A Democracia Na Armadilha - Miriam Leitao
A Democracia Na Armadilha - Miriam Leitao
A Democracia Na Armadilha - Miriam Leitao
PREPARAÇÃO
KATHIA FERREIRA
REVISÃO
WENDELL SETUBAL
EDUARDO CARNEIRO
FOTO DA AUTORA
RAFAELA CASSIANO
REVISÃO DE E-BOOK
CRISTIANE PACANOWSKI | PIPA CONTEÚDOS EDITORIAIS
GERAÇÃO DE E-BOOK
JOANA DE CONTI
E-ISBN
978-65-5560-331-6
1a EDIÇÃO
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editoraintrinseca
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@intrinseca
intrinsecaeditora
SUMÁRIO
[Avançar para o início do texto]
1.
CAPA
2.
FOLHA DE ROSTO
3.
CRÉDITOS
4.
MÍDIAS SOCIAIS
5. SUMÁRIO
6.
DEDICATÓRIA
7.
EPÍGRAFE
8.
APRESENTAÇÃO
9.DIVÓRCIO POLÍTICO – 24.4.2016
1.
10.
2. A QUESTÃO MILITAR – 21.9.2017
11.
3. CANDIDATOS E MERCADO – 14.11.2017
12.
4. BOLSONARO E O USO DA RELIGIÃO – 28.8.2018
13.
5. BOLSONARO E O VAZIO DE IDEIAS – 20.9.2018
14.
6. O MEIO AMBIENTE E O BOLSONARISMO – 13.10.2018
15.
7. OS DESERDADOS DA TERRA DO MEIO – 14.10.2018
16.
8. O KIT OFERECIDO POR BOLSONARO – 25.10.2018
17.
9. CONSTITUIÇÃO NO PAÍS DE BOLSONARO – 7.11.2018
18.
10. ESCOLHER O BRASIL COMO DESTINO – 22.11.2018
19.
11. O QUE NÃO É DIREITO NEM NUNCA SERÁ – 12.12.2018
20.
12. NEGAR O PASSADO COMO ARMA POLÍTICA – 16.12.2018
21.
13. AS DIVISÕES ATÉ NA HORA DE SOMAR – 2.1.2019
22.
14. ERROS DO GOVERNO NA AMAZÔNIA – 13.2.2019
23.
15. AS REVELAÇÕES DA CRISE POLÍTICA – 17.2.2019
24.
16. A QUESTÃO MILITAR NO ATUAL GOVERNO – 6.3.2019
25.
17. ATAQUE À IMPRENSA E AUTORITARISMO – 12.3.2019
26.
18. MARIELLE ERA FORÇA E PROMESSA – 14.3.2019
27.
19. ERRO EM EDUCAÇÃO CUSTA CARO DEMAIS – 28.3.2019
28.
20. DIREITA FESTIVA EM NEGAÇÃO – 31.3.2019
29.
21. DAS BIZARRICES E DAS MENTIRAS – 7.4.2019
30.
22. COMO PERDER OS CEM PRIMEIROS DIAS – 10.4.2019
31.
23. PGR NÃO PODE ESPELHAR O GOVERNO – 21.4.2019
32.
24. O PASSADO NÃO TEM FUTURO – 5.5.2019
33.
25. ATAQUE A MILITARES EXPLICA GOVERNO – 12.5.2019
34.
26. A EDUCAÇÃO EM UM DESERTO DE IDEIAS – 16.5.2019
35.
27. O LIMITE ENTRE AS RUAS E O GOVERNO – 28.5.2019
36.
28. RISCO AMBIENTAL ATINGE A ECONOMIA – 1.6.2019
37.
29. O PRESIDENTE EM SEU LABIRINTO – 2.6.2019
38.
30. VISÃO MILITAR NUM DIA DE QUEDA – 14.6.2019
39.
31. QUEDAS MOSTRAM FALHAS DO GOVERNO – 21.6.2019
40.
32. O VERDADEIRO CONFLITO DO BRASIL – 23.6.2019
41.
33. O PRESIDENTE QUE DESIDRATA – 4.7.2019
42.
34. SALLES EM CONFLITO COM DADOS E FATOS – 7.7.2019
43.
35. ABSURDOS DIÁRIOS DE BOLSONARO – 14.7.2019
44.
36. ENTRE O GROTESCO E O PERIGOSO – 21.7.2019
45.
37. A INDIVISÍVEL UNIÃO DO PAÍS – 7.8.2019
46.
38. AUSTERIDADE NÃO É SÓ CORTE – 10.8.2019
47.
39. OS CONSUMIDORES CHINESES AVISAM – 28.8.2019
48.
40. SOCIEDADE REAGE E MOSTRA LIMITE – 1.9.2019
49.
41. MENTE AUTORITÁRIA E SEUS MÉTODOS – 5.9.2019
50.
42. LITERATURA E LIBERDADE – 8.9.2019
51.
43. MP INFIEL E A DEMOCRACIA – 15.9.2019
52.
44. NOTÍCIAS DA TERRA E DA LUTA AMAZÔNICA – 21.9.2019
53.
45. BOLSONARO E WITZEL ERRAM NA SEGURANÇA – 24.9.2019
54.
46. PERDIDO NO TEMPO E TEMPO PERDIDO – 25.9.2019
55.
47. OS DINHEIROS DA LAVA-JATO – 1.10.2019
56.
48. MUITO ALÉM DA ECONOMIA – 6.10.2019
57.
49. ATAQUE À CULTURA FERE A ECONOMIA – 12.10.2019
58.
50. CRISE PÕE EM RISCO A GOVERNABILIDADE – 18.10.2019
59.
51. O AMIGO OCULTO E A SALA DA MALDADE – 26.10.2019
60.
52. AS TRAGÉDIAS E O POVO BRASILEIRO – 27.10.2019
61.
53. A FALTA DE LIMITES DO PRESIDENTE – 30.10.2019
62.
54. FESTA E FÚRIA NO SOLO DO BRASIL – 9.11.2019
63.
55. O ERRO É DELES, A CONTA É NOSSA – 19.11.2019
64.
56. AS IDEIAS POLÍTICAS DE PAULO GUEDES – 27.11.2019
65.
57. A REFORMA QUE É CONTRARREFORMA – 6.12.2019
66.
58. SEXTA-FEIRA 13, 51 ANOS DEPOIS – 13.12.2019
67.
59. MORALIDADE COMO ESTRATÉGIA ELEITORAL – 22.12.2019
68.
60. O JORNALISMO MUDA E PERMANECE – 12.1.2020
69.
61. CAI O SECRETÁRIO, FICA O PROJETO – 18.1.2020
70.
62. DAVOS MUDOU COM O CLIMA – 21.1.2020
71.
63. A ECONOMIA DO DESMATAMENTO – 22.1.2020
72.
64. O MEDO CONTAMINA MERCADOS GLOBAIS – 28.1.2020
73.
65. O LIBERALISMO À MODA DA CASA – 1.2.2020
74.
66. RISCOS QUE PESAM SOBRE OS INDÍGENAS – 7.2.2020
75.
67. CÂMBIO EM SEU DEVIDO LUGAR – 15.2.2020
76.
68. NÃO SE ENGANEM: NADA DISSO É NORMAL – 16.2.2020
77.
69. NA ORIGEM DA CRISE, A FALTA DA COALIZÃO – 21.2.2020
78.
70. DIA DE SUSTO NO MEIO DO CARNAVAL – 25.2.2020
79.
71. O PRESIDENTE MIRA A DEMOCRACIA – 27.2.2020
80.
72. ERROS E FATOS QUE EXPLICAM O PIBINHO – 5.3.2020
81.
73. O PERIGO DA AMBIGUIDADE – 7.3.2020
82.
74. O PONTO EM QUE AS CRISES SE ENCONTRAM – 13.3.2020
83.
75. A DEMOCRACIA NA ARMADILHA – 15.3.2020
84.
76. AÇÃO ATRASADA E INSUFICIENTE – 19.3.2020
85.
77. INSANIDADE PRESIDENCIAL – 25.3.2020
86.
78. O DUPLO RISCO PARA O PAÍS – 29.3.2020
87.
79. PELA ECONOMIA, É MELHOR PARAR – 1.4.2020
88.
80. O PRESIDENTE PERDE PODERES – 5.4.2020
89.
81. OS TRINTA DIAS QUE ABALARAM O BRASIL – 11.4.2020
90.
82. ERROS E ACERTOS NO ESPELHO DA HISTÓRIA – 12.4.2020
91.
83. BOLSONARO EM DIA DE MÚLTIPLOS ERROS – 17.4.2020
92.
84. O RISCO BOLSONARO SOBRE A DEMOCRACIA – 21.4.2020
93.
85. BOLSONARO ATACA AS TORRES GÊMEAS – 24.4.2020
94.
86. SOMBRAS SOBRE JAIR BOLSONARO – 29.4.2020
95.
87. BOLSONARO RENUNCIOU – 30.4.2020
96.
88. SEM MEDO DO IMPEDIMENTO – 3.5.2020
97.
89. A ESPERANÇA, O POETA E O TEMPO – 5.5.2020
98.
90. PRESIDÊNCIA OBCECADA – 6.5.2020
99.
91. DESPROPÓSITO CONSTRANGEDOR – 8.5.2020
100.
92. O MAL AVANÇA NAS SOMBRAS – 10.5.2020
101.
93. UMA ACUSAÇÃO QUE AVANÇA – 13.5.2020
102.
94. ERROS DO GENERAL E DO PROCURADOR – 16.5.2020
103.
95. BOLSONARO ENTRE ARTIGOS E INCISOS – 17.5.2020
104.
96. A POLITIZAÇÃO DA ECONOMIA – 19.5.2020
105.
97. O QUE BOLSONARO DEU AO CENTRÃO – 20.5.2020
106.
98. A DOR COLETIVA E O DESAMPARO – 21.5.2020
107.
99. BRASIL À DERIVA NO MEIO DA TRAGÉDIA – 23.5.2020
108.
100. IDEIA DE BOLSONARO É INCONSTITUCIONAL – 24.5.2020
109.
101. TORTUOSAS FALAS DO TIME ECONÔMICO – 26.5.2020
110.
102. COM QUE FORÇAS CONTA BOLSONARO? – 29.5.2020
111.
103. “OS ERROS TERÃO COR VERDE-OLIVA” – 31.5.2020
112.
104. OS DESAFIOS E A RESISTÊNCIA – 6.6.2020
113.
105. O CRIME DA DESINFORMAÇÃO – 9.6.2020
114.
106. CONTABILIDADE CRIATIVA DE NOVO? – 10.6.2020
115.
107. INTERVENÇÃO EM UNIVERSIDADES – 11.6.2020
116.
108. O IMPOSSÍVEL NÃO ACONTECE – 14.6.2020
117.
109. ELO ENTRE OS RADICAIS E O PRESIDENTE – 17.6.2020
118.
110. TODOS OS MEDOS DO PRESIDENTE – 19.6.2020
119.
111. A ESCALADA DO VÍRUS ENTRE NÓS – 20.6.2020
120.
112. BOLSONARISMO É UMA IDEOLOGIA? – 21.6.2020
121.
113. NO FUTURO, NÃO ACREDITAREMOS – 28.6.2020
122.
114. RESPOSTA ERRADA DO GOVERNO NO MEIO AMBIENTE – 5.7.2020
123.
115. MESMOS ERROS NA SAÚDE E NA DOENÇA – 8.7.2020
124.
116. QUANDO O DINHEIRO FALA É MELHOR OUVIR – 11.7.2020
125.
117. ARAS REALIZA O SONHO DE JUCÁ – 30.7.2020
126.
118. FLORESTA NO CHÃO E FUMAÇA NO AR – 5.8.2020
127.
119. ABANDONAR MITOS E ENTENDER A HISTÓRIA – 9.8.2020
128.
120. NO CENTRO DA CRISE QUE DEVASTA O PAÍS – 11.8.2020
129.
121. BOLSA FAMÍLIA E BOLSONARO – 15.8.2020
130.
122. RISCO DEMOCRÁTICO É O PONTO CENTRAL – 23.8.2020
131.
123. CAMINHO CERTO NO CHÃO DA AMAZÔNIA – 6.9.2020
132.
124. O TERRAPLANISMO ATACOU A ECONOMIA – 10.9.2020
133.
125. A IGUALDADE PERANTE A LEI – 12.9.2020
134.
126. O AUTOCRATA E OS COLABORACIONISTAS – 20.9.2020
135.
127. O COMPADRISMO E OS OUTROS ERROS – 14.10.2020
136.
128. PLANO PARA A ECONOMIA – 18.10.2020
137.
129. A MORTE, A VACINA E O PRESIDENTE – 22.10.2020
138.
130. BOLSONARO É UM EXTREMISTA SÓ – 27.10.2020
139.
131. VITÓRIA DA CAUSA DA HUMANIDADE – 8.11.2020
140.
132. UM PRESIDENTE QUE ATORMENTA – 11.11.2020
141.
133. UMA NOVA ONDA E O MESMO TORMENTO – 20.11.2020
142.
134. A CONTA SERÁ DO AGRONEGÓCIO – 26.11.2020
143.
135. ESTE GOVERNO É UM RISCO DE VIDA – 6.12.2020
144.
136. GENERAL NÃO SABE PREPARAR A GUERRA – 10.12.2020
145.
137. ONZE PESSOAS E UM DESTINO – 11.12.2020
146.
138. MENSAGEIRO DA MORTE – 30.12.2020
147.
139. OS OÁSIS EM UM ANO ÁSPERO – 31.12.2020
148.
140. GOLPE DE TRUMP ALERTA O BRASIL – 7.1.2021
149.
141. A NOSSA DOR MULTIPLICADA – 8.1.2021
150.
142. INCUTIR A DÚVIDA, COLHER A CERTEZA – 10.1.2021
151.
143. SOBRAM FARRAPOS DA FANTASIA LIBERAL – 15.1.2021
152.
144. UM JOELHO SOBRE O NOSSO PESCOÇO – 16.1.2021
153.
145. A PIOR GESTÃO DA PANDEMIA – 19.1.2021
154.
146. O MINISTRO DOS CONFLITOS EXTERIORES – 22.1.2021
155.
147. ERRO ECONÔMICO NA CRISE SANITÁRIA – 23.1.2021
156.
148. AÇÃO DELIBERADA DE ESPALHAR VÍRUS – 30.1.2021
157.
149. AOS QUE NÃO BRINCARAM O CARNAVAL – 16.2.2021
158.
150. BOLSONARO ESCANCARA O POPULISMO ECONÔMICO – 23.2.2021
159.
151. UM ANO DEPOIS, A DÚVIDA É SOBRE NÓS – 28.2.2021
160.
152. BOLSONARO, NOSSAS MORTES SÃO CULPA SUA – 11.4.2021
161.
153. A DEMOCRACIA MORRE NO FIM DESTE ENREDO – 25.7.2021
162.
SIGLAS
163.
AGRADECIMENTOS
164.
SOBRE A AUTORA
165.
LEIA TAMBÉM
Landmarks
1. Capa
2. Folha de rosto
3. Créditos
4. Sumário
5. Dedicatória
6. Epígrafe
7. Agradecimentos
Aos meus queridos irmãos,
Beth
Ana
Wilma
Uriel Jr. (in memoriam)
Cláudio
Jeanete
Ulisses
Lysias (in memoriam)
Alexandre
Ricardo
Simone,
com os quais sempre compartilhei o amor à democracia.
“Quem não se mobiliza quando a liberdade está sob ameaça jamais se
mobilizará por coisa alguma.”
Hannah Arendt,
Compreender: formação, exílio e totalitarismo; ensaios (1930-1954).
APRESENTAÇÃO
O Brasil enterrava seus mortos diante de um presidente que tripudiava do
sofrimento coletivo. Será difícil acreditar, no futuro, que tal absurdo
ocorreu. Só o tempo permitirá ver a dimensão do que foi vivido nestes anos
em que o país, desgovernado, enfrentou a mais letal pandemia em um
século. Muitos livros serão escritos, em todos os gêneros, muitos estudos
serão feitos em várias áreas do conhecimento até compreendermos o que
houve. Todos os países sofreram na pandemia de covid-19, mas a nossa dor
passou a ter outro nível de intensidade. Quem deveria organizar o país para
resistir ao vírus aliou-se a ele. Vivemos a crise mais dolorosa com o pior
governo que já tivemos.
A agenda que levou o presidente Jair Bolsonaro ao poder, em 1o de
janeiro de 2019, era um pacto com o passado. Este século é o da conciliação
com o meio ambiente, do respeito à diversidade étnica, cultural e de gênero.
O século da ciência, da inovação e da educação pluralista. Da economia
criativa e, principalmente, da liberdade. O pesadelo que se abateu sobre nós,
mesmo antes da chegada ao país da pandemia, reconhecida por decreto
como calamidade em março de 2020, foi o do retrocesso em todas essas
pautas nas quais havíamos avançado nos trinta anos anteriores. A
democracia, ponto central do pacto nacional firmado na Constituinte de
1988, foi atacada insistentemente. Fantasmas velhos voltaram a nos
assombrar, como o uso político das Forças Armadas. Houve ainda uma
deliberada demolição da proteção ambiental e da política de respeito aos
indígenas.
A pandemia mostrou que o governo era ainda pior. O presidente exibia de
forma ostensiva a sua doentia falta de solidariedade humana. Com palavras
e decisões, estimulava o contágio e, portanto, a morte. Um ano depois da
primeira morte, o Brasil era o país onde havia mais vítimas diárias. O
mundo se afastou de nós. Éramos o epicentro da pandemia. Morriam
milhares de brasileiros por dia, enquanto o presidente e seus filhos jogavam
sobre o país palavras chulas e grosseiras. Era o escárnio. O dicionário
educado não tinha mais adjetivos para qualificar as atitudes do presidente
da República.
A crônica do momento, que o colunismo de jornal permite, é o registro
de fatos no calor dos eventos. Uma coletânea de colunas é como um álbum
de retratos que, vistos em ordem, formam o filme de uma época. O
jornalista catalão Eugenio Xammar, falecido em 1973, é uma das minhas
maiores inspirações. Ele é pouco conhecido no Brasil, a referência à sua
obra eu encontrei quando buscava, numa livraria americana, fontes de
informação para o meu livro Saga brasileira. Xammar foi correspondente
na Alemanha de 1922 a 1936. Suas colunas sobre a hiperinflação, o
aparecimento de Adolf Hitler e a chegada do ditador ao poder são valiosos
instantâneos. Em um dos seus livros, Crónicas desde Berlín (1930-1936),
no texto da contracapa há a definição do que é o desafio de escrever do
ângulo do jornalismo. “Sometido a la presión de interpretar la historia
cuando la historia todavía no se ha decidido.”
Aqui há colunas publicadas ao longo de cinco anos, de 2016 até meados
de 2021, no jornal O Globo. Em quase todas elas, eu tive a colaboração do
jornalista Álvaro Gribel, que trabalha comigo há mais de uma década. O
foco da coletânea fica na primeira metade do mandato de Bolsonaro, tempo
mais do que suficiente para tornar claros seu fracasso administrativo, suas
mentiras diárias e suas péssimas intenções institucionais. Os editores e eu
decidimos que não era preciso esperar o último dia da administração para
organizar este livro. Os absurdos do presidente se repetiam, mas foram
ganhando intensidade, como se pode verificar pela leitura das colunas,
dispostas em ordem cronológica. No princípio era um governo ruim, com
uma pauta obsoleta; virou um risco à saúde pública e um perigo para a
democracia. Ao fim, havia se transformado em um flagelo para o país.
Em maio de 2021, foi instaurada no Senado a Comissão Parlamentar de
Inquérito para investigar atos e omissões do governo Bolsonaro no combate
à pandemia. Desde o primeiro momento, a CPI acumulou provas da
responsabilidade direta do presidente em grande parte das mortes no Brasil
decorrentes do coronavírus.
Sua oposição às medidas de proteção e de prevenção ao contágio não era
apenas incapacidade de ver o risco nem de sentir a dor alheia. Era um
projeto. Ele apostou na ideia da “imunidade de rebanho”, que seria
supostamente atingida se os brasileiros se contaminassem maciçamente e o
quanto antes. Essa ideia é, do ponto de vista científico, uma aberração. E é
criminosa, porque aumenta o número de mortes.
No dia 6 de junho de 2021, O Globo noticiou que Bolsonaro havia feito,
desde o início da pandemia, 84 eventos com aglomeração. Nesses atos, que
aconteceram em setenta viagens do presidente com sua comitiva, só em três
ele usou máscara. O Estado de S. Paulo no mesmo dia publicou um
levantamento que citava 99 aglomerações, a maioria absoluta sem máscara.
A disseminação do vírus era, portanto, um objetivo. A essa altura, o número
de mortos no Brasil chegava a meio milhão. A demora da vacinação
também não foi apenas incompetência. Fazia parte da mesma visão de que a
imunização aconteceria naturalmente, pelo contágio. Além disso, como
ficou comprovado na CPI, Bolsonaro tomava decisões ouvindo pessoas
estranhas ao governo, em encontros informais. É o que ficou conhecido
como “gabinete paralelo”. Com um mês de trabalho da Comissão já havia
elementos para enquadrá-lo em crime de responsabilidade e em crime
comum. A CPI encontrou também indícios de corrupção no Ministério da
Saúde na compra de vacinas.
Tudo o que aconteceu depois de fechada esta seleção de colunas só
comprovou o que elas mostraram com antecipação. Bolsonaro cometeu
crimes em diversas áreas e seu governo desastroso levou milhares de
brasileiros à morte. Ao mesmo tempo, ele atacou todas as instituições do
Estado, agredindo de maneira constante as bases da democracia brasileira.
E as Forças Armadas deram espantosas demonstrações de submissão ao seu
projeto político.
Bolsonaro ameaçou várias vezes o país de não respeitar o resultado das
eleições presidenciais que serão realizadas em 2022. No começo de julho de
2021, ele foi explicitamente respaldado nessa intenção pelo ministro da
Defesa. Todo autocrata inventa pretextos para seus atos. No caso de
Bolsonaro, ele usou a figura do voto impresso, alegando, sem provas, que a
urna eletrônica, instituída no país em 1996, permitia fraudes. Na defesa
desse retrocesso, o presidente e seus apoiadores, inclusive os militares dos
quais se cercou, passaram a minar a confiança no processo eleitoral e a
chantagear o país. O roteiro era conhecido. Vencido um pretexto, ele criaria
outro. Não importava mais o conflito da vez, Bolsonaro havia montado uma
armadilha para a democracia brasileira. A tarefa imediata seria desarmá-la.
Para isso não bastaria derrotar Bolsonaro e os herdeiros do seu projeto de
extrema direita. Seria preciso olhar para o futuro e fortalecer as bases do
pacto civilizatório feito ao fim da ditadura militar. A preciosa democracia,
dolorosamente conquistada, será mais forte quanto mais avançarmos no
sonho de reduzir as nossas profundas desigualdades.
1. DIVÓRCIO POLÍTICO
24.4.2016
O candidato Jair Bolsonaro fez o sinal da cruz antes de entrar no local onde
seria entrevistado e o repetiu no início das perguntas. Esse é um gesto
católico que não é usado por evangélicos nem protestantes. O deputado se
diz “cristão”, mas deixa a definição imprecisa para ser aceito pelos
evangélicos como um deles e não sofrer rejeição de outros grupos
religiosos. Ao citar a Bíblia, demonstra total falta de intimidade com o livro
que chama de “caixa de ferramentas”. Bolsonaro tem usado a religião de
diversas formas. Afirma que está cumprindo “uma missão de Deus”.
Colocar-se como um ungido, com uma missão divina, é uma forma de
tentar atrair setores religiosos mais extremados.
Suas citações da Bíblia parecem mais repetição de algum trecho que lhe
dão do que conhecimento advindo da leitura do texto sagrado. Isso ficou
claro ao fim do debate da Rede TV!, quando ele respondeu à ex-ministra
Marina Silva: “Leia o livro de Paulo.” Não existe um livro chamado
“Paulo”. Existem vários livros escritos pelo apóstolo no seu trabalho de
construir as bases doutrinárias do Cristianismo. São as epístolas às várias
comunidades, os livros aos Romanos, Coríntios I e II, Gálatas, Efésios,
Filipenses, Colossenses e Tessalonicenses I e II. Há também as endereçadas
a Timóteo (duas), Tito e Filemon. Uma frase como essa de Bolsonaro revela
desconhecimento elementar. Existem dois livros de Pedro e quatro com o
nome de João — um do Evangelho e três epístolas —, porém nenhum dos
66 livros da Bíblia protestante, nem dos 73 da Bíblia católica, chama-se
Paulo.
Ao explicar o que tentara dizer a Marina naquela indicação de leitura,
Bolsonaro errou um pouco mais. Disse que se referia a uma passagem em
que é dito “venda suas capas e compre espadas” e atribuiu a frase a Paulo.
Esse trecho está em Lucas. Bolsonaro foi além: “É que naquele tempo não
existia arma de fogo, senão seria ponto 50 e fuzil.”
Existem diferenças grandes ao longo da Bíblia, principalmente quando se
comparam o Velho Testamento e o Novo Testamento. Jesus inicia, pela fé
cristã, um tempo de perdão e paz. Se no primeiro há o “olho por olho”, no
segundo há o “dai a outra face”. A mensagem pacifista de Jesus Cristo é
inescapável. Recorrer a Cristo para justificar a violência ou a proposta de
armar a população não faz sentido algum. No momento da fúria no Templo
contra os vendilhões, Jesus não usou armas, usou sua autoridade moral.
Mesmo quem jamais leu a Bíblia entende que não é de guerra, é de paz a
principal mensagem de Cristo.
Que importância tem isso para as eleições? Nenhuma. Afinal, o Estado
brasileiro é laico e, felizmente, assim deve permanecer. Mas a busca do
eleitorado evangélico fez com que cada vez mais candidatos utilizassem a
Bíblia como marketing. Certa vez, o ex-governador Garotinho disse que
houve violência até no Céu, “onde Caim matou Abel”. Como todos sabem,
isso ocorreu fora do Paraíso. O prefeito Marcelo Crivella foi pior: depois de
eleito, quis criar um caminho mais curto para os fiéis da sua igreja terem
acesso aos serviços públicos.
A diversidade religiosa brasileira é muito maior do que está nas
estatísticas, porque sempre esteve, em parte, encoberta pelo sincretismo.
Princípios do Cristianismo são parte do conjunto de valores da nossa
sociedade. Algumas das ideias-força já estão incorporadas à sabedoria
geral, como a que Marina Silva utilizou — “ensina o teu filho no caminho
que deve andar”, uma orientação de bem educar. Bolsonaro cita sempre em
seu favor João 8:32: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” É
soberba usar assim, como se a verdade dele, Bolsonaro, é que libertasse.
Jesus estava se referindo à verdade divina.
O TSE acabou de cassar dois deputados por pedirem voto em ato
religioso. Religião e questões de Estado não devem se misturar. Esse foi um
avanço civilizatório e um dos legados da Reforma Protestante. Certos
líderes evangélicos têm feito essa mistura nos últimos tempos. Alguns
sabem separar. Marina é evangélica, mas lembra sempre que o governo é
laico. Geraldo Alckmin não convoca os católicos, apesar de ser um.
Contudo, muitos postulantes têm alimentado essa mistura, indo pedir a
bênção de pastores em atos públicos. Essa mistura jamais dará um bom
resultado. Púlpito e palanque devem estar distantes. O uso da Bíblia e da
religião na política serve para atemorizar ou enganar eleitores. Isso ameaça
a soberania do voto.
5. BOLSONARO E O VAZIO DE IDEIAS
20.9.2018
Os eleitores de Jair Bolsonaro foram atraídos por pelo menos uma das
várias promessas incluídas em seu apelo eleitoral. E cada um fez sua
escolha no kit que o candidato do PSL ofereceu. Alguns acreditam que ele
tem uma solução milagrosa contra a violência, como um dia houve quem
apostasse que Collor mataria a inflação com um tiro. Outros acham que o
conservadorismo dos costumes vai prevalecer. Há os que votam nele porque
os pastores mandaram. Muitos votam com raiva da crise econômica e do
desemprego. Uma grande parte dos eleitores está com ele por ser
antipetista. Alguns imaginam que ele acabará com a corrupção.
Todo candidato que chega tão confortável à reta final da campanha é
porque conseguiu “se vender” bem como produto eleitoral. Pela soma de
seus acertos e dos erros dos adversários. Mas cada grupo de eleitores
projeta em Bolsonaro a solução para o seu problema, ainda que ele não
esteja oferecendo uma proposta concatenada que indique saber o caminho
para resolver cada drama. A violência, por exemplo, é assunto complexo
que não será resolvido com liberação de posse e porte de armas nem com
redução da maioridade penal. Ele não deu qualquer resposta para quem
quer, de fato, saber como vai enfrentar e vencer o poder das facções
criminosas, do tráfico, das milícias, da falta de integração entre as polícias,
dos presídios. Para nada disso houve respostas nas entrevistas, no seu
programa ou na mídia social. Mas o sinal dos dedos do candidato simulando
uma arma passou a ideia de que ele dará “um tiro” e tudo estará resolvido.
A corrupção vem sendo enfrentada pelas instituições que o Brasil
construiu ao longo dos últimos trinta anos, as mesmas que tantos em sua
campanha afrontam, como fez seu filho Eduardo contra o STF. O governo
ajudou quando não interferiu na Polícia Federal. O Ministério Público e a
Justiça Federal continuarão seu trabalho de investigação e punição dos
casos de desvios, mesmo os que venham a acontecer num eventual governo
Bolsonaro. No entanto, sua campanha tem o discurso mítico de que ele vai
resolver tudo rapidamente, só por chegar lá. Não há uma proposta de
transparência e controle que confirme racionalmente essa ideia. É apenas o
marketing de que ele vai limpar tudo, como prometeu Jânio Quadros com
sua vassoura, ou Collor, com sua caça aos marajás. É da natureza das
campanhas eleitorais que as propostas sejam simplificadas pelo marketing,
mas uma democracia já amadurecida como a do Brasil merecia ter mais do
que meia dúzia de clichês sem significados concretos.
Na economia, Jair Bolsonaro promete tirar o Estado “do cangote de quem
produz”. Até agora, porém, tudo o que falou não mostra como o governo
vai reduzir impostos na atual crise fiscal. Pelo contrário, algumas ideias
aumentam o rombo. O mercado financeiro começou a aderir com alguma
reserva e agora o discurso que se ouve é consensual. Jair Bolsonaro virou o
capitão dos liberais. Ele não tem qualquer track record, para usar palavras
dos operadores, mas quando o mercado monta uma posição, azar dos fatos.
Até fora da área financeira há eleitores dizendo que votam nele porque ele é
um liberal. As contradições entre o que dizem e pensam os núcleos político
e econômico do candidato são conhecidas, porém o mercado acredita que o
economista Paulo Guedes tem poderes mágicos.
Há também os que se identificam com declarações do candidato que
reforçam os preconceitos. Estes sempre existiram, evidentemente, do
contrário não estariam as mulheres em condições de desigualdade. Gays em
situação de fragilidade. Negros sendo as maiores vítimas de homicídio.
Mulheres com problemas que vão das distorções no mercado de trabalho ao
feminicídio. Bolsonaro diz agora que acabará com o “coitadismo” desses
grupos. Nunca deve ter olhado uma estatística das desigualdades brasileiras.
O que ocorre é que muitos eleitores explicam seu voto não pelo kit
Bolsonaro inteiro e sim por partes dele. Um diz que é porque está
desempregado, o outro, revoltado com a corrupção, ou é contra o PT, outro
porque acha que Bolsonaro representa os valores da família, e há os que
acreditam que os impostos vão cair ou que ele é um liberal. E assim vão
para as urnas com partes do seu candidato.
9. CONSTITUIÇÃO NO PAÍS DE BOLSONARO
7.11.2018
Nos últimos dias, ficou mais difícil a estratégia que tem sido usada pelo
presidente eleito e por seus apoiadores de negar o passado recente da
História brasileira. Os cinquenta anos do AI-5 foram uma pauta obrigatória
porque o Ato Institucional revirou a vida do país, impactou a imprensa, a
produção cultural, levou à morte centenas de pessoas, e milhares foram
presas e torturadas. É fato marcante que completa meio século. Muitos
contemporâneos permanecem vivos para contar como a história foi.
As frequentes declarações do presidente eleito, Jair Bolsonaro, de que
não houve ditadura seguem um padrão conhecido. A negação sempre foi
arma política usada por qualquer campo, e muito útil para esconder os
crimes de períodos autoritários. Lembrar as datas, por sua vez, é parte do
conjunto de vacinas contra a repetição dos mesmos erros. Tentações
autoritárias sempre espreitaram a democracia.
O brilhante advogado Técio Lins e Silva era um jovem concluindo o
curso de Direito e não pôde colar grau. A festa foi impedida pelo AI-5, que
fechou o Theatro Municipal. Qual o problema de uma turma da icônica
Faculdade Nacional de Direito fazer seu congraçamento? Que risco
representava o histórico Theatro Municipal? O Ato Institucional espalhou
abusos e irracionalidades.
Em um artigo escrito recentemente, a escritora Heloisa Starling busca
Hannah Arendt e o livro As origens do totalitarismo para lembrar como a
negação da verdade é arma conhecida. “A mentira, diz Arendt, consiste em
negar, reescrever e alterar fatos, até mesmo diante dos próprios olhos
daqueles que testemunharam esses mesmos fatos”, escreveu Heloisa.
Então não há inocência nas declarações sequenciais dadas pelo presidente
eleito e seu grupo. “Não houve ‘ditadura militar’ no Brasil! Mentiram para
você, jovem!”, escreveu Bolsonaro em um tuíte. Em entrevistas: “Foi uma
intervenção democrática [...] o povo brasileiro não sabe o que é ditadura
ainda.” São abundantes, frequentes, disseminadas.
Os dados e os fatos também são abundantes. A imprensa trouxe algumas
estatísticas nos últimos dias. O Estado de S. Paulo contou que foram 950
peças de teatro censuradas, quinhentos filmes, quinhentas letras de música.
E, se quiserem mais números, houve mais de quatrocentos mortos, 20 mil
torturados, 7 mil eLivross. O Congresso foi fechado duas vezes após o Ato.
Há o cotidiano daquele tempo, que foi o mais duro dentro da ditadura, o
da década da vigência do AI-5. Quem conta é Técio: — Qualquer pessoa
que tenha um mínimo de conhecimento da vida sabe o que é não ter habeas
corpus. É impedir que o advogado possa se valer desse instrumento
extraordinário para conter a violência e o abuso de poder. A primeira coisa
que o AI-5 fez foi suspendê-lo, e tínhamos que ser advogados na Justiça
Militar sem habeas corpus. Quando ouvíamos de uma autoridade militar
que aquele preso era um “perigoso subversivo” já era um salvo-conduto
para a vida, porque quando diziam “não tem ninguém aqui com esse nome”,
aí as coisas eram muito duras, porque era sintoma de que aquela pessoa
corria risco de desaparecer.
Rubens Paiva desapareceu no dia 20 de janeiro de 1971. Sem acusação
formada, sem militância, o empresário e ex-deputado foi preso pela
Aeronáutica, entregue depois ao Batalhão da Polícia do Exército, na rua
Barão de Mesquita, na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Nunca mais
foi visto. Sua mulher, Eunice Paiva, começa então um doloroso, longo e
impressionante processo de superação. Ela, uma dona de casa com cinco
filhos, sem qualquer envolvimento político, ao sair da prisão, onde esteve
por alguns dias, inicia uma luta em várias frentes. Cria sozinha os filhos,
volta à universidade, faz Faculdade de Direito, integra-se à luta das famílias
de desaparecidos políticos, vira uma das líderes do movimento da Anistia e
das Diretas. Eunice morreu na quinta-feira, 13 de dezembro, no dia em que
o AI-5 fazia cinquenta anos, numa coincidência simbólica.
Para a direita brasileira seria mais inteligente governar defendendo
valores democráticos e implantando políticas públicas nas quais acredita.
Mas a direita que chega ao poder prefere defender o indefensável daquele
regime e, assim, se misturar ao pior dele. A negação do passado sempre foi
arma política. O difícil é entender com que objetivo é usada agora e que
vantagem traz para o governo Bolsonaro.
13. AS DIVISÕES ATÉ NA HORA DE SOMAR
2.1.2019
Que o governo tem errado em muitas áreas não é novidade, mas ele não tem
se dado conta da gravidade que é errar em educação. O ministério está
parado. Não toma decisões e gasta todas as energias e as horas vivendo
crises que ele próprio cria, demitindo pessoas que acabou de nomear ou
revogando-se a si mesmo. Essa é apenas mais uma semana perdida no
MEC. Não há setor em que os erros e a paralisia sejam mais perigosos do
que este. Na educação não se perde um minuto e já perdemos um trimestre.
O presidente Jair Bolsonaro escolheu o ministro de forma insensata e
persiste nele.
O debate ontem na Câmara foi constrangedor pelo que o ministro
Ricardo Vélez Rodriguez demonstrou não saber. O melhor momento foi o
discurso da deputada Tábata Amaral (PDT-SP), em que ela resumiu o
sentimento: “A sua incapacidade de apresentar uma proposta e saber dados
básicos e fundamentais é um desrespeito não só à educação, não só ao
ministério, não só ao Parlamento, mas ao Brasil como um todo.”
O Brasil teve alguns avanços importantes em educação nos últimos anos.
Iniciou um processo de avaliação no governo Fernando Henrique. E isso
nos deu a capacidade de quantificar e comparar atrasos e casos de êxito.
Houve o envolvimento da sociedade civil, com a criação de organizações.
Empresas fundaram institutos que têm auxiliado gestores públicos. Jornais
debatem o assunto em eventos com especialistas nacionais e internacionais.
A busca é a mesma: fazer um mutirão nacional para permitir a superação do
atraso que mais ameaça o país e seu futuro. Há casos de sucesso que podem
ser destacados para serem copiados. Já visitei escolas pelo Brasil e fiz
reportagens mostrando alguns desses exemplos que são pérolas no nosso
mar de derrotas e que nos animam a seguir em frente. Há esperança, há
caminhos.
O Fundeb termina no ano que vem e até agora não recebeu qualquer
atenção do MEC. O Fundo, criado inicialmente como Fundef no governo
FHC e ampliado ao incluir o ensino médio no governo Lula, responde por
60% dos gastos na educação do ensino básico. Tem recursos municipais,
estaduais e federais, combate a desigualdade imensa das chances dos nossos
estudantes. Se ele acabar, sem que haja um mecanismo de financiamento,
haverá o colapso.
O MEC não conseguiu chegar a uma conclusão sobre o que fazer a
respeito da Base Nacional Comum Curricular. Preocupa-se apenas com
miudezas, em perseguir pessoas ou ideias consideradas ameaças ao atual
governo. Não consegue dizer nem do que se defende. Tudo em relação à
reforma do ensino médio está parado. Foi extinto o comitê de avaliação de
tecnologias inovadoras. Há rotinas que precisam ser tocadas e que estão
paralisadas, até coisas simples como providenciar um edital para compra de
livro didático. Como se sabe, escola tem calendário. Quando o ministério
pretende tomar decisões que permitam aos alunos terem livros nas mãos?
Vários programas que fazem a articulação dos estados com o governo
federal em ações conjuntas não funcionam. Reuniões não são realizadas,
urgências são ignoradas, prazos são perdidos. Entre as poucas providências
está o e-mail do ministro enviado a todas as escolas obrigando-as a ler uma
carta que terminava com o lema da campanha de Bolsonaro. As crianças,
além de ouvir essa leitura, cantariam o Hino Nacional e seriam filmadas. A
gravação seria enviada ao MEC. Essa estultice foi abandonada diante das
críticas.
O ministro Vélez Rodriguez parece estar no mundo fantasioso de Alice.
Nomeia, para depois sair gritando: “Cortem as cabeças, cortem as cabeças.”
E são as mesmas que ele escolheu por critérios insondáveis. O segundo
presidente do Inep, que acaba de cair, a única coisa que fez em seu curto
mandato foi dizer que todo o conteúdo das provas do Enem teria que passar
pelo crivo de Bolsonaro. O primeiro presidente do Instituto só entendeu o
sistema de avaliação depois que os funcionários desenharam.
O diálogo brasileiro sobre educação evoluiu e amadureceu. Ainda temos
um desempenho muito ruim em qualquer comparação internacional, mas
estávamos procurando a saída, tendo vitórias parciais, construindo
possibilidades. O grupo que chegou não tem ideia de por onde passa o
desafio da educação contemporânea. O governo Bolsonaro está errando
mais justamente na área que não aceita erros nem retrocessos.
20. DIREITA FESTIVA EM NEGAÇÃO
31.3.2019
Economistas do governo têm dito que chegou agora ao poder no Brasil uma
aliança entre liberais na economia e conservadores nos costumes. É uma
narrativa, porém não define esta administração. Liberais têm amargado
derrotas. Certas decisões e declarações são contrárias ao progresso e à
tendência dos tempos atuais. Quando o governo nega a mudança climática,
dá sinal verde para o desmatamento, demonstra preconceito contra as
diversidades étnica e de gênero e anuncia que combaterá o feminismo, não
está sendo conservador, está sendo reacionário.
A palavra é vista como ofensa política, mas tem definição precisa. O
cientista político Mark Lilla, professor de Columbia, explica essa corrente
do pensamento no livro A mente naufragada. “Os reacionários não são
conservadores. Onde os outros veem o rio do tempo fluindo como sempre
fluiu, o reacionário enxerga os destroços do Paraíso. Ele é um eLivros do
tempo.”
Quando o presidente Bolsonaro manda tirar do ar uma propaganda
porque ela exibe a natural diversidade dos jovens, ele confessa a natureza
da sua reação. Não é liberal um governo em que o chefe de Estado interfere
em banco público e determina como deve ser a sua política de marketing. O
Banco do Brasil não é estatal, tem sócios privados. A ordem do presidente
custou os R$ 17 milhões da campanha, fora as perdas intangíveis na
imagem da instituição. É um sinal de que os economistas liberais terão de
engolir suas teses sendo ofendidas no cotidiano da prática administrativa. A
agenda liberal andou pouquíssimo, mas o governo já criou barreiras ao
comércio de leite em pó, prometeu mais subsídios ao agronegócio e quis
decidir o preço do diesel. Bolsonaro ainda não entendeu o que é ser um
liberal na economia.
A política ambiental informa qual é a essência do governo. Defender a
biodiversidade, proteger o patrimônio natural, ouvir os alertas da ciência,
combater as causas das mudanças climáticas são imperativos do tempo
atual. Isso não é de esquerda nem de direita. Está baseado em fatos e dados.
Há ambientalistas e climatologistas de tendências políticas diversas e com
propostas diferentes. O que os une é a compreensão de que o conceito de
progresso evoluiu. O Parlamento inglês, de maioria conservadora, rendeu-se
à pressão da sociedade e aprovou uma proposta trabalhista. Decretou
emergência climática no país, o que vai estimular o esforço para zerar as
emissões dos gases do efeito estufa.
Joaquim Nabuco era monarquista até na República, Rui Barbosa era
republicano desde o Império. Qual dos dois era reacionário? Nenhum deles.
Membros do Partido Liberal, eram ambos ferrenhos abolicionistas. Estavam
envolvidos na luta pela mudança mais importante daquele tempo. Na época,
os clubes da lavoura defendiam a ordem escravocrata como sustentáculo da
economia. O escritor José de Alencar, do Partido Conservador, lutava pela
manutenção da escravidão, que chamava de “a instituição” nas cartas
públicas a dom Pedro II. José de Alencar, nesse ponto, foi um reacionário.
Hoje há integrantes do ruralismo convencidos de que é preciso respeitar a
reserva legal, fazer o rastreamento do seu produto, combater o
desmatamento ilegal. Sabem que isso abrirá portas e portos ao agronegócio
brasileiro. Por ano, o Brasil derruba florestas na Amazônia numa dimensão
equivalente, em quilômetros quadrados, a seis vezes o município de São
Paulo. Uma grande parte dessa destruição é feita pela grilagem, a ocupação
criminosa de terras públicas. Quem acha que essa selvageria deve ser
estimulada repete nos dias de hoje a opção dos clubes da lavoura. Não é
conservador, é reacionário.
Na sociedade, os tempos mudam sempre. As mulheres vêm seguindo
uma trajetória de autonomia na vida pessoal e de mais poder nas esferas
pública e profissional. A defesa da submissão da mulher não cabe neste
mundo. As diversidades étnica, cultural e de gênero são parte das mudanças
sociais. Os que lutam contra elas querem um mundo que não existe. Como
diz Mark Lilla: “Os reacionários da nossa época descobriram que a
nostalgia pode ser uma forte motivação política.” Esse olhar para trás pode
ter sucesso, mas será sempre temporário. Esse passado não tem futuro.
25. ATAQUE A MILITARES EXPLICA
GOVERNO
12.5.2019
Quem foi para a rua, mesmo para criticar as instituições democráticas, tinha
o direito de estar lá. Na democracia, essa liberdade é consagrada. A questão
a discutir não é o ato em si, mas toda a ambiguidade presente em alguns
atos e certas palavras das autoridades. O presidente Jair Bolsonaro, que
considerou legítimas as manifestações de domingo (26), a seu favor,
chamou de “idiotas úteis” os que fizeram os protestos do dia 15, contra seu
governo. São dois pesos, duas medidas. Ele não foi, mas deu um mote
enviesado quando divulgou, dias antes, um texto em que sugere que está
sendo impedido de governar, e ontem ao falar que o movimento a seu favor
fora “um recado contra aqueles que teimam nas velhas práticas”.
Bolsonaro deixa subentendidos demais quando fala sobre a relação com o
Congresso. Insinua que seus problemas são derivados do fato de os
políticos o pressionarem para usar a moeda da corrupção nas negociações a
fim de formar uma coalizão. E essa mensagem esteve presente nos atos de
domingo, personificada no ataque direto ao presidente da Câmara dos
Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Já as críticas ao STF estiveram presentes até na boca de parlamentares do
partido de Bolsonaro. O deputado estadual Filippe Poubel (PSL-RJ) repetiu
a frase do terceiro filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro: “Para
fechar o Supremo só precisa de um soldado e um cabo.” O senador Major
Olímpio (PSL-SP) ameaçou: “Nos aguarde, STF.”
Isso não quer dizer que a maioria dos que foram às ruas tinha esse
objetivo, mas isso ter sido dito em alto e bom som por parlamentares do
partido do presidente não pode ser subestimado. A democracia aceita
protestos contra as instituições que a sustentam, porém essas falas, entre
tantas outras, mostraram que o governo Bolsonaro flerta frequentemente
com a ameaça à democracia.
O país está diante de uma situação difícil. A economia não deslancha, a
confiança dos empresários e operadores de mercado está em queda livre, as
contas públicas apresentam forte déficit. Além disso, é necessário passar
pelo Congresso matérias complexas, como a reforma da Previdência, o
crédito suplementar de R$ 248 bilhões e a mudança na Lei do Teto de
Gastos, para permitir o acordo com a Petrobras e a distribuição dos
recursos. Se não mantiver um bom diálogo com o Parlamento, o Executivo
pode enfrentar derrotas e alterações indesejáveis nos projetos.
A manifestação não foi tão grande que tivesse dado a Bolsonaro o capital
político extra com o qual ele sonhava. Mas foi relevante. E poderia até
fortalecer as reformas, se Bolsonaro demonstrasse empenho em construir
uma maioria para aprová-las. Ele estimulou a ida às ruas para dar uma
resposta aos protestos contra os cortes na educação no dia 15. Não foi por
entusiasmo com a mudança da Previdência. Como ele próprio já disse
várias vezes, se pudesse não faria a reforma.
O grande problema tem sido a dificuldade de o presidente Bolsonaro
entender que quem é eleito governa, quem não tem maioria tem que
negociá-la, quem comanda o Executivo precisa defender seu projeto
diariamente. Que as redes sociais sempre serão uma forma subsidiária de
comunicação e que o tempo de suas declarações irresponsáveis — quando
era apenas um parlamentar de desempenho pífio — encerrou-se ao ser
escolhido para liderar o país, nas últimas eleições.
Nas manifestações de domingo havia pessoas defendendo suas
convicções. Excelente. Foi para isso que o país lutou contra o período
ditatorial que por tanto tempo reprimiu, muitas vezes com violência,
qualquer passeata e que editou um Ato Institucional que proibia reuniões
políticas. A democracia aceita até que se manifestem os saudosistas do
tempo em que a liberdade foi cerceada. Contudo, cabe às lideranças do país
tomar precauções para não acabar incentivando um tipo de ataque às
instituições como algumas vistas nas ruas no domingo. Pedir o fechamento
do Supremo, demonizar qualquer negociação política como sendo pressão
pela “volta das velhas práticas”, afirmar, como fez Bolsonaro, que é preciso
“libertar” o país é atravessar uma linha que não deve ser transposta numa
república que teve duas ditaduras nos últimos noventa anos. Que as ruas
falem sempre o que quiserem, mas que os governantes tenham a lucidez de
não ecoar os extremos.
28. RISCO AMBIENTAL ATINGE A
ECONOMIA
1.6.2019
Está tudo dando errado, mas ele acha que fez tudo certo, apenas não está
sendo entendido. A economia encolheu no primeiro trimestre, a máquina
pública está parada em várias áreas estratégicas, como a educação, a relação
do governo com o Congresso é tumultuada e a popularidade presidencial
caiu nos primeiros meses de mandato. Apesar disso, Jair Bolsonaro diz que
é o único presidente que conseguiu “nomear um gabinete técnico, respeitar
o Parlamento e cumprir o compromisso constitucional de independência dos
Poderes”. Mostra desconexão com fatos passados e presentes.
O presidente Bolsonaro, ao longo de toda a entrevista que deu à revista
Veja, faz afirmações espantosas. Diz que antes votava contra a reforma da
Previdência porque na Câmara “você tem informação de orelhada”.
Pergunta o que é “governabilidade”, como se fosse algo a ser
menosprezado. Sobrevoa com explicações rasas o escândalo que ronda seu
filho Flávio e seu velho amigo Fabrício Queiroz. O único erro que admite
ter cometido foi com a nomeação do ex-ministro Vélez Rodriguez para a
Educação, escolhido por Olavo de Carvalho. Uma escolha bem técnica,
como se vê! Quando deu errado é que Bolsonaro se lembrou de perguntar
onde Olavo o conhecera. “De publicações”, respondeu seu guru. E o
presidente então reagiu: “Pô, Olavo, você namorou pela internet?” E assim
vai Bolsonaro, exibindo seu estreito entendimento dos fatos. Ele diz que “é
claro” que há sabotagem contra seu governo. Disso, sinceramente, ele não
precisa.
Na economia o que se discute é como evitar a recessão. O país parece a
um evento de voltar a ela. Como o primeiro trimestre ficou negativo e foi
atingido pelo encolhimento da produção da Vale, o consenso é que o país
terá um número ligeiramente positivo no segundo trimestre, escapando da
definição técnica de recessão. Não porque vai crescer, mas porque será
favorecido pela estatística. Quando se comparar o segundo trimestre deste
ano com o mesmo período do ano passado, o resultado será favorável por
causa da greve dos caminhoneiros, que derrubou a economia naquele
período de 2018. As contas são feitas assim.
Na economia não se tem expectativa de um fato positivo, e sim o de se
ganhar um pontinho na comparação com um passado ainda pior. Mas se não
há recessão oficialmente, o ambiente é sem dúvida recessivo, e o
desemprego, como se constatou mais uma vez na sexta-feira (31/5),
devastador. A reação do governo ao número negativo do PIB está sendo
copiar o ex-presidente Michel Temer e avisar que será liberado dinheiro do
FGTS. Se forem contas inativas, não será suficiente; se forem contas ativas,
a liberação terá de ser feita paulatinamente, sob pena de desorganizar o
sistema de financiamento imobiliário. No mercado financeiro, a proposta
que aparece é para uma redução da taxa de juros, remédio que não é bem-
visto pelo Banco Central neste momento.
O governo joga todas as fichas na reforma da Previdência, que é, como se
sabe, condição necessária para o reequilíbrio das contas, porém não
suficiente. A atual administração herdou uma economia cheia de problemas
que se acumularam ao longo dos últimos anos. Bolsonaro não resolveria
tudo num passe de mágica. Mas até agora, cinco meses passados, ele não
tem apresentado fórmulas para a saída da encrenca. Não há solução mágica,
mas o grupo que chegou ao poder em janeiro dizia que havia, fazendo até
mesmo a promessa de zerar o déficit público no primeiro ano.
Nos últimos dias, o presidente falou que estava costurando um pacto com
os três Poderes. Incluiu, com a anuência do presidente do STF, Dias Toffoli,
o Judiciário. “É bom ter a Justiça ao nosso lado”, disse, para arrepio dos
juristas. Contraditoriamente, criticou o STF por estar a um passo de
criminalizar a homofobia e prometeu indicar um ministro evangélico para o
Supremo. Alegou sofrer pressões terríveis, às quais “outros não
resistiriam”, inventou que a imprensa dizia que ele não seria eleito se não
mentisse. E foi nesse roldão, com seus improvisos desastrosos.
A crise do país é grave, sair dessa paralisia econômica exigirá empenho e
competência. O presidente parece envolvido demais com questões
irrelevantes ou com interpretações duvidosas da realidade. O risco de uma
nova recessão é real. Pode não acontecer no próximo trimestre, mas é ela
que está à espreita.
30. VISÃO MILITAR NUM DIA DE QUEDA
14.6.2019
Os militares que estão no governo Bolsonaro não querem ser vistos como
um grupo ou uma ala. Por isso tiveram o cuidado de jamais fazer uma
reunião conjunta, me contou um deles. Mesmo assim, são vistos como
grupo e criticados em bloco. Ontem caiu o general Carlos Alberto dos
Santos Cruz, que sempre foi alvo dos filhos do presidente e de Olavo de
Carvalho. E cair, por isso, é até comenda. O general Luiz Eduardo Ramos,
que vai assumir o seu posto na chefia da Secretaria de Governo, tem
experiência no relacionamento com políticos porque foi assessor
parlamentar do Exército e tem habilidade para ouvir os diversos segmentos
da sociedade. Se avançar com essas qualidades pode dar certo, ou também
ser vítima do mesmo grupo do barulho do governo Bolsonaro.
O maior temor que os militares que estão no governo têm é o de que
venham a perder a credibilidade que conquistaram em trinta anos de
silêncio e disciplina, após o fim da ditadura. Na visão que ouvi de um deles
esta semana, o que vivem agora é inédito.
— Em nenhum governo, desde a redemocratização, tivemos o
protagonismo que temos neste. Isso pode ser um ônus se o governo der
errado.
Segundo essa avaliação que ouvi, o presidente Bolsonaro não estaria
errado em criar outras agendas, ainda que algumas provoquem polêmica,
como a liberação de armas e a mudança no Código de Trânsito. Porque se
ele ficasse apenas na reforma da Previdência poderia dar a impressão de
uma administração paralisada.
No geral, acham que o governo em alguns setores vai na direção correta,
mas que a comunicação e a articulação com o Congresso são áreas de crise
crônica. E que os ministros que acertam não conseguem mostrar seu
trabalho pelo destaque que têm os que erram. Entre os mais criticados está o
ministro da Educação.
A queda de Santos Cruz acontece num dia que já não ia bem para o
presidente Jair Bolsonaro. Seu decreto que desfez as centenas de conselhos
da administração federal foi derrotado no Supremo Tribunal Federal. Mas
houve uma notícia positiva. Afinal, o relatório do deputado Samuel Moreira
(PSDB-SP) foi lido dentro do prazo na comissão especial e manteve
intactos vários pontos da reforma da Previdência proposta pelo governo
Bolsonaro, como a idade mínima, que é uma luta de décadas no Brasil.
Para o ministro Paulo Guedes, contudo, a maior importância dessa
reforma era a capitalização. Na visão dele, isso justificava o nome “Nova
Previdência”, porque iniciaria um círculo virtuoso que levaria a economia a
ter mais poupança, mais empregos e mais investimento. Por isso o relatório
teve para o ministro da Economia um gosto amargo. Para os parlamentares,
a rejeição à capitalização foi por um motivo prático: o projeto do governo
pedia autorização para criar um novo regime do qual nada se sabia, exceto
que conteria o sistema “nocional” que garantiria um valor mínimo a ser
pago pelo Tesouro em caso de insuficiência de poupança na conta
individual. Parece confuso. E é.
O valor de R$ 913 bilhões apresentado pelo relator dá à equipe a
sensação de estar bem perto da meta de economizar R$ 1 trilhão em dez
anos com a reforma, porém essa conta embute a receita com o aumento da
CSLL dos bancos. A economia, na prática, é menor.
O relatório costurado com os líderes dos partidos que apoiam a reforma
removeu o que era intragável do ponto de vista político: a mudança no BPC
e na aposentadoria rural, que atingiria os mais pobres. Além disso, ampliou
um pouco a faixa que permite receber o abono salarial. Por outro lado, criou
privilégios para o grupo mais beneficiado do funcionalismo, formado por
quem tem o direito de se aposentar pelo valor do último salário e seguir os
reajustes da ativa.
De qualquer maneira, o dia, de magras notícias boas, era de dar destaque
ao fato de que a reforma da Previdência avançou mais um passo no
Congresso. Bolsonaro, porém, conseguiu criar uma nova crise com a
demissão do general Santos Cruz. A nomeação do general Ramos não deixa
o posto vazio. Mas o motivo da queda mostra mais uma vez a face de um
governo tutelado. Essa influência dos filhos de Bolsonaro e de Olavo de
Carvalho sobre o presidente é considerada pelos militares que estão no
governo, conforme me disseram dois deles, a parte mais incômoda e
desconfortável da atual administração à qual se ligaram.
31. QUEDAS MOSTRAM FALHAS DO
GOVERNO
21.6.2019
O ministro Ricardo Salles gosta da frase “não é bem assim” para responder
a qualquer argumento do qual discorde. Mas a frase é perfeita para
responder ao que ele diz. Segundo Salles, havia um terço de ONGs no
Comitê Orientador do Fundo Amazônia. É falso. Ele diz que o
desmatamento “se estabilizou” entre 2004 e 2012; na verdade, despencou
70%. Afirma que está havendo muita liberação de agrotóxicos porque nos
anos anteriores eles ficaram retidos por ineficiência da Anvisa. No ano
passado, de janeiro a 24 de junho, foram 193 produtos liberados. Este ano,
no mesmo período, foram 239. Houve aumento, e nada esteve parado nos
últimos três anos.
Com números e fatos imprecisos, o ministro monta teses insustentáveis.
Numa entrevista à GloboNews, da qual participei junto com outros colegas,
diante de uma pergunta sobre o desmatamento, ele respondeu: “Vamos lá, o
Brasil tem 5 milhões de quilômetros na Amazônia. A quantidade de
quilômetros desmatados no ano passado foi ao redor de 8 mil. Dá zero
vírgula zero vírgula dois por cento. Percentualmente, já temos um
desmatamento zero. É a terceira casa decimal depois do zero. Isso tem que
ser dito com todas as letras.”
É preciso dizer, com números e letras, o quanto o ministro errou aqui.
Inventou duas vírgulas seguidas depois do zero. Não é a terceira casa
decimal. Depois, ele corrigiu para 0,16%, mas o problema é que a ideia é
toda descabida. Nas redes sociais, foram feitos cálculos sobre o absurdo do
raciocínio, mostrando que se a mesma conta for feita com os 61 mil
homicídios pelos mais de 200 milhões de habitantes o país teria homicídio
zero. Dá para fazer sumir todos os problemas se a gente quiser brincar com
os números.
A verdade é que o desmatamento, após ação decisiva do governo Lula,
caiu de 27,7 mil quilômetros quadrados, em 2004, para 4,5 mil quilômetros
quadrados, em 2012. Desse ano em diante, o governo iniciou as
hidrelétricas na Amazônia, reduziu o tamanho de Unidades de Conservação
e deu outros sinais que levaram ao aumento da perda anual da floresta. E,
neste junho, o desmatamento subiu 88% em relação a junho passado.
Durante a entrevista, Salles repetiu várias vezes que há uma ligação entre
combate ao desmatamento e pobreza na Amazônia ou, então, que a pobreza
é a causa do desmatamento. Não faz sentido. Nem uma coisa nem outra. O
Brasil teve um crescimento do PIB mais forte no período em que o
desmatamento caiu, e mesmo na recessão o PIB aumentou. “Quando se
deixa o morador numa situação de ilegalidade, ou de asfixiamento
econômico, ele não verá o filho dele morrer de fome sem tentar gerar
alguma receita para si próprio”, disse Salles.
Não são os pobres que fazem isso. É preciso capital para ter motosserra,
trator, correntão e caminhão para desmatar e escoar. Ele sabe porque contou
de um flagrante que deu em São Paulo, quando era secretário, em que foram
retidos cinco caminhões e tratores.
Segundo o ministro, “de maneira irresponsável” foram criadas no Brasil
Unidades de Conservação englobando terras onde já havia produção:
“Quem delimitou desconsiderou as áreas produtivas, ignorou essas pessoas,
deu o calote nessas pessoas.” A verdade: 95% das Unidades de
Conservação da Amazônia foram criadas em terras públicas. Quem estava
lá não deveria estar. De qualquer maneira, é fácil saber quem estava antes
da criação com o histórico das imagens de satélite.
Os embaixadores da Noruega e da Alemanha não concordaram com a
nova formação do Comitê Orientador do Fundo Amazônia e pediram outra
proposta. O ministro diz que dissolveu o Comitê porque um terço era
formado por ONGs. O fato: menos de um terço era da sociedade civil. Aí se
incluíam CNI, Contag, SBPC, a indústria de madeira. E havia também um
fórum de ONGs e outro de associações indígenas. Esses dois representariam
8,3% dos 24 membros.
O ministro atribui as críticas vindas da Europa ao medo dos concorrentes
do agronegócio. A Europa é protecionista, mas não produz o suficiente.
Não é competidora, e sim cliente. O segundo maior. Salles diz que há uma
campanha contra o Brasil e que “um dos maiores focos de detratores são
entidades, autores e pessoas do próprio Brasil”. Esse era o raciocínio usado
na ditadura para atacar quem dizia que havia tortura no país. Está na hora de
o ministro se reconciliar com números, fatos e conceitos.
35. ABSURDOS DIÁRIOS DE BOLSONARO
14.7.2019
A censura tem surgido com frequência nos eventos literários do país. Não
por acaso. Os livros sempre pareceram ameaçadores a mentes autoritárias e
também em tempos de intolerância. Ceder a quem tenta cercear o caminho
entre o leitor e o livro é aceitar que um perigoso inimigo da liberdade ganhe
corpo. A prefeitura do Rio mandou agentes da “ordem pública” vasculhar a
Bienal do Livro atrás de material “impróprio” e que não seguisse as
“recomendações”. As palavras aspeadas podem ter qualquer sentido, a ser
dado por quem se considera com autoridade para decidir o que significa
“próprio”, “recomendável” e “ordem pública”. A literatura é o terreno da
liberdade. As duas palavras nasceram juntas. São irmãs.
A Bienal do Rio decidiu resistir, inclusive com um mandado de
segurança preventivo e uma nota que lembra de que lado estão as leis. As
editoras também reagiram. Neste momento, há vários motivos para
resistência: estagnação, crise na indústria do livro, dificuldades das
empresas, pressões diretas ou subliminares que outros eventos literários têm
recebido para banir autores e temas. Nos dez dias do evento, que termina
hoje à noite, a grande festa do livro vem tratando das questões que são parte
da vida contemporânea. Autoritarismo e democracia, escravidão, racismo,
imigrantes e refugiados, LGBT+, feminismo, indígenas, Amazônia,
censura. “A Bienal entende que sua missão principal é a difusão da leitura
no Brasil”, disse Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional
dos Editores de Livros. Decisiva missão nesta hora e neste lugar.
Alguém pode dizer que está havendo exagero, porque apenas uma revista
em quadrinhos foi diretamente ameaçada. Ray Bradbury, autor do
consagrado Fahrenheit 451, nos avisa, à moda de Bertolt Brecht, que depois
de um veto virá outro. “Eles começaram controlando gibis, depois livros de
detetives e, claro, filmes, sempre em nome de algo distinto: as paixões
políticas, o preconceito religioso, os interesses profissionais; sempre houve
uma minoria com medo de algo e uma maioria com medo das trevas...”
Goethe, velho defensor da luz, disse que “nada é mais ameaçador do que
a ignorância ativa”. Ela está em plena atividade no Brasil de hoje. Quem
promove eventos literários, culturais, quem produz filmes, quem se dedica à
arte sabe que a censura tem se infiltrado por caminhos oficiais e
particulares. Existe a proibição explícita, a intimidação virtual, a ameaça
física, a suspensão de patrocínios, a tentativa de banir temas.
Lançado nesta Bienal, o primeiro livro da trilogia Escravidão, de
Laurentino Gomes, não podia ter chegado em melhor hora. “A escravidão é
uma chaga aberta na história humana”, escreveu o autor na obra que abala o
leitor e o leva a uma reflexão profunda sobre o Brasil. Reflexão que o país
tem evitado por tanto tempo através dos ardis da negação. Mesmo negado,
aqui está o racismo no cotidiano e nas sequelas visíveis da escravidão. Num
debate na Globolivros, um leitor perguntou a Laurentino se o negro está
livre do açoite hoje. Na mesma semana, o Brasil viu um adolescente sendo
açoitado por dois seguranças de supermercado. Por que ainda carregamos
tantas marcas deste longo crime? Por termos fugido do necessário debate,
sugerido por Joaquim Nabuco, sobre as políticas para desmontar a obra da
escravidão.
Aplaudido de pé no Café Literário, o líder indígena Ailton Krenak foi ao
meu programa na GloboNews para falar do seu livro Ideias para adiar o
fim do mundo. Com leveza, ele defende ideias profundas, como a da
existência de “um colapso afetivo” dos brasileiros na relação com os rios e
as florestas. Ailton, dos Krenak, nascido às margens do Watu, o ferido rio
Doce, lembra que a natureza e nós somos uma coisa só. Não há dualidade
entre a Humanidade e a Terra.
A leitura é a forma mais efetiva de pensar. E pensar sempre parece
perigoso aos modelos autoritários de poder. “Qualquer livro que merece ser
banido é um livro que merece ser lido”, escreveu o grande autor de ficção
científica Isaac Asimov. A censura sabe o que faz, ela quer inibir o
pensamento. A literatura também sabe o que faz. Ela atua na ampliação do
espaço democrático, na difusão das ideias, na representação das emoções,
na defesa da liberdade criativa. O dramaturgo e crítico irlandês George
Bernard Shaw escreveu que “a censura se completa logicamente quando a
ninguém é permitido ler qualquer livro, exceto os livros que ninguém lê”.
Ler é inquietante, é libertário.
43. MP INFIEL E A DEMOCRACIA
15.9.2019
No dia em que o mundo parou para pedir por ações contra a mudança no
clima, inúmeras batalhas continuaram sendo travadas em cada canto das
florestas brasileiras. Falarei de uma ocorrida esta semana. Um grupo de oito
homens se move no meio da noite de segunda para terça-feira (16-17) para
ir embora com três caminhões carregados de madeira tirada da Terra
Indígena (TI) Arariboia, no Maranhão. Uma moto os acompanha. Estão
bem perto da aldeia Três Passagens. Do mato surgem indígenas Guajajara
que integram o grupo Guardiões da Floresta. Os madeireiros atiram em
direção aos indígenas, e eles revidam com arco e flecha e espingarda.
Ninguém se fere, felizmente, e os madeireiros fogem.
Essas escaramuças acontecem em várias partes da Amazônia. O que há
de comum em todos os eventos é a ausência do setor público. Ibama, Funai,
Polícia Militar, Polícia Federal, enfim, todos os órgãos que poderiam se
envolver para dar uma resposta a essa ação contínua, e cada vez mais
agressiva, de tirar madeira da floresta ilegalmente estão ausentes. Em
algumas tribos, os índios se organizaram em grupos de monitoramento da
floresta e frequentemente se deparam com madeireiros. Naquela noite, lá na
TI Arariboia, os indígenas decidiram queimar os caminhões e a moto depois
que os madeireiros foram embora. Adiantaria pouco avisar à polícia. No dia
seguinte, os madeireiros voltaram e filmaram o que havia restado dos
caminhões e colocaram as imagens para circular nos grupos de WhatsApp
da cidade de Amarante. Assim vai se alimentando o conflito.
Ontem mesmo, no dia em que milhões paravam no mundo pelo clima e
pelo meio ambiente, um cacique Ka’apor, que está na TI Alto Turiaçu,
também no Maranhão, pediu socorro por WhatsApp a Antonio Wilson
Guajajara, que é um dos guardiões da floresta e que está na TI Caru. Avisou
que perto do município de Zé Doca (o nome da cidade homenageia um
grileiro), dentro da terra indígena, foi localizado um acampamento de
madeireiro.
As terras Caru, Awá e Alto Turiaçu são contíguas e ficam ao lado da
Reserva Biológica Gurupi, também no estado. A TI Arariboia se localiza
mais ao sul, é cercada de inúmeros povoados e nela vivem 14 mil Guajajara
e alguns Awá Guajá isolados. Os Awá Guajá que vivem na TI Caru, onde
fiz reportagem em 2012, são definidos como de recente contato, mas
existem integrantes dessa etnia que fogem de qualquer contato. São os
isolados.
Nessas terras indígenas, os índios organizaram o grupo Guardiões da
Floresta, que atua desde 2012.
— A gente trabalha nessas quatro terras e também na do rio Pindaré
fazendo vigilância e passando informações para as autoridades. Além disso,
as mulheres das aldeias fazem trabalho educativo nos povoados, em
palestras e conversas de conscientização. São as guerreiras da floresta.
Nunca houve um ato de violência, nenhuma morte, felizmente — diz
Antonio Wilson Guajajara.
Ontem, no Alto Turiaçu, os Ka’apor, fazendo a limpeza do limite da
terra, encontraram um grupo grande de invasores, e foi por isso que um
líder pediu ajuda a Antonio Wilson, que estava na Terra Caru.
— Eu sei que é um momento delicado, mas vou assim mesmo. Não
podemos recuar. Quero dialogar. Se a gente tivesse mais apoio seria melhor
— diz o líder Guajajara.
A TI Arariboia enfrentou em 2015 e 2016 um enorme incêndio que
destruiu metade dos seus 412 mil hectares. Na época, foi possível ver os
isolados se deslocando. Eles estão ficando cada vez mais expostos. E
vulneráveis.
Carlos Travassos, que foi chefe do setor de Índios Isolados da Funai,
conta que a TI Arariboia está sendo assediada por dois tipos de demanda: a
de madeira de lei, que ataca o centro da terra onde estão os isolados; e a de
madeira para fazer estacas para cercas das inúmeras fazendas da região.
— O primeiro é um mercado que está atrás de ipê, maçaranduba,
sapucaia, copaíba, cumaru, tatajuba e os últimos cedros. O outro mercado é
gigantesco porque tem um mundo de fazenda perto da TI. É pulverizado,
porque um fazendeiro entra na terra, tira as madeiras e redistribui para
outros. Os guardiões estão ativos, mas eles estão sozinhos. E as invasões
estão atingindo em cheio os últimos locais das grandes árvores, onde estão
os Awá Guajá isolados — explica Carlos Travassos.
Assim, os índios, por sua conta, vão tentando defender a si mesmos e a
floresta.
45. BOLSONARO E WITZEL ERRAM NA
SEGURANÇA
24.9.2019
Que brava gente é esta, que vai para as praias como se fosse para a guerra e
luta com as mãos contra o ataque de um óleo espesso, grudento e tóxico? E
limpa tudo o que pode, até ver a areia limpa, e volta no dia seguinte
disposta a novas batalhas porque mais sujeira pode chegar do mar. O mar
que normalmente traz a água boa do banho, o peixe, a onda do surfista, o
ganho do jangadeiro, do pescador, do dono da pousada, e esse horizonte
aberto que alonga e descansa o olhar.
Quando o pior aconteceu, e o petróleo começou a desembarcar em ondas
sucessivas em 238 praias, em 2.250 quilômetros do litoral brasileiro, quem
primeiro acudiu o Nordeste foi seu povo. O governo tardou, se confundiu,
errou, não teve a real dimensão da gravidade do caso. O ministro do Meio
Ambiente, como sempre, fugiu da verdade. Ele parece não conviver bem
com ela. No máximo aceita uma meia verdade, um fato editado, um número
mal contado. Sua predileção é pela procura de inimigos imaginários. É
intenso o seu esforço para desfazer a razão do cargo que imerecidamente
ocupa.
O país passou os últimos dias vendo em todos os jornais, telejornais e
revistas os relatos, as imagens e as entrevistas com inúmeras pessoas que
estão espalhadas em todas as praias, trabalhando sem remuneração, sem
cargo, sem adicional, sem proteção, arrancando o mal que se espalha,
impregna, gruda, mata a fauna, sufoca a natureza. São os perigosos
hidrocarbonetos, energia fóssil da qual o mundo talvez um dia se livre, se
não for tarde demais.
É inevitável ter sentimentos conflitantes diante dessas cenas dos
brasileiros tirando as suas praias das garras do petróleo. Fica-se comovido
com a devoção dos voluntários e, ao mesmo tempo, com medo do que possa
acontecer a eles pelo efeito do contato com o material tóxico a que estão se
expondo por amor à terra.
Essa é a terceira tragédia ambiental que atinge o Brasil apenas em 2019.
Houve Brumadinho, abrindo a temporada de dores com seus milhões de
metros cúbicos de rejeitos soterrando funcionários e moradores. Os
bombeiros afundaram na lama e arrancaram de lá os corpos para que as
famílias enterrassem seus mortos. Foram infatigáveis, foram indescritíveis,
foram além do limite do possível para atenuar as aflições de quem perdeu
tanto pelo crime cometido por uma empresa reincidente. O motivo da
tragédia foi o descuido com o meio ambiente, a ganância de esgotar o
minério das entranhas de Minas, sem entregar aos mineiros sequer o
investimento que os protegesse da morte. Os erros se acumularam por anos,
décadas de fiscalização errada, de incompetência, de uma visão predatória
da mineração. A mesma Vale que soterrou o rio Doce entupiu as barragens
que explodiram sobre Brumadinho.
O fogo ardeu na Amazônia destruindo quilômetros e quilômetros de
floresta. As chamas seguiram o rastro do desmatamento como sempre
fizeram. Já se conhecem os passos desse crime. O erro desta vez foi o
governo emitir sinais errados que os criminosos entenderam como licença
para desmatar e queimar. O governo primeiro ignorou, em seguida negou o
problema, depois atacou os cientistas do Inpe, inventou culpados e, por fim,
despachou as Forças Armadas para apagar o incêndio. Dentro de algumas
terras indígenas, são os próprios indígenas que têm feito patrulha e tentado
espantar os invasores.
O desmonte dos órgãos ambientais, a falta de estrutura, o assédio que os
servidores viveram, a troca atabalhoada das chefias, os órgãos que ficaram
acéfalos, as portarias paralisantes, tudo teve reflexo em cada tragédia
ambiental que o Brasil tem vivido. Por toda a costa nordestina, foram os
voluntários que estiveram presentes desde o primeiro momento, inúmeros
deles. Seu exemplo foi tão eloquente que o governo teve que correr e
mostrar serviço.
Tem sido um tempo de descrer das virtudes do país, por isso o que os
nordestinos resgatam é mais do que imaginam. Não são apenas as areias, as
tartarugas, as aves, os manguezais, as águas do mar. Resgatam a autoestima
do país, a confiança de que podemos nos tirar das dificuldades, de que o
país pode dar certo, mesmo que seja longa e penosa a crise que se abateu
sobre nós. Pode fazer muito um país cujo povo é capaz de travar batalhas
para salvar suas praias do afogamento.
53. A FALTA DE LIMITES DO
PRESIDENTE
30.10.2019
As duas últimas semanas foram muito boas para as Forças Armadas. Foi
aprovada a reforma da Previdência em termos quase iguais aos do projeto
que os próprios militares haviam formulado, cujo ponto alto é a concessão
de vários aumentos, adicionais e vantagens na carreira. Eles conseguiram
também um decreto financeiro para gastar mais R$ 4,7 bilhões este ano.
Além disso, a equipe econômica aceitou pôr na Lei Orçamentária que o
investimento do Ministério da Defesa não poderá ser contingenciado no ano
que vem.
O discurso da austeridade perde toda a coerência quando se vê o
tratamento dispensado aos militares. As Forças Armadas argumentam que
os salários estavam defasados em relação a outras carreiras do Executivo. É
verdade em grande parte. Fazer esse acerto de contas quando o país está em
penúria fiscal é que é discutível. Mas dado que o atual governo queria
mesmo corrigir a defasagem, melhor seria ter dado apenas aumento e não
todas as vantagens somadas ao longo da carreira e na hora de se aposentar.
Um militar se aposentará tendo aquilo que desde a reforma do ex-
presidente Lula, de 2003, não existe mais para funcionários públicos civis:
integralidade e paridade. Até quem ainda não entrou nas Forças terá o
direito de se aposentar com o último salário e recebendo todos os aumentos
dos da ativa. Além disso, os militares terão um adicional no salário pelos
cursos que fizerem que vai aumentando quanto mais se avança na carreira,
podendo chegar a 73% sobre o salário.
Outro aumento, que pode atingir 32%, o militar recebe ao se aposentar: é
o adicional de disponibilidade. E ainda ganha um abono, pago uma única
vez, de oito salários para as despesas de ir para a reserva. Se for expulso por
falta grave, o cônjuge terá direito a uma pensão, como se o militar tivesse
morrido. Isso se chama morte ficta e sempre existiu. Em junho, um sargento
da Força Aérea foi preso na Espanha ao ser apanhado traficando cocaína no
avião do presidente brasileiro. A mulher dele pode ter essa pensão, por
exemplo. Esse ponto a equipe econômica quis alterar, mas foi mantido
apenas com a diferença de que, no futuro, o soldo não será integral, e sim
proporcional ao tempo trabalhado.
Na parte das obrigações, os militares pagarão um percentual maior à
Previdência. Hoje pagam 7,5%. Isso vai para 9,5% no ano que vem e para
10,5% em 2021. As pensionistas e os estudantes de escolas preparatórias
também contribuirão. Ao contrário dos trabalhadores privados ou servidores
civis, os militares não terão idade mínima. Nem os futuros militares. O
tempo na Força passa de 30 para 35 anos para os que ainda entrarão. Os
atuais terão de cumprir apenas uma regra bem leve de transição.
O economista e professor da USP Luis Eduardo Afonso disse que ficou
muito pessimista porque a reforma dos militares é totalmente diferente da
dos civis: — Se a ordem de grandeza da reforma da Previdência era
conseguir R$ 1 trilhão de economia, a dos militares é de R$ 10 bilhões, ou
seja, 1%. Temos um problema adicional: os dados que o governo
disponibiliza são muito menos detalhados que os do Regime Geral e do
Regime Próprio dos servidores. Na outra reforma sabe-se o quanto cada
medida economiza, de ano a ano. Na reforma dos militares só se sabe o
valor agregado. Não dá para separar o impacto de cada uma das medidas.
As contas dos militares foram feitas pelos próprios militares e não pela
equipe econômica.
Se o presidente Bolsonaro cumprir a promessa de baixar um decreto para
melhorar a remuneração de soldados, cabos, sargentos e suboficiais que se
sentem prejudicados com os benefícios maiores para as altas patentes, o
governo terá feito uma reforma apenas para gastar mais. Como algumas
dessas regras valerão também para policiais e bombeiros, isso aumentará a
pressão nos gastos dos estados.
A equipe econômica diz que quer menos engessamento das despesas,
mas aceitou engessar os gastos da Defesa com investimento em 2020. Além
disso, na semana passada, aumentou em R$ 4,7 bilhões a verba para gastar
neste fim de ano com despesas do Orçamento e de caixa.
Num ano difícil em que se cortou tanto e em que a reforma foi
apresentada com o discurso da necessidade de redução das desigualdades
dentro do sistema, foram cristalizadas vantagens que já acabaram para
outros servidores. Ou nunca existiram. E o Congresso apoiou-as
integralmente. O governo quis agradar aos militares, e o Congresso não quis
comprar essa briga.
58. SEXTA-FEIRA 13, 51 ANOS DEPOIS
13.12.2019
Numa sexta-feira 13, há exatamente 51 anos, o AI-5 caiu sobre o país como
um viaduto. O Brasil era outro. Dos brasileiros de hoje, 76,21% não haviam
nascido. São 160,2 milhões de brasileiros nascidos depois daquele dia. Pelo
tempo passado e pela renovação populacional, esse deveria ser um tema
esquecido e pacificado. Mas o AI-5 foi um dos assuntos mais falados no
país este ano, em função do estranho sonho autoritário de pessoas que agora
ocupam posição de poder.
Há vários mitos sobre a ditadura que andam sendo repetidos, numa
demonstração de que é preciso voltar a falar disso. Ainda hoje alguns
grupos defendem que o regime foi brando. Não existe ditadura suave, e a
dinâmica do caminho autoritário é incontrolável.
O general Castelo Branco dizia que o regime seria temporário, mas durou
21 anos. O primeiro Ato Institucional foi apresentado como sendo o único e
houve dezessete. O AI-5 duraria um ano, durou dez. O SNI seria apenas um
pequeno serviço de inteligência e, como registra o jornalista Elio Gaspari,
virou um “monstro” na definição do seu próprio criador, o general e
ministro Golbery do Couto e Silva. No final, tinha 6 mil funcionários,
escritórios em cada ministério, em cada órgão estatal, e envolveu-se em
inúmeras maracutaias, do garimpo na Amazônia às negociatas com café.
O país não estava “indo para o comunismo”, conforme os militares
diziam, e sim vivendo um governo de muita instabilidade que se
aproximava do fim. No ano seguinte haveria uma eleição em que se
enfrentariam Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, com grande chance de
vitória do primeiro. Os dois se juntaram depois na Frente Ampla, que
incluiu João Goulart, uma aliança impensável entre o golpista Lacerda e o
presidente deposto. Eles passaram por cima das diferenças pela causa
comum do retorno à democracia. A Frente foi proscrita pelo governo no
interminável ano de 1968.
Na economia, a ditadura começou fazendo um plano anti-inflacionário e
de ajuste das contas públicas. Através do Paeg, a inflação foi reduzida com
um mecanismo de correção salarial pela média dos 24 meses anteriores e
que levou a uma redução de salário real. Após o ajuste, o Brasil acelerou o
crescimento do PIB. Se o país estava crescendo, isso deveria ter
desanuviado o clima político, mas a direita no poder decidiu radicalizar.
A coincidência entre o melhor momento da economia e o pior período da
repressão é até estranha. O crescimento acelerado, em qualquer país, produz
uma taxa maior de aceitação do governo. O PIB cresceu em média 11,2%
de 1968 a 1973, segundo André Lara Resende relata na coletânea 130 anos:
em busca da República. Os militares queriam mais que apoio,
ambicionavam a unanimidade. Para calar todas as vozes discordantes, foi
disparada a violência desmedida do Ato Institucional, que fechou o
Congresso por quase um ano, estabeleceu a censura prévia contra alguns
órgãos de imprensa, suspendeu todas as garantias constitucionais, cassou
parlamentares, expulsou estudantes e professores das universidades e
expandiu a máquina de tortura e morte.
O crescimento no país era desigual. Segundo o sociólogo e pesquisador
Pedro Ferreira de Souza, a parcela da riqueza nacional apropriada pelos
brasileiros que estavam entre o 1% mais rico subiu de 17,7% para 25,8%
entre 1964 e 1970. Oito pontos percentuais em seis anos.
O tempo de forte alta do PIB ocorreu apenas em uma parte dos 21 anos.
Ficou restrito ao final dos anos 1960 e começo dos 1970. Houve o período
de recessão, inflação, dívida externa e bagunça fiscal. “Quando, na segunda
metade dos anos 1970, os desequilíbrios das contas externas e as pressões
inflacionárias reapareceram, agora combinados com a correção monetária,
estava montado o quadro para quase duas décadas de estagnação e
aceleração inflacionária”, escreveu Lara Resende.
Não deveria ser preciso dizer que o AI-5 abriu um tempo maldito que
jamais poderia provocar saudosismo nos governantes. Mas também não
deveria ser preciso dizer que torturador não é herói e que presidentes não
falam, com naturalidade, sobre instrumentos de tortura. Não deveria ser
necessário dizer que os problemas da democracia só podem ser corrigidos
com mais democracia. Contudo, ainda é preciso lembrar como foram
terríveis aqueles dias, aqueles anos, que começaram numa sexta-feira 13, há
51 anos.
59. MORALIDADE COMO ESTRATÉGIA ELEITORAL
22.12.2019
O presidente Bolsonaro estava uma pilha na sexta-feira (20). Foi ainda mais
agressivo do que o costumeiro no ataque aos repórteres que ficam à porta
do Palácio. Era fácil saber o motivo do nervosismo. Seu filho Flávio está
com uma montanha de explicações a dar sobre o que se passava no seu
gabinete quando era deputado estadual no Rio de Janeiro, nos seus negócios
com imóveis e no funcionamento da sua loja de chocolates. A bandeira de
Jair Bolsonaro de que faria um governo de combate à corrupção sempre foi
postiça, mas fica mais difícil empunhá-la quanto mais detalhes vêm à tona
sobre a estranha movimentação bancária de Fabrício Queiroz, então
assessor de Flávio, e a maneira como este, hoje senador, conduzia seu
gabinete de político e seus empreendimentos.
A defesa de Flávio Bolsonaro se agarrou mais uma vez à estratégia de
pedir para paralisar a investigação. O que o Ministério Público do Rio de
Janeiro levantou até agora exigirá muitos esclarecimentos por parte do
senador. Melhor fazê-los do que atacar o juiz, como fez o presidente. Se Jair
Bolsonaro perguntar ao seu ministro da Justiça, Sergio Moro, o ex-juiz
poderá contar das vezes que foi atacado por suas decisões na 13a Vara
Federal de Curitiba. É tudo muito parecido com o que agora Jair Bolsonaro
diz de Flávio Itabaiana, da 27a Vara Criminal do Rio.
Dezenas de funcionários do gabinete do então deputado não
compareciam ao local de trabalho, nunca pediram crachá, recebiam seus
salários dos cofres públicos e faziam depósitos rotineiros na conta do
assessor Fabrício Queiroz. Havia de tudo: personal trainer que tinha
emprego no outro lado da cidade, estudante de veterinária que estudava a
quilômetros do Rio, cabeleireira com trabalho fixo. Difícil é saber quem, de
fato, trabalhava naquele gabinete.
Nesta lista dos servidores de Flávio estavam a ex-mulher e a mãe do PM
Adriano da Nóbrega, acusado de fazer parte de um grupo de milicianos. O
mesmo Adriano foi duas vezes homenageado na Alerj, a pedido do
deputado Flávio Bolsonaro, uma vez com a Medalha Tiradentes quando o
PM já tinha sido preso por homicídio. Em conversa de WhatsApp
recuperada na investigação do MP do Rio entre Adriano e sua ex-mulher,
Danielle Mendonça, fica claro que ele era beneficiário de parte do dinheiro
que ela recebia. “Contava com o que vinha do seu também.” A própria
Danielle informa em conversa com uma amiga que sabia da origem ilícita
do dinheiro que por anos recebeu. Aliás, as mensagens trocadas entre ela e
Queiroz iluminam o esquema. Ele avisa que ela talvez tenha de ser
exonerada — do local onde nunca trabalhou na verdade — para não
comprometer Flávio, que ficaria mais exposto com a eleição para o Senado.
Dez pessoas da família da ex-mulher do presidente Bolsonaro recebiam
salário da Alerj e moravam em Resende. A explicação de Flávio era de que
se tratava de um escritório político no interior do estado. Todos numa única
cidade, todos parentes entre si e ligados a um dos casamentos do pai de
Flávio. A explicação não é crível.
Há ainda fatos estranhos na compra e venda de imóveis em Copacabana.
O vendedor Glenn Dillard entrega a Flávio imóveis por um valor mais
baixo do que os havia comprado e recebe dele, no mesmo dia, cheques no
suposto valor dos imóveis e mais R$ 638 mil em espécie, numa mesma
agência a metros da Alerj. Os imóveis são revendidos pouco mais de um
ano depois com valorização de 293% e 237%. Na época, o metro quadrado
em Copacabana subira 11%. Há também várias confusões contábeis na loja
de chocolates. E um cheque de R$ 16 mil de um outro PM depositado na
conta da mulher de Flávio.
O caso ainda é o desdobramento de um Procedimento Investigatório
Criminal, mas já tem muitas pontas enroladas. A reação do presidente de
atacar o juiz, os procuradores e os jornalistas é típica de quem está
perdendo a razão.
A popularidade do presidente chega ao fim do ano confirmando ser a
mais baixa de um governo em seu primeiro ano de mandato. Só se compara
à de Collor, que fez o sequestro dos ativos financeiros das famílias e das
empresas do país. O discurso de Jair Bolsonaro de combate à corrupção foi
atingido pelos “laranjais” do ministro do Turismo, que ele nunca demitiu,
pelas irregularidades no PSL, partido com o qual se elegeu e do qual saiu,
mas principalmente por sombras que cercam seu filho senador nessa
investigação. Quem acompanhou a vida política de Bolsonaro sabe que o
discurso da moralidade pública que ele usou nos palanques da campanha de
2018 foi apenas o que foi: uma estratégia eleitoral.
60. O JORNALISMO MUDA E
PERMANECE
12.1.2020
Não sei se ele tentou fazer uma brincadeira. Talvez não, porque o humor e a
ironia não são seus pontos fortes e são recursos de linguagem que exigem
bastante do cérebro. Seu histórico é mesmo o de agressões. O presidente
Jair Bolsonaro disse que os jornalistas são animais em extinção que
deveriam ser entregues ao Ibama. Suas ofensas frequentes aos repórteres na
porta do Palácio da Alvorada podem ser definidas como assédio. Como
fazem os valentões, ele sempre se cerca da sua claque, aposta na
impunidade e dispara seus mísseis cheios de machismo, homofobia,
mentiras e desprezo por valores democráticos.
Ele gostaria de ser um exterminador da imprensa. Principalmente daquela
que incomoda, que insiste, que esclarece, que investiga. Bolsonaro preferia
que o país tivesse apenas os seres amestrados que se definem como
jornalistas e são escolhidos por ele pela certeza de que nunca irão
incomodá-lo nem surpreendê-lo. Serão dóceis depositários de suas falas.
Esses, sim, se extinguirão quando ele deixar o poder, ou então irão atracar-
se como cracas ao novo poder que se formar.
O jornalismo continuará sendo indispensável e continuará a existir. O
papel institucional do bom jornalismo é requisito básico para o
funcionamento das instituições democráticas. O presidente confunde seus
desejos com prognósticos quando ameaça de extinção um ou outro órgão de
imprensa ou quando imagina o fim de toda uma categoria.
A imprensa passa por transformações intensas. Estão mudando o modelo
de negócios, a maneira como se apuram as informações, a forma como a
notícia é apresentada e a intensidade com que circula o fluxo de dados e
fatos. Alguns nichos de mercado desaparecem e outros surgem
constantemente. Nessa voragem, os jornalistas vão trocando de
equipamentos, aprendendo a usar novas técnicas, entrando e saindo de
plataformas. Mas não é o fim da atividade, a tecnologia é que acelerou o
ritmo de mudanças que sempre estiveram ligadas ao jornalismo. Mesmo
quando alguns órgãos fecham, reduzem-se os profissionais necessários para
executar uma tarefa ou velhas fontes de receita diminuem, não é o
jornalismo acabando. É a transformação com a qual a imprensa sempre
conviveu. Mudar é a nossa matéria. E, como seres inquietos que são, acho
que os jornalistas não ficariam felizes na placidez. Por mais inquietante que
seja este momento, os jornalistas estão testando as novas fronteiras das
possibilidades.
Nos tempos das redes sociais, há uma confusão e é nela que o presidente
está apostando. O transmissor do último fato pode não ser jornalista. Pode
até ser um elo importante na circulação da notícia, mas sobre cada evento
os repórteres profissionais se debruçarão com sua técnica de apuração e
checagem, separando, como sempre fizeram, os boatos das informações
sólidas e verificáveis. Bolsonaro se convenceu de que, se não ler os jornais,
ele ficará melhor. Receberá apenas os elogios e a postagem dos áulicos.
Governará mal qualquer um que se afaste das críticas ou tente apagá-las,
por autoritarismo ou incapacidade de conviver com a discordância.
Bolsonaro se convenceu também, equivocadamente, de que pode
continuar se comunicando através de transmissões em que aparece ao lado
de pessoas que são ornamentos, sem qualquer espaço para o contraditório. E
que os robôs comandados por gente da família ou pessoas contratadas com
dinheiro público serão suficientes para conduzir as tendências da opinião
pública. Eles criam os trending topics com suas repetições programadas e
acham que isso os transforma em criadores de realidades. O que eles fazem
circular são calúnias, difamações, mentiras, propaganda. Isso não é
jornalismo. O “gabinete do ódio” dentro do Palácio do Planalto sobrevive
porque até o momento as instituições não foram eficientes para defender a
sociedade brasileira dessa perigosa distorção, financiada com dinheiro
público.
O que existe de comum entre os jornalistas e o Ibama é que estariam
todos extintos, se dependesse apenas dele, Bolsonaro. Inclusive o órgão de
defesa do meio ambiente brasileiro. Muitas vezes este governo constrangeu
publicamente funcionários do Ibama ou de outros órgãos do Estado, que,
contudo, seguem fazendo seu trabalho. E, para o desgosto presidencial, os
jornalistas também permanecerão.
61. CAI O SECRETÁRIO, FICA O PROJETO
18.1.2020
Roberto Alvim caiu. O ex-secretário de Cultura era até caricato. Não apenas
plagiou Joseph Goebbels, o ideólogo de Hitler, como imitava também seus
trejeitos, seu penteado, e o reverenciava em objetos em sua sala. Alvim
estava à vontade na transmissão via Facebook da noite de quinta-feira (16),
ao lado do presidente Jair Bolsonaro. O presidente o elogiou como um
secretário de Cultura de verdade. No dia seguinte ele perdeu o cargo. Foi
derrubado pela imprudência de ter copiado uma fala de Goebbels. O projeto
que ele estava colocando em prática permanece, pois não era só dele. A
ideia de que a cultura possa ser limitada, censurada, dirigida e usada para
alavancar uma delirante e perigosa visão de mundo, de país e de poder
continua nos editais, nas decisões e na cabeça de muitos integrantes do atual
governo.
Goebbels era o ministro da mentira. Ele sabia a força estratégica da
mentira e a usou para deflagrar perseguições contra os adversários políticos.
Ele foi o agente que criou o ambiente social em que o nazismo prosperou e
que permitiu a mais hedionda das tragédias do século XX: o assassinato em
massa de judeus em campos de concentração. O que aconteceu no
Holocausto afeta cada pessoa, seja de que etnia ou credo for, seja em que
país estiver. É a lição mais cara que a História nos deixou. Não se brinca
com um crime dessa dimensão. Jamais. Não é aceitável ouvir o que
ouvimos da boca de um integrante do governo brasileiro. A Lei no 9.459, de
1997, pune com pena de dois a cinco anos a divulgação de símbolos do
nazismo. A liberdade de expressão é total numa democracia, porém isso
está na categoria do inadmissível.
O fato de Roberto Alvim ter sido demitido, após a natural comoção que
provocou no país, não elimina as muitas dúvidas que nos rondam. Ele não
tinha, evidentemente, a força que teve o ministro da Propaganda de Adolf
Hitler, mas a dúvida é: o que quer um governo em que um secretário se
sente à vontade para fazer a evocação de um notório genocida? E isso logo
depois de ser coberto de elogios pelo presidente da República?
“Ao meu lado, o Roberto Alvim, o nosso secretário de Cultura. Depois de
décadas, agora temos sim um secretário de Cultura de verdade. Que atende
o interesse da maioria da população brasileira. População conservadora e
cristã. Muito obrigado por ter aceito essa missão. Você sabia que não ia ser
fácil, né?”, disse Bolsonaro, tendo de um lado o então secretário e, de outro,
o ministro da Educação, Abraham Weintraub. Os dois braços de qualquer
projeto totalitário.
A transmissão inteira da quinta-feira à noite com Weintraub e Alvim foi
deprimente. O ministro da Educação defendeu, sendo ecoado pelo
presidente, as escolas cívico-militares como se fossem a única e milagrosa
solução para todos os complexos problemas da educação brasileira. Alvim
contou ao presidente que lançaria no final de fevereiro um edital de cinema.
“Cinema sadio, ligado aos nossos valores, aos nossos princípios.”
Tanto na live com o presidente quanto no vídeo sozinho em seu gabinete
em que declamou Goebbels, Alvim fez um movimento recorrente neste
governo, que é o de se apropriar politicamente do sentimento de família, do
amor à pátria e da devoção a Deus. Como se Deus, a família e o país fossem
monopólios do atual governo e só agora estivessem sendo defendidos. Essa
é a estratégia mais perversa para falar com uma parte grande da população,
capturar evangélicos, manipular as pessoas, como se este governo fosse a
encarnação dos valores do Cristianismo.
A arte, como disse a imensa Fernanda Montenegro, resistirá nas
catacumbas. Ela é múltipla, ela é diversa, ela explode, frutifica e
surpreende. Mas o que Alvim estava dizendo, quando foi interrompido, é
que existe um plano para despejar milhões em obras encomendadas. O que
Bolsonaro propôs na transmissão foi reescrever a História do Brasil, como
todos os projetos totalitários tentaram fazer. “Vamos contar a História
verdadeira do Brasil de 1500 até agora”, disse Bolsonaro ao lado de Alvim.
O ex-secretário repetiu: “Vai ser a maior política cultural do seu governo e,
ouso dizer, uma das maiores políticas de incentivo à cultura da História do
Brasil. É um edital que vai patrocinar em várias categorias obras inéditas.
Vamos escolher e lançar.” A cultura sob encomenda, a arte fabricada para
um projeto de poder, a História reescrita num governo que exalta
torturadores. No dia seguinte a esse show de horrores o secretário foi
demitido, mas todo o projeto ficou. A questão central é simples: Roberto
Alvim não estava só nem falava sozinho.
62. DAVOS MUDOU COM O CLIMA
21.1.2020
O ministro Paulo Guedes disse que a alta do dólar é boa para todo mundo.
A frase foi soterrada por outra ainda pior que acabou ganhando destaque.
Mas, do ponto de vista técnico, sobre o câmbio ele também estava errado.
Não há qualquer evidência de que o real desvalorizado produza
crescimento. O real subiu, por exemplo em 2015, de R$ 2,65 para R$ 3,90 e
a economia mergulhou na recessão. É um preço que tem impacto sobre
vários outros. O ideal é que ministros não estimulem especulações e que o
Banco Central faça intervenções mínimas apenas por razões técnicas e
pontuais.
A segunda declaração do ministro da Economia provocou reação
imediata por ter revelado preconceito social. “Empregada doméstica estava
indo para a Disneylândia. Uma festa danada. Peraí.” O que aparece nessa
fala infeliz é tão discriminatório que, evidentemente, provocou polêmica.
Um ministro da Economia deveria querer a prosperidade do país como um
todo, um liberal deveria se preocupar menos com as escolhas individuais,
um economista deveria olhar os números que não confirmam sua tese.
O preço mais difícil de entender — e prever — é o do câmbio: baixo, não
nos torna ricos; alto, não garante crescimento. Quando está sobrevalorizado
cria distorções e se for excessivamente desvalorizado, também.
Os exportadores sempre querem uma cotação mais alta porque isso
aumenta seus ganhos na exportação e ameniza os efeitos da falta de
competitividade da indústria brasileira. Muitos que produzem apenas para o
mercado interno também gostam do dólar alto, que encarece o produto
importado com o qual vão competir. O problema é que a moeda americana
saiu de R$ 1,80 em 2012 para R$ 4,30 agora, e não houve crescimento
sustentado das exportações do setor industrial. O Brasil precisa resolver
problemas estruturais que reduzem a competitividade dos manufaturados
com inovação e logística.
O salto do dólar aumenta alguns preços. Medicamentos, combustíveis,
certos alimentos e bens importados, como celulares. Alguns produtos e
matérias-primas, mesmo sendo exportados pelo Brasil, acabam encarecendo
porque há uma correlação entre preços internos e externos. O aço, por
exemplo. Os investimentos também ficam mais caros. Dos US$ 16 bilhões
importados pelo país em janeiro, 32% foram “insumos industriais
elaborados”, o maior item da pauta. Logo depois vieram os bens de capital,
com 22%. Peças e acessórios, equipamentos de transporte, somaram mais
16%. Esses dados mostram como o câmbio pode ter impacto sobre os
custos das indústrias e dos investimentos no país. Os bens de consumo,
como eletrônicos, ficaram em 13%. Quando o dólar está alto, empresas que
têm dívidas externas passam a ter um custo maior. A Petrobras é uma delas.
O dólar não deve ser manipulado nem para estimular o consumo nem
para contê-lo. Não deve ser elevado para empurrar as exportações e
proteger a indústria local nem deve ser mantido artificialmente baixo para
segurar a inflação. Isso é o que o Brasil aprendeu com erros de sua História
recente. Funciona melhor quando o câmbio é flutuante e o Banco Central
não quer defender uma cotação, alta ou baixa. E também é melhor quando o
ministro da Economia não explicita uma preferência, como fez Paulo
Guedes, ao dizer que o dólar alto é “bom pra todo mundo”. O BC teve que
entrar no mercado para conter o movimento especulativo que se formou por
causa da declaração.
Há erro técnico no que ele falou sobre o dólar. Mas isso é o de menos.
Não é o primeiro, não será o último ministro a errar nesse assunto. O pior é
a visão revelada de que um grupo de trabalhadores, pela natureza do seu
trabalho, não deveria usufruir de certos prazeres. Paulo Guedes deveria
pensar antes de falar.
68. NÃO SE ENGANEM: NADA DISSO É NORMAL
16.2.2020
A DEMOCRACIA NA ARMADILHA
A democracia brasileira está numa armadilha. Autoridades de outros
Poderes tentam manter o decoro diante de um presidente que as afronta e,
dessa forma, se enfraquecem. Mais fracas ficariam se imitassem o
destempero presidencial. Os governadores reagem aos ataques de Bolsonaro
com cartas conjuntas, mas o sentido delas não chega à população. A
imprensa segue a pauta aleatória jogada sobre ela a cada manhã de desatino
do mandatário. Os ministros têm medo do presidente e só ganham prestígio
os que imitam o estilo do chefe.
Os eventos se repetem. Os ministros do TSE reagiram em nota contra a
acusação do presidente de que houve fraude na eleição de 2018. A ministra
Rosa Weber superou a alergia que tem a entrevistas e falou com os
jornalistas. Isso é suficiente? Não. Se algum cidadão sabe de um crime, tem
que comunicá-lo ao Ministério Público. Bolsonaro disse: “Minha
campanha, eu acredito que, pelas provas que eu tenho em mãos, que vou
mostrar brevemente, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu entender
teve fraude. E nós temos não apenas palavras, nós temos comprovado,
brevemente eu quero mostrar, porque nós precisamos aprovar no Brasil um
sistema seguro de apuração de votos. Caso contrário, passível de
manipulação e de fraudes.”
Ficou claro, apesar da costumeira oscilação. Ele disse que tem provas. E
depois afirmou que, “no seu entender, houve”. Horas depois, desconversou:
“Eu quero que você me ache um brasileiro que confia no sistema eleitoral.”
Essa é uma das artimanhas que Bolsonaro usa. Para agitar os seguidores
virtuais e alimentar os bots, ele joga uma isca: “Houve fraude.” Para as
instituições, diz que “confia no sistema eleitoral”. E as autoridades
respondem com uma nota formal: “Eleições sem fraudes foram uma
conquista da democracia” e há “absoluta confiabilidade do sistema.” A
resposta foi divulgada, mas o tom é fraco e incapaz de neutralizar o efeito
do vírus da dúvida que o presidente quis, deliberadamente, espalhar.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, formulou uma resposta
para agradar a todos. Disse que não recebeu qualquer prova de fraude, no
entanto defendeu a “implantação da caixa coletora do voto impresso”.
O assunto atravessou um céu cheio de nuvens carregadas por crises
externas, incompetência do governo em diversas áreas, PIB estagnado,
indícios de relação da família presidencial com a fábrica de fake news e
conflitos criados pelo governo com o Congresso. O assunto da suposta
fraude eleitoral surgiu assim extemporâneo porque era uma manobra do
presidente para criar outro centro de atenção. Ele quis também se colocar
como vítima de uma suposta conspiração e, dessa forma, enfraquecer a
confiança no voto.
No episódio da briga de Bolsonaro com os governadores, seu truque
funcionou. Ele declarou que poderia retirar os impostos federais sobre os
combustíveis. Não poderia. São R$ 30 bilhões em um cofre exaurido. Ainda
assim desafiou os governadores, dizendo que retiraria se eles também
tirassem os seus. Repetiu isso em todos os canais de divulgação que usa e
por vários dias. A equipe econômica ficou muda, apesar de, nos bastidores,
admitir que seria impossível abrir mão dessa receita. Grande parte da
população acredita que ele só não reduziu os preços porque os governadores
não deixaram.
Na crise do Orçamento, a manobra foi tortuosa. O Executivo fez um
acordo verbal com os líderes do Parlamento, o general Heleno acusou o
Congresso de chantagem, houve a crise, entraram os bombeiros, foi
formalizado o acordo nos moldes que havia sido negociado. O presidente
garantiu que não fez o acordo que, de fato, fez. Tudo isso tendo como pano
de fundo uma manifestação contra o Congresso estimulada pelo presidente
e financiada por seus amigos empresários.
Na quinta-feira (12), com a manifestação murchando, ele foi à TV em
cadeia nacional. Era para falar sobre a pandemia gerada pela disseminação
do coronavírus, mas a esse tema Bolsonaro dedicou apenas 82 palavras.
Depois, disse que a recomendação das autoridades é evitar grandes
concentrações. A partir daí, dedicou 120 palavras à defesa da manifestação,
apesar de pedir que ela fosse “repensada”. Em outra transmissão disse que o
“recado”, ou seja, a manifestação, havia sido dado ao Congresso. Nas
democracias, o povo é livre para ocupar a rua. Mas governos não estimulam
atos contra outros Poderes.
As instituições olham as leis, seguem os rituais, respeitam o decoro.
Bolsonaro pisoteia onde bem entende. E a democracia brasileira vai caindo
na armadilha.
76. AÇÃO ATRASADA E INSUFICIENTE
19.3.2020
Jair Bolsonaro é o pior presidente que poderíamos ter para nos guiar na
travessia desta tempestade sem precedentes. Ele sempre foi menor do que a
cadeira que ocupa, mas agora revela, em cada ato, palavra e decisão, que
conspira contra a saúde da população. Não é uma questão de gostar ou não
do governante. A análise objetiva leva à conclusão de que ele hoje,
minimizando perdas humanas e econômicas, é um obstáculo a que o país
supere a turbulência provocada pela covid-19.
Nas últimas semanas, ocorreram sucessivos episódios completamente
desviantes. Bolsonaro açulou manifestação contra o Congresso, foi
cumprimentar pessoalmente manifestantes em época de pandemia e que
carregavam faixas hostis a lideranças políticas, fez declarações bizarras e
mal informadas sobre as medidas de proteção contra a pandemia. Estimulou
brasileiros a não seguirem a orientação das autoridades sanitárias e
enquadrou o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que ficou no
governo depois de “adaptar suas opiniões”, para usar a expressão da ex-
ministra Marina Silva. Bolsonaro é o soldado que marcha errado no
batalhão dos governantes mundiais. Todos os outros, com maior ou menor
rapidez, entenderam que nenhum líder pode pôr em risco a vida de seus
concidadãos.
Bolsonaro compreende a questão e os riscos. O problema é que ele não se
importa com o perigo que estamos correndo. O centro de suas atenções é
ele próprio e seus filhos. Vê em cada sombra um adversário, em cada
discordante, um traidor, em cada decisão de outra autoridade, uma
conspiração contra o seu poder.
Além dessa mentalidade, o presidente também está fazendo um cálculo
político. Acha que quando o coronavírus passar, ficará o gosto amargo da
crise e ele poderá jogar todo o peso da recessão sobre os seus adversários
políticos. Sobre as vidas perdidas, ele dá uma resposta em português
claudicante: “Algumas mortes terão, mas acontece, paciência.” Bolsonaro
só pensa em reeleição e é capaz de pôr a saúde dos brasileiros em risco para
chegar a 2022 com capacidade de renovar seu mandato.
Renovar o mandato para fazer o quê? Bolsonaro não governa, nunca se
aprofunda nas decisões a serem tomadas, não tem o gosto de estudar as
soluções para os problemas nacionais. Seu pensamento é como a sua fala:
sincopado, non sequitur, rasteiro. Chances para se tornar uma pessoa mais
capaz de entender o país que governa ele teve. Foi de uma das melhores
escolas do Exército, passou 28 anos na Câmara, onde há excelentes técnicos
sobre qualquer assunto que se queira entender. Não liderou, não foi
respeitado, não relatou matéria importante. Passou o tempo parlamentar em
agressões aos colegas e à História, em defesas corporativas, em miudezas.
Foi eleito para governar o Brasil e poderia ter entendido qual é o
comportamento correto de uma pessoa pública, mas continuou com seu
circo de horrores diário. A coleção dos absurdos que tem dito e feito é
inesgotável. O país foi se acostumando a ter um presidente com maus
modos, foi se acostumando a se perguntar: qual foi a última de Bolsonaro?
Várias vezes ele atravessou linhas intransponíveis na democracia. Ele e seus
filhos. Um filho, vereador do Rio, senta-se à mesa com ministros e dá
ordens no Planalto, para citar um exemplo. Outro filho, o deputado Eduardo
Bolsonaro, ofende nosso maior parceiro comercial, a China, o chanceler o
defende, e o presidente tem que tentar arrumar a bagunça. O país foi
aceitando o inaceitável. Nesta pandemia, no entanto, Bolsonaro tem feito
muito mais do que quebrar normas de conduta. Ele hoje representa uma
ameaça concreta à saúde pública.
O país está lidando com um inimigo que contamina, sufoca e mata. É da
vida de pessoas que se trata. Bolsonaro sistemática e reiteradamente
subestima o perigo que nos ronda, quando deveria ser o primeiro a se
perguntar o que é possível fazer para proteger ao máximo as pessoas.
Quando as instituições não reagem a tantos abusos, a democracia começa a
morrer, o que sempre foi, no fundo, o seu projeto maior. Admirador
confesso da ditadura e de torturadores, Bolsonaro não acredita, nem
respeita, os limites constitucionais. Para ele, são um estorvo. A grande
pergunta é o que mais o país aceitará. E quais as cicatrizes que este tempo
deixará na democracia brasileira.
79. PELA ECONOMIA, É MELHOR PARAR
1.4.2020
Quando o Brasil atravessou, ontem, a fronteira dos mil mortos por covid-
19, o presidente Jair Bolsonaro saiu para passear novamente. Foi a uma
padaria, a uma farmácia, passou pelo Hospital das Forças Armadas onde,
debochando dos jornalistas, disse que foi fazer “teste de gravidez”. Ele é
coerente. Tem tratado a pandemia com a displicência de sempre. Seus atos e
palavras nos últimos trinta dias mostram a constância da mensagem contra
o isolamento social e as recomendações das autoridades de saúde.
No dia 10 de março, na viagem aos Estados Unidos para falar a uma
plateia de empresários, Bolsonaro declarou que “a questão do coronavírus
não é isso tudo que a grande mídia propaga” e que muito é “fantasia”. Na
volta, descobriu-se que em sua comitiva havia 23 infectados. No domingo,
dia 15, ele foi à manifestação contra o Congresso e o Supremo,
cumprimentou inúmeros manifestantes, desprezando os cuidados para
prevenir o contágio. O comportamento mostrava desprezo às orientações
médicas e o ato era um ataque à democracia. Ele compartilhou vídeos de
manifestantes de várias partes do Brasil exibindo faixas que não deixavam
dúvidas sobre a natureza antidemocrática das mensagens.
No dia 17, houve a primeira morte confirmada por coronavírus no país.
Rio de Janeiro e São Paulo decretaram emergência. E ele: “A economia
estava indo bem, mas esse vírus trouxe alguma histeria. Existem alguns
governadores que estão tomando medidas que vão prejudicar nossa
economia.” No dia seguinte, disse que não haveria colapso na saúde e
chamou o governador João Doria de “lunático”. Defendeu a cloroquina, que
deveria, segundo prescreveu, ser distribuída a todos os infectados.
Depois, em um pronunciamento no dia 19, pediu o fim do confinamento,
acusou governadores de histeria, pediu a volta das aulas, porque “raros são
os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos”, e completou: “Pelo
meu histórico de atleta, caso eu fosse infectado pelo vírus, não precisaria
me preocupar, nada sentiria ou seria acometido de uma gripezinha, um
resfriadinho.” Uma fala reveladora de que ele não pensa no que pode
acontecer ao país, mas apenas a ele mesmo.
Bolsonaro mostrou neste um mês — do dia 10 de março ao dia 10 de
abril —, várias vezes, desprezo pela vida humana. No dia 26, ao chegar ao
Alvorada, debochou: “O brasileiro tem que ser estudado, ele não pega nada.
Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo?” No dia
seguinte afirmou: “Algumas mortes terão, paciência.” E, depois, em
entrevista ao apresentador José Luiz Datena: “Alguns vão morrer? Vão, ué.
Essa é a vida.” Em seguida, no dia 30, no mesmo trôpego linguajar: “Vocês
acham que gente morrerão? Vai morrer gente.”
No dia 31, ele voltou à televisão para outro pronunciamento e alguns se
iludiram com uma suposta mudança de tom. Houve, aqui e ali, alguma frase
que refletia a realidade, como a de que “esse é o maior desafio da nossa
geração”. Foram trechos inseridos pelos conselheiros militares do
presidente, que passaram o dia tentando salvar o pronunciamento que, pela
manhã, ele prometera fazer. Seu objetivo era distorcer as palavras do
diretor-geral da OMS.
No dia 1o de abril, em mais um ato da sua campanha de acusar os
governadores pela crise econômica, ele postou aquele vídeo que transmitia
uma informação falsa de desabastecimento na Ceasa de Belo Horizonte. No
mesmo dia, comparou o coronavírus à chuva. “Você vai se molhar, mas não
vai morrer afogado.”
Depois de tantas palavras de menosprezo à vida, é difícil acreditar na
sinceridade do que ele disse em novo pronunciamento esta semana, quando
se solidarizou com as famílias das vítimas. Na verdade, o objetivo era
defender a cloroquina, usando o argumento de que o médico Roberto Kalil,
diretor-geral do Centro de Cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, a usara.
Durante todo esse mês, ele “fritou” em público o ministro da Saúde, Luiz
Henrique Mandetta, desautorizando diariamente tudo o que ele recomenda e
todos os alertas que faz. Neste mês em que o Brasil entrou em espiral de
infectados e mortos e se assusta com a dimensão ainda desconhecida da
pandemia, tudo o que o presidente da República fez foi brigar com
governadores, minar seu ministro, ficar de picuinhas, receitar remédio
duvidoso. Na crise, Bolsonaro provou que não sabe exercer o cargo de
presidente da República.
82. ERROS E ACERTOS NO ESPELHO DA HISTÓRIA
12.4.2020
O que fizemos de certo como país e o que não fizemos aparecem agora
diante de nós. O coronavírus trouxe um enorme espelho onde vemos com
lucidez aguda os acertos e os erros. A democracia criou o SUS, formulou
programas de transferência de renda e fez um cadastro dos mais pobres.
Essa é a base para o trabalho de proteção dos brasileiros. A desigualdade, a
falta de moradia decente, os esgotos não tratados e a má distribuição da
água ameaçam transformar esta pandemia numa enorme tragédia social. E
são os pobres e os negros os mais ameaçados. Como sempre.
O Brasil tem feito a si mesmo perguntas profundas neste tempo extremo.
Uma delas é: onde estão os invisíveis? O país sempre conviveu com um
fosso social imenso que separa os incluídos dos excluídos. Os com e os
sem. No mercado de trabalho, sempre houve os com carteira e os sem
carteira. Dentro e fora das leis trabalhistas. Os sem carteira se dividem em
vários grupos: trabalhadores informais, os que trabalham por conta própria,
os empregadores sem CNPJ, os desempregados, os desalentados, os nem-
nem, os subutilizados. É uma multidão. São, evitando dupla contagem, 64,8
milhões. É a soma de toda a população da Argentina, de Portugal e da
Áustria. Esses brasileiros, de alguma forma, iam vivendo e gerando a
própria renda. O choque de realidade que a pandemia provocou os trouxe
para a cena principal. Quem são, onde estão, como fazer um caminho para
lhes entregar os recursos públicos? Dúvidas do tempo presente.
Tudo o que foi feito nos governos democráticos, nestes últimos 35 anos,
ajuda muito. É o que temos. Não é suficiente. O governo Sarney começou
com o programa do leite, evoluiu para cestas básicas. Betinho avisou que a
fome de outro brasileiro era inaceitável e nos ensinou a solidariedade.
Cidades testaram a transferência de renda vinculada à presença da criança
na escola, o Bolsa Escola. Para isso, foi necessário fazer a ficha dos
beneficiários. Campinas, Distrito Federal, Belo Horizonte passaram a criar
cadastros. Outras cidades fizeram o mesmo. Depois veio o Bolsa Escola
Federal, no governo Fernando Henrique, que fez o primeiro cadastro geral.
Em seguida, o Bolsa Família, no governo Lula, que unificou programas
federais, ampliou a transferência e incluiu mais brasileiros no que se
chamou de Cadastro Único. É incompleto, mas é a base que está sendo
usada agora no auxílio emergencial.
Para ampliá-lo, o governo pede, em meio a essa crise, que estejam todos,
até as crianças, com os seus CPFs em dia. Essa exigência coloca os pobres
em risco de vida. A mãe ou o pai de família precisam ir até um órgão
público e aglomerar-se para registrar aquele pequeno ser humano como
contribuinte. Pronto. Se é um pagador de impostos, então ele passou a
existir. Essa exigência seria apenas surreal, não fosse desumana. Na fila,
eles podem se infectar. A burocracia estatal, um dos nossos defeitos mais
velhos, de novo coloca pedras no caminho.
Derrubar a superinflação indexada deixada pelo regime militar, e que
virou hiperinflação, foi uma saga que consumiu dez anos de esforços. O
real permitiu que mais brasileiros tivessem acesso a bens de consumo. A
privatização produziu uma enorme inclusão no mundo da telecomunicação.
Hoje, é com esses celulares em mãos que os pobres estão tentando
inscrever-se no auxílio emergencial. Na venda das teles, criou-se um fundo
cujo dinheiro deveria ter sido usado para informatizar todas as escolas
públicas e universalizar a banda larga. É o Fust, Fundo de Universalização
dos Serviços de Telecomunicação. Arrecada R$ 1 bilhão por ano e tem R$
20 bilhões em caixa. O governo acaba de decretar o seu fim. Se a tarefa do
Fust tivesse sido executada, seria possível hoje ter todas as crianças na
escola, ainda que remotamente.
Fizemos casas para os pobres e nem de longe foi suficiente. Nas favelas o
risco é aterrorizante. O serviço de água tratada é irregular. Como lavar as
mãos? Nas moradias não há espaço. Como isolar algum eventual infectado?
As falhas na política habitacional e no planejamento urbano cobram a
conta. O SUS espalhou-se pelo país e com todas as suas falhas é a melhor
rede que temos para acolher os brasileiros.
O que fizemos de certo nos 35 anos de democracia nos ajudará nesta
emergência humanitária. O que deixamos de fazer cobrará uma conta alta
demais. Que a dor desta travessia nos ensine.
83. BOLSONARO EM DIA DE MÚLTIPLOS ERROS
17.4.2020
Jair Bolsonaro nunca foi contra a corrupção e nunca foi um democrata. Mas
usou a bandeira que estava em alta e foi eleito dentro das regras da
democracia. Os que acreditaram que ele era o melhor antídoto contra a
corrupção escolheram o autoengano. Os que apostaram que ele respeitaria
as instituições têm provas diárias de que erraram. A elite financeira que o
abraçou, os mais escolarizados que foram para a rua por ele, o juiz-símbolo
que o avalizou não podem mostrar surpresa. Na escala de valores de certos
liberais, mais importante é a promessa de liberdade econômica do que a
proteção dos direitos civis. Isso ficou claro na ditadura de Pinochet, quando
o Chile enterrava seus mortos e os jovens economistas de Chicago
comemoravam o trabalho que faziam na economia.
A pior complicação é agora. Bolsonaro foi eleito na democracia, mas não
a respeita e conspira contra ela diariamente. A crueldade extrema do
presidente é escalar a tensão institucional quando o país, atônito, tenta se
concentrar no que fazer diante da pandemia que ceifa milhares de vidas.
Vivemos uma conjuntura em que o presidente da República torna muito
maior o peso que recai sobre nós. Já não basta viver o que vivemos —
fechados em casa, assustados, enlutados, hospitalizados —, ainda é preciso
tolerar um governante infernizando o cotidiano.
Bolsonaro disse que por pouco não houve uma crise institucional,
insinuando que poderia não cumprir a ordem judicial e dar posse a
Alexandre Ramagem na PF. E falou avisando que pode retornar ao
confronto e passando a ideia de que só não descumpriu a ordem judicial
porque decidiu dar uma segunda chance. O ataque que ele fez ao ministro
do STF Alexandre de Moraes foi explícito e ofensivo. O presidente deu um
ultimato à Justiça. Depois, na transmissão da noite, disse que tinha feito
apenas um desabafo, sem ofender ninguém. As instituições brasileiras têm
aceitado o desdito diante dos piores ditos. Assim, Bolsonaro fica sempre
impune. Para seus apoiadores ele aparece como vítima, aquele que não
consegue governar porque o Supremo não deixa, o Congresso chantageia, a
mídia persegue. Apresenta-se como quem luta contra “o sistema”. Tudo
levando à conclusão de que, para bem governar, o presidente precisaria de
superpoderes, de um AI-5, como pediram os manifestantes que ele apoiou.
Essa é a única ideia na qual Bolsonaro acredita. Fortalecer o “quem manda
sou eu”.
Bolsonaro conspira contra a democracia à luz do dia diante de todos.
Alguns líderes políticos pedem paciência, como se ele fosse apenas uma
pessoa de maus modos. Não. Ele tem maus propósitos. As Forças Armadas
aceitaram compartilhar o poder e passaram a viver na ambiguidade. Nos
trinta anos de democracia, os militares fizeram uma trincheira: defenderiam
o período autoritário como necessário. Protegido o passado, eles se
dispunham a cumprir suas funções dentro dos marcos democráticos. A atual
geração de oficiais-generais aceitou o risco de misturar-se ao governo
Bolsonaro. O presidente usa a ideia de que as Forças Armadas estão ao seu
lado. Alguns fazem críticas ao presidente. Mas só intramuros. Os generais
que trabalham diretamente com ele ficam satisfeitos quando conseguem
evitar um ato tresloucado. Em seguida, ele comete outro. Os militares se
confortam com a tese de que seria pior se não estivessem lá. Não notam o
que estão avalizando. Garantem que não aceitarão uma “aventura”. Não
percebem que estão viabilizando a aventura.
A questão é como proteger a democracia brasileira nessa armadilha na
qual o país está. Não há outro caminho que não seja o do impedimento. O
presidente precisa ser impedido através das leis que regem esse processo,
que sempre foi e sempre será traumático, mas já foi usado por muito menos
do que Jair Bolsonaro tem feito. Nem o Judiciário nem o Congresso podem
ter medo neste momento. Bolsonaro já cometeu inúmeros crimes de
responsabilidade. A lista é longa e os juristas e políticos a conhecem. A
ideia de que “não há clima” para impeachment é muito confortável para
todos os que querem eximir-se das responsabilidades que têm.
Se ele não tivesse afrontado as leis tantas vezes e estivesse somente
atormentando o país com crises diárias em meio a uma pandemia, já seria
motivo suficiente para se pensar no seu impeachment. Bolsonaro é um
governante que escolheu agravar todas as crises enquanto o país trava uma
luta de vida ou morte.
89. A ESPERANÇA, O POETA E O TEMPO
5.5.2020
Seria só insólita se não fosse uma absurda pressão de um Poder sobre outro.
A marcha para o Supremo foi uma total quebra de protocolo da relação
entre os Poderes. E tudo aconteceu num rompante. O presidente decidiu em
meio a uma conversa com empresários e o ministro da Economia, Paulo
Guedes; e o advogado-geral da União, José Levi, ligou para o presidente do
STF, o ministro Dias Toffoli, dizendo que o presidente da República queria
ir para lá com empresários e alguns ministros. E saíram andando pela Praça
dos Três Poderes. Os ministros do Supremo entenderam o gesto como uma
tentativa de Bolsonaro de responsabilizar a Justiça pela crise.
Alguns ministros que acompanharam o presidente admitiram depois que
ficaram constrangidos com a cena da qual tiveram de participar. No
Supremo, outros ministros também discordaram da reunião. O próprio Dias
Toffoli achou que não tinha como recusar. A grande questão é: o que
Bolsonaro queria com o gesto?
— Há várias leituras possíveis. Pode-se entender que ele quis dizer para
os empresários que a Justiça não está deixando a retomada da economia em
razão de suas decisões. Na verdade, eu acho que é insegurança. O governo
não sabe o que fazer e quer passar a batata para o outro lado da praça. Mas,
sem protocolo, sem coordenação, sem planejamento e sem segurança
sanitária coordenada nacionalmente, não é um juiz que vai decidir isso —
resume um dos ministros do STF.
O evento causou irritação porque lembrava uma tentativa de intimidação.
E o presidente levou até o filho investigado que já foi beneficiado, ainda
que temporariamente, por uma decisão do próprio ministro Dias Toffoli,
quando suspendeu os inquéritos com base no Coaf a pedido da defesa de
Flávio.
O que foi falado lá no Supremo tinha várias incorreções. “Estão aqui
grandes empresários que representam mais de 40% do PIB”, declarou
Bolsonaro.
Errado. A indústria de transformação reúne 11% do PIB, e eles, do grupo
denominado Coalizão Indústria, dizem que são 40% da indústria. Isso
significa 4,5% do PIB. Não é pouco, são setores importantes para a
economia, mas a ordem de grandeza é bem diferente da que o presidente
anunciou. “Economia também é vida”, prosseguiu o presidente Bolsonaro.
Lá fora, ele repetiu essa ideia: “Dizem que a economia deixa pra lá, que o
importante é a vida. Não é assim, não.”
O líder do grupo, Marco Polo de Mello Lopes, que representa a
siderurgia, disse que a indústria enfrenta duas crises: a da covid e a da
queda da demanda, “fruto, evidentemente, das decisões de fechamento por
parte dos estados”. Ou seja, tudo o que Bolsonaro gosta de ouvir é que a
culpa é dos governadores. O presidente da Abrinq, Synésio Batista da
Costa, alertou que há risco “de morte do CNPJ” e argumentou que “o
mundo inteiro está operacional, até a China”. Ora, as retomadas que deram
certo esperaram a redução das mortes e das infecções.
Em todo o desarrazoado evento houve várias frases infelizes que
pareciam valorizar mais a economia do que a vida humana. Evidentemente
a economia é importante, mas a normalidade não pode ser baixada por
liminar. O lobby industrial não pode desembarcar em Brasília, juntar-se ao
presidente, ao ministro da Economia, a ministros militares, e marchar sobre
o Supremo para dizer que vai haver um colapso se as atividades não forem
liberadas agora.
O país está tendo uma média de seiscentas mortes por dia e já passamos
de 9 mil mortos, além da nossa vasta subnotificação. Lamentaram a morte
do CNPJ, falaram de indústria na UTI, usaram figuras de linguagem de mau
gosto. E num gesto inútil, porque o que precisa acontecer para que a
economia possa voltar o mais rapidamente possível a funcionar é o governo
governar. Foi isso mais ou menos que o ministro Dias Toffoli disse.
Ter que fazer todo esse carnaval para ouvir de um ministro do Supremo
que o governo precisa falar com os governadores e os prefeitos, que precisa
criar um comitê de crise, é vexatório. Isso é o básico, já deveria ter sido
feito. A coordenação entre os entes federados e a União, em meio a uma
pandemia em que cemitérios e hospitais entram em colapso, era o mínimo
que se esperava desde o primeiro momento.
O ministro Paulo Guedes, com suas contas improváveis, listou coisas
como “os Estados Unidos desempregaram 25 milhões de pessoas em cinco
semanas e nós preservamos 5,5 milhões de empregos”. E, mais uma vez,
prometeu que “o Brasil vai surpreender o mundo”. Mais do que já está
surpreendendo?
92. O MAL AVANÇA NAS SOMBRAS
10.5.2020
Um chefe de Estado demonstra sentimento quando o seu povo sofre, vai aos
locais onde a tragédia acontece, conversa com atingidos e os conforta. Um
governante mantém uma atitude de seriedade quando o país é alvejado por
alguma catástrofe. Tem palavras de encorajamento para os que estão à
frente da batalha socorrendo os enfermos. O que parece ser apenas
protocolo faz parte do conjunto de obrigações da pessoa pública. Isso não
resolve o problema, mas impacta muito mais do que se imagina a tomada de
decisões. Só tem chance de acertar o líder que entende a dimensão da dor
coletiva.
A comunicação de quem governa não pode ser tocada por um miliciano
digital. Tem que ter sobriedade e propósito. Não pode ser uma corrida por
likes e lacrações. A comunicação é a expressão do próprio Estado e por isso
tem de ser dirigida por pessoas que evitem os ruídos e as agressões, as
omissões e os conflitos. Mas nada substitui a palavra do líder, se ela for
sincera e tiver relação com os atos praticados.
Ir até o local em que há sofrimento é a norma de conduta mais elementar
que um governante tem de seguir. Não estar presente simboliza desprezo
pelos governados. Normalmente, os que visitam o povo em seu sofrimento
entendem a urgência da tomada de decisão. A pessoa pública conseguirá
dialogar apenas com alguns e ver somente uma fração do que acontece, mas
algumas histórias costumam falar por muitas e por isso, ao sair do casulo
onde os áulicos lhe dizem que está tudo certo, o governante precisará ter
ouvidos para ouvir e aproveitar a chance de ver com os próprios olhos.
O Brasil se acostumou à dor sem consolo. Aceita que o presidente faça
piada quando a pandemia mata mais de mil pessoas num mesmo dia. Na
piada rimada do presidente — “quem é de direita toma cloroquina, quem é
de esquerda, tubaína” — não há apenas mau gosto. Há perversidade. Na
terça-feira (19) em que ele fez a blague, houve 1.179 mortes por
coronavírus no país. Bolsonaro parece querer exibir a indiferença como se
tivesse orgulho dela.
De vez em quando alguém tenta entender o tamanho do acontecido
calculando quanto as mortes representariam em quedas de avião — e são
vários os aviões por esse critério que caem diariamente no Brasil —, ou
usando métricas de outros desastres para apresentar uma dimensão da
realidade. Isso é importante para que não se fique anestesiado diante da
repetição diária dos eventos. Há gente atrás de cada número, como nos
lembra o projeto “Inumeráveis”, o memorial digital das vítimas de covid-
19.
São inumeráveis as dores que atingem as famílias, inumeráveis as
aflições de quem teme ser o próximo ou que o mal ameace as pessoas
queridas. Inumeráveis as noites maldormidas no Brasil, nestes meses
difíceis. Inumeráveis as horas de angústia de quem luta por um leito em
hospital. Contudo, seguimos usando números para contar as vítimas de cada
dia e, assim, dimensionar o sofrimento do país. Cada pessoa é única para os
seus. E depois que o registro da perda deixar de ser notícia, a família
atingida passará anos carregando as cicatrizes.
O ser humano foi dotado da virtude da empatia. O sofrimento não precisa
ser pessoal para que cada um o sinta de certa forma e consiga se imaginar
na pele do outro. Isso nos fez gregários. Assim nasceram as sociedades, os
povos se organizaram, os países foram constituídos. Nessa ideia se inspiram
as religiões. A cristã vai além e pede que entendamos o sofrimento do
semelhante. Avisa que é preciso amar o próximo.
O presidente do Brasil nos revela até que ponto pode chegar a
insensibilidade ao sofrimento. Se o “E daí?” dele foi um tapa na cara do
país, a piada da cloroquina/tubaína, seguida da gargalhada no dia dos mil
mortos, foi inqualificável. O dicionário da língua portuguesa parece gasto.
As palavras andam fracas demais para qualificar o comportamento adotado
por Jair Bolsonaro diante da dor dos brasileiros.
Quando tudo isso passar — e tudo isso passará — nós olharemos para
trás e não acreditaremos que fomos capazes de tolerar este tempo extremo.
Veremos com espanto o pesadelo coletivo que atravessamos sem o amparo
de palavras de conforto de quem o país escolheu para o posto mais alto da
administração. Os erros de gestão terão levado muitas pessoas à morte, mas
nem poderemos saber que vidas teriam sido poupadas. Muitos serão os
filhos do talvez. Haverá, então, a batalha das versões, e é apenas nela que
pensa Jair Bolsonaro.
99. BRASIL À DERIVA NO MEIO DA TRAGÉDIA
23.5.2020
A democracia corre riscos no Brasil? Essa foi a pergunta que fiz para o
historiador e escritor José Murilo de Carvalho. Ele respondeu: — Corre.
Era difícil imaginar uma resposta assim tão direta tempos atrás.
— Até o início do ano, o risco era pequeno, mas está crescendo, embora,
por enquanto, em ritmo menor do que o coronavírus.
Autor do clássico Forças Armadas e política no Brasil, que acaba de ser
relançado, José Murilo acredita, porém, que dificilmente Marinha e
Aeronáutica apoiariam qualquer ruptura da ordem.
Ele não está falando — nem se pensa — em um golpe como o de 1964,
que aconteceu em outro contexto histórico. Contudo, acha que o artigo 142
da Constituição tem um “caminho aberto para interpretações conflitantes”.
Dos muitos sinais dos últimos dias dados por militares que estão no
governo, José Murilo considera mais grave o episódio envolvendo o general
Augusto Heleno, até porque foi respaldado pelo ministro da Defesa: — A
posição do general Heleno é, sem dúvida, a que mais preocupa, por deixar a
entender uma ameaça de intervenção. Pode, em parte, ser atribuída a seu
temperamento, mas a nota que distribuiu no dia 22 de maio é ameaçadora.
Pode ser interpretada como referência ao que a Constituição diz sobre o
papel das Forças Armadas como garantidoras dos Poderes constitucionais,
isto é, como um superpoder, como Corte Supremíssima.
Na nota, o general ameaçou o Supremo de “consequências
imprevisíveis”, caso o celular do presidente Bolsonaro fosse apreendido nas
investigações do inquérito sobre a interferência política promovida pelo
presidente na Polícia Federal. A Constituição, explica o historiador, diz que
as Forças Armadas estão sujeitas à autoridade do presidente da República e
acrescenta que elas se destinam “à garantia dos Poderes constitucionais”.
— Há aí uma enorme dificuldade: como [as Forças Armadas podem]
estar sujeitas a um Poder e, ao mesmo tempo, garantir os três? É caminho
aberto para interpretações conflitantes e dá margem a declarações
ameaçadoras como a do general Heleno. Ele faria a mesma ameaça se fosse
para defender o Congresso e o STF contra os ataques do chefe do
Executivo?
Ele lembra que na história recente esse é o segundo episódio que tem o
Supremo como alvo:
— É irônico. O general Villas Bôas fez ameaça na véspera do julgamento
de Lula no Supremo. Agora, o general Heleno ameaça o mesmo Supremo
por, supostamente, perseguir o presidente.
Esses riscos extemporâneos que aparecem no país lembram uma máquina
do tempo que nos tenha levado para mais de meio século atrás. Até porque
quem presta atenção nas falas bolsonaristas fica com a impressão de que
ainda estamos naquele mundo. Para um bolsonarista raiz, qualquer pessoa
que discorde do presidente é um “comunista”. José Murilo trata de pôr o
passado onde ele deve ficar. No passado.
— Certamente nada como em 1964. Não temos um dos principais
condicionantes de então, a Guerra Fria. O comunismo era, na época, uma
realidade no mundo com adesões no Brasil, inclusive nas Forças Armadas.
Hoje é conto de carochinha. A esquerda, se podemos chamar o PT de
esquerda, está desarvorada. Grupos civis armados, como os de Brizola em
1964, hoje despontam entre os apoiadores radicais do presidente. Seria
curioso se, para garantir a lei e a ordem, e de acordo com a Constituição, o
Supremo convocasse as Forças Armadas para combatê-los.
Se, ao mencionar “ruptura”, o deputado Eduardo Bolsonaro está falando
em endurecimento do regime, o que aconteceu em alguns países, por
exemplo a Hungria, isso teria o apoio dos militares?
— Minha aposta é que não. Marinha e Aeronáutica dificilmente
apoiariam tal decisão. São forças mais profissionalizadas. Mesmo o
Exército hesitaria. O artigo do general Santos Cruz deve representar a
posição da maioria do oficialato. O mais crucial é a posição dos generais
que permanecem no governo.
O historiador lembra que, no início da gestão Bolsonaro, a presença dos
generais não significava que o governo fosse militar: — Mas a constante
alegação do presidente de ter apoio militar está deixando esses generais em
posição delicada. Eles são corresponsáveis pelas trapalhadas do governo e
agora não haverá mais como evitar que a imagem das Forças seja afetada.
Os erros terão cor verde-oliva.
Essa situação de temer pela estabilidade democrática foi criada pela
retórica belicosa do próprio presidente nesses dezessete meses de governo.
A saída seria, segundo José Murilo de Carvalho, “o impedimento”, mas ele
acha que Bolsonaro está protegido pela pandemia: — Com a quarentena
não há rua, sem a rua não há impedimento.
O país se vê às voltas com velhos fantasmas que o governo Bolsonaro
mesmo retirou do armário.
104. OS DESAFIOS E A RESISTÊNCIA
6.6.2020
O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) foi visitado ontem pela Polícia
Federal. Ele foi da PM do Rio de Janeiro e se sente tão inimputável que
recentemente postou um vídeo em que ameaçava de morte quem estava em
atos contra Bolsonaro. Alertou que os PMs andam armados e poderiam
atirar no peito ou na cabeça de alguns que estavam na manifestação. É esse
tipo de pessoa que o inquérito das fake news está encontrando. Há uma
linha que liga ataques ao Supremo, manifestações a favor do presidente
com faixas pedindo intervenção militar, nas quais Bolsonaro e alguns dos
seus ministros já compareceram, e uma militância que, em parte, anda na
faixa da ilegalidade.
O problema é que o próprio presidente anda nessa linha de sombras entre
o legal e o ilegal. Bolsonaro, na última quinta-feira (11), fez aquela
convocação aos seus militantes: “Deem um jeito de entrar nos hospitais e
filmar.” Estava publicamente estimulando um crime.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, oficiou aos
procuradores regionais para abrirem investigação contra quem invadiu
hospitais. Aras se comporta como se não tivesse visto que o presidente
estimulou aquilo que ele considera deva ser investigado. Repetiu a mesma
atitude de alienação seletiva no caso das manifestações antidemocráticas.
Aras abriu o inquérito para investigar organizadores e financiadores daquela
manifestação na frente do QG do Exército. O fato de o presidente ter
comparecido e fortalecido o grupo, dizendo que as Forças Armadas estavam
com eles, Aras não achou importante. Ele tem um olhar periférico para os
fatos. O que fez o ato ter gravidade foi exatamente a presença do chefe do
Executivo.
O que torna a militante Sara Giromini notícia não é ela em si. Seu grupo
não consegue fazer jus ao nome que ela inventou. Deveria trocar para “10%
de 300 do Brasil”. Ela é resgatada da irrelevância pelo presidente Jair
Bolsonaro, que diz que eles são sua base popular e em nenhum momento
repudiou os fogos de sábado (13) lançados contra o STF. O deputado Daniel
Silveira não tem contribuição positiva à vida pública. Ficou conhecido por
quebrar a placa que homenageava Marielle. Mas os manifestantes que ele
ameaçou de morte foram chamados no dia seguinte de “terroristas” pelo
presidente. Então eles falam a mesma língua. O problema de Bolsonaro não
é ele ter “bolsões radicais”. É ele se comportar como integrante do bolsão.
Quando o inquérito das fake news começa a oficiar as primeiras
diligências, eleva-se o conflito com o Judiciário, porque a sombra que recai
sobre o bolsonarismo é a ponta final do fio que começa a ser puxado pelo
ministro Alexandre de Moraes, do STF. O que eram ataques virtuais e
ameaças aos ministros do Supremo se ligam a manifestações reais contra as
instituições, às quais o presidente vai, e que podem ter sido financiadas por
empresários bolsonaristas. Os mesmos que são suspeitos de estarem por trás
de financiamentos ilegais de campanha, através da contratação de disparos
de mensagens em massa que distorcem os movimentos de opinião pública.
Esse fio entre investigados e o presidente, entre o legal e o crime, é que
cria risco para a democracia brasileira. O que preocupa é a zona de sombra
entre o governo Bolsonaro e esses ativistas agressivos capazes de hostilizar
enfermeiras, invadir hospitais, lançar fogos de artifício contra o STF em
meio a gritos de ofensa, gravar vídeos falando em matar manifestantes,
postar ameaças gravadas a um ministro do Supremo. Há ilegalidade demais
na atuação pública do governo. A ida de Abraham Weintraub à
manifestação para confraternizar com militantes, que muito provavelmente
são os mesmos dos fogos contra o STF, é mais um desses momentos em que
fica explícita a relação perigosa entre o governo e o submundo. A demissão
de Weintraub não resolve o problema. Ele sempre foi estimulado a ser
assim.
O vice-presidente, Hamilton Mourão, disse à Folha que há um exagero e
que não se pode considerar “meia dúzia de gente que estava aí na rua como
ameaça”. Mourão disse que seria o mesmo que considerar “aquela turma da
foice e o martelo como ameaça”. É verdade. O problema nunca foi haver
grupos pequenos de radicais. A democracia convive com eles e os enquadra
quando é o caso. A anomalia no Brasil neste momento é a intimidade entre
esse bolsão e o presidente. Em atos, palavras e omissões, Bolsonaro tem
estimulado um grupo de malucos.
110. TODOS OS MEDOS DO
PRESIDENTE
19.6.2020
Ontem não foi um “grande dia” para Jair Bolsonaro, no sentido que ele
costuma dar à expressão, mas foi um dia longo e cheio de eventos. O
presidente amanheceu sabendo que seu velho amigo, ex-assessor e
colecionador de segredos, Fabrício Queiroz, tinha sido preso na casa de
Frederick Wassef, advogado do senador Flávio Bolsonaro. Wassef também
defende o presidente em alguns casos. O STF, com votação consagradora,
considerou constitucional o inquérito das fake news, que tem se aproximado
de apoiadores e pessoas do círculo presidencial. Na confirmação da
constitucionalidade do inquérito foram lançadas duríssimas mensagens ao
presidente. Bolsonaro apareceu de tarde, tenso e estático, ao lado de
Abraham Weintraub, um dos investigados. O presidente tirou-o do cargo de
ministro da Educação a contragosto. Apesar do seu péssimo desempenho na
pasta, o presidente o manteria se pudesse.
Wassef entra e sai do Palácio da Alvorada em fins de semana e fora do
horário de trabalho. Entra e sai do Palácio do Planalto. Na quarta-feira (17)
mesmo esteve lá na posse do novo ministro das Comunicações. É pessoa
próxima da família. E justamente Wassef hospedava Fabrício Queiroz.
Onde? Em um sítio em Atibaia (SP). Surreal.
Os Bolsonaros temem que Fabrício Queiroz fale porque ele sabe muito. É
homem treinado para esconder informação. Contudo, está doente, e sempre
temeu que suas filhas fossem atingidas. Tanto que a única pergunta que fez
ao ser preso foi sobre as filhas. A mulher, Márcia Aguiar, está sendo
procurada.
O nome “rachadinha” reduz o peso do crime. O deputado Flávio
Bolsonaro tinha mais de uma dezena de funcionários fantasmas no seu
gabinete. Todos eles entregavam parte do salário a Queiroz. Entre os
fantasmas, havia parentes da ex-mulher de Bolsonaro que moravam em
Resende, no interior do estado. E a mulher do próprio Queiroz, Márcia. A
filha dele estava lotada no gabinete do então deputado federal Jair
Bolsonaro, mesmo sendo personal trainer no Rio. A ex-mulher e a mãe do
líder de milícia Adriano da Nóbrega também recebiam sem trabalhar no
gabinete de Flávio. Queiroz comunicou à ex-mulher de Adriano, Danielle
Mendonça, que ela seria exonerada porque Flávio “ficaria muito exposto na
campanha” para senador, em 2018. O miliciano Adriano reclamou com a
ex, porque parte do dinheiro ia para ele. Tudo isso já foi investigado. Essa
fantasmagórica equipe fez 483 depósitos na conta do ex-assessor, preso
ontem, no valor total de R$ 2 milhões em um ano. O nome disso é desvio
de dinheiro público. “Rachadinha” é apelido.
De noite, na live, o presidente disse que a prisão havia sido
“espetaculosa” e que Queiroz poderia ter sido convocado que compareceria.
E que estava no sítio porque era perto do hospital, em São Paulo, onde ele
se trata de câncer. Recentemente, Flávio também defendeu o seu então
assessor, que demitiu no auge da campanha de 2018, dizendo que Queiroz
era correto e trabalhador, e que “dava o sangue” pelo que acreditava.
Continuam ligados, pelo visto.
No Supremo, o inquérito das fake news prosseguirá agora muito mais
forte depois do julgamento sobre a sua legalidade. Dez dos onze ministros
consideraram que, sim, ele é constitucional, e deram razões de sobra para a
investigação sobre os ataques ao Supremo Tribunal Federal. Houve nas
mensagens mais do que ódio. Houve ameaças de morte contra ministros, de
estupro de suas filhas. Na deep web foi encontrado um plano de explosão
do Supremo com croqui do prédio.
O ministro Dias Toffoli lembrou a história do ministro Hans Kelsen, da
Suprema Corte da Áustria, que, atacado por conservadores extremistas, no
clima da ascensão do nazismo na região, acabou pedindo para sair do
tribunal. “Ninguém defendeu a Corte Constitucional. Ninguém defendeu a
democracia. E eis que a pálida e escura noite do totalitarismo destruiu a
civilização e seus valores”, disse Toffoli. O ministro Celso de Mello definiu
como “insólita ameaça” e “gravíssima transgressão” à Constituição o
descumprimento de ordem judicial, “por parte de qualquer autoridade,
inclusive o presidente”. Era uma direta para Bolsonaro, que falava, vez por
outra, em não cumprir as ordens do Supremo. Todos disseram que o STF é
o guardião da Constituição, a “última palavra constitucional”. Recado para
Bolsonaro. “Essa Corte tem a exata noção histórica do momento”, disse
Celso.
Num dia de más notícias para o governo, tentou-se desviar a atenção com
a demissão de Weintraub. Por seu péssimo trabalho, Weintraub recebeu uma
promoção. Vai ser diretor do Banco Mundial na vaga que o Brasil ocupa.
De noite, Bolsonaro teve tempo para mais uma fake news. Disse que 40%
das mortes registradas como covid-19 não foram de covid.
111. A ESCALADA DO VÍRUS ENTRE NÓS
20.6.2020
Se nos disserem daqui a algum tempo que no dia em que o Brasil contava
52 mil mortos por um vírus violento a prioridade do governo era proteger
infratores de trânsito, nós tomaremos um susto. Somos testemunhas do
inacreditável. Na última terça-feira (23), o governo mobilizou sua base
parlamentar, agora engordada com o centrão, para aprovar a sua menina dos
olhos: os motoristas terão mais liberdade de cometer infrações de trânsito
antes de chegarem a perder a habilitação. No dia seguinte, o secretário de
Vigilância Sanitária usou 184 palavras para comunicar uma notícia curta e
dura: que a curva dos infectados e mortos ainda cresce no Brasil.
Naquela mesma quarta-feira (24) em que morreram 1.103 brasileiros por
covid-19, o presidente e seu filho e divulgador Carlos, conhecido pela
alcunha de Carluxo, foram à Polícia Federal. Aquela que está investigando
o presidente da suspeita de intervir nela mesma. Ao lado de um receptivo
diretor-geral, Rolando de Souza, o presidente se exibiu dando tiros com
várias armas, o que pode ser conferido no vídeo postado neste jornal pela
competente Bela Megale. Quem olhar no futuro essa cena, e for informado
do contexto do país naquele dia, se perguntará: que presidente é este?
Teremos dificuldade de explicar.
No tempo de hoje vamos vivendo o insólito. Um ex-ministro da
Educação, investigado por racismo e por ameaça às instituições
democráticas, foi indicado para diretor executivo do Banco Mundial. A
instituição passou os últimos anos atualizando seus valores para fugir
exatamente do que o ministro leva na bagagem das suas convicções.
No futuro duvidaremos de nós quando relatarmos aos mais novos que
tudo estava fora do lugar no mesmo momento. O ministro do Meio
Ambiente é aliado de desmatadores, o presidente da Fundação Cultural
Palmares ofende Zumbi dos Palmares, a ministra da Mulher acredita que as
mulheres devem se submeter aos maridos, o ministro das Relações
Exteriores destrata países com os quais o Brasil tem relações e alimenta
teorias conspiratórias sobre as organizações multilaterais, o Ministério da
Saúde enfrenta duas demissões e uma longa interinidade em meio a uma
pandemia, um militar chefia a Casa Civil e o ministro da Justiça acha que o
presidente é um profeta.
Será difícil explicar também o contorcionismo dos últimos dias em torno
do caso Queiroz. Sumido há muito tempo, o ex-assessor do hoje senador
Flávio Bolsonaro foi encontrado na casa do advogado que defendia Flávio e
o próprio presidente. Frederick Wassef é realmente um fenômeno.
Inicialmente ele negou que conhecesse o próprio hóspede. Depois disse à
Veja que escondeu Queiroz para proteger o presidente da República. O ex-
assessor poderia ser morto e o presidente, responsabilizado. Quem no futuro
não entender essa rocambolesca história não deve se culpar. Não será a
única estranheza do caso. A Justiça do Rio deu a esse filho mais velho do
presidente o direito a foro por prerrogativa de função que ele já não exerce,
no caso, a de deputado estadual. Inventou a prerrogativa de ex. Um detalhe
talvez comprometa mais ainda a verossimilhança dos eventos: o governo foi
eleito dizendo que combateria a corrupção.
O brasileiro vive dois grandes tormentos: uma pandemia e uma das
piores crises econômicas da nossa História. Nesse quadro, o presidente
propôs aos ministros “escancarar”. A verdade sobre a pandemia? Não. A
necessidade de proteger a população? Não. As medidas para socorrer
pessoas e empresas contra a crise econômica? Não. Ele propôs escancarar a
liberação das armas.
Mais armas nas mãos das pessoas e menos punição para os delitos de
trânsito. Eis a solução para todos os nossos problemas, da covid-19 à
recessão econômica.
Os desatinos diários, os berros, as palavras chulas, a falta de
demonstração de sentimento em relação às vítimas da tragédia, tudo se
tornou tão rotineiro que o país foi se acostumando. Por isso só daqui a
muito tempo teremos dimensão da ignomínia vivida pelos brasileiros neste
triste momento da nossa História. Nos últimos dias o presidente não foi a
qualquer manifestação antidemocrática, não ameaçou chamar as Forças
Armadas contra o Supremo, não mandou jornalistas calarem a boca. Dizem
que daqui para a frente tudo vai ser diferente. Que ele vai se comportar para
escapar dos inquéritos do Supremo e vencer a eleição para um segundo
mandato presidencial. Contando, ninguém acredita.
114. RESPOSTA ERRADA DO
GOVERNO NO MEIO AMBIENTE
5.7.2020
A incapacidade de sentir a dor do outro e de viver o elo que liga uma pessoa
e seu próximo. Essa é a característica mais marcante da personalidade do
homem que governa o Brasil. Foram muitos os erros que ele cometeu nestes
meses do nosso desterro. Vivemos um exílio diferente, porque a sensação é
de não reconhecer no governo as virtudes que sempre admiramos no país.
Jamais saberemos quantas vidas teriam sido poupadas entre as 100 mil que
perdemos se fosse outra a liderança. Carregaremos as dúvidas. Milhares de
dúvidas. Dessa falta de sentimento humanitário surgiram as frases ofensivas
como o “e daí?” e o “eu não sou coveiro”.
Os coveiros trabalham duramente, em condições difíceis, em turnos
dobrados, sob o risco de contaminação em enterros sem choro e sem flores.
O luto não tem cerimônia. Fica cravado no peito de cada um. Os que
perderam as pessoas que amavam não puderam ser consolados. Não há
mais abraços no mundo. Os coveiros viram. A esses profissionais, todo o
respeito. Sim, o presidente não é coveiro. Ele não teria a grandeza de ajudar
alguém em momento terminal.
Toda vez que concedeu a frase “lamento as mortes” soou falso, porque
era falso. Era seguida de adversativas e da platitude de que todos
morreremos. Os médicos e os enfermeiros lutam diariamente para manter a
vida, mesmo sabendo do destino final de cada um. Essa é a grandeza de
quem trabalha com a saúde humana. Eles, elas, podem se olhar no espelho e
dizer: hoje venci várias vezes a luta desigual contra a morte. Às vezes, o
preço é a própria vida, como a do jovem neurocirurgião Lucas Augusto
Pires.
Foram muitas as demonstrações de falta de empatia e de compaixão
nestes dolorosos meses. Não há mais o que esperar. Nem em sentimentos,
nem em capacidade de liderar o país em meio a uma tragédia. Ele falhou
completamente.
A falha cotidiana foi passar a mensagem perigosa de que não era
necessário se proteger. A transferência de recursos aos estados e municípios
não foi favor, o dinheiro é dos pagadores de impostos. O governo federal
adiou o que pôde, com manobras regimentais, com deliberados atrasos
burocráticos. Isso custou vidas humanas.
O auxílio emergencial não foi concessão dele. A proposta saiu do
Executivo depois de muita pressão dos formadores de opinião, e no
Congresso o valor foi elevado, porque o do governo era baixo demais. A
execução foi desastrosa, com as filas de pessoas lutando por seus direitos e
a multiplicação dos casos de fraudes. Montou-se um sistema que negava o
auxílio a um bebê porque não tinha CPF, mas entregava o dinheiro a uma
pessoa rica sem averiguar sua renda. As linhas para sustentar as empresas
em colapso foram tão tardias que falharam.
O governante inúmeras vezes usou a imagem da Presidência para vender
a ilusão de haver uma pílula mágica, a cloroquina, que foi produzida aos
milhões nos laboratórios do Exército. Criou um tumulto administrativo no
ministério que coordena as ações da Saúde. Convocou seus seguidores a
invadir hospitais para perseguir a delirante versão de que era mentira a
ocupação dos leitos. Quis suprimir os números das mortes. São muitos os
crimes. Sim, a palavra é esta: crime.
Ele ofendeu e ameaçou governadores e prefeitos que se preocuparam em
proteger a população, criou uma confusão na mensagem para as famílias,
manipulou sentimentos conflitantes em um tempo difícil apenas para
alimentar a mentira de que não era o responsável. Numa Federação e no
presidencialismo não há quem substitua o presidente na tarefa de
coordenação do enfrentamento de um flagelo coletivo. A ausência desse
trabalho custou muitas vidas.
Sua atenção esteve em uma pauta estrangeira à vida. Quer armar a
população, aumentar o acesso a instrumentos de morte, tirou exclusividades
das Forças Armadas em determinados armamentos mais poderosos.
Eliminou a legislação que permitia o rastreamento. Armas, armas à mão-
cheia. Esse é o lema do homem que governa o Brasil.
O presidente conspirou contra a democracia. Nos gabinetes fechados e à
luz do dia. Estimulou aglomerações de manifestantes contra os Poderes da
República e alimentou milícias virtuais com ataques às instituições. Gritou
ofensas e ameaças. Tudo isso enquanto os brasileiros tentavam se proteger
de um inimigo mortal. Conseguiu duplicar as ameaças que pairavam sobre
nós. Por semanas seguidas o país teve que lutar pela vida e pela democracia.
O nome disso também é crime. Crime de responsabilidade. Deveria ser
punido com seu afastamento da Presidência. Ele não merece a cadeira que
ocupa.
121. BOLSA FAMÍLIA E BOLSONARO
15.8.2020
O Brasil já conhece os passos dessa estrada, sabe que ela não vai dar em
nada. Sabe de cor os desvios, desvãos, delírios que podem levar à ideia de
que algum ente governamental possa intervir em formação de preços de
supermercados. Não dá para acreditar que o ministro Paulo Guedes não
tenha tido força para explicar o básico ao governo Bolsonaro. A notícia de
que o Ministério da Justiça notificou os supermercados pela alta dos
alimentos seria cômica se não fosse séria. A inflação está baixa, não há uma
elevação generalizada do índice. E, mesmo que houvesse, o Brasil sabe há
trinta anos que não é por aí.
Na economia, nada há de mais obsoleto do que isso que nos assombrou
na segunda metade dos anos 1980: a tentativa de controle de preços e a
acusação a supermercados. Depois de várias tentativas que sempre deram
errado, o Plano Real escolheu outro caminho, novo e elegante, que, enfim,
derrotou a hiperinflação no Brasil. Houve derrapagens no meio do trajeto,
como o congelamento do preço da gasolina no governo Dilma e a
intervenção na energia. Deu errado. Na sucessão de retrocessos que nos
atinge no governo Bolsonaro, só faltava mesmo esta: o Ministério da Justiça
dar prazo para supermercado explicar o preço do arroz porque o presidente
da República reclamou. Eu até lembraria que o ministro da Economia é
liberal, mas isso nem importa a esta altura. Não se trata de incoerência em
relação a uma escola econômica. É uma questão de bom senso e de
conhecer — palidamente que seja — a História do Brasil.
Então vamos lá voltar à quadra um, porque o terraplanismo atacou agora
a economia. Três fatores elevaram os preços dos alimentos: entressafra,
auxílio emergencial e exportações puxadas pelo dólar alto e pela demanda
chinesa. A execução do benefício teve muitos defeitos, porém, quando
chegou aos mais pobres, fez enorme diferença. Imagine uma mulher chefe
de família que recebia R$ 190 de Bolsa Família e que de repente recebeu do
governo R$ 600 ou até R$ 1.200. O efeito multiplicador foi intenso. Isso é
bom, porque atenuou a recessão. Por outro lado, pressionou a demanda de
alguns produtos, como alimentos e material de construção.
Esse fenômeno é temporário porque nos últimos quatro meses do ano o
valor do benefício vai cair. Mesmo assim, a inflação de alimentos em
domicílio, que subiu 11,39% em doze meses, deve continuar pressionada. E
alimentos têm mesmo oscilações fortes. A cebola, cujo preço subiu 81%
nos primeiros sete meses do ano, no oitavo mês caiu 17,81%. Contudo, o
índice geral do IPCA continua baixo: chegou a 0,70% no ano. Menos de
1%.
Nesse índice de agosto, a educação foi a âncora, explica o professor Luiz
Roberto Cunha, da PUC-Rio. Houve a concessão de descontos pelas escolas
e o item caiu 3,47%. Se tivesse sido zero, calcula Cunha, a inflação do mês
seria de 0,45%, em vez de 0,24%. Os preços continuarão oscilando
naturalmente. Não há uma conspiração entre donos de supermercados e
arrozeiros. Reduzir a tarifa é uma boa ideia, até porque as barreiras são tão
altas que deveriam ter sido reduzidas há mais tempo.
No segundo semestre a sazonalidade da carne é de alta, e além disso está
acontecendo com esse e outros produtos uma demanda externa maior, com
preço competitivo por causa do dólar alto. Isso torna mais caro o importado.
Houve uma queda de 42% na importação de trigo, os preços da farinha até
subiram 12%, mas o macarrão está com alta zero de preço. Deve ter sido
isso que fez o presidente da associação de supermercados, ao sair da
reunião com o presidente Bolsonaro, parafrasear Maria Antonieta. Em vez
do “dê-lhes brioches”, sugeriu que as pessoas trocassem o arroz por
macarrão.
Meses atrás houve quem dissesse que o presidente do Banco Central teria
de escrever uma carta para explicar por que não atingiu a meta de inflação.
Não por ficar acima e sim porque o risco era de ficar abaixo do piso da
meta. Agora, o que está acontecendo é uma alta localizada de preços, fácil
de entender e difícil de reverter artificialmente. Qualquer intervenção
distorce, como os ruídos dos últimos dias: declarações, reuniões, ameaças e
notificações. Quando Jair Bolsonaro dizia nada entender de economia,
estava falando sério. Quando disse que entregaria tudo a Paulo Guedes, não
estava falando sério.
125. A IGUALDADE PERANTE A LEI
12.9.2020
A economia brasileira vive uma crise gravíssima. O PIB está tendo a sua
maior queda em um ano, o número de pobres aumentou, o desemprego
aflige milhões de famílias, a dívida pública se aproxima do insustentável.
Não há um plano para enfrentar esses flagelos. O comando da política
econômica é errático e alienado. Em que mundo vive a pessoa que diz que a
economia está se recuperando em “ritmo alucinante”? O ministro Paulo
Guedes, quando fala, assusta pelo seu desapego à realidade.
Em um evento na semana passada, no Instituto Brasiliense de Direito
Público, Guedes discorreu sobre os erros cometidos na Colônia, no Império
e pelo “Estado hobbesiano”, em mais uma daquelas repetitivas dissertações
sobre o tudo e o nada. Em dado momento, defendeu os bancos estaduais
que o governo de Fernando Henrique fechou, mas que deveria ter deixado
abertos, na visão dele. Em qualquer fala, Guedes precisa achar alguma
decisão em que os economistas do real teriam errado. Há um quarto de
século.
O ponto é: nunca se sabe qual é o ponto do ministro da Economia. Em
falas randômicas, ele foge para mundos outros, para tempos da História que
interpreta de forma duvidosa, quando a sua matéria deveria ser o tempo
presente, e a sua tarefa, dizer como tirar o país do atoleiro. Quando, afinal,
chega ao mundo atual, ele de novo descreve inexistências, como o fato de a
economia estar em ritmo “alucinante”. Sobre a nova CPMF que pensa criar,
fez uma acusação séria: “A Febraban é quem mais subsidia e paga todos os
economistas brasileiros para dar consultoria contra esse imposto.”
Algumas falas dele seriam perfeitas se fossem uma referência à
conjuntura. “Uma série de ações performáticas para tentar o equilíbrio
macroeconômico quando era um tsunami o que estava acontecendo.” “Os
economistas um pouco deslumbrados pela política.” “Continuamos com a
fuga do diagnóstico correto.” Falava do passado, mas as frases seriam
perfeitas para definir os eventos atuais.
Aqui e agora, o que está acontecendo é que a recuperação tem sido
desigual. Seu grande motor é um auxílio insustentável. A alta é na margem.
A maioria dos índices sobe em relação ao mês anterior, mas é muito
negativa em relação a um ano antes. E o que foi 2019? Um ano pífio, depois
de outros anos fracos que se seguiram a uma recessão. O que significa que o
PIB encolheu, não se recuperou e caiu de novo. Agora sobe um pouco, no
entanto a economia é menor do que há um ano. Como enfrentar essa
letargia é um dos desafios. Há outros.
O ministro Paulo Guedes minimizou o problema do desemprego. Disse
que nos Estados Unidos perderam-se 30 milhões de empregos e no Brasil
pouco mais de um milhão. A economia americana destrói e recria vagas
com grande facilidade porque tem um mercado de trabalho extremamente
dinâmico. Não dá para comparar. Mas, aqui, 10 milhões de pessoas saíram
da população ocupada. Essa é a forma mais correta de se dimensionar o
problema. Existem contratos suspensos e salários reduzidos em empresas
fragilizadas. O que acontecerá com esses trabalhadores? O que será das
famílias que hoje dependem do auxílio emergencial? Há outros temores.
Um fantasma ronda o Brasil. A dívida pública. Alta demais, alimentada
por um déficit persistente, a dívida é a espinha dorsal da economia. Se
houver uma crise de confiança na capacidade do Tesouro de honrá-la,
desmancham-se as empresas, os fundos de pensão, as aplicações das
famílias, a economia brasileira. É por isso, e não pelo humor do mercado,
que o assunto precisa ser encarado com um plano crível, de longo prazo, de
equilíbrio nas contas públicas. Um ajuste inteligente, que reduza as
despesas que concentram renda ou sustentem a parte velha da economia.
Um pequeno exemplo: esse ajuste deveria tirar o subsídio ao carvão em vez
de cobiçar a verba do Fundeb. Nesse ajuste, a reforma administrativa seria
digna do nome e não esse texto pálido que foi para o Congresso, a revisão
das renúncias fiscais seria profunda e ampla.
É preciso um plano que restaure a confiança de que no longo prazo o
Tesouro vai equilibrar a dívida, o Brasil ficará menos desigual, a economia
será sustentável do ponto de vista ambiental e mais integrada ao mundo.
Um programa sério que enfrente a crise e aponte para o futuro e não ideias
malucas que nos visitam por algumas horas até serem negadas.
129. A MORTE, A VACINA E O
PRESIDENTE
22.10.2020
Sim, a China pode nos atingir com as consequências negativas desse tipo de
agressão grosseira, gratuita e infantil como a do deputado federal Eduardo
Bolsonaro (PSL-SP). O agronegócio precisa se mexer, porque é o alvo.
Basta que a China queira fazer um gesto de boa vontade em relação ao
governo Biden e passe a redirecionar sua compra de soja para lá. Ou que
invista em países que substituam, pelo menos em parte, as exportações
brasileiras de alimentos. Uma pequena redução já nos afetará.
Essa é a visão de um diplomata experiente que vê com perplexidade os
movimentos sem eira nem beira da nossa política externa. A palavra dura
também cabe na diplomacia, mas só deve ser usada com propósito bem
definido. Nada da política externa do governo Bolsonaro tem rumo. Uma
política biruta.
Um analista bem próximo ao governo Bolsonaro que, contudo, discorda
da tendência que tem tomado a política externa, explica a raiz do problema.
O verdadeiro chanceler é o assessor internacional Filipe Martins, um jovem
sem qualquer qualificação para a ascendência que tem sobre assunto tão
relevante.
— O Ernesto é um maria vai com as outras — diz esse analista,
referindo-se ao ministro Ernesto Araújo.
De fato, o atual ministro só mostrou seu fervor de extrema direita durante
a campanha presidencial, criando um blog para se alavancar para o cargo.
Uma vez lá, passou a aceitar todo tipo de interferência e se coloca
subserviente aos ditames tanto de Eduardo Bolsonaro quanto de Filipe
Martins, um fanático olavista sem qualquer experiência no ramo das
relações internacionais.
A mensagem postada pelo filho do presidente contra a tecnologia chinesa
de 5G, acusando-a de permitir “espionagem da China”, era tão absurda que
foi apagada depois. Eduardo Bolsonaro estava fazendo mais um ato
explícito de vassalagem ao governo de Donald Trump, que está nos seus
dias finais. Como foram muitas as agressões dele, de Araújo, e do próprio
presidente Bolsonaro, a embaixada chinesa reagiu falando que o deputado
está solapando as relações entre os dois países. E disse que ele deveria
“evitar ir longe demais”, para não “arcar com as consequências negativas”.
A China é o nosso maior parceiro comercial, um dos nossos maiores
investidores. Mesmo que não fosse, não há razão alguma para que se dê ao
filho do presidente o direito de ofender qualquer país nas redes sociais.
A relação entre Estados Unidos e China vai passar por outro momento,
com a posse de Joe Biden. Pode vir a ser até mais tensa do que antes. Com
Trump, havia escaramuças intempestivas, ataques via Twitter, idas e vindas.
Com Biden, haverá mais estratégia na disputa, que continuará existindo
entre as duas potências. Mas uma carta no baralho chinês, em qualquer
contexto, será sempre a de aumentar as compras de soja e de outras
commodities agrícolas no mercado americano. Nesse caso, o agronegócio
exportador brasileiro pagará a conta. Se os empresários não se insurgirem,
se acharem que basta resmungar, estarão mais vulneráveis.
Em artigo publicado no New York Times, o analista David Leonhardt
disse que o governo Trump foi um presente para a China. “Ele antagonizou
aliados que estavam também preocupados com o crescimento da China, em
vez de construir uma coalizão com Japão, Europa, Austrália e outros.” Foi,
segundo ele, citando um professor chinês da London School, um “presente
estratégico para a China”. De fato, nesta hora poente de Trump no poder, a
China fechou um acordo, no último dia 15, com um grupo de quinze países
asiáticos, inclusive o Japão, considerado o maior acordo de livre comércio
do mundo. Trump havia retirado os Estados Unidos da Parceria
Transpacífico, costurada por Barack Obama, para estabelecer com vizinhos
da China um acordo de comércio. A China aproveitou o erro de Trump e
fez seu próprio tratado. Esse episódio mostra como a diplomacia é um jogo
para profissionais. Amadores acabam sempre atirando no próprio pé.
Biden, em artigo publicado na revista Foreign Affairs, disse que os
Estados Unidos precisavam ser “duros” com a China. Com Biden, os
Estados Unidos voltam ao multilateralismo, mas a rivalidade com os
chineses continuará. Só que, ao mesmo tempo, na área comercial e
econômica, há uma simbiose entre os dois países, ao contrário do que havia
na bipolaridade da Guerra Fria. Diante de relação tão complexa, cabe ao
Brasil não tomar partido, porque a missão da política externa brasileira é
defender os interesses brasileiros.
135. ESTE GOVERNO É UM RISCO DE VIDA
6.12.2020
Pareceu, em certos dias, que o deserto não acabaria. Mas houve pontos de
refresco na caminhada. Quero falar deles nestes derradeiros instantes de
2020. Na crise, as empresas fizeram doações em volumes nunca vistos.
Diante da escalada da ameaça ao meio ambiente, empresas e bancos
formaram coalizões com organizações sociais e anunciaram compromissos
em defesa dos biomas brasileiros. Fundos internacionais avisaram que ou o
Brasil protege a floresta ou ficará fora da rota do capital.
A sociedade fez movimentos na direção certa, num ano torto. Médicos e
enfermeiros foram à exaustão, mas fizeram a diferença entre vida e morte.
A ciência venceu a sua luta mais difícil, enfrentando o vírus e o
negacionismo. Saiu vitoriosa. Nunca tantos cientistas nos ilustraram tanto.
Em tempo recorde, a ciência está entregando ao mundo as vacinas que
abrem a janela para a esperança.
Emicida é parte das boas notícias do ano. É o futuro. Ver tantos negros no
Theatro Municipal de São Paulo deu uma sensação de alívio a quem não se
conforma com a partição da sociedade brasileira. Ver o jovem Leandro,
como a mãe ainda chama o rapper, levar todos a um passeio pela História,
para constatar que os negros estiveram presentes — o tempo todo presentes
— nas grandes conquistas do país, foi muito bom. Esse “reescrever” da
História para corrigi-la é um deslumbramento. O documentário AmarElo foi
um ponto de virada. A ideia de que se pode matar o mal de ontem com a
pedra lançada hoje é tranquilizadora. Então nós podemos ainda corrigir o
mal feito antes? Sim. Podemos começar de novo.
As empresas iniciaram o combate à desigualdade racial em seus quadros
de funcionários, que ainda mantêm os negros nas funções com menor
remuneração e nenhum poder, e os brancos no comando. Essa paisagem
corporativa começou a mudar. O recrutamento ativo passou a ser levado a
sério. Não por benemerência, e sim por necessidade, algumas empresas
corrigem sua forma de pensar e de recrutar pessoas. Foi um avanço num
ano distópico. Eu sei que muitos podem pensar: foi um avanço, mas pessoas
morreram por isso. George Floyd e João Alberto Freitas. É verdade. No
passado, porém, houve mortes que foram esquecidas, sem mover a roda
emperrada da História.
Donald Trump perdeu a eleição e isso foi muito bom. A escalada de
desmonte da democracia americana, a negação da mudança climática, o
estímulo aos supremacistas e governantes autoritários estão acabando. Joe
Biden está compondo um governo com diversidade. A vice, Kamala Harris,
reforça essa esperança. Na área ambiental e climática, Biden fez uma
equipe que convenceu, segundo editorial do New York Times. O veterano
John Kerry vai organizar a volta ao Acordo de Paris. A primeira indígena
no governo, Deb Haaland, será a secretária do Interior. Terá poder sobre
parques e florestas nacionais que antes estavam entregues a um lobista do
petróleo. O setor de energia ficará com Jennifer Granholm. Como
governadora de Michigan, ela liderou a implantação de energia renovável.
A lista dos acertos é longa.
Foi o ano em que as famílias, as empresas, os eventos, o jornalismo
testaram o fim da distância. Não era mais preciso estar presente para estar
presente. Houve um salto digital enorme. Havia a possibilidade antes,
porém isso nunca foi tentado nessa escala. Seminários, encontros, reuniões,
entrevistas, festivais, tudo passou a ser feito pelas plataformas que nos
agregam em pontos diferentes do país e do mundo. Esse salto tecnológico
deixará um legado. O mundo ficou mais estreito, entre quatro paredes e, ao
mesmo tempo, ampliou-se.
O ano foi farto de eventos ruins, contudo quero falar dos bons e me
lembro dos aniversariantes. Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto
teriam feito 100 anos. O centenário do nascimento desses dois gênios nos
ajudou em 2020. As leituras ou releituras apontaram caminhos. Clarice
ensinou, em Paixão segundo G.H., que “a atualidade não tem esperança, a
atualidade não tem futuro”, e isso nos dá esperança de que essa atualidade
não se perpetue. E escreveu, como se intuísse a grande aflição que vivemos
este ano: “Se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca parasse de
gritar. […] nós que guardamos o grito em segredo inviolável.” João Cabral
foi ofendido no ano de seu centenário, no Itamaraty, local de seu trabalho
como diplomata. Quem o ofendeu não será lembrado na História, já o poeta,
sim, ficará. Estará nos rios que ele seguiu, nas pedras que ele amou, nos
brasileiros desvalidos que ele homenageou com seus versos. “E ainda se me
permite mais uma vez indagar: é boa essa profissão na qual a comadre ora
está?" Se a mim fosse dirigida a pergunta, e não à rezadeira, diria que sim, o
jornalismo viveu um grande ano, dando boas informações num tempo
confuso.
Cada pessoa sabe o que viveu, e houve perdas irreparáveis. Foi difícil,
sim, mas os oásis nos ajudaram na travessia.
140. GOLPE DE TRUMP ALERTA O
BRASIL
7.1.2021
“Alívio” era a palavra que se ouvia ontem na Fiocruz pela notícia de que a
Índia embarcará hoje para o Brasil o lote de 2 milhões de doses da vacina
AstraZeneca Oxford. Também hoje, a Anvisa deve liberar os 4,8 milhões de
doses a mais da CoronaVac, do Butantan. Isso não apaga os erros do
ministro Ernesto Araújo, que nos levou a uma situação surreal, em que a
diplomacia bloqueia os canais, apesar de existir para limpar os caminhos.
As agressões à China foram muitas, azedaram o diálogo, e o preço a pagar
por esse erro é em vidas humanas.
Até o ex-presidente Michel Temer se mobilizou, ontem, para conversar
com autoridades chinesas. O ministro da Saúde falou com o embaixador e
depois disse que não havia problemas diplomáticos. Segundo o embaixador,
é a burocracia que explica a demora do envio do IFA. Ora, o diplomata não
admitiria que os problemas são “diplomáticos”. O pretexto é sempre outro.
Evidentemente, os expedientes burocráticos podem ser mais rápidos ou
mais lentos, dependendo do contexto.
O fato, em si, de estarem tantas autoridades tentando fazer diplomacia —
Michel Temer, o vice Hamilton Mourão, a ministra Tereza Cristina, Rodrigo
Maia — é o atestado do colapso da diplomacia promovida por Ernesto
Araújo. Nesse caso, a demissão dele seria até um passo óbvio. Se o
ministro, em vez de fazer seu trabalho, cria impasses e conflitos que outros
têm que resolver, não deveria ficar no cargo até por uma razão prática.
O Brasil está na seguinte situação: paga o custo de manter os salários de
pessoas altamente qualificadas e elas não podem exercer as habilidades para
as quais foram treinadas no serviço público. Nenhum país perde da noite
para o dia um ativo desses, que é ter um corpo de diplomatas eficientes,
reconhecidos no mundo inteiro. E por que os bons diplomatas — e eles são
inúmeros — não conseguem fazer seu trabalho? A gestão caótica e delirante
de Ernesto Araújo não deixa. Um embaixador, por exemplo, aguarda
instruções para agir. Ernesto Araújo ou não dá instruções ou dá e elas não
têm lógica nem ganho palpável para o Brasil. Porque o ministro vive em
luta contra inimigos imaginários, como o “globalismo” e o “comunismo”,
que estariam ameaçando, como escreveu outro dia, os valores dos Estados
Unidos.
O trabalho diplomático tem vários códigos. Uma embaixada não deixa
uma autoridade ligar diretamente para o seu correspondente em outro país
para ouvir um “não”. Para evitar constrangimentos, a embaixada faz uma
ação antecipada, para sentir o terreno e desatar os nós antes que eles
apareçam. O ministro Eduardo Pazuello ligou na primeira semana do ano
para o ministro da Saúde da Índia pedindo o envio das doses compradas
pela Fiocruz, e o indiano, um diplomata de carreira, teve de avisar,
delicadamente, que o Brasil precisava pagar antes, pois o Serum é uma
empresa privada. Depois veio o vexame de anunciar a ida do avião, já com
o adesivo de propaganda do governo, para buscar as vacinas, mas sem antes
combinar com os indianos. O amadorismo está em cada iniciativa
simplesmente porque existem regras do jogo diplomático que não estão
sendo seguidas. Ernesto virou o ministro dos conflitos exteriores. E paralisa
o corpo de funcionários do Itamaraty. Ontem, finalmente, anunciou-se a
vinda das doses.
A boa política externa antecipa-se aos problemas, como um xadrez bem
jogado. E, desde o começo desta pandemia, estava claro que o Brasil
precisaria se posicionar estrategicamente no mercado de compra de vacinas.
Houve um episódio em que Araújo foi procurado pelo ministro das
Relações Exteriores de um país, grande desenvolvedor de vacinas, meses
atrás. A conversa tinha um interesse comercial, mas o nosso ministro
preferiu discorrer sobre o “globalismo da Organização Mundial da Saúde”.
Nada foi adiante.
Quando Araújo escreveu uma sucessão de tuítes sobre o ataque ao
Capitólio, em Washignton D.C., em janeiro deste ano, praticamente
endossando o movimento extremista, rasgando todo o manual da boa
diplomacia e do bom senso, houve uma reação da Associação dos
Diplomatas. Nas mensagens coletivas que trocaram por um aplicativo, um
integrante da carreira escreveu que a defesa do Itamaraty não pode ficar
apenas sobre os ombros dos embaixadores aposentados.
A chegada de 2 milhões de doses da vacina importadas pela Fiocruz da
AstraZeneca da Índia é excelente. A liberação pela Anvisa do uso dos 4,8
milhões de doses do Instituto Butantan é outra boa notícia. O país terá, a
partir deste fim de semana, mais 6,8 milhões de doses. Mas o fundamental
agora é fabricar aqui, nos dois institutos, com os IFAs que virão da China.
Quanto mais cedo, melhor.
147. ERRO ECONÔMICO NA CRISE SANITÁRIA
23.1.2021
Hoje é terça de Carnaval e não haverá blocos com aquela alegria resistente
querendo esticar o que já estaria acabando. Não houve desfile no
Sambódromo, as baterias não tomaram os corações ao passar com seu ritmo
e cadência, nem as baianas rodaram sua dança envolvente. As costureiras
não bordaram o brilho da Avenida. Os foliões que saíram não encontraram
respaldo. Não é engraçado vestir-se de alguma paródia se a morte, à espreita
na esquina, não é uma fantasia.
Houve aglomeração e escutei no domingo (14) a interminável festa de
um vizinho, mas mais interessante é o silêncio de quem não foi para a rua,
mesmo sendo apaixonado pela folia. Por isso dedico esta coluna aos que
não brincaram o Carnaval de 2021. É admirável a festa do avesso, da
ausência, dos que demonstram respeito ao outro. Cada folião que não saiu,
que dispensou a fantasia, que se enfeitou para si mesmo, estava celebrando
a vida.
O Rio é do folguedo momesco. Eu admiro essa alegria como parte
essencial da natureza do país, apesar de me sentir estrangeira às vezes. No
Rio, o Carnaval de rua renasceu há vários anos em blocos de nomes
tradicionais, divertidos e poéticos. Os trios elétricos da Bahia. Os ranchos
de Belém. O Largo da Batata, em São Paulo. Metódico, São Paulo tem se
esmerado para que o seu Sambódromo brilhe mais do que a Sapucaí
carioca. Vai vai que consegue. No Recife, o frevo com suas muitas pernas
trançantes e suas sombrinhas coloridas avisou ao galo que não cante de
madrugada. Em Brasília, o pacotão ficou embrulhado. Em Salvador, o Pelô
fez silêncio. Manaus. Manaus é o centro da nossa dor.
Ninguém melhor que Maria Bethânia refletiu o momento ao pedir
“vacina, respeito, verdade e misericórdia”, na live em que mostrou a força
inteira da sua voz de rainha. Ela reclamou da saudade do público distante,
mas esteve tão próxima... Fez o que sempre soube fazer no canto, na poesia,
na mensagem direta. Bethânia é opinião. Ao falar do menino Miguel, que
caiu de um prédio no Recife, lembrava o passado que não corrigimos.
Quando cantou “Cálice”, a música soou como se tivesse sido composta na
véspera. As raízes do Brasil estavam todas no canto da filha de Dona Canô.
O folião desgarrado que volta pra casa, lúcido e triste, com sua fantasia
um pouco estragada pelos excessos, sempre me pareceu a melhor poesia do
Carnaval. A alegria se esbaldou, o canto aquietou, os pés já não pulam, o
grupo se desfez e essa volta lenta, ainda marcado da festa, é a imagem que
sempre prendeu meus olhos quando andei pela cidade nos carnavais. Hoje,
se houver algum folião voltando com restos de festa, não será uma imagem
poética. Eu veria, se o visse, a pessoa que decidiu que o risco coletivo não
lhe importa.
Eu nasci numa cidade que tem hoje 92 mil habitantes. Com quantas
caratingas se conta a dor de hoje do Brasil? Que métrica mediria o que
temos vivido? As mortes somadas não informam tudo sobre o sofrimento
deste tempo. Houve também as esperas longas e angustiadas por um
parente, um amigo, uma pessoa amada, houve a aflição de contar os dias,
isolado num quarto, temendo que o ar fugisse dos pulmões e, ainda, a
espera ansiosa pelo resultado dos testes de laboratório. Houve a solidão e a
saudade.
Na história dos Carnavais haverá a cicatriz de 2021. Esse lapso,
intermédio, ausência, parêntesis, será o que de melhor teremos a contar nos
anos vindouros. A folia recolhida foi o maior presente dado ao outro. Ó
abre-alas, que vamos passar sem o Carnaval. Momo foi levado a uma
república. Destronou-se. Reinará no futuro, em outros Carnavais.
O pior é a festa dos incautos, insensatos e insensíveis, dos que desprezam
o risco, não por coragem, mas pela covardia de expor outros ao perigo, dos
que por estupidez duvidam da ciência, fruta madura da inteligência humana.
Há muito sobre o que escrever no Brasil, numa coluna de jornal. Temas
nunca me faltaram, nesses trinta anos em que escrevo diariamente. Hoje a
melhor notícia é a festa que não houve, a fantasia não vestida, os foliões
que não foram vistos por aí. Aos que se recolheram, mesmo tendo alma
carnavalesca, todo o meu respeito nesta Terça Magra do Carnaval de 2021.
Bethânia mistura palavra falada e cantada. Declama e canta. Estilo dela.
Opinião. Buscou Cecília Meireles para avisar que “a primavera chegará,
mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem
possua jardim para recebê-la”.
150. BOLSONARO ESCANCARA O POPULISMO
ECONÔMICO
23.2.2021
Não cabe mais perguntar que governo é este. A resposta está dada. O Brasil
chega ao seu pior número diário de vidas perdidas, em um ano de
pandemia, com o colapso se espalhando pelos estados e o presidente
Bolsonaro dizendo que a máscara é que é o risco. O que cabe agora é tentar
saber que país é este. Quem somos nós? De que matéria somos feitos? O
futuro perguntará aos contemporâneos desta tragédia o que fizemos
enquanto os brasileiros morriam, o inimigo avançava impiedosamente e o
governo era sócio da morte.
No dia das 1.582 vidas perdidas, ou da queda de cinco Boeings, como
comparou o cientista Miguel Nicolelis, qual era a cena no Brasil? A Câmara
dedicava horas seguidas à discussão sobre a emenda que protege os
parlamentares dos crimes que vierem a cometer. O Senado debatia a
suspensão do financiamento dos ministérios da Saúde e da Educação. Por
serem pontos tão absurdos, as duas Casas ensaiaram recuos. E o presidente
da República? Ele, como fez todos os dias no último ano, na sua macabra
mesmice, atirou contra a saúde dos brasileiros. Dessa vez dizendo que uma
universidade alemã tem um estudo que prova o risco do uso de máscaras em
crianças. Sempre assim, negando as provas da ciência, falando de algum
suposto remédio. Sempre mentindo, o presidente do Brasil.
Bolsonaro nós sabemos quem é. Ele quer que haja armas e munições,
quando precisamos de leitos e vacinas. Ele exibe desprezo pela vida,
quando precisamos de empatia e conforto diante deste luto vasto e
irremediável. O luto dos enterros sem flores, sem abraços, sem consolo.
Contamos nossos mortos numa rotina fúnebre e interminável. O presidente
conta as armas com as quais os seus seguidores vão nos ameaçar se,
eventualmente, reagirmos.
Quem somos nós? O futuro nos perguntará e é preciso que o país saiba
que terá de responder. Mais uma vez, fomos o povo que tolerou o
intolerável. Como na escravidão, no genocídio dos índios, na ditadura, na
desigualdade, temos aceitado a afronta, a vilania, a infâmia. Castro Alves
pode fazer de novo a pergunta: que bandeira é esta?
Esta é a nossa contemporaneidade. Lembra os nossos piores passados. É
tão longo o suplício que perdemos as palavras. Não há palavras fortes o
suficiente para definir o que vivemos. O presidente comete crimes
diariamente. A cada crime sem punição ele se fortalece, porque sabe que
pode avançar um pouco mais. Como o vírus que domina o corpo fraco, a
cada dia fica mais difícil contê-lo.
De outros países nos olham com espanto e desprezo. Nenhum povo
suportaria tal opróbrio. Eles sabem o que temos feito aqui e o que temos
aceitado. E não entendem. Caminhamos para o risco de colapso nacional,
de falência múltipla dos órgãos de Saúde do país. Só agora alguns estados
falam em lockdown. Antes havia, no máximo, uma restrição de circulação à
noite, como se o vírus fosse noturno e dormisse de dia. Vários países
começam a comemorar queda de contágios, internações e mortes.
Comprovam as vantagens do distanciamento social, das vacinas e do uso de
equipamentos de proteção. O presidente diariamente passeia, diletante, pelo
país, com seu séquito de homens brancos sem máscaras, com os quais
exerce o poder, oferecendo-lhes migalhas do seu mandonismo. São os
invertebrados de Bolsonaro.
O médico Ricardo Cruz escreveu para Denise, sua mulher, “prepare-se
para o pior”. O pior chegou para a sua família e para o país. Ricardo Cruz
era amado por seus colegas e pacientes. Organizou um centro de reflexão
sobre as angústias que vivemos neste século e o batizou de “Humanidades”.
O último recado digitado por ele, mostrado por este jornal em brilhante
reportagem, é um alerta vivo. Estamos no pior momento. Despreparados.
O presidente da República mente diariamente e as mentiras estão nos
matando. Bolsonaro não se interessa por pessoas, e sim por perfis nas redes,
inúmeros deles falsos. Em colunas passadas, fiz a lista dos crimes
cometidos por Bolsonaro e apontei artigos e incisos das leis que ele
afrontou. Mas isso o país já sabe. Alguém sempre diz que não existem hoje
as condições políticas para um impeachment. E os milhares de mortos que
enterramos? Quantos deles teriam sido poupados se fosse outro o governo
do Brasil? Não cabe mais perguntar que presidente é este. O país não pode
alegar desconhecimento. Cabe fazer uma pergunta mais dura. Quem somos
nós?
152. BOLSONARO, NOSSAS MORTES SÃO CULPA
SUA
11.4.2021
O tempo deixará ainda mais claro o que já é inegável hoje. Grande parte das
mortes que temos sofrido no Brasil é de responsabilidade direta do
presidente da República. Ele agiu intensa e deliberadamente para que o
vírus se espalhasse. Ele tem sido incansável nas mentiras, no estímulo à
exposição ao risco, na criação de conflitos políticos. Ele nunca deixou de
sabotar os esforços de proteção da vida de qualquer gestor público, nas três
esferas administrativas. Ainda hoje, com mais de um ano de pandemia.
Ainda hoje, com mais de 350 mil mortos. Faltam oxigênio, remédios, vagas
nos hospitais, vacinas. Mas Bolsonaro protege o vírus e as suas mutações.
Bolsonaro é o comandante supremo da morte no Brasil.
Alguém pode achar exagero, afinal é o vírus que mata e não o presidente.
Líderes poupam vidas com suas decisões. Ele não. Todos os seus atos, todas
as suas palavras, desde o desembarque do coronavírus no Brasil, tiveram o
único resultado de fortalecer o inimigo. É a bala que mata ou quem aperta o
gatilho? A lista das culpas de Bolsonaro nesta pandemia é exaustiva e nem
é preciso refazê-la. A leitora e o leitor sabem, viram, sofreram, se
indignaram. A verdade é conhecida. Ela é uma só. Bolsonaro é culpado.
O presidente não faz seu trabalho sozinho. Tem colaboradores. Os
médicos que validaram o charlatanismo, os generais que apoiam um
governo que ameaça a segurança nacional, os empresários que o aplaudem,
os ministros subservientes às suas decisões criminosas, os pastores que
usam a palavra de Deus em vão, os políticos que tergiversam, os juízes que
distorcem a interpretação das leis. Contra o presidente e seus
colaboracionistas existe também muita gente. A resistência tem na liderança
médicos, enfermeiros, cientistas, comandantes na guerra pela vida. A
resistência é feita por quem diz “não” a Bolsonaro, em qualquer área, em
qualquer parte do país, dentro e fora do governo. Na cultura, nas artes, no
jornalismo, na educação, nas redes sociais, nas florestas, nas rotinas
domésticas, nos laboratórios, nas lutas políticas. Quem trabalhou pela
vacina está na resistência.
O Brasil virou um grande cemitério em que se enterra até durante a noite.
É trágico, é indescritível. Entre a vida e a morte não há meio-termo, meio-
tom, vacilação, dúvida. Os que respiram mal, os que mal respiram exigem
que falemos por eles. Neste momento mesmo milhares de pessoas
contaminadas estão contando os dias e as horas dessa doença terrível,
olhando para seus sintomas, com medo de piorar e ter que ir para uma fila
onde se morre antes do fim.
Bolsonaro é culpado de necrofilia. O necrófilo ama a morte. A definição
nos foi entregue pelo ex-ministro Celso de Mello, que se aposentou do STF
no ano passado. Ela é exata. Descreve a distorção mental e moral do
governante. Bolsonaro faz isso por gosto e sadismo, mas se escuda em um
argumento supostamente racional. O de que quanto mais rápido o vírus se
propagar mais brasileiros estarão com anticorpos, mais cedo teremos o que
ele define como “imunidade de rebanho”. Ele e seu rebanho repetem uma
mentira científica e médica.
Bolsonaro é culpado das mortes porque subestimou o vírus, divulgou
mentiras, estimulou o contágio, produziu conflitos federativos, combateu
medidas protetivas, omitiu-se, adiou decisões, subverteu o dever do cargo
que ocupa. Tentou inutilmente minar a credibilidade das vacinas. E quando
o país já está cercado de medos e mortes, o presidente ainda tira do armário
o fantasma do autoritarismo e nos ameaça com a morte cívica. Esses dois
anos têm sido de luta pela vida e pela democracia.
Bolsonaro não muda. Ele finge mudar para permanecer o mesmo. Ele
tem usado todos os poderes da Presidência como armas contra o país.
Quanto mais rápido acabar este governo, mais vidas pouparemos. Quanto
mais ordens do governo forem revogadas, mais chances o país terá. Eu
poderia escrever sobre alguns eventos ou conversas de bastidores.
Artimanhas e articulações. Números da economia, porcentagens, oscilações
do mercado financeiro. Há muitos fatos e dados e eles são a matéria-prima
do jornalismo. Mas há um fato maior que todos os outros. Drummond
escreveu poemas em meio à Segunda Guerra Mundial que nos ajudam a ver
o que é o mais relevante em momentos extremos. “Chegou o tempo em que
a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.”
25.7.2021
FIM
SIGLAS
Abin – Agência Brasileira de Inteligência
Abrinq – Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos
ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
AGU – Advocacia-Geral da União
AI-5 – Ato Institucional no 5
Alerj – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
Aman – Academia Militar das Agulhas Negras
Ancine – Agência Nacional do Cinema
Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
BC – Banco Central
BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
Bope – Batalhão de Operações Policiais Especiais
BPC – Benefício de Prestação Continuada
Cade – Conselho Administrativo de Defesa Econômica
Ceagesp – Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo
Ceasa – Centrais de Abastecimento
CEF – Caixa Econômica Federal
CEO – Chief Executive Officer
Cepedisa – Grupo de Estudos de Direito Sanitário
Cesp – Companhia Energética de São Paulo
Chesf – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco
CLP – Centro de Liderança Pública
CNI – Confederação Nacional da Indústria
CNPJ – Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica
Coaf – Conselho de Controle de Atividades Financeiras
Conama – Conselho Nacional do Meio Ambiente
Conaveg – Comissão Executiva para Controle do Desmatamento Ilegal e
Recuperação da Vegetação Nativa Contag – Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura
COP-25 – Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas
de 2019
Covid-19 – Corona Virus Disease 2019 (Doença do Coronavírus)
CPF – Cadastro de Pessoas Físicas
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira
CPP – Código de Processo Penal
CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
CSMP – Conselho Superior do Ministério Público
DEM – Democratas (partido político)
Deter – Detecção de Desmatamento em Tempo Real
DOI-Codi – Destacamento de Operações de Informação – Centro de
Operações de Defesa Interna EFTA – Associação Europeia de Comércio
Livre (abreviado AECL; em inglês: European Free Trade Association,
abreviado EFTA) Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária
Enem – Exame Nacional do Ensino Médio
FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador
Febraban – Federação Brasileira de Bancos
Fema – Agência Federal de Administração de Emergências (EUA)
FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
Fiesp – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz
FMI – Fundo Monetário Internacional
FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
FSP – Faculdade de Saúde Pública
Funai – Fundação Nacional do Índio
Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
Fundef – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e de Valorização do Magistério Fust – Fundo de Universalização dos
Serviços de Telecomunicação
GLO – Garantia da Lei e da Ordem
GSI – Gabinete de Segurança Institucional
HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana
Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
IFA – Insumo Farmacêutico Ativo
Imazon – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia
IML – Instituto Médico-Legal
Inep – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira
Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
INSS – Instituto Nacional do Seguro Social
IPCA – Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo
Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IRPJ – Imposto de Renda de Pessoa Jurídica
LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero
MAS – Movimiento al Socialismo (partido político)
MDB – Movimento Democrático Brasileiro (partido político)
MEC – Ministério da Educação
Mercosul – Mercado Comum do Sul
MP – Medida Provisória
MP – Ministério Público
MPDF – Ministério Público do Distrito Federal
MPF – Ministério Público Federal
MPM – Ministério Público Militar
MPU – Ministério Público da União
OAB – Ordem dos Advogados do Brasil
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OMS – Organização Mundial da Saúde
ONG – Organização Não Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
Paeg – Programa de Ação Econômica do Governo
PDT – Partido Democrático Trabalhista
PEC – Proposta de Emenda Constitucional
PF – Polícia Federal
PGR – Procuradoria-Geral da República
PIB – Produto Interno Bruto
PLN 04 – Projeto de Lei do Congresso Nacional no 4 de 2019
PM – Polícia Militar
PP – Progressistas (partido político)
Prodes – Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia
PSD – Partido Social Democrático
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PSL – Partido Social Liberal
PT – Partido dos Trabalhadores
PUC – Pontifícia Universidade Católica
PwC – PriceWaterhouseCoopers
SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
Sisbin – Sistema Brasileiro de Informações
SNI – Serviço Nacional de Informações
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
SUS – Sistema Único de Saúde
TAC – Termo de Ajustamento de Conduta
TCU – Tribunal de Contas da União
TI – Terra Indígena
TRF – Tribunal Regional Federal
TSE – Tribunal Superior Eleitoral
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
USP – Universidade de São Paulo
UTI – Unidade de Terapia Intensiva
AGRADECIMENTOS
“Oi, Miriam, quando der para falar, me avisa.” Era Jorge Oakim, publisher
da Intrínseca. Eu havia acabado de postar um vídeo nas redes sociais
dizendo que, como escritora, tinha sonhos realizados e planos pela frente.
Jorge quis saber que planos eram aqueles. Um é este que o leitor tem em
mãos. Como jornalista de economia, eu sabia exatamente o tamanho da
recessão que a pandemia provocara e como o mercado editorial fora
atingido. Portanto, o meu primeiro agradecimento vai para Jorge Oakim.
Com o estímulo dele, passei a dedicar parte do meu tempo aos livros nos
longos e dolorosos meses do isolamento social.
O jornalista Alvaro Gribel é parte da minha equipe há mais de uma
década, conhece cada texto publicado. Foi dele o trabalho de fazer a
primeira seleção de colunas. A escolha final foi trabalhosa. O desafio era
reunir textos que, juntos, contassem a história do governo Bolsonaro, desde
o começo um desastre em várias dimensões. Para isso eu pude contar com a
inteligência de Lucas Telles. Nas outras etapas da edição, foi um prazer
conviver com Renata Rodriguez e Elisa Rosa.
Durante uma pandemia, emergências acontecem. Foi no meio delas que
Kathia Ferreira demonstrou todo o seu profissionalismo. Um grande
problema na preparação de um livro de crônicas do cotidiano político é a
contextualização. Se excessiva, muda a natureza do livro, se falha, impede a
compreensão. Esse foi o ajuste fino que fizemos juntas, Kathia e eu.
Heloisa Starling, historiadora e especialista em Hannah Arendt, me
ajudou a encontrar a melhor citação da grande filósofa para a epígrafe.
Sérgio Abranches tem estado em todos os meus projetos, de vida e
literários. Foi dele a sugestão do título, e foi fundamental sua ajuda na
seleção. Agradeço ao Vladimir e ao Matheus, filhos queridos e colegas com
os quais converso tanto sobre os temas aqui tratados.
Eu tenho muitos irmãos. Eles têm visões diferentes sobre vários temas,
mas são todos defensores apaixonados da democracia. Por isso a eles o livro
é dedicado.
SOBRE A AUTORA