Narciso e Goldmund Hermann Hesse

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A tradução desta obra teve o apoio

de um subsídio do Goethe-Institut fundado pelo


Ministério Alemão dos Negócios Estrangeiros
Ficha Técnica
Título original: Narziß und Goldmund
© Herman Hesse, 1957
Editora: Marta Ramires
Tradução: João Bouza da Costa
Revisão: Rui Augusto
Capa: Neusa Dias
1.ª edição: abril de 2016
ISBN: 9789722059695

Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor


Publicações Dom Quixote
Uma editora do Grupo LeYa
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
www.dquixote.pt
www.leya.com

Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.


ÍNDICE

Capa
Ficha Técnica
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
I

Em frente ao arco românico sustentado por pequenas colunas geminadas


da entrada do convento de Mariabronn, mesmo junto ao caminho,
encontrava-se um castanheiro, um castanheiro-bravo de tronco imponente,
solitário filho do Sul, para ali trazido outrora por um peregrino de Roma; a
sua copa frondosa pendia, delicada, sobre a estrada, respirando amplamente
ao vento; ia adiantada a primavera e tudo à sua volta verdejava, numa altura
em que até mesmo as nogueiras do convento ostentavam já a sua jovem
folhagem avermelhada, ainda as folhas lhe não tinham despontado. Mais
tarde, no tempo das noites mais curtas, brotavam-lhe dos tufos de folhas os
pálidos raios branco-esverdeados das suas estranhas flores numa quase
ostensiva advertência, tão forte e acre era o seu aroma, para depois, em
outubro, já a fruta colhida e a vinha vindimada, deixar cair da copa
amarelecida e fustigada pelos ventos outonais os ouriços dos seus frutos,
que nem todos os anos amadureciam. Disputados pela miudagem do
convento, eram assados na lareira pelo vice-prior Gregor, que vinha das
terras romandas. Delicada e estranha, a bela árvore deixava a sua coroa
agitar-se ao vento sobre a entrada do convento, qual hóspede sensível e
levemente friorento, oriundo de uma outra latitude, próximo em secreta
familiaridade das delgadas colunas geminadas de arenito do portal e dos
ornamentos em pedra dos arcos das janelas, cornijas e pilares, amado por
romandos e latinos, e, como exótico forasteiro, encarado com desconfiança
pelos nativos.
Por baixo da árvore estrangeira tinham já passado várias gerações de
discípulos do convento; com a lousa para escrever entalada debaixo do
braço, a conversar, a rir, a brincar ou a discutir, descalços ou calçados,
conforme a época do ano, com uma flor na boca, uma noz entre os dentes
ou uma bola de neve na mão. Chegavam sempre mais, a cada par de anos
eram outros os rostos, na maioria semelhantes entre si: loiros e de cabelo
encaracolado. Alguns ficavam por lá, tornavam-se noviços, monges, eram
tonsurados, passavam a usar o burel e o esparto, liam livros, instruíam os
mancebos, envelheciam, morriam. Outros, assim que os anos de
escolaridade terminavam, eram levados para casa pelos pais, regressavam
aos castelos senhoriais, às casas de comerciantes e artífices, corriam mundo
e praticavam as suas artes e ofícios, voltavam talvez uma vez para uma
visita ao convento, já homens feitos, traziam aos padres os seus filhos para
estudar, erguiam, sorridentes, o olhar para contemplar pensativamente, por
um breve momento, o castanheiro, e partiam novamente. Nas celas e nas
salas do convento, entre os pesados arcos redondos das janelas e as firmes
colunas geminadas de pedra vermelha, vivia-se, ensinava-se, estudava-se,
administrava-se, governava-se; eram ali praticadas e legadas de geração
para geração inúmeras artes e ciências, devotas e seculares, claras e
obscuras. Livros eram escritos e comentados, sistemas concebidos, escritos
dos antigos compilados e iluminuras pintadas; ali se cultivava e satirizava a
fé popular. Erudição e devoção, ingenuidade e astúcia, a sabedoria dos
evangelhos e a sabedoria dos gregos, magia branca e magia negra, tudo isso
ali prosperava, para tudo havia espaço; havia espaço para o recolhimento e
para a penitência, assim como para a convivialidade e o bem viver;
dependia da pessoa do respetivo abade e da respetiva corrente dominante da
época que uma delas se afirmasse e impusesse. Alturas houve em que o
convento se tornou famoso e visitado por causa dos seus exorcistas e peritos
em demónios, outras devido à excelência da sua música, à santidade de um
padre que curava e fazia milagres ou à fama das suas sopas de lúcio e
empadas de fígado de veado, cada qual a seu tempo. E sempre se podia
encontrar, entre o bando de monges e discípulos, de piedosos e indiferentes,
de ascetas e lascivos, sempre se podia encontrar entre os muitos que por lá
apareciam, ali viviam e morriam, este ou aquele indivíduo especial, alguém
a quem todos amavam ou temiam, alguém que aparentava ser um eleito,
sobre quem continuava a falar-se durante muito tempo, já os seus
contemporâneos haviam sido esquecidos.
Também agora existiam no convento de Mariabronn dois indivíduos
especiais, um velho e um novo. Entre a multidão de irmãos que enchia os
dormitórios, igrejas e salas de estudo, dois havia por todos conhecidos e por
todos respeitados. Um era o velho abade Daniel, e o outro o jovem noviço
Narciso, que
só há bem pouco tempo tinha tomado o noviciado, mas
que devido aos seus especiais dons e contra todas as tradições era já
utilizado como professor, sobretudo no grego. Ambos, o abade e o noviço,
eram reconhecidos e aceites naquela casa, ambos eram observados e
admirados, invejados e, por vezes, também secretamente caluniados.
Amado pela maioria, o abade não tinha inimigos, por ser só bondade,
simplicidade e humildade. Apenas os professores do convento misturavam
no seu amor uma ponta de menosprezo, pois o abade podia ser um santo,
mas um erudito não era certamente. Possuía toda a simplicidade
característica da sabedoria, mas o seu latim era modesto e ele desconhecia o
grego por completo.
Sobretudo aqueles poucos que por vezes zombavam da singeleza do
abade sentiam-se fascinados por Narciso, a criança-
-prodígio, o belo adolescente com o seu grego elegante, as suas impecáveis
maneiras cavalheirescas, o olhar sereno e penetrante de pensador e os lábios
estreitos, belos e finamente delineados. Os mestres admiravam-lhe a
perfeição do grego e quase todos amavam os seus modos nobres e
delicados. Muitos se enamoraram dele, alguns levavam-lhe a mal o facto de
ser tão silencioso e controlado e ter tão corteses maneiras.
Abade e noviço, cada um suportava a seu modo o destino dos eleitos,
impondo-se a seu modo, sofrendo a seu modo. Sentiam-se mais próximos e
mais atraídos um pelo outro do que pelos restantes residentes no convento;
contudo, eram incapazes de se encontrar e de se tornar verdadeiramente
íntimos. O abade tratava o jovem com a máxima atenção, com um cuidado
imenso, preocupava-se com ele como com um irmão precioso, raro, talvez
precocemente amadurecido, eventualmente ameaçado. O jovem aceitava
cada ordem, cada conselho, cada louvor do abade com uma atitude
impecável, sem nunca objetar, sem nunca se revoltar, e se o juízo do abade
era correto e o seu único defeito consistia na soberba, então sabia ocultá-la
maravilhosamente. Nada havia a apontar-lhe, ele era perfeito e a todos
superior. Contudo, poucos se tornavam realmente seus amigos, excetuando
os professores, pois a sua distinção isolava-o numa atmosfera de frieza cres-
cente.
– Narciso – disse o abade certa vez, depois de o ter ouvido em confissão
–, sinto-me culpado por ser tão severo para contigo. Muitas vezes me
pareceste arrogante, e talvez tenha sido injusto. Estás muito só, jovem
irmão, és um solitário, tens quem te admire, mas não tens amigos. Bem
queria eu, por vezes, encontrar ensejo de te repreender, e não encontro.
Gostaria que fosses de vez em quando atrevido e mal-educado, como
facilmente sucede com os jovens da tua idade, mas tal nunca acontece. Por
vezes fico um pouco preocupado contigo, Narciso.
O jovem fitou o ancião com os seus olhos escuros.
– Bem gostaria eu, reverendo padre, de não vos dar motivo para
preocupações. Posso muito bem ser, de facto, arrogante, reverendo padre.
Peço-vos que me castigueis por isso. Eu próprio sinto, por vezes,
necessidade de me castigar. Enviai-me para um eremitério, reverendo, ou
obrigai-me a fazer serviços mais duros.
– És demasiado jovem para isso, caro irmão – disse o abade. – Além de
que, meu filho, é grande a tua aptidão para as línguas e para o pensamento.
Seria um desperdício dos dons que Deus te deu obrigar-te a fazer esses
serviços duros. Provavelmente, irás ser um mestre e um erudito. Não é esse,
também, o teu desejo?
– Perdoai-me, reverendo, pois não conheço assim tão bem os meus
desejos. Sempre hei de gostar das ciências, isso parece--me inquestionável.
Mas não creio que elas venham a ser o meu único domínio. Nem sempre
serão os desejos que determinam o destino e a missão de uma pessoa, mas
algo diferente, já predestinado.
O abade escutou-o, muito sério, mas foi com um sorriso que lhe disse:
– Pelo que conheço das pessoas, todos nós tendemos um pouco,
sobretudo na juventude, a confundir a Providência com os nossos próprios
desejos. Mas fala-me lá então da tua vocação, já que pensas conhecê-la.
Para que julgas estar destinado?
Narciso semicerrou os olhos escuros, que desapareceram sob as longas
pestanas negras. Manteve-se calado.
– Fala, meu filho – incitou-o o abade, depois de um prolongado silêncio.
Em voz baixa e com os olhos postos no chão, Narciso começou então a
falar.
– Creio saber, reverendo padre, que estou destinado sobretudo à vida
monacal. Penso que irei ser monge e sacerdote, talvez vice-prior ou abade.
Não o creio porque o deseje. Não é a cargos que aspiro; julgo apenas que
eles me serão impostos.
Ambos se mantiveram calados por muito tempo.
– Porque tens essa crença? – quis saber o ancião, hesitante. – Que outra
faculdade haverá em ti, para além da erudição, que se manifesta nessa
convicção?
– É a faculdade – tentou explicar Narciso lentamente – de intuir o modo
de ser e a vocação das pessoas, não só as minhas próprias, mas também as
dos outros. Essa faculdade obriga-me a
servir os demais, dominando-os. Se não tivesse nascido para
a vida monacal, teria sido certamente juiz ou estadista.
– Pode ser que sim – concordou o abade com um aceno de cabeça. – Já
comprovaste a tua capacidade de reconhecer as pessoas e os seus destinos
em exemplos concretos?
– Sim, já comprovei.
– Estás disposto a dar-me um exemplo?
– Estou disposto.
– Muito bem. Uma vez que não quero penetrar nos se-
gredos dos nossos irmãos sem o seu consentimento, talvez me possas dizer
o que pensas sobre mim, o teu abade Daniel.
Narciso ergueu as pálpebras e olhou o abade diretamente nos olhos.
– É essa a vossa ordem, reverendo padre?
– E essa a minha ordem.
– Custa-me falar, padre.
– Também a mim me custa convencer-te a falar, e não deixo de o fazer.
Fala então!
Narciso baixou a cabeça e disse num sussurro.
– É pouco o que sei de vós, reverendo padre. Sei que sois um servo de
Deus, que preferiria guardar cabras ou tocar o sininho de um eremitério e
ouvir as confissões dos camponeses do que governar um grande convento.
Sei que nutris uma especial devoção pela Santa Mãe de Deus e que é a Ela
que mais rezais. Nas vossas preces rogais-Lhe, por vezes, que o grego e as
outras ciências neste convento cultivadas não representem perturbações e
perigos para as almas dos que vos estão confiados. Por vezes rezais para
que não vos falte a paciência para com o vice-prior Gregor. Rezais também
por um fim suave. E creio que sereis atendido e tereis uma morte suave.
Fez-se silêncio na pequena cela do abade. Finalmente, o ancião falou:
– És um entusiasta e tens visões – disse o ancião num tom afável. – Mas
as visões, mesmo que devotas e luminosas, podem induzir em erro; não
confies demasiado nelas, tal como eu não confio. – Consegues ver, irmão
visionário, o que no meu íntimo penso a este respeito?
– Consigo ver, padre, que são bem amáveis os vossos pensamentos.
Pensais o seguinte: «Este jovem discípulo encontra--se um pouco
ameaçado, tem visões, talvez tenha meditado em demasia. Podia impor-lhe
uma penitência, que mal não lhe fará. Mas a penitência que lhe imponho
assumi-la-ei também eu.» É isto o que neste momento estais pensando.
O abade ergueu-se e com um sorriso fez-lhe sinal que se podia retirar.
– Está bem – disse. – Não leves demasiado a sério as tuas visões, jovem
irmão; Deus exige bem mais de nós do que ter apenas visões. Aceitemos
que lisonjeaste um velho prometendo--lhe uma morte suave. Aceitemos
que, por um momento, esse velho ouviu com agrado uma tal promessa. Mas
agora basta. Rezarás um rosário amanhã, logo após a missa matinal; reza-o
com humildade e fervor, sem te distraíres, e eu farei o mesmo. Vai agora,
Narciso, já falámos o suficiente.
Uma outra vez, o abade Daniel teve de intervir num diferendo entre o
mais jovem dos padres docentes e Narciso, por estes não lograrem chegar a
acordo sobre um ponto do programa de estudos: Narciso insistia com
grande empenho na introdução de determinadas alterações nas aulas,
conseguindo justificá-las com argumentos convincentes; movido por uma
espécie de despeito, o padre Lorenz, porém, não queria aceitá--las, e a cada
nova reunião seguiam-se dias de agastado silêncio e amuo, até que Narciso,
ciente de que tinha razão, voltava ao assunto. Por fim, o padre Lorenz disse,
já algo ofendido:
– Bem, Narciso, vamos pôr cobro à disputa. Tu bem sabes que a decisão
me caberia a mim, e não a ti, pois não és meu colega, mas apenas meu
assistente, e terias de te submeter. Contudo, uma vez que o assunto parece
ser tão importante para ti, e uma vez que te sou superior no cargo, mas não
no saber nem no talento, não quero ser eu próprio a decidir; prefiro que
expúnhamos a situação ao nosso padre abade e o
deixemos tomar a decisão.
Assim fizeram, e o abade Daniel escutou, paciente e amável, os
argumentos dos dois professores acerca do ensino da gramática. Depois de
ambos terem exposto e fundamentado minuciosamente as suas convicções,
o ancião olhou-os alegremente, abanou um pouco a cabeça encanecida, e
disse:
– Queridos irmãos, decerto que nenhum de vós acredita que eu saiba
realmente tanto sobre essas matérias como vocês. É louvável que Narciso
leve a escola tão a sério e que se esforce por melhorar o plano de estudos.
Mas se o seu superior é de outra opinião, o que ele tem de fazer é calar-se e
obedecer; todos os melhoramentos no plano de ensino de nada valeriam se,
por causa deles, a ordem e a obediência fossem postas em causa nesta casa.
Censuro Narciso por não ter sabido transigir. E faço votos por que a ambos,
jovens eruditos, nunca vos faltem superiores mais burros do que vós; nada é
melhor contra a soberba.
Despediu-os com aquele gracejo benevolente; mas de modo nenhum se
esqueceu, durante os dias que se seguiram, de observar se entre os dois se
restabelecera a concórdia.
Sucedeu então que um novo rosto surgiu naquele convento, que já tantos
rostos tinha visto surgir e partir, e que esse novo rosto não pertencesse ao
rol dos que por ali passavam despercebidos e prontamente eram esquecidos.
Tratava-se de um rapazinho que há já algum tempo tinha sido inscrito pelo
pai e que com ele chegou num dia primaveril, para vir estudar na escola do
convento. Ambos, pai e filho, prenderam os cavalos junto ao castanheiro, e
o porteiro acercou-se dele, vindo do portal.
A criança ficou a olhar a árvore, ainda despida pelo inverno.
– Que árvore – disse –, como nunca vi. Que estranha e bela! Gostaria de
saber como se chama.
O pai, um senhor já de alguma idade, com um semblante preocupado e
algo crispado, não ligou às palavras do filho. Mas o porteiro, que logo
simpatizou com o rapazinho, deu-lhe a informação. O jovem agradeceu
amavelmente, estendeu-lhe a mão e disse:
– Chamo-me Goldmund e venho estudar aqui.
O homem sorriu cordialmente e conduziu os recém-chegados através do
portal, convidando-os a subir a larga escadaria de pedra. Goldmund entrou
sem hesitações no convento, com a sensação de já ter encontrado naquele
local dois seres dos quais se podia tornar amigo: a árvore e o porteiro.
Os recém-chegados foram primeiramente recebidos pelo padre reitor da
escola e, ao fim da tarde, também pelo próprio abade. A ambos o pai, um
funcionário do império, apresentou o seu filho Goldmund, e foi convidado a
aceitar a hospitalidade da casa durante algum tempo. No entanto, apenas
usou do direito de hóspede por uma noite, explicando que tinha de regressar
no dia seguinte. Como presente ofereceu ao convento um dos seus dois
cavalos, e a oferta foi aceite. A conversa com os religiosos decorreu num
tom cerimonioso e frio; mas tanto o abade como o padre observaram com
agrado Goldmund, que se manteve num silêncio respeitoso. Simpatizaram
imediatamente com aquela criança bela e delicada. Sem pesar, deixaram
partir o pai na manhã seguinte; o filho, esse, receberam-no com satisfação.
Goldmund foi apresentado aos professores e deram-lhe uma cama no
dormitório dos alunos. Foi com respeito e um semblante preocupado que se
despediu do pai. Depois ficou a vê-lo montar e afastar-se até ele
desaparecer sob o arco do estreito portal da cerca exterior do convento, para
lá do celeiro e do moinho. Quando se voltou, uma lágrima soltava-se das
pestanas longas e loiras; mas já o porteiro o tentava animar com uma
afetuosa pancadinha no ombro.
– Então, jovem – disse-lhe para o consolar –, não tens de ficar triste.
Quase todos sentem, ao princípio, algumas saudades do pai, da mãe e dos
irmãos. Mas em breve irás perceber que aqui também se vive, e nada mal,
por sinal.
– Obrigado, irmão porteiro – disse o rapaz. – Não tenho irmãos nem
mãe. Apenas tenho o meu pai.
– Em compensação vais ver que encontras aqui companheiros e
sabedoria e música e novos jogos que ainda não conheces, e mais isto e
aquilo, logo verás. E se precisares de alguém em quem confiar, vem ter
comigo.
Goldmund sorriu-lhe.
– Oh, agradeço-vos muito. E se me quereis dar uma alegria, mostrai-me,
por favor, logo que vos seja possível, onde está o cavalinho que o meu pai
cá deixou. Gostava de o saudar e ver se também ele está bem.
O porteiro levou-o logo consigo e conduziu-o à cavalariça, que se
encontrava perto do celeiro. Ali, na penumbra tépida a cheirar a cavalos, a
estrume e a cevada, encontrou numa das baias o cavalo castanho que o tinha
trazido até ali. Goldmund abraçou então o animal, que o reconhecera e lhe
estendera o pescoço, encostou a face à sua testa larga com uma mancha
branca, acariciou-o carinhosamente e segredou-lhe ao ouvido:
– Olá, Bless, meu bichano, meu valente, estás bem? Ainda gostas de
mim? Deram-te de comer? Ainda te lembras da nossa casa? Bless, meu
querido cavalinho, que bom que tenhas aqui ficado. Quero cá vir muitas
vezes, para ver se estás bem.
Tirou então do forro da manga um pedaço de pão que tinha guardado do
pequeno-almoço, e deu-lho a comer aos bocadinhos. Depois despediu-se e
atravessou, atrás do porteiro, a cerca, larga como a praça de uma grande
cidade e em parte plantada de tílias. Ao chegar à entrada interior, agradeceu
ao porteiro, estendeu-lhe a mão, mas logo se apercebeu de que já não sabia
o caminho para a sala de aulas que lhe fora indicado na véspera; esboçou
um sorriso, enrubesceu e pediu ao porteiro que o guiasse, o que este fez de
bom grado. Finalmente, entrou na sala de aulas, onde uma dúzia de rapazes
de várias idades estava sentada em bancos. Narciso, o assistente do mestre,
voltou-se.
– Sou Goldmund – disse ele –, o novo aluno.
Narciso saudou-o brevemente, sem sorrir, indicou-lhe um lugar no banco
traseiro e prosseguiu com a lição.
Goldmund sentou-se. Ficou admirado por encontrar um professor tão
jovem, poucos anos mais velho, no fundo, do que ele próprio, e sentiu-se
profundamente satisfeito por achar aquele jovem professor tão belo, tão
distinto e tão sério e, ao mesmo tempo, tão cativante e digno de afeição. O
porteiro tinha sido simpático para com ele, o abade recebera-o com toda a
amabilidade, no estábulo estava o Bless, um pedaço da terra natal, e agora,
mesmo ali à sua frente, encontrava-se aquele professor surpreendentemente
jovem, grave como um erudito e fino como um príncipe, com aquela voz
tão bem modulada, clara, objetiva e cativante! Escutava, grato, sem no
entanto entender logo do que se estava tratando. Começou a sentir-se bem.
Tinha vindo para junto de gente boa e amável e estava, também ele,
disposto a afeiçoar-se e a esforçar-se por obter a sua amizade. De manhã, na
cama, depois de acordar, sentira-
-se angustiado, e ainda agora estava cansado da longa viagem. Ao despedir-
se do pai não conseguira evitar algumas lágrimas, mas agora tudo estava
bem, sentia-se satisfeito. Continuava a observar o jovem mestre sem se
cansar, encantado com a sua figura seca e esbelta, o brilho frio do seu olhar,
os lábios de contornos nítidos que com tanta clareza formulavam, e com
aquela sua voz vibrante e infatigável.
Quando, porém, a aula acabou e os alunos se levantaram com alarido,
Goldmund acordou sobressaltado e apercebeu-se, envergonhado, de que há
já algum tempo adormecera. E não foi só ele que deu por isso, pois também
os seus companheiros de banco o tinham notado e transmitiram aos outros a
informação em voz baixa. Assim que o jovem mestre saiu da sala rodearam-
-no, empurrando-o e beliscando-o.
– Já dormiste tudo? – quis saber um deles com um sorriso trocista.
– Lindo aluno! – zombava outro. – Este vai fazer-se uma bela luminária
da igreja. Bate uma sorna logo na primeira
hora!
– Levem o menino para a cama – propôs um outro, e agarraram-no pelos
braços e pelas pernas, para o levarem no meio de grande risada.
Acordado daquela maneira, Goldmund enfureceu-se; desatou a
esbracejar e a pontapear à sua volta, tentando libertar-se, apanhou pancada e
acabaram por deixá-lo cair, com um deles a agarrar-lhe ainda um dos pés.
Desse conseguiu livrar-se com toda a fúria, para se atirar logo ao que estava
mais próximo e envolver-se com ele numa luta feroz. O adversário era um
rapaz espigadote, e todos ficaram a assistir com entusiasmo ao combate
corpo a corpo. A partir do momento em que Goldmund não se submeteu,
conseguindo mesmo aplicar alguns murros certeiros, passou a ter amigos
entre os colegas, antes mesmo de lhes conhecer os nomes. De repente,
porém, todos debandaram precipitadamente e, mal eles tinham
desaparecido, surgiu o padre Martin, o superintendente da escola, que parou
em frente ao rapazito que os outros tinham deixado ficar para trás.
Surpreendido, olhou para o jovem, cujos olhos azuis mostravam algum
embaraço num rosto afogueado e com marcas de contusões.
– Então, o que vem a ser isto? – quis saber o padre. – Tu és o Goldmund,
não és? Fizeram-te mal, aqueles malandros?
– Não, não – disse o rapaz. – Eu cheguei para ele.
– Para quem?
– Não sei. Ainda não conheço ninguém. Um deles lutou comigo.
– Ah, sim? Foi ele que começou?
– Não sei. Não, creio que quem começou fui eu. Eles começaram a gozar
comigo, e eu enfureci-me.
– Olha que estás a começar bem, meu rapaz. Ouve lá o que te digo: da
próxima vez que desatares à pancada aqui, na sala de aulas, vai haver
castigo. E agora põe-te a andar, para ver se chegas ainda a tempo do
almoço!
O padre sorriu ao vê-lo afastar-se visivelmente envergonhado, tentando
pentear com os dedos a cabeleira loira desgrenhada.
Goldmund também achava que a sua primeira ação no convento tinha
sido malcomportada e estúpida; bastante embaraçado, procurou e encontrou
os companheiros no refeitório. Mas os outros receberam-no com respeito e
simpatia. Reconciliou-
-se cavalheirescamente com o seu adversário e, a partir daquele momento,
passou a sentir-se bem aceite naquele círculo.
II

No entanto, muito embora se desse geralmente bem com todos, não foi
assim tão rapidamente que encontrou um verdadeiro amigo; entre os
colegas não havia nenhum do qual se sentisse especialmente próximo ou
por quem nutrisse uma afeição particular. Os outros, por seu lado, ficaram
admirados por encontrar no atrevido pugilista, que tinham tido em conta de
simpático brigão, um colega muito pacífico, que visivelmente se esforçava
por ser reconhecido como aluno exemplar.
Havia no convento duas pessoas por quem Goldmund se sentia atraído,
dois seres que lhe agradavam, que o ocupavam em pensamento, por quem
sentia admiração, afeto e respeito: o abade Daniel e o mestre auxiliar
Narciso. O abade parecia-
-lhe um santo; a sua simplicidade e a bondade, o seu olhar claro e solícito, o
modo humilde como desempenhava as funções de chefia e governação
como se de um serviço ao próximo se tratasse, a bondade e a serenidade dos
seus gestos, tudo isso o atraía fortemente. Bem gostaria ele de tornar-se o
fâmulo daquele santo homem para poder andar sempre perto dele,
obedecendo e servindo, oferecendo-lhe em permanente sacrifício todo o seu
juvenil anseio de devoção e dedicação e assim poder aprender com ele a
prática de uma vida pura, nobre e santa. Porque Goldmund tencionava não
só concluir ali os seus estudos mas também, se possível, permanecer para
sempre no convento e dedicar-se a Deus; era essa a sua vontade, era esse o
desejo e a ordem do pai e assim parecia ter sido também determinado e
exigido por Deus. Ninguém poderia aperceber-se disso, e, no entanto,
pesava sobre aquele adolescente belo e carismático um fardo, um peso
relacionado com a sua proveniência, uma secreta predisposição para a
penitência e o sacrifício. Nem o próprio abade o notara, apesar de o pai de
Goldmund ter feito certas alusões, manifestando com toda a clareza o
desejo de que o seu filho ficasse para sempre ali no convento. Uma
qualquer mácula secreta parecia estar ligada ao nascimento de Goldmund,
algo desde sempre silenciado parecia exigir constante expiação. O pai,
porém, pouco agradara ao abade – às suas palavras e à sua natureza algo
petulante ele opusera uma frieza cerimoniosa, acabando por não dar grande
importância às alusões.
A outra pessoa que tinha despertado o afeto de Goldmund soubera
observar melhor e intuíra mais, mas mantinha-se reservada. Narciso já se
tinha apercebido de que fora ali arribar uma bela avis rara. Solitário na sua
altivez, bem cedo pressentira em Goldmund um congénere, apesar de em
tudo parecer o seu contrário. Narciso era moreno e seco, enquanto
Goldmund se mostrava brilhante e pródigo. Enquanto Narciso era um
pensador e analítico, Goldmund parecia ser um sonhador com uma alma
infantil. Mas, apesar de todos os antagonismos, ligava-os um traço comum:
ambos eram seres distintos, diferenciando-se dos outros por percetíveis
talentos e atributos, e ambos tinham recebido do destino uma especial
premonição.
Narciso interessava-se ardentemente por aquela alma juvenil, cujo
carácter e o destino ele rapidamente reconhecera. Também Goldmund
admirava com todo o fervor aquele seu mestre, sempre belo, superior e
inteligente. Mas Goldmund era tímido e não encontrava outra maneira de
conquistar Narciso senão esforçando-se até à exaustão para se tornar um
discípulo atento e ávido de saber. E não era só a timidez que o mantinha na
reserva. Inibia-o também a sensação de que Narciso representava para si um
perigo. Ele não podia, ao mesmo tempo, ter como ideal e modelo o bom e
humilde abade e Narciso, o erudito inteligente e extraordinariamente
perspicaz. Não obstante, aspirava com todo o ímpeto da sua alma juvenil a
alcançar os dois ideais inconciliáveis. Frequentemente, isso fazia-o sofrer.
Por vezes, durante os primeiros meses que passou na escola, sentia-se tão
confuso e interiormente dilacerado que se viu tentado a fugir ou a procurar
no relacionamento com os seus colegas um escape para a sua aflição e
secreta fúria. Quantas vezes irrompia nele, em geral tão amigável, um furor
de tal modo intempestivo, devido apenas a uma qualquer garotice
insignificante, que só com grande esforço conseguia conter-
-se e voltar costas sem dizer palavra, pálido como um cadáver. Nessas
alturas ia visitar ao estábulo o cavalo Bless. Abraçava-lhe o pescoço,
beijava-o, chorava encostado a ele. E o seu sofrimento foi assim
aumentando pouco a pouco, até se tornar visível. As suas faces escavaram-
se, o brilho do olhar perdeu-se e o riso de que todos tanto gostavam tornou-
se cada vez mais raro.
Nem ele sabia o que se passava consigo próprio. Continuava
sinceramente disposto a ser um bom aluno para poder entrar em breve no
noviciado e tornar-se depois um monge piedoso e sereno; acreditava que
todas as suas forças e os talentos aspiravam àqueles objetivos piedosos e
suaves e desconhecia quaisquer outros impulsos. Sentia, por isso, como era
estranho e triste ter de constatar quanto aquele objetivo simples e belo era
difícil de alcançar. Como o surpreendia e desanimava verificar amiúde
tendências e estados repreensíveis dentro de si: distração e aversão ao
estudo, devaneios e fantasias ou sonolência durante as lições, rebelião e
aversão contra o professor de latim, irritabilidade e colérica impaciência
contra os colegas. Mas o que mais o confundia era o seu amor por Narciso
lhe parecer tão difícil de conciliar com o seu amor pelo abade Daniel.
Simultaneamente, por vezes julgava sentir com a mais íntima convicção que
também Narciso o amava, que de alguma maneira participava nos seus
conflitos e por ele esperava.
Também se ocupavam dele, bem mais do que supunha, os pensamentos
de Narciso. Quanto desejava ter como amigo aquele rapaz belo, brilhante e
gentil; adivinhando nele o seu polo oposto e complementar, queria
aproximá-lo de si, orientá-lo, esclarecê-lo e potenciá-lo, para que pudesse
desenvolver todas as suas faculdades. Mas preferiu conter-se. Fê-lo por
muitos e variados motivos, quase todos conscientes. Tolhia-o e inibia-o,
acima de tudo, o horror que lhe inspiravam aqueles não raros mestres e
monges que se apaixonavam pelos alunos e pelos noviços. Não raras vezes
sentira ele próprio com aversão os olhares lúbricos de homens mais velhos
pousados sobre si, e quantas vezes se vira obrigado a opor um bloqueio
mudo às amabilidades dos seus avanços. Agora podia compreendê-los
melhor – também ele se sentia tentado a enamorar-se do belo Goldmund, a
provocar a sua risada contagiante, a acariciar com mão carinhosa o seu
cabelo loiro e luminoso. Mas nunca o faria, jamais. Além disso, na sua
condição de mestre adjunto assumindo o papel de professor sem contudo ter
esse cargo e a autoridade, estava habituado a manter-se particularmente
atento e cauteloso. Acostumara-se a enfrentar os jovens pouco mais novos
do que ele como se fosse vinte anos mais velho, tal como se acostumara a
proibir-se severamente qualquer preferência por um aluno e a impor a si
mesmo especial equidade e solicitude para com aqueles com quem
antipatizava. O seu serviço era um serviço espiritual, fora a ele que dedicara
a sua vida disciplinada e só secretamente, nos raros momentos em que não
se observava a si próprio, se permitia o prazer do orgulho, da consciência da
própria superioridade e da sua inteligência. Não, por mais sedutora que
fosse a amizade para com Goldmund, representava também um perigo, e
não devia permitir que ela afetasse o âmago da sua vida. O núcleo e o
sentido da sua vida era aquele comprometimento para com o espírito, para
com a palavra, a orientação silenciosa, serena e consciente dos seus alunos
– e não só dos alunos –, que implicava sempre um prescindir dos próprios
interesses em proveito dos elevados objetivos espirituais.
Há mais de um ano que Goldmund estudava no convento de Mariabronn,
centenas de vezes tinha já jogado com os colegas, à sombra das tílias da
cerca e por baixo do belo castanheiro, os inúmeros jogos dos alunos:
corridas, jogos com bola, polícias e ladrões, batalhas com bolas de neve.
Mas tinha finalmente chegado a primavera. Goldmund, porém, sentia-se
cansado e adoentado, doía-lhe frequentemente a cabeça e na escola tinha
dificuldade em manter-se acordado e atento.
Foi então que, certo dia, ao fim da tarde, veio falar com ele Adolf, o
rapaz com quem lutara ainda antes de se conhecerem e com quem começara
a estudar Euclides nesse inverno. Foi na hora depois do jantar, uma hora
livre, em que era permitido jogar nos dormitórios, conversar nos quartos
dos alunos e mesmo passear na cerca exterior.
– Goldmund – disse-lhe, puxando-o para a escada que começaram a
descer. – Quero contar-te uma coisa, uma coisa divertida. Tu és um aluno
exemplar e de certeza que queres chegar a bispo; mas primeiro dá-me a tua
palavra de honra de que serás camarada e não vais denunciar-me aos
professores.
Goldmund não hesitou em dar a sua palavra. Havia a honra do convento
e havia a honra dos alunos, e ele não desconhecia que ambas, por vezes,
entravam em conflito; como em todo o lado, porém, as leis não escritas
eram mais fortes do que as prescritas, e nunca lhe teria passado pela cabeça,
enquanto fosse aluno, furtar-se às leis e aos códigos de honra dos discentes.
Sempre a falar baixo, Adolf levou-o, atravessando o portal, lá para fora,
para debaixo das árvores. Ali os esperavam, como lhe explicou, alguns
camaradas leais e corajosos como ele, que tinham herdado das gerações
anteriores o costume de recordarem a si mesmos, de vez em quando, que
não eram propriamente monges, e que por isso se permitiam sair uma vez
por outra do convento durante a noite, para irem até à aldeia. Era uma
diversão e uma aventura a que um bom camarada se não escusava;
voltariam a meio da noite.
– Mas nessa altura já o portão está fechado – objetou Goldmund.
Naturalmente, claro que o portão estava fechado, era precisamente isso
que dava gozo. Eles conheciam caminhos secretos para entrarem sem que
ninguém desse por isso. E não era a primeira vez.
Goldmund lembrou-se. Já ouvira falar num «ir à aldeia», o que
subentendia certas excursões noturnas dos alunos em busca de todo o tipo
de prazeres e aventuras secretas, algo que era rigorosamente proibido pelo
regulamento do convento, sob pena de severos castigos. Aquilo assustou-o.
«Ir à aldeia» significava pecado, era proibido. Mas também percebia muito
bem que, precisamente por isso, podia fazer parte do código de honra dos
«bons camaradas» correr esse risco e que significava uma certa distinção
ser desafiado para essa aventura.
No fundo, o que lhe apetecia era dizer não e voltar para a cama. Estava
cheio de sono e sentia-se miseravelmente; doera--lhe a cabeça o dia todo.
Mas teve um pouco de vergonha por causa de Adolf. E, quem sabe, talvez
surgisse lá fora, durante a aventura, algo de belo e novo, algo que o fizesse
esquecer as dores de cabeça, o desalento e toda aquela miséria. Era uma
expedição para o mundo, algo que, embora fosse clandestino e proibido e
não propriamente glorioso, talvez pudesse trazer--lhe uma libertação, uma
experiência. Ainda hesitou, enquanto Adolf tentava convencê-lo, mas,
subitamente, soltou uma gargalhada e disse sim.
Sem que ninguém os visse, esgueirou-se então com Adolf por entre as
tílias do vasto pátio já escurecido, cujo portão exterior, por essa altura, se
encontrava fechado. O companheiro levou-o para a azenha do convento,
onde, na penumbra e no meio do ruído das rodas, não era difícil passarem
despercebidos. Saltando por uma janela, numa total escuridão chegaram até
junto de um monte de barrotes de madeira húmidos e escorregadios, de
onde tiraram um para atravessar o ribeiro e passar para o outro lado.
Alcançaram assim a estrada real, que fulgia palidamente antes de
desaparecer na negrura da floresta. Tudo aquilo era excitante e misterioso e
agradou sobremaneira a Goldmund.
À beira da floresta já se encontrava um outro companheiro, Konrad, e,
depois de muito esperarem, apareceu ainda outro, o grandalhão Eberhard.
Puseram-se os quatro a caminho através da floresta; por cima deles
rumorejavam as aves noturnas e umas poucas estrelas cintilavam, claras e
húmidas por entre nuvens quietas. Konrad não parava de tagarelar e de
contar anedotas; os outros acompanhavam-no por vezes com risadas, e, no
entanto, pairava sobre eles uma emoção solene de aventura noturna e os
corações batiam-lhes mais acelerados.
Para lá da floresta, decorrida uma breve hora, chegaram à aldeia. Tudo
parecia dormir já, os telhados baixos resplandeciam, pálidos, interrompidos
pela estrutura escura dos travejamentos, não se via luz nenhuma. Adolf
tomou a dianteira; esgueirando-se sempre em silêncio, contornaram
algumas casas, treparam por cima de uma vedação, viram-se de repente
num quintal, pisaram a terra mole de canteiros, tropeçaram ao subir uns
degraus e pararam diante da parede de uma casa. Adolf bateu a um postigo,
esperou, bateu novamente, lá dentro ouviu-se barulho e, pouco depois,
acendeu-se uma luz. O postigo abriu-se e, um após outro, treparam para
dentro de uma cozinha com chaminé negra e chão térreo. Pousada na lareira
estava uma pequena lamparina de azeite, a chama débil ardia bruxuleante
no pavio fino. Encontrava-se ali uma rapariga magra, uma criadita de
camponeses que estendeu a mão aos recém-chegados. Atrás dela, vinda do
escuro, surgiu uma segunda jovem, ainda apenas uma menina, com longas
tranças escuras. Adolf trazia presentes, meia carcaça de pão branco do
convento e qualquer coisa embrulhada num saco de papel, que Goldmund
supôs ser um pedaço de incenso roubado, cera de velas ou algo semelhante.
A rapariguinha das tranças saiu de casa às apalpadelas, sem luz; demorou
bastante tempo até aparecer com um jarro de barro cinzento com uma flor
azul pintada, que entregou a Konrad. Ele serviu-se e passou depois aos
outros; todos beberam: era cidra, da forte.
Sentaram-se à luz da minúscula chama da lamparina, as duas raparigas
em pequenos escabelos e, à sua volta, sentados no chão, os estudantes.
Falaram em voz baixa, interrompendo-
-se para beberem a cidra; Adolf e Konrad eram quem tomava a iniciativa.
De vez em quando, um deles levantava-se e acariciava o cabelo e a nuca da
magricelas, segredando-lhe algo ao ouvido. Na mais jovem ninguém tocou.
Goldmund achou que, provavelmente, a mais velha era a criada, enquanto a
pequenita bonita devia ser a filha da casa. Mas no fundo era indiferente, ele
nada tinha a ver com aquilo, pois nunca mais iria voltar àquele sítio.
Agradara-lhe a escapadela noturna e o passeio pela floresta, tudo aquilo
tinha sido inesperado, emocionante e misterioso, embora não propriamente
perigoso. Apesar de proibida, a transgressão não lhe pesava na consciência.
Mas o que ali estava a acontecer agora, aquela visita noturna às raparigas,
aquilo era, no seu entender, mais que proibido, era pecado. Para os outros
talvez só significasse um pequeno desvio, mas não para ele; a ele, que se
sentia predestinado à vida monástica e à ascese, não eram permitidas
garotices com raparigas. Não, ele nunca mais voltaria. Mas o coração batia-
lhe descompassado e ansioso na penumbra escassamente iluminada daquela
modesta cozinha.
Os companheiros armavam-se em heróis perante as jovens, misturando
na conversa frases em latim com um ar importante. Todos os três pareciam
agradar à criadita, de quem se aproximavam à vez com as suas tímidas e
desajeitadas carícias, que não ultrapassavam a ousadia de um beijo fugaz.
Todos pareciam ter perfeita consciência do que lhes era ali permitido.
E como a conversa tinha de ser conduzida num tom sussurrado, toda aquela
cena não deixava de ser vagamente caricata. Para Goldmund, porém, não o
era. Sentado no chão, calado, fitava a chamazinha da lamparina, sem dizer
uma palavra. Por vezes apercebia-se, com um rápido olhar ansioso de
soslaio, das carícias que os outros trocavam entre si. Desviava
imediatamente o olhar. Por sua vontade, só teria olhado para a rapariguinha
das tranças, mas isso era precisamente o que não se permitia. Sempre que a
vontade fraquejava, porém, e o seu olhar se transviava para o rosto
silencioso e sereno da jovem, encontrava, infalivelmente, os seus olhos
escuros postos nele, fixando-o como que enfeitiçados.
Tinha talvez já decorrido uma hora – nunca Goldmund passara por uma
tão longa hora – quando, esgotadas as frases e as acanhadas investidas dos
estudantes, se fez silêncio e um certo constrangimento se apoderou deles.
Eberhard começou a bocejar. A criadita aconselhou-os então a partir. Todos
se levantaram, todos deram a mão à rapariga, Goldmund por último. Em
seguida, despediram-se todos da mais nova, e Goldmund foi o último a
estender-lhe a mão. Depois, Konrad desceu pela janela, seguido de
Eberhard e Adolf. Quando Goldmund se preparava também para descer,
sentiu uma mão agarrar-lhe o ombro. Não podia parar; só quando pôs os pés
no chão, lá fora, é que se voltou, hesitante. A rapariguinha das tranças
debruçava-se da janela.
– Goldmund! – murmurou. Ele parou. – Vens outra vez? – perguntou ela.
A sua voz tímida não passava de um
sopro.
Goldmund abanou a cabeça. Então, ela estendeu ambas as mãos,
agarrou-lhe a cabeça, ele sentiu as pequenas mãos quentes nas fontes. Ela
debruçou-se mais para baixo, até os seus olhos escuros se encontrarem
mesmo à frente dos dele.
– Volta outra vez! – sussurrou, e a pequena boca roçou a sua num beijo
infantil.
Goldmund apressou-se a correr para junto dos colegas, atravessou o
quintal, tropeçou nos canteiros, aspirou o cheiro da terra húmida e do
estrume, arranhou a mão numa roseira, trepou pela vedação e trotou atrás
dos outros para fora da aldeia, em direção à floresta. «Nunca mais!», dizia-
lhe imperiosa a vontade. «Já amanhã!», implorava-lhe o coração, a soluçar.
Ninguém encontrou os aventureiros noturnos, que puderam regressar
sem incidentes a Mariabronn, atravessando o ribeiro e passando pela
azenha, pelo pátio das tílias e, por trilhos furtivos que os levaram a trepar
alpendres e a passar por janelas divididas por colunatas, até ao interior do
convento e ao dormitório.
Na manhã seguinte, o matulão Eberhard teve de ser acordado com
safanões, tão pesado era o seu sono. Todos conseguiram chegar a tempo à
missa matinal, ao pequeno-almoço e à sala de aulas; mas Goldmund estava
com péssimo aspeto, tinha um ar tão mau que o padre Martin lhe perguntou
se estava doente. Adolf lançou-lhe um olhar de soslaio, e ele disse que não
tinha nada. Na aula de grego, contudo, por volta do meio-dia, Narciso não o
perdeu de vista. Também ele reparou que Goldmund estava doente, mas
calou-se e continuou a observá-lo com toda a atenção. No final da aula,
chamou-o. Para não suscitar a atenção dos outros alunos, mandou-o ir à
biblioteca buscar algo e seguiu-o.
– Goldmund – disse –, posso ajudar-te em alguma coisa? Vejo que estás
em dificuldades. Talvez estejas doente. Se assim for, metemos-te na cama
com uma canja e um copo de vinho. Hoje não estás com cabeça para o
grego.
Muito teve de esperar pela resposta. Pálido, com um olhar inquieto e
desorientado, o jovem olhou para ele, baixou a cabeça, voltou a erguê-la, os
lábios tremiam-lhe, tentou falar, mas não conseguiu. De repente, deixou-se
cair para o lado, encostou a cabeça a um atril, entre duas pequenas cabeças
de anjos esculpidas em madeira de carvalho, e desatou num tal pranto que
Narciso se sentiu embaraçado e desviou o olhar durante algum tempo, antes
de agarrar e levantar o rapaz, que não parava de soluçar.
– Bem, bem – disse no tom mais amigável que Goldmund jamais lhe
ouvira –, está bem, amice, chora lá tudo o que tens a chorar, vais ver que
isso te traz alívio. Senta-te aí, não precisas de falar. Vejo que por hoje já
chega; provavelmente, passaste toda a manhã a esforçar-te para te
aguentares de pé sem que ninguém reparasse no que se passava. Foste um
bravo. Mas agora chora à vontade, é o melhor que podes fazer. Não é? Já
não é preciso? Aguentas-te outra vez em pé? Pronto, então vamos até ali à
enfermaria; deitas-te na cama e hoje à noite vais sentir-te muito melhor.
Anda daí!
Levou-o para um dos quartos reservados aos doentes, evitando passar
pelos aposentos dos alunos, disse-lhe para se deitar numa das duas camas
vazias e, quando Goldmund, obediente, se começou a despir, saiu para ir
dar a baixa ao superintendente. Tal como prometera, também passou pelo
refeitório para lhe mandar vir uma canja e um copo do vinho para os
doentes; tradicionais no convento, estes dois benefícios eram extremamente
apreciados por todos aqueles que adoeciam sem gravidade.
Deitado na cama, Goldmund procurava orientar-se no meio de todo
aquele caos interior. Uma hora antes, talvez tivesse podido compreender o
que tanto lhe pesava hoje, todo aquele mortal esforço sobre-humano da
alma, que lhe deixava a cabeça vazia e os olhos a arder. Era a tentativa
violentíssima, a cada minuto renovada e a cada minuto frustrada, de
esquecer a noite anterior – ou melhor, não tanto a noite nem a leviana e
simpática aventura da expedição noturna para fora da cerca do convento,
nem a caminhada pela floresta, nem a prancha escorregadia lançada por
cima das margens do ribeiro escuro, nem o trepar pela vedação e os
postigos e o esgueirar-se pelos corredores, mas apenas e só aquele instante
às escuras junto à janela, a respiração e as palavras da rapariga, as mãos que
o agarraram, o beijo dos seus lábios.
Agora, porém, algo de novo surgira, um outro sobressalto, uma outra
experiência. Narciso tomara conta dele. Narciso amava-o, interessara-se por
ele – Narciso, o fino, o distinto, o inteligente, dos lábios estreitos, com
aquela expressão levemente trocista. E ele, ele deixara-se ir na sua
presença, mostrara-se envergonhado e balbuciante e, por fim, desatara a
chorar à sua frente! Em vez de ganhar as graças daquele ser superior com as
mais nobres armas, em vez de o conquistar com o grego, a filosofia, o
heroísmo espiritual e o digno estoicismo, mostrara-se fraco e sucumbira
miseravelmente à sua frente! Nunca se perdoaria a si próprio, nunca mais o
poderia olhar nos olhos sem sentir vergonha.
Contudo, o choro aliviara-lhe uma grande tensão. A solidão tranquila do
quarto e a boa cama faziam-lhe bem, o desespero perdera mais de metade
da sua virulência. Decorrida uma hora, veio ter com ele um irmão oblato,
que lhe trouxe um caldo de farinha, um pedacinho de pão branco e uma
tacinha de vinho tinto que os alunos só tinham direito de beber em dias de
festa. Goldmund comeu e bebeu, deixou o prato meio vazio, pô-lo de lado
para repensar tudo, mas não foi capaz; voltou a pegar no prato e comeu
mais umas colheradas. E quando, um pouco mais tarde, a porta se abriu
silenciosamente e Narciso entrou para ver como estava o doente, já ele
dormia com as faces novamente coradas. Narciso ficou ali muito tempo a
observá-lo, com afeto, com um curiosidade inquiridora e também com um
pouco de inveja. Percebeu que Goldmund não estava doente, no dia
seguinte já não precisaria de lhe mandar levar o vinho. Mas sabia que fora
quebrado o sortilégio, iriam tornar-se amigos. Podia ser que hoje Goldmund
tivesse precisado dele e ele o pudesse ter ajudado. Noutra ocasião seria
talvez ele o necessitado, o carente de ajuda e de amor. E daquele rapaz iria
poder aceitar isso, se algum dia chegassem a esse ponto.
III

Assim começou a surpreendente amizade entre Narciso e Goldmund.


Poucos a viam com bons olhos e, por vezes, nem aos próprios parecia
agradar.
Inicialmente, foi Narciso, o pensador, quem mais dificuldade teve em
aceitá-la. Para ele, tudo era espírito, até mesmo o amor; não lhe era fácil
entregar-se espontaneamente a uma atração. Naquela relação era ele o
espírito mentor, e durante muito tempo foi apenas ele que soube reconhecer
conscientemente o destino, a dimensão e o sentido daquela amizade.
Manteve-se por muito tempo solitário na afeição, sabedor de que o amigo
só lhe pertenceria verdadeiramente quando o levasse a reconhecer-se a si
próprio. Goldmund, pelo contrário, entregava-se impulsiva e ardentemente,
sem premeditação e de forma completamente espontânea àquela nova vida;
conhecedor e assumindo a responsabilidade do que se estava a passar,
Narciso aceitou o alto destino que os unia.
Para Goldmund tratou-se, antes de mais, de uma forma de redenção e
convalescença. O seu juvenil desejo de amar tinha acabado de ser
poderosamente despertado pela imagem e pelo beijo de uma rapariga
bonita. Simultaneamente, a consciência do próprio desejo assustara-o e
lançara-o no desespero, pois sentia no mais íntimo de si que todos os
sonhos e projetos de vida que até aí acalentara, tudo aquilo em que
acreditava, tudo aquilo para que se julgara chamado e destinado, tudo isso
ameaçava agora ruir, depois daquele beijo à janela, perante o olhar daqueles
olhos escuros. Destinado por determinação paterna à vida monástica,
crente, com toda a sua vontade, nessa determinação, virado para um ideal
casto, ascético e heroico com o ardor da primeira paixão juvenil, sentira
iniludivelmente, logo ao primeiro contacto fugaz, perante o primeiro apelo
da vida aos seus sentidos, logo ao primeiro aceno feminino, que era ali que
se encontrava o seu inimigo e o seu demónio, que a mulher era o seu perigo
de perdição. E agora o destino oferecia--lhe a salvação; agora, na mais
premente aflição, vinha aquela amizade ao seu encontro, oferecendo ao seu
desejo um jardim florido, à sua veneração um novo altar. Aí era-lhe
permitido amar, era-lhe autorizado entregar-se sem pecado, dedicar o
coração a um amigo admirado, mais velho e mais inteligente, sublimando e
purificando as perigosas chamas dos sentidos num nobre fogo sacrificial.
Contudo, logo na primeira primavera daquela amizade, Goldmund teve
de confrontar-se com estranhas inibições, inesperadas e misteriosas reações
de frieza e exigências assustadoras, pois estava longe de se considerar a
réplica e o polo oposto do amigo. A ele parecia-lhe que apenas o amor era
necessário, a entrega sincera para de dois fazer um, diluindo diferenças e
transpondo oposições. Mas como era frio e seguro, lúcido e implacável
aquele Narciso! Para ele, uma simples entrega inocente, uma caminhada em
comum no território da amizade era algo desconhecido e indesejável.
Caminhos sem destino, devaneios sonhadores eram algo que ele parecia não
conhecer nem admitir. Era certo que, quando Goldmund lhe parecera
doente, se mostrara preocupado e solícito, que o ajudara e aconselhara
fielmente em todos os assuntos da escola e problemas do estudo,
explicando-lhe as passagens difíceis dos compêndios,
abrindo-lhe os olhos para o reino da gramática, da lógica, da teologia; mas
nunca parecia verdadeiramente satisfeito e de acordo com o amigo; pelo
contrário, demasiadas vezes parecia não o levar a sério e ridicularizá-lo.
Goldmund sentia que aquilo não se resumia a mero pedantismo ou simples
desejo de se superiorizar por parte do mais velho e esperto – ele sentia que
por detrás disso havia algo mais profundo e importante. Só não conseguia
reconhecer em que consistia esse algo, e, assim, aquela amizade deixava-o
muitas vezes triste e perplexo.
Na realidade, Narciso sabia perfeitamente o que se estava a passar com o
amigo, pois não era cego perante a sua beleza florescente, nem perante a
pujança da sua vitalidade e da intensidade inocente. Ele não era, de modo
nenhum, um mestre-escola determinado a alimentar com doses de grego
uma jovem alma ardente, ou a contrapor os artifícios da lógica a um amor
inocente. Pelo contrário, amava demasiado aquele adolescente loiro, e, para
si, isso representava um perigo, pois amar não significava para ele um
estado natural, mas sim um milagre. Por isso não devia enamorar-se, não
devia contentar-se com a
reconfortante contemplação daqueles lindos olhos ou com
a proximidade daquela naturalidade jovem e luminosa; não devia permitir,
nem por um instante, que aquele amor permanecesse na esfera dos sentidos.
Pois se Goldmund se julgava destinado à vida monacal e ascética,
identificando-se com um constante esforço para alcançar a santidade, ele,
Narciso, sabia que esse era, verdadeiramente, o destino da sua vida. Amar
só lhe era permitido de uma única e suprema forma. Já na vocação de
Goldmund para o ascetismo ele não conseguia acreditar verdadeiramente.
Melhor do que ninguém, sabia ler no coração dos outros, e agora que
amava, lia com redobrada clareza. Podia ver a íntima natureza de
Goldmund, que, apesar de oposta à sua, ele compreendia intimamente, pois
era como que a outra, a metade perdida do seu ser. Via-a revestida de uma
dura couraça de ilusões, erros de educação e mandamentos paternos e há
muito que pressentira todo o segredo, nem sequer particularmente
complexo, daquela jovem vida. A sua missão parecia-lhe óbvia: desvendar
esse segredo ao seu portador, libertá-lo da couraça, devolver-lhe a essência
ignorada. Iria ser difícil, e o mais difícil, provavelmente, seria ele acabar
por perder o amigo.
Com uma imensa lentidão foi-se então aproximando do seu objetivo.
Decorreram meses até que uma confrontação séria ou uma conversa
profunda pudesse tornar-se possível entre ambos, tão distantes se
encontravam um do outro, apesar de toda a amizade, tamanha era a tensão
do arco que os separava. Como um cego e um clarividente, assim
caminhavam eles lado a lado; o facto de o cego nada saber da sua cegueira
só significava um alívio para ele próprio.
Foi Narciso quem abriu a primeira brecha, ao tentar investigar a vivência
que abalara o jovem e o lançara na sua direção naquela hora de tanta
fragilidade. A indagação foi menos difícil do que supusera. Há muito que
Goldmund sentia a necessidade de confessar a experiência daquela noite;
porém, excetuando o abade, não havia ninguém em quem ele confiasse
suficientemente, e o abade não era o seu confessor. Quando então Narciso,
num momento que lhe pareceu propício, lembrou ao amigo o início da
ligação entre ambos e tocou discretamente naquele segredo, Goldmund
disse sem rodeios:
– É pena que ainda não tenhas recebido as ordens e não possas ouvir-me
em confissão; de bom grado me teria libertado disso pela confissão,
expiando-o pela penitência. Mas ao meu confessor não pude contá-lo.
Narciso insistiu com toda a cautela e engenho, sabia que descobrira a
pista.
– Lembras-te – experimentou dizer – daquela manhã em que pareceste
ter adoecido; certamente que não a esqueceste, pois aí começou a nossa
amizade. Tenho pensado nela muitas vezes. Talvez não te tenhas
apercebido, mas eu próprio fiquei, nessa ocasião, sem saber o que fazer.
– Tu sem saberes o que fazer?! – exclamou o amigo, incrédulo. – Mas
quem estava desesperado e sem saber o que fazer era eu! Era eu quem
engolia em seco, sem conseguir dizer uma palavra, até que desatei a chorar
como uma criança! Nem quero pensar, ainda hoje sinto vergonha por
aqueles momentos; julguei que nunca mais conseguiria aparecer à tua
frente; tinhas logo de me ver assim tão miseravelmente fraco!
Narciso avançou com cautela.
– Compreendo que tenha sido desagradável para ti – disse. – Um rapaz
tão firme e corajoso como tu, a chorar diante de um desconhecido, para
mais teu professor; de facto, isso não condizia contigo. De qualquer forma,
na altura julguei que estavas mesmo doente. Quando a febre sacode, até um
Aristóteles se pode comportar de forma estranha. Mas, afinal, nem sequer
estavas doente! Nem febre tinhas! E é isso que te envergonha. Ninguém se
envergonha por adoecer com um febrão, não é verdade? Tu ficaste
envergonhado porque foste dominado por outra coisa, porque algo estranho
te subjugou. Terá acontecido algo de especial?
Goldmund ainda hesitou um pouco, até que começou a falar lentamente:
– Sim, aconteceu algo de especial. Vamos admitir que tu és o meu
confessor; algum dia tinha de desabafar.
De cabeça baixa, contou então ao amigo a história daquela noite.
Narciso disse-lhe, sorrindo:
– Pois, de facto, é proibido «ir à aldeia». Mas podemos fazer muitas
coisas proibidas e ficar a rir, ou confessamo-las e tudo fica resolvido e já
não temos de nos preocupar com elas. Por que razão não poderias tu
cometer também uma pequena loucura, como quase todos os outros
estudantes? Achas que é assim tão grave?
Goldmund não se conteve e explodiu, enfurecido:
– Falas mesmo como um mestre! Claro que tinhas de saber exatamente
do que se trata! É evidente que não vejo grande pecado em escapar aos
regulamentos ou participar numa brincadeira de estudantes, embora isso
não faça propriamente parte dos exercícios preparatórios da vida monástica.
– Alto aí! – exclamou Narciso severamente. – Será que não sabes, meu
amigo, que para muitos piedosos padres foram necessários justamente esses
desvios? Não sabes que umas das mais curtas vias para a santidade é a que
passa pela libertinagem?
– Oh, acaba lá com isso! – interrompeu-o Goldmund. – Eu só quis dizer:
não foi a pequena desobediência que me deixou com má consciência. Foi
outra coisa. Aquela rapariga. Foi um sentimento que não consigo explicar-
te! A sensação de que, se cedesse à tentação, se estendesse apenas a mão
para tocar naquela rapariga, nunca mais poderia regressar, pois seria tragado
pelo pecado como por uma goela infernal e não mais me libertaria. Seria o
fim de todos os belos sonhos, de toda a virtude, de todo o amor a Deus e ao
Bem.
Narciso acenou com a cabeça, muito pensativo.
– O amor a Deus – começou lentamente, medindo com todo o cuidado as
palavras – nem sempre coincide com o amor ao Bem. Quem dera que as
coisas fossem assim tão fáceis! O que é bom sabemos nós, pois está escrito
nos mandamentos. Mas olha que Deus não se encontra apenas nos
mandamentos, eles são apenas uma mínima parte dele. Tu podes obedecer
aos mandamentos e estar muito longe de Deus.
– Então não consegues compreender-me? – queixou-se Goldmund.
– Claro que te compreendo. Sentes na mulher, no sexo, o cerne de tudo
aquilo a que chamas «mundo» e «pecado». Em relação a todos os outros
pecados consideras que, ou és incapaz de os cometer, ou então, se os
cometesses, não serias por eles esmagado, pois poderias repará-los através
da confissão. Só esse pecado é que não!
– Exatamente, é isso mesmo que eu sinto.
– Como vês, compreendo-te. E até nem estás tão longe da verdade como
isso, não se pode dizer que a história de Eva e da serpente seja uma fábula
supérflua. E, no entanto, não tens razão, meu caro. Terias razão se fosses o
abade Daniel ou o teu santo patrono, São Crisóstomo, se fosses bispo ou
sacerdote, ou mesmo um simples monge. Mas não és. És um estudante, e
mesmo que desejes ficar no convento para sempre, ou que o teu pai o deseje
por ti, o certo é que ainda não pronunciaste os votos nem recebeste as
ordens. Se hoje ou amanhã fosses seduzido por uma qualquer rapariga
bonita e cedesses à tentação, não quebrarias juramento algum, não
infringirias nenhum
voto.
– Nenhum voto escrito! – contrapôs Goldmund, extremamente exaltado.
– Mas quebraria um não escrito, o mais sagrado que guardo dentro de mim.
Não consegues ver que aquilo que até pode ser válido para muitos outros
não o é para mim? Tu próprio também não recebeste ainda ordens nem
fizeste voto algum, e, no entanto, nunca te permitirias tocar numa mulher?
Ou estarei enganado? Será que não és assim? Será que não és aquele por
quem eu te tomei? Não cumprirás já há muito, para ti próprio, o juramento
que ainda não pronunciaste perante os teus superiores? E não te sentes para
sempre com ele comprometido? Não és igual a mim?
– Não, Goldmund, não sou igual a ti, pelo menos não como tu pensas. É
certo que me mantenho fiel a um voto tácito, nesse aspeto tens razão. Mas
igual a ti não sou de modo nenhum. Vou dizer-te hoje uma coisa em que hás
de vir a pensar um dia. Digo-te isto: a nossa amizade não tem outro objetivo
nem outro sentido que não seja mostrar-te até que ponto somos
absolutamente diferentes um do outro!
Goldmund estacou, atónito; Narciso tinha falado com um tom e um olhar
que não admitia réplica. Por isso calou-se. Mas porque teria ele dito aquilo?
Por que razão os votos não pronunciados de Narciso seriam mais sagrados
do que os seus? Não o levaria o amigo a sério, considerá-lo-ia apenas uma
criança?
E de novo recomeçavam as perplexidades e as tristezas daquela estranha
amizade.
Narciso já não tinha dúvidas quanto à natureza do segredo de Goldmund.
Era Eva, o arquétipo materno que estava por detrás de tudo. Mas como seria
possível que num jovem tão belo, tão saudável, tão vital, o despertar da
sexualidade se deparasse com uma tão feroz hostilidade? Houvera
forçosamente um qualquer demónio virulento, um secreto inimigo que
conseguira dividir aquela criatura maravilhosa, incompatibilizando-a com
os seus instintos mais ancestrais. Pois bem, o demónio tinha de ser então
encontrado, tinha de ser exorcizado e tornado visível, só assim seria
possível vencê-lo.
Entretanto, Goldmund via-se cada vez mais evitado e abandonado pelos
colegas, ou melhor, eram eles que se sentiam abandonados e de certa forma
traídos. Ninguém encarava com bons olhos a sua amizade com Narciso. Os
mal-intencionados difamavam-na como sendo contranatura, especialmente
os que já tinham estado apaixonados por um dos dois rapazes. Mas também
os outros, que reconheciam não haver ali motivo para suspeitas, não
deixavam de abanar a cabeça. Ninguém parecia aceitar a intimidade entre
aqueles dois seres; parecia que através da sua união eles se tinham afastado
dos outros como aristocratas arrogantes, excluindo-os por não serem
suficientemente bons – e isso não era colegial, nem conventual, nem
cristão.
O caso chegou mesmo aos ouvidos do abade Daniel, que foi confrontado
com rumores, acusações, calúnias. Ao longo dos mais de quarenta anos que
já durava a sua vida no convento, ele presenciara inúmeras amizades entre
adolescentes; estas faziam parte da imagem do próprio convento,
constituíam um agradável complemento, representavam por vezes um
prazer, por vezes um perigo. Ele mantinha-se reservado, com os olhos
abertos, sem se intrometer. Uma amizade de uma tal intensidade e
exclusividade era algo raro, sem dúvida, algo não isento de perigos; mas
como nem por um momento duvidou da sua pureza, absteve-se de intervir.
Se Narciso não se encontrasse numa posição excecional entre os alunos e os
mestres, o abade não teria hesitado em prescrever para ambos certas
barreiras separadoras. Não era bom para Goldmund que ele se afastasse dos
colegas e privasse apenas com um professor mais velho. Mas seria justo
interromper Narciso na carreira que abraçara e privá-lo da atividade
pedagógica, a ele, o excecional, o extraordinariamente talentoso, por todos
os mestres reconhecido como seu igual, senão até superior
intelectualmente? Se Narciso não tivesse dado provas como professor, se a
sua amizade o tivesse tentado a deixar-se levar pelo desleixo e a
parcialidade, ele tê-lo--ia destituído imediatamente. Mas não existiam
provas contra ele, nada a não ser boatos, nada para além da desconfiança
invejosa dos outros. Além disso, o abade conhecia as capacidades
singulares de Narciso, o seu notável, estranhamente penetrante, por vezes
quase presumido conhecimento do ser humano. Ele não sobrevalorizava
esses talentos; na verdade, teria preferido outras qualidades nele, mas não
duvidava que Narciso tinha intuído no estudante Goldmund algo de especial
e que o conhecia bem melhor do que ele ou qualquer outro. Ele próprio, o
abade, não notara em Goldmund, para além da delicadeza cativante da sua
maneira de ser, mais do que um certo zelo algo prematuro, por vezes até
desfasado da sua idade e da experiência, que fazia com que se sentisse parte
integrante do convento e quase já monge, ele que não passava ainda de um
simples aluno e hóspede daquela casa. Parecia-
-lhe, porém, que não precisava de recear que Narciso pudesse favorecer e
instigar ainda mais todo aquele zelo comovente, embora imaturo. O que
havia a temer era, antes, que o amigo o pudesse contagiar com uma certa
presunção intelectual e uma erudição arrogante; contudo, precisamente para
aquele aluno não lhe parecia grande o perigo. O melhor era mesmo esperar.
Só de pensar quão mais fácil, pacífico e cómodo era, para um superior,
governar seres medíocres, em vez de ter de se haver com sobredotados de
carácter intenso e forte, sentia vontade de sorrir e suspirar ao mesmo tempo.
Não, ele não tencionava deixar-se contagiar pela desconfiança generalizada,
não queria mostrar-se ingrato por lhe terem sido confiados dois seres
excecionais.
Narciso refletia muito sobre o amigo. A sua especial capacidade para ver
e reconhecer intuitivamente as características e o destino dos seres humanos
há muito o esclarecera sobre Goldmund. Toda a sua vivacidade e o brilho
falavam por si: ele apresentava os sinais de um ser forte, particularmente
rico na sensibilidade e na alma, de um artista talvez, em todo o caso de uma
pessoa com grande capacidade de amar, cujo destino e a ventura consistiam
na entrega e na disponibilidade para se inflamar. Mas porque estaria então
aquele ser tão emocional, tão dotado ao nível das sensações e dos sentidos,
tão impulsivo e capaz de amar profundamente o perfume de uma flor, o sol
matinal, um cavalo, o voo de um pássaro ou uma música, porque estaria
esse ser tão possuído pela ideia de se tornar um intelectual e asceta? Narciso
não se cansava de pensar no assunto. Sabia que o pai de Goldmund
favorecera aquela obsessão. Mas tê-la-ia provocado? Com que sortilégio
enfeitiçara o filho para o levar a acreditar em tal destino e dever? Que
espécie de pessoa seria aquele pai? Apesar de o ter mencionado inúmeras
vezes propositadamente e de Goldmund não se furtar de maneira nenhuma a
falar do pai, Narciso não conseguia imaginá-lo nem vê-lo. Não seria isso
estranho e suspeito? Quando Goldmund se lembrava de uma truta que
pescara em criança, quando descrevia uma borboleta, imitava o voo de uma
ave, falava de um colega, um cão ou um mendigo, então surgiam imagens,
podia-se ver o que ele evocava. Quando falava do pai não se via nada. Não,
se aquele pai tivesse sido realmente uma personagem importante, poderosa
e dominante na vida de Goldmund, ele tê-lo-ia descrito de outra maneira,
teria conseguido associá-lo a outras imagens! Narciso não tinha aquele pai
em alta consideração, ele não lhe agradava; por vezes, duvidava até que ele
fosse mesmo o pai de Goldmund. Não passava de um ídolo vazio. Mas de
onde lhe viera aquele poder? E como conseguira povoar a alma de
Goldmund com sonhos que lhe eram tão estranhos?
Mas também Goldmund cismava. Por mais que se sentisse seguro da
calorosa afeição que o amigo lhe dedicava, não se conseguia, por vezes,
livrar da sensação incómoda de não ser tomado verdadeiramente a sério.
Parecia-lhe que era tratado um pouco como uma criança. E o que
significaria a insistência com que o amigo se referia às diferenças entre
ambos?
No entanto, essas cogitações não preenchiam os dias de Goldmund. Não
conseguia entregar-se a especulações por muito tempo. Havia outras coisas
para fazer ao longo do dia. Assim, visitava frequentemente o irmão
porteiro, com quem se dava muito bem. Recorria a toda a sua graça e
capacidade de persuasão para poder montar, de vez em quando, o cavalo
Bless durante uma ou duas horas; do mesmo modo, era igualmente
estimado pelos poucos habitantes das imediações do convento,
nomeadamente pelo moleiro; muitas vezes se escondia com o criado deste
na margem do ribeiro para ver as lontras, ou coziam pãezinhos com a
farinha fina dos prelados, que ele sabia distinguir de olhos fechados, apenas
pelo cheiro, entre todas as outras farinhas. Por muito que privasse com
Narciso, sempre lhe sobravam horas para se dedicar aos seus antigos
hábitos e distrações. Os serviços religiosos também representavam para ele
quase sempre um prazer. Gostava de cantar no coro dos alunos, gostava de
rezar o terço em frente ao altar da sua devoção, de escutar o belo e solene
latim da missa, de ver cintilar nos fumos do incenso o ouro dos paramentos,
de observar as estátuas serenas e venerandas dos santos sobre os pedestais,
os evangelistas com os seus animais, o S. Tiago com o chapéu e a sacola de
peregrino.
Sentia-se atraído por aquelas estátuas, gostava de imaginar uma
misteriosa relação entre aquelas figuras de pedra e de madeira e a sua
pessoa, como se fossem uma espécie de patronos imortais e omniscientes,
protetores e guias da sua vida. Da mesma forma, também amava e sentia
uma secreta afeição pelas colunas e pelos capitéis das janelas e dos portais,
pelos ornamentos dos altares, pelos astrágalos e as grinaldas finamente
recortados, por aquelas flores e folhas exuberantes, que nasciam da pedra
das colunas e nela se enleavam de uma forma tão expressiva e intensa.
Parecia-lhe mistério precioso e profundo haver, para além da natureza, com
a sua flora e a sua fauna, aqueloutra natureza silenciosa feita pelo Homem,
todos aqueles seres humanos, animais e plantas de pedra e madeira. Não
raro passava uma hora livre a copiar aquelas figuras, cabeças de animais e
feixes de folhas, tal como tentava, outras vezes, desenhar flores, cavalos e
rostos a partir do natural.
Adorava também os cânticos litúrgicos, nomeadamente os hinos à
Virgem. Gostava do seu andamento solene e austero, dos ritmos recorrentes
das suas súplicas e louvores; tanto podia acompanhar devotamente o seu
venerando sentido como entregar-se somente ao solene fluir daqueles
versos, sem ligar ao significado, deixando-se arrastar pelos sons baixos e
prolongados, pela plenitude sonora das vogais e pela cadência das piedosas
repetições. No fundo do seu coração não era a erudição que amava, não era
a gramática nem a lógica, muito embora também estas possuíssem uma
certa beleza; preferia, porém, o mundo de imagens e sons da liturgia.
Por vezes acontecia também que conseguia interromper, por momentos,
o afastamento que se instalara entre ele e os colegas. Desagradava-lhe e
aborrecia-o sentir-se sempre rodeado por rejeição e frieza. Uma vez por
outra, fazia rir um relutante colega de carteira ou punha-se a conversar com
um taci-
turno vizinho de cama; durante uma hora esforçava-se, seduzia e conseguia
ser simpático; reconquistava então, por algum tempo, um par de olhos, um
par de rostos, um par de corações. Por duas vezes, e muito contra a sua
vontade, conseguiu que, através dessas aproximações, o desafiassem outra
vez para «ir até à aldeia». Assustado, refugiou-se novamente na sua solidão.
Não, não voltaria novamente à aldeia e até já conseguira esquecer a rapariga
das tranças. Nunca mais pensara nela ou quase que já não pensava.
IV

Durante muito tempo, as tentativas empreendidas por Narciso para


desvendar o segredo de Goldmund não tinham sido escutadas. Durante
longo tempo esforçara-se, aparentemente em vão, para o despertar,
ensinando-lhe a linguagem em que o segredo poderia ser transmitido.
O que o amigo lhe contara acerca da sua proveniência e da região onde
nascera não o ajudara a tirar conclusões. Sabia que havia a sombra de um
pai venerado, embora sem contornos nem substância, e o mito de uma mãe
há muito desaparecida ou morta, que não passava de um pálido nome.
Pouco a pouco, Narciso, experiente na leitura das almas, reconheceu que o
amigo pertencia àquele grupo das pessoas que tinham perdido uma parte da
sua vida, que sob a pressão de uma qualquer aflição ou feitiço se tinham
visto obrigadas a esquecer uma parte do seu passado. Compreendeu que no
seu caso era inútil insistir com perguntas e simples ensinamentos; percebeu
também que ele próprio acreditara demasiado no poder da razão e que se
excedera na argumentação.
O que continuava a não ser em vão era o afeto que os unia e o hábito da
convivência contínua. Apesar das profundas diferenças na maneira de ser,
muito tinham aprendido um com o outro. Para além da linguagem da razão,
desenvolvera-se entre ambos, pouco a pouco, uma outra linguagem
anímica, capaz de comunicar através de sinais, da mesma forma que entre
duas povoações pode haver uma estrada que as liga, pela qual passam
carros e cavalgam cavaleiros, sem que por isso deixe de haver muitos outros
pequenos caminhos e trilhos e atalhos: carreiros para crianças, veredas para
amantes, rastos quase impercetíveis de cães e gatos. Paulatinamente,
seguindo secretos e mágicos rumos, a fantasia animista de Goldmund
conseguira infiltrar--se nos pensamentos e na própria linguagem do amigo,
e este, pelo seu lado, aprendera algo da intuição de Goldmund e da sua
tendência para apreender o mundo sem recorrer às palavras. Lentamente, à
luz do afeto que os unia, foram amadurecendo e ganhando consistência
novos laços de alma para alma, só depois vinham as palavras. Foi assim
que, num dia feriado, sem que nenhum deles o esperasse, se proporcionou
uma conversa entre os amigos, quando se encontravam na biblioteca – uma
conversa que serviu para aclarar o núcleo e o sentido da sua amizade,
lançando sobre ela uma nova luz.
Tinham estado a falar sobre astrologia, uma matéria que não era tratada
nem permitida no convento, e Narciso dissera que a astrologia era uma
tentativa de encontrar ordem e um sistema na diversidade das espécies de
pessoas, destinos e predisposições. Foi aí que Goldmund interveio:
– Estás sempre a falar das diferenças. Aos poucos percebi que essa é a
tua característica mais típica. Quando falas da grande diferença que, por
exemplo, existe entre ti e mim, então quer-me bem parecer que a diferença
não consiste em nada mais do que, precisamente, essa tua estranha obsessão
em descobrir diferenças!
Narciso:
– Certo, acertaste no ponto crucial. De facto, para ti, as diferenças não
são muito importantes, enquanto, para mim, elas parecem ser a única coisa
importante. De acordo com o meu carácter, sou um estudioso, o meu
destino é a ciência. E, citando a tuas palavras, a ciência não é mais do que
essa «obsessão em descobrir diferenças». Seria impossível encontrar uma
definição melhor. Para nós, homens da ciência, nada é mais importante do
que constatar diferenças, a ciência é a arte da diferenciação. Por exemplo,
encontrar numa pessoa as características que a distinguem das outras
significa reconhecê-la.
Goldmund:
– Bem, um usa tamancos e é camponês, o outro tem uma coroa na cabeça
e é rei. Mas isso são, de facto, diferenças que podem ser vistas pelas
crianças, sem qualquer ciência.
Narciso:
– Mas quando o camponês e o rei usam ambos a mesma roupa, a criança
deixa de os conseguir distinguir.
Goldmund:
– O homem da ciência também não consegue.
Narciso:
– Talvez consiga. Não é que seja mais esperto do que a criança, isso
admito; mas é mais paciente, não se apercebe apenas das distinções mais
óbvias.
Goldmund:
– É o que também faz qualquer criança inteligente. Acabará por
reconhecer o rei, quer seja pelo olhar ou pela atitude. E para resumir: vocês,
os eruditos, são uns arrogantes, andam sempre a considerar-nos estúpidos.
Pode-se ser muito inteligente sem toda essa ciência.
Narciso:
– Alegro-me que comeces a reconhecer isso. Assim poderás em breve
reconhecer também que, quando falo das diferenças entre ti e mim, não me
estou a referir à inteligência. Não digo que és mais esperto ou mais burro,
melhor ou pior. Digo apenas: tu és diferente.
Goldmund:
– Isso é fácil de aceitar. Mas não falas só das diferenças das
características, também falas muitas vezes das diferenças nos destinos, nas
vocações. Por que razão haverias, por exemplo, de ter um destino diferente
do meu? Tal como eu, também tu és cristão; tal como eu, decidiste
enveredar pela vida monacal; tal como eu, és filho do bom Pai que está no
Céu. O nosso objetivo é idêntico: a eterna bem-aventurança. A nossa
vocação é a mesma: o regresso a Deus.
Narciso:
– Muito bem. Claro que no compêndio as pessoas são exatamente
idênticas, mas na vida não é isso que acontece. A mim parece-me que o
discípulo dileto do Redentor, que repousava com a cabeça encostada ao seu
peito, não terá tido a mesma vocação daqueloutro que o traiu.
Goldmund:
– Tu és um sofista, Narciso! Por esse caminho não vamos conseguir
aproximar-nos.
Narciso:
– Não há caminho que nos aproxime.
Goldmund:
– Não digas isso!
Narciso:
– Estou a falar a sério. A nossa missão não consiste em aproximarmo-
nos, da mesma maneira que o Sol e a Lua, ou o mar e a terra não se
aproximam. Nós os dois, meu querido amigo, somos como o Sol e a Lua, o
mar e a terra. A nossa missão não é identificarmo-nos um com o outro, mas
sim conhecermo--nos e aprender a ver e respeitar um no outro aquilo que
ele de facto é: o seu oposto e complemento.
Goldmund baixou a cabeça, impressionado, a expressão do seu rosto
entristecera. Por fim, disse:
– É por isso que tantas vezes não levas a sério os meus pensamentos?
Narciso demorou algum tempo a responder. Por fim, disse com voz clara
e dura:
– É por isso. Tens de te habituar, meu querido Goldmund, que eu só a ti
próprio levo a sério. Podes crer no que te digo: levo a sério a mínima
diferenciação no tom da tua voz, cada um dos teus gestos, todos os teus
sorrisos. Já os teus pensamentos, esses não os levo assim tanto a sério. Levo
a sério aquilo que considero ser essencial e necessário em ti. Porque queres
que atribua especial importância aos teus pensamentos, quando tens tantos
outros talentos?
Goldmund sorriu com amargura:
– Foi o que eu disse: sempre me consideraste uma criança!
Narciso manteve-se firme.
– Considero infantis alguns dos teus pensamentos. Se bem te lembras,
ainda agora constatámos que uma criança esperta não tem forçosamente de
ser menos clarividente do que um erudito. Mas quando a criança se
empenha a discutir um tema científico, é lógico que o erudito não a leva a
sério.
Goldmund contrapôs intempestivo:
– Tu ris-te de mim, mesmo quando não estamos a falar da ciência!
Reages como se toda a minha devoção, os meus esforços por progredir nos
estudos e o meu desejo de tornar-me monge não passassem de mera
criancice!
Narciso olhou para ele muito sério:
– Eu levo-te a sério quando tu és o Goldmund. Mas tu nem sempre és o
Goldmund. Se há algo que eu deseje é que assumas inteiramente aquilo que
és. Tu não és um erudito, não és um monge; um erudito, um monge podem
ser talhados de uma madeira mais fraca. Julgas que és, na minha
consideração, demasiado pouco erudito, pouco lógico ou pouco devoto.
Mas não; acho, sim, que és pouco tu próprio.
Embora, após esta conversa, Goldmund se tivesse retirado e sentido
mesmo algo magoado, não tardou, poucos dias depois, a procurar reatá-la.
Desta vez, porém, Narciso conseguiu transmitir-lhe uma noção das
diferenças que os separavam que ele pôde aceitar melhor.
Narciso entusiasmara-se a falar, sentia que Goldmund acolhia agora com
mais abertura de espírito e vontade o que ele lhe
queria dizer, que tinha poder sobre ele. Deixou-se seduzir pelo êxito e,
entusiasmado com as próprias palavras, acabou por dizer mais do que
tencionara.
– Repara – disse –, só há um único ponto em que te sou superior: eu
estou acordado, enquanto tu estás semiacordado e por vezes dormes
completamente. Acordado, para mim, está aquele que é capaz de
reconhecer-se a si próprio com o intelecto e a consciência, todas as suas
mais íntimas e irracionais pulsões, os seus instintos e fraquezas, e as sabe
ter em consideração. Que aprendas a conhecê-las é o sentido que o nosso
encontro poderá ter para ti. Em ti, Goldmund, o espírito e a natureza, a
consciência e o mundo onírico encontram-se muito afastados. Esqueceste a
tua infância e agora ela convoca-te a partir do mais profundo da tua alma.
Irá fazer-te sofrer, até que, finalmente, te decidas a escutá-la. Mas por agora
basta! Na lucidez da consciência sou, como te disse, mais forte do que tu, aí
sou superior a ti e posso, portanto, ser-te útil. Em tudo o mais, meu caro, és
tu superior; ou irás sê-lo, assim que te descubras a ti próprio.
Goldmund tinha escutado com algum espanto, mas quando ouviu aquelas
palavras – «esqueceste a tua infância» – estremeceu como se uma seta o
tivesse trespassado, sem que Narciso se tivesse apercebido disso, pois,
como era seu hábito enquanto falava, mantinha durante longos períodos os
olhos fechados, ou fitava um ponto distante, como se isso o ajudasse a
escolher melhor as palavras. Por isso não viu como o rosto de Goldmund se
contraiu subitamente e começou a apagar-se.
– Superior, eu! A ti! – balbuciou Goldmund, só para dizer alguma coisa,
pois sentia-se como que paralisado.
– Certamente – prosseguiu Narciso –, naturezas como a tua, dotadas de
uma sensibilidade forte e delicada, as pessoas dominadas pelos impulsos da
alma, os sonhadores, poetas, amantes, são-nos quase sempre superiores, a
nós, intelectuais focados no espírito. A vossa origem é materna. Viveis na
plenitude, a vós foi-vos dada a força do amor e da capacidade da vivência.
Nós, os intelectuais, embora possa por vezes parecer que quase sempre vos
guiamos e governamos, não conhecemos a plenitude, vivemos na carência.
A vós pertence-vos a pujança da vida, a seiva dos frutos, o jardim do amor,
o belo território da arte. A vossa pátria é a terra, a nossa a ideia. O perigo
para vós consiste em afogar-vos no mundo dos sentidos, para nós em
sufocarmos no espaço rarefeito de ar. Tu és artista, eu sou pensador. Tu
dormes no regaço da mãe, eu mantenho a minha vigília no deserto. Para
mim brilha o Sol, para ti a Lua e as estrelas; tu sonhas com raparigas, eu
com rapazes…
Goldmund tinha estado a ouvir com os olhos muito abertos o que
Narciso lhe dissera, como que embriagado pela veemência da própria
retórica. Muitas das palavras ditas pelo amigo atingiram-no como espadas;
as últimas fizeram-no empalidecer e fechar os olhos, e quando Narciso se
apercebeu e lhe perguntou, assustado, o que se passava, ele respondeu,
extremamente pálido e com voz sumida:
– Já me aconteceu uma vez desmaiar e ter de chorar à tua frente; tu
lembras-te. Isso não deve voltar a acontecer, eu nunca me perdoaria, nem a
mim, nem a ti! Agora vai-te embora depressa e deixa-me sozinho; disseste-
me palavras terríveis.
Narciso ficou desolado. Deixara-se arrastar pela eloquência das próprias
palavras, tivera a sensação de ter falado melhor do que o habitual. Agora
constatava, consternado, que algumas das suas palavras tinham abalado
profundamente o amigo, que o atingira no âmago da sua existência. Custou-
lhe muito deixá-lo sozinho naquele momento e durante alguns segundos
hesitou, mas a testa franzida de Goldmund advertiu-o e, por fim, afastou-se,
perplexo, concedendo ao amigo a solidão de que tanto necessitava.
Desta vez, as tensões na alma de Goldmund não se libertaram em forma
de lágrimas. Imóvel, quase sem conseguir respirar, com o coração oprimido
e mortalmente pálido, deixou-se ficar ali, com a profunda e desesperada
sensação de ter sido irremediavelmente ferido, como se o amigo lhe tivesse
espetado subitamente uma faca em pleno peito. Era novamente aquela
miséria que sentira da outra vez, só que ainda mais intensa, outra vez a
náusea que lhe apertava as entranhas, a sensação de ter de enfrentar algo de
verdadeiramente insuportável. Só que desta vez não houve soluços
redentores que o ajudassem a suportar a dor. Santa Mãe de Deus, o que era
aquilo? Teria acontecido alguma coisa? Tê-lo-iam assassinado? Teria ele
matado alguém? Que coisa terrível acabara de ser dita?
Continuou a respirar em arquejos, sentindo-se como que intoxicado,
dominado pela sensação de ter de expulsar de dentro de si algo mortal,
alojado no mais fundo do seu ser. A esbracejar como um nadador,
precipitou-se para fora do quarto, escapando inconscientemente para os
recantos mais silenciosos e solitários do convento, através de corredores e
escadas, até encontrar uma saída, o ar livre. Tinha ido parar ao mais
recôndito refúgio do convento, ao claustro; sobre os canteiros verdes
brilhava um céu límpido, através da frescura pétrea do recinto expandia-se,
em leves ondas descontínuas e hesitantes, o perfume das rosas.
Sem o saber, Narciso lograra fazer aquilo por que há muito porfiara:
tinha conjurado o demónio que se apoderara do seu amigo, tinha-o
afrontado. Tocado por uma qualquer das suas palavras, o segredo alojado no
coração de Goldmund revelara-se, debatendo-se numa dor enlouquecida.
Durante muito tempo, Narciso vagueou pelo convento, à procura do amigo,
mas não o encontrou em parte alguma.
Goldmund encontrava-se sob um dos maciços arcos românicos que
faziam a ligação entre os corredores do claustro e o pequeno jardim central.
Do alto das colunas que suportavam
o arco fitavam-no, de cada lado, três cabeças de animais, três cabeças de
cães ou lobos. Dentro dele revolvia-se a dor, sem encontrar o caminho para
a luz, o acesso à compreensão. Um medo mortal apertava-lhe a garganta e o
estômago. Ergueu maquinalmente os olhos e viu, incrustadas nos capitéis,
as três cabeçorras, e não tardou a senti-las agitarem-se dentro das entranhas
dele, ladrando e acossando-o com a desmesura do seu olhar de pedra.
– Vou morrer. – Sentiu-se aterrorizado. E, logo a seguir, tremendo de
medo: – Vou perder o juízo, vou ser devorado por aquelas bocarras.
Por fim, deixou-se cair, sacudido por convulsões, aos pés da coluna. A
dor tornara-se demasiado forte, atingira o limite extremo. Um
entorpecimento apoderou-se dele; deixou pender a cabeça e desfaleceu,
perdendo-se num almejado estado de ausência do ser.
O abade Daniel tivera um dia bem pouco agradável, dois dos monges
mais velhos tinham-no procurado, indignados,
a espumar de raiva, acusando-se mutuamente, uma vez mais, por causa de
antigas disputas virulentas e invejosas ninharias. Ele tinha-os escutado,
demasiado tempo, tinha-os admoestado, mas em vão; por fim, despedira-os
com severidade, castigando--os com alguma dureza, e no fundo do seu
coração ficara com a sensação de que a sua intervenção fora inútil. Exausto,
recolhera-se na capela da cripta subterrânea, rezara e levantara-se sem ter
obtido alívio para o seu mal-estar. Entrara então por momentos no claustro,
para tomar ar, atraído pelo aroma disperso das rosas. Foi aí que encontrou
desmaiado nas lajes do chão o aluno Goldmund. Observou-o com tristeza,
assustado com a palidez e o abatimento que se revelavam naquele jovem
rosto sempre tão belo. Não tinha sido bom o dia, só lhe faltava agora
aquilo! Tentou erguer o rapaz, mas não foi capaz. Afastou-se, suspirando,
para ir chamar dois irmãos mais novos, que levaram o moço para cima; ao
mesmo tempo, deu ordens para que fossem buscar o padre Anselm, que era
entendido na arte de curar. Ordenou ainda que procurassem Narciso, que
logo foi encontrado e veio ter com ele.
– Já sabes? – perguntou-lhe o abade.
– Do Goldmund? Sim, reverendo padre, acabaram de me dizer que está
doente ou sofreu um acidente e o trouxeram em braços.
– Pois, encontrei-o prostrado no claustro, onde, no fundo, não tinha nada
que pôr os pés. Não teve nenhum acidente, só desmaiou. Nada disto me
agrada. Acho que deves ter algo que ver com o caso, ou talvez saibas o que
se passa, já que ele é teu amigo íntimo. Foi por isso que te chamei. Fala.
Controlando como sempre a postura e o discurso, Narciso expôs
sucintamente o conteúdo da conversa que tivera nesse dia com Goldmund,
dando conta da reação surpreendentemente exaltada deste. O abade abanou
a cabeça, visivelmente desagradado.
– Estranhas conversas, essas que vocês têm – objetou, forçando-se a
manter a calma. – Isso que agora me descreveste é uma conversa que
poderia ser considerada uma intervenção em alma alheia, é, digamos assim,
uma conversa de confessionário. Mas tu não és o confessor do Goldmund.
Aliás, nem sequer és confessor, pois ainda não recebeste ordens. Como é
possível então que converses com um aluno em tom de conselheiro
espiritual sobre assuntos que só ao confessor dizem respeito? Como vês, as
consequências foram graves.
– As consequências – disse Narciso num tom suave mas determinado –
não as conhecemos ainda, reverendo padre. Fiquei algo assustado com a sua
reação intempestiva, mas não tenho dúvidas de que as consequências da
conversa que tivemos lhe serão benéficas.
– Veremos depois as consequências. Não estou agora a referir-me a elas,
mas à tua atitude. O que te levou a ter tais conversas com o Goldmund?
– Como sabeis, ele é meu amigo. Tenho para com ele uma especial
afeição e acho que consigo entendê-lo particularmente bem. Haveis dito que
a minha atitude para com ele é a de um conselheiro espiritual. Mas não
pretendi assumir qualquer autoridade eclesiástica, achei simplesmente que o
conhecia um pouco melhor do que ele próprio se conhece.
O abade encolheu os ombros.
– Bem sei, é essa a tua especialidade. Esperemos que com isso não lhe
tenhas causado algum mal. Mas o Goldmund andará doente? Quer dizer,
faltar-lhe-á algo? Está enfraquecido? Dorme mal? Tem falta de apetite ou
queixa-se de dores?
– Não, até hoje estava de boa saúde, fisicamente são.
– E de resto?
– A alma, essa está de facto doente. Como sabeis, ele está na idade em
que começam as inquietações sexuais.
– Bem sei. Tem dezassete anos, não é?
– Tem dezoito.
– Dezoito. Pois é, já não era sem tempo. Mas essas lutas são algo natural,
todos passam por elas. Não é por causa disso que devemos considerá-lo
doente na alma.
– Não, reverendo padre, não é só por isso. Mas o Goldmund já há muito
tinha adoecido, por isso é que esses conflitos podem ser mais perigosos para
ele do que para outros. Segundo me parece, ele sofre pelo facto de se ter
visto obrigado a esquecer uma parte do seu passado.
– Ah, sim? E que parte é essa?
– É a sua mãe e tudo o que tem a ver com ela. Eu próprio nada sei a esse
respeito, sei apenas que é lá que forçosamente se encontra a origem da sua
doença. Pelos vistos, o Goldmund nada sabe da sua mãe, para além de a ter
perdido muito cedo. Mas dá a impressão de que se envergonha dela. E, no
entanto, só pode ser dela que ele herdou a maioria dos seus talentos; pois, a
julgar pelo modo como descreve o pai, não parece que este possa ser
homem para ter um filho tão belo, talentoso e singular. Tudo isto não o sei
porque mo contasse, limitei-me a tirar as minhas conclusões a partir de
indícios.
O abade, que inicialmente, ao ouvir aquelas palavras, sorrira, pois
julgara-as pretensiosas e algo petulantes, e para quem todo aquele assunto
era incómodo e desagradável, começou a refletir. Lembrava-se do pai de
Goldmund, daquele homem algo presumido e distante, e agora que ele lhe
vinha à memória, lembrou-se também, de repente, de algumas palavras que
na altura ele lhe dissera sobre a mãe de Goldmund. Acusara-a de o ter
desonrado e fugido de casa, contando que se esforçara por erradicar do
filhito as recordações da mãe, bem como todas as tendências nefastas que
dela pudesse ter herdado. Nisso fora bem-sucedido, e o rapazito mostrara-se
disposto a dedicar a vida a Deus para expiar os pecados da mãe.
Nunca Narciso desagradara ao abade tanto como agora. E, no entanto,
como fora certeiro nas suas reflexões, e que bem parecia conhecer, de facto,
Goldmund!
Para terminar, depois de ter sido novamente questionado sobre os
acontecimentos do dia, Narciso disse:
– Não foi intenção minha provocar o grande abalo que o Goldmund
sofreu hoje. Recordei-lhe que ele não se conhece a si próprio, que esqueceu
a infância e a mãe. Uma qualquer das minhas palavras deve tê-lo atingido e
penetrado naquela escuridão contra a qual eu há já tanto tempo luto. Ele
ficou sem reação, olhou-me como se não me conhecesse, nem a mim nem a
si próprio. Já muitas vezes lhe disse que vivia como que adormecido, que
ainda não acordara completamente. Agora não tenho dúvidas de que foi
acordado.
O abade despediu-o sem o repreender, proibindo-o, no entanto,
provisoriamente, de visitar o doente.
Entretanto, o padre Anselm mandara deitar numa cama o rapaz
inanimado e sentara-se ao seu lado. Não lhe parecia aconselhável obrigá-lo
a recuperar a consciência recorrendo a meios drásticos. O moço estava com
péssimo aspeto, e ele deixou-se ficar ali, bondoso e atento, com aquele seu
rosto engelhado de ancião. Tomou-lhe o pulso e auscultou-lhe o coração.
Certamente que tinha comido qualquer coisa inconcebível, achou, um
punhado de azedas ou algo tão estúpido como isso, era o costume. A língua
não a podia ver. Ele gostava de Goldmund, mas antipatizava com o seu
amigo, aquele mestrezeco precoce e inexperiente. E o resultado estava à
vista. De certeza que Narciso tinha culpas no cartório. Mas também, porque
é que um rapaz tão desempoeirado e de olhar tão claro e natural tinha logo
de travar amizade com aquele erudito altivo, com aquele vaidoso mestre da
gramática, para quem o grego era mais importante do que tudo o que era
vivo neste mundo?!
Quando, decorrido bastante tempo, a porta se abriu e o abade entrou, o
padre ainda continuava sentado, a olhar para o rosto do rapaz inanimado.
Que lindo rosto aquele, tão jovem e ingénuo! E agora ali estava ele sentado
ao seu lado, desejoso de o ajudar e provavelmente sem o poder fazer. Claro
que a causa até podia ser uma cólica; nesse caso, receitar-lhe-ia vinho
quente com especiarias e talvez ruibarbo. Mas quanto mais observava
aquele rosto lívido e contraído, mais tudo aquilo lhe parecia suspeito. O
padre Anselm tinha experiência. Por várias vezes, ao longo da sua já velha
vida, vira possessos. Hesitou em formular a suspeita, mesmo que o fizesse
apenas para si próprio. Iria esperar e continuar a observar. Mas se aquele
pobre moço estivesse realmente embruxado, pensou, irado, então haveria
que procurar longe o culpado. E o castigo não
se faria esperar.
O abade aproximou-se. Observou o doente, levantou-lhe suavemente
uma das pálpebras.
– Podemos acordá-lo? – quis saber.
– Quero esperar mais algum tempo. O coração está bom. Não devemos
permitir visitas.
– Estará em perigo?
– Não o creio. Não tem contusões em parte alguma, não há golpes nem
sinais de queda. Perdeu os sentidos, talvez devido a uma cólica. As dores
demasiado fortes podem fazer perder os sentidos. Se fosse uma intoxicação,
teria febre. Não, acabará por acordar e há de recuperar.
– Não poderá ter sido um abalo emocional?
– Não o posso pôr de parte. Passou-se alguma coisa? Terá havido algo
que o assustou muito? A notícia de alguma morte? Uma discussão violenta,
uma ofensa? Então, tudo se explicaria.
– Não o sabemos. Velai para que ninguém o venha visitar. Peço-vos que
vos mantenhais junto dele até que acorde. Se o seu estado piorar, mandai-
me chamar, mesmo a meio da noite.
Antes de se ir embora, o ancião curvou-se novamente sobre o doente.
Pensou no pai dele, no dia em que lhe fora trazido aquele moço loiro, tão
belo e alegre, e em como todos tinham gostado imediatamente dele. Ele
próprio simpatizara logo à primeira vista com o rapaz. Mas nisso Narciso
tinha, de facto, razão: o rapaz em nada se parecia com o pai! Ah, quantas
preocupações por todo o lado, como eram impotentes os esforços humanos!
Não teria ele talvez descurado o pobre moço? Ter--lhe-ia dado o confessor
adequado? Estaria certo de que ninguém naquela casa soubesse mais sobre
aquele aluno do que Narciso? Poderia ele ajudá-lo, ele que ainda se
encontrava no noviciado, que não sendo monge nem tendo ainda recebido
as ordens demonstrava já, em todos os pensamentos e opiniões, uma tão
áspera superioridade que por vezes se confundia com antipatia e
animosidade? Só Deus sabia se também ele, Narciso, não teria também
sido, desde há muito, maltratado ou abusado? Só Deus sabia se não andaria
ele a esconder, sob a máscara da obediência, algo de mau, se não seria um
herege? E por tudo o que aqueles dois jovens pudessem vir a ser, convinha
lembrar, era ele o responsável.
Quando Goldmund voltou a si, já tinha escurecido. Sentia tonturas e um
vazio na cabeça. Sentia que estava deitado numa cama, mas não sabia onde
estava, nem lhe interessava saber, era--lhe indiferente. Mas onde tinha
estado? De onde regressava, de que estranhas vivências? Tinha estado
algures, muito longe, tinha contemplado algo, algo extraordinário, algo
magnífico, algo terrível também e inesquecível – e, no entanto, acabara por
esquecê-lo. Onde estava? O que surgira à sua frente, tão grandioso e
doloroso e venturoso ao mesmo tempo, e voltara a desaparecer?
Tentou sondar no fundo de si, localizar o sítio certo onde hoje algo
irrompera, algo acontecera – mas o quê? Um emaranhado de imagens
ascendeu ao seu encontro, viu cabeças de cães, três cabeças de cães, e
aspirou um aroma de rosas.
E como se sentira angustiado! Fechou os olhos. Oh, como se sentira
dominado por aquela dor! Depois voltou a adormecer.
Tornou a acordar, e na debandada do mundo dos sonhos a esbater-se
rapidamente conseguiu ainda vê-la, reencontrou a imagem e estremeceu de
doloroso deleite. Via, recuperara a
visão. Podia vê-la! Viu a grande, a luminosa, a dos lábios cheios,
palpitantes, a dos cabelos cintilantes. Viu a sua mãe. E, ao mesmo tempo,
julgou ouvir uma voz: «Esqueceste a tua infância.» De quem era aquela
voz? Escutou, indagou e achou. Era Narciso. Narciso? E instantaneamente,
com um súbito abalo, tudo voltou: podia lembrar-se, agora sabia. Oh, mãe,
mãe! Montanhas de escombros, mares de esquecimento tinham-se afastado,
dissipado; aquela que perdera, a inefavelmente amada contemplava-o agora
com os seus majestosos olhos claros e
azuis.
O padre Anselm, que acabara por adormecer na poltrona, ao lado da
cama, acordou. Ouviu o doente mexer-se e respirar. Levantou-se
cautelosamente.
– Está aí alguém? – perguntou Goldmund.
– Sou eu, não te assustes; já acendo a luz.
Acendeu a lamparina, a claridade iluminou-lhe o rosto enrugado e
benévolo.
– Estou doente? – quis saber o rapaz.
– Perdeste os sentidos, meu filho. Dá-me cá a mão, vamos lá ver esse
pulso. Como te sentes?
– Bem. Muito agradecido, padre Anselm, sois muito bondoso. Nada me
falta, só estou cansado.
– Claro que estás cansado. Em breve voltarás a adormecer. Mas antes
bebe um gole deste vinho quente que tenho aqui preparado. Vamos beber
juntos uma taça e brindar à boa camaradagem, meu rapaz!
Tinha cuidadosamente preparado um pequeno púcaro com vinho e
especiarias, que pusera a aquecer num recipiente com água quente.
– Olha como dormimos ambos uma bela soneca – riu o médico. – Que
belo enfermeiro, hás de pensar, que nem sequer consegue manter-se
acordado. Mas pronto, afinal somos humanos. Agora vamos beber um
pouco desta poção mágica, meu filho. Não há nada mais lindo que uma
pequena farra secreta a meio da noite. À tua saúde!
Goldmund riu, brindou e saboreou. Ao vinho aquecido e adoçado com
açúcar fora juntado cravinho e canela, nunca tinha bebido aquilo. Lembrou-
se de que já tinha estado uma vez doente, na altura fora Narciso que tratara
dele. Desta vez era o padre Anselm que o tratava tão bem. Gostava de tudo
aquilo, era extraordinariamente agradável e estranho estar ali deitado à luz
de uma lamparina, a beber com o velho padre,
a meio da noite, um caneco de vinho quente e adocicado.
– Tens dores de barriga? – quis saber o ancião.
– Não.
– Pois, pensei que tivesses tido uma cólica, Goldmund. Mas pelos vistos
não foi isso. Mostra-me lá a língua. Pois, olha que bonito, mais uma vez o
velhote mostrou-se um ignorante. Amanhã continuas aqui deitadinho, eu
passo para cá para te observar. Não me digas que já acabaste com o vinho?
Ora bem, pois que te faça bom proveito! Deixa-me cá ver se ainda há aqui
mais. Ainda chega para meia tacinha para cada um de nós, se repartirmos
tudo irmãmente. Que grande susto me pregaste, Goldmund! Ali, estatelado
no claustro como um cadáver de criança. Mas a sério que não tens dores de
barriga?
Riram e repartiram fraternalmente o resto do vinho reservado aos
doentes. O padre continuou com os seus gracejos e Goldmund escutava-o,
grato e divertido, observando-o com os olhos novamente brilhantes.
Finalmente, o ancião foi deitar-se.
Goldmund ainda ficou algum tempo acordado; lentamente, as imagens
emergiram de novo do fundo da sua memória. Uma vez mais viu
incendiarem-se as palavras do amigo, e de novo surgiu na sua alma a
mulher loira e radiosa, a mãe. Como um vento quente, levantou-se aquela
recordação, atravessando-o como uma nuvem de vida, de calor, de ternura e
íntima advertência. Oh, mãe! Como fora possível tê-la esquecido!
V

Até então, Goldmund quase nada soubera da mãe, só o que outros lhe
tinham contado; já não se lembrava dela, e o pouco que julgava saber a seu
respeito não o contara a Narciso. A mãe era um tema sobre o qual não se
devia falar, algo que o envergonhava. Tinha sido bailarina, uma mulher bela
e indomável, de ascendência nobre mas pagã e dissoluta; o pai, segundo as
suas próprias palavras, admitira-a em sua casa para a livrar da miséria e da
vergonha; uma vez que não sabia se era ou não pagã, mandara-a batizar e
aprender os princípios religiosos; depois desposara-a, oferecendo-lhe um
estatuto respeitável. Ela, porém, após alguns anos de submissão e vida
regrada, voltara a lembrar-se das suas antigas artes e práticas, causara
escândalos e seduzira homens, ausentara-se de casa durante dias e semanas,
ganhara fama de feiticeira e, finalmente, depois de o marido a ter ido buscar
para junto dele, desaparecera para sempre.
A sua má fama perdurara ainda durante algum tempo, cintilante como a
cauda de um cometa, até que se extinguira. O marido recuperara lentamente
de todos aqueles anos de inquietação e de sustos, das vergonhas e das
constantes surpresas que ela lhe infligira; em lugar da mulher
desencaminhada, acabara por ser ele a educar o filhito, que na aparência e
no rosto muito se assemelhava à mãe; dominado pelo despeito e pela
beatice,
o pai incutira na criança a crença de que tinha de dedicar a vida a Deus para
expiar os pecados da sua mãe.
Era isto, de um modo geral, o que o pai de Goldmund costumava contar
sobre a mulher que perdera, embora preferisse evitar mencioná-la, e a algo
do género aludira também quando, ao entregar Goldmund no convento,
conversara com o abade. Toda essa lenda terrível era também do
conhecimento do filho, embora este tivesse aprendido a distanciar-se dela e
quase
a esquecê-la. Mas o que verdadeiramente esquecera e perdera tinha sido a
autêntica imagem da mãe, aqueloutra imagem completamente diferente, que
nada tinha a ver com as narrativas do pai e da criadagem e com os obscuros
e ferozes boatos que a rodeavam. A sua própria recordação genuína e vívida
da mãe, essa esquecera-a por completo. E agora surgira--lhe aqueloutra
imagem, a estrela dos seus primeiros anos despontara de novo.
– É inconcebível como pude esquecê-la – confessou ao amigo. – Nunca
na vida amei alguém como à minha mãe, nunca me entreguei de uma forma
tão incondicional e ardente; nunca adorei e admirei ninguém como a ela,
para mim ela era o Sol e a Lua. Sabe Deus como foi possível obscurecer na
minha alma esta imagem radiante, até transformá-la na bruxa maldosa,
pálida e sem contornos que ela foi, durante muitos anos, para o pai e para
mim.
Narciso terminara o noviciado há pouco e vestia já o hábito.
Estranhamente, o seu comportamento para com Goldmund alterara-se. Este,
que anteriormente tantas vezes rejeitara as indicações e as advertências do
amigo por as considerar empoladas e pretensiosas, ficara, desde o grande
evento, cheio de admiração e espanto pela clarividência do seu tutor.
Quantas das palavras de Narciso se tinham revelado profecias, até que
ponto
aquele ser inquietante conseguira percebê-lo, com que precisão detetara o
segredo da sua vida, adivinhara a sua ferida oculta, com que inteligência e
tato o conseguira curar!
Com efeito, o rapaz parecia estar curado: não só o desmaio fora
ultrapassado sem consequências; também aquele lado artificial, falsamente
precoce e inautêntico do seu carácter, todo aquele seu exaltamento
religioso, aquela sua autoimposta pseudodevoção e constante exigência
como que se esfumara. O rapaz parecia simultaneamente mais novo e mais
maduro desde que se encontrara. E tudo isso devia ao amigo!
Narciso, porém, comportava-se em relação a ele, desde há algum tempo,
com singular prudência; extremamente modesto, encarava-o já sem
qualquer sentimento de superioridade ou sentido pedagógico, apesar de toda
a admiração de que era alvo. Percebia que fontes secretas alimentavam
Goldmund com forças que lhe eram desconhecidas, e embora tivesse
podido fomentar o seu crescimento, não participava nelas. Alegrava-
-se ao ver o amigo libertar-se da sua tutela, mas por vezes isso entristecia-o.
Sentia-se como um patamar já ultrapassado, como um invólucro do qual ele
já se livrara; via assim aproximar-se o fim daquela amizade que tanto
representava para ele. Por enquanto, ainda sabia mais sobre Goldmund do
que ele próprio, pois, muito embora ele tivesse recuperado a sua alma e
estivesse disposto a seguir-lhe o apelo, ainda não podia prever onde este o
conduziria. Narciso intuía-o, e isso deixava-o desalentado; o percurso do
seu preferido conduzia-o a territórios que ele próprio nunca iria explorar.
O interesse de Goldmund pelas ciências diminuíra drasticamente.
Passara-lhe também o gosto pela contestação nas conversas com o amigo e
não era sem um certo pudor que recordava algumas dessas disputas.
Despontara entretanto em Narciso, nos últimos tempos, quer devido à
conclusão do próprio noviciado ou motivado pelas vivências com o amigo,
uma necessidade de recolhimento, de ascese e de prática de exercícios
espirituais, uma inclinação para o jejum, para as longas preces, confissões
frequentes e penitências voluntárias –
e Goldmund podia compreender e até quase partilhar essa tendência. Desde
a reconvalescença, o seu instinto tinha-se apurado extraordinariamente;
embora nada soubesse ainda sobre os seus futuros objetivos, sentia com
uma nitidez aguda e por vezes angustiante que o seu destino estava a ser
preparado, que uma certa trégua da inocência e da calma tinha passado e
tudo nele era agora tensão e disponibilidade. Frequentemente, esse
pressentimento enchia-o de felicidade, mantinha-o desperto parte da noite
como um doce encantamento; outras vezes, manifestava-se sob a forma de
uma obscura e profunda opressão. A mãe há muito perdida voltara
novamente para ele e a alegria era enorme. Mas onde o levaria o seu apelo
sedutor? À incerteza, a obscuros envolvimentos e perigos, talvez mesmo à
morte. Ao silêncio, à suave segurança de uma cela na comunidade
monástica vitalícia não conduziria certamente; o seu apelo nada tinha em
comum com aqueles imperativos paternos que durante tanto tempo
confundira com os próprios desejos. Era dessas impressões, que muitas
vezes se manifestavam com a intensidade ansiosa e ardente de uma estranha
sensação física, que se alimentava o fervor religioso de Goldmund. Na
repetição de longas preces à Santa Mãe de Deus canalizava e deixava fluir o
excesso emocional que o atraía para a sua própria mãe. Não raras vezes,
contudo, essas preces culminavam novamente naqueles sonhos
extraordinários e estranhos, que agora tão frequentemente o visitavam:
sonhos diurnos, em plena vigília, sonhos sobre ela, em que todos os seus
sentidos participavam. O mundo materno envolvia-o então, balsâmico,
contemplava-o do fundo de enigmáticos olhares amorosos, murmurava
profundo como o mar e o paraíso, balbuciava ternas palavras incoerentes,
ou antes prenhes de sentido, sabia a doce e salgado, roçava sedosos cabelos
por lábios e olhos sequiosos. Nem tudo era encanto na mãe e ela não se
resumia ao fascínio de um olhar amoroso de olhos azuis, a um encantador
sorriso que lhe prometia ditosa satisfação e terno consolo; encobertos sob
delicadas capas encontravam-se também nela todo o terror e toda a treva, a
vertigem da avidez e do medo, todos os pecados e toda a angústia, todos os
nascimentos e a inevitabilidade da morte.
O jovem afundava-se naqueles sonhos, deixava-se cair na teia de
múltiplos fios dos seus excitados sentidos. Neles não se manifestava apenas
o fascínio de um passado ditoso: infância e amor materno, o radioso e áureo
alvorecer da vida; neles vibrava também um futuro ameaçador, pleno de
promessas, seduções e perigos. Por vezes, esses sonhos, em que a mãe, a
madona e a amante se confundiam, pareciam-lhe, posteriormente,
tremendos crimes e blasfémias, como uma sucessão de pecados mortais
impossíveis de expiar; outras vezes, era neles que encontrava a redenção e a
harmonia. A vida fitava-o, plena de mistérios, um mundo sombrio e
insondável, uma floresta petrificada de espinhos, repleta de fantásticos
perigos – mas todos eles eram mistérios maternos, eram dela que vinham e
a ela conduziam, eles eram o pequeno círculo sombrio, o pequeno abismo
ameaçador no seu olhar claro.
Muito da infância esquecida ressurgia naqueles sonhos maternos, de
infinitas profundezas e perdições florescia um sem-fim de pequenas
recordações, despontavam, graciosas como flores, emanavam a sua ténue
fragrância de pressentimentos, lembranças de sensações da infância,
vivências talvez, ou talvez apenas sonhos. Por vezes sonhava com peixes,
as suas formas negras e prateadas a nadarem em direção a ele, frescas e
lisas, deslizando para dentro dele, atravessando-o, surgiam-lhe como
mensageiros, trazendo-lhe novas felizes de uma outra, mais bela realidade,
para logo desaparecerem, agitando sombrios as caudas, em vez de notícias
tinham nele depositado novos segredos. Frequentemente sonhava com
peixes a nadar e aves em voo, e cada um desses peixes e aves era uma
criatura sua, dele dependia e por ele era dirigido como a própria respiração,
irradiava como um olhar seu, como um pensamento seu, e a ele regressava.
Sonhava também insistentemente com um jardim, um jardim encantado de
árvores assombrosas, com flores imensas e fundas grutas azul-escuras; por
entre as ervas fitavam-no os olhos cintilantes de animais desconhecidos,
pelos ramos deslizavam serpentes musculadas e lisas; de vides e arbustos
pendiam, enormes, com o seu brilho húmido, gigantescas bagas, que ao
serem colhidas intumesciam nas suas mãos, derramando uma seiva quente
como sangue ou que, para seu espanto, lhe lançavam olhares cheios de
languidez e malícia; encostava-se ao tronco de uma árvore, tateando,
agarrava um ramo e via e sentia, entre o tronco e o ramo, um ninho de
espessos pelos emaranhados como os que cresciam na cova de uma axila.
Uma vez, sonhou consigo próprio ou com o seu patrono, sonhou com
Goldmund, Crisóstomo, de cuja boca de ouro brotavam palavras, e essas
palavras eram bandos de aves esvoaçantes que se afastavam a chilrear.
Outra vez, sonhou-se já homem adulto, mas sentado no chão como uma
criança, com barro à sua frente, e como uma criança usava o barro para
modelar figuras: um cavalinho, um touro, um homem, uma pequena mulher.
O amassar do barro divertia-o, e provia os animais e os homens de órgãos
sexuais ridiculamente exagerados, e no sonho achou imensa graça àquilo.
Depois, cansado da brincadeira, prosseguiu o seu caminho, quando sentiu
atrás de si algo vivo e silencioso, algo enorme aproximar-se, e quando
olhou para trás viu com profundo espanto e grande susto, não de todo isento
de regozijo, que as suas pequenas figuras de barro tinham crescido e
adquirido vida. Enormes, poderosas como gigantes taciturnos, as figuras
passaram por ele, marchando e crescendo ainda, continuamente, seguiam,
caladas, altas como torres, o seu caminho pelo mundo.
Mais do que no mundo real, vivia naquele mundo dos sonhos. O mundo
real, a sala de aulas, a cerca do convento, a biblioteca, o dormitório e a
capela eram só superfície, uma ténue membrana vibrando sobre um mundo
de imagens surreais alimentadas pelos sonhos. Um nada bastava para
perfurar essa fina membrana: algo sugestivo, intuído na sonoridade de um
vocábulo grego no decorrer de uma vulgar lição, uma fragrância saída do
herbário do padre Anselm, a visão de uma grinalda de folhas de pedra que
brotava do alto de uma coluna que sustentava o arco de uma janela –
pequenos estímulos que bastavam para rasgar a membrana da realidade e
desencadear, por detrás daquela amena e árida realidade, a erupção dos
abismos fragorosos, das caudalosas torrentes e vias lácteas do mundo
imagético da alma. Uma inicial latina transformava-se no rosto perfumado
da mãe, um som sustentado no Ave era a porta do paraíso, uma letra grega
um cavalo em pleno galope ou uma serpente erguendo-se e logo deslizando
em silêncio sob um tapete de flores, para logo de seguida dar lugar à página
rígida da gramática.
Raramente falava disso, poucas vezes fazia alusões a esse mundo onírico
nas conversas que tinha com Narciso.
– Creio – disse certa vez – que a pétala de uma flor, ou uma minhoca
encontrada no caminho, diz e contém muito mais do que todos os livros de
todas as bibliotecas. Com letras e palavras não se consegue dizer nada. Às
vezes, ponho-me a desenhar uma letra grega qualquer, um teta ou um
ómega, e, ao virar um pouco a pena, a letra parece torcer a cauda e
transforma-se num peixe, e por um segundo faz lembrar todos os ribeiros e
os caudais do mundo, tudo quanto é fresco e húmido, o oceano de Homero
e as águas sobre as quais São Pedro caminhou; ou então a palavra torna-se
um pássaro, levanta a cauda, eriça as penas, empola, solta um estridor,
esvoaça. Bem, Narciso, tu não ligas muito a essas palavras, não é? Mas
digo-te uma coisa: foi com elas que Deus escreveu o mundo.
– Tenho-as até em grande consideração – disse Narciso tristemente. –
São letras mágicas, com elas podem-se exorcizar todos os demónios. Só são
inadequadas para as disciplinas das ciências, claro. O espírito gosta do
consistente, da forma definida, ele precisa de confiar nos seus símbolos,
ama o ser, não o devir, o real, não o possível. Ele não permite que um
ómega se transforme numa serpente ou numa ave. O espírito não pode viver
na natureza, só consegue afirmar-se contra ela, como seu contraente.
Acreditas agora, Goldmund, que nunca serás um erudito?
Sem dúvida, Goldmund há muito que o sabia, e concordava.
– Já não estou tão obcecado como dantes por esse vosso espírito –
admitiu, meio a rir. – Acontece-me com o espírito e com a erudição o
mesmo que me aconteceu com o meu pai: julgava que o amava muito e que
era muito parecido com ele, acreditava cegamente em tudo o que dizia. Mas
bastou que a minha mãe aparecesse novamente para que eu voltasse a saber
o que é o amor, e, ao lado da sua imagem, a do pai definhou de repente e
tornou-se desagradável e quase repugnante. E agora tendo a associar o pai a
tudo o que tem a ver com o espírito e a achá-lo não materno ou mesmo
hostil ao princípio maternal, e a menosprezá-lo um pouco.
Disse aquilo em tom de gracejo, mas não conseguiu desanuviar o
semblante entristecido do amigo. Narciso contemplou-o em silêncio, o seu
olhar era como uma carícia. Finalmente, disse:
– Entendo-te perfeitamente. Agora já não precisamos de discutir;
acordaste, e também já reconheceste a diferença entre ti e mim, a diferença
entre as ascendências materna e paterna, entre a alma e o espírito. E em
breve irás também reconhecer que a tua vida no convento e os teus projetos
para uma vida monacal não passavam de um equívoco, de um projeto do
teu pai, que com isso terá pretendido expurgar a recordação da tua mãe, ou
apenas vingar-se dela. Ou será que ainda continuas a acreditar que o teu
destino é passar a vida inteira fechado no convento?
Goldmund ficou a olhar, pensativo, para as mãos do amigo, aquelas
mãos distintas, tão austeras quanto delicadas, magras e brancas. Ninguém
podia duvidar de que eram as mãos de um asceta e estudioso.
– Não sei – disse com aquela sua nova voz melodiosa, que parecia querer
demorar-se, hesitante, em cada tom. – A sério que não sei. Talvez estejas a
ser demasiado severo no julgamento que fazes do meu pai. A vida dele não
foi fácil. Mas talvez tenhas uma vez mais razão. Há mais de três anos que
aqui estou, na escola do convento, e ele nunca me veio visitar. Espera que
eu fique aqui para sempre. Talvez seja o melhor; afinal de contas, foi isso
mesmo que eu próprio desejei. Mas agora já não sei o que no fundo quero e
desejo. Antes era tudo fácil, tão fácil como as letras na cartilha. Agora já
nada é fácil, nem sequer as letras. Tudo adquiriu inúmeros significados e
semblantes. Não sei o que vai ser de mim, não consigo pensar nessas coisas
agora.
– Nem deves – achou Narciso. – Logo se verá onde te leva o teu
caminho. Ele já começou, conduziu-te de volta à tua mãe e irá aproximar-te
ainda mais dela. Mas no que ao teu pai diz respeito, não me parece que o
esteja a julgar com demasiada severidade. Gostarias de voltar para junto
dele?
– Não, Narciso, de certeza que não. De contrário, fá-lo-ia assim que
terminasse a escola, ou já agora. Para alguém que não tenciona ser um
doutor da Igreja, já aprendi, no fundo, suficiente latim, grego e matemática.
Não, não quero voltar para junto do pai…
Durante algum tempo ficou a olhar à sua volta, com um ar pensativo, até
que de repente exclamou:
– Mas como é que tu fazes para encontrares sempre as palavras e as
perguntas certas que me iluminam e esclarecem?! Ainda agora foi essa tua
pergunta sobre se queria voltar para junto do meu pai que me deu a ver, de
repente, que, no fundo, não quero. Como é que consegues isso? Pareces
saber tudo. Disseste-me já tanta coisa acerca de ti e de mim que na altura
não compreendi, mas que depois se tornou tão importante para mim! Foste
tu que me explicaste que a minha orientação é materna, e foste tu que
descobriste que um sortilégio me fez esquecer a infância! Como é que
podes conhecer tão bem as pessoas? Será algo que eu possa também
aprender?
Narciso abanou a cabeça, sorrindo.
– Não, meu caro, isso não podes. Há pessoas com uma grande
capacidade de aprender, mas não é esse o teu caso. Nunca serás um
estudioso. E para quê, afinal? Não precisas disso, os teus talentos são
outros. Tens mais dons do que eu, és mais rico do que eu, e também és mais
fraco, o teu percurso será mais belo e mais difícil do que o meu. Por vezes
não me quiseste compreender, ou revoltaste-te como um poldro; nem
sempre foi fácil e muitas vezes tive mesmo de te magoar. Precisava de te
acordar, já que estavas adormecido. Ao ter-te lembrado a tua mãe, magoei-
te muito, ao princípio, encontraram-te inanimado, como um morto, no
claustro. Teve de ser. Não, não me afagues o cabelo! Para lá com isso! Não
gosto disso!
– Então nunca hei de aprender nada? Hei de ser sempre ignorante e uma
criança?
– Hás de encontrar outros com quem possas aprender. O que tinhas a
aprender comigo, meu caro, já aprendeste.
– Não – exclamou Goldmund –, não foi para isso que nos tornámos
amigos! Que amizade seria essa, que após um breve percurso comum
atingisse o seu objetivo e simplesmente acabasse? Já estás farto de mim?
Deixaste de gostar de mim?
Narciso começou a andar de um lado para o outro, visivelmente agitado,
os olhos postos no chão, até que parou diante do amigo.
– Acaba com isso – disse com brandura. – Sabes perfeitamente que não
deixei de gostar de ti.
Hesitante, ficou a olhar para o amigo, depois recomeçou a andar de um
lado para o outro, voltou a parar e encarou Goldmund, o olhar decidido no
rosto severo e magro.
– Escuta bem, Goldmund! A nossa amizade foi uma boa amizade; teve
um objetivo e conseguiu atingi-lo, acordou-te. Da minha parte espero que
não tenha chegado ao fim; o meu desejo é que consiga renovar-se uma vez
mais, e continuamente, e que conduza a novos objetivos. De momento, não
vejo nenhum objetivo. O teu mantém-se incerto, não te posso conduzir nem
acompanhar. Pergunta à tua mãe, à sua imagem, ouve o que ela tem para te
dizer! Mas o meu objetivo não se encontra na incerteza, está aqui, no
convento, exige algo de mim a cada hora. Posso ser teu amigo, mas não
posso enamorar-me. Sou monge, fiz os meus votos. Antes de tomar as
ordens, pedirei dispensa do magistério e recolher-me-ei, durante algumas
semanas, para jejuns e exercícios. Durante todo esse período não tratarei de
assuntos profanos, nem mesmo contigo.
Goldmund compreendeu. Entristecido, disse:
– Queres então fazer o que eu teria também feito se decidisse entrar em
definitivo para a Ordem. E quando tiveres cumprido os teus exercícios,
depois de teres jejuado e orado e de te teres imposto todas as horas de
vigília, qual será então o teu objetivo?
– Já o conheces – respondeu Narciso.
– Pois, dentro de alguns anos serás mestre-principal, talvez mesmo o
superintendente da escola. Reformarás o ensino, aumentarás a biblioteca.
Talvez escrevas tu próprio livros. Não? Pois bem, então não. Mas qual será
então o teu objetivo?
Narciso esboçou um sorriso.
– O objetivo? Talvez morra como diretor da escola, ou como abade ou
bispo. Seja o que Deus quiser. O objetivo é este: colocar-me sempre à
disposição onde melhor possa servir, onde a minha maneira de ser, as
minhas capacidades e aptidões encontrem o solo mais fecundo, o campo de
ação mais vasto. Não tenho outro objetivo.
Goldmund:
– Não há outro objetivo para um monge?
Narciso:
– Oh, sim, metas não faltam. Para um monge pode constituir o objetivo
de vida aprender o hebreu, comentar Aristóteles, ou decorar a igreja do
convento, ou recolher-se para meditar, ou fazer centenas de outras coisas.
Para mim não têm interesse. Não pretendo aumentar o património do
convento, nem reformar a Ordem ou a Igreja. Quero servir o espírito dentro
do que me é possível, tal como o compreendo, e nada mais. Não crês que
isso constitua um objetivo?
Goldmund refletiu longamente na resposta.
– Tens razão – disse. – Achas que te estorvei muito no caminho para
alcançares os teus fins?
– Estorvar-me, tu? Oh, Goldmund, ninguém mais do que tu soube
incentivar-me. Causaste-me dificuldades, mas eu não sou inimigo das
dificuldades. Aprendi com elas, e em parte consegui superá-las.
Goldmund interrompeu-o e disse, meio a brincar:
– Superaste-as maravilhosamente! Mas diz-me lá: se me ajudaste,
orientando-me, libertando-me e restituindo a saúde à minha alma, será que
com isso serviste mesmo o espírito? Provavelmente, com isso tiraste ao
convento um noviço aplicado e cheio de boa vontade, enquanto educavas
talvez um adversário do espírito, alguém que talvez aspire a fazer, a crer e a
desejar precisamente o contrário daquilo que consideras bom!
– E porque não? – disse Narciso com profunda convicção. – Muito
pouco me conheces ainda, meu caro! Provavelmente, estraguei em ti uma
vida de monge, desbravando-te o caminho para um destino invulgar.
Mesmo se amanhã incendiasses todo o nosso lindo convento, ou se
desatasses a pregar por esse mundo fora uma qualquer louca heresia, em
momento algum me arrependeria de ter-te ajudado a encontrar o teu rumo.
Afetuosamente, pousou ambas as mãos nos ombros do amigo.
– Repara, meu pequeno Goldmund, dos meus objetivos faz também parte
o seguinte: quer venha a tornar-me mestre, abade, confessor ou o que quer
que seja, nunca quereria chegar a uma situação em que me depare com uma
pessoa forte, valiosa e especial e não a consiga compreender, interpretar e
apoiar.
E digo-te mais: tu e eu podemos tornar-nos no que quer que seja, a vida
poderá correr-nos bem ou mal, mas nunca, no momento em que me
chamares e achares que precisas verdadeiramente de mim, me encontrarás
fechado ao teu apelo. Nunca.
Aquilo parecia uma despedida, e era, na verdade, o prenúncio de um
adeus. Naquele momento, diante do amigo e ao olhar para o seu rosto
decidido, olhos postos nos objetivos, sentiu iniludivelmente que já não eram
irmãos, companheiros e iguais, e que os seus caminhos se tinham já
separado. Aquele que ali estava à sua frente nada tinha de sonhador, nem
esperava por uns quaisquer chamamentos do destino; era um monge,
comprometera-se, pertencia a uma ordem firme e a uma obrigação, era um
servidor e um soldado da Ordem, da Igreja, do espírito. Ele próprio, no
entanto, como acabara de reconhecer, já não pertencia àquele sítio, não
tinha pátria, um mundo desconhecido esperava por ele. O mesmo sucedera
outrora com a sua mãe. Tinha abandonado casa e lar, marido e filho,
comunidade e ordem, dever e honra, e assumira a incerteza do
desconhecido, onde por certo há muito se perdera. Também ela não tinha
metas traçadas, tal como ele as não tinha. Ter e traçar metas era para outros,
não para ele. Com que lucidez previra Narciso tudo isso há tanto tempo, e
como tivera razão!
Pouco tempo volvido após esse dia, Narciso parecia ter desaparecido; foi
como se, de repente, se tivesse tornado invisível. Um outro mestre passou a
dar as suas aulas, o seu atril na biblioteca permanecia vazio. Ele ainda lá
estava, não se tinha tornado completamente invisível, por vezes ainda podia
ser visto a atravessar o claustro, ou a murmurar algo numa das capelas,
ajoelhado nas lajes do chão; sabia-se que iniciara o grande período de
exercícios, que jejuava e se levantava três vezes durante a noite para
cumprir as penitências. Ainda lá estava e, no entanto, era como se tivesse
passado para um outro mundo; era possível vê-lo, muito raramente, mas não
era possível alcançá-lo, partilhar algo com ele, falar com ele. Goldmund
sabia que Narciso voltaria a aparecer, que iria ocupar de novo o seu local de
trabalho, a sua cadeira no refeitório, que voltaria a falar com os outros –
mas do passado nada retornaria. Narciso não voltaria a pertencer-lhe. Ao
aperceber-se disso, tornou-se-lhe também claro que fora apenas devido a
Narciso que o convento e a vida monacal, a gramática e a lógica, o estudo e
o espírito se tinham tornado tão importantes e queridos para ele. O seu
exemplo seduzira-o, tornar-se alguém como ele fora o seu ideal. É certo que
também havia o abade, também o venerara e o amara e nele vira um alto
exemplo a seguir. Mas os outros, os mestres, os companheiros, o
dormitório, o refeitório, a escola e os trabalhos escolares, o culto – no
fundo, todo o convento – sem Narciso nada lhe diziam. Que fazia ali ainda?
Aguardava, abrigava-se por baixo do telhado do convento como um
viajante indeciso se abriga sob um qualquer telhado ou uma árvore durante
um súbito aguaceiro, apenas para esperar, apenas como hóspede, apenas por
medo perante a hostilidade do desconhecido.
A vida de Goldmund durante esse período não foi mais que indecisão e
despedida. Visitou todos os sítios de que gostara ou que se tinham tornado
importantes para ele. Com uma sensação de indiferença e espanto constatou
quão poucas eram as pessoas e os rostos de quem lhe custaria separar-se.
Havia Narciso e o velho abade Daniel, e ainda o bom e querido padre
Anselm, e talvez ainda o amável porteiro e o vizinho moleiro, com a sua
vitalidade – mas também eles se tinham tornado já quase irreais. Mais do
que deles, iria custar-lhe despedir-se da grande madona de pedra da capela,
ou dos apóstolos do portal. Demorava-se então diante das figuras, tal como
diante dos belos entalhes das cadeiras do coro, da fonte no centro do
claustro ou das colunas com as três cabeças de animais; na cerca, deixava-
se ficar encostado ao tronco das tílias, do castanheiro. Tudo aquilo iria
tornar-se uma recordação para ele, uma pequena iluminura no seu coração.
Já agora, mesmo ainda lá estando, tudo começava a desvanecer-se, a perder
realidade, transformando-se fantasmagoricamente em algo pretérito. Com o
padre Anselm, que muito prezava a sua companhia, ia colher ervas; quando
visitava o moleiro, assistia aos trabalhos dos criados e aceitava, de quando
em quando, o vinho e o peixe assado no forno que lhe ofereciam; mas tudo
lhe era estranho e já quase metade lembrança. Tal como lá ao longe, na
penumbra da igreja e na cela da penitência, o seu amigo Narciso se
transformara, para ele, numa sombra; embora caminhasse e vivesse,
também tudo à sua volta perdera realidade, ressumava a outono e
transitoriedade.
Real e viva era já só a vida dentro dele, o palpitar ansioso do coração, o
espinho doloroso da nostalgia, as alegrias e os receios que sentia nos
sonhos. A eles pertencia e a eles se entregava. A meio de uma leitura ou
enquanto estudava entre os colegas da escola, acontecia-lhe começar a
devanear e esquecer tudo, entregue apenas e só às torrentes e às vozes da
sua vida interior, que o arrastavam para profundas fontes saturadas de
melodias escuras, para abismos coloridos de fantásticas vivências, cujos
sons declinavam todos a voz da sua mãe, cujos milhares de olhos refletiam
o olhar da sua mãe.
VI

Um dia, o padre Anselm chamou Goldmund à sua botica, à sua linda


ervanária maravilhosamente perfumada. Goldmund conhecia o local. O
padre mostrou-lhe uma planta seca do herbário, cuidadosamente guardada
entre duas folhas de papel, e perguntou-lhe se a conhecia bem e se era capaz
de descrever pormenorizadamente o seu aspeto no campo. Sim, era, disse
Goldmund; a planta chamava-se hipericão. Depois teve de descrever
minuciosamente todas as suas características. O velho monge mostrou-se
satisfeito e encarregou o jovem amigo de ir colher, nessa mesma tarde, um
bom molho daquela erva, indicando-lhe os locais onde costumava crescer.
– Em troca ficas com a tarde livre, meu caro. De certeza que não tens
nada a opor, nem perdes nada, porque o conhecimento da natureza também
é uma ciência, não é só a vossa gramática idiota.
Goldmund agradeceu o bem-vindo encargo de passar um par de horas a
colher flores, em vez de ficar sentado na escola. Para que a alegria fosse
completa, pediu ao moço da estrebaria o cavalo Bless; logo a seguir à
refeição, foi buscar ao estábulo o animal, que o saudou relinchando,
montou-o e partiu a trote, satisfeitíssimo, pelos campos fora, naquela tarde
quente e luminosa. Cavalgou uma hora ou mais pelo simples gozo de
montar, desfrutando do ar e dos aromas campestres, até que se lembrou da
incumbência e procurou um dos lugares que o padre lhe descrevera. Aí
prendeu o cavalo por baixo de um frondoso bordo, conversou um pouco
com ele, deu-lhe pão a comer e foi à procura das plantas. Havia ali campos
em pousio invadidos pelas mais variadas ervas: pequenas papoilas
enfezadas, com as derradeiras corolas desmaiadas e as cápsulas já cheias de
sementes maduras, podiam ver-se entre gavinhas de ervilhaca murcha,
chicória florida de um tom azul-celeste e esparguta desmaiada; uns
amontoados de pedras entre dois campos eram habitados por lagartixas.
Logo ali se encontravam os primeiros tufos amarelos de hipericão em flor,
que Goldmund começou a colher. Depois de juntar uma boa braçada,
sentou-se em cima das pedras e descansou. Fazia calor e ele lançou um
olhar desejoso para a orla escura do bosque distante, mas não queria afastar-
se tanto das plantas e do cavalo, que ele dali ainda podia ver. Continuou,
portanto, sentado nos calhaus quentes, muito quieto, esperando ver surgir
novamente as lagartixas que a sua presença afugentara; aspirou o aroma do
hipericão e ergueu as suas pequenas folhas contra a luz, para admirar as
centenas de minúsculas nervuras.
Que espantoso, pensou, como cada um de milhares de folhinhas tem em
si gravado um minúsculo firmamento estrelado, delicado como um bordado.
Tudo ali era espantoso e inconcebível, as lagartixas, as plantas e as pedras,
absolutamente tudo. O padre Anselm, que tanto gostava dele, já não podia ir
colher o seu hipericão, tinha problemas nas pernas, que o deixavam
imobilizado durante dias, e as suas artes medicinais não o curavam. Talvez
estivesse prestes a morrer e as ervas, na sua câmara, continuariam a soltar o
seu aroma, sem que o velho padre ali estivesse. Ou talvez vivesse ainda por
muito tempo, por dez ou vinte anos, mantendo os mesmos ralos cabelos
brancos e aqueles engraçados feixes de rugas em volta dos olhos. Mas ele
próprio, Goldmund, que seria dele dali a vinte anos? Como tudo era
incompreensível e, de facto, triste, embora não deixasse, por outro lado, de
ser também belo. Nada se sabia. Vivia-se e vagueava-se pelo mundo fora,
cavalgava-se pelos bosques e havia coisas que nos fitavam, desafiantes e
auspiciosas: uma estrela a despontar ao fim da tarde, uma campainha-azul, a
mancha verde de um caniçal num lago, o olho de uma pessoa ou de uma
vaca, e por vezes acontecia-lhe achar que algo nunca visto, embora há
muito desejado, estava prestes a acontecer, como se o cair de um véu
desvendasse o mundo; mas, depois, aquele instante passava e nada
acontecia, o enigma não era decifrado, o sortilégio secreto não se desvelava
e, por fim, uma pessoa acabava por envelhecer e ficava com aquele ar meio
travesso do padre Anselm, ou tão sensato como o abade Daniel, sem talvez
ter chegado a qualquer conclusão, continuava à espera, ainda e sempre, e à
escuta.
Apanhou uma concha vazia de caracol, que tilintou levemente por entre
as pedras e estava quente do sol. Contemplou com atenção as volutas da
concha, os canais espiralados, o caprichoso rejuvenescimento da pequena
coroa e o orifício vazio, iridescente como madrepérola. Fechou os olhos
para lhe sentir as formas com o tatear dos dedos; era uma brincadeira e um
velho hábito seu. Virando e revirando a concha com os dedos entreabertos,
foi-a apalpando, sem fazer pressão, acariciando o relevo, encantado com o
milagre da forma, com a magia da matéria. Essa era – pensou, sonhador –
uma das desvantagens da escola e da erudição: uma das tendências do
espírito parecia consistir em ver e representar tudo de uma forma
superficial, como se apenas tivesse duas dimensões. De certo modo, isso
parecia-lhe revelar uma lacuna e a insuficiência do raciocínio, mas não
conseguiu fixar aquele pensamento; o caracol escorregou-lhe dos dedos,
sentiu-se cansado e sonolento. Adormeceu ali ao sol, com a cabeça
inclinada para as ervas, que ao murcharem exalavam um aroma cada vez
mais intenso. As lagartixas passaram-lhe por cima dos sapatos, em cima dos
seus joelhos murchavam as plantas e, à sombra do plátano, Bless esperava e
começava a
impacientar-se.
Da floresta distante vinha andando alguém, uma mulher jovem com uma
saia de um azul desbotado, um lencinho vermelho atado à volta do cabelo
negro, o rosto maduro tisnado pelo sol. Aproximou-se, na mão uma trouxa,
na boca um pequeno cravo silvestre de um vermelho luminoso. Viu o rapaz
sentado, ficou a observá-lo de longe durante bastante tempo, curiosa e
desconfiada, apercebeu-se de que estava a dormir, avançou, os pés escuros e
descalços pisando o solo com cautela, deteve-
-se mesmo à frente de Goldmund e contemplou-o. A sua desconfiança
desapareceu, o belo moço adormecido não parecia perigoso, agradou-lhe –
como teria ele ido ali parar, àqueles campos baldios? Tinha andado a colher
flores, constatou com um sorriso, flores que já estavam murchas.
Goldmund abriu os olhos, regressando das florestas dos seus sonhos.
Sentia a cabeça apoiada em algo macio, no rega-
ço de uma mulher; uns outros olhos, cálidos e castanhos, olhavam de muito
perto os seus, sonolentos e surpreendidos. Não se assustou, não havia
perigo, as duas estrelas castanhas iluminavam-no, afetuosas. O seu espanto
fez sorrir a mulher, um sorriso adorável, e, lentamente, também ele esboçou
um sorriso.
A boca dela chegou-se aos seus lábios sorridentes, saudaram-se num beijo
suave, que o fez recordar aquela noite na aldeia e a rapariguinha das
tranças. Mas o beijo ainda não chegara ao fim. A boca da mulher demorou-
se colada à sua, insistiu, desafiando e provocando, e acabou por se apoderar
dos seus lábios, sôfrega e violenta, invadindo-lhe o sangue e despertando-o
no mais fundo do seu ser; e, num jogo demorado e mudo, a mulher morena
entregou-se ao rapaz, ensinando-o suavemente, deixando-o procurar e
encontrar, inflamando e aplacando-lhe o ardor. O ditoso e breve êxtase do
amor espraiou-se então sobre ele, lavrou, áureo e incandescente, até
esmorecer e extinguir--se. Goldmund deixou-se ficar deitado, os olhos
fechados, o rosto colado ao peito da mulher. Não tinham trocado uma única
palavra. A mulher sossegou, acariciou-lhe o cabelo em silêncio, deixou-o
voltar lentamente a si. Por fim, Goldmund abriu os olhos.
– Diz-me – perguntou –, quem és tu?
– Sou a Lise – respondeu ela.
– A Lise – repetiu Goldmund, saboreando o nome. – Lise, tu és uma
querida.
Ela aproximou a boca do seu ouvido e segredou-lhe:
– Ouve lá, foi a primeira vez para ti? Não amaste outra mulher antes de
mim?
Ele abanou a cabeça. Depois ergueu-se subitamente e olhou à sua volta,
para os campos e para o céu.
– Oh – exclamou –, o Sol já está baixo. Tenho de voltar.
– Para onde?
– Para o convento, para o padre Anselm.
– Para Mariabronn? É lá que vives? Não queres ficar comigo um pouco?
– Bem gostaria.
– Então fica!
– Não, seria injusto. Ainda tenho de colher mais destas ervas.
– Vives mesmo no convento?
– Sim, sou lá aluno. Mas não vou lá ficar. Posso ir ter contigo, Lise?
Onde moras, onde é a tua casa?
– Não moro em lado nenhum, meu tesouro. Mas não me queres dizer o
teu nome? Chamas-te então Goldmund? Dá-me lá mais um beijo, pequeno
Goldmund, minha boquinha de ouro, depois podes ir.
– Não vives em parte alguma? Então, onde é que dormes?
– Se quiseres, contigo, na floresta ou no feno. Vens hoje à noite?
– Vou. Mas aonde? Onde te encontro?
– Sabes imitar o piar da coruja?
– Nunca experimentei.
– Experimenta lá.
Goldmund tentou. Ela riu-se e ficou satisfeita.
– Então sai hoje à noite do convento e imita o pio da coruja. Estarei por
perto. Gostas de mim, Goldmund, meu lindo menino?
– Se gosto, Lise! Eu volto. Vai com Deus. Agora tenho de ir.
Chegou ao convento já ao crepúsculo, com o cavalo a espumar, e ficou
aliviado por encontrar o padre Anselm muito ocupado. Um irmão tinha
andado a divertir-se descalço no rio e cortara o pé nuns estilhaços de vidro.
Agora tinha de encontrar Narciso. Perguntou por ele a um dos irmãos
auxiliares que estavam de serviço no refeitório. Não, informaram-no,
Narciso não viria jantar, tinha jejuado durante o dia e agora devia estar a
dormir, porque teria vigília ao longo da noite. Goldmund desatou a correr. O
lugar onde o amigo dormia durante o longo período de retiro era uma das
celas de penitentes no interior do convento. Correu para lá, sem pensar em
mais nada. Pôs-se à escuta, à porta, mas nada se ouvia. Entrou sem fazer
barulho. Sabia que o que estava a fazer era rigorosamente proibido, mas
isso agora não interessava.
Narciso estava deitado na estreita tarimba, de costas, e na penumbra
quase parecia um morto, hirto, com o rosto pálido e escavado, as mãos
cruzadas sobre o peito; tinha os olhos abertos, não dormia. Olhou para
Goldmund em silêncio, sem o censurar, mas tão imóvel e visivelmente tão
distante de tudo, tão ausente num outro tempo e num outro mundo que teve
dificuldade em reconhecer o amigo e compreender as suas palavras.
– Narciso! Perdoa, perdoa que te perturbe, meu caro, não o faço por
leviandade. Bem sei que, no fundo, não devias agora falar comigo, mas fala,
peço-te por tudo que o faças.
Narciso refletiu, durante um momento piscou intensamente os olhos,
como que esforçando-se por acordar.
– É necessário? – quis saber com voz sumida.
– Sim, é necessário. Vim para me despedir de ti.
– Então é necessário. Não quero que tenhas vindo em vão. Senta-te aqui
ao pé de mim. Temos um quarto de hora até ao começo da primeira vigília.
Tinha-se soerguido e estava agora sentado, visivelmente emagrecido, na
tábua nua onde dormia; Goldmund sentou-se ao seu lado.
– Desculpa-me! – disse, contrito. A cela, o despojamento da tarimba, o
rosto intenso e exausto do amigo, o seu olhar meio ausente, tudo aquilo lhe
mostrava à evidência o quanto viera ali perturbar.
– Não há razão para pedir desculpa. Não te importes comigo, nada me
falta. Queres despedir-te, dizes? Vais-te embora, então?
– Parto ainda hoje. Ai, nem sei como te contar! Tudo se resolveu de
repente.
– O teu pai está cá, ou chegou alguma mensagem dele?
– Não, nada disso. Foi a própria vida que veio ter comigo. Vou-me
embora sem o pai, sem consentimento. Olha, Narciso, vou envergonhar-te,
vou fugir.
Narciso baixou os olhos, o olhar fixou-se nos dedos longos e brancos,
que saíam, esguios e espectrais, das largas mangas do hábito. Quando
finalmente falou, não foi no rosto severo e extremamente fatigado que se
sentiu um sorriso, mas antes na tonalidade da voz:
– Temos muito pouco tempo, meu caro. Diz apenas o necessário, e di-lo
com clareza e brevidade. Ou será que terei de ser eu a dizer-te o que
sucedeu contigo?
– Di-lo tu – pediu Goldmund.
– Estás apaixonado, meu rapaz, conheceste uma mulher.
– Como pudeste adivinhar novamente?
– Tu facilitas-me a tarefa. O teu estado, amice, apresenta todos os
indícios dessa espécie de embriaguez a que se costuma chamar paixão. Mas
conta lá então, por favor.
Timidamente, Goldmund pousou a mão no ombro do amigo.
– Tu já o disseste. Só que, desta vez, não disseste o suficiente, Narciso,
não corretamente. É muito diferente. Estive lá fora, no campo, adormeci
com o calor e, quando acordei, tinha a cabeça pousada no regaço de uma
mulher linda, e senti logo que a minha mãe tinha chegado para me levar
consigo. Não que tomasse aquela mulher pela minha mãe, ela tinha olhos
castanho-escuros e o cabelo negro, e a minha mãe era loira como eu,
completamente diferente. Mas não deixava de ser ela, o apelo era o dela, a
mensagem vinha dela. Como que surgida dos sonhos do meu próprio
coração, ali estava, de repente, uma formosa desconhecida, a segurar-me a
cabeça pousada no seu colo, e sorriu-me como uma flor e foi carinhosa para
mim; assim que me beijou pela primeira vez, senti que algo se fundia em
mim, algo que me arrastava numa dor feliz. Toda a nostalgia que nunca
senti, todos os sonhos, todas as doces angústias, todos os segredos que em
mim dormiam, latentes, acordaram, tudo se transformou, como num
sortilégio, e adquiriu sentido. Ela ensinou-me o que é uma mulher e o
segredo que guarda. Em meia hora fez-me muitos anos mais velho. Fiquei a
saber uma infinidade de coisas. E também fiquei a saber, de repente, que
terminou a minha permanência nesta casa, que não poderei cá ficar nem
mais um dia. Parto assim que a noite chegue.
Narciso escutou e acenou afirmativamente.
– Aconteceu de repente – disse –, mas é sensivelmente aquilo que eu
esperava. Irei pensar muito em ti. Muita falta me farás, amice. Posso fazer
alguma coisa por ti?
– Se for possível, intercede por mim junto do abade, para que não me
condene completamente. Ele é o único, aqui nesta casa, para além de ti,
cujo juízo acerca de mim não me é indiferente. Ele e tu.
– Eu sei… Há algo mais que queiras?
– Sim, tenho um pedido a fazer-te. Quando mais tarde pensares em mim,
reza por mim uma vez! E… obrigado.
– Porquê, Goldmund?
– Pela tua amizade, pela tua paciência, por tudo. Também por me ouvires
hoje, quando é tão difícil para ti. Também por não teres tentado convencer-
me a ficar.
– Como é que poderia ter tentado deter-te? Sabes bem o que penso a esse
respeito. Mas para onde é que vais, Goldmund? Tens algum plano? Vais ter
com essa mulher?
– Vou com ela, sim. Objetivos, não tenho. Ela é de fora, não tem pátria,
parece, talvez seja cigana.
– Bom, mas diz-me, meu caro, estás consciente de que o teu caminho
com ela talvez seja bastante curto? Não devias confiar demasiado nela, acho
eu. Talvez tenha familiares, ou mesmo um marido; quem sabe como te irão
receber.
Goldmund encostou-se ao amigo.
– Eu sei – disse –, apesar de ainda não ter pensado nisso. Como te disse:
não tenho objetivos nem planos. Nem se pode dizer que aquela mulher que
foi tão carinhosa para comigo seja um objetivo meu. Vou ter com ela, mas
não é por causa dela. Vou porque tenho de ir, porque sinto o apelo.
Goldmund calou-se e suspirou; ficaram sentados encostados um ao
outro, tristes e simultaneamente felizes e conscientes da sua amizade
indestrutível. Depois, Goldmund prosseguiu:
– Não julgues que sou completamente cego e inconsciente. Não, vou de
bom grado, pois sinto que assim tem de ser, e porque hoje tive uma
experiência tão maravilhosa. Mas não penso que me espera só felicidade e
diversão. Penso que o meu caminho será difícil. Mas não é por isso que
deixará de ser belo, pelo menos assim o espero. É tão bonito pertencermos a
uma mulher, podermos entregar-nos! Não te rias de mim, mesmo que o que
digo te pareça insensato. Mas vê bem: amar uma mulher, darmo-nos por
completo, envolvermo-nos ambos, mútua e completamente, não é o mesmo
a que tu chamas com algum desdém estar apaixonado. Não se deve
desdenhar isso. Para mim representa o caminho para a vida e para o sentido
da vida. Oh, Narciso, tenho de te abandonar! Amo-te, Narciso, e agradeço-
te o teres-me sacrificado hoje um pouco do teu sono. Custa-me tanto
separar-me de ti. Não me esquecerás?
– Não aumentes a minha tristeza! Jamais te esquecerei. Voltarás, sou eu
quem to pede, espero bem que voltes. Se alguma vez te encontrares em
apuros, vem ter comigo ou chama-me. Adeus, Goldmund. Que Deus esteja
contigo!
Tinha-se levantado. Goldmund abraçou-o. Conhecendo o
constrangimento do amigo em relação a tudo o que fosse carícias, não o
beijou, limitou-se a afagar-lhe as mãos.
Caíra a noite. Narciso fechou a cela atrás de si e encaminhou-se para a
igreja, com o bater das sandálias a marcar o ritmo dos seus passos nas lajes.
Goldmund acompanhou, comovido, o vulto magro, até este desaparecer
como uma sombra ao fundo do corredor, tragado pela escuridão da porta da
igreja, absorvido e convocado por exercícios, obrigações, virtudes. Oh,
como tudo era estranho e infinitamente imprevisível e confuso! Como fora
também estranho e assustador tudo aquilo por que acabara de passar: ir ter
com o amigo com o coração transbordante, com toda aquela embriaguez
amorosa, precisamente no momento em que este, após longas meditações,
consumido por jejuns e vigílias, crucificava e sacrificava a sua juventude, o
seu coração e os seus sentidos, submetendo-se à mais severa escola da
obediência, para servir apenas e só o espírito e tornar-se inteiramente num
minister verbi divini! Vira-o ali, jazendo, esgotado e exausto, com o rosto
lívido e as mãos descarnadas, como um cadáver, e, no momento seguinte,
logo se prestara para o atender a ele, atento e amável como sempre,
concedendo-lhe a sua atenção, a ele, o amante, ainda a cheirar a mulher,
sacrificando-lhe o escasso repouso entre duas penitências! Estranho era
tudo aquilo, tal como era maravilhosamente belo que existisse também
aquela forma de amor abnegada e totalmente espiritualizada. Tão diferente
daqueloutro amor que sentira hoje no campo incendiado pela luz, daquele
inebriante e gratuito jogo dos sentidos! E, no entanto, eram ambos formas
do amor. Agora, Narciso desaparecera-lhe, depois de lhe ter mostrado, uma
vez mais, com toda a clareza, naquela derradeira hora, o quanto eram
diferentes e dissemelhantes. Narciso estava agora ajoelhado diante do altar,
fatigadíssimo mas preparado e purificado para passar uma noite de oração e
contemplação, em que não lhe eram permitidas mais que duas horas de
descanso e sono, enquanto ele, Goldmund, fugia dali, para ir encontrar
algures, por baixo das árvores, a sua Lise e com ela repetir aqueles doces
jogos animais! Narciso saberia tirar importantes conclusões sobre tudo
aquilo. Ele, porém, não era Narciso. Não lhe cabia aprofundar e comentar
sabiamente todos aqueles belos e assustadores enigmas e desordens. A ele
cabia-lhe apenas prosseguir com os seus trilhos incertos e temerários, os
trilhos de Goldmund. A ele cabia-lhe tão-só entregar-se e amar o mais que
podia, o amigo em oração na igreja noturna e, não menos, a bela jovem que
o aguardava.
Quando se esgueirou por entre as tílias da cerca em direção à saída da
azenha, o coração alvoraçado por centenas de sentimentos contraditórios,
não conseguiu, no entanto, deixar de sorrir, ao lembrar-se subitamente
daquela noite em que utilizara com Konrad aquele mesmo atalho para sair
do convento e «ir até à aldeia». Que excitação e secreto temor sentira então,
ao decidir-se pela pequena excursão proibida; e, no entanto, hoje abalava
para sempre, e os seus caminhos eram bem mais proibidos e perigosos, mas
não sentia qualquer espécie de medo, nem pensava no porteiro, nem no
abade ou nos mestres.
Desta vez não havia pranchas à beira do ribeiro, teve de o atravessar sem
ponte. Despiu a roupa, atirou-a para a outra margem e atravessou nu, com a
água pelo peito, a corrente revoltosa do ribeiro frio e fundo.
Enquanto se vestia, na outra margem, os seus pensamentos regressaram
de novo a Narciso. Reconhecia agora com uma nitidez que o envergonhava
que naquele momento não fazia mais do que cumprir aquilo que Narciso
previra e para onde o conduzira. Com uma clareza excessiva, voltou a ver à
sua frente aquele Narciso inteligente e vagamente irónico, que tantas tolices
lhe aturara, bem como aqueloutro que numa hora importante e dolorosa lhe
abrira os olhos para a sua realidade. Algumas das palavras que o amigo
então lhe dissera podia ouvi-las agora novamente com toda a nitidez: «Tu
dormes no regaço da mãe, eu velo no deserto. Tu sonhas com raparigas, eu
com rapazes.»
Durante um momento, o coração contraiu-se-lhe. Sentiu-
-se exposto e horrivelmente só no meio da noite. Para trás ficara o convento
que lhe servira de lar; um lar ilusório, era verdade, mas a que se habituara e
acabara por amar.
Simultaneamente, sentia também o outro lado: sabia agora que Narciso
deixara de ser o seu mentor e guia, aquele a cuja clarividência podia sempre
recorrer. Sentia hoje que tinha entrado num novo território, onde teria de
encontrar sozinho os seus próprios caminhos, onde nenhum Narciso o
poderia orientar. Ficou aliviado ao tornar-se consciente disso; oprimia-o e
envergonhava-o recordar o tempo da sua dependência. Agora abrira os
olhos, deixara de ser criança e pupilo. Era bom saber isso. E, no entanto –
como lhe custava a despedida! Sabê-lo ali ajoelhado na igreja, não poder
dar-lhe nada, ajudá-lo, não lhe poder ser útil! E separar-se agora dele por
tanto tempo, talvez para sempre, sem nada saber dele, deixar de ouvir a sua
voz, de ver o seu olhar nobre!
Afastou os pensamentos e seguiu pelo caminho pedregoso. Quando
chegou a uns cem passos do muro do convento, parou, respirou fundo e
imitou o melhor que pôde o piar da coruja. Ao longe, para os lados da
ravina que ia dar ao ribeiro, respondeu-lhe um piar idêntico.
Gritamos um pelo outro como os bichos, pensou, e lembrou--se da hora
do amor daquela tarde; só então se apercebeu de que ele e Lise só no final,
depois das carícias, tinham trocado algumas palavras, e mesmo essas foram
poucas e supérfluas! Com Narciso, que longas conversas tivera! Agora,
porém, ao que parecia, entrara num mundo onde as palavras eram
desnecessárias, onde as pessoas se atraíam mutuamente com piares de
coruja. Ele concordava, não sentia desejo algum de palavras ou
pensamentos; apenas a queria a ela, Lise, e a esse sentir e revolver cego e
mudo, que de bom grado trocava as palavras pelos gemidos para se perder
na luta da
entrega.
Lise estava lá, e lá vinha ela da floresta ao seu encontro. Estendeu os
braços e abriu as mãos para a tocar, sentir, agarrou--lhe, tateando com dedos
ternos a cabeça, o cabelo, o pescoço e a nuca, o tronco esguio e as coxas
firmes. Abraçado a ela, acompanhou-a, sem falar, sem perguntar para onde
iam. De certeza que ia para a floresta mergulhada na escuridão. Teve
dificuldade em acompanhá-la; os olhos dela, como os da raposa ou da
marta, pareciam ver na escuridão; caminhava sem tropeçar nem ir de
encontro a obstáculos. Goldmund deixou-se conduzir para dentro da noite,
para dentro da floresta, para esse secreto e obscuro território sem palavras
nem pensamentos. Já não pensava em nada, nem no convento, nem sequer
em Narciso.
Atravessaram calados uma zona sombria da floresta, pisando, por vezes,
musgo macio e fofo; outras, pés de duras raízes; aqui e ali surgia sobre eles,
por entre as copas pouco espessas do arvoredo, o céu limpo; logo a seguir,
mergulhavam na escuridão completa; arbustos roçavam-lhe as faces, silvas
prendiam-se-lhe à roupa. Lise parecia saber orientar-se por todo o lado,
raramente parava, raramente hesitava. Após longa caminhada, a distância
entre os troncos isolados dos abetos começou a aumentar, o céu noturno e
pálido abriu-se diante deles, a floresta terminara, um vale de extensos
prados acolheu-os com o aroma adocicado do feno. Passaram a vau um
pequeno regato silencioso; ali, em campo aberto, o sossego era ainda maior
do que na floresta; nem o rumorejar das ramagens, nem o restolhar de
algum animal noturno em fuga, nem o estalar de galhos secos se ouvia.
Lise parou junto a uma grande meda de feno.
– Ficamos aqui – disse.
Sentaram-se ambos no feno, respirando fundo, gozando o descanso, pois
já estavam ambos algo cansados. Estenderam-se ao comprido, a ouvir o
silêncio. Sentiram secar o suor na testa e os rostos arrefecerem lentamente.
Goldmund pôs-se de cócoras, agradavelmente fatigado, encolhendo e
estendendo os joelhos, aspirando fundo a noite e a fragrância do feno. Não
pensava nem no passado nem no futuro. Lentamente, foi-se deixando
prender e enfeitiçar pelo perfume e pelo calor da sua amada; de quando em
quando respondia às carícias das suas mãos e sentia, feliz, como,
gradualmente, ela se inflamava, colando-se a ele. Não, aqui não eram
precisas palavras nem pensamentos. Sentia claramente tudo o que era
importante e belo, o vigor da juventude e a beleza simples e sã daquele
corpo de mulher emanando calor e desejo; com toda a clareza sentiu
também que, desta, vez ela desejava ser amada de maneira diferente; desta
vez não o ia seduzir e ensinar, mas esperava pela sua iniciativa, aguardava
que os seus desejos se manifestassem. Como que suspenso, deixou-se
atravessar pelo caudal do sangue, maravilhado, sentiu o silente alastrar do
fogo que neles lavrava e que tornava aquele pequeno leito o foco aceso e
ofegante de toda aquela noite silenciosa.
Quando se soergueu sobre o rosto de Lise e lhe começou a beijar os
lábios na escuridão, viu subitamente os seus olhos e a testa resplandecerem
numa luz suave; surpreendido, olhou para cima e viu como o brilho
ganhava rapidamente intensidade. Compreendeu então e virou-se: sobre a
orla escura da floresta erguia-se a Lua. Fascinado, viu a luz branca e suave
banhar-lhe a testa, as faces e o pescoço redondo e liso, e disse em voz baixa,
deslumbrado:
– Como és linda!
Ela sorriu, como quem acaba de receber um presente. Ele ajudou-a a
sentar-se, despiu-lhe delicadamente o vestido pela cabeça, ajudou-a a
libertar-se dele, até os ombros e o peito brilharem nus sob a frescura do luar.
Rendido, seguiu com os olhos e os lábios a delicada sombra, olhando e
beijando; imóvel, como que enfeitiçada, ela deixou-se estar, o olhar baixo e
uma expressão festiva no rosto, como se naquele instante ela se tivesse
tornado pela primeira vez consciente da sua própria beleza.
VII

Enquanto a frescura noturna caía sobre os campos e de hora para hora a


noite ia ocupando o céu, os dois amantes, deitados no seu leito suavemente
iluminado, entregavam-
-se aos seus jogos; ora adormeciam, ora acordavam e novamente se
voltavam um para o outro e mais uma vez se inflamavam, enlaçados, para
de novo tornarem a adormecer. Após o último abraço, deixaram-se ficar,
exaustos. Lise colara-se ao feno e respirava dolorosamente; deitado de
costas, imóvel, Goldmund fitou longamente o pálido céu iluminado pelo
luar; em ambos crescia uma grande tristeza, que os arrastou para o sono.
Dormiram profunda e desesperadamente, sofregamente, como se o fizessem
pela derradeira vez, como se estivessem condenados a uma vigília eterna e
precisassem, naquelas escassas horas que lhes restavam, de absorver todo o
sono do mundo.
Ao acordar, Goldmund viu Lise ocupada com os seus cabelos negros.
Ficou a vê-la arranjar-se durante algum tempo, meio distraído e ainda
sonolento.
– Já estás acordada? – disse por fim.
Ela voltou-se bruscamente, como que assustada.
– Tenho de me ir já embora – disse, algo aflita e embaraçada. – Não quis
acordar-te.
– Mas, como vês, já acordei. Temos de ir andando? Não somos
vagabundos?
– Eu sou – disse Lise. – Mas tu pertences ao convento.
– Já não pertenço ao convento, sou como tu, estou sozinho e não tenho
nada para fazer. Claro que vou contigo.
Ela desviou o olhar.
– Goldmund, não podes vir comigo. Tenho de ir ter com o meu homem;
ele vai bater-me por ter passado a noite fora. Vou dizer-lhe que me perdi,
mas claro que ele não vai acre-
ditar.
Nesse momento, Goldmund lembrou-se das previsões de Narciso. Era
então isso que estava a acontecer.
Levantou-se e estendeu-lhe a mão.
– Enganei-me – disse –, pensei que ficaríamos juntos. Mas querias
mesmo deixar-me ficar aqui a dormir e ires-te embora sem te despedires?
– Ah, pensei que ficarias zangado e talvez me batesses. Que o meu
homem me bata, bom, isso é assim mesmo, e até aceito. Mas não queria
levar pancada também de ti.
Ele agarrou-lhe a mão.
– Lise – disse –, eu não te bato, nem hoje nem nunca. Não preferes vir
comigo, em vez de ir ter com o teu homem, que te dá pancada?
Ela puxou a mão com força, tentando libertar-se.
– Não, não, não – gritou com voz lamurienta. Sentindo que o coração
dela se queria afastar do seu, e que preferia os maus-
-tratos do outro às suas boas palavras, largou a mão, e ela desatou a chorar.
Mas, ao mesmo tempo, começou a correr. Fugia dele, as mãos diante dos
olhos húmidos. Ele ficou calado, vendo-a afastar-se. Deu-lhe pena vê-la
assim, correndo pelos campos ceifados, chamada e puxada por um qualquer
poder desconhecido, sobre o qual ainda iria ter de pensar. Sentiu pena dela,
e também um pouco de si próprio; não tivera sorte nenhuma, achou, e agora
ali estava ele sentado, sozinho e meio aparvalhado, abandonado e deixado
apeado. Continuava, entretanto, cansado e desejoso de dormir, nunca se
sentira tão exausto. Teria tempo depois para curtir as mágoas. Tornou a
adormecer e só voltou a si quando o sol, já alto, o aquecia.
Estava agora recomposto; levantou-se rapidamente e foi ao ribeiro lavar-
se e beber. Assaltaram-no então muitas recordações; das horas de amor
daquela noite abriam-se-lhe, como fragrâncias de flores exóticas, inúmeras
imagens, inúmeras sensações delicadas e suaves. Foi nelas que se pôs a
pensar quando se meteu, decidido, a caminho. Sentiu, saboreou, aspirou e
tateou novamente tudo, uma e outra vez. Quantos sonhos lhe concretizara
aquela mulher morena e desconhecida, quantos botões tinham desabrochado
no espaço daquelas horas, quanta curiosidade e nostalgia ela lhe saciara e
voltara a despertar!
À sua frente estendiam-se campos e charnecas, baldios ressequidos e
florestas escuras, para além das quais se adivinhavam quintas e moinhos,
uma aldeia, talvez uma cidade. Pela primeira vez, o mundo abria-se perante
ele, um mundo expectante, pronto a acolhê-lo, a aceitá-lo e a hostilizá-lo. Já
não era aquele estudante que via o mundo através de uma janela, a sua
caminhada deixara de ser um passeio cujo fim inevitável era o regresso.
Aquele vasto mundo tornara-se real, ele passara a ser uma parte dele, nele
esperava-o o seu destino, o seu céu era o dele, o tempo, bom ou mau, era
também o seu. Como se sentia pequeno no meio daquele mundo imenso,
pequeno como uma lebre ou um besouro, em trânsito naquela vastidão azul
e verde. Agora já nenhum sino tocava a matinas para o início da missa, para
a lição ou para a refeição do meio-dia.
E como estava esfomeado! Meio pão de centeio, uma malga de leite,
uma sopa de farinha – que recordações mágicas!
O estômago acordara-lhe como um lobo. Passou por uma seara de trigo, as
espigas ainda não tinham amadurecido completamente, ele debulhou-as
com os dedos e com os dentes, mastigou vorazmente os pequenos grãos
escorregadios. Arrancou espigas e mais espigas, até ficar com os bolsos a
abarrotar. Encontrou depois avelãs, ainda demasiado verdes, e roeu com
prazer as cascas estaladiças; também delas fez boa provisão.
Recomeçava agora a floresta, uma floresta mista de abetos, alternados
com carvalhos e freixos; e aí encontrou mirtilos em grande abundância.
Parou então para descansar, comer e refrescar-se. Por entre a erva fina e
dura da floresta despontavam campainhas-azuis; borboletas de um castanho
luminoso levantavam voo, caprichosas, e desapareciam bruxuleantes. Fora
num bosque como aquele que vivera Santa Genoveva, sempre adorara a sua
história. Como teria gostado de a encontrar! Ou deparar-se com um
eremitério, com um velho monge barbudo numa caverna ou num curral.
Talvez vivessem ali também carvoeiros, de bom grado os teria saudado.
Mesmo que fossem salteadores, a ele não lhe fariam nada. Seria bom
encontrar pessoas, quaisquer que elas fossem. Mas claro que sabia que
podia continuar a vaguear pela floresta durante muito tempo, hoje e amanhã
e alguns dias mais, sem encontrar ninguém. Também com isso teria de se
conformar, se fosse o que lhe estava realmente reservado. Não devia perder
tempo a pensar em eventualidades dessas, tinha de deixar acontecer o que
estava para acontecer.
Ouviu o martelar de um pica-pau e tentou aproximar-se; demorou
bastante tempo até conseguir avistá-lo, mas, por fim, lá o encontrou e ficou
a vê-lo, colado ao tronco de uma árvore, solitário, a perfurar a casca com o
bico, sacudindo a cabecinha diligente. Que pena não poder conversar com
os bichos! Teria gostado de chamar o pica-pau e dizer-lhe algo de amável,
recebendo talvez, em troca, uma qualquer informação sobre a sua vida nas
árvores, sobre os seus trabalhos e alegrias. Oh, se pudesse transformar-se!
Lembrou-se então de como nas horas vagas costumava desenhar na
ardósia: flores, folhas, árvores, animais, cabeças de pessoas. Quantas vezes
se entretivera naquele jogo, criando como um pequeno demiurgo criaturas
que obedeciam à sua vontade; desenhara um cálice de flor com olhos e
boca, criara figuras a partir de um feixe de folhas que despontavam de um
ramo e transformara a copa de uma árvore numa cabeça. Entretido com
aquelas brincadeiras, chegara a passar uma boa hora feliz e fascinado,
sentia-se com as capacidades de um mago, traçava linhas e deixava-se
surpreender pelo que estas poderiam vir a tornar-se, se a folha de uma
árvore, a boca de um peixe, a cauda de uma raposa ou a sobrancelha de um
rosto humano. As pessoas deviam ter essa capacidade de se metamorfosear,
achou, como aquelas linhas que desenhara a brincar na sua pequena
ardósia! Como gostaria de ser um pica-pau, talvez por um dia, talvez por
um mês; poderia viver no cume das árvores, correr lá em cima pelos troncos
lisos, perfurar a casca com o forte bico, apoiando-se nas penas da cauda;
falaria a linguagem dos pica-paus e extrairia do interior da casca boas
coisas para comer. Doce e intenso soava o martelar do pica-pau na madeira
vibrante.
Foram muitos os animais que Goldmund encontrou no bosque. Viu mais
do que uma lebre, saltavam-lhe subitamente das moitas quando ele se
aproximava, fitavam-no atemorizadas, viravam-se e fugiam, as orelhas
acaçapadas, mostrando a mancha mais clara sob a cauda. Numa pequena
clareira deparou-se com uma longa cobra, que não fugiu dele, pois não era
uma cobra viva, era apenas a sua pele vazia, que ele apanhou do chão;
observou-a com atenção: um belo padrão rendilhado cinzento e castanho
estendia-se ao longo do dorso e o sol brilhava através da sua textura, que
era fina como a teia de uma aranha. Viu também melros negros com o bico
amarelo, que o fitavam, espantados, com pequenos olhos esféricos muito
juntos, para logo se afastarem em voos rasantes ao chão. Tentilhões e
pintarroxos havia imensos.
Num outro local da floresta encontrou um buraco, uma poça cheia de
água verde e espessa, sobre cuja superfície deslizavam de um lado para o
outro, incansáveis e como que obcecados, aranhiços de longas pernas,
entregues a um jogo incompreensível, e sobre eles esvoaçava um par de
libélulas com asas de um azul escuríssimo. E uma outra vez, já a noite se
avizinhava, viu algo – ou melhor, não viu mais que um sacudir e revolver
das moitas, e ouviu o quebrar de galhos e um restolhar na terra húmida
causado por um grande bicho apenas entrevisto, que rompeu com ímpeto
selvagem pelo matagal –, talvez um gamo, talvez um javali, não chegou a
sabê-lo. Deixou--se ficar ali parado, para tomar fôlego e recompor-se do
susto; profundamente sobressaltado, tentou acompanhar o rasto do animal,
escutava ainda o bater do próprio coração quando já tudo regressara ao
silêncio.
Não encontrou o caminho para sair da floresta e teve de passar lá a noite.
Enquanto procurava um sítio para dormir e preparava uma cama de musgo,
tentou imaginar como seria se não conseguisse sair das florestas e lá tivesse
de ficar para sempre. Achou que isso seria uma terrível desgraça.
Alimentar-se de bagas acabava por ser possível, bem como dormir em cima
do musgo, tanto mais que, por certo, conseguiria construir uma cabana e
talvez mesmo fazer fogo. Mas ficar para sempre sozinho e ver-se obrigado a
habitar entre os troncos adormecidos das árvores e partilhar a vida com
bichos que fugiam dele e com os quais não conseguia falar, isso seria
insuportavelmente triste. Não ver ninguém, não poder desejar «bom dia» e
«boa noite» a outras pessoas, não poder olhar para rostos e olhos, nunca
mais poder ver raparigas e mulheres, não mais poder sentir o sabor de um
beijo e experimentar o jogo secreto e delicado dos lábios e dos membros,
isso era impensável! Se isso lhe estivesse reservado, pensou, então tentaria
tornar-se um animal, um urso ou um veado, talvez, mesmo que para tal
tivesse de prescindir da eterna bem-aventurança. Ser um urso e amar uma
ursa, isso já não seria tão desolador, pelo menos seria muito melhor do que
conservar a razão e a linguagem e todas essas coisas e vaguear sozinho e
triste pelos bosques sem amor nem consolo.
Na sua cama de musgo, antes de adormecer, escutou, curioso e
assustado, os inúmeros ruídos noturnos incompreensíveis e misteriosos da
floresta. Eles eram agora os seus companheiros, com eles tinha de viver, a
eles tinha de se habituar, com eles tinha de se medir e compatibilizar;
pertencia agora ao mundo das raposas e das corças, dos pinheiros e dos
abetos, com eles tinha de viver e partilhar o ar e o sol, com eles esperar pelo
romper do dia, passar fome com eles, ser hóspede deles.
Adormeceu, por fim, e sonhou com bichos e pessoas; foi um urso e
devorou Lise por entre carícias e investidas. A meio da noite acordou
aterrorizado, sem saber porquê. Sentia-se infinitamente angustiado e refletiu
longamente no motivo de toda aquela aflição. Lembrou-se de que já por
duas ocasiões se deitara sem rezar a oração da noite. Levantou-se, ajoelhou-
se a
lado do leito e rezou duas vezes a pequena prece, pela noite de ontem e pela
de hoje. Pouco depois, adormeceu novamente.
De manhã, ao acordar, olhou perplexo para a floresta que o rodeava.
Tinha-se esquecido de onde estava. O medo da floresta começou então a
diminuir e foi com renovado entusiasmo que se entregou à vida silvestre,
sem deixar, porém, de caminhar, orientando-se pelo Sol. A certa altura, foi
parar a um sítio completamente plano, com pouca vegetação rasteira; a
floresta era ali composta por grandes pinheiros já muito velhos, de troncos
grossos e direitos; quando já caminhava há algum tempo por entre aquelas
colunas, lembrou-se das colunas da grande igreja do convento,
precisamente aquela igreja onde, ainda há bem pouco tempo, vira
desaparecer o seu amigo Narciso – mas quando? Teria sido, realmente, há
dois dias apenas?
Só conseguiu sair da floresta após dois dias e duas noites. Com alegria
reconheceu os sinais da presença humana: terras cultivadas, parcelas de
terreno semeadas de centeio e aveia, prados através dos quais se avistava,
aqui e ali, um carreiro estreito. Goldmund colheu centeio e mastigou-o; a
seara em crescimento contemplava-o, amena; após o longo trecho silvestre,
tudo lhe parecia agora humano e sociável: o carreirinho, a aveia, as
centáureas já desmaiadas e brancas. Iria finalmente ver gente. Decorrida
uma breve hora, passou por um terreno na extrema do qual se erguia uma
cruz. Ajoelhou-se à beira dela e rezou. Ao contornar o cabeço de uma
colina, viu-se subitamente perante uma frondosa tília e ouviu, deleitado, a
melodia de uma fonte, cuja água caía da caleira de madeira para uma
grande celha; bebeu então água fria e deliciosa e viu com satisfação um par
de telhados de colmo erguendo-se por detrás de uns sabugueiros de bagas já
escuras. Mas mais fundo ainda do que todos esses sinais acolhedores,
tocou-lhe o mugir de uma vaca, que lhe pareceu tão agradável, caloroso e
reconfortante como uma saudação de boas-vindas.
Espreitando em volta, foi-se aproximando da choupana de onde tinham
vindo os mugidos. À frente da casa, sentado no pó, um pequenito de cabelo
arruivado e olhos azul-claros, com uma vasilha cheia de água ao lado,
entretinha-se a amassar um barro com o qual começara já a cobrir as
pernitas nuas. Feliz da vida e com um ar muito compenetrado, ia
espremendo a lama com as mãos, via-a surgir por entre os dedos e formava
com ela bolas, servindo-se até do queixo para as moldar.
– Deus te abençoe, pequeno – saudou Goldmund amavelmente. Mas o
pequeno, quando olhou para cima e viu um estranho, escancarou a boquita,
franziu a cara gorducha e pôs-se a gatinhar para dentro de casa, a chorar.
Goldmund seguiu-o e entrou na cozinha; lá dentro estava tão escuro que ele,
vindo da claridade ofuscante do meio-dia, não conseguiu, inicialmente, ver
nada. Para o que desse e viesse, saudou piedosamente, mas não obteve
resposta; a pouco e pouco, no entanto, conseguiu distinguir uma voz fraca
de anciã, sobrepondo-se à berraria da criança e tentando consolá-la.
Finalmente, uma velhinha franzina ergueu-se na escuridão e veio ter com
ele, protegendo os olhos com a mão.
– Deus te abençoe, tiazinha – exclamou Goldmund – e que os santos
protejam o teu semblante bondoso; há três
dias que não vejo um rosto humano.
A velhota olhava-o embasbacada e com olhos cansados.
– O que queres? – perguntou, insegura.
Goldmund estendeu-lhe a mão e afagou-a.
– Queria dar-te os bons-dias, velhinha, e descansar um pouco e ajudar-te
a acender o lume. Se me quiseres dar um pedaço de pão, eu não vou rejeitar,
mas não há pressa.
Viu um banco pregado à parede e foi lá sentar-se, enquanto a velhota
cortava uma fatia de pão para o rapazito, que se pusera a observar o
estranho, muito excitado e curioso, mas ainda pronto a desatar a chorar e
fugir a qualquer momento. A velha cortou outro naco de pão e levou-o a
Goldmund.
– Obrigado – disse ele. – Deus te pague.
– Tens a barriga vazia? – quis saber a mulher.
– Nem por isso. Está cheia de mirtilos.
– Então come! De onde é que vens?
– Do convento de Mariabronn.
– És padre?
– Não. Andei lá a estudar. Agora estou de viagem.
Ela olhou para ele, meio trocista, meio aparvalhada, e abanou um pouco
a cabeça sobre o pescoço magro e enrugado. Deixou-o mastigar uns
pedaços de pão e levou a criança de novo lá para fora. Depois voltou e
perguntou, curiosa:
– Sabes novidades?
– Não muitas. Conheces o padre Anselm?
– Não. O que se passa com ele?
– Está doente.
– Doente? Vai morrer?
– Não sei. Sofre das pernas. Já não consegue andar bem.
– Vai morrer?
– Não sei. Talvez.
– Pois então, deixa-o morrer. Tenho de ir fazer a sopa. Ajuda-me a cortar
umas aparas.
Deu-lhe um pedaço de ramo de pinheiro, já bem seco à lareira, e uma
faca. Ele foi cortando aparas, tantas quanto ela lhe pediu, e viu-a amontoá-
las sobre as cinzas, curvar-se e soprar até pegarem fogo. Começou então a
empilhar, obedecendo a uma ordem rigorosa e secreta, aparas de pinheiro e
de faia;
a chama elevou-se em claras labaredas na lareira aberta, e a velhota chegou
para cima do lume o panelão que pendia da chaminé, preso a uma corrente
cheia de fuligem.
Goldmund foi buscar água à fonte, retirou, a seu mando, a nata da
escudela do leite e sentou-se depois na penumbra fumarenta, a ver as
chamas brincar e, por cima delas, bruxuleando em clarões avermelhados, o
rosto ossudo e engelhado da velha; ao lado, por detrás da parede de tabique,
ouvia a vaca afocinhar e marrar na manjedoura. Tudo aquilo lhe agradou
imenso. A tília, a fonte, o lampejar do lume debaixo do panelão, o
resfolegar e ruminar da vaca e os seus golpes surdos contra o tabique, o
espaço escurecido com a mesa e o banco, a lide da pequena anciã, tudo
aquilo era belo e bom, cheirava a comida e a paz, a calor humano e a lar.
Também lá tinham duas cabras, e pela velhota soube que criavam porcos
numa pocilga nas traseiras e que ela era a avó do lavrador, a bisavó do
rapazinho. Este chamava-se Kuno, entrava e saía de vez em quando, e
embora continuasse calado e olhasse um pouco desconfiado, já não
chorava.
Quando o lavrador chegou com a mulher, ambos admiraram-se muito por
encontrar um estranho em casa. O homem já queria começar a praguejar,
agarrou Goldmund pelo braço, desconfiado, e levou-o para fora, para lhe
ver a cara à luz do dia; depois desatou a rir, deu-lhe uma palmada cordial
nas costas e convidou-o para comer. Sentaram-se e todos foram molhando o
pão na escudela do leite, até ficar só um resto, que o lavrador sorveu.
Goldmund perguntou se podia ficar até ao dia seguinte e dormir lá em
casa. Não, respondeu o homem, pois não havia lugar; mas lá fora, por toda
a parte, havia ainda feno suficiente, não lhe seria difícil encontrar um sítio
para dormir.
A mulher tinha a criança ao seu lado e não participou na conversa; mas,
durante a refeição, o seu olhar curioso apoderou-se do jovem desconhecido.
O cabelo encaracolado e o olhar tinham-na impressionado imediatamente,
mas depois foi-se também apercebendo com agrado do pescoço branco e
bonito e das mãos cuidadas e elegantes com os seus gestos naturais e
harmoniosos. Que imponente e garboso era aquele estranho, e tão jovem
ainda! Mas o que mais a atraía e seduzia era a voz, aquela voz juvenil
secretamente cantante, calorosa, suave e cativante, que lhe soava ao ouvido
como uma carícia. Poderia ficar horas e horas a ouvi-la.
Finda a refeição, o lavrador foi limpar o estábulo; Goldmund saíra de
casa, lavara as mãos na fonte e deixara-se ficar sentado no murete baixo, a
tomar ar fresco e a ouvir o murmúrio da água. Estava indeciso; nada mais
tinha a fazer ali, mas dava--lhe pena ir-se já embora. Foi então que a
camponesa saiu de casa com um balde na mão. Pousou-o debaixo da bica e
esperou que ele se enchesse. A meia-voz disse-lhe:
– Escuta, se hoje à noite ainda estiveres por perto, venho trazer-te
comida. Ali ao fundo, atrás da seara de centeio comprida, ainda há feno, só
amanhã é recolhido. Ficas lá esta noite?
Ele olhou para o rosto sardento, viu os braços fortes pegarem no balde, o
olhar caloroso dos grandes olhos claros. Sorriu-lhe e disse que sim com a
cabeça. No momento seguinte já ela se tinha virado e se afastava com o
balde cheio, para logo a seguir desaparecer na escuridão da porta. Ficou ali
quieto, grato e satisfeito, a escutar o correr da água. Pouco depois, entrou na
casa, procurou o lavrador, apertou-lhe a mão, a ele e à avó, e agradeceu. Lá
dentro cheirava a fogo, a fuligem e a leite. Ainda há pouco aquela choupana
lhe tinha servido de refúgio e lar, agora já só era uma casa estranha.
Goldmund despediu-se com uma saudação e saiu.
Para lá dos casebres encontrou uma capela, e logo ali próximo um belo
bosque, um grupo de velhos e vigorosos carvalhos num terreno atapetado
de erva miúda. Deixou-se ficar ali à sombra, passeando de vez em quando
de um lado para o outro, por entre os grossos troncos. Como eram estranhas
as mulheres e o amor, pensou; de facto, não precisavam de palavras. A
mulher recorrera a uma palavra para lhe indicar o sítio do encontro, tudo o
mais transmitira-lho sem palavras. Com o quê então? Com os olhos, pois
claro, e com uma certa tonalidade da voz ligeiramente velada, e com algo
mais ainda, um odor talvez, uma ténue e silenciosa emanação da pele, pela
qual mulheres e homens reconheciam imediatamente o desejo recíproco.
Que estranho tudo aquilo, como uma delicada linguagem secreta, e como
ele a aprendera tão depressa! Esperou, expectante, pela chegada da noite,
cheio de curiosidade de conhecer aquela mulher alta e loira, de lhe
descobrir os olhares e os sons, os membros, os movimentos e os beijos –
certamente que seria muito diferente de Lise. E onde estaria ela agora, Lise,
com o seu cabelo negro e repuxado, a sua pele tisnada, os seus soluços
contidos? Ter-lhe-ia mesmo batido, o marido? Pensaria nele ainda? Teria já
encontrado um novo amante, tal como ele acabara de encontrar uma nova
mulher? Tudo passava tão rapidamente, por toda a parte a sorte lhe sorria,
como tudo era belo e forte e estranhamente fugaz! Era pecado, era
adultério, ainda há pouco tempo teria preferido que o matassem a cometer
tamanho pecado. E agora aquela era já a segunda mulher pela qual esperava
e a sua consciência mantinha-se tranquila e em paz. Quer dizer, tão calma
assim talvez não estivesse; mas não eram o adultério e a luxúria que por
vezes o inquietavam e lhe pesavam na consciência. Era outra coisa, algo
que não conseguia dizer por palavras. Era a sensação de carregar uma culpa
que não cometera, mas que já viera ao mundo consigo. Talvez fosse isso
que na teologia se chamava o pecado original. Sim, devia ser isso. A
própria vida continha em si mesma algo parecido à culpa – por que outra
razão se sujeitaria uma criatura tão pura e sábia como Narciso a penitências
como um condenado? Ou porque tivera ele próprio que sentir algures, no
mais fundo de si, essa culpa? Não se sentia feliz? Não era jovem e saudável
e livre como uma ave no ar? Não o amavam as mulheres? Não era bonito
sentir que como amante conseguia dar às mulheres o mesmo prazer
profundo que ele próprio sentia? Então porque não era completamente
feliz? Porque é que aquela estranha dor, aquele medo latente, aquele
lamento perante o efémero conseguia, de vez em quando, contaminar a sua
jovem felicidade, tal como o fazia com a virtude e o saber de Narciso?
Porque se veria ele obrigado, por vezes, a refletir e a matutar sobre tudo
aquilo, quando sabia perfeitamente que não era um pensador?
E, contudo, viver era algo de belo. Colheu entre as ervas uma pequena
flor violeta, aproximou-a dos olhos e pôs-se a observar a corola miniatural e
estreita onde corriam veios e viviam minúsculos órgãos finos como vasos
capilares; a vida vibrava ali, o prazer fremia como no ventre de uma mulher
ou no cérebro de um pensador. E porque não se sabia nada de nada? Porque
não era possível falar com aquela flor? A verdade era que nem sequer duas
pessoas conseguiam falar verdadeiramente uma com a outra, para que isso
sucedesse era necessário um acaso feliz, uma amizade e disponibilidade
profunda. Não, ainda bem que o amor não necessitava de palavras; de
contrário, ficaria carregado de equívocos e desvarios. Nem dez mil palavras
eruditas e inspiradas teriam logrado descrever os olhos semicerrados de
Lise naquele momento da máxima entrega ao prazer, uns olhos como que
desfalecidos, quando apenas o branco se entrevia entre a fenda das
pálpebras frementes! Nada, mas mesmo nada se conseguia exprimir, ou
pensar realmente –
e, no entanto, nunca se deixava verdadeiramente de sentir a necessidade
premente de falar, o eterno impulso para pensar!
Contemplou as folhas da pequena planta, o modo como se ordenavam
em torno da haste, de uma forma tão bela, tão naturalmente inteligente. Os
versos de Virgílio eram sem dúvida belos, ele amava-os; mas havia muitos
versos de Virgílio que não possuíam nem metade da clareza e da coerência
e da ordem com que aquelas minúsculas folhinhas se dispunham em espiral
ao longo da haste. Que prazer, que felicidade, que arte deliciosa, nobre e
cheia de sentido seria a de alguém que conseguisse produzir ou criar uma
única daquelas flores! Mas ninguém o conseguia, nem herói nem
imperador, nem papa nem santo.
Já o Sol declinava quando se pôs a caminho e procurou o local que a
camponesa lhe indicara. Foi lá que esperou. Era bom esperar, sabendo que
uma mulher vinha ao seu encontro para lhe trazer as prendas do amor.
Ela chegou com um pano de linho, onde embrulhara um naco de pão e
uma fatia de presunto. Desatou-o e estendeu-o com a comida à sua frente.
– É para ti – disse. – Come!
– Mais tarde – disse ele –, não tenho fome de pão, tenho fome de ti.
Mostra-me lá as coisas lindas que me trouxeste!
E ela trouxera-lhe muitas e belas prendas: lábios fortes e sequiosos,
dentes fortes e brilhantes, braços fortes, queimados pelo sol, mas que por
dentro, a partir do pescoço e para baixo, eram alvos e suaves. Palavras,
poucas sabia, mas da garganta deixou escapar um som lindo e sedutor, e
quando sentiu as suas mãos percorrerem-lhe o corpo, umas mãos tão
suaves, ternas e sensíveis como nunca sentira, a sua pele arrepiou-se toda e
começou a ronronar como um gato. Não sabia muitos jogos, bem menos do
que Lise, mas era maravilhosamente forte e apertou-o, arrebatada, como se
lhe quisesse quebrar o pescoço. O seu amor era infantil e sôfrego, natural e
pudico, apesar de toda a vitalidade; Goldmund foi muito feliz com ela.
Despediu-se e partiu suspirando; custou-lhe deixá-lo, mas não podia
demorar-se.
Goldmund ficou sozinho, feliz e ao mesmo tempo triste. Só muito mais
tarde se lembrou do pão e do presunto, que comeu, solitário, quando já
escurecera completamente.
VIII

Há já muito tempo que Goldmund seguia a sua vida errante de andarilho,


raramente pernoitando duas vezes seguidas no mesmo local, em todo o lado
desejado e saciado pelas mulheres, curtido pelo sol, emagrecido pelas
longas caminhadas e pelo sustento frugal. Muitas mulheres se tinham
despedido dele de madrugada e ido embora, não poucas com lágrimas nos
olhos, e quantas vezes ele pensara: Porque será que nenhuma delas fica
comigo? Porquê, se me amam e arriscam cometer adultério só para
passarem comigo uma noite de amor; porque voltam logo para os maridos
por quem, quase sempre, temem ser espancadas? Nenhuma lhe pedira a
sério para ficar, nem uma única lhe implorara que a levasse consigo e se
mostrara disposta a partilhar com ele as alegrias e as agruras da vida
errante. Também era verdade que não tinha convidado nenhuma delas, nem
nunca sugerira tal ideia; se consultasse com honestidade o coração,
perceberia que amava a própria liberdade e que não se lembrava de
nenhuma amante de quem as saudades não se tivessem desvanecido ao
lançar-
-se nos braços da seguinte. E, contudo, parecia-lhe estranho, e também um
pouco triste, que por toda a parte o amor fosse tão efémero, que tanto o das
mulheres como o seu próprio amor tão depressa se inflamasse como se
esgotasse. Estaria certo? Seria mesmo assim em toda a parte? Ou teria antes
a ver consigo, seria ele tão diferente que as mulheres, embora o desejassem
e o achassem bonito, não pretendiam outra espécie de comunhão senão
aquela breve e silenciosa no feno ou no musgo? Seria a sua vida errante que
inspirava pavor a quem era sedentário? Ou teria só a ver com ele, com a sua
pessoa, o facto de as mulheres o desejarem como a uma boneca bonita que
se aperta contra o peito, para logo de seguida voltarem para os maridos,
mesmo que temessem maus-tratos? Não o sabia.
Entretanto, não se cansava de aprender com as mulheres. É certo que se
sentia mais atraído para as raparigas jovens, que ainda não tinham tido
homem e nada sabiam – por essas podia apaixonar-se sincera e
profundamente; mas, na maioria das vezes, essas tão desejadas, as tímidas e
bem guardadas donzelas permaneciam inacessíveis. Mas também gostava
de aprender com as mulheres maduras. Todas elas lhe deixavam algo, um
gesto, uma maneira de beijar, um certo jogo amoroso, uma forma particular
de se entregar ou defender. Goldmund concordava com tudo, mostrava-se
insaciável e flexível como uma criança e abria-se a todas as fantasias e
seduções. Só assim se tornava ele próprio sedutor. A sua beleza somente
não justificava o sucesso que tinha entre as mulheres; era também aquela
infantilidade, aquela constante abertura, a sempre curiosa ingenuidade dos
desejos, aquela absoluta disponibilidade para tudo o que uma mulher dele
pudesse desejar. Sem o saber, transformava-se, para cada amante que
encontrava, naquilo que ela dele pretendia e sonhava: para umas terno e
cuidadoso, para outras impetuoso e atrevido, por vezes infantil como um
rapazinho acabado de se iniciar, outras requintado e sabedor. Prestava-se
tanto ao jogo como à luta, aos suspiros como ao riso, ao pudor como ao
impudor; nenhuma mulher recebia dele senão o que dele desejava, senão o
que ela própria provocava. Era isso que qualquer mulher de intuição segura
logo nele pressentia, era isso que o tornava um preferido.
E continuava a aprender. Não só conheceu em pouco tempo inúmeros
modos e artes de amar, integrando e aprofundando as experiências com as
suas muitas amantes, como também aprendeu a ver, sentir, apalpar e cheirar
as mulheres em toda a sua diversidade; foi assim adquirindo um apurado
ouvido para cada timbre de voz, bastando-lhe, em relação a algumas,
escutar a tonalidade da voz para adivinhar infalivelmente o seu modo e a
sua capacidade de amar; com um sempre renovado fascínio observava os
modos infinitamente diversos de como uma cabeça se insere num pescoço,
uma testa se separa da linha de nascença dos cabelos ou um joelho se
articula e move. Aprendia no escuro, com olhos fechados, tateando com
dedos delicados, a distinguir uns dos outros certos tipos de cabelo, certas
texturas e densidades de pele e pelos púbicos. Bem cedo começou a
aperceber-se de que talvez aí residisse precisamente o sentido da sua vida
errante, que talvez por isso fosse constantemente impelido de mulher para
mulher, para que pudesse desenvolver e apurar aquela capacidade de as
conhecer e distinguir de um modo cada vez mais subtil, diversificado e
profundo. Talvez fosse esse o seu destino: conhecer perfeitamente as
mulheres e o amor, as suas mil maneiras e nuances, tal como certos músicos
que não se contentam com um só instrumento e dominam três, quatro e
muitos mais. Naturalmente, não sabia para que serviria aquilo e onde o
levaria tal demanda; sentia apenas que estava a caminho. Podia ser que
conseguisse aprender o latim e a lógica, mas nunca seria para tal dotado
com um talento especial, extraordinário ou raro – para o amor, para o jogo
com as mulheres, era-o. Aí aprendia sem esforço e de nada se esquecia, as
experiências acumulavam-se e ordenavam-se espontaneamente.
Certa vez, depois de já andar há mais de um ou dois anos naquela vida
errante, chegou Goldmund à propriedade de um abastado cavaleiro com
duas belas e jovens filhas. Era o início do outono, em breve as noites
arrefeceriam, no ano anterior conhecera as agruras dos meses frios, não era
sem cuidados que pensava nos meses que aí vinham, a vida de vagabundo
era difícil no inverno. Pediu de comer e um sítio para dormir. Acolheram-no
hospitaleiramente, e quando chegou aos ouvidos do cavaleiro que o
estranho estudara e sabia grego, mandou-o vir da mesa dos serviçais para a
sua e tratou-o quase como seu igual. As duas filhas mantiveram-se de olhos
baixos, a mais velha, Lydia, tinha dezoito anos, a mais nova, Julie, mal
acabara de completar os dezasseis.
No dia seguinte, Goldmund queria prosseguir viagem. Não havia
esperança de poder conquistar uma daquelas belas donzelas loiras e não
encontrara por ali outras mulheres por quem valesse a pena ficar. Aconteceu
então que o cavaleiro, logo a seguir à refeição matinal, o chamou de parte e
o conduziu a uma habitação que mandara instalar para fins especiais.
Modestamente, o ancião falou-lhe do seu gosto pela erudição e pelos livros,
mostrou-lhe uma pequena arca cheia de manuscritos que havia colecionado,
bem como um atril que tinha mandado construir e uma farta provisão do
melhor papel e pergaminho. Como Goldmund mais tarde veio a saber,
pouco a pouco, aquele piedoso cavaleiro tinha frequentado escolas na sua
juventude, mas acabara por se entregar por completo à vida guerreira e
mundana, até que, no decurso de uma grave enfermidade, uma advertência
divina o levara a largar tudo e a partir como peregrino para expiar a sua
juventude pecadora. Tinha visitado Roma e chegara mesmo a
Constantinopla, encontrara, ao regressar, o pai morto e a casa vazia,
instalara-se no castelo da família, casara, perdera a esposa, criara as filhas e
agora, no dealbar da velhice, tinha começado a escrever um relato
pormenorizado da viagem de peregrinação que outrora empreendera. E até
já conseguira redigir alguns capítulos, mas, como confessou ao jovem, o
seu latim incipiente impedia-o continuamente de avançar com a desejada
fluidez. Oferecia portanto a Goldmund um fato novo e alojamento, se ele se
encarregasse de corrigir e copiar a limpo o manuscrito e o ajudasse na
continuação da obra.
O outono tinha chegado e Goldmund sabia o que isso significava para
um andarilho. Roupa nova também não era de desdenhar, mas o que mais
agradou ao jovem foi a perspetiva de poder ficar a viver mais tempo na
mesma casa com as duas belas irmãs. Aceitou sem pensar duas vezes.
Poucos dias depois, a governanta recebeu ordens para abrir o armário dos
tecidos e de um belo pano castanho que lá encontraram guardado mandou-
se fazer um fato e um gorro para Goldmund. O cavaleiro teria preferido um
fato negro, que fizesse lembrar o traje de um «magíster», mas disso o seu
hóspede não quis saber e conseguiu dissuadi-lo; fizeram-lhe então um
bonito traje, meio de pajem meio de monteiro, que lhe ficava muito bem.
Com o latim, as coisas também não correram mal. Reviram juntos os
capítulos já escritos e Goldmund não só corrigiu os inúmeros vocábulos
imprecisos ou incorretos, como também teve oportunidade de substituir as
frases curtas e desajeitadas do cavaleiro por belos períodos latinos de sólida
construção e impecável consecutio temporum. Ao cavaleiro aquela tarefa
agradava imenso, e demonstrou-o não regateando elogios. Todos os dias,
passavam pelo menos duas horas naquela ocupação.
No castelo – um amplo solar fortificado – encontrou Goldmund alguns
passatempos. Participou nas caçadas e aprendeu com o caçador Hinrich a
usar a besta; tornou-se amigo dos cães e podia montar sempre que quisesse.
Raramente o viam sozinho; ou era com um cão ou um cavalo com quem
falava, ou com Hinrich ou com a governanta Lea, uma velhota avantajada
com um vozeirão de homem e muito propensa à galhofa e às risadas, ou
com o moço encarregado do canil ou com um pastor. Com a mulher do
moleiro, que vivia ali nas proximidades, não lhe teria custado nada arranjar
namorico, mas preferiu manter-se à distância, fingindo-se ingénuo.
As duas filhas do cavaleiro encantavam-no. A mais nova era a mais
bonita, mas tão arisca que quase não trocava com ele uma palavra.
Goldmund tratava-as com a máxima cortesia e delicadeza, mas ambas
sentiam a sua presença como um constante galantear. A mais nova retraiu-
se completamente,
a timidez tornou-a obstinada. Lydia, a mais velha, adotou para com ele um
tom especial, meio reverente, meio sarcástico, tratando-o como uma avis
rara da erudição, colocando-lhe um sem-
-número de perguntas curiosas, informando-se sobre a vida no convento,
sem nunca deixar de lhe fazer sentir uma autoridade vagamente trocista e
senhorial. Ele tudo aceitava, tratava Lydia como uma dama, Julie como uma
pequena monja, e quando conseguia, através de uma conversa, reter as
raparigas à mesa para além da refeição, ou quando Lydia o abordava no
pátio ou no jardim e se permitia um motejo, sentia-se imediatamente
satisfeito com o progresso. Por muito tempo ainda se conservou naquele
outono a folhagem dos imponentes freixos do pátio, por muito tempo ainda
floriram no jardim ásteres e rosas. Certo dia, apareceram visitas, um
proprietário de terras vizinho com a mulher e um palafreneiro; o dia ameno
persuadira-os a prolongarem o passeio, e agora ali estavam e rogavam que
lhes dessem alojamento nessa noite. Foram logo recebidos com grande
hospitalidade, a cama de Goldmund foi mudada para o escritório e o seu
quarto preparado para os hóspedes; mataram-se várias galinhas e mandou-
se buscar peixe à azenha. Goldmund participou com prazer em toda aquela
agitação festiva e sentiu imediatamente o interesse que despertara na
visitante. E mal reparara, pela voz e algo no olhar, no seu agrado e no
desejo, logo se apercebeu também, com uma tensão crescente, de uma
mudança no comportamento de Lydia, que se retraiu, ficou calada e
começou a observá-los. E quando, durante a ceia festiva, o pé da dama
começou a brincar com o dele por baixo da mesa, não foi só esse jogo que o
deliciou, mas bem mais ainda a tensão soturna e silenciosa com a qual
Lydia foi acompanhando a secreta aproximação com olhares curiosos e
indignados. A uma certa altura, deixou mesmo cair propositadamente uma
faca no chão, só para se baixar e acariciar por baixo da mesa o pé e o
tornozelo da dama e ver como Lydia empalidecia e mordia o lábio,
enquanto ele prosseguia com as anedotas sobre o convento, sentindo que,
mais do que essas histórias, era a sua voz sedutora que a desconhecida
escutava, deliciada. Também os outros o escutavam: o seu patrão com
benevolência; o hóspede de semblante impassível, mas também ele
contagiado pelo fogo que ardia no rapaz. Nunca Lydia o ouvira falar assim;
era como se tivesse desabrochado, na sua voz cantava a alegria e implorava
o amor. As três mulheres sentiam-no, cada uma à sua maneira: a pequena
Julie com violenta repulsa e rejeição, a mulher do cavaleiro com agrado e
entusiasmo, Lydia com um doloroso palpitar do coração, um misto de
íntimo anseio, leve repúdio e violentos ciúmes, que tornou o seu rosto mais
afilado e lhe incendiou o olhar. Goldmund sentiu todas essas vagas de
sensações que lhe chegavam refluindo como respostas ao seu cortejar;
como aves, esvoaçavam à sua volta os pensamentos amorosos, os de
entrega, os de recusa e os que se debatiam entre si, contraditórios.
Depois da refeição, Julie retirou-se, há muito que anoitecera; saiu da
sala, fria como uma freira, empunhando o candelabro de barro com a vela
acesa. Os outros ainda ficaram uma hora ali sentados, e enquanto os dois
homens conversavam sobre as colheitas, o imperador e o bispo, Lydia
assistia, afogueada, ao desenrolar de uma amena cavaqueira sem assunto
entre Goldmund e a dama, por entre cujos fúteis fios se ia, porém,
adensando uma rede de perguntas e respostas, de olhares e entoações, de
pequenos gestos e insinuações ardentes e carregadas de sentido. A rapariga
absorvia toda aquela atmosfera com um misto de volúpia e repulsa, e
quando via ou sentia o joelho de Goldmund tocar no da dama por baixo da
mesa, era como se ela própria tivesse sido tocada no seu corpo, e
estremecia. Mais tarde, não conseguiu adormecer e manteve-se à escuta
durante metade da noite, com o coração aos saltos, convencida de
que os dois se iriam encontrar. Na sua imaginação consumou o que lhes foi,
de facto, negado; viu-os enlaçados, escutou os seus beijos, arrebatada pela
excitação e ao mesmo tempo temendo e desejando que o cavaleiro
enganado surpreendesse aquele horrível Goldmund e lhe espetasse a faca no
coração.
Na manhã seguinte, o céu estava encoberto, soprava um vento húmido, e
o visitante, recusando todos os convites para prolongar a estadia, insistiu em
partir sem demora. Lydia estava presente quando os hóspedes montaram a
cavalo, apertou-lhes as mãos e despediu-se sem se aperceber do que estava
a fazer, pois todos os seus sentidos se concentraram no olhar com que viu a
dama, ao montar, apoiar o pé nas mãos que Goldmund lhe ofereceu, e como
ele, com a direita, lhe agarrou o sapato, apertando-lhe, por um instante,
firmemente o pé.
Os estranhos tinham partido, Goldmund teve de ir trabalhar para o
escritório. Meia hora depois, ouviu lá em baixo a voz de Lydia, dando
ordens para que lhe aparelhassem e trouxessem um cavalo; o pai foi até à
janela, olhou para baixo, abanando a cabeça e sorrindo, depois ficaram
ambos a vê-la sair do pátio. Pouco adiantaram naquele dia a redação dos
textos em latim. Goldmund estava distraído, e o seu amo, sempre amável,
dispensou-o mais cedo do que era costume.
Levando o cavalo à arreata, Goldmund conseguiu sair da cerca sem que
o vissem e partiu pela paisagem amarelecida ao encontro do vento frio e
húmido do outono; trotando com cada vez mais intensidade, sentiu a
montada aquecer por baixo de si e o seu próprio sangue incendiar-se.
Passou por campos ceifados e baldios, por charnecas e sítios pantanosos
cobertos de cavalinha e esparto; sob o céu cinzento atravessou, respirando a
plenos pulmões, pequenos vales de amieiros, húmidas florestas de abetos e
novamente a charneca, erma e pardacenta.
No cume de uma alta colina viu recortar-se contra o céu carregado a
silhueta de Lydia, muito direita sobre o cavalo, que seguia agora num trote
lento. Precipitou-se ao seu encontro, mas ela, mal se viu perseguida,
esporeou a montada e lançou-se à desfilada. Ora lhe desaparecia da vista,
ora lhe surgia novamente, de cabelos ao vento. Acossou-a como a uma
presa,
o coração exultante; incitou o cavalo com breves apelos carinhosos,
estudando num relance, com olhos alegres, as características da paisagem,
os campos rasteiros, as manchas dos bosques de freixos, os choupais, as
margens barrentas dos charcos, sem nunca perder de vista o seu alvo, a bela
fugitiva. Em breve iria alcançá-la.
Quando Lydia soube que ele já estava perto, desistiu da fuga e deixou o
cavalo seguir a passo. Nem por um momento se virou para o seu
perseguidor. Orgulhosa, aparentemente indiferente, continuou a montar
como se nada fosse com ela, como se estivesse sozinha. Ele obrigou o seu
cavalo a andar ao lado do dela; quase juntas, as montadas seguiram
pacificamente a passo, embora tanto elas como os seus cavaleiros se
encontrassem ainda excitados pela longa perseguição.
– Lydia! – exclamou ele em voz baixa.
Ela não lhe respondeu.
– Lydia!
Ela manteve-se calada.
– Como foi lindo ver-te montar assim ao longe, Lydia, com o teu cabelo
a esvoaçar como um clarão dourado. Que belo foi! E como foi maravilhoso
teres fugido de mim! Só agora percebi que afinal gostas um bocadinho de
mim. Não o sabia, ainda ontem à noite duvidava. Só há pouco, quanto
tentaste escapar, é que, de repente, percebi. Linda, querida, deves estar
exausta, vamos desmontar.
Saltou com desembaraço da sela e agarrou-lhe as rédeas, não lhe dando
hipótese de fugir novamente. Ela olhou para ele, branca como a neve, e
quando ele a ajudou a descer do cavalo, rompeu num pranto. Goldmund
amparou-a, ajudou-a a dar uns passos e a sentar-se na erva ressequida com
todo o cuidado e ajoelhou-se ao seu lado. Lydia deixou-se ficar sentada,
tentando controlar os soluços, lutou corajosamente, até conseguir dominá-
los.
– Oh, como és mau! – disse, quando conseguiu falar. Mal podia
pronunciar as palavras.
– Sou assim tão mau?
– És um sedutor de mulheres, Goldmund. Quero esquecer o que acabaste
de me dizer, foram palavras atrevidas, não deves falar assim comigo. Como
podes achar que eu gosto de ti? Vamos esquecer isso! Mas como é que eu
posso esquecer o que tive de ver ontem à noite?
– Ontem à noite? O que foi que viste?
– Ah, não te faças de inocente, não me mintas! Foi horrível e uma pouca-
vergonha a maneira como te puseste a cortejar aquela mulher! Será que não
tens mesmo vergonha nenhuma? Até a perna lhe acariciaste por baixo da
mesa, por baixo da nossa mesa! Mesmo à minha frente, diante dos meus
olhos!
E agora, que ela se foi embora, apareces e pões-te a perseguir--me. Tu não
sabes mesmo o que é ter vergonha.
Goldmund há muito que se arrependera das palavras que lhe dissera
antes de a ajudar a desmontar. Que estúpido tinha sido; no amor, as palavras
são desnecessárias, devia ter-se calado.
Não disse mais nada. Ajoelhou-se ao seu lado, e como a viu assim, tão
bela e infeliz, deixou-se contagiar pela sua tristeza; ele próprio sentia que
havia algo a lamentar. Mas apesar de tudo o que ela dissera, ainda
conseguia ver amor nos seus olhos;
e a própria dor no tremor dos seus lábios era amor. Acreditava mais no seu
olhar do que nas suas palavras.
Mas Lydia estava à espera de uma resposta. E como ela não chegasse,
apertou os lábios, olhou-o com olhos ainda chorosos e repetiu:
– Será que não tens mesmo vergonha nenhuma, Goldmund?
– Perdoa – disse ele humildemente –, estamos a falar de coisas sobre as
quais não se devia falar. A culpa é minha, perdoa-me! Perguntas-me se eu
não tenho vergonha. Sim, tenho vergonha. Mas eu amo-te, querida, e o
amor não sabe o que é vergonha. Não fiques zangada!
Ela parecia mal o ter ouvido. Deixou-se ficar ali sentada com aquela
expressão amarga na boca, a olhar para longe, como se estivesse sozinha.
Goldmund nunca se vira numa tal situação. Tinha tudo a ver com o falar.
Suavemente, pousou o rosto no seu joelho e sentiu-se imediatamente
melhor. No entanto, continuava algo perplexo e triste, e também ela parecia
estar triste, pois mantinha-se sentada e imóvel, em silêncio, a olhar absorta
para longe. Quanto constrangimento, quanta tristeza! O joelho, porém,
mostrou-se recetivo ao aceitar a pressão da sua face, não a recusou. De
olhos fechados, o rosto pousado no joelho dela, Goldmund foi-se
apercebendo aos poucos da sua forma nobre e alongada. Com alegria e
comoção pensou em como a forma elegante e juvenil daquele joelho
correspondia às unhas longas, bonitas e de firme curvatura das suas mãos.
Dominado por um sentimento de gratidão, aconchegou-se ainda mais ao
joelho, deixou que a face e a boca falassem com ele.
Agora era a mão dela que sentia pousar-lhe no cabelo, hesitante e leve
como uma ave. Querida mão, pensou, ao senti-la afagar-lhe os cabelos,
delicada e infantil. Já muitas vezes observara e admirara aquelas mãos, que
conhecia quase tão bem como as suas: os dedos finos e compridos, com as
colinas rosadas, longas e alombadas das unhas. Agora aqueles dedos longos
e delicados conversavam timidamente com os seus caracóis. A sua
linguagem era ainda infantil e indecisa, mas também ela era amor. Com
gratidão, aconchegou a cabeça àquela mão e sentiu-lhe a palma na nuca e
nas faces.
– Já é hora, temos de ir – disse ela por fim.
Ele ergueu a cabeça, olhou-a com ternura e beijou-lhe suavemente os
dedos finos.
– Por favor, levanta-te – disse ela –, temos de voltar para casa.
Ele obedeceu imediatamente. Levantaram-se, montaram e partiram.
Goldmund sentia o coração transbordar de felicidade. Como era bela
Lydia, pura e delicada como uma menina! Ainda nem sequer a tinha beijado
e já se sentia tão repleto de dádivas e saciado dela! Esporearam as
montadas, e só quando estavam a chegar, já quase com o portão da cerca à
sua frente, é que Lydia se assustou e disse:
– Não devíamos ter chegado ambos ao mesmo tempo. Que tontos fomos!
– E, no derradeiro momento, ao desmontar, quando já um moço de
estrebaria acorria, ainda lhe sussurrou ao ouvido, rápida e ardente: – Diz-me
se estiveste ontem à noite com aquela mulher!
Ele negou várias vezes com a cabeça e apressou-se a ir desaparelhar o
cavalo.
À tarde, depois de o pai ter saído, ela foi ter com ele ao escritório.
– É mesmo verdade? – insistiu com paixão, e ele soube logo do que se
tratava.
– Porque é que andaste então a brincar com ela daquela forma tão
horrível, para a deixar enamorada?
– Era para ti – disse ele. – Acredita que teria preferido mil vezes
acariciar o teu pé. Mas nunca ele veio ter comigo, debaixo da mesa,
perguntar-me se te amava.
– Mas tu amas-me realmente, Goldmund?
– Oh, sim.
– Mas o que vai ser de nós?
– Não sei, Lydia. Nem me preocupo com isso. Sinto-me feliz por te
amar, mas não penso no que poderá vir a acontecer. Fico feliz ao ver-te
montar, e quando oiço a tua voz, e quando os teus dedos me afagam o
cabeço. Ficarei feliz se te puder beijar.
– Só se deve beijar a noiva, Goldmund. Nunca pensaste nisso?
– Não, nunca pensei nisso. E porque havia de pensar? Sabes tão bem
como eu que nunca poderás ser minha noiva.
– Assim é. E porque não poderás ser meu marido e ficar para sempre
junto de mim é que é injusto da tua parte falar-me de amor. Pensaste que me
podias seduzir?
– Eu não achei nem pensei em nada, Lydia. De resto, penso muito menos
do que julgas. Não desejo mais nada, a não ser que me queiras beijar uma
vez. Falamos tanto. Os amantes não falam. Acho que não gostas de mim.
– Ainda hoje de manhã disseste o contrário.
– E tu fizeste o contrário!
– Eu? Que queres tu dizer com isso?
– Primeiro fugiste de mim à desfilada quando me viste vir. Nesse
momento pensei que me amavas. Depois choraste e eu julguei que era
porque me amavas. Depois pousei a cabeça nos teus joelhos e tu acariciaste-
me, e achei que aquilo era amar. Mas agora não fazes nada que demonstre o
teu amor.
– Não sou como a mulher a quem ontem fizeste festas no pé. Parece que
estás habituado a esse tipo de mulheres.
– Não, graças a Deus, és muito mais bela e delicada do que ela.
– Não foi isso que quis dizer.
– Mas é assim mesmo. Fazes ideia de como és linda?
– Tenho um espelho.
– E já viste nele alguma vez a tua testa com olhos de ver, Lydia? E
depois os ombros, e a seguir as unhas, e os joelhos? E já reparaste como
tudo em ti é harmonioso nas proporções, como tudo tem aquela mesma
forma alongada, firme e muito delgada? Já reparaste nisso?
– A maneira como falas! No fundo, nunca reparei nisso, mas agora,
ouvindo-te, sei a que te referes. Escuta o que te digo: és mesmo um sedutor.
E estás a tentar tornar-me vaidosa.
– É pena nunca conseguir agradar-te. Mas por que motivo tentaria eu
tornar-te vaidosa? Tu és simplesmente bonita, e eu gostava de mostrar-te
que isso me enche de gratidão. Mas és tu que me obrigas a dizer-te isso por
palavras; eu poderia dizê-lo mil vezes melhor sem falar. Com palavras não
te posso dar nada! Por palavras também nada posso aprender de ti, nem tu
de mim.
– E que posso eu aprender contigo?
– Eu contigo, Lydia, e tu comigo. Mas recusas-te. Só queres amar aquele
de quem venhas a ser noiva. Pois ele há de desatar a rir quando perceber
que não aprendeste nada, nem mesmo a beijar.
– Com que então, o senhor magíster quer dar-me lições em beijar?
Ele sorriu-lhe. Embora não gostasse das suas palavras, podia sentir por
detrás da argumentação indignada e vagamente impertinente a sua
feminilidade adolescente acossada pelo desejo, de que tentava defender-se
por puro medo.
Não respondeu. Limitou-se a sorrir-lhe, fixou-a e prendeu--lhe o olhar
inquieto, e enquanto ela, não sem opor resistência, se rendia ao
encantamento, foi aproximando o seu rosto do dela até os lábios se tocarem.
Com toda a suavidade roçou a sua boca, que correspondeu com um pequeno
beijo infantil e se entreabriu num espanto aflito, ao aperceber-se de que ele
não a largava. Insistindo sempre suavemente, foi acompanhando o recuo da
sua boca, até senti-la vir de novo ao seu encontro; ensinou-lhe então, sem
qualquer violência, o dar e receber do beijo, até que ela, exausta, escondeu
o rosto no seu ombro. Ele deixou-a descansar, aspirou feliz o cheiro do seu
forte cabelo loiro, murmurou-lhe ao ouvido sons ternos e apaziguadores e
recordou aqueloutro momento em que ele, ainda aprendiz inexperiente, fora
iniciado no mistério pela cigana Lise. Como era negro o seu cabelo e
morena a sua pele, como o sol queimara naquela tarde e como sentira o
perfume do hipericão a murchar! E há quanto tempo tinha já tudo
acontecido, tão remota e longínqua cintilava ainda aquela recordação.
Como tudo murchava tão depressa, mal acabava de despontar!
Lydia endireitou-se devagar, o rosto transfigurado, os olhos grandes e
graves, cheios de amor.
– Deixa-me ir embora, Goldmund – disse –, fiquei tanto tempo aqui
contigo. Oh, meu querido!
Dia após dia, foram conseguindo arranjar uma hora para se encontrarem
em segredo, e Goldmund entregou-se por completo à amada. Aquele amor
de rapariguinha comovia-o e enchia-o de felicidade. Por vezes não queria
mais que passar uma hora inteira de mãos dadas com ele, a olharem-se
olhos nos olhos, e despedia-se com um beijo de menina. Outras vezes
beijava-o, arrebatada e insaciável, mas não consentia que ele lhe tocasse.
Certa vez, ruborizada e esforçando-se por vencer o pudor só para lhe dar
uma grande alegria, deixou-o ver um dos seios; timidamente, descobriu o
peito pequeno e branco; quando ele o beijou, ajoelhado, ela apressou-se a
cobri-lo de novo cuidadosamente, corada até ao pescoço. Também
conversavam, mas de uma nova maneira, já não como nos primeiros dias;
inventavam nomes um para o outro e ela gostava de lhe falar da infância,
dos seus sonhos e jogos. Também lhe dizia muitas vezes que aquele seu
amor era errado, uma vez que ele não podia desposá-la; triste e resignada,
insistia naquele ponto, adornando o seu amor com o segredo daquela
mágoa, que os cobria como um véu negro.
Pela primeira vez na sua vida, Goldmund não se sentia apenas desejado
por uma mulher, mas também amado.
Um dia, Lydia disse-lhe:
– És tão bonito e pareces tão alegre. Mas no fundo dos teus olhos não há
alegria, só há tristeza; é como se eles soubessem que a felicidade não existe
e que tudo o que é belo e amado não perdura. Tens os olhos mais belos que
se podem ter, e também os mais tristes. Acho que é por não teres lar nem
pátria. Vieste das florestas ter comigo e um dia voltarás à vida errante e
tornarás a dormir no musgo e a partir na manhã seguinte; mas onde é o meu
lar? Quando partires, continuarei a ter um pai e uma irmã e um quarto com
janela, à beira da qual me poderei sentar a pensar em ti; mas um verdadeiro
lar já não terei.
Ele deixava-a falar, por vezes sorria, outras ficava triste. Nunca
procurava consolá-la com palavras, apenas com carícias silenciosas, ou
encostando a cabeça ao seu peito e murmurando baixinho uns quaisquer
sons mágicos e sem sentido, como as amas costumam fazer para consolar as
crianças quando choram. Um dia, Lydia disse-lhe:
– Gostaria de saber o que virá a ser de ti, Goldmund. Penso nisso muitas
vezes. A tua vida não será vulgar nem fácil. Deus queira que tenhas sorte!
Às vezes penso que talvez venhas a ser um poeta, um daqueles que têm
visões e sonhos e que os conseguem transmitir tão bem por palavras. Hás de
correr mundo, e todas as mulheres te irão amar, e, contudo, irás ficar
sozinho. Volta antes para o convento, para junto desse teu amigo de que
tanto me tens falado! Rezarei por ti, para que não morras um dia, sozinho,
na floresta.
Assim podia ela falar, por vezes, com a maior gravidade, o olhar perdido
na distância. Mas noutras alturas era também capaz de rir às gargalhadas e
de cavalgar com ele pelos campos outonais, ou de o pôr a adivinhar e de se
perder com ele em brincadeiras em que lhe atirava com folhas secas e
bolotas.
Certa vez, Goldmund estava deitado na cama, no seu quarto, à espera de
que o sono lhe chegasse. Sentia-se oprimido, o coração batia-lhe no peito de
uma forma pungente e dolorosa, transbordante de amor, carregado de
tristeza e perplexidade. Ouvia o vento de novembro investir contra as telhas
do telhado; aquilo tornara-se um hábito, pois há algum tempo que lhe
custava a adormecer. Silenciosamente, recitou, como todas as noites, uma
pequena prece à Virgem:

Tota pulchra es, Maria,


Et macula originalis no est in te.
Tu laetitia Israel,
Tu advocata peccatorum!

A suave melodia do cântico insinuava-se-lhe na alma, enquanto lá fora as


rajadas do vento o acossavam com as inquietações da vida vagabunda, da
floresta, do outono e da perpétua errância. Pensava em Lydia, em Narciso e
na sua mãe, e sentia o inquieto coração cheio e oprimido.
Foi então que algo o sobressaltou e o fez virar-se, sem querer acreditar
no que via: a porta do quarto abrira-se, deixando entrar no escuro um vulto
vestido com uma comprida camisa branca; era Lydia que, descalça, pisando
as lajes de pedra, se virou para fechar silenciosamente a porta, antes de se
vir sentar na sua cama.
– Lydia – sussurrou ele –, minha pequena corça, minha branca flor!
Lydia, que fazes tu aqui?
– Venho ter contigo – disse ela –, só por um instantinho. Queria ver, pelo
menos uma vez, como o meu Goldmund se deita na sua cama, o meu
coração de oiro.
Deitou-se ao seu lado e ficaram ambos quietos, sentindo as batidas
pesadas do coração. Ela deixou-o beijá-la, permitiu que as suas mãos
percorressem deslumbradas o seu corpo; mais não lhe foi concedido. Pouco
depois, afastou-as suavemente, beijou-o nos olhos, levantou-se
silenciosamente e desapareceu. A porta rangeu, a ventania soprava e
investia contra o travejamento do telhado. Tudo parecia enfeitiçado,
saturado de mistério e incerteza, cheio de promessas e ameaças. Goldmund
já não sabia o que pensar nem o que fazer. Quando voltou a acordar, depois
de um sono inquieto, tinha a almofada toda encharcada de lágrimas.
Decorridos alguns dias, o doce fantasma branco veio novamente ter com
ele e ficou um quarto de hora deitado ao seu lado, na cama, como da última
vez. Aninhada nos seus braços, segredou-lhe ao ouvido tudo o que tinha
para lhe dizer, para lamentar. Ele ouviu-a, enternecido, enquanto ela ia
falando, a cabeça apoiada no seu braço esquerdo. Com a mão direita
acariciava-lhe os joelhos.
– Meu queridinho – disse ela com voz abafada, os lábios quase colados à
sua face –, é tão triste que eu não possa pertencer-te. Esta nossa pequena
felicidade, este nosso segredo não vai durar muito mais tempo. A Julie já
anda desconfiada e não tardará a obrigar-me a contar-lhe tudo. Ou então é o
pai que repara. Se desse comigo aqui deitada contigo na cama, meu
passarinho dourado, a tua Lydia iria passar um mau bocado; ficaria de olhos
chorosos, a olhar para as árvores lá em cima, a ver o seu mais que querido
pendurado, a balançar ao vento. Ai, amor, foge antes que isso aconteça, o
melhor seria agora já, antes que o pai te mande acorrentar e enforcar. Já
uma vez vi um enforcado, um ladrão. A ti não consigo ver-te, foge, o
melhor é desapareceres daqui e esqueceres-me; o que não suporto é ver--te
morrer, Goldmund, ver os pássaros debicarem os teus olhos azuis! Mas não,
meu tesouro, não quero que te vás embora. Oh, o que há de ser de mim se
me deixares só!
– Não queres vir comigo, Lydia? Fugimos juntos, o mundo é grande!
– Seria tão bom – lamentou ela –, que bom seria correr mundo contigo!
Mas não consigo. Não consigo dormir na floresta, sem sítio meu onde viver,
com palha nos cabelos, não posso. Nem consigo desonrar o pai dessa
maneira. Não, não digas mais nada, não se trata de devaneios meus.
Simplesmente, não consigo! Custava-me tanto como comer de um prato
sujo ou dormir na cama de um leproso. Meu Deus, tudo o que poderia ser
bom e belo nos é proibido, nascemos para ser infelizes. Goldmund, meu
pobre menino de oiro, ainda vou acabar por te ver pendurado numa árvore.
E a mim trancam-me numa cela e acabo enclausurada num convento. Tens
de me deixar, meu querido, e fugir daqui, vais voltar a dormir com as
ciganas e as campónias. Vai, vai-te já embora, antes que te apanhem e
amarrem! Nunca seremos felizes, nunca!
Goldmund acariciou-lhe suavemente os joelhos e, tocando--lhe ao de
leve na púbis, insistiu:
– Florzinha, podíamos ser tão felizes! Não deixas?
Ela afastou-lhe a mão, sem enfado mas com determinação, e apartou-se
um pouco.
– Não – disse –, isso não pode ser. Não me é permitido. Tu talvez não
percebas isso, meu ciganinho. O que eu faço já é mau, sou uma leviana,
ando a desonrar toda a nossa casa. Mas algures, no fundo da minha alma,
ainda sinto orgulho, aí ninguém deve entrar. Isso tens de aceitar, senão
nunca mais poderei vir ter contigo aqui ao quarto.
Nunca ele teria desrespeitado uma proibição, um desejo ou uma simples
alusão vinda da parte dela. O próprio Goldmund estava espantado com o
poder que ela tinha sobre ele. Mas sofria. Os seus instintos mantinham-se
insatisfeitos e não raras vezes o coração revoltava-se contra a dependência.
Havia alturas em que se esforçava por libertar-se. Cortejava então a
pequena Julie com requintada galanteria, o que não deixava de ser
necessário, pois convinha-lhe manter um bom relacionamento com aquela
pessoa tão importante e, se possível, iludi-la. De resto, era bem estranha a
sua relação com aquela Julie, que tantas vezes se comportava de uma
maneira infantil para, logo a seguir, parecer perceber tudo. De uma beleza
invulgar, ela era, sem dúvida, mais bonita do que a irmã, e isso, juntamente
com aquela sua inocência infantil, não isenta de uma sensatez surpreendente
e demasiado precoce, representava para ele um constante desafio; muitas
vezes sentia-se extremamente atraído por Julie. Confrontado com essa forte
atração que a jovem exercia sobre os seus sentidos, Goldmund compreendia
agora melhor, para sua surpresa, a diferença entre o desejo e o amor.
Inicialmente, vira as duas irmãs com os mesmos olhos, achara-as ambas
desejáveis; embora Julie fosse mais bela e sedutora, cortejara-as a ambas
indistintamente, sem nunca as perder de vista. E agora Lydia conquistara
todo aquele poder sobre ele! Amava-a tanto que, por amor, até renunciara a
possuí-la inteiramente. Aprendera a conhecer e a amar a sua alma; em toda
a sua ingenuidade, ternura e propensão para a tristeza, parecia-lhe gémea da
sua; muitas vezes admirava-se e deliciava-se intimamente ao constatar o
quanto aquela alma correspondia ao corpo que a continha; podia fazer algo,
dizer algo, manifestar um desejo ou um juízo, e as palavras que utilizava e a
atitude que a sua alma assumia eram caracterizadas exatamente pela mesma
forma que se manifestava no recorte dos seus olhos e na constituição dos
seus dedos!
Aqueles momentos em que julgava ter entrevisto as formas e as normas
essenciais que configuravam o ser, a alma e o corpo de Lydia, tinham
despertado frequentemente nele o desejo de reter e reproduzir algo daquela
sua presença; secretamente, conservava umas folhas onde tentara esboçar
com a pena, de memória, o perfil da sua cabeça, a linha das suas
sobrancelhas, a forma da sua mão ou do joelho.
Com Julie, a situação tornara-se algo difícil. Ela pressentia nitidamente a
vaga de amor que arrastava a irmã mais velha e os seus sentidos voltavam-
se cheios de curiosidade e desejo para aquele paraíso, sem que o seu
intelecto obstinado o quisesse admitir. Assim, demonstrava para com
Goldmund uma exagerada frieza e antipatia, sem deixar de o observar, em
momentos desprevenidos, com admiração e desejosa curiosidade. Com
Lydia mostrava-se muitas vezes extremamente terna e chegava mesmo a ir
ter com ela à cama; aspirava então com mal contida ânsia os cheiros do
amor e do sexo, rondando caprichosamente o mistério proibido e desejado.
Noutras ocasiões deixava transparecer, de modo quase ofensivo, que sabia
das práticas proibidas da irmã e que as desprezava. Excitada e incomodada,
a bela e caprichosa criança ia ateando o rasto da sua inquietação, ora junto
dele, ora junto dela, saboreando o seu secretismo em sonhos sequiosos, ora
fingindo-se ignorante, ora deixando transparecer uma perigosa conivência;
rapidamente, de criança que era, se tornara uma força indesmentível. Lydia
sofria mais com isso do que Goldmund, que, fora das refeições, raramente a
encontrava. Por outro lado, também não lhe passava despercebido que ele
não era indiferente aos encantos da irmã, por vezes via-o observando-a com
um olhar apreciativo e agradado. Ela nada podia dizer, pois tudo era tão
difícil e cheio de perigo que convinha não indispor ou ofender Julie; a cada
dia que passava, a qualquer hora, o segredo do seu amor podia ser
descoberto, pondo fim – um fim talvez terrível – àquela sua felicidade
carregada de aflições.
Havia alturas em que Goldmund se admirava por não ter partido já. Era
difícil viver como ele agora vivia: ser amado, mas sem esperança de
felicidade legítima e duradoura ou perspetiva da satisfação fácil a que os
seus desejos de amor estavam habituados; com os instintos continuamente
excitados e famintos, nunca saciados e em constante sobressalto. Porque
continuava ali, suportando tudo aquilo, todas aquelas complicações e os
sentimentos confusos? Não seriam essas vivências, esses sentimentos e
estados de consciência algo que só os sedentários e legítimos, os que viviam
em espaços confinados e aquecidos se podiam permitir? E não dispunha ele
do direito do vagabundo frugal de dispensar tais delicadezas e
complexidades e de se rir delas? Sim, ele tinha esse direito, e era um louco
por ainda ali estar, à procura de algo que se assemelhasse a um lar e que
tinha de pagar com tantas perplexidades e sofrimentos. Não obstante, ali
estava ele, assumindo com prazer aquela dor que secretamente o deixava
feliz. Era estúpido e difícil, complicado e esgotante amar daquela maneira,
mas também era maravilhoso. Era maravilhoso descobrir a tristeza sombria
e bela daquele amor, a sua insensatez e a desesperança; belas eram aquelas
noites insones passadas a pensar; belo e delicioso era tudo aquilo, como a
presença da dor que se insinuava nos lábios de Lydia, como a tonalidade
desmaiada e resignada da sua voz quando lhe falava do seu amor e das suas
penas. Em poucas semanas surgira e instalara-se no rosto jovem de Lydia
aquela expressão de sofrimento, cujos traços tanto lhe interessava fixar
através do desenho; ele próprio sentia que no decorrer daquelas breves
semanas também ele se transformara e envelhecera; não se sentia nem mais
esperto nem mais feliz, mas mais experiente e de certo modo bem mais
maduro e rico animicamente. Sentia que deixara para trás a adolescência.
Lydia dizia-lhe com a sua voz suave e como que ausente:
– Não estejas triste por minha causa, eu só quero dar-te alegria e ver-te
feliz. Perdoa por te ter entristecido, contagiei-te com o meu medo e as
minhas aflições. Durante a noite sonho coisas tão estranhas: vejo-me a
vaguear por um deserto tão grande e escuro que nem consigo descrevê-lo;
caminho e caminho, à tua procura, mas tu não estás lá e sei que te perdi e
que irei vaguear para sempre assim, tão sozinha. Depois, quando acordo,
penso: que bom, que maravilhoso é saber que ele ainda cá está e que o irei
poder ver, talvez ainda por algumas semanas, ou por dias, não importa,
ainda o tenho aqui!
Certa manhã, Goldmund acordou pouco depois do nascer do dia e
deixou-se ficar mais algum tempo na cama, a pensar, tentando perceber as
imagens sem nexo de um sonho que acabara de ter. Sonhara com a sua mãe
e com Narciso, ainda os conseguia ver nitidamente. Quando logrou libertar-
se da teia das imagens, apercebeu-se de uma certa luz, uma claridade
estranha que entrava pelo pequeno postigo. Levantou-se de um salto e
correu para a janela. Viu então a cornija, o telhado da cavalariça, a entrada
do pátio e toda a paisagem à volta brilharem em tons de um branco azulado,
cobertos pela primeira neve daquele inverno. O contraste entre o
desassossego do seu coração e a quietude resignada daquele mundo
invernoso impressionou-o: com que serenidade tocante e com que submissa
fé se entregavam os campos e a floresta, as colinas e a charneca ao sol, ao
vento, à chuva, à estiagem e à neve; com que beleza e suave ânimo
suportavam o plátano e o freixo a sua carga invernal! Não seria possível
tornar-se como eles, aprender com eles? Saiu para o pátio, absorto,
caminhou pela neve, afundou as mãos nela, sentiu-a, seguiu para o jardim e
contemplou, por cima da vedação coberta de neve, os troncos das roseiras
vergados sob o peso branco.
Ao pequeno-almoço, enquanto comiam o caldo de farinha, falaram do
primeiro nevão, já todos tinham estado lá fora, até mesmo as raparigas. A
neve tardara naquele ano, já estavam quase no Natal. O cavaleiro falou-lhes
dos países do Sul, onde não havia neve. No entanto, o que tornou
inesquecível para Goldmund aquele primeiro dia de inverno só muito mais
tarde aconteceu, quando era já noite cerrada.
As duas irmãs tinham-se zangado nesse dia, sem que Goldmund o
soubesse. Durante a noite, já a casa estava escura e sossegada, Lydia veio
ter com ele à cama e deitou-se como de costume em silêncio, a cabeça
pousada no seu peito, para lhe ouvir bater o coração e consolar-se com a sua
proximidade. Sentia-se angustiada e receosa, temia a traição de Julie, mas
não conseguia decidir-se a falar com o amado sobre o assunto e causar-lhe
ainda mais preocupações. Deixou-se então ficar ali, a escutar o bater do seu
coração, ouvindo-o murmurar de vez em quando palavras carinhosas e
sentindo a mão dele acariciar-lhe os cabelos.
Subitamente, porém – ainda não passara muito tempo desde que chegara
–, ergueu-se terrivelmente assustada, os olhos desmesuradamente abertos. E
grande foi também o susto de Goldmund, ao ver abrir-se a porta do quarto e
entrar um vulto que o susto não o deixou reconhecer imediatamente. Só
quando a aparição já se encontrava junto à cama e se debruçou sobre eles é
que ele percebeu, com o coração aos saltos, que era Julie. Viu-a despir e
deixar cair ao chão a capa que pusera aos ombros, por cima da camisa de
noite. Lydia deixou-se cair para trás com um arquejo, como se tivesse sido
apunhalada,
e agarrou-se a Goldmund.
Num tom de troça e satisfação perversa, embora algo insegura, Julie
exigiu:
– Não gosto de ficar tão sozinha lá no quarto. Ou me deixam ficar
convosco e deitamo-nos os três juntos, ou vou já acordar o pai.
– Vá, então deita-te lá – disse Goldmund, afastando a manta. – Deves
estar com os pés gelados.
Ela subiu para a cama e ele teve dificuldade em arranjar-lhe espaço para
se deitar no leito estreito, pois Lydia enterrara o rosto na almofada e
deixara-se ficar imóvel. Finalmente, ficaram os três ali deitados, Goldmund
com uma rapariga de cada lado, e durante um momento não conseguiu
deixar de pensar no quanto aquela situação correspondera, até há bem
pouco tempo, a todos os seus desejos. Com uma estranha ansiedade, não
isenta de um secreto prazer, sentia a anca de Julie colar-
-se-lhe ao corpo.
– Tinha de vir ver como se passa o tempo nesta tua cama, que a minha
irmã tantas vezes procura – insistiu Julie.
Para a calar, Goldmund roçou suavemente a face pelo seu cabelo e
acariciou-lhe delicadamente a anca e o joelho, como se estivesse a fazer
festas a um gato; silenciosamente, Julie abandonou-se cheia de curiosidade
ao movimento dos dedos, sentiu o feitiço, aturdida e suspensa, sem opor
resistência. Simultaneamente, e enquanto aquele encantamento decorria,
Goldmund não deixava de dedicar a sua atenção a Lydia, sussurrando-lhe
ao ouvido mimos e palavras carinhosas que ambos costumavam partilhar e
levando-a, finalmente, a mostrar-lhe o rosto. Sem dizer uma palavra, beijou-
lhe a boca e os olhos, enquanto, do outro lado, a sua mão mantinha
suspensa a irmã e a consciência do absurdo e do embaraço de toda aquela
situação se lhe ia tornando insuportável. Foi a sua mão esquerda que lhe
ensinou tudo; enquanto ela se ia familiarizando com aqueles belos membros
que o acolhiam em silêncio, Goldmund sentiu pela primeira vez não só a
beleza e o profundo desconsolo do seu amor para com Lydia, mas também
o ridículo daquela entrega. Parecia-lhe agora, enquanto os seus lábios
estavam com Lydia e a sua mão com Julie, que deveria ter obrigado Lydia a
entregar-se-lhe ou então ter largado tudo e partido. Amá-la e renunciar a ela
tinha sido um absurdo e uma injustiça.
– Meu coração – segredou ao ouvido de Lydia –, temos padecido dores
inúteis. Como poderíamos ser agora felizes os três juntos! Aceitemos o que
o sangue nos pede!
Ao senti-la escapar-se-lhe, a tremer, Goldmund virou-se para a irmã, e
tão terna se mostrou a sua mão que Julie respondeu com um longo e
fremente suspiro de prazer. Ao ouvi-lo,
o ciúme contraiu o coração de Lydia, como se gotas de um ácido o
estivessem a consumir. Sentou-se imediatamente, afastou a manta para o
chão, levantou-se e exclamou:
– Julie, vamo-nos embora!
Julie estremeceu; já só a irrefletida violência daquele grito mal reprimido
que os poderia ter denunciado a todos lhe mostrou o perigo que corriam;
sem dizer palavra, levantou-se.
Goldmund, porém, frustrado e defraudado em todas as suas pulsões,
agarrou-se ao corpo de Julie no momento em que esta se levantava, beijou-
lhe os seios e sussurrou-lhe ardentemente ao ouvido:
– Amanhã, Julie, amanhã!
Lydia esperava à beira da cama, descalça e em camisa de noite, os dedos
dos pés enregelados nas lajes de pedra. Apanhou do chão a capa da irmã e
aconchegou-lha à volta dos ombros com um gesto sofredor e humilde, que,
apesar da escuridão, não passou despercebido a Julie e a comoveu e
conciliou. Saíram ambas silenciosamente do quarto. Goldmund ficou a
ouvi-las afastarem-se, dominado por sentimentos contraditórios, e só
respirou fundo quando um silêncio sepulcral se instalou em toda a casa.
Assim se viram os três jovens, confundidos por aquele encontro estranho
e tão pouco natural, remetidos para um isolamento pensativo, pois também
as duas irmãs, logo que chegaram ao quarto, se mostraram incapazes de
falar sobre o que acabara de acontecer; caladas, sós e obstinadas, ficaram
cada uma em sua cama, sem conseguir conciliar o sono. Parecia que o
espírito da desgraça e da contradição, o demónio da desavença, do
isolamento e da desordem da alma se tinha apoderado daquela casa. Já
passava da meia-noite quando Goldmund logrou finalmente adormecer, e
Julie só o conseguiu já a madrugada despontava. Lydia permaneceu insone
e atormentada, até que o dia alvoreceu pálido sobre os campos nevados.
Logo que sentiu a claridade, levantou-se, vestiu-se, ajoelhou-se e rezou
demoradamente diante da pequena imagem de madeira do Redentor; e
assim que sentiu nas escadas os passos do pai, foi ter com ele e pediu-lhe
que a atendesse. Sem tentar sequer distinguir entre a sua preocupação pela
castidade da irmã e os próprios ciúmes, decidira pôr termo àquela situação.
Goldmund e Julie ainda dormiam e já o cavaleiro sabia tudo o que a filha
mais velha achara por bem contar-lhe. Em momento algum Lydia
mencionou a participação de Julie na aventura.
Quando Goldmund compareceu no escritório à hora costumada,
encontrou o cavaleiro de botas, gibão e espada à cinta, em lugar do roupão
de feltro e das pantufas que costumava usar quando se dedicava às lides da
escrita; imediatamente compreendeu o que aquilo significava.
– Põe o teu gorro – disse o cavaleiro. – Tenho de ir dar uma volta
contigo.
Goldmund tirou o gorro do cabide e seguiu o seu senhor escada abaixo,
através do pátio e para fora do portão. As suas solas rangiam ao pisar a
camada de fino gelo que se formara na neve; no céu via-se ainda o fulgor da
alvorada. O cavaleiro ia à frente, calado, seguido pelo jovem, que por várias
vezes se voltou para ver a casa, a janela do seu quarto, o telhado íngreme e
coberto de neve, até tudo se afundar na distância e desaparecer da sua vista.
Nunca mais iria voltar a ver aquele telhado e aquela janela, o escritório
onde trabalhara e o quarto onde dormira, nunca mais veria as duas irmãs.
Há muito que se familiarizara com a probabilidade de uma súbita
despedida, e, contudo, sentia o coração contrair-se-lhe de amarga tristeza.
Muito lhe custou aquele adeus.
Caminharam assim durante uma hora, o amo seguindo à frente, sem
trocarem uma palavra. Goldmund começou a pensar no que lhe iria
acontecer. O cavaleiro viera armado, talvez o quisesse matar. Mas, no
fundo, não acreditava nisso. O perigo que corria também não era grande,
bastava-lhe largar a correr para deixar o ancião para trás, impotente, apesar
da espada. Não, a sua vida não corria perigo. Mas aquele seguir em silêncio
atrás do patriarca solene e ofendido, aquele entregar-se sem oposição à
condução do outro, foi-se-lhe tornando cada vez mais penoso. Até que,
finalmente, o cavaleiro parou.
– Seguirás agora sozinho – anunciou com voz cavernosa –, sempre nesta
direção; retomarás a vida vagabunda a que estavas acostumado. Se alguma
vez voltares a aparecer nas imediações da minha casa, serás alvejado e
abatido. Não me quero vingar de ti; deveria ter sido mais prudente e não ter
permitido que um moço na flor da idade se aproximasse das minhas filhas.
Mas se ousares voltar, podes crer que perderás a vida. Põe-te agora a andar,
e que Deus te perdoe!
Ficou ali parado; na luz pálida daquela manhã nevada, o seu rosto
dominado pela barba grisalha parecia profundamente abatido. Deixou-se ali
ficar como um fantasma e dali não arredou pé até Goldmund desaparecer
para além do cabeço da colina mais próxima. No céu encoberto, os reflexos
avermelhados do alvor tinham-se desvanecido, o sol não surgiu e começou
lentamente a nevar em flocos finos e hesitantes.
IX

Goldmund conhecia a região dos passeios que dera a cavalo; a seguir ao


pântano, agora gelado, encontrava-se, sabia ele, um dos celeiros do
cavaleiro, e mais adiante uma propriedade onde o conheciam. Poderia
descansar e pernoitar em qualquer desses lugares. Tudo o mais logo se
veria. Pouco a pouco, deixou-se de novo invadir por aquela sensação de
liberdade e disponibilidade perante o desconhecido, de que já há algum
tempo se desabituara. Não lhe soube bem, o desconhecido, naquele dia duro
e gelado de inverno; cheirava demasiado a esforço, a fome e a aflição; e, no
entanto, a sua vastidão, a sua grandeza e a dura inexorabilidade exerceram
um efeito apaziguador e já quase consolador sobre o seu coração mimado e
confuso.
Caminhou até ficar exausto. Tinham-se acabado as cavalgadas, pensou.
Como era grande o mundo! Caía pouca neve, ao longe, as faldas da floresta
confundiam-se com as nuvens baixas, o silêncio expandia-se e pesava,
infinito, até ao fim do mundo. O que iria acontecer agora a Lydia, com o
seu pobre coração temeroso? Sentiu amargura e imensa pena dela; pensou
nela insistentemente e com todo o carinho quando se sentou para descansar
à beira do pântano deserto, sob um freixo solitário e despido. Por fim, o frio
que o fustigava fê-lo levantar-se, de pernas entorpecidas; pouco a pouco, foi
acelerando o passo, a escassa luz do dia pardacento parecia ir já
diminuindo. Os pensamentos dissiparam-se durante a demorada marcha
pelos campos abandonados. Agora não valia a pena estar a alimentar
sensações e sentimentos, por mais suaves e belos que estes fossem; o que
agora interessava era manter-se quente, chegar a tempo a um sítio onde
pudesse pernoitar; o que tinha de fazer era esgueirar-se como a marta ou a
raposa por aquele mundo gelado e inóspito e, se possível, não morrer logo
ali no descampado; tudo o resto era irrelevante.
Surpreso, olhou à sua volta quando julgou ouvir ao longe um ruído de
cascos de cavalo. Seria possível que viessem a persegui-lo? Levou a mão à
pequena faca de mato que guardava no bolso e soltou-a da bainha de
madeira. Agora já conseguia ver o cavaleiro e reconheceu, mesmo àquela
distância, um dos cavalos do estábulo do seu antigo senhor, que vinha ao
seu encontro. Tentar fugir seria inútil, por isso parou e ficou à espera, no
fundo sem sentir verdadeiro medo, mas extremamente tenso e curioso, o
coração acelerado. Por um instante, passou-lhe pela cabeça: se conseguisse
matar aquele cavaleiro, que sorte teria; passaria a dispor de uma montada e
o mundo seria meu! Mas quando reconheceu o cavaleiro, o moço de
estrebaria Hans, com os seus olhos de um azul-claro de água e o bom rosto
tímido e infantil, riu-se; seria preciso ter um coração empedernido para
matar aquele rapaz tão simpático. Assim, saudou-o cordialmente e afagou
também o pescoço quente e suado do cavalo Hannibal, que imediatamente
o reconheceu.
– Para onde vais, Hans? – perguntou.
– Vim ter contigo – respondeu-lhe o moço, mostrando os dentes
brilhantes num grande sorriso. – Fartaste-te de andar! Bem, não posso
demorar-me, só me disseram para te cumprimentar e entregar isto!
– Cumprimentar da parte de quem?
– Da menina Lydia. Que belo dia nos arranjaste, magíster Goldmund;
fiquei feliz por me poder safar lá do castelo. Apesar de o amo não poder
reparar que me mandaram vir ter contigo, se o notasse, eu estava tramado.
Portanto, toma lá isto!
Estendeu-lhe então um pequeno embrulho, que Goldmund agarrou.
– Ouve lá, Hans, não terás aí um pedaço de pão no alforge? Se tiveres,
dá-mo.
– Pão? Talvez se arranje uma côdea. – O rapaz procurou nos bolsos e
encontrou um naco de pão escuro. Entregou-lho e dispôs-se a voltar para
trás.
– Como está a menina? – quis saber Goldmund. – Ela não te deu nenhum
recado? Não te entregou uma cartinha?
– Nada. Só a vi por um instante; grande tormenta vai lá por casa, sabes?!
O amo não para, desvairado, a andar de um lado para o outro, como o rei
Saul. Portanto, só me pediu para te entregar isso e mais nada. Tenho de me
pôr a andar.
– Já vais? É só um instantinho! Ouve lá, Hans, não me podias ceder a tua
faca de mato? A minha é minúscula. Se os lobos aparecerem por aí, ou algo
assim, sempre seria melhor se tivesse qualquer coisa de jeito na mão.
Mas, para Hans, isso estava fora de questão. Assegurou-
-lhe que teria muita pena se acontecesse qualquer coisa má ao magíster
Goldmund, mas a sua faca de mato, isso é que não; essa é que nunca
largaria, nem por dinheiro, nem em troca, nem pensar, nem que a Santa
Genoveva em pessoa lha viesse pedir. Pronto, e agora tinha mesmo de se
pôr a andar; desejava-lhe toda a sorte e sentia muito, mas nada feito.
Apertaram as mãos e o rapaz montou e partiu; Goldmund ficou a vê-lo
afastar-se com uma estranha sensação de pesar. Depois desembrulhou o
presente, satisfeito com as boas tiras de couro que o atavam. Lá dentro
encontrou uma grossa camisola interior de lã cinzenta, obviamente tricotada
por Lydia à sua medida, e no seu interior algo mais ainda, duro e bem
embrulhado, um pedaço de presunto e, entalhado no toucinho, um orifício
onde ela enfiara um brilhante ducado de ouro. Mensagem escrita não havia
nenhuma. Por momentos deixou-se ficar com os presentes de Lydia nas
mãos, no meio da neve, indeciso, até que despiu o casaco e vestiu a
camisola de lã, que o aqueceu agradavelmente. Voltou a vestir-se
rapidamente, escondeu a moeda de ouro no bolso mais seguro, atou as
correias à cintura e seguiu caminho pelos campos fora; era tempo de
arranjar um lugar para pernoitar, pois sentia-se extremamente fatigado. Para
a casa do camponês, porém, não queria ir, mesmo que lá estivesse mais
quente e pudesse contar com uma malga de leite; não estava para
tagarelices nem queria responder a perguntas indiscretas. Pernoitou no
celeiro e de madrugada prosseguiu a sua caminhada com o chão ainda
gelado, fustigado por um vento agreste e forçado a longas marchas pelo frio
intenso. Durante noites a fio sonhou com o cavaleiro, a sua espada e as duas
irmãs; durante muitos dias caminhou oprimido pela solidão e pela nostalgia
que se apoderara do seu coração.
Numa das noites seguintes, em certa aldeia, na choupana de uns
camponeses pobres, que não tinham pão mas que lhe deram uma sopa de
painço, encontrou Goldmund um sítio para pernoitar. Novas emoções ali o
esperavam. A camponesa de quem era hóspede deu à luz uma criança nessa
mesma noite e ele assistiu ao parto; tinham-no ido buscar ao palheiro para
dar uma ajuda, embora, afinal, nada houvesse a fazer, senão segurar no
archote, enquanto a parteira desempenhava a sua função. Era a primeira vez
que via nascer uma criança, e com um olhar surpreendido e fascinado
acompanhou todas as transformações no rosto da parturiente, subitamente
atraído por aquela nova experiência; o mínimo que podia dizer era que
aquilo lhe parecia digno de registo. À luz do archote, enquanto observava
com profunda curiosidade aquele rosto transfigurado pela dor, apercebeu-se
de algo inesperado: os seus traços pouco diferiam daqueloutros que pudera
observar noutros rostos de mulher no momento do êxtase amoroso! Embora
a expressão de intensa dor fosse ali mais dramática e desfiguradora do que a
do máximo prazer, no fundo não diferiam assim tanto, era o mesmo esgar
contraído, o mesmo arder e extinguir-se. Sem perceber bem porquê,
fascinou-o e surpreendeu-o a súbita convicção de que a dor e o prazer
podiam, afinal, ser tão semelhantes como duas irmãs.
Nessa mesma aldeia, Goldmund ainda se confrontou com outra vivência.
Por causa da vizinha, que vira na manhã a seguir à noite do parto e que
prontamente correspondera às perguntas dos seus olhares enamorados,
decidiu ficar mais uma noite. Acabou por fazê-la muito feliz, pois após
tantas semanas em que se desgastara com paixões excitantes, que tinham,
todas elas, redundado em frustrações, aquela foi a primeira vez que o seu
desejo pôde ser enfim aplacado. Esse adiamento levou-o a uma nova
experiência; foi por culpa dela que ele, ao segundo dia e precisamente nessa
aldeia, encontrou um companheiro, um matulão de ar atrevido chamado
Viktor, com aspeto meio de cura, meio de quadrilheiro, que o saudou com
um paleio a lembrar o latim e se deu a conhecer como estudioso goliardo,
apesar de há muito ter ultrapassado a idade dos estudos.
O vagante de barbicha pontiaguda saudou Goldmund com alguma
afabilidade, apimentada por um humor truculento de boémio, com o qual
rapidamente cativou o jovem. Em resposta à pergunta sobre o local onde
estudara e para onde se dirigia, a bizarra personagem declamou a seguinte
tirada:
– Não foram poucas, pela minha pobre alma, as universidades que
frequentei: já estive em Colónia e em Paris, e sobre a metafísica da salsicha
de pasta de fígado não haverá, certamente, estudo mais substancial do que a
dissertação que entreguei em Leida. Desde então, amice, percorro, pobre
diabo, o Sacro Império Germânico, com a prezada alma martirizada por
constante fome e incomensurável sede; já me chamaram o terror dos
campónios e a minha profissão consiste em ensinar latim às jovens fêmeas e
fazer saltar os chourições do fumeiro para dentro da minha pança. O meu
objetivo é a cama da mulher do burgomestre, e se os corvos não me vierem
debicar os olhos, não me livrarei de ter de me dedicar ao fastidioso ofício de
arcebispo. Bem melhor, meu jovem colega, é viver da mão para a boca, e
não o contrário, e, afinal de contas, um estufado de lebre nunca se sentiu tão
bem como no meu pobre bucho. O rei da Boémia é meu irmão e o pai de
todos nós alimentou-o a ele como a mim, mas o maior esforço deixou-o
para mim, e ainda anteontem, severo e injusto como todos os pais são, quis
servir-se da minha carcaça para salvar o couro de um lobo meio morto de
fome. Se não tivesse limpado o sebo à fera, prezadíssimo colega, não terias
tido a honra de travar comigo tão agradável conhecimento. In saecula
saeculorum, amen.
Ainda pouco habituado ao humor sardónico e ao destemperado latim
daquela espécie, Goldmund não deixou de sentir algum receio perante o
matulão guedelhudo e as tonitruantes gargalhadas com que acompanhava
todos os seus motejos; no entanto, algo lhe agradou naquele vadio
empedernido e facilmente se deixou convencer a prosseguirem juntos a
jornada; fosse ou não patranha o tal episódio do lobo abatido, o certo era
que dois sempre valiam mais do que um, e na sua companhia tinha menos a
temer. Antes, porém, de se lançarem à estrada, o irmão Viktor ainda queria
palrar um pouco de latim com os campónios, como se expressou, para o que
assentou arraiais em casa de um pequeno lavrador. Viktor não procedia
como Goldmund em todas as suas andanças, sempre que era acolhido em
algum casal ou aldeia; preferia andar a cheirar de casa em casa, conversava
com todas as mulheres, metia o nariz em todos os currais e nas cozinhas e
não parecia disposto a abandonar a aldeola sem que cada casa lhe pagasse
imposto e prestasse o devido tributo. Contava aos camponeses histórias da
guerra nas terras do Sul e cantava à lareira as trovas da Batalha de Pavia;
recomendava às avós remédios contra o reumático e a queda dos dentes;
parecia saber tudo e ter estado em todos os lugares, e enfardava tudo quanto
lhe ofereciam, desde nacos de pão a nozes e tartes de pera. Goldmund
assistia, espantado, ao modo como ele prosseguia, incansável, com aquela
sua cruzada, ora assustando as pessoas, ora cativando-as com lisonjas; por
vezes produzia-se e colhia a admiração dos outros, armado em letrado, com
o seu latim atrapalhado, outras impressionava-os, recorrendo à sua gíria
pitoresca de pícaro atrevido, sem nunca, no meio de tantas narrativas e
tiradas pseudoeruditas, deixar de registar, com olho fino e atento, todas as
caras, todas as gavetas que se abriam, todas as tigelas e todos os pães.
Goldmund reconheceu que estava na presença de um vagabundo sem eira
nem beira, um homem ardiloso, que tinha visto e vivido muito, que passara
muita fome e sofrera muito frio, e que na luta feroz por uma vida precária e
sempre ameaçada se tornara astuto e atrevido. Era assim, portanto, que
acabavam por ficar aqueles que optavam pela vida errante. Iria ele também
tornar-
-se alguém como Viktor?
No dia seguinte puseram-se a caminho e Goldmund experimentou pela
primeira vez viajar acompanhado. Andaram juntos três dias e não foram
poucas as coisas que Goldmund aprendeu com Viktor. Assim, o hábito já
instintivo de tudo subordinar às três grandes necessidades da vida nómada –
precaução contra as ameaças mortais, encontrar poiso para a noite e procura
de alimento – tinha ensinado muitas coisas a quem como ele vagueava há
tantos anos por todo o lado. Reconhecer a partir dos mais insignificantes
vestígios a proximidade de habitações humanas, em pleno inverno e de
noite, ou avaliar com os mais apurados sentidos cada recanto da floresta ou
do campo, em função de uma eventual utilidade para servir de
acampamento noturno, ou farejar instantaneamente, mal entrava numa casa,
o grau de abastança ou penúria em que vivia o proprietário, bem como o
grau da sua generosidade, ou da sua curiosidade, ou do seu medo – tudo
isso eram artes em que Viktor se tornara mestre. Não eram poucas, portanto,
as coisas instrutivas que soube contar ao seu jovem companheiro. E quando
Goldmund certa vez lhe replicou que não gostava de abordar as pessoas de
uma forma tão premeditada e calculista, e que, apesar de desconhecer
aquelas suas artes, raramente lhe havia sido recusada a hospitalidade, o
matulão Viktor riu-se na sua cara e respondeu-lhe com bonomia:
– Pois, pois, pequeno Goldmund, a ti pode acontecer-te isso, pois és
novo e engraçadinho e tens um aspeto tão inocente que já só isso serve de
carta de recomendação. Agradas às mulheres e os homens pensam: deixa lá,
este é inofensivo e não fará mal a ninguém. Mas repara, irmão, que a gente
acaba por envelhecer, e a carinha de menino imberbe cria barba e rugas, e
as calças ficam esburacadas, e, sem darmos por isso, tornamo-nos mal-
encarados e indesejáveis, e em vez da juventude e da inocência, o que os
outros veem em ti é a fome que te espreita dos olhos; até lá, tens de ter
endurecido e aprendido algumas coisas deste mundo, porque senão vês--te,
de repente, a chafurdar na trampa e os cães mijam-te em cima. Mas quer-me
bem parecer que não andarás por muito tempo nesta vida, demasiado finas
são as tuas mãos, demasiado belos os teus caracóis, não tardarás a procurar
refúgio num desses recantos onde se vive melhor, numa bela cama de casal
quentinha, ou num desses conventinhos bem fornecidos, ou num bem
aquecido gabinete de estudo. De resto, trajas tão bem que até podias ser
tomado por um fidalgote.
Rindo sempre, foi-lhe passando a mão pela roupa. Ao senti--lo procurar
e apalpar bolsos e costuras, Goldmund lembrou-se do seu ducado de ouro e
esquivou-se. Falou-lhe então da estadia no castelo do cavaleiro e explicou
que ganhara o belo traje com os seus escritos latinos. Viktor quis então
saber porque tinha ele abandonado, a meio de uma tão agreste invernia, um
ninho assim tão quente, e Goldmund, que não estava habituado a mentir,
contou-lhe um pouco do que se passara com as filhas do cavaleiro. Isso deu
azo à primeira discussão séria entre os companheiros. Viktor achou que
Goldmund tinha sido o maior dos burros ao abandonar o castelo, deixando
as donzelas entregues à sua sorte. O mal tinha de ser remediado, ele logo
veria. Voltariam ao castelo, e claro que Goldmund não deixaria que lhe
pusessem a vista em cima, mas quanto ao resto, deixasse-o por sua conta.
Tinha de escrever uma cartinha à tal de Lydia, assim e assado, e com ela na
mão, ele, Viktor, entraria no castelo e, pelas chagas do Redentor, não sairia
de lá sem trazer isto e aquilo em dinheiro e haveres. E por aí fora.
Goldmund opôs-
-se e acabou por zangar-se; recusou-se a escutar nem mais uma palavra
sobre o assunto e nem sequer quis revelar o nome do cavaleiro nem o
caminho para o castelo.
Ao vê-lo assim tão agastado, Viktor soltou nova gargalhada e fez ares de
condescendente:
– Pois bem – disse –, não precisas de te enervar assim tanto! Só te quis
dizer que deixaste escapar uma bela presa, meu menino, e no fundo não é lá
muito simpático e solidário da tua parte. Mas pronto, se não queres, não se
fala mais nisso, hás de voltar ao castelo montado num corcel e desposas a
donzela! Ah, rapaz, tens essa cabecinha cheia de nobres quimeras! Mas, por
mim, tudo bem, continuemos a andar até que os dedos dos pés se nos
enregelem.
Goldmund manteve-se mal-humorado e silencioso até ao cair da noite,
mas como nesse dia não encontraram casa nem vestígios de gente, acedeu,
agradecido, a que Viktor procurasse um lugar para acamparem; foi também
ele que montou uma proteção para as costas entre dois troncos tombados na
orla da floresta e amontoou uma cama de ramos de pinheiro e caruma para
se deitarem. Comeram pão e queijo, que Viktor trazia nas sacolas cheias, e
Goldmund, envergonhado pelo excesso de cólera, mostrou-se sensato e
prestável e chegou mesmo a oferecer a camisola de lã ao companheiro, para
a noite; concordaram em revezar-se por turnos, não fossem aparecer
animais selvagens. Foi Goldmund quem se encarregou da primeira vigia,
enquanto o outro se deitava na caruma. Encostou-se a um tronco de abeto e
deixou-se ali ficar, quieto, para que o outro pudesse adormecer. Depois,
acossado pelo frio, começou a andar de um lado para o outro. Foi-se
afastando cada vez mais; viu as copas dos pinheiros recortarem-se
pontiagudas contra o céu pálido e sentiu o sossego profundo da noite
invernal com uma espécie de receio solene; sentiu o pulsar solitário do seu
coração quente e vivo no silêncio frio e anónimo e ouviu, ao regressar sem
fazer barulho, a respiração do companheiro adormecido. Mais do que nunca
até então invadiu-o o sentimento do sem-abrigo, do apátrida, que não
conseguiu erigir entre si e o grande medo o muro de uma casa, de um
palácio ou de um convento, e que por isso mesmo se vê obrigado a
percorrer, despojado e solitário, o mundo indecifrável e hostil, sozinho sob
o escárnio frio das estrelas, sozinho por entre as feras emboscadas e o
imperturbável aprumo das árvores.
Não, pensou, ele nunca seria como Viktor, nem que vagueasse toda a
vida pelo mundo. Nunca iria conseguir defender-se daquela maneira do
pavor primordial, assimilar aqueles modos dissimulados de aproximação
típicos dos salteadores nem agir do jeito espaventoso e atrevido dos foliões,
surpreendendo os incautos com alardes de um humor cáustico e a verborreia
destemperada dos trafulhas. Talvez aquele homem astucioso e atrevido
tivesse razão, talvez ele nunca chegasse a ser seu igual, a tornar-se por
completo um vagabundo, talvez voltasse, um dia, a procurar a proteção de
uns quaisquer muros. Sempre, porém, iria permanecer nómada e sem rumo,
nunca se sentiria verdadeiramente protegido e seguro, sempre iria sentir-se
rodeado por aquele mundo enigmaticamente belo e inquietante, sempre iria
ter de voltar para junto daquele silêncio, no seio do qual o pulsar do próprio
coração surgia tão frágil e perecível. Poucas estrelas se viam, não corria
uma aragem; lá no alto, porém, as nuvens pareciam agitadas.
Decorrido bastante tempo, pois Goldmund não o quisera despertar,
Viktor acordou e chamou-o.
– Anda – gritou –, agora tens de dormir, senão amanhã não prestas para
nada.
Goldmund obedeceu, deitou-se e fechou os olhos. Embora estivesse
bastante cansado, não conseguiu adormecer; mantinham-no desperto
pensamentos dispersos, e, para além destes, uma sensação que a si próprio
não queria confessar, um misto de inquietação e desconfiança em relação ao
companheiro. Parecia-lhe agora incompreensível que tivesse falado de
Lydia àquele tipo grosseiro e espalhafatoso, com bravatas de bufão e
manhas de mendigo! Sentia-se irritado com ele e consigo próprio, e pôs-se a
cismar na melhor maneira e oportunidade de se separar dele.
Devia, no entanto, ter acabado por cair num sono leve, porque se
sobressaltou e assustou ao sentir as mãos de Viktor apalparem-lhe
cautelosamente a roupa. Num dos bolsos tinha a faca, no outro o ducado;
bastava que Viktor os descobrisse para infalivelmente os roubar. Fez de
conta que continuava a dormir, agitou-se de um lado para o outro, como
quem está ébrio de sono, sacudiu os braços, e Viktor recuou. Goldmund
zangou-se e decidiu que se separaria dele na manhã
seguinte.
Quando, porém, decorrida talvez uma hora, Viktor se debruçou
novamente sobre ele e recomeçou a busca, Goldmund sentiu-se gelar de
ódio. Sem se mexer, abriu os olhos e disse cheio de desprezo:
– Põe-te a andar, aqui não há nada para roubar.
Assustado com a voz, o ladrão atacou e começou a apertar-lhe o pescoço
com ambas as mãos. Como ele se defendesse e tentasse levantar, apertou
ainda com mais força, ao mesmo tempo que o imobilizava, impondo-lhe o
joelho no peito. Sem conseguir respirar, Goldmund tentou sacudi-lo,
debatendo-
-se com todo o corpo, e ao ver que não conseguia libertar-se, sentiu-se
dominado por um medo mortal, que lhe aguçou os sentidos e lhe apurou a
lucidez. Levou então a mão ao bolso, tirou de lá a pequena faca de mato,
enquanto o outro continuava a estrangulá-lo, e desferiu, subitamente e às
cegas, um e outro golpe no corpo do homem ajoelhado em cima dele.
Passado um instante, as mãos de Viktor afrouxaram a pressão; agora já
conseguia respirar e, enchendo sofregamente os pulmões de ar, saboreou a
vida salva. Quis então erguer-se, mas, ao tentar sacudi-lo, o corpanzil já
mole e inerte do camarada caiu-
-lhe em cima com um horrível estertor e o seu sangue escorreu--lhe pelas
faces. Só depois conseguiu levantar-se. Ficou a olhar para o corpo prostrado
do grandalhão sob a escassa claridade da noite; tocou-lhe e só viu sangue.
Agarrou-lhe a cabeça e, quando a soltou, ela caiu para trás, pesada e mole
como um saco. O sangue continuava a escorrer-lhe sem estancar do peito e
do pescoço, a vida extinguia-se-lhe da boca numa sucessão de soluços
agónicos e cada vez mais fracos.
– Matei uma pessoa – pensou alto Goldmund. Obcecado com aquela
evidência, sem a conseguir afastar de si, deixou-se cair de joelhos sobre o
moribundo. A lividez da morte alastrava pelo seu rosto. – Santa Mãe de
Deus, acabei de matar uma pessoa – ouviu-se dizer a si próprio.
De repente, sentiu que não conseguia ficar ali nem mais um instante.
Agarrou na faca e limpou-a na camisola de lã
que o outro envergava e que fora feita pelas mãos de Lydia para o bem-
amado; voltou a enfiar a faca na bainha de madeira, meteu-a no bolso e
fugiu dali a correr com quantas forças tinha.
A morte do vagabundo folião pesava-lhe na alma; quando o dia rompeu,
limpou do corpo com neve, sacudido por calafrios, todo o sangue que
derramara. Passou o resto do dia e a noite seguinte a vaguear à toa,
acossado pelo medo e pelos remorsos. Foram as necessidades do corpo que
finalmente o fizeram voltar a si e o ajudaram a superar toda aquela angústia.
Perdido naquela região erma e nevada, sem rumo nem abrigo, sem nada
para comer e praticamente sem ter dormido, viu-se em grande aflição; a
fome rugia-lhe no corpo como uma fera, por várias vezes enrolou-se no
chão, no meio do descampado, e fechou os olhos, exausto, convencido de
que estava perdido, sem desejar outra coisa senão adormecer e morrer ali na
neve; mas sempre um novo impulso o impelia a levantar-se, desesperado e
ávido, voltava a correr pela vida, e no meio do mais amargo sofrimento
reconfortou-o e inebriou-o a força absurda e a certeza feroz do não-querer-
morrer, o poder espantoso do puro instinto vital. Com os dedos roxos e
enregelados, colheu nas moitas de zimbro cobertas pela neve as pequenas
bagas ressequidas, mastigou e engoliu a mistela amarga, misturada com
caruma, o sabor era acre e estimulante, e devorou mãos-cheias de neve
tentando matar a sede. Sem fôlego nem alento, soprando nas mãos
entorpecidas, acocorou-se no cume de uma colina para descansar um pouco
e olhou ansioso à sua volta; por toda a parte só floresta e charneca, vestígios
de gente nem um único. Lá no alto viu voar um casal de corvos, seguiu--os
com o olhar, enfurecido. Não, aqueles não o iriam comer enquanto sentisse
uma réstia de força nas pernas, uma centelha de calor no sangue. Levantou-
se e retomou a implacável luta contra a morte. Correu e correu, e, no delírio
da exaustão e do derradeiro esforço, apoderaram-se dele estranhos
pensamentos e entabulou consigo próprio desvairadas conversas, algumas
silenciosas, outras em voz alta. Falou com Viktor, o esfaqueado, e lançou-
lhe à cara, intempestivo e cheio de desprezo:
– Então, meu espertalhão, como estás? Tens as tripas ao luar, meu
sacana, andam as raposas a mordiscar-te as orelhas? Disseste que mataste
um lobo? E como foi, cravaste-lhe a dentuça na goela ou arrancaste-lhe a
piça, hem? Quiseste roubar--me o meu ducado, não foi, velho bandoleiro?!
Mas diz lá se o pequeno Goldmund não te limpou o sebo? Foram só umas
coceguinhas nas costelas. E tu com os bolsos a abarrotar de pão e chouriço
e queijo, meu grande javardo, comilão de merda!
Gritava e ladrava tiradas destas entre ataques de tosse, escarnecia do
morto, triunfava sobre ele, ridicularizava-o por se ter deixado matar, o
grande pacóvio, o gabarola idiota!
Logo a seguir, os seus pensamentos e falas já nada tinham a ver com
Viktor, o pobre calmeirão Viktor. Agora era Julie que via à sua frente, a
pequena e linda Julie, tal como ela o tinha deixado naquela noite; chamava-
a com um sem-número de palavras carinhosas, tentava seduzi-la e
convencê-la a que viesse ter com ele com insensatas e despudoradas
carícias, pedia-lhe que despisse a camisinha, suplicava-lhe que subisse com
ele aos céus, uma horinha só, antes que a morte viesse, um instante apenas,
antes de bater a bota. Implorante e desafiador, falava com os seus pequenos
seios espetados, com as suas pernas, com a penugem crespa que espreitava
sob a axila.
Depois, enquanto caminhava com pernas hirtas, arrastando-se aos
tropeções por entre a urze ressequida e coberta de neve, ébrio de dor,
exausto e triunfante, sacudido pela mesma trémula ânsia de viver, era já
com Narciso que falava, era ao amigo que transmitia as suas novas ideias,
sábias iluminações e chacotas.
– Estás com medo, Narciso – perguntou-lhe –, sentes-te apavorado,
notaste algo? Pois, caríssimo, o mundo está a abarrotar de morte, cheiinho
até mais não. Podes vê-la sentada em cada sebe, em pé, por detrás de cada
árvore, e não é o facto de continuarem a erigir muros e dormitórios e
capelas e igrejas que vos vai servir de ajuda; ela espreita pela janela, olha-a
ali a rir-se às gargalhadas, ela conhece-vos a todos ao pormenor, podeis
ouvi-la rir, no meio da noite, atrás das vossas janelas e a chamar-vos pelo
nome. Bem podeis cantar os vossos salmos e acender as vossas lindas
velinhas no altar; rezai à vontade as vossas vésperas e matinas, colecionai
as vossas ervas no laboratório e os vossos livros na biblioteca! Andas a
jejuar, meu amigo? Privas-te do sono? Descansa que ela logo te cantará o
fadário, a rapariga da caveira, ela logo trata de te despojar de tudo, deixa-te
limpinho até aos ossos. Corre, caríssimo, lá vem ela, pelo campo, foge
ligeiro e tenta manter esses ossinhos juntos, eles querem debandar e
espalhar-se, e olha que connosco não ficam. Ah, as nossas pobres ossadas,
ah, pobre goela e pobre papo, ah, a nossa migalha de miolos fechados na
cachola! Tudo quer partir, para o diabo que os carregue, podes vê-los, aos
corvos, ali empoleirados na árvore, os padrecas pretos!
Há muito que o transtornado não sabia para onde ia, por onde andava, o
que dizia, nem se estava de pé ou jazia. Tropeçou em arbustos, correu de
encontro a árvores, agarrando-se, ao cair, à neve e às silvas. Porém, o
instinto de sobrevivência era forte nele e uma e outra vez voltava a fustigá-
lo, lançando-o para diante numa fuga cega. Quando, finalmente, desfaleceu
e ficou deitado, encontrava-se na pequena aldeia onde há poucos dias
encontrara o vagante e segurara, durante a noite do parto, o facho resinoso
sobre a mulher que dava à luz. Ali ficou caído, e os aldeões acorreram e
juntaram-se à sua volta num grande alarido. Ele nada ouviu. Foi a mulher
de cujo amor ele desfrutara que o reconheceu e se assustou com o seu
aspeto; compadeceu--se dele e, sem dar ouvidos aos protestos do marido,
arrastou-o assim como estava, já meio-morto, para o estábulo.
Não tardou que Goldmund recuperasse e se sentisse capaz de prosseguir
caminho. O calor do curral, o sono e o leite de cabra que a camponesa lhe
deu a beber fizeram-no voltar a si e recobrar as forças; sentia apenas que
aquilo por que acabara de passar se distanciara, como se muito tempo
tivesse decorrido desde então. A caminhada com Viktor, a noite fria e
assustadora passada sob aqueles abetos, a luta terrível no acampamento,
a terrível morte do companheiro, os dias e as noites ao relento e ao frio,
esfomeado e completamente desorientado, tudo isso se tornara passado,
quase que se esquecera de tudo aquilo; esquecido, porém, não estava,
apenas superado, apenas atirado para trás das costas. Algo ficou dentro
dele, algo inexprimível, terrível e também valioso, submerso e, no entanto,
nunca completamente passível de ser esquecido, uma experiência, um travo
na língua, um anel a apertar-lhe o coração. Em pouco menos de dois anos
conhecera até ao âmago os prazeres e as agruras da vida vadia: a solidão, a
liberdade, o estar à escuta, atento aos ruídos da floresta e dos bichos, o amor
errante e infiel, e a aflição amarga e mortal. Passara dias no campo estival,
dias acossado pelo medo e pela ameaça da morte, mas, entre tudo, mais
forte e estranho tinha sido o afinco com que se defendera contra o
aniquilamento, sabendo-se ínfimo e mísero e ameaçado e, contudo, capaz
de descobrir e sentir dentro de si na derradeira e desesperada luta aquela
bela e terrível força e a tenacidade da vida. Tudo isso ressoava ainda dentro
dele, tudo isso lhe ficara inscrito no coração, tal como os esgares e as
expressões do êxtase que tão semelhantes eram aos das mulheres nas dores
do parto e aos dos moribundos na agonia. Assim como ainda não há muito a
mulher gritara com o rosto desfigurado, assim como ainda não há muito o
camarada Viktor lhe tombara em cima e se esvaíra rápida e silenciosamente
em sangue! Sim, e ele próprio, como sentira nos dias da fome a morte
rondá-lo e espiá-lo, como lhe doera a fome, e o frio que passara, como lhe
mordera o frio! E como lutara, como se atirara à morte e a esmurrara, com
que pânico mortal e fúria feroz se defendera! Muito mais do que aquilo,
queria parecer-lhe, não era possível experimentar. Talvez com Narciso
pudesse falar sobre todas aquelas experiências, mas, de resto, com mais
ninguém.
Quando voltou verdadeiramente a si na cama de palha do estábulo, deu
por falta do ducado que guardara no bolso. Tê-lo-
-ia perdido durante a terrível marcha do último dia de fome, quando andara
aos tombos, exausto e meio inconsciente? Pensou muito no assunto. Tinha
amor ao ducado, não lhe agradava nada tê-lo perdido; não que o dinheiro
significasse muito para ele; no fundo, mal sabia o seu valor. Mas aquela
moeda de ouro tornara-se-lhe importante por dois motivos. Porque era o
único presente de Lydia que lhe restava, pois a camisola de lã ficara com
Viktor na floresta, embebida no seu sangue. E depois fora sobretudo por
causa da moeda de ouro, por não aceitar que lha roubassem, que ele se
defendera da investida de Viktor e, no meio da aflição, o matara. Se o
ducado se tivesse entretanto perdido, era como se, de certa maneira, toda a
experiência daquela noite terrível se tivesse desvalorizado e perdido o
sentido. Depois de muito ponderar, resolveu confidenciar o ocorrido à
camponesa.
– Christine – segredou-lhe –, tinha uma moeda de ouro no bolso e já cá
não está.
– Afinal, sempre reparaste? – disse ela com um sorriso estranho, terno e
simultaneamente matreiro, tão encantador que ele, apesar de ainda
enfraquecido, a abraçou. – Que estranho rapazinho me saíste – disse ela
com ternura –, tão esperto e fino, e ao mesmo tempo tão tolo! Então anda-se
assim pelo mundo com um ducado solto no bolso? Que menino mais
inocente, que tontinho querido me saíste! Fui eu que encontrei a tua moeda
de ouro quando te deitei aqui na palha.
– Ah, foste? E onde é que está?
– Procura-a – disse ela rindo, e deixou-o mesmo procurar, antes de lhe
mostrar o sítio onde a cosera no fato. Aproveitou o momento para lhe dar
uma porção de bons conselhos maternais, que ele não tardou em esquecer,
embora nunca mais esquecesse a dádiva de amor e aquele sorrisinho terno e
matreiro. Esforçou-
-se por lhe mostrar gratidão; quando, pouco tempo decorrido, se sentiu
novamente capaz de caminhar e se dispôs a partir, ela ainda o reteve, pois a
lua não tardaria em mudar e por certo o tempo melhoraria. Assim foi.
Quando partiu, já a neve estava parda e enferma e o ar pesado e húmido, lá
em cima ouvia-se gemer um vento tépido.
X

De novo o gelo voltou a ser arrastado pelos caudais dos rios, de novo se
sentiu sob a folhagem decomposta o perfume das violetas, de novo voltou
Goldmund a percorrer as estações coloridas, absorvendo com olhos
insaciáveis as mutações nas florestas, nas montanhas e no trânsito das
nuvens, seguindo de quinta em quinta, de aldeia em aldeia, de mulher para
mulher; não poucas vezes se viu excluído em frios fins de tarde, angustiado
e de coração oprimido, debaixo de uma janela, por detrás da qual o fulgor
quente de uma luz lhe evocava, belo e intangível, toda a felicidade, todo o
sentimento de pertença e paz na Terra que imaginar podia. Tudo retornava,
uma e outra vez, tudo o que julgava já tão bem conhecer, tudo se repetia e
era sem deixar de ser sempre diferente: as longas caminhadas por campos e
charnecas ou por estradas pedregosas, o sono estival na floresta, o vaguear
pelas ruelas das aldeias, atrás dos ranchos de raparigas de mãos dadas que
vinham de virar o feno ou da apanha do lúpulo, o primeiro aguaceiro do
outono, as primeiras geadas agrestes – tudo se repetia, uma, duas vezes, no
constante desdobrar da infinita fita colorida.
Já muita chuva e muita neve caíra sobre Goldmund quando, certo dia,
depois de ter trepado por uma encosta ao longo de um esparso bosque de
faias onde começava a brotar o verde vivo da primeira folhagem, viu
espraiar-se à sua frente, assim que atingiu o cume, uma nova paisagem que
lhe alegrou os olhos e lhe despertou no coração uma vaga de
pressentimentos, desejos e esperanças. Há dias que se sabia já próximo
daquela região e a esperava ver surgir; agora, ao aparecer-lhe assim de
surpresa àquela hora do meio-dia, não deixou de se sentir surpreendido e o
que pôde abarcar com os olhos nesse primeiro encontro só veio confirmar e
reforçar as suas expectativas. Por entre os troncos cinzentos e o balouçar
brando da ramagem viu espraiar-se a seus pés um vale castanho e verde,
atravessado a meio por um grande rio, que brilhava em tons azuis e vítreos.
Sabia agora que tinham chegado ao fim as longas caminhadas por territórios
inóspitos e sem estradas, por charnecas e florestas solitárias, onde só muito
raramente deparara com um casal isolado ou uma pobre aldeola. Lá em
baixo corria o rio, e ao longo do rio seguia uma das mais belas e famosas
estradas do império; até onde a vista alcançava, estendia-se uma terra rica e
fértil, pelo rio navegavam barcos e jangadas e a estrada ligava belas aldeias,
castelos, conventos e cidades abastadas; quem quisesse podia viajar dias e
semanas por aquela estrada, sem receio de subitamente se perder numa
qualquer floresta ou num húmido pântano, como amiúde sucedia com os
míseros trilhos campestres. Algo de novo o esperava, e Goldmund alegrou-
se.
Ao fim da tarde desse dia chegou a uma bela aldeia situada à beira da
grande estrada, entre o rio e a encosta coberta pela mancha vermelha dos
vinhedos. Nas casas de altos frontões, os belos vigamentos estavam
pintados de vermelho; havia entradas abobadadas e vielas com escadinhas
empedradas; uma forja lançava sobre a rua um clarão avermelhado e ouvia-
se o claro retinir da bigorna. O recém-chegado vagueou, curioso, por todos
os becos e recantos, aspirou à entrada de caves e adegas o cheiro dos barris
e do mosto, e na margem do rio a aragem fresca e húmida que lhe trouxe o
cheiro dos peixes; visitou a igreja e o cemitério, sem se esquecer de
procurar um celeiro com localização favorável, onde eventualmente
pudesse passar a noite. Antes, porém, queria visitar a casa do pároco para
lhe pedir algo para comer. Encontrou um padre anafado e ruivo, que o
interrogou primeiro e ao qual expôs a sua história, omitindo alguns factos e
inventando outros; depois foi cordialmente acolhido e passou um serão com
boa comida e bom vinho, em amena cavaqueira com o anfitrião. No dia
seguinte retomou a viagem pela estrada ao longo do rio. Viu jangadas e
barcaças em trânsito, passou por carros e atrelados, alguns dos quais lhe
deram boleia; os dias primaveris passaram rápidos e saturados de imagens,
acolheram-no povoados e pequenas cidades, mulheres sorriam por detrás
das sebes dos jardins ou ajoelhadas na terra escura, plantando flores, ao
entardecer ouviam-se os cantares das moças nas ruelas das aldeias.
Num moinho, uma jovem criada agradou-lhe tanto que acabou por ficar
dois dias por perto, a rondá-la; ela gostava de rir e galhofar com ele, e
Goldmund achou que gostaria de tornar-se moço de moleiro e ficar ali para
sempre. Sentou-se à mesa dos pescadores, ajudou os cocheiros a dar de
comer e a limpar as bestas, recebeu em troca pão, carne e transporte. Após
longa solidão, encontrara então a jovial sociabilidade dos viajantes, após
prolongado ensimesmamento descobrira a alegria do convívio com aquelas
gentes faladoras e divertidas, depois de toda a carência e fome podia
finalmente saciar-se diariamente com manjares estupendos – tudo isso lhe
fazia bem, e foi de bom grado que se entregou àquela onda festiva. E ela
arrastou-o consigo: quanto mais se aproximava da cidade episcopal, mais
frequentada e divertida se tornava a estrada.
Numa aldeia decidiu ir passear, já ao cair da noite, por baixo de umas
árvores frondosas que cresciam na margem.
O rio corria calmo e caudaloso, sob as raízes das árvores marulhava e gemia
a torrente, sobre o cume da colina erguia-se a Lua, derramando cintilações
sobre a água e sombras sob o arvoredo. Encontrou então uma rapariga
sentada a chorar; zangara-se com o namorado, que se fora embora e a
deixara ali sozinha. Goldmund sentou-se ao seu lado, escutou as suas
queixas, afagou-lhe as mãos e falou-lhe da floresta e das corças; consolou-a
um pouco, fê-la rir um pouco, e ela permitiu que a beijasse. Nesse momento
apareceu o namorado, que vinha à sua procura; tinha-se acalmado e
arrependera-se da zanga. Quando a encontrou com Goldmund, atirou-se
imediatamente a ele aos murros; Goldmund defendeu-se com dificuldade,
mas por fim lá conseguiu dominá-lo e o rapaz foi-se embora a correr para a
aldeia, a praguejar, já a rapariga há muito desaparecera. Não confiando
naquelas tréguas, Goldmund abandonou o poiso noturno e prosseguiu a sua
caminhada ao luar durante metade da noite, através de uma paisagem
prateada e silenciosa, feliz e satisfeito e grato às suas pernas fortes, até que
o orvalho lhe lavou a poeira branca dos sapatos e ele, subitamente fatigado,
se deitou debaixo da árvore mais próxima e adormeceu. Já o dia clareara há
muito quando foi acordado por uma comichão na cara; ainda ébrio de sono,
tentou sacudi-la às apalpadelas, voltou a adormecer, para logo ser
novamente acordado pela mesma impressão. Uma jovem campónia
observava-o, tocando-lhe com a ponta de uma varinha de salgueiro para lhe
fazer cócegas. Levantou-se ainda estremunhado; cumprimentaram-se
sorridentes e ela levou-o para um barracão onde se podia dormir melhor. Aí
dormiram um com o outro durante mais algum tempo, até que ela
desapareceu e voltou com um baldezinho cheio de leite, ainda quente da
vaca. Goldmund ofereceu-lhe uma fita azul para o cabelo, que não há muito
encontrara numa viela e guardara; tornaram a beijar-se, antes de ele
prosseguir viagem. Chamava-se Franziska e deu-lhe pena deixá-la.
Ao fim da tarde desse mesmo dia encontrou abrigo num convento, onde,
na manhã seguinte, assistiu à missa; sentiu-
-se então estranhamente agitado por mil e uma recordações, tão
comovedoramente familiar lhe pareceu o cheiro fresco a pedra do ar sob a
abóbada, o ressoar dos passos das sandálias nas lajes da nave. Deixou-se
ficar ajoelhado, mesmo depois de terminada missa e o silêncio se ter
instalado de novo na igreja do convento; sentia-se profundamente
emocionado, sonhara durante toda a noite. Sentiu então o desejo de se
libertar do passado, de mudar de alguma forma a sua vida, porquê não
sabia, talvez fosse só a lembrança de Mariabronn e da sua juventude
piedosa. Sentia-se impelido a confessar-se e a purificar-se de inúmeros
pequenos pecados e muitos pequenos vícios; mais do que tudo o resto,
porém, pesava-lhe a morte de Viktor, que morrera às suas mãos. Encontrou
um padre a quem confessou as várias culpas, especialmente as punhaladas
desferidas no pescoço e nas costas do pobre vagabundo. Há quanto tempo
não se confessava! O número e a gravidade dos seus pecados pareciam-lhe
consideráveis e estava disposto a expiá-los com dura penitência. Mas o
padre confessor devia conhecer a vida dos vagantes, não se mostrou
horrorizado, escutou-o calmamente, repreendeu-o e admoestou-o de vez em
quando, sem pensar em condená-lo.
Goldmund levantou-se aliviado, dirigiu-se ao altar para rezar, conforme
o padre lhe ordenara, e já ia a sair da igreja quando um raio de sol que
entrava por uma das janelas lhe chamou a atenção; seguiu-o com o olhar e
viu então, numa das capelas laterais, uma imagem que de tal modo lhe falou
ao coração e o atraiu que ele se virou para ela com olhos comovidos e se
pôs a contemplá-la, cheio de devoção e profundamente emocionado. Era
uma Nossa Senhora de madeira e o modo como se inclinava sobre o altar, a
delicadeza e a suavidade do gesto e o movimento com que as pregas do
manto azul que lhe cobria os ombros estreitos caíam e lhe moldavam o
corpo, e a graça com que estendia a mão virginal, e a expressão dos olhos
sobre o ricto doloroso dos lábios, e a graciosidade com que a testa se
abaulava – tudo aquilo era tão cheio de vida e tão belo e tão profundo e
inspirado que Goldmund achou nunca ter visto beleza igual. Não se cansava
de contemplar aquela boca, o movimento orgânico e harmonioso daquele
pescoço. Parecia-lhe estar perante algo que já muitas vezes vira em sonhos
e pressentimentos, algo de que há muito sentia saudades. Várias vezes se
virou para se ir embora, mas parecia que não conseguia afastar-se dela.
Quando, finalmente, se resolveu a sair, viu atrás de si o padre a quem se
confessara.
– Acha-la bonita? – perguntou amavelmente.
– Indescritivelmente bela – disse Goldmund.
– Há quem seja da mesma opinião – disse o clérigo.
– E também há quem ache que não é uma verdadeira Nossa Senhora, que é
demasiado moderna e mundana e que tudo nela é exagerado e falso. Tem
sido muito discutida esta imagem. A ti agrada-te, fico contente com isso. Só
está na nossa igreja há cerca de um ano, foi-nos doada por um benemérito
amigo da nossa ordem. Foi esculpida pelo mestre Niklaus.
– Mestre Niklaus? Quem é ele e onde vive? Conhecei-lo? Falai-me dele,
peço-vos. Deve ser extraordinário e abençoado o homem capaz de criar tal
obra.
– Pouco sei a seu respeito. É mestre entalhador na nossa cidade
episcopal, que fica a um dia de viagem daqui, e tem grande fama como
artista. Os artistas não costumam ser uns santos, e ele também não deve
fugir à regra; mas é sem dúvida um homem talentoso e de espírito elevado.
De vez em quando vejo-o…
– Já o vistes? Oh, que aspeto tem ele então?
– Pareces estar completamente fascinado por ele, meu filho. O melhor
será ires mesmo ter com ele. Podes saudá-lo da parte do padre Bonifazius.
Goldmund agradeceu entusiasticamente. O padre afastou--se a sorrir,
mas ele deixou-se ficar ainda muito tempo diante daquela imagem
misteriosa, que dava a sensação de respirar e em cujo rosto coexistiam tanta
dor e tanta doçura que todo o seu coração se apertava.
Saiu da igreja transformado, os seus passos conduziram-no através de
um mundo completamente diferente. Desde aquele instante em que parara
para contemplar a doce imagem sagrada esculpida em madeira, Goldmund
possuía algo que até então nunca possuíra e de que tantas vezes troçara ou
invejara nos outros: um objetivo! Finalmente, tinha um objetivo, e talvez
toda aquela sua vida caótica pudesse adquirir um sentido elevado e um
valor. A consciência da própria mudança encheu-o de alegria e de medo,
sentiu-se como que a levitar. Aquela estrada bela e alegre por onde seguia já
não era, como ainda ontem, um lugar festivo para folguedos ou uma
qualquer agradável estadia; agora já só era uma estrada, o caminho para a
cidade, o atalho que o conduzia ao mestre. Percorreu-o cheio de
impaciência. Chegou à cidade ainda antes do cair da noite. Viu erguerem-se
torres por detrás das muralhas, viu brasões esculpidos e armas pintadas
sobre a porta da cidade e atravessou-a com o coração palpitante, mal
reparando no ruidoso e animado bulício das vielas, nos cavaleiros nas suas
montadas, nos carros e nas carroças. Para ele, o importante não eram os
cavaleiros nem as carruagens, nem a cidade nem o bispo. Logo ao primeiro
homem que encontrou ao transpor a porta da cidade perguntou onde morava
o mestre Niklaus e ficou extremamente desiludido quando ele lhe confessou
que não o conhecia.
Chegou a uma praça de casas imponentes, muitas delas com as fachadas
pintadas ou decoradas com esculturas e ornamentos. Por cima de um dos
portões erguia-se a grande figura de um lansquenete pintada com cores
fortes e garridas. Não era tão belo como a escultura que vira na igreja do
convento, mas impunha-se de uma tal maneira, de perna musculada e
queixo barbudo espetado e desafiante, que Goldmund acabou por achar que
podia ter sido obra do mesmo mestre. Entrou na casa, bateu a várias portas
e subiu escadas, até finalmente dar com um senhor que envergava um fato
de veludo orlado a pele, a quem perguntou onde poderia encontrar o mestre
Niklaus. O que desejava dele, retorquiu o cavalheiro, e Goldmund teve
dificuldade em dominar-se e dizer apenas que tinha um recado para o
mestre. O senhor disse-lhe então onde ficava a viela onde o mestre morava,
e quando finalmente lá chegou, depois de muito perguntar, já a noite tinha
caído. Com um misto de angústia e felicidade, deixou-se ficar em frente à
casa do mestre, olhou para as janelas e por pouco não foi bater à porta.
Lembrou-se, porém, de que já era tarde e que estava suado e cheio de poeira
da caminhada; conseguiu dominar-se e esperou, mas ainda ali ficou bastante
tempo em frente à casa. Viu uma janela iluminar-se, e no preciso momento
em que se virou para ir embora, um vulto assomou à janela, uma rapariga
loira muito formosa, através de cujas madeixas brilhava a luz suave do
candeeiro.
Na manhã seguinte, acordada já a cidade com toda a sua agitação,
Goldmund, que se tinha hospedado num convento, lavou o rosto e as mãos,
sacudiu o pó da roupa e dos sapatos, procurou o caminho de volta à viela e
foi bater à porta da casa do mestre. Veio abrir-lha uma criada, que não o
quis levar logo à presença do patrão. Goldmund, contudo, conseguiu
sensibilizá-la, e ela lá o deixou entrar. Foi encontrá-lo numa pequena sala
que lhe servia de oficina. Envergava um avental de trabalho e era um
homem alto, forte e de barbas, entre os quarenta e os cinquenta anos. Os
seus olhos azul-claros fixaram atentamente o visitante, antes de lhe
perguntar laconicamente o que desejava. Goldmund saudou-o da parte do
padre Bonifazius.
– Nada mais?
– Mestre – disse Goldmund, ofegante –, vi a vossa imagem da Virgem no
convento. Por favor, não olhais para mim dessa forma tão severa; o que aqui
me traz é puro apreço e admiração. Não sou medroso, há muito que levo
uma vida errante, conheço a floresta e provei os rigores da neve e da fome,
não temo ninguém, senão vós. Tenho apenas um único, grande desejo, que
me enche de tal modo o coração que ele me dói.
– E que desejo é esse?
– Quero ser vosso aprendiz e aprender convosco.
– Não és o único a ter esse desejo, jovem. Só que eu não gosto de
aprendizes e já tenho dois ajudantes. De onde vens, e quem são os teus
pais?
– Não tenho pais e não venho de parte alguma. Estudei num convento,
onde aprendi latim e grego. Depois fugi, há já alguns anos, e desde então
ando a correr mundo. Até hoje.
– E porque é que achas que tens de ser forçosamente entalhador? Já
aprendeste algo da arte? Tens alguns desenhos?
– Fiz muitos desenhos, mas já não os tenho comigo. O que posso, isso
sim, é explicar-vos porque quero aprender essa arte. Pensei muito ao longo
deste tempo, e vi muitos rostos e formas e refleti sobre elas, e alguns desses
pensamentos continuam a acossar-me e não me deixam em paz. Apercebi-
me do modo como em toda a parte, numa figura, uma determinada forma se
manifesta e repete, como uma testa corresponde ao joelho, um ombro à
anca, e como tudo isso é intimamente igual e idêntico à essência e à índole
da pessoa que tem precisamente esse joelho, esse ombro e essa testa. E em
algo mais reparei ainda: numa noite em que tive de ajudar uma parturiente
apercebi-me de que a maior dor e o maior gozo apresentam uma expressão
semelhante.
O mestre avaliou o estranho com um olhar penetrante.
– Sabes o que estás aí a dizer?
– Sim, mestre, é como digo. E foi precisamente isso que, para minha
máxima alegria e consternação, vi expresso na vossa madona; foi por isso
que vim ter convosco. Naquele rosto lindo e sereno pode-se encontrar tanta
dor, e ao mesmo tempo todo o sofrimento como que se transformou em
felicidade e aquietou num sorriso. Quando vi a vossa imagem, foi como se
uma chama me tivesse trespassado, todos os sonhos e os pensamentos que
fui tendo ao longo dos últimos anos pareciam ter-se confirmado e, de
repente, tinham deixado de ser inúteis. Soube então imediatamente o que
tinha a fazer e para onde deveria ir. Caríssimo mestre Niklaus, peço-vos do
fundo do coração, deixai-me aprender convosco!
Imperturbável, Niklaus não deixara de escutar o jovem com toda a
atenção.
– Ouve, meu rapaz – disse –, tu sabes falar admiravelmente sobre a arte
e, com a tua idade, surpreendeu-me também o que soubeste dizer acerca do
prazer e da dor. Para mim seria sem dúvida um prazer discutir contigo esses
assuntos à noite, com um
copo de vinho. Mas vê bem: conversar agradavelmente com alguém de uma
forma inteligente e culta não é a mesma coisa que viver e trabalhar com
alguém durante alguns anos. Isto aqui é uma oficina, e aqui trabalha-se, não
se conversa; e o que aqui importa não é aquilo que se pensou ou consegue
transmitir por palavras, mas apenas e só o que as nossas mãos conseguem
fazer. Parece que levaste tudo isto muito a peito, por isso não vou mandar-te
assim simplesmente embora. Vamos ver se sabes fazer qualquer coisa. Já
modelaste algo em barro ou cera?
Goldmund pensou logo num sonho que tinha tido há muitos anos, em
que moldara pequenas figuras de barro que depois se tinham levantado e
transformado em gigantes. Contudo, não falou nisso, limitando-se a
responder que nunca tentara tais trabalhos.
– Bem, então vais desenhar qualquer coisa. Vês ali uma mesa com papel
e carvão. Senta-te e desenha; não tenhas pressa, podes ficar até ao meio-dia
ou até ao fim da tarde. Talvez eu possa perceber então para que serves.
Agora basta de conversas; vou ao meu trabalho, vai tu ao teu.
Goldmund foi sentar-se à mesa de desenho, na cadeira que o mestre lhe
indicara. Não começou logo a trabalhar, deixou--se ficar primeiro quieto e à
espera, como um discípulo algo inseguro, espreitando de vez em quando,
cheio de curiosidade e carinho, para o mestre que, de costas meio viradas
para ele, retomara o trabalho numa pequena figura de barro. Deteve-se a
observar com atenção aquele homem, em cuja cabeça severa e já um pouco
grisalha e em cujas mãos de artífice calejadas mas nobres e expressivas
morava uma tão fascinante e mágica força. Tinha um aspeto diferente do
que ele imaginara: mais velho, mais humilde, mais sóbrio, muito menos
brilhante e sedutor, e nada feliz. A agudeza implacável do seu olhar
inquiridor focava-se agora no trabalho; liberto daquele olhar, Goldmund
pôde observar cuidadosamente e interiorizar toda a sua figura. Aquele
homem, pensou, podia, por exemplo, ser um erudito, um investigador calmo
e austero, que se dedicava a uma obra iniciada e cultivada já por muitos
outros sábios que lhe tinham antecedido e que também ele iria legar aos
seus sucessores, uma daquelas obras complexas, vastas e intermináveis,
onde se reúne o trabalho e a entrega de muitas gerações humanas. Foi pelo
menos isso que o observador conseguiu deduzir ao analisar a cabeça do
mestre; muita paciência, muita aprendizagem e reflexão, muita humildade e
conhecimento do duvidoso valor de todo o esforço humano pareciam-lhe ali
inscritos, mas também fé na sua missão. Bem diferente era já a linguagem
das suas mãos, entre elas e a cabeça havia uma contradição. Com dedos
firmes mas muito sensíveis, as mãos agarravam no barro que estavam a
moldar, movendo-se e tratando a matéria como as mãos de um amante com
a amada que se lhe entrega: apaixonadas, cheias de uma sensitividade
delicadamente vibrante, desejosas mas sem distinguir entre o receber e o
dar, simultaneamente voluptuosas e devotas, e ainda seguras e imbuídas de
uma mestria profunda, vinda toda ela da experiência. Goldmund
contemplou, deliciado e cheio de admiração, aquelas mãos abençoadas.
Teria gostado imenso de desenhar o mestre se não se sentisse inibido por
aquela contradição entre o rosto e as mãos.
Depois de ter estado uma boa hora a observar o artista a trabalhar,
tentando desvendar o segredo daquele homem, uma outra imagem começou
a ganhar forma dentro de si e a tornar-se visível perante a sua alma – a
imagem da pessoa que ele melhor conhecia e que muito amara e admirara
profundamente; e aquela imagem surgia-lhe sem quebra nem contradição,
apesar de a sua aparência apresentar também uma enorme complexidade de
traços e de evocar inúmeros combates travados. Era a imagem do seu amigo
Narciso, que se foi adensando e unificando cada vez mais perante os seus
olhos; de uma forma cada vez mais clara a coerência interna daquele ser
amado começou então a manifestar-se na sua imagem:
a nobre cabeça moldada pelo trabalho do espírito, enobrecida pela
dedicação ao princípio espiritual; a bela boca contida
e os olhos algo tristes, animados pela luta pela espiritualização; os ombros
magros, o longo pescoço, as mãos delicadas e elegantes. Nunca, desde a
despedida no convento, tinha visto o amigo com tanta clareza, nunca mais
possuíra tão inteiramente a sua imagem.
Involuntariamente, como num sonho, e não obstante inteiramente atento
e disponível para a urgência da tarefa, Goldmund começou então a desenhar
com todo o esmero, tentando evocar, traço após traço, a imagem que
habitava o seu coração. De tão concentrado, acabou por esquecer-se de si
próprio, do mestre e do sítio onde estava. Não se apercebeu da lenta
deslocação da luz do sol, nem viu o mestre olhar várias vezes para ele.
Cumpriu, como se de um sacrifício se tratasse, a tarefa que se lhe impusera,
que se colocara ao seu coração: erguer a imagem do amigo e guardá-la tal
como vivia atualmente na sua alma. Sem sequer refletir nisso, sentiu o
trabalho como a expiação de uma culpa, como um ato de gratidão.
Niklaus abeirou-se da mesa de desenho e disse:
– É hora de almoço; vou para a mesa; se quiseres, podes vir também.
Deixa lá ver; desenhaste alguma coisa?
Colocou-se atrás de Goldmund e olhou para a grande folha; depois
afastou-o e com as suas mãos hábeis pegou cuidadosamente no desenho.
Goldmund acordara do seu sonho e olhava agora com receosa expectativa
para o mestre. Este deixou-se ficar parado, segurando o desenho com ambas
as mãos, observando-o meticulosamente com aquele olhar penetrante dos
seus austeros olhos azul-claros.
– Quem é esta pessoa que aqui desenhaste? – quis saber o mestre,
decorrido algum tempo.
– É um amigo meu, um jovem monge e erudito.
– Bem, lava lá as mãos, ali no pátio há uma fonte. Depois vamos
almoçar. Os meus ajudantes não estão cá, trabalham fora.
Goldmund obedeceu, encontrou o pátio e a fonte, lavou as mãos, mas
muito teria dado para saber a opinião do mestre. Quando voltou, ele não
estava na oficina, ouviu-o fazer qualquer coisa num quarto ao lado; quando
surgiu à porta, já ele se tinha também lavado e envergava, em vez do
avental de trabalho, um casaco de belo tecido, que lhe dava uma aparência
imponente e formal. Seguiu à frente, subindo uma escada cujo corrimão de
nogueira ostentava um grupo de pequenas cabeças de anjos esculpidas na
madeira; atravessaram um vestíbulo repleto de estátuas, algumas mais
antigas, outras recentes, até chegarem a uma bonita sala com o chão, as
paredes e o teto forrados de madeira, onde, ao canto, em frente à janela, se
encontrava uma mesa posta. Surgiu então uma rapariga, que Goldmund
logo reconheceu como sendo a bela jovem da noite anterior.
– Lisbeth – disse o mestre –, tens de pôr mais um talher, trouxe um
convidado. É o… bem, afinal ainda nem sequer sei como ele se chama.
Goldmund apresentou-se.
– És então o Goldmund. Podemos ir comer?
– É só um instante, pai.
A jovem foi buscar um prato, saiu apressadamente e voltou com a criada
que trazia e serviu a comida: carne de porco, lentilhas e pão branco.
Durante a refeição, o pai conversou sobre vários assuntos com a filha,
Goldmund manteve-se calado, comeu um pouco e sentiu-se extremamente
inseguro e constrangido. Agradou-lhe muito a rapariga, que com o seu porte
imponente e gracioso era quase tão alta como o pai; mas ela manteve-se
reservada e inacessível, como por detrás de uma redoma, e nem uma
palavra nem um olhar dirigiu ao convidado enquanto esteve sentada à mesa.
Depois de terem comido, o mestre disse:
– Ainda quero descansar meia hora. Vai para a oficina ou passeia lá por
fora, depois falaremos sobre o assunto.
Goldmund cumprimentou e saiu. Já tinha passado uma hora ou mais
desde que o mestre vira o seu desenho e nem uma palavra ainda dissera.
Agora ia ter de esperar mais meia hora! Mas nada havia a fazer, ia ter
mesmo de esperar. Para a oficina não foi, não queria voltar a ver agora o
desenho. Preferiu ir para o pátio, sentou-se na beira da fonte e ficou a
observar o fio de água que continuamente escorria do cano para a funda
bacia de pedra e que, ao embater no espelho de água, provocava minúsculas
ondas, arrastando ininterruptamente consigo para o fundo um pouco de ar,
que depois ascendia para a superfície sob a forma de pequenas pérolas
brancas. Viu-se refletido no espelho escuro da fonte e achou que aquele
Goldmund que o olhava já há muito que não era o Goldmund do convento,
nem o Goldmund de Lydia, nem sequer o Goldmund da floresta. Pensou
que ele, como toda a gente, fluía, transformando-se continuamente, para
acabar, enfim, por se dissolver, enquanto a sua imagem criada por um
artista perdurava idêntica e imutável.
Talvez o medo da morte fosse a raiz de toda a arte, pensou, e até mesmo
de todo o espírito. Tememo-la, estremecemos perante a transitoriedade de
tudo, com pesar assistimos ao murchar das flores e ao cair das folhas,
sentindo no próprio coração a certeza de que também nós somos efémeros e
em breve murcharemos. Mas se criamos imagens, como os artistas, ou
elaboramos leis e formulamos pensamentos, como os pensadores, fazemo-
lo apenas para salvar algo do turbilhão da grande dança macabra, para
apresentar algo mais duradouro do que nós próprios. A mulher que serviu
de modelo ao mestre para a sua bela madona talvez já tenha murchado e
morrido,
e ele próprio não tardará a morrer também; outros hão de habitar a sua casa
e comer à sua mesa – mas a sua obra mantém-se, na quietude da igreja
conventual há de ainda brilhar, durante centenas de anos e mais, sempre
bela e sorrindo sempre com aquela expressão tão fresca quanto triste.
Ouviu o mestre descer a escada e correu para a oficina. Viu-o andar de
um lado para o outro, parando uma e outra vez para observar o seu desenho;
finalmente, parou junto à janela e disse naquele seu modo algo seco e como
que hesitante:
– Entre nós é costume o aprendiz cumprir, pelo menos, quatro anos de
aprendizagem, que é paga pelo pai.
Como se calou por um instante, Goldmund pensou que ele receava não
vir a receber os custos pela sua aprendizagem. Tirou então a navalha do
bolso e, rápido como um relâmpago, cortou a bainha, para retirar o ducado
escondido. O mestre ficou a olhar para ele, surpreendido, e soltou uma
gargalhada quando Goldmund lhe quis entregar a moeda de ouro.
– Ah, então era essa a tua ideia? – exclamou sorrindo.
– Não, jovem, fica lá com a tua moeda. Agora ouve. Contei-
-te o que é costume na nossa corporação, no que respeita aos aprendizes.
Mas nem eu sou um mestre vulgar, nem tu és um vulgar aprendiz. É que
esses começam a sua aprendizagem com treze, catorze ou quinze anos, o
mais tardar, e passam metade desse tempo a fazer fretes e a cometer erros.
Ora, tu és já um homem feito, com a idade que tens já podias ser oficial ou
mesmo mestre. Um aprendiz com barba seria coisa nunca vista na nossa
corporação. Depois também já te disse que na minha casa não quero
aprendizes, nem tu pareces pessoa que se sinta bem a fazer fretes.
A paciência de Goldmund atingira o limite, sentia cada uma das
ponderadas palavras do mestre como uma tortura e todos aqueles rodeios
pareciam-lhe horrivelmente enfadonhos e pedantes. Impetuosamente,
exclamou:
– Porque me dizeis tudo isso se não estais disposto a ensinar-me?
O mestre prosseguiu, imperturbável, no mesmo tom antiquado:
– Ponderei o teu pedido durante uma hora, agora vais tu ter paciência
para me ouvir. Estive a ver o teu desenho. Tem erros, mas não é por isso
que deixa de ser belo. Se o não fosse, oferecia-te meio florim, mandava-te
embora e não pensava mais em ti. Mais não quero dizer sobre o desenho.
Quero ajudar-te a tornares-te um artista, talvez seja esse o teu destino. Mas,
como disse, aprendiz não podes ser; e quem não foi aprendiz nem cumpriu
o período de aprendizagem não pode, segundo a regra da nossa corporação,
ser oficial nem mestre. Desde já ficas avisado. Mas podes fazer uma
tentativa. Se conseguires ficar cá na cidade durante um certo tempo, podes
vir ter comigo e aprender alguma coisa. Tudo isso acontece sem contrato
nem compromisso, a qualquer altura poderás desistir. Podes quebrar na
minha oficina uns quantos cinzéis e estragar uns toros de madeira; se depois
se revelar que não serves para entalhador, terás de procurar noutro lado.
Ficas satisfeito assim?
Goldmund ouvira-o, envergonhado e comovido.
– Agradeço-vos do fundo do coração – exclamou. – Não tenho lar nem
pátria e saberei cuidar de mim aqui na cidade como lá fora, na floresta.
Percebo que não queirais ter-me a vosso encargo e responsabilidade, como
se fosse um garoto aprendiz. Considero uma grande sorte e uma honra
poder aprender convosco. Do fundo do coração, agradeço-vos o que fazeis
por mim.
XI

Novas imagens rodeavam Goldmund e uma nova vida começou para ele
ali na cidade. Assim como aquela terra e aquela cidade o tinham recebido
de uma forma espontânea, sedutora e exuberante, também a vida que agora
iniciava o acolheu com alegria e inúmeras promessas. Se bem que o fundo
de tristeza e conhecimento se mantivesse inalterável na sua alma, o certo é
que à superfície a vida se lhe apresentou e o cativou com toda a sua colorida
diversidade. Teve então início o período mais alegre e despreocupado na
vida de Goldmund. No exterior recebeu-o a opulenta cidade episcopal com
todas as suas artes, mulheres e centenas de agradáveis jogos e imagens;
interiormente, a consciência da arte que nele despontava recompensou-o
com novas sensações e experiências. Com o apoio do mestre Niklaus,
encontrou alojamento na casa de um dourador, perto do mercado do peixe, e
aprendeu, tanto com ele como com o mestre, a arte de trabalhar a madeira e
o gesso e de utilizar as tintas, os vernizes e as folhas de ouro.
Goldmund não pertencia àquele tipo de artistas insatisfeitos, que, muito
embora possuindo notáveis talentos, nunca conseguem encontrar os meios
adequados para os expressar. Há pessoas assim, capazes de sentir a beleza
do mundo com profundidade e grandeza e de transportar na alma imagens
elevadas e nobres, mas que não encontram o caminho e os meios para delas
se libertarem, transmitindo-as e comunicando-as para satisfação dos outros.
Goldmund não sofria dessa carência. Não lhe custava servir-se das mãos e
dava-lhe prazer apropriar-se dos truques e técnicas do ofício, tal como
facilmente aprendia a tocar alaúde, à noite, com os colegas, ou a dançar, ao
domingo, nos bailes das aldeias. A aprendizagem era fácil, espontânea. É
certo que teve de se esforçar para aprender a trabalhar a madeira, que teve
de superar dificuldades e desilusões e que chegou mesmo a estragar
algumas belas peças de madeira e a cortar-se a sério nos dedos por mais de
uma vez. Mas não demorou a dominar os princípios da arte e a adquirir a
necessária destreza. Não obstante, muitos eram os dias em que o mestre se
mostrava insatisfeito com ele e lhe dizia, por exemplo:
– É bom que não sejas meu aprendiz ou oficial, Goldmund. É bom que
ambos saibamos que vens da vida errante e das florestas e que um dia para
lá voltarás novamente. Quem não soubesse que, no fundo, não és um
cidadão nem um artífice, mas um simples vagabundo e um estroina,
facilmente incorreria no erro de exigir de ti tarefas que qualquer mestre
exige do seu pessoal. Consegues ser um ótimo trabalhador quando te dá na
real gana. Mas na semana passada ninguém te pôs a vista em cima, porque
andaste a vadiar durante dois dias. E ontem, na oficina da corte, escondeste-
te para dormir durante meio dia, quando devias estar a polir os dois anjos.
As reprimendas eram justas e Goldmund aceitava-as calado, sem tentar
justificar-se. Ele próprio sabia que não era uma pessoa fiável e trabalhadora.
Desde que um trabalho o prendesse e o confrontasse com tarefas
complicadas, ou o entusiasmasse, tornando-o consciente das suas
capacidades, podia ser um artesão incansável. Mas esquivava-se ao trabalho
manual pesado e aquelas outras tarefas, que, sem serem difíceis, exigiam
tempo e aplicação e que, por fazerem parte do ofício, requeriam fiabilidade
e persistência, chegavam a parecer-lhe insuportáveis. Ele próprio se
admirava por vezes com isso. Teriam bastado aqueles dois anos de
vagabundagem para o tornarem preguiçoso e tão pouco fiável? Seria uma
herança materna, que agora crescia nele e se afirmava? Ou era porque lhe
faltaria? Lembrava-se perfeitamente dos seus primeiros anos no convento,
em que tinha sido um aluno tão bom e diligente. Porque conseguira ter na
altura toda aquela paciência que agora lhe faltava, como pudera dedicar-se
tão infatigavelmente ao estudo da sintaxe latina e de todos aqueles aoristos
gregos, que, no fundo, nada lhe diziam? Por vezes pensava nisso. No
passado fora o amor que sentia por Narciso que o fortalecera e lhe dera
asas; a vontade de aprender que demonstrara não tinha passado de um
constante esforço para ganhar o afeto do amigo, pois sabia que esse afeto só
seria conquistado através do respeito e do reconhecimento. Naquele tempo,
era capaz de se esforçar horas e dias a fio por um olhar de aprovação do
mestre querido. Depois, finalmente, conseguira atingir o seu objetivo,
Narciso tornara-se seu amigo e, estranhamente, acabara por ser
precisamente o sábio Narciso a revelar-lhe a falta de vocação para o estudo
e lhe conjurara a imagem da mãe desaparecida. Em vez de erudição,
ascetismo monástico e virtude, tinham-se apoderado do seu ser poderosos
instintos elementares: o sexo, o amor pelas mulheres, o impulso
independente, a vida errante. Agora, porém, depois de ter visto aquela
madona do mestre, descobrira um artista dentro de si, tomara um novo
rumo e voltara à vida sedentária. O que iria acontecer agora? Por onde
seguiria o seu caminho? De onde lhe vinham aquelas inibições?
Por enquanto, faltavam-lhe as respostas. Só uma coisa conseguia
perceber: embora sentisse pelo mestre Niklaus uma grande e genuína
admiração, não sentia por ele, de modo nenhum, o afeto que outrora o ligara
a Narciso. Por vezes, até lhe dava gozo desiludi-lo e arreliá-lo. Parecia-lhe
que isso tinha a ver com os conflitos e as contradições latentes na
personalidade do mestre. As figuras criadas pela mão de Niklaus, pelo
menos as melhores de entre elas, representavam para Goldmund modelos
venerados, mas o mestre não lhe parecia um exemplo a seguir.
A par do artista que esculpira aquela madona com a boca mais sofrida e
bela que ele jamais vira, a par do visionário e homem conhecedor, cujas
mãos sabiam transformar, como que por magia, experiências e intuições
profundas em figurações visíveis, coexistia ainda na personalidade do seu
mestre uma segunda pessoa: um patriarca e chefe de corporação algo
austero e receoso, um viúvo que com a filha e uma criada feia levava uma
vida sigilosa e vagamente tacanha no casarão silencioso, um homem que se
defendia ferozmente contra os mais imperiosos instintos de Goldmund, que
se acomodara a uma vida tranquila, comedida, ordenada e virtuosa.
Embora Goldmund respeitasse o seu mestre e nunca se tivesse permitido
indagar pormenores da sua vida ou julgá-lo diante dos outros, decorrido um
ano já sabia tudo o que era possível saber acerca de Niklaus. O mestre era-
lhe importante, amava-o e odiava-o, a confrontação com o que ele era e
representava não o deixava em paz, e assim, com apreço e desconfiança,
movido por uma constante curiosidade acerca das facetas mais ocultas da
sua personalidade, foi penetrando na sua vida. Viu como Niklaus recusava
albergar aprendizes e oficiais na sua casa, apesar de dispor de espaço mais
que suficiente. Viu que raramente saía e que quase nunca convidava
alguém. Apercebeu-se do amor tocante e ciumento que tinha pela sua linda
filha e de como tentava escondê-la dos outros. Sabia também que por detrás
da austera e precoce abstinência do viúvo pulsavam ainda fortes instintos, e
que quando, por vezes, uma qualquer encomenda de fora o obrigava a
viajar, podia transfigurar-se e rejuvenescer surpreendentemente durante
esses breves dias. E, uma vez, reparou também que, numa cidadezinha
estranha onde montavam um púlpito entalhado, Niklaus saiu certa noite às
escondidas para visitar uma prostituta, e que depois andou durante dias
inquieto e irritado.
Com o decorrer do tempo, outro motivo houve, para além dessa
constante curiosidade, que reteve Goldmund na casa do mestre e o começou
a inquietar cada vez mais. Era a bela filha, Lisbeth, que tanto lhe agradava.
Como ela nunca entrava na oficina, raramente a via, pelo que não conseguia
averiguar se a sua aspereza e timidez perante os homens lhe tinham sido
impostas pelo pai ou se eram devidas ao seu próprio carácter. De qualquer
forma, não lhe passou despercebido o facto de o mestre nunca mais o ter
convidado para a sua mesa e de lhe dificultar qualquer encontro com a filha.
Goldmund reconheceu que Lisbeth era uma donzela extremamente preciosa
e protegida, e que com ela nem valia a pena alimentar a esperança de um
amor sem casamento; quem quisesse desposá-la tinha de ser filho de boas
famílias, membro de uma das corporações superiores e, se possível, possuir
dinheiro e casa própria.
A beleza de Lisbeth, tão diferente daquela das ciganas ou das
camponesas, chamara-lhe a atenção desde o primeiro dia. Havia nela algo
que lhe era ainda desconhecido, algo estranho, que o atraía violentamente,
mas que, ao mesmo tempo, o deixava desconfiado e chegava mesmo a
irritar: uma grande calma e inocência, um recato e uma pureza onde
faltavam qualquer traço de infantilidade, pois por detrás de toda a
compostura e o decoro escondia-se uma frieza, uma arrogância, que faziam
com que a sua inocência não o comovesse e desarmasse – nunca ele teria
desejado seduzir uma criança –, mas que, pelo contrário,
o provocavam e desafiavam. Logo que começou a familiarizar-se com a sua
imagem, tal como ela lhe surgia nos seus devaneios, sentiu o desejo de a
reproduzir, um dia, numa figura; não como ela era agora, mas com outros
traços, despertos, sensuais e doridos; não como pequena donzela, mas como
uma madura Madalena. Na sua fantasia desejava muitas vezes ver aquele
rosto sereno, belo e inexpressivo distorcer-se e abrir-se, revelando o seu
segredo num excesso de gozo ou de dor.
Além desse, outro rosto havia ainda que habitava a sua alma sem lhe
pertencer por completo, um rosto cuja expressão ele ardentemente desejava
fixar e reproduzir algum dia como artista, mas que continuava a furtar-se-
lhe e a velar-se-lhe. Era o rosto da mãe. Há muito que esse rosto não era o
mesmo que lhe surgira recuperado do fundo das profundezas da memória,
depois das conversas que tivera com Narciso. Nos dias da errância, nas
noites de amor, nos tempos marcados pela nostalgia, pelo perigo de vida e
pela proximidade da morte, o rosto materno transformara-se e enriquecera
lentamente, tornando-
-se mais profundo e diversificado; deixara de ser a imagem da sua própria
mãe e os traços e as cores característicos tinham evoluído no sentido de
uma imagem maternal sem referência pessoal, a imagem de Eva, a mãe do
género humano. Tal como o mestre Niklaus lograra representar em algumas
das suas melhores madonas a imagem da mater dolorosa com uma tal
perfeição e intensidade expressiva, que a Goldmund parecia insuperável,
assim ele tinha também a esperança de, um dia, quando tivesse
amadurecido e se sentisse mais seguro das suas capacidades, poder
representar a imagem da mãe do mundo, de Eva, a mais remota e amada
relíquia que habitava o seu coração. Contudo, aquela imagem interior,
outrora apenas uma recordação da sua própria mãe e do seu amor por ela,
encontrava-se num processo de constante transformação e crescimento. As
feições e os traços singulares da cigana Lise, de Lydia, a filha do cavaleiro,
e de outros rostos de mulheres tinham-se integrado naquela imagem
original, contribuindo continuamente para a moldar; e não eram só os rostos
de todas as mulheres amadas que participavam na construção da imagem,
mas também todos os abalos, todas as experiências e as vivências profundas
por que passava contribuíam para a transfigurar, acrescentando-lhe traços
específicos. Porque ele sabia que, se alguma vez, mais tarde, conseguisse de
facto torná-la visível, ela não representaria uma mulher específica, mas
antes a imagem da própria vida enquanto mãe primordial. Frequentemente
julgava poder vê-la, por vezes surgia-lhe mesmo em sonhos, mas sobre esse
rosto de Eva e o que ele iria um dia manifestar não sabia dizer mais, para
além de que deveria revelar a volúpia da vida na sua mais íntima afinidade
com a dor e a morte.
Goldmund aprendera muito durante aquele ano. No desenho adquirira
rapidamente uma grande segurança, e, a par do trabalho com a madeira, o
mestre deixava-o também, por vezes, moldar o barro. Assim, a sua primeira
obra bem conseguida foi uma figura de barro de uns bons dois palmos de
altura, que representava a doce e sedutora imagem da pequena Julie, a irmã
de Lydia. O mestre louvou o trabalho mas não satisfez o seu desejo de a
fundir em metal; a figura pareceu-lhe demasiado lasciva e mundana para
que a pudesse apadrinhar. Seguiu-se o trabalho na figura de Narciso.
Goldmund executou-a em madeira, representando o apóstolo S. João, pois,
caso fosse bem--sucedido, o mestre queria aproveitá-la para um grupo sobre
a crucificação, que lhe tinha sido encomendado e no qual os seus dois
ajudantes trabalhavam exclusivamente há bastante tempo. No final, ele
próprio se encarregaria dos derradeiros detalhes.
Goldmund trabalhou a figura de Narciso com um amor profundo; nele se
reencontrava a si próprio, à sua arte e à sua alma sempre que descarrilava, o
que até nem sucedia assim tão raramente: namoricos, bailes, noitadas
boémias passadas com colegas a beber e a jogar aos dados e, não raras
vezes também, cenas de pancadaria deixavam-no esgotado, obrigando-o a
manter-se afastado da oficina por um ou mais dias ou a trabalhar sem
convicção, perturbado e mal-humorado. Mas ao
S. João apóstolo, cuja amada figura pensativa lhe ia surgindo da madeira,
cada vez mais nítida, só dedicava as melhores horas de disponibilidade.
Entregava-se então à tarefa com fervor e humildade. Durante essas horas
não se sentia nem contente nem triste, não pensava nos prazeres da vida
nem na sua fugacidade; nessas alturas, emergia de novo aquele sentimento
luminoso, reverente e puro com que outrora se entregara ao amigo e
aceitara, cheio de gratidão, a sua tutela. No fundo, não era ele que ali
estava, criando com vontade própria uma imagem. Era o outro, era o
próprio Narciso que se servia das suas mãos de artista para se libertar da
transitoriedade e da inconstância da vida e poder assim representar a pura
imagem do seu ser.
Era dessa maneira, sentia Goldmund às vezes com um calafrio, que
surgiam as verdadeiras obras de arte. Assim fora gerada a inesquecível
madona do mestre, que de vez em quando ele ia ainda visitar ao convento,
aos domingos. Fora também assim, daquele modo misterioso e sagrado, que
tinham sido feitas as melhores peças que o mestre guardava lá em cima, no
vestíbulo. Assim iria surgir também, um dia, aqueloutra e única imagem
que lhe parecia ainda mais misteriosa e veneranda, a imagem da mãe da
humanidade. Ah, se das mãos humanas só saíssem essas obras de arte, essas
imagens sagradas, necessárias e puras e em nada contaminadas pela vontade
e pela vaidade! Mas a realidade não era essa, e ele há muito o sabia.
Também se podiam criar muitas outras imagens, uma infinidade de coisas,
todas elas bonitas e encantadoras e executadas com grande mestria, para
regozijo dos amantes da arte e adorno das igrejas e dos salões municipais.
Todas elas bonitas, sem dúvida, mas não sagradas, não verdadeiramente
vindas da alma. Ele conhecia algumas dessas obras, da autoria do seu e de
outros mestres, que, apesar de toda a graciosidade do processo criativo e de
todo o esmero posto na execução, não passavam de fúteis exercícios de
virtuosismo. Sabia-o por experiência própria, e para sua vergonha e
desgosto sentira já nas próprias mãos aquele impulso que leva um artista a
produzir esses objetivos belos e fáceis apenas para se deleitar com a própria
destreza, por ambição e futilidade.
Quando reconheceu isso pela primeira vez, sentiu-se mortalmente triste.
Para fazer lindos querubins e outras ninharias, por mais graciosas que
fossem, não valia a pena ser artista. Para outros talvez, para artífices,
burgueses, para almas acomodadas e satisfeitas talvez valesse a pena, mas
para ele não. Para ele, a arte e as capacidades artísticas não tinham qualquer
valor se não queimassem como o sol e possuíssem o poder das tempestades,
se não aportassem mais que uma mera satisfação e um agradável
apaziguamento. Ele procurava outra coisa. Dourar com toda a perfeição,
com folhas de ouro reluzentes, uma coroa da Virgem delicada como renda
não era tarefa para ele, mesmo que fosse bem paga. Porque aceitaria o
mestre Niklaus todas aquelas encomendas? Porque empregava dois
ajudantes? Porque ouviria horas a fio, de côvado na mão, todos aqueles
vereadores e priores que vinham encomendar-lhe um portal ou um púlpito?
Por dois motivos apenas, dois miseráveis motivos: porque fazia gala em ser
um artista famoso e sobrecarregado com encomendas, e porque queria
amealhar dinheiro – não para grandes empreendimentos e prazeres, mas
apenas e só para a filha, que há muito era uma rapariga rica; dinheiro para o
enxoval, para golas de rendas e vestidos de brocado, para um leito nupcial
de nogueira com preciosas cobertas e lençóis de linho! Como se aquela
formosa rapariga não pudesse conhecer o amor num qualquer chão de feno!
Sempre que esses pensamentos o assaltavam, era o sangue materno que
se manifestava em Goldmund, o orgulho e o desprezo do nómada contra os
sedentários e proprietários. Havia dias em que o ofício e o mestre o
enojavam como feijões azedos, e não raras vezes esteve prestes a fugir.
Também o mestre por mais de uma vez se arrependera e lamentara
amargamente ter admitido aquele rapaz difícil e
tão pouco fiável, que constantemente punha à prova a sua paciência. O que
lhe chegava aos ouvidos sobre a vida de Goldmund, sobre a sua feroz
indiferença perante o dinheiro e a acumulação de bens, a sua propensão
para o esbanjamento, os seus inúmeros romances e frequentes brigas
também não o dispunha mais favoravelmente; a verdade era que tinha
acolhido em sua casa um cigano, um sujeito intratável e insubordinado. Por
outro lado, também não lhe passara despercebido o modo como aquele
vadio andava a arrastar o olho à sua filha Lisbeth. Se, não obstante tudo
isso, continuava a aturá-lo com mais paciência do que a que pensava poder
ter, não era por obrigação moral ou receio, mas por causa do S. João
apóstolo, cuja figura ia vendo surgir. Com um sentimento de profunda
afeição e afinidade de almas, que não lhe era fácil reconhecer, ia vendo o
vagabundo vindo das florestas esculpir na madeira, de uma forma lenta e
inconstante, mas também tenaz e incontestável, a imagem do apóstolo, a
partir daquele seu desenho original tão belo quanto desajeitado que o levara
a aceitá-lo na oficina. Apesar de todas as interrupções e caprichos, ele não
duvidava que Goldmund a iria conseguir um dia finalizar, e então seria uma
obra como nenhum dos seus ajudantes era capaz de realizar, uma daquelas
obras cujo nível até mesmo os grandes mestres só muito raramente
conseguiam atingir. Por muito que o discípulo lhe desagradasse em
inúmeros aspetos, por mais que o repreendesse, por mais que o seu
comportamento o enfurecesse – sobre o S. João nunca lhe dissera uma
palavra.
Ao longo desses anos, Goldmund foi perdendo pouco a pouco o resto da
graciosidade juvenil e da ingenuidade de rapazinho que constituíra o
segredo do seu encanto. Tornara-se um homem belo e forte, muito desejado
pelas mulheres e pouco simpático aos homens. Também o seu
temperamento, a sua íntima fisionomia se alterara substancialmente desde
que Narciso o despertara da suave letargia dos anos do convento, desde que
o mundo e a errância o tinham moldado. Há muito que o aluno da escola
conventual, bonito e dócil, de todos bem-querido, piedoso e solícito se
transformara numa pessoa completamente diferente. Narciso despertara-o,
as mulheres tinham-lhe transmitido o conhecimento, a vida errante
amadurecera-o. Amigos não tinha, o seu coração pertencia às mulheres.
Essas facilmente o conquistavam, bastava um olhar de desejo. Não lhe era
fácil resistir a uma mulher, sabia responder ao sinal mais subtil. Apesar de
possuir um apurado sentido estético e de ter preferido desde sempre as
raparigas muito jovens com o seu encanto primaveril, não deixava também
de reagir perante o apelo de mulheres menos belas e não tão jovens.
Durante os bailes sucedia por vezes deixar-se prender por uma qualquer
rapariga desanimada e sem frescura, que ninguém desejava e o conquistava
pela via da compaixão, e não só da compaixão, mas devido também à sua
eterna curiosidade. A partir do momento em que se dedicava a uma mulher
– fosse por semanas ou apenas por horas –, ela tornava-se bela aos seus
olhos e a sua entrega era completa. A experiência ensinara-lhe que todas as
mulheres eram belas e capazes de dar prazer, e que mesmo a de aparência
insignificante, desprezada pelos outros homens, podia revelar um ardor e
uma entrega inauditos, e que mesmo aquela que perdera já o viço da
juventude era capaz de derramar uma doce ternura melancólica e mais que
maternal; no fundo, todas possuíam um segredo e um encanto cujo
desvendar o fascinava. Nesse aspeto eram todas elas semelhantes: havia
sempre um gesto especial capaz de compensar qualquer falta de juventude
ou beleza, embora nem todas o prendessem durante o mesmo tempo. A
menos bela não lhe inspirava menos amor e gratidão do que a mais jovem e
graciosa, a sua entrega era sempre total. Mas havia mulheres que só após
três ou dez noites de amor o começavam a fascinar verdadeiramente, ao
passo que com outras o seu interesse arrefecia logo depois da primeira vez.
O amor e o prazer pareciam-lhe as únicas realidades capazes de darem
verdadeiramente calor e valor à vida. A ambição era-lhe desconhecida, o
bispo não valia para ele mais que o mendigo; do mesmo modo, a aquisição
e a posse de bens não conseguiam cativá-lo, desprezava-os, nunca lhe
teriam merecido o
mais pequeno sacrifício e esbanjava despreocupadamente o muito dinheiro
que em certas ocasiões chegava a ganhar.
O amor das mulheres e o jogo erótico estavam para ele acima de tudo, e a
sua frequente tendência para a tristeza e para o tédio provinha da
experiência da efemeridade e da volatilidade do prazer. A labareda rápida,
volátil, deliciosa do gozo carnal, a sua breve, desejosa combustão, a sua
célere extinção – parecia--lhe ali contido o âmago de todas as vivências,
para ele aquela experiência simbolizava toda a alegria e todo o sofrimento
da vida. Podia entregar-se àquela melancolia e ao calafrio perante a
transitoriedade da existência com a mesma entrega com que se abandonava
ao amor, e também ela era amor, também ele era prazer. Tal como o gozo
amoroso sabe com certeza, mesmo no instante do seu supremo êxtase, que
irá ter de se dissipar e extinguir com o próximo alento, também a mais
íntima solidão e entrega à melancolia estava certa de que iria ser,
subitamente, de novo devorada pelo desejo e por uma renovada aceitação
do lado solar da vida. A morte e a volúpia eram uma e a mesma coisa.
Podia chamar-se à mãe da vida amor ou prazer, tal como podia chamar-se
túmulo ou putrefação. A mãe era Eva, e era ela a fonte da felicidade e a
origem da morte, eternamente parindo e eternamente sacrificando; nela se
encontravam unidos o amor e a crueldade, e quanto mais ele a interiorizava,
mais a sua imagem se tornava metáfora e símbolo sagrado.
Goldmund sabia, não conscientemente e de uma forma verbalizada, mas
com o conhecimento mais íntimo e profundo do sangue, que o seu percurso
o conduzia à mãe, ao gozo e à morte. O lado paterno da vida, o espírito e a
vontade, não eram o seu território. Esses eram os domínios de Narciso, e só
agora Goldmund conseguia compreender verdadeiramente o sentido das
palavras do amigo e ver nele o seu polo oposto. Foi também isso que tentou
tornar visível e palpável na figura do S. João. Podia ter saudades de Narciso
até romper em lágrimas, podia sonhar maravilhosamente com ele, mas
alcançá-lo, tornar-se como ele, isso, sabia-o agora, nunca poderia.
Goldmund pressentia também, de uma forma instintiva e secreta, o
mistério da sua vocação artística, do seu íntimo amor pela arte e do violento
ódio que ocasionalmente sentia contra ela. Sem o tentar analisar, de uma
forma meramente emocional, pressentia através de inúmeras metáforas que
a arte era uma síntese dos dois mundos, o paterno e o materno, o do espírito
e o do sangue; podia partir da evidência sensorial para se diferenciar nas
esferas mais abstratas, assim como podia ter a sua génese no mundo puro
das ideias para terminar na mais sangrenta carnalidade. Todas as obras de
arte verdadeiramente sublimes que não se contentavam em ser apenas
produtos de um qualquer hábil prestidigitador, todas aquelas em que, como,
por exemplo, na madona do mestre, se sentia a presença do eterno mistério,
todas as obras de arte verdadeiramente genuínas e inquestionáveis
apresentavam aquela dupla face sorridente e perigosa, aquela dualidade
integrada do masculino e do feminino, aquela simultaneidade dos aspetos
instintivos e puramente espirituais. Mas, mais do que todas as outras, seria a
sua mãe Eva quem revelaria essa ambiguidade essencial, se um dia
conseguisse moldá-la.
Goldmund sentia que através da arte e da vida de artista tinha a
possibilidade de conciliar os seus profundos antagonismos, ou pelo menos
de criar magníficas e sempre novas metáforas sobre a ambivalência da sua
natureza. Mas a arte não era pura dádiva, não era de modo nenhum gratuita,
ela tinha um preço elevado e exigia-lhe sacrifícios constantes. Durante mais
de três anos sacrificara-lhe já o mais supremo e imprescindível bem que
conhecia, para além do êxtase amoroso: a sua liberdade. O sentir-se livre, a
errância pelo mundo sem fim, as bizarrias da vida de vagabundo, o estar só
e sentir-se independente, tudo isso abandonara por ela. Os outros podiam
achá-lo inconstante, insubordinado e egoísta quando, por vezes, descurava o
trabalho e abandonava a oficina, furioso; para ele, porém, aquela vida era
uma escravidão amarga, que não raras vezes se lhe tornava insuportável.
Não era ao mestre, nem ao futuro, nem às necessidades básicas que ele
obedecia – era à própria arte. E a arte, aquela deusa aparentemente tão
espiritual, exigia dele tantas coisas comezinhas! Precisava de um teto,
precisava de ferramentas, madeira, barro, tintas, ouro, exigia--lhe trabalho e
paciência. Sacrificara-lhe a feroz liberdade das florestas, o êxtase da
distância, o gozo rude do risco, o orgulho da penúria, e continuamente se
via obrigado a renovar o sacrifício, rangendo os dentes e espumando de
raiva.
Uma parte do que sacrificava ainda conseguia recuperar, vingando-se da
ordem escravizante da sua vida atual ao envolver-se em certas aventuras
relacionadas com os seus namoros e em rixas com os rivais. Todo o ímpeto
contido, toda a violência reprimida do seu temperamento descarregava-se
então através desse escape; tornou-se um notório e temido brigão. Ser
subitamente atacado numa viela escura, a caminho de um encontro ou no
regresso a casa, depois do baile, e ter de se defender das pauladas, virando-
se logo a seguir, rápido como um raio, e passar da defesa para o ataque, era
algo que lhe dava gozo; filar, ofegante, o adversário a arfar, espetar-lhe um
murro nos queixos, arrastá-lo pelos cabelos ou estrangulá-lo durante um
bom bocado, era algo que o satisfazia e o curava, por uns tempos, dos seus
acessos de mau humor. E às mulheres aquilo também agradava.
Todas essas desordens preencheram-lhe sobejamente os dias e tudo teve
o seu sentido enquanto durou o trabalho na figura do apóstolo. Este
prolongou-se ainda por bastante tempo e as derradeiras e delicadas
modelações do rosto e das mãos decorreram sob um estado de espírito
solene, com uma concentração paciente. Terminou o trabalho numa
pequena arrecadação de madeira, atrás da oficina onde trabalhavam os
ajudantes. Por fim, numa manhã, chegou a hora em que a figura foi
concluída. Goldmund foi buscar uma vassoura, varreu cuidadosamente toda
a arrecadação, retirou delicadamente com um pincel as últimas aparas e as
partículas de madeira dos cabelos do seu S. João, e deixou-se depois ficar
muito tempo a observá--lo, uma hora ou mais, emocionado e consciente da
importância daquela experiência, que talvez pudesse um dia repetir-se na
sua vida, mas que também podia ser única e inigualável. Um homem no dia
do seu casamento ou quando acaba de ser armado cavaleiro, uma mulher
após o primeiro parto poderão sentir algo semelhante: uma consagração,
profundamente consciente da solenidade da situação e, simultaneamente,
um secreto receio perante a inevitabilidade do momento em que também o
extraordinário e único terá de ser ultrapassado, integrado e consumido pelo
decorrer indiferente dos dias.
Goldmund ergueu-se e viu o seu amigo Narciso, o mentor dos seus anos
de adolescência: viu-o de pé, à sua frente, de cabeça erguida, como se
escutasse algo, trajando as vestes e desempenhando o papel do belo
discípulo dileto, com uma expressão de serenidade, entrega e reverência
onde se insinuava um sorriso. Aquele rosto formoso, devoto e espiritual,
aquela figura delgada que parecia levitar no espaço, aquelas mãos longas e
delicadas, como que suspensas num gesto misericordioso e cheio de uma
graciosidade natural, não desconheciam a dor e
a morte, apesar de estarem imbuídas de juventude e de uma íntima vibração
musical; o que desconheciam era o desespero, a desordem e a revolta. Sob
aqueles traços nobres, a alma podia ser alegre ou triste, mas mantinha-se em
harmonia, não sofria de dissonâncias.
Goldmund não conseguia deixar de contemplar a sua obra. Mas o que
começou como pura contemplação perante um monumento à sua primeira
juventude e amizade depressa se transformou num vendaval de
preocupações e pensamentos sombrios. Aí estava ela, a sua obra, e o belo
discípulo perduraria, e o seu delicado desabrochar não teria fim. Ele, porém,
o seu autor, iria ter agora de se despedir do que criara, amanhã já ela não lhe
pertenceria, já não estaria ali à espera das suas mãos, já não cresceria sob o
seu labor, já não representaria para ele refúgio, consolo e sentido da
existência. Deixava-o vazio e pareceu-lhe que o melhor seria despedir-se já
hoje, não só daquele S. João, mas também do mestre, da cidade e da própria
arte. Já não tinha nada que fazer ali; a sua alma estava esgotada, já lá não
havia imagens a que pudesse dar forma. A desejada imagem de todas as
imagens, a figura da mãe dos homens, ainda lhe não era acessível, levaria
ainda muito tempo a sê-lo. Para que ficaria então a polir anjinhos e a
entalhar eternamente ornamentos?
Por fim, arrancou-se às suas reflexões e dirigiu-se à oficina do mestre.
Entrou silenciosamente e deixou-se ficar à porta, até que Niklaus se
apercebeu da sua presença e o interpelou.
– O que se passa, Goldmund?
– A minha figura está pronta. Talvez queirais ir lá vê-la, antes do almoço.
– Com certeza, vou já.
Foram e deixaram a porta aberta, para que a claridade pudesse entrar. Há
bastante tempo que Niklaus não via a figura, pois quisera deixar Goldmund
trabalhar à vontade. Agora observava-a com silenciosa atenção, o seu rosto
circunspecto desanuviou-se, tornou-se belo, e Goldmund viu brilharem de
satisfação os severos olhos azuis.
– Está bom – disse o mestre. – Está muito bom. É a tua prova final,
Goldmund, já aprendeste o que tinhas a aprender. Vou mostrar a tua figura
aos membros da corporação e exigir-
-lhes que te deem por ela a carta de mestre. Mereceste-a.
A Goldmund pouco lhe importava a corporação, mas sabia que as
palavras do mestre eram um sinal de grande reconhecimento, e alegrou-se.
O mestre voltou a contornar lentamente a figura do evangelista e
constatou com um suspiro:
– Esta figura está cheia de devoção e clareza. Sente-se a seriedade, mas
está repleta de felicidade e paz. Podia pensar-se que foi feita por alguém
cuja alma é luminosa e serena.
– Bem sabeis que não me reproduzi a mim próprio nesta figura, mas ao
meu melhor amigo. Foi ele, e não eu, que trouxe a clareza e a serenidade
para a imagem. No fundo, nem sequer fui eu que fiz a imagem, ele é que ma
transmitiu pela via da alma.
– É possível – concordou Niklaus. – A origem de obras como esta é um
mistério. Não sou propriamente modesto, mas devo dizer-te que já fiz
muitas obras bem inferiores a esta tua, não em conhecimento e esmero, mas
na capacidade de transmitir a verdade. De resto, tu próprio deves saber que
não é possível repetir uma obra como esta. É um mistério.
– É verdade – admitiu Goldmund –, quando ficou pronta e me pus a
observá-la, pensei cá para mim: nunca mais hei de conseguir fazer algo
assim. E por isso, mestre, acho que me vou pôr dentro em breve novamente
a caminho.
Niklaus olhou-o com um ar surpreso e contrafeito, os seus olhos tinham
adquirido novamente a habitual expressão severa.
– Ainda vamos falar sobre isso. Para ti, o trabalho a sério deveria agora
começar, não me parece que seja o momento adequado para te pores a
andar. Mas por hoje estás livre e és meu convidado ao almoço.
Goldmund compareceu ao meio-dia, penteado, lavado e com as suas
roupas domingueiras. Desta vez estava já consciente do privilégio que
significava ter sido convidado pelo mestre. No entanto, quando subiu as
escadas que iam dar ao vestíbulo repleto de figuras, não se sentiu, nem
pouco mais ou menos, tão reverente e cheio de ansiosa alegria como
daqueloutra vez em que entrara naqueles aposentos belos e tranquilos com o
coração aos saltos.
Também Lisbeth surgiu ataviada e com um colar de pedras preciosas ao
pescoço; à mesa, para além das carpas e do vinho, houve ainda uma
surpresa: o mestre ofereceu-lhe uma bolsa de couro contendo duas moedas
de ouro, o salário de Goldmund pela obra concluída.
Desta vez não se limitou a acompanhar a refeição calado, enquanto pai e
filha conversavam. Ambos falaram com ele e ergueram-se os copos e
fizeram-se saúdes. Goldmund aproveitou a oportunidade para observar
atentamente a bela rapariga de rosto distinto e algo arrogante, e o seu olhar
nem por um instante escondeu o quanto ela lhe agradava. Ela mostrou-se
atenciosa para com ele, mas Goldmund ficou dececionado ao ver que ela
não corava nem parecia animar-se na sua presença. Uma vez mais, desejou
ardentemente conseguir que aquele rosto inexpressivo falasse, quis forçá-lo
a revelar-lhe o seu segredo.
Depois do almoço agradeceu, demorou-se ainda um pouco no vestíbulo,
a ver as esculturas, e vagueou toda a tarde pela cidade, indeciso, ocioso e
inquieto. Acabara de ser distinguido pelo mestre para além de todas as
expectativas. Porque não se sentia então satisfeito? Porque reagia com
indiferença perante todas aquelas honrarias?
Seguindo uma súbita inspiração, alugou um cavalo e dirigiu-se ao
convento onde pela primeira vez vira uma obra do mestre e ouvira o seu
nome. Não tinha entretanto decorrido mais que um par de anos, e, no
entanto, parecia-lhe ter sido há séculos. Na igreja do convento procurou e
contemplou a madona, que o deliciou e emocionou como no primeiro dia;
era mais bela do que o seu S. João, comparável a ele em força interior e
mistério, mas superior no virtuosismo, no modo como as linhas e as massas
se organizavam numa imponderabilidade livre e como que suspensa. Podia
agora reconhecer naquele trabalho pormenores que só um artista consegue
ver: ligeiros e delicados movimentos na roupagem, soluções ousadas na
modelação das longas mãos e dos dedos, um aproveitamento sensível das
irregularidades e dos condicionalismos na estrutura da madeira – todos
aqueles preciosismos nada significam em comparação com o todo, com a
simplicidade e a profundidade da visão, mas estavam lá, manifestavam-se e
não deixavam de ser muito belos; mesmo para qualquer artista abençoado,
só quem dominasse a fundo o seu ofício seria capaz de os materializar. Para
conseguir fazer algo assim não bastava cultivar imagens na alma, era
também necessário ter educado e exercitado olhos e mãos até à exaustão.
Talvez valesse afinal a pena dedicar a vida inteira ao serviço da arte,
sacrificando a liberdade e as grandes vivências pessoais, só para um dia
poder criar uma obra tão bela, algo que não pudesse ser apenas sentido e
interiorizado com amor, mas que pudesse ser também concretizado com
segura mestria até ao mais ínfimo pormenor. Essa era a grande interrogação.
Goldmund regressou noite alta à cidade, no cavalo estafado. Encontrou
uma taverna ainda aberta, onde comeu pão e bebeu vinho; depois,
dominado por um grande desassossego, cheio de perguntas e dúvidas, subiu
para o seu quarto junto ao mercado do peixe.
XII

No dia seguinte, Goldmund não conseguiu decidir-se a ir à oficina.


Vagueou pela cidade, tal como nos outros dias de tédio e indecisão. Ficou a
ver as mulheres e as criadas irem para o mercado, demorou-se sobretudo
junto à fonte do mercado do peixe, a ver os peixeiros e as suas rudes
mulheres apregoarem e gabarem o seu produto, vendo-os tirar das celhas os
peixes húmidos e prateados para os mostrarem aos clientes, observando o
modo como eles se entregavam à morte, por vezes quase com apatia, as
bocas dolorosamente escancaradas, os olhos dourados fixos no pavor, ou se
debatiam e espadanavam, enfurecidos e desesperados. Como lhe sucedia
frequentemente, sentiu-se então dominado por uma grande compaixão para
com aqueles animais e por uma triste aversão para com os humanos; porque
seriam eles tão broncos e brutais e tão inacreditavelmente estúpidos e
toscos? Porque seria que ninguém conseguia ver o que ele via, nem os
peixeiros nem os seus clientes cegos pelo regateio? Como era possível que
não vissem aqueles olhos esgazeados por um medo mortal, aquelas caudas a
espadanar furiosamente, aquela horrível, desesperada e inútil agonia? Como
era possível que não sentissem a insuportável metamorfose de uns animais
misteriosos e maravilhosamente belos, o leve tremor do derradeiro arquejo
percorrendo-lhes os lombos, até que se quedavam mortos, imóveis,
estendidos e extintos, lamentáveis pedaços de carne para a mesa dos
divertidos glutões. Mas nada via, aquela gentalha; nada sabiam e de nada se
apercebiam, nada lhes tocava o coração! Quer se tratasse de um pobre e
belo animal, que ali estrebuchava e morria diante dos seus olhos, ou do
esforço de um mestre, que na expressão do rosto de uma figura santa
tornava visível toda a esperança, toda a nobreza, todo o sofrimento e todo o
obscuro e premente medo da existência humana – nunca eles viam fosse o
que fosse, nada os comovia! Transitavam pelo mundo, satisfeitos ou
atarefados, afadigados com importantes afazeres, sempre apressados, a
berrarem, a rirem e a arrotarem uns para os outros, sempre numa grande
algazarra, sempre com uma piada a propósito, prontos a engalfinharem-se
por dá cá aquela palha, e todos se sentiam bem, tudo estava em ordem e eles
altamente contentes e felizes, consigo próprios e com a vida. Uns javardos
era o que eles eram, não, muito mais imundos e sórdidos do que os porcos!
Mas era verdade, também ele se confundira muitas vezes com a gentalha,
também ele se sentira satisfeito e igual a eles; correra atrás das raparigas,
comera a rir e sem repulsa peixe assado do prato. Mas sempre o
abandonara, por vezes repentinamente, como que por encanto, a alegria e a
tranquilidade, sempre aquele vão desvario o tinha deixado, aquela anafada
autocomplacência, aquela presunção e podre paz de espírito, e voltava para
a solidão e para os tempos de reflexão, para a errância e para a
contemplação do sofrimento, da morte, da contingência de toda a azáfama
humana, para o fascínio do abismo. Por vezes, acontecia-lhe então, no meio
de toda aquela feroz obsessão pelo absurdo e o terrível, sentir subitamente
desabrochar uma nova alegria, um intenso estado de enamoramento, o
prazer de cantar uma bonita canção ou de desenhar; ou então, ao aspirar o
perfume de uma flor ou quando brincava com um gato, via que regressara
dentro de si o acordo infantil com a vida. Também agora ele iria regressar,
amanhã ou depois de amanhã, e o mundo voltaria a ser bom e excelente.
Até que o outro lado voltasse, a tristeza, as soturnas cogitações, o amor
desesperado e opressivo pelos peixes agonizantes, pelo murchar das flores,
o espanto e a comoção perante o obsceno esbanjar da vida, perante o
embasbacamento e a cegueira das gentes. Nessas alturas tinha sempre de
pensar com uma espécie de curiosidade tortuosa e uma angústia profunda
em Viktor, o vagante a quem espetara uma faca por entre as costelas e que
deixara estendido na caruma, numa poça de sangue; voltavam então as
fantasias obcecadas sobre o que restaria dele, se os bichos o teriam já
devorado completamente, sobre se restaria ainda algo dele. Sim, decerto
que os ossos ainda restavam, e talvez umas mãos-cheias de pelos. E os
ossos – que seria feito deles? Quantos anos ou décadas seriam precisos para
que também eles perdessem a forma e se tornassem pó?
Ainda hoje, enquanto observava com compaixão os peixes e com asco as
pessoas no mercado, angustiado e amargamente revoltado contra o mundo e
contra si próprio, não pudera deixar de pensar em Viktor. Teria sido
encontrado e sepultado? E se isso tivesse acontecido – ter-se-ia já toda a sua
carne desfeito e soltado dos ossos, estaria já tudo decomposto e devorado
pelos vermes? Teria ainda cabelos colados ao crânio e sobrancelhas sobre
os buracos das órbitas? E da sua vida, que tão cheia tinha sido de aventuras
e peripécias e repleta das fantásticas folias das suas espalhafatosas farsas e
caturrices – o que restaria dela? Perduraria daquela existência – no fundo,
invulgar – algo para além da meia dúzia de recordações dispersas que o seu
assassino conservava? Haveria ainda um Viktor nos sonhos das mulheres
que ele amara? Não, tudo deveria ter-se esgotado e dissipado. E o mesmo
sucedia com todos e com tudo, tudo floria para logo murchar; a seguir vinha
a neve, que tudo cobria. Quanto entusiasmo não tinha também florescido
nele próprio, quando há alguns anos chegara àquela cidade, cheio de desejo
de conhecer a arte, cheio de uma acanhada e profunda admiração pelo
mestre Niklaus! Algo perdurara? Nada, nem mais nem menos do que o que
restava do pobre figurão e meliante Viktor! Se na altura alguém lhe tivesse
dito que o mestre Niklaus iria considerá-lo seu igual e se prontificaria a
interceder junto da corporação para que lhe concedessem a carta de mestre,
teria julgado ter encontrado toda a felicidade do mundo. E agora tudo não
passava de uma flor murcha, de algo estéril e triste.
Subitamente, enquanto pensava em tudo aquilo, Goldmund teve uma
visão. Tratou-se apenas de um instante, do pulsar de um lampejo: viu o
rosto da grande mãe debruçada sobre o abismo da vida, a olhar com um
sorriso sonhador e uma expressão bela e assustadora de aceitação para as
nascenças e as mortes, para as flores e as rumorosas folhas outonais,
sorrindo para a arte e a putrefação.
Tudo tinha para ela o mesmo valor, sobre tudo e todos pairava como uma
lua o seu sorriso assustador; tão caro lhe era o meditativo e melancólico
Goldmund como as carpas moribundas nas lajes do mercado do peixe, tão
cara a altiva e fria virgem Lisbeth como os ossos espelhados pelo solo da
floresta daquele Viktor que um dia tanto desejara roubar-lhe o seu ducado.
Mas já o lampejo se extinguira, já o misterioso rosto materno se
dissipara. O seu baço fulgor continuou, contudo, a pulsar fundo na alma de
Goldmund e uma vaga de vida, de dor e sufocante nostalgia inundou-lhe o
coração. Não, não, ele recusava-se a aceitar a satisfação e a saciedade dos
outros, dos burgueses compradores de peixe, dos atarefados e anafados.
Que o diabo os levasse a todos! Oh, aquele rosto pálido palpitante, aquela
boca cheia, madura e estival, sobre cujos lábios pesados perpassara como
vento e luar aquele sorriso indiferente e mortal!
Goldmund voltou a casa do mestre por volta do meio-dia e esperou até
ouvir Niklaus deixar o trabalho e lavar as mãos. Só então foi ao seu
encontro.
– Deixai-me dizer-vos umas palavras, mestre, pode mesmo ser enquanto
lavais as mãos e vestis o casaco. Ando sequioso por um trago de verdade e
gostaria de dizer-vos algo que talvez só agora possa dizer-vos. Sinto
necessidade de falar com uma pessoa, e vós sois o único que talvez me
possa compreender. Não estou a falar com o homem que tem uma oficina
famosa e que recebe de municípios e conventos tantas honrosas
encomendas, que tem a seu soldo dois ajudantes e possui uma casa rica e
bela. Estou a falar com o mestre que fez a madona do convento, a imagem
mais bela que conheço. Amei e venerei esse homem, tornar-me igual a ele
pareceu-me o mais elevado objetivo a que me podia propor na Terra. Fiz
agora um trabalho, o São João, e não consegui fazê-lo tão perfeito como a
vossa madona, mas foi o que pôde ser. Uma outra obra não posso fazer, não
existe mais nenhuma que se me imponha e force a dar-lhe forma. Ou, por
outra, existe, sim, uma outra imagem remota e sagrada, que um dia irei ter
de esculpir, mas que por agora ainda não posso concretizar. Para a
conseguir fazer vou ter ainda de passar por muitas experiências e viver
muito mais. Talvez o consiga daqui a três, quatro anos, ou daqui a dez, ou
mais tarde ainda, ou nunca. Até lá, porém, mestre, não quero continuar no
ofício a pintar figuras e a entalhar púlpitos e a viver a vida de um artífice na
oficina e a ganhar dinheiro para me tornar aquilo que todos os artífices são;
não, não é isso que eu desejo! O que eu quero é viver e vadiar, sentir o
verão e o inverno, olhar para o mundo, provar da sua beleza e do seu horror.
Quero sentir fome e sede e esquecer-me e libertar-me de tudo aquilo que
aqui vivi e convosco aprendi. Gostaria muito de um dia conseguir produzir
algo de tão belo e comovedor como a vossa madona; mas tornar-me igual a
vós e viver como vós viveis, isso não quero!
O mestre tinha lavado e secado as mãos; voltou-se e olhou para
Goldmund. O seu semblante era severo, mas não parecia zangado.
– Falaste – disse –, e eu escutei-te. Por agora, basta. Não te
espero para o trabalho, embora haja muito que fazer. Não te vejo como
ajudante, tu precisas de liberdade. Gostaria de conversar contigo sobre
muitas coisas, meu caro Goldmund; mas agora não, daqui por uns dias;
entretanto, podes passar o tempo como muito bem te aprouver. Olha, rapaz,
sou muito mais velho do que tu e tenho alguma experiência. Não partilho
das tuas ideias, mas compreendo-te, entendo o que queres dizer. Daqui a
uns dias mando chamar-te. Falaremos então sobre o teu futuro e dos planos
que tenho a teu respeito. Até lá, tem paciência! Sei perfeitamente o que se
sente quando se termina uma obra que se levou tanto a peito, conheço esse
vazio. Também ele passa, podes crer.
Goldmund foi-se embora descontente. O mestre queria o seu bem, mas
como poderia ajudá-lo?
Conhecia um sítio na margem do rio onde a água não era funda e corria
sobre um leito cheio de lixo e entulho, onde iam parar todos os desperdícios
do bairro dos pescadores na periferia. Foi até lá, sentou-se no muro da
margem e pôs-se a olhar para a água. Amava a água, todas as águas o
fascinavam. Olhando dali, através das fiadas cristalinas da corrente, para o
fundo escuro e vago, podiam ver-se, aqui e além, coisas indistintas e
tentadoras reluzirem e cintilarem com um brilho dourado e baço: o caco de
um prato velho, talvez, ou uma foice torcida e deitada fora, ou um seixo liso
e brilhante, ou fragmentos de tijolos vidrados; por vezes podiam também
ser peixes enterrados no lodo, uma nédia lota-do-rio ou uma pardelha que se
reviravam na lama do leito, captando por um instante um raio de luz nas
barbatanas claras do ventre e nas escamas – nunca se conseguia reconhecer
ao certo o que verdadeiramente era, mas aquele breve cintilar meio velado
de tesouros dourados submersos no leito húmido e negro era sempre
fascinantemente belo e tentador. Tal como aquele pequeno mistério
aquático, gostava de pensar, eram todos os verdadeiros mistérios, todas as
imagens genuínas geradas na matriz da alma: não tinham contornos, não
tinham forma, eram percetíveis apenas enquanto remota e bela
eventualidade, surgiam sempre veladas e ambíguas. Tal como se podia
entrever ali, na bruma do verde leito do rio,
o brilho surpreendente de algo dourado ou prateado pulsar por instantes,
pouco mais que nada e, não obstante, tão cheio de surpreendentes
promessas, também o perfil perdido de uma pessoa, entrevisto meio por
detrás, podia, por vezes, pronunciar algo infinitamente belo ou
inacreditavelmente triste; ou então: o modo como uma lanterna pendia e
balouçava por baixo do eixo de um carro de bois, à noite, projetando nos
muros as sombras gigantescas das rodas com os seus raios, podia também
evocar, durante um breve minuto, um tal caudal de imagens,
acontecimentos e histórias que em nada ficavam a dever à obra de Virgílio.
Era dessa mesma substância irreal e mágica que eram urdidos os sonhos
durante a noite, um nada que em si continha todas as imagens do mundo,
uma água em cujos cristais habitavam, enquanto sempre latentes
possibilidades, as formas de todas as pessoas, animais, anjos e demónios.
De novo mergulhado naquele jogo, Goldmund concentrou-
-se na corrente do rio, viu lá no fundo lampejarem reflexos indistintos,
imaginou coroas reais e ombros femininos desnudados. Lembrou-se então
de que, certo dia, em Mariabronn, também fantasiara, a partir dos caracteres
latinos e gregos, jogos de formas e metamorfoses semelhantes. Não tinha
até falado nisso a Narciso? Há quanto tempo já isso acontecera, há quantos
séculos? Narciso! Para o poder ver agora, para conversar com ele durante
uma hora, segurar a sua mão, escutar-lhe a voz serena e inteligente, de bom
grado daria os seus dois ducados de ouro.
Porque seriam tão belas aquelas coisas, aquela cintilação dourada
debaixo de água, aquelas sombras e intuições, todas aquelas aparições
irreais e feéricas – como podiam ser tão inexpli-
cavelmente belas e gratificantes, apesar de serem precisamente o contrário
da beleza que um artista podia produzir? Se a beleza daquelas matérias
inefáveis era carente de forma e residia tão-só no mistério, nas obras de arte
ocorria precisamente o contrário: elas consistiam apenas e só na forma, a
sua linguagem era absolutamente clara. Nada era mais implacavelmente
claro e nítido do que as linhas de uma cabeça ou de uns lábios desenhados
ou esculpidos na madeira. Com a mesma exatidão teria ele conseguido
desenhar o lábio inferior ou a pálpebra da madona do mestre Niklaus; nada
ali era indeterminado, ilusório ou
difuso.
Goldmund pôs-se a refletir apaixonadamente no assunto. Não entendia
como a forma definida e elaborada podia exercer sobre a alma um efeito
idêntico ao da mais intangível e fugaz aparição. Um aspeto tornou-se-lhe
entretanto claro naquele exercício de reflexão: percebia agora porque lhe
não agradavam tanto ou desagradavam completamente várias obras de arte
impecáveis ou simplesmente bem elaboradas, porque, apesar de uma certa
beleza evidente, elas entediavam-no e irritavam tanto que quase as chegava
a odiar. As oficinas, as igrejas e os palácios estavam cheios dessas obras
nefastas, ele próprio colaborara em algumas delas. Elas eram tão
dececionantes porque acordavam nele o desejo do sublime sem o
conseguirem satisfazer, porque lhes faltava o principal: o mistério. Era
precisamente isso que o sonho e a obra de arte mais transcendente tinham
em comum: o mistério.
E Goldmund pensou ainda: um mistério é também aquilo que eu amo e
persigo, aquilo que já por mais de uma vez entrevi e que como artista
gostaria um dia de concretizar e representar: a imagem da grande e fecunda
mãe, a magna mater, e o seu mistério não consiste, como em qualquer outra
figura, neste ou naquele pormenor, no facto de ser particularmente
avantajada ou magra, rude ou delicada, robusta ou graciosa, mas antes na
capacidade de integrar em si os maiores contrastes do mundo. As mais
inconciliáveis oposições conseguem pacificar-se e coabitar na sua imagem:
nascimento e morte, bondade e crueldade, vida e destruição. Se tivesse
apenas inventado a sua figura, se ela não passasse de um mero jogo
intelectual ou do ambicioso desejo de um artista, então não valeria a pena,
podia admitir a sua falta e esquecê-la. Mas a grande mãe não é uma
abstração, pois eu não a pensei, vi-a! Ela existe em mim, já muitas vezes a
encontrei. Pressentia-a pela primeira vez quando, naquela aldeia, numa
noite de inverno, tive de alumiar o parto de uma camponesa: foi nessa altura
que a imagem começou a viver em mim. Muitas vezes, mantém-se distante
e perdida durante muito tempo; mas. de repente, ei-la que lampeja
novamente, como hoje.
A imagem da minha própria mãe, outrora a minha preferida, transformou-se
completamente nesta nova imagem, está nela contida como o caroço numa
cereja.
Goldmund podia agora sentir a sua atual situação, compreender a
ansiedade perante uma decisão. Tal como outrora, quando se despedira de
Narciso e do convento, encontrava-se no início de um percurso importante:
o caminho da mãe. Talvez dela nascesse, um dia, uma imagem formada e
para todos visível, uma obra saída das suas mãos. Talvez fosse esse o
objetivo,
o sentido oculto da sua vida. Talvez; por enquanto não sabia. Mas uma
coisa ele sabia: era bom seguir o apelo da mãe, estar a caminho, ser atraído
e chamado por ela; era bom, a vida era isso. Talvez nunca pudesse dar
forma àquela visão, talvez ela se mantivesse para sempre um sonho, um
pressentimento, uma atração, o cintilar dourado de mistérios sagrados. Em
todo o caso, tinha de a seguir, fora a ela que oferecera o seu destino, era ela
a sua estrela.
E foi assim que sentiu a decisão já muito próxima, tudo estava
esclarecido. A arte era uma coisa belíssima, mas não era uma deusa, nem o
objetivo último, para ele não; não era a arte que ele tinha de seguir, mas o
apelo da mãe. Para que lhe servia apurar ainda mais a destreza manual? O
exemplo do mestre Niklaus mostrava-lhe o resultado dessa porfia. Servia
para obter fama e reconhecimento, dinheiro e uma vida sedentária. E
provocava um estiolar e o definhar da sensibilidade profunda, a única que
tinha acesso ao mistério. Servia para produzir brinquedos bonitos e
preciosos, para a construção de todo o tipo de pomposos altares e púlpitos,
S. Sebastiões e cabeças de anjinhos com lindos cabelos encaracolados, a
quatro táleres a peça. Mas o reflexo dourado no olho de uma carpa e a
penugem maravilhosamente fina e macia no recorte periférico de uma asa
de borboleta eram infinitamente mais belos, vivos e preciosos do que todo
um salão a abarrotar de tais artefactos.
Um rapazinho vinha a descer a rua da margem, trauteando uma canção;
por vezes deixava de cantar para dar uma dentada no grande pedaço de pão
branco que tinha mão. Goldmund viu-o, pediu-lhe um pedaço de pão,
arrancou com os dedos pequenas porções do miolo e formou com ele
bolinhas. Depois debruçou-se sobre o muro e começou a atirar o pão à água.
Viu as bolinhas claras afundarem-se na água escura e serem imediatamente
rodeadas pelos peixes, até desaparecerem numa das bocas vorazes. Uma
após outra, foi atirando à água e vendo desaparecer, muito entretido e feliz
da vida, as bolinhas de pão. Depois sentiu ele próprio fome e foi procurar
uma das suas namoradas, que servia na casa de um talhante e a quem
gostava de chamar «minha senhora das salsichas e dos presuntos».
Costumava chamá-la à janela da cozinha com um assobio combinado e não
se importava nada em receber uma qualquer oferta nutritiva, que guardava
para ir depois comer lá fora, numa das vinhas que cresciam em socalcos
sobre a margem, onde a terra vermelha e rica brilhava fértil sob a folhagem
viçosa dos vinhedos e onde, na primavera, floriam os pequenos jacintos
azuis, cujo perfume evocava tão delicadamente os frutos de caroço.
Mas parecia que hoje o dia era de decisões e tomadas de consciência.
Quando Kathrine assomou à janela e lhe sorriu com aquele seu rosto de
traços fortes e um pouco rudes, no preciso instante em que lhe estendia a
mão para lhe fazer o sinal combinado, lembrou-se, de repente, de todas as
outras vezes em que ali estivera à espera. Com uma espécie de nitidez
indiferente previu então tudo o que iria acontecer nos próximos minutos:
como ela se retiraria, após ter reconhecido o sinal, como iria daí a pouco
aparecer à porta traseira da casa com qualquer coisa do fumeiro na mão,
como aceitaria o presente e em troca a acariciaria e apertaria um pouco,
exatamente como ela esperava – e, de repente, tudo aquilo lhe pareceu
infinitamente estúpido e feio, todo aquele reproduzir mecânico de vivências
já antes vividas e o desempenhar do papel que lhe cabia, o receber o
chouriço, o sentir aquela pressão dos seios fortes contra o seu corpo e o
apertá-los um pouco, à laia de recompensa. De repente, julgou ver naquele
rosto bom e rude da rapariga uma expressão de rotina já sem qualquer
entusiasmo, no seu sorriso amável algo já demasiadas vezes repetido, algo
mecânico e completamente destituído de mistério que não era digno dele.
Deixou a meio o aceno e o sorriso gelou-se-lhe no rosto. Amá-la-ia ainda,
desejá-la-ia ainda verdadeiramente? Não, já ali estivera demasiadas vezes,
demasiadas vezes tinha já visto aquele sorriso sempre igual e correspondido
sem emoção. O que
ainda ontem teria feito sem hesitar estava-lhe hoje subitamente vedado.
Ainda a criadita o olhava, já ele se tinha virado e desaparecera da viela,
decidido a nunca ali aparecer. Outro que lhe apalpasse os seios, outro que
comesse as boas chouriças! De resto, era incrível o que se devorava e
desperdiçava diariamente naquela cidade opulenta e divertida! Como eram
indolentes e esquisitos aqueles burgueses obesos, para cuja satisfação se
abatiam, dia após dia, tantos porcos e vitelas e se pescavam no rio todos
aqueles lindos e pobres peixinhos! E ele próprio – como se tornara ele
próprio mimado e perverso, tão parecido já com todos aqueles burgueses
balofos! Durante uma caminhada, num campo coberto de neve, uma ameixa
ressequida ou um pedaço de côdea de pão duro sabiam mil vezes melhor do
que o festim de uma corporação inteira naquela terra de boa vida. Oh, vida
errante, oh, liberdade, oh, charneca ao luar e rasto de bicho, cautelosamente
entrevisto entre as ervas orvalhadas da manhã cinzenta! Ali na cidade, entre
os sedentários e acomodados, era tudo tão fácil e custava tão pouco, até o
amor! De repente, estava farto de tudo, só lhe dava vontade de vomitar!
Toda aquela vida tinha perdido o sentido para ele, era como um osso sem
tutano. Tudo tinha sido belo e fizera sentido enquanto o mestre fora um
exemplo e Lisbeth uma princesa; depois ainda fora suportável, enquanto
trabalhara no S. João. Agora tudo acabara, o perfume dissipara-se, a flor
murchara. Invadiu-o então como uma vaga o sentimento de fugacidade que
tantas vezes o dilacerava e tantas vezes o arrebatava. Tudo se fanava tão
depressa, tão depressa se esgotava o prazer, e nada mais restava, para além
de ossadas e pó. Não, algo perdurava ainda: a mãe eterna, a ancestral e
sempre jovem mãe com o seu triste e cruel sorriso amoroso. Voltou a vê-la
por instantes: gigantesca, com estrelas na cabeleira, sonhadoramente
sentada à beira do mundo, colhendo distraidamente, quase como se
brincasse, flor após flor, vida após vida, que deixava depois cair lentamente
no abismo sem fundo.
Durante esses dias, enquanto Goldmund vagueava pelas redondezas,
deixando para trás um pedaço de vida que via desbotar-se numa
melancólica embriaguez de despedida, o mestre Niklaus não se poupou a
esforços para lhe tratar do futuro e tornar para sempre sedentário aquele seu
inquieto hóspede. Intercedeu junto da corporação para que lhe enviassem a
carta de mestria e planeou ligá-lo a si de uma forma duradoura, já não como
subordinado mas como colaborador; Goldmund passaria a combinar e a
executar com ele todas as grandes encomendas e ficaria com uma
participação nos respetivos lucros. O plano podia ser arriscado, também por
causa de Lisbeth, pois certamente que o rapaz não tardaria a tornar-se seu
genro. Mas uma figura como o S. João nem o melhor dos ajudantes que
jamais empregara teria conseguido fazer; ele próprio estava a ficar cada vez
mais velho e começavam-lhe a faltar as ideias e a força criadora – e não
queria ver a sua afamada oficina reduzida a um mero negócio de artífice.
Não iria ser fácil lidar com aquele Goldmund, mas era preciso tentar.
A estes cálculos e cuidados se entregava o mestre. Iria tratar de renovar e
aumentar a oficina das traseiras para Goldmund e deixava-lhe o quarto do
sótão; depois também era preciso vesti-lo convenientemente para a
cerimónia da sua admissão na corporação. Cuidadosamente, sondou
também a opinião de Lisbeth, que desde aquele almoço já esperava algo
semelhante. Como calculara, ela não teve nada a objetar. Se ele se tornasse
sedentário e mestre, por ela tudo bem. Também por esse lado não havia,
portanto, impedimentos. E se ele e o ofício ainda não conseguissem domar
completamente aquele cigano, Lisbeth encarregar-se-ia de o fazer.
Foi assim tudo previsto e preparado e o isco preso à ponta da laçada.
Finalmente, num belo dia, Goldmund, que entretanto deixara de aparecer,
foi mandado chamar e convidado novamente para o almoço. Ele
apresentou-se de novo escovado e penteado, tomou novamente lugar
naquela sala talvez demasiado solene, brindou uma vez mais com o mestre
e a filha do mestre, até que esta se retirou e Niklaus passou o expor o
grande plano e a proposta.
– Percebeste o que te quis dizer – acrescentou perante os surpreendentes
projetos –, e não preciso dizer-te que, provavelmente, nunca um rapaz
chegou tão rapidamente a mestre, sem sequer ter cumprido o período de
aprendizagem estipulado. Chegaste ao calorzinho do ninho, tens a vida
feita, Goldmund.
Goldmund fitou-o com um olhar perplexo e angustiado e afastou da
frente a taça ainda meio cheia. No fundo, esperava que Niklaus o
repreendesse vagamente por aquela folga de vários dias e depois lhe
propusesse continuar a trabalhar para ele como ajudante. E agora acontecera
aquilo. Entristecia-o e envergonhava-o ter de estar ali sentado à frente
daquele homem. Não encontrou logo resposta.
Já algo enervado e desapontado por a sua generosa proposta não ter sido
imediatamente recebida com alegria e humildade, o mestre levantou-se e
disse:
– Estou a ver que a minha proposta te apanhou de surpresa, talvez
queiras pensar primeiro no assunto. Confesso que estou um pouco
desiludido, pensei que te dava uma grande alegria. Mas está à vontade,
pondera o tempo que quiseres.
– Mestre – começou Goldmund, lutando com as palavras –,
não me queirais mal! Agradeço-vos do fundo do coração a vossa
benevolência e agradeço-vos ainda mais pela paciência com que me haveis
tratado como aprendiz. Nunca esquecerei a dívida que contraí para
convosco. Mas não preciso de tempo para ponderar, há muito que a minha
decisão está tomada.
– E decidiste o quê?
– Tomei a decisão ainda antes de aceitar o vosso convite para aqui vir e
de ter conhecimento da vossa honrosa proposta. Não vou ficar por cá, quero
voltar à vida errante.
Niklaus empalideceu e fitou-o com uma expressão sombria.
– Mestre – implorou Goldmund –, acreditai que não é minha intenção
ofender-vos! Comuniquei-vos a minha decisão. Não há volta a dar, tenho de
partir, tenho de viajar, quero voltar à liberdade. Permiti que vos agradeça
novamente do fundo do coração e separemo-nos como amigos.
Estendeu-lhe a mão, sentia-se prestes a chorar. Niklaus não lhe apertou a
mão, o seu rosto estava lívido e começou a andar de um lado para o outro
na sala, muito agitado, com passadas cada vez mais rápidas, que ressoavam
de fúria contida. Goldmund nunca o vira assim.
De repente, Niklaus estacou e, controlando-se com um tremendo esforço,
atirou por entre dentes, sem olhar para Goldmund:
– Bom, vai então! Mas vai já! Que eu não volte a ver-te à minha frente!
Que não tenha de fazer ou dizer algo de que mais tarde me venha a
arrepender. Vai!
Goldmund voltou a estender-lhe a mão. O mestre fez como se quisesse
cuspir-lhe na mão estendida. Goldmund virou-lhe as costas, agora também
ele já terrivelmente pálido, saiu silenciosamente da sala, pôs a boina na
cabeça e, ao descer as escadas, acompanhou com a palma da mão as
cabeças esculpidas do corrimão. Ainda ficou algum tempo lá em baixo, na
oficina do pátio, a despedir-se do seu S. João, e saiu depressa daquela casa,
com uma mágoa ainda mais profunda do que aquela que sentira outrora,
quando deixara o castelo e a pobre Lydia.
Pelo menos fora tudo muito rápido! Pelo menos tinham--se evitado
ofensas inúteis! Era esse o único consolo que lhe restava quando transpôs o
umbral da porta e se viu, de repente, confrontado com uma viela e uma
cidade que o observavam com aquela expressão transfigurada e estranha
que as coisas familiares adquirem quando o nosso coração se despediu
delas. Olhou para a porta – era uma entrada para uma casa estranha e para
ele interdita.
Assim que chegou ao quarto, começou logo com os preparativos para a
partida. Claro que não havia grandes preparativos a fazer, para além de
despedir-se. Tinha um quadro na parede que ele próprio pintara, uma suave
madona, e havia por todo o lado objetos que lhe pertenciam: um chapéu
domingueiro, um par de sapatos de dança, um rolo de desenhos, um
pequeno alaúde, umas figurinhas de barro que modelara e algumas
recordações das namoradas: um ramalhete de flores artificiais, um copo de
vidro cor de rubi, um biscoito com especiarias já seco em forma de coração
e outras bagatelas, cada uma com o seu significado e a sua história, a que
ele ganhara estima, mas que agora, nas circunstâncias atuais, já não
passavam de trastes incómodos, uma vez que não os podia levar consigo.
Pelo menos conseguiu negociar com o dono da casa, trocando o copo cor de
rubi por uma faca de mato boa e forte, que afiou na pedra de amolar do
pátio; esmigalhou o biscoito e deu-o a comer às galinhas do quintal dos
vizinhos; ofereceu à dona da casa a imagem da madona e recebeu também
em troca um presente útil, um velho alforge de couro e abundantes
mantimentos para a viagem. Enfiou no alforge algumas camisas que
possuía, uns quantos desenhos mais pequenos, enrolados à volta de um
pedaço de cabo de vassoura, e acabou de enchê-lo com os mantimentos.
Tudo o resto teve de deixar no quarto.
Havia na cidade várias mulheres que teriam merecido que ele se
despedisse delas; ainda na véspera dormira com uma delas, sem nada lhe
dizer sobre os seus planos. Era o costume, havia sempre algo a enredar-se-
lhe nas pernas quando queria pôr-se a andar. Não se devia tomar isso a
peito. As únicas pessoas de quem se despediu foram os donos da casa. Fê-lo
ao princípio da noite, para poder partir de madrugada.
Contudo, houve quem se levantasse para o convidar a tomar umas sopas
de leite na cozinha, quando de madrugada se preparava para sair
silenciosamente. Foi a filha dos donos da casa, uma menina de quinze anos,
uma criatura silenciosa e adoentada, com uns olhos bonitos mas com um
defeito na anca que a fazia coxear. Chamava-se Marie. Serviu-lhe o pão e o
leite quente na cozinha com um ar fatigado e pálida, mas cuidadosamente
vestida e penteada. Parecia muito triste por ele se ir embora. Goldmund
agradeceu-lhe e, comovido, despediu-se, beijando-lhe os lábios finos. Ela
recebeu o beijo de uma forma reverente, de olhos fechados.

XIII
Nos primeiros tempos da sua nova errância, na vertigem sôfrega da
liberdade recuperada, Goldmund teve de reaprender a viver a vida nómada
e intemporal dos vagantes. Sem ninguém a quem obedecer, dependentes
apenas do tempo e das estações do ano, sem objetivos traçados à sua frente,
sem um teto por cima da cabeça, nada possuindo e abertos a todos os
acasos, os vagabundos vivem a sua vida infantil e corajosa, uma vida frugal
e forte. São eles os verdadeiros filhos do Adão expulso do Paraíso e os
irmãos dos bichos inocentes. Da mão celestial recebem, hora após hora, o
que lhes é dado: sol, chuva, nevoeiro, neve, calor e frio, bem-estar e
privações; para eles não há tempo nem história, nem ambição nem aqueles
estranhos ídolos do desenvolvimento e do progresso, em que os
proprietários de casas tão desesperadamente creem. Um vagabundo pode
ser delicado ou rude, hábil ou desajeitado, corajoso ou medroso, mas, no
fundo do coração, há de manter-se sempre uma criança, é no dia primordial
que ele vive, anterior ao início da história do mundo, e a sua vida será
sempre comandada por uns quantos instintos e necessidades elementares.
Ele pode ser inteligente ou tolo, pode ter um conhecimento profundo da
fragilidade e da fugacidade de toda a existência e de como todos os seres
vivos transportam, inquietados pelo medo, a sua ínfima porção de sangue
quente através do gelo dos espaços siderais, ou pode limitar-se a seguir os
ditames do seu pobre estômago infantil e sôfrego – mas sempre há de
permanecer o contraente e inimigo mortal do proprietário e sedentário, que
o odeia, despreza e teme, pois se há algo que não admite é que lhe recordem
tudo isso: a precariedade de toda a existência, o contínuo murchar de toda a
vida, a morte gélida e implacável que nos rodeia e preenche o Universo.
A puerilidade da vida do vagabundo, a sua ascendência materna, a sua
renúncia à lei e ao espírito, a sua entrega fatalista e a secreta e permanente
proximidade da morte há muito que tinham dominado e moldado
profundamente a alma de Goldmund. Como, além disso, o espírito e a
vontade continuavam vivos dentro dele, como era também um artista, a sua
vida era rica e difícil, pois é indesmentível que só através da cisão e da
contradição a existência se torna rica e fecunda. Que seria da sen-
satez e da temperança sem o conhecimento da embriaguez? Que seria o
gozo dos sentidos se a morte o não espreitasse, emboscada? E o que seria
do amor sem a eterna e mortal hostilidade dos sexos?
O verão e o outono declinaram, Goldmund arrastou-se penosamente
pelos meses mais severos, inebriado atravessou a doce primavera
perfumada, as estações do ano sucediam-se tão velozmente, tão
rapidamente declinava o sol alto do estio! Os anos foram passando, um após
outro, e parecia que Goldmund se esquecera já de que havia no mundo
outras coisas para além da fome e do amor e daquela silenciosa e
inquietante urgência das estações; parecia que se tinha afundado por
completo num primitivo mundo materno dos instintos. Nos sonhos, porém,
ou quando parava para descansar e pensar, o olhar espraiando-se sobre os
vales que floresciam e murchavam, voltava a manifestar-se o artista
observador e contemplativo, acicatado pelo desejo dilacerante de exorcizar
através do trabalho do espírito toda aquela bela e absurda deriva da vida,
transformando-a em sentido.
Um dia, Goldmund, que desde a sangrenta aventura com Viktor preferia
viajar sozinho, encontrou um companheiro que quase impercetivelmente se
juntou a ele e do qual demorou bastante tempo a livrar-se. No entanto, ele
em nada se parecia com Viktor; era um vagante ainda jovem chamado
Robert, que usava o hábito e o chapéu do peregrino e era natural da região
do lago Constança. Filho de um artesão, aprendera durante algum tempo na
escola dos monges de Sankt Gallen, mas já desde criança se lhe metera na
cabeça que queria ir em peregrinação a Roma e, sem nunca perder de vista
esse plano longamente acalentado, aproveitou a primeira oportunidade que
se lhe deparou para o concretizar: com a morte do pai, em cuja oficina de
carpinteiro trabalhava, o caminho ficou livre. Mal o velho foi a enterrar,
Robert explicou à mãe e à irmã que nada o impediria de iniciar
imediatamente a peregrinação a Roma, para satisfazer os seus anseios de
viagem e expiar os seus pecados e os do pai. Em vão ambas se lamentaram,
em vão o insultaram, Robert manteve-se obstinado e, em vez de cuidar das
duas mulheres, pôs-se a caminho, sem a bênção da mãe e sob uma saraivada
de imprecações que a irmã lhe atirou. O que o movia era sobretudo o prazer
do andarilho, aliado a uma espécie de devoção superficial, uma propensão
para permanecer nas proximidades dos locais eclesiásticos e das atividades
litúrgicas. Fascinavam-no os batismos, os funerais, missas, incenso e as
chamas das velas. Sabia um pouco de latim, porém, não era erudição o que
a sua alma infantil ambicionava, mas antes contemplação e silenciosa
exaltação sob a sombra das abóbadas das igrejas. Em criança entregara-se
com paixão ao serviço de sacristão. Sem o tomar muito a sério, Goldmund
não deixava de gostar dele; sentia-se semelhante a ele por partilharem
ambos aquela atração compulsiva pela vida errante e pela aventura. Robert
pusera-se pois a caminho, satisfeito da vida, e chegara de facto a Roma;
gozara da hospitalidade de inúmeros conventos e paróquias, contemplara as
montanhas e o Sul e sentira-se muitíssimo bem entre todas aquelas igrejas e
eventos religiosos; assistira a centenas de missas, rezara e recebera os
sacramentos nos locais mais sagrados e famosos e inspirara mais incenso do
que o que teria sido necessário para expiar os seus modestos pecados
juvenis e os do progenitor. Andou por essa vida durante um ano ou mais,
mas quando, finalmente, voltou à casinha paterna, não foi propriamente
acolhido como o filho pródigo; pelo contrário, a irmã tinha-se entretanto
apoderado dos direitos e deveres do chefe de família, empregara um
diligente aprendiz de carpinteiro, que logo desposara, e governava a casa e
a oficina tão completamente que o regressado não tardou a sentir-se
dispensável e ninguém o tentou demover quando, pouco tempo decorrido,
voltou a falar da partida e das viagens. Ele também não levou isso a mal,
recebeu da mãe umas parcas economias, envergou novamente o traje dos
romeiros e iniciou uma nova peregrinação, desta vez sem destino, através
do sacro império, feito vagabundo semieclesiástico. Tilintavam-lhe das
vestes cada vez mais medalhas de cobre e rosários bentos comprados nos
lugares santos.
Foi assim que encontrou Goldmund, com quem partilhou uma jornada;
os dois trocaram impressões e lembranças de viagens, perderam-se de vista
na cidadezinha seguinte, voltaram a encontrar-se mais tarde, aqui e ali, até
que, finalmente, Robert se juntou a ele, passando a acompanhá-lo sempre e
tornando-se um companheiro de viagem tolerante e prestável. Afeiçoou-se
muito a Goldmund e procurava cativá-lo com pequenos serviços; admirava
os seus conhecimentos, a sua bravura, o seu espírito, e amava a sua saúde, a
sua força e a sua franqueza. Habituaram-se um ao outro, pois Goldmund era
também uma pessoa tolerante. Só não tolerava uma coisa: quando o
acometiam as suas crises de melancolia e reflexão, tornava-se ferozmente
taciturno e desinteressava-se do outro, comportando-se como se ele não
existisse; nessas alturas, Robert sabia que não devia tagarelar, nem fazer
perguntas nem tentar consolá-lo – tinha de o deixar em paz e respeitar o seu
silêncio. Não lhe custou a aprender isso. Desde que descobrira que
Goldmund sabia de cor uma quantidade de versos e canções latinas, desde
que o ouvira explicar diante do portal de uma catedral o significado das
santas figuras de pedra, desde que o vira esquissar com giz vermelho, num
muro junto ao qual descansavam, com traços rápidos e generosos, figuras
em tamanho natural, Robert tinha o companheiro na conta de um filho
dileto de Deus, quase de um feiticeiro. O facto de ser também um preferido
das mulheres e de conseguir conquistar algumas com um simples olhar e
um sorriso também não lhe passou despercebido; disso já não gostava tanto,
embora não deixasse de o admirar pelas suas proezas amorosas.
Até que, um dia, a sua caminhada sofreu uma inesperada interrupção. À
entrada de uma aldeia os dois companheiros foram recebidos por um
magote de camponeses armados de ca-
jados, varapaus e manguais; o chefe do grupo gritou-lhes de longe que
voltassem imediatamente para trás e fossem para o diabo que os carregasse,
desde que desaparecessem dali para nunca mais voltar. De contrário, davam
mesmo ali cabo deles. Quando Goldmund parou e quis saber o que se
passava, levou logo com uma pedrada no peito. Ao virar-se, viu Robert a
fugir, correndo como um desalmado. Os camponeses avançaram,
ameaçadores, e Goldmund não teve outra opção senão segui--lo, embora
mais devagar. Encontrou-o à sua espera, a tremer, junto a um cruzeiro com
a imagem do Redentor, que se erguia à beira do caminho, em pleno campo.
– Correste como um herói – troçou Goldmund, a rir. – Mas o que se teria
metido nos toutiços daqueles broncos? Haverá guerra? Colocam vigias
armados diante das tocas e não querem deixar entrar ninguém. Tudo isto me
intriga! Que diabo estará por detrás disto tudo?!
Nenhum deles o sabia. Só no dia seguinte começaram a desvendar o
mistério, depois de fazerem certas experiências num casal que encontraram
abandonado. Constituído por uma choupana, um estábulo e o celeiro num
local onde crescia erva alta e rodeado por um pomar com muitas árvores de
fruto,
o casal estava estranhamente silencioso e adormecido: não se ouviam vozes
humanas, nem passos, nem gritaria de crianças, nem o tinir das alfaias; no
prado mugia uma vaca, e notava-se que estava a precisar de ser ordenhada.
Aproximaram-se da casa, bateram à porta, mas ninguém lhes respondeu;
foram até ao estábulo, que se encontrava aberto e vazio; seguiram para o
celeiro, em cujo telhado de colmo brilhava ao sol o musgo de um verde
luminoso, mas também não encontraram vivalma. Voltaram à casa,
surpresos e angustiados com a desolação de todo aquele sítio, bateram
novamente à porta com os punhos e de novo não obtiveram resposta.
Goldmund tentou abri-la e, para seu espanto, viu que a porta não estava
trancada. Empurrou-a para dentro e entrou numa habitação sombria.
– Deus vos salve! – saudou em voz alta, e, logo a seguir:
– Não está ninguém em casa?
Mas tudo permanecia em silêncio. Robert tinha ficado à porta.
Goldmund avançou, curioso. Cheirava mal na cabana, um fedor estranho e
repugnante. A lareira estava cheia de cinza, ele soprou e por baixo ardiam
ainda brasas por entre os toros calcinados. Foi então que viu ao fundo, na
penumbra, junto ao fogão, alguém; estava ali alguém sentado num cadeirão
a dormir, parecia uma velhota. De nada serviu chamá-la, a casa parecia
enfeitiçada. Goldmund tocou-
-lhe amavelmente no ombro, ela continuou sem se mexer e ele reparou que
ela estava sentada no meio de uma teia de aranha cujos fios se lhe prendiam
ao cabelo e aos joelhos. Esta está morta, pensou com um ligeiro calafrio, e,
para se certificar, ateou o lume, soprou-o e atiçou-o até fazer chama, de
modo a poder acender um graveto comprido. Com ele iluminou o rosto da
mulher sentada. Viu sob os cabelos grisalhos um rosto cadavérico azulado e
negro, um dos olhos estava aberto e tremulava, vazio e plúmbeo. A mulher
tinha morrido ali, sentada na cadeira, nada havia a fazer.
Com o graveto aceso na mão, Goldmund pôs-se a esquadrinhar a casa e
logo encontrou nessa mesma habitação, tombado no umbral da porta que
dava para um quarto interior, um outro cadáver, um rapazinho dos seus oito
ou nove anos, com o rosto inchado e disforme, vestindo não mais que a
camisa. Estava deitado de barriga para baixo, atravessado na porta, os
pequenos punhos cerrados numa revolta enraivecida. E vão dois, pensou
Goldmund; seguiu em frente como num pesadelo, no quarto das traseiras as
janelas abertas deixavam entrar a jorros a claridade do dia.
Cuidadosamente, apagou o archote e pisou as fagulhas no chão.
Viu três camas. Uma estava vazia, com a palha a ver-se sob o lençol
áspero e pardo. Na segunda jazia outro cadáver, o de um homem barbudo,
deitado de costas, muito hirto, com a cabeça para trás e o queixo barbudo
muito espetado; só podia ser o camponês. O seu rosto encovado luzia
macilento em estranhas tonalidades cadavéricas; um dos braços pendia para
o chão, onde, tombado e vazio, se encontrava um cântaro de barro;
a água entornada ainda não tinha sido completamente absorvida, escorrera
para uma cova onde se via ainda uma pequena poça. Na terceira cama,
porém, completamente, enterrada e enredada no lençol empapado no
próprio vómito, encontrava-se uma mulher grande e forte, a cara
comprimida contra o colchão; os cabelos crespos, de um loiro cor de palha,
brilhavam na claridade. Junto a ela e a ela agarrada, como que presa e
estrangulada pelo lençol revolvido, jazia uma adolescente, igualmente loira,
com manchas de um azul acinzentado no rosto lívido.
O olhar de Goldmund ia de uns para os outros. Apesar de já estar muito
desfigurado, notava-se ainda no rosto da rapariga algo do impotente pavor
perante a morte. Na posição da nuca e da cabeleira, da mão que tão
profunda e furiosamente se enterrara no leito, podia perceber-se a raiva, o
medo e a apaixonada vontade de escapar. Sobretudo a cabeleira indómita
parecia não querer conformar-se com o inevitável. No semblante do
lavrador via-se revolta e uma dor violentamente contida; tivera uma morte
terrível, parecia, mas morrera como um homem, o seu rosto hirsuto
sobressaía, agreste e imóvel, como o de um guerreiro tombado no campo de
batalha. Aquela posição estendida, firme e um pouco obstinada era bela;
certamente que um homem que soubera enfrentar a morte daquela maneira
não tinha sido mesquinho e cobarde. Mas o que mais o comoveu foi o
pequeno cadáver do rapazinho, atravessado de barriga para baixo no umbral
da porta; o rosto nada dizia, mas a posição e os minúsculos punhos cerrados
revelavam muito: um sofrimento incrédulo, uma impotente tentativa para se
defender de uma dor insuportável. Mesmo ao lado da sua cabeça tinha sido
serrado na porta um buraco para o gato passar. Goldmund observou tudo
atentamente. Aquela casa era sem dúvida horrível, e atroz o cheiro infeto
que a impregnava; e, no entanto, tudo aquilo exerceu sobre ele uma
profunda atração. Tudo estava como que saturado de grandeza e destino;
tudo era tão verdadeiro, tão isento de hipocrisia que ganhou o seu afeto e
lhe tocou fundo na alma.
Entretanto, lá fora, Robert começou a chamá-lo, impaciente e cheio de
medo. Goldmund gostava dele, mas naquele momento não conseguiu deixar
de pensar que uma pessoa viva, com todos os seus receios, a sua
curiosidade e todas as suas criancices, era, no fundo, bem mais mesquinha e
patética do que os mortos. Não lhe respondeu e entregou-se completamente
à contemplação dos cadáveres com aquela estranha mistura de calorosa
compaixão e frio sentido de observação tão típica dos artistas. Examinou os
corpos que jaziam e os que tinham morrido sentados com toda a acuidade,
as cabeças, as mãos, o movimento congelado no instante em que a morte os
surpreendera. Que silêncio naquela cabana enfeitiçada! Que fedor tão
estranho e horrível! Com que rapidez aquele minúsculo lar humano, onde
ainda ardiam na lareira as derradeiras brasas, se transformara num local
fantasmagórico e sinistro, habitado por cadáveres, totalmente devassado e
ocupado pela morte! Em breve, a carne cairia das faces daquelas figuras
imóveis e as ratazanas encarregar-se-iam de lhes devorar os dedos. O que
ocorria com as outras pessoas no caixão e na sepultura, num espaço
protegido e invisível para os outros, todo o derradeiro e miserável processo
de decomposição e putrefação, acontecia ali com aqueles cinco infelizes
dentro da própria casa, nos seus quartos, à luz do dia, com as portas abertas,
sem qualquer pudor, sem nenhum resguardo ou proteção. Goldmund já vira
alguns mortos, mas nunca se deparara com uma tão terrível imagem do
labor implacável da morte. Guardou-a no mais fundo de si.
Por fim, os gritos de Robert, à porta, incomodaram-no e saiu de casa. O
companheiro olhou-o, cheio de medo.
– O que se passa? – quis saber com voz sumida, a tremer de susto. – Não
está ninguém em casa? Mas que olhar o teu! Fala, diz lá!
Goldmund mediu-o friamente.
– Entra e vê, é uma casa bem estranha. Depois ordenhamos aquela linda
vaquinha. Anda daí!
Robert entrou na cabana, hesitante, avançou na direção da lareira,
deparou-se com a velha sentada e, quando se apercebeu de que ela estava
morta, soltou um grito lancinante! Voltou precipitadamente, de olhos
esbugalhados.
– Deus nos acuda! Está ali uma velha morta sentada à lareira! O que é
aquilo? Porque é que ninguém está com ela? Porque não a enterram? Oh,
meu Deus, já fede.
Goldmund sorriu.
– Sempre me saíste um grande herói, Robert! Mas olha que voltaste
demasiado rápido. Uma velha morta sentada numa cadeira é um espetáculo
estranho; mas, se deres mais uns passos, podes ver coisas bem mais
espantosas. São cinco ao todo, Robert. Nas camas estão três, e há um
rapazito no chão, atravessado na porta. Todos mortos. A família inteira está
lá dentro, morta, acabou-se
a vida nesta casa. Foi por isso que ninguém ordenhou a vaca.
Robert ficou a olhar para ele, horrorizado, até que exclamou com voz
sufocada:
– Oh, agora já percebo os camponeses que ontem não nos quiseram
deixar entrar na aldeia. Meu Deus, agora está tudo esclarecido! É a peste!
Pela saúde da minha alma, Goldmund, é a peste! E tu estiveste tanto tempo
lá dentro, se calhar até tocaste nos mortos! Vai-te, não te aproximes de mim,
de certeza que estás envenenado! Sinto muito, Goldmund, mas tenho de
desandar daqui, não posso ficar contigo.
Já se virara para fugir quando foi agarrado pelo hábito de peregrino.
Goldmund olhava-o com severidade e silenciosa censura; de nada lhe valia
debater-se e estrebuchar, Goldmund continuava a segurá-lo com mão férrea.
– Ouve lá, meu menino – disse num tom de voz meio amável, meio
sarcástico –, és mais esperto do que eu pensava e é bem possível que tenhas
razão. De qualquer maneira, iremos sabê-lo já na próxima quintarola ou
aldeia. Provavelmente, a peste chegou a esta região. Logo veremos se nos
conseguimos safar sãos e salvos. Mas deixar-te ir, meu pequeno Robert,
isso não posso. Vê lá tu, eu sou uma alma caridosa, tenho um coração
demasiado brando, e só de pensar que te possas ter contagiado lá dentro e
eu deixava-te fugir para depois ires morrer no próximo descampado,
sozinho e abandonado, sem ninguém que te pudesse fechar os olhos e cavar
uma sepultura e lançar um punhado de terra para cima… não, meu caro, só
de pensar nisso sinto vómitos. Portanto, escuta bem e vê lá se metes na
cabeça o que te digo, porque não o vou repetir: ambos corremos o mesmo
risco, tanto podes ser tu apanhado como eu. Por isso ficamos juntos e, ou
morremos os dois, ou safamo-nos desta maldita peste. Se adoeceres e
morreres, garanto-te que serás por mim enterrado. E se me calhar a mim ter
de morrer, então faz o que bem entenderes, enterra-me ou põe-te a andar,
para mim tanto faz. Mas antes, caríssimo, não dás à sola, nota bem isso!
Vamos precisar um do outro. E agora cala o bico, não quero saber de mais
nada e procura ali no estábulo um balde para que possamos, finalmente,
ordenhar a vaca.
Assim fizeram e, a partir daquele momento, Goldmund mandava e
Robert obedecia, e ambos se deram bem com isso. Robert não fez mais
nenhuma tentativa para fugir e limitou-se a dizer num tom conciliador:
– Durante um momento tive medo de ti. Não gostei nada da tua cara
quando voltaste da casa dos mortos. Pensei que tinhas apanhado a peste.
Mas, mesmo que não seja a peste, a tua cara está diferente. Foi assim tão
mau aquilo que viste lá dentro?
– Não foi mau – disse Goldmund, hesitante. – Não vi lá dentro nada que
não nos vá acontecer também a nós, mesmo que não apanhemos a peste.
À medida que avançavam, iam encontrando por toda a parte sinais da
morte negra que assolava o país. Havia aldeias que não deixavam entrar
nenhum estranho, enquanto noutras podiam andar por todas as vielas sem
que ninguém os incomodasse. Muitas quintas estavam abandonadas,
inúmeros cadáveres apodreciam a céu aberto, nos campos ou dentro das
habitações. Nos currais, as vacas mugiam sem ninguém que as ordenhasse
ou lhes trouxesse o feno, havia gado tresmalhado pelas searas. Eles
ordenharam e deram de comer a inúmeras vacas e cabras, abateram e
assaram à beira da floresta mais que um cabrito ou leitão e beberam vinho e
cidra tirados de adegas abandonadas. Tinham uma boa vida, reinava a
abundância, mas nada daquilo lhes sabia verdadeiramente bem. Robert
vivia em constante terror por causa da epidemia, sentia-se mal quando via
cadáveres e muitas vezes ia-se abaixo e ficava completamente transtornado
com o medo; não conseguia deixar de pensar que se tinha contagiado e
expunha a cabeça e as mãos demoradamente ao fumo das fogueiras, algo
que era tido como antídoto; mesmo quando dormia apalpava-se por todo o
corpo, sempre à espera de sentir bolhas nas pernas, nos braços e nas axilas.
Goldmund censurava-o muitas vezes, outras troçava dele. Não partilhava
nem os seus medos nem a sua aversão; caminhava tenso e sombrio pelo
reino da morte, terrivelmente atraído pela visão da grande mortandade, a
alma saturada do grande outono, o coração oprimido pelas trovas da foice
ceifadora. Por vezes surgia-lhe a imagem da grande mãe, um rosto
gigantesco e pálido com olhos de medusa e um sorriso amargo, carregado
de sofrimento e morte.
Até que chegaram a uma pequena cidade fortificada; do portão partia um
adarve à altura das casas que cingia toda a muralha da cidade, mas não se
viam sentinelas lá em cima nem guardas que controlassem o portão aberto.
Robert recusou-se a pôr os pés naquela cidade e suplicou ao companheiro
que não entrasse. Entretanto, ouviram o dobrar de um sino e viram sair pelo
portão um padre empunhando um crucifixo, seguido por três carroças, duas
puxadas por cavalos e a terceira por uma junta de bois, e todas as três
estavam a abarrotar de cadáveres. Meia dúzia de servos, trajando umas
estranhas capas, os rostos escondidos nos capuzes, acompanhavam-nos,
picando as bestas.
Robert fugiu, lívido. Goldmund seguiu os carros mortuários a curta
distância; percorreram umas centenas de metros até chegarem a um sítio
que não era o cemitério, mas onde tinha sido cavada em plena charneca
erma uma vala com não mais que três pazadas de fundura, mas vasta como
um salão. Goldmund ficou a ver os servos encapuçados puxarem e
arrastarem para a cova, com a ajuda de varas e arpões, os cadáveres, que se
foram amontoando na grande vala. Viu o padre erguer o crucifixo, enquanto
murmurava alguma prece, antes de se retirar, e ele ali se manteve, tendo os
servos ateado grandes fogueiras à volta da vala, para de seguida
regressarem em silêncio à cidade, sem que alguém se dignasse a tapar a
vala. Goldmund aproximou-se e viu que lá em baixo se encontravam uns
cinquenta ou sessenta corpos amontoados uns por cima dos outros, muitos
deles nus. Aqui e além erguia-se, hirto e acusatório, um braço ou uma
perna, ou esvoaçava ao vento uma camisa.
Quando voltou, Robert implorou-lhe, quase de joelhos, que
prosseguissem a sua caminhada o mais depressa possível. E tinha motivos
para implorar, pois via no olhar ausente de Goldmund aquele seu já tão
conhecido ensimesmamento e a rigidez com que se manifestava o seu
fascínio pelo tenebroso, a sua mórbida curiosidade. Mas não conseguiu
deter o amigo. Goldmund entrou sozinho na cidade.
Atravessou o portão abandonado e, ao ouvir o ressoar dos seus próprios
passos no empedrado, vieram-lhe à memória as muitas cidadezinhas e as
portas por onde passara ao longo da sua vida errante; lembrou-se então de
como a algazarra das crianças e os jogos dos miúdos e as discussões das
mulheres e o sonoro martelar do ferro na bigorna do ferrador e o ranger dos
carros e muitos outros sons o tinham recebido – uns eram suaves e outros
dissonantes, mas sempre aquela caótica teia sonora lhe anunciara a
diversidade do labor humano, das humanas alegrias, ocupações e rituais.
Ali, porém, no vácuo daquele portão e naquelas vielas vazias, nada soava,
nada ria, nada gritava, tudo parecia petrificado num silêncio mortal, em que
o contínuo murmúrio da água a correr algures numa fonte soava demasiado
alto e quase estrepitoso. Por detrás de uma janela aberta podia ver-se um
padeiro no meio dos seus pães e carcaças; Goldmund apontou para uma das
carcaças e o padeiro entregou-lha cautelosamente, em cima de uma pá de
longo cabo. Depois esperou que Goldmund lhe depositasse o dinheiro em
cima da pá, mas quando viu o estranho trincar o pão e seguir em frente, sem
pagar, fechou o postigo com ar de poucos amigos, mas sem fazer alarido.
Diante das janelas de uma casa bonita via-se uma fieira de vasos de barro
em que outrora tinham florido plantas; agora, as suas folhas murchas
pendiam dos recipientes vazios. De uma outra casa vinha o soluçar e o
choro de crianças. Mas, na viela seguinte, Goldmund viu, num andar de
cima, por detrás de uma janela, uma linda rapariga a pentear-se; parou e
ficou a olhar para ela, até que ela se apercebeu do seu olhar e se pôs
também a olhar para ele, ruborizada; ele sorriu-lhe amigavelmente e no seu
rosto despontou também, hesitante e tímido, um sorriso.
– Demora muito, o penteado? – perguntou.
Ela debruçou-se sobre o parapeito da janela, sorrindo abertamente.
– Ainda não adoeceste? – quis ele saber, e ela abanou a cabeça. – Então
vem comigo para fora desta cidade de mortos. Vamos para a floresta gozar
uma bela vida.
Ela fitou-o, interrogando-o com o olhar.
– Não demores muito tempo a decidir. Estou a falar a sério –
exclamou Goldmund. – Estás com os teus pais ou a servir em casa de
estranhos? Em casa de estranhos? Então anda daí, minha linda. Deixa os
velhos morrerem, nós somos jovens e sãos, queremos é gozar a vida
enquanto ela dura. Olha que estou a falar a sério, moreninha.
Ela fitou-o, meio desconfiada, hesitante, surpreendida. Ele recomeçou a
andar, devagar, deambulou por uma ruela deserta, por outra ainda, e
regressou depois, sem se apressar. Lá estava ela, debruçada à janela,
visivelmente contente por o ver surgir. Fez-lhe um sinal e ele abrandou o
passo, pouco depois ela apareceu, seguiu-o e alcançou-o ainda antes de
chegarem à porta da cidade. Trazia uma pequena trouxa na mão e um lenço
vermelho na cabeça.
– Como te chamas? – quis saber Goldmund.
– Lene. Vou contigo. Aqui na cidade é horrível. Está toda a gente a
morrer. Vamos embora daqui. Vamos embora!
Robert estava sentado perto da porta da cidade, visivelmente
maldisposto. Quando viu Goldmund vir, levantou-se de um salto e, quando
se apercebeu da rapariga, abriu muito os olhos. Desta vez não desistiu logo,
começou a lamentar-se e fez cenas. Essa de aparecer com uma pessoa vinda
daquele maldito antro pestilento e ainda por cima esperar que ele, Robert,
admitisse a sua companhia, isso era mais do que ser doido, era tentar a
Deus, e ele recusava-se terminantemente a acompanhá-los, já não podia, a
sua paciência esgotara-se.
Goldmund deixou-o queixar-se e praguejar, até ele acalmar um pouco.
– Chega – disse então –, já nos moeste suficientemente o juízo. Agora
vens connosco e vais estar feliz e contente por termos uma companhia tão
bonita. Ela chama-se Lene e vai ficar comigo. Mas também quero dar-te
uma alegria, Robert, ouve só: vamos viver durante algum tempo em paz e
saúde e tentar evitar a pestilência. Procuramos um sítio bonito com uma
cabana vazia, ou construímos nós próprios uma. Eu e a Lene seremos os
donos da casa e tu serás o nosso amigo e ficas a viver connosco. A partir de
agora vamos gozar um pouco a vida. Concordas?
Oh, sim, Robert não podia concordar mais. Desde que não o obrigassem
a dar a mão à Lene ou a tocar-lhe na roupa…
– Não – assegurou Goldmund –, ninguém te exige isso. Pelo contrário,
até estás expressamente proibido de lhe tocar, nem que seja com um dedo.
Esquece essas ideias!
Prosseguiram os três o caminho, primeiro em silêncio, até que a rapariga
começou, pouco a pouco, a falar, contando-lhes como estava contente por
poder ver de novo o céu e as árvores e os prados. Tinha sido tão horrível lá
dentro, na cidade assolada pela peste, nem conseguia explicar. E começou
então a narrar o que por lá vira, tentando libertar-se de todas aquelas cenas
insuportavelmente tristes e pavorosas que tivera de presenciar. Falou-lhes
de histórias medonhas, a cidadezinha devia ser um inferno. Dos dois
médicos que lá viviam, um tinha morrido e o outro só atendia os ricos; em
muitas casas, os mortos apodreciam porque não havia quem os enterrasse, e
noutras os cangalheiros tinham roubado e estuprado e fornicado e já tinha
acontecido muitas vezes arrancarem das camas, à mistura com os
cadáveres, doentes ainda vivos e atirá-los para cima das carroças e depois
para a vala. Tinha muito para contar, e tudo terrível. Ninguém a
interrompeu. Robert escutou-a com um misto de pavor e sôfrego fascínio,
enquanto Goldmund se manteve silencioso e indiferente, preferindo deixá-
la despejar toda aquela carga medonha sem fazer comentários. De resto, que
comentários poderia ter feito? Por fim, Lene cansou-se e a torrente de
palavras estancou. Goldmund abrandou então o passo e começou a entoar
baixinho uma canção com muitas estrofes, e a cada estrofe a sua voz ia
ficando mais sonora. Lene começou a sorrir e Robert escutou-o encantado e
com uma profunda admiração. Até então nunca o tinha ouvido cantar, mas
ele tudo parecia dominar, até cantar sabia, era espantoso, aquele Goldmund!
Cantava, e com uma voz clara e afinada, mas num tom contido. À segunda
canção, Lene começou a acompanhá-lo, trauteando baixinho as estrofes, e
não tardou a elevar a voz. Anoitecia; ao longe, para lá da charneca, viam-se
bosques negros e, por detrás deles, recortavam-se montanhas baixas e
azuladas, que pareciam iluminadas por dentro com aquela tonalidade
anilada cada vez mais intensa. O canto ressoava, ora alegre, ora grave,
acompanhando o ritmo das passadas.
– Estás hoje tão divertido! – comentou Robert.
– Sim, estou divertido, claro que estou divertido, como é que não havia
de estar se arranjei um amorzinho todo jeitoso. Ai, Lene, ainda bem que os
cangalheiros te deixaram para mim. Amanhã encontramos um larzinho só
para nós, aí vamos desfrutar e viver felizes e satisfeitos por termos ainda a
carninha agarrada aos ossos. Diz-me lá uma coisa, Lene: já viste no chão da
floresta, no outono, aqueles cogumelos grossos e comestíveis que as lesmas
adoram?
– Vi, sim – disse ela rindo –, muitas vezes até.
– Castanhos, mesmo da cor do teu cabelo, Lene. E também cheiram tão
bem. Vamos a outra cantiga? Ou já estás com fome? Ainda tenho aqui uma
coisinha boa na mochila.
No dia seguinte encontraram o que procuravam. Num pequeno bosque
de bétulas viram uma cabana feita com troncos de árvores, talvez por
lenhadores ou caçadores. Estava vazia e não lhes foi difícil arrombar a
porta. Até Robert concordou que era um bom refúgio num sítio salubre. De
caminho, tinham encontrado cabras tresmalhadas e conseguiram apanhar
uma delas.
– Bem, Robert – disse Goldmund –, se não és marceneiro, pelo menos
em tempos foste carpinteiro. Queremos viver juntos aqui, por isso vais ter
de construir uma parede divisória no nosso palácio, para que possamos ter
dois quartos, um para mim e para a Lene e outro para ti e para a cabra. Para
comer já não há grande coisa, por hoje vamos ter de nos contentar com o
leite da cabra, por muito ou pouco que seja. Tu tratas então do tabique, que
nós procuramos algo que nos sirva de cama para todos. Amanhã logo
procuro alimento.
Puseram logo mãos à obra. Goldmund e Lene trouxeram do bosque
ervas, fetos e musgo para as camas e Robert amolou a faca numa pedra,
para poder cortar ramos para o tabique. Não conseguiu, no entanto, acabá-lo
nesse dia, pelo que teve de ir dormir ao relento. Goldmund encontrou em
Lene uma doce companheira, tímida e inexperiente, mas cheia de doçura.
Abraçou-a delicadamente; já ela tinha adormecido há muito, exausta e
saciada, com a cabeça apoiada no seu peito, e ainda ele permanecia
acordado, sentindo bater o seu coração. Aspirou o cheiro dos cabelos
castanhos e aconchegou-se mais ao seu corpo, sem conseguir deixar de
pensar na grande vala pouco profunda para onde aqueles diabos
encapuçados tinham atirado todas aquelas carradas de cadáveres. Era bela a
vida, bela e fugaz era a felicidade, bela e, no instante seguinte, já fanada a
juventude.
O tabique acabou por ficar muito bonito, no final todos participaram no
seu acabamento. Robert quis mostrar o que sabia e não se cansou de falar
no que poderia fazer se tivesse uma bancada de carpinteiro, e ferramenta,
esquadro e pregos. Mas como só dispunha da faca e das próprias mãos,
contentou--se com cortar uma dúzia de pequenos troncos de bétula e de
montar com eles um tapume firme e bem implantado no chão da cabana. De
acordo com as suas indicações, começaram depois a preencher os espaços
intermédios com giestas entrançadas. Isso demorou algum tempo, mas ficou
um trabalho asseado e todos participaram alegremente nele. Entretanto,
Lene teve de ausentar-se para ir colher frutos silvestres e ver como estava a
cabra e Goldmund encarregou-se de explorar a região, saindo várias vezes
em busca de alimento, sem nunca se demorar demasiado. De vez em
quando conseguia mesmo trazer qualquer coisa. Não havia ninguém nas
redondezas, o que muito agradou a Robert; assim, sempre estavam livres de
contágio e das hostilidades dos vizinhos; a desvantagem era que muito
pouco se encontrava para comer. Havia nas proximidades uma cabana de
camponeses abandonada, desta vez sem cadáveres lá dentro, e Goldmund
chegou mesmo a propor mudarem-se para lá, mas Robert recusou-se,
horrorizado, e não gostou nada que Goldmund entrasse na casa abandonada;
cada peça que Goldmund trouxe de lá teve de ser defumada e lavada antes
de Robert lhe tocar. Não foi grande coisa o que Goldmund lá encontrou:
dois escabelos, uma vasilha para o leite, alguns talheres de barro, um
machado e duas galinhas que descobriu um dia à solta no campo e
conseguiu apanhar. Lene estava apaixonada e feliz e todos eles trabalhavam
com gosto para melhorar e alindar o seu pequeno lar a cada dia que passava.
Faltava-lhes o pão, mas, em compensação, arranjaram mais uma cabra e
descobriram um campo com beterraba. Os dias foram passando, o tabique
encanastrado ficou pronto, as camas foram melhoradas e uma lareira
construída. O ribeiro não ficava longe, não raras vezes deram consigo a
cantar enquanto trabalhavam.
Um dia, quando estavam a beber leite juntos e depois de louvar aquela
vida doméstica, Lene disse subitamente, com um ar sonhador:
– E como é que vai ser quando o inverno chegar?
Não lhe responderam. Robert riu-se, Goldmund ficou a olhar com um ar
estranho, o olhar perdido na distância. Lentamente, Lene começou então a
perceber que ninguém ali pensava no inverno, que não previam a sério ficar
tanto tempo no mesmo sítio, que o lar não era, na verdade, um lar, e que ela
fora viver com vagabundos. O desânimo fez com que deixasse pender a
cabeça.
Goldmund disse-lhe então, meio a brincar, meio para a animar, como se
estivesse a falar com uma criança:
– Tu és filha de camponeses, Lene, essa gente sabe precaver-se. Não
tenhas medo, hás de conseguir voltar para casa quando a peste acabar, ela
não há de durar eternamente. Nessa altura voltas para junto dos teus pais ou
para quem lá tiveres, ou vais de novo servir para a cidade e ganharás o teu
pão. Mas, por enquanto, ainda estamos no verão. As pessoas estão a morrer
por todo o lado, mas nós aqui ficamos bem e de boa saúde. Por isso,
deixemo-nos ficar por cá enquanto isto nos agradar.
– E depois? – exclamou Lene com veemência. – Depois acaba tudo? E tu
vais-te embora? E eu?
Goldmund agarrou-lhe a trança e puxou-a delicadamente.
– Minha tontinha – disse –, já te esqueceste dos cangalheiros, e das casas
vazias, e da grande vala que abriram mesmo em frente à porta da cidade,
com as fogueiras sempre acesas? Devias sentir-te feliz por não estares lá
estendida naquele buraco, com a chuva a cair-te em cima. É nisso que deves
pensar: que conseguiste escapar, que a vida ainda te corre pelas veias e
que ainda podes rir e cantar.
Lene não se deu por satisfeita.
– Mas eu não quero ir-me outra vez embora – queixou-
-se – e também não quero deixar-te partir, não quero. Não se pode ser feliz
sabendo que tudo em breve passa e vai acabar!
Goldmund respondeu-lhe novamente, num tom afetuoso, mas já com
uma vaga ameaça na voz:
– Isso, minha querida, já foi o quebra-cabeças de muitos sábios e santos.
Não há felicidade que sempre dure. Mas se aquilo que agora temos já não te
basta nem satisfaz, então deito já fogo à cabana neste mesmo instante e
cada um vai à sua vida. Acaba com isso, Lene, já falámos demasiado.
E por ali ficaram; ela submetera-se, mas uma sombra turvara a sua
alegria.

XIV

Ainda antes de o verão terminar, a vida na cabana acabou de uma forma


que nenhum deles tinha conseguido prever. Um dia, Goldmund foi à caça
nas redondezas, vagueando com uma fisga durante muito tempo pelos
matagais, na esperança de poder apanhar uma perdiz ou qualquer outra
peça, pois os mantimentos escasseavam. Lene andava por perto, a colher
frutos silvestres; por vezes, ele seguia um atalho, não longe do sítio onde
ela se encontrava, e via-lhe, por cima das moitas,
a cabeça e o pescoço moreno sobressaírem da camisa de linho, ou ouvia-a
cantarolar; uma vez, deixou-se ficar ao pé dela, a saborear umas amoras,
depois seguiu o seu caminho e deixou de a ver durante algum tempo.
Pensava nela, em parte com carinho, em parte irritado, pois ela voltara a
falar do outono e do futuro, dissera-lhe que achava que estava grávida e que
não o ia deixar partir. Está a acabar, pensou ele, não tarda nada e farto-me,
e quando isso acontecer, ponho-me a andar e separo-me também do Robert,
sigo sozinho e vejo se consigo chegar à cidade do mestre Niklaus antes do
começo do inverno, depois passo lá o inverno e na primavera seguinte
compro uns bons sapatos novos e ponho-me a caminho de Mariabronn para
saudar o Narciso; já devem ter passado dez anos desde que o vi pela última
vez. Tenho de voltar a vê-lo, nem que seja por um dia ou dois.
Um som estranho despertou-o daquele devaneio e, subitamente, ele
tornou-se consciente de que com todas aquelas cogitações e desejos se tinha
afastado muito e se desligara do presente. Pôs-se à escuta com toda a
atenção, e o grito aflito repetiu-se; pensou reconhecer a voz de Lene e
seguiu o som, embora não lhe agradasse que ela o chamasse assim. Não
tardou a aproximar-se o suficiente para reconhecer que era, de facto, Lene.
Sim, era ela, e gritava o seu nome como se estivesse em grande aflição.
Começou a correr mais depressa, ainda meio irritado, porém, à medida que
os gritos se foram repetindo, a compaixão e a preocupação impuseram-se à
arrelia inicial. Quando, finalmente, a conseguiu ver, estava ela sentada ou
ajoelhada no chão da charneca, com a camisa completamente rasgada, a
lutar, aos gritos, com um homem que a queria violar. Goldmund aproximou-
se em passos largos e toda a agressividade, a inquietação e a tristeza
acumuladas descarregaram-se sobre o estranho num acesso de fúria
assassina. Surpreendeu-o no momento em que ele a queria imobilizar,
pressionando-a contra o chão; o seio nu de Lene sangrava, tentando o
estranho avidamente submetê-la. Goldmund atirou-se a ele e, com ambas as
mãos, apertou-lhe furiosamente o pescoço magro, musculoso e coberto de
barba. Dominado por uma exaltação selvagem, continuou a apertá-lo cada
vez mais, até ele soltar a rapariga e lhe ficar nas mãos, sem reação; sem
deixar de o estrangular, arrastou o desfalecido e já meio morto até uns
penedos cinzentos e recortados que se erguiam ali perto. Aí, levantou o
vencido, indiferente ao seu peso, e atirou-lhe duas ou três vezes com a
cabeça contra o rebordo de arestas vivas. Depois arremessou-o para longe,
com o pescoço partido. O seu ódio ainda não estava saciado, teria podido
continuar a maltratá-lo.
Lene tudo observou como que extasiada. Sangrava do peito, todo o seu
corpo tremia e arquejava, mas levantou-se assim que pôde e ficou a ver,
com um olhar sonhador, exultante e cheio de admiração, como o seu forte
amante arrastava o intruso,
o estrangulava, lhe quebrava o pescoço, se desenvencilhava do cadáver,
atirando-o para longe como um fardo inerte. E ali ficou, como uma cobra
batida à paulada, flácido e meio torcido, o rosto macilento com a barba
desgrenhada e um cabelo ralo, pendendo-lhe miseravelmente para trás.
Lene ergueu-se exultante e abraçou Goldmund, mas subitamente
empalideceu, dominada ainda pelo susto, sentiu-se mal e deixou-se cair,
exausta, em cima de um arbusto de mirtilos. Não tardou, contudo,
a recuperar as forças e, apoiada em Goldmund, regressaram à cabana.
Goldmund lavou-lhe o peito, estava toda arranhada e um dos seios tinha
sido mordido e apresentava as marcas dos dentes do monstro.
Robert ficou muito excitado com a aventura e quis saber todos os
pormenores da luta.
– Partiste-lhe o pescoço, dizes? Fantástico! Cuidado contigo, Goldmund!
Mas Goldmund não quis falar mais do caso; acalmara e, ao afastar-se do
morto, lembrara-se do pobre Viktor, o salteador, e tornara-se consciente de
que era já o segundo homem que morria às suas mãos. Para se ver livre de
Robert, disse-lhe:
– Agora também podias fazer qualquer coisa. Vai até lá e vê se te livras
do cadáver. Se for demasiado difícil cavar-lhe uma cova, arrasta-o até ao
pântano ou cobre-o bem com pedras e terra.
Mas a sua proposta foi logo recusada; Robert não queria ter nada a ver
com cadáveres, nunca se podia saber se estavam contaminados com o
veneno da peste.
Lene tinha ido deitar-se. Doía-lhe a dentada no peito, mas não tardou a
sentir-se melhor, levantou-se novamente, acendeu o lume na lareira e ferveu
o leite para a ceia; apesar de estar agora muito bem-disposta, foi mandada
para a cama bem cedo. Obedeceu como um cordeiro, tamanha era a
admiração que sentia por Goldmund. Este mantinha-se taciturno e sombrio;
Robert já o conhecia e deixou-o em paz. Quando, muito mais tarde,
Goldmund se foi deitar no leito de palha, inclinou-se, à escuta sobre o corpo
adormecido de Lene. Sentia-se inquieto, não conseguia deixar de pensar em
Viktor, dominava-o uma grande ansiedade e o desejo de partir e retomar a
vida errante. Sentia que todo aquele brincar à vida sedentária chegara ao
fim. Uma coisa, porém, continuava a dar-lhe que pensar. Ele tinha reparado
no olhar de Lene quando ele sacudira e atirara para longe o cadáver do
violador. Era um olhar estranho, sabia que nunca mais o iria esquecer:
naqueles olhos esbugalhados, apavorados e exultantes brilhara um tal
orgulho, um tão primitivo júbilo pela partilha do triunfo, uma tão
apaixonada cumplicidade na vingança e no ato de matar como nunca vira
nem pressentira num rosto de mulher. Se não tivesse havido aquele olhar,
pensou, talvez, mais tarde, com os anos, acabasse por esquecer o rosto de
Lene. Mas aquele olhar tornara o seu rosto de jovem campónia grandioso,
belo e terrível. Há meses que não via algo assim, capaz de despertar nele
uma vontade espontânea de desenhar. Aquele olhar assustara-o e fizera-o
sentir novamente o velho desejo.
Como não conseguia adormecer, acabou por levantar-se e sair da cabana.
Lá fora estava fresco, uma aragem fraca agitava as folhas das bétulas.
Andou por ali de um lado para o outro, sem descanso, até que, sentado num
penedo, se afundou em pensamentos, dominado por uma profunda tristeza.
Sentia pena de Viktor, lamentava o pobre diabo que hoje matara e
lamentava a inocência perdida e a pureza da sua alma. Era então para aquilo
que tinha fugido do convento, que deixara Narciso, que ofendera o mestre
Niklaus e prescindira da bela Lisbeth – só para se acoitar algures numa
charneca perdida, andar emboscado à espreita de gado tresmalhado e
trucidar aquele pobre desgraçado entre as pedras? Faria sentido tudo aquilo,
mereceria ser vivido? Sentiu o coração apertar-se-lhe com o absurdo da
situação e o desdém de si próprio. Deixou-se cair para trás e ficou estendido
de costas, a olhar para as nuvens pálidas da noite; assim ausente, acabou por
se alhear até dos próprios sentimentos; a certa altura, já não sabia se estava
a olhar para as nuvens do céu ou para o mundo sombrio do seu íntimo. De
repente, no preciso momento em que adormecia em cima do penedo, viu
surgir estampado nas nuvens fugidias, como um relâmpago, um rosto
enorme e pálido: o rosto de Eva, absorto e velado; subitamente, porém,
abriu desmesuradamente os olhos e o seu olhar estava cheio de volúpia e
prazer assassino. Goldmund adormeceu e só acordou com o orvalho matinal
a molhá-lo.
Ao outro dia, Lene estava doente. Deixaram-na deitada, havia muito que
fazer; de manhãzinha, Robert tinha encontrado no bosque duas ovelhas, que
logo se lhe escaparam. Foi buscar Goldmund e perseguiram-nas ambos
durante meio dia, até que conseguiram apanhar uma; quando voltaram para
casa com o animal, ao anoitecer, estavam exaustos. Lene sentia-se
pessimamente. Goldmund examinou-a e apalpou-a e encontrou-lhe bolhas e
peste. Não disse nada, mas Robert desconfiou logo quando soube que Lene
ainda estava doente e não quis ficar na cabana. Ia procurar lá fora um sítio
para dormir, disse, e a cabra também a levava, não fosse ela contagiar-se.
– Vai para o diabo que te carregue – gritou-lhe Goldmund, furioso –,
nunca mais te quero pôr os olhos em cima!
Mas agarrou na cabra e levou-a consigo para trás do tabique de giestas.
Robert afastou-se em silêncio, sem ousar reclamar da cabra. Sentia náuseas
de tanto medo – medo da peste, medo de Goldmund, medo da solidão e da
noite. Acabou por deitar--se perto da cabana.
Goldmund disse a Lene:
– Não te aflijas, que eu fico contigo. Vais ver que ficas boa.
Ela abanou a cabeça.
– Tem cuidado, querido, não vás tu adoecer também. Não quero que te
aproximes de mim. Não tentes consolar-me. De certeza vou morrer, e
prefiro a morte a acordar um dia e ver a tua cama vazia ao meu lado e sentir
que me abandonaste. Todas as manhãs, temo que isso possa acontecer. Não,
prefiro morrer.
De manhã já estava muito mal. Goldmund dera-lhe, de tempos a tempos,
uns goles de água e acabara por adormecer, ao todo não mais que uma hora.
Agora, à luz da madrugada, podia reconhecer no seu rosto mirrado e lívido
indícios claros da morte próxima.
Saiu um pouco para tomar ar e ver como estava o tempo. Na orla da
floresta, uns quantos troncos avermelhados e retorcidos de pinheiros
brilhavam já à luz do sol; o ar era macio e fresco, ao longe, as colinas ainda
estavam tapadas pelas nuvens matinais. Andou um pouco, espreguiçou-se,
desentorpecendo os membros fatigados, e respirou fundo. Era belo o mundo
naquela triste manhã. Em breve retomaria a vida errante. Chegara a altura
de se despedir.
Robert chamou-o da floresta. Queria saber se Lene estava melhor. Se não
fosse a peste, ele ficava, e Goldmund que não se zangasse; entretanto, ele
cuidara da ovelha.
– Vai para o inferno, tu mais a tua ovelha! – gritou-lhe Goldmund. – A
Lene está a morrer e eu também já estou conta-
giado.
A última parte era mentira; disse-o apenas para se ver livre dele. Aquele
Robert podia ser muito boa pessoa, mas Goldmund estava farto dele, era
demasiado cobarde e mesquinho, não condizia com aqueles tempos de
desordem e destino. Robert afastou-se e nunca mais apareceu. O sol surgiu
radioso.
Quando voltou para junto de Lene, ela dormia. Também ele voltou a
adormecer e viu num sonho o seu cavalo Bless e o belo castanheiro do
convento; sentiu-se como se tivesse virado o corpo para contemplar de uma
distância desértica e incomensurável um pouco da pátria amada e perdida,
e, quando acordou, as lágrimas corriam-lhe pelas faces e pela barba loira.
Ouviu Lene falar com uma voz sumida; pensou que o estava a chamar e
soergueu-se no leito, mas ela não falava com ninguém, balbuciava apenas
palavras sem nexo, palavras de ternura e injúria; riu um pouco, começou,
logo a seguir, a soluçar e a engolir com dificuldade, até que voltou a
acalmar-se. Goldmund levantou-se e inclinou-se sobre o seu rosto já
desfigurado. Com uma espécie de amarga curiosidade, o seu olhar
acompanhou as linhas que tão dolorosamente se distorciam e confundiam
sob o hálito calcinante da morte. Querida Lene, gritou o seu coração, minha
querida e boa menina, também tu me queres abandonar? Já te fartaste de
mim?
De bom grado teria fugido. Andar, caminhar, mover-se; respirar o ar,
descansar quando estivesse exausto; ver novas imagens, talvez isso lhe
fizesse bem, talvez isso aliviasse aquela angústia profunda. Mas não podia
fazê-lo, era incapaz de deixar ali sozinha aquela criança, à mercê da morte.
Quase não ousava sair para respirar um pouco de ar fresco. Como Lene já
não aceitava o leite, acabou por beber ele tanto quanto podia, mais não tinha
na cabana para se alimentar. Levou também a cabra algumas vezes a pastar,
beber água e mexer-se. Depois voltava para o leito de Lene e murmurava-
lhe palavras de ternura, sem nunca deixar de olhar para o seu rosto e
acompanhar, inconsolável mas atento, a sua agonia. Ela continuava
consciente; por vezes dormitava um pouco e, quando acordava, já só
conseguia entreabrir os olhos, tanto lhe pesavam as pálpebras entorpecidas.
À volta dos olhos e do nariz, a jovem parecia estar a envelhecer de hora
para hora e não tardou que o pescoço fresco e juvenil suportasse um rosto
cada vez mais engelhado de anciã. Já quase não falava, dizia «Goldmund»,
ou «querido», e procurava humedecer com a língua os lábios roxos e
entumecidos. Ele aproveitava esses momentos para lhe dar umas gotas de
água.
Lene morreu na noite seguinte, sem um queixume. Tudo se resumiu a um
breve estertor, depois deixou de respirar e um sopro percorreu-lhe a pele; ao
ver chegado o momento, Goldmund sentiu dilacerar-se-lhe o coração e
recordou os peixes moribundos, que tantas vezes vira no mercado e de que
tanto se condoera; era assim também que eles morriam, com um arquejo e
um leve e doloroso estremecimento que lhes percorria a pele e lhes roubava
o brilho e a vida. Deixou-se ficar ainda algum tempo ajoelhado ao lado de
Lene, até que, por fim, se levantou e foi lá para fora sentar-se numas urzes.
Lembrou-se então da cabra, voltou a entrar na cabana e foi buscar o animal,
que, depois de retouçar um pouco, se deitou ali ao pé. Ele deitou-se ao seu
lado, com a cabeça encostada ao seu flanco, e dormiu até clarear. Levantou-
se então e entrou pela última vez na cabana, para contemplar, por detrás do
tabique encanastrado, pela derradeira vez, o pobre rosto da morta.
Repugnava-lhe deixá-la ali deitada. Afastou-se para ir apanhar braçadas de
lenha e gravetos secos, que amontoou dentro da cabana e aos quais lançou
fogo. Da cabana não levou senão as acendalhas. As labaredas consumiram
num instante a parede de fibras de giestas secas. Goldmund deixou-se ficar,
com o rosto avermelhado pelo fogo, até as chamas se propagarem por todo
o telhado e as primeiras vigas começarem a ruir. A cabra saltava e balia,
apavorada. Teria sido acertado matar o animal e assar e comer um pedaço
de carne para recobrar forças para a jornada. Mas não conseguiu; soltou-a
na charneca e foi-se embora. O fumo do incêndio perseguiu-o até à floresta.
Nunca iniciara uma caminhada no meio de tão profunda desolação.
E, no entanto, aquilo que o esperava era ainda pior do que ele imaginara.
Começou logo nas primeiras quintas e aldeias que encontrou e foi-se
tornando cada vez pior, à medida que ia avançando. Toda aquela região,
todo aquele enorme território encontrava-se sob uma nuvem mortal, sob um
denso véu de horror, medo e demência, e o pior não eram os casais ao
abandono, os cães mortos de fome a apodrecerem presos às correntes, os
cadáveres insepultos, os grupos de crianças mendigando, as valas abertas às
portas das cidades. O pior eram os vivos, que sob o peso do susto e do
pânico mortal pareciam ter perdido os olhos e a alma. Estranhas e
arrepiantes cenas e histórias deparavam-se por toda a parte ao viajante. Pais
que abandonavam os filhos e maridos que fugiam das mulheres assim que
adoeciam. Cangalheiros e guardas de hospitais que se impunham como
verdugos, pilhando as casas vazias e, consoante o capricho do momento,
ora deixavam os mortos por enterrar, ora arrastavam os moribundos para
fora das suas camas para os amontoar, ainda antes que dessem o último
suspiro, em cima das carretas dos cadáveres. Fugitivos apavorados
vagueavam sozinhos, confusos e em estado de choque, evitando qualquer
contacto com pessoas, acossados pelo medo da morte. Outros juntavam-se,
impelidos por um compulsivo e desesperado desejo de viver, para celebrar
pândegas com desvairadas danças e orgias, em que era a própria morte
quem tocava a rabeca. Completamente desleixados e confusos, de olhos
alucinados e perdidos nos discursos confusos dos seus lamentos ou
blasfémias, outros ainda sentavam-se encostados aos muros dos cemitérios
ou das suas próprias casas desabitadas. E, pior do que tudo ainda: todos
procuravam um bode expiatório, não havia quem não garantisse conhecer
os perversos responsáveis pela epidemia. Gente demoníaca, dizia-se, tratava
de propagar a peste com maligna satisfação, retirando o solimão dos
cadáveres para com ele besuntar os muros e as aldrabas das portas e
contaminar as fontes e o gado. Quem se tornasse suspeito dessas aberrações
estava perdido se não fosse avisado a tempo de fugir; ou era condenado à
morte pela justiça, ou linchado pela populaça. Por outro lado, os ricos e os
pobres culpavam-se reciprocamente; ou então, os culpados eram os judeus,
ou os italianos, ou os médicos. Numa cidade, Goldmund assistiu com raiva
e amargura ao incêndio de toda uma rua habitada por judeus, casa após
casa; em volta, a gentalha fazia grande alarido, e os fugitivos que tentavam
escapar, aos gritos, eram repelidos, sob a ameaça das armas, novamente
para dentro das chamas. Na insânia do pavor e do desespero, por toda a
parte se trucidavam, queimavam e torturavam inocentes. Goldmund tudo
testemunhava, cheio de raiva e nojo, parecia que o mundo estava destruído
e corrompido, parecia que já não havia alegria e inocência, que o amor
desaparecera da superfície da Terra. Muitas vezes, fugia para os
desenfreados festins dos adoradores da vida, por todo o lado soava a rabeca
da morte, e não tardou que reconhecesse o seu som; muitas vezes,
participou nas desesperadas orgias, dedilhando o alaúde ou dançando
frenéticas modas, ao clarão de archotes de pez, durante noites a fio.
Medo não tinha. Já provara o medo da morte naquela noite invernosa,
debaixo dos abetos, quando sentira os dedos de Viktor a estrangulá-lo, e
também em certos dias duros nas suas andanças, sob a ameaça da neve e da
fome. Mas sempre se tratara de uma morte contra a qual se podia lutar,
contra a qual ele se pudera defender – e fora isso mesmo que ele fizera,
defendera-se, com unhas e dentes, ao murro e ao pontapé, com o estômago
vazio e o corpo exausto, defendera-se e vencera, no final conseguira sempre
escapar. Mas com aquela morte da peste não era possível lutar, só se podia
deixá-la prosseguir no seu trabalho de devastação e sujeitar-se, e Goldmund
há muito que se sujeitara. Mas não sentia medo algum, parecia que a vida
não mais lhe interessava desde que deixara Lene para trás na cabana em
chamas, desde que calcorreava, dia após dia, aquele país assolado pela
morte. Contudo, uma colossal curiosidade impelia-o e mantinha-o atento e
desperto; incansável, continuava a testemunhar o labor da Grande Ceifeira,
a ouvir as trovas da transitoriedade; em parte alguma se escondia ou
desviava, em todo o lado o dominava a mesma silenciosa paixão que o
obrigava a estar presente para atravessar o inferno de olhos bem abertos.
Assim, comeu pão bolorento em casas abandonadas, cantou e embebedou-
se nos festins alucinados, colheu a breve flor fanada do prazer, viu o olhar
fixo e embriagado das mulheres, o olhar fixo e embrutecido dos ébrios, viu
apagar-se a luz nos olhos dos moribundos, amou as mulheres desesperadas
e febris, ajudou a transportar os mortos por um prato de sopa, ajudou, por
meia dúzia de vinténs, a tapar cadáveres nus com umas pazadas de terra. O
mundo era treva e tornara-se trevas e desvario, a morte uivava as suas
trovas, Goldmund escutava-a atentamente, com uma paixão ardente.
O seu objetivo era chegar à cidade do mestre Niklaus, era para lá que o
impelia a voz do coração. Longo era o caminho, cheio de morte,
decrepitude e agonia. Vergado pela tristeza, embriagado pela mortal canção,
prosseguia a sua jornada, absorvido pelo gritante sofrimento do mundo,
abatido e, todavia, ardente e de sentidos sempre alerta.
Num convento viu um fresco acabado de pintar e teve de se deter para o
observar longamente. Representava uma dança macabra em que o esqueleto
pálido da morte bailava com os humanos para os conduzir para fora da vida.
O rei, o bispo,
o abade, o conde, o cavaleiro, o médico, o camponês e o lansquenete, todos
eram por ela levados, enquanto outros músicos esqueletos a
acompanhavam, tangendo ossos ocos. O olhar sempre curioso de Goldmund
absorveu, ávido, aquela imagem. Um colega desconhecido tinha ali
representado a conclusão moral a tirar do que vira da morte negra e gritava
com todo o estridor aos ouvidos das pessoas o amargo sermão da
inevitabilidade da morte. Era boa a imagem, e a prédica também não era
má; não fora mal achado pelo colega desconhecido, e a forma como
concebera e esquiçara a ideia agradava-lhe, da composição ecoava um rufar
arrepiante de desordenadas ossadas. E, no entanto, não era aquilo que ele
próprio, Goldmund, tinha visto e sentido.
O que ali estava pintado era o ter de morrer, a severa e implacável
inevitabilidade do memento mori. Goldmund, porém, teria desejado uma
outra imagem, pois bem diferente lhe soava o cântico selvagem da morte:
não propriamente como um austero rodopiar de esqueletos, mas bem mais
doce e sedutor, de certa forma como um apelo maternal para um regresso a
casa. Onde quer que a morte estendesse a sua mão para a vida, a
ressonância que então se libertava não era só estridente e belicosa, mas
também profunda e carinhosa, outonal e saciada. E, na vizinhança da morte,
a candeiazinha da vida ardia ainda mais clara e íntima. Para outros, a morte
podia ser um guerreiro, um juiz ou um algoz, um pai austero – para ele, era
também mãe e amante, e o seu apelo uma amorosa atração, e o seu contacto
um deleitoso frémito. Depois de ter visto o fresco com aquela dança
macabra, Goldmund seguiu caminho, cada vez com mais vontade de
reencontrar o mestre e retomar a disciplina criativa. Mas em toda a parte
havia paragens, novas imagens e vivências; de narinas frementes, continuou
a inspirar o ar pestilento, por toda a parte a compaixão ou a curiosidade
levavam-lhe horas
ou dias. Durante três dias levou consigo, quase sempre às cos-
tas, um rapazito órfão de camponeses que não se cansava de chorar, um
desgraçadito esfomeado de uns cinco ou seis anos, que só lhe deu trabalhos
e de quem dificilmente se livrou. Por fim,
a mulher de um carvoeiro lá ficou com ele, morrera-lhe o marido e ela
queria ter algo vivo perto de si. Dias e dias acompanhou-o um cão vadio
que lhe vinha comer à mão e o aquecia quando dormia, mas, uma bela
manhã, sumiu-se e nunca mais voltou. Teve pena, habituara-se a falar com o
bicho, dirigia-lhe rebuscados discursos de meia hora sobre a maldade dos
humanos, sobre a existência de Deus e a arte, sobre os seios e as ancas da
filha de um certo cavaleiro, chamada Julie, que conhecera outrora, na sua
juventude. Naturalmente, também Goldmund enlouquecera um pouco
durante a sua longa travessia pelo país da morte, todas as pessoas no
território da peste tinham enlouquecido um pouco, e muitas delas perderam
por completo a sanidade mental. Quem talvez já estivesse também um
pouco louca era a jovem judia Rebekka, uma linda morena de olhos
faiscantes, com quem Goldmund ficou durante dois dias.
Encontrou-a no campo, diante de uma pequena cidade, agachada junto a
um monte calcinado, a carpir, a bater no rosto com os punhos e a arrepelar
os cabelos. Goldmund compadeceu-se daqueles cabelos tão belos, segurou-
lhe as mãos enfurecidas e tentou acalmá-la, e, ao fazê-lo, apercebeu-se de
que também o rosto e o corpo eram de grande formosura. Rebekka chorava
o pai, que, com mais catorze outros judeus, tinha sido queimado por ordem
das autoridades; apesar de ter conseguido fugir, ela regressara e, num estado
de absoluto desespero, culpava-se por não se ter deixado também queimar.
Goldmund continuou a segurar-lhe pacientemente as mãos trémulas e
tentou convencê-la suavemente a acalmar-se, murmurou-lhe algo para a
consolar e ofereceu-lhe proteção e ajuda. Ela exigiu-lhe que a ajudasse a
enterrar o pai, e os dois juntaram todos os ossos na cinza ainda quente,
levaram-nos para um sítio escondido no campo e cobriram-nos de terra.
Entretanto anoitecera e Goldmund procurou um sítio para dormir; preparou
num pequeno carvalhal uma camilha para a rapariga, prometeu-lhe que
ficava de vigia e ouviu-a, já deitada, continuar a chorar e a soluçar, até que,
por fim, adormeceu. Mais tarde, também ele dormitou um pouco e, na
manhã seguinte, começou a cortejá-la. Disse-lhe que não podia continuar
assim sozinha, que a reconheceriam como judia e a matariam; ou então
seria abusada por vagabundos depravados, e na floresta havia lobos e
ciganos. Mas se quisesse acompanhá-lo, ele protegê-la-ia dos lobos e dos
homens, pois tinha pena dela, e seria bom para ela, pois tinha olhos na cara
e sabia o que era a beleza, e nunca iria permitir que aqueles olhos tão doces
e inteligentes e aqueles ombros tão lindos fossem comidos pelas feras ou
acabassem como pasto das chamas na fogueira. Ela escutou-o com uma
expressão sombria, até que, de repente, levantou-se de um pulo e desatou a
fugir. Ele teve de a perseguir e agarrar, antes de prosseguir com os seus
argumentos.
– Rebekka – disse –, bem vês que não te quero fazer mal. Estás
desesperada, pensas no teu pai, por agora não queres saber do amor. Mas
amanhã ou depois de amanhã, ou seja quando for, vou voltar a perguntar-te
e até lá protejo-te, trago-
-te comida e não te toco. Entrega-te à tua mágoa o tempo que quiseres.
Comigo podes andar triste ou alegre, sempre poderás fazer o que mais te
aprouver.
Mas tudo era em vão. Não queria fazer nada que desse alegria, disse,
obstinada e furiosa, queria fazer o que causasse dor, nunca mais iria pensar
em algo como a alegria, e quanto mais depressa o lobo a comesse, melhor.
Ele que se fosse embora, em nada a podia ajudar, já tinham falado
demasiado.
– Ouve lá – disse-lhe ele –, não estás a ver que a morte se encontra em
todo o lado, que as pessoas andam a morrer em todas as casas e nas cidades
e que por toda a parte reina o sofrimento? Até a própria raiva dessa gente
bronca que queimou o teu pai não passa de aflição e sofrimento, provém de
um excesso de dor. Pensa bem, em breve a morte também nos virá buscar,
iremos apodrecer no campo e com as nossas ossadas vai brincar a toupeira.
Antes disso, vamos viver e dar-nos bem. Seria uma pena perder-se assim o
teu pescoço e o teu delicado pezinho! Vem comigo, minha linda, eu não te
toco, só quero ver-te e cuidar de ti.
Continuou ainda a suplicar e a insistir durante muito tempo, apesar de
subitamente sentir quão inútil, no fundo, era o seu esforço para convencê-la
com palavras e argumentos. Por fim calou-se e ficou a olhar para ela com
tristeza. O seu rosto, altivo e majestoso, estava rígido de recusa.
– É assim que vocês são – disse ela finalmente, com o ódio e o desprezo
a vibrarem-lhe na voz. – É assim que todos vocês são, os cristãos! Primeiro
ajudas uma filha a enterrar o pai que a tua gente assassinou e cuja unha do
dedo mindinho valia bem mais do que tu; e mal o serviço feito, exiges que a
rapariga te pertença e se amantize contigo. Assim são vocês! Primeiro
pensei que talvez fosses boa pessoa. Mas como poderias ser boa pessoa?!
Não, porcos é o que vocês todos são!
Enquanto ela falava, Goldmund viu-lhe brilhar nos olhos, para além do
ódio, algo que o comoveu e envergonhou e abalou profundamente. O que
ele viu nos seus olhos foi a morte, não o ter de morrer, mas antes o querer
morrer, o poder morrer,
a secreta aquiescência ao apelo da grande mãe.
– Rebekka – disse ele com voz sumida –, talvez tenhas razão. Não sou
uma pessoa boa, embora quisesse o teu bem! Perdoa-me. Só agora te
compreendo.
Tirou então o barrete, saudou-a com uma profunda vénia, como a uma
princesa, e afastou-se consternado; tinha de a deixar morrer. Durante muito
tempo ainda andou perturbado e incapaz de falar com alguém. Embora
aquela pobre e orgulhosa criança judia em nada se parecesse com Lydia,
havia algo que o fazia recordar a filha do cavaleiro. Amar mulheres como
elas só trazia sofrimento. Mas durante algum tempo julgou não ter amado
mais do que aquelas duas, a pobre e medrosa Lydia e a judia inacessível e
amarga.
Durante muitos dias ainda não conseguiu deixar de pensar na jovem
morena ardente, e chegou a sonhar com a beleza esbelta e escaldante do seu
corpo, que parecia destinado a uma fecunda plenitude e, afinal, se entregara
já à morte. Que horror pensar que aqueles lábios e aqueles seios iriam ser
sacrificados aos «porcos» e que acabariam a apodrecer num lameiro! Não
haveria poder ou sortilégio capaz de salvar aquelas flores preciosas? Sim,
havia: teria de as preservar vivas na sua alma, recriando-as de acordo com
os ditames da memória. Profundamente assustado e enlevado, sentiu então a
alma saturada de imagens e figuras, todas elas lavradas no seu íntimo
durante a longa travessia do país da morte. E como toda aquela tensão se
acumulava dentro de si, como desejava poder isolar-se em paz para
conseguir concentrar-se nelas e libertá-las, transformando-as em imagens
perenes! Prosseguiu caminho, talvez mesmo com mais ardor e anseio, ainda
e sempre com os olhos bem abertos e os sentidos despertos e curiosos, mas
já cheio de uma intensa saudade dos seus antigos materiais – o papel e o
lápis, o barro e a madeira, a oficina e o trabalho.
O verão passara. Muitos asseguravam que, com o outono, ou o mais
tardar com o início do inverno, a praga acabaria. Foi um triste outono,
Goldmund atravessou regiões onde não havia quem colhesse a fruta que
caía das árvores e apodrecia no chão; noutras paragens era pilhada e
desbaratada por hordas selvagens vindas da cidade em ferozes incursões.
Lentamente, aproximava-se do seu destino, e nesses últimos tempos era
frequente assaltá-lo o medo de que a peste o pudesse apanhar antes de ele lá
chegar e tivesse de morrer num qualquer curral. Agora já não queria morrer,
pelo menos antes de ter gozado a ventura de voltar a uma oficina para se
entregar ao trabalho criativo. Pela primeira vez na vida, o mundo parecia--
lhe demasiado vasto e o império germânico demasiado grande. Nenhuma
bonita cidadezinha o tentava a descansar, nenhuma linda criadita
camponesa o retinha por mais que uma noite.
Certa vez, passou por uma igreja em cujo portal se erguiam, em nichos
fundos, suportados por pequenas colunas adornadas, inúmeras e
antiquíssimas figuras de pedra. Eram estátuas de anjos, apóstolos e mártires,
semelhantes a tantas outras que ele já vira; no seu convento, em
Mariabronn, também as havia. Outrora, quando adolescente, gostara de as
observar, sem que no entanto sentisse um especial entusiasmo; pareciam-
-lhe belas e dignas, embora demasiado solenes e algo rígidas e antiquadas.
Mais tarde, lá para os finais da sua primeira grande peregrinação, quando se
sentira tão emocionado e encantado com a branda tristeza da madona do
mestre Niklaus, achara aquelas hieráticas estátuas em pedra do estilo
românico primitivo demasiado pesadas, inexpressivas e distantes e passara
a observá-las com uma certa arrogância, pois considerara que o novo estilo
do seu mestre representava uma arte muito mais viva, interiorizada e
espiritualizada. Agora, porém, que regressava do mundo com a alma a
transbordar de imagens e marcada pelas cicatrizes e os vestígios de
violentas aventuras e vivências, agora que sentia aquela dolorosa
necessidade de concentração e o desejo imperioso de iniciar um novo ciclo
criativo, aquelas severas e antiquíssimas figuras comoviam-no,
subitamente, com uma intensidade avassaladora. Dominado pelo espanto e
pelo respeito, deixou-se ficar na contemplação daquelas imagens
venerandas, nas quais perdurava ainda o pulsar de uma época pretérita, e
onde os medos e os êxtases petrificados de gerações há muito desaparecidas
desafiavam ainda, decorridos tantos séculos, a brevidade da vida. No seu
coração transtornado e selvagem elevou-se um fremente e humilde
sentimento de respeito e um pavor pela vida desbaratada e queimada, e fez
então aquilo que há tempos infindos não fazia: procurou um confessionário
para aí se confessar e ser submetido a uma penitência.
Embora não faltassem confessionários na igreja, padres não havia; uns
tinham morrido, outros estavam no hospital, e outros ainda tinham fugido,
tomados pelo temor do contágio.
A igreja estava vazia, os passos de Goldmund ressoavam cavos sob as
abóbadas de pedra. Ajoelhou diante de um confessionário, fechou os olhos
e murmurou para dentro de um dos locutórios:
– Meu Deus, vê o que foi feito de mim. Venho do mundo, onde me tornei
um homem mau e inútil. Desperdicei como um perdulário os meus anos de
juventude e pouco me resta. Matei, roubei, forniquei, deixei-me levar pela
vida fácil e comi o pão dos outros. Meu Deus, porque nos fizeste assim,
porque nos conduzes por tais caminhos? Não somos todos teus filhos? Não
foi por nós que o Teu Filho morreu? Não existem santos e anjos para nos
guiarem? Ou não passará tudo isso de fábulas inventadas para contar às
crianças, e de que até os padres se riem? Não consigo compreender-Te,
Deus Pai, criaste um mundo mau e pareces incapaz de o manter em ordem.
Vi casas e ruas juncadas de mortos, vi os ricos entrincheirarem-se dentro
das suas mansões ou fugirem, e os pobres abandonarem os seus irmãos sem
os sepultarem; vi-os acusarem-se uns aos outros e matarem os judeus como
quem abate gado. Vi morrer e sofrer tantos inocentes e tantos malvados
nadarem num mar de rosas. Será que nos esqueceste e abandonaste por
completo? Estás assim tão desgostoso da tua obra? Queres deixar-nos
sucumbir a todos?
Saiu pelo alto portal e, suspirando, olhou para as silenciosas estátuas de
pedra: anjos e santos, secos e altos nas suas vestes pregueadas e hirtas,
imóveis, inatingíveis, sobre-humanos e, contudo, criados pela mão e pelo
espírito do homem. Austeros e indiferentes, erguiam-se lá em cima, no seu
espaço estreito, inacessíveis a súplicas e dúvidas. E, no entanto, ao
sobreviverem na sua imutável dignidade e beleza às sucessivas gerações
desaparecidas com todos os seus anseios e porfias, eles representavam um
infinito consolo e uma triunfante vitória sobre a morte e o desespero. Oh, se
ali pudessem estar também a pobre e bela Rebekka, a judia, e a sua pobre
Lene, queimada com a cabana, e a bela Lydia, e o mestre Niklaus…! Mas
também eles se ergueriam, um dia, e perdurariam; ele próprio os iria moldar
e levantar, e as suas imagens, que por agora não significavam para ele mais
do que um conflito de amor e tortura, angústia e paixão, seriam mais tarde,
para os vindouros, serenos e silenciosos símbolos da vida humana,
anónimos e sem história.
XV

Estava finalmente alcançada a meta e Goldmund, entrou na almejada


cidade pela mesma porta de outrora, pela qual passara pela primeira vez, há
tantos anos, para procurar o seu mestre. Várias notícias lhe tinham chegado
da cidade episcopal à medida que se fora aproximando; sabia que a peste
também lá grassara e talvez ainda grassasse, ouvira falar de tumultos e
motins populares e contava-se que chegara um governador enviado
expressamente pelo imperador para repor a ordem, promulgar leis de
emergência e proteger os bens e a vida dos cidadãos. O bispo abandonara a
cidade logo que se declarara a epidemia e residia longe, num dos seus paços
no campo. Todas essas notícias pouco lhe interessaram. Para ele, o
importante era que a cidade se mantivesse de pé, juntamente com as
oficinas onde queria trabalhar! Tudo o resto era-lhe indiferente. Quando
chegou, já a peste acabara. Esperava-se o regresso do bispo e todos se
alegravam com a saída do governador e o retorno à vida habitual e pacífica.
Ao tornar a ver a cidade, o coração de Goldmund foi invadido por uma
onda de emoção até então nunca sentida. Reconhecia tudo, sentia que
chegara a casa e, para se dominar, teve mesmo de pôr uma expressão quase
carrancuda, tão pouco habitual nele. Tudo estava ainda no seu lugar: as
portas da cidade, as belas fontes, as duas torres – a antiga e maciça da
catedral e a nova e esbelta da igreja de Santa Maria –, o repenicar dos sinos
da catedral de São Lourenço e o esplendor da vasta praça do mercado! Que
bom que tudo aquilo tivesse esperado por ele! Não sonhara ele, uma vez,
quando vinha a caminho, que ao chegar ali encontrava tudo estranho e
alterado, em parte destruído e em escombros, em parte irreconhecível
devido a novas construções e insólitos e desproporcionados sinais? Estava à
beira das lágrimas quando se pôs a percorrer as ruas e reconheceu casa após
casa. Não seriam afinal dignos de inveja os sedentários, bem instalados nas
suas casas bonitas e seguras, na sua resguardada existência burguesa,
tranquilamente conscientes da própria identidade e da sua pertença, bem
ancorados nas suas rotinas entre o lar e a oficina, a mulher e os filhos, a
criadagem e a vizinhança?
A tarde ia a meio e, no lado ensolarado da viela, as casas, com as
tabuletas das estalagens e das diversas corporações, as portas lavradas e os
vasos de flores, estavam envoltas numa poalha de luz quente; nada fazia
lembrar então que também naquela cidade grassara a morte e reinara a
psicose demencial dos homens. Sob os arcos murmurantes da ponte, o rio
claro e cristalino corria em tons frescos de um verde vivo e azul-claro.
Goldmund sentou-
-se durante algum tempo no parapeito do muro da margem. Lá em baixo
continuavam a ver-se os contornos escuros dos peixes, deslizando no verde
cristal ou imóveis, de bocas voltadas contra a corrente; aqui e ali viam-se
ainda refulgir da penumbra do fundo aquelas ténues manchas douradas, tão
auspiciosas e favoráveis ao devaneio. Tudo isso se encontrava noutros rios,
e outras pontes e cidades havia que eram igualmente belas de se ver; e, no
entanto, parecia-lhe que há muito não via nem sentia algo assim.
Dois jovens açougueiros conduziam entre risadas uma vitela e trocaram
olhares e gracejos com uma criada que apanhava roupa estendida num
caramanchão por cima deles. Como tudo passava veloz! Ainda há pouco
tinham ali ardido as fogueiras da peste e reinado os terríveis guardas dos
hospitais, e agora a vida prosseguia como dantes, as pessoas riam e
gracejavam; e com ele próprio passava-se o mesmo – ali estava ele sentado
na margem, encantado com aquele reencontro, cheio de gratidão e
compreensão até para com os sedentários, como se não tivesse
testemunhado a miséria e a morte, como se Lene e a princesa judia nunca
tivessem existido. Levantou-se com um sorriso e continuou a andar; só
quando se aproximou da viela onde morava o mestre Niklaus e tomou
novamente o caminho que outrora percorrera diariamente para ir trabalhar é
que começou a sentir pesarem-lhe no coração a angústia e a inquietação.
Estugou o passo, queria apresentar-se ainda hoje ao mestre e saber o que o
esperava, não suportava mais adiamentos, a possibilidade de ter de esperar
até ao dia seguinte parecia-lhe insuportável. Estaria o mestre ainda zangado
com ele? Tudo acontecera há já tanto tempo que não acreditava que tivesse
ainda importância; e se tivesse, ele iria conseguir ultrapassar os
desentendimentos. Se o mestre ainda lá se encontrasse, ele e a oficina, então
estava certo de que tudo se resolveria. Apressadamente, como se no último
momento ainda pudesse perder algo por chegar atrasado, dirigiu-se para o
edifício tão seu conhecido, deitou a mão à aldraba da porta e assustou-se
terrivelmente quando viu que a porta estava fechada. Seria mau sinal?
Antigamente, aquela porta nunca estivera trancada durante o dia. Deixou
cair a aldraba com estrondo e esperou. De repente, sentia-se profundamente
angustiado e ansioso.
Apareceu a mesma velha criada que o recebera outrora, quando pela
primeira vez procurara aquela casa. Não estava mais feia, mas parecia bem
mais velha e antipática e não reconheceu Goldmund, que lhe perguntou
logo pelo mestre. Ela fitou-o com um ar bronco e desconfiado.
– Mestre? Não vive aqui nenhum mestre. Siga o seu caminho, homem,
ninguém pode entrar.
Quis empurrá-lo para fora da entrada; ele agarrou-lhe um braço e gritou-
lhe:
– Por amor de Deus, Margrit, conta-me lá o que se passa! Sou eu, o
Goldmund; então, já não me conheces? Tenho de ver o mestre Niklaus.
Naqueles olhos cansados e mortiços não brilharam boas--vindas.
– Já não mora cá nenhum mestre Niklaus – disse ela, áspera. – Ele já
morreu. Agora ponha-se a andar, que não posso ficar aqui todo o tempo a
tagarelar.
Goldmund sentiu que tudo se desmoronava dentro dele; afastou com um
empurrão a velha, que se pôs a correr atrás dele aos gritos, e precipitou-se
pelo corredor escuro em direção à oficina. Estava fechada. Seguido pelas
lamúrias e os insultos da velha, subiu a correr a escada, até à sala que tão
bem conhecia, onde na penumbra viu as esculturas da coleção do mestre.
Chamou em voz alta por Lisbeth.
A porta do quarto abriu-se e Lisbeth apareceu. Quando a reconheceu,
depois de ter olhado duas vezes, ficou consternado com a visão que se lhe
deparava. Se tudo naquela casa lhe parecera fantasmagórico e enfeitiçado
como um cenário de pesadelo desde o instante em que, para seu grande
susto, encontrara a porta fechada, agora, ao ver Lisbeth, percorreu-o
realmente um calafrio; a bela e orgulhosa Lisbeth transformara--se numa
velha donzela trôpega e curvada, vestida de negro sem qualquer adorno,
com um rosto macilento e doentio, um olhar inseguro e gestos
amedrontados.
– Perdoai – exclamou Goldmund. – A Margrit não me queria deixar
entrar. Não me reconheceis? Sou eu, o Goldmund. Dizei-me se é verdade
que o vosso pai faleceu?
O olhar dela revelou que acabara de o reconhecer e, simultaneamente,
que a sua memória não era ali benquista.
– Sois então Goldmund? – disse, e na voz notavam-se vestígios da antiga
arrogância. – Em vão vos incomodastes a vir até aqui. O meu pai faleceu.
– E a oficina? – exclamou intempestivamente.
– A oficina? Está fechada. Se é trabalho que procurais, tereis de ir bater a
outra porta.
Goldmund tentou reagir.
– Menina Lisbeth – disse amavelmente –, não procuro trabalho, vim só
saudar-vos, a vós e ao mestre. Entristece-me tanto o que acabo de ouvir!
Vejo que passastes um mau bocado. Se um discípulo agradecido do vosso
pai vos pode ser de algum préstimo, dizei, teria o maior gosto em poder
servir-vos. Destroça-me o coração ver-vos assim… em tão grande pesar,
menina Lisbeth.
Ela recolheu-se para dentro do quarto.
– Obrigada – disse, hesitante. – Já não lhe podereis prestar nenhum
serviço, e a mim também não. A Margrit acompanha--vos à porta.
Soava a falso a sua voz, meio zangada, meio receosa. Goldmund sentiu
que só por falta de coragem não o pusera na rua com uma descompostura.
No momento seguinte já estava lá fora, já a velha fechara a porta e
correra as trancas. Ainda ouviu o bater duro das duas trancas, pareceu-lhe o
bater da tampa de um caixão.
Voltou devagar para o muro da margem e foi sentar-se no lugar habitual.
O Sol já se pusera, da água vinha um frio húmido, fria era a pedra onde se
sentara. A viela da margem silenciara-se, a corrente marulhava de encontro
aos pilares da ponte, no fundo escuro nenhuma cintilação dourada reluzia.
Quem me dera deixar-me cair e desaparecer no rio, pensou. O mundo
estava novamente cheio de morte. Uma hora decorreu e a noite sucedeu ao
crepúsculo. Finalmente, conseguiu chorar. Deixou--se ficar ali sentado a
chorar e as lágrimas caíam-lhe quentes pelas mãos e nos joelhos. Chorou
pelo mestre morto, chorou pela beleza perdida de Lisbeth, chorou por Lene,
por Robert e pela rapariga judia. Chorou pela sua juventude esbanjada e
acabada.
Mais tarde, deu consigo numa taberna que outrora costumava frequentar
com colegas. A patroa reconheceu-o; Goldmund pediu-lhe um pedaço de
pão, e ela, simpaticamente, trouxe-lhe também um copo de vinho. Não
conseguiu acabar nem uma coisa nem outra. Passou a noite deitado num
banco da taberna. A dona acordou-o de manhã, ele agradeceu e foi-se
embora; de caminho, comeu o pão.
Dirigiu-se para o mercado do peixe, onde encontrou a casa na qual
alugara um quarto. Junto à fonte, umas varinas ofereciam a sua mercadoria
viva. Goldmund olhou para as celhas e viu os belos animais brilhantes.
Lembrou-se então de que antigamente gostava de os observar e que muitas
vezes sentira dó dos peixes e raiva perante a insensibilidade das varinas e
dos compradores. Lembrou-se de, certa vez, ter passado ali uma manhã a
olhar para os peixes, cheio de compaixão, e que sentira uma tristeza
profunda; já passara muito tempo desde então, muita água tinha corrido por
baixo daquela ponte. Sim, sentira-se tristíssimo, disso ainda se lembrava,
mas já não sabia bem porquê. Assim era a vida: também a tristeza acabava
por passar, até as dores e o desespero eram transitórios, tal como as alegrias,
todas elas passavam, desvaneciam-se, perdiam a profundidade e o valor, até
que chegava uma altura em que uma pessoa já não se recordava do que a
fizera sofrer tanto. Também as dores estiolavam e secavam. Iria aquela dor,
agora tão presente, também murchar, um dia, e tornar-se irrelevante, a sua
dor e o desespero por o mestre
ter morrido zangado com ele e o desespero por não ter acesso a uma oficina
que lhe permitisse desfrutar da ventura da criação e libertar-se de todas
aquelas imagens que lhe pesavam na alma? Sim, sem dúvida, também
aquela dor, aquela amarga aflição iria, um dia, envelhecer e esgotar-se,
também ela acabaria no esquecimento. Nada era duradoiro, nem sequer o
sofrimento.
Estava ele entretido a olhar para os peixes, entregue àqueles
pensamentos, quando uma voz suave pronunciou delicadamente o seu
nome.
– Goldmund – disse alguém timidamente, e, quando se voltou, viu uma
rapariguinha franzina, com um aspeto doentio e uns belos olhos escuros,
que não reconheceu.
– Goldmund! És tu, não és? – insistiu a rapariguinha.
– Há quanto tempo voltaste à cidade? Já não me conheces? Sou eu, a Marie.
Mas Goldmund não a reconheceu, e ela teve de lhe explicar que era a
filha dos seus antigos hospedeiros. Lembrou-lhe que fora ela quem lhe
aquecera um copo de leite na madrugada em que ele partira, e, ao dizer
aquilo enrubesceu muito.
Sim, era a Marie, aquela débil criança com um defeito na anca, que na
altura fora tão querida e tímida para com ele. Agora lembrava-se novamente
de tudo: naquela madrugada fria, ela esperara por ele, muito triste por vê-lo
partir. Ela aquecera-lhe o leite e ele dera-lhe um beijo, que ela recebera
solenemente, com todo o recato, como quem recebe um sacramento. Nunca
mais pensara nela. Na altura era ainda uma criança. Agora crescera
e continuava com aqueles olhos lindos, mas anda manquejava e parecia-lhe
um pouco enfezada. Estendeu-lhe a mão. Sentia-se feliz por haver ainda
alguém naquela cidade que o conhecia e o recordava com carinho.
Marie levou-o consigo, e ele poucas objeções pôs. Em casa dos pais, na
sala onde o seu quadro continuava exposto na parede e o copo vermelho
ainda adornava a chaminé, almoçou com a família e foi convidado a ficar
uns dias. Todos pareciam contentes por tornarem a vê-lo. Foi também ali
que veio a saber o que acontecera na casa do mestre. Niklaus não morrera
com a peste, a bela Lisbeth é que adoecera e ficara às portas da morte; o pai
tratara-a até à exaustão e acabara por morrer antes de a filha recuperar. Ela
salvara-se, mas perdera toda a beleza.
– A oficina está vazia – contou o dono da casa – e para um entalhador
competente está ali uma bela residência e dinheiro à farta. Pensa bem no
assunto, Goldmund! Ela não te iria rejeitar. Não tem outra escolha.
Contaram-lhe também outros acontecimentos do tempo da peste; a
escumalha incendiara primeiro um hospital e começara depois a assaltar e a
pilhar as casas dos ricos, durante algum tempo não houvera ordem nem
segurança dentro da cidade, pois o bispo tinha fugido. O imperador, que na
altura se encontrava perto, enviara-lhes um governador, o conde Heinrich. E
havia que admitir, o homem era teso das orelhas, e com meia dúzia de
cavaleiros e soldados restabelecera a ordem dentro da cidade. Mas agora já
ia sendo tempo de pôr termo à sua governação, a qualquer momento era
esperado o regresso do bispo. O conde tinha posto à prova a paciência da
burguesia local e todos estavam já bastante fartos, dele e sobretudo da
concubina, uma tal de Agnes, que era um verdadeiro demónio. Mas pronto,
já pouco faltava para se verem livres deles; os vereadores estavam cansados
de suportar, em vez de um bispo benevolente, um cortesão e guerreiro
favorito do imperador, que passava a vida a receber delegações e
embaixadas, como se fosse um príncipe.
Chegou então a altura de interrogarem o hóspede sobre as suas
experiências.
– Oh – disse ele –, nem vos conto. Andei e andei, e por toda a parte
grassava a peste e havia mortos espelhados por todo o lado, e aonde quer
que fosse parar, o medo tinha tornado as pessoas loucas e más. Lá me safei,
e talvez consiga esquecer tudo. E agora volto e venho a saber que o meu
mestre morreu! Deixem-
-me ficar aqui uns dias a descansar, até voltar de novo à estrada.
Ficou, mas não foi apenas para descansar. Ficou porque se sentia
desencantado e indeciso, porque gostava daquela cidade, onde em cada
esquina se deparava com uma lembrança e porque o amor da pobre Marie
lhe fazia bem. Não lho conseguia retribuir, nada mais tinha para lhe dar
além de afeto e compaixão, mas a sua adoração silenciosa e humilde
reconfortava-o. Mais do que tudo, porém, retinha-o a necessidade imperiosa
de retomar a criação artística, mesmo sem oficina, mesmo tendo de recorrer
a expedientes.
Durante meia dúzia de dias, Goldmund não fez mais que desenhar. Marie
arranjara-lhe papel e pena e ele passava horas seguidas refugiado no seu
quarto a desenhar, preenchendo as grandes folhas com figuras, umas
esboçadas à pressa, outras concluídas com mão segura e sensível. E assim,
pouco a pouco, foi conseguindo transpor para o papel o álbum ilustrado que
lhe povoava a alma. Desenhou inúmeras vezes o rosto de Lene, a expressão
daquele seu sorriso, cheio de satisfação, amor e crueldade triunfal, depois
da morte do assaltante, e aquele seu outro rosto na derradeira noite, já
desfigurada e informe e prestes a fundir-se com a terra. Desenhou um
pequeno camponês, uma criaturinha que encontrara um dia tombada de
borco e com os punhos cerrados à porta do quarto dos pais. Desenhou uma
carroça cheia de cadáveres, puxada por três esforçadas pilecas e ladeada
pelos cangalheiros, com longas varas e um olhar sinistro de soslaio por
debaixo das máscaras negras da peste. Desenhou incansavelmente uma e
outra versão da rapariga judia, a esbelta Rebekka dos olhos escuros, o
trejeito altivo e amargo nos seus lábios estreitos, o rosto dominado pela dor
e pela indignação, a sua figura jovem e bela, que parecia ter sido feita para
o amor. Desenhou-se a si próprio, como andarilho, como amante e fugitivo
perante a ameaça da morte, e como bailador endiabrado nas orgias dos
insaciáveis da vida durante a peste. Entregue ao fluir da memória,
debruçado sobre o papel branco, desenhou os contornos firmes e a
expressão altiva do rosto da menina Lisbeth, tal como a conhecera, a
carantonha da velha criada Margrit, o rosto querido e temido do seu mestre
Niklaus. Por mais de uma vez chegou também a esboçar com traços firmes
e nervosos um grande vulto feminino, o da grande mãe, sentada com as
mãos pousadas no colo, o sopro de algo como um sorriso a insinuar-se sob
o olhar melancólico. Todo aquele fluir, a energia que se transmitia para a
mão que desenhava, o domínio das fisionomias, tudo isso lhe fez
imensamente bem. Em poucos dias encheu com desenhos todas as folhas
que Marie lhe trouxera; da última recortou uma parte, para lá desenhar com
breves traços o rosto de Marie com os belos olhos e a boca resignada. No
final, ofereceu-lhe o retrato.
Através do desenho tinha conseguido aliviar todo o peso e a sensação de
opressão que se acumulara na sua alma. Enquanto desenhava, perdia a
noção do sítio onde estava, o seu mundo consistia apenas na mesa, no papel
branco e na vela que acendia à noite. Agora acordava, lembrava-se das
vivências mais recentes e via surgir à sua frente, inadiáveis, novas
peregrinações; começou então a vaguear pela cidade, dominado por uma
estranha e ambígua sensação de reencontro e despedida.
Num desses périplos deparou-se com uma mulher cuja visão pareceu
organizar instantaneamente, a partir de um novo foco, toda a desordem que
se instalara nos seus sentimentos.
Ela montava um cavalo, era alta e loira, de olhos azuis, curiosos e algo
frios, robusta e esbelta e com um rosto intenso, onde se sentia o prazer da
fruição e do poder, um rosto perfeitamente seguro de si e cheio de uma
expectante curiosidade sensual. Montava com um garbo altivo o seu cavalo
castanho, via-se que estava habituada a mandar, mas não parecia fechada
nem inacessível; pelo contrário, sob o olhar algo calculista, as narinas
abriam-se a todos os aromas do mundo e a grande boca descontraída
parecia dominar plenamente a arte de dar e receber. No preciso instante em
que a viu, Goldmund sentiu-se completamente desperto e cheio de desejos
de se medir com aquela mulher orgulhosa. Conquistá-la pareceu-lhe um
nobre objetivo, e se para isso acabasse por partir o pescoço, não lhe lhe
parecia uma morte vã. Sentiu imediatamente que aquela leoa loira era igual
a ele, rica nos sentidos e na alma, aberta a todas as tempestades, tão
selvagem quanto terna, e por atávica experiência do sangue conhecedora
das paixões.
Ela passou e Goldmund seguiu-a com o olhar; por entre os caracóis
loiros e a gola de veludo azul viu-lhe a nuca firme, altiva e, no entanto, com
uma pele de uma delicadeza infantil. Pareceu-lhe a mulher mais bela que
ele jamais vira. Queria segurar-lhe aquela nuca e arrancar àqueles olhos o
segredo do seu frio azul. Não foi difícil descobrir de quem se tratava. Soube
que morava no palácio, se chamava Agnes e era a amante do governador;
não se admirou, por ele poderia ser até a própria imperatriz. Goldmund
parou diante de uma fonte para ver a sua imagem refletida. O que viu
condizia em tudo com a dela, simplesmente estava agora demasiado
descurada. Foi logo ter com um barbeiro que conhecia e convenceu-o a
cortar-lhe e pentear-lhe com esmero o cabelo e a barba.
A perseguição durou dois dias. Agnes saía do palácio e o loiro
desconhecido já lá estava, junto ao portão, fitando-a, olhos nos olhos, cheio
de admiração. Agnes ia dar um passeio a cavalo, em redor das fortificações,
e o desconhecido surgia-lhe, vindo dos amieiros. Agnes ia ao joalheiro e, ao
sair da oficina, deparava com o estranho. Dirigia-lhe um breve olhar altivo,
de relance, e as suas narinas vibravam. Na manhã seguinte, ao vê-lo de
novo disponível e à espera quando saiu para a cavalgada matinal, lançou-
lhe um sorriso de desafio. Goldmund também viu o conde, o governador da
cidade; era um homem imponente, de aspeto audaz, tinha de ser levado a
sério; mas o seu cabelo já era grisalho e o rosto estava marcado por rugas de
preocupação, Goldmund sentiu-se superior a ele.
Aqueles dois dias deixaram-no feliz, irradiava uma juventude
recuperada. Como era belo mostrar-se àquela mulher e lançar-lhe o seu
desafio. Como era belo sacrificar a liberdade para conquistar aquela beleza.
Era belo e profundamente excitante arriscar a vida naquele lance.
Na manhã do terceiro dia, Agnes saiu pelo portão do palácio, montada e
acompanhada por um serviçal também a cavalo. Os seus olhos procuraram
imediatamente o perseguidor, beligerantes e algo inquietos. Certo, ele já lá
estava. Despachou o servo com uma incumbência e seguiu sozinha,
devagar, em direção à porta inferior da ponte, que atravessou com o cavalo
a passo. Só se virou uma única vez para confirmar que ele a seguia.
Esperou-o no caminho para a igreja das romarias a S. Vito, que nessa altura
do ano era um sítio solitário. Teve de esperar meia hora, o estranho
caminhava devagar, não pretendia chegar ofegante. Veio ter com ela fresco
e sorridente, com a haste de uma rosa brava escarlate entalada entre os
dentes. Ela tinha desmontado e atado o cavalo; estava encostada ao muro
coberto de hera a olhar para o perseguidor. Ele parou diante dela e tirou a
boina, sem desviar os olhos
dos dela.
– Porque andas atrás de mim? – perguntou-lhe ela. – Que queres de
mim?
– Oh! – exclamou ele. – Tenho muito mais a oferecer-te do que a receber
de ti. Quero oferecer-me a ti como presente, bela mulher; faz comigo o que
bem te aprouver.
– Bom, verei o que se pode fazer contigo. Mas se pensaste que podias
colher aqui fora uma florzinha sem qualquer perigo, estás muito enganado.
Só posso amar homens capazes de arriscarem a vida por mim.
– Estou às tuas ordens.
Lentamente, tirou do pescoço um fio de ouro e entregou--lho.
– Como te chamas?
– Goldmund.
– Bem, Goldmund, hei de ver se essa tua boca é mesmo de ouro. Agora
escuta bem: hoje ao fim da tarde vais mostrar esse fio no castelo e dizes que
o encontraste. Não o entregas a ninguém, quero ser eu a recebê-lo das tuas
mãos. Apareces assim como estás, quero que pensem que és um mendigo.
Se algum dos criados refilar ou te tratar com desprezo, mantém a calma.
Quero que saibas que só confio em duas pessoas no castelo: no palafreneiro
Max e na minha aia Berta. Tens de conseguir chegar a um dos dois e pedir-
lhe que te leve até mim. Tem cuidado com todos os outros que encontrares
no castelo, incluindo o conde, porque são inimigos. Estás avisado. Pode
custar-te a vida.
Estendeu-lhe a mão, que ele agarrou sorridente. Beijou-a, tocando-lhe ao
de leve com a face. Depois guardou o fio e afastou-se, descendo a encosta,
em direção ao rio e à cidade. Os vinhedos já estavam despidos e o vento
fazia revolutear as folhas amarelas das árvores. Goldmund abanou
sorridente a cabeça quando, ao olhar para a cidade que se estendia lá em
baixo, a achou tão simpática e agradável. Ainda há poucos dias lhe parecera
tão triste, triste até pela própria transitoriedade da miséria e da dor. E agora
também elas tinham, de facto, passado, arrancadas como a folhagem
dourada das hastes. Parecia-lhe que nunca o amor lhe surgira tão
resplandecente como naquela mulher, cuja figura alta e loira e cheia de
alegria e pujança lhe fazia lembrar a imagem da sua própria mãe, tal como a
guardara no coração durante a adolescência em Mariabronn. Há dois dias
nunca teria achado possível que o mundo pudesse voltar a sorrir-lhe daquela
maneira, e que pudesse voltar a sentir correr-lhe nas veias o caudal da vida,
da alegria e da juventude de uma forma tão cheia e impetuosa. Que bom era
estar ainda vivo, que sorte ter sido poupado pela morte durante todos
aqueles meses terríveis!
Ao fim da tarde dirigiu-se para o castelo. No pátio reinava uma grande
azáfama. Desaparelhavam-se bestas, serviçais corriam de um lado para o
outro, um pequeno grupo de sacerdotes e dignitários da Igreja eram
conduzidos pelos lacaios através da porta interior pela escadaria acima.
Goldmund quis segui-los, mas foi impedido pelo porteiro. Mostrou então o
fio de ouro e disse que lhe tinham dado ordens para só o entregar à senhora
ou à sua aia. Deram-lhe um criado para
o guiar e esperou muito tempo nos corredores. Por fim, surgiu uma mulher
ligeira e bonita, que, ao passar, lhe perguntou em voz baixa: «Sois
Goldmund?», e logo lhe fez sinal para que a seguisse. Silenciosamente,
desapareceu por detrás de uma porta, para voltar, decorrido algum tempo, e
o mandar
entrar.
Goldmund viu-se então numa pequena antecâmara impregnada de
intensos e variados aromas, a peles e a perfumes doces, e cheia de vestidos
e capas; chapéus femininos pendiam de cabides de madeira e numa arca
aberta viam-se imensos pares de sapatos. Ali esperou uma boa meia hora;
entreteve-se a aspirar o perfume dos vestidos, passou a mão pelas peles,
sorrindo enquanto observava, cheio de curiosidade, todos aqueles belos
atavios ali pendurados.
Finalmente, a porta interior abriu-se e quem surgiu não foi a aia, mas a
própria Agnes, trajando um vestido azul-claro, com uma estola de pele
branca a cobrir-lhe o pescoço. Avançou lentamente para ele, passo a passo,
observando-o com uma expressão séria nos frios olhos azuis.
– Tiveste de esperar – disse em voz baixa. – Creio que agora estamos
seguros. O conde recebe uma delegação eclesiástica. Vão ficar para o jantar
e as negociações ainda vão demorar, as sessões com os padres duram
sempre muito tempo. A hora pertence-nos. Sê bem-vindo, Goldmund.
Inclinou-se para ele, os seus lábios desejosos aproximaram-se dos dele,
silenciosamente, saudaram-se no primeiro beijo. Calmamente, ele fechou a
mão à volta da sua nuca. Agnes conduziu-o através da porta para o seu
quarto, de pé-direito alto e iluminado com velas. Numa mesa estava
preparada uma refeição; sentaram-se, e ela, atenciosa, serviu-lhe pão,
manteiga e umas fatias de carne e encheu um belo copo azulado com vinho
branco. Comeram, beberam ambos do mesmo cálice azulado, os seus dedos
trocaram, brincando, as primeiras carícias.
– Que ventos te trouxeram para cá, meu belo pássaro? De onde vens? –
perguntou-lhe. – És um guerreiro, um trovador, ou simplesmente um pobres
andarilho?
– Sou tudo o que quiseres – respondeu, rindo baixinho.
– Sou todo teu. Se assim o desejares, serei um trovador, e tu serás o meu
doce alaúde; e quando tocar com os meus dedos no teu pescoço, ouviremos
os anjos cantar. Vem, meu doce coração, não foi pelas tuas iguarias nem
pelo vinho branco que aqui vim. Só vim por ti.
Silenciosamente, tirou-lhe a estola de pele branca e despiu-a com galante
persuasão.
Podiam, lá fora, os cortesãos e os padres afadigar-se nas suas reuniões,
podiam os serviçais correr furtivos pelos corredores e a foice delgada da
Lua afundar-se por completo por detrás do arvoredo, que os amantes de
nada sabiam. Para eles abria-se o paraíso; mutuamente atraídos e abraçados,
perderam-se na sua noite perfumada, viram madrugar os seus alvos
segredos florais, colheram com mãos delicadas e gratas os seus frutos
desejados. Nunca o trovador tangera tão perfeito alaúde, nunca o alaúde
vibrara sob dedos tão fortes e virtuosos.
– Goldmund – segredou-lhe ela, arrebatada –, que belo feiticeiro me
saíste! De ti, meu bicho dourado, quero ter um filho. E mais ainda quero
morrer nas tuas mãos! Bebe-me, amor, funde-me, mata-me!
Bem no fundo da garganta, Goldmund sentiu vibrar um som exultante,
ao ver fundir-se e desvanecer-se a dureza nos seus olhos frios. Com um
derradeiro frémito, perpassou um delicado tremor pelo fundo dos seus
olhos, extinguindo-se como a tremura na pele de um peixe agonizante,
dourado e baço como o brilho mágico das cintilações no leito do rio. Toda a
aventura humanamente possível pareceu-lhe desembocar naquele instante.
Logo a seguir, enquanto ela permanecia ainda deitada, de olhos fechados,
a tremer, ele levantou-se sem fazer barulho e vestiu-se. Com um suspiro,
disse-lhe ao ouvido:
– Deixo-te agora, meu doce tesouro. Não quero morrer, não quero ser
assassinado por esse conde. Primeiro quero voltar a ser tão feliz contigo
como hoje. Uma vez mais, e muitas outras ainda!
Ela deixou-se ficar deitada, em silêncio, até ele se ter vestido.
Cuidadosamente, ele cobriu-a com a manta e beijou-lhe os olhos.
– Goldmund – disse ela –, que pena teres de te ir embora! Volta amanhã!
Se houver perigo, aviso-te! Volta amanhã, volta!
Puxou pelo cordão de uma campainha. À porta da antecâmara esperava-o
a aia, que o conduziu para fora do palácio. Bem gostaria de lhe ter dado
uma moeda de ouro; por um instante envergonhou-se da própria pobreza.
Por volta da meia-noite estava no mercado do peixe, a olhar
para a casa. Era tarde, já ninguém devia estar acordado; provavelmente, iria
ter de passar a noite ao relento. Para seu grande espanto, encontrou a porta
ainda aberta. Entrou silenciosamente, fechando-a atrás de si. Para ir para o
seu quarto tinha de passar pela cozinha, onde havia luz. Marie estava
sentada à mesa, junto a uma minúscula lamparina. Tinha acabado de
adormecer, depois de ter esperado duas ou três horas por ele. Acordou
sobressaltada quando ele entrou.
– Oh! – exclamou ele. – Então ainda estás a pé?!
– Fiquei acordada – disse ela. – Senão tinhas encontrado a porta
trancada.
– Desculpa ter-te feito esperar, Marie. É já tão tarde. Não fiques zangada
comigo.
– Nunca me zango contigo, Goldmund. Só fico um bocadinho triste.
– Não quero que fiques triste. Porquê triste?
– Ah, Goldmund, como gostaria de ser saudável e bela e forte. Então não
precisavas de entrar noutras casas durante a noite para amar outras
mulheres. Talvez então ficasses comigo e me acarinhasses um pouco.
Não havia esperança na sua voz suave, nem amargura, apenas tristeza.
Goldmund deixou-se ficar junto dela, envergonhado, sentia tanta pena que
não sabia o que dizer. Pousou-lhe cuidadosamente a mão na cabeça e
acariciou-lhe o cabelo; ela deixou--se ficar quieta, estremeceu ao sentir a
mão dele no seu cabelo
e chorou um pouco; depois endireitou-se e disse timidamente:
– Vai agora para a cama, Goldmund. Estou com tanto sono que só me dá
para dizer disparates. Boa noite.

XVI

Goldmund passou o dia vagueando pelas colinas, cheio de uma


impaciência feliz. Se tivesse um cavalo, teria ido até ao convento ver a bela
madona do seu mestre; sentia o desejo de a ver uma vez mais, também lhe
parecia que tinha sonhado com o mestre Niklaus durante a noite. Mas
ficaria para depois. Mesmo que aquele encanto apaixonado com Agnes
durasse pouco, mesmo que acabasse mal – por agora florescia, não queria
desperdiçá-lo. Pretendia manter-se longe das pessoas, para que não o
distraíssem, queria passar todo aquele suave dia de outono lá fora, sob as
árvores e as nuvens. Dissera a Marie que estava a pensar dar uma volta pelo
campo e que devia voltar tarde, pedira-lhe que lhe arranjasse um bom
pedaço de pão e que não esperasse por ele à noite. Ela nada dissera,
limitara-se a encher-lhe os bolsos com pão e maçãs, escovara o seu velho
casaco, cujos rasgões remendara logo no primeiro dia, e deixara-o partir.
Atravessou o rio e passou pelas vinhas já desfolhadas, subindo os
socalcos das colinas por escadas íngremes, para se perder lá em cima pelos
carreiros da floresta. Só parou quando atingiu o cume mais alto. O sol
brilhava pálido através da ramagem despida, melros esvoaçaram para se
irem esconder nas moitas ao ouvir os seus passos e puseram-se a espreitar,
timidamente agachados por entre o emaranhado da folhagem, com os seus
pequenos olhos negros e brilhantes; lá muito em baixo, o curso do rio
descrevia uma curva azul e a cidade estendia-se, pequenina como um
brinquedo; nenhum som vinha de lá, para além do repicar dos sinos a
chamar à oração. Ali em cima havia pequenos aterros e outeiros cobertos de
erva, ruínas de antigas construções pagãs, talvez fortificações, talvez
túmulos. Sentou-se numa dessas elevações, podia-se ali ficar sentado nas
ervas estaladiças dos prados outonais, a desfrutar do panorama que abrangia
todo o vasto vale e mais longe ainda, para além do rio, das cadeias de
colinas e montanhas, cordilheira atrás de cordilheira, até as serranias e o céu
se encontrarem e confundirem num jogo de tonalidades azuis. Todo aquele
extenso território e bem mais longe ainda, para lá do que o olhar podia
alcançar, tinha sido calcorreado pelos seus pés; todas essas regiões que se
resumiam agora a distância e recordação tinham já sido próximas e
presentes. Naquelas florestas dormira ele centenas de vezes, comera bagas,
passara fome e frio, sobre aquelas cumeadas e charnecas caminhara,
sentira-se feliz e triste, animado e exausto. Algures, lá muito longe, para
além do visível, jaziam os ossos calcinados da boa Lene e por lá andaria
ainda talvez, se a peste o não tivesse apanhado, o seu companheiro Robert;
lá longe, algures, jazia o cadáver de Viktor, e num outro sítio longínquo e
encantado encontrava-se o convento da sua juventude, e o castelo do
cavaleiro com as suas belas filhas, e a pobre Rebekka, acossada ou já morta.
Todos aqueles incontáveis lugares dispersos e distantes, aquelas charnecas e
bosques, cidades e aldeias, castelos e conventos, todas aquelas pessoas
podiam estar vivas ou mortas, mas ele sentia-as presentes e ligadas entre si
na substância da sua memória, no seu amor, no seu remorso e nas saudades
que delas sentia. E se amanhã a morte o levasse, então tudo aquilo se
dissiparia e extinguiria novamente, todo aquele livro ilustrado de
iluminações e mulheres e paixões, de manhãs estivais e noites invernosas.
Já era tempo de fazer algo mais, de criar um legado que lhe pudesse
sobreviver.
Daquela sua vida, das suas errâncias, de todos aqueles anos desde que se
lançara a correr mundo, quase não restavam frutos. Umas poucas figuras
que esculpira na oficina, especialmente o S. João, e depois ainda aquele
livro de imagens, aquele mundo irreal dentro da sua cabeça, aquele belo e
doloroso mundo das iluminuras da memória. Conseguiria salvar e mostrar
algo desse mundo interior? Ou tudo continuaria como até agora: novas
cidades, novas paisagens, novas mulheres, novas experiências, novas
imagens, sucedendo-se e acumulando-se umas por cima das outras, sem que
delas tirasse algum proveito, todo esse alvoraçado, torturante e belo
extravasar do coração?
Era ultrajante a maneira como a vida zombava de uma pessoa: dava
vontade de rir e chorar ao mesmo tempo! Quem vivesse e se entregasse ao
jogo dos sentidos, saciando-se no peito da velha mãe Eva, tinha garantido o
prazer, mesmo o mais requintado e secreto, mas deixava de estar protegido
contra a efemeridade da existência – era-se algo assim como um míscaro na
floresta, hoje exuberante de cores e amanhã apodrecido. Quem se
defendesse e enclausurasse numa oficina, procurando construir um
monumento à vida volátil, tinha de abdicar dela para se tornar um mero
instrumento da própria visão; estava-se então ao serviço do imperecível,
mas definhando e perdendo a liberdade, a plenitude e o prazer de viver.
Fora isso que acontecera ao mestre Niklaus.
E, afinal, a vida no seu todo só fazia sentido se ambas as porfias se
alcançassem, se a vida não fosse dividida por aquela estéril
incompatibilidade! Criar, sem para isso ter de pagar o preço da vida! Viver,
sem ter de prescindir da nobreza do ato criador! Não seria possível?
Talvez houvesse pessoas capazes de o fazer. Talvez houvesse maridos e
pais de família que, mesmo assumindo a fidelidade, não perdessem o gozo
dos sentidos. Talvez existissem sedentários a quem a falta de liberdade e de
perigo não fizesse definhar o coração. Talvez. Conhecer alguém assim, isso
nunca tinha conhecido.
No fundo, toda a existência parecia basear-se na dicotomia, na oposição
dos contrários: ou se era homem ou mulher, vagabundo ou pequeno-
burguês, guiado pelo intelecto ou pelos sentidos – nunca e em lado algum o
inspirar e o expirar, a masculinidade e a feminilidade, a liberdade e a
ordem, o instinto e o espírito podiam ser experimentados em simultâneo;
sempre se pagava um com a perda do outro e sempre o aspeto que se perdia
era tão importante e desejável como o que se ganhava! Nisso, as mulheres
talvez tivessem a vida mais facilitada. Nelas a natureza encarregara-se de
fazer com que o prazer gerasse espontaneamente o seu fruto, transformando
o deleite amoroso numa criança. No homem, essa fecundidade primordial
dera lugar à eterna nostalgia. Seria Deus que tudo assim criara mau e hostil,
estaria ele a rir-se malignamente da sua própria criação? Não, o Deus que
criara as corças e os gamos, os peixes e os pássaros, a floresta, as flores e as
estações do ano não podia ser mau. Mas a cisão atravessava toda a sua
Criação, quer fosse porque ela, a Criação, falhara ou era imperfeita, quer
fosse porque Deus acalentasse uns quaisquer desígnios insondáveis que
justificassem essa lacuna e essa nostalgia, ou porque nisso consistia
precisamente a semente do inimigo, o pecado original. Mas como poderia
ser pecado essa nostalgia e essa insatisfação? Não era dela que provinha
toda a beleza e toda a santidade criada pelo homem e devolvida a Deus em
ação de graças?
Angustiado com os seus pensamentos, Goldmund deteve-
-se a olhar a cidade, reconheceu a praça e o mercado do peixe, as pontes, as
igrejas e os paços do concelho. E lá estava também o palácio, a altaneira
residência episcopal onde agora governava o conde Heinrich. Sob aquelas
torres e os longos telhados morava Agnes, a sua bela e esplêndida amante,
tão altiva no porte e tão capaz de se esquecer e entregar no amor. Pensou
nela com entusiasmo, recordou a noite anterior com alegria e gratidão. Para
experimentar a felicidade de uma noite como aquela, para poder satisfazer
aquela mulher maravilhosa necessitara de toda a sua vida, de toda a
aprendizagem que tivera com as mulheres, de toda a errância e sofrimento,
de todas as noites de neve passadas a caminhar e de toda a amizade e a
intimidade com os animais, as flores, as árvores, as águas, os peixes, as
borboletas. Necessitara de um apurar dos sentidos que só um convívio com
o êxtase e o perigo permitem, da vida nómada sem eira nem beira, daquele
mundo de imagens acumuladas durante anos a fio. Enquanto a sua vida
fosse um jardim onde florissem flores mágicas como aquela Agnes, não
podia queixar-se.
Passou todo o dia nos cumes outonais, vagueando, descansando,
comendo pão, pensando na noite com Agnes. Ao anoitecer estava de novo
na cidade, a caminho do palácio. Pusera-se mais fresco e as casas
observavam-no com os olhos fixos e vermelhos das janelas; passou por ele
um pequeno cortejo de rapazes a cantar, empunhando varas com abóboras
escavadas no topo, com orifícios a evocar carantonhas e velas acesas no
interior. Da pequena mascarada libertava-se uma fragrância invernal, e
Goldmund ficou a vê-los afastarem-se, sorrindo. Rondou durante bastante
tempo o palácio. A delegação eclesiástica ainda por lá andava, de vez em
quando podia ver-se um dos reverendos padres assomar a uma ou outra
janela. Por fim, conseguiu entrar furtivamente e dar com a aia Berta, que
novamente o escondeu na antecâmara, até que Agnes surgiu para o levar
ternamente para o quarto. Foi com carinho que o seu belo rosto o recebeu,
com carinho, mas sem alegria; via-se que estava triste e preocupada, não
conseguia disfarçar o medo. Goldmund teve de se esforçar muito para a
animar um pouco, mas, por fim, ela lá recuperou alguma confiança com os
seus beijos e palavras amorosas.
– Tu podes ser tão querido! – disse ela agradecida. – Tens tantos e tão
profundos tons nessa garganta quando te pões a arrolhar e a palrar, meu
querido pássaro. Gosto tanto de ti, Goldmund! Se pudéssemos estar bem
longe daqui! Isto já não me agrada, aliás, não vamos ficar por muito mais
tempo, o conde foi chamado e o estúpido do bispo regressa dentro em
breve. Hoje, o conde está furioso, os padres não o largam! Toma cuidado,
não deixes que ele te veja! Não terias nem mais uma hora de vida. Tenho
tanto medo de te perder!
Recordações meio perdidas acudiram à memória de Goldmund – não
ouvira ele já, em tempos, aquela mesma cantiga? Fora assim que Lydia lhe
falara, daquela forma amorosa e preocupada, carinhosa e triste ao mesmo
tempo. Tinha sido assim que ela fora ter com ele ao quarto durante a noite,
cheia de amor e cheia de medo, cheia de preocupações e pressentimentos,
atormentada pelas imagens horrorosas do temor. Ele gostava de a ouvir,
aquela cantiga assustada e terna. O que seria do amor sem o secretismo?! O
que seria do amor sem o perigo?
Carinhosamente, puxou Agnes para si, acariciou-a, segurou-lhe a mão,
segredou-lhe baixinho, ao ouvido, palavras enamoradas, beijou-lhe as
pálpebras. Comovia-o e encantava-o vê-la assim tão receosa e preocupada
por sua causa. Ela recebeu as suas carícias com gratidão, quase
humildemente, abraçou-o e colou-se a ele cheia de ternura, mas a
despreocupação e a alegria não queriam instalar-se.
De repente, teve um sobressalto; mesmo ali ao lado ouviu--se o bater de
uma porta e passos apressados aproximaram-se do quarto.
– Valha-nos Deus! É ele! – exclamou, desesperada. – É o conde!
Depressa, podes escapar pelo vestíbulo. Depressa! Não me denuncies!
E empurrou-o precipitadamente para o vestíbulo, deixando-o sozinho, às
apalpadelas e sem saber o que fazer na escuridão. Ouviu o conde discutir
com Agnes em voz alta do outro lado. Avançou por entre os vestidos em
direção à porta, tateando, pé ante pé e tentando não fazer barulho. Quando
chegou à porta que dava para o corredor, tentou abri-la devagarinho. E só
então, quando percebeu que ela tinha sido fechada por fora, é que também
ele se assustou e o seu coração disparou e começou a bater descompassada
e dolorosamente. Podia ser que por infeliz acaso alguém a tivesse fechado
depois de ele ter entrado. Mas não acreditava nisso. Caíra numa armadilha
e estava perdido! Alguém devia tê-lo visto entrar furtivamente e
isso iria custar-lhe a sua cabeça. Deixou-se ficar a tremer na escuridão e
lembrou-se das palavras de despedida de Agnes: «Não me denuncies!» Não,
ele não a iria denunciar. Sentia o coração a querer saltar-lhe do peito, mas a
decisão era firme e cerrou os dentes, obstinado.
Tudo isso acontecera em breves instantes. De repente,
a porta do quarto de Agnes abriu-se e o conde surgiu, segurando um
candelabro na mão esquerda e a espada desembainhada na direita. Nesse
mesmo instante, Goldmund deitou atabalhoadamente a mão a alguns dos
vestidos e às capas que estavam pendurados à sua volta e segurou-os no
braço. Eles que o tomassem por ladrão, talvez isso o salvasse.
O conde viu-o imediatamente e aproximou-se devagar.
– Quem és tu? E o que fazes aqui? Responde, ou mato-te já!
– Perdoai, senhor! – sussurrou Goldmund. – Sou um pobre homem, e vós
sois tão rico! Vede, devolvo tudo o que roubei!
E deixou cair a roupa para o chão.
– Com que então, a roubar, hem?! Não foi lá muito esperto da tua parte
arriscares a vida por meia dúzia de trapos? És daqui da cidade?
– Não, meu senhor, não passo de um pobre vagabundo. Peço clemência!
– Acaba já com isso! Gostaria de saber se te atreveste a incomodar a
senhora com a tua ousadia. Mas como de qualquer modo vais ser enforcado,
não precisamos de investigar isso.
O furto basta.
O conde bateu então com violência na porta fechada e gritou:
– Estão aí? Abram!
A porta abriu-se do lado de fora. Três homens estavam a postos, de
armas em riste.
– Amarrem-no bem – ordenou o conde com uma voz que rangia de
arrogância e escárnio. – É um vadio que andava por aqui a roubar. Levem-
no para a masmorra e amanhã de manhã enforquem o canalha.
Ataram-lhe as mãos sem que ele se defendesse e levaram--no pelo longo
corredor e por escadas abaixo e através de um pátio interior. Um criado
precedia-os com uma lanterna. Pararam diante da porta de arco redondo de
uma cave reforçada com barras de ferro. Os homens começaram a discutir e
a deliberar, pelos vistos faltava a chave. Um dos guardas pegou na lanterna
e o criado voltou para trás para a ir buscar. Ficaram ali, os três homens
armados e o prisioneiro, à espera, diante da porta.
O que segurava a lâmpada aproximou-a, curioso, para alumiar o rosto do
preso. Nesse preciso momento surgiram dois padres. Pertenciam à comitiva
que se encontrava hospedada no castelo e vinham da capela; pararam diante
do grupo e ambos observaram com atenção a cena noturna: os três guardas
armados e o homem amarrado, ali parados, à espera.
Goldmund não se apercebeu dos padres nem conseguia ver os guardas;
na verdade, não via mais do que o clarão bruxuleante que o encadeava,
mesmo diante dos seus olhos. E por detrás da luz, numa penumbra
aterrorizadora, via ainda outra coisa, algo disforme, descomunal e
fantasmagórico: o abismo, o fim, a morte. De olhos fitos nessa visão, nada
via nem ouvia. Um dos sacerdotes interrogou em voz baixa os guardas.
Quando lhe disseram que o prisioneiro ia morrer e que era um ladrão, ele
perguntou se tinha tido um confessor. Responderam-lhe que não, acabara de
ser apanhado em flagrante.
– Então, de madrugada, antes da missa matinal, virei confessá-lo e
ministrar-lhe os sacramentos – disse o sacerdote. – Prometam-me que não o
levam antes. Com o senhor conde irei falar ainda hoje. Pode ser que o
homem seja um ladrão, mas, como qualquer cristão, tem direito à confissão
e aos sacra-
mentos.
Os guardas não se atreveram a objetar. Conheciam o reverendo, que fazia
parte da delegação eclesiástica, tinham-no visto várias vezes à mesa do
conde. E porque não havia de conceder--se a confissão ao pobre
vagabundo?
Os religiosos afastaram-se. Goldmund continuava imóvel, de olhos
encadeados. Por fim, lá apareceu o criado com a chave e abriu a porta. O
prisioneiro foi conduzido para dentro de uma cave abobadada e desceu,
cambaleante e aos tropeções, um par de degraus. Lá dentro havia uns
quantos bancos de três pernas e uma mesa. O espaço parecia ser a
antecâmara
de uma adega. Trouxeram-lhe um dos bancos para junto da mesa e
ordenaram-lhe que se sentasse.
– Amanhã de manhã vem cá um padre e ainda vais poder confessar-te –
disse-lhe um dos guardas. Depois foram-se embora e fecharam
cuidadosamente a pesada porta.
– Deixem-me a luz, camaradas – pediu Goldmund.
– Não, irmão, ainda podias armar algum sarilho. Lá te hás de arranjar
sem ela. Não sejas parvo e conforma-te. Também, quanto tempo arde uma
lâmpada destas? Daqui a uma hora apagava-se. Boa noite.
Goldmund ficou só na escuridão, sentado no banco com a cabeça
apoiada na mesa. A posição era desconfortável e as cordas apertadas nos
pulsos magoavam-no, mas só mais tarde se foi tornando consciente de todas
essas sensações. Para já, limitava-se a estar ali sentado, com a cabeça
apoiada no tampo da mesa, como no cepo de um patíbulo. Sentiu então a
necessidade de acompanhar também com o corpo e os sentidos o que tinha
sido imposto ao seu coração: entregar-se ao inevitável, render-se à
fatalidade da morte.
Deixou-se ficar assim uma eternidade, lamentavelmente prostrado,
tentando assumir o que lhe fora imposto, tentando compenetrar-se e inspirar
a inevitabilidade da morte. Já escurecera, a noite começava e o final
daquela noite iria trazer-lhe também o seu próprio fim. Tinha de esforçar-se
para compreender e aceitar isso. Amanhã já não estaria vivo. Estaria
enforcado, seria um mero objeto, sobre o qual os pássaros iriam pousar para
o debicarem, seria aquilo que o mestre Niklaus já era,
o que Lene era na cabana calcinada, o que eram todos aqueles que ele vira
jazendo nas casas vazias e empilhados nas carroças dos cangalheiros. Não
era fácil compreender e compenetrar-se disso. Na verdade, era impossível
compenetrar-se disso. Havia demasiadas coisas de que ainda não se tinha
separado, de que ainda não se tinha despedido. As horas daquela noite
tinham--lhe sido dadas para o fazer.
Tinha de se despedir da bela Agnes, nunca mais iria ver a sua figura alta,
a sua cabeleira luminosa, o olhar frio e azul, não mais testemunharia o
enfraquecer e o tremor da altivez naqueles olhos, nunca mais a doce
penugem dourada à flor da pele perfumada. Adeus, olhos azuis; adeus, boca
húmida e fremente! Quantas vezes esperara beijá-la ainda! Ainda hoje, nas
colinas, sob o sol dos finais do outono, como pensara nela e lhe pertencera e
a desejara! Mas também tinha de se despedir das colinas, do sol, do céu
azul coalhado de nuvens brancas, das árvores e das florestas, da errância,
das horas do dia e das estações do ano. Àquela hora, Marie talvez ainda
estivesse sentada à sua espera, a pobre Marie dos olhos bondosos e cheios
de amor e do andar coxo, talvez esperasse ainda e dormitasse na cozinha e
acordasse novamente e nenhum Goldmund voltaria para casa.
Sim, e o papel e o lápis e a esperança que depositara em todas aquelas
figuras que ainda quisera desenhar! Tudo iria por água abaixo, tudo! E a
esperança de um reencontro com Narciso, o apóstolo dileto, também dela
tinha de abdicar.
E também tinha de se despedir das suas próprias mãos, dos seus próprios
olhos, da fome e da sede, da comida e da bebida, do amor, do dedilhar do
alaúde, do sono e do acordar, de tudo. Amanhã, uma ave iria atravessar o ar
e Goldmund já não a poderia ver, uma rapariga iria cantar à janela e ele já
não a ouviria, o rio iria correr no seu leito e os peixes escuros nadariam
mudos, uma aragem sopraria, varrendo do chão a folhagem amarela, o Sol
iria brilhar e suceder-lhe-ia a noite estrelada, jovens acorreriam ao terreiro
do baile, a primeira neve cairia nas montanhas distantes – e tudo
prosseguiria, as árvores a projetar a sua sombra, as pessoas a olharem
alegres ou tristes com a vida a refletir-se nos seus olhos, os cães a ladrar, as
vacas a bramir nos estábulos das aldeias, e tudo isso sem ele, nada já lhe
pertencia, tudo lhe tinha sido arrancado.
Cheirou então o aroma matutino da charneca, saboreou o doce vinho
novo e as rijas nozes temporãs; uma revoada luminosa de lembranças
vindas do vasto mundo colorido perpassou pelo seu coração oprimido,
sucumbindo na despedida;
a velha e bela vida confusa resplandeceu uma vez mais através de todos os
seus sentidos, e ele encolheu-se num súbito esgar de dor e sentiu as
lágrimas brotaram-lhe dos olhos uma a uma. Soluçando, entregou-se àquela
vaga, as lágrimas corriam-lhe agora incontroláveis e ele deixou-se dominar
pela dor imensa. Oh, vales e florestas das montanhas, oh, regatos correndo
sob o verde dos ulmeiros; e vós, raparigas, e as noites de luar nas pontes,
oh, belo e radioso mundo das imagens, como te posso deixar?! Debruçado
sobre a mesa, chorava como uma criança inconsolável. Do fundo de toda
aquela aflição formou-se então, entre soluços, um grito de lamento
suplicante: Oh, mãe, oh, mãe!
E ao pronunciar a palavra mágica, respondeu-lhe das profundezas da
memória a imagem da mãe. Não a imagem maternal dos seus pensamentos
e dos devaneios artísticos, mas antes a imagem da sua própria mãe, bela e
viva como desde os tempos do convento nunca mais voltara a vê-la. A ela
dirigiu o seu lamento, para ela chorou aquela dor insuportável do ter de
morrer, a ela se entregou, a ela devolveu a floresta, o Sol, os olhos e as
mãos, nela depôs todo o seu ser e a sua vida, nas mãos da mãe.
No meio do choro, acabou por adormecer; a exaustão e o sono
receberam-no maternalmente nos braços. Dormiu uma ou duas horas, livre
daquela desolação.
Acordou com fortes dores. Ardiam-lhe os pulsos demasiado apertados e
dores dilacerantes incendiavam-lhe a nuca e as costas. Com grande esforço,
conseguiu levantar-se, recupe-
rou a presença de espírito e reconheceu a situação em que se encontrava. À
sua volta, a escuridão era completa, não fazia ideia de quanto tempo
dormira, ignorava quantas horas lhe restavam para viver. Talvez estivessem
já quase a chegar para o virem buscar, para o levarem para a morte.
Lembrou-se então de que lhe tinham prometido um padre. Não acreditava
que os seus sacramentos lhe valessem de muito. Não sabia se mesmo uma
absoluta absolvição e o perdão dos pecados o levariam para o Céu. Não
sabia se existia o Céu, o Deus Pai,
o Juízo Final e a eternidade. Há muito que perdera as certezas nesses
assuntos.
Mas quer houvesse ou não eternidade, de uma coisa estava certo: ele não
a desejava, não queria mais do que aquela vida incerta e passageira, aquela
respiração, aquele sentir-se em casa dentro da sua pele, a única coisa que
queria era continuar a viver. Levantou-se enlouquecido, cambaleou na
escuridão até ao muro, endireitou-se, colado à parede, e pôs-se a pensar.
Tinha de haver uma salvação! Talvez o tal padre fosse a sua salvação, talvez
o conseguisse convencer da sua inocência e o padre intercedesse por ele ou
o ajudasse a conseguir um adiamento ou a fugir. Agarrou-se desesperada e
insistentemente a esses pensamentos. E mesmo que não fosse assim, não
iria desistir, não podia dar-se por vencido. Portanto, o que tinha a fazer era,
em primeiro lugar, tentar ganhar a confiança do padre; iria esforçar-se ao
máximo para o seduzir, para o convencer e aliciar, para o lisonjear. O padre
era o único trunfo no seu jogo, todas as outras possibilidades não passavam
de quimeras. Ainda assim: sempre havia acasos improváveis e conjunturas
felizes; o verdugo podia ter uma cólica, o cadafalso podia quebrar-se, podia
surgir uma possibilidade de fuga inesperada e até então impensável. De
qualquer modo, recusava-se a morrer; em vão tinha tentado assumir e
aceitar aquele destino, mas não conseguira. Iria defender-se e lutar com
todas as suas forças, podia pregar uma rasteira ao guarda, empurrar o
carrasco e desatar a fugir, até ao derradeiro instante iria defender a sua vida,
até à última gota de sangue. Oh, se ao menos conseguisse convencer o
padre a soltar-lhe as mãos! Já ganharia imenso!
Começara, entretanto, a tentar roer as cordas com os dentes, sem ligar às
dores. Decorrido muito tempo, conseguiu, com uma tenacidade furiosa,
aliviar um pouco a pressão. Ou pelo menos parecia-lhe. Parou, ofegante, na
noite da sua prisão. Os braços e as mãos inchados doíam-lhe imenso.
Quando conseguiu recobrar o fôlego, avançou tateante ao longo do muro,
passo a passo foi explorando e examinando às apalpadelas a parede húmida,
à procura de uma aresta saliente. Lembrou-se então dos degraus onde
tropeçara ao descer para o calabouço. Procurou-os e encontrou-os.
Ajoelhou-se e tentou esfregar a corda num dos cantos dos degraus de pedra.
Não era fácil, na maior parte das vezes eram os próprios pulsos que
raspavam contra a pedra, queimando como fogo. Sentia o sangue escorrer,
mas não desistiu. Quando entre a porta e a soleira se enxergava já uma faixa
miseravelmente fina da luz parda da alvorada, tinha finalmente conseguido.
A corda rasgara-se, desenvencilhou-se dela e ficou com as mãos livres. Mas
quase não conseguia mover os dedos, tinha as mãos inchadas e entorpecidas
e os braços insensibilizados e rígidos até aos ombros. Tinha de os mexer,
esforçou-se por movê-los, para que o sangue pudesse circular de novo.
Tinha agora um plano que não lhe parecia mau de todo.
Caso não conseguisse convencer o padre a ajudá-lo, havia que aproveitar
um qualquer momento em que os deixassem a sós para o matar. Com uma
pancada bem dada com um dos bancos. Estrangulá-lo não ia conseguir, para
isso não tinha força suficiente nas mãos e nos braços. Portanto, ia ter
mesmo de o matar com uma porrada, vestir rapidamente as suas vestes e
escapar! Até os outros encontrarem o morto, haveria de conseguir sair do
palácio, e depois… pernas para que vos quero?! Marie deixava-o entrar e
escondia-o. Tinha de tentar. Era possível.
Nunca na sua vida Goldmund esperara e observara a alvorada como
naquela hora, impaciente, desejoso e, ao mesmo tempo, apavorado.
Fremente de expectativa e a tudo decidido, acompanhou com olhos de
caçador o lento e gradual clarear da mísera faixa de luz debaixo da porta.
Voltou para junto da mesa e exercitou-se a manter a posição sentada, com
os punhos juntos entre os joelhos, para que não dessem logo pela falta das
cordas. Desde que conseguira libertar as mãos já não acreditava na morte.
Estava determinado a sobreviver, mesmo que para isso tivesse de destruir
tudo à sua volta. Havia que manter-se vivo a todo o custo. As narinas
vibravam-lhe, ávidas de liberdade e vida. E, quem sabe, talvez viessem em
sua ajuda do exterior. Agnes era mulher, o seu poder não era muito, nem
talvez a sua coragem; era bem possível que o abandonasse. Mas amava-o,
talvez conseguisse fazer qualquer coisa por ele? Talvez a aia Berta rondasse
lá fora, à espera de uma oportunidade –
e não havia ainda um palafreneiro, que ela dissera ser de confiança? Mas
mesmo que ninguém aparecesse e lhe desse um sinal, sempre tinha o seu
plano para cumprir. Se falhasse, ia ter de matar os guardas com o banco,
dois, três e todos os que lhe aparecessem pela frente. De uma vantagem
estava certo: os seus olhos tinham-se habituado à escuridão do calabouço;
agora, na penumbra da madrugada, conseguia distinguir todas as formas e
volumes, enquanto os outros estariam, inicialmente, completamente às
cegas.
Agachou-se febril de encontro à mesa, ponderando minuciosamente as
palavras que iria dizer ao padre para obter o seu apoio, porque era por aí
que teria de começar. Ao mesmo tempo, controlava, cheio de ansiedade, o
discreto crescer da luz na fenda. Mal podia agora esperar pelo momento que
tanto temera há algumas horas, já quase não suportava aquela tensão
terrível. Temia que as suas forças, a sua capacidade de concentração e o seu
poder de decisão diminuíssem com a espera. O guarda e o padre tinham de
aparecer enquanto sentisse dentro de si aquela disponibilidade tensa, aquela
vontade indomável de se salvar.
Por fim, o mundo acordou lá fora e o inimigo aproximou--se. Ecoaram
passos no empedrado do pátio, uma chave foi enfiada na fechadura e rodou,
cada um daqueles sons feriu o longo silêncio mortal a que se habituara
como o ribombar do trovão.
Vagarosamente, a pesada porta entreabriu-se, rangendo nos gonzos. Um
sacerdote entrou sozinho, sem guarda, sem proteção. Trazia um candelabro
com duas velas. De repente, tudo acontecia de uma forma diferente da que
ele previra.
E que coincidência estranha e comovente: o padre que acabara de entrar,
e por detrás de quem mãos invisíveis voltaram a fechar a porta, trazia
vestido o hábito do convento de Mariabronn, tão seu conhecido e outrora
usado pelo abade Daniel, pelo padre Anselm e pelo padre Martin.
Ao vê-lo, sentiu uma estranha pontada no coração e teve de desviar o
olhar. O aparecimento daquele hábito prometia algo de bom, podia ser um
bom sinal. Mas talvez não houvesse outra possibilidade senão o assassínio.
Goldmund cerrou os dentes. Iria custar-lhe imenso se se visse obrigado a
matar aquele padre.
XVII

– Louvado seja Jesus Cristo – disse o padre, enquanto pousava o


candelabro na mesa. Goldmund murmurou o responso a olhar para o chão.
O sacerdote ficou calado. Esperou sem dizer palavra até que Goldmund,
inquieto, ergueu os olhos para avaliar o ho-mem que tinha à sua frente.
Apercebeu-se então, perturbado, de que ele não só usava o hábito dos
frades de Mariabronn como também as insígnias de abade.
E foi nesse momento que o encarou, olhos nos olhos. Era um rosto seco,
de contornos firmes e claros, com lábios muito finos. Era um rosto que ele
conhecia. Como que enfeitiçado, continuou a fitar aquele rosto que parecia
ter sido moldado pela força do espírito e da vontade. Com um gesto
inseguro, deitou a mão ao candelabro, ergueu-o e aproximou-o do rosto do
estranho para lhe ver os olhos. Viu-os e, quando voltou a pousar o
candelabro, tremia-lhe a mão.
– Narciso! – sussurrou quase impercetivelmente. E sentiu tudo à sua
volta rodopiar.
– Sim, Goldmund, já fui o Narciso; mas há muito tempo que renunciei a
esse nome, deves ter esquecido isso. Desde que recebi ordens, chamo-me
Johannes.
Goldmund sentia-se perturbado e comovido até ao fundo da alma. De
repente, o mundo transformara-se e a súbita queda daquela tensão sobre-
humana que se acumulara dentro dele ameaçava sufocá-lo; começou a
tremer e uma vertigem fê-lo sentir a cabeça como uma bolha vazia,
enquanto o estômago se contraía. Os olhos ardiam-lhe e sentia-se prestes a
romper em
soluços. E era isso que no fundo desejava: soluçar, romper
em pranto, desmaiar.
Mas do fundo das recordações juvenis recuperadas pela imagem e pela
presença de Narciso surgiu uma advertência: uma vez, quando ainda não
passava de um rapazinho, desatara a chorar e perdera o controlo de si
próprio perante aquele rosto belo e austero, diante daquele olhar escuro e
omnisciente. Não podia voltar a fazê-lo. Então, o amigo aparecia-lhe
novamente, como um fantasma, no momento mais terrível e estranho da sua
vida, provavelmente para o salvar, e ele ia de novo desatar aos soluços e
desmaiar? Não, não, nunca. Conteve-se. Dominou o coração, controlou o
estômago, expulsou a vertigem da cabeça. Não podia agora mostrar
fraqueza.
Com uma voz forçadamente calma, conseguiu dizer:
– Tens de me permitir continuar a chamar-te Narciso.
– Chama-me como quiseres, meu caro. E não me apertas a mão?
De novo, Goldmund teve de fazer um esforço para se dominar. Num tom
meio teimoso, meio sarcástico, exatamente como nos seus tempos de aluno,
conseguiu responder.
– Desculpa, Narciso – disse com uma frieza quase arrogante. – Vejo que
te tornaste abade. Mas eu continuo a ser um vagabundo. Além disso,
infelizmente, a nossa conversa não poderá durar muito, por mais que eu o
desejasse. Imagina só que fui condenado à forca! Dentro de uma hora, ou
menos ainda, serei enforcado. Digo-te isto apenas para esclarecer a
situação.
Narciso manteve-se imperturbável. Aquele assomo de fanfarronice
juvenil na atitude do amigo comovia-o e divertia-o ao mesmo tempo. No
entanto, compreendia e aprovava profundamente o orgulho que impedira
Goldmund de se lhe lançar a chorar nos braços. Era verdade que também
ele não imaginara assim o reencontro, mas concordava perfeitamente com
aquela pequena comédia. Naquela situação, nada os poderia ter novamente
aproximado mais.
– Bem sei – disse, representando, também ele, o papel do indiferente. –
Aliás, sobre esse assunto da forca posso tranquilizar-te. Foste perdoado. Fui
incumbido de te dar a boa nova e de levar-te comigo, pois não podes ficar
aqui na cidade. Vamos ter muito tempo, portanto, para conversar com toda a
calma. Mas então diz lá: queres ou não queres estender-me essa
mão?
Apertaram as mãos e foi um longo e forte aperto de mão e ambos se
sentiram profundamente emocionados, sem que no diálogo prescindissem
daquele tom comediante de quase indiferença, que iria manter-se por
bastante tempo ainda.
– Muito bem, Narciso, deixaremos então este teto tão pouco dignificante
e juntar-me-ei à tua comitiva. Vais voltar para Mariabronn? Ah, sim? Que
bom. E como? A cavalo? Estupendo. Vão ter então de arranjar um cavalo
também para
mim.
– Havemos de te arranjar uma montada, amice, e partimos já daqui a
duas horas. Oh, mas em que estado tens as mãos! Meu Deus, todas feridas e
inchadas e cheias de sangue! Foram eles que te fizeram isso?
– Deixa, não ligues a isto, Narciso. Fui eu próprio que me magoei. Tinha
as mãos presas e tive de as soltar. Digo-te que não foi nada fácil. Aliás,
deixa-me também dizer-te que revelaste coragem ao entrar aqui sem
acompanhante.
– Coragem porquê? Não havia perigo nenhum.
– Oh, apenas o pequeno perigo de seres morto por mim. Para dizer a
verdade, era mesmo esse o meu plano. Disseram-
-me que me vinha um padre visitar. Matava-o e fugia disfarçado com a sua
roupa. Um bom plano.
– Não querias morrer, não é? Tencionavas defender-te?
– Podes crer que sim. Só não sabia que o tal padre eras tu, claro.
– Ainda assim – disse Narciso, hesitante –, era, no fundo, um plano
bastante horrível. Serias mesmo capaz de matar um padre que viesse ter
contigo como confessor?
– A ti não, Narciso, claro que não, e talvez nenhum outro monge que
usasse o hábito de Mariabronn. Mas um outro qualquer, oh, sim, podes crer
que tentava.
De repente, a sua voz tornou-se triste e sombria.
– Não seria a primeira pessoa que eu matava.
Calaram-se ambos, subitamente constrangidos.
– Sobre esse assunto falaremos então mais tarde – disse Narciso num
tom mais frio. – Se quiseres, um dia, podes confessar-te. Ou contar-me a tua
vida. Também eu tenho muito para te contar. Alegro-me por isso. Vamos
então?
– Só um momento, Narciso! Lembrei-me agora de que já uma vez te
chamei Johannes.
– Não te entendo.
– Nem podes. Ainda não sabes nada. Foi há alguns anos que te dei esse
nome, e há de ficar contigo para sempre. É que, em tempos, fui escultor e
entalhador, e tenciono voltar a sê-lo. E a melhor obra que nessa altura
consegui criar foi a figura de um apóstolo em madeira e em tamanho
natural. É o teu retrato, porém, em vez de Narciso, chama-se Johannes. É
um João apóstolo aos pés da cruz.
Goldmund levantou-se e dirigiu-se para a porta.
– Continuaste então a pensar em mim? – perguntou Narciso em voz
baixa.
Goldmund respondeu no mesmo tom:
– Sempre, Narciso; nunca deixei de pensar em ti. Nunca.
Empurrou com força a pesada porta e viu-se mergulhado na luz pálida da
manhã. Não disseram mais nada. Narciso levou-o onde estivera alojado
durante os últimos dias. O jovem monge seu acólito estava ocupado a
preparar a bagagem. Goldmund comeu e lavaram-lhe e ligaram-lhe as
mãos. Pouco depois, trouxeram os cavalos.
Quando montaram, Goldmund disse:
– Tenho ainda um pedido a fazer-te. Deixa-me passar pelo mercado do
peixe, tenho lá uma coisa a tratar.
Partiram e Goldmund olhou para todas as janelas do palácio, na
esperança de ver Agnes assomar a uma qualquer delas. Mas já não a viu.
Passaram pelo mercado do peixe, Marie estava extremamente preocupada.
Despediu-se dela e dos pais, agradeceu-lhes por tudo, prometeu voltar e
partiu. Marie deixou-se ficar à porta até os cavaleiros desaparecerem de
vista. Finalmente, voltou para dentro a coxear.
O grupo era composto por Narciso, Goldmund, o jovem acólito e um
estribeiro armado.
– Ainda te lembras do meu cavalinho Bless, que ficou no vosso estábulo?
– quis saber Goldmund.
– Naturalmente. Esse não vais poder encontrar, nem certamente estarias
à espera disso. Há uns sete ou oito anos, tivemos de o mandar abater.
– O quê, ainda te lembras disso?!
– Lembro-me.
Goldmund não se sentiu triste pela morte de Bless. Alegrou-o saber que
Narciso estava tão bem informado a respeito da sua montada de então, ele,
que nunca se interessara por bichos e nunca, decerto, soubera o nome de
nenhum outro cavalo dos estábulos do convento. Ficou verdadeiramente
contente.
– Vais rir-te de mim – prosseguiu. – Então não é que o primeiro habitante
do vosso convento por quem pergunto é
o pobre cavalinho? Não foi lá muito bem-educado da minha parte. No
fundo, queria fazer-te outras perguntas, sobretudo acerca do nosso abade
Daniel. Mas já calculava que tivesse morrido, uma vez que lhe sucedeste. E
por agora queria evitar falar de mortes. Não tenho lá grande vontade de me
demorar nessas questões, por causa da noite que acabei de passar e também
devido à peste, a cuja devastação assisti em demasia. Mas já que estamos a
falar nisso, e porque o assunto teria de vir à baila, diz-me quando e como o
abade Daniel morreu; sempre o venerei muito. E diz-me também se os
padres Anselm e Martin ainda estão vivos. Estou preparado para tudo
quanto é mau. Mas, pelo menos, já me dou por satisfeito por a peste te ter
poupado. Embora nunca tenha pensado que pudesses ter morrido. Sempre
acreditei no nosso reencontro. Mas a crença também pode enganar, como
infelizmente sei por experiência própria. Também nunca consegui imaginar
morto o mestre Niklaus, com quem aprendi a minha arte; sempre achei que
o voltaria a ver e tornaria a trabalhar com ele. E, no entanto, quando voltei,
já ele morrera.
– É um breve relato – disse Narciso. – O abade Daniel já morreu há oito
anos, sem doença nem dores. Eu não sou o seu sucessor, há só um ano que
sou abade. O seu sucessor foi o padre Martin, o nosso antigo diretor escolar,
que morreu no ano passado sem ter completado os setenta anos. E o padre
Anselm também já não está entre nós. Era muito teu amigo, falava
frequentemente de ti. Nos últimos tempos já não conseguia andar e o ter de
ficar deitado causou-lhe grande
sofrimento; morreu de hidropisia. Pois, e também por lá tivemos a peste,
muitos morreram. Mas não falemos disso! Tens mais perguntas?
– Certamente, muitas mais. Primeiro que tudo: como vieste aqui parar à
cidade episcopal e ao palácio do governador?
– Isso é uma longa história, que te iria entediar; trata-se de política. O
conde é um protegido do imperador e tem, em certos assuntos, plenos
poderes; presentemente, há situações em que se procura uma aproximação
entre o imperador e a nossa ordem. A ordem encarregou-me de chefiar uma
delegação para negociar diretamente com o conde. O sucesso foi escasso.
Calou-se, e Goldmund não insistiu. Também não precisava de saber que
na véspera, à noite, quando Narciso pedira ao conde que lhe poupasse a
vida, aquele negociador duro lha concedera a troco de determinadas
concessões.
Continuaram a cavalgar; Goldmund não tardou a sentir-se muito cansado
e mal se aguentava na sela.
A certa altura, decorrido já bastante tempo, Narciso perguntou:
– Sempre é verdade que foste preso por teres roubado? O conde afirmou
que te tinhas introduzido nos aposentos interiores do palácio para roubar.
Goldmund soltou uma gargalhada.
– Pois, de facto, parecia que eu era um ladrão. O que aconteceu foi que
tive um encontro com a amante do conde; sem dúvida que ele também o
soube. Surpreendeu-me muito que me tenha deixado partir.
– Bem, digamos que acabou por aceitar negociar.
Tiveram de interromper a jornada prevista; Goldmund estava exausto e
as suas mãos já não conseguiam segurar as rédeas. Passaram a noite numa
aldeia; levaram-no para a cama com um pouco de febre e ali ficou também
no dia seguinte. Depois puderam prosseguir. E quando, passado pouco
tempo, as suas mãos sararam, começou a desfrutar verdadeiramente da
viagem a cavalo. Há quanto tempo não montava! Sentiu-se rejuvenescer e
recuperou a sua habitual vivacidade; aproveitou terrenos propícios para
galopar ao desafio com o moço de estrebaria, e quando começavam a
conversar, assaltava o amigo com centenas de perguntas impacientes.
Narciso respondia-
-lhe, sereno como sempre mas visivelmente satisfeito; sentia-
-se de novo enfeitiçado por Goldmund, amava as suas perguntas impulsivas
e quase infantis, que demonstravam a confiança absoluta que depositava no
espírito e no intelecto do amigo.
– Uma pergunta, Narciso: vocês por lá também queimaram judeus?
– Queimar judeus? Como podíamos? Entre nós não há judeus.
– Certo. Mas diz-me uma coisa: consegues admitir a possibilidade de
queimar judeus?
– Não, por que razão o faria? Consideras-me um faná-
tico?
– Vê lá se me entendes, Narciso! O que eu quero dizer é: podes imaginar
que, em determinados casos, pudesses dar a ordem para o assassínio de
judeus, ou pelo menos a tua anuência? Houve já tantos duques,
burgomestres, bispos e outras autoridades que o fizeram!
– Não, eu não daria uma tal ordem. Contudo, não é impensável que
tivesse de assistir a tamanha crueldade sem intervir.
– Não a impedirias, então?
– Certamente que não, se não me tivesse sido dado o poder para intervir.
Deves ter assistido a um desses autos de fé, não é verdade, Goldmund?
– Assisti, sim.
– E então, impediste-o?… Não? Estás a ver?
Goldmund contou-lhe então em pormenor a história de Rebekka e, à
medida que o fazia, ia-se acalorando de paixão e indignação.
– E então, diz-me lá – concluiu, veemente – que mundo é este em que
temos de viver? Não é um inferno? Não é odioso e abominável?
– Sem dúvida. O mundo não é outra coisa.
– Pois – exclamou Goldmund, indignado –, e quantas vezes me disseste,
antigamente, que o mundo era divino, que era uma única grande harmonia
das esferas, no centro da qual reina o Criador, no Seu trono, e que a
existência era boa, etc. Dizias que tudo isso se pode ler em Aristóteles ou
em São Tomás. Gostava que me explicasses essa contradição.
Narciso riu-se.
– Tens uma memória espantosa, Goldmund, e, no entanto, ela traiu-te um
pouco. Sempre venerei a perfeição do Criador, mas nunca a da Criação.
Nunca neguei o mal do mundo. Jamais um verdadeiro pensador concluiu
que a vida na Terra fosse harmoniosa e justa ou que o ser humano fosse
bom. Pelo contrário, já na Sagrada Escritura se pode ler que os desígnios e
as aspirações do coração humano são perversos, e todos os dias vemos
confirmada essa afirmação.
– Muito bem. Finalmente vejo como vós, os eruditos, concebeis as
coisas. O ser humano é, portanto, mau e a vida na Terra é abominável e
imunda; isso admitem-no. Mas algures, lá por detrás, nos vossos sistemas e
tratados reina a justiça e a perfeição. Elas existem, podem demonstrar-se, só
não se faz uso delas.
– Acumulaste um grande rancor contra os teólogos, meu caro amigo!
Mesmo assim, ainda não lograste tornar-te um pensador, confundes e
misturas todas as questões. Vais ter de aprender algo mais. Mas porque
afirmas tu que não fazemos uso da ideia de justiça? Fazemos uso dela a
cada dia e a cada hora que passa. Eu, por exemplo, sou abade e tenho um
convento a dirigir, e nesse convento, tal como lá fora, no mundo, deparamo-
nos constantemente com a imperfeição e o pecado. Não obstante,
contrapomos incessantemente ao pecado original a ideia de justiça e
procuramos incansavelmente aferir por ela a nossa vida imperfeita e
tentamos corrigir o mal e orientar a nossa vida no sentido de estabelecer
uma relação constante com Deus.
– Acredito, Narciso. Mas não me referia a ti, nem duvido que sejas um
bom abade. Penso na Rebekka, nos judeus imolados nas fogueiras, nas
valas cheias de mortos, na grande mortandade, nas vielas e nos quartos
onde jaziam os cadáveres da peste, no seu fedor e em toda aquela
devastação horrorosa, nas crianças vegetando abandonadas no meio do
maior desamparo, nos cães das quintas mortos de fome presos às correntes;
e quando penso em tudo isso e vejo essas imagens à minha frente, então
dói-me na alma, e quer-me parecer que as nossas mães nos lançaram a um
mundo desesperadamente maligno e demoníaco e que seria bem melhor que
não o tivessem feito, e que Deus não tivesse criado este mundo terrível, e
que o Redentor se não tivesse deixado crucificar inutilmente por ele.
Narciso anuiu com um aceno amigável.
– Tens toda a razão – admitiu calorosamente –, fala à vontade, diz-me
tudo o que te vai na alma. Mas num ponto enganas-te redondamente: achas
que aquilo que acabaste de referir são pensamentos, mas, na verdade, são
sentimentos. São os sentimentos de uma pessoa que não se conforma com o
horror da existência. Mas não esqueças que a esses pensamentos tristes e
desesperados outros, completamente diferentes, se contrapõem! Quando
montas o teu cavalo todo contente e galopas por uma bela paisagem, ou
quando te esgueiras, ao cair da noite, com esse teu típico desplante para
dentro do palácio do conde, para lhe cortejares a amante, então o mundo
tem, para ti, nesses momentos, uma aparência bem diferente, e nem as casas
pestilentas nem os judeus massacrados te impedem de ir à procura do
prazer. É ou não verdade?
– Claro que é verdade; mas é precisamente por o mundo estar tão
saturado de morte e pavor que me vejo obrigado a buscar consolo para o
coração e procuro colher as lindas flores que crescem no meio de todo este
inferno. Quando encontro o prazer, esqueço por uma hora o horror. O que
não quer dizer que ele deixe de existir.
– Colocaste muito bem a questão. Sentes-te, portanto, exposto num
mundo rodeado de morte e horror, e para fugir dele entregas-te ao prazer.
Mas o prazer é sol de pouca dura, que te abandona de novo no deserto.
– Exato.
– É isso que acontece com a maioria das pessoas, embora poucas o
sintam com um tal ímpeto e intensidade; e poucas sentem a necessidade de
se tornarem conscientes dessas pulsões. Mas diz-me uma coisa: para além
desse antagonismo dilacerante entre o prazer e o pavor, para além dessa
perpétua oscilação entre o gozo da vida e o asco da morte, nunca tentaste
procurar um outro caminho?
– Oh, sim, claro. Experimentei com a arte. Já te contei que, entre muitas
outras coisas, também me tornei artista. Um belo dia, já devia eu andar pelo
mundo há uns bons três anos, passados na sua maioria a vagabundear,
encontrei na igreja de um convento uma madona de madeira; achei-a tão
bela e fiquei tão emocionado quando a vi que perguntei pelo mestre que a
fizera. Acabei por encontrá-lo, era um artista afamado; tornei-me seu
discípulo e trabalhei alguns anos na sua oficina.
– Hás de falar-me disso mais tarde, gostaria de ouvir os pormenores. Mas
o que te deu a arte, o que significou ela para ti?
– Creio que a superação da efemeridade. Apercebi-me de que, entre toda
aquela farsa e a dança macabra da vida humana, algo sobrevivia e
perdurava: as obras de arte. Naturalmente, também elas acabam por
desaparecer: são queimadas, ou apodrecem, ou voltam a ser destruídas.
Ainda assim, sobrevivem a várias gerações e constituem, para lá do
momentâneo, um reino sereno das imagens e dos objetos sacrais. Colaborar
nesse projeto parece-me bom e consolador, pois significa quase uma
eternização do efémero.
– Agrada-me muito o que me dizes, Goldmund. Espero que ainda possas
vir a fazer muitas mais belas obras, a minha confiança na tua capacidade é
grande, e espero que possas ser durante muito tempo meu convidado em
Mariabronn e que me permitas instalar-te uma oficina; há muito que o nosso
convento não alberga um artista. Mas quer-me parecer que com essa tua
definição ainda não esgotaste todos os aspetos maravilhosos da arte. Penso
que a arte não consiste apenas em arrancar à morte algo já existente mas
perecível e conferir-lhe, por intermédio da pedra ou da madeira trabalhada e
das cores, uma certa perenidade. Já vi mais que uma obra de arte, alguns
santos e algumas madonas, sobre os quais não posso dizer que sejam meras
reproduções de um qualquer indivíduo que viveu e cujas formas e as cores o
artista soube preservar.
– Tens razão – concordou Goldmund com veemência –, nunca pensei
que conhecesses tão bem a arte! A imagem primordial de uma obra de arte
autêntica não é uma figura real existente, embora esta possa fornecer o
motivo ou o pretexto.
A imagem primitiva não é de carne e sangue, mas sim espiritual. É uma
imagem sediada na alma do artista. Dentro de mim, Narciso, também
existem imagens dessas, a que um dia espero poder dar forma. Talvez então
tas possa mostrar.
– Magnífico! E assim, meu caro, entraste, sem te aperceberes disso, no
domínio da filosofia e revelaste um dos seus segredos.
– Deves estar a zombar de mim.
– De maneira nenhuma. Falaste de «imagens primordiais», de imagens,
portanto, que não existem em mais parte alguma,
a não ser no próprio espírito criador, embora possam ser concretizadas e
manifestadas na matéria. Muito antes de uma imagem artística se tornar
visível e adquirir realidade, já ela existe como imagem na alma do artista!
Ora, essa imagem, esse arquétipo, não é outra coisa senão aquilo a que os
antigos filósofos chamavam uma «ideia».
– Sim, parece convincente.
– Pois bem, ao aceitares a existência das ideias e dos arquétipos, entras
num domínio espiritual, no nosso mundo dos filósofos e dos teólogos, e
admites que no meio do confuso e doloroso campo de batalha da vida, no
meio dessa interminável e absurda dança macabra da existência física existe
o espírito criador. Foi precisamente a esse espírito dentro de ti que sempre
me dirigi, desde que vieste ter comigo, quando não passavas ainda de um
rapazinho. Em ti, esse espírito não é o de um pensador, é o de um artista.
Mas continua a ser espírito, e é ele que te irá mostrar o caminho para fora
do obscuro tumulto do mundo dos sentidos, para além dessa eterna
dilaceração entre a volúpia e o desespero. Muito feliz me sinto, meu caro,
por ter escutado essa tua confissão. Há muito que a esperava, desde que
deixaste o teu mestre Narciso e assumiste a coragem de ser tu próprio.
Agora podemos voltar a ser amigos.
Naquele instante, Goldmund achou que a sua vida ganhara um sentido,
como se, abarcando-a de cima, pudesse ver com nitidez as suas três grandes
fases: a da tutela, sob a dependência de Narciso; a da emancipação, o
período da liberdade e da vida errante; e a do regresso, do recolhimento, o
início da maturidade e da colheita.
A visão desvaneceu-se novamente. Mas com Narciso encontrara agora a
relação que lhe convinha; não mais uma relação de dependência, mas de
liberdade e reciprocidade. Agora podia aceitar, sem se sentir humilhado, a
presença de um espírito superior, uma vez que este reconhecera nele alguém
seu igual, um criador. Durante toda aquela viagem, Goldmund alegrou-se,
sentindo o desejo crescente de revelar ao amigo o seu mundo interior
através de imagens e obras. Por vezes, porém, assaltavam-no dúvidas.
– Narciso – avisou –, temo bem que não saibas ao certo quem levas
contigo para o convento. Não sou um monge nem tenciono sê-lo. Conheço
os três grandes votos e com o da pobreza estou completamente de acordo;
mas não amo nem a castidade nem a obediência; também não me parece
que essas virtudes sejam assim tão varonis. E da devoção já nada me resta;
há anos que não me confesso, não rezo, nem comungo.
Narciso manteve-se tranquilo.
– Parece-me que te tornaste pagão, Goldmund. Mas isso não nos mete
medo. Não precisas propriamente de te orgulhar dos teus muitos pecados.
Viveste a vida habitual do mundo terreno; como o filho pródigo, andaste a
guardar porcos, já não sabes bem o que é lei e ordem. Parece-me evidente
que não conseguiríamos fazer de ti um bom monge. Mas não te estou a
convidar para entrares na nossa ordem; convido-te apenas para seres nosso
hóspede e proponho-te que te montemos lá no convento uma oficina. E uma
coisa mais: não te esqueças de que, quando éramos novos, fui eu quem te
acordou e encorajou a ir correr mundo. Para o bem e para o mal, também eu
tenho, para além de ti, responsabilidade naquilo em que te tornaste. Quero
ver aquilo em que te tornaste; irás mostrar-me quem és, por palavras, por
atos e obras. Se depois de me mostrares quem és eu chegar à conclusão de
que a nossa casa não é lugar para ti, serei o primeiro a pedir-te que a
abandones.
Goldmund ficava sempre cheio de admiração ao ver o amigo falar assim,
demonstrando a autoridade de um abade, com aquela serena segurança e a
discreta ironia que cultiva-
va em relação aos leigos e à vida laica; compreendia então aquilo em que
Narciso se tornara: um homem. Um homem da Igreja e do espírito, de mãos
delicadas e com um rosto de erudito, mas firme e corajoso, um homem
capaz de liderar e assumir as suas responsabilidades. Este Narciso já não era
o adolescente de outrora nem o delicado e dedicado discípulo S. João. O
que agora desejava era moldar e esculpir com as suas próprias mãos a
imagem daquele novo Narciso masculino e cavaleiresco. Quantas figuras
esperavam por ele: Narciso, o abade Daniel,
o padre Anselm, o mestre Niklaus, a bela Rebekka, a bela Agnes e tantos
outros, amigos e inimigos, vivos e mortos. Não, não queria ser monge, nem
devoto, nem erudito – o que ele queria era criar obras, e enchia-o de alegria
pensar que a pátria da sua juventude seria o lugar onde nasceriam essas
obras.
Prosseguiram viagem, cavalgando por aquele fresco fim de outono. Num
dia em que as árvores nuas se vergavam sob a espessa geada matinal,
atravessaram uma vasta região ondulada com manchas ermas e
avermelhadas de lameiros; as linhas das longas cadeias de colinas
pareceram-lhe singularmente evocativas e como que suas velhas
conhecidas; passaram depois por um bosque de freixos altos, por um regato
e por um velho celeiro, e, ao vê-lo, Goldmund sentiu o coração doer-lhe de
alegre expectativa; reconheceu as colinas por onde cavalgara com Lydia, a
filha do cavaleiro, e a charneca que atravessara profundamente magoado no
meio de um nevão, depois de ter sido expulso do castelo. A pouco e pouco
foram então surgindo os grupos de amieiros, e a azenha e o castelo; com
doloroso espanto reconheceu a janela do quarto onde outrora, na sua mítica
juventude, escutara a narrativa da peregrinação do cavaleiro e corrigira a
sua transposição para o latim. Entraram no pátio, era uma das paragens
previstas na viagem. Goldmund pediu ao abade que não dissesse ali o seu
nome e que o deixasse comer na cozinha com o moço de estrebaria, junto
da criadagem. Assim se fez. Já lá não viviam o velho cavaleiro nem Lydia,
embora alguns servos e caçadores ainda fossem do seu tempo; no castelo
morava e reinava agora uma fidalga muito bela, altiva e despótica, Julie,
acompanhada pelo esposo. Continuava maravilhosamente bela, muito bela e
um pouco maldosa; nem ela nem o pessoal o reconheceram. Depois da
refeição, à hora do crepúsculo, Goldmund esgueirou-se para o jardim,
espreitou por cima da vedação para os canteiros já invernais, foi até à
cavalariça e esteve a ver os animais. Nessa noite dormiu na palha, como
moço de estrebaria, e o peso das recordações no peito fê-lo acordar várias
vezes. Como lhe surgia despedaçada e estéril a vida que deixava para trás,
rica em espantosas imagens, mas de tal modo fragmentada, de tão pouco
valor e tão pobre em amor! De manhã, quando montaram para prosseguir
viagem, ainda olhou ansioso para a janela, na esperança de ver surgir Julie.
Fora assim que ainda há pouco, ao deixar a residência episcopal, procurara
Agnes. Não a vira, tal como não voltou a ver a filha do cavaleiro. Pareceu-
lhe então que toda a sua vida tinha sido assim: despedidas, fugas
precipitadas, esquecimento e abandono, de mãos vazias e coração transido.
Pensou nisso durante todo o dia; curvado sobre a sela, taciturno, não disse
palavra. Narciso deixou-o à vontade.
Agora, porém, aproximavam-se da meta, que alcançaram decorridos
alguns dias. Pouco antes de avistarem a torre e os telhados do convento,
passaram por aqueles pedregosos terrenos baldios onde ele, há tanto tempo,
fora colher hipericão para o padre Anselm e se fizera homem graças à
cigana Lise. Atravessaram o portão de Mariabronn e desmontaram junto ao
castanheiro meridional. Goldmund afagou enternecido o tronco e baixou-se
para apanhar uma das cascas estaladas e eriçadas de picos que juncavam o
chão, castanhas e murchas.
XVIII

Durante os primeiros dias, Goldmund ficou instalado no complexo do


convento, numa das celas reservadas aos hóspedes. Depois mudou-se, a seu
pedido, para um outro espaço, em frente à oficina do ferreiro, numa das
dependências que rodeavam o grande pátio como os edifícios à volta de
uma praça de mercado.
O reencontro exerceu sobre ele uma tal fascinação que o surpreendeu.
Ninguém ali o conhecia já, a não ser o abade, ninguém sabia quem ele era;
as pessoas que ali moravam, tanto frades como leigos, viviam integrados
numa ordem estável, todos tinham as suas obrigações e ninguém o
incomodava. Mas conheciam-no as árvores da cerca, conheciam-no os
portais e as janelas, conheciam-no a azenha e a nora, as lajes dos
corredores, as roseiras despidas de folhas do claustro, os ninhos de cegonha
nos telhados do celeiro e do refeitório. De todos os recantos se desprendia o
aroma doce e nostálgico do seu passado, dos anos da sua adolescência; a
emoção levava-o a redescobrir tudo, a recuperar todos os sons que ouvira
no passado, os sinos das trindades e as badaladas dominicais, o murmúrio
escuro do ribeiro da azenha no seu estreito leito limitado por muros
musgosos, o ressoar das sandálias nas lajes de pedra, o tilintar vespertino do
molho de chaves, quando o irmão porteiro ia fazer a sua ronda. Junto às
goteiras de pedra por onde escorria a água da chuva do telhado do refeitório
dos laicos cresciam ainda as mesmas ervinhas, os gerânios silvestres e a
tanchagem, e a velha macieira no quintal junto à oficina do ferreiro ainda
estendia os seus longos ramos retorcidos. Mas, mais do que tudo, comovia-
o escutar o toque da sineta da escola e ver, à hora do recreio, o tropel
barulhento dos alunos do convento descendo as escadas e espalhando-se
pelo pátio. Como eram novinhos os rostos daqueles miúdos, como eram
lindos e tolos – teria ele sido também alguma vez assim, tão jovem, tão
estouvado, tão engraçado e infantil?
Contudo, para além desse convento tão familiar, reencontrou também um
outro quase desconhecido, que logo nos primeiros dias lhe chamou a
atenção, para depois ir adquirindo uma importância cada vez maior e só
gradualmente se integrar e fundir na imagem tão sua conhecida. Pois
embora também ali nada de novo tivesse sido acrescentado, embora tudo
continuasse idêntico ao que era nos seus tempos de estudante e mais de um
século atrás, a verdade era que já não olhava e via as coisas com os olhos do
colegial de então. Agora podia ver e sentir as proporções daqueles edifícios,
as abóbadas da igreja, os antigos frescos, as figuras de pedra e madeira nos
altares e nos portais, e apesar de não ver nada que já então não tivesse
estado no seu lugar, só agora conseguia ver a beleza daquelas coisas e do
espírito que as criara. Viu na capela superior a antiga figura de pedra da
Nossa Senhora, que já em rapazinho tinha admirado e desenhado, mas que
só agora contemplava com um olhar conhecedor, e apercebeu-se de que era
uma obra maravilhosa, que ele nunca, nem com o seu mais conseguido
trabalho, lograria superar. E havia muitas outras coisas magníficas, e
nenhuma delas se encontrava isolada ou era obra do acaso, pois cada uma
delas provinha do mesmo espírito e participava da mesma ordem, tendo
encontrado o seu espaço próprio e natural entre os velhos muros, as colunas
e as abóbadas. O que ali, durante um par de séculos, fora edificado,
esculpido, pintado, vivido, pensado e ensinado era produto de um mesmo
sistema, do mesmo espírito, e tudo se ordenava e combinava como os ramos
de uma árvore se conjugam e concordam entre si.
No meio daquele mundo, daquela serena e poderosa unidade, Goldmund
sentia-se agora muito pequeno, mas nunca se sentia tão insignificante como
quando via o abade Johannes, o seu amigo Narciso, dirigir e governar
aquela comunidade, impondo uma ordem que conseguia ser tão dominante
quanto serena e amável. Muito embora pudesse haver grande diferença de
personalidades entre o abade Johannes, de lábios finos e intelecto brilhante,
e o genuíno, bondoso e singelo abade Daniel, ambos se dedicavam a servir
a mesma unidade, os mesmos pensamentos e a mesma ordem; dela
derivavam a sua dignidade e a ela sacrificavam a sua pessoa. Isso tornava-
os tão semelhantes quanto o hábito monacal que envergavam.
No âmbito daquele seu convento, Narciso tornou-se aos olhos de
Goldmund assustadoramente grande, sem que se tivesse comportado para
com ele de outra forma senão como amigo cordial e hospedeiro atento.
Pouco tempo decorrido, já mal ousava tratá-lo por tu ou por Narciso.
– Escuta, abade Johannes – disse-lhe um dia –, pouco a pouco, vou
mesmo ter de me habituar ao teu novo nome. Devo dizer-
-te que me sinto muito bem aqui convosco. Quase tinha vontade de te fazer
uma confissão geral e, cumprida a penitência, de te pedir acolhimento na
ordem, na qualidade de irmão leigo. Mas isso significaria o fim da nossa
amizade; tu serias o abade e eu o irmão leigo. Mas viver assim ao teu lado,
limitando-me a acompanhar o teu trabalho, sem nada ser nem nada fazer,
isso também já não consigo suportar por muito mais tempo. Também eu
gostaria de trabalhar e mostrar-te o que sou e valho, para que possas julgar
se valeu a pena salvar-me da forca.
– Alegra-me o que dizes – replicou Narciso, e pronunciou as seguintes
palavras de uma forma ainda mais precisa e clara do que era costume. –
Quando quiseres, podes começar a instalar a tua oficina e eu vou já dar
instruções ao ferreiro e ao carpinteiro para que se coloquem à tua
disposição. Utiliza todo o material de trabalho que possas aqui encontrar e
prepara uma lista do que os carreteiros tenham de trazer de fora! E agora
ouve o que penso de ti e das tuas intenções! Tens de me dar tempo para me
poder expressar: sou um estudioso e quero tentar transmitir-te o que penso,
de acordo com o meu modo de ver. Não disponho de outra linguagem senão
esta. Portanto, tenta acompanhar-me com a mesma paciência com que o
fizeste em tempos passados.
– Vou tentar seguir-te. Diz lá então.
– Lembra-te de como já no nosso tempo de escola eu costumava dizer-te
que te considerava um artista. Na altura parecia-me que poderias vir a ser
um poeta; na leitura e na escrita demonstravas uma certa aversão pelo
aspeto conceitual e abstrato, preferindo, na linguagem, as palavras e as
sonoridades que possuíam qualidades sensoriais e poéticas, ou seja,
palavras capazes de evocar algo concreto.
Goldmund interrompeu-o.
– Desculpa, mas esses conceitos e abstrações que tu preferes não são,
também eles, representações, e portanto imagens? Ou será que precisas e
preferes para pensar aquelas palavras que nada evocam? Será que se pode
pensar sem que se imagine algo?
– Ainda bem que colocaste essa questão! É claro que se pode pensar sem
imaginar! O pensar nada tem a ver com a imaginação. Ele não se processa
em imagens, mas sim em conceitos e fórmulas. Justamente onde as imagens
acabam, começa a filosofia. Foi sobre isso que tantas vezes discutimos
quando éramos jovens: para ti, o mundo consistia em imagens, para mim
em conceitos. Sempre te disse que não servias para pensador, e também te
disse que isso não significava um defeito ou lacuna, pois, em contrapartida,
dominavas no âmbito das imagens. Presta atenção, vou tentar explicar ainda
com mais clareza. Se em vez de teres seguido o teu caminho pelo mundo te
tivesses tornado um pensador, poderias ter causado muitos danos. Serias um
místico. Os místicos são, resumindo de uma forma algo grosseira,
pensadores que não se conseguem libertar das suas imaginações, pelo que
não são pensadores nenhuns. São artistas recalcados: poetas sem versos,
pintores sem pincel, músicos sem sons. Há entre eles espíritos altamente
dotados e nobres, mas todos, sem exceção, são pessoas infelizes. Tu podias
ter-te tornado uma dessas criaturas. Em vez disso, tornaste-
-te, graças a Deus, um artista e apoderaste-te do mundo das imagens, onde
podes ser criador e soberano, em vez de seres um pensador medíocre.
– Temo bem que nunca consiga imaginar esse teu mundo do pensamento,
em que se opera sem recurso ao poder evocativo da imaginação – ripostou
Goldmund.
– Vais compreender já de seguida. Escuta: o pensador procura
reconhecer e representar a essência do mundo através da lógica. Ele está
consciente de que o nosso intelecto e a sua ferramenta, a lógica, são
instrumentos imperfeitos, tal como um artista inteligente sabe, certamente,
que o seu pincel ou o escopro nunca irão conseguir expressar a essência
radiosa de um santo ou de um anjo. E, contudo, ambos tentam fazê-lo, tanto
o pensador como o artista, cada um a seu modo. Eles não podem nem
devem proceder de outra forma. E isso porque, ao tentarmos «realizar» os
dons que a natureza nos deu, estamos a cumprir a suprema e única tarefa
que podemos assumir. A única que dá verdadeiramente sentido às nossas
vidas. Foi por isso que eu não me cansava de te dizer: não tentes imitar o
pensador ou o asceta, sê tu próprio, procura realizar-te a ti mesmo!
– Parece-me que te compreendo mais ou menos. Mas o que quer dizer,
no fundo, «realizar-se a si mesmo».
– Trata-se de um conceito filosófico, não o posso traduzir de outra
maneira. Para nós, discípulos de Aristóteles e de São Tomás, é o conceito
supremo: o ser perfeito. O ser perfeito é Deus. Tudo o resto que existe, é-o
apenas parcialmente, manifesta-se num devir, é misto e contingente,
consiste em possibilidades. Deus, porém, não é misto, mas sim uno, não
existe enquanto possibilidade, mas sim como realidade plena e absoluta.
Nós, pelo contrário, somos transitórios, encontramo-nos num devir, somos
possibilidades, para nós não existe uma perfeição nem participamos no ser
pleno e uno. No entanto, quando caminhamos da potencialidade para o ato,
da possibilidade para a realização, participamos do ser verdadeiro,
aproximamo-nos gradualmente da perfeição da divindade e tornamo-nos
um pouco mais idênticos a ela. É isso que significa realizar-se. Tu deves
conhecer esse processo por experiência própria. Como artista, já criaste
algumas esculturas; sempre que uma dessas imagens te saiu
verdadeiramente bem, quando conseguiste libertar a imagem de uma pessoa
de todos os aspetos acidentais e contingentes e a transformaste numa forma
pura, então conseguiste realizar, enquanto artista, essa imagem humana.
– Estou a perceber.
– Tu vês-me, amigo Goldmund, num local e num cargo onde, de acordo
com a minha natureza, tem sido relativamente fácil realizar-me. Vês-me
viver numa comunidade e numa tradição que correspondem ao meu carácter
e me apoiam. Um convento não é um Céu, está cheio de imperfeições; e,
contudo, uma vida monacal vivida decentemente é, para pessoas com as
minhas características, infinitamente mais propícia do que a vida profana.
Nem preciso de falar do aspeto moral; mesmo na vida prática, o
pensamento puro que me cabe ensinar e exercer exige um certo resguardo
perante o mundo. Isso significa que aqui, nesta casa, tive muito maior
facilidade em realizar-me do que tu, lá fora. Por isso sinto grande admiração
por ti, pois, apesar de todas as dificuldades, conseguiste encontrar o teu
caminho e tornar-te artista. O teu percurso foi muito mais árduo.
Goldmund enrubesceu, embaraçado e feliz com o elogio. Para desviar a
conversa, interrompeu o amigo:
– Consegui perceber quase tudo o que me querias dizer. Mas há uma
coisa que ainda não me quer entrar na cabeça: aquilo a que chamas o
«pensamento puro», esse teu pensamento supostamente sem imagens, que
opera com palavras que nada evocam.
– Posso explicar-te com um exemplo. Pensa na matemática! Que
representações contêm os algarismos, que realidades evocam? Ou os sinais
«mais» e «menos»? Que imagens contém uma equação? Nenhumas!
Quando resolves um problema de aritmética ou de álgebra não estás a
imaginar nada nem recorres a uma qualquer representação, limitas-te a
realizar uma operação formal, num contexto de determinadas formas de
pensamento aprendidas.
– Isso é verdade, Narciso. Se me apontares uma série de algarismos e
sinais, posso operar com eles, sem que isso represente ou evoque qualquer
imagem; deixo-me simplesmente guiar pelos sinais «mais» e «menos»,
pelos expoentes, pelos parênteses, e por aí fora, e consigo resolver o
problema. Isto é, conseguia, agora já há muito tempo que não consigo. Mas
custa--me imaginar que a resolução dessas tarefas formais possa ter outro
valor para além de um mero treino mental para escolares. É sempre bom
aprender a fazer contas. Mas, para mim, seria uma criancice disparatada
passar uma vida inteira debruçado sobre esses cálculos, a preencher
eternamente resmas de papel com colunas e algarismos.
– Enganas-te, Goldmund. Partes do princípio de que esse dedicado
matemático não faria mais do que resolver sucessivos exercícios marcados
pelo professor na escola. Mas pode ser ele próprio a colocar-se os
problemas, e estes podem impor-se-lhe com uma urgência premente. É
necessário medir e calcular matematicamente muitos espaços reais e
fictícios, antes que um pensador se abalance a abordar o problema do
espaço.
– Está bem. Mas o problema do espaço, enquanto problema de
pensamento puro, também não me parece uma tarefa que mereça que um
homem desperdice com ela o seu esforço e a sua vida. Em si mesma, a
palavra «espaço» nada significa para mim e nem sequer vale a pena pensar
nela, desde que não evoque um espaço real que eu possa imaginar, como,
por exemplo, o espaço sideral; observar e medir o firmamento, isso sim, faz
para mim todo o sentido.
Narciso entrepôs com um sorriso:
– O que queres dizer é que não tens consideração pelo pensamento em si
mesmo, mas apenas pela sua aplicação ao mundo prático e visível. Pois eu
posso garantir-te que não nos faltam, a nós, pensadores, oportunidades para
aplicar o nosso pensamento, nem vontade de o fazer. O pensador Narciso,
por exemplo, aplicou centenas de vezes os resultados da sua reflexão, tanto
em relação ao seu amigo Goldmund como a cada um dos monges do seu
convento, e ainda hoje os aplica constantemente. Mas como poderia
«aplicar» algo se não o tivesse primeiro aprendido e exercitado? Também o
artista está constantemente a exercitar o olho e a fantasia, e reconhecemos a
sua prática, mesmo que ela só se manifeste numas poucas obras reais. Não
podes rejeitar o pensamento em si mesmo, mas tão-só aprovar a sua
«aplicação»! A contradição é evidente. Portanto, deixa-me continuar a
pensar à vontade e avalia o meu pensamento pelos seus efeitos, tal como eu
julgarei a tua arte pelas tuas obras. Andas agora inquieto e irritado porque
entre ti e as tuas obras se entrepõem ainda obstáculos. Remove-os, procura
ou instala uma oficina e mete mãos à obra! Muitas das questões que te
afligem resolver-se-ão por si próprias.
Goldmund não desejava outra coisa.
Descobriu perto do portão do pátio uma dependência, que de momento
se encontrava vazia e se prestava para oficina. Encomendou ao marceneiro
uma mesa de desenho e outros equipamentos, para os quais lhe forneceu
rigorosas indicações. Fez uma longa lista das coisas que queria que os
carroceiros do convento lhe fossem trazendo, pouco a pouco, das cidades
próximas. Visitou a carpintaria e procurou na floresta todas as provisões de
madeira cortada, escolheu para si inúmeras peças e deu ordens para que as
levassem, uma após outra, para um pátio arrelvado que havia atrás da
oficina, onde as armazenou para que secassem sob um telheiro que ele
próprio construiu. Também teve muito que fazer na oficina do ferreiro, cujo
filho, um rapaz com um ar sonhador, não tardou a sentir-se fascinado por
ele. Com ele passou horas e horas a trabalhar na forja, na bigorna, na tina de
arrefecimento e na pedra de amolar; foi assim que construíram todas as
facas direitas e curvas, formões, brocas e plainas de que precisava para
trabalhar a madeira. Erich, o filho do ferreiro, um moço dos seus vinte anos,
tornou-
-se amigo de Goldmund e passou a ajudá-lo em tudo, cheio de curiosidade e
de um zelo entusiástico. Goldmund prometeu ensiná-lo a tocar o alaúde,
algo que ele desejava ardentemente, e disse-lhe que poderia experimentar
trabalhar com a madeira. Quando se sentia inútil e oprimido no convento,
com Narciso, sempre podia recompor-se junto de Erich, que lhe votava um
tímido afeto e uma devoção sem limites. Frequentemente, pedia-lhe que lhe
falasse do mestre Niklaus e da cidade episcopal; Goldmund costumava
aceder de bom grado e não raras vezes surpreendia-se subitamente consigo
próprio, ao ver-se de repente ali sentado a relatar viagens e acontecimentos
do passado, como um velho, quando, no fundo, a sua vida mal agora devia
começar verdadeiramente.
Uma vez que ninguém o conhecera antes, não podiam aperceber-se de
que nos últimos tempos ele se modificara muito e envelhecera
precocemente. Podia ser que as agruras de uma vida errante e inconstante o
tivessem já desgastado; e depois, o período da peste, com os seus pavores,
e, ultimamente, a prisão com aquela noite demencial na cave do castelo
tinham-no abalado profundamente e deixado marcas: pelos brancos na
barba loira, finas rugas a sulcarem-lhe o rosto, períodos de insónias e, de
vez em quando, uma fatigada perplexidade no coração, um abrandamento
do prazer e da curiosidade, uma sensação acinzentada e morna de saciedade
e indiferença. Nos preparativos para o trabalho, nas conversas com Erich,
no manejo dos utensílios nas oficinas do ferreiro e do carpinteiro
recuperava, tornava-se de novo entusiástico e jovem, todos o admiravam e
estimavam; mas sucedia-lhe frequentemente ficar sentado horas a fio,
fatigado, sorridente e sonhador, entregue à apatia e à indiferença.
Uma questão fulcral para ele era por onde devia começar o trabalho. A
primeira obra que iria ali realizar e com a qual pretendia retribuir a
hospitalidade ao convento não devia ser uma obra casual, que se coloca
num sítio qualquer, para despertar a curiosidade de quem a vê; tal como o
antigo património artístico daquela casa, ela deveria integrar-se
completamente na estrutura e na vida do convento, de modo a tornar-se
parte dele. Teria gostado de executar um altar ou um púlpito, mas não havia
espaço nem necessidade de nenhum. Em contrapartida, encontrou outra
coisa. No refeitório dos padres havia um nicho elevado onde, durante as
refeições, um dos irmãos mais novos lia sempre o hagiológio. Não tinha
qualquer ornamento. Goldmund resolveu fazer para o atril e para o acesso a
ele uma decoração em madeira entalhada, semelhante à de um púlpito, com
figuras em meio-relevo e outras livres e separadas do fundo. Comunicou o
plano ao abade, que o elogiou e acolheu com satisfação.
Quando, por fim, o trabalho pôde começar – havia neve nos campos e o
Natal já tinha passado –, a vida de Goldmund adquiriu uma nova forma.
Parecia ter desaparecido do convento, já ninguém o via, deixou de esperar
pelos miúdos à saída das aulas, deixou de vaguear pela floresta e de passear
pelo claustro. Passou então a tomar as refeições com o moleiro, que já não
era o mesmo que nos seus tempos de rapaz tantas vezes visitara. Na oficina
não deixava entrar ninguém, a não ser o seu ajudante Erich; mas dias havia
em que mesmo esse não lhe ouvia uma única palavra.
Para a sua primeira obra, a tribuna de leitura do refeitório, tinha
estabelecido, após longa reflexão, o seguinte plano: o conjunto seria
constituído por duas partes, das quais uma representaria o mundo e a outra a
palavra divina. A parte inferior, a escada, lavrada num grosso tronco de
carvalho à volta do qual se enrolava, deveria representar a Criação, através
de imagens da natureza e cenas da vida simples dos patriarcas. A parte
superior, o peitoril, suportaria as figuras dos quatro evangelistas. A um dos
evangelistas queria dar a aparência do abade Daniel, que Deus tinha em Sua
graça; a um outro a do padre Martin, o seu sucessor, e na figura de Lucas
tencionava imortalizar os traços do mestre Niklaus.
Deparou-se com grandes dificuldades, maiores do que previra. O
trabalho na obra trouxe-lhe preocupações, mas eram doces cuidados. Lutou
por ela com deleite e desespero, como se lutasse pela conquista de uma
mulher esquiva, como um pescador luta por um grande lúcio; todas as
resistências o ensinavam e lhe afinavam a sensibilidade. Esqueceu tudo o
resto,
o convento e até quase o próprio Narciso. Este aparecia às vezes pela
oficina, onde só lhe eram dados a ver desenhos.
Em contrapartida, surpreendeu-o um dia o pedido de Goldmund para o
ouvir em confissão.
– Até hoje não tinha conseguido decidir-me – confiou-lhe ele. – Sempre
me achei demasiado insignificante, já me sentia suficientemente humilhado
perante ti. Agora sinto-me melhor, tenho o meu trabalho e não sou mais um
inútil. E já que vivo num convento, gostaria de me submeter à regra geral.
Sentia-se agora preparado e não queria esperar mais.
E devido à vida sossegada das primeiras semanas, à entrega e ao reencontro
com as recordações da juventude e também às narrativas que Erich lhe
pedira, a visão retrospetiva da sua vida adquirira uma certa ordem e clareza.
Narciso recebeu-o sem formalismos e ouviu-o em confissão durante
cerca de duas horas. De rosto impassível, o abade escutou as aventuras, os
sofrimentos e os pecados do seu amigo; fez--lhe algumas perguntas, mas
nunca o interrompeu e, com igual impassibilidade, ouviu a parte da
confissão em que Goldmund reconhecia o desaparecimento da sua fé na
justiça e na bondade divinas. Muito do que ouviu o comoveu, compreendeu
até que ponto o amigo fora abalado e traumatizado e como tantas vezes
estivera prestes a sucumbir. Noutros momentos não conseguiu disfarçar um
sorriso enternecido perante a ingenuidade e a inocência que Goldmund
conservara, pois sentiu-o preocupado e arrependido com pensamentos
ímpios, inofensivos em comparação com as suas próprias dúvidas e
abismos.
Para surpresa e deceção de Goldmund, o confessor não levou demasiado
a sério os seus verdadeiros pecados, mas repreendeu-o e castigou-o sem
indulgência por ter descurado as práticas da oração, da confissão e da
comunhão. Impôs-lhe a penitência de viver frugalmente e castamente
quatro semanas antes de comungar, ouvir todas as manhãs a primeira missa
e rezar todas as noites três padres-nossos e uma salve-rainha.
Depois disse-lhe:
– Peço-te que sigas o meu conselho e não assumas esta penitência de
ânimo leve. Não sei se ainda te recordas do texto da missa. Deves segui-lo
palavra por palavra e compenetrar-te do seu sentido. Hoje mesmo direi
contigo o padre-nosso e algumas ladainhas para te explicar as palavras e os
significados que deves ter especialmente em atenção. Não deves dizer nem
ouvir palavras sagradas como se dizem e ouvem palavras profanas. Sempre
que te apanhares a papaguear as frases, e isso irá suceder mais vezes do que
pensas, lembra-te deste momento e da advertência que te faço e recomeça
tudo do princípio, palavra por palavra, para que elas entrem no teu coração,
tal como te irei mostrar.
Quer fosse por um feliz acaso ou porque o conhecimento humano do
abade tinha esse alcance, aquela confissão e o exercício da penitência
resultaram para Goldmund num período de plenitude e pacificação interior
que o estabilizou e satisfez profundamente. No meio de todas as tensões,
preocupações e satisfações provocadas pelo trabalho, o cumprimento
consciencioso, de manhã e à noite, daqueles fáceis exercícios espirituais
libertava-o da ansiedade diária e remetia-o com todo o seu ser para uma
ordem superior que o absolvia da perigosa solidão do criador e o inseria,
como criança, num reino de Deus. Embora continuasse a ter de enfrentar
sozinho a luta pela sua obra, transmitindo-lhe toda a paixão dos seus
sentidos e da sua alma, aquela hora da oração possibilitava-lhe, não raras
vezes, o reencontro com a inocência. Se durante o trabalho chegava a ferver
de fúria e impaciência ou exultava de volúpia, depois, quando cumpria os
exercícios piedosos, era como se mergulhasse em águas profundas e frescas,
que o limpavam tanto da soberba do entusiasmo como da soberba do
desespero.
Nem sempre o conseguia. Por vezes, à noite, depois das desgastantes
horas de trabalho, não conseguia encontrar a calma e a concentração; houve
alturas em que se esqueceu mesmo de rezar e aconteceu-lhe também,
quando se esforçava por se reencontrar no recolhimento, ser acossado pela
ideia de que aquelas preces não passavam de um apelo infantil a um Deus
que nem sequer existia e que, por certo, não o podia ajudar. Queixou-se
disso ao amigo.
– Persiste – disse Narciso –, prometeste, tens de cumprir. Não te cabe a ti
especular sobre se Deus atende ou não as tuas preces, ou sobre se o Deus
que tu imaginas existirá mesmo. Também não te cabe a ti decidir se os teus
esforços são ou não infantis. Em comparação com aquele a quem as nossas
orações se dirigem, todos os nossos atos são infantis. O que tu tens a fazer é
afastar decididamente de ti todas essas tolas e infantis especulações quando
estás a rezar. Reza o teu padre-nosso e a tua salve-rainha e entrega-te às
suas palavras e permite que elas te iluminem. Quando estás a cantar ou a
tocar o alaúde, também não andas sempre a cismar numas quaisquer
questões e em especulações rebuscadas; o que importa é executar as notas e
dedilhar o instrumento da melhor forma possível. Quando cantamos, não
estamos a pensar se o canto é ou não uma coisa útil; limitamo-nos
simplesmente a cantar. É assim que deves rezar.
E de novo conseguia. De novo se apaziguava a tensão do seu impulsivo
ego no seio daquela ordem cósmica, de novo o atravessava a litania das
palavras venerandas no seu trânsito, como estrelas.
Com grande satisfação, o abade constatou que, mesmo depois de
decorrido o prazo imposto da penitência e de ter recebido os sacramentos,
Goldmund continuava a cumprir as suas devoções, durante semanas e
meses.
Entretanto, a obra avançava. Do grosso fuso da escada foi brotando e
crescendo todo um pequeno mundo de formas, de plantas, animais e
pessoas, com um patriarca Noé ao centro, entre folhas de parreira e cachos
de uvas; pouco a pouco,
a escada foi-se transformando num álbum ilustrado em louvor da Criação
com toda a sua beleza, livre na organização dos elementos e no jogo das
formas, mas dirigida por uma secreta ordem e disciplina. Durante todos
esses meses, ninguém pôde ver a obra, a não ser Erich, a quem era
permitido ajudá-lo e que não pensava noutra coisa senão tornar-se um
artista. Porém, dias havia em que nem ele podia entrar na oficina; noutros,
Goldmund interessava-se por ele, ensinava-lhe o manuseamento dos
utensílios e deixava-o experimentar, contente por ter um adepto e um
discípulo. Quando acabasse a obra, e se ficasse satisfeito, tencionava falar
com o pai do rapaz para o libertar das suas obrigações e pô-lo a trabalhar na
sua oficina. Podia instruí-lo e ficaria com um aprendiz permanente.
Às figuras dos evangelistas dedicava os seus melhores dias, quando tudo
progredia de uma forma harmoniosa e não se sentia acossado pelas dúvidas.
Parecia-lhe que a mais bem conseguida era a que apresentava os traços do
abade Daniel; gostava muito dela, o seu rosto irradiava inocência e
bondade. Já a figura do mestre Niklaus não lhe agradava assim tanto,
embora fosse a preferida de Erich. Sentia-se nela uma grande dilaceração e
angústia, parecia estar dominada por elevados planos criadores e, em
simultâneo, desesperadamente consciente da futilidade da pulsão criadora,
cheio de tristeza pela perda da inocência e da unidade.
Quando o abade Daniel ficou pronto, ordenou a Erich que limpasse a
oficina. Cobriu o resto da obra com panos, deixando à mostra apenas aquela
figura. Depois foi ter com Narciso e, como este estava ocupado, esperou
pacientemente até ao dia seguinte. Por fim, à hora do almoço, levou o
amigo à oficina para que pudesse ver a figura.
Narciso ficou parado a olhar. Não se apressou, deixou-se ficar ali a
observar a figura com a atenção e o zelo do estudioso. Goldmund manteve-
se atrás dele, em silêncio, tentando dominar o tumulto que lhe ia na alma.
Se agora um de nós falhar, pensou, estou perdido. Se a minha obra não for
suficientemente boa, ou se ele não a conseguir entender, então todo o meu
trabalho aqui deixou de fazer sentido. Deveria ter esperado mais algum
tempo.
Os minutos pareciam-lhe horas; recordou então aquele momento em que
o mestre Niklaus examinara o seu primeiro desenho e apertou uma contra a
outra as mãos húmidas e quentes.
Narciso virou-se e ele sentiu-se imediatamente redimido de toda a sua
angústia. No rosto seco do amigo viu então desabrochar algo que desde os
anos da adolescência nunca mais tornara a ver; um sorriso, um sorriso quase
tímido iluminava aquele rosto dominado pelo espírito e pela vontade, um
sorriso de pura afeição e entrega, uma espécie de brilho, como se por
instantes a solidão e a altivez daquele rosto tivessem sido anuladas para
deixar transparecer um coração cheio de amor.
– Goldmund – disse Narciso com uma voz quase sumida, sem, no
entanto, deixar de medir bem cada palavra –, não estás certamente à espera
de que eu, de repente, me torne um perito em arte. Bem sabes que não o
sou. Sobre a tua arte não te posso dizer nada que para ti não soe ridículo.
Mas deixa-me dizer-te uma coisa: assim que olhei para este apóstolo,
reconheci nele o nosso abade Daniel; e não só ele, mas tudo aquilo que, na
altura, ele representava para nós: a dignidade, a bondade, a candura. Tal
como o víamos na nossa juventude, assim o vejo agora, com o mesmo
respeito, e com ele tudo o que nos era sagrado e que tornou inesquecíveis
esses anos. Acabaste de me dar um presente incomparável, meu amigo: não
me restituíste apenas o nosso abade Daniel, mas também te revelaste, pela
primeira vez, por completo aos meus olhos. Agora sei quem tu és. Mas não
falemos mais, não devo dizer-te mais nada. Oh, Goldmund, como estou
feliz por nos ter sido concedida esta hora!
Fez-se silêncio na vasta oficina. Goldmund viu que o amigo estava
profundamente emocionado e susteve a respiração, embaraçado.
– Pois – limitou-se a dizer –, também eu estou contente. Mas já vão
sendo horas de almoçares.
XIX

Dois anos trabalhou Goldmund naquela obra e, a partir do segundo ano,


Erich foi-lhe confiado como aprendiz. Na madeira entalhada da balaustrada
compôs um pequeno Paraíso, com visível gozo modelou um delicado
entrelaçado de árvores, folhagem e ervas, com aves pousadas nas ramagens
e as cabeças e os corpos de outros animais a ocuparem os espaços
intermédios. No meio do pacífico desabrochar daquele jardim primordial
dispôs algumas cenas da vida dos patriarcas. Quase nunca a sua vida de
trabalho contínuo sofria uma interrupção. Raros eram os dias em que o
trabalho lhe parecia impossível, em que o desassossego ou a saturação o
impediam de prosseguir com a obra. Quando isso sucedia, confiava ao
aprendiz uma qualquer tarefa e ia passear ou cavalgar para o campo;
respirava então no ar da floresta a remota reminiscência da liberdade e da
vida errante, visitava aqui e acolá uma jovem camponesa ou ia à caça e
deixava-se ficar deitado na erva horas a fio, a olhar para as abóbadas
frondosas das copas das árvores e para os tufos emaranhados dos fetos e das
giestas. Nunca ficava fora mais que um ou dois dias. Depois retomava com
redobrada paixão o trabalho, cinzelava com grande prazer as formas e os
recortes da flora luxuriante, realçava, modelando delicadamente a madeira,
os volumes das cabeças humanas, lavrava as linhas de uns lábios, de um
olho, de uma barba ondulada com vigorosos golpes de goiva. Além de
Erich, só Narciso conhecia a obra; as suas visitas tornaram-se frequentes,
havia alturas em que a oficina era o seu espaço preferido no convento.
Assistia ao trabalho com alegria e admiração. Sentia que ali ganhava forma,
crescia e florescia tudo o que o amigo acalentara no seu inquieto e
obstinado coração de criança; toda uma criação, todo um mundo miniatural
e transbordante: um jogo talvez, mas decerto não inferior ao jogo com a
lógica, a gramática e a teologia.
Certa vez, disse, pensativo:
– Ando a aprender muito contigo, Goldmund. Começo a perceber o que é
a arte. Antigamente, não a levava tão a sério quando a comparava com o
pensamento e com a ciência. Achava que se o ser humano é uma duvidosa
mistura de espírito e matéria, e uma vez que o espírito nos faculta o
conhecimento da eternidade, enquanto a matéria nos degrada e prende ao
perecível, competia-nos então afastar-nos dos sentidos e ascender à
dimensão do espírito para elevar e dar um sentido à nossa vida. Embora, por
uma questão de hábito, aparentasse ter pela arte a mais alta consideração,
era, na verdade, arrogante e olhava-a com um certo desdém
condescendente. Só agora me apercebo de que são muitos os caminhos que
conduzem ao conhecimento e que a via do espírito não é a única e nem
sequer talvez seja a melhor. É o meu caminho, certamente, e nele me irei
manter. Mas vejo-te trilhar o caminho oposto, através dos sentidos, e
apercebo-me de que consegues apreender o mistério do ser de uma forma
tão profunda e muito mais vívida do que a maioria dos pensadores.
– Percebes agora – disse Goldmund – porque não consigo entender o
pensamento que não evoca imagens?
– Há muito que percebi. O nosso pensamento é uma constante abstração,
um distanciamento voluntário dos sentidos na tentativa de construir um
mundo puramente espiritual. Tu, pelo contrário, apostas naquilo que há de
mais volátil e perecível e revelas o sentido do mundo precisamente no
transitório; não te afastas, entregas-te, e através da tua entrega transformas o
transitório no símbolo supremo, numa metáfora da eternidade. Nós, os
pensadores, procuramos aproximar-nos de Deus subtraindo-lhe o mundo.
Tu vais ao seu encontro na medida em que amas a Sua Criação e a recrias.
Ambas as opções são humanas e falíveis, mas a arte é a mais inocente.
– Não sei, Narciso. Mas parece-me que vocês, os pensadores e teólogos,
conseguem alcançar mais facilmente um certo equilíbrio no relacionamento
com a vida; é-vos mais fácil defenderem-se do desespero. Já não te invejo a
ciência, meu amigo, mas invejo a tua serenidade, o teu equilíbrio, a tua paz.
– Não devias invejar, Goldmund. Essa paz que tu imaginas não existe na
realidade. Decerto que existe a paz, mas não uma paz que habita
continuamente dentro de nós, sem nos abandonar. Há apenas uma paz que
constantemente exige de nós um esforço incessante, uma paz que dia após
dia quer e tem de ser reconquistada. Tu não me vês lutar, desconheces os
meus combates, tanto nos estudos como na cela de orações. É bom que não
os conheças. Apenas vês que sou menos sujeito à oscilação de humores do
que tu e julgas que vivo em paz. Mas é luta, como toda a vida que se preza,
como a tua também.
– Não vamos discutir isso agora. Também tu não vês todas as minhas
lutas. E não sei se podes compreender como me sinto quando penso que em
breve esta obra ficará pronta. Será levada daqui, exposta no seu lugar,
receberei alguns elogios e depois volto para uma oficina nua e vazia,
angustiado com tudo aquilo que não consegui concretizar e que vocês não
conseguem ver. Sentir-me-ei tão vazio e espoliado como a oficina.
– É bem possível – admitiu Narciso –, é um âmbito em que nenhum de
nós pode compreender verdadeiramente o outro. No entanto, há um aspeto
comum a todas as pessoas de boa vontade: no final, todos nos
envergonhamos das nossas obras, todos temos de recomeçar, todos temos
de consumar de novo o sacrifício.
Semanas mais tarde, a grande obra de Goldmund tinha sido concluída e
fora colocada no local a que era destinada. Repetiu-se então o que ele há
muito conhecia: o que fora seu passou para a posse dos outros, o conjunto
do refeitório foi contemplado, avaliado e elogiado; a ele louvaram-no e
prestaram-lhe homenagem; o seu coração, porém, estava tão vazio como a
oficina e ele já não sabia se a obra merecera todo aquele sacrifício. No dia
da inauguração foi convidado para a mesa dos padres; serviu-se um
banquete com o vinho mais velho da casa; Goldmund engoliu o bom peixe
e a carne de caça, e mais do que o nobre néctar consolou-o o entusiasmo
com que Narciso saudou a sua obra e as homenagens de que foi alvo.
Um novo trabalho, desejado e encomendado pelo abade, já estava
planeado. Tratava-se de um altar para a ermida da Virgem de Neuzelle, que
pertencia ao convento e onde celebrava missa um padre de Mariabronn.
Para esse altar, Goldmund queria fazer uma imagem da Virgem em que
tencionava imortalizar uma das personagens inesquecíveis da sua
juventude, Lydia, a bela e temerosa filha do cavaleiro. O restante trabalho
tinha para ele menos importância, mas parecia-lhe oportuno e apropriado
para Erich realizar a peça que o faria ascender a oficial. Se fosse bem-
sucedido, passaria a dispor para sempre de um bom colaborador, que o
poderia substituir e aliviar, libertando-o para aqueles trabalhos que
realmente lhe interessavam. Goldmund pôs-se então a procurar as madeiras
para o altar com Erich e delegou-lhe os trabalhos de preparação dos
materiais. Nos últimos tempos deixava-o muitas vezes sozinho, tinha
começado novamente a dar grandes passeios e a percorrer os trilhos da
floresta; quando, certa vez, se ausentou por vários dias, Erich informou o
abade, e também Narciso receou que ele nunca mais voltasse. Goldmund,
porém, regressou e trabalhou durante uma semana na figura da Lydia;
depois retomou novamente os seus périplos.
Andava preocupado; desde que terminara a grande obra, a sua vida
perdera o equilíbrio; deixara de ir à missa da manhã e sentia-se
profundamente inquieto e insatisfeito. Pensava agora constantemente no seu
antigo mestre e questionava-se se também ele não se tornaria em breve
como Niklaus, diligente e íntegro e capaz, mas privado de liberdade e
precocemente envelhecido. Um pequeno acontecimento, ocorrido há pouco
tempo, dera-lhe que pensar. Numa das suas caminhadas encontrara uma
jovem camponesa chamada Franziska que muito lhe agradara, a tal ponto
que se propusera seduzi-la, recorrendo às suas velhas artes de persuasão. A
jovem gostara de ouvir os seus galanteios, rira-se com gosto dos chistes,
mas opusera-se aos seus avanços e, pela primeira vez, Goldmund sentira
que uma rapariga o achava velho. Nunca mais a fora visitar, mas não se
esquecera. Franziska tinha razão, ele próprio notava que mudara, e não se
tratava de uns quantos cabelos brancos que lhe tinham aparecido
precocemente, nem das rugas ao canto dos olhos, era algo que tinha mais a
ver com o seu íntimo, com o temperamento; sentia-se velho e
inquietantemente parecido com o mestre Niklaus. Observava-se e encolhia
os ombros, desagradado; perdera o gosto da liberdade e acomodara-se,
deixara de se identificar com a águia e a lebre para se tornar um bicho de
capoeira. Sempre que vagueava pelos campos, tentava reencontrar o aroma
do passado, a memória das suas antigas andanças bem mais do que uma
nova errância e uma nova liberdade; procurava-as, nostálgico e
desconfiado, como um podengo farejando no vento um rasto perdido. E
depois de um dia ou dois de ausência, de uns quantos momentos de
vadiagem e folguedo, sentia-se irresistivelmente impelido a regressar.
Ficava com má consciência, achava que a oficina o esperava, sentia-se
responsável pelos trabalhos já iniciados no altar, pela madeira já preparada,
pelo aprendiz Erich. Já não era um homem livre, era alguém que perdera a
juventude. Tomou então a decisão: quando a Lydia-Marie ficasse pronta,
empreenderia uma nova viagem e voltaria a experimentar a vida errante.
Não era bom ficar tanto tempo num convento, a viver só com homens. Para
monges talvez fosse bom, mas para ele não. Com os homens podia-se ter
conversas belas e profundas, porque eles entendiam o trabalho de um
artista; mas tudo o resto, as amenas cavaqueiras, a ternura, o jogo, o amor, a
satisfação sem premeditação – isso não medrava entre os homens, para
desfrutar de tudo isso eram necessárias as mulheres e a errância e as
caminhadas e o contínuo suceder das imagens. Tudo agora à sua volta era
um pouco cinzento e austero, um pouco pesado e masculino, e ele deixara-
se contagiar, todo aquele desprazer introduzira-se-lhe no sangue.
A perspetiva da viagem consolava-o; entregou-se ao trabalho
conscienciosamente para se poder libertar o mais depressa possível. E, à
medida que a figura de Lydia se ia destacando gradualmente da madeira, à
medida que ia deixando cair dos joelhos delicadamente moldados as pregas
severas do vestido, inundou-o uma íntima e dolorosa alegria, um nostálgico
apego àquela imagem, à figura da bela e tímida donzela, uma saudade
intensa dos tempos passados, do seu primeiro amor, das suas primeiras
viagens, da sua juventude. Trabalhou com devoção, tentando exprimir toda
a suavidade da imagem, e identificou--se com o melhor que havia em si,
com a sua juventude, com as suas mais ternas recordações. Fazia-o feliz dar
forma à delicada inclinação do pescoço, à sua boca amável e triste, às suas
mãos elegantes com os longos dedos e as linhas levemente abauladas das
unhas. Sempre que podia, Erich também ficava a contemplar a figura, cheio
de admiração e respeitoso deslumbramento.
Quando estava quase acabada, mostrou-a ao abade. Narciso disse:
– Esta é a tua mais bela obra, meu caro, não temos nada que se lhe
compare em todo o convento. Devo confessar-te que nos últimos meses
tenho andado preocupado contigo. Vi-te inquieto e insatisfeito, e quando
desaparecias e te ausentavas mais do que um dia, ficava preocupado e
pensava que talvez não voltasses mais. Afinal, voltaste e fizeste esta
imagem maravilhosa! Sinto-me imensamente satisfeito e orgulhoso de ti!
– Sim – admitiu Goldmund –, a imagem ficou bastante bonita. Mas agora
escuta-me, Narciso! Para conseguir esta imagem foi necessária toda a
minha juventude, as minhas viagens, as minhas paixões e todos os esforços
que empreendi para ter as
muitas mulheres de que gostei. Foi esse o manancial que me alimentou. Em
breve, a fonte estará esgotada, estou a sentir o coração secar. Vou acabar
esta Virgem e depois tenciono tirar novamente umas férias, por quanto
tempo nem eu próprio sei. Vou à procura da minha juventude e de tudo
quanto me foi tão caro. Será que podes compreender?… Bem, antes assim.
Como sabes, tenho sido teu hóspede e nunca recebi remuneração alguma
pelo meu trabalho…
– Muitas vezes ta propus… – entrepôs Narciso.
– É verdade, e agora aceito-a. Quero mandar fazer roupa nova e, quando
estiver pronta, peço-te um cavalo e uns quantos ducados e faço-me de novo
ao caminho. Não digas nada, Narciso, e não fiques triste. Não é que eu não
goste de estar aqui, em parte alguma poderia viver melhor. Trata-se de algo
diferente. Queres satisfazer-me esse desejo?
Pouco mais falaram sobre o assunto. Goldmund mandou fazer umas
botas e um fato de montar simples; o verão já estava próximo quando
acabou a figura da Virgem; com um cuidadoso desvelo, como se aquela
fosse a sua última obra, deu os últimos retoques ao rosto, às mãos e ao
cabelo. Até podia parecer que andava a protelar a hora da partida, que
estava a deixar-se prender de bom grado por aqueles derradeiros e delicados
acabamentos. Os dias sucediam-se e ele sempre achava um ou outro
pormenor para aperfeiçoar. Narciso, embora a perspetiva da despedida lhe
custasse muito, não deixava de sorrir, por vezes, perante o encantamento de
Goldmund e a sua manifesta dificuldade em separar-se da figura.
Um dia, porém, Goldmund lá o surpreendeu, surgindo--lhe subitamente
para se despedir. Tinha tomado a decisão durante a noite. De fato novo, de
boina nova, foi ter com ele para lhe dizer adeus. Já se tinha confessado e
comungara há algum tempo e vinha agora despedir-se e pedir-lhe a bênção
para a viagem. Nenhum deles se sentia à vontade, e Goldmund tentou
disfarçar o que lhe ia na alma, mostrando-se demasiado indiferente e
resoluto.
– Voltarei a ver-te? – perguntou Narciso.
– Sem dúvida; se o teu belo cavalinho não me quebrar o pescoço,
tornaremos, certamente, a ver-nos. De outra forma não terias ninguém que
te chamasse Narciso e te desse cabo do juízo. Podes crer que voltarei. Não
te esqueças de olhar pelo Erich. E que ninguém toque na minha imagem da
Virgem! Fica no meu quarto, como te disse, e não entregues a chave a
ninguém!
– Estás satisfeito por partir?
Goldmund piscou o olho.
– Bem, estava ansioso por partir, lá isso é verdade. Mas agora que
chegou o momento, parece-me bem menos divertido do que julgava. Vais
rir-te de mim, mas a separação custa-me e essa dependência não me agrada
nada. É como uma doença, gente jovem e saudável não sofre disso. O
mestre Niklaus também era assim. Mas deixemo-nos de histórias! Abençoa-
me, meu caro, quero partir.
E tocou o cavalo com os calcanhares.
Narciso pensou muito no amigo durante o tempo que se seguiu,
preocupava-o a sua ausência e sentia saudades dele. Tornaria a vê-la, a ave
fugida, o seu querido vagabundo? Lá andava ele novamente a correr
mundo, sem eira nem beira, com os sentidos sempre alerta, seguindo o
rumo incerto que lhe ditavam os fortes e obscuros instintos, eternamente
curioso, impulsivo e insaciável, uma criança grande. Que Deus o
acompanhasse e o trouxesse de volta são e salvo. Mas por agora lá ia
esvoaçando ao deus-dará, de um lado para o outro, como uma borboleta,
pecando e tornando a pecar, seduzindo mulheres, sempre na esteira dos
próprios desejos, envolvendo-se talvez num novo homicídio, à mercê do
perigo e do cativeiro, onde, quem sabe, talvez pudesse acabar. Quantos
cuidados lhe dava aquele rapazinho loiro, que não se conformava com o
envelhecer e se queixava com aqueles olhos de criança! Como não haveria
de preocupar-se com ele? E, contudo, sentia-se feliz por ele estar a fazer o
que queria. No fundo, agradava-lhe imenso que aquela criança teimosa
fosse tão difícil de domar, que fosse tão instável e sujeita aos seus humores
e aos impulsos e que, uma vez mais, tivesse partido, desencabrestado e
pronto a tudo arriscar.
Todos os dias havia uma qualquer hora em que os pensamentos do abade
regressavam ao amigo, com amor e saudade, com gratidão e cuidado, por
vezes também com apreensão e uma vaga sensação de culpa. Não deveria
ter mostrado melhor ao amigo quanto o amava, como o aceitava tal como
era e quanto ele e a sua arte o tinham enriquecido? Pouco lhe dissera sobre
tudo isso, demasiado pouco talvez, e, quem sabe, talvez o conseguisse reter
se o tivesse manifestado?
Mas a amizade com Goldmund não o enriquecera apenas. Também o
tornara mais pobre; mais pobre e mais fraco, e certamente que fizera bem
em não mostrar isso ao amigo.
O mundo em que vivia e se enraizara, a vida monacal, o exercício do seu
cargo, os estudos, o seu tão bem fundado sistema de pensamento, tinham,
frequentemente, sido postos em dúvida e sofrido fortes abalos através do
contacto com Goldmund. Naturalmente, do ponto de vista da vida monacal,
da razão e da moral, a sua vida era melhor, mais íntegra, constante,
ordenada e exemplar; era uma vida dedicada à ordem e à disciplina
rigorosa, um sacrifício constante, uma demanda contínua por alcançar a
clareza e a justiça, e por isso era bem mais pura e melhor do que a vida de
um artista, vagabundo e sedutor de mulheres. Contudo, vista lá de cima, da
perspetiva de Deus… seriam, de facto, a ordem e a disciplina de uma vida
exemplar, a renúncia ao mundo e à satisfação dos sentidos, o
distanciamento em relação à conspurcação e ao sangue, o refúgio na
filosofia e na oração, melhores do que a vida de Goldmund? Teria o ser
humano sido criado para levar uma vida ordenada, cujos horários e as
ocupações eram marcados pela sineta da oração? Teriam os humanos sido
criados para estudarem Aristóteles e S. Tomás de Aquino, para aprenderem
grego, renunciarem aos sentidos e fugirem do mundo? Não fora o homem
criado por Deus com sentidos e instintos, abismos de sangue e escuridão,
preparado para o pecado, disposto ao prazer e exposto ao desespero? Em
torno de todas estas questões giravam os pensamentos do abade sempre que
se ocupavam do amigo.
Sim, na verdade, talvez não fosse apenas mais infantil e humano viver
uma vida à Goldmund; provavelmente, até devia ser mais corajoso e nobre
expor-se ao caudal indomável e cruel, a todo o caos, cometer pecados e
assumir as suas amargas consequências, em vez de se manter afastado do
mundo, com as mãos sempre limpas no sossego de uma vida exemplar,
cultivando um belo jardim de pensamentos harmoniosos e vagueando
virtuoso e impoluto por entre os canteiros bem cuidados. Não seria mais
difícil, corajoso e nobre palmilhar de sapatos rotos os trilhos da floresta e as
estradas dos campos, ao sol e à chuva, passar fome e privações, jogar com
as alegrias dos sentidos e pagá-las com sofrimento?
De qualquer modo, Goldmund mostrara-lhe que um homem fadado para
altos voos podia mergulhar fundo no caos furioso e sangrento da vida, podia
manchar-se com sangue e poeira, sem se tornar forçosamente mesquinho e
vil, sem extinguir dentro de si a centelha divina; através de Goldmund
percebera que era bem possível percorrer as trevas sem que no santuário da
alma se extinguissem a centelha divina e a força criadora. Nada lhe fora
ocultado da confusa vida do amigo, e nem o seu amor por ele nem o
respeito que lhe inspirava tinham saído diminuídos. De maneira nenhuma.
E desde que vira surgir das mãos manchadas de Goldmund aquelas imagens
maravilhosamente serenas e vivas, marcadas por um sentido da forma e
uma ordem íntima e orgânica, aqueles rostos interiorizados, iluminados pela
força da alma, aquelas plantas e flores inocentes, aquelas mãos implorantes
ou tocadas pela graça e todos aqueles gestos ousados ou suaves, orgulhosos
ou sagrados – desde então sabia, com toda a certeza, que aquele coração
inconstante de artista e sedutor era habitado por um excesso de luz e graça
divina.
Nas conversas com o amigo fora fácil parecer superior, opondo à paixão
do outro a sua disciplina e a ordem intelectual. Mas não seria o mais ínfimo
gesto de uma das figuras de Goldmund, o recorte de uns olhos ou de uma
boca, o movimento de uma gavinha ou a prega de um vestido, bem mais
verdadeiro, vivo e imprescindível do que tudo o que um pensador pudesse
produzir? Não teria aquele artista, com o seu coração cheio de contradições
e sofrimento, logrado criar para inúmeras gerações, presentes e futuras,
símbolos vivos do seu desamparo e dos seus anseios, formas e figuras às
quais se poderia dirigir a piedade e a veneração, a aflição e a nostalgia de
inúmeros outros, para neles encontrarem consolo, confirmação e força?
Com um sorriso triste, Narciso lembrava-se das cenas da sua juventude
em que tinha orientado e ensinado o amigo. Ele sempre o escutara com
gratidão, sempre aceitara a sua superioridade e a sua liderança. Depois,
apresentara-lhe, com toda a simplicidade, as obras que tinham nascido das
tempestades e do sofrimento da sua vida acossada; sem palavras nem
doutrinas, sem comentários nem exortações – apenas pedaços de vida
autêntica e sublimada. Como ele se sentia pobre em comparação, com todo
o seu saber, a sua ascese, a sua dialética!
Eram estas as questões em torno das quais gravitavam os seus
pensamentos. Tal como há muitos anos interviera na vida do jovem
Goldmund, questionando-o e exortando-o e despertando-o para novas
dimensões, também ele agora, desde que regressara, o abalara e forçara à
dúvida e à autoanálise. Equivaliam-se; ele não lhe dera nada que Goldmund
não tivesse largamente retribuído.
O amigo ausente deu-lhe tempo para meditar em todas estas questões.
Passaram-se semanas, há muito que o castanheiro florira, há muito que a
folhagem verde-clara e láctea da faia escurecera e se tornara firme e rija; há
muito que as cegonhas que faziam o ninho na torre da porta tinham criado e
ensinado as suas crias a voar. Quanto mais Goldmund se demorava, mais
Narciso lhe sentia a falta. Havia no convento alguns padres eruditos, um
comentador de Platão, um excelente gramático e um ou dois subtis
teólogos. Havia também entre os monges algumas almas leais e honestas
que levavam a sério a sua vocação. Mas ninguém havia que se lhe
equiparasse, nenhum com quem se pudesse medir verdadeiramente. Só
Goldmund lhe dera essa presença insubstituível. Ter de prescindir
novamente dela custava-lhe imenso. Sentia saudades do amigo ausente.
Dirigia-se frequentemente à oficina para encorajar Erich, o aprendiz, que
continuava a trabalhar no altar, ansioso pelo regresso do mestre. Por vezes,
o abade abria o quarto de Goldmund, onde se encontrava a estátua da
Virgem; levantava então cuidadosamente o pano que a cobria e por ali se
deixava ficar em contemplação. Nada sabia da sua origem, Goldmund
nunca lhe contara a história de Lydia. Mas sentia tudo e intuiu que há muito
que aquela figura da donzela habitava o coração do amigo. Talvez a tivesse
seduzido, talvez a tivesse enganado e abandonado. Na sua alma, porém,
guardara-a e preservara-a, mais fiel do que o mais dedicado dos esposos; e,
por fim, passados talvez muitos anos sem a ver, fizera aquela bela e
comovente figura juvenil e no seu rosto, na posição e no gesto das mãos
depositara toda a ternura, a admiração e a saudade de um amante. Também
nas figuras do púlpito com o atril de leitura do refeitório se podia ler este ou
aquele episódio da história do amigo. Era a história de um vagabundo
acossado pelos instintos, de um nómada indomável e infiel; mas o que
restava daquela história era tudo bom e fiel e vivo e cheio de amor. Como
era misteriosa a vida! Corria incessante em torrentes escuras e caudalosas,
que desaguavam tão claras e puras!
Narciso lutou. Controlou-se, não foi infiel à sua missão, nada descurou
do seu severo serviço. Mas sofria com a falta do amigo e sofria ao constatar
que a sua alma, que só a Deus e ao Seu ministério devia pertencer, estava
cativa daquela amizade.
XX

O verão passou, as papoilas e as centáureas, a nigela e o áster murcharam


e desapareceram, nos charcos as rãs silenciaram-se e as cegonhas voavam
alto, preparando-se para a despedida. Foi então que Goldmund voltou!
Chegou numa tarde de chuva miúda e nem sequer foi ao convento,
passou pelo portão e foi direito à oficina. Voltava a pé, sem o cavalo.
Erich assustou-se quando o viu entrar. Embora o reconhecesse
imediatamente e sentisse o coração aos saltos, parecia-lhe que o regressado
era um homem completamente diferente: um falso Goldmund, envelhecido
de muitos anos, com um rosto macilento, inexpressivo, coberto de poeira,
de faces cavadas e com um aspeto doentio e sofredor, onde, no entanto, a
dor parecia estar ausente, ou disfarçada por um certo sorriso, um sorriso
bondoso, antigo e paciente. Andava com dificuldade, arrastava-se e parecia
doente e exausto.
Foi com estranheza que aquele desconhecido e tão mudado Goldmund
encarou o seu jovem ajudante. Não mencionou sequer o regresso,
comportou-se como se viesse do quarto ao lado e ainda agora ali tivesse
estado. Estendeu-lhe a mão e não disse nada, nem uma saudação, nem uma
pergunta, nem uma referência ao tempo passado fora. Limitou-se a dizer:
– Preciso de dormir.
Parecia estar terrivelmente exausto. Mandou Erich embora e foi para o
seu quarto contíguo à oficina. Aí, tirou o barrete, deixou-o cair ao chão,
descalçou os sapatos e aproximou-
-se da cama. Ao fundo, viu a sua madona, coberta pelos panos; acenou-lhe,
mas não foi destapá-la e saudá-la. Em vez disso, arrastou-se até ao postigo,
viu lá fora o consternado Erich à espera e gritou-lhe:
– Ouve lá, Erich! Não precisas de dizer a ninguém que eu voltei. Estou
muito cansado. Amanhã temos tempo.
Deitou-se vestido na cama. Decorrido algum tempo, como não
conseguisse adormecer, levantou-se, dirigiu-se pesadamente à parede do
fundo, onde pendia um pequeno espelho, e olhou para ele. Observou com
atenção o Goldmund que o espelho lhe devolvia: um Goldmund extenuado,
um homem acabado e velho e murcho, com uma barba completamente
grisalha. Da pequena superfície embaciada do espelho olhava-o um ancião
com um ar vagamente desamparado, um rosto vagamente conhecido e ao
mesmo tempo estranho, que não parecia completamente presente, como se
pouco tivesse a ver com ele. Fazia-lhe lembrar alguns outros rostos que
conhecera, um pouco o do mestre Niklaus, também o do velho cavaleiro
que há muito tempo lhe tinha mandado fazer um traje de pajem; um pouco
também o do S. Tiago na igreja, aquele velho S. Tiago barbudo tão
decrépito e cinzento sob o chapéu de peregrino e, no fundo, quase alegre e
bondoso.
Examinou minuciosamente o rosto refletido no espelho, como se
pretendesse obter informações sobre aquele estranho. Acenou-lhe e
reconheceu-o; sim, era mesmo ele, correspondia à sensação que tinha de si
próprio. Um velho estafado e algo embotado regressava de uma viagem, um
sujeito insignificante, nada havia de interessante nele e, no entanto, nada
tinha contra ele, no fundo até lhe agradava: havia ali qualquer coisa no rosto
que o antigo e belo Goldmund não possuíra, um traço de satisfação ou
talvez de serenidade, para lá de toda aquela estafa e devastação. Casquinou
baixinho e viu a imagem do espelho casquinar com ele: que lindo estafermo
trouxera consigo da viagem! Completamente arrasado e de rastos voltara do
seu pequeno périplo, e não fora apenas o cavalo e o alforge e os ducados
que perdera; outras coisas mais se lhe tinham extraviado ou o tinham
abandonado: a juventude, a saúde, a confiança em si próprio, as boas cores
na cara e a força no olhar. Apesar de tudo, a imagem até lhe agradava:
preferia aquele velhote debilitado ao Goldmund que fora durante tanto
tempo. Era mais velho, mais fraco e lastimável, mas parecia-lhe mais
inofensivo e satisfeito, era mais fácil lidar com ele. Riu-se e puxou para
baixo umas daquelas pálpebras, agora tão enrugadas. Depois voltou para a
cama e adormeceu.
No dia seguinte, estava ele sentado no quarto, debruçado sobre a mesa, a
tentar desenhar, quando Narciso o veio visitar. Parou à porta e disse:
– Contaram-me que tinhas voltado… Graças a Deus, muito me alegro.
Como não foste ter comigo, vim eu ao teu encontro. Incomodo-te no
trabalho?
Aproximou-se, e Goldmund, erguendo a cabeça do papel, estendeu-lhe a
mão. Embora Erich o tivesse preparado, Narciso assustou-se terrivelmente
ao ver o amigo. Este sorria-lhe afetuosamente.
– Sim, voltei. Deus te guarde, Narciso; estivemos algum tempo sem nos
ver. Desculpa não te ter ido visitar.
Narciso olhou-o nos olhos. Também ele não viu apenas a expressão
apagada e a triste desolação daquele rosto, mas também o outro lado, aquela
estranha e agradável expressão de serenidade… no fundo, de quase
indiferença, resignação e senil boa disposição. Habituado a ler as
fisionomias, apercebeu-se de que aquele Goldmund tão mudado e
irreconhecível já não estava inteiramente presente e que, ou a sua alma se
afastara muito da realidade pelos caminhos do sonho, ou encontrava- -se já
às portas do além.
– Estás doente? – perguntou cautelosamente.
– Sim, doente também estou. Adoeci logo nos primeiros dias da viagem,
mas decerto compreendes que não tenha querido regressar imediatamente.
Vocês desatavam a rir se me vissem voltar poucos dias depois e descalçar as
botas de montar. Não, isso não quis fazer. Continuei, portanto, e ainda andei
a vaguear de um lado para o outro, meio envergonhado por a viagem não
estar a correr como previra. Tive mais olhos que barriga. Bem, estava cheio
de vergonha, portanto, tu hás de perceber, és tão inteligente! Desculpa,
perguntaste alguma coisa? Parece bruxedo, estou sempre a esquecer-me do
que tinha para dizer. Mas aquilo da minha mãe, tiveste toda a razão. Doeu
muito, mas…
O seu murmúrio extinguiu-se num sorriso.
– Vamos pôr-te bom outra vez, Goldmund, nada te faltará. Mas porque é
que não voltaste assim que começaste a sentir-te mal! Nada havia com que
te envergonhares. Devias ter regressado imediatamente.
Goldmund riu-se.
– Pois, agora já me lembro. Não me atrevi a voltar assim, simplesmente.
Seria uma vergonha. Mas agora estou cá. Já me sinto bem.
– Sentiste muitas dores?
– Dores? Sim, dores tenho que baste. Mas olha lá, as dores até são boas,
foram elas que me chamaram à razão. Agora já não sinto vergonha, nem de
ti. Daquela vez, quando me foste visitar à prisão para me salvar a vida, tive
de cerrar os dentes, tamanha era a vergonha. Mas agora isso também já
passou.
Narciso pousou-lhe a mão no braço, e ele calou-se imediatamente e
fechou os olhos com um sorriso nos lábios. Adormeceu tranquilamente. O
abade correu, desolado, a chamar o médico da casa, o padre Anton, para
que fosse examinar o doente. Quando voltaram, encontraram Goldmund
sentado a dormir à mesa de desenho. Levaram-no para a cama e o médico
ficou junto dele.
Achou-o muito enfraquecido e irremediavelmente doente. Levaram-no
para um dos quartos da enfermaria e Erich foi encarregado de zelar
permanentemente por ele.
A história da sua última viagem nunca chegou a ser completamente
esclarecida. Houve episódios que ele contou, outros foram deduzidos ou
adivinhados. Passava muito tempo apático, em silêncio, por vezes punha-se
a falar alto, em delírio febril, e, quando recuperava a lucidez, iam logo
chamar Narciso, para quem as derradeiras conversas com Goldmund tinham
grande importância.
Alguns fragmentos dos últimos relatos e confissões de Goldmund foram
transmitidos por Narciso, outros pelo seu ajudante.
– Quando começaram as dores? Foi logo no princípio da viagem.
Galopei na floresta e caí com o cavalo num ribeiro e fiquei uma noite
inteira dentro da água fria. Desde então tem--me doído aqui, no sítio onde
parti as costelas. Quando isso aconteceu, ainda não estava longe daqui, mas
não quis voltar; foi criancice, mas achei que seria ridículo. Continuei,
portanto, a viagem, e quando vi que já não me aguentava em cima do
cavalinho, por causa das dores, vendi-o e depois passei muito tempo num
hospital.
»Agora fico aqui, Narciso, acabaram-se as cavalgadas e as caminhadas.
Acabaram-se os bailes e as mulheres. Mas se isto não tivesse acontecido,
ainda ficava por muitos e bons anos lá fora. Mas quando percebi que lá por
fora já não havia nenhuma satisfação para mim, pensei cá para os meus
botões: antes que me enterrem, ainda quero desenhar um pouco e fazer
umas quantas figuras, alguma alegria é preciso ter na vida.
Narciso disse-lhe:
– Estou tão feliz por teres voltado. Senti tanto a tua falta, não houve um
dia em que não pensasse em ti e muitas vezes receei que nunca mais
quisesses regressar.
Goldmund abanou a cabeça:
– Olha que também não se perdia grande coisa.
Narciso, com o coração a arder-lhe de amor e de mágoa, inclinou-se
lentamente para ele e, pela primeira vez, fez o que nunca fizera em tantos
anos de amizade – tocou com os lábios a testa e o cabelo de Goldmund.
Este apercebeu-se do que acabara de acontecer, primeiro surpreso, e logo de
seguida comovido.
– Goldmund – sussurrou-lhe o amigo ao ouvido –, perdoa não ter
conseguido dizer-te isto há mais tempo. Devia tê-lo dito quando te fui
buscar à prisão daquela vez, na residência episcopal, ou quando me foram
dadas a ver as tuas primeiras esculturas, ou numa qualquer outra altura. Mas
deixa-me dizer--te hoje quanto te amo, tudo quanto representaste sempre
para mim e o muito que enriqueceste a minha vida. Para ti não terá grande
significado. Estás habituado ao amor, não é algo raro para ti, que foste
amado e acarinhado por tantas mulheres. Para mim é diferente. A minha
vida sempre foi pobre em amor, faltou-me o melhor. Uma vez, o nosso
abade Daniel disse-me que me considerava uma pessoa orgulhosa.
Provavelmente, tinha razão. Não é que eu seja injusto com as outras
pessoas, sempre me esforcei por ser justo e paciente para com elas. Mas
amar, nunca as amei. Entre dois eruditos no convento, prefiro sempre o
mais capaz; nunca gostei de alguém pelo que é, apesar das suas lacunas no
conhecimento. Se, apesar de tudo, sei o que é o amor, a ti o devo. A ti
sempre pude amar, só a ti entre todos os homens. Nem podes avaliar o que
isso significa. É a nascente no deserto, a árvore em flor num campo
abandonado. A ti e só a ti devo que o meu coração não tenha secado, que
exista em mim ainda algo capaz de ser tocado pela graça.
Goldmund sorriu feliz e algo embaraçado. Disse então com aquela voz
suave e calma que tinha nos seus momentos lúcidos:
– Quando daquela vez me livraste da forca, eu perguntei--te, durante o
regresso, o que era feito do meu cavalo, o Bless, e tu soubeste dar-me a
informação. Na altura compreendi que tu, que em geral não consegues
distinguir um animal de um outro, te tinhas ocupado do cavalinho. Percebi
que o tinhas feito por mim e fiquei feliz. Agora vejo que tinha razão e que
tu gostas mesmo de mim. Eu também sempre gostei de ti, Narciso, metade
da minha vida passei-a a tentar ser reconhecido por ti. Sabia que também
gostavas de mim, mas nunca esperei que mo chegasses a dizer alguma vez,
tu que sempre foste tão orgulhoso. Disseste-mo agora, quando já nada mais
possuo, agora que a vida errante e a liberdade, o mundo e as mulheres me
abandonaram. E eu aceito e agradeço.
A Lydia-Madona assistia à cena no quarto.
– Andas sempre a pensar na morte? – quis saber Narciso.
– Sim, penso nela e no que foi a minha vida. Quando era rapazito, este
teu aluno ainda desejava ser um intelectual como tu. Mostraste-me que não
era essa a minha vocação. Atirei-me então para o outro lado da vida, para o
mundo dos sentidos, e as mulheres tornaram-me fácil a descoberta do
prazer. São sempre tão solícitas e desejosas. Mas não quero falar delas com
desdém nem desprezar o gozo dos sentidos, tantas vezes me fizeram feliz. E
também tive a ventura de sentir que a sensualidade pode também ser
iluminada pela alma; essa experiência também a fiz e sei que é daí que
nasce a arte. Agora, porém, ambas as chamas se extinguiram. Já não sinto a
felicidade animalesca da volúpia, e nem lhe sentiria a falta, mesmo que as
mulheres continuassem a andar atrás de mim. E já não desejo também criar
obras de arte, bastam-me as que fiz, o número não importa. É por isso que
chegou para mim a altura de morrer. Estou conformado e sinto curiosidade.
– Porquê curiosidade? – quis saber Narciso.
– Pois, talvez seja estúpido da minha parte, mas estou mesmo curioso.
Não do além, Narciso, esse pouco me interessa e, para falar abertamente, já
nem sequer acredito nisso. Não há nenhum além. A árvore que secou está
morta para sempre. O pássaro que morreu enregelado não volta a voar, e o
mesmo acontece ao homem quando morre. Pode ainda ser lembrado durante
algum tempo depois de ter desaparecido, mas nem isso dura muito. Não, o
morrer só me interessa porque continuo a acreditar, ou a acalentar o sonho
de que estou a caminho da minha mãe. Espero que a morte seja uma grande
felicidade, tão grande como a primeira plenitude do amor. Não consigo
deixar de pensar que, em vez da morte com a foice, seja a minha mãe que
me irá levar novamente para junto de si e me conduzirá de volta para o não
ser e para a inocência.
Numa das suas últimas visitas, depois de Goldmund ter estado vários
dias sem falar, Narciso encontrou-o de novo lúcido e comunicativo.
– O padre Anton diz que deves ter frequentemente dores muito fortes.
Como podes suportá-las com tanto estoicismo, Goldmund? Parece-me que
encontraste agora a paz.
– Referes-te à paz com Deus? Não, essa não encontrei. Não quero a paz
com Ele. Ele fez mal o mundo, não precisamos de louvá-Lo, e a Ele
também pouco Lhe interessa que eu o louve ou deixe de louvar. Ele fez mal
o mundo. Mas com as dores no meu peito, isso sim, fiz as pazes, lá nisso
tens razão. Antigamente não suportava dores, e apesar de, por vezes, pensar
que não me iria custar morrer, tratava-se de uma ilusão. Isso viu-se quando
esteve quase a acontecer, naquela noite na prisão do conde Heinrich: eu
simplesmente não podia morrer, era ainda demasiado forte e selvagem,
teriam de me arrancar cada membro duas vezes. Mas agora é diferente.
Falar cansava-o, a sua voz enfraqueceu e Narciso pediu-lhe que se
poupasse.
– Não – disse ele –, já agora quero contar-te mais uma coisa. Dantes teria
tido vergonha de to dizer. Vais rir-te. A verdade é que, quando subi para o
cavalo e parti daqui, não ia completamente ao deus-dará. Tinha ouvido dizer
que o conde Heinrich andava outra vez por cá e que o acompanhava de
novo a amante, a Agnes. Pois bem, a ti a notícia não te interessará, e a mim
agora também já não; mas, na altura, aquilo ficou-me gravado a fogo na
memória, e não conseguia deixar de pensar nela. A Agnes foi a mulher mais
bela que conheci e amei, queria voltar a vê-la à viva força, ser de novo feliz
com ela. Meti-
-me a caminho e, após uma semana, encontrei-a. Foi aí, nessa altura, que
ocorreu a transformação dentro de mim. Encontrei, portanto, a Agnes, ela
continuava tão bela como sempre, tive oportunidade de mostrar-me e até de
chegar à fala com ela. E imagina só, Narciso, ela não quis saber de mim!
Achou-me demasiado velho, deixara de ser bonito e espirituoso, já nada
tinha para lhe dar. No fundo, isso pôs fim à minha viagem. Mas continuei,
não queria voltar para junto de vós tão desiludido e ridículo, e, à medida
que ia cavalgando, comecei a sentir que a força e a juventude e a esperteza
me tinham abandonado por completo, de tal modo que acabei por cair com
o cavalo numa ravina, para dentro de um ribeiro, e ali fiquei, dentro da
água, com as costelas partidas. Foi aí que senti pela primeira vez dores a
sério. Logo quando caí senti algo romper-se cá dentro, no peito, e esse
romper deu-me alegria, ouvi aquele dilacerar e senti-me satisfeito. Ali
fiquei dentro da água e soube que ia morrer, mas foi tudo muito diferente do
que aconteceu na prisão. Desta vez não me revoltei, morrer já não me
parecia mau. Sentia estas dores violentas e, desde então, tenho-as sentido
frequentemente, e aconteceu-me ter sonhado ou tido uma visão, chama-lhe
como quiseres. Estava deitado e no meu peito senti uma dor dilacerante;
tentei defender-me e gritei, e foi então que ouvi uma voz rir: uma voz que já
não ouvia desde a infância. Era a voz da minha mãe, uma voz feminina e
profunda, cheia de volúpia e amor. E vi então que era mesmo ela, a mãe,
que estava comigo e me tinha sentado ao seu colo e me rasgara o peito e
enfiara os dedos fundo por entre as costelas para me arrancar o coração.
Quando vi e compreendi aquilo, deixei de sentir as dores. Ainda agora,
quando sinto chegarem aquelas dores, não se trata de dores, não são
inimigas; são os dedos da mãe a arrancarem-me o coração. E podes crer que
trabalha com afinco. Às vezes, espreme-o e geme com volúpia. Outras
vezes, ri e balbucia uns sons ternos. Há alturas em que não a vejo comigo,
mas lá em cima, no céu; vejo-lhe o rosto entre as nuvens, ele próprio grande
como uma nuvem, a sorrir tristemente, e aquele seu sorriso triste sorve-me e
arranca-me o coração do peito.
Voltava sempre àquele tema, à mãe.
– Lembras-te ainda? – perguntou num dos últimos dias. – Uma vez,
tinha-me esquecido da minha mãe e foste tu que a evocaste. Muito me doeu,
na altura, era como se tivesse uns bichos a comerem-me as entranhas. Na
altura éramos ainda uns miúdos, belos rapazinhos que nós éramos na altura.
Mas já então senti o seu apelo, e tive de o seguir. Ela está em todo o lado.
Foi ela a cigana Lise, era ela a bela madona do mestre Niklaus, e era ela a
vida, o amor e o prazer; mas também o medo, a fome e o instinto. Agora é a
morte, tem as unhas cravadas no meu peito.
– Não fales demasiado, meu caro – pediu Narciso –, espera até amanhã.
Goldmund olhou-o com aquele novo sorriso que trouxera da viagem e
que lhe dava uma aparência tão frágil e senil, quase demente, por vezes, e
que outras vezes parecia fazer dele a encarnação da própria bondade e da
sabedoria.
– Meu caro – sussurrou –, não posso esperar até amanhã. Tenho de me
despedir de ti, tenho de te dizer tudo antes de me despedir. Ouve-me só
mais um momento. Queria falar-te da mãe e de como ela tem os dedos
fincados no meu coração. Há muitos anos que o meu mais querido e
misterioso sonho era fazer uma imagem da mãe. Para mim, essa foi, desde
sempre, a mais sagrada das imagens, trazia-a sempre comigo, cheia de amor
e mistério. Ainda há pouco tempo teria sido insuportável pensar que
morreria sem a ter realizado; toda a minha vida me pareceria inútil. E agora
vê como é estranho o que se passou comigo e com ela: em vez de serem as
minhas mãos que a moldam e formam, é ela que me forma e molda. É ela
que segura e desfaz o meu coração e me deixa vazio; seduziu-me para
morrer, e comigo morre também o meu sonho, a bela imagem da grande
Mãe-Eva. Ainda a consigo ver, e, se ainda sentisse força nas mãos, poderia
modelá-la. Mas ela não quer, não permite que eu revele o seu segredo.
Prefere que eu morra. E morro de bom grado, ela ameniza-me a morte.
Narciso ouviu, consternado, aquelas palavras e teve de se debruçar muito
sobre o rosto do amigo para as conseguir perceber. Mal distinguia algumas,
outras ouvia-as bem, mas o seu sentido permaneceu-lhe oculto.
E foi então que o paciente voltou a abrir os olhos e contemplou
longamente o rosto do amigo. Foi com o olhar que se despediu dele. E com
um derradeiro gesto, como se tentasse sacudir a cabeça, sussurrou-lhe:
– Mas como hás de tu morrer, Narciso, se não tens mãe? Sem mãe não se
pode amar. Sem mãe não se pode morrer.
O que depois ainda balbuciou já deixara de ser compreensível. Narciso
passou os dois derradeiros dias sentado à cabeceira do amigo, dia e noite,
assistindo à sua agonia. As últimas palavras de Goldmund queimavam-lhe,
como fogo, o coração.

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