte. Assim fora gerada a inesquecível
madona do mestre, que de vez em quando ele ia ainda visitar ao convento,
aos domingos. Fora também assim, daquele modo misterioso e sagrado, que
tinham sido feitas as melhores peças que o mestre guardava lá em cima, no
vestíbulo. Assim iria surgir também, um dia, aqueloutra e única imagem
que lhe parecia ainda mais misteriosa e veneranda, a imagem da mãe da
humanidade. Ah, se das mãos humanas só saíssem essas obras de arte, essas
imagens sagradas, necessárias e puras e em nada contaminadas pela vontade
e pela vaidade! Mas a realidade não era essa, e ele há muito o sabia.
Também se podiam criar muitas outras imagens, uma infinidade de coisas,
todas elas bonitas e encantadoras e executadas com grande mestria, para
regozijo dos amantes da arte e adorno das igrejas e dos salões municipais.
Todas elas bonitas, sem dúvida, mas não sagradas, não verdadeiramente
vindas da alma. Ele conhecia algumas dessas obras, da autoria do seu e de
outros mestres, que, apesar de toda a graciosidade do processo criativo e de
todo o esmero posto na execução, não passavam de fúteis exercícios de
virtuosismo. Sabia-o por experiência própria, e para sua vergonha e
desgosto sentira já nas próprias mãos aquele impulso que leva um artista a
produzir esses objetivos belos e fáceis apenas para se deleitar com a própria
destreza, por ambição e futilidade.
Quando reconheceu isso pela primeira vez, sentiu-se mortalmente triste.
Para fazer lindos querubins e outras ninharias, por mais graciosas que
fossem, não valia a pena ser artista. Para outros talvez, para artífices,
burgueses, para almas acomodadas e satisfeitas talvez valesse a pena, mas
para ele não. Para ele, a arte e as capacidades artísticas não tinham qualquer
valor se não queimassem como o sol e possuíssem o poder das tempestades,
se não aportassem mais que uma mera satisfação e um agradável
apaziguamento. Ele procurava outra coisa. Dourar com toda a perfeição,
com folhas de ouro reluzentes, uma coroa da Virgem delicada como renda
não era tarefa para ele, mesmo que fosse bem paga. Porque aceitaria o
mestre Niklaus todas aquelas encomendas? Porque empregava dois
ajudantes? Porque ouviria horas a fio, de côvado na mão, todos aqueles
vereadores e priores que vinham encomendar-lhe um portal ou um púlpito?
Por dois motivos apenas, dois miseráveis motivos: porque fazia gala em ser
um artista famoso e sobrecarregado com encomendas, e porque queria
amealhar dinheiro – não para grandes empreendimentos e prazeres, mas
apenas e só para a filha, que há muito era uma rapariga rica; dinheiro para o
enxoval, para golas de rendas e vestidos de brocado, para um leito nupcial
de nogueira com preciosas cobertas e lençóis de linho! Como se aquela
formosa rapariga não pudesse conhecer o amor num qualquer chão de feno!
Sempre que esses pensamentos o assaltavam, era o sangue materno que
se manifestava em Goldmund, o orgulho e o desprezo do nómada contra os
sedentários e proprietários. Havia dias em que o ofício e o mestre o
enojavam como feijões azedos, e não raras vezes esteve prestes a fugir.
Também o mestre por mais de uma vez se arrependera e lamentara
amargamente ter admitido aquele rapaz difícil e
tão pouco fiável, que constantemente punha à prova a sua paciência. O que
lhe chegava aos ouvidos sobre a vida de Goldmund, sobre a sua feroz
indiferença perante o dinheiro e a acumulação de bens, a sua propensão
para o esbanjamento, os seus inúmeros romances e frequentes brigas
também não o dispunha mais favoravelmente; a verdade era que tinha
acolhido em sua casa um cigano, um sujeito intratável e insubordinado. Por
outro lado, também não lhe passara despercebido o modo como aquele
vadio andava a arrastar o olho à sua filha Lisbeth. Se, não obstante tudo
isso, continuava a aturá-lo com mais paciência do que a que pensava poder
ter, não era por obrigação moral ou receio, mas por causa do S. João
apóstolo, cuja figura ia vendo surgir. Com um sentimento de profunda
afeição e afinidade de almas, que não lhe era fácil reconhecer, ia vendo o
vagabundo vindo das florestas esculpir na madeira, de uma forma lenta e
inconstante, mas também tenaz e incontestável, a imagem do apóstolo, a
partir daquele seu desenho original tão belo quanto desajeitado que o levara
a aceitá-lo na oficina. Apesar de todas as interrupções e caprichos, ele não
duvidava que Goldmund a iria conseguir um dia finalizar, e então seria uma
obra como nenhum dos seus ajudantes era capaz de realizar, uma daquelas
obras cujo nível até mesmo os grandes mestres só muito raramente
conseguiam atingir. Por muito que o discípulo lhe desagradasse em
inúmeros aspetos, por mais que o repreendesse, por mais que o seu
comportamento o enfurecesse – sobre o S. João nunca lhe dissera uma
palavra.
Ao longo desses anos, Goldmund foi perdendo pouco a pouco o resto da
graciosidade juvenil e da ingenuidade de rapazinho que constituíra o
segredo do seu encanto. Tornara-se um homem belo e forte, muito desejado
pelas mulheres e pouco simpático aos homens. Também o seu
temperamento, a sua íntima fisionomia se alterara substancialmente desde
que Narciso o despertara da suave letargia dos anos do convento, desde que
o mundo e a errância o tinham moldado. Há muito que o aluno da escola
conventual, bonito e dócil, de todos bem-querido, piedoso e solícito se
transformara numa pessoa completamente diferente. Narciso despertara-o,
as mulheres tinham-lhe transmitido o conhecimento, a vida errante
amadurecera-o. Amigos não tinha, o seu coração pertencia às mulheres.
Essas facilmente o conquistavam, bastava um olhar de desejo. Não lhe era
fácil resistir a uma mulher, sabia responder ao sinal mais subtil. Apesar de
possuir um apurado sentido estético e de ter preferido desde sempre as
raparigas muito jovens com o seu encanto primaveril, não deixava também
de reagir perante o apelo de mulheres menos belas e não tão jovens.
Durante os bailes sucedia por vezes deixar-se prender por uma qualquer
rapariga desanimada e sem frescura, que ninguém desejava e o conquistava
pela via da compaixão, e não só da compaixão, mas devido também à sua
eterna curiosidade. A partir do momento em que se dedicava a uma mulher
– fosse por semanas ou apenas por horas –, ela tornava-se bela aos seus
olhos e a sua entrega era completa. A experiência ensinara-lhe que todas as
mulheres eram belas e capazes de dar prazer, e que mesmo a de aparência
insignificante, desprezada pelos outros homens, podia revelar um ardor e
uma entrega inauditos, e que mesmo aquela que perdera já o viço da
juventude era capaz de derramar uma doce ternura melancólica e mais que
maternal; no fundo, todas possuíam um segredo e um encanto cujo
desvendar o fascinava. Nesse aspeto eram todas elas semelhantes: havia
sempre um gesto especial capaz de compensar qualquer falta de juventude
ou beleza, embora nem todas o prendessem durante o mesmo tempo. A
menos bela não lhe inspirava menos amor e gratidão do que a mais jovem e
graciosa, a sua entrega era sempre total. Mas havia mulheres que só após
três ou dez noites de amor o começavam a fascinar verdadeiramente, ao
passo que com outras o seu interesse arrefecia logo depois da primeira vez.
O amor e o prazer pareciam-lhe as únicas realidades capazes de darem
verdadeiramente calor e valor à vida. A ambição era-lhe desconhecida, o
bispo não valia para ele mais que o mendigo; do mesmo modo, a aquisição
e a posse de bens não conseguiam cativá-lo, desprezava-os, nunca lhe
teriam merecido o
mais pequeno sacrifício e esbanjava despreocupadamente o muito dinheiro
que em certas ocasiões chegava a ganhar.
O amor das mulheres e o jogo erótico estavam para ele acima de tudo, e a
sua frequente tendência para a tristeza e para o tédio provinha da
experiência da efemeridade e da volatilidade do prazer. A labareda rápida,
volátil, deliciosa do gozo carnal, a sua breve, desejosa combustão, a sua
célere extinção – parecia--lhe ali contido o âmago de todas as vivências,
para ele aquela experiência simbolizava toda a alegria e todo o sofrimento
da vida. Podia entregar-se àquela melancolia e ao calafrio perante a
transitoriedade da existência com a mesma entrega com que se abandonava
ao amor, e também ela era amor, também ele era prazer. Tal como o gozo
amoroso sabe com certeza, mesmo no instante do seu supremo êxtase, que
irá ter de se dissipar e extinguir com o próximo alento, também a mais
íntima solidão e entrega à melancolia estava certa de que iria ser,
subitamente, de novo devorada pelo desejo e por uma renovada aceitação
do lado solar da vida. A morte e a volúpia eram uma e a mesma coisa.
Podia chamar-se à mãe da vida amor ou prazer, tal como podia chamar-se
túmulo ou putrefação. A mãe era Eva, e era ela a fonte da felicidade e a
origem da morte, eternamente parindo e eternamente sacrificando; nela se
encontravam unidos o amor e a crueldade, e quanto mais ele a interiorizava,
mais a sua imagem se tornava metáfora e símbolo sagrado.
Goldmund sabia, não conscientemente e de uma forma verbalizada, mas
com o conhecimento mais íntimo e profundo do sangue, que o seu percurso
o conduzia à mãe, ao gozo e à morte. O lado paterno da vida, o espírito e a
vontade, não eram o seu território. Esses eram os domínios de Narciso, e só
agora Goldmund conseguia compreender verdadeiramente o sentido das
palavras do amigo e ver nele o seu polo oposto. Foi também isso que tentou
tornar visível e palpável na figura do S. João. Podia ter saudades de Narciso
até romper em lágrimas, podia sonhar maravilhosamente com ele, mas
alcançá-lo, tornar-se como ele, isso, sabia-o agora, nunca poderia.
Goldmund pressentia também, de uma forma instintiva e secreta, o
mistério da sua vocação artística, do seu íntimo amor pela arte e do violento
ódio que ocasionalmente sentia contra ela. Sem o tentar analisar, de uma
forma meramente emocional, pressentia através de inúmeras metáforas que
a arte era uma síntese dos dois mundos, o paterno e o materno, o do espírito
e o do sangue; podia partir da evidência sensorial para se diferenciar nas
esferas mais abstratas, assim como podia ter a sua génese no mundo puro
das ideias para terminar na mais sangrenta carnalidade. Todas as obras de
arte verdadeiramente sublimes que não se contentavam em ser apenas
produtos de um qualquer hábil prestidigitador, todas aquelas em que, como,
por exemplo, na madona do mestre, se sentia a presença do eterno mistério,
todas as obras de arte verdadeiramente genuínas e inquestionáveis
apresentavam aquela dupla face sorridente e perigosa, aquela dualidade
integrada do masculino e do feminino, aquela simultaneidade dos aspetos
instintivos e puramente espirituais. Mas, mais do que todas as outras, seria a
sua mãe Eva quem revelaria essa ambiguidade essencial, se um dia
conseguisse moldá-la.
Goldmund sentia que através da arte e da vida de artista tinha a
possibilidade de conciliar os seus profundos antagonismos, ou pelo menos
de criar magníficas e sempre novas metáforas sobre a ambivalência da sua
natureza. Mas a arte não era pura dádiva, não era de modo nenhum gratuita,
ela tinha um preço elevado e exigia-lhe sacrifícios constantes. Durante mais
de três anos sacrificara-lhe já o mais supremo e imprescindível bem que
conhecia, para além do êxtase amoroso: a sua liberdade. O sentir-se livre, a
errância pelo mundo sem fim, as bizarrias da vida de vagabundo, o estar só
e sentir-se independente, tudo isso abandonara por ela. Os outros podiam
achá-lo inconstante, insubordinado e egoísta quando, por vezes, descurava o
trabalho e abandonava a oficina, furioso; para ele, porém, aquela vida era
uma escravidão amarga, que não raras vezes se lhe tornava insuportável.
Não era ao mestre, nem ao futuro, nem às necessidades básicas que ele
obedecia – era à própria arte. E a arte, aquela deusa aparentemente tão
espiritual, exigia dele tantas coisas comezinhas! Precisava de um teto,
precisava de ferramentas, madeira, barro, tintas, ouro, exigia--lhe trabalho e
paciência. Sacrificara-lhe a feroz liberdade das florestas, o êxtase da
distância, o gozo rude do risco, o orgulho da penúria, e continuamente se
via obrigado a renovar o sacrifício, rangendo os dentes e espumando de
raiva.
Uma parte do que sacrificava ainda conseguia recuperar, vingando-se da
ordem escravizante da sua vida atual ao envolver-se em certas aventuras
relacionadas com os seus namoros e em rixas com os rivais. Todo o ímpeto
contido, toda a violência reprimida do seu temperamento descarregava-se
então através desse escape; tornou-se um notório e temido brigão. Ser
subitamente atacado numa viela escura, a caminho de um encontro ou no
regresso a casa, depois do baile, e ter de se defender das pauladas, virando-
se logo a seguir, rápido como um raio, e passar da defesa para o ataque, era
algo que lhe dava gozo; filar, ofegante, o adversário a arfar, espetar-lhe um
murro nos queixos, arrastá-lo pelos cabelos ou estrangulá-lo durante um
bom bocado, era algo que o satisfazia e o curava, por uns tempos, dos seus
acessos de mau humor. E às mulheres aquilo também agradava.
Todas essas desordens preencheram-lhe sobejamente os dias e tudo teve
o seu sentido enquanto durou o trabalho na figura do apóstolo. Este
prolongou-se ainda por bastante tempo e as derradeiras e delicadas
modelações do rosto e das mãos decorreram sob um estado de espírito
solene, com uma concentração paciente. Terminou o trabalho numa
pequena arrecadação de madeira, atrás da oficina onde trabalhavam os
ajudantes. Por fim, numa manhã, chegou a hora em que a figura foi
concluída. Goldmund foi buscar uma vassoura, varreu cuidadosamente toda
a arrecadação, retirou delicadamente com um pincel as últimas aparas e as
partículas de madeira dos cabelos do seu S. João, e deixou-se depois ficar
muito tempo a observá--lo, uma hora ou mais, emocionado e consciente da
importância daquela experiência, que talvez pudesse um dia repetir-se na
sua vida, mas que também podia ser única e inigualável. Um homem no dia
do seu casamento ou quando acaba de ser armado cavaleiro, uma mulher
após o primeiro parto poderão sentir algo semelhante: uma consagração,
profundamente consciente da solenidade da situação e, simultaneamente,
um secreto receio perante a inevitabilidade do momento em que também o
extraordinário e único terá de ser ultrapassado, integrado e consumido pelo
decorrer indiferente dos dias.
Goldmund ergueu-se e viu o seu amigo Narciso, o mentor dos seus anos
de adolescência: viu-o de pé, à sua frente, de cabeça erguida, como se
escutasse algo, trajando as vestes e desempenhando o papel do belo
discípulo dileto, com uma expressão de serenidade, entrega e reverência
onde se insinuava um sorriso. Aquele rosto formoso, devoto e espiritual,
aquela figura delgada que parecia levitar no espaço, aquelas mãos longas e
delicadas, como que suspensas num gesto misericordioso e cheio de uma
graciosidade natural, não desconheciam a dor e
a morte, apesar de estarem imbuídas de juventude e de uma íntima vibração
musical; o que desconheciam era o desespero, a desordem e a revolta. Sob
aqueles traços nobres, a alma podia ser alegre ou triste, mas mantinha-se em
harmonia, não sofria de dissonâncias.
Goldmund não conseguia deixar de contemplar a sua obra. Mas o que
começou como pura contemplação perante um monumento à sua primeira
juventude e amizade depressa se transformou num vendaval de
preocupações e pensamentos sombrios. Aí estava ela, a sua obra, e o belo
discípulo perduraria, e o seu delicado desabrochar não teria fim. Ele, porém,
o seu autor, iria ter agora de se despedir do que criara, amanhã já ela não lhe
pertenceria, já não estaria ali à espera das suas mãos, já não cresceria sob o
seu labor, já não representaria para ele refúgio, consolo e sentido da
existência. Deixava-o vazio e pareceu-lhe que o melhor seria despedir-se já
hoje, não só daquele S. João, mas também do mestre, da cidade e da própria
arte. Já não tinha nada que fazer ali; a sua alma estava esgotada, já lá não
havia imagens a que pudesse dar forma. A desejada imagem de todas as
imagens, a figura da mãe dos homens, ainda lhe não era acessível, levaria
ainda muito tempo a sê-lo. Para que ficaria então a polir anjinhos e a
entalhar eternamente ornamentos?
Por fim, arrancou-se às suas reflexões e dirigiu-se à oficina do mestre.
Entrou silenciosamente e deixou-se ficar à porta, até que Niklaus se
apercebeu da sua presença e o interpelou.
– O que se passa, Goldmund?
– A minha figura está pronta. Talvez queirais ir lá vê-la, antes do almoço.
– Com certeza, vou já.
Foram e deixaram a porta aberta, para que a claridade pudesse entrar. Há
bastante tempo que Niklaus não via a figura, pois quisera deixar Goldmund
trabalhar à vontade. Agora observava-a com silenciosa atenção, o seu rosto
circunspecto desanuviou-se, tornou-se belo, e Goldmund viu brilharem de
satisfação os severos olhos azuis.
– Está bom – disse o mestre. – Está muito bom. É a tua prova final,
Goldmund, já aprendeste o que tinhas a aprender. Vou mostrar a tua figura
aos membros da corporação e exigir-
-lhes que te deem por ela a carta de mestre. Mereceste-a.
A Goldmund pouco lhe importava a corporação, mas sabia que as
palavras do mestre eram um sinal de grande reconhecimento, e alegrou-se.
O mestre voltou a contornar lentamente a figura do evangelista e
constatou com um suspiro:
– Esta figura está cheia de devoção e clareza. Sente-se a seriedade, mas
está repleta de felicidade e paz. Podia pensar-se que foi feita por alguém
cuja alma é luminosa e serena.
– Bem sabeis que não me reproduzi a mim próprio nesta figura, mas ao
meu melhor amigo. Foi ele, e não eu, que trouxe a clareza e a serenidade
para a imagem. No fundo, nem sequer fui eu que fiz a imagem, ele é que ma
transmitiu pela via da alma.
– É possível – concordou Niklaus. – A origem de obras como esta é um
mistério. Não sou propriamente modesto, mas devo dizer-te que já fiz
muitas obras bem inferiores a esta tua, não em conhecimento e esmero, mas
na capacidade de transmitir a verdade. De resto, tu próprio deves saber que
não é possível repetir uma obra como esta. É um mistério.
– É verdade – admitiu Goldmund –, quando ficou pronta e me pus a
observá-la, pensei cá para mim: nunca mais hei de conseguir fazer algo
assim. E por isso, mestre, acho que me vou pôr dentro em breve novamente
a caminho.
Niklaus olhou-o com um ar surpreso e contrafeito, os seus olhos tinham
adquirido novamente a habitual expressão severa.
– Ainda vamos falar sobre isso. Para ti, o trabalho a sério deveria agora
começar, não me parece que seja o momento adequado para te pores a
andar. Mas por hoje estás livre e és meu convidado ao almoço.
Goldmund compareceu ao meio-dia, penteado, lavado e com as suas
roupas domingueiras. Desta vez estava já consciente do privilégio que
significava ter sido convidado pelo mestre. No entanto, quando subiu as
escadas que iam dar ao vestíbulo repleto de figuras, não se sentiu, nem
pouco mais ou menos, tão reverente e cheio de ansiosa alegria como
daqueloutra vez em que entrara naqueles aposentos belos e tranquilos com o
coração aos saltos.
Também Lisbeth surgiu ataviada e com um colar de pedras preciosas ao
pescoço; à mesa, para além das carpas e do vinho, houve ainda uma
surpresa: o mestre ofereceu-lhe uma bolsa de couro contendo duas moedas
de ouro, o salário de Goldmund pela obra concluída.
Desta vez não se limitou a acompanhar a refeição calado, enquanto pai e
filha conversavam. Ambos falaram com ele e ergueram-se os copos e
fizeram-se saúdes. Goldmund aproveitou a oportunidade para observar
atentamente a bela rapariga de rosto distinto e algo arrogante, e o seu olhar
nem por um instante escondeu o quanto ela lhe agradava. Ela mostrou-se
atenciosa para com ele, mas Goldmund ficou dececionado ao ver que ela
não corava nem parecia animar-se na sua presença. Uma vez mais, desejou
ardentemente conseguir que aquele rosto inexpressivo falasse, quis forçá-lo
a revelar-lhe o seu segredo.
Depois do almoço agradeceu, demorou-se ainda um pouco no vestíbulo,
a ver as esculturas, e vagueou toda a tarde pela cidade, indeciso, ocioso e
inquieto. Acabara de ser distinguido pelo mestre para além de todas as
expectativas. Porque não se sentia então satisfeito? Porque reagia com
indiferença perante todas aquelas honrarias?
Seguindo uma súbita inspiração, alugou um cavalo e dirigiu-se ao
convento onde pela primeira vez vira uma obra do mestre e ouvira o seu
nome. Não tinha entretanto decorrido mais que um par de anos, e, no
entanto, parecia-lhe ter sido há séculos. Na igreja do convento procurou e
contemplou a madona, que o deliciou e emocionou como no primeiro dia;
era mais bela do que o seu S. João, comparável a ele em força interior e
mistério, mas superior no virtuosismo, no modo como as linhas e as massas
se organizavam numa imponderabilidade livre e como que suspensa. Podia
agora reconhecer naquele trabalho pormenores que só um artista consegue
ver: ligeiros e delicados movimentos na roupagem, soluções ousadas na
modelação das longas mãos e dos dedos, um aproveitamento sensível das
irregularidades e dos condicionalismos na estrutura da madeira – todos
aqueles preciosismos nada significam em comparação com o todo, com a
simplicidade e a profundidade da visão, mas estavam lá, manifestavam-se e
não deixavam de ser muito belos; mesmo para qualquer artista abençoado,
só quem dominasse a fundo o seu ofício seria capaz de os materializar. Para
conseguir fazer algo assim não bastava cultivar imagens na alma, era
também necessário ter educado e exercitado olhos e mãos até à exaustão.
Talvez valesse afinal a pena dedicar a vida inteira ao serviço da arte,
sacrificando a liberdade e as grandes vivências pessoais, só para um dia
poder criar uma obra tão bela, algo que não pudesse ser apenas sentido e
interiorizado com amor, mas que pudesse ser também concretizado com
segura mestria até ao mais ínfimo pormenor. Essa era a grande interrogação.
Goldmund regressou noite alta à cidade, no cavalo estafado. Encontrou
uma taverna ainda aberta, onde comeu pão e bebeu vinho; depois,
dominado por um grande desassossego, cheio de perguntas e dúvidas, subiu
para o seu quarto junto ao mercado do peixe.
XII
XIII
Nos primeiros tempos da sua nova errância, na vertigem sôfrega da
liberdade recuperada, Goldmund teve de reaprender a viver a vida nómada
e intemporal dos vagantes. Sem ninguém a quem obedecer, dependentes
apenas do tempo e das estações do ano, sem objetivos traçados à sua frente,
sem um teto por cima da cabeça, nada possuindo e abertos a todos os
acasos, os vagabundos vivem a sua vida infantil e corajosa, uma vida frugal
e forte. São eles os verdadeiros filhos do Adão expulso do Paraíso e os
irmãos dos bichos inocentes. Da mão celestial recebem, hora após hora, o
que lhes é dado: sol, chuva, nevoeiro, neve, calor e frio, bem-estar e
privações; para eles não há tempo nem história, nem ambição nem aqueles
estranhos ídolos do desenvolvimento e do progresso, em que os
proprietários de casas tão desesperadamente creem. Um vagabundo pode
ser delicado ou rude, hábil ou desajeitado, corajoso ou medroso, mas, no
fundo do coração, há de manter-se sempre uma criança, é no dia primordial
que ele vive, anterior ao início da história do mundo, e a sua vida será
sempre comandada por uns quantos instintos e necessidades elementares.
Ele pode ser inteligente ou tolo, pode ter um conhecimento profundo da
fragilidade e da fugacidade de toda a existência e de como todos os seres
vivos transportam, inquietados pelo medo, a sua ínfima porção de sangue
quente através do gelo dos espaços siderais, ou pode limitar-se a seguir os
ditames do seu pobre estômago infantil e sôfrego – mas sempre há de
permanecer o contraente e inimigo mortal do proprietário e sedentário, que
o odeia, despreza e teme, pois se há algo que não admite é que lhe recordem
tudo isso: a precariedade de toda a existência, o contínuo murchar de toda a
vida, a morte gélida e implacável que nos rodeia e preenche o Universo.
A puerilidade da vida do vagabundo, a sua ascendência materna, a sua
renúncia à lei e ao espírito, a sua entrega fatalista e a secreta e permanente
proximidade da morte há muito que tinham dominado e moldado
profundamente a alma de Goldmund. Como, além disso, o espírito e a
vontade continuavam vivos dentro dele, como era também um artista, a sua
vida era rica e difícil, pois é indesmentível que só através da cisão e da
contradição a existência se torna rica e fecunda. Que seria da sen-
satez e da temperança sem o conhecimento da embriaguez? Que seria o
gozo dos sentidos se a morte o não espreitasse, emboscada? E o que seria
do amor sem a eterna e mortal hostilidade dos sexos?
O verão e o outono declinaram, Goldmund arrastou-se penosamente
pelos meses mais severos, inebriado atravessou a doce primavera
perfumada, as estações do ano sucediam-se tão velozmente, tão
rapidamente declinava o sol alto do estio! Os anos foram passando, um após
outro, e parecia que Goldmund se esquecera já de que havia no mundo
outras coisas para além da fome e do amor e daquela silenciosa e
inquietante urgência das estações; parecia que se tinha afundado por
completo num primitivo mundo materno dos instintos. Nos sonhos, porém,
ou quando parava para descansar e pensar, o olhar espraiando-se sobre os
vales que floresciam e murchavam, voltava a manifestar-se o artista
observador e contemplativo, acicatado pelo desejo dilacerante de exorcizar
através do trabalho do espírito toda aquela bela e absurda deriva da vida,
transformando-a em sentido.
Um dia, Goldmund, que desde a sangrenta aventura com Viktor preferia
viajar sozinho, encontrou um companheiro que quase impercetivelmente se
juntou a ele e do qual demorou bastante tempo a livrar-se. No entanto, ele
em nada se parecia com Viktor; era um vagante ainda jovem chamado
Robert, que usava o hábito e o chapéu do peregrino e era natural da região
do lago Constança. Filho de um artesão, aprendera durante algum tempo na
escola dos monges de Sankt Gallen, mas já desde criança se lhe metera na
cabeça que queria ir em peregrinação a Roma e, sem nunca perder de vista
esse plano longamente acalentado, aproveitou a primeira oportunidade que
se lhe deparou para o concretizar: com a morte do pai, em cuja oficina de
carpinteiro trabalhava, o caminho ficou livre. Mal o velho foi a enterrar,
Robert explicou à mãe e à irmã que nada o impediria de iniciar
imediatamente a peregrinação a Roma, para satisfazer os seus anseios de
viagem e expiar os seus pecados e os do pai. Em vão ambas se lamentaram,
em vão o insultaram, Robert manteve-se obstinado e, em vez de cuidar das
duas mulheres, pôs-se a caminho, sem a bênção da mãe e sob uma saraivada
de imprecações que a irmã lhe atirou. O que o movia era sobretudo o prazer
do andarilho, aliado a uma espécie de devoção superficial, uma propensão
para permanecer nas proximidades dos locais eclesiásticos e das atividades
litúrgicas. Fascinavam-no os batismos, os funerais, missas, incenso e as
chamas das velas. Sabia um pouco de latim, porém, não era erudição o que
a sua alma infantil ambicionava, mas antes contemplação e silenciosa
exaltação sob a sombra das abóbadas das igrejas. Em criança entregara-se
com paixão ao serviço de sacristão. Sem o tomar muito a sério, Goldmund
não deixava de gostar dele; sentia-se semelhante a ele por partilharem
ambos aquela atração compulsiva pela vida errante e pela aventura. Robert
pusera-se pois a caminho, satisfeito da vida, e chegara de facto a Roma;
gozara da hospitalidade de inúmeros conventos e paróquias, contemplara as
montanhas e o Sul e sentira-se muitíssimo bem entre todas aquelas igrejas e
eventos religiosos; assistira a centenas de missas, rezara e recebera os
sacramentos nos locais mais sagrados e famosos e inspirara mais incenso do
que o que teria sido necessário para expiar os seus modestos pecados
juvenis e os do progenitor. Andou por essa vida durante um ano ou mais,
mas quando, finalmente, voltou à casinha paterna, não foi propriamente
acolhido como o filho pródigo; pelo contrário, a irmã tinha-se entretanto
apoderado dos direitos e deveres do chefe de família, empregara um
diligente aprendiz de carpinteiro, que logo desposara, e governava a casa e
a oficina tão completamente que o regressado não tardou a sentir-se
dispensável e ninguém o tentou demover quando, pouco tempo decorrido,
voltou a falar da partida e das viagens. Ele também não levou isso a mal,
recebeu da mãe umas parcas economias, envergou novamente o traje dos
romeiros e iniciou uma nova peregrinação, desta vez sem destino, através
do sacro império, feito vagabundo semieclesiástico. Tilintavam-lhe das
vestes cada vez mais medalhas de cobre e rosários bentos comprados nos
lugares santos.
Foi assim que encontrou Goldmund, com quem partilhou uma jornada;
os dois trocaram impressões e lembranças de viagens, perderam-se de vista
na cidadezinha seguinte, voltaram a encontrar-se mais tarde, aqui e ali, até
que, finalmente, Robert se juntou a ele, passando a acompanhá-lo sempre e
tornando-se um companheiro de viagem tolerante e prestável. Afeiçoou-se
muito a Goldmund e procurava cativá-lo com pequenos serviços; admirava
os seus conhecimentos, a sua bravura, o seu espírito, e amava a sua saúde, a
sua força e a sua franqueza. Habituaram-se um ao outro, pois Goldmund era
também uma pessoa tolerante. Só não tolerava uma coisa: quando o
acometiam as suas crises de melancolia e reflexão, tornava-se ferozmente
taciturno e desinteressava-se do outro, comportando-se como se ele não
existisse; nessas alturas, Robert sabia que não devia tagarelar, nem fazer
perguntas nem tentar consolá-lo – tinha de o deixar em paz e respeitar o seu
silêncio. Não lhe custou a aprender isso. Desde que descobrira que
Goldmund sabia de cor uma quantidade de versos e canções latinas, desde
que o ouvira explicar diante do portal de uma catedral o significado das
santas figuras de pedra, desde que o vira esquissar com giz vermelho, num
muro junto ao qual descansavam, com traços rápidos e generosos, figuras
em tamanho natural, Robert tinha o companheiro na conta de um filho
dileto de Deus, quase de um feiticeiro. O facto de ser também um preferido
das mulheres e de conseguir conquistar algumas com um simples olhar e
um sorriso também não lhe passou despercebido; disso já não gostava tanto,
embora não deixasse de o admirar pelas suas proezas amorosas.
Até que, um dia, a sua caminhada sofreu uma inesperada interrupção. À
entrada de uma aldeia os dois companheiros foram recebidos por um
magote de camponeses armados de ca-
jados, varapaus e manguais; o chefe do grupo gritou-lhes de longe que
voltassem imediatamente para trás e fossem para o diabo que os carregasse,
desde que desaparecessem dali para nunca mais voltar. De contrário, davam
mesmo ali cabo deles. Quando Goldmund parou e quis saber o que se
passava, levou logo com uma pedrada no peito. Ao virar-se, viu Robert a
fugir, correndo como um desalmado. Os camponeses avançaram,
ameaçadores, e Goldmund não teve outra opção senão segui--lo, embora
mais devagar. Encontrou-o à sua espera, a tremer, junto a um cruzeiro com
a imagem do Redentor, que se erguia à beira do caminho, em pleno campo.
– Correste como um herói – troçou Goldmund, a rir. – Mas o que se teria
metido nos toutiços daqueles broncos? Haverá guerra? Colocam vigias
armados diante das tocas e não querem deixar entrar ninguém. Tudo isto me
intriga! Que diabo estará por detrás disto tudo?!
Nenhum deles o sabia. Só no dia seguinte começaram a desvendar o
mistério, depois de fazerem certas experiências num casal que encontraram
abandonado. Constituído por uma choupana, um estábulo e o celeiro num
local onde crescia erva alta e rodeado por um pomar com muitas árvores de
fruto,
o casal estava estranhamente silencioso e adormecido: não se ouviam vozes
humanas, nem passos, nem gritaria de crianças, nem o tinir das alfaias; no
prado mugia uma vaca, e notava-se que estava a precisar de ser ordenhada.
Aproximaram-se da casa, bateram à porta, mas ninguém lhes respondeu;
foram até ao estábulo, que se encontrava aberto e vazio; seguiram para o
celeiro, em cujo telhado de colmo brilhava ao sol o musgo de um verde
luminoso, mas também não encontraram vivalma. Voltaram à casa,
surpresos e angustiados com a desolação de todo aquele sítio, bateram
novamente à porta com os punhos e de novo não obtiveram resposta.
Goldmund tentou abri-la e, para seu espanto, viu que a porta não estava
trancada. Empurrou-a para dentro e entrou numa habitação sombria.
– Deus vos salve! – saudou em voz alta, e, logo a seguir:
– Não está ninguém em casa?
Mas tudo permanecia em silêncio. Robert tinha ficado à porta.
Goldmund avançou, curioso. Cheirava mal na cabana, um fedor estranho e
repugnante. A lareira estava cheia de cinza, ele soprou e por baixo ardiam
ainda brasas por entre os toros calcinados. Foi então que viu ao fundo, na
penumbra, junto ao fogão, alguém; estava ali alguém sentado num cadeirão
a dormir, parecia uma velhota. De nada serviu chamá-la, a casa parecia
enfeitiçada. Goldmund tocou-
-lhe amavelmente no ombro, ela continuou sem se mexer e ele reparou que
ela estava sentada no meio de uma teia de aranha cujos fios se lhe prendiam
ao cabelo e aos joelhos. Esta está morta, pensou com um ligeiro calafrio, e,
para se certificar, ateou o lume, soprou-o e atiçou-o até fazer chama, de
modo a poder acender um graveto comprido. Com ele iluminou o rosto da
mulher sentada. Viu sob os cabelos grisalhos um rosto cadavérico azulado e
negro, um dos olhos estava aberto e tremulava, vazio e plúmbeo. A mulher
tinha morrido ali, sentada na cadeira, nada havia a fazer.
Com o graveto aceso na mão, Goldmund pôs-se a esquadrinhar a casa e
logo encontrou nessa mesma habitação, tombado no umbral da porta que
dava para um quarto interior, um outro cadáver, um rapazinho dos seus oito
ou nove anos, com o rosto inchado e disforme, vestindo não mais que a
camisa. Estava deitado de barriga para baixo, atravessado na porta, os
pequenos punhos cerrados numa revolta enraivecida. E vão dois, pensou
Goldmund; seguiu em frente como num pesadelo, no quarto das traseiras as
janelas abertas deixavam entrar a jorros a claridade do dia.
Cuidadosamente, apagou o archote e pisou as fagulhas no chão.
Viu três camas. Uma estava vazia, com a palha a ver-se sob o lençol
áspero e pardo. Na segunda jazia outro cadáver, o de um homem barbudo,
deitado de costas, muito hirto, com a cabeça para trás e o queixo barbudo
muito espetado; só podia ser o camponês. O seu rosto encovado luzia
macilento em estranhas tonalidades cadavéricas; um dos braços pendia para
o chão, onde, tombado e vazio, se encontrava um cântaro de barro;
a água entornada ainda não tinha sido completamente absorvida, escorrera
para uma cova onde se via ainda uma pequena poça. Na terceira cama,
porém, completamente, enterrada e enredada no lençol empapado no
próprio vómito, encontrava-se uma mulher grande e forte, a cara
comprimida contra o colchão; os cabelos crespos, de um loiro cor de palha,
brilhavam na claridade. Junto a ela e a ela agarrada, como que presa e
estrangulada pelo lençol revolvido, jazia uma adolescente, igualmente loira,
com manchas de um azul acinzentado no rosto lívido.
O olhar de Goldmund ia de uns para os outros. Apesar de já estar muito
desfigurado, notava-se ainda no rosto da rapariga algo do impotente pavor
perante a morte. Na posição da nuca e da cabeleira, da mão que tão
profunda e furiosamente se enterrara no leito, podia perceber-se a raiva, o
medo e a apaixonada vontade de escapar. Sobretudo a cabeleira indómita
parecia não querer conformar-se com o inevitável. No semblante do
lavrador via-se revolta e uma dor violentamente contida; tivera uma morte
terrível, parecia, mas morrera como um homem, o seu rosto hirsuto
sobressaía, agreste e imóvel, como o de um guerreiro tombado no campo de
batalha. Aquela posição estendida, firme e um pouco obstinada era bela;
certamente que um homem que soubera enfrentar a morte daquela maneira
não tinha sido mesquinho e cobarde. Mas o que mais o comoveu foi o
pequeno cadáver do rapazinho, atravessado de barriga para baixo no umbral
da porta; o rosto nada dizia, mas a posição e os minúsculos punhos cerrados
revelavam muito: um sofrimento incrédulo, uma impotente tentativa para se
defender de uma dor insuportável. Mesmo ao lado da sua cabeça tinha sido
serrado na porta um buraco para o gato passar. Goldmund observou tudo
atentamente. Aquela casa era sem dúvida horrível, e atroz o cheiro infeto
que a impregnava; e, no entanto, tudo aquilo exerceu sobre ele uma
profunda atração. Tudo estava como que saturado de grandeza e destino;
tudo era tão verdadeiro, tão isento de hipocrisia que ganhou o seu afeto e
lhe tocou fundo na alma.
Entretanto, lá fora, Robert começou a chamá-lo, impaciente e cheio de
medo. Goldmund gostava dele, mas naquele momento não conseguiu deixar
de pensar que uma pessoa viva, com todos os seus receios, a sua
curiosidade e todas as suas criancices, era, no fundo, bem mais mesquinha e
patética do que os mortos. Não lhe respondeu e entregou-se completamente
à contemplação dos cadáveres com aquela estranha mistura de calorosa
compaixão e frio sentido de observação tão típica dos artistas. Examinou os
corpos que jaziam e os que tinham morrido sentados com toda a acuidade,
as cabeças, as mãos, o movimento congelado no instante em que a morte os
surpreendera. Que silêncio naquela cabana enfeitiçada! Que fedor tão
estranho e horrível! Com que rapidez aquele minúsculo lar humano, onde
ainda ardiam na lareira as derradeiras brasas, se transformara num local
fantasmagórico e sinistro, habitado por cadáveres, totalmente devassado e
ocupado pela morte! Em breve, a carne cairia das faces daquelas figuras
imóveis e as ratazanas encarregar-se-iam de lhes devorar os dedos. O que
ocorria com as outras pessoas no caixão e na sepultura, num espaço
protegido e invisível para os outros, todo o derradeiro e miserável processo
de decomposição e putrefação, acontecia ali com aqueles cinco infelizes
dentro da própria casa, nos seus quartos, à luz do dia, com as portas abertas,
sem qualquer pudor, sem nenhum resguardo ou proteção. Goldmund já vira
alguns mortos, mas nunca se deparara com uma tão terrível imagem do
labor implacável da morte. Guardou-a no mais fundo de si.
Por fim, os gritos de Robert, à porta, incomodaram-no e saiu de casa. O
companheiro olhou-o, cheio de medo.
– O que se passa? – quis saber com voz sumida, a tremer de susto. – Não
está ninguém em casa? Mas que olhar o teu! Fala, diz lá!
Goldmund mediu-o friamente.
– Entra e vê, é uma casa bem estranha. Depois ordenhamos aquela linda
vaquinha. Anda daí!
Robert entrou na cabana, hesitante, avançou na direção da lareira,
deparou-se com a velha sentada e, quando se apercebeu de que ela estava
morta, soltou um grito lancinante! Voltou precipitadamente, de olhos
esbugalhados.
– Deus nos acuda! Está ali uma velha morta sentada à lareira! O que é
aquilo? Porque é que ninguém está com ela? Porque não a enterram? Oh,
meu Deus, já fede.
Goldmund sorriu.
– Sempre me saíste um grande herói, Robert! Mas olha que voltaste
demasiado rápido. Uma velha morta sentada numa cadeira é um espetáculo
estranho; mas, se deres mais uns passos, podes ver coisas bem mais
espantosas. São cinco ao todo, Robert. Nas camas estão três, e há um
rapazito no chão, atravessado na porta. Todos mortos. A família inteira está
lá dentro, morta, acabou-se
a vida nesta casa. Foi por isso que ninguém ordenhou a vaca.
Robert ficou a olhar para ele, horrorizado, até que exclamou com voz
sufocada:
– Oh, agora já percebo os camponeses que ontem não nos quiseram
deixar entrar na aldeia. Meu Deus, agora está tudo esclarecido! É a peste!
Pela saúde da minha alma, Goldmund, é a peste! E tu estiveste tanto tempo
lá dentro, se calhar até tocaste nos mortos! Vai-te, não te aproximes de mim,
de certeza que estás envenenado! Sinto muito, Goldmund, mas tenho de
desandar daqui, não posso ficar contigo.
Já se virara para fugir quando foi agarrado pelo hábito de peregrino.
Goldmund olhava-o com severidade e silenciosa censura; de nada lhe valia
debater-se e estrebuchar, Goldmund continuava a segurá-lo com mão férrea.
– Ouve lá, meu menino – disse num tom de voz meio amável, meio
sarcástico –, és mais esperto do que eu pensava e é bem possível que tenhas
razão. De qualquer maneira, iremos sabê-lo já na próxima quintarola ou
aldeia. Provavelmente, a peste chegou a esta região. Logo veremos se nos
conseguimos safar sãos e salvos. Mas deixar-te ir, meu pequeno Robert,
isso não posso. Vê lá tu, eu sou uma alma caridosa, tenho um coração
demasiado brando, e só de pensar que te possas ter contagiado lá dentro e
eu deixava-te fugir para depois ires morrer no próximo descampado,
sozinho e abandonado, sem ninguém que te pudesse fechar os olhos e cavar
uma sepultura e lançar um punhado de terra para cima… não, meu caro, só
de pensar nisso sinto vómitos. Portanto, escuta bem e vê lá se metes na
cabeça o que te digo, porque não o vou repetir: ambos corremos o mesmo
risco, tanto podes ser tu apanhado como eu. Por isso ficamos juntos e, ou
morremos os dois, ou safamo-nos desta maldita peste. Se adoeceres e
morreres, garanto-te que serás por mim enterrado. E se me calhar a mim ter
de morrer, então faz o que bem entenderes, enterra-me ou põe-te a andar,
para mim tanto faz. Mas antes, caríssimo, não dás à sola, nota bem isso!
Vamos precisar um do outro. E agora cala o bico, não quero saber de mais
nada e procura ali no estábulo um balde para que possamos, finalmente,
ordenhar a vaca.
Assim fizeram e, a partir daquele momento, Goldmund mandava e
Robert obedecia, e ambos se deram bem com isso. Robert não fez mais
nenhuma tentativa para fugir e limitou-se a dizer num tom conciliador:
– Durante um momento tive medo de ti. Não gostei nada da tua cara
quando voltaste da casa dos mortos. Pensei que tinhas apanhado a peste.
Mas, mesmo que não seja a peste, a tua cara está diferente. Foi assim tão
mau aquilo que viste lá dentro?
– Não foi mau – disse Goldmund, hesitante. – Não vi lá dentro nada que
não nos vá acontecer também a nós, mesmo que não apanhemos a peste.
À medida que avançavam, iam encontrando por toda a parte sinais da
morte negra que assolava o país. Havia aldeias que não deixavam entrar
nenhum estranho, enquanto noutras podiam andar por todas as vielas sem
que ninguém os incomodasse. Muitas quintas estavam abandonadas,
inúmeros cadáveres apodreciam a céu aberto, nos campos ou dentro das
habitações. Nos currais, as vacas mugiam sem ninguém que as ordenhasse
ou lhes trouxesse o feno, havia gado tresmalhado pelas searas. Eles
ordenharam e deram de comer a inúmeras vacas e cabras, abateram e
assaram à beira da floresta mais que um cabrito ou leitão e beberam vinho e
cidra tirados de adegas abandonadas. Tinham uma boa vida, reinava a
abundância, mas nada daquilo lhes sabia verdadeiramente bem. Robert
vivia em constante terror por causa da epidemia, sentia-se mal quando via
cadáveres e muitas vezes ia-se abaixo e ficava completamente transtornado
com o medo; não conseguia deixar de pensar que se tinha contagiado e
expunha a cabeça e as mãos demoradamente ao fumo das fogueiras, algo
que era tido como antídoto; mesmo quando dormia apalpava-se por todo o
corpo, sempre à espera de sentir bolhas nas pernas, nos braços e nas axilas.
Goldmund censurava-o muitas vezes, outras troçava dele. Não partilhava
nem os seus medos nem a sua aversão; caminhava tenso e sombrio pelo
reino da morte, terrivelmente atraído pela visão da grande mortandade, a
alma saturada do grande outono, o coração oprimido pelas trovas da foice
ceifadora. Por vezes surgia-lhe a imagem da grande mãe, um rosto
gigantesco e pálido com olhos de medusa e um sorriso amargo, carregado
de sofrimento e morte.
Até que chegaram a uma pequena cidade fortificada; do portão partia um
adarve à altura das casas que cingia toda a muralha da cidade, mas não se
viam sentinelas lá em cima nem guardas que controlassem o portão aberto.
Robert recusou-se a pôr os pés naquela cidade e suplicou ao companheiro
que não entrasse. Entretanto, ouviram o dobrar de um sino e viram sair pelo
portão um padre empunhando um crucifixo, seguido por três carroças, duas
puxadas por cavalos e a terceira por uma junta de bois, e todas as três
estavam a abarrotar de cadáveres. Meia dúzia de servos, trajando umas
estranhas capas, os rostos escondidos nos capuzes, acompanhavam-nos,
picando as bestas.
Robert fugiu, lívido. Goldmund seguiu os carros mortuários a curta
distância; percorreram umas centenas de metros até chegarem a um sítio
que não era o cemitério, mas onde tinha sido cavada em plena charneca
erma uma vala com não mais que três pazadas de fundura, mas vasta como
um salão. Goldmund ficou a ver os servos encapuçados puxarem e
arrastarem para a cova, com a ajuda de varas e arpões, os cadáveres, que se
foram amontoando na grande vala. Viu o padre erguer o crucifixo, enquanto
murmurava alguma prece, antes de se retirar, e ele ali se manteve, tendo os
servos ateado grandes fogueiras à volta da vala, para de seguida
regressarem em silêncio à cidade, sem que alguém se dignasse a tapar a
vala. Goldmund aproximou-se e viu que lá em baixo se encontravam uns
cinquenta ou sessenta corpos amontoados uns por cima dos outros, muitos
deles nus. Aqui e além erguia-se, hirto e acusatório, um braço ou uma
perna, ou esvoaçava ao vento uma camisa.
Quando voltou, Robert implorou-lhe, quase de joelhos, que
prosseguissem a sua caminhada o mais depressa possível. E tinha motivos
para implorar, pois via no olhar ausente de Goldmund aquele seu já tão
conhecido ensimesmamento e a rigidez com que se manifestava o seu
fascínio pelo tenebroso, a sua mórbida curiosidade. Mas não conseguiu
deter o amigo. Goldmund entrou sozinho na cidade.
Atravessou o portão abandonado e, ao ouvir o ressoar dos seus próprios
passos no empedrado, vieram-lhe à memória as muitas cidadezinhas e as
portas por onde passara ao longo da sua vida errante; lembrou-se então de
como a algazarra das crianças e os jogos dos miúdos e as discussões das
mulheres e o sonoro martelar do ferro na bigorna do ferrador e o ranger dos
carros e muitos outros sons o tinham recebido – uns eram suaves e outros
dissonantes, mas sempre aquela caótica teia sonora lhe anunciara a
diversidade do labor humano, das humanas alegrias, ocupações e rituais.
Ali, porém, no vácuo daquele portão e naquelas vielas vazias, nada soava,
nada ria, nada gritava, tudo parecia petrificado num silêncio mortal, em que
o contínuo murmúrio da água a correr algures numa fonte soava demasiado
alto e quase estrepitoso. Por detrás de uma janela aberta podia ver-se um
padeiro no meio dos seus pães e carcaças; Goldmund apontou para uma das
carcaças e o padeiro entregou-lha cautelosamente, em cima de uma pá de
longo cabo. Depois esperou que Goldmund lhe depositasse o dinheiro em
cima da pá, mas quando viu o estranho trincar o pão e seguir em frente, sem
pagar, fechou o postigo com ar de poucos amigos, mas sem fazer alarido.
Diante das janelas de uma casa bonita via-se uma fieira de vasos de barro
em que outrora tinham florido plantas; agora, as suas folhas murchas
pendiam dos recipientes vazios. De uma outra casa vinha o soluçar e o
choro de crianças. Mas, na viela seguinte, Goldmund viu, num andar de
cima, por detrás de uma janela, uma linda rapariga a pentear-se; parou e
ficou a olhar para ela, até que ela se apercebeu do seu olhar e se pôs
também a olhar para ele, ruborizada; ele sorriu-lhe amigavelmente e no seu
rosto despontou também, hesitante e tímido, um sorriso.
– Demora muito, o penteado? – perguntou.
Ela debruçou-se sobre o parapeito da janela, sorrindo abertamente.
– Ainda não adoeceste? – quis ele saber, e ela abanou a cabeça. – Então
vem comigo para fora desta cidade de mortos. Vamos para a floresta gozar
uma bela vida.
Ela fitou-o, interrogando-o com o olhar.
– Não demores muito tempo a decidir. Estou a falar a sério –
exclamou Goldmund. – Estás com os teus pais ou a servir em casa de
estranhos? Em casa de estranhos? Então anda daí, minha linda. Deixa os
velhos morrerem, nós somos jovens e sãos, queremos é gozar a vida
enquanto ela dura. Olha que estou a falar a sério, moreninha.
Ela fitou-o, meio desconfiada, hesitante, surpreendida. Ele recomeçou a
andar, devagar, deambulou por uma ruela deserta, por outra ainda, e
regressou depois, sem se apressar. Lá estava ela, debruçada à janela,
visivelmente contente por o ver surgir. Fez-lhe um sinal e ele abrandou o
passo, pouco depois ela apareceu, seguiu-o e alcançou-o ainda antes de
chegarem à porta da cidade. Trazia uma pequena trouxa na mão e um lenço
vermelho na cabeça.
– Como te chamas? – quis saber Goldmund.
– Lene. Vou contigo. Aqui na cidade é horrível. Está toda a gente a
morrer. Vamos embora daqui. Vamos embora!
Robert estava sentado perto da porta da cidade, visivelmente
maldisposto. Quando viu Goldmund vir, levantou-se de um salto e, quando
se apercebeu da rapariga, abriu muito os olhos. Desta vez não desistiu logo,
começou a lamentar-se e fez cenas. Essa de aparecer com uma pessoa vinda
daquele maldito antro pestilento e ainda por cima esperar que ele, Robert,
admitisse a sua companhia, isso era mais do que ser doido, era tentar a
Deus, e ele recusava-se terminantemente a acompanhá-los, já não podia, a
sua paciência esgotara-se.
Goldmund deixou-o queixar-se e praguejar, até ele acalmar um pouco.
– Chega – disse então –, já nos moeste suficientemente o juízo. Agora
vens connosco e vais estar feliz e contente por termos uma companhia tão
bonita. Ela chama-se Lene e vai ficar comigo. Mas também quero dar-te
uma alegria, Robert, ouve só: vamos viver durante algum tempo em paz e
saúde e tentar evitar a pestilência. Procuramos um sítio bonito com uma
cabana vazia, ou construímos nós próprios uma. Eu e a Lene seremos os
donos da casa e tu serás o nosso amigo e ficas a viver connosco. A partir de
agora vamos gozar um pouco a vida. Concordas?
Oh, sim, Robert não podia concordar mais. Desde que não o obrigassem
a dar a mão à Lene ou a tocar-lhe na roupa…
– Não – assegurou Goldmund –, ninguém te exige isso. Pelo contrário,
até estás expressamente proibido de lhe tocar, nem que seja com um dedo.
Esquece essas ideias!
Prosseguiram os três o caminho, primeiro em silêncio, até que a rapariga
começou, pouco a pouco, a falar, contando-lhes como estava contente por
poder ver de novo o céu e as árvores e os prados. Tinha sido tão horrível lá
dentro, na cidade assolada pela peste, nem conseguia explicar. E começou
então a narrar o que por lá vira, tentando libertar-se de todas aquelas cenas
insuportavelmente tristes e pavorosas que tivera de presenciar. Falou-lhes
de histórias medonhas, a cidadezinha devia ser um inferno. Dos dois
médicos que lá viviam, um tinha morrido e o outro só atendia os ricos; em
muitas casas, os mortos apodreciam porque não havia quem os enterrasse, e
noutras os cangalheiros tinham roubado e estuprado e fornicado e já tinha
acontecido muitas vezes arrancarem das camas, à mistura com os
cadáveres, doentes ainda vivos e atirá-los para cima das carroças e depois
para a vala. Tinha muito para contar, e tudo terrível. Ninguém a
interrompeu. Robert escutou-a com um misto de pavor e sôfrego fascínio,
enquanto Goldmund se manteve silencioso e indiferente, preferindo deixá-
la despejar toda aquela carga medonha sem fazer comentários. De resto, que
comentários poderia ter feito? Por fim, Lene cansou-se e a torrente de
palavras estancou. Goldmund abrandou então o passo e começou a entoar
baixinho uma canção com muitas estrofes, e a cada estrofe a sua voz ia
ficando mais sonora. Lene começou a sorrir e Robert escutou-o encantado e
com uma profunda admiração. Até então nunca o tinha ouvido cantar, mas
ele tudo parecia dominar, até cantar sabia, era espantoso, aquele Goldmund!
Cantava, e com uma voz clara e afinada, mas num tom contido. À segunda
canção, Lene começou a acompanhá-lo, trauteando baixinho as estrofes, e
não tardou a elevar a voz. Anoitecia; ao longe, para lá da charneca, viam-se
bosques negros e, por detrás deles, recortavam-se montanhas baixas e
azuladas, que pareciam iluminadas por dentro com aquela tonalidade
anilada cada vez mais intensa. O canto ressoava, ora alegre, ora grave,
acompanhando o ritmo das passadas.
– Estás hoje tão divertido! – comentou Robert.
– Sim, estou divertido, claro que estou divertido, como é que não havia
de estar se arranjei um amorzinho todo jeitoso. Ai, Lene, ainda bem que os
cangalheiros te deixaram para mim. Amanhã encontramos um larzinho só
para nós, aí vamos desfrutar e viver felizes e satisfeitos por termos ainda a
carninha agarrada aos ossos. Diz-me lá uma coisa, Lene: já viste no chão da
floresta, no outono, aqueles cogumelos grossos e comestíveis que as lesmas
adoram?
– Vi, sim – disse ela rindo –, muitas vezes até.
– Castanhos, mesmo da cor do teu cabelo, Lene. E também cheiram tão
bem. Vamos a outra cantiga? Ou já estás com fome? Ainda tenho aqui uma
coisinha boa na mochila.
No dia seguinte encontraram o que procuravam. Num pequeno bosque
de bétulas viram uma cabana feita com troncos de árvores, talvez por
lenhadores ou caçadores. Estava vazia e não lhes foi difícil arrombar a
porta. Até Robert concordou que era um bom refúgio num sítio salubre. De
caminho, tinham encontrado cabras tresmalhadas e conseguiram apanhar
uma delas.
– Bem, Robert – disse Goldmund –, se não és marceneiro, pelo menos
em tempos foste carpinteiro. Queremos viver juntos aqui, por isso vais ter
de construir uma parede divisória no nosso palácio, para que possamos ter
dois quartos, um para mim e para a Lene e outro para ti e para a cabra. Para
comer já não há grande coisa, por hoje vamos ter de nos contentar com o
leite da cabra, por muito ou pouco que seja. Tu tratas então do tabique, que
nós procuramos algo que nos sirva de cama para todos. Amanhã logo
procuro alimento.
Puseram logo mãos à obra. Goldmund e Lene trouxeram do bosque
ervas, fetos e musgo para as camas e Robert amolou a faca numa pedra,
para poder cortar ramos para o tabique. Não conseguiu, no entanto, acabá-lo
nesse dia, pelo que teve de ir dormir ao relento. Goldmund encontrou em
Lene uma doce companheira, tímida e inexperiente, mas cheia de doçura.
Abraçou-a delicadamente; já ela tinha adormecido há muito, exausta e
saciada, com a cabeça apoiada no seu peito, e ainda ele permanecia
acordado, sentindo bater o seu coração. Aspirou o cheiro dos cabelos
castanhos e aconchegou-se mais ao seu corpo, sem conseguir deixar de
pensar na grande vala pouco profunda para onde aqueles diabos
encapuçados tinham atirado todas aquelas carradas de cadáveres. Era bela a
vida, bela e fugaz era a felicidade, bela e, no instante seguinte, já fanada a
juventude.
O tabique acabou por ficar muito bonito, no final todos participaram no
seu acabamento. Robert quis mostrar o que sabia e não se cansou de falar
no que poderia fazer se tivesse uma bancada de carpinteiro, e ferramenta,
esquadro e pregos. Mas como só dispunha da faca e das próprias mãos,
contentou--se com cortar uma dúzia de pequenos troncos de bétula e de
montar com eles um tapume firme e bem implantado no chão da cabana. De
acordo com as suas indicações, começaram depois a preencher os espaços
intermédios com giestas entrançadas. Isso demorou algum tempo, mas ficou
um trabalho asseado e todos participaram alegremente nele. Entretanto,
Lene teve de ausentar-se para ir colher frutos silvestres e ver como estava a
cabra e Goldmund encarregou-se de explorar a região, saindo várias vezes
em busca de alimento, sem nunca se demorar demasiado. De vez em
quando conseguia mesmo trazer qualquer coisa. Não havia ninguém nas
redondezas, o que muito agradou a Robert; assim, sempre estavam livres de
contágio e das hostilidades dos vizinhos; a desvantagem era que muito
pouco se encontrava para comer. Havia nas proximidades uma cabana de
camponeses abandonada, desta vez sem cadáveres lá dentro, e Goldmund
chegou mesmo a propor mudarem-se para lá, mas Robert recusou-se,
horrorizado, e não gostou nada que Goldmund entrasse na casa abandonada;
cada peça que Goldmund trouxe de lá teve de ser defumada e lavada antes
de Robert lhe tocar. Não foi grande coisa o que Goldmund lá encontrou:
dois escabelos, uma vasilha para o leite, alguns talheres de barro, um
machado e duas galinhas que descobriu um dia à solta no campo e
conseguiu apanhar. Lene estava apaixonada e feliz e todos eles trabalhavam
com gosto para melhorar e alindar o seu pequeno lar a cada dia que passava.
Faltava-lhes o pão, mas, em compensação, arranjaram mais uma cabra e
descobriram um campo com beterraba. Os dias foram passando, o tabique
encanastrado ficou pronto, as camas foram melhoradas e uma lareira
construída. O ribeiro não ficava longe, não raras vezes deram consigo a
cantar enquanto trabalhavam.
Um dia, quando estavam a beber leite juntos e depois de louvar aquela
vida doméstica, Lene disse subitamente, com um ar sonhador:
– E como é que vai ser quando o inverno chegar?
Não lhe responderam. Robert riu-se, Goldmund ficou a olhar com um ar
estranho, o olhar perdido na distância. Lentamente, Lene começou então a
perceber que ninguém ali pensava no inverno, que não previam a sério ficar
tanto tempo no mesmo sítio, que o lar não era, na verdade, um lar, e que ela
fora viver com vagabundos. O desânimo fez com que deixasse pender a
cabeça.
Goldmund disse-lhe então, meio a brincar, meio para a animar, como se
estivesse a falar com uma criança:
– Tu és filha de camponeses, Lene, essa gente sabe precaver-se. Não
tenhas medo, hás de conseguir voltar para casa quando a peste acabar, ela
não há de durar eternamente. Nessa altura voltas para junto dos teus pais ou
para quem lá tiveres, ou vais de novo servir para a cidade e ganharás o teu
pão. Mas, por enquanto, ainda estamos no verão. As pessoas estão a morrer
por todo o lado, mas nós aqui ficamos bem e de boa saúde. Por isso,
deixemo-nos ficar por cá enquanto isto nos agradar.
– E depois? – exclamou Lene com veemência. – Depois acaba tudo? E tu
vais-te embora? E eu?
Goldmund agarrou-lhe a trança e puxou-a delicadamente.
– Minha tontinha – disse –, já te esqueceste dos cangalheiros, e das casas
vazias, e da grande vala que abriram mesmo em frente à porta da cidade,
com as fogueiras sempre acesas? Devias sentir-te feliz por não estares lá
estendida naquele buraco, com a chuva a cair-te em cima. É nisso que deves
pensar: que conseguiste escapar, que a vida ainda te corre pelas veias e
que ainda podes rir e cantar.
Lene não se deu por satisfeita.
– Mas eu não quero ir-me outra vez embora – queixou-
-se – e também não quero deixar-te partir, não quero. Não se pode ser feliz
sabendo que tudo em breve passa e vai acabar!
Goldmund respondeu-lhe novamente, num tom afetuoso, mas já com
uma vaga ameaça na voz:
– Isso, minha querida, já foi o quebra-cabeças de muitos sábios e santos.
Não há felicidade que sempre dure. Mas se aquilo que agora temos já não te
basta nem satisfaz, então deito já fogo à cabana neste mesmo instante e
cada um vai à sua vida. Acaba com isso, Lene, já falámos demasiado.
E por ali ficaram; ela submetera-se, mas uma sombra turvara a sua
alegria.
XIV
XVI