Artigo Privatização

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A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE VIA A

COMPLEMENTARIDADE DO SETOR PRIVADO AO PÚBLICO

Clara Morgana Torres da Rocha Silva 1


Gildete Ferreira da Silva2
Maria Valéria Costa Correia3
Viviane Medeiros dos Santos4

RESUMO: Este artigo trata dos interesses do capital expressos no


âmbito da política de saúde brasileira, no contexto de crise do capital,
contrarreformas do Estado e de afronta à Constituição de 1988.
Abordamos, particularmente, como esses interesses tem se
apresentado na política de saúde brasileira, através da privatização
do SUS, pela complementaridade do setor privado ao público, via as
contratualizações e convênios firmados com o setor
filantrópico/privado.

Palavras-chave: Contrarreforma; Sistema Único de Saúde;


Privatização;

ABSTRACT: This article deals with the interests of capital expressed


within the scope of Brazilian health policy, in the context of the capital
crisis, counter-reforms of the State and of affront to the Constitution of
1988. We particularly address how these interests have been
presented in Brazilian health policy, Through the privatization of the
SUS, by the private sector's complementarity with the public, through
contractual agreements and agreements with the philanthropic /
private sector.

Keywords: Counter-Reformation; Unified Health System;


Privatization;

1
Bacharela em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Pesquisadora do Grupo
de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais.
2
Graduanda em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de
Alagoas, integrante do Grupo de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Controle Social e
Movimentos Sociais.
3
Assistente Social. Prof.ª. Dr.ª da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos
Sociais, vinculado ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Serviço Social da Ufal.
4
Assistente Social da Prefeitura de Delmiro Gouveia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e
Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais, vinculado ao Programa de
Pósgraduação da Faculdade de Serviço Social da Ufal.
I. INTRODUÇÃO

O estudo aqui apresentado faz parte de resultados de pesquisas que têm sido
desenvolvidas - projetos de iniciação científica, Trabalho de Conclusão de Curso,
dissertação e teses - a partir do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas, Controle Social e
Movimentos Sociais, vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de
Alagoas.
Em nosso estudo, evidenciamos que o processo de captura do fundo público
pelo setor privado na área da saúde não é recente, desde o século XX, o Estado brasileiro
fomentava a compra de serviços de saúde ao setor privado ao invés da ampliação dos
serviços públicos de saúde. Mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e
da aprovação das leis orgânicas da saúde, o setor privado conseguiu manter seus
interesses na prestação dos serviços de saúde na forma de caráter “complementar” seja
através de contratos ou convênios.
Com o aprofundamento da crise do capital nos anos de 1990, e sua caçada por
novos nichos de acumulação, a atuação do Estado passa a ser redefinida fortalecendo os
interesses do capital, mediante as orientações neoliberais cristalizadas nas contrarreformas
as quais tem impactado nas políticas sociais. No que se refere a política de saúde, tem se
ampliado cada vez mais a atuação do setor privado na prestação de serviços públicos, no
caso da complementaridade do setor privado ao SUS, esta tem sido cada vez mais inversa,
se tem privatizado o fundo público da saúde por dentro do SUS.

II. PROCESSO HISTÓRICO-SOCIAL DA CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE


PÚBLICA NO BRASIL

Para compreendermos a processualidade que levou a constituição da política de


saúde brasileira se faz necessário contextualizarmos momentos importantes de lutas e
resistências dos movimentos populares de saúde.
Em 1923, com a Lei Eloy Chaves5, foram criadas as Caixas de Aposentadorias e
Pensões (CAPs) que, segundo Correia (2005, p.154), “eram um contrato compulsório
contributivo que tinha como função a prestação de benefícios, o pagamento de pensões e
aposentadorias, e a assistência médica”. Sendo assim, só tinha direito a assistência médica
quem contribuía com as CAPs, ou seja, quem tinha vínculo empregatício ou aposentado,
sendo o atendimento médico ofertado pelas empresas por intermédio do setor privado. “As
CAPs eram financiadas, pelas empresas empregadoras e pelos empregados. Elas eram
organizadas por empresas, de modo que só os grandes estabelecimentos tinham condições
de mantê-las” (BRAVO, 2005, p.03)6.
De acordo com Correia (2005, p. 154), as CAPs foram absorvidas pelos
Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) que são entidades autárquicas com a
presença direta do Estado e se organizavam na forma de categorias profissionais. A
contribuição deixa de ser bipartite, que seria a contribuição direta do empregado e do
patrão, e passa a ser tripartite, com a contribuição do empregador, do empregado e do
Governo. Desta forma, o Estado só oferecia os serviços de saúde para quem estava ativo
no mercado de trabalho, pois tinha a natureza contributiva e o direito ao benefício estava
vinculado à condição de um contrato de trabalho, deixando o resto da população sob o
atendimento de entidades filantrópicas.
Na década de 1960, com o regime militar, os IAPs foram absorvidos e
transformados no Instituto Nacional de Previdência Social7 (INPS) que deu continuidade à
política de saúde ligada à previdência e com caráter privado.

5
Decreto Legislativo no 4.682, de 24 de janeiro de 1923, que criou em cada uma das empesas de
estradas de ferro existentes no país uma Caixa de Aposentadoria e Pensões para os respectivos
empregados.
6
Este texto é uma versão revista e ampliada dos artigos: “As Políticas de Seguridade Social Saúde”.
In: CFESS/ CEAD. Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo III: Política Social.
Brasília: UnB- CEAD/ CFESS, 2000 e “A Política de Saúde no Brasil: trajetória histórica". In:
Capacitação para Conselheiros de Saúde - textos de apoio. Rio de Janeiro: UERJ/DEPEXT/NAPE,
2001.
7
Segundo Oliveira, Araújo, Cecílio “O INPS consolida o componente assistencial, com marcada
opção de compra de serviços assistenciais do setor privado, concretizando o modelo assistencial
hospitalocêntrico, curativista e médico-centrado, que terá uma forte presença no futuro SUS”.
Disponível em:<
http://www.unasus.unifesp.br/biblioteca_virtual/esf/1/modulo_politico_gestor/Unidade_4.pdf>
Acessado em: 27 de fevereiro de 2016.
Na década de 1970, vários movimentos sociais brasileiros pediam uma
reavaliação da política de saúde que vigorava no Brasil, e com forte influência da reforma
sanitária italiana, formou-se então no país, resultados de lutas sociais, o Movimento de
Reforma Sanitária Brasileira, que serviu como o primeiro passo para uma reformulação da
política de saúde, que inicialmente se intitulou de “Movimento Preventivista”. Segundo
Arouca (1975, p. 239), esse foi

Um movimento ideológico que tinha como projeto a mudança da prática médica


através de um profissional médico que fosse imbuído de uma nova atitude. Como
projeto de mudança da prática médica, a medicina preventivista representou uma
leitura liberal e civil dos problemas do crescente custo da atenção médica nos EUA e
uma proposta alternativa à intervenção estatal, mantendo a organização liberal da
prática médica e o poder médico. (AROUCA, 1975).

A reforma sanitária italiana,

Apresentou uma crítica ao sistema de saúde existente, e reflexões sobre o longo e


fértil processo, de construção e implantação da reforma sanitária italiana, concebida
e forjada no decorrer da árdua luta política, travada pelo Partido Comunista Italiano
(PCI) – principal formação de esquerda italiana e maior partido comunista da
Europa Ocidental -, em conjunto com a esquerda, com o Partido Socialista Italiano,
sindicatos e os movimentos populares. Em 1695, o PCI já apresentava propostas de
lei e expressava os principais resultados da crescente mobilização popular, e dos
trabalhadores, em torno da questão (BERLINGUER, 1988, apud MEDEIROS, 2008).

De acordo com Medeiros (2008, p. 143) o “Movimento Sanitário apresentou-se


como principal articulador das lutas pela saúde, protagonizando em conjunto com outros
movimentos populares”. No Brasil, com o desenvolvimento das lutas sociais impulsionadas
pelo processo de redemocratização do país e por um sistema de saúde único, universal,
gratuito e igual para todos, durante o contexto de ditadura militar, o movimento da reforma
sanitária se estabeleceu e ganhou forças com os sindicatos dos médicos, o Partido
Comunista Brasileiro (PCB) que esteve à frente na condução estratégica, e os movimentos
sociais populares. Essa articulação se iniciou com o debate da 8ª Conferência Nacional de
Saúde, em março de 1986, a qual teve como eixos centrais: a saúde como direito, a
reformulação do sistema nacional de saúde, e o financiamento setorial da saúde. Arouca
(1998) avaliou que estava
Em curso uma reforma democrática não anunciada ou alardeada na área da saúde.
A Reforma Sanitária brasileira nasceu na luta contra a ditadura, com o tema Saúde e
Democracia, e estruturou-se nas universidades, no movimento sindical, em
experiências regionais de organização de serviços. Esse movimento social
consolidou-se na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, na qual, pela primeira
vez, mais de cinco mil representantes de todos os segmentos da sociedade civil
discutiram um novo modelo de saúde para o Brasil. O resultado foi garantir na
Constituição, por meio de emenda popular, que a saúde é um direito do cidadão e
um dever do Estado (AROUCA, 1998).

Reconhecida como o ápice do movimento que lutava pela reestruturação da saúde


no Brasil, na medida em que defendia também a redemocratização do país, a 8ª
Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986, que apresentou como eixos
centrais: a saúde como direito, a reformulação do sistema nacional de saúde, e o
financiamento setorial da saúde; colocando-a num patamar de direito universal, norteando
de que forma deveria ser implementado o novo sistema de saúde brasileiro e definindo,
inicialmente, como se daria seu financiamento, se a sua estatização ocorreria de forma
imediata ou progressiva.
Apesar da proposta de estatização imediata ter sido recusada, ficou claro o desejo
dos delegados que faziam parte da 8ª Conferência e dos demais participantes, que havia
uma necessidade do fortalecimento do setor público. Existia certa urgência de o Estado
assumir a saúde garantindo condições dignas de acesso de forma universal e igualitária.
Outro assunto bastante discutido na 8º CNS e que consta em seu relatório final, foi a
separação da Saúde e Previdência, pois havia uma concepção de que a previdência deveria
se responsabilizar naquele momento pelo “Seguro Social”, como pensões, aposentadorias e
demais benefícios.
Em consenso com as deliberações da 8ª CNS, a partir do ano de 1986, iria haver
mudanças na política de saúde. Ela então passaria a ser dever do Estado e os recursos que
até então eram entregues ao INPS, agora deveriam ser destinados a um novo órgão gestor
constituindo-se um Fundo Nacional de Saúde (FNS). Esse Fundo seria formado por
recursos derivados do Orçamento da Seguridade Social, sendo o Estado responsável pelo
financiamento do novo sistema, que seria descentralizado na gestão dos serviços e traria o
fortalecimento dos municípios.
A relação entre política social e econômica foi bastante tratada na 8ª CNS,
consolidando as ideias do Movimento da Reforma Sanitária, que nesse momento ganhava
forças na construção de uma nova constituinte. O relatório da 8ª CNS nesse momento
contribuiu com o debate de construção da Constituição Federal de 1988, trazendo alguns
princípios do Movimento de Reforma Sanitária, como a universalidade8, a equidade9, a
integralidade10.
Nesse sentido, sob fortes influências dos movimentos sociais, é promulgada a
Carta Magna de 1988, que em seu art. 196 assegura a saúde como direito de todos e dever
do Estado, garantida através de políticas sociais e econômicas visando a redução dos
riscos de doenças e outros agravos, com serviços de promoção, proteção e recuperação.
Contudo, no art. 199 da CF nos deparamos com uma fresta que permite que a assistência à
saúde seja livre à inserção da iniciativa privada, sendo regulamentada pelo “§ 1º As
instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de
Saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo
preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos” (BRASIL, 1988).
Compondo o arcabouço legal do SUS, junto à CF de 1988, temos as leis federais
nº 8.080 e nº 8.142. A primeira, criada em 19 de setembro de 1990, “dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”. A segunda, nº
8.142, de dezembro de 1990, “dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do
Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos
financeiros na área da saúde e dá outras providências”.

8
É a determinação de que todos os brasileiros tenham direito ao acesso as ações de saúde, sem
discriminação de raça, cor, religião, orientação sexual (FIOCRUZ, 2016). Disponível em:<
http://pensesus.fiocruz.br/universalidade> Acessado em: 28 de fevereiro de 2016
9
Tem relação com a igualdade e a justiça, reconhece as condições devida e saúde de cada indivíduo
de acordo com suas necessidades e passa pelas diferenciações sociais que devem atender a
diversidade. Da norte as políticas de saúde reconhecendo a necessidade de grupos específicos
como: Negros, Ciganos, Indígenas, idosos, pessoas em situação de rua, deficientes e outros
(FIOCRUZ, 2016). Disponível em:< http://pensesus.fiocruz.br/equidade> acessado em: 28 de
fevereiro de 2016.
10
Ação em saúde de forma integral, com tratamento digno, acolhimento e de qualidade (FIOCRUZ,
2016). Disponível em:< http://pensesus.fiocruz.br/integralidade> acessado em: 28 de fevereiro de
2016.
O parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.080/90, salienta a abertura do SUS para
ser complementado pela iniciativa privada “Quando as suas disponibilidades forem
insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o
Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa
privada”, isto é, quando o serviço público de saúde não tiver como suprir a necessidade do
usuário, o SUS irá recorrer à iniciativa privada como forma complementar para oferecer seus
serviços. Assim como diz no art. 4º, desta mesma lei em seu parágrafo segundo “a iniciativa
privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar”. E
para garantir que essa prestação de serviços não venha com finalidades lucrativas, esta lei
em seu art. 38 afirma que “não será permitida a destinação de subvenções e auxílios a
instituições prestadoras de serviços de saúde com finalidade lucrativa”.

III. PRIVATIZAÇÃO VIA A COMPLEMENTARIDADE INVERTIDA

Observa-se que o processo histórico da classe trabalhadora junto com o


movimento da reforma sanitária conseguiu êxito na construção do SUS, porém, diante do
contexto de crise do capital, que no país se apresentou como uma crise fiscal do Estado
ainda no final dos anos 80, as políticas públicas, em especial a política de saúde passou por
um processo de contrarreforma, como explicitam Behring e Boschetti, “reformas orientadas
para o mercado, num contexto em que os problemas no âmbito do Estado brasileiro eram
apontados como causas centrais da profunda crise econômica e social vivida pelo país
desde o início dos anos 1980” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p.148).
Essa contrarreforma que tem atacado ao SUS é considerada um retrocesso,
como explica Santos (2015, p.95), “o processo de regressão que se está a designar como
contrarreforma é, por sua vez, o processo de desmonte da reforma sanitária brasileira e,
consequentemente, do SUS”. Duriguetto e Montaño (2011), vão se referir à Reforma do
Estado como parte da estratégia do grande capital em busca da reposição de suas taxas de
lucro.
Assim concebeu-se como parte do desmonte das bases de regulação das relações
sociais, políticas e econômicas [...]. Está articulada à reestruturação produtiva, à
retomada das elevadas taxas de lucro, da ampliação da hegemonia política e
ideológica do grande capital, no interior da reestruturação do capital em geral – tem
assim um caráter político, econômico e ideológico que visa alterar as bases do
Estado de bem-estar social e do conjunto da sociedade, construídas no interior de
um ‘pacto social-democrata’, no período do pós-guerra que conformaram o
‘regimento de acumulação fordista-keynesiano’ (DURIGUETO; MONTAÑO, 2011).

Como forma de enfrentamento da crise, o sistema capitalista vai buscar saídas


para sua reorganização “baseada na liberdade do mercado com um novo padrão de
acumulação flexível e com a destruição dos direitos sociais e trabalhistas” (CORREIA, 2007,
p.14). E como o fundamento da reestruturação do capital, se fortalece o paradigma da
liberdade do mercado, com incidência na política social com caráter seletivo, focalista e
privatista. Nessa perspectiva, a denominada “reforma” do Estado vai se dá voltada para a
racionalização de gastos na área social e para intensificar o setor privado nas ofertas de
serviços de bens coletivos.
De acordo com o Banco Mundial (1997 apud CORREIA, 2007, p. 17), “muitos
Países em desenvolvimento que deseja reduzir a magnitude de seu desmesurado setor
estatal devem conceder prioridades máximas a privatização”, deste modo,
desresponsabilizando o Estado de oferecer serviços diretamente. Segundo Correia (2007,
p. 17) seria a

Transferência do dever do Estado atuar sob as políticas sociais, e então, deixar com
que a sociedade civil, através da ajuda, filantropia, caridade como forma de atuar na
11
questão Social , motivando o processo de mercantilização da saúde por instituições
não estatais e o processo de repasses de verbas públicas para a iniciativa privada.
(CORREIA, 2007).

Segundo Behring (2003, p. 116), desde os anos de 1990 vem sendo realizada
uma proposta de reforma no Brasil que é iniciada especialmente no período do governo de
Fernando Henrique Cardoso. No entanto, o que estava em tendência seria uma
contrarreforma do Estado, por se tratar de sua desestruturação e consequentemente a
perda dos direitos da classe trabalhadora. A contrarreforma vai implicar nas políticas sociais
11
Segundo Iamamoto (1998, p.27) “A Questão Social é apreendida como um conjunto das
expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a
produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a
apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade”.
estatais e, principalmente, na política de saúde, em que se desloca a responsabilidade do
Estado para as instituições não estatais e na compra e venda de serviços, fortalecendo o
mercado e os interesses financeiros, causando prejuízos aos direitos sociais conquistados.
De acordo com Carneiro (2015, p. 131), desde 1970 o Estado já comprava
serviços oferecidos pelo setor privado, em especial os serviços de alta complexidade, sendo
facilitado pela Previdência Social. Hoje, mesmo depois da Constituição de 1988 ter
legalizado esse serviço como forma complementar, temos uma inversão de investimentos,
contemplando uma lógica comercial onde o dinheiro público passa a ser investido mais no
que é privado.

A expansão do setor privado por dentro do SUS é o que denominamos de


privatização. Ela vem se dando através da compra de serviços privados de saúde
‘complementares’ aos serviços públicos e, mais recentemente, através do repasse
da gestão do SUS para entidades privadas (CORREIA, 2012).

Em concordância com Silva (2015) e Correia e Santos (2015, p.121),


entendemos que a complementaridade é assegurada pela CF e trata-se da parceria público
e filantrópico/ privado que é feita através de convênios e/ou contratos12 com o propósito de
complementar os serviços oferecidos pelo setor público, quando este for insuficiente para
atender as necessidades do SUS. Segundo estudos das autoras, observa-se uma inversão
dos investimentos do fundo público da saúde, sendo esse repassado mais para o setor
privado contratado ou conveniado, ao tempo que se deixa o setor público sucateado.
De acordo com o Ministério da Saúde, os serviços de saúde são divididos por
níveis de atenção sendo eles separados em produção ambulatorial e produção hospitalar.
A produção ambulatorial é responsável pela atenção básica e de média complexidade e a
produção hospitalar pela média e alta complexidade. De acordo com a política nacional da
atenção básica os serviços prestados por esse nível de atenção correspondem a ações
de promoção da saúde, redução de danos, prevenção de agravos, monitoramento da
situação de saúde, tratamento e reabilitação. Os procedimentos de média complexidade

12
“No convênio, os partícipes visam exclusivamente a consecução de um determinado objeto, de
comum interesse. Por esse motivo é que não se admite a obtenção de qualquer vantagem que
exceda o interesse comum pretendido com o próprio objeto [...]. Já o contrato pressupõe interesses
opostos (diferenciados), existindo sempre uma contraprestação, um benefício, uma vantagem”.
(Súmula da consultoria Zênite nº 042,1999 apud TCU 2006, p.263)
são: procedimentos especializados realizados por profissionais médicos, outros de nível
superior e nível médio; cirurgias ambulatoriais especializadas; fisioterapia; terapias
especializadas; próteses e órteses; anestesia. E a alta complexidade fica responsável por:
assistência ao paciente portador de doença renal crônica; assistência ao paciente
oncológico; cirurgia cardiovascular; cirurgia vascular; assistência aos pacientes portadores
de obesidade (cirurgia bariátrica); entre outros.
Em nossa pesquisa, com base nos dados disponibilizados pelo DATASUS
(gráfico 1), na produção ambulatorial de 2010 a 2015, pudemos constatar o quanto do fundo
público da saúde foi destinado a rede pública e ao setor privado da saúde durante os
referidos anos.

Gráfico 1 – Produção Ambulatorial - SUS

60,00%
PRODUÇÃO AMBULATORIAL - SUS
54,40%
55,00%
51,30% 51,70%
50,80% 51% 50,30%
48,70% 49,20% 49%
50,00% 48,30% 47,70%
45,60%
45,00%

40,00%
2010 2011 2012 2013 2014 2015
PÚBLICO PRIVADO

FONTE: Elaboração própria, conforme os dados disponibilizados pelo DATASUS.

De acordo com o gráfico 1, podemos visualizar uma tendência de investimentos


na compra de serviços da produção ambulatorial ao setor privado, que a partir de 2012, a
compra desses serviços ao setor privado tem tido predominância.
No que se refere a compra de serviços na produção hospitalar, o gráfico 2,
abaixo, demonstra o percentual de recursos investido nos procedimentos hospitalares,
durante os anos de 2010 a 2015 tanto no setor público como no privado.
Gráfico 2 – Produção Hospitalar - SUS

80,00% PRODUÇÃO HOSPITALAR - SUS


62,30%
56,62% 56,83% 56,50% 56,30% 56%
60,00%
43,38% 43,17% 43,50% 43,70% 44%
37,70%
40,00%

20,00%

0,00%
2010 2011 2012 2013 2014 2015
PÚBLICO PRIVADO

FONTE: Elaboração própria, conforme os dados disponibilizados pelo DATASUS.

De acordo com os dados do gráfico 2 acima, pode-se observar que nos


procedimentos hospitalares do SUS, os recursos que são destinados as esferas públicas
correspondem em média a 45,58% e em contraponto temos 54,42% investido na compra de
serviços a rede privada/filantrópica. A tendência de investimento na compra de serviços ao
setor privado, traz como uma de suas consequências a precarização dos serviços de saúde
oferecidos pelo setor público, tendo em vista que tais recursos poderiam ser investidos na
ampliação da rede pública de saúde
O atual governo, através do ministro da saúde Ricardo Barros, vem fortalecendo
essa complementaridade com as entidades filantrópicas, em especial as Santas Casas. Em
setembro de 2016, o ministro anunciou a liberação R$ 516 milhões as Santas Casas e
demais hospitais filantrópico. Segundo o governo, “o repasse vai reforçar e qualificar os
serviços oferecidos em 255 instituições, localizadas em 19 Estados, que desempenham um
papel importante na assistência à população por meio do Sistema Único de Saúde (SUS)13”.
Em contrapartida, no que se refere ao SUS, o ministro anunciou que é preciso rever o
tamanho do SUS. “Vamos ter que repactuar, como aconteceu na Grécia, que cortou as

13
Acesso em: 23 de janeiro de 2017. http://www.brasil.gov.br/saude/2016/09/governo-federal-libera-r-
513-milhoes-a-santas-casas-e-hospitais-filantropicos
aposentadorias, e em outros países que tiveram que repactuar as obrigações do Estado
porque ele não tinha mais capacidade de sustentá-las14.”

IV. CONCLUSÃO

Observa-se então, a partir do estudo desenvolvido que a política de saúde no


Brasil, a partir de 1990, vem sofrendo incisivos ataques - como a utilização do fundo público
para a expansão do setor privado/filantrópico. O que coloca em xeque os pressupostos do
Movimento de Reforma Sanitária, assim como da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de
fortalecimento do setor público e estatização progressiva da saúde, com alocação exclusiva
do fundo público no setor público estatal.
Através da pesquisa realizado no banco de dados do SUS, observou-se que a
máxima da complementaridade, assegurada na Carta Magna de 1988, e nas leis orgânicas
da saúde, concretiza-se de forma invertida, através de convênios e contratos com o setor
privado/filantrópico, que vem acontecendo de maneira ilegal, contrariando o que prevê o
arcabouço jurídico do SUS.
Assim, segundo Silva, Correia e Santos (2015, p.128) , na contramão da
“estatização progressiva”, defendida pelo Movimento de Reforma Sanitária, o que
atualmente presenciamos é o alicerçamento de uma “privatização progressiva” dos recursos
da saúde, com o fortalecimento do setor privado/filantrópico financiado com recursos
públicos (através da compra de serviços), em que a maior parte destes recursos que são
destinados a procedimentos hospitalares e produção ambulatorial, são transferidos para
subsidiar empresas filantrópicas/privadas em detrimento à ampliação e fortalecimento do
Sistema Único de Saúde.
Com isso, analisamos que esse processo contribui para a desestruturação da
rede pública de serviços de saúde, que tem sido refletido na precarização do setor público,

14
Acesso em 24 de janeiro de 2017. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/05/1771901-
tamanho-do-sus-precisa-ser-revisto-diz-novo-ministro-da-saude.shtml.
no subfinaciamento crônico do SUS, no sucateamento da sua infraestrutura, na falta de
insumos e recursos humanos, fatores esses que refletem de forma negativa no fornecimento
de serviços públicos aos usuários do SUS.

REFERÊNCIAS

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de medicina preventiva. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2003.

BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e


perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003

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para a promoção, proteção e manutenção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, 1990.

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SECRETARIAS MUNICIPAIS DE SAÚDE. 3º edição. Brasília, 2009.

CARNEIRO, Rita de Cássia Amorim. A Complementaridade Invertida: a privatização


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Maria Valéria Costa; SANTOS, Viviane Medeiros dos. REFORMAS SANITÁRIA E
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<http://bvsarouca.icict.fiocruz.br/sanitarista06.html>. Acessado em: 05 de fevereiro de
2016.

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