Revista Brasileira de Direito Social - 2024

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Qualis
B2 | CAPES

 




 

PRESIDÊNCIA DO IEPREV CONSELHO CONSULTIVO
ROBERTO DE CARVALHO SANTOS ADRIANE MEDIANEIRA TOALDO, ULBRA/RS
ALEXANDRE VICENTINE XAVIER, UFMT/MT
EDITOR-CHEFE ALINE FAGUNDES SANTOS, UFVJM/MG
MARCO AURÉLIO SERAU JUNIOR, UFPR/PR ANA MARIA ISQUIERDO, FURG/RS
ANA MARIA MAXIMILIANO, UFPR/PR
EDITORES-ADJUNTOS ANDRESSA FRACARO CAVALHEIRO, UNIOESTE/PR
MARIAH BROCHADO, UFMG/MG BRUNO ALVES RODRIGUES, CEFET-MG
ROBERTO DE CARVALHO SANTOS, UFMG/MG CAIO AUGUSTO SOUZA LARA, DOM HELDER/MG
CLAUDIO PEDROSA NUNES, UFCG/PB
EDITORES-EXECUTIVOS DENILSON VICTOR MACHADO TEIXEIRA, UEL/PR
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LUCAS MAGNO PORTO, UFMG/MG EDER DION DE PAULA COSTA, FURG/RS
GABRIELA CARAMURU TELES, USP/SP
CONSELHO EDITORIAL GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO, USP/SP
ANA PAULA MISKULIN, USP/SP HECTOR CURY SOARES, FURG/RS
ANTÔNIO FABRÍCIO DE MATOS GONÇALVES, ESA/MG HÉLIO SILVIO OURÉM CAMPOS, UNICAP/PE
CLÁUDIA SALLES VILELA VIANNA, EMATRA-PR JESUS NAGIB BESCHIZZA FERES. UNIVEM/SP
CYNTIA TEIXEIRA PEREIRA CARNEIRO LAFETÁ, UL. ISABELE BANDEIRA DE MORAES D’ANGELO, UPE/PE
LISBOA, PORTUGAL IVAN SIMÕES GARCIA, UFRJ/RJ
DANIELA MURADAS REIS, UFMG/MG. JOÃO BATISTA LAZZARI, CESUSC/SC
DÉCIO BRUNO LOPES, PUC-SP. SÃO PAULO/SP JOÃO BATISTA OPTIZ JUNIOR, UMSA, ARGENTINA
DENISE PIRES FINCATO, PUC-RS JOÃO REZENDE ALMEIDA OLIVEIRA, UCB/DF
DENISE POIANI DELBONI, FGV/SP JOSÉ RICARDO CAETANO COSTA, FURG/RS
ESTER MORENO DE MIRANDA VIEIRA, PUC-SP JULIANA DE CASSIA BENTO BORBA, PUC-MG.
FÁBIO ZAMBITTE IBRAHIM, UERJ/RJ JULIANA TORALLES DOS SANTOS BRAGA, FURG/RS
FERNANDO FERREIRA CALAZANS, UNIFEMM/MG JULIANE CARAVIERI MARTINS, FURG/RS
FULVIA HELENA DE GIOIA, MACKENZIE. SÃO PAULO/SP LAURA SOUZA LIMA E BRITO, USP/SP
ITIBERÊ DE OLIVEIRA CASTELLANO RODRIGUES UFPEL/RS LIANE FRANCISCA HÜNING PAZINATO, FURG/RS
IVANI CONTINI BRAMANTE, FDSBC/SP. LUCIANA ABOIM MACHADO GONÇALVES DA SILVA, UFS/SE
JANE LUCIA WILHELM BERWANGER, PUC-PR LUIZ CARLOS GARCIA, UFMG/MG
JOÃO BATISTA OPTIZ NETO. UNIP/SP LUIZ GUSTAVO BOIAM PANCOTTI, UNIMEP/SP
JOSÉ ANTONIO SAVARIS, UNIVALI/SC LUMA CAVALEIRO DE MACÊDO SCAFF, UFPA/PA
JULIANA TEIXEIRA ESTEVES, UFPE. RECIFE/PE MÁRCIA CAVALCANTE DE ARAÚJO, UNIVERSIDAD DE
MARCELO BARROSO LIMA BRITO DE CAMPOS, UNI-BH SALAMANCA, ESPANHA
MARCUS ORIONE GONÇALVES CORREIA, USP/SP MARIA AUREA BARONI CECATO, UFPB/PB
MARIA HELENA CARREIRA ALVIM RIBEIRO, UFMG/MG MIGUEL HORVATH JÚNIOR, PUC-SP
OCÉLIO DE JESUS CARNEIRO DE MORAIS, UEL/PR MIRIAN APARECIDA CALDAS, UNIVERSIDADE ESTADUAL
PAULO RICARDO OPUSZKA, UFPR/PR DO CENTRO-OESTE, UNICENTRO/PR
TUFFI MESSIAS SALIBA, UNA/MG NADJA KARIN PELLEJERO, FURG/RS
VALMIR CÉSAR POZZETI, UFAM/AM PAULO AFONSO BRUM VAZ, UNISINOS/RS
YNÊS DA SILVA FÉLIX, UFMS/MS PEDRO AUGUSTO GRAVATÁ NICOLI, UFMG/MG
RAPHAEL SILVA RODRIGUES, UFMG/MG
RODRIGO GARCIA SCHWARZ, UNOESC/SC
RUBENS SOARES VELLINHO, UCPEL/RS
SAYONARA GRILLO COUTINHO LEONARDO DA SILVA, UFRJ/RJ
VALENA JACOB CHAVES MESQUITA, UFPA/PA
VERA QUEIROZ, PUC-SP
RBDS Belo Horizonte v. 7 n. 2 p. 1-188 2024

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Ficha catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Gilmar Gomes de Barros, CRB 14/1693

R454 Revista Brasileira de Direito Social [recurso eletrônico]:


RBDS / Editora do Instituto de Estudos Previdenciários,
Trabalhistas e Tributários. – Dados eletrônicos. – Vol. 7, n. 2
(maio/ago. 2024). – Belo Horizonte : Editora IEPREV, 2018-.

Modo de acesso: <http://rbds.ieprev.com.br/rbds/>.


Quadrimestral.
Título abreviado: R. Bras. Dir. Soc.
Editor: Marco Aurélio Serau Junior.
ISSN eletrônico: 2595-7414

1. Direitos sociais. I. Instituto de Estudos Previdenciários


Trabalhistas e Tributários.

CDU, 2ª ed.: 349.3


EDITORIAL ........................................................................................................ 05
Marco Aurélio Serau Júnior

ARTIGO
A INCONSTITUCIONALIDADE DA DESCONSIDERAÇÃO DAS CONTRIBUI-
ÇÕES VERTIDAS EM VALOR ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL (ARTIGO 19-E
DO DECRETO Nº 3.048/99) .............................................................................. 06-19
Eduardo Levin

ACUMULAÇÃO DE BENEFÍCIOS E A PROVÁVEL INCONSTITUCIONALIDA-


DE DA APLICAÇÃO DOS REDUTORES ........................................................... 20-39
Miguel Horvath Júnior
Vera Maria Corrêa Queiroz
Ester Moreno de Miranda Vieira

A SAÚDE COMO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL: O FORNECIMENTO DE


MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO PELO ESTADO, NÃO INCORPORADOS
NA LISTA DE DISPENSAÇÃO DO SUS, À LUZ DA TEORIA DA RESERVA DO
POSSÍVEL ......................................................................................................... 40-61
Lucas Pires Raydan
Raphael Silva Rodrigues
Thiago Penido Martins

URBANIZAÇÃO BRASILEIRA E VULNERABILIDADE SOCIOAMBIENTAL:


SAÚDE E DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE ...................................... 62-72
Éder Dion de Paula
Rúbia Cristina da Silva Passos

ESTUDO DE CASO E PESQUISA EMPÍRICA


REQUISITOS DO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA E A BUSCA
POR UM MÍNIMO DE CIDADANIA – UM ESTUDO DE CASO COM OS BENE-
FICIÁRIOS DO MUNICÍPIO DE BUTIÁ/RS ........................................................ 73-90
Leonardo Montenegro da Silva

O ENQUADRAMENTO COMO SEGURADO ESPECIAL A PARTIR DA


AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS DE FAXINAL/PR .................................. 91-101
Gabriel Henrique Cintra
Marco Aurélio Serau Junior
REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL
AUDITORIA EXTERNA NOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA
SOCIAL: ANÁLISE ACERCA DO ALCANCE DO CONTROLE DOS TRIBUNAIS
DE CONTAS NOS REGISTROS DE APOSENTADORIAS E PENSÕES .......... 102-114
Renata Raule Machado

REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL: A IMPORTÂNCIA DOS


INSTRUMENTOS DE PARCERIA NA PROMOÇÃO DOS DIREITOS DOS
SEGURADOS FRENTE A NECESSIDADE DE GARANTIA DO EQUILÍBRIO
FINANCEIRO E ATUARIAL ................................................................................ 115-131
Cristóvão de Souza Brito

PROCESSO JUDICIAL PREVIDENCIÁRIO


PODERES INSTRUTÓRIOS DO RELATOR NO PROCESSO JUDICIAL
PREVIDENCIÁRIO: SUPERANDO O DOGMA DA NULIDADE DA SENTENÇA 132-144
Renato Barth Pires

LIMITAÇÃO DA PROVA DA UNIÃO ESTÁVEL PARA FINS PREVIDENCIÁRIOS


ANÁLISE CRÍTICA A UTILIZAÇÃO DO § 5º DO ART. 16, DA LEI 8.213/1991
COMO FUNDAMENTO PARA TARIFAÇÃO DE PROVA PELO JUDICIÁRIO .... 145-160
Carla Caroline Lopes Andrade
Evelin de Lima Oliveira Lessa

A PERÍCIA BIOPSICOSSOCIAL ENQUANTO TÉCNICA MULTIDISCIPLINAR


ADEQUADA PARA A PROTEÇÃO DO GRUPO FAMILIAR VULNERÁVEL ........ 161-174
Bruno Vilar Dugacsek
José Ricardo Caetano Costa

OS MÉTODOS EXTRAJUDICIAIS DE SOLUÇÃO E CONTROVÉRSIAS


COMO GARANTIA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE ATRAVÉS DO
ACESSO À JUSTIÇA ......................................................................................... 175-188
Lucas Dornellos Gomes dos Santos
Andréa Carla de Moraes Pereira Lago
EDITORIAL

A nova edição da RBDS – Revista Brasileira de Direito Social (v. 7, n. 2, 2024), que
pode ser acessada amplamente pelo público de modo gratuito pelas vias digitais, chega
permeada de trabalhos científicos de grande qualidade e abordando temas relevantes no
campo dos Direitos Sociais.
O tema impactante da contribuição previdenciária mínima foi objeto de pesquisa por
parte de Eduardo Levin em “A inconstitucionalidade da desconsideração das contribuições
vertidas em valor abaixo do mínimo legal (artigo 19-E do Decreto Nº 3.048/99)”.
A reforma previdenciária ainda é objeto de preocupação científica, e isso fica
evidenciado no texto “Acumulação de benefícios e a provável inconstitucionalidade da
aplicação dos redutores”, do professor Livre-Docente da PUC/SP Miguel Hovarth Júnior,
em coautoria com suas orientandas de Doutorado Vera Queiroz e Ester Moreno de
Miranda Vieira.
Deve ser sempre lembrado que a Seguridade Social não se compõe tão somente da
Previdência Social, abrangendo também a Assistência Social e a Saúde. E, preenchendo
essa lacuna, vemos o estudo “A saúde como direito social fundamental: o fornecimento
de medicamentos de alto custo pelo estado, não incorporados na lista de dispensação
do SUS, à luz da teoria da reserva do possível”, de autoria de Raphael Silva Rodrigues;
Lucas Pires Raydan e Thiago Penido Martins.
Da mesma forma que a Seguridade Social é mais ampla que a Previdência,
os Direitos Sociais compõem um guarda-chuva onde várias modalidades de direitos
humanos se encontram, inclusive o tema do direito à moradia, abordado por Éder Dion
de Paula e Rúbia Cristina da Silva Passos, ambos da FURG, em “Urbanização brasileira
e vulnerabilidade socioambiental: saúde e desenvolvimento como liberdade”.
Nesta edição da RBDS inauguramos algumas Seções Temáticas, listadas abaixo.
A Seção “Estudos de Caso e Pesquisa Empírica” abre com o texto “Requisitos do
benefício de prestação continuada e a busca por um mínimo de cidadania: um estudo de
caso com os beneficiários do município de Butiá/RS”, de Leonardo Montenegro.
Outro estudo empírico de caso, pensando em uma determinada comunidade
local, foi abordado também em “O enquadramento como segurado especial a partir da
autodeterminação dos povos de Faxinal/PR”, de autoria minha e de meu orientando
Gabriel Henrique Cintra.
A seção RPPS apresenta o artigo “Auditoria externa nos regimes próprios de
previdência social: análise acerca do alcance do controle dos tribunais de contas nos
registros de aposentadorias e pensões”, de autoria de Renata Raule Machado, traz à
tona esse importante aspecto sobre os RPPS.
A mesma Seção sobre RPPS também conta com “Regime Próprio de Previdência
Social: a importância dos instrumentos de parceria na promoção dos direitos dos
segurados frente a necessidade de garantia do equilíbrio financeiro e atuarial”, de
Cristovão de Souza Brito.
Inaugurando a Seção Processo Judicial Previdenciário, tema caro a esta revista,
o estudo “Poderes instrutórios do relator no processo judicial previdenciário: superando o
dogma da nulidade da sentença”, do Juiz Federal e professor da PUC/SP Renato Barth Pires.
Os temas processuais previdenciários foram objeto de estudo também de Carla
Caroline Lopes Andrade e Evelin de Lima Oliveira Lessa: “Limitação da prova da união
estável para fins previdenciários análise crítica a utilização do § 5º do art. 16, da Lei
8.213/1991 como fundamento para tarifação de prova pelo judiciário”.
Bruno Vilar Dugacsek e José Ricardo Caetano Costa, da FURG – Universidade
Federal do Rio Grande/RS, apresentam o estudo “A perícia biopsicossocial enquanto
técnica multidisciplinar adequada para a proteção do grupo familiar vulnerável”.
Na sequência, fechando essa Seção, temos “Os métodos extrajudiciais de solução
e controvérsias como garantia dos direitos da personalidade através do acesso à justiça”,
elaborado por Lucas Dornellos Gomes dos Santos e Andréa Carla de Moraes Pereira Lago.
Com todos estes trabalhos de fôlego em nosso sumário, franqueamos a todo o
público a leitura de mais essa edição da RBDS.

Belo horizonte, julho de 2024.

Marco Aurélio Serau Junior

Professor da UFPR. Doutor e Mestre pela USP. Diretor Científico do IEPREV. Editor-
-Chefe da Editora IEPREV.
E-ISSN: 2595-7414
Revista Brasileira de Direito Social - RBDS, Belo horizonte, v. 7, n. 2, p. 7-19, 2024

[artigo]

A INCONSTITUCIONALIDADE DA DESCONSIDERAÇÃO DAS


CONTRIBUIÇÕES VERTIDAS EM VALOR ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL
(ARTIGO 19-E DO DECRETO Nº 3.048/99)

Eduardo levin11

Resumo
O presente artigo trata dos efeitos jurídicos decorrentes do recolhimento de
contribuições previdenciárias em valor abaixo do mínimo legal. A Constituição Federal,
após a edição da Emenda Constitucional nº 103/2019 (Reforma da Previdência),
passou a prever que tais contribuições devem ser desconsideradas para efeitos de
reconhecimento de tempo de contribuição ao RGPS. O Decreto nº 10.420/20 (que
incluiu o artigo 19-E no Regulamento da Previdência Social) foi além, dispondo que
elas serão desconsideradas também para outros efeitos, como os de manutenção da
qualidade de segurado e carência. A partir de considerações sobre as características
do poder regulamentar no Direito brasileiro, assim como sobre o conteúdo jurídico
dos princípios jurídicos que estão em conflito neste tema, o trabalho busca, através
de uma interpretação sistemática dos textos normativos em vigor, bem como
servindo-se da lição da doutrina mais abalizada, refletir sobre a validade de referido
Decreto, frente ao que dispõe a Constituição. Ao final, conclui-se tratar-se de norma
flagrantemente inconstitucional.
Palavras-chave: Desconsideração; Contribuições; Mínimo legal; Inconstitucionalidade.

THE UNCONSTITUTIONALITY OF THE DISREGARD OF


CONTRIBUTIONS PAID IN AN AMOUNT BELOW THE LEGAL MINIMUM
(ARTICLE 19-E OF DECREE NO. 3,048/99)

Abstract
This article deals with the legal effects arising from the payment of social security
contributions in an amount below the legal minimum. The Federal Constitution, after
the enactment of Constitutional Amendment No. 103/2019 (Social Security Reform),
now provides that such contributions must be disregarded for the purposes of
recognition as contribution time to the RGPS. Decree No. 10,420/20 ((which included
Article 19-E in the Social Security Regulations) went further, providing that they will
also be disregarded for other purposes, such as maintaining the quality of insured
and grace period. From considerations about the characteristics of the regulatory
power in Brazilian Law, as well as about the legal content of the legal principles that
are in conflict in this subject, the work seeks, through a systematic interpretation of

11
Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutorando em
Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (início em 2022). Defensor
Público Federal.

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the normative texts in force, as well as using the lesson of the most authoritative
doctrine, to reflect on the validity of said Decree, in the face of the provisions of the
Constitution. In the end, it is concluded that this is a flagrantly unconstitutional rule.
Keywords: Disregard; Contributions; Legal minimum; Unconstitutionality.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende realizar a exegese de dois dispositivos constitucionais


criados pela Emenda Constitucional conhecida como Reforma da Previdência (Emenda
Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019): o parágrafo 14º, do artigo 195, da
Constituição Federal; e o artigo 29 da Emenda Constitucional nº 103/2019. Também
analisará a constitucionalidade do disposto no artigo 19-E do Decreto nº 3.048/99
(Regulamento da Previdência Social), incluído pelo Decreto nº 10.410/20 com o objetivo
de regulamentar o disposto na referida Emenda Constitucional.
Os diplomas normativos referidos tratam dos efeitos jurídicos decorrentes do
recolhimento de contribuições previdenciárias em valor abaixo do mínimo legal, proibindo
a contagem de tais contribuições para fins de tempo de contribuição (artigo 195,
parágrafo 14º, da CF), prevendo hipóteses de complementação ou agrupamento dessas
contribuições (artigo 29, EC nº 103/19) e determinando sejam elas desconsideradas
para fins de cálculo do salário de benefício, carência e qualidade de segurado (artigo
19-E, Decreto nº 3.048/99).
O objetivo principal é o de averiguar se o Decreto nº 10.410/20 está ou não eivado
de inconstitucionalidade, não somente frente aos dispositivos constitucionais trazidos
pela própria Reforma da Previdência, como também em relação a outros preceitos
constitucionais, que estão presentes na Constituição Federal desde sua promulgação.
Tendo em vista os nefastos efeitos que as disposições de referido Decreto provocam,
tanto para os segurados (notadamente para os de baixa renda) quanto para o sistema
previdenciário como um todo, entendemos ser imperiosa uma análise mais acurada
dessa norma, e em que termos ela deve ou não ser recebida pelo sistema previdenciário
brasileiro, sob o ponto de vista jurídico-constitucional.
Algumas características fundamentais desse sistema serão brevemente expostas
a seguir, para que seja possível uma análise da questão com a profundidade necessária.

2 O CARÁTER CONTRIBUTIVO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA

Os artigos 201 e 40, ambos da Constituição Federal, dispõem que tanto o sistema
de previdência dos trabalhadores em geral (Regime Geral de Previdência Social - RGPS)
quanto o sistema de previdência dos agentes públicos titulares de cargos efetivos e
vitalícios (os chamados “Regimes Próprios de Previdência”) terão caráter contributivo.22

22
“A primeira Emenda Constitucional que pretendeu alterar as disposições atinentes à proteção social foi
a de número 3, promulgada em 17.03.1993, e que estabelece, para os agentes públicos ocupantes de
cargos vitalícios e efetivos, a obrigatoriedade de contribuição para custeio de aposentadorias e pensões
concedidas a estes, modificando-se uma tradição do direito pátrio, qual seja, a de que tais concessões, no
âmbito do serviço público, eram graciosas, independentes de contribuição do ocupante do cargo” (Castro;
Lazzari, 2020, p. 894).

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A contributividade, portanto, é característica básica dos sistema previdenciário brasileiro,


sendo elementar a necessidade de cotização para o recebimento de benefícios (Ibrahim,
2020, p. 29).33
Isso significa que os potenciais beneficiários do sistema (segurados) devem
recolher tributos específicos, previstos em lei, destinados ao custeio do regime
(contribuições sociais). Há obrigatoriedade de contribuição para a obtenção futura de
benefícios. É dizer, o financiamento não advém da arrecadação tributária geral, mas
de contribuições sociais destinadas exclusivamente ao pagamento das prestações
previdenciárias, embora recursos orçamentários do Estado possam também concorrer
para a sustentação do regime (mas não de maneira decisiva, apenas como um suporte
em caso de insuficiência de recursos) (Castro; Lazzari, 2020, p. 24).
Outrossim, a regra que determina o caráter contributivo tem também o sentido
de que será necessária a manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema,
devendo se estabelecer a maior correspondência possível entre aquilo que se paga e
aquilo que se recebe, entre as contribuições vertidas ao sistema e os futuros benefícios
(Carvalho Filho, 2019, p. 742). O custeio dos benefícios deve guardar correspondência
com as contribuições que os segurados vertem ao sistema, sendo fundamental para a
manutenção desse equilíbrio a chamada “regra da contrapartida”, prevista no parágrafo
5º, do artigo 195, da Constituição Federal, que impede a criação ou majoração de
benefício da previdência sem a indicação da correspondente fonte de custeio (Horvath
Junior, 2017, p. 112) (Martins, 2020, p. 116).
Merecem atenção especial, diante disso, as regras que dizem respeito às chamadas
contribuições sociais, espécie de tributo cuja receita tem por finalidade o financiamento
da Seguridade Social.44As contribuições sociais correspondem a obrigações legais
impostas a entidades e indivíduos para que arquem com as despesas decorrentes das
ações nas áreas da Saúde, Previdência e Assistência Social. No âmbito da Previdência,
seu destaque é ainda maior, na medida em que o pagamento de benefícios previdenciários
está condicionado à regularidade de seu recolhimento, conforme as regras relativas à
base de cálculo, à alíquota, ao prazo para pagamento etc.

33
Como muito bem observado por Wladimir Novaes Martinez, a obrigatoriedade, em matéria de seguro
social, toma feições especiais, na medida em que o mecanismo de sustentação securitário se funda
na continuidade de ingresso de novos contribuintes ao sistema. “Se, em um determinado momento,
a obrigatoriedade fosse extinta ou mesmo aliviada, a continuidade dos ingressos seria quebrada e,
assim, todo o sistema. É preciso existir e estar contribuindo, obrigatoriamente, uma maioria de pessoas,
sustentando a minoria protegida” (Martinez, 2022, p. 119).
44
O Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que as contribuições para a seguridade
social possuem natureza jurídica de tributo, tal como os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria.
(Brasil. Supremo Tribunal Federal. 1999. Trata-se de prestação pecuniária compulsória estabelecida em lei
e cobrada por ente público arrecadador (cuja atuação é vinculada), com a finalidade de custear ações da
área da saúde, previdência e assistência social. Deve, portanto, obedecer ao regime tributário brasileiro,
notadamente aos princípios jurídicos que informam a tributação no Brasil (Machado Segundo, 2023,
E-book, p. 57).

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3 ESPECIFICIDADES DAS CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS

A base de cálculo das contribuições sociais, em regra, é o chamado salário de


contribuição. Grosso modo, corresponde ao rendimento mensal auferido pelo segurado,
fruto de seu trabalho (ressalvando-se situações especiais, como as dos segurados
especiais). É sobre o valor do salário de contribuição que incide a alíquota de contribuição,
de modo a que se obtenha o montante exato que deve ser recolhido pelos segurados
empregados (inclusive o doméstico), trabalhadores avulsos, contribuintes individuais e
facultativos aos cofres da Previdência. Trata-se de conceito de suma importância para
os segurados e beneficiários do sistema previdenciário, pois é a partir dele que se
determina o quanto se irá contribuir e o quanto se irá receber, já que o cálculo da maior
parte das prestações previdenciárias é feito com base na média aritmética dos salários
de contribuição atualizados monetariamente (Castro; Lazzari, 2023, p. 159).
Se houver, por exemplo, sonegação fiscal cometida por determinados
empregadores, de modo a que os salários de contribuição venham a ser pagos em
valor inferior àqueles efetivamente despendidos aos empregados, o sistema perderá
arrecadação e poderá ficar deficitário, em prejuízo aos demais contribuintes que, regular
e honestamente, cumprem com suas obrigações legais. Além disso, os trabalhadores
sairão prejudicados, na medida em que os valores não declarados deixarão de compor
a base de cálculo de benefícios como aposentadoria, auxílio-doença, pensão por morte
e salário-maternidade (Castro; Lazzari, 2023, p. 193).
Conforme a inteligência do artigo 28, parágrafo 3º, da Lei nº 8.212/91, o valor mínimo
do salário de contribuição, para os segurados facultativos e contribuintes individuais, é o
valor do salário-mínimo vigente, e para os segurados empregados (inclusive os domésticos)
e trabalhadores avulsos, é o valor correspondente ao piso salarial da respectiva categoria
ou, inexistindo este, o salário-mínimo vigente. É dizer, existe a obrigação legal de
pagamento de um valor mínimo de contribuição mensal, que se não for cumprida poderá
ensejar a perda do direito ao recebimento de benefícios futuros.55
Contribuintes individuais, cujos salários de contribuição correspondem à
remuneração auferida pelo exercício de sua atividade por conta própria durante cada
mês, e segurados facultativos, precisam ficar atentos ao realizar o pagamento das
contribuições, pois devem observar os limites mínimo (salário-mínimo) e máximo (teto
de contribuição, previsto no artigo 28, parágrafo 5º, da Lei nº 8.212/91).66 Se verterem
contribuições em valor abaixo do mínimo legal, elas não serão computadas futuramente
como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), e se

55
Evidentemente, se a admissão, a dispensa ou outro tipo de afastamento do trabalhador ocorrer no curso do
mês, o valor do salário de contribuição será proporcional ao número de dias efetivamente trabalhados, podendo
ser inferior ao valor legal mínimo do salário de contribuição (artigo 28, parágrafo 1º, da Lei nº 8.212/91).
66
A alíquota de contribuição dessas duas categorias de segurados, em regra, é de 20% sobre o respectivo
salário de contribuição (artigo 21, caput, da Lei nº 8.212/91), mas há exceções: será de 11% sobre o salário
mínimo, por exemplo, nos casos em que os segurados de tais categorias optem por abrir mão do direito
ao benefício de aposentadoria por tempo de contribuição (o que só é permitido, no caso de contribuintes
individuais, se o trabalho não for prestado à empresa ou pessoa equiparada a empresa, e no caso de
facultativos, se a dedicação for exclusiva ao trabalho doméstico no âmbito da residência, e desde que o
segurado pertença a família de baixa renda, nos termos dos parágrafos 2º e 4º do artigo 21 da Lei 8.212/91).

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contribuírem mais do que o máximo legal, o valor a maior será “perdido”, isto é, ingressará
nos cofres públicos sem ensejar qualquer tipo de vantagem direta ao segurado em
eventual benefício futuro.77

4 A CONTRIBUIÇÃO MÍNIMA MENSAL

Neste tema, dois dispositivos constitucionais criados pela Emenda Constitucional


conhecida como Reforma da Previdência (Emenda Constitucional nº 103, de 12 de
novembro de 2019) merecem ser analisados com atenção: o parágrafo 14º, do artigo
195, da Constituição Federal,88e o artigo 29 da Emenda Constitucional nº 103/2019.99
Trata-se de normas que afirmam o não reconhecimento, como tempo de contribuição
ao RGPS, dos meses (competências) em que a contribuição seja inferior à contribuição
mínima mensal exigida, assegurando, de outro lado, o direito à complementação (de
forma a alcançar o mínimo exigido), o direito à utilização do valor da contribuição
que exceder o mínimo de uma competência em outra e o direito ao agrupamento de
contribuições inferiores ao limite mínimo de diferentes competências, para aproveitamento
em contribuições mínimas mensais (sendo que essas três últimas faculdades somente
poderão ser exercidas ao longo do mesmo ano civil, nos termos do parágrafo único do
artigo 29 da EC nº 103/2019).
A questão é que, embora referidos dispositivos tenham sido claros em determinar
que a contribuição abaixo do mínimo legal não será computada para efeitos de tempo de
contribuição, o Poder Executivo, com o objetivo de regulamentar o disposto na referida
Emenda Constitucional, editou o Decreto nº 10.410/20, que, incluindo o artigo 19-E no
Decreto nº 3.048/99 (Regulamento da Previdência Social), dispôs que a contribuição
abaixo do mínimo legal também não será computada para fins de aquisição e manutenção
da qualidade de segurado, de carência e de cálculo do salário de benefício.1010
77
Utiliza-se o termo “perdido” no sentido de que o valor recolhido em nada contribuirá para o aumento
de valor da Renda Mensal de um futuro benefício, sem se olvidar que nesses casos é possível pleitear a
restituição do valor recolhido maior que o devido, nos termos e condições estabelecidos pela Secretaria da
Receita Federal do Brasil (artigo 89, Lei nº 8212/91). Deve-se observar, no entanto, o prazo prescricional
de 5 (cinco) anos (artigo 103, Lei nº 8.213/91).
88
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos
termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: [..] §14º. O segurado somente terá reconhecida
como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social a competência cuja contribuição seja
igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para sua categoria, assegurado o agrupamento de
contribuições”.
99
“Art. 29. Até que entre em vigor lei que disponha sobre o § 14 do art. 195 da Constituição Federal, o
segurado que, no somatório de remunerações auferidas no período de 1 (um) mês, receber remuneração
inferior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição poderá: I - complementar a sua contribuição,
de forma a alcançar o limite mínimo exigido; II - utilizar o valor da contribuição que exceder o limite
mínimo de contribuição de uma competência em outra; ou III - agrupar contribuições inferiores ao limite
mínimo de diferentes competências, para aproveitamento em contribuições mínimas mensais. Parágrafo
único. Os ajustes de complementação ou agrupamento de contribuições previstos nos incisos I, II e III
do caput somente poderão ser feitos ao longo do mesmo ano civil.”
1010
“Art. 19-E. A partir de 13 de novembro de 2019, para fins de aquisição e manutenção da qualidade
de segurado, de carência, de tempo de contribuição e de cálculo do salário de benefício exigidos para o

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Ora, a norma de índole constitucional não fez menção aos temas “aquisição e
manutenção da qualidade de segurado”, “carência” e “cálculo do salário de benefício”. A
disposição do decreto regulamentar não somente extrapola o poder regulamentar, como
também afronta princípios fundamentais do ordenamento jurídico, gerando consequências
negativas tanto para os contribuintes quanto para o sistema previdenciário como um todo.
É de se perguntar: e quanto às pessoas que auferem renda inferior ao salário-
mínimo (como os aprendizes, os trabalhadores em tempo parcial, os intermitentes)?
Serão fulminadas em seus direitos previdenciários? Se pensarmos num trabalhador
nessas condições, que aufere R$ 500,00 por mês, e que após alguns meses de
trabalho se acidenta e fica inválido: é justo exigir de tal trabalhador que complemente
as contribuições à razão de 7,5% sobre o valor do salário-mínimo, mais multa e juros de
mora,1111para que possa usufruir de um benefício por incapacidade, sendo que não há
sequer lei formal que lhe imponha esse ônus?
E como fica a situação dos contribuintes individuais e facultativos de baixa renda
que vertem contribuições nos termos do artigo 21, da Lei nº 8.212/91, à razão de 11%
ou 5% do salário-mínimo vigente? Se cometerem algum erro e recolherem valor inferior
ficam sem qualquer direito a uma prestação previdenciária? Nem mesmo aos benefícios
por incapacidade teriam direito? Seus dependentes ficariam sem a pensão por morte?
As contribuições previdenciárias vertidas em valor abaixo do salário-mínimo serão
simplesmente desconsideradas?
Como se vê, as modificações restritivas de direito trazidas pela nova redação
do Decreto 3.048/99 (artigo 19-E), especialmente em relação à desconsideração das

reconhecimento do direito aos benefícios do RGPS e para fins de contagem recíproca, somente serão
consideradas as competências cujo salário de contribuição seja igual ou superior ao limite mínimo
mensal do salário de contribuição. § 1º Para fins do disposto no caput, ao segurado que, no somatório
de remunerações auferidas no período de um mês, receber remuneração inferior ao limite mínimo mensal
do salário de contribuição será assegurado: I - complementar a contribuição das competências, de
forma a alcançar o limite mínimo do salário de contribuição exigido; II - utilizar o excedente do salário
de contribuição superior ao limite mínimo de uma competência para completar o salário de contribuição
de outra competência até atingir o limite mínimo; ou III - agrupar os salários de contribuição inferiores ao
limite mínimo de diferentes competências para aproveitamento em uma ou mais competências até que
estas atinjam o limite mínimo. § 2º Os ajustes de complementação, utilização e agrupamento previstos no
§ 1º poderão ser efetivados, a qualquer tempo, por iniciativa do segurado, hipótese em que se tornarão
irreversíveis e irrenunciáveis após processados. § 3º A complementação de que trata o inciso I do § 1º
poderá ser recolhida até o dia quinze do mês subsequente ao da prestação do serviço e, a partir dessa
data, com os acréscimos previstos no art. 35 da Lei nº 8.212, de 1991. § 4º Os ajustes de que tratam
os incisos II e III do § 1º serão efetuados na forma indicada ou autorizada pelo segurado, desde que
utilizadas as competências do mesmo ano civil definido no art. 181-E, em conformidade com o disposto
nos § 27-A ao § 27-D do art. 216. § 5º A efetivação do ajuste previsto no inciso III do § 1º não impede o
recolhimento da contribuição referente à competência que tenha o salário de contribuição transferido, em
todo ou em parte, para agrupamento com outra competência a fim de atingir o limite mínimo mensal do
salário de contribuição. § 6º Para complementação ou recolhimento da competência que tenha o salário de
contribuição transferido, em todo ou em parte, na forma prevista no § 5º, será observado o disposto no § 3º.
§ 7º Na hipótese de falecimento do segurado, os ajustes previstos no § 1º poderão ser solicitados por seus
dependentes para fins de reconhecimento de direito para benefício a eles devidos até o dia quinze do mês
de janeiro subsequente ao do ano civil correspondente, observado o disposto no § 4º.”
1111
Nos termos do artigo 35, da Lei n. 8.212/91.

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contribuições previdenciárias abaixo do salário-mínimo, impactam significativamente a


vida dos segurados que podem vir a precisar dos benefícios por incapacidade, ou cujos
dependentes venham a carecer da pensão por morte. Em ambos os casos, é necessário
que haja a qualidade de segurado, seja do próprio segurado, seja do segurado instituidor
que venha a falecer. Portanto, tais restrições podem prejudicar a obtenção desses
benefícios pelos segurados, causando um impacto negativo em sua proteção social
justamente nas situações de maior vulnerabilidade.
Parece-nos que a norma em questão – artigo 19-E do Decreto nº 3.048/99 – é
flagrantemente inconstitucional em vários aspectos. Pretende-se, nas linhas que seguem,
examinar cada um deles, esclarecendo os motivos pelos quais referido dispositivo não
pode ser aplicado.

5 O REGULAMENTO NO DIREITO BRASILEIRO

A competência que a Constituição Federal confere ao Chefe do Poder Executivo


de editar atos gerais e abstratos (regulamentos), conforme informa o seu artigo 84, inciso
IV, está restrita à finalidade de detalhar e esclarecer os dispositivos de uma lei, de modo
a produzir as disposições operacionais necessárias à sua execução, sem alterar seu
conteúdo essencial. Apenas a lei pode impor obrigações ao cidadão, conforme anuncia
o artigo 5°, inciso II, da Lei Maior. Ademais, nos termos do artigo 37, caput, também
da Constituição, a Administração Pública se submete ao princípio da legalidade, que
impõe que sua atuação se dê na conformidade da lei, de modo subordinado a ela: a
Administração nada pode fazer que não esteja previamente determinado em lei.1212
No Brasil, portanto, não se admite que o Poder Executivo produza atos normativos
que não sejam aqueles requeridos para a fiel execução do disposto em lei. Cabe
somente a esta o estabelecimento de direito ou dever, de obrigação ou restrição, fixando
os requisitos de seu aparecimento e os elementos de identificação dos destinatários.
A regulamentação não pode ser contra legem (contrária ao que dispõe a lei), nem
praeter legem (para além da lei, de modo a suprir omissões). Ela deve estar em absoluta
conformidade com a lei que pretende regulamentar, não cabendo ao regulamento inovar
na ordem jurídica, de modo a definir requisitos necessários ao surgimento de direito,
dever, obrigação ou restrição (Mendes; Branco, 2023, p. 513).
Esse poder regulamentar conferido ao Poder Executivo se materializa por meio de
decretos. É o caso do Decreto nº 10.410/20, já mencionado, que, incluindo o artigo 19-E
no Regulamento da Previdência Social (Decreto nº 3.048/99), inovou indevidamente na
ordem jurídica, criando restrições de direitos que não estavam originalmente previstas
na legislação (nem na Constituição, nem em leis infraconstitucionais). Isso significa que
o Poder Executivo excedeu sua competência regulamentar ao introduzir mudanças que
afetam diretamente os direitos dos segurados do sistema previdenciário.
O modelo constitucional adotado pelo Estado brasileiro prevê que o texto da
Constituição somente pode ser alterado por procedimento específico, distinto daqueles

1212
“O que, por lei, não está antecipadamente permitido à Administração está, ipso facto, proibido, de tal
sorte que a Administração, para agir, depende integralmente de uma anterior previsão legal que lhe faculte
ou imponha o dever de atuar” (Bandeira de Mello, 2021, p. 285).

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que deve ser levado a efeito para a elaboração das leis em geral, e que as normas
constitucionais são hierarquicamente superiores às demais normas do sistema
(supremacia da Constituição) (Martins, 2011, p. 29). Nesse sistema, a norma constitucional
sempre deve prevalecer em relação a uma norma infraconstitucional que com ela conflite,
cabendo ao Judiciário a tarefa de interpretar as leis e resolver esse tipo de conflito. A
nosso ver, no caso em tela, cabe ao Judiciário reconhecer a inconstitucionalidade da
cabeça do artigo 19-E, do Decreto nº 3.048/99, pois tal norma traz restrições a direitos
que não estão previstas em normas de hierarquia superior, sendo a inconstitucionalidade
de referido dispositivo manifesta.1313

6 DA AFRONTA A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A desconsideração das contribuições vertidas em valor inferior ao mínimo e a


exigência trazida pelo artigo 19-E do Decreto 3.048/99, de que o segurado de baixa
renda pague uma contribuição adicional, até completar o montante equivalente ao que
incidira sobre o salário-mínimo, para que possa usufruir de benefícios previdenciários,
representam verdadeiras afrontas a pelo menos três princípios constitucionais: o da
universalidade da cobertura e do atendimento, o da equidade da participação no custeio
e o da vedação à tributação com caráter confiscatório.1414
O princípio da universalidade da cobertura e do atendimento, insculpido no inciso
I do artigo 194 da Constituição Federal, impõe que todas as pessoas que necessitem
da seguridade social sejam cobertas (dimensão subjetiva), e que todas as situações
de risco sejam protegidas pelo sistema (dimensão objetiva). Evidentemente, a proteção
social tem diferentes destinatários, conforme se trate da seara previdenciária, da seara da
assistência social ou da seara da saúde: na primeira, a cobertura abrange os segurados
e seus dependentes, nos termos da Lei nº 8.213/91; na segunda, é conferida a quem
dela necessitar, nos termos do artigo 203, da Constituição Federal; e na terceira, abarca
todas as pessoas, sendo dever do Estado (artigo 196, da Constituição Federal) (Balera;
Mussi, 2023, p. 66).
No caso em análise, de âmbito previdenciário, a desconsideração das contribuições
vertidas em valor inferior ao mínimo mesmo para efeitos de manutenção da qualidade
de segurado e carência, fere de morte a mandamento trazido por referido princípio,
que tem estatura constitucional e que só pode ser excepcionado nos casos previstos

1313
No mesmo sentido: Garcia (2024, p. 141).
1414
A acepção de princípio jurídico que adotamos no presente trabalho consiste naquela que os identifica
como espécie normas jurídicas em sentido estrito, ao lado das regras. Isto é, consideramos tratar-se
de normas jurídicas completas, estruturadas com antecedentes e consequentes, que objetivam regrar
comportamentos e fazer com que determinados valores sejam aplicados nos casos concretos. Os princípios
diferem das regras pois estas exigem um cumprimento pleno, configurando determinações que ou são
cumpridas ou são descumpridas, conforme as possibilidades fáticas e jurídicas existentes, e que fixam,
para isso, o comportamento a ser adotado para a realização de seu fim último; ao passo que os princípios
são entendidos como normas jurídicas que ordenam a realização de algo na maior medida possível,
conforme seja permitido pelas circunstâncias fáticas e jurídicas existentes, sem declinar qual deve ser o
comportamento a ser adotado para o atingimento de tal fim. Para mais distinções e aprofundamento do
tema, sugere-se, dentre outras obras: Dworkin (2010); Alexy (2011); Silva (2009); Martins (2010).

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na própria Constituição, ou em lei infraconstitucional que venha a concretizar outro


princípio constitucional colidente.1515A própria Emenda Constitucional nº 103/2019 trouxe
expressamente a exceção ao referido princípio, disposta no parágrafo 14º, do artigo 195,
da Constituição Federal – a desconsideração para efeitos de tempo de contribuição –
de modo a satisfazer (na maior medida possível) o mandamento do princípio colidente
(preexistência de custeio em relação ao benefício o serviço, previsto no parágrafo 5º,
do artigo 195). É dizer, a ponderação de princípios já foi feita no âmbito de atuação do
constituinte derivado, e ele não incluiu a desconsideração das contribuições para efeitos
de manutenção da qualidade de segurado e carência entre as exceções ao princípio em
questão, não cabendo ao Poder Executivo a realização de nova ponderação de princípios
que subverta a ponderação anterior.
Já o princípio da equidade da participação no custeio, previsto no inciso V do
artigo 194 da Constituição Federal, determina que haja proporcionalidade no que diz
respeito ao montante de recursos financeiros que cada pessoa deve contribuir para o
fundo social destinado a financiar as prestações ((Balera; Mussi, 2023, p. 68). Trata-se
de preceito que deriva do princípio constitucional da igualdade (artigo 5º, caput, da CF),
e vem em reforço à menção constitucional prevista no artigo 150, inciso II, da Lei Maior,
que impõe a igualdade fiscal em relação aos contribuintes em geral, e não apenas aos
contribuintes da seguridade social (Martinez, 2022, p. 157).
O artigo 19-E do Decreto nº 3.048/99 (inserido pelo Decreto nº 10.410/20) atinge o
princípio em questão porque atribui aos segurados que auferem renda mensal inferior a um
salário-mínimo o dever de contribuir ao sistema com um valor muito maior do que aquele
devido por outros segurados com maior capacidade contributiva, proporcionalmente ao
seu rendimento. É que a contribuição do segurado de baixa renda será de 7,5% sobre o
salário-mínimo (nos termos do artigo 28 da EC nº 103/2019), de modo que se ele recebe,
por exemplo, R$ 600,00 (seiscentos reais) por mês, pagará R$ 105,90 (cento e cinco
reais e noventa centavos), o que representa 17,65% de sua renda total (ao passo que
uma pessoa que recebe, por exemplo, R$ 1.700,00 mensais, pagará R$ 153,00, o que
representa 9% da sua renda).1616Ou seja, aquele que possui menor renda fica obrigado
a pagar proporcionalmente muito mais do que aquele que possui maior renda, o que
representa a negação do mandamento de otimização apregoado por referido princípio.
Além disso, a nova disposição trazida pelo Decreto nº 10.410/20 ofende o
princípio da vedação à tributação com caráter confiscatório, disposto no artigo 150, IV,
da Constituição, o qual impede que o Estado, a pretexto de cobrar tributos, anule a

1515
Trata-se da chamada, por Robert Alexy, de “lei do sopesamento”, segundo a qual “a medida permitida
de não-satisfação ou de afetação de um princípio depende do grau de importância da satisfação do outro”.
Ou seja, os pesos dos princípios são sempre relativos; aquilo que os princípios exigem deve ser sempre
analisado em relação àquilo que os princípios colidentes exigem. Quanto mais não se satisfaz ou se atinge
um princípio, tanto maior deverá ser a importância da satisfação do outro. Temos, de um lado, o grau de
não satisfação ou da afetação de um princípio, e de outro o grau de importância da satisfação do princípio
colidente. (Alexy, 2011, p. 168-171).
1616
A mesma distorção ocorre em relação a qualquer trabalhador que receba um salário-mínimo ou
mais. Pra quem recebe um salário-mínimo (R$ 1.412,00), por exemplo, o valor a ser recolhido a título de
contribuição previdenciária também é de R$ 105,90 (pois a alíquota é a mesma, 7,5%), o que representa
7,5% da sua renda total, valor proporcionalmente bem inferior aos 17,65% do exemplo dado.

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propriedade do indivíduo, de modo a arruinar sua capacidade econômica (Amaro, 2023,


p. 67). Trata-se de uma garantia dos indivíduos contra a autoridade do Estado, cuja
atuação no âmbito tributário deve se dar sob a cautela de que existe um limite para a
invasão do direito de propriedade individual, garantido pela Constituição (Coêlho, 2022,
p. 192). De forma prévia, pode ser difícil determinar os limites quantitativos para que se
esteja diante de um tributo confiscatório ou não, mas isso não impede o intérprete de,
caso considere estar havendo confisco, considerar o tributo inconstitucional por ofensa
a esse princípio, se entender que ele afeta o núcleo essencial do princípio colidente, de
proteção da propriedade (Machado Segundo, 2023, p. 80).
É difícil saber até onde o tributo pode avançar sobre o patrimônio do contribuinte
sem que se configure o confisco, pois a Constituição não nos diz qual seria o percentual
máximo passível de ser cobrado sem que o tributo tenha efeito confiscatório. De fato, o
princípio da vedação de tributo confiscatório, longe de ser um preceito matemático, é um
critério informador das atividades do legislador, do intérprete e do julgador, os quais, “à
vista das características da situação concreta, verificarão se determinado tributo invade
ou não o território do confisco” (Amaro, 2023, p. 67). Todavia, no caso em análise, parece-
nos bastante claro que a cobrança superior a 17% dos rendimentos de quem recebe
menos que um salário-mínimo é um valor exorbitante, que consome boa parte da parca
renda disponível ao trabalhador, necessária a sua subsistência.1717
Como se vê, não é somente em razão de extrapolar o poder regulamentar que o
caput do artigo 19-E do Decreto nº 3.048/99 (trazido pelo Decreto nº 10.420/20) representa
um desrespeito à Constituição. Ele é inconstitucional, também, porque contraria o núcleo
essencial dos princípios constitucionais acima mencionados. Mesmo que tais restrições
tivessem adentrado ao sistema jurídico através de lei em sentido estrito, ainda assim
estariam eivadas e inconstitucionalidade.

7 CONCLUSÕES

A intenção do Decreto nº 10.410/20 parece ter sido a de dar cumprimento ao


estabelecido pela Constituição Federal, no sentido de que o Regime Geral de Previdência
Social tenha caráter contributivo e filiação obrigatória, com a observância de critérios que
preservem o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema (artigo 201). Para cumprir esse
mister, no entanto, acabou criando restrições extremamente prejudiciais aos segurados,
especialmente àqueles de baixa renda, que são os que mais dependem do seguro social.
Essas restrições – desconsideração das contribuições abaixo do mínimo legal para
efeitos de aquisição e manutenção da qualidade de segurado e de carência – trazidas

1717
É de se destacar que o Supremo Tribunal Federal, ao tratar do princípio do não confisco no que
respeita às alíquotas das contribuições previdenciárias, deferiu, na ADI nº 2.010/DF, medida cautelar para
suspender o aumento promovido pela Lei nº 9.783/99 nas alíquotas das contribuições previdenciárias
devidas pelos servidores públicos federais, as quais, para aqueles que ganhavam acima de R$ 1.200,00,
até R$ 2.500,00, foi estabelecida por referida lei em 20%, a para aqueles que ganhavam acima de R$
2.500,00 em 25%. A Corte considerou que referida exação afetaria de maneira irrazoável os rendimentos
daqueles contribuintes, de modo a infringir o princípio no não confisco, lembrando que na época o salário-
mínimo no Brasil era de R$ 136,00, ou seja, o valor de R$ 1.200,00 correspondia a quase 9 vezes o valor
do mínimo (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 1999).

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ao sistema jurídico por meio de decreto do Poder Executivo, representam uma afronta
à Constituição Federal, que dispõe claramente sobre quais são os direitos dos quais os
segurados serão privados nos casos em que contribuam em valor inferior ao mínimo
legal, e não inclui as restrições acima citadas. Não é dado ao decreto inovar em termos
legislativos, conforme dispõem os artigos 84, inciso IV, e 5°, inciso II, da Constituição
Federal, mormente quando tal inovação se dá em prejuízo dos administrados.
A Constituição brasileira, assim como outras constituições editadas nas últimas
décadas, são compostas de regras e de princípios. Os princípios são mandamentos
de otimização, normas que prescrevem que algo seja realizado na maior medida
possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes.1818São aplicados por
sopesamento, isto é, com base em critérios que mensuram o peso dos princípios em
conflito numa dada situação concreta (nenhum deles ostenta, em abstrato, primazia).1919
No choque entre os princípios constitucionais mencionados ao longo do presente
trabalho, parece-nos que têm mais peso, no caso em tela, os princípios que se fundam
na ideia de proteção ao menos favorecido, considerando que a relação jurídica que se
estabelece entre o Estado e o indivíduo, no âmbito previdenciário, deve ter em conta
a proteção ao hipossuficiente. Isto é, é preciso interpretarmos o sistema normativo de
modo a atender da melhor forma possível a função social, de modo a proteger, com isso,
aqueles que dependem das políticas sociais para sua subsistência.
O artigo 19-E do Decreto nº 3.048/99 (trazido pelo Decreto nº 10.420/20)
é inconstitucional não somente do ponto de vista formal – por extrapolar o poder
regulamentar – como também do ponto de vista material, porque contraria os princípios
da universalidade da cobertura e do atendimento, da equidade da participação no custeio
e da vedação à tributação com caráter confiscatório, de maneira desproporcional em
relação aos princípios aos quais pretende dar efetividade (caráter contributivo e equilíbrio
financeiro e atuarial).

REFERÊNCIAS

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2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

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E-book.

BALERA, Wagner; MUSSI, Cristiane Miziara. Manual de direito previdenciário:


seguridade social, regimes previdenciários, custeio, processo administrativo e benefícios
em espécie. 14. Ed. Curitiba: Juruá, 2023.

1818
As regras, diferentemente, ou são cumpridas ou são descumpridas. “Um conflito entre regras é
solucionado tomando-se uma das regras como cláusula de exceção da outra ou declarando-se que uma
delas não é válida” (Mendes; Branco, 2022, p. 36).
1919
Ao passo que as regras são aplicadas de maneira disjuntiva, de modo que ou a regra é válida e se
aplica ou não é válida e não se aplica (Mendes; Branco, 2022, p. 36).

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Data de submissão: 26 jan. 2024. Data de aprovação: 24 abr. 2024.

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[artigo]

ACUMULAÇÃO DE BENEFÍCIOS E A PROVÁVEL


INCONSTITUCIONALIDADE DA APLICAÇÃO DOS REDUTORES

Miguel Horvath Júnior1


Vera Maria Corrêa Queiroz2
Ester Moreno de Miranda Vieira3

Resumo
A discussão acerca da temática acumulação de benefícios previdenciários
ganhou ênfase com o advento da reforma previdenciária promovida pela Emenda
Constitucional n. 103, de 2019, em razão das restrições pecuniárias impostas aos
pensionistas e que impactam severamente a proteção social no âmbito do Regime
Geral de Previdência Social - RGPS ou dos Regimes Próprios de Previdência Social
– RPPS, ou ainda no Sistema de Proteção Social Militar – SPSM. O recebimento
conjunto dos benefícios de aposentadoria e pensão por morte não sofreu vedação,
mas tão somente a aplicabilidade de um redutor pelo recebimento conjunto
desses benefícios, quando a pensão por morte tem como instituidor o cônjuge ou
companheiro e companheira. Não houve preocupação do legislador derivado em
preservar os benefícios concedidos anteriormente à entrada em vigor da referida
Emenda Reformadora, os quais já haviam ingressado no patrimônio social do
beneficiário, segurado ou dependente, configurando ofensa ao princípio da dignidade
da pessoa humana, assim como à garantia constitucional do direito adquirido e da
irredutibilidade do valor dos benefícios. Não menos importante, a brutal redução
dos proventos desrespeitou o sistema contributivo, em detrimento das contribuições
vertidas e da regra da contrapartida.
Palavras-chave: Acumulação de benefícios; Emenda constitucional n. 103, de 2019;
Inconstitucionalidade da aplicação de redutores.

ACCUMULATION OF BENEFITS AND THE PROBABLE


UNCONSTITUTIONALITY OF THE APPLICATION OF REDUCERS

Abstract
The discussion regarding the accumulation of social security benefits gained emphasis
with the advent of the social security reform promoted by Constitutional Amendment

1
Livre-docente e Doutor em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenador
e Professor no Núcleo de Direito Previdenciário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Procurador Federal – AGU.
2
Doutoranda e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, Brasil. Advogada, Coordenadora e Professora de Direito Previdenciário na Escola
Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional São Paulo, Ex-servidora do INSS.
3
Doutoranda e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, Brasil. Advogada e Professora de Direito Previdenciário.

20
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no. 103, of 2019, due to the pecuniary restrictions imposed on pensioners and which
severely impact social protection within the scope of the General Social Security
Regime - RGPS or the Special Social Security Regimes - RPPS, or even in the
Military Social Protection System - SPSM . The joint receipt of retirement benefits
and death pension was not prohibited, but only the applicability of a reduction for the
joint receipt of these benefits, when the death pension is established by the spouse
or partner. There was no concern on the part of the legislator to preserve the benefits
granted prior to the entry into force of the aforementioned Reform Amendment,
which had already entered the social assets of the beneficiary, insured or dependent,
constituting an offense against the principle of human dignity, as well as the guarantee
constitutional status of acquired rights and the irreducibility of the value of benefits. No
less important, the brutal reduction in earnings disrespected the contributory system,
to the detriment of the contributions made and the counterpart rule.
Keywords: Accumulation of benefits; Constitutional amendment n. 103, of 2019; Unconstitutionality
of the application of reducers.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho centraliza-se na análise da constitucionalidade ou


não da aplicação dos redutores trazidos pelo § 2º do art. 24 da Emenda Constitucional n.
103, de 2019. Embora a inacumulabilidade de remunerações e de benefícios seja uma
regra geral, não se pode negar as diversas exceções que se apresentam nas formas de
recebimento paralelo dos benefícios previdenciários.
Em relação à atividade no âmbito da Administração Pública, o exercício de mais
de um cargo público efetivo, vinculado ao Regime Próprio de Previdência Social –
RPPS, a teor do permissivo do art. 37, incisos XVI e XVII da Constituição Federal, já
tem como garantia constitucional o recebimento de mais de uma remuneração e, por via
de consequência, mais de um provento de aposentadoria. Em paralelo ao exercício do
cargo público, a possibilidade de se vincular ao Regime Geral de Previdência Social –
RGPS, e nele obter o benefício de aposentadoria programada.
Para aqueles que exercem mais de uma atividade com vínculo ao Regime
Geral de Previdência Social - RGPS, ainda que haja filiação em cada uma dessas
atividades, o tempo de contribuição é único em face do proibitivo de contagem em dobro.
Entretanto, no recebimento conjunto de benefícios previdenciários existem exceções à
inacumulabilidade, em especial quando uma mesma pessoa se encontra na qualidade
de segurado e dependente, como sói ocorrer no recebimento conjunto de aposentadoria
e pensão por morte.
A cumulatividade se caracteriza pela possibilidade de uma mesma pessoa receber
mais de um benefício em concomitância, por ter preenchido os requisitos exigidos para cada
prestação requerida, condicionando-se, porém, à luz da lei em vigor quando da ocorrência
do fato gerador de cada benefício, observado o princípio do Tempus Regit Actum.
A cumulatividade trazida pela reforma previdenciária de 2019 é aplicada não só
ao Regime Geral de Previdência Social, como também a todos os Regimes Próprios
de Previdência Social, de todos os entes federativos, pois não lhes foi dada autonomia
para disporem de forma diferente, a teor do que disciplina o disposto no § 5º do art. 24

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da Emenda Constitucional n. 103, de 2019, segundo o qual as regras sobre acumulação


previstas na legislação dos Regimes Próprios de Previdência Social - RPPS e do Regime
Geral de Previdência Social - RGPS vigente na data de entrada em vigor da Emenda
Reformatória, somente poderão ser alteradas quando for editada a Lei Complementar
no âmbito do Regime Geral, na forma do § 6º do art. 40 e do § 15 do art. 201, ambos da
Constituição Federal, in verbis:

Art. 24. [...]


§ 5º. As regras sobre acumulação previstas neste artigo e na legislação
vigente na data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional po-
derão ser alteradas na forma do § 6º do art. 40 e do § 15 do art. 201 da
Constituição Federal.
Art. 40. [...]
§ 6º Ressalvadas as aposentadorias decorrentes dos cargos acumuláveis
na forma desta Constituição, é vedada a percepção de mais de uma apo-
sentadoria à conta de regime próprio de previdência social, aplicando-se
outras vedações, regras e condições para a acumulação de benefícios
previdenciários estabelecidas no Regime Geral de Previdência Social.
Art. 201. [...]
§ 15. Lei complementar estabelecerá vedações, regras e condições para
a acumulação de benefícios previdenciários.

Entretanto, os entes federados poderão dispor acerca das regras de concessão


dos benefícios previdenciários, não só em relação à forma de cálculo, mas também
tratar especificamente das questões atinentes aos dependentes do segurado servidor,
mediante adequação da legislação própria.
As exceções à regra da inacumulabilidade de benefícios, ou de benefícios e
remunerações, apresentam uma diversidade de situações, conforme o segurado esteja
em atividade ou não. Dessa forma, é permitido o recebimento simultâneo de: a) de cargos,
empregos ou funções públicas; b) de cargos, empregos ou funções públicas e atividade
na iniciativa privada; c) de aposentadorias no serviço público (RPPS) e remuneração
ou subsídio; d) de aposentadorias no serviço público; e) de aposentadorias no serviço
público (RPPS) e na iniciativa privada (RGPS); f) de aposentadoria civil e militar; g) de
aposentadorias no serviço público (RPPS) e pensão por morte (de RPPS ou de RGPS);
h) de pensão por morte (de RPPS ou de RGPS) e remuneração ou subsídio; i) de pensões
de RPPS; j) de pensões no RGPS; l) de pensões de RPPS e RGPS; m) de benefícios do
RGPS, e de outras tantas possíveis hipóteses.
O estudo que ora se propõe parte da complexidade de se acumular benefícios
nos diversos regimes previdenciários, abordando-se desde o conceito de regime de
previdência social, passando pelos regimes previdenciários em espécie (RPPS e RGPS),
até alcançar a possibilidade de recebimento conjunto de benefícios.
Pretende-se não apenas provocar o interesse dos estudiosos do Direito
Previdenciário, mas principalmente esclarecer as questões que se alinham ao novo
texto normativo trazido pelo artigo 24 da Emenda Constitucional n. 103, de 2019, diante
da análise da constitucionalidade ou não da aplicação dos redutores nos benefícios

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recebidos cumulativamente.
Em uma análise com fulcro nos princípios constitucionais, busca-se o estudo
do impacto financeiro que a acumulação de benefícios produz, considerando-se a
aplicabilidade da segurança jurídica diante do princípio da pré-existência do custeio e da
regra da contrapartida.

2 OS REGIMES DE PREVIDÊNCIA SOCIAL

O conceito de regime de previdência social pode ser extraído do próprio texto


da Emenda Constitucional n. 103, de 2019, ao estabelecer que só podem ter essa
qualificação se oferecerem, no mínimo, os benefícios de aposentadoria e pensão por
morte. Vale dizer, os regimes previdenciários precisam identificar a forma de proteção
social dos seus segurados (aposentadoria) e dos dependentes (pensão por morte).

Art. 9º. [...]


§ 2º O rol de benefícios dos regimes próprios de previdência social fica limitado
às aposentadorias e à pensão por morte.

A proteção previdenciária daqueles que se vinculam a um determinado regime,


assim como as pessoas que dependem economicamente desses segurados, está
sedimentada em um conjunto de normas e procedimentos que visam sempre a concessão
do melhor benefício.
Para Miguel Horvath Júnior (2022, p. 163), “Regime previdenciário é o conjunto
de normas e princípios harmônicos que informam e regem a disciplina previdenciária de
determinado grupo de pessoas.”
Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira (1987, p. 35) entende que, “para caracterizar-
se como regime de um determinado sistema, deve ter custeio e prestações específicas,
asseguradas a beneficiários determinados.”
Para os regimes previdenciários públicos, a filiação e a contribuição são obrigatórias
e devem ser observados os critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. Tais
regimes estão ordenados no comando constitucional em Regime Próprio de Previdência
Social – RPPS, destinado aos servidores públicos titulares de cargos efetivos, e Regime
Geral de Previdência Social – RGPS, para os trabalhadores da iniciativa privada, os
titulares de empregos públicos e os agentes públicos que exercem exclusivamente
cargos em comissão.
Assim, no disposto na Constituição Federal de 1988:

Art. 40. O regime próprio de previdência social dos servidores titulares de


cargos efetivos terá caráter contributivo e solidário, mediante contribui-
ção do respectivo ente federativo, de servidores ativos, de aposentados
e de pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio finan-
ceiro e atuarial.
[...]
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime
Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigató-

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ria, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial,


e atenderá, na forma da lei, a:

A par dos regimes públicos, a Constituição Federal ordena o Regime de Previdência


Complementar – RPC, cuja adesão é facultativa e se dispõe em dois segmentos, sendo o
primeiro, o Regime de Previdência Complementar dos Servidores Públicos e o segundo,
o Regime de Previdência Complementar Privado.

Art. 202. O regime de previdência privada, de caráter complementar e or-


ganizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência
social, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garan-
tam o benefício contratado, e regulado por lei complementar.

O Decreto n. 3.048, de 1999, traz o conceito de regime próprio, estabelecendo que:

Art. 10. [...]


§ 3º Entende-se por regime próprio de previdência social o que assegura
pelo menos as aposentadorias e pensão por morte previstas no art. 40
da Constituição Federal.

Em face do princípio da autonomia do ente federativo, até o advento da Emenda


Reformadora de 2019, os entes subnacionais não estavam obrigados a criar um regime
de proteção social específico para seus servidores. Não existindo Regime Próprio de
Previdência Social, os servidores são obrigatoriamente vinculados ao Regime Geral de
Previdência Social.
No entanto, a reforma previdenciária de 2019 eximiu a autonomia dos entes
federativos para a instituição de regimes próprios, dando novo texto ao § 22 do art. 40 da
Constituição Federal, a saber:

Art. 40. [...]


§ 22. Vedada a instituição de novos regimes próprios de previdência so-
cial, lei complementar federal estabelecerá, para os que já existam, nor-
mas gerais de organização, de funcionamento e de responsabilidade em
sua gestão, dispondo, entre outros aspectos, sobre:
[...]

Os regimes próprios de previdência social possuem características específicas,


sendo a mais evidente a contributividade. No século XIX, a relação de proteção social
era decorrente da política de pessoal de Estado, onde havia retribuição pelos anos
de serviços prestados e não propriamente uma aposentadoria. Mesmo na ausência
de contribuição, os benefícios eram custeados pelo Tesouro e havia uma total
despreocupação com critérios financeiros e atuariais. Não existiam critérios etários para
ingresso ou permanência mínima no serviço público.
Foi com a Emenda Constitucional n. 20, de 1998, que o Estado passou a
se preocupar com as questões financeiras que envolviam os servidores públicos,

24
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estabelecendo no art. 40 da Constituição Federal um regime de previdência de caráter


contributivo, observados os critérios de preservação do equilíbrio financeiro e atuarial, e
cuja aplicabilidade se estendeu aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações.
O equilíbrio financeiro é a garantia de equivalência entre receitas auferidas e as
obrigações do Regime Próprio de Previdência Social em cada exercício financeiro. Já o
equilíbrio atuarial se reconhece pela garantia de equivalência, em valor presente, entre o
fluxo de receitas estimadas e as obrigações projetadas, apuradas atuarialmente, a longo
prazo.
Ao contrário, no Regime Geral de Previdência Social a contribuição sempre foi o
fator preponderante, sem a qual nunca foi possível a obtenção de benefício previdenciário.
Não apenas a contribuitividade era premente, mas principalmente a manutenção do
vínculo com o sistema e o número mínimo de contribuições necessárias para a obtenção
de um benefício, ressalvados os casos de dispensa.

2.1 Os segurados dos regimes de previdência social

Independentemente do regime a que estiver vinculado, aquele que exerce atividade


remunerada recebe a denominação jurídica de segurado, conforme disciplina do art. 11
da Lei n. 8.213, de 1991, e inc. III do art. 2º da Portaria MTP n. 1.467, de 2022.
A filiação do segurado ao regime de previdência social é o vínculo que cria direitos
e obrigações para ambas as partes. No Regulamento da Previdência Social, instituído
pelo Decreto n. 3.048, de 1999, a filiação decorre automaticamente do exercício da
atividade remunerada. Assim:

Art. 20. Filiação é o vínculo que se estabelece entre pessoas que contri-
buem para a previdência social e esta, do qual decorrem direitos e obri-
gações.

§ 1º A filiação à previdência social decorre automaticamente do exercício


de atividade remunerada para os segurados obrigatórios, observado o
disposto no § 2º, e da inscrição formalizada com o pagamento da primei-
ra contribuição para o segurado facultativo.

Nos regimes próprios de previdência social, o segurado é aquele que se efetivou


no cargo público mediante aprovação em concurso de provas ou de provas e títulos, nos
termos do disposto no art. 37, II, da Constituição Federal.

Art. 37. [...]


II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação
prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo
com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma previs-
ta em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado
em lei de livre nomeação e exoneração;

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A filiação do servidor/segurado ao seu Regime Próprio de Previdência Social se


dá pela posse, ou seja, pela investidura no cargo público efetivo. Ainda que haja debates
doutrinários acerca desse momento da filiação, no sentido de só ocorrer pelo exercício do
cargo, o fato é que a partir da posse o servidor já adquiriu esse status e, portanto, poderá
sofrer os efeitos jurídicos dessa condição, inclusive ser exonerado (ato administrativo)
caso não entre em exercício. Para os que vislumbram que a filiação só ocorre quando o
servidor entrar em exercício, pelo fato de que, se tomar posse e não entrar em exercício
dentro do trintídio, acarretará apenas que não receberá remuneração, mas isso também
ocorre quando está licenciado para tratar de assuntos particulares, sem o recebimento
dos consectários, o que não lhe retira o vínculo com a Administração Pública.

3 A ACUMULAÇÃO DE BENEFÍCIOS NOS DIVERSOS REGIMES DE PREVIDÊNCIA


SOCIAL

Sempre foi possível a acumulação de aposentadorias em mais de um regime de


previdência social, inclusive sem a incidência de qualquer redutor na renda mensal. Isso
se evidencia quando um indivíduo recebe duas aposentadorias em razão do exercício
de dois cargos públicos legitimamente acumuláveis no Regime Próprio de Previdência
Social, e uma terceira aposentadoria, esta remunerada pelo Regime Geral de Previdência
Social, em face da vinculação obrigatória nas previdências públicas. É o caso típico
de professores que lecionam em duas escolas públicas e uma escola particular, assim
como ocorre com os profissionais da saúde que acumulam suas atividades em Regimes
Próprios e exercem atividade na iniciativa privada.
Porquanto já foi dito que tudo que é possível acumular na atividade, será possível
acumular na inatividade. Ou seja, se o servidor é titular de dois cargos públicos, com
compatibilidade de horários, receberá duas remunerações e, no futuro, dois proventos
de aposentadoria (Queiroz, 2022, p. 177).
Quando se tratar de recebimento simultâneo de aposentadoria e pensão por morte,
tem-se a incidência do art. 24 da Emenda Constitucional n. 103, de 2019, que disciplina
não só as regras de vedação, mas também as restrições no recebimento conjunto desses
benefícios, com aplicação imediata em todos os regimes de previdência e em todos os
entes federativos.

Art. 24. É vedada a acumulação de mais de uma pensão por morte dei-
xada por cônjuge ou companheiro, no âmbito do mesmo regime de previ-
dência social, ressalvadas as pensões do mesmo instituidor decorrentes
do exercício de cargos acumuláveis na forma do art. 37 da Constituição
Federal.

O novo regramento de acumulação de benefícios é uma norma de eficácia plena,


com aplicação imediata e independente de qualquer regulamentação. Tem-se, portanto,
uma regra restritiva de direitos, com um rol taxativo, sem a possibilidade de ampliação
das hipóteses.
A regra trazida pelo dispositivo constitucional reformatório trata da vedação
ao recebimento conjunto de mais de uma pensão por morte deixada por cônjuge

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ou companheiro (a) no âmbito do mesmo regime, exceto para o caso de cargos


constitucionalmente acumuláveis.
Portanto, se o instituidor da pensão por morte exercia dois cargos acumuláveis
no mesmo regime próprio, como é o caso clássico de dois cargos de médico, e sendo
ambos estaduais, os proventos de cada qual serão percebidos no seu valor integral. Se,
porém, um cargo for de médico na rede estadual e outro na rede municipal, a restrição
será aplicada em cada um dos benefícios.
A atual vedação de recebimento conjunto de pensão por morte já existia no art.
124, VI, da Lei n. 8.213, com aplicação no âmbito do Regime Geral de Previdência
Social, e no art. 225 da Lei n. 8.112, de 1990, com alcance unicamente para os servidores
federais. Não estava prevista em alguns entes federativos.
O permissivo da cumulatividade trazido pela reforma previdenciária de 2019, se
restringe unicamente a três hipóteses, a saber:

Art. 24. [...]


§ 1º Será admitida, nos termos do § 2º, a acumulação de:
I - pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime
de previdência social com pensão por morte concedida por outro regime
de previdência social ou com pensões decorrentes das atividades milita-
res de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal;
II - pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime
de previdência social com aposentadoria concedida no âmbito do Regi-
me Geral de Previdência Social ou de regime próprio de previdência so-
cial ou com proventos de inatividade decorrentes das atividades militares
de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal; ou
III - pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts.
42 e 142 da Constituição Federal com aposentadoria concedida no âm-
bito do Regime Geral de Previdência Social ou de regime próprio de pre-
vidência social.

Nesse contexto, só haverá produção de efeitos quando se tratar de pensão por


morte deixada por cônjuge ou companheiro (a), não se aplicando às pensões deixadas
por filhos ou pais do beneficiário dependente.
O permissivo acumulativo do § 1º, I, trata do recebimento de pensão por morte
deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com pensão
por morte concedida por outro regime de previdência social ou com pensões decorrentes
das atividades militares de que tratam os artigos 42 e 142 da Constituição Federal, de
onde se conclui que o instituidor do benefício de pensão por morte exercia mais de uma
atividade, vinculado a um mesmo regime previdenciário ou não.
Para a hipótese do § 1º, II, admite-se o recebimento conjunto de pensão por
morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com
aposentadoria concedida no âmbito do Regime Geral de Previdência Social ou de
Regime Próprio de Previdência Social ou com proventos de inatividade decorrentes
das atividades militares de que tratam os artigos 42 e 142 da Constituição Federal. O
instituidor da pensão por morte, nesse caso, recolhia por um dos regimes previdenciários

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e o pensionista era aposentado por qualquer regime de previdência social ou militar


inativo.
No caso do § 1º, III, está prevista a acumulação de pensões decorrentes das
atividades militares previstas nos artigos 42 e 142 da Constituição Federal com
aposentadoria concedida no âmbito do Regime Geral de Previdência Social ou de
Regime Próprio de Previdência Social. Trata-se da possibilidade de acumulação de
pensão militar com a aposentadoria do pensionista, independentemente do regime a
que este estiver contribuindo.
As normas de acumulação dos benefícios de pensão por morte e aposentadoria,
independentemente do regime a que as contribuições foram vertidas, não inibem a
proteção social a que os beneficiários fazem jus. O efeito maléfico está no cálculo dos
proventos, e essa foi a principal mudança na acumulação de benefícios.

4 A APLICAÇÃO DOS REDUTORES NAS ACUMULAÇÕES PERMITIDAS

Até a promulgação da Emenda Constitucional n. 103, de 2019, não havia restrição


para o recebimento conjunto de benefícios nos diversos regimes previdenciários, nem
tampouco a aplicação de redutores no valor do benefício.
A reforma previdenciária criou um redutor a ser aplicado nos benefícios de
aposentadoria e pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro quando
recebidos conjuntamente, permitindo a preservação do valor integral apenas para
o benefício considerado como o mais vantajoso, ou seja, todos os demais benefícios
serão mitigados pela aplicação de percentuais estabelecidos em escalonamento, com
evidentes prejuízos aos pensionistas.
Os parâmetros das restrições foram disciplinados da seguinte forma:

Art. 24. [...]


2º Nas hipóteses das acumulações previstas no § 1º, é assegurada a
percepção do valor integral do benefício mais vantajoso e de uma parte
de cada um dos demais benefícios, apurada cumulativamente de acordo
com as seguintes faixas:
I - 60% (sessenta por cento) do valor que exceder 1 (um) salário-mínimo,
até o limite de 2 (dois) salários-mínimos;
II - 40% (quarenta por cento) do valor que exceder 2 (dois) salários-míni-
mos, até o limite de 3 (três) salários-mínimos;
III - 20% (vinte por cento) do valor que exceder 3 (três) salários-mínimos,
até o limite de 4 (quatro) salários-mínimos; e
IV - 10% (dez por cento) do valor que exceder 4 (quatro) salários-míni-
mos.

No recebimento simultâneo de mais de uma aposentadoria não há que se falar em


aplicação de redutor, até porque nas disposições do art. 24 somente haverá restrições
quando um dos benefícios em acumulação for pensão por morte.
Da mesma forma, o recebimento de duas pensões decorrentes de cargos
acumuláveis não sofrerá a incidência dos redutores, exceto se houver acumulação com

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a aposentadoria do pensionista. É o que diz a Portaria MTP n. 1.467, de 2022.

Art. 165. É vedada a acumulação de mais de uma pensão por morte


deixada por cônjuge ou companheiro, no âmbito do mesmo regime de
previdência social.
§ 3º Nas hipóteses das acumulações previstas no § 2º, é assegurada a
percepção do valor integral do benefício mais vantajoso e de uma parte
de cada um dos demais benefícios, apurada cumulativamente de acordo
com as seguintes faixas:
[...]
§ 4º O escalonamento de que trata o § 3º:
I - não se aplica às pensões por morte deixadas pelo mesmo cônjuge ou
companheiro decorrentes de cargos acumuláveis no âmbito do mesmo
RPPS, exceto quando as pensões forem acumuladas com aposentadoria
de qualquer regime previdenciário; e

Todavia, algumas questões devem ser pontuadas na aplicação dos redutores.


A primeira diz respeito ao direito de o pensionista optar pelo recebimento integral do
benefício que para ele significa o mais vantajoso, podendo solicitar a revisão a qualquer
tempo, ainda que se trate de uma norma de natureza cogente que afirma que o benefício
mais vantajoso deve ser assegurado pela Administração Pública àquele que se enquadra
nas hipóteses de acumulação com a incidência de redutores.

Art. 24. [...]


§ 3º A aplicação do disposto no § 2º poderá ser revista a qualquer tempo,
a pedido do interessado, em razão de alteração de algum dos benefícios.

Noutro giro, é preciso considerar que a parte do benefício a ser percebida,


decorrente da aplicação das faixas restritivas, deverá ser recalculada por ocasião do
reajuste do valor do salário mínimo nacional.
Em segunda premissa, se o direito aos benefícios houver sido adquirido antes da
data de entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 103, de 2019, não serão aplicadas
as restrições, ainda que algum dos benefícios tenha sido concedido posteriormente à 13
de novembro de 2019. Assim,

Art. 24. [...]


§ 4º As restrições previstas neste artigo não serão aplicadas se o direito
aos benefícios houver sido adquirido antes da data de entrada em vigor
desta Emenda Constitucional.

A Portaria MTP n. 1.467, de 2022, no mesmo sentido:

Art. 165. [...]


§ 6º As restrições previstas neste artigo:
II - não serão aplicadas se o direito a todos os benefícios, acumuláveis
nos termos da Constituição Federal, houver sido adquirido antes de 13 de

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novembro de 2019, ainda que venham a ser concedidos após essa data;

Em outro jaez, se o direito à acumulação ocorrer após essa data, todos os


benefícios deverão ser considerados para definição do mais vantajoso, mesmo que
já tenham sido concedidos ao tempo da reforma previdenciária. Essa normativa está
disposta na Portaria MTP n. 1.467, de 2022, a saber:

Art. 165. [...]


§ 7º Aplicam-se as regras de que tratam os §§ 2º e 3º se o direito à acu-
mulação ocorrer a partir de 13 de novembro de 2019, hipótese em que
todos os benefícios deverão ser considerados para definição do mais
vantajoso para efeito da redução de que trata o § 3º, ainda que concedi-
dos anteriormente a essa data.

A referida Portaria se aplica apenas no âmbito dos Regimes Próprios de


Previdência Social – RPPS, e não está disposta na Emenda Constitucional n. 103, de
2019. Portanto, pela hierarquia das normas jurídicas, e por se tratar de ato do Poder
Executivo, questionável a aplicabilidade do referido § 7º.

5 A INCONSTITUCIONALIDADE DOS REDUTORES DO ART. 24 DA EMENDA


CONSTITUCIONAL N. 103, DE 2019

A incidência das restrições no recebimento paralelo de benefícios foi instituída


pela norma reformadora previdenciária e se aplica a todos os regimes de previdência
social acarretando redução nominal dos valores, ainda que tenham sido concedidos em
período anterior à vigência da Emenda Reformadora.
Trata-se de uma norma constitucional que se aplica a todos os regimes próprios
dos entes federativos, e que, para tanto, não possuem autonomia para disciplinarem em
sentido contrário (Nóbrega; Benedito, 2022).
A redução ora apontada se identifica principalmente no benefício de pensão
por morte, onde o cálculo do valor do benefício já produz considerável perda do poder
aquisitivo familiar quando determina para um único dependente, o recebimento por cota
mínima de sessenta por cento do valor da aposentadoria que o segurado recebia, ou da
que teria direito se estivesse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito.
Na hipótese de o segurado falecer sem que estivesse aposentado, a aposentadoria
por incapacidade permanente a que teria direito na data do óbito será calculada na forma
do art. 26 da Emenda Constitucional n. 103, de 2019, segundo a qual a renda mensal
será de sessenta por cento da média aritmética dos salários de contribuição, acrescidos
de dois pontos percentuais por ano que ultrapassar quinze anos de contribuição, regra
essa aplicável àqueles que já estavam filiados à previdência social até 12.11.2019.
Para o caso em que o percentual a ser aplicado nessa provável aposentadoria por
incapacidade permanente seja de sessenta por cento, e existindo um único dependente
habilitado ao benefício de pensão por morte, o valor a ser recebido pelo pensionista é
de sessenta por cento sobre sessenta por cento (trinta e seis por cento), com evidente e
injustificável aplicação do bis in idem.

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Para além das duas reduções aplicadas no cálculo do benefício de pensão por
morte, o fato de o dependente usufruir de mais de um benefício, o menos vantajoso
sofrerá a incidência dos redutores do § 2º do art. 24, pelo simples fato de recebimento
conjunto quando um desses benefícios é a pensão por morte. Se o art. 23 já estabelece
a limitação do valor recebido na pensão por morte, a incidência de uma segunda redução
representa uma dupla penalização, o que não é admitido em Direito.
No estudo dos princípios que se relacionam às ofensas traduzidas no § 2º do
art. 24, encontramos as palavras de Humberto Ávila (2003, p. 63), segundo o qual “os
princípios, ao estabelecerem fins a serem atingidos, exigem a promoção de um estado
de coisas – bem jurídicos – que impõem condutas necessárias à sua preservação ou
realização”.
Na análise das disposições trazidas pela Emenda Constitucional Previdenciária de
2019, no que tange à redução da percepção de benefício que já integrou o patrimônio
social do segurado, alinha-se a ofensa a inúmeros princípios e garantias constitucionais.

5.1 Princípio da Proteção da Confiança e da Segurança Jurídica

O princípio da proteção da confiança tem previsão constitucional no art. 5º da


Constituição Federal e está diretamente ligado à segurança e estabilidade das relações
jurídicas, permitindo garantir a proteção da confiança e da boa-fé nas relações entre o
Estado e os jurisdicionados.
Noutro giro, o Princípio da Confiança se refere à proteção da legítima expectativa
dos cidadãos em relação às normas vigentes e às decisões judiciais, visando atenuar ou
impedir os efeitos maléficos decorrentes da frustração, pelo Estado, de uma expectativa
legítima do indivíduo.
Para Victor Souza (2018, p. 145),

A finalidade do princípio da proteção da confiança é assegurar ao cida-


dão a estabilidade de suas expectativas legítimas em face de mudanças
de posturas estatais que surpreendam o cidadão e/ou retroajam em seu
desfavor, pois normas e atos emanados do Estado não podem ter um
olhar oblíquo e único para o presente e projetar um futuro que desconsi-
dere inteiramente as consequências dos atos individuais realizados sob
um contexto passado, até mesmo autorizado.

A percepção individual que envolve a segurança mínima que o indivíduo deve ter
é a confiança, que é proporcionada por um determinado ordenamento jurídico e que advém
exatamente da segurança jurídica.
O aspecto subjetivo do princípio da proteção da confiança determina que para que haja
uma confiança a ser protegida, é necessário restar comprovado que o indivíduo confiou na
continuidade do ato estatal, depositando racionalmente suas expectativas em tal ato (Souza,
2018, p. 145).
No entanto, não são raros os casos em que o STF reconhece a inconstitucionalidade de
leis ou atos normativos, porém, preserva sua vigência e aplicabilidade até um termo futuro, e o
faz com o escopo da segurança jurídica e de evidente interesse social.

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Reconhece-se que as alterações ocorridas na evolução da sociedade como um todo,


demandam que o Estado atualize suas normas para adequá-las aos novos cenários
sociais que surgem com o decorrer do tempo.
Como qualquer princípio constitucional, a segurança jurídica não é um valor
absoluto. A certeza quanto ao direito aplicável não é o único valor tutelado pelo
ordenamento. A segurança jurídica pode se contrapor, por exemplo, ao interesse público
na evolução e no aperfeiçoamento do ordenamento jurídico. Ou, ainda, às exigências de
justiça material (Baptista, 2015, p. 42).
A proteção procedimental da confiança se desenvolve através de uma necessária
atividade administrativa processualizada, com a efetivação da tutela jurídica das legítimas
expectativas, assegurando-se a participação dos destinatários, principalmente nas hipóteses em
que a Administração Pública tenha causado prejuízos ou reduzido vantagens outrora concedidas.

5.2 Princípio da Pré-Existência do Custeio e a Regra da Contrapartida

A correlação entre o custeio e as prestações da Seguridade Social está prevista no


art. 195, § 5º da Constituição Federal, como garantia de funcionalidade e subsistência do
sistema, no qual é necessário o equilíbrio atuarial e financeiro. Assim, para cada despesa
gerada pela criação, majoração ou extensão de benefícios e serviços é indispensável
que exista, na devida proporção, receita que a ela corresponda. Assim:

Art. 195. [...]


§ 5º Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado,
majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.

O preceito constitucional informa não só a capacidade de financiamento da


sociedade no que se refere às prestações securitárias, mas também sua decisão política
na aplicação dos recursos obtidos e a ampliação do sistema de proteção que a seguridade
social disporá.
Para Uendel Domingues Ugatti (2003, p. 106), o referido preceito é “norma
constitucional da espécie princípio, uma vez que atua como vetor, diretriz e elemento
estruturante do planejamento constitucional para a seguridade social, norteando a
atividade do legislador ordinário, intérprete, magistrado e do administrador público”.
Defende, outrossim, que

o princípio da contrapartida atua, de forma nítida, como fundamento de


validade de todo o sistema de seguridade social, pois todas as presta-
ções, seja nas áreas de saúde, previdência ou assistência social, apenas
podem existir ou ser instituídas pelo legislador ordinário com a respecti-
va previsão da fonte e custeio total, assim como a criação de fontes de
custeio encontram-se atreladas às prestações sempre de acordo com o
plano atuarial, sob pena de sua nulidade, por absoluta ausência de fun-
damento de validade (Ugatti, 2003, p. 106).

A previsão da contrapartida não se encontra elencada no rol dos princípios

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disciplinados no parágrafo único do art. 194 da Constituição Federal e, portanto, não


deve ser reconhecida como princípio e sim, como regra.
Para Wagner Balera (2004, p. 122),

Conquanto não tenha sido inscrita no elenco inicial dos objetivos da se-
guridade social, temos considerado a diretriz estabelecida pelo art. 195,
§ 5º, que cognominamos regra da contrapartida, como sendo esse guide
que, a certa altura da evolução da proteção social brasileira, foi necessá-
rio explicitar.

E, se o comando constitucional não permite a criação, majoração ou extensão


de benefício ou serviço da seguridade social sem que haja fonte de custeio específica,
também não será instituída fonte de custeio se não houver a criação, majoração ou
extensão da prestação securitária.
No caso das disposições da Emenda Constitucional n. 103, de 2019, a inserção
dos redutores no valor do benefício ofende o princípio da pré-existência do custeio, haja
vista que o valor dos benefícios teve por base a contribuição previdenciária, o que por
si só já demonstra o cumprimento da obrigação tributária pelo segurado, mas no cálculo
da renda mensal sofre uma restrição que lhe reduz cabalmente o valor, comprometendo
sua perspectiva em ter um benefício compatível com sua contribuição. A expectativa
de recebimento de valor mais elevado foi frustrada e quebrada a confiança legítima,
configurando a insegurança jurídica sistêmica.

5.3 Princípio da Irredutibilidade do Valor dos Benefícios

Nos termos do inciso IV do parágrafo único, do art. 194 da Constituição Federal, o


princípio da irredutibilidade visa garantir o poder aquisitivo do benefício, preservando o
seu valor real e não permitindo a redução do valor nominal do mesmo. Trata-se de uma
segurança jurídica em prol do beneficiário diante dos efeitos da inflação.
A irredutibilidade do valor dos benefícios não está pautada apenas em relação
ao reajustamento dos benefícios, mas também e principalmente para que não haja a
possibilidade de se restringir o recebimento integral do benefício.
No que tange aos servidores públicos, o art. 37, XV da Carta Suprema estabelece
que o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são
irredutíveis.
No caso dos redutores impostos no § 2º do art. 24 da Emenda Constitucional
n. 103, de 2019, há uma evidente ofensa ao dispositivo constitucional em comento,
culminando no recebimento de apenas uma parcela que compromete o bem-estar do
beneficiário, bem como agride o princípio da dignidade da pessoa humana.
A arguição de inconstitucionalidade da norma por violação à irredutibilidade
de vencimento ou de benefício é plausível pela evidente lesão à segurança jurídica,
principalmente pela aplicação dos citados redutores diante da acumulação de novos
benefícios com outros concedidos sob a égide de normas anteriores que assegurava o
recebimento integral.

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5.5 A garantia constitucional do Direito Adquirido

A Carta Republicana de 1988, visando conferir segurança jurídica aos indivíduos,


estabeleceu em seu art. 5º uma das principais garantias do Estado Democrático de
Direito, in verbis:

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e


a coisa julgada;

O direito adquirido é aquele que se pode exercer. E para exercer um direito é


necessário que se tenha cumprido os requisitos da lei. Portanto, o direito adquirido é
aquele que incorporado ao patrimônio jurídico de seu titular, não poderá ser desconstituído
ou modificado, ainda que haja a promulgação de nova lei.
A própria Emenda Constitucional n. 103, de 2019, que tratou da reforma
previdenciária no âmbito de todos os regimes, se preocupou em garantir a manutenção
do direito do beneficiário quando, até a sua promulgação, já houvessem sido cumpridos
os requisitos autorizadores da concessão de um benefício. Assim:

Art. 3º A concessão de aposentadoria ao servidor público federal vincu-


lado a regime próprio de previdência social e ao segurado do Regime
Geral de Previdência Social e de pensão por morte aos respectivos de-
pendentes será assegurada, a qualquer tempo, desde que tenham sido
cumpridos os requisitos para obtenção desses benefícios até a data de
entrada em vigor desta Emenda Constitucional, observados os critérios
da legislação vigente na data em que foram atendidos os requisitos para
a concessão da aposentadoria ou da pensão por morte.

Nesse contexto, houve uma premente preocupação do legislador em assegurar


direitos aos beneficiários que tenham cumprido os requisitos para obtenção dos benefícios
de aposentadoria e pensão por morte.
Entretanto, por outro lado, o legislador descuidou da garantia constitucional quando
estabeleceu que o valor do benefício não mais poderia ser concedido na integralidade da
média aritmética dos salários de contribuição, determinando a aplicação de percentuais
que, ou diminuem o valor da renda mensal, ou obrigam o segurado a permanecer mais
tempo no mercado de trabalho.
Por óbvio que não se respeitou o caráter contributivo expresso nos artigos 40 e 201
da Carta Constitucional. Trata-se de um direito que exige contraprestação, e cuja base
de cálculo das contribuições impacta sobre o valor dos benefícios a serem auferidos,
haja vista que o salário de contribuição e as remunerações adotados como base para
contribuições a Regime Próprio de Previdência Social e ao Regime Geral de Previdência
Social, servem não só como base de cálculo da obrigação tributária, mas também como
base para o cálculo do salário de benefício.
E, arrematando a ofensa à garantia constitucional do direito adquirido e também
trazendo à baila um injustificável cálculo para as pensões por morte, criou redutores para
o caso de recebimento paralelo de benefícios.

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Miguel Horvath Júnior (2022) preleciona que o “Direito adquirido é expressão


jurídica que encerra a ideia de impossibilidade de alteração em virtude do surgimento de
lei nova sobre a matéria, ou não exercício, em tempo, do direito.”

5.6 O princípio da dignidade humana e o mínimo existencial

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consolidou como


fundamento a dignidade da pessoa humana e como objetivo a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária.
A dignidade é um atributo indissociável de cada indivíduo, apenas por integrar o
gênero humano, credor de consideração e respeito.
Ingo Wolfgang Sarlet define a dignidade da pessoa humana como

a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz mere-


cedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da co-
munidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato
de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as con-
dições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar
e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da pró-
pria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos
(Sarlet, 2001, p. 60).

O princípio da dignidade da pessoa humana se identifica não só pelo reconhecimento


da individualidade e autonomia de cada indivíduo, mas também pelo respeito, pela
integridade física e psicológica, pela liberdade de expressão, e pelas condições dignas
de sobrevivência com a inclusão da proteção social.
O mínimo existencial é a renda que assegura a cada pessoa a sua subsistência e
um padrão de vida digno, bem como a satisfação das necessidades básicas. O Estado,
como devedor desse mínimo, terá que encontrar uma forma de fazer com que todos
tenham acesso ao que é essencial para uma vida digna, sem agir de forma a privar as
pessoas do mínimo de sobrevivência.
O mínimo existencial, como conteúdo essencial dos direitos fundamentais, é o
resultado de restrições sob a reserva da lei.
As modificações do sistema previdenciário com o objetivo de promoção da
sustentabilidade financeira do sistema (aspecto intergeracional), assim como qualquer
outra modificação no regime dos demais direitos sociais de mesma estirpe, devem ser
balanceadas tanto quanto possível com os ditames da justiça social, preservando o
mínimo necessário à subsistência das populações mais vulneráveis e à promoção de
patamares condignos de qualidade de vida (Medici, 2021, p. 90).
Não há, portanto, óbice a reformas, desde que se preserve o núcleo fundamental
dos direitos sociais, que tocam “às condições mínimas de existência humana digna”
(Torres, 2009).

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5.7 O princípio da proporcionalidade

A proporcionalidade é a adequação das medidas adotadas pelo Poder Público e


que não podem exceder aos objetivos pretendidos. Trata-se de uma limitação estatal
que visa coibir a restrição de direitos e garantias fundamentais, a fim de que leis e atos
normativos sejam proporcionais ao resultado alcançado.
Nesse contexto, Bonavides (2006, p. 434) preleciona que

em nosso ordenamento constitucional não deve a proporcionalidade per-


manecer encoberta. Em se tratando de princípio vivo, elástico, prestante,
protege ele o cidadão contra os excessos do Estado e serve de escudo
à defesa dos direitos e liberdades constitucionais. De tal sorte que urge,
quanto antes, extraí-lo da doutrina, da reflexão, dos próprios fundamen-
tos da Constituição, em ordem a introduzi-lo, com todo o vigor, no uso
jurisprudencial.

Assim como o princípio da razoabilidade, o princípio da proporcionalidade é um


limitador da discricionariedade da Administração Pública e embora não estejam expressos
na Constituição Federal, estão consagrados no ordenamento jurídico.
A proporcionalidade sempre se baseou na construção jurisprudencial da
razoabilidade e, nesse sentido, encontramos a lição de Maria Rosynete Oliveira Lima
(Lima, 1999, p. 287), asseverando que “razoabilidade e proporcionalidade podem até
ser magnitudes diversas, entretanto, cremos que o princípio da proporcionalidade
carrega em si a noção de razoabilidade, em uma relação inextrincável, e que não pode
ser dissolvida, justificando, assim, a intercambialidade dos termos proporcionalidade e
razoabilidade no ordenamento brasileiro”.

6 CONCLUSÃO

A acumulação de benefícios nos diversos regimes previdenciários encontra


justificativa na proteção social individualizada para cada risco social ocorrido. A vedação
ao recebimento simultâneo, porém, ocorre em razão de fatos geradores conflitantes,
respeitado o direito adquirido.
No que se refere aos Regimes Próprios de Previdência Social – RPPS, a justificativa
da vedação ao recebimento simultâneo de benefícios é evitar que uma mesma pessoa
exerça várias funções, comprometendo o desempenho proficiente que possa resultar em
manifesto prejuízo à Administração Pública e aos administrados.
Ainda que a Emenda Constitucional n. 103, de 2019, não tenha criado impedimentos
ao recebimento conjunto de benefícios em quaisquer regimes previdenciários, estabeleceu
restrições na percepção em valores integrais, quando o recebimento conjunto implicar
em aposentadoria e pensão por morte deixada por cônjuge, companheira e companheiro.
Permitiu, todavia, que o benefício mais vantajoso fosse percebido em seu valor integral,
aplicando-se a restrição pecuniária nos demais benefícios, e tendo como parâmetro de
cálculo o salário mínimo nacional.
As questões levadas a debate neste estudo implicam não só em saber se a

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aplicação de redutores é inconstitucional, mas também provocar a análise do fato de


se permitir a percepção integral da remuneração ou subsídio, ou ainda os proventos do
abono de permanência em serviço, quando se recebe, cumulativamente, o benefício de
pensão por morte. Se o servidor se aposentar, um dos benefícios, o menos vantajoso,
seja a própria aposentadoria ou a pensão por morte, sofrerá a incidência dos redutores
previstos no § 2º do art. 24 da Emenda Constitucional n. 103, de 2019.
Recaindo a redução nos proventos de aposentadoria, incidirá ofensa ao caráter
contributivo do sistema e sua constitucional obrigatoriedade, bem como o princípio da
pré-existência do custeio e da regra da contrapartida, sem os quais não se pode arrecadar
sem que haja um direcionamento para cada contribuição específica.
No caso de incidir os redutores no benefício de pensão por morte, a presença
do bis in idem é clara em razão de já ter sido aplicada a limitação do art. 23 da referida
Emenda (60% da aposentadoria que o segurado recebia ou da que teria direito se
estivesse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito). A segunda
redução no benefício demonstra uma patente violação ao princípio da proporcionalidade
e da razoabilidade pela dupla penalização do beneficiário.
O que se tem, na verdade, é uma aparente garantia de acumulação de benefícios,
mas absolutamente restritiva quando impõe a aplicação de redutores, assim como uma
brutal ofensa aos princípios constitucionais e administrativos que direcionam a lisura do
Poder Público.
Não é demais reforçar que os beneficiários possuem o direito de confiar na
estabilidade das normas em vigência no momento em que são estabelecidas suas
relações jurídicas. E é exatamente através do princípio da proteção da confiança e da
segurança jurídica, que se exige do Constituinte derivado a elaboração de regras de
transição.
A arguição de inconstitucionalidade da norma restritiva baseia-se, também, na
violação ao princípio da irredutibilidade para a acumulação de benefícios com outros já
adquiridos sob a égide da legislação pretérita à Emenda Reformadora e que assegurava
o recebimento integral.
O objetivo desse trabalho foi analisar os aspectos que envolvem a acumulação
de benefícios no Regime Próprio de Previdência Social – RPPS e no Regime Próprio
de Previdência Social – RGPS, em especial após o advento da reforma previdenciária
promovida pela Emenda Constitucional n. 103, de 2019, promovendo reflexão acerca
da inconstitucionalidade das restrições impostas no novel comando constitucional no
tocante à simultaneidade da percepção de aposentadoria e pensão por morte, cujo
principal reflexo é a redução dos valores dos benefícios que impactam na qualidade de
vida dos beneficiários e acarretam desequilíbrio no sistema de proteção social trazido
pela Constituição da República.

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Revista Brasileira de Direito Social - RBDS, Belo horizonte, v. 7, n. 2, p. 40-61, 2024

[artigo]

A SAÚDE COMO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL: O


FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO PELO
ESTADO, NÃO INCORPORADOS NA LISTA DE DISPENSAÇÃO DO SUS,
À LUZ DA TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL

Lucas Pires Raydan20


Raphael Silva Rodrigues21
Thiago Penido Martins22

Resumo
O direito fundamental à saúde constitui direito de todos e dever do Estado em assegurar
a sua concretização. Entretanto, o Estado é dotado de recursos orçamentários
limitados, tendo como objetivo/dever garantir o acesso às políticas públicas de saúde
a toda a população brasileira. Diante disso, fazem-se necessários certos parâmetros
para a concessão de medicamentos de alto custo; de forma que a efetivação do direito
à saúde sob a órbita individual não venha a obstar a efetivação desse direito para
toda a coletividade. Portanto, deve o Judiciário fazer certas ponderações quando de
suas decisões, levando-se em consideração a máxima efetividade possível do direito
fundamental à saúde.
Palavras-chave: Direito à saúde; Mínimo existencial; Reserva do possível.

HEALTH AS A FUNDAMENTAL SOCIAL RIGHT: THE SUPPLY OF


HIGH-COST MEDICINES BY THE STATE, NOT INCLUDED IN THE SUS
DISPENSATION LIST, BASED ON THE THEORY OF THE RESERVE OF
THE POSSIBLE

Abstract
The fundamental right to health is everyone’s right and the state’s duty to ensure that it
is realized. However, the state has limited budgetary resources and its objective/duty
is to guarantee access to public health policies for the entire Brazilian population. In
view of this, certain parameters are necessary for the granting of high-cost medicines,
so that the realization of the right to health in the individual sphere does not hinder the

20
Pós-graduando em Direito Previdenciário – RGPS: Nova Previdência com ênfase em Prática Processual,
pelo Instituto de Estudos Previdenciários, Trabalhistas e Tributários – IEPREV. Pós-graduando em Direito
e Processo Tributário pela Faculdade CERS. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB/
MG. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Unihorizontes. Advogado com atuação em Direito
Previdenciário, Tributário e Saúde Suplementar – contencioso e consultivo.
21
Doutor e Mestre em Direito pela UFMG. Professor Universitário. Membro de diversos conselhos editoriais
e consultivos (livros e periódicos) e parecerista. Membro integrante de bancas examinadoras de concursos
públicos. Autor e coautor de livros, capítulos e artigos de revistas científicas.
22
Doutor em Direito Privado pela PUC/MG. Mestre em Direito e Especialista em Direito pela FDMC/MG.
Procurador Autárquico do Município de Belo Horizonte/MG. Professor da Universidade do Estado de Minas
Gerais (UEMG) e do Programa de Mestrado Profissional em Segurança Pública e Cidadania (UEMG).

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realization of this right for the entire community. Therefore, the Judiciary must make
certain considerations when making its decisions, considering the maximum possible
effectiveness of the fundamental right to health.
Keywords: Right to health; Existential minimum; Reserve of the possible.

1 INTRODUÇÃO

No cenário atual, tem crescido exponencialmente o debate acerca da tão questionada


judicialização excessiva da saúde. Cotidianamente, inúmeras ações são distribuídas no
Poder Judiciário objetivando a satisfação de demandas individuais de fornecimento de
medicamentos, sejam incorporados na lista de dispensação do Sistema Único de Saúde
(SUS), sejam não incorporados pelo referido órgão devido seu alto custo ou outros
aspectos técnicos. É inquestionável que o direito à saúde é um direito social destinado a
todos os cidadãos. Contudo, é irrefutável que o Estado é dotado de recursos limitados,
tendo que, em determinadas circunstâncias, tomar decisões complexas para melhor
satisfazer o interesse da coletividade em detrimento de uma necessidade individual.
O presente artigo tem por objetivo geral compreender se o Estado está, de
forma absoluta/ilimitada, obrigado ao fornecimento de medicamentos de alto custo,
não disponibilizados na lista de dispensação do SUS. E tem por objetivos específicos
analisar o direito fundamental à saúde em sua concepção histórica até os dias atuais;
compreender o metaprincípio da dignidade da pessoa humana na ordem constitucional
brasileira; abordar o direito ao mínimo existencial, com a sua aplicação na órbita do
direito à saúde; debater acerca da teoria da reserva do possível, como um instrumento
de ponderação e limitação de gastos com o fornecimento de medicamentos pelo Estado;
compreender como se dá a incorporação de medicamentos na lista de dispensação de
fármacos pelo SUS; e analisar a questão do fornecimento de medicamentos de alto
custo sobre a ótica do Poder Judiciário.
Com isso, a presente pesquisa busca solucionar o seguinte problema: o Estado
está obrigado, de forma absoluta, ao fornecimento de medicamentos de alto custo, não
ofertados na lista de dispensação do SUS?
Para tanto, o artigo em questão está estruturado em capítulos que tratarão dos
seguintes temas: inicialmente, será analisado a evolução histórica do direito fundamental
à saúde no Brasil até o seu estágio atual. Após, será discorrido sobre o Sistema Único de
Saúde – SUS, perpassando pela sua instituição e estruturação por meio dos princípios
e diretrizes que o regem. Em sequência, será analisado o metaprincípio da dignidade da
pessoa humana, abordando-se também a sua dimensão do direito ao mínimo existencial
como um elemento de imposição ao fornecimento de medicamentos.
Far-se-á, ainda, a análise da teoria da reserva do possível como limite ao
fornecimento de medicamentos de alto custo e a abordagem sobre como ocorre o
procedimento de incorporação destes na lista de dispensação do SUS. Em seguida,
será discorrido acerca da judicialização da saúde no que concerne ao fornecimento de
medicamentos de alto custo, o que acarretou, inclusive, na análise pelo Supremo Tribunal
Federal sobre a presente temática.
Por fim, será apresentada as considerações finais para o problema que ensejou a
presente pesquisa.

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2 O DIREITO À SAÚDE NO ESTADO BRASILEIRO

A saúde constitui um direito fundamental de cunho social expressamente


estabelecido na Constituição de 1988. Por ser um direito social, a saúde compreende
um direito de todos e exige do Estado o dever de uma atuação positiva para a sua
concretização.
Ocorre que nem sempre foi assim. A natureza da saúde como um direito fundamental
social e, portanto, direito de toda a coletividade e dever do Estado, é fruto de um extenso
processo evolutivo dos direitos fundamentais e da sociedade brasileira (Araújo; Martins,
2017).
O primórdio do caminho evolutivo da saúde pública no Brasil deu-se no século
XIX, com a chegada da Corte portuguesa. Nesse tempo, o Estado realizava certas ações
de combate à lepra e à peste e controle sanitário, notadamente nos portos e ruas. O
Estado, entretanto, realmente passou a realizar algumas ações mais efetivas na esfera
da saúde, entre os anos de 1870 e 1930, através do modelo campanhista, o qual, a
despeito de ter sido um modelo marcado pelo uso da autoridade e da força policial,
teve grande contribuição no controle e erradicação de doenças. Contudo, foi somente a
partir de 1930 que houve a estruturação básica do sistema de saúde pública no Estado
brasileiro, com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, dos Institutos da
Previdência (IAPs) que disponibilizavam serviços de saúde de caráter curativo, que eram
limitados apenas aos profissionais ligados ao referido instituto (Barroso, 2008).
Com a chegada do regime militar, ocorreu a unificação dos antigos institutos de
aposentadoria e pensão (IAPs) e foi criado o Instituto Nacional da Previdência Social
(INPS). Qualquer trabalhador urbano que possuísse carteira assinada era considerado
contribuinte do INPS e, portanto, gozava do direito de atendimento na rede pública
de saúde. Todavia, um grande número de cidadãos que não trabalhavam de carteira
assinada, ou seja, que não eram contribuintes do regime de previdência, continuavam
sem ter acesso às políticas públicas de saúde, ficando à mercê de ações de caridade
para ter acesso aos serviços de saúde (Barroso, 2008).
Todas as Constituições anteriores à atual tratavam da saúde de forma esparsa,
não lhe atribuindo status de direito fundamental, e ainda não era universal, pois como
já mencionado, era condicionado à contribuição para a previdência social (BARROS,
2006).
Somente com o fim do regime militar e a promulgação da Constituição de 1988,
a saúde passou a ser considerada um direito fundamental destinado a todos e dever do
Estado em garantir a sua efetivação. Tal direito foi positivado no texto constitucional em
seu artigo 6º, no campo dos direitos sociais, e no Título VIII, que trata da ordem social,
capítulo II, seção II, entre os artigos 196 a 200 (Brasil, 1988).
Não obstante a saúde transparecer ser um direito predominantemente de cunho
prestacional, os direitos sociais (do qual faz parte a saúde) gozam de duas dimensões de
eficácia: prestacional e defensiva. A eficácia prestacional (positiva), exige a intervenção
do Estado através de ações positivas para promover a máxima efetividade material do
direito à saúde. Contrario sensu, a eficácia defensiva (abstencionista) impõe ao Estado e
aos indivíduos que se abstenham de intervir de forma a lesionar ou ameaçar a concretude
do direito à saúde (Araújo; Martins, 2017).

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Segundo Sarlet (2003), a saúde constitui um direito que possui dupla


fundamentalidade (material e formal). A fundamentalidade material decorre da importância
de decisões fulcrais tomadas pelo Estado para a concretização de uma vida digna, bem
como para a concretização dos demais direitos, fundamentais ou não, expressos ou
implícitos no texto constitucional. No que concerne à fundamentalidade formal, esta
advém: a) do fato de os direitos fundamentais, dentre os quais se insere o direito à saúde,
situarem-se no ápice de todo o ordenamento jurídico; b) por sua natureza de direito
fundamental, submete-se aos limites formais (procedimentos mais densos) e materiais
(cláusulas pétreas) de forma constitucional; c) por fim, é direito que possui aplicabilidade
imediata, nos moldes do artigo 5º, § 1º da Constituição da República de 1988 (CR/1988).
O artigo 196 da CR/1988 estabelece ao Estado o dever de garantir o acesso
universal e igualitário às ações e serviços de saúde (Brasil, 1988).
Como forma de garantir esse acesso universal e igualitário às políticas públicas de
saúde, foi criado pelo Estado o Sistema Único de Saúde – SUS.

3 O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – SUS

O Sistema Único de Saúde (SUS) encontra seu alicerce nos artigos 196 a 200 do
Texto Constitucional de 1988, por meio dos quais se define a saúde como direito de todos
e dever do Estado, a ser garantido por meio de políticas sociais e econômicas (BRASIL,
1988). Nestes dispositivos também é encontrado os fundamentos e organização do
presente sistema.
Não obstante, o SUS somente veio a ser regulamentado dois anos após a
promulgação da Constituição, através da Lei nº 8.080/90, comumente conhecida como
“Lei Orgânica da Saúde”, a qual discorre sobre as condições para a promoção, proteção
e recuperação da saúde, bem como a organização e o funcionamento dos serviços
correspondentes, consolidando o disposto no texto constitucional, e pela Lei nº 8.142/90
que discorre sobre a participação da comunidade na gestão do SUS (Araújo; López;
Junqueira, 2016).
Sarlet e Figueiredo (2009, p.11) caracteriza o SUS como uma garantia institucional
fundamental e, portanto:

Sujeita-se, por conseguinte, à proteção estabelecida para as demais


normas jusfundamentais, inclusive no que tange à sua inserção entre
os limites materiais à reforma constitucional, além de estar resguardado
contra medidas de cunho retrocessivo em geral. Desse modo, eventuais
medidas tendentes a aboli-lo ou esvaziá-lo, formal e substancialmente,
até mesmo quanto aos princípios sobre os quais se alicerça, deverão ser
consideradas inconstitucionais, pois que não apenas o direito à saúde é
protegido, mas o próprio SUS, na condição de instituição pública, é salva-
guardado pela tutela constitucional protetiva (SARLET e FIGUEIREDO,
2009, p. 11).

Portanto, o SUS é amparado por todas as proteções constitucionais inerentes aos


direitos e garantias fundamentais previstos no texto constitucional.

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3.1 Princípios do SUS

O SUS é regido por meio de princípios e diretrizes, debatidos e aprovados através


do Movimento pela Reforma Sanitária e na VIII Conferência Nacional de Saúde, e
inseridos na Constituição, estando os principais fundamentos do sistema alocados nos
seus artigos 196 e 198 e no artigo 7º da Lei nº 8.080/90 (Araújo; López; Junqueira, 2016).

3.1.1 Princípio da universalidade

O princípio da universalidade está previsto expressamente no corpo do artigo 196


da CR/1988, que caracteriza a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem ao “acesso universal e igualitário” às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (Brasil, 1988).
A universalidade pode ser considerada como o ponto chave da criação do SUS,
já que através dela restou superado o anterior condicionamento aos serviços de saúde
apenas aos contribuintes da previdência social.
De acordo com Araújo, López e Junqueira (2016), essa universalidade a que
se refere o artigo 196 do texto constitucional e também o artigo 7º, I, da Lei 8.080/90,
trata-se da titularidade do direito à saúde, e não do objeto do mesmo. Ou seja, essa
universalidade foi empregada no sentido de que todos os cidadãos podem se utilizar
das ações e serviços de saúde gratuitamente. A grosso modo, o que o princípio da
universalidade objetiva é proibir qualquer tipo de condição e discriminação ao exercício
do direito à saúde, tendo em vista ser um direito de todos.
Diante disso, torna-se claro que essa universalidade não está a dizer que toda
e qualquer prestação reclamada tenha que ser fornecida pelo Poder Público, sob o
argumento de ser o direito à saúde um direito universal. O que é universal é a titularidade
do direito.

3.1.2 Princípio da igualdade

Alocado no texto constitucional juntamente com a universalidade, bem como no


artigo 7º, IV, da Lei 8.080/90, está o princípio da igualdade. Tal princípio significa que,
a todos, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie, deve ser assegurado o
acesso aos serviços públicos de saúde (BRASIL, 1990).
No entanto, essa igualdade não pode ser interpretada de forma literal, haja vista
que, não rara as vezes, tratar os desiguais na medida de suas desigualdades é medida
necessária para a concretização da verdadeira igualdade material.
Nesse sentido, a igualdade é complementada pelo princípio implícito da equidade.
Tal princípio busca estabelecer um atendimento direcionado com as necessidades de
cada paciente, ou seja, levando-se em consideração as condições de saúde e de vida de
cada um, bem como levando em conta as necessidades de serviços de saúde de acordo
com a diversidade populacional, priorizando-se aquelas regiões mais necessitadas, com
o fito de se alcançar a igualdade de acesso à saúde (Araújo; López; Junqueira, 2016).

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3.1.3 Princípio da integralidade

Previsto no artigo 198, II, da CR/1988 e no artigo 7º, II, da Lei 8.080/90 está o
princípio da integralidade, definido como o “conjunto articulado e contínuo das ações
e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em
todos os níveis de complexidade do sistema” (Brasil, 1990).
De acordo com Barros (2006), a integralidade busca garantir ao indivíduo uma
abrangência às ações e serviços de prevenção, promoção, tratamento e reabilitação, em
todos níveis de complexidade do SUS, dando-se ênfase não apenas ao indivíduo, mas
também na família e na comunidade.
Sarlet e Figueiredo (2009) atribuem duas facetas para o princípio da integralidade.
Primeiro, os doutrinadores explicitam que, a despeito de a cobertura oferecida pelo
SUS dever ser a mais ampla possível, é irrefutável a existência de determinados limites,
notadamente técnicos. Segundo, discorrem que a integralidade do atendimento reflete uma
noção de que as ações e os serviços de saúde precisam ser considerados como um todo, de
forma harmônica e contínua, simultaneamente articulados e integrados em todos os prismas
(individual e coletivo; preventivo, curativo e promocional; local, regional e nacional) e níveis
de complexidade do SUS, isto é, baixa, média e alta complexidade, característica que se
encontra vinculada à unidade do SUS, notadamente no que tange ao seu planejamento.
O conteúdo do princípio da integralidade não está a significar a oferta, de forma
incondicional/absoluta, de todo e qualquer medicamento ou tratamento que seja pleiteado
ao Poder Público. O referido princípio deve ser entendido como a obrigatoriedade do
Estado em elaborar políticas públicas para garantir o acesso às ações e serviços de
saúde ao maior número de pessoas possível.

3.1.4 Princípio da unicidade

O Princípio da unicidade também encontra respaldo no artigo 198 do texto


constitucional ao conceber o SUS como um sistema único. No entanto, não obstante ser
um sistema único, o SUS atua de forma descentralizada entre todos os entes federados,
com direção única em cada ente, integrado através de uma rede regionalizada e
hierarquizada (Araújo; López; Junqueira, 2016).
Segundo Sarlet e Figueiredo (2009, p. 12) o princípio da unicidade está a significar
que o Sistema Único:

Importa em que os serviços e as ações de saúde, públicos ou privados,


devem pautar-se e se desenvolver sob as mesmas politicas, diretrizes e
comando. Trata-se de um só sistema, que abrange e sujeita a uma dire-
ção única e, portanto, a um só planejamento (ainda que compartido nos
níveis nacional, regional, estadual, municipal), as ações e os serviços de
saúde (Sarlet; Figueiredo, 2009, p. 12).

Portanto, os serviços e ações de saúde serão prestados através de um único


sistema, com um só planejamento a ser seguido nos níveis nacional, regional, estadual
e municipal.

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3.2 Diretrizes do SUS

O artigo 198 da CR/1988, que aponta as bases de organização do SUS, traz em


seu corpo as diretrizes da descentralização, regionalização, hierarquização e participação
da comunidade, que possuem como finalidade a orientação das regras de repartição de
competências e atribuições no âmbito do SUS (Araújo; López; Junqueira, 2016).

3.2.1 Diretriz da descentralização

De acordo com Ferreira (2015) a descentralização significa a transferência de


responsabilidades de gestão da União para com os Estados e Municípios, observados
os limites impostos pela Constituição e pela Lei do SUS, além da definição de atribuições
comuns e competências determinadas para os entes federados. Por meio dessa diretriz
é que os Estados e Municípios, após comprovarem que preenchem os requisitos
necessários para o desempenho das responsabilidades assumidas, recebem recursos
financeiros da União para que possam gerir a execução dos serviços e ações de saúde
de nível regional e local.
No que tange à repartição de competências por meio da descentralização, ensina
Araújo, López e Junqueira (2016, p. 52) que:

A União atua preponderantemente no planejamento e financiamento das


políticas públicas, enquanto a execução das políticas de saúde foi atri-
buída precipuamente aos Municípios, aos Estados e ao Distrito Federal.
No campo da execução das ações de saúde, a União atua em caráter
supletivo e subsidiário, e diretamente apenas em situações específicas
estabelecidas na legislação, a exemplo das ações de vigilância epidemio-
lógica e sanitária, conforme parágrafo único do art. 16 da lei nº 8.080/90
(Araújo; López; Junqueira, 2016, p. 52).

Diante do exposto, percebe-se que a descentralização impõe que haja uma


cooperação entre os entes federativos no que tange à prestação do direito à saúde, cada
um desempenhando uma função específica no âmbito de sua competência.

3.2.2 Diretriz da regionalização

A diretriz da regionalização garante autonomia a cada ente federado, que deve


atuar de maneira integrada e coordenada com os demais entes. A regionalização é um
instrumento de otimização e efetividade dos serviços e ações de saúde no âmbito do SUS,
tendo em vista que por meio dela é possível identificar as necessidades e prioridades a
serem supridas em cada região (Castro, 2016).
Dessa forma, as secretarias de saúde dos Estados e Municípios devem desenvolver
um Plano Diretor de Regionalização com o fito de garantir à população o acesso aos
serviços e ações de saúde o mais próximo possível de sua moradia e de acordo com
suas prioridades e necessidades específicas (Ferreira, 2015).

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3.2.3 Diretriz da hierarquização

Já a diretriz da hierarquização, tem por escopo fazer a divisão do acesso aos


serviços e ações de saúde de acordo com níveis crescentes de complexidade, isto é,
atendimento de baixa complexidade (primário), atendimento de média complexidade
(secundário) e atendimento de alta complexidade (terciário). O ponto central deste
método hierarquizado de organização do atendimento se fundamenta no fato de que
as unidades básicas de atendimento (baixa complexidade), presentes nos Municípios,
seriam a porta de entrada do SUS, sendo responsáveis pelo encaminhamento do paciente
para unidades de níveis maiores de complexidade, a depender das particularidades do
caso (Ferreira, 2015).
Diante disso, cabe ressaltar o quão importante é a plena eficácia do atendimento
prestado pelas unidades básicas de saúde, já que estas atuam nos problemas mais
simples de saúde, de forma a evitar o seu agravamento e, consequentemente, a
necessidade de encaminhamento para os níveis mais altos de complexidade, que por
sua vez demandam mais recursos por parte dos entes.

3.2.4 Diretriz da participação da comunidade

Por derradeiro, o SUS conta com a diretriz da participação da comunidade na


gestão do sistema.
De acordo com Barros (2006), a participação da comunidade ocorre através de
instâncias colegiadas e serve como meio de exercício democrático, além de revelar-se
de fundamental importância na organização do SUS.
Segundo ensinamentos de Sarlet e Figueiredo (2009), a participação da
comunidade no SUS se dá por meio das sucessivas Conferências de Saúde; através
dos Conselhos de Saúde; bem como no âmbito das agências reguladoras (ANVISA,
ANS, CONAMA, etc.).

4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A dignidade da pessoa humana está reconhecida pela Constituição Federal de


1988 como um dos princípios fundamentais da República, insculpida no inciso III do seu
artigo 1º (Brasil, 1988).
Sarmento (2016, p. 92), define a dignidade da pessoa humana da seguinte forma:

Trata-se, em resumo, da pessoa vista como fim em si, e não como mero
instrumento a serviço do Estado, da comunidade ou de terceiros; como
merecedora do mesmo respeito e consideração que todas as demais, e
não como parte de um estamento na hierarquia social; como agente au-
tônomo, e não como ovelha a ser conduzida por qualquer pastor; como
ser racional, mas que também tem corpo e sentimentos e, por isso, expe-
rimenta necessidades materiais e psíquicas; como ser social, imerso em
relações intersubjetivas fundamentais para a sua identidade, e não como
indivíduo atomizado e desenraizado (Sarmento, 2016, p. 92).

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Fernandes (2017) leciona que o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa


humana possui as seguintes dimensões: a) não instrumentalização, que significa que
o indivíduo não pode ser utilizado como um objeto, mas como um fim em si mesmo; b)
autonomia existencial, significando que a pessoa tem o direito de fazer suas próprias
escolhas de vida, desde que não comportem práticas ilícitas; c) direito ao mínimo
existencial, que impõe um mínimo de condições materiais básicas para uma vida digna;
e d) direito ao reconhecimento, significando que as identidades singulares devem ser
respeitadas, devendo cada sujeito ser reconhecido dignamente independentemente de
suas escolhas de vida.
Para o mesmo autor, por constituir um princípio que fundamenta todo o ordenamento
constitucional, a dignidade humana irradia valores e vetores de interpretação e aplicação
tanto para o direito à saúde como para todos os demais direitos fundamentais, devendo
cada indivíduo ser tratado como um fim em si mesmo, não como instrumento para o
alcance de interesses alheios, motivo pelo qual é elevada à condição de metaprincípio
(Fernandes, 2017).
Nesse sentido, todos os direitos fundamentais reconhecidos no texto constitucional
possuem como principal escopo a concretização da dignidade da pessoa humana.
Destaca Araújo e Martins (2017) que o Estado Constitucional de direito (no qual
foi inspirada a atual Constituição brasileira) possui como principal axioma a promoção da
dignidade da pessoa humana através da proteção e garantia dos direitos fundamentais.
Mas a dignidade da pessoa humana, diante de toda a sua importância, seria um
princípio absoluto ou ela comporta relativização?
De acordo com Sarmento (2016), a dignidade humana não é absoluta, comportando
relativização em determinados aspectos. Para o autor, sendo a dignidade humana
considerada como o bem maior a ser alcançado pelo ordenamento pátrio, possui uma
ampla capacidade de incidência, pois deve ser considerada no âmbito de concretização
de todos os direitos fundamentais.
Em uma sociedade complexa como a brasileira, não há como defender a dignidade
humana como absoluta, tendo em vista tratar-se de um princípio que tem por escopo
disciplinar inúmeras dimensões das relações sociais. Na teoria, defender o caráter
absoluto da dignidade humana é fácil e até politicamente correto, mas na prática, é
impossível o seu alcance a todos, e em todas as situações exigidas. Para que o referido
princípio possa ser aplicado da maneira mais abrangente possível torna-se imprescindível
a sua relativização em determinados casos (Sarmento, 2016).

4.1 O mínimo existencial como elemento de imposicão ao fornecimento de


medicamentos

Como já abordado, o fundamento precípuo do Estado Democrático de direito


brasileiro pauta-se na promoção do metaprincípio da dignidade da pessoa humana por
meio da efetivação dos direitos fundamentais. O mínimo existencial compõe o conteúdo
da dignidade da pessoa humana e, no campo dos direitos fundamentais sociais, é tido
como o núcleo essencial para a garantia e promoção da dignidade humana.
Segundo Oliveira e Costa (2011), o mínimo existencial, independentemente de sua
positivação em Lei, é considerado direito fundamental, vinculado ao texto constitucional.

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Mas qual seria, de fato, o conceito de mínimo existencial? Para Sarmento (2016,
p. 212) o mínimo existencial:

Corresponde às condições materiais básicas para uma vida digna. Trata-


-se de um direito fundamental derivado diretamente do princípio da dig-
nidade da pessoa humana, que também se manifesta em boa parte dos
direitos fundamentais sociais positivados pela Constituição de 88, como
saúde, educação, moradia, alimentação, previdência e assistência social
etc., estando igualmente presente em alguns direitos individuais, como
no acesso à justiça (Sarmento, 2016, p. 212).

O autor pondera, no entanto, que definir o conteúdo do direito ao mínimo existencial


não é uma tarefa simples. Isso porque a concepção do que seria necessidades matérias
básicas sofre variações socioculturais. Isto é, cada sociedade tem a sua definição
específica do que seriam bens elevados à condição de necessidades básicas para as
pessoas (Sarmento, 2016).
Além disso, o autor pontua que devem ser analisadas as necessidades concretas
de cada individuo para a definição do mínimo existencial. Isso porque determinada
prestação pode ser considerada como uma necessidade material básica para o mínimo
existencial de certa pessoa, mas não para outra (Sarmento, 2016).
Segundo ensinamentos de Torres (2008), o mínimo existencial não possui conteúdo
específico, abrangendo o núcleo essencial de qualquer direito. Portanto, o seu conteúdo
é imensurável, pois envolve mais aspectos de qualidade que de quantidade.
Contudo, a despeito de não possuir um conteúdo específico para o mínimo
existencial, no campo dos direitos prestacionais sociais, o mínimo existencial tem sido
utilizado como sendo as prestações matérias básicas para uma vida com dignidade.
No que concerne ao direito fundamental à saúde, a abordagem acerca do mínimo
existencial é extremamente complexa. Atualmente, ele tem servido de fundamento para
a massiva judicialização da saúde, notadamente no que se refere a demandas referentes
ao fornecimento de medicamentos.
Fato é que o mínimo existencial deve ser observado pelo Estado quanto a prestações
exigidas nas esferas de diversos outros direitos sociais, como por exemplo o acesso a
uma educação básica de qualidade, o direito a uma moradia digna, direito a alimentação,
dentre outros (Sarmento, 2016). Como ocorre com todos os direitos prestacionais, a
saúde gera para o Poder Público um alto dispêndio de recursos orçamentários. E,
como todos os demais Estados Soberanos, o Estado Brasileiro é dotado de recursos
orçamentários finitos (Barroso, 2016).
Diante da universalidade do direito à saúde, o Estado deve promover o mínimo
existencial da forma mais abrangente possível, tendo em vista que, como os recursos
são limitados, na prática é inviável que consiga promover, de forma absoluta, o acesso
a toda e qualquer prestação sob o argumento de tratar-se de condição necessária ao
exercício do mínimo existencial.
De acordo com Torres (2008), o mínimo existencial encontra limitação na liberdade
fática e nos custos orçamentários. No entanto, o autor ressalta que, a despeito de ser um
direito relativo, o Estado deve garantir a máxima abrangência possível do mínimo existencial.

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Portanto, diante da escassez de recursos orçamentários para atender a inúmeras


exigências, o Estado se vê obrigado, em certas ocasiões, a tomar decisões trágicas,
devendo escolher com cautela os seus gastos prioritários. Cada vez que o Poder
Judiciário determina ao Poder Público a concessão de um medicamento a alguém,
notadamente aqueles de alto custo, ele está retirando recursos que seriam destinados
ao atendimento de saúde pública à toda a coletividade. É imprescindível, portanto, traçar
critérios racionais para a intervenção do Judiciário no campo do direito prestacional à
saúde (Sarmento, 2010).

5 A RESERVA DO POSSÍVEL COMO LIMITE AO FORNECIMENTO DE


MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO

Como já explicitado, a saúde, assim como todos os demais direitos prestacionais,


acarreta um custo para a sua concretização por parte do Estado, que é dotado de recursos
orçamentários escassos. Tal escassez de recursos financeiros implica em uma limitação
para o Estado no que tange à efetivação das prestações exigidas no âmbito dos direitos
sociais prestacionais. Diante disso, o Estado se vale, em certos casos, da reserva do
possível quanto a exigências pautadas na concretização desses direitos.
No que concerne à origem da teoria da reserva do possível, ensina Daniel Sarmento
(2016, p. 229) que:

A expressão “reserva do possível” (VorbehaltdesMöglichen) foi difundida


a partir de célebre decisão do Tribunal Constitucional alemão, proferida
em 1972, em caso conhecido como Numerus Clausus, que tratou da vali-
dade da limitação do número de vagas em universidades públicas, tendo
em vista a pretensão de ingresso de um número maior de candidatos.
Não há, na Constituição alemã, a garantia do direito à educação, mas o
Tribunal Constitucional entendeu que a liberdade profissional demanda-
va, em alguma medida, o direito de acesso ao ensino superior. Todavia,
frisou que tal direito “se encontra sob a reserva do possível, no sentido de
estabelecer o que o individuo pode razoavelmente exigir da sociedade”.
Segundo a Corte Germânica, tal decisão cabe primariamente ao legisla-
dor, que deve “atender, na administração do seu orçamento, também a
outros interesses da coletividade”. Trata-se de conceito também empre-
gado em outras ordens jurídicas, até porque decorre de uma realidade
econômica – a escassez – que é universal (Sarmento, 2016, p. 229).

No Brasil, a reserva do possível passou a ser utilizada corriqueiramente a partir de


uma decisão monocrática proferida pelo Ministro Celso de Mello na ADPF nº 45/04, na
qual fora aplicada a presente teoria (Sarmento, 2016).
Para Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo (2008, p. 30) a reserva
do possível comporta três dimensões, quais sejam:

[...] a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos


direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais

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e humanos, que guarda intima conexão com a distribuição das receitas


e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas,
entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente
no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo;
c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a presta-
ções sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporciona-
lidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta
quadra, também da sua razoabilidade (Sarlet; Figueiredo, 2008, p. 30).

De acordo com Sarmento (2010), a reserva do possível deve ser observada


sobre um componente fático e outro jurídico. Aquele (componente fático) se refere à
disponibilidade de recursos orçamentários para a concretização da prestação exigida,
enquanto o componente jurídico diz respeito à previsão em lei orçamentária para o gasto
estatal com as respectivas prestações exigidas.
O autor ressalta que a reserva do possível fática deve ser entendida como a
razoabilidade da universalização da prestação exigida, levando-se em consideração os
recursos econômicos existentes. Ou seja, a questão da escassez de recursos não pode
ser utilizada isoladamente quando da aplicação da reserva do possível, mas sim em
conjunto com a razoabilidade da prestação exigida frente a uma universalidade de casos
semelhantes e de diversas outras prestações (outros direitos fundamentais) a serem
efetivadas pelo Estado (Sarmento, 2010).
No âmbito da judicialização da saúde, notadamente no que diz respeito à concessão
de medicamentos de alto custo não ofertados pelo SUS, é imperioso que o Poder
Judiciário, antes de condenar o Poder Público ao fornecimento de certo medicamento
ao autor de determinada demanda, faça uma análise sobre a razoabilidade da prestação
exigida frente a todos aqueles administrados que estejam em situação semelhante
(princípio da igualdade), bem como da infinidade de outras prestações erigidas (inclusive
de outros direitos fundamentais) a serem efetivadas pelo Estado, que detém recursos
limitados para tanto.
Segundo Castro (2016), no Brasil houve a alteração do sentido original da reserva
do possível, uma vez que a expressão tem sido utilizada apenas no que diz respeito à
disponibilidade ou não de recursos, deixando-se de lado a questão da razoabilidade da
pretensão exigida.
Já no que concerne à reserva do possível jurídica, esta consiste na previsão legal
das despesas públicas, realizada pelo Poder Legislativo através da lei orçamentária.
Ocorre que, não obstante caber ao legislador definir como se dará a distribuição dos
gastos públicos pela Administração Pública, tais escolhas não estão totalmente ao
arbítrio do legislador, haja vista que a própria Constituição já define certas prioridades na
distribuição de tais recursos para a concretização de prestações objeto dos direitos sociais,
que devem ser observadas pelo legislador quando da realização da lei orçamentária, sob
pena de intervenção do Poder Judiciário (Sarmento, 2010).
Dessa forma, destaca-se que o Poder Público possui orçamento pré-fixado para
gastos no campo da saúde, devendo assegurar o acesso gratuito a tal direito a milhões
de cidadãos através do SUS, o que reforça ainda mais a legitimidade da aplicação da
reserva do possível em determinadas prestações exigidas.

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Sustenta Cunha Júnior (2006) que a teoria da reserva do possível, por ser originária
de um país desenvolvido, onde já existe um nível elevado de bem-estar social, com
realidade socioeconômica completamente distinta da realidade brasileira, não poderia
ser empregada no Estado brasileiro, que é considerado um país periférico, ainda em
desenvolvimento, que ainda não consegue garantir à grande parte das pessoas as
condições materiais básicas para uma existência digna.
Contudo, esse posicionamento não merece prosperar. Conforme preceitua
Sarmento (2010), é justamente em países periféricos e menos desenvolvidos (como
é o caso do Brasil) que a incidência da reserva do possível se justifica, tendo em vista
que a escassez de recursos, presente nestes países, torna ainda mais evidente a
impossibilidade de realização plena e concomitante de todas as prestações advindas
dos direitos sociais que lhes são exigidas.
É óbvio que a reserva do possível não pode ser invocada pelo Estado como forma
de eximir-se de concretizar toda e qualquer prestação social que lhe seja exigida. Até
porque, como já explicitado anteriormente, o fundamento principal do Estado é garantir
ao seu povo o metaprincípio da dignidade da pessoa humana através da promoção dos
direitos fundamentais. No entanto, no mundo prático, infelizmente, o Estado brasileiro não
consegue garantir à grande parcela de seus cidadãos, as condições materiais básicas
necessárias a uma existência digna, diante da limitação de recursos financeiros e de
outras questões politico-administrativas que escapam ao objeto do presente trabalho.
Dessa forma, no tocante ao direito fundamental à saúde, se torna imprescindível
a aplicação da reserva do possível frente a determinadas prestações exigidas ao Poder
Público (como é o caso dos medicamentos de alto custo), para que uma prestação que
venha a ser concedida a um ou a alguns não obste a efetivação das condições materiais
básicas de toda uma coletividade, haja vista que o Estado deve primar pelo bem comum,
ainda que para tanto seja necessário o sacrifício de um direito individual.
Por derradeiro, a reserva do possível, a despeito de acarretar uma limitação
jurídica e fática dos direitos fundamentais, ela também constitui, em certas circunstâncias,
garantia dos direitos fundamentais, na medida em que uma prestação concernente a
determinado direito fundamental não venha a impedir a concretização de tantos outros
direitos da mesma natureza (Sarlet; Figueiredo, 2008).

6 INCORPORAÇÃO DE MEDICAMENTOS NO SUS

Para que um medicamento seja incorporado na lista de fármacos que são ofertados
pelo SUS, existe todo um procedimento técnico e sistematizado, através do qual são
analisados diversos aspectos sobre a viabilidade de sua incorporação ou não. Esse
procedimento é realizado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no
SUS (CONITEC), criada pela Lei nº 12.401/2011 e regulamentada através do Decreto nº
7.646/2011 (Capucho et al, 2012).
O Decreto nº 7.646/11, em seu artigo 2º, define a CONITEC como sendo um órgão
colegiado de caráter permanente, que compõe a estrutura regimental do Ministério da
Saúde (MS), desempenhando o papel de assessoramento ao Ministério da Saúde quanto
à incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde, além da constituição ou
alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas (Brasil, 2011).

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Vale destacar que a expressão “tecnologias em saúde”, prevista no inciso IV do


artigo 1º do Decreto nº 7.646/1, é totalmente ampla, abarcando em seu núcleo diversos
insumos, inclusive os medicamentos (Brasil, 2011).
É certo que a incorporação de um medicamento pode trazer diversos benefícios,
mas também acarreta riscos e custos. Portanto, é de suma importância a análise destes
aspectos quando da incorporação de determinado medicamento no SUS (Capucho et al,
2012).
Com efeito, quando do estudo sobre a viabilidade da incorporação de determinada
tecnologia, a CONITEC deve realizar uma análise baseada em evidências científicas,
pautando-se nos critérios de eficácia, acurácia, efetividade, segurança da tecnologia
em questão, bem como na realização de avaliação de custo-benefício em comparação
às demais tecnologias já incorporadas. No entanto, para que essa avaliação sobre a
incorporação possa ser realizada pela CONITEC é imprescindível que a tecnologia já
esteja registrada na Anvisa (Brasil, 2021).
Flávia Tavares Silva Elias (2013, p.145) define os critérios supracitados da seguinte
forma:

[...] (i) eficácia: benefício das tecnologias em condições ideais de utiliza-


ção como nos ensaios clínicos randomizados. As medidas de resultados
são verificadas por meio da interpretação de risco relativo, risco absoluto,
redução de risco absoluto, número necessário para tratar. O melhor tipo
de estudo são as revisões sistemáticas de ensaios clínicos randomiza-
dos; (ii) acurácia: precisão para testes de diagnóstico, ou seja, a capaci-
dade das tecnologias em confirmar determinado diagnóstico em pessoas
doentes. São medidos por meio de especificidade e sensibilidade, valor
preditivo positivo e negativo e sua relação com a prevalência; (iii) efeti-
vidade: benefício das tecnologias em condições reais de utilização nos
serviços. Pode ser obtida pela análise de registros de pacientes, por revi-
sões sistemáticas, e ensaios clínicos pragmáticos, quando os serviços de
saúde podem ser randomizados, sendo os dois últimos métodos o critério
de referência para delineamento do estudo; (iv) segurança: existência de
eventos adversos provenientes da tecnologia, como danos à saúde, se-
quelas incapacitantes ou morte; (v) custo-benefício, custo-utilidade, cus-
to-efetividade- custo minimização: análise comparada entre os custos e
os resultados em saúde gerados pela tecnologia. Busca estimar em que
medida o resultado gerado compensa os custos decorrentes de sua utili-
zação. Com essas medidas, é possível verificar a eficiência, que significa
obter o máximo possível de benefício com os recursos disponíveis (Elias,
2013, p. 145).

Por fim, após o estudo e análise de todos os requisitos necessários, é emitido


um parecer conclusivo de recomendação ou não de incorporação daquela tecnologia
analisada no SUS. Tal parecer é emitido pelo plenário da CONITEC, que é composto
por treze membros, todos com direito a voto, representantes de órgãos e entidades
especializados na área da saúde (Brasil, 2011).
Diante do exposto, resta clarividente que todos os medicamentos que são

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incorporados na lista de dispensação do SUS passaram por todo um processo de


avaliação técnica e criteriosa, tendo a sua incorporação sido recomendada por diversos
especialistas na área da saúde.
Portanto, deve o judiciário se atentar para todo esse procedimento antes de
condenar o Poder Público a fornecer um medicamento que não integra a lista de
dispensação do SUS, baseando-se apenas na prescrição de um médico.
Ocorre que, infelizmente, o importante papel desempenhado pela CONITEC
ainda não é reconhecido por muitos órgãos do judiciário, que ora desconsideram a sua
existência, ora desconsideram suas conclusões. Em grande parte das decisões judiciais,
o parecer da CONITEC em relação à tecnologia requerida sequer é considerado e, nos
casos em que é mencionado, tende a ser afastado no caso concreto (Araújo; López;
Junqueira, 2016).

7 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO QUE TANGE AO FORNECIMENTO DE


MEDICAMENTOS

A judicialização da saúde se dá quando o Poder Judiciário, na atribuição de suas


funções normais, tem sua atuação afetada significativamente, sobre a necessidade
de decidir quanto a matérias de elevado caráter político, notadamente para corrigir ou
exigir a implementação de políticas públicas para a concretização do direito social à
saúde. Ou seja, consiste na transferência de atividades que são típicas dos Poderes
Legislativo (elaborar políticas públicas) e Executivo (executar políticas públicas) para o
Poder Judiciário, baseando-se em uma omissão ou em uma elaboração insuficiente de
políticas públicas para a satisfação do direito à saúde. Logo, são questões de relevante
cunho político, moral e social que são analisadas pelo Poder Judiciário em caráter final,
acarretando, em muitos dos casos, na alteração das decisões típicas dos gestores
públicos (Araújo; Martins, 2017).
Castro (2016) divide a judicialização da saúde em duas espécies. A primeira
ocorre no caso de já existir a política pública, mas a prestação exigida foi obstada pela
Administração Pública, o que ocorre muitas das vezes por má gestão. Já a segunda
espécie se dá no caso de a prestação exigida não ter sido acolhida pela Administração
Pública diante da ausência de política pública que abarque a respectiva prestação, como
é o caso de medicamentos que não estão incorporados na lista de dispensação do SUS.
A autora ainda ressalta que ambas as espécies de judicialização causam impactos
no orçamento público, mas no segundo caso, isto é, no caso de decisões judiciais que
obrigam o Poder Público a fornecer medicamentos que não integram a lista do SUS, o
impacto orçamentário é bem mais elevado. Isso porque não há no orçamento fixado para
gastos com a saúde pública uma previsão para a concessão destes medicamentos, de
modo que a Administração terá que realizar uma realocação orçamentária, o que pode
vir a obstar a concretização do direito à saúde de toda a coletividade (Castro, 2016).
Se antigamente o Judiciário brasileiro exercia papel de coadjuvante, na atualidade,
no que concerne ao direito à saúde, ele passou a exercer papel de protagonista, devido
ao exacerbado número de ações judiciais objetivando a garantia de tratamentos ou,
principalmente, o fornecimento de medicamentos (Araújo; Martins, 2017).
No caso específico do fornecimento de medicamentos através de decisões judiciais

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os custos são assustadores. Os gastos do Ministério da saúde com a concessão de


medicamentos determinados por provimentos judiciais aumentaram de R$ 200 milhões
no ano de 2011 para R$ 1,3 bilhão no ano de 2018, isso sem considerar gastos com
depósitos judiciais (Brasil, 2019).
Merece destaque o fato de que, em 2017, R$ 965,2 milhões foram gastos com a
concessão de apenas 11 medicamentos, o que corresponde a 92% do gasto total com
cumprimento de decisões judiciais relacionadas à saúde naquele ano (Brasil, 2018).
Diante de tais dados, resta incontestável o tamanho do impacto que essa
judicialização desenfreada causa no orçamento destinado ao SUS, que tem por escopo
garantir o acesso e a efetividade do direito à saúde a todos os cidadãos.
À vista disso, ao prover uma demanda judicial determinando ao Estado a concessão
de um medicamento de alto custo que não esteja incorporado pelo SUS ao autor da ação
ou aos autores da ação, o julgador deve levar em consideração que, inevitavelmente,
estará retirando recursos (limitados) que já estão afetados para a concretização de
políticas públicas de saúde destinadas a toda a coletividade. A garantia de uma prestação
inerente ao exercício do direito à saúde, sob uma perspectiva individual, não pode
comprometer a efetividade do referido direito a todos os cidadãos.
É justamente nesses casos que a aplicação da teoria da reserva do possível
se justifica. Vale dizer, os recursos financeiros escassos devem ser geridos pelo
Estado, observando-se a razoabilidade de determinada prestação exigida frente a uma
universalidade de outras prestações que devem ser garantidas à toda a coletividade.
Outro ponto relevante sobre a judicialização da saúde consiste no fato de que o
magistrado não é dotado de conhecimentos técnicos sobre questões concernentes à
medicina e execução de políticas públicas (Castro, 2016).
Assim, em muitas das vezes, os julgadores não se baseiam em critérios técnicos
e da medicina baseada em evidências para fundamentarem suas decisões, sendo
concedidos medicamentos de custos exacerbados apenas com base no subjetivismo,
nos sentimentos do magistrado. Sobre o tema preleciona Carlos Alberto Simões de
Tomaz (2011) citado por Araújo e Martins (2017, p. 12) que:

[...] o que o juiz sente, o que ele acha, a inspiração divina, mediúnica,
enfim, parece realmente não se apresentar como um critério racional a
ponto de justificar a decisão judicial. É preciso que ela se assente numa
compreensão de que desde e sempre existe e se encontra lançado (pré-
-compreensão a partir da finitude) e, possa, a partir daí, apontar para uma
solução hermeneuticamente correta para solucionar a questão, de modo
que a compreensão possa ser igualmente aferida por outros observado-
res ela concernidos (Tomaz, 2011, citado por Araújo; Martins, 2017, p.
12).

Pelo exposto, diante do vultoso impacto financeiro que a judicialização excessiva


causa no equilíbrio financeiro do SUS, principalmente por meio daquelas decisões que
determinam a concessão de medicamentos de alto custo não incorporados no sistema,
é imprescindível que seja criado um método baseado em critérios técnicos e racionais,
levando-se em consideração a realidade econômico-social do país, para servir de

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parâmetro às respectivas decisões judiciais.


Para que o acesso ao direito à saúde seja otimizado e efetivado da maneira mais
abrangente possível, as decisões de como distribuir os recursos financeiros destinados
à saúde devem ser conferidas ao Poder Executivo, pois é ele quem possui o real
conhecimento dos recursos disponíveis e quais são as prioridades a serem garantidas
(Barroso, 2008).

7.1 A questão dos medicamentos de alto custo sob a ótica do supremo tribunal
federal

Como já explicitado, a saúde constitui em um direito fundamental de cunho social,


sendo dever do Estado garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços de
saúde a todos, para a sua promoção, proteção e recuperação (Brasil, 1988).
O imenso número de ações judiciais individuais e coletivas com o objetivo de
determinar o Estado ao fornecimento de medicamentos de alto custo fez com que a
matéria chegasse ao Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a repercussão
geral do tema através do julgamento do Recurso Extraordinário nº 566471, de relatoria
do Ministro Marco Aurélio, ainda pendente de tese fixada.
O respectivo Recurso Extraordinário se refere a uma ação de obrigação de fazer
proposta por paciente portadora de miocardia isquêmica e hipertensão arterial pulmonar.
Na referida ação foi requerido o fornecimento do medicamento sildenafil 50 mg, que não
foi concedido pelo Estado do Rio Grande do Norte, diante do seu alto custo e por não
integrar a lista de medicamentos a serem dispensados pelo Estado (Brasil, 2016).
Em seu voto de relatoria, o Ministro Marco Aurélio defendeu como tese a ser fixada
que, o reconhecimento do direito individual ao fornecimento pelo Estado de medicamento
de alto custo, não incorporado em Política Nacional de Medicamentos ou em Programa
de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional por Parte do Poder Público,
fica condicionado à comprovação de sua imprescindibilidade, isto é, da adequação e
necessidade de seu fornecimento, bem como na impossibilidade da sua substituição por
outro medicamento que esteja incorporado na lista de dispensação do SUS. Além disso,
deve restar comprovada a incapacidade financeira do requerente e dos membros de sua
família (Brasil, 2016).
Note-se que o relator rechaçou, em seu voto, a hipótese de o Estado estar
obrigado, de forma absoluta, ao fornecimento de medicamentos de alto custo, que
não estão incorporados na lista de dispensação do SUS. Devem ser analisadas certas
condicionantes.
Mas a tese defendida pelo referido Ministro seria a mais adequada? Seria correto
obrigar a família do enfermo a custear um medicamento por ele pleiteado? De acordo com
Araújo e Martins (2017), a análise deve se pautar tão somente nas condições financeiras
do paciente, e não de seus familiares, para que não haja uma intervenção do Estado na
esfera privada.
Assim, é mister trazer à baila a tese a ser fixada proposta pelo Ministro Luís
Roberto Barroso, em seu voto de vista, exarado no RE nº 566471. A tese proposta pelo
Ministro foi a seguinte:

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O Estado não pode ser obrigado por decisão judicial a fornecer medica-
mento não incorporado pelo SUS, independentemente de custo, salvo
hipóteses excepcionais, em que preenchidos cinco requisitos: (i) a in-
capacidade financeira de arcar com o custo correspondente; (ii) a de-
monstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de
decisão expressa dos órgãos competentes; (iii) a inexistência de substi-
tuto terapêutico incorporado pelo SUS; (iv) a comprovação de eficácia do
medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidencias; e (v)
a propositura da demanda necessariamente em face da União, que é a
entidade estatal competente para a incorporação de novos medicamen-
tos ao sistema. Ademais, deve-se observar um parâmetro procedimental:
a realização de diálogo interinstitucional entre o Poder Judiciário e entes
ou pessoas com expertise técnica na área da saúde tanto para aferir
a presença dos requisitos de dispensação do medicamento, quanto, no
caso de deferimento judicial do fármaco, para determinar que os órgãos
competentes avaliem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do
SUS (Barroso, 2016, p. 30-31).

Os parâmetros estabelecidos pelo Ministro Barroso se mostram bastante razoáveis


para servirem de supedâneo às decisões judiciais relativas à concessão de medicamentos
não ofertados pelo Estado. Ou seja, se o medicamento está incorporado na lista de
dispensação do SUS e se restar comprovada a real necessidade por parte do paciente,
o Estado estará obrigado a fornecê-lo. Entretanto, se o medicamento não foi incorporado
na lista do SUS em razão de decisão expressa tomada pelo órgão competente pela
análise de incorporação, o Estado não está obrigado a fornecê-lo (Araújo; Martins, 2017).
Pelo exposto, tendo em mente que o Estado é dotado de recursos financeiros
escassos, para que a efetivação do direito à saúde seja maximizada, isto é, para que
seja garantida as condições materiais básicas necessárias a uma vida digna (mínimo
existencial) da forma mais abrangente possível, torna-se imprescindível a aplicação
dos parâmetros acima explicitados frente à massiva judicialização da saúde enfrentada
atualmente.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De certo que é dever constitucional do Estado garantir a todos os cidadãos o


acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde de forma gratuita através
do SUS. Ocorre que a concretização do direito à saúde gera para o Estado um alto
dispêndio de recursos financeiros, que são escassos.
Assim, diante da escassez de recursos por parte do Estado e pelo fato de tratar-
se a saúde de um direito social, devendo ser assegurada a sua efetivação a toda a
coletividade, torna-se impossível, na prática, a concretização, de forma incondicionada,
de toda e qualquer prestação de saúde exigida ao Estado, sob o argumento de tratar-
se de condição necessária ao exercício do mínimo existencial. Os recursos financeiros
devem ser distribuídos de forma a garantir a efetivação do direito à saúde da forma mais
abrangente possível.

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É justamente por isso que a aplicação da teoria da Reserva do Possível se mostra


um importante instrumento a ser utilizado pelo Estado como forma de promover a máxima
efetividade dos direitos fundamentais. Ou seja, deve-se observar a razoabilidade da
prestação que está sendo exigida frente a uma universalidade de casos semelhantes
e de outras prestações (inclusive advindas de outros direitos fundamentais) a serem
efetivadas pelo Estado, levando-se em consideração os recursos econômicos existentes.
No caso do direito à saúde, notadamente no que tange ao fornecimento de
medicamentos de alto custo, a aplicação da supracitada teoria se torna imprescindível,
para que uma prestação que venha a ser concedida na orbita individual não obste a
efetivação do referido direito a toda a coletividade.
Destaca-se que o próprio STF, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 566.471,
embora ainda não tenha sido concluído, estabeleceu condicionantes à obrigatoriedade
ao fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Estado.
Assim, por tudo o que foi exposto, pode-se concluir que o Estado não está obrigado,
de forma absoluta/incondicionada, ao fornecimento de medicamentos de alto custo, não
incorporados na lista de dispensação do SUS.
Por fim, dos votos proferidos no RE nº 566.471, os critérios estabelecidos pelo
Ministro Luís Roberto Barroso em sua proposta de tese a ser fixada se mostram bastante
adequados para servirem de parâmetro para as decisões judiciais referentes à concessão
de medicamentos no ordenamento jurídico brasileiro, buscando-se obter uma maior
racionalidade dos provimentos judiciais, evitando-se, assim, que uma decisão irracional
e desproporcional venha a comprometer a máxima efetividade do direito à saúde.

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Data de submissão: 06 fev. 2024. Data de aprovação: 24 abr. 2024.

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[artigo]

URBANIZAÇÃO BRASILEIRA E VULNERABILIDADE


SOCIOAMBIENTAL: SAÚDE E DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE

Rúbia Cristina da Silva Passos1


Eder Dion de Paula Costa2

Resumo
Este artigo objetivou, através do emprego de revisão bibliográfica, discorrer sobre
as consequências decorrentes da urbanização no Brasil enquanto processo que
contribui para a ampliação de desigualdades e a vulnerabilidade de determinados
grupos sociais. Partindo das conclusões demonstradas no artigo “Vulnerabilidade
socioambiental à leptospirose humana no aglomerado urbano metropolitano de
Curitiba, Paraná, Brasil: proposta metodológica a partir da análise multicritério e
álgebra de mapas” redigido pela Profª Drª Elaiz Aparecida Mensch Buffon, pretende-
se apresentar a urbanização como fenômeno que frequentemente apresenta falhas,
sustentado primordialmente pelo capitalismo através da falácia da promessa de uma
vida mais digna por meio da migração para centros urbanos e alteração da paisagem
para corresponder às expectativas do que se concebe por “desenvolvimento”. Para
tanto, mostrou se oportuno dialogar, em especial, com a obra “Desenvolvimento
como Liberdade” de Amartya Sen, bem como “A Urbanização Brasileira” de Milton
Santos e, ainda, a “Sociedade de Risco” de Ulrich Beck.
Palavras-chave: Urbanização; Desenvolvimento; Vulnerabilidade Socioambiental.

BRAZILIAN URBANIZATION AND SOCIO-ENVIRONMENTAL


VULNERABILITY: HEALTH AND DEVELOPMENT AS FREEDOM

Abstract
Through literature review, this article aimed to discuss the consequences arising from
urbanization in Brazil as a process that contributes to the expansion of inequalities and
the vulnerability of certain social groups. Based on the conclusions shown in the article
“Socio environmental vulnerability to human leptospirosis in the metropolitan urban
area of Curitiba, Paraná, Brazil: a methodological proposal based on multi-criteria
analysis and map algebra”, written by Professor Elaiz Aparecida Mensch Buffon, it is
intended to present the urbanization as a phenomenon that frequently presents flaws,
sustained primarily by capitalism through the fallacy of the promise of a more dignified
life through migration to urban centers and alteration of the landscape to correspond
to the expectations of what is conceived as “development”. To do so, it was opportune
to dialogue with the work “Development as Freedom” by Amartya Sen in particular, as

1
Mestranda em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharela em Direito e
Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
2
Doutor em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor do Programa de Pós-
Graduação em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande (PPGDJS/FURG).

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well as “A Urbanização Brasileira” by Milton Santos and “Risikogesellschaft” by Ulrich


Beck.
Keywords: Urbanization; Development; Socio-environmental vulnerability.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo foi elaborado a partir da leitura da obra “Desenvolvimento como


Liberdade” de Amartya Sen, apresentada em seminário para a disciplina de Justiça
Socioambiental do Programa de Pós-graduação em Direito e Justiça Social da
Universidade Federal do Rio Grande (PPGDJS/FURG). Com uma perspectiva que
diverge do entendimento majoritário eurocentrista, o autor, Nobel de Economia, de
nacionalidade indiana, apresentou uma visão do desenvolvimento que não se limitava a
meros dados de produção industrial ou crescimento econômico, abrangendo aspectos
socioambientais ligados à qualidade de vida dos cidadãos e ao grau de expansão das
liberdades individuais.
Com a teoria de Sen em mente, foi possível refletir também sobre o processo de
urbanização brasileiro, o qual evidentemente produz graves consequências sobre as
populações vulneráveis, que são cada vez mais afastadas das pretensas vantagens que
o mesmo processo de urbanização promete.
Para ilustrar tais consequências, foi necessário buscar produções científicas que
estudassem a vulnerabilidade socioambiental em centros urbanos, e, através desta
busca, chegou-se ao artigo redigido pela Professora Elaiz Buffon, que demonstrou a
distribuição espacial das zonas de maior a menor vulnerabilidade socioambiental em
Curitiba quanto à leptospirose humana, uma zoonose que pode ser transmitida através
da água e, em geral, tende a ocorrer em locais propensos a inundações e/ou com
precário sistema de saneamento básico.
Delimitado o escopo da pesquisa para analisar a urbanização no Brasil sob a
ótica do Desenvolvimento como Liberdade, mostrou-se adequado, também, buscar as
contribuições de Milton Santos sobre o processo de urbanização no país, por tratar-se
de autor expoente no tema.
Desta forma, esta pesquisa buscou elaborar uma reflexão crítica sobre como
percebemos a urbanização no Brasil, de forma a provocar o questionamento quanto
à necessidade e o preço socioambiental desse processo a partir do conceito de
desenvolvimento como liberdade elaborado por Amartya Sen. Para atingir o propósito
geral, foram traçadas três metas específicas a serem abordadas ao longo do artigo:
1) apresentar a pesquisa da Professora Elaiz Buffon enquanto material científico
que comprova consequências negativas do processo de urbanização; 2) descrever
as principais ideias desenvolvidas na obra “Desenvolvimento como Liberdade”; e, 3)
demonstrar o vínculo entre a perspectiva de Amartya Sen sobre o desenvolvimento e a
forma como a urbanização ocorre no Brasil, dialogando com as obras de Milton Santos
e Ulrich Beck.
Para tanto, a pesquisa se deu através de revisão bibliográfica, com a análise do
artigo “Vulnerabilidade socioambiental à leptospirose humana no aglomerado urbano
metropolitano de Curitiba, Paraná, Brasil: proposta metodológica a partir da análise
multicritério e álgebra de mapas” e suas conclusões, de forma a possibilitar a interpretação

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dos resultados sob a ótica da teoria de Amartya Sen sobre desenvolvimento, trazendo,
também, as considerações de Milton Santos sobre o processo de urbanização no Brasil
para complementar as reflexões propostas.
A partir do estudo proposto, foi possível detectar que a urbanização foi um processo
que deslocou as pessoas do campo para cidade de modo não planejado, o que resultou
em uma acentuação da desigualdade social que, do ponto de vista de Amartya Sen, não
causará liberdade, logo, não pode ser atrelada a desenvolvimento. Portanto, existe uma
parcela considerável da população que vive à margem da sociedade, vulnerável a sofrer
os danos dos riscos ambientais assumidos por uma minoria beneficiada pelo Estado,
o mesmo Estado que protela a instituir políticas de reparo social. Resta claro, portanto,
que o processo de urbanização no Brasil serviu primordialmente para fomentar o sistema
capitalista organizado que necessita da desigualdade social para se manter fortalecido,
não servindo como ferramenta para ampliação das liberdades, como idealizado por Sen.

2 A PESQUISA DA PROFESSORA ELAIZ BUFFON

Inicialmente, para abordar o artigo “Vulnerabilidade socioambiental à leptospirose


humana no aglomerado urbano metropolitano de Curitiba, Paraná, Brasil: proposta
metodológica a partir da análise multicritério e álgebra de mapas”, importa estabelecer um
brevíssimo conceito sobre a leptospirose: a leptospirose é uma zoonose que se transmite,
dentre outras formas, através do contato com água contaminada, apresentando forte
vínculo com a falta de condições de saneamento básico e a ocorrência de enchentes
em dada região (SILVA et al., 2022). Um exemplo clássico de transmissão da doença é
por meio do contato com a urina de um animal infectado.
No artigo, Buffon (2018) buscou mapear os vários graus de propensão à
leptospirose nos diferentes locais do aglomerado urbano metropolitano de Curitiba com
base em fatores de vulnerabilidade socioambiental. Para tanto, a autora utilizou-se das
seguintes classificações:

Os condicionantes sociais são comumente classificados em quatro cate-


gorias:(1) fatores socioeconômicos, (2) fatores sociopolíticos, (3) atores
socioculturais e (4) fatores psicossociais (Rouquayrol, 1993). Os con-
dicionantes ambientais são compostos por fatores que caracterizam o
ambiente físico, sendo esses: situação geográfica, solo, clima, recursos
hídricos e topografia, e agentes químicos e físicos (Rouquayrol, 1993).
(Buffon, 2018, p. 589).

Algumas das variáveis consideradas para determinar o grau de vulnerabilidade


social à doença foram a presença ou não de esgotamento sanitário, renda dos moradores,
e a situação de regularidade ou irregularidade das residências, conforme dados obtidos
pelo censo IBGE 2010. Através do trabalho de campo realizado entre junho de 2015 e
junho de 2016, a pesquisadora pôde comprovar que os índices calculados para verificar
o grau de vulnerabilidade foram eficazes, condizendo, portanto, com o que se apresentou
na situação concreta.
Fazendo menção aos problemas fomentados pela falta de planejamento urbano

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adequado, Buffon (2018) descreve que “essas observações expressam uma interação
pertinente entre a expansão urbana desordenada e a formação de lugares vulneráveis
à problemática da leptospirose humana.” (p. 597). No mesmo sentido, relembrou estudo
semelhante realizado pela pesquisadora Marley Vanice Deschamps:

Deschamps (2004), ao estudar as relações entre ambientes sociais e


naturais nesse aglomerado urbano [de Curitiba] a partir do ano de 2000,
constatou que as áreas com risco de inundação concentram popu-
lações com grau de vulnerabilidade social de médio para altíssimo.
Atrelado a essa problemática, a autora frisou que os maiores fluxos de
migração foram justamente para as áreas com alto e de alto para
médio grau de vulnerabilidade social. Desse modo, entende-se que a
expansão urbana desse aglomerado foi pautada em uma gestão estan-
que do território. Essas precariedades, no seu conjunto, podem caracte-
rizar os altos índices de vulnerabilidades ali observados (Buffon, 2018, p.
590, grifo nosso).

Analisando a fala da autora quanto aos fluxos migratórios, é possível constatar


que um processo de urbanização desregulado ou mal planejado, como geralmente se
dá no Brasil, promove o afastamento das pessoas para as áreas periféricas. Através da
consequente ampliação das desigualdades socioeconômicas, má distribuição de renda e
parco investimento em políticas públicas de acesso à saúde e educação, moradores são
afastados dos centros prósperos pelo custo de vida e demais barreiras que os expulsam
para zonas marginais, sem infraestrutura adequada, nas quais, não raro, conseguem
apenas estabelecer moradias irregulares, pondo em risco sua própria vida.
A partir dos resultados obtidos através de sua pesquisa, Buffon (2018) pôde
concluir que as zonas de menor vulnerabilidade correspondem às áreas de maior
desenvolvimento urbano, corroborado pelos mapas e tabelas elaborados pela autora,
“aspecto que se relaciona diretamente às áreas centrais e pericentrais, mais providas de
infraestrutura urbana e que correspondem às áreas mais valorizadas.” (p. 594).
Desta forma, a vulnerabilidade ou propensão à leptospirose estaria diretamente
relacionada ao grau de infraestrutura, acesso a serviços públicos de saúde, condições
fitossanitárias em geral e, em especial, o investimento em saneamento básico:

As constatações citadas demonstram que as periferias geográficas do


aglomerado urbano evidenciam condições mais acentuadas de vulnera-
bilidade social à leptospirose humana. Assim, o que se apresenta são
franjas urbanas deficientes em infraestrutura básica, que, conforme
pontam Grazia e Queiroz (2001, p. 24), seguem um “padrão segregador
da urbanização brasileira; o crescimento nas periferias metropolitanas
é muito maior que nos núcleos, revelando a impossibilidade de a maior
parte da população ter acesso às áreas equipadas, agravando as condi-
ções de vida”. (Buffon, 2018, p. 596, grifo nosso).

De maneira didática, a autora elaborou, ainda, um quadro atribuindo a cada um


dos índices de vulnerabilidade (quais sejam: muito baixa, baixa, média a baixa, média

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a alta, alta e muito alta) uma fotografia representativa, indicando de qual local foi tirada
(Buffon, 2018, p. 599-600). A partir das imagens coletadas durante a pesquisa de campo,
a pesquisadora relatou:

Em análise geral, tal como apresentado no Quadro 4, observou-se que


nos índices de muito baixa e baixa vulnerabilidade existe predominância
de verticalização e/ou condomínios de médio a alto padrão, em sua
maioria concentrados nas regiões centrais das cidades. As condições
identificadas nos índices de média a baixa e média a alta vulnerabilidade
apresentam predominância de edificações horizontais, que em muitos
casos não foram pautadas em critérios de planejamento urbano quanto
a uso e ocupação da terra. Em relação às condições nos índices de alta
e muito alta vulnerabilidade, denota-se que são especialmente áreas de
ocupações irregulares, localizadas nas proximidades de corpos d’água e
com habitações sem infraestrutura básica. (Buffon, 2018, p. 601).

Assim, a relação mencionada entre a vulnerabilidade socioambiental à leptospirose


humana e o grau de infraestrutura restou corroborada pelo indicador elaborado pela
autora, bem como pela pesquisa de campo. Concluindo o estudo realizado, Buffon (2018)
descreveu: “Com a pesquisa constatou-se, ainda, que as áreas com maior distribuição
espacial das condições de alta e muito alta vulnerabilidade social à leptospirose humana
estão localizadas nas periferias geográfica e/ou sociológica da área de estudo.” (p. 602).
Portanto, neste artigo, o estudo “Vulnerabilidade socioambiental à leptospirose
humana no aglomerado urbano metropolitano de Curitiba, Paraná, Brasil: proposta
metodológica a partir da análise multicritério e álgebra de mapas” redigido pela Professora
Elaiz Aparecida Mensch Buffon serviu como material científico que exemplifica a
percepção inicialmente vislumbrada pelas autoras, de que o processo de urbanização,
embora seja anunciado como símbolo de progresso, futuro e maior qualidade de vida,
traz consequências danosas à dignidade de cidadãos que são excluídos desse processo.
Quando ocorre o crescimento desenfreado de um centro urbano, a elevação do
custo de vida e a elitização dos espaços expulsam indivíduos que, frequentemente,
migraram para aquele local sob a promessa de uma vida mais próspera, que não apenas
não se concretiza, como força seu isolamento para um espaço marginal. É nesse cenário
que resta às pessoas morar em locais inadequados, com risco de deslizamento, sem
esgotamento sanitário, tratamento de água, com dificuldade de acesso a serviços de
saúde, educação e segurança.
Portanto, no contexto deste artigo, a pesquisa de Buffon permite reconhecer que
as desigualdades e a exclusão decorrentes do processo de urbanização favorecem
a concentração de maior grau de vulnerabilidade socioambiental a doenças como a
leptospirose em locais marginalizados, zonas afastadas do centro urbano no qual está a
maior circulação de riquezas, bens e serviços e estão consolidados os principais pontos
de acesso a serviços públicos básicos.

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3 URBANIZAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE

Em 1993, Milton Santos já acusava a crise fiscal da cidade e o fato de, nas cidades,
a população não ter acesso aos empregos necessários, bens e serviços essenciais, o
que, nas palavras do autor, “fomenta a crise urbana” (Santos, p. 10). Nesse ponto, frisa-
se que a pobreza se torna um modelo socioeconômico e espacial das cidades.
Interessante perceber que, no caso do Brasil, por ser um país agrário de viés
colonizador, o espaço rural, a priori, é o de principal desenvolvimento econômico,
totalizando, no século XVIII, “sessenta e três vilas e oito cidades” (Santos, 1993, p. 18,
apud Goulart, p. 79).
Nesse cenário, a organização colonial só permitia aos grandes proprietários
rurais terem propriedades urbanas, local em que se se restringia “ao comércio, ofícios,
mecânicos, funcionalismo, mineração” (Santos, 1993, p. 18). Realidade que, por si só,
restringia o acesso ao e permanência no espaço urbano de uma determinada classe.
Portanto, infere-se que tanto a agricultura comercial quanto a exploração mineral
foram responsáveis pelo povoamento e o estímulo de riquezas, afinal de contas,
não bastava ter empreendimentos na cidade, mas também era necessário contratar
empregados para sustentar as ideias capitalistas de mercado.
Ressalta-se que, apenas entre 1940 e 1980, ocorreu o êxodo rural, com a
significativa saída das pessoas da zona rural, com intuito de fixar residência nas cidades.
Nesse intervalo de quarenta anos, a população urbana brasileira se multiplicou por sete
vezes e meia (Santos, 1993, p. 29).
Esse aumento continuou a ocorrer, e, como observado no último censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE (2010), 84% da população brasileira vive na
zona urbana. Ocorre que a crítica mais severa de Milton Santos (2010) quanto ao processo
de urbanização brasileira, para além da buscar por melhores rendas e condições de vida,
está na rapidez com que urbanização aconteceu e sua falta de planejamento atrelada à
má distribuição de renda em virtude da ascensão do capitalismo, que apenas manteve
a ordem social de acumular capital no bolso de uma minoria que, nos primórdios de
urbanização, detinha a propriedade dos latifúndios e, consequentemente, dos comércios
nas vilas.
Nesse diapasão, Santos (1989) detalha de que modo foi construído o espaço
urbano brasileiro, e, a partir disso, assevera:

O espaço urbano produzido e ordenado no âmbito de uma sociedade ca-


pitalista constitui-se como um lugar privilegiado de produção de mão-de
obra, já que a população é aí analisada como força de trabalho efetiva
de reserva ou futura. Dessa forma, os equipamentos urbanos, bem como
os serviços sociais urbanos de educação e saúde pública, visam ajustar,
preparar e repor a força de trabalho necessária ao capital, assumindo
como o agente do desenvolvimento econômico. (Santos, 1989, p. 91).

É evidente, portanto, que o processo de urbanização não planejado não atingiu


negativamente nem os latifundiários da época, quando começaram a surgir as vilas, nem
seus descendentes, que até hoje permanecem donos dos meios de produção. Entretanto,

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em contrapartida, para uma minoria outrora escravizada, seus descentes continuam


sofrendo na atualidade os riscos ambientais assumidos pelas grandes empresas e a
carência de políticas públicas.
Outra conexão não menos importante se trata da abolição dos escravos e a
expansão do sistema capitalista no que concerne o estímulo ao consumo. Ocorre que,
paralelo ao 13 de maio de 1988, não houve quaisquer políticas de integração social, mas
sim uma substituição de mão de obra africana pela estrangeira europeia trazida para o
país como “política de Estado”. Isto é, “o ex escravo é jogado dentro de uma ordem social
competitiva […] que ele não conhecia e para a qual não tinha sido preparado” (Souza,
2019 p. 80), o que se mostrou bastante conveniente para os grandes senhores de terra,
uma vez que, com isso, se eximiram de qualquer obrigação com os ex-escravizados, aos
quais o autor chama de “ralé brasileira”.
Atrelado a essa carência de assistência social, a nova ordem capitalista estabeleceu
novas relações entre indivíduos, grupos e classes, como descrito por Milton Santos: “A
relações sociais, econômicas, políticas e culturais tendem a se converter em objeto,
comercializadas como mercadoria” (Santos, 1989, p. 91).
Logo, na tentativa de sobreviver, a fim de alcançar um mínimo de vida digna,
os recém libertos, quando se direcionam às cidades, por lógica do sistema, passaram
a ocupar espaços periféricos e de infraestrutura sub-humanas, visto que “o homem,
habitante da cidade, compra o seu comer, seu lazer, sua saúde, compra enfim, seu viver”
(Milton, 1989, p. 92). Portanto, considerável porcentagem de moradores nas cidades não
está vinculado à ideia de desenvolvimento que a vida urbana promete.
Esta vinculação não existe porque o desenvolvimento só é eficaz se promover
liberdades reais desfrutáveis pelas pessoas. Acerca disso, o economista indiano Amartya
Sen (2010), em sua obra “Desenvolvimento como Liberdade”, pontua três vieses pelos
quais a privação da liberdade se manifesta: a pobreza econômica, a carência de serviços
públicos e a negação de liberdades políticas. Na ótica do autor, dialogando com ideias
aristotélicas, “A utilidade da riqueza está nas coisas que ela nos permite fazer - as
liberdades substantivas que ela nos ajuda a obter.” (Sen, 2009, p. 28). Desta forma, a
riqueza não seria um fim em si mesma, e sim uma mera ferramenta para alcançar o que
realmente desejamos, sem apresentar função em si própria.
No que tange à carência de serviços públicos, o artigo discutido no tópico anterior
evidência bem como essa privação atinge os aglomerados urbanos:

Esse aspecto relaciona-se diretamente com o fato de que os aglomerados


urbanos metropolitanos no Brasil não são considerados como uma enti-
dade política, resultando assim em medidas de políticas públicas desin-
tegradas entre as cidades que compõem tais aglomerados, que, por sua
vez, formam áreas periféricas sem infraestrutura. (Buffon, 2018, p. 601).

E, por fim, no tocante à negação de liberdade política, Sen se refere à privação


de acesso à educação e o quanto que isso prejudica a emancipação política, pois o
autor salienta que, para uma participação deliberativa nas políticas, faz-se necessário
ao menos um aporte básico que permita ao cidadão a participação em discussões e
averiguações públicas, sem o qual não lhe é dado acesso ou voz nos espaços decisórios.

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A despeito do que leciona Amartya, a privação dessas liberdades fomenta a


desigualdade social, que é, por sua vez, flagrantemente necessária à manutenção do
sistema capitalista. Nesse sentido, as áreas periféricas e suas más condições diverge
também da própria previsão constitucional brasileira que, em seu artigo 182, caput dispõe
expressamente:

a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público mu-


nicipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar
o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-
-estar de seus habitantes. (Brasil, 1988).

Destarte, é perceptível que essa desproteção estatal, quando atrelada aos


incentivos a grandes empresas que, de modo imprudente, utilizam os recursos naturais
de determinadas localidades, atingindo diretamente a comunidade que ali já vive em
situação de vulnerabilidade, elucida a forma como a concentração de riqueza e distribuição
de riscos alcança determinada camada e classe social.
Acerca da distribuição desproporcional dos prejuízos ambientais, Ulrich Beck
reflete:

A história da distribuição de riscos mostra que estes se atêm, assim como


as riquezas, ao esquema de classe, mas de modo inverso: as riquezas
acumulam se em cima, os riscos em baixo. Assim, os riscos parecem re-
forçar, e não revogar a sociedade de classes. (Beck, 2010, p. 41).

Desse modo, os ricos, no que concerne à renda, poder e educação, podem


comprar segurança e liberdade em relação ao risco. Em razão disso, é escancarado que
os prejuízos pelos riscos assumidos pela burguesia atingem apenas um grupo seleto
de pessoas que, por meio da somatização dos riscos, tornam-se mais suscetíveis ao
desemprego, em virtude da falta de qualificação, à sobrecarga, irradiação e contaminação
ligados à execução de indústrias que atinge de modo desigual às pessoas. Isso porque,
nas localizações da mancha urbana de produção industrial, os moradores são mais
afetados e de forma mais direta a curto e longo prazo.
Atrelado a esta ótica, o economista Amartya Sem (2010), em sua obra
“Desenvolvimento como Liberdade”, elucida, com inúmeros exemplos, por qual razão
o desenvolvimento só é eficaz se todas as pessoas desfrutam de disposições sociais,
econômicas e direitos civis. Ainda, na visão do autor, malgrado a riqueza econômica não
seja suficiente para garantir a liberdade “desenvolvimentista”, ela é inegavelmente útil,
pois permite conquistar liberdades que só podem ser alcançadas por meio da renda,
como, por exemplo, é o caso da liberdade de se manter nutrido.
Sob o viés nacional, percebe-se que ambas as ideias, tanto de Beck quanto de
Sen, são compatíveis com a realidade de uma minoria brasileira que vive privada de
capacidades básicas, como acesso à alimentação adequada, saúde e educação de
qualidade, e isso está atrelado a posição geográfica que ocupa, não porque naturalmente
é destinada, mas por um sistema capitalista organizado que necessita da manutenção e

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ampliação da desigualdade social para se manter fortalecido.


Conjugado aos temas tratados neste trabalho, é relevante, ainda, associar o tema
racismo ambiental, caracterizado na obra “Justiça Ambiental e Cidadania”, de Acselrad,
Herculano e Pádua (2004):

O racismo ambiental é uma forma de discriminação institucionalizada [...]


definida como ações ou práticas conduzidas pelos membros dos grupos
(raciais ou étnicos) dominantes com impactos diferenciados e negativos
para os membros dos grupos (étnicos e raciais) subordinados (Acselrad;
Herculano; Pádua; 2004, p. 43).

Desta forma, essa definição mostra-se compatível com a realidade brasileira, haja
vista a carência de iniciativa estatal e/ou cumprimento da previsão constitucional no que
tange à política urbana para que forneça condições de vida dignas àqueles que sofrem de
forma direta ou indireta com o racismo ambiental, a fim de promover o desenvolvimento
como liberdade do ponto de vista de Amartya Sen.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através do estudo, que se propôs a discorrer sobre as consequências decorrentes


da urbanização no Brasil enquanto processo que contribui para a ampliação de
desigualdades e a vulnerabilidade de determinados grupos sociais, foi possível averiguar
tais consequências a partir da produção científica de Buffon, que demonstrou, por meio de
seu artigo sobre a vulnerabilidade socioambiental à leptospirose humana no aglomerado
urbano de Curitiba, a forma como essa vulnerabilidade é distribuída espacialmente.
Analisando os resultados obtidos por Buffon, pôde-se constatar a relação entre a
maior vulnerabilidade socioambiental e a mais expressiva precariedade das moradias,
numa relação inversamente proporcional entre vulnerabilidade e desenvolvimento
socioeconômico.
Em termos simplificados, verificou-se que há maior vulnerabilidade socioeconômicas
nas áreas periféricas socio e espacialmente. Por decorrência lógica, restou averiguar a
razão de grupos de pessoas se sujeitarem a essas situações de infraestrutura precária e
condições de vida sub-humanas. Da leitura dos textos de, principalmente, Amartya Sen
e Milton Santos, foi possível compreender que isso ocorria pela esperança provocada
nos indivíduos em ter uma vida melhor próximo aos centros urbanos, atrelada à ideia de
ascensão social, esperança essa que seria movimentada pelo sistema capitalista, que
depende das desigualdades sociais para sua própria manutenção.
Desta forma, essa expectativa de uma vida mais digna através da urbanização,
muitas vezes, não se vê realizada, à medida que esse mesmo processo acaba por
forçar os indivíduos às periferias por não suportar o grau de crescimento dos centros e
aprofundar as desigualdades socioeconômicas, especialmente através da concentração
de riqueza em prol de poucos detentores do poder. Com isso, os indivíduos se veem
expulsos do núcleo urbano, tendo de sujeitar-se a residir em zonas marginalizadas de
condições insalubres, que impõem obstáculos no acesso à saúde, educação, cultura,
lazer e segurança, afetando diretamente, portanto, a sua dignidade.

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Ainda, para além das dificuldades impostas pela elitização dos espaços urbanos
no quesito financeiro, a própria existência dos cidadãos também se mostra ameaçada em
função da violência e discriminação, meramente por não corresponderem à hegemonia
do grupo dominante, seja por sua cor, gênero, orientação sexual, posicionamento político
e/ou crenças religiosas.
Assim, o problema da urbanização dialoga com o conceito de Amartya Sen sobre o
desenvolvimento, vez que também se apresenta como uma falácia ou um entendimento
dúbio. Da mesma forma que Sen considera o conceito de desenvolvimento como mero
índice de produção industrial ou renda per capita insuficiente e inadequado, também
concluímos que o conceito de urbanização como algo necessariamente positivo é, no
mínimo, discutível. A ideia de urbanização como algo sempre associado a progresso,
evolução, futuro e melhora nas condições de vida passa a ser interpretada como uma
compreensão consideravelmente ingênua, a partir do momento em que são reconhecidas
as problemáticas decorrentes do inchaço urbano que, no caso concreto, representa
o lugar-comum das grandes cidades brasileiras, que, desde sua gênese, partiram de
uma lógica discriminatória, passando por impulsos higienistas de exclusão social e
marginalização dos grupos considerados indesejados pela classe detentora do poder.
Ante o exposto, é perceptível que, por trás da mancha urbana, superficialmente
percebida como mera consequência do êxodo rural, existe uma gritante problemática
político socioambiental responsável pela base de um sistema capitalista que exige uma
discrepância financeira/de poder acentuada para sua manutenção. Desta forma, através
do estudo realizado, foi possível compreender a vulnerabilidade socioambiental como
uma consequência do processo de urbanização, o qual, no Brasil, revela-se demasiado
longínquo do ideal descrito por Amartya Sen enquanto ferramenta de ampliação das
liberdades, e, portanto, não pode ser considerado genuíno indicador de desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

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Cidadania. Rio de Janeiro: Duramá Distribuidora de Publicações Ltda. 2004.

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588-604, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018170096. Acesso
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2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3y5vPSe. Acesso em: 21
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SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de janeiro: Estação


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Data de submissão: 18 jul. 2023. Data de aprovação: 29 jul. 2024.

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[Estudo de caso e pesquisa empírica]

REQUISITOS DO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA E A


BUSCA POR UM MÍNIMO DE CIDADANIA – UM ESTUDO DE CASO
COM OS BENEFICIÁRIOS DO MUNICÍPIO DE BUTIÁ/RS

Leonardo Montenegro da Silva1

Resumo
Este estudo tem como objetivo, verificar a existência ou não de obstáculos ocasionados
pela falta de ciência sobre os requisitos, no caminho percorrido pelas pessoas que
recebem o Benefício de Prestação Continuada - BPC ao acessá-lo e o quanto isso
impacta no rito deste direito. Propõe-se ainda, analisar o grau de conhecimento
prévio dos beneficiários do BPC quanto aos seus requisitos e identificar as formas
de acesso por eles utilizadas. Através de uma pesquisa qualitativa, realiza uma
revisão da literatura sobre o BPC e o contexto histórico da assistência social no
Brasil, abordando o sistema de proteção social e o percurso da cidadania no país,
além de discorrer sobre a conjuntura constitucional, as diferenças entre benefícios
previdenciários e assistenciais e os aspectos sociais do BPC. Também estuda seu
contexto infraconstitucional, revelando suas origens e seu histórico de alterações
legais, além da proposta de sua reformulação contida na reforma da previdência
de 2019. Apresenta ainda, um estudo de caso realizado com os beneficiários do
município de Butiá/RS, cujo objetivo foi entender o contexto em que se insere o
BPC num determinado município brasileiro e as variáveis que o influenciam, além de
permitir a medição do grau de conhecimento dos entrevistados acerca dos requisitos
e as dificuldades enfrentadas no acesso e manutenção deste direito. Os dados
colhidos no estudo revelam que a maioria das pessoas desconhece os requisitos
necessários para o acesso ao BPC e isso acaba tornando-se um obstáculo.
Palavras-Chave: Benefício de Prestação Continuada; Cidadania; Requisitos.

REQUIREMENTS FOR THE CONTINUOUS PROVISION BENEFIT AND


THE SEARCH FOR A MINIMUM OF CITIZENSHIP – A CASE STUDY
WITH BENEFICIARIES IN THE MUNICIPALITY OF BUTIÁ/RS

Abstract
This study aims to verify the existence or not of obstacles caused by the lack of
knowledge about the requirements, in the path taken by people who receive the
Benefit of Continuous Provision - BPC when accessing it and how much this impacts
on the rite of this right. It is also proposed to analyze the degree of prior knowledge of
BPC beneficiaries regarding its requirements and identify the forms of access used by

1
Mestrado em Estado, Governo e Políticas Públicas pela Fundação Latino-Americana de Ciências Sociais
- FLACSO. Pós-graduando em Direito e Processo Previdenciário pelo Gran Centro Universitário. Bacharel
em Direito pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. E-mail: leomonters@proton.me

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them. Through qualitative research, it carries out a literature review on the BPC and the
historical context of social assistance in Brazil, addressing the social protection system
and the course of citizenship in the country, in addition to discussing the constitutional
situation, the differences between benefits social security and assistance and the
social aspects of the BPC. It also studies its infraconstitutional context, revealing its
origins and its history of legal changes, in addition to the proposal for its reformulation
contained in the 2019 pension reform. It also presents a case study carried out with
beneficiaries of the municipality of Butiá/RS, whose objective was to understand the
context in which the BPC is inserted in a given Brazilian municipality and the variables
that influence it, in addition to allowing the measurement of the degree of knowledge
of the interviewees about the requirements and the difficulties faced in accessing
and maintaining this right. The data collected in the study reveal that most people
are unaware of the necessary requirements for accessing the BPC and this ends up
becoming an obstacle.
Keywords: Continuing Provision Benefit; Citizenship; Requirements.

1 INTRODUÇÃO

A desigualdade social brasileira, requer dos governos, políticas públicas capazes


de enfrentar os problemas decorrentes da pobreza. Nesse sentido, programas de
transferências de renda reduzem a incidência e a intensidade da miséria, bem como,
a própria desigualdade, como é o caso do Benefício de Prestação Continuada – BPC,
objeto da presente pesquisa.
O BPC é uma garantia constitucional do cidadão, presente no art. 203, inciso V
da Constituição Federal de 1988, o que o diferencia de outras proteções garantidas pela
política de assistência social. Regulamentado pela Lei 8.742 em 7 de dezembro de 1993,
conhecida como LOAS2 - Lei Orgânica da Assistência Social, divide-se em benefício
assistencial ao idoso, também chamado de amparo social ao idoso e em benefício
assistencial à pessoa com deficiência, também chamado de amparo social ao deficiente.
Entretanto, a desinformação acerca de seus requisitos e critérios legais, muitas
vezes, acaba impedindo ou dificultando o acesso dos eventuais assistidos ao benefício,
assim como contribuindo para perda dele quando ocorrem as revisões legais periódicas.
Nesse sentido, o presente estudo apresenta como tema de pesquisa a compreensão dos
requisitos do BPC como elemento determinante para o acesso ao benefício. Considerando
que até chegar a etapa de requerer este direito no INSS3, as pessoas deveriam conhecer
o programa, suas exigências e ter condições de acessá-lo, a pergunta mestra deste
estudo é: entre as pessoas que recebem o BPC, a possível falta de esclarecimentos
quanto ao benefício e seus requisitos, impactou significativamente no percurso de acesso
a este direito?
Para responder essa questão, a pesquisa tem como objetivo geral verificar a

2
Importante destacar que o BPC também é conhecido e chamado popularmente pelo nome de “LOAS”,
referência ao seu fundamento legal.
3
A gestão do BPC é feita pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à
Fome, e a operacionalização é realizada pelo INSS.

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existência ou não de obstáculos ocasionados pela falta de ciência sobre os requisitos


no caminho percorrido pelas pessoas que recebem o BPC ao acessá-lo e o quanto isso
impacta no rito deste direito. Especificamente, a pesquisa pretende analisar o grau de
conhecimento prévio dos beneficiários do BPC quanto aos seus requisitos e identificar
as formas de acesso utilizadas por estes beneficiários quando da concessão de seus
pedidos.
Para tanto, no presente trabalho iniciamos abordando o sistema de proteção social
no Brasil explorando o conceito de cidadania concedida, de José Murilo de Carvalho, o
qual ajuda a compreender o percurso da cidadania no país. Posteriormente, tratamos
da conjuntura constitucional do BPC revelando seus fundamentos, a diferença existente
entre benefícios previdenciários e assistenciais e os aspectos sociais do benefício.
Em seguida, abordamos o contexto infraconstitucional, trazendo o histórico legal
do benefício e suas origens onde são tratados os impactos da Constituição Federal de
1988 no benefício, além das sucessivas alterações em sua legislação e a proposta de
substancial reformulação do BPC contida na reforma da previdência de 2019.
Em relação aos procedimentos metodológicos, foi realizado inicialmente uma
revisão da literatura sobre o BPC e o contexto histórico da assistência social e da
cidadania no Brasil. Trata-se este estudo de uma pesquisa descritiva, na qual o tema já
é conhecido como é o caso do BPC e sua contribuição é o aprofundamento do assunto.
Quanto a coleta dos dados optou-se pela pesquisa qualitativa, para isso foram realizadas
entrevistas estruturadas com questionário prévio de perguntas.
Na última parte do trabalho é apresentado ainda, um estudo de caso realizado com
os beneficiários do município de Butiá/RS, cujo objetivo foi entender o contexto em que
se insere o BPC num determinado município brasileiro e as variáveis que o influenciam,
além de permitir a medição do grau de conhecimento dos entrevistados acerca dos
requisitos e as dificuldades enfrentadas no acesso e manutenção deste direito.
A pesquisa foi realizada no primeiro semestre de 2022, sendo extraída uma
amostragem aleatória de vinte beneficiários do BPC, metade dentre idosos e a outra
metade dentre pessoas com deficiência. Os dados colhidos no presente estudo
responderam claramente ao problema de pesquisa, ou seja, as pessoas em sua maioria
desconhecem os requisitos necessários para a obtenção do BPC e isso acaba se tornando
um obstáculo no acesso ao benefício, o que resulta na dependência de terceiros não
apenas para solicitá-lo, mas também para ter ciência de sua existência.

2 O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL

Ao longo de sua história, mesmo sendo considerado um país rico e tendo vivido
períodos de intenso desenvolvimento econômico, o Brasil jamais superou sua enorme
desigualdade social. A desproporcional distribuição de renda e riqueza nos níveis
existentes no país, corresponde à abertura de um verdadeiro abismo econômico, político
e social entre as classes.
Quando é abordada a proteção social no Brasil, é relevante considerar o período
posterior ao fim da escravidão, especialmente, o final do século XIX e início do XX.
Adorno (1990, p. 17) diz que na conjuntura de 1880 a 1920, a sociedade brasileira não
se encontrava preparada para a fundação de um verdadeiro Estado de bem-estar social

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que protegesse a população urbana, trabalhadora, das adversidades da pobreza e a


incorporasse ao modelo contratual de organização societária.
Draibe (1993, p. 22) diz que no período de 1930 a 1943, ocorre uma grande
produção legislativa, com a criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões - IAPs,
assim como da legislação trabalhista, consolidada em 1943. Este período também é
farto em alterações nas áreas de política de saúde e de educação. Entre 1945 e 1964,
continua a inovação legal-institucional, nos campos da educação, saúde, assistência
social e habitação popular, expandido-se o sistema de proteção social, com centralização
institucional. A partir de 1964 há uma transformação, pois é quando efetivamente se
organizam os sistemas nacionais públicos ou estatalmente regulados na área de educação,
saúde, assistência social, previdência e habitação, superando a forma fragmentada e
socialmente seletiva anterior, abrindo espaço para certas tendências universalizantes.
A primeira grande regulação da assistência social no país foi a criação do Conselho
Nacional de Serviço Social em 1938. o CNSS foi a primeira forma de presença da
assistência social na burocracia do Estado brasileiro. Posteriormente, em 1942 é criada
a primeira grande instituição de assistência social, a Legião Brasileira de Assistência –
LBA, uma sociedade civil voltada para “congregar as organizações de boa vontade” que
assegurava sua presidência às primeiras-damas da República e estendia suas ações às
famílias da grande massa não previdenciária.
No caminho de afirmação da assistência social enquanto política de direito, um
de seus principais desafios consistiu em superar o passado assistencialista. A CF de
1988 ofereceu a oportunidade de mudança, inaugurando um padrão de proteção social
afirmativo de direitos que superasse as práticas assistenciais e clientelistas, além do
surgimento de novos movimentos sociais objetivando sua efetivação.
Essa nova concepção trazida pela CF de 1988 fez com que a assistência social
passasse a compor o rol das políticas de seguridade social devidas pelo Estado brasileiro
como direito do cidadão que dela necessitasse. A assistência social, na condição de
política social, orienta-se pelos direitos de cidadania e não pela noção de ajuda ou favor.
Para institucionalizar os avanços alcançados na Constituição, tornou-se
fundamental a aprovação e regulamentação da Lei Orgânica da Assistência Social -
LOAS, promulgada em 1993. Vários setores4 da sociedade se mobilizaram para isso,
porém sua deliberação esbarrou em forças conservadoras, convertendo-se em um
processo de difícil operacionalização. Algumas concessões tiveram de ser feitas para
viabilizar a aprovação e o principal ponto de dissenso foram os critérios restritivos5
adotados para o BPC, tido como carro-chefe da política de assistência social.
No período posterior à CF de 1988, ocorreram importantes avanços no que se
refere a proteção social no Brasil, com implementação de significativas políticas públicas
em alguns governos que se sucederam neste período. O Bolsa Família6, por exemplo,
unificou programas federais, estaduais e municipais existentes, colocando-se como um

4
Organizações Não Governamentais comprometidas com o enfrentamento da pobreza, como a ABONG
e o IBASE, assim como movimentos de segmentos específicos, como idosos e pessoas com deficiência.
5
A idade e o corte de renda proposto pelas assistentes sociais era menor do que fora aprovado.
6
Criado no primeiro governo do Presidente Lula pela Lei Federal Nº 10.836/2004, o Bolsa Família foi
chamado de Auxílio Brasil no período de novembro/2021 a dezembro/2022.

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programa de inclusão social, econômica e cidadã de parte numericamente considerável


da população.
Apesar de o Bolsa Família ser o maior programa em termos de quantidade de
beneficiários - em dezembro de 2022 (Ministério do Desenvolvimento e Assistência
Social, Família e Combate à Fome, 2023), atendeu cerca de 21,6 milhões de famílias,
em termos orçamentários, o BPC é o maior programa brasileiro de transferência de renda
- em 20237, foram repassados cerca de R$ 80,1 bilhões aos 5,7 milhões de beneficiários.

3 A CIDADANIA CONCEDIDA

Em sua obra “Cidadania no Brasil – o longo caminho”, José Murilo de Carvalho


(2002) aborda o avanço da cidadania no Brasil enquanto fenômeno histórico, apontando
vícios como a herança patrimonialista, a permanência das relações de mandonismo e
subserviência que ocasionam o fenômeno da cidadania concedida. Segundo ele, estas
são consequências perversas da escravidão e da grande propriedade.
Segundo Carvalho, a trajetória dos direitos no Brasil, seguiu lógica inversa daquela
descrita pelo sociólogo britânico T. H. Marshall (1893-1981), para o qual, a cidadania
moderna é um conjunto de direitos e obrigações que compreendem três grupos de direitos:
Os direitos civis, característicos do século XVIII; os direitos políticos, consagrados no
século XIX e os direitos sociais do século XX.
Para Carvalho, em geral, o processo de cidadania inicia com a aquisição dos
direitos civis. O indivíduo de posse de seus direitos civis tem liberdade para pensar, agir
e manifestar suas opiniões e escolhas, com isso ele começa a exercer seus direitos
políticos e participar das decisões que impactam sua vida e de sua sociedade e,
finalmente, a participação política possibilita a reivindicação dos direitos sociais, a fim
de melhorar a qualidade de vida do indivíduo e da comunidade em que está inserido.
Entretanto, o autor afirma que esta lógica ideal, que é a mesma da sequência descrita
por Marshall, foi invertida no Brasil:

Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de su-


pressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um dita-
dor que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira
também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro pe-
ríodo ditatorial, em que os órgãos de representação política foram trans-
formados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje, muitos
direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam inacessíveis
à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça
para baixo. (Carvalho, 2002, p. 220)

Carvalho afirma que a diferença entre a nossa cidadania e a dos ingleses está no
fato de que o tripé que compõe a cidadania: direitos civis, políticos e sociais foi conquistado
por eles, e a nós ele foi doado, segundo os interesses particulares dos governantes de

7
Disponível em https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/previdencia-social/arquivos/beps122023_
final.pdf. Acesso em 06 abr 2024.

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plantão. A questão é que se não se segue a ordem inglesa, dificilmente se tem o povo
no comando de suas demandas políticas, ficando essa responsabilidade a cargo de
outras instituições, como no caso brasileiro, onde essa tarefa tem sido desenvolvida pelo
Estado.
Em sua obra, o autor demonstra a grande distância existente entre a cidadania
formal, aquela das leis, e a cidadania real, a que vivemos no dia a dia. Como consequência,
temos uma sociedade na qual a cidadania plena é um sonho distante para a maioria das
pessoas.

4 CONJUNTURA CONSTITUCIONAL DO BPC

A incorporação da assistência social à CF de 1988 como um dos pilares da


seguridade social é um significativo avanço. Em seu artigo 194, a Lei maior define a
seguridade social como um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos
e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à
assistência social”.
Antes da promulgação da Constituição, o papel pretérito do Estado nas políticas de
assistência social consistia em ações segmentadas e pontuais, cabendo às organizações
da sociedade civil, mediante delegação de poderes e eventual repasse de recursos,
assegurar a prestação de serviços às pessoas mais desfavorecidas com base em ideais
de filantropia.
Yazbek (2005) ressalta o fato de que a Constituição brasileira foi promulgada
em uma conjuntura dramática, dominada pelo aumento da pobreza e da desigualdade
social no país, que vê ampliar sua situação de endividamento, e estava inserida em um
momento histórico de ruptura do “pacto keynesiano”8.

É nesse contexto que tem início a construção de uma nova concepção


para a assistência social brasileira, que é regulamentada em 1993, como
política social pública, e inicia seu trânsito para um campo novo: o dos
direitos, da universalização dos acessos e da responsabilidade estatal
(Yazbek, 2005, p. 303).

Agora, o antigo modelo caridoso é sucedido por um referenciado em direitos, atraindo


com clareza uma necessidade prestacional por parte do Estado. Com a promulgação da
Constituição, o BPC passa a ser uma garantia constitucional do cidadão presente no
art. 203, inciso V da CF de 1988, sendo regulamentado pela Lei 8.742 (LOAS) em 1993,
decorrendo do artigo 20 desta Lei, a previsão normativa deste benefício.
Ainda hoje, muitas pessoas confundem benefícios previdenciários e benefícios
assistenciais, o que acaba causando distorções nas análises e na efetivação e busca
pelos mesmos. No Brasil, a principal diferença entre um sistema e outro consiste na
questão da contribuição.
Para ter direito aos benefícios previdenciários, a pessoa precisa contribuir para a

8
Na teoria Keynesiana, o Estado deveria intervir na economia sempre que fosse necessário, a fim de
evitar a retração econômica e garantir o pleno emprego.

78
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previdência social, enquanto para fazer jus aos benefícios do sistema assistencial, basta
que essa pessoa necessite dos benefícios cumprindo as exigências impostas legalmente.
A CF de 1988 elucida isso em seus artigos 201 - da Previdência Social (“de caráter
contributivo”) e 203 - da Assistência Social (“independentemente de contribuição”).
Resta claro assim que o BPC não é aposentadoria e por não ser um benefício
previdenciário, não gera abono anual (13º salário) e não é extensível aos herdeiros
(não deixa pensão por morte). Essa garantia constitucional permite hoje que milhões de
brasileiros e brasileiras em situação de vulnerabilidade social, tenham a garantia de um
salário-mínimo mensal para suprir suas necessidades básicas.
Segundo o Boletim Estatístico da Previdência Social (BEPS), em dezembro de
20239, existiam 5,7 milhões de beneficiários do BPC, dos quais 55% eram portadores
de deficiência e 45% idosos acima de 65 anos. Esse total equivale a 14,56% do total de
benefícios concedidos pelo INSS.
As informações sobre os requisitos do BPC tornam-se indispensáveis a medida
que a desinformação sobre isso pode acarretar no insucesso da busca pelo benefício,
assim como na sua manutenção10. Conforme a legislação em vigência, são requisitos
para a concessão e a manutenção do BPC:

a) Renda por pessoa do grupo familiar precisa ser igual ou menor que ¼ do salário-
mínimo. Em ambos os casos, exige-se a comprovação de que não possuem meios
para prover a própria manutenção e nem para tê-la provida por suas famílias;
b) Ser brasileiro, nato ou naturalizado. Pessoas de nacionalidade portuguesa,
desde que comprovem residência no Brasil. Estrangeiros de outras nacionalidades
também podem requerer o BPC, desde que morem no país (Ação Civil Pública -
ACP 0006972-83.2012.4.01.3400);
c) Estar inscrito no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e no Cadastro Único para
Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico).

Além disso, devem se encaixar em uma das seguintes condições:

a) Para o idoso: idade igual ou superior a 65 anos, para homem ou mulher;


b) Para a pessoa com deficiência: qualquer idade – pessoas que apresentam
impedimentos de longo prazo (mínimo de dois anos) de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições
com as demais pessoas.

Em artigo sobre programas de transferências de renda no Brasil, o Instituto de


Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA comprova a relevância do BPC enquanto política

9
Ibidem, Nota 7.
10
O art. 21 da Lei 8.742/93 (LOAS), estabelece que o BPC deve ser revisto a cada dois anos para
avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem.

79
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pública. Segundo seus autores, em razão dos valores transferidos, o BPC é capaz de retirar
as famílias da indigência e da pobreza, enquanto os demais programas de transferência
de renda melhoram a situação das famílias sem, no entanto, serem suficientes para
retirar todas elas da pobreza (Soares; Sergei; Medeiros; Osório, 2006).
Embora todos os esforços e avanços, ainda persiste uma enorme lacuna entre
os direitos garantidos constitucionalmente, como é o caso do BPC por exemplo, e a sua
efetiva afirmação.

Na árdua e lenta trajetória rumo à sua efetivação como política de di-


reitos, permanece na Assistência Social brasileira uma imensa fratura
entre o anúncio do direito e sua efetiva possibilidade de reverter o cará-
ter cumulativo dos riscos e possibilidades que permeiam a vida de seus
usuários. (Yazbek, 2004, p. 26).

Thomassim e Wunsch (2019, p. 11), afirmam que as revisões e vistorias


percorrem a trajetória do BPC nos diferentes contextos, constituindo uma verdadeira
saga do beneficiado para comprovação de sua condição de necessitado, sendo que
essas estratégias de revisões se atualizam com contornos bastante perversos, cujos
beneficiários tornam-se potenciais réus e fraudadores, desconsiderando a condição
de pobreza e vulnerabilidade estrutural deles. As revisões sistemáticas são norteadas
por normas legais que burocratizam, dificultando o acesso de quem necessita. Nessa
correlação de forças, a constante judicialização do BPC tem sido uma das formas de
garantia de acesso ao benefício.
Estudos como o artigo de Roberta Stopa, revelam que no processo de
regulamentação do BPC, o alcance foi restringido a partir da imposição de critérios
perversos e que “a dificuldade em acessá-lo está também na burocracia, na compreensão
da deficiência, nas revisões de cunho fiscalizador, na interlocução não consolidada entre
a assistência social e o INSS, na fraudefobia e nas cobranças pelos intermediários”
(Stopa, 2019, p. 246).
A autora afirma ainda que por ser operacionalizado pelo INSS, as dificuldades
para o acesso ao BPC se tornam maiores, pois no cotidiano institucional são reprisados
os valores e ideais conservadores marcados pelo imediatismo, culpabilizando as
pessoas que buscam o benefício da assistência social. As numerosas mudanças nas
leis, decretos e normativas tornam difícil o acompanhamento e a compreensão dessas
constantes alterações, principalmente no que se relaciona à operacionalização do BPC.
Com a instauração do atendimento digital11, diante da realidade brasileira, do elevado
índice de analfabetismo e do não acesso às mídias digitais, informatizar os serviços
dificultou ainda mais o acesso ao benefício.
Oliveira afirma que desde a implantação do benefício em 1996, não foram
constatadas estratégias institucionais, planejadas e construídas de forma articulada com
todos os órgãos envolvidos com o BPC para se divulgar com efetividade o benefício ao
seu público-alvo. Diz que “devido ao baixo conhecimento das pessoas sobre o BPC,

11
Meu INSS é uma solução multi-dispositivos para acesso aos serviços do INSS. A plataforma
online pode ser acessada pelo computador ou pelo telefone celular.

80
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relatados em pesquisas de opinião, tais como Vox Populi e textos avaliativos do benefício,
o grau de procura pelo requerimento do benefício pode estar aquém do que seja devido”
(Oliveira, 2013, p. 136).

5 CONJUNTURA INFRACONSTITUCIONAL DO BPC

O BPC tem suas origens antes mesmo da Carta Magna de 1988, tendo como
gênese o benefício previdenciário da renda mensal vitalícia – RMV, instituído pela Lei
6.179 de 11 de dezembro de 1974. Hoje pertencente ao sistema assistencial, o BPC
portanto, tem suas raízes no sistema previdenciário, aliás a proteção aos idosos e as
pessoas com deficiência também tem origem no sistema previdenciário.
A partir da CF de 1988, a União passou a exercer o papel de coordenador da
política de assistência social, enquanto os demais entes subnacionais passaram a
responder pela sua execução junto aos cidadãos. A forma como idosos e pessoas com
deficiência eram tratados passou por profundas transformações com a Carta Magna de
1988.
Entre as mudanças, uma das mais significativas foi a que os retirou do sistema
previdenciário para incluí-los na assistência social, pondo fim a exigência de contribuição,
ainda que mínima, ao sistema previdenciário. O inciso V do art. 203 da CF de 1988
disciplinou essa alteração e estabeleceu ainda, a necessidade de regulamentação
infraconstitucional.
No período entre a promulgação da Constituição e a referida regulamentação, foi
necessária a criação do art. 139 na Lei 8.213/91 (Lei da previdência social) para reduzir
os efeitos desta transição. Nele, é estabelecido que a RMV continuaria integrando o
elenco de benefícios da previdência social até que fosse regulamentado o inciso V do
artigo 203 da CF, o que ocorreu com a entrada em vigor da LOAS em 1993. A partir de
01/01/1996 o BPC iniciou a operar na prática e a RMV não mais poderia ser concedida.
A legislação sobre o BPC recebeu e continua recebendo sucessivas alterações,
especialmente adaptadas à conjuntura política e as suas respectivas diretrizes
governamentais. Previsto no art. 20 da Lei 8.742/93 (LOAS), sua redação original foi
submetida a diversas Medidas Provisórias, sendo em 08 de dezembro de 1994 publicada
a primeira, a MP 754/1994. O Quadro 1 a seguir sintetiza o histórico das principais
alterações legais do BPC:

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Quadro 1 – Histórico de alterações legais do BPC


Lei nº Data Pontos principais e alterações

Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS


Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências.
- Em sua redação original, a LOAS em seu Art. 20 previa a idade mínima de 70
anos e renda mensal per capita inferior a ¼ (um quarto) do salário-mínimo. O con-
ceito de família consistia numa “unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto,
8.742 07/12/1993
cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes” (§ 1º);
- “Pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independen-
te e para o trabalho” (§ 3º);
- A deficiência seria condicionada à avaliação por equipe multidisciplinar do SUS
ou do INSS.
Sistematizou todas as diversas MPs que vieram alterando pontualmente a LOAS.
- Redução da idade para a concessão do BPC ao idoso que passaria de 70 para
67 anos a partir de 01/01/1998 (Art. 38);
- Novo entendimento do conceito de família, o qual seria “o conjunto de pessoas
9.720 30/11/1998
elencadas no art. 16 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivam sob o
mesmo teto” (rol de dependentes da legislação previdenciária);
- Concessão do benefício ficou sujeita a exame médico pericial e laudo realizados
pelos serviços de perícia médica do INSS.
Estatuto da Pessoa Idosa
- Reduziu de 67 para 65 anos a idade para concessão do BPC;
10.741 01/10/2003 - Flexibilizou a composição de renda para o cálculo do limite máximo de ¼ de
salário mínimo de renda familiar per capita (retirou do cálculo da renda familiar per
capita o valor do benefício assistencial anterior concedido a idosos).
Trouxe significativas alterações na LOAS:
- Alteração novamente do conceito de grupo familiar, pondo fim ao período de vin-
culação do conceito de “dependente” da legislação previdenciária com o conceito
de “família” da legislação assistencial;
12.435 06/07/2011 - Houve ainda uma maior especificação do conceito de pessoa com deficiência,
com o objetivo de eliminar conceitos mais abstratos;
- Outra alteração foi a inclusão das assistentes sociais do INSS na avaliação para
a comprovação da deficiência, o que até então era restrito aos médicos peritos
do Instituto.
- Ampliou o conceito de pessoa com deficiência;
12.470 31/08/2011 - Inovou ao excluir a remuneração da pessoa com deficiência, na condição de
aprendiz, para fins do cálculo da renda per capita da família.
Estatuto da Pessoa com Deficiência
- Ampliou o acesso ao benefício, ao autorizar legalmente que a renda auferida
pela pessoa com deficiência decorrente de “estágio supervisionado” fosse excluí-
da do cômputo da renda per capita familiar;
13.146 06/07/2015 - Autorizou outros meios de prova da condição de miserabilidade do grupo familiar
e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento;
- Atualizou o conceito de “pessoa com deficiência” previsto no § 2° do art. 20 da
Lei 8.742/93 para que ele fosse consistente com o novo conceito trazido pelo
referido Estatuto.

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Publicada com o intuito de que vários benefícios previdenciários e assistenciais


passassem a contar com maior controle do governo federal.
13.846 18/06/2019 - Inclusão do § 12 ao art. 20 da Lei 8.742/93 tornando obrigatórias para fins de
concessão do BPC, a inscrição da pessoa potencialmente beneficiária tanto no
CPF quanto no CadÚnico12.
- Estabeleceu que a renda mensal per capita familiar passasse a ser “igual” ou
inferior a ¼ do salário-mínimo, o que é significativo, pois até então, o critério era
apenas “inferior” a ¼ do salário-mínimo;
- Introduziu ainda os §§ 14 e 15 ao art. 20 da LOAS, cujos temas eram alvo de
constante judicialização. O §14 permitiu que o BPC ou qualquer outro benefício
13.982 02/04/2020 previdenciário no valor de 1 (um) salário-mínimo, concedido a idoso acima de 65
anos de idade ou pessoa com deficiência, não fosse computado no cálculo da
renda familiar per capita para fins de concessão do BPC a outro idoso ou pessoa
com deficiência da mesma família;
- O §15 permitiu que o BPC passasse a ser devido a mais de um membro da mes-
ma família enquanto atendidos os requisitos exigidos na Lei.
- Acrescentou o §11-A ao art. 20 da LOAS, trazendo uma nova possibilidade (dis-
cricionária) de ampliação do critério de renda para até ½ salário-mínimo, o que
passou a valer a partir de 1º de janeiro de 2022;
- Adicionou à LOAS o art. 20-B, que versa sobre os elementos de avaliação das
14.176 22/06/2021
provas da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnera-
bilidade;
- Outra inovação desta lei foi a regulamentação do auxílio-inclusão13, benefício
previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
- Autorizou o INSS a celebrar parcerias com outras entidades públicas e privadas
para a realização de avaliações sociais;
14.441 02/09/2022 - Também acrescentou à LOAS, os §§ 2º e 3º ao art. 26-B, autorizando o INSS a
conceder automaticamente o auxílio-inclusão quando constatada a acumulação
do BPC com renda do exercício de atividade remunerada.
Fonte: Elaborada pelo próprio autor.

No início de 2019, o governo Bolsonaro apresentou ao Congresso Nacional a


proposta de Emenda à Constituição – PEC 6/2019, instituindo critérios mais rigorosos
de elegibilidade, com o objetivo de impor dificuldades e mais requisitos para o
acesso ao BPC, reduzindo assim as “despesas” com o benefício. Além disso,
ao constitucionalizá-los, ficariam mais rígidos e permanentes, pois os ritos
para aprovação de emendas constitucionais são bem mais difíceis do que para
alterações infraconstitucionais.

12
Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal.
13
Têm direito ao auxílio-inclusão todas as pessoas com deficiência moderada ou grave, com 16 anos ou
mais que recebem o BPC ou já receberam o benefício durante qualquer período nos últimos 5 anos, e que
passem a exercer atividade no mercado formal de trabalho com remuneração do trabalho de até 2 salários
mínimos. Essas pessoas receberão, enquanto estiverem empregadas, o valor de meio salário-mínimo
como incentivo para que ingressem e permaneçam no mercado.

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De um salário-mínimo (em 2019, o SM era de R$ 998,00), o benefício passaria a


ser de R$ 400,00 para as pessoas a partir de 60 anos, sendo que somente aos 70 anos,
o valor voltaria a ser equivalente ao piso nacional. A proposta também acrescentava
um novo critério para aferição da condição de miserabilidade do beneficiário do BPC, o
patrimônio familiar deveria ser inferior a R$ 98.000,00.
Outra alteração previa que o valor da renda mensal recebida a qualquer título
(incluindo o BPC) por membro da família do requerente, passaria a integrar a renda
mensal per capita da família. Também constitucionalizaria outra norma já existente no
Decreto nº 6.214/0714 que prevê a vedação à concessão de abono anual (13º salário) aos
beneficiários do BPC.
Apesar da intenção do governo Bolsonaro de aprovar essas alterações
constitucionais que tornariam o acesso ao BPC mais difícil em relação aos critérios, a
tramitação da proposta no Congresso Nacional não teve êxito. Em seu parecer, o relator
da reforma na Câmara acabou retirando esse trecho da proposta.

6 O ESTUDO DE CASO COM OS BENEFICIÁRIOS DE BUTIÁ/RS

Com o objetivo de entender o contexto em que se insere o BPC num determinado


município brasileiro e as variáveis que o influenciam, foi realizado um estudo de caso
no município de Butiá/RS, cuja população é de aproximadamente 21 mil habitantes,
localizado na região carbonífera gaúcha, distante 80 km da capital. Suas precárias
condições econômicas15, tornam as transferências direcionadas às pessoas mais pobres,
como é o caso do BPC, bastante significativas para a economia local.
Em relação aos procedimentos metodológicos para coleta dos dados, optou-se
pela pesquisa qualitativa, para isso, foram realizadas entrevistas estruturadas, com
questionário prévio de perguntas. Como tipo de amostragem, foi escolhida a amostragem
estratificada uniforme, garantindo o caráter representativo da amostra.
Deste modo, como na cidade de Butiá/RS existem cerca de 500 beneficiários do
BPC, foi extraída uma amostragem aleatória de 20 entrevistados, dos quais, metade
foram dentre os indivíduos que recebem benefício assistencial ao idoso, e a outra
metade, de recebedores do benefício assistencial à pessoa com deficiência. Também
foram critérios desta pesquisa, o anonimato16 dos participantes e o estabelecimento da
idade mínima de 18 anos para a seleção dos pesquisados.
Após a seleção dos 20 beneficiários, foram solicitadas, formalmente, suas
informações de contato junto ao Centro de Referência de Assistência Social - CRAS, da

14
O Decreto nº 6.214/07 regulamenta o benefício de prestação continuada da assistência social.
15
Butiá: Principais atividades econômicas são a cadeia produtiva da mineração de carvão e da silvicultura.
Percentual das receitas oriundas de fontes externas: 85,3% (2015). PIB per capita (IBGE-2020): R$
20.873,56 (447º lugar entre os 497 municípios do RS). Índice de Desenvolvimento Humano - IDH (IBGE
2010): 0689 (350º lugar entre os 497). Taxa de analfabetismo de pessoas com 15 anos ou mais (2010): 8,46
%, expectativa de vida ao nascer (2010): 75,85 anos e mortalidade infantil (2020): 4,98 por mil nascidos
vivos. Dados disponíveis em www.cidades.ibge.gov.br.
16
Em razão de tratar-se de pesquisa de opinião pública sem identificação de participantes, este trabalho
não precisou ser submetido ou cadastrado no Comitê de Ética em Pesquisas ou na Plataforma Brasil,
conforme preceitua o art. 1º, Parágrafo único, inciso I, da Resolução do CNS nº 510, de 7 de abril de 2016.

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Secretaria Municipal de Assistência Social de Butiá. Os selecionados foram consultados


previamente sobre o interesse ou não, em participar do presente estudo, sendo que a
totalidade dos contatados aceitou colaborar com a pesquisa.
Ressalte-se ainda que através do Portal da Transparência17, o governo federal
disponibiliza de forma detalhada a lista de beneficiários e os pagamentos mensais do
BPC em todo o País. Nele são fornecidos dados como a relação nominal dos titulares e
de seus representantes legais.
As 20 entrevistas estruturadas foram realizadas com questionário prévio de
perguntas, os quais foram aplicados pessoalmente pelo pesquisador no primeiro semestre
de 2022. O questionário foi dividido em quatro blocos, sendo o primeiro referente a dados
de identificação (sexo, idade, estado civil, escolaridade) do entrevistado e o segundo,
a critérios socioeconômicos (residência, renda do grupo familiar, responsáveis pela
manutenção do grupo).
No terceiro bloco, as questões reportam-se ao BPC (espécie, tipo de deficiência
e data de início de recebimento) do entrevistado, e no quarto e último, foram realizadas
questões relacionadas ao acesso e aos requisitos (ciência quanto aos requisitos do BPC;
quanto a diferença entre benefícios assistenciais e previdenciários, a forma como soube
e como acessou o BPC, e informações sobre a revisão do benefício). Na última pergunta
do questionário, aberta, o entrevistado tinha a oportunidade de fazer alguma observação
ou consideração final sobre o benefício que recebe.
Os dados coletados nas 20 entrevistas realizadas com a aplicação dos questionários
foram tabulados com o objetivo de fazer uma análise compreensiva, sendo sua totalização
relacionada com a fundamentação teórica adotada.
As mulheres representaram 75% do total de entrevistados, evidenciando o
predomínio do sexo feminino entre os beneficiários. Quanto à escolaridade, 85% não
tinham ensino fundamental completo, sendo que destes, 25% eram analfabetos, o que
sugere baixa escolaridade do público-alvo do BPC.
Os resultados da relação entre escolaridade e a ciência acerca dos requisitos do
BPC revelou que 80% dos entrevistados não conhecem os requisitos para o acesso e
manutenção do benefício, sendo que dentre estes, 70% não tem o ensino fundamental
completo.
Quando perguntados se já haviam ouvido falar na LOAS – Lei Orgânica da
Assistência Social, houve equilíbrio pois metade disse que já tinha escutado. Talvez
isso se explique pelo fato do BPC também ser conhecido popularmente como “LOAS”.
Entretanto, 75% dos beneficiários disseram não saber a diferença que existe entre
benefícios assistenciais e benefícios previdenciários.
Em 85% das residências, é o próprio beneficiário o responsável pela manutenção
financeira do grupo familiar. 70% residem com parentes, sendo que apenas 30% vivem
sozinhos. Quando perguntados sobre quantas pessoas contribuem com a renda familiar,
a resposta foi que em 65% dos casos “apenas uma”, 30% “duas pessoas” e 5% “três
pessoas”.
Os resultados da questão de “como souberam da existência do BPC?” reforçam a
importância da rede de apoio na busca de alternativas de renda e no suporte para idosos

17
Mantido pela Controladoria-Geral da União (CGU) - endereço eletrônico: http://www.portaltransparencia.gov.br/

85
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e deficientes, público-alvo do BPC. As secretarias municipais de assistência social e de


saúde de Butiá representaram 25% das respostas e se somadas ao percentual relativo
aos funcionários do INSS (10%), correspondem a 35% da maneira pela qual as pessoas
ficaram sabendo da existência do BPC. Destaque também para a importância dos
parentes (20%), da APAE18 (15%) e dos vizinhos (10%) na divulgação deste direito.
A questão sobre a forma “como acessaram o BPC” revelou que em termos gerais,
70% dos beneficiários precisaram de terceiros para requerer o benefício e apenas 30% o
acessaram pessoalmente. Revela ainda que 25% dos beneficiários obtiveram seu direito
através do CRAS, destacando o importante trabalho deste serviço no encaminhamento
prático do benefício, especialmente em tempos de requerimentos digitais como é exigido
atualmente pelo INSS, órgão responsável pela operacionalização do BPC. Em relação
a revisão do benefício, 85% dos entrevistados responderam que seus benefícios (BPC)
ainda não passaram por nenhuma revisão administrativa do INSS.
Na última pergunta do questionário, aberta, os entrevistados tinham a oportunidade
de fazer observações que achassem pertinentes sobre o BPC. Entre os onze que optaram
por responder, três fizeram menção à necessidade de implantação do 13º salário e outros
três de que o valor do benefício deveria ser maior que um salário-mínimo: “Apesar de o
BPC ajudar, não é o suficiente, pois continuo precisando de ajuda de familiares.”
Outros dois entrevistados manifestaram descontentamento com o fato de ficarem
impedidos de trabalhar: 1º “Família relatou dificuldade em buscar renda/emprego, pois
fica impedida para não perder o BPC” e, 2º “Entende que o BPC deveria permitir que
o beneficiário e seus familiares trabalhassem.” Esta segunda observação é da mãe de
um beneficiário de 34 anos de idade, deficiente físico e mental desde o nascimento e
que recebe o BPC desde 1996. Ela relata que a vida inteira teve que cuidar do filho e
em razão da família receber o benefício, ficou impedida de construir sua própria renda e
carreira profissional para não perder o BPC.
Por fim, duas manifestações de beneficiários do BPC do idoso fizeram referência
ao fato dos mesmos terem trabalhado por muito tempo, porém sem os devidos registros
do contrato de trabalho: 1º “Trabalhou muito tempo como doméstica, mas patrões não
assinavam a carteira”, e 2º “Disse que o benefício é muito bom, que trabalhou a vida
inteira, na zona urbana e rural, mas não tinha carteira assinada em todos os serviços.
Acredita que o benefício compensa isso.”
O BPC na visão de seus beneficiários, parece surgir assim como uma medida
compensatória por parte da sociedade e do Estado a uma situação de desigualdade
e de informalidade estrutural do mercado de trabalho. Esse ponto faz jus a um
aprofundamento teórico em futuros trabalhos científicos, contribuindo com a discussão
acerca do aperfeiçoamento desta relevante política pública.

18
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais.

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7 CONCLUSÃO

As políticas de assistência social por parte do Estado passaram por uma evolução
com a CF de 1988, pois até então os governos “terceirizavam” às organizações da
sociedade civil, a prestação de serviços às pessoas mais pobres com base em ideais de
filantropia. Porém, é a partir de 1993 que a assistência social brasileira é regulamentada
como política social pública, sendo o antigo modelo caridoso sucedido por um referenciado
em direitos atraindo com clareza uma necessidade prestacional por parte do Estado.
Dentro da política de assistência social, a relevância do BPC restou clara não
só pela amplitude de seu alcance e de seus números (5,7 milhões de beneficiários),
mas também quando o estudo do IPEA revelou que este benefício é capaz de retirar as
famílias da indigência e da pobreza, ao contrário dos demais programas de transferência
de renda que apenas melhoram sua situação.
Verificou-se que o BPC teve suas raízes no sistema previdenciário, na Lei 6.179 de
1974 que previa a renda mensal vitalícia – RMV para idosos e pessoas com deficiência.
Mesmo antes da CF de 1988, o atendimento a idosos e pessoas com deficiência era
realizado conjuntamente pelo Estado brasileiro.
A assistência social e a previdência estão abrigadas num conceito mais amplo, o
da seguridade social, sendo a principal diferença entre um sistema e outro, a questão
da contribuição. Constatou-se que ainda existem muitas dúvidas em relação a esta
diferença, como revelou a pesquisa de campo em Butiá/RS.
Restou evidenciado ainda através da revisão bibliográfica, que os obstáculos que
as pessoas precisam transpor ao acessar o BPC são dificuldades que vão desde as
constantes mudanças nas leis que dificultam o acompanhamento, até o fato do benefício
ser operacionalizado pelo INSS, o qual somente é acessado através do atendimento
digital (Meu INSS), desconsiderando a realidade brasileira, o alto índice de analfabetismo
e o não acesso às mídias digitais.
O estudo de caso com os beneficiários de Butiá/RS possibilitou entender o contexto
em que se insere o BPC num determinado município brasileiro e as variáveis que o
influenciam, além de permitir a medição do grau de conhecimento dos entrevistados
acerca dos requisitos e as formas de acesso ao benefício.
Através da pesquisa foi constatado que 80% dos entrevistados não conhecem os
requisitos para o acesso e manutenção do benefício e 75% dos beneficiários disseram não
saber a diferença que existe entre benefícios assistenciais e benefícios previdenciários.
Os resultados quanto à forma como os entrevistados tomaram conhecimento da
existência do BPC, assim como da maneira como o acessaram, reforçam a importância
da rede de apoio na busca de alternativas de renda e no suporte para idosos e deficientes,
público-alvo do BPC: 70% dos beneficiários precisaram de auxílio de terceiros para
requerer o benefício e apenas 30% o acessaram pessoalmente.
Os dados colhidos no presente estudo respondem claramente ao problema de
pesquisa, ou seja, as pessoas em sua maioria desconhecem os requisitos necessários
para o acesso ao BPC e isso acaba se tornando um obstáculo no acesso ao benefício.
A busca por uma cidadania em sua plenitude, como nos ensina Carvalho, resultaria numa
sociedade mais consciente de seus direitos e deveres, mas enquanto isso não acontece continua
cabendo aos governos o aprimoramento de suas políticas públicas como é o caso do BPC.

87
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Um dos caminhos do aperfeiçoamento desta política seria um trabalho integrado


por parte do governo, com ações conjuntas de divulgação das informações referentes
ao mesmo e com linguagem acessível, atendendo assim inclusive um dos princípios
elencados no inciso V do art. 4º da LOAS, o qual prevê a divulgação ampla dos benefícios,
serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo
Poder Público e dos critérios para sua concessão.
Este estudo agregou com a discussão sobre o BPC, preliminarmente por trazer luz
a ele como tema principal, assim como contribuiu ao fornecer uma descrição temporal e
autêntica da realidade e das dificuldades vivenciadas pelos beneficiários do BPC em um
determinado município brasileiro, o que poderia ser replicado em outras cidades e outros
estados, permitindo assim o mapeamento e a ampliação da abordagem das dificuldades
de acesso ao BPC no país, o que viabilizaria uma análise generalizante.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Sérgio. A gestão filantrópica da pobreza urbana. São Paulo em perspectiva,


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Social, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 01 dez. 1998.
Disponível em: planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9720.htm. Acesso em: 19 abr. 2022.

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Data de submissão: 22 jul. 2024. Data de aprovação: 29 jul. 2024.

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[Estudo de caso e pesquisa empírica]

O ENQUADRAMENTO COMO SEGURADO ESPECIAL A PARTIR DA AUTO-


DETERMINAÇÃO DOS POVOS DE FAXINAL/PR

Gabriel Henrique Cintra1


Marco Aurélio Serau Junior2

Resumo
O presente artigo busca, por meio de explanações breves sobre a caracterização
dos segurados especiais perante o Instituto Nacional do Seguro Social, segundo a
Lei ordinária de matéria previdenciária que trata sobre o tema, em conjunto do que
são - tanto historicamente como juridicamente – os povos e comunidades tradicionais
dos faxinalenses, buscar dirigir à uma argumentação de que, com base no Decreto
nº. 6.040, de 2007, o qual dispõe planos de conferência e proteção dos direitos dos
povos e comunidades tradicionais brasileiros, somado com a Lei Estadual do Paraná
nº. 15.673, que reconhece formalmente as comunidades faxinais, sua cultura e modo
de viver como povo tradicional, seria possível, contando com a Certidão de Auto-
reconhecimento, o enquadramento inerente dos residentes desses conglomerados
campesinos faxinais como segurados especiais, sem que necessitassem das maiores
comprovações delimitadas na Instrução Normativa PRES/INSS nº. 128, de 2022, a
fim de que os direitos efetivamente resguardados e os desenhados pela Constituição
da República Federativa do Brasil, de 1988, fossem verdadeiramente cumpridos,
garantindo o direito à previdência social pelo Regime Geral da Previdência Social
à todos e todas que se identificam historicamente, territorialmente e culturalmente
como pertencente a esse conjunto social, primando pela equidade idealizada pelo
constituinte na feitura da Lei Maior.
Palavras-chave: Direito previdenciário; Povos faxinalenses; Segurado especial; Autodeterminação.

CLASSIFICATION AS A SPECIAL INSURED BASED ON THE SELF-


DETERMINATION OF THE PEOPLES OF FAXINAL/PR

Abstract
The present article aims to, through brief explanations on the characterization of
special insured individuals before the Brazilian Nacional Institute of Social Security,
according to the Brazilian Ordinary Social Security Law that deals with the subject,
together with what – both historically and legally – tradicional people and communities
of the faxinais, seek to address an argument that, based on the Brazilin Decree no.
6.949, of 2007, which provides plans for checking and pretecting the rights of the
traditional communities and people of Brazil, in addition to the Paraná State Law

1
Acadêmico de Direito na UFPR – Universidade Federal do Paraná.
2
Professor na UFPR - Universidade Federal do Paraná. Doutor e Mestre em Direito pela USP – Universidade
de São Paulo. Diretor Científico do IEPREV.

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no. 15.673, of 2007, which formally recognizes the faxinais communities, with their
culture and way of living as traditional people, it would be possible, relying on the
Certificate of Self-recognition, to inherently classify the residents of these faxinais
conglomerates as special insureds, without requiring the further proof delimited in
the Brazilian Normative Instruction PRES/INSS no. 128, of 2022, so that the rights
effectively protected and those designed by the Constitution of the Federative
Republic of Brazil, of 1988, were truly fulfilled, guaranteeing the right to social security
under the General Social Security Regime for everyone who identifies themselves
historically, territorically and culturally as beloging to this social group, striving for the
equity idealized by the constituent in the creation of the Major Law.
Keywords: Social security law; Faxinalense people; Special insured; Self-declaration.

1 INTRODUÇÃO

O modelo de Estado Contemporâneo presente no Brasil com a Constituição da


República Federativa do Brasil de 1988 consagra e cristaliza a necessidade imanente do
Estado de desempenhar o papel de garantir a segurança material de seus cidadãos e
igualmente agir em prol da realização de outros objetivos sociais (Przeworski, 2003, p. 40),
agindo pelas linhas dos direitos fundamentais para uma direção positiva à concretização
dos direitos humanos.
Analisada a Constituição Federal, podemos observar as diversas disposições que
buscam resguardar os direitos dos povos campesinos, compreendendo a necessidade
de maior proteção devido a vulnerabilidade que permeia a vida dessas pessoas. Em
ponto mais relevante, podemos citar o inciso XXVI, do art. 5º, da Lei Maior, sem prejuízo
às disposições que versam a respeito da política agrícola e fundiária e da reforma agrária.
Em foco no presente trabalho, temos as normativas específicas da Previdência
Social, destacada no Título VIII, Capítulo II, Seção III da CRFB/88.
Por mais que não exista explicitamente a denominação de “segurado especial”
na Constituição, é possível perceber de cara a diferenciação conferida pelo constituinte
determinante ao tratamento diferenciado àqueles que realizam pequenas produções
voltadas à subsistência própria e/ou de seu núcleo familiar (Castro; Lazzari, 2023, p.
172).
Porém, na realidade fática do Brasil de hoje, é perceptível a dificuldade que as
famílias – sobretudo as mais vulneráveis socialmente – possuem em ter reconhecidos os
seus caráteres de segurados especiais (Silva; Lima; Braga, 2024, p. 16), se agravando
ainda mais nos casos dos povos faxinalenses, uma comunidade tradicional pela
concepção jurídica do termo, conferido pelo Decreto nº 6.040/07, presente sobretudo na
região sul do Brasil, com reconhecimento limitado pela Lei Estadual do Estado do Paraná
nº. 15.673 de 2007.
Contudo, apesar da dificuldade que se encontra a comprovação do status de
segurado especial pelos povos faxinalenses, busca-se encontrar substrato fático suficiente
para comprovar que se tenha esse recolhimento puramente pela autodeterminação de
povo tradicional e pela autodeclaração do segurado especial - rural, conforme Anexo I do
Ofício - Circular nº. 46 DIRBEN/INSS de 2019.

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2 A QUALIDADE DE SEGURADO ESPECIAL

Por mais que houvesse desenhos da categoria de segurado especial na própria


Constituição Federal, ficou a cargo do legislador ordinário conferir materialmente essa
definição pelas Leis nº 8.212/91 e 8.213/91, nos artigos, respectivamente, 12, inciso VII,
e 11, inciso VII.

2.1 Previsão legal e enquadramento

Para fins de melhor análise, nos atentemos especialmente à Lei nº. 8.213/91,
a qual dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social. Nela, o legislador
colocou por definir o segurado especial como a pessoa física residente no imóvel rural
ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele que, individualmente ou em regime
de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros a título de mútua
colaboração, na condição de produtor, pescador artesanal e cônjuge ou companheiro,
bem como filho maior de 16 (dezesseis) anos de idade que trabalhem com o grupo
familiar3.
Importante para o caso em tela é justamente fazer a leitura do dispositivo conferido
pelo legislador como realmente um estilo de vida, compreender, mesmo que com pouca
verticalidade, o que se quis dizer ao enquadrar cada requisito no rol.
Compreendendo a dinâmica social que permeia toda essa questão é possível
verdadeiramente entender os seus objetivos, como já descrito, e ter melhor dimensão
sobre o cerne da questão que irá futuramente ser trazida no presente trabalho.

2.2 Características perante o RGPS

Como pudemos observar, o devido enquadramento nas características conferidas


pelo legislador enseja a caracterização como segurado especial. Mas, quais são as
implicações legais – perante o direito previdenciário – que esse enquadramento gera de
fato?
Conforme discutido anteriormente, a Constituição da República Federativa do
Brasil possui nas suas normativas uma diferenciação quanto a previdência das pessoas
trabalhadoras rurais – “segurados especiais”, conforme Lei posterior –, conferindo idade
mínima menor para se aposentar4 do que os segurados “comuns”, por assim dizer.
Essa diferenciação confere a chamada aposentadoria por idade do trabalhador
rural essa exceção às regras, estando prevista na Lei nº. 8.213/19991 e no Decreto nº
3.048/1999 (RPS), e possuindo como requisitos a idade mínima de 60 (sessenta) anos
de idade para os homens e 55 (cinquenta e cinco) anos de idade para as mulheres, além
da comprovação do exercício de atividade rural por, no mínimo, 15 (quinze) anos, ainda
que descontínua.

3
Vide artigo 11, inciso VII, alíneas “a”, “b” e “c”, da Lei nº. 8.213, de 24 de julho de 1991.
4
Art. 201, §7º, II, CRFB/88: 60 (sessenta) anos de idade, se homem, e 55 (cinquenta e cinco) anos de
idade, se mulher, para os trabalhadores rurais e para os que exerçam suas atividades em regime de
economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal.

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Desnecessário, portanto, afirmar que, a existência dessa modalidade diferenciada


de previdência, materializada na aposentadoria por idade do trabalhador rural, busca
trazer uma equidade quanto às demais aposentadorias urbanas, denotadas as
adversidades passadas por essas pessoas do campo, além da consciência da maior
dificuldade de exercício regular das suas atividades de subsistência com o avanço da
idade e consequente menor capacidade laborativa.

3 POVOS FAXINALENSES

Seguindo o trabalho, cumpre-nos analisar os povos e comunidades faxinalenses,


povo tradicional brasileiro segundo a concepção jurídica do termo, de modo um pouco
mais singelo.
Busca-se uma compreensão não demasiadamente vertical sobre as comunidades
faxinais, compreendendo não ser o foco principal da presente pesquisa, juntamente
do conhecimento de desnecessidade de maiores aprofundamentos para o debate que
busca ser colocado aqui.

3.1 Povos tradicionais e o PNPCT

Primeiramente, povos tradicionais são um reflexo direto da multiculturalidade


brasileira, juntamente de uma diversidade social e fundiária não muito comum de se
ver em demais países. Os povos, grupos, comunidades, ou qualquer outra terminologia
que se queira dar podem ser analisadas de diversas perspectivas (Little, 2004, p. 252),
sendo matéria de estudo constante por sociólogos, psicólogos e antropólogos dos mais
diversos.
Em suma, podemos afirmar que os povos tradicionais são fruto da construção do
nosso país, com influências das ondas históricas de territorialização no Brasil colonial e
imperial, bem como da criação de uma noção um pouco mais robusta de Estado-nação,
dos regimes de propriedade coletiva/comum dessas sociedades e do lugar e memória
relacionados a esses vínculos sociais (Little, 2003).
Portanto, povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados
e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos5.
A PNPCT (Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais), instituída pelo Decreto nº. 6.040 de 2007, tem o seu objetivo
geral disposto no art. 2º de seu anexo, que diz:

Art. 2o  A PNPCT tem como principal objetivo promover o desenvolvimento


sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no
reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus direitos territoriais,
sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à
sua identidade, suas formas de organização e suas instituições.

5
Conforme inciso I, do art. 3º do Decreto nº. 6.040, de 2007.

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Entende-se, então, a PNPCT como uma ferramenta – ainda que juridicamente não
tão forte, justamente por ser um decreto (Milaré, 2021, p. 1149) – que tem como principal
objetivo a promoção, proteção e fortalecimento dos direitos seus direitos difusos, como
a territorialidade, os direitos sociais, ambientais, econômicos e culturais, assegurando o
reconhecimento de suas identidades e fiscalizando o cumprimento de suas normas.
Delimitado o objetivo principal, é importante centrarmos especialmente em uma
disposição que será de extrema importância para o restante do presente trabalho –
agindo como elemento de integração de toda a pesquisa –, sendo a gênese da tese do
presente trabalho: o inciso VIII, do art. 2º do anexo do referido decreto6.
Com ele, podemos a partir daqui buscar entender o que está claramente
acontecendo, com base no breve diagnóstico feito tópicos acima, e porque esses
verdadeiros gargalos não poderiam, em teoria, existir.
A partir da leitura da normativa como um todo, denota-se uma tentativa de conferir
uma efetivação dos direitos fundamentais e demais direitos trazidos pela Lei Maior,
dirigindo uma atenção especial à questão da previdência social aos povos e comunidades
tradicionais – que, em vista do texto trazido pela Constituição Federal, acaba dando
maior atenção às comunidades e povos indígenas e quilombolas, conforme o inciso II,
do art. 3º do Decreto nº 6.040/07, que faz menção aos arts. 231 da CRFB/88 e 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias.

3.2 Comunidades faxinalenses

Compreendido o que configuram as comunidades e povos tradicionais do Brasil,


incumbe-nos adentrar ainda mais no cerne da questão levantada: as comunidades
faxinalenses brasileiras.
Para diversos autores que buscam um estudo aprofundado sobre o tema das
comunidades faxinalenses, os faxinais se caracterizam por áreas rurais demarcadas –
muito por conta das terras de plantar privadas que se encontram às delimitações da
comunidade – de uso comum e coletivo dentre os residentes, que cultivam plantas
regionais como alimento para os animais criados em exploração do gado solto pelo
campo, e para a própria subsistência da comunidade, prezando pela preservação
ecológica da terra e pelo maior proveito da mesma. Além disso, realizam a prática do
extrativismo vegetal e produzem seus próprios remédios (Struwka, 2016).
A partir dessa breve descrição, podemos observar os faxinais como comunidades
de ajuda mútua, separadas em terras de plantar e terras de criar, sem maiores burocracias
ou hierarquias sociais estáveis ou inflexíveis que pudessem retirar os aspectos de
liberdade e igualdade tão visados pela população, primando sempre pelo uso coletivo
da terra para subsistência do grupo como um todo, com a transformação das matérias-
primas básicas por meio de tarefas manuais e campesinas.

6
VIII - garantir no sistema público previdenciário a adequação às especificidades dos povos e comunidades
tradicionais, no que diz respeito às suas atividades ocupacionais e religiosas e às doenças decorrentes
destas atividades;

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3.2.1 Breve história de sua formação e abrangência nacional

Como descreve o autor Alfredo Wagner Berno de Almeida e Roberto Martins de


Souza em seus estudos sobre os povos faxinalenses, as comunidades com uso comum
de terras

Emergiram, enquanto artifício de autodefesa e busca de alternativa para


diferentes segmentos camponeses para assegurar suas condições ma-
teriais de existência, em conjunturas de crise econômica também cogno-
minadas pelos historiadores de ‘decadência da grande lavoura’ (Almeida,
2009).

Ademais, mais à frente no documento, o autor exemplifica que essas comunidades


de uso comum da terra surgiram em um contexto de saída – ou até mesmo fuga –
de pessoas de centros maiores que ocupavam anteriormente um espaço rebaixado
socialmente por diversas violências (indígenas, escravizados e agregados), os quais
por muitas vezes sequer possuíam o direito de adquirir essas propriedades rurais,
(indígenas, escravizados e agregados), criando esse sistema comum de utilização da
terra num processo de desagregação das antigas monoculturas dominantes da região
(Struwka, 2016).
Essas comunidades representam uma verdadeira resistência às exigências
de compra e venda impostas pelas legislações vigentes à época, refletindo hoje nos
conglomerados faxinalenses – nos quais há utilização da terra por todos os moradores
para a criação, principalmente, de animais.
Especificamente, acredita-se que as comunidades faxinalenses surgiram num
quadro de missionários Jesuítas trazendo novas técnicas de criação de animais, somadas
com as técnicas já desenvolvidas de agricultura e extrativismo de subsistência de alguns
grupos de indígenas de matriz Guarani, residentes da região sul do Brasil.
Anos após, com um aumento da exploração, principalmente de pedras preciosas
no sudeste do Brasil, se teve um maior desenvolvimento da região, o que fez com que
os indígenas que viviam naqueles locais fossem gradativamente empurrados às matas

Juntamente com vaqueiros, escravos fugidos e, talvez, o restante da po-


pulação guarani e familiares bandeirantes. Assim, de acordo com Lowen
Sarh e Cunha (2005) e Lowen Sahr e Sahr (2006) forma-se, no século
XVIII, no Sul do Brasil, uma população autóctone, os Caboclos. Estes de-
senvolveram na floresta, quase sem referência na historiografia, um tipo
de sistema agrosilvopastoril, os faxinais (Struwka, 2016, p. 35).

Dessa forma, podemos restar-nos à compreensão dos povos faxinais como um


grupo de resistência, com diferentes bagagens e diferentes conhecimentos que se
somaram, alcançando a sobrevivência na mesorregião centro-oriental paranaense.
Até os dias atuais, as comunidades faxinais representam esse sentimento de
resistência e união, preservando seus costumes e tradições em meio às crescentes
investidas dos grandes latifúndios vizinhos.

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3.2.2 Legislações estaduais específicas e reconhecimento

Contudo, foi apenas no ano de 2007, por força da Lei Estadual do Paraná nº.
15.673, que as comunidades faxinais foram formalmente reconhecidas, elencando-
se um rol de atividades típicas desempenhadas pelas comunidades logo nas alíneas
do seu primeiro artigo, descrevendo, assim, a produção extensiva de animais, o uso
comum de terras para produção agrícola de base alimentar, utilizando-se de policulturas,
o extrativismo florestal de baixo impacto e a cultura própria, laços de solidariedade
comunitária e preservação de suas tradições e práticas sociais7.
Além do reconhecimento, as demais disposições determinam a identidade
faxinalense como

A manifestação consciente de grupos sociais pela sua condição de exis-


tência, caracterizada pelo seu modo de viver, que se dá pelo uso comum
das terras tradicionalmente ocupadas, conciliando as atividades agrosil-
vopastoris com a conservação ambiental, segundo suas práticas sociais
tradicionais, visando a manutenção de sua reprodução física, social e
cultural.8

Por fim, cumpre iluminar que, pelo que diz o art. 3º da mesma lei, o reconhecimento
da identidade faxinalense fazer-se-á por Certidão de Auto-reconhecimento, emitida pelo
órgão estadual que trata de assuntos fundiários. A dita certidão ainda servirá para a
comunicação do reconhecimento da identidade faxinalense à Comissão Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, conforme dita o
Parágrafo Único do mesmo artigo.
Conclui-se, à luz de todo o exposto, que, conforme toda a sua história de formação,
e por força conferida por legislação estadual, que o engloba a dispositivo de ato executivo
federal, os povos e comunidades faxinalenses são, pelo sentido jurídico do termo, povos
tradicionais do Brasil, sendo elegíveis aos direitos resguardados pela nomenclatura.

4 CULTURA FAXINAL COMO ELEMENTO DE CARACTERIZAÇÃO DA QUALIADDE


DE SEGURADO ESPECIAL

Relacionando os pontos já aprofundados anteriormente no presente trabalho,


resgate-se que o status de segurado especial é atribuído por meio de reconhecimento
da Autarquia Previdenciária Federal, a partir de uma série de requisitos listados em
normativas de direito previdenciário. Além disso, compreendemos a cultura e estilo de
vida dos povos e comunidades faxinalenses, e como o seu reconhecimento é crucial
para a garantia de direitos previstos.
Uma questão relevante sobre as comunidades faxinais que se deve compreender
para que a matéria do estudo que aqui se apresenta possa ser desenvolvida, é que, pela
própria configuração de suas comunidades – a coletividade de terras, solidariedade, etc.,

7
Vide alíneas “a”, “b”, “c” e “d” da Lei Estadual do Paraná nº. 15.673 de 2007.
8
Parágrafo único do art. 2º da Lei Estadual do Paraná nº 15.673/2007.

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somados com a certa distância de centros urbanos –, pode se ter situações em que muitas
vezes exista uma falta de documentação oficial, até mesmo pela sua desnecessidade,
que acaba acarretando numa dificuldade de comprovação de segurado especial.
A falta de documentos - como ficha de associado em cooperativa, notas fiscais
de mercadoria, entre outros listados no art. 116 da Instrução Normativa PRES/INSS
nº. 128, de 28 de março de 2022 -, justamente como dito, está relacionada à frequente
desnecessidade do uso destes, ou até à incongruência com o estilo de vida daquela
população, resultando no não conhecimento do caráter de segurado especial em sede
de Processo Administrativo Previdenciário – PAP.
Por isso, considerando que a grande maioria das pessoas residentes nessas
comunidades tradicionais abordadas não constituem muitos vínculos formais
empregatícios – com o devido registro na Carteira de Trabalho e Previdência Social –,
muitos indivíduos acabam por restar impedidos de gozarem de seus benefícios previstos
por lei da Previdência Social.
Negados de terem a concessão do benefício de aposentadoria por idade do
trabalhador rural por não conseguirem o enquadramento, não lhes resta nenhuma
possibilidade de concessão de benefício previdenciário em quaisquer das modalidades
de aposentadoria.
Apresenta-se dessa forma uma grave violação dos direitos fundamentais
consagrados pela nossa Constituição Federal de 1988, como o direito à seguridade
social como um todo, ou a resguarda conferida às pessoas do campo e às comunidades
e povos tradicionais brasileiros, tendo em mente ainda a antinomia criada pelo não
reconhecimento, à luz de todo o já exposto.

5 CONCLUSÃO

Em face de toda a explanação trazida e organizada, faz sentido jurídico e


argumentativo, pensando tanto na conferência dos direitos constitucionais à problemática
levantada, tanto nas normativas do Decreto nº. 6.040/2007 e da Lei Estadual do
Paraná nº. 15.673/2007, que os povos e comunidades faxinalenses, a partir de suas
autodeterminações como faxinais, somadas com a autodeclaração rural prevista no
Anexo I do Ofício - Circular nº. 46 DIRBEN/INSS de 2019, e suficientemente com esses
documentos, sejam devidamente enquadrados como segurados especiais perante o
Instituto Nacional do Seguro Social, acarretando em todas as suas previsões legais.
A afirmação supra busca trazer ao debate que, explicitada a necessidade de
adequação do sistema público previdenciário às especificidades dos povos e comunidades
tradicionais – conforme inciso VIII, do art. 3º, do Anexo do Decreto nº. 6.040/2007 –,
o INSS deve se flexibilizar para atender os direitos conferidos os povos faxinalenses,
que são devidamente enquadrados no decreto citado pela Lei Estadual do Paraná nº.
15.673/2007, primariamente pelo dispositivo de ato executivo.
Como se não bastasse, o breve conhecimento da organização, cultura e estilo de
vida dos povos que residem nos faxinais escancara uma relação tácita entre os requisitos
do rol taxativo trazido pela Lei nº 8.213/1991 e pela IN PRES/INSS nº. 128/2022 com as
atividades diárias realizadas por esses indivíduos.
Dessa forma, a solução que se apresenta para curar essa falha da Administração

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Pública de se fazer cumprir essas normativas supracitadas, tanto federais quanto


estaduais, seria justamente utilizar da leitura inteligente desses comandos normativos,
compreendendo os conceitos que foram levantados em sede deste trabalho, para que
seja dada a abertura para o cumprimento integral dos mesmos, na forma em que foram
idealizados.
Isso, como demonstra o estudo, geraria uma conferência “automática” do caráter
de segurado especial aos povos faxinalenses, devido à sua imantação jurídica do termo,
efetivando verdadeiramente os direitos à eles conferido, respeitando o ordenamento
jurídico e os parâmetros desenhados pela Constituição da República Federativa do
Brasil, de 1988.

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Data de submissão: 22 jul. 2023. Data de aprovação: 29 jul. 2023.

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[Regime Próprio de Previdência Social]

AUDITORIA EXTERNA NOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA


SOCIAL: ANÁLISE ACERCA DO ALCANCE DO CONTROLE DOS TRIBUNAIS
DE CONTAS NOS REGISTROS DE APOSENTADORIAS E PENSÕES

Renata Raule Machado11

Resumo
O presente artigo busca analisar o alcance e as consequências da auditoria externa
obtemperada pelos Tribunais de Contas dos Estados nos Regimes Próprios de
Previdência Estaduais e Municipais, a partir de uma decisão recente do Supremo
Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1426306, com
Repercussão Geral, onde foi decidido que os servidores estáveis nos termos do
artigo 19 do ADCT não estão sujeitos aos Regimes Próprios de Previdência Social,
mas deverão ser aposentados pelo Regime Geral de Previdência Social. Para tanto,
o método hipotético-dedutivo foi aplicado em duas etapas: identificando a formação
de valores e aspecto cultural que tolera interesses contraditórios entre indivíduo/
segurado/beneficiário e Estado. Para a pesquisa, foram utilizadas legislações pátrias,
históricas e vigentes, obtida na plataforma do site do planalto e em livros compilados.
O enfoque teórico será valorativo com ênfase em sóciocrítica, pois a análise da
aparente contradição de valores entre os objetivos de proteção aos direitos humanos
e a garantia de uma previdência social profícua, deve ser feita com observância
à formação histórica da previdência, seus objetivos e seus efeitos na sociedade.
Insta destacar que o presente artigo é apresentado como uma das exigências para
pontuação no curso de Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul - UFMS. Dito isto e, de todo o exposto, considerando
que os Tribunais de Contas não são órgãos judiciais, poderão ser registradas as
aposentadorias em dissonância com a decisão do Pretório Excelso?
Palavras-chave: Tribunais de Contas. Controle Externo. Regimes Próprios de Previdência Social.

EXTERNAL AUDIT OF OWN SOCIAL SECURITY SCHEMES: ANALYSIS


OF THE SCOPE OF CONTROL BY COURTS OF AUDITORS ON
RETIREMENT AND PENSION RECORDS

Abstract
The present work seeks to analyze the scope and consequences of the external
audit obtained by the State Audit Courts in the State and Municipal Pension Regimes,
based on a recent decision of the Federal Supreme Court, which decided, in the
General Repercussion, that permanent servants under the terms of article 19 of the
ADCT are not subject to the Special Social Security Regimes, but must be retired by
the General Social Security Regime. To this end, the hypothetical-deductive method

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Procuradora Autárquica do Governo do Estado do Mato Grosso do Sul. Mestranda em Direitos Humanos
pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

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was applied in two stages: identifying the formation of values and cultural aspect
that tolerates contradictory interests between the individual/insured/beneficiary and
the State. For the research, historical and current national legislation was used,
obtained from the plateau website platform and in compiled books. The theoretical
focus will be evaluative with an emphasis on socio-criticism, as the analysis of the
apparent contradiction of values between the objectives of protecting human rights
and guaranteeing a fruitful social security must be carried out in compliance with
the historical formation of social security, its objectives and its effects on society. It
is important to highlight that this article is presented as one of the requirements for
scoring in the Master’s in Human Rights course at the Federal University of Mato
Grosso do Sul - UFMS. Having said that and, in light of all the above, considering that
the Audit Courts are not judicial bodies, can retirements be registered in disagreement
with the decision of the Praetorian Excellency?
Keywords: Courts of Accounts. External Control. Own Social Security Regimes.

1 INTRODUÇÃO

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal – STF, no julgamento do Recurso


Extraordinário nº 1426306, com Repercussão Geral, entendeu que os servidores
estáveis nos moldes do artigo 19 do ADCT são segurados obrigatórios do Regime Geral
de Previdência Social (RGPS), e não dos Regimes Próprios de Previdência (RPPS).
Referida decisão poderá trazer grandes benefícios aos RPPS(s), notadamente aos
que possuem déficit tanto financeiro quanto atuarial, com a possibilidade de transferência
dos referidos servidores, como dos aposentados e pensionistas nas mesmas condições,
para o Regime Geral de Previdência Social - RGPS.
De outro norte, a referida decisão poderá causar a minoração das aposentadorias
e pensões dos afetados, causando um problema social.
Mas na medida que não se trata de uma decisão erga omnes, e que vincula
somente a decisão dos Tribunais acerca da questão, como será a atuação dos Tribunais
de Contas frente à referida situação?
Para a pesquisa, foram utilizadas legislações pátrias, históricas e vigentes,
obtida na plataforma do site do planalto e em livros compilados. O enfoque teórico será
valorativo com ênfase em socio crítica, pois a análise da aparente contradição de valores
entre os objetivos de proteção aos direitos humanos e a garantia de uma previdência
social profícua, deve ser feita com observância à formação histórica da previdência, seus
objetivos e seus efeitos na sociedade. Insta destacar que o presente artigo é apresentado
como uma das exigências para pontuação no curso de Mestrado em Direitos Humanos
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS.
Antes de adentrarmos a “questio”, importante tecermos breves considerações
acerca dos Regimes Próprios de Previdência Social.

2 BREVE HISTÓRICO

Antes de ser um direito constitucional, a previdência está prevista na Declaração


dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo XXV, em garantia à proteção da dignidade

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da pessoa humana, visto que, conforme leciona a mesma Declaração “Art. I. Todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, senão vejamos:

Artigo XXV
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-
-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuá-
rio, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis,
e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,
viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência
em circunstâncias fora de seu controle.” (grifo nosso)

A seguridade social compreende o conjunto integrado de ações de iniciativa do


poder público com a participação da sociedade (trabalhadores públicos e privados)
atuando na área de Saúde, Assistência Social e Previdência Social; é direito humano
de segunda dimensão, ou seja, ligados às prestações que o Estado como sociedade
avançada deve ao seu conjunto de integrantes (indivíduos).
Obteve “status” constitucional somente na Constituição Federal de 1988, integrando
a Assistência Social, a Saúde e a Previdência.
O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966,
ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, através do Decreto 591, em diversos
artigos faz referência aos direitos que compõem a seguridade social, ressaltando em
seu artigo 9° o direito de toda pessoa à previdência social, inclusive ao seguro social,
bem como em seu art. 12 o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de
saúde física e mental.
Por seu turno, temos que a previdência constitui um direito fundamental de
segunda geração, prevista no Capítulo II – “Dos Direitos Sociais” de nossa Carta de
Outubro, quando dispõe em seu inciso IV do artigo 7º que são direitos dos trabalhadores
“IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas
necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação,
saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos
que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;”.
Insta destacar que o texto constitucional trouxe três regimes de previdência: O
Regime Geral de Previdência Social, o Regime Próprio de Previdência Social e o Regime
de Previdência Complementar.
As regras atinentes ao Regime Próprio de Previdência Social foram externalizadas
através do artigo 40 da Constituição Federal, sendo este um regime opcional para os
entes federados mas que, em o criando, deve contemplar como segurados todos os
servidores públicos detentores de cargo efetivo (e somente estes). Caso não adotem
o Regime Próprio de Previdência Social, seus servidores públicos serão segurados/
beneficiários do Regime Geral de Previdência Social – RGPS.
No Brasil, os 26 (vinte e seis) estados e o Distrito Federal possuem RPPS; dos
5.568 (cinco mil quinhentos e sessenta e oito) municípios, 2.096 (dois mil e noventa e
seis) municípios possuem RPPS. A última reforma da previdência, através da Emenda
Constitucional nº 103/2019, proibiu a criação de novos Regimes Próprios de Previdência
Social.

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A Previdência Social é um sistema elaborado para garantir o bem-estar dos


segurados na velhice ou quando por algum infortúnio eles não estiverem em condições
de trabalhar, além do amparo aos dependentes do segurado. Essa garantia de bem-
estar, todavia, somente é dada para aquelas pessoas que fazem parte do sistema, ou
seja, aquelas que estão inscritas regularmente na previdência (regime geral ou próprio)
e que com ela contribuem – os segurados.
Assim, com suporte nas lições de Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (2000), o
Regime de Previdência Social brasileiro deve ser “entendido à semelhança do contrato
de seguro, em que o segurado paga determinada contribuição, com vistas à cobertura
de riscos futuros”.
Nos últimos trinta anos, a previdência social passou por três grandes reformas, a
primeira através da Emenda Constitucional nº 20/98, seguida da Emenda Constitucional
nº 41/2003 e Emenda Constitucional nº 103/2019. Referidas reformas visam aplicar
medidas de contenção do déficit previdenciário, realidade da maioria dos regimes.

2.2 OS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA SOCIAL

Até a Emenda Constitucional nº 20/98, os Regimes Próprios de Previdência – RPPS


não possuíam o caráter contributivo-retributivo; a aposentadoria do servidor público era
vista como prêmio pelo trabalho dedicado ao ente subnacional. Tanto é verdade que, até
hoje, os servidores públicos aposentados são frequentemente denominados de “servidor
inativo” e não como aposentado, como ocorre na iniciativa privada.
Nogueira (2012) destaca que os servidores públicos, ao historicamente levarem
para a inatividade como proventos a remuneração dos ativos, refletiam uma postura do
Estado que os diferenciava dos trabalhadores em geral, considerando a concepção de
que aqueles que se dedicam ao Estado deveriam se beneficiar da proteção deste quando
se aposentam, tal como um “prêmio”. A aposentadoria do servidor público historicamente
foi difundida e encarada como uma política de recursos humanos, um benefício para
atrair pessoas para o serviço público. Nesse sentido, verifica-se, no contexto pré-
Constituição da República de 1988, que as contribuições dos servidores e respectivas
instituições previdenciárias, em sua maioria, se destinavam a pagar pensões e pecúlios
aos dependentes, uma vez que, com a morte do servidor, cessavam os proventos
recebidos do Estado.
Diante da ausência de medidas que garantissem a sustentabilidade financeira dos
RPPS(s), muitos tornaram-se deficitários. Segundo Giambiagi (2007), em 1998, enquanto
no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) o déficit era de 0,7% do Produto Interno
Bruto (PIB), nos RPPS, o déficit era de 3,7% do PIB. Levando-se em conta os regimes
próprios de previdência em separado, o déficit federal era de 1,9% do PIB; os estaduais,
de 1,5%; e os municipais, de 0,3% do PIB.
Assim, a primeira reforma da previdência foi instrumentalizada através da Emenda
Constitucional nº 20/98, estabelecendo contribuição para os servidores públicos e regras
aposentatórias mais severas, considerando que até então existia apenas o requisito
“tempo de serviço”.
Rompeu-se, portanto, a herança da era patrimonialista em que reinava a ideia de
relação pro labore facto, onde a previdência dos servidores públicos era tratada como

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uma extensão da política de pessoal dos entes federados.


Em que pese tais considerações, as ferramentas oportunizadas pelo legislador
para contenção do déficit que havia se instalado ainda se mostram insuficientes para o
atingimento do equilíbrio financeiro e atuarial dos RPPS, obrigando os entes subnacionais
a despenderem vultosos valores para fazer frente ao pagamento de benefícios.
Sob esse viés, temos que na medida em que os recursos públicos são utilizados
para pagamento de benefícios previdenciários dos servidores públicos, visto que as
contribuições não são suficientes para fazer frente ao pagamento dos mesmos, seria
errôneo dizer que os RPPS não possuem caráter de política pública?
Como vimos, as políticas públicas são voltadas para garantir o bem-estar da
população, os RPPS, se analisados sob o prisma supracitado, acabou por ser um fardo
para os entes subnacionais, que acabam por mantê-los em detrimento da sociedade.
A maioria dos RPPS possuem o sistema de repartição simples, qual seja, as
contribuições dos servidores em atividade são utilizadas para pagamento dos benefícios
previdenciários.
Em não sendo suficientes, o ente subnacional é responsável pelo pagamento do
déficit, para que a folha de aposentados e pensionistas seja honrada. Em não sendo
possível, ocasiona-se grande problema não só para os beneficiários, mas para uma
cadeia de pessoas que são mantidas também por esses recursos, v.g., comércios locais
que sentirão a minoração do dinheiro em circulação.
Na verdade, a exemplo dos modelos das previdências complementares, o ideal
seria um sistema capitalizado nos RPPS(s), administrado de forma que as contribuições
dos segurados seriam responsáveis pelo pagamento de seus benefícios, até que finde o
total acumulado, evitando que os entes subnacionais custeassem os benefícios de seus
servidores aposentados e de seus pensionistas.
Em que pese as diretrizes legislativas, no sentido da implantação de um modelo
capitalizado para os RPPS(s), as soluções de equacionamento propostas têm se tornado
inócuas, diante do alto custo imediato que se impõe aos entes subnacionais.
Enquanto não se equaciona o déficit, os entes subnacionais, em sua maioria,
mantêm-se custeando boa parte dos benefícios dos servidores públicos aposentados e
de seus pensionistas, obviamente com recursos públicos que poderiam ser destinados
para saúde, educação, segurança pública, entre outras frentes.
Sendo administrados como estão, os RPPS continuarão a retirar recursos
orçamentários e financeiros de outras despesas, transferindo o custo dessa alocação para
os eventuais beneficiários das políticas prejudicadas ou contribuindo para a ampliação
do endividamento público e inflação, o que tem consequências graves para a economia.
Cabe à sociedade refletir: até que ponto vale a pena sacrificar o futuro para garantir o
presente?
Resta clara a necessidade de minorar, cada vez mais, a diferença existente entre
o Regime Geral de Previdência Social, a consolidação das previdências complementares
e o escoamento dos gastos previdenciários, sob pena de sua inviabilização e prejuízo
dos seus beneficiários e das consequências negativas para a sociedade.
A condição prejudicial dos RPPS(s) para os entes subnacionais é ponto pacífico,
na medida em que o Governo Federal, através da Emenda Constitucional nº 103/2019,
proibiu a criação de novos RPPS(s). Também, através do mesmo dispositivo, traçou

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medidas que aproximam cada vez mais os RPPS do RGPS. Mas até o atingimento do
tão almejado equilíbrio há um longo caminho a ser percorrido, tempo este em que a
sociedade continuará custeando a previdência dos servidores públicos.

3 DA ATUAÇÃO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS NOS REGIMES PRÓPRIOS DE


PREVIDÊNCIA SOCIAL

Os Tribunais de Contas têm importante papel nos Regimes Próprios de Previdência


Social: além do exercício do controle externo, sobretudo por serem, em sua maioria,
deficitários, são responsáveis pela perfectibilização das aposentadorias e pensões,
através do competente Registro.
As prerrogativas do Tribunal de Contas da União estão elencadas no artigo 71 de
nossa Carta de Outubro, “in verbis”:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exerci-


do com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da Repúbli-
ca, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias
a contar de seu recebimento;
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por di-
nheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluí-
das as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público
federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra
irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;
III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão
de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas
as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as
nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das
concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as
melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato
concessório;
IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Sena-
do Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias
de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial,
nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judi-
ciário, e demais entidades referidas no inciso II;
V - fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo
capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do
tratado constitutivo;
VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União
mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a
Estado, ao Distrito Federal ou a Município;
VII - prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por
qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões,
sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e pa-
trimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;

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VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou


irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá,
entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;
IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências
necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;
X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando
a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;
XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos
apurados.
§ 1º No caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente
pelo Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo
as medidas cabíveis.
§ 2º Se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de noventa
dias, não efetivar as medidas previstas no parágrafo anterior, o Tribunal
decidirá a respeito.
§ 3º As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa
terão eficácia de título executivo.
§ 4º O Tribunal encaminhará ao Congresso Nacional, trimestral e
anualmente, relatório de suas atividades. (grifos nossos)

Por seu turno, na Constituição Estadual do Mato Grosso do Sul assim preleciona:

Art. 77. O controle externo a cargo da Assembléia Legislativa será exer-


cido com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado, ao qual compete:
I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Governa-
dor do Estado, através de parecer prévio, que deverá ser ela-
borado em sessenta dias a contar do seu recebimento;
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por di-
nheiros, bens e valores públicos da administração direta ou indireta, in-
cluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder
Público estadual, e as contas daqueles que derem causa a perda, a ex-
travio ou a outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;
III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de
pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as
fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, bem como a da con-
cessão de aposentadoria, reforma e pensões, ressalvadas as melho-
rias posteriores que não alterem o fundamento do ato concessório;
IV - realizar por iniciativa própria, da Assembléia Legislativa, de
comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de na-
tureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patri-
monial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislati-
vo, Executivo e Judiciário e de entidades referidas no inciso II;
V - fiscalizar as contas das empresas de cujo capital o Estado par-
ticipe, de forma direta ou indireta, nos termos do estatuto próprio;
VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassa-
dos pelo Estado através de convênio, acordo, ajuste ou ou-

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tros instrumentos congêneres, a Municípios ou outras entidades;


VII - prestar as informações solicitadas pela Assembleia Legislativa ou suas
comissões, sobre fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacio-
nal e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;
VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de des-
pesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei;
IX - se verificada a ilegalidade, assinar prazo para que o órgão ou enti-
dade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei;
X - sustar, se não atendido, a execução do ato impug-
nado, comunicando a decisão à Assembléia Legislativa;
XI - representar ao Poder competen-
te sobre irregularidades ou abusos apurados.
§ 1º No caso de contrato, o ato de sustação será adotado
diretamente pela Assembléia Legislativa, que solicitará,
de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis.
§ 2º Se a Assembléia Legislativa, ou o Poder Executivo, no
prazo de noventa dias, não efetivar as medidas previstas
no parágrafo anterior, o Tribunal decidirá a respeito.
§ 3º Os danos causados ao erário pelo ato impugnado
ou sustado serão imediatamente apurados e cobrados
aos servidores responsáveis pela operação ou pelo ato,
independentemente das penalidades administrativas cabíveis.
§ 4º As decisões do Tribunal de que resultar imputação
de débito ou multa terão eficácia de título executivo.
§ 5º O Tribunal de Contas encaminhará à Assembléia Legislativa relatórios
trimestral e anual de suas atividades. (grifos nossos)

Desta feita, temos que as aposentadorias e pensões são atos administrativos


complexos, que dependem do registro pelos Tribunais de Contas dos Estados, para a
sua perfectibilização.
Temos, também, que o Tribunal de Contas não é um órgão judicante, mas de
controle externo, eminentemente contábil e financeiro, em garantia ao bom uso dos
recursos públicos.
Mas voltando os olhos especificamente aos Regimes Próprios de Previdência,
entendemos que apenas a fiscalização contábil e financeira não é o suficiente. Explico.
Qualquer benefício previdenciário que esteja sendo pago de forma irregular gerará
danos aos cofres públicos.
Nunca é demais ressaltar que a origem dos déficits previdenciários dos Regimes
Próprios de Previdência podem ser atribuídos à má gestão destes entes, além de
que a obrigatoriedade de regras contributivas só se consolidaram através da Emenda
Constitucional nº 20/98, quando a maioria dos RPPS(s) já estavam deficitários.
Sob o aspecto fiscalizatório, o Ministério da Previdência tem importante papel,
sobretudo com a criação do Certificado de Regularidade Previdenciária – CRP22,

22
Art. 9º Compete à União, por intermédio da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do
Ministério da Economia, em relação aos regimes próprios de previdência social e aos seus fundos

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renovado a cada 180 (cento e oitenta) dias, caso o Regime cumpra todos os requisitos
exigidos legalmente.
Ademais, a última reforma da Previdência, ocorrida através da Emenda
Constitucional nº 103/2019, concedeu “status” constitucional ao referido certificado,
impedindo judicializações para a renovação do certificado mesmo sem o preenchimento
de todos os requisitos exigidos.
Não podemos olvidar acerca da dificuldade que a Emenda Constitucional
nº 103/2019 trouxe aos Tribunais de Contas, no sentido da análise dos benefícios
previdenciários para o fim de registro, visto que foi a primeira emenda que não trouxe
obrigatoriedade de observância aos Estados e Municípios; assim, para cada RPPS há
uma legislação, que deve ser analisada uma a uma pelos Tribunais de Contas, para o
fim de registro.
Em que pese a atuação do Ministério da Previdência, as auditorias procedidas
pelo mesmo geralmente são remotas. Daí a importância de auditorias permanentes por
parte dos Tribunais de Contas, com o fito de não permitir o pagamento de benefícios
indevidos, e consequente lesão aos cofres públicos – e à população.

4 RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 1426306, COM REPERCUSSÃO GERAL, DO


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A ATUAÇÃO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

O Supremo Tribunal Federal decidiu, em sede de Repercussão Geral, que os


servidores estáveis, nos termos do artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias – ADCT, não possuem o mesmo regime previdenciário dos servidores
públicos efetivos, ou seja, aqueles que ingressaram no serviço público através de
concurso público de provas ou provas e títulos. Assim, não podem se aposentar pelo
Regime Próprio de Previdência Social, portanto, são segurados obrigatórios do Regime
Geral de Previdência Social.
A tese de repercussão geral fixada foi a seguinte: “São admitidos no regime próprio
de previdência social exclusivamente os servidores públicos civis detentores de cargo
efetivo (art. 40, CF, na redação dada pela EC nº 20/98), o que exclui os estáveis na forma
do art. 19 do ADCT e demais servidores admitidos sem concurso público”.
Nesse diapasão, cumpre-nos esclarecer a diferença entre os servidores efetivos e

previdenciários: (Redação dada pela Lei nº 13.846, de 2019)


I - a orientação, a supervisão, a fiscalização e o acompanhamento; (Redação dada pela Lei nº 13.846, de
2019)
II - o estabelecimento e a publicação de parâmetros, diretrizes e critérios de responsabilidade previdenciária
na sua instituição, organização e funcionamento, relativos a custeio, benefícios, atuária, contabilidade,
aplicação e utilização de recursos e constituição e manutenção dos fundos previdenciários, para
preservação do caráter contributivo e solidário e do equilíbrio financeiro e atuarial; (Redação dada pela Lei
nº 13.846, de 2019)
III - a apuração de infrações, por servidor credenciado, e a aplicação de penalidades, por órgão próprio,
nos casos previstos no art. 8º desta Lei; (Redação dada pela Lei nº 13.846, de 2019)
IV - a emissão do Certificado de Regularidade Previdenciária (CRP), que atestará, para os fins do
disposto no art. 7º desta Lei, o cumprimento, pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, dos critérios e
exigências aplicáveis aos regimes próprios de previdência social e aos seus fundos previdenciários. (Lei
nº 9.717/1998)

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os servidores estáveis na forma do artigo 19 do ADCT.


O artigo 19 do ADCT assim dispõe:

“Art. 19. Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Dis-


trito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárqui-
ca e das fundações públicas, em exercício na data da promulga-
ção da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados,
e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37
da Constituição, são considerados estáveis no serviço público.
§ 1º O tempo de serviço dos servidores referidos neste
artigo será contado como título quando se submeterem
a concurso para fins de efetivação, na forma da lei.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica aos ocupantes de cargos,
funções e empregos de confiança ou em comissão, nem aos que a lei
declare de livre exoneração, cujo tempo de serviço não será computado
para os fins do caput deste artigo, exceto se se tratar de servidor.
§ 3º O disposto neste artigo não se aplica aos professores de nível
superior, nos termos da lei.” (grifo nosso)

Desta feita, os empregados que estavam em exercício há, pelo menos, 05 (cinco)
anos continuados na data da promulgação da Constituição de 1988, têm somente o
direito de permanecer nos cargos em que foram admitidos, mas não são detentores das
vantagens privativas dos ocupantes de cargo efetivo, o que afasta a possibilidade de
participação no regime próprio de previdência social.
Ainda de acordo com o entendimento da Corte, a partir da Emenda Constitucional
EC nº 20/1998, que deu nova redação ao artigo 40 da Constituição, o vínculo no RPPS
é exclusividade dos servidores públicos civis investidos em cargo efetivo.
Ocorre que muitos entes subnacionais incluíram em seus regimes próprios de
previdência social os servidores beneficiados com a estabilidade excepcional do artigo 19
do ADCT e, ainda, alguns estenderam a excepcionalidade aos que ingressaram no serviço
públicos até a data da promulgação da Constituição Federal e assim permaneceram
durante 05 (cinco) anos ininterruptos, ou seja, até 05 de outubro de 1993!
Com a decisão do Supremo Tribunal Federal, temos alguns imbróglios:
- A decisão é tema de Repercussão Geral, ou seja, de observância obrigatória
pelos Tribunais, mas não vincula imediatamente a administração pública, que possuem
os servidores excepcionalmente estáveis como segurados dos RPPS(s);
- As leis dos entes subnacionais que possuem referida previsão deveriam ser
objeto de alteração; mas diante da medida deveras antipática e, sobretudo, em véspera
de eleições municipais, nenhum chefe do poder executivo municipal desejará proceder
a referida alteração;
- Sob o aspecto do servidor, é uma expectativa que se frustra, vez que através do
RPPS pode-se auferir benefício acima do teto do Regime Geral de Previdência, hoje no
patamar de R$ 7.507,49 (sete mil quinhentos e sete reais e quarenta e nove centavos) –
e um problema social que se instalará;
- Ainda, o servidor que recebe acima do teto do RGPS, em caso de migração para

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o INSS, como proceder com o valor das contribuições que excederam ao teto?
- Com relação às contribuições, considerando que a Certidão de Tempo de
Contribuição só pode ser emitida para ex-servidor33, o ente deverá repassar todos os
recolhimentos ao INSS?
- Se o questionamento anterior for positivo, o repasse deverá ser só dos últimos 05
(cinco) anos – e o INSS arcará com todo o benefício somente com essas contribuições –
ou deverá ser de todo o período contributivo, acrescido de juros e correções monetárias?
- Não se pode olvidar que muitos entes subnacionais possuem Regimes Próprios
deficitários, administrados sob o regime de repartição simples, ou seja, arrecadam dos
servidores ativos para pagamento dos inativos, não possuindo, portanto, valores em
caixa;
- Respeitada a prescrição, as aposentadorias já concedidas nestas condições, se
perpetuarão? E as pensões por morte?
- E o ponto nevrálgico a ser questionado: como será a atuação dos Tribunais de
Contas, nestes casos, a partir da decisão do STF?
O fato é que a “transferência” desses servidores para o Regime Geral de Previdência
Social seria financeira e atuarialmente positiva para os Regimes Próprios de Previdência,
sobretudo para os entes que possuem regimes deficitários e necessitam aportar valores
mensalmente para a cobertura da folha de pagamento de benefícios previdenciários.
Ainda, impactaria positivamente tanto no déficit financeiro quanto no déficit atuarial,
este último um dos maiores problemas dos RPPS(s).
Dito isto, é cedido que o Tribunal de Contas não é um órgão judicante, mas
pertencente ao Poder Legislativo, com o fito de fiscalizar as contas públicas. Nesse
sentido, sabemos que ao Tribunal de Contas não compete proceder ao controle de
constitucionalidade das leis, mas pode questionar uma aposentadoria concedida de
forma ilegal, inclusive negando-lhe o competente registro.
O fato é que a Repercussão Geral faz coisa julgada somente no processo que a
ensejou e vincula tão somente os Tribunais a julgarem no mesmo sentido, mas não a
administração pública.
Outro fato que não pode ser esquecido é a lesão financeira que pode ser causada
para os servidores que estão nas condições da decisão do STF, sobretudo a expectativa
de se aposentarem com paridade e integralidade de vencimentos, sem falar nos
aposentados nos últimos 05 (cinco) anos.
Mas também não podemos esquecer que na medida que são mantidos custeios
indevidos pelo Poder Público, sobretudo em áreas deficitárias, deixa-se de investir em
outras áreas sensíveis, onde quem é prejudicada é a sociedade, que é a real mantenedora
do Poder Público e é o fim deste último.
Nessa toada, talvez há de se questionar se apenas a auditoria contábil, financeira
e de registro de aposentadorias e pensões, dentro dos Regimes Próprios de Previdência,
são suficientes para avaliar a regularidade destes regimes.
Diante de todas estas questões, ao fim e ao cabo, enquanto não houver mudança

33
Art. 196. A CTC só poderá ser emitida para ex-segurado do RPPS ou ex-militar do SPSM e relativamente
a períodos em que tenha havido, por parte deles, a prestação de serviço ou a correspondente contribuição.
(Portaria MTP nº 1.467, de 02 de junho de 2022)

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legislativa nos entes subnacionais quanto à inclusão dos excepcionalmente estáveis nos
termos do artigo 19 do ADCT para cumprimento da decisão do STF ou uma Emenda
Constitucional para resolver tal situação, ficará a cargo dos Tribunais de Contas tomarem
posicionamento acerca do registro ou não das aposentadorias destes servidores
custeadas pelos Regimes Próprios de Previdência Social.

4 CONCLUSÃO

O presente artigo traçou aspectos relevante acerca do julgamento do Recurso


Extraordinário nº 1426306, com Repercussão Geral, onde foi decidido que os servidores
estáveis nos termos do artigo 19 do ADCT não estão sujeitos aos Regimes Próprios de
Previdência Social, mas deverão ser aposentados pelo Regime Geral de Previdência
Social e atuação dos Tribunais de Contas, como órgão de Controle externo, na observância
de decisões desse jaez.
É cediço que muitos dos Regimes Próprios de Previdência Social tornaram-se
um fardo para os entes subnacionais, na medida em que, diante de sua má gestão,
tornaram-se deficitários.
O Ministério da Previdência, através da Subsecretaria de Regimes Próprios de
Previdência, tem tomado constantes medidas na intenção de corrigir tais déficits, através
da Segregação da Massa de Segurados ou da amortização de déficits, ambas medidas
extremamente custosas aos entes subnacionais, como também a profissionalização
destes regimes, v.g., com a recente exigência de Certificação Profissional tanto para
gestores como para conselheiros de RPPS(s).
No entanto, a fiscalização do Ministério da Previdência ainda não é suficiente para
a correção das deficiências dos Regimes Próprios de Previdência Social.
Nesse diapasão, as auditorias dos Tribunais de Contas, seja no momento do registro
das aposentadorias, pensões, reservas remuneradas e reformas, seja nas auditorias
contábeis e financeiras, são de extrema importância para que as contas públicas não
sejam comprometidas com pagamentos de benefícios indevidos.
Ainda, repisamos acerca da grande dificuldade enfrentada pelos Tribunais de
Contas no tocante à análise de benefícios previdenciários após a Emenda Constitucional
nº 103/2019 que, respeitados os requisitos mínimos por ela estabelecidos, cada ente
subnacional poderá ter sua própria legislação previdenciária com benefícios diferenciados,
o que obriga a cada analista conhecer a lei previdenciária de cada município. No Estado
do Mato Grosso do Sul, dos 79 (setenta e nove) municípios, 51 (cinquenta e um) possuem
Regimes Próprios, além do Estado, somando, portanto, 52 (cinquenta e dois) RPPS(s),
cada um com sua legislação específica.
Ademais, há um duplo viés a ser observado: com relação a recente decisão do
STF ora posta, se aplicada, gerará uma grande economia ao ente subnacional; por outro
lado, causará grande insegurança e prejuízo aos que estão enquadrados na situação,
podendo gerar até um grande problema social. Nesse sentido, qual será o papel do
Tribunal de Contas? Fazer cumprir desde já a decisão ou esperar que venha uma
Emenda Constitucional regulamentando a matéria, ou uma decisão erga omnes, talvez
com efeito ex tunc, agravando ainda mais a problemática estabelecida?
Desta feita, temos que a atuação incisiva em auditorias permanentes por parte

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dos Tribunais de Contas nos Regimes Próprios de Previdência Social é de suma


importância para que se evite o pagamento de benefícios indevidos, muitas vezes de
difícil identificação apenas com a análise para registro, motivo pelo qual deveria ser
intensificado, o que poderia gerar grande economia para os entes subnacionais, e,
quem sabe, poder vislumbrar regimes próprios de previdência social autossuficientes,
beneficiando, por conseguinte, toda a população.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. [Constituição 1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de


1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out.
1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Acesso em: 14 dez. 2023.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. Altera o


sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias.
Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm. Acesso em: 14 dez. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário (RE 1426306). Disponível


em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4157562. Acesso em: 14
dez. 2023.
GIAMBIAGI, Fabio. A reforma da previdência: o encontro marcado. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2007.

MATO GROSSO DO SUL. Constituição [1989]. Constituição do Estado de Mato


Grosso do Sul, de 05 de outubro de 1989. Disponível em: http://aacpdappls.net.
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dfde24a4767ddcbf04257e4b006c0233?OpenDocument. Acesso em: 14 dez. 2023.

NOGUEIRA, Narlon Gutierre. O Equilíbrio financeiro e atuarial dos RPPS: de princípio


constitucional a política pública de Estado. Brasília, Ministério da Previdência Social, 2012.
(Coleção Previdência Social. Série Estudos; v. 34). Disponível em: http://sa.previdencia.
gov.br/site/arquivos/office/1_120808-172335-916.pdf. Acesso em: 15 jun. 2022.

Data de submissão: 19 set. 2023. Data de aprovação: 19 jun. 2023

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[Regime Próprio de Previdência Social]

REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL: A IMPORTÂNCIA DOS


INSTRUMENTOS DE PARCERIA NA PROMOÇÃO DOS DIREITOS
DOS SEGURADOS FRENTE A NECESSIDADE DE GARANTIA DO
EQUILÍBRIO FINANCEIRO E ATUARIAL

Cristóvão de Souza Brito1

Resumo
O presente artigo pretende desenvolver estudos sobre a importância dos instrumentos
de parceria entre os regimes próprios de previdência social e entes federativos
ou entre aqueles e as diversas organizações sociais, como forma de promover o
exercício de direitos fundamentais pelo segurado, mas sem desatender o princípio
constitucional do equilíbrio financeiro e atuarial. Partindo-se desta problemática inicial,
o ensaio foi orientado metodologicamente por revisão bibliográfica de livros e artigos
científicos, assim como levantamento de dados junto a órgãos oficiais. O percurso
tomará em conta conceitos de equilíbrio financeiro e atuarial dos RPPS e sua relação
com os direitos fundamentais, instrumentos de parceria e prévia definição acerca
dos contratos e outros ajustes bilaterais, perspectivas após a emenda constitucional
nº 103/2019, taxa administrativa e suas possibilidades de utilização pela gestão
previdenciária, e ao final, o debate sobre os resultados da pesquisa.
Palavras-chave: Regime próprio de previdência social. Equilíbrio financeiro e atuarial. Segurado.
Direitos fundamentais

OWN SOCIAL SECURITY REGIME: THE IMPORTANCE OF


PARTNERSHIP INSTRUMENTS IN PROMOTING THE RIGHTS OF
INSURED PEOPLE IN FRONT OF THE NEED TO GUARANTEE
FINANCIAL AND ACTUARIAL BALANCE

Abstract
This article aims to develop studies on the importance of partnership instruments
between social security systems and federal entities or between those and various
social organizations, as a way of promoting the exercise of fundamental rights by the
insured, but without disregarding the constitutional principle financial and actuarial
balance. Starting from this initial problem, the essay was methodologically guided by
a bibliographical review of books and scientific articles, as well as data collection from
official bodies. The route will take into account concepts of financial and actuarial balance
of the RPPS and its relationship with fundamental rights, partnership instruments
and prior definition of contracts and other bilateral adjustments, perspectives after

1
Graduação em Curso de Direito pelo Centro de Ensino Superior Arcanjo Mikael de Arapiraca (2012).
Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá. Mestrando em Direito
Público pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor de direito penal e processual penal da
Faculdade São Vicente de Pão de Açúcar/AL - FASVIPA e coordenador do curso de direito desta Instituição.

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constitutional amendment nº 103/2019, administrative fee and its possibilities of use


by social security management, and at the end, the debate on the research results.
Keywords: own social security regime; financial and actuarial balance; insured; fundamental rights

1 INTRODUÇÃO

O sistema de seguridade social foi implementado pela Constituição Federal em


seu art. 194, trazendo como um conjunto de ações pelo Poder Público e pela sociedade
com a finalidade de assegurar a saúde, assistência e previdência social. Para Theodoro
Agostinho, “houve o nascimento de um Sistema Nacional de Seguridade Social, o qual
possui a finalidade precípua de assegurar o bem-estar e a justiça sociais, para que,
dessa forma, ninguém seja privado do mínimo existencial”. (Agostinho, 2022, p. 47)2
O mínimo existencial deve ser desenvolvido pela União quando do poder privativo
de legislar concedido pela Carta Maior no art. 22, XXIII. Os Estados e Municípios, por
outro lado, também podem legislar no caso de servidores próprios, de maneira circunscrita
à Previdência Social3 de sua esfera, mas, em todo caso, respeitando-se os ditames
constitucionais.
A Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019, acentuou a
competência concorrente de Estados e Municípios quando, embora tenha implementado
regras gerais e obrigatórias, permitiu em contrapartida aos entes federados não seguir
as mesmas normas aplicáveis aos servidores da União.4
Aquém dos debates políticos que permearam o contexto de promulgação da
emenda, fato notório é que os regimes próprios de previdência, especialmente as
autarquias municipais, nunca tiveram a atenção devida dos entes federativos, resultando
ao longo do tempo em administrações carentes em todos os setores, notadamente
financeiro, administrativo e de recursos humanos, conforme se verá adiante.
As consequências advindas foram diretamente percebidas pelos segurados
(pensionistas e aposentados pós emenda constitucional 103/2019), os quais passaram
a ter como contrapartida pelas contribuições repassadas unicamente os pagamentos
dos benefícios previdenciários, não raras vezes, com atraso.
Tornou-se impensável em diversas localidades oferecer serviços para além
do valor pecuniário inserido no benefício previdenciário. Sem dúvidas, a garantia da
dignidade humana do segurado restou fragilizada, ao passo que inúmeras gestões se
acomodaram a aceitar o panorama de desequilíbrio financeiro e atuarial de seus RPPS,
não oferecendo, por sua vez, qualquer outro serviço a mais do que o pagamento.
Logicamente, um dos fatores preponderantes foi também a limitação legal

2
O autor afirma, ainda, que a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a reunir a “saúde, a assistência
social e a previdência em um único sistema de proteção social de caráter tridimensional”, p. 47.
3
Art. 24, XII: Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;  
4
Vide art. 10, § 7º Aplicam-se às aposentadorias dos servidores dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios as normas constitucionais e infraconstitucionais anteriores à data de entrada em vigor
desta Emenda Constitucional, enquanto não promovidas alterações na legislação interna relacionada ao
respectivo regime próprio de previdência social.

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imposta para utilização da taxa administrativa em respeito ao próprio equilíbrio atuarial


e financeiro. Todavia, medidas inovadoras passaram a ser atendidas por alguns RPPS
para implementação de direitos e oferecimento de serviços aos segurados, das quais
destacamos instrumentos de parceria entre a autarquia e o ente federativo ou com outras
instituições, tais como convênios.
O presente artigo pretende desenvolver estudos sobre a importância dos
instrumentos de parceria entre os regimes próprios de previdência social e entes
federativos ou entre aqueles e as diversas organizações sociais, como forma de promover
o exercício de direitos fundamentais pelo segurado, mas sem desatender o princípio
constitucional do equilíbrio financeiro e atuarial.
Partindo-se desta problemática inicial, o ensaio foi orientado metodologicamente
por revisão bibliográfica de livros e artigos científicos, assim como levantamento de dados
junto a órgãos oficiais. O percurso tomará em conta conceitos de equilíbrio financeiro e
atuarial dos RPPS e sua relação com os direitos fundamentais, instrumentos de parceria
e prévia definição acerca dos contratos e outros ajustes bilaterais, perspectivas após a
emenda constitucional nº 103/2019, taxa administrativa e suas possibilidades de utilização
pela gestão previdenciária, e ao final, o debate sobre os resultados da pesquisa.

2 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO EQUILÍBRIO FINANCEIRO E ATUARIAL


COMO PILAR DOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA SOCIAL

O termo “equilíbrio financeiro e atuarial” foi introduzido na Constituição Federal por


força da Emenda nº 20, de 15 de dezembro de 1998,5 pois a partir dali não seria mais
aceito tempo de serviço fictício, devendo o segurado efetuar a contribuição ao regime
pelo qual buscaria seu benefício. Estávamos mudando o cenário do “tempo de serviço”
para “tempo de contribuição”.
Importante sempre lembrar que as aposentadorias eram concedidas aos
funcionários públicos como prêmios aos serviços prestados. Anotam Carlos Alberto
Pereira de Castro e João Batista Lazzari (2017, p. 1101) que:

A primeira Emenda Constitucional que pretendeu alterar disposições atinentes à


proteção social foi a de número 3, promulgada em 17.3.1993, e que estabelece
, para os agentes públicos ocupantes de cargos vitalícios e efetivos, a obrigato-
riedade de contribuição para custeio de aposentadorias e pensões concedidas
a estes, modificando-se uma tradição de direito pátrio, qual seja, a de que tais
concessões, no âmbito do serviço público, eram graciosas, independentes de
contribuição do ocupante do cargo. O caráter contributivo é estendido, assim, e
a partir de então, a todos os indivíduos amparados por algum diploma garantidor
de aposentadorias e pensões, à exceção – ainda – dos militares das Forças
Armadas.

5
Destaque-se que tal emenda resultou da transformação da PEC 33/1995, a qual trazia em sua redação
original o termo “equilíbrio financeiro e atuarial” no parágrafo 1º do art. 40, a saber: “O custeio dos
benefícios do regime previdenciário referido neste artigo será feito mediante contribuições dos servidores
públicos ativos e Inativos, bem como dos pensionistas e do respectivo ente estatal, observados critérios
que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”.

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O déficit que se gerou ao longo do tempo para os cofres públicos em razão,


sobretudo, das más políticas públicas em geral (inclusive, de falta de planejamento
e reformas legislativas), acendeu o alerta vermelho em todo o sistema previdenciário
nacional, seja no âmbito federal, estadual e municipal.
O debate político se tornou evidente e necessário, culminando com inúmeras
emendas que se seguiram, a exemplo da n. 20, 41, 47 e 70 especialmente. Ainda em
1998, foi aprovada a lei 9.717, na qual se pode verificar a exigência de respeito aos
postulados do equilíbrio financeiro e atuarial, através da observância de normas gerais
de contabilidade e atuária, assim como a restrição quanto à participação de servidores
públicos comissionados, ou seja, de acordo com o art. 1º, V, da supracitada lei, somente
servidores titulares de cargos efetivos seriam cobertos pelos RPPS. Esta restrição foi
definitivamente encerrada por força do parágrafo 13 da Emenda Constitucional n. 20/98.6
Não é objetivo deste ensaio discutir eventuais críticas e debates acerca da (in)
constitucionalidade da lei n. 9.717/98 (por eventual violação da autonomia federativa),
mas ressaltar o cenário legislativo que se formou no país em busca do equilíbrio dos
regimes próprios de previdência.
A inclusão obrigatória da contribuição para obtenção dos benefícios fixou o
princípio do equilíbrio financeiro e atuarial, “limitando o teto do benefício ao valor da
remuneração do respectivo servidor, no cargo em que ocupava, quando da aposentadoria
ou falecimento”, lembram Castro e Lazzari (2017, p. 1117).
Tatiana de Lima Nóbrega e Mauricio Roberto de Souza Benedito (2021, p. 21)
asseveram que a Emenda Constitucional n. 20/98 trouxe a “explicitação do princípio
da contributividade e do princípio do equilíbrio financeiro e atuarial”, além da “proibição
de contagem de tempo ficto de contribuição”, destacando-se que a legislação anterior
possibilitava a contagem em dobro para “efeito de aposentadoria, do tempo de férias e de
licença-prêmio não gozadas, mesmo não tendo o servidor contribuído sobre esse tempo”.
Em importante estudo sobre o princípio em comento, Narlon G. Rodrigues (2012, p. 159)
destaca que antes da emenda n. 20/98, era possível extrair implicitamente tal comando, porém
vago e sem aplicabilidade pelos entes. Foi somente a partir de 1998 que se tornou “essencial e
estruturante”. Equilíbrio financeiro deve ser entendido “como a garantia de que os recursos do
RPPS serão suficientes para o pagamento de todas suas obrigações, tanto no curto prazo, a
cada exercício financeiro, como no longo prazo, que alcança todo o seu período de existência”.
Ainda ao tecer definições, lembra que este mesmo equilíbrio deve ser buscado com o auxílio
da Atuária enquanto ciência, através de mecanismos matemáticos, estatísticos e econômicos
aptos a “para criar modelos de previsão do comportamento dos eventos probabilísticos, buscando
proteção contra perdas de natureza econômica”.7 (Rodrigues, 2012, p. 159)

6
§ 13 - Ao servidor ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação
e exoneração bem como de outro cargo temporário ou de emprego público, aplica-se o regime geral de
previdência social.
7
Em análise de dados concessivos de benefícios pelos RPPS, assevera, ainda que: “Esses resultados
observados no período de 2004 a 2009, ainda que não de todo satisfatórios, foram certamente favorecidos
pelas reformas constitucionais ocorridas em 1998 e 2003, que eliminaram algumas distorções nos critérios
de concessão dos benefícios e reduziram o ritmo das novas aposentadorias, evitando um crescimento mais
acelerado das despesas, além de permitir uma maior arrecadação das contribuições, reduzindo assim o
desequilíbrio financeiro”. (p. 194) Logicamente, há de se ter em mente que existem outros fatores que

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Percebe-se que o nível o qual foi alçado, resultou aos RPPS maior vigilância e
comprovação de suas respectivas estabilidades financeiras em garantir o pagamento dos
benefícios previdenciários, sob pena de incidir nas sanções previstas na lei n. 9.717/98 e
não obterem, consequentemente, o CRP – Certificado de Regularidade Previdenciária.
Esta delicada relação entre equilíbrio e promoção de direitos é que trataremos a seguir.

3 A DIFÍCIL RELAÇÃO ENTRE O EQUILÍBRIO FINANCEIRO E ATUARIAL E


GARANTIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS AOS SEGURADOS

Inicialmente, partimos da compreensão de que os direitos fundamentais, consoante


todos os momentos históricos dimensionais, possui “íntima e indissociável vinculação
com a Constituição e o Estado de Direito”, ou seja, como explica Ingo Wolfgand Sarlet
(2018, p. 59-60), “ambas se compreendem como limites normativos ao poder estatal”.
Complementa o autor que as liberdades fundamentais somente podem ser concretizadas
mediante “atuação juridicamente programada dos órgãos estatais”. (p.60)
É de se concluir, nesse contexto de direitos, que são considerados direitos
fundamentais aqueles devidamente reconhecidos pelos Estados em suas Constituições,
e para além de sua função garantista, representa para Sarlet uma condição de
legitimidade do poder estatal.8 (p. 60) Ademais, considerando o direito positivo e as
características inerentes ao ordenamento brasileiro, empiricamente se torna relevante
tecer analiticamente e racionalmente as abordagens necessárias à maior efetividade de
tais direitos. (Alexy, 2015, p. 43)
A compreensão racional dos direitos fundamentais, como aponta Alexy, assume
especial atenção no direito brasileiro quando nos deparamos com palavras de alto poder
semântico. Qual o sentido e alcance da palavra princípio? Qual o método racionalmente
aceitável para se definir o que é equilíbrio financeiro e atuarial, seu alcance e se há
direitos a serem limitados ou restringidos em razão deste mesmo alcance?
E ainda surgem outros questionamentos decorrentes a partir do que foi estudado
neste capítulo: se o cumprimento pelos regimes próprios de previdência às normas
estruturantes (equilíbrio financeiro e atuarial) deve ser cogente, sob pena de sanções,
como deve o Estado, em contrapartida, cumprir seu papel de garantidor de direitos e
legitimar-se no exercício do poder?
Esta difícil relação entre se garantir o futuro através de ações do presente como
forma de corrigir o passado deve levar em conta o pluralismo semântico que adquirem os
direitos fundamentais. Especialmente no Brasil, país de dimensões continentais, e isso é
notório, verifica-se uma real necessidade de se analisar o contexto local e regional onde
se insere a norma-princípio.9

contribuíram para o déficit financeiro e atuarial de vários RPPS, tais como atraso dos repasses, retiradas
ilegais dos Fundos, como veremos adiante.
8 Não é foco de nossa abordagem diferenciar direitos fundamentais e direitos humanos, de maior
abrangência e indiscutível importância na consecução dos direitos dos homens pelo Estado. Mas, para
maiores aprofundamentos, remetemos o leitor ao capítulo 1, p. 27-35, onde o autor aborda de maneira
elogiável e conclui que ambos os termos não são “reciprocamente excludentes ou incompatíveis, mas,
sim, de dimensões intimas e cada vez mais inter-relacionadas” (p. 35)
9
Para maior aprofundamento sobre o conceito de princípio, assim como a distinção entre princípios e

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Se perguntarmos aos segurados aposentados da região Norte sobre o que é


ter, exercer direitos e dignidade, poderemos ter respostas não tão semelhantes quanto
às respostas dadas pelos segurados nordestinos, do Centro-Oeste, Sul ou Sudeste,
por exemplo. As carências individuais e de determinados grupos sociais podem variar
geograficamente, financeiramente e socialmente em cada região.
Luigi Ferrajoli (2020, p. 03-04), ao responder quais são os direitos fundamentais,
abre três caminhos: no plano teórico-jurídico, são todos os direitos universalmente
estendidos a todos enquanto pessoas; no plano do direito positivo, são todos aqueles
garantidos internacionalmente, como a DUDH,10 e nacionalmente, como positivados na
Constituição;11 e por último, do ponto de vista filosófico-político, quais direitos devem ser
garantidos como fundamentais, afirma o autor novamente três percursos axiológicos,
sendo eles os direitos universais, das minorias e do mais fraco.12

regras, remetemos o leitor à obra de Alexy, capítulo 2 e especialmente 3, quando o autor compreende
princípios como mandados de otimização, ao pontuar que “O ponto decisivo na distinção entre regras e
princ1p1os é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível
dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos
de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que
a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das
possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras
colidentes” (Alexy, 2015, p. 90).
10
Art. 1º: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão
e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
11
Constituição do Brasil, art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são
iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II - ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
12
Assevera o autor: La primera respuesta es la que ofrece la teoría del derecho. En el plano teórico-jurídico
la definición más fecunda de los “derechos fundamentales” es desde mi punto de vista la que los identifica
con los derechos que están adscritos universalmente a todos en cuanto personas, o en cuanto ciudadanos
o personas con capacidad de obrar, y que son por tanto indisponibles e inalienables. [...] La segunda
respuesta es la que ofrece el derecho positivo, es decir la dogmática constitucional o internacional. [...] La
tercera respuesta, que intentaré formular en las páginas que siguen, es la que ofrece la filosofia política, y
se refiere a la pregunta de “cuáles derechos deben ser garantizados como fundamentales”.
Se trata de una respuesta de tipo no asertivo sino normativo. Por esto debemos formular, para fundarla
racionalmente, los criterios meta-éticos y meta-políticos idóneos para identificarlos. Sumariamente,
me parece, pueden ser indicados tres criterios axiológicos, sugeridos por la experiencia histórica del
constitucionalismo, tanto estatal como internacional.
El primero de estos criterios es el del nexo entre derechos humanos y paz instituido en el preámbulo de
la Declaración Universal de 1948. Deben estar garantizados como derechos fundamentales todos los
derechos vitales cuya garantía es condición necesaria para la paz: el derecho a la vida y a la integridade
personal, los derechos civiles y políticos, los derechos de libertad, pero también, en un mundo en el que
sobrevivir es siempre menos un hecho natural y cada vez más un hecho artificial, los derechos Sociales
para la supervivencia.
El segundo criterio, particularmente relevante para el tema de los derechos de las minorías, es el del
nexo entre derechos e igualdad. La igualdad es en primer lugar igualdad en los derechos de libertad, que
garantizan el igual valor de todas las diferencias personales —de nacionalidad, de sexo, de lengua, de
religión, de opiniones políticas, de condiciones personales y sociales, como dice el artículo 3 párrafo
primero de la Constitución italiana— que hacen de cada persona un individuo diferente a todos los demás

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O valor dos direitos fundamentais destacado por Ferrajoli no campo do dever-ser


merece indiscutivelmente a atenção do intérprete, mas o problema se acentua na ótica
do ser, ôntica, do cotidiano aplicável no mundo dos fatos.
Oportuno lembrar da indagação feita por Daniel Sarmento (2005, p. 168): temos
realmente liberdade de escolha ou nossos caminhos já estão previamente traçados? Se
é certo que o Estado não tem autonomia privada, inviável de se imiscuir-se nos desejos e
objetivos de cada ser humano enquanto ser individual (p. 169-170), lembra o autor, deve
este mesmo Estado abster-se de exercer ações para reduzir desigualdades?
Assim como Sarmento investigou a dimensão da liberdade positiva, cabe-nos
comparativamente, e, sim, é possível, percorrer igual caminho para entender se o simples
pagamento do benefício previdenciário supre o segurado quanto à autodeterminação,
isto é, se o Estado ali representado pelo RPPS pode fazer algo mais pelo cidadão, que
não efetuar uma simbólica contrapartida financeira por anos de trabalho prestado ao
ente federativo.
Este simples problema não teria razão de ser investigado neste artigo se tivéssemos
segurados aposentados e pensionistas (na maioria aposentados) livres financeiramente
de empréstimos tortuosos que ceifam parcela de dignidade à custa de juros camuflados,
ou se tivéssemos segurados livres de doenças que poderiam ser evitadas se tivessem
maior acesso a exames e consultas simples que, não raras vezes, são irrealizáveis por
falta de um dinheiro extra.
Nesse panorama se destacam as parcerias entre os regimes próprios de previdência
e entes federativos ou entre aqueles e organizações sociais sem fins lucrativos, por
exemplo, como forma de implementar direitos ainda escassos de efetivo exercício entre
os segurados ou inalcançáveis sob certos critérios financeiros e socioculturais.

3 OS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS, INSTRUMENTOS DE PARCERIA E A


APROXIMAÇÃO AO RPPS

Quando se estuda qualquer instituto bilateral, tem-se no termo contrato a gênese


da junção de duas vontades, logo nos lembramos do direito privado e das características
próprias enquanto espécie de negócio jurídico. Sobre o assunto, ensina Marcos
Bernardes de Mello (2013, p.210) que tal espécie é a mais importante, pois os “figurantes
podem ter a liberdade de estruturar o conteúdo da eficácia da relação jurídica resultante,
aumentando-lhe ou diminuindo-lhe a intensidade, criando condições e termos”,13 ou seja,

y de cada individuo una persona igual a todas las otras; y es en segundo lugar igualdad en los derechos
sociales, que garantizan la reducción de las desigualdades económicas y sociales.
El tercer criterio es el papel de los derechos fundamentales como leyes del más débil. Todos los derechos
fundamentales son leyes del más débil en alternativa a la ley del más fuerte que regiría en su ausencia: en
primer lugar el derecho a la vida, contra la ley de quien es más fuerte físicamente; em segundo lugar los
derechos de inmunidad y de libertad, contra el arbitrio de quien es más fuerte políticamente; en tercer lugar
los derechos sociales, que son derechos a la supervivencia contra la ley de quien es más fuerte social y
económicamente.
13
Ainda sobre o negócio jurídico, o mestre conclui a definição como “fato jurídico cujo elemento nuclear
do suporte fáctico consiste em manifestação ou declaração consciente de vontade, em relação a qual o
sistema jurídico faculta às pessoas, dentro de limites predeterminados e de amplitude vária, o poder de

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as partes que se reúnem com interesses mútuos de criar uma relação jurídica, podem
estipular cláusulas, criando obrigações e direitos recíprocos.
No entanto, tratando-se de relações jurídicas, cuja parte integrante da relação
contratual é o Estado, deve haver o formalismo necessário a fim de “dar maior proteção
ao interesse público que sempre deve estar no âmago das condutas administrativas”,
lembra José Carvalho dos Santos Filho (2022, p. 149). Nesta linha, o autor considera
como gênero contratos da Administração Pública “todos aqueles ajustes em que o Estado
está presente como parte contratante” (2022, p. 150), seja com pessoa física ou jurídica,
para “a consecução de fins públicos, segundo regime jurídico de direito público”. (Di
Pietro, 2022, p. 556)
Não obstante o regime de direito público ou de direito privado que permear o
contrato envolvendo a Administração Pública, fato é que adentrar a temática dos
contratos requer a delimitação de certos conceitos, a fim de evitar confusões sintáticas e
semânticas. Por exemplo, se o contrato traz em sua gênese obrigações e direitos mútuos,
seria apropriado falar em contrato de convênio ou ambos os termos são contraditórios?14
E qual a fonte jurídica apta a albergar os regimes próprios de previdência social e a
promoção de direitos fundamentais do segurado, fontes de nosso estudo? É o que
veremos a seguir.

3.1 Contrato administrativo versus convênio: qual o instrumento tem melhor


aplicação ao RPPS para promoção de direitos fundamentais ao segurado?

Contrato administrativo é conceituado por Carvalho Filho (2022, p. 152) como


“um ajuste firmado entre a Administração Pública e um particular, ou entre dois entes
públicos, regulado basicamente pelo direito público e supletivamente pelo direito privado,
e tendo por objeto atividade que, de alguma forma, traduza interesse público”. Já para
Dirley da Cunha Júnior (2015, p. 516), conceitua contrato administrativo como “o ajuste
que a Administração Pública, agindo com supremacia e prerrogativas públicas, celebra
com o particular para a realização dos objetivos de interesse público, nas condições
fixadas pela própria Administração Pública”.
A base constitucional para a realização de contratos pela Administração Pública

escolha de categoria jurídica e de estruturação do conteúdo eficacial das relações jurídicas respectivas,
quanto ao seu surgimento, permanência e intensidade no mundo jurídico”. (p. 233)
14
Importante a delimitação porque há autores que sustentam não existir contrato administrativo quando
realizado o ajuste com o particular. Sobre esta corrente (defendida, entre outros, por Oswaldo Aranha
Bandeira de Mello), Maria Sylvia Zanella Di Pietro assevera “que o contrato administrativo não observa
o princípio da igualdade entre as partes, o da autonomia da vontade e o da força obrigatória das
convenções, caracterizadores de todos os contratos. Com relação ao primeiro, afirma-se não estar
presente porque a Administração ocupa posição de supremacia em relação ao particular. Quanto à
autonomia da vontade, alega-se que não existe quer do lado da Administração, quer do lado do particular
que com ela contrata: a autoridade administrativa só faz aquilo que a lei manda (princípio da legalidade)
e o particular submete-se a cláusulas regulamentares ou de serviço, fixadas unilateralmente pela
Administração, em obediência ao que decorre da lei. Mesmo com relação às cláusulas financeiras, que
estabelecem o equilíbrio econômico no contrato, alegam os adeptos dessa teoria que não haveria, nesse
aspecto, distinção entre os contratos firmados pela Administração e os celebrados por particulares entre
si”. (2019, p. 557)

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decorre do art. 37, XXI, da Constituição Federal, em que obras, serviços, compras e
alienações serão contratados mediante licitação. Aos regimes próprios de previdência
social, por existirem especialmente como autarquias (administração pública indireta),15
a autonomia administrativa não lhes retira a obrigação de contratar mediante licitação, o
que ocorrerá normalmente com as assessorias jurídicas, técnicas, contábeis e de gestão,
por exemplo ou construção de imóvel sede de funcionamento para o próprio RPPS. No
entanto, tais serviços e obras ainda não atingem a finalidade para além da estrutura
mínima que deve ter o Instituto de Previdência, ainda não gerando impactos positivos
adicionais na vida dos segurados.
Em outra categoria, encontram-se os convênios, os quais não constituem
modalidade de contrato, mas “avença ou ajuste entre entidades de direito público de
natureza e nível diversos ou entidade públicas ou privadas para a realização de objetivos
de interesse comum, mediante mútua colaboração”. (Cunha Jr, 2015, p. 543)
Para Di Pietro (2019, p. 698):

o convênio não constitui modalidade de contrato, embora seja um dos


instrumentos de que o Poder Público se utiliza para associar-se com ou-
tras entidades públicas ou com entidades privadas. Define-se o convê-
nio como forma de ajuste entre o Poder Público e entidades públicas ou
privadas para a realização de objetivos de interesse comum, mediante
mútua colaboração. O convênio tem em comum com o contrato o fato de
ser um acordo de vontades. Mas é um acordo de vontades com caracte-
rísticas próprias.

Inicialmente, a autora define o convênio com acordo de vontades com


características próprias, notadamente porque embora seja construído de forma bilateral,
há uma mútua colaboração, ao invés de obrigações e direitos recíprocos. Ou seja,
no contrato há “interesses opostos e contraditórios”, afirma Di Pietro (2019, p. 698),
enquanto no instrumento de convenial, as partes procuram objetivos comuns, não de
forma antagônica, mas em conjunto (p. 698-699).
A Constituição Federal preconiza no art. 241 que a “União, Estados, Distrito
Federal e Municípios disciplinarão por lei os consórcios públicos e os convênios de
cooperação entre os entes federados...”16. De antemão, percebe-se que o constituinte
deixou ao legislador ordinário a tarefa de traçar as diretrizes básicas sobre a realização
de convênios, o que coube à lei nº 8.666/93 em seu art. 11617 fazer incidir seus preceitos,
15
Devemos lembrar existirem outros modelos jurídicos-existenciais. Camila Simão Costa aduz que
“conforme entendimento a que chegaram os participantes do “Encontro Técnico dos Tribunais de Contas
do Brasil”, os RPPS podem ser organizados de acordo com os seguintes modelos: Fundo Especial;
Atividade Centralizada na administração direta (operacionalização a cargo de uma Secretaria, observadas
as normas regentes); descentralização por meio de Autarquia ou Fundação Pública” (Costa, 2018).
16
Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os
consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão
associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal
e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.
17
Art. 116.  Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros
instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração. Importante lembrar que o

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quando possível. No parágrafo 1º, o comando normativo expunha a prévia aprovação


do plano de trabalho pela organização interessada, além de conter um mínimo de
informações, como identificação do objeto, metas, etapas, plano de aplicação dos
recursos, cronograma e previsão de início e fim, especialmente.
No entanto, a lei nº 8.666/93 foi revogada pela 14.133/21, a qual trouxe no art. 53,
parágrafo 4º, os termos “convênio”, “termo de cooperação”, “ajustes”, “acordos” e ainda
“outros instrumentos congêneres” quando trata do controle prévio de legalidade pela
assessoria jurídica. A amplitude de termos linguísticos utilizada pelo legislador certamente
procurou evitar que qualquer instrumento bilateral que envolvesse a Administração
Pública e outro ente, público ou privado, ficasse sem amparo jurídico. Ao final, em seu
art. 18418, volta a tratar da incidência, no que couber, da citada lei a tais espécies de
ajustes.
Não é objetivo deste estudo se aprofundar nas terminologias, embora seja
prudente consignar que nos convênios podem haver transferências de recursos ou
podem não haver, de acordo com o entendimento da Associação Nacional dos Membros
do Ministério Público. Relembram, ainda, o Parecer nº 15/2013/AGU/PGF ao utilizar o
termo “acordo de cooperação”19 quando haja convergência de interesses, mas inexista
transferência de recursos entre entes da Administração Pública ou entre estes e entes
privados.
Ao aplicar tais diretrizes sobre os regimes próprios de previdência social, poder-
se-ia concluir pela possibilidade de utilização tanto dos convênios quanto dos acordos
de cooperação (além dos contratos administrativos, obviamente) como instrumentos de
promoção de direitos dos segurados.
O problema reside na manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial. Os contratos
administrativos trazem onerosidade à autarquia, e somente a promoção exclusiva de
direitos20 poderia soar irresponsavelmente um ato de improbidade para o Tribunal de
Contas ao realizar o controle devido. Por sua vez, utilizar-se do fundamento de capacitação
técnica com o objetivo de se pagar com a taxa administrativa seria aplicável somente ao
corpo funcional do RPPS, deixando-se de fora os segurados.21
Quanto aos convênios, se houver transferência de valores, o rigor de controle
técnico pela assessoria jurídica do RPPS deve permear todo o processo bilateral
criado, bem como a garantia de publicidade, como forma de garantir a impessoalidade

art. 38, parágrafo único, exigia a análise e aprovação pela assessoria jurídica.
18
Art. 184. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber e na ausência de norma específica, aos
convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da
Administração Pública, na forma estabelecida em regulamento do Poder Executivo federal.
19
O objetivo é ter “o cuidado em não se utilizar o significante “termo de cooperação”, de modo a evitar
que fosse confundido com o congênere então disciplinado no Decreto nº 6.170/2007, que apresentava
contornos de onerosidade. Com isso, convênios e contratos de repasse passaram a ser utilizados no
âmbito federal apenas quando há transferências de recursos entre os participantes”. Disponível em: bit.
ly/3VUkpbD. Acesso em 27 fev. 2024.
20
Aqui aplicamos o termo “exclusivo” porque o próprio corpo técnico contratado pelo RPPS também traz
benefícios aos segurados. Porém, consideramos benefícios obrigacionais básicos, ausentes da categoria
“promocionais”.
21
Veremos de forma mais específica no capítulo 4.

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na Administração Pública e evitar tentativas de autopromoção por agentes públicos,


principalmente quando se tem como concedente a União.
Os acordos de cooperação22 seriam, à primeira vista, os mais desejáveis, já que
não envolvem onerosidade entre as partes, destacando-se aqueles realizáveis entre a
Administração Pública e Organizações da Sociedade Civil (OCS), de acordo com os
ditames da lei nº 13.019/201423. Contudo, nesta espécie se torna importante observar
quais os reais benefícios aos segurados, sob pena de criar relações jurídicas inúteis à
Administração Pública. Em resumo, há de se buscar o binômio custo-benefício.
Logicamente, a identificação dos direitos fundamentais e sociais mais necessários
indicará a modalidade a ser concretizada pelos RPPS.

4 PERSPECTIVAS PÓS EMENDA Nº 103/2019 E A LIMITAÇÃO DE UTILIZAÇÃO DA


TAXA ADMINISTRATIVA

Com a publicação da Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019,


tivemos inúmeras alterações no sistema previdenciário, desde mudança de alíquota até
regras sensíveis para concessão de benefícios. No regime próprio tivemos o decote de
outros benefícios que antes eram concedidos, tais como salário maternidade, auxílio-
reclusão, auxílio-doença (hoje denominado de auxílio por incapacidade). Restaram
apenas as aposentadorias e pensões como únicos benefícios possíveis de concessão,
de acordo com o art. 9º, § 2º, da Emenda 103.24
De início, percebe-se do constituinte derivado a preocupação com a saúde financeira
dos RPPS em todo o país. De acordo com o Ministério da Previdência Social, tratando-se
de débitos originais de acordos de parcelamentos nos municípios, temos 12.708 (doze
mil setecentos e oito) mil parcelamentos, dos quais 6.232 foram aceitos, totalizando
R$ 24.747.447.039,65 (vinte e quatro bilhões, setecentos e quarenta e sete milhões,
quatrocentos e quarenta e sete mil, trinta e nove reais e sessenta e cinco centavos).
Quantos aos Estados, 67 parcelamentos (aceitos) e mais de 2 bilhões de reais.25
O CRP – certificado de regularidade previdenciária de vários Estados da Federação
somente foram regularizados nos últimos dois anos. Outros ainda possuem via judicial,
enquanto alguns sempre mantiveram administrativamente.26 Diante do cenário, o
Ministério da Previdência Social emitiu a Portaria nº 185, de 14 de maio de 2015, cujo
finalidade era instituir programa de certificação institucional da gestão dos RPPS, o
chamado “pró-gestão”.

22
Não focamos em nosso artigo as espécies termo de cooperação e de fomento, introduzidas pela lei nº
13.019/2014, e cujos requisitos para elaboração se apresentam no art. 35 da citada lei.
23
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:
VIII-A - acordo de cooperação: instrumento por meio do qual são formalizadas as parcerias estabelecidas
pela administração pública com organizações da sociedade civil para a consecução de finalidades de
interesse público e recíproco que não envolvam a transferência de recursos financeiros;
24
§ 2º O rol de benefícios dos regimes próprios de previdência social fica limitado às aposentadorias e à
pensão por morte.
25
Disponível em: https://encurtador.com.br/O6U61. Acesso em 18 fev. 2024.
26
Para conferir a situação de cada Estado, acessar o link do Ministério da Previdência Social: https://
encurtador.com.br/8iOCl. Acesso em 18 fev. 2024.

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Nos termos do art. 2º da referida portaria, o objetivo é incentivar os RPPS a


“adotarem melhores práticas de gestão previdenciária, que proporcionem maior controle
dos seus ativos e passivos e mais transparência no relacionamento com os segurados
e a sociedade”. Não é novo este cenário em decadência por que passaram os regimes
próprios e a previdência como um todo.
Como bem lembra Theodoro Agostinho (2022, p. 467), já na década de 80, “o
FMI e o Banco Mundial começaram a condicionar seus empréstimos para ajustes
estruturais à reforma da previdência (como na Costa Rica e no Uruguai) ...”. O autor
vê com preocupação as perspectivas previdenciárias com as reformas introduzidas,
pois ainda não atingimos a universalidade de atendimento pretendida quanto à “massa
trabalhadora” (p. 468).
Defende, ainda, que o financiamento do sistema de proteção social deve
ser ajustado, abandonando-se, por exemplo, o custeio patronal em detrimento das
contribuições sobre o capital, tal como na antiga CPMF, o que permitiria atingir o “mercado
informal e o capital especulativo”, além do que possibilitaria equitativa participação das
empresas, notadamente os bancos e instituições financeiras. (p. 469)
É de se concordar com o autor que a universalidade de atendimento ainda não foi
resolvida, bem como os problemas de déficit financeiro e atuarial estão longe de cessar,
principalmente quando vimos anteriormente os dados sobre acordos de parcelamento.
Contudo, quando se fala em “novas perspectivas” ou “nova previdência”, a maior parte
da doutrina tende a se resumir em tratar somente assuntos técnicos como valor dos
benefícios, regras de transição, alíquota de contribuição, previdência complementar,
entre outros assuntos correlatos.
O bem mais precioso por trás dos números é a pessoa ou segurado (aposentado
ou pensionista), cuja dignidade humana repousa em sua titularidade. A contraprestação
pelo trabalho prestado não deve se resumir ao valor monetário que se expressa quando
do pagamento mensal do benefício. O Estado deve promover direitos sociais de forma
equilibrada, mas sem se isentar de tal responsabilidade.
No regime próprio de previdência social, a taxa administrativa não comporta a
possibilidade legal de concretizar tais ações. Os regimes próprios de previdência social
possuem a chamada taxa administrativa ou de administração para custear as despesas
internas referentes ao funcionamento do respectivo RPPS. As normas gerais se encontram
dispostas na lei nº 9.717/98,27 a qual, por sua vez, deve obediência hierárquica à CF/88. Há,
ainda a Portaria MTP nº 1.467, de 02 de junho de 2022, a qual disciplina no art. 83: “É vedada
a utilização de recursos previdenciários para custear ações de assistência social ou de saúde,
e para concessão de verbas indenizatórias, ainda que decorrentes de acidente em serviço”.

27
Art. 1º Os regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal deverão ser organizados,
baseados em normas gerais de contabilidade e atuária, de modo a garantir o seu equilíbrio financeiro e
atuarial, observados os seguintes critérios:
III - as contribuições e os recursos vinculados ao Fundo Previdenciário da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios e as contribuições do pessoal civil e militar, ativo, inativo, e dos pensionistas,
somente poderão ser utilizadas para pagamento de benefícios previdenciários dos respectivos regimes,
ressalvadas as despesas administrativas estabelecidas no art. 6º, inciso VIII, desta Lei, observado os
limites de gastos estabelecidos em parâmetros gerais;

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À União, Estados, Distrito Federal e Municípios cabem respeitar limites gerais


previamente estabelecidos quanto à taxa de administração que servirá de parâmetro
para regular o gasto com as despesas internas, de acordo com art. 6º, VIII, da lei nº
9.717/9.28
Assim, ganham relevo as ações públicas tendentes a firmar convênios, contratos
ou acordos de cooperação que possam levar aos segurados serviços públicos e privados
antes inacessíveis. Na área da saúde, educação, esporte, assistência social, cultura e
lazer, os RPPS podem realizar ajustes com os próprios entes federativos a que estejam
vinculados, extraindo ao máximo os serviços que deles possam ter.
Sabrina Poveda Verne (2022, p. 277), ao tratar do Pró-Gestão, afirma que um de
seus pilares é a Educação Previdenciária, a qual:

[...] abrange um conjunto de ações de capacitação, qualificação, treina-


mento e formação específica ofertadas aos servidores públicos do ente
federativo, da unidade gestora do RPPS, aos segurados e beneficiários
em geral (servidores ativos, aposentados e pensionistas), aos gestores
e conselheiros e aos diferentes profissionais que se relacionam ou pres-
tam serviços ao RPPS, além da divulgação dos resultados da gestão do
RPPS.
As ações deste Pilar estão relacionadas diretamente à melhoria da qua-
lidade de vida dos segurados, como promoção à saúde, prevenção de
doenças, educação financeira, planejamento e transição para a aposen-
tadoria, vida durante a aposentadoria e envelhecimento ativo.

A autora parte da perspectiva pré-aposentadoria, mas é simples de se verificar


que a promoção dos serviços por ela elencados são contínuos, logo ultrapassam a mera
transição ao status de aposentado ou pensionista. Devem, ao contrário, ser fornecidos
cotidianamente pelos regimes próprios, sob pena de engessamento da responsabilidade
estatal em promover estas ações e como requisito para manutenção da própria certificação
no Pró-Gestão.
Nessa perspectiva, entendemos por uma necessária flexibilização da taxa de
administração para possibilitar o RPPS promover tais ações, as quais não deixam de ser
consideradas despesas públicas legais e fundamentadas em sentido estrito, dada sua
singularidade (Christopoulos, 2011, p. 70).29 Em suma, o direito fundamental individual e
de exercício prestacional na sociedade deve ser promovido continuamente, cabendo ao
Legislativo Municipal, em especial, regular o alcance dos serviços abrangidos e ao RPPS

28
Art. 6º Fica facultada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, a constituição de
fundos integrados de bens, direitos e ativos, com finalidade previdenciária, desde que observados os
critérios de que trata o artigo 1º e, adicionalmente, os seguintes preceitos:
VIII - estabelecimento de limites para a taxa de administração, conforme parâmetros gerais;
29
O Autor considerada a despesa pública um fenômeno complexo para ser definido unicamente como
gasto público. É preciso singularizar a aplicação pelo ente estatal. Assim, classifica as despesas públicas
em três critérios, a partir das lições de Ferreiro Lapatza: econômico, pilar do funcionamento do Estado;
funcional, quando se perquire a “finalidade do Estado que o gasto atende”; e orgânico, o mais importante,
ao indicar quem pode realizar o gasto. (p. 71-72)

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concretizá-lo por meio de gestão responsável, fincada em pilares como a Educação


Previdenciária.30

5 CONCLUSÃO

Durante os estudos elaborados, foi possível concluir:


a) O indivíduo tem uma esfera inalienável, imprescritível e inviolável de dignidade
humana, a qual deve ser assegurada pela garantia do mínimo existencial a ser oferecido
pelo Estado;
b) O princípio do equilíbrio financeiro e atuarial, estatuído no art. 40 da
Constituição Federal como pilar dos regimes próprios de previdência social, não pode
ser considerado obstáculo à promoção de direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, especificamente o segurado aposentado/pensionista, haja vista tais direitos
estarem positivados em nossa Constituição e atingirem um espectro maior de aplicação,
não somente circunscrito à relação onerosa de recebimento do benefício;
c) Os instrumentos de parceria, tais como contratos administrativos, convênios
e acordos de cooperação devem ser potencializados como alternativa dos RPPS em
promover ações afirmativas dos direitos fundamentais dos segurados;
d) Após a Emenda Constitucional nº 103/2019, os instrumentos de parceria se
tornaram essenciais à promoção dos direitos fundamentais dos segurados, abrindo-se
janelas de aplicabilidade com a “flexibilidade” da taxa de administração e concretização
do Pró-Gestão para atendimento da despesa pública permitida em lei, atendidas todas
as diretrizes financeiras, atuariais e contábeis.

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gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 fev. 2024

BRASIL. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Estabelece o regime jurídico das


parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em
regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e
recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos
em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou
em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração

30
Para consulta ao Manual do Pró-Gestão, acessar: http://sa.previdencia.gov.br/site/2018/08/MANUAL-
DO-PRO-GESTAO-RPPS-VERSAO-FINAL-2018-03-21-COM-ANEXO-5-ALTERADO-ATUAL_v2.pdf.
Acesso em 27.02.2024.

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e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2


de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999. [Redação dada pela Lei nº 13.204,
de 2015]. Brasília, DF: Presidência da República, [2014]. Disponível em: https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13019.htm. Acesso em: 20 fev. 2024.

BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. [revogada]. Regulamenta o art. 37,


inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da
Administração Pública e dá outras providências. Brasília, DF, Presidência da República,
[1993]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso
em: 27 fev. 2024.

BRASIL. Lei nº 9.717, de 27 de novembro de 1998. Dispõe sobre regras gerais para a
organização e o funcionamento dos regimes próprios de previdência social dos servidores
públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos militares dos
Estados e do Distrito Federal e dá outras providências. Brasília, DF: Presidente da
República, [1998]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9717.htm.
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dos Municípios, em cumprimento à Lei nº 9.717, de 1998, aos arts. 1º e 2º da Lei nº 10.887,
de 2004 e à Emenda Constitucional nº 103, de 2019. Brasília, DF: Presidência da República,
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[Regime Judicial Previdenciário]

PODERES INSTRUTÓRIOS DO RELATOR NO PROCESSO JUDICIAL


PREVIDENCIÁRIO: SUPERANDO O DOGMA DA NULIDADE DA SENTENÇA

Renato Barth Pires1

Resumo
O artigo aborda o tema dos poderes instrutórios do relator no processo judicial
previdenciário, a partir da interpretação da regra do artigo 938, § 3º, do Código de
Processo Civil. Trata da instrumentalidade do processo, da efetividade da jurisdição
e do princípio da primazia da decisão de mérito. O artigo discute os males da
“interpretação retrospectiva”, técnica que busca desvendar o sentido e o alcance
do Código de 2015 fazendo uso de critérios válidos para o CPC de 1973. Conclui
pela necessidade de atribuir efetividade à regra do artigo 938, § 3º, do CPC/2015,
superando uma cultura judiciária que insiste em reafirmar o dogma da nulidade
da sentença. Não cabe mais determinar a anulação das sentenças em casos de
deficiência ou insuficiência probatória. Caberá ao Tribunal determinar a conversão do
julgamento em diligência para produzir a prova faltante, prosseguindo-se em seguida
com o julgamento do mérito do recurso. Não há limitação quanto ao tipo de prova que
pode ser produzido, podendo o relator deliberar se a prova será produzida no próprio
Tribunal ou em primeiro grau de jurisdição, caso em que será expedida uma carta de
ordem. A metodologia empregada no artigo é a pesquisa teórico-dogmática, além da
pesquisa jurisprudencial essencial para a solução do problema proposto.
Palavras-chave: Direito Processual Civil; Direito Previdenciário; Instrumentalidade; Efetividade.
Primazia da decisão de mérito; Poderes instrutórios do relator.

PRESIDING JUDGE’S INSTRUCTIONAL POWERS IN SOCIAL SECURITY


LAW CASES: OVERCOMING THE DOGMA OF NULLITY OF THE JUDGEMENT

Abstract
The article investigates the instructive powers of the presiding judge in the social
security judicial cases, based on the interpretation of the rule of article 938, paragraph
3, of the Code of Civil Procedure (CPC/2015). It deals with the instrumentality of
the process, the effectiveness of the jurisdiction and the principle of primacy of the
decision on the merits. The article also discusses the “retrospective interpretation”,
a technique that seeks to unravel the meaning and scope of the 2015 Code using
valid criteria for the 1973 CPC. It concludes by the need to attribute effectiveness to
the rule of article 938, paragraph 3, of CPC/2015, overcoming a judicial culture that
insists on reaffirming the dogma of nullity of the sentence. It is no longer possible
to determine the annulment of sentences in cases of deficiency or insufficiency of

1
Graduado, Mestre e Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/
SP). Professor da Faculdade de Direito da PUC/SP. Juiz Federal na Seção Judiciária de São Paulo. São
José dos Campos/SP, Brasil. E-mail: renatobp@uol.com.br.

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evidence. It will be up to the presiding judge in the Court (or the competent collegiate
organ), to determine the conversion of the judgment into a diligence to produce the
evidence, proceeding then with the judgment of the merits of the appeal. There is
no limitation on the kind of evidence that can be produced in this procedure, and the
presiding judge can decide whether the evidence will be produced in the Court itself
or in the first degree of jurisdiction. The methodology used in the article is theoretical-
dogmatic research, in addition to essential jurisprudential research for the solution of
the proposed problem.
Keywords: Procedural Civil Law; Social Security Law; Instrumentality of the judicial process;
Effectiveness of jurisdiction; Principle of primacy of the decision on the merits; Presiding judge’s
instructional powers.

1 INTRODUÇÃO

Um dos importantes desafios do exercício da função jurisdicional é a sua


efetividade. Trata-se de um verdadeiro dogma constitucional, que decorre dos princípios
da proteção judicial efetiva e da razoável duração do processo (artigo 5º, XXV e LXXVIII,
da Constituição Federal de 1988). Também no plano do direito internacional dos direitos
humanos tais valores têm sido proclamados, nos diferentes sistemas de proteção2.
O Código de Processo Civil de 2015 foi editado sob inspiração desse “modelo
constitucional do Direito Processual Civil” (na feliz expressão de Bueno [2022]) e
incorporou diversas normas que têm na sua origem essa mesma premissa de viabilizar
uma jurisdição efetiva. Isto é revelado, desde logo, pelas “normas fundamentais do
processo civil” (artigos 1º a 12), dentre as quais a que estabelece que “as partes têm
o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade
satisfativa” (artigo 4º).
É claro que tais objetivos precisam ser acrescidos de regras procedimentais que
viabilizem sua concretização. De fato, nada adiantaria proclamar um direito abstrato à
efetividade se as regras procedimentais fossem incapazes de levar a essa resolução
efetiva.
Muito embora as soluções de consenso próprias dos debates legislativos nem
sempre reafirmem aqueles objetivos, é inegável que o Código tem várias regras instituídas
com o propósito específico de impedir que o processo seja considerado um fim em si
mesmo e dissociado de sua finalidade, que é o acertamento da relação jurídica de direito
material.
Ocorre que nem sempre tais determinações do Código encontram ressonância
concreta na prática forense. Ou seja, a regra processual existe, tem eficácia jurídica, mas
raramente é incorporada ao cotidiano de juízos e tribunais. O problema é, portanto, de
falta de efetividade (ou eficácia social): uma regra procedimental destinada a prover a
jurisdição efetiva peca, ela própria, pela falta de efetividade.

2
A garantia de proteção judicial efetiva está prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigos
8º e 10), no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (promulgado pelo Decreto nº 592/1992 –
artigos 2º, número 3, e 14, número 1) e também na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto
de San José da Costa Rica – promulgado pelo Decreto nº 678/1992 – artigos 8 e 25).

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A falta de efetividade de regras procedimentais é ainda mais problemática nos


casos em que o direito material em discussão é um direito fundamental, como é o caso
do direito fundamental à seguridade social, em suas diferentes dimensões (saúde,
previdência social e assistência social), todas enunciadas no artigo 6º da Constituição
Federal. Como sabido, as relações jurídicas que se estabelecem nessas áreas envolvem
normalmente uma parte hipossuficiente (segurados, dependentes e assistidos), tanto do
ponto de vista econômico como também jurídico. O processo judicial inefetivo, nestes
casos, agrava essa hipossuficiência.
A proposta deste estudo é examinar uma dessas regras procedimentais, inserida no
artigo 938, § 3º, do Código de Processo Civil, que diz respeito aos poderes instrutórios
do relator, isto é, às suas iniciativas na produção de novas provas, nos feitos que
tramitam em grau de recurso. Pretende-se extrair a interpretação correta a ser dada
a esse dispositivo legal e analisar as razões pelas quais não tem sido concretamente
aplicado nas ações judiciais envolvendo benefícios previdenciários e assistenciais.

2 INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO, O PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA


DECISÃO DE MÉRITO E A “INTERPRETAÇÃO RETROSPECTIVA” DO CPC/2015

O tema da instrumentalidade do processo é objeto de antiga discussão doutrinária,


valendo referência, por todos, à clássica obra de Cândido Rangel Dinamarco (2013),
lançada antes mesmo da Constituição Federal de 1988. O autor indica que a ideia
de instrumentalidade tem um aspecto positivo, na concepção de um processo apto à
concretização de seus escopos social, político e jurídico. Mas também há, inegavelmente,
um aspecto negativo, relacionado com uma excessiva preocupação com requisitos
formais e que impedem que o processo alcance suas finalidades, ou que se dê ênfase
exagerado ou desproporcional a um desses escopos, em detrimento dos demais.
Enfim, embora seja certo que o respeito às regras de procedimento seja elemento
concretizador da segurança jurídica (que é um direito individual – artigo 5º, “caput”, da
Constituição Federal de 1988), não é possível aplicar tais regras de modo inflexível e
sem um olhar para a finalidade última do processo, que é viabilizar a tutela do direito
material em discussão.
Tais noções foram claramente incorporadas pelo Código de Processo Civil de
2015, que além de construir uma teoria das nulidades do processo adequada a essas
finalidades, alberga um conjunto de regras que resultam no que vem sendo denominado
por alguns autores como o princípio da primazia da decisão de mérito (Câmara,
2015)3.
Assim, por exemplo, o CPC determina que o juiz não deverá reconhecer uma
nulidade se puder julgar o mérito em favor de quem aproveite a declaração dessa nulidade

3
Cássio Scarpinella Bueno (2022) descarta tal expressão, aduzindo que “Não há tal primazia, que reside,
isto sim, na atividade, verdadeiro dever-poder do magistrado de estimular os sujeitos do processo para
superar o vício para prosseguimento do processo em direção ao ‘julgamento de mérito’, isto é, à definição
de quem faz jus à tutela jurisdicional. O proferimento de um tal julgamento é a razão de ser do Estado-juiz
e, em última análise, de todo o sistema processual civil; a higidez do processo (e do exercício do direito
de ação) é meio para chegar a ele. Aqui também importa lembrar que não há como confundir causa com
consequência; prius com posterius”.

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(artigo 282, § 2º). Trata-se de uma completa quebra de paradigmas: uma nulidade que
faria o procedimento retroceder não será reconhecida se o juiz já tiver elementos para
decidir favoravelmente àquela parte. A mesma ideia vem contemplada no artigo 488: o
juiz não deverá decidir sem resolução de mérito se tiver elementos para julgar o mérito
em favor daquele a quem aproveitaria aquela extinção. O Código também determina que,
antes de proferir decisão sem resolução de mérito, o juiz deva dar à parte oportunidade
para corrigir o vício (se isso for possível) – artigo 317. Estabelece, além disso, que o
relator deverá conceder um prazo de cinco dias para sanar vício ou complementar a
documentação, antes de proferir decisão considerando inadmissível o recurso (artigo
932, parágrafo único), etc.
Há, assim, um conjunto de regras inspiradas pela mesma principiologia: interessa
ao “modelo constitucional do direito processo civil” o acertamento da relação jurídica de
direito material, em prazo razoável. Cabe ao juiz adotar as medidas que estiverem a seu
alcance para que tal finalidade seja alcançada, o que exige, inclusive, que se desvista
de concepções pré-Código, em particular daquelas que estão arraigadas a uma cultura
judiciária que foi (e precisa ser) superada pela alteração da lei.
Deve-se afastar, portanto, aquilo que vem sendo chamado pela doutrina
constitucional de interpretação retrospectiva, isto é, a tentativa de interpretar a
Constituição atual com os mesmos olhares que se dirigiam à Constituição revogada. A
respeito deste tema, ensina Luís Roberto Barroso:

Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitu-


cional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura
interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao
revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo. Com argúcia e
espírito, José Carlos Barbosa Moreira estigmatiza a equivocidade des-
sa postura: “Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as
diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a dis-
ciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade
mudou. É um tipo de interpretação [...] em que o olhar do intérprete di-
rige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é
menos a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica”
(Barroso, 2009).

Essa mesma linha de argumentação é válida para a interpretação do Código de


Processo Civil de 2015: não é possível interpretá-lo a partir da mesma principiologia do
Código de 1973, muito menos para afastar regras que resultam de uma opção político-
normativa muitíssimo clara4. Assim, deve-se desconfiar das “leituras herdadas”, não mais
afinadas com o sentimento de justiça e as expectativas contemporâneas da sociedade,
traduzidas na alteração da lei (Castro, 2015).
Foi o que ocorreu, segundo pensamos, com a interpretação dada pelo STJ às
hipóteses de cabimento do agravo de instrumento (Tema 988: RESPs 1.704.520 e

4
Com interessantes observações a respeito da interpretação retrospectiva quanto às atribuições do
Ministério Público no processo civil, Godinho (2015). Também sobre o tema da interpretação retrospectiva
do CPC/2015 (Zaneti JR., 2021).

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1.696.396, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 19.11.2018). Embora o CPC tenha incorporado
com clareza a taxatividade das decisões impugnáveis por agravo de instrumento (como
decorre dos artigos 1.015 e 1.009), o Tribunal entendeu que “o rol do art. 1.015 do CPC é
de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando
verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de
apelação”. Como já observamos anteriormente, as imperfeições ou a insuficiência do
regime legal do agravo de instrumento, estabelecidas pelo CPC de 2015, devem ser
corrigidas por meio de uma alteração legislativa. Há, de fato, decisões interlocutórias que
precisam ser imediatamente recorríveis, como as que envolvem declínio de competência,
sob pena de causar às partes um prejuízo de difícil reparação. Mas a correção desses
equívocos do CPC deve ser feita por meio de lei, não por interpretação judicial (PIRES,
2023).
Esta interpretação retrospectiva também tem ocorrido, em causas previdenciárias,
quanto à aplicação da Súmula 111 do STJ (“Os honorários advocatícios, nas ações
previdenciárias, não incidem sobre as prestações vencidas após a sentença”). A
orientação da referida Súmula é incompatível com o CPC de 2015, que instituiu um
regramento totalmente novo para o arbitramento de honorários de advogado nas causas
em que a Fazenda Pública é parte. As disposições contidas no artigo 85, § 3º impedem
que se possa tomar as prestações vencidas até a sentença como base de cálculo dos
honorários. Os honorários devem tomar em conta, nos termos do CPC, a “condenação”
ou o “proveito econômico” decorrente da sentença. O tema é de típico de overruling (ou
overriding), na medida em que, alterada a regra processual que deu origem à súmula,
o entendimento ali fixado deve ser também superado (artigo 489, § 1º, VI, do CPC)5.
A despeito disso, encontram-se na jurisprudência inúmeros julgados que mantêm a
aplicação da Súmula, mesmo depois da vigência do CPC/20156.
A interpretação retrospectiva também é resultado de certo descontentamento ou
inconformismo dos julgadores com as soluções fixadas pelo legislador, como também
ocorreu no caso dos honorários de advogado fixados por equidade nas causas em que
a Fazenda Pública é parte. A questão já tinha sido resolvida pela Corte Especial do STJ,
também na sistemática dos recursos especiais repetitivos (Tema 1.076)7. Poucos meses

5
Sobre o tema da superação de precedentes judiciais, Figueiredo (2020).
6
No STJ, AgInt no RESP 1.935.142/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe de 07.10.2021;
AgInt nos EDcl no RESP 1.913.756/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe de 20/8/2021; AgInt
no RESP 1.899.889/PR, Rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turma, DJe de 15.6.2021. TRF 3ª Região,
ApCiv 5032754-26.2021.4.03.9999, Rel. Des. Federal Toru Yamamoto, DJe 13.10.2022; ApelRemNec
5040464-63.2022.4.03.9999, Rel. Des. Federal Leila Paiva Morrison, DJe 10.10.2022; TRF 5ª Região,
ApelReex 0001383-80.2018.4.05.9999, Rel. Des. Federal Élio Wanderley de Siqueira Filho, DJ 28.11.2018;
AC 0002218-68.2018.4.05.9999, Rel. Des. Federal Edilson Nobre, DJ 08.02.2019. O STJ, reexaminado
essa questão na sistemática dos recursos especiais repetitivos, fixou a seguinte tese: “Continua eficaz e
aplicável o conteúdo da Súmula 111/STJ (com a redação modificada em 2006), mesmo após a vigência
do CPC/2015, no que tange à fixação de honorários advocatícios” (Tema 1.105, RESPs 1.883.715 e
1.883.722/SP, Rel. Min. Sérgio Kukina, DJe 27.3.2023). Persiste, portanto, com os efeitos previstos no
artigo 927, III, do CPC, a citada “interpretação retrospectiva”.
7
As teses fixadas foram as seguintes: “i) A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida
quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem elevados. É
obrigatória nesses casos a observância dos percentuais previstos nos §§ 2º ou 3º do artigo 85 do CPC - a

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depois do julgamento, todavia, a 3ª Turma deliberou afetar novamente tal questão à


Corte Especial e, com a devida vênia, sem que tenha sido realizada a “fundamentação
adequada e específica” a que alude o artigo 927, § 4º do CPC8. A Lei nº 14.365/2022, ao
acrescentar os §§ 6º-A e 8º-A ao artigo 85 do CPC, reforçou aquilo que já se podia extrair
da redação original do Código, sinalizando que realmente não estavam presentes razões
que justificassem a superação do entendimento antes firmado.
Em resumo, o intérprete do CPC deve fazer todos os esforços para resistir
à tentação de interpretar a nova lei a partir de uma visão pré 2015, assim como de
corrigir, pela via da interpretação, eventuais “defeitos” que possa encontrar nas opções
do legislador9.
Como também observado anteriormente, a própria estatura dos direitos materiais
em discussão (previdência e assistência social) indica a necessidade de uma interpretação
das regras processuais particularizada, muitas vezes superando a ortodoxia do processo
civil tradicional. O próprio Superior Tribunal de Justiça já adotou tal solução, na sistemática
dos recursos especiais repetitivos, ao reconhecer que, em matéria previdenciária, a
improcedência decorrente de falta de provas deve ser considerada como verdadeira
extinção do processo, sem resolução do mérito (Tema 629)10, autorizando que a ação
seja novamente proposta.

depender da presença da Fazenda Pública na lide -, os quais serão subsequentemente calculados sobre
o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa. ii)
Apenas se admite arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a)
o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito
baixo” (STJ, RESPs 1.850.512, 1.877.883, 1.906.623, 1.906,618, Corte Especial, DJe 31.5.2022).
8
“Art. 927 [...] § 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese
adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e
específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”. A
nova afetação foi determinada em 13.12.2022 nos RESPs 1.824.564 e 1.743.330, ambos de relatoria do
Ministro Moura Ribeiro.
9
Como ensina FERNANDEZ (1983) “a finalidade do processo é, precipuamente, assecuratória de uma
liberdade de atuação e do resguardo contra o arbítrio do Estado. Nenhuma interpretação de lei processual
será possível sem este ponto de referência básico, decorrente de princípio constitucional. Se existe um
preceito ou dispositivo de lei permitindo uma atuação da parte (interpor um recurso) e mesmo se, para
argumentar, esse preceito se afigura incompatível com uma interpretação sistemática da legislação
processual, não caberá nunca optar-se por interpretação ab-rogante, pois, no caso, estar-se-á diante de
regra de índole pública. Poder-se-á apontar a norma como inconveniente, eivada de atecnia, desatualizada
etc., sugerir sua modificação de lege ferenda, mas jamais furtar-se à sua aplicação”.
10
A tese firmada foi a seguinte: “A ausência de conteúdo probatório eficaz a instruir a inicial, conforme
determina o art. 283 do CPC, implica a carência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido
do processo, impondo sua extinção sem o julgamento do mérito (art. 267, IV do CPC) e a consequente
possibilidade de o autor intentar novamente a ação (art. 268 do CPC), caso reúna os elementos necessários
à tal iniciativa”. Os artigos citados são do CPC/1973 e correspondem aos artigos 320, 485, IV e 486 do
CPC/2015. Cremos que a admissibilidade da nova ação pressupõe a apresentação de provas novas, ou
da produção em juízo dessas novas provas.

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3 DOS PODERES INSTRUTÓRIOS DO RELATOR E A INTERPRETAÇÃO DO


ARTIGO 938, § 3º, DO CPC

O artigo 938, § 3º, do CPC, objeto deste estudo, estabelece que “reconhecida a
necessidade de produção de prova, o relator converterá o julgamento em diligência, que
se realizará no tribunal ou em primeiro grau de jurisdição, decidindo-se o recurso após a
conclusão da instrução”.
Como lembra Cássio Scarpinella Bueno (2017), trata-se de uma inovação
importante, dado que, na vigência do CPC/1973, a jurisprudência havia se consolidado
no sentido de que os tribunais não poderiam praticar atos de instrução processual. O
processo no tribunal seria, assim, “estritamente documental”.
O CPC de 2015 quebra esse paradigma do “processo documental” e dá aos relatores
poderes instrutórios, ou, se preferirmos, competências instrutórias, admitindo a
produção de provas mesmo em grau de recurso. Não por acaso o artigo 932, I, diz que é
de competência do relator “dirigir e ordenar o processo no tribunal, inclusive em relação
à produção de prova”. Portanto, o Código reafirma as competências do relator quanto à
produção de provas, quer se trate de uma ação de competência originária, quer se trate
de ação em grau de recurso.
Quatro observações são importantes a respeito desse preceito do artigo 938, §
3º, do CPC: a primeira delas é que a lei não restringe quais espécies de provas poderão
ser produzidas. Assim, deve-se admitir a possibilidade de produção de quaisquer das
provas típicas ou atípicas, isto é, tanto das provas expressamente previstas no CPC
(ata notarial, depoimento pessoal, confissão, exibição de documento ou coisa, prova
documental, prova testemunhal, prova pericial e inspeção judicial), como daquelas que,
ainda que não previstas de forma expressa, sejam “moralmente legítimas” (artigo 369 do
CPC).
A segunda observação diz respeito à forma pela qual tais provas serão colhidas:
diretamente no Tribunal ou em primeiro grau de jurisdição, determinando-se, neste
último caso, a expedição de carta de ordem (artigos 236, § 2º e 237 do CPC). Aqui, cabe
uma avaliação discricionária do relator, analisando a conveniência de adotar uma dessas
possibilidades, considerando as particularidades do caso concreto. Assim, por exemplo,
em processo judicial em que se pretenda um benefício previdenciário por incapacidade
(auxílio por incapacidade temporária ou aposentadoria por incapacidade permanente), é
razoável supor que uma prova pericial médica se realizará com mais rapidez e eficiência
na cidade de domicílio do periciando. Por outro lado, se a perícia exigir conhecimentos
de uma área médica muito específica ou incomum (por exemplo, uma perícia com um
geneticista para avaliar a presença ou o grau de uma deficiência), poderá ser muito difícil
encontrar naquela localidade um perito habilitado à produção dessa prova. Já uma prova
testemunhal, destinada à demonstração de tempo de atividade rural, de união estável ou
dependência econômica para fins previdenciários, poderá ser colhida tanto no domicílio
da testemunha como diretamente pelo Tribunal, com o uso dos recursos eletrônicos
(artigo 236, § 3º, do CPC), a critério do próprio Relator. A praxe forense recomenda
que tais aspectos sejam previamente avaliados, antes mesmo da prolação da decisão
determinando a realização da prova.
A terceira observação deriva de uma interpretação sistemática do CPC. O artigo

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938 está inserido no Livro III, Título I, Capítulo II, este denominado “da ordem dos
processos no Tribunal”. Dada a generalidade da regra, cremos que poderá ser adotada
em quaisquer instâncias recursais, inclusive pelos Tribunais Superiores. É certo que o
STF e o STJ estão vocacionados a resolver questões de direito, relativos à interpretação
da Constituição Federal e das leis federais, respectivamente. Mas diante da principiologia
legal que enfatiza a necessidade da solução de mérito, a produção da prova faltante,
mesmo naquelas instâncias extraordinárias, é fato que observa a mesma teleologia
normativa já citada11.
A quarta (e mais importante) observação diz respeito ao próprio conteúdo da
norma do artigo 938, § 3º, do CPC: como se vê, o Código fixa uma regra de conduta
imperativa (“o relator converterá”) e, nestes termos, não se trata de faculdade atribuída
ao relator12. Com isso, deve-se sepultar, definitivamente, aquela praxe forense arraigada
de anular a sentença, baixando os autos à instância de origem para a produção da prova
faltante e prolação de nova sentença.
É claro que o Relator poderá fazer um juízo a respeito da necessidade ou da
desnecessidade de produção de novas provas. Mas se entender que é necessária a
complementação do acervo probatório, não resta alternativa: deve determinar a produção
da prova (e não anular a sentença).
A falta de observância dessa regra do CPC é quase um lugar-comum nas causas
previdenciárias. A jurisprudência em causas previdenciárias e assistenciais reitera, já na
vigência do CPC/2015, o dogma da nulidade da sentença e a baixa dos autos para a
realização da prova faltante13.
Examinada à distância, tal solução parece ser correta e, ademais, é um
entendimento que leva a uma ideia de saneamento do processo, de correção de
nulidades e de preservação da integridade do procedimento. Aliás, tais julgamentos
invocam razões a que se pode aderir sem muito esforço. Afinal, fala-se em “restabelecer
a ordem processual e assegurar os direitos e garantias constitucionalmente previstos”,
concluindo que “os fins de justiça do processo restaram malferidos”, ou mesmo que a
“debilidade do conjunto probatório” deve ser afastada de molde a “preservar o valor da
justiça da prestação jurisdicional”14. É difícil discordar dessas premissas e conclusões.

11
O STJ tem entendido, em diversos julgados, que tal determinação envolveria o revolvimento de fatos
e provas, o que não seria admissível em recurso especial, por injunção da Súmula nº 7 (por exemplo,
AgInt no RESP 1.727.424/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 12.5.2022; RESP
1.818.454/SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 27.11.2019).
12
Em sentido contrário, aduzindo que se trata de faculdade do relator: STJ, RESP 1.845.542/PR, Rel.
Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 14.5.2021.
13
TRF 3ª Região: TRF 3ª Região, ApCiv 5001589-25.2017.4.03.6143, Rel. Des. Federal Therezinha Astolphi
Cazerta, DJe 16.12.2022; ApCiv 0005069-03.2019.4.03.9999, Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Delgado,
DJe 16.12.2022, ApCiv 5000584-03.2021.4.03.6183, Rel. Des. Federal Gilberto Rodrigues Jordan, DJe
15.12.2022, ApCiv 5011385-12.2020.4.03.6183, Rel. Des. Federal Newton de Lucca, DJe 15.12.2022;
TRF 1ª Região, AC 0001352-49.2015.4.01.3606, Rel. Des. Federal Rafael Paulo, DJe 05.9.2022, AC
0002067-72.2012.4.01.4002, Rel. Des. Federal Morais da Rocha, DJe 31.8.2022; TRF 4ª Região, AC
5010472-41.2020.4.04.7205, Rel. Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, DJe 11.10.2021.
14
TRF 3ª Região, ApCiv 0004950-96.2015.4.03.6114, Rel. Des. Federal Nelson de Freitas Porfírio Junior,
DJe 29.4.2022; ApCiv 5030672-85.2022.4.03.9999, Rel. Des. Federal Daldice Maria Santana de Almeida,
DJe 20.4.2022; ApCiv 5003955-07.2020.4.03.6119, Rel. Desembargadora Federal Leila Paiva Morrison,

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Mas a experiência forense mostra que, nas causas previdenciárias, a anulação da


sentença chega a assumir contornos dramáticos.
Como sabido, grande parte das ações judiciais envolvendo previdência e assistência
social é proposta por pessoas idosas e/ou doentes. Para estas pessoas, a anulação da
sentença e o retroceder no procedimento leva muitas vezes à indesejável necessidade
de habilitar os sucessores da parte que venha a falecer no curso do procedimento. Como
já anotamos anteriormente (PIRES, 2023), a habilitação de sucessores em razão da
morte da parte é uma exigência processual inafastável (artigos 110 e 313, §§ 1º e 2º do
CPC). Mas é claro que o ideal seria que o processo tivesse sido julgado definitivamente
ainda em vida e que o segurado pudesse fruir pessoalmente os efeitos da eventual
sentença de procedência do pedido.
Também é necessário considerar que a anulação da sentença, em muitas
situações, coloca as partes e o magistrado de origem em uma situação de perplexidade
e de muito difícil solução. Tome-se como exemplo a anulação da sentença motivada pela
falta da realização de uma perícia de engenharia de segurança do trabalho, que pudesse
atestar as reais condições de trabalho do segurado, descrevendo os possíveis agentes
nocivos a que tenha estado exposto, de modo a justificar a concessão da aposentadoria
especial (artigos 57 e 58 da Lei nº 8.213/91; artigo 40, § 4º-C e artigo 201, § 1º, II, da
Constituição Federal).
Em muitas situações, o indeferimento de tal perícia decorre de uma circunstância
prática das mais relevantes: trata-se de vínculo de emprego mantido décadas atrás e em
empresa que não está mais em atividade. Em tantas outras situações, a empresa ainda
existe, mas houve alterações significativas do ambiente de trabalho, decorrentes da
alteração do maquinário, layout, equipamentos de proteção coletiva, etc., que a perícia
jamais iria conseguir reconstituir com fidelidade as condições de trabalho existentes
na época da prestação de serviços. Em ambas as situações, pode-se afirmar que a
verificação pretendida era impraticável, o que autoriza o indeferimento da perícia, na
forma do artigo 464, § 1º, I, do CPC15.
É claro que ainda existem particularidades em casos concretos que podem
justificar a utilidade da perícia em casos assim. Afinal, é fato notório (artigo 374, I, do
CPC) que, com a evolução tecnológica, os ambientes de trabalho passaram a ser cada
vez menos agressivos, o que também foi resultado de um aprimoramento da legislação
e da fiscalização do ambiente de trabalho. Assim, por exemplo, uma perícia constatando
hoje que o ambiente de trabalho é muitíssimo ruidoso faz presumir que, décadas atrás,
o ruído era muito maior. De outro lado, não se descarta a possibilidade de que a perícia
seja realizada por similaridade, em ambiente de trabalho existente nos dias atuais e que
possa exprimir, por similitude, o ambiente efetivamente trabalhado pelo autor. Tudo isso
precisa ser devidamente ponderado no caso concreto e, em especial, precisa ser bem
pormenorizado na decisão que determina a realização da prova, quer por anulação da
sentença (como tem sido a praxe), quer também na adoção da diligência prevista no
artigo 938, § 3º, do CPC.
Assim, deve-se concluir que o acórdão que anula a sentença (ou a decisão

DJe 09.12.2022.
15
“O juiz indeferirá a perícia quando a verificação for impraticável”.

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interlocutória que converte o julgamento em diligência) fará as vezes de verdadeira


decisão de saneamento e organização do processo, da qual se exige “delimitar as
questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios
de prova admitidos” (artigo 357, II, do CPC).
A determinação de realização de perícia, portanto, deverá indicar o local, o objeto
e finalidade da prova. Deverá também atentar para certas particularidades decorrentes
do fato de a parte litigar sob os benefícios da gratuidade da Justiça. De fato, por força
do artigo 1º, § 1º, da Lei nº 13.876/2019 (com a redação da Lei nº 14.331/2022), “o
pagamento dos honorários periciais limita-se a 1 (uma) perícia médica por processo
judicial, e, excepcionalmente, caso determinado por instâncias superiores do Poder
Judiciário, outra perícia poderá ser realizada”. Tal limitação diz respeito aos casos em
que o INSS irá adiantar a remuneração do perito. Assim, ao determinar a produção de
perícias em três, quatro ou cinco empresas, caberá ao órgão julgador esclarecer como
se dará a remuneração do perito, considerando as limitações legais acima indicadas.
Se o Tribunal se limita a anular a sentença (ou a converter o julgamento em diligência),
tais questões precisarão ser resolvidas em primeiro grau. As decisões adotadas pelo
magistrado poderão ser impugnadas em grau de recurso, contribuindo ainda mais para
a demora na prestação jurisdicional definitiva.
Enfim, embora tais cautelas devam ser adotadas seja qual for a técnica utilizada
(anulação ou conversão em diligência), é indiscutível que a solução imposta pelo CPC
é a que decorre da regra clara do artigo 938, § 3º, do CPC. Como se viu, trata-se de
uma opção de política legislativa que deve ser prestigiada, em favor da efetividade do
processo judicial previdenciário.
Deve-se também observar que a conversão do julgamento em diligência está
também em harmonia com a técnica estabelecida no CPC para a recorribilidade das
decisões interlocutórias (ver, a respeito, o item 2 deste trabalho). Assim, mesmo se
adotada a tese firmada pelo STJ quanto à “taxatividade mitigada” das hipóteses de
cabimento do agravo de instrumento, eventual indeferimento da prova não irá autorizar,
ao menos necessariamente, a interposição do agravo de instrumento. De fato, não se
pode falar, propriamente, em “inutilidade” do julgamento da questão somente no bojo
da apelação, justamente pelo fato de caber ao relator determinar a produção da prova
faltante16. É claro que o fator “tempo” na colheita da prova é também importante, em
particular nas causas previdenciárias. As testemunhas do trabalho rural de um segurado
já idoso serão provavelmente pessoas de idade avançada. Aguardar o julgamento de
eventual apelação poderá tornar impossível a produção da prova, justificando o emprego
do agravo de instrumento. Cabe avaliar as particularidades do caso concreto, cumprindo
à parte prejudicada justificar cabalmente a inutilidade do julgamento somente em grau
de apelação, de modo a autorizar a impugnação da decisão por agravo de instrumento.
Acrescente-se que o § 4º do mesmo artigo 938 do CPC determina que a conversão

16
Nesse sentido, TRF 3ª Região, AI 5022266-36.2021.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal Luiz Paulo
Cotrim Guimarães, DJe 16.02.2022, AI 5010679-17.2021.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal Luiz
de Lima Stefanini, DJe 18.11.2021; TRF 5ª Região, AC 0003869-77.2014.4.05.9999, Rel. Des. Federal
Roberto Machado, DJe 24.8.2017; TRF 1ª Região, AC 0062374-48.2009.4.01.3500, Rel. Des. Federal
Olindo Menezes, DJe 08.02.2017.

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em diligência para produção de provas pode ser determinada pelo “órgão competente
para julgamento do recurso”. Assim, mesmo se o Relator propuser solução distinta,
a conversão em diligência poderá ser adotada pelo órgão fracionário que irá julgar o
recurso, inclusive em eventual agravo interno. Lembre-se que o artigo 932, VIII, do CPC,
contém uma cláusula de abertura, permitindo aos regimentos internos dos Tribunais
estabelecerem outras atribuições ao relator dos recursos. Contra tais decisões caberá o
agravo interno (artigo 1.021 do CPC).
Alguns julgados dos Tribunais Regionais Federais têm, acertadamente, determinado
a conversão do julgamento em diligência para a colheita de prova faltante, em particular
(mas não só) no processo judicial previdenciário17. Espera-se que tais julgados façam
incorporar à realidade forense a principiologia instituída pelo CPC/2015, tão (ou mais)
relevante quando da condução das causas previdenciárias.

4 CONCLUSÕES

Como visto nos itens precedentes, um dos desafios mais importantes do


exercício da função jurisdicional é a sua efetividade, dogma que decorre dos princípios
constitucionais da proteção judicial efetiva e da razoável duração do processo, assim
como de diferentes instrumentos do direito internacional dos direitos humanos.
O Código de Processo Civil de 2015 foi editado sob inspiração do modelo
constitucional do Direito Processual Civil, que incorpora o mesmo ideal de efetividade.
Tais objetivos precisam estar acompanhados de regras procedimentais que levem
a essa mesma efetividade. Algumas regras fixadas pelo CPC para concretizar tais
objetivos padecem de falta de efetividade (eficácia social). Dentre essas regras se
encontra, justamente, a do artigo 938, § 3º, do CPC, que estabelece que “reconhecida a
necessidade de produção de prova, o relator converterá o julgamento em diligência, que
se realizará no tribunal ou em primeiro grau de jurisdição, decidindo-se o recurso após a
conclusão da instrução”.
O princípio da efetividade do processo vem sendo objeto estudado em cotejo com
o ideal de instrumentalidade do processo e do que alguns autores vêm denominado
como “princípio da primazia da decisão de mérito”. A falta de efetividade de regras
procedimentais é um agravante nos casos em que o direito material em discussão é um
direito fundamental, como é o caso dos direitos à saúde, previdência social e assistência
social.
Ocorre que não é possível interpretar adequadamente as regras e princípios do
CPC/2015 fazendo uso de técnicas, instrumentos e valores vigentes para o CPC/1973.
Impõe-se rejeitar, assim, a “interpretação retrospectiva”, que procura desvendar o sentido

17
TRF 3ª Região, AI 5019345-41.2020.4.03.0000, Rel. Vanessa Vieira de Mello, DJe 18.12.2023; AI 5019305-
88.2022.4.03.0000, Rel. Des. Therezinha Cazerta, DJe 10.10.2023, ApCiv 6076946-95.2019.4.03.9999,
Rel. Des. Federal Sergio do Nascimento, DJe 05.3.2021; ApCiv 5001101-76.2019.4.03.6183, Rel. Des.
Federal João Batista Gonçalves, DJe 08.9.2021. TRF 1ª Região, AC 0005162-58.2013.4.01.3814, Rel.
Grigório Carlos dos Santos, DJe 19.4.2022. TRF 5ª Região, APELREEX 0000746-66.2017.4.05.9999,
Rel. Des. Federal Leonardo Resende Martins, DJe 05.10.2017; AC 0003869-77.2014.4.05.9999, Rel. Des.
Federal Roberto Machado, DJe 24.8.2017, AC 2009.81.02.000395-9, Rel. Des. Federal Edílson Nobre,
DJe 26.8.2016.

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e o alcance do CPC atual fazendo uso de critérios válidos apenas para o CPC revogado.
A mesma vedação se impõe quando da interpretação inflexível das regras do CPC,
dissociada da natureza específica dos direitos à saúde, previdência e assistência social.
O artigo 938, § 3º, do CPC, ao tratar dos “poderes instrutórios” do relator (ou
“competências instrutórias”), instituiu verdadeiro dever processual. Trata-se de conduta
impositiva que não dá margem a que se persista na antiga prática de anular a sentença,
determinando outra fosse proferida. A norma processual vigente determina que se
converta o julgamento em diligência, que se produza a prova faltante e que se conclua o
julgamento definitivo da causa.
Tanto o acórdão que anula a sentença como a decisão que converte o julgamento
em diligência fazem às vezes da “decisão de saneamento do processo”, exigindo que
delimitem os fatos sobre os quais recairá a atividade probatória. Deverão também respeitar
as restrições às perícias nas ações previdenciárias quanto ao custeio dos honorários
periciais (artigo 1º, § 1º, da Lei nº 13.876/2019, com a redação da Lei nº 14.331/2022).
Em conclusão, a solução imposta pelo CPC é a que decorre da regra clara do artigo
938, § 3º, do CPC. Esta norma é expressão de uma opção de política legislativa que o
Poder Judiciário deve observar, em favor da celeridade do processo e da efetividade da
jurisdição.

REFERÊNCIAS

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a 1.072). São Paulo: Saraiva, 2017.

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12. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022.

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superiores: pressupostos materiais e processuais. Tese (Doutorado em Direito) -
Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
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Data de submissão: 07 fev. 2024. Data de aprovação: 07 maio. 2024.

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[Regime Judicial Previdenciário]

LIMITAÇÃO DA PROVA DA UNIÃO ESTÁVEL PARA FINS


PREVIDENCIÁRIOS: ANÁLISE CRÍTICA A UTILIZAÇÃO DO § 5º DO ART.
16, DA LEI 8.213/1991 COMO FUNDAMENTO PARA TARIFAÇÃO DE
PROVA PELO JUDICIÁRIO

Carla Caroline Lopes Andrade1


Evelin de Lima Oliveira Lessa2

Resumo
A Medida Provisória (MP) 871, posteriormente convertida na Lei 13.846/2019,
introduziu novas regras para a produção de provas contidas no § 5º do art. 16 da
Lei 8.213/91. Embora a constitucionalidade tenha sido discutida pela Supremo
Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
6.096, há uma lacuna significativa entre a decisão do STF e a interpretação pelo
judiciário. Esta lacuna revela a necessidade de um entendimento mais profundo das
implicações dessa regra processual e seu impacto na prática jurídica e na proteção
social no Brasil. Este estudo tem como objetivos: (1) compreender o julgamento da
ADI 6.096 e seu efeito vinculante; (2) avaliar o impacto da utilização do § 5º do art.
16 da Lei 8.213/91 como regra para a produção de provas na esfera processual; (3)
mensurar o impacto da regra do Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais
no livre convencimento motivado; e (4) compreender a relação entre a interpretação
dada à ADI 6.096 e a Agenda 2023 da ONU. Utilizando uma metodologia indutiva, a
pesquisa foi realizada por meio de revisão bibliográfica, jurisprudencial e documental.
Os resultados indicam que há uma divergência significativa entre a decisão do STF
na ADI 6.096 e a forma como os tribunais inferiores estão interpretando e aplicando
essa decisão. Este estudo contribui significativamente para a literatura ao esclarecer
as divergências entre a decisão do STF e sua aplicação prática no judiciário, visando
fortalecer a proteção dos direitos sociais e assegurar a conformidade com a Agenda
2030 da ONU.
Palavras-chave: Pensão por morte; União estável; Meios probatórios; Prova testemunhal.

1
Mestranda em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Especialista em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale. Especialista em Direito Processual Civil na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Bacharela em Direito pela Universidade Paulista
- UNIP. E-mail: carlaandradeadvogada@gmail.com
2
Mestranda em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Candido Mendes. MBA em Direito Previdenciário
pela Faculdade Legale. Bacharela em Direito Pela Universidade Iguaçu – UNIG. E-mail: contato@
evelinlessa.com.br

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LIMITATION OF PROOF OF COMMON-LAW MARRIAGE FOR SOCIAL


SECURITY PURPOSES: CRITICAL ANALYSIS OF THE USE OF § 5 OF ART.
16, OF LAW 8.213/1991 AS A BASIS FOR JUDICIAL EVIDENCE TARIFFING

Abstract
Provisional Measure (MP) 871, later converted into Law 13.846/2019, introduced new
rules for the production of evidence contained in § 5 of Art. 16 of Law 8.213/91.
Although the constitutionality was discussed by the Supreme Federal Court (STF) in
the judgment of Direct Action of Unconstitutionality (ADI) 6.096, there is a significant
gap between the STF decision and its interpretation by the judiciary. This gap reveals
the need for a deeper understanding of the implications of this procedural rule and
its impact on legal practice and social protection in Brazil. This study aims to: (1)
understand the judgment of ADI 6.096 and its binding effect; (2) assess the impact
of the use of § 5 of Art. 16 of Law 8.213/91 as a rule for the production of evidence
in the procedural sphere; (3) measure the impact of the rule of the National Forum
of Federal Special Courts on free motivated conviction; and (4) understand the
relationship between the interpretation given to ADI 6.096 and the UN Agenda 2030.
Using an inductive methodology, the research was conducted through a bibliographic,
jurisprudential, and documentary review. The results indicate that there is a significant
discrepancy between the STF’s decision in ADI 6.096 and the way lower courts are
interpreting and applying this decision. This study significantly contributes to the
literature by clarifying the divergences between the STF’s decision and its practical
application in the judiciary, aiming to strengthen the protection of social rights and
ensure compliance with the UN Agenda 2030.
Keywords: Pension for death; Common-law marriage; Evidence means; Testimonial evidence

1INTRODUÇÃO

A análise das alterações na produção de provas para reconhecimento da união


estável para fins previdenciários, trazidas pela Medida Provisória 871/2019, convertida
na Lei 13.846/2019, no contexto do processo judicial previdenciário, reveste-se de
significativa relevância jurídica e social. O tema central deste estudo é a utilização das
alterações na produção de provas contidos no § 5º, do art. 16, da Lei 8.213/91 e a
utilização da norma pelo Poder Judiciário.
A união estável é um direito constitucionalmente reconhecido no Brasil como
entidade familiar, nos termos do art. 226, § 3º da Constituição Federal de 1988, devendo
ser respeitada, protegida pelo Estado e facilitada sua conversão em casamento. O
reconhecimento legal gera a esta união direitos e deveres em diversas áreas do direito,
inclusive na área previdenciária.
As alterações trazidas pela Medida Provisórias 871/2019, convertida na Lei
13.846/2019, no que se refere a comprovação da união estável estabeleceu a necessidade
de início de prova material não superior a vinte e quatro meses anterior ao óbito, bem
como vedou a utilização de prova exclusivamente testemunhal para este fim.
A pesquisa se justifica por sua relevância social e pela compreensão de que
os princípios que norteiam o processo judicial previdenciário indicam que as regras

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aplicáveis à instrução probatória devem ser amenizadas no que concerne às ações


previdenciárias, tendo em vista que normalmente incidem em relações sociais pautadas
pela informalidade, precariedade ou inexistência de documentos e a interferência de
fatores sociais que limitam a produção de provas, como o fator gênero.
Até que ponto a utilização da regra da exigência de início de prova material não
superior a vinte e quatro meses anterior ao óbito e a vedação a prova exclusivamente
testemunhal para a comprovação da união estável, salvo nos casos em que ocorrer
caso fortuito ou força maior, possui aplicação pelo Poder Judiciário e encontra amparo
no julgamento da ADI 6096?
Uma possível interpretação mais restritiva do que a interpretação dada pelo
Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 6.096, considerando seu efeito vinculante,
limitaria a regra de produção de provas prevista do Código de Processo Civil e o pleno
exercício da magistratura, impedindo que através do livre convencimento motivado, cada
caso seja analisado considerando suas especificidades e a valoração dos fatores sociais
que compões a sociedade brasileira.
Respeitado o caráter vinculante das decisões da suprema corte, de acordo com
entendimento externado pelo STF no julgamento da ADI 6096, as regras contidas
parágrafo 5º, do art. 16, são comandos voltados a informar a atuação do Poder
Judiciário? A resposta a essa pergunta é fundamental para compreender os limites e as
possibilidades de interpretação e aplicação das novas regras probatórias no contexto
do processo judicial previdenciário, garantindo, assim, a proteção efetiva dos direitos
sociais e previdenciários dos cidadãos brasileiros.
No que concerne à metodologia foi utilizada a indutiva. O artigo faz uso de uma
abordagem qualitativa, operacionalizada pela pesquisa bibliográfica, jurisprudencial e
documental sobre o tema.

2 O DIREITO A PENSÃO POR MORTE PREVIDENCIÁRIA

2.1 Noções preliminares

A pensão por morte é proteção constitucional previdenciária consagrada no artigo


201, inciso I, da Constituição Federal de 1988, que concede um valor mensal não inferior
a salário-mínimo, para os dependentes do segurado falecido (Garcia, 2024, p. 296).
A previsão legal da pensão por morte se encontra estatuída no art. 74 e seguintes
da Lei 8.213/1991, destinado aos dependentes do segurado da Previdência Social
que vier a falecer, ou em caso de morte presumida declarada pela autoridade judicial
competente depois de seis meses de ausência.
Dois dos principais requisitos para se ter direito à pensão por morte são: a qualidade
de segurado do falecido e a qualidade de dependente de quem for requerer o benefício.
A qualidade de segurado é a necessidade de o instituidor da pensão estar dentro do
sistema no dia da morte, qual se faz por meio das contribuições previdenciárias, ensejando
assim o direito dos seus dependentes usufruir do benefício de pensão por morte.
Nessa linha, os dependentes da pensão por morte estão previstos no art. 16 da Lei
8.213/1991 e são assim divididos:

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Art. 16 [...]
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado,
de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que
tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;
II - os pais;
III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte
e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou
deficiência grave (Brasil, 1991).

A classificação dos dependentes instituída na lei é de extrema importância, pois


permite a distribuição da proteção dentre aqueles que para o legislador se encontram em
situação de maior vulnerabilidade social.
A dependência econômica da primeira classe é presumida, quando apresentadas
provas do matrimônio, união estável ou o parentesco exigido. Já com relação à segunda
e à terceira classe é necessário fazer prova da dependência econômica com relação ao
segurado falecido, segundo determina o art. 16, § 4º da Lei n. 8.213/1991.
Logo, entende-se que comprovado os requisitos ensejadores da pensão por morte,
o dependente do falecido deverá receber o benefício pelos períodos instituídos em lei.

3 UMA BREVE ANÁLISE SOBRE AS BASES CONSTITUCIONAIS E LEGAIS DO


DIREITO PROBATÓRIO

O acesso à justiça mediante a um processo se encontra esculpido na Constituição


Federal, envolvendo, portanto, o direito às provas necessárias à solução justa do conflito
(Theodoro Jr., 2022).
O direito constitucional às provas está garantido nos incisos LVI e LVII do art. 5º
da CRFB/1988. Eduardo Cambi (2006, p. 35) ensina que o direito à prova integra é uma
garantia constitucional da ação e da ampla defesa.
Por ser um direito essencial, entende-se a necessidade da busca por um processo
justo, assim como ensina Candido Dinamarco:

Os meios, sendo aqueles adequadamente empregados, constituem o


melhor caminho para chegar a bons resultados. E, como afinal o que im-
porta são os resultados justos do processo (processo civil de resultados),
não basta que o juiz empregue meios adequados se ele vier a decidir
mal; nem se admite que se aventure a decidir a causa segundo seus
próprios critérios de justiça, sem ter empregado os meios ditados pela
Constituição e pela lei. Segundo a experiência multissecular expressa
nas garantias constitucionais, é grande o risco de erro quando os meios
adequados não são cumpridos. (Dinamarco, 2004, p. 248)

A doutrina constitucional se atenta nos pontos que o direito a prova precisa se ater:

O direito à prova impõe que o legislador e o órgão jurisdicional atentem


para: (i) a existência de relação teleológica entre prova e verdade (art. 369
do CPC de 2015); (ii) a admissibilidade da prova e dos meios de prova; (iii)

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a distribuição adequada do ônus da prova (art. 373 do CPC de 2015); (iv)


o momento de produção da prova; e (v) a valoração da prova e formação
do convencimento judicial (Sarlet; Marinoni; Mitidiero, 2022, p. 396).

Imperioso destacar que a Constituição impõe vedação à admissão de prova ilícita,


isso significa que “contrario sensu autoriza a admissão de toda e qualquer prova lícita”
(Sarlet; Marinoni; Mitidiero, 2022, p. 396).
As normas infraconstitucionais seguem os ditames acima, mormente, no art. 369
do CPC/2015, que densifica a premissa permitindo o direito de empregar todos os meios
legais, bem como os moralmente legítimos. E, ainda, a prova testemunhal é admitida
pelo CPC/2015, em seu art. 442, quando não existir lei que dispõe o contrário.
Ressalta-se que não se pode confundir o momento de admissão das provas com
o momento da valoração, pois são juízos distintos.
José Eduardo Carrera Alvim explica a distinção entre a admissão e a valoração da
prova como

a admissão da prova corresponde ao momento em que o juiz vai admiti-


-la ou não, porquanto a lei lhe faculta indeferir a prova, quando se revele
manifestamente inútil ou protelatória” já quanto a valoração da prova “O
princípio da persuasão racional permite ao juiz a apreciação das provas,
indicando os motivos que lhe formaram o convencimento, salvo quando
a lei impuser restrições probatórias (Alvim, 2022, p. 295).

4 OS MEIOS PROBATÓRIOS DA UNIÃO ESTÁVEL ANTES DO § 5º, DO ART. 16, DA


LEI 8.213/91, ACRESCIDO PELA MP 871/2019, CONVERTIDA NA LEI 13.846/2019

Aunião estável é uma modalidade idônea de família, reconhecida constitucionalmente,


e é caracterizada pela ausência de formalismos para a sua constituição, bastando apenas
o fato da vida comum para caracterizar.
O § 3º do art. 16 da Lei 8.213/1991 reconhece como companheira ou companheiro
quem manteve uma união estável, ou seja, uma relação pública, duradoura e com objetivo
de formar família com a pessoa falecida, estando em consonância com o § 3º do art. 226
da CRFB/1988.
Nesse rumo, não é desnecessário relembrar que a Lei 8.213/1991, art. 16, § 3º, faz
menção expressa ao fato de que “se considera companheira ou companheiro a pessoa
que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada”,
justamente nos termos dispostos na CRFB/1988, art. 226, § 3º.
A comprovação da união estável previdenciária na via administrativa é
regulamentada pelo Decreto 3.048/1999, que também rege a Previdência Social. No
art. 22, § 3º, desse decreto, consta a exigência de apresentação de documentos que
comprovem a união, incluindo uma lista exaustiva.
Sendo imperioso o destaque de que na seara administrativa sempre existiu a
exigência de prova material para comprovação da união estável, pois antes da redação
atual do §3º, do art. 22 do Decreto 3048/1999, a norma já trazia a obrigatoriedade de
no mínimo três documentos: “§ 3º - Para comprovação do vínculo e da dependência

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econômica, conforme o caso, devem ser apresentados no mínimo três dos seguintes
documentos” (Brasil, 1999).
Instaurado o processo administrativo previdenciário, assegurado o exercício da
cooperação e do contraditório, ensejará uma decisão do órgão administrativo de primeira
instância, que seguirá, além de outros princípios, o da legalidade (Savaris, 2022).
Ocorre que, devido às uniões estáveis serem muito informais no contexto atual
brasileiro, muitas vezes a pessoa viúva encontra óbices na via administrativas, devido
à falta de documentos que comprovem essa união, culminando no indeferimento
administrativo do benefício previdenciário (Serau Jr., 2019, p. 85).
Assim, uma das saídas para esse dependente que detém poucos elementos
materiais para comprovar a união estável na seara administrativa, é o ingresso da ação
judicial em face da Autarquia Previdenciária, pois o Código de Processo Civil (CPC/2015)
amplia a produção de provas, além de que, o entendimento jurisprudencial dominante é
no sentido de sequer haver necessidade de provas materiais, bastando somente a prova
testemunhal, tornando mais simples o acesso ao benefício.
Demonstra-se que é o entendimento firmado tanto pela Turma Nacional de
Uniformização (TNU) na súmula nº 63, “A comprovação de união estável para efeito de
concessão de pensão por morte prescinde de início de prova material” (Brasil, 2012).
Assim como no Superior Tribunal de Justiça - STJ (REsp. 1824663/SP) até então,
sobre a desnecessidade de prova material para comprovação da união estável, podendo
inclusive a prova ser somente através de prova testemunhal:

Ementa REsp. 1824663/SP: “PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MOR-


TE. UNIÃO ESTÁVEL COMPROVADA PELA PROVA TESTEMUNHAL.
POSSIBILIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO CONTRÁRIO À JURISPRU-
DÊNCIA DO STJ. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA DE PRIMEI-
RO GRAU. 1. Na hipótese dos autos, o Tribunal de origem indeferiu o
pedido de pensão por morte, porquanto não ficou comprovada a condi-
ção de dependente da autora em relação ao de cujus. Asseverou (fl. 160,
e-STJ): “As testemunhas arroladas as fls. 81/82 e 103, foram uníssonas
em comprovar que a autora vivia em união estável com o de cujus e ele
custeava os gastos familiares, porém somente a prova testemunhal é
insuficiente para comprovar o alegado”. 2. No entanto, o entendimento
acima manifestado está em confronto com a jurisprudência do STJ de
que a legislação previdenciária não exige início de prova material para a
comprovação de união estável, para fins de concessão de benefício de
pensão por morte, sendo bastante, para tanto, a prova testemunhal, uma
vez que não cabe ao julgador criar restrições quando o legislador assim
não o fez. 3. Nesse sentido, os seguintes precedentes: AgRg no REsp.
1.536.974/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 18.12.2015;
AR 3.905/PE, Terceira Seção, Rel. Min. conv. Campos Marques, DJe
1.8.2013; AgRg no REsp. 1.184.839/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita
Vaz, DJe 31.5.2010; REsp. 783.697/GO, Sexta Turma, Rel. Min. Nilson
Naves, DJU 9.10.2006, p. 372. 4. Recurso Especial de Cleuza Aparecida
Balthazar provido para restabelecer a sentença de primeiro grau. Agravo
do INSS prejudicado” (Brasil, 2019).

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O entendimento majoritário sempre foi o de que os órgãos julgadores não poderiam


criar restrições nos meios probatórios da união estável para fins de pensão por morte
que o legislador não o fez, vigendo o que diz o art. 369 do CPC, que possibilita às partes
empregarem todos os meios legais e moralmente legítimos de prova.
O cenário dos meios probatórios da união estável se alterou com o advento da
MP 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019, que acrescentou o §5º ao art. 16 da Lei
8.213/1991, tarifando o meio de prova da união estável, ao acrescentar a exigência
de início de prova material não superior a 24 meses antes do óbito, e a vedação da
comprovação apenas por prova testemunhal.
A Lei 8.213/1991, art. 16, § 6º, reforça a exigência de prova material, reiterando,
em relação à cessação das cotas de pensão por morte destinadas aos companheiros,
que “deverá ser apresentado, ainda, início de prova material que comprove união estável
por pelo menos dois anos antes que se dê o óbito do segurado” (Brasil, 1991).
É certo que antes da norma descrita no § 5º do art. 16 da Lei 8.213/1991 ser
introduzida no ordenamento jurídico, inexistia a necessidade de a prova material ser
contemporânea ao fato, bem como já visto, a comprovação na seara judicial poderia ser
feita mediante prova exclusivamente testemunhal.
De outra parte, a tarifação das provas da união estável e da dependência econômica,
que se pretende se dê apenas através de início de prova material, com exclusão da
prova exclusivamente testemunhal, cerceia o amplo acesso à justiça e restringe o amplo
direito de produção de provas, direitos respaldados pelo art. 5º, incs. XXXV e LVIII da
CRFB/1988.
Destarte, feito tais considerações, imperioso trazer a discussão se essa alteração
trazida da MP 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019, que exige de início de prova
material dos últimos vinte e quatro meses e veda a utilização de prova exclusivamente
testemunhal é aplicável na esfera judicial.

4.1 Análise da aplicação judicial das limitações probatórias da união estável para
fins previdenciários acrescidos pelo § 5º, do art. 16, da lei 8.213/91

A MP 871/2019, posteriormente convertida na Lei 13.846/2019, trouxe significativas


mudanças no âmbito dos benefícios previdenciários, e, apesar da pensão por morte não
ter sido o benefício mais atingido pela norma, é certo que foi fortemente impactado em
relação aos meios de comprovação da união estável para fim de acesso ao benefício,
com a inclusão do § 5º, no art. 16, da lei 8.213/91.
Primeiramente, em análise à proposta da Medida Provisória enviada ao
Presidente da República em 17 de janeiro de 2019, uma das razões da implementação
da obrigatoriedade da apresentação de prova contemporânea para reconhecimento da
união estável e a vedação da utilização da prova exclusivamente testemunhal, se deu em
relação às fraudes realizadas para a concessão do benefício, cita-se trecho da proposta:

21. Em relação à comprovação do direito, com a edição da presente me-


dida, passará a ser exigido início de prova documental contemporânea
de união estável e dependência econômica, com o objetivo de reduzir
fraudes nos pedidos de pensões por morte, mediante o reconhecimen-

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to da união estável ou da dependência econômica com base em prova


testemunhal ou ações simuladas, normalmente após o óbito do segura-
do. Nesta mesma linha, propõe-se seja vedada a inscrição pós óbito de
contribuintes individuais e facultativos, isto é, retroativa, para garantia de
benefícios para seus dependentes (Brasil, 2019).

A proposta é clara quanto a preocupação das fraudes realizadas por


instrumentalidade de testemunhas para o reconhecimento da união estável para fins de
recebimento de benefício de pensão por morte, em que pese faltar dados estatísticos
sobre tal afirmação.
A mudança legislativa sobre matéria previdenciária através de medida provisória,
tira da sociedade a possibilidade de debate e de uma análise mais apurada. Diversos
autores que se dedicam ao estudo da previdência social no Brasil, já manifestaram sua
preocupação com essa prática.
O professor Miguel Horvath preleciona que “em matéria de seguridade social, a
mudança da legislação previdenciária vem sendo feita com exagerada frequência por
meio de Medidas Provisórias” (2022, p.45).
A Constituição Federal disciplina no art. 62 a necessidade de relevância e urgência
para adoção de Medidas Provisórias pela Presidência da República, contudo, tratando
de direitos sociais há necessidade de um debate aprofundado, como doutrina Wagner
Balera e Cristiane Mussi “em tema de seguridade social os dois requisitos poderiam
assim ser apreciados: tudo é relevante, mas nada é urgente” (2023, p. 50).
Não obstante, o ordenamento jurídico necessita caminhar de forma harmônica,
devendo ser respeitado as instituições e conceitos de outras áreas já consolidadas
quanto a união estável. Isso porque, o aludido diploma civil, destacadamente o art. 1.723
relativo à união estável, define essa união como uma das formas de entidade familiar
“art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família.”
Veja-se que, como já dito, a norma civilista não traz nenhuma exigência de provas
formais para o reconhecimento de união estável, mas estabelece o conceito em torno
dessa união.
Destarte, a alteração trazida na Medida Provisória, em verdade é uma tarifação da
modalidade de prova da união estável, pois vincula a comprovação da união estável a
início de prova material e veda a utilização de prova exclusivamente testemunhal.
Serau Junior defende que essa tarifação aplicada aos meios probatórios da união
estável na seara previdenciária, cerceia o amplo acesso à justiça e o amplo direito de
produção de provas. Outrossim, não se deve haver hierarquia de provas ou sequer valor
predeterminado em lei, visto que não existe nenhum meio de prova mais valioso que o
outro no sistema da busca da verdade (SERAU JR, 2019 p.86).
É certo que a norma introduzida alterou meios de prova, o que é vedado pelo art.
62, §1º, inc. I, alínea “a” da CRFB/1988, visto que Medida Provisória não pode alterar
normas processuais.
Todavia, a constitucionalidade da MP 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019 foi
levada a discussão, e como forma de controle judicial dos pressupostos constitucionais

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de urgência e relevância da edição da MP 871/2019, o STF no julgamento da ADI 6.096,


com julgamento em 13/10/2020, asseverou que o presente parágrafo é constitucional,
seguindo as considerações da Advocacia-Geral da União (AGU) porém firmando o
entendimento de que a norma foi destinada aos servidores do Instituto Nacional de
Seguro Social (INSS):

[...] As normas estão inseridas no contexto dos procedimentos adminis-


trativos relacionados à concessão de benefícios previdenciários, de ma-
neira que possuem primordialmente natureza de direito administrativo e
previdenciário. Portanto, não causam interferência no direito das provas
regulado pelo Código Civil e pelo Código de Processo Civil. O fato de o
magistrado apreciar os dispositivos para o exercício da atividade decisó-
ria não transforma a sua natureza. Confiram-se, a respeito, as considera-
ções da Advocacia-Geral da União:
[…] Os dispositivos em questão não são comandos voltados a infor-
mar a atuação do Poder Judiciário. Trata-se, na verdade, de normas
cujos destinatários diretos são os servidores do INSS, que deverão
observar se os processos administrativos estão instruídos com pro-
va material contemporânea dos fatos, para fins de comprovação de
tempo de serviço, de união estável e de dependência econômica.
[...] (Brasil, 2020, grifo nosso).

Como visto no trecho da decisão acima, o STF entendeu que a norma não
possuía natureza de direito processual, pois, para a Corte Superior este dispositivo não
são comandos voltados para o Poder Judiciário, mas sim, destinados para o âmbito
administrativo.
A decisão do STF sobre o tema tem efeito vinculante, visto tratar-se de decisão
em controle concentrado de constitucionalidade, conforme art. 927, inc. I do CPC/2015.
Entretanto, há decisões em diversos tribunais, interpretando a alteração trazida
pela MP 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019 introduzida como tarifação dos meios
de prova para união estável previdenciária, como a abaixo colacionada, onde a 10ª Turma
do Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF-3) de São Paulo e Mato Grosso
do Sul na Apelação Cível 50041979220224039999/MS extinguiu um processo sem
resolução de mérito, fundamentando que não havia sido cumprido o requisito necessário
de provas não superior a 24 meses da união estável:

Ementa Apelação Cível 50041979220224039999/MS: “PREVIDENCIÁ-


RIO”. PENSÃO POR MORTE. DEMANDA JUDICIAL PARA RECONHE-
CIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL AJUIZADA APÓS O ÓBITO. AUSÊNCIA
DE PROVA MATERIAL ANTERIOR AO FALECIMENTO. DEPENDÊNCIA
ECONÔMICA NÃO DEMONSTRADA. EXTINÇÃO SEM JULGAMEN-
TO DO MÉRITO. [...] 5. Quanto às provas, o § 5º do artigo 16 da Lei
n. 8.213/1991, após modificações empreendidas pela Medida Provisória
(MP) n. 871/19, convertida na Lei n. 13.846, de 18/06/2019, passou a exi-
gir início de prova material recente aos fatos que se pretendem eviden-
ciar, para fins de comprovação da união estável, produzidas em período

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não superior aos 24 meses anteriores à data do aprisionamento, vedada


a produção de prova exclusivamente testemunhal. 6. No caso em testi-
lha, a ação de reconhecimento de união estável foi ajuizada após o faleci-
mento do de cujus em flagrante desatenção ao contido no artigo 16, § 5º,
da Lei n. 8.213/1991, não representando indício de prova material hábil a
ser corroborado por prova oral. 7. A união estável reconhecida perante a
Justiça Estadual não tem eficácia plena em relação ao INSS, já que não
foi parte naquela demanda. Portanto, se faz necessária a confirmação da
união more uxorio na demanda previdenciária, mormente quando o re-
conhecimento é resultante de sentença homologatória de acordo. Prece-
dentes. 8. A ausência de documentação hábil a demonstrar a existência
de união estável nos últimos 24 (vinte e quatro) meses anteriores ao óbito
impõe na extinção do feito sem julgamento do mérito, viabilizando a parte
autora intentar novamente com a demanda, caso reúna os documentos
necessários para tanto. Precedentes. - Reconhecimento, de ofício, da ca-
rência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do pro-
cesso. Extinção do processo sem julgamento do mérito” (Brasil, 2022).

Outra decisão é a do TRF da Segunda Região (TRF-2) onde a 2ª Turma, na AC


10320564520214019999, apesar de manter a sentença, fundamenta a necessidade de
início de prova material não superior aos últimos 4 meses anteriores ao óbito:

Ementa da Apelação Cível 10320564520214019999 – “PREVIDENCIÁ-


RIO. PENSÃO POR MORTE. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. UNIÃO
ESTÁVEL COMPROVADA. POSTERIOR À MP 871/2019. INÍCIO DE
PROVA MATERIAL CORROBORADO POR PROVA TESTEMUNHAL
APRESENTADO. APELAÇÃO NÃO PROVIDA. (...) 3. Até 17/01/2019,
o entendimento acerca da comprovação da união estável seguia o teor
da Súmula 63 da TNU: A comprovação de união estável para efeito de
concessão de pensão por morte prescinde de início de prova material. A
partir de então, por decorrência da vigência da Medida Provisória nº 871,
de 18/01/2019, foi inserido no ordenamento o sistema da prova legal ou
tarifada, exigindo-se o início de prova material. Posteriormente, com a
sua conversão na Lei nº 13.846, de 18/06/2019, acresceu-se do requisito
de temporariedade, mediante a exigência de documento contemporâneo,
produzido no interregno de 24 (vinte e quatro) meses anteriores ao óbito.
4. Tendo em vista que o óbito do instituidor da pensão se deu após o ad-
vento da MP. n.º 871, convertida na Lei 13.846/2019, a legislação previ-
denciária exigia início de prova material para a comprovação de união es-
tável, para efeito de concessão de pensão por morte. (...)” (Brasil, 2022).

Destaque-se que em 14 de junho de 2023 ocorreu o VIII Encontro de Juízes


Federais das Turmas Recursais e dos Juizados Especiais Federais da 3a Região onde
foi aprovado o Enunciado nº 77, que impõe a tarifação de prova da união estável para o
judiciário:

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Para fins de comprovação da união estável e de dependência econô-


mica, a exigência de início de prova material contemporânea aos fatos
aplica-se somente para os óbitos ocorridos após a vigência da MP 871 de
18 de janeiro de 2019, convertida na Lei nº 13.846/2019.

As decisões e o enunciado acima citados demonstram que o poder judiciário não


vem caminhando em conformidade com a decisão da ADI 6.096 do STF, apesar de
vinculante. Assim, a ADI 6.096 ao acolher o Parecer da Procuradoria-Geral da República
julgou que as normas trazidas pela MP 871/2019, convertida na Lei 13.846/2019, tem
caráter administrativo e previdenciário, cujo destinatários são os servidores do INSS e o
processo administrativo, não causando interferência no direito de Provas do Código de
Processo Civil, logo, não determinando o Poder Judiciário utilizar da sua fundamentação
para tarifar os meios de provas da união estável.

4.2 Ampla possibilidade de produção de prova exclusivamente testemunhal para


fins de reconhecimento da união estável previdenciária na esfera judicial e a
garantia do livre convencimento motivado

Conforme foi demonstrado, o STF quando do julgamento da ADIN 6.096, firmou o


entendimento da constitucionalidade do § 5º do art. 16 da Lei 8.213/1991, porém com a
ressalva de que não são comandos voltados para o Poder Judiciário, e sim para a seara
administrativa.
Theodoro Junior (2022) doutrina que o juiz deverá sempre seguir as provas
constantes nos autos, aplicando assim o direito aos fatos apurados, sempre com base
no princípio da legalidade, ensinando ainda que o sistema atual de valoração da prova
se encontra na persuasão racional, sendo este um sistema em que a convicção se dará
com todos os elementos existentes no processo, não podendo o juiz fugir dos meios
científicos que regulam as provas e a sua produção.
Assim, a convicção racional do juiz ao proferir a sua decisão, segundo Amaral
Santos (1983, p. 11), se condiciona ao: “(a) aos fatos nos quais se funda a relação jurídica
controvertida; (b) às provas desses fatos, colhidas no processo; (c) às regras legais e
máximas de experiência; (d) e o julgamento deverá sempre ser motivado”. Essa é a
síntese do princípio do livre convencimento motivado ou princípio da convicção racional
do juiz.
Uma das decisões que devem ser observadas pelos tribunais são as decididas
pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade, como determina o art. 927,
inc. I, do CPC.
Não pode se ignorar que a inovação trazida pela MP 871/2019, convertida na
Lei 13.846/2019, em relação a comprovação da união estável reforça um modelo de
tarifação de prova, fugindo da regra do sistema processual brasileiro, que tem como
aplicação o livre convencimento motivado como regra geral.
Portanto, impende destacar que os meios probatórios da união estável em sede
judicial se mantêm os mesmos de antes da publicação da Medida Provisória 871/2009. É
certo que, na seara administrativa, deverá ser apresentada ao menos uma prova material
produzida em período não superior a vinte e quatro meses anterior à data do óbito, como

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já existia no Decreto 3.048/1999 que regulamenta o Regime Geral de Previdência Social.


Quanto às provas materiais em espécie, o Decreto 3.048/1999 traz, inicialmente,
um rol de documentos em seu art. 22, §3º e incisos. No entanto, se trata de um rol
exaustivo, podendo ser utilizado outros documentos que levem à convicção.
Importante ressaltar que o prévio requerimento administrativo é requisito necessário
para o ingresso na via judicial de ação previdenciária, como já decidido pelo STF no
julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 631.240, tema 350.
Porém, se o dependente não tiver provas da união estável, tendo em vista o
princípio da legalidade que rege a administração pública, o benefício será indeferido em
decisão de primeira instância administrativa, cabendo ao requerente ingressar com uma
ação judicial visando seu reconhecimento (união estável).
Segundo Serau, a introdução da exigência de comprovação formal da união estável
unicamente através de início de prova material, vedando expressamente o emprego de
prova exclusivamente testemunhal, mostra-se incompatível com outros dispositivos do
ordenamento jurídico brasileiro (Serau Jr., 2023).
Já na esfera judicial, entende-se que poderá ser utilizado qualquer meio de
prova, inclusive a testemunhal. Ou seja, mesmo quando for o único meio de prova, a
prova testemunhal sempre deverá ser admissível para fins de comprovação da união
estável, seguindo assim o disposto no art. 442 do CPC/2015, tendo em vista que inexiste
impedimento legal.
Portanto, entende-se que deve prevalecer o entendimento majoritário firmado antes
da publicação da MP 871/2019, ou seja, deverá ser aceito qualquer meio de prova para
comprovação da união estável no Poder Judiciário, inclusive unicamente testemunhal,
mantendo o entendimento já firmado na TNU através da súmula 63 da TNU e do STJ
como o do REsp. 1.824.663/SP.

4.3 Do caso Mércia Nakashima a Agenda 2030 da ONU: a necessidade de


julgamento com perspectiva de gênero no sistema judiciário

O protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do Conselho Nacional de


Justiça, publicado em 2021, advém da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil. Na condenação,
ficou determinada a implementação de programas de capacitação e sensibilização dos
operadores da justiça quanto as questões de gênero. Além disso, o protocolo declara
que almeja alcançar a igualdade de gênero, Objetivo de Desenvolvimento Sustentável –
5 da agenda 2030 da ONU.
O protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, traz então uma série de
orientações para que a atividade jurisdicional busque minimizar os efeitos dos estereótipos
de gênero oriundos da desigualdade estrutural em uma sociedade patriarcal.
Nesse diapasão, ao tratar do benefício previdenciário da trabalhadora rural, o
protocolo elenca a maior dificuldade que a mulher em geral possui, para fazer prova
de seu trabalho rurícola, já que comumente toda a documentação consta em nome de
seu marido ou companheiro. (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para
Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília: CNJ, 2021. p.78)
Não obstante, o protocolo de julgamento por perspectiva de gênero, orienta ainda

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que caso a mulher não disponha de documentos comprobatório de sua condição, que
sejam considerados o de seu companheiro. E, cita a antiga redação da súmula 63 da
Turma Nacional de Uniformização, que afastava a necessidade de início de prova material
para a comprovação de união estável para concessão de pensão por morte (BRASIL.
Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.
Brasília: CNJ, 2021. p.79)
De acordo com dados da previdência social, em 2022 a concessão de pensão por
morte a mulheres, representa 73,10% do total. Assim, ao tratar de alteração na aceitação
ou tarifação de provas, principalmente as mulheres são afetadas. No modelo proposto
pela MP 871 o início de prova material passa a ser exigido sem qualquer análise social
sobre gênero, raça, grau de instrução, e como a interseccionalidade de fatores teria
influenciado as relações sociais a ponto de a companheira não ter acesso a início de
prova material.
Portanto, apesar de o protocolo almejar uma igualdade de gênero que ainda não
ocorreu na sociedade, sua efetividade resta esvaziada ante a utilização da MP 871 pelo
judiciário lhe imputando na prática, valor de lei processual.
Uma medida provisória tratando de matéria que repetidamente vem sendo utilizada
como regra de direito processual, despreza o controle de poder proposto por Montesquieu
vez que se apropria do poder legislativo, já que não se trata de uma questão urgente e,
mesmo que fosse, exigiria o debate apropriado (BALERA, 2009, p. 13).

5 CONCLUSÃO

A MP 871/2019 convertida na Lei 13.846/2019, conferiu legalidade ao ato da


administração pública contido no decreto 3.048/1999, exigindo o início de prova material
para a comprovação de união estável para fins previdenciários na esfera administrativa.
E, mesmo o Supremo Tribunal Federal tendo decidido no julgamento da ADI 6.096 pela
Constitucionalidade da Medida Provisória 871/2019 no que tange especificamente a
inclusão do § 5º, do art. 16, da Lei 8.213/91, que trata sobre os meios probatórios da
união estável, foi definido que se destina aos servidores do INSS e com aplicação no
processo administrativo previdenciário.
Consta na decisão da ADI 6.096 julgada pelo STF, que a norma não altera as
regras do direito à prova do Código de Processo Civil, sendo assim, o caráter vinculante
relacionado a decisão contida na ADI, não deve ser utilizado como justificativa para a
limitação da produção de provas no processo judicial previdenciário, e tampouco para
impedir o exercício do livre convencimento motivado pela magistratura.
Frente ao aspecto da informalidade das uniões estáveis no Brasil, muitas relações
carecem de provas documentais, principalmente quando é interposto limite temporal. É
imprescindível que cada caso seja analisado individualmente, considerando os fatores
sociais que impactam aquela pessoa e principalmente a interseccionalidade de fatores
que podem ser impeditivos da produção de provas documentais, cabendo ao magistrado
a ponderação sobre a capacidade de a prova apresentada lhe conferir ou não motivação
para seu convencimento.
A aplicação da norma no âmbito judicial, advém de uma interpretação que restringe
o acesso à prestação social previdenciária sobre o caráter vinculante da decisão da ADI

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6.096 do STF, podendo gerar redução sensível do alcance ao benefício às pessoas que
vivam em união estável.
Este artigo se limitou a análise das alterações na produção de prova trazida pela MP
871/2019, convertida na Lei 13.846/2019 e o efeito vinculante conferido com o julgamento
da ADI 6.096 do STF. A premissa para a elaboração da Medida Provisória 871/2019
foi a necessidade de reduzir fraudes nos pedidos de pensão por morte, entretanto, é
necessária uma análise aprofundada com o cruzamento dos dados de concessão de
pensão por morte através de prova exclusivamente testemunhal pelo judiciário e dos
benefícios alvo de suspeita de concessão mediante fraude, para que se tenha evidências
concretas e capazes de ensejarem soluções adequadas.

REFERÊNCIAS

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Data de submissão: 05 jul. 2024. Data de aprovação: 10 jul. 2024.

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[Regime Judicial Previdenciário]

A PERÍCIA BIOPSICOSSOCIAL ENQUANTO TÉCNICA


MULTIDISCIPLINAR ADEQUADA PARA A PROTEÇÃO DO GRUPO
FAMILIAR VULNERÁVEL

Bruno Vilar Dugacsek1


José Ricardo Caetano Costa2

Resumo
Este artigo explora a relação entre a renda per capita e a miséria, destacando a
importância da perícia biopsicossocial como uma técnica multidisciplinar eficaz na
proteção de grupos familiares vulneráveis. Analisa-se como a renda per capita impacta
diretamente nas condições de vida e bem-estar, contribuindo para a compreensão
da miséria como um fenômeno complexo. A perícia biopsicossocial é apresentada
como uma abordagem holística, considerando aspectos biológicos, psicológicos e
sociais, oferecendo uma visão abrangente das necessidades e desafios enfrentados
por famílias vulneráveis. Destaca-se a importância dessa técnica na formulação de
políticas públicas e intervenções sociais destinadas a melhorar as condições de vida
desses grupos, promovendo a proteção e o desenvolvimento sustentável.
Palavras-chave: Benefício Assistencial; Renda Familiar Mensal Per Capita; Perícia
Biopsicossocial; Grupo familiar; Miséria.

BIOPSYCHOSOCIAL EXPERTISE AS A MULTIDISCIPLINARY


TECHNIQUE SUITABLE FOR THE PROTECTION OF THE
VULNERABLE FAMILY GROUP

Abstract
This article explores the relationship between per capita income and poverty,
highlighting the importance of biopsychosocial expertise as an effective multidisciplinary
technique in protecting vulnerable family groups. It analyzes how per capita income
directly impacts living conditions and well-being, contributing to the understanding
of poverty as a complex phenomenon. Biopsychosocial expertise is presented as a
holistic approach, considering biological, psychological and social aspects, offering
a comprehensive view of the needs and challenges faced by vulnerable families.
The importance of this technique is highlighted in the formulation of public policies
and social interventions aimed at improving the living conditions of these groups,
promoting protection and sustainable development.

1
Mestrando(a) do Programa de Pós-graduação em Direito e Justiça Social (PPGDJS) da Universidade
Federal de Rio Grande (FURG). Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela UNIRITTER.
Especialista em Benefícios e Prática Previdenciária pela Verbo Jurídico. Email: bvdadvocacia@gmail.com
2
Doutor em Serviço Social (PUCRS) e Mestre em Direito (UNISINOS). Professor Adjunto da Faculdade de
Direito e do Mestrado em Direito e Justiça Social da FADIR/FURG. Coordenador do Programa CIDIJUS/
FADIR/FURG. Email: jcc.pel@gmail.com

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Keywords: Assistance benefit; Monthly family income per capita; Biopsychosocial expertise;
Family group; Misery.

“'Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades so-


ciais e regionais' é o 3º objetivo fundamental da República Federativa do
Brasil.” (Constituição Federal)

1 INTRODUÇÃO

A relação entre renda per capita e miséria constitui um tema de significativa


relevância no contexto social contemporâneo. A complexidade dessa interação demanda
abordagens multidisciplinares que vão além de meras análises econômicas, englobando
aspectos biopsicossociais que permeiam a vida das comunidades. Nesse cenário, a
perícia biopsicossocial emerge como uma técnica que transcende fronteiras disciplinares,
oferecendo uma abordagem abrangente para a compreensão das dinâmicas familiares
em situações de vulnerabilidade.
A proteção do grupo familiar vulnerável exige uma compreensão profunda das
variáveis que influenciam não apenas a renda per capita, mas também as condições
biológicas, psicológicas e sociais que moldam a experiência dessas famílias. A perícia
biopsicossocial, ao integrar conhecimentos das áreas biológicas, psicológicas e sociais,
proporciona uma visão holística das circunstâncias enfrentadas por esses grupos,
permitindo uma análise mais completa e sensível.
Nesta perspectiva, o presente artigo busca destacar a importância da abordagem
biopsicossocial na compreensão na perspectiva da renda da per capita e na proteção da
família por outros aspectos que não o médico tampouco o econômico, salientando seu
papel crucial na proteção do grupo familiar vulnerável. Ao explorar a interseção entre
diferentes disciplinas, a perícia biopsicossocial emerge como uma ferramenta valiosa para
promover a equidade, identificar necessidades específicas e desenvolver intervenções
adequadas que visem não apenas mitigar as consequências da miséria, mas também
promover a resiliência e o bem-estar das famílias em situações de vulnerabilidade.

2 ANÁLISE DA RENDA PER CAPITA E MISÉRIA: IMPACTO DE CONCEITO


DE GRUPO FAMILIAR E RELEV\ÂNCIA DE “MESMO TETO” PARA FINS DE
BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA (BPC)

2.1 Renda Per Capita e Miséria: O Paradoxo para (in)acessibilidade ao BPC Assistencial

Segunda a Constituição Federal em seu artigo 203:

A assistência Social será devido a quem dela necessitar, independente-


mente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: [...] V – a
garantia de um salário-mínimo de benefício mensal à pessoa portadora
de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de pro-
ver à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, confor-
me dispuser a lei. (grifo nosso).

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De acordo com a Carta Magna de 1988, a Assistência Social (incluso o Benefício


de Prestação Continuada - BPC) é devido ao sujeito que comprove não possuir meios
de prover a sua manutenção e nem a ter por sua família. Ocorre que, diferentemente
do que traz a Constituição Federal, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), objeto
do nosso estudo, tem se baseado apenas no critério da renda para verificar se o indivíduo
faz jus ou não ao benefício, deixando, por vezes, de fora da proteção social grande parte
daqueles que necessitam ter acesso aos programas assistenciais.
Historicamente tem se adotado, erroneamente, essa postura lastreada apenas no
critério da renda per capita familiar para determinar e auferir o direito ao Benefício de
Prestação Continuada, principalmente por grande parte dos Magistrados e Tribunais do
nosso país.
Não obstante, criou-se no Brasil, após longa jornada legislativa, conceitual,
doutrinária e jurisprudencial, o conceito de “miserabilidade”, ou seja, o Benefício de
Prestação Continuada (BPC) somente é devido aos miseráveis e não aos que dele
necessitam. Aliás, a própria Constituição Federal em momento algum faz essa referência,
muito pelo contrário, aduz somente que o cidadão deve comprovar não possuir qualquer
meio de manutenção e nem o ter provido por sua família, não fazendo qualquer referência
ao termo “miserabilidade” ou “miséria” ou ainda “miseráveis”.
Somente em 1993, 5 (cinco) anos após a Promulgação da Carta Magna de 1988,
foi regulamentado o artigo 203 da Constituição Federal através da Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS) e, que, em seu artigo 20, §3º trouxe o que seria o critério
econômico para aferição de “miserabilidade” indicando que a renda per capita familiar
deve ser inferior a ¼ do salário-mínimo:

Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-


mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e
cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a
própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. (Redação
dada pela Lei nº 12.435, de 2011) (Vide Lei nº 13.985, de 2020) (grifo
nosso).
[...]
§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora
de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja in-
ferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. (grifo nosso).

Ora, o Benefício Assistencial baseado na legislação infraconstitucional tem como


único e exclusivo critério a renda per capita familiar, ou seja, somente é devido o BPC
aquele que tenha renda igual ou inferior a ¼ do salário-mínimo, em outras palavras, devido
aos miseráveis. Percebe-se, contudo, que a miserabilidade hoje exigida determina a
intenção de restrição do número de pessoas abarcadas e que, embora essas pessoas
tenham renda superior a ¼ do salário-mínimo, necessitam do amparo assistencial e
acabam por serem excluídas do sistema. A título de exemplo e para melhor compreensão
do absurdo trazido pela legislação infraconstitucional: Imagina-se um casal em torno de
60 anos, o marido aufere R$ 1.500,00 por mês e ela desempregada e deficiente. Residem
em local de difícil acesso, não abarcado por transporte público, sem saneamento básico,

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semianalfabetos, sem qualquer nível cultural, difícil acesso a saúde, falta de créditos etc.
Se fossemos considerar apenas a renda de R$ 1.500,00, a esposa sequer teria direito
ao BPC Assistencial, uma vez que a renda per capita ultrapassaria ¼ do salário-mínimo.
Agora, vejam o absurdo. No exemplo acima citado, impossível não levar em
consideração outros aspectos que não somente a renda, tais como aspectos morais,
econômicos, sociais, culturais e políticos. É o que denominamos de “critério psicossocial
multidimensional” onde se busca a análise não apenas da renda, mas também de
outras dimensões tais como: condições de saúde e deficiência, o qual deverá avaliar
não apenas a existência de uma deficiência, mas também o impacto dessas condições
na vida do indivíduo e suas barreiras para participar da sociedade; o acesso à educação,
emprego e suas oportunidades, reconhecendo que a inclusão econômica é uma parte
fundamental da inclusão do sujeito em sociedade; inclusão social e qualidade de vida, a
qual deverá medir o grau de inclusão social do indivíduo, incluindo seu acesso a serviços
de saúde, moradia adequada e participação na comunidade; apoio familiar e comunitário,
considerando o papel da família e da comunidade no apoio ao indivíduo com deficiência
ou idoso em situação de vulnerabilidade.
Com efeito, o BPC é devido hoje aos que estão em situação de miserabilidade,
fazendo jus, portanto aqueles que se encontram em pobreza absoluta, o que contraria e
viola a Carta Constitucional, bem como vai ao desencontro dos objetivos da Assistência
Social, em especial em seu artigo 2º, parágrafo único, verbis:

Art. 2º. A assistência social tem por objetivos: (Redação dada pela Lei nº
12.435, de 2011) I - a proteção social, que visa à garantia da vida, à redu-
ção de danos e à prevenção da incidência de riscos, especialmente: (Re-
dação dada pela Lei nº 12.435, de 2011) a) a proteção à família, à mater-
nidade, à infância, à adolescência e à velhice; (Incluído pela Lei nº 12.435,
de 2011) b) o amparo às crianças e aos adolescentes carentes; (Incluído
pela Lei nº 12.435, de 2011) c) a promoção da integração ao mercado de
trabalho; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011) d) a habilitação e reabilita-
ção das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida
comunitária; e (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011) e) a garantia de 1
(um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao
idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção
ou de tê-la provida por sua família; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
II - a vigilância socioassistencial, que visa a analisar territorialmente a ca-
pacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades,
de ameaças, de vitimizações e danos; (Redação dada pela Lei nº 12.435,
de 2011) III - a defesa de direitos, que visa a garantir o pleno acesso
aos direitos no conjunto das provisões socioassistenciais. (Redação dada
pela Lei nº 12.435, de 2011) Parágrafo único. Para o enfrentamento da
pobreza, a assistência social realiza-se de forma integrada às políticas
setoriais, garantindo mínimos sociais e provimento de condições para
atender contingências sociais e promovendo a universalização dos direi-
tos sociais. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011) (grifo nosso).

Importante trazer, a partir de reflexões, à baila as lições de Aldaíza Sposati do que

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vem a ser “mínimos sociais”:

No âmbito dos mínimos sociais, de acordo com a legislação internacio-


nal estão: as garantias de renda mínima às pessoas pouco capacitadas
para obter recursos da própria atividade do trabalho (velhice, invalidez,
deficiência); e às pessoas que, mesmo com idade/ situação ativa, não
alcançam autonomia de renda per capita na sociedade de mercado por
múltiplas situações desde o desemprego face à nova forma de regulação
produtiva até as características familiares, como famílias extensas, mono-
nucleares, em situações sujeitadas à discriminação pela sociedade, como
as de ex-presidiários, ex-drogados ou outras situações de exclusão social
que caracterizam a vulnerabilidade de minorias (Sposati, 2004, p. 130).

Como podemos perceber os fatores que levam o sujeito a sequer ter condições
mínimas de sobrevivência é muito mais amplo do que a própria renda, destacando-
se por exemplo a discriminação pela sociedade por diversas razões, o que impede o
cidadão de auferir renda capaz de manter-se com uma vida digna e a de sua família.
Oportuno ainda, trazer os ensinamentos de Walquíria Rego e Alessandro Pinzani
ao adentrar que a pobreza não deve ser avaliada apenas pelo critério da renda:

O problema de avaliar a pobreza só por meio do critério da renda é que


este último não diz tudo sobre o nível de bem-estar dos indivíduos. Por
exemplo, no caso de um Estado de bem-estar altamente desenvolvido
que oferece gratuitamente quase tudo aos cidadãos (educação, assistên-
cia de saúde, seguro-desemprego, auxílio para moradia, etc.), uma baixa
renda não implicaria necessariamente uma vida sem confortos, na qual as
necessidades básicas permanecem não satisfeitas. Por outro lado, se o
Estado não garante os serviços mencionados, até uma renda relativamen-
te elevada pode não ser suficiente para proteger os indivíduos de riscos
normalmente ligados à pobreza (pensa-se, por exemplo, no sistema de
assistência de saúde dos Estados Unidos: uma doença pode lavar à falên-
cia até membros da classe média, já que não há praticamente assistência
pública gratuita). A presença da renda estável não constitui, portanto, uma
garantia absoluta contra os problemas ligados à pobreza: estes se resol-
vem antes por meio de políticas públicas voltadas à satisfação de neces-
sidades básicas, quer diretamente (prestação de serviços básicos, quer
indiretamente (criação das condições nas quais os indivíduos conseguem
satisfazer suas carências básicas). (Rego, 2014, p. 157).

A autora ainda aduz que:

[...] Em resumo, pode-se afirmar que a pobreza deve ser considerada a


partir de uma perspectiva não somente econômica, que considera exclusi-
vamente a falta de renda ou sua insuficiência. Existem aspectos da pobreza
que podemos chamar de éticos, concernentes ao autorrespeito, às capabi-
lities e à autonomização. Todavia, o aspecto econômico ligado à presença

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de uma renda regular permanece uma condição imprescindível para a saí-


da da miséria, inclusive nos seus aspectos éticos [...] (Rego, 2014, p. 160).

Com efeito, as políticas públicas de Assistência Social são muito mais extensas e
seu rol é muito mais amplo do que apenas o olhar sobre a renda do indivíduo, cabendo
ao Estado o enfrentamento de políticas eficientes para reparar distorções, desigualdades
sociais e garantir ao cidadão necessitado, os mínimos sociais para viver com dignidade.
Infelizmente não é o que temos hoje.
Entender a pobreza como uma privação de capacidades básicas implica reconhecer
que a falta de acesso à educação, saúde, habitação adequada, segurança alimentar e
outros elementos essenciais pode ser tão crucial quanto a baixa renda. Dessa forma,
as políticas de combate à pobreza podem ser mais eficazes se forem concebidas para
abordar diversas dimensões da privação humana, proporcionando oportunidades para o
desenvolvimento integral das pessoas.
Assim, imperioso se faz pensar e refletir sobre políticas assistenciais eficientes e
eficazes ao mesmo tempo em que necessário repensar a miserabilidade ou pobreza absoluta
como mecanismo referencial para concessão do benefício assistencial da LOAS. Forçoso
e triste reconhecer discriminação do Estado para com o cidadão em situação de fragilidade
para que assim possamos repensar a miserabilidade como critério para concessão de
benefícios sugerindo uma possível crítica à rigidez desse critério. Pode indicar a necessidade
de considerar outros fatores além da renda absoluta, como condições de vida, acesso a
serviços básicos, entre outros, para uma avaliação mais abrangente da vulnerabilidade social.
A propósito, importante salientar a abordagem trazida por Maria Ozanira da Silva
e Silva em sua obra ao trazer a abordagem da pobreza com viés das necessidades
básicas: Ela refere o seguinte:

[...] ganha evidência nos anos 1970 a partir da crítica ao enfoque da sub-
sistência. Propôe-se superar a unidimesionalidade da pobreza de “sub-
sistência”, centrada na renda per capita e no Produto Interno Bruto, até
então utilizados para dimensionar o desenvolvimento. Então, a pobreza
passa a ser vista numa acepção multifacetada, incluindo um mínimo de
requerimentos para o consumo de uma família: comida, abrigo, roupas,
mobílias e equipamentos, sendo ainda acrescentado um grupo de neces-
sidades referente a serviços essenciais: água potável, serviços sanitários,
transporte público, saúde, educação e acesso a cultura. Nesse sentido, a
ideia de necessidades básicas situa-se no contexto do desenvolvimento
econômico social de uma nação (Silva, 2013, p. 20-21).

Parece-nos evidente, dessa forma, que a pobreza pode ser entendida como a
privação das capacidades básicas de um indivíduo e não como uma renda inferior ao
limite pré-determinado. Não obstante, tem-se que o cidadão para viver com mínimo
de dignidade necessita ter atendida as suas necessidades mais básicas a luz da
própria Constituição Federal e, nesse contexto, terá a intervenção estatal por meio da
Assistência Social para suprir essas necessidades básicas. Até quando a miserabilidade
vai predominar sobre as necessidades básicas do indivíduo?

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2.2 Grupo familiar e relevância de “mesmo teto” para fins de Benefício de Prestação
Continuada (BPC): Análise crítica dos critérios auferidos para (não) ter direito ao BPC
Assistencial

A Constituição Federal em seu artigo 203, V, determina que o Benefício Assistencial


será concedido aos idosos e para Pessoas com Deficiência que “comprovem não possuir
meios de manutenção ou de tê-la provido por sua família, conforme dispuser a Lei”.
Importante destacar que família é a base da sociedade trazida pela Carta Magna de
1988 em seu artigo 226, verbis:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


§1º O casamento é civil e gratuito a celebração.
§2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da Lei.
§3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre homem e mulher com entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento.
§4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes.

Por óbvio que é a família e depois o Estado que tem o dever de amparar pessoas
idosas, deficientes ou com dificuldades. Isso não se discute. Aliás, a própria Constituição
estabelece o dever da família no cuidado e alimentação para com as pessoas idosas,
sempre observando o binômio necessidade x possibilidade. Somente nos casos em que
a família não puder auxiliar, o Estado deve intervir. Vejamos o teor do artigo 230 do texto
constitucional: "Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar
as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua
dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida".
Pois bem. Mas o que seriam família e grupo familiar para fins de Benefício
Assistencial? A Carta de 88 não trouxe, em especial no artigo 203, V, qualquer menção do
conceito de família tampouco quem compunha o grupo familiar para fazer jus a prestação
assistencial, somente faz menção “ou de tê-la provido por sua família, conforme dispuser
a Lei”. Apenas com a Promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social – Lei 8.742/93
– e suas diversas alterações é que veio regulamentado, em especial no artigo 20, §1º
quem de fato compõe a família/núcleo familiar para fins de BPC, verbis:]

Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mí-


nimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco)
anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria ma-
nutenção nem de tê-la provida por sua família.  (grifo nosso). (Redação
dada pela Lei nº 12.435, de 2011) (Vide Lei nº 13.985, de 2020)
§ 1o Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo
requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de
um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos
e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob
o mesmo teto.   (grifou-se) (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011).

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Ora, percebe-se pelo rol taxativo do artigo acima transcrito que o dever de prover
e suprir as necessidades básicas do sujeito são da família, esta composta única e
exclusivamente pela composição do referido artigo, não estendida a outros membros do
núcleo familiar. Por sua vez, a Portaria Conjunta nº 3 de 20183 que “dispõe sobre regras
e procedimentos de requerimento, concessão, manutenção e revisão do Benefício de
Prestação Continuada da Assistência Social – BPC” corrobora no entendimento do rol
taxativo da composição familiar ao trazer, em seu artigo 8º, §1º, quem não compõe o
grupo familiar para efeito de cálculo da renda mensal familiar per capita, verbis:

Art. 8º Na fase de requerimento, as informações do CadÚnico serão uti-


lizadas para registro da composição do grupo familiar e da renda mensal
bruta familiar, conforme disposto no Decreto nº 6.214, de 2007, obede-
cendo aos seguintes procedimentos:
[...]
§ 1º Não compõem o grupo familiar, para efeitos do cálculo da renda
mensal familiar per capita: (grifo nosso)
I - o internado ou acolhido em instituições de longa permanência como
abrigo, hospital ou instituição congênere;
II - o filho ou o enteado que tenha constituído união estável, ainda que
resida sob o mesmo teto;
III - o irmão, o filho ou o enteado que seja divorciado, viúvo ou separado
de fato, ainda que vivam sob o mesmo teto do requerente; e IV - o tutor
ou curador, desde não seja um dos elencados no rol do § 1º do art. 20 da
Lei nº 8.742, de 1993.

Percebe-se, assim, que a renda mensal per capita para fins de BPC - embora
não concordemos a renda como único critério - deve ser auferida pela família composta
exclusivamente pelo núcleo estabelecido no artigo 20, §1º da Lei 8.742/93, pois entendeu
o legislador pela ideia de proteção e relação de apoio mútuo entre pessoas do mesmo
grupo, estabelecendo assim um elo de apoio e base familiar no que concerne aos deveres
e obrigações com a prestação de alimentos e suporte em caso de necessidade. Em
último e, somente em último caso, o Estado deve intervir.
A situação se torna catastrófica na medida em que, por um lado, o Estado deve
intervir em situação de necessidade não amparado pelo núcleo familiar, mas por outro,
não o faz. Grande parte dos Benefícios de Prestação Continuada são indeferidos na
esfera administrativa, em sua grande maioria, por não preencher os requisitos de
miserabilidade de ¼ do salário-mínimo. Por sua vez, o Poder Judiciário que, em tese,
teria de cumprir o que seria papel do Estado, acaba por restringir ainda mais os sujeitos
elegíveis ao BPC Assistencial, seja por entender extensivo o grupo familiar previsto na
legislação da LOAS, seja por não respeitar “desde que vivam sob o mesmo teto”.
Por falar em mesmo teto e a contrário sensu do que determina a legislação,
vejamos um caso prático e real:
Em certo caso, a Turma Recursal do Rio Grande do Sul confirmou a sentença

3
Disponível em https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/41971503/do1-
2018-09-24-portaria-conjunta-n-3-de-21-de-setembro-de-2018-41971236

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de improcedência ao não conceder o Benefício Assistencial para uma criança de 10


anos com síndrome rara (Sindrome de di George - interrupção arco aortico e CIV,
alterações neurológicas, nefrológicas e endocrinológicas). A deficiência foi devidamente
comprovada, porém, a mesma sorte não teve no que se refere ao critério econômico.
A Magistrada sentenciante entendeu, pasmem, embora residissem sob o mesmo teto
somente a criança e a mãe e a mesma mãe aufere cerca de R$ 300,00 a título de bicos
como massoterapeuta (Laudo Socioeconômico), o pai da criança, separado de fato e
NÃO RESIDENTE SOB O MESMO TETO, estaria ajudando na manutenção da escola
(R$ 850,00), bem como pagamento de plano de saúde, etc. Sem falar dos móveis em”
bom estado de conservação”.
Notem, leitores e leitoras. Estamos diante de um cenário cruel, caótico e de
retrocesso social muito grande, claramente com violação de preceitos constitucionais,
direitos humanos e dignidade humana. Entendemos, por oportuno trazer esse caso
para elucidar e mostrar a forma como a prestação Assistencial vem sendo encarada e
entendida.
Como já referido, a análise, no nosso entender, não deve ser apenas do critério
econômico, mas sim, multidimensional, levando em consideração fatores externos tais
como: políticos, sociais, culturais, econômicos e sociais. Porém, ainda que seja analisado
somente o critério econômico, ainda assim, não é feito de forma adequada. A Constituição
Federal traz que o sujeito que não tenha condições de prover o próprio sustento e nem o
ter por sua família faz jus ao BPC, bem como a Lei 8.742/93 determina quem é a família
e quem compõe o grupo familiar num rol taxativo para fins de se obter o Benefício, além
de impor que vivam debaixo do mesmo teto (artigo 20, §1º Lei 8.742/93).
Ora, parece bastante claro que, ao analisar rendas externas de pessoas que sequer
residam sob o mesmo teto, ou analisar texto legal diverso que não da LOAS, estaria
violando claramente princípios constitucionais e da própria segurança jurídica, além de
incorrer em erro com objetivo claro de negar a prestação do Benefício Assistencial.
Se por um lado, a Carta Constitucional sequer é utilizada para fins de se auferir a
necessidade do BPC Assistencial, levando tão somente em conta o critério econômico
previsto na legislação infraconstitucional da LOAS, porque no que se refere ao grupo
familiar e ao conceito deste, a legislação infraconstitucional não tem valor algum? Onde
está a segurança jurídica das pessoas em situação de vulnerabilidade social? O grupo
familiar poderia ser extensivo a avós, primos, tios, sobrinhos, netos etc.? Nos parece
claramente que não. As pessoas que compões o grupo familiar de acordo com a Lei
8.742/93 é taxativo e, somente essas pessoas é que podem ter suas rendas avaliadas
no cômputo da renda per capita e, ainda, desde que residam sob o mesmo teto. Caso
não seja assim, jamais poderão entrar na renda familiar.
Contudo, pode-se extrair que família para fins de BPC são as pessoas e, somente
estas, que vivam debaixo do mesmo teto de acordo com o rol taxativo do artigo 20, 13º
da Lei da LOAS.

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3 SEDIMENTAÇÃO DA PERÍCIA BIOPSICOSSOCIAL PARA FORTALECIMENTO DA


SEGURANÇA DE BENEFÍCIOS ASSISTENCIAIS

Para fazer jus ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) necessário as presenças


de 2 (dois) requisitos cumulativamente: comprovar o cidadão possuir uma deficiência e/
ou ser idoso com 65 anos ou mais, bem como em ambos se exige a comprovação de não
possuir meios de prover a sua própria manutenção e nem a ter provido por sua família ou
como quer impor a Lei 8.742/93, possuir renda igual ou inferior a ¼ do salário-mínimo.
Importante trazer a baila o que vem a ser a perícia biopsicossocial estudada neste
tópico e que aqui defendemos. Perícia Biopsicossocial nada mais é do que um modelo de
perícia complexa onde a análise conjunta do sujeito por equipe multidisciplinar (perito
médico e assistente social/perito social conjugando-se para isso a análise conjunta da
CID -10 e CIF (Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde),
esse vem a ser o modelo biopsicossocial adotado.
De fato, houve grandes avanços com relação ao modelo pericial adotado, em
especial com a entrada em vigor do CPC/2015 e, ainda com entrada em vigor da Lei
nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) que em seu artigo 2º, §1º traz o
seguinte:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimen-


to de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o
qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua partici-
pação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as
demais pessoas.
[...]
§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicosso-
cial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e con-
siderará: (Vigência) (Vide Decreto nº 11.063, de 2022) (Grifou-se) I - Os
impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; II - Os fatores so-
cioambientais, psicológicos e pessoais; III - a limitação no desempenho
de atividades; e IV - A restrição de participação. (grifo nosso).

Percebe-se que o grande avanço que tivemos, em especial a partir do novo CPC,
a partir de um novo modelo de perícia a ser adotada na análise conjunta dos indivíduos
que buscam proteção do estado e estão em situação de extrema vulnerabilidade social.
José Ricardo Caetano Costa entende que:

[...] Se a perícia médica, por si só, não é suficiente para avaliar os demais
componentes que extrapolam o mero aspecto fisiológico e patológico,
somente uma avaliação social poderá permitir o conhecimento das outras
condições que circundam o indivíduo. Estas condições, que na CIF-2001,
como vimos, é melhor detalhada, a jurisprudência vem simplificando na
expressão “condições pessoais e sociais”. Por certo que os peritos médi-
cos não possuem habilidades e competências, muito menos disposição,
para enfrentar a realidade social, in locu, e fazer um detalhado estudo
da realidade concreta dos segurados/autores, em sua mediação com o

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meio ambiente em que vivem, suas interpelações pessoais e sociais, sua


interação com a comunidade , o acesso às demais políticas de proteção
social, a acessibilidade informacional, as suas atitudes, entre outros ele-
mentos de igual importância neste contexto (Costa, 2022, p. 103-104).

Já, Wladimir Novaes Martinez entende que:

A perícia biopsicossocial coloca em prática o princípio constitucional da


igualdade ou isonomia de que todos são iguais perante a lei, presente no
art. 5º de nossa Carta Magna, acrescentando com a preciosa observação
de Ruy Barbosa que já dizia que regra da igualdade é tratar desigualmen-
te os desiguais na medida em que se desigualam.
[...] Perícia médica biopsicossocial ou complexa – avaliação conjunta da
perícia médica com perícia social, realizada por médico perito, com emis-
são de parecer técnico conclusivo da capacidade laboral. A perícia biop-
sicossocial é devida para todo e qualquer brasileiro ou estrangeiro que
demonstre por meio de provas dela necessitar (Martinez, 2017, p. 20-36).

A perícia biopsicossocial desempenha um papel fundamental na avaliação e


concessão do BPC, eis que permite analisar o indivíduo em um contexto médico, mas
também social, cultural, ambiental e pessoal. Deste modo, deixa-se de observar apenas
o critério econômico para observar as condições pessoais e de vida dos candidatos,
gerando uma análise mais justa e fiel das condições do indivíduo. A perícia biopsicossocial
reconhece que a saúde e o bem-estar de um indivíduo não são determinados apenas
por fatores biológicos, motivo pelo qual busca uma compreensão mais ampla de um
indivíduo como um sistema complexo influenciado por aspectos psicológicos e sociais.
Isso permite que os profissionais da assistência social obtenham uma compreensão mais
abrangente dos indivíduos, considerando não apenas sua saúde física, mas também seu
estado mental e contexto social.
Nesse viés, a perícia biopsicossocial atua como uma poderosa ferramenta para
identificação de problemas. A sua abordagem multifacetada permite aos profissionais
aprofundar-se nos fatores subjacentes que contribuem para as dificuldades dos
indivíduos. Ao reunir informações não apenas sobre a saúde física, mas também sobre
aspectos psicológicos e sociais, a avaliação proporciona uma compreensão abrangente
dos desafios dos indivíduos. Conforme menciona Silva (2013), a pobreza não é marcada
somente pela ausência de recursos econômicos, devendo ser observada através de uma
acepção multifacetada, a qual inclui acesso à alimentação adequada, moradia, água
potável, saúde e educação, entre outros.
Ao manter-se a exigência do critério econômico, gera-se desproteção, eis que, na
prática, o benefício deixa de ser concedido aos necessitados, conforme determina o texto
constitucional, e passa a ser concedido apenas aos miseráveis - conforme menciona
Serau (2014), destina-se de forma estrita a quem sobrevive. Tal situação acaba por gerar
o descumprimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que
incluem a erradicação da pobreza e da marginalização, e a redução das desigualdades
sociais.

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O BPC assistencial não é apenas um direito social, mas também um direito humano,
que visa garantir que todas as pessoas, independentemente de sua condição de saúde
ou deficiência, tenham direito a uma vida digna e ao acesso a recursos básicos. Por esse
motivo, entendemos que a perícia biopsicossocial é fundamental para que o BPC seja
concedido de forma justa e que atenda às necessidades em condição de vulnerabilidade
no Brasil, contribuindo para a promoção da dignidade, dos direitos humanos e da inclusão
social desses indivíduos.

4 CONCLUSÃO

Diante da complexidade das questões relacionadas à renda per capita e à miséria,


a perícia biopsicossocial emerge como uma técnica multidisciplinar essencial para a
proteção do grupo familiar vulnerável. Ao considerar não apenas aspectos econômicos,
mas também elementos biológicos, psicológicos e sociais, essa abordagem proporciona
uma compreensão abrangente das condições enfrentadas por essas famílias.
A análise da renda per capita isoladamente pode ser insuficiente para capturar a
totalidade das circunstâncias vivenciadas pelos grupos vulneráveis. A miséria, muitas
vezes, está intrinsecamente ligada a fatores como saúde mental, educação, acesso a
serviços básicos e oportunidades de emprego. A perícia biopsicossocial, ao integrar
diversas disciplinas, permite uma avaliação holística, identificando não apenas os
sintomas evidentes, mas também as raízes subjacentes dos problemas enfrentados
pelos indivíduos e suas famílias.
Essa abordagem oferece um caminho para a formulação de políticas públicas mais
eficazes e intervenções direcionadas, reconhecendo a interconexão entre os diferentes
aspectos da vida humana. A proteção do grupo familiar vulnerável não deve se restringir
apenas à mitigação dos desafios econômicos imediatos, mas também visar à promoção
de condições que permitam um desenvolvimento sustentável e a melhoria da qualidade
de vida a longo prazo.
Portanto, concluímos que a utilização da perícia biopsicossocial é não apenas
justificada, mas crucial para compreender e abordar adequadamente as questões
relacionadas à renda per capita e à miséria, contribuindo para a construção de sociedades
mais equitativas e inclusivas.

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TELLES, Rodrigo. Manual do BPC LOAS. 2. ed. São Paulo: Edição do Autor, 2023.

Data de submissão: 15 dez. 2023. Data de aprovação: 29 mar. 2024.

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[Regime Judicial Previdenciário]

OS MÉTODOS EXTRAJUDICIAIS DE SOLUÇÃO E CONTROVÉRSIAS


COMO GARANTIA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE ATRAVÉS DO
ACESSO À JUSTIÇA

Lucas Dornellos Gomes dos Santos1


Andréa Carla de Moraes Pereira Lago2

Resumo
Este artigo propõe uma análise abrangente dos direitos da personalidade, examinando
suas evoluções históricas, princípios fundamentais e categorias específicas. Os
direitos da personalidade são elementos essenciais na proteção da dignidade
humana, abrangendo aspectos íntimos da vida de um indivíduo, como sua integridade
física, privacidade e imagem. Além disso, o estudo destaca os desafios relacionados
ao acesso à justiça na busca por proteger esses direitos. A via tradicional de justiça
frequentemente apresenta morosidade e custos substanciais, tornando-se inacessível
para uma parcela significativa da população. Nesse contexto, o artigo explora os
métodos extrajudiciais de solução de conflitos (MESC’s) como uma alternativa
eficaz e acessível para a proteção dos direitos da personalidade. A mediação e a
arbitragem são destacadas como meios que promovem a resolução de disputas
de forma ágil e respeitosa, permitindo que as partes envolvidas desempenhem um
papel ativo na busca por soluções. Foi utilizado como metodologia a abordagem
dedutiva, por procedimentos comparativos e de revisões históricas, fundamentando-
se na bibliografia nacional e estrangeira. Ao final do artigo espera-se constatar os
MESC’s enquanto instrumento de efetividade dos direitos da personalidade por sua
característica de facilitadora do acesso à justiça.
Palavras-chave: Direitos da Personalidade. MESC’s. Acesso à Justiça.

THE EXTRAJUDICIAL METHODS OF DISPUTE RESOLUTION AS A


GUARANTEE OF PERSONALITY RIGHTS THROUGH ACCESS TO JUSTICE

Abstract
This article proposes a comprehensive analysis of personality rights, examining their

1
Possui graduação em Direito pela Faculdade Maringá (2015), Pós-Graduação em Direito Penal e
Direito Processual Penal pelo Instituto Paranaense de Ensino Superior (2017) e Mestrado em direitos
da Personalidade pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ) da Universidade
Cesumar (UNICESUMAR), com enfoque nos instrumentos de efetivação dos direitos da personalidade. É
advogado particular - Dornellos e Santos Advocacia e Coordenador do de PROCON Sarandi/PR.
2
Possui Graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (1992); Pós-Graduação “Lato Sensu”
em Direito Civil e Processual Civil pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas Sócio-Econômicos
(1998); Mestrado em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá (2011); Doutorado em
Ciências Jurídicas pela Universidade do Minho, Portugal (2019); É Professora Permanente do programa
de Mestrado e Doutorado em Ciências Jurídicas da universidade Unicesumar (2021); Docente do curso de
graduação em Direito da universidade UNICESUMAR (2008).

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historical developments, fundamental principles, and specific categories. Personality


rights are essential elements in the protection of human dignity, encompassing
intimate aspects of an individual’s life such as physical integrity, privacy, and image.
Furthermore, the study highlights the challenges related to access to justice in the
pursuit of safeguarding these rights. The traditional path to justice often presents
delays and substantial costs, rendering it inaccessible to a significant portion of
the population. In this context, the article explores Extrajudicial Methods of Dispute
Resolution (EMDRs) as an effective and accessible alternative for the protection of
personality rights. Mediation and arbitration are emphasized as means that promote
the swift and respectful resolution of disputes, allowing the involved parties to play an
active role in seeking solutions. The deductive approach was used as the methodology,
employing comparative procedures and historical reviews, grounded in both national
and foreign literature. At the end of the article, it is expected to demonstrate the role
of EMDRs as an instrument for the effectiveness of personality rights due to their
facilitating characteristic in ensuring access to justice.
Keywords: Personality Rights. EMDRs. Access to Justice.

1 INTRODUÇÃO

Compreender a complexidade e a importância dos direitos da personalidade é


fundamental para garantir a proteção dos aspectos mais íntimos e essenciais da vida de
um indivíduo, como sua integridade física, privacidade e imagem. A análise desses direitos
ao longo do tempo revela uma evolução significativa em resposta às mudanças sociais
e legais, destacando sua relevância em nossa sociedade em constante transformação.
No entanto, o acesso à justiça, um componente essencial para a efetivação desses
direitos, enfrenta desafios significativos. A via tradicional de busca por justiça muitas
vezes é caracterizada por procedimentos morosos e custos substanciais, tornando-
se inacessível para uma parte considerável da população. Essa realidade cria uma
disparidade injusta, onde a proteção dos direitos da personalidade torna-se um privilégio
em vez de um direito universal.
Neste contexto, os métodos extrajudiciais de solução de conflitos emergem como
uma solução viável e alternativa. A mediação e a arbitragem, por exemplo, proporcionam
um caminho mais eficaz e acessível para a resolução de disputas relacionadas a
esses direitos. A mediação facilita a comunicação direta entre as partes, promovendo
entendimento mútuo e acordos consensuais. A arbitragem oferece um processo ágil e
flexível, com a possibilidade de árbitros especializados no assunto em questão.
A presente pesquisa tem por intuito analisar a compreensão dos direitos da
personalidade enquanto garantia da dignidade humana, bem como sua tutela através
do acesso à justiça, ocorre que esses métodos tradicionais por muitas vezes não são
acessíveis à toda população, devido à morosidade e custos da via tradicional, portanto,
há a necessidade de alternativas eficazes e acessíveis. Os métodos extrajudiciais de
solução de conflitos representam uma resposta valiosa, permitindo que todos possam
efetivamente proteger seus direitos da personalidade de maneira justa e equitativa. Isso
contribui para uma sociedade mais justa, onde a dignidade humana é verdadeiramente
respeitada e protegida.

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2 DIREITOS DA PERSONALIDADE E DIGANIDADE HUMANA

Os direitos da personalidade têm como principal objetivo proteger a dignidade e


a integridade da pessoa humana em sua dimensão individual. Eles são considerados
como direitos fundamentais e são essenciais para a garantia da liberdade, autonomia e
identidade das pessoas. A proteção desses direitos visa assegurar que cada indivíduo
seja tratado com respeito e consideração, preservando sua dignidade como ser humano.
No que diz respeito à origem dos direitos da personalidade, a perspectiva de que
esses direitos se originam do jusnaturalismo prevalece. Os direitos da personalidade
emergem dos valores fundamentais e, como tal, precedem o próprio sistema legal.
Essa visão busca destacar a importância da proteção dos direitos da personalidade,
servindo como um impedimento contra qualquer tentativa do Estado de aniquilar esses
direitos. (Gonçalves, 2010). Estão intrinsecamente ligados aos direitos humanos, e essa
relação é fundamental para compreender a importância e a interdependência desses
dois conceitos no contexto do ordenamento jurídico internacional e nacional.
Os direitos humanos são princípios universais que garantem a dignidade e a
liberdade de todas as pessoas, independentemente de sua nacionalidade, raça, gênero
ou qualquer outra característica. Esses direitos são inerentes à condição humana e
devem ser respeitados e protegidos por todos os Estados e sociedades. Os direitos
humanos abrangem uma ampla gama de direitos e liberdades, como o direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à não discriminação, à liberdade de expressão e à privacidade,
entre outros.
Historicamente, os Direitos Humanos representam um conjunto de prerrogativas
e instituições que, em determinados momentos da história, materializam as demandas
essenciais de dignidade, liberdade e igualdade para a humanidade. Essas exigências são
gradualmente reconhecidas pelos sistemas jurídicos em âmbito nacional e internacional,
refletindo os avanços políticos e sociais dos Estados. À medida que os governos
incorporam progressivamente normas de proteção da pessoa humana, esses direitos são
expandidos para se tornarem normas internacionais. Nesse processo evolutivo, surgem
diversos documentos legais e jurídicos que garantem e salvaguardam a dignidade
da pessoa humana. Exemplos notáveis incluem a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948), a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), bem como organizações como
Anistia Internacional, a Comissão Internacional dos Juristas e o Instituto Interamericano
de Direitos Humanos. Essas entidades desempenham um papel crucial na promoção e
defesa dos Direitos Humanos em todo o mundo, contribuindo para a consolidação de
princípios universais que transcendem fronteiras e culturas. (Mello, 2011).
O princípio da dignidade da pessoa humana é o fundamento do estatuto jurídico
dos indivíduos, abrangendo direitos individuais e universais, reconhecendo a autonomia
de cada ser humano. Esse princípio é a base de todos os direitos constitucionais, incluindo
os tradicionais, políticos, dos trabalhadores e de participação social. No entanto, alguns
direitos, como vida, liberdade física e de consciência, são considerados de primeiro grau
na proteção da dignidade humana, tendo a função principal de preservar essa dignidade
essencial. (Sarlet, 2009).
A dignidade da pessoa humana é um princípio com atributos de inalienabilidade

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e indivisibilidade, refletindo o reconhecimento de que o ser humano deve ser o principal


foco da ordem jurídica. Ela representa um conjunto de valores que incorpora os direitos
individuais, sociais e políticos de todos os cidadãos. (Bobbio, 2002, p.54).
Os conceitos de intransmissibilidade e irrenunciabilidade, derivados das
características extrapatrimoniais e da inalienabilidade dos direitos da personalidade
conforme o artigo 11 do Código Civil de 2002, implicam na impossibilidade de
transferência ou renúncia dos direitos da personalidade. A intransmissibilidade significa
que esses direitos não podem ser transferidos ou sucedidos hereditariamente, pois toda
transmissão envolve a substituição pessoal, o que entra em conflito com esses direitos.
No entanto, há exceções que permitem a cessão de aspectos específicos dos direitos
em circunstâncias particulares, como a cessão do direito autoral para divulgação de uma
obra. A inalienabilidade impede a venda ou transferência desses direitos e só pode ser
renunciada ou restringida com autorização legal expressa. (Amaral, 2003, p.248).
Por sua vez, os direitos da personalidade são uma categoria específica de direitos
que se concentram na proteção da individualidade e da dignidade das pessoas em sua
dimensão individual. Esses direitos incluem o direito à vida, à integridade física e moral,
à imagem, à privacidade, à honra e outros atributos que compõem a identidade única de
cada indivíduo.
Os direitos da personalidade visam proteger a integridade do indivíduo em três
principais categorias: integridade física (incluindo vida, corpo e partes separadas),
integridade intelectual (envolvendo liberdade de pensamento e autoria) e integridade
moral (abarcando conceitos como honra, segredos e identidade). No entanto, é
importante ressaltar que essa lista de direitos de personalidade serve apenas como
exemplo ilustrativo. Quando se trata da personalidade humana, não é apropriado
falar em exaustividade ou limitação de direitos. Não devemos restringir os direitos de
personalidade, pois eles representam o mínimo necessário para garantir a dignidade da
existência humana.
Com efeito, a personalidade, sendo um bem jurídico intrinsecamente ligado ao
ser humano, desempenha um papel fundamental na proteção de outros bens jurídicos.
A personalidade representa a soma das características individuais de uma pessoa, e é
através da expressão dessa personalidade que o indivíduo pode adquirir e salvaguardar
outros direitos, como a vida, a liberdade e a honra. Os direitos que derivam da defesa
desses direitos fundamentais, como consequência da própria personalidade, são
conhecidos como direitos da personalidade. Em resumo, esse campo do direito visa
proteger os bens mais essenciais do indivíduo (Szaniawski, 2002, p. 35).
Um dos direitos mais fundamentais é o direito à vida, que garante a preservação da
vida da pessoa. Além disso, os direitos da personalidade incluem o direito à integridade
física e moral, que protege a pessoa contra agressões físicas e morais, proibindo, por
exemplo, a tortura e tratamentos cruéis ou degradantes.
O direito à imagem é outro componente importante desses direitos. Ele envolve o
direito de controlar o uso de sua imagem, impedindo sua reprodução não autorizada. A
privacidade também é protegida, assegurando a preservação da esfera íntima da pessoa,
o sigilo da correspondência e a confidencialidade de informações pessoais.
Além disso, o direito à honra está entre os direitos da personalidade, garantindo a
proteção da reputação e da dignidade da pessoa contra calúnias, difamações e injúrias.

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Esses direitos são inalienáveis e imprescritíveis, ou seja, não podem ser vendidos ou
perdidos com o tempo, sendo essenciais para a preservação da dignidade e dos valores
humanos.
Os Direitos da Personalidade têm suas raízes na perspectiva dos jusnaturalistas
franceses e alemães, que os consideram inerentes à condição humana, independentemente
do reconhecimento estatal. De acordo com De Plácido e Silva, a personalidade é definida
como um “conjunto de elementos próprios ou inerentes à pessoa, que a diferencia
morfológica, fisiológica e psicologicamente de qualquer outro” (Silva, 2007, p.1035). Isso
implica que a personalidade, como um atributo intrínseco, confere à pessoa a capacidade
de ser reconhecida como sujeito de direitos e deveres, ou seja, a personalidade jurídica.
Sob a perspectiva dos direitos da personalidade, a capacidade de ser titular de
direitos e deveres é o aspecto subjetivo, enquanto o aspecto objetivo abrange o conjunto
de características e atributos da pessoa, que merecem proteção legal. A Constituição
Federal, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como um de seus princípios
fundamentais, eleva a personalidade (inerente) à mesma dignidade, conferindo, por
consequência, aos direitos da personalidade um status inalienável e inerente à condição
humana.
Elimar Szaniawski também enfatiza a natureza intrínseca da personalidade,
descrevendo-a como “o conjunto de características próprias do indivíduo” (Szaniawski,
2005, p. 70). Ele identifica alguns dos direitos da personalidade, como a vida, a liberdade
e a honra, destacando a estreita conexão entre a dignidade da pessoa humana e os
direitos da personalidade.
Os direitos da personalidade encontram-se respaldados na Constituição Federal,
que estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais
do país (Artigo 1º, III/CF). Além disso, a Constituição garante a inviolabilidade de direitos
como vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade (Artigo 5º, caput/CF) (Cortiano
Junior, 1998, p. 47). A Constituição também antecipou possíveis formas de violação
dos direitos da personalidade, como o direito à informação e à escolha, indicando a
necessidade de criar um código para proteger os indivíduos contra tais agressões.
Ao reconhecer na Constituição o direito do ser humano à preservação de sua
dignidade e à livre expansão de sua personalidade, o direito geral da personalidade deve
ser considerado como um dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição.
Além da cláusula geral que resguarda a personalidade, derivada do princípio da
dignidade da pessoa humana, o sistema jurídico brasileiro também assegura outros
direitos específicos da personalidade que são explicitados na própria Constituição e
na legislação que a complementa. Todos esses direitos coexistem e operam de forma
harmoniosa. (Szaniawski, 2005. p. 31).
Compreendendo a importância fundamental dos direitos da personalidade, torna-
se imperativo que sua proteção seja constante e prioritária. A evolução necessária desses
direitos e sua garantia plena só podem ser alcançadas por meio do contínuo trabalho e
do desenvolvimento da jurisprudência. A jurisprudência, ao utilizar analogia e princípios
gerais do Direito, desempenha um papel essencial na proteção dos direitos inerentes
à pessoa humana, independentemente de sua tipificação pelo legislativo ou de sua
classificação pelos estudiosos do Direito. Este processo dinâmico de desenvolvimento
legal garante que os direitos da personalidade permaneçam eficazes e relevantes,

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adaptando-se às mudanças na sociedade e nas relações humanas, garantindo assim a


proteção da dignidade de cada indivíduo.
Os direitos da personalidade, marcados pela intransmissibilidade e
irrenunciabilidade, desempenham um papel fundamental na proteção da dignidade
humana. Eles asseguram que cada indivíduo seja tratado com respeito e consideração,
independentemente de circunstâncias externas. Ao proibir a transferência e renúncia
irrestrita desses direitos, a lei reconhece a importância intrínseca da dignidade humana,
garantindo que nenhum ser humano seja reduzido a mera mercadoria ou objeto de
negociação. Esses princípios essenciais ajudam a manter a integridade e o valor de
cada pessoa, contribuindo para uma sociedade que promove a igualdade, a liberdade e
o respeito pelos direitos fundamentais de todos os seus membros.

3 MÉTODOS EXTRAJUDICIAIS DE SOLUÇÃO E CONTROVÉRSIAS

A prática predominante na sociedade brasileira mostra que muitas pessoas


recorrem ao poder judiciário para resolver uma grande parcela dos problemas e conflitos
decorrentes das interações sociais. Isso se deve, em parte, à falta de conhecimento
sobre alternativas disponíveis e à crença de que a via judicial é a única opção eficaz. No
entanto, essa tendência está sinalizando a necessidade de mudanças significativas e
imediatas no sistema de justiça.
O crescente aumento na complexidade e diversidade das relações sociais tem
destacado a inadequação e, mais crucialmente, a insuficiência dos recursos e instituições
existentes, que muitas vezes operam de maneira inflexível na resolução de disputas. Essa
desconexão entre o núcleo do direito material e sua aplicação prática é evidenciada pela
dificuldade em assegurar a efetiva implementação das normas de proteção. Portanto, é
imperativo que se busquem alternativas e reformas para tornar o sistema de justiça mais
acessível e eficiente, de modo a atender às necessidades da sociedade em constante
evolução.
Neste contexto, existem duas principais abordagens para melhorar essa situação.
A primeira se concentra na reforma do sistema judiciário, buscando soluções dentro do
próprio Judiciário. Isso envolve a revisão da estrutura do processo e do próprio sistema
judicial, incluindo iniciativas como as previstas no atual Código de Processo Civil, o
fortalecimento dos Juizados Especiais e a promoção da política nacional de conciliação,
entre outras medidas. A segunda abordagem destaca as soluções alternativas, com
ênfase na resolução extrajudicial. Isso inclui o aconselhamento comunitário e a criação
de órgãos comunitários que promovam maior acessibilidade e participação social na
resolução de conflitos. É importante ressaltar que essas duas abordagens não são
mutuamente exclusivas, pois podem se complementar para melhorar o sistema de justiça
como um todo. (Muniz, 2004, p.55).
A importância de um sistema jurídico mais descomplicado é indiscutível. Um
sistema legal simplificado torna o acesso à justiça mais acessível e eficiente para todos
os cidadãos, independentemente de sua formação educacional ou recursos financeiros.
Isso promove a igualdade perante a lei e contribui para uma sociedade mais justa. Além
disso, um sistema menos complexo pode reduzir a carga sobre o Poder Judiciário,
acelerando a resolução de disputas e economizando recursos públicos. Simplificar

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procedimentos legais e linguagem jurídica também pode melhorar a compreensão das


leis pelos cidadãos, promovendo a conformidade e a cidadania consciente. Cappelletti
e Garth sustentam a noção da necessidade de um sistema jurídico mais simplificado e
apresentam uma análise a respeito desse assunto:

Nosso Direito é frequentemente complicado e, se não em todas, pelo


menos na maior parte das áreas, ainda permanecerá assim. Precisamos
reconhecer, porém, que ainda subsistem amplos setores nos quais a sim-
plificação é tanto desejável quanto possível. Se a lei é mais compreen-
sível, ela se torna mais acessível às pessoas comuns. No contexto do
movimento de acesso à justiça, a simplificação também diz respeito à
tentativa de tornar mais fácil que as pessoas satisfaçam as exigências
para a utilização de determinado remédio jurídico. (Cappelletti, 1998).

Os métodos extrajudiciais de solução de controvérsias são alternativas ao processo


judicial convencional para resolver disputas legais. Eles oferecem abordagens mais
flexíveis e eficientes para lidar com conflitos entre partes, visando economizar tempo,
recursos e, muitas vezes, preservar relacionamentos interpessoais. Esses métodos
incluem negociação, mediação, conciliação e arbitragem.
Esses métodos extrajudiciais são importantes porque oferecem alternativas mais
acessíveis e eficazes para a resolução de disputas, aliviando a carga do sistema judicial
e promovendo uma resolução mais rápida e menos onerosa de conflitos. No entanto,
a escolha do método apropriado depende da natureza da disputa e das preferências
das partes envolvidas. É importante observar que, em muitos sistemas legais, a lei e as
partes geralmente incentivam a tentativa de resolver disputas por meio desses métodos
antes de recorrer ao processo judicial.
Nos meios extrajudiciais de solução de conflitos (Mesc), como arbitragem,
conciliação, negociação e mediação, não são exclusivos, permitindo sua utilização
combinada ou sequencial para uma resolução mais eficaz. No entanto, é crucial tomar
cuidado na arbitragem e mediação para evitar parcialidade devido à atuação sucessiva
de uma pessoa como árbitro e mediador. Portanto, a separação clara das funções é
prudente para garantir imparcialidade. Esses meios oferecem vantagens sobre o sistema
judicial, promovendo maior acesso e justiça para os cidadãos.
Com o objetivo de assegurar ao cidadão comum um amplo e qualitativo acesso ao
Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, preservar os princípios da efetividade e da igualdade
na prestação de serviços aos usuários, foram introduzidos métodos alternativos de
acesso à justiça, baseados na perspectiva do consenso e da busca pela harmonização
social. Os métodos extrajudiciais de resolução de controvérsias incluem a negociação,
a arbitragem, a conciliação e a mediação como os principais meios de abordagem de
conflitos (Cesca; Nunes, 2006).
A conciliação é um método alternativo de resolução de disputas que envolve a
intervenção de um terceiro imparcial, conhecido como conciliador. O conciliador auxilia
as partes em conflito a chegarem a um acordo mutuamente aceitável. No entanto, ele
não emite uma decisão nem impõe uma solução. A conciliação é voluntária, e as partes
têm total controle sobre o processo e o resultado. No Brasil, a conciliação é incentivada

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e regulamentada pelo Código de Processo Civil (CPC), que estabelece a sua utilização
no âmbito judicial, especialmente nos Juizados Especiais e na Justiça do Trabalho.
A mediação é outro método alternativo de resolução de conflitos que envolve a
atuação de um mediador imparcial. O mediador facilita a comunicação entre as partes em
disputa e as ajuda a identificar suas necessidades e interesses subjacentes. O mediador
não toma decisões, mas auxilia as partes na busca de uma solução consensual. A
mediação é um processo voluntário e confidencial. No Brasil, a mediação é regulamentada
pela Lei de Mediação (Lei 13.140/2015) e também é incentivada como meio de resolução
de conflitos em diversas áreas, incluindo a judicial, a escolar e a comunitária.
A arbitragem é um método alternativo de resolução de disputas em que as partes
envolvidas concordam em submeter a controvérsia a um árbitro ou a um painel de árbitros.
O árbitro emite uma decisão, chamada de sentença arbitral, que é vinculativa e tem força de
lei. A arbitragem é considerada um processo mais formal do que a conciliação e a mediação,
e as partes renunciam ao acesso ao Poder Judiciário para resolver o litígio. No Brasil, a
arbitragem é regulamentada pela Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996) e é frequentemente
utilizada em disputas comerciais e contratuais. A arbitragem, assim como no sistema judicial
tradicional, é reconhecida como um mecanismo de heterocomposição, onde um terceiro ou
um painel de árbitros assume a responsabilidade de resolver o litígio apresentado pelas
partes por meio de sua vontade, conforme afirmado por Cahali (2012, 38). Nesse processo,
a decisão do árbitro prevalecerá sobre as partes envolvidas na disputa.
É inegável que, por um longo período, a heterocomposição e a autocomposição
eram vistos como métodos típicos de sociedades primitivas e tribais, enquanto o sistema
jurisdicional tradicional era considerado uma conquista inegável da civilização. Contudo,
atualmente, observamos um renovado interesse por alternativas ao processo judicial,
que têm a capacidade de evitar ou acelerar o processo, embora não necessariamente o
excluam. (Grinover, 2008).
Portanto, é correto afirmar que na autocomposição, as próprias partes assumem o
papel de juízes em sua contenda, uma vez que detêm o poder de decisão sobre o conflito
em questão. Mesmo quando há a participação de um terceiro imparcial, sua função é a
de um facilitador na resolução das divergências, agindo como um mediador neutro. Esse
terceiro não emite julgamentos, mas desempenha um papel de assistência, propondo
opções e soluções para a celebração de um acordo. Sua intervenção é pautada pela
imparcialidade, não envolvendo qualquer tomada de decisão que afete o resultado final
da disputa, permitindo assim que as partes mantenham o controle sobre o processo de
resolução.
A desjudicialização de disputas é uma tendência presente no sistema legal brasileiro.
Isso se traduz em uma tentativa de tornar mais ágil o sistema judiciário nacional, visando
remover do âmbito da burocracia judicial certos conflitos que podem ser resolvidos por
meio de acordos consensuais. Com a promoção da mediação, conciliação e outros
métodos extrajudiciais de resolução de disputas, o sistema jurídico almeja oferecer às
partes envolvidas uma alternativa viável e menos onerosa para a resolução de suas
controvérsias. Dessa forma, não apenas se agiliza o processo de solução de disputas,
mas também se fortalece a cultura da busca por acordos e consensos, contribuindo para
a redução do congestionamento dos tribunais e para uma administração de justiça mais
eficaz. (Cappelletti, 2015).

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É relevante observar que, devido ao grande volume de ações diariamente


apresentadas nos fóruns e tribunais, o que frequentemente leva a processos demorados,
é fundamental explorar novos métodos de administração de justiça para promover a
utilização ampla de práticas de resolução consensual, como mediação, conciliação
e arbitragem. Antes de recorrer ao sistema judiciário, é plenamente viável realizar
audiências de conciliação ou mediação, nas quais as partes podem analisar e resolver
suas controvérsias com o auxílio de um terceiro imparcial. A conciliação e a mediação
podem ser aplicadas em diversas situações, incluindo conflitos entre vizinhos e questões
familiares, nas quais a participação de membros da comunidade pode facilitar a tentativa
de conciliação e evitar a apresentação de ações judiciais. (Torres, 2005).
Os métodos de resolução de conflitos alternativos têm como objetivo oferecer às
partes envolvidas a liberdade de expressar seus pensamentos e sentimentos por meio
da mediação do facilitador. Eles facilitam o diálogo e o processo de tomada de decisão,
ao mesmo tempo em que fortalecem o potencial de crescimento das pessoas, promovem
a restauração de relacionamentos após conflitos e reduzem a conflituosidade, indo além
da simples resolução judicial das disputas.
A mediação é um processo autocompositivo em que partes em conflito recebem
ajuda de uma terceira parte neutra ou de um grupo imparcial para buscar uma solução
consensual. As partes têm flexibilidade para negociar, com a orientação do mediador,
podendo suspender ou retomar as negociações. Não há obrigação de chegar a um
acordo, e todas as opções são consideradas. Para promover um ambiente de diálogo e
respeito mútuo, o mediador utiliza várias teorias, técnicas e princípios éticos, como teoria
do conflito, compreensão das espirais do conflito, teoria dos jogos, construção de rapport
e pensamento humanista. Tradicionalmente, o conflito era visto como algo negativo nas
relações sociais, mas a abordagem moderna da teoria do conflito o percebe como um
fenômeno natural nas relações entre seres vivos, possibilitando uma visão mais positiva
do conflito. (CNJ, 2016).
Os métodos extrajudiciais de resolução de disputas buscam aprimorar o acesso à
justiça, incorporando práticas tradicionais e inovações para promover um ambiente mais
eficaz e humano. Isso transforma o sistema judicial em um sistema de múltiplas portas,
adaptando-se às diferentes necessidades de cada conflito e fomentando relacionamentos
mais harmoniosos entre as partes em busca de acordos. No entanto, esses métodos
enfrentam resistência de profissionais do Direito tradicionais devido à sua abordagem
menos técnica e burocrática, que contrasta com a ênfase histórica na promoção de
litígios e conflitos.

4 OS MÉTODOS EXTRAJUDICIAIS DE SOLUÇÃO E CONTROVÉRSIAS COMO


FACILITADOR DO ÀCESSO A JUSTIÇA E EFETIVADOR DOS DIREITOS DA
PERSONALIDADE E DIGNIDADE HUMANA

A noção de acesso à justiça no ordenamento jurídico brasileiro é um princípio


fundamental que visa garantir que todos os cidadãos tenham a capacidade de buscar e
obter uma solução justa para seus conflitos legais, independentemente de sua condição
financeira, social ou qualquer outra forma de discriminação. O acesso à justiça é consagrado
na Constituição Federal de 1988 e é um dos pilares do sistema jurídico brasileiro.

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No contexto brasileiro, o acesso à justiça abrange diversos elementos, sendo


alguns deles: a gratuidade judicial, que prevê o direito à assistência jurídica gratuita
para pessoas que comprovem insuficiência de recursos financeiros para arcar com os
custos judiciais, garantindo o acesso aos tribunais mesmo para aqueles que não podem
pagar por um advogado. A Defensoria Pública, uma instituição que oferece assistência
jurídica gratuita aos cidadãos que não podem pagar por serviços de advocacia privada,
desempenhando um papel fundamental em garantir o acesso à justiça para a população
carente, e os Juizados Especiais, criados para lidar com casos de menor complexidade
e valor financeiro, oferecendo procedimentos mais simples e acessíveis, facilitando o
acesso à justiça para disputas de menor gravidade.
No início, nos séculos XVIII e XIX, a concepção de acesso à justiça estava
estritamente vinculada à capacidade financeira do indivíduo e à sua capacidade de arcar
com os custos de iniciar um processo legal. Além disso, esse acesso era fundamentado
em uma filosofia predominantemente individualista dos direitos, onde a prestação
jurisdicional era predominantemente formal, refletindo um Estado passivo que não
fornecia efetivamente uma resposta eficaz. Conforme as sociedades evoluíram e se
desenvolveram, houve uma transição do individualismo dos direitos para a promoção de
interesses e direitos coletivos. Isso levou ao reconhecimento e ao gradual desenvolvimento
do conceito de acesso à justiça. (Cappelletti; Garth, 1988).
No presente momento, o direito de acesso à justiça encontra sua previsão no
artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, sendo não apenas reconhecido como
um direito fundamental, mas também como um direito humano (Torres, 2005). Esse
direito desempenha um papel essencial no exercício da cidadania, e cabe ao Estado a
responsabilidade de desenvolver políticas e medidas para efetivar esse direito, garantindo
assim a entrega eficaz da justiça.
Um dos princípios mais importantes relacionados ao acesso à justiça é o da
universalidade, que implica que todos os cidadãos têm o direito de buscar o Poder
Judiciário para a resolução de seus conflitos, independentemente de sua condição
financeira, social, étnica ou outra forma de discriminação. Isso é fundamental para a
promoção da igualdade perante a lei e a justiça.
Outro princípio fundamental é o da isonomia, que garante que todos sejam
tratados de maneira igual perante a lei. Isso significa que as barreiras econômicas não
devem ser um obstáculo para o acesso ao sistema de justiça. O princípio da efetividade
é igualmente relevante, assegurando que a prestação jurisdicional seja rápida e eficaz,
de modo a garantir a resolução justa e oportuna dos conflitos.
Em um modelo de justiça anterior, o processo era notoriamente caracterizado pela
lentidão e ineficácia na busca por uma justiça efetiva, muitas vezes levando as partes
a abandoná-lo. A jurisdição era a única alternativa para resolver conflitos, seguindo um
padrão adversarial, dialético, autocrático, coercitivo, burocrático e não participativo.
Nesse cenário, um litigante era sempre considerado vencedor e o outro perdedor
(Castilho, 1970).
Os Métodos Extrajudiciais de Conciliação (MESC’s) surgem para simplificar e
agilizar o acesso à justiça, oferecendo uma alternativa mais rápida e econômica ao sistema
judicial tradicional. Eles também aliviam o congestionamento dos tribunais, promovem a
colaboração entre as partes em conflito e buscam soluções mais duradouras, reduzindo

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a insatisfação das partes com o processo de resolução de disputas.


Os direitos da personalidade são um conjunto de direitos fundamentais que
se referem à proteção da dignidade, da liberdade e da integridade moral e física das
pessoas. Esses direitos incluem a privacidade, a honra, a imagem, a identidade pessoal
e outros aspectos intrínsecos à individualidade de cada pessoa.O acesso à justiça é
essencial para garantir que os direitos da personalidade sejam protegidos e aplicados
quando violados. Quando alguém sofre uma violação de seus direitos da personalidade,
como difamação, invasão de privacidade ou calúnia, a capacidade de buscar reparação
legal é fundamental para restaurar a dignidade e a integridade da pessoa afetada.
A personalidade jurídica, conforme estabelecido no artigo 1º do Código Civil
Brasileiro, se refere à capacidade de adquirir direitos e contrair obrigações. Os Direitos
da Personalidade desempenham um papel fundamental nas relações sociais, pois estão
diretamente relacionados à proteção da dignidade humana. Eles são aplicáveis a todos
os indivíduos e se referem não apenas a aspectos físicos, mas também à integridade
moral e psicológica das pessoas. Assim, cada pessoa é titular desses direitos e pode
exercê-los em sua vida cotidiana.
O acesso à justiça é um elemento essencial em um sistema jurídico moderno e
igualitário, cujo propósito primordial é assegurar os direitos do cidadão. A Constituição
Brasileira, no artigo 5º, estabelece os direitos fundamentais da pessoa humana, incluindo
o direito ao acesso à justiça. Esse acesso é essencial para garantir que os direitos da
personalidade sejam protegidos e aplicados quando violados. Busca-se, portanto, uma
solução eficiente, célere, legítima e imparcial, com a efetiva e concreta proteção dos
direitos dos cidadãos. O acesso à justiça desempenha um papel crucial na inclusão
social, permitindo que todos tenham a oportunidade de buscar reparação quando seus
direitos são violados.
O objetivo do acesso à justiça é proporcionar às pessoas a oportunidade de
resolver seus conflitos por meio da intervenção do Estado. Além disso, o acesso à justiça
é um direito fundamental que desempenha um papel fundamental na promoção de outros
direitos, uma vez que é por meio dele que se busca assegurar a proteção de todos os
demais direitos quando estão ameaçados ou violados.
O princípio do “Acesso à Justiça” é fundamental no sistema jurídico e está
presente no novo Código de Processo Civil de 2015 em contextos como a cooperação
jurídica internacional e a petição inicial. Além disso, a Constituição Brasileira de 1988,
no artigo 5°, XXXV, assegura que nenhuma lesão ou ameaça a direitos será excluída da
apreciação do Poder Judiciário, incorporando o princípio do “Acesso à Justiça”, que pode
ser interpretado como o direito de buscar reparação perante o Poder Judiciário. (Bezerra,
2001).
O sistema jurídico, embora deva ser igualmente acessível a todos, muitas vezes
é complexo e oneroso, o que desencoraja pessoas com recursos financeiros limitados
a buscar proteção de seus direitos. Os custos legais, incluindo honorários advocatícios,
custas judiciais e despesas com documentos, podem ser proibitivos, criando desigualdades
entre aqueles com maior poder aquisitivo.
A complexidade do sistema legal exige conhecimento jurídico especializado, o
que pode ser um obstáculo para aqueles sem acesso a orientação jurídica adequada.
A lentidão dos processos judiciais, que podem se arrastar por anos, é especialmente

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prejudicial para pessoas enfrentando situações urgentes, como questões de moradia ou


família. A falta de recursos para obtenção de evidências e testemunhas também é um
desafio, tornando difícil para pessoas em situação de vulnerabilidade coletar provas em
seu favor. Essas barreiras comprometem o acesso à justiça e a confiança no sistema
legal.
Essa dificuldade para acessar a justiça na via tradicional pode dificultar
significativamente a tutela dos direitos da personalidade. Isso ocorre porque os custos
envolvidos, como honorários advocatícios e despesas judiciais, juntamente com a
complexidade do sistema legal, podem criar barreiras substanciais. Isso pode resultar
em dificuldades para as pessoas obterem representação legal adequada e seguir
os procedimentos necessários para proteger direitos como a dignidade, a honra, a
integridade física e moral, bem como a liberdade.
A resolução de conflitos por meio de métodos extrajudiciais representa uma
abordagem inovadora que pode contribuir significativamente para a busca de soluções mais
eficazes e céleres, eliminando a necessidade de recorrer ao sistema judiciário. Métodos
como a mediação e a conciliação, por exemplo, oferecem a oportunidade de alcançar
acordos mutuamente satisfatórios, ao mesmo tempo em que enfatizam a autonomia das
partes envolvidas e sua responsabilidade na resolução dos desentendimentos (Mendes,
2014).
Os métodos extrajudiciais de solução de controvérsias apresentam-se como um
importante instrumento para a promoção de uma cultura de pacificação social e para a
construção de um sistema jurídico mais eficiente e efetivo. A negociação, a mediação e
a conciliação são técnicas que permitem a solução de conflitos de forma rápida e eficaz,
preservando a relação entre as partes e garantindo a dignidade humana. (Carvalho,
2019).
Nesse sentido, os métodos extrajudiciais de solução e controvérsias, através de
seu papel facilitador, atuam como meios alternativos de promoverem o acesso à justiça
por vias mais facilitadoras do que quando comparadas aos meios tradicionais. Auxiliando,
diretamente, na proteção da personalidade do indivíduo quando essa é prejudicada por
outrem. No contexto dos direitos da personalidade, que abrangem áreas tão sensíveis
como a integridade física, privacidade e imagem de uma pessoa, é vital assegurar que as
disputas relacionadas a esses direitos sejam tratadas com respeito à dignidade de todas
as partes envolvidas. A via tradicional de justiça frequentemente envolve procedimentos
morosos, despesas substanciais e um ambiente formal que pode ser intimidante. Os
Métodos Extrajudiciais de Solução de Conflitos (MESC’s) oferecem uma alternativa mais
humanizada, permitindo que as partes envolvidas desempenhem um papel ativo na
busca de soluções.

CONCLUSÃO

A presente pesquisa dedicou-se a uma análise aprofundada dos direitos da


personalidade, examinando suas revisões ao longo do tempo, princípios basilares
e diferentes espécies. Nesse contexto, foi igualmente explorada a questão crucial do
acesso à justiça e os desafios representados pela morosidade da via tradicional de
busca por justiça. Ficou claro que parte significativa da população encontra dificuldades

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substanciais ao tentar acessar a justiça através desse meio, devido à lentidão dos
procedimentos judiciais e aos custos envolvidos.
A morosidade e os custos associados à via tradicional de justiça resultam em
obstáculos substanciais para a efetivação dos direitos da personalidade. Essa situação
cria uma disparidade injusta, impedindo muitos indivíduos de proteger seus bens mais
essenciais, como a integridade física, a privacidade e a imagem.
Diante desses desafios, surge os métodos extrajudiciais de solução de conflitos
(MESCs). Estes se apresentam como um meio inovador e eficaz de acesso à justiça,
oferecendo uma abordagem mais ágil e acessível para a resolução de disputas
relacionadas aos direitos da personalidade. A mediação, por exemplo, promove a
comunicação direta entre as partes, facilitando o entendimento mútuo e a busca por
acordos consensuais. A arbitragem, por outro lado, proporciona um processo mais
rápido e adaptável, com a possibilidade de escolher árbitros especializados no tema em
questão.
Em suma, os métodos extrajudiciais de solução de conflitos emergem como um
meio alternativo e efetivo de acesso à justiça, que atende às necessidades das partes
envolvidas e contribui para a proteção dos bens da personalidade. Dessa forma, eles se
destacam como um elemento crucial na busca por uma sociedade mais justa e equitativa,
onde todos possam efetivamente resguardar seus direitos fundamentais de maneira
eficaz e acessível, superando as barreiras representadas pela morosidade e custos da
via tradicional de justiça.

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Data de submissão: 08 out. 2023. Data de aprovação: 29 mar. 2024

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