Remorso Póstumo - Charles Baudelaire
Remorso Póstumo - Charles Baudelaire
Remorso Póstumo - Charles Baudelaire
AUTORIA
Nascido em Paris no ano de 1821, Charles Baudelaire é um dos principais nomes
quando o assunto é a influência sobre a poesia moderna. Para tanto, o poeta reúne uma
sucessão de acontecimentos em sua conturbada vida que começa com a morte do pai,
aos seus seis anos de idade, a mudança de cidade, o segundo casamento de sua mãe
e a expulsão da escola militar de Lyon. Esses são alguns dos fatos que parecem
condicionar a personalidade rebelde do jovem Baudelaire.
Aos dezessete anos, o poeta escreve o poema intitulado Incompatibilité
(Incompatibilidade), título que já evidencia a tonalidade do que viria a ser o estilo
baudelairiano. Com essa mesma idade, a mãe e o padrasto, na tentativa de afastar o
jovem poeta da vida boêmia que levava na França, o embarcam em um navio para a
Índia, mas ele consegue fugir e retornar a Paris, onde irá dar continuidade aos seus
escritos impulsionados por seu modo de vida altamente destrutivo.
Em 1843, o poeta estreia numa publicação de poemas chamada Vers, muda-se
para um famoso hotel parisiense chamado Pimodan e passa a conviver com grandes
nomes das artes da época, como Theóphile Gautier e Fernand Boissard. É nesse
contexto que reencontra Apolonie Sabatier, uma conhecida cortesã da cidade e musa
inspiradora de pintores e poetas, que viria a se tornar a grande paixão de Baudelaire.
O poeta deu continuidade às suas publicações, que vão desde poemas avulsos
a ensaios de crítica artística. Em 1852, publicou uma biografia de Edgar Alan Poe e, no
ano seguinte, traduziu o aclamado poema do poeta estadunidense, “O Corvo”. Mas é
em 1855 que a publicação de dezoito poemas na revista Revue des Deux Mondes
provoca extrema e negativa reação da sociedade conservadora de Paris. A essa
coletânea de poemas seria dado o título de “As Flores do Mal”, a grande obra de Charles
Baudelaire.
Com o sucesso da publicação, o poeta recebe a proposta de publicação da
coletânea como um livro, que se dá em junho de 1857. Menos de um mês depois, a
crítica do jornalista Gustave Bourdin acusa Baudelaire e sua obra de “atentar contra a
moral e os bons costumes”. A publicação sofreu uma série de censuras, supressão de
versos de alguns poemas e a exclusão de seis textos inteiros. Apenas em 1949 é que a
obra teve sua sentença reformada judicialmente e o acesso aos textos integralmente
passou a ser possível.
Em 1861, o poeta escreve uma carta a sua mãe que dá início ao processo de
reaproximação e regeneração da relação entre mãe e filho. Nessa mesma época, o
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poeta é indicado para concorrer à Academia de Letras Francesa, mas, visando evitar os
confrontos no meio conservador das artes francesas, o poeta renuncia à sua
candidatura. Por esse mesmo motivo, muda-se para a Bélgica, na esperança de
encontrar um cenário mais favorável ao seu estilo de escrita, mas se decepciona e
retorna a Paris, onde, depois de manifestar os sintomas de afasia e hemiplegia e com
um quadro de sífilis agravado, vem a falecer em 31 de outubro de 1867, aos 46 anos,
nos braços de sua mãe.
Charles Baudelaire é considerado o pai do Simbolismo, mas, pelo caráter
transgressor de seus temas e pela acusação da fragilidade da tradição, é um grande
influenciador do movimento modernista também.
MOVIMENTO
OBRA
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Impedir de querer e arfar teu coração,
E teu pés de correr por trilha aventurosa,
O poema “Remorso Póstumo” faz parte de “As Flores do Mal”, obra que é
publicada em forma de livro no ano de 1857 e é considerada a obra prima de Charles
Baudelaire. É importante lembrar qual era o cenário da França em que o poeta viveu
para que seja compreendido o caráter revolucionário de sua obra. A década de 1820,
que é quando nasce o poeta de flores do mal, é marcada pela Revolução Industrial e
todas as suas consequências, que irão se desenrolar nos anos subsequentes. A maior
e mais importante dessas consequências é, sem dúvida, as alterações do estilo de vida
das pessoas, que passam a ser atravessadas pela velocidade das informações, dos
deslocamentos e das produções. Ou seja, é a vida moderna que se apresenta ao
homem europeu do século XIX.
É nesse contexto que Baudelaire, em suas flores malditas, exerce o poder
poético de captação do sentimento humano da época. A obra do poeta é responsável
por aliar o sublime sentimento do amor aos indesejados e grotescos temas humanos,
como o tédio, a melancolia, a descrença. Tudo isso produzindo o efeito de uma obra
que se presta a questionar o entusiasmo de uma sociedade que celebra o cientificismo
e a modernização como fatores positivos para humanidade. Baudelaire se apresenta na
contramão, evidenciando um espírito de descrença e pessimismo quanto a esses
supostos avanços.
“As Flores do Mal” é dividido em cinco ciclos: Tédio e Ideal, Quadros Parisienses,
O Vinho, As Flores do Mal, Revolta e A Morte. Em sua primeira publicação, a obra
apresentava o conjunto de 100 poemas. Após os processos de censura e a póstuma
descoberta de anotações de Baudelaire, a obra ganhou novas edições com quantitativos
diferentes de textos, além da reinserção dos poemas censurados.
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De forma geral, “As Flores do Mal” apresenta poemas cuidadosamente musicais
no formato de versos alexandrinos (com doze sílabas poéticas) repletos de sinestesias
e metáforas, que indicam a linguagem sugestiva do poeta, designado como o pai do
Simbolismo.
O poema apresenta um índice de interlocução já no primeiro verso. O eu lírico
se dirige, a partir de um vocativo, a uma “bela tenebrosa”, que na última estrofe é
chamada de “cortesã indiscreta”. Logo, o poema é direcionado a uma figura feminina e,
nesse aspecto, destaca-se a função apelativa da linguagem.
O texto inicia com uma conjunção subordinativa adverbial que imprime valor
temporal para o poema. Observe que os dois quartetos são introduzidos por essa
conjunção, ou seja, há uma sequência de orações subordinadas adverbiais temporais,
que correspondem às duas primeiras estrofes do poema.
Quando fores dormir, ó bela tenebrosa [...]
Quando a pedra, a oprimir tua carne medrosa [...]
Essas orações subordinadas têm como oração principal o conteúdo que se
apresenta nos tercetos do poema, de forma que é possível reorganizar a disposição das
orações e, excluindo o excesso de detalhes, sintetizar o texto da seguinte forma:
O túmulo te dirá, quando fores dormir e quando a pedra te impedir de
querer e teu coração de arfar: “de que valeu ao pé dos mortos ignorar o seu
lamento?”
Dessa forma, é possível concluir que o poema se trata de uma previsão de
expectativa da voz lírica, que imagina a morte de uma mulher, como ela será cobrada
por suas ações (o ato de ignorar o lamento dos mortos) e, por fim, consumida pelo
remorso, que se materializa na forma do verme.
Baudelaire é conhecido por ser um poeta que desenvolveu tematicamente
algumas das tendências românticas. Em “Remorso Póstumo”, destaca-se a temática da
morte e da mulher em meio a uma atmosfera fúnebre e pessimista. Essa afirmativa é
sustentada pela formação do campo semântico composto por palavras como
“mausoléu”, “cova”, “tumba”, “túmulo”, “mortos”, etc. O Locus Horrendus, característico
da 2ª geração romântica, é revivido por Baudelaire com a caracterização da paisagem
chuvosa e deserta, como se nota no último verso do primeiro quarteto.
A partir da análise sintática, chega-se à conclusão de que o texto consiste em
uma suposição que pensa, em forma de previsão, o que acontecerá no futuro com a
chamada “bela tenebrosa”. De forma geral, o eu lírico prevê que essa mulher, também
chamada de “cortesã indiscreta”, será consumida pelo remorso depois de morta, o que
já é anunciado pelo título do poema.
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Nessa previsão, são apresentados detalhes que produzem o efeito visual do
texto de forma que os esforços da voz lírica se concentram em descrever a imagem da
mulher em seu túmulo. São detalhes visuais, como em “negro e marmóreo mausoléu”,
mas também aspectos que remetem ao tato, como em “a pedra a oprimir a tua carne
medrosa”. A exploração dos sentidos imprime ao poema propriedades sinestésicas, o
que é característico de Baudelaire e de todo o Simbolismo.
O primeiro terceto apresenta um significativo detalhe acerca da temática desse
poema: o eu lírico se apresenta como um poeta. Nesse ponto, é possível realizar
algumas associações memorialísticas entre o texto e a biografia de Baudelaire. É de
conhecimento geral que o poeta foi apaixonado por uma cortesã (prostituta que atendia
às altas classes da sociedade) e que isso influenciou a condução de sua vida e,
sobretudo, de sua escrita. A associação de vida e obra, bem como a noção de poesia
como fruto de inspiração e de vivências, é uma proposta de intervenção simbolista sobre
a visão racionalista e técnica da poesia parnasiana, vigente à época.
“Remorso Póstumo” é o 33º poema do livro “As Flores do Mal”, especificamente
no ciclo denominado “Tédio e Ideal”. Trata-se de um texto do gênero lírico pertencente
ao movimento simbolista da França.
ESTRUTURA
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• Disposição de rimas: o poema obedece ao esquema de dois quartetos
interpolados (ABBA), um terceto alternado (CDC) e um terceto com a disposição
DEE. Nesse último caso, não há um nome específico para o terceto, mas pode-
se afirmar, por exemplo, que os últimos dois versos são pareados.
• Rimas internas: além das rimas que se apresentam no fim dos versos, é
possível notar que o poeta faz uso recorrente de combinações sonoras no
interior deles. Na primeira estrofe, temos o caso de “alcova/cova”, na segunda
“correr/querer” e na terceira “sonho/abandono”.
• Aliterações e assonâncias: conhecidas como figuras de linguagem típicas do
Simbolismo por seu caráter sonoro, esses dois recursos consistem na repetição
de sons consonantais e vocálicos, respectivamente. Em “Remorso Póstumo”,
um caso de aliteração se dá em “marmóreo mausoléu”, pois há a repetição do
fonema [m]. Já a repetição do som “ó” é muito presente na primeira estrofe, a
partir do destaque tônico nas palavras “alcova”, “cova”, “tenebrosa” e “chuvosa”.