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SEXO E RELIGIÃO NA PRODUÇÃO ARTÍSTICA DE MADONNA: UMA

LEITURA PSICANALÍTICA DE UMA OBRA DA CULTURA

Pedro Felipe Furlaneto Nava1


Vera Lúcia Blum2

RESUMO
O artigo discute aspectos do trabalho da cantora estadunidense Madonna a partir de dois
trechos de duas de suas turnês, a Blond Ambition Tour (1990) e a Rebel Heart Tour
(2015). Os trechos das turnês são utilizados para amparar discussões sobre os elementos
do sexual e do religioso em uma perspectiva de conflito envolvendo o cristianismo por
meio de uma leitura com o método psicanalítico. Destacam-se como referências para os
procedimentos de análise e interpretação aqui adotados Freud (2010, 2011, 2012, 2013,
2014, 2015), Mezan (2002), Figueiredo (2014) e Minerbo (2000, 2012, 2013). Ao
mesmo tempo em que as performances oferecem material para a discussão, toma-se o
elemento da culpa para lançar um novo olhar para as obras, atribuindo-lhes novas
perspectivas interpretativas. Os conceitos psicanalíticos de culpa e mal-estar são
utilizados para amparar a discussão e interpretação dos materiais artísticos produzidos
pela cantora que apresentam resoluções de conflito diferentes para situações parecidas.
Também se apontam para os detalhes da obra que passariam despercebidos, mas que
podem ser potenciais pontos de irradiação de sentido, tal qual na clínica psicanalítica.
Em uma das obras há o reconhecimento do desejo e de sua afirmação, em outra há a
alienação do desejo em um movimento de desresponsabilização. O estudo, por exercitar
o método psicanalítico na análise de uma obra da cultura pode contribuir para aguçar a
escuta do psicanalista em seu ofício clínico.
PALAVRAS-CHAVE: Madonna; Psicanálise; Sexo; Religião; Culpa.

SEX AND RELIGION IN MADONNA`S ARTISTIC PRODUCTION: A


PSYCHOANLYTICAL READING OF A CULTURAL WORK

ABSTRACT
The article addresses aspects of the work from American singer Madonna based on
excerpts from two of her tours, namely “Blond Ambition Tour” (1990) and “Rebel
Heart Tour” (2015). The tour excerpts are used to support discussion over sexual and
religious elements from a conflict perspective involving Christianity through a
psychoanalytic method’s reading. Freud (2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015), Mezan
(2002), Figueiredo (2014) and Minerbo (2000, 2012) are references for the analysis and
interpretation procedures adopted here. While the performances yield material for
discussion, the element of guilt is used to cast a new view over the work, providing it
with novel interpretative perspectives. The psychoanalytic concepts of guilt and
1
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso (2013) e mestrado em
Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso (2019).
2
Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1978), mestrado em Lógica e Filosofia
da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas (1994) e doutorado em Psicologia (Psicologia
Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002).
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Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.9, nº1, edição de Julho de 2020
uneasiness are used to support the debate and interpretation of artistic material produced
by the singer which present varying conflict resolutions for similar situations.
Unappreciated details of the work are also pointed out, which may be potential sources
of meaning, as in psychoanalytic clinical practice. In one of the works, there is the
acknowledgement of desire and its affirmation. In the other one, there is the alienation
of desire in an unaccountability movement. For exercising the psychoanalytic method in
the analysis of a cultural work, the study may contribute to sharpen the listening of the
psychoanalyst in its clinical practice.
KEYWORDS: Madonna; Psychoanalysis; Sex; Religion; Guilt.

ABERTURA

Este artigo é resultado de elaborações desenvolvidas em uma dissertação


apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Mato Grosso. Como consequência de diversas situações vividas por um de nós na
função de psicólogo da Pró-reitoria de Assistência Estudantil da UFMT, sobretudo as
derivadas da escuta de queixas de estudantes que procuravam apoio psicológico para
vivências conflituosas a transitar entre os campos religioso e sexual, procedeu-se a um
trabalho de pensamento que articulasse questões envolvendo sexo e religião.
A articulação contou com elementos provenientes da produção artística da
cantora estadunidense Madonna e situados nos terrenos da psicanálise, da filosofia e da
sociologia como perspectivas para novas interpretações da obra artística. Nesse trabalho
de pensamento contou-se com os procedimentos básicos da escuta psicanalítica para a
abertura e emergência de sentidos possíveis até então mantidos em estado de opacidade.
A figura de Madonna foi invocada na contratransferência a partir de uma cena narrada
por um estudante e que remeteu a uma turnê da cantora no ano de 1990, a Blond
Ambition Tour. Nessa turnê, ela apresentava performances que mesclavam o religioso e
o profano em meio ao erotismo.
Ao longo de mais de trinta anos de carreira, Madonna é conhecida, entre outras
características, pela sua capacidade de reinventar-se, abordando diferentes estilos
musicais e estéticos (FOUZ-HERNÁNDEZ, JARMAN-IVENS, 2016). Ela é objeto de
pesquisa em diferentes campos do conhecimento como sociologia, antropologia, estudos
feministas e filosóficos (WILSON, MARKLE, 1992; PARDUN, MCKEE, 1995;
SCHULZE, 1999; GROß, 2007; PRIETO-ARRANZ, 2012; FOUZ-HERNÁNDEZ,
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JARMAN-IVENS, 2016; HAWKINS, 2016; JARMAN-IVENS, 2016), e os interesses
das pesquisas variam desde sua relevância musical, passando pela maneira como faz uso
de símbolos religiosos, às questões feministas.
Prieto-Arranz (2012) define Madonna como um ícone cujos signos e
significados se apresentam de forma complexa, sobretudo por significantes não-verbais
e argumenta que ela faz uso de seu corpo como significante para tratar dos temas de
sexo e religião. Ele também aponta que as performances nos palcos, nos vídeos clipes e
também as multicamadas de significados de sua produção tornam as mensagens mais
complexas e sofisticadas.
O autor afirma que Madonna é retratada com características atribuídas ao pós-
modernismo, sendo apresentada como fluida, híbrida, global e que ela implode padrões
estabelecidos, de forma que a autoria de suas obras é facilmente reconhecida. Também
cita a bricolagem como um dos métodos de trabalho de Madonna que revisita obras de
outros artistas, além de revisitar o próprio trabalho introduzindo novos elementos a ele.
Fouz-Hernándes e Jarman-Ivens (2016) argumentam que Madonna encarnou o
modelo de mulher em diferentes culturas, simbolizando independência profissional e
pessoal em uma sociedade patriarcal, além de se tornar um ícone de liberdade sexual.
Para Hawkins (2016), os vídeos de Madonna frequentemente mostram que papéis de
gênero e de sexo são invenções da cultura e que sua música é subversiva com relação às
regras sociais e morais inflexíveis, por meio do uso da ironia. Nesse sentido, a
invocação de Madonna como produto da cultura nos guiou na seleção de material para
compreender as imbricações de sexo e religião, fornecendo outras perspectivas e
metáforas para: 1) reinterpretar a própria obra da artista e 2) aprimorar o dispositivo
clínico a partir das interlocuções teóricas nas quais navegamos.

1º ATO – O SEXO E A RELIGIÃO NAS PERFORMANCES DE MADONNA

Por refletirem e serem objetos subjetivos, objetos culturais referenciam o


pensamento de sua época, auxiliando-nos na compreensão de fenômenos humanos
(MEZAN, 2002; FREUD, 2012; FIGUEIREDO, 2014; FREUD, 2015a). Para
refletirmos sobre isso, pensemos: o que a produção musical de uma época diz sobre essa

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época? Alguns exemplos para dimensionarmos esse aspecto de produto de uma época:
as canções da música popular brasileira versando a ditadura, a censura e o exílio na
década de 1970; o punk rock cantando o anarquismo ou os temas do desemprego e da
guerra. Guerra que também foi fonte de inspiração para algumas produções no início
dos anos 2000 como o álbum American Idiot do grupo Green Day e mesmo o álbum
American Life, de Madonna. Além da música, podemos também citar “Guernica”, de
Picasso e “Operários”, de Tarsila do Amaral como alguns exemplos dentre uma
infinidade de outras obras que nos apontam a conexão que as obras artísticas têm com a
realidade do mundo.
Nesse sentido, é válido tomarmos o material artístico de determinada época para
auxiliar na interpretação e compreensão de fenômenos sociais. Ao considerarmos
performances e o material artístico de Madonna como fonte de discussão, podemos
buscar outros referenciais culturais a fim de nos ajudar a pensar no modo de produção
de dados na pesquisa clínica, por exemplo. Rosenau (1992) defende que o modo de
produção de conhecimento das ciências humanas na contemporaneidade leva em
consideração a intervenção e a influência do pesquisador em sua relação com o objeto.
Em uma perspectiva epistemológica construcionista, o autor defende a ideia de que o
objeto não deve ser tomado como algo simplesmente dado, mas em parte também
criado no processo de pesquisa que, por seu turno, também (re)cria o pesquisador.
Sustentar a dicotomia entre pesquisador e objeto, visando à produção de
conhecimento baseada em teorias totalizantes, geralmente pautadas em posições
binárias como verdadeiro e falso, parece ser algo difícil, senão impossível (MINERBO,
2000). Isso porque o indivíduo está “mergulhado dentro daquilo que ele deve conhecer,
seja uma formação social, uma instituição, ou fenômenos psicológicos” (MEZAN,
2002, p. 373).
A psicanálise é um campo de conhecimento que articula a produção de saber a
partir de fontes científicas, culturais e históricas, promovendo o diálogo entre diferentes
campos e aspectos entre o indivíduo e a cultura e vice-versa (MARSILLAC,
TANCREDI, SOUZA, 2018). Sempre é importante ressaltar que Freud também se
dedicou ao estudo de questões sociais e culturais, pois identificou que o sofrimento

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neurótico estava intrinsicamente ligado às relações estabelecidas com a civilização
(FREUD, 2010; FREUD, 2013; FREUD, 2014).
A psicanálise, como campo de análise, interpretação e produção de
conhecimento, também lançou seu olhar para as obras artísticas como produtos da
cultura que carregam e expõem elementos inconscientes do autor da obra assim como
traços e elementos da civilização (FREUD, 2012; FIGUEIREDO, 2014; FREUD,
2015a; MEZAN, 2002;).
Diversos corpus teórico-metodológicos podem ser utilizados para a leitura e
interpretação dos fenômenos. A psicanálise, sendo um deles, nos permitirá atentarmos
para a sensibilidade ao detalhe, que se manifesta por meio da escuta descentrada, sem
compromisso com a rotina cotidiana, acessível por meio de uma atenção flutuante que
captura o que pode ser significativo (HERRMANN, 1991 apud MINERBO, 2013;
MEZAN, 2002). São justamente os detalhes que seriam ignorados, descartados e que
jamais constituiriam motivos de grandes preocupações em uma escuta cotidiana que se
tornam elementos-chave na maneira de compreender os processos na pesquisa
psicanalítica. Mezan (2002) nomeia o detalhe como uma nota dissonante e Figueiredo
(2014) salienta que:

a atenção ao detalhe na clínica serve justamente para desconstruir a falsa


unidade produzida pelos processos secundários, permitindo que os processos
primários venham à tona: ou seja, a atenção flutuante e a atenção ao detalhe
contribuem para a passagem do manifesto ao latente quando aplicado, por
exemplo, ao relato do sonho ou à fala em associação livre (FIGUEIREDO,
2014, p. 46).

Segundo Figueiredo (2014), a atenção ao detalhe não é exclusividade da


psicanálise. Ele cita o crítico e filólogo alemão Erich Auerbach, cujos ensaios
encontram-se na antologia brasileira organizada por Davi Arrigucci e Samuel Titan Jr..
“Há que fazer falar as coisas”. Sob esse mote, escreve Titan Jr:

Auerbach desenvolveu um estilo expositivo e analítico em que o passo


decisivo consiste em encontrar e captar, nas obras em pauta, um „traço
característico‟ capaz de conferir densidade verbal e histórica às questões do
leitor inquisitivo (TITAN JR., 2012, p. 8).

Figueiredo (2014), instruído por Titan Jr (2012), chama a atenção para uma
noção presente na obra de Auerbach – a noção de Ansatzpunkt, um ponto de partida que,
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sem que se possa prevê-lo, quando encontrado ele dá início ao trabalho interpretativo. O
detalhe definido como um Ansatzpunk é o elemento que irradia sentido e recria formas
de olhar para a obra. É a atitude de um olhar clínico, a escuta do analista que está
voltada para as afetações transferenciais e contratransferenciais dentro de um enquadre.
A partir desse ponto a organização é capaz de emergir por meio da dispersão,
configurando uma nova interpretação. Figueiredo (2014) aproxima a noção de
Ansatzpunkt – o que emerge como ponto de partida do próprio texto – ao conceito de
fato selecionado, criado pelo matemático francês Henri Poincaré “e adotado na
psicanálise por Wilfred Bion” (FIGUEIREDO, 2014, p. 47). Trata-se de um elemento
essencial em um processo de descoberta que precipita a coerência dos elementos até
então dispersos na escuta flutuante.
Esse modo de articulação da psicanálise com os produtos culturais recebe o
nome de psicanálise aplicada e ela tem seus fundamentos nos trabalhos de Freud (2012,
2015a, 2015d, 2015e, 2015f) que incidem sobre a cultura. Outros psicanalistas
contemporâneos como Green (1994), Mezan (2002), Figueiredo (2014) e Minerbo
(2012) também oferecem contribuições a esse campo. Para eles, o efeito produzido
sobre o investigador – elementos contratransferenciais – é um elemento da própria
investigação. É uma condição para realizar esse trabalho, e seria inútil tentar eliminá-lo
como “resquícios de não-objetividade” (MEZAN, 2002, p. 376).
A partir das inquietações que se manifestaram na prática profissional, houve a
necessidade de compreender melhor essa queixa de desconforto e culpa que é
corriqueira na clínica e que se precipita no campo da religião e da sexualidade. Para a
escuta-leitura da produção de Madonna, era preciso um ponto que fosse capaz de
catalisar as sensações e percepções ainda dispersas. É, então, quando o significante
God?!, dito pela cantora ao fim da performance de Like a Virgin, na Blond Ambition
Tour (1990), age como um ponto de partida para a articulação das temáticas do sexo e
da religião. Foram selecionados dois trechos de duas turnês. A primeira, a Blond
Ambition Tour, por conta da própria expressão God?!. A segunda, a Rebel Heart Tour
(2015), pelo final do primeiro ato, que trouxe elementos religiosos e sexuais fortemente
conectados.

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Para o leitor que não teve proximidade com o material citado, apresentaremos
uma breve descrição que também já é uma primeira “interpretação” do material, na
tentativa da criação de uma narrativa a partir das performances, conjugando letra,
melodia, dança, expressões, figurino e cenografia.
Em seu segundo ato, a Blond Ambition Tour é composta das performances de
Like a Virgin, Like a Prayer, Live to Tell, Oh Father e Papa Don’t Preach,
respectivamente. De início tomamos Madonna como personagem de uma cena
dramatúrgica em um caminho conflituoso envolvendo questões relacionadas aos
ímpetos e desejos e suas implicações quando entram em contato com as demandas de
um grupo religioso cristão. Madonna parte de uma cena de masturbação e em seguida
dirige-se à igreja, onde questiona sua relação com o divino e com os outros membros da
comunidade retratada. Posteriormente, durante a confissão, retoma questões de sua
relação com as figuras paternas e por fim encontra-se em meio a um dilema, diante do
qual precisará fazer uma escolha: submeter-se às regras daquele grupo, implicando na
alienação ou negação de seu desejo, ou assumir a responsabilidade sobre si, mas
pagando o preço do ostracismo – ou uma fantasia de abandono.
Na Rebel Heart Tour, as performances de Holy water/Vogue e Devil Pray fazem
parte do final do primeiro ato e também remetem ao conflito entre aspectos individuais
e grupais vividos pela personagem. A narrativa apresenta uma personagem que também
está envolta com as questões relacionadas ao desejo, mas a experiência do prazer é
tomada como algo da ordem do pecado que precisa ser expurgado. Madonna encena a
transgressão profana e herege dos elementos religiosos por meio de uma Santa Ceia
com apóstolos punk e freiras seminuas. A cena é adornada em tons oníricos e o que se
segue é um despertar deste sonho. Posteriormente, ela se dá conta do que “sonhou” e
então precisa depurar seu corpo, sua alma, pedir perdão, reconectar-se a Deus por meio
dos seus agentes instituídos.

2º ATO – OS DISCURSOS SOBRE O SEXO

Para ampliar a compreensão e as possibilidades de interpretação da obra, é


necessário buscar em outras fontes dados sobre a relação entre o sexual e o sagrado. Se

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o sexo é um tema do qual Madonna faz uso, é preciso elucidar alguns mecanismos
históricos e filosóficos justamente para ampliar a compreensão de facetas de sua obra
muitas vezes consideradas no sentido de denúncia, crítica e transgressão.
Seria um equívoco tomar o discurso sobre a liberdade sexual ou mesmo a crítica
ao sistema de repressões simplesmente como algo da ordem do libertário, sem dar
atenção às redes discursivas que são tecidas por e nessas falas (FOUCAULT, 2010). O
pensamento de Michel Foucault (2017) sobre a história da sexualidade fornece
diferentes perspectivas para o entendimento das relações entre sexo e poder, além de
clarear aspectos da história da relação entre a Igreja e o sexo, signos esses que
perpassam as produções de Madonna. O ponto de partida para as ideias foucaultianas
sobre a história da sexualidade deu-se por meio do questionamento não da repressão,
mas sobre a natureza discursiva marcada pelo ressentimento e rancor acerca das
proibições em torno do sexo. Há o deslocamento do foco de uma sexualidade reprimida
e o início da investigação pela produção discursiva sobre a proibição tão frequente e
falada por todos em vários espaços e situações.
Podemos ver que na Blond Ambition Tour a relação estabelecida é de hierarquia,
em que os desejos sexuais são postos sob o jugo da religião e do grupo. Desse modo,
conforme retratado, a sexualidade, sobretudo feminina, é objeto de controle e necessita
ser reprimida. Contudo, para Foucault (2017), a ideia de que a sexualidade é revestida
pela repressão é tratada como um jogo de poder em que os discursos sobre o sexo se
proliferam constantemente sob a égide ou aparência repressivas.
Weeks (2000), fazendo a leitura da perspectiva foucaultiana, escreve:

A experiência ocidental da sexualidade (...) não é a da repressão do discurso.


Ela não pode ser caracterizada como um "regime de silêncio", mas, ao
contrário, como um constante e historicamente cambiante incitamento ao
discurso sobre o sexo. Essa explosão discursiva sempre em expansão é parte
de um complexo aumento do controle sobre os indivíduos, controle não
através da negação ou da proibição, mas através da produção; pela imposição
de uma grade de definição sobre as possibilidades do corpo, através do
aparato da sexualidade (WEEKS, 2000, p. 46).

A sexualidade não estaria então sob a ordem (apenas) da repressão, mas,


sobretudo, da incitação. Contudo é importante pontuar que Foucault (2010) não nega a
existência de proibições e repressões. Ele afirma que “as proibições existem, são

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numerosas e fortes. Mas que fazem parte de uma economia complexa em que existem
ao lado de incitações, de manifestações, de valorizações” (2010, p. 230). E mais adiante
continua:

Não se trata de negar a miséria sexual, mas também não se trata de explicá-la
negativamente por uma repressão. A questão está em apreender quais são os
mecanismos positivos que, produzindo sexualidade desta ou daquela maneira,
acarretam efeitos de miséria (FOUCAULT, 2010, p. 232).

Essa concepção oferece e amplia modos de compreender esse tecido no qual


Madonna borda suas obras, entendendo-o como parte de um jogo maior de discursos em
que aquilo que é costurado, ainda que com uma linha de crítica e denúncia, faz parte de
um quadro maior que incita modos de existência a partir da produção de verdades.
Na história ocidental, o cristianismo foi responsável por imprimir uma forte
marca na regulação do erotismo, sobretudo a partir do século XVII (SAÉZ, 2017). Sexo
e religião fazem parte das estruturas basilares da moralidade ocidental. Falar de sexo no
ocidente é, automaticamente, falar da Igreja e do cristianismo. Sexo e religião
costumam cruzar-se em atravessamentos em outras regiões do planeta em diferentes
momentos históricos (ENDSJØ, 2014).
O sexo tem lugar privilegiado dentro do cristianismo. Seja pela castidade de
Cristo, a concepção e o nascimento a partir de uma virgem, assim como pelas
advertências e prescrições sobre o modo de vida que o povo de Deus deveria levar, o
sexo é um tema vital para a moral cristã. Um tema que se torna uma questão com
moldes obsessivos para as igrejas, sobretudo a Católica, que o caracterizam, nomeiam,
categorizam, hierarquizam e regulam (RIOS, PARKER, TERTO JUNIO, 2010;
ENDSJØ, 2014; SAÉZ, 2017).
O cristianismo parece destacar-se das demais religiões quando o assunto é a
sexualidade de seus adeptos. Saéz afirma que “cada religião pautava a sexualidade de
acordo com os tabus de sua preferência; apenas o cristianismo ensaiava a possibilidade
de marcar como tabu a sexualidade por inteiro” (2017, p.124) e complementa:

Já que nenhuma outra religião concede à virgindade e ao celibato o estatuto


que o cristianismo lhes concede, e este ascetismo de partida favorece uma
posição ultraconservadora em tudo que diz respeito a noções de gênero,
matrimônio e família, e uma resistência ferrenha a aceitar mudanças na moral
sexual, familiar e reprodutiva (SAÉZ, Î2017, p. 122).

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Apesar de o discurso religioso cristão-católico exortar todos a uma conduta
sexual, é sabido que as regras sempre foram mais flexíveis, ou mesmo inexistentes
quando se tratava dos homens, como Madonna afirma em seu discurso sobre suas
vivências e sobre as críticas que recebeu por suas produções, sobretudo as dos anos
1990 (MADONNA, 2016).
Nesse sentido, pensando nas transigências em torno do sexo é que encontramos
em Rubin (2017), antropóloga e ativista da política de gênero, uma classificação de
práticas sexuais que nos ajuda a compreender o modo como Madonna performa o sexo.
Madonna transita por todas as categorias, sobretudo as camadas mais externas e
marginais da hierarquia sexual, qualificadas como sexualidade má, anormal, antinatural
e maldita.
Nas performances das turnês citadas anteriormente podemos encontrar as
categorias que Rubin (2017) descreve como “casual”, “sozinha ou em grupo”, “não
procriador”, “promíscuo”, “em pecado”, “homossexual”, “sadomasoquista”, “com
acessórios”, “em público”. Essas categorias estão em oposição às “em um
relacionamento”, “em casais”, “procriador”, “monogâmico”, “em um casamento”,
“heterossexual”, “convencional”, “apenas corpos”, “em particular” e constituem o que é
chamado de círculo mágico, compreendo uma sexualidade boa, normal, natural e
sagrada (RUBIN, 2017).
As performances de Madonna possuem elementos que, na contratransferência,
não são visíveis ou notados imediatamente em um primeiro olhar/escuta. Considerando
o espetáculo proposto, a imagem de denúncia e transgressão da cantora faz com que o
foco do espectador possa ser barrado no espanto e no choque causado pelas imagens
quase explícitas que são performadas. Porém, ao superar o espanto e o explícito, em
segundo plano encontramos outros elementos da performance, que nos permitiram uma
nova interpretação por meio do que denominamos como culpa e mal-estar e que
estavam escamoteados pelas simulações de masturbação ou de profanação. O teor
explícito da performance desvia o foco dramatúrgico do conflito entre indivíduo e
cultura, entre o desejo e suas exigências ou mesmo dos movimentos pulsionais
presentes nas performances da cantora.

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3º ATO – CAMINHOS PARA PERSPECTIVAR A CULPA NAS PRODUÇÕES
DE MADONNA

Quando se olha para as duas performances de Madonna aqui usadas (separadas


25 anos entre si), primeiramente tem-se de forma clara que ambas possuem uma
narrativa teatral, elas contam histórias. Também é possível observar que ambas as
performances fazem uso de elementos da liturgia católica/cristã que apontam para o
sexual. O que mais elas teriam em comum? Uma carga afetiva que remente ao mal-estar
e a culpa. Essas foram as sensações despertadas durante a apreciação do material.
Sobre o sentimento de culpa, em uma perspectiva psicanalítica, ele é tão
importante no pensamento de Freud que mesmo já próximo ao fim de sua vida ele o
considerava como o maior problema da evolução da civilização, admitindo que quanto
mais se progride no campo da cultura, maior também é a perda de felicidade justamente
pelo crescimento do sentimento de culpa (FREUD, 2010).
Drewermann (1996) considera que a angústia, na visão teológica, pode ser
compreendida por meio do mito do Gênesis, como o afastamento do ser humano de
Deus. O afastamento implica uma perda ou diminuição de aspectos qualitativos
considerados bons. Em uma relação inversamente proporcional, a proximidade de Deus
significaria distância do pecado. Enquanto o afastamento em relação a Deus implicaria
uma proximidade ao pecado.
No mesmo sentido, Cunha (2003) também constrói uma interpretação de que o
homem, em sua angústia e estando cindido de Deus, não procura o conhecimento do
bem e do mal para uma reaproximação, mas sim para tentar ser Deus. Segundo o autor,
o conhecimento traria uma maldição e disso era algo que Deus supostamente queria
poupar suas criaturas quando as proibiu de comer o fruto da árvore do conhecimento do
bem e do mal. Essa ideia está presente nas performances da Rebel Heart Tour.
Concomitante à orgia e à profanação, a angústia e o mal-estar que envolvem a
personagem só são aplacados quando um movimento de retorno ao divino é realizado.
Mesmo depois de tudo, Madonna não está de modo algum tranquila consigo mesma.
Na cena que caracterizamos ser um sonho, ela profana símbolos católicos. As
freiras, padres, apóstolos e Cristo fazem parte de sua releitura profana da última ceia.
Este é um sonho do qual ela acorda perturbada, sentindo-se culpada. Na outra turnê, na

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Blond Ambition, o mal-estar vivido está colocado em outros moldes, muito mais
localizado próximo a figuras “reais”, como um conflito edipiano, do que como um
desconforto resultante do afastamento do divino. Enquanto a Madonna da Rebel Heart
Tour sente-se mal pelo simples ato de sonhar (que na concepção ocidental geralmente é
interpretado como um momento de passividade e desresponsabilidade), parecendo estar
alienada e não reconhecendo o algo ligado ao seu desejo, a Madonna da Blond Ambition
Tour sofre em decorrência de um desconforto. Ela sofre justamente por reconhecer, de
algum modo, que o desejo está em jogo e isso tem implicações mais profundas na
medida em que coloca em risco sua permanência no grupo e sua relação com o divino.
Em resumo, uma Madonna se implica com seu desejo enquanto a outra Madonna quer
distância dele.
Retomando as performances de Madonna para compreendermos melhor o que
expomos acima, na Blond Ambition Tour temos a seguinte sequência e estrutura:
masturbação – oração – angústia – expiação (ou catarse) – consequência (ou resolução
de conflito). Já na Rebel Heart Tour temos a sequência: a excitação
(provocação/tentação) – orgia – revolta – arrependimento – apaziguamento.
Madonna, ao tomar o erotismo como perspectiva de criação e comunicação, nos
lança a pensar nas visões que configuram a sexualidade feminina como um campo sobre
o qual pairam os signos do desconhecido, do incontrolável, do perigoso. Biblicamente, a
transgressão de Eva implicará em duas marcas punitivas que incidirão sobre o genital e
sobre o sexual: o sofrimento da gravidez e o aprisionamento do desejo ao homem que a
dominará.
Nessa mescla de sexualidade e erotismo com religião, Madonna narra,
concomitantemente ao simulacro de explícito, o conflito interno edípico. Na visão
metapsicológica sobre a religião, há um deslocamento da figura paterna para a figura de
Deus.
Freud (2013) diz que “(...) para cada pessoa o deus é modelado ao pai, que a
relação pessoal com deus depende de sua relação com o pai carnal, que oscila e se
transforma com ela, e que deus, no fundo, nada mais é que um pai elevado” (p. 153) e
em “O futuro de uma ilusão” Freud afirma:

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(...) o ser humano transforma as forças naturais não simplesmente em
indivíduos, com os quais pode lidar como faz com seus iguais (...), mas lhes
dá um caráter paterno, transforma-as em deuses, e nisso segue um modelo
não apenas infantil, mas também filogenético (FREUD, 2014, p. 249).

Para Freud (2014), algo do infantil se repete na relação com a divindade que
possui as características, tais quais as do pai no psiquismo da criança, de potência
máxima, de proteção contra o mal e também de punição. Essas características indicam
uma relação assimétrica, hierarquicamente verticalizada, em que em uma ponta
encontra-se toda a potência e todo o saber e na outra a incompletude e o puro
desamparo.
É essa direção interpretativa que Madonna também nos mostra em sua
performance: a relação com um pai – uma figura ou função –, seja ele um pai humano
ou um pai divino. Em nossa interpretação, este chamamento pelo Pai divino/pai humano
evidencia um conflito que atravessa toda a história narrada, de Like a virgin a Papa
don’t preach. Apesar disso, é em Live to tell e Oh Father que o elemento infantil em
conflito com a figura paterna aparece de forma mais forte e consistente, pois ali se
concentraram os ambivalentes sentimentos de amor e ódio voltados ao pai e
posteriormente transferidos para Deus-pai. A relação com Deus só pode se transformar
quando se enfrenta o conflito e se ressignifica a relação com o outro pai, aquele da
infância vivenciado como tirano e violento, mas também amado.
A performance nos mostra um trabalho de enfretamento desse objeto
fantasmático do infantil, daquele pai que tudo vê/via e sabe/sabia. Nesse ponto,
podemos dizer que a sensação de ser vigiado é tomada por Freud (2013) como um
mecanismo projetivo do qual o sujeito lança mão como forma de defesa contra a
angústia. Isso que vigia não está do lado de fora, mas se constitui como parte do seu
psiquismo.

4º ATO - A CULPA E O MAL-ESTAR

Em “O mal-estar na civilização”, Freud (2010) se questiona por que, mesmo


com os avanços da ciência, da tecnologia e da melhoria na vida da humanidade, ainda
persistia a infelicidade, a angústia, isso que ele denomina de mal-estar. Suas elaborações

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Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.9, nº1, edição de Julho de 2020
se estenderam, a partir da religião e do retorno aos mitos, à explicação de que indivíduo
e a sociedade constituem-se mutuamente em polos de uma tensão que resulta em
infelicidade.
Em “Totem e Tabu”, “Psicologia das Massas e Análise do Eu” e “O Futuro de
uma ilusão”, Freud (2013; 2011; 2014) se debruça sobre aspectos coletivos para
apresentar o conflito entre as exigências pulsionais e as exigências da civilização. Freud
(2013) recorre a trabalhos etnográficos sobre comunidades de aborígenes na Austrália,
assim como a trabalhos de Charles Darwin, para criar uma racionalidade, um
entendimento, sobre as origens da civilização por um viés psicanalítico. Em outros
trabalhos como “Atos obsessivos e práticas religiosas”, Freud (2015b) discorre sobre os
aspectos individuais e intrapsíquicos dos processos neuróticos e culpabilizantes que
causam sofrimento ao sujeito.
Em se tratando da palavra culpa e de seus desdobramentos, Oliveira e Castro
(2009) apontam duas possibilidades para a sua compreensão. A primeira é a culpa no
sentido jurídico, quando as ações não são compatíveis com as normas e regras sociais.
A segunda possibilidade é o sentimento de culpa que o sujeito experimenta e não
necessariamente tem ligação com o não cumprimento de acordos legais. Do mesmo
modo, o não cumprimento da lei não implica necessariamente o sentimento de culpa.
Culpa, sexo e cristianismo são os vértices de um campo em que se configuram
modelos de domínio físico e subjetivo muito bem modelados e normalizados pela
pastoral cristã. Oliveira e Castro (2009) trazem um delineamento claro e conciso acerca
da estruturação do sentimento de culpa como eixo das religiões judaico-cristãs. Fala-se
que o advento do monoteísmo constituiu-se como hipótese cultural, colocando judeus e
cristãos em diferentes parâmetros de organização social quando comparados aos gregos
e romanos. Se na Grécia o uso da lógica e da razão constituíram-se como elementos
para a análise dos atos infracionais (da culpa) e, consequentemente, a aplicação das
sanções divinas (OLIVEIRA, CASTRO, 2009; FOUCAULT, 2017), o judaísmo e o
cristianismo subverteram os mecanismos de punição por meio da introjeção de uma
figura divina cindida entre amor e fúria. Oliveira e Castro (2009) supõem a

existência de uma tensão interior no povo hebraico, fruto do medo da perda


do amor desse Deus protetor e do medo de uma punição decorrente do não

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cumprimento de suas Leis – ou seja, estados de consciência decorrentes da
culpa diante da divindade (2009, p.256).

Em Freud (2010), há uma complexa e tensa relação entre o indivíduo e a


civilização em que um polo é sempre ameaça para o outro polo. As leis e regulações
culturais representariam um feito ante os impulsos do indivíduo e sem elas não haveria
por que submeter os impulsos a alguma regulação que não ao princípio de prazer. Não é
o que vemos nas performances de Madonna, o conflito entre indivíduo e grupo?
Amor e ódio estão presentes nessa relação com a criatura divina. O amor está
ligado à proteção e ao reconhecimento enquanto filho e o ódio está ligado ao constante
cerceamento de impulsos e ao medo frente à possibilidade de castigo em caso de
descumprimento da lei. Ou seja, mantém-se uma relação ambivalente com o objeto.
Porém, é interessante destacar que tanto o amor como o ódio constituem-se como
aspectos de um mesmo destino pulsional (FREUD, 2010). Em ambos os casos existe,
por parte do sujeito, um investimento sobre o objeto.
Do ponto de vista psicológico, o desenvolvimento de uma instância interna
vigilante e repressora representou um passo a mais da civilização. E nesse sentido o
sentimento de culpa mantém estreita relação com a agressividade, conforme assinala
Freud: “O Super-eu atormenta o Eu pecador com as mesmas sensações de angústia e
fica à espreita de oportunidades para fazê-lo ser punido pelo mundo exterior” (FREUD,
2010, p. 61). Freud aponta que uma das maneiras encontrada pela cultura para a sua
preservação e também para o controle dos impulsos agressivos do indivíduo foi a
introjeção de um vigia no psiquismo e que se alimenta da mesma cota agressiva que
seria dirigida para o mundo externo.

A agressividade é introjetada, internalizada, mas é propriamente mandada de


volta para o lugar de onde veio, ou seja, é dirigida para o próprio Eu. Lá é
acolhida por uma parte do Eu que se contrapõe ao resto como Super-eu, e
que, como “consciência”, dispõe-se a exercer contra o Eu a mesma severa
agressividade que o Eu gostaria de satisfazer em outros indivíduos. À tensão
entre o rigoroso Super-eu e o Eu a ele submetido chamamos de consciência
de culpa; ela se manifesta como necessidade de punição. A civilização
controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao
enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância em
seu interior, como por uma guarnição numa cidade conquistada (FREUD,
2010, p. 59).

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Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.9, nº1, edição de Julho de 2020
O Super-eu, instância interna, regula o sujeito controlando o perigoso prazer em
agredir. Freud (2010) assevera que há sujeição à instância superegoica porque há o
medo primordial do desamparo que a perda do amor pode acarretar. Como dito
anteriormente, há uma relação ambivalente de amor e ódio com o objeto. Se o indivíduo
perde o amor desse objeto protetor, então ele correrá o risco de ser lançado ao
ostracismo e ficar desamparado, vulnerável frente aos perigos do mundo.

Se perde o amor do outro, do qual é dependente, deixa também de ser


protegido contra perigos diversos, sobretudo expõe-se ao perigo de que esse
alguém tão poderoso lhe demonstre a superioridade em forma de castigo
(FREUD, 2010, p.60).

A partir dessas perspectivas não é difícil compreender que as relações entre sexo
e culpa, em um contexto religioso, são complexas porque expõem, em determinados
sujeitos, os núcleos de desamparo que sustentam a dependência junto aos objetos que
garantiriam a proteção contra os males. O que é sentido como perigoso, como mal, é
resultado de um processo interno que não está devidamente integrado ao psiquismo e,
por isso, é projetado e sentido como se fosse de fora. São aquelas caricaturas que
significam o desejo erótico como sendo „o demônio‟, „o inimigo‟, „a provação divina‟,
ou seja, sempre algo que atua a partir do exterior.
Assim, é possível traçar um paralelo entre esse modelo de funcionamento
psíquico descrito por Freud (2010) e as regras do cristianismo institucionalizado. Em
diferentes denominações religiosas encontramos as mais variadas formas de predições e
controle sobre a vida dos fiéis, mas invariavelmente o inferno é o lugar do eterno
sofrimento àqueles que não se sujeitam aos mandamentos divinos. A transgressão
cometida coloca o homem entre o paraíso e o inferno, em uma corda bamba em que
cada um, a sua maneira e com suas condições psíquicas, lidará com as ameaças feitas.
Madonna trabalha nesse limiar, desafiando e dando passos ousados na medida em que
fala dos efeitos na carne da vivência dessa constante ameaça e desse amor caro (e
castrador).
Na perspectiva da realidade psíquica basta que o indivíduo deseje ou almeje
fazer algo para que o superego (ou Super-eu) faça uso da censura e da punição severa
por meio do sentimento de culpa. Esse é um ponto chave para também entendermos o

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modo como diferentes indivíduos se relacionam com suas doutrinas religiosas. O que
pode se configurar como motivo de tormento para um, para outro é algo pífio ou
irrelevante. Mas é comum vermos, entre aqueles que se queixam do sofrimento na sua
relação com o divino, o peso das fantasias e do desejo, que sequer são postos em
prática, a produzir sofrimento decorrente da violenta censura e punição das instâncias
internas (o Super-eu e os ideais do eu).
Uma instância regulatória dentro do próprio sujeito representaria uma ferramenta
ideal de controle e pouparia outras pessoas de exercer continuamente um papel de
vigilância. Mas devido ao excesso de agressividade e a ferocidade sitiada na forma de
um Super-eu, esse aparato fracassa em seu trabalho de regulador social. Um fracasso
que é concomitante ao adoecimento do eu.
O neurótico sente culpa por fazer e deixar de ter feito, mas também sofre por ter
pensado ou desejado fazer ainda que talvez nem tenha a consciência do desejado.

Originalmente a renúncia pulsional é resultado do medo à autoridade externa;


renuncia-se a satisfações para não perder o seu amor. Tendo feito essa
renúncia, estamos quites com ela, por assim dizer; não deveria restar
sentimento de culpa. É diferente no caso do medo ante o Super-eu. Aí a
renúncia instintual não ajuda o bastante, pois o desejo persiste e não pode ser
escondido do Super-eu (FREUD, 2010, p. 62).

Portanto, em Freud (2010) o sentimento de culpa está intimamente relacionado


com o medo, medo da autoridade externa, medo da punição, medo da perda do amor e,
sobretudo o medo do desamparo em sua forma mais radical. E está relacionado com as
cotas agressivas que o eu lança sobre o objeto e que retorna sob a forma de punição.
Freud afirma que o papel das religiões ante o mal-estar provocado pelo
sentimento de culpa inerente à civilização é redimir a humanidade desse sentimento que
ganhou o nome de pecado (FREUD, 2014). Em “O mal-estar na civilização”, Freud
escreve:

A partir do modo como se atinge essa redenção no cristianismo, com a morte


sacrificial de Cristo que toma para si a culpa comum a todos, inferimos qual
poderia ter sido a primeira ocasião em que se adquiriu essa culpa original,
com a qual também a cultura teve início (FREUD, 2010, p.69).

Ao longo do desenvolvimento da teoria psicanalítica, Freud não perdeu de vista


a dimensão social e cultural no processo de constituição do psiquismo, de modo que
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toda psicologia individual é uma psicologia social (FREUD, 2011). Nesse sentido, ao
propor um conceito de Super-eu e mantendo-se fiel à ideia de que os grupos também
manteriam estruturas semelhantes ao do aparelho psíquico, Freud afirmou que:

O Super-eu da cultura, exatamente como o do indivíduo, institui severas


exigências ideais, cujo não cumprimento é punido mediante “angústia de
consciência”. E aqui se produz mesmo o caso curioso de os processos
psíquicos em questão serem para nós mais familiares e mais acessíveis à
consciência, quando vistos no grupo, do que podem sê-lo no indivíduo
(FREUD, 2010, p. 75).

Uma das proposições de Freud (2010) é a de que a civilização repousa sobre a


renúncia pulsional dos indivíduos. Mezan lembra que essa renúncia não é um ato fácil,
mas sim custoso, pois as pulsões constituem-se como “forças cegas que tendem à
realização de fantasias, consecução de desejos, ao alcance e à fruição de objetos – isto é,
são forças a impelir o indivíduo a determinando comportamentos na realidade”
(MEZAN, 2002, p. 355).
Mezan (2002) mostra que à época do desenvolvimento da psicanálise, no início
do século XX, a realidade histórica e social em que Freud estava inserido era muito
diferente da contemporaneidade. Nesse sentido é fundamental que levemos em conta a
perspectiva histórica, social e política na constituição das subjetividades até mesmo para
que compreendamos criticamente o contexto de desenvolvimento teórico. Não é
possível que o sujeito reprima toda sua energia pulsional, uma vez que são necessárias
outras vias de escoamento como a sublimação e também a satisfação direta. A visão
freudiana sobre a sociedade de Viena é descrita em “A moral sexual “cultural” e o
nervosismo moderno” como uma sociedade que operava pelo excesso de recalque, de
repressão e pela falta de gratificações diretas, de modo que o aprisionamento pulsional
excessivo precipitaria o surgimento de sintomas e sofrimento (FREUD, 2015c).
Tendo como pano de fundo o modo psicanalítico de pensar os fenômenos
subjetivos e culturais, retornemos à produção de Madonna. Podemos observar o conflito
entre diferentes ideais e instâncias operando nas histórias que ela conta. Por exemplo, na
Rebel Heart não se trata de uma total repressão, pois mesmo em sonho a energia
pulsional circula e algum prazer é obtido, ainda que posteriormente a personagem seja
tomada de angústia. É importante frisar que a satisfação pulsional se dá por meio de

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objetos que existem na cultura; é a civilização que irá fornecer objetos de satisfação
para os membros da comunidade. Nesse sentido, destacam-se as palavras de Mezan:

Com efeito, tudo o que se apresenta como capaz de satisfação do desejo


humano é fruto de um trabalho social. Portanto, a relação entre cultura e
pulsão não pode ser apenas de cunho coercitivo – coagir as pulsões para que
elas se dirijam ao trabalho ou para as relações sociais permitidas e
estimuladas, que se baseiam em última análise no erotismo inibido quando ao
fim –, mas deve obrigatoriamente incluir um aspecto sedutor, propiciador,
que sem dúvida é em parte satisfatório (no sentido de oferecer coisas que de
fato satisfazem, de algum modo, os desejos agressivos e sexuais do ser
humano, bem como os seus anelos narcísicos) (MEZAN, 2002, p.359).

Encontramos consonâncias entre o posicionamento de Mezan (2002) e o de


Foucault (2017) quando este compreende que a mudança no sistema de produção
passou a incitar e excitar. Mezan (2002) afirma que na sociedade contemporânea não
existe de forma alguma um excesso de repressão:

Como previram Adorno, Horkheimer e Marcuse, o chicote foi substituído


pela cenoura, e nos países onde o capitalismo chegou à maturidade, cada vez
mais a coerção social se faz por meio extremamente sofisticados, diluídos, de
aparência libertária (MEZAN, 2002, p. 362).

Se por um lado a falta de objetos de satisfação provoca sofrimento, por outro o


excesso de objetos e a felicidade compulsória se constitui como imperativo de gozo
também angustiante, em que o pleno, o ideal e o desejável se constituem como ideais a
serem alcançados a todo o custo. Apesar disso, nos roteiros de Madonna performados o
sofrimento das personagens não é da ordem de uma “sublimação administrada e
regulada”3. Ou seja, não se trata de um sofrimento em decorrência da impossibilidade
de alcance de um prazer supremo – idealizado. Não se trata de um sofrimento vinculado
aos mandatos da categoria “querer é poder!”. Pelo contrário, é justamente em
decorrência de querer e não poder, visto que o ideal em jogo é da ordem restritiva: é
preciso encaixar-se a determinado modelo que restringe as modalidades de gozo e
satisfação.
Não podemos cair na tentação de encerrar as relações que circulam entre o
religioso e o sexual apenas nos seus aspectos supergoicos a eles relacionados. Sabemos
que o psiquismo constitui-se em meio a diversos mecanismos, tempos e movimentos.
3
Expressão de Hebert Marcuse utilizada por Renato Mezan (2002, p. 363).
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Portanto, o que estamos apresentando até então é apenas um exercício do pensamento,
uma ampliação de horizontes a partir da experiência estética na esperança de que essa
ampliação contribuía com o alargamento do campo simbólico-interpretativo que é
fundamental para a prática clínica.
Outro ponto não pode deixar de ser mencionando. Parece-nos que os conflitos
que Madonna representa mantêm relações com idealizações. Em que elas se
constituem? O sujeito no seu desenvolvimento, na relação com seus objetos, realiza
movimentos de introjeção (e projeção) que serão fundamentais para a constituição das
instâncias psíquicas e na formação de uma realidade psíquica. Os movimentos de
introjeção dizem respeito fundamentalmente aos processos de identificação. Estes
processos estão relacionados com os enlaces afetivos e emocionais com outras pessoas.
E esses enlaces afetivos são capazes de capturar esses objetos e seus traços podem ser
introjetados auxiliando a constituição do próprio eu (LAENDER, 2005).
A psicanálise preconiza o caráter social da constituição psíquica e o mecanismo
da identificação exerce papel fundamental nessa constituição. Da perspectiva externa,
observamos que a cultura oferece os objetos que satisfazem a pulsão. Internamente,
observamos que são esses objetos que constituem o psiquismo e propiciam a
emergência de um Eu. A visão psicanalítica é de que o humano se constitui a partir de
outras partes de outros também falantes, seres da cultura. Os processos identificatórios
não dizem respeito somente ao se identificar “positivamente” com algo ou alguém
(como o estereótipo encontrado no jargão popular), mas também das relações onde
moções de agressividade e desconforto estão envolvidas. As situações de sofrimento e
queixas, sobretudo as dirigidas ao outro, podem nos apontar a presença de processos
identificatórios operando. É possível estar identificado a objetos que, em conflito com
outras demandas, acarretam sofrimento. É o que Madonna parece mostrar na Rebel
Heart Tour.
Alguns processos identificatórios parecem ser tão fortes que os afetos neles
envolvidos provocam sofrimento à medida que o amor devotado – a Deus, por exemplo
– se separa de seu componente agressivo que se torna inconsciente. A relação entre
esses aspectos afetivos e os ideais buscados se relaciona com a imensa culpa que
algumas pessoas religiosas sentem. Quanto maior o ideal a que se está identificado tão

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Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.9, nº1, edição de Julho de 2020
mais forte será o sofrimento diante da inalcançabilidade. Isso porque o componente
agressivo das fantasias que é barrado retorna para o interior do Seuper-eu que pune o eu
na mesma intensidade em que ele gostaria de satisfazê-la. Freud (2010) afirma que as
queixas das pessoas religiosas e o peso que sentem ao afirmarem serem pecadores não
encontra correspondente no plano da realidade compartilhada, mas sim no da realidade
psíquica delas uma vez que estão em jogo justamente as altas idealizações com as quais
o sujeito está identificado.
Pela via da identificação, os impulsos agressivos e as moções de ódio que as
encenações de Madonna apresentam como voltadas para a Igreja são também
representações de ataques voltados para si. Emerge nessas cenas de ataque um sentido
de castigo a quem profana o sagrado. Um castigo que alivia a culpa e o mal-estar de ter
ido tão longe na transgressão. Todavia, o mal-estar e a culpa só podem se fazer valer
como afetos justamente porque a profanação do sagrado conserva ao avesso e
paradoxalmente mantem viva a legitimidade simbólica do que se está a profanar.
A perspectiva psicanalítica dessas relações que envolvem sofrimento e ao
mesmo tempo permanência junto ao objeto/contexto que faz sofrer, mesmo quando o
sujeito pode disso se desvincular, nos diz de uma rede afetiva mais complexa que o
simples “querer parar de sofrer”. Já dissemos que os sujeitos se constituem a partir das
identificações por meio dos objetos que a cultura oferece. Então é possível – e lógico –
que, em situações como as que Madonna nos mostra, o desvencilhamento de
determinados aspectos sentidos como dolorosos é difícil porque o sujeito também
investe pulsionalmente aquele objeto, mantendo uma ligação com ele. Uma parte do eu
é perdido quando se promove um desinvestimento. Pensemos que a mesma comunidade
religiosa que porta uma série de imposições e normas de conduta também dá algum
sentido e pertencimento para os membros do grupo. Em situações onde o sujeito dá um
passo em direção a outros rumos incompatíveis com os ideais e demandas do grupo, ele
precisa fazer um trabalho de desinvestimento daquele objeto, redirecionando suas
moções pulsionais de amor e de ódio. Segundo Freud,

Um outro traço, que a religião conserva fielmente, já aparecia então no


totemismo. A tensão da ambivalência era grande demais para ser
contrabalanceada por algum dispositivo, ou as condições psicológicas não
são favoráveis à resolução desses opostos afetivos. Nota-se, de toda maneira,

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Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.9, nº1, edição de Julho de 2020
que a ambivalência intrínseca ao complexo paterno continua também no
totemismo e nas religiões em geral (FREUD, 2013, p. 151).

É o que Madonna faz na Blond Ambition Tour. Sua relação com a comunidade
religiosa e com o próprio divino é revista uma vez que houve uma mudança em relação
àqueles objetos. O trabalho de desinvestimento não é fácil nem pacífico, pois partes do
eu precisam se descolar e se desligar dos objetos com os quais havia uma relação de
identificação.
Com efeito, o que Madonna mostra na Blond Ambition Tour é muito menos uma
provocação por meio da masturbação e mais um conflito do qual participam as
obrigações que um filho de Deus tem, o seu lugar na comunidade e todas as idealizações
que esse lugar lança sobre o sujeito. As camadas de múltiplos sentidos e significados
permitem que possamos fazer essa leitura, apontando para aspectos sutis e
negligenciados, criando novos modos de compreensão e narrativas a partir de elementos
que passariam despercebidos.

ATO FINAL

Determinados aspectos, trechos ou fragmentos de uma performance, obra de arte


ou mesmo discurso ganham maior evidência em detrimento de outros aspectos da
mesma obra. Inicialmente é preciso pontuar que as produções de Madonna sempre
abordaram em maior ou menor nível as relações entre sexo e religião. Para esta
incursão, escolhemos dois trechos de duas turnês com 25 anos entre uma e outra. O que
possuem em comum, além da performatividade em torno do sexual e do religioso, é
percepção da existência de um elemento intertextual e discursivo que poderia ser
nomeado como mal-estar ou culpa apontado ao longo deste trabalho.
Este elemento passa(ria) despercebido justamente porque o enfoque recai sobre a
irreverência do sexual e seu aspecto espetacular e extravagante. Masturbação, orgasmo,
orgia e homossexualidade quando levados ao main stream em uma ópera rock tomam a
atenção dos espectadores, desviando-os do contato e da percepção de outros elementos
também presentes nessas performances. O tom da narrativa diz mais do espectador do
que do artista.

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Revista Tropos: Comunicação, Sociedade e Cultura, v.9, nº1, edição de Julho de 2020
A despeito das semelhanças, as duas turnês apresentam suas diferenças
narrativas ao proporem diferentes saídas ou resoluções para os conflitos narrados. Na
Blond Ambition Tour parece haver o contato com o mal-estar e a reafirmação de um
desejo autêntico, inclusive da compreensão de suas derivações. Já na Rebel Heart Tour
há a busca por apaziguamento a partir de uma perspectiva externa por meio do divino e
seus representantes, em que a mensagem apresentada segue na direção da alienação do
próprio desejo.
Like a virgin, na Blond Ambition, revela um elemento de susto que nos remete a
algo que seria da ordem da reencenação da transgressão que configurou o pecado o
original. “God?!” é a expressão do susto infantil quando se dá conta do interdito e que
promove uma queda que é retratada de diversos modos na cultura judaico-cristã. Essa
queda é retratada na mitologia quando Lúcifer rebela-se contra o criador e cai dos céus;
quando Adão e Eva, em transgressão, caem do paraíso; quando o próprio pecado
original é tomado como: A queda primordial. A queda representaria o deslocamento,
significação ou aquisição de algum saber sobre algo, seja o saber sobre o bem e o mal,
seja o saber sobre o desejo. A queda representa também a castração que o sujeito
vivencia como medo da perda de um lugar simbólico. O insight de Madonna diz do olho
que tudo vigia e que aponta para a possibilidade de perda do amor divino, estando
desprotegida, sujeita aos perigos e ameaças do mundo.
Madonna no conjunto de performances da Blond Ambition não traça um
caminho “feliz”, por assim dizer. Os arranjos musicais, sobretudo em Papa Don’t
Preach, e a maneira como a narrativa se expressa nos dirigem para algo ambíguo. O
caminho traçado é na direção da reafirmação de uma transgressão, do desejo e de um
trabalho de luto frente ao desinvestimento dos objetos perdidos ao longo do tempo,
mostrados durante a performance. O tom trágico ou frustrante, por assim dizer, se dá na
medida em que uma solução mais elaborada para os conflitos não significa
necessariamente a felicidade. Madonna narra uma história que não tem compromisso
com a eliminação do mal-estar a todo e qualquer custo, afastando-se de uma estrutura
mais ou menos consolidada em produções de consumo popular que, em sua maioria,
prezam por um “final (dito) feliz” – ou desprovido de elementos angustiantes que
fiquem suspensos, ou em aberto.

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Por outro lado, ao olharmos para a Rebel Heart Tour, somos levados a
interpretar a cena como a de uma estrutura onírica tal qual um pesadelo. Aos olhos e
ouvidos mais desavisados essa performance seria entendida puramente como
provocação e transgressão, novamente desviando as atenções para outros elementos que
não a angústia e o sofrimento inerentes à narrativa apresentada. Madonna em toda a sua
irreverência, chamando a atenção e chocando o público, na verdade encena uma história
que também é movida por mal-estar, por um peso difícil de livrar-se, visto que esse
carrasco que a castiga encontra-se dentro e não fora dela.
A narrativa dela nessa turnê dá pistas de que a personagem alguma coisa sabe de
seus conflitos, uma vez que após a cena onírica ela procura algum apaziguamento. Sua
reação não é de tratar aquilo como algo externo, como uma projeção ou invasão do
demônio. Pelo contrário, por saber que há algo que é dela naquela cena deliciosamente
pavorosa é que ela procura livrar-se por meio da confissão, da penitência, depurando a
carne. Esse inimigo, a princípio até significando como externo, não é tão desvencilhado
do sujeito que diz dele. Madonna diz “pegue meus pecados e leve-os para longe.
Ensine-me a rezar. Tenho nadado no oceano até quase me afogar” (MADONNA, 2015).
Seu suplício, em primeira pessoa, não coloca o mal como algo externo a ela que vem
para tentar, mas sim como algo que brota de dentro do corpo. Ao refugiar-se na religião,
sua atitude não é de negação da cena do desejo enquanto algo dela, mas sim a afirmação
de uma postura de alienação daquilo que causa perturbação, nada querendo saber disso.
Da perspectiva da técnica psicanalítica, a análise de produções artístico-culturais
colabora com um treinamento da escuta dos elementos que seriam tomados como
irrelevantes e sem importância, auxiliando em modos de articulação com casos da
clínica que encontram ressonância em outras produções humanas. O trabalho consiste
em poder fazer esses elementos que passariam despercebidos falarem.

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Recebido em 05 de maio de 2020


Aprovado em 05 de junho de 2020

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